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O PASSADO PERDIDO / Violet Winspear
O PASSADO PERDIDO / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PASSADO PERDIDO

 

O avião caíra no deserto durante uma tempestade. Não houve muitos sobreviventes, mas dentre eles estava a noiva de Armand Gerard.

O jovem francês voltava para casa a fim de visitar a plantação de tâmaras pertencente à família, em El Kadia, no Saara. Roslyn Brant estava com ele. Era uma linda comissária de bordo, que Armand pretendia apresentar à família, depois de um curto namoro.

Agora Armand estava morto e ela numa cama de hospital, vítima de amnésia, atendida carinhosamente pelas freiras de El Kadia, um oásis que, com o tempo, se transformara em cidade, cheia de palmeiras, arcadas e casas muito brancas, ao redor do lago de Temcina.

Toda a roupa de Roslyn se perdera no acidente, mas embora inconsciente ela apertava a mão direita protegendo um anel de brilhante. Seu anel de noivado, que ela certamente estivera admirando pouco antes do desastre, talvez meditando nas palavras inscritas nele: "Estaremos juntos para sempre", palavras simples e confiantes...

Armand escrevera à sua família, informando que pretendia levar sua noiva até a plantação de Dar al Amra e algumas semanas depois do acidente, a avó dele afirmara a Roslyn que iria até lá para retomar a direção da fazenda e tentar ajudá-la a recuperar a memória. A velha senhora achava que era uma bênção, no momento, que ela não se lembrasse da tempestade, do acidente e da trágica morte de seu noivo.

Nem de seu nome ela se lembrava. Foi preciso que outras pessoas lhe dissessem que tinha vinte e dois anos de idade, que era comissária de bordo e que sua casa na Inglaterra era em Airfield, no Middlesex.

— Minha pobre filha! — Madame Gerard segurava a mão de Roslyn. — Amanhã você estará longe daqui. Voltará para casa conosco onde poderá ter um pouquinho de Armand.

— Mas eu... Não posso me impor à senhora... — Roslyn estava insegura e perturbada. — Não precisa se sentir responsável por mim só por causa do...

— Armand a amava e queria se casar com você. — Madame Gerard a encarava, por um momento, fria e altiva na sua bela figura, com seu cabelo prateado. — Nós do Dar al Amra queremos que fique conosco pela sua saúde e pelo amor que tinha por Armand. Não estamos lhe oferecendo caridade!

Roslyn corou, sensibilizada. — Desculpe, madame, por eu ter sido obstinada. É muito generoso de sua parte querer que eu fique uns tempos na plantação.

— Você é inglesa. Tenho um genro que é, como você diz, obstinado em seu britânico orgulho Tudo perdôo, minha pequena, se você nunca falar em imposições. — Madame Gerard sorriu. Com sua maquilagem cuidadosamente aplicada era difícil determinar sua idade. Seu vestido tinha um toque parisiense de extremo bom gosto, e a cor cinza dele e dos cabelos fazia sobressair o azul dos olhos.

— Até amanhã, minha filha. — Abaixou-se e beijou Roslyn na face: — Au revoir.

— Au revoir, madame. — Um delicioso aroma permaneceu ainda naquele quarto de hospital depois que a "eminência parda" de Dar al Amra saiu.

Madame Gerard devia ter amado muito seu neto, pensou Roslyn, e pela centésima vez olhou a fotografia de Armand, estudando suas encantadoras feições, seus olhos sorridentes e sobrancelhas espessas.

Ficou sentada por um longo tempo, segurando a fotografia, como uma calma Cinderela sem lágrimas, cujo sapatinho se tivesse espatifado e seu príncipe encantado morrido. Somente o brilho de seu anel provava que ela conhecera e fora amada por um homem que agora lhe era totalmente estranho. Levantou-se da poltrona onde estivera descansando e dirigiu-se para um espelho que pendia da parede. Estudou-se detidamente. Nada havia de especial em suas feições. O que teria Armand amado nela? Pela foto era um homem charmoso e devia ser perdoado por amar uma criatura sem graça como ela, que poderia ser um pouco mais atraente antes do desastre e da perda de seus longos cabelos. Madame Gerard lhe dissera que tinham sido cortados ao dar entrada no hospital.

— Roslyn Brant. — Disse o próprio nome em voz alta. Suas sobrancelhas se ergueram no esforço para se lembrar. — Roslyn e Armand...

Esses nomes nada significavam para ela. Sua memória sumira como fumaça e tudo que restava eram lágrimas. Mas com a bondade da família dele poderia um dia voltar à Inglaterra que lhe parecia agora mais estranha que esse lugar chamado El Kadia.

Madame Gerard falara um pouco sobre a fazenda, que se estendia por muitas milhas, com as mais finas e produtivas tamareiras do Saara, e que era dirigida por seu neto, Duane Hunter. Seu pai tinha sido um inglês orgulhoso e obstinado, que casara com sua filha Celeste e que a levara para viver numa plantação diferente na Guiana Inglesa. Celeste morrera quando o garoto contava dez anos de idade. Duane recebera sua educação na Inglaterra e retornara depois para ajudar seu pai a dirigir uma fazenda do governo.

Há quatro anos, quando Duane tinha vinte e sete anos, seu pai decidira que ele deveria ir fazer a vida na Inglaterra. Mas ao mesmo tempo, madame Gerard o convidara para vir para Dar al Amra, assumir o lugar dela. O filho que a ajudava há muitos anos morrera, e Armand completava seus estudos na Europa, enquanto Tristan, seu irmão, estava muito mais interessado em música do que na produção de tâmaras.

Fascinada com o nome da fazenda, Roslyn perguntou o que significava. — Significa Casa do Amo. — E acrescentara sorrindo: — A casa da fazenda foi há tempos residência de um rico Aga, que tinha um vasto harém, e nosso principal pátio é chamado até hoje de pátio dos Véus.

Apesar de ter todo o passado apagado da mente, Roslyn estava ansiosa para ir a Dar el Amra e conviver com esses fazendeiros franceses. Antes do casamento, madame Gerard fora uma famosa atriz. Nina Nanette, a querida de toda Paris, até que Armand Gerard, um rico plantador de tâmaras do deserto, apareceu em sua vida, bebeu champanhe em seu sapato e a conquistou para sempre.

— Não é sempre que se encontram homens como ele — suspirou. — Sabem amar e ferir, fazer da vida de uma mulher um inferno ou um paraíso! Poderia encontrar paz com um homem mais gentil, mas como sentiria falta da luta e do amor do dia-a-dia!

— Era... o jovem Armand como ele? — perguntou Roslyn.

— Seu Armand era charmoso, alegre e um bom menino. Teria feito sua vida suave e feliz; mas não falemos disso. Você tem mais com que se preocupar; o ferimento de sua pobre cabeça e a perda de sua memória.

Era estranho e assustador nada saber de si mesma senão o que outras pessoas lhe contavam. Não possuía família na Inglaterra e só recentemente soubera que sua melhor amiga, uma moça sem ninguém como ela, também comissária de bordo, havia morrido no desastre. Seu nome era Juliet Grey e morava com ela no mesmo pensionato, em Londres.

As horas passaram-se rapidamente, e, cumprindo sua promessa, madame Gerard chegou cedo para buscá-la. Como tudo se perdera de sua bagagem, Nanette, como madame Gerard insistia em ser chamada, fizera algumas compras. Trouxera-lhe umas roupas de baixo, um vestido de linho muito fresco, uma bolsa de ráfia, um lindo par de sandálias e um chapéu de sol.

Roslyn não sabia como agradecer. Nanette dispensou seus agradecimentos com um gesto de enfado, mais concentrada em ver que o vestido assentava muito bem na esbelta figura de Roslyn. Havia um batom e um pó compacto na bolsa, e Nanette observava criticamente Roslyn aplicá-los.

— Não seja tão comedida no colorido, minha querida. Seu rosto pálido precisa de realce! Ah! Mas espere até viver no deserto por uns tempos! O sol se encarregará de você! Sabe montar? De qualquer forma, Tristan e Duane poderão lhe ensinar. Nada melhor para a saúde do que um galope cedinho num bom cavalo.

Roslyn reteve a respiração: nunca em sua vida se vira em cima de um cavalo.

— Gostaria de aprender equitação. Os cavalos árabes são muito impetuosos?

— Naturalmente — disse Nanette imperturbável. — Mas você é uma menina corajosa; ou não seria aeromoça, nem teria amado um Gerard.

— São os Gerards tão atemorizantes? — Por trás do sorriso de Roslyn se escondia um ligeiro temor, um temor que não tinha razão de ser, pelo muito carinho que lhe dispensava Nanette.

— Vivemos num deserto e isso talvez nos torne um tanto selvagens com respeito a algumas coisas — disse ao calçar as luvas. — Agora, querida, para Dar al Amra. Está ansiosa?

Roslyn assentiu e enquanto saía do hospital sorriu para as bondosas freiras que a haviam tratado e sentia uma certa apreensão por saber que ia encontrar Tristan e Duane Hunter. Soubera que Tristan estava compondo uma ópera baseada na lenda de uma das favoritas do Aga de Dar al Amra. Seu nome fora Nakhla, linda como a palmeira, e um oficial francês se apaixonara por ela. Disfarçado num visitante velado, conseguira entrar no harém para ver Nakhla. Mas o Aga descobriu e presenteou sua favorita com a cabeça do oficial numa cesta!

Roslyn pensou que teria gostos em comum com Tristan, mas seu primo lhe parecia mais misterioso.

Um carro, com um árabe uniformizado, aguardava-as no portão do hospital, e logo estavam rodando pelas movimentadas ruas da cidade, onde as casas de telhados achatados e paredes caiadas ou pintadas de ocre ou azul-cobalto reverberavam ao sol. Arcadas semelhantes a favos de mel abrigavam lojas onde se liam nomes estranhos como Hand e Fatma.

Pelas janelas abertas do carro vinha um cheiro adocicado, e Roslyn reclinou-se no banco enquanto o carro dava passagem a árabes de todas as tonalidades e via desfilarem mesquitas com suas cúpulas azuis, seus minaretes e camelos com suas lúgubres cabeças presas no portão de um fondouk.

— É como estar num outro mundo — comentou. Seus olhos encontraram os de Nanette, cuja expressão era triste e séria, e achou que talvez ela pensasse em Armand.

Logo deixaram a cidade para trás e corriam por uma estrada através do deserto. Seriam umas dez horas, e o sol inclemente queimava. O carro tinha ar condicionado, mas Roslyn começava a sentir calor. O brilho das areias ofuscava seus olhos e a reverberação das encostas das cerradas montanhas ao longe pareciam luminosas escadas subindo aos céus.

— Lá está o Gebel d'Oro — explicou Nanette. — Vistas de perto aquelas montanhas têm uma estranha coloração. Parecem chamas petrificadas. Lá, bárbaros e bandidos têm seus esconderijos.

— Ainda hoje em dia? — perguntou Roslyn.

— Isto é o Oriente, minha querida. — Nanette acendeu um cigarro fixado na ponta de uma piteira. A fumaça do tabaco doce e forte encheu o carro. — Os homens daqui nunca serão completamente civilizados, e o deserto abriga lobos, leopardos e salteadores que nem sempre são quadrúpedes e alados...

Roslyn estudava sua benfeitora. — A atriz que há na senhora gosta de situações dramáticas, não? Confesse que eu a intrigo porque perdi a memória. Sou como uma tempestade latente a quem a senhora oferece abrigo em sua casa...

Nanette riu. — Sim, é verdade, você me intriga, minha filha. Devo admitir que quando a vi pela primeira vez, toda enfaixada, magra como um rapaz, não pude entender a atração de meu encantador Armand por você. Somente pude supor que ele se tivesse deixado envolver por seu ar misterioso de quem esconde alguma coisa.

Houve um breve e tenso silêncio. Roslyn podia sentir as descompassadas batidas de seu coração com o que Nanette dissera. Então era assim que ela encarava a questão? Pensava que Roslyn tinha algo a esconder e o fazia atrás da máscara da falsa amnésia?

Olhou através da janela para esconder a súbita tristeza dos olhos. Percorriam um caminho que cortava as plantações de Dar al Amra e as imensas palmeiras sombreavam a suave estrada com suas folhas enormes.

Roslyn sentiu no dedo da mão direita o anel de diamante. "Estaremos juntos para sempre", dizia a inscrição. Mas ela não conseguia se lembrar dele, nem de quando lhe dissera essas palavras meigas ou lhe colocara no dedo o anel.

Não se lembrava de nada! Seus pensamentos foram interrompidos pelo canto selvagem de um pássaro entre as árvores, e a seguir muitos outros ecoaram pelo ar. Era fresco sob as árvores, e a estrada apresentava manchas douradas pelo sol que se infiltrava por entre as folhas.

Roslyn viu homens trabalhando por entre as árvores, e Nanette explicou-lhe que brevemente os frutos seriam colhidos, empacotados e transportados para o porto, de onde partiriam para todas as partes do mundo. — As tâmaras de Dar al Amra são famosas — disse Nanette orgulhosamente. — Temos também amêndoas, olivas, laranjas, abricós, marmelo e figos. Nosso solo é muito fértil. Também meu neto Duane é um homem de muitas idéias, e devo confessar que agora produzimos muito mais frutos do que quando eu dirigia isto aqui sozinha.

Grandes cachos de frutos cor de âmbar apareciam por entre o verde, e quando o carro virou à esquerda, Nanette mostrou-lhe uma casa de estilo mourisco, no meio da plantação. Era toda branca e tinha na parede da frente uma trepadeira vermelha como fogo. A visão era bonita, mas dava uma idéia de solidão.

— Duane desejou viver sozinho quando aqui chegou — disse Nanette —, por isso ocupa a casa do administrador. A casa sempre me pareceu solitária, plantada no meio das árvores, mas Duane é teimoso. — Riu e tirou uma baforada do cigarro. — Tem uma vontade de ferro e é capaz de oprimir uma mulher até conseguir o que quer.

Logo a solitária casa de Duane ficou para trás e começaram a atravessar um laranjal que, por estar todo em flor, exalava delicioso perfume. Roslyn respirou fundo, sentindo o prazer de estar viva, quando a entrada mourisca de Dar al Amra apareceu com suas paredes creme.

O carro entrou na grande ferradura do pátio, chamado pátio dos Véus, onde há muitos anos atrás as favoritas do harém vagueavam, com seus olhos tímidos ou provocadores, espiando por trás dos véus de gaze. Roslyn saltou do carro e olhou extasiada o brilho dos mosaicos, o triângulo de fontes e a enorme e frondosa árvore que tudo sombreava, colorindo de verde o pátio todo... Havia algo de simbólico e encantador naquela árvore. Seus galhos se espalhavam e suas folhas pareciam de jade.

— Não creio ter visto algo mais maravilhoso em minha vida — disse para Nanette e, quando se virou para olhá-la, seus olhos brilhavam.

— El Kadia tem ainda inúmeras surpresas mais para você — disse sorrindo. — Agora entremos. Oh! Você está ouvindo a música? É o meu Tristan tocando parte da ópera que está compondo.

Seguiram, sempre ouvindo o piano, por um largo corredor de arcos e pararam quando Nanette entrou no salão. Este era vasto, com o pé-direito muito alto, o teto forrado de cedro, com divãs e mesas baixinhas, sobre maravilhosos tapetes orientais. Os lustres eram verdadeiras jóias de cristal.

— Grand-mère! — O rapaz de um salto veio-lhes ao encontro. Devia ter uns trinta anos, pensou Roslyn. Estatura mediana, cabelos pretos, olhos latinos e... as feições de seu irmão!

Roslyn devia ter empalidecido, pois, ao tomar-lhe as mãos, com um sorriso, seus olhos revelavam preocupação, e seus dedos pressionavam calorosamente os seus.

— Seja bem-vinda, Roslyn. Está se sentindo bem?

Como sua avó, falava um excelente inglês, e Roslyn suspirou aliviada. Se um dia soubera falar o francês, agora estava perdido para ela, como tudo o mais antes do desastre. Perdido como Armand... o homem que devia ter amado e que deveria ter a mesma voz de Tristan: cheia de calor e simpatia.

— Minha mente ainda está branca — respondeu. — Mas fora isso, sinto-me bem, obrigada.

— Deve se sentir como um recém-nascido! — Seu sorriso mostrava uma fileira de dentes alvos e bonitos. — Imagino como seria renascer adulto e pronto para colher novas sensações e impressões!

— Você, meu encantador sátiro — disse a avó —, vá já providenciar um bom café para essa moça e para mim. Estou cansada da viagem e Roslyn já teve mais do que suficientes impressões para uma manhã!

Tristan arqueou as sobrancelhas para sua adorável avó e dirigiu-se para o corredor e bateu palmas. Uma sombra branca materializou-se e logo depois se foi, enquanto Nanette se afundava nas almofadas de um divã com um longo suspiro.

— Sente-se minha filha — ordenou Nanette, ao que Roslyn obedeceu, sentando-se num coxim de tapeçaria. Novamente se viu a examinar a sala, o enorme piano e o homem que se encostava nele, observando-a, sem cerimônia. Usava uma camisa areia e calças pretas. Roslyn baixou os olhos para suas sandálias árabes.

— O que está achando de nosso domínio no deserto? — perguntou. — Ou de se encontrar aqui nesta terra de fatalistas?

— Sinto-me como se tivesse saído da terra de ninguém, para um lugar que eu... — hesitou, pois posto em palavras o que sentia era muito melodramático.

— Continue... Não suporto ficar em suspense! — disse Tristan.

— Bem — disse Roslyn, vendo uma ponta de maldade nos olhos dele, o que mais a encorajava do que a dissuadia —, os mistérios do deserto não me assustam. É como se eu tivesse planejado vir aqui.

— Um sentimento muito natural, dadas as circunstâncias — disse Nanette secamente. — Armand tinha dito que a traria aqui, não é? Deve ter-lhe falado a respeito da família no deserto e, embora não se lembre do que exatamente ele lhe disse, você nos aceita por causa dele.

— Que diplomacia você tem para tratar uma encantadora mulher, Nanette — brincou Tristan afetuosamente.

Nanette sorriu contemplando as unhas polidas com ar coquete: — É o segredo das francesas, meu querido; sabem ser práticas, sem contudo perder o charme!

Uma silenciosa criada entrou na sala nesse momento, trazendo uma bandeja onde se via uma jarra de cerâmica fumegando, xícaras de café e lindas tortas que pareciam saborosas. O cheiro apetitoso do café fresco enchia a sala, enquanto Nanette servia as xícaras e os três saboreavam as tortas, quando firmes passadas se ouviram vindo pelo corredor.

Roslyn viu parado junto à porta um homem com um chapéu cuja aba caía de um lado. Ele tirou-o vagarosamente, deixando à mostra seu espesso cabelo castanho.

"Em guarda", pensou Roslyn. Havia algo naquele olhar que a fazia desejar estar longe dali.

— Chegou bem a tempo para o café, meu querido — disse Nanette. Olhou para Roslyn enquanto levantava a jarra e sorriu divertida. — Por favor, não fique tão apreensiva, minha filha. Este bárbaro do deserto é meu neto. Duane, esta é a garota com que nosso Armand ia se casar.

Cruzou a sala em largas passadas e se colocou na frente dela. Para olhá-lo, tinha que levantar a cabeça, tão alto era ele, olhando-a desafiadoramente.

— Co... como vai, sr. Hunter? — Estendeu a mão, mas ele a ignorou. Com os polegares enfiados nos bolsos da calça, continuava observando-a com os olhos semicerrados.

— Então você é Roslyn Brant? — Sua voz soava dura como o olhar. — Fazia uma idéia diferente de você. Engraçado, não?

Sua maneira de falar pareciam chicotadas e Roslyn levantou-se atrevidamente para responder-lhe: — Pois imaginei exatamente como o senhor seria, Sr. Hunter. E não é nada engraçado.

 

— Touché! — caçoou Tristan, enquanto seu primo se sentava ao lado da avó que lhe servia uma xícara de café.

— Por falar nisso, onde está Isabela? — acrescentou Tristan. — Pensei que ela fosse cavalgar com você em sua inspeção.

Duane esvaziou a xícara e pediu mais. — Sua lírica convidada deveria restringir-se ao canto — replicou. — Obrigado, Nanette, eu estava seco como areia.

— Não me diga que Isabela caiu do cavalo e você a deixou por lá — brincou Tristan, enquanto acendia um charuto.

— Não foi bem assim. — Duane estirou as pernas e pôs-se a comer um pedaço de torta de frutas. — Não podia passar o dia todo brincando de plantador ocioso, portanto, ela foi forçada a acompanhar meu ritmo. Quando chegamos, há dez minutos atrás, chamou-me de bruto insensível em seu encantador português e foi para o quarto tomar um banho. Daqui a pouco aparece por aqui refrescada e num vestido novo.

— A moça tem razão, você é um bruto, Duane. — Sua avó riu, mas Roslyn notou uma ponta de nostalgia em sua voz. — Se houvesse alguma delicadeza em você, juro que a daria para as folhas das palmeiras no céu e para suas raízes na terra. Estou certa?

— Alguma vez esteve errada? — retrucou. Deliberadamente olhou para Roslyn sem sombra de simpatia no olhar, o que causou um imediato antagonismo por parte dela. Tristan era encantador, mas seu primo parecia não ter tempo para desperdiçar com mulheres... Assim que percebeu que ele fitava o anel de sua mão direita, a esquerda encobriu-a sem que ela tivesse consciência do que estava fazendo. Esse gesto teve o poder de tornar seu olhar ainda mais duro, semelhante ao do falcão antes de voar sobre sua presa...

Roslyn só percebeu o quanto estava tensa quando relaxou ao ouvir uma voz de mulher pelo salão. Virou a cabeça para ver a recém-chegada e o que viu foi um par de olhos negros por cima de um leque de rendas que escondia o resto do rosto como uma máscara. O entalhe do arco onde ela estava parada era uma perfeita moldura para sua linda figura, vestida de seda amarela, parecendo um raio de sol.

— O que eu disse sobre sua entrada na sala? — disse Duane indulgentemente brincalhão, enquanto seus olhos a percorriam de alto a baixo, e Isabela Fernão deixava cair o leque, revelando sua vibrante expressão latina.

— Mãe de Deus! — Em passos rápidos estava junto dele e delicadamente bateu-lhe com o leque na face morena. — Nunca mais abandonarei o aconchego de minha cama para andar a cavalo com você, seu tirano!

— Não a convidei para vir comigo — disse sorrindo, mas a diferença de estatura dos dois a fazia parecer uma frágil bonequinha. — Foi idéia sua me acompanhar, dona Sol.

— Meu nome é Isabela! — Seus olhos brilhavam perigosamente sedutores junto aos dele.

— Dona Sol é a impressão que você me dá. — Havia um pouco de malícia em seu olhar e ela, apesar de muito segura, encabulou, mas disfarçou, escondendo-se por trás do leque, deixando à mostra apenas seus negros e ligeiramente ondulados cabelos.

Os olhos de Roslyn encontraram os de Isabela Fernão.

— Ah! Você deve ser a noiva de nosso pobre Armand! A inglesinha que se feriu na cabeça. Como está se sentindo agora, querida?

Embora sua pergunta fosse gentil, demonstrava um pouco de condescendência. Isabela observava-a enquanto brincava, batendo suas bem cuidadas unhas no leque. Seu corpo tinha uma graça sedutora, que fazia Roslyn parecer uma criança, quase um moleque, com seus cabelos cortados curtinhos, devido ao acidente.

— Sinto-me bem junto a uma família muito interessante, senhorita — respondeu Roslyn levantando seu pontudo queixinho.

— Ah! A fada saída da Inglaterra e caída entre nós! — Enquanto falava, Isabela deixou-se cair nas almofadas de um divã e deu uma risada ao perceber o conjunto que madame Gerard comprara para Roslyn. O simples vestido branco enfatizava sua juventude e suas sandálias mostravam que as unhas não estavam tratadas como uma latina gosta de tê-las.

— O que quer tomar, Isabela? — Nanette a contemplava divertida. — O café ainda está quente, mas temos sucos de frutas.

— Quero um copo de heloua — Isabela sorria para os dois homens, mas foi Tristan quem lhe serviu um copo de suco de laranja gelado.

— Quer um pedaço de torta também? — perguntou ele.

— Um pedaço da de cereja, meu amigo. — Seus lábios eram da cor das cerejas da torta, o que revelava sua maliciosa intenção ao pedi-la.

— Deve ser muito estranho para você ter que refazer os pedaços de sua vida — disse Isabela para Roslyn. — Você se esqueceu de tudo?

Roslyn, consciente dos olhos de aço que a fitavam por entre a fumaça do charuto, cruzou as mãos nos joelhos. — Não me lembro de nada que me diga respeito — disse calmamente. — Os rostos das pessoas, os lugares que conheci, tudo é como um sonho longínquo. São como fantasmas... Eu tento, mas não consigo materializá-los.

— E será sempre assim? — Isabela só se preocupava consigo mesma, e seu olhar revelava mais uma ávida curiosidade do que simpatia.

Roslyn estremeceu ao verificar o alheiamente das pessoas ante o sofrimento das outras. Nanette era bondosa, embora a tivesse olhado com algumas dúvidas. Tristan era delicado porque essa era sua maneira de ser. Duane Hunter tinha demonstrado que não compreendia como seu primo fora se apaixonar por uma moça como ela. Seus olhos escuros tinham percorrido desde seu cabelo, sua face magra até seu esguio corpo. "Eu fazia uma idéia diferente de você"; dissera ele.

— Bem, lembre-se das palavras do médico — disse Nanette —, esqueça que não se lembra de nada, e deixe sua memória voltar por si. Não force. Espere uma chave que quebrará o encanto...

— Como a Bela Adormecida — disse Duane arrastando as palavras.

Isabela riu amarelo ao pensar na comparação. Olhando para Duane, visivelmente reparava naquela máscula figura de homem do deserto, cujos ombros apareciam sob a camisa branca que fazia maior contraste com sua pele queimada pelo sol. Como que fazendo parte de sua figura, segurava um pequeno chicote e batia-o de leve nas empoeiradas botas. Apagou o charuto no cinzeiro e levantou-se.

— Bem, ainda tenho algum serviço para fazer — anunciou, e dirigiu-se para a porta. —Au revoir.

— Duane! — Ao chamado da avó, parou e voltou-se para ela. — Você tem que agir todo o tempo como se fosse um condenado às galés, preso a seu remo?

— Não gostaria mais tarde de verificar a contabilidade, querida madame? Penso que ficará satisfeita! — afirmou ironicamente.

Aborrecida com ele, Nanette bateu os pés no esplêndido tapete. — Você não descansa o suficiente, meu filho. Não seria possível refrear um pouco sua vitalidade? Parece um lobo faminto, sempre pronto para caçar.

— Querida, eu a adoro! — Fez uma reverência e saiu da sala, mas seus passos eram ouvidos até o pátio dos Véus. Por algum tempo ainda Nanette permaneceu preocupada, mas depois se levantou e convidou Roslyn para ver o quarto que lhe tinha sido preparado.

— O que você vai fazer, Tristan? — Isabela estava reclinada no divã, com um braço preguiçosamente pousado numa almofada.

— Nós também vamos trabalhar, minha diva. — E dirigiu-se para o piano. — O Cri de Coeur da minha heroína está pronto e gostaria de tocá-lo com você cantando.

Toda a langorosidade dela desapareceu quando se levantou revelando a artista que adorava cantar. — Você terminou o canto de Nakhla debatendo-se entre o amor e o ódio? Ah! Você trabalhando e eu passeando por aí com Duane...

Tristan ocupava-se em remexer partituras. — Nakhla é uma mariposa esvoaçante que teme o amor, mas que sente não resistir-lhe — disse pensativamente. — É assim que eu a vejo, Isabela, e é assim que quero que a interprete para mim.

— Sua ópera parece ser interessante, Tristan — disse Nanette, tomando a mão de Roslyn.

— Amar é deixar-se queimar nas chamas da paixão e da desilusão, vovó. — Sentou-se ao piano e dirigiu-lhe um sorriso.

— Seu cinismo iguala-se ao de Duane — disse asperamente. — O amor pode ser uma emoção maravilhosa, mas vocês jovens de hoje o consideram quase uma batalha. Suponho que o final de sua ópera seja uma tragédia, querido, fazendo Nakhla se debater entre o fascínio de seu soldado e o amor de seu amo.

— Você é uma incurável romântica, vovó! — Tristan começou a dedilhar um trecho da Viúva Alegre ao piano. — Mas você não pode negar que Isabela morre maravilhosamente no canto do cisne.

— Vamos, maestro! — Isabela junto ao piano pedia sua partitura, enquanto Roslyn seguia Nanette que saía do salão.

— Esse meu neto tem uma aparência singular, não acha? — A velha senhora a fitava interrogativamente.

— Tristan parece-se com Armand — observou Roslyn.

Nanette parou, olhando-a admirada. — Você está se lembrando dele?

— Como desejaria isso! Mas não, estou julgando pela fotografia que a senhora me deu. — Tocou o anel, como querendo que ele lhe ajudasse de alguma forma a lembrar do amor que perdera. — Ouço Isabela cantando. Tem uma bonita voz.

— A vida é mais interessante para as pessoas que encontram uma verdadeira vocação. Por isso, nunca desencorajei a veia musical de Tristan. — Deu um pequeno suspiro e retomou o braço de Roslyn para subirem uma escada de ferro que levava ao segundo andar da casa. — Naturalmente a plantação exige trabalho, mas tenho Duane que tem capacidade para isso. Foi treinado para essa supervisão por seu pai, é um homem duro mas muito hábil, e eu com a idade perdi o interesse pelos negócios, nas disputas com os trabalhadores e outras coisas, entende?

Roslyn sorriu-lhe, imaginando que idade teria. — Tenho certeza que merece um descanso agora, madame.

— Chame-me de Nanette, filha. Gosto de ouvir meu nome de teatro nos lábios das pessoas, pois é bom reviver o passado... Ah! Desculpe, minha filha! O problema é que não se sente realmente as aflições de outra pessoa a não ser que essa outra pessoa seja um marido ou uma esposa bem-amados. Talvez, quem sabe, você possa sentir alguma comunicação com Armand nesta casa, pois aqui ele nasceu, cresceu e viveu até a juventude. Ainda ressoam nesta casa suas risadas, sua alegria de viver...

Nanette parou e, dando um longo suspiro, tirou a mão do braço de Roslyn e abriu uma porta vermelha ao fim do corredor que tinham percorrido. O quarto de Roslyn era de paredes muito brancas. A cama era baixa e cercada por um cortinado contra os insetos. Tapetes orientais forravam o chão, e as estreitas janelas eram gradeadas. Os parapeitos eram largos e cheios de almofadas. Havia também um guarda-roupa entalhado e uma cômoda com um espelho pendurado na parede, e sobre a cômoda, pequenos potes de vários matizes.

Roslyn admirava o estranho encanto daquele quarto oriental com sua porta vermelha e grades nas janelas, paredes muito brancas e teto forrado de cedro. Viu que as pálidas flores de espirradeira tinham sido arrumadas num potinho, numa mesa baixa, a fim de agradá-la.

— Acha que poderá dormir aqui? — perguntou Nanette.

— Já adoro meu quarto — afirmou Roslyn.

— Há muitos anos atrás aqui deve ter sido o quarto de uma das favoritas — disse Nanette apontando para as estreitas janelas, onde uma moça precisaria ajoelhar-se para ver seu amo e senhor no pátio. Eram dias em que a mulher permanecia em reclusão, até que, segundo o capricho do momento, o senhor lhe enviava um véu colorido, indicando que deveria se apresentar a ele naquela noite.

— Que catástrofe, se o senhor não fosse um homem atraente. — Roslyn ajoelhou-se num dos parapeitos e empurrou a veneziana de madeira entalhada, abrindo a janela. — Imagino o que aconteceria se uma das moças recusasse a dúbia honra de receber o véu colorido do harém...

— Duvido que recusasse. Dizem que o Aga era um homem charmoso e que havia séria disputa no harém para receber o véu dele. Esses véus eram colocados por cima dos usados habitualmente. Uma favorita seria rapidamente substituída por outra.

— Agora compreendo por que Tristan quer escrever sua ópera sobre Dar al Amra. Há em tudo um encantamento e magia. Posso imaginar quantas singulares intrigas presenciou aquela maravilhosa árvore lá do pátio.

Nanette estudava Roslyn, ajoelhada numa almofada, enquanto um raio de sol do deserto dourava seus cabelos e a fina linha de seu adorável rosto. — Você tem muita imaginação, não, minha filha?

— Suponho que sim — concordou Roslyn.

— Armand tinha muito pouca — disse Nanette e rapidamente se dirigiu para o armário e abriu as portas. Uma meia dúzia de vestidos lá estavam pendurados, bem como blusas vaporosas e algumas calças compridas. Nanette remexeu o armário, tirando dele uma ou duas peças brancas. — Este é seu enxoval que nos foi mandado por uma loja de Londres enquanto você estava hospitalizada. — A velha senhora olhou-a longa e ternamente. — Meu neto deve ter pretendido casar-se com você aqui em El Kadia.

Roslyn extasiou-se vendo o vestido de renda branca nas mãos de Nanette.

— Com o vestido veio um casquete bordado de pérolas e um sapatinho combinando. Parece que Armand pretendia que você usasse isto o mais breve possível.

Roslyn aproximou-se e tocou o vestido. Alguma coisa surgiu no fundo de sua mente... ela sentia, mas não tinha certeza de que em outra ocasião já tocara aquela renda... a saia longa e o simples corpete.

Nanette mostrou-lhe o casquete estilo Julieta e os sapatos. Pelo toque dos dedos, Roslyn já os conhecia.

— Eu... eu tenho vestidos... não precisava ter comprado outros para mim — disse com voz sumida.

— Você perdeu peso no hospital, filha. — Nanette guardou o vestido de casamento no armário, bem como o casquete e os sapatos. Percorreu os vestidos de todo o dia e os da noite. — Estes deverão ser reformados para suas medidas atuais. Temos máquina de costura, e minha criada, que é muito habilidosa, fará as reformas.

— Obrigada, madame.

— Nanette! — Repentinamente as mãos cheias de anéis de madame Gerard seguraram carinhosamente o rosto de Roslyn. Seus dedos aprisionavam um rostinho magro e assustado com a vida. — Vamos reerguer você, Roslyn. Está magra como um passarinho e em seu rosto só se vêem os olhos. Magoou-a muito eu ter-lhe mostrado o vestido com o qual deveria se casar?

— Parece que magoou a você também, Nanette.

— Magoou, sim. Mas Duane estava certo. Disse que nada mais aqui poderia fazê-la lembrar o passado. O vestido branco e o casquete de pérolas eram-lhe familiares, não? Mexeram com seu cérebro, não?

Roslyn assentiu. — Eu sei, ainda que não consiga lembrar-me que experimentei o casquete. Acho que Juliet Grey devia estar comigo e que brincamos a respeito do casquete modelo Julieta.

— A pobre Juliet agora está morta — disse Nanette sombriamente. — In sha Allah, você ouvirá freqüentemente os árabes dizerem, minha filha. Isso quer dizer que o que tem de ser, será. Agora vou deixá-la para que descanse. Ao lado da cama encontrará uma campainha de serviço. Se precisar de alguma coisa, toque, que uma criada virá logo atendê-la. Jakoub fala uma dúzia de línguas e você não terá problemas em se comunicar com ele.

A porta vermelha fechou-se atrás de Nanette e por um longo tempo Roslyn permaneceu onde estava, olhando para o espelho da porta do armário, que refletia uma estranha figura. Seu rosto parecia uma máscara. Estava numa casa estranha, onde desconhecia a todos e era uma desconhecida para eles. Seus olhos ainda conservavam o choque que sentira naquela manhã no hospital quando compreendeu que não se lembrava quem era. Em lágrimas, ouvira o médico dizer que tudo se normalizaria com o tempo, que era resultado do ferimento da cabeça e que sua memória voltaria. Mas era horrível não se lembrar além dos fragmentos do desastre... do fogo, do som dos ferros retorcendo-se e dos gritos de socorro. Seu salvamento, disseram, tinha sido um milagre. Para a dor e o choque de perder o noivo, sua amnésia tinha sido uma benção. — Armand... — Pronunciou o nome alto, tentando desesperadamente se lembrar de algo; do homem para quem deveria usar aquele vestido de renda branca e o casquete de Julieta, enfeitado de pérolas... Certamente quando se ama, o coração é mais envolvido que a mente; mas agora estava tão vazio quanto ela.

Um tremor percorreu-lhe o corpo. E se ela não tivesse amado Armand e somente tivesse concordado em se casar com ele porque era um Gerard e pudesse lhe proporcionar uma vida mais fácil? Essa devia ser a explicação por mais repulsiva que fosse... e por alguma misteriosa razão, Duane pensara nisso ao ver seu anel de noivado.

Desistindo de pensar mais, resolveu explorar o quarto. Pegado havia um banheiro. A água de Dar al Amra devia vir do subsolo e abastecia a casa e a plantação. Ao descobrir um roupão, toalhas, sabonete e sais de banho, rapidamente se despiu, resolvida a tomar um banho frio depois da viagem que fizera do hospital até ali.

Depois disso se sentiu relaxada e reclinou-se nas almofadas junto das janelas, folheando umas revistas francesas que encontrara numa mesinha. Ouviu baterem à porta e ordenou: — Entrez!

Um criado entrou carregando uma bandeja; um imponente árabe, que a informou chamar-se Jakoub e que recebera ordens de madame Nanette para servir o almoço da jovem sitt em seu quarto. Arrumou as variadas travessas na mesa a seu lado, enquanto lançava curiosos olhares para ela, sempre sorrindo e explicando que o almoço consistia em sopa de cebolas, costeletas de carneiro com vegetais e panquecas com mel.

— Tudo me parece apetitoso — afirmou ela, sentindo uma súbita fome. — Madame Gerard também está almoçando em seu quarto?

— Madame sempre almoça no quarto — explicou. — O sol do meio-dia é como fogo no céu, e nós aqui em Dar al Amra tudo fazemos para conservar a saúde de nossa Lella.

Roslyn olhou para Jakoub que tinha uma bem cuidada barba e usava um turbante verde-pálido, como os peregrinos de Meca. — Madame me informou que você fala diversas línguas. Seu inglês é extraordinariamente bom. Jakoub.

— A sitt é mais do que gentil em dizer isso — e fez uma reverência. — Viajei muito em minha juventude com um grande escritor de sua terra, senhorita. Ele escreveu muitos livros sobre o Oriente e eu ficaria feliz se quisesse ler alguns deles.

— Gostaria muito, Jakoub! — Estava encantada. Havia livros no hospital, mas eram todos em francês. Seu interesse por uma boa leitura indicava que ela devia ser um rato de biblioteca.

Jakoub estava lisonjeado e trouxe imediatamente uma porção de livros do escritor que servira durante tantos anos. Mostrou-lhe dois deles que lhe eram dedicados e Roslyn sabia ter conquistado um amigo naquela casa, com seu genuíno interesse pelos livros.

Depois do almoço, dedicou-se à leitura, sendo interrompida lá pelas três horas, quando uma criada de Nanette entrou. Não falava inglês, mas se fez entender. Convenceu Roslyn a experimentar o vestido que usaria naquela noite durante o jantar. Roslyn escolheu um azul-claro. Vestiu-o e Maryam alfinetou-o na cintura e quadris. Saiu do quarto levando o vestido para a reforma e Roslyn sentiu-se descansada, mas sem ânimo para ler mais. Ajoelhou-se numa almofada do parapeito, olhando através das grades para o pátio dos Véus. A grande sombra da árvore estava imóvel no calor da tarde, e só o murmurar da fonte e o canto das cigarras podiam ser ouvidos. O adocicado aroma da plantação chegava até ela, que se viu de repente a pensar na casa mourisca que vira escondida por entre as altas tamareiras.

A solitária casa de Duane Hunter ficava entre as altas árvores às quais dedicava sua vida. Lembrou-se de seu primeiro encontro com ele e do modo como entrara no salão. Do momento em que seus olhos se encontraram, Roslyn soube que lhe era hostil e sentia verdadeiro alívio ao saber que morava longe dela, na própria casa.

Talvez por viver tantos anos nas selvas se tivesse tornado um homem rude... Pensando nos acontecimentos do dia, adormeceu. Quando acordou já estava escuro no quarto, e acendeu a luz. Só então percebeu que Maryam tinha trazido seu vestido e o colocara cuidadosamente aos pés da cama.

Sapatos de brocado azul-escuro estavam separados para ela, que os experimentou. Sentiu-se aliviada ao ver que serviam, mas logo depois riu sozinha... Seus pés não diminuiriam de tamanho só porque perdera peso no hospital... Pós o vestido e olhou-se no espelho. O suave franzido da saia arredondava-lhe a angulosidade do corpo: seus olhos azuis sobressaíam e ela obedecera às ordens de madame, caprichando no colorido das faces e do batom. Não estava nada mal, pensou. Nisso se lembrou do jeito de Isabela quando Duane se referira a ela como Bela Adormecida. — Ratos! — murmurou. — Também não gosto de você, sr. Hunter! — Apagou a luz e saiu do quarto.

O corredor era iluminado a intervalos por arandelas, o que dava a impressão de um calmo e tranqüilo claustro. Roslyn conjeturou que as portas de cores diversas pelas quais passava deviam ser quartos como o seu. O colorido, além de ser decorativo, impedia que os hóspedes se enganassem de porta.

Roslyn se aproximava do último arco do corredor, quando se deu conta de que ao sair do quarto deveria ter tomado à esquerda e não à direita. Estava quase voltando, quando viu uma escada de estreitos degraus. Hesitou mas não resistiu ao desejo de saber se iria dar no telhado. Subiu. Viu-se de repente sob um céu cravejado de estrelas, um céu árabe, cheio de encantamento. Chegou até a beirada e viu que dali a casa encarava o deserto, misterioso e insondável, carregado de silêncio e, no entanto, cheio de pequenos sons. O farfalhar das folhas das palmeiras, o distante ganido de um chacal, e a discreta tagarelice dos árabes num dos pátios.

Sentiu-se envolvida pela magia da noite e imaginou se Armand lhe falara muito sobre o lugar, pois era como se pertencesse a ele. Subitamente olhou para o anel de diamante que parecia uma lágrima sob a luz das estrelas. Repentinamente reviveu a cena do desastre e viu-se projetada longe do avião em chamas.

"Agora nada de pânico", pensou, "sou Roslyn Brant... sou aeromoça e trabalho numa companhia de aviação, moro na Inglaterra..."

Talvez se voltasse para a Inglaterra e revisse os lugares que lhe eram familiares lhe ajudaria a recuperar a memória...

— Boa noite, Julieta... disse uma voz atrás dela.

Seu coração deu um salto e então virou-se e viu uma figura alta delineada contra o céu estrelado. Nas sombras parecia mascarado, mas aqueles olhos, ela conhecia de algum lugar.

 

Roslyn permaneceu imóvel junto ao parapeito enquanto Duane se aproximava dela. — Por que me chamou de Julieta? — Sua voz era quase um sussurro.

— Não pude resistir — respondeu. — A cena do balcão e... Ah! Estou esquecendo que perdeu a memória!

— Que observação cruel, Sr. Hunter. — E apertou-se contra o parapeito. — Se os donos desta casa tivessem que nomear um inquisidor para descobrir se estou fingindo minha amnésia, acho que escolheriam o senhor.

Ele sorriu com os olhos semicerrados, e as sombras a seu redor pareceram mais densas. — Por que se sobressaltou quando chamei de Julieta? — perguntou ríspido.

— Porque foi como um tiro no escuro, Sr. Hunter. — Enfrentou diretamente seu olhar gelado. — Desde o momento em que nos encontramos, vi que não gostou de mim. Considera-me uma pessoa sem importância e sem graça, por quem seu encantador primo não podia se sentir atraído. Mas o amor é caprichoso...

— É a maior piada perpetrada contra a humanidade — replicou secamente.

— Acho que usando esse escudo de cinismo se considera livre das flechas do Cupido... — Por alguma estranha razão ela estava se divertindo, feliz por estar viva e, apesar do acidente que lhe privou da memória, não ter perdido o senso de humor.

Duane Hunter encostou-se no parapeito e Roslyn podia ver que ele não tirava os olhos dela. — Como diz Isabela, você fala por você mesma, minha cara! — A voz dele era perigosamente calma e controlada. — Sagacidade indica uma mente alerta, sem perturbação; portanto, deixe-me avisá-la, Roslyn Brant: se você está nos pregando uma peça, farei com que você pague de uma maneira que não vai gostar. Nanette é uma mulher de coração grande e aberto e não quero vê-la enganada por uma jovem atrevida, que vê nela uma criatura boa, de quem pode conseguir uma vida confortável, boa hospedagem e etc.

Roslyn sentiu-se ofendida com o que ele dissera e desejava ardentemente esbofeteá-lo. Embora sentisse cócegas nas mãos, conseguiu manter a dignidade e virou-se para afastar-se dele. Rapidamente uma mão de ferro agarrou-a e, dando-lhe um puxão, fê-la voltar ao lugar que estava, tão perto dele que o tecido de sua camisa tocava o de seu vestido, dando-lhe consciência de sua pequenez e de sua involuntária obediência. Mas mantinha-se altiva e desafiante, sem sombra de humilhação nos olhos.

— Por que não me esbofeteia, senhorita Olhos Inocentes? — desafiou ele.

— Não me rebaixarei lutando com um valentão — disse ela friamente.

A reação foi esmagá-la de encontro ao parapeito, talvez com a intenção de fazê-la dizer a verdade enquanto corria real perigo de cair lá em baixo. Seu rosto muito próximo do dela mostrava um par de olhos odiosos e um sorriso diabólico. — Você é muito rápida em suas respostas; vejamos como reage com este contratempo.

Esquecendo-se de que estava usando um sapato macio de brocado, deu-lhe um pontapé na canela, imaginando se ela seria tão dura quanto o resto dele. — Oh! Seu... como ousa tratar-me desta maneira? — disse indignada, um pouco por causa da dor no dedão e um pouco por sua impotente raiva.

— Deve estar sendo influenciada por parte da casa — disse ele, divertindo-se com o pretenso combate. — Esta é a torre do harém.

— Sério? — perguntou um tanto interessada assim que ele a soltou e ela pôde percorrer o reduzido espaço, sentindo um ligeiro arrepio no corpo. Quanta coisa deveria ter acontecido ali, naquela casa perdida no deserto. Intrigas e violências, amor e ódio pareciam ter deixado seus rastros naquelas sombras...

— Velhas casas são sempre assombradas — disse com indiferença. — Isso faz parte de seu encanto.

Roslyn olhou-o rapidamente. Estaria ele querendo amedrontá-la?

— Não tenho medo de fantasmas — retorquiu. — Pelo menos, não destes de Dar al Amra. Armand viveu aqui a maior parte de sua vida e eu...

Parou contemplando o deserto, aquele mar de areia cor de âmbar, com Dar al Amra no meio, qual uma ilha, onde se via arremessada num turbilhão... com um homem a seu lado pronto para atirá-la no desconhecido...

— O deserto a assusta? — perguntou Duane Hunter de repente.

— Se eu dissesse que não, o senhor sorriria cinicamente, como um homem que conhece o deserto em seus piores momentos — replicou. — O deserto me fascina, sr. Hunter, mas sei que tenho muito que aprender a respeito.

— Fascinação é o termo exato. Depois de passados quatro anos ainda não sei se o amo ou se o detesto. Às vezes gosto mais dele quando se apresenta selvagem e indômito como um cavalo a ser domado ou uma mulher.

— Tenho a forte impressão de que se preocupa muito com as mulheres, Sr. Hunter.

— Mulheres, segundo os beduínos, foram criadas pelos pecados de Satã.

— E... assim sendo, suponho que os homens sejam anjos? — replicou rapidamente.

— Realmente. — Roslyn percebeu um brilho de ironia nos olhos dele. — Os solteiros são chamados de irmãos do diabo.

Um termo muito apropriado, pensou ela, considerando o homem a seu lado. — O que prefere: o deserto ou a selva? — perguntou.

— Então. — Olhou-a sarcasticamente. — Você foi avisada de que eu adquiri minhas maneiras incivilizadas nas selvas?

— Madame Gerard me contou, mas na ocasião não compreendi que ela estava me prevenindo contra você.

— E agora, me conhece melhor?

— Conheço o pior — disse Roslyn, acariciando o braço ainda dolorido. — Que espécie de plantação você supervisionava nas selvas?

— Pau-rosa, seringueiras, abacaxis e café — enumerou ele.

— E agora prefere uma plantação de tâmaras?

— De certo modo, sim. Esta é uma propriedade dos Gerard e eu sou um deles. Esforço-me para levar isto adiante e encher nossos bolsos. Também experimento uma deliciosa sensação de vitória pessoal quando temos uma boa colheita ou alguma de minhas inovações dá certo.

— Imagino que Dar al Amra deva ser mais atraente com sua enorme plantação, do que outra qualquer cercada de mato e sujeita a freqüentes chuvas.

— Como não se esqueceu de tais circunstâncias geográficas e no entanto não se lembra de fatos que lhe dizem respeito?

— O médico do hospital me explicou que este é um dos mistérios da amnésia — disse defendendo-se. — Não estou fingindo, Sr. Hunter. Minha mente está em branco quanto ao que me diz respeito... Meu noivado com seu primo só é real devido ao anel que tenho no dedo.

Duane olhava-a atentamente, e depois, deliberadamente, virou-se para uma moitinha de flores que nascia da parede junto deles, com as pétalas abertas e o coração escondido. Estraçalhou as pétalas, forçando o interior da flor a aparecer. Roslyn observava-o, imaginando se esse gesto teria alguma intenção. Ele atirou a flor pelo parapeito abaixo, tomou-a pelo braço e advertiu-a de que era tempo de se juntarem aos outros para o jantar.

Viria ele todas as noites para o jantar? Sentia a tensão de seu rosto e a controlada força de seus dedos segurando-lhe o braço. Esperava ardentemente que não fosse obrigada a vê-lo mais vezes do que o indispensável.

A sala de jantar de Dar al Amra era aconchegante, com suas pequenas mesas e banquetas. Roslyn sentou-se com madame Gerard, muito elegante em seu vestido cor de ameixa. Isabela sentou-se entre os dois homens.

Os olhos dela estavam exageradamente pintados e distribuía sorrisos e gracinhas aos dois em doses iguais. Roslyn não pôde deixar de admitir a vivacidade dos movimentos de sua cabeça e mãos enquanto falava e do brilho de suas jóias sob a luz do lampião mourisco. Seus cabelos negros estavam presos num lindo coque.

— Nanette, como você foi bondosa designando dois encantadores homens para jantar comigo! — exclamou da outra mesa. — Mas por que não conservou um deles para sua diversão ou da srta. Brant?

— Sua uma velha um tanto brincalhona, Isabela. — Nanette enxugou os lábios no guardanapo e depois bebericou um pouco de vinho branco de seu copo de cristal verde. — Como não sabia a qual de meus netos você queria atormentar hoje, decidi que eles a dividissem.

A risada de soprano de Isabela ecoou pela sala toda. — Sim, você é um tanto brincalhona, querida madame. Viveu tanto tempo no Oriente que absorveu seus costumes.

— Talvez eu tenha absorvido o grande ideal do Oriente, sorriu para Roslyn, convidando-a para que tomasse seu vinho. — Vivi em El Kadia durante cinqüenta anos. Já vi tempos de guerra e de paz, e agora, quando vou à Paris, sinto-me quase uma estranha.

— Mas Paris jamais esquecerá completamente Nina Nanette — disse Tristan num galanteio, saudando-a com seu copo de vinho. — À você, Nanette!

— Obrigada, Tristan. — Seus olhos azuis se enterneceram, mas depois se viraram para Duane. — E você, meu querido, o que tem a dizer? Não tem um galanteio para sua avó?

— Você nunca envelhecerá enquanto esses olhos azuis forem como os de uma moça! — replicou numa voz preguiçosa.

Roslyn ouviu-a suspirar. Depois inclinou a cabeça prateada, como que agradecendo ao neto, e continuou a refeição. O primeiro prato fora uma sopa chamada chorba, e Roslyn de vez em quando tomava seu delicioso vinho.

— As vitrinas de Paris são tentadoras — observou Isabela. — Este vestido que estou usando comprei lá.

— O vestido lhe cai muito bem, dona Sol, mas também ficaria sensual vestida de aniagem — brincou Duane. — Como estão as dores de sua cavalgada matinal? Ainda as sente?

— Não imaginava que teria a audácia de me perguntar, seu bárbaro! — Isabela estudava a face morena a seu lado. — Você não tem sentimento algum — acusou.

Bravo, Isabela, por dizer isso, pensou Roslyn enquanto observava o rosto queimado de Duane, que parecia cinzelado em pedra.

Os babouches de Jakoub e de outro jovem árabe soaram pelos tapetes quando trouxeram o segundo prato que constava de gazela assada com ervas e guarnecida de vegetais da estação. O rapaz aproximou-se de Roslyn para lhe oferecer a travessa de vegetais. Ela levantou os olhos para ele sorrindo em agradecimento, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios ao ver que, num movimento brusco, ele se afastou dela, quase deixando cair tudo em seu colo. Murmurou alguma coisa que ela não entendeu, perturbada que estava com o olhar fixo de Duane. Este disse rispidamente umas palavras em árabe e o rapaz novamente apresentou a travessa para ela que se serviu, com mãos trêmulas, de um pouco de vegetais, sem entender a reação dele. O incidente deixara-a magoada e confusa.

— Está tudo bem — disse Nanette, tocando-lhe a mão quando os criados saíram. — Os árabes são muito supersticiosos, mas com o correr do tempo se acostumará com eles.

— Supersticiosos? — Roslyn ainda estava mortificada pelo incidente.

— São seus olhos — explicou Duane — olhos claros são sempre vistos com desconfiança pelos árabes.

Roslyn percebeu claramente a intenção de sua explicação e baixou a cabeça, lutando contra as lágrimas e a quase incontrolável vontade de sair correndo daquela sala. Comia automaticamente, sem sentir gosto de nada. Isabela observou-a com curiosidade durante um bom tempo e depois a conversa retomou seu ritmo normal, mas Roslyn se sentia ferida e magoada. Desejou ardentemente não ter aceitado o convite de madame Gerard para se hospedar ali e decidiu dizer-lhe pela manhã que resolvera voltar para a Inglaterra.

O café foi servido no salão por Jakoub, e Roslyn sentou-se num coxim para tomar o seu. Estava firmemente decidida a deixar Dar al Amra pela manhã. Afinal, nada a obrigava a permanecer ali.

Tristan aproximou-se dela com um copo de conhaque nas mãos. — Posso pôr um pouco em seu café? Os dois juntos ficam deliciosos.

Gostava de Tristan, que se parecia tanto com o pobre Armand, e ergueu sua xícara. Aspirou o aroma do conhaque quando pingava dourado em seu café.

— Pronto! — disse Tristan. — Beba-o e todas suas preocupações desaparecerão.

— Muito obrigada — agradeceu sorrindo e vendo-o dirigir-se para o piano, enquanto seu primo a observava através da fumaça do charuto que acabava de acender. Escuro e letal como ele mesmo! Sorveu um gole do café e logo depois se sentiu mais descontraída ao fitar Tristan, tão encantador em seu paletó branco.

— Não deseja que eu toque alguma coisa para você? — olhava diretamente para ela. — Você está parecendo um esquilinho, Roslyn! — Dedilhou uma escala ascendente no piano, dando a impressão de um esquilo subindo rápido por uma árvore.

Roslyn riu, talvez sob o efeito do conhaque. Mas Isabela não se conformava facilmente em ser deixada por muito tempo de lado e, empunhando teatralmente a taça nas mãos, aproximou-se do piano e de Tristan.

— Isso é muito pitoresco, mas pelo amor da música, toque alguma coisa com mais profundidade, mais drama, mais emoção!

— Em outras palavras, toque alguma coisa que Isabela possa cantar — caçoou Tristan. — Não é isso, minha diva?

Ainda que Isabela fosse vaidosa e um tanto maliciosa, Roslyn sabia que ela possuía uma linda voz e já desfrutava o prazer de ouvi-la, enquanto eles discutiam a respeito da ária a ser executada. Resolveram que seria a ária de tartar do Príncipe Igor, e ela imediatamente assumiu a pose de Íris.

— Não tão a caráter — disse Duane, cuja face exprimia real contentamento com a pantomima — Dalila ou Salomé lhe assentariam melhor!

Ali, diante de seus olhos transformou-se em Salomé. A cena, informou-os, desenrolava-se quando o rei Herodes a surpreendia ao luar, beijando os lábios da cabeça decepada de João Batista. Aproximou-se da mesa onde estava uma bandeja de frutas e tomou um melão entre as mãos, retornando ao centro da sala. Roslyn viu Duane rindo sozinho, e seus olhos através da fumaça pareciam os de um gato feliz.

Algumas lâmpadas mouriscas espalhavam luzes e sombras por toda a sala, e Isabela ficou na penumbra enquanto cantava para eles, num magistral desempenho de seu papel.

Roslyn ouviu com os braços prendendo os joelhos, sentindo frios arrepios na pele, até que finalmente despertou do encantamento quando os aplausos surgiram. Então, iniciou-se um debate sobre as muitas maneiras de se encarar o amor.

— Acho que depois da morte é o maior drama da vida — afirmou Tristan. — Amor verdadeiro, quero dizer. Amor, o cruel. Amor devotamento. O fim que promete sempre mais...

— Como um velho licor, deve ser saboreado lentamente! — O sorriso de Nanette era um tanto misterioso. — Olho para este copo de conhaque; não se parece um pouco com uma bola de cristal? Nele posso ver os erros que cometi muitos anos atrás, as dores de cabeça que causei por ser muito jovem e louca. Mas para mim tudo é passado e nada posso fazer para impedir os erros de vocês, meus jovens.

— Ora, vamos, Nanette! Sua felicidade com vovô era proverbial — disse Tristan, levantando-se e acendendo um cigarro.

— A felicidade, como o aroma do conhaque, é mais forte quando o copo está vazio — disse Nanette mordazmente. — A felicidade deve ser apreciada por muito mais que os simples sentidos; é inevitavelmente uma memória do coração...

— Quero a minha felicidade agora — disse Isabela como uma prima-dona, abrindo os braços. — Quero que a vida me dê tudo enquanto ainda sou moça!

— A vida nos favorece em muitas coisas, embora às vezes nos engane — afirmou Nanette, dando uma risadinha. Seus olhos inquiridores fitaram o homem à sua frente. — E você o que tem a dizer, meu querido? Cinismo às vezes esconde um coração romântico, ainda que em seu caso tenha minha dúvidas.

Duane Hunter tirara um pêssego da bandeja de frutas e o olhava pensativamente quando o partiu pelo meio, fazendo saltar o caroço.

— Pêssego seria uma fruta mais adequada para Eva escolher e tentar Adão. Macia e acetinada por fora, mas olhem para isto! — Pegou o caroço, deixando-o cair num cinzeiro e mordeu a suculenta fruta.

Onde aprendeu a ser tão cínico? — Nanette falava amargurada, como se o caroço do pêssego a tivesse atingido. — O que lhe aconteceu no inferno verde em que morava? Foi alguma mulher, Duane?

— Tem que sempre haver uma mulher?

Roslyn observou-o enquanto limpava os dedos num enorme lenço branco e reparou que as luzes escassas tornavam seu perfil ainda mais duro, e suas linhas ainda mais cruéis.

— Você é latina, Nanette, e por isso vê tudo em termos de uma eterna batalha de sexos. Eu sou meio latino e meio britânico. Se sou cínico, nasci assim.

— Imagino! Lembre-me de ter uma longa conversa em particular com você qualquer dia desses, meu querido. Nenhum neto meu deve ser tão avesso ao romantismo como você parece.

— Posso não ser um romântico, mas nunca rejeito uma conversa em particular com uma mulher bonita!

Nanette sorriu e brincou um pouco com seus anéis, mas depois olhou diretamente para Roslyn. — Ah! minha pobre pequena! Foi um longo dia para você, e esses seus olhinhos já não se agüentam abertos. Venha, vamos dormir.

Duane se levantou e ajudou sua avó a se pôr de pé. A figura dele dominou-a e Roslyn pensou que ele já devia ter nascido com toda aquela maturidade. Não conseguia imaginá-lo criança, mas, ao contrário dele, facilmente visualizava Tristan num terninho marinheiro...

— Continuem com a festa, meus filhos! — Nanette sorriu para todos. — Bonne nuit.

— Bonne nuit — repetiu Roslyn, olhando o trio. Isabela, deitada graciosamente nas almofadas do divã; Tristan, encostado no piano e, Duane, fechado em si mesmo, em sua figura de aço. Somente Tristan lhe sorriu.

Separou-se de Nanette na porta azul de seu quarto e seguiu para o seu, com a impressão de que era de porcelana e que se quebraria ao primeiro impacto. Dizer adeus a Nanette não seria fácil, mas estava decidida a deixar Dar al Amra antes que o lugar a sufocasse ou que o deserto começasse a chamá-la...

A cama árabe era estranha, mas confortável, e durante muito tempo ela permaneceu acordada, ouvindo os barulhos da noite e o tique-taque do relógio de cabeceira.

Presumiu que já fosse muito tarde quando ouviu despedidas sendo trocadas no pátio dos Véus. — Quem era ela, Duane? — dizia Isabela. — Era atraente, essa mulher que tornou tão duro seu coração?

— É alguém de quem nunca falarei. — Sua voz era gentil ao dizer-lhe: Boa noite, dona Sol. Precisa cantar novamente para mim algum dia.

Seus passos ecoaram, perdendo-se depois na noite, por entre as palmeiras. Ao longe, um animal qualquer uivava tristemente.

Roslyn ajeitou seu enorme travesseiro quadrado, tonta de sono. Seu primeiro dia fora do hospital tinha sido muito longo. Não podia deixar de pensar nos Gerard, cujas histórias eram moldadas dentro da distinção e autoridade. A história devia incluir o reino do terror, a forca e a guilhotina... Soldados que lutaram e exploraram o Saara, plantadores que eram postos avançados da civilização, mulheres que tinham sido dominadoras e amadas...

"A mulher da vida de Duane devia ser como essas... linda, dominadora..." pensou sonolenta. "Partira seu coração deixando-o na amargura..."

Os olhos de Roslyn fecharam-se tranqüila e suavemente.

E quando a magia e os mistérios do deserto chegaram mais perto das paredes de Dar al Amra, Roslyn dormia como um bebê...

 

Roslyn acordou quando o sol do deserto já dourava as paredes de Dar al Amra. Como se acostumara a acordar no quarto do hospital, sem ver o sol se infiltrando por entre as grades das janelas, por uns momentos não sabia onde estava.

Depois se lembrou que estava no domínio dos Gerard, em pleno deserto. Continuou algum tempo deitada preguiçosamente, rememorando um por um os acontecimentos da véspera. Depois, subitamente, se levantou e, abrindo o cortinado, saiu da cama.

Nanette ficaria aborrecida e até um pouco magoada pela sua decisão de deixar Dar al Amra. Poderia até dizer que Roslyn não se dera tempo suficiente para se acostumar aos hábitos dos Gerard. Mas se ao menos houvesse só dois Gerard... Mas havia um terceiro, um homem que não gostava dela e de quem também não gostava. Isto tornava impossível sua permanência como hóspede da casa do deserto.

Aproximou-se descalça de uma das janelas. Sentiu no pescoço e nos braços o calor do sol e aspirou o ar puro da manhã, com uma sensação de bem-estar deliciosa. De alguma maneira sabia que a vida que tinha esquecido tinha bem pouco sol. Fora criada num orfanato e. depois, sua casa tinha sido uma pensão para moças. Seu emprego de aeromoça não lhe dava oportunidade de parar por muito tempo num lugar. As cantinas dos aeroportos eram sempre iguais em todas as partes do mundo.

O sol morno e convidativo fez nascer nela um impulso irresistível de sair para o ar livre. Correu para o banheiro, fez sua toalete matinal e, de volta ao quarto, abriu seu guarda-roupa, de onde tirou uma calça marrom e uma camisa creme. Sentia urgência de sair e explorar o pátio dos Véus, que a essa hora só tinha pombos e outros pássaros. Examinando-se ao espelho, verificou que as roupas estavam um tanto grandes, dada sua perda de peso, mas não se importou com isso. Escovou vigorosamente os cabelos e rapidamente deixou o quarto.

Logo depois Roslyn estava andando pelo pátio dos Véus, descuidadamente, apreciando o frescor da brisa matinal e vendo a seu redor rosas que com seu perfume atraíam abelhas, camélias muito brancas, que numa floricultura custariam um bom dinheiro, e jacarandás exibindo suas flores violetas. As fontes ainda não tinham sido ligadas e permaneciam silenciosas sob a sombra enorme da grande árvore.

Roslyn tocou as folhas cor de jade, pensando nos anos que teria aquela árvore, sempre ali, como uma guardiã, presenciando cenas que formavam toda uma história. De espaços em espaços, havia pequenas aberturas na parede, e Roslyn, ao espiar por uma delas, viu que davam diretamente para onde era hoje o salão. Concluiu que a finalidade destas era possibilitar aos eunucos vigiar as moças do harém. Imaginou-as reclinadas em almofadas, com suas jóias brilhando, comendo doces e sorvetes que as engordavam e tornavam atraentes aos olhos do Aga.

Roslyn franziu o cenho ao recordar o ar de suspeita que vira nos olhos de Duane na noite anterior. Mas era realmente estranho que de sua memória se tivessem apagado todos os fatos pessoais que sabia estarem perdidos em algum lugar de sua mente. Levantou a mão e apalpou a cicatriz do profundo corte em seu couro cabeludo. Ainda estava um pouco inchada e dolorida. Por isso só poderia usar escova em vez de pente, pois os dentes poderiam feri-la.

Contemplava pensativa a frondosa árvore quando o nome de Juliet Grey lhe veio à mente. Por que Duane Hunter a teria chamado de Julieta? Por que ele pensava que ela estava mentindo ao se dizer noiva de seu primo? Não podia ser mentira. O desastre fora investigado por policiais ingleses que lhe disseram que ela era Roslyn Brant... e ainda havia o anel. Ela segurava-o firmemente na mão quando a equipe de socorro a encontrara e a levara para o hospital com os outros sobreviventes. Dois deles morreram no caminho e o terceiro voltara para a Inglaterra antes que lhe fosse permitido deixar o leito.

Estremeceu ligeiramente ao se lembrar de quando acordara no hospital, com dores, e sem se lembrar de nada. Não sabia seu nome e fora a pior sensação ouvir se dirigirem a ela como Roslyn. Mas o nome lhe soou familiar e ela concordou plenamente que conhecia o nome!

Perdida em pensamentos, abriu um portão de ferro do pátio e passou por ele. Voltaram-lhe à mente as palavras de Duane na noite anterior, quando numa breve confissão a Isabela dissera ter havido uma mulher em sua vida e que não falaria dela. Fora então ela quem o tornara cínico e descrente em relação as demais mulheres. Era espantoso imaginá-lo apaixonado por alguém que deixara tão profunda cicatriz em seu coração. Duane Hunter amando era uma imagem difícil de visualizar. Mesmo sua resposta para Isabela tinha ar de brincadeira.

O pátio dos Véus se enchera de sol e agora Roslyn percebeu que andava por entre as grandes e frondosas tamareiras de Dar al Amra. Enormes cachos da fruta do deserto pendiam por entre as folhas verdes, mais altas do que ela e por todo o caminho ouvia o barulho da irrigação artificial e o canto dos inúmeros pássaros nas árvores.

Caminhava distraída sem perceber que as ruas por entre as árvores eram todas iguais, oferecendo uma sombra esverdeada, mas que não serviam de guia para ninguém sair da plantação. Não via homens trabalhando como acontecera na véspera, quando chegara de carro. Parecia lógico que como a plantação se estendia por milhas sem fim, eles estivessem ocupados noutro setor, cuidando das oliveiras e palmeiras.

Somente prestava atenção ao doce aroma que a envolvia e na total tranqüilidade do lugar que a fazia sentir uma deliciosa sensação de paz.

Algum tempo depois viu alguma coisa brilhando por entre as árvores. Um pequeno curso d'água quebrava o silêncio das palmeiras, mostrando suas margens coloridas de florezinhas. Ajoelhou-se e tomou a límpida água nas palmas das mãos. Sua garganta estava seca, e bebeu avidamente; Molhou o rosto e a nuca com as mãos molhadas. Como se sentia bem! Sentou-se nos calcanhares, olhando ao redor.

O céu, através dos leques das palmeiras, era de um azul brilhante, e os raios de sol que a atingiam eram muito quentes. Isso queria dizer que o sol da manhã se convertera num sol abrasador, e que já deveria fazer algum tempo que vagava por entre as terras de Hella.

"Deveria voltar agora", pensou ela; mas ali estava tão calmo e tranqüilo... Um esquilo de cauda comprida subiu correndo por uma palmeira, o que a fez lembrar-se de Tristan na noite passada. Um sapo emergiu da água ficando imóvel a fitá-la com seus olhos de topázio. Sentiu-se como uma criatura de um conto de fadas, e. reclinando-se sobre a superfície da água, viu sua imagem refletida.

— Espelho, espelho das florestas... — murmurou sorrindo —, devo ficar ou fugir daqui?

A calma superfície encrespou-se repentinamente ao toque de uma pata. Roslyn sentiu um frio percorrer-lhe a espinha quando viu a alguns metros dela um felino parecido com gato que a fixava com malignos olhos verdes. Seu sangue gelou nas veias, pois o animal parecia pronto a atacá-la. Arreganhou os dentes rosnando para ela. Que se pôs de pé num salto.

— Não se mova! — advertiu-lhe uma voz.

E Roslyn ficou petrificada, pois um outro animal do tamanho do felino se esgueirou por entre as árvores e se atirou sobre ele. Num instante o ar se encheu do barulho da luta dos dois, correndo, se atracando, rolando e rosnando, até que embolados caíram dentro d'água. O gato enorme iludiu seu atacante e fugiu, e na margem ficou um belo cão de longas pernas e orelhas compridas a se sacudir todo.

— Bom trabalho, Hamra! — Uma mão acariciava o pêlo molhado e vermelho do cachorro, e Roslyn, ainda com o coração aos pulos, viu que Duane o examinava para ver se estava ferido.

— Foi muito bom vocês dois chegarem — disse ela tremendo.

— Você não devia ter se aventurado a passear como se estivesse em Middlesex — disse secamente —, às vezes gatos selvagens e outros bichos descem das montanhas. Você escapou por pouco de ser ferida por um deles.

— Eu sei! — disse com voz sumida, e virou-se para agradar o cão que cheirava suas sandálias. Deu-lhe um tapinha e imediatamente ele se afastou dela.

— Um saluki não é um cão de estimação — disse ríspido —, é um cão de caça.

— Um companheiro adequado ao senhor! — replicou, correndo os olhos pelo seu negro cabelo, seu rosto bronzeado, sua alva camisa e seu culote, terminando nas longas botas de couro marroquino.

— Vejo que já se refez do susto. — Alguma coisa brilhava em seu olhar. — Posso saber o que fazia tão longe de casa?

— Naturalmente. — Enfiou as mãos nos bolsos das calças e empinou a cabeça. — Senti vontade de dar uma caminhada antes do café, e como estava fresco e calmo por entre as palmeiras, perdi a noção do tempo.

— E sem dúvida a direção. — Estalou os dedos e o saluki correu para junto dele. — É melhor que venha comigo até minha casa, onde tomará um café e depois a levarei para Dar al Amra novamente.

Engoliu em seco, certa de que não desejava aceitar o convite.

— Vamos! — ordenou, e começou a andar por entre as árvores com Hamra pulando a seu redor. Roslyn ainda hesitou, mas logo procurou alcançá-lo dando passos rápidos. Quando viu que ela tinha dificuldade em segui-lo, parou um pouco.

— Creio que a assusto mais do que aquele gato selvagem — zombou ele.

— Você é um bárbaro! — respondeu quase sem fôlego pelo esforço que fazia para acompanhar suas largas passadas.

— Não sou tão simpático quanto Tristan, não é verdade? — Riu alto e sua risada alarmou um bando de pequenos pássaros que voou em debandada por entre a densa folhagem. — Tristan saiu à Nanette, que é a melhor mulher do mundo, espirituosa, com um enorme coração e, por isso, sujeito a ser magoado facilmente.

— Ela é muito bondosa — disse Roslyn, pensando que também lhe doeria deixar Nanette. — Suas visitas ao hospital eram uma bênção para mim.

— Você tem condições de feri-la, mas é melhor que não o faça! — Seu olhar era frio e quase tão maldoso quanto o do gato da montanha, ainda acompanhado de um irônico sorriso, mas ela não conseguia desviar os olhos dele. — Era uma vez dois gatos Kilkenny que se degladiaram até um deles morrer...

— É assim que será se eu ficar em Dar al Amra?

— Inevitavelmente, senhorita Brant.

Pararam de andar, encarando-se sob as palmeiras, como que medindo forças e se desafiando. — Acho melhor eu deixar Dar al Amra — disse Roslyn.

— Não! — respondeu sacudindo energicamente a cabeça. — Não quero ver Nanette magoada de maneira alguma. Você ficará aqui enquanto ela desejar. Você ficará porque ela perdeu Armand; só por isso.

E antes que Roslyn pudesse se esquivar agarrou-lhe a mão direita, onde faiscava o diamante. — Nanette adorava três anéis que lhe foram dados pelo marido. Quando Tristan, depois eu, e finalmente Armand completamos vinte e um anos, recebemos cada qual um dos anéis para dá-lo à mulher que escolhêssemos para esposa. Você está usando, sem sombra de dúvidas, o de Armand. A inscrição foi feita por meu avô, pois era assim que se sentia em relação a ela, e sempre estiveram juntos até a morte.

— E você se recusa a aceitar que seu primo sentisse o mesmo por mim.

Um prolongado silêncio envolveu-os enquanto ele estudava-lhe o rosto. Então um passarinho cantou e ela tentou livrar a mão das dele. Impossível. Eram de aço como seus olhos, obstinadas como seu queixo, cruéis como sua boca.

— Não me cabe julgar o gosto de Armand pelas mulheres.

— Mas, no entanto, está me julgando! Considera-me magra e sem graça, o que admito ser verdade; mas há homens que preferem um tico-tico à uma ave do paraíso...

Com uma risada, ele pegou-lhe o queixo com a mão livre e virou-o da direita para a esquerda, examinando-o. — Você não é nenhuma beleza — concluiu friamente — mas também não é nenhum tico-tico. Um camaleão é o nome, que lhe caberia melhor.

— Um camaleão muda de um momento para o outro! — disse indignada.

— É verdade. — Apertou-lhe mais um pouco o queixo para depois soltá-la, e a seguir continuou andando. Logo depois surgiu à frente deles a entrada em arcos de uma casa mourisca. O saluki deu um latido alegre e sumiu pela casa adentro.

 

A casa era toda revestida de mármore do deserto e tinha um certo ar de mistério. Assim pensava Roslyn quando entrou no terraço e viu por cima do arco da entrada uma estampa da Mão do Destino. O destino certamente brincava com ela, colocando-a qual um carneirinho no covil do lobo.

O chão era de ladrilhos decorados, em coloridos arabescos; as cadeiras, de ferro trabalhado; e por toda a parte, vasos com gerânios vermelhos, margaridas, lilases e íris azuis.

Três enormes árvores rodeavam a casa, sombreando-a, mas também expondo-a ao risco de raios numa tempestade.

— Entre e venha tomar um copo de abri — convidou Duane. — É a bebida mais refrescante que conheço.

Caminhou atrás dele e entrou numa sala que, como as demais, dava para o jardim interno. A casa era térrea, e um grande telhado chato a protegia do calor.

Roslyn espantou-se ao entrar pela primeira vez no bárbaro esconderijo de Duane Hunter. O soalho era recoberto de peles de animais selvagens; a mobília, de junco; os lustres mouriscos e um nicho forrado de cedro atestavam que ele não ligava muito para limpeza. Um armário com portas de vidro guardava rifles variados, uma caixa de madeira tinha o aparelho de rádio transmissor, e numa mesa baixa uma caixinha de música com uma bailarina na tampa. Esta última despertou a curiosidade de Roslyn. Era tão destoante do resto, que Roslyn julgou ter pertencido à mulher de quem Duane não queria falar.

— Descanse seus pés enquanto vou pedir que Da-ud providencie dois abris e alguma coisa para comermos.

Roslyn não resistiu e reclinou-se num divã recoberto de seda, enquanto Duane saía da sala. Sentia-se estranha entre as peles estendidas pelo chão. Deviam ser provenientes das selvas onde vivera tanto tempo, e aprendera a ser auto-suficiente e a impor sua vontade, sem se importar em ser temido ou odiado; uma vontade de ferro num corpo de aço.

Não percebeu quando ele retornou e teve um ligeiro estremecimento ao vê-lo. — Vejo que se parece com Tristan em alguma coisa — disse mostrando a vitrola que só então reparara. — Parece gostar de música.

— Ela acalma um coração selvagem. Quer que ponha um disco enquanto tomamos café?

— Você tem eletricidade aqui?

— Quanto quiser. Dar al Amra tem gerador, e eu me beneficio com isso, naturalmente.

— Naturalmente — repetiu. — Você tem sempre certeza de obter o que deseja, não?

— Oh! Por uma ou duas vezes fui derrotado. — Dirigiu-se para a vitrola, ligou-a e procurou um disco. — Não sou muito moderno com referência a músicas. Esta é uma de minhas favoritas; costumava tocá-la muito em nossa plantação na floresta tropical: Der Rosenkavalier.

— O Cavaleiro e a Rosa! — Sorriu, pensando que lhe ficaria melhor uma arma ao invés de uma rosa...

Os compassos da música de Richard Strauss encheram o ar e ele baixou o volume para que pudessem continuar conversando. Uma brilhante libélula entrou na sala e eles ficaram observando-a voar em círculos contra as brancas paredes. Suas asas eram tão magnetizantes quanto o brilho dos olhos de Duane Hunter.

— O macho da libélula é totalmente cruel com sua companheira, você sabia? Lá nos trópicos ele chega a ter o tamanho de um passarinho.

— Você sente falta de lá? Noto um quê de nostalgia em sua voz.

— Era meu lar. Naturalmente Dar al Amra tem suas compensações; sou o chefe desta plantação, tenho o deserto para cavalgar e cinqüenta milhas quadradas de tamareiras para cultivar e cuidar.

— Cinqüenta milhas quadradas! Não fazia idéia de que fosse tão grande!

— Sem dúvida bem maior do que você imaginava. — Sorriu brincando. — Temos serpentes, gatos selvagens e escorpiões...

— Está tentando me dizer que fique longe de seu território? — Olhou-o numa atitude séria de criança que não entende o que está sendo dito.

— Não especificamente. Mas isto não é o bosque de Epping e, fora as serpentes, escorpiões e outros bichos, existem os trabalhadores árabes. É verdade que você é magra e eles preferem as mulheres gordas, mas não deixa de ser uma mulher, e eu não posso estar em vários lugares ao mesmo tempo.

— Mas tenho a certeza que tenta — disse sarcasticamente. — Isso quer dizer que você acha que vou ficar em Dar al Amra?

— Naturalmente que vai!

— Por ter casa e comida de graça, para não mencionar outras vantagens?

— Cortante como uma navalha! — ponderou ele. — Talvez esteja planejando deixar-nos; mas respirou o ar do deserto e não creio que se vá. Lugares primitivos e misteriosos fascinam algumas pessoas tal qual as cidades como Paris fazem com outras.

— E você acha que o primitivo me atrai mais? — A idéia a excitava, e ela esqueceu por um pouco a maneira como a tratara lá fora, agarrando-a com rudeza, enquanto o diamante de Armand brilhava entre os dedos dele.

— O tempo dirá — sentenciou. Nesse momento o som de babouches interrompeu-os. Era um jovem galabieh, com um fez vermelho na cabeça, trazendo uma bandeja para Roslyn. Esta pegou um dos copos que continham o gelado e rosa abri e, quando foi agradecer o rapaz, deu com dois imensos olhos azuis fitando-a.

— El Rumh não toma seu café em casa — informou Da-ud. Geralmente eu sirvo seu café com tâmaras sob as árvores.

— Estou certa de que El Rumh prefere assim — disse, percebendo um olhar dele para seu amo.

— Hoje estou fazendo bifes de fígado com tomates e cebolas. — Da-ud cheirou ruidosamente o ar. — Está um cheiro gostoso, não?

— Sim, cheira muito bem — respondeu ela sorrindo.

— Tomarei primeiro meu abri. — Duane pegou o outro copo da bandeja. — E agora, já para a cozinha, antes que tudo vire cinzas.

Da-ud saiu e seu sorriso parecia uma linha branca em seu rosto moreno.

— Ele é um berbere — explicou Duane. — Eles e os árabes são povos diferentes.

— Como os árabes, você acha que não se deve confiar em olhos claros?

— Simplesmente os ponho sob observação. São um tanto misteriosos; talvez porque podem captar tanto a luz quanto a sombra, como um lago profundo.

— Devia conhecer o lago de Temcina — disse calmamente, sentindo um calor no rosto. — Por que o seu empregado o chama de El Rumh?

Ele deu de ombros. — Por que é como me chamam por aqui.

— O que significa?

— Ficaria admirada se eu lhe dissesse! — Deu uma risada e pôs de lado seu copo vazio. — Vocês mulheres são tão curiosas quanto os cavalos.

— Que lisonjeiro!

— Nunca faço lisonjas. Faz com que a mulher se sinta embaraçada, e detesto embaraços.

— Creio que também detesta mulheres!

— Como cavalos, prefiro as temperamentais.

— Imagino que as mulheres em segundo lugar.

— Por que não? As mulheres são freqüentemente menos leais que os cavalos, e embora sejam ambos loucos por açúcar, os cavalos não têm palavras doces que podem fazer de um homem um idiota.

— É essa a sua definição de um homem apaixonado?

— Interprete como quiser, senhorita Brant. O amor é um jogo louco, e se Armand não se tivesse deixado envolver por ele, não teria voltado para casa, e talvez ainda estivesse vivo. — Sua expressão era de dor pela recente perda do primo.

— Os árabes costumam dizer In Sha Allah. Você crê que o que tem que ser será?

— Se todos os destinos já estão escritos — disse cinicamente —, então este mundo é um teatro de marionetes, com você, eu, todos, enfim, dançando na ponta dos cordéis. Não gosto disso. Prefiro ser o senhor de meu destino.

— E será! Você é um homem arrogante e um tanto assustador.

— E você dá o passo maior do que a perna. — Num segundo estava junto do divã... oferecendo-lhe a mão para que se levantasse, com um sorriso nos lábios.

— Creio que você nunca auxilia uma mulher. — De pé, diante dele, tinha que levantar a cabeça para olhá-lo.

— Nunca! Com crianças é diferente e você parece recém-saída das fraldas... com esses cabelos cacheados como as minhas peles...

— Certamente você vive como o significado de seu nome. — Olhou a seu redor. — Aposto que muitos destes animais morreram sob a mira de seu revólver.

— As peles do leopardo e do jaguar sim, foram mortos por mim — explicou divertido. — São animais assassinos que matam pelo prazer de matar; mas as peles de jaguatirica foram um presente de um chefe jivaro. Será que sua amnésia permite que se lembre dos jivaros e de sua principal especialidade: a redução das cabeças humanas?

Como ele conseguia ser sarcástico! Com a mão coçando de vontade de esbofeteá-lo, afastou-se dele dirigindo-se para um dos arcos que dava para o jardim interno.

— Sua arrogante cabeça seria um formidável troféu para eles — disse por cima do ombro. — Só não entendo como os jivaros não ficaram tentados a mumificá-la!

Ele deu uma gostosa gargalhada e ela saiu rapidamente para o terraço, onde Da-ud já colocava a mesa para o café. O sorriso de Duane era maquiavélico, e ela se sentia perdida. Não desejava permanecer ali, nem tomar café com ele. Não gostava dele, disso tinha certeza.

— Você é muito seguro de si, não? Imune a quase todas as alfinetadas, aflições e dores sentidas pelas pessoas normais.

— Quase todas? — Ergueu uma sobrancelha. — Eu diria que imune a todas!

— Assim pensei a princípio. Fiquei surpresa quando soube que alguém conseguiu atingi-lo em sua imunidade: uma mulher...

Houve um momento de profundo silêncio, e Roslyn quase gritou quando ele agarrou-a rudemente pelos ombros. — Quem lhe disse isso? — Seu rosto estava sombrio. — Foi Nanette?

— Não... Não...

— Quem então? — Sacudia-a olhando-a nos olhos. — Vamos, diga!

— Eu... eu ouvi você dizendo para Isabela... ontem à noite. — Roslyn estava com medo de sua atitude bruta e das chamas verdes de seus olhos. — Deixe-me... deixe-me ir... está me machucando!

Sua indignação era patente quando lhe disse friamente: — Nunca lhe ensinaram á respeitar a privacidade dos outros?

— Você deveria ter falado mais baixo quando disse boa-noite a Isabela bem debaixo da minha janela. Não desejava ouvir as confidencias que lhe fazia. Não estou interessada no por que uma mulher o tornou cínico e descrente de tudo.

Novamente um profundo silêncio se fez entre os dois, e o canto das cigarras e dos passarinhos parecia mais persistente. O coração de Roslyn continuava a bater descompassado, e o rosto de Duane assustadoramente calmo.

Mas tudo confirmava o que ela pensara na noite anterior... Ele ainda se importava com a mulher que conhecera antes de vir para Dar al Amra...

 

A tensão entre eles era quase palpável. Roslyn teve sua atenção desviada para um passarinho de peito vermelho que passou voando alegremente e cantando. Nisso ouviu Duane dizer: — Vamos, é melhor tomarmos nosso café antes que esfrie.

Sentaram-se ambos à mesa sob o olhar interessado de Da-ud, que imediatamente colocou os pratos diante deles, dizendo: — Le petit déjeuner est servi — e, virando-se para Roslyn, perguntou: — Acha, lella, que eu falo razoavelmente bem o inglês e o francês?

— Fala tão bem quanto cozinha — disse, fazendo um gesto que abrangia toda a mesa, onde se viam os saborosos pratos.

— Você caprichou hoje — disse Duane aprovativamente.

Da-ud sorria satisfeito enquanto enchia as xícaras de café e puxava um potinho de margaridas mais para perto do prato de Roslyn. — Bon apetit — disse em francês, dando um passo para trás e fazendo uma saudação árabe.

Roslyn riu e respondeu o cumprimento. — Encantador! — comentou.

— Se um berbere ou um árabe gosta de você, então você terá um amigo verdadeiro para toda a vida — informou Duane. — Podem ser impiedosos com abutres ou leais como banqueiros suíços. Encontrei Da-ud uns anos atrás, trabalhando nas montanhas, caçando passarinhos e criando-os em gaiolas, para vender. Estava meio morto de fome e ávido para trabalhar com um europeu. Tudo o que vem para a mesa é nativo, e meus convidados têm que se satisfazer com o que ele providencia.

— Nem se incomode, Sr. Hunter. Estou gostando muito da comida dele: só que um pouco intrigada com a espécie de farinha que ele usa neste pão, que também é muito gostoso.

— É pão de semolina. Dá ótimas torradas; se quiser mais, eu o chamo e peço.

— Não, obrigada — disse, sacudindo a cabeça.

— Gosta do café?

Ela assentiu e ele tornou a encher sua xícara. — Bem feito, o café árabe é delicioso. Mas siga meu conselho: nunca tome chá. É simplesmente horrível!

— Então, subentende-se que eu vou ficar em Dar al Amra — disse logo depois, limpando os lábios sujos do mel que cobria a rosca frita.

— Nanette tem necessidade de alguém — disse bruscamente. — Seja boa para ela, estou lhe avisando. Ela é a primeira mulher em minha vida e posso tornar-me infernalmente zangado quando se trata de defendê-la.

— Disso tenho certeza! — Roslyn sentia-se aborrecida, pois não era nada agradável saber que ele suspeitava de sua autenticidade. Duane tinha em baixo conceito todas as mulheres, excetuando sua avó e aquela adorável latina que, com voz melodiosa, devia tê-lo desiludido.

Quando chegou a hora de levá-la para casa, chamou Da-ud e ordenou-lhe que selasse um cavalo. Um só cavalo? Roslyn remexeu-se na cadeira enquanto fitava Duane, com o coração aos pulos.

— Mesmo que soubesse montar, eu não confiaria em deixá-la sozinha num de meus cavalos árabes.

— Não poderíamos ir a pé? — aventurou-se.

— Já gastei demais meu precioso tempo esta manhã — respondeu através da fumaça do charuto. — Não tenha medo. São cavalos ariscos e fortes, mas sou capaz de dominá-los. Do que tem medo?

Ele sabia perfeitamente. Foi um alívio quando o saluri veio latindo até a mesa querendo alguma sobra do café.

O cavalo foi selado e trazido para o pátio. Era um animal maravilhoso, castanho-escuro, e batia as patas nervoso, quando Duane se aproximou dele falando-lhe mansamente na língua berbere, e alisando-lhe o pescoço. Trouxe-o para perto de Roslyn, que estava menos temerosa dele do que de seu dono.

— Você não significa mais peso para Lekna do que a manta que eu uso para meus galopes matinais.

— Lekna? Que bonito nome para um cavalo! — Sua mão estava trêmula quando tocou a sedosa crina e nela se agarrou quando, sem um aviso, Duane a levantou e a colocou sobre a sela. De um salto Duane estava sentado atrás dela, e seus musculosos braços qual um cinturão de ferro a envolviam.

— Pronto? — perguntou.

Ela assentiu, retendo a respiração, sentindo-se presa em seus braços, de encontro a seu peito forte e vigoroso. O cavalo deu a volta num canteiro e passaram pelo arco da entrada, saindo para a plantação. Era fresco sob a sombra das palmeiras, e Roslyn segurava-se rigidamente para não ter que se encostar no peito dele.

— Como... como são altas estas árvores — disse nervosamente.

— Trinta ou quarenta pés — explicou. — As árvores da vida que cresciam no jardim do Éden. Sabia que as tamareiras têm que ser fertilizadas pela mão do homem?

— Não — disse, observando as mãos morenas que seguravam as rédeas.

— A tamareira macho tem aproximadamente dez "noivas" que dão frutos após a polinização. A tamareira começa a produzir com oito anos de idade e vai até quase um século. Formidável, não?

— Não me admira que você ame suas árvores.

— É claro! — Deu uma breve risada. — Que mulher poderia servir tão bem a um homem durante um século? Frutos para alimentá-lo, sombra no calor, teto e cama improvisadas de suas folhas. Tudo... até paz de espírito.

— Não pensei que se sentisse atraído por qualquer espécie de paz. Em todo o caso, se o que é primitivo oferece paz, nós mulheres também devemos oferecer, pois em seu entender, somos primitivas, não somos?

— Primitivas, mas muito mais insidiosas do que as selvas ou o deserto.

— Você disse que eu gostaria do deserto.

— Por que não? Você, ontem à noite na torre do harém, parecia apreciar seu mistério e a sensação de infinito que convida ao esquecimento.

Passou pela mente dela que tinha muito mais que se preocupar em se lembrar das coisas do que esquecê-las, mas se conteve e nada disse, pois para ele sua amnésia era como uma bandeira vermelha sacudida na frente de um touro, e, estando tão próxima dele, não valia a pena se arriscar.

— Se está tentada a conhecer o deserto, ouso dizer que Tristan pode ser persuadido a levá-la a explorá-lo.

— Tristan ama o deserto? Ele me parece um pouco sofisticado.

— Pelas suas maneiras polidas? Tristan tem mais ilusões a respeito de pessoas e lugares do que eu tinha quando era um colegial. Vai-lhe bem o apelido de Cavaleiro Britânico. Um defensor à procura de donzelas em perigo...

— Qualquer um vê que Tristan é um homem bom.

— E qualquer um vê que eu não sou! — Sua risada ecoou e ao mesmo tempo, alguma coisa assustou o cavalo que deu uma arrancada. Roslyn foi atirada de encontro aos braços e peito de Duane, que puxou as rédeas com força para obrigar o cavalo a acalmar-se.

— Desculpe — disse secamente. — Machuquei-a?

Ela sacudiu a cabeça negando, mas ainda sentindo seus braços musculosos a seu redor.

As verdes sombras tornaram-se douradas, e alguns minutos depois estavam diante das paredes de Dar al Amra. Foi um alívio para Roslyn que não via a hora de se ver livre dele.

— Vou deixá-la aqui. — Duane desmontou e ajudou-a a descer.

— Obrigada por ter vindo em meu socorro e pelo café. — Levantou para ele seus lindos olhos claros. Seu rosto, no verde dourado das sombras parecia o de uma jovem e adorável feiticeira.

— Foi apenas sorte que eu estivesse por ali com meu cachorro — disse com um sorriso estranho nos lábios. — Kismet, como dizem nesta terra de gafanhotos e mel...

— Você não acredita no destino?

— Quem sabe... Eu só não o aceito; eu o faço! E você Roslyn, já é mulher bastante para saber qual a diferença básica entre os sexos? — Suas sobrancelhas formavam uma linha, sua expressão era dura e seus olhos verdes como as folhas das palmeiras brilhavam ao sol.

— Sabia que havíamos de brigar cada vez que estivéssemos juntos — disse ela. — Fui avisada.

— Homens e mulheres sempre brigarão cada vez que se encontrem. Mesmo que nos braços um do outro, sempre reencontram a energia para lutar mais.

— Que visão mais cínica da vida você tem!

— Não estava sendo inteiramente cínico. Sexo é uma verdade fundamental, mas nem todos têm a coragem de encará-lo. Em vez disso o escondem sob toda a sorte de romantismos, véus de ilusão, transformando o que é básico num sonho. É melhor ver as coisas como elas são, senhorita Brant. Sonhos são para pessoas que querem ser feridas.

Dizendo isso virou-se, deixando-a e montando seu fogoso cavalo. Fez-lhe uma ligeira saudação e logo depois homem e cavalo sumiam por entre as árvores. Ambos cheios de vigor e violência, pensou Roslyn, que recuou até um tufo de flores que tocavam seus cabelos e seus ombros. Ouviu ainda durante um pouco de tempo o som do galope, mas logo depois tudo era silêncio.

Quando Roslyn entrou no pátio dos Véus, o portão fechou-se atrás dela. As paredes a seu redor eram altas, guardando a cidadela onde deveria permanecer até que o feitiço sobre ela se rompesse...

A Bela Adormecida fora despertada com um beijo, pensou, enquanto se via sob a frondosa árvore e observava as fontes que brilhavam ao sol. Bem, uma coisa era certa: qualquer que fosse sua personalidade antes do desastre, devia ser uma amante da natureza. Sentia-se muito melhor no meio dela do que entre pessoas.

...livros e um riacho correndo... e o bem em todas as coisas... Em sua mente conturbada, lembrava-se de frases como aquelas. Mas não se lembrava de ter amado Armand. Nem se lembrava de como seria o amor. Duvidava até que o tivesse sentido em toda sua força. No entanto, quando Duane falara de sua decepção, sentira uma espécie de culpa, como se em seu subconsciente tivesse que se justificar. Sentiu um arrepio de frio em pleno sol, e sabia que a verdade estava escondida em sua mente e a chave estava perdida!

Sem poder agüentar mais seus pensamentos levantou-se rapidamente e correu para o consolo da música de Tristan.

Nos dias que se seguiram, Roslyn não se aventurou mais a sair pela plantação, pois podia encontrar Duane inesperadamente.

Ao café da manhã encontrava sempre Tristan e comiam juntos geladas fatias de melão, croissants quentinhos e café. Conversavam muito e logo se tornaram amigos, para diversão e caçoada de Isabela.

Isabela também tinha sido convidada a permanecer em Dar al Amra pelo tempo que quisesse. No momento não tinha contratos a cumprir, e, sendo portuguesa, adorava o sol. Estava sempre pronta para cantar para Tristan sempre que ele desejava.

Tinham se tornado amigos, dissera-lhe Tristan, quando Isabela cantara uma ópera sua: a Ar Mor, uma lenda britânica que ele musicara e que fora seu primeiro sucesso.

— Creio que isso é tudo que as moças querem de meu Tristan — disse Nanette uma manhã para Roslyn, enquanto a ouviam cantar. — As lindas árias que compõe para elas. De certa maneira fico contente. Não gostaria de ver um neto meu gastando seu tempo com uma moça qualquer.

Roslyn estava olhando um álbum de fotografias de Nanette do tempo de teatro. Não achava que Tristan estivesse amando, mas parecia que Nanette pensava que sim. — Posso entender que ele se sinta atraído por ela; é linda com seu cabelo negro e pele dourada.

— Tristan sente-se atraído por ela, minha petite, mas notou que ela só tem olhos para meu bárbaro do deserto?

— Tem medo que ele se envolva com ela? — Examinava uma foto de Nanette com exagerada atenção.

— Mais non! — Nanette deu uma risada. — Duane sabe se cuidar em qualquer ocasião, mas Tristan é sensível e idealista. Ele pode fugir da idéia de que Isabela possa usar sua voz para seduzir alguém, mas Duane é esperto demais para se deixar enganar. Ainda que uma moça consiga levá-lo ao altar, será ele quem mandará até o fim da vida. Eu sei; fui casada com o avô dele.

— Ele é tão cínico com as mulheres! Crê realmente que há possibilidade de ele se casar com Isabela?

— Embora cínico com as mulheres e contra o casamento, será obrigado, como outros homens, a ser realista. Só demônios ou santos podem viver sozinhos. E embora Duane tenha muito de demônio, tem mais de homem. Um homem que necessita de uma mulher para amar e que dependa dele.

— E a carreira de Isabela? — perguntou Roslyn. — Acha que desistirá de toda sua corte de aduladores para morar isolada? Tenho certeza de que seu neto nunca se conformaria em viver na cidade.

— A idéia é engraçada, não? Duane numa cidade seria como um leão numa jaula. O avô dele foi a mesma coisa e eu tive que desistir de minha carreira e vir para Dar al Amra morar com ele. Eu era mais famosa do que Isabela. Eram dias de luz, vinho e galanterias que eu adorava. As vistosas roupas que eu usava no palco, a champanhe oferecido pelo homem com quem eu dançava... Paris a meus pés, petite, mas não pude resistir quando Armand entrou em minha vida. O tipo do homem de quem eu podia esperar poucas concessões. Aqui em El Kadia ele armou sua tenda e eu, como Ruth, onde ele estivesse eu o seguiria...

— Nunca se arrependeu de sua decisão?

— A gente nunca se arrepende de um grande amor, não importa o que ele nos reserve. — Nanette tirou os óculos e, aproximando-se de Roslyn, fixou nela seus adoráveis olhos azuis.

— Depois de três semanas conosco, parece mais forte. Isso é muito bom. Sente-se melhor, minha filha? Menos nervosa, e sua mente mais calma?

— Sinto-me muito melhor — assegurou Roslyn àquela que fora tão bondosa com ela. — O ar de seu deserto é um tônico maravilhoso!

— Tristan deverá levá-la para um passeio pelo deserto, agora que está se sentindo bem. — Nanette tomou as mãos de Roslyn, reparando que ela não usava mais o anel de Armand. Roslyn guardara-o junto com o casquete de Julieta e o vestido.

— É muito doído continuar a usar o anel? — perguntou Nanette.

— Estava muito largo em meu dedo e tive medo de perdê-lo. — Roslyn hesitou, mas depois continuou: — Nanette, você me deixaria devolver-lhe? Soube que eram seus e que você deu um para Armand quando completou vinte e um anos.

— Ah! sim, uma romântica idéia que eu tive, que cada neto devia dar esse anel à moça que escolhesse para casar. Um anel abençoado com amor deveria trazer sorte... pelo menos foi o que pensei... Não, o anel agora é seu, petite. É tudo que lhe restou de Armand... pelo menos por enquanto. Há um quarto de brinquedos de quando eles eram crianças. Diários que escreveram, quinquilharias que guardaram. Tristan deve mostrar-lhe. Poderá ajudá-la ver essas coisas, seus livros, seus pertences. Poderão, quem sabe, ajudá-la a se encontrar...

Roslyn achou ótima a sugestão, embora tivesse um pouco de medo. Era como se temesse o passado, um fantasma escuro e desconhecido.

Todos os dias, Nanette percorria a casa com seus criados, fiscalizando o serviço e, para deixá-la à vontade, Roslyn subia a escada e ia para a torre do harém. Tornara-se seu lugar favorito. O deserto podia ser visto com suas dunas cor de âmbar, sempre diferente, excitante às vezes, e por outras dando a ilusão de paz.

Um dia Jakoub chamara-o de jardim de Alá, quando fora levar-lhe um suco de laranja e ela pensara nos tempos idos, quando moças veladas descansavam na torre.

Jardim de Alá! Roslyn pensava no nome, enquanto, distraidamente, acariciava umas flores próximas. A vista era estranhamente selvagem, estendendo-se na distância até o Gebel d'Oro, onde brigadas bárbaras tinham sua fortaleza. Isso parecia inacreditável, mas toda lenda e toda a fábula excita a imaginação. Lá havia um lugar, diziam, onde o fogo se petrificara e onde os deuses tinham sua morada... Será que Tristan a levaria tão longe para vê-los? Sua atenção foi despertada por um árabe a cavalo, que galopava como o vento, com sua capa esvoaçante, atravessando as areias escaldantes... Quando desapareceu, o deserto parecia estranhamente vazio.

Duane Hunter estava em casa. Havia alguma coisa que ele precisava discutir com Nanette, algo sobre um problema no empacotamento das tâmaras.

— Você tem minha autorização para resolver como achar melhor — disse-lhe Nanette ao almoço. — Você sabe o que faz quando se trata de negócios. Mas acho que o verdadeiro motivo de você voltar aqui é que sente falta de companhia feminina. Vamos! Admita que estou certa!

Não admitiu coisa alguma, mas sorriu enquanto enchia o copo dela de vinho. — Que mulher confiante você é, Nanette. Não tem medo que eu faça outros negócios sem que saiba?

— Você é muito britânico para essas coisas. — Depois de olhá-lo carinhosamente, disse: — Tire umas férias, Duane. Um dia longe da plantação não fará mal a você ou às árvores. Seria uma boa idéia se vocês jovens fossem até a cidade, olhar as lojas, navegar no lago e dançar à noite no clube. Há quanto tempo você não dança, meu querido?

— Ele dança? — perguntou Isabela visivelmente excitada com a idéia — Duane, por favor, aceite a idéia de Nanette. Parece divertido!

Os lábios vermelhos de Isabela faziam um muxoxo, e Roslyn viu que Duane a olhava com seus olhos verdes de lobo.

— O que você acha, Tristan? — perguntou ele.

— Acho uma excelente idéia.

— E nossa garotinha perdida? — perguntou olhando para Roslyn.

Ela corou intensamente, odiando-se por isso e desejando ir a El Kadia só com Tristan. Virou-se para ele como que pedindo socorro, e sorrindo ele lhe disse: — Roslyn vai junto, é claro! — E assim encerrou-se o assunto...

O almoço decorreu alegre com os projetos do passeio, com Isabela de ótimo humor. Falou sobre Portugal, de como ela gostava de cantar e dançar na vindima. — Gosto de dançar quase tanto quanto de cantar. Você vai dançar comigo, Duane. Prometa!

Ele olhou-a com uma expressão enigmática. Isabela o olhava, muito segura de sua beleza e certa de que poderia facilmente substituir a outra mulher na vida dele. Num gesto audaz e gracioso, pegou uma rosa do arranjo central da mesa e atirou-a nele, que a apanhou e esmagou entre os dedos, fazendo com que um forte aroma se espalhasse pela sala.

— Sábado será um bom dia para irmos — disse categórico. — Levantaremos cedo e poderemos ir no Renault.

— Eu tive uma idéia! — Tristan maquiavelicamente girava nas mãos seu copo de vinho. — Por que não alongamos esse fim de semana? Poderíamos ficar no hotel, o que pouparia o trabalho de voltar dirigindo à noite e, além disso, as moças estarão cansadas.

Duane ficou pensativo por uns instantes e, depois, repentinamente, dando uma risada e se levantando, aderiu ao plano. Desculpou-se por não poder ficar para o café, saiu da mesa. Roslyn viu que ele usava uma roupa escura, como as que um árabe usaria. Então fora Duane que ela vira da torre em seu galope desenfreado, e Isabela teria que usar de todos seus artifícios para conseguir afastá-lo dali.

Duane disse au revoir e saiu da sala com Isabela a seu lado. Ela sorria para ele, alegre e viva como um passarinho, embora ao lado de um falcão.

— O que está acontecendo com Duane? — perguntou Nanette. — Tristan, você acha que ele está amando?

Tristan deu de ombros, enquanto alcançava uma laranja para Roslyn. — Como dizem os árabes, grand-mère, uma mulher bonita é uma armadilha na qual o mais prevenido homem pode cair...

 

Roslyn teve que admitir que um fim de semana em El Kadia seria um programa interessante. Nesse tempo do ano diziam que os flamingos podiam ser vistos em certas partes do lago Temcina.

Era noite de sexta-feira. Amigos de Nanette tinham vindo jantar e jogar cartas, e, terminado o jantar, Roslyn fugira para seu refúgio na torre do harém. Sua amnésia tinha sido o tópico da conversa e ela se sentia confusa e perdida.

Outras pessoas podiam achar interessante conhecer alguém desmemoriado, mas para ela era assustador ter metade de sua mente envolvida por um véu que não conseguia levantar. Às vezes lhe vinham à mente algumas cenas em que as pessoas pareciam fantasmas, mas por mais esforço que fizesse tudo se enevoava antes que pudesse reconhecer alguém ou algum lugar. Sentia uma vontade louca de chorar, pois, afinal, a verdade Duane pusera claramente em palavras simples: uma garotinha perdida...

Ali na torre havia calma. A leveza do tecido de seu vestido dava a ilusão dos véus usados pelas moças do harém. A lua apareceu, crescente e prateada, acompanhada de estrelas cintilantes. A noite era quente e tranqüila.

Espaço e mais espaço... Roslyn pensava, olhando o deserto, que não era tão torturante com sua amnésia... O deserto era um jardim de mistérios com as sombras formadas pelo luar e com o vento cantando nas dunas...

Permaneceu imóvel para não quebrar o encantamento, enquanto ouvia os acordes de Il Pleut dans Mon Coeur tocado no violão.

A música terminou e ela virou-se para ver Tristan parado diante dela, com o violão pendurado no ombro. Ele era moreno, alto e cavalheiresco como os trovadores medievais. Tirara seu paletó e usava uma camisa branca de seda. Sorriu-lhe, pensando como era diferente de seu primo, calmo, porém alegre, com os olhos escuros e sorridentes.

— Gostei da música. Combinou com meu estado de espírito.

— Há lágrimas em seu coração, Roslyn? — Veio para junto dela, o luar brilhando em seus negros cabelos. — Naturelment! Como poderia ser diferente? O amor não morre com as pessoas, e o que conversaram à mesa deve tê-la aborrecido!

— Sinto-me tão perdida, Tristan... Às vezes, quando procuro me lembrar das coisas entro em pânico; preciso saber de ontem para ter confiança no amanhã, entende isso?

— Naturalmente, mas não adianta de nada você se preocupar. Sua mente está cheia de impressões de pessoas, lugares e fatos do passado. No momento estão obscurecidos, o que é perturbador, mas certamente um dia emergirão repentinamente e você saberá quem foi e o que vai fazer.

— Você é animador — sorriu como uma criança consolada. — Toque mais alguma música, por favor.

— Não acho que deva. O violão é um instrumento nostálgico e não quero vê-la deprimida. Amanhã cedo sairemos para nosso fim de semana. Está animada, Roslyn?

— Muito. Creio que nunca estive num mercado oriental.

— Os bazares são fascinantes, cheios de curiosidades. Vou fazê-la provar o café árabe e levá-la até o alto de um minarete.

— Parece excitante. Você... você acha que seu primo não gostou da idéia de eu ir junto?

— Por que isso?

— Ele... não gosta de mim. Creio que me julga uma fraude...

— Você? — Tristan, sorrindo, tocou-lhe de leve o queixo. — Você não saberia fingir. Não, ele não é má pessoa, quando você o conhece bem. É um diamante bruto, que veio das selvas.

— Não, um jaguar. Como se sentiu ferido e magoado uma vez, agora não reconhece se é amigo ou inimigo o que tem pela frente.

Tristan sorriu daquele jeito tão seu. — Talvez. Como o raio, o amor nem sempre é letal, mas às vezes deixa marcas que levam anos para desaparecer.

Roslyn estudava seu companheiro quando ele tomou o violão e começou a tocar um tema de amor de sua ópera nova.

— É lindo! E um tanto bárbaro! Acaricia e arranha...

— Como o amor, naturalmente. O amor é sutil, uma arma ou uma trama. É a loucura que conserva a mente sã, embora a emoção para um homem não seja exatamente a mesma que para uma mulher. Uma mulher deixa-se envolver se um homem mostra muitas facetas de sua personalidade; por outro lado, um homem se encanta por um camaleão, uma criatura que muda, é senhora, mãe, conselheira e cortesã. — Tristan virou-se e, olhando o deserto disse: — É fácil talar com você, Roslyn, mas também perigoso. Esses olhos claros fazem um homem falar sobre coisas que guarda em segredo...

— Isso é só porque sou boa ouvinte. Tudo o que você tem a dizer é sempre interessante.

— Roslyn — segurou-a delicadamente pelos ombros —, você é quase uma criança e eu sinto que a vida a tenha ferido tão cedo...

Levantou o rosto para ele. Ali estavam, um rapaz e uma moça, perdidos de diferentes maneiras, mas ambos procurando uma saída. Os lábios de Tristan acharam os dela e ela ainda se encontrava em seus braços, quando o barulho de saltos nas pedras os interrompeu. Viram, então, Isabela olhando-os.

O luar iluminava seu lindo rosto e Roslyn pôde ver a malícia em seus olhos. Não admitia dividir quem quer que fosse com outra garota.

— Bem, Isabela? — Tristan continuava firme, segurando Roslyn pela cintura.

— Pensei que poderia estar mais frio aqui em cima, depois de ficar tanto tempo naquele salão quente e cheio de fumaça de cigarro, mas evidentemente está mais quente ainda aqui em cima. — Olhou significativamente para Roslyn.

Esta sentia o rosto em brasa, embora não tivesse sentido paixão no beijo de Tristan. Deveria haver? Era uma pergunta a ser respondida, mas que a interrupção de Isabela não dera tempo para pensar a respeito.

Em fila indiana cruzaram a torre e desceram as escadas. No corredor Roslyn disse boa noite e dirigiu-se para a porta vermelha de seu quarto. Dentro do quarto, não acendeu a luz, e ficou por algum tempo encostada na porta, sentindo as batidas desordenadas do coração e examinando suas emoções durante o beijo. Correspondera a ele porque Tristan se parecia com Armand? Ou precisara de conforto que somente um homem sabia dar?

Deu um suspiro e desejou ardentemente que Isabela não tivesse testemunhado.

Sábado amanheceu e o ar estava leve e fresco quando Roslyn foi até o pátio dos Véus, depois do café. Duane era esperado num minuto e ela não queria sair sem falar com Nanette. Ela costumava tomar o café na cama, e mordia uma torrada quando Roslyn entrou no quarto. O cortinado azul de sua cama estava aberto e combinava com os cabelos prateados dela, mas seu rosto sem maquilagem mostrava bem sua idade, à luz clara da manhã. Estudou Roslyn seriamente, quando ela se aproximou da cama, magra como um menino e vestindo uma blusa cereja e calças creme.

— Você me parece contente como um passarinho esta manhã, minha filha; acho que agora está preparada para passar um fim de semana longe de Dar al Amra. Diga-me — Nanette serviu-se de mais café — meu neto tem alguma coisa a ver com essa mudança?

— Refere-se a Tristan? — Corou intensamente e percebeu imediatamente que Isabela tinha ido correndo cochichar no ouvido de Nanette. Quase que podia ouvi-la dizendo: — Aquela moça! Parece ter se esquecido totalmente de Armand. Eu a vi na noite passada beijando Tristan na torre do harém.

— A Bela Adormecida é uma linda história, mas não é assim na vida real. — Nanette falava delicada, mas seriamente. — Se está tentando encontrar Armand através de Tristan poderá se ferir. Espero que você entenda que nem todos os homens beijam levianamente.

Roslyn olhou para suas mãos cruzadas no colo e desejou estar longe dali, mas respondeu tristemente. — Não estou usando Tristan para uma prova. Ele é uma pessoa boa demais para ser tratada assim. Além disso, me considera uma criança. — Levantou os olhos claros para Nanette. — Ele me beijou porque sentia pena de mim, assim disse ele. E eu o deixei beijar-me porque às vezes também sinto pena de mim.

— Não pretendi aborrecê-la, petite. — A delicada mão cheia de veias cobriu a de Roslyn. — Isso é porque me preocupo com meus jovens. Não gosto de vê-los magoados, apesar de saber que a vida se torna mais rica de experiências quando se sofre e sobrevive.

Ambas se encararam por um longo momento e depois Nanette disse repentinamente: — Vá até minha mesa de toalete e traga uma caixa redonda que tem lá. Tenho uma coisa que poderá lhe agradar. É uma bugiganga que gente velha não usa mais.

Nanette abriu-a e pegou de dentro um bracelete cujo trabalho representava cenas de fábulas francesas. — Ganhei isso quando fiz dezesseis anos e agora gostaria que fosse seu. Bonito, não? — Nanette sorrindo colocou-o no pulso de Roslyn.

— É muito lindo, Nanette. Mas não sei se você deveria dá-lo para mim. — A cor voltara ao rosto de Roslyn.

— Está dado! — falou decidida. — Coisas como esta nunca atraíram o interesse de minha filha, pois não eram do gosto do homem com quem se casou. Temi pelo seu casamento, mas, graças a Deus, foi um sucesso. Logo tiveram um filho, Duane, e eu sei que ele manteve ocupada minha Celeste. Teria sido muito difícil para mim sabê-la infeliz e tão longe. Ela era mais moça que meus filhos, a menina que meu marido tanto quisera; por isso, sua felicidade era tão importante para nós.

Nanette olhou para Roslyn achando que ela lembrava-lhe de certo modo a filha, antes de ela se casar e ir embora.

— Obrigada pelo bracelete, Nanette. — Roslyn levantou-se e beijou-lhe a face. — Guardarei para sempre com carinho.

— Guardará o quê? — perguntou Duane, que tinha vindo pessoalmente buscar quem estava retardando a ida para El Kadia. Roslyn percebeu então que se distraíra, ouvindo as confidencias de Nanette sobre Celeste. Ao vê-lo olhar para o bracelete, cobriu-o com a mão, mas ele brilhava por entre seus dedos finos.

— Acabo de dar uma lembrança para Roslyn — informou Nanette. — Bem, Duane, como lhe ficam melhor roupas civilizadas! Aproveite este fim de semana. Relaxe e esqueça a plantação.

— É o que pretendo fazer. — Abaixou-se e beijou Nanette exatamente onde Roslyn tinha beijado segundos antes. Roslyn desejou sair correndo para o carro, mas viu que seria criancice. Esperou e dando um sorridente adeus para Nanette, precedeu-o, saindo pela porta.

Estavam a meio caminho do corredor quando ele, tomando-lhe o pulso, levantou-o à altura dos olhos examinando o bracelete. Não olhou para ele, mas sentia seu antagonismo pela pressão de seus dedos. Era assustador como um homem podia ser tão vigoroso e cheio dessa espécie de poder que deixava uma mulher indefesa.

— Bonito! — murmurou. — O bracelete, quero dizer.

— Sei o que quer dizer. Já me disse uma vez que não tenho atrativos, Sr. Hunter.

Ele a fitava com olhos apertados, segurando-a firmemente, e, sem que ela esperasse, deu-lhe um puxão, trazendo-a para bem perto de si. — Ninguém pode ser tão inocente como você parece! Só mesmo um louco ou uma criança, e você não é nem uma coisa nem outra!

— Solte-me! — Lutava para se libertar, indefesa como um pássaro na gaiola. — Nunca está satisfeito a não ser que esteja me magoando! Eu... suponho que esteja querendo me ver fora da excursão de hoje, mas eu... não pretendo lhe dar esse prazer.

— Não quero que faça nada para me agradar. — Deu uma risada de escárnio. — Se você vai ou não, é totalmente indiferente para mim. Por que me importaria? Você não é o meu tipo.

— Nem você o meu! — retrucou ela. — Você é arrogante, bruto e é o homem mais fácil de odiar que já conheci!

— Conheceu muitos além de Armand?

— Eu... eu não sei. — Seu pulso doía do esforço para se libertar de suas garras. — Posso ser qualquer coisa, mesmo o que você diz; mas uma coisa é certa, Duane: a aversão é mútua. Detesto quando me toca ou mesmo está perto de mim, e tenho pena da mulher que pense que você poderá amá-la. Você parece pensar que é o único homem na face da terra que se desiludiu com o amor. Milhões de pessoas se amam e, de repente, terminam tudo, sem por causa disso ferir outras criaturas. Espero que não sejam como você. Amargo, duro e sem piedade. Piedade pode ser uma palavra fria para alguns, mas sou grata a Nanette por me oferecer a dela. Vem direto de seu coração e eu preferiria cair morta a bancar o Judas com pessoa tão maravilhosa.

Roslyn recuou um pouco e viu dois olhos verdes, duros e flamejantes num rosto pétreo. Ele estava pálido e parecia conter a custo as palavras que lhe vinham aos lábios.

— Nanette sabe amar, Sr. Hunter — continuou ela —, e não creio que você saiba. Quão frágeis somos no amor, no entanto, quão fortes nos tornamos defendendo o que é belo. Não tenho memória no momento, o que é uma verdade, mas quero me lembrar. Quero saber como é sentir amor, mesmo que agora o tenha perdido.

No silêncio, próxima dele como estava, podia sentir as batidas do coração dele. Tal proximidade era intolerável, mas felizmente a buzina do Renault fez com que ela, num movimento brusco, se liberasse e descesse correndo as escadas, saindo para o pátio cheio de sol, onde Tristan esperava por ela.

Ele sorriu e lhe estendeu a mão. Isabela já estava sentada no carro, no banco da frente, empoando o nariz, e parecendo orgulhosa e distante, como uma rainha egípcia. Roslyn sentou no banco traseiro com Tristan a seu lado, enquanto Duane sentava-se ao volante. Enveredaram por entre a plantação e as árvores passavam céleres pelas janelas do carro.

Uma vez no deserto, o sol era abrasador, e logo depois viram um acampamento de tendas negras ao redor de um poço. Alguns camelos ruminavam, e algumas cabras e carneiros pastavam. Mulheres tiravam água do poço com o rosto coberto, e os homens entravam e saíam das tendas, tudo contribuindo para formar uma cena bíblica, imutável através dos séculos.

Maria e José deviam ter acampado assim em sua jornada, pensou Roslyn, sendo hospedados por gente como aquela.

Isabela comentou que os verdadeiros árabes não deviam ser como os xeques das novelas e filmes.

— Espero que não! — disse Duane. — Estes são verdadeiros homens e mulheres que conhecem o fogo e o gelo de sua terra. Atualmente um xeque do deserto é pouco mais que um pastor, um nômade, que abre os olhos pela primeira vez numa tenda, que casa com uma mulher de sua tribo e que raramente se cada uma segunda vez. O céu é seu teto e a areia seu chão, sua cama e finalmente seu lugar de descanso.

— Você fala deles como se os invejasse, Duane — disse Isabela rindo. — Não me diga que tal vida o atrai.

— Claro que o atrai! — interrompeu Tristan. — Duane tem um espírito primitivo, não é mon ami?

— Certamente — respondeu sorrindo. — Ainda pequeno me defrontei com florestas, onde aprendi a pescar e a navegar num barquinho nativo. Foi muito bom... enquanto durou.

— Algum arrependimento por deixá-la? — Tristan ofereceu cigarros. Roslyn sacudiu a cabeça negando, mas Isabela, que não fumava, pegou um e acendeu, colocando-o depois entre os lábios de Duane.

— Às vezes sinto saudade do cheiro das bolas de borracha queimando, de saborear um pedaço de mamão ou de comer um peixe cozido em folhas de bananeira. Tínhamos uma plantação de cumaru. Que é uma espécie de feijão, com um delicioso perfume. Havia pacas para caçar, rápidas e silenciosas. Também jacarés. Rabo de jacaré é um prato muito saboroso.

— Oh! Duane, francamente! — disse Isabela enojada.

— É verdade, minha querida. A selva é o paraíso do diabo e eu me sentia bem lá. Eu festejava o rugido da chuva que caía em cataratas, ao rufar dos tambores, e a maneira como o sol transformava seus rios em vinho. Llora, llora, corazón, cantavam eles.

— E o que querem dizer essas palavras? — perguntou Isabela.

— Chora, chora, coração. — Sentada atrás deles, Roslyn viu que seus olhos se encontraram e ficaram se fitando por um momento, embora o sorriso dele fosse cínico. — Naquelas florestas chuvosas era quente como o inferno; no entanto havia ocasiões em que a brisa parecia suave e fresca como beijos de anjos.

Roslyn não podia deixar de observar os dois à sua frente, parecia como se estivesse espiando duas pessoas se beijarem através de uma janela. Certamente o beijo de Isabela não seria angélico. Era uma beleza temperamental e mimada, e certamente exigiria que seu marido levasse seu tipo de vida. Aqueles dois precisariam aprender a ceder, se o que estivesse nascendo entre eles fosse realmente o amor.

— Você teve oportunidade de assistir a rituais pagãos durante os anos que esteve por lá? — perguntou Tristan.

— Muitos. Cheios das feitiçarias que proliferam nas selvas. É fácil acreditar nos deuses das chuvas e nos espíritos do fogo quando a "Mãe da lua" chora misteriosamente sobre as árvores ao cair da noite, porque o rio aprisionou a lua: Jaci, a deusa da Lua, possuída em toda sua beleza pelo rio do Demônio.

— Isso é fascinante! — murmurou Tristan. — Duane, não me lembro de ter ouvido você falar nisso antes.

— Talvez só agora tivesse vontade. — Duane deu de ombros.

— É porque se sente relaxado — disse Isabela. — Não é bom se sentir livre dos remos das galés?

Ele deu uma risada e, levando a mão ao porta-luvas do carro, tirou alguma coisa de dentro. Isabela deu um gritinho e Duane jogou-o para trás, provavelmente para que Tristan o pegasse, mas caiu no colo de Roslyn.

Uma cabeça humana mumificada, do tamanho de uma laranja grande, cabelos compridos, olhos fechados e os lábios costurados numa careta. Tristan suspendeu-a pelos cabelos.

— Mon Dieu, isto é real?

— Genuíno! — Virou-se olhando Roslyn. — É assim que eu ficaria se os jivaros tivessem pegado minha cabeça para fazer uma tsanta.

— Por que fazem isso, Duane? Ainda hoje em dia pegam cabeças para mumificá-las? — perguntou Tristan.

— Só ocasionalmente. É feito para satisfazer a honra de uma família ou de uma tribo. Cada homem que tira uma cabeça, teve sem dúvida que matar outro, o que dá á família deste a oportunidade de se vingar e assim por diante. É como aqui no deserto, e o espírito de vingança que reina em outros lugares como a Córsega e a Sicília. Todos sabemos que esses costumes estão acabando, mas não de todo.

— Também mumificam cabeças de mulheres? — perguntou Isabela o que Roslyn queria saber.

— Não, as mulheres estão livres disso. Atualmente as índias não têm uma vida má, isto é, se deixam-se guiar pelas magias dos homens quando as praticam. O moko-moko é uma assembléia de todos os homens, especialmente dos chefes e curandeiros, e desobedecer suas ordens seria procurar problemas. Fora isso, são amadas de uma maneira que as mulheres civilizadas invejariam. Que rapaz solteiro de nossa sociedade se sujeitaria a ser enrolado num saco de formigas para provar sua coragem e poder se casar?

— Meu Deus, que drástico! — Tristan riu. — Se eu fosse um índio permaneceria solteiro.

— Mesmo se estivesse perdidamente apaixonado? — Isabela fixava nele um par de olhos brejeiros. — O amor não vale algum sofrimento?

— Vou pensar no caso — replicou. — Parece-me que na nossa sociedade o sofrimento tem pouco valor e que os sentimentos dos outros nos importam pouco. Em resumo, pessoas sensíveis, capazes dos melhores sentimentos, inclusive o amor, são as que recebem menos e merecem mais. Não admira que hoje em dia se estejam escudando numa armadura de ambição. Quem pode culpá-los? Foram forçados a isso pelo chamado mundo civilizado.

— Tristan! — Isabela abriu desmesuradamente os olhos. — Que conferência! Foi só para mim ou Duane está incluído?

Tristan sorriu e estendeu a mão para Isabela, entregando-lhe a tsanta. De certo modo, foi um gesto significativo. A cabeça para você, parecia dizer; o coração ainda terá que conquistar.

Roslyn olhou pela janela de seu lado e viu que deixavam as areias para trás. Seguiram adiante, perdidos de repente sob o imenso arco de Bab al Kadia, o portão da cidade, batido de sol, com suas paredes que seguiam à direita e à esquerda como baluartes imensos de uma comunidade em sua fortaleza.

 

O hotel árabe parecia um velho castelo. Era pitoresco, mas não tinha água corrente, que era trazida para os quartos em jarros de cerâmica.

Roslyn gostou logo do hotel, situado junto ao lago Temcina, pendurado nas montanhas que terminavam na praia. Podia ver o lago do terraço de seu quarto, uma brilhante extensão de água com uma ilha no meio, parecendo uma jóia verde. Ficou longo tempo contemplando a vista. Sentiu vontade de mergulhar naquela água e sabia que seria capaz de nadar.

Fechou os olhos e lutou para se lembrar da sensação da água envolvendo-a... água e luar, estrelas no céu e alguém correndo pela praia de mãos estendidas para ela... Roslyn estendeu a mão, mas só encontrou o vazio. Abriu os olhos e olhou para o pátio, embaixo.

Duane Hunter estava plantado ali embaixo, com o sol batendo nele e estudando-a com curiosidade... Julieta em seu balcão, estendendo uma mão suplicante. Sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e entrou rapidamente em seu quarto, onde ficou por algum tempo segurando as têmporas com as mãos, pressionando a porta fechada de sua mente... a porta que se abrira por uns segundos e se fechava novamente. Tinha uma vaga lembrança... e tinha algo a ver com um lago!

Lavou-se e foi juntar-se aos outros lá embaixo. Coração batendo forte e corada de excitação. Esta noite, quando todos estivessem dormindo, pretendia ir até o lago. Haveria luar e seria fácil achar o caminho. Sozinha, junto da água, talvez pudesse agarrar aquela figura ilusória que corria para ela estendendo as mãos.

— Creio que nós quatro precisamos molhar a garganta antes de irmos para a cidade — disse Duane, e um garçom trouxe bebidas geladas para uma mesa, por entre as flores do pátio.

Perto deles, onde as paredes do castelo se fundiam com as montanhas, um par de cegonhas tinha feito seu ninho e ali permaneciam sem tomar conhecimento das pessoas, bem perto delas.

— Não estão nem um pouco nervosas — disse Roslyn intrigada.

— As cegonhas sabem que são sagradas no Oriente — explicou Tristan. — Matadoras de serpentes, trazem boa sorte para a casa onde fazem seu ninho.

— Se uma cegonha fizesse ninho no meu telhado, ficaria com medo de que ela me trouxesse um bebê — disse Isabela.

Duane riu dizendo: — Pensei que as mulheres latinas gostassem de crianças! Têm sempre lindas e enormes famílias.

— Crianças são encantadoras, mas eu tenho minha carreira. Também essa antiquada idéia de que a mulher pertence ao lar não é mais aceita pelas mulheres modernas. Duane, você não é daqueles que acha que a mulher deva ficar atada ao lar, não?

— Nada que é vivo deve ficar atado — concordou —, mas a maioria dos homens gosta da idéia da perpetuação da espécie e nada melhor do que ter uma mulher em casa para conseguir isso!

— Que maneira fria de dizer coisas! — Roslyn não pôde impedir de dizer: — Crianças são para serem amadas e queridas. Não são simples espelhos para que um homem se veja refletido neles. É assim que as considera?

Duane olhou-a rindo através do cristal de seu copo. — Não sou um homem sentimental, srta. Brant. Aprendi desde cedo a encarar os fatos, e a idéia de amor e casamento só é romântica para os pássaros — e fez um gesto saudando o par de cegonhas.

Roslyn desviou os olhos dele, olhando para o lago, furiosa consigo mesma por se deixar irritar por ele. Como, imaginava, poderia uma mulher querer um homem tão sem carinho?

— Será mesmo necessário que enfrentemos o calor e poeira para ver aqueles mercados barulhentos? — perguntou Isabela, levantando as mãos num gesto de desânimo. — Penso que será aborrecido.

— Roslyn quer ver os souks — disse Tristan. — Você vai engordar se ficar preguiçosa!

— Engordar? Que absurdo! Como ousa? — De um pulo ficou de pé. — Bem, vamos de uma vez! — Olhou para Roslyn com visível desprezo, que percebeu, mas nem ligou. Tristan estava ali para compensar a animosidade dos dois.

Andavam depressa e logo Roslyn os perdera de vista nas estreitas ruas do mercado. As ruas eram cheias de aromas diferentes, e um estrangeiro poderia facilmente se perder nelas. Os souks orientais eram cobertos por panos listrados que protegiam rostos morenos, roupas e mercadorias. Cestas de flores alinhavam-se numa escada estreita. Mimosas, cravos, rosas e lilases alegravam o coração. Em cestos de palha,laranjas, abóboras, dourados melões e romãs, grandes como corações, apanhavam a poeira dos babouches da multidão.

À direita e à esquerda havia alguma coisa interessante, como os escribas barbados. As mulheres usavam o misterioso burkha que deixava de fora somente seus olhos; encantadores e enigmáticos olhos orientais.

— Não acha essas mulheres fascinantes? — perguntou Tristan. Roslyn sorriu-lhe: — Queria saber o que imagina um homem vendo somente um par de olhos e a ponta dos dedos pintados de henna. Ele virou-se para ela, ali na multidão, sorrindo, o que a fez pensar em como ele era atraente. — Você, femme blonde, eu acho mais fascinante. Sabe o que o sol da África fez com seus cabelos?

— Clareou-os! — disse ela.

— Não! Dourou-os! Você parece agora um escravo ático! Encantador, por sinal, lhe asseguro! Ainda mais usando essas calças. Mas logo mais à noite você usará um vestido para dançarmos, não?

Ela assentiu sem olhar para ele, pensando no projeto de ir ao lago sozinha. Os aromas do lugar chegavam às suas narinas. Hortelã em grandes cestos, diversas ervas e especiarias, cosméticos e henna para pintura, café árabe perfumado com baunilha, carne de cabra assada, pão quente, almiscarado âmbar quando passaram por um vendedor de perfumes.

Tristan queria parar e comprar uma ânfora de alguma exótica fragrância, mas Roslyn, sacudindo a cabeça, afirmou que não gostava.

— Criança! — disse ele, vendo-a correr para um mercador de tecidos e passando a mão por um veludo negro. Ela apenas queria estar atenta a tudo. Sentir o calor e o clima cheio de fantasia do mercado: irresistível fantasia saída de um conto de fadas. Um vendedor de poções de amor ou de ódio, amuletos para usar contra doenças, para assegurar o nascimento de um menino ou para resguardar dos perigos de uma viagem. Quando o velho homem lhe mostrou na palma da mão uma miniatura da Mão do Destino sentiu que precisava comprá-la. Procurou seu dinheiro na bolsa, fazendo para Tristan um sinal negativo. — Não, você não pode me comprar boa sorte. Devo pagar por ela.

A mãozinha era quase perfeita nos detalhes, mas não tinha outro valor além da beleza. Roslyn imaginava se aquela pequena mão seria capaz de, com seu encanto, tirá-la do mundo dividido ao meio em que vivia e estava perdida.

— Deixe que eu lhe compre um hadya qualquer — pediu ele.

— Hadya quer dizer presente, não? Pois bem — apontou para uma coisa que estivera entristecendo seu coração desde que entraram no mercado —, compre-me uma gaiola cheia de passarinhos!

— Estranha criança! O que vai fazer com eles?

— Libertá-los! — Roslyn não suportava ouvir seu canto aflito.

Tristan comprou a maior delas e caminharam para fora do mercado, onde o sol deslumbrou Roslyn. Pôs o chapéu, puxando-o para cima dos olhos. Agora na sombra e diminuída a luminosidade, olhou para Tristan. — Obrigada pelo meu hadya. Agora vamos a algum lugar calmo, onde possa soltá-los.

— Conheço o lugar perfeito, se seus pés agüentarem andar mais um pouco, pois estamos aqui há bastante tempo. Onde teriam ido Isabela e Duane?

— Como Isabela não estava com vontade de ver o mercado, talvez tenha persuadido seu primo a levá-la a um lugar menos movimentado.

— É, pareciam querer ficar sozinhos. Mas não precisamos deles. Vamos continuar nossas andanças e encontrar um café bem gelado como eu lhe prometi.

 

— E o minarete? Quando é que vou vê-lo?

— À noite, querida, quando você poderá estender a mão e tocar as estrelas.

— Que maravilha!

Subiram por uma rua que era toda de degraus, lado a lado, passando pelas casas de paredes muito brancas, cujas portas altas estavam sempre fechadas. Misteriosas casas, cujas vidas nunca eram reveladas a estrangeiros; mas ela sabia que Nanette e Duane tinham amigos árabes que os recebiam muito bem e que lhes presenteavam com falcões caçadores, uma grande honra no oriente.

Saíram da cidade e chegaram a umas ruínas antigas. A areia cobria em parte as colunas quebradas e os pátios. Tudo o que ainda restava era meias paredes onde cegonhas tinham seus ninhos. Mas num canto, havia um cunhal de pedra que escapara à erosão. Era o que restava do que outrora fora um baluarte. Vista dali, El Kadia parecia um enorme bolo de creme e mel, e, espetados aqui e ali, os minaretes eram como agulhas de açúcar cande.

— Este é o lugar de que lhe falei, Roslyn. De agora em diante, será conhecido como Bastião do Anjinho. — Tristan observou Roslyn abrir a gaiola e soltar os passarinhos, que voaram felizes para o céu azul.

— Eu não sou um anjinho — disse, fazendo uma careta. — Só que passarinhos não foram feitos para ficar em gaiolas; o que faremos com ela?

Tristan esmagou-a sob os pés e jogou-a para longe. — Pronto. Está destruída, já que você detesta tanto gaiolas.

Você me acha esquisita? — perguntou. — Sei que esses passarinhos poderão cair novamente em arapucas, mas por algum tempo serão livres e felizes.

— Momentos de felicidade são preciosos para todos; além disso, todos têm direito. Quando nos convencemos disso, podemos nos considerar adultos.

— Eu não gostaria de ser feliz o tempo todo. Teria medo de não perceber mais a alegria das pequenas coisas. O conjunto delas é que faz a felicidade, não acha? Se você não vê, mas está alerta, então não é cego.

— O sofrimento fez de você uma sábia, querida. — Levantou-lhe o queixo suavemente. — Mas há outra forma de alerta. A consciência do que se passa no próprio coração e do que se vai fazer com ele.

— Eu... sei.

— Gostaria de agora terminar aquele beijo interrompido, Roslyn, mas não vou fazê-lo.

— Eu compreendo. Tristan. — E nada mais disseram, pois podiam se entender sem falar. Ela não precisava dizer que ele se parecia com Armand que lhe fora mostrado por foto, e que os braços que desejava a seu redor podiam ser de outro. Não precisavam de palavras agora. Bastava sentirem a paz que os envolvia, permanecendo lado a lado naquele lugar batido de sol e sentindo o vento murmurando e jogando areia a seus pés.

— Venha — disse finalmente. — Vamos almoçar.

Sentindo-se em paz por ter soltado os passarinhos, Roslyn sentiu que estava faminta. Desejou comer comida árabe e o fizeram num pequeno restaurante. Comeram bourak, um rocambole feito com carne de carneiro moída, temperado com hortelã, depois cuscuz de semolina coberto de creme e recheado de pedaços de abricó, ameixas e amêndoas doces.

Quando tomavam o café escuro e forte, Tristan lhe falou de Paris e do tempo em que se debatia entre aprender música ou agricultura, para cuidar da plantação.

— Meu pai ainda era vivo, mas muito doente, e se não fosse Nanette, que entendeu muito bem minha paixão pela música, estaria no lugar de Duane, supervisionando Dar al Amra, mas sem a dedicação dele.

— É dedicação o que ele sente? Eu diria que é ambição.

— As duas coisas. — Tristan correu o dedo pelo corpo gelado. — Ambição de ver Dar al Amra em primeiro lugar, a mais fértil das plantações. Nunca seria capaz de desempenhar como ele, e dei graças a Deus por ele ter chegado e assumido. Ele é muito mais hábil do que eu. Sou um sonhador, e ele, um realista. Às vezes o invejo por ter os pés firmemente plantados na terra. No entanto, sua frustração no passado faz com que ele se apegue às coisas terrenas negando a existência de um céu.

— Aquela mulher, talvez. — Roslyn tinha a certeza que era.

— Sim, na maioria dos casos é uma mulher. — Tristan olhou-a, sorrindo. — Gosta do café?

— Gostei de cada segundo desta manhã. Dos souks, de ter devolvido ao céu aqueles passarinhos, do nosso almoço, de ter falado de Paris e de sua música.

O garçom permanecia junto à porta numa atitude resignada. Europeus loucos, parecia pensar. Passeando em vez de dormirem uma sesta.

— Não podemos ficar aqui — disse Tristan. — Vamos embora antes que o pobre moço fique louco.

Viram o garçom aproximar-se com verdadeiro alívio da mesa.

Roslyn abriu a bolsa, tirou o porta-pó, retocou a maquilagem e tornou a guardá-lo. Viu brilhando a pequenina Mão do Destino no fundo da bolsa. O talismã que comprara no mercado era a única coisa palpável que restara daquelas horas felizes que passaram tão rapidamente.

Pensou tristemente e um pouco temerosa que o que passara, nunca mais tornaria a voltar. Pelo menos nunca seria igual. Nunca tornaria a ver a mesma expressão ou a mesma tonalidade numa voz. Nem o sol projetaria exatamente as mesmas sombras outra vez. Tudo se movia e mudava a cada momento com o tempo.

— E se fôssemos até o lago? Só tenho medo que a esta hora não haja botes para alugar — disse Tristan, ao perceber a relutância dela em voltar para o hotel.

— Está quente. É melhor voltarmos — respondeu ela.

Desceram a colina, vendo tudo deserto, a cidade toda dormindo.

— A cidade dorme e somente o Príncipe e a Bela Adormecida estão acordados — observou Tristan, enquanto o suor tornava ainda mais negro seu cabelo grudado na testa.

Penosamente caminharam até o hotel e Tristan pegou as chaves na portaria vazia, acompanhando Roslyn até seu quarto. Abriu a porta para ela, dizendo: — Descanse bastante. Quero sair com você novamente hoje à noite. — Encostado na parede, olhava para suas calças compridas. — Espero que tenha trazido um vestido de noite.

Ela assentiu, enquanto um pensamento lhe passava pela mente:

— E se eu não souber dançar?

— Então eu a ensinarei. Terei muito prazer em tirar um por um os véus desses lindos olhos claros. Acho que você tem muito que aprender.

— Está querendo dizer que eu sou ingênua? — Corou ligeiramente e acrescentou: — Você é um homem vivido e me preocupo se não se aborrece comigo.

— Não me aborreço. — Percebeu que ela corara. — Vê? Você é muito jovem para não se incomodar com os elogios de um homem que a acha atraente e não bastante madura, para ser fingida ou calculista. Armand cresceu na Europa e creio que gostava de ter namoradas quase bebês...

— Talvez... quem sabe... Talvez Armand fosse assim. Mas todos sabemos que temos várias personalidades...

— Nunca se pode ter certeza do que está aparente. — Sorriu, e tomando-lhe a mão levou-a aos lábios: — Vou tomar a mim o encargo de fazê-la crescer. Espero, Roslyn, que seu vestido seja muito lindo...

— Que cena encantadora! — disse uma voz. — Tristan e Isolda, suponho?

Uma porta se abriu do outro lado do corredor e Roslyn pôde ver Isabela Fernão. Ficou um tanto chocada ao perceber que Isabela usava um penhoar transparente sem nada por baixo e que sua esguia figura podia ser vista através da leveza e finura do tecido. Seus lindos cabelos caíam-lhe até os ombros. O quarto onde estava não era o seu. Por trás dela, estava Duane sorrindo ironicamente, sua camisa desabotoada até a cintura.

— Onde estiveram vocês dois todo esse tempo? — perguntou Isabela. — Por acaso se perderam?

— Creio que sim. — Tristan ainda segurava a mão de Roslyn. — E o que aconteceu com você e Duane? — fitava o primo, alto por trás de Isabela, parado no vão da porta de seu quarto, para onde ela tinha ido usando um penhoar.

— Fomos ao metlah. — Sua voz era lenta e relaxada, numa atitude estudada, mas visivelmente falsa. — Isabela queria comprar uns metros de tecido, não é querida? Ao sair procuramos por vocês dois que deviam estar no meio do mercado — reparou que Tristan segurava a mão de Roslyn. — Mas não creio que vocês tenham sentido nossa falta.

— E vice-versa — disse Tristan.

— Meu Deus! — Isabela olhava Roslyn dos pés à cabeça. — Você fez esta pobre moça ficar no sol todo este tempo? Não admira que ela esteja nesse estado!

— Eu... vou tomar um banho. — Roslyn virou-se para entrar em seu quarto, acrescentando de mau humor: — Tristan, minha mão, por favor. Preciso dela para me ensaboar.

Tristan deixou-a ir e, com um au revoir geral, ela entrou no quarto, fechou a porta e ficou aborrecida com aquela situação desagradável. Pobre Tristan! Devia ter se sentido magoado ao ver os pés de barro de seu ídolo, ou, melhor dizendo, as maravilhosas pernas através do penhoar transparente.

Roslyn lavou o rosto, pescoço e braços na água fria, bem como os pés empoeirados, e deitou-se na cama árabe, abanando-se com um leque e olhando o teto pintado. O ar estava quente e pesado, mas ficando-se imóvel e não se pensando nele, até que o calor era tolerável. Mais tarde, quando o sol abrasador se fosse, teriam uma noite fresca.

Picou ali quieta, sem pensar em nada e cochilou. Sonhou que estava de volta ao bazar e perdida. Desesperadamente perdida. Ninguém a entendia e, finalmente, ela se viu a correr, esbarrando em gigantescas abóboras e se enroscando em metros e metros de gaze que lhe cobriam o rosto como um véu. Deparou com uma praça. As casas a seu redor eram brancas e altas, com as janelas fechadas como as de um castelo...

Estava assustada, pois as paredes pareciam estar cada vez mais perto dela, querendo esmagá-la. Acordou gritando no escuro. Sentou-se. Seu coração batia desordenadamente... ninguém poderia entender como era horrível se sentir perdida... e ela estava...

Levantou-se e acendeu a luz. O quarto estava abafado e sem ar Precisava sair. Foi para o terraço de seu quarto apreciar o cair da noite.

No poente, o céu estava vermelho e dourado. Um muezim chamava para a oração do alto de um minarete, quando o céu tomou uma coloração violeta e o lago brilhava como uma jóia. Seu pulso batia tão forte que ela apertou a garganta com as mãos. Mais tarde prometeu a si mesma: quando a lua iluminasse tudo e todos estivessem dormindo, para que ninguém a perturbasse, iria até o lago.

Podia ser um tanto louco e mesmo perigoso procurar fantasmas ao luar, mas nada no mundo poderia detê-la. Precisava descobrir quem é que corria para ela e tinha a certeza de que junto ao lago, essa figura se materializaria...

Mas agora precisava se vestir para o jantar. O vestido que escolheu era um dos que não se lembrava de ter comprado. Um vestido do enxoval, de seda azul-noite, longo, com uma capinha que saía dos ombros.

Olhou para o espelho, estudando-se detalhadamente. A capa lhe dava um ar de arauto de Idade Média, e ela se sentiu parecida com um pajem. Seu curto cabelo crespo emoldurava seu rosto queimado de sol, e ela, caprichara na maquilagem, seguindo os conselhos de Nanette. Sim, ela se assemelhava a um pajem. Um pajem que escondia um segredo nos olhos...

 

Encontraram-se no saguão do hotel, os dois homens de terno escuro e Roslyn de azul, com os ombros cobertos por uma estola de pele que Nanette lhe emprestara. — Em Paris estaria um pouco fora de moda — ela dissera — mas em El Kadia parecerá nova e além disso esfria muito quando o sol se põe.

E esfria mesmo, pensou Roslyn aconchegando-se à estola.

Então apareceu Isabela, descendo as escadas glamourosamente. Usava um vestido de renda vermelha e longas luvas pretas. Nos pulsos, por cima das luvas, faiscavam pulseiras de brilhantes. Presa ao pescoço, uma capa de seda mais escura que o vestido. Com graça e charme, cruzou o saguão, sua capa esvoaçando sobre o vestido de renda.

Parecia uma chama viva, quando parou em frente a Duane.

— Esperou muito por mim? — Roslyn observou seu olhar provocante. — Desculpe-me! — acrescentou Isabela.

— Você está tão fantasticamente bela que me sinto inclinado a lhe desculpar tudo hoje — Duane respondeu sorrindo.

— Você me perdoaria até por roubar seu coração? — ela perguntou suavemente.

— Poderia, se tivesse um para ser roubado.

— Não minta que não tem coração. — Seu rosto estava perto do dele. — Pelo menos não foi o que me pareceu hoje, não é, mon amant?

Roslyn viu Duane franzir a testa, e ele estava prestes a dizer, talvez, que ela estava tornando pública uma coisa que deveria ficar entre os dois, quando Isabela se virou alegremente encarando Tristan: — Vocês homens decidiram aonde vão nos levar? — perguntou. — Naturalmente não esperamos encontrar o mesmo tipo de músicas para dançar que encontraríamos em Lisboa! Que cidade! Tão alegre, cheia de teatros e boates!

— Naturalmente El Kadia não pode competir com sua Lisboa — disse Tristan secamente, e dirigindo-se a Duane: — Pensei em levá-las ao Fauno Dançante; o que acha mon ami?

— Para mim está perfeito — Duane sorriu maliciosamente. — Você sabe mais a respeito de lugares noturnos do que eu, meu velho! Sou simplesmente um rude plantador e só sei que o nome me atrai, faunos dançam?

— Eu danço! E tomando o braço dele possessivamente, Isabela arrastou-o para a saída do hotel. Observando-os, Roslyn teve que admitir que formavam um par ideal. O caçador com seu falcão canoro no braço!

O feitiço da cidade que ela vira naquela tarde tinha mais misticismo e encantamento, pois uma lua em feitio de cimitarra, pendurada no céu, prateava tetos e torres... Quem podia duvidar que um fauno dançasse numa noite daquelas? Havia em tudo uma espécie de magia, estranhas vibrações pelo ar, exóticas fragrâncias e Roslyn tinha a certeza de que pelo ar pairavam mistérios e intrigas...

O encantamento que sentia estava em seus olhos quando entrou no táxi, tornando-os verde-jade, quando olhou para Tristan sorrindo e sentando-se no banco que dava para quatro pessoas. Entraram todos e, para seu espanto Roslyn se viu sentada entre os dois primos. O carro andava depressa e numa curva Roslyn foi de encontro a Duane. Como que eletrificada pelo contato, retesou-se no assento desejando que o percurso não fosse muito longo.

O táxi desceu a rua que ela e Tristan tinham descido sob o sol ziguezagueando pelas ruelas estreitas, buzinava sem parar, em virtude do intenso tráfego na parte central da cidade.

Roslyn olhava pela janela ao lado de Tristan e esperava que o Fauno Dançante não fosse uma dessas boates modernas e cheias de luzes que via ao passar pela avenida principal. Suas esperanças cresceram quando deixaram para trás as fachadas iluminadas de néon, onde poucas mulheres ainda usavam véus e os homens em sua maioria vestiam-se à européia. El Kadia estava se desenvolvendo muito e seus habitantes deixavam os velhos costumes pelos novos, o que era uma pena, sob um ponto de vista romântico! Um caftan era uma coisa que nenhuma roupa moderna podia superar.

O barulho e os néons ficaram para trás e Roslyn ficou feliz por ver que entravam na parte velha da cidade. Como numa fábula oriental, sentia-se nos domínios dos misteriosos e proibidos poderes mágicos que deviam estar por trás das altas paredes e das portas em arco sempre fechadas.

O táxi parou em frente de uma dessas portas em arco e Roslyn estava excitadíssima quando seguiu Tristan pela calçada. Fosse a excitação ou os saltos altos de seus sapatos de brocado, o fato é que ela tropeçou nas pedras. Imediatamente mãos fortes a seguraram, impedindo que caísse e depois arrumando sua estola nos ombros... estola de Nanette.

— Muito... obrigada — disse, fugindo daquelas mãos. Percebera ironia daqueles olhos verdes quando ao arrumar a estola em seus ombros pareciam pensar que ela se aproveitara mais uma vez da bondade de Nanette...

Estremeceu ligeiramente, o que fez com que Tristan, notando, perguntasse: — Está com frio?

— Não. Esta estola é bem quente. — Sua voz estava meio trêmula. — Sua avó insistiu em que eu a trouxesse emprestada.

Notou que Duane virara a cabeça, ouvindo quando ela se defendera. Todas as suas ações despertavam suspeita aos olhos de Duane... tinha sido assim desde o começo... Tristan estava examinando-a quando entraram no restaurante. — Você estava disposta a se divertir hoje — murmurou. — O que a aborreceu? Houve alguma coisa; posso ver em seus olhos!

Ela hesitou, pois as palavras não lhe vinham facilmente. — Um sentimento que me vem de vez em quando, Tristan. Uma espécie de desespero e angústia. Eu... eu quero sair do escuro, vir para a luz, conhecer a mim mesma. Saber que espécie de pessoa sou. Saber o que fiz e o que senti antes do desastre.

— Naturalmente, o que mais poderia ser? — Tristan passou um braço pelos seus ombros, atraindo-a para si carinhosamente. — É muito fácil para os outros, eu por exemplo, lhe dizer: Não se preocupe, tudo acabará bem. Mas, minha querida, se você prefere podemos jantar sozinhos noutro lugar qualquer. Vamos?

Roslyn ficou tentada a dizer sim, mas Duane pensaria imediatamente que ela estava fugindo dele, de sua presença, na mesa para quatro, fugindo de seus olhos do outro lado da mesa, vendo o interesse que seu primo demonstrava por ela e se divertindo. Poderia até ter a audácia de convidá-la para dançar, sabendo da aversão que sentia ao seu contato... e seria uma deliciosa satisfação recusar...

— Não, fiquemos aqui. Este lugar é muito bonito.

Tristan olhava-a, procurando adivinhar o que estava pensando. — Acho que você vai gostar. — Entraram no restaurante, que cheirava a açafrão e fumaça de cigarro, com uma pequena fonte murmurando, e iluminado pelas luzes cor de âmbar das mesas.

Casais dançavam ao som de uma pequena orquestra escondida nas sombras. Roslyn percebeu a admiração que causava o vestido de renda vermelha de Isabela, quando passaram pelos dançarinos, para chegar à mesa reservada para eles.

— Vamos beber alguma coisa ou você prefere dançar? — perguntou Tristan.

— Gostaria de uma bebida. Algo audacioso — respondeu.

Ele chamou o garçom e pediu dois daiquiris, sem tirar os olhos da simplicidade azul do vestido dela, quando tirou a estola de seus magros ombros. — Você está simplesmente linda, Roslyn. Há uma flor que nasce nas florestas da França, que é azul e simples, mas quando trancada... — Moveu a mão como se fosse tocá-las, mas retraiu-se.

— Roslyn, você me mete um pouco de medo...

A orquestra tocava e as pessoas conversavam e riam à volta deles

— Como pode alguém ter medo de mim? — perguntou rindo nervosamente.

— Não sabe que os homens temem as mulheres? — sorriu pensativamente. — Especialmente aqueles que estão em perigo de... gostar demais.

— Tristan — olhou para ele suplicantemente —, não devemos falar sobre isso. Eu... eu ainda não estou preparada para...

— Eu sei — disse calmamente. — Vamos esperar até que você a encontre novamente, que não mais estejam divididos seu coração sua mente.

O garçom trouxe as bebidas e um enorme cardápio que colocou sobre a mesa. O daiquiri estava delicioso, e ela tomou-o em pequenos goles, estendendo a vista pelo salão. Gostava da suave luz amarelada que velava os olhos sem lhes tirar o brilho. Gostava da maneira sutil como o Oriente e Ocidente ali se misturavam, até nas músicas para dançar. Mãos morenas batiam a pele de um tambor e a ele um quembri adicionava uma suave melodia.

— Faremos nossos pedidos quando Isabela e Duane voltarem para a mesa — disse, percorrendo o cardápio com os olhos. — Está com fome, Roslyn?

Ela disse que sim, embora se sentisse muito tensa para comer. Retesou-se na cadeira quando a música parou e os pares se dispersaram pela pista. Ouviu uma risada de mulher e logo depois Isabela estava junto da mesa, parecendo muito feliz, enquanto Duane puxava cadeira para que ela sentasse.

Roslyn olhou disfarçadamente para Duane, mas, como sempre seu rosto era impenetrável. Viu que ele examinava seu vestido azul seu pescoço fino. Ela apertou o copo de bebida e imaginou como uma mulher como Isabela podia querer um homem tão cruel como ele.

— Vocês dois ficariam admirados se eu lhes dissesse que Duane é um ótimo dançarino? — disse Isabela sorrindo para ele, enquanto se sentava.

— Isabela pensa que minhas atividades sociais se resumiam às festas de índios — disse Duane secamente. — Vamos tomar champanhe?

Encomendaram-na ao garçom, enquanto Isabela continuava a olhá-lo provocantemente. — Então, onde exercia suas atividades sociais?

— Algumas vezes no Rio, minha querida.

Compreendo, Duane. Não podia agüentar a monotonia da selva o tempo todo, não? Sentia falta de luzes brilhantes e mulheres bem vestidas! Contudo, mon chéri! Estou lhe arrancando os segredos um por um! — Seu sorriso mostrava uma fileira de dentes brancos e perfeitos. — Devo confessar, Tristan, que o Fauno Dançante tem uma excelente orquestra. Você e Roslyn devem experimentar.

— Vamos jantar primeiro. E se agora escolhêssemos nossos pratos? A comida aqui é tão boa quanto a música.

Nos minutos seguintes escolheram e encomendaram os pratos, quando o garçom lhes trouxe o champanhe. Tirada a rolha, uma espuma dourada coroava a garrafa. Pequeninas bolhas espocavam nas taças. Tristan levou aos lábios a taça espumejante: — Ah! que buquê delicioso! Cheira ao bom solo francês e a violetas silvestres! — Bebericou.

— Você tem muita imaginação! — brincou Isabela. — Você enxerga o vale do Loire em cada rótulo, e cada garrafa transporta-o para a França. Por que não compra uma casa lá e se muda?

— Farei isso, quando puder.

— E quando será isso?

Roslyn viu claramente a curiosidade nos olhos dela, quando, para seu alívio, a atenção de Isabela foi desviada para outra coisa. — Duane, aquelas são flores de lótus? — Mostrava um arranjo de flores junto à fonte. — Pegue uma para mim, por favor!

— Vai comer uma? — riu enquanto atendia seu pedido. — Dizem que quando se come uma flor de lótus nunca mais se deixa o solo em que ela nasceu...

— Você quer que eu prove a veracidade disso? — perguntou apertando uma pétala entre os lábios.

— Creio que você achará seu prato muito mais saboroso — disse ironicamente.

— Seu bruto! Graciosamente atirou a flor em seus negros cabelos. — Às vezes acho difícil acreditar que você seja meio francês! Os homens da França têm um enorme respeito pelo romantismo das mulheres. Divertem-se com nossas brincadeiras de faz-de-conta.

— Nunca apreciei brincadeiras de faz-de-conta. — Sua voz era lenta e arrastada, como que intencional, e Roslyn olhou para ele antes que pudesse se controlar. Sem poder desviar os olhos, ouviu-o dizer: — Quer dançar?

Não conseguia falar. As palavras ainda estavam presas dentro dela quando ele se levantou e tomou-lhe a mão.

— Vá, Roslyn! — Era Tristan quem falava. — Você tem a garantia de Isabela de que ele não pisará seus pés.

Eram seus sentimentos e não seus pés o que ela temia, quando ouviu Isabela dizer maldosamente: — Uma pessoa sofrendo de amnésia pode saber quando é capaz de fazer isto ou aquilo? Roslyn, pode pisar os pés de Duane!

— Ela é muito leve, não pode me machucar. — E com um movimento firme, puxou-a, obrigando-a a se levantar, indo para a pista de dança.

— Eu... eu não quero dançar... eu não posso! — Era um apelo desesperado, mas com um movimento firme ele tomou-a nos braços, segurando-a de maneira que ela não pudesse escapar.

— Relaxe e aproveite a dança. — Seus olhos eram frios como o aço. — Armand gostava muito de se divertir e não arranjaria uma namorada que não fosse capaz de dançar.

Então era isso! Ele estava testando-a. Um estremecimento percorreu-a dos pés à cabeça e ela começou a tropeçar nos pés dele, alheia à música e cega a tudo que não fosse a crueldade daquele homem. Como ela tropeçasse várias vezes, ele soltou-a e ela voltou quase correndo para a mesa. Ali estava Isabela sorrindo vitoriosa. Tristan levantou-se a sua chegada, suas sobrancelhas unidas por uma profunda ruga.

— Pobre Duane! — Isabela levantou-se também, sorrindo maliciosamente quando ficaram diante de Roslyn, que os olhava muito pálida. — Deixe-me fazê-lo esquecer a inabilidade de Roslyn para dançar, meu querido!

— Com muito prazer! — E afastaram-se, deixando Roslyn sozinha com Tristan. Sentada, tremendo, não tinha coragem de olhá-lo, mas sabia que estava a seu lado. Pegou sua taça, mas largou-a, sem tomar nada.

— Essa foi uma atitude tipicamente byroniana de meu primo! — Tristan levantou a mão chamando o garçom e pedindo-lhe que trouxesse café e dois licores Armagnac.

Permaneceu calado, tamborilando os dedos na mesa, preocupado abstrato e distante. Quando chegaram os cafés e licores, Roslyn despejou o líquido amarelo dourado do copinho no café e bebeu-o rapidamente, como que precisando de uma dose extra de coragem.

— Por que byroniana? — perguntou. — Porque tendo sido torturado tinha que torturar? Não creio que essa seja a resposta!

— Não? Então qual é?

— Ele simplesmente não gosta de mim. Pensa que estou fazendo uma espécie de jogo e eu... eu começo a imaginar...

— A imaginar o quê? — perguntou Tristan. Mas ela moveu a cabeça sem dizer nada, com os nervos à flor da pele, pois a música parara e logo teriam a presença de Duane.

— Vamos embora? — perguntou Tristan, reparando na palidez dela.

Ela assentiu, colocando a estola, sem ter mais vergonha de fugir.

O resto da noite estava estragado para ela, mesmo quando subiram ao alto da torre de uma mesquita, que, como um estreito bolo de noiva, parecia querer subir até o céu e alcançar as estrelas que brilhavam... como flores de gelo...

Uma fresca brisa soprava na torre e a Lua foi encoberta por pequenas nuvens. — Sinto no ar um cheiro de chuva — disse Tristan, e embora não tivesse dito isso como uma desculpa, foi assim que ela sentiu e seu coração pesava quando esperavam no pátio, para tirar os chinelos que tinham posto ao entrar na mesquita.

O caminho de volta foi feito em carro aberto, puxado por cavalos, e teria sido romântico se não houvesse um certo constrangimento entre eles. Falaram pouco sobre a visita que acabavam de fazer à mesquita e depois ele permaneceu silencioso, absorto em seus próprios pensamentos. Olhou-o de perfil e pela primeira vez notou sua semelhança com Duane... nariz e queixo determinados, seu bom humor escondido por trás do olhar cismador.

Chegaram ao hotel e, depois de despedir o carro, ficaram parados sob uma sombra do luar: — Sim, eu acho que vai chover antes do amanhecer — murmurou Tristan e gentilmente tomou-lhe as mãos geladas. — Pare de se preocupar e de se atormentar, petite. Você esqueceu como se fazem certas coisas, o que é perfeitamente natural, dadas as circunstâncias. Pessoas lhe disseram seu nome, sua idade e outros detalhes assim, mas há coisas que você tem que aprender novamente. Roslyn, está me ouvindo?

— Sim, Tristan, naturalmente.

— Subitamente você se tornou frágil como um ovo — disse de bom humor. — Lágrimas não estão longe desses olhos claros. Vamos entrar. É tempo de você ir dormir.

Quando subiam as escadas, Roslyn se esforçou para conter uma histérica vontade de rir. — Nem um som, nenhum barulho, todos dormindo — murmurou. — Você acha que estão todos encantados? Este lugar parece um castelo, e você e eu...

— ...somos como a Bela Adormecida e o príncipe — parou, olhando-a carinhosamente, pois tinham chegado à porta do quarto.

Correndo os longos dedos pela estola, ele perguntou mansamente: — Se eu a beijasse, será que o encanto se quebraria e você acordaria?

— Não. Decidimos no Bastião do Anjinho que beijos poderiam ser perigosos. Eles podem me fazer esquecer que tenho que me lembrar de seu irmão.

Imediatamente, sob a escassa luz do corredor, ela viu sua expressão tornar-se fria. Tirou as mãos dela e desejou-lhe boa noite.

— Boa noite, Tristan — respondeu e fechou a porta de seu quarto.

Eram onze e meia. Impaciente, Roslyn esperava em seu quarto pela meia-noite, quando então iria até o lago. Lá, sozinha e ouvindo o murmúrio da água, poderia se reencontrar.

Ainda estava com o vestido azul. Seria uma pena estragá-lo descendo pelas pedras e ela trocou-o por calças compridas, uma camisa e sandálias. Pendurou o vestido de que Tristan tanto gostara. Querido Tristan... um perfeito cavalheiro. Se Armand tivesse sido parecido com ele também na maneira de ser, certamente teria gostado dele.

Caminhava pelo quarto, sentindo-se estranha e perturbada. Você é Roslyn, haviam-lhe dito no hospital. Como duvidar disso se fora encontrada tendo na mão a prova de amor de Armand Gerard? Como poderia estar com o anel, que tinha a inscrição em francês, se Armand não lhe tivesse dado?

Imóvel, naquele estranho quarto árabe, com o coração batendo forte, pareceu-lhe ouvir nitidamente uma voz que lhe dizia ironicamente: — Boa noite, Juliet.

Seus olhos percorreram o quarto vazio, vendo somente as paredes tão brancas quanto sua mente. Subitamente, sem se incomodar mais se Isabela e Duane já tinham ou não voltado, correu para a porta, apagou a luz e se viu no corredor. Tudo era calma e silêncio, e ela, fechando a porta, dirigiu-se para as escadas.

Logo ouviu som de vozes que se aproximavam. Rapidamente entrou no lavatório e, quando o casal passou pela porta, ouviu o homem dizer claramente: — Enganar pessoas é um jogo do qual nunca tomo parte.

— Não seja tão materialista! — replicou a mulher. — Você fala como se fosse um crime uma mulher gostar de brincar de faz-de-conta de vez em quando.

— Desonestidade é um crime, no meu modo de ver — disse asperamente. — Sei muito bem ao que as mentiras femininas podem levar, Isabela. Sei também o que podem fazer a um homem...

— Pobre Duane — disse Isabela — não vai permitir que outra garota refaça seu coração partido?

Ele não respondeu e instantes depois Roslyn ouviu uma batida de porta não muito delicada.

Roslyn conteve a respiração enquanto ouvia, e agora, já calma, saiu do lavatório. Desceu as escadas e saiu do hotel rapidamente, pegando à trilha que conduzia à praia. A trilha era estreita e difícil e ela se arranhou ao descê-la.

Estava a meio caminho, quando parou para tomar fôlego. Acima dela na montanha, o hotel mostrava apenas duas luzes, e assomava como um castelo negro iluminado pelo luar; olhando-o, parecia-lhe ter fugido de um lugar habitado por demônios...

Continuou a descer e, saltando por cima das últimas pedras, chegou à areia. Altas palmeiras ali estavam, como sentinelas, os esplêndidos troncos inclinados para a água do lago, projetando sua sombra escura na areia.

Roslyn pôs as mãos nos bolsos e caminhou pela margem do lago. Na noite calma ouvia os grilos, o farfalhar das folhas das palmeiras e o bater de asas dos morcegos. Não estava nervosa com esses sons; todos faziam parte do ambiente. Sentou-se na areia, segurando os joelhos, e ficou olhando o lago prateado.

Não sentia frio, nem se importava com o que acontecia a seu redor. Simplesmente estava ali, tranqüila, deixando seu pensamento vagar a esmo...

O luar, sobre a superfície do lago, fazia uma esteira de prata... e então de repente, com um estremecimento, lembrou-se de algo. Era bom nadar na esteira de prata do luar, mas alerta, para se esconder, pois o guarda estava sempre de vigia para impedir intrusos noturnos. O lago em que nadavam era perto do campo de aviação, mas era particular, e não deveriam ficar ali.

Era um lago enorme, cercado de chorões, cujas folhas se debruçavam nas águas. Costumavam enxugar-se atrás das árvores e vestir-se entre abafados risos, ouvindo o piar de corujas.

"Silêncio! Podem nos ouvir!" Roslyn lembrava-se claramente de dizer, mas quem a acompanhava só ria e dançava por entre as árvores.

"Não tenha medo de vigia; ele nunca vem deste lado do lago porque pensa que somos ninfas dos bosques..."

Palavras alegres, murmuradas na mente de Roslyn, como murmuravam as águas do lago.

Roslyn pôs-se de pé num salto, mas ficou ali parada nas margem do lago de Temcina, ouvindo outra vez a risada feliz como o repicar de um sino, argênteo com a esteira da lua na água... platinado como o cabelo da outra moça...

— O que está fazendo aqui? — Alguém chamou-a à realidade, uma voz real, não a de um fantasma...

Virou-se rapidamente, alarmada, pois via uma figura alta à sua frente.

— Você! — exclamou e, virando-se, correu pela praia, enquanto por toda a parte se ouvia o estrondo de um trovão.

 

Somente o luar presenciara a cena. Uma moça, perseguida à moda antiga, por um homem, não por brincadeira, mas sim por um medo que a fez gritar quando ele a apanhou entre os troncos entrelaçado de umas palmeiras que serviram como uma armadilha e para onde ela correra cegamente.

Com facilidade mas rudemente ele a empurrou contra o tronco de uma das árvores, dizendo: — Sua gata selvagem! Por que correu de mim? Não adivinhou que eu a perseguiria... não está vendo que vem uma tempestade? Não ouve os trovões?

Ela somente ouvia a tempestade de seu coração... agitado pela perseguição na praia e pela proximidade daquele homem, cujo peito a oprimia e cujos braços a prendiam de tal forma que deveria estar parecendo um animalzinho assustado. Pediu com voz débil: — Deixe-me ir! Por favor, Duane!

— O que é isso? Tem medo de minhas intenções? É por isso que correu de mim?

— Você me assusta e... eu corri sem pensar.

— Eu a assusto agora?

— Você está me machucando — disse, mas não era bem verdade. Embora a estivesse segurando contra a palmeira, as mãos a protegiam da rugosidade do tronco. Estava perto o bastante dele para sentir o arfar de sua respiração. A lã do suéter preto era macia e quente... quente e aconchegante... tanto que irracionalmente ela sentiu uma vontade enorme de descansar sua atribulada cabeça de encontro a ele e perder-se naquela escuridão de lã...

Ergueu os olhos para ele, mas temerosa de que pudesse perceber o quão fraca estava nesse momento, desviou rapidamente a cabeça, olhando o lago por entre as árvores.

— O que estava fazendo aqui? Dando um passeio ao luar?

— Eu... vim para ficar sozinha. Para pensar e tentar me encontrar — disse com dificuldade. — Aqui, junto deste lago, eu me lembrei de um lago da Inglaterra... onde eu costumava nadar com alguém... — Subitamente estava tremendo, a ponto de romper em lágrimas. — Era uma moça! Não era Armand, mas uma moça que eu conhecia...

Sentiu o calor das lágrimas a lhe correrem pelo rosto, sem mais se importar de estar na frente de Duane. Continuava a ver o lago através das lágrimas. Então ele moveu vagarosamente uma das mãos, colocando-a na nuca de Roslyn, obrigando-a a olhar para ele.

— Quem era a moça? — perguntou. — Lembra-se do nome dela?

— Eu... gostaria de me lembrar...

— Essa moça não poderia ser... Juliet Grey?

— Juliet? — Estremeceu ao perguntar, enquanto o céu era riscado pelos raios e relâmpagos. Não! Era terrível demais pensar que aquela alegre e risonha criatura estivesse morta... morta num desastre de avião. No entanto, era óbvio que a moça que andava com ela naquelas aventuras noturnas, num lago da Inglaterra, devia ser sua melhor amiga. Estava pensando nisso quando um raio riscou o céu vindo cair não muito distante. Duane puxou-a rapidamente do tronco e segurando firmemente sua mão correu com ela para a praia, longe das árvores. A chuva começou a cair violentamente e num minuto ambos estavam ensopados.

— Precisamos encontrar um lugar onde nos abrigar até que passe um pouco o temporal. — Olhou ao redor. — Olhe! Lá está um barracão. Venha!

Seus pés se enterravam na areia molhada enquanto corriam, perseguidos por raios e trovões. Abriram a porta e mais um relâmpago lhes revelou estarem num barracão de pescador, onde se via dois barcos, rolos de corda, pilhas de velas de pano, alguns remos e material de pinturas abandonado.

Duane procurou fósforos nos bolsos da calça e conseguiu acender um. A pequena chama clareou muito mal o barracão atulhado, onde pairava um forte cheiro de tinta. A chama estava quase se extinguindo quando se ouviu um barulho de asas logo adiante deles.

— É um morcego — disse rapidamente — e estamos com sorte, pois há um lampião e podemos ter alguma luz.

Era um lampião de querosene e ele habilmente acendeu-o. Estava olhando para Roslyn quando a luz se espalhou e viu que ela estava com a blusa colada ao corpo e de seus cabelos pingava água, grudando-os na testa. Ela tremia, molhada e nervosa com o exame de Duane.

Aproximou-se dela. — Você parece mais molhada do que eu — disse, tocando sua blusa de musselina sem perceber ou sem se incomodar ante seu estremecimento. — Não pode ficar tremendo nessa blusa molhada. — Com um rápido movimento tirou o suéter preto e o colocou nas mãos dela. — Pode usar isto. A chuva não penetrou na lã. Meu Deus, menina, seus dentes batem como castanholas! Tire logo essa blusa molhada antes que apanhe um resfriado!

Ela estava junto à porta do barracão, ouvindo o barulho da chuva no telhado e, embora reconhecesse que ele tinha razão, não podia fazer o que ele lhe pedia. Só conseguia tremer e se sentir miserável.

— Há duas coisas nas mulheres que me deixam irritados: falsa modéstia e teimosia. Vamos, ande logo! Vou me virar de costas enquanto você se troca. E melhor fazer isso depressa antes que eu mesmo o faça!

Ela observou aqueles olhos verdes semicerrados, parecendo puro jade, viu-o afastar-se e lentamente acender um charuto. Seus dedos custaram a desabotoar a blusa, mas finalmente conseguiu e tirou-a, vestindo em seguida o suéter, macio, reconfortante. Ficou muito grande para ela, considerando-se seu corpo de moça que, além de tudo, emagrecera.

Estava pendurando a blusa na ponta de um dos barcos quando ele se virou. — Meu Deus! — exclamou divertido. — Você devia estar brincando quando achou que eu perderia meu controle com uma criaturinha como você! Tenho minhas preferências, senhorita Brant, apesar de minha permanência nas selvas.

Sim, pensou ela, lembrando-se da figura de Isabela, as lindas pernas visíveis através do penhoar, quando saía do quarto dele.

— Certamente esta tempestade não vai durar muito — disse ela.

— Acho difícil! — Raios e relâmpagos iluminavam o céu lá fora enquanto ele falava e um trovão parecia querer abalar o mundo todo

— Certamente você já se convenceu de que o clima neste nosso deserto, assim como suas emoções, nunca são moderados.

— Começo a reconhecer isso. — Sentada na borda do barco onde estava pendurada a blusa, e passando os dedos pelos cabelos, procurava desgrudá-los da testa, sentindo o suéter esquentando-a. — Espero que não esteja sentindo falta de seu suéter — acrescentou.

Duane encostara-se num dos troncos de palmeiras que serviam de suporte para o teto do barracão; através da fumaça do charuto, ele podia ver aqueles olhos verdes fitando-a cismarentos. Ele possuía uma perigosa espécie de tranqüila força de magnetismo, visível em cada linha de seu corpo. Que homem perturbador!

— Estou acostumado a climas variáveis — replicou. — Você ficaria admirada como é frio no deserto em certas épocas do ano, quando cai a noite. O sol é quente, mas o clima atual está surpreendentemente moderado. — Preguiçosamente tirou uma baforada. — Eu poderia dizer até que... — contemplou a brasa do charuto — de certa forma o deserto se parece muito com uma mulher...

— Quer dizer que ela pode ser ardente e às vezes fria? — Sua loquacidade era um mecanismo de autodefesa, pois estavam ali sozinhos numa tempestade e ela sentia o agradável calor e contato do suéter de encontro à sua pele.

— Por essa e outras razões. Tudo pode aparecer inesperadamente num relacionamento com uma mulher, no deserto.

— E você prefere enfrentar as mudanças do deserto do que as de uma mulher?

— Sim. — Sorriu ironicamente. — Na verdade, prefiro. Um homem pode sentir o deserto sem se envolver... emocionalmente.

— Isabela compartilha de seus sentimentos?

Somente quando as palavras já tinham sido pronunciadas é que Roslyn se deu conta de seu significado. Duane não se moveu, mas ela notou seus músculos se retesarem. Depois, jogou fora o charuto, esmagando-o com o pé.

— Por que deveria Isabela compartilhar de meus sentimentos?

Roslyn achou difícil encará-lo. — Não sou nenhuma menina — disse desafiadoramente — e sei que um homem e uma mulher bonita não discutem o tempo... ou o deserto... quando estão sozinhos... no quarto dele.

— O que fazem? — perguntou deliberadamente.

Isabela enrubesceu. Não era de sua conta, nem de ninguém, o relacionamento dele com Isabela, pareciam dizer aqueles olhos, mais divertidos do que zangados. — Desculpe! — disse ela. — Deve me achar muito impertinente. — Desviou os olhos, sua aparência ainda mais frágil dentro do enorme suéter.

— Sim, você é muito impertinente. É um erro comum dos jovens ir aonde os anjos não ousam e a educação impede.

Alguma coisa no tom de sua voz fez com que ela ficasse tensa. Viu que se aproximava dela, sua sombra se projetando alta na parede. Apavorada, enquanto o barulho da tempestade continuava lá fora, ele a carregou com facilidade, tirando-a de cima do barco.

— Não... não deve... — murmurou.

— Não devo o quê? — Carregava-a no colo como uma boneca e olhava para ela divertido com seu medo. — Espancá-la ou beijá-la?

— Oh! Eu o odeio! Ponha-me no chão!

— Não, enquanto não fizer sua escolha — brincou. — Dou umas palmadas nessa garota impertinente ou beijo esses rosados e indiscretos lábios?

— Você... você não ousaria...

— Ousaria sim, se quer saber. — Deu uma gostosa risada e caminhou com ela no colo, pondo-a no chão junto da porta. — Agora, fique aí quietinha, menina atrevida. Acontece que eu não a carreguei cedendo a um impulso apaixonado... minhas intenções era bem mais honradas como poderá ver num minuto.

Ainda rindo, voltou ao barco onde ela estivera sentada e com o pé cutucou alguma coisa que estava entre as madeiras: uma enorme aranha de pernas peludas, tremendamente repulsiva, que provocou um arrepio de horror em Roslyn.

— Não creio que seja muito venenosa — disse calmamente. — Pensei que fosse quando a vi. Ela não a assusta?

— É horrível! Teria morrido se soubesse que estava tão perto de mim!

— Quer que eu a mate?

— Não... poderia jogá-la pela janela?

— Com pena de uma aranha? Dê uma olhada naquela prateleira de material de pintura e ache uma lata vazia. Depressa, criança, se não sua amiguinha foge e eu não quero perdê-la.

Ela também não queria isso e rapidamente tratou de obedecer Subiu numa pilha de velas de lona para alcançar a prateleira e para seu alívio encontrou o que procurava. Uma lata vazia e um pedaço de pau que certamente servira para mexer em terebintina. Pulou para o chão e se aproximou cautelosamente de Duane. — Pronto, aqui estão — disse, sempre de olho na aranha.

— Obrigado. Agora fique junto da porta enquanto eu ponho sua amiga na lata.

Não foi preciso que ele repetisse. Imediatamente, com as unhas cravadas nas palmas das mãos, viu Duane completar a operação, torcendo para que a aranha não o surpreendesse. Então, ele mandou que ela abrisse a porta, pois abrir a janela demoraria muito e a aranha poderia chegar até seus dedos. Percebeu então que ele não tinha certeza de que a aranha não era venenosa... Instantaneamente abriu a porta e Duane jogou longe a lata e sua ocupante na noite chuvosa e escura.

— E você não me chame de atrevida! — exclamou.

Ele riu, com as gotas de chuva a lhe caírem pelos cabelos. Roslyn instintivamente se afastou.

— Estava dando ao diabo o benefício da dúvida... — ele disse.

— Bem... isso é mais do que dá a mim... — Esperava que ele fechasse a porta, quando ouviram um estrondo pavoroso. Não era um trovão. Era como se uma tonelada de terra estivesse sendo jogada pelas escarpas!

— O que foi isso? — perguntou Roslyn assustada.

— Um deslizamento — disse rapidamente. — Ou estou muito enganado, ou metade do morro deslizou para a praia.

Empurrou-a para dentro do barracão e guiando-se pelo lampião, saiu para a chuva. Roslyn seguiu-o, sem se incomodar com a tempestade, tão ansiosa quanto Duane para descobrir a proporção do desabamento. Pedaços de madeira e outros destroços atrapalhavam sua passagem enquanto procurava correr sem se distanciar dele. Luzes e sombras se alternavam a sua passagem e Duane alertou-a para que tomasse cuidado com as pedras soltas, pois poderia torcer um tornozelo.

Ela compreendeu que ele procurava a trilha que descia da montanha e rezava para que estivesse intacta, para que pudesse chegar sãos e salvos ao hotel. Reconhecia agora ter sido uma loucura aventurar-se a descer até o lago. As coisas de que se lembrara faziam-na sentir-se agora mais confusa do que nunca.

— Duane, o que estava você fazendo aqui em baixo? — A pergunta estivera em sua cabeça durante a última meia hora e não sabia por que lhe perguntava agora que estavam ali na lama e na chuva.

— Estava dando uma volta. Pensou que a estivesse seguindo? — perguntou e num relâmpago viu que ele sorria, enquanto o lago parecia em chamas. A figura de Duane desenhava-se alta e magnífica, os ombros másculos e a cabeça altiva como a de um deus pagão.

— Naturalmente que não — replicou, sabendo muito bem que enquanto ela descia pela encosta, ele estava com Isabela... discutindo sobre o jogo do faz-de-conta...

Estava quase sem fôlego, seguindo Duane e pulando por cima de pedras que tinham caído da montanha, o que denunciava estarem perto de onde ocorrera o deslizamento.

Duane estava a alguns metros dela tentando ver alguma coisa. — Meu Deus! — Ouviu-o exclamar. — A trilha toda está que é só lama e pedras. Venha ver!

Em sua ansiedade de ver de perto, deu um passo sem o devido cuidado. Ali o chão estava cheio de pedras e paus, mas a chuva os cobrira de uma fina camada de lama. Roslyn escorregou e caiu, ficando dolorosamente deitada sobre o braço direito. Ali ficou, a chuva caindo sobre ela, incapaz de se levantar por alguns segundos. Estava tentando, quando Duane chegou perto dela. Ajudou-a com a mão livre, pois na outra equilibrava o lampião. — O que foi? — perguntou, mas ela foi incapaz de gemer.

— Eu... caí na lama. Meu... ombro dói...

Aproximou o lampião do rosto pálido e, deixando no chão a luz, examinou o ombro, apalpando-o delicadamente.

— Ai!—ela gemeu.

— Sei que é doloroso, mas não há nada quebrado. Por que não tomou mais cuidado?

— Eu... eu queria ver o estado da trilha. Está muito ruim?

— Sim. A lama em que caiu lhe dá uma idéia de como está o resto. Tentar subi-la seria loucura. Está como um escorregador de gelo preto, entremeado de pedras. Segurar nas rochas seria pior, pois elas podem estar simplesmente pousadas na lama.

— Mas... não podemos passar aqui a noite toda...

— Passaremos a noite no barracão dos barcos — disse com firmeza. — Seria loucura tentar subir e além disso poderá haver outro deslizamento e seríamos atingidos.

— Você se arriscaria se estivesse sozinho? — Tremia de dor com o ombro machucado e desejava ardentemente se lavar e cair numa cama limpa e quentinha.

— Talvez tentasse. Mas no momento não estou sozinho. Estou acorrentado a você e vamos nos ajeitar da melhor maneira possível até amanhã. A lama secará assim que o sol sair. Agora, de volta ao barracão, garota!

— Não vou voltar!

— Vai, sim! — Apanhou o lampião e agarrou seu braço esquerdo. Ela tentou soltar-se daquelas garras, as lágrimas lhe assomando aos olhos, mais pela humilhação do que pela dor.

— Agora, não torne as coisas mais difíceis do que já estão. O barracão é seco e ficaremos ensopados até os ossos se ficarmos aqui. Se pretende apanhar um resfriado ou uma febre, eu não! E seja uma garota sensata, antes que eu perca a paciência!

— Pois perca! — replicou furiosa. — Fico mais à vontade quando você se mostra cínico e sarcástico. Estou mais acostumada a vê-lo assim do que bancando o bom escoteiro!

— Sua louca! — Continuou a segurá-la fortemente, enquanto o céu era riscado por um enorme raio, que, tudo iluminando, mostrava a desordem reinante. Houve um barulho tremendo e viram uma árvore queimar-se de cima a baixo.

— Vamos sair deste inferno! — E sem esperar por novos argumentos, passou um braço por ela, levantando-a do chão. A lama dificultava seus passos e demorou um pouco para que pudesse chegar ao barracão. Entrou, ainda carregando Roslyn, e empurrou a porta atrás deles. Quando a colocou no chão, pôde examiná-la à luz do lampião.

— Você está incrível! Devia se ver num espelho! — Atirou a cabeça para trás, ensopada de chuva, e o som de sua gargalhada encheu o ambiente.

— E você parece um demônio saído do inferno! — respondeu rápido. Sentindo a dor no ombro, encostou-se num tronco de palmeira que servia de suporte e limpou o rosto com as mãos. — A maneira como aquela palmeira pegou fogo — disse pensativa — lembrou-me do avião quando bateu... a maneira como se incendiou inteiro... e como parecia gemer como se sentisse dor... Lembro-me que reparei nisso... antes de desmaiar...

— Como está seu ombro? — Aproximou a luz, olhando para o rosto sujo de lama. — Carregando você como se fosse um saco de aveia, não deve ter sido bom, mas você estava agindo como se fosse um burrinho teimoso!

— Obrigada — disse. — Você certamente tem uma maneira muito gentil de falar com uma moça.

— Não gosta? Já encontrei mulheres que gostaram. Elas consideram o insulto um prefácio de sedução.

— Não admira que seja cínico com as mulheres se é esse o tipo com as quais está acostumado a se envolver.

Lá fora a chuva continuava a cair forte... e ela estava irremediavelmente sozinha com ele, um homem selvagem e imprevisível.

— Por que as mulheres sempre acham que há uma segunda intenção nas observações de um homem?

— Nem todas! Ui! — Afastou do pescoço o suéter molhado, dizendo: — Como gostaria de um chuveiro quente agora e de uma toalha para poder me enxugar!

— Eu também! — disse olhando a lama que se acumulara em seus sapatos e nas calças. — Seguido de um bom rum!

— Ah! gostaria de uma enorme xícara de café doce e fumegante.

— Em vez disso, vamos ter que nos arranjar com o que temos aqui. — Começou a procurar ao redor, quando, olhando para Roslyn, viu que ela estava mordendo os lábios.

— O ombro está doendo muito?

— Incomoda bastante — admitiu ela. — Creio que o desloquei.

— Bem, deixe-me ver o que posso fazer para aliviar... e não fuja de mim!

— Você é sempre tão rude...

— Você me acha um homem bonito e sem sentimentos, não?

— Sem sentimentos, sim... não exatamente bonito.

Ele puxou o suéter, deixando seu ombro de fora, e começou a massageá-lo, delicada, mas profundamente. Suas mãos eram quentes e calosas de tantos anos lidando com árvores e toda a sorte de solos e de seus frutos.

— Os índios podem ser primitivos, mas sabem muito sobre o corpo humano. As índias fazem assim quando seus filhos caem das árvores... Aqui é o ponto pior, não?

— É... — Ele a estava fazendo ficar sonolenta, com as mãos calosas e quentes massageando o ombro, o pescoço e a coluna. A dor estava cedendo e havia um silêncio em torno. Então percebeu que a chuva havia parado. A tempestade findara, mas ela e Duane teriam que ficar ali, no barracão, até a manhã seguinte.

— Pronto! Como se sente? Melhor?

— Muito melhor! Obrigada pela massagem. — Agora que não a estava mais tocando, arrumou rapidamente o suéter.

— E melhor não ficar com isso molhado no corpo a noite toda. Talvez pudesse cortar um pedaço do pano de vela para se enrolar nele como num sarongue. — Levantou-se e começou a procurar: — Pelo menos é seco. Vejamos... será que existe por aqui uma faca ou uma tesoura?

A chama do lampião tornava-se mais fraca, pois o querosene estava acabando. Roslyn começou a achar que ele não era tão sem sentimentos como pensara. Podia sentir pena das pessoas e ser gentil, apesar de suas maneiras rudes e de seu jeito de ser. Notou que sua camisa molhada estava grudada no corpo. Mesmo acostumado às intempéries, não poderia sentir conforto. Queria sugerir que ele tirasse a camisa, mas não sabia como fazê-lo sem... que parecesse provocante. Divertida com a idéia, não pôde impedir uma risada.

— Qual é a graça? — perguntou.

— Nada... bem, na verdade eu estava imaginando como lhe sugerir que tirasse a camisa sem que parecesse que eu queria ver seus músculos. Por favor, tire-a. Você mesmo falou do perigo de uma febre...

— Febre? Isso é uma coisa que muitos plantadores das selvas apanham... — tirou a camisa de dentro das calças e num rápido movimento acabou de tirá-la. Sob a fraca luz do lampião, ela pôde ver uma funda cicatriz que riscava seu musculoso ombro direito. Imaginou que fora causado por algum animal selvagem. Talvez um jaguar escondido numa árvore se atirando sobre ele e ferindo-o... como aquela mulher de quem falara o tinha ferido por dentro... transformando-o nesse homem para quem cada bondade tinha que ser contrabalançada por uma impiedade...

Viu os músculos de seu queixo se retesando quando olhou para ele e atirou a camisa no chão. Toda a situação o irritara.

 

Ele encontrara algo cortante e agora rasgava as velas, fazendo um barulho que rompia o silêncio como chicotadas.

— Desculpe metê-lo nesta encrenca — disse Roslyn, encolhendo-se.

— Pedir desculpas depois de ter feito, não ajuda muito. Estes panos são meio ásperos, mas conservarão você quente e protegerão sua modéstia. Sabe como se enrolar fazendo um sarongue?

— Não, mas tenho certeza que você sabe, e sendo um cavalheiro...

Virou-se para ela, com o cenho franzido. — Preocupada que eu não me comporte como um? — Deu uma risada maldosa, examinando-a dos pés à cabeça. — Só queria que tivéssemos um espelho para que você pudesse se ver! Quer que eu lhe mostre como se enrolar?

— Eu me arranjo sozinha! — Tomou-lhe o pano das mãos, lançando-lhe um olhar furioso. Ele virou-se, dando-lhe as costas, parecendo mais interessado em desenrolar mais velas.

— Bem , faremos uma cama disto — disse, sem se virar — Como está se saindo?

Ela tinha tirado o suéter e se enrolado no pano... mais parecia uma toga do que um sarongue. — Pronto — e saiu de cima de suas roupas molhadas.

— Posso me virar e ter o prazer da sedutora visão que você certamente oferece? — perguntou irônico.

— Há necessidade de você ser tão maldoso? Não pedi para ficar presa neste barracão com você. Preferia me arriscar, subindo a montanha, e não ficar aqui.

— Sei disso — continuava a olhá-la, divertindo-se — Gatinha, você não está exatamente como um modelo de Gauguin, mas não está melhor assim?

— Pode não preocupar você, estar aqui assim, mas eu... não gosto. As pessoas vão pensar que é... estranho.

— "As pessoas"... você quer dizer Tristan? Minha querida criança, ele me conhece o suficiente para saber que eu seria incapaz de tocar num fio de seus cabelos.

— Sei que Tristan conhece seus gostos, mas as mulheres não são tão bondosas quanto os homens.

— "As mulheres"... você quer dizer Isabela?

Ela assentiu, segurando a frente de sua toga e imaginando como devia parecer esquisita vestida assim.

Ele começou a procurar onde dormir. Empurrou um dos barcos para o lado para fazer lugar e, pegando o lampião, examinou o chão, certamente temendo outras aranhas, empilhando depois algumas velas desdobradas para servir de cama.

— Poderemos descansar quase confortavelmente aqui. Você fica numa ponta e eu na outra, certo?

— Certo, Sr. Hunter. — Falou com voz submissa, pois reconhecia que ele era um homem duro. A cama improvisada era bem mais convidativa que o chão.

— É melhor deitarmos antes que a luz se acabe. Vou colocar, como se fossem cobertores algumas velas sobre nós. Deite-se. Vou só estender minha camisa e meu suéter, pois deverão estar secos amanhã.

Deitada, ela o viu estender a roupa de ambos e colocar as sandálias e os sapatos de encontro à parede para que secassem. A luz se apagou e ela sentiu quando Duane se sentou na improvisada cama.

— Não se preocupe com bichos. Dei uma boa olhada. Ah! Não é como lençóis de linho, mas serve para nos esquentar. Meus pés estão muito perto de seu rosto?. Ela os procurou com as mãos. — Espero que não dê pontapés dormindo.

— Só Deus sabe! Seria melhor que ambos estivéssemos do mesmo lado. Olhe, vou tentar me sentar neste colchão de pedra e... Ai!

— O que foi?

— Acho que arranjei uma equimose! — Ouviu-o rir e sossegou achando que não era nada sério. — Mas um motivo para comentários amanhã, não?

Isabela iria presenteá-lo com outra equimose, pensou maldosamente.

Percebeu quando ele se deitou e, mesmo sem tocar nela, podia senti-lo junto de si. Lá fora, as águas do lago sussurravam e as folhas das palmeiras farfalhavam.

— Ainda acordada? — perguntou baixinho.

— Ainda. — Aconchegou o rosto na mão. — Estou esperando pelo sono.

— Desculpe, não sei nenhuma canção de ninar. Há uma que minha babá índia costumava cantar, mas parecerá estranha para você.

— Aposto que quando criança você era tão selvagem quanto os índios.

— Isso era inevitável, especialmente quando... — Parou e Roslyn ouviu-o suspirar. — É engraçado... amar, quero dizer... ama-se um lugar tanto quanto uma pessoa...

— Preferia não ter deixado a selva?

— Não estava falando de mim — disse após um momento.

— Pensei...

— Não. A vida na selva é uma experiência maravilhosa, mas eu não a amava tanto quanto meu pai. Para ele era lar, trabalho e diversão. Era toda sua vida...

Roslyn sabia por conversas com Nanette que Duane era um homem introvertido e surpreendeu-se ao ouvi-lo falar do pai. Seriam as estranhas circunstâncias que o induziam a um clima de amizade? A escuridão escondia-os um do outro e talvez ele achasse que, falando, ela se sentiria mais calma, sem pensar muito que estava ali sozinha com ele.

— Deve ter sido difícil para ele deixá-la. Nanette contou-me que ele retornou à Inglaterra e por isso você concordou em trabalhar na plantação de Dar al Amra.

— Ele estava doente, cansado. Por mais que amasse a selva, alguns meses mais e morreria. Por fim concordou em se retirar para Loughboys, numa pequena casa à beira de um rio, no condado de Kent, que herdou do irmão. — Ficou em silêncio e depois perguntou: — Não está cansada? Não quer dormir?

— É uma espécie de cansaço que não me deixa dormir. Se quiser continuar falando, gostaria de ouvir.

— Como crianças num dormitório?

— Sim, como crianças num dormitório de orfanato. — Não se lembrava do orfanato, lugar onde ela e Juliet tinham crescido. Mas orfanatos eram lugares frios e ela nunca sentira o calor de um relacionamento com um parente; por isso queria que Duane continuasse falando sobre o pai. — Como está se dando seu pai na Inglaterra?

— Melhor do que pensei. Suas cartas são animadas. Há alguns anos, quis que ele viesse para cá, mas não concordou. Disse que o lugar lhe trazia lembranças que não queria enfrentar. Permaneceu lá e parece que está gostando.

— Já esteve lá? — Não podia imaginá-lo numa tranqüila casa de campo.

— Fui com ele para lá. Loughboys não era habitada há algum tempo e precisava de reparos. Fizemos tudo sozinhos. Uma horta atrás da casa, um galinheiro onde ele queria criar galinhas; enfim, tudo diferente do que sempre havíamos feito. Sabia que devia dar-lhe tempo para se acostumar e me ofereci para ficar com ele, até arranjar um emprego para ficar na Inglaterra. Não quis nem ouvir. Mas a selva não era a mesma sem ele; por isso aceitei o emprego que Nanette me ofereceu. Gostava do lugar e faria o trabalho que sabia fazer. — Depois de uma pausa acrescentou: — A selva me traz más recordações e acho que nunca mais voltarei lá.

Nada mais disse e Roslyn achou que tinha adormecido. Encolhida entre os panos das velas, rememorava os acontecimentos das últimas horas, desde que Duane a forçara a dançar. Como ela o odiara! Agora... não sabia o que sentia por ele.

Perplexa, olhando a escuridão, seus olhos foram se fechando e tudo se apagou.

O sol da manhã entrava pela janela do barracão. Avançava gradualmente, como que querendo espiar a moça e o rapaz adormecidos. Ele dormia, protegendo os olhos com o braço, e ela começava a acordar. Um minuto depois, abria os olhos cega pelo sol.

Onde estava?... Sentou-se para poder situar-se... e viu o companheiro adormecido.

Foi a dificuldade de mexer o braço que trouxe rapidamente toda a lembrança da aventura da noite passada. A violenta tempestade, a chuva torrencial, o raio que incendiara a árvore. A trilha que levava ao hotel ficara destruída e Duane dissera que deveriam passar a noite ali.

Agora era dia, e como era bom ouvir os passarinhos cantando e ver o sol brilhando lá fora! Cuidadosamente saiu da improvisada cama, temendo que Duane acordasse antes que ela pudesse ter se vestido. A saia ainda estava molhada e suja, mas ela vestiu assim mesmo. A blusa estava meio seca e, enquanto vestia, observou Duane. Ele acordaria a qualquer momento, mas, a despeito disso, aproximou-se dele. Adormecido, despido de toda sua agressividade, parecia... quase um menino. Seu semblante era menos duro, com os olhos cerrados e os lábios entreabertos pela respiração. Nesse momento, como o sol atingisse seus olhos, começou a despertar. Sorrateiramente ela foi até a porta e, abrindo-a devagar, saiu para o ar livre. Uma névoa subia do lago, mas o sol já começava a esquentar. Foi até a beira do lago, ajoelhou-se e, tomando a água com as mãos, lavou o rosto o melhor que pôde. Antes de enxugar o rosto no lenço, dobrou uma ponta deste e, molhando-a, improvisou uma escova de dentes. Como não tinha pente, com os dedos tentou pôr o cabelo em ordem. Sua aparência devia estar horrível, mas nada podia fazer.

Um forte cheio de lama pairava no ar, e pelo barulho que faziam os passarinhos deduziu que devia ser ainda muito cedo. Voavam da praia até a verde ilha do centro do lago pássaros pequenos e grandes, rápidos pelo ar como coloridas flechas.

Ficou observando-os por algum tempo e depois voltou ao barracão, onde encontrou Duane dobrando as velas que lhes tinham sido de tanta utilidade.

— Bom dia — disse nervosamente. — Posso fazer alguma coisa para ajudar?

— Não, já terminei. — Viu-o carregar a pilha de velas e colocá-las no lugar onde estavam na véspera. Limpou as mãos sujas de pó nos lados das calças e arranjou o suéter, puxando-o para baixo. Nada mais restava de seu ar despreocupado de menino adormecido... O rosto barbudo e o cabelo despenteado lhe davam um ar de criminoso e ela sem querer deu um passo para trás, quando se aproximou dela com a camisa nas mãos.

— As pontas de seu cabelo estão molhadas. Esteve junto ao lago?

Ela fez que sim e pondo as mãos nos bolsos assumiu um ar de indiferença. A voz dele era cortante, e os olhos, verdes e frios. Estava novamente escudado atrás de seu cinismo... Toda a naturalidade que houvera entre eles se fora com a tempestade... apesar de terem por uma noite dividido uma cama...

Duane estendeu a vista pela praia: pedaços de troncos, galhos quebrados, folhas de palmeiras e muitos ninhos de passarinhos. O sol brilhava, dispersando a névoa do lago.

— Vou lavar o rosto e depois vamos dar uma olhada na trilha para ver como poderemos voltar para o hotel.

— Sim — respondeu. — Que horas são?

Olhou o relógio de pulso: — Cinco e quarenta. — Seus lábios se abriram num sorriso que nada tinha de amável. — Poderemos voltar ao hotel antes que seja sentida nossa falta, não?

— E o que há de estranho em desejar isso? — Levantou o rosto numa atitude desafiante, que esperava parecesse real. — Alguns empregados do hotel podem ter nos visto sair ontem.

— Podem ter pensado que só fomos dar uma olhada nos arredores.

— É, pode ser — falou, em dúvida.

— E agora? — Seu sorriso era sarcástico. — Nenhum de nós parece ter dormido confortavelmente. Você parece ter sido atirada no lago e depois pescada e posta a secar ao sol. A minha aparência não deve dar para descrever.

— Você parece ter caído no lago logo depois de mim!

— Sempre uma resposta pronta! — Riu e se afastou em direção ao lago. Lavou o rosto e os cabelos e os secou na camisa. Jogou-a displicentemente para um lado e voltou para junto dela, passando a mão pelos cabelos na tentativa de assentá-los.

— É bom a gente se lavar, mas eu poderia comer alguma coisa — e cerrando os olhos começou a enumerar: — Um bom filé de arenque, uma grossa fatia de pão fresquinho com manteiga e uma xícara de café forte e fumegante ao lado... O que lhe parece?

— Sádico! Sr. Hunter, permita-me lembrá-lo que quanto antes subirmos aquele monte mais cedo teremos nossa refeição.

— Aquela trilha estava em péssimo estado ontem à noite. Subi-la hoje não vai ser nenhum passeio. Eu poderia subir sozinho... Não, não arregale esses seus lindos olhos claros... Se eu decidir que você fica aqui e espera, você fica e espera! Vou buscar ajuda e trarei algumas cordas para içá-la para cima.

— Não estou inválida! Vou subir aquela montanha! Se você acha que consegue, eu também, e você não vai me impedir!

— Você acha que não? — Enfiou as mãos nos bolsos das calças e ficou encarando-a. — Compreendo sua teimosia porque também sou teimoso; mas há um outro motivo pelo qual quer chegar ao hotel sem que tomem conhecimento de nossa pequena aventura. Tem medo do que Tristan possa pensar. Para ele, você é a garotinha que ainda não caiu do pessegueiro, e não quer estragar a imagem que tem de você.

— Você... seu demônio! — Levantou a mão para esbofeteá-lo, mas ele rapidamente agarrou-lhe o pulso.

— Não lhe ocorre, gatinha, que está sendo pouco carinhosa, para não dizer cruel? — Agarrou-lhe as mãos, e sorria, divertido, de vê-la impotente e furiosa.

— Você e Tristan viram Isabela deixando meu quarto ontem à tarde. Ambos presumiram que eu estava fazendo amor com ela. Tristan poderia pensar que a cena se repetiu esta noite, sendo você a mulher amada?

Os olhos de Roslyn faiscavam de raiva: — Como pode dizer que eu é que sou cruel?

— Vocês mulheres não gostam de ouvir isso, não? Aborrece, mais do que magoa, já notei. Bem, se lhe dá algum sossego pensar que Tristan pode aceitar a verdade de como passamos a noite juntos no barracão, vou lhe dizer como se enganaram e o que realmente Isabela fazia em meu quarto. Não havia muito tempo chegáramos do almoço e eu me preparava para tirar um cochilo, quando ela bateu em minha porta. Ela estava com uma forte dor de cabeça devido ao sol e nada tinha para tomar. Quando se vive tanto tempo ao ar livre como eu, aprende-se a tomar cuidado com o sol. Sempre carrego remédios comigo para dores de cabeça, cólicas e febre. Preparei uma dose e ela tomou-a em meu quarto. Estava saindo quando você e Tristan a viram, sedutora e linda, de penhoar e com os cabelos soltos. Era muito claro o que ambos estavam pensando, gatinha.

Pegando o queixo de Roslyn, levantou-lhe o rosto. — Não a incomodei durante a noite passada, porque queria que pensasse que o tipo de moça que eu gosto é o de sangue latino. Além disso, era uma experiência nova para mim, ser responsável por uma criança durante uma noite e não queria que você pensasse que eu a achava... atraente...

— Nunca cometi esse erro! — protestou.

— Não, mas está pronta para pensar que meu primo vai presumir que eu a acho irresistível.

— Bem, embora não lhe agrade a idéia, ele gosta de mim.

— E gostar de alguém significa ter ciúmes?

— A natureza humana é assim.

— A natureza humana é um problema, não? Somos todos um mistério para nós mesmos e para os outros. Se não o fôssemos, você teria simplesmente me aceitado como um irmão mais velho ontem à noite, sem pensar em segundas intenções.

— O problema é que você não se parece com um irmão mais velho de ninguém.

— Como me pareço então?

— Parece com raios e trovões — pensou rapidamente. — Com tudo o que pertence a selvas e desertos. É pena que não tenha o dom de Tristan ou de sua avó de colocar os outros à vontade.

— Sinto muito, mas deve se lembrar de que sou um mestiço. Cruzando uma cadela francesa com um buldogue inglês, o resultado é algo parecido comigo. Meu latido é às vezes pior do que minha mordida.

Ela sorriu, mas no íntimo se sentia chocada com a observação dele, que não era simples brincadeira. Seus olhos estavam presos aos dele; abruptamente a largou e disse que estava na hora de irem ver o estado da trilha.

Andava na frente dela, afastando galhos e pedras do caminho. O sol estava mais alto e atrás deles o lago tinha um brilho metálico. Uma infinidade de pequenos insetos voejava ao redor deles e por diversas vezes Roslyn matou-os dando tapas em si mesma.

Não importando qual a decisão a que ele chegara quanto à segurança da subida, resolvera que de forma alguma ficaria ali embaixo para ser comida viva pelos insetos!

— Vamos arriscar subir! — disse ela. — Se ficarmos aqui, logo mais estarei coberta de mordidas!

Olhou-a por cima do ombro. — Está bem. Mas vou na frente e espero que tenha cuidado com cada passo que der, ouviu?

— Não sou criança! — Espantou uma mosca persistente de seu pescoço. — Por favor, vamos embora! Estas moscas são umas pestes e estou morrendo de vontade de tomar um banho e um café.

— Temos sorte de não estarmos nas selvas, pois lá as moscas são quase do tamanho de passarinhos, comparadas com as que você vê aqui.

— Imagino que sejam. Mas vocês devem usar roupas apropriadas.

— Quer pôr meu suéter?

— Ê muito grande para mim. Ai! — Deu um tapa na perna. — Poderia atrapalhar meus movimentos.

— Tem razão. Agora, preste atenção! Quero que segure em meu cinto enquanto subimos. — Mostrou-lhe o cinto por cima do suéter. — Segure firme e não tente fazer nada que eu não faça.

— Sim, sim, meu capitão! — brincou ela, mas a trilha pela qual descera na noite anterior tinha desaparecido e em seu lugar só se viam troncos e pedras cobertos de lama. Seria uma escalada dura. Aqui e ali, enormes pedras soltas podiam ser inadvertidamente tocadas e se uma delas rolasse sobre eles podiam se machucar muito ou até mesmo serem esmagados.

— Você poderia calmamente esperar no barracão, onde estaria a salvo dos insetos — disse ele.

— Não estou com medo da subida. Você não estaria tentando, Duane, se achasse que é perigoso demais para você. Gosta de parecer forte e independente e pessoas feridas têm que se conformar em serem ajudadas por outros. — Sorriu ciente de que estava certa. — Você não se arriscaria a isso.

— Vamos, então, sua gatinha esperta. — Olhou para cima, traçando mentalmente uma rota a seguir.

Iniciaram a escalada e quando por acaso Roslyn escorregava, ele a segurava, apesar de ela estar agarrada em seu cinto de couro.

A subida era penosa e exigia muito esforço. As unhas de Roslyn se quebraram e ela usava a outra mão para segurar em tudo que estivesse ao alcance. O suor escorria pelas suas costas e ela se sentia sufocar de calor. De vez em quando, Duane parava um pouco para que ela pudesse descansar. Seu ombro começava a doer. Passarinhos passavam por eles, curiosos e cantando.

— Ah! Se eu tivesse as asas deles! — lastimou-se ela.

— As de uma águia seriam melhor — respondeu Duane. — Eu poderia levá-la lá para cima em minhas costas.

O topo da montanha agora estava próximo e já podiam pensar na xícara de café e outras delícias. O sol batia neles em cheio e Roslyn podia sentir a transpiração dele em sua mão. Quando recomeçaram a subida, estavam quase em casa e secos. Foi quando uma pedra se soltou sob seus pés e Roslyn se viu suspensa no ar, presa somente pelo cinto dele.

Ele vacilou ao sentir o inesperado peso dela, mas rapidamente conseguiu se agarrar num tronco de árvore.

— Trate de se segurar em minhas pernas com seu braço livre! — gritou por cima do ombro. — Assim... firme agora... assim... está conseguindo?

Obedecendo cegamente ela se agarrava a suas pernas, tentando encontrar um apoio para os pés. Graças a Deus encontrou um e por um momento descansou a cabeça nas costas dele, com o coração aos saltos e imaginando o que seria deles se tivessem rolado encosta a baixo. Quase acontecera! Seu inesperado peso quase o arrastara com ela.

— Desculpe o que aconteceu... Que ótimo você ter reações rápidas.

— Força de hábito — disse ele. — Você está bem?

— Estou, obrigada. E você? Seu cinto deve tê-lo machucado.

— Você não é tão pesada. Vamos, não falta muito para chegarmos. Você disse que queria uma xícara de café, lembra-se?

— Tudo o que quero agora é sentir terra firme debaixo de meus pés.

Começaram a fase final da subida e logo depois estavam recuperando o fôlego no gramado que cercava o hotel.

— Bem, conseguimos! — disse Duane finalmente.

— Graças a você! — Deu uma olhada em si mesma: a roupa imunda e amassada, as sandálias um bloco de lama seca, o cabelo grudado pelo suor na testa e na nuca. Devia parecer um lixo. Duane, a seu lado, tinha o aspecto de um miserável bandido.

Levantando-se depois do pequeno descanso, Duane ajudou-a a ficar de pé. — Anime-se! — Deu-lhe uma palmadinha no rosto como se ela fosse uma criança. — Agora, vamos tomar nosso café.

Olhou mais uma vez lá para baixo, antes de segui-lo. O lago de Temcina brilhava, refletindo as sombras dos pássaros. Um lugar que ela nunca mais esqueceria... mesmo que não se recuperasse da amnésia, a lembrança de El Kadia ficaria com ela para sempre.

Quando chegou perto dele, viu que examinava o relógio.

— É cedo ainda — ele disse. — Poderemos entrar sem ser vistos.

— Quer dizer — Roslyn parou um pouco —, está sugerindo que não devemos dizer a ninguém onde passamos a noite toda?

— Não é da conta deles, não é mesmo?

— Mas lá na praia... você disse...

— Esqueça o que eu disse. — A portaria do hotel estava vazia e não se viam sinais de atividade. — Vê? Já conseguimos chegar até aqui!

Seus olhos verdes e brilhantes, no rosto moreno e sem barbear, encontraram os de Roslyn. — Não quero que Isabela saiba de nossa pequena aventura... Não, se eu puder evitar.

Por uma sorte incrível, chegaram a seus quartos sem que fossem vistos. Roslyn imediatamente tomou um banho e dez minutos depois um empregado árabe apareceu trazendo uma bandeja com café e um pote de creme fresco.

— O Sr. Hunter já pediu o dele? — perguntou, enquanto pegava a bandeja. O árabe assentiu e depois de saudá-la, retirou-se.

Duane Hunter era certamente um quebra-cabeça, pensou Roslyn enquanto se servia de uma segunda xícara de café com creme e ponderava sobre os acontecimentos da estranha noite que passaram juntos.

Podia ser tudo um sonho, exceto que se lembrava perfeitamente da moça de cabelo platinado e de sua alegre risada... Sentia uma súbita tristeza, pois em seu subconsciente sabia que ela era sua melhor amiga... e agora estava morta no desastre de avião. Pobre pequena! Nunca mais dançaria por entre as árvores com os cabelos molhados no mergulho que dera no lago proibido...

Terminado o café, Roslyn foi para a cama. Descansar entre os limpos e macios lençóis era uma sensação deliciosa.

Não tinha muita certeza de que era uma boa decisão manter em segredo a aventura. Ela e Duane pareceriam muito mais culpados aos olhos de todos se o segredo fosse descoberto...

 

Nos dias que se seguiram, Roslyn alegrou-se por estar Duane ocupado na plantação e, conseqüentemente, não encontrá-lo muitas vezes. Tinham um segredo em comum. Eram como que conspiradores e isso não era uma sensação agradável.

Tristan mantinha-se ocupado com sua ópera a maior parte do dia. No frescor da tarde, mandava selar dois cavalos e saía com Roslyn para um passeio. Ela precisara de lições, mas ele era um bom instrutor, e logo se sentiu à vontade na sela, podendo desfrutar dos passeios. Falavam de suas ambições musicais e de suas viagens.

Usavam mantos árabes, o que era pitoresco, mas quente. Para ambos, essas horas sozinhos a cavalo eram felizes.

Roslyn ainda tinha na mente a aventura com Duane. Convinha a ambos esquecer o episódio e ela estava determinada a não se sentir culpada. A beleza do cair da noite africana a envolvia. Estranhas vibrações pulsavam no ar e sua gargalhada juntava-se à de Tristan, pois ele lhe contava um fato engraçado ocorrido em sua vida entre cantores, músicos e todos aqueles que criavam drama e fantasia nas produções para o palco.

— Todos nós nos inclinamos a dramatizar as coisas — dizia Tristan. — Às vezes imagino que abandonamos a realidade para nos tornarmos heróis e heroínas de óperas. Repare que nenhuma outra forma de arte exagera tanto as emoções do amor, mostrando a que ponto o ciúme pode arrastar uma pessoa.

— Não me lembro se já assisti a alguma ópera. Gosto de sua música, Tristan, e do jeito que Isabela canta. Ela tem uma voz magnífica.

— Uma voz que interpreta as emoções — acrescentou secamente. — Tem o dom de uma bela voz e é uma excelente atriz.

— Conhece-a há muito tempo?

— Há três anos. Conheci-a em Paris, interpretando a Carmem. Tinha terminado a minha Ar Mor e achei que o papel lhe cabia bem. Felizmente ela concordou comigo e creio que Ar Mor alcançou sucesso pela interpretação dela.

— Você também a admira como pessoa?

Ele balançou a cabeça. — Não tanto quanto admiro você.

— Mas sabe tão pouco a meu respeito — argumentou —, posso ser capaz de qualquer coisa... uma decepção, por exemplo.

— A maioria das mulheres é. — Deu uma risada. — E dos homens também. É uma condição humana que devemos aceitar, ou ficar sem amigos.

Gostou da resposta. Era sincera. — Você é uma pessoa muito compreensiva.

— Porque sou francês — replicou.

Examinou-o à luz das estrelas. Não parecia um árabe, embora vestido daquele jeito. Se fosse Duane. pareceria um falcão do deserto.

— Pretende viver um dia na França? — perguntou-lhe. — Você j deve amar isto aqui; o deserto, a sensação de liberdade, as enormes estrelas.

— El Kadia certamente está no meu sangue. — Ergueu os olhos, fitando as estrelas. — Mas na Bretanha é que gostaria de me fixar. Gostaria de comprar uma casa junto ao mar, com uma cumeeira alta, a hera subindo pelas paredes, grandes portas de carvalho... As noites quentes e aconchegantes, ouvindo o marulhar das ondas e comendo galinha assada regada com o bom vinho francês, ou uma lagosta seguida de torta de ameixa coberta de creme... É a parte da França que acho mais bonita. Ou pelo menos a mais condizente com as lendas e o folclore dos pescadores. Há grutas e cavernas, praias e florestas que excitam a imaginação. Estava lá quando escrevi Ar Mor. Um dia voltarei e comprarei minha casa.

Suas palavras ainda ecoavam na mente de Roslyn quando voltaram para Dar al Amra. Tinha falado com saudades de um lugar distante. Duane também falara de um lugar ainda mais distante... mas com a diferença que não desejava mais voltar, pois as recordações eram dolorosas.

Às vezes saíam de Dar al Amra para uma bebida gelada e um sanduíche, à noite, ou conversavam com Nanette no pátio dos Véus. Riam freqüentemente de uma observação dela e Isabela ficava sempre no salão, completamente alheia, evidentemente enciumada da atenção que Tristan dava a outra mulher, embora fosse sua avó.

Tristan sorria para Roslyn, sentado ao piano e ela se lembrava daquele dia junto ao lago, quando Duane lhe dissera que não queria que Isabela soubesse de sua aventura. Isabela Fernão devia ter uma natureza extremamente ciumenta — não suportava que não lhe dessem atenção.

Como poderia alguém ficar insensível aos encantos de Nanette?

Ela era boa e generosa, possuindo um grande senso de humor que não diminuía com a idade. Todas as manhãs Roslyn ia até seu quarto para uma prosinha.

— Tomo meu café na cama porque sou preguiçosa — dizia. Mas às vezes parecia muito abatida, com uma fina linha azul ao redor dos lábios e Roslyn se preocupava.

— O que está pensando? — perguntou-lhe Nanette uma manhã. — Um dia você também envelhecerá, seu cabelo se tornará branco e sua pele macia ficará enrugada. A perspectiva da velhice a preocupa, minha filha?

— Não, se eu puder atravessar os anos com sua tempera! — Roslyn sorriu, para esconder a ansiedade, pois Nanette parecia mais fraca essa manhã. Tomara o café e continuava deitada em vez de examinar a correspondência ou verificar os últimos lançamentos da moda no Vogue ou Elle.

— Tenho sempre comigo boas recordações. Como as contas de um rosário, desfilam pela minha memória, fazendo-me sentir alegria, tristeza e freqüentemente prazer. Agrada-me recordar como fiquei sufocada entre flores depois de meu primeiro triunfo no palco. Um cavalheiro muito distinto me levou para cear e me ofereceu champanhe e caviar. Naquele tempo eu não conhecia Armand. Se nunca o tivesse encontrado, possivelmente teria me casado com aquele distinto diplomata e me tornaria uma brilhante figura da sociedade parisiense — e deu uma risada.

— Não creio que fosse mais feliz, pois se casou por amor.

— Sim, minha romântica criança, eu me casei por amor... embora na ocasião eu não tivesse muita certeza de estar agindo acertadamente. O outro parecia mais compreensivo do que Armand. Ficava feliz em satisfazer meus desejos. Armand nunca cedia. A mulher que casasse com ele deveria aceitá-lo como era. Podia ser carinhoso ou cruel, conforme seu humor. Minha família e meus amigos o consideravam um bárbaro. Não era dado a beijar mãos ou a galanteios. Era um homem da terra, rude como as árvores que plantava e imprevisível como o vento do deserto. Cada vez que eu o via, queria correr dele, mas — Nanette deu um nostálgico suspiro — eu corria em círculos ao redor dele, como uma lebre ao redor da armadilha. Tive que lutar muito, mesmo quando esses círculos se estreitaram, ficando reduzidos à circunferência de seus braços.

Nanette fitava a moça sentada a seu lado na cama, em cujo semblante muito sério via dois olhos claros e brilhantes.

— Você tem um olhar lindo, minha filha. Creio que seu coração nunca sentiu o amor que eu senti em sua idade. Você não esqueceria isso, não importa o que tivesse acontecido depois.

O olhar dela era tão perscrutante que Roslyn evitou-o. Olhou para suas próprias mãos caídas no colo, a esquerda sobre a direita, onde já não se via mais o anel de noivado. — Talvez seu Armand fosse único. Forte e impulsivo com os sentimentos que despertou em você.

Nanette tirou uma das mãos de sob a coberta e acariciou a face de Roslyn, lentamente, balançando a cabeça e sorrindo. — Não... só era diferente num ponto. Não era introvertido. Nada escondia de mim. Esse outro é... arrogantemente reservado. Guarda trancadas nele as coisas que o magoaram e isso não é bom. Se ele fosse um menino, talvez eu o pudesse convencer a confiar em mim. Mas é um homem... um grande homem... e guarda seu segredo. — Recostou-se nos travesseiros e seus olhos se sombrearam. — Sinto que tudo se refere a uma mulher... e acredito que ele ainda a ama a despeito do mal que ela lhe causou.

O nome do homem não fora mencionado, mas Roslyn sabia que ela se referia a seu neto meio inglês.

— Os homens desde crianças têm românticas ilusões a respeito das mulheres. Mas se as perdem de maneira dolorosa, alguma coisa morre dentro deles. — Deu um suspiro. — Isso aconteceu com o homem a quem me refiro. Bah! Não estou sendo clara. Estou falando de meu neto Duane. Já tinha adivinhado, minha filha?

Roslyn fez rápido movimento com a cabeça, afirmativo.

— Você é esperta, petite! — Havia um brilho irônico nos olhos dela. — Duane tem a autoridade e autoconfiança de um paxá. Para muitos parece duro e insensível.

— O Sr. Hunter é um cínico com as mulheres — disse Roslyn formalmente. — Você é a única pessoa que ele ama e admira. Você é a deusa dele, Nanette. Ele me disse isso.

— Sinto-me lisonjeada — Nanette sorriu. — Diga-me; você o chama de sr. Hunter na frente dele?

Roslyn corou vivamente e pensou nas coisas de que o chamara... na frente dele.

— Ele não é tão encantador como Tristan, não é? Com Tristan você não é formal, já notei isso. Duane nunca os acompanha quando saem a cavalo?

— Não... quero dizer... ele está sempre ocupado na plantação. Além disso, nossos passeios devem ser um tanto lentos para ele.

— É isso mesmo. Em cima de um cavalo, parece um árabe galopando por essas areias... Não é muito fácil entendê-lo, não, filha? Ou de gostar dele. Sempre fechado às demonstrações da... amizade.

— Acho Tristan um bom companheiro. Esta tarde vai me levar para ver uns desenhos numa caverna chamada Ajina.

— Certamente gostará dessa lição de história — disse secamente — e enquanto vocês saem Isabela ficará tirando uma boa soneca. Ela é como uma gata, preguiçosa e sensual.

Sim, pensou Roslyn. Mas não conseguia imaginar um homem chamando-a de gatinha...

Às três da tarde, ela e Tristan saíram para Ajina. As areias quentes estendiam-se diante deles até as montanhas; o mormaço forçou Roslyn a puxar seu chapéu de brim sobre os olhos para ter alguma sombra. Usava uma blusa de mangas compridas para proteger os braços do sol. Ao lado da sela levava um manto, pois quando voltassem para casa já teria esfriado consideravelmente.

Cavalgaram algum tempo em silêncio e isso deu a Roslyn a oportunidade de pensar que na sua conversa com Nanette não tinha sido mencionada a semelhança de Tristan com o irmão... Nanette não devia estar preocupada com a possibilidade dela identificá-lo com Armand. Tristan tornara-se uma companhia agradável, tinha cultura e era sempre amável.

Quando chegaram às cavernas, desmontaram e prenderam os cavalos numa tamareira próxima. Entraram nas cavernas e ela viu cachos de morcegos pendurados no teto.

— São tímidos — assegurou-lhe Tristan —, não voarão sobre nós.

— Espero que não. Acho-os horripilantes. Parecem ratos de asas.

Esqueceu-os, examinando as paredes pintadas. Nelas se viam desenhos de animais selvagens, cenas de caçadas e famílias ao redor do fogo.

— Pergunto-me se hoje em dia somos muito diferentes desses povos que se sentavam ao redor de um fogo, fazendo mexericos, comida... e amor.

— Fundamentalmente não mudamos. — Tristan riscava com o dedo uma das figuras gravadas. — As necessidades humanas são básicas. Um homem tinha que caçar, comer, procriar e morrer. É possível, contudo, que fossem mais felizes do que o chamado civilizado. Eram provavelmente menos competitivos entre si, descarregando sua agressividade na caça e presenteando suas mulheres com lindos casacos de peles, bons bifes e carinhos...

Roslyn deu uma gargalhada que ecoou pelos túneis. — Acha que hoje em dia uma mulher ainda se apaixonaria por um homem das cavernas?

— Você é mulher — seus olhos escuros encontraram os dela —, você é quem deve saber.

— Não creio que gostasse de ser arrastada pelos cabelos — disse rindo — e além disso estão muito curtos agora.

— Espero que os deixe crescer novamente. Deve ficar parecendo Alice à procura do País das Maravilhas, com seu cabelo claro caindo-lhe nos ombros.

— Por enquanto sou Roslyn num país maravilhoso! — Repentinamente tornou-se séria. — Há cinco semanas que estou em Dar al Amra e começo a pensar se não seria melhor eu voltar para a Inglaterra. Lá as cenas familiares talvez me ajudassem a recuperar a memória.

— Você não tem ninguém lá e aqui tem Nanette e eu. Pense em como sentirei sua falta.

— Mas não posso abusar indefinidamente da hospitalidade de Nanette.

— Nada é definitivo neste mundo — sorriu pensativo. — Você não é infeliz aqui, é? Fazemos o possível para que se sinta em casa.

— Tristan, não é isso...

— Venha — pegou-lhe a mão —, em nosso caminho de volta passaremos por Ajina, uma vilazinha que você achará interessante, por causa do tipo das casas e dos habitantes.

Saíram das cavernas e montaram. O sol já não era tão quente, ali nas montanhas de Gebel d'Oro, que se desenhavam de encontro a um céu muito azul. Era um lugar que excitava a imaginação, atraindo e assustando, com seus indômitos desertos, cavernas misteriosas e vilas escondidas como a de Ajina, onde as estranhas habitações pareciam favos de mel.

Seminuas, crianças corriam, brincando na terra, por entre pedaços de alvenaria. Quando viram os dois a cavalo, aproximaram-se curiosos mas a cautelosa distância dos cavalos. Nada pediram, mas olhavam para Roslyn com seus enormes olhos negros e ela desejou ter alguns doces ou balas para distribuir. Foi o que disse para Tristan, quando o bando se afastou correndo e voltando às brincadeiras.

— Esse povo é esquisito — disse ele. — Os adultos não gostam que estrangeiros dêem nada para as crianças.

— Nem mesmo algumas balas inocentes?

— Este é um lugar de antigos tabus, Roslyn. Mulheres veladas ainda acreditam no poder do olho do diabo...

A vila toda tinha um ar misterioso; os habitantes pareciam viver de acordo com suas superstições. Imaginava o que se passaria por trás daquelas portas fechadas, quando uma delas se abriu e ela viu uma figura embuçada, olhando-a com desconfiança. Roslyn viu homens morenos, com narizes aduncos, que os encaravam enquanto passavam pela vila. Sentiu-se pouco à vontade e alegrou-se quando chegaram ao fim da rua, onde as mulheres apanhavam água de um poço. Estas a examinavam, notando suas botas de montaria, seu chapéu de brim, tudo lhe emprestando um ar de menino, e imaginou se elas simplesmente a desprezavam ou a aceitavam com indiferença. Tentou colocar-se no lugar delas e sentiu um arrepio ao pensar na reclusão em que viviam.

— As coisas nunca mudam para eles? — perguntou, observando uma mulher toda de preto enquanto saíam da vila.

— O chefe da tribo é um velho senhor feudal; mas, quando morrer, seu filho pretende introduzir modificações. Deseja que as crianças sejam educadas e que os adultos aprendam novos métodos de cultivar a terra. Você não imaginava que uma terra tão árida pudesse ser cultivada, não?

— Dificilmente — disse ela. — Parece muito pedregoso!

— Mas o subsolo é rico. Soube que essas casas serão destruídas para que um novo projeto seja implantado.

— Isso fará uma diferença enorme na vida deles, não?

— Abundantes colheitas de milho e trigo... e casas novas para essas mulheres.

— Será que esse projeto se realizará?

— Tenho certeza que sim. O homem que nos observava na vila, enquanto passávamos, tornou-se membro da diretoria da Associação Pró-Alimentação, presidida por meu primo.

— Por Duane?

— Sim — Tristan notou seu olhar admirado e continuou: — Duane se interessa muito por esse povo; muito mais do que eu. Ele é como nosso avô, um idealista.

— E se ele se casar?

— Se casar, sua mulher terá que segui-lo como Ruth no deserto...

Roslyn pensou em Isabela, que dificilmente seria uma Ruth...

— Você está pensando que ele pode se casar com Isabela?

Roslyn assentiu.

— Nanette abandonou a carreira para seguir meu avô e as mulheres são imprevisíveis... sim, eu suponho que isso é possível. Querida, veja o pôr-do-sol!

No horizonte o sol ainda brilhava e o céu tingido de vermelho e rosa era de uma beleza selvagem. Mais acima, o céu se tornava lilás e algumas estrelas já começavam a despontar.

— Que maravilha! — disse Roslyn.

Como cavaleiros fantasmas galoparam pelas areias, cada um levando consigo as impressões de Ajina. Quando se aproximaram da plantação, ouviram um trabalhador que cantava uma doce canção.

Nessa noite Duane apareceu para jantar. O ar estava tão fresco e agradável, que se sentaram sob as árvores do pátio dos Véus, na penumbra, para tomar o café e conversar.

— Roslyn estava interessada, Duane, no projeto que você e o chefe de Ajina pretendem executar. — Tristan baixou a cabeça para acender o cigarro no fósforo que Isabela lhe oferecia. Quando este se levantou, Roslyn percebeu que Isabela a fixava, mas logo a chama se extinguiu e só pôde ver o vestido branco, na meia escuridão.

— A menos que seja feita alguma coisa em Ajina, aquele povo está fadado a desaparecer. — A ponta vermelha do charuto de Duane apontava para ela. — Aquelas crianças barrigudas mexem com a consciência, não acha, srta. Brant?

— Se se tem uma consciência — respondeu ela.

— E se surpreenderia se soubesse que eu tenho uma?

— Não muito.

— Ora vamos! Espero que não me ponha asas só porque me preocupo com um punhado de crianças famintas.

— Asas não lhe ficam bem, Sr. Hunter. Posso lhe pedir um favor?

— Perfeitamente.

— Tristan me disse que eles não gostam que se dê qualquer coisa às crianças. Nem mesmo balas. Não podemos fazer algo para modificar essa atitude?

— Por quê? Você gostaria de bancar a doce fada e levar-lhes balas e chocolates?

— Não há necessidade de ser sarcástico — disse ela, ouvindo a risada de Isabela.

— Os costumes dessa gente podem lhe parecer estranhos; mas até nos Estados Unidos existem comunidades fechadas que se recusam a aceitar modernismos e que vivem a sua maneira, conseguindo sobreviver. Esse não é o caso de Ajina, mas quando um estrangeiro se aproxima deles, querendo introduzir novos métodos, a palavra-chave é paciência. Noções arcaicas devem ser toleradas até que lentamente possam ser eliminadas.

Deu uma forte aspiração no fumo do charuto, cuja ponta vermelha parecia um sinal de alerta. — Tenha sempre em mente o que eu lhe disse, Roslyn, e não se aventure a ir lá sozinha com as mãos cheias de doces e a cabeça cheia de boas intenções. Aquelas mães não a compreenderiam. Falariam de seus olhos claros e...

— Duane! Francamente! Roslyn é pouco mais que uma criança de bom coração e não entende seus problemas... — Com um espasmo Nanette calou-se, comprimindo o lado esquerdo do peito com as mãos, sem poder respirar.

— O que foi, Nanette? — Num segundo, Duane estava junto dela amparando-a.

Por alguns minutos ela não conseguiu falar, cada inspiração parecendo lhe causar dor. Depois que os assustadores espasmos passaram, ela permitiu que Duane a levantasse nos braços e a conduzisse para dentro do salão. Sob as luzes puderam ver como estava pálida e desfigurada.

— Um pouco de conhaque ajuda — disse Roslyn encaminhando-se para o bar onde ficavam as bebidas e ouvindo Duane dizer que deveriam chamar imediatamente um médico.

— Ligue para minha casa, Tristan, e diga a meu criado, Da-ud que localize o dr. Suleiman e que o mande para cá o mais depressa possível.

— O Dr. Suleiman é um árabe! — objetou Tristan.

— Mas que diabo isso importa? — Duane estava impaciente. — Ele é um ótimo médico e Da-ud será capaz de localizá-lo mais de pressa do que você ou eu. O médico francês mais próximo mora na cidade e levaria uma hora ou mais para chegar aqui.

— Está bem — disse Tristan e correu para o telefone. Roslyn, ajoelhada ao lado de Nanette, chegava-lhe o copo aos lábios tentando fazer com que ela bebesse um pouco. Duane, ajoelhado do outro lado, alheio a Roslyn, dizia-lhe alguma coisa em francês, enquanto acariciava suas frágeis mãos.

Isabela enrolava um lenço de cambraia nos dedos, enfiando-lhe as unhas. Esses movimentos tornaram-se mais rápidos quando viu Roslyn procurando acalmar Duane, dizendo-lhe que não se preocupasse, que Nanette logo estaria bem. Seus olhos se estreitaram quando percebeu seu cabelo claro tão perto da vasta cabeleira escura dele.

Embora a expressão de Duane fosse nova aos olhos de Roslyn, esta não estranhava vê-lo confortando a avó tão carinhosamente. Agindo instintivamente como uma aeromoça treinada e pronta para dar alívio a qualquer pessoa, não titubeou em tirar o colar de pérolas de Nanette e colocar almofadas as suas costas para, levantando-a, facilitar sua respiração.

 

— O médico já vem vindo, ma chère. — Duane sorria reconfortando-a. — É um bom homem e logo fará com que se sinta melhor.

Ela aquiesceu e por um bom tempo ficou olhando-o. Depois olhou para Roslyn, que compreendeu imediatamente que ela queria falar em particular com o neto. Levantou-se e foi para o arco que dava para o pátio dos Véus. A brisa da noite balançava os galhos da frondosa árvore e indistintamente ela ouvia a voz de Duane.

Isabela não mudara de posição, visivelmente querendo ouvir o que conversavam... e Roslyn poderia jurar que ela estava prometendo continuar o trabalho que seu avô começara. O trabalho na plantação, tão longe de Lisboa e Paris...

Logo depois da chegada do dr. Suleiman, Nanette foi carregada por Duane para o quarto. Alguns minutos depois ele reapareceu no salão. Yousef trouxera café e Roslyn estava servindo-o nas lindas xícaras francesas, com Tristan a ajudá-la.

Isabela sentara-se confortavelmente num divã e convidou Duane para se juntar a ela. Ele sentou-se, dando um profundo suspiro.

— O que disse o Dr. Suleiman sobre Nanette? — perguntou ansiosamente Tristan.

— Sabe como são os médicos — respondeu Duane, tomando a seguir um gole de seu café quente. — Não se comprometem até que tenham a certeza de que o paciente está fora de perigo.

— Você está certo de que é um bom médico? — insistiu Tristan.

Duane olhou-o sério. — Eu não colocaria Nanette ou qualquer outra pessoa nas mãos de um incompetente — disse secamente. — Acontece que considero muito esse homem e, para seu conhecimento, estudou na Argélia e na Inglaterra, onde se especializou. Poderia ter se fixado numa cidade grande e teria com isso ganho muito dinheiro; no entanto, preferiu clinicar em El Kadia. Já o chamei inúmeras vezes para atender a acidentes na plantação e posso lhe dizer que seus métodos são modernos e seu trabalho magnífico.

— Estava apenas perguntando. — Tristan pôs a mão no ombro do primo. — Estamos ambos preocupados, mon cher, o que é compreensível, pois quem mais poderia ocupar o lugar de Nanette em nossos corações?

Roslyn tomou um gole do seu café, que não lhe aqueceu o corpo, que se tornara estranhamente frio ao ouvir as palavras de Tristan.

Isabela, as lindas pernas cruzadas, estudava Duane com olhos lânguidos. Percebeu quando ela fitava seu cabelo negro, descendo depois para a face, observando o nariz aquilino, os lábios contraídos e o queixo másculo. O que estaria ela pensando... que seria uma dura tarefa conseguir que tal homem quebrasse a promessa feita a Nanette?

Subitamente, sem que lhe fossem ouvidos os passos nos ladrilhos do corredor, um homem entrou na sala. Era uma esplêndida figura e embora usando roupas árabes, não deixava dúvidas quanto a sua origem européia. Expressão calma e simpática, revelando paciência e bom humor, devia ter uns quarenta anos. Suas mãos eram finas e delicadas como as de uma mulher.

— Madame Gerard agora está dormindo — disse em inglês. — Posso garantir a vocês todos que não há motivo para preocupações... Quando uma pessoa passa dos setenta, o coração começa a dar sinais de cansaço. Prescrevi-lhe duas ou três semanas de repouso absoluto e sugiro que tomem uma enfermeira para cuidar dela.

— O senhor nos arranjaria uma, Dr. Suleiman? — perguntou Duane.

— Naturalmente, Sr. Hunter, se o senhor assim deseja.

— Creio que seria prudente que madame fosse examinada por um especialista — disse Tristan. — Não que eu esteja duvidando de sua palavra, Dr. Suleiman, mas minha avó parecia extremamente fatigada e sua respiração era péssima.

— Se isso lhe traz maior tranqüilidade, por favor, chame um. — O Dr. Suleiman sorriu amistosamente. — Contudo, repito que madame está numa idade em que o coração começa a enfraquecer e além disso notei sinais de anemia, que gostaria de examinar mais detalhadamente daqui a alguns dias.

— Naturalmente queremos que continue cuidando dela, Dr. Suleiman — disse Duane categórico. — Essa anemia pode influir na falta de ar? E a dor?

— Dores nessa região não querem dizer rigorosamente que o órgão esteja afetado, Sr. Hunter. Madame Gerard é, aliás, muito forte para a idade que tem, isso posso lhe assegurar. Mas o clima aqui desgasta as constituições européias, e agora o que ela está precisando é se refazer da anemia e repousar. Creio que serei capaz de pô-la bem em pouco tempo... se é que me permitem.

— Permitimos e agradecemos, doutor. — Duane sorriu descontraído, passando a mão pelos cabelos, — Meu Deus, que alívio! O senhor não imagina tudo o que pensei durante esta última hora!

O simpático doutor sorriu, inclinando ligeiramente a cabeça e virou-se aceitando uma xícara de café que Roslyn lhe oferecia. — Obrigado.

— Se Madame Gerard não está seriamente doente, eu poderia olhar por ela?

— Você não é enfermeira, chérie — exclamou Tristan.

— Aeromoças têm que ser capazes de cuidar de doentes e creio que Nanette preferiria ver uma amiga por perto e não uma estranha — então olhou para Duane —, a menos que você prefira outra pessoa...

— Não tenho que opinar nessa questão — disse secamente. — Se Tristan quer você e se o Dr. Suleiman acha que você está qualificada, sou voto vencido.

— As qualificações exigidas são muito simples — disse o Dr. Suleiman, observando Roslyn com olhos curiosos e atentos. — Madame deve permanecer no leito e creio que será agradável para ela ser atendida por alguém tão paciente, encantadora e de boa vontade.

Roslyn sentiu-se corar ante o elogio. Duane olhava-a com seus frios olhos verdes e Tristan pós um braço em seus ombros.

— A srta. Brant teve uma amnésia — informou ao doutor. — Tem sido muito corajosa a esse respeito.

— Amnésia é um fato muito curioso sob o ponto de vista psicológico. — O sorriso dele era uma mistura de perspicácia e simpatia. — O sr. Hunter e eu estivemos discutindo um caso há algum tempo. Um de seus trabalhadores sofreu um forte golpe na cabeça e perdeu a memória Mas apenas por quarenta e oito horas. Há quanto tempo está com amnésia, srta. Brant?

Ela lhe disse e ele ficou pensativo.

— Amnésia numa mulher sensível demora mais do que num homem forte e extrovertido. Também é possível, srta. Brant, que em seu passado haja alguma coisa de que não queira se lembrar...

— 0 senhor não sabe — interrompeu-o Tristan —, mas meu irmão, que era noivo da srta. Brant, morreu no desastre de avião em que ela se feriu.

O dr. Suleiman a estudava enquanto tomava o café e depois lhe entregou a xícara.

— Sim, sua mente pode demorar algum tempo para se refazer do choque... possivelmente eu diria que um outro choque poderá lhe devolver a memória.

— O senhor não está querendo dizer um outro desastre?! — perguntou Roslyn ansiosa.

— Naturalmente que não! Refiro-me a um outro choque emocional. Na grande maioria das mulheres, as emoções são sensíveis como cordas de violino... Sob muita tensão, desafinam ou se rompem. Quando isso acontece, srta. Brant, deve-se encarar os fatos e enfrentar a tarefa de se lembrar das coisas, mesmo as que inconscientemente não deseja. — Após consultar o relógio de pulso, desculpou-se: — Agora, se me dão licença, devo deixá-los.

Virou-se para Tristan. — De qualquer modo, chame um especialista para examinar madame Gerard. Mas creio que ele concordara com minha opinião.

— Tenho certeza disso, Tristan. — Enquanto Duane falava, Roslyn percebeu uma leve irritação no olhar que dirigia ao primo. — O dr. Suleiman geralmente não erra em seus diagnósticos!

O médico e ele despediram-se e saíram. Roslyn virou-se para dizer boa-noite a Isabela, mas esta passou rapidamente por ela, saindo da sala. Tristan captou seu olhar desapontado e, encolhendo os ombros, disse:

— Isabela gosta de ser a prima-dona dos dramas. Não deve ter gostado de que esta noite Duane se dedicasse a outra mulher.

— Ela é muito egoísta — observou calmamente —, sabendo o quanto vocês dois amam Nanette... — As palavras morreram-lhe na garganta enquanto começava a juntar as xícaras de café na bandeja.

Alguns dias depois Nanette já estava se sentindo muito melhor. Tinha confiança no dr. Suleiman e rejeitou a idéia de que um especialista fosse chamado para examiná-la.

— Meu velho coração está um pouco cansado depois de setenta e três anos de viver e amar. O médico que tenho sabe o que faz, Tristan.

Também não se incomodava com as injeções, que eram parte do tratamento, mas depois de cada uma delas resmungava um pouco.

— Logo estarei igualzinha a um paliteiro! — disse ao Dr. Suleiman uma manhã, quando passava o algodão com álcool em seu braço.

— Vamos, o que é isso? Sabe que está tirando proveito do tratamento? — Sorriu. — Minhas injeções são um tônico de beleza. Repare como já fizeram voltar o brilho de seus olhos.

— Sim, o senhor é inteligente e brincalhão — retorquiu. — Por que está trabalhando aqui no Saara quando poderia estar fazendo fortuna em outro lugar?

— Porque sou árabe, madame. Há muito trabalho a ser feito que homens doentes não podem fazer.

— Outro pioneiro! — resmungou ela. — Duane lhe falou a respeito de uma clínica que quer fundar e colocar sob sua direção?

Ele inclinou a cabeça, afirmativamente.

— Vai aceitar, então?

— Já viu um cachorro rejeitar um pedaço de carne? — disse de bom humor. — Sou profundamente grato a ambos. Sei que esta oportunidade me é oferecida por compreensão e não por caridade.

— Duane é muito orgulhoso para oferecer caridade a quem quer que seja, Ben Suleiman. Posso entender por que vocês dois são amigos. Ambos escolheram o que querem fazer na vida e são ambos fortes e decididos a colocar o trabalho acima de tudo. Tais homens são sempre um tanto assustadores, não concorda, Roslyn?

Roslyn estava próxima. — Não cabe a uma enfermeira dar seu parecer sobre um médico — disse sorrindo.

— Sou assustador, srta. Brant?

— Assustador é pensar que o senhor tem a responsabilidade de muitas vidas. Todo doente depende dos conhecimentos e decisões de um médico.

— E a senhorita é muito capaz nos cuidados a um doente.

— Obrigada, doutor. — Usava um avental branco, e parecia muito eficiente. — Nanette tem sido tão boa para mim, que fico feliz em poder fazer alguma coisa por ela.

— Mon Dieu, como as inglesas são independentes! — Nanette levantou as mãos num gesto de fingida exasperação. — Esta menina está feliz agora como o senhor vê, por que está me pagando a acolhida que lhe ofereci aqui em casa!

— Faça o favor de não ficar exaltada, Nanette — ralhou sorrindo Roslyn e ajeitando seus travesseiros. — Ficará cansada e não parecerá tão bonita e bem disposta para suas visitas.

Mesmo na cama, Nanette não descuidava de sua aparência e, depois da saída do dr. Suleiman, Roslyn arranjou seus cabelos e fez-lhe uma leve maquilagem.

— Se eu parecer pálida ou abatida, meus netos se preocupam. — Examinava sua aparência num espelho que Roslyn lhe dera. — Esta camisola é muito chique, não? Quando me casei, usei uma de seda azul, que era a cor favorita de meu marido. Costumava dizer que meus olhos lhe lembravam o céu do deserto.

— São de uma cor linda — assegurou-lhe Roslyn.

— Os homens gostam de mulheres que têm olhos bonitos. Os seus são extraordinariamente fascinantes, petite. São verdadeiramente lindos.

— São claros como os de uma feiticeira — disse Roslyn rindo. — Tenho que tomar cuidado, pois poderei lançar feitiços com eles.

Uma discreta batida na porta seguiu-se às palavras dela, e entrou aquele que já a chamara de feiticeira.

Embora o quarto de Nanette estivesse sempre cheio de flores, trazia um vaso de flores e também alguma coisa volumosa numa bolsa. Avançou até a beira da cama de Nanette e abaixou-se para beijar-lhe o rosto.

— Está muito elegante e com um perfume delicioso — disse brincando.

— Obrigada pelas flores, Duane, e sente-se. Você é muito alto e ficarei com dor no pescoço de olhar para você...

Duane sentou-se numa poltroninha clara que rangeu perigosamente sob seu peso. — Sinto-me como um touro num boudoir — comentou sorrindo quando Roslyn lhe tomou o vaso das mãos. — Como está se comportando sua paciente, hein, enfermeira? Está lhe dando muito trabalho?

— Nenhum de que eu possa me queixar. — Roslyn escondeu o rosto, fingindo aspirar o perfume das flores, para esconder seu divertimento ante aquela figura enorme e nada de acordo com a delicada mobília francesa daquele quarto. Ficaria muito mais à vontade entre as peles de animais selvagens de sua casa de três séculos.

— A cada dia vejo um progresso em você, Nanette. O dr. Suleiman soube direitinho o que fazer.

— Gosto muito dele, exceto quando espeta agulhas em meu braço. — Olhou inquiridoramente para a bolsa que Duane carregava. — O que tem você aí, outro presente para mim.?

Você é francesa até a raiz dos cabelos — caçoou ele. — Poderia ser qualquer coisa, mas você já acha que é um presente e que é para você!

— Naturalmente que é! Bem... poderia ser um presente para minha enfermeira. Uma caixa de bombons, talvez?

Lançando um rápido olhar para Roslyn, tirou de dentro da bolsa a caixa de música, que parecera tão deslocada em sua casa, quando Roslyn a vira.

Colocou-a em cima da cama dela. — Para você, belle femme — disse calmamente. — Achei que poderia distraí-la.

Nanette tocou a figura da dançarina e subitamente lágrimas vieram aos seus olhos. — Não, Duane; você sempre gostou tanto da caixinha de música. Pertenceu a Celeste... a sua querida mãe. Nunca sonharia em tirar isso de você.

— Quero que você a conserve, Nanette. Você a deu a mamãe. Ainda toca e a moça ainda dança. Veja, vou fazê-la funcionar para você. — Assim o fez e a música começou, enquanto a boneca dava passinhos graciosos.

Roslyn olhava fascinada a figurinha, mas, quando olhou para Duane, ficou chocada com a expressão de seu rosto... era uma expressão de dolorosa raiva... Um raio de sol incidia sobre ele, que permaneceu ali, imóvel, alto e forte, lutando contra a dor... pelo menos foi o que Roslyn pensou.

Quando a suave musiquinha terminou, virou-se para Nanette. — É um brinquedo de mulher e quero que o conserve.

— Mas, chéri, eu sei o quanto esta lembrança de sua querida mãe significa para você... — Então, vendo o rosto dele, mudou de tática, dizendo que adoraria conservá-lo e que ele era um encanto por lhe ter dado.

— Venha — disse batendo na cama —, venha conversar comigo. Fale-me da plantação e da colheita que poderemos esperar este ano.

Roslyn deixou-os sozinhos para que conversassem à vontade. Desceu e passando pelo salão onde Isabela e Tristan ensaiavam o último ato da ópera, saiu para o pátio dos Véus. Roslyn prestava atenção à música, sentada sob a árvore.

Quando Nanette se recuperasse totalmente, sabia que era chegada a hora de fazer suas malas e voltar para a Inglaterra. Sentia que devia ir embora...

De fugir, dizia uma voz dentro dela. Sim, você está fugindo e sabe disso.

Queria negar, mas era verdade. Queria fugir de Dar al Amra, porque sabia que estava começando a emergir de sua amnésia e sentia que nunca amara Armand Gerard. O instinto dizia-lhe desde o início que nunca o amara... e, quando recobrasse a memória, não teria coragem de encarar Nanette, que confiara nela, que a estimava, por estar ligada a seu neto.

Roslyn circunvagou os olhos pelo pátio dos Véus. Ali, pela primeira vez em sua vida, fizera parte de uma família e lhe custaria muito deixá-la. Nunca mais ouvir nas plantações os trabalhadores cantando as canções dolentes. Nunca mais ver os pores-do-sol que tingiam o céu de incríveis cores, nem a Lua cheia levantando-se por entre as estrelas como uma enorme bola rosada...

Subitamente seus pensamentos se tornaram insuportáveis e ela se pôs de pé num salto. Levantando a vista deu com Duane a olhá-la e, magnetizada pelos seus verdes olhos, mais do que nunca desejou fugir dali.

— Queria agradecer-lhe pelo carinho com que tem tratado de Nanette — disse ele.

— Nada tem a agradecer — respondeu, e inconscientemente deu uns passos para trás, afastando-se dele e encontrando finalmente atrás de si o tronco de uma árvore.

— Alguma coisa a assustou?

Ela moveu a cabeça negando.

— Você deu um salto como se tivesse visto uma cobra perto de seu sapato. — Aproximou-se dela. — Tem feito muito por Nanette durante estas duas últimas semanas; está cansada e nervosa?

— Não... Estava pensando, quando de repente me lembrei de que está na hora de Nanette tomar alguma coisa. — Moveu-se, mas ele lhe bloqueava a passagem. Voltou a encostar-se na árvore.

— Está ansiosa para entrar, não? Desde nossa pequena aventura no lago de Temcina tem me evitado cada vez que apareço por aqui. Por quê? De que tem medo? De que mais cedo ou mais tarde seja descoberto que passamos a noite no lago... num barracão de barcos?

— Não! — A palavra lhe escapara dos lábios e como soasse muito desesperada, forçou um sorriso, mostrando a árvore. — Nunca conte um segredo junto de uma árvore. Traz encrencas na certa...

— Verdade? — Seus lábios se abriram num largo sorriso e logo depois suas mãos morenas estavam no tronco da árvore, uma de cada lado de sua cabeça, aprisionando-a como já estivera uma vez junto ao lago.

— Você se mete em encrencas muito facilmente...

— É... assim parece... — concordou ela, mas sem o espírito combativo de sempre.

O ar nessa manhã estava quente e pesado e ela não se sentia bem. Estava passiva e sem resistência para falar com ele.

— O que há? Esteve comendo alguma fruta do deserto sem lhe dar primeiro uma boa lavada?

Ela sorriu sem muita vontade. — O ar esta manhã está muito pesado. Por falar em frutas, você poderia apanhar algumas para que eu prepare o suco de Nanette.

Apanhou-as e trouxe-as para ela. — Hoje poderá vir uma tempestade de areia — disse ele. — O ar sempre fica assim antes dela chegar.

— E quando virá? — perguntou ansiosa. — São terríveis, não?

— Quando uma tempestade está no auge, nada se pode ver no deserto. Mas você estará perfeitamente a salvo aqui em Dar al Amra. Além disso, a tempestade ainda demora a chegar.

— Espero que não preocupe Nanette.

— Voltarei mais tarde. — Dirigiu-se para o portãozinho de ferro e abriu-o. — Procuraremos distraí-la enquanto durar a tempestade. Por falar nisso, não sairia hoje de casa se fosse você.

— Está bem — disse distraída, enquanto o observava fechar o portão e sumir, deixando atrás de si um grande silêncio. Foi quando Roslyn percebeu que a música havia cessado. Virou-se para entrar e... parada num dos arcos estava Isabela.

— Como você anda ocupada esses dias, Roslyn! — Estava apoiada numa das colunas, com as mãos atrás das costas, protegendo-se do frio do mármore. — Vejo que esteve apanhando laranjas para sua paciente.

— Sim — disse Roslyn, podendo ouvir as batidas descompassadas e nervosas de seu coração enquanto encarava a outra moça. Se fazia muito tempo que ela estava ali, certamente teria ouvido o que Duane dissera.

— Sou uma inútil com doentes. — A voz de Isabela era melosa. — Mas estive pensando se não poderia ser útil numa coisa; você parece tão cansada, coitadinha, que resolvi levá-la a um passeio hoje à tarde. Tomar um pouco de ar lhe fará bem.

Roslyn olhava a cantora com ar estupefato. Poderia esperar tudo, menos a abertura de uma amizade.

— Muito simpático de sua parte sugerir um passeio, Isabela; mas Nanette fica aflita se eu a deixo por muito tempo.

— Você leva tudo muito a sério — disse Isabela, fazendo uma careta. — Pois bem, se não quer sair comigo para um passeio, então não falemos mais nisso. Na verdade, Tristan pretende trabalhar o dia todo.

Roslyn desejava muito dar uma volta a cavalo durante a tarde, a despeito da tempestade que se aproximava; num impulso resolveu que daria só uma voltinha. — Estou com uma ligeira dor de cabeça — disse.

Isabela olhou-a curiosa. — Talvez seja o ferimento na cabeça que esteja lhe incomodando.

— Talvez. — Roslyn forçou um sorriso. — Meia hora de ar livre pelo deserto certamente a espantará. Mas não devemos ir longe, por que...

— Já sei! Por causa de Nanette. — Logo depois Isabela se afastava ligeiro, ainda falando com ela por cima do ombro. — Gostaria muito de dar esse passeio com você. Muito mesmo!

Foi-se, e Roslyn ficou sozinha no corredor... lembrando-se dos perigosos olhos verdes de Duane quando a alertou para que não saísse de casa à tarde. Sentia-se tão cansada e o ar estava tão pesado, que lhe foi penoso andar até a cozinha.

— Yousef— perguntou de repente —, quando virá a tempestade?

Ficou imóvel, como que escutando o sibilar do vento na areia. — Não ainda — respondeu —, talvez esta tarde.

 

Criados andavam pela casa toda, percorrendo-a e verificando se todas as portas e janelas estavam bem fechadas, quando Roslyn desceu para encontrar-se com Isabela. Não dissera a Nanette que iam sair para um passeio. Com a tempestade que se aproximava, certamente ela ficaria apreensiva e não descansaria.

Isabela já estava sentada no carro, usando um conjunto de seda e um chapéu de palha com um lenço amarrando a copa, cujas pontas caíam graciosamente pela aba. Abriu a porta para Roslyn que se sentou ao lado dela, também usando um chapéu que lhe sombreava os olhos e um vestido azul muito jovial.

— Que ar mais pesado! Nunca vi isto assim antes.

Isabela deu partida no carro e, passando pelo arco mourisco da entrada, seguiu pela plantação, alcançando depois a estrada do deserto. Quando passaram pela casa secular de Duane, Isabela deu uma olhada, procurando ver uma figura alta e imponente, mas só o que viu foi um rapazinho uniformizado de branco. Da-ud, sem dúvida, pensou Roslyn.

— Realmente não sei como Duane pode viver aqui entre todas essas árvores — comentou Isabela. — A noite deve ser um inferno com o barulho de sapos e outros bichos.

— Ele deve estar acostumado com árvores e bichos — disse Roslyn — depois de tantos anos na selva...

— Viver na selva é um hábito que ele deve esquecer. — Isabela deu uma buzinada para alertar um trabalhador que atravessava despreocupado a estrada. — Hábitos podem ser mudados. Um homem pode ganhar dinheiro, tanto sentado atrás de uma escrivaninha quanto percorrendo uma plantação.

— Talvez ele seja um daqueles que gostam de estar entre coisas que crescem. Não consigo imaginar o Sr. Hunter sentado num ambiente fechado. Acho que essa vida o sufocaria.

Isabela não respondeu a esse comentário de Roslyn, mas pisou o acelerador e o velocímetro acusava alta velocidade. O carro voava pela estrada e as raras moitas pareciam manchas coloridas. O céu tinha uma tonalidade tão brilhante que até incomodava a vista.

— Por que se refere a Duane de maneira tão formal? — perguntou Isabela. — Garanto que nem sempre existe tal formalidade entre vocês dois.

— Na verdade existe — respondeu Roslyn imediatamente —, na verdade nunca nos comportamos como amigos.

— E como se comportaram, como amantes?

Por um momento Roslyn não acreditou no que ouvira. Olhou surpresa para Isabela, cujo perfil se delineava duro sob o chapéu de palha encimado pelo lenço.

— Você me ouviu — disse ela com voz cortante. — Foi o que ouvi Duane dizer esta manhã no pátio. Você estava com medo, disse ele, que alguém viesse a saber que vocês passaram a noite juntos no lago de Temcina. Por que com medo? Porque Tristan pensa que você é uma inocente e Nanette acredita que você amava seu querido Armand?

— Pare com isso! — exclamou Roslyn. — Não é verdade o que está pensando! Duane e eu fomos surpreendidos por uma tempestade na beira do lago e por um deslizamento de terra. Tivemos que nos refugiar no barracão de barcos até que amanhecesse, mas lhe afirmo que não houve nada entre nós.

— E por que estavam na praia juntos? — As mãos de Isabela se agarravam ao volante do carro, que sacolejava ao passar pelas pedras da estrada.

— Não estávamos juntos... não a princípio. — Roslyn tinha que segurar o chapéu para que não voasse, e gritar para ser ouvida. — Fui dar uma volta e parece que ele teve a mesma idéia, pois o lago era convidativo ao luar daquela noite. Eu só desejava fugir dele e ele não desejava a responsabilidade de cuidar de mim durante a noite. Mas a trilha que levava ao hotel simplesmente desapareceu e tivemos de esperar pelo amanhecer para podermos voltar.

— E por que conservaram essa pequena aventura em segredos?

Era uma pergunta pertinente, mas Roslyn não estava com disposição para analisar sentimentos... além disso os dela pareciam não importar muito naquela inquirição.

— Duane quis assim. Foi idéia dele nada dizer. Creio que sabia que você tiraria conclusões apressadas.

— Essas conclusões qualquer um tiraria. À noite todos os gatos são pardos... e ronronam e se acariciam... e presumo que no barracão de barcos era bem escuro...

— Alguns arranham, srta. Fernão. — Roslyn mal podia conter a raiva. — Considero um insulto você supor que Duane fizesse amor com uma moça só porque ficou sozinho com ela durante algumas horas; ou que eu permitisse! Tenho a certeza de que ele resiste à maioria das mulheres, mesmo às mais bonitas.

Atingira um ponto nevrálgico. Isabela lançou-lhe um olhar furioso, distraindo-se do caminho e fazendo com que o carro caísse num buraco maior, causando um solavanco forte.

— Agora já sabe porque eu a trouxe para passear — disse sarcasticamente — e podemos voltar para casa. Além disso o céu está ameaçador e de uma cor esquisita.

Um brilho açafrão no céu substituirá o azul e o calor era cada vez mais opressivo agora que Isabela diminuíra a velocidade.

— Talvez tenhamos que partilhar esta tempestade juntas — caçoou Isabela.

— Não creio que nenhuma das duas gostasse disso, não?

Roslyn estava tensa e só desejava pegar a direção do carro e fazer a volta para Dar al Amra. O deserto era imenso, destacando-se ao longe as montanhas de Gebel d'Oro, que pareciam incendiadas numa coloração de fogo, contra o céu tenebroso.

— Sobre o que conversaram naquela noite? — prosseguiu a inquiridora.

— Sobre seu pai e o lugar em Kent onde o Sr. Hunter agora vive.

— Se vocês apanharam a chuvarada, deviam estar encharcados!

— E estávamos. — A exasperação de Roslyn chegara ao auge. — Diga-me, Isabela, estamos voltando ao local do crime?

Roslyn tinha senso de humor, mas o mesmo não acontecia à sua acompanhante. Na estrada vazia Isabela pôde fazer a manobra sem problemas. Mas, enquanto a fazia, o lenço soltou-se do chapéu, cobrindo-lhe os olhos. Imediatamente ela o puxou e ele voou, indo cair entre a areia e as pedras do caminho, a alguns metros do carro. Isabela freou.

— Você se importa de ir apanhá-lo para mim? — perguntou a Roslyn. — Sou sentimentalmente muito apegada a esse lenço.

Roslyn abriu a porta e saltou para a estrada. Correu em direção ao lenço que parecia uma cobra colorida na estrada poeirenta. Quando se abaixou para pegá-lo ouviu o carro partindo. Virou-se e olhou... mal acreditando no que seus olhos viam: o carro afastando-se numa densa nuvem de poeira.

— Isabela! — gritou.

Estava certa de que o carro iria parar e Isabela daria uma marcha à ré. Mas isso não aconteceu. O carro se distanciava mais e mais, e Roslyn, atônita e sem fôlego, via-o desaparecer na distância e na poeira.

Era inacreditável que Isabela tivesse feito isso. Deixá-la naquela estrada do deserto para andar todas aquelas milhas até Dar al Amra. Uma raiva impotente misturada com angústia fizeram com que as lágrimas lhe assomassem aos olhos e sua garganta se apertasse. Que simplória tinha sido em confiar em Isabela... não tinha sido avisada por Tristan que pessoas como ela poderiam ser perigosamente ciumentas?

Oh! Certamente ela voltaria para apanhá-la. Mesmo uma criatura como ela não teria coragem de abandonar uma pessoa a tantas milhas de casa, ainda mais com a tempestade se aproximando.

Roslyn mordeu os lábios para se controlar, esperando a cada minuto ver o carro voltando. O lenço pendia de sua mão, como testemunha muda de seu drama. Suas sandálias não protegiam seus pés o suficiente do calor das pedras. Decidiu que seria mais fácil andar pela areia, mas nela seus pés afundavam e a areia também era quente.

Procurou calcular quanto tempo levaria para chegar a pé até a plantação. Ela e aquela víbora tinham rodado pela estrada durante uns quarenta minutos e isso significava que estava muito longe de casa. Certamente a noite já teria caído quando chegasse e, pela aparência do céu, a tempestade não demoraria.

Um vapor escuro elevava-se da terra como uma nuvem obscurecendo o sol. O vento tornava a temperatura menos alta e Roslyn dava graças a Deus por isso. Era melhor morrer soterrada do que queimada.

"O que será que vão dizer em Dar al Amra quando Isabela voltar sem mim?", pensava Roslyn. Nada! Ninguém sabia que saíra com ela! Nada dissera a Nanette e Tristan fechara-se na sala para trabalhar em sua ópera. Não o tinha visto nesta manhã. E agradeceria aos deuses se não tivesse visto Duane. A conversa que tiveram no pátio tinha sido a causa de seus problemas atuais.

Seu coração batia apavorado, quando ela se imobilizou, ouvindo alguma coisa... o barulho ao longe da areia erguendo-se com o vento que agora soprava violento, como um gigante furioso.

Estremeceu de medo, com o coração na boca, enquanto corria pela estrada. Nisto viu um veículo se aproximando, envolto numa nuvem de poeira.

Era um Renault... ousou pensar Roslyn, cujo pavor não a deixava raciocinar direito.

— Ei! — gritou, levantando um braço e gesticulando freneticamente. — Por favor... me ajude... me dê uma carona...

O carro parou e Roslyn correu para junto dele...

— Mas que diabo — disse o motorista — está você fazendo aqui sozinha a esta hora?

Roslyn abriu desmesuradamente os olhos quando viu quem a fitava não menos espantado.

— Oh!É você!

— Sim — caçoou ele —, sou eu! — Abriu a porta para que ela subisse. Rapidamente acomodou-se, pensando por que tinha o destino que persegui-la. De todas as pessoas de Dar al Amra, tinha justamente que ser Duane o fadado a encontrá-la em sua desventura.

— Bem — disse ele com os braços cruzados sobre o volante —, estou esperando uma explicação! A senhorita...

— Sua namorada me deixou aqui abandonada no meio deste deserto!

— Minha o quê? — Olhava-a como pensando que ela estivesse apatetada e sem dizer coisa com coisa.

— Foi uma tolice minha, concordo, em sair com Isabela. — Roslyn agora estava mais controlada, mas ainda furiosa. — Ela deve ser uma neurótica e louca, pois pensa que nós... você e eu, passamos a noite juntos no lago de Temcina nos divertindo...

— Então é isso! — Reclinou-se no encosto e calmamente acendeu um charuto. — Isabela nos ouviu conversando esta manhã, não?

Roslyn fez que sim. Sua garganta estava seca e era difícil falar.

— O que há? — Seus dedos morenos tiraram-lhe o chapéu e tocaram-lhe a testa úmida. — Menina, quanto tempo você permaneceu sob esse sol forte?

— Mas ou menos meia hora — respondeu com dificuldade. — Estou com tanta sede...

Imediatamente ele virou-se para o assento traseiro do carro e ela ouviu o maravilhoso som da água enchendo uma caneca que lhe foi apresentada. Bebeu sofregamente, sentindo o frescor aliviar-lhe a secura da garganta. Um pouco dela escorreu-lhe pelo queixo e ela sentiu que molhava seu pescoço. Uma delícia!

— Estava morta de sede! — Sorriu-lhe agradecida enquanto lhe devolvia a caneca. — Obrigada!

Duane certificou-se de que a garrafa estava bem tampada e tornou a colocá-la no banco de trás. Depois abriu o porta-luvas e tirou duas limas amarelinhas e apetitosas. Deixou-as cair no colo dela.

— A água mata a sede, mas a secura ainda fica. Vamos, chupe estas limas; são o melhor remédio para a garganta seca pelo sol do deserto.

Obedeceu imediatamente e achou-as suculentas e acres.

— Deliciosas! — disse. — Um maná do céu!

Duane sorriu-lhe, vendo-a através da fumaça do charuto, considerando-a uma criança travessa. Deu a partida no carro, mas não o pôs em movimento.

— Vai ser uma tempestade e tanto! — disse Duane calmamente. — Isabela sabia disso?

Roslyn enxugou os lábios molhados de suco.

— Não creio que tivesse pensado nisso. O lenço dela, este aqui, voou do carro e ela me pediu que o apanhasse. Eu... eu nunca pensei que ela fosse capaz de me abandonar no meio do deserto!

— Ela é uma neurótica. — Duane abriu a janela de seu lado. — Fascinante e encantadora, mas não tem senso de responsabilidade. Eu sabia que Isabela era assim desde o momento em que a encontrei. Orgulhosa demais para olhar a seu redor, totalmente preocupada consigo mesma, inescrupulosa até a raiz dos cabelos. Tais pessoas não se importam em ferir ou magoar as outras. Seus próprios desejos é o que importa.

Tirou uma baforada de fumaça e, quando Roslyn olhou para ele, surpreendeu-se com o que viu. Seu rosto era pétreo, seu olhar duro e os olhos fixos num ponto qualquer revelavam que ele sofria, recordando alguma coisa do passado.

— Minha mãe era como Isabela — disse por fim, tranqüilamente.

— Tão adorável de se olhar... e tão egoísta ao se conhecer...

O que ele havia dito era tão inesperado que Roslyn só atinou com o significado alguns segundos depois. Quando o carro se pôs em movimento é que, colocando os pensamentos em ordem, reconheceu a verdade.

A mulher que tão duramente ferira Duane tinha sido sua própria mãe! A adorável Celeste, a filha querida a quem Nanette se referia com tanto amor! Então era ela a mulher sobre quem ele se recusava a falar, para não magoar Nanette, a quem ele adorava!

— Minha mãe abandonou meu pai quando eu ainda era um garotinho — prosseguiu. — Aborreceu-se de meu pai e fugiu de nossa casa na selva. Fugiu com um brasileiro muito rico, que possuía uma enorme fazenda de café. Foram para o Peru, onde, alguns dias depois, morreram num terremoto. Meu pai nunca mais se recuperou do choque. Sempre acreditou que se tivesse ido atrás dela, talvez a tivesse convencido a voltar para casa com ele. Eu duvido. Eu era apenas uma criança e a amava porque era minha mãe; mas testemunhei as brigas e reconciliações e todos os sofrimentos que causou a meu pai.

Houve um pequeno momento de silêncio, que Roslyn não ousava quebrar.

— E ainda houve outros homens além do brasileiro — acrescentou Duane penosamente. — Coisas que meu pai perdoava, pois sabia que tinha errado ao se casar com Celeste Gerard. Estava a ponto de abandonar seu trabalho, quando apareceu esse brasileiro. Lembro-me dele, mas esqueci de todos os outros. Era igualzinho a ela; o tipo com que deveria ter se casado... não com um plantador. Não com um homem que precisava... bem, de uma diferente espécie de vida... uma vida perto da natureza.

Silenciou e Roslyn só ouvia o zunir do vento, enquanto tudo ao redor escurecia. Roslyn sentiu areia nos lábios e alguns grãos grudaram em sua testa molhada.

— Sinto muito, Duane. — Foi só o que conseguiu dizer. O que mais poderia ser dito a um homem que praticamente perdera a mãe duas vezes? A primeira vendo-a abandonar o lar e logo depois sabendo-a morta?

— Não pretendo assustá-la, mas... — Era obrigado a gritar para se fazer ouvir por causa do vento e grande quantidade de areia era jogada de encontro aos vidros do carro — acho que estamos indo em direção ao centro da tempestade...

— Não estou assustada... não agora. — Isso estranhamente era verdade, embora o barulho do vento parecesse uma porção de gatos miando ao mesmo tempo. Sentiu que Duane a fitava e virou-se para ele. Encontrou um sorriso bem-humorado. Retribuiu-lhe o sorriso, pois agora compreendia o que fizera com que aquele homem parecesse duro e sem sentimentos.

— Parece que estamos destinados a passar tempestades juntos — disse rindo.

— Não sei se suportaria enfrentar esta sozinha. — Estremeceu só em pensar. — Graças a Deus você apareceu no momento preciso!

— Tive alguns negócios para ver em Ajina... — Repentinamente, uma densa nuvem de areia se abateu sobre o carro, tirando-lhes completamente a visão. Passado o primeiro susto, isso se repetiu várias vezes, obscurecendo completamente o pára-brisa. Andavam dentro de uma impenetrável neblina de areia. A cada minuto o vento tornava-se mais violento! De repente uma mão gigantesca pareceu levantar o carro e atirá-lo fora da estrada. Duane caiu sobre a direção e Roslyn foi jogada de encontro ao painel.

Deu um grito quando sua cabeça bateu em alguma coisa dura. Sentiu-se nauseada e depois deixou-se levar por uma confortadora escuridão e calmo silêncio.

Enquanto isso, Duane lutava desesperadamente para tornar a pôr o carro de volta no leito da estrada. Tudo se passara muito rapidamente.

Sentiu um poderoso braço sustentando-a e alguém gentilmente molhando sua testa ferida. Vagarosamente abriu os olhos, encontrando os de Duane fitando-a ansioso.

— Onde... onde estamos? — perguntou tonta. — Tivemos um acidente?

Ele balançou a cabeça, enquanto lhe levava aos lábios a caneca com água para que bebesse.

— Isso... assim — murmurou ele. — Está se sentindo um pouco melhor?

Ela assentiu, admirada da gentileza dele, coisa que nunca vira antes. — Sinto... sinto como se tivesse levado uma pancada — disse, ainda muito tonta.

— E levou, minha querida. Foi uma sorte ter atingido sua testa e não seus olhos.

— Ai... — Moveu vagarosamente a cabeça apoiada no ombro de Duane. — O que é esse barulho? É na minha cabeça?

— Não, está tudo bem, não se preocupe. — Seus braços a aconchegaram mais, enquanto ondas de areia cobriam o carro. — Tempestades de areia fazem muito barulho, mas estamos a salvo aqui dentro e juntos.

O rugir do vento aumentava e apavorada ela fechou os olhos e escondeu o rosto no ombro dele, não querendo ver a escuridão lá fora e temendo que tudo acontecesse de novo. Enterrou as unhas nele, sem se dar conta disso. Tudo o que sabia era que Duane estava ali com ela e que era real e sólido. Por isso se agarrava a ele. Rompendo a escuridão de sua mente, o passado voltou de chofre e ela sentiu a mesma dor nos olhos que se sente quando é acesa uma luz forte num quarto escuro.

Depois de algum tempo, sentiu uma mão levantando-lhe o rosto. — Duane — murmurou.

— Sim, minha querida. — Sua mão a acariciava gentilmente e ela foi se acalmando. — O que é que você quer me dizer?

— Duane... — com voz decidida acrescentou: — Eu não sou Roslyn Brant. Nunca fui!

— Você é Juliet, naturalmente. Juliet Grey.

— Sim. Todos pensaram que eu era Roslyn por causa do anel, e também me parecia um pouco com ela.

— Você se lembra do desastre? — perguntou Duane com voz meiga.

— Foi horrível — as unhas novamente se fincaram no ombro dele. — Eu estava conversando com Roslyn e Armand... subitamente tudo ficou escuro, o avião todo estremeceu e a última coisa de que me lembro foi agarrar a mão que Roslyn estendia para mim. Seu anel de noivado estava naquela mão. Devo tê-lo arrancado dela quando o baque nos separou.

— É, deve ter acontecido isso. — Duane pôs a mão sob seu queixo e aproximou seu rosto dele para que pudesse estudar suas feições e a extensão de seu ferimento. — Você e a verdadeira Roslyn só se pareciam no físico, espero.

— Ela era muito mais despreocupada e alegre. Como tínhamos o mesmo corpo, e ela também era loura e usávamos sempre calças compridas quando não estávamos de uniforme, muitos pilotos pensavam que éramos irmãs. Ela e Armand amavam-se muito. Sempre pensei que o amor poderia ser esquecido tão facilmente como eu parecia fazê-lo, mas agora já sei a explicação para isso. Meu coração não pertencia a ninguém quando o avião caiu. Eu estava fazendo uma viagem de rotina, enquanto Roslyn ia com o seu noivo ao encontro da família.

Olhou para Duane com os olhos muito abertos. — O que o fez pensar que eu não era a verdadeira Roslyn?

— Melhor do que ninguém, Juliet, eu sei reconhecer quando um homem escolhe a mulher que não lhe serve, que não combina com ele. Comecei a imaginar por que Armand teria feito isso. Como poderia aquele meu alegre primo ter se apaixonado por uma criatura quieta e calma como você? Uma criatura que gosta da natureza e que se sente bem nela. Poucos dias antes do noivado, recebi uma carta dele, em que só falava dela. Como bom francês, exagerava, mas via-se claramente seu entusiasmo. Contava que ela era alegre e descontraída, que sabia se vestir tão bem quanto uma francesa e que adorava dançar. Que dançava quase tão bem quanto ele.

— Então foi por isso que você me obrigou a dançar com você... aquela noite... no lago de Temcina!

Sorrindo, examinou-lhe o rosto, até encontrar seus olhos verdes. Uma moça calma e quieta, ele dissera. Fizera com que essas qualidades se revestissem de importância, uma vez que para ele superavam beleza e alegria.

— Nunca liguei muito para dança — disse ela. — Roslyn e eu sempre fomos amigas, mas a única coisa que realmente tínhamos em comum era termos sido criadas no orfanato. Ficamos muito felizes no dia em que pudemos sair de lá.

— Posso imaginar — disse Duane seriamente.

— Instituições são sempre frias, sabe, e caridade não é o mesmo que amor. — Suspirou pensativa. — A gente tem que inventar uma família para si, ou achar uma das páginas de um livro. Tem que imaginar como seriam os beijos que nunca recebeu em criança. Se eu fosse mais como Roslyn, teria recebido alguns beijos dos pilotos com quem voávamos e teria sentido menos minha solidão. Mas eu só era parecida com ela fisicamente. Nunca pensei como ela, nem desejei as mesmas coisas.

— No avião, pouco antes do desastre, eu estava justamente dizendo a ela que a considerava muito feliz por em breve poder participar da família de Armand. Inconscientemente, talvez por esse motivo, tenha me conformado em assumir a personalidade dela depois do acidente mas não era seu noivo o que eu queria, era sua família.

— Você ainda pode fazer parte da família — lembrou-lhe Duane carinhosamente.

— Não... — balançou a cabeça. — Devo voltar para a Inglaterra.

— Não sente deixar Tristan?

— Sinto muito... como um amigo — respondeu ela — e é como ele me vê.

O rosto de Duane iluminou-se.

— Tem certeza disso? — Falava ansiosamente. — Você disse que por ocasião do acidente seu coração não pertencia a ninguém... e o que me diz... agora?

— Meu coração é assunto meu! — Procurava ganhar tempo para poder pensar e resolver se deixava-se levar por aquele sonho de felicidade ou se afastava dele definitivamente antes que se magoasse demais. Estava muito próxima dele e isso era bom, mas disse resolvida: — Duane, por favor, deixe-me ir!

— Não ainda! — Sua selvageria parecia fugir-lhe de controle. — Muitas vezes você disse que não queria meu toque ou minha amizade... portanto, nada tenho a perder se fizer isto...

"Isto" era sentir-se ela presa em seus braços... ficar perdida por uma eternidade, sem fôlego, inimagináveis momentos em seu beijo. Os lábios de Duane eram exigentes, machucando-a até que ela cessou de resistir... e, de olhos fechados rendeu-se àquele beijo, em que pôs toda sua alma, sentindo que dali por diante seriam um só coração.

— Agora — ele disse suavemente, sem desprendê-la de seus braços — pode me esbofetear se quiser.

— Por quê? — sussurrou, ainda tonta de felicidade, sentindo que o amava loucamente.

— Pensei que poderia sentir vontade depois disto — disse com voz rouca.

— Sinto-me muito fraca — murmurou. — Duane, você é um homem estranho...

— Certamente. Um homem rude que só entende de árvores. Alguém que pensou que amor fosse somente mais uma palavra que trouxesse dor e sofrimento.

— Amor? — perguntou de modo provocante. — Estarei ainda um pouco tonta com a tempestade ou foi realmente isso o que disse?

— Foi realmente o que eu disse e o que sinto. — Seus braços a apertaram de encontro a ele. — São os seus sentimentos que me preocupam agora, Juliet.

— Juliet — repetiu, abraçada a ele. — Sinto-me como uma recém-nascida, como se a vida estivesse começando para mim... — Afastando-se um pouco, e encarando-o, perguntou curiosa: — Duane, por que às vezes era tão cruel comigo?

— Porque nunca me importei em ser amável — disse rispidamente. — Não podia acreditar que este raro e simples sentimento ainda existisse. Como um rústico homem do mato, tinha que continuar testando-a... não me admiro, Juliet, que em várias ocasiões você tivesse vontade de me esbofetear!

Ela sorriu, passando a mão pela pele morena de seu queixo, saboreando aquele momento de tranqüila alegria e felicidade. Sua mente estava agora clara e limpa. Lembrava-se de tudo e era simplesmente inacreditável que pudesse, em paz, sentir o musculoso ombro sob sua cabeça, seu calor, e a certeza de seu amor...

— Você terá muito trabalho pela frente... terá que me ensinar a ser humilde e humano, meu amor.

— Meu tirano querido — disse rindo e feliz. — Não quero que você seja humilde, e me parece muito humano agora...

— Mas quero me transformar para nunca poder magoá-la. — Seus lábios tocavam de leve seus cabelos e seu rosto. — Como poderiam fazer isso? — perguntou suavemente.

— Nunca duvidando de mim — ela respondeu, meiga. — Eu o amo, Duane. Quero estar junto de você a vida toda. Quero cuidar de você e amá-lo muito, fazendo-o esquecer as amarguras de sua infância. Ambos fomos crianças solitárias...

— Muito solitárias, meu amor. — Seus braços puxaram-na novamente. — Mas devo trabalhar na floresta ou no deserto... poderia você suportar isso?

— Facilmente — respondeu. — Tenho uma natureza de Ruth. Aonde você for, eu o seguirei e serei feliz.

Ele a beijou novamente, gentil mas firme. Lá fora a tempestade diminuía a intensidade, o vento já não soprava com tanta força e as areias se acalmavam.

Juliet descansava a cabeça no ombro de Duane, sentindo conforto e segurança junto àquele homem com quem finalmente conseguira encontrar o caminho da felicidade.

Amava e era amada e o conhecimento disso era uma doce e indizível sensação.

— Pobre Roslyn! — disse Juliet. — Consola-me a idéia de que está junto de seu amor... para sempre...

Quando finalmente a tempestade terminou, ela e Duane iniciaram a volta para Dar al Amra. Havia muito o que explicar à sua família, mas, primeiro, pararam na casa de Duane, secular e rodeada de árvores.

Entraram, e ele pegou de dentro de uma caixa o anel que Nanette lhe havia dado para quando encontrasse a mulher com que se casaria.

Colocou-o no dedo da mão direita de Roslyn. Era um anel de ouro com uma pérola e um brilhante. Um anel símbolo do amor de um homem e uma mulher...

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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