Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O PAVILHÃO DE JADE
O TEMPLO DO PICO DE JADE
Yang Ling era um camponês de Xangli, uma aldeia pequena e pobre, com cabanas de colmo entrançado, argila amassada e tijolos cozidos; os tectos das cabanas eram constituídos por placas de pedra das montanhas dos arredores. A aldeia situava-se no planalto de Lijiang.
Yang Ling era um homem idoso, na casa dos setenta, de estatura média e ossuda e, apesar de ter passado para as mãos do filho primogénito a sua casa e os seus campos, belos e férteis, cultivados com couve e soja, milho-miúdo, amendoins e gengibre, além dos arrozais em socalcos, não se limitava a ficar passivamente sentado num banco à porta de casa ou no pátio interior, junto às azáleas, a ver as noras a secar o chá ou os netos a brincar, mas observava com olho vivo a vida quotidiana que se desenrolava à sua volta. O seu dia começava de manhã cedo, às cinco, e terminava à hora de deitar. A sua cama estava disposta no sítio melhor da casa: à esquerda, atrás da porta da entrada, sem nada à volta. Havia espaço suficiente para se movimentar, pois é ao chefe da família que se deve maior respeito.
O pequeno-almoço de Ling era invariavelmente constituído por pãezinhos cozidos no vapor e uma sopa de arroz; ao domingo, comia um ovo estrelado, queijo de soja, tofu, indispensável em qualquer lar, e um molho de soja picante; quando era o dia do seu aniversário, a mulher do filho mais velho apresentava ao chefe da família uma frigideira de ferro com dong gu cai xin, cogumelos chineses com corações de couve estufados em banha de porco pura. A acompanhar vinha o grande termo com água quente e a caixinha com chá verde, sem as quais Ling não se imaginaria a começar o dia.
Após o pequeno-almoço, Ling abotoava os botões do seu casaco estilo MAO, do qual não se separava por nada deste mundo, não obstante as muitas reformas dos últimos anos, dirigia-se para o alpendre e contornava três vezes o seu pequeno tractor de três rodas, cujo motor rangia de fraqueza, derivada da idade, e cuja correia de transmissão tinha um aspecto tão enrugado como o rosto de Ling. O motor cumpria obedientemente a sua obrigação, como se soubesse que era o sinal visível do bem-estar de Ling.
Ling não se encontrava entre os muito pobres, que aliás não existiam na fértil província de Yunnan nem na região de Lijiang, lar da etnia naxi. Ling era um ”empresário” livre, que, com o seu tractor e dois atrelados construídos por ele próprio, fundara uma empresa de transportes que carregava pedra para a construção de casas, diques, muros e estradas, vendia carvão vegetal e carvão chinês no mercado de Lijiang, além de transportar na plataforma basculante dos seus atrelados os convidados dos casamentos e dos funerais até aos locais de celebração.
Ling conseguira chegar longe: o filho mais velho tornara-se um bom camponês, tal como ele o fora um dia, e arava os campos com a parelha de búfalos, abrindo sulcos que eram um regalo para a vista. O segundo filho abrira uma oficina de calçado em Dali, tinha a sua banquinha na rua principal da parte antiga da cidade e era, porventura, o único sapateiro nas imediações que punha à venda trinta e nove tacões diferentes, catorze tipos de solas, cinquenta e dois tipos de ferragens e vinte e nove tipos de cabedal, de cores diversas. Até havia adquirido uma motocicleta de topo de gama, da marca Bandeira Vermelha. O terceiro filho comercializava peças sobresselentes de bicicletas, e ele próprio guiava uma, da marca Pomba Voadora, que custara a módica quantia de duzentos e trinta iuanes; quando uma vez viera de visita a Xangli e trouxera ao pai uma garrafa de aguardente de Dongjiu - que Ling saboreava em pequenos goles, como se de um medicamento se tratasse -, as crianças da aldeia fizeram um círculo em torno da bicicleta, fitando Peixin - assim se chamava o abastado filho - com o devido respeito.
Contudo, o filho mais importante da família Yang era o quarto. Este vivia na capital da província e fora suficientemente inteligente para ingressar no Partido Comunista, discursando perante o povo e conseguindo deste modo uma licença de condução de um táxi de três rodas em Kunming, onde se deslocava a trepidar pelas ruas poeirentas e onde até tinha um lugar próprio numa praça de táxis pública. Todos os meses mandava cinquenta iuanes à família, em Xangli, e todos os meses, à sua conta, havia uma grande discussão em torno da mesada, para se decidir o que era mais urgente para as necessidades da família.
E eis que chegara novamente o dinheiro de Huizi, o filho valente, e Ling pegara na sua caixinha de madeira de cânfora para verificar quantos iuanes haviam conseguido poupar. Era uma bela soma, com a qual se poderia fazer qualquer coisa, como, por exemplo, comprar um novo tractor. Mas Ling abanou a cabeça, foi instalar-se no pátio interior da casa, sentando-se sobre uma floreira de barro virada ao contrário, e olhou para Xu Junpei, a sua esposa. Junpei presenteara-o com sete filhos e Ling considerava-se um homem de sorte por não pertencer à actual geração, à qual o Governo só permitia um filho por casal, sendo que o segundo filho só podia ser gerado por requerimento e o terceiro era impiedosamente abortado. Junpei estava corcovada como uma raiz de ginseng, mas Ling continuava a amá-la e não tinha nenhuma concubina, com a qual se poderia encontrar em locais furtivos nas montanhas.
- Ouve, minha Serena Lagoa de Outono - disse-lhe. Era assim que lhe chamava desde os catorze anos dela, quando a conhecera na festa do Barco do Dragão, no Templo das Cinco Fénix, junto ao lago do Dragão Negro, em que juntos haviam comido bolinhos de arroz chinês embrulhados em folhas de bambu e, após olhar pela primeira vez os seus olhos cintilantes, a tratara por ”Serena Lagoa de Outono”.
Pouco depois casaram, criaram os filhos, ampliaram as suas lavouras e até sobreviveram à Revolução Cultural de MAO Tsé-Tung, pois, na época, Ling fora bastante astucioso. Mal se iniciara a revolução que tudo destruiria, Ling pendurara por cima da porta da sua casa uma faixa de pano vermelho com a seguinte inscrição: ”Sob o céu, tudo serve a comunidade.” Todas as portas da casa foram enfeitadas com outros lemas de MAO: ”Servir o povo!”, ”Uma vida pelo Partido, pela Revolução!” Impressionante fora, sobretudo, o lema que uma das faixas, esticada a toda a largura do pátio interior, ostentava: ”Pela grande comunidade, contra os interesses individuais!” Salvara a família Yang da destruição e dos trabalhos forçados. Quando MAO faleceu, em 1976, o primeiro acto de Ling foi remover todas as faixas da sua casa.
- Ouve - repetiu, retomando o balanço e olhando para Junpei. - Não me sinto bem. É o estômago. Tenho dores. Estou a ficar cada vez mais fraco. Ontem quase caí do tractor ao fazer uma pequena curva. Em quase quarenta anos, tal nunca me aconteceu. Alguma coisa está a desfazer-me por dentro.
Junpei ficou calada. Em toda a sua vida, nunca falara muito. Para quê? Ling dissera e fizera sempre o correcto, e uma mulher não deve intrometer-se, quando não sabe fazer melhor. Limitava-se a olhar para Ling e a assentir em silêncio. O facto de ele se dignar a contar-lhe o que fizera e o que iria fazer era um sinal de grande amor e de extraordinária dedicação, e Junpei toda a vida se considerara feliz por ter um marido como Ling, que não se limitava a atirá-la para cima da colcha e a penetrá-la, mas que sempre fora carinhoso, acariciando-a e beijando-lhe os seios.
- Estás doente? - indagou ela, num tom de quem pede perdão por ter feito a pergunta.
- Sim.
- E já consultaste o Kuang Yemei?
Que pergunta idiota. Ling lançou à mulher um olhar de repreensão. Kuang Yemei era o curandeiro da aldeia de Xangli; as aldeias tinham um curandeiro, versado na medicina milenar proporcionada pela Natureza. Onde estava o médico mais próximo? Em Lijiang ou em Dali, e os médicos mesmo bons, os professores doutores, tinham os seus consultórios em Kunming, onde a camioneta demorava catorze horas a chegar.
- Ele diz que são seivas impuras! Sim, é o que ele diz.
- Ling pigarreou, juntou o muco na cavidade bucal e escarrou para o lado, para dentro de um pote de barro redondo ornamentado. - E também disse: ”Tu és velho, Ling, aí dentro é como o motor do teu tractor. Cria ferrugem, range, matraqueia e, de repente, rebenta. Posso dar-te alguma coisa para as dores. O que tens, só os médicos em Kunming podem dizer. Contaram-me que esses têm aparelhos e, com eles, olham para dentro da tua barriga. Queres ir a Kunming?”
- Sim, queres ir a Kunming? - perguntou Junpei, quando Ling se calou e respirou fundo, juntando outra dose de muco na garganta.
- Não. Mais valia pôr o meu dinheiro a cozer na sopa.
- Queres morrer? Morrer assim, simplesmente? Achas que a tua vida acabou?
Ling abanou a cabeça. Pôs-se de pé, afastando-se do pote e atravessando o pátio. Saiu para a rua e fitou os treze picos da cordilheira do Yulongxue Shan, brilhantes de neve, e a omnipotente montanha do Dragão de Jade.
- É para lá que eu vou - prosseguiu ele. - É a minha última esperança. O mosteiro do Dragão de Jade. Vive lá um monge, chama-se Deng Jintao, e dizem que as suas mãos foram abençoadas por Buda.
- Também dizem que Deng Jintao é um ancião, um homem muito velho. Contam que já quase não vê. Parece cabedal seco. - Junpei deteve-se, já falara de mais, o que era uma impertinência, uma vez que Ling depositava a sua última esperança naquele lama. Enquanto há vida há esperança; quem vive sem esperança é um inútil neste mundo. - Atrevo-me apenas a transmitir-te os meus pensamentos ignorantes e sem importância. Tu contaste o dinheiro, o Huizi mandou outra vez os cinquenta iuanes, podíamos ir até Dali ou a um especialista em Kunming. Se calhar, ele faz-te mais barato... sendo tu membro do Partido. MAO disse...
- MAO disse muita coisa de que hoje já ninguém quer saber. - Ling tornou a cuspir, desta vez em direcção ao grandioso arco da rua de argila e pedra. - Hoje em dia, só querem é ganhar dinheiro, ser ricos, tão ricos quanto os homens que eles estão sempre a ver na televisão e nos filmes de Hong Kong. Hoje em dia pensam de maneira diferente, os camaradas que nos regem. O que é que Deng Xiaoping disse no fim? ”Não interessa se o gato é branco ou preto; o importante é que apanhe ratos.” E ratos é o que todos eles querem apanhar, ratos-iuane, belos e fartos, incluindo os doutores da cidade. - Voltou a pousar o olhar nos poderosos picos de neves perpétuas da montanha do Dragão de Jade, que parecia estar a crescer para o céu azul-escuro, como se fosse uma ponte entre o mundo e a imortalidade. - Deng Jintao fá-lo de graça.
- Existe algum monge que não tenha sempre a mão estendida ou que não esteja sentado junto a uma cesta entrançada cheia de dinheiro?
- Ele só aceita donativos, donativos voluntários, é o que dizem.
- E quanto é que lhe vais dar?
- Como é que eu hei-de saber? Quanto melhor me tratar, mais iuanes receberá.
- E quando ele te curar completamente, foi-se o dinheiro todo.
- E isso não vale o meu corpo, a minha vida? - Escarrou pela terceira vez e voltou para dentro de casa. Já no pátio interior, ainda bebeu uma taça cheia de chá verde e sentiu a agradecida recepção por parte do estômago. - Parto para o mosteiro ainda hoje.
- Pode a minha indigna pessoa acompanhar-te? - inquiriu Junpei, baixando a cabeça.
- Porquê?
- Acompanhei-te mais de quarenta anos.
Ling aquiesceu com a cabeça. ”Que boa mulher”, pensou. Desde o dia da sua boda que ficara satisfeito com ela. Dera à luz as crianças e abastecera a casa, abrira sulcos nos campos de arroz, atrás do búfalo, cuidara, mondara e colhera os legumes cultivados nos terraços; em grandes cestos de verga feitos pela sua própria Mão, suspensos numa estaca aos ombros, carregara não só os frutos colhidos nos campos, como terra, pedras e lajes; cozera tijolos de adobe e louça no forno próprio, situado no pátio, e, da pedra calcária, obtivera boa cal para construção. E nunca se queixara, nunca proferira uma palavra de desagrado; apenas era frequente cair na cama à noite, como que anestesiada, mas nunca sem antes se aconchegar junto do marido e sentir o seu calor. Ling podia dar-se por satisfeito e era por isso que se irritava com as noras, que levavam uma vida como se os respectivos maridos ganhassem mil iuanes por mês.
- Tu também devias ser observada, Serena Lagoa de Outono - observou Ling, agarrando a mão ossuda e calejada da mulher. Aquelas mãos nunca haviam faltado e eram, em grande parte, responsáveis pelo facto de o pequeno camponês Ling se ter transformado no abastado Yang Ling. Tu também estás doente. Já o sei há semanas. Mas de ti nunca se ouve um queixume.
- E adianta alguma coisa? - Retirou a mão das mãos dele; há anos que ele não lhe tocava, a não ser para a incitar a trabalhar ou, por acaso, quando carregavam o atrelado do tractor. Também já há muito que dormia sozinho na sua cama ampla, na qual gerara os sete filhos. O marido precisava de espaço, revolvia-se na cama, agonizava e gemia, acordava e inclinava-se para cuspir para o escarrador. Junpei dormia num fino colchão de borracha, junto ao fogão, o que não a perturbava nada, pois descansava-se melhor sobre o novo material do que sobre o antigo colchão calafetado, com o enchimento a furar o tecido.
- Vamos abalar! - Ling acabou de beber o chá verde da taça, pôs-lhe a tampa e pousou-a junto ao termo. - Leva uma manta, calças almofadadas, casacos de algodão, camisolas e três pares de meias para cada um. E as botas de pele de castor. E o gorro de pele que tapa as orelhas. Lá em cima, na montanha do Dragão de Jade, pode fazer muito frio.
- Vamos ficar nas montanhas, Ling?
- Sim. Até o Deng Jintao nos dizer: ”Voltem para a vossa aldeia, meus submissos. A doença fugiu do vosso corpo para junto dos espíritos do fogo. Os vossos corpos estão puros.”
- E se ele não disser nada?
- Alguma coisa dirá, minha Serena Lagoa de Outono. Ele dirá vida ou dirá morte. Diga o que disser, receberá a nossa oferenda e nós retirar-nos-emos para a nossa aldeia. E traremos sempre algo connosco: o conhecimento. Como é solitário um homem que nada sabe... nem sequer tem os seus pensamentos por companhia.
Junpei que, como sempre, tinha que providenciar tudo o que passava pela cabeça de Ling, foi a correr para casa fazer a trouxa com mantas, roupa e tudo o que era preciso para uma longa viagem. A nora atestou com água a ferver três grandes termos de quatro litros e encheu um saco de linho com chá verde. Se a caminho do templo do Pico de Jade se desencadeasse uma tempestade de neve ou de areia, se a viagem demorasse mais do que o previsto e a comida não chegasse, se o escasso planalto que antecedia a montanha não produzisse raízes, arbustos, bagas ou plantas, com que pudessem enganar a fome - dois goles de chá verde bem quente eram o suficiente para conservá-los vivos.
Ling foi tratar do seu pequeno tractor de três rodas. Oleou as velas e as rodas dentadas, limpou o motor, estirou a correia de transmissão, verificou os eixos e as rodas, fez tudo com a mesma precisão como se fosse partir em viagem para Xangai ou lá para cima, para o Norte, para a Mongólia ou o Tibete. No final, atrelou-lhe o reboque raso e, com as mãos atrás das costas, ficou a assistir, com satisfação, enquanto Junpei e a nora carregavam a trouxa e a pousavam sobre o atrelado. Ele mantinha a sua máquina em ordem; para o trabalho doméstico, havia as mulheres. A vida estava justamente dividida.
Antes de Ling se sentar no esburacado assento de ferro do pequeno tractor, Junpei, atenciosa, ainda lhe enfiou uma almofada rasa por baixo do traseiro. Ling já não tinha muita carne; os ossos apareciam através da pele amarelada e rugosa. Ultimamente acontecia muitas vezes ele chegar a casa, vindo dos campos ou de algum trabalho pago, sentar-se na água fria do ribeiro que atravessava Xangli e depois Junpei esfregava-lhe as nádegas até às costas com gordura de carneiro. Uma vez até sangrara da anca e teve de procurar Kuang Yemei, o curandeiro, que lhe cobrira a ferida com uma pasta vegetal com cheiro a beringela. Ling pagara um iuane pelo tratamento e, dois dias depois, já não tinha dores nem ferida. Esta desaparecera como que por magia; assim, era legítimo que os aldeões cobrissem ricamente Kuang Yemei de oferendas, mesmo fora do âmbito dos tratamentos.
Tanto maior e mais compreensível a fúria do curandeiro contra o tal sacerdote lama, Deng Jintao, do labirinto rochoso da montanha do Dragão de Jade. De onde viera ninguém sabia, e até Chen Xue, o ancião e monge superior do mosteiro, nada respondia quando lhe perguntavam.
- Foi a graça de Buda que no-lo enviou - respondia Chen Xue, com destreza, pois ninguém se atrevia a duvidar da graça de Buda. - Ele é um sábio, um curandeiro, um olho que consegue olhar para dentro das pessoas. Quando ele diz ”Vais viver!”, então continuarás a viver. Mas se ele disser ”Vais morrer!”, então o melhor é procurares nas imediações da tua casa um local onde o teu corpo possa voltar à terra. Sim, jovens budas, ele apareceu de repente, como se tivesse descido numa nuvem, do alto do pico da Yulongxue Shan, e curou-me logo da tosse com cinco gotas de um frasco de vidro vermelho.
Não admira que toda a gente falasse de Deng Jintao, e que Kuang Yemei, na sua pequena banca de remédios, com os muitos pozinhos e mistelas, as cobras, os sapos e os lagartos secos, as raízes retorcidas e as malgas cheias de vermes vivos, lhe rogasse as pragas mais insanas quando estava sozinho e ninguém o ouvia. Ele conhecia os segredos de medicamentos milenares, curava diarreias e bexigas fracas, as bexigas doidas das crianças e as inflamações de toda a espécie, desde a ferida infectada ao fluxo das mulheres; misturava unguentos contra borbulhas e até chegou a curar um camponês que viera de Kunming com sífilis, ainda que quase o tivesse mandado desta para melhor com as elevadas doses de mercúrio que lhe administrara. Mas o pecador continuava por lá há mais de três anos e até havia gerado um filho que era são que nem um pêro.
Tudo isto deixara de ser válido? Quais eram os feitos desse tal Deng Jintao? Apenas boatos, histórias de encantar, milagres envoltos em neblina, que ninguém podia averiguar; pois todas as pessoas que regressavam do mosteiro do Dragão de Jade para a sua aldeia - e não se tratava apenas de Xangli, mas de todas as aldeias circundantes da baixada da colina do Leão e das aldeias da minoria naxi, no planalto, ou até mesmo em Lijiang - faziam silêncio sobre a sua doença ou a sua cura. Dois médicos que se haviam estabelecido em Lijiang em consultórios particulares, após a conclusão dos estudos na famosa Universidade de Chengdu, atestaram, estupefactos e de dentes arreganhados, que pacientes seus, aos quais já nada havia a fazer, de um momento para o outro regressavam completamente curados da montanha de neves perpétuas do Dragão de Jade; como o barbeiro Gu Changwei, por exemplo: voltou a montar a sua banca na rua do mercado e continuou a rapar cabeças e a cortar cabelos como sempre, como se nunca tivesse sofrido de uma tuberculose.
- Esse monge é um xamã! - explicavam os médicos aos seus pacientes cada vez mais impacientes. - Ele baralha-vos a mente com dizeres, pauzinhos de incenso, gotas ou comprimidos inúteis, sobre os quais faz balançar uma chaleira fumegante e diz-vos: ”Ide-vos, estais curados.” E, de um momento para o outro... ouçam bem, irmãos e irmãs... vocês simplesmente caem para o lado e morrem. Ele enfeitiça-vos, mas nunca aconteceu que um osso frágil voltasse a ficar saudável através de um feitiço. Quem vai procurar Deng Jintao devia, antes do mais, escolher o local para a sua sepultura.
Deste modo, a fama de Deng Jintao ia crescendo como o arroz em ano de boa colheita. Desde há seis meses que havia duas vezes por mês uma camioneta que fazia a carreira até ao templo do Dragão de Jade. O proprietário, uma criatura de orelhas oblíquas, de Dali, pedia pela viagem três iuanes, num veículo cujas molas rangiam e cujo motor se lamentava aos uivos quando tinha que iniciar uma subida pouco íngreme. Contudo, de quinze em quinze dias, a camioneta seguia apinhada; os doentes partiam para a montanha nem que fosse no tejadilho da camioneta, firmemente agarrados aos varões de apoio.
Era por este motivo que Yang Ling se dirigia naquele momento para as montanhas no seu pequeno tractor, transportando no atrelado atrás de si a mulher, Xu Junpei, encolhida entre a trouxa de mantas e agasalhos. Junto dela erguia-se o grande termo com água quente e a saca de linho com chá para poder servir Ling, imediatamente, mal ele pedisse a sua bebida verde.
Após uma manhã soalheira, pusera-se um dia cada vez mais encoberto, à medida que iam subindo. Quando chegaram ao vasto e gélido planalto, Ling parou o motor, pediu o seu chá verde, sorveu uns quantos goles e apontou para o monte polvilhado de branco do Dragão de Jade. Amplos regatos de água límpida gelada atravessavam a planície, os quais, mais em baixo, já no vale, se transformavam em ribeiros, dádivas de vida para os campos cultivados com legumes e os terraços plantados de arroz.
- É lá para cima que temos de ir - disse Ling, depois de Junpei ter bebido o seu chá. - É lá que fica o templo do Pico de Jade.
- A que altura, meu homem valente?
- Dizem que são três mil trezentos e cinquenta metros, medidos por geólogos; temos de acreditar na palavra deles.
- E temos que trepar até lá acima com a trouxa toda às costas?
- Há um caminho que foi aberto pelos monges. Um carreiro estreito, de pedra, mas é um caminho. Se a camioneta de Dali consegue lá chegar, nós também chegaremos. O condutor da camioneta fá-lo por dinheiro; eu, pela minha vida.
O caminho até ao templo foi uma tortura para o velho e ofegante motor do tractor; em agonia, emitia sons, como se chorasse alto, o tubo de escape expelia fumo negro e oleoso, mosqueando-o para o ar, como se estivesse a dar tiros. Mas Ling não parava e não dava descanso ao tractor; sabia que o motor não voltaria a arrancar, seria tão casmurro quanto uma mula cansada, que por mais pancada que levasse não arredaria pé. ”Tudo tem a sua alma”, pensava Ling. ”Até o motor do tractor... só faltam quatro curvas, umas quantas voltas e poderemos ver o templo. Chen Xue e os seus irmãos já há muito que nos avistaram. Antes de tudo, sentiram que Yang Ling e Xu Junpei estavam a caminho: pressentem o vento antes de este soprar por cima do montes, cheiram a neve antes de esta cair, vêem as flores das árvores, dos arbustos e das plantas antes de os seus botões despontarem. O olhar de Buda está nos seus olhos. Venerável Chen Xue, o mais reles de todos os homens, um verme no pântano, o pobre camponês Yang Ling, vem até ti.”
No seu pequeno tractor aos guinchos, Ling acabou por conseguir chegar ao exíguo parque de estacionamento que os monges haviam construído no pequeno planalto rochoso, picando a pedra e aplanando-a com cimento. Pinheiros-bravos desgrenhados e arbustos tortos de azáleas enquadravam o parque e formavam uma alameda luminosa, que ia até aos mais de quarenta degraus que formavam a escadaria, no final da qual se situava o templo do Pico de Jade. O brilho do Sol da tarde ainda iluminava os ornamentos do telhado pintados de vermelho, azul e amarelo, constituídos por cabeças de pássaros, focinhos de dragões e figuras alegóricas. No degrau mais elevado da escadaria estava uma figura ossuda, definhada, curvada e enrolada numa sotaina vermelha desbotada, rodando um mala1 tibetano entre os dedos descarnados.
Ling e Junpei inclinaram-se quase até ao chão. Junpei carregava às costas a pesada trouxa com as dádivas, presa com uma fivela. Não a considerava um fardo; estava feliz por carregar o sacrifício de Ling para o mosteiro. Ling, livre
1 Rosário de 108 contas, para recitação, entre outras coisas, de mantras. (N. do E.)
de toda a carga, bateu três vezes com os braços no peito e disse, com toda a humildade:
- Um inútil, um parasita, um indigno da vida cumprimenta-te e pede-te ajuda. Mesmo sendo a minha vida inútil, ó sábio, não quero morrer já. Ainda quero ver o Sol nascer e pôr-se mais uns quantos anos, quero dar água ao meu arroz, cortar o meu carvão, salgar as minhas verduras, arrancar o gengibre do solo, colher as tangerinas e comer um leitãozinho suculento.
- Então estás doente? - indagou o monge. Tinha uma voz profunda e trémula, de uma rara afonia.
- Por isso estou aqui, no meio do pó, perante ti, ó mestre.
Chen Xue - era o próprio - estendeu o braço e apontou para cima, na direcção de um edifício encadeado, de uma cor amarelada, ao qual ia dar um caminho empedrado. Era a casa dos monges, onde também se encontrava a cozinha, as celas onde dormiam, uma sala com uma lareira de argila, que servia como sala comum no Inverno, e, ao fundo de um corredor de colunas de madeira pintadas de vermelho, um compartimento alongado com um balcão, quadros artísticos de enrolar e pinturas de todos os tamanhos dispostas nas paredes: a banca para os peregrinos. Ali podia comprar-se a montanha do Dragão de Jade esculpida e talhada em jade ou em vidro colorido, bonecas com o trajo nacional dos Naxi, selos de pedra e pincéis, tinta-da-china e colares feitos de ossos de iaque. E havia muito mais coisas à venda no balcão, quinquilharia colorida e industrial, que um comerciante trazia duas vezes por ano de Kunming.
- Daqui a três anos têm aqui uma verdadeira loja! exclamava o comerciante, um homem alegre, da etnia dong,
- E depois chegam os amis e rodam o primeiro filme policial lamaísta. Vocês vão ser uma descoberta sensação!
Mas Chen limitara-se a abanar a cabeça, sabiamente, e apontara para o alto, para as montanhas brancas da cordilheira de Yulongxue-Shan.
- Estás a ver o Shanzidou? - perguntou. - Ali, ao meio, à direita. Os homens conquistaram todos os montes dos Himalaias, mas todas as expedições ao Shanzidou falharam. Nunca nenhum homem esteve nesse pico. Como é que se lê nos milenares rolos das escrituras dongba do povo naxil ”Quando o Céu e a Terra ainda não estavam separados, o deus da Pedra ainda cantava, as árvores corriam e as pedras falavam.” E assim permanecerá, irmão. Em Lijiang, o Céu e a Terra ainda são irmãos. O Homem pode destruir a Terra, mas nunca pisará o Shanzidou. Ainda existem limites estabelecidos por Deus.
Ling percebeu os gestos do lama. Chocou com Junpei, tornou a fazer uma vénia profunda a Chen e iniciou a subida pelo caminho de pedra que dava para a residência dos monges. Antes de empurrar a porta vermelha laçada, que estava encostada, pensou, aturdido, que nem sequer tinha perguntado por Deng Jintao, o grande curandeiro, pois podia ter vindo no dia errado, ou a mão curativa de Buda estar ocupada com outra coisa. Porém, Chen tinha indicado o caminho, o que apenas poderia significar que o santo Deng Jintao estaria pronto a recebê-los.
O quadrado do pátio interior, calcetado com tijolos de argila, tinha uns quantos bancos de madeira rasos, antigos, dispersos, e pequenas mesas estreitas; as plantas resplandeciam com flores exuberantes, como se o Inverno nunca chegasse ali, à encosta de uma montanha de neves perpétuas. Contudo, todos os visitantes, que obtinham autorização para pisar aquele pátio, ficavam pasmados de orgulho e de respeito perante uma magnólia nodosa, de copa larga, que Chen audaciosamente acreditava ter mais de mil anos de idade. Dizia-se que Khublai Khan teria parado junto à árvore e - como selvagem e inculto que era - teria urinado contra o seu tronco. A partir desse momento, a árvore ter-se-ia desenvolvido nodosa.
Uma história assim valia sempre uma esmola; o templo do Dragão de Jade não passava necessidades. O novo Buda dourado da sala de orações era a prova viva para todos os peregrinos que lá iam orar.
Ling e Junpei ficaram de pé na soleira do pátio interior, respeitosamente, à espera que alguém os convidasse a entrar.
Junto à porta da cozinha, Ling reparou num grande termo um pouco amolgado, nas taças para o chá e na caixinha de pau-rosa com o chá verde. Seria um chá medicinal, temperado com ervas especiais, que só Deng Jintao conhecia?
Ling deu um passo em frente, estendeu a mão para trás, puxou Junpei para junto de si e reparou que a mulher tremia. Aquele momento era, por certo, o maior acontecimento da vida dela. De início, Junpei achara que teria sido dar à luz os seus filhos; mas após sete partos, a única coisa que restara do mistério fora uma dor maldita.
Ling insinuou a Junpei que retirasse a trouxa com as oferendas das costas, após o que, reunindo toda a sua coragem, se aproximou da milenar magnólia. Debaixo da sua ampla ramagem, que parecia um tecto compacto, viu uma coluna de madeira, artisticamente talhada, envernizada a dourado e adornada com representações de dragões em combate; era uma coluna de altura média, em cuja plataforma se encontrava uma miniatura de um pavilhão do tamanho de uma mão; era esculpido em jade verde e castanho-claro e no alto do telhado tinha um pequeno dragão sentado num trono. O dragão tinha a boca aberta, mas não para expelir fogo destruidor; parecia mais que estava a rir-se.
Um dragão a rir-se... Ling fitou-o, surpreendido e como que paralisado. Nunca antes vira algo assim. Riso é amizade e um dragão que ri é um amigo - seria possível? Estaria o grande sábio Deng Jintao acompanhado por um dragão que não devorava pessoas? Teria recebido dele a força curativa, quando todos os outros mandavam as pessoas procurarem o local para as suas sepulturas? Estaria Ling cara a cara com o sopro da omnipotência de Buda?
Quando soou uma voz vinda da porta que dava para a sala comum, Ling estremeceu de medo e Junpei, atrás dele, até caiu de joelhos. Um monge velhíssimo, no seu manto vermelho desbotado, com um mala tibetano a balançar na mão, acabara de entrar no pátio e levantara a mão livre em sinal de cumprimento. Tinha um gorro bicudo de lama, feito de lã de iaque e bordado com fios de ouro entrelaçados, que lhe tapava parte do rosto. O que se via, na realidade, eram apenas os seus olhos; uns olhos castanho-escuros que pareciam jovens e perpétuos, como as montanhas de neve. Deng Jintao, o imortal?
Ling prostrou-se de joelhos, sentiu uma tontura e todo o seu cansaço, toda a sua dor interior desapareceram como fumo soprado para longe pelo vento. Ficou ainda mais fascinado quando, atrás de Deng Jintao, surgiu uma figura igualmente idosa e curvada, com um manto amarelo que caía como que às ondas e as mãos ocultas numas luvas de tricô coloridas, talvez por serem de pele e osso. Uma morta que continuava a viver por misericórdia celeste? Ling decidiu fechar os olhos e refugiar-se na escuridão.
- De que te queixas? - perguntou a voz frágil de Deng Jintao. - Tens medo da morte? Na tua idade?
- Sim, ó sábio senhor.
- De onde vens?
- De Xangli, senhor.
- Xangli... - O ancião olhou em frente, pensativamente. - Eu conheço Xangli. Dormi lá uma noite.
- Quando, ó mestre?
- Não perguntes datas. Dormi entre fardos de palha de arroz, bem quentinho, numa noite fria.
- Isso deve ter sido há muito tempo, mestre.
- Já o tinha esquecido, só o nome de Xangli é que me trouxe de volta a recordação. - Deng Jintao fitou o infinito, por cima da cabeça baixa de Ling, como se não estivesse rodeado pelas paredes da casa. ”Dois anos será muito tempo?”, perguntava-se. ”Depende da perspectiva. Um mero dia não aproveitado é mais um passo para a eternidade, uma oferta desperdiçada e irrecuperável. Por isso, encara cada dia que passa como uma gota de sangue que o teu corpo está a perder. Não deixes que as gotas se infiltrem na areia.” Onde sentes as dores? - inquiriu.
O novo tom de voz sobressaltou Ling.
- Por todo o lado, ó mestre.
- Já tomaste banho hoje?
- De manhã cedo. Como todos os dias. No lago. E à noite fá-lo-ei outra vez. Desde criança que me banho nas águas frias do lago. Dantes era refrescante; agora tenho de me enrolar em panos de lã após o banho.
Deng Jintao assentiu com a cabeça em silêncio. Dirigiu-se para a mesinha, desenroscou a tampa do termo, encheu duas taças com chá e levou-as até à coluna do pequeno pavilhão de jade. Pousou-as em frente ao pavilhão, balançou o mala por cima dele, murmurou algumas palavras imperceptíveis e colocou a MAO sobre a tampa das taças.
Em seguida, Ling e Junpei, de joelhos, pegaram nas taças e beberam cautelosamente o líquido quente. Como era evidente, tratava-se de chá verde natural, tal como o bebem milhões de chineses, porém tinha um sabor diferente. Ling percebeu imediatamente... tinham-lhe adicionado algo azedo e também sentiu o sabor do gengibre. Quando o primeiro gole de chá lhe escorreu pela garganta abaixo, sentiu o seu esófago ficar entorpecido e insensível. Tal como Junpei, que se encontrava a seu lado, bebeu com valentia até a taça ficar vazia e depois elevou respeitosamente o olhar para Deng Jintao. As dores no estômago abrandaram, um feito que o curandeiro Kuang Yemei não conseguira, ao longo de várias semanas, com as suas gotas, os seus pozinhos e as suas bolinhas de ervas.
Deng Jintao apontou para um banco pintado de amarelo junto ao muro da habitação. Ling pôs-se de pé, dirigiu-se para lá a arrastar os pés e deitou-se nas tábuas. Tão silenciosamente como a sua sombra, Junpei seguiu-o.
Deng Jintao inclinou-se sobre Ling, puxou-lhe o casaco azul, estilo MAO, até ao queixo, de modo a ficar com a franzina barriga destapada, e fez deslizar as suas MAOs pela pele cor de cabedal. Carregava aqui e ali; quando Ling torcia os lábios, o monge assentia com a cabeça e prosseguia a palpação.
- Bebes? - perguntou de repente. Ling assustou-se. Que deveria responder?
- Um copito, de quando em quando. Lava a alma.
- Vinho ou aguardente?
- Aguardente, ó mestre. - Ling começou a sentir-se envergonhado. - Sempre só um copito atestado de aguardente de três flores.
- Com o estômago vazio?
- Antes de me banhar no lago, sim. Então é como se o cansaço se desvanecesse no ar.
- Mas queima-te o estômago. Explodes ácido.
- Sim. Mas só desde há algumas semanas, mestre. E eu bebo aguardente há mais de cinquenta anos.
- Sovaste e maltrataste o teu estômago durante cinquenta anos. Agora serás tu o maltratado durante algum tempo.
O velhíssimo monge lama desapareceu no interior do seu quarto e voltou com um tubo incolor, cuja extremidade tinha um instrumento cromado brilhante, que parecia uma pequena lâmpada e uma lente. Ling fitou o aparelho com ar assustado e contraiu todos os seus músculos.
- Vou enfiar-te o tubo pelo esófago até ao estômago disse Deng Jintao, inclinando-se sobre o atónito Ling e endireitando-lhe a cabeça. - Vou ver dentro do teu estômago e tirar a doença do seu esconderijo.
- Ver? o meu estômago? Dentro de mim? - balbuciou Ling, contraindo-se ainda mais.
- Mesmo que te explique, não vais perceber. Chama-se uma endoscopia. Vou fazer luz dentro do teu estômago e ver o que está diferente. Talvez também chupe um bocadinho da mucosa do teu estômago, para poder observar de perto a tua doença.
- O mestre vai sugar-me? - A voz de Ling perdera o tom. - Como o dragão negro que bebe o sangue das pessoas?
- Só um bocadinho de nada. - Deng Jintao inclinou-se ainda mais sobre Ling. - Abre a boca! - ordenou, de repente.
Ling, habituado a vida inteira a obedecer, escancarou a boca. As raízes amarelo-acastanhadas dos seus dentes pareciam grumos de barro endurecidos. Susteve a respiração, enquanto o mestre lhe enfiava o tubo pela garganta abaixo e o empurrava em direcção ao esófago.
- Vou vomitar - queixava-se Ling, agoniado. - Está... a subir... ar! Estou a asfixiar. Eu... - Agarrou a MAO de Junpei como se ela fosse capaz de prendê-lo à Terra, só que depois perdeu os sentidos e deixou de sentir o endoscópio a deslizar-lhe até ao estômago.
Ling acordou porque teve de engolir. Junpei deu-lhe a beber o chá verde com o sabor estranho, ao mesmo tempo que se ouvia Deng Jintao a bater e a manejar vidro no interior da casa. A velha e curvada avó lama, com os longos cabelos brancos, sobre a qual Junpei apenas soubera chamar-se Hão Peihui, e que não sabia a idade, de tão distante o seu nascimento, acendera uns pauzinhos de incenso em volta do pequeno pavilhão de jade sobre a coluna, que soltavam um perfume forte e atordoante, envolvendo o pavilhão numa nuvem de fumo.
Ling estava rígido, deitado no banco amarelo, e tornou a contrair os músculos todos quando o velho monge saiu do seu quarto. Este tinha uma pequena placa de vidro na mão e aproximou-a dos olhos de Ling. Sobre o vidro via-se um desenho minúsculo, vermelho e fibroso, nada de emocionante ou de misterioso. Ling apenas ficou lívido, quando Deng Jintao recolheu a placa de vidro e lhe disse calmamente:
- Isto é um bocado da mucosa do teu estômago. Arranquei-a.
- O que... é que fez, mestre? - balbuciou Ling, impressionado.
- Estive a ver o interior do teu estômago.
- Viu... com os seus olhos... dentro de mim... como se eu fosse de vidro...
- Mais ou menos. Esperaste demasiado tempo para tratar a tua doença... já podias estar bom há muito tempo. O teu estômago está todo vermelho.
- Oh! Então, vou morrer, grande mestre?
- Claro. Mas ainda não chegou a hora. - Deng Jintao sentou-se no banco junto a Ling e bateu-lhe no estômago. Não doeu, o que para Ling era como se fosse um milagre.
- Ouve bem o que te digo: acabou-se a aguardente...
- Mestre, vou atirar todas as garrafas para o meio do lago.
- Nada de vinho que não seja de arroz. O vinho de arroz afasta o frio interior, acelera a circulação sanguínea, ajuda a descontrair os nervos e fortifica o baço e o estômago. Mas cerveja nunca mais, até eu autorizar.
- Nenhuma cerveja, mestre?
- Nem uma gota! Queres que o teu estômago fique como uma peneira, cheio de buracos, deixando passar veneno às gotas para o teu corpo? - Deng Jintao retirou da mala de cabedal que trazia presa no cinto um saco transparente com comprimidos redondos amarelos. - Vais tomar estes comprimidos três vezes por dia, antes das refeições. Três vezes... não te esqueças.
- Não é possível, mestre. Eu só como duas vezes por dia. De manhã e à noite.
- E ao meio-dia.
- Ao meio-dia era quando eu bebia cerveja. - Ling estava muito embaraçado, mas não se podia mentir a uma santidade como Deng Jintao.
- Agora, ao meio-dia, em vez de beberes cerveja, comes puré de vegetais quente. Sem sal, sem pimenta, sem quaisquer ervas.
- Estou a ver, tenho uma doença má - suspirou Ling.
- Junpei, Serena Lagoa, como cozinhavas bem...
- A Junpei pode comer de tudo. Tudo o que tu não podes. Para ela não há proibições. Ela tem que comer mais comida ao seu gosto e deixar de comer o que tu gostas.
- Ela pode comer de tudo? - Ling ergueu-se e fitou Junpei com os olhos brilhantes. Esta baixou o olhar de imediato e o sorriso nos seus lábios transformou-se novamente numa prega dura. - Porque é que a vida é tão injusta? O búfalo puxa o arado nos campos de arroz e recebe tareia e, a seu lado, os patos andam a bambolear e a grasnar os seus males. Não trabalham e podem comer de tudo.
- Para mais tarde, quando a carne deles estiver rija, serem comidos por ti. Queres comer a tua mulher? Não, ela deve viver a teu lado e por isso tem de comer comida diferente da tua. - Deng Jintao levantou-se do banco. - Agora vai orar em frente ao pavilhão... se Deus foi misericordioso, permitiu-me diagnosticar a tua doença correctamente.
Ling e Junpei oraram diante do pavilhão de jade rodeado de nuvens de cheiro e, meia hora depois, já estavam novamente a descer pelo caminho de pedras que se desdobrava, quarenta metros mais à frente: para baixo, o parque de estacionamento; para cima, o templo. Chen Xue permanecia no mesmo sítio, à beira do último degrau, como se não se tivesse mexido dali aquele tempo todo.
De mãos dadas, Ling e Junpei desceram a escadaria até chegarem ao pequeno tractor de três rodas com o atrelado. Tinham deixado o saco com as ofertas no pátio interior, sem comentários; teria sido falta de cortesia aludir a tal coisa. A um mestre não se paga, dá-se.
No pátio interior do edifício residencial, Hão Peihui, a anciã sem idade, desprendeu a longa e guedelhuda peruca grisalha e apagou os pauzinhos de incenso. Deng Jintao bebia uma taça de chá verde puro.
- Que doença é que ele tinha? - perguntou Peihui, limpando uns restos de fuligem das colunas de jade do pequeno pavilhão. - Meteste-lhe muito medo.
- Caso contrário, não obedecia. O que ele tem? Uma gastrite típica, com produção excessiva de acidez, o que conduz directamente a uma atrofia da mucosa. Para um homem da idade dele pode ser perigoso. - Jintao sorriu e arrumou a taça. - Se ele seguir tudo o que lhe disse, daqui a um mês estará tão saudável como o seu búfalo.
Estava prestes a retirar a máscara de borracha rugosa do rosto quando se ouviu, vindo da direcção do templo, o som de uma corneta de bambu.
Deng Jintao voltou a pôr a máscara sobre o rosto.
- Volta a pôr a peruca, minha estrela de cristal - disse.
- Está a chegar a camioneta de Dali. Faz mais chá. Peço a Deus que nenhum dos doentes tenha que ser operado.
Regressou ao interior do quarto, fitou o seu grande armário de pinho, atrás de cujas portas se empilhavam todos os instrumentos necessários a um cirurgião, e abanou a cabeça.
Se fosse obrigado a abrir aquele armário para ajudar um doente grave, podia calcular quanto tempo de vida ainda lhe restaria.
A FAMÍLIA HUANG
Huang Lida tinha seis anos de idade quando dois camiões entraram por Huili dentro, a sua aldeia, transportando os guardas-vermelhos acompanhados pelo comissário político Chang Lifu e, logo na primeira casa, começaram a atirar com pedras enormes contra o camponês Liang Taiping, acertando-lhe na cabeça, de modo que este rolou até ao muro de argila da sua casa e durante algum tempo não conseguiu seguir os acontecimentos. Lida estava de pé, nas escadas esculpidas num monte rochoso, no cimo das quais tinha sido construída a escola e, um pouco mais atrás, a pequena casa do professor Huang Keli; à volta da casa havia um jardinzito, no qual cresciam principalmente legumes e raízes de gengibre, mas também um canteiro estreito com flores - um luxo do professor, pois as flores não se comem e cada migalha de terra serve para não deixar os homens e os animais morrerem à fome.
Quando se detiveram em frente à Câmara Municipal de Huili, os guardas-vermelhos, rapazes jovens que nem vinte anos tinham, saltaram dos camiões, arrombaram a porta antes que alguém lhes abrisse do interior, arrastaram todas as pessoas que se encontravam no escritório para o meio da rua e circundaram-nas aos berros, após o que desataram à pancada aos indefesos com as coronhas das suas armas. O grito ”Camaradas, o que é que vos fizemos?” perdeu-se entre o berreiro dos guardas-vermelhos e os prantos dos espancados.
Lida sentou-se num degrau da escadaria de pedra. Apesar de não perceber o que se estava a passar, entendia perfeitamente que os homens estranhos tinham vindo para bater nos outros. E eram todos iguais: traziam uma farda verde, um barrete em forma de balão na cabeça e uma faixa vermelha em volta do braço, na qual se lia ”Guarda-Vermelha”; ao peito traziam uma bolsa de pele branca, na qual guardavam os valores: dinheiro, uma escova de dentes e o livrinho Palavras do Presidente MAO Tsé-Tung. Sem este livrinho era-se cego, surdo e mudo - a nova vida era inconcebível sem as palavras de MAO.
Chang Lifu, o comissário, aproximou-se das escadas de pedra, seguido de dez guardas-vermelhos, e olhou para cima, para a escola e para a casa do professor. Claro que também viu Lida sentada nas escadas, com os seus olhos de criança, grandes e inquisidores, fixos neles. Ela ficou estática, como o coelho paralisado pelo olhar da cobra.
- Isto é a vossa escola? - indagou Chang do fundo das escadas.
Ela anuiu com a cabeça e esperou até que a tropa tomasse de assalto as escadas e se detivesse à sua frente.
- O professor está? - inquiriu Chang. A sua voz soava como um chicote.
Lida enfiou a cabeça nos ombros e tornou a assentir com a cabeça. Depois disse, respeitosamente, pois aprendera que na vida a cortesia é tão importante como a água e o arroz:
- Sim, o meu pai está.
- O professor é teu pai? - indagou Chang.
- Sim, camarada, é.
O facto de uma criança tão pequena e tão franzina o interpelar como ”camarada” surpreendeu-o. Baixou-se e inclinou-se para perguntar a Lida se o pai lhes falara sobre MAO e sobre os comunistas, em casa e na escola, mas a rapariguinha retraiu-se e dobrou os lábios para dentro. O hálito de Chang cheirava a aguardente.
- Cheiras mal! - gritou Lida, pondo-se de pé num salto e correndo pelas escadas acima, tão rápida como uma Doninha, de modo que quando Chang tentou agarrá-la só apanhou ar. Os jovens guardas-vermelhos que o circundavam soniram, impávidos e serenos. Ofender o comissário Chang significava o mesmo que estender a mão a uma víbora. Ainda se lembravam muito bem do episódio na aldeia de Siyang; fora há dez dias atrás, em que o ancião da aldeia dissera a Chang: ”O que é que tu queres? Outra vez a Revolução Cultural? MAO é um homem doente; atenção, que a morte dele também pode ser o teu fim. Procura um emprego decente, cultiva um campo de arroz ou uma horta.”
Chang ficara ofendidíssimo. Mandou evacuar a casa, depois varreu com o olhar a família do ancião e contou seis cabeças assustadas e a tremer, entre elas o neto de nove anos. Mandou revistar a aldeia à procura do instrumento que procurava, até que um dos guardas-vermelhos o encontrou: uma vara de ferro comprida, ligeiramente bicuda na extremidade. Acenderam uma fogueira, onde pousaram a vara de ferro até a ponta ficar em brasa e só se conseguir pegar-lhe com uma tenaz. Chang mandou que a vara fosse transportada e pousada sobre um grande rochedo, pegou num martelo e, enquanto três guardas-vermelhos seguravam nela, forjou uma ponta afiada com fortes marteladas.
Os guardas-vermelhos recordam com calafrios o que se passou a seguir. Haviam visto muita maldade durante a sua cruzada pelas aldeias das minorias miao e dong, de cujas origens pouco ou nada se sabia, mas que viviam há centenas de anos na China e eram considerados chineses -, mas o que viram então tornou-se uma ferida nos seus corações, cuja cicatriz carregariam até ao fim das suas vidas.
Enquanto os guardas-vermelhos rodeavam os membros da família, puxando-lhes os braços para trás e imobilizando-os, o primeiro a ser espetado foi o ancião da aldeia. A ponta vermelha, ainda em brasa, trespassou o corpo magro e seco do ancião como se este fosse uma esponja, a vara de ferro perfurou-o e o velho não gritou, não emitiu um único som; apenas encarou Chang com um olhar abatido e cheio de humildade. E, tal como ele, a família inteira foi perfurada pela vara de ferro. A mulher gritou, o neto guinchou, mas Chang não teve piedade.
Quando estavam todos enfiados na lança, arrastaram-nos, ainda com vida, até ao rio das proximidades e atiraram-nos à indolência da água corrente. Impassível, Chang permaneceu na margem do rio e seguiu com o olhar os corpos a serem arrastados pela água. A partir daquela cena, os guardas-vermelhos ficaram com um enorme respeito a Chang e, enquanto antes segredavam entre eles ”O que é que ele quer connosco? Nós somos os pequenos generais de MAO, sabemos ser chefes de nós próprios”, agora diziam: ”Ainda bem que ele está connosco. Cheira à distância os inimigos de classe.”
Chang subiu as escadas à frente da sua tropa e foi o primeiro a chegar ao topo, onde se situavam a escola e a casa do professor. Um velhote, com uma vassoura de giesta na mão, varria o corredor da escola que dava para as salas de aula: uma para os alunos dos primeiros anos, outra para os alunos mais velhos. Chang ainda viu a menina a desaparecer no interior da casa do professor e até ouviu os seus gritos de alarme. Mal tinha avançado quatro passos, quando apareceu à porta um homem com a habitual farda de trabalho azul. Entretanto, os guardas-vermelhos já tinham chegado ao topo das escadas e ficaram parados junto à escola. O velhote que varria desaparecera de repente e a vassoura jazia, abandonada, à entrada.
Huang Keli não era um homem robusto, mas também não era franzino. Pelo seu aspecto, parecia que praticava muito desporto; a sua cabeça de cabelos negros era redonda, a pele morena e, quando comparado com os outros homens da minoria miao, era bastante alto, com um metro e setenta e sete de altura. Fatal foi apenas o facto de usar óculos. Uma simples armação de metal.
Sem hesitações, aproximou-se de Chang, que ficara parado, curvou-se ligeiramente e pronunciou o habitual ”Seja bem-vindo! Seja bem-vindo!”, prosseguindo, após uma ligeira hesitação, com o ”Prazer em vê-lo.”
A hesitação foi a primeira coisa que desagradou a Chang; tinha reparado nela, por mais curta que tivesse sido. Não se hesita perante uma pessoa que é bem-vinda.
- És tu o professor? - inquiriu Chang, num tom de voz firme.
- Sou, camarada. Sou Huang Keli. Quer visitar a escola?
- Quantos dos teus alunos sabem de cor as Palavras do Grande Presidente MAO?
Enquanto fazia a pergunta, retirou da bolsa do seu uniforme o livrinho vermelho e agitou-o no ar. Nas cidades e nas localidades maiores era indiscutível que todos tinham a bíblia de MAO e que andavam sempre com ela, como se fosse uma terceira orelha ou um terceiro olho; até os que não sabiam ler a traziam no bolso. Apenas nas aldeias e, mais precisamente, nos domicílios das minorias, era raro encontrar-se o livrinho vermelho. É verdade que colónias de funcionários haviam distribuído o livro, deixando pilhas de exemplares com todos os presidentes das comunas, e as pessoas até os foram recolher; porém, estariam no meio da quinquilharia que se enfia no fundo das gavetas ou teriam servido para atiçar o fogo da lareira. Segundo Chang, era o suficiente para castigar uma aldeia inteira e demolir, primeiro que tudo, os seus pequenos templos. Já suspeitava que ali, em Huili, não seria diferente.
- Aprenderam de cor dois poemas do Grande Camarada - respondeu Huang, consciente do perigo que vinha ao seu encontro. - MAO Tsé-Tung é um grande poeta, principalmente quando descreve a Natureza. Nenhum poeta vivo o consegue melhor do que ele. Quer examinar alguns alunos?
- Tu falas de poemas; eu falo das suas palavras políticas. Aqui - Chang estendeu a Huang o livro vermelho, como se fosse um punho que tinha a força de destruir muros -, estou a falar das palavras imortais do Presidente. Tens este livro?
- Não.
- Os teus alunos têm-no?
- Não.
A tropa dos guardas-vermelhos começou a ficar inquieta.
- É um intelectual reaccionário! - exclamou um, aos gritos, do meio deles.
- Camarada comissário, ele usa óculos! Pertence ao bando dos inimigos de classe.
- Eu eduquei os meus alunos no espírito das virtudes milenares: a modéstia, a bondade, o bom comportamento, a partilha, a tolerância, a obediência, a disciplina, a subordinação, a cautela e o não servirem apenas os próprios interesses.
- E depois? - quis saber Chang.
- Estes ensinamentos englobam todas as virtudes.
- Um reaccionário! - tornou a gritar um dos ”pequenos generais de MAO”. - Camarada, ele é um daqueles que corrompem a nossa juventude! Um violador espiritual das crianças!
O grupo de guardas-vermelhos dividiu-se. Quatro atiraram-se a Huang e dominaram-no, quase lhe arrancando os braços, cuspiram-lhe na cara e puxaram-lhe os cabelos; um dos jovens revolucionários entrou na escola a correr, regressou com um enorme frasco de tinta e despejou o líquido preto sobre o corpo de Huang. O resto do grupo arrombou a casa do professor.
Chang nada fez para os demover, apesar de lhe bastar dar um grito para deter os guardas-vermelhos. Tinham-no ofendido e, mesmo que tivesse sido uma menina pequenina... era uma mancha. De dentro de casa saía agora um rapaz magro e alto aos trambolhões, o filho mais velho de Huang, Tifei, acabado de fazer quinze anos e aprendiz de mecânico de automóveis na pequena cidade de Ningdu, nas proximidades de Huili. Todos os dias percorria quarenta quilómetros numa velha motoreta, ida e volta, fosse no pino do calor de Verão ou pelo gelo do Inverno; naquele dia, porém, ficara em casa, pois o avô Huang Yuan, um carpinteiro dos bons, queria revestir a parede traseira do estábulo com ripas de madeira e precisava de ajuda.
Atrás de Tifei, que apareceu quase a voar, saíram dois guardas-vermelhos, que se atiraram para cima do rapaz semi-inconsciente e o pontapearam. Dentro de casa ouvia-se uma gritaria ensurdecedora, intercalada com as gargalhadas estridentes dos homens.
Lida estava de cócoras a um canto da sala, atrás de uma enorme vasilha de barro, meio cheia de arroz por descascar. Não percebia o que estava a ver, mas estava consciente de uma coisa: os homens tinham agarrado a sua mãe. Desfizeram-lhe a roupa, arrastaram-na aos gritos, com os braços e as pernas presas, pousaram-na sobre o tampo da mesa e esfarraparam os restos de tecido, até ela fícar totalmente nua. Dois deles afastaram as pernas da mãe e então o primeiro dos homens fardados de verde enfíou-se entre as pernas dela, deixou cair as calças e fez algo que Lida não compreendeu. Com a parte inferior do corpo, atirava-se para a frente e para trás, entre as pernas da mãe, ao som das palmas dos que o rodeavam, e a mãe gritava, gemia e soltava sons roucos, até ficar completamente muda sobre a mesa, enquanto um guarda-vermelho atrás do outro se enfiava entre as suas pernas escancaradas e fazia aqueles movimentos estranhos. Eram nove revolucionários e, quando o último se foi embora com um grande sorriso na cara, a mãe jazia inerte sobre o tampo, as pernas balançando na beira da mesa, como se não tivessem ossos, e Lida, espreitando sobre o topo da vasilha de barro, viu que os seus seios estavam rasgados, como se tivessem sido mordidos, e sangravam. Entre as pernas escorria sangue pelas coxas abaixo.
Lida esperou no seu esconderijo até os guardas-vermelhos abandonarem a casa. Muito silenciosa e com cautela, aproximou-se da mãe e inclinou-se sobre a desfalecida. Contemplou-a longamente, após o que mergulhou o indicador no sangue sobre os seios e entre as pernas e correu pela porta das traseiras para o estábulo, onde se escondeu debaixo de um molho de palha de arroz.
Entretanto, Tifei, o filho, fora amarrado a uma árvore. Seis guardas-vermelhos estavam à sua volta e discutiam em voz alta o que haveriam de fazer com ele. Matá-lo simplesmente era fácil de mais; tinham que ter alguma diversão.
Huang Keli, com a cabeça e os ombros negros de tinta, estava ajoelhado no chão à frente da escola e ouviu os gritos da sua mulher, Jinvan, dentro de casa, viu o filho Tifei entre os punhos dos guardas-vermelhos e depois levantou os olhos para Chang, que se encontrava à sua frente, de pernas afastadas.
- Porque é que fazem isto? - indagou. Chang admirou-se com o tom sereno da sua voz.
- Eu sou o professor. Se vos fiz algum agravo, castigai-me a mim.
É a tua criação! - Chang fitou a cabeça negra de tinta Tu podes ser um bom professor - prosseguiu -, mas
difundiste os ensinamentos errados. Por todo o lado, o nosso país está a mudar, inicia-se uma nova era, a podridão capitalista está a terminar, o lema é: ”Pensamento jovem para um futuro vermelho.” O Grande Presidente indicou o caminho. Diz: ”Os quatro velhos males têm de ser aniquilados: o velho ideário, os velhos costumes, as velhas culturas e os velhos hábitos!” Vamos criar um mundo novo, para servir como modelo a todos os outros povos da Terra. Como é que podes continuar a viver sem contribuir para esta grandiosa obra?
Huang baixou a cabeça.
- Seja rápido, camarada comissário, mas deixe a minha família viver.
- Comigo ninguém morre sem ter compreendido a nova era. - Chang levantou o pé e deu um pontapé de lado a Huang.
Huang perdeu o equilíbrio e ficou estendido no meio da poeira; passou com a língua pelos lábios rebentados e sentiu o sabor amargo da tinta.
- Na escola existe hoje uma única palavra que é o fundamento do nosso futuro. Repete o que eu digo, Huang: ama a pátria, o povo e’o Partido - prosseguiu Chang.
Huang repetiu, depois pôs-se de joelhos e olhou para cima, para Chang.
- Foi exactamente isso que ensinei. A única novidade é que se incluiu o Partido.
- Ainda há mais - acrescentou Chang, com sarcasmo.
- Continua a repetir. O Grande Presidente disse: ”A disciplina mais importante para a nossa juventude é a luta de classes.”
Huang repetiu e limpou os olhos com as duas mãos. A tinta tinha-lhe colado as pálpebras; era difícil manter os olhos abertos.
- E continua... - Chang estava a ter prazer em ensinar o professor. Ele, o antigo ferreiro, odiava os professores desde criança; desde que fora ofendido à frente dos seus colegas de turma, ao ser acusado de mau aluno e preguiçoso.
- Continua, Huang: ”Servir o povo! Uma vida pelo Partido, pela Revolução! Sob o céu, tudo serve a sociedade!” Tornou a dar um pontapé nas costelas de Huang. - Compreendes?
- Nunca vivi de outra maneira, camarada comissário. Apenas por outras palavras.
Da árvore onde haviam amarrado Tifei ouviam-se os seus gritos estridentes. Dois guardas-vermelhos furavam o seu corpo nu com baionetas, mas não muito profundamente, para não o matarem; apenas as pontas penetravam na carne, abriam pequenas feridas, das quais jorrava sangue, que rapidamente lhe inundaria o corpo inteiro. Os ”pequenos generais de MAO”, trocistas, chamavam àquela brincadeira ”fazer cócegas”, e quanto mais altos eram os gritos, mais diligentes eles se tornavam.
Chang retirara a pistola do cinto e encostou o cano à nuca de Huang.
Huang fechou os olhos. ”Morre de pé, como um homem. Não implores pela tua vida.” A Revolução Cultural tinha engolido milhares de mortos, desde que MAO Tsé-Tung incitara à luta de classes. Fora apenas há dez anos, agora estava-se em 1976, o ano do dragão, e toda a gente no país pensava: ”Sobrevivemos. Já passou. Somos os novos homens.” Assim se enganam as pessoas.
Huang cingiu a mão aberta contra o peito e esperou pelo tiro. ”Não vai doer”, pensou. ”Só se sente uma pancada forte, como se um martelo acertasse na nuca, e depois a alma soltar-se-á do corpo e libertar-se-á de todos os sofrimentos, ninguém mais voltará a torturá-la. Invejai os mortos, disse o poeta Li Xian, pois já passaram para além da vida. Porque é que não dispara, camarada comissário?”
Chang hesitou, talvez pela primeira vez na sua carreira de executor do sonho de MAO de uma sociedade sem classes. A admiração apoderou-se dele, sobrepondo-se à sua contradição interior, à vontade de dobrar o dedo e fazer o que já fizera centenas de vezes antes, sem o mínimo sentimento. Respirou fundo um par de vezes, afastou a pistola da nuca de Huang e deixou cair a mão. De repente, percebeu que haviam sido aqueles olhos que o impediram de disparar sobre Huang, os olhos daquela menina, que era a pequena filha de Huang; aquele olhar de criança sem medo; aquela voz cristalina, mas firme, que lhe dissera: ”Sim, o professor é o meu pai”; aquele orgulho que trespassara das palavras infantis, depois a sinceridade do ”Cheiras mal!” e a pequena a fugir a correr, não dele, mas do seu hálito a aguardente.
- Olha para mim, camarada professor - disse Chang com firmeza.
Huang levantou a cabeça e engoliu em seco várias vezes. ”O tormento ainda não acabou”, pensou. ”Ele quer torturar-me, vai regalar-se com o meu medo. Mas medo é o que eu não tenho, senhor comissário. Atormente-me, se é isso que quer... Nós temos uma grande tradição de sofrimento, quinhentos anos sob o jugo dos imperadores, hoje sob o de MAO. É de admirar que não tenhamos nascido todos com uma postura curvada.”
- Estou a olhar para si - respondeu. - Estou à sua disposição.
- Esquecemo-nos de uma coisa, Huang Keli - prosseguiu Chang, tornando a guardar a pistola no cinto.
Aquilo não augurava nada de bom, pressentiu Huang, reunindo todas as suas forças para morrer uma morte digna, mesmo sob tortura.
- A tua confissão - anunciou Chang.
- O que é que eu devo confessar? - Huang dirigiu a Chang um olhar irritado. - Sempre cumpri com as minhas obrigações.
- No espírito de MAO?
- No espírito da Humanidade.
- Reaccionário! - Chang virou-se, ao mesmo tempo que ecoou um longo grito de Tifei, amarrado à árvore, que se ouviu por toda a escola. Acenou energicamente e os guardas-vermelhos pararam logo de fazer cócegas a Tifei com as pontas das baionetas; recuaram, recolheram as baionetas junto ao corpo e ficaram à espera de novas ordens.
Chang voltou-se novamente para Huang.
- Tu vais provar o teu arrependimento - declarou, quase que perfurando com o olhar a cabeça negra de tinta de Huang. - Vais rastejar pelo chão como um batráquio e gritar: ”Eu sou a autoridade académica reaccionária Huang Keli! Eu sou o inimigo de classe Huang Keli!” Vamos, rasteja.
E Huang pôs-se de gatas no chão da escola e gritou o que Chang lhe mandara gritar. Passou pelo filho amarrado à árvore, a escorrer sangue das inúmeras feridas provocadas pelas baionetas, e gritou-lhe na cara: ”Eu sou o inimigo de classe Huang Keli!” e, enquanto gritava, sentiu uma grande felicidade por ver que Tifei ainda estava vivo e não tinha o corpo esventrado; deste modo, circundou o recinto da escola, confessando a sua culpa aos berros e pensando para si próprio: ”Se é isto que te dá gozo, tê-lo-ás. Mas deixa viver a minha família.”
- Um balde! - ordenou Chang aos seus guardas-vermelhos. - Um balde e um cabo ou um arame. Vão buscar ao templo pauzinhos de incenso! Depressa, depressa, disse eu!
No templo da aldeia já estavam seis guardas-vermelhos a trabalhar e a despedaçar, com a ajuda de machados e varas, a estátua de Buda feita de barro pintado, o altar dos sacrifícios, as faixas de pano com os pensamentos santos e os recortes nas portas, nas paredes e no tecto de madeira. O zelador do templo, um ancião com uma barba descorada e esbulhada, jazia numa poça de sangue junto ao Buda e começava a desaparecer sob os despojos da destruição do profeta de Deus. Duas mulheres estavam paradas em frente ao templo destruído, caladas, inertes, nos seus trajos do povo miao, as suas vestes habituais e não só em dias de festa, os cabelos longos ostentando enfeites de prata pura, batida à mão. Os guardas-vermelhos não lhes prestaram atenção e não as violaram como às mulheres de todas as aldeias por onde haviam passado - eram velhas de mais.
Entretanto, Huang já tinha percorrido a escola toda de gatas e detivera-se em frente a Chang. Olhou para cima e ficou à espera. Da casa do professor saiu um guarda-vermelho com um enorme balde metálico, dirigindo-se a eles em passo de corrida. Parecia conhecer os métodos de Chang, por isso enchera previamente o balde com pedras grandes e enegrecidas pela fuligem, pois serviam para circundar o fogo dentro de casa; e também já tinha prendido o arame na asa do balde com um nó, como se fosse uma aselha.
Chang acenou com a cabeça, satisfeito, e pousou o balde entre ele e Huang.
- É difícil assimilar um novo ensinamento, professor Huang - declarou. Depois pendurou a asa de arame do balde em torno do pescoço de Huang, certificando-se que não havia nenhum pedaço de tecido entre o arame e a pele. Mas o que é difícil? Só concebe o peso da dificuldade aquele que tem de arcar com ele. Levanta-te!
Huang tentou levantar-se apoiando-se nas mãos, mas acabou por cair sob o peso do balde cheio de pedras. Simultaneamente, sentiu a dor aguda do arame a furar-lhe a nuca. ”Tão fácil e tão eficaz”, pensou. ”O senhor é um bom inventor, camarada comissário. Mas vai ficar perplexo quando eu agora me puser de pé, mesmo que o arame me fure a carne e penetre até às vértebras da nuca.”
Huang respirou fundo e ergueu o corpo. Sem qualquer expressão no rosto, sem emitir um único som, pôs-se de pé perante Chang, com o balde atestado de pesadas pedras junto ao peito. Sentia o arame a cortar-lhe o pescoço, cada vez mais fundo, sentia o sangue quente a escorrer-lhe pelos ombros e pelas costas, mas fitava Chang com uma expressão serena nos olhos e disse-lhe, quando este, estupefacto, se calou:
- Estou de pé, camarada comissário.
- Diz: ”Eu sou o criminoso Huang Keli!”
Huang disse, num tom de voz normal e até com segurança, mas Chang não ficou satisfeito.
- Mais alto!
- Eu sou o criminoso Huang Keli! - repetiu Huang, aos gritos.
- Vai a correr até à escola e volta!
Huang fê-lo, mas quando voltou e se deteve à frente de Chang, as suas pálpebras estremeciam e a saliva escorria-lhe pelos cantos da boca. Não conseguia conter-se, sentindo vergonha por ter de revelar perante Chang a sua verdadeira fraqueza. ”Aguenta-te nas canetas”, dizia para si próprio. E depois, ordenou: ”Não estremeças, joelho esquerdo! Fica em pé, perna direita! Nuca, tu não sentes o arame que te está a cortar a carne! Corpo meu: não sentes nada! Não sentes nada! Huang Keli não sente dores!”
Um dos guardas-vermelhos saiu a correr do templo com tubinhos de bambu cheios de pauzinhos de incenso.
Chang pegou neles, retirou dois pauzinhos e enfiou um em cada mão de Huang. A seguir, vasculhou nos bolsos do casaco à procura de uma caixa de fósforos e, com esta na mão, apontou para o chão.
- De joelhos!
Huang pôs-se de joelhos. O balde rangeu ao contacto com o chão e a asa de arame deu de si. Mais uma vez, Huang instigou-se a si próprio: ”Não caias para o lado! Não ligues às tuas dores! Tu não tens dores! Tu não tens dores!”
Chang baixou-se junto a Huang e acendeu os pauzinhos de incenso. Das suas pontas elevaram-se finos fios de fumo e um cheiro a ervas e raízes.
- E agora, repete dez vezes: ”Grande Presidente MAO Tsé-Tung, peço perdão pelo meu crime!” Fala alto, para que as tuas palavras sejam levadas até ele através das nuvens.
E Huang fê-lo. Pediu perdão a MAO vinte vezes, como se MAO fosse o novo Deus todo-poderoso, que agora reinava sobre todos os chineses, purificados dos velhos pensamentos.
- Mas que raio de homem és tu! - volveu Chang, após vinte repetições. - Porque é que és um desgraçado de um professor e não és um revolucionário?
Depois de uma pergunta tão invulgar como aquela, Huang atreveu-se a retirar o arame do pescoço e a afastar para o lado o balde cheio de pedras. Chang não o impediu e não deu ordens para prosseguir com a chicana. Permitiu que Huang se levantasse e premisse a mão direita sobre a nuca, onde o arame havia feito um corte fundo na carne. A longa e estreita ferida ainda sangrava. Huang parecia que se tinha enfeitado com cores para uma festa: a cabeça preta e, sob ela, o vermelho do sangue.
- Eu nunca fui um homem de coragem, camarada comissário - respondeu Huang, surpreso por o deixarem viver, por ainda estar vivo. - Já foi preciso muita coragem para ser professor. O meu venerável pai ainda hoje não compreende porquê. Mas as culturas antigas e a moral da Humanidade sempre foram o meu modelo. Eu via como minha tarefa transmitir este modelo à juventude.
- Mas agora existe uma nova cultura e uma nova moral, Huang Keli! - Chang observou Huang, enquanto este apagava os pauzinhos de incenso, quase consumidos na totalidade, e desfazia o resto com os pés. - Já percebeste?
- Sim, já percebi - respondeu Huang, obediente. Olhou para a árvore, onde Tifei ainda estava amarrado. Posso desamarrar o meu filho?
- Sim. Vamos para tua casa! Ainda há muito a conversar com um homem que, a partir de agora, vai começar a difundir os ensinamentos de MAO.
Huang aproximou-se de Tifei e soltou-o, mas como era apenas a corda que o mantinha de pé, caiu nos braços do pai e deixou-se arrastar por ele até ao interior da casa, onde ficou prostrado na cama de Huang, junto à porta de entrada, o lugar de honra do chefe da família.
Huang Yuan, o avô, a quem de direito deviam essa honra, dissera ao filho, depois do nascimento de Tifei: ”Meu filho, agora tens a tua família e também és mais inteligente do que eu; agora, que estás à frente da família, deita-te na minha cama e gera muitos filhos com a Jinvan.” Mas tal não aconteceu. Após três abortos, apenas Lida nascera. O primeiro aborto acontecera porque, quando estavam a arar o campo de couves, o búfalo deu um encontrão a Jinvan; o segundo deu-se na sequência de uma queda nas escadas, após uma longa chuvada, que deixara o terreno de pedra e argila tão escorregadio como gelo; e o terceiro aconteceu simplesmente, sem qualquer causa; esvaiu-se em sangue e ninguém percebeu Porquê. Nove anos mais tarde, quando Huang já se convencera que a sua mulher, Jinvan, ficara estéril devido aos três abortos, Lida viera ao mundo. Fora um acontecimento que fez com que, pela primeira vez na vida, Huang sentisse as lágrimas a virem-lhe aos olhos.
Na ampla sala de estar, junto à lareira, Jinvan estava acocorada, encolhida e cheia de medo. Sentiu um violento estremecimento pelo corpo todo quando viu Chang e o marido, com a cabeça encharcada em tinta e a escorrer sangue pelos ombros e pelas costas. Depois de os guardas-vermelhos a deixarem, tinha trocado a roupa rasgada por roupa nova; os seus seios ardiam, por isso colocara sobre o peito um pano húmido. O seu olhar deambulava entre Huang e Tifei, que estava deitado na cama e gemia em voz baixa.
Chang olhou em volta, como se procurasse alguma coisa.
- Onde está a miúda? - perguntou. Jinvan encolheu-se ainda mais.
- Fugiu - respondeu com humildade, e baixou a cabeça. - Perdoe-lhe, senhor. Só tem seis anos, por favor...
Chang tornou a ficar ofendido.
- Por acaso tenho ar de violador de crianças? - gritou, furioso. - Levanta-te, mulher, e procura a tua filha! - Virando-se para Huang, acrescentou: - É a ela que deves o não te ter fuzilado. Quero vê-la!
Jinvan assentiu com a cabeça em sinal de obediência e saiu a correr, de modo que o pano húmido que trazia junto ao peito escorregou para o chão, vindo a cair quase em cima dos pés de Huang.
Huang viu o pano, reparou nas nódoas de sangue e comprimiu os lábios. Mas nada disse; apenas um ódio indómito lhe encheu o coração, um ódio dirigido contra MAO e os seus cúmplices, um ódio no qual ele, a partir daquele dia, se enroscou, como se fosse um cobertor de lã grossa de cabra.
- Posso oferecer-lhe um chá, camarada comissário? propôs, arrancando com violência de dentro de si cada uma das palavras proferidas. - Nós temos o nosso próprio chá, cultivado num socalco na montanha; um chá verde, aromático, com um sabor muito diferente do chá normal.
Podes, sim, Huang. - Chang sentou-se no canto da mesa, exactamente no local onde os seus guardas-vermelhos tinham torturado e violado Jinvan, e começou a balançar as pernas no ar. Huang desenroscou a tampa do grande termo, serviu o chá numa taça alta de porcelana pintada e deitou-lhe a água quente para dentro.
”Se tivesse veneno, deitava-o também”, pensou, revolvendo-se no seu ódio. ”O homem não sentiria o veneno, pois eu diria que era o sabor do chá cultivado por mim.”
Chang pegou na taça, sorveu o chá e achou que era bom. Sentiu um sabor a tangerina na língua e um outro aroma floral, que não sabia distinguir. De qualquer modo, não era o chá verde comum, que parecia água tingida e sabia a palha.
Jinvan descobriu Lida no estábulo, sob um molho de palha de arroz. Estava lá debaixo, escondida, imóvel, e sobrevivera a duas investidas dos guardas-vermelhos, que haviam revistado todos os cantos do estábulo, passando ao lado do monte de palha. Apenas um deles tinha enfiado a baioneta na palha, mais por brincadeira do que por desconfiança; a ponta aguçada da baioneta perfurara o chão argiloso bem calcado a pouco mais de dez centímetros de Lida. Agora, ouvia outra vez a porta a bater; permaneceu muito quieta no seu refúgio.
A voz da mãe, que lhe soou aos ouvidos de repente, não a fez denunciar o seu esconderijo. Se tivessem obrigado a mãe a ir à sua procura, e os guardas-vermelhos estivessem à espreita atrás dela, era melhor não aparecer. Ainda via o corpo despido da mãe deitado sobre a mesa e os soldados sobre ela com as calças descidas; ouvia os gritos da mãe; e, no seu indicador, ainda sentia o sangue seco que retirara de entre as suas pernas afastadas. Só decidiu sair do molho de palha quando Jinvan falou em voz alta.
- Lida, estás aí? Podes sair, estou sozinha!
- Eles não me encontraram - declarou. - Foram-se embora?
- Não, ainda cá estão. Mas já não nos vão fazer mais mal. o grande senhor, o comissário, quer ver-te.
- O homem que cheira mal da boca?
- Sim, esse. - Jinvan puxou Lida para si e tirou-lhe a palha do cabelo. - Tu salvaste-nos a vida, foi o que ele disse. O que é que lhe disseste?
- Eu disse-lhe que ele cheirava mal!
- E ainda estás viva...
- Fugi. Corro mais depressa do que ele.
- Viste o que os guardas vermelhos fizeram comigo?
- Sim. Tu deitaste sangue. Entre as pernas. Porquê?
- Conta ao teu pai o que aconteceu, Lida. Eu não consigo. - Jinvan abraçou Lida com mais força ainda. ”Não há dúvida que nos salvou a vida”, pensou. ”Se ela não existisse, hoje à noite enforcava-me num ramo de árvore.”
- Eles fizeram-te sofrer muito? - perguntou Lida.
- Sim. Mais tarde, quando fores grande, vais perceber.
- Pegou na mão de Lida e sentiu que aquela criança poderia renovar as suas forças. - Sê bem-educada com o grande comissário e não digas outra vez que ele cheira mal. Um senhor tão importante como Chang Lifu não cheira mal e, se cheirar mesmo, não se diz.
- Eu aprendi que não se deve mentir.
- Isto não é uma mentira, Lida. - Jinvan, com Lida atrás pela mão, saiu do estábulo e entrou pela porta das traseiras da casa. - É delicadeza. E a delicadeza é uma das virtudes que conferem honra aos homens.
Chang cumprimentou Lida com um longo olhar. Sorveu mais um gole do seu aromático chá, deixou que o líquido circulasse na boca, passou-o entre os dentes e só depois o engoliu. Fez sinal para que Lida se aproximasse, inclinou-se para baixo e soltou um sopro.
- Ainda cheiro? - perguntou. Evitou a palavra ”mal”, pois esta ofendia-o.
- Não, grande senhor. - Lida fítou-o nos olhos com valentia. - Agora já não. E é a verdade, não é por delicadeza.
Chang endireitou-se e riu-se.
- Tens uma filha esperta, professor Huang. Toma conta dela como dos teus olhos. Não é segredo nenhum que eu também matei crianças ou mandei matá-las. A criação de capitalistas reaccionários. As crianças de hoje serão os inimigos de amanhã; esta é a única verdade antiga que eu respeito. Mas tanto vocês como a vossa filha continuarão a viver. Ela tem os olhos de um rouxinol... ouvi um rouxinol uma única vez na vida e vi-o. Nunca o esquecerei. - Respirou fundo, deslizou do tampo da mesa e pôs-se de pé, fazendo uma festa nos cabelos de Lida. - Ficamos cá, professor Huang. Mulher, faz-nos uma boa refeição para o jantar. Saiu de casa para informar os seus guardas-vermelhos que ficariam em Huili.
Huang pegou na toalha com sangue.
Jinvan baixou a cabeça, anuindo.
- Sim, é verdade - confessou em voz baixa. - Sou uma mulher indigna de ti.
- Hoje à noite vou matar o Chang. - Huang cerrou os punhos. - Hoje à noite - asseverou, com toda a gravidade, porém num tom solene, pois nunca na vida lhe passara pela cabeça matar um ser humano e, quando lia nos jornais as notícias de milhares de chineses, milhões até, que se haviam tornado vítimas da luta pela Revolução Cultural de MAO, abanava a cabeça e dizia: ”Mas porquê? Será que alguém me pode explicar a mim, um ignorante professor da escola pública, estes assassínios em nome da cultura? Destroem os templos milenares... para quê? O que é que eles têm a oferecer de melhor, além da pequena bíblia vermelha dos ensinamentos de MAO, que até têm muito que se lhe diga, se pensarmos logicamente? Meus caros, o nosso mundo está a cair no horror de há um par de anos para cá! Quem diria que tal seria possível! Nós, um povo com cinco milénios de tradição! Fundem-nos como sucata e transformam-nos em novos seres anónimos. Quem consegue perceber o que se passa?”
Como é evidente, Huang não falava em voz alta, pois partia do princípio que também na sua aldeia existiam denunciantes que contavam tudo o que se passava ao secretário do Partido. Este era um homem com o qual não se conseguia discutir e não se podia criticar nada à sua frente, pois ia imediatamente denunciar tudo à direcção do Partido em Kunming.
Logo a seguir aparecia um comissário e uns quantos guardas-vermelhos que pegavam nos críticos e os levavam. Nunca mais se sabia deles. E quem se atreveria a perguntar alguma coisa? Só uma vez se disse que tinham sido expatriados para comunidades populares e que estavam bem; trabalhavam sob o espírito de MAO e da grande revolução.
Mas naquela noite, em que Jinvan lhe mostrara o pano com manchas de sangue e em que ele próprio vira o estado em que ficara a parte inferior do corpo da mulher, a promessa de matar Chang deixara de ser um pensamento íntimo.
Tinha de ser feito. Até um mísero professor de uma escola da aldeia tem a sua honra.
No canto da sala, Tifei, o filho esquartejado, estava deitado sobre um cobertor de lã e a mãe tratava dele. Passava com um unguento verde, com cheiro a rosmaninho, sobre as suas feridas e marcas de chicote, limpava o suor do seu rosto tremente e dizia, vezes sem conta:
- Estás vivo, meu filho. Alegra-te por estares vivo. Eles tiveram piedade de nós. E nós vamos viver... ele já não nos vai matar. É um hóspede na nossa casa.
- Ter um dragão como hóspede nunca trouxe sorte a ninguém, mãe.
- Amanhã fazem-se à vida e depois volta tudo ao normal. O pai vai ler em voz alta os escritos de MAO para provar ao Chang que compreendeu as Palavras do Grande Presidente. Vai ensinar na escola a sabedoria de MAO.
- Então quer dizer que vamos rastejar como as rãs?
- Mais vale ser um verme a rastejar na terra do que um herói sem cabeça.
- E se tu... ficares com uma criança desse diabo, mãe?
- Changmin, a sábia, trata disso. Diz-se que já poupou a vida a trinta e nove crianças. Não irá cometer um erro comigo.
Lida, a pequena, estava sentada na soleira da porta e observava os guardas-vermelhos, os ”pequenos generais” de MAO, enquanto estes se reuniam no recreio da escola, escutando atentamente as palavras de Chang. Este comunicava-lhes que iriam dormir na aldeia e que cada um deveria procurar um sítio para dormir, mas sem torturar ou matar os donos das casas. Também deveriam deixar as mulheres em paz. Contudo, nesse ponto, muitos dos guardas-vermelhos começaram a cochichar e a demonstrar visivelmente a sua má vontade. Era precisamente a perspectiva das mulheres que rumorejava nas calças dos homens e agora diziam-lhes que não podiam tocar nos destroços de guerra, nem sequer tirar prazer deles! Teria Chang o direito de dar uma ordem daquelas? Ele não era um mero comissário político? Não era comandante militar! Não obstante, desde o início que tomara as rédeas do comando daquela unidade, todos eles se haviam sujeitado, e agora era impossível dizer-lhe na cara que não mandava neles; Chang era competente para a política e a ideologia de MAO, mas não para a guerra contra a burguesia capitalista.
Chang mandou dispersar a tropa. Os seus homens afluíram aldeia fora, ocuparam as casas, deram pontapés nos traseiros dos humildes mas queixosos camponeses, exigiram comida boa, vinho de arroz e cerveja de milho, bem como uma boa sopa de tofu, cogumelos e verduras. Por todo o lado, as estreitas chaminés de pedra e argila deitavam fumo; por toda a aldeia cheirava a legumes cozidos e a galinha guisada.
Chang regressara à casa de Huang e olhava em volta.
Huang fez uma vénia e, como sabia que a cortesia é um dos elementos da vida (mesmo quando se tem como objectivo matar alguém), ofereceu a sua cama a Chang. Naquela cama, Huang e Jinvan haviam gerado o filho Tifei e a filha Lida; e mesmo que fosse um acto perfeitamente natural, para a alma de Huang tinha um significado profundo. Mas sobre isso não se falava.
- Se a minha cama não lhe parecer demasiado indigna e suja, será a sua cama, camarada comissário - ofereceu Huang, com submissão. - Dorme-se bem aqui. É macia e confortável para as costas, aliás, para o corpo todo.
- Aceito. - Chang sentou-se na cama e estendeu as pernas. Em seguida, deteve o olhar em Jinvan e na sua desonra, enquanto esta atiçava o lume e colocava mais madeira no quadrado formado pelas pedras. - Já lhe pedi desculpa?
- perguntou-lhe Chang.
- Por quê, meu senhor? - retorquiu Jinvan com humildade.
- Pelo que os meus soldados lhe fizeram. Não era a minha vontade, não foi ordem minha. Mas quando vêem mulheres bonitas, a parte humana deles desaparece e transformam-se em animais selvagens. Um tigre não observa simplesmente a sua presa, dilacera-a. Veja a coisa desta maneira, senhora Huang: a senhora foi apanhada por um bando de tigres.
- Um tigre é um animal solitário; não vive em grupo como o leão - observou Huang com delicadeza.
- O professor! - Em vez de ter um ataque de fúria, Chang riu-se da lição. - E uma hiena?
- É um animal que se movimenta em grupo.
- Então, a Jinvan foi apanhada por um grupo de hienas. - Chang riu-se novamente e bateu nas suas gordas coxas. - Uma revolução precisa de vítimas... senão, para que serve? São as vítimas que conferem a uma revolução o seu lugar histórico e o seu reconhecimento. Ainda falaríamos na Revolução Francesa se milhares de cabeças não tivessem rolado e se o povo se limitasse a ter marchado, rejubilante, com as bandeiras ao vento?
- E quantos mortos já custou até agora a nossa Revolução Cultural? - retrucou Huang. - Sabe-se quantos, camarada comissário?
- Não exactamente. A ”limpeza das hordas de classes”, como Lin Biao lhe chamou, foi muito severa. Deng Xiaoping disse uma vez: ”Esta era exige cem milhões de vítimas.” Aí, eu é que fiquei admirado. Em mais de um milhar de milhões de chineses só cem milhões de mortos! Admita, professor Huang: fomos humanos! - O rosto de Chang contraiu-se num sorriso pérfido. - Ninguém deu pela falta deles, assim como ninguém teria reparado se nós tivéssemos apagado a vossa aldeia do mapa.
- Que vantagem traria isso à Revolução Cultural?
Nenhuma. Teríamos feito um relatório, em que lhe chamaríamos ”limpeza”, e com isso ficaria tudo resolvido e esquecido. - Chang estendeu-se na cama, pôs as mãos debaixo da nuca e fitou a pequena Lida, sentada com a mãe junto ao lume. O cheiro a galinha assada espalhava-se pelo compartimento. - Tê-lo-ia mandado fazer, Huang Keli, se a tua filha não me tivesse feito lembrar a minha própria filha.
- Tem uma filha, camarada comissário?
- Tinha. Morreu! - exclamou Chang com frieza. Em 1966 começou a Grande Revolução do Proletariado. Em 1969 (na altura eu era apenas um pequeno secretário distrital do Partido), trouxeram a minha filha para casa na plataforma de um camião: tinha sido violada e morta com sete facadas. Até hoje, ninguém sabe como aquilo aconteceu, quem foi e onde se passou. Encontraram-na junto a um monte de tijolos de argila acabados de cozer, atrás de um forno. - O seu olhar permaneceu fixo em Huang, em silêncio. Em seguida, acrescentou em voz baixa: - Desde então, não tenho coração nem alma. Mas os olhos da tua filha devolveram-me uma parte. É só por isso que vocês ainda estão vivos.
Huang calou-se. Não via necessidade de continuar a conversa... nada mudara e a alma de Chang não despertara para a vida. Comeram a galinha assada com arroz, regada com três garrafas de cerveja de milho; também havia couve e espinafres de água com tofu, o queijo de soja, tudo cozido num tacho de ferro. Chang estava satisfeito, cuspia alegremente os ossos de galinha para o chão, querendo com isso dizer o quanto lhe estava a saber bem o jantar de Jinvan. Depois deitou-se outra vez na cama de Huang, esfregou a barriga protuberante e sentiu sono.
Pouco depois, já tinha adormecido; Huang virou-se para
a mulher e disse em voz baixa:
Ainda pode dormir uma hora; quando estiver num sono profundo mato-o. Vou cortar-lhe a garganta. Tens uma faca afiada?
- A faca que uso para colher as couves, Keli. Ainda ontem estive a afiá-la nas pedras. Corta papel como se fosse ar.
- Então, aguardemos!
- Mas tu és capaz de matar uma pessoa, pai? - perguntou Tifei, o filho esquartejado, do seu canto escuro.
- Nunca tentei. É a primeira vez. Mas vou conseguir.
- Deixa-me ser eu, pai - insistiu Tifei. - Sou jovem e consigo esquecer mais depressa do que tu. E onde é que estás a pensar meter o morto?
- No poço velho. Vou deitá-lo para dentro do poço velho. É suficientemente fundo para alguém o descobrir. Huang abanou a cabeça veementemente. - Não, não, meu filho. Eu mato-o. Eles violaram a minha mulher.
- A tua mulher também é minha mãe.
- É um bom motivo. - Huang aproximou-se do lume, à volta do qual Jinvan e Lida estavam sentadas, a comer o resto do arroz. Mergulhavam o arroz numa pequena tigela de porcelana com molho de soja antes de o enfiar na boca. Lancemos os dados!
Huang pegou numa caixa vermelha envernizada, retirou lá de dentro quatro dados de como de búfalo branqueado e polido, pesou-os na mão e atirou-os para o chão de argila calcada. Uma vez o seis, uma vez o cinco. Lançou ao filho um olhar de triunfo e esfregou as mãos, como se tivesse obtido um bom preço na venda da colheita do arroz, que todos os anos vendia na feira de Xiaguan.
- Repete esta, filho! - exclamou, entusiasmado.
Tifei rolou os dados na palma da mão, respirou fundo ruidosamente e depois lançou-os para o chão. Um quatro e um um.
- É muito pouco! - exclamou Huang. - Sou eu que mato o Chang. Mas vamos chegar a um acordo, uma espécie de entreajuda: eu corto-lhe a garganta e tu carrega-lo até ao poço e atira-lo lá para dentro. Deste modo, cada um de nós faz alguma coisa pela mãe.
Huang olhou para o relógio de chapa amolgada que se encontrava pendurado na parede, junto a um póster onde se via uma cena de uma ópera chinesa tradicional, o único enfeite colorido da sala.
Ainda faltava uma hora.
Na cama, Chang começou a ressonar alto, como se estivesse a assobiar. Tinha as pernas completamente abertas e as calças estavam tão esticadas que deixavam claramente ver a forma do seu sexo. ”Vou cortar-lhe a garganta”, pensava Huang e sentia um frio gelado dentro de si. ”Primeiro a garganta e depois o pénis, este pénis maldito que já violou tantas mulheres e raparigas. E o deus dos Mortos perguntar-lhe-á: ”Onde está o teu sexo, Chang?” E Chang, envergonhado, terá de responder: ”Cortaram-mo e queimaram-no. Era a minha segunda arma: na mão direita a pistola, nas calças o meu pénis. Foi assim que conquistei províncias inteiras. Agora, desarmaram-me completamente.” E o deus dos Mortos dará uma bela gargalhada e enfiará Chang na secção dos eunucos. Haverá vergonha maior para Chang do que um tratamento destes?”
Quando os ponteiros do relógio deram a passagem de uma hora, Jinvan aproximou-se de Huang, que estava sentado num banquinho, imóvel e calado, e entregou-lhe a faca das couves. Huang pegou na faca, premiu a mola com o polegar e anuiu com a cabeça. Estava escuro; apenas se via o brilho do carvão vegetal a ser consumido pelo fogo.
Lida estava deitada sob o seu cobertor e dormia profundamente. Jinvan misturara no chá verde da menina um pouco de aguardente de arroz e o álcool aquecido proporcionava-lhe um sono quase anestesiante.
- Ela não deve assistir - dissera Jinvan a Huang. Uma cena destas fica na memória de uma criança até à sua morte. Vamos dizer-lhe que Chang se foi embora de madrugada.
- Mas os soldados dele ainda cá estão.
- E um comissário de tão alta patente não pode viajar sozinho?
- Pode, se levar o seu carro. Mas o carro de Chang está Parado à porta da escola. Um comissário anda a pé? Quem é que vai acreditar? Deixemos as coisas correrem naturalmente - concluiu Huang. Pôs-se de pé, pegou no punho do grande e largo facalhão e aproximou-se de Chang, cujo ressonar ecoava no silêncio da casa. Através da janela e da porta que dava para o pátio interior entrava a luz láctea de um quarto da Lua, deixando perceber os contornos do homem que dormia. Apenas a sua cabeça estava um pouco iluminada, e era precisamente a parte da garganta onde Huang queria enfiar a faca.
Huang estudou a cabeça de Chang com minúcia, ao mesmo tempo que os pensamentos afluíam ininterruptamente. ”Para sermos exactos, ele não tocou na Jinvan”, dizia Huang para si. ”Foram os seus guardas-vermelhos, os ”pequenos generais de MAO”. Assolaram a aldeia inteira, incendiaram tudo, espancaram os camponeses, violaram as suas mulheres e saquearam as suas provisões, chacinaram os animais e torturaram o Tifei. Nada disto foi obra dele, do comissário Chang Lifu, mas, por norma, o comandante é responsável pela sua tropa. Para que mais serve ser comandante? Por outro lado, considerando a questão de uma perspectiva que não o ódio, ele dorme na minha cama, confiante, sem medo, sem a mínima dúvida de que entre nós está instalada a paz. Dorme o sono dos justos e, agora, é suposto eu cortar-lhe a garganta e o seu corpo ser atirado para as profundezas de um poço seco há anos.
”Como será o amanhã? Amanhã, quando ele acordar? Prosseguem os horrores, volta a ser o impiedoso comissário. Aí, segue em frente e incendeia a próxima aldeia. Temos de o matar.”
Mas Huang hesitava. Pesava a faca na mão, ouvia atrás de si, na escuridão, a respiração pesada de Jinvan e de Tifei, pois também eles nunca haviam visto um homem a dormir ser abatido como um carneiro.
- Dá-me a faca, pai. - Huang ouviu a voz do filho vinda da escuridão. - Eu não vou ter remorsos.
Huang abanou a cabeça. Ajoelhou-se no chão de argila, junto à cama, e inclinou-se ainda mais sobre o rosto de Chang.
- Ele protegeu a Lida - insistiu, com voz rouca.
- Porque ela ainda é uma criança. Se a Lida tivesse mais três anos também a teriam violado.
- Não devemos fazer acusações sobre coisas que não aconteceram. - Huang pôs-se de pé e enfiou a faca no cinto de linho entrançado. - Aquele que consegue perdoar tem a alma mais pura. Vamos esperar pelo próximo dia!
- Então, solta-se outra vez o dragão e começa a lançar fogo! - retorquiu Tifei com amargura. - Tu nunca serás um herói, pai.
- Também não quero ser um herói. Sou um professor, que ensina as crianças a levarem uma vida generosa. Os heróis não são feitos de madeira de magnólia, mas de teca, e eu gosto das magnólias.
Assim, Chang sobreviveu e acordou com o canto de um galo colorido, que se tinha posicionado precisamente à frente da porta da casa. Sentou-se na cama de Huang, olhou em volta e reparou que o professor ainda estava sentado no chão, junto à sua cama, como se tivesse velado por ele a noite inteira. E também viu a faca larga e polida no seu cinto, um objecto que não combinava com um professor como Huang; então, percebeu de imediato que tinha acordado milagrosamente para uma nova vida. Fitou os olhos cansados de Huang.
- Porque é que não o fizeste? - indagou com rudeza.
- Matar uma pessoa que está a dormir não é um acto honroso - respondeu Huang.
Foram as últimas palavras trocadas sobre o assunto. Chang sentou-se à mesa e enfiou o pequeno-almoço pela boca abaixo; bolinhos de levedura, quentinhos, uma sopa de massa com pedacinhos de tofu, flor de lótus cozida e carne de galinha picada, picante e servida fria. Durante todo o pequeno-almoço, ninguém disse uma palavra, mas, de quando em quando, Chang olhava para a pequena Lida e era um olhar cheio de carinho.
- O que é que tem em mente fazer, camarada comissário? - perguntou Huang, quebrando finalmente o silêncio.
- Nós vamos partir. Dentro de duas horas ver-te-ás livre de mim. Mas voltaremos a ver-nos.
- Não anseio por isso - retorquiu Huang, enchendo-se de coragem. - Por que motivo haveria de regressar?
- Quero ver o que vai ser da Lida. - Chang levantou-se, endireitou o cinturão onde guardava a pistola, meteu a mão no bolso do casaco de onde retirou um molho de notas, e atirou-as para o chão, para a frente de Jinvan. Uma das notas flutuou em direcção ao lume e Lida apanhou-a rapidamente, antes que ela caísse nas brasas.
- Pela tua comida, mulher! - declarou Chang.
- É dinheiro roubado - observou Huang.
- Vê-se isso no dinheiro, professor?
- Mas eu vou saber quando o gastar. Cada uma das notas tem uma mancha de sangue.
- Então lava-as, pendura-as na corda e deixa-as secar.
- Chang riu-se, mas logo a seguir a voz soou, zangada. Sabes quanto sangue e suor está oculto no dinheiro dos capitalistas? No entanto, toda a gente o aceita e ainda lhe faz uma grande vénia. É precisamente isso que queremos mudar. O povo deve saber o que vale. Estamos num grande e histórico processo de transformação radical. Professor, que sabes tu dos novos tempos? Nada. Nunca leste o que o grande Lin Biao escreveu: ”Fora com o lixo! Precisamos de sangue fresco nas nossas hostes!” Também tu estás implicado. Tu és o lixo. O ontem. Nós trabalhamos para o futuro. És filiado no Partido?
- Não.
- Mas devias ser. Por ti e pelos teus filhos e por tudo. Como membro do Partido, tens portas abertas e ouvidos atentos. Não vivas no passado; vive para o futuro. Uma nação retoma a consciência da sua identidade enquanto nação, na medida em que as pessoas se transformam em pessoas novas, no espírito de MAO. - A voz de Chang já soava, entretanto, quase solene, como se estivesse a fazer um discurso para uma assistência de mil pessoas. - Tens de fazer três juras para seres um chinês do próximo século: tripla fidelidade! Fidelidade ao Presidente MAO, fidelidade aos ideais de MAO e fidelidade à linha política de MAO. Percebes?
- Percebi - respondeu Huang, com a voz arrastada. Chang prosseguiu em tom instrutivo:
- O grande teórico do Partido, Yao Wenyuan, dizia: ”A classe operária tem de liderar tudo!” E MAO arranjou a solução: ”É absolutamente necessário que a juventude com instrução vá para o campo!” Aprender com os camponeses, não com os intelectuais, é o lema. E quem tem o dever de ensinar aqui? Tu, Huang Keli! Tu, como professor, tens o dever de ensinar aos teus alunos o espírito de MAO. Até agora, falhaste.
Eu não conhecia os novos ensinamentos de MAO - retorquiu Huang, humildemente.
- Agora já conheces. - Chang avançou até à trave da porta e tornou a virar-se. Fitou a pequena Lida e um sorriso doce tomou conta do seu rosto. - Voltarei. Quando, não sei. Mas voltarei. E nessa altura chegarás ao pé de mim e declamarás um poema de MAO.
- Com certeza, camarada comissário - anuiu Lida, com bravura. - Adeus.
- Adeus.
Chang afastou-se em grandes passadas, dirigiu-se para junto dos guardas-vermelhos, que o aguardavam na rua, e transformou-se novamente no temível dragão, tal como todos o conheciam. Soaram as ordens, um grupo de crianças rodeou a tropa e, à medida que o grupo descia a colina onde se encontrava a escola, marchando dali para fora, todas as portas das casas da aldeia se fecharam, não se via vivalma; nem os cães se mexiam. Apenas ao fundo da rua, já na estrada, onde se situava a miserável sede do Partido da aldeia, o secretário do Partido acenava com veemência, apesar de ter a cara cheia de nódoas negras: tinham-no espancado com violência, pois, sendo o representante do Partido nem por isso as pessoas da aldeia eram verdadeiras comunistas. ”A melhor maneira de convencer os falhados é com o punho”, era um dos lemas de Chang Lifu, e o sucesso obtido até então tinha-lhe dado razão.
O que é um mês, um ano, na China? Os campos verdejam, dão fruto e são ceifados; é neles e nos arrozais em socalcos que se criam os esteios da vida, a fartura quotidiana. Os fornos de tijolo comunitários, propriedade de cada uma das aldeias, deixam sair o fumo através das suas fendas; as carvoeiras impregnam o ar com o seu cheiro, depois aparece o vento, que sopra o fumo e o cheiro através da planície, em direcção aos montes; e o céu de Verão brilha, quente, sobre as figuras curvadas nos campos; e o bando de patos, a grasnar e a gingar, atravessa a estrada a caminho das lagoas, mergulhando à procura de sargaço e de algas, e tudo é tão pacífico como era há três mil anos atrás.
Contudo, nos mercados semanais ouvem-se as conversas dos viajantes longínquos, as novidades das grandes cidades, de Kunming, Dali e Lijiang; até se encontra gente que vem de Xangai ou de Changdu, que contam maravilhas, a quantidade de coisas que para lá há, máquinas com grandes braços dentados, que levantam tanta terra ou pedra de uma só vez como se fossem dez homens a trabalhar; máquinas da largura de estradas, que deixam no seu rasto um rijo pavimento de alcatrão, totalmente concluído, endurecido depois por rolos gigantescos. E depois regressa-se à aldeia e olha-se na direcção dos campos que cintilam à luz do Sol, como um tapete verde, e as pessoas dizem para si próprias: ”Para que é que precisamos destas máquinas insaciáveis? Aqui trabalharam as nossas mãos e ficou bonito. A nossa terra. Ninguém nos pode tirar a nossa terra. Nela descansam os restos mortais dos nossos antepassados; o seu espírito paira sobre os campos e regozija-se com o que nós fizemos. Isto é felicidade, que vale mais do que uma mão-cheia de notas; isto é a vida, que oferecemos a nós próprios, todos os dias, ano após ano, século após século. Não precisamos de sapatos manufacturados em Hong Kong. A avó fá-los com a mesma qualidade, de pele de cabra, e as nossas batas de camponeses, tecidas pelas nossas mãos, são-nos mais úteis do que um fato de seda de Pequim.”
O que é o tempo na China? Uma parte da eternidade, pois a China é eternidade.
E assim, os anos foram passando, ao sabor do curso normal do Sol e da Lua.
Em Huili, pouco mudara desde a partida de Chang e dos seus guardas-vermelhos. Soube-se que, em 1976, MAO Tsé-Tung falecera, com oitenta e dois anos de idade; soube-se dos actos de horror cometidos por um grupo de políticos, aos quais chamavam o ”Bando dos Quatro”, constituído por Jiang Qing, a viúva de MAO, Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wang Hongwen, que foram presos imediatamente após a morte de MAO, mas o facto de o sobrinho de MAO, MAO Yuanxin, ter sido fuzilado por oferecer resistência à prisão não despertou grande interesse. Era longa a distância que separava Pequim da pequena aldeia de Huili, localizada no interior da província de Yunnan, na zona montanhosa de Yungu, onde as galinhas dormiam junto dos bebés e os leitões pretos, com as suas barrigas protuberantes, comiam da mesma gamela dos cães.
O professor Huang Keli tinha convertido os conselhos de Chang numa espécie de liberdade pedagógica, misturando-os com o culto do povo miao, e agora, a par dos conhecimentos tradicionais, ensinava também poemas de MAO, de modo que cada um dos alunos soubesse de cor quatro poemas, o que certamente satisfaria todos os fiscais do Partido que por lá aparecessem.
Porém, nunca mais voltou a aparecer nenhum fiscal; o comunista da aldeia andava feliz por não o espancarem e todos os meses redigia o seu relatório positivo, enviava-o para Kunming, onde era lido, amachucado e atirado para o caixote do lixo.
A violação de Jinvan não tivera consequências. Changmin, a anciã, que já havia retirado muitas crianças, antes do tempo, das barrigas das mães, não precisou de entrar em acção no caso de Jinvan.
- O deus da Sorte estava connosco - declarara Huang, depositando no seu altar uma tigela cheia de maçãs, tangerinas e fatias de pato assado.
Lida tornara-se uma boa aluna. Ficara mais alta que o Pai e que a mãe, desabrochara como uma borboleta do seu casulo e transformara-se numa lindíssima rapariga que, aos treze anos, já ostentava uns seios redondos e fartos; por isso só tomava banho no rio se estivesse sozinha, pois os rapazes não a largavam de vista e os seus olhos emitiam um brilho que ela interpretava correctamente e não desejava.
Huang tinha na ideia mandá-la para Kunming, onde vivia uma tia, com quem Lida poderia viver, para poder frequentar um liceu e vir a ser professora. Mas ela dizia-lhe:
- Pai, meu bom paizinho, deixa-me ficar aqui. Eu não tenho aptidão para professora.
- Tu és uma menina inteligente - volvia Huang. A inteligência não é um bem individual; a inteligência é um bem do povo. Para isso é que os deuses te ofereceram a inteligência. Não a desperdices. Após o fim da Revolução Cultural, o professor voltou a ter valor na China. Deng Xiaoping afugentou os fantasmas de MAO, o comunismo dele é real, o ser humano voltou a ser respeitado, as velhas tradições renasceram, por todo o país inicia-se uma nova reconstrução.
Oh, sim, entretanto, Huang já era versado em política e lera e ouvira muita coisa. Em 1968, MAO exigiu: ”Desertem as cidades, o campo precisa de vós!” e treze milhões de jovens e fanáticos partidários de MAO mudaram-se para o campo, para construírem um novo Estado de camponeses com as próprias mãos.
- Fomos inundados por quinze milhões, filha, e o que é que eles nos deixaram? Bandeiras, dísticos, jornais de parede, monumentos a MAO e grandiosas máximas. Mas isso já passou. A China volta a renascer das trevas. E é preciso haver professores que proclamem esse renascimento. Lida, tu vais para Kunming estudar.
E Jinvan, a mãe, insistiu:
- Sofremos tanto, filha, colabora na construção de uma nova era sem sofrimento. Ficaremos orgulhosos de ti. A aldeia inteira, todos os Miao. É um dever teu, filha.
Mas de que é que servia aquela conversa toda a uma rapariga que era tão teimosa quanto inteligente? Lida ficou em Huili; Tifei, o filho, por outro lado, deixou a aldeia. Era com ele que o velho Huang contava para assumir o trabalho nos campos e nos arrozais. Quando o velhíssimo carpinteiro Huang Yuan, o avô, cujo esqueleto tinha apenas uma leve cobertura de pele seca, estava a caminho da morte, virou-se para o neto Tifei e, deitado no seu colchão de palha, disse-lhe, com a sua voz rouca e trémula de ancião:
- Não desprezes a nossa terra. O que é que vais ser, o que é que vais fazer?
- Avô, eu vou conduzir um camião - respondera-lhe
Tifei-
Tu és um camponês.
Não. Eu vou conduzir um camião, talvez até uma camioneta, para transportar as pessoas através do país. E vou poupar, iuane a iuane, até conseguir comprar o meu próprio camião e ganhar muito dinheiro.
- Vais ser um capitalista!
- Vou.
- Oh, Deus, como é difícil morrer com esse pensamento! - O ancião rolou os olhos, tossiu levemente, o que soava a um último estertor, e distendeu o corpo, como se já estivesse no caixão. - Ele quer abandonar a terra dele. Quer andar a transportar pessoas. E os campos murcham, o arroz definha ao sol, os charcos secam. Fica tudo um terreno selvagem. Porque é que ainda estou vivo para assistir a isto? Keli, meu filho, não me dês mais de comer... quero morrer.
Como é evidente, Huang Yuan continuou a comer as suas refeições, mas foi ficando cada vez mais magro, mais pele e osso, mais pequeno. E, de repente, morreu. Uma manhã, encontraram-no deitado no seu colchão, de boca aberta, como se tivesse querido chamar Tifei para lhe dizer, mais uma vez, que um camponês nunca abandona a sua terra. Enterraram-no num caixão feito por ele próprio. Era um caixão de madeira rija, que não apodrecia facilmente e, como tal, mumificava o cadáver; desse caixão, a sua alma exortaria quem se aproximasse da sua sepultura e com ele quisesse falar. ”Meus descendentes, o vosso chão é a vossa vida. Foi assim ao longo de milénios e assim será ao longo de muitos mais. Neste mundo de progresso há algo que não muda nunca e isso é o vosso solo!”
Assim, Tifei partiu e abandonou a aldeia. Foi para Kunnúng e aprendeu a guiar um automóvel, a repará-lo e a conhecer a alma de um motor. Escrevia cartas a transbordar de entusiasmo, e quando, finalmente, lhe permitiram guiar um camião sozinho pela primeira vez, festejou o acontecimento com os colegas e apanhou uma bebedeira tão grande que caiu para debaixo da mesa, onde permaneceu o resto da noite a dormir, numa poça de cerveja, aguardente e ossos de galinha.
Lida ficou na aldeia, ajudando o pai e a mãe nos campos. Aos dezassete anos, era com esforço que conseguia manter os homens longe de si. Tinha desabrochado como uma rosa, o seu andar era elástico e delicado, o seu longo cabelo preto flutuava ao sabor do vento da montanha como um véu de seda e, quando o calor apertava e ela desapertava os botões da sua bata, os seus seios firmes ficavam morenos, parecendo ainda mais firmes à luz do Sol. Era como se chupassem os raios solares e os transformassem em beleza.
Huang, o pai, apercebeu-se perfeitamente da transformação da filha e um dia disse para Jinvan, a sua mulher:
- Mulher, a nossa filha está madura para casar. Mas com quem? Não há ninguém na aldeia de quem ela goste. Já lhe chamam ”a orgulhosa”. A rapariga com os olhos de dragão e os seios de jade. Ela até desdenha o Hong Hangyu, o filho do comerciante de Nanhua, que nos compra a mercadoria. Era um bom partido, além de instruído. Mas Lida nem sequer olha para ele e, quando o faz, é como se olhasse através dele, como se ele fosse de vidro. Onde é que isto vai parar? Eu ainda quero viver para embalar um neto ao colo e cantar-lhe uma canção. Não se interessa por homens. Absolutamente nada. Que raio de rapariga é esta? Todas as colegas de escola já estão casadas, têm filhos, estão a construir casa própria, mas a nossa filha fica o dia todo sentada nos campos, a falar com os patos, até dá comida a um grou! A cavar e a mondar, a dirigir a água de um campo para o outro, a conduzir o búfalo, a arar a terra e a empilhar pedras para fazer novos muros. Devias falar com ela, mulher... ela ouve as minhas palavras em silêncio, ri-se e continua calada. Está à espera de quê? De um príncipe encantado? Nunca vai ter um, se continua a chegar dos campos com as pernas cheias de lama e o suor a colar-lhe os cabelos à cabeça.
- São palavras desperdiçadas - retorquiu Jinvan. Sabes o que me responde, homem? ”O Tifei foi-se embora, vocês estão a ficar velhos, mas a terra continua viva e precisa de ser tratada. Eu adoro a terra... O que é um homem em comparação com um arrozal, onde despontam as jovens plantas?”
- Mas isto não é normal! - vociferou Huang, quase horrorizado com a filha, que ele já não conseguia compreender. - Vai chegar o dia em que vão andar atrás dela a troçar e a chamar-lhe nomes.
- Homem! Que raio de ideia! - exclamou Jinvan, surpreendida. - Se calhar ainda não chegou a hora dela. Cada pessoa desenvolve-se de maneira diferente.
- Ela sangra desde os catorze anos. É uma mulher madura. Tem que sentir alguma coisa além de amizade pelos animais e pela terra. Sabes que mais? - Huang fitou a mulher com uma expressão maliciosa. - Vamos convidar o Hong Hangyu. Oficialmente. Vamos dar uma grande festa, com tanta comida deliciosa que a mesa grande será pequena de mais. Talvez até descubram que gostam um do outro, não? Só temos de os aproximar. Hangyu é um homem atraente, ficam bem juntos. Um casal eleito pelos céus. E, num tom de voz mais baixo, acrescentou: - Além disso, o Hangyu é um homem rico.
- A Lida despreza o dinheiro. A quantidade de vezes que já falei com ela sobre isso! - lamentou-se Jinvan, com tristeza. - ”Filha”, disse eu, ”quando fores professora em Kunming vais ter um grande prestígio, vais ser um modelo para os alunos, que vão imitar-te e levar os teus ensinamentos para o seio da sua família. A tua inteligência tem poder, pode ajudar a reconstruir a nova China, tal como Deng Xiaoping, Hu Yaobang e Zhao Ziyang a concebem, e se formares muitos alunos nos três grandes bens, o domínio da política, a mentalidade comunista e o desporto, as pessoas vão respeitar-te e até convidar-te para fazeres parte de uma associação. Podes vir a ser famosa, tens o grande espírito dentro de ti.” Mas não, ela só ri, faz-me uma festa na cara e, quando eu choro de preocupação, limpa-me as lágrimas dos olhos e das rugas, torna a sair para os campos, vai dar de comer aos patos e põe-se a dirigir o búfalo com o arado e a incentivá-lo aos gritos. O Tifei já se foi embora, fez-se à vida, apesar de pertencer à nossa terra. A Lida nasceu para voos mais altos. É completamente diferente das outras raparigas. Quando anda, é como se uma nuvem a levasse.
- Temos de falar com ela, falar e falar - insistiu Huang. - A falar é que a gente se entende. O silêncio é o barco da morte. Vamos depositar todas as nossas esperanças no belo Hangyu!
Nos dias que se seguiram, Huang tentou falar com Lida sobre muitos assuntos, não apenas sobre o casamento ou sobre o homem que com ela deveria constituir família. Em Huili, tal como em todas as outras aldeias, as pessoas levantavam-se pelas cinco da madrugada, tomavam o seu banho diário no ribeiro ou no lago, ou mesmo numa grande selha de madeira, lavavam principalmente os pés e a parte inferior do corpo, pois o dia que Deus lhes oferecia tinha de ser iniciado com higiene. Quem só se levantava perto das seis da manhã, dizia-se que se levantava ”tarde”, zombava-se dele, era alvo de galhofa, pois de certeza passara metade da noite em cima da mulher e devia estar vazio até ao tutano. Poucos se permitiam a tal. Para provarem a sua força, levantavam-se da cama e começavam a fazer o seu tai chi, uma variante do boxe chinês, que consiste em exercícios de relaxamento com as pernas, os braços e o tronco. Mais importante ainda era o qi-gong, uma ginástica respiratória ancestral, que bombeia ar fresco para os pulmões, e liberta a nicotina dos pulmões.
Os aborrecimentos com Lida começavam logo de manhã. Enquanto Huang e muitos dos aldeões se juntavam no átrio da escola e praticavam o seu tai chi e o seu qi-gong com toda a seriedade e concentração, Lida vestia o seu fato de treino, comprado no mercado semanal de Dayao, calçava sapatos de linho branco e começava a correr em volta dos arrozais, percorrendo as estreitas veredas que separavam os terraços uns dos outros, circundando os campos de couves e os lagos de peixes, numa passada leve como uma pena, como se não lhe custasse absolutamente nada trotar através do terreno poeirento e escorregadio, sob o calor que se adivinhava cada vez mais forte. Uns quantos rapazes costumavam observá-la da estrada e, quando ela passava por eles com os seios a balouçar sob a camisola de algodão fina, batiam palmas e soltavam comentários, como é costume entre os rapazes. Ela não lhes prestava atenção, continuava a correr, e só regressava a casa quando começava a segunda parte da cerimónia matinal.
Huang e Jinvan retiravam a pequena gaiola de bambu do prego, afastavam os panos que a protegiam durante a noite e punham-se a rir, a falar e a assobiar em harmonia com os pássaros. Depois levavam a gaiola para junto das árvores, penduravam-na nos seus ramos e escutavam a cantoria, o arrulhar e o pipilar dos amigos de penas coloridas. O coração de cada chinês está suspenso num pássaro; era frequente os idosos que ficavam sozinhos, cujos membros da família já tinham falecido, terem vinte ou trinta gaiolas com pássaros de todos os tamanhos e feitios, com os quais conversavam como se fossem pessoas que percebessem tudo o que se lhes dizia.
Nesse dia, Huang também estava sentado debaixo das árvores com os seus pássaros, a escutar os seus cantos e a contar-lhes as suas preocupações em relação a Lida, a sua filha. Jinvan regressara a casa e preparava um pequeno-almoço quente. Tinha de ser quente. Um pequeno-almoço frio não é um pequeno-almoço. É uma ofensa ao novo dia que lhes é oferecido. Frias, só as verduras salgadas ou as patas de galinha picantes; o arroz tem de suar na sua selha, pois alisa as paredes do estômago; e a sopa, a maior parte das vezes de arroz ou de massa, deve acordar os espíritos da vida que adormeceram durante a noite. Entretanto, fritam-se os finos fios de massa em óleo, e o pão cozido ao vapor rumoreja na panela sobre o fogo.
A vida plena e forte nasce a partir do pequeno-almoço. E não há uma única mulher ou mãe na China que não observe com prazer a sua família à volta da mesa, ou sentada no chão, a sorver o chá verde das suas taças altas e a enfiar a comida na boca ruidosamente, mas sem falar; e quando a família tem um aparelho de rádio, adquirido junto aos comerciantes vindos das cidades, escuta-se o boletim meteorológico, as notícias mais recentes, a publicidade aos frigoríficos, às bicicletas, às motas, às máquinas de lavar roupa e às câmaras de vídeo, aparelhos que para a maioria das famílias são apenas um sonho; e depois soa a música vinda dos altifalantes, canções populares chinesas, mas também já se ouvia uma ou outra valsa de Johann Strauss ou excertos das sinfonias de Beethoven, principalmente o Hino à Alegria.
Chegava então a hora em que Huang, como homem educado que era, fazia saber o bem que lhe soubera o pequeno-almoço através de um belo arroto, após o que se dirigia para a escola, inspeccionava as salas para ver se o zelador tinha feito as limpezas cuidadosamente, sentava-se na sua cadeira e esperava pelos seus alunos.
Nessa manhã, a tradição foi quebrada: Huang não se dirigiu para a escola, ficou debaixo da árvore, na companhia dos seus pássaros, à espera que Lida regressasse da sua corrida matinal.
- Ela está a chegar, meus queridos - disse em voz baixa para os seus amigos alados, quando viu Lida a subir a colina. - Cantem como nunca para que ela fique de bom humor.
Sentou-se no seu banquinho, debaixo da gaiola onde se encontrava o seu pássaro preferido, uma ave que não era pequena nem grande, com o pescoço e o dorso vermelho-sangue, enquanto a barriga luzia de um azul-celeste, e que dava por um nome que Huang não conseguira fixar, pois o vendedor em Xiaguan dissera-lhe um nome em latim; quem conseguiria? Huang chamava-lhe Sugador do Céu na Aurora e, quando o chamava, a ave eriçava as penas do pescoço, aproximava-se da grade de bambu, enfiava o bico dourado por entre as barras e começava a pairar num tom profundo e melódico.
Lida aproximou-se do pai a arfar, deteve-se à sua frente e abriu o fecho do casaco do fato de treino. Os seios dela saltaram pela abertura do casaco, a brilhar de suor; era uma visão tão sedutora que até o próprio Huang sentiu um nó na garganta, engolindo em seco.
- O campo de espinafres tem de ser regado - informou Lida. - Está seco de mais. Agora temos de o regar duas vezes por dia. O arroz tem água suficiente, portanto posso trazer bastantes baldes de água para regar os espinafres.
- É um trabalho pesado de mais para ti, filha - objectou Huang, olhando de viés para cima, para o seu belo pássaro, que tornara a enfiar o bico através das grades, como se quisesse entrar na conversa. - É trabalho de homem.
- Onde é que está o homem?
Huang fitou-a com carinho. Lembrou-se de Jinvan, a sua mulher, quando era tão jovem como Lida. Na altura, era tão bonita e esguia como esta, com uns seios igualmente firmes. Ele, o pobre professor, casara com Jinvan contra a vontade dos pais dela, que eram camponeses abastados.
- Tu já não podes, pai - prosseguiu Lida, não pretendendo ofendê-lo, soando apenas sincera e compassiva. - Tu tens a tua escola e as tuas flores... e a horta atrás da casa... os campos davam cabo de ti.
- Há rapazes jovens e fortes em número suficiente, filha. Basta olhares em volta!
- Eu não gosto de nenhum. Nenhum deles vale uma vida.
- Estás à espera de quem? De um príncipe encantado? Um desses, de certeza, não se perde no caminho e vem parar a uma aldeia como Huili.
- Tenho tempo, pai.
- A juventude é como uma rosa que se oferece de presente. Murcha rapidamente se não tiver água; e quando as pétalas começam a cair, não há ninguém que pegue no caule despido e o enfie numa jarra. Tu vais fazer dezoito anos, filha.
- Eu sei. - Lida limpou o suor da testa e do peito com as costas da mão. - Vou tratar da água. À hora do almoço levo o búfalo para o campo dos legumes.
Entrou em casa e Huang seguiu-a com o olhar. Depois, respirou fundo e implorou com o olhar para o seu pássaro:
- O que é que se faz numa situação destas, Sugador do Céu na Aurora? Que me dizes a isto?
Mas o Sugador do Céu também não sabia a resposta. Ficou calado, retirou-se e instalou-se calmamente no meio do Poleiro.
- Tudo mudou tanto - lamentou-se Huang, pondo-se de pé. - O Tifei está na cidade e conduz camiões; a Lida não quer ter marido e filhos. O que vai ser da nossa terra? Eu sou um homem pobre. - Pegou na gaiola suspensa no ramo, levou-a para dentro de casa, pendurou-a no prego junto à porta e entrou na sala.
Jinvan já estava ocupada a preparar o jantar.
- O que é que há para o jantar? - indagou Huang, cheirando o ar.
- Beringelas estufadas. Huang fez um ar surpreendido.
- Temos festa hoje, mulher?
- Sim, homem.
- Porquê?
- O Tifei faz hoje anos.
- E não está junto dos pais. Que desgraça! Que desgraça! - Huang tornou a sair para a rua. O ar fresco, ainda que quente, fazia-lhe bem; dentro de casa, àquela hora, sufocaria. Tifei fazia anos e nem uma única carta, há semanas, nem um postal com uma frase curta: ”Estou bem.” Nada, absolutamente nada. Um filho mudo, a longa distância... um martírio para qualquer coração de pai.
Huang passou o dia muito triste. Depois das aulas, ficou sentado na sala de aula, o olhar fixo na ardósia, onde tinha escrito uma conta, e perguntava-se quanto valeria a sua vida e o que teria realizado nela. Tivera centenas de alunos, ensinara-lhes a moral e os bons costumes, a cortesia e a humildade; eles haviam aprendido a ler e a escrever, a fazer contas e a desenhar, um pouco de Geografia do mundo à sua volta e a História da China, que tantas vezes fora escrita com sangue. Para Huang, o fundamento da vida humana era a austeridade moral e, por mais que em Pequim mudassem os ministros ou os lemas, por mais que novas mentes fossem substituídas por mentes ainda mais progressivas - enquanto o Sol brilhasse, a China seria a terra da eternidade, e a crença na eternidade da China devia estar sempre junto do coração de cada um e ser transmitida de geração em geração.
Huang só saiu da escola ao final da tarde, para o jantar festivo em honra do filho ausente, Tifei. Jinvan até pusera na mesa as tigelas do arroz e do molho de soja, o par de pauzinhos e a taça do chá verde para o avô Yuang; nesse dia, o avô estava com eles, a sua alma comia com eles à mesa e, de certeza, que estava contente por a família pensar nele e por poder estar junto dela.
Mais uma vez, Huang demorou o olhar na filha Lida. ”Quero um neto”, pensava. ”Mas não quero, como manda a tradição, procurar um homem para ela que, como boa filha, ver-se-ia obrigada a aceitá-lo. Não, isso não; ela não deve gerar os filhos com lágrimas e odiá-los por serem filhos de um casamento forçado. Deve escolher um homem que ame e para quem venha a ser uma boa esposa. Mas como é que vai conhecer um homem se ficar em Huili, quando passa os dias a esfalfar-se nos campos, a falar com os patos, a dar de comida ao grou, a moer a farinha na mó do moinho, para com ela polvilhar o tofu para que este coalhe? E um estranho? Quando é que um estranho aparece em Huili? De vez em quando passa uma camioneta na estrada principal, carregada até não poder mais de sacos, caixas, caixotes e colchões; mas os passageiros querem seguir viagem até Dali, e a camioneta segue o seu caminho, a vibrar por todos os lados, sem parar em Huili, deixando atrás de si uma nuvem de poeira; a seguir, volta tudo ao sossego normal, sem contar com o trepidar dos motores dos tractores de três rodas dos camponeses e dos carregadores das redondezas.”
”A Lida tem que sair daqui”, matutava Huang, enquanto comia o seu arroz com as beringelas. ”Por mais que isso seja Um golpe duro para o nosso coração, ela tem de ver outras coisas sem ser as casas de argila com os telhados de pedra, os búfalos a mugir, os porcos a grunhir e os íngremes penedos avermelhados, nos quais tivemos que abrir trilhos estreitos Para chegarmos à aldeia vizinha, que ainda é mais erma do que Huili.”
. Depois do jantar, quando Lida foi ao pátio traseiro dar mimo às galinhas, Huang virou-se para Jinvan e disse-lhe:
Mulher, tenho uma ideia. Parece-me que é uma bela ’dela.
- As tuas ideias são sempre boas, homem - comentou Jinvan com dedicação.
- No próximo dia de mercado, vamos mandar a Lida para Yao’an com um cesto enorme cheio de fruta e de legumes.
- A próxima feira grande é em Nanhua, Huang.
- Então que seja Nanhua.
- Sozinha?
- Sozinha.
- É a primeira vez.
- Tudo tem uma primeira vez; caso contrário, não haveria um final.
- Vão enganá-la.
- Não é fácil enganar a minha filha. Ela tem olho vivo, é forte, olha-se para ela e vê-se que não se pode enganá-la. Mulher, ela tem de ir para o meio de outras pessoas.
Porém, as esperanças de Huang não se concretizaram. Lida foi, de facto, ao mercado de Nanhua, ao volante do tractor de três rodas, com um atrelado cheio de fruta, couve chinesa e massa chinesa, vendeu tudo o que levava e até comprou tachos novos, uma cuba de zinco, um machado, duas pás, uma peneira grande e um termo com capacidade para três litros de água para o chá verde, pois a sede apertava quando se passava o dia inteiro a trabalhar nos campos.
Mas de homens não falou, por muito que Huang lhe fizesse perguntas, recorrendo a toda a sua astúcia para que ela não percebesse o seu objectivo. Huang contou o dinheiro, ficou muito satisfeito com o resultado e disse-lhe:
- A partir de agora, passas a ir tu aos mercados. Vê-se que os homens preferem fazer compras a uma bela rapariga do que a um velho encarquilhado.
- Os homens são tolos - retorquiu ela. - Ao meu lado estavam a vender a couve mais barata, e o que é que eles fazem? Compram a minha e pagam mais.
- Era o que eu dizia! Era o que eu dizia! - Huang esfregou as mãos. Um dia, a sua astúcia daria resultado.
Contudo, de algum modo, a viagem ao mercado parecia ter exercido algum efeito sobre Lida. Afinal, tinha tirado um tecido bonito para fazer um vestido, de
tecido azul, com pintas brancas, como um céu pintalgado
de estrelas.
Que lindo! - exclamou Jinvan, a mãe. - Com este tecido faço-te um vestido como nunca ninguém viu em Huili Com uma racha de cada lado. Não escondas a tua beleza, filha ela desaparece muito depressa. Somos pobres, mas a tua beleza não tem preço. Se ao menos não andasses sempre na companhia do búfalo, dos patos e dos outros animais!
Os animais são os melhores seres - objectou Lida, e Jinvan perguntou-se de onde é que a filha teria retirado tanta sabedoria.
Assim decorreu mais um ano, e Huang começou a conformar-se com a ideia de nunca vir a ter um neto a saltar no seu colo. De Kunming, pouco se sabia. Tifei conseguira finalmente comprar um camião, trabalhava de manhã à noite e não arranjava tempo para procurar uma mulher e casar. Em contrapartida, era muito bem recebido pelas prostitutas da cidade e, quando os amigos lhe perguntavam por que razão ia ter com elas, respondia maliciosamente: ”Custam dois iuanes e não tenho responsabilidades. Vale a minha liberdade. O que é que eu ia fazer com uma mulher sempre a moer-me o juízo? Deitada na minha cama a suar? A dizer: ”Anda cá, quero...”, mesmo que um homem esteja exausto? Assim, POSSO escolher quem quiser quando me apetece. É certo que são prostitutas, mas desempenham a sua função sem exigir mais nada do que um par de notas. O equivalente a um carregamento... haverá coisa melhor?”
Nunca serei avô - lamentava-se Huang com tristeza.
Para que é que andei a trabalhar? Para morrermos sem deixarmos nada? A minha vida já não teria qualquer sentido se não fossem os alunos que ensino a serem homens.
A percepção da passagem do tempo era-lhe dada principalmente pelos seus alunos. Lida tinha vinte anos, o ano de yong era o ano da Lebre, o que significava que seria um ano cheio de mudanças. De facto, o ano iniciar-se-ia com uma série de mudanças: a ”comuna” - como agora se chamavam as aldeias, as comunidades agrícolas, as fábricas, no fundo, qualquer sociedade fechada - dirigiu-se ao sindicato dos professores em Kunming para obter informações e saber se não se arranjaria por lá um jovem professor para ser auxiliar de um excelente professor, muito querido, estimado e respeitado bem como excepcionalmente sábio, o professor Huang Keli, para o aliviar um pouco, pois os últimos anos tinham-no enfraquecido. Ficava muitas vezes exausto e, quando adormeceu na sala de aula pela segunda vez, os delegados da ”comuna” reuniram-se e decidiram que era tempo de procurarem um professor da nova geração para a escola. Verdade seja dita, era impossível encontrar um substituto para Huang, pois um sábio como Huang não era substituível; mas esperava-se que um pouco da sua sabedoria passasse para o novo jovem professor e que, desse modo, a ”comuna” de Huili continuasse, no futuro, a ter uma escola notável.
E assim, um dia, na camioneta vinda de Kunming, apareceu o professor Hou Xianglin. Desceu na paragem da aldeia e apresentou-se a Huang. Era um homem bem-arranjado, vestido com um moderno fato citadino, com uns óculos de aros dourados, vinte e cinco anos de idade, de constituição física atlética e tão delicado que se apresentou a Huang, Jinvan e Lida com uma profunda vénia, dizendo:
- Eu sei que não sou digno de vós, mas peço licença para pisar o chão da sabedoria, para aprender e transmitir aos outros os ensinamentos que vou adquirir.
E Huang respondeu-lhe:
- A minha casa recebe-te com toda a estima. É uma casa modesta, como podes ver. Inicialmente, vais ter de morar na escola, até a comuna te construir uma casa nova. Mas na nossa mesa haverá sempre lugar para ti. Jinvan, a minha mulher, é uma boa cozinheira. Também vais ficar mal habituado.
Depois da troca oficial de palavras, Huang estendeu-lhe a MAO e com isso Hou Xianglin ficou a fazer parte da família. Huang imaginou logo que o jovem professor pudesse vir a ser o homem que agradasse a Lida, que se revelaria uma bela mulher, vindo a dar-lhe netos.
- Vamos passar belos tempos juntos - comentou
70 enquanto observava Xianglin a comer, não lhe passou despercebido o facto de o olhar do professor recair reinsidentemente nos seios redondos de Lida.
- Como é que é, sábio? Uma palavra de bondade traz calor durante três Invernos; uma palavra de maldade magoa como seis meses de geada.
Xianglin retorquiu de imediato com outras palavras sábias, o que provava como era culto:
’- Cem homens constróem uma casa; para um lar, é necessária uma mulher.
Olhou para Lida e esta levantou-se, dizendo:
- Tenho de ir ver o búfalo, esteve o dia inteiro a tossir.
- Dito isto, saiu de casa.
Um dia - o sol voltara e o solo secara tanto que já abria fendas - uma camioneta completamente apinhada deteve-se em frente ao escritório do secretário da ”comuna” Huili, de onde se apeou um homem de idade, apoiado numa bengala. Atiraram-lhe da camioneta uma espécie de trouxa; ele ficou parado na estrada, de olhar fixo no caminho que dava para a colina, onde se situava a escola e a casa do professor.
Quando o velho começou a subir a colina, viu-se que arrastava a perna esquerda e, quando puxou para trás o chapéu de palha de abas largas, em consequência do calor que fazia, surgiu um rosto cujas faces revelavam cicatrizes profundas, com muito mau aspecto, que o faziam parecer mais velho do que era; as suas forças também não eram muitas, pois parou varias vezes ao longo do caminho. Respirava pesadamente, apoiando-se na bengala feita de raminhos de roseira, atirava a trouxa flácida para o meio do chão e enchia o peito de ar, como uma borboleta antes de levantar voo.
Huang tinha acabado de concluir uma aula e de passar os alunos mais velhos para o jovem colega quando o velho chewang à entrada da escola, encostando-se à árvore que, há muitos anos, fora utilizada pelos guardas-vermelhos para torturar de onde se via a casa do professor. À sombra de um Pendre feito de folhas entrançadas, Jinvan arranjava a couve
para o almoço. Cortava-a em pequenos pedaços e atirava-os para dentro de um balde de plástico com água.
Olhou para o estranho e ficou a pensar por que motivo ele não se aproximaria. Quando Huang começou a caminhar na sua direcção, o ancião enterrou completamente o chapéu de palha na cabeça, tapando o rosto.
Huang, de cabeça baixa e perdido nos seus pensamentos, só reparou nele quando já estava a três passos de distância. Deteve-se, um pouco hesitante, cerrou os olhos e ficou na dúvida se era uma ilusão ou apenas uma semelhança. O estranho não falou, apoiou-se na bengala e também nada disse quando Huang passou as mãos pelo rosto magro.
- Não! - exclamou por fim Huang, em voz baixa. Não! Será verdade? Não acredito.
- Acredita - respondeu o estranho com voz rouca. É verdade.
- Por Deus, o que é que fizeram contigo? - Huang tratou o outro por tu arbitrariamente.
- É o que estás a ver.
- Chang! Comissário Chang Lifu!
- Oh, isso já acabou há muito tempo. Eu não disse que voltava?
- Sim, e todos pensámos: quando ele voltar será um dos grandes camaradas de Pequim. Mas como tu estás! Vem para dentro de casa, descansa, toma um banho, a minha cama é a tua cama como dantes. Comissário Chang!
- Não, Chang, o aleijado. Até os cães fogem de mim quando me vêem. - Afastou o chapéu de palha e mostrou o rosto.
Huang sentiu o estômago a andar às voltas.
- Porque é que não me voltas as costas, Huang? - quis saber Chang. - Porque é que não me gritas ”Vai-te embora, pareces um dragão retalhado”!
- O que é que fizeram contigo, Chang?
- Apagaram cigarros acesos no meu rosto, desfizeram-me a perna esquerda com varas de ferro, o meu corpo é como um tabuleiro de xadrez, com cicatrizes sangrentas em cruz.
- Quem te fez isso, Chang?
- Os meus guardas-vermelhos! - Chang tornou a puxar o chapéu de palha para a frente, ocultando a cara, e olhou através da colina para a paisagem, como se o seu olhar pudesse atravessar a China inteira, a qual, na sua perspectiva, tinha servido fielmente e que lhe tinha agradecido com injúrias. Dois dias após a detenção do ”Bando dos Quatro”, em 1976, os seus guardas-vermelhos tinham-no cercado e espancado. Haviam-no atirado para o meio do chão, prendendo-lhe os braços e as pernas, e apagado as pontas dos seus cigarros no seu rosto, ao mesmo tempo que escarneciam dele. Tinham ficado à espera que gritasse e implorasse misericórdia, mas Chang não fizera nada disso; aguentara o sofrimento em silêncio e, quando as dores começaram a tornar-se insuportáveis, desfalecera, libertando-se de tudo o resto.
Fora um milagre deixarem-no com vida; não o terem impedido de se afastar a rastejar, conseguindo permanecer escondido em casa de um comerciante de bicicletas até a perna despedaçada estar sarada. Então, instalara-se na localidade de Zigong, primeiro como vendedor de sapatos no mercado, mais tarde como comerciante de calças e, por fim, com um marceneiro, a construir caixões, onde também tinha de lavar e limpar os mortos para que parecessem em paz, deitados no caixão, como se se tivessem apenas libertado da vida.
Assim haviam passado os anos e, de vez em quando, Chang pensava na pequena Lida Huang, na aldeia do povo miao, Huili, e perguntava-se o que teria sido feito dela. Já devia ser uma rapariga crescida, talvez já casada e com filhos. Certamente mal se lembraria do comissário Chang Lifu que, um dia, por causa dela, deixara viver a sua família, não incendiara a aldeia e não fuzilara os seus habitantes. O grande, o temível Chang... do qual restava um mero aleijado! Acontecera o mesmo a muitos para quem MAO surgira como um novo Deus: a revolução tinha-os arrastado consigo para o abismo. A nova era esmagara-os.
- Entra - insistiu Huang, com a voz abafada. Nesse momento, recordou a moral que ensinava aos seus alunos, Segundo a qual estes deviam viver: perdoa aos teus inimigos quando eles estão na mó de baixo. Não castigues os desarmados, que necessitam da tua misericórdia. Sê um herói, na medida em que apertas os vencidos contra o teu peito. Que mais poderia fazer com aquele aleijado que matara e mandara matar seres humanos? Ninguém conhecia o número de vítimas assassinadas, nem ele próprio, pois nunca contara os cadáveres que deixava para trás todos os dias. Os seus actos nunca poderiam ser expiados nesta vida, mas talvez o facto de continuar vivo fosse um castigo bem pior do que uma morte rápida, por meio de uma bala ou de uma facada.
- Onde está o Tifei? - indagou Chang, sem se afastar da árvore.
- Ainda sabes o nome dele? O Tifei tem uma empresa de transportes em Kunming. A vida corre-lhe bem, muito bem... está quase um capitalista. E tudo sem a protecção do Partido.
- Sim, hoje em dia já é possível. Como os tempos mudam! E a Lida?
- Essa é que me dá preocupações, Chang. Não há nenhum homem que seja suficientemente bom para ela. Não sei de quem ou de que é que está à espera. O búfalo é-lhe mais importante do que qualquer rapaz trabalhador.
- Ela vai fugir quando me vir - lembrou Chang. E a Jinvan vai deixar queimar o arroz. Mas eu tinha que voltar, tinha mesmo, era como uma necessidade que crescia dentro de mim com o passar dos anos. Percebes?
- Sim, percebo - afirmou Huang, apesar de não perceber. Foi então que lhe veio à cabeça um daqueles provérbios que costumava ensinar: ”Só existem dois seres humanos bons: um morreu e o outro ainda não nasceu.” Tudo o que está no meio, a vida inteira, é uma constante subida e descida de altos e baixos, de actos e atrocidades e, deste modo, no fundo, somos todos iguais, cada qual à sua maneira, e poucos se reconhecem a si próprios.
Pegou no braço de Chang, amparando-o no caminho para sua casa, até junto de Jinvan, que continuava a cortar a couve e a atirá-la para dentro do balde. Quando reconheceu Chang, deixou cair a faca e cingiu a couve contra o peito, como se fosse protegê-la de um murro.
Pega na tua faca e ferra-me - disse Çhang, num tom
indefinido, espetando o peito para fora. - É uma faca boa, afiada, como se pode ver. Ferra-ma. Só quero ver a Lida mais uma vez... dá-me esse tempo.
O Chang é nosso convidado - rematou Huang, pois Jinvan também não conseguiu emitir um único som. - Vai tomar um banho e depois sentar-se à mesa connosco para comer. E amanhã veremos que mais poderemos fazer por ele. Primeiro, temos de escondê-lo dos outros. Nem toda a gente consegue perdoar...
E assim Chang tomou banho numa selha de madeira, nas traseiras da casa, lavando a sujidade incrustada na pele. Huang esfregou-lhe as costas e Chang comentou, quando enfiou a cabeça na água, emergindo pouco depois:
- Podias ter-me afogado agora. Bastava teres feito força sobre a minha cabeça debaixo de água.
- E por que motivo haveria de fazê-lo?
- Tens centenas de motivos, Huang.
- Mas não encontro nenhum que me torne irracional. Um pouco mais tarde, Chang já se encontrava sentado na sala, vestido com umas calças azuis e uma camisa às riscas de Huang, nos pés umas sandálias de palha de arroz, bebendo com satisfação uma grande taça de chá.
- Que dirá a Lida? - perguntava Chang, vezes sem conta. - Será que vai reconhecer-me? Eu próprio já não me reconheço quando me vejo ao espelho. Era tão pequena na altura! Já não se lembra de mim. Como eu era grande e forte Com a minha farda! Não me digam que não era uma figura imponente.
- Mais temível do que imponente, Chang.
- A Grande Revolução. Mudou-nos a todos.
- Nem todos.
- É verdade... a ti, não.
- Vocês mataram onze milhões de pessoas, mas nós todos mais de mil milhões. Quem poderia alguma vez conquistar a China?
Todos os chineses repetiram os ensinamentos de MAO Com a boca. Mas o que move uma língua não quer dizer que mova também o coração.
E assim prosseguiu a conversa, ora falava um, ora falava outro, até ouvirem lá fora uma respiração ofegante e as passadas pesadas de um búfalo.
Huang levantou a cabeça e fitou Chang com ansiedade.
- É a Lida que volta dos campos.
Jinvan pegou na grande panela de ferro da sopa e pousou-a em cima da mesa. A couve, os cubos de tofu e a carne de galinha do caldo formavam uma sopa farta. O arroz cozia ao vapor numa vasilha de madeira e sobre a mesa estavam tacinhas com molho de soja e molho de pimenta-vermelha; ainda havia ao lume uma panela com uma cabeça de carneiro, da qual mais tarde se retiraria a carne. Era uma boa refeição e Jinvan sabia que devia temperar todos os pratos de modo a ficarem picantes, mas não demasiado.
Chang contemplava a comida aromática com voracidade; via-se que passara fome e que há dias e dias não comia uma refeição decente. Brincava nervosamente com os pauzinhos, mas Huang, consciente da avidez do estômago de Chang, informou:
- Vamos esperar que Lida volte do estábulo, se lave e mude de roupa.
Chang assentiu, pousou o par de pauzinhos junto à tigela do arroz e pediu:
- Se ela não me reconhecer, não lhe digam quem eu sou. Apenas um viajante, ao qual deram guarida por uma noite, mais nada.
Ouviram o ruído de Lida no estábulo, a água a chapinhar pelo seu corpo, ao mesmo tempo que cantava baixinho uma canção popular miao, o que revelava que estava satisfeita com o seu dia de trabalho.
- Tem uma linda voz - observou Chang. - Nunca pensaram em pagar-lhe lições de canto com um professor? Os artistas ganham bem por cá, logo os artistas, por causa do estrangeiro, que gosta de os ouvir, percebem? Uma voz tão bela; que pena limitar-se a guiar o búfalo e ficar a secar ao sol.
- Estás a falar a sério?
- Verdade pura.
Talvez com isso consigamos convencê-la a ir para a cidade. A Lida, uma artista, daquelas que cantam no palco, na rádio e na televisão. - Os olhos de Huang brilhavam de orgulho.
Mas Jinvan não ficou tão entusiasmada, o que era raro, pois a maior parte das vezes era Huang quem tinha as preocupações prosaicas.
- E o que vai ser da terra? - perguntou. - O que vai ser da nossa terra? Ela tem de casar com um camponês e ter filhos que também venham a ser camponeses. O arroz cresce com cantigas? A couve cresce com solos de ópera? Devias ter gerado mais filhos homens, Huang.
- Estes dois já foram difíceis, por si só. - Huang levantou a cabeça e pôs-se à escuta. a cantoria acabara. Lida estaria a vestir-se; com certeza umas calças e uma camisa largueirona. - Deve estar mesmo a chegar - acrescentou, quase num sussurro. - Vamos apostar. Ela reconhece-te ou não te reconhece, Chang? - Estendeu-lhe a palma da MAO.
- Eu aposto que ela te reconhece. Eu também te reconheci.
- Não tenho nada para apostar - retorquiu Chang. O que posso eu apostar? Só tenho a minha vida.
- E essa ninguém a quer! - Huang esfregou as mãos com ansiedade. - Vem aí, vem aí!
A porta das traseiras abriu-se e Lida entrou na sala, tal como Huang previra: umas calças azuis de linho e uma camisa larga de camponesa. Prendera os cabelos molhados no cimo da cabeça, formando um alto que parecia uma pequena torre entrançada. Ficou parada à porta, como se a tivessem agarrado por trás e puxado pela blusa. Chang enfiou a cabeça entre os ombros; sentia-se como se estivessem a formar-se novas cicatrizes nas faces, como se sentisse os morrões dos cigarros a penetrarem na sua carne e o seu sibilar negro.
- Chang Lifu! - exclamou Lida, olhando-o com um misto de surpresa e de horror. - Comissário Chang.
Já não é comissário... é um estropiado cortado aos pedaços. - Chang engoliu em seco várias vezes, antes de conseguir falar, pois parecia que tinha um nó na garganta.
- Crescida e bela. Como os anos nos fogem, como se cavalgassem às costas de um dragão! Parece que ainda te estou a ver, quando fugiste de mim, a correr colina acima, e eu quase que te bati com o meu bastão por teres dito ”Cheiras mal!”
- E era verdade. Cheirava a aguardente. - Lida aproximou-se, cumprimentou o convidado com uma pequena vénia e sentou-se à mesa, onde a panela da sopa fumegava, com a sua couve, o tofu e a galinha. A cabeça de carneiro fervilhava num caldo especialmente picante.
Comeram em silêncio. De vez em quando, Jinvan olhava para Chang; este empanturrava-se, enfiando o arroz pela garganta abaixo e roendo os ossos da galinha com tal sofreguidão que mais parecia ter vivido na rua, alimentando-se dos restos das bancas de comida. Saboreava o tofu como se fossem rebentos de lótus e, quando finalmente ficou cheio, pousou as mãos no colo e exclamou com satisfação:
- O meu estômago vai iniciar a sua própria revolução... há mais de dez anos que não comia tanto!
Depois do jantar, Huang pegou no cachimbo e pôs-se a fumar tabaco cultivado nas suas terras; para ele, era a conclusão merecida de um dia bem passado. Acompanhava o fumo com um copito de aguardente de arroz da produção particular do seu vizinho.
Até altas horas da noite, Chang contou-lhes a sua vida, desde a sua decadência como comissário à sua vida de pedinte; até tinha rasgado o seu livro do Partido e amaldiçoava MAO, chamando-lhe o maior envenenador de cérebros de todos os tempos.
- Mas também tiraste partido do poder que tinhas - redarguiu Huang, quando Chang fez uma pausa. - A maneira como me trataste! Tive que rastejar no chão e gritar os lemas de MAO!
- Na altura eu acreditava na Revolução Cultural. Milhões de homens acreditavam nela e, de repente, com a morte de MAO, estava tudo mal. Da noite para o dia, os heróis de MAO transformaram-se nos inimigos do povo... Quem é que consegue absorver tudo com tanta rapidez? A última ordem que recebi foi: ”Retirada! Agora vão todos para casa.” E retiraram-se, os meus guardas-vermelhos, mas não para casa. Atiraram-se a mim e deram-me pancada até me transformar num aleijado. Foi quando percebi que um homem nada mais é do que um recipiente vazio, dentro do qual se enfia o que se quer; bebe e age de acordo com o que bebe, até vir outro e enchê-lo com algo de novo, que o homem também sorve. O homem é a criação mais imperfeita de todas. Pode ser tudo o que se quiser, pois nunca será um ser completo. Foi isso que eu aprendi com a revolução, Huang. Agora, limito-me a observar o mundo.
- Uma coisa te digo - exclamou Lida, tratando-o também por tu, antes que Huang começasse a falar -, vais ficar aqui connosco o tempo que quiseres.
- E depois, um dia destes, o Tifei vem de Kunming e mata-me à pancada. E faz bem! Não me defenderei. Chang bebeu mais uma taça de chá, recusando a aguardente de arroz que lhe ofereceram. - Não quero que a Lida me torne a dizer que eu cheiro mal. Então, quer dizer que posso ficar a morar com vocês, a comer e a dormir?
- Sim, até ao fim da tua vida, digamos.
- Nesse caso, vou tornar-me útil, Huang. Posso plantar o arroz, colher as couves, fazer móveis e consertar os telhados. Há muita coisa que posso fazer para vos aliviar o trabalho.
- Veremos - disse Huang, com um sorriso nos lábios. ”Como as coisas mudam”, pensava. Um temível comissário que se transforma num criado de lavoura, a pastar patos e a enxotar os porcos da pocilga. - Tu és nosso convidado, Chang Lifu. Primeiro, descansa da tua longa caminhada. DePois, até podes ajudar-me na escola.
- Na escola? Eu?
Sim. Vais contar aos alunos o que se passou na Revo’ução Cultural, falar sobre os erros de MAO, a cegueira da mente, os perigos da ditadura. És uma testemunha viva desses tempos e os alunos devem aprender com o teu exemplo: não é com a violência, mas com a razão que se constrói a Modernidade.
E a razão existe, Huang? - questionou Chang, abanando a cabeça.
- Está adormecida em todos os seres humanos, só temos de a acordar quando é a altura certa. - Huang lembrou-se de repente que no dia seguinte era quarta-feira e deu por concluída a conversa com um gesto. - Lida - acrescentou -, amanhã não há feira em Xiaguan?
- Sim, pai.
- Vais lá e levas o Chang?
- Para me reconhecerem e matarem à pedrada?
- Ninguém te reconhecerá. Parece que tens um corpo novo. Podes ajudar a Lida a carregar e a descarregar.
E assim, na manhã seguinte, Lida e Chang partiram para Xiaguan no pequeno tractor de três rodas, com um atrelado carregado, estrada abaixo, em direcção a Dali e ao lago Erhai.
O mercado das quartas-feiras em Xiaguan era um grande ponto de encontro entre comerciantes e camponeses. Juntavam-se, vindos de um vasto perímetro, montavam as suas bancas numa enorme praça às portas da cidade, ocupavam a rua à esquerda e à direita, de tal modo que só se podia passar aos empurrões, corpo contra corpo, entre as carroças ou os carregadores, com os cestos às costas ou as cangas aos ombros, as gaiolas dos pássaros penduradas em longas varas de bambu, e as mulheres miao e bai arrastando as suas compras. Havia as bancas da comida, nas quais se vendia sopa de arroz e de massa, peixe assado, rolinhos de massa recheados com verduras ou carne; as bancas do chá ou da limonada e, um pouco mais afastado, o mercado do gado, com carneiros, vitelos e porcos gordos, com barrigas protuberantes.
Na verdade, Tong Jian nem sequer tencionava ir ao mercado de Xiaguan. Regressava de Dali, onde fora visitar o tio Zhang Shufang, que tinha uma casinha junto ao lago Erhai e vendia poemas e hinos, desenhados em papel de arroz, de extrema qualidade.
Zhang Shufang era um poeta bastante conhecido e a sua fama atravessava a fronteira da província de Yunnan. O próprio MAO tinha-lhe enviado uma carta de louvor, que Zhang emoldurara e pendurara sobre a sua mesa de trabalho; entretanto, a carta tinha sido escondida no fundo de um armário, e no seu lugar estava agora um desenho a tinta-da-china das serra de Cangshan, cujos picos de perpétuo branco contemplavam a cidade de Dali, sobre o lago. Zhang já escrevera muitos poemas sobre este tema, até uma canção, que era entoada nas escolas, o que fazia com que a sua fama perdurasse nas novas gerações. Jian gostava de estar sentado com ele, a olhar para o lago e os barquinhos achatados dos pescadores.
Pela tardinha, Jian chegou a Xiaguan. Estacionando o pequeno carro japonês junto a um muro, decidiu ir passear até ao mercado. Em Kunming também havia mercados, mas eram menos confusos, mais urbanos, e não se via tantas etnias às quais se chamava minorias, apesar de serem todos chineses - como nos mercados do campo. Para ele, um orgulhoso chinês han, que se considerava um chinês autêntico, a mistura de povos era como uma exibição de circo; desde os Mongóis, com o seu rosto achatado, às doces raparigas de etnia bai, estavam representados todos os povos de raça asiática que se podia imaginar.
Jian não tinha pressa. Serpenteava por entre a massa de gente, parava aqui e ali, acabando por deter-se junto a um dentista, que tinha montado a sua mesinha no meio das outras bancas, sobre a qual espalhara os seus instrumentos e um monte de dentes para fazer publicidade e dar provas do seu talento. Tinha nesse preciso momento um paciente à sua frente, ao qual tentava arrancar um dente amarelo. O maxilar estava untado com um líquido acastanhado, o que certamente seria um anestesiante, cuja composição secreta só ele conheceria - mais uma prova da sua aptidão como dentista e Jian ficou à espera até o dente ser arrancado e ir parar ao monte dos outros dentes. O dentista salpicou a ferida com um líquido diferente e o sangue estancou imediatamente. Sahsfeito, o paciente levantou-se da cadeira pouco segura, e desapareceu no emaranhado de gente.
O dentista enfiou a mão debaixo da mesa, levou uma garrafa à boca e bebeu uns goles. Em seguida, fitou Jian.
- Tu também? - perguntou. - Senta-te. Abre a boca. Descubro já o diabo que te tortura.
- Os meus dentes são saudáveis, caro colega - retorquiu Jian, rindo-se.
O dentista pousou as mãos no colo e observou o jovem com mais atenção.
- Colega? - repetiu.
- Sou estudante de Medicina.
- Em Kunming, certo?
- Certo.
- Medicina dentária?
- Não. Quero ser cirurgião.
- Também eu queria. Mas tirar um dente é menos perigoso do que abrir uma barriga. Depois desta constatação, fiquei-me pelos dentes.
- E tens muitos doentes?
- O suficiente. Tu deves vir de uma casa fina da cidade.
- O meu pai é professor doutor. Tem uma clínica particular em Kunming. É um homem conhecido.
- Então, dá graças por teres nascido. Segue o teu caminho, pois podem pensar que estamos a negociar o preço do dente e os clientes vão-se embora. Para mim, cada dente é uma panela de arroz e um peixe; para o teu pai, cada perna serrada vale tanto quanto um pato à Pequim. Continua o teu caminho; estou aqui à espera de clientes, não de conversa.
- Espero que o negócio te corra bem, colega - desejou Jian, voltando-se para seguir em frente. Nesse momento, foi de encontro a uma pessoa que estava quase colada a ele e que, aparentemente, admirava os dentes expostos sobre a mesa. Era uma rapariga vestida com uma bata de camponesa e umas calças azuis; os longos cabelos emolduravam um rosto que, nas devidas proporções, fazia lembrar um desenho antigo, a tinta-da-china, que estava pendurado na entrada da casa do seu pai. Representava a concubina de um imperador do século XV e Tong Shijun, o grande médico, tinha muito orgulho em possuir um original tão valioso. Chamava à concubina ”Junjun”, visto que não sabia o seu nome verdadeiro.
Perdão! - exclamou Jian de imediato, depois de ter esbarrado com a rapariga. - Sou tão desajeitado! Primeiro deve-se voltar a cabeça e só depois o corpo. É capaz de me perdoar, Junjun?
Junjun? Quem é a Junjun? - volveu a rapariga, admirada, esfregando o antebraço esquerdo, onde o cotovelo de Jian a atingira.
- É uma longa história de uma bela rapariga - explicou Jian. - Chamava-se Junjun, era linda como um botão de rosa-marinha; quando desabrochava, os peixes ficavam cegos com a sua beleza e podia-se apanhá-los à mão.
- Que belo conto de fadas. - A rapariga continuou a esfregar o antebraço. - Essa Junjun só vive na fantasia dos poetas.
- Mas existe uma realidade que ultrapassa qualquer fantasia. - Fez uma pequena vénia de cortesia, sem desviar o olhar do doce rosto à sua frente. - Chamo-me Jian.
- Eu chamo-me Lida.
- Magoei-te o braço?
- Tens cotovelos pontiagudos, mas eu esfrego e a dor passa. Funciona sempre.
- É porque aumenta a circulação sanguínea. Mostra-me.
- Sem esperar pela resposta, Jian pegou-lhe firmemente no braço, procurou o sítio da pancada, enquanto acrescentava:
- Vai desenvolver um hematoma, isso é certo.
- O que é um hematoma?
- Uma nódoa negra. Um congestionamento de sangue. Primeiro fica azul, depois amarelo e, por fim, desaparece por si. Anda comigo! O meu carro está ali atrás. Tenho uma boa pomada para hematomas na bagageira.
- És comerciante de medicamentos? - inquiriu Lida, muito interessada. - Pós e pomadas e gotas? Tens alguma coisa contra a tosse seca?
-Há um medicamento contra todas as doenças. Mas Para isso tinha que observar primeiro o paciente.
- Tu falas como um médico. - Lida fitou-o, espantada com um olhar mais crítico do que até então. - Afinal o que és?
- Sou estudante de Medicina na Universidade de Kunming. Chamo-me Tong Jian.
- Senhor Tong - libertou o braço e escondeu-o atrás das costas -, já... já não tenho dores. Não preciso da sua pomada. Eu... tenho de ir ter com o meu tio; ele está à minha espera no tractor. Ainda temos um longo caminho à nossa frente. Agradeço-lhe.
Jian era um homem magro, de estatura média, com cabelo preto, curto, e olhos ligeiramente rasgados, tal como a maior parte dos elementos das famílias antigas e distintas da cidade, pertencentes à etnia han. Tinha lábios finos, porém, quando se ria, os seus dentes reluziam, e nos cantos dos olhos surgiam pequenas rugas, como se o seu riso abarcasse o rosto inteiro e rebentasse por todos os poros. Trazia um fato cinzento-claro, de um tecido de qualidade, e uma camisa azul-clara, com o colarinho desabotoado, deixando entrever à volta do pescoço uma corrente de ouro com um medalhão. Quando passava na rua, em Kunming, as raparigas riam-se baixinho e faziam uma pose sedutora; e na universidade corriam rumores de que algumas alunas já tinham andado à pancada por causa dele, puxando os cabelos uma à outra e desfazendo os vestidos. Mas ninguém podia dizer que ele tinha uma namorada; avistavam-no sempre sozinho ou na companhia da sua lindíssima irmã, Fengxia, e quem os visse pela primeira vez a passear no lago Dianchi ou na lagoa do Dragão Negro, exclamava imediatamente: que casal tão feliz! Como são belos!
- Eu acompanho-te até junto do teu tio. E a pomada é oferta da casa. Porque é que estás a abanar a cabeça? - Jian reparou que a rapariga comprimia os lábios e certamente teria fugido dele a correr, não fora a massa de gente compacta que os circundava.
- Se me dá a pomada, então quero pagá-la. E o meu tio não deve ser visto; vai ferir-lhe os olhos.
- É ele quem tem a tosse seca?
- É.
- Eu posso ajudá-lo.
- Nós não temos dinheiro para pagar a um médico.
temos de nos arranjar sozinhos. Há ervas, raízes e plantas que curam. O meu pai percebe muito disso.
- É curandeiro?
- Professor.
- Uma bela profissão.
- Uma profissão que faz passar fome. - Lida endireitou os ombros, sacudiu a cabeça para afastar os longos cabelos do rosto, voltou-lhe as costas e enfiou-se no meio da massa de gente. Jian seguiu-a, mas ela não se virou para trás uma única vez para ver se ele vinha atrás de si. Com aquela atitude, queria mostrar-lhe que ele não lhe dizia nada e que a diferença de classe social entre ambos era abismal.
No exterior do mercado, num aglomerado de tractores, carroças e camiões, Chang Lifu aguardava sentado à sombra do atrelado, onde se empilhava o que Lida comprara e os produtos que não chegara a vender. Eram principalmente couves - a oferta era enorme, bem como a de blocos de tofu, expostos em mesas compridas. Nesse dia, os comerciantes haviam feito os melhores negócios com caranguejos de rio; tinham esgotado. As bancas da carne também estavam quase vazias, à excepção de umas quantas tiras de toucinho e de umas dobradas engelhadas. Quem também esfregava as Mmãos de contentamento eram os comerciantes de aves, principalmente os criadores de aves de combate, com as quais se obtinham bons lucros; os animais vencedores eram depois vendidos aos amantes desta actividade por um preço muito superior.
Devido ao calor, Chang pousara o seu chapéu de palha no chão, a seu lado, não se importando com o facto de algumas pessoas o fitarem com uma expressão de pena; até ”ouve três pessoas que lhe atiraram moedas para o chapéu, como se ele fosse um mendigo que expunha o rosto maltratado para ganhar a vida. Da primeira vez, tentou protestar e pregar uma rasteira ao benevolente dador, mas depois reconsiderou e lembrou-se que já não era o comissário Chang Lifu, mas um velho criado de lavoura, alimentado por caridade.
Quando viu Lida a chegar, pôs-se de pé com um gemido e acenou-lhe com os dois braços.
- Onde estiveste? - interpelou-a. Depois começou a tossir, uma tosse seca, como era habitual quando se excitava.
- Como é que eu havia de encontrar-te no meio desta multidão? Vamos chegar a casa de noite. - De repente, parou de falar e ficou a olhar fixamente para alguém que se encontrava atrás de Lida e cerrou os punhos. - Para que é que estás a arregalar os olhos? - ameaçou, em voz alta, seguindo-se novo ataque de tosse. - Há pessoas belas e pessoas horrorosas, mas é preciso ficar a olhar especado, como se eu fosse um bicho raro, só porque sou horrível? Vai-te embora ou cuspo-te para cima, seu labrego de nariz empinado!
Lida voltou-se e viu Jian atrás de si, absorvido a contemplar Chang. Ficou furiosa e os seus olhos escuros faiscaram.
- Ele deu-me um encontrão, tio Chang - explicou, num tom de voz como se Jian a tivesse ferido gravemente.
- E agora anda a perseguir-me, para me dar uma pomada. Um senhor fino de Kunming, estudante de Medicina. Diverte-se a gozar connosco, os pobres.
- Vem comigo ao meu carro - disse Jian. - Está ali atrás, junto ao muro.
- Que belo carro! És um dos novos capitalistas? - Lida abanou a cabeça. - Não tenho vontade nenhuma de ver o teu carro.
- Quero observar o teu tio. Tenho todos os instrumentos necessários no meu carro. Lida, só quero ajudar.
- Nós não temos dinheiro para pagar a um médico.
- Mas não vos vai custar nada.
- Aqui há gato! - ouviu-se Chang a dizer. - Ninguém faz nada de borla, muito menos um estudante. Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça. - Levantou a bengala e começou a fustigar o ar à sua volta. - Mesmo que não pareça, ainda sou capaz de dar uma boa sova. Não me provoque.
Foi preciso algum tempo até que Jian conseguisse convencê-los.
- Não custa nada tentar, se não tivermos de pagar acabou por concordar Chang, com alguma relutância. - Você não vai longe como médico, se continuar a ser tão generoso. Coitado do seu pai, com um filho tão pateta.
E assim aconteceu que Chang, ainda desconfiado, acompanhou Jian até ao seu automóvel e deixou que lhe auscultasse o peito e os pulmões com um estetoscópio, lhe batesse nas costas, ordenando: ”Respire fundo... retenha a respiração... deixe sair o ar...” Chang obedeceu, mas quando Jian acabou a consulta, perguntou-lhe prontamente:
- Tenho ar de mais no corpo? É das couves. Não há problema, doutor, solto uns gases e já está.
- Tu tens uma bronquite crónica. Cospes muito?
- Cuspo tanto quanto as pessoas normais.
- E sai sangue?
- De vez em quando.
- E o que é que aconteceu ao teu rosto?
- Não me fale no meu rosto! - bradou Chang, enfiando o chapéu na cabeça. - Isso é da minha conta.
- As cicatrizes parecem queimaduras.
- Foi um dragão negro que me soprou para a cara.
- Vou tratar de ti. Onde é que vivem?
- Em Huili.
- Uma aldeia de etnia miao - acrescentou Lida. Não é lugar para um abastado chinês han.
- Vão à minha frente, eu sigo-vos. O teu rosto, tio, interessa-me.
- A mim não. Já me habituei a ver um estranho ao espelho.
- Podemos arranjá-lo.
- Queres-me tirar a pele?
- Mais ou menos, tio.
- Ele é maluco. Lida, ouve o que te digo: é um louco! Vá, vamos embora. Se nos seguir, o problema é dele, não é nosso. Quanto mais não seja, quando chegar a Huili vai perceber que não está bom da cabeça.
Assim, durante duas horas, percorreram a estrada até Nafthua e, chegando à bifurcação, seguiram em direcção às Montanhas de Yungu, onde ficava Huili. Chang passara a viagem a olhar para trás - o carro de Jian arrastava-se atrás deles, pois um tractor de três rodas rodava devagar.
- Tenho uma sensação extraordinária, Lida - observou Chang uma vez, depois de se ter certificado que Jian os seguia. - Ele quer tratar de mim, mas é apenas uma desculpa. Ele tem alguma na manga, acredita.
- O que é que ele pode ter na manga, tio Chang?
- Tu, minha lótus. Ele gosta de ti. Como ele olhava para ti...
- Tens cada ideia. - No entanto, baixou a cabeça, tapando a cara com os cabelos, para não se ver que corava. Um senhor tão letrado e eu! Além disso, não gosto dele.
- Porquê? É um belo jovem.
- Não gosto dele, pronto. É maçador e convencido. Não gosto dele.
Soava convincente, mas era mentira. De repente, quando pensava em Jian, o coração de Lida começava a bater de maneira diferente e uma agitação desconhecida percorria-lhe o corpo.
Chegaram a Huili à noite. Lida saltou do tractor, correu para dentro de casa e não trocou uma palavra com Jian.
- Ela é assim - comentou Chang, sabiamente, para Jian, enquanto este saía do carro. - Não te perturbes com o silêncio dela. As pessoas são como as romãs. Quando abrem a boca, revelam o que lhes vai no coração.
E Jian contrapôs:
- Há outro provérbio que diz: ”Até um caminho de milhares de quilómetros começa com o primeiro passo.” Eu espero tê-lo dado.
A FAMÍLIA TONG
Desde a infância que Tong Shijun era um tipo esquisito. Nascera e crescera numa casa que ainda servira o último imperador. O avô Tong era o responsável pela farmácia imperial e tinha sempre acesso directo à Cidade Proibida; conhecia todas as concubinas e as suas pequenas maleitas.
Os Tong eram, portanto, uma família muito respeitada e ninguém punha em dúvida que Shijun, o filho mais velho, um dia iria aprender o ofício de médico. Contudo, a revolução destruíra todos os planos da família: o imperador fugira para o exílio, a guerra civil entre o Exército Vermelho de MAO Tsé-Tung e o Exército Nacional do marechal Chang Kai-Chek destruíra totalmente o país e, quando a antiga família Tong tornou a encontrar o seu caminho, vivia num mundo diferente. O avô farmacêutico fora decapitado, o filho, pai de Shijun, teve de ir varrer as ruas e limpar as casas de banho públicas antes que - certas ligações não tinham sido totalmente quebradas - o nomeassem chefe do Departamento da Limpeza da Cidade, sendo promovido à hierarquia dos altos dignitários da cidade de Kunming. O seu antigo desejo poderia, portanto, ser retomado: o filho Shijun estudaria Medicina.
Porém, este Tong, tal como já foi referido, era diferente dos seus antepassados. Vivia imerso nas tradições centenárias do domínio feudal chinês, mas, em contrapartida, era um Conunista convicto, venerava MAO como se este fosse um enfado de Deus e trazia a pequena ”bíblia de MAO” vermelha no bolso.
Nada mudaria, nem sequer quando, na recta final da Revolução Cultural, apareceu em casa de Tong um major da polícia de segurança, de nome Feng Tiyun, dando ordens aos seus polícias para que, em primeiro lugar, destruíssem com martelos e machados a grande estátua de Buda, no átrio da entrada da casa, após o que os seus oficiais, pegando no pequeno Jian, na altura com doze anos e que, na inocência da infância, procurara refúgio atrás do Buda, o atiraram contra a parede, como se fosse um gato.
Feng dissera a Tong Shijun:
- Então tu és médico? Observas o pescoço e o olho do cu aos pobres e ainda pedes dinheiro por isso? És antes um porco capitalista! Vamos enforcar-te na grande praça de Kunming. Vai ser uma festa popular!
Tong Shijun não era homem que cedesse a ameaças; declarou que era membro do Partido e retirou do bolso o livro de MAO. O major bateu-lhe na cara com as palavras santas do Grande Presidente, desatou aos berros, dizendo que Tong era um traidor, pois a nova era há muito que já tinha mudado de rumo, amarrou-o e levou-o preso. Por sorte, nesse dia, a mulher de Tong, Meizhu, e a filha, Fengxia, tinham ido a Chengdu, a cidade natal de Meizhu, visitar o avô que estava adoentado. Meizhu também era médica e, quando o pai lhe fez saber que não sobreviveria ao Inverno, ela decidiu ir pessoalmente observá-lo, apesar de o ancião já ter três médicos de roda dele. Deste modo, as duas furtaram-se à vergonha da violação, pois Fengxia, com os seus catorze anos, estava na idade certa para dar grande prazer aos soldados.
Nas ruas de Kunming as multidões concentravam-se e assistiam, aos gritos e palavrões, enquanto os guardas-vermelhos e os polícias arrastavam das suas casas os funcionários superiores, os advogados, os arquitectos, os doutores, todos os que eram considerados como fazendo parte da inteligentsia, levando-os para uma praça, onde já se encontravam centenas de camaradas sofredores à espera do seu destino. Em cima de.um estrado, controlando tudo com uma expressão lúgubre, estava um homem de uniforme verde, que todos chamavam de general.
Tong Shijun e o seu filho de doze anos, Jian, foram empurrados para o meio dos que aguardavam o seu destino. Tong conhecia muitos deles, que conheciam o médico, já tinham sido seus doentes, e achavam estranho o facto de Tong, como membro do Partido, também ter sido preso.
- Consegue perceber o que está a acontecer? - perguntava-lhe um. Era o director de uma fábrica de têxteis; tinham-no arrancado da secretária, empurrado através das salas de produção, e os seus diligentes e fiéis empregados, que sempre o tinham respeitado, começaram de repente a aplaudir e a cuspir atrás dele. - Eu sempre cumpri o meu dever. Todos os anos ultrapassei os objectivos. A minha fábrica até recebeu uma medalha de prata de MAO, mas o que é isto agora? Só pode ser engano.
- Não estivemos alerta, caro amigo. - Tong pôs o braço em volta do filho Jian. - Fomos incapazes de reconhecer os sinais. A influência de MAO foi decrescendo; Zhou Enlai tornou-se o homem forte em pano de fundo e Deng Xiaoping, o representante de MAO no Comité Central do Partido; Deng, como toda a gente sabe, não gosta dos comunistas radicais. Depois, Zhou Enlai adoeceu com cancro e quem assumiu as suas funções? Deng, mais uma vez. Em 1976, Zhou morreu e, apesar de Hua Guofeng ter sido nomeado seu sucessor, nada escapava a Deng. Depois, vejam bem, em Março de
1976, apareceu escrito no grande jornal de parede de Cantão: ”Jiang Qing é uma prostituta da classe dos exploradores.” Quem se atreveria a chamar isto publicamente à mulher de MAO? Tudo isto foram sinais que nós não interpretámos. Agora temos que nos penitenciar pela nossa cegueira.
- Mas foram os soldados de MAO que nos trouxeram Para aqui.
- Tem a certeza? - Tong reviu a cena em que o major eng lhe bateu com a ”bíblia de MAO” na cara e abanou a cabeça. - Aqui, todos lutam contra todos e ninguém sabe muito bem para quê. Mata-se, mais nada.
Nas ruas ouviram-se tiros e o matraquear de metralhadoras. O director da fábrica de têxteis ficou lívido e agarrou o braço direito de Tong.
- Será que nos vão fuzilar? - balbuciou. - Ou vamos ser levados para algum campo?
- Vão-nos fuzilar - afirmou Tong com toda a calma.
- Você tem medo da morte?
- Tenho! Você não?
- Eu sou médico, tenho uma relação com a morte diferente da das outras pessoas. Quando estava perante uma doença que sabia ser incurável, dizia para mim próprio: ”Esta pessoa terminou a sua vida. Não há alteração possível. Temos de aceitar as coisas como são.” Vamos pensar assim, meu amigo! A única coisa que podemos fazer é esperar pela nossa morte.
E foi o que aconteceu. Ficaram à espera. Fez-se noite e continuavam apinhados na praça, depois dos tiroteios na rua se terem extinguido. Dois guardas-vermelhos de mota trouxeram várias mensagens para o general, igualmente perseverante no alto do seu estrado, e um oficial com um megafone subiu até junto do general e gritou bem alto para a multidão de detidos.
- Quem aqui é médico? Precisamos de médicos! Cheguem-se à frente os médicos.
Dezassete homens chegaram-se à frente, entre eles Tong que, inicialmente, hesitara, pois não queria deixar o filho sozinho.
Mas Jian dissera-lhe:
- Vai, pai! Eu não vou desonrar-te. E Tong respondera-lhe com orgulho:
- Morre com brio, meu filho Jian! Não grites! Um Tong morre sempre em silêncio. - Só então avançou e deu-se como médico.
Sob vigilância, deram início a uma marcha que os levou a uma gruta de argila nas imediações da cidade. Tong pensou logo que seria o local ideal para uma vala comum e que eles seriam os primeiros a ir lá parar com tiros na nuca.
Era, de facto, uma vala comum, mas não para médicos. Por toda a gruta jaziam feridos aos gritos e gemidos. Na cidade houvera uma batalha sangrenta entre os guardas-vermelhos e as milícias civis; agora precisavam de médicos para decidirem quem viveria e quem morreria.
Tong e os colegas tornaram-se juizes da morte. Percorriam as filas de feridos e seleccionavam: ”Tu vais viver, tu vais morrer.” Quem cuspia espuma com sangue de um tiro nos pulmões - rua! Quem tinha as tripas a sair do corpo rua! Quem tinha levado tiros nas duas pernas - rua! Como é que poderiam operar os doentes no meio da lama, sem instrumentos próprios? Tong olhou em volta um par de vezes. Viu três colegas parados entre as longas filas de feridos, perplexos, sem fazerem nada. Dirigiu-se a eles e perguntou-lhes, curioso:
- O que é que estão aí a fazer parados, colegas? Porque é que não fazem nada?
- Como é que eu posso proferir uma sentença? - retorquiu um deles. - Sou ginecologista.
- E eu dentista - disse o outro.
- Eu sou veterinário - explicou o terceiro. - Se fossem animais, mandava abatê-los todos. Mas assim? Como é que posso proferir uma sentença?
Tong regressou para junto dos feridos e prosseguiu através das fileiras. Era seguido por quatro guardas-vermelhos e, quando apontava para um ferido que já não era possível ajudar, dois dos soldados agarravam-no, levantavam-no aos gritos, transportavam-no para a cova de lama e atiravam-no para cima do monte de cadáveres. Uma escavadora despejou os mortos recém-trazidos por cima dos vivos, depois os homens descarregaram os depósitos de gasolina e regaram os corpos com ela. Um jovem alferes acendeu uma camisa manchada de sangue e atirou-a para dentro da cova, onde imediatamente se levantou uma labareda. Em poucos minutos, a cova de lama transformou-se numa autêntica fornalha Jogante, da qual saía um cheiro repugnante a carne queimada que se estendia até à cidade.
Tong não tinha tempo para se deixar levar pelo terror; era preciso tratar dos feridos que tinham hipótese de continuar a viver. A maior parte apresentava ferimentos ligeiros, superficiais, feridas de balas ou ossos partidos; casos que ele facilmente trataria, se os camiões que traziam os feridos os transportassem em seguida para o hospital.
Apesar de estar a ser vigiado com desconfiança por parte dos jovens guardas-vermelhos, Tong dirigiu-se para a massa de gente concentrada na praça, verificou que o filho Jian ainda lá se encontrava e fez-lhe sinal com a cabeça. Em seguida, continuou a andar até se aproximar do general, que, entretanto, já se tinha sentado numa cadeira, recebendo continuamente novas mensagens de todas as direcções.
O general fitou Tong com uma expressão zangada e dura. O fato de Tong estava cheio de manchas de sangue, as mãos vermelhas de sangue dos feridos, que ele apenas pudera observar de fugida.
- O que é que tu queres? Quem és tu? - quis saber o general. Tinha uma voz fria, habituada ao comando, que provocaria um arrepio na espinha a qualquer pessoa normal. Em Tong, e depois de tudo o que este já tinha visto, aquele tom não exerceu qualquer efeito.
- Preciso de camiões - respondeu, sem qualquer sinal de submissão.
- Queres o quê?
- Camiões, para levar os feridos para o hospital.
- Este não está bom da cabeça. - O general virou-se. Atrás dele encontrava-se o major Feng Tiyun, à espera
da ordem para pegar nos reaccionários inimigos de classe que para ali tinham sido trazidos, dividi-los em grupos de dez e fuzilá-los.
- Eu sou médico - declarou Tong, temerário. O meu dever é ajudar os feridos. Mas ninguém, nem sequer MAO, tem o poder de fechar as feridas só com as mãos.
O major Feng reagiu visivelmente com um estremecimento. Tirou a pistola do coldre, preparando-se para dar um tiro naquele médico maluco que ele próprio tinha tirado de casa. Bastaria um leve sinal com a cabeça por parte do general.
Porém, Tong prosseguiu calmamente:
- Entre os feridos há muitos guardas-vermelhos. Se não os ajudarmos, camarada general, eles morrerão. Morrerão, apesar de nós, os médicos, os podermos salvar. Só precisamos de dois veículos para o transporte até ao hospital.
O general assentiu em silêncio, mas não era o sinal que Feng esperava para apontar a pistola; era apenas para mostrar que tinha percebido o pedido de Tong.
- Terás os teus veículos - declarou -, mas só transportarão os guardas-vermelhos; os outros que se ajudem uns aos outros.
E Tong recebeu quatro camiões e seis soldados, que pegavam nos feridos como se fossem lenha e os atiravam simplesmente para cima da área de carga, uns por cima dos outros. Tong transportou todos os feridos, não apenas os guardas-vermelhos, pois o oficial, encarregado da coluna, não tinha ouvido a ordem do general.
No hospital, Tong trabalhou pela noite dentro nos blocos operatórios, em conjunto com outros dez médicos. Quando acabava de tratar um ferido - entretanto, nove morreram nas suas mãos -, Tong fazia um minuto de silêncio e pensava no filho Jian. Já o teriam executado, levado para a segunda cova e regado com gasolina? Como é que se poderia avisar Meizhu e Fengxia para não regressarem a Kunming nos próximos dias? Ou teriam os selvagens dos ”pequenos generais de MAO” chegado a Chengdu para prepararem, também lá, um banho de sangue?
Assim se ficava Tong na mesa de operações, de olhar fixo no infinito, até lhe depositarem o próximo ferido à frente e um enfermeiro lhe dizer: ”Tiro no ombro esquerdo. A bala ficou alojada.” Era um trabalho em série, corpo atrás de corpo; não havia tempo para desinfecções, trocas de instrumentos, os quais, de qualquer modo, eram em número insuficiente, e Tong sabia que muitos dos que saíam daquela mesa, acreditando que continuariam a viver, iriam morrer nos próximos dias devido a infecções.
De manhã, o general apareceu no hospital, espreitou para a sala de operações e chamou Tong com a mão, para este vir até ao corredor, onde aguardava também o major Feng Tiyun, com uma expressão carregada.
- Tens um filho? - perguntou-lhe o general.
Tong anuiu em silêncio, apesar de o seu coração ameaçar ceder. Olhou fixamente para Feng, mas este desviou o olhar.
- O que é que aconteceu ao Jian? - inquiriu com voz rouca.
- Tu salvaste vidas - afirmou o general. - Muitas vidas de compatriotas valentes. Quero agradecer-te, salvando eu próprio uma vida. Trouxe o teu filho comigo; está lá em baixo, à porta.
- Obrigado, camarada general - disse Tong. As lágrimas afluíram-lhe aos olhos, não conseguiu evitá-lo, não obstante a vergonha que era um homem chorar.
O general virou-se bruscamente e foi-se embora. Os outros médicos precipitaram-se para junto de Tong e congratularam-no.
- Uma coisa destas nunca aconteceu! - exclamou um deles. - Temos de saber o nome do general.
- Eu não sei o nome dele nem de onde vem.
- Os outros saberão.
Mas nenhum dos feridos sabia quem era o comandante. Viera de Pequim, assumira o comando, chamara ao seu antecessor traidor e mandara fuzilá-lo; desde então, dirigia a divisão com pulso de ferro e ninguém se atrevia a perguntar-lhe o que quer que fosse. Um homem extraordinário, que mal falava, mas cujo sinal decidia sobre a vida ou sobre a morte. O major Feng Tiyun, em contrapartida, era conhecido. Era o carrasco da tropa. Com os seus homens de farda verde, fuzilava todos os que recebiam a sentença, num processo rápido, no meio da rua, e também mandava matar mulheres e crianças por os seus maridos ou pais serem intelectuais, professores, doutores, advogados; todos os homens que tivessem estudado e que agora eram considerados reaccionários.
O reencontro entre Tong e o filho foi curto. Abraçaram-se em silêncio, pois cada um sabia o que o outro estava a pensar.
- Sim, pai - disse Jian -, vou tentar ir até Chengdu e, se ainda for possível, esconder a mãe e a Fengxia. Dizem por aí que a Revolução Cultural está a definhar, tal como MAO Tsé-Tung, que já ninguém vê. Parece que quem vai governar é a mulher dele, Jiang Qing, e Yao Wenyuan, o enteado, dele. Vamos esconder-nos até MAO morrer. Depois, tudo será diferente. Deng Xiaoping tomará o poder.
- Tu és um rapaz inteligente e valente - observou Tong, cheio de orgulho. ”Só tem doze anos e a coragem de um guerreiro das lendas antigas”, pensava. ”Será um grande homem; o nome de Tong será respeitado em todo o lado.”
A sua profecia cumprir-se-ia. Só que não seria Jian quem ficaria conhecido muito para além das fronteiras da província de Yunnan, mas o próprio Tong Shijun. Jian conseguiria, de facto, levar a mãe e a irmã para fora de Chengdu e escondê-las em casa de um tio que tinha a sorte de não ser académico, mas um escultor que, inicialmente, cinzelava templos e pavilhões em mármore e, mais tarde, durante a Revolução Cultural, esperto como era, passara a fazer animais, principalmente tartarugas, o símbolo de uma longa vida, pequenas arcas, aves de todas as espécies, magnólias, castanheiros em flor e flores de lótus a desabrochar. Tudo em mármore, jade ou esteatite, esculturas tão delicadas que se via a nervura das folhas. É verdade que um grupo de guardas-vermelhos também passara pela sua casa, levando as esculturas prontas, mas não lhe devastaram a casa; limitaram-se a pintar um sinal com tinta vermelha na porta da entrada, um sinal secreto que dizia que aquela casa devia ser preservada. Os grupos seguintes tomaram o sinal a peito e deixaram-no em paz.
Era um bom esconderijo, e ali ficaram Jian, a mãe e Fengxia, até o ”Bando dos Quatro” ser preso e, com isso, se encerrar oficialmente a Revolução Cultural de MAO. Poucos dias depois, os Tong chegaram à sua cidade natal de Kunming, sentados no tejadilho de um camião. Quando entraram na cidade, era como se nunca de lá tivessem saído: a vida não se alterara, os mercados estavam cheios de legumes, esPeciarias, carne, massas, tofu e gaiolas com pássaros; os pequenos comerciantes tinham montado as suas barraquinhas; Peixinhos coloridos nadavam nos seus aquários de vidro, mas também havia caranguejos e tartarugas-do-mar, que fazem sopas muito apreciadas.
A casa de Tong não tinha sido destruída, mas estava caótica. Fora saqueada, o altar da casa despedaçado, os novos representantes da cultura tinham deixado por todo o lado os seus excrementos: nas camas, nos sofás, nos bancos do jardim, no lago dos peixinhos-dourados, nada escapara; estava tudo coberto de fezes, quando Tong Shijun regressou a casa, depois da retirada do general e da sua divisão. Até havia um morto em decomposição dentro de uma floreira vazia. Era o seu criado Jinghen, que também havia servido o pai de Tong.
No hospital ainda havia feridos. Estavam a ser interrogados pelos comissários da milícia civil e temiam pela vida, pois ainda vestiam os odiados uniformes verdes dos ”pequenos generais de MAO” e, mesmo que tivessem deitado fora a faixa vermelha que usavam no braço com as palavras ”Guarda-Vermelha”, toda a gente sabia as casas que haviam devastado e a quantidade de pessoas que tinham sido mortas pelas suas armas.
Tong, que entretanto voltara a ser o médico-chefe do hospital, não podia evitar que muitos dos guardas-vermelhos fossem levados das suas camas, encostados aos muros do hospital e fuzilados. Quem não se conseguia levantar, era morto na cama; os assassinatos prosseguiam, apenas tinham outro nome.
Meizhu, Jian e Fengxia foram encontrar a casa saqueada e abandonada. A sujidade maior fora removida, porém, a mera perspectiva da destruição foi o suficiente para que Meizhu desatasse a chorar.
- Meu filho - disse para Jian -, não esqueças nunca o que estás a ver aqui. Não esqueças o que um povo é capaz de fazer, quando é levado à loucura. Um único homem como MAO é capaz de destruir um mundo inteiro. Não sigas ninguém que te prometa a liberdade... não há pessoas livres. Aprende a contar apenas contigo e confia numa única pessoa: em ti próprio! Só assim conseguirás suportar a vida.
À noite, quando Tong regressou a casa, vindo do hospital
- não fazia ideia que a família já tinha regressado -, sentiu o aroma a carne assada logo à entrada. Também havia luz na cozinha e na sala de jantar, e o lixo, que permanecera aquele tempo todo na sala de estar, tinha sido removido.
O coração de Tong batia violentamente. Correu para a cozinha, viu a mulher Meizhu em frente a uma fogueira improvisada, com uma frigideira velha na mão, abriu os braços e gritou o nome dela. Caíram nos braços um do outro e beijaram-se. Ele pegou no rosto dela com as duas mãos, olhou-a deslizou os lábios pelos seus olhos fechados e, após bastante tempo, disse-lhe ”Amo-te”. Era o mais importante que tinha para lhe dizer; há anos que Meizhu não ouvia aquelas palavras. Tong não era um homem que tivesse os sentimentos na ponta da língua e no quarto também ficava calado, apenas as suas mãos falavam, quando deslizavam pelo corpo esguio de Meizhu, dizendo mais do que palavras sussurradas.
- São costeletas de porco - explicou, quando finalmente ele a largou. - Com alho-porro, raízes de gengibre e rebentos de soja verde. É o teu prato preferido. O Jian conseguiu roubar a carne... não temos uma única moeda.
- O Jian deve saber onde roubou a carne - declarou Tong. - Amanhã vamos lá pagar. Um Tong não rouba, nem quando o estômago está a roncar de fome.
- Queríamos dar-te prazer. Fazer-te uma surpresa.
- E é isso mesmo. - Tong fez um gesto no ar. - Acabou-se. Já me esqueci que estou a comer carne roubada.
No dia seguinte, Tong foi ao mercado e Jian teve de acompanhá-lo, caminhando de cabeça baixa, envergonhado, mas ao mesmo tempo decepcionado, pois roubara a carne para fazer uma surpresa ao pai. Foi obrigado a indicar ao pai a banca, mas o talhante não vira Jian roubar a carne.
Ficou surpreendido, quando Tong Shijun lhe apareceu, com um rapazito ao lado, inclinando-se e dizendo:
- Eu sou o doutor Tong, do hospital, e este é o meu filho Jian.
- Muito prazer. - O talhante retribuiu a vénia. E uma honra o senhor vir ao meu humilde e indigno talho. O que posso vender-lhe?
- Quero pagar - afirmou Tong, pegando em Jian, que estava atrás dele, e empurrando-o para a sua frente.
- O que quer que corte? - prosseguiu o talhante, irritado.
- Nós já fizemos as compras. - Tong pousou as duas mãos nos ombros de Jian. - Ontem, o meu filho comprou-lhe uma peça de porco, mas esqueceu-se de lhe deixar o dinheiro. Eu quero fazer a reparação. Quanto lhe devemos, além de um humilde pedido de desculpas?
O talhante ficou a olhar para Jian, depois fitou Tong, limpou o suor do rosto e ficou a matutar: ainda havia gente honesta, até o pai de um ladrão vinha pagar mercadoria roubada, e esse pai, ainda por cima, era médico de um hospital e vinha, humildemente, por causa do filho, pois se envergonhava pelo acto dele. Também pensou no seu próprio filho, que conduzia um riquexó em Kunming e que, quando transportava estrangeiros pela cidade, de vez em quando os enganava, pedindo três vezes o preço da viagem e, se lhe pagavam em dólares, fazia o câmbio de modo a obter no final até quatro vezes o preço normal da viagem.
- Como é que eu posso fazer as contas se não sei o peso da peça? - retorquiu o talhante. - Só adivinhando.
- Façamos um acordo! - Tong meteu a mão ao bolso e retirou um maço de notas. - Diga o preço que eu pago.
- Assim posso prejudicá-lo, ilustre senhor doutor. Eu sou um homem honrado e...
- Considere isso como a nossa penitência. - Pegou no braço de Jian, depositou-lhe as notas na mão e empurrou-o para o canto da mesa. - Paga! - ordenou com firmeza.
Jian engoliu em seco várias vezes; sentia-se como se estivesse na mão de um carrasco e entregou as notas ao talhante. Como este não pegou logo nas notas, pousou-as sobre a mesa, debaixo das peças de carne penduradas nos ganchos da vara de ferro.
- É de mais - afirmou o talhante. - De mais. Com isso comprava quase metade de um porco.
Tong Shijuan já não respondeu. Agarrou Jian pelos ombros, empurrou-o à sua frente e afastou-se da banca da carne. Tinha recuperado a sua honra.
- O que é que aprendeste? - perguntou ao filho, quando já tinham chegado ao princípio da rua, deixando para trás as bancas do mercado.
Os lábios de Jian crisparam-se, no entanto respondeu: Nunca se pode perder a honra, mesmo quando se está a esticar o pernil.
Durante a revolução aprendeste uma linguagem feia observou Tong muito sério. - Mas isso vai mudar. Está a surgir uma nova China, com um comunismo novo e aberto ao mundo.
- Tu... tu ainda és comunista? - balbuciou Jian.
- Nunca me passou outra coisa pela cabeça.
- Apesar de tudo o que vimos, de tudo o que sofremos na pele?
- Viver significa estarmos sempre a renovar-nos, mas mantendo a tradição. Aprendemos a sabedoria dos nossos antepassados, meu filho, e acrescentamos um novo pensamento. A China é eterna como a nossa Terra, apenas os homens mudam. O comunismo também se renova, e eu quero ajudar a que as duas doutrinas, a antiga e a nova, se juntem em uníssono. Quando fores mais velho, vais perceber e ser um bom comunista.
- Não sei, pai... Se calhar ainda sou mesmo jovem de mais para isso.
- Assim é, meu filho. - Tong Shijun pôs o braço em volta dos ombros do filho. - Dentro de dez anos já não reconhecerás o mundo. Dentro de vinte anos já estará diferente outra vez e tu também. Quem é que pode prever o futuro? Nós somos chineses, meu filho, e acreditamos na imortalidade, na eternidade. E agora, Jian, vamos ao Xiao Ming beber uma aguardente e uma cerveja. Já estás quase um homem...
Os anos podem ser como flocos de neve - derretem nas nossas mãos e, quando pensamos nisso, chegamos à surpreendente conclusão: O quê? Já passaram cinco anos? Parece que foi ontem.
Foi ontem que Tong Shijun foi nomeado médico-chefe, inicialmente, e depois director do hospital? Foi ontem que o Clamaram professor doutor, atribuindo-lhe uma cátedra de Medicina Interna e que as suas duas obras sobre Medicina foram introduzidas como literatura obrigatória em todas as universidades chinesas? Foi ontem que Fengxia, a filha, lhe pediu permissão para trazer um homem a casa dos pais e que Wu Junghou lhes apareceu de fato cinzento, com o casaco abotoado até ao colarinho, e Fengxia, cheia de orgulho, o apresentou assim:
- O Junghou é funcionário do Partido Comunista. É vice-director do Departamento da Saúde.
Jian, que entretanto tinha vinte e seis anos e estudava Medicina em Kunming, cumprimentou Wu baixando ligeiramente a cabeça e saiu da sala. Wu, estupefacto, seguiu-o com uma expressão carregada. Considerava falta de delicadeza sair-se da sala quando um homem se apresentava para ser adoptado no círculo familiar.
- Não ligues - disse-lhe Fengxia. - Ele é diferente de todos nós. Já estamos habituados. Mas um dia será um bom médico. Os professores tecem-lhe elogios. Dizem que é o melhor.
Foi ontem, ou dez anos mais tarde, que Wu e Fengxia festejaram o seu noivado; que nos jardins da casa dos Tong se lançou um grande fogo-de-artifício; e os convidados eram funcionários, altos dignitários do Partido em Kunming, instalados nas mesas rasas, saboreando uma refeição festiva, constituída por quinze pratos diferentes, na qual haviam trabalhado seis cozinheiros; e qualquer pessoa que, por acaso, passasse pela casa da família Tong, sentisse o aroma das iguarias e se aproximasse do pátio interior da casa, era convidada a comer doçarias e a beber um copo de aguardente? Foi ontem que Tong se dirigiu a Wu e à filha e lhes comunicou solenemente: ”Vocês prometeram ser um casal. Vamos festejar esta promessa!”
Meizhu, a mãe, dispôs-se diante do casal de noivos com duas tigelas de prata atadas com uma fita de seda vermelha, Tong bebeu um vinho amarelado, com um tom ligeiramente verde reluzente, Wu e Fengxia pegaram nas tigelas, entrelaçaram os braços e beberam o vinho, trocando um olhar cheio de amor e de desejo.
Depois foi a vez dos outros convidados beberem; apenas Jian não tocou no vinho e não brindou à saúde dos noivos, limitando-se a ficar de pé, ao fundo, a assistir, e depois entrou em casa.
Fengxia foi atrás dele e viu-o sentado num sofá a beber um chá.
O que é que tu és? - gritou, zangada. - Ei, o que é que tu és? Meu irMão? Não, és um búfalo, um búfalo! O que é que Junghou te fez para o ofenderes desta maneira? Eu gosto dele!
- Isso é contigo - respondeu Jian, calmamente.
- E ele vai ser teu cunhado.
- Eu aguento.
- Eu já sei o que é que te incomoda nele. Pois sei! Se ele não fosse funcionário do Partido, abraçá-lo-ias como a um irmão! - Bateu com os pés, como se fosse uma camponesa a pisar as espigas. - E ele ainda vai subir mais alto! Em Pequim está na lista dos camaradas que vão ser chamados e... e...
- Mais alguma coisa? - concluiu Jian, com sarcasmo. Fengxia ameaçou-o com os punhos.
- Sim! Há mais! - bradou. - Eu serei membro do Comité Central de Yunnan.
- Eu não sabia que o curso de Química dava a volta à cabeça das pessoas - retorquiu Jian, ainda mais sarcástico.
- Mas se calhar foram os vapores venenosos que respiraste no laboratório.
- Seu reaccionário! Um dia destes fuzilam-te! Mas oWu pode proteger-te.
- Eu protejo-me a mim próprio. - Jian apontou para a porta. - Vai, os teus convidados esperam-te. Não sejas indelicada. Já basta haver um na família.
- Mas em que era é que tu vives?
- Ainda estou à espera da minha era - replicou Jian. - E como é que será essa tua era?
- Livre. - Jian proferiu uma única palavra, mas soou como se fosse a conclusão de um longo discurso.
- Nós somos livres. Tu é que te encarceraste a ti próPrio com as tuas ideias reaccionárias. - Fengxia dirigiu-se Para a porta, deteve-se à saída e voltou-se para o irmão: Ja não voltas para a minha festa?
- Não. Diz ao Wu que eu tenho que ir trabalhar para a universidade.
- Ele não vai compreender.
- Acredito. Ele só conhece a universidade de fora, por isso é que se tornou funcionário do Partido!
- Odeio-te, Jian! Odeio-te!
- Obrigado. Para mim é preferível do que se me amasses.
- A China será sempre comunista e nunca será capitalista!
- A China autodenomina-se o ”Reino do Meio”. Assim, encontraremos um caminho intermédio.
Após o fogo-de-artifício, a maior parte dos convidados recolheu a casa. O noivo, Wu, também se despediu, agradeceu a Tong pela bela festa, curvou-se delicadamente perante Meizhu, a mãe da noiva, e entrou no automóvel que o Partido tinha posto à sua disposição, na qualidade de funcionário.
Depois da partida de Wu, Jian regressou a casa, onde a família bebia o último copo de vinho na sala de estar.
- Foste indelicado, meu filho - acusou Tong de imediato.
- O Wu tem aquele olhar mau - respondeu Jian.
- Que só tu vês! - exclamou Fengxia, gritando com um tom tão estridente que o tio Zhang Shufang, de Dali, que tinha ficado lá em casa, se encolheu todo. - Ele também não gosta de ti.
- É a única coisa que temos em comum e assim deve permanecer.
- De que é que o acusas?
- Ele lambe as botas dos caciques do Partido. Fengxia ficou vermelha e depois lívida, uma mudança
tão rápida que denunciava a fúria que se apoderara dela. Tong franziu o sobrolho; era uma linguagem que nunca se ouvira na sua casa. Meizhu também fitou o filho horrorizada; apenas o tio Zhang reagiu com sabedoria e paciência-
- Nós vamos casar o mais depressa possível - declarou Fengxia com voz vibrante. - Não quero continuar a viver debaixo do mesmo tecto com um irmão destes.
- Na casa dos teus pais não vive só o Jian - objectou Tong. - É uma casa honrada. - E, virando-se para Jian, acrescentou: - Pede perdão à tua irmã, meu filho.
Jian permaneceu calado. Já não era o rapazito de doze anos que roubara costeletas de porco no mercado e que tivera de pedir perdão com humildade. Já tinham passado dez anos e, mesmo que ainda fosse o filho do seu pai e lhe devesse todo o respeito, havia uma grande diferença entre a infância e a idade adulta.
- Não! - exclamou, por fim, quando viu que todos aguardavam a sua resposta. - Faz parte de mim não gostar de Wu. O que querem que eu faça? Que traia os meus sentimentos? - Olhou para o pai com uma expressão crispada.
- Se me permitires, pai, vou prosseguir os meus estudos em Changdu ou em Xangai.
- Não permito. - Tong levantou-se e fitou a família.
- É muito tarde e devíamos ir dormir. O sono é regenerador. Amanhã continuaremos a conversa. Hoje, os pensamentos diluem-se. - Cumprimentou todos em silêncio e saiu da sala.
Os outros quedaram-se no silêncio, até o tio Zhang declarar:
- Cada homem é uma charada e cada qual soluciona-a de maneira diferente; acredito que, se assim não fosse, o mundo desmoronar-se-ia.
Depois fez-se silêncio na grande casa; cada qual deitado na sua cama, perdido nos seus pensamentos. Tong disse para a mulher, Meizhu:
- Eu gosto dos meus filhos igualmente, mas eles odeiam-se e um dia ainda se vão dilacerar um ao outro. Que havemos de fazer, mulher?
Meizhu respondeu:
- Shijun, o que tem de ser, será. Não podemos manipular o destino... é ele que nos manipula.
-Isso é fatalismo, Meizhu. E não é também tradição?
Tong assentiu com a cabeça e virou-se de lado. Estava surpreendido com a inteligência da mulher e muito orgulhoso dela.
Jian não prosseguiu os estudos em Chengdu; ficou em Kunming a estudar, mesmo depois de Fengxia e Wu se casarem, saírem de casa e se mudarem para uma habitação num moderno bloco de apartamentos que o Partido tinha construí, do para os seus funcionários. Depois de concluir o curso de Química, e provida de um bom diploma, Fengxia conseguiria, com a ajuda de Wu, chegar onde queria, tal como dissera a Jian: tornou-se membro do Comité Central de Yunnan e, com isso, adquiriu o direito de vigiar a própria família, do mesmo modo que Wu Junghou conseguiria ascender a director do Departamento da Saúde.
Um ”macaco a brincar aos tigres”, chamava-lhe Jian, mas Tong contrapunha:
- No hospital recebemos equipamento de ultra-sons totalmente moderno. Um aparelho alemão. Foi a intervenção de Wu que tornou isso possível. Vou começar a dar formação aos meus médicos. Em seguida, vamos receber o complemento do diagnóstico por ultra-sons, um sonógrafo, que nos permitirá a verificação dos impulsos por meio de eco. Poderemos então determinar as alterações no interior do corpo sem recorrer aos danosos raios X. Sem o Wu, nunca teríamos o equipamento. - Tong percebeu que o filho não ficara muito impressionado. - Dentro em breve, também serás médico - prosseguiu. - Nessa altura, o teu pensamento deve ser dirigido para os doentes e não para as tuas próprias emoções. Para se ser um bom médico, não basta ter um curso de Medicina e ter boas notas nos exames... o teu coração tem que estar com os doentes, tu tens de ser o confidente deles, a quem contam o que de mais íntimo se passa com eles, pois muitas doenças vêm da alma e não precisam de comprimidos nem de gotas. Mas isso não se aprende na universidade. Vocês são formados como se fossem mecânicos de automóveis, cuja função é reparar um motor, o doente é a máquina que empanou em algum sítio e cabe-vos descobrir a falha; mas os doentes são seres humanos, meu filho, e a vida não é um mero motor em funcionamento. Vê as coisas desta maneira e dá graças por Wu nos apoiar. Dá graças a Wu em nome dos doentes.
Nas férias do semestre, Jian não aguentou ficar em casa: foi Para Dali conviver com Zhang, o grande poeta e pintor. No seu aniversário, o pai oferecera-lhe um pequeno automóvel japonês e, dessa vez, até fora Fengxia que conseguira a autorização para poderem obter um carro através do Comité Central. Por esse motivo, inicialmente, Jian recusara-se a aceitar o automóvel, mas depois acabaria por ficar com ele, pois seria uma ofensa para o pai se recusasse um presente seu.
Em Dali, Jian explorava quase diariamente o lago Erhai com um barquinho. Observava os pescadores ou ficava deitado no barco, com os braços cruzados atrás da nuca, a mirar os íngremes picos da serra de Cangshan, pensando nas muitas lendas que ali se contavam há séculos.
De vez em quando também velejava até à ilha de Jinsuo Dão, comia peixe grelhado no carvão na pequena aldeia piscatória ou atracava na diminuta ilha-templo de Xiao Putuo Dão, sentava-se à sombra das graciosas colunas e ficava feliz por estar rodeado pela Natureza pura, sem pessoas à volta. Contudo, por vezes, sentia necessidade de ver as pessoas no seu habitat natural; então, visitava as aldeias das minorias, atravessava as ruelas das povoações do povo bai, falava com os Yis ou observava os Huis nas suas comezainas festivas de carneiro; os Huis eram muçulmanos e tinham conseguido preservar as suas crenças ao longo dos séculos.
- Amanhã é a grande feira de Xiaguan - lembrou um dia o tio Zhang. - Não queres ir até lá passear?
- Uma feira? O que é que há para ver numa feira?
Jian deixou-se convencer. De manhã, percorreu a pequena distância que separava Dali de Xiaguan. Estacionou o automóvel à entrada do mercado, junto a um muro de barro, no meio dos tractores de três rodas e dos seus atrelados. As pessoas pareciam formigas à sua volta, e viam-se trajos típicos que ele só conhecia de fotografias. Carroças de bois abriam caminho pela multidão. Os camiões e as camionetas enxotavam as pessoas para os lados com as suas buzinas. Transportadores, a maior parte camponeses das redondezas, dirigiam os seus veículos, carregados com couves, melões, tomates, espinafres de folhas grandes, tangerinas e laranjas, alho-porro e raízes de gengibre, através da poeira que se levantava. Jian abriu caminho, deixando-se levar pela torrente de gente, e ficou parado junto às compridas bancas de sapatos; depois saboreou uma taça de uma deliciosa sopa de massa, numa banca de comida, e ficou a observar um mendigo cego, que entoava canções melancólicas com uma voz vibrante, num dialecto que Jian não conhecia. O mendigo, sempre que ouvia o tilintar de uma moeda atirada para o seu chapéu de palha, assentia com a cabeça, embora fosse muito raro tal acontecer. Jian atirou-lhe meio iuane.
O mendigo interrompeu o seu cântico monocórdico e disse:
- Que a tua vida seja longa e cheia de benefícios. Jian riu-se e o mendigo continuou a cantar.
Assim, Jian foi avançando, impelido pela multidão, até chegar à mesinha do dentista, que estava nesse momento a arrancar um dente amarelo a um paciente. O dentista anuiu com a cabeça em direcção a Jian e pediu:
- Aguarda, estou quase a acabar - e tornou a inclinar-se sobre a boca escancarada do paciente. Este rolou os olhos, tudo no seu maxilar estalava, mas não emitiu um único som por querer armar-se em herói ou, talvez, pelo facto de o líquido com que o médico tinha pincelado o seu maxilar ser verdadeiramente eficaz. Em volta da mesa do dentista aglomeravam-se curiosos, admirando o monte de dentes que eU’ tinha exposto.
Quando Jian se voltou, após uma curta troca de palavras com o dentista, deu um encontrão a uma rapariga que estava quase colada às suas costas. Pediu perdão, perguntou-lhe se a tinha magoado e, ao mesmo tempo que o fazia, admirava o seu rosto doce, os longos cabelos pretos, a boca vermelha e os olhos, tão negros como um lago à noite; quando ela falou, a sua voz soou-lhe aos ouvidos como o cantar de um rouxinol.
”Hoje é um dia de sorte”, pensou. ”Foi um belo conselho do tio Zhang, este de vir visitar a feira de Xiaguan. Meti-me no meio de uma multidão de milhares de pessoas e dou com a rapariga mais linda que alguma vez vi.”
Puxou conversa com ela, tornou a desculpar-se várias vezes, ofereceu-se para lhe passar uma pomada pelo braço, que ele próprio tinha magoado, de modo a não formar um hematoma e, assim, conseguiu levá-la até ao carro dele.
No estacionamento, junto a um tractor de três rodas com um pequeno atrelado, conheceu um velho com o rosto violentamente maltratado, ao qual ela chamava tio Chang e que era muito pouco amável. Não obstante, conseguiu segui-los, atrás do vagaroso tractor de três rodas, que crepitava e deitava um fumo malcheiroso, até à aldeia do povo miao, Huili, onde Lida - assim se chamava ela -, sem vai nem vem, saltou do tractor e desapareceu no interior da casa.
- Isto é a escola - explicou Chang. - E ali é a casa do professor Huang Keli. Já viste o suficiente? Somos pobres, mas para sermos felizes não precisamos de um carro japonês. Ficamos felizes quando o Sol nasce e quando o Sol se põe e dizemos para nós próprios: ”Vivemos mais um dia com sentido e não o desperdiçámos.” - Chang assentiu na direcção da casa do professor e depois abanou a cabeça. Não vale a pena ficares à espera. A Lida já não vai sair de casa.
- Então, vamos nós entrar. - Jian abriu a bagageira do automóvel, retirou uma mala de lona, onde se lia em grandes letras ”Hong Kong” e tornou a virar-se para Chang. - Trata-se de ti, não de Lida. Tu tens uma tosse seca, cospes sangue de vez em quando e a tua cara...
- Foi uma doença má e desconhecida que comeu a minha cara - interrompeu Chang. - Mas já passou. Já foi há nove anos.
- Eu vou observar-te melhor, tio Chang.
- Não vale a pena. Sou um velho. - Chang ergueu as duas mãos para o repelir. Nesse momento viu Huang Keli a sair de casa e, atrás dele, à porta, a cabeça de Jinvan, a mulher. Após uma espreitadela curta e curiosa, Jinvan tornou a desaparecer no interior da casa. - Vem aí o professor.
Jian pousou a mala de lona no chão e aguardou até Huang se ter aproximado o suficiente, após o que fez uma vénia, como mandavam os costumes. Huang assentiu em silêncio, inspeccionou-o rapidamente e achou que o visitante era uma pessoa simpática, com olhos inteligentes e maneiras de quem teve uma boa educação.
- Chamo-me Tong Jian - apresentou-se Jian, quando percebeu que estava a ser criticamente observado por Huang. - Sou estudante de Medicina e venho de Kunming.
- Eu sei - replicou Huang. - A minha filha contou-me.
- A Lida falou sobre mim?
- Só disse que o senhor os tinha seguido e que o conhecera no mercado. Permite-me que lhe pergunte o que o traz à nossa pobre aldeia?
- A minha tosse e a minha cara! - interrompeu Chang, antes que Jian desse uma resposta tola. - Ele quer observar-me e receitar-me medicamentos, completamente de graça; não quer um tostão por isso. Que me dizes, hem?
- Seja meu convidado, senhor Tong - propôs Huang, apontando para a sua casa. - Nunca deve ter pisado uma cabana tão miserável como esta, mas de certeza que aguentará o tempo que demora a beber um chá.
- No final da Revolução Cultural, a minha mãe, a minha irmã e eu tivemos de nos esconder e vivemos numa pocilga. A sua casa, em comparação, é um palácio.
- Foram perseguidos? - inquiriu Huang.
- Nós somos uma família muito conhecida em Kunming. O meu pai só conseguiu sobreviver porque esteve a tratar dos guardas-vermelhos feridos.
E o seu filho vem a uma pobre aldeia miao para tentar curar um velho. É uma honra!
Huang avançou primeiro e Jian seguiu-o, entrando no compartimento onde se encontrava Jinvan junto ao lume, a cozinhar o jantar em vários tachos de barro, de ferro e de alumínio. O arroz já estava a fumegar na pequena vasilha de madeira. Numa outra panela fervia a sopa com massa e, ao lume, estava uma frigideira de ferro, de onde vinha um aroma a pato assado.
- Temos pouco para lhe oferecer, senhor Tong - acrescentou Huang, como se tivesse de desculpar-se por não haver caranguejo do rio ou porco agridoce na mesa. - Mas a Jinvan sabe temperar os pratos mais simples de modo a dar prazer ao paladar.
- Por favor, não me chame de senhor Tong; trate-me por Jian - pediu. Olhou em volta. Um compartimento grande, asseado e arrumado, duas estampas coloridas na parede, que poderiam ter sido retiradas de uma revista e onde se via uma paisagem: as maravilhosas montanhas de Zhangjiajie, pelas quais até os pintores se apaixonavam, afirmando que chegavam a ser mais belas do que as famosas montanhas de Guilin. Além das estampas, só um retrato de Deng Xiaoping, que iria conduzir a China até uma nova era.
Jian aproximou-se da fotografia e perguntou a Huang:
- O senhor admira Deng, senhor Huang? Gosta dele?
- Eu admiro qualquer pessoa que tenha ideias úteis. Huang olhou para a mulher, que virava o pato na frigideira.
- Onde está a Lida?
- No estábulo, no jardim, com o búfalo dela... não sei. Estava com pressa de sair de casa.
- Ela não come connosco?
- Vou chamá-la; não sei se virá.
- Ela que venha! - exclamou Huang, alterando de repente o tom de voz e imprimindo-lhe rispidez. – Ensinei-te boa educação e boas maneiras. Jian, desculpe o comportamento da minha filha.
Sentaram-se à mesa. Chang sorria para si próprio, pois, ao contrário de Huang, via a ausência de Lida com outros olhos, adivinhando no seu coração uma rosa a florir. Era um sentimento que ela não conhecia, por isso fugia dele.
Jinvan passou o pato assado para uma terrina de barro, foi buscar uma moderna frigideira de alumínio, que Lida trouxera de um mercado qualquer, pegou numa colher de pau e bateu várias vezes com ela na frigideira, tal como nas casas distintas se toca o gongo para chamar a família.
A porta das traseiras abriu-se e Lida entrou. Huang pensou com orgulho: ”Afinal, tenho uma filha bem-educada, não é preciso envergonhar-me.” Foi então que reparou que ela tinha mudado de roupa. Trazia um vestido simples, de algodão azul-celeste, que realçava o seu corpo.
O coração de Jian ficou pesado. Enquanto punha as tigelas na mesa, abria três garrafas de cerveja e enchia os copos com um líquido de forte cheiro a lúpulo, Lida evitou olhar para Jian e sentou-se no lugar da mãe, a uma boa distância de Jian.
O jantar estava delicioso. Jinvan percebia mesmo muito de temperos e Jian comentou elogiosamente:
- Sabe melhor do que em muitos grandes restaurantes de Kunming.
- Eu nunca comi num restaurante em Kunming - retorquiu Huang. - Mas no fogão, a Jinvan é uma feiticeira; consegue transformar um talo de couve num coração de lótus.
Já estava escuro quando, finalmente, acabaram de comer e de beber o chá verde nas taças altas. Por cima deles, sob um quebra-luz feito de bambu, luzia uma pequena lâmpada que não chegava para iluminar a sala toda. Junto ao fogão, Lida lavava a louça numa cuba com água quente e esfregava com uma escova dura os pauzinhos de madeira que o próprio avô tinha esculpido. Estes pauzinhos só eram usados em dias especiais e hoje fora um desses dias, pois quando é que um senhor das melhores famílias se sentava à mesa de um pobre professor da minoria miaol
Jian fitou a lâmpada e declarou:
- A luz não é suficiente para uma observação como deve ser. Vou para casa e volto amanhã. Não se importa, senhor Huang?
Qual é a distância que tem de percorrer, Jian? – quis saber Huang.
Até Dali. É pouco.
Mas já é de noite. - Fora Jinvan a falar.
Eu tenho bons faróis, senhora Huang.
À noite espreitam todos os perigos. Dizem que uma destas noites uns ladrões atacaram e roubaram sete camiões.
- É verdade! - confirmou Chang. - A polícia esteve três semanas de vigilância, mas alguém deve ter avisado o bando. Se vai conduzir sozinho à noite podem-no... - Fez um movimento com a mão, como se estivesse a decapitar alguém. - Mesmo o homem mais corajoso deixa de ter valor quando é atacado de surpresa.
- Ofereço-lhe a minha humilde casa por esta noite disse Huang com delicadeza. - Mas é uma casa limpa. Não ficará infectado. Não há ratazanas, nem aranhas, nem percevejos. A minha cama é a sua cama.
- E onde dorme o senhor? - indagou Jian.
- Num quartinho dos fundos, onde a Lida costuma dormir.
- E a Lida?
- No estábulo - respondeu Jinvan. E Chang acrescentou:
- Com o búfalo dela. Lá é tão asseado como aqui. Todos os dias se muda a palha.
Jian hesitou, tanto mais que Lida, junto ao fogão, não dissera uma palavra, lhe virara as costas e andava às voltas com os tachos e as panelas, sem necessidade nenhuma.
- Vou pensar - declarou, levantando-se da mesa. Vou dar uma volta ao ar livre. Está uma noite bela e quente. Adoro estas noites, encantam-nos com a poesia que despertam.
Jian saiu para a rua e Huang, delicadamente, esperou dois minutos, para que Jian não o pudesse ouvir.
- Um homem bem-educado - afirmou. - E nada pretensioso.
- Aposto em como fica - comentou Chang, trocista. - A minha cara e a minha tosse interessam-no. - ”E não só”, pensou. ”A cegueira de um pai em relação a uma fílha permanecerá sempre um enigma. A Jinvan, vê-se nos seus olhos, há muito que já percebeu.”
Mas Huang tinha curiosidade em saber uma coisa.
- Porque é que há bocado contaste a história do bando de ladrões? - perguntou à mulher. - Não há bando nenhum. Aqui nunca ninguém foi atacado. E tu, Chang, apoiaste-a com uma mentira sobre a polícia. Porque é que queriam meter medo ao Jian?
- Para ele cá ficar... para ele ter uma razão para dizer: ”Aceito a sua cama, senhor Huang.” - Chang pestanejou astuciosamente. - Afinal, trata-se da minha tosse e do sangue que eu cuspo às vezes. Nunca mais na vida terei uma consulta médica de graça. Temos de aproveitar uma oportunidade destas, Huang Keli.
- Vou para o estábulo. - Lida limpou as mãos num pano. - Já é tarde. Amanhã cedo tenho de ir lavrar o campo das couves lá de cima.
- Não queres assistir enquanto o Jian me observa? indagou Chang, maliciosamente.
- Não. - Com um movimento da cabeça, sacudiu os cabelos para cima dos ombros. - Assistir e não poder fazer nada é pura perda de tempo.
Abandonou o compartimento pela porta das traseiras e dirigiu-se para o estábulo, onde o búfalo mugia insolitamente, como se algo não lhe agradasse. Também no estábulo só havia uma lâmpada fraca.
Lida hesitou à porta do estábulo e deteve-se, percebendo o motivo da inquietação do búfalo. Jian estava sentado numa caixa virada ao contrário, mas pôs-se de pé mal viu Lida entrar.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou ela, com mais rispidez e num tom mais alto do que pretendera. Pensava que querias aproveitar a beleza da noite para fazer poesia.
- Acabei de me lembrar de uma lenda antiga... queres ouvi-la?
- Se não for longa de mais. Preciso de dormir.
Foi há muito tempo - começou Jian - quando já havia Pentes mas ainda não havia espelhos. Estes só eram conhecidos pelos ricos, que se miravam neles várias vezes ao dia. Então aconteceu que a mulher de um pobre camponês partiu o pente de madeira e disse para o seu homem: ”Tens de voltar rapidamente à cidade para venderes os cogumelos em conserva. Traz-me um pente de madeira bonito, grande e resistente, que não se parta com tanta facilidade. Não te esqueças.” Mas como ela conhecia bem o marido e sabia como ele era distraído, levou-o à porta de casa e apontou para a Lua, que tinha a forma arqueada de uma foice, e disse-lhe: ”Não te esqueças do pente! Tem que ser arqueado e resistente, como a Lua ali em cima.”
”Chegou finalmente o dia em que o camponês foi até à cidade com o seu cestinho cheio de cogumelos de conserva; estava lua cheia. No mercado, lembrou-se que devia levar qualquer coisa para a mulher e que o objecto estava relacionado com a beleza dela. O que seria? Matutou, matutou e então lembrou-se que ela lhe dissera que tinha de ser como a Lua. Assim, olhou para cima, para o céu, viu uma lua cheia e procurou em todas as bancas, até que encontrou um espelho redondo como a Lua lá no alto. Deu quase todo o dinheiro que tinha, mas não se importou, porque gostava muito da mulher; depois regressou à aldeia todo orgulhoso e entregou-lhe o presente. ”É belo como a Lua” garantiu. ”Vais gostar.” A mulher desembrulhou o espelho. Nunca tinha visto nada assim e quando, de repente, viu um rosto reflectido na superfície redonda e plana que tinha na mão, assustou-se, saiu de casa a correr e fugiu para junto da mãe, lavada em lágrimas, lamentando-se. ”O meu marido arranjou outra mulher! Que hei-de fazer?” ”Mostra-me isso” pediu a mãe, fitando o espelho. Esta também se assustou e todo o seu corpo começou a tremer. ”Ele está louco!” exclamou, horrorizada, porque é que não arranjou uma rapariga jovem e bonita? Em vez disso, vem para casa e traz uma coruja feia e velha! Não está bom da cabeça.... tenho de ir contar ao juiz.”
”E, assim, mãe e filha dirigiram-se ao juiz, apresentaram a sua queixa e entregaram-lhe o espelho. O juiz olhou para o espelho, fez uma expressão colérica e gritou: ”Mas o que é isto! Parece mentira. Andam à bulha por causa de ninharias e depois têm a coragem de aparecer perante o juiz de togai Esse camponês até traz a minha toga vestida! Já não há respeito?” Desta forma, o pobre camponês foi castigado com vinte e cinco pauladas sem saber porquê. Atirou o espelho para o meio de uma lagoa e, desde então, os peixes miram-se na água e brincam com o seu reflexo.
Jian calou-se.
Lida estava sentada na palha, junto ao búfalo; ouvira-o em silêncio.
- Uma lenda extraordinária - declarou. - Qual é o teu objectivo?
- Tens um espelho?
- Claro que tenho um espelho.
- E quando olhas para o espelho, o que é que vês?
- Eu, quem mais poderia ser?
- Tu, a rapariga mais linda que existe, aquela que faz empalidecer tudo o que é belo neste mundo. Vamos ser tão burros como o camponês, a mulher dele, a sogra e o juiz?
- Não sei o que queres dizer com isso.
- Nunca se deve condenar o que não se conhece. Vamos conhecer-nos melhor. Quando agora olhar para a Lua, onde, aliás, me encontro, vou ver o teu rosto, como se a Lua fosse um espelho. Vais estar sempre comigo.
- A poesia deu-te volta à cabeça - declarou ela. - Vai lá para fora. Quero dormir.
Jian pôs-se de pé. Fez um esforço para não arrancar Lida da palha e cingi-la contra o seu peito; apenas a fitou longamente e saiu do estábulo sem uma palavra.
Lida ficou sentada na palha, imóvel, como se fosse uma boneca, mas de repente um estremecimento percorreu-lhe o corpo, virou-se, enfiou a cara no pêlo do búfalo e abraçou a sua cabeça forte.
- Ajuda-me - disse-lhe. - Ele tirou-me o coração e levou-o consigo. Eu quero o meu coração de volta... junto com ele.
Jian estava na rua, de pé, à luz do luar e sentia-se como tivesse abandonado o peso da Terra e flutuasse no céu como uma borboleta. Assustou-se quando ouviu a voz de Huang à porta de casa, que lhe dizia:
- Jian, a minha cama está pronta para se deitar. Aqui no campo a noite é curta. Às cinco da manhã a Lida começa o dia. Venha para casa, Jian.
”Às cinco”, pensou, e dirigiu-se para junto de Huang. E às cinco da madrugada, Jian estava de pé, à porta de casa, esperou por Lida e juntos levaram o búfalo até ao campo das couves que precisava de ser lavrado; o facto de irem juntos para o campo a conduzir o búfalo tornou-se, de súbito, tão natural que nenhum dos dois desperdiçou mais uma palavra a falar sobre o assunto.
O PAVILHÃO DE JADE
Uma semana mais tarde, Jian preparava-se para deixar Dali e regressar a Kunming. Levava uma série de pinturas do tio Zhang Shufang, que deveriam ser expostas na galeria municipal, onde os estrangeiros, os ”narizes longos”, iriam dar com elas, comprá-las e com isso multiplicar a riqueza de Zhang.
Só que antes de entrar no carro, decidiu beber mais um chá com Zhang e ficou em silêncio a olhar para o infinito.
- Não quero obrigar-te a falar - interrompeu Zhang com suavidade -, mas tu desapareceste durante cinco dias e eu fiquei muito preocupado.
- Peço-lhe que me perdoe, tio.
- Também não quero perguntar-te onde estiveste, quando tu próprio não o dizes.
- Estive em Huili, tio Zhang.
- E Huili é quem, onde ou o quê?
- Uma aldeia isolada da minoria miao, localizada nas montanhas de Jungu.
- Durante cinco dias? O que é que te despertou tanto interesse em Huili? Uma cultura diferente?
- Também, tio.
- Que mais?
- Uma rapariga. - Jian respirou fundo e expeliu o ar com um suspiro. - Uma rapariga como uma flor de laranjeira. Se os milagres se transformassem em pessoas, ela seria um milagre. Quando a vires, vais querer pintá-la.
- Apaixonaste-te por ela?
Não... amo-a. Estar apaixonado é como uma flor, que pode murchar rapidamente. O amor é como uma semente que transforma a terra.
Pensava que, como médico, tinhas aprendido a pensar com perspicácia. - Zhang deitou mais água quente do termo sobre as folhas verdes que tinha espalhado na sua taça.
- Tu surpreendes-me.
- O meu pensamento nunca foi tão claro e tão lógico como agora.
- Porque estás a pensar num círculo vicioso, Jian, porque só te vês a ti e à rapariga e voltas sempre ao mesmo. Mas o mundo não é constituído apenas por um Tong Jian.
- O que queres dizer com isso, tio Zhang?
O poeta e pintor bebericou o seu chá quente e fitou Jian, pensativamente, por cima do rebordo da taça, com alguma compaixão.
- A rapariga é uma miao! - indagou, num tom queixoso.
- Sim. A Lida é miao.
- Tu és um chinês han, Jian. Há séculos que os Tong são chineses han puros e nunca aconteceu alguém entrar na família que não fosse de etnia han.
- Isso já passou à história, tio Zhang! - exclamou Jian, mas, ao mesmo tempo que falava, admitiu para si próprio que o seu amor por Lida iria ser uma luta. - Nós somos Pessoas modernas.
- Mas a tradição é o solo, a partir do qual tudo cresce. Uma miao na família Tong... o que é um tremor de terra em comparação com isso!
- Não existem nem Miaos nem Bais, Yis, Huis, Tujlas, Naxis e o que mais houver. Existem pessoas. E eu amo uma Pessoa e não uma miao.
- Vai dizer isso ao teu pai, Jian.
- Ele vai compreender.
- Ele nunca te irá compreender. - Para ele, todas as pessoas deviam ser irmãos e irmãs... ele é um comunista!
- Não é bem assim, Jian. Em primeiro lugar, é um chinês han, depois, um defensor da tradição, em seguida, médico, depois chefe de família e só no fim, comunista.
- A Fengxia vai ficar do meu lado.
- Não te iludas com a tua irmã. Ela é uma han e o marido, Wu, também é um han, e mesmo que, na qualidade de funcionários do Partido, tenham um discurso todo moderno consideram que na família deles só deve haver chineses han. •- Zhang recostou-se na cadeira de pau-rosa e cofiou a barba de pêlo fino. - Queres um conselho, Jian?
- Todos, tio Zhang, menos o de esquecer Lida. Não consigo esquecê-la... ela vive dentro de mim, percebes, dentro de mim, está neste momento sentada à tua frente e parece o Jian, pois nós os dois somos um só.
- O meu conselho é que não contes ao teu pai o que te prendeu durante cinco dias.
- Cinco dias! Será uma vida inteira!
- Não lhe contes... e aguarda. Nós, os Chineses, sempre esperámos, durante cinco mil anos esperámos pelo dia em que deixaria de haver senhores e escravos, e continuamos a acreditar nisso, pois, sem esperança, o homem é como um recipiente vazio. O que são uns quantos meses que terás de esperar? - Zhang inclinou-se para a frente e pousou as mãos sobre as mãos de Jian, que tamborilavam nervosamente sobre a mesa. - Quero vê-la, Jian.
- A Lida?
- Quem mais?
- Tu vais convencê-la a abandonar-me! - Jian levantou-se de um salto, com uma expressão crispada, a boca parecendo uma cicatriz no meio do rosto. - Também tu estás contra ela.
- Não te precipites em julgamentos, antes de ouvir o queixoso e o acusado. Quero falar com ela... as palavras são como pesos numa balança. O amor cega, mas um velho como eu não deixa turvar a vista. Só quero ajudar-te.
- Mas ainda há uns minutos disseste...
- Só estava a tentar imaginar os pensamentos do teu pai - interrompeu Zhang. - Estava a mostrar o que te espera se fores contar tudo na exaltação dos sentimentos. - hang recostou-se novamente. - Ela é camponesa?
Não exactamente. O pai é o professor de Huili. Mas ela trabalha a terra da família. Estive cinco dias com ela nos campos, lavrei o solo com o búfalo e senti-me tão bem como nunca me havia sentido na vida, pois nunca soube como é fácil ser-se feliz.
- Tu não és um camponês. Tu vais ser médico. Vais ser mais famoso que o teu pai Tong Shijun, pois dentro de ti dorme um espírito e um conhecimento que certamente acabarão por despertar. Tu não nasceste para o arado, mas para curares os doentes com o teu saber e dar coragem para a vida aos que perderam a esperança.
- O que é que tudo isso tem a ver com a Lida, tio Zhang?
- Ela é mulher para estar ao lado de um homem famoso?
- Vai ser. Todos nós crescemos com as nossas responsabilidades. - Jian consultou o relógio de pulso. Era de ouro, nada daquelas falsificações vendidas aos crédulos turistas em Hong Kong. - Ainda tenho quatrocentos quilómetros pela frente até Kunming. Tenho de ir andando, tio Zhang.
Abraçaram-se. Zhang acompanhou Jian até ao automóvel e acenou-lhe com a mão até ele desaparecer no caminho de terra que levava à erma casa de Zhang, junto ao lago. Depois, quando perdeu o automóvel de vista, regressou ao seu ateliê, analisou as suas pinturas semi-acabadas e reflectiu, pensativamente:
”Eu compreendo-o. Nos meus tempos de rapaz, amei uma dong, mas o pai já a tinha prometido em casamento quando ela era criança. Fiquei mortalmente doente de desgosto; nunca mais consegui amar outra mulher. O que é que te interessavam os Han ou os Dong naquela época! Sinceramente, percebo perfeitamente o Jian.”
Sentou-se em frente a um quadro, pegou no pincel e pintou um rosto de rapariga no meio dos ramos em flor. Ainda Sabia perfeitamente como era o rosto dela.
O que a alma acolhe uma vez nunca se desvanece.
Já em casa, Jian foi recebido pela mãe, Meizhu, que 0 perscrutou de cima abaixo e ficou satisfeita por ver que ele tinha recuperado o bom aspecto durante as férias. Estava bronzeado pelo sol e com uma boa disposição que há muito não se via.
Durante a longa viagem de regresso, recordou as palavras do tio Zhang e reflectiu sobre elas. Este tinha-o aconselhado a mentir, mas ele fora educado a não esconder a verdade. Nunca tinha experimentado viver numa mentira, pois só a ideia de o fazer seria uma afronta ao pai, que depositava tanta confiança nele. Sempre dissera o que pensava, e o incessante conflito com a irmã, Fengxia, e o cunhado, Wu Junghou, era apenas o preço que pagava pela sua sinceridade.
Recordou uma frase do pai, um dia, quando quase chegara a vias de facto durante uma discussão com Wu.
- Sê mais diplomático, meu filho - aconselhara-lhe o pai, na altura. - Um diplomata nunca diz uma ”não verdade”, mesmo quando o é. A escolha das palavras é mais importante do que o seu conteúdo.
”Pois bem, fiquemo-nos por essa máxima, meu pai. Não estou a mentir quando me calo e, quando falar, a aldeia de Huili não existirá.”
- Onde está o pai? - perguntou Jian, depois de ter tomado um duche para lavar-se do pó da estrada e de ter vestido um robe de seda. A casa parecia-lhe faustosa, sobrecarregada de figuras e esculturas e de móveis ocidentais que Tong mandara trazer de Guangzhou, como agora se chamava a antiga cidade de Cantão. Até então, Jian nunca tinha sentido isso e quando, após o seu duche, se deitou uns minutos na sua cama adornada com uma colcha de seda, pensou na cama do professor Huang Keli e na porta adjacente, por onde entrava constantemente ar fresco para o interior do compartimento. Dormira que fora uma maravilha naquela cama, profunda” mente e sem sonhos, exausto do duro trabalho nos campos, mas imensamente feliz por ter passado o dia inteiro ao lado de Lida.
A única coisa que o preocupava era o resultado da minu. a observação que fizera ao tio Chang Lifu. A sua tosse seca e o facto de ele cuspir sangue eram sinais infalíveis de uma tuberculose. A par disso, diagnosticou-lhe uma bronquite crónica; quando Jian auscultou Chang com o estetoscópio, o peito deste ronronava e trepidava e Jian fez um esforço para dizer, com muita calma:
Chang, os teus pulmões estão atacados, mas há medicamentos que te podem ajudar.
Disse ”ajudar” e não ”curar”, pois a cura já não era possível naquele estádio. A doença já lhe tinha consumido o corpo e Chang parecia ter consciência da verdade, mesmo quando assentira com a cabeça em concordância.
- Aqui não existe esse medicamento e o mais provável é também não haver em Dali; mas em Kunming há de certeza. Vou mandar fazê-lo e trago-o na minha próxima visita.
Foi a primeira vez que Jian falou em partir. Reparou que os olhos de Lida se abriram muito, como a sua expressão se crispou, mas ela não disse uma única palavra, não perguntou nada, apenas se limitou a fitá-lo e aquele olhar abarcava toda a tristeza do mundo.
”Quando regressares a Kunming, esquecerás Huili. Nunca mais voltaremos a ver-nos e um dia casarás com uma rapariga bela e rica, serás um médico famoso e nunca mais te lembrarás de quando enterrávamos o arado no solo e puxávamos o búfalo, enquanto os patos mergulhavam no fundo da lagoa, à procura de sargaço; e do grou, a pairar sobre os terraços de arroz, a brincar com a brisa quente, que o faz Planar sem bater as asas. Nem sequer te lembrarás do meu nome, vou ser erradicada da tua memória, terás filhos e a dinastia Tong ficará orgulhosa de ti.”
Foi o próprio Huang que fez a terrível pergunta:
- Quando pensa partir, Jian?
- Amanhã. Primeiro vou a Dali, onde passarei a noite
em casa de Zhang Shufang e no dia seguinte regressarei a Kunming.
E quando terei o meu medicamento? - indagou hang. - Quando os pulmões me saírem pela boca já será tarde de mais.
- Voltarei o mais depressa possível.
”Que expressão mais flexível”, pensara Lida, admirando-se por ainda conseguir respirar. ”O mais depressa possível.” E a palavra mais importante fora a palavra ”possível”, pois o que quer dizer possível? É algo que não se pode conceber. Possível pode significar tudo, mesmo o impossível. ”Jian, os teus olhos são tão sinceros, mas será mesmo verdade?”
No dia seguinte, Jian partiu muito cedo, mas Lida saíra de casa ainda mais cedo e partira para os campos com o seu búfalo. Para que ele não a pudesse encontrar, escolhera um campo de milho oculto numa depressão, entre duas colinas, onde apenas se conseguia chegar através de um estreito carreiro de terra. Ali, qualquer pessoa que não conhecesse bem as imediações de Huili não a encontrava. Sentou-se numa pequena depressão, dobrou os joelhos e encostou a cabeça neles, ficando a olhar para a terra alumiada pelo sol da manhã.
Chang Lifu acompanhara Jian até ao automóvel e tinha um brilhozinho malicioso nos olhos quando se encostou à bagageira e lhe perguntou:
- Consegues decifrar charadas, Jian?
- Depende da dificuldade da charada.
- É tão fácil e, contudo, tão terrivelmente difícil. Há coisas assim. Só é preciso encontrar o caminho para chegar à solução e depois é uma brincadeira de crianças.
- E conheces uma charada assim?
- Acho que sim. Ouve: Uma pessoa que vê pode ser cega?
Jian fitou Chang sem perceber, mas depois abanou a cabeça e até se riu.
- É uma charada tonta. Uns olhos saudáveis nunca podem ser cegos.
- Pois olha que podem, Jian.
- Às vezes és tão ingénuo, Chang. Se eu consigo ver tudo, não posso ser cego.
Chang estendeu o braço e apontou para o infinito.
- Vês o pinheiro-bravo solitário no alto daquele monte? - perguntou.
- Claro.
E vês a garça a voar sobre o arrozal?
__ Perfeitamente.
- Tens olhos bons e perspicazes, Jian... porque é que és tão cego quando vês a Lida?
Jian sentiu o calor a subir-lhe pelo corpo acima, penetrando na sua cabeça e fazendo-lhe pulsar o sangue.
- O que é que queres dizer com isso? - retorquiu e a sua voz soou abafada.
És cego e não vês que ela te ama?
- É ao contrário, Chang. - Respirou fundo. - Sou eu que a amo.
- E disseste-lhe? Tiraste o coração do peito e entregaste-lho?
- Não. Tive medo.
- Medo de quê?
- Que ela desatasse a rir ou fugisse a correr e nunca mais me quisesse ver.
- Então, consegues ver, mas és cego. O sol brilha nos olhos dela quando olha para ti; uma parte do céu está dentro dela quando está perto de ti... e tu não consegues ver.
Jian sentiu-se envergonhado por Chang estar a mencionar aquele assunto; respirou pesadamente e comprimiu os lábios.
- Onde está ela agora? - perguntou, por fim.
- Algures no campo.
- Vou à sua procura para lhe falar. Chang, diz a verdade: ela ama-me mesmo?
- Como é que um futuro médico, um homem letrado como tu, pode ser tão burro? - Chang abanou a cabeça. Segurou Jian pelas mangas da camisa quando este ia a entrar no carro. - Tu queres que ela seja tua mulher?
- Sim, Chang.
- Esposa, quero eu dizer, não concubina.
- Se não fosses um homem de idade, e ainda por cima doente, levavas uma sova que nunca mais te esquecias. Eu vou casar com a Lida.
- Vai ser uma grande luta entre ti e o teu pai. A família Wong não vai querê-la em sua casa.
- Eu vou ter a minha própria casa.
- Mas quando? Ainda estás a estudar e a esticar as pernas debaixo da mesa do teu pai. Ainda és um filho que deve obediência ao pai.
- A Lida e eu somos muito jovens, podemos esperar até conseguirmos determinar a nossa vida e o nosso futuro por nós próprios.
- Isso ainda vai durar anos. - Chang deixou Jian entrar no carro e tornou a tossir devido à exaltação. Parecia o latir de um cão rouco. Dobrou-se e premiu as mãos contra o peito.
Jian baixou a cabeça. ”Mais um ano”, pensou. ”Não, nem sequer um ano... vai acontecer mais cedo. Os pulmões dele estão a ser devorados pelos bacilos da tuberculose. Ele devia ser isolado, mas onde? Ninguém vai querer albergá-lo para morrer; aos olhos dos outros, é como se estivesse morto, e os outros dirão: ele que se deite num canto, que fique sossegado e que se vá desta para melhor sem incomodar ninguém.”
- Vou procurar a Lida nos campos - informou Jian e fechou a porta do carro. - Deste-me muita coragem, Chang. É verdade, eu sou um cego.
Mas Jian não encontrou Lida. Ainda não conhecia o campo de milho entre as colinas. Percorreu todos os campos, mas não conseguiu descobrir nem o búfalo, nem Lida. Mesmo quando parou à frente da lagoa dos patos, com as mãos à volta da boca como se fosse um funil e se pôs a gritar o nome dela para o céu, com toda a sua força, em todas as direcções... não obteve resposta.
Mas Lida ouvira-o, tapara os ouvidos com as mãos e começara a chorar; e o búfalo estava à sua frente e lambia-lhe as mãos com a sua língua áspera, pois as lágrimas que se esgueiravam por entre os seus dedos eram salgadas. E ele gostava de sal.
Depois de longos minutos a chamar por ela, Jian desistiu, regressou ao carro e partiu para Dali, para casa do tio Zhang Shufang, desesperado e com o coração despedaçado.
No dia seguinte, Chang foi para a beira da estrada, junto Dayao, e fez sinal ao condutor da camioneta apinhada que vinha de Kunming, via Dokou, em direcção a Chengdu. Por Chang ser um homem de idade, ao qual se deve respeito, o condutor travou e Chang espremeu-se entre os outros viajantes agradecendo com acenos de cabeça para todos os lados e comentando: ”Há sempre mais um lugarzito livre quando agente se aperta. Devíamos apertar-nos todos mais um bocadinho, camaradas. Aí é que haveria espaço a valer!”
No caminho de volta de Dokou, onde se tinha apeado, Chang veio de camião e sacrificou um precioso iuane. Quatro carpinteiros carregaram um caixão de madeira pesada com entalhes para um camião de caixa aberta, pousaram-no na plataforma e Chang sentou-se em cima da tampa do caixão. Dirigindo-se ao condutor, exclamou:
- Já está, camarada! Agora fiquei sem uma única moeda, mas tenho um belo caixão, digno de um senhor. Nada que não seja merecido... tu não fazes ideia de quem estás a conduzir. Há mais de dez anos... - Deteve-se, fez um gesto com a mão e acariciou os entalhes do caixão. - Vamos embora.
A família Huang ficou atónita quando, ao final do dia, se deparou com quatro camponeses de Huili a subirem a colina que dava para a casa do professor, transportando aos ombros o enorme caixão de Chang. Deixaram-no no anexo da casa, junto ao estábulo, onde Chang tinha montado a sua cama, e um deles comentou:
- Um belo caixão. Este não se desfaz com facilidade. Huang deslocou-se até ao anexo, perscrutou o caixão de todos os ângulos e observou:
- O que é que te deu, Chang? Porque é que foste comPrar um caixão?
- Não conheces o velho ditado ”Aos setenta, prepara-te Para a morte”? Eu quero ser enterrado com dignidade, como o comissário Chang Lifu.
- Mas tu nem sequer tens setenta anos. - Não vou poder viver os poucos anos que ainda faltam, Huang. Estava na hora de comprar o caixão.
- Só por causa da tua tosse?
- Há qualquer coisa que arde dentro de mim. - Chans tornou a sentar-se em cima do seu belo caixão. - Onde é que vão enterrar-me?
- Pensar nisso é uma perda de tempo.
- Eu tenho um desejo.
- Diz.
- Façam-me uma sepultura lá ao longe, no penedo vermelho. Vai dar trabalho, mas é o meu último desejo.
- E porquê logo no penedo vermelho? - indagou Huang, surpreendido.
- Dali consigo ver muito longe, sobre a paisagem... a terra, na qual fui um pequeno soberano. Todos me odiaram, o poderoso comissário Chang Lifu; agora, na morte, quero pedir perdão com toda a humildade. - Chang abriu a tampa do caixão, foi buscar a manta e as almofadas ao anexo onde dormia, e forrou o interior. Perante o olhar atónito de Huang, deitou-se lá dentro.
- Levanta-te - pediu Huang com voz abafada.
- É uma questão de hábito, Huang. A partir de hoje, vou dormir sempre no caixão; um dia vão dar comigo e eu deixei de respirar.
À noite - Chang ficara mesmo muito satisfeito, deitado no seu caixão almofadado - Huang virou-se para a mulher, Jinvan, e disse-lhe:
- O Chang vai deixar-nos, mulher.
- Deixar-nos? Para onde é que ele quer ir? Não gosta de estar connosco?
- Vai morrer, mulher.
- Ele já sabe que tem de morrer?
Huang endireitou-se na cama e olhou para a mulher, pasmado.
- Tu já sabias?
- Eu só sei o que vejo e estou a ver um homem que está a caminhar para a terra.
- Falaste com o Jian sobre isso?
- Não. Ele sabe-o melhor do que eu.
- E com a Lida?
- Não. O coração dela já está suficientemente pesado mulher, tens que me explicar isso. A que propósito é que ela tem o coração pesado? - De um momento para outro, um acesso de medo percorreu o corpo de Huang. Também está doente?
Sim. - Jinvan abanou a cabeça, como se não conseguisse compreender como é que o seu marido percebia tão pouco sobre as pessoas, quando passava os dias a educar jovens para a vida. - Tu por acaso conheces a tua filha? Que pergunta tola! Nem merece resposta!
- Não, tu não a conheces. Onde é que ela esteve ontem? Onde é que ela esteve hoje?
- No campo, como sempre.
- O búfalo estava limpo, como se tivesse saído do estábulo; não tinha terra nas pernas, o pêlo não estava suado, nem tinha as ventas sujas. Não esteve a trabalhar. O que andaram a fazer no campo? Os olhos costumam ficar vermelhos quando se está a cultivar couves?
- Olhos vermelhos? O búfalo tem os olhos vermelhos?
- A Lida tem os olhos vermelhos.
- Uma inflamação? Vou buscar gotas para os olhos.
- Mas que ignorante que és, Keli! A Lida esteve a chorar. Há dois dias e duas noites que está a chorar e tu queres dar-lhe gotas para os olhos!
- A chorar? - Sentindo-se desamparado, Huang passou com as duas mãos pelos cabelos. - Com tantas dores e ninguém me diz nada!
- Ela está a chorar porque ama o Jian! - exclamou Jinvan num tom de voz mais alto. - Percebes agora, homem? O Jian foi-se embora e ninguém sabe se vai voltar.
- Oh, meu Deus, ela ama o Jian? - Huang saltou da cama e começou a percorrer o compartimento de um lado Para o outro em desassossego, juntando as mãos e lamentando-se: - isto é um infortúnio que se abate sobre esta casa.. Um infortúnio. Com tantos filhos de camponeses à volta dele ela a comportar-se como se não soubesse que era mulher. E agora este infortúnio!
- Não gostas do Jian?
- Oh, mulher! Eu sou um pobre professor e, ainda por cima, de etnia miao. Ele é um chinês han de boas famílias Como é que dois seres assim podem ficar juntos! Só pode ser um infortúnio. - Deteve-se e começou a bater com os punhos um no outro. - Espero que o Jian nunca mais volte que nunca mais o vejamos. E vou casar a Lida com um homem que combine com ela. Eu próprio vou à procura dele
- Queres ser o carrasco da tua filha? - gritou-lhe Jinvan. Também ela saltou da cama. Pela primeira vez na vida, perdera o respeito pelo marido; pôs-se à frente dele e começou a bradar, como se fosse um burro teimoso. - Ela gosta dele e vai definhar nas nossas mãos se o Jian nunca mais voltar! Ela chora com a alma toda e vai morrer, mesmo que continue a respirar e a trabalhar nos campos, mas os seus olhos ficarão vazios e sem vida.
Huang deixou cair a cabeça. Não ficou ofendido ou zangado com a explosão de Jinvan; sentia apenas uma pressão dolorosa no peito.
- Que devo fazer, mulher? - balbuciou.
- Não sei, homem. Tu és o inteligente, tu és o professor.
- Não vai correr bem, não pode correr bem. Tenho que falar com o Jian.
- Onde?
- Nem que tenha de ir a Kunming.
- A família Tong vai pôr-te na rua. Queres que te humilhem, Keli?
Huang matutou e concordou com a mulher: em Kunming tratá-lo-iam com desprezo. Ficaria ferido no seu orgulho e, se o pusessem na rua ou até mesmo se troçassem dele, perderia a face, pois apenas um idiota admitiria a hipótese de um Tong vir a casar com uma Huang. Um tigre e um rato não acasalam.
- O Jian disse que tinha um tio em Dali. O famoso poeta e pintor Zhang Shufang. Esteve a viver em casa dele nas férias. Mulher, vou a Dali falar com o sábio Zhang. Talvez ele me possa dar um conselho.
- E as lágrimas da Lida diminuirão.
- Isso é assunto de mulheres - declarou Huang, rossando à sua cama e deitando-se. - Fala-lhe. Eu não consigo- Começava a chorar com ela e não adiantava nada. era assim que estavam as coisas em Huili, entre desgostos e pressentimentos de morte, quando Jian, ainda enrolado no seu robe de seda, conseguiu finalmente cumprimentar o pai. Tong Shijun regressara do hospital muito calado e perdido nos seus pensamentos, pois sofrera uma derrota e tivera de reconhecer os limites da medicina tradicional. Era o caso de um paciente com uma insuficiência renal lenta, e Tong dera ao doente um medicamento chamado Wenpi Tang, retirado do rico património da medicina chinesa, constituído por extracto de ginseng, gengibre, alcaçuz e ruibarbo. Mas a insuficiência prosseguia e o aparelho de ultra-sons revelara uma mancha sobre o rim esquerdo, que Tong não conseguia explicar.
Nos velhos e sábios livros de medicina chinesa, Tong não encontrou nada que se coadunasse com o estado do seu paciente; foi então que, com o coração pesado, decidiu consultar o seu colega, o médico-chefe da cirurgia. Não gostava de o fazer, já que a tradição proibia que se andasse a fazer cortes no corpo de um ser humano, pois sempre era uma mutilação. Os eunucos do palácio eram testemunhas vivas de que uma operação deixava um grande peso na alma: conservavam o seu membro decepado e levavam-no para a sepultura, para que o corpo voltasse a ficar completo na eternidade.
Mas os tempos modernos e os progressos incontornáveis da medicina ocidental haviam convencido até mesmo os médicos chineses mais tradicionais. Nas grandes cidades, o escalpelo tornara-se tão importante como a acupunctura; só no catnpo é que ainda havia curandeiros, que misturavam as suas essências, os seus pós, os seus comprimidos, os sumos de ervas e as substâncias de origem animal.
Tong Shijun, o grande médico de Kunming, que habitualmente cumprimentaria o seu colega cirurgião com delicada, mas com visível condescendência, e que evitava qualquer contacto com ele fora do hospital, apareceu na cirurgia duas horas depois de transferir para lá o doente com insuficiência renal.
- Conseguiu ver alguma coisa com clareza? - perguntou ao colega, após o que este retorquiu, tão laconicamente quanto Tong:
- Com muita clareza mesmo.
- O que é?
- Um tumor nos rins. Operá-lo-emos amanhã. Vamos fazer uma nefrectomia. Esperemos que ainda não se tenham desenvolvido metástases disseminadas por infiltração na circulação sanguínea venosa. Nesse caso, será demasiado tarde.
O cirurgião era um jovem que estudara em Paris, Munique e, por último, em Houston, no Texas, e estava perfeitamente familiarizado com os mais modernos métodos cirúrgicos. Por esse motivo, foi logo nomeado médico-chefe em Kunming, o que levara o genro de Tong, Wu, a encaminhá-lo.
- O progresso não pode parar na China - dissera. Os métodos tradicionais e modernos têm de trabalhar a par e passo.
Tong decidira nem sequer perguntar se fora, de facto, tarde de mais, depois da operação concluída. Sabia-o: era tarde de mais. E aquela situação atormentava-o; por isso, o seu rosto não se iluminou quando viu o filho Jian que acabara de regressar de férias.
- Como é que tratarias um rim? - perguntou Tong de repente, depois de beberem juntos um chá de saudação.
- Que tipo de rim, pai?
- Um rim qualquer que causasse dores.
- Primeiro, uma análise à urina.
- Revelou uma inflamação. Mais!
- Um ultra-som.
- Revelou uma mancha indistinta. Jian fitou o pai, pensativamente.
- Um raio X.
- O raio X também só revelou a mancha indistintaJian calou-se por uns momentos, depois fez uma pergunta que atingiu o estômago de Tong como se fosse um murro-
- O doente morreu, pai?
- Ainda não.
- O que queres dizer com isso?
Vai ser operado amanhã. Um carcinoma nos rins. Se houver metástases disseminadas é como se já estivesse morto. Tong tinha os olhos fixos na sua taça de chá verde.
Eu enganei-me no diagnóstico, Jian. Fiz-lhe o tratamento errado.
Todos os anos morrem milhões de pessoas de cancro, pai. Não obstante as operações e os tratamentos, não obstante a melhor quimioterapia e as mais recentes descobertas oncológicas.
- Há cinco mil anos que recorremos à Natureza para curar pessoas. Até tu aprendes isso na universidade. É suposto esquecermos tudo de um momento para o outro?
- Pensa no que disse Deng Xiaoping: ”Não interessa se o gato é branco ou preto; o importante é que apanhe ratos.” Preservar o antigo e introduzir o novo é a sabedoria fundamental da ciência chinesa. - Jian hesitou e depois exteriorizou o que há muito queria ter dito ao pai. - Eu também quero especializar-me em cirurgia.
- Perdeste a confiança na nossa medicina?
- Não, pai. Mas diante de um corpo aberto estou na frente da batalha e vejo o inimigo ao vivo. Até agora, só se conseguia presumir onde ele poderia estar e ir à procura.
Tong calou-se e em seguida mudou de tema. Os seus pensamentos cruzaram-se rapidamente com o massacre dos guardas-vermelhos em Kunming e as longas filas de feridos, pelas quais passara revista; o modo como eliminara os moribundos e os que não tinham probabilidades de continuar vivos; depois, a imagem de si próprio na mesa de operações, com as mãos cobertas de sangue, remendando corpos aos Pedaços - ele, o especialista em Medicina Interna, que conseguira salvar vidas humanas, mesmo que alguns deles tivessem perdido uma perna ou um braço pelo caminho. A. vanguarda da medicina! Mas ele, Tong Shijun, no fundo, Permanecera um médico ervanário. Quando as primeiras intusões venosas foram introduzidas na China, Tong hesitara en enfiar a agulha nas veias dos seus doentes, pois, segundo a perspectiva tradicional, era uma violação do corpo.
Depois mudou de ideias, convencendo-se lentamente de que a acupunctura também implicava picadas com agulhas.
- Como é que passaste o tempo com o tio Zhang? perguntou Tong ao filho.
- Remei muito, nadei e até ajudei os pescadores a recolher as redes de pesca.
- Estás com bom aspecto, Jian.
- Foram uns belos dias, pai. - Jian evocou o aviso do tio Zhang e, olhando o pai à sua frente, um homem de épocas passadas, nem sequer lhe ocorreu que estivesse a mentir-lhe, ao omitir a existência de Lida e da aldeia miao de Huili; o professor Huang e a sua mulher, Jinvan, o tuberculoso Chang e o búfalo que puxava o arado. - Não me importava nada de viver em Dali.
- Dali é pequeno de mais para ti, Jian. Tu vais viver em Pequim ou em Xangai ou em Guangzhou; vais ser um médico importante e famoso. Quero viver para ver esse dia, meu filho.
Nesse momento, Jian vacilou e esteve mesmo para revelar tudo sobre a família Huang, sobre Lida, que arava os campos e, não obstante, tinha umas mãos tão macias, a sua beleza e virtude e o grande amor, sobre o qual nunca tinham falado. Mas, depois, houve uma frase que afugentou a sua vontade de se abrir com o pai.
- Estive a falar com o Qiang Fang - disse Tong. Ele também está de acordo em que tu venhas a casar-te com a filha Yanmei.
- E quem mais está de acordo?
- Eu. Quando ambos os pais estão de acordo...
- Isso já acabou há um milénio! Quem vai casar sou eu e eu casarei com a mulher que amo...
- A Yanmei é uma beldade. É inteligente, tem uma boa educação e pertence às melhores famílias.
- E o que é que ela sabe fazer? Jogar ténis! E cozinhar, arranjar uma galinha, matar um porco, incitar um búfalo com o arado?
Tong olhou para o filho como se este tivesse espancado a própria mãe.
Mas que disparates são esses! Ela vai ser a esposa de médico importante... o que é que ela tem que saber, trabalhos inferiores? Tem uma bela voz e sabe muitas canções.
E vai passar as noites a cantar para mim? A minha mulher sou eu quem a escolho, pai.
A tradição da família Tong é...
- Eu vivo no século vinte e não na época da dinastia dos Ming. Não preciso de tradições.
- A tua própria mãe foi-me prometida ainda criança. Consideras que somos infelizes? - Tong estava sentado na sua poltrona com uma rigidez tal que parecia ter um pau enfiado nas costas da camisa. - Tu disseste mesmo que não precisas de tradições?
- Disse.
- Como é que se pode viver sem a tradição?
- Vou demonstrar-te com a minha própria vida.
- E eu vou morrer de vergonha. Queres que o teu pai perca a face, tu, um Tong? Eu prometi ao Qian Fang que casarias com a filha dele.
- Então vai procurá-lo e diz-lhe, com toda a honestidade: ”O Jian, o meu filho, não quer casar com a Yanmei.”
- A partir desse momento, a família Tong e a família Fang passarão a ser inimigos para sempre.
- Isso não vai alterar ou influenciar a minha vida. Com certeza terei mais do que um inimigo na vida.
- Se tu próprio os arranjares. - Tong levantou-se e olhou para baixo, para o filho, como se este estivesse de joelhos, com a testa no chão, a fazer a ancestral saudação chinesa. - Eu não vou procurar o Qian para o ofender mortalmente.
- Então vou eu. - Jian pôs-se de pé de um salto e despiu o robe de seda com violência, atirando-o para um canto como se fosse um pano velho e sujo. - Tenho que sair daqui! - gritou. - Estou a sufocar no meio deste luxo todo. Vou voltar para Dali.
- É assim que um filho agradece a um pai - concluiu Tong, com amargura. - Vocês querem ser as ”novas” pessoas? Estremeço, só de pensar no futuro!
- Nós não teremos hipótese de futuro se só houver pessoas como tu. Professor doutor Tong Shijun, comunista e milionário, admirador de Deng e tradicionalista... que bela mistura! Quem é que neste caso tem de se envergonhar? Sou eu que tenho de ter vergonha com tanta hipocrisia. - Jian voltou-se bruscamente, virou costas ao pai, a falta mais grave que era possível, e abandonou a sala. À porta cruzou-se com a mãe, quase atropelando-a e, pedindo perdão apressadamente, desapareceu.
Meizhu olhou para ele, horrorizada, e depois dirigiu-se ao marido:
- Estiveram a discutir, Shijun? - indagou. - Mal se vêem um ao outro e parecem galos de combate.
- O Jian tem vergonha de ser nosso filho.
- A cabeça dele ainda é jovem e exalta-se com facilidade. O vinho que ainda fermenta faz sempre um grande alarido.
- O Jian recusa-se a casar com a Yanmei.
- Mas ele nem sequer a conhece!
- Aí tens. E pergunta se ela sabe dirigir um búfalo com o arado... imagina tu! O que é que ele tem na cabeça! E quer voltar para Dali. Diz que está a sufocar aqui, gritou comigo. Um filho a gritar com o pai... já não há respeito?
- Deixa-o ir para Dali, Shijun, o tio Zhang vai ser uma boa influência para ele. O Jian sente-se bem com ele.
- Diz que está a sufocar aqui - repetiu Tong, num tom exaltado. - O que é que o sufoca?
- O Jian é diferente de nós. Sempre foi. Basta pensares na maneira como se comporta com o Wu e a Fengxia. Quando chegar a médico vai mudar de comportamento. Nem é preciso ir tão longe, basta descobrir o amor de uma rapariga.
- Ele pode amar quem quiser. Mas casar, é com a Yanmei. Isso, está decidido. Dei a minha palavra de honra.
- Para quando é que combinaram o casamento?
-Daqui a quatro anos, logo após os exames finais
- Daqui a quatro anos. - Meizhu sorriu com doçura.
Os homens fazem planos, mas o destino é que decide. - E se durante esses quatro anos a Yanmei se apaixonar por outro
homem?
Isso não vai acontecer. - De repente, a expressão de Tong abriu-se num sorriso ante a perspectiva do que acabara de lhe ocorrer. - E se assim for, é o Qian que perde a face, não ele - Abanou a cabeça. - Mas nada disso acontecerá... mais depressa o Qian fecha a filha numa gaiola dourada como se fosse um passarinho. Ainda há pais a sério neste mundo.
Se Huang Keli assim decidiu, tanto melhor o fez. Mais ninguém soube, além de Jinvan, com quem debatera o assunto e que sabia a verdade, mas nada dissera. Corria apenas a versão que Huang tivera de viajar dois dias, pois o Partido organizara em Nanhua uma pequena formação para os professores das aldeias e Huang tivera que ir, para aprender novos ensinamentos e novas metas do comunismo. Lida até o levou no pequeno tractor até à paragem da camioneta em Dayao e, do mesmo modo que muitos outros, Huang trepou para o tejadilho do veículo apinhado, agarrou-se firmemente às grossas cordas que prendiam a bagagem e acenou para Lida, quando a camioneta partiu a chiar.
Huang escolhera o seu melhor fato, pois, segundo explicara a Lida e a Chang, deixar uma boa impressão junto dos funcionários era sempre vantajoso. Uma pessoa bem vestida desperta a confiança dos outros.
Em Nanhua, apanhou a camioneta que ia para Dali, suportou os solavancos até os ossos começarem a estalar e, quando chegou à velha cidade, com os seus magníficos Portões guardados por leões de pedra, ia na esperança de encontrar alguém que lhe indicasse o caminho até à casa do famoso Zhang Shufang. Contudo, das pessoas que encontrou na rua e a quem perguntou, ninguém conhecia Zhang. Só quando chegou a um dos pequenos postos médicos que parecia um armazém de mercearias, não fora haver, três camas com doentes, um dos quais até ligado a soro, do que o dono da clínica, que se autodenominava médico; estava particularmente orgulhoso - é que descobriu que o poeta e pintor Zhang vivia junto ao lago, completamente isolado; a estrada que atravessava o canal ia lá dar e, se ele pretendia ir a pé, devia contar com, pelo menos, quatro horas de caminho.
O médico indicou a direcção com precisão e depois regressou à parte da frente da clínica, onde ficava a farmácia, voltando a dedicar a sua atenção à composição de um pó feito de pele de cobra.
Huang não era burro; de outro modo não seria professor. Percorreu a estrada principal da parte antiga de Dali e deteve-se numas quantas oficinas de reparação de bicicletas para tentar negociar com os mecânicos o aluguer de uma. Só teve sorte à quinta vez, deixando como fiança cinquenta iuanes, quantia que a bicicleta ferrugenta não valia minimamente. Montou no selim amolgado e pedalou em direcção ao lago Erhai.
De facto, junto ao lago, todos os pescadores conheciam o grande Zhang, e Huang deu com a casa rapidamente. Encostou a bicicleta ao muro da casa e bateu à porta. Bateu quatro vezes. Como ninguém respondesse, Huang empurrou a porta e entrou. Zhang não se encontrava em casa; no fogão havia uma panela com água a ferver e, a seu lado, viam-se pequenos cubos de tofu, sinal de que Zhang voltaria em breve. Se calhar, tinha ido comprar um peixe fresco a um dos pescadores.
Huang passeou-se pela casa, contemplou as pinturas a tinta-da-china e percebeu por que razão Zhang era um artista tão conhecido. Os seus quadros respiravam verdade e uma poética fantasia; ambas criavam obras de arte, com as quais os olhos e a alma se podiam deleitar.
Atrás de Huang ouviu-se a porta a abrir e a fechar. Zhang entrou e ficou parado, quase assustado. Na sua mão direita segurava, de facto, um peixe grande, prateado e brilhante, com barbatanas dorsais vermelhas.
- Como é que entraste aqui? - inquiriu.
- Bati à porta quatro vezes, mas a porta estava aberta. Pode olhar em volta, não toquei em nada nem roubei nada; nem sequer um cubinho de tofu.
Zhang estudou o visitante, pousou o peixe numa tábua e olhou que um homem com um fato tão asseado não podia ser pedinte nem patife.
O que queres? - perguntou, num tom mais amável. - Queres comprar um quadro ou um poema escrito?
- Só quero falar consigo. O senhor é o tio do Tong Jian?
Ah! Conhece-lo!
- Sou Huang Keli, de Huili.
- O professor e pai de Lida? Sente-se. Acompanhe-me numa sopa de peixe. Acabou de chegar de Huili?
- Sim. Exclusivamente para falar consigo. - Huang sentou-se e pousou as duas mãos nos joelhos. - Preciso de falar consigo sobre Lida, a minha filha, e sobre o Jian, que trouxe o caos à nossa casa.
- O amor é o caos? - retorquiu Zhang. Tinha pegado numa grande faca, com a qual escamou o peixe, depois abriu-o, retirou-lhe as tripas e separou cuidadosamente a carne branca das espinhas. Em seguida, apoiou-se na faca e ficou à espera da resposta de Huang.
- Para a minha casa é um infortúnio - explicou Huang. - Vejo pela sua reacção que o Jian já lhe contou tudo.
- Tivemos uma grande conversa sobre o assunto, isso é verdade.
- Então conhece o nosso problema.
- O problema não é tanto seu; é mais da família Tong.
- Parece-me, senhor Zhang, que está a ver a coisa da Perspectiva errada. A família Tong vive com o seu orgulho dos antigos chineses han; nós temos orgulho em ser miao. os Tong são pessoas abastadas, eu sou apenas um pobre professor. E a prova da minha pobreza vejo-a no meu filho tfci. Tem dois camiões próprios em Kunming e ganha por eles cinco vezes mais do que eu. É o que ele me diz, penso e para não me ofender, não é que seja a verdade... ele deve ganhar pelo menos dez vezes mais!
Um grande amor não está dependente de números. - começou a cortar o peixe em pequenos pedaços. Os cortes da grande faca acompanhavam as suas palavras. - eu aconselhei o Jian a não contar nada à família sobre a sua filha Lida. Espero que ele siga o meu conselho.
- E se ele contar, o que é que acontece?
- Então, quem vai estar sentado nessa cadeira que o senhor ocupa neste momento é o Tong Shijun. Ou então até vai a Huili procurá-lo.
- E vai oferecer-me dinheiro, muito dinheiro, se eu conseguir manter a Lida afastada do Jian.
- Não me admirava nada. - Zhang tirou a grande panela com a água a ferver do fogão e enfiou lá para dentro os pedaços de peixe. Depois, acrescentou-lhe cebola picada, alho-porro, uma pequena raiz de gengibre, rebentos de bambu secos e uma mão-cheia de pedrinhas de sal. ”Cozinha como a Jinvan”, pensou Huang e ficou a observá-lo. ”Um homem tão famoso a cozinhar. É, de facto, uma pessoa fora do vulgar.”
- Se me fizessem uma oferta dessas, pegava num Tong Shijun qualquer e punha-o fora da minha casa - declarou Huang, energicamente. - Um amor não tem preço! E de que vale uma proibição? Era isso que eu queria dizer quando afirmei que o Jian trouxe o caos à minha casa. Desde que ele partiu para Kunming que a minha Lida só sabe chorar. Anda por lá a deambular com os olhos vazios e fica a olhar fixamente para o infinito, como se já não soubesse onde está. Huang afastou os joelhos. - Pode dar-me algum conselho, senhor Zhang? É por isso que vim ter consigo.
- Só há um conselho possível: deixemos o tempo actuar. Ainda é tudo muito recente... um vinho novo é refrescante, mas só se torna perfeito quando está maduro. Também o homem tem que amadurecer, tal como tudo na Natureza, pois nós somos uma parte da Natureza, só que não nos chamamos maçã, uva ou cereja, mas sim seres humanos.
- O amor não vai lá com filosofia, senhor Zhang contrapôs Huang, ao mesmo tempo que acreditava que Lida nunca iria conseguir amar outro homem, mesmo que os anos passassem e ele nunca tivesse a sorte de embalar um neto ao colo.
Um grande amor move montanhas - retrucou Zhang.
No nosso caso, destrói uma alma.
Duas almas, senhor Huang. O senhor refere-se sempre apenas à sua filha Lida... por favor, não se esqueça do Jian. Também ele tem uma alma a perder.
Para ele vai ser mais fácil.
Seria interessante ouvir a sua argumentação.
Zhang provou o caldo para ver se o peixe já estava cozido e despejou os cubos de tofu para dentro da sopa. Entretanto, noutro tacho, o arroz estava pronto. Já se podia pôr a mesa.
- Se a família Tong lhe proibir amar a filha de um pobre professor da minoria miao, como bom filho que é, o Jian vai obedecer.
- Receio bem que ele venha a ser um filho desobediente. - Zhang dirigiu-se para um armário na parede e tirou as tigelas para a sopa e o conduto, os pares de pauzinhos e a pequena molheira de porcelana onde guardava o molho de soja. Pintara a porcelana com o seu motivo preferido, o lago Erhai, com os seus picos de neves perpétuas da Diancang Shan.
Huang levantou-se de um salto.
- Posso ajudá-lo, senhor Zhang? - ofereceu-se.
- Não. O senhor é meu convidado, senhor Huang. Zhang despejou a sopa de peixe para dentro de uma terrina funda de barro e levou-a para a mesa. - Talvez a comida nos ajude. As melhores ideias surgem enquanto comemos; existe uma ligação entre o estômago e o cérebro. Poucos conhecem e aproveitam essa ligação.
Em seguida, comeram, mas foi uma refeição silenciosa; nenhum deles sabia se o outro estava a ter bons pensamentos ou sequer, se estava a pensar.
Por fim, quando começaram a comer o arroz temperado com o molho de soja, o primeiro a falar foi Huang.
- O Jian é um excelente rapaz - observou. - Sem dúvida.
- O Jian podia escrever uma carta a Lida, dizendo que Passou uns belos tempos em Huili, mas que agora tem de continuar com o curso dele, que talvez vá estudar para Xangai e que não acredita que o seu caminho futuro passe no Huili.
- O Jian não escreverá tal carta. - Zhang pousou os pauzinhos. O peixe estava delicioso e sentia-se cheio. O sabor ainda perdurou um tempo no paladar. - Ele vai voltar Prometeu ao enfermo Chang Lifu. Falou-me muito desse Chang.
- O Chang está prestes a morrer. Comprou um caixão e até já dorme lá dentro. A doença dele não tem cura. E o Jian sabe-o. Não há razão nenhuma para regressar a Huili.
- E se ele o fizer?
- Então... perdoe-me, senhor Zhang... mas terei de o escorraçar da minha casa. A Lida nunca saberá, pois ela passa o dia nos campos. O meu único medo é que ela se consuma por dentro.
- E assim voltamos ao início da nossa conversa e não chegámos a lado nenhum. Aparentemente, só há uma saída possível: deixemos que sejam os próprios jovens a decidir.
- Vai ser uma catástrofe, senhor Zhang.
- Se calhar, será apenas uma daquelas trovoadas que lavam o ar.
- Ou então, as nuvens rebentam e destroem tudo. Huang levantou-se e fez uma vénia. - Agradeço a sua hospitalidade, senhor Zhang.
- Onde vai?
- Regresso a Huili.
- Agora? A esta hora já não há camionetas para Dukou.
- Há outros transportes sem ser a camioneta. Um camião, uma carroça, eu não sou esquisito e não tenho pressa. Amanhã estarei novamente na minha aldeia.
- Senhor Huang, ofereço-lhe a minha casa para nela pernoitar. A nossa reflexão ainda não terminou.
- Um círculo é uma formação fechada e dele já não sai’ remos. Não vamos ignorar a realidade! - Huang sacudiu a cabeça. - Amanhã o mundo será igual ao de hoje.
- Isso é um erro. O mundo muda todos os dias.
- O meu mundo não muda e o dos Tong também nãoTenho que ir cuidar da minha filha Lida.
Mas Huang acabaria por ficar em casa de Zhang ShuMontaram uma cama junto ao ateliê e ainda ficaram muito tempo sentados a conversar e a beber chá. Huang descreveu a vida de um professor, contou a história de Chang, o temido comissário de outros tempos, que agora era tão miserável como um leproso. Sobre esse assunto, Zhang notou:
O facto de o ter recebido em sua casa só atesta uma grande força de carácter e um grande humanismo. Eu não sei se conseguiria fazê-lo, depois de toda aquela crueldade.
- O que teria feito no meu lugar?
- Talvez o tivesse morto como se ele fosse um cão raivoso.
- Isso não é o seu género, senhor Zhang. Aquele velho maltratado e às portas da morte já não era o comissário Chang Lifu.
- O Jian sabe quem foi o Chang noutros tempos?
- Não. Mas será importante? Qual é a diferença? Para um médico, é apenas um doente que precisa de auxílio.
- A sua sabedoria é maior do que a minha - elogiou Zhang, impressionado. - É pena que entre os Tong e os Huang haja um fosso incontornável. Contudo, e isso descansa o meu coração, a nova geração, a juventude, vive segundo ideais diferentes e não segundo a tradição. Tudo leva o seu tempo, é só isso.
Já era tarde quando se deitaram. Mas Huang não conseguia ter sono; virava-se e revirava-se e, quando finalmente adormeceu, já não faltava muito para o nascer do dia.
Um barulho acordou Zhang, que tinha o sono leve; pareCia-lhe que alguém havia entrado em casa lenta e furtivamente, como um ladrão. Mas Zhang nunca fora surpreendido Por nenhum ladrão; seria a primeira vez.
Levantou-se da cama, pegou num enorme bastão de madeira rija e dirigiu-se intrepidamente para o ateliê, que se encontrava na penumbra do dia que se avizinhava. Abriu a porta da rua com um solavanco, prestes a gritar ”Não me pilhaste de surpresa, meu patife!”, mas calou-se, pois as palavras ficaram-lhe simplesmente entaladas na garganta O intruso também ficara calado; estava parado no meio da sala e tentava sorrir.
- Jian! - exclamou, por fim, Zhang. - És tu, - Conduzi a noite inteira, tio Zhang. Tinha que voltar, Ninguém me conseguiu deter. - Jian sentou-se numa cadeira. Depois da longa viagem e da chegada ao destino, o cansaço era mais forte que as suas forças. - Em Kunming sentia-me como numa caverna de um dragão.
- O teu pai sabe onde estás?
- Disse-lhe que vinha para Dali.
- E ele sabe o motivo?
- Não. Segui o teu conselho. Mesmo assim, houve discussão. Combinou com um rico comerciante de seda que eu ia casar com a filha dele, seguindo a tradição em que os pais chegam a acordo e os filhos obedecem. Mas eu não posso ser um filho obediente... eu amo a Lida.
Zhang pousou o bastão de madeira rija sobre a mesa e passou com as duas mãos pela parca barbicha branca, como sempre fazia quando estava a pensar ou precisava de se acalmar. Ali ao lado dormia Huang Keli e, mais tarde, quando acordasse, deparar-se-ia com Jian à sua frente e ninguém poderia prever como decorreria o encontro.
- Deita-te na minha cama e descansa - ofereceu Zhang. - Quanto tempo pensas ficar?
- Ainda não sei. - Jian pôs-se de pé e vacilou ligeiramente. Quatrocentos quilómetros numa noite entorpecia os ossos. - Vou deitar-me no quarto do lado.
- Está ocupado. Tenho uma visita.
- Por muito tempo?
- Não me parece. Quando te vir vai-se logo embora. Jian esboçou outro sorriso e ameaçou com o indicador.
- É uma mulher, tio Zhang? Com essa idade e ainda tens diversões dessas? Quem diria!
- Vais ter uma surpresa, Jian. Aguenta com dignidade. Mas agora, descansa.
Foram para o quarto de dormir. Ao ver a cama, Jian logo caiu para cima dela, adormecendo logo de seguida. A seu lado, Zhang esperou que a respiração de Jian ficasse profunda e calma, depois, pé ante pé, foi ao quarto anexo ver nanp Este estava deitado de costas e soltava um pequeno assobio ao ritmo da respiração.
Zhang voltou para o ateliê, sentou-se à frente de uma folha de papel de arroz, pegou num pincel espesso, molhou-o no frasco de tinta-da-china e pintou um círculo. De seguida destruiu o círculo com dois riscos cruzados e encheu os contornos.
O círculo do pensamento já não existia; surgira um caminho e Jian descobrira esse caminho.
O primeiro a acordar foi Huang. Deparou-se com Zhang junto ao fogão, de onde saía o vapor da água quente, sobre o qual se encontrava uma panela com os pães cozidos ao vapor. Num outro tacho, com óleo a ferver, estavam as tiras de massa a estalar e a sopa de arroz esperava a sua vez. O dia tinha que começar com um pequeno-almoço quente. Frio, só o acompanhamento de verduras salgadas ou os pequenos pedaços de carne de salmoura. Na mesa já estavam as taças com as folhas de chá verde e o grande termo com a água a ferver. Ouvia-se música em surdina, proveniente de um pequeno rádio, intercalada com notícias e anúncios de publicidade.
- Que tenha um dia cheio de alegrias - desejou Huang com delicadeza, fazendo uma vénia.
E Zhang respondeu:
- Já começou com alegria, quando se tem uma cara visita. Quer tomar um duche, senhor Huang?
- Se me permite sujar a sua banheira, senhor Zhang.
- É no anexo. Também lá encontrará toalhas. Huang dirigiu-se para o anexo, despiu-se e tomou um duche. A água fria refrescava-o, fazia com que o sangue corresse com mais velocidade e despertava o pensamento. Saiu Para o sol matinal ainda nu, inspirou o perfume das flores e das ervas e olhou para o juncai; em toda a sua extensão saiam fios de fumo, que subiam em direcção ao céu despojado de nuvens. Os pescadores cozinhavam o pequeno-almoço nos seus barcos.
Entretanto, Jian acordara do seu sono agitado, não obstante o estado de exaustão em que se encontrava. A tensão interior era demasiado forte. Entrou na sala, onde Chang estava a pescar os pãezinhos no vapor dentro do tacho e a dispô-los num prato de cerâmica.
- Como está a tua visita, tio Zhang? - perguntou com um sorriso trocista, depois de terem trocado as cortesias matinais. - Ainda dorme?
- Está no duche.
- E tu estás ao fogão em vez de estares a esfregar-lhe as costas? Não devia ser ao contrário, entre um homem e uma mulher?
Zhang não respondeu. ”É só mais uns minutos”, pensou, mexendo a sopa de arroz que, entretanto, já estava ao lume. ”Huang e um homem culto, não vai perder o controlo.”
- Tu podes tomar um duche depois de comer - disse-lhe Zhang.
- Eu vou nadar no lago. Ainda é melhor.
- Vamos ver se chegas a ir ao lago.
Jian olhou para o tio, espantado, pois não percebia o sentido daquelas palavras. Mas nem um minuto depois percebeu, quando a porta se abriu e entrou um Huang fresco que nem uma alface. Este deteve-se à porta, como se algo o tivesse prendido, e a alegria estampada no seu rosto desapareceu, sendo substituída por uma expressão estranha, como se nas suas veias corresse chumbo fundido.
Jian também se deteve, pasmado, mas foi o primeiro a intervir.
- Então o convidado é o senhor, senhor Huang? Os meus cumprimentos, com toda a estima.
- O que os meus olhos vêem ofusca o meu dia - respondeu Huang. - Permite-me que me despeça, senhor Zhang? A sua hospitalidade não será esquecida.
- Sem pequeno-almoço, o dia é como uma noz ocaSente-se à mesa.
Contrariado, Huang sentou-se num banquinho, comeu apenas um pãozinho e meia tigela de sopa de arroz, acompanhando com o chá. Não olhou para Jian, comportando-se como se este não estivesse presente.
Assim ficaram sentados à frente um do outro em silêncio, até Zhang dizer:
_- Como vê, senhor Huang, o Jian cumpriu a sua palavra É um comportamento honrado, que se deve louvar. Neste momento, ele já é um médico que só pensa nos seus doentes.
E Jian interveio, reunindo toda a sua coragem:
Eu não vim por causa do Chang Lifu, mas para ver a Lida. Eu amo a sua filha, senhor Huang.
Isso é um infortúnio - observou Huang em voz alta - O senhor nunca mais entrará em minha casa.
- Então durmo no meu automóvel à beira dos campos.
- Vou proibir a minha filha de ir para os campos.
- Permitindo que a terra, que ao longo de séculos nos ofereceu a vida, fique ressequida? - Jian saltou da sua cadeira e estendeu os dois braços para Huang. - Sem a Lida a minha vida acabou.
- Que palavra tão magnânima! - Huang também se levantou de um salto. - A sua vida ainda agora começou e o senhor já acha que sabe o seu futuro?
- Eu tenho um objectivo na vida e quero atingi-lo em conjunto com a Lida.
- Quer deixar de ser um Tong? Que atrevimento! O senhor é um Tong e será sempre um Tong.
- Sim, permanecerei um Tong. Mas vivo numa época diferente da do meu pai e dos meus antepassados. Sou da nova era.
- E o que é isso, a nova era? - inquiriu Zhang.
- Liberdade!
- Para os Chineses, isso é um conceito abstracto. Alguma vez tivemos liberdade? - Ela virá.
- De onde? Do Ocidente? A liberdade não vale de nada Para a China. Mais de mil milhões de seres humanos têm de sentir um pulso forte; mais de mil milhões de liberdades pessoais só podem acabar no caos. - Zhang tornou a deitar agua quente sobre as suas folhas verdes. - Nós não somos Um povo; nós somos um quinto da Humanidade. Na China, tudo é diferente do resto do mundo. Vocês querem levar uma vida livre e feliz e esquecem a sabedoria da experiência.
Pensem no ditado do sábio Tseng Kuang: ”As pessoas não podem passar bem mil dias seguidos, do mesmo modo que uma flor não consegue florir cem dias.”
- Também há um ditado do sábio Kung Tse que diz”Temos que cortar um cajado quando somos jovens para nos podermos apoiar nele na velhice.” E esse cajado é o que nós estamos a cortar.
- Por acaso, estamos numa reunião política? - exclamou Huang, indignado. - Trata-se da minha filha Lida! Um Tong quer torná-la sua concubina!
- Eu vou casar com a Lida, senhor Huang.
- O senhor não é ninguém e não tem nada. O senhor é apenas um Tong, alimentado pelos Tong.
- Dentro de quatro anos serei médico.
- Quatro anos. - Huang bateu com as duas mãos na cabeça. - E o que é suposto acontecer nesses quatro anos? A Lida nos campos, em Huili, e o senhor na universidade, em Kunming... isso são quimeras.
- Para o amor não há anos; o tempo conta de maneira diferente. - Jian fitou Huang com um olhar suplicante. Irei a Huili sempre que puder.
- Como um cão que cheira quando uma cadela está com o cio. - Huang bateu com o punho na mesa com tanta força que as tampas das taças até tilintaram. - E um dia, ao longo desses quatro anos, o senhor Tong deixa de vir, deixamos de ter notícias dele, desaparece, e a minha filha Lida fica para trás e ninguém vai querer tê-la como mulher, nem o camponês mais pobre, nem sequer um cego; só lhe restara uma corda com a qual se enforcará. Não! Deixe-me partir, senhor Zhang. Ainda consigo apanhar a camioneta para Nanhua.
- O senhor não precisa de apanhar a camioneta - disse Jian em voz baixa, desolado com a opinião que Huang tinha dele. - Eu levo-o a casa, senhor Huang.
- Mesmo que tivesse de ir a pé, no seu carro é que não entro.
A discussão prosseguiu durante quase duas horas. As vozes foram ficando cada vez mais roucas, mas não se via uma luz ao fundo do túnel. Ao fim dessas duas horas, Zhang abandonou a disputa e observou, encolhendo os ombros: e camioneta para Nanhua já partiu há muito tempo, senhor Huang.
- Há-de aparecer um benfeitor que me leve de boleia. Vou para a beira da estrada. Não tenho vergonha de ser um homem pobre que tem de pedir boleia. Alguém me levará.
Jian olhou para o relógio e assentiu com a cabeça.
Vamos partir dentro de meia hora, senhor Huang. Permita-me que vá primeiro tomar um banho ao lago. - Sem esperar pela resposta, saiu e afastou-se em direcção ao lago.
Huang tornou a bater com o punho na mesa.
- Que rapaz cansativo! - bradou.
- É verdade. Há-de ir longe - concordou Zhang, cheio de orgulho. - Vamos beber uma cerveja antes da viagem?
- Eu não entro no carro dele.
- O senhor é teimoso, senhor Huang! Consigo ou sem si, o Jian vai a Huili na mesma. E pense nisto: ele vai chegar antes do senhor e tomar a Lida nos seus braços.
- O senhor é um homem inteligente, senhor Zhang. Agradeço-lhe. O seu argumento convence-me que estava a pensar da maneira errada. Agora vou ter de ir mesmo com o Jian, para evitar que o pior aconteça.
Partiram por volta do meio-dia. Para não estar perto de Jian, Huan sentou-se no banco de trás. Era a primeira vez que se via sentado num carro confortável, com bons estofos, sem se sentir esmagado pelas pessoas suadas que a camioneta transportava e, assim, podia admirar a paisagem ao longo da viagem, as carroças puxadas por bois e por mulas, os camiÕes e os condutores de carroças que ultrapassavam no Caminho e que ficavam para trás envoltos numa nuvem de Pó. De repente, Huang sobressaltou-se, inclinou-se para a frente e bateu nas costas de Jian.
- Temos de voltar para trás! - exclamou.
- Porquê?
- Aluguei uma bicicleta em Dali e tenho de a devolver. Não vale a pena pensar nisso, senhor Huang. Já não tem remédio, e o proprietário a esta hora já lhe rogou todas as Pragas possíveis. Mas o senhor não as ouve.
- Ele não me vai rogar pragas! Eu paguei uma fiança três vezes maior do que o valor da bicicleta. Vai até esfregar as mãos de contentamento.
- Quanto é que pagou?
- Cinquenta bons iuanes. Sabe a quantidade de dinheiro que isso é para um professor pobre?
- Eu devolvo-lhe os cinquenta iuanes, senhor Huans
- Não! - Huang tornou a recostar-se no assento. - Não quero esmolas de nenhum Tong.
- Era só uma proposta.
- Uma má proposta, que mais parece uma ofensa.
- Peço-lhe que me perdoe. Aceita-a?
Huang ficou calado. Quanto mais se aproximavam do cruzamento de Nanhua, onde a estrada bifurcava em direcção a Dayao, a meio da qual havia outro cruzamento, por onde se virava e se entrava por um caminho estreito que ia dar aos montes de Huili, mais angustiantes eram os seus pensamentos. Punha-se a pensar no que Lida iria fazer quando, de repente, se visse à frente de Jian, se fugiria dele ou se correria para o abraçar; e se se beijassem, então, seria quase como um noivado, pois uma aldeia tem cem olhos e a família Huang ficaria desmoralizada se permitisse uma coisa dessas sem apresentar Jian à aldeia como o seu futuro genro. Na cidade podia ser diferente, mas no campo era assim, principalmente entre os Miao. Na cidade, os costumes já tinham praticamente passado à história e Huang recordou uma visita do seu filho Tifei, na qual este lhe contara sobre Kunming e - quando Jinvan se ausentara para ir apanhar uma galinha - lhe descrevera, piscando-lhe o olho, como à noite, em frente aos hotéis, as prostitutas aliciavam os homens, principalmente os estrangeiros, e lhes pediam dez dólares, o que, convertido em iuanes, era quase uma pequena fortuna - talvez nem para meia hora de trabalho. De facto, era oficial’ mente proibido, mas quando os próprios oficiais da polícias do exército... rira-se e fizera um estalo com a línguacomo se ele também soubesse como era.
”A cidade”, pensou Huang e fixou os olhos na nuca de Jian. ”Ele é um homem da cidade... ter-se-á servido também de prostitutas? E agora é a vez da Lida, a minha filha? Vou matar o Jian se ele fizer mal à Lida. A honra dos Huang e sagrada, mesmo que sejamos pobres e miao.”
Ao final da tarde, Huang vislumbrou a sua aldeia, Huili, suspensa na encosta da montanha. Sentiu um calor invadirlhe o coração, pois era uma linda aldeia e ele tivera uma grande participação nisso, já que educara as crianças da escola a amar a sua terra natal como à sua família.
Passaram ao lado de um campo que pertencia a Huang e Jian travou tão bruscamente que Huang se precipitou, indo embater nas costas do assento da frente.
- Atropelou alguma coisa? - exclamou Huang. - Eu saio e apanho. - Mas, depois, percebeu o motivo da paragem brusca de Jian e o seu coração começou a bater com mais força.
No campo, um búfalo puxava um arado, abrindo sulcos gordos no solo; atrás do arado ia Lida, forçando o espigão de madeira a furar o chão e incitando o búfalo com um longo pau de bambu.
- Continue! - ordenou Huang a Jian, admirando-se com a rouquidão da sua voz.
Mas Jian atirou com a porta, saltou do carro, começou a gritar e a acenar, mas como parecia que Lida não o estava a ouvir, pois enxotava o búfalo aos gritos, Jian desceu a correr a encosta que ia dar à lagoa dos patos e depois subiu pelo terraço de arroz até ao campo. Huang também acabou por sair do carro, ficando a assistir, sem poder fazer nada, admirado consigo próprio, pois sentiu-se percorrido por uma alegria súbita e uma sensação de felicidade.
Viu quando Lida ouviu os gritos de Jian e atirou ao ar o pau de bambu, largando o arado; viu como o búfalo ficou Parado, erguendo a gorda cabeça; viu também quando Lida correu ao encontro de Jian e os dois caíram nos braços um do outro. Abraçaram-se como se o mundo se tivesse afundado e eles fossem os únicos sobreviventes.
- O que é que uma pessoa faz? - perguntou-se Huang em voz alta, olhando para o céu do final da tarde. - Sempre soube que não há nada mais forte no mundo do que o amor.
é sinto alegria... Devia ter vergonha, mas não tenho.
Demorou algum tempo até que Lida e Jian se separassem, depois foi tudo como há uns dias atrás: juntos, tiraram os arreios ao búfalo, conduziram-no até à estrada e Jian regressou ao automóvel e disse para Huang, com os olhos a brilhar:
- Agora estou em casa. E Huang respondeu:
- Bem-vindo!
Lentamente, Jian seguiu atrás do búfalo, a trote, até à aldeia; as pessoas que os viram passar e repararam em Huang, sentado no banco de trás de um belo automóvel, cumprimentaram-no e depois começaram logo a cochichar.
No cimo da colina, em frente à escola, Jian travou o carro e os dois apearam-se, dirigindo-se para a casa do professor. Sentada num banco junto à porta, Jinvan descascava batatas-doces. Deixou cair a faca quando viu o carro, Jian e o marido; o próprio Chang também apareceu, vindo do anexo, tossindo energicamente da excitação e correndo em direcção a Jian.
- Mantiveste a tua palavra! - exclamou. - Não te esqueceste de mim! Trouxeste o remédio? Será que ainda vai a tempo?
- Vai ser útil - contrapôs Jian, evasivo. - Enquanto há vida há esperança.
Jinvan abraçou Jian e chorou de felicidade. Fez uma festa no cabelo de Jian e não conseguiu falar.
- Entre - disse Huang, dirigindo-se a Jian, mas foi o primeiro a entrar. Depois dirigiu-se a Jinvan: - Foi uma viagem cansativa, mulher. A fome dá cabo de nós!
Mais tarde, sentaram-se todos à mesa a comer. Lida foi trazendo a comida para a mesa, mas Huang irritou-se por ser Jian a remover as tigelas sujas da mesa e a servir a sopa. Era uma tarefa das mulheres; não era digna dos homens. ”Mas talvez sejam os novos tempos”, pensou. ”Não me parece bem, pois o homem é o senhor da casa e isso é uma das régras do casamento. Nem todos os novos costumes são um progresso.”
Depois do jantar, Huang, em seu nome e em nome da esposa, ofereceram a Jian o tratamento por ”tu”. Este ficou muito feliz.
Era evidente que Jian teria de dormir novamente na cama de Huang, quanto mais não fosse por questões de controlo, pelo qual Huang se sentia responsável. Deste modo, era impossível Jian dar uma escapadela furtiva até junto de Lida; além disso, para que nem sequer lhes passasse pela cabeça tal coisa, enfiou a cama de Lida no quarto, junto à cama de Jinvan, o que seria uma garantia de segurança e de um sono descansado.
Mas havia a questão do búfalo, e não havia tarde que Lida não fosse lavá-lo e escovar o pêlo duro do animal, como se ele fosse um valioso cavalo que necessitasse de constantes cuidados.
O trabalho no estábulo era uma oportunidade para Jian e Lida estarem a sós. Ele ajudava-a e, depois de limparem o búfalo, ficavam sentados nas caixas viradas ao contrário, davam as mãos, beijavam-se e Chang, que um dia se pôs a espreitar pela fenda da parede, foi a correr ter com Huang e Jinvan e disse-lhes:
- Que amor tão puro! Ele não lhe toca, nem sequer no peito.
- Deita-te no teu caixão e cala-te! - retrucou Huang, indelicadamente. - Ninguém quer ouvir os teus pensamentos sujos.
Quando Chang se retirou, amuado, Jinvan perguntou: - O que é que vai acontecer agora, homem?
- O Jian quer casar com a nossa filha daqui a quatro anos.
- Quatro anos? Quem sabe o que pode mudar em quafro anos!
- Não sei. Se as pessoas soubessem o futuro, não havia corda suficiente para se enforcarem todas. Deixemos o tempo seguir o seu curso!
O tempo passou depressa de mais para todos eles, pois, Corridos dezasseis dias de pura felicidade, Jian pronunciou-se ao jantar, dizendo o que Lida, em silêncio, já receava:
- Tenho de voltar para Kunming. As aulas na universidade vão recomeçar. Ainda tenho muito a aprender antes de ser médico.
- E quando voltarei a ver-te? - perguntou Lida. Huang admirou a valentia da filha: fez a pergunta sem que a voz lhe vibrasse e sem uma lágrima nos olhos.
- Se eu pudesse voar, vinha cá passar todos os serões
- Mas tu não és um pássaro - retorquiu Huang. Quatrocentos quilómetros à ida e outros tantos à volta, com as nossas estradas, demora pelo menos dois dias. E isso é só a viagem. Onde é que vais buscar os dias que precisas?
- Por mim, percorro oitocentos quilómetros só para passar um serão convosco. O que é a distância quando posso ver a Lida uma hora inteira!
O dia da partida não foi triste como da última vez, quando Lida se escondera dos seus próprios sentimentos e derramara mais lágrimas do que gotas de suor num dia inteiro de trabalho nos campos. Desta vez, sabia que Jian regressaria; sabia que pertenciam um ao outro; sabia que aquele amor, a partir desse momento, determinaria a sua vida; porém, tal como Jian, também sabia perfeitamente que esse amor teria de ser escondido dos pais dele, enquanto ele não terminasse o curso.
Jian acabara de guardar a sua mala na bagageira do automóvel quando Chang Lifu surgiu do seu anexo e foi ao seu encontro, a arrastar os pés. Já não tossia há quatro dias, mesmo quando se exaltava ou alegrava; até então, cada mudança de humor dava lugar a um ataque de tosse que lhe sacudia o corpo todo. Estava apenas um pouco mais fraco. quando dava comida às galinhas, trabalhava na horta ou revestia o estábulo com palha nova para o búfalo, tinha que se sentar um pouco ou deitar-se, pois as suas pernas começavam a tremer e sentia-se assomado por um cansaço tal que adormecia.
- Sinto-me muito melhor, Jian - contou, encostando-se ao automóvel. - Já quase não tusso... o medicamento está a fazer efeito?
Não seria um medicamento se não fizesse efeito - respondeu Jian, evasivamente. - Sentes que já quase não tens queixas.
Só de cansaço; estou sempre cansado.
Jian assentiu com a cabeça. O medicamento enfraquecia doentes, pois era uma combinação forte de plantas e raízes misturada com um veneno de cobra, que produzia um efeito mais forte do que os químicos importados do Ocidente. Jian encontrara a composição do medicamento no livro de receitas do pai: era um remédio conhecido na China há centenas de anos e que já ajudara três imperadores, tal como Tong Shijun anotara à margem da receita. Contudo, não havia referência ao facto de o remédio não ser curativo; podia simplesmente atenuar os sintomas. Chang precisava apenas daquela pequena ajuda antes de morrer. Do ponto de vista da medicina, era um paciente perdido.
- O teu corpo está a reagir ao medicamento e isso provoca cansaço - mentiu Jian, esquivando-se ao olhar inquisidor de Chang. - Vai passar.
- Então, quer dizer que não vou morrer, Jian?
- Todos temos que morrer um dia, Chang.
- Isso não é nenhuma máxima, é uma lei da Natureza. Eu não vou morrer agora, nem amanhã, nem daqui a uma semana, ou um mês?
- Quem sabe? Quem pode responder à tua pergunta? O nosso corpo priva-nos da nossa vontade. Adquire doenças e afasta doenças, sem nos perguntar nada. Domina-nos, e NOS não lhe podemos exigir nada. Porque é que uma pessoa morre aos dezoito anos de idade e a outra vive até aos noventa? - Jian apoiou-se noutra mentira. - Se te sentes melhor, há que ter esperança.
- Agora, a única saída que eles têm é casar. Ou, então, o Huang tem de matar o Jian, tal como exige a honra da família.
- Aguardemos - respondeu Jinvan, pensativamente. Deixemos que o tempo decida. Ainda é preciso viver quatro anos e, do mesmo modo que de uma magnólia nascem mil flores, também o homem é apenas uma árvore, da qual caem mil folhas.
Jian largou Lida, precipitou-se para o automóvel, entrou, fechou a porta e arrancou, sem acenar uma única vez ou sequer voltar-se para trás; queria levar consigo a imagem de Lida para os tempos de ausência que se avizinhavam.
Nesse dia, o búfalo ficou no estábulo. Lida não o levou para os campos; sentou-se à frente da casa, num banquinho talhado pelo avô e ficou a olhar para a estrada, na qual Jian desaparecera. O búfalo achou estranho, mugiu, agitou-se e atirou a grossa cabeça contra a parede de madeira, pois faltava-lhe o vento das montanhas, o ar fresco e o cheiro da terra acabada de sulcar.
Jian fez uma paragem em casa do tio Zhang Shufang, no lago Erhai, para se abastecer de um termo com água quente e de um pacote de chá verde para a longa viagem entre Da” e Kunming. Só chegaria a casa dos pais já pela noite dentro e o chá seria de grande utilidade para se manter acordado e para acalmar o estômago.
- Quando começa o novo semestre? - quis saber preparando um cabaz de junco com fruta para a viagem. tangerinas suculentas e ameixas grandes amarelo-dourado. Amanhã - respondeu Jian, monocordicamente. Pensando em Lida, não parava de pensar nela e na sua loucura desesperada quando se despediu aos beijos.
- Quer dizer, então, que regressas a casa à última da hora.
- Sim.
O teu pai não vai gostar.
Há muita coisa que está para acontecer de que ele não vai gostar.
- Vai exigir-te consideração e respeito.
- Tê-las-á, se me deixar seguir o meu caminho.
- E para onde se dirige esse caminho e onde termina?
- Na liberdade individual.
- Isso soa à lenda do dragão, que dá banho a um rato na sua língua húmida. Jian, o Partido também vai determinar a tua vida. Não podes fugir dele, pois onde quer que vás, lá estará. Está em todo o lado. Ou estás a pensar sair da China?
- Eu vou casar com a Lida.
Zhang calou-se por uns momentos, espreitou pela janela para o lago e os barcos dos pescadores, que flutuavam como manchas cinzentas no azul cintilante da água.
- Eu achava que o professor era mais inteligente - disse, por fim. - O teu pai, Jian, é um homem poderoso, cujas palavras se escutam com prazer e cuja sabedoria se respeita. Tu tens consciência dos conhecimentos dele, que vão desde Pequim aos altos dignitários do Partido. O Huang vai perder.
- Eu vou estar do seu lado. Quem quer lutar contra ele tem que passar primeiro por cima de mim.
- Tu és um Tong! Vais levantar a mão contra o teu próprio pai?
-Eu chamo-me Tong, mas este nome que trago não Será o carrasco da minha vontade!
- Não te esqueças da tua irmã Fengxia e do marido dela, o Wu Junghou. Também eles serão teus opositores.
Jian riu-se e abanou a cabeça.
São funcionários comunistas; para eles, a tradição vae tanto mais quanto mais depressa desaparecer. Reconstruir o que é novo, que MAO destruiu, para que o mundo veja que a China já era um país com uma cultura próspera, enquanto o resto da Humanidade ainda andava por aí vestido de pele de lobo ou de urso e vivia em cavernas... isso é que tem sentido para eles. Mas viver na tradição, como é o desejo do meu pai, só desperta o seu riso ou um abanar de cabeça compassivo.
- Ficaria muito feliz se isso não viesse a ser uma desilusão. - Zhang apontou para o fogão. - Posso oferecer-te uma sopa de arroz antes de partires, Jian?
- Eu agradeço, tio Zhang. - Jian fez uma vénia, pegou no termo cheio e no cesto de junco com fruta e dirigiu-se para o automóvel. - Volto daqui a quinze dias e beberei um chá contigo. Depois prosseguirei para Huili.
- Para passares meio dia! Tu és tolo! Aprende com os ditados centenários. Um deles diz: ”Se deixarmos os desejos crescerem de mais nos nossos corações, ficamos sem nada que acalme a nossa leviandade, e foi assim que até mesmo alguns dos homens mais sábios da Antiguidade falharam por causa das mulheres.”
- Tio Zhang, tu nunca tiveste o amor nos teus braços.
- Jian ficou parado à porta. - Devolvo-te outro ditado: ”Se os homens só falassem daquilo que compreendem, depressa a Terra seria acometida por um grande silêncio.” E Li Yú, o sábio, disse: ”O homem e a mulher não podem ser separados, do mesmo modo que o Céu e a Terra.” E assim é, tio Zhang: nada me poderá separar de Lida.
- O amor é a sepultura da razão... eu sei, e tu ainda vais aprender por ti. Boa viagem e dá cumprimentos aos teus pais.
Jian inclinou-se mais uma vez e abandonou a casa de Zhang. Sentia uma grande simpatia pelo seu tio, pois era um homem cheio de bondade e de sabedoria; tinha sempre um conselho para qualquer adversidade e o coração aberto a qualquer necessidade. Era um homem que não engolia a verdade e, quando afirmava que Huang iria ser o derrotado na luta com Tong, não havia dúvida que assim seria. Mesmo quando MAO o visitara e trocaram poemas um com o outro, Zhang não temera pela sua vida ao dizer a MAO que o comunismo não devia ser a aniquilação do indivíduo que pensa de maneira diferente, pois a abolição das classes sociais e dos estratos sociais devia ser um processo que derivasse de um trabalho socialista comum e não do domínio de pessoas sobre outras pessoas. MAO escutara-o calmamente, com muita atenção e depois respondera: ”Zhang Shufang, o que os teus poemas exprimem és tu próprio: um fantasista. Se deixares um homem correr, ele correrá sempre na mesma direcção, se não tiver ninguém que o dirija. E eu quero dirigir a China no sentido certo.”
Zhang nunca esqueceu aquela conversa. Ao deparar-se com as ruínas em que a Revolução Cultural deixara o país, com a nefasta demolição de todos os valores culturais, Zhang percebeu que o caminho de MAO fora o caminho errado e que o seu sucessor, Deng Xiaoping, tinha descoberto um outro caminho, um rumo certo para o futuro da China, quando, em 1979, iniciou a sua política de abertura ao odiado Ocidente. E a China inteira seria apanhada de surpresa pela alteração de curso, no sentido de uma aproximação a um mundo até então difamado. O tio Zhang há muito que o previra.
Jian reflectiu sobre tudo aquilo e muito mais na sua viagem de regresso a Kunming. Estaria, mais uma vez, o tio Zhang a prever os desenvolvimentos futuros, mesmo que referindo-se apenas às famílias Tong e Huang? Nesse caso, dar-se-ia início a uma luta entre a vida e a morte, e esta expressão não seria um exagero, pois Jian estava disposto a sacrificar tudo o que até então dera valor à sua vida pelo seu amor por Lida. Lida era o seu Sol e ele a Terra, que gerava a vida a partir do calor.
Foi uma viagem cansativa; durante a noite seria detido três vezes pela brigada de trânsito, que lhe fez buscas ao carro e o interrogou para saber de onde vinha e por que motivo estava a viajar de noite. Quando os polícias descobriram que ele era estudante de Medicina, quatro deles descreveram-lhe as suas pequenas mazelas, pedindo conselhos e queixando-se que o médico da polícia era um labrego, que a primeira coisa que fazia era dar-lhes sempre o mesmo purgante forte para todo o tipo de enfermidades, comentando todas as vezes: ”A maior parte das doenças saem com a caganeira! Na tripa está o demónio. Uma tripa saudável é como uma manhã de Primavera.” O mais surpreendente é que o médico da polícia até conseguia alguns êxitos com o método; quando Jian desatou a rir-se alto, nenhum dos polícias ficou ofendido e um deles até observou: ”Tu e o teu pai devem ser pessoas muito influentes. Quando se pode comprar um carro destes, ou se é uma pessoa muito considerada ou se é um aldrabão.”
Jian só chegou a casa dos pais pela madrugada, quando o céu sobre Kunming começava a ficar azul-pálido. Ainda estavam todos a dormir. Dirigiu-se para o seu quarto sem fazer barulho, despiu-se, prostrou-se debaixo do chuveiro e deixou que a água fria corresse sobre o seu corpo cansado. Sentia que a frescura da água vencia a sua exaustão e, enquanto se secava com a toalha, o seu sangue avivou-se e ele sentiu-se tão forte como se tivesse descansado o suficiente.
Meia hora depois, encontrava-se sentado na sala de jantar em frente ao pai. Estavam sozinhos, olhavam-se sem palavras e cada qual esperava que fosse o outro a iniciar a conversa.
Tong Shijun sentou-se à mesa, onde já estavam os pãezinhos cozidos ao vapor e uma aromática sopa de massa a fumegar dentro de uma funda terrina de porcelana.
- Receava que não chegasses a tempo do início do semestre - iniciou Tong a conversa.
- Eu nunca faltei aos meus deveres - retorquiu Jian, com rispidez.
- Tiveste umas boas férias?
- Sim.
- Nadaste muito no lago?
- Sim.
”A facilidade com que a mentira me sai da boca”, pensou Jian. Estava surpreendido consigo próprio, por conseguir olhar o pai nos olhos sem que algo o traísse.
Tong pegou num pãozinho e partiu-o.
- Fico satisfeito - disse, casualmente. - Mas não estiveste sempre em Dali com o tio Zhang.
Jian susteve a respiração por momentos, depois reforçou a sua postura e preparou-se para o combate
- Como é que chegaste a essa constatação? - retorquiu.
- Um conhecido meu foi a Dali na mesma altura e fez uma visita ao tio Zhang. Tu não estavas lá.
- Quando estou a nadar ou a pescar não posso estar em casa.
- O Zhang não referiu que estavas de visita.
- Por que motivo haveria de referir-se a mim a um estranho? - Jian sentou-se à mesa, à frente do pai e fitou-o com uma expressão de desafio. - Mandaste o homem a casa do tio Zhang para me espiar?
- Deves ter a consciência pesada para pensares uma coisa dessas.
- Andei a passear uns dias. Lijian, Diancang Shan, Dukou, as cavernas da montanha do Sino de Pedra. - Jian pousou os punhos sobre o colo e fitou o pai directamente nos olhos com uma expressão hostil. - Por que motivo haveria de ter a consciência pesada?
- Quem presume que está a ser espiado deve ter alguma coisa a esconder. - Tong inclinou-se sobre a mesa, serviu-se de sopa de massa e começou a comer o pequeno-almoço.
- Estás com um olhar estranho, meu filho.
- Não me agrada que fales comigo como se estivesses num interrogatório.
- Sou levado por uma grande preocupação, Jian. Tong afastou a tigela da sopa para o lado, como se a sopa estivesse estragada. - Tive tempo para reflectir. Responde-me, por favor, a uma pergunta: tens ligações a círculos reaccionários?
Jian respirou de alívio. O pai estava preocupado com rubores que circulavam sobre umas ideias expressas, se bem que com cautela, por um grupo de estudantes, principalmente da Universidade de Pequim, que defendiam uma maior democracia na China. Em Kunming multiplicavam-se os boatos, mas ninguém sabia nada de concreto. A palavra democracia era um artigo importado do estrangeiro ocidental um chavão do capitalismo, encarado apenas com desprezo
- Não - negou Jian, enfaticamente. - Não conheço reaccionários.
- Não tens encontros secretos?
- Com quem é que eu haveria de me encontrar se não conheço ninguém?
- As tuas palavras devolvem o sossego ao meu coração.
- Tong olhava o filho com uma expressão perscrutadora. Nós somos uma família antiga que, ao longo dos últimos séculos, sempre conseguiu encontrar uma plataforma de entendimento com a situação vigente.
- Até à minha irmã Fengxia, que, entretanto, é funcionária do Partido.
- Isso soa-me a uma acusação.
- Eu desprezo todas as pessoas inteligentes que tiram proveito do espírito da época.
- Então, o teu desprezo também me atinge a mim?
- Tu és meu pai.
- E sou comunista. Sou membro do Partido. Tornei-me membro do Partido para poder tirar proveito disso. Benefícios para os meus doentes. O aparelho de ultra-sons, o novo equipamento de raios X, a ampliação do hospital para mais cem camas... não são tudo benefícios? Sem o Partido seríamos como uma pedra num mar de silêncio; agora, as águas começam a agitar-se e a pedra começa a emergir como uma ilha.
- Mas a mentalidade tradicional dos Tong não é posta em causa. - Jian levantou-se sem tocar no pequeno-almoço.
- Falaste com o Qiang Fang em relação à Yanmei?
- Não, ainda não.
- E porquê, pai?
- Tenho esperança que ainda venhas a mudar de ideias.
- É uma esperança sem sentido. Eu não vou casar com a Yanmei.
- Porquê?
- Pai, já falámos o suficiente sobre o assunto. Pretendo ser eu próprio a escolher a minha mulher e não casarei contra a minha vontade. Na altura, quando casaste com a mãe, alguém ta impingiu?
Que ideia! A tua mãe Meizhu faz parte de uma das grandes famílias. Foi-me prometida quando ainda era criança e passava os dias a fazer grinaldas com as flores que colhia no jardim da casa dos pais.
- E a mãe encontrou a felicidade ao teu lado?
- Nunca ouvi uma queixa da boca dela.
- Porque a tradição proíbe que uma mulher se queixe do marido. Ela é uma súbdita que gera filhos obedientemente.
- Jian! - Tong levantou-se de um salto e bateu com o punho na mesa. - Estás a falar da tua mãe!
- Eu estou a falar dos direitos das mulheres na China. Ela nunca teve direitos. O ideário masculino nunca permitiu que as mulheres tivessem opinião própria. Sempre trabalharam desde o nascer do dia até à noite e, nos nossos círculos, tinham apenas a obrigação de serem belas.
- A tua mãe estudou como eu. Ela é médica.
- E desde que é tua mulher alguma vez teve oportunidade de exercer? Sempre se limitou a ser a distinta senhora Tong, a filha de boas famílias Zhang Meizhu, e o seu marido, o famoso Tong Shijun, até se tornou comunista para preservar essa tradição. Este não é o meu mundo, pai.
- E como é que tu vês o mundo, meu tolo?
- Eu quero ser um bom médico e ter uma vida, cujo sentido seja eu próprio a dar-lhe; não quero viver uma vida Segundo um ditado. Começa logo pela Yanmei... é suposto eu submeter-me à tua vontade e casar com ela. Não! Eu tenho vontade própria, pai.
- Então haverá um choque entre vontades.
- Se tiver de ser, será. Eu não vou ceder.
- O teu comportamento faz-me lembrar uma fábula antiquíssima, escrita por Hsiao Fu. Um dia, um homem pobre encontrou um velho amigo, que entretanto se tinha transformado num espírito. Quando o espírito soube da pobreza do amigo, espetou um dedo e apontou para uma pedra no meio do caminho. Esta logo se transformou em ouro. O espírito ofereceu a pedra de ouro ao amigo pobre. Contudo, este não ficou satisfeito e, então, o espírito ofereceu-lhe um grande leão de ouro. Mas o homem ainda não estava satisfeito. ”Que mais queres tu?”, perguntou-lhe o espírito. ”Quero o teu dedo”, foi a resposta. - Tong fitou o filho com um olhar penetrante. - Percebes a fábula, Jian?
- Eu não preciso que me dês nenhuma pedra de ouro, nem um leão de ouro ou o teu dedo dourado - retorquiu Jian, com firmeza. - Conseguirei obter por mim próprio o que preciso.
- Mas tu ainda não és nada! Absolutamente nada! bradou Tong, perdendo o controlo. - Atirar pedras com as costas quentes não é nenhum acto de heroísmo.
- Eu próprio cortarei as minhas pedras! - gritou Jian, de volta. - E onde é que estão as costas quentes? Aqui, nesta casa, sob as tuas ordens. Isso também pode mudar!
Saiu da sala a correr e atirou com a porta com tanta força que Tong receou que as valiosas esculturas de madeira se quebrassem. Devagar, tornou a sentar-se à mesa e começou a comer a sopa. Tinha as mãos a tremer e perguntava-se vezes sem conta o que poderia ter mudado tanto Jian, se não eram os revolucionários clandestinos. Saberia Zhang de mais alguma coisa? Quem gera um filho, compete-lhe o grande orgulho e o dever de torná-lo um homem íntegro.
No final do pequeno-almoço, Tong já decidira ir a Dali visitar o tio Zhang. Não podia partir de imediato, pois precisavam dele no hospital e não estava a ver ninguém que o pudesse substituir uns dias. Tal como todas as pessoas importantes, Tong também achava que era insubstituível; caso houvesse quem o substituísse, deixava de ser importante.
Quando se levantou da mesa, Meizhu entrou na sala. Olhou em volta e viu que o marido estava sozinho.
- Será possível que eu tenha ouvido a voz do Jian? - perguntou. - Ele já voltou?
- Sim, esteve aqui. Mas já se foi embora outra vez. AS aulas na universidade recomeçam hoje. - Tong respirou fundo. - O Jian é um bom filho, mulher. Ainda teremos muitas alegrias com ele. - Mas ao mesmo tempo que dizia isto e Meizhu acreditava, pensava com amargura que não havia nada pior no mundo do que a inimizade entre um pai e um filho.
Uma manhã, Chang Lifu não saiu do seu anexo. Habitualmente, era sempre o primeiro a aparecer em casa, pouco antes das cinco da manhã, a tossir e a arfar, para beber uma taça de água quente. Huang acordava todas as manhãs com a sua tosse, mas não se levantava da cama, como faziam os camponeses; ficava deitado acordado e meditava sobre o novo dia. Um professor pode dormir até mais tarde, quanto mais não seja porque ganha menos do que toda a gente; até um operário numa fábrica olha para o seu ordenado com mais orgulho do que um professor, que recebe cento e sessenta iuanes por mês.
Nessa manhã, Huang esperou mais um quarto de hora até se levantar. Vestiu as calças e dirigiu-se para o anexo. A luz matinal espreitava, formando riscas através das fendas da madeira, e mergulhava o compartimento numa alvorada aclarada. Um dos raios de Sol pairava no meio do caixão e iluminava o rosto cicatrizado de Chang.
Chang estava deitado de costas dentro do caixão, tinha as mãos cruzadas e o olhar fixo nas ripas de madeira do tecto. Não se mexeu quando Huang entrou, não virou a cabeça, nem o fitou. Era como se fosse um pedaço de madeira que alguém, a brincar, enfiara dentro do caixão.
Huang aproximou-se e inclinou-se sobre a cabeça de Chang. Este movimento também não fez com que ele mexesse os olhos ou a cabeça e, se os olhos de Chang não tivessem piscado, Huang ficaria convencido que Chang tinha Passado desta para melhor.
- Sentes-te mal? - indagou Huang, comovido. - Tiveste outra noite má?
Chang ficou calado. Apenas era visível um ligeiro tremor nos dedos das mãos, cruzadas sobre o peito.
- Tens dores? - prosseguiu Huang. - O remédio do han já não te está a ajudar?
Chang não respondeu. Apenas os seus olhos deram um pequeno sinal de vida, quando os abriu e fechou, depois virou a cabeça para Huang e olhou-o sem falar.
- Queres que te traga uma taça de água quente? - A resposta na expressão dos olhos de Chang fez com que um arrepio percorresse a espinha de Huang.
- Não! - exclamou Chang, de repente. A sua voz soava tão oca! Era como se estivesse a falar para dentro de um balde vazio e Huang assustou-se com o som.
- Não consegues levantar-te e andar?
- Estou a morrer - disse Chang num tom abafado. Estou a morrer.
- Se estás a falar é porque estás vivo.
- Sou uma cavidade vazia. Já não há nada dentro de mim... já tossi tudo e já cuspi tudo. Estou à espera que a cavidade sucumba, como um tubo sem ar. Quando a Lida vier buscar o búfalo estarei morto.
- Ainda falta meia hora. - Huang tentou soar animado e esboçou um sorriso. - Se os homens pudessem dar ordens ao tempo, o mundo há muito que teria acabado. Daqui a uma hora estarás no meio do jardim a dar de comer às galinhas.
- Daqui a uma hora estarei a caminho de me tornar pó.
- Chang fechou os olhos. O sol da manhã que entrava através das fendas das tábuas de madeira encandeava-o; até lhe doía. Habitualmente, recebia o sol com palavras de deferência e de adulação, agradecendo o facto de poder voltar a vê-lo. - Mas antes, quero contar-te uma coisa, Huang prosseguiu. - Chegou a hora.
- Conta o que quiseres.
- Tu vais ouvir coisas terríveis, Huang.
- Mais terríveis do que o que eu vivi em 1976 não serão de certeza. Todos nós sabemos: tu és um assassino
- E porque é que não me mataram logo, quando vos procurei depois de todos estes anos?
- Quando chegaste, eras um velho, doente e torturado, depois de teres sofrido os mesmos tormentos que infligiste às tuas vítimas. Mas não foi por isso que eu não te bati com uma vara de ferro na cabeça, Chang. Também não foi por piedade. Por perdão? Como é que alguém pode perdoar os crimes que tu cometeste? Por todo o lado onde andaste, as tuas botas deixaram um rasto de sangue, mas também perdeste a alma, pois ela, de certeza, que se quebrou perante os gritos das pessoas torturadas e dos moribundos. E mesmo assim, estendi-te a mão quando me apareceste à porta de casa. Nesse momento, só uma coisa me veio à cabeça. Não foi a tortura infligida ao meu filho Tifei, nem a violação da minha mulher Jinvan. Só pensei numa única coisa, e foi por isso que te recebemos em nossa casa, como se fosses um parente vindo de muito longe.
- E o que foi?
- Tu deixaste que a Lida vivesse. Até a protegeste dos teus guardas-vermelhos. Mandaste embora o teu bando e eu fiquei tão agradecido que te deixei dormir na minha cama e passei a noite à tua frente, com ganas de te cortar a garganta; mas não consegui, pois olhava para a Lida, que tu permitiste que continuasse a viver, fazendo um mero sinal com a mão.
- Huang tornou a inclinar-se sobre o rosto de Chang. Porque é que a deixaste viver?
- Não tenho resposta para te dar. Há coisas que não têm explicação. Eu não podia matá-la. Ela fugiu de mim a correr, pequenina, magrinha, um pássaro assustado, e olhou-me com uns olhos que me fizeram lembrar que eu também tivera uma filha, tão jovem quanto ela, e eu teria arrancado o coração a quem quer que lhe tocasse ou quisesse fazer mal. Talvez tenha sido isso que me impediu de pegar na Lida e esmagar-lhe a cabeça contra a parede da tua escola.
- A tua filha! - continuou Huang, surpreendido. - Só falaste dela uma vez. E quando há uma criança a crescer, também tem de haver uma mãe que a gerou. Porque é que vieste ter connosco e não seguiste caminho à procura da tua filha e da mãe dela?
- Eu encontrei-as. Estavam enterradas numa vala comum, fuziladas pelos contra-revolucionários que perseguiam os pequenos generais de MAO e que sabiam que Shufen e anlin eram a mulher e a filha do comissário Chang Lifu.
Eram elas que expiaram os meus pecados. - Chang respi- rava freneticamente e os seus dedos contraídos perdiam a cor, tal a força com que comprimia as mãos uma na outra.
- Consegui apanhar quatro deles, pois foram denunciados. Matei-os, desfi-los com um machado, espalhei os bocados de carne pela rua. Depois tive consciência da minha culpa e acordei do delírio das boas acções em nome de MAO. Foi o fim do comissário Chang Lifu.
- E depois?
- Depois fugi. - Chang fechou os olhos. O tom da sua voz era cada vez mais grave e mais abafado; sempre que respirava ouvia-se o matraquear do seu peito magro. - Estou a morrer - disse, muito baixinho. - Sinto o frio. A eternidade abre-se à minha frente.
Huang olhava-o em silêncio e, como estava sentado ao lado do caixão a observá-lo, acabou por não reparar no momento em que Chang deixou de respirar; este morrera sem um som, sem um movimento, sem qualquer sinal exterior. Só quando a sua boca se abriu e o maxilar descaiu é que Huang percebeu que Chang estava morto.
Inclinou-se para o chão, pegou numa acha de lenha e premiu-a contra o queixo do morto para lhe fechar a boca. Depois saiu para a rua, viu Lida a dirigir-se a ele e disse-lhe, antes de ela perguntar por que motivo não ia tomar o pequeno-almoço e onde estava Chang.
- Morreu.
Seguiu em frente, ao mesmo tempo que Lida passava por ele e se precipitava para o anexo. Depois, ouviu-a a soluçar alto. Olhou de relance para Jinvan, sentou-se à mesa, puxou o prato com a sopa de arroz para junto de si, pegou no pãozinho cozido ao vapor e começou a comer.
- O Chang morreu - repetiu e quando viu as lágrimas nos olhos de Jinvan, acrescentou: - Ele não valia as lágrimas que estás a derramar, mas as da Lida valem a pena. As oito começaram as aulas. Foi um dia como outro qualquer, com excepção da tampa do caixão, que fora fechada, excluindo definitivamente Chang do mundo.
Passaram-se seis semanas até que Tong Shijun conseguisse incumbir o seu médico-chefe de o substituir durante quatro dias. A visita planeada a casa do tio Zhang podia ter início.
Tong poucas oportunidades teve de falar com Jian. Só se viam às refeições, as conversas andavam sempre à volta do mesmo tema e, mal acabavam de comer, Jian fechava-se no seu quarto, debruçando-se sobre os apontamentos tirados durante as aulas e sobre os manuais de Medicina.
Entretanto, já escrevera dez cartas a Lida, mas não as metera no correio, pois as palavras que lhe dirigira eram um mar de saudade e de desejo. Não se sentiria bem se Huang lesse as cartas, pois, de certeza, exigiria a Lida que lhe mostrasse as cartas que ela nunca receberia sem o pai saber, pois era Huang quem recebia o correio.
O destino prepara-nos muitas vezes partidas feias e foi precisamente uma dessas que ocorreu nessa manhã, muito cedo, quando Tong Shijun subiu para a camioneta que ia para Dali. Mais tarde, por volta do meio-dia, depois das aulas, Jian instalou-se ao volante do seu automóvel, tomando o mesmo caminho em direcção a Dali. Meizhu só se apercebeu do sucedido quando reparou que o filho não viera a casa, à noite. Porém, não havia qualquer hipótese de o avisar. Zhang Shufang não tinha telefone e nunca fizera qualquer esforço para o ter. Seria impensável puxar uma extensão telefónica para uma cabana situada no canavial do lago Erhai. ”O telefone escraviza-te”, dissera Zhang uma vez. ”Toda a gente pode incomodar-te e roubar-te tempo valioso. Eu afasto tudo
o que me possa roubar a liberdade.”
Naquele momento, um telefone poderia ter impedido muita coisa, e Meizhu, em desespero de um lado para o outro dentro de casa, ajoelhou-se em frente ao altar de Buda, unplorando à divindade que não deixasse que uma catástrofe se abatesse sobre o seu lar.
O tio Zhang também foi apanhado de surpresa quando, de repente, se deparou com Tong Shijun a bater à porta da sua casa, de tal modo que, inicialmente, se limitou a exclamar ”Bom dia!” e depois um ”Sê bem-vindo!” logo que se refez da surpresa. Deu umas pancadinhas nos ombros de Tong Shijun, apertou-lhe a mão, vigorosamente, e exclamou cheio de alegria:
- Ainda estás vivo? Ainda não morreste?
A pergunta era justificada, principalmente neste caso apesar de se tratar de uma mera troca de cortesias entre parentes. Tong não via ou falava com Zhang há mais de dois anos e também não tinham trocado correspondência; a única ligação entre os dois tinha sido sempre através de Jian e, para além dos cumprimentos, não havia mais nada a dizer. Tong e Zhang não partilhavam das mesmas ideias, quanto mais não fosse pelo facto de Tong considerar quase uma vergonha para a família o facto de Zhang viver numa cabana, em vez de habitar numa casa grande, de acordo com a sua formação e o seu estatuto social. ”Ele é um grande artista, mas é um tipo esquisito” comentara Tong um dia para a mulher. ”Se nos preocupássemos com ele seria contra a sua vontade.”
Pelo seu lado, ao longo dos anos, Zhang fora a Kunming quatro vezes, e apenas porque haviam organizado exposições com os seus magníficos quadros, nas quais era homenageado. Quando se soube que MAO tinha estado sentado com ele, lhe lera os seus poemas e que fora de avião a Kunming especialmente para se encontrar com Zhang, o respeito pelo poeta e pintor atingira o seu auge.
Tanto mais, aos olhos de Tong Shijun, a vida eremita de Zhang era uma provocação à família, um desprezo pela tradição. Mas, agora, Tong encontrava-se à porta de Zhang este estava perplexo por Tong se rebaixar ao ponto de pisar a sua modesta cabana.
- Entra - disse Zhang com delicadeza, segurando a porta aberta. - O que é que aconteceu?
- Posso ficar um dia em tua casa? - pediu Tong.
- Tu és marido da Meizhu, portanto, és sempre bem-vindo. Se conseguires dormir numa cama de colchão duro, a minha casa é a tua casa.
Tong entrou no grande ateliê, olhou de relance para o quadro inacabado sobre o cavalete, abriu os braços e distendeu os músculos, pois quatrocentos quilómetros dentro de uma pequena camioneta aos solavancos endurecia os músculos de qualquer um. Em seguida, sentou-se numa cadeira de vime e contemplou o lago. As sombras do final da tarde brilhavam na água e produziam reflexos azul-escuros. As últimas canoas dos pescadores recolhiam ao porto e desapareciam nos juncais.
- Aqui é mais belo - observou Tong, de repente.
- A Natureza está cheia de milagres - acrescentou Zhang. - Felizes os olhos que vêem e reconhecem isso. pôs duas taças na mesa, uma tacinha com chá verde e um termo com água quente. - Deves ter fome. Ficas satisfeito com um peixe frito com cogumelos de conserva? Não estava preparado para a tua visita.
Tong assentiu com a cabeça. A longa viagem cansara-o e a fome assolava-lhe o estômago, pois, além de umas peças de fruta durante uma paragem e uma sopa de legumes aguada com tofu, servida numa banquinha de rua, não comera mais nada o dia todo.
- Qualquer coisa me satisfaz - respondeu.
Zhang ficou muito admirado com aquela resposta, que nada tinha a ver com o distinto doutor Tong.
Zhang retirou de dentro de um balde com água um peixe médio de escamas avermelhadas, abriu-o, amanhou-o e cortou-o em pequenos pedaços, preparou uma frigideira e até pôs ao lume um tacho com arroz chinês. Entretanto, Tong continuava a contemplar fixa e silenciosamente o lago, que àquela hora foi rapidamente absorvido pela escuridão.
- Porque é que decidiste fazer esta viagem tão longa e cansativa? - perguntou Zhang, depois de ter barrado o peixe com sal e uma mistura de pimentas. O óleo quente da frigideira começou a crepitar.
- Queria falar contigo, Shufang. - Tong afastou o olhar da janela e virou-se para o interior do compartimento. O cheiro a peixe frito começava a espalhar-se. - É por causa do Jian.
Zhang passou o arroz fumegante por água e deitou-o para dentro da panela. Perguntava-se o que queria Tong dizer com aquilo e se Jian lhe tinha acabado por falar de Lida, o que iniciaria a guerra entre o professor doutor de Medicina e orgulhoso chinês de etnia han e o pobre professor da aldeia de Huili. Então, fez o melhor que podia fazer naquele momento: calou-se e aguardou.
Tong observava Zhang com um olhar perscrutador e quando este não revelou nenhuma reacção ao ouvir o nome de Jian, sentiu-se inseguro.
- Estou preocupado com o meu filho - prosseguiu, num tom de voz apreensivo. - Deu-se uma mudança nele. Sinto a sua alma estranha a mim, o seu discurso afasta-se de mim e só o reconheço como o meu filho às vezes, quando olho para ele. Entre nós, a terra separa-se. Tens alguma explicação para isto?
- Não. Como é que eu posso entender os vossos problemas? - Zhang virava os pedaços de peixe na frigideira.
- O Jian passou quase três semanas contigo. Ele nunca falou sobre os nossos problemas?
Zhang respirou fundo. A pergunta de Tong era a prova que ele não sabia nada de Lida. Estava convencido que Jian passara o tempo todo em sua casa.
- Não - respondeu Zhang. - O teu filho só falou do pai com todo o respeito que este lhe merece. A atenção dele está virada para a política do nosso país.
- É isso mesmo que eu quero dizer, Shufang - suspirou Tong. O fumo do peixe frito era corrosivo para os seus olhos. - Tenho a alma cheia de medo. Os sonhos de Jian de uma nova China podem custar-lhe a cabeça. Eu pergunto-te e, por favor, sê sincero: ele andou a encontrar-se secretamente com reaccionários em Dali?
- Não. Posso jurar que não. Estás mais calmo?
- Apenas metade do meu coração.
- O que é que te falta para teres sossego?
- A resposta à pergunta: o que é que mudou tanto o Jian? - Tong levantou-se da cadeira de vime, aproximou-se de Zhang, olhou em volta e depois retirou do armário uma tigela para o arroz, um prato pequeno, uma molheira com o molho de soja e um par de pauzinhos. Levou tudo para a mesa, regressou ao armário e pegou na base giratória, o âmago de qualquer mesa bem-posta. A mesa tem que ser redonda; não pode ser comprida ou com cantos, pois comer é uma reunião social, e é um prazer as pessoas estarem sentadas de frente para todas as outras.
Zhang ficou estupefacto. O grande Tong a pôr a mesa!
- Eu também quero uma tigela - informou Zhang. Parece-me que o peixe ficou delicioso.
Tong foi buscar um segundo conjunto, despejou o arroz fumegante para dentro de uma terrina de madeira, encheu um prato com os cogumelos em conserva e levou tudo para a mesa, enquanto Zhang pousava a frigideira com o peixe sobre a base giratória.
Em seguida, sentaram-se um em frente do outro e Zhang perguntou:
- Vamos beber uma cerveja a acompanhar, Shijun?
- Se puderes dispensá-la. Eu bebo com prazer.
- É cerveja da melhor, de Pequim. Levantaram-se ambos e, enquanto Tong foi buscar dois copos grossos, Zhang dirigiu-se à sala contígua, onde estava o frigorífico que ostentava um belo nome de uma marca estrangeira, Snow Flake; Zhang tinha-o adquirido numa loja em Kunming. Fora há quatro anos e, para sua grande surpresa, ainda refrigerava.
Então, começaram finalmente a comer. Tong comentou, entretanto:
- Tu cozinhas melhor que o melhor cozinheiro de Kunming; o teu peixe é mais saboroso do que uma galinha com gengibre na caçarola. Qualquer cozinha de Kunming ficaria orgulhosa!
No entanto, depois do jantar, Tong sentiu-se exausto e o seu corpo parecia estar a entorpecer. A cerveja contribuía para incrementar esse cansaço e, de um momento para o outro, ficou tão extenuado que a cabeça lhe tombou para o peito. Assustou-se e endireitou-se ao perceber que a sua cadeira esteva a balançar.
- A juventude já passou há muito - proferiu, desculpando-se, pois era falta de delicadeza adormecer à mesa e podia ser tomado como uma ofensa. - Uma viagem muito longa nesta idade suga-nos as forças. Posso pedir-te uma cama?
- O teu quarto é ali ao lado. - Zhang indicou a Tong o caminho até ao quarto onde Jian costumava dormir e levou consigo uma taça, chá e um termo, para que o seu hóspede se pudesse refrescar com um chá, caso acordasse a meio da noite.
Tong ficou parado em frente à cama a olhá-la fixamente.
- E esta a cama na qual o meu filho descansava? perguntou.
- Sim. Todos os dias se deitava aqui e dizia: ”Sou uma pessoa feliz, tio Zhang.” E, de facto, tinha a felicidade estampada nos olhos.
- Porque é que ele era tão feliz aqui contigo?
- Aqui, podia viver segundo a vontade dele. Estava livre de quaisquer obrigações.
Tong ficou calado. Percebeu a censura nas palavras de Zhang, mas não retorquiu. Sentou-se em cima da cama, deixou-se cair para trás e poucos minutos depois já tinha adormecido.
Seis horas mais tarde, Jian estacionou o automóvel à porta da casa do tio Zhang e apeou-se. Eram quatro horas da madrugada. Uma meia lua jorrava prata sobre o lago e fazia cintilar as pequenas ondas como se fossem pérolas de vidro.
Zhang, que tinha o sono leve, pegou no seu bastão e, quando a porta bateu, saltou da cama, pronto a apanhar em falso o intruso. Logo que a porta do seu quarto se abriu silenciosamente, declarou num tom ameaçador:
- Entra, meu vadio! Eu mostro-te como o teu crânio é de vidro!
- Outra vez! - exclamou Jian, e as suas gargalhadas fizeram com que Zhang baixasse a mão. - Já é a segunda vez que queres rachar-me o crânio.
- Ai que o céu me cai em cima! És tu, Jian? Fala baixo... fala baixo... - Zhang aproximou-se do candeeiro e acendeu a luz.
Jian ficou ofuscado com a súbita luminosidade.
- Porque é que queres que fale baixo? - inquiriu, divertindo-se com o visível constrangimento de Zhang. Tens uma visita feminina?
- Já me estás a irritar! Céus, o que fazes aqui?
Estou a caminho da casa de Lida. - Jian cheirou o cheiro a peixe frito ainda se sentia. - Este aroma faz-me lembrar que não como há dez horas. - Olhou em volta, vislumbrou a louça suja e contou os pratos. - Não jantaste sozinho, tio Zhang.
- Tens um olho vivo. Sim, tenho uma visita. Está a dormir no quarto ao lado.
- Eu queria ir directo para Huili, mas depois adormecia à soleira da porta do Huang. Pensei que era melhor vir até a casa do tio Zhang, descansar um pouco e estar fresco de manhã, para abraçar a Lida. Mas, agora, vejo que a minha cama está ocupada. - No meio do compartimento grande, Jian tornou a olhar em seu redor. - Dá-me duas cobertas e eu deito-me no chão.
- Tu não podes ficar aqui, Jian. - Zhang cofiava nervosamente a parca barba branca.
- Porquê, tio Zhang?
- Um drama no palco é bom, mas na vida real não.
- Negas-me a tua hospitalidade, mesmo que eu durma no chão?
- Jian, não consideres isto como uma ofensa. - Zhang encostou um dedo aos lábios. - E fala baixo para não acordares o meu outro hóspede.
- É um homem ou uma mulher?
- Um homem. Um homem ilustre e conceituado, mas vocês não podem encontrar-se. Se um raio partisse uma árvore ao meio era uma carícia comparada com este encontro.
- Um alto funcionário do Partido? Em tua casa, tio Zhang?
- Vê com os teus próprios olhos, Jian. Vem atrás de mim, pé ante pé. Olha bem para ele. - Zhang dirigiu-se para a porta do quarto, espreitou lá para dentro e viu que Tong estava deitado de costas, submerso num sono profundo. A sua exaustão era como uma anestesia; a luz da Lua reflectia-se no seu rosto e ele respirava com dificuldade, como se tivesse que arcar com um pesado fardo.
-Baixinho - sussurrou Zhang. - Muito baixinho. fecha a boca quando o vires.
Jian deslizou até junto de Zhang em bicos dos pés e olhou para a cama. Estremeceu com o susto, mas ficou em silêncio, tal como Zhang lhe pedira. Voltou-se, regressou ao ateliê e esperou que Zhang fechasse a porta. Só depois perguntou em voz baixa:
- Quando é que ele chegou?
- Hoje, ao fim da tarde, numa pequena camioneta. A preocupação contigo trouxe-o até cá. Mesmo sendo o grande Tong, antes de tudo é teu pai, Jian.
Jian sentou-se na cadeira de vime, onde Tong estivera sentado, e entalou as mãos entre os joelhos.
- Ele desconfia de alguma coisa sobre a Lida? Quer indicações tuas?
- O Tong Shijun tem medo que o filho se tenha juntado aos reaccionários. Em Pequim há grupos entre os estudantes que sonham com mais liberdade, o que quer que isso signifique. Ele tem medo de um dia vir a encontrar-te diante do pelotão de fuzilamento.
Jian respirou fundo. Quando se deparara com o pai ali, em Dali, sentira o sangue a correr-lhe nas veias e pensara de imediato em Lida e na inexorabilidade da tradição, que Tong representava. Contudo, percebia perfeitamente que o tio Zhang não podia acolhê-lo em sua casa; porque, se o seu pai acordasse de manhã, se sentasse à mesa do pequeno-almoço com ele, o filho, à sua frente, a Terra tremeria, como se o dragão negro se arrastasse para fora da sua caverna e cuspisse fogo.
- Vou descansar junto dos pescadores - declarou Jian, levantando-se. - Duas ou três horas, deve ser o suficiente.
Zhang acompanhou Jian até à porta e, como bom anfitrião, também o acompanhou ao carro e esperou que ele se instalasse.
- Qual é a explicação que pensas dar ao teu pai quando o voltares a ver em Kunming?
- Nenhuma. - O tom de voz de Jian era agora firme - Eu sou uma pessoa adulta com vida própria.
- Mas também és filho dele e tens de responder às suas perguntas.
- Vou mentir. - Jian enfiou a chave na ignição. Foste tu que me deste este conselho, tio Zhang.
Arrancou e Zhang ficou a segui-lo com o olhar, até as luzes dos faróis desaparecerem numa curva do estreito carreiro. Depois regressou a casa, sentou-se à janela e ficou à espera da manhã, dos primeiros raios de Sol que surgiam sobre o lago e que faziam com que a Lua se desvanecesse numa foice pálida e quase transparente.
”Meu rapaz” disse para si próprio ”abraça o conselho do velho sábio: Segue os teus pensamentos! São o início dos teus actos.”
Por volta do meio-dia, Jian chegou à aldeia de Huili. Da escola ouviam-se vozes que entoavam uma cantiga popular antiga, que os alunos estavam a ensaiar para apresentar na próxima festividade.
Jian apeou-se. Regozijava-se ante a perspectiva de apanhar Jinvan de surpresa. Esta estava a preparar o almoço, que todos os dias esperava Huang, sobre a mesa, quando saía da escola. Mas, primeiro, esgueirou-se para a horta atrás do estábulo, à procura de Chang.
Porém, Chang não estava a trabalhar na horta, e as galinhas não andavam soltas como até então; tinham delimitado um bocado de terreno com uma rede de arame, onde elas debicavam os grãos de milho e de cevada.
Jian entrou no anexo, onde Chang dormia, mas também ali houvera mudanças e o colchão tinha desaparecido; estava apinhado de todo o tipo de tralha, restos de legumes e sacas de milho; nas traves do tecto havia carne seca pendurada e toucinho fumado, parecendo que Chang já lá não morava.
Jian sentou-se numa saca de milho e foi caindo em si lentamente. Já não havia salvação para Chang: dois pulmões corroídos pela tuberculose não podem ser remendados. Agora, que Chang já não andava por ali a tossir, sentia alguma tristeza no coração. Recordava que Chang fora o primeiro a Perceber o amor nascente entre ele e Lida. Um dia disseram-lhe: ”Se a fizeres infeliz, arranco-te a cabeça. Não tenho nada, mas ainda se arranja uma faca grande e afiada.” E estava a falar a sério, pois os seus olhos transmitiam novamente aquela expressão dura e implacável do comissário Chang Lifu, que tanto medo havia inspirado.
Jian ficou algum tempo sentado no anexo, perdido nos seus pensamentos. A cantoria que vinha da escola também já terminara e agora a turma recitava um poema que Jian também havia aprendido de cor e que tinha mais de dois mil anos.
Jinvan estava ao fogão a fritar carne numa grande frigideira de ferro quando Jian entrou em casa. Jinvan quase deixou cair a frigideira ao chão com o susto e, também, com a alegria de o ver, mas como era uma senhora bem-educada, não foi a correr receber Jian. Um abraço seria impróprio; portanto, inclinou-se e recebeu-o com a cortesia da praxe: ”Sê bem-vindo, Tong Jian. Ficamos muito satisfeitos por te recebermos novamente.” Limpou as mãos a um pano, foi buscar a taça, o chá verde e o termo, regou o chá com a água e estendeu a taça a Jian. Este deu um gole cautelosamente e pousou a taça sobre a mesa.
- O Chang morreu? - indagou. Jinvan assentiu com a cabeça.
- Morreu em paz. Fizemos a sepultura nas rochas, sobre os campos. Foi o seu último desejo. Queria ficar com uma vista ampla sobre a paisagem. O Keli diz que até no final falou de ti e da Lida e até lhe deu a sua faca grande e afiada, obrigando-o a jurar que te cortava a garganta se fizesses a Lida infeliz.
- Jinvan, a Lida e eu vamos ser as pessoas mais felizes à face da Terra. O tempo de espera vai passar a voar como uma garça e, quando eu for médico, ela vai mudar-se para minha casa.
- Vais levá-la para uma cidade distante, é isso? Gerei uma filha por amor e é o amor que a leva para longe de mim. O Tifei vai casar em Kunming e constituir a sua própria família; a Lida vai para tão longe de nós como se tivesse fugido para uma outra estrela... O Keli e eu vamos ficar muito sós na velhice e a casa vai começar a cair aos bocadinhos, as traves de madeira vão apodrecer, os campos secarão e onde hoje crescem os legumes, o arroz e o milho, vicejará aerva daninha.
- Isso é uma queixa, Jinvan? - Jian sentou-se à mesa e amparou a taça de chá com as duas mãos. - Ninguém pode prever o futuro; a vida está cheia de surpresas. Até é possível que eu venha a abrir um consultório médico em Huili.
- Nesse caso, vais ficar a saber o que é a fome e a miséria. Em Huili ninguém pode pagar a um médico. Não há nenhum camponês aqui ou nas redondezas que possa pagar a um médico. Até a medicina dos curandeiros é mais cara que a própria morte. A um morto, toda a gente ajuda a ir para debaixo da terra; um vivo não recebe um único tostão para continuar a viver.
Na sala de aula, os alunos já tinham acabado de recitar o poema. Jinvan dirigiu-se para o fogão, para retirar o arroz do lume e virar o peixe na frigideira.
- O Keli deve estar a chegar - observou Jinvan. E quando vir o teu carro até vem mais depressa.
- E a Lida? Vem almoçar ou fica no campo?
- Já te esqueceste? Levam-lhe a comida e ela senta-se numa pedra e come.
- Então, hoje sou eu quem lhe vai levar a comida declarou Jian, levantando-se da mesa. - E vamos comer juntos sentados numa pedra. A Lida é a minha vida, Jinvan.
Huang saiu da escola e dirigiu-se para casa. Quando viu o automóvel de Jian, acelerou, de facto, a passada; porém, pouco antes de chegar à porta de casa, refreou a sua pressa para não perder a dignidade. Entrou, estendeu a mão a Jian, sentou-se à mesa e esperou que Jinvan trouxesse os cinco pratos com os quais se iniciaria a refeição.
- Quanto tempo vais ficar? - foi a primeira pergunta que Huang fez a Jian.
- Tinha previsto ficar um dia.
- Vai ser uma tristeza para a Lida.
- Se faltar mais tempo às aulas vou perder muita matéria e terei de recuperar muito tempo de estudo. Não posso ficar mais do que três dias. - Jian aproximou-se do fogão, onde Jinvan preparava um cesto de vime com pequenos recipientes de barro que transportavam a comida de Lida: arroz, carne com um molho escuro e picante, couve salteada com tiras de toucinho e a sopa com massa chinesa e cubinhos de tofu. Quando Lida estava a trabalhar nos campos, era o zelador da escola que lhe levava o almoço todos os dias, pendurando o cesto no volante da bicicleta.
- Vou andando - disse Jian, quando o cesto ficou pronto.
- Se a Lida não estiver no campo, procura-a junto ao rio. Ela levou uma cesta grande com roupa para lavar - gritou Jinvan atrás dele. - Nesse caso, deve estar na margem, onde há pedras grandes e redondas.
E assim foi. O búfalo estava no campo ceifado a ruminar a erva. Levantou a gorda cabeça quando Jian chegou perto dele, fez um som abafado e abanou a cabeça.
- Eu sei, ela não está aqui - disse Jian, dando-lhe pancadinhas na nuca. Afastou-se e desceu a estrada ao longo do rio, em cujas margens de águas mais profundas se viam alguns barcos achatados de madeira, com os quais os camponeses podiam chegar aos seus campos cultivados na outra margem do rio.
As pedras grandes e redondas, alisadas pelo rio ao longo dos tempos, eram o lavadouro de Huili. Era ali que se ajoelhavam as camponesas, junto aos seus cestos de roupa suja, batendo na roupa com uma moca de madeira para remover a sujidade e depois enxaguavam as peças de roupa na indolente água corrente até as manchas desaparecerem. Quando a roupa estava muito suja, coziam-na em casa numa grande panela, em seguida levavam-na ainda quente para o rio, onde era enxaguada nas suas águas, umas águas tão límpidas que também eram usadas para as necessidades diárias do lar.
Ao longe, Jian já via Lida acocorada junto às pedras redondas a bater na roupa suja. Tinha as costas viradas para a estrada e o barulho que a moca fazia era mais forte que o ruído do motor do automóvel. Por isso, Lida não se apercebeu da chegada de Jian e, quando Jian a abraçou por trás e lhe beijou a nuca, levantou-se assustada, batendo no ar e à volta com um lençol que estava a lavar naquele momento.
O lençol caiu para dentro do rio e foi-se afastando enquanto eles se beijavam, ignorando todas as regras de decoro, que proibiam demonstrações públicas de carinho.
- O lençol! - exclamou Lida, de repente. - Está a fugir na corrente! Jian, vai buscá-lo. Se o perdermos....
Ele não a largou, apertou-lhe a cabeça contra o peito e disse:
- Eu compro-te dez lençóis novos.
- Tu não fazes ideia o quanto nos custa comprar um lençol. Vai buscá-lo, Jian!
Não foi nada fácil apanhar o lençol. Com um remo na mão, Jian correu pela margem atrás do lençol, mas sempre que estava quase a apanhá-lo, o lençol soltava-se do remo e seguia rio abaixo; quando Jian pensava que o tinha agarrado e começava a puxá-lo para a margem, bastava um solavanco para o lençol se soltar novamente. Por fim, conseguiu enrolá-lo de tal maneira no remo que foi possível puxá-lo e retirá-lo da água. Atirou-o para cima da erva da margem do rio e apanhou Lida, que corria para ele. Tornaram a envolver-se num beijo. Um camião passou por eles e o condutor saltitava como se estivesse maluco. Na área de carga havia trabalhadores que davam gritos e batiam palmas.
- Nem consigo falar - disse Lida. Agarrou-se ao pescoço de Jian e fechou os olhos, enquanto os lábios dele deslizavam pelo rosto dela. - Abraça-me com força, Jian, com muita força. Será que a felicidade pode sufocar uma pessoa?
Mais tarde, sentaram-se os dois entre as pedras redondas do rio e dividiram a comida que Jinvan mandara.
- Quanto tempo ficas? - perguntou Lida, tal como o pai, depois de comer e arrumar os tachos no cesto.
- Três dias. É o máximo possível.
- Três eternidades. - Encostou a cabeça ao ombro dele. - Cada hora será uma flor colhida por nós.
- Vamos partir por aí - declarou Jian, pondo o braço à volta dela.
- Partir por aí? Porquê? Para onde?
- Já alguma vez estiveste em Lijiang?
- Nunca fui mais longe do que Xiaguan. É o sítio mais lindo à face da Terra; foi lá que te encontrei.
- Em Lijiang, numa das encostas da montanha do Dragão de Jade, há um pequeno mosteiro lama. Quando te sentas lá no alto, nos degraus da escadaria do mosteiro, e olhas para a paisagem nesta época do ano, vês um mar de azáleas de todas as cores a brilhar. Nos pastos estão espalhados as vacas, as cabras e os iaques e por todo o lado há pessoas a colher ervas curativas, cujo efeito só eles conhecem. É a zona dos Naxi, um povo misterioso que até hoje não se sabe ao certo de onde veio, pois ainda não se investigou mais a fundo; acredita-se que se tenha deslocado do Noroeste da China para o Sul há milhares de anos. É um dos poucos povos do mundo em que ainda hoje são as mulheres que mandam e não os homens. Os cientistas chamam a isso uma sociedade matriarcal.
Lida fitou Jian nos olhos com uma expressão incrédula, porém com um sorriso nos lábios.
- Os homens não têm poder? - indagou.
- Pouco. A vida quotidiana é determinada pelas mulheres. São elas que decidem tudo. O marido tem de passar a vida inteira em casa da mãe dele com a mulher. Se nascer uma filha, tem direito a um quarto próprio, mas os rapazes têm de dormir num quarto comum. Mais tarde, é nos seus quartos que as raparigas recebem os seus amantes e são as mães que escolhem os maridos para as filhas.
- Se eu fosse naxi tinhas pouco a dizer.
- Muito pouco.
- Tinhas de fazer o que eu mandasse?
- Não são ordens, mas as mulheres é que decidem.
- E os homens submetem-se?
- Não conhecem outra forma de viver há milénios. Lida riu-se, inclinou-se para trás e disse, com a cabeça inclinada:
- O meu desejo é ser naxi. Ordenava-te dia e noite: vem para o meu quarto e ama-me.
- Então deseja. - Jian agarrou nos cabelos dela, aproximou a sua cabeça da dele e beijou-a. - As mulheres detêm o poder, portanto têm de trabalhar tanto como os homens. O trabalho mais árduo nos campos e nas pedreiras, é com elas. Se vires algures no meio dos campos umas costas curvadas, é uma mulher.
- E o que fazem os homens?
- Dedicam-se aos prazeres. - Agora foi Jian quem desatou às gargalhadas. - Não há nenhum povo na China que tenha tantos dançarinos, cantores e músicos tão bons e tão espectaculares como os Naxi. - Jian estendeu-lhe a mão. Queres trocar? Tu vives como uma mulher naxi e eu como um homem naxi. Tu trabalhas e eu canto e danço.
- Nunca te ouvi cantar nem te vi dançar; à parte disso, a vida seria igual à que eu tenho agora. Mas tu és o meu senhor e assim é que deve ser.
Ao final da tarde regressaram a casa de Huang. Lida dirigia o búfalo à sua frente, Jian trazia o grande cesto de roupa no ombro direito e era como se nunca tivesse sido de outro modo; como se fossem um jovem casal de camponeses de regresso a casa, após um dia de árduo trabalho nos campos. A sogra teria preparado a comida e posto a mesa redonda para o jantar. Como habitualmente, Lida foi primeiro tratar do búfalo, lavou-lhe a sujidade das pernas e do pêlo, como se fosse um animal precioso; Jian ajudou-a, escovando com uma escova comprida e dura o espesso pêlo da nuca e da cabeça do búfalo. O animal olhou-o fixamente com os seus olhos grandes e redondos, abriu a boca, esticou a longa língua para fora e lambeu-lhe a mão e o braço.
- Ele gosta de ti - notou Lida. - Tu és amigo dele. Com os estranhos, costuma baixar os chifres e ainda nunca tinha lambido a mão de ninguém. Nem a minha. - Encostou-se a Jian e permitiu que ele a abraçasse e lhe acariciasse os seios. Sentiu um arrepio quase imperceptível a percorrer-lhe o corpo quando os dedos dele deslizaram pelos seus mamilos. Não tinha nada vestido debaixo da camisa azul, pois os dias ainda estavam quentes. Sentiu crescer dentro dela um grande desejo de ternura e de entrega, misturado com algum receio pelo momento em que passaria de rapariga a mulher.
Depois da limpeza do búfalo, Lida foi para o quarto de banho junto ao estábulo e tomou um duche. A casa de Huang era das poucas casas em Huili que tinha um quarto de banho. Huang tinha concebido uma construção especial e instalara no tecto fixo do estábulo um grande barril galvanizado como depósito de água, aparafusado em cima e em baixo, e fizera uma ligação com duas mangueiras de plástico tornando possível tomar um duche no pequeno compartimento. Logo que o depósito ficava a meio, Huang tornava a enchê-lo por meio de uma bomba manual, de modo que havia sempre água disponível quando era necessário. Houve pessoas na aldeia que copiaram a sua instalação, pois no Sul da China a higiene corporal é uma obrigação diária; ao fim da tarde, toda a gente lava os pés e a parte inferior do corpo. Aprende-se, desde criança, que este acto é parte integrante de uma vida honrada.
Jian também tomou um duche depois de Lida sair do quarto de banho, sem fazer ideia que Lida, debaixo da água fria, tinha fechado os olhos, esticado os braços para cima e que o desejo pelo toque dele quase lhe fizera o coração saltar para fora do peito. Desejara poder estar naquele momento com ele debaixo do duche, cingindo os corpos nus um contra o outro, enquanto as mãos dele deslizavam pelos seus seios, pelas suas costas e o seu sexo. Assim ficou, repleta de sonhos interiores, até se conseguir soltar do seu desejo, desligar a água e secar-se com uma toalha grossa.
Quando Jian acabou o duche e regressou a casa, Lida estava sentada à mesa. Mudara de roupa, vestindo um vestido de algodão simples, vermelho, cujos punhos, colarinho e bainha da saia eram debruados a renda. Tinha apanhado o longo cabelo preto molhado com uma fita amarela junto ao pescoço e estava lindíssima, com o seu rosto oval, os olhos escuros e os lábios carnudos.
Huang observou-a durante a refeição e começou a pressentir as emoções da filha. Para salvar o casamento dela e não perder a face, voltou a oferecer a Jian a sua cama junto à porta, mandou Lida dormir com a mãe no quarto e montou para si próprio uma cama de colchões de palha de milho e dois cobertores perto do quarto delas. Assim, impediria que qualquer um deles tentasse esgueirar-se para junto do outro a meio da noite; mas será que se precisa da noite para que o amor siga o seu caminho em liberdade? Poderia acontecer facilmente nas pequenas grutas dos rochedos vermelhos, quando Lida e Jian estivessem a trabalhar nos campos, e era contra o sentido de honra de Huang ir espreitá-los ou observá-los.
Depois do jantar, a acompanhar uma garrafa de cerveja, Huang fumou o seu cachimbo feito pelo avô Huang Yuan. Sentiu-se invadido por uma sensação de bem-estar.
- Queria fazer um pedido - disse Jian, quando a cerveja acabou e Jinvan se levantou para ir buscar nova garrafa.
Lida estava de pé, junto ao fogão, a lavar a louça.
- Posso satisfazê-lo? - volveu Huang, seguindo com os olhos o fumo que saía do seu cachimbo.
- A Lida e eu queríamos ir passear até Lijiang.
- É longe.
- Pode demorar até três dias. - Jian respirou fundo. Mais uma vez infringia as rígidas regras do decoro, segundo as quais viviam os Miao. - Tens confiança em mim, Keli? Dás a tua permissão?
- Ter confiança numa pessoa é muitas vezes uma aplicação sem juros - respondeu Huang, pensativamente. Confio na tua vontade e nas tuas palavras, mas até as melhores intenções podem ser levadas pelo vento, como o pó, quando a fraqueza das pessoas é mais forte que a moral.
- Tu sabes que eu vou casar com a Lida.
- Dentro de três ou quatro anos. Mas se a família Tong for mais forte que a família Huang...
- Nada no mundo é mais forte que o meu amor pela tua filha. Não vai ser certamente a tradição dos Tong que irá detê-lo. Não há nenhum muro que eu não possa transpor.
- A Lida é filha de um professor pobre.
- Não quero ouvir mais isso! - Jian cravou os dedos no braço esquerdo de Huang. - Keli, eu também sou apenas um estudante pobre e posso muito bem prescindir da riqueza e do respeito do meu pai. Para mim, há outra vida Possível, diferente daquela na qual fui educado. Tu podes ”matar-me se eu alguma vez deixar a Lida.
- Mas de que me vale a tua morte, se destroçares a minha filha? A honra perdida não mais é recuperada. - Huang olhou em frente, pensou na conversa que tivera com Zhang Shufang e, depois, assentiu várias vezes com a cabeça, como se tivesse que reforçar os seus pensamentos. - Eu dou a minha permissão para a viagem até Lijiang.
- Keli, fico a dever-te eternamente.
- Onde vão dormir?
- Em Lijiang há algumas hospedarias e albergues. Encontraremos uma cama.
- Uma cama? - repetiu Huang, enfaticamente.
- Não é a primeira vez que eu vou a Lijiang. Se tivermos vaga na hospedaria Número Dois, que eu conheço bastante bem, não precisas de fazer essa pergunta. A hospedaria tem mais de cem quartos, com mais de trezentas camas.
- E se estiver cheia?
- Então há o hotel de Lijiang, com mais de cem quartos e mais de trezentas camas.
- Eu tenho confiança em ti, Jian. - Huang desviou o olhar para Lida, que entretanto acabara de lavar a louça. Jinvan tinha colocado uma nova garrafa de cerveja em cima da mesa. - Quando pretendem partir?
- Amanhã, antes do nascer do dia. Vou apanhar a estrada que passa por Dukou; é estreita e temos de passar por uma série de desfiladeiros, mas é o caminho mais curto.
- Desejo que tenham dias bonitos. - Huang levantou-se da mesa, bebeu a cerveja que tinha no copo e saiu de casa, para ir buscar os colchões de palha de milho ao anexo do estábulo.
Jinvan esperou até deixar de ouvir os passos do marido.
- Que as almas dos antepassados estejam contigo disse para Lida. - Vai deitar-te, amanhã terás um dia duro.
Lida despediu-se de Jian com um longo olhar, no qual reflectia todo o seu desejo, e desapareceu atrás da porta do quarto. Jian dirigiu-se para a cama de Huang, a sua cama nessa noite, despiu a camisa e as calças e deitou-se sobre a colcha de lã, coberto apenas por umas cuecas curtas com um padrão florido.
Jinvan olhou estupefacta para a peça de roupa florida.
Agora os homens de Kunming usam isso? - perguntou.
- Nem todos. Só os jovens. E uma moda que veio de Hong Kong.
- Quando voltares a Kunming podes mandar-me duas dessas cuecas para o Keli? Gosto delas.
- Eu mando-vos um par delas - disse. Ao mesmo tempo pensava que Jinvan gostaria de ver o seu homem jovem novamente, pois ainda o amava, como há um quarto de século, e que a riqueza nem sempre trazia a felicidade, como aos Tong, podendo a pobreza ser mais rica do que uma arca cheia de ouro quando o amor mantém duas pessoas juntas.
Huang regressou com os seus colchões e também olhou de viés para as cuecas coloridas de Jian. Não disse uma palavra, mas quando Jinvan se foi deitar no quarto contíguo e ele acabou de montar a sua cama junto à porta, foi ter com Jian à cama e sentou-se ao lado dele.
- Há dessas cuecas em Kunming? - perguntou em voz baixa.
- Sim - respondeu Jian, tão baixinho quanto ele, enquanto fazia um sorriso.
- Mandas-me umas? - Huang pôs um dedo junto aos lábios. - Mas não digas nada à Jinvan. Quero fazer-lhe uma surpresa.
Jian assentiu em silêncio e acrescentou com uma voz quase solene:
- Se viesse um feiticeiro e me perguntasse: ”Qual é o teu grande desejo? Eu posso realizá-lo”, eu dir-lhe-ia: ”Dá ao meu coração um amor tão profundo como o que a Jinvan e o Keli sentem um pelo outro.”
- Isso é um pressuposto para ti e para a Lida - retorquiu Huang, num tom igualmente solene. - Se fosse de outro modo, a minha maldição perseguir-te-ia. - Levantou-se, Dirigiu-se para o colchão, deitou-se e pensou nos longos tempos, duros, mas belos, que passara com Jinvan, dos quais não queria ter perdido um único. E lembrou-se de uma frase Proferida pelo sábio Tschu-Li: ”O espírito que dá vida a todas as coisas é o amor.”
Adormeceu feliz.
Tong Shijun acordou tarde e, quando entrou na sala grande, sentiu o aroma da sopa de arroz matinal, dos pãezinhos ao vapor e da massa frita. Zhang Shufang estava sentado na sua ampla mesa de trabalho e pintava com tinta colorida um maravilhoso pé de azálea que balançava ao sabor do vento tendo como pano de fundo uma paisagem com um lago e uma montanha coberta de neve. No lago distinguiam-se os barcos dos pescadores.
- Nunca me fez tão bem dormir - comentou Tong, espreguiçando-se. - Sinto-me forte como um rapazinho.
- É o ar puro do lago Erhai e a claridade que vem das montanhas. - Zhang pousou o fino pincel numa taça envernizada, foi até ao fogão e mexeu a sopa de arroz. - Hoje já não voltas para Kunming, nem para o ar impuro da cidade.
- Preciso de regressar, Shufang. Amanhã tenho uma série de exames marcados. Os pacientes aguardam-me.
- A camioneta já partiu há muito tempo. Vai o grande Tong prostrar-se no meio da estrada a acenar para que alguém lhe dê boleia? Até tirava uma fotografia.
- Um pai é sempre um modelo... O que é que o Jian vai dizer se eu não cumprir os meus deveres?
- Vai ignorar e ficar calado - respondeu Zhang. Aproveita o dia. Vamos até à ilha de Jinsuo Dão, visitar a aldeia piscatória e depois damos um passeio até ao templo de Xiao Putuo Dão, para agradecer a Deus pelo belo dia que passou. E tu vais provar o melhor pato que já comeste na tua vida... isso prometo eu.
- Então passamos primeiro por Dali, para eu telefonar à Meizhu da estação dos correios. Ela vai ficar preocupada se eu não chegar hoje.
- Nesse caso, tens de levar a bicicleta, de outro modo não chegamos a Dali. Só tenho uma bicicleta, mas, entretanto, descobri uma segunda que alguém deve ter deitado fora” pois devia ter vergonha de andar por aí com ela.
Era a bicicleta que Huang alugara por tantos iuanes e que não chegara a devolver. Estava no barracão, encostada a um monte de feno. Zhang antevia o gozo provocado pelo importante e abastado Tong a pedalar uma bicicleta estropiada até Dali.
Tong suspirou, pôs a mesa, tal como no dia anterior, e ao mesmo tempo observou:
- Por que razão ainda não compraste um automóvel, Shufang? Tens dinheiro suficiente, tens os amigos necessários em Pequim, não precisavas de esperar e recebias logo um daqueles modelos Volkswagen, o Santana. Um belo automóvel que eles agora produzem em Pequim.
- Achas que um automóvel combina comigo?
- Imagino perfeitamente.
- E estás a ver-me, na minha idade, a ter aulas de condução? Porque é que tu, o famoso Tong, não tem automóvel?
- Há dois anos que o carro de serviço do hospital me vai buscar e levar a casa.
- É o novo socialismo.
Tong não gostou do tom de escárnio de Zhang e, portanto, mudou o tema da conversa.
- Volto para Kunming descansado - afirmou. - Se tu dizes que o Jian não tem qualquer ligação com os grupos revolucionários, acredito em ti.
- A minha verdade é como uma jura. Jian nunca se encontrou com esse tipo de gente. Isso não exclui o facto de criticar o regime.
- Ele anda para aí com uma conversa tola sobre a liberdade. O que é a liberdade?
- A liberdade é, dou-te apenas um exemplo, qualquer chinês poder comprar um bilhete de avião para Londres, Paris ou Roma sem ser obrigado a pedir à ”comuna” uma autorização para viajar e ainda ter de lutar por ela. A liberdade e qualquer chinês poder ter um passaporte, trocar de local de trabalho e mudar de casa para um sítio à sua escolha. A liberdade não é viver uma vida inteira estabelecida pela ”coluna”. A liberdade é a individualidade, Shijun, e é por isso íue as pessoas, como por exemplo o Jian, lutam por ela, como por pão para a boca.
- Mas como é que se consegue manter unido um povo constituído por mais de mil milhões de pessoas, se cada um fizer o que quer? Para o Ocidente, é fácil criticar. A França a Itália ou a Inglaterra não têm mais de cinquenta milhões de habitantes e, nesse caso, é possível controlar os seus habitantes e presenteá-los com a chamada liberdade, mas mais de mil milhões de pessoas? A China não é simplesmente um Estado, é um mundo, por si só! Tens ideia do que poderá acontecer se mais de mil milhões de pessoas viverem em liberdade absoluta? Se o Sol caísse do céu não seria pior. Todos os que prometem à China uma democracia ocidental são incendiários da nossa terra!
- Tong Shijun, o grande comunista! Aquele que tem um automóvel de serviço conduzido por um motorista, enquanto milhões de camponeses, ainda hoje, enfiam o arado de madeira na terra com as próprias mãos e conduzem os seus bois de lavoura. Já era assim há cinco mil anos.
- O arado de madeira será um arado de aço, mas nada mais. Hoje, centenas e milhares de pessoas trabalham numa nova estrada, num desvio do rio, num canal; se forem substituídas por dragas, gruas ou niveladoras, onde antes centenas andavam a cavar, encontraremos uma máquina no lugar do homem. E o que acontece a essas centenas de pessoas? O que acontece a esses trezentos ou quatrocentos milhões de desempregados, se os homens forem substituídos por máquinas? Quatrocentos milhões de desempregados, consegues imaginar uma coisa assim? Se todos os mares galgassem as margens e inundassem os campos seria uma pequena catástrofe comparada com a violência destruidora que os ”homens livres” da China provocariam no mundo. Eu admiro Deng Xiaoping por ele abrir a China ao Ocidente, sem a entregar ao Ocidente de bandeja. Mas quem consegue entender isto na Europa ou nos Estados Unidos?
- O Japão é um exemplo.
- Com cento e quarenta milhões de habitantes, mas não com mais de mil milhões! Isso é o mais irritante de tudo. ninguém entende o que significa mil milhões de pessoasNós representamos um quinto da Humanidade! - Tong dividiu o seu pãozinho em bocadinhos brancos e pegajosos. Estava a ficar cada vez mais exaltado e não compreendia como é que Zhang podia permanecer tão calmo e como é que um homem tão sábio continuava preso no delírio de um futuro sem sentido. - O meu filho Jian também não compreende - acrescentou Tong, cheio de amargura na voz. Ele, um chinês, não compreende que a China é diferente do resto do mundo. Tens algum conselho para isto?
- Não - retorquiu Zhang.
- Vêm aí tempos conturbados, Shufang. - Tong pousou os pauzinhos, pois a preocupação afastara a fome. E eu tenho receio. o meu filho é como vinho a fermentar, já não consigo detê-lo. Neste momento, na Universidade de Kunming ainda está tudo calmo, mas aquilo a que a juventude chama de liberdade é como um veneno cáustico que atravessa tudo e tudo corrói. Também chegará até nós e então terei um filho a lutar contra o próprio pai.
Zhang abanou a cabeça e pensou em Jian, Lida e em Huang Keli, na tradição dos Tong e no inevitável choque entre estas contradições tão pequenas e insignificantes.
- Eu acho que o Jian anda ocupado com outros problemas - observou Zhang.
- O quê? - Tong levantou a cabeça de chofre. - Quer dizer então que ele anda com problemas? O que é que sabes, Shufang?
- Ó Jian quer ser o melhor do semestre, quer ser sempre o melhor. - A mentira não doeu a Zhang; era como um escudo para Jian, e proteger uma pessoa não é perder a honra- - Ele quer vir a ser um bom médico e dar ainda mais distinção à família Tong. E conseguirá, Shijun; tem a mesma cabeça dura que tu, uma cabeça que consegue transpor todos os muros.
- Isso foi no passado. - Tong fez um gesto cansado com a MAO. - Agora sou um velho que anseia por sossego.
-Tu só tens cinquenta e cinco anos
- Mas estou cansado, muito cansado. Consegues perceber que o Jian é a minha grande esperança? Um pai continua a viver através do seu filho... será que continuarei a viver?
Zhang desviou o olhar para a sua tigela de arroz e chegou à assustadora conclusão que nunca haveria um caminho comum para a família Tong e a família Huang, do mesmo modo que o Sol e a Lua são dois corpos celestes separados, que nunca se encontrarão.
- Eu percebo-te, Shijun - disse, sentindo a sua língua dura ao pronunciar tais palavras. - O que nos resta se não inclinarmo-nos perante o destino? O sábio não tem dúvidas, o bondoso não tem preocupações, o valente não tem receios. Vamos ser valentes, Shijun!
De madrugada, Lida e Jian partiram para Lijiang. Jinvan preparara-lhes um saco com tangerinas, maçãs, pêssegos, ameixas grandes, amarelas, e uvas amarelo-douradas; como é evidente, não faltou o termo com água quente e uma caixinha com chá verde, e Huang pendurou ao pescoço da filha um amuleto de prata pura, que mostrava uma garça em pleno voo, com uma inscrição gravada: ”Sê como um pássaro que pertence ao céu.” E disse à filha, quando enfiou o amuleto numa corrente de prata e lha pendurou ao pescoço...
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De madrugada, Lida e Jian partiram para Lijiang. Jinvan preparara-lhes um saco com tangerinas, maçãs, pêssegos, ameixas grandes, amarelas, e uvas amarelo-douradas; como é evidente, não faltou o termo com água quente e uma caixinha com chá verde, e Huang pendurou ao pescoço da filha um amuleto de prata pura, que mostrava uma garça em pleno voo, com uma inscrição gravada: ”Sê como um pássaro que pertence ao céu.” E disse à filha, quando enfiou o amuleto numa corrente de prata e lha pendurou ao pescoço:
- Que este amuleto te proteja, minha filha. Era da tua bisavó que foi uma pessoa feliz, mesmo tendo tido uma vida difícil. Nunca o tires do pescoço, pois vai aquecer-te a alma.
- Nunca o tirarei, pai - garantiu Lida.
Quando o automóvel saiu do trilho que dava para a escola e virou para a estrada junto ao rio, Huang agarrou a mão de Jinvan e apertou-a.
Jinvan sentia-o a tremer em silêncio e acariciou-lhe as costas da mão com o polegar.
- Voltaremos a ver a Lida da mesma maneira que partiu? - interrogou-se ele, hesitante.
Jinvan riu-se.
- Lembras-te como foi há vinte e sete anos? - perguntou.
Huang assentiu em silêncio, mas continuava a olhar para a estrada, como se estivesse a ver o carro de Jian.
- Não esqueci nem um minuto - respondeu.
- Tu levaste-me para uma pequena cabana no meio do arrozal; estava a chover e o telhado de palha deixava passar os pingos da chuva que caíam nos nossos corpos despidos, mas nós nem sequer reparámos. Estávamos embrulhados na nossa felicidade e mesmo que se tivesse levantado uma tempestade e o vento levasse a cabana, nada nos teria perturbado.
- Pois foi. - Huang voltou-se para Jinvan e olhou-a inquisitivamente. - Porque é que te lembraste disso agora?
- Na altura, perguntaste ao meu pai se me podias amar? Eu perguntei-lhes se eles queriam que tu fosses o genro deles? Fomos ter com os meus pais, de mãos dadas, e contámos-lhes que estivéramos na velha cabana do arrozal a...
- Não nos compares com a Lida e o Jian! - Huang sacudiu a mão de Jinvan que o acariciava. - É completamente diferente.
- Então explica-me, Keli.
- O Huang Keli era um pobre estudante que queria ser professor, um miao, que amava uma linda e carinhosa dong. O Jian é o filho do grande Tong Shijun e Lida é uma pobre miao, que nada mais tem para dar do que a sua honra. De que é que vale para um Tong a honra da filha de um professor? Um tigre pode muito bem brincar com uma lebre, mas um dia acaba por comê-la!
- Há vinte e sete anos sentaste-te à mesa do meu pai e contentaste-te quando te deram a comer uma sopa. Para a nossa família, tu eras um zé-ninguém e toda a gente me dizia que nós não combinávamos e que eu era tola por te convidar para a nossa casa; havia muitos rapazes jovens que poderiam mimar uma rapariga como eu. Mas eu só te amava a ti e, depois dos momentos que passámos na cabana, o meu mundo eras tu. Porque é que com a Lida e o Jian há-de ser diferente?
- O meu ordenado de professor são trocos para um Tong.
- Porque é que te rebaixas dessa maneira? Tens alguma necessidade de baixar a cabeça quando estiveres à frente do Tong Shijun? Também tu tens uma tradição.
- Sim, pois tenho. - As feições do rosto de Huang tornaram-se angulosas e duras. - A minha tradição é a pobresa
- Será motivo de orgulho?
- É. Quem trabalha para matar a fome possui a honra de um lutador. Não te rebaixes perante a riqueza, luta!
Os olhos de Huang encheram-se de um grande sofrimento e perguntou num tom hesitante:
- Então, sabes que a Lida se vai entregar a Jian?
- Eu sei o que aconteceu há vinte e sete anos. O mundo está sempre a mudar, apenas o amor não muda, enquanto as pessoas tiverem um coração.
- És uma mulher inteligente - disse Huang. - Perdoa-me por ter sido tão cego e nunca ter percebido. Mas dói.
- O quê?
- Saber que, quando a Lida regressar, já não será uma rapariga. Mas se calhar só um pai é que percebe uma dor assim. - Entrou em casa, sentou-se à mesa e serviu-se de sopa de arroz. E assim permaneceu, em silêncio, até sair de casa para começar as aulas.
A estrada de Dukou até Lijiang só podia ter sido construída por dragões que nutrissem um profundo ódio aos homens, pois, de outro modo, seria impossível abrir um caminho através de montanhas escalvadas e hostis, por entre rochedos enormes, com os quais os monstros teriam brincado. Ao longo da estrada ressoava o murmúrio da precipitação das quedas-d’água e dos ribeiros, enquanto aquela descia por estreitos desfiladeiros de meter medo e subia por novos e íngremes desfiladeiros, que pareciam terminar no céu.
Lida estava sentada ao lado de Jian, com a cabeça enfiada entre os ombros. Sentia medo, pois nunca tinha visto uma natureza tão brutal.
- Não havia outro caminho? - perguntou uma vez, quando o automóvel atravessou mais uma tempestiva queda-d’água.
- Sim, por Dali, mas seria um grande desvio. De Huili este é o caminho mais próximo. - Jian pôs o braço à volta dos ombros de Lida e conduziu com uma mão. - Tens medo?
- Tenho.
- Estamos quase a chegar à zona do povo naxi. Lá descobriu-se e decifrou-se um pergaminho escrito na antiga ideografia dongba. Descrevia este caminho há muitas centenas de anos, quando ainda não era uma estrada, apenas um trilho para os iaques. Dizia: ”Quando o Céu e a Terra ainda não estavam separados, o deus da Pedra ainda conseguia cantar, as árvores ainda conseguiam correr e as pedras falar.” Olha em volta... ainda hoje conseguem fazê-lo.
Quando atravessaram a cordilheira de Mianmian Shan, depararam-se, de repente, com Lijiang, que se estendia por um extenso vale. O sol brilhava sobre os telhados cinzentos, colados uns aos outros, da cidade velha; ao longe, o pico da montanha do Dragão de Jade reluzia, a eterna neve cintilava no maciço de Shanzidou, e o rio Jinsha circundava, serpenteante, a cidade e a planície, como se fosse a moldura de uma pintura grandiosa.
Jian travou e saiu do carro, ajudando Lida a fazer o mesmo. Puxou-a para si e fez um movimento abrangente com o braço.
- É possível alguma vez uma pessoa esquecer uma vista destas? - exclamou. - O grande Kublai Khan também aqui esteve um dia e gravou esta beleza no seu coração. E aqui, os xamanes dos Naxi afastavam as doenças com os seus feitiços, observavam as estrelas, expulsavam os demónios dos corpos dos possuídos e agradeciam aos deuses ou pediam a sua ajuda por meio de danças do fogo e de sabres. Lida, esta paisagem foi desenhada pelas mãos dos próprios deuses a partir de um monte de terra.
- É lindíssima - concordou Lida em voz baixa. - Vamos ficar um bocadinho aqui.
Sentaram-se na beira da estrada e trouxeram o cesto de vime de Jinvan. Comeram fruta, beberam chá e estavam quase embriagados com a vista da montanha do Dragão de Jade e do iridescente rio Jinsha que, mais à frente, vai afluir a” Yangtze, o rio mais poderoso da China. No caminho que descia até à planície, em direcção à cidade, viram as cameleiras em flor, um mar de flores. Jian observou:
- Diz-se que em Lijiang há vinte mil camélias em flor e de a maior de todas, com um diâmetro de vinte e três centímetros, é a maior camélia do mundo.
Jian percorreu a estrada de Wuyi até chegar à cidade, virou na Rua Xinhua, depois para a ampla Rua Nova e deteve-se em frente a um enorme e maciço edifício que estava localizado entre o palácio das crianças e o Teatro Yunling, em frente aos correios. A hospedaria Número Dois.
Atrás do balcão da recepção estava sentada uma mulher jovem que contemplou Jian demoradamente quando este abriu a porta e entrou.
- Não temos quartos - informou, antes que Jian conseguisse perguntar alguma coisa, inspeccionando-o dos pés à cabeça. Jian trazia umas calças de ganga, que agora também eram produzidas numa fábrica em Xangai, e sapatos de ténis; tinha ar de quem estava de passagem, o que despertava pouco interesse à mulher. Os hóspedes por uma noite só davam trabalho e pouco dinheiro e como a hospedaria pertencia ao Estado, pouco importava se todas as camas estavam ocupadas ou não... o parco ordenado era sempre o mesmo.
Jian sorriu, aproximou-se do balcão e informou:
- Queremos passar cá três dias e ficar num belo quarto com duas camas, uma casa de banho e uma televisão a cores. Eu sei que têm trinta quartos com casa de banho e televisão.
A jovem mulher devolveu o sorriso, olhou para trás na direcção das chaves penduradas nos respectivos ganchos, pegou numa delas e estendeu-a a Jian.
- Quarto vinte e um. Conhece a nossa casa? Quarenta iuanes por noite. Pode pagar?
Era uma pergunta inaudita e, para não perder a face, Jian teve de responder num tom incisivo:
- Onde está o director? - bradou, indignado. - Quero falar com ele imediatamente. Imediatamente! Venho de Kunming e quero fazer queixa ao Centro de Turismo!
- Nós somos apenas pessoas e as pessoas cometem erros - retorquiu a mulher, enquanto o sorriso se lhe congelava no rosto. - Sente-se no meu lugar uma semana seguida e depois diga-me o que faria se, durante essa semana, nove hóspedes saíssem sem pagar e se fizessem à estrada. A honestidade é uma vítima da nova era. Dantes era um pecado intrujar alguém; hoje é um desporto. - Pousou a mão sobre a chave, como se tivesse de a defender. - Fica com o quarto vinte e um?
- Claro que fico.
- Onde está a sua acompanhante?
- A minha mulher está lá fora no carro. - Jian pronunciou as palavras sem constrangimentos, pois seria uma ofensa para Lida se a apresentasse de outro modo. As pessoas teriam tomado Lida por uma concubina e olhado para ela de lado.
- O senhor tem carro próprio? - perguntou a rapariga, largando a chave. - Podia ter dito logo. Perdoe a minha pergunta idiota.
Jian pegou na chave e regressou para junto de Lida. Esta tinha saído do automóvel, encostara-se à bagageira e admirava os grandes edifícios e as mulheres naxi, que andavam pela rua nos seus trajes tradicionais; quase todas usavam vestidos azul-acizentados com um grosso chumaço dorsal e ornamentos circulares. Não usavam quase nada colorido, completamente o oposto dos Miao e dos Bai, que adoravam as cores fortes, principalmente o vermelho-vivo, o azul-celeste e o prateado.
- Temos um quarto! - exclamou Jian alegre, balançando a chave na mão. - Com casa de banho individual e televisão. Mas tive que dizer que eras minha mulher.
- E custou-te muito dizer isso? - perguntou Lida.
- Lida...
- Eu vou ser tua mulher - acrescentou, sem alterar o tom de voz. - Portanto, não mentiste.
Abriu a bagageira, tirou a sua mala de viagem de lona estampada e também o cesto com a fruta. Jian tinha uma mala de cabedal, uma bela peça, que certamente teria custado oitenta iuanes, pois viera de França. Numa pequena chapa de latão debaixo da pega lia-se ”Bon voyage”. Um Tong não poderia partir em viagem de outro modo!
A mulher atrás do balcão observou Lida enquanto esta subia as escadas, interrogando-se por que motivo um homem com carro próprio e uma mala tão valiosa deixaria a esposa andar por aí num vestido tão barato. Depois veria quem ele era, quando se registasse como hóspede.
O quarto era grande e as camas estavam separadas, encostadas cada qual à sua parede. Havia um armário velho com portas emperradas junto à porta e, no canto, ao lado da janela, cujas cortinas tinham quatro aros soltos, estava uma cómoda com a televisão em cima. Havia ainda uma mesa com um cinzeiro sobre o tampo, duas taças altas, uma tacinha com folhas de chá verde e um grande termo de chapa metálica, decorada com folhagem. Na casa de banho faltava um azulejo, e a água do autoclismo corria ininterruptamente.
Contudo, para Lida, era como se fosse um quarto de um palácio; estava encantada a olhar para a banheira, rodou a torneira e não conseguiu compreender como é que no lavatório havia dois sabonetes, dois frascos com gel de banho e até duas escovas de dentes dentro de um saco de plástico.
- É tudo grátis? - perguntou.
- O quarto já é suficientemente caro, portanto tudo isto é para nós usarmos. - Jian sentou-se numa das camas. Começou a sentir o cansaço da viagem, deixou-se cair para trás e cruzou os braços debaixo da nuca. Ouvia Lida na casa de banho a andar de um lado para o outro, depois um murmúrio da água na banheira e Lida a rir-se.
Jian levantou-se e entrou na casa de banho. Lida estava de pé, na banheira, segurando o chuveiro sobre a cabeça. Distendia o corpo, voltava-se numa sensação de bem-estar, e a água respingava e espalhava-se por todo o compartimento.
Jian estava a ver a nudez dela pela primeira vez e ficou mudo com a sua beleza. Não se moveu para não a assustar. Explorou-a com os olhos, desde os longos cabelos negros soltos, que se espalhavam sobre os ombros, os seios, o tronco e as coxas, até aos pequenos pés, cujos dedos se encurvavam de deleite. Até àquele momento imaginava que ela fosse maravilhosa, mas agora via com os próprios olhos; era uma visão que lhe suscitava muito mais ternura do que a da rapariga a dirigir o búfalo, que arrastava sacas como um homem forte. O corpo dela parecia-lhe feito de porcelana fina e frágil, como uma daquelas figuras cintilantes das lojas de porcelana de Xangai ou de Guangzhou, que uma pessoa não se atrevia a tocar.
Jian regressou ao quarto em bicos dos pés, despiu a T-shirt, as calças de ganga e as cuecas e entrou sorrateiramente na casa de banho. Lida ainda estava de costas voltadas para ele e não o ouviu entrar devido ao barulho da água do duche; porém, nem sequer estremeceu quando o sentiu, de repente, atrás de si, dentro da banheira, o contacto do seu corpo nu e macio, bem como as suas mãos a acariciarem-lhe as costas e as nádegas.
E assim, como se não fosse a primeira vez que tal acontecia, voltou-se de frente para Jian, riu-se, posicionou o chuveiro por cima dele, pegou no sabonete e começou a ensaboá-lo.
Jian não se mexeu, enquanto as pequenas mãos, embora firmes e fortes, passavam a espuma pelo seu peito e pelo seu tronco; depois, quando ela lhe disse ”Vira-te, meu amor”, obedeceu-lhe em silêncio e deixou que ela lhe esfregasse as costas; foi uma sensação desconhecida e indiscritível sentir a pressão dasmãos dela no seu corpo e sentir-lhe o corpo com as suas mãos.
Lida segurou o chuveiro bem alto e ficaram os dois muito juntinhos debaixo do duche.
Ele respirava o perfume do sabonete na pele dela e abraÇou-a.
- Tu és maravilhosa - disse em voz baixa. - Uma maravilha do mundo. Quero ajoelhar-me e adorar-te.
- E tu és o homem mais parvo do mundo - retorquiu Lida -, pois ainda não és o meu homem.
Ele pousou o chuveiro, saiu da banheira e carregou-a nos braços até ao quarto. Completamente molhados, caíram em cima da cama, as pernas e os braços de Lida cingiram-no e do fundo do seu corpo soltou-se um suspiro. Sentiu a primeira pequena dor, aquele fundinho de temor, a submersão na felicidade e o prazer fulgurante de receber Jian e os seus Movimentos dentro de si.
- Agora sou a tua mulher - afirmou mais tarde, quando os corpos suados e quentes se deitaram juntos a descansar. - A partir de agora só podemos viver juntos ou morrer juntos. - Depois riu-se, rebolou para cima dele, beijou-o e apoiou-se nos braços para se levantar. - E também temos que tomar duche outra vez.
Ficaram no quarto até ao final da tarde, deitados na cama lado a lado, viram na televisão um filme de Hong Kong, a saga de uma família, com muito dinheiro e muitas lágrimas à mistura, e Lida perguntou:
- É mesmo assim? Existem mesmo estas casas luxuosas, estes carros enormes? As mulheres andam mesmo com tantos adornos?
Jian assentiu com a cabeça e respondeu:
- Sim, em Hong Kong sim. Ao que Lida acrescentou:
- Eu não preciso de nada disso para ser feliz. A minha felicidade és tu, não quero mais nada desta vida.
E assim ficaram, de mãos dadas, até ao crepúsculo, a pequena miao e o filho do grande Tong, esquecendo-se que à sua volta havia ainda um mundo inteiro.
Quando o Sol os despertou de manhã, uma vez que a cortina estava estragada e não tapava os raios de Sol, Jian ficou deitado, muito quieto, a olhar para Lida demoradamente. Tinham passado a primeira noite juntos. Lida havia-se enrolado nele como se fosse uma gata, encostada à parte abaulada do seu corpo, e o rosto dela ostentava um sorriso, como se tivesse sido levada por um sonho maravilhoso. O corpo despido de Lida brilhava à luz da manhã como bronze-claro. Era o corpo de uma rapariga que trabalhava nos campos e a força do sol tinha penetrado através da roupa, mas era uma pele macia como o veludo, que parecia esticar com as carícias e que absorvia a ternura com todos os seus poros.
Jian beijou os seus olhos fechados com grande afecto e, quando ela se espreguiçou e virou a cabeça para ele, ainda meio a dormir, beijou-lhe os lábios e ficou com a boca colada à dela até Lida estar completamente acordada.
Ela enroscou os braços no pescoço dele.
- Amo-te - disse Lida, em voz baixa. - Não há nenhum amor como o nosso.
- Temos que aproveitar o dia - avisou ele. - Ainda quero mostrar-te muita coisa.
- Vamos ficar deitados mais uns minutos. Quero sentir-te, ver os teus olhos, ouvir a tua respiração. - As suas mãos deslizaram sobre as costas de Jian e este estremeceu com a carícia, encostando a cabeça na curva do pescoço dela, apreciando o perfume da sua pele, que era como um sopro de uma laranjeira em flor. Ficaram mais uns momentos juntos, em silêncio, envoltos na felicidade de serem um só; não havia mais nada a dizer.
Depois do pequeno-almoço na grande sala de jantar, no meio do barulho dos outros hóspedes - pois não há quase nenhum chinês que coma em silêncio -, Jian conduziu Lida até à montanha do Dragão de Jade, cujo pico de neve brilhava ao Sol da manhã.
Num dos ribeiros da vasta planície, que levavam a água cristalina produzida pela neve derretida do alto das montanhas até ao rio Jinsha, Jian deteve o automóvel e apeou-se. À sua frente pastavam os iaques protegidos do frio pelo pêlo grosso. Todo o planalto parecia um tapete de flores e era como se a Natureza o tivesse estendido em honra da montanha do Dragão de Jade, o rei de cabeça branca da serra, a cujo pico nenhum homem conseguira chegar até então.
Lida sentou-se numa pedra e contemplou em silêncio aquela paisagem magnífica.
- Existe alguma coisa mais bela neste mundo? - perguntou, depois de um longo silêncio.
- Não. - Jian estava atrás dela e acariciava-lhe o pescoço. - É a mais linda vista da China inteira. Cinquenta espécies de azáleas florescem aqui, sessenta prímulas diferentes, vinte espécies de lírios e cinco tipos de camélias. Mais logo, mostro-te uma cameleira que dizem ter quinhentos anos de idade. Chamam-lhe a ”camélia dos dez mil botões”; as pessoas vêm de longe admirá-la e oram diante das flores vermelhas e cor-de-rosa. Lijiang é um conto de fadas que se tornou realidade.
- Como Huili é horrível em comparação! - exclamou Lida, em voz baixa. - Horrível!
- Diferente. É diferente, Lida. Huili é uma linda aldeia com os seus campos cultivados com legumes, os seus lagos’ os seus arrozais em terraços, os seus penedos vermelhos e as suas casinhas com telhados inclinados. Na China há centenas de maravilhas, sejam os desertos do Norte ou os desfiladeiros que romperam o maciço de Yangtze, ou a floresta de pedras junto a Kunming, ou os penedos calcários de Guilin, que parecem gigantescos pães de açúcar. Só um poeta consegue descrever as belezas da China e só um pintor as consegue reter, e é isso que eles fazem e voltam a fazer, há milénios, e sempre de novo. Huili também é bela, só que os poetas e os pintores ainda não a descobriram.
- Tu és uma pessoa simpática - observou Lida, procurando a mão de Jian. - Eu sei de onde venho. E o que estou a ver hoje é um sonho que nunca se desvanecerá.
- É só o início.
Ela abanou a cabeça e levantou-se.
- Não pode haver nada mais belo do que isto. - Dirigiu-se para o automóvel e perguntou, quando entraram: Onde vamos agora?
- A um mosteiro lamaísta, na montanha do Dragão de Jade. Só é habitado por cinco monges e o monge superior chama-se Chen Xue. Ninguém sabe a idade dele; os camponeses crêem que é imortal e que é tão velho como a cameleira do pátio do mosteiro. Já fui visitá-lo três vezes e o Chen falou-me muito dos enigmáticos rolos de escritos dos Dongba, que atraem estudiosos do mundo inteiro e continuam a ser um mistério, tal como o próprio povo naxi. O Chen vai gostar de voltar a ver-me.
No sopé do maciço de Yulongshan, Jian tornou a parar o carro e apontou para a encosta de vegetação densa. Uma pequena estrada subia em direcção à montanha e desaparecia entre as grossas e velhas árvores. A meio da subida, abaixo da fronteira delimitada pelas árvores, onde os rochedos se tornavam escalvados, via-se o pico de um telhado pintado de amarelo e vermelho. Cintilava ao sol como se fosse talhado a ouro.
Aquele é o templo de Chen - explicou Jian. - Também ali chegaram os guardas-vermelhos da Revolução Cultural e soltaram a sua fúria. O Chen e os seus quatro monges passaram anos a fio a tentar reconstruir as fachadas do velho templo e do mosteiro. Ainda hoje continuam a trabalhar nisso, pois não têm riquezas e vivem das esmolas dos visitantes e do dinheiro que recebem pelo tratamento dos doentes.
- São médicos?
- Não, mas conhecem os segredos de mais de setecentas plantas curativas, e uma seiva ou um pó ajudam sempre. Lijiang não é só o reino das flores, também é um reino da medicina natural. Desde o reinado da dinastia Qing que a nossa medicina tradicional já conhecia quase quatrocentas plantas, a partir das quais se podem produzir medicamentos. Hoje conhecem-se muitas mais ervas curativas, sementes e raízes, principalmente de ginseng, cuja qualidade é tão boa como o que vem da Coreia ou do Japão. Em Lijiang são produzidos mais de cento e quarenta medicamentos. O meu pai sabe muito bem, pois é um grande conhecedor da medicina tradicional. E há remédios que são mais eficazes do que os preparados químicos da medicina ocidental que se ri de nós. Há mais de um século que a medicina tradicional tenta curar a epilepsia com medicamentos, mas o sucesso não é muito significativo. Nós tratamos a epilepsia com comprimidos de Cynanchum otophyllum, produtos puros de plantas.
- Falas como um professor! Mas afinal até vais sê-lo.
- Lida riu-se e voltou a contemplar a cumeeira cintilante do telhado do mosteiro. - O que é epilepsia?
- Uma doença que faz com que as pessoas caiam no chão, retorcendo-se em convulsões, e deixem de saber o que fazem. Isto é uma explicação muito simplista, mas é uma doença complicada que tu não vais perceber.
- Eu sei que sou burra.
- Lida, não era nada disso que eu queria dizer.
- Um bom médico tem que saber explicar tudo. - Entrou no automóvel e fechou a porta. - Ainda falta muito para seres um bom médico.
- É verdade. - Jian sentou-se atrás do volante e olhou Para Lida. - Sabes o que tu és?
- A tua mulher.
- E um tigre que precisa das suas garras.
- Doeu?
- Não. As tuas garras também são um afago para mim. Beijou-o no pescoço. Apontou para o alto e disse:
- Vamos ao encontro de Chen Xue. Com certeza que ele conseguirá explicar-me o que é epilepsia.
Chen, o monge lamaísta sem idade, esperava-os no último degrau da escadaria polida com o desgaste dos séculos. De um determinado ponto da escadaria via-se não só a estrada como toda a planície e, deste modo, não havia nada que pudesse surpreender Chen. O mais espantoso era a sua visão apurada, pois o seu rosto parecia um pergaminho rugoso, curtido pelo sol, o vento, a neve e a chuva. Chen vestia um manto vermelho até aos pés e usava um gorro de malha sobre o longo cabelo branco; a sua parca barbicha fazia lembrar a Jian a barba do tio Zhang, que este cofiava quando se punha a pensar. As sandálias que trazia nos pés tinham sido cosidas por ele; via-se pelos pontos grosseiros.
- Tong Jian - cumprimentou Chen com a sua voz rouca de idoso -, sê bem-vindo! - Depois olhou para Lida e assentiu várias vezes com a cabeça. - Trouxeste a tua noiva?
- Como é que sabes que é a minha noiva?
- Leio nos olhos dela. - Chen sorriu. - Entrem disse, apontando para uma casa a cerca de trinta metros de distância do mosteiro, localizada no cimo de uma ladeira com azáleas e camélias em flor; estava pintada de vermelho, amarelo e azul. - Fico muito contente de vos ver. Continuas a estudar, Jian?
- Ainda faltam quase quatro anos, reverendo mestre.
- Um longo curso. E o que é que já sabes?
- As causas das doenças dos homens e os meios para as combater.
- A sério? - Chen tornou a sorrir. - A fé é uma montanha cujo pico nunca se alcança.
Começou a andar à frente deles para indicar o caminho até a um pátio. No centro deste havia uma antiquíssima cameleira e inúmeras flores em canteiros ou em vasos e cubas de barro. Havia também portas de madeira pintada que davam para os quartos e para a cozinha, para o altar e para a biblioteca, na qual estava reunida a história do mosteiro lainaísta e os conhecimentos adquiridos sobre o povo naxi. Lida e Jian sentaram-se nas cadeiras rasas de madeira, dispostas debaixo da cameleira, enquanto Chen desapareceu no interior da cozinha para ir buscar folhas de chá, água quente e taças. Lida comentou em voz baixa:
- Ele tem uns olhos extraordinários. Reparaste nisso?
- São olhos a partir dos quais fala a sabedoria.
- Não, são olhos que te vêem como se tu fosses de vidro. Ele vê tudo dentro de ti e vê o que tu pensas.
Chen regressou, distribuiu as taças e o chá verde e serviu a água quente. Tinha mudado de roupa e agora trazia a sotaina de lama; depois de servir as visitas, pegou no mala tibetano com a mão direita. Mais uma vez, olhou para Lida com os seus olhos enigmáticos e ela sentiu uma sensação de calor a percorrer-lhe o corpo, como se estivesse deitada ao sol.
- Tu recebeste a felicidade de presente - disse Chen de repente. - Mas nem sempre será Primavera e vêm aí trovoadas e os relâmpagos dividirão as árvores. - Inclinou-se para a frente e agarrou-lhe as mãos, ao mesmo tempo que o seu olhar a penetrava. - Vejo uma árvore jovem que se verga com a tempestade, mas não parte. E vejo um salgueiro que anseia por água e um machado que o vai deitar abaixo. A terra está vermelha como se fosse sangue e uma tempestade sopra as folhas para longe, por todo o país. Mas a árvore e o salgueiro desafiam o vento, e um feiticeiro leva-as com as suas raízes para um outro país e planta-as lá. - Chen largou as mãos de Lida e recostou-se. Fechou os olhos e o calor que envolvia Lida desapareceu como que por encanto; ela agarrou-se a Jian, pois parecia que Chen ia morrer depois daquelas visões.
Mas fora apenas uma fadiga passageira. Poucos minutos Depois, Chen levantou-se, pegou no seu mala, fez rolar as esferas e apenas os seus lábios se moveram numa invocação Quida a Deus.
Jian e Lida pousaram as suas taças de chá no chão, ergueram-se, fizeram uma vénia a Chen e afastaram-se do pátio.
Lida só tornou a conseguir falar lá em baixo, junto ao carro.
- O que é que ele viu? - perguntou, num tom de voz como que sufocado.
- o salgueiro és tu e a árvore sou eu - explicou Jian.
- Mas a terra estava vermelha como que de sangue.
- Isso é algo que eu também não compreendo.
- E as árvores desfolhadas pela tempestade?
- Não sei. O Chen vê mais coisas do que todas as outras pessoas.
- Ele só viu coisas más, Jian.
- Mas também falou do feiticeiro que vai plantar as árvores num local seguro. - Jian encolheu os ombros, intrigado. Olhou para cima, em direcção ao templo, à esquerda o mosteiro, à direita a habitação de Chen, e abanou a cabeça.
- Nunca o vi com um ar tão sério. Normalmente é uma pessoa alegre, mas quando olhou no fundo dos teus olhos, Lida, o futuro abriu-se perante ele e viu acontecimentos que nós não conseguimos compreender. Se calhar, queria advertir-nos de alguma coisa.
- Advertir-nos contra quem ou contra o quê, Jian?
- Não sei.
- Tens inimigos?
- Não. - Jian tornou a abanar a cabeça. - Só tenho um opositor.
- Quem é?
- Infelizmente, é o meu pai. ”
- Porque amas uma pequena e pobre miao.
- Ele ainda não sabe.
- Não tiveste coragem de lhe contar? Escondeste a minha existência, porque sabes que ele pode obrigar-te a nunca mais voltares a ver-me. Ou tens vergonha por eu ser filha de um pobre professor de aldeia?
- Lida! - Jian circundou o carro, querendo pôr o braço em torno dela e abraçá-la, mas Lida afastou-o e ele ficou estupfacto com a força que ela demonstrou quando o empurrou. - Eu queria contar tudo ao meu pai, mas depois segui o conselho do tio Zhang: ”Vocês só podem casar daqui a quatro anos”, disse ele. ”Basta o teu pai saber pouco tempo antes. Desvia-te do caminho de uma guerra familiar de quatro anos, pois desgasta mais do que uma mentira que dure quatro anos seguidos. Pode viver-se com uma mentira, cada qual vive com as suas mentiras, mas uma guerra significa destruição. Protege o teu amor de modo a torná-lo invisível.” Ele é um homem sábio, o tio Zhang.
- E se eu tiver um filho teu nestes quatro anos?
- Isso não vai acontecer. Existe no Ocidente uma pílula que não deixa engravidar. Eu vou mandá-la vir de Hong Kong.
- E se acontecer agora, nestes três dias?
Jian olhou outra vez para cima, para o mosteiro e para a habitação de Chen.
- Na visão dele não aparecia nenhuma criança. Chen também teria lido isso nos teus olhos.
- Quando é que vais contar a verdade ao teu pai?
- Pouco antes de fazer os meus exames finais. Nessa altura, ele já não terá qualquer poder sobre mim.
- Mas agora tem.
- O meu pai é uma pessoa famosa, uma das mil personalidades que constam do livro dos eleitos da República Popular da China. Basta uma palavra sua e eu terei de sair de Kunming! O mínimo que pode fazer é mandar transferir-me para a Universidade de Xangai ou de Guangzhou; e já era um acto de misericórdia. Hoje em dia, há mais de cem universidades que têm o curso de Medicina e mais de quinhentas Escolas Profissionais de Medicina. O meu pai teria muito Por onde escolher se quisesse banir-me daqui.
- E era o que ele faria?
- Imediatamente! Sem pensar duas vezes.
- E depois destruía o meu pai.
- A sua influência não vai tão longe, mas conseguiria causar grandes problemas à aldeia de Huili.
- E daqui a quatro anos vai ser diferente?
- Sim. - Jian pôs o braço em cima dos ombros de Lida e desta vez ela não se defendeu. - Quando eu fizer os meus exames finais, serei livre. Ele deixará de ter poder sobre mim. Construiremos uma casa para nós onde quisermos e eu abrirei um consultório médico. Vamos ter nas nossas mãos toda a felicidade do mundo.
- Se a minha comuna e as autoridades sanitárias o permitirem.
- Dentro de quatro anos tudo pode mudar. A China já não é um Estado isolado; se não se abrisse ao resto do mundo, a China definharia política economicamente. Deng Xiaoping é um homem inteligente e quer fazer da ilha encerrada que é a China uma potência mundial real. A reconciliação com a Rússia e os novos contactos estabelecidos com os Estados ocidentais são o início, um sinal da nova China.
- E tu queres esconder-me da tua família durante quatro anos? - repetiu Lida. - Vamos encontrar-nos furtivamente, um dia aqui, dois dias ali, e sempre que te vais embora o meu coração fica a doer?
- Temos de aguentar, Lida. Temos que reunir todas as forças dos nossos corpos.
- E se, mesmo assim, o teu pai descobrir que eu existo?
- Então vai haver guerra, uma guerra entre ele e eu.
- E o grande Tong vai vencer. - Lida olhou-o com os olhos muito abertos e disse calmamente: - Nessa altura mato-me.
- Lida! - exclamou Jian, indignado. - Como é que podes dizer uma coisa dessas?
- Nós, os Miao, também temos a nossa honra, não são só os Han. Sem ti, deixa de haver vida para mim. Para mim, o mundo ficou pequeno, muito pequeno... tu és o meu mundo. Só tu. Como é que poderei continuar a viver sem o meu mundo? - Virou-se e abriu a porta do carro com um empurrão. - Vamos continuar, Jian. Tenho medo deste templo e de Chen Xue. Porque é que ele nos descreveu as suas visões? O que é que quer dizer o sangue sobre a terra?
- Eu não tenho nenhuma explicação para isso, Lida-
- E nessa luta com o teu pai por minha causa chegarias a matar o teu pai?
Oh, céus! Mas que pergunta! Claro que não.
Matavas antes o nosso amor?
Não. Desistiria de ser médico, iria para Huili abrir
sulcos na terra atrás do búfalo, construir novos terraços para o arroz e retirar pedra dos penedos para construir a nossa
casa.
- E serias um infeliz a vida inteira! Um pobre camponês que poderia ter sido um médico abastado! E a família Tong atacar-nos-ia até ficarmos estendidos no meio do chão a ganir que nem cães. - Sentou-se no assento e ficou a olhar fixamente pela janela, para o estreito carreiro que descia a montanha. - Jian, dentro de dois dias vais partir outra vez... vamos fechar os olhos e deixar de pensar no que Chen Xue disse. Quero adormecer no carro e depois acordar e esquecer tudo para além de estares aqui comigo.
Jian assentiu em silêncio e tornou a pensar no que o tio Zhang lhe tinha dito: que não seria apenas uma luta entre ele e o seu pai, mas também contra a irmã Fengxia e o marido dela, Wu Junghou, dois funcionários comunistas que tinham ainda mais poder do que o velho Tong. E eles recorreriam ao poder que tinham, quanto mais não fosse para obrigar os revoltosos a obedecerem.
Jian instalou-se no automóvel e fechou a porta, olhou para Lida com uma expressão de orgulho nos olhos, beijou-lhe o pescoço e disse:
- Vamos conseguir, minha querida. Há alguma coisa mais forte na nossa vida do que o amor? As cabeças deles vão embater neste nosso muro e despedaçar-se. Não há razão Para teres medo.
- E para onde vamos agora? - inquiriu ela.
- Para Dali. Mas, primeiro, vamos passear ao lago do Dragão Negro, em Lijiang. Não existe imagem mais bela na China do que estar à beira de um lago a ver o reflexo do pico de neve da montanha do Dragão de Jade, do templo do Deus do Dragão e do Deyuelou, o pavilhão da Lua, com a Ponte de mármore branca e os seus arcos. Nunca mais esquecerás esta imagem.
- Quando estiveres comigo, esquecerei tudo - retorquiu Lida. - Se me puseres toda a beleza do mundo a meus pés não a quererei... só quero esperar por ti.
Regressaram a Lijiang, passando pelo lago Jade e pararam à frente da árvore das dez mil camélias, cuja raiz se dizia ter quinhentos anos. Aí, Lida fez um acto proibido: colheu um pé de uma flor vermelha e enfeitou o cabelo negro com ela. Custou a Jian cinco iuanes para que o guarda olhasse para o lado.
Pouco depois estavam de pé, na margem do lago do Dragão Negro, e Lida procurou a mão de Jian, agarrou-a e ficou muda perante tanta beleza, perante aquela calma tão sublime e dada à meditação. A cordilheira de Yulongxue Shan, com os seus treze picos de neve, reflectia-se na água transparente, enquanto os cardumes de peixe passavam e se reuniam debaixo dos raios de sol; e a ponte de mármore branco com o pavilhão da Lua reluzia; à sua direita, cintilavam os telhados de madeira colorida do templo das Cinco Fénix, o maior santuário do misterioso povo naxi, no meio da ramagem dos salgueiros e dos castanheiros.
Jian também ficou calado, não obstante já ali ter estado muitas vezes, quando visitava o tio Zhang, mas toda aquela beleza continuava a comovê-lo de todas as vezes e até começou a compreender um dos poemas de Zhang, onde se lia: ”Quando os teus olhos ficam embriagados e a tua alma começa a voar como um grou em direcção ao Sol, é porque estás à beira do lago do Dragão Negro a orar.”
- Vamos lá acima, ao pavilhão da Lua? - perguntou Lida em voz baixa.
Ele assentiu com a cabeça e começaram a caminhar ao longo da margem. Atravessaram os arcos de mármore da ponte e um grande cardume de peixes acompanhava-os, como se pretendesse conduzi-los até ao pavilhão. Entretanto perceberam que estavam debaixo do primeiro conjunto de colunas de madeira, pintadas de vermelho, que suportavam o primeiro dos três telhados suspensos. Naquele momento, Jian e Lida estavam completamente sós no lago. Jian puxou Lida para si e começou a beijá-la; ela pôs os braços em volta dos ombros dele e colou-se ao seu corpo, como se quisesse unir-se a ele ali, no pavilhão, como se quisesse que a montanha do Dragão de Jade e o templo das Cinco Fénix fossem testemunhas do seu casamento.
Só se afastaram um do outro quando começaram a ouvir vozes vindas do templo. Um grupo de turistas de Pequim tinha chegado ao parque de estacionamento; disparavam as máquinas fotográficas para todos os lados, ao mesmo tempo que conversavam animadamente.
- Voltaremos a este pavilhão? - perguntou Lida, quando passaram a ponte de mármore, a caminho do templo das Cinco Fénix.
- Quando tivermos tempo poderemos sempre vir passear a Lijiang.
- Eu quero vir aqui sempre, sempre. Quando me beijaste no pavilhão, fiz uma jura para mim própria.
- O que juraste?
Ela abanou a cabeça, inclinou-se sobre a beira da ponte e contemplou os cardumes de peixes, enquanto estes deslizavam indolentes, mas com movimentos ágeis, através da água cristalina. Na margem oposta, um bando de patos a grasnar começou a movimentar-se, assustado pelas máquinas fotográficas dos seres de Pequim.
- Ninguém saberá, nem tu - declarou Lida. - É uma jura que permanecerá apenas na minha alma. É um diálogo entre mim e o meu Deus.
À tarde chegaram a Dali e ao lago Erhai, o antigo império dos Bai, onde estes tinham fundado o seu primeiro reino e o haviam chamado de Nanzhao. Durou entre 738 e 902 d. C., data em que foi dissolvido pelo poderoso reino Dali, que dominou o Sudoeste da China desde o século X ao século XIV e só se desmoronou quando o lendário rei mongol Khublai Khan conquistou aquela zona da China
Lida vislumbrou os símbolos de Dali ao longe, os três Pagodes, cujas torres estreitas se reflectiam no lago Erhai à luz clara da manhã, de modo que parecia que havia seis pagodes, três em terra e três na água, cintilantes no meio do azul-prateado. Estavam caiados de branco e brilhavam ao sol.
Jian parou o automóvel no parque de estacionamento e imediatamente foram rodeados por vendedores e velhotas de etnia bai, que lhes ofereciam tecidos, cachecóis e panos para a cabeça ou pagodes, tartarugas e pequenos leões de mármore com delicados veios cinzento-claros. Havia uma ampla escadaria que dava para as torres sagradas, dispostas nos terraços. Em cada um dos terraços havia centenas de bancas montadas, todas elas repletas de lindíssimos trabalhos em mármore, desde tartarugas, o símbolo de uma vida longa, até candeeiros de jardim em forma de pequenos pagodes, caixinhas e autênticas miniaturas de templos, figuras sagradas e dragões a cuspir fogo ou doces grous de asas abertas.
Lida estacou no cimo das escadas a olhar para cima, para os três pagodes brancos. Apontou para uma banca que vendia não só trabalhos artísticos em mármore mas também maravilhosas esculturas em jade. No meio da mesa estava um pavilhão com um telhado inclinado, esculpido em jade verde e castanho-claro, apoiado sobre graciosas colunas. A cumeeira e os beirais do telhado pareciam feitos em filigrana e as paredes estavam escritas com antigas sabedorias. A entrada para o interior do pavilhão era guardada por dois leões, com o objectivo de assustarem e afastarem os espíritos malignos.
- Como é lindo! - exclamou Lida. - Oh, que lindo!
- Contornou a mesa, admirou a pequena obra de arte de todos os ângulos e até se pôs de joelhos para observar com mais atenção os leões e ler as inscrições. - Parece o nosso pavilhão da Lua em Lijiang. Olha o que aqui está escrito: ”Para um pássaro, mais vale um simples ramo do que uma gaiola dourada.” E assim é. Eu também não quero viver na gaiola dourada dos Tong.
Jian ouviu o que Lida disse, mas não comentou. Virou-se para o comerciante e apontou para o pavilhão de Jade.
- Quanto queres pelo pavilhão? - perguntou.
- Cento e vinte iuanes, amigo. E bem os vale.
- Camarada, eu não sou nenhum americano nem alemão. - Jian enfiou a mão no bolso e retirou um maço de notas de iuane. - Pensa num preço razoável.
O artista que fez esta escultura esteve mais de uma semana a trabalhar nela. Não foi barata, e eu tenho mulher e sete filhos que choram de fome.
Por tua culpa, camarada. Sete filhos? Só te permitem
ter dois! Nesse caso, pago-te por dois filhos. Vamos fazer as contas e ver o que dá.
- Meu caro amigo de grande coração! - O vendedor torceu as mãos, rodou os olhos e a sua voz transformou-se num som queixoso. - No campo, os controlos não são tão rígidos. E os meus sete filhos têm três mães diferentes.
- Isso ainda piora a situação. - Jian retirou umas notas do maço e estendeu-as ao comerciante. - Setenta iuanes. E é por ser para ti, camarada.
- Setenta iuanes! Vou passar a comer erva daninha! Cozer palha para comer! Queres deixar a minha família morrer à fome?
- Setenta e cinco iuanes. É a minha última palavra. Vou-me já embora.
- Estás a pôr-me a corda ao pescoço, amigo. - O comerciante olhou para Lida, que continuava de cócoras a contemplar o pavilhão de jade. - É a tua mulher?
- É.
- És capaz de ficar a assistir enquanto ela se contorce de fome? Uma mulher tão bonita, que quer tanto o pavilhão, e tu para aí a regatear o preço como se fosses um mongol a regatear por uma ovelha!
- Setenta e cinco iuanes. - Jian pousou as notas sobre a mesa. Estas, ali expostas, parecia que emanavam uma força de atracção mágica. O vendedor suspirou, pegou nelas e guardou o dinheiro no bolso das calças. O esgar que se formou nos cantos da sua boca provava a Jian que, ainda assim, o tratante tinha feito um bom negócio.
- leva o pavilhão. leva-o. E que ele vos traga felicidade. Foi benzido por um monge - explicou o comerciante, e Possui um encantamento que ninguém pode pagar. Mas leva-o tu; tens uma linda mulher e nas suas mãos o pavilhão Será um verdadeiro santuário. Irá acompanhar a vossa vida. - E depois acrescentou, com novo suspiro profundo: isto tudo por setenta e cinco iuanes...
Jian inclinou-se, pegou no pavilhão de Jade com as duasmãos e Lida levantou-se espantada. Não acompanhara as negociações, de tão absorvida que estivera pela beleza da pequena obra de arte.
- Vamos lá acima ao pagode - pediu. Jian sorriu e entregou-lhe o pavilhão.
- É teu, meu sol.
Lida ficou pasmada, olhou para o pavilhão de jade nasmãos de Jian e sentiu como se o coração tivesse parado de bater.
- Este pavilhão é para ficar sempre contigo - disse ele, contornando a mesa. - Assim, nunca estarei longe de ti, mesmo quando voltar para Kunming. Quando o olhares, podes falar comigo... eu ouvir-te-ei.
- Está encantado! - interrompeu o comerciante, metendo-se na conversa, enquanto o seu rosto se abria num grande sorriso. - Foi benzido por um monge... e eu estou a vendê-lo por uns míseros setenta e cinco iuanes! Eu devia levar com o chicote, de tão estúpido que sou. Mas és tão bonita que o meu coração se alegra por seres tu a ficar com ele. Que ele te traga muita felicidade!
- Eu... é para mim? - perguntou Lida, quase imperceptivelmente. Estendeu os braços, pegou no pavilhão e cingiu-o contra o peito. E, de repente, sentiu uma força estranha e poderosa a percorrer-lhe o corpo, como se uma coragem nunca antes conhecida se inflamasse dentro dela; a sua respiração precipitou-se, como se tivesse acabado de fazer uma corrida longa e árdua; após o que olhou para Jian com os olhos a brilhar, como se de facto estivesse a arder em fogo-
- O meu pavilhão de jade! Vai ser o santuário da minha vida e o templo da minha alma. Jian, sinto-me tão forte!
A partir desse momento, Lida nunca mais largou o pavilhão de jade. Sentou-se no automóvel com ele no colo e, onde quer que fosse nesse dia, o pavilhão de jade estava sempre junto dela. Transportava-o no braço como se fosse uma criança que tivesse levado consigo em viagem.
Quando o crepúsculo começou a cobrir o lago e o céu se dissolveu em riscas amarelo-douradas, Lida observou:
- Jian, ainda temos que regressar a Lijiang.
Não - retorquiu Jian. - Vamos ficar em Dali.
Mas tu tens que pagar o quarto se não dormirmos lá.
não se deve deitar dinheiro fora.
A noite de Dali vale isso e muito mais. - Apontou
para os juncais nas margens do lago, para onde se dirigiam naquele momento os barcos dos pescadores. - Ali no meio há uma casa onde iremos passar a noite.
- Uma hospedaria na margem do lago?
- Não. Ali vive um homem que merece as maiores honras. Esse homem encerrou-me no seu coração e também tu irás encontrar um lugar no coração dele.
- É um amigo teu?
- Sim, é um amigo, mas também é o meu tio.
Lida tornou a cingir o pavilhão de jade contra o peito e a sua expressão tornou-se séria e taciturna.
- Não - declarou com convicção. - Não. Não vamos. Vamos regressar a Lijiang
- Mas tu nem sequer conheces o tio Zhang.
- Ele é da família Tong.
- Não, ele é irmão do pai da minha mãe.
- É a mesma coisa. Ele é um han rico e eu sou uma miao pobre.
- O Zhang está do nosso lado. Tivemos longas conversas sobre ti.
- Não foi ele que te convenceu a não contares nada ao teu pai?
- Sim. Foi um bom conselho. É um homem sábio.
- Ele quer esconder-me, pois não me considera digna de amar um Tong.
- Não! Quer impedir que me separem de ti à força. Não devemos sentir o peso do poder do meu pai até o seu poder perder todas as forças.
- Daqui a quatro anos. - Lida elevou o pavilhão de Jade ao nível dos olhos e ficou a olhar para ele fixamente. - Durante quatro anos restar-me-á apenas este pavilhão quando quiser falar contigo. Dormirá junto de mim, como se fosses tu, durante quatro anos. E quando os meus lábios tocarem nos seus três telhados, será como se eu estivesse a beijar a tua testa, os teus olhos e a tua boca. Agora será mais fácil para mim suportar estes quatro anos. Ter-te-ei sempre comigo. Para que é que ainda precisamos dos conselhos do teu tio Zhang?
- Um dia, pode vir a ser a nossa última saída. Eu quero que ele te conheça. Assim, ser-lhe-á mais fácil compreender-me.
- Agora disseste uma verdade! - Tornou a apertar o pavilhão contra o peito. - Ele também está contra mim? Não, não quero vê-lo.
Lida estava admirada consigo própria, por ter a capacidade de contrariar Jian com tanta convicção e por não sentir o respeito que uma mulher é obrigada a ter pelo marido. Sentia uma força dentro de si, como se a figura de jade não fosse uma pedra maleável, mas sim uma espada cintilante, com a qual conseguiria derrotar qualquer inimigo.
Jian olhou para ela, perplexo, mas ao mesmo tempo admirando a sua firmeza.
- O tio Zhang é um grande poeta e um grande pintor explicou. - E um poeta concebe o mundo com a sua alma; um pintor vê-o com olhos diferentes dos nossos. Ele abraçar-te-á e com isso serás adoptada no seu mundo. Anda, vamos ter com ele.
Lida assentiu em silêncio, olhou mais uma vez para o seu pavilhão de jade e disse:
- Está bem. Vamos, por ser a tua vontade, meu marido. E, aconteça o que acontecer - acrescentou, enquanto passava o pavilhão de jade para o braço esquerdo, como se fosse um filho -, ele proteger-me-á. Nele viverá o nosso amor ate à morte.
Quando Tong Shijung partiu para Kunming na primeira camioneta da manhã de Dali, Zhang Shufang sentou-se a frente da sua casa, na margem do lago Erhai, e escreveu dois poemas. Eram hinos à beleza da Terra e as palavras emanavam uma tal ternura que parecia que era possível acariciar a eternidade. Olhando através do lago, leu os seus poemas novos em voz alta e escutou a consonância das palavras, a harmonia do ritmo e a voz da alma.
Entretanto, já estava a anoitecer e Zhang preparava-se para cozinhar massa com tofa. O arroz já fervia noutro tacho. Era uma refeição simples, mas um velho já não precisava de muito mais para viver; quando tem à sua frente uma tigela de arroz com molho de soja, um peixe assado, um bocado de tofa e um pouco de couve na panela, fica feliz pela vida que tem e agradece aos deuses por serem tão bons.
Zhang estava a olhar para a água que fervia quando ouviu na rua os travões de um automóvel. Limpou asmãos num pano e dirigiu-se para a porta. Quando um carro parava à frente da sua casa só podiam ser duas coisas: ou era um funcionário do Departamento da Cultura de Dali ou era Jian; mas a última hipótese seria improvável, pois ele dissera-lhe que ia passar três dias com a sua Lida em Huili. As outras pessoas não conseguiam chegar à casa de Zhang, pois em Dali só os eleitos do Partido e o médico-chefe do hospital é que tinham automóvel. O médico não viria à casa de Zhang por iniciativa própria, uma vez que este nunca tinha precisado dele.
Zhang abriu a porta e viu o carro de Jian e o próprio Jian que se apeava. Pela primeira vez teve um pressentimento errado, pois a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi que Jian teria arranjado problemas com o pai de Lida e agora procurava consolo junto do tio Zhang.
Tanto mais incrédula foi a reacção de Zhang quando viu a rapariga que abria a outra porta e descia do carro. Não precisou de adivinhar quem era e observou Lida com olhos Perscrutadores; viu o acanhamento no seu olhar, quando ficou parada, encostada ao automóvel, como se entre ela e Zhang houvesse um fosso grande e profundo. Tinha um pavilhão de jade encostado ao peito e Zhang, o pintor, percebeu imediatamente que se tratava de um trabalho valioso.
- Jian - exclamou, quando este pôs um braço em volta dos ombros de Lida e a arrastou consigo. - E Lida, a filha do professor Huang Keli! Entrem. Sejam bem-vindos. Sejam bem-vindos. Estão a dar uma grande alegria a um velho homem. Está na hora de comer e eu tenho comida suficiente para os três.
- Eu vou cozinhar qualquer coisa para nós - declarou Lida, respeitosamente -, se o grande mestre me considerar digna de usar o seu fogão e os seus tachos.
- Trouxemos coisas de Dali, tio Zhang - acrescentou Jian com alegria. - Lembrei-me que quando estás sozinho não cozinhas muito. Mas a Lida vai preparar-nos uma refeição especial com catorze pratos. E também trouxemos cerveja.
- Isso há no frigorífico. Não penses que eu vivo como uma minhoca que se alimenta da terra. Catorze pratos? Zhang olhou para Lida satisfeito e pestanejou. - Tu agradas-me, rapariga. Entrem, meus caros.
Zhang entrou à frente deles e Lida foi à bagageira do automóvel buscar uns sacos. Quando Jian tentou ajudá-la a carregar os sacos, ela repeliu-o e disse:
- Isto é uma tarefa minha. O fogão é o meu lugar. Vai fazer companhia ao teu tio e conta-lhe as nossas experiências.
Enquanto Lida preparava a comida e andava às voltas com os tachos e as frigideiras, Zhang observou-a com agrado. Só houve um pormenor que achou estranho: antes de começar a cozinhar, Lida pousou o pavilhão de jade junto ao fogão, sobre uma placa de madeira. Zhang tentou perceber o sentido da sua atitude, mas não conseguiu.
- Porque é que ela pôs ali o pavilhão? - perguntou. Jian respondeu em voz baixa:
- É a coisa mais sagrada que tem. Naquele pavilhão está a vida dela.
- Mas é apenas uma figura. - Zhang abanou a cabeça Ainda não tinha percebido o poder da pequena obra de arte - Onde compraram o pavilhão?
- No mercado de mármore, junto aos três pagodes o comerciante diz que foi abençoado por um monge.
- E vocês acreditaram nele? - Zhang reprimiu uma gargalhada e lançou um olhar quase castigador ao tio.
- Como é que com tanta inteligência cais num logro desses? Jian, perdeste a cabeça?
- Agora, a Lida e o pavilhão pertencem um ao outro. _- Jian deixou que o tio Zhang continuasse a rir... que sabia ele do que se passara nesse dia? - O pavilhão é quase igual ao pavilhão da Lua no lago do Dragão Negro, de Lijiang, e esse pavilhão tem um significado especial para nós os dois.
- Vocês vieram de Lijiang?
- Viemos. E eu quis apresentar-te a Lida. És a única pessoa em quem nós confiamos. Tu fizeste segredo quando o meu pai bateu à tua porta, de surpresa, e se pôs a fazer uma série de perguntas sobre mim. Protegeste-nos sem conheceres a Lida.
- Mas eu conheço o pai dela, o Huang Keli. É um homem de coragem e a sua inteligência merecia que lhe dessem mais valor. Se ele tivesse nascido noutra família, agora não seria um professor de aldeia e a China inteira conheceria a sua voz. Há tanta coisa grandiosa que está adormecida no nosso povo e que nunca despertará! - Zhang levantou-se e circundou a mesa redonda. - Vou buscar cerveja.
Passou junto de Lida e do fogão e deteve-se. Lida estava a cortar uma galinha e a barrá-la com um molho agridoce. Noutra tábua havia uma bela perna de porco, escolhida a dedo.
- Os meus olhos notam com prazer que vai ser uma refeição como há muito eu não comia. És uma boa cozinheira. Onde aprendeste?
- Com a minha mãe, Jinvan, e a minha avó Peihui. Baixou a cabeça, pois o olhar fixo de Zhang irritava-a. Sempre vivemos numa grande pobreza- explicou. - Mas a comida foi sempre boa e esse era o nosso único prazer. Cada Um de nós aguardava ansiosamente que chegasse o jantar para vermos a surpresa que a avó Peihui tinha preparado para nós. Então, sentávamo-nos à volta da mesa e ficávamos felizes. - Levantou a cabeça e, finalmente, encarou Zhang. O senhor nunca foi pobre. Não sabe a luta que a vida pode ser.
- Em contrapartida, és rica - contrapôs Zhang - que não sabes. A tua juventude é a tua riqueza. Ainda podes traçar a tua vida. Tu e o Jian vão conquistar o futuro.
Saiu de casa e Lida voltou-se para Jian, parando de cortar a galinha.
- Ele pode saber fazer poesias sábias - disse -, mas nunca enfiou um pé de arroz dentro de água, nem passou dez horas seguidas encurvado. - O seu tom de voz revelava alguma amargura.
- O tio Zhang já te acolheu no coração - retorquiu Jian. - Ele vai ajudar-nos.
Zhang regressou com três garrafas de cerveja nos braços e, enquanto a galinha e a carne de porco estufavam nos respectivos tachos, Lida pôs a mesa e serviu as cervejas nos grossos copos, movimentando-se como se há muito ali vivesse e pertencesse.
Quando voltou para o fogão para tratar das verduras, Zhang inclinou-se para Jian e segredou-lhe:
- Tomaste a decisão certa. E uma mulher ao lado da qual poderás passar uma vida inteira. Se o teu pai aqui estivesse e a visse...
- Não mudaria de opinião. Para ele, a família Huang não existe. Eu sou filho dele, disso não há duvida, mas quem me dera que ele sufocasse na sua maldita tradição.
- Um filho não deve falar assim sobre um pai - retorquiu Zhang com ar grave. - Há sempre um caminho a percorrer até se chegar ao objectivo, mesmo que seja tortuoso, íngreme e cheio de pedras.
- Mostras-nos esse caminho, tio Zhang? Ajuda-nos.
- O que é que um pobre homem pode fazer?
- Consente apenas que eu e a Lida nos encontremos em tua casa.
- Vocês já cá estão e eu vou comer a comida que a Lida está a fazer. E vou dar-vos uma cama e esquecer que vocês dormem juntos como se fossem um casal. Fecho os olhos a imoralidade que se está a passar debaixo do meu tecto. Zhang sorriu bem-disposto. - Não é suficiente?
- Nunca poderei agradecer-te o que tens feito por min
- Agradecer para quê, Jian? - Zhang olhou para Jiall pensativamente. - Eu reconheço em ti a minha própria juventude. Quando um homem de idade se perde em recordações, não pensa em ontem nem em anteontem, mas nos anos que estão tão distantes que soam como um sabre. Eu devia ter a tua idade, já não sei com precisão, quando vi uma rapariga no mercado de Kaili, sentada atrás de grandes molhos de massa chinesa. Parecia triste, pois quase ninguém se abeirava dela para mandar pesar um dos molhos. Eu fui ter com ela e comprei-lhe um fardo inteiro, apesar de não precisar de massa e de não fazer a mínima ideia de quem poderia querê-la. Mas vi como ela ficou feliz quando começou a contar os iuanes que eu lhe ia pondo namão; foi certamente a maior venda que alguma vez fez num dia inteiro. Voltei a vê-la várias vezes, sempre no mercado de Kaili e continuei a comprar-lhe massa; no fundo, para lhe ir oferecendo uns tostões. E um dia, arranjei coragem e perguntei-lhe se ela queria vir comigo.
- Tio Zhang!
- Disse que sim e foi ter comigo ao lugar combinado, sem o pai, sem um irmão; aí percebi que a família dela ficava feliz por ter menos uma boca para alimentar e que louvava a sua sorte por um homem tirar aquela filha da miséria. Chamava-se Chongyan, era de etnia dong e eu levei-a comigo e apresentei-a ao meu pai. Mas o meu pai nem sequer a olhou e limitou-se a dizer: ”Tira-me este escaravelho da frente ou deixas de ser meu filho.”
- E o que é que fizeste, tio Zhang?
- Afastei-me da minha família e levei a Chongyan comigo. Nunca mais voltei a ver o meu pai, nem a minha mãe, nem os meus irmãos; só um dos meus irmãos é que me visitava em segredo, de vez em quando. Era o pai da tua mãe, Jian. Vivemos um ano no exílio e Chongyan foi ficando cada vez mais triste, pois via como eu estava a sofrer por dentro, mas nós amávamo-nos com um desespero tal que superava todos os obstáculos. Às vezes, à noite, ela chorava nos meus braços e perguntava-me: ”Eu trouxe-te a infelicidade, diz-me a verdade.” E eu respondia-lhe: ”Eu já não conseguia viver sem ti.” E pintava e escrevia poemas. Tive sucesso, tornei-me um homem abastado, mas quanto mais me tornava conhecido, mais a Chongyan se remetia ao silêncio e se escondia do resto do mundo. E tudo aconteceu num dia de Primavera, quando viemos passear a Dali e ao lago Erhai e a Natureza inteira floria nas cores mais ardentes; sentei-me na margem do rio e pintei esta beleza que nos penetra na alma A Chongyan ficou algum tempo a observar-me em silêncio depois levantou-se, começou a andar ao longo da margem e desapareceu no juncai. Eu não estava a prestar atenção; pintava furiosamente, mas quando, umas horas depois, ela não tinha regressado, pus de lado as pinturas e fui à sua procura, percorrendo o caminho que ela tinha seguido e chamando-a vezes sem conta. De repente, senti um nó na garganta de medo e precipitei-me para o juncai, vadeando o lago de pouca profundidade. Quando cheguei à água corrente, vi-a a flutuar à superfície como um enorme nenúfar. Nadei até junto dela e puxei-a para a margem, mas ela já não estava viva. Tinha-se afogado. Afogara-se, para que eu voltasse a ser livre e regressasse para a minha família. - Zhang fechou os olhos, atirou a cabeça para trás e apontou para o lago, que se via através da janela. - Foi aqui. Aqui mesmo. Foi aqui, neste preciso local, que ela entrou no lago para morrer e foi aqui que eu construí esta casa. Nunca voltei para a minha família. E pintei a Chongyan eternamente, vezes sem conta. Olhou para Lida. - E agora a Lida está aqui e, para mim, e como se não fosse ela que está ali ao fogão, mas a Chongyan. Eu quero ajudar-vos e fazer tudo o que puder para que o destino de Chongyan não se repita no caso de Lida.
- Então podemos voltar sempre que quisermos, tio Zhang?
- Considera a minha casa como a vossa casa. - Levantou o nariz, fungou e disse em voz alta: - Cheira deliciosamente. Mas põe mais um bocadinho de gengibre na carne de porco.
Depois do jantar e da segunda garrafa de cerveja, Zhang recostou-se satisfeito e desfrutou de uma sensação rara de quem estava saciado. Olhava para Lida frequentemente, mas não como homem; olhava-a com olhos que penetravam no fundo da alma dela, com os olhos de um pintor que estuda não só um rosto mas também a alma desse rosto.
Vou pintar-te, Lida - declarou, de súbito. – Vou pintar-te com o lago e as azáleas em flor como pano de fundo. Será a pintura mais bela que alguma vez fiz na vida.
- Não há tempo para isso, tio Zhang. Amanhã de manhã temos de voltar para Lijiang e depois regressar a Huili.
- Ela não precisa de estar sentada à minha frente; eu tenho o rosto dela na minha cabeça. - Zhang levantou-se da cadeira com um gemido, pois tinha comido de mais. Quando voltam?
- Não sei - respondeu Lida. - Já aprendi a esperar e agora tenho de aprender a não contar os dias e as semanas; devo viver como se o tempo não existisse.
Ficaram sentados a conversar até o lago submergir na escuridão da noite. Zhang falou sobre a sua vida e contou sobre uma tempestade que quase levou a casa no temporal, durante a qual muitos pescadores se tinham afogado no lago. Mostrou-lhes os seus quadros, leu-lhes uns poemas e bebeu mais duas garrafas de cerveja, o que acabou por amolecê-lo. Por fim, bocejou e esfregou os olhos com as duas mãos.
- Um homem de idade sente a falta da sua cama - disse. - Vou deitar-me. Já sabes onde vocês dormem, Jian. Foi para a cama, puxou o cobertor para trás e sentou-se na beira. - O único luxo desta casa é a água canalizada. Podem tomar banho; também foi um dia longo para vocês.
No anexo, onde estava instalado o duche, Lida e Jian despiram-se e, tal como na primeira noite em Lijiang, deixaram-se ficar juntos debaixo do chuveiro. Lavaram-se um ao outro, abraçaram-se e perderam-se em beijos, em carícias e na excitação que os percorria.
Quando entraram em casa, Zhang já estava a dormir. Tinha os braços estendidos junto ao corpo, o queixo esticado Para cima e, com a sua cabeça ossuda e a barba branca rala, Parecia morto. Passaram por ele em bicos dos pés, apenas com uma toalha à volta das ancas e deitaram-se nus na cama. Lida enroscou-se novamente como se fosse uma gata, encostou-se a Jian e começou a suspirar quando ele a virou de barriga para cima, lhe acariciou os seios e foi percorrendo o seu corpo com os lábios, descendo cada vez mais.
- O meu homem - sussurrava ela, segurando a cabeça dele com as duas mãos. - Es o meu homem, és a minha maior felicidade neste mundo. - Em seguida, virou a cabeça para o lado e olhou para o pavilhão de jade, que se encontrava junto à cama, em cima de uma cadeira. O luar reflectia-se na pedra e fazia-a brilhar misteriosamente.
Tong Shijun regressou a Kunming, exausto da terrível viagem de camioneta, coberto de pó, como se tivesse estado a trabalhar na rua, suado e inundado pelo cheiro dos outros passageiros. Meizhu, a sua mulher, foi logo preparar-lhe um banho e ficou à espera que ele contasse alguma coisa sobre a sua viagem a casa de Zhang. Mas Tong permaneceu em silêncio, deitou-se na banheira, despejou na água uma loção de ervas com um perfume forte e descontraiu-se. O banho afastava o cansaço que sentia. Vestiu um roupão de seda grossa com bordados dourados, penteou o cabelo e entrou na grande sala de estar, onde o esperava, sobre uma mesinha adornada com entalhes em marfim, o seu chá. Meizhu estava sentada numa poltrona e olhava para o marido, ansiosa.
- O nosso filho é um bom filho - observou finalmente Tong, enquanto sorvia o seu chá verde fumegante. - Tornei a encontrar a minha paz.
- Tinhas realmente duvidado dele?
- Sim. Alguém que ouça o que ele diz pensa logo que ele é um revolucionário. Mas são apenas discursos, mais nada. O Jian não tem contactos com revoltosos fanáticos. Esteve mesmo com o Zhang, no lago Erhai, a nadar e a pescar.
- Eu sabia. - Meizhu respirou de alívio; por um lado, pelo facto de as suas preocupações serem infundadas, por outro, por Jian e o pai não se terem encontrado. - O nosso filho não mente.
- Não tinha a ver com a mentira, mas com a omissão.
- Tong sorveu mais um gole de chá. Recostou-se na cadeira e escutou os sons vindos da sala de jantar, enquanto alguén punha a mesa. - Ainda não comeram?
- Estava à tua espera desde ontem. Voltaste um dia mais tarde.
- Sabes como é o teu tio. Quando tem visitas, o que é raro, parece que perde uns anos e põe-se a comer e a beber como se fosse um mendigo diante de uma mesa em dia de festa. - Tong esboçou um sorriso. - Eu caí em cima da cama e só acordei no dia seguinte de manhã, quando a camioneta já tinha partido. Mas telefonei-te de Dali, não foi?
- Ao telefone, disseste simplesmente que vinhas mais tarde. Por isso, pusemos a mesa para o jantar e eu fiquei à tua espera.
- Então escolhi mal as palavras. Desculpa-me, Meizhu. A minha cabeça não esteve muito sóbria a tarde inteira. Consultou o seu relógio. - Onde está o Jian? No quarto? Quero ir falar com ele e dizer-lhe como estou orgulhoso dele.
- O Jian não está cá - informou Meizhu e ficou espantada com a violência latente na sua voz.
- Não está cá? Já comeu? Onde é que ele foi?
- Não sei. Não se pergunta a um filho adulto onde é que ele vai.
- Mas pergunta-se sempre a um filho o que é que ele pretende fazer. Não deixa de ser filho, mesmo que ele próprio já tenha filhos. Foi ao teatro?
- Não.
Tong lançou à mulher um olhar de quem pede satisfações. Tinha pressentido a insegurança na sua voz e, de repente, percebeu que ela estava a omitir alguma coisa. Quando alguém omite informação é porque está a esconder algo, e tendo em conta que se tratava de informação relativa ao seu filho, tinha o direito de saber a verdade.
- Onde está o Jian? - repetiu em voz alta e num tom firme. - Alguma coisa se passa nesta casa e vocês estão a tentar ocultar-me. Vou perguntar mais uma vez: onde está ele?
- Não sei, Shijun. - Meizhu juntou asmãos como se estivesse a orar. - Saiu de automóvel e ainda não regressou.
- Quando é que ele partiu?
- No mesmo dia que tu, umas horas depois, por volta da hora de almoço. Chegou da universidade, vestiu-se à pressa e partiu de carro. Não sabia concretamente o destino dele, mas tive uma ideia.
- E pensaste o quê?
- Que ele também tivesse ido para Dali.
- Não, não passou por Dali. - Tong respirou fundo. Onde estará o meu filho Jian? - Tornou a lançar um olhar de desafio a Meizhu, no qual também se pressentia desconfiança. - O que é que te faz pensar que ele tenha ido para Dali? - perguntou. - Ninguém percorre uma distância tão longa, quatrocentos quilómetros, sem razão, e, ainda por cima, faltando às aulas na universidade. O que é que tu sabes, Meizhu?
- Eu não sei de nada, Shijun. Só vejo que o Jian mudou. Fala connosco menos do que antes, fecha-se no quarto, absorvido nos livros. Já não sei o que lhe vai no coração. Enfia-se no seu casulo e parece um caracol escondido na sua casa.
- É mesmo. - Tong assentiu em silêncio, devagar, como se, de repente, a sua cabeça estivesse cheia de chumbo. Que peso será esse que ele carrega e que o oprime tanto?
Meizhu mordia nervosamente o lábio inferior, por fim, disse pela primeira vez o que há muito pensava:
- Quando um jovem muda desta maneira como aconteceu com o Jian, a maior parte das vezes é por causa de uma rapariga.
- Uma rapariga? - Tong levantou a cabeça com um estremecimento. Pensou na recusa de Jian em casar com Yanmei, a mulher que ele lhe escolhera, e na discussão que os dois haviam tido por causa desse assunto. - Uma rapariga em Dali? Zhang não me falou de nenhuma rapariga e não é provável que não saiba da sua existência se, de facto, houver uma rapariga. - Bateu com a palma da mão na testa. Pensei em tudo menos nisso. Uma rapariga!
- É só uma suposição, Shijun - insistiu Meizhu, tentando acalmá-lo. - As mães têm um sexto sentido. Eu também posso estar enganada.
- Vou falar com ele.
- Achas que te vai contar a verdade?
- O meu filho não me mente. Não vai desperdiçar a sua honra por causa de umas saias.
- E se for mesmo uma rapariga?
- Então, é sua obrigação apresentá-la à família.
- Pode ser apenas uma aventura passageira.
- Um Tong tem a sua honra.
- Shijun, já havia Tongs há mil anos e os teus antepassados tinham as suas concubinas. Um homem não era homem se não tivesse concubinas.
- Muita coisa foi mudando ao longo dos séculos. Tong lançou à mulher um olhar severo. - Por acaso eu tenho uma concubina?
- Não. Tu és um pilar da moral. Mas porque é que o Jian não haverá de pensar de maneira diferente? Hoje em dia, a juventude...
- Se ele tem necessidades sexuais pode ir a um bordel.
- Mas que conversa é essa, Shijun? - Meizhu estava indignada. - Jian nunca iria a um local desses.
- Eu preferia que ele pagasse trinta iuanes a uma prostituta do que fazer a infelicidade de uma rapariga em Dali, com quem nunca poderá casar. Ele vai casar com a Yanmei.
- Tu sabes que ele se recusa até mesmo a vê-la.
- Vai ter que se vergar perante a tradição. Ainda tem muito tempo para se começar a habituar à ideia.
Para Tong, o assunto estava encerrado. Depois do jantar tardio, deitou-se, mas a sua agitação interior tirou-lhe o sono. Meizhu dormia um sono agitado a seu lado, virava-se e revirava-se na cama, e Tong recordou o que se passara no seu caso, muitos anos antes, quando o pai dela e o seu tinham acordado em que Meizhu e Shijun formassem um casal, e o dia em que vira pela primeira vez Meizhu à sua frente, uma rapariga tímida, mas obediente. Ficara satisfeito com a escolha do pai, pois Meizhu era uma linda rapariga, das melhores famílias, educada nas tradições centenárias e, quando olharam um para o outro, sentiram que se iriam amar, independentemente da obrigação por obediência aos Pais.
Por que razão haveria de ser diferente no caso de Jian Yanmei?
”O tempo dará conta do recado”, pensou Tong. Virou-se para o lado onde Meizhu dormia, observou o seu rosto estreito, que ainda conservava a sua beleza, inclinou-se para ela e beijou-lhe as pálpebras que tremiam no sono. Depois encostou-se, mas o sono teimava em não querer vir.
Quando finalmente se viu no meio de um sonho, no qual via Jian numa armadura de cavaleiro da Idade Média à luta com um dragão com chifres, já a manhã começava a nascer. Mas de repente a imagem começou a desvanecer-se e Tong, em sobressalto, ficou sem saber quem saíra vencedor do combate, se o dragão ou o seu filho Jian.
Huang Keli aguardava impaciente o regresso de Lida. Quando por fim o carro de Jian surgiu ao fundo da estrada e começou a subir o monte, o coração de Huang ficou pesado, pois estava convencido de que iria ler nos olhos de Lida que esta perdera a virgindade. Jinvan também surgiu à porta, ao ouvir o ruído do motor, mas deixou que fosse Huang a aproximar-se do automóvel e a cumprimentar os recém-chegados.
Lida apeou-se com o pavilhão de jade namão; os seus olhos cintilavam com um brilho tal, que o coração de Huang se contraiu com um golpe profundo. Só uma mulher feliz tinha aquele brilho nos olhos, e ele não precisava de fazer mais conjecturas sobre o segredo que Lida guardava no coração. Abraçou-a e abraçou também Jian que, entretanto, e apesar de ninguém o referir, também já pertencia à família’ Depois entregou-lhe uma tacinha de aguardente que Jinvan tinha trazido de casa.
- Meu filho - exclamou Huang num tom festivo, quando Jian deu um gole na tacinha -, sê bem-vindo à minha e à tua casa. Posso chamar-te filho, não?
- Sim. Podes chamar-me assim, pai.
E com isto, estava tudo dito, não havia mais perguntas a fazer. Huang sentiu uma pressão forte no peito, mas não percebia se era alegria e felicidade ou medo e preocupação. Acontecesse o que acontecesse, já não havia remédio: Lida era a mulher de Jian e o destino seguia o seu caminho; para o bem ou para o mal, isso só o futuro o diria.
Lida entrou em casa e pousou o pavilhão de jade sobre a mesa. Jinvan contemplou o pavilhão de todos os ângulos, mas quando quis pegar nele e aproximá-lo dos olhos para ler as inscrições, Lida agarrou-lhe amão com firmeza.
- Uma bela peça - elogiou Jinvan, irritada, e retirou a mão. - Onde é que a compraram?
- Junto aos três pagodes de Dali. Um monge benzeu-o e dizem que lhe lançou um encantamento.
- Um encantamento? O que é isso?
- Quando toco no pavilhão, há uma grande força que entra por mim adentro. Eu sinto-a, é como um bafo quente. Fico muito forte quando ponho as mãos nele. É uma coragem que se apodera de mim e me faz vencer tudo e todos. Ninguém pode tocar nele sem ser eu.
Jinvan ficou calada, mas olhou de lado para o pavilhão de jade e ficou espantada por a filha acreditar num disparate daqueles. Decidiu falar com o marido sobre o assunto; também ele se limitaria a abanar a cabeça e talvez até comentasse: ”Deixa-a acreditar. Ajuda-a a vencer a solidão quando o Jian partir e ficar muito tempo seguido sem poder voltar.”
Jian só podia ficar mais uma noite em Huili, pois as aulas a que faltara tinham de ser recuperadas. Mas como ele voltaria e Lida agora lhe pertencia, Huang e Jian fizeram mudanças no anexo onde vivera Chang Lifu. Huang até prometeu ao novo filho que iria vedar o interior, construir uma Parede firme, uma porta maciça e colocar um chão com vigas de madeira. Também estava a pensar comprar em Dukou uma cama ampla, um armário, uma mesa, duas cadeiras de Cadeira, estofadas, e até uma estante, para fazer um lar confortável, no qual Lida e Jian pudessem viver. Uma construção daquele nível, quando estivesse pronta, seria um luxo Para Huili e Huang ficaria muito orgulhoso.
Naquela última noite, Jian e Lida dormiram no anexo retttodelado. Instalaram-se na cama de Lida. Estavam ambos despidos e não conseguiam imaginar outra hipótese que não fosse adormecerem sentindo a pele e a respiração um do outro e acordarem da mesma maneira.
- Estás tão calma, Jinvan - observou Huang, quando ficaram sozinhos em casa.
- Porque é que eu haveria de estar agitada?
- A nossa filha está a dormir com um homem.
- Se ela não o fizesse é que eu ficaria preocupada.
- Sabes no que nós nos transformámos? - Huang puxou uma fumaça do cachimbo e soltou o fumo na direcção do tecto. - Num casal de alcoviteiros. Permitimos a imoralidade debaixo do nosso tecto. Nunca pensei que alguma vez fecharia os olhos. Eu, o respeitável professor Huang Keli. Ponho a minha filha na cama de um homem. Até o ajudo a transportar a cama em que se vão deitar. E não sinto qualquer vergonha nem oponho qualquer resistência a esta depravação. Jinvan, eu já não sei quem sou.
- É melhor eles dormirem debaixo do nosso tecto, do que amarem-se furtivamente numa cabana no meio dos arrozais.
Lançou um sorriso a Huang, e este percebeu a que é que a mulher estava a querer referir-se. Olhou para as pontas dos pés e respondeu:
- Tens razão, Jinvan. O amor escreve as suas próprias leis.
À noite, Lida acordou com o luar a entrar através das fendas na madeira das paredes. Desembaraçou-se cuidadosamente de Jian, aproximou-se em bicos dos pés da caixa sobre a qual tinha colocado o pavilhão de jade, ajoelhou-se e pousou as duasmãos sobre a pedra fria. Sentiu de novo aquele calor forte a percorrer-lhe o corpo, que desapareceu logo que ela retirou as mãos da pedra. Quando envolveu com os dedos as colunas macias que suportavam o tecto inclinado, o calor voltou.
- Amanhã ficarei novamente sozinha - sussurrou, acariciando o pavilhão e convencendo-se que o seu interior luzira. - Amanhã, de toda a beleza que eu vi, restará apenas a recordação e voltarei a enfiar o arado na terra, a cortar legumes; a dar água aos arrozais, a trazer pedra dos penedos e a construir novos muros. Vou ficar à espera que Jian regresse, mas tu dar-me-ás forças para suportar o tempo da espera. mostra-me o encantamento que vive dentro de ti.
Ficou algum tempo ajoelhada diante do pavilhão, depois esgueirou-se para dentro da cama, onde o luar iluminava o corpo nu de Jian. Deitou-se junto dele. Durante o sono, a mão de Jian tacteou à procura do seio dela, agarrou-o e ali permaneceu, como se lhe desse segurança.
Lida ainda ficou bastante tempo acordada, desfrutando da pressão da mão dele sobre o seu seio e teve que fazer um esforço para reprimir a vontade e o desejo que se apoderavam de si. Deixou-se ficar sossegada, numa rigidez imposta, a respirar o cheiro do seu suor, que para ela era como um perfume anestesiante. Virara a cabeça para o lado e contemplava o pavilhão de jade que brilhava à luz do luar, como se fosse sobrenatural. ”Está vivo”, pensava. ”Está mesmo vivo e, enquanto ele estiver vivo, eu também estarei.”
E sentiu-se inundada por uma sensação profunda e forte de tranquilidade.
A LUTA DOS PAIS
Quando regressou a Kunming, Jian estava preparado para não ter uma recepção muito calorosa em casa; contava com perguntas atrás de perguntas. À despedida, Zhang tornara a aconselhá-lo a manter o silêncio sobre o seu amor por Lida e a negar tudo, caso Tong Shijun estivesse desconfiado. Mas como é que Tong poderia imaginar o que se tinha passado? Apenas Zhang conhecia o seu segredo e, certamente, não o teria traído.
Após quatrocentos quilómetros de viagem e uma paragem em Nanhua, onde comeu uma sopa de legumes e uma tigela de arroz numa banca de comida na rua, Jian estava satisfeito por chegar a casa. Esperava ansiosamente pela hora em que se poderia estender na sua cama e pensar em Lida.
Tong Shijun ainda estava no hospital, onde fazia um rastreio a vários doentes, pois multiplicavam-se os casos de uma infecção intestinal que, não sendo perigosa, complicava o processo de produção, porquanto nas comunas industriais e agrícolas a falta dos trabalhadores fazia-se sentir. A medicina tradicional teve algum sucesso apenas na fase inicial da doença; quando esta se declarou plenamente, todas as ervas e raízes falharam. Os antibióticos do Ocidente depressa se consumiram, os reabastecimentos vindos de Hong Kong ou de Xangai tardavam em chegar e, para se tratar os sintomas iniciais da doença e utilizar a medicina natural, era preciso que os trabalhadores se deslocassem em massa até ao hospital e que aguardassem em longas filas até serem observados.
Mal Jian entrou em casa, a mãe correu ao seu encontro. estava muito excitada, pálida, e parecia que tinha chorado, e os seus olhos estavam ligeiramente avermelhados.
Jian, o que é que fizeste? - exclamou. - Onde estiveste? De onde vens? Ninguém sabe onde estiveste estes três dias.
Já cá estou outra vez. - Jian deixou-se cair no sofá e esticou as pernas. - Como vês, estou bem.
- O que é que vais dizer ao teu pai?
- Nada.
- Ele não vai dar-se por satisfeito se não lhe disseres nada, Jian. Vão começar a atacar-se um ao outro que nem dois tigres inimigos.
- Já estou habituado, mãe. - Jian despiu o casaco, atirou-o para cima do tapete e pôs os pés no sofá, sem tirar os sapatos. - Tu e o pai têm de perceber que eu já tenho vinte e três anos e sou estudante de Medicina. Já não sou o rapazinho que brinca no jardim com as tartarugas e os grous.
- Agora andas a brincar com raparigas? - perguntou Meizhu.
Jian observou-a com atenção. ”Ela não sabe de nada”, foi a sua primeira impressão. ”Ela não pode saber de nada, está apenas a fazer conjecturas, a mandar palpites, a tentar apanhar-me de surpresa. Se me calar, estou a denunciar-me e à Lida.”
- O que é que te leva a fazer uma pergunta absurda dessas? - retorquiu Jian, tentando sorrir.
- Tu mudaste, Jian. Uma mãe percebe isso mais facilmente do que um pai. A tua vida tomou um novo rumo. Para onde vais, Jian?
- Para a universidade, para ser médico.
- Isso é um dos caminhos. E o outro?
- Só se pode tomar um caminho, não se pode seguir dois.
- Existe alguma rapariga? - Meizhu fez uma pergunta directa.
- E onde é suposto ela viver? k em Dali.
- E porquê precisamente em Dali? Também pode viver em Anshun ou em Gjiu ou em Yibin; Zigong ou Luzhou também são duas possibilidades; ou Guiyang e Zunyi; e não te esqueças de Kunming. Em Kunming vivem muitas raparigas bonitas. Por que motivo haveria eu de colher uma azálea em Dali, se há rosas a florir à minha porta?
- Então quer dizer que há mesmo uma rapariga - concluiu Meizhu, categoricamente. - Um Tong nos braços de numa pessoa indigna. Mas sabes bem que estás prometido à bela e honrada Yanmei.
- Qualquer rapariga que esteja nos meus braços nunca pode ser indigna! O meu amor confere-lhe a honra necessária.
- Amor! Não pronuncies essa palavra sagrada em relação a esse tipo de raparigas. O que te impele para elas é a força da Natureza. São prostitutas, mesmo que não estejam a trabalhar nos bordéis.
- Oh, mãe, as palavras que saem da tua boca! - Jian tentou mais um sorriso, mas ficou-lhe entalado na garganta.
- A China mudou muito desde a tua juventude. Tu entraste no casamento pura, e um tal Tong Shijun, que tu nunca tinhas visto antes, tomou posse de ti e tornaste-te uma parte do seu lar. Ele dava-te ordens e tu obedecias. Ele era o senhor e tu baixavas a cabeça perante ele. Ele gerou dois filhos e estiveste de serviço, porque ele queria.
Meizhu ficou indignada.
- Eu amei o teu pai e ainda o amo.
- Porque nunca conheceste nada diferente e porque é um dever teu. E com Yanmei passa-se o mesmo. Mas eu não quero uma criada na cama; quero uma amante apaixonada.
- E tu queres casar com uma rapariga imoral dessas?
- Ainda estou à procura - retorquiu Jian, esquivo. É como com o vinho... ainda ando a experimentar todos os tipos. A vossa moral tem mofo e bolor; é hipócrita e baseada na mentira.
- Se o teu pai ouvisse essas tuas palavras horríveis...
- Eu digo-lhas na cara, se ele quiser. - Jian levantou-se do sofá e circundou a mesa. - Vou tomar um banho - acrescentou, ao mesmo tempo que estendia as mãos à mãe. Cheira! É o perfume barato de uma rapariga dos subúrbios, mas o corpo dela é como uma orquídea. - Meizhu recuou, com uma expressão de nojo, mas Jian seguiu-a com os braços esticados. - Eu deitei-me sobre ela como se fosse um relvado em flor e os seus dedos deslizaram sobre as minhas costas como se fossem borboletas, enquanto ela se contorcia como uma cobra.
- O que é que se passa contigo? - balbuciou Meizhu, sacudindo os braços de Jian para o lado, pois estavam a impedir-lhe que saísse da sala.
Era a primeira vez, desde que se lembrava, que a mãe lhe batia e ele assentiu com a cabeça e riu-se, após o que bateu palmas e exclamou:
- Louvada sejas, mãe! Também consegues ser uma senhora e não apenas uma escrava numa gaiola de ouro do grande Tong! Mantém essa postura, ganha personalidade! E não tenhas receio! É um facto que o teu marido vai deixar de compreender o seu mundo, mas tu deste um passo em direcção à liberdade. A vida faz-se de pequenos passos... tornam-nos mais fortes do que um grande salto. - Jian assentiu com a cabeça como que incitando a mãe. Esta estava parada, de pé, meio aturdida. - Agora vou tomar banho e tenho uma fome de tigre. - Retirou-se, tomou um banho curto e depois regressou à sala.
Ficou parado à porta da sala.
Tong Shijun já estava em casa, sentado no sofá, a beber uma taça de chá e o olhar com que recebeu Jian não augurava nada de bom.
- O meu filho dá-nos a honra de estar em casa - disse Tong, iniciando as hostilidades. - O senhor estudante gosta de viver uma vida em liberdade.
- Percebeste e falaste correctamente, pai - retorquiu Jian. - É bom saber que chegaste depressa a essa conclusão!
- A única conclusão a que eu cheguei é que tenho um filho que se esquiva às suas obrigações e anda por aí a deambular. Um Tong vadio!
- Ninguém precisa de me chamar a atenção para que eu cumpra as minhas obrigações. Eu sei o que estou a fazer.
- Onde é que andaste nos últimos três dias? - A pergunta soou como uma chibatada.
Jian cerrou os maxilares, mas depois acabou por responder:
- Um vadio anda ao sabor do vento e segue o voo das aves.
- Eu exijo uma explicação! - vociferou Tong, subitamente enfurecido.
- Tu exiges? Disseste mesmo a palavra ”exigir”?
- Disse!
- Então ficas a saber que eu me recuso a dar-te uma ”explicação”.
- Tu estás a insurgir-te contra o teu pai?
- Não! Estou a defender-me de um tirano.
- Ainda és meu filho? - tornou Tong aos gritos. Esqueces o respeito que me deves?
- É bom que saibas que já não és um mandarim, como os teus antepassados, mas um comunista. Um professor doutor comunista, da República Popular da China. Eu sou o filho comunista de um comunista e dirijo-me a um comunista que se comporta como um mandarim: Eu vivo de acordo com as minhas convicções! Foi uma resposta clara?
Tong tremia de fúria e de desgosto, sentia o coração, como se um alicate de ferro o estivesse a apertar.
- Perguntei à tua mãe, mas ela também não me deu uma resposta.
- Tenho vontade de a abraçar com força. A minha mãe está finalmente a ficar um ser humano. Há um bocado bateu-me pela primeira vez.
- Ela fez-te o quê? - Tong tinha a respiração pesadaUma mulher, mesmo sendo a sua mulher, tinha ousado bater no seu filho. - A tua mãe vai pedir-te perdão - acrescentou com voz rouca. - Vai implorar-te que voltes a olhar para ela e que lhe dirijas a palavra.
- E eu vou beijá-la, se ela ousar não fazer isso.
- Tens uma rapariga?
- Tenho muitas raparigas. Todos os dias uma nova e a cada uma delas digo: ”Jian, o filho do grande Tong Shijun esteve em cima de ti.” E a maior parte delas responde-me: ”É uma grande honra ser possuída por ti.” Deste modo, o teu nome ficará ainda mais famoso do que já é.
- Terei eu educado um filho ou um porco? - gritou Tong. - Tu passaste três dias e três noites com prostitutas?
- Com filhas de burgueses honrados. Filhas de respeitáveis camaradas. E tu, antes de casares com a Meizhu, só estiveste com prostitutas?
Apesar de ter vontade de saltar para cima do filho, Tong Shijun recostou-se no sofá e comprimiu as palmas dasmãos contra o coração. Preocupado e subitamente consciente que as suas palavras tinham exercido um efeito fulminante junto do progenitor, Jian deu a volta à mesa para sentir o pulso do pai. Mas Tong afastou-o com um safanão, levantou-se com esforço e saiu da sala ligeiramente cambaleante, sem olhar para o filho.
Meizhu e Jian jantaram sozinhos. Tong Shijun ficou sentado numa poltrona da biblioteca a olhar fixamente para o infinito. Quanto mais matutava sobre a mudança que se operara no seu filho, mais se convencia de que o que Jian lhe tinha contado horas antes não correspondia à verdade; que não passara dias na cama com raparigas diferentes, nem estivera três dias e três noites a vadiar por aí, para se desafogar. Independentemente de toda a sua indiferença, não era o estilo de vida de Jian. Portanto, a pergunta mantinha-se: Onde estivera ele durante aqueles três dias e três noites?
Tong recuperou a calma da sabedoria. Decompôs o carácter do filho, como quem disseca um cadáver para fazer uma autópsia. E foi assim que Tong chegou à conclusão que havia apenas uma rapariga, pela qual Jian se apaixonara de verdade e que agora tentava proteger com aquela conversa leviana.
”É isso mesmo”, asseverou Tong para si, ao mesmo tempo que reconheceu o perigo. Relações com várias raparigas são aventuras passageiras; ter uma única rapariga é como ter um rouxinol, que se escuta em êxtase e que se leva onde quer que se vá. Se fosse verdade, Tong perderia a face junto ao pai de Yanmei e mancharia a sua honra irremediavelmente. Tong evitou tornar a falar com o filho nessa noite. Foi para a cama e quando Meizhu, mais tarde, se deitou junto dele, perguntou-lhe.
- Tu bateste no Jian?
- Sim. Ele mereceu.
- Achas bem uma mãe atacar o seu filho?
- Estou satisfeita por tê-lo feito. Sinto-me como se estivesse a respirar melhor. - Sentou-se na cama, virou-se para Tong e olhou-o com uma expressão que Tong nunca tinha visto antes. - Será que nós chegámos a viver?
- Que pergunta! Passámos quase trinta anos a fazer tudo em conjunto.
- Tu mandavas e nós fazíamos. Alguma vez perguntaste: ”Achas bem assim, Meizhu?”
- E fizemos sempre o que estava certo! Onde é que eu cometi um erro? Pensa na Revolução Cultural. Sobrevivemos, apesar de eu ser um intelectual, que era suposto fuzilar ou matar à pancada. Pus-me à disposição das hordas de MAO na qualidade de médico. E quando MAO descobriu que o Zhang Shufang era o teu tio, recebi um passaporte que nos protegeu de todas as perseguições. Aceitaram-me no Partido e MAO ofereceu-me uma bandeira. Sempre fiz o que estava certo, Meizhu, e tu perguntas se nós vivemos? Houve alguma coisa que eu não te desse?
- A sensação de ser uma pessoa igual a ti.
- Eu fui educado assim. - Virou a cabeça para ela. - Então bateste no Jian e agora sentes-te mais livre?
- Eu não me limito a ver a vida passar, eu quero agarrá-la. Ainda não sou velha de mais.
- Tu nunca serás velha, Meizhu. Para mim, és sempre jovem.
Meizhu sentiu o coração a bater mais depressa. Tong nunca fora homem de lhe fazer declarações de amor, nem sequer nos primeiros anos de casamento, e agora, naquela idade, dirigia-lhe uma frase daquelas, que lhe penetrou mais fundo no coração do que se tivesse dito: ”Eu amo-te.”
”Para mim, és sempre jovem”... era uma frase que provava a resistência’do seu amor.
- O Jian está apaixonado por uma rapariga - asseverou Tong - e tudo o que ele diz é um muro que está a construir à sua volta. Deve amá-la de verdade, para andar a encher o pai de mentiras. Mas quem será ela? Onde morará? Qual será o estatuto da família dela?
- E isso é importante, se o Jian está feliz?
- Eu quero que ele me apresente a rapariga.
- Ele vai continuar a escondê-la enquanto o obrigares a casar com a Yanmei.
- Não pode escondê-la de nós a vida inteira. Seja agora ou daqui a uns meses, vai ter que nos apresentar a rapariga. Meizhu - Tong pegou namão dela e aproximou-a do seu peito -, fala tu com o nosso filho. Imploro-te.
- Tu imploras-me? Já não me dás ordens? Shijun, tu não podes simplesmente deixar de ser um Tong autêntico!
- O Jian também é um Tong autêntico e, no entanto, é diferente de mim. Eu já não tenho força suficiente, Meizhu.
- Pegou namão que mantinha junto ao peito, conduziu-a até aos lábios e beijou-a. Meizhu não se lembrava de alguma vez Tong lhe ter beijado amão. - A disputa com o meu filho está a roubar-me as forças. Quero ter paz na minha casa. O meu filho deve trazer-me a rapariga.
- E se ela, a teu ver, não for digna de um Tong?
- O meu filho não pode amar uma pessoa indigna, ou não seria meu filho.
- Deve haver alguma coisa de especial nela, senão porque a esconderia de nós?
- Diz-lhe que vou procurar o pai da Yanmei e anular a promessa. Aí, verá que pode ter confiança no próprio pai.
- Porque é que não lhe dizes tu?
- Queres que perca a minha face duas vezes? - Tong olhou para Meizhu com amargura e via-se um grande sofrimento nos seus olhos. - A partir de agora, vou passar a ver apenas uma mancha no espelho.
- Tu vais continuar a ser o grande e orgulhoso Tong que sempre foste. Ninguém te pode levar a face. – Meizhu recostou-se na sua almofada, mas deixou a mão no peito de Shijun. Sentia que o contacto estava a fazer bem ao marido
- Amanhã falarei com o Jian - garantiu. - Primeiro, tenho que afastar as desconfianças, pois ele não vai acreditar que já não haverá mais discussão.
- Que tipo de rapariga será? - perguntava Tong pela enésima vez. - Achas bem que ela ande a dormir com o Jian?
- A juventude actual tem um conceito de amor diferente do nosso. Não se exigia uma conduta moral por parte de uma concubina, mas uma noiva tinha que ser virgem sob o véu. Hoje em dia, os jovens riem-se disso. O amor libertou-se de todas as convenções. Não sabemos se é um passo em frente. - Apagou a luz da mesa-de-cabeceira e, quando tentou retirar amão do peito de Tong, este agarrou-a e prendeu-a. E assim adormeceram, com a sensação de terem dado um passo importante para o futuro do filho.
Quando Meizhu entrou na sala de jantar de manhã cedo, Jian já estava sentado à mesa e partia um pão aos bocados. Meizhu sentou-se à frente de Jian e juntou as palmas das mãos.
- Tenho uma coisa a dizer-te da parte do teu pai - começou ela. Jian levantou a cabeça e olhou-a estupefacto. Era a primeira vez que a mãe lhe transmitia um desejo do seu pai.
- O que é que o meu pai tem a dizer? - perguntou Jian.
- Os pensamentos roubaram-lhe o sono ontem à noite.
- Lamento se foi por minha causa - replicou Jian com frieza. - Mas não posso fazer nada.
- Podes, sim. É isso que o teu pai me pediu para te dizer. Ele chegou à conclusão que tudo o que lhe contaste sobre ti e as tuas raparigas só se passa na tua imaginação. Tudo o que disseste foi para proteger uma única rapariga.
- O meu pai teria feito melhor se dormisse em vez de pensar.
- Ele está muito preocupado, pois ama-te mais do que tudo no mundo. Tu és o orgulho dele. Contigo, os Tong vão continuar a viver, e a mulher que escolheste e que será a mãe dos teus filhos também vai agradar ao teu pai. Era isto que eu queria dizer-te da parte dele: pede-te para o deixares conhecer a rapariga.
Jian hesitou. Percebeu que o pai queria encostá-lo à parede, sem hipótese de retorno, a não ser que rompesse definitivamente com a família. Jian não confiava no pai o suficiente para lhe contar o seu segredo.
- Não existe a rapariga - negou Jian com voz firme. Meizhu abanou a cabeça.
- Por favor, já chega de mentiras.
- O meu pai está enganado.
- Ele quer paz no seio da família. Jian, ajuda-o a ter paz. Traz a rapariga cá a casa e apresenta-nos.
- Não posso apresentar-vos uma pessoa que não existe.
- Eu vejo a verdade nos teus olhos. - Meizhu, vestida com o seu roupão de seda, continuava a ser uma mulher bonita, mais alta que a maior parte das mulheres chinesas, com o corpo elegante e um porte majestoso, para o qual as filhas das famílias ricas eram educadas desde crianças. - Essa rapariga é de origem tão baixa que tenhas vergonha de a apresentar ao teu pai? - perguntou.
- Para mim, não há origens baixas nem origens altas. Eu gosto de uma pessoa independentemente do seu estatuto social!
- Acabaste de dizer que gostas de uma rapariga.
- Apenas ilustrei o meu ponto de vista. Mais nada.
- É operária? Camponesa? Empregada de balcão?
- Não faz sentido estares a fazer-me perguntas dessas. - Jian levantou-se da mesa e consultou o relógio de Pulso. - Tenho de ir para a universidade. Esta manhã vvou dissecar corpos em Anatomia.
- O que devo dizer ao teu pai? - Meizhu não permitiu que ele desviasse a conversa; via o interior do seu filho, como só uma mãe consegue.
Jian voltou-se de costas para evitar o olhar perscrutador da mãe. Sabia que ela sofria muito com as suas mentiras.
- Diz ao meu pai que os pensamentos dele estão a tomar um rumo muito diferente do meu.
- Queres continuar com a guerra?
- Não fui eu que a iniciei e nunca pretendi que assim fosse. Se existir uma rapariga - Jian respirou fundo -_ o meu pai vê-la-á quando for a altura certa.
- Por ti, ele vai perder a face e voltar atrás na promessa em relação ao teu casamento com a Yanmei. És capaz de compreender o que isso significa para o teu pai?
- É a rectificação de um erro que ele próprio cometeu. Quem arranja problemas por conta própria tem de os saber solucionar.
- Onde é que foste buscar essa insensibilidade toda? Jian, o teu pai está doente de preocupação. - O tom de voz de Meizhu era quase uma súplica, e Jian sentiu o coração apertado por estar a fazer sofrer a mãe. - Ele sente que o seu filho está cada vez mais distante. Já não tens confiança nele?
- Vejo que ele está a sofrer, mas nunca irá mudar. Continua a ser o Tong que concebe como evidente a veneração e a submissão. E é exactamente isso que ele não pode exigir de mim. Eu não vou baixar a cabeça e dizer, subservientemente: ”Vou fazer como tu mandas.” Ele não percebe que a nossa geração é diferente. Não quer perceber. - Tornou a olhar para o relógio. - Agora tenho mesmo de ir, mãe.
- Reflecte sobre isto tudo - pediu Meizhu, acompanhando-o até à porta. - Lembras-te de alguma vez o teu pai nos ter pedido alguma coisa?
- Não.
- Mas agora está a pedir. É um pedido dirigido a ti. - Jian, não faças orelhas moucas. Dá-lhe uma resposta.
- Falarei com ele hoje à noite.
- E a rapariga?
- Não há rapariga nenhuma - volveu Jian com firmeza-
- Tu estiveste fora três dias e três noites.
- Ninguém tem o direito de me pedir satisfações sobre isso. Nem o meu pai nem tu, mãe. - Abriu o trinco da porta e voltou-se mais uma vez para Meizhu, antes de entrar para
o automóvel. - Eu sou um filho desobediente e não tenho nenhuma intenção de mudar.
Entrou no carro, viu a mãe parada à porta e de repente pareceu-lhe que ela estava mais pequena e mais delicada, como uma mulher à beira da velhice. Sabia o sofrimento que lhe provocava e sentia esse sofrimento dentro de si, mas não podia fazer outra coisa, pois a verdade sobre Lida desencadearia uma catástrofe.
Meizhu ficou a ver o filho afastar-se, até o automóvel desaparecer na curva da estrada. Regressou a casa, fechou a porta e dirigiu-se para o quarto.
Tong estava sentado na cama e o seu rosto parecia um pergaminho enrugado, pois a noite passada em claro tinha-o deitado muito abaixo.
- Que diz o meu filho? - perguntou, mal Meizhu entrou no quarto.
- Nada. - Sentou-se na beira da cama e enterrou a cara nas mãos. - Construiu um muro entre ele e nós. Ouvimos as respectivas vozes, mas já não nos encontramos.
Calaram-se ambos e passou-se algum tempo até que Tong observasse:
- Haveremos de descobrir a cor certa para pintar esse muro e torná-lo mais belo.
Huang Keli fez todos os esforços possíveis para transformar o anexo numa construção autêntica. Quando Jian voltasse de visita, mostrar-lhe-ia, orgulhoso, a linda habitação que tinha construído para ele e para Lida.
Com a ajuda do zelador da escola e de um vizinho, Huang cozeu os tijolos e a cal no forno comunitário da comuna de Huili, e Lida, com o pequeno tractor e o atrelado, carregou a pedra retirada da pedreira para construir a primeira lareira a sério da aldeia, pois as casas não tinham aquecimento e as pessoas aqueciam-se no calor do lume de carvão da cozinha. Os que almejavam o conforto máximo, mandavam vir de Dukou um cano de chumbo para o fogão, abriam um buraco na parede exterior ou no meio do telhado e o fumo do fogão de pedra saía em direcção ao céu. Uma lareira verdadeira, ninguém sabia o que era e, portanto, a aldeia inteira reuniu-se à volta da casa de Huang para admirar a nova construção em altura. Quando a obra-prima ficou concluída e Huang acendeu a lareira pela primeira vez, a admiração foi enorme. O secretário da comuna fez um discurso, no qual falou do progresso e do espírito empreendedor do comunismo.
Como era evidente, quando as vigas do telhado foram encaixadas, Huang também teve que organizar a tradicional festa do pau de fileira. Os vizinhos trouxeram carne, arroz, massa, galinhas e patos, enquanto Jinvan e Lida começaram a cozinhar logo às cinco da manhã para terem a comida pronta ao meio-dia. Havia aguardente de arroz e cerveja de gengibre em profusão e comeu-se, cantou-se e dançou-se ao som de uma flauta e de um tambor de madeira.
E foi no final da festa que aconteceu a desgraça.
Quando se deu início ao inevitável fogo-de-artifício de qualquer festa digna desse nome, com os seus estrondos, estalos e assobios, um burro, que costumava passar os dias obediente e pacientemente a transportar madeiras, pedras e outro material de construção colina acima, e que nesse dia tinha sido amarrado a uma trave de apoio, soltou-se e desatou aos coices, cego de medo, a direcção do emaranhado de gente, acabando por acertar em Lida, que não conseguiu fugir a tempo. O coice deitou-a por terra, mas o seu sangue-frio permitiu-lhe ainda levantar os braços para proteger a cabeça. Contudo, os cascos acertaram-lhe nos ombros e nas costas, por isso desmaiou, prostrada pela dor que lhe fez estremecer o corpo todo.
Huang e dois vizinhos levaram-na para dentro de casa, deitaram-na sobre a mesa e o médico terapeuta da comuna de Huili, um ”médico descalço”, afastou a blusa do corpo de Lida e observou pensativamente os locais onde o sangue escorria.
Zhou Chen pertencia ao grupo de médicos terapeutas que tinham sido formados nos conceitos-base da medicina moderna e tradicional, para tentar suprir a falta de médicos e, principalmente, para tratar a população rural.
- Está gravemente ferida? - perguntou Huang.
- São contusões e hemorragias. Só poderei determinar se há ferimentos internos se ela cuspir sangue ou se houver sangue nas suas fezes. Mas parece-me que são apenas ferimentos externos.
- Consegues tratá-la ou é melhor levá-la para o posto médico de Dayao?
- Em Dayao não sabem mais do que eu. Há lá um médico, de facto, mas tem a consciência afogada em álcool. Zhou apalpou os pontos que sangravam e fez uma expressão satisfeita. - Tenho uma pomada e uma tintura que vão ajudar - concluiu. - Refresca e tira as dores. Não te preocupes, Keli, parece pior do que é. Vou buscar o medicamento. Quando a Lida recuperar os sentidos, diz-lhe que daqui a duas semanas as costas dela estarão tão macias e bonitas como dantes. Não ficarão/ cicatrizes.
Depois de se acalmarem os ânimos, de o proprietário do burro o ter apanhado e açoitado desenfreadamente com uma ripa de madeira, a festa prosseguiu. Os respeitáveis anciãos, sentados nas primeiras filas e comendo a melhor comida, louvaram Huang, o anfitrião, e foram os primeiros a serem levados para casa, embriagados, pelos filhos ou pelos netos. Por todo o lado se viam notas escritas, com votos de felicidade e benções, coladas nas traves de madeira, bem como faixas coloridas atadas; e da cozinha chegavam tabuleiros de madeira com bolos doces cobertos de bagas silvestres.
Quando Lida acordou, levaram-na para a cama de Huang. Ficou deitada de barriga para baixo e garantiu a Jinvan, cujas perguntas não paravam de chover, que não tinha dores; só desmaiara com o susto de se ver subitamente debaixo dos cascos do burro. Zhou regressou com a sua pomada e a sua tintura, que cheirava a pó contra as traças, e esfregou as costas de Lida.
- A composição é da minha autoria! - exclamou Zhou, cheio de orgulho. - Fui um dos melhores do meu curso, se queres saber, Keli. Até descobri um medicamento que cura uma doença que nenhum médico consegue curar.
- O que é?
- O fluxo nasal. O meu medicamento seca as mucosas Adeus corrimento nasal! - Zhou enroscou a tampa do frasco da tintura. - Só tem um efeito secundário insignificante.
- E qual é?
- Os doentes ficam com diarreia. - Zhou encolheu os ombros, desgostoso. - Uma pessoa só tem de decidir o que prefere: se um nariz a pingar ou um intestino trovejante.
- Eu preferia o nariz, Zhou.
- É o que todos dizem. - Zhou olhou para Huang, como se esperasse que este se compadecesse. - A comissão de medicamentos também rejeitou o medicamento. E, no entanto, é o único que acaba verdadeiramente com o nariz a fungar. É útil a dobrar: um nariz livre e um intestino limpo. Porque é que ninguém reconhece isso? Devia haver um remédio para a estupidez.
A festa durou pela noite dentro e no final, quando os últimos vultos cambaleantes se afastaram, o secretário da comuna virou-se para Huang:
- Então é certo que a Lida vai casar com esse Tong de Kunming?
- Sim, é certo. Ele deu a sua palavra.
- E se ele se esquecer?
- Então vou lá e trago a honra da minha filha de volta.
- Vais matá-lo?
- Vou.
- E a Lida?
- Mata-se.
- E dizes isso com essa serenidade?
- Os Huang podem ser pobres no que respeita a dinheiro, mas são ricos em honra. E isso dá-nos serenidade.
Quando o secretário se foi embora, Huang sentou-se sozinho sobre uma viga serrada, no interior da nova construção, contemplando o céu onde cintilavam as estrelas. Assustou-se quando, de repente, deparou com Jinvan à sua frente. A mulher aproximara-se tão silenciosamente que parecia que os seus pés não tinham tocado no chão.
- Não vens para casa, Keli? - perguntou Jinvan. -” Porque é que estás aqui sozinho, sentado no escuro?
- Tenho de me habituar a uma situação que durará muito tempo.
- Não sei do que é que estás a falar, homem.
- Eu, Huang Keli, professor de Huili, sou agora o homem mais pobre da aldeia. Esta festa custou-me até ao último iuane que eu tinha poupado. Não tenho mais nada. Com que dinheiro é que hei-de pagar o telhado, mesmo que seja eu próprio a fazer o trabalho? E a porta também ninguém ma vai oferecer. - Apontou para uma nota colada nas vigas.
- Lê o que está aí escrito - disse. - ”A sorte mora nesta casa.” Este ditado está errado. Devia dizer: ”As dívidas moram nesta casa.”
- Vamos vender a colheita inteira de dois campos no mercado de Yao’na.
- E no Inverno viveremos das minhocas da terra.
- Até lá, o Jian já terá voltado. Ele vai ajudar-nos.
- Eu não vou mendigar junto do meu genro. - Huang enfiou a cabeça entre as duas mãos. - Estou a pensar o que é que poderemos vender.
- Não temos nada que valha dinheiro.
- O búfalo. Posso vender o búfalo. Jinvan olhou indignada para o marido.
- Não podes fazer isso à Lida, Keli.
- Vou perguntar-lhe: preferes uma casa para ti e para o Jian ou o teu búfalo? Qual vai ser a resposta dela?
- Uma casa pode ser construída ao longo dos anos; um búfalo é preciso todos os dias. E, para nós, o dia é mais próximo do que o ano. Mas a decisão é tua. Tu és o homem. Foi-se embora para casa, tão silenciosamente como tinha chegado, deixando-o a sós com os seus pensamentos e as estrelas.
De manhã, Lida partiu para os campos com o búfalo e Huang não teve coragem de lhe dizer que estava a pensar vender o animal. Apenas a repreendeu:
- O Zhou mandou-te ficar na cama quatro dias.
- Ele pode mandar, mas eu tenho de trabalhar. Dentro de quatro dias há mercado em Dayao e ainda preciso de colher o milho. Vou vendê-lo. - Afagou o búfalo entre os chifres e encostou-se ao seu corpo maciço. - E também levo dez patos e um porco.
- Nós temos um porco? - perguntou Huang, estupefacto.
- Temos. - Lida riu-se. Já podia contar o seu segredo. - Construí uma pocilga junto às rochas e criei-o.
- E de onde é que veio o leitão?
- Foi o Zhou Chen que mo ofereceu. A porca dele teve nove crias e ele não sabia o que havia de fazer com elas. Ficou com duas e ofereceu as outras. - Deu outra gargalhada por ver Huang tão surpreendido. - Está um belo porco, e gordo! Vou vendê-lo bem caro. Vamos deixar de ter dívidas.
- Tu sabes que temos dívidas?
- Aprendi a fazer contas contigo e era a melhor da turma.
- Mas como é que havemos de continuar a viver quando esse dinheiro acabar?
- Eu e a mãe vamos bordar camisas, casacos, colchas e faixas e vendê-las aos revendedores que vêm de Kunming. Temos longas noites à nossa frente e queremos dar-lhes alguma utilidade.
- E quando é que vais dormir? - A voz de Huang soava entorpecida de preocupação. Sentiu vergonha por ser apenas um professor e não saber fazer mais nada do que ensinar e dizer palavras sábias. Em contrapartida, a sua mulher e a filha empreendiam uma luta contra a pobreza e, não obstante o seu infortúnio, respeitavam-no e reconheciam-no como o seu senhor.
- Terei tempo de sobra para dormir quando a casa estiver concluída e o Jian vier viver comigo. Por isso, tem de estar pronta quando ele voltar. Vamos estar à porta e dizer-lhe: ”Entra, é a tua casa.”
- E se ele nos aparecer amanhã?
- Não pode, tem que estudar. - Lida abanou a cabeça.
- Só pode voltar no Inverno, mas vai entrar numa casa bonita e quente e sentir-se feliz.
Huang assentiu em silêncio e foi para casa de cabeça baixa. Pensava na maravilhosa filha que tinha, na sua maravilhosa mulher, só por isso, devia estar feliz e não se atormentar com autocensuras.
Lida seguiu-o com os olhos até ele entrar em casa, depois puxou o búfalo e desceu a colina em direcção aos seus campos. Sabia que os próximos tempos seriam difíceis, mas também pressentia a força que se apoderava dela quando pousava asmãos no pavilhão de jade. Estava sempre junto dela, nunca o deixava sozinho e também agora a acompanhava para o campo, na sacola de vime que levava aos ombros.
Todas as noites falava com Jian, como se ele estivesse debaixo das estreitas colunas, contava-lhe como fora o seu dia, as saudades que tinha dasmãos dele, do carinho dele, dos seus lábios e do seu corpo. E quando finalmente fechava os olhos, ouvia a sua adorada voz e perguntava-lhe: ”Estou junto de ti, não sentes?”
Depois olhava para o pavilhão de jade e parecia-lhe que ele se iluminava e dizia baixinho: ”Obrigada, obrigada”; então adormecia.
Numa manhã de sábado de Outono, Jian disse para a mãe:
- Vou-me embora. Volto na segunda-feira. Só para o caso de o pai fazer perguntas.
A relação entre eles não melhorara. Tong não tornara a expressar o seu desejo de conhecer a rapariga que Jian amava, mas também não fora procurar o pai de Yanmei para retirar a sua promessa. Há meses que pai e filho só falavam o essencial entre ambos; de resto, tentavam não estar no caminho um do outro, o que numa casa grande não levantava quaisquer problemas. No geral, e mesmo que não mostrasse, Tong estava orgulhoso do filho. Tinha andado a informar-se junto dos professores dele, os quais haviam tecido grandes elogios a Jian, especialmente o professor catedrático de Patologia, que proclamara: ”O seu filho tem um dom, um dia será um grande cirurgião.” Tong ficou contente e, ao mesmo tempo, irritado, pois abrir um corpo qualquer carniceiro fazia. A arte da medicina era o diagnóstico das doenças através do espírito e do conhecimento, e o rei das especialidades médicas, segundo a perspectiva de Tong Shijun, continuava a ser a Medicina Interna.
- Para onde vais, Jian? - perguntou-lhe Meizhu. Jian sorriu para ela.
- Mãe, tu prometeste-me que nunca mais me farias perguntas dessas.
- Pode acontecer alguma coisa e precisar de comunicar contigo. Onde poderei contactar-te?
- Mãe, não tentes esse truque velho comigo. Eu vou simplesmente desaparecer durante três dias.
- Porquê três dias?
- Sim, porquê? Há charadas que são muito difíceis por a sua solução ser tão simples.
- Queres que adivinhe?
- Tenta, mãe.
- Tens uma longa distância a percorrer para chegares junto dessa rapariga.
- É uma hipótese. - O sorriso de Jian não era verdadeiro. Admirava a sensibilidade da mãe e sabia que ela representava um perigo maior do que o seu pai.
- Sempre que regressas destas viagens estendes-te na cama como se tivesses estado enfiado dentro de uma caixa ou passado horas sentado ao volante do automóvel. E tens pó colado nos cabelos. Pó da estrada. Em Kunming, as estradas são limpas; no campo é que há estradas poeirentas.
- Meizhu Tong, a grande e desconhecida criminalista. Também andaste a controlar os meus sapatos, a ver se havia lama? Há vestígios de erva nas minhas calças? A minha camisa absorveu o cheiro de um búfalo? Mãe, onde é que queres chegar? Queres seguir o caminho errado?
- Desconfio que tens um cúmplice. Alguém que te ajuda.
- E quem seria esse cúmplice?
- O tio Zhang.
A resposta embateu em Jian como um soco, mas não se percebeu. A mãe estava a tornar-se inquietante, o seu instinto era como uma antena, que recebia sinais delicados e os transformava em imagens. Teve o sangue-frio de controlar o tom de voz.
- É a coisa mais absurda que eu já ouvi - declarouEm seguida, dirigiu-se para a porta e acenou. - Adeus, ate daqui a três dias, mãe. - E saiu de casa rapidamente.
A reacção do filho dera que pensar a Meizhu. Quando Tong apareceu para o pequeno-almoço, deu com ela sentada no alpendre, a olhar para o jardim, que era um êxtase de flores e o seu grande orgulho. Um pequeno lago com nenúfares e peixinhos dourados cintilava à luz do Sol da manhã. Neste pátio interior estava encerrado o silêncio; ali, a alma podia expor-se e deitar fora o seu peso.
Tong sentou-se ao lado da mulher num banco vermelho, envernizado, e pôs o braço sobre os ombros dela. Meizhu não se moveu, nem quando a mão de Tong lhe acariciou o braço.
- O Jian partiu em viagem - disse ele, após um longo silêncio.
- Sabias, Shijun?
- Ouvi o motor do carro dele. Hoje não há aulas. Portanto, não foi para a universidade.
- Não. O Jian vai tornar a desaparecer durante três dias. Vai visitar outra vez a tal rapariga. Deve ser um grande amor, mais forte do que a sua confiança em nós. Ele fecha-se completamente, já não consigo aproximar-me dele. Também já falei sobre isto com a Fengxia. O Wu encontrou o Jian na universidade e perguntou-lhe, mas o Jian respondeu com insolência e disse-lhe que não era da conta dele. O Wu que mantivesse a sua própria casa limpa. Para o Wu, estas conversas são uma ofensa e anda cada vez mais furioso com o Jian. ”O meu irmão está doido”, terá dito a Fengxia aos gritos, ”uma bruxinha lançou-lhe um feitiço e cegou-o com o seu corpo sensual.” Sensual, disse ela. O meu coração quase parou.
- A Fengxia é muito precipitada nas suas sentenças, mas desta vez tenho de lhe dar razão. O nosso filho mudou, só dá ouvidos à rapariga. Meizhu, estamos a perder um filho em vez de ganharmos uma segunda filha para o nosso lar.
- Eu tenho um mau pressentimento, Shijun. O Jian tem de fazer uma longa viagem para se encontrar com essa rapariga.
- Também acho que sim - concordou Tong.
- Mas por onde é que ele andou sempre nos últimos meses, mesmo nas férias?
- Em casa do Zhang, em Dali. - A expressão de Tone petrificou. Ali estava uma pista que se teria de seguir. O Zhang sabia mais do que contara a Tong, aquando da sua visita. Por outro lado, Tong apenas lhe fizera perguntas relacionadas com ligações políticas e nada sobre raparigas. Nessa altura, não lhe passava pela cabeça tal ideia. - Estás convencida que o amor secreto do Jian vive em Dali?
- O meu instinto diz-me que tem de ser isso.
- Talvez até uma rapariga de etnia bai?
- Seria uma boa explicação para os secretismos do Jian.
- E o Zhang ofereceu-lhe ajuda?
- Eu não sei, é só um pressentimento. O Zhang sempre foi uma pessoa que pensou de maneira diferente de nós. Para um poeta, o amor é sagrado. O Jian é para o Zhang o renascimento da sua própria juventude.
- Vou visitá-lo outra vez e falar com ele. - Tong abanou a cabeça. - Uma rapariga bai!
- Se for de boas famílias... Em Dali há famílias bai ilustres. Mesmo que o Jian troce da tradição, nunca casaria abaixo do seu estrato social.
- Mas quem é que está a pensar em casamento? É uma aventura amorosa, mais nada. Uma paixoneta que, mais cedo ou mais tarde, desaparece. É assim que encaro isso agora. É a primeira experiência profunda de Jian com uma mulher; vai libertar-se por ele próprio. Mas eu quero ver a rapariga e o Zhang deve conhecê-la, se o teu pressentimento estiver certo.
- Quando é que estás a pensar ir a Dali?
- Agora não. Algures nas próximas três semanas. Não quero encontrar o Jian em casa do Zhang. Ele não pode saber que o seu segredo foi desvendado.
Nesse dia, enquanto Jian seguia ao volante a caminho de Huili, Tong pôs de lado a sua honestidade pela primeira vez, e fê-lo por preocupação com o filho. Entrou no quarto de Jian e começou a vasculhar as coisas dele.
Meizhu não conseguiu esconder a sua perplexidade.
- Shijun! - exclamou, interpondo-se no caminho, quando ele se preparava para abrir as gavetas de uma cómoda laçada. - Tu não podes assaltar o quarto do teu filho.
- Posso, pois! A casa é minha! É um direito meu...
- Tu não tens o direito! - interrompeu Meizhu. Tong fitou-a, estupefacto. A mulher estava a opor-se ao
marido! Era uma coisa tão extraordinária e tão incompreensível que lhe faltou a respiração.
Também Meizhu se apercebeu que era a segunda vez que se insurgia contra o tradicional dever de obediência ao marido.
- Isto é o domínio pessoal do Jian. É só dele.
- Ele é meu filho e eu quero saber o que o meu filho anda a fazer. Vais impedir-me? - Tong afastou Meizhu para o lado com um empurrão: também era a primeira vez, em vinte e oito anos, que era bruto com ela.
Meizhu foi de encontro à parede a cambalear e ali ficou parada, entorpecida, o que Tong, na sua exaltação, interpretou de maneira errada. o sangue martelava nas suas veias; a única coisa que queria era saber a identidade da rapariga misteriosa que Jian amava. Naquele momento, não se apercebeu que o seu comportamento tinha produzido um fosso entre ele e a mulher, que nunca mais poderia ser tapado, pois Meizhu já não estava disposta, depois daquela agressão, a permanecer obediente. Assumia o direito de ter personalidade própria.
Tong abrira as gavetas da cómoda e vasculhava o seu conteúdo. Junto a manuais, cadernos e papel de carta, entre outras coisas, descobriu também um mapa de estradas do Sudoeste da China, um mapa muito detalhado, com Kunming no centro e uma janela à parte que apenas incluía a província de Yunnan.
Tong sentou-se numa poltrona, abriu o mapa sobre os joelhos e seguiu com o indicador o troço que Jian tinha assinalado visivelmente a vermelho: de Kunming, ou Dali, até ao cruzamento de Nanhua, depois a estrada para o Norte através de Yao’an e Dayao, a partir dali uma estrada estreita, em direcção a este, que aparentemente atravessava uma paisagem erma e selvagem, até chegar a um círculo que Jian tinha desenhado no meio daquele isolamento. Junto ao círculo havia um nome: Huili. Era de certeza uma aldeia e tão insignificante que nem sequer vinha no mapa.
Tong pousou as duas mãos no mapa e olhou para Meizhu, que continuava estática junto à parede, como se fosse uma estátua.
- Não é em Dali - concluiu, oprimido. - É numa aldeia insignificante, uma aldeia imunda e desconhecida, entre Dayao e Binchuan. Um mísero lugarejo de camponeses. - Fechou os olhos como se tivesse levado um soco. Procurou recordar as palavras que Jian dissera, quando se recusara pela primeira vez a casar com Yanmei, e cujo significado Tong não apreendera na altura. Ficara intrigado, pois Jian retorquira com a pergunta se Yanmei sabia plantar pés de arroz, dirigir um búfalo com o arado ou limpar as ervas-daninhas de um campo. Tong convencera-se de que eram perguntas disparatadas, mas agora tudo fazia sentido.
Uma camponesa de Huili... o fim da família Tong, um nome tão importante, já desde a época dos imperadores Ming.
Meizhu aproximou-se, pegou no mapa com as pontas dos dedos e, quando viu o percurso assinalado a vermelho, apercebeu-se que Shijun tinha descoberto o segredo do filho. Mas por mais forte que fosse a sua revolta contra o marido, naquele momento, teve que lhe fazer justiça.
Uma camponesa nunca poderia vir a ser mulher de Jian.
- Que pensas fazer? - perguntou Meizhu, deixando cair o mapa sobre o tapete.
- Impõem-se algumas questões - retorquiu Tong. A primeira é se o Zhang sabe da existência desta camponesa.
- Quem conhece o Zhang, responde sem hesitar. Sim. Conhece a rapariga. E para ele é um triunfo dar cabo da família Tong com ela.
- Porque é que ele me odeia tanto? - inquiriu Tong.
- Ele não te odeia. Acha que tu és ridículo. É o pior que pode acontecer a um homem.
- Eu nunca lhe dei motivos para pensar desse modo sobre mim. Organizei exposições dos seus quadros, ajudei a tornar o nome dele famoso em toda a China, para além das fronteiras da província de Yunnan. Ele deve-me gratidão e não troça. - Tong fez um gesto de irritação. - Mas porque é que estamos aqui a deambular sobre o Zhang! O nosso filho perdeu-se no caminho e nós temos que o trazer de volta.
- Consegues apagar um incêndio com um balde de água?
- Se o fogo deixa de ter alimento, apaga-se por si próprio.
- Queres fazer desaparecer a rapariga? - exclamou Meizhu, e o medo tornou a sua voz estridente. - Shijun, o que é que te está a passar pela cabeça?
- Vou a Huili - declarou Tong com firmeza. - A honra da família vale qualquer sacrifício.
- Sabes que o Jian não terá o mínimo constrangimento em matar-te?
- O Jian nunca levantaria amão contra mim.
- Ele não hesitaria em fazer-te a mesma coisa que tu queres fazer com a rapariga.
- Meizhu, o que é que julgas que eu sou capaz de fazer? - Tong baixou-se, apanhou o mapa do chão e dobrou-o. - Vou arranjar maneira de convencer a rapariga que o Jian nunca casará com ela. Antes do mais, vou falar com o pai dela, e se este for uma pessoa compreensiva vai impedir a filha de ver o Jian. Quando dois pais conversam um com o outro encontram sempre um caminho.
- Como é que um pobre camponês se pode defender contra o grande Tong!
- É essa a minha percepção. - Tong guardou o mapa no bolso do casaco. - Então, o Jian está a caminho de Huili. Vamos deixá-lo aproveitar esta visita, pois será a última. Meizhu, não lhe contes nada do que decidi fazer. Ele não deve saber nunca que eu fui à aldeia. Se o camponês souber escrever, vai mandar uma carta ao Jian a proibi-lo de voltar a ver a filha. E se a rapariga souber escrever, assinará por baixo: ”Também é este o meu desejo.” Um Tong, e Jian é um Tong autêntico, é orgulhoso de mais para pedir esmolas de amor. - Fitou Meizhu com ar satisfeito.
- E se o camponês se recusar? Ele tem um peixe dourado na rede com o Jian.
- Não há-de ser por falta de dinheiro. - Tong sorriu ao imaginar a cena. - Nesse ponto, os homens também se entendem.
Era novamente um daqueles momentos em que Meizhu tinha de reconhecer com sinceridade que Tong Shijun era, de facto, um grande homem.
Para Huang Keli, o mundo estava outra vez mais claro.
Lida conseguira vender o milho todo a um negociante grossista, passara o porco gordo para o Matadouro n.o 2 e os dez patos renderam um bom preço, pois estavam bem alimentados e não injectados com água para ficarem gordos, como de vez em quando faziam alguns camponeses tratantes. O dinheiro que Lida trouxe do mercado foi suficiente para pagar as dívidas e até sobrou algum, com o qual Huang conseguiu comprar vigas planas e uniformes para o soalho.
A casa de Lida e Jian era a mais bonita e, principalmente, a mais moderna de Huili e das redondezas. Não tinha paredes de barro, chão de pedra, nem fogo aberto na cozinha ou um buraco, por onde saía o fumo... A casa de Lida e Jian brilhava de asseio. No canto esquerdo do fundo, Lida pretendia instalar um altar e quando a armação ficou construída, em vez de um buda ou um santo, pôs em cima dela a coisa mais valiosa que possuía, o pavilhão de jade.
Um dia de Outono, quente e soalheiro, a família Huang recebeu uma visita inesperada. Um automóvel japonês, velho e amolgado, subiu ruidosamente a colina e deteve-se à porta da escola. Huang saiu de casa a correr, pois pensou que era Jian a chegar: podia ter sofrido um acidente no caminho e alugado outro automóvel. Entretanto, abriu-se a porta do carro e o ocupante, Zhang Shufang, saiu do automóvel, cumprimentando Huang como a um irmão querido.
- Que felicidade! - exclamou Huang. - Que honra! O poeta Zhang na minha humilde cabana. Jinvan, anda cá, temos uma visita importante.
- O caminho até aqui é um castigo de Deus! Su Hongmo, o proprietário deste dragão de automóvel, até rezou em voz alta para que o carro não se despedaçasse pelo caminho, mas houve alturas em que parecia que ia desfazer-se - contava Zhang, enquanto olhava em volta.
Jinvan saiu de casa, trazendo nasmãos uma taça de barro rasa com aguardente de arroz, com a qual se recebem as visitas bem-vindas junto dos Miao, e Zhang deixou que lhe levassem a taça aos lábios, bebeu um gole e agradeceu com uma vénia. Não tocou na taça; conhecia o velho costume dos Miao, em que aquele que toca na taça tem de beber o conteúdo da garrafa inteira.
Após os cumprimentos, Zhang apontou para a nova construção que estava quase pronta; sobre a porta já havia uma benção escrita, que servia para afastar os maus espíritos.
- É a vossa casa? - perguntou. - É onde o Jian e a Lida vão viver? O Jian escreveu-me a contar que queria construir uma cabana de madeira junto ao estábulo. Mas, pelo que vejo, transformou-se numa casa a sério.
- É para ser surpresa. - Huang, orgulhoso, mostrou-lhe a casa e Zhang não se poupou em elogios, observando:
- Uma autêntica construção de luxo. Paredes limpas, uma lareira, um altar próprio, chão de madeira... há milhões de pessoas nas grandes cidades que não vivem assim. Deve ter custado muito dinheiro.
- Vendemos uma parte da colheita, dez patos, um porco gordo e mais algumas coisas que não eram essenciais. E contraímos algumas dívidas... Agora, à noite, a Jinvan e a Lida bordam blusas, saias, casacos e cintos com fios dourados e prateados, o que nos vai permitir diminuir as dívidas.
- Huang respirou fundo e soltou um suspiro. - Eu já não preciso de muito mais para viver, mas quero ver a Lida e o Jian felizes.
- Foi por isso que eu vim a Huili.
- Não, senhor Zhang. - Huang levantou as duas mãos em posição de rejeição. - Não me ofereça dinheiro. Eu não sou nenhum mendigo. Aprendi a viver com o meu ordenado de professor (são cento e quarenta iuanes por mês). Nunca Passámos fome. Não, eu não vou aceitar dinheiro seu.
- Também não foi essa a minha ideia. Trouxe quadros, os mais belos que pintei nos últimos anos. Para decorarmos as paredes. - Zhang não disse que cada um dos quadros valeria pelo menos dez mil iuanes, caso Jian os vendesse; por tanto, haveria uma fortuna pendurada nas paredes.
- Que bela ideia! - exclamou Huang, esfregando asmãos de contentamento. - A Lida adora quadros bonitos mas nunca tivemos dinheiro para os comprar. De vez em quando, ela recortava fotografias de revistas e colava-as na parede, mas nessa altura ainda era criança. Vai dançar de alegria quando vir os quadros, senhor Zhang.
Depois de se instalarem à mesa, beberem o chá e comerem galinha quente, Zhang desembrulhou os seus quadros. Tinha trazido um martelo e pregos e Su Hongmo, o dono do táxi, ficou de pé no meio da sala, enquanto Zhang e Huang pregavam os pregos na parede, dizendo ”Mais para a esquerda, agora para a direita, assim está bem!”, e o seu comentário, concluída a tarefa, foi que era necessário um sentido estético apurado para se conseguir pendurar quadros como deve ser.
Ao final da tarde, Lida trouxe o búfalo para casa. Ficou muito contente quando viu a visita.
- São maravilhosos! - exclamou, e a sua voz vibrava de felicidade diante dos quadros. - Tio Zhang, tu fizeste da nossa casa um jardim florido. Como poderei agradecer-te?
- Sê uma boa esposa para o Jian - ripostou Zhang. E não vaciles perante as adversidades com que te vais deparar. Vocês têm um caminho difícil à vossa frente. O Tong Shijun tentará separar-vos por todos os meios. Ele ainda não sabe de nada, mas chegará a hora em que vai ser preciso dizer-lhe.
- Fá-lo-ás por nós, tio Zhang?
- Eu não tenho qualquer influência sobre o Tong. Só o Jian, na qualidade de filho homem, poderá falar com ele-
- Tenho tido muito tempo para reflectir - observou Huang. - O grande Tong tem a sua honra, mas o pequeno professor camponês Huang também. Não precisa de ter vergonha. Trabalhou a vida inteira, fez dos filhos pessoas aplicadas e, enquanto o professor doutor Tong ausculta os corações e diz se são corações fracos ou fortes, eu planto nos corações das crianças o amor à pátria, ensino-as a ler, a escrever e a fazer contas, e abro-lhes os olhos para a moral e a decência. Isto não tem o mesmo valor que dizer que uma pessoa tem esta ou aquela doença e que vai ajudá-la a curar-se? Cada um tem o seu lugar neste mundo, e de que é que um Tong Shijun viveria se não houvesse camponeses que plantam o arroz e os legumes e criam animais para que ele tenha carne em cima da mesa? Ele sabe fazer tofu ou moer especiarias? Não. Basta-lhe acenar e tudo o que deseja aparece-lhe à frente e toma como adquirido o direito de encher a barriga. Será mesmo um direito adquirido? Estará ele tão acima de um camponês que aplica o seu suor desde o nascer do Sol até que este se põe, para ainda por cima ser desprezado? Aqui estou eu, o professor Huang Keli, um miao e ali está Tong Shijun, professor doutor e han, mas somos ambos iguais, pois cumprimos com as nossas obrigações. É isto que vou dizer-lhe se ele me aparecer à frente. E se não conseguir compreender, é porque a cabeça dele está vazia. Ele tem um filho e eu tenho uma filha, e estes amam-se... portanto, está tudo em ordem no mundo.
Zhang assentiu em sinal de aprovação, mas permaneceu em silêncio. Um confronto entre Tong e Huang seria como uma guerra de sabres entre guerreiros do século passado. Só haveria um sobrevivente, de acordo com a lei, e para Tong esta lei ainda vigorava, não obstante MAO e o comunismo.
- O tempo muda muita coisa - disse Zhang para o acalmar. - E nós temos muito tempo.
Dois dias depois, Tong descobriria o mapa no quarto de Jian. E o tempo começou a urgir.
Zhang, que se podia permitir alugar os serviços de Su Hongmo e do seu automóvel por alguns dias, permaneceu mais tempo em Huili do que o previsto. Liang Taiping, um vizinho de Huang, arrumou e limpou o seu quarto para receber Zhang e foi dormir para o estábulo, pois não havia maneira mais fácil de ganhar uns iuanes e Zhang foi bastante generoso no valor da renda. Su Hongmo instalou-se num colchão, numa das salas de aula da escola, cuja única desvantagem era ter que arrumar a sua cama às sete da manhã, Pois as aulas começavam uma hora mais tarde. Então, ia sentar-se na casa de Huang, junto a Jinvan, e contava episódios da sua actividade como taxista, espalhando a alegria sua volta, pois as histórias que reproduzia eram sempre engraçadas e provocavam a gargalhada geral. Uma vez tinha andado às voltas sem rumo pelas redondezas a conduzir um casal, pois o automóvel era o único sítio onde os amantes se podiam encontrar sem serem incomodados e o seu amor era tão intenso que, de repente, o banco de trás se partiu ao meio com um estrondo. O fogoso amante deu-se ao incómodo de pagar a reparação do banco e fê-lo em quatro prestações mensais.
Zhang aproveitou o tempo para pintar. Desenhou a aldeia de Huili, os campos e os arrozais em socalcos, os rochedos vermelhos, o estreito ribeiro que, por vezes, na Primavera, passava por cima das suas margens e inundava a única estrada que conduzia a Huili, fazendo com que a aldeia ficasse totalmente isolada do resto do mundo.
Zhang passava/ó dia inteiro sentado num banquinho de madeira nos campos, pintando o búfalo a trabalhar e Lida, de pé, dentro da água dos terraços de arroz, a ceifar os campos de legumes ou a construir um muro novo com as pedras que partia nos rochedos, de modo a circundar a água para formar um novo campo de arroz.
Também pintou o rosto dela, os seus olhos quase pretos, o redondo dos seus lábios, a sua beleza de menina, que não sofrera qualquer alteração, nem sob o pesado trabalho nos campos. Mas pintou-a principalmente quando ela estava sentada no alto de um rochedo vermelho, comendo o almoço do cesto de vime, com o pequeno pavilhão de jade a seu lado, que reflectia os raios cintilantes do Sol.
Zhang estava sentado a seu lado nesse dia, quando, ao fundo da estrada, se começou a ver um automóvel japonês a entrar em Huili.
- É o Jian! - exclamou Lida e levantou-se de um salto. - O Jian chegou! Tio Zhang, ele está aqui! Ele está aqui!
Desceu a correr o estreito carreiro, a gritar e a acenar Jian correu ao encontro dela, abriu os braços e apanhou-a no ar.
Nenhum deles se preocupou se era decente ou não beijarem-se no meio da estrada e também lhes era indiferente que muitas das mulheres, sentadas às portas das suas casas, estivessem a assistir a tudo.
Pouco depois, Jian estava em frente à casa nova e Lida pegou-lhe na mão, abriu a porta e conduziu-o para o seu interior. Ele viu como Lida estava orgulhosa e feliz por lhe ter feito uma surpresa, ficando calada à espera das suas palavras.
- A casa é maravilhosa - foi a sua observação, ao mesmo tempo que pensava no barracão do jardim dos Tong em Kunming, onde se guardavam os apetrechos para tratar do jardim, que parecia uma moradia comparada com aquela construção. - E os quadros! Parecem feitos pelo tio Zhang.
- Foi ele que os pintou. Deu-nos de presente.
- Ele esteve cá?
- Ainda cá está! - Riu-se da expressão atónita de Jian, agarrou-se ao pescoço dele e beijou-o. Era como se estivesse a estalar de alegria e felicidade. - Ele pintou-me, Jian. A mim e ao búfalo. Vamos pendurar este quadro por cima da nossa cama.
Entretanto, Jinvan e Huang tinham entrado na casa nova e abraçavam Jian. Jinvan não tinha esquecido o tabuleiro das boas-vindas e deu de beber a Jian a taça de aguardente de arroz. Algumas gotas caíram sobre o chão do compartimento como se fossem água sagrada.
- Ainda faltam coisas na casa - explicou Huang, tentando desculpar-se. - Mas tem tudo o que é preciso para o Inverno. - Muito orgulhoso, abriu a porta que dava para a casa de banho e depois afastou-se para o lado. Era o ponto alto da casa. Em Huili, nunca ninguém vira uma coisa assim: Um compartimento para o duche com paredes de vidro, um lavatório de cerâmica rosada e uma sanita com autoclismo.
Era, de facto, magnífico o que Huang e Lida tinham feito em tão curto espaço de tempo e Jian exclamou, espantado:
- Como é que vocês conseguiram fazer isto tudo? Entretanto, Zhang também regressara dos campos com os seus utensílios de pintura e abraçou Jian.
- Que surpresa! - exclamou Zhang. - Podes abandonar os teus estudos desta maneira?
- Arranjei um tempinho.
- E o que é que o teu pai diz sobre isso?
- Agora falamos muito pouco um com o outro. Expliquei-lhe que pretendo viver a minha vida à minha maneira. Foi difícil esclarecê-lo e nem sequer sei se me compreendeu de todo.
- E não faz a mínima ideia para onde vens sempre?
- A mínima. A minha mãe é que...
- O que se passa com ela?
- Ela tem um instinto estranho. Acha que eu vou sempre ter contigo.
- Jian, olha que o perigo está à espreita. - A expressão de Zhang tornou-se séria. - O teu pai vai voltar a visitar-me em Dali e exigir uma explicação.
- Temos que continuar a refugiar-nos em mentiras. Pelo menos, mais dois anos.
- E será que conseguimos? A desconfiança desperta forças inimagináveis. Jian, há uma velha máxima de guerra: A melhor defesa é o ataque.
- Eu ainda não posso contar nada ao meu pai sobre a Lida. As ligações dele no Partido são suficientemente fortes para chegarem a Huili. Devemos continuar a manter o nosso esconderijo em segredo.
- E se contares a verdade à tua mãe?
- Ela vai obedientemente contar-lhe tudo o que ouviu.
- Nesse caso, vou ser eu o pára-choques contra o qual todos vão embater. - Zhang soltou um suspiro profundo e, como sempre que tinha um problema, começou a cofiar a escassa barba branca. - Eles vão insultar-me e condenar-me, mas a minha pele é como um pano encerado que tudo absorve. - De repente, parecia que tinha tido uma ideia, pois fez um sorriso malicioso. - O que achas da ideia de prepararmos uma pista falsa? Se eu encontrar uma rapariga que viva em Lijiang?
- Boa ideia. Vamos pensar nisso. - Jian apontou para os quadros. - Não posso aceitar a tua oferta. Deve haver uma autêntica fortuna pendurada na parede.
- Cala a boca! - disparou Zhang, bruscamente. - Isso é entre mim e ti, mais ninguém.
À noite, Huang e Jinvan levaram Jian e Lida até à nova casa, como se fosse um cortejo nupcial. Ficaram parados à porta e espalharam arroz pelo chão, como é habitual fazer-se quando um casal recém-casado entra pela primeira vez na sua nova casa.
- É contra todos os costumes - observou Huang vocês partilharem uma cama nesta altura, sem estarem casados, mas tanta coisa mudou nos últimos tempos (para o bem ou para o mal, isso não está agora em questão), que nada já depende de um pormenor importante como este. Que a felicidade vos acompanhe sempre e que o vosso amor nunca esmoreça. - Deu uma cotovelada a Jinvan. A mulher percebeu o sinal, voltou-se e dirigiu-se para sua casa. Depois, Huang seguiu-a, ligeiramente inclinado para a frente. Sentia já o peso do fardo que ainda iria ter de carregar. Revia mentalmente os receios de Zhang sobre o que aconteceria quando Tong Shijun descobrisse a verdade e admitiu para si próprio que até era capaz de compreender o grande Tong. Se fosse Tong, e não Huang, e se tivesse um filho como o Jian, também se defenderia de uma nora indesejada, por mais estúpida ou antiquada que fosse tal atitude.
Na sua casa nova, Jian e Lida estavam de pé, à frente um do outro, sem falar, pois há momentos de felicidade que nos fazem ficar mudos.
Lida despiu o seu vestido e Jian começou a beijar o seu corpo. Quando viu as costas dela, reparou em duas manchas vermelhas na pele. Palpou as manchas e acariciou-lhe as costas. Um estremecimento percorreu a pele de Lida.
-Deste uma queda? - perguntou ele.
- Foi um burro que me atropelou.
- Quando foi isso?
- Oh, já foi há semanas. Tinha muitas nódoas negras, tmas estas duas permaneceram.
- Foste ao médico?
- Foi o Zhou Chen que me tratou. - Com quê?
- Não sei. Era uma pomada e uma tintura.
Jian tornou a palpar; sentiu um nódulo nas pontas dos dedos, como se as hemorragias tivessem coagulado, em vez de se diluírem após alguns dias, como era suposto.
- Tens dores quando eu faço pressão? - inquiriu.
- Não, só sinto os teus dedos. - Esticou-se com prazer entre as mãos dele e suspirou baixinho. - São tão macias e tão carinhosas.
Ele beijou-lhe a nuca e depois levantou-a nos braços, levou-a para a cama e pousou-a com muito cuidado, como se ela fosse feita da mais fina porcelana. Ajoelhou-se junto à cama, passou com os lábios pelos seios, pelo tronco e pelas coxas e depois encostou a cabeça ao colo dela, que o envolveu.
- És tão linda - murmurou. - Tão linda que nem uma história de encantar conseguiria descrever uma princesa assim.
- Eu não sou uma história de encantar, eu sou a realidade. - Lida segurou a cabeça dele com as duas mãos e puxou-a firmemente contra si. - Amo-te e morrerei quando este amor deixar de existir.
Pela primeira vez em muitos anos, Lida não se levantou às cinco da manhã para dar início às tarefas em casa e ao trabalho no campo. Deixou-se dormir nos braços de Jian até às oito da manhã. O búfalo, que estava habituado a uma rotina, ficou irrequieto, batendo no chão com os cascos e embatendo com os chifres contra a parede de madeira do seu estábulo. Mugia e parecia que tinha sido picado por um enxame inteiro de vespas.
Huang também consultava o relógio constantemente e abanava a cabeça em desaprovação.
Jinvan pousou amão no braço dele e sossegou-o com um sorriso.
- É a primeira noite na casa nova - disse. - Deixa-os gozar estas horas, não sejas tão severo.
- A vida é como uma moeda, tem dois lados: uma é o amor, a outra o cumprimento dos deveres. As duas fazem um todo.
- O arroz não vai secar por ficar um dia sem ser tratado. E os legumes não vão murchar e o milho não cairá de maduro. Amanhã cedo, a Lida estará novamente sozinha, quando o Jian partir para Kunming. E quem sabe quando ele conseguirá voltar.
Huang já estava na escola quando Jian e Lida saíram de casa para tomarem o pequeno-almoço.
Jinvan não disse uma palavra, apenas fitou Lida. Lida baixou a cabeça, ao mesmo tempo que corava e Jian disse:
- Queríamos fazer parar o tempo. Peço-te que nos perdoes, Jinvan.
Depois de tomarem o pequeno-almoço em conjunto, Zhang fez as suas malas e guardou-as na bagageira do ”dragão ofegante”, o nome com que baptizou o velho e ameigado automóvel. Su Hongmo balançava a cabeça de um lado para o outro, a pensar na viagem de regresso que tinha pela frente, por aquela estrada terrível, e comentou com Zhang:
- Respeitável senhor Zhang, se o automóvel se desfizer, eu serei um homem pobre, sem trabalho nem arroz. Não vou poder comprar um carro novo. Devíamos pensar os dois o que faremos nesse caso.
- Eu aluguei os seus serviços; e o risco é seu, Hongo.
- O senhor não me disse que iríamos ter de percorrer quilómetros e quilómetros no meio de uma tábua de esfregar roupa. Nem que me pagasse muito dinheiro eu teria sido convencido a vir.
- Eu próprio não conhecia o caminho até Huili. É a primeira vez que aqui venho. Se você tivesse cuidado melhor do seu carro...
- Cuidar? - exclamou Su, ao mesmo tempo que atirava com os dois braços ao ar. - É um dos melhores automóveis que há em Dali! Mas não foi construído para fazer viagens ao meio da selva. - Apontou para o carro de Jian que, aPesar de coberto pelo pó, tinha aspecto de novo. - Espere Para ver como é que este carro vai ficar quando passar umas tantas vezes por esta estrada dos infernos. Vamos dividir as despesas da reparação?
- Não. Para si, conduzir-me deve ser uma honra. Ponha o motor a funcionar, partiremos dentro em breve.
Su abriu a porta furioso, sentou-se atrás do volante e quando ligou a ignição, ouviram-se vários estrondos, como se fossem tiros de canhão. Em seguida, o motor acalmou e passou para um zumbido. Um dos melhores automóveis de Dali estava pronto a arrancar.
Depois de se despedir de toda a gente, Zhang chamou novamente Jian de lado.
- Receio bem que o teu pai venha ter comigo outra vez
- disse. - Achas que o ponha na pista errada?
- Ele vai perceber o logro rapidamente.
- Eu posso apenas dizer-lhe o que alegadamente sei de ti. É impossível que ele tenha provas em contrário. E assim, vai-se embora sem saber mais do que quando veio. Só poderá descobrir a verdade da tua parte.
- Para isso terá de esperar, no mínimo, dois anos.
- Desejo-te muita sorte, meu jovem. - Zhang abraçou Jian uma última vez, sentou-se no carro e deu a Su uma palmada nas costas. - Arranque! - exclamou. - Detesto despedidas longas. Uma despedida é sempre uma pequena morte.
Su acelerou, o carro empreendeu um salto em frente e começou então a descer a colina.
- Devíamos orar por Zhang, para que consiga chegar a Dali - observou Jinvan, enquanto lhe acenava. - É um homem corajoso, para partir numa aventura destas com a idade que tem.
Depois do pequeno-almoço, Jian desceu um estreito carreiro feito com placas de pedra, a caminho da casa de Zhou Chen, a quem já tinha visitado anteriormente. Entrou no compartimento que fazia as vezes de sala de observações, farmácia, cozinha e quarto. Zhou estava sentado atrás de uma espécie de balcão, mexendo uma pasta dentro de uma malga, em amena conversa com um camponês que tinha torcido o pé, sobre o qual Zhou colocara um emplastro dessa mesma pasta. O ”médico descalço” estava precisamente a explicar-lhe que o medicamento Número Oitenta e Sete iria fazer desaparecer o inchaço e as dores.
- A ciência faz uma visita à prática - cumprimentou Zhou. - Camarada Tong, em que posso ser-lhe útil? Precisa de algum conselho?
Jian ignorou a insinuação; sentou-se numa cadeira vacilante e lançou uma olhadela ao tornozelo inchado do camponês, que requeria um penso embebido em álcool e uma ligadura elástica. O mais importante era que o pé precisava de ficar em descanso.
- Trataste a Lida depois do acidente? - perguntou Jian, iniciando a conversa.
- Assim é. - Zhou continuava a mexer a pasta, - As costas dela pareciam feitas de mármore. Por todo o lado riscos e manchas. Mas eu livrei-a disso.
- Com excepção de dois hematomas, que agora estão doridos.
- Duas míseras coisas! Em contrapartida, a minha tintura até consegue pôr uma sanguessuga anémica.
- De que é feita a tintura?
- Veneno de uma víbora, bílis do sapo do arroz e extractos de várias plantas e raízes, que são um segredo só meu. - Zhou fingiu que cismava. Cada ”médico descalço” tinha as suas receitas secretas, que o tornavam indispensável à sua aldeia.
- E não fizeste mais nada?
- Sim, senhor universitário, pus-lhe uma pomada, tal como vem descrita no manual de 1167.
- Mais nada? Lasonill Dolobenl Hyzum ou Gelum-S? Zhou fitou Jian e arregalou os olhos, como se este estivesse a dizer alguma indecência horrorosa.
- Isso são medicamentos? - perguntou depois.
- Sim. São medicamentos europeus.
- Não constam da minha lista. Nunca ouvi falar deles.
- Há-os em qualquer farmácia em Xangai, Pequim, Guangzhou ou Chengdu.
- Estudioso camarada, nós estamos em Huili.
- Mas podias mandar vir estes remédios de Chengdu.
- Até agora, a nossa medicina chinesa sempre ajudou. O facto é que há doenças que simplesmente não se deixam agarrar.
- Tu podias ter impedido o endurecimento dos hematotes. - Jian apontou para o pé torcido do camponês, que tinha seguido a conversa de ouvido apurado. - E como é que vais tratar este entorse?
Zhou fitou novamente Jian, como se fosse um sapo especado, e depois recomeçou a mexer freneticamente a pasta na malga.
- O homem torceu o pé, tão simples como isso. Ponho-lhe um emplastro desta pasta e daqui a oito dias está a saltar como uma lebre.
- Ou então a coxear, a berrar e a amaldiçoar-te. Tens ligaduras elásticas?
- Não.
- Então como é que vais pôr o pé em descanso?
- O que quer dizer pôr em descanso? - interrompeu o camponês. - Não vou poder andar?
- De início, não. Com esse entorse não podes pisar o chão. Tens que te deitar.
- E quem é que vai fazer o meu trabalho? O senhor, na cidade, pode ficar na cama, mas aqui, é a terra que diz o que nós podemos ou não fazer. Zhou Chen, essa pasta tira-me as dores?
- Espero que sim.
- E posso voltar a andar?
Zhou lançou a Jian um olhar de viés; havia qualquer coisa nos seus olhos como se implorasse. Jian partiria novamente, mas ele, o ”médico descalço”, permaneceria na aldeia e vivia da confiança dos seus camponeses. E havia muitas doenças que se curavam simplesmente por uma pessoa crer na sua cura. Nesse ponto, Zhou já tinha muita experiência.
- É evidente que podes voltar a andar, mas não é para já.
- Eu vim até aqui pelo meu pé e ir-me-ei embora por ele - afirmou o camponês. - Não há ninguém que me dê comida ao gado e que me arranque as ervas daninhas. Faz-me o penso, Zhou.
Jian percebeu que era uma perda de tempo tentar explicar-lhe as consequências de uma entorse mal tratada. Entretanto, já estava familiarizado com a teimosia dos camponeses; os campos são a sua vida, e também se consegue plantar legumes com um pé torcido; além do mais, as costas deles encurvar-se-iam na mesma.
Assim, Jian aguardou enquanto Zhou fazia o emplastro e até que o camponês saísse para a rua a coxear. E, de facto, o camponês não só não emitiu um único som, como até lançou um olhar triunfante a Jian. Zhou lavou asmãos num balde de zinco e regressou ao balcão.
- Pretende que eu perca a face, camarada Tong? - perguntou ele, mas não soou nem repreensivo nem ameaçador, apenas desamparado. - Eu sou um bom ”médico descalço”, é o que todos dizem.
- Tu vais ser o melhor das redondezas quando eu te trouxer uma caixa com medicamentos ocidentais na minha próxima visita.
- Agradeço, camarada Tong. - Zhou, apesar de estar sentado, fez uma vénia. - Mas eu ainda aprendi que na medicina tradicional chinesa existe uma planta curativa para todas as doenças, que o calor no interior das pessoas queima as doenças e cura-as.
- Há milhares de doenças que tu não conheces, Zhou.
- Mas não aqui em Huili. Os nossos camponeses chegam aqui com dez, no máximo vinte doenças diferentes e para todas elas eu tenho o remédio certo. - Zhou encolheu os ombros, como se quisesse dizer que não iria livrar ninguém do seu próprio destino. - Todos temos de morrer e não está nas nossasmãos estabelecer a hora em que tal acontecerá.
- A medicina moderna pode prolongar a vida das pessoas. Os avanços actuais da cirurgia eram uma utopia há vinte anos.
Zhou deu a entender que não concordava, fazendo uma expressão como se estivesse a sentir nojo. Para Zhou, tal como para muitos chineses, o corpo humano não era palpável. Abri-lo era um atentado, e até havia localidades em que as Pessoas se recusavam a receber uma injecção, pois só a visão da agulha já era um atentado à personalidade. Havia Uma única excepção, a acupunctura, porque era uma herança Milenar.
- O camarada Tong também abre as pessoas?
- Sim. Faz parte do nosso curso. Quero ser cirurgião
- Que horror! Seria capaz de abrir a barriga de uma pessoa como se faz com um porco? E onde fica a dignidade do ser humano?
- A doença é mais poderosa que a dignidade. Não é com o orgulho que se consegue curar um cancro nos rins; só com o escalpelo. O cirurgião é o guerreiro da primeira linha. Vimos a morte e separamo-la do corpo. - Jian fitou Zhou com ar de desafio. - Não queres aprender a ser um guerreiro na luta contra a morte? Terei muito prazer em mostrar-te algumas estratégias.
- Em Huili não se encontra ninguém que esteja disposto a deixar-se esventrar voluntariamente.
- Treinamos com um porco. Zhou olhou de esguelha para Jian.
- Para isso não preciso de nenhum estudioso; qualquer carniceiro ou camponês pode ensinar-me. É o que eu digo: os cirurgiões são meros carniceiros.
Não fazia sentido continuar a conversa com Zhou. Jian saiu do consultório do ”médico descalço” e regressou a casa de Huang.
Nesse dia, Jian e Lida ficaram em casa e só saíram de lá quando Huang bateu à porta e os chamou para comer. Apesar de o sol de Outono ainda aquecer, Lida encheu a lareira de palha de milho e de troncos de madeira e acendeu-a. Quando as labaredas começaram a ver-se e a madeira começou a estalar, sentou-se à frente da lareira, aproximou asmãos da pedra, que entretanto estava a aquecer, e riu-se de felicidade para Jian.
- Nunca mais vamos passar frio nem teremos de vestir três pares de calças e três camisolas. E também já não vamos precisar das botas de pêlo grosso. Poderemos despir-nos sem tremer de frio, dormir sem roupa e derreter com o chá quente pela manhã. Vamos poder ficar nus na cama e vai estar mais quente do que se estivéssemos deitados ao sol.
Jian, que trazia sempre consigo na bagageira do automóvel uma pequena farmácia ambulante para o caso de surgir a necessidade de ajudar alguém no meio da rua, não descobriu nenhuma pomada contra hematomas, apenas um gel curativo para feridas. Esfregou as costas de Lida com o gel, mesmo pensando para si próprio que não fazia muito sentido. Zhou Chen, o ”médico descalço”, tinha de obter uma panóplia de medicamentos modernos o mais rápido possível para poder estar preparado para qualquer eventualidade. Decidiu que, em Kunming, iria enviar a Zhou um grande embrulho com instruções precisas para cada preparado. Deste modo, Zhou tornar-se-ia o ”médico descalço” mais famoso das redondezas, pois rapidamente se espalharia a notícia que em Huili havia um médico que dispunha de medicamentos desconhecidos, que curavam mais depressa e com mais eficácia do que os remédios até então preparados.
À noite, Lida fez-lhe novamente a pergunta que tanta tristeza despertava:
- Tens de partir amanhã cedo? E Jian respondeu como sempre:
- Sim, é preciso.
- E quando voltas?
- Não sei. Desta vez pode demorar mais tempo.
- Porquê?
- Há muita matéria prevista no programa que eu não posso perder. Mas eu escrevo-te.
- Uma folha escrita não és tu. Não me pode aquecer, nem fazer-me sentir os teus lábios; não é o teu corpo para eu abraçar.
Ficaram sentados na cama. Só tinham mais aquela noite para eles e mesmo que viesse a ser uma noite de felicidade plena, Lida sentia frio só de pensar que, na manhã seguinte, seria a despedida e que viriam aí dias preenchidos por dois sentimentos que nunca antes sentira e que determinariam a sua vida: a solidão e a nostalgia.
Era frequente assustar-se perante estes sentimentos com uma violência tal que até tinha falta de ar; perguntava-se se o amor mudaria assim tanto as pessoas, a ponto de deixarem de se conhecer a si próprias. A solidão - nunca soubera o que era. Como é que uma pessoa pode estar só quando tem um pai bondoso e uma mãe carinhosa; quando se vive numa aldeia e se faz parte da sociedade; quando se cuida do jardim e se vê as plantas a florir; quando se tem campos plantados com legumes e arrozais, um búfalo, galinhas, patos e um porco; quando se pode pegar no pequeno tractor e ir até ao mercado, onde se encontra um monte de gente - a vida é tão multifacetada, tão cheia de surpresas, tão cheia de novidades; como é que pode existir a palavra solidão?
E nostalgia? Nostalgia de quê, quando se tem tudo e não há desejos por concretizar? No mercado ouviam-se muitas conversas sobre o amor nas grandes cidades; no mercado podiam-se comprar revistas com imagens coloridas, que mostravam estradas amplas, muitos carros, belos vestidos, casas altas e lojas, nas quais era possível comprar de tudo - mas nostalgia? Lida nunca sentira nostalgia. Muito menos saudades de uma pessoa, pois tanto o pai e a mãe como o irmão estavam à sua volta e, como tal, o mundo estava completo. Não havia nada pelo qual a sua alma ansiasse - nem sequer um corpo que ela desejasse abraçar.
Como tudo mudara! No seu mundo, pequeno e belo, a solidão assolava-a, quando à noite se deitava sozinha na sua cama e pensava em Jian, na sua proximidade quente, nas suas mãos carinhosas e nos seus lábios. Ouvia o búfalo a mugir ao lado, no estábulo, escutava as vozes do pai e da mãe; nada mudara e, contudo, tudo estava diferente. Deitada, sem Jian, na escuridão vazia, sabia que murcharia como uma flor colhida se Jian não voltasse, e o tempo fizesse desaparecer todas as promessas. E quando estava nos campos e se sentava a descansar numa pedra, durante uns momentos, chegava a chorar com o interminável vazio que a rodeava. Não percebia como é que podia pensar daquela maneira quando, antes de conhecer Jian, o mundo era perfeito.
Lida só falou deste assunto com a mãe. Foi uma vez, antes de levar o búfalo para o campo de arroz, depois do pequeno-almoço, em que se encontravam as duas sozinhas, pois Huang ainda dormia. Um professor não precisa de se levantar às cinco da madrugada.
- Mãe, olha para mim - pediu Lida e ergueu a cabeça. Jinvan assentiu em silêncio e fitou-a, admirada.
- Estou a olhar para ti, Lida.
- Eu mudei? Tornei-me uma pessoa diferente?
- Como é que podes ser uma pessoa diferente? Estás igual ao que sempre foste; apenas a alma muda, a maneira como vês o mundo. Porque é que me fazes essa pergunta?
- Agora vejo o nosso mundo de maneira diferente.
- Isso não tem nada de mal. Um olho vivo vê sempre o pó nos cantos.
- Eu adoro-vos. Adoro tudo aqui como dantes. Mas é tudo cinzento como um dia de chuva quando o Jian não está cá. - Lida juntou asmãos e olhou para a mãe, quase implorando. - Não digam que eu sou uma filha ingrata. Eu bem quero ver tudo como dantes, mas não consigo. Sinto-me tão sozinha sem o Jian. E poderei dizer isto se estou com vocês? Será que a vida mudou assim tanto?
- Mudou, Lida. - Jinvan inclinou-se para a frente e acariciou os longos cabelos negros da filha. - O amor tem olhos próprios e tudo muda, tanto para o bem como para o mal. Todos nós passámos pelo mesmo e transformámo-nos naquilo que somos.
- Nunca te sentiste só? - perguntou Lida.
- Não. - Jinvan abanou a cabeça e olhou para a cama do outro lado, onde Huang dormia profundamente. - O teu pai esteve sempre comigo.
- Sabes o que é a saudade?
- Não. Eu e o teu pai nunca nos separámos. - Pensou um pouco e depois assentiu com a cabeça. - Estou a mentir. Sim, houve qualquer coisa parecida com a saudade. O teu pai teve de se ausentar por seis semanas, para assistir a uma formação política para professores. O Tifei já era nascido, tinha seis anos, e eu estava grávida de ti. Seis semanas sem o teu pai... foi como se passasse seis anos numa terra estranha. Mas eu sabia que ele voltaria e pintei seis riscos na parede. Sempre que passava uma semana, cortava um risco e, a cada risco, a minha alegria crescia; depois, ele regressou e o mundo voltou a viver em toda a sua plenitude. - Jinvan acariciou novamente o cabelo de Lida. - Todos os sentimentos que estão dentro de ti neste momento, minha filha, não são nenhum mistério... são sentimentos de quem ama.
- Obrigada, mãe. Ajudaste-me muito. - Lida agarrou amão da mãe num repente e beijou-a, depois saiu a correr para ir ter com o búfalo que a aguardava.
Já a noite ia adiantada quando Jian chegou a Kunming como sempre, exausto da cansativa viagem de automóvel’ coberto de pó e cheio de vontade de ir refrescar-se para debaixo do duche. Não viu o pai. Não queria discutir com ele, mas a seguir ao banho, já vestido com o seu roupão de seda pesada e sentado à mesa, que fora preparada só para ele, acabou por perguntar à mãe:
- Houve discussão com o meu pai?
- Para quê e sobre o quê? - redarguiu Meizhu.
- Por eu estar fora de casa durante três dias.
- Faria sentido falar sobre isso?
- Não, mãe. Seriam palavras perdidas.
- A nós só nos parte o coração perceber que aprendeste a mentir.
- Há-de chegar o dia em que vocês me hão-de compreender.
”A camponesa de Huili... nunca te compreenderemos, meu filho.” Meizhu observou Jian, enquanto este comia com grande apetite. ”O fim está próximo”, pensava Meizhu. ”Até o mais inteligente comete erros e o teu erro foi desenhar no mapa o caminho até Huili. Nada no mundo deterá Tong Shijun. Ele irá a Huili e tornará a repor a velha ordem das coisas. E tu, meu filho, vais aprender que os tempos mudam, mas apenas exteriormente, pois há uma coisa que se mantém inalterada, como há milénios: o respeito por um pai e pela sua vontade.”
Depois da refeição, Jian desejou uma boa noite à mãe e retirou-se para o seu quarto. Passara o dia inteiro a matutar sobre uma conversa que tivera com Lida. Tudo começara quando ela lhe pusera a pergunta:
- Ainda não sabes quando voltas? E ele respondera:
- Não posso saber. Vou ter de trabalhar muito e com muita concentração.
- E quanto mais avançado estiveres no teu curso, menos tempo terás.
- Temos que contar com isso, Lida.
- Vou passar meses seguidos sem te ver.
- É possível.
- Quatro anos, Jian. - Deitara a cabeça no colo dele e fitara-o com os olhos muito abertos. - O meu coração vai rebentar.
- Temos de aguentar, Lida. Não podes ficar impaciente agora. A impaciência é a morte da esperança. E nós não podemos fazer nada.
- Mas podemos, Jian. Eu posso.
- Não me venhas com charadas, Lida.
- Nunca te passou pela cabeça que eu poderia ir contigo para Kunming?
A estupefacção quase que lhe roubara o ar. Pensara em tudo, excepto nisso e tinha que lhe dar razão. Lida em Kunming... seria um terramoto e a família Tong submergiria nele.
- Tu nunca obterás autorização da tua comuna para ir viver para a cidade.
Jian hesitara na resposta, mas Lida não reparara; estava perdida nos pensamentos que a ocupavam secretamente há semanas.
- Vou fazer um requerimento, Jian.
- Já falaste com os teus pais sobre isso?
- Não. Vou arranjar um emprego em Kunming, num serviço qualquer; até não me importo de ser admitida numa das colónias de limpeza de ruas. Faria qualquer coisa... Mas estaria perto de ti, poderíamos ver-nos todos os dias e, se eu obtivesse um quarto individual, poderíamos ser felizes nele.
- Tu nunca conseguirás obter uma autorização para mudares para Kunming. Em Kunming já há muitos desempregados vindos do campo para a cidade, crentes que nas suas ruas haveria iuanes espalhados por todo o lado. - Inclinara•se para Lida e beijara-lhe os olhos, pensando no escândalo que seria se se soubesse que o filho do grande Tong amava Uma varredora de ruas. O seu futuro estaria perdido.
- Não quero ganhar muito dinheiro - insistira ela só quero estar perto de ti.
- O teu pai construiu esta casa para nós com muito sacrifício. Vais partir-lhe o coração se a abandonares e a trocares por um quarto pequeno e imundo em Kunming. O desgosto vai dar cabo dele. Não lhe podes fazer isso, Lida.
- Já não consigo respirar sem ti - retorquira Lida, enroscando-se ainda mais. - Preciso de ti para viver, tu és o ar, o sol, o vento, tu és o dia e a noite, tu és o céu com todas as estrelas, e tu és a terra que nos alimenta. Amanhã vais-te embora e deixas-me para trás e não sabes quando voltarás. Como é que eu vou aguentar? Onde é que eu vou buscar as forças para esperar com calma e submissão? Em Kunming...
Jian abanara a cabeça.
- Quem é que ficava aqui a tratar dos campos, do jardim e do búfalo? Queres que tudo o que vocês aqui construíram, ao longo de décadas, apodreça, só por achares que não consegues esperar até sermos casados?
- Agora ou daqui a quatro anos, vai ser igual: vou abandonar Huili contigo e mudar-nos-emos para outro sítio qualquer, onde possas trabalhar como médico. Quem é que nessa altura vai ocupar-se dos campos? Os vizinhos vão tomar conta das terras e dar ao meu pai uma pequena parte da colheita. Ele não vai ter problemas.
- Nunca conseguirás arranjar um quarto só para ti em Kunming; é uma cidade sobrelotada.
- Mas eu não preciso de nenhum quarto, Jian. - Rira-se para ele com alegria. - Eu já tenho casa.
- Tu tens casa em Kunming?
- Já te esqueceste do Tifei, o meu irmão? Tornou-se um homem rico. Tem uma empresa de transportes bem-sucedida, com três camiões. Conhece todos os homens influentes às Kunming. Vai arranjar-me uma casa, a autorização de residência, o requerimento com parecer positivo da comuna de Huili... não haverá problemas.
- Primeiro, vamos pensar muito bem - declarara JianVia diante dos seus olhos a cena: Lida a chegar a casa dos Tong e a apresentar-se ao seu pai. Via o pai a inspeccionar a rapariga de etnia miao, no seu vestido de algodão, do mesmo modo que se observa uma ave rara no mercado de aves, pois imagina-se que deve ter um canto especialmente doce. Em seguida, o pai virar-se-ia para Lida e diria: ”Tu és a concubina do meu filho? És bonita, podes continuar a ser a concubina dele, mas debaixo do telhado dos Tong só viverá uma mulher que seja digna de usar o nosso nome!” E então, Jian teria de arranjar coragem para enfrentar o pai e gritar-lhe na cara: ”Renuncio a ser um Tong! Desprezo-te e a toda a tua maldita tradição também! Tu és a coisa mais execrável que eu posso imaginar: um mandarim comunista!” Se Lida fosse para Kunming naquele momento, a cena passar-se-ia exactamente assim. Dentro de quatro anos, poderia ser tudo diferente.
Era nisso que Jian pensava naquele momento, deitado na sua cama no quarto. No rádio ouvia-se música europeia: a terceira sinfonia de Beethoven. Jian fechou os olhos e procurou razões que pudessem impedir Lida de vir para Kunming. Descobriu umas quantas, mas também sabia que não convenceriam Lida.
Jian poderia perfeitamente ter-se poupado ao esforço mental que estava a empreender se soubesse que, a essa mesma hora, o seu pai estava de visita em casa da filha Fengxia e do genro Wu Junghou, a beber uma garrafa de vinho branco e a contar-lhes as suas preocupações relativamente a Jian e à camponesa. Fengxia, que entretanto se tornara uma ilustre funcionária do Comité Central de Yunnan, estava hirta, sentada na sua poltrona de pau-rosa ornamentada. Trazia uma saia verde-azeitona e por cima - da mesma cor - um casaco de corte clássico, estilo MAO. Parecia que usava sempre farda, enquanto o marido, Wu, director do Departamento da Saúde, vestia sempre um dos fatos cinzentos da comuna, que o faziam passar despercebido no meio da multidão. Tanto maior o seu poder no aparelho do Departamento da Saúde de Kunming. A sua repartição determinava quais os progressos da medicina ocidental que podiam ser importados para Kunming.
- O meu irmão sempre foi um teimoso! - vociferava Fengxia, num tom desagradável. - Mas agora foi longe de mais. Uma camponesa! Até parece que o curso lhe está a dar volta à cabeça. Junghou, conheces alguém do Partido em Dukou?
Wu franziu o sobrolho e pôs-se a pensar, mas Tong fez um gesto de rejeição.
- Não acho que seja correcto meter o Partido ao barulho - declarou. - É um problema que tem de ficar no seio da família. Conseguiremos solucioná-lo sem recorrer a ajudas.
- Mas tu dizes que não se consegue falar com o Jian.
- Ainda não tentei, pois ele não sabe que descobrimos o segredo dele. Para nós isso é útil, uma vez que podemos agir sem ele opor resistência.
- Agir? - Fengxia olhou para o pai com ar inquisidor.
- Qual é a tua ideia, pai?
- Vou convencer essa camponesa de que ter esperanças num futuro com o Jian será a sua infelicidade. E principalmente o pai dela, pois vou provar-lhe que a sua vida nunca mais será a mesma, se ele não puxar as rédeas à filha. Além disso - Tong fez um sorriso malicioso -, um pequeno camponês precisa sempre de dinheiro. Dantes, os pobres vendiam as filhas belas aos ricos; eu vou oferecer-lhe dinheiro para que a filha fique junto dele.
- É como é que vais levar avante isso tudo? - perguntou Wu. - Tu não conheces o nome dele, nem sequer sabes se vive mesmo em Huili ou nas redondezas.
- Foi por isso que vim hoje aqui, meus filhos - retorquiu Tong. - Preciso da vossa ajuda.
- Afinal sempre precisas do Partido! - redarguiu Fengxia. A sua vida era dedicada ao Partido, o seu pensamento tinha como base os ensinamentos do Partido. Para ela, não havia problema que o Partido não pudesse solucionar.
- Não! - Tong inclinou-se ligeiramente para a frente e a sua voz tornou-se profunda, quase como se estivesse a fazer um juramento solene. - Preciso de um automóvel, de um condutor e de uma testemunha. Pensei em ti, Wu Junghou.
- Em mim?
- Tens um carro do serviço, que tu próprio conduzes, podes dispor do teu tempo como quiseres e, portanto, podias vir comigo a Huili, pois és, de longe, a testemunha cuja palavra seria sempre tida em consideração em qualquer lugar e que não levantaria dúvidas. - Tong respirou fundo e depois elevou o tom de voz. - Preciso de ti para salvar a minha família. O Jian está em vias de destruir a vida dele com esta camponesa.
- Vamos todos, pai! - exclamou Fengxia, antes que Wu pudesse contrapor alguma coisa ou sequer conseguisse pensar em alguma coisa. - Vamos todos, tu, o Junghou e eu.
- Tu também?
- Vocês falam com o pai e eu com a camponesa prostituta. Ainda tenho contas a ajustar com o Jian. Lembras-te do comportamento dele quando o Junghou veio a nossa casa pela primeira vez? Nunca me esqueci. E sabes como é que ele me chama? O altifalante vermelho. - Os olhos duros de Fengxia cintilavam. Era de uma beleza fora do comum, mas quando alguém a olhava nos olhos sentia medo da frieza que lá via.
Wu já se habituara; deixava Fengxia falar e fazer o que queria, a única coisa que lhe interessava era o seu próprio sossego. A sua sorte era que, três vezes por semana, Fengxia dava formação política; nesses dias sentava-se, satisfeito, na sua poltrona, fumava cigarros, bebia cerveja e ouvia música ocidental.
- Quando partimos? - perguntou Wu.
- Isso é contigo. Tens que contar com, pelo menos, três dias. - Tong fitou a filha. - E tu?
- Eu sou dona do meu próprio tempo - declarou com orgulho. - Não preciso de pedir nada a ninguém.
- Não vai ser fácil. - Wu abanava a cabeça para lá e para cá. - Primeiro tenho de requerer o carro de serviço para uso particular. E o que é que hei-de alegar para usar o carro particularmente? Que vou obrigar uma camponesa a deixar de amar o Jian? Vão dizer que estou doido. Temos de pensar num motivo plausível, caso contrário, não conseguimos o automóvel.
- Posso organizar uma formação em Dukou - prot Fengxia. - E tu vais inspeccionar o equipamento médico
- Eram dois argumentos. - Entretanto, começou a abanar a cabeça. - Mas não serão aceites.
- E porque não?
- Dukou não faz parte da nossa área de fiscalização Tem as suas próprias comissões.
- Então vamos pedir aos camaradas que nos façam um convite. - Fengxia olhou para o marido com alguma pena. ”É uma pessoa amorosa”, dizia aquele olhar ”mas a sua inércia dá-me cabo dos nervos. Há sempre uma saída para todas as situações, basta pôr a cabeça a funcionar e tomar decisões rápidas.” - Amanhã cedo falarei com a secção de Dukou. - Virou-se para o pai e assentiu com a cabeça. Para a semana de certeza que poderemos partir para Huili.
- Podemos fazer um desvio a Dali? - perguntou Tong.
- Queres falar primeiro com o tio Zhang?
- Ele tem conhecimento dos delitos de Jian desde o início. Até os apoiou. Traiu a nossa família. A nossa honra exige que o façamos prestar contas dos seus actos.
- Vais matá-lo? - inquiriu Wu, sem fôlego.
Wu era filho de um honesto funcionário dos correios e, até conhecer e começar a amar Fengxia, não fazia ideia das tradições, em torno das quais as grandes famílias antigas viviam, não obstante a revolução de MAO. O facto de ter sido recebido no seio da família Tong agradecia-o ao Partido, em cujas reuniões conhecera Fengxia. Fengxia estava convencida que o futuro da China residia na concretização dos ideais comunistas. Quando falou pela primeira vez de Wu Junghou ao pai e lhe declarou que o amava, Tong deu a entender que proibia terminantemente o amor deles. Fengxia retorquiu friamente, dizendo que o Partido tinha mais poder do que ele, o senhor professor doutor. Foi uma ameaça velada, que Tong percebeu de imediato. Deu o seu consentimento e nunca se arrependeu, pois foi através de Wu que o hospital de Kunrning conseguiu obter o mais recente equipamento ocidental, tornando-se numa das clínicas mais bem equipadas e mais modernas do país. Mas foi através de Fengxia que Wu aprendeu que era a tradição familiar e começou a viver de acordo com um conceito que antes lhe era estranho. Os Tong tinjjain-no sugado como o sol suga uma gota de água.
Eu não vou matar o Zhang - retorquiu Tong, imperturbável. - A era dos imperadores passou definitivamente à história. Mas quero que sinta o meu desprezo e que saiba que será expulso da nossa família. O ar à nossa volta está conspurcado e eu quero limpá-lo. - Pegou no seu copo de vinho, bebeu um longo gole e deixou-se levar pela satisfação de ter Fengxia e Wu como aliados, dispostos a ajudá-lo.
Mas havia questões que ainda não tinham sido ponderadas.
A primeira seria colocada por Wu.
- E o que vai acontecer, se o pai da rapariga rejeitar todas as propostas? - perguntou.
- Não pode - declarou Fengxia, antes que Tong tivesse tempo de responder. - Vai ter de encarar o poder contra o qual pretende opor-se. Se tiver o mínimo de discernimento, vai perceber que um pobre camponês pode tornar-se ainda mais pobre se a comuna agrícola a que ele pertence o incluir na lista dos revoltosos. - O sorriso dela era gelado e o seu olhar transmitia crueldade. - Eu consigo acabar com a teimosia dele.
- E se a rapariga não quiser deixar o Jian? - perguntou Wu pela segunda vez.
- Ela não tem querer. - Os olhos de Fengxia faiscavam de maldade. Dentro dela crescia o desejo de destruir aquela rapariga, quanto mais não fosse para se vingar de Jian. - Uma prostituta camponesa tem o tratamento que merece. Não se atreverá a insurgir-se contra mim.
- E assim, está tudo dito - Tong levantou-se, bebeu o resto do vinho e olhou para o relógio. Era uma hora da matthã. - Fico à espera de notícias vossas. Para mim, qualquer dia serve.
Wu e Fengxia acompanharam-no à porta e, num impulso súbito, Fengxia perguntou-lhe: k - Como é que a mãe irá reagir, pai?
- A tua mãe é uma mulher extraordinária - declarou Tong com solenidade. - De vez em quando tem umas ideias emancipadas, influenciada por Jian, mas no que respeita à família, pensa como eu.
- Ela não vai contar ao Jian que vamos a Huili?
- Nesse ponto, não tenho dúvida que não vai dizer nada.
Meizhu ainda não se havia retirado para a cama, à espera de Tong. Quando este chegou, foi ao seu encontro e olhou-o inquisitivamente. No entanto, Tong ficou calado, sentou-se no sofá da sala de estar e fechou os olhos, como se não pudesse olhar para a mulher.
- Não me vais contar nada? - insistiu, quando ele permaneceu em silêncio.
Tong respirou fundo e abriu os olhos, onde se lia um grande cansaço, mas também uma profunda satisfação.
- O Wu vai levar-nos a Huili no carro do serviço - explicou.
- Nos? - Meizhu percebeu de imediato o que Tong queria dizer. - A Fengxia também vai?
- Sim. Ela quer ir. Acha que consegue falar com a camponesa mais facilmente do que eu. Com o pai trato eu. Não vai ser muito difícil, e o Wu também é da mesma opinião. Para um camponês não há nada pior do que entrar em conflito com a sua comuna. Seria louco se não percebesse isso.
- Tong bocejou e um forte cansaço apoderou-se dele. O Jian já regressou?
- Já.
- Disse alguma coisa?
- Nada. Tomou banho, comeu e voltou para o quarto. Nem sequer perguntou por ti. - A voz de Meizhu começou a vacilar. - Shijun, estou a começar a ficar receosa.
- Não há razão nenhuma para teres receio.
- A nossa família vai desmoronar-se.
- Vai sofrer uma crise, isso é certo, mas o que resistiu durante um milénio não há-de ser destruído por uma camponesa.
- Tu podes perder o teu filho, Shijun.
- Ele também voltará a si e regressará à família. Mesmo que se comporte como um revolucionário, o Jian é um Tong, e esta é uma característica que ele não pode deitar fora como se fosse uma camisa velha. Eu amo o meu filho acima de tudo, e um dia ele agradecer-me-á por o ter forçado a tomar a decisão certa. - Tong levantou-se e bocejou novamente. - Eu não vou perder o meu filho, apenas vou reforçar o seu sentido da razão. O Jian é como qualquer outro jovem da idade dele: um belo corpo de rapariga tolda-lhe a razão. Mas a realidade trá-lo-á de volta à realidade.
- E quando é que partem para Huili?
- Espero que na próxima semana. Quero concluir este assunto o mais depressa possível. - Tong espreguiçou-se, pôs um braço em volta dos ombros de Meizhu e dirigiram-se juntos para o quarto. No entanto, cada um deles estava a pensar em coisas diferentes, que não partilharam um com o outro. Apenas Meizhu repetiu:
- Tenho medo! - E Tong beijou-a na testa e abanou a cabeça com um sorriso tranquilizador.
Estava um dia de Outono nublado, e o lago Erhai apresentava-se cinzento, sob o Sol encoberto, quando um automóvel se deteve à porta da casa de Zhang Shufang, um Santana da fábrica da VW em Xangai, de onde saíram Tong, Fengxia e Wu. Zhang, que estava sentado no seu ateliê, pintando um quadro grande e ouvindo música da rádio, só reparou que tinha visitas quando ouviu bater à porta. Pousou o pincel, baixou o som da música e, admirado, ficou à espera que batessem de novo à porta. Era raro ter visitas e quando algum dos pescadores o procurava não batia à porta, pois todos estavam habituados a circundar a casa, acenar-lhe através da grande janela e entrar pela porta que dava para o jardim.
As pancadas solenes soaram de novo e Zhang perguntou-se qual das autoridades quereria algo dele; já que aquelas Pancadas na porta só podiam ser de um funcionário em serviço.
Zhang dirigiu-se para a porta, abriu-a com um puxão e ficou pasmado quando viu o rosto de Tong. Atrás dele faiscavam os olhos de Fengxia e a face de Wu exprimia algo parecido com um pedido de perdão, por estarem a atacar de surpresa um homem da sua idade.
- Shijun, Fengxia e Junghou, que surpresa! - exclamou Zhang, ao mesmo tempo que revolvia a mente à procura de uma explicação para a inesperada visita. - Bem-vindos! Bem-vindos! Entrem. O que é que vos traz a Dali? Há festa do Partido? Hoje é algum dia comemorativo? Afastou-se para o lado, deixou que as visitas entrassem em casa e fechou a porta atrás delas.
Foi Fengxia quem quebrou o desconfortável silêncio:
- Viemos para falar contigo sobre o Jian - declarou, sem rodeios.
Zhang sentiu um alarme dentro de si, mas exteriormente permaneceu calmo e cortês, indicando às visitas que se sentassem. Foi buscar taças, folhas de chá e água quente e serviu a habitual bebida de boas-vindas, tal como os bons costumes o exigiam.
- Vêm directamente de Kunming? - perguntou.
- Sim, já estamos há quase nove horas a caminho respondeu Wu, distendendo os músculos. - Esta estrada é um tormento! Se formos cordiais e não nos impusermos aos condutores de veículos pesados, estamos perdidos. Temos que pôr a mão na buzina e afugentá-los para o lado.
Fengxia fez um gesto desdenhoso com a mão.
- O tio Zhang deve estar pouco interessado na tua condução - interrompeu com voz dura. - Com certeza quer saber o que nos traz aqui.
- Isso, tu já fizeste o favor de dizer. - Zhang beberricou a sua taça de chá e olhou para Tong. - Querem falar comigo sobre o Jian. Pensei que já tínhamos falado tudo, Shijun.
- Na altura, a conversa era sobre política, mas tu ornitiste-me o mais importante.
- Digo e repito: o Jian não tem quaisquer ligações...
- Não te faças de tolo - interrompeu Fengxia, bruscamente. - Quem é a prostitutazinha camponesa que anda em cima do Jian?
- Eu não me dou com prostitutas! - retrucou Zhang, num tom mais alto do que pretendia. A sua voz soou como um golpe de chicote.
- Tu sabes que o Jian ama uma camponesa - insistiu Tong, com serenidade.
- Ele não ama nenhuma camponesa - retorquiu Zhang, e não estava a mentir, pois Lida era filha de um professor.
- É uma rapariga que vive na aldeia de Huili - acrescentou Wu, só para contribuir com alguma coisa para o interrogatório.
Os pensamentos afluíam em catadupa à mente de Zhang. Como teriam os Tong obtido aquela informação? Será que Jian acabou por falar, confiando à mãe o seu amor? Teriam as suas advertências sido inúteis?
- O Jian sabe que estão aqui? - perguntou Zhang.
- Aqui quem faz as perguntas somos nós - intimou Fengxia, descompondo-o aos gritos. - Estamos à espera de respostas da tua parte.
Aquele era um tom que Zhang não podia admitir. Levantou-se da sua cadeira e, do alto da sua dignidade, baixou os olhos para Fengxia.
- É assim que coaxa um sapo dirigindo-se à Lua! declarou. - Mas a Lua é demasiado nobre para o escutar.
- A honra da família foi manchada - interpelou Tong, reprimindo-se com grande esforço. - Queremos limpá-la para que torne a brilhar.
- Não se deve combater uma boa intenção. Pega num pano e açoita os ouvidos de Fengxia. Desliga o som do altifalante vermelho.
- Isso é o que o Jian costuma dizer. - Fengxia cerrou os punhos e bateu na mesa. Em seguida, olhou o marido nos olhos, a tremer de raiva. - Junghou, acabaram de ofender a tua mulher e tu ficas para aí sentado, a aquecer as mãos numa taça de chá e não dizes uma palavra em minha defesa.
- Ela tem razão, contra factos não há argumentos! Wu ousou uma tentativa de ataque, ao mesmo tempo que os seus olhos pediam perdão, providentemente. - Tu insultaste-a. Arrepende-te e esquecemos o assunto.
- Nunca voltei atrás numa única palavra que disse. Junghou, ficaste cego? Olha para ela! Isto ainda é uma mulher? Isto é uma farda e um trombone que anda por aí a retumbar os lemas do Partido. - Os olhos de Zhang estreitaram-se até ficarem como uma fenda; quem o conhecia punha-se em guarda. - Não torno a falar com ela.
- Mas eu falo contigo! - replicou Fengxia aos gritos.
- E vais escutar-me!
- Na minha casa, não. Recebi-vos como convidados e quem é meu convidado tem de respeitar as regras da hospitalidade. Quem não é capaz de o fazer, deve retirar-se. A porta da rua é a serventia da casa.
- Tu... tu estás a pôr-nos na rua? - A respiração de Tong estacou.
- Não impeço ninguém de fazer o que acha que está certo - retorquiu Zhang, calmamente. - Abri a porta da minha casa em paz, mas agora vejo que quem entrou é inimigo. O meu orgulho exige-me que torne a fechar a minha casa.
Wu fitou o ancião com admiração. Até então tinha considerado a tradição dos Tong como um bicho raro e empalhado, do qual uma pessoa não se consegue separar, e acariciara esse bicho por amor a Fengxia; agora, porém, sentia a força que brotava da honra e do orgulho.
Tong baixou a cabeça; era um gesto de submissão. Fengxia soltou um som sibilante, como se fosse uma cobra acicatada a eriçar-se.
- Nós não viemos como inimigos - garantiu Tong, com a língua presa -, viemos porque estamos preocupados. Shufang, não nos queres ajudar?
- Eu ajudo quem precisa de ajuda.
- Ele só ajuda o Jian! - exclamou Fengxia, com voz estridente.
Zhang olhou em volta.
- Será que ouvi bem? - perguntou. - Era o guincho de uma ratazana?
Tong cerrou os dentes com tanta força que se ouviu ranger.
Wu percebeu que tinha de intervir. Pôs-se em pé de um salto e assumiu uma posição ameaçadora em frente a Zhang.
- Se tu não fosses um homem de idade - gritou-lhe na cara -, ias sentir do que os meus punhos são capazes! Diz, quem é a rapariga em Huili? Como é que ela se chama? Basta dizeres o nome dela e volta a reinar a paz.
- Há um ditado antigo, Junghou, que tu devias guardar na tua mente: ”Os homens não chegam aos cem anos; não obstante, arranjam preocupações para mil anos.”
- É por preocupação que aqui estamos. - Tong iniciava uma última tentativa para convencer Zhang. - Para mim, tu não és apenas um parente; para mim, és mais do que isso, és um amigo. Um amigo de quem eu espero sinceridade.
Zhang retorquiu, recorrendo novamente a um velho ditado:
- Não afastes a mosca na testa do teu amigo com um machado.
Tong soltou um suspiro sonoro e recostou-se. A conversa estava terminada. Zhang tinha construído um muro à sua volta e ninguém conseguiria penetrar nele. Mas, pelo menos, sabia uma coisa: o facto de Jian amar uma camponesa já não era uma suspeita; tornara-se realidade.
Zhang não recusou a sua hospitalidade; deixou que Wu e Fengxia dormissem em sua casa e até lhes preparou um jantar, mas quando falava, as suas palavras eram dirigidas apenas a Tong ou a Wu; para Fengxia, nem um olhar ou uma sílaba.
Quando na manhã seguinte se instalaram no automóvel, Tong ficou mais uns instantes com Zhang, que os tinha acompanhado à porta de casa.
- Para acalmar a tua consciência - disse-lhe Tong -, fica sabendo que a Meizhu também concordou com a nossa viagem a Huili.
- E traiu a confiança do Jian. Que mundo é este? Uma mãe que denuncia o seu filho!
- A Meizhu não denunciou o Jian. Acreditas?
- Quem é que te disse que o Jian tem uma rapariga em Huili?
- Foi o próprio Jian. Marcou num mapa de estradas o caminho para Huili e eu encontrei o mapa. Deixou-o ficar no quarto dele.
- Até o mais cauteloso pode tropeçar numa pedrinha - observou Zhang, estendendo a mão a Tong em despedida.
- Também tu podes precipitar-te sobre a tua esperteza Quem consegue fugir ao seu destino?
Zhang regressou a casa, bebeu dois copos de aguardente e, em seguida, pôs-se a caminho da casa do pescador Zongtai, um dos poucos pescadores que possuía uma bicicleta boa e estável. Pegou nela sem pedir autorização, pois Zongtai estava no seu barco, no lago. Com os pulmões ofegantes, pedalou até Dali e dirigiu-se para o posto dos correios, para tentar apanhar Jian pelo telefone da universidade. Foi preciso meia hora até alguém conseguir encontrar Jian e este telefonar de volta para o posto dos correios.
- O teu pai, a tua irmã e o marido dela estão a caminho de Huili - informou Zhang pelo telefone.
Jian respondeu pouco depois, quando se recompôs do estado de choque:
- Agradeço-te, tio Zhang. Vou partir imediatamente. Isto é o fim da família Tong. Que Deus proteja Lida do dragão Fengxia!
Zhou Chen, o ”médico descalço” de Huili, espreitou pela janela da sua farmácia e viu um belo automóvel estrangeiro que parou em frente da sua casa e de onde se apeou um indivíduo muito distinto. O estranho olhou para o dístico dos serviços de saúde, assentiu com a cabeça para os outros ocupantes do veículo, um homem e uma mulher, entrou no posto e dirigiu-se para o balcão, atrás do qual Zhou estava sentado.
- Cumprimentos, camarada - disse Zhou, pondo de lado o almofariz no qual estava a mexer qualquer coisa. - Esta doente? Posso ajudá-lo? Aqui está nas melhores mãos.
Tong abanou a cabeça. Olhou em volta e viu os frasquinhos, as latas, os copos, os saquinhos e os pacotinhos que continham os medicamentos com os quais, ainda há menos je um ano, trabalhava e cujo efeito continuava a considerar mais inócuo do que o efeito dos preparados químicos, com que se bombardeavam os doentes, actualmente.
- Estamos na aldeia de Huili? - perguntou.
- Assim é. - Zhou endireitou-se no seu banco. - Alguém lhe aconselhou que me viesse consultar?
- O senhor é o médico local?
- Sou eu, sim. Zhou Chen.
- Estou à procura de um camponês cujo nome não sei. Com certeza pode ajudar-me. - Tong encostou-se ao balcão. Ao fundo do compartimento viu duas camas, junto às quais havia dois cavaletes para infusões. As camas estavam vazias, o ”Posto de Huili” não estava ocupado. O último paciente internado tivera alta há três semanas atrás. Curado, como Zhou apontou com orgulho no seu livro de registos.
- É um camponês que recebe frequentemente visitas de um automóvel japonês - acrescentou Tong.
- A visita é um rapaz jovem - afirmou Zhou e o coração de Tong deu um salto de dor. - Mas ele não costuma visitar nenhum camponês, caro camarada. Ele visita a Lida, a noiva dele.
- A noiva dele - repetiu Tong, como que em estado de transe. - A noiva dele. Eu quero falar com o pai dela.
- O pai dela é o Huang Keli. O professor de Huili.
- O professor. - Tong sentiu uma tontura, mas recompôs-se depressa; apenas os seus dedos se cravaram na orla do balcão, até os nós ficarem brancos. - O professor. Sentiu um nó na garganta. Não era um camponês, mas sim um professor. A partir desse momento, Tong tomou consciência que a conversa com o pai da rapariga não seria uma conversa entre o grande Tong e um pobre diabo. - Vejo pelo vestuário das mulheres que aqui vivem pessoas do povo miao.
- Nós somos todos miao, camarada. Somos uma aldeia fniao. Talvez a mais ocidental de todas.
- Onde posso encontrar o professor Huang Keli?
- Se seguir pela estrada que sobe, vai parar directamente à porta da escola. Em frente da escola é a casa do Huang.
- Os meus agradecimentos. - Tong meteu a mão no bolso do casaco, tirou dez iuanes e pousou-os em cima do balcão.
A expressão de Zhou obscureceu.
- Para quê? - perguntou. - Eu não o tratei, meu senhor.
Tong percebeu que tinha ofendido o orgulho do colega camponês e apontou para um pacote de pastilhas para a tosse.
- Quero aquele medicamento.
Zhou entregou-lhe o pacote e pegou na nota de dez iuanes sem mais palavras, apesar de as pastilhas só custarem um iuane. Depois acompanhou a saída do distinto senhor com o olhar, viu-o regressar ao automóvel dispendioso e falar com o condutor. Só quando o automóvel se afastou em direcção ao caminho para a colina é que tornou a prender o almofariz entre os joelhos.
- A rapariga chama-se Lida - informou Tong, já dentro do automóvel, sentindo novamente uma ligeira tontura.
- Na aldeia chamam-lhe a noiva de Jian e o pai dela é o professor de Huili.
- O que é que isso muda? - observou Fengxia; a sua voz tilintava de gelo. - Um professor camponês. Melhor ainda, pai. Podemos retirar-lhe o ordenado e então fica mais pobre que um batedor de algodão. Vais ter a tarefa mais facilitada do que se falasses com um camponês teimoso. Ele sabe o que os funcionários da Educação podem fazer com ele.
Wu encolheu os ombros, como se estivesse horrorizado com a própria mulher. Virou para a estrada que dava para a colina, reduziu a mudança e começou a subir em direcção à escola. Parou diante desta e perceberam que o barulho do motor tinha soado na casa em frente como uma espécie de alarme, pois à porta surgiu de repente uma mulher, que ficou parada e depois tornou a desaparecer atrás da porta.
- Aquela era a mãe - disse Wu. - De certeza que era.
- E quando ouviu o carro deve ter pensado que era o Jian. - Fengxia saiu do carro e olhou em volta. Era uma aldeia limpa, mas ela não podia admiti-lo. Para Fengxia, tudo o que não tolerasse era sujo. Tong também se apeou e Wu não teve outra alternativa senão segui-lo. Ainda se encontravam junto do automóvel quando a porta se tornou a abrir e Huang Keli saiu para a rua. Tong pôs-se em movimento quase simultaneamente. Caminharam, na direcção um do outro, encontrando-se a meio do caminho e ficando parados frente a frente.
- Eu sou Huang Keli, o professor - disse um.
- Eu sou Tong Shijun, o pai do Jian - disse o outro. Quedaram-se uns momentos sem palavras e Tong ficou surpreendido por Huang não revelar qualquer reacção, nem uma tremura no rosto, qualquer surpresa ou susto, apesar de, certamente, já ter percebido que os recém-chegados iriam intervir na sua vida.
Huang fez uma pequena vénia e disse:
- Seja bem-vindo à minha humilde casa, senhor Tong. O grande Tong também se inclinou e respondeu:
- Era meu desejo conhecê-lo pessoalmente.
Jinvan saía naquele momento de casa com a taça de aguardente de arroz na mão, para cumprimentar a visita, segundo o velho costume miao. Tong bebeu um gole e Wu também deixou que lhe levassem a taça à boca; apenas Fengxia hesitou, olhando primeiro para dentro da taça com uma expressão carregada, bebendo depois um pequeno gole da forte bebida.
- A minha casa é a sua casa - disse Huang, afastando-se para o lado. E em seguida, dirigiu-se a Jinvan: - Este é o professor doutor Tong, o pai do Jian.
- Eu sou Fengxia, a irmã dele! - A voz dela soou como um chicote.
- Eu sou apenas o genro, Wu Junghou - apresentou-se Wu, ao mesmo tempo que fez um sorriso de esguelha, pois sabia que o ”apenas” iria enfurecer Fengxia.
Entraram em casa e bastou um olhar em volta para que Tong percebesse que o professor Huang Keli, por mais inteligente que fosse, era também um homem pobre. O compartimento principal da casa era asseado, mas os poucos móveis que continha Tong não ofereceria nem a um mendigo, sem morrer de vergonha. Ficou de pé, indeciso, sem saber se se devia sentar. Foi então que ouviu a voz de Fengxia a sussurrar-lhe ao ouvido: ”O Jian só pode ter perdido o juízo!” Tong sentiu o coração pesado ao pensar que o filho estava cego para se perder naquele sítio. Wu, que naquele momento comprimia os lábios, também parecia estar a pensar a mesma coisa, mas foi o primeiro a sentar-se à mesa redonda, diminuindo um pouco a tensão instalada.
- Fez uma longa viagem - observou Huang com delicadeza. - As estradas estão cheias de pó e fazem secar a garganta. Posso oferecer-lhe uma cerveja? - Não esperou pela resposta e dirigiu-se para a prateleira, de onde retirou cinco copos de vidro grosso.
Jinvan desapareceu por uma das portas das traseiras e regressou com quatro garrafas de cerveja Qingdao. Tong ficou admirado por Huang se dar ao luxo de ter em casa uma cerveja tão cara e, enquanto bebia o primeiro gole, preparava-se para ser confrontado com novas surpresas.
- O senhor veio por causa da Lida e do Jian? - perguntou Huang e Tong ficou grato por o professor ter sido tão directo a começar a conversa. Tong lançou um olhar a Fengxia. Esta percebeu a interpelação e levantou-se da mesa.
- A Lida não está na aldeia? - perguntou Fengxia, esforçando-se por não utilizar um tom de voz perverso.
- Está no campo - respondeu Huang com sinceridade.
- Só regressa ao final da tarde. Temos tempo suficiente para conversarmos.
- Vou dar uma volta pela aldeia - declarou Fengxia, soando como se tivesse interesse na vida de Huili. Saiu de casa, desceu lentamente o caminho até à estrada e viu uma mulher de idade, sentada num banco à porta da sua casa, a tricotar um casaco preto.
- Onde são os campos do Huang Keli? - perguntou-lhe Fengxia e seguiu o caminho indicado sem pressa, depois de obter a informação. Enveredou pelo pequeno atalho que atravessava os arrozais e, quando olhou para o campo de soja, viu um robusto búfalo preto acastanhado e uma rapariga de calças azuis desbotadas e uma camisa azul. Tinha o longo cabelo preto preso na nuca com uma fita vermelha.
Fengxia parou e piscou os olhos. Até àquela distância dava para reparar que Lida era muito bonita. Fengxia sentiu o ódio a subir por ela acima e o desejo de destruir Lida com esse ódio. Como um tigre-fêmea, Fengxia seguiu em frente com uma passada ágil. Quanto mais se aproximava de Lida, mais impiedosa se tornava a sua ânsia de destruição.
Entretanto, Tong tinha acabado de beber a sua garrafa de cerveja. Evitou olhar para Jinvan, cujos olhos denunciavam o pavor que sentia, pois, ao contrário do marido, revelava ter consciência do quanto aquele dia iria alterar a vida da sua família.
- Não faço ideia de onde o Jian conhece a sua filha declarou Tong.
- Encontraram-se por acaso no mercado de Xiaguan. Estavam ambos a observar um dentista. Foi assim que começou.
- E assim também acabará. - Tong cruzou as mãos, para evitar que Huang percebesse que tremiam. - O meu filho prometeu alguma coisa?
- Vai casar com a minha filha quando concluir os exames de Medicina.
- E entretanto a Lida já é - Tong procurava uma palavra diferente, mas não lhe veio mais nenhuma à cabeça... - mulher dele?
- Eles amam-se - rematou Huang com simplicidade.
- Não é por construirmos um muro que conseguimos deter o sopro do vento. O senhor é pai, eu sou pai, e cada qual ama o seu filho e somos felizes quando os nossos filhos estão felizes.
- Eu não estou feliz com o que o Jian fez à sua filha.
- Mas que expressão é essa, senhor Tong? Fez à minha filha? Duas pessoas amam-se e isso é tão natural como o Sol que se levanta todos os dias e as estrelas que luzem no céu todas as noites...
- Eu não vim aqui para ouvir poesia - interrompeu Tong com rudeza. - Temos que chegar a um acordo, senhor Huang.
- Porque estamos para aqui com rodeios? - Huang envolveu o copo de cerveja com as duas mãos e o seu rosto tornou-se imóvel como uma máscara. - O senhor veio até aqui para nos dizer que a Lida não é digna de fazer parte da família Tong. O pai dela é um professor pobre, de uma aldeia de etnia miao, e a tradição proíbe que ela seja mais do que uma concubina. Mas esta rapariga miao tem um pai, senhor Tong, e este pai até dava o seu próprio sangue pela filha. Cada pessoa tem a sua honra e, se a sua tem mil anos, os Huang também têm antepassados que, se bem que não fossem mandarins, foram artesãos honrados, como o meu pai Yuan, que era carpinteiro. Por acaso foi por mérito seu que nasceu um Tong? O senhor é um médico famoso e pode salvar vidas; eu sou apenas um professorzinho, mas ambos trabalhamos com o ser humano. A diferença é que na mão de um chove dinheiro, enquanto o outro diz que tem sorte se houver sopa a cozer na panela. Será que o valor do ser humano está na sua conta bancária ou estará na sua alma? O senhor tem um filho excelente, senhor Tong, e ele vai ter uma excelente esposa, promessa do pai desta.
- Eu tenho outros planos para o meu filho - retorquiu Tong com uma frieza de cortar o coração. - Nós estamos a falar de um futuro que não é futuro nenhum.
- Quem, além dos deuses, pode espreitar o futuro?
- Eu vou indicar o caminho certo para o futuro do meu filho e ele segui-lo-á - insistiu Tong com uma expressão gelada. - O Jian é novo de mais para conseguir ver a uma distância tão grande. É um homem, não há dúvida; é detentor de uma grande sabedoria, que ainda há-de disseminar pelo mundo. Pisou o paraíso do seu primeiro grande amor, mas não deixa de ser um jovem, que tem de ser levado pela mão, de modo a não se enganar no caminho.
- Venha comigo, senhor Tong. - Huang levantou-se e Tong e Wu acompanharam-no.
Saíram de casa e Huang levou-os até à casinha construída no anexo do estábulo. Abriu a porta e fez sinal às visitas para que entrassem. Tong olhou em volta, brevemente, com uma expressão de desdém. Reconheceu os quadros de Zhang pendurados na parede, vislumbrou a mobília moderna, mas simples, e deteve o olhar na cama: na sua mente, via o filho com a filha de Huang, deitados num estreito abraço. Mordeu os lábios e virou-se bruscamente para Huang.
- O que é isto? - perguntou por entre dentes, mal abrindo a boca.
- É a casa da Lida e do Jian. Construí-a para eles, para esta fase de transição na sua vida.
- Então é aqui? - Tong virou-se para a porta, como se lhe tivessem acabado de mostrar uma pocilga malcheirosa.
- Na minha garagem o Jian viveria com mais luxo.
O rosto de Huang ficou branco como a cal. Olhou fixamente para Tong, depois fitou Wu, que baixou os olhos, pois, de repente, sentiu pena do pobre professor, que certamente teria sacrificado tudo o que possuía por aquela casa, pela qual sentia grande orgulho, e com razão.
- Seu ricaço de nariz empinado! - bradou Huang. Na sua voz sentia-se não raiva ou fraqueza, mas sim um profundo desprezo. De repente, começou a pensar no que Chang Lifu teria feito se ainda estivesse vivo e ouvisse tamanho desaforo. Não era difícil imaginar que, naquele momento, o comissário político da Revolução Cultural despertaria novamente dentro de Chang e que este teria atirado uma frase assim à cara de Tong: ”Há doze anos esquecemo-nos de te atirar para a vala comum junto com os outros!” E depois teria cuspido para Tong e manchado o seu nome definitivamente.
Huang assustou-se profundamente com aqueles tenebrosos pensamentos. Abriu a porta e pô-los na rua. Tong ficou parado na rua, olhando para o automóvel, como se a sua vontade fosse partir sem mais conversas. Huang ofendera-o, chamando-o de ricaço, e com isso deixara de haver uma ponte sobre o precipício que separava a família Tong da família Huang.
- Ofereço-lhe cem mil iuanes - disse Tong de repente.
- É mais do que alguma vez ganhará até ao resto da sua vida.
Huang ficou paralisado, o seu olhar desviou-se mais uma vez para Wu, que tornou a baixar os olhos, tal a vergonha que sentia pelas palavras de Tong.
- O senhor quer comprar a minha filha? - retorquiu Huang, rouco de emoção.
- É exactamente o contrário: quero comprar a liberdade deste amor sem sentido do meu filho Jian.
- Que raio de pessoa é o senhor! - Huang abanou a cabeça, como se não conseguisse conceber o que lhe estavam a dizer. - O seu coração é mesmo feito de notas de iuane? O senhor é um médico, um médico de renome, mas o que vale um ser humano para si? Será que se trata de um mero corpo, de uma doença, de uma massa de músculos, de ossos, de articulações ou de veias? Nunca descobriu a alma no seio de um ser humano? Como é que se pode curar sem compartilhar os sentimentos dos outros? O senhor, por acaso, tem algum sentimento além do orgulho por ser um Tong, um chinês han, para o qual um miao é apenas uma espécie de escaravelho? Todas as pessoas têm o direito à felicidade, seja um mendigo no meio da estrada ou um professor doutor com a bata branca de médico-chefe. Há um momento, após o último suspiro, em que o senhor e um mendigo são iguais e o senhor vai apodrecer debaixo da terra, exactamente como ele. O que é que vai sobrar de si?
- Um filho, que vai dar seguimento à família no espírito do seu pai. Mas como é que o senhor pode perceber uma coisa destas? - Tong fez um gesto de desdém, como se um insecto importuno andasse de roda dele. - Eu vim aqui dizer-lhe que o Jian não voltará a ver a sua filha Lida.
- Vai acorrentá-lo?
- A sua pergunta é proporcional ao seu primitivismo observou Tong com altivez. - Não pode haver nenhum tipo de entendimento entre nós os dois. Então não vai aceitar a minha oferta?
- O meu primitivismo não é suficientemente desenvolvido para que eu pegue num pau.
Pela primeira vez, Wu Junghou usou da palavra e tentou acalmar os ânimos:
- O senhor Tong está a oferecer-lhe segurança e bem-estar. Pense na sua família, que deixará de ter preocupações.
-Nós crescemos com as preocupações ao nosso lado. para nós, são como um hóspede que, aliás, preferimos à da sua presença.
- A sua situação pode vir a ser mais dura do que até agora. A minha palavra também é válida na comissão para a Educação. O presidente da província de Yunnan é meu amigo - informou Tong.
- O senhor está a ameaçar-me?
- Estou a avisá-lo, senhor Huang.
- A mim não me podem acusar de nada. Sempre cumpri o meu dever como professor.
- Como se fosse isso que estivesse em causa! - Tong abanou a cabeça. A sua altivez não tinha limites. - O senhor é uma pessoa inacreditavelmente ingénua. Não se pode deter o deslize de uma montanha com uma vara de bambu. Percebe o que eu quero dizer com isto?
- Perfeitamente! A probidade chama a isso corrupção. Wu encolheu os ombros e passou com as duas mãos pelo
rosto.
- Estarei a ouvir bem? - exclamou, dando-se ao trabalho de deixar que a exaltação soasse na sua voz. - O senhor está a ofender o Partido? O senhor é um burguês?
- Eu sou uma pessoa honrada e tenho orgulho de o ser numa época em que a infâmia se transformou no fundamento da grandeza.
- É assim que o chacal uiva para a Lua. - Tong assentiu com a cabeça para Wu Junghou. - Podemos ir. As nossas palavras estão a cair em saco roto. - Depois fitou Huang com o máximo de desprezo que conseguia. - O Jian nunca mais voltará cá - informou. - E esta casa nova, aproveite-a para estábulo, que para isso serve muito bem. Vamos embora, Junghou!
- Temos que procurar a Fengxia, pai. Ela foi visitar a aldeia.
- Vamos esperar por ela lá em baixo, junto à estrada. Tong endireitou os ombros, como se tivesse sentido um arrepio. - Não quero ficar aqui nem mais um minuto... tudo isto é uma ofensa para os meus olhos e para o meu nariz.
297Voltou-se, começou a andar na direcção do automóvel e apoiou-se no tejadilho; para si, era claro que as famílias Tong e Huang se tinham tornado inimigas mortais e que Jian, o seu filho, seria uma vítima disso, bem como a filha de Huang, Lida.
Wu hesitou e não seguiu Tong de imediato. Virou-se para Huang e fez uma tentativa de despedida amável.
- O senhor, como pessoa, é um homem honrado, senhor Huang - disse. - Percebo a sua raiva e a sua desilusão. Mas, por favor, entenda também o senhor Tong, que está a lutar pelo seu único filho homem.
- Eu compreendo-o como pai, pois estou a lutar pela minha única filha - retorquiu Huang, respirando com dificuldade, face à ofensa de que tinha sido alvo. - Deus decidirá quem de nós é um ser humano melhor. Seja o que for que o senhor Tong e o senhor Wu estejam a planear, não cederei e defender-me-ei. Não é tarefa de um professor ser um herói, mas tenho a minha dignidade e isso ninguém ma pode levar. Era preciso aniquilar-me completamente.
- Devia pensar duas vezes, senhor Huang. - Wu assentiu com a cabeça em sinal de despedida. - Há muitas possibilidades que eu prefiro não nomear. Pode deparar-se com alguma na qual o herói não seja suficiente. Ouça a voz da razão, senhor Huang.
- Eu sou um miao - afirmou Huang, fazendo ressoar o orgulho na sua voz. - O meu povo sobreviveu à passagem dos séculos; saberei lutar também.
No campo cultivado com soja não houve discussão nem troca de palavras. O encontro entre Lida e Fengxia foi muito curto.
Quando Fengxia saiu do carreiro lamacento, ao longo dos terraços de arroz, e tornou a sentir terra firme sob os pés, atravessou o campo, caminhando na direcção de Lida, pouco se importando se pisava as plantas cultivadas ou se deixava um rastro atrás de si no tapete verde. Lida sentara-se para tirar do cesto de vime um pedaço de toucinho e um bolinho de milho, pois naquele dia ninguém lhe levaria o almoço ao campo, uma vez que era o dia livre do zelador da escola e este tinha ido de bicicleta à aldeia vizinha visitar a sua velha mãe. Lida estava sentada numa pedra achatada, com as pernas esticadas, ao seu lado encontrava-se, como sempre, o pavilhão de jade, com o qual falava nos intervalos em que descansava, como se ele fosse Jian. Estava naquele momento a partir um pedaço do bolinho de milho e a pensar: ”Meu amado, também estás sentado na cantina da universidade a comer?”, quando estremeceu, assustada, pois ouviu um som atrás de si, parecendo que uma pedra começara a rolar. Olhou em volta e deparou-se com os olhos duros de Fengxia.
Fengxia tinha-se aproximado silenciosa e furtivamente, entretanto, posicionara-se mais acima, atrás de Lida, de olhos fixos nela. Apresentou-se de repente à frente de Lida com uma expressão fria, bastando levantar o pé e dar-lhe um toque para que Lida rolasse pela pequena encosta abaixo.
- Sê bem-vinda - cumprimentou Lida, como era habitual. - O que te traz ao meu campo? - Guardou o toucinho e o bolo no cesto de vime e examinou a visita. O seu saia e casaco verde-azeitona, com um corte rígido ao estilo MAO, faziam-lhe lembrar um uniforme, e, portanto, Lida não tinha dúvida de que era uma senhora da cidade. - Posso ajudar em alguma coisa? Procuras alguém?
- A ti!
Fengxia disse apenas duas palavras, mas foi como uma chibatada. Instintivamente, Lida sentiu o perigo, como se estivesse diante de uma cobra que poderia mordê-la a qualquer momento. Tentou levantar-se, mas a mão de Fengxia empurrou-a para baixo. Com uma pancada curta, cuja força apanhou Fengxia desprevenida, Lida sacudiu a mão sobre o seu ombro e pôs-se de pé com uma rapidez tal que Fengxia não conseguiu reagir a tempo.
- Quem és tu? - perguntou Lida, e o seu tom de voz foi o único sinal de aviso. - O que te deu para me agarrares?
- Eu sou Fengxia, a irmã do Jian. - Atirava à cara de Lida o seu desprezo. - Vim ver quem era a prostituta camponesa que embruxou o meu irmão. E o que é que encontro? Uma porcalhona a cheirar a bosta de búfalo!
- É preferível cheirar a búfalo... pois o cheiro lava-se
- retorquiu Lida. Os seus olhos quase pretos sondaram Fengxia, tal como um lutador examina o adversário para descobrir o seu ponto fraco. - Por outro lado, quem tresanda a veneno por todos os poros não há banho que lhe valha.
Fengxia curvou-se. Parecia uma fera, pronta a saltar sobre a sua presa. Quando homens honrados conversam um com o outro, mantêm a sua postura; o ódio das mulheres, em contrapartida, é como uma maré cheia que rebenta com todas as comportas.
- Tu nunca mais verás o Jian! - declarou Fengxia. Nunca, nunca mais!
- Não tens o poder de agarrar o Jian.
- É a minha vontade, e a minha vontade é suficientemente forte.
- O teu irmão vai rir-se na tua cara. Já me falou muito de ti.
- Ai falou? - Pelo rosto de Fengxia perpassou um sorriso maldoso. - Então também sabes que tenho o poder de te fazer desaparecer num buraco gradeado. Na China, a prostituição é proibida. Há uma lei muito severa que pune a fornicação. Há pouco mais de três semanas, três homens foram executados em Guangzhou por terem vendido revistas de Hong Kong com imagens porcas. A ti não te vão fuzilar, mas vais criar bolor num campo de trabalhos forçados; o teu lindo corpo, o teu rosto liso e a tua pele macia vão murchar como uma maçã velha. Isso te prometo eu.
- Estou a escutar as palavras de um rato que vive numa gaiola dourada, mas que preferia um pedaço de queijo.
- Prostituta! - gritou Fengxia, cerrando os punhos.
- Só amo um homem! - retorquiu Lida, gritando também. - Mas conheço uma mulher que antes do casamento andou na cama de mais de duas dúzias de homens.
- Sua canalha! Sua maldita, raça de dragão! - O ódio que sentia por Jian, por ter revelado segredos da sua vida passada, cegou-a completamente. Perdera todas as suas inibições. Só via Lida e estava totalmente dominada por uma vontade, a vontade de destruí-la. De repente, deu um salto em frente; os seus dedos precipitaram-se para o pescoço de Lida e, quando sentiram a carne palpitante, cravaram-se nela.
Porém, a agressão durou apenas um piscar de olhos. Lida elevou as mãos e, com uma pancada, desenvencilhou-se das garras de Fengxia. A pancada foi tão forte que Fengxia caiu para trás, indo embater no solo do campo de soja. Rolou sobre si própria, conseguindo, depois, pôr-se de joelhos. Foi, então, que vislumbrou o pequeno pavilhão de jade à sua frente. No mesmo instante, apercebeu-se que só poderia ter sido uma oferta de Jian e a coisa mais valiosa que Lida possuía. Com um grito rouco, Fengxia tentou agarrar o pavilhão, com o intuito de lhe pegar e espatifar na pedra onde Lida estivera sentada. Entretanto, e não obstante Lida estar em cima dela a dar-lhe murros, Fengxia conseguiu tocar no pavilhão com as pontas dos dedos. Nesse instante, um raio de fogo, pois era o que parecia, atingiu-lhe a mão. Fengxia gritou, tornou a gritar, estrebuchou e dobrou-se sobre si própria, permanecendo presa debaixo de Lida. Quando Lida saiu de cima dela, Fengxia esticou a mão que, apesar de uma queimadura, estava intacta, e enfiou-a na boca. Assim ficou, deitada, com os olhos fechados, balbuciando para si própria: ”Eu vou matar-te. Vou perseguir-te até ao fim da minha vida. Enquanto não te vir morta não haverá vida para mim.”
Quando finalmente reuniu forças para se levantar, Fengxia viu Lida junto ao seu búfalo. Levava o pavilhão de jade apoiado na dobra do braço esquerdo e falava com o búfalo como se este fosse gente.
Sem desistir do seu ódio, Fengxia passou por Lida, desceu o trilho escorregadio entre os campos de arroz e subiu a pequena ribanceira que separava os campos da estrada. Ao fundo da colina da escola viu o automóvel à sua espera; Wu, que foi o primeiro a vislumbrá-la, premiu três vezes a buzina e acenou através do vidro descido da janela.
Ela não acelerou o passo, seguiu lentamente pela estrada. Quando chegou ao automóvel, abriu a porta furiosamente e sentou-se ao lado do pai no assento de trás, sem dizer uma única palavra, de olhos fixos no infinito, como se estivesse longe dali.
- O que é que aconteceu? - inquiriu Tong. Reparou na roupa suja, na erva, nas vagens de soja nos cabelos e o seu coração contraiu-se com uma série de pressentimentos.
- Encontraste a Lida? - perguntou Wu. - O que é que ela te fez? Cai-nos o céu em cima... andaram à pancada? a minha mulher, uma funcionária do Partido, a rolar na porcaria com uma miaol Pai - um arrepio fez Wu estremecer - vamos voltar para trás! Agora é que vou partir os ossos todos ao Huang!
- Arranca - ordenou Fengxia em voz baixa. - Arranca e não olhes mais para trás. Ela já está morta.
Tong estremeceu de horror. Pegou nos ombros da filha e virou-a para ele.
- Tu mataste-a? - perguntou, a gaguejar. - Tu mataste um ser humano? Tu transformaste a nossa família num bando de assassinos?
- Para mim, ela está morta. - Fengxia sacudiu a mão do pai. - Não é importante o tempo que ainda viverá; só sei que tem de ser morta. E algures há-de haver um homem que aceite fazer o trabalho por mim. Vou procurá-lo e encontrá-lo.
- A sua cabeça estremecia, depois virou-se na direcção de Wu, como se fosse um réptil a tentar abocanhá-lo. - Porque é que não começas a andar? Não fiques a olhar para mim com esse ar de sapo! O que é que conseguiram junto do Huang?
- Nada! - respondeu Wu. E Tong acrescentou:
- Não há dúvida que ele é uma pessoa inteligente e estúpida ao mesmo tempo. Deita fora cem mil iuanes, tão grande é o seu orgulho. Podíamo-nos ter poupado a esta longa viagem. Agora, a nossa tarefa é manter o Jian afastado da filha de Huang.
- Conseguiremos, quando a Lida estiver enterrada.
- Eu vejo outras vias, minha filha. - Tong olhou através da janela, enquanto Wu arrancava, deixando Huili atrás de si. - E uma delas já eu iniciei. Nos próximos dias muita coisa vai mudar. Falaremos disso em conselho de família.
- Para onde vamos? - indagou Wu, quando chegaram a Yao’an, à estrada que ia para Nanhua. - Dali ou Kunming?
- Vamos para casa - respondeu Tong, recostando-se no assento. - Não quero ver mais esta região. Hoje perdemos um membro da família.
- O Jian? - perguntou Fengxia, sustendo a respiração.
- Não. O Zhang. Ele já não pertence à nossa família. Na nossa família, em mil anos, nunca houve um traidor. Não quero que o nome dele jamais volte a ser pronunciado.
Deviam ser três horas da tarde quando, entre Nanhua e Chuxiong, dois automóveis se encontraram no meio da estrada e travaram a fundo, fazendo um ruído ensurdecedor. De um dos carros, um VW Santana, saltaram Tong e Fengxia e, quase simultaneamente, a porta do carro japonês abriu-se e Jian precipitou-se para fora dele. Correu para a faixa de rodagem na direcção contrária e quase foi atropelado por um camião, que, sem diminuir a velocidade, se apressou na sua direcção, fazendo soar a buzina continuamente. Jian salvou-se saltando para a frente e indo embater na carroçaria do automóvel de Wu.
- Que pena - observou Fengxia, com frieza. - Teríamos resolvido todos os nossos problemas.
- O que é que vocês fizeram com a Lida? - gritou Jian, sem qualquer introdução. - Não se esquivem com mentiras, eu sei que vocês estiveram em Huili! O tio Zhang telefonou-me.
- Não quero voltar a ouvir o nome de Zhang - declarou Tong num tom ríspido. - Mas porque é que haveríamos de mentir? Estive com o Huang e fiz um acordo com ele. É um homem honrado.
- Fizeste um acordo? O que é que acordaste com ele?
- Estou convencido que o meu filho, um Tong, envergonhou a família. Amanhã falaremos sobre o assunto.
- Não, agora! Aqui, no meio da estrada! - gritou Jian.
- A estrada é o local apropriado.
- Sem dúvida que é, para um cão vadio como tu! - Os olhos de Fengxia deitavam fagulhas ao olhar o irmão. Sentia-se segura entre o pai e o marido. - Pois se até arranjaste uma cadela vadia para acasalar.
Jian respirou fundo, levantou a mão e o estalo que atingiu o rosto de Fengxia foi tão forte que ela foi embater contra o automóvel, batendo com a cabeça no tejadilho. Wu deu um passo em frente, mas Jian pôs-se em guarda com os punhos cerrados e afastou-o.
- Não te esqueças que eu sou mestre de boxe - avisou, em voz baixa, mas ameaçadora. - E a mim dar-me-á um prazer especial partir o nariz de um funcionário.
- Tu bateste numa mulher? - As palavras de Tong deixaram de ter tom. Balbuciava as palavras como se estivesse a sufocar. - Tu bateste na tua irmã?
- Ela já não é nem uma nem outra; é um dragão que cospe veneno. - Jian aproximou-se do pai. Estavam em frente um do outro, olhos nos olhos, enquanto Wu abraçava a mulher e a cingia contra o peito, ao mesmo tempo que se admirava por ver Fengxia chorar, pois nunca antes vira lágrimas nos seus olhos.
- E tu... ainda és meu pai? - perguntou Jian. Os seus lábios vibravam.
- No que é que te transformaste, meu filho? - lamentou-se Tong, falando tão baixo que Jian mal o conseguiu ouvir.
- Numa pessoa com vontade própria. - Jian esperou até que outros dois camiões passassem por eles e depois agarrou o pai pelas bandas do casaco e puxou-o para si. O que é que vocês fizeram à Lida? - gritou-lhe na cara, e Tong fechou os olhos para não sentir o hálito quente que soprava sobre si e a infâmia que nunca mais iria esquecer. Responde-me!
- Ficou louco! - balbuciou Wu, abraçando Fengxia, como se tivesse uma afogada nos braços. - Ele ficou louco! Está a atacar o próprio pai. Devia ser internado.
Tong recuperou as forças, mas a sua respiração saía aos solavancos. Não tentou libertar-se das mãos de Jian, pois seria uma atitude indigna para ele bater-se com um filho revoltado.
- Informei a família Huang que não voltará a ver-te.
- Isso é uma promessa que não poderás cumprir. Eu vou ter com a Lida.
- Será a tua última visita. - Tong respirou fundo, quando Jian o largou, e deu um passo atrás. - Falei com o ministro da Cultura e com o reitor da universidade. Consegui obter todas as autorizações necessárias e um bilhete de avião para a próxima semana. Estão à tua espera. Vais estudar para fora. - Era o último, o maior trunfo que tinha na manga e jogava-o naquele momento. - Foste transferido para a Universidade de Pequim.
Durante uns instantes fez-se silêncio, um silêncio tão grande como se estivessem todos paralisados, desde a língua à ponta dos dedos dos pés. Fengxia e Wu olharam fixamente para Jian; o rosto de Jian cobriu-se de vermelho e os seus lábios tremeram violentamente. Tong estava satisfeito por continuar a ser o vencedor.
- Pequim - repetiu Jian, por fim, com uma voz cavernosa, como se o seu corpo fosse um recipiente vazio. - Pequim. Tu estás a exilar-me em Pequim?
- É a melhor universidade da China. Os médicos mais famosos ensinam em Pequim. É uma honra estudar em Pequim.
- E se eu me recusar? - gritou Jian, subitamente. Vão acorrentar-me e arrastar-me até Pequim? Sim, eu recuso-me a ir! Sou um homem livre!
- Tu és um estudante, cujo curso está a ser pago pelo Estado. É o povo que está a pagá-lo com o trabalho das suasmãos. Tens uma obrigação perante o povo, a obrigação de vir a ser um bom médico. Queres trair o teu povo? - A voz de Tong vibrava de emoção. - Tu és uma parte da esperança deste povo. Será que a filha de um professor miao vale a
traição que farás ao teu povo?
Jian sentiu um abanão no corpo. Ergueu a cabeça e disse, com uma voz firme:
- Para mim, ela vale mais do que qualquer pessoa à face da Terra. Fixa bem, pai, eu recuso-me a ir para Pequim.
- Então serás riscado da lista e nunca poderás exercer como médico. Nesse caso, podes começar a arar os campos com o búfalo da Lida e a vender couves nos mercados. Nunca mais receberás uma bolsa de estudos.
- Vou estudar em Londres, Paris ou Munique, na América ou na Austrália... o mundo tem espaço suficiente para mim! E levo a Lida comigo.
- Não conseguirão autorização para viajar para o exterior.
- Então fugiremos para a Rússia ou para o Vietname e de lá para o Ocidente! Acreditavas mesmo que conseguias deter-me?
- Sim, meu filho. - Tong assentiu várias vezes com a cabeça. - Tu és um Tong, és um chinês e vais ser um bom médico. Isso vai deter-te. - Tong pousou amão sobre o ombro de Jian, mas este sacudiu-a, rangendo os dentes.
- Dentro de uma semana, o teu avião parte para Pequim prosseguiu Tong. - Vamos estar todos lá, a acenar-te em despedida e a pedir a benção de Deus para ti. Vamos acender pauzinhos de incenso e depositar sacrifícios aos pés de Buda.
- Eu não vou. - Jian olhava para o pai como se estivesse a vê-lo naquele dia pela primeira vez na vida. - Vocês vão esperar em vão. Eu não vou! - Rodou os calcanhares, pois já não suportava olhar para o seu pai, atravessou a estrada a correr, atirou-se para dentro do automóvel e acelerou antes de arrancar.
- Que vamos fazer - perguntou Wu, hesitante -, se ele se recusar mesmo? Terei de dar o nome dele para que seja penalizado.
- Ele vai - declarou Tong, ao mesmo tempo que se sentava no interior do automóvel. - Vai debater-se com ele próprio e... vai. Um médico não abandona os seus pacientes.
PEQUIM
A família Pohland vivia há quinze anos na China, e o Dr. Pohland nunca se arrependeu de ter vindo para um país que, na altura, estava completamente fechado ao mundo e vivia sob uma ditadura comunista. A sua nomeação para a Universidade de Pequim, como catedrático de Imunologia, devia-a à intervenção do primeiro-ministro Zhou Enlai, que havia estudado em Heidelberga e continuava ligado à sua adorada alma mater, do mesmo modo que não podia esquecer que o seu grande amor da juventude fora uma rapariga loura, que não tivera vergonha de andar com ele na rua de mão dada; naquela época, o amor entre um chinês e uma alemã era motivo suficiente para que as cabeças se juntassem e se falasse de imoralidade.
O tutor de Pohland em Heidelberga foi quem despertou o interesse de Zhou Enlai pelo jovem cientista, pois, numa das suas cartas, o professor Hellbrandt teceu rasgados elogios ao seu aluno e predisse-lhe um futuro promissor. Ainda foi preciso esperar mais um ano até que o Dr. Pohland recebesse uma carta de Pequim, na qual o departamento cultural da universidade, bem como o próprio reitor, lhe perguntavam se estaria interessado em reger uma cadeira na mais importante universidade da China.
Na altura, o Dr. Pohland hesitara, mas por boas razões. Casara com a médica Erika Wilhelmi e tinham um filho, um rapaz, que baptizaram com o nome de Holger, um rapazinho alegre e louro, com ávidos olhos azuis, que seria obrigado a crescer na China de MAO. Levantavam-se muitas questões que só o próprio casal Pohland poderia responder e, quando pediam conselho a alguém, ouviam sempre a mesma resposta: era uma loucura irem viver para o notoriamente xenófobo ”Reino do Meio” e, desse modo, desaparecerem atrás da cortina de bambu.
Apenas o professor Hellbrandt, entretanto aposentado, o persuadiu a tentar levar o conhecimento ocidental até à China, com um contrato de dois anos:
- O seu filho tem agora dez anos - disse-lhe. A idade ideal para se habituar a uma cultura estranha. Se eu fosse tão novo como você, não hesitaria. Além disso, gozará da protecção do homem mais poderoso da China, além de MAO. Zhou Enlai facilitar-lhe-á a vida em todos os aspectos. Não se deixe instigar pelas notícias tendenciosas que surgem na imprensa. Você é um médico, um investigador e, se precisam de si, não deve esquivar-se. Independentemente do local de onde provém o pedido de ajuda: trata-se de pessoas, não de uma ideologia partidária. E no domínio da Imunologia, a China é um país em vias de desenvolvimento. Pohland, aproveite esta oportunidade.
No final, determinante seria, de facto, uma carta que Zhou Enlai escreveu por mão própria ao Dr. Pohland. ”Convença-se”, lia-se, ”que o renascimento da China para uma nova era é de grande importância para todas as nações da nossa Terra, pois um dia a China tornará a ser o que era há um milénio: uma potência mundial, com a qual tem de se contar. Ajude na sua reconstrução, para o bem de toda a humanidade. O senhor e eu somos apenas uma pequena pedra, mas muitas pedras juntas formam um alicerce. Espero por si.”
Os dois anos probatórios transformaram-se em quinze anos. Holger, o filho, frequentou o liceu em Pequim e aprendeu chinês com uma rapidez extraordinária. O problema da habitação também se resolveu depressa: o Ministério da Saúde pôs à disposição da pequena família uma casa grande e bonita, no quarteirão dos diplomatas, na Donghuanbeilu Dajie” a esquina oposta à Embaixada da Suíça. Era uma vivenda com um telhado de telhas francesas vidradas, circundada por um jardim exuberante.
O pessoal - um cozinheiro, uma governanta e uma criada - foi contratado pelo ministério, do mesmo modo que era o ministério que lhes pagava; eram os olhos e os ouvidos que tudo viam e tudo ouviam, após o que tinham de informar a polícia secreta. Pohland só descobriu o que se passava numa conversa com um conselheiro da Embaixada da Suíça, que observou com alguma resignação: ”Uma pessoa habitua-se, doutor. O sistema de vigilância é impenetrável. E é nas urbanizações dos Chineses que alcança a sua expressão máxima. Cada bairro da cidade tem a sua comissão de rua, e um exército de mulheres, maioritariamente de idade, controla cada uma das ruas. As mulheres ouvem, vêem e cheiram tudo e comunicam ao Partido qualquer alteração suspeita. Não existe praticamente vida privada; todos são observados e nenhuma cara nova passa despercebida. Portanto, tenha atenção quando fizer alguma crítica, mesmo que seja no círculo familiar, o seu pessoal doméstico tem bons ouvidos. Nós somos convidados admitidos neste país e não devemos imiscuir-nos nos problemas internos da China. MAO é quase um semideus... mas o senhor aperceber-se-á disso rapidamente.”
Para o Dr. Pohland, a política não era tema de conversa. Fundou na universidade um Instituto de Imunologia, para cuja direcção ele próprio seria nomeado. Encontrou-se três vezes, pessoalmente, com Zhou Enlai, e o número dois da República Popular falou com ele em alemão e entusiasmou-se com as memórias da sua época de estudante em Heidelberga.
O que não passou despercebido a Pohland foi a ”Grande Revolução Cultural do Proletariado”, que se iniciara em Agosto de 1966 com uma manifestação em massa de guardas-vermelhos, a colocação dos primeiros jornais de parede e o anúncio da atroz divisa de MAO, que dizia: ”Sem destruição não pode haver construção!” As unidades de guardas-vermelhos puseram-se em marcha, os ”pequenos generais de MAO” atiraram-se de cabeça ao extermínio da intelligentsia e à destruição dos antigos bens culturais. Doutores, professores, médicos foram presos, torturados e maltratados até à morte. Em Novembro de 1966, o Comité Central do Partido comunicaria com orgulho ao seu Presidente MAO que treze milhões de guardas-vermelhos tinham alinhado para a limpeza. da China dos capitalistas, dos intelectuais e dos traidores rebeldes que deitavam o olho ao Ocidente.
Contudo, ainda faltava o fundamento espiritual. MAO introduziu-o com o seu livro vermelho, uma colectânea das suas ideias comunistas revolucionárias. Em Dezembro de 1966, toda a imprensa e todos os jornais de parede, até o da aldeia mais remota, anunciariam que o livro vermelho de MAO era de leitura obrigatória para todos os chineses. Desde esse dia, uma nação de mil milhões de habitantes passou a viver de acordo com os lemas do Grande Presidente.
A limpeza efectuada pelos guardas-vermelhos já não tinha limites. De Abril a Agosto de 1967, a China afundou-se no caos, em sangue e em pilhagens, mas o mais importante era que MAO estava a perder o controlo sobre as massas fanáticas dos seus guardas-vermelhos. Cinco milénios de cultura chinesa perderam-se nas chamas, sob os pés dos guardas-vermelhos ou foram transformados em ruínas pilhadas. Os intelectuais - entre os quais se incluía quase toda a gente que usava óculos, de tal forma que milhões de chineses esconderam ou destruíram os seus óculos - foram presos e levados a ”sessões de formação”, que eram apenas um sinónimo de tortura; ou foram encurralados em massa em campos de reeducação, que rapidamente se começaram a chamar ”currais” na boca do povo. Uma onda de suicídios varreu o país, cientistas famosos enforcaram-se ou cortaram os pulsos, antes que os guardas-vermelhos irrompessem pelas suas casas adentro e os arrastassem de lá para fora. Conta-se que houve professores catedráticos que foram encerrados nas caves das suas universidades, como se fossem animais selvagens, e que todos os dias os iam buscar e os sovavam, até a inconsciência, com bastões e coronhas de armas ou lhes enfiavam o livro vermelho na boca para morrerem sufocados.
Tudo isto aconteceu muito antes de o Dr. Pohland chegar a Pequim. Se bem que a Revolução Cultural não tivesse propriamente terminado, os assassínios e a destruição haviam cessado, pois não existia mais ninguém para matar e mais nada para destruir. O Manifesto da Décima Jornada do Partido Comunista Chinês, em Agosto de 1973 - no qual era anunciado que campanhas como a Grande Revolução Cultural seriam prosseguidas no futuro mais dez, vinte ou trinta vezes - não passou de uma mera declaração. O horror do mundo face aos milhões de mortos começou a decrescer, a política externa dos Estados ocidentais começou a ocupar-se mais com as perspectivas económicas que prometiam negócios de milhões. Deng Xiaoping, até então vice-primeiro-ministro, foi nomeado vice-presidente do Comité Central em 1975, assumindo também as funções inerentes ao primeiro-ministro Zhou Enlai.
Revelou-se um segredo que até então fora muito bem preservado: Zhou Enlai tinha uma doença incurável, cancro. E enquanto em Pequim se reunia o Segundo Plenário do Comité Central, MAO Tsé-Tung recebia na cidade de Hangzhou o político alemão Franz Josef Strauss. A indústria alemã penetrava na China, um mercado de proporções inimagináveis. Na altura, o Dr. Pohland já estava há quase três anos em Pequim.
No início de 1976, quando Zhou Enlai faleceu e Hua Guofeng lhe sucedeu, o Dr. Pohland foi um dos participantes nas cerimónias do funeral.
- Acho que está na hora de regressarmos à Alemanha - disse Erika Pohland, dois meses após a morte de Zhou Enlai. Estava-se no início de Março e em Guangzhou acontecera algo de inacreditável. Num grande jornal de parede lia-se: ”Jiang Qing é uma prostituta da classe dos exploradores.” Jiang Qing era a mulher de MAO Tsé-Tung, o Grande Presidente. - Tudo leva a crer que vem aí uma nova guerra civil - prosseguiu Erika. - As coligações partidárias contra os progressistas em torno de Deng Xiaoping. Vão prender-nos a nós também. O teu protector, Zhou, está morto. Para MAO, não passas de um mero intelectual e, além disso, estrangeiro. Rapidamente vão acusar-te de seres espião.
- Erika, isso é um disparate! Todos na universidade sabem...
- E o que é que isso nos interessa? - interrompeu Erika. - Quando não se quer saber nada, podem fazer contigo o que quiserem.
- Eu prolonguei o meu contrato por mais três anos. Após a morte de Zhou Enlai, o Dr. Pohland tivera uma longa conversa com o ministro da Cultura; este garantira-lhe, com toda a cortesia, que nada se alteraria com a subida ao cargo de Hua Guofeng; todos se congratulariam se o Dr. Pohland quisesse continuar a pôr à disposição da China a sua grande sabedoria. Depois da audiência, um alto funcionário seguira o Dr. Pohland e, no vão da escadaria, chamara-o de lado.
- Senhor professor - segredara-lhe o funcionário -, nós estamos numa época de transição. Nos próximos meses assistiremos a grandes mudanças. Deng Xiaoping assumirá o poder quando MAO morrer. Estamos todos a aguardar a sua morte. O Deus Vermelho foi destronado... só que ninguém quer ver isso enquanto ele estiver vivo. O futuro da nossa Nação será uma revolução sem derramamento de sangue: a abertura ao Ocidente. O senhor está a pensar voltar atrás?
- Sim. Vou apresentar a minha demissão.
- Não faça isso, senhor professor. Espere mais um tempinho! A China vai tomar novos rumos. E seja sincero consigo próprio: o senhor ama este belo país.
- Digamos que me habituei a este país.
- Vai dar ao mesmo, senhor professor. Quem ama a China, ama-a com todo o seu coração ou nunca virá a amá-la. Por favor, fique.
Dois dias depois, o Dr. Pohland assinou o seu novo contrato. Entretanto, alguns diplomatas haviam-lhe dito que os renovadores em torno de Deng Xiaoping eram mais poderosos do que os esquerdistas conservadores que empunhavam a bíblia de MAO.
- Não vejo motivo para quebrar o contrato, Erika - retorquiu o Dr. Pohland para a mulher. - Antes pelo contrario. Prometeram-me um novo laboratório e poderei equipá-lo com a mais moderna tecnologia. Será um laboratório-modelo para todas as outras universidades chinesas. Afinal, o que é que te faz ter tanto receio?
- Rumores, Dietrich. Não abanes a cabeça. Todos os rumores têm uma base de verdade. Eu tenho medo, simplesmente medo.
Em Setembro de 1976 morria MAO Tsé-Tung. Tinha oitenta e dois anos de idade. A China mergulhou numa onda de desgosto, mas também respirou fundo. Que viria a seguir a MAO? era a questão. Quem assumiria o poder sobre mil milhões de chineses? As fronteiras seriam fechadas ou abrir-se-iam?
Em Outubro, nem sequer um mês após a morte de MAO, o mundo, abismado, susteve a respiração. Os impiedosos dirigentes da Revolução Cultural, que há muito eram conhecidos pelo povo como o ”Bando dos Quatro”, foram presos: a viúva de MAO, Jiang Qing, o genro de MAO, Yao Wenyuan, Zhang Chunqiao e Wang Hongwen. Quando foi dada a ordem de prisão ao sobrinho de MAO, MAO Yuanxin, este entrincheirou-se com partidários seus e ofereceu resistência. Arrombaram a casa e fuzilaram Yuanxin no local. O caminho estava livre para Deng Xiaoping.
O Dr. Pohland ficou três dias fechado na sua vivenda. As malas feitas aguardavam o seu destino na arrecadação, o cozinheiro, a governanta e a criada permaneceram sentados na ampla cozinha e choravam. Não era por medo de poderem ser levados para a prisão - como informantes da polícia secreta dos antigos detentores do Poder, pairava sobre eles a ameaça por parte dos novos governantes -; choravam de desgosto puro pela perda da família Pohland. A mais inconsolável era, sem dúvida, a governanta, pois ninguém conseguia acalmá-la. Encerrara a cabeleira loura de Holger no seu coração, chamava-lhe com ternura ”a nossa cabecinha loura” e considerava que a sua tarefa na vida era fazer dele um homem forte, belo e honrado, um ”nariz comprido” que deveria pensar e sentir em chinês. O medo face a uma possível pena infligida pelo novo Governo já tivera o seu auge, pouco depois da morte de MAO. O cozinheiro recebera a visita de um tio, que não era tio nenhum, mas sim um major da polícia secreta, e este comunicara ao pessoal do Dr. Pohland que nada mudara, antes pelo contrário: continuavam a querer obter relatórios sobre o que se passava em casa do alemão, sobre as conversas à mesa e na sala, quem visitava o Dr. Pohland e a quem dirigia este a sua correspondência. Além disso, a casa fora incluída na ”lista das casas intocáveis”; isto é, no caso de uma rusga, não seriam incomodados.
Tudo isto se passara há treze anos. O professor doutor Pohland estava irremediavelmente ligado à universidade, era parte integrante da fama da universidade e quando pensava na Alemanha, ou mesmo em Heidelberga, já não sentia qualquer nostalgia. Para ele, a China tornara-se a sua pátria, já não conseguia imaginar-se a viver noutro sítio a não ser Pequim e, se, de vez em quando, comprava jornais e revistas alemãs na livraria internacional, ficava admirado com a política seguida por Bona e Penkow, abanava a cabeça ao ler artigos sobre o pequeno xadrez dos políticos alemães, as guerras de trincheiras dos partidos, os grandes problemas da Alemanha que, no âmbito da política mundial, eram tão insignificantes. Se Kohl ou Strauss andavam à bulha ou se a actriz de cinema X se metia secretamente na cama com o industrial Y, tudo o que agitava a Nação alemã era completamente indiferente para o Dr. Pohland. A China sugara-o.
Holger Pohland tornara-se no que Jin Jingwen, a governanta, considerava como o objectivo da sua vida: era um ”nariz comprido”, mas pensava e sentia totalmente em chinês, estudava Medicina na Universidade de Pequim, amava em segredo uma colega chinesa, tocava trompete numa banda chinesa, guiava uma bicicleta de luxo cromada, importada de França, usava calças de ganga do Texas e camisolas de manga curta com estampados coloridos e era considerado um ás no clube de ténis das embaixadas. Falava na perfeição chinês mandarim, inglês, francês e, naturalmente, alemão. Jin Jingwen tinha todos os motivos para olhar para o seu ”cabecinha dourada” com orgulho. Só havia uma coisa que ofuscava a sua alegria: a amizade de Holger com o estudante alemão Karl Reindl, que se apresentava apenas como ”Charly”. Jin Jingwen não conseguia explicar por que razão não gostava de Reindl desde a primeira vez que pusera os olhos nele, chegando a sentir antipatia pelo rapaz. Contudo, o rapaz era educado, cumprimentava Jingwen como se ela não fosse uma empregada, mas uma senhora da sociedade, e sentava-se frequentemente na cozinha, contando ao cozinheiro anedotas de segundo sentido, num chinês que faria o cozinheiro largar à gargalhada se a delicadeza não lho proibisse.
Charly Reindl provinha da região do Ruhr, em Dortmund-Hõrde. O seu pai, segundo ele, era mestre numa fábrica de ferramentas e um comunista dissimulado no Estado preto e vermelho de Bona, como costumava chamar à República Federal Alemã, do mesmo modo que todos os Reindl, desde que o avô era criança e devorava os ensinamentos de Marx, Engels e Lenine. Foram estas referências que lhe permitiram ser apurado numa selecção feita pelos Chineses, de maneira a obter uma vaga para estudar em Pequim, apesar de ninguém perceber por que motivo tinha escolhido precisamente a China e o que faria no futuro com o seu curso de História da Arte Chinesa. Engenharia Mecânica em Aachen teria sido uma opção melhor para ele.
A amizade entre Charly Reindl e Holger Pohland iniciara-se na mesa da cantina universitária. Apesar de Reindl já estar a viver na China há seis meses, ainda não conseguia comer com os pauzinhos e Holger ficou curioso quando Reindl exclamou um par de vezes ”Raios!”, de cada vez que lhe escapava um pedaço de galinha ou de verduras por entre os pauzinhos.
Holger aproximou-se da mesa dele e interpelou-o:
- Presta atenção, companheiro, vou mostrar-te exactamente como se lida com estes pauzinhos. É muito simples. O truque reside em mover apenas um dos paus, o de cima.
- Quem descobriu isto devia levar uma sova! - foi o; comentário de Reindl. - Ontem havia peixe cozido, um pei[ xe muito tenro. Deslizava tudo através dos pauzinhos. Então,
pus-me a comer com as mãos, que, de resto, é o método de alimentação mais antigo. Ou pensas que o Sinantropus pequinensis, também chamado homem de Pequim, já comia com pauzinhos nessa altura?
- Tudo o que um asiático faz, tu também consegues fazer - garantiu Holger, rindo-se. - Eu sou o Holger.
- Eu sou o Charly, de Dortmund.
Conheceram-se melhor e, logo a partir do primeiro encontro, a relação transformou-se numa verdadeira amizade. Jogavam ténis juntos; Reindl aprendeu a tocar guitarra e começou a dar uns toques com a banda; até o Dr. Pohland achava o rapaz da região carbonífera do Ruhr simpático, pois Reindl tinha uma maneira engraçada de contar coisas e era um verdadeiro companheirão. Apenas Jin Jingwen nunca gostou dele, mas não sabia porquê. Tudo nela se eriçava contra Reindl e, sempre que ele vinha a casa dos Pohland, fitava-o furiosa e dizia para o cozinheiro: ”A cobra venenosa torna a esgueirar-se para dentro de casa.”
Foi através de Reindl que Holger conheceu Bai Hongda. Um dia, Reindl trouxe-o a um ensaio da banda e apresentou-o:
- Este é o Bai Hongda. Não percebe nada de jazz, só conhece o uivar dos Chineses e adora canções populares alemãs. Apesar disso, é um bom rapaz. Além do mais, é dirigente de um grupo de estudantes progressistas e estuda Direito. Se alguma vez tiveres um processo de pensão de alimentos, ele aconselha-te com prazer como chegar a acordo com raparigas chinesas.
- Prazer em conhecer-te - disse Bai, com toda a delicadeza que distinguia um chinês culto, e inclinou-se ligeiramente. Em seguida, apertaram as mãos à moda europeia.
- Parece-me que somos uma boa parelha - concluiria Reindl uns dias mais tarde. - Um chinês han, um alemão que pensa como um chinês e um alemão da região do carvão. Isto, só em Pequim.
Foi numa quarta-feira que o reitor da universidade convidou o Dr. Pohland para uma conversa. Estavam sentados em frente um do outro, bebiam as obrigatórias tacinhas de chá e iniciaram a conversa trocando as habituais cortesias, perguntando pelas famílias respectivas e pela sua saúde. O Dr. Pohland estava curioso para saber o motivo que o professor Li Hiao iria apresentar para a conversa.
Depois da segunda taça de chá, Li abordou finalmente o assunto.:
- Fizeram-me um pedido - explicou, tirando os óculos e limpando-os.com um pano de algodão macio. - O reitor da Universidade de Kunming e o professor catedrático da cadeira de Medicina Interna, o conceituado e famoso Tong Shijun, escreveram-me uma carta. O filho do professor doutor Tong, Jian, é estudante de Medicina. É um jovem muito dotado, o melhor do semestre e vai ser transferido para Pequim, a melhor de todas as universidades.
Era uma mentira, pois Tong escrevera a Li com toda a sinceridade e contara-lhe o que se passara em Kunming. Mas Li não queria comunicar esta parte ao Dr. Pohland. Tossiu discretamente, pôs os óculos e fitou Pohland com ar cordial.
- A família Tong é uma das famílias mais consideradas do país - acrescentou. - E o Jian é o único filho homem. É natural que o Tong se preocupe e que insista que ele fique, por assim dizer, em boas mãos. Eu não conheço nenhuma pessoa mais respeitável, na qual Tong poderá depositar toda a sua confiança, do que o senhor, professor Pohland. O senhor habita uma casa grande, também tem um filho dotado que estuda Medicina, a sua esposa é igualmente médica e, com certeza, poderá arranjar um quarto para o Jian. Irá vê-lo como um segundo filho. Que lhe parece?
O Dr. Pohland raciocinou com rapidez. O pedido de Li era uma intimação habilmente disfarçada, tendo em conta que a vivenda era, na verdade, propriedade da República Popular da China e que estava há quinze anos à disposição do Dr. Pohland, sem que este pagasse qualquer renda. Uma resposta negativa seria aceite, mas o facto é que a honra de Tong ficaria manchada e ele próprio perderia a consideração de Li. Responder, naquele momento, ”Vou perguntar à minha mulher”, ainda seria mais impróprio perante um chinês, pois em casa quem tem a última palavra é o homem e uma mulher só deve acatar o que ele diz.
- O senhor Tong Jian será bem-vindo a minha casa retorquiu o Dr. Pohland, ao estilo tradicional. Simultaneamente, inclinou-se ligeiramente na cadeira. - Quando chegará o senhor Tong a Pequim?
- No próximo domingo, no voo do meio-dia, vindo de Kunming.
Ainda tinha três dias e meio. O Dr. Pohland ficou curioso com a urgência, tão pouco habitual nos Chineses, mas não fez mais perguntas. Li levantou-se, dirigiu-se para um armário envernizado, com lindíssimas pinturas de flores, e retirou uma garrafa de Maotai, a melhor bebida espiritual chinesa, bem como dois copos. Serviu os copos, brindou com Pohland e sorveu um golinho da bebida, pois a Maotai não se enfia garganta abaixo como a aguardente normal.
- O senhor terá grandes alegrias com o Tong Jian acrescentou. - Quer especializar-se em Cirurgia, que é a única preocupação que dá ao pai. O Tong Shijun preferia que ele escolhesse Medicina Interna. - Levantou-se e o Dr. Pohland imitou-o. - Entretanto, telefono-lhe a dizer como é que poderá reconhecer o Jian. Certamente vai buscá-lo ao aeroporto.
- E evidente.
- Fico muito feliz por o considerar há tantos anos como amigo. - Li estendeu a mão a Pohland. - O carácter do ser humano não se vê no corpo; está na alma.
Erika Pohland olhou estupefacta para o marido, quando este lhe comunicou, casualmente, à hora do jantar:
- A partir de domingo vamos ter um hóspede.
- Isso não é nenhuma novidade. De que embaixada?
- Este vem viver connosco.
- Viver?
- É algum estrangeiro? - inquiriu Holger. A seu lado estava Charly Reindl, satisfeito por não ter de comer com pauzinhos.
- De Kunming. Um estudante de Medicina. Chama-se Tong Jian. O pai dele é professor catedrático de Medicina Interna.
- Um filhinho de boas famílias, pois então - ouviu-se Reindl dizer.
- E quanto tempo ficará? - perguntou Erika.
- Por tempo indeterminado. Vamos arranjar-lhe o segundo quarto do jardim.
- Não estás a falar a sério - exclamou Erika, exaltada. - Tu não podes simplesmente...
- Foi o reitor que me pediu. - O Dr. Pohland repeliu todos os protestos com um gesto da mão. - Não tive outra alternativa que não fosse concordar com agrado.
- Ninguém pode obrigá-lo - protestou Reindl com agressividade. - No comunismo chinês também há direitos adquiridos.
- Eu teria perdido consideração. Além disso, vivemos há quinze anos numa vivenda do Estado. Não façamos julgamentos precipitados antes de vermos o senhor Tong! Ele pertence às primeiras famílias da China.
Holger pousou os seus pauzinhos e limpou a boca com o guardanapo.
- Vamos aguardar. Se ele vier para aí com ar de ilustre e de nariz empinado, vai ter que se haver comigo.
- E eu dou-lhe um pontapé no rabo! - acrescentou Reindl, grosseiramente.
O avião de Kunming chegou pontualmente a Pequim no domingo. Jian retirou a sua mala do compartimento da bagagem de MAO; no porão do avião estavam duas malas grandes. Os pais haviam-no levado às melhores lojas de Kunming para fazerem compras.
- Pequim é diferente de Kunming - comentara Tong para a mulher. - Lá não pode andar no meio da rua como se fosse um varredor de estradas. Ele vai representar a nossa família. - E assim, mandou fazer para o filho cinco fatos à medida, em três alfaiates de serviço rápido, que habitualmente trabalhavam para os turistas ricos. Comprou as camisas mais caras, os melhores sapatos, as gravatas mais na moda e a roupa interior mais confortável.
Jian assistiu a tudo sem um queixume e apenas assentia em silêncio quando lhe faziam uma pergunta.
À noite, quando foram para a cama, Meizhu observou para Tong:
- A alma do Jian morreu. Tu mataste-o, Shijun.
- É só uma fase de transição - retorquiu Tong. - Em Pequim arranjará novos amigos e encontrará uma nova alegria de viver. Nós não sabemos o que aconteceu em Huili, quando se despediu da Lida. Também não interessa. O que é importante é que ele não se recusa a ir estudar para Pequim. O futuro médico que há dentro dele é, pois, mais forte do que o amante. Isso dá-me esperança.
Contudo, não fora tão simples como Tong via ou queria ver. Jian ficara três dias em Huili e o que lhe contaram da visita da sua família envergonhara-o mortalmente.
- Eu vou fugir para o Norte! - disse para Huang. Para o deserto de Takla-Makan ou para Urumtsi, para onde quer que seja, desde que ninguém me procure e ninguém me encontre. Ou vou tentar ir para a América ou para a Europa, para poder continuar a estudar.
- Sem dinheiro? - perguntou Huang. - Eu não posso arranjar-te dinheiro.
- Tenho duas mãos e dois braços fortes. Farei qualquer tarefa, mesmo a mais suja, da qual toda a gente se esquiva. Vou conseguir, Keli, vou conseguir.
- E eu terei de esperar não quatro, mas cinco ou sete anos! Jian, fugir não é a solução. - Lida estava de pé atrás dele e enrolava os braços no seu pescoço. - Vais fugir para uma vida diferente, na qual nem tu nem eu poderemos ser felizes. Obedece à ordem do teu pai, continua a estudar em Pequim.
- Pequim... Lida, se calhar só nos poderemos ver uma vez por ano.
- Mas tu estás na China. Se fores viver para Nova Iorque ou Paris ou Londres, nem sequer isso. Nesse caso, estarás longe do nosso mundo. Serás um fugitivo e o teu nome será riscado da China e deixarás de ser chinês. Fica na China e vai para Pequim. Tu sabes que espero por ti pacientemente. Mostra ao teu pai a força que tens e como o nosso amor é intocável. Só temos isso na vida.
Jian passou três dias a reflectir nas possibilidades que lhe restavam. À noite, quando Lida adormecia nos seus braços, chegava sempre à conclusão que a atitude mais inteligente era ceder ao pai, mais do que fugir para o estrangeiro e depois viver na incerteza. Nenhum Estado lhe daria asilo, pois não deixaria a.China por questões de perseguição política, mas por desentendimentos familiares.
A postura das grandes potências face à China tinha-se alterado totalmente, a abertura ao Ocidente, que já havia sido planeada por Zhou Enlai, estava agora a ser concretizada por Deng Xiaoping; todos os Estados haviam retomado as relações diplomáticas com a China.
Os velhos senhores em Pequim seguiram um rumo completamente diferente, muito ao gosto dos Estados ocidentais. Em 1978, a colectivização da economia foi sacrificada à nova linha; o Estado devolveu aos camponeses as suas terras e o mercado foi liberalizado. Surgiram pequenas empresas particulares, a literatura e a arte recomeçaram a florescer, a liberdade religiosa tornou a ser introduzida; mas tudo seria superado por algo de inacreditável: muitas das vítimas da Revolução Cultural, incluindo as que foram executadas nesses anos, seriam reabilitadas publicamente.
Em 1981, Deng Xiaoping nomeou o seu amigo Hu Yaobang secretário-geral do Partido e Zhao Ziyang tornou-se primeiro-ministro. Em 1982, foi anunciada uma nova Constituição. Dava-se início à modernização da China, e Deng falava de um curso de reformas que iria quadruplicar o poder económico da China no ano 2000. Contudo, logo em 1983, este curso foi posto em causa pelas forças conservadoras do Partido Comunista Chinês e pela generalidade dos conservadores; revoltavam-se contra a ”capitalização da China”.
Começou a campanha contra a ”poluição espiritual”, os que haviam cometido delitos graves foram sujeitos a uma execução pública, para a qual a população foi convidada, e os zelosos extremistas iniciaram nova perseguição aos intelectuais críticos; proibiu-se a moda ”decadente” que penetrava na China, essencialmente vinda de Hong Kong. Cabelos compridos e música ocidental foram considerados uma traição à cultura chinesa.
Não obstante, a liberdade já não era tão facilmente sub jugável. Em finais de 1986, as pessoas, e principalmente os estudantes, foram para a rua e fizeram uma manifestação a favor de mais democracia, observada com benevolência por parte de Hu Yaobang, que não reprimiu os estudantes com violência, como exigia a ala conservadora do Partido. Mas os conservadores venceram mais uma vez: Zhao Ziyang, que também era um liberal, mas cuja função se limitava a ser a de cartão de apresentação para o Ocidente, substituiu Hu Yaobang como secretário-geral do Partido. Entretanto, pouco menos de um ano depois, teve de ceder o seu cargo a Li Peng, que oscilava entre o conservador e o liberal.
No Ocidente, estes desenvolvimentos foram seguidos com grande interesse. Os gigantes da economia do mundo ocidental estavam preparados para prestar auxílio à China no seu caminho de saída do isolamento. Contudo, para um refugiado particular, que se chamava Tong Jian, não havia lugar.
Tudo isto Jian reviu em pensamento, naquelas noites passadas em claro, com o corpo quente e macio de Lida nos seus braços. Ao terceiro dia, comunicou finalmente a sua decisão, mas nas suas palavras transpirava uma grande melancolia:
- Vocês têm razão. É melhor para nós se eu me vergar à vontade do meu pai e for para Pequim prosseguir os meus estudos. Estes anos que faltam também passarão e, quando for médico, ele deixará de ter poder sobre mim e não terei de obedecer a mais nenhuma ordem. Nessa altura, começará a nossa vida, Lida!
E foi neste estado de coisas que o avião vindo de Kunming aterrou no aeroporto de Pequim. Jian acompanhou a torrente de viajantes, logo atrás de um grupo de turistas da Baviera, que antecipavam em voz alta o prazer da cerveja fresca que iriam beber mal chegassem ao hotel.
No átrio do aeroporto, o Dr. Pohland e Holger aguardavam o convidado que lhes fora imposto. Tong Shijun telefonara no sábado e informara que o filho vestiria um fato completo castanho-claro com uma gravata de riscas amarelas e que, principalmente por causa da gravata, era fácil reconhecê-lo. O Dr. Pohland respondera que em Pequim o tempo ainda estava mais quente do que o habitual para a época, por jsso ele vestiria um fato de seda creme e o filho, de certeza, usaria calças de ganga e uma T-shirt, com uma estampa de um jogador de basebol qualquer.
Tong ficou ligeiramente confuso com a informação, tanto mais que em Kunming não se conhecia aquela moda; perguntou-se se os cinco novos fatos completos de Jian não seriam, afinal, um tanto ou quanto conservadores.
O grupo da Baviera marchou através do gradeamento e foi recebido por dois tradutores-intérpretes, que seguravam um pau de bambu com uma carta/ onde se lia ”Hotel Grande Muro”. Jian pisou o enorme átrio atrás dos bávaros, deteve-se e olhou em volta. Quase simultaneamente, Jian e Holger viram-se.
- É ele - disse Holger e deu um safanão ao pai. Com fatinho de alfaiate! Que belo atado.
- Holger! - ralhou o Dr. Pohland, lançando ao filho um olhar reprovador. - Se calhar, ele até nem se sente bem no fato. A minha primeira impressão é que é um rapaz simpático.
- Não te precipites, pai. Amanhã cedo saberemos.
O Dr. Pohland e Holger dirigiram-se para Jian e este aproximou-se com um sorriso inseguro.
- Tong Jian - apresentou-se, inclinando-se ligeiramente para o Dr. Pohland. - Peço muitas desculpas por vir perturbar a vossa vida quotidiana, mas foi a vontade do meu pai; não tive qualquer influência na sua decisão. - Depois fitou Holger, que fazia um sorriso um pouco malicioso; considerava a tradicional cortesia e submissão dos Chineses como uma atitude perfeitamente ultrapassada.
- Holger? - perguntou Jian.
- Olá! - Holger estendeu-lhe a mão. - Espero que te sintas bem connosco. Trouxeste muita bagagem?
- Duas malas grandes.
- Só com roupa? Kunming deve ser um sítio muito elegante... eu cá não consigo encher mais do que uma mala pequena.
Jian riu-se. Ali falava-se num tom diferente do que em Kunming e agradava-lhe mais do que a conversa de troca de cortesias, que em casa dos Tong era inquestionável. Aproximou as mãos do colarinho da camisa, desfez o nó da gravata com riscas amarelas e guardou-a no bolso das calças. Depois, alargou o colarinho e desabotoou os dois botões superiores da camisa, despiu o casaco do fato completo e pô-lo por cima do ombro.
- Finalmente que me vejo livre deste carrasco! - exclamou. - Mas tinha que trazer a gravata posta ou então não me reconheceriam.
- Assim já me agradas mais, Jian. - Holger pegou na maleta de mão de Jian. - E agora, vamos às malas!
Tiveram que esperar quase vinte minutos até que Jian conseguisse retirar do tapete rolante as duas caríssimas malas de pele.
Holger pegou numa pela pega, elevou-a e tornou a pousá-la.
- Santo Deus - comentou -, o que é que está aqui dentro?
- Muita coisa que não vai ser usada. Só pares de sapatos são seis.
- De cabedal?
- Naturalmente. Do melhor.
- Amanhã vamos às compras e eu passo-te um par de ténis de Hong Kong. Linho branco com riscas vermelhas e uma sola maleável profissional. Até flutuas sobre o pavimento. Já alguma vez calçaste sapatos desses?
- Não. O meu pai não os consideraria sapatos.
- ”O meu pai”. Sempre ”O meu pai”! É ele que decide tudo o que fazes?
- Assim manda a tradição chinesa, segundo a qual ele vive.
- Ouvi dizer que a sua família é antiquíssima - imiscuiu-se o Dr. Pohland.
Jian acenou com a cabeça.
- Já existe há mais de mil anos. Os meus antepassados eram mandarins no palácio imperial.
- É extraordinário que o seu pai tenha superado a Revolução Cultural.
- Ele é um comunista convicto.
Apanharam um táxi para a vivenda do Dr. Pohland, onde Erika Pohland os esperava com chá e um bolo, ficando muito surpreendida por o seu hóspede não corresponder à imagem preconcebida que ela formara de um descendente de uma família milenar.
- Fica tudo dentro da mala, excepto as cuecas e as meias, mãe - informou Holger, depois de Erika mostrar a Jian o seu novo quarto. - Só amanhã é que vamos vestir o Jian como deve ser, para que não se sinta um faisão dourado entre os pardais. - Sentou-se na cama. - Tocas algum instrumento, Jian? É que nós temos uma banda e divertimo-nos a tocar em bares e a arranjar alguns iuanes.
- Aprendi a tocar piano - respondeu Jian.
- Óptimo.
- Beethoven, Chopin, Brahms, Schubert e Tchaikowski.
- É a melhor base para um rock bem esgalhado. Quando a mãe saiu do quarto, Holger piscou-lhe o olho e acrescentou. - Nem imaginas como as mulheres ficam malucas quando a nossa banda está a tocar. E não só as chinesinhas... as mais excitadas são as turistas. Americanas, suecas, inglesas, alemãs. Para elas, o programa de viagens inclui uma aventura com um chinês. Como é que é em Kunming? Lá também há turistas?
- Eu estou noivo - declarou Jian.
- Ainda por cima. Assim, noivo a sério?
- Vamos casar quando eu concluir os meus exames finais. Ela chama-se Lida e é filha de um professor.
- E por isso foges para a distante Pequim? Jian fitou Holger com um ar observador.
- Prometes não contar a ninguém? Nem ao teu pai nem à tua mãe?
- Tenho ar de quem faria uma coisa dessas?
- O meu pai mandou transferir-me para Pequim por causa da Lida. Estou aqui de castigo.
- E admites uma coisa dessas? - Holger abanou a cabeça. - Jovem, nunca ouviste falar de uma coisa que Se chama liberdade individual?
- Esse é o meu grande objectivo. Há liberdade em Pequim? Tu sentes-te livre?
- Isso são duas coisas completamente diferentes, Jian: a liberdade em geral e a liberdade pessoal. Eu tento, de acordo com as minhas possibilidades, viver a minha própria vida.
- E qual é a dimensão dessas possibilidades?
- Isso é uma boa questão. Nós estamos a lutar por mais liberdade na China.
- Quem é ”nós”?
- Um grupo de estudantes da universidade nacional. O líder do movimento é Bai Hongda, um bom amigo. Vais conhecê-lo.
- E como é que será essa luta?
- Vamos organizar uma manifestação e fazer com que o mundo inteiro fique com os olhos postos em Pequim. O que Deng Xiaoping chama de abertura ao Ocidente não é suficiente. Nas províncias distantes, as pessoas vivem como se o tempo tivesse parado. Sabias que na China há mais de oitocentas e oitenta e cinco mil aldeias; que na cidade cada pessoa tem apenas três virgula cinco metros quadrados de área para si; que se quiseres vir de Xangai para Pequim não terás emprego, pois não pertences a nenhuma ”comuna” e, portanto, és um zero, nem sequer existes? Se não fores membro de uma ”comuna”, não tens sítio onde dormir e não tens direito a cuidados de saúde; ninguém tratará de ti quando fores velho, não recebes senhas racionadas para poderes comprar alimentos básicos subvencionados pelo Estado. Numa palavra: és um morto-vivo e só a ”comuna” é que faz de ti um ser humano. Estas situações inacreditáveis serão chamadas pelos seus próprios nomes um destes dias, dentro em breve, por todas as nações da Terra.
Jian olhou através da janela para o jardim bem cuidado, no meio do qual havia uma fonte que jorrava, como que por encanto, cascatas de água cintilante.
- Porque é que queres lutar pela China? - perguntou.
- Tu és alemão.
- Eu já não tenho quase nenhuma recordação da Alemanha. Fui educado como um chinês e penso e sinto como um chinês. - Holger estendeu a mão a Jian. - Juntas-te a nós, Jian? Queres ajudar a levar a China para um futuro melhor? A tua China?
- Eu vim para Pequim para estudar e não para entrar em manifestações - respondeu Jian, evasivo. - Quero ser médico, mas não pretendo ser mártir. Mesmo que dez mil estudantes vão para a rua, vai haver cem mil soldados para vos fazer oposição. Vai ser um altifalante contra metralhadoras e tanques.
- Nenhum soldado levantará a arma contra nós, pois o mundo está de olhos postos aqui. E Deng Xiaoping não é um MAO; ele sabe que, sem democracia, não poderá haver uma nova China. Só que tudo está acontecer muito devagar. Nós não devemos ser caracóis, mas sim águias. É um lema do Bai Hongda.
- Quero conhecê-lo - disse Jian. A sua razão dizia-lhe que não devia bater na mão estendida de Holger. - Em Kunming também temos estes grupos secretos de estudantes...
- Todas as universidades têm.
- mas eu não acredito que uma nova revolução produza mais nada além de uns quantos milhares de mortos. Cada um deve procurar a sua liberdade da maneira que lhe parece mais certa.
- Será que um camponês de Qinghai ou um condutor de bicicletas de Shiyan conseguem fazê-lo?
- Para eles nada se alterará, mesmo que consigamos alcançar a liberdade dos países ocidentais. Não podes pôr no mesmo prato a nossa maneira de pensar e a maneira de os ocidentais pensarem. Somos mais de mil milhões de chineses que continuam a ser um mistério para o resto do mundo desde há milénios.
- Imagina o potencial quando se virem em liberdade!
- Holger levantou-se e dirigiu-se para a porta. - Nos próximos dias falarás com o Bai Hongda. Ele vai informar-te sobre os nossos planos.
- O teu pai sabe do vosso grupo de conspiradores?
- Não. Não faz a menor ideia.
- E não tens medo que eu lhe diga, por gratidão por me ter recebido em sua casa?
- Tenho confiança em ti, Jian. - Holger fitou Jian atentamente. - Tens bons olhos - acrescentou - e um espírito vivo. Eu não estou enganado... tu és um chinês do futuro. Tu és um dos nossos.
Nos dias que se seguiram, Jian conheceu não só Bai Hongda como também Charly Reindl.
- O nosso nobilíssimo - comentou Reindl e deu uma pancadinha nas costas de Jian, como se este fosse um companheiro habitual do jogo da bisca numa tasca do Ruhr. Confesso que estava à espera de outra coisa. - Entretanto, tal como Holger, Jian já trazia calças de ganga, uma T-shirt estampada e ténis confortáveis. - Pensei que vinha aí um belo de um atado.
- Só se deve pensar quando se sabe - retorquiu Jian.
- Nós, na China, temos um velho ditado: ”A língua do sábio está no seu coração e o coração do tolo está na sua língua.”
- Oh, essa é boa! - riu-se Reindl. Estava longe de se sentir ofendido. - Vocês, os Chineses, são como a nossa Bíblia, têm um ditado para tudo. Então, o que vamos fazer hoje à noite? Vamos ao Beijing Kaorouji, no lago Shisha? Lá não há só borrego grelhado à mongol, mas também um monte de raparigas.
À noite, quando regressaram do Beijing Kaorouji, Jian perguntou:
- Holger, este Charly é teu amigo?
- Não gostas dele? - perguntou Holger.
- Faz-me lembrar uma lenda, em que uma ratazana se esconde atrás de uma pele de castor e rouba os ovos todos dos ninhos.
- Isso é um parecer muito severo, Jian. O Charly é diferente de nós, é só isso. Não se preocupa com o que os outros pensam dele. Vive como lhe apetece. Mas pertence ao nosso grupo e já angariou muitos estudantes que partilham das nossas ideias. Sempre que discursa nas nossas reuniões põe toda a gente entusiasmada. Martela as ideias na cabeça das pessoas. Precisamos de uma pessoa assim.
- E porque é que ele se empenha tanto no vosso ideal? Porque é que o futuro político da China lhe interessa?
- Ele vem de uma família que sempre foi comunista. Pensa em função do comunismo mundial. Se mil milhões de comunistas avançarem em marcha, o mundo pertence-nos.
- Tu também és comunista?
- Não. Sou democrata.
- E vocês acreditam realmente que a China pode vir a ter uma democracia, segundo o modelo ocidental?
- Sim, acreditamos. No Ocidente não fazem a mínima ideia do que a China pode oferecer ao mundo.
- Uma cultura de cinco mil anos e duzentos a trezentos milhões de braços que mal conseguem continuar a viver de tão fartos que estão da escassez.
- Isso vai mudar.
- Nada vai mudar, Holger, pois a China é grande de mais e os Chineses são demasiado modestos.
Nesse dia, Jian apresentou-se ao decano da Faculdade de Medicina.
Este já esperava o filho do famoso Tong Shijun e cumprimentou-o como a um parente.
- Vai gostar de Pequim - disse. - A sua matricula já foi feita a partir de Kunming. Está tudo em ordem. O seu certificado de estudante está no secretariado. Com ele pode comer na cantina sem pagar.
- O meu pai pensou em tudo. - Jian fez um sorriso ligeiramente sarcástico. - Não sabia que o meu pai tinha um talento tão grande para a organização. Que mais fez por mim?
- Providenciou para que o Jian fosse admitido no quadro de estudantes comunistas. O presidente é um certo Bai Hongda.
Bai Hongda! Jian disfarçou a sua surpresa.
- Devo ao meu pai os meus agradecimentos - limitou-se a dizer.
No posto principal dos correios, apoiado numa tábua enviesada, escreveu uma carta a Lida, pondo como remetente a morada da casa do Dr. Pohland, bem como o seu número de telefone, e concluiu a carta com as seguintes palavras: ”Pequim é uma cidade colossal. Quem me dera que estivesses aqui. Os teus olhos não acreditariam no que se vê e se vive aqui. Lida, eu amo-te como ao Sol, pois tu és a luz da minha vida.”
A carta não chegaria a Huili, bem como nenhuma das cartas que Jian escreveria e que desapareceriam da circulação nos meses que se seguiram. Tong enviara Fengxia a Dukou, onde era distribuído o correio para as aldeias. Fengxia dirigiu-se ao chefe do posto dos correios e comunicou-lhe:
- Camarada, o Partido quer que todas as cartas endereçadas a uma tal Huang Lida ou à família Huang Keli sejam retidas.
- Percebi perfeitamente - respondeu o chefe do posto dos correios, sem mais perguntas. - Não se põe em questão um pedido do Partido. Pretende que eu as junte e mande para cima? Pretende que as envie para algum serviço do Partido?
- Não. Destrua-as, camarada. É como se nunca tivessem existido.
- A camarada referiu um tal professor Huang Keli. O chefe do posto dos correios coçou a cabeça. - Não pretendo saber os motivos do Partido, mas devo dizer-lhe que esse Huang Keli pediu licença para obtenção de um telefone.
- Recuse! - volveu Fengxia, em tom de comando. Recuse!
- Sob que justificação?
- Nenhuma! Um professor camponês não pode fazer perguntas. Não é não, e ele tem de se vergar perante a decisão.
O chefe do posto dos correios respirou fundo quando Fengxia se retirou.
O seu adjunto, que tinha ouvido tudo na sala do lado, pois a porta era de má qualidade, precipitou-se para dentro do gabinete.
- Quem era aquela, Zongdao? - perguntou. - Cuspia fogo como um dragão.
- Cala a boca! - exclamou Zongdao em voz baixa, como se Fengxia ainda conseguisse ouvi-los. - Veio de Kunming e é membro do Comité Central local. Mostrou-me a identificação. Tu não ouviste nada, percebes? A partir de agora, pões em cima da minha secretária toda a correspondência que chegar para Huili.
- Não deve ser muita.
- Basta uma única carta que vá contra as indicações do Partido. Não quero voltar a ver este dragão de Kunming.
Jian assistia às aulas, comia na cantina universitária ao meio-dia, estudava na biblioteca da universidade e participava em cursos de Anatomia. Tudo isto sobrecarregava-o e não era pouco. À noite, costumava sentar-se no bar onde a banda de Holger estava a tocar e, quando Holger soprava a sua trompete com todo o brio e os pares dançavam ao som do rock na pista de dança, a sua ansiedade dissipava-se e conseguia afastar temporariamente os tortuosos pensamentos que o faziam duvidar se estaria mesmo destinado a ser um cirurgião.
Até ao momento, só estivera quatro vezes com Bai Hongda e falara apenas de assuntos fúteis. Bai ainda não o informara sobre os planos que tinha, ao contrário do que Holger dissera. Examinava Jian, observava-o com desconfiança, principalmente desde que o Partido Comunista de Kunming lhe tinha transmitido uma ordem codificada para que integrasse um tal de Tong Jian no seu grupo. Quem era este Tong Jian, na realidade? Um espião? Por que motivo fora transferido de Kunming para Pequim? Eram perguntas que Bai queria ver respondidas antes de pôr Jian ao corrente dos seus planos.
Jian esteve três meses à espera de uma resposta de Lida. Escrevia-lhe todas as semanas, mas entretanto encontrava-se à beira do desespero, não tendo explicação para o silêncio dela.
- Vou apanhar um avião para Kunming - disse a Holger. - Três meses sem sinal de vida, há qualquer coisa que não bate certo. Tenho medo que a Fengxia se tenha vingado dela.
- Os correios chineses não são propriamente um serviço modelo - opinou Holger. - Até que uma carta chegue a uma aldeia tão remota como Huili pode demorar algum tempo.
- Mas não três meses.
- Tu não podes simplesmente desaparecer de Pequim neste momento. Punhas em jogo todo o teu futuro.
- É isto que eu entendo como liberdade pessoal: quero poder viajar quando e para onde quiser, sem ter de mendigar por uma autorização, sem ter de passar pela tutela da comuna. Aqui estou eu e ali está o resto do mundo e ninguém deve proibir-me de o ver.
- Isso também é um dos pontos do programa do Bai Hongda. Já alguma vez ouviste um discurso do Charly?
- O Reindl é um fala-barato. Para ele, uma revolução é um jogo de salão. Ele próprio não acredita no que diz, mas martela as suas palavras e excita os outros e fá-los chegar ao ponto de ebulição. Holger, o Reindl representa um perigo para a vossa questão. Insinuou-se como amigo e vocês confiam nele, mas o seu objectivo não é uma democracia chinesa; o objectivo dele é o caos, como aconteceu durante a Revolução Cultural. Ele odeia a sociedade regrada e adora o terror; quer mostrar-vos como se pode viver em liberdade, mas apenas vos apresenta o desregramento. Não existe convivência sem uma ordem firme.
- Tu próprio não sabes o que queres - contestou Holger, olhando para Jian e abanando a cabeça. - Por um lado, queixas-te que na China tudo se encontra sob o controlo do Partido; por outro, queres uma ”ordem firme”. Afinal, como é que imaginas a nova China?
- Não sei. - Jian encolheu os ombros. - Governar mil milhões de pessoas e fazer justiça a todas elas é uma tarefa que transcende as nossas forças. Holger, por que motivo não tenho notícias da Lida?
Era Inverno e Pequim estava submersa em neve. O frio cortante penetrava no algodão dos casacos e nas galochas forradas. Jian também escrevera duas vezes ao tio Zhang Shufang, implorando-lhe que fosse a Huili ou que, pelo menos, telefonasse, pois já era tempo de Huang Keli ter obtido o seu telefone. Zhang respondeu-lhe que estava doente, acamado e muito fraco.
”Desde hoje de manhã que sou um velho trémulo”, escreveu a Jian, com a sua bela caligrafia desenhada. ”Uma viagem a Huili seria como uma viagem à Lua. E o posto de telefones em Dali diz que não há nenhuma linha telefónica atribuída a Huili. Se o pedido foi feito, dizem, é preciso ter-se paciência. Meu querido Jian, mais não tenho para te contar. Sinto-me como um coto de vela, ao qual resta muito pouco tempo para arder.”
- Tenho de ir a Huili - repetiu Jian. - Receio o que possa ter acontecido a Lida.
- Então tens de desistir do teu curso. O teu nome será riscado da lista dos estudantes - avisou Holger.
Dos seus pais, recebia as notícias habituais. Que o pai estava muito orgulhoso dele e a mãe contava que Fengxia estava grávida, o que provocou uma resposta de Jian, na qual comentou ”O pobre Wu Junghou! Daqui a pouco terá que defrontar dois dragões, à falta de um.”
A mãe de Jian destruiu imediatamente a carta, na qual constava aquela observação, e também não respondeu quando Jian perguntou na carta seguinte: ”Ouviste falar da Lida?” Era um pedido de ajuda, mas Jian não contava que fosse atendido.
Assim, chegou o mês de Março de 1989 e Bai Hongda decidiu finalmente que estava preparado para começar a confiar em Jian. Convocou-o para um encontro secreto dos líderes de vários grupos de estudantes. Como em Pequim era impossível fazer-se uma reunião numa casa sem que o respectivo comité de rua obtivesse conhecimento de tal facto, o encontro foi marcado para o Palácio de Verão, na longa alameda coberta localizada sob a Wanshou Shan, a ”montanha da Longevidade”. Era quase simbólico o facto de o encontro se dar naquele local, pois a longevidade era um desejo de todos os que ali conspiravam com o objectivo de viverem uma vida longa numa China renovada e democrática.
- Apresento-vos o nosso novo camarada, Tong Jian disse Bai, dando-lhe um aperto de mão para demonstrar a sua confiança nele. - A partir de agora, pertence ao nosso círculo interno. - Em seguida, prosseguiu numa voz firme e parecida com o tom de comando: - Que denúncias ou observações têm a relatar? Temos de nos certificar que em todas as grandes cidades os estudantes e os trabalhadores se manifestem connosco. O nosso protesto tem de abarcar o país inteiro e não deve restringir-se a Pequim. Como estamos a nível de contactos?
- Muito bem. - Charly Reindl, que entretanto era secretário de Bai e coordenador dos grupos externos, folheava um pequeno bloco de notas, que, em caso de detenção, poderia ser enfiado na boca, mastigado e engolido. - Aguardam o nosso sinal.
- Dei à imprensa internacional um assentimento dissimulado - comunicou Bai.
- Isso foi um erro, Hongda.
Os outros participantes ficaram atónitos com a interrupção de Jian. Bai estava a ser criticado e ainda por cima por um novato!
- Basta uma única referência para sermos todos presos - prosseguiu Jian. - Existe algum jornalista capaz de preservar um segredo?
- O mundo deve ter conhecimento que a China está à beira de uma rebelião.
- Teria sido melhor surpreender o mundo com a própria rebelião.
- O que lá vai, lá vai - notou Bai, passando à frente, mas, de um momento para o outro, a sua expressão denotou alguma insegurança. - Sempre houve boatos na China.
- Seguidos de uma série de mortos. Camaradas - Jian olhou em volta para os que o rodeavam -, por uma janela aberta não entra apenas ar fresco, mas também todo o tipo de moscas.
- Para isso existe um mata-moscas! - exclamou Reindl.
- Isso é o que tu dizes. - Jian lançou-lhe um olhar penetrante. - Mas nós temos algum?
Numa manhã nublada de finais de Fevereiro, quando Huang Keli acordou, ficou intrigado por não estar a ouvir o búfalo a fazer barulho e por Lida ainda não ter saído da sua casa para a dos pais. Jinvan continuava a dormir, pois, habitualmente, era Lida quem a despertava, e a mesa do pequeno-almoço ainda não estava posta. Quando Huang consultou o relógio eram sete horas; Lida há muito que já estaria a trabalhar a essa hora.
Com um longo suspiro, Huang levantou-se da cama, dizendo para si próprio que um dia tão sombrio não convidava ao trabalho, vestiu as calças e dirigiu-se para a casa nova.
Lida não estava na sua cama, tal como ele esperara; esta parecia nem sequer ter sido usada. Contudo, era impossível, pois tinham jantado juntos e, depois do jantar, Lida comentara: ”Estou cansada. Vou deitar-me já.”
Huang fechou a porta e foi até ao estábulo, onde o búfalo, na sua agitação, batia com os chifres contra a madeira das paredes. Quando lá chegou, ficou parado à porta, como que preso ao chão - não podia acreditar no que os seus olhos viam.
Lida enfiara grinaldas de flores nos chifres do búfalo e à volta da sua cabeça; o seu pêlo luzia de tão bem escovado; na manjedoura, um utensílio exclusivo dos Huang, pois em Huili todos os camponeses atiravam a comida dos seus animais para o chão do estábulo, via-se forragem verde da melhor qualidade.
Huang encostou-se à porta do estábulo e fechou os olhos. Sentia as pernas a tremerem e quase desfaleceu, mas agarrou-se à porta e premiu a testa contra a madeira.
Assim se ficou durante algum tempo no estábulo, até ouvir Jinvan chamá-lo. Nesse momento, fechou a porta e, quase sem forças, atravessou o pátio às apalpadelas, após o que se atirou para cima da sua cama, com o olhar fixo, como se já não reconhecesse mais nada. Jinvan estava sentada à mesa e, de um momento para o outro, o seu rosto envelheceu, formando rugas e parecendo apenas pele e osso, como se o vento e o sol o tivessem secado.
- Ela foi-se embora - informou Huang monocordicamente. - Foi-se embora, simplesmente. A nossa filha Lida deixou-nos. Fugiu daqui como um pássaro no Outono. Cobriu o rosto com as duas mãos e depois desatou a chorar, ao mesmo tempo que batia com os pés no chão, como se quisesse destruir a terra, da qual vivera até então. - Construí-lhe uma casa, endividei-me, vendemos tudo o que podíamos prescindir, para ela; fizemos mais do que é possível os pais fazerem pelos seus filhos... e ela vai-se embora, desaparece furtivamente.
- Mas onde é que vai? Ela não tem um único iuane!
- Não sei.
- E mesmo que tenha um par deles na mão, quanto tempo durarão?
- Não sei.
- Ela não pode ir longe. Ninguém lhe dará guarida. Os olhos da comuna estão por todo o lado, sabes bem. Se calhar estás enganado, Keli, e ela foi apenas para os campos.
- E ia enfeitar o búfalo com grinaldas de flores?
- Fez isso? - Jinvan baixou a cabeça. Tal como Huang, já não precisava de mais nenhuma prova para perceber que Lida tinha mesmo partido. - Foi o amor que a levou para longe - acrescentou em voz baixa.
- Mas ela não pode ir a pé até Pequim! - gritou Huang. A dor dilacerava-o.
- Vai parando os carros e pedindo boleia.
- A minha filha... uma mendiga de beira da estrada. A filha do professor Huang em carroças com os porcos, as galinhas, as sacas, as pedras, o carvão. Eduquei-a para a decência e a dignidade e agora anda por aí como se fosse uma cadela vagabunda! Oh, Jinvan, a minha dor é tão grande!
Quando Jinvan foi a casa de Lida e olhou em volta, encontrou o bilhete que Lida colocara na estante do canto, onde o pavilhão de jade costumava estar. Tinha escrito uma única frase: ”Perdoem-me, mas não posso fazer outra coisa.”
- Foi procurar o Jian - anunciou Jinvan, mostrando o bilhete a Huang. - Agora sabemos. A Lida está a caminho de Pequim.
- Mas isso é uma loucura - balbuciou Huang, lendo e relendo vezes sem conta a linha escrita. - Como é que uma pessoa pode ser tão louca?
- Para a Lida, a vida sem o Jian já não existe. Neste momento, está a correr atrás dessa vida. Nós não podemos fazer nada, Keli, absolutamente nada. Mas eu sei que ela voltará quando agarrar a sua vida.
- Nunca mais voltarei a vê-la. - Huang atirou-se novamente para cima da cama, encostou o bilhete de Lida aos lábios e fechou os olhos. Respirava com dificuldade.
À tarde, depois das aulas, Huang foi ter com o ancião da comuna e sentou-se à sua frente.
- Tenho uma participação a fazer - disse, com os lábios secos. - A minha filha Lida foi-se embora.
- Para onde? - indagou o ancião, sem agitação aparente.
- Não sei.
- Foi para a cidade? Sem a nossa autorização não receberá um certificado de autorização.
- Eu sei. Também não estou a requisitar nenhum. Estou apenas a cumprir o meu dever e a participar que ela nos deixou.
- Não fazes ideia do motivo da partida?
- Não. Tu viste a sua casa nova, sabes que sacrificámos tudo por aquela casa... não sei dar-te nenhuma explicação.
- Vão apanhá-la - observou o ancião, calmamente. Todos os que partem têm um objectivo em vista. E aí ela irá fazer-se notar aos olhos vigilantes. Como é que vai viver sem trabalho? Onde dormirá sem cama? Huang Keli, tu és um pobre pai abatido, mas és também o professor de Huili e o desgosto não deve toldar-te o espírito. Não tens só a tua filha; tens muitas crianças, as quais preparas para a vida. Imagina que a Lida tinha morrido. Aí deixaria de haver esperança... mas assim ainda há esperança.
- Vão castigar a Lida, mesmo que ela regresse?
- É nossa obrigação. Mesmo sendo tu o nosso professor, as leis são válidas para todos.
Huang despediu-se do ancião e regressou a casa.
- O que é que podemos ainda vender? - perguntou a Jinvan.
- Não temos mais nada sem ser o búfalo.
- Então vou vender o búfalo.
- E para que é que há-de servir o dinheiro? - quis saber Jinvan.
- Para o bilhete de avião até Pequim - declarou Huang com firmeza. - Quero lá estar quando a minha filha emergir da terra. Não a deixarei sozinha, mesmo que ela tenha fugido. Continua a ser a minha filha e um pai honrado sabe perdoar.
- Não deveríamos informar o Tong Shijun?
- Não. Ele mandaria exilar o Jian para Xangai ou sei lá para onde. Eu quero esperar por ela em Pequim.
Mas ninguém quis comprar o búfalo de Huang.
Foi no dia 2 de Abril de 1989 - Jian nunca esqueceria esta data -, quando voltava da universidade e atravessava o átrio em direcção às centenas de bicicletas arrumadas, para procurar a sua e ir para casa. Deteve-se, de súbito, como que paralisado, e cravou os olhos numa figura parada à frente das bicicletas; parecia-lhe que estava a ter uma visão. A figura trazia um casaco acolchoado com pespontes, cheio de lama, umas calças disformes forradas a algodão, sapatos grossos e compactos e um barrete de lã grossa. O rosto era única coisa que não estava suja e eram os olhos negros e a boca desse rosto que se riam para ele.
Para Jian, foi como se o Sol entrasse no seu coração. Correu de encontro à figura com os braços abertos e, quando ela desatou a correr para ele com um grito, quis cingi-la contra si, mas foi detido pela moral estabelecida de não fazer demonstrações de carinho em frente a terceiros.
Ficaram parados em frente um do outro, muito próximos. Jian pegou nas duas mãos dela, levou-as ao seu peito e sentiu como ela tremia e como os dedos se contraíam convulsivamente à volta dos seus.
- Lida! - sussurrou com a voz presa.! - Jian!
- Como... como é que vieste para Pequim?
- Viajei durante um mês.
Não estava minimamente preocupada se as outras pessoas os estavam a ver ou não. Deitou a cabeça no ombro de Jian e encaixou-se nos braços dele.
- Automóveis, carroças puxadas a cavalos, carros de bois e tractores de camponeses. Houve umas vezes em que trabalhei ilegalmente, para ganhar uns iuanes. Dormi nas cabanas do arroz, junto a fornos comuns e em estábulos, andei a mendigar nas banquinhas de comida da rua e comi os restos dos outros, até roubei fruta nos mercados. E todos os dias dizia para mim: ”Tu tens de ir ter com ele, tu tens de ir ter com o Jian. Ele não diz nada há seis meses, não, há mais de seis meses. Tens que ir para Pequim.” E agora estou em Pequim e vejo-te e toco-te e sei que os milagres existem, que podemos conseguir milagres.
- Lida - repetia ele -, Lida...
- Eu ter-te-ia seguido para qualquer lugar, mesmo que passasse um ano em viagem.
- E o teu pai não tentou deter-te?
- Não sabia. Eu parti durante a noite. Deixei-lhe um bilhete. Se calhar nunca mais o verei; nem à minha mãe. Onde tu estás, está a minha vida.
- Eu escrevi-te cartas, todas as semanas, durante quatro meses.
- Não chegou uma única a Huili. Sabes o que é uma pessoa sentir que está a ficar louca de desespero?
- O meu pai - constatou Jian com amargura. - Ele conseguiu de alguma maneira que as minhas cartas não te chegassem. Ou então foi a Fengxia. A Fengxia com o poder do Partido às costas.
- Eu encontrei-te... tudo o resto é insignificante.
Jian soltou-a e olhou em volta. No alcatrão, junto às bicicletas, estava uma sacola de lona. Jian baixou-se e pegou nela. Era leve, pois estava quase vazia.
- Só trouxeste isto? - perguntou.
- Comprei a roupa interior que precisava com os poucos iuanes que ganhei às escondidas. E quando ficava suja deitava-a fora e comprava outra. Onde é que havia de lavá-la e secá-la? Eu não podia ser vista. Sei que estou suja, mas estou em Pequim.
- Tenho de ver onde é que te vou esconder - disse Jian. - Não podes ficar na minha casa. Tenho um quarto em casa de um professor da universidade, mas os empregados vão contar tudo o que se passa lá dentro à polícia secreta. Não chegavas a passar lá uma hora sem que a milícia te viesse interrogar. O quarteirão dos estrangeiros e dos diplomatas é o mais bem vigiado.
- Então vou passar mais anos a viver num esconderijo?
- Não. - Jian pôs o braço em volta dos ombros de Lida. - Talvez só umas semanas. Nas próximas semanas vão dar-se muitas mudanças na China. Vamos poder respirar mais livremente.
- Não estou a perceber. Explica-me, Jian.
- Mais tarde, Lida. - Levou-a consigo e perguntou-se o que não estariam a pensar os outros estudantes quando olhavam para Lida. - Vou falar com os meus amigos. Eles têm de nos ajudar.
Sentaram-se numa pequena casa de pasto situada numa ruela estreita. Ali, Lida não dava nas vistas com o seu casaco acolchoado e, quando Jian pediu para ela uma sopa de massa com carne de porco, Lida atirou-se à comida esfomeada.
- Quando é que comeste a última vez? - indagou Jian, comovido.
- Não sei. Ontem comi os restos de legumes crus que arranjei no mercado. Não me resta um único iuane.
- Vou pedir mais uma taça com arroz e galinha. - Dirigiu-se à mulher gorda que estava ao fogão. Esta vestia uma bata branca cheia de nódoas e trazia uma touca branca sobre os cabelos grisalhos. Jian pagou adiantado e perguntou-lhe:
- Tens um telefone?
- Achas que tenho cara de quem pode pagar um telefone? Ali ao lado, o alfaiate, esse tem telefone. Quanto de galinha?
- O dobro do habitual, mas menos arroz.
- Vais ter que a esfregar com sabão meia hora antes de conseguires levá-la para a cama - observou a gorda. Onde é que a foste desencantar? Numa lavoura? Quando estiver lavada deve ser linda. Agora cheira mal.
Jian não retorquiu, apenas se dirigiu à porta contígua, onde se encontrava o alfaiate.
O mestre deu logo um salto, pegou numa peça de tecido, estendeu-a a Jian e desatou a falar:
- Camarada, está no caminho certo. Tenho os melhores tecidos, basta ver e tocar neles. Até os professores da universidade me encomendam os seus fatos. Dentro de três dias será o homem mais elegante de Pequim.
- Quer ganhar dez iuanes sem fazer nada? - perguntou Jian, sem rodeios.
O alfaiate arregalou os olhos.
- Dez iuanes sem fazer nada? Claro, camarada.
- Então deixe-me usar o seu telefone.
Jian pousou os dez iuanes sobre a mesa; o alfaiate meteu as notas no bolso sem perceber como é que alguém, mesmo que aparentemente tivesse dinheiro de sobra, pagava uma soma daquelas para usar o telefone.
Jian dirigiu-se para um quarto traseiro, discou o número de Bai Hongda, conhecido apenas por muito poucas pessoas da sua confiança, e teve a sorte de encontrar Bai em casa.
- Tens de me ajudar, Hongda - pediu Jian com insistência. - Só tu me podes ajudar.
alguém a seguir-te? Denunciaram-te?
Nada disso. Eu contei-te da Lida, não foi?
- A tua rapariga? A filha do professor miao? - Com isto Bai provava a sua extraordinária memória. - O que lhe aconteceu?
- Acabou de chegar a Pequim. Há meia hora atrás, quando eu vinha a sair das aulas, estava à frente da universidade.
- Este é o momento menos propício que ela poderia escolher para vir.
- Não sei onde hospedá-la. Está aqui ilegalmente, fugiu de casa em segredo. Não pode ficar comigo. Os Pohland nunca permitiriam, e a polícia secreta seria imediatamente informada. Era a última coisa que nós queríamos. Estou nas tuas mãos, Hongda. Só tu nos podes ajudar.
- Onde é que vocês estão? - perguntou Bai, laconicamente.
- Numa casa de pasto. - Jian disse o nome da ruela.
- Estou a caminho.
- Como é que posso agradecer-te, Hongda?
- Sobre isso falaremos mais tarde. Estou aí daqui a meia hora.
Jian pousou o auscultador, entrou na parte da frente da oficina e virou-se para o alfaiate com um sorriso de alívio:
- Vê, camarada, é tão fácil ganhar dinheiro!
- Se houvesse mais malucos como o senhor eu podia viver do telefone. - O alfaiate sorriu ironicamente para Jian e continuou a coser umas calças. - Mas não se esqueça que eu tenho os melhores tecidos. Para todas as ocasiões.
Na casa de pasto, Lida esperava por ele com impaciência.
- Que bom, voltaste finalmente! - exclamou e levantou-se de um salto. - Já estiveram aqui dois homens e queriam levar-me. Ofereceram-me cinco iuanes.
Jian virou-se para a gorda e gritou-lhe:
- E tu permitiste? Deixaste que importunassem a rapariga e não fizeste nada?
- E eu cá sou responsável por ela? - gritou a gorda em resposta. - Cinco iuanes é um bom preço por esse rato emporcalhado.
- Devia dar-te uma tareia! - Jian cerrou os punhos. Mas estás com sorte... eu não toco em mulheres. Traz duas limonadas!
Meia hora depois, Bai Hongda chegou à casa de pasto; trazia consigo Charly Reindl, o que não agradou nada a Jian.
Reindl olhou fixamente para Lida e depois abanou a cabeça, virando-se para Jian.
- Ela faz a limpeza dos canais? - perguntou. Jian lançou um olhar furioso a Bai.
- Tinhas que trazer logo este?
- Tinha. - Reindl fez um sorriso sarcástico. - Eu sou o único que posso alojar a tua gatinha. Onde vamos esfregá-la é que ainda não sei. Não tenho casa de banho.
- Como vais esconder a Lida? No teu prédio vê-se e ouve-se tudo!
- O querido Charly tem os seus truques. - Charly riu-se com a expressão de um fauno voluptuoso. - A controladora da nossa rua tem quarenta e cinco anos e é maleável como uma ginasta. Quando o marido vai trabalhar, de vez em quando faço-lhe uns agrados. - Fez um movimento com a parte inferior do corpo e deu uma gargalhada estridente. Desde então, posso fazer o que me apetece. Temos que abrir as fechaduras certas, rapazes. - Virou-se para Lida e assentiu com a cabeça para a animar. - Nós vamos dar-te lustro, rapariga. Vieste mesmo a pé até Pequim?
- Sim - respondeu Lida, desviando o olhar de Reindl. Não tinha explicação para o que sentia, mas detestou-o desde o primeiro minuto. ”Tenho de proteger o Jian deste rapaz”, disse para si própria. ”É uma pessoa má.”
Bai, notando a hesitação de Jian, encolheu os ombros e disse:
- É a única possibilidade de esconder a Lida. Não conheço nenhum esconderijo mais seguro. Se ela está a pensar ficar em Pequim...
- Eu fico aqui - interrompeu Lida. Fitou os olhos maliciosos de Reindl. - Agora, que te conheço, fico com certeza.
- Como é que hei-de interpretar isso? - Reindl riu-se e deu uma pancadinha nas costas de Jian. - Cuidado, que ela ainda pode passar para mim.
- Serias a primeira pessoa que eu matava com as minhas próprias mãos - retorquiu Jian com frieza.
- Não vale a pena pegares já na faca! - Reindl elevou asmãos em posição de defesa. - Vocês aqui não têm sentido de humor? Para mim, as namoradas dos meus amigos são tabu!
- Isso aí é para a galhofa ou querem pedir alguma coisa? - gritou a gorda, entretanto. - Se não querem pedir nada, pisguem-se daqui!
- Camarada, vamos já embora. - Bai afastou-se, mas virou-se mais uma vez, quando estava a meio da rua. - Ah é verdade - acrescentou com ar sério -, a tua sopa cheira a azedo.
- Seu cão mijão! - vociferou a gorda aos berros e bufando. Em seguida, pegou numa cabeça de galinha e atirou-a na direcção de Bai. Contudo, como não o atingisse, desatou a correr para a rua, pegou na cabeça de galinha, regressou à cozinha e atirou a cabeça para dentro da sopa. - A juventude está cada vez mais mal-educada - disse em voz alta para si própria. - Onde é que isto vai parar?
Jian sabia que não podia visitar Lida. Reindl fez a afirmação na sua maneira de falar repugnante, que não agradava a nenhum dos seus amigos, mas que tinham de aceitar, pois rapidamente se aperceberam que era impossível ensinar a Reindl os conceitos básicos da cortesia chinesa.
Na manhã seguinte, Reindl levou-a consigo para a universidade e, não obstante a longa peregrinação e toda a fadiga e privações por que tinha passado, Lida estava linda, no seu vestido de algodão vermelho, sobre o qual vestira o casaco acolchoado.
Reindl apontava para o casaco com orgulho.
- Passei metade da noite a trabalhar neste monte de esterco - declarou. - A porcaria estava completamente agarrada a ele. Bem, e a Lida! Quando saiu da casa de banho lavada, sentei-me e disse: ”Minha senhora, procura alguém? Perdeu-se?” Estava irreconhecível.
Jian levou Lida consigo e deixou Reindl especado no meio da rua. Dirigiram-se para a cantina da universidade, sentaram-se numa mesa dos fundos, junto à parede e Jian foi buscar um chá e um prato com um bolo. Estava feliz por saber que agora Lida ficaria sempre junto dele, a vida inteira. Tudo o que o seu pai quisera impedir, ela conseguira concretizar através da sua marcha através da China. Não havia nada no mundo que fosse suficientemente potente para os separar de novo.
- Tenho que te confessar uma coisa - disse Jian, pegando nas mãos dela. - Nas próximas semanas, o mundo inteiro vai falar de Pequim. A nova China, sobre a qual sempre te falei, vai despertar. Deng Xiaoping vai ser obrigado a transformar a abertura ao Ocidente numa democracia real.
- Quem é que o vai obrigar? Vocês? Tu? - Lida sentiu-se assomada por um medo repentino e por um desespero, que a levavam à beira do desfalecimento. - Jian, vocês querem fazer outra revolução? Vai correr sangue de novo? o solo da China não foi já fertilizado com sangue suficiente? Jian, tu vais participar dessa loucura? Promete-me que não vais.
- Não vai correr sangue e também não será uma revolução, apenas uma manifestação de milhões de chineses, a que o mundo inteiro vai assistir. O que Deng conseguiu até agora, com a sua política de reforma e de abertura ao mundo, não é suficiente. É pouco, pois o desenvolvimento económico é um disparate se a mentalidade interna da China não se alterar e a ditadura comunista persistir. Nós queremos liberdade de expressão e da imprensa, exigimos que os funcionários sejam controlados e que se acabe com a corrupção, queremos que autorizem a criação de novos partidos, que estes formem um governo de coligação, nós queremos estar informados sobre todos os planos e decisões do Governo. Em suma, queremos uma democracia. A China tem que sair do seu isolamento.
- E acreditas mesmo que Deng Xiaoping te vai ouvir?
- Não a mim. Eu sou apenas uma gota de água que está a começar a agitar-se. Ele vai ouvir milhões de vozes. O mundo ficará à espera que ele renove a China. Se não o fizer, terá de abrir caminho aos mais jovens.
- O exército vai marchar e atirar contra vocês a matar, como aconteceu com os guardas-vermelhos da Revolução Cultural.
- Uma cena dessas não se repetirá. O mundo inteiro está a assistir.
- Sim, está a assistir... mas vai fazer o quê? Assistir, nada mais. Nenhuma mão se levantará em vossa defesa. Jian, o vosso plano tem tão pouco sentido como tentar deter o vento com uma rede. A China, disse o meu pai, nunca será um país completamente livre, pois tem pessoas a mais. Não se pode comparar a China com as outras nações.
- O Bai Hongda tem outra opinião.
- O Bai Hongda alguma vez olhou para um mapa da China? O Bai Hongda alguma vez comparou números? A Europa e a América juntas têm menos habitantes do que a China; para eles é fácil afirmar que a democracia é a única forma de vida certa. O que é que eles sabem das aldeias isoladas nas montanhas e das tendas no deserto, do Tibete coberto de gelo e do aglomerado de milhões de pessoas na China Central? A China não é Pequim ou Xangai ou Guangzhou; a China é um quinto de toda a humanidade.
- A minha alma está parva! - exclamou Jian, acariciando as mãos de Lida. - Como é inteligente a minha mulher! Mas as tuas ideias estão aprisionadas, tal como todos nós temos sido prisioneiros de um sistema. Isso mudará. O comunismo passou à história. Olha para os nossos vizinhos, para a Rússia; é um exemplo para nós. A política da glasnost e da perestroika mudou as pessoas, Gorbatchev abriu caminho a uma nova era para a Rússia, já não há bloqueios militares, as bombas atómicas estão a ser desmanteladas... Porque é que a China não há-de mudar?
- Quantos habitantes tem a Rússia? Duzentos milhões, duzentos e cinquenta milhões? Uma mão-cheia, em comparação com a China... nós somos mais de mil milhões! Jian, imploro-te: afasta-te desses amigos! Não participes nessa manifestação!
Continuaram a conversa durante muito tempo. De repente, Bai Hongda apareceu na frente deles e perguntou:
- Permitem-me que me sente convosco?
- Nem é preciso perguntar. Senta-te - respondeu Jian.
- Estou a tentar explicar à Lida o que é a democracia.
Bai comprimiu os lábios e fitou Lida, pensativamente.
- Tu, como mulher - explicou Bai -, não vais perceber que um povo, que reflecte sobre o seu valor e se revolta, é mais poderoso do que a teimosia de uns quantos homens de idade que se consideram pequenos deuses.
- Deves achar que eu sou uma rapariga ignorante, Hongda - retorquiu Lida -, mas seja o que for que vocês fizerem, vou estar ao lado do Jian. Nós somos uma pessoa, um coração, uma alma. Ninguém mais nos poderá separar.
- Se assim é - Bai recostou-se na cadeira -, então vais marchar ao lado dele e carregar um cartaz grande.
Farei tudo em conjunto com o Jian. - De súbito, ficou paralisada com a imagem que lhe passou pela cabeça naquele momento; mas depois exprimiu-a. - E morrerei ao lado dele.
- Ninguém nos poderá deter - declarou Bai com altivez. - Nenhum soldado apontará a sua arma contra nós. O exército é o exército do povo e quando o povo o chamar, juntar-se-á a nós.
Beberam mais um chá, depois Bai levantou-se e foi assistir a uma aula.
teve de ir para o auditório III, onde um professor convidado ia dar uma conferência sobre doenças do foro do esófago.
- Como é que vais passar o tempo? - perguntou Jian, antes de saírem da cantina. - Mesmo com sol, ainda faz frio.
Vou apanhar o autocarro para a Cidade Proibida e fazer uma visita - disse Lida. Depois hesitou, baixou a cabeça e corou de vergonha. - Eu... eu não tenho dinheiro. Jian enfiou a mão no bolso, retirou um maço de notas e meteu-as na mão de Lida.
- A culpa é minha - desculpou-se Jian. - O que é meu é teu também. Diz-me sempre quando precisares de alguma coisa.
- Tenho vergonha de ser tão pobre.
- Tu não és pobre, és minha mulher. Queres comprar roupa nova e roupa interior? Compra o que quiseres.
Foi então que reparou que ela trouxera consigo a velha sacola de lona e a pousara no chão, junto à cadeira onde se sentara.
- Manda para o lixo essa sacola horrorosa! Afinal, o que é que tens lá dentro?
Lida baixou-se, elevou a sacola, pousou-a sobre a mesa e abriu o fecho de correr. Retirou lá de dentro um objecto que estava enrolado numa toalha demão suja e, quando afastou a toalha, surgiu o pavilhão de jade.
- Andaste sempre com ele? - perguntou Jian, rouco de emoção. - Durante toda a longa jornada de Huili até Pequim?
- Nunca teria partido sem ele e quando perdia as forças, quando estava algures deitada no meio da palha e me preparava para morrer de exaustão, falava com ele e então, de repente, tu estavas junto de mim, e quando lhe tocava, sentia que uma força renovada crescia dentro de mim e que o longo caminho até Pequim não era assim tão longo. - Enrolou novamente o pavilhão de jade na toalha suja e guardou-o na sacola. - Quando estiver a marchar ao teu lado na manifestação, penduro-o ao pescoço. Ele proteger-nos-á, até contra os soldados.
- Não haverá soldados - garantiu Jian, absolutamente convicto do que dizia. - O Bai Hongda tem informações das fontes mais seguras. O exército vai estar do nosso lado.
Saíram para o átrio, baixaram a cabeça em silêncio um para o outro e Jian apressou-se em direcção ao auditório, onde a conferência já tinha começado. Lida foi para a fila esperar pelo autocarro e dirigiu-se para o centro da cidade. As notas de iuane crepitavam no bolso do seu casaco acolchoado; nunca na vida tivera tanto dinheiro na mão.
”Vou comprar uma camisola colorida e umas calças amarelas”, pensava. ”E um gorro vermelho.” Saiu na paragem da Praça de Tiananmen, a ”Praça da Paz Celeste”.
Sobre o portão da Paz Celeste, a entrada para o antigo palácio do imperador, a Cidade Proibida, pendia uma gigantesca imagem de MAO. Lida ficou parada, de olhos fixos no alto, enquanto milhares de pessoas passavam por ela em direcção à Cidade Proibida, chineses e muitos estrangeiros, seguindo atrás do seu guia, que segurava ao alto uma bandeirinha ou um cartaz, para que ninguém se perdesse.
Nunca na vida vira nada tão sumptuoso. Hesitou antes de passar o portão da Paz Celeste, por baixo da imagem de MAO e dirigiu-se respeitosamente para a ala da Grande Harmonia. Ficou muda de estupefacção perante tanta beleza.
Os estudantes deixaram-se de encontros secretos e reuniram-se junto ao gigantesco obelisco, erigido em 1958, o monumento aos heróis da Nação, no meio da Praça de Tiananmen. Os líderes dos vários grupos rodearam Bai Hongda, e o facto de se juntarem publicamente naquele momento, sob o olhar da polícia, era a prova de que chegara a hora certa.
- Hu Yaobang morreu - disse Bai, sem fazer qualquer esforço para falar baixo. - Não nos podemos esquecer que, em 1987, como secretário-geral do Partido Comunista, Hu Yaobang não só não lutou contra a nossa petição por mais democracia e liberdade interna, como até se juntou a nós. Simpatizava com os nossos ideais. Por esse motivo, lutaram contra ele, insultaram-no e acusaram-no de traidor; destituíram-no de todos os cargos e desprezaram-no... mas ele era um homem que previa o futuro da China. Agora está morto, e é nosso dever prestar-lhe as devidas honras. Amanhã vamos pendurar a fotografia dele aqui, no obelisco, rodeá-la de um mar de flores e fazer ouvir as nossas vozes bem alto, gritando para os velhos teimosos que o perseguiram: ”Honra a Hu Yaobang! Reabilitem o grande senhor! Ponham o nome dele na lista dos nossos heróis!” Tem de ser um grito que afaste as nuvens do céu.
- E como haveremos de reagir, caso queiram proibir a manifestação? - perguntou Holger.
- Eles não podem proibir a manifestação. - Reindl gesticulava com as duas mãos. - Aqui, na Praça da Paz Celeste, em 1976, centenas de milhares de pessoas choraram a morte de Zhou Enlai e desse lamento saiu um levantamento popular contra a tirania do Bando dos Quatro. Foram detidos e a coragem do povo saiu vencedora. E pensem no 4 de Maio de 1919! Pela primeira vez na China, os estudantes ousaram ir para a estrada pedir a democracia e a liberdade e os comunistas ficaram de boca aberta, como que paralisados perante o poder do povo.
- Para mais tarde os reprimirem com sangue - acrescentou Jian.
- Foi o princípio de tudo, foi um sinal! - bradou Reindl. - E amanhã vamos dar mais um sinal, que será ouvido em todas as cidades e milhões de pessoas irão para o meio das praças em solidariedade! Amanhã iniciar-se-á a marcha pela liberdade!
- É preciso que seja um alemão a constatar o rumo que a China deve tomar? - exclamou um dos líderes estudantis. - Hongda, tu és o nosso dirigente. Vamos pendurar a fotografia de Hu Yaobang no obelisco e participar na manifestação. E voltaremos para a Praça da Paz Celeste e gritaremos tantas vezes quantas as necessárias até que Deng Xiaoping nos prometa a liberdade ou desapareça da circulação. Camaradas, amanhã marcharemos!
- O que achas disto, Holger? - perguntou Jian, quando regressavam a casa nas suas bicicletas.
- Está na hora de começar a revolta - respondeu Holger. - Amanhã serão dois mil. Depois de amanhã, cem mil. Será como uma bola de neve, que se atira do alto de uma montanha. Vai ser como uma avalancha, que arrasta tudo atrás de si.
- Bem o dizes. Arrastará consigo a destruição.
- Vais abandonar o barco? - quis saber Holger. Vais desistir?
- Como é que podes fazer uma pergunta dessas? Jian abanou a cabeça. - Eu sou um chinês e quando dou a minha palavra, cumpro-a. Não abandono os meus amigos!
Durante a noite, sob a direcção de Reindl e de outro líder estudantil, quarenta estudantes penduraram uma fotografia enorme de Hu Yaobang no obelisco, cobriram o chão de flores e fixaram faixas pretas em torno da fotografia, onde se lia ”Justiça para Hu!”, sem qualquer impedimento por parte da polícia ou da milícia.
Um oficial da polícia aproximou-se curioso e perguntou:
- Têm autorização para esta celebração funerária pública? Um dos estudantes respondeu:
- Sim. Amanhã poderá certificar-se, camarada oficial. Quando o homem fardado se afastou, o estudante acrescentou: - Mostra-me o papel! Um papel pode rasgar-se e deitar-se fora. Nós temos a autorização do povo e essa não se pode rasgar.
Um pouco confuso, o oficial deixou os estudantes e seguiu caminho, nada fazendo para impedi-los de prosseguirem com as suas acções.
Na manhã seguinte, dois mil estudantes e curiosos juntaram-se diante do obelisco e da imagem de Hu, escutando Is Bai Hongda, que se dirigia à multidão com a ajuda de um megafone.
-Morreu um homem que queria conduzir a China no sentido de um futuro em liberdade! - gritava Bai e a sua voz ressoava na Praça da Paz Celeste. - Perseguiram-no e afastaram-no, mas agora nós estamos aqui e vocês, o povo, E também! E eu pergunto-vos: Querem continuar a viver sob o domínio do comunismo? Não querem ser homens livres? Querem que continuem a impor-vos onde podem trabalhar e onde podem viver, o que podem dizer e sobre o que é que têm de se calar? Querem continuar a viver em função das ordens da vossa comuna? O mundo está aberto a todos e também a nós, os Chineses.
A televisão apareceu no local e filmou a manifestação, jornalistas da imprensa escrita fotografaram e gravaram o discurso de Bai e também havia correspondentes estrangeiros na praça, falando com grande excitação para os seus microfones. Uma companhia da polícia reuniu-se à frente da Ala do Povo, mas não interveio. As ordens que tinha eram para observar.
estava muito próximo de um dos relevos que ornaj a base do obelisco e que enalteciam o heroísmo dos chineses. A seu lado, sentada numa cadeirinha estava Lida, tendo no colo uma mala nova, de pele artificial, com uma longa alça que dava para transportar a tiracolo; dentro da mala estava o pavilhão de jade, enrolado numa toalha turca grande e novinha em folha. Olhava para cima, para Jian, que gritava também ao megafone: ”Justiça para Hu Yaobang!”. Não compreendia por que razão Jian participava naquilo tudo, pondo a sua vida em risco, em vez de fugir dali. Mas estava junto dele, e ali ficaria, acontecesse o que acontecesse.
De início aconteceu pouca coisa: os homens idosos do Governo, à cabeça do qual estava Deng Xiaoping, aguardavam e tiveram inteligência suficiente para serem eles próprios a inflamarem as chamas que ainda eram fracas, deitando mais achas para a fogueira. Esperavam que os estudantes desistissem rapidamente das suas manifestações quando percebessem que as suas palavras eram levadas para longe pelo vento.
Só que, poucos dias depois, a situação alterou-se. Começaram a chegar a Pequim os relatórios dos funcionários da província. Através da rádio e da televisão, a notícia da revolta dos estudantes chegou a todas as grandes cidades e, onde quer que houvesse alguma universidade, os estudantes assomaram às ruas e às praças e manifestaram-se. O caso pior deu-se em Xangai, onde milhares de estudantes elevaram os punhos gritando ”Liberdade! Liberdade!”
Foi como se uma barragem tivesse rebentado e uma onda gigantesca e imparável varresse o país. As notícias que chegavam a Charly Reindl, e que este todas as noites comunicava a Bai Hongda, provavam que os protestos de Pequim eram apenas uma tocha que atiçava novos focos de incêndio por toda a parte.
- Assim está bem! - comentou Bai com satisfação. Era isso que queríamos. O grito de milhões vai enxotar os velhos. O mundo inteiro está de olhos postos em nós e aguarda que algo aconteça. Já não é possível deter a democracia. Venceremos, amigos, venceremos!
Por alturas de Maio, a febre da liberdade tinha tomado totalmente conta dos Chineses. Na Praça da Paz Celeste reuniam-se diariamente centenas de milhares de pessoas de todos os estratos sociais, desde o professor doutor ao operário fabril, do intelectual ao varredor de ruas, do proprietário ao cozinheiro de rua. Discutiam a liberdade da imprensa e a liberdade de expressão, a corrupção entre os funcionários, um governo que fosse realmente eleito pelo povo, a destruição do poder do Partido Comunista Chinês. E todos os dias Bai Hongda fazia os seus discursos arrebatados, inflamando as massas, até funcionários da polícia secreta o escutavam e se aproximavam dele, dizendo: ”Confiamos em ti e acreditamos que não nos denunciarás, mas ouvimos uns rumores que Deng Xiaoping está a perder a paciência e que vai dar o alarme aos militares. Não permitam que chegue a esse ponto. Sabemos que milhões de pessoas vos estão a proteger, que vão ficar cercados por um muro de gente, mas também sabes que, na China, um milhar de mortos tem tanto valor como um pé de arroz tombado.”
- Eles que venham, os soldados! - gritava Reindl e os seus olhos cintilavam, plenos de fanatismo. - Os nossos corpos detê-los-ão.
Dia após dia, centenas de milhares de pessoas juntavam-se na Praça da Paz Celeste, que entretanto fora baptizada pelo povo com o nome de ”Praça da Agitação Terrestre”. E, dia após dia, Jian encontrava-se nas fileiras dos estudantes, e junto a ele Lida, com a mala de pele artificial, que transportava o pavilhão de jade, a tiracolo.
- Ô exército vem aí? - perguntou Lida. Estava-se no dia 1 de Junho de 1989.
- Já cá está. Está à porta da cidade e aguarda. Mais de cem tanques, e já não se chama exército, mas Exército de Libertação do Povo. Quando começarem a marchar, será para libertar o povo de nós, os manifestantes. Então, ficaremos soltos como pássaros e toda a gente poderá disparar contra nós.
- Contra ti também, Jian? - indagou Lida, com a voz a vibrar.
- Contra mim também. Faço parte do círculo mais restrito dos revolucionários; eles vão perseguir-me até ao último buraco do nosso país.
- Se tens consciência disso, porque é que ainda aqui estás? Anda, vamos embora e vamos esconder-nos!
- É tarde de mais. - Jian pôs o braço em volta de Lida, puxou-a para junto de si e sentiu que todo o seu corpo tremia. - Teria de me suicidar, se agora traísse os meus camaradas.
- Eu vim ter contigo para viver contigo - implorou ela. - Viver, Jian... não para morrer contigo por causa de uma quimera.
Jian fez um gesto com os braços, como que abarcando a praça inteira.
- As pessoas que estão aqui todos os dias são pessoas loucas ou são pessoas que acreditam numa nova China e que lutarão por isso? O fogo que nós acendemos já não pode ser extinto. Vai fazer arder a ditadura e deixar que sobre a China brilhe um céu puro. O mundo tem a respiração suspensa.
- O mundo! O mundo! O mundo! O que é isso, o mundo! O mundo vai ajudar-te a ti, ou ao Bai, ou aos estudantes, ou ao povo? O mundo limita-se a assistir, como se se estivesse a desenrolar uma gigantesca ópera de Pequim. E quando cem milhões de pessoas forem mortas, dirá: ”O que é isso, em comparação com mil milhões?” O mundo é isto! Lida pegou na mão de Jian e tentou arrastá-lo consigo.
- Anda, vamos embora!
- Eu vou ficar. Um Tong não foge.
- Um Tong! Oh, se eu pudesse enfiar o pavilhão de jade pela tua cabeça abaixo, para que esse nome desaparecesse do mapa para sempre! Tu és um homem e eu sou a tua mulher e nós queremos viver. Quero ter filhos teus e um pedacinho de terra para nós, terra boa, não terra saturada de sangue; e cultivar flores, ervas, raízes de gengibre. Plantaremos também uma cameleira, para que chegue aos quinhentos anos de idade e faça desabrochar dez mil botões de flor, como a cameleira de Lijiang; e todos os que olharem para ela, quinhentos anos após a nossa morte, dirão: ”Vejam, esta árvore foi plantada pelo Jian e pela Lida, porque o amor deles era muito forte. Tão forte e inquebrável como este tronco.” Mas tu ficas aqui, de cabeça orgulhosamente erguida e deixas-te morrer com um tiro!
- Ninguém sabe como será o amanhã - declarou Jian.
- Sim, amanhã poderemos estar mortos, mas também poderemos estar a festejar a vitória. Tudo é possível.
Na noite de 3 para 4 de Junho de 1989, o grito de terror chegou às cem mil pessoas que se encontravam na Praça de tiananmen: ”O exército pôs-se em marcha! Os tanques em andamento!”
Surgiram em duas frentes, descendo a Chongwenmen Bajie e a Xuanwumen Dajie, tanque atrás de tanque, as estrtilhas fechadas, as peças na horizontal, apontadas para a frente, a pesada artilharia giratória pronta a disparar. Os holofotes estavam ligados, iluminando a Praça da Paz Celeste, as pessoas comprimiam-se umas contra as outras, formando uma massa compacta, e os tanques mudavam de direcção, rumando directamente para esse muro de gente e, quando alguns corajosos se afastaram e largaram a correr de encontro aos carros blindados com os braços no ar, gritando: ”Vocês também são o povo! Vocês são os nossos filhos e os nossos irmãos! Parem e deixem-nos falar!”, principiou o matraquear das metralhadoras e os primeiros atingidos rebolaram no próprio sangue.
- Eles estão a disparar a sério! - gritou Reindl, arrancando o megafone das mãos de Bai. - Eles querem derrubar-nos! - Foi então que começou aos berros para o megafone: - Ataquem os tanques! Ataquem-nos! Despejem gasolina em todas as ranhuras e peguem fogo! Trepem para cima deles e tragam os assassinos cá para fora! Camaradas, mostrem que nós é que temos o Poder!
Uma onda de corpos embateu contra os carros blindados. Jian também largou a correr; porém, entretanto, uns quantos metros à sua frente, viu que Holger estacara, agarrando-se a uma perna e prostrando-se no meio do chão. Jian correu para junto dele e ajoelhou-se no pavimento a seu lado.
- Ainda consegues andar? - perguntou. Tinha de falar aos gritos; o ruído das lagartas dos carros blindados, dos tiros, dos gritos dos feridos era ensurdecedor. Com os olhos muito abertos de horror, Jian assistiu à cena em que um tanque rolou literalmente por cima de um jovem estudante que acenava com uma bandeira, enquanto as suas lagartas esmagavam o corpo e o sangue espirrava para todos os lados; mas o tanque seguiu o seu caminho e, quando se afastou, viu-se no chão uma pasta disforme e sangrenta, na qual nada de humano restava.
- Agarra-te ao meu pescoço! - gritou Jian. - Vou-te tirar daqui.
- Vai-te! Corre! Salva-te! - Holger abanava a cabeça.
- Deixa-me ficar aqui, Jian. Eles estão a afogar-nos em sangue. Corre, Jian!
A massa compacta de gente na praça desfez-se. As pessoas fugiam em todas as direcções e tentavam salvar a vida. E os carros blindados continuavam a disparar e a rolar por cima dos mortos e dos feridos.
Jian tentou elevar Holger do chão, mas este era pesado de mais e escorregava-lhe das mãos. Foi então que viu Lida e o seu coração parou de bater.
- Para trás, Lida! - berrou. - Corre! Corre!
Era como se ela não o estivesse a ouvir. Avançava por entre os mortos e os feridos como uma sonâmbula, trazia a mala de pele artificial pendurada ao pescoço, completamente aberta, e segurava nas mãos o pavilhão de jade como se este fosse a imagem de um santo. Não ficou parada quando um tanque mudou de direcção e avançou na direcção de Jian, Holger e dela própria.
- Lida! - gritou Jian mais uma vez, depois caiu de joelhos, levantou as duas mãos para o céu nocturno e implorou com a voz estrangulada: - Deus meu, protege-a, deixa-a viver!
Nesse momento aconteceu algo incompreensível. Lida empunhou o pavilhão de jade, apontando para o tanque em movimento e foi como se uma força desconhecida e prepotente atingisse o colosso de aço.
Foi um raio invisível e inexpugnável. O tanque mudou de direcção e as metralhadoras apontadas para Lida, Jian e Holger baixaram, após o que o monstro se afastou, matraqueando sobre as suas correias metálicas.
Lida virou-se e dirigiu-se para Jian, que estava ajoelhado junto de Holger, que gemia; no momento em que Jian olhou para o pavilhão de jade, sentiu-se subitamente mais forte, levantou-se de um salto, elevou Holger do chão e correu com ele nos ombros em direcção ao obelisco. De Reindl, nem vê-lo, apenas restava o megafone despedaçado no meio do chão. Alguns feridos estavam encostados à base do obelisco e um deles comentou:
- Acho que vi o Bai Hongda a ser atropelado por um tanque. Vai ficar irreconhecível. A revolução acabou. O que é que conseguimos? Mais uma vez, os velhos venceram. Agora, a China vai voltar a ser invadida pelo frio. Espero que nenhum médico passe por aqui... eu quero morrer.
- Consegues sentar-te no quadro da bicicleta? - perguntou Jian a Holger, transportando-o até junto das bicicletas.
- Não sei.
- Tenta, Holger.
Lida segurou na bicicleta e Jian sentou Holger no quadro. Em seguida, subiu para o selim e disse:
- Agarra-te bem a mim. Nós vamos conseguir, temos de conseguir.
Lida tornara a guardar o seu pavilhão de jade na mala pendurada ao pescoço. Montou na bicicleta de Holger e ninguém os deteve no caminho até ao bairro dos diplomatas.
Atravessaram uma cidade morta, paralisada de terror.
Mas tinham sobrevivido.
A vingança dos velhos homens foi cruel; porém, na sua perspectiva, perfeitamente justa. A renovação da China, que fora iniciada por Deng Xiaoping, a abertura ao Ocidente, que deveria acontecer por etapas e não com tanta pressa, de modo a não se perder a visão de conjunto, até mesmo o plano de reconciliação com a Rússia, onde Gorbatchev pretendia introduzir o sistema parlamentar, um sistema até então completamente desconhecido dos Russos - tudo isto se tornou novamente inacessível para a China, devido à revolta dos estudantes.
O mundo assistiu perplexo ao banho de sangue do dia 4 de Junho. Antes da reunião geral e perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a China foi repudiada, decidiu-se impor sanções económicas e os fios telegráficos da diplomacia trabalharam efervescentes - porém, Deng Xiaoping não se deixou desconcertar. Iniciou novo processo de limpeza na China.
O ”Exército de Libertação do Povo”, que derrubara os estudantes com carros blindados na Praça de Tiananmen ocupara entretanto Pequim inteira, vigiando os grandes cruzamentos da cidade e protegendo todos os edifícios do Partido. A polícia secreta dispersou para capturar e prender os culpados. O próprio Deng Xiaoping, que até ao momento estivera calado, veio a público em defesa dos procedimentos sangrentos do exército, afirmando que se tratara de destroçar conspirações contra-revolucionárias de elementos criminosos. O caminho da China para o futuro fora posto em perigo.
A acusação dirigia-se também aos estrangeiros. Estes tinham instigado os estudantes e dizia-se que haviam subornado os grupos revoltosos com dinheiro; a exuberância do radicalismo fora obra deles, e alguns, sendo terroristas profissionais, tinham incitado o povo; entre estes estava Karl Reindl.
Deng Xiaoping encerrou novamente a China ao mundo. As memórias da Revolução Cultural de MAO voltaram a acordar. Iniciou-se uma perseguição impiedosa aos culpados, uma onda de detenções varreu o país e, mais uma vez, foram os intelectuais, os artistas, os críticos, os apoiantes da democracia que a polícia, os militares e a polícia secreta levaram consigo. Em Xangai, Pequim e noutras grandes cidades, os dirigentes dos estudantes foram condenados à morte e executados no decorrer de um processo sumário. Muitos conseguiram fugir para o estrangeiro, mas o que realmente aconteceu na China durante esses dias ficaria submerso num silêncio total e absoluto.
Os soldados do exército já tinham capturado Charly Reindl durante o massacre na Praça da Paz Celeste. A 4 de Junho, por volta do meio-dia - os carros da limpeza da cidade já haviam lavado o sangue do pavimento da praça -, Reindl foi levado perante um tribunal militar de emergência. Tinha um aspecto horrível. O seu rosto e o seu corpo estavam cobertos de feridas a sangrar, pois tinham-no sovado e torturado. As primeiras frases que dirigiu, aos gritos, aos oficiais do tribunal foram:
- Eu sou alemão. Exijo que a minha embaixada seja notificada de imediato! Não digo uma palavra sem a presença
de um representante da embaixada! Como estrangeiro que sou, tenho o direito...
- O senhor desprezou e violou o seu direito - interrompeu friamente o presidente do tribunal militar, um general. - O senhor teve a intenção de lançar o caos na China, um país que lhe proporcionou acolhimento. O senhor é culpado de um crime contra o povo chinês. O que tem a dizer
Sobre isso?
- Nada! Eu quero falar com o embaixador da República
Federal Alemã! - exigiu Reindl aos gritos.
- O seu embaixador não pode ajudá-lo. - O general fitava Reindl do alto, com frieza. - O senhor cometeu um crime na China e é a China que o vai julgar. Está intimado a dizer os nomes dos seus cúmplices! A maior parte deles já nós conhecemos. O líder Bai Hongda também foi capturado.
- Então pergunte ao líder e não a mim! - contrapôs Reindl. - Ele conhece-os a todos. Eu era perfeitamente insignificante na organização.
- Nós temos outras informações. Há outros presos que falam mais do que o senhor.
- Porque vocês os torturaram! - gritou Reindl. - Eles dizem tudo o que vocês quiserem ouvir. Raios me partam: Quero falar com o embaixador!
O general ficou calado e fez um sinal a dois dos soldados. Agarraram em Reindl e arrastaram-no para fora do compartimento, enfiaram-no no pátio do edifício e encostaram-no a uma parede pintada de vermelho. À sua frente estavam doze soldados com as armas em punho. Quando Reindl ficou sozinho contra a parede, um jovem tenente deu algumas ordens aos soldados e elevou o braço. De repente, Reindl apercebeu-se do que lhe iria acontecer. Começou aos gritos e quis fugir, mas as suas pernas já não tinham capacidade para dar nem mais um passo.
- Vocês não podem fazer isso! - A voz de Reindl tornou-se esganiçada e parecia que chiava. - Eu sou alemão! Eu tenho a protecção da minha embaixada! O Governo do meu país vai protestar e encerrar as suas relações com a China! Vocês são loucos, vocês não podem simplesmente...
O braço do tenente desceu. Doze tiros ressoaram como se fosse um único e Reindl, toldado pela estupefacção e pela incredulidade, sentiu que fora atingido oito vezes; numa fracção de segundo, parecia que o seu corpo se tinha inflamado; então o seu cérebro desligou e ele deslizou pelo muro abaixo, tombando para a frente como um pedaço de madeira jogado fora e deixou de viver.
A 5 de Junho, Song Keda, um oficial da polícia secreta, dirigiu-se à vivenda do Dr. Pohland. Erika abriu-lhe a porta. Envelhecera anos da noite para o dia, mas conduziu Song até à grande sala de estar, onde se encontrava o Dr. Pohland, que se levantou da poltrona à sua chegada.
- Estava à sua espera - disse, depois de Song se apresentar com toda a delicadeza. - O meu filho está deitado no quarto, gravemente ferido. Eu levo-o até lá.
Song Keda abanou a cabeça. O Dr. Pohland ficou perplexo e calou-se. Erika, que estava encostada à porta e de cujos olhos rolavam lágrimas, não percebia o que estava a acontecer.
Song aproximou-se da janela, olhou para fora, para o belíssimo jardim, e depois voltou-se.
- Professor Pohland - começou, como se se tratasse de uma conversa amigável -, o povo chinês reconhece o que o senhor fez por ele. Sabemos que ama o nosso país, que deu à China todo o seu empenho e todo o seu conhecimento; que, ao longo dos últimos anos, milhares de estudantes receberam os seus ensinamentos e os utilizam agora na qualidade de médicos. Nesta hora difícil da sua história actual, a China quer provar-lhe a sua gratidão e não censurá-lo por ser pai de um filho demasiado impetuoso. Para provar a grande consideração que temos por si, damos-lhe um prazo não de vinte e quatro horas para sair do país, mas de três dias, de modo a poder preparar com toda a calma a sua mudança para a Alemanha. Uma delegação do Ministério da Cultura acompanhá-lo-á então até ao aeroporto. - Fez uma pequena vénia. - A minha missão é exprimir-lhe a gratidão da República Popular da China.
E o que é que vai acontecer ao meu filho Holger? Finquiriu o Dr. Pohland. A sua voz estava rouca e vibrava.
seu filho, membro da família e nós estamos a comunicar-lhe que a família Pohland pode partir dentro de três dias. - Song fez um sorriso para o Dr. Pohland, como se tivessem estado alegremente a conversar. - Onde está o seu hóspede, Tong Jian?
- Não sei. Já não o vejo há dois dias.
Song assentiu. Sabia que o Dr. Pohland estava a mentir, mas isso em nada alterou a sua cortesia. A polícia secreta trabalhava silenciosamente, era apenas uma questão de tempo até que Tong Jian fosse apanhado algures. A polícia secreta de Kunming já tinha sido informada. O aparelho de Estado, habitualmente mergulhado numa indolência intrínseca, actuou com grande velocidade e precisão. As detenções sucederam-se em tempo recorde, antes de os acusados conseguirem escapar.
- Acreditamos plenamente - observou Song com ligeireza - que o senhor não fazia ideia dos planos subversivos dos estudantes.
- Fui absolutamente apanhado de surpresa. Só depois das primeiras manifestações a favor de Hu Yaobang é que soube que o meu filho estava envolvido. Houve grandes discussões entre ele, o Tong Jian e eu, mas foram totalmente infrutíferas. Eles eram idealistas cegos. - Pohland esperava que Song replicasse, mas este permaneceu em silêncio. o senhor censura-me por não ter denunciado o meu filho ou o Tong Jian à polícia?
- Não. Nós tivemos em conta os seus serviços prestados à China. Qual é o pai que trai o seu filho? - Song abanou a cabeça, mas de repente perguntou: - Conhece o Bai Hongda?
- Foi nosso convidado uma ou duas vezes.
- O senhor não sabia que ele era um dos cabecilhas do movimento estudantil?
- Não. Como lhe disse, até à manifestação a favor de Hu estava perfeitamente a leste. De democracia e liberdade, sim, falava-se muitas vezes; e a abertura ao Ocidente por parte de Deng contribuía para a esperança de que a glasnost de Gorbatchev pudesse ser um modelo a seguir. Mas quem iria imaginar que alguém pretendesse forçar a abertura da China ao mundo através de uma revolução? Eu teria explicado aos jovens que obteriam exactamente o efeito contrário. Deng Xiaoping estava no caminho certo; o que falta à juventude é a paciência. A China subsiste há cinco mil anos... o que são um par de meses ou de anos a mais, se havia uma série de mudanças previstas? A Rússia também precisará de anos para conceber o início de uma nova era.
- O senhor é um homem sábio, professor Pohland observou Song com visível consternação. - O facto de o senhor ser obrigado a partir será uma perda para a China.
A 6 de Junho, a polícia secreta ocupou a residência de Tong Shijun e, como não o encontrou no hospital, interrompeu-o em plena aula na universidade para o levar. Em Kunming, as manifestações dos estudantes tinham decorrido com moderação e os seus instigadores haviam sido detidos logo no dia 5 de Junho; dois deles ainda andavam a monte e estavam a ser procurados por toda a província de Yunnan.
Quando o comissário Zeng Qifeng se dirigiu a ele num tom acerbo, na sala de professores da universidade, a mente de Tong Shijun bloqueou com o choque:
- O seu filho é um contra-revolucionário e um traidor do povo chinês! Está em fuga. Se vier para Kunming, vamos fuzilá-lo. Tong Shijun, o que sabe o senhor das conspirações do seu filho?
Tong permaneceu sentado na sua cadeira, mergulhado na apatia e não respondeu - não, por ser essa a sua vontade, mas porque a sua cabeça ficara subitamente vazia. Olhava fixamente em frente e Zeng não percebeu se ele simplesmente não tinha ouvido o que lhe dissera. Um pai sucumbia à sua frente, porque o grande orgulho da sua vida fora destruído; mas Zeng, que provinha de uma família de operários, que sempre sofrera às mãos dos privilegiados, não sentia compaixão por Tong.
- Fiz-lhe uma pergunta, camarada! - insistiu Zeng, impiedosamente. - O senhor não fazia ideia que o seu filho difundia ideais revolucionários? Nunca falou consigo sobre o assunto?
Tong permaneceu em silêncio e ninguém viu que ele chorava interiormente.
Zeng aguardou pacientemente, mas nos seus lábios pairava um sorriso maldoso.
- Aparentemente, temos que o interrogar de outra forma - comentou Zeng e agarrou nos cabelos brancos de Tong, puxou-os para trás e, com a outra mão, deu-lhe vários estalos.
Com os olhos fechados, Tong deixou que o maltratassem. Sabia que, naquele dia, não só perdera para sempre a sua face, o seu orgulho e a sua honra, mas também que a sua vida acabara e que, mesmo que o seu corpo continuasse a pairar por ali, comesse, bebesse, dormisse e acordasse, a sua alma já não reagiria; limitava-se a ser um recipiente à espera de sucumbir.
Um automóvel da polícia secreta conduziu-o para casa. Doze funcionários tinham revistado a residência toda; Meizhu fora encerrada no quarto de dormir e, quando Tong chegou, um funcionário informou que não tinham encontrado nada de suspeito.
- Para onde poderá ter fugido o seu filho? - perguntou Zeng com rispidez, quando Tong se afundou no seu sofá. Onde poderá ter-se escondido? Vou reformular a pergunta: para onde fugiria o senhor, se o perseguissem?
- Eu não fugiria, eu assumiria os meus actos. - Foram as primeiras palavras que Tong pronunciou e soaram como se estivesse a falar durante o sono.
- Mesmo que soubesse que ia ser executado?
- Mesmo assim. Um Tong não se esquiva às suas responsabilidades. Sete pessoas da nossa família foram decapitadas com a espada. A primeira, no ano de 1065, durante a dinastia dos Song; a segunda, sob o domínio do imperador Zhu Youtang, no ano de 1499...
- E a última em 1989, em Kunming, sob a direcção de Deng Xiaoping - interrompeu Zhang aos gritos.
- Eu estou pronto. - Tong elevou os olhos cansados para Zeng. - O senhor vai destruir um mero saco vazio, camarada.
Alguém da universidade tinha avisado Fengxia; esta precipitou-se pela casa dentro, pela mão de Wu Yunghou, com uma barriga protuberante devido à gravidez avançada e atirou-se a Zeng como um dragão a cuspir fogo.
- O que é que o senhor está a fazer ao meu pai? - gritou, empurrando Zeng para o lado. - Estaremos perante uma segunda Revolução Cultural para exterminar o que resta da intelligentsial
Wu Yunghou gritou logo a seguir:
- Vou avisar o Comité Central. Eu sou Wu Yunghou, director do Departamento da Saúde. O seu nome!
- Já ouvi falar de si, Wu. Todos os funcionários estão identificados no nosso computador. Eu sou Zeng Qifeng, comissário da polícia secreta.
- Um funcionário menor e sujo ousa atacar o meu pai?
- berrou Fengxia. - Vou providenciar para que o façam desaparecer no meio do Tibete. Que tem o meu pai a ver com aquelas manifestações sem sentido?
- Tong Shijun é pai de um dos cabecilhas de Pequim.
- O Jian? - Os olhos de Fengxia abriram-se muito e o seu queixo descaiu. - O Jian? - repetiu, quando o seu coração tornou a bater.
- Tong Jian. - Zeng assentiu várias vezes com a cabeça. - Recebemos o nome dele de Pequim. Não se encontrava entre os mortos nem entre os feridos; encontra-se fugido. Eu pergunto-lhe, camarada...
- Não pergunte - interrompeu Fengxia -, não tenho resposta. Para mim, o meu irmão já não pertence à família. Até hoje, não pronunciei sequer o nome dele.
- Então sabia das suas ideias loucas?
- Nós odiávamo-nos como dois tigres, por questões pessoais. De que é o meu pai acusado?
- Quero saber o que ele sabe.
- Ele apenas sabe que o seu filho era um dos melhores estudantes de Medicina em Pequim. E nada mais lhe interessava.
O meu pobre pai! E o senhor, comissário, vá-se embora!
- Tenho que redigir um auto, camarada.
- Sobre.o quê? Que um pai perdeu o filho?
- O que fez o seu pai na noite de 4 de Junho?
- Dormiu ao lado da minha mãe.
- E durante o dia, quando derrubámos a revolta?
- Presumo que estivesse horrorizado. Não falámos um com o outro.
Zeng olhou para Tong, que estava afundado no sofá, com a cabeça baixa.
- Porque é que ele não responde pessoalmente? - indagou.
- Ele já não tem voz. Fala através de mim. Não é suficiente para si, comissário?
Wu aproximara-se do telefone e levantara o auscultador. Zeng esticou o braço.
- A quem vai telefonar, Wu Yunghou?
- Ao comité!
- Não é necessário - apressou-se Zeng a dizer. - Eu vou-me embora. Já cumpri o meu dever. Tinha ordens a executar. - Acenou com a mão e abandonou a casa com a sua tropa.
Meizhu, a quem entretanto haviam aberto a porta, precipitou-se para fora do quarto, entrou na sala de estar e sentou-se ao lado do marido, no sofá. Abraçou-o, encostando a cabeça ao peito dele e fazendo-lhe festas.
- Pai - disse Fengxia -, já passou. Eles não voltarão. Deita-te e descansa.
Tong levantou a cabeça e respondeu-lhe:
- Descansar? Eu morri. - Meizhu cingiu-o contra si e choraram juntos.
Em Huili, onde se tinha ouvido as notícias de Pequim pela rádio, Huang estava sentado à mesa com o olhar vazio e não tocara no chá que Jinvan lhe preparara. Quando se ouviu o nome de Tong Jian, procurado no país inteiro, Huang notou com voz fraca:
- A Lida está com ele e vão executá-la também. Jinvan, vale a pena continuar a viver? Para que é que continuamos a trabalhar?
- Para nós, Keli. Para nós. E ainda temos o Tifei, o nosso filho. Vai casar-se e gerar um herdeiro. Uma pessoa não deita a vida fora quando ainda tem um filho. Os Huang vão continuar a existir.
- Tu dizes isso como se nunca tivéssemos tido uma filha.
- Eu digo isto, porque a nossa filha morreu. Milhões de filhas morrem e os pais têm de aceitar esse facto. O meu coração está tão partido quanto o teu... mas a vida continua. Keli, as tuas crianças esperam-te.
- Quais crianças? - perguntou Huang, num tom abafado.
- As da escola. Tu és um professor e um modelo para elas, não as desiludas.
- Vou mandar a casa nova pelos ares! - desabafou Huang, levantando-se com um profundo suspiro. - Vou matar o búfalo. Não quero mais nada à minha volta que me faça lembrar a Lida. Sim, a vida continua, mas nada será como dantes.
Mas não mandou a casa nova pelos ares... entrou, sentou-se na cama de Lida, enfiou a cara entre as mãos e chorou convulsivamente, como uma criança.
Em Pequim, dez dias mais tarde, aconteceu algo de perfeitamente inexplicável, que desencadeou não só um aplauso dissimulado como uma satisfação generalizada.
A polícia secreta interrogara, sovara e torturara Bai Hongda ininterruptamente, mas não o matara, pois pretendia-se instaurar um processo público, aos olhos do mundo inteiro, a fim de provar que a repressão da revolta tinha sido necessária para salvar a China do caos. A sentença de Bai e de dez dos seus cúmplices já estava determinada à partida, mas deveria ser anunciada apenas após um espectacular julgamento. Só então as portas da China deveriam ser abertas, permitindo que a nova era se insinuasse cautelosamente. A obra reformista de Deng Xiaoping deveria prosseguir.
De modo a manter Bai e os seus dez cúmplices em segurança, estes foram levados para um local secreto até ao início do julgamento. Numa manhã soalheira e quente, os onze revoltosos foram transportados numa carrinha blindada. O único objecto que podiam levar consigo era a escova de dentes e assim fizeram, guardando-as nos bolsos das calças. Subiram para a carrinha tranquilamente, cumprimentando com cordialidade os guardas que os vigiavam. Em seguida, partiram de Pequim em direcção aos túmulos da dinastia Ming. Os guardas, quatro deles armados com pistolas automáticas, conversavam com eles. Bai estava muito animado e até contou umas piadas, pondo toda a gente a rir.
A carrinha deixou para trás campos lavrados e casas de camponeses e, quando começou a atravessar uma mata de arbustos, Bai levantou-se de repente. Os outros dez imitaram-no e, antes que os quatro guardas, atónitos, pudessem perguntar o que estava a acontecer e conseguissem desengatilhar as suas pistolas automáticas, os presos tiraram as suas escovas de dentes do bolso e encostaram-nas aos pescoços dos guardas. Estes ficaram paralisados de medo e arregalaram os olhos de pavor, pois as escovas de dentes tinham pequenas lâminas de barbear agarradas e um único golpe bastaria para cortar a garganta a um homem.
Enquanto quatro estudantes tiravam das mãos paralisadas dos guardas as pistolas automáticas, Bai dirigiu-se para a frente da carrinha e encostou a escova de dentes ao pescoço do condutor, dizendo delicadamente:
- Pára o veículo, meu irmão desconhecido. De certeza que tens mulher e filhos e queres voltar a vê-los e viver muitos anos na sua companhia. Nem toda a gente tem estofo de herói, isso não se pode exigir. Pára e continua vivo.
O condutor travou de imediato e abriu a porta, ainda com a lâmina de barbear encostada ao pescoço. Os estudantes saíram de seguida e desapareceram no meio dos arbustos.
Bai Hongda foi o último a sair da carrinha e entregou ao condutor a sua escova de dentes com a lâmina, dizendo:
- Para recordação e para que acreditem que vocês não se podiam defender. Caso contrário, ficariam em maus lençóis e eu não quero isso. Transmitam aos velhos o meu recado: um dia, a China terá uma democracia e será livre, pois o mundo mudou e a China só poderá continuar a subsistir se abrir os braços. - Acenou com a cabeça para o condutor, que continuava sentado como que paralisado, saltou para fora da carrinha e desapareceu nos arbustos, tal como os outros.
Só voltou a ouvir-se falar de Bai Hongda dois meses mais tarde; estava em Nova Iorque, sob a protecção da CIA. Tornara-se o herói dos emigrantes, e Deng Xiaoping encerraria novamente a China.
Tinha muito tempo, o mundo esquecia mais rapidamente do que o voo de um pássaro.
Lida e Jian continuavam desaparecidos e foram-se perdendo no esquecimento, como se nunca tivessem existido.
O TEMPLO DO PICO DE JADE
O autocarro vindo de Dali, apinhado com setenta e seis doentes, subiu a resfolegar a acidentada estrada montanhosa e deteve-se com uma travagem amortecedora no parque de estacionamento do templo lamaísta. Ao cimo, onde terminava a escadaria que dava acesso ao templo, encontrava-se mais uma vez o monge sem idade, Chen Xue, o qual tinha soprado a corneta de bambu para anunciar a chegada dos visitantes. Observou com ar solene as pessoas que se aproximavam, degrau a degrau. Algumas tinham de ser apoiadas, pois estavam fracas de mais para conseguirem vencer as escadas sem ajuda, e havia dois doentes em macas, transportadas por dois parentes. A dirigir a lastimosa multidão vinha o condutor, gordo e vendendo saúde despudoradamente. Este era o melhor angariador que o médico dos milagres, Deng Jintao, poderia ter arranjado, pois recolhia os doentes sempre com o mesmo discurso: ”Olhem para mim, meus caros! Há um ano, eu estava doente, às portas da morte, era um esqueleto com pele. E agora? Olhem para mim outra vez! Até consigo arrancar raízes de árvores da terra. E quem foi que me curou? O imortal Deng Jintao.”
Este discurso era eficaz, inclusive para o bolso do gordo condutor, que não só recebia o valor do bilhete da viagem até Lijiang e ao templo do Pico de Jade, como também recolhia as contribuições pela consulta médica. E todos pagavam com prazer; a saúde não tem preço, quando se pode pagar ou se poupou para aquela hora.
- O mestre está? - perguntou Liu Yin, o condutor. - Trago-lhe uma série de casos interessantes, que deram grandes dores de cabeça aos hospitais de Dali. Andavam por ali, os médicos auscultavam-nos, diziam-lhes que tudo tinha cura, davam-lhes gotas e comprimidos, mas quase nenhum se sentia melhor.
- Entrem e peçam a benevolência de Buda - respondeu Chen, gravemente. - Em seguida, conduzir-vos-ei até Deng Jintao e sua auxiliar, Hão Peihui. Se mais ninguém no mundo pode ajudar... eles conhecem o caminho para uma vida longa.
Os setenta e seis doentes entraram no templo, acenderam pauzinhos de incenso e não passaram pela taça de cerâmica colorida que Chen tinha namão sem lá depositarem notas de iuane. Uma vida longa não tem preço, o que são um ou dois iuanes em comparação?
Submersos no silêncio das suas orações, ajoelhados diante do Buda dourado e inclinando-se várias vezes, até a testa tocar no chão, a esperança que os doentes tinham de recuperarem a sua saúde com a ajuda do monge milagreiro aumentava proporcionalmente. Liu também orava; porém, não era saúde que ele pedia a Buda, mas sim uma longa vida para Deng Jintao, pois enquanto este estivesse no templo do Pico de Jade, Liu não passaria necessidades e até se incluía, reservadamente, entre os grandes empresários de Dali.
Concluídas as orações, Chen levou os doentes até à residência dos monges. Subiram a estreita e íngreme escadaria de pedra e Chen bateu na porta colorida e abriu-a. O aroma doce do fumo dos pauzinhos de cheiro veio ao encontro deles, infundindo nos doentes um respeito mudo e uma confiança incondicional. Hão Peihui encontrava-se debaixo da ampla copa da magnólia: uma anciã sem idade, encarquilhada, com longos cabelos brancos e um manto amarelo que caía como que às ondas e que a tornava incorpórea.
Liu, que organizava as suas excursões ao pormenor, era o primeiro da fila, atrás de Chen, e exortava os setenta e seis enfermos a avançarem ordenadamente:
- Um atrás do outro - dizia. - O mestre não pode observá-los a todos de uma vez. Eu fico aqui, à porta, e faço sinal para o próximo entrar. Aguardem pacientemente, camaradas, nós temos tempo.
Chen anuiu em silêncio para Liu, rodou as contas do seu mala, regressou ao templo, descendo paralelamente à longa fila de pacientes, sentando-se num banquinho, ao lado do Buda dourado, com a taça de cerâmica sobre os joelhos e começou a contar as notas de iuane. Fora um bom dia, percebera logo aquando da colecta. Mais uma vez disse para si próprio que a melhor inspiração da sua vida de monge fora acolher Deng Jintao e Hão Peihui no templo do Pico de Jade.
Liu foi o primeiro a entrar no pátio interior e, quanto maior a sua gabarolice em Dali e durante as viagens, maior o seu acanhamento naquele momento, quando se aproximou de Peihui, fazendo uma profunda vénia perante a anciã. Ela fitou-o com uma expressão imóvel, como se cada ruga da sua pele tivesse sido cinzelada.
- Os doentes pedem o milagre da vossa cura - disse.
- O mestre está pronto a ajudar?
- Quantos são vocês? - perguntou ela, num tom apagado, que arrepiou Liu até aos ossos.
- Setenta e seis.
- São cada vez mais.
- As doenças não conhecem números. Atingem as pessoas e ninguém se consegue defender. Vêm com o vento, chovem das nuvens, rodopiam no pó...
- Não me venhas explicar o que é uma doença! - interrompeu Peihui. Estendeu a mão, a qual calçara com uma luva tricotada com fios dourados e prateados. - Qual o valor das contribuições de hoje?
- Posso dispensar-lhe cento e cinquenta iuanes.
- Patife! Quanto é que meteste ao bolso? Queres enganar o grande mestre?
- Também pode ser cento e noventa iuanes - balbuciou Liu, embaraçado. Meteu a mão no bolso das calças e recolheu as notas amarrotadas, contando cento e noventa iuanes, após o que as depositou na mão estendida de Peihui.
Esta concordou com a cabeça e desapareceu no interior da casa, uma pequena sala de estar, onde Deng Jintao se encontrava sentado a uma mesa de pau-rosa, aguardando. Peihui pousou as notas de iuane sobre a mesa.
- São setenta e seis doentes - informou com uma voz diferente e plena de energia. - E a nossa parte são cento e noventa iuanes.
Jintao não tocou no dinheiro e a sua expressão de couro, de onde pendiam os longos fios de barba grisalhos, permaneceu imóvel.
- Não é digno, como monges, recebermos dinheiro dos enfermos. Não está certo o que tu estás a fazer.
- Não há médico nenhum que trate doentes de graça. Conheces algum?
- Para os doentes, eu não sou só um médico, sou um santo.
- Tanto maior o prazer deles em deixar oferendas. Um santo também tem de viver.
- Nós nunca morreremos de fome.
- Não é só a comida que enche uma vida. - Peihui juntou as notas de iuane, dirigiu-se para um altar colorido, abriu-o e guardou o dinheiro lá dentro. - Sabes quanto é que eu já consegui juntar?
- Deve ser muito.
- O suficiente para começarmos a pôr os nossos planos em acção. Vou pedir a Liu que faça as suas excursões de doentes a Lijiang duas vezes por semana. O Chen também está muito satisfeito.
Deng Jintao, o curandeiro milagreiro, ergueu-se com um suspiro, ajeitou a sua capa vermelha desbotada e enfiou, sobre os cabelos grisalhos, o bicudo gorro de lama de lã de iaque, bordado com fios de ouro entrelaçados. Os cabelos brancos pendiam para fora do gorro, como se a sua cabeça estivesse envolta em neve, tal como o poderoso pico da montanha do Dragão de Jade, que se erguia lá no alto.
- Vamos começar - declarou. - Há doentes graves entre eles?
- Não creio que o Liu os trouxesse.
- É isso que me aflige. - Deng Jintao pegou no seu mala e, rodando as contas, dirigiu-se para a porta. - Quem precisa realmente da minha ajuda não pode ser ajudado. Os casos menos graves podem ser tratados por qualquer ”médico descalço”.
Saiu para o pátio interior e Liu fez uma vénia profunda. Sempre que via Deng Jintao sentia um arrepio nas costas, pois a sabedoria daquele homem sem idade devia ser alimentada pelo Céu, dia após dia, caso contrário não haveria explicação para o poder da sua mente e das suas mãos curandeiras.
- Traz-me os doentes, Liu - pediu Jintao com um tom de voz grave, como se viesse do interior de uma montanha.
- Como é que tu te sentes?
- Bem, mestre. O senhor deu-me uma vida nova há um ano.
- Eu só te retirei o cachimbo de ópio, que te estava a consumir.
- Foi um grande feito. Com isso salvou-me a vida. Nunca mais me esqueço da cena em que me bateu com um pau de nogueira. Foi mais eficaz do que qualquer remédio.
- E agora tornaste-te num homem abastado através de mim.
Liu fez uma careta e encostou as duas mãos ao peito.
- Uma pessoa tem de ter as ideias certas, mestre. Um arrozal só recebe água se abrirmos as comportas.
- Então abre-as, meu tratante - retorquiu Jintao, fazendo rodar as contas do mala. - Chama o primeiro doente.
Jintao recebia os seus pacientes sentado numa cadeira de costas altas, pintada de vermelho e amarelo, disposta debaixo da ampla ramagem da magnólia. Peihui ficava de pé, a seu lado, junto da coluna de madeira talhada, envernizada a dourado e adornada com representações de dragões, em cuja plataforma se encontrava um pequeno pavilhão de jade verde e castanho-claro, com um minúsculo dragão dourado sentado na cumeeira do telhado inclinado. O dragão não cuspia fogo; estava a rir-se, como se fosse o salvador do mundo.
O primeiro doente que entrou, não se atrevendo sequer a levantar os olhos para Jintao, era uma mulher idosa. Peihui apontou para um banquinho que estava em frente ao mestre e a mulher sentou-se, a tremer.
- Conta-me as tuas queixas - disse Jintao. - Uma única palavra pode indicar-nos o caminho para a cura.
- Eu já não consigo parar as águas - respondeu a mulher. - Escorrem por mim abaixo e tenho de enfiar toalhas entre as pernas para que elas não corram livremente.
Jintao olhou de relance para Peihui e assentiu em silêncio.
- O que diz o teu médico? - perguntou à mulher.
- Que eu tenho a bexiga fraca e que, com a idade, os músculos que a seguram ficam frouxos.
- Que idade tens?
- A minha mãe diz que tenho sessenta e dois anos. Ela tem oitenta e cinco. Mas ainda consegue suster as águas.
- Sentes um ardor quando urinas?
- Sim, é como se fossem pequenas picadas.
Jintao pôs amão sobre a cabeça da mulher, que estremeceu e fechou os olhos de emoção.
- Tens uma cistite.
- Vou ter de morrer? - indagou a mulher, vacilando no banco.
- Com certeza, mas não desta doença. Vou dar-te comprimidos, antibióticos; não precisas de saber o nome. Só precisas de saber uma coisa e não podes esquecê-la: de manhã e à noite, depois de comer, tomas um comprimido com chá. Fixa bem: depois de comer. E daqui a seis dias as águas vão deixar de correr pelas tuas pernas abaixo. Vai ter com a Peihui. Ela dá-te os comprimidos.
A mulher levantou-se, mas de repente caiu de joelhos, inclinou-se profundamente e beijou os pés de Jintao.
- Anda cá - disse Peihui, ajudando a mulher a pôr-se de pé. Levou-a até ao pequeno pavilhão de jade, pegou namão dela e colocou-a sobre o telhado com o dragão dourado sorridente. - Sentes a força que te percorre?
- Sinto mais força do que nunca - murmurou a mulher. - Sinto todo o meu corpo quente.
Peihui anuiu em silêncio, pegou namão dela e encaminhou-a para a mesa encostada à parede da sala, onde lhe entregou o medicamento. Quando a mulher saiu, ficou parada diante da íngreme escada e apreciou a fila dos que esperavam.
- Conta como foi! - pediu um deles. - Ele reconheceu a tua doença?
- Foi um milagre - respondeu a mulher e todos sustiveram a respiração. - Eu vivi um milagre. Estive sentada diante de um santo.
Liu, contudo, nada afectado pela emoção da mulher, levantou o braço e chamou:
- O próximo!
Observar setenta e seis doentes, falar com eles, escutar as suas angústias, que, por vezes, tinham desencadeado a doença ou impediam as melhoras, leva o seu tempo. Deng Jintao não era um médico que concedesse cinco minutos a cada doente; dedicava a cada um o tempo que cada qual precisava para lhe descrever a sua vida, ou então a observação que fazia aos doentes deitados na plataforma de madeira atrás da magnólia era tão minuciosa que os minutos se transformavam em meias horas ou mesmo em horas.
Os outros doentes aguardavam pacientemente na rua; sentavam-se no chão, passavam o termo entre eles, preparavam o seu chá verde e, sempre que um paciente saía pela porta colorida, os outros todos levantavam os olhos de curiosidade, pois aqueles que saíam anunciavam com devoção: ”Este homem já não é um ser humano, é um Deus. Reconheceu logo a minha doença. Basta o olhar dele para ficarmos curados; e o seu pavilhão de jade é uma fonte de pequenos raios de sol. Sinto-me como se me tivessem tirado um peso de cima.”
O mais extraordinário foi quando transportaram para o interior da casa um velho deitado numa maca pois não se conseguia levantar, que, depois, saiu pelo próprio pé, movimentando as pernas e gritando para os outros:
- Deus é todo-poderoso e está vivo nas mãos de Jintao. Ele deitou-me em cima de uma tábua, sentou-se em cima de mim, agarrou-me nos ombros e nas ancas, eu senti um abanão, uma dor percorreu-me as costas e a cabeça e depois ele ordenou: ”Levanta-te e caminha!” Levantei-me e comecei a caminhar. Olhem para mim, já posso correr outra vez! Foi um milagre o que aconteceu comigo.
E os que aguardavam a sua vez sentiram um arrepio que não passou quando Liu chamou: ”O próximo!”
A própria Peihui ficara surpreendida com a cura do homem paralisado e, enquanto estendia a Jintao uma garrafa de cerveja, perguntou:
- Como é que fizeste aquilo? Quando rodaste o corpo dele com um abanão até ouvi os ossos a estalar e pensei que o tinhas morto. ”O que vai ele, agora, dizer aos outros?”, pensei. Mas o homem levantou-se e começou a andar.
Jintao riu-se, bebeu um gole de cerveja e explicou:
- Não consigo explicar-te isto em poucas palavras. Os médicos chamam-lhe quiroprática, um método de tratamento no qual temos de ter uma boa técnica de mãos. O deslocamento das vértebras umas contra as outras muitas vezes provoca uma constrição da zona entre as vértebras, na coluna vertebral, e os nervos podem ficar comprimidos, fazendo com que a pessoa não se consiga movimentar, como aconteceu com este homem. O segredo do tratamento é reajustar os desvios das vértebras com o processo manual adequado, de modo a que estas fiquem assentes e a compressão dos nervos seja aliviada.
Peihui assentiu com a cabeça, pegou no copo de cerveja vazio e disse-lhe:
- Tu és um grande médico, um grande médico. E fico feliz e orgulhosa de ser tua mulher.
- O próximo! O próximo!
Todos os que de lá saíam ostentavam uma expressão de alívio, como se lhes tivessem tirado um grande peso das costas. Apenas um dos doentes não tinha tratamento possível e Jintao facultou-lhe um remédio para o alívio das dores, mais nada.
- Se não me engano, este paciente tem cancro no pâncreas. O cancro já o consumiu de tal maneira que agora é só pele e osso. Posso apenas aliviar-lhe as dores.
- E se o levares a Kunming para ser operado?
- É tarde de mais e perfeitamente inútil. Nenhum cirurgião o abria. Eu também não o faria. Ou, se o fizesse, era para lhe encurtar o sofrimento. Um cancro que respira ar uma vez passa de animal manso a animal selvagem.
- Ele sabe que vai morrer dentro em breve?
- Eu disse-lhe.
- E o que é que respondeu?
- ”Agradeço-lhe, mestre. Se assim o diz, é porque tem de ser” e depois beijou-me a mão.
Peihui calou-se uns instantes e depois fitou Jintao.
- Como é que te sentes num momento assim?
- Na fossa! - foi a resposta, que nada tinha de santa, por parte de Jintao, enquanto lavava as mãos numa tina de água. - Como é ínfimo, às vezes, o passo que separa a vida da morte!
Liu surgiu à porta e esticou o polegar.
- Mais um! - exclamou. - Ó último. O mestre sabe quanto tempo esteve a tratar doentes hoje?
- O que é que me interessa o tempo, Liu?
- Dez horas! Vamos chegar a Dali de noite.
- Dez horas. - Jintao olhou de relance para Peihui. Será possível?
- Nem senti as horas a passar.
- Então que entre o último - ordenou Jintao e Liu desapareceu.
O último paciente estava encostado ao muro das escadas. Era um homem de idade, com uma barba branca, rala, mas comprida. Enfiara um boné na cabeça que lhe tapava o rosto, pois o sol do final da tarde ainda estava muito forte.
- Podes iniciar a viagem de regresso do teu autocarro - disse o ancião para Liu. - Eu fico aqui.
- Mas o camarada pagou a viagem de regresso.
- Ofereço-te o dinheiro. Podes partir.
- Como é que pode saber de antemão que o mestre o vai mandar ficar cá? Até hoje, nunca mandou ficar nenhum paciente.
- Eu sei que vou ficar aqui.
- Se a camioneta partir, não tem ninguém que o leve de volta a Dali.
- Isso não é problema teu, Liu. Pega nos teus doentes e vai-te embora.
Liu encolheu os ombros, fitou o ancião e pensou que este já não devia estar bom da cabeça. Depois desceu as escadas de pedra e gritou para a multidão:
- Subam, minha gente! Subam! A nossa visita acabou! O mestre manda cumprimentos a todos.
O homem de idade que ficou para trás subiu os últimos degraus e entrou no pátio interior. Ficou parado à sombra do muro coberto de cameleiras e olhou para Deng Jintao e para Hão Peihui. Jintao sentara-se outra vez na sua cadeira de costas altas, como um imperador no seu trono. Com a mãodireita, rodava as contas do mala tibetano.
- Aproxime-se e descreva-me as suas dores - disse. Se houver ajuda possível, recebê-la-á.
O ancião deu um passo em frente, mas o seu rosto continuava encoberto pela sombra do muro. Havia algo de misterioso que emanava da figura; Jintao sentiu-o e endireitou as costas.
- Já é tarde - insistiu. - Os outros querem regressar a Dali. Aproxime-se! Faço minhas as suas preocupações.
- Eu fico cá - declarou o ancião de repente e a sua voz soou mais jovem do que o exterior faria crer. Então, saiu da sombra e tirou o boné. - Libertem-se das vossas máscaras. Comigo não necessitam delas.
Jintao deu um salto da cadeira, arrancou o bicudo gorro de lama da cabeça e exclamou:
- Tio Zhang!
Caíram nos braços um do outro. Peihui arrancou a máscara de borracha que a transformava numa anciã e Jintao agarrou na sua máscara com as duasmãos e passou-a por cima da cabeça. Os rostos jovens e sorridentes de Lida e Jian iluminaram-se para Zhang Shufang, depois os três tornaram a abraçar-se, beijando-se nas faces, rindo e chorando ao mesmo tempo, e sem sequer se envergonharem.
Sentaram-se à sombra da magnólia e beberam chá. Chen entrou em casa; não estava minimamente surpreendido, era como se já soubesse de tudo; dirigiu-se para a cozinha e foi preparar o jantar.
- Tio Zhang, consegues ouvir o meu coração? Parece um tambor. Tu vieste até nós - dizia Jian, irradiando felicidade.
No entanto, Lida, como desde os acontecimentos em Pequim desconfiava de tudo e de todos, perguntou logo a Zhang:
- Como é que soubeste quem eram o Deng Jintao e a Hão Peihui?
- Foi um pressentimento. Em Dali, ouvi dizer que no templo do Pico de Jade havia um monge milagreiro que curava os doentes mais pobres e que estava acompanhado de uma mulher. E isso já foi há um ano.
- E só vieste hoje?
- Por precaução, meus filhos. A polícia secreta foi a minha casa quatro vezes para me interrogar. E o que é que eu havia de lhes dizer? Pois se eu não sabia de nada! Depois, Jian, o teu pai e a tua mãe vieram ter comigo duas vezes e eu também lhes disse a pura verdade: não voltei a ver o Jian. Depois, o meu receio era que a polícia secreta estivesse a vigiar-me e seguisse todos os meus passos. Desconfiava que assim fosse. Como é que eu podia arriscar vir a Lijiang? Esperei um ano inteiro e, quando Deng Xiaoping voltou a abrir a China ao Ocidente, tive a certeza que já não andavam à tua procura. Mas a fama e a santidade do monge milagreiro Jintao corre de boca em boca. ”Agora podes lá ir”, pensei eu, e então apanhei a camioneta. Jian, conta-me o que aconteceu entre Pequim e a montanha do Dragão de Jade.
- Foi uma longa viagem, tio Zhang. Para isso precisávamos de um dia inteiro. - Jian pousou a mãono joelho de Zhang. - Como está a minha mãe?
- Ela é uma mulher valente e consola-se com o neto. A Fengxia deu à luz um rapaz e... nem queria acreditar... deram-lhe o nome de Jian. No coração da família, tornaste-te um herói.
- E o meu pai?
- Para ele, morreste fuzilado algures. Está velho e começou a escrever um livro sobre medicina moderna e medicina tradicional chinesa. Quer concluir a sua vida profissional com este livro.
- Tio Zhang, que belas notícias! - Jian olhou para a cozinha, de onde vinha um aroma a carne assada. - Agradecemos a nossa vida a Chen Xue. Foi ele quem teve a ideia das máscaras de borracha e do monge milagreiro. Com as esmolas dos doentes, o Chen podia recuperar o templo e o mosteiro e a Lida poupou o suficiente para podermos aventurar-nos a recomeçar a nossa vida.
- Ouviste dizer alguma coisa sobre o meu pai? - perguntou Lida em voz baixa, mas com firmeza.
- Só uma vez, através de um miao abastado, que me comprou dois quadros. A polícia secreta não apareceu em casa do teu pai, que continua a ser o professor de Huili. O teu irmão Tifei casou e já tem seis camiões a circular em Kunming. Com o auxílio do Estado, tornou-se um capitalista e chama aos funcionários do Partido seus amigos. Para os teus pais, tanto tu como o Jian estão mortos. - Zhang pousou as duasmãos sobre os joelhos. - Agora, contem-me os vossos planos, meus filhos. Vão continuar a brincar aos santos milagreiros até ao fim das vossas vidas? Usar máscaras todos os dias, enquanto os doentes acorrem a vós em peregrinação? Não deixa de ser a função de um médico, eu sei. Mas era esse o teu objectivo, Jian?
- Estou à espera que a Lida consiga juntar dinheiro suficiente.
- Eu tenho dinheiro. Já é suficiente! - interrompeu Lida.
- E o que é que pretendem fazer? - indagou Zhang.
- Vamos atravessar a fronteira para a Birmânia; a partir de lá, apanhamos um avião para a Europa. Espero conseguir arranjar vaga numa universidade alemã e rever o meu amigo Holger Pohland.
- E ficas a exercer Medicina na Alemanha.
- Não. - Jian agarrou nasmãos de Lida, cingiu-as nas suas e ela riu-se para ele. - Regressaremos à China. Eu sou um médico chinês e tenho a obrigação de servir o meu povo. Um dia, a China ficará aberta a toda a gente e isso incluir-me-á a mim. Fico à espera desse dia e acredito que nos haveremos de sentar a bordo de um avião que faça o voo entre a Alemanha e Pequim. Nós pertencemos ao nosso país; também se escreve certo por linhas tortas. A paciência sempre foi o forte dos Chineses. Com ela, sobrevivemos cinco mil anos. O tempo é o nosso maior amigo.
- Rezemos para que a nossa fé não nos iluda - observou Zhang Shufang. - Vocês ainda têm o capítulo da vossa juventude. Eu sou um homem de idade, cuja sabedoria consta dos livros que já quase ninguém lê. Há um ditado sábio que diz: ”Sobre a moral, toda a gente tem uma perspectiva própria: o peixe vê-a de baixo, o pássaro de cima.” O que será a China, um peixe ou um pássaro?
- Eu quero ser um pássaro - comentou Lida - e voar livremente sob o céu.
- E tu, Jian? - perguntou Zhang.
- Um peixe apanha-se com um isco; um pássaro atinge-se com um tiro... eu quero ser uma pessoa que se senta no solo chinês e diz: ”Aqui está o meu único mundo.” E, um dia, assim será.
Chen apareceu, vindo da cozinha. Tinha vestido um avental vermelho sobre o manto de monge e a sua expressão rugosa brilhava.
- Hoje foi um bom dia! - exclamou, acenando no ar com uma grande faca de cozinha. - Cento e noventa e quatro iuanes na minha taça! Se as coisas continuarem neste rumo, rapidamente apagaremos os vestígios da passagem da Revolução Cultural. Então, voltará a ser como há centenas de anos. Jian, tu foste abençoado por Deus.
Regressou à cozinha, de onde se começou a ouvir um borbulhar e um sibilar.
- Eles atribuem tudo a um Deus - observou Zhang, abrindo muito os braços e pousando-os sobre os ombros de Jian e Lida. - Mas não é nada disso.
- Tens razão como sempre, tio Zhang - retorquiu Jian, olhando para Lida. - Eu seria um zero, se não tivesse o amor de Lida.
E Lida acrescentou:
- O que seria da minha vida sem ti? E Zhang concluiu:
- Duas pessoas podem criar um mundo próprio, pois a força criadora de Deus reside no amor.
Um raio do Sol do final da tarde penetrou através das camélias, atingindo o pavilhão de jade e, na cumeeira do telhado, o pequeno dragão dourado permanecia sentado e ria-se, pois um coração feliz é um coração alegre.
Heinz G. Konsalik
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