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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PECADO ORIGINAL / P.D. James
O PECADO ORIGINAL / P.D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Que uma taquimecanógrafa interina participe do descobrimento de um cadáver o primeiro dia de seu novo emprego é, se não inaudito, sim o bastante incomum para impedir que isso se considere um risco profissional. Certamente, Mandy Price de dezenove anos e dois meses de idade e estrela reconhecida da Agência Secretarial  Nonesuch, propriedade da senhora Crealey se dirigiu a manhã da terça-feira 14 de setembro a realizar sua entrevista na Peverell Press sem mais apreensão da que  estava acostumado a experimentar ao princípio de qualquer trabalho novo: uma apreensão que nunca era aguda e que respondia menos ao receio de não ser capaz de satisfazer  as expectativas  do chefe em potência, que ao temor de que este não satisfizera as suas. inteirou-se do trabalho na sexta-feira anterior, quando passou pela agência às seis  para recolher seu pagamento depois de um aborrecido lapso de duas semanas com um diretor que considerava uma secretária símbolo de prestígio, mas que não tinha nem  idéia de como  utilizar suas habilidades, e gostava de algo novo e a ser possível emocionante, embora possivelmente não tão emocionante como posteriormente resultou.
   A senhora Crealey, para a que Mandy levava três anos trabalhando, tinha sua agência em um par de habitações situadas sobre uma loja de periódicos e tabaco no Whitechapel Road, uma localização que, como gostava de fazer notar às garotas e aos clientes, ficava tão à mão da City como das torres de escritórios de Docklands. Até então nenhum dos dois distritos lhe tinha proporcionado muitos negócios, mas, enquanto outras agências naufragavam nas ondas da recessão, a pequena e escassamente dotada nave da senhora Crealey se mantinha, embora de um modo precário, a flutuação. Além de contar com a ajuda de alguma das garotas quando não havia nenhuma demanda, levava a agência ela sozinha. A habitação exterior era o despacho onde acolhia aos clientes novos, apaziguava aos antigos, entrevistava e atribuía o trabalho da semana seguinte. A interior era seu santuário pessoal, provido de um sofá cama no que às vezes passava a noite em contravenção dos términos do contrato de aluguel, um móvel bar, um frigorífico, uma despensa que ao abrir-se deixava ao descoberto uma cozinha minúscula, um televisor de grande tamanho e duas poltronas dispostas ante tina chaminé de gás onde girava uma tênue luz vermelha depois de uma pilha de lenhos artificiais. A esta habitação a chamava "o ninho", e Mandy era uma das contadas garotas que admitia em seu aposento privado.

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   Provavelmente era o ninho o que fazia que Mandy se mantivesse fiel à agência, embora ela jamais tivesse reconhecido abertamente uma necessidade que lhe haveria
parecido tão infantil como embaraçosa. Sua mãe se partiu de casa quando ela tinha seis anos, e Mandy logo que tinha podido esperar a cumprir os dezesseis
para afastar-se de um pai cuja idéia da paternidade ia pouco além de lhe proporcionar duas comidas ao dia, que lhe correspondia cozinhar a ela, e lavar a roupa.
Desde fazia um ano tinha uma habitação alugada em uma casa encostada do Stratford East onde vivia em áspera camaradagem com três jovens amigas, sendo o principal
motivo de disputa a insistência do Mandy em estacionar sua moto Yamaha no estreito vestíbulo. Mas era o ninho do Whitechapel Road, com os aromas misturas de vinho
e comida a China preparada, o vaio do fogo de gás e os fundos e maltratadas poltronas nos que podia acurrucarse e dormir, o que representava todo aquilo que
Mandy jamais tinha conhecido das comodidades e a segurança de um lar.
   A senhora Crealey, garrafa de xerez em uma mão e folha de bloco de papel na outra, mastigou a boquilha até deslocá-la à comissura dos lábios onde ficou pendurando,
como de costume, em aberto desafio à lei da gravidade e contemplou com os olhos entreabridos sua quase indecifrável caligrafia através de uns enormes óculos
com arreios de concha.
   É um cliente novo, Mandy, a Peverell Press. Procurei-a no diretório de editores e se trata de uma das editoriais mais antigas do país, possivelmente a
mais antiga, fundada em 1792. Tem os escritórios junto ao rio. Peverell Press, Innocent House, Innocent Walk, Wapping. Se tiver feito uma excursão em barco a Greenwich
tem que ter visto Innocent House. Parece um puñetero palácio veneziano. Pelo visto dispõem de uma lancha que recolhe aos empregados no mole do Charing
Cross, mas como vive no Stratford não te soluciona nada. Por outra parte, está em seu mesmo lado do Támesis e isso te facilitará a viagem. Suponho que o melhor
será que vá em táxi. Procura que lhe paguem isso antes de ir.
   Não importa, irei de moto.
   Como prefere. Querem que esteja ali na terça-feira às dez.
   A senhora Crealey esteve a ponto de sugerir que, com este prestigioso cliente novo, talvez fosse adequada certa formalidade no vestir, mas desistiu. Mandy
podia aceitar algumas sugestões quanto a seu trabalho ou seu comportamento, mas nunca em relação às excêntricas e às vezes estrambóticas criações por meio
das quais expressava sua personalidade, essencialmente confiada e efervescente. por que na terça-feira? perguntou. É que as segundas-feiras não trabalham?
   Não me pergunte isso. Eu só sei que a garota que chamou disse na terça-feira. Possivelmente a senhorita Etienne não possa verte antes. É um dos diretores e quer
te entrevistar
pessoalmente. A senhorita Claudia Etienne, tenho-o tudo cotado. A que vem tanto interesse? quis saber Mandy. por que tem que me entrevistar a chefa?
   Um dos chefes. Suponho que não contratam a qualquer. Pediram-me a melhor e os mando a melhor. É obvio, talvez andem procurando uma garota fixa e queiram
tê-la primeiro a prova. Não te deixe convencer para ficar, Mandy, fará-o? Tenho-o feito alguma vez?
   Depois de aceitar uma taça de xerez doce e acurrucarse em uma das poltronas, Mandy estudou o papel. Certamente, era estranho que o persumido chefe queria entrevistá-la
antes de começar o trabalho, mesmo que, como era o caso, fosse a primeira vez que o cliente tratava com a agência.
   Todas as partes conheciam perfeitamente o procedimento habitual. O cliente em apuros chamava por telefone à senhora Crealey para lhe pedir uma taquimecanógrafa
interina e lhe implorava que esta vez enviasse a uma garota que não fosse analfabeta e soubesse escrever a máquina a uma velocidade que pelo menos se aproximasse
da que
declarava. A senhora Crealey prometia milagres de pontualidade, eficiência e escrupulosidad, e logo enviava a qualquer garota que naqueles momentos estivesse
livre e se deixasse enrolar como mínimo para tentá-lo, com a esperança de que esta vez chegassem a coincidir as expectativas do cliente e da trabalhadora.
Aos protestos subseqüentes, a senhora Crealey opunha uma resposta invariavelmente quejumbrosa: "Não o compreendo. Em todos outros sítios me deram uns informe
excelentes dela. Sempre me estão pedindo a Sharon."
   O cliente, que acabava sentindo-se em certo modo culpado do desastre, pendurava o aparelho com um suspiro e urgia, respirava e suportava até que a agonia
mútua chegava a seu fim e a empregada fixa retornava a seu posto para encontrar-se com uma aduladora acolhida. A senhora Crealey se levava sua comissão mais modesta
que a que estava acostumado a cobrar a maioria das agências, o qual certamente explicava sua continuidade no negócio e o trato se dava por finalizado até que a seguinte
epidemia de gripe ou as férias do verão provocavam outro triunfo da esperança sobre a experiência.
   Pode tomar na segunda-feira livre, Mandy, com o salário completo, naturalmente disse a senhora Crealey. E será melhor que aconteça máquina seu histórico, especificando
estudos e experiência trabalhista. Ponha acima "curriculum vitae", isso impressiona sempre.
   O curriculum vitae do Mandy, e a própria Mandy em que pese a seu excêntrico aspecto, nunca deixavam de impressionar. Isto devia agradecer-lhe a sua professora
de língua,
a senhora Chilcroft. A senhora Chilcroft, plantada ante uma classe de recalcitrantes meninas de onze anos, havia-lhes dito: "ides aprender a escrever sua própria
língua com simplicidade, com precisão e com certa elegância, e a falar a de tal maneira que não fiquem em desvantagem nada mais abrir a boca. Se ambicionarem algo
mais
que lhes casar aos dezesseis anos e criar filhos em um piso de amparo oficial, necessitarão o idioma. Se não terem outras ambições que ser mantidas por um
homem ou pelo Estado, necessitarão-o ainda mais, embora só seja para lhes sair com a sua ante a seção local da Assistência Social e o Departamento
de Sanidade e Segurança Social. Mas aprendê-lo, aprenderão-o."
   Mandy nunca conseguiu discernir se odiava à senhora Chilcroft ou a admirava, mas, sob sua inspirada embora pouco convencional tutela, não só aprendeu a falar
e escrever corretamente, a não ser a utilizar sua língua com segurança e um pouco de graça. Pelo general, preferia fingir que não tinha alcançado este lucro. Pensava,
embora
nunca formulava tal heresia, que não valia a pena sentir-se a suas largas no mundo da senhora Chilcroft se não era aceita no seu próprio. Seu domínio da linguagem
estava aí para utilizá-lo quando fora necessário, uma habilidade comercial e em ocasiões social a que Mandy acrescentava altas velocidades em taquigrafia e mecanografia,
assim como o conhecimento de diversos programas de tratamento de textos. Mandy se sabia em muito boas condições para encontrar emprego, mas permanecia fiel à
senhora Crealey. Além do ninho, ser considerada indispensável tinha vantagens evidentes; podia-se estar segura de escolher os melhores trabalhos. Alguns dos homens
que a contratavam tratavam de persuadi-la para que aceitasse um posto fixo e, em ocasiões, ofereciam-lhe incentivos que tinham pouco que ver com aumentos anuais,
vale para o almoço ou generosas contribuições a sua pensão. Mas Mandy seguia com a Agência Nonesuch, pois sua lealdade se achava arraigada em algo mais que simples
considerações materiais.
   de vez em quando experimentava por sua chefa uma compaixão quase própria de um adulto. Os problemas da senhora Crealey derivavam principalmente de sua convicção
da perfídia dos homens, combinada com a incapacidade de passar-se sem eles. Além desta incômoda dicotomia, sua vida a dominavam a luta por reter a
as escassas garotas de sua equipe suscetíveis de ser empregadas e a guerra de desgaste que liberava contra seu ex-marido, o inspetor de fazenda, o diretor de seu
banco e o caseiro do escritório. Em todos estes traumas, Mandy atuava como aliada, confidente e simpatizante. Por isso à vida amorosa da senhora Crealey
referia-se, dita atitude se devia mais a certa boa vontade natural por parte do Mandy que a verdadeira compreensão, posto que, para sua mentalidade de dezenove
anos, a possibilidade de que sua chefa pudesse desejar realmente manter relações sexuais com os homens pouco atrativos e já anciões alguns deviam ter ao
menos cinqüenta anos que em ocasiões rondavam pela agência era muito grotesca para ser tida seriamente em conta.
   Depois de uma semana de chuva quase contínua, na terça-feira prometia ser um bom dia, com vislumbres de um sol esporádico que mandava seus raios através das massas
de
nuvens baixas. O trajeto desde o Stratford East não era largo, mas Mandy tinha saído com tempo de sobra, de maneira que só eram as dez menos quarto quando deixou
a auto-estrada, baixou pela rua Garnet e seguiu pelo Wapping Wall até girar à direita no Innocent Walk. Reduzindo a velocidade a de um transeunte, bamboleou-se
sobre os paralelepípedos de um amplo beco sem saída limitado ao norte por um muro de tijolo cinza de três metros de altura e ao sul pelos três edifícios que
albergavam a Peverell Press.
   A primeira vista, Innocent House lhe resultou decepcionante. Era uma casa de estilo georgiano, imponente mas ordinária, com umas proporções que Mandy sabia mais
que senti-lo que eram graciosas e, na aparência, não muito distinta de outras que tinha visto nas plazuelas e as ruas residenciais de Londres. A porta principal
estava fechada e não viu nenhum signo de atividade depois dos quatro pisos de janelas de oito cristais, as duas inferiores com um elegante balcão de ferro forjado
cada uma. A ambos os lados do edifício havia caminhos casa, mais pequenas e menos ostentosas, separadas e um pouco distanciadas daquele, como um par de parentes
pobres
e diferentes. A jovem se encontrava ante a primeira destas, a número 10 embora não se via nem rastro dos números 1 aos 9, e advertiu que estava separada do
edifício principal pelo Innocent Passage, um caminho particular protegido com uma cancela de ferro forjado e obviamente utilizado como estacionamento para os automóveis
do pessoal. Mas naqueles momentos a cancela estava aberta e Mandy viu três homens que, por meio de uma polia, baixavam grandes caixas de cartão de um
piso alto e as carregavam em uma caminhonete. Um dos três, um homem moreno e achaparrado que levava um enorme chapéu de monte, tirou o chapéu e dedicou ao Mandy
uma pronunciada reverência irônica.
   Os outros dois apartaram a vista de seu trabalho para observá-la com evidente curiosidade. Mandy elevou a viseira do casco e dirigiu aos três uma larga e desalentadora
olhar.
   A segunda das casas laterais ficava separada do Innocent House pelo Innocent Lane. Era ali, segundo as instruções que tinha recebido da senhora Crealey,
onde encontraria a entrada.
   Parou o motor, jogou pé a terra e empurrou a moto sobre os paralelepípedos procurando um sítio discreto onde estacioná-la. Foi então quando avistou pela primeira
vez o
rio, um estreito cintilação de água estremecida sob o céu cada vez mais claro. depois de estacionar a Yamaha se tirou o casco, pinçou na mala lateral em busca
do chapéu, o pôs e, continuando, com o casco sob o braço e carregada com sua bolsa, encaminhou-se para a água como se se sentisse fisicamente atraída
pelo poderoso puxão da maré, pelo aroma leve e evocador do mar.
   encontrou-se em uma espaçosa terraço de mármore resplandecente, delimitada por um corrimão baixa de ferro delicadamente forjado e com um globo de vidro em cada
esquina sustentado por golfinhos de bronze entrelaçados. De uma abertura situada em metade do corrimão nascia um lance de escada que descendia para o rio. Mandy
ouviu seu chapaleteo rítmico contra a pedra. dirigiu-se pouco a pouco para ele sumida em uma espécie de êxtase, como se não o tivesse visto nunca. Ante seus olhos
rielaba
o rio, uma ampla extensão de água movediça jaspeada pelo sol, que, enquanto ela olhava, elevou-se em um milhão de olitas sob a crescente brisa como um inquieto
mar interior e, logo, ao amainar o vento, assentou-se misteriosamente em uma resplandecente tersura. Ao voltar-se viu pela primeira vez a elevada maravilha de
Innocent House, quatro pisos de mármore colorido e pedra dourada que, conforme trocava a luz, pareciam mudar sutilmente de matiz, esclarecendo-se primeiro para obscurecer-se
depois até adquirir uma intensa cor oro. Sobre o grande arco curvado da entrada principal, flanqueado por estreitas janelas arqueadas, havia dois pisos com
muito largos balcões de pedra lavrada frente a uma fileira de esbeltas colunas de mármore rematadas por arcos trebolados. As altas janelas arqueadas e as colunas
de mármore se elevavam até um último piso sob o parapeito de um teto baixo. Mandy não conhecia nenhum dos detalhes arquitetônicos, mas já tinha visto antes
casas assim, em uma tumultuosa e má dirigido viagem escolar a Veneza quando tinha treze anos. A cidade apenas lhe tinha causado nenhuma impressão, além do intenso
fedor veraniego do canal que tinha feito que os colegiais se tampassem o nariz e chiassem com fingida repugnância, os museus de pintura cheios de gente e uns
edifícios que, conforme lhe disseram, eram dignos de admiração, mas que pareciam estar a ponto de desmoronar-se sobre os canais. Tinha visto Veneza quando era muito
jovem e sem a preparação adequada. Ao contemplar a maravilha do Innocent House, sentiu pela primeira vez em sua vida uma reação tardia a aquela experiência anterior,
uma mescla de pasmo admirado e alegria que a surpreendeu e de uma vez a assustou um pouco.
   Uma voz masculina rompeu o feitiço. Procura você a alguém?
   Mandy se voltou e viu um homem que a olhava por entre os balaústres do corrimão, como se tivesse surto milagrosamente do rio. Ao aproximar-se, comprovou
que estava de pé na proa de uma lancha atracada à esquerda da escada. O desconhecido levava uma boina de patrão de iate, muito arremesso para trás, sobre
um desgrenhada arbusto de cachos negros, e seus olhos eram como duas ranhuras brilhantes no rosto curtido pela intempérie.
   vim por um emprego respondeu ela. Só estava olhando o rio.
   Ah, sempre está aqui, o rio. A entrada é por ali disse o homem, assinalando com o polegar para o Innocent Lane.
   Sim, já sei.
   Para demonstrar independência de ação, Mandy consultou seu relógio e, continuando, voltou-se e se passou outros dois minutos contemplando Innocent House. Logo,
depois de
lhe dedicar um último olhar ao rio, pôs-se a andar pelo Innocent Lane.
   Na porta exterior havia um rótulo: PEVERELL PRESS ENTRE , POR FAVOR . A abriu e cruzou um saguão acristalado que comunicava com o escritório de recepção. A
a esquerda viu um mostrador curvado e um posto telefônico atendido por um homem de cabelos cinzas e expressão benévola, que a saudou com um sorriso antes de procurar
seu nome em uma lista. Mandy entregou o casco de motorista e ele o sustentou entre suas mãos pequenas e manchadas pela idade com tanto cuidado como se se tratasse
de uma bomba; depois de uns instantes de indecisão nos que pareceu não saber o que fazer com ele, acabou deixando-o sobre o mostrador.
   O homem anunciou sua chegada por telefone e logo lhe disse:
   Em seguida virá a senhorita Blackett para acompanhá-la ao despacho da senhorita Etienne.
   Possivelmente prefira sentar-se.
   Mandy se sentou e, fazendo caso omisso dos três periódicos do dia, as revistas literárias e os catálogos cuidadosamente dispostos em forma de leque sobre
uma mesita baixa, olhou a seu redor. Em outro tempo devia ter sido uma habitação elegante; a chaminé de mármore com um óleo do Grande Canal pendurado sobre
ela, o delicado céu raso de estuque e a cornija esculpida contrastavam de um modo incongruente com o moderno mostrador de recepção, as cadeiras cômodas mas
utilitárias, o grande tablón de anúncios forrado de feltro e o elevador gradeado que havia à direita da chaminé. As paredes, pintadas de um intenso verde
escuro, exibiam uma fileira de retratos em sépia que Mandy supôs seriam dos anteriores Peverell. Acabava de incorporar-se para examiná-los mais de perto quando
apareceu uma mulher robusta e pouco atrativa que sem dúvida era a senhorita Blackett. A recém chegada saudou o Mandy com severidade, dedicou-lhe um olhar surpreendido
e quase sobressaltada a seu chapéu e, sem apresentar-se, convidou-a a segui-la. Mandy não se inquietou por sua falta de cordialidade. Estava claro que se tratava
da secretária
pessoal do diretor gerente e que pretendia lhe demonstrar sua posição. Mandy já tinha conhecido antes a outras de sua espécie.
   O vestíbulo a deixou boquiaberta. Viu um estou acostumado a ladrilhado de mármore, formando segmentos de cores, do qual se elevavam seis esbeltas colunas com
capiteis
intrincadamente cinzelados que sustentavam um teto assombrosamente pintado. Sem emprestar atenção a visível impaciência da senhorita Blackett, que a esperava
no primeiro degrau da escalinata, Mandy se deteve com a maior naturalidade e deu lentamente uma volta, olhando para cima, enquanto no alto a grande abóbada
colorida girava com ela: palácios, torre com gallardetes ondeantes, Iglesias, casas, pontes, a curva do rio emplumado com as velas de navios de altos mastros
e pequenos querubins de lábios franzidos que sopravam prósperos ventos a breves baforadas, como o vapor que brota de uma bule. Mandy tinha trabalhado em uma
grande variedade de escritórios desde torres de cristal decoradas com couro e cromo e providas das últimas maravilhas eletrônicas, até quartos tão pequenos como
um armário com uma mesa de madeira e uma máquina de escrever antiga e não tinha demorado muito em compreender que o aspecto do local não constituía um indício confiável
da situação econômica da empresa. Entretanto, nunca tinha visto um edifício de escritórios como Innocent House.
   Subiram pela ampla escalinata dobro sem falar. O despacho da senhorita Etienne estava no primeiro andar. notava-se que em outro tempo tinha sido uma
biblioteca, mas em algum momento tinham construído um tabique para criar um pequeno despacho na entrada. Uma jovem de expressão séria, tão magra que parecia
anoréxica, estava escrevendo em um ordenador e apenas dirigiu ao Mandy um olhar fugaz. A senhorita Blackett abriu a porta de comunicação e, antes de retirar-se,
anunciou:
   É Mandy Price, da agência, senhorita Claudia.
   A habitação, que depois do reduzido despachito exterior lhe pareceu muito grande, tinha o chão de parquet. Mandy a cruzou em direção a um escritório situado
à direita da janela do outro extremo. Uma mulher alta e moréia se levantou para recebê-la, estreitou-lhe a mão e a convidou a tomar assento com um gesto. Há
gasto seu curriculum vitae? perguntou-lhe.
   Sim, senhorita Etienne.
   Era a primeira vez que lhe pediam um currículo, mas a senhora Crealey tinha estado no certo; evidentemente, esperava-se que o apresentasse. Mandy introduziu
a mão na bolsa adornada com borlas e bordados chamativos um troféu das férias em Giz do verão anterior e lhe entregou três folhas pulcramente datilografadas.
Enquanto a senhorita Etienne as estudava, Mandy examinou à senhorita Etienne.
   Concluiu que não era jovem; certamente, mais de trinta anos. Tinha um rosto de facções angulosas e tez pálida e delicada, e uns olhos de íris escura, quase
negro, algo saltados e encaixados sob umas grossas pálpebras. Sobre eles, as sobrancelhas depiladas formavam um pronunciado arco. O cabelo curto, muito escovado
para
lhe dar brilho, estava penteado com raia à esquerda, e as mechas que penduravam ficavam recolhidos depois da orelha direita. As mãos que repousavam sobre o curriculum
vitae careciam de anéis, os dedos eram muito compridos e finos, as unhas não estavam pintadas.
   Sem elevar a vista, a senhorita Etienne perguntou: chama-se você Mandy ou Amanda Price?
   Mandy, senhorita Etienne.
   Em outras circunstâncias, Mandy teria famoso que, se se chamasse Amanda, o currículo o indicaria assim. trabalhou antes em uma editorial?
   Só umas três vezes nos dois últimos anos. Na terceira página do currículo aparecem os nomes de todas as empresas para as que trabalhei.
   A senhorita Etienne seguiu lendo até que ao fim elevou o olhar e seus olhos brilhantes e luminosos examinaram ao Mandy com mais interesse de que tinha demonstrado
anteriormente.
   Ao parecer foi muito bem na escola, mas após teve uma extraordinária variedade de empregos. Não permaneceu em nenhum mais de umas quantas
semanas.
   Em três anos de tentações, Mandy tinha aprendido a reconhecer e esquivar a maioria das maquinações do sexo masculino, mas quando tinha que tratar com
seu próprio sexo se sentia menos segura. Seu instinto, agudo como um dente de furão, indicava-lhe que devia dirigir à senhorita Etienne com soma cautela. Pensou:
"Em
isso consiste o trabalho interino, vacaburra. Hoje está aqui e amanhã te foste." O que disse foi:
   Por isso eu gosto do trabalho interino. Quero obter uma experiência o mais ampla possível antes de aceitar um emprego permanente. Quando o fizer, eu gostaria
conservá-lo e desenvolver meu trabalho com êxito.
   Esta declaração distava muito de ser veraz. Mandy não tinha intenção de aceitar um emprego permanente. O trabalho interino, com sua liberdade de contratos e condições
de serviço, sua variedade, o conhecimento de que não estava atada, de que inclusive a pior experiência trabalhista podia terminar na sexta-feira seguinte, convinha-lhe
à
perfeição; seus projetos, porém, apontavam em outra direção.
   Mandy estava economizando para o dia em que, com seu amiga Naomi, pudesse montar uma tiendecita no Portobello Road. Ali, Naomi criaria suas jóias, Mandy desenharia
e confeccionaria seus chapéus, e as duas alcançariam rapidamente a fama e a fortuna.
   A senhorita Etienne olhou de novo o curriculum vitae e disse com secura:
   Se sua ambição consistir em encontrar um emprego permanente e desenvolver seu trabalho com êxito, é você um caso único em sua geração.
   Devolveu-lhe o currículo com um gesto brusco e impaciente, elevou a cabeça e prosseguiu:
   Muito bem. Daremo-lhe uma prova de mecanografia. Veremos se for tão boa como assegura. No escritório da senhorita Blackett, na planta baixa, há um ordenador
livre. É onde você terá que trabalhar, assim pode fazer a prova ali mesmo. O senhor Dauntsey, nosso editor de poesia, tem uma cinta por transcrever.
Está no despachito dos arquivos. ficou em pé e acrescentou:
   iremos procurar a juntas. Convém que se faça uma idéia da distribuição da casa.
   Mandy perguntou: Poesia?
   Podia resultar difícil transcrever uma gravação. Segundo sua experiência, na poesia moderna era difícil dizer onde começavam e terminavam os versos.
   Não é poesia. O senhor Dauntsey está examinando os arquivos para fazer um relatório recomendando o que instaure terei que conservar e quais terei que destruir.
A Peverell Press leva publicando desde 1792. Nos arquivos antigos há algum material interessante e deveria catalogar-se adequadamente.
   Mandy baixou depois da senhorita Etienne a ampla escalinata curva, cruzou de novo o vestíbulo e voltou para a sala de recepção. Pelo visto foram utilizar o elevador,
que só podia agarrar-se na planta baixa. Não lhe pareceu a maneira mais apropriada de fazer uma idéia da distribuição da casa, mas o comentário tinha sido
prometedor; ao parecer, o emprego era dele, se o queria. E desde aquela primeira visão do Támesis, Mandy sabia que sim o queria.
   O elevador era pequeno apenas um metro quadrado e, enquanto as subia entre grunhidos, Mandy se sentiu muito consciente da alta e silenciosa figura cujo braço
roçava o seu. Manteve o olhar fixo no ralo do elevador, mas seu olfato percebia o perfume da senhorita Etienne, sutil e um tanto exótico, embora tão
leve que possivelmente nem sequer se tratasse de um perfume, a não ser tão somente de um sabão caro. Tudo o que envolvia à senhorita Etienne parecia caro ao Mandy:
o brilho
apagado da blusa, que só podia ser de seda; a dobro cadeia e os pendentes de ouro; e a jaqueta de ponto pendurada informalmente dos ombros, que possuía
a fina suavidade da cachemira. Mas a proximidade física de sua companheira e o mero despertar de seus sentidos, estimulados pela novidade e a excitação que lhe provocava
Innocent House, disseram-lhe algo mais: que a senhorita Etienne não se encontrava cômoda. Era ela, Mandy, a que tivesse devido estar nervosa. Em troca notava que
a atmosfera da claustrofóbica cabine, que ascendia dando sacudidas com lhe exasperem lentidão, estremecia de tensão.
   detiveram-se com um estremecimento brusco e a senhorita Etienne abriu as portas de ralo dobro. Mandy se encontrou em uma estreita hall com uma
porta diante e outra à esquerda.
   A porta de em frente estava aberta e a jovem pôde ver uma grande sala completamente cheia de estanterías metálicas, repletas de pastas e dossiês, que foram
do chão ao teto e se estendiam em fileiras das janelas até a porta, deixando apenas o sítio justo para passar entre elas. O ar cheirava a papel velho,
rançoso e mofado. Mandy seguiu à senhorita Etienne por entre os extremos das estanterías e a parede até chegar a uma porta mais pequena, esta vez fechada.
   A senhorita Etienne fez uma pausa e anunciou:
   Aqui é onde o senhor Dauntsey trabalha nos expedientes. Chamamo-lo o despachito dos arquivos. Disse que deixaria a cinta sobre a mesa.
   Ao Mandy pareceu que a explicação era desnecessária e estava mas bem desconjurado, e que a senhorita Etienne vacilava um instante com a mão sobre o pomo
antes de fazê-lo girar. Logo, com um gesto brusco, quase como se esperasse encontrar resistência, abriu a porta de par em par.
   O fedor saiu a seu encontro como um espectro maligno: o familiar aroma humano do vômito, não muito intenso, mas tão inesperado que Mandy retrocedeu instintivamente.
Olhando por cima do ombro da senhorita Etienne, abrangeu com um primeiro golpe de vista um quarto pequeno com o chão de madeira sem atapetar, uma mesa quadrada
à direita da porta e uma só janela alta. Sob a janela havia um estreito sofá cama, e sobre a cama uma mulher tendida.
   Não teria feito falta nenhum aroma para que Mandy soubesse que estava contemplando a morte.
   Não gritou nunca tinha gritado por medo nem por causa de um sobressalto, mas um punho gigante embainhado em uma luva de gelo lhe aferrou e retorceu o coração
e o
estômago de tal modo que começou a tremer com violência, como uma menina resgatada de um mar gelado. Nenhuma das duas falou, mas ambas se aproximaram da cama Mandy
pega à costas da senhorita Etienne com passos sigilosos, quase imperceptíveis.
   A mulher jazia sobre uma manta a quadros e tinha pego o travesseiro de debaixo para recostar nela a cabeça, como se até nos instantes últimos de consciência
tivesse necessitado esta última comodidade. junto à cama havia uma cadeira sobre a que descansavam uma garrafa de vinho vazia, um copo sujo e um frasco grande com
plugue de rosca. Baixo ela tinham colocado um par de sapatos de cordões de cor marrom, o um junto ao outro. Mandy pensou que possivelmente os tinha tirado porque
não queria sujar a manta. Mas a manta estava suja, ao igual ao travesseiro. Um rastro de vômito, como a baba de um caracol gigante, aderia-se à bochecha
esquerda e voltava rígida o travesseiro. A mulher tinha os olhos entreabiertos e em branco, e sua cabeleira cinza, penteada com franja, logo que estava desordenada.
Levava um pulôver marrom de pescoço alto e uma saia de tweed da que se sobressaíam, como um par de paus, duas pernas fracas extrañamente torcidas. O braço esquerdo
estava estendido para fora, quase tocando a cadeira, e o direito repousava sobre o peito.
   antes de morrer, a mão direita tinha espremido a fina lã do pulôver e tinha atirado dele para cima, deixando ao descoberto uns centímetros de camiseta.
Junto ao frasco de pílulas vazio havia um sobre quadrado com umas palavras escritas em vigorosa caligrafia negra. Quem é? sussurrou Mandy com tanta reverência
como se estivesse na igreja.
   A senhorita Etienne falou com voz serena.
   Sonia Clements. Uma editora da casa. ia trabalhar para ela?
   Mandy se deu conta de que a pergunta era irrelevante nada mais fazê-la, mas a senhorita Etienne respondeu:
   Por algum tempo, sim, mas não muito. partia a final de mês.
   Recolheu a carta como se queria sopesá-la entre as mãos. Mandy pensou: "Quereria abri-la, mas não diante de mim." Ao cabo de uns segundos, a senhorita Etienne
observou:
   Dirigida ao juiz. Resulta evidente o que ocorreu, até sem isto. Lamento que tenha sofrido este sobressalto, senhorita Price. foi uma falta de consideração
por sua parte. Se alguém quer matar-se, deveria fazê-lo em sua casa.
   Mandy pensou na ruela do Stratford East, a cozinha compartilhada, o quarto único de banho e sua reduzida habitação na parte de atrás de uma casa na
que seria ter muita sorte encontrar suficiente intimidade para tragá-las pílulas, por não falar de morrer por causa disso. obrigou-se a olhar de novo a cara
da mulher. Sentiu o impulso repentino de lhe fechar os olhos e a boca, que tinha ficado ligeiramente aberta. De modo que isso era a morte; ou, melhor dizendo, isso
era a morte antes de que os da funerária pusessem as mãos em cima. Mandy só tinha visto outra pessoa morta: sua avó, pulcramente amortalhada com
um volante em torno do pescoço, empacotada no ataúde como uma boneca em uma caixa para presente, curiosamente diminuída e com uma aparência mais sossegada do que
jamais tinha tido em vida, fechados os brilhantes e inquietos olhos, as mãos sempre laboriosos recolhimentos por fim em quietude. De súbito o pesar caiu sobre ela
em uma corrente de compaixão, liberada talvez pela comoção tardia ou pela repentina e viva memória de uma avó a que tinha querido. Ao sentir o primeiro
formigamento quente das lágrimas, não soube bem se eram pela avó ou por aquela desconhecida que jazia em tão indefesa e desajeitada postura. Mandy chorava poucas
vezes, mas quando o fazia suas lágrimas eram incontenibles. Temendo desacreditar-se, esforçou-se por recuperar a compostura e, ao olhar em redor, seus olhos se
posaram em algo familiar, nada ameaçador, algo que podia dirigir, uma garantia de que existia um mundo ordinário que seguia seu curso fora daquela cela da
morte.
   Em cima da mesa havia uma pequena grabadora.
   Mandy se aproximou e fechou a mão sobre ela como se de um ícone se tratasse. É esta a cinta? perguntou. É uma lista? Quê-la tabulada?
   A senhorita Etienne a contemplou em silencio durante uns instantes e ao fim respondeu:
   Sim, tabulada. E por duplicado. Pode utilizar o ordenador que há no despacho da senhorita Blackett.
   Naquele momento Mandy teve a certeza de que tinha conseguido o emprego.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

2
 
   Quinze minutos antes, Gerard Etienne, presidente e diretor gerente do Peverell Press, saía da sala de juntas para retornar a seu escritório da planta baixa.
de repente se deteve, retrocedeu para a sombra, com movimentos grácis como os de um gato, e ficou olhando desde detrás da balaustrada. Baixo ele, no
vestíbulo, uma moça girava lentamente com os olhos voltados para o teto. Levava umas botas negras e acampanadas por acima que lhe chegavam até a coxa,
uma saia curta e rodeada de cor parda e uma jaqueta de veludo de um vermelho apagado. Um braço fraco e delicado se mantinha elevado para sustentar em seu lugar um
insólito chapéu que parecia confeccionado em feltro vermelho. Era de asa larga, arrufaldado por diante, e estava decorado com uma extraordinária coleção de objetos:
flores, plumas, cintas de cetim e encaixe e inclusive pequenos fragmentos de vidro que, ao girar, faiscavam, rutilavam e resplandeciam. Tivesse devido apresentar
um
aspecto ridículo, com essa cara afiada e infantil semioculta baixo desordenadas mechas de cabelo escuro e coroada por tão extravagante objeto. Entretanto, resultava
encantadora. encontrou-se sonriendo, quase rendo, e de repente se apoderou dele uma loucura que não tinha experiente desde que tinha vinte e um anos: o impulso de
tornar-se a correr escada abaixo, agarrar a entre os braços e levar a dançando sobre o chão de mármore até cruzar a porta principal e chegar à borda do
cintilante rio. A moça terminou de dar a volta e seguiu à senhorita Blackett pelo vestíbulo. Ele ainda permaneceu imóvel ir instantes, saboreando este
arrebatamento de loucura que, assim o parecia, não tinha nada que ver com a sexualidade, a não ser com a necessidade de reter uma lembrança destilada da juventude,
dos
primeiros amores, das risadas, da ausência de responsabilidades, do puro deleite animal no mundo dos sentidos. Nada disso formava já parte alguma de
sua vida. Seguiu esperando sem deixar de sorrir até que o vestíbulo ficou livre e ao fim baixou pouco a pouco a seu escritório.
   Aos dez minutos se abriu a porta e reconheceu os passos de sua irmã. Sem levantar o olhar, perguntou-lhe: Quem é a garota do chapéu? O chapéu?
Por uns instantes ela pôs cara de não compreender. Logo respondeu: Ah, o chapéu! Mandy Price, da agência de colocação.
   Uma nota estranha em sua voz fez que ele se voltasse e lhe dedicasse toda sua atenção. O que passou, Claudia?
   Sonia Clements está morta. há-se suicidado. Onde?
   Aqui. No despachito dos arquivos. Encontramo-la a garota e eu. íamos procurar uma das cintas do Gabriel. A garota a encontrou? Fez uma
pausa e acrescentou: Onde está agora?
   Já lhe hei isso dito, no despachito dos arquivos. Não havemos meio doido o corpo. por que tínhamos que fazê-lo?
   Quero dizer que onde está a garota.
   Ao lado, com o Blackie, passando a cinta a máquina. Não esbanje sua compaixão. Não estava sozinha e não há sangue. Esta geração é dura. Nem sequer piscou. O
único que lhe preocupava era conseguir o emprego. Está segura de que foi suicídio?
   Naturalmente. deixou esta nota. Está aberta, mas não a tenho lido.
   Claudia lhe entregou o sobre; logo se aproximou da janela e ficou olhando ao exterior. Depois de um par de segundos, ele elevou a lapela do sobre e extraiu cuidadosamente
o papel. Leu em voz alta:
   "Lamento causar moléstias, mas me pareceu que era o melhor sítio que podia utilizar.
   Certamente será Gabriel quem me encontre e está muito familiarizado com a morte para conmocionarse. Em casa, agora que vivo sozinha, possivelmente não me houvessem
descoberto até que começasse a emprestar, e considero que se deve manter certa dignidade incluso na morte. deixei meus assuntos em ordem e lhe tenho escrito a
minha irmã. Não estou obrigada a explicar o motivo de meu ato, mas, se por acaso a alguém interessa, direi que simplesmente prefiro a extinção a seguir existindo.
É uma eleição razoável e todos temos direito a fazê-la." Logo acrescentou: Bem, está bastante claro, e de sua própria mão. Como o tem feito?
   Com pílulas e álcool. Como já hei dito, não há muita desordem. chamaste à polícia? À polícia? Ainda não tive tempo. vim direta a verte.
De verdade crie que é necessário, Gerard? O suicídio não é delito. Não poderíamos chamar simplesmente ao doutor Frobisher?
   Não sei se for necessário replicou ele com secura, mas certamente é o mais conveniente. Não queremos que haja dúvidas sobre esta morte. Dúvidas? disse ela. Dúvidas?
Que dúvidas pode haver?
   Tinha ido baixando a voz e, agora, ambos falavam quase em sussurros. De um modo quase imperceptível, afastaram-se do tabique em direção à janela.
   Falatórios, então respondeu Gerard, rumores, escândalo. Chamaremos à polícia daqui. Não há necessidade de passar pelo posto telefônico. Se a descerem no
elevador, certamente poderemos tirá-la do edifício antes de que o pessoal se inteire do ocorrido. Está George, claro. Suponho que será melhor que a polícia
entre por essa porta. Terá que lhe dizer ao George que não se vá da língua. Onde está agora a garota da agência?
   Já lhe hei isso dito. Está ao lado, no despacho do Blackie, fazendo a prova de mecanografia.
   Ou, mais provavelmente, lhe contando ao Blackie e a todos os que lhe aproximem que a levaram a procurar uma cinta e encontraram um cadáver.
   Pedi às duas que não digam nada até que o tenhamos anunciado a todo o pessoal. Gerard, se crie que pode manter isto em segredo embora só
seja durante um par de horas, tire-lhe o da cabeça. Haverá uma investigação, e isso implica publicidade. E terão que baixá-la pela escada; é impossível colocar
uma maca com um cadáver nesse elevador. Mas, Meu deus, era o único que nos faltava! depois do outro, vai ser esplêndido para a moral dos empregados.
   Houve uns instantes de silêncio durante os quais nenhum dos dois se aproximou do telefone.
   Logo ela se voltou para seu irmão e lhe perguntou:
   Em quarta-feira passada, quando a pôs na rua, como tomou?
   Não se matou porque a jogasse. Era uma mulher racional e sabia que tinha que ir-se. Devia sabê-lo desde dia em que me fiz cargo da empresa. Sempre
deixei bem claro que em minha opinião tínhamos um editor de mais, que podíamos lhe dar parte do trabalho a um colaborador externo.
   Mas tinha cinqüenta e três anos. Não lhe teria resultado fácil encontrar outro emprego. E levava vinte e quatro anos na empresa.
   A tempo parcial.
   A tempo parcial, mas trabalhando quase a jornada completa. Este lugar era sua vida.
   Claudia, isso são desvarios sentimentais. Ela tinha uma existência fora destas paredes.
   Além disso, que diabos tem isso que ver? Ou a necessitava aqui ou não a necessitava. Foi assim como o disse? Já não a necessitamos mais.
   Não fui brutal, se for isso o que insinúas. Disse-lhe que me propunha recorrer a um colaborador externo que ajudasse a editar as obras de não ficção e que, portanto,
seu posto era supérfluo. Disse-lhe que, embora legalmente não lhe correspondia a indenização máxima, procuraríamos algum acerto econômico. Um acerto? E o que disse
ela?
   Disse que não seria necessário. Que ela faria seus próprios acertos.
   E os tem feito. Por isso se vê, com analgésicos e uma garrafa de cabernet búlgaro. Bem, ao menos nos economizou algum dinheiro, mas, Por Deus, teria preferido
pagar antes que ter que nos ver as com isto. Sei que deveria compadecê-la. Suponho que o farei quando tiver superado a comoção; agora mesmo não me resulta fácil.
   Claudia, é inútil voltar de novo para essas velhas discussões. Terei que despedi-la e a despedi.
   Isso não teve nada que ver com sua morte. Fiz o que terei que fazer pelos interesses da empresa e em seu momento esteve de acordo. Nem você nem eu temos
a culpa de que se suicidara.
   Por outro lado, sua morte tampouco guarda nenhuma relação com as outras más passadas. Fez uma pausa e acrescentou: A não ser, claro, que fora ela a responsável.
   A sua irmã não passou por cima a repentina nota de esperança que soou em sua voz. Assim estava mais preocupado do que queria reconhecer. Replicou com acritud:
   Seria uma bonita solução a nossos problemas, verdade? Mas como teria podido ser ela, Gerard? Quando alteraram as provas do Stilgoe estava de desce por
enfermidade, recorda, e quando perdemos as ilustrações do livro sobre o Guy Fawkes se encontrava em Brighton visitando um autor. Não, não pôde ser ela.
   É verdade. Sim, tinha-o esquecido. Olhe, vou chamar à polícia agora mesmo e você enquanto te dá uma volta pela casa e explica o que passou. Será menos
teatral que reuni-los a todos para fazer um anúncio geral. lhes diga que permaneçam em seus escritórios até que tenham retirado o corpo.
   Há uma coisa que deveríamos ter em conta disse ela lentamente. Acredito que fui a última pessoa que a viu viva.
   Alguém tinha que ser.
   Foi ontem à noite, logo que passadas as sete. Tinha-me ficado trabalhando. Ao sair do vestíbulo do primeiro piso a vi subir a escada. Levava uma garrafa de vinho
e um copo. E não lhe perguntou o que estava fazendo?
   Claro que não. Não era uma datilógrafa jovencita. Possivelmente se dirigia com o vinho aos arquivos para tomar uns goles em segredo. E em tal caso, não era assunto
meu. Pareceu-me estranho que se ficou trabalhando até tão tarde, mas nada mais. Viu-te ela?
   Acredito que não. Não voltou a cabeça. E não havia ninguém mais por ali?
   A aquelas horas já não. Eu era a última.
   Pois não o diga a ninguém. Não tem importância. Não é um dado útil.
   Entretanto, deu-me a sensação de que atuava de um modo estranho. Tinha um ar, não sei, furtivo. Quase se escapulia.
   Isso lhe parece isso agora. Não jogou uma olhada ao edifício antes de fechar?
   Olhei em seu escritório. A luz estava apagada. Não havia nada dele, nem o casaco nem a bolsa.
   Suponho que deveu guardá-los no armário. Naturalmente, pensei que já se partiu a casa.
   Pode declarar isso no interrogatório, mas nada mais. Não diga que a viu antes. Só serviria para que lhe perguntassem por que não subiu a olhar também
vamos. por que tinha que subir?
   Exatamente.
   Mas, Gerard, se me perguntarem quando a vi por última vez...
   Então, minta. Mas, pelo amor de Deus, Claudia, minta de um modo convincente e não incorra em nenhuma contradição. aproximou-se do escritório e desprendeu
o auricular. Vale mais que chame o 999. É curioso; que eu recorde, é a primeira vez que a polícia vem ao Innocent House.
   Ela apartou a vista da janela e o olhou de marco em marco.
   Esperemos que seja a última.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

3
 
   No despacho exterior, Mandy e a senhorita Blackett estavam sentadas cada uma ante seu ordenador, teclando e com os olhos fixos na tela. Nenhuma das
dois falava. Ao princípio os dedos do Mandy se negaram a trabalhar e tremiam incertos sobre as teclas, como se as letras estivessem inexplicavelmente
transpostas e o teclado inteiro se converteu em um matagal de signos sem sentido. Mas apertou com força as mãos sobre o regaço por espaço de médio
minuto e, fazendo um esforço, conseguiu dominar o tremor. Quando começou a escrever, impôs-se sua habitual perícia e tudo foi bem. de vez em quando dirigia tina
fugaz olhar de soslaio à senhorita Blackett. Era evidente que a mulher estava profundamente afetada. Sua cara, grande, com bochechas de marsupial e uma boca pequena
que expressava certa obstinação, estava tão branca que Mandy temia que a mulher caísse deprimida sobre o teclado em qualquer momento.
   Fazia mais de meia hora que a senhorita Etienne e seu irmão se partiram. Aos dez minutos de fechar a porta, a senhorita Etienne tinha aparecido a
cabeça para lhes anunciar:
   Pedi-lhe à senhora Demery que traga chá. foi uma comoção para as duas.
   O chá chegou aos poucos minutos, servido por uma ruiva com um avental de flores que depositou a bandeja sobre um arquivo enquanto comentava:
   supõe-se que não devo falar, assim não falarei. Mas não passará nada se lhes disser que a polícia acaba de chegar. Isso sim que é trabalhar rápido. Seguro que
agora
quererão chá.
   E desapareceu imediatamente, como movimento pelo convencimento de que era mais emocionante o que ocorria fora da habitação que dentro dela.
   O despacho da senhorita Blackett era uma habitação desproporcionada, muito estreita para sua altura, e esta discordância ficava sublinhada por uma esplêndida
chaminé de mármore com um friso de desenho convencional e um pesada suporte sustentado pelas cabeças de duas esfinges. O tabique, de madeira até um metro do chão
e com painéis de vidro por cima, cortava pela metade uma das estreitas janelas em arco e bisecaba também um adorno do céu raso em forma de losange. Mandy
pensou que, se realmente era necessário dividir a sala grande, teriam podido fazê-lo com mais respeito para a arquitetura, por não falar da comodidade da senhorita
Blackett. Tal como estava, dava a impressão de que lhe regulava inclusive o espaço suficiente para trabalhar.
   Outra curiosidade, embora de uma ordem distinta, era a larga serpente de veludo a raias verdes, enroscada entre as asas das duas gavetas superioras dos
arquivos de aço. Uma minúscula cartola coroava os brilhantes botões que tinha por olhos, e uma língua bífida de flanela vermelha pendurava da branda
boca aberta, forrada do que parecia ser seda rosa. Mandy tinha visto já outras serpentes similares; sua avó tinha uma. Serviam para as pôr ao pé da porta
a fim de evitar correntes de ar ou para as enrolar em torno do pomo e assim manter a porta entreabrida. Mas se tratava de um objeto ridículo, uma espécie de
brinquedo infantil; certamente, não era algo que tivesse esperado ver no Innocent House. Lhe teria gostado de interrogar à senhorita Blackett a respeito, mas a senhorita
Etienne lhes havia dito que não falassem e estava claro que a senhorita Blackett interpretava que esta proibição era aplicável a toda conversação que não fosse
de trabalho.
   Transcorreram os minutos em silêncio. Quando Mandy estava a ponto de chegar ao final da cinta, a senhorita Blackett elevou o olhar.
   Já pode deixar isso. vou ditar lhe algo. A senhorita Etienne me pediu que lhe faça uma prova de taquigrafia.
   Tirou um catálogo da empresa da gaveta de seu escritório, entregou um caderno de notas ao Mandy, aproximou a cadeira e começou a ler em voz baixa sem mover apenas
os lábios quase exangues. Os dedos do Mandy riscaram automaticamente os familiares hieróglifos, mas sua mente reteve alguns dados sobre a lista de obras de
não ficção de próxima aparição. de vez em quando à senhorita Blackett falhava a voz, por isso Mandy se deu conta de que também ela estava escutando
os sons do exterior. Depois do sinistro silêncio inicial tinham começado para ouvir-se passos, sussurros médio imaginados e, logo, pisadas mais fortes que ressonavam
sobre o mármore e vozes masculinas cheias de segurança.
   A senhorita Blackett, com os olhos cravados na porta, falou com voz carente de expressão.
   E agora, me quereria ler isso    Mandy leyó en voz alta las notas taquigráficas sin cometer ningún error. Hubo otro silencio. Por fin se abrió la puerta y entró
la señorita Etienne.
   Mandy leu em voz alta as notas taquigráficas sem cometer nenhum engano. Houve outro silêncio. Por fim se abriu a porta e entrou a senhorita Etienne.
   chegou a polícia lhes anunciou. Agora estão esperando ao médico e logo se levarão a senhorita Clements. Será melhor que não saiam daqui até que se hajam
partido. Olhou à senhorita Blackett. terminou a prova?
   Sim, senhorita Claudia.
   Mandy lhe entregou as listas datilografadas. A senhorita Etienne as olhou por cima e disse:
   Muito bem, o posto é dele se lhe interessar. Pode começar amanhã às nove e meia.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

4
 
   Dez dias depois do suicídio da Sonia Clements e exatamente três semanas antes do primeiro dos assassinatos que se perpetraram no Innocent House, Adam Dalgliesh
almoçava com o Conrad Ackroyd no Clube Cadáver. O convite havia partido do último e foi transmitida por telefone com esse ar um tanto sinistro de conspirador
que envolvia tudo os convites do Conrad.
   Tratando-se dele, inclusive um jantar de compromisso oferecida em cumprimento de relevantes obrigações sociais prometia mistérios, cabalas, secretos para divulgar
entre os escassos privilegiados. A data proposta não se adaptava muito bem às conveniências do Dalgliesh, quem modificou sua agenda com certa relutância
enquanto refletia que uma das desvantagens de entrar em anos era a crescente aversão aos compromissos sociais, combinada com a incapacidade de reunir o
engenho ou a energia suficientes para esquivá-los. A amizade existente entre eles supunha que essa era a palavra adequada; certamente, não eram meros conhecidos
fundava-se no uso que cada um fazia ocasionalmente do outro. Posto que os dois o reconheciam assim, nenhum considerava que o fato requeresse justificação
nem desculpa. Conrad, um dos fofoqueiros mais notórios e confiáveis de Londres, tinha-lhe resultado útil com freqüência, sobre tudo no caso Berowne.
   Esta vez era evidente que correspondia ao Dalgliesh emprestar o serviço, embora a petição, em qualquer forma que se apresentasse, certamente seria mais molesta
que onerosa: a comida do Cadáver era excelente e Ackroyd, embora estava acostumado a fazer o palhaço, poucas vezes aborrecia a seus acompanhantes.
   Mais tarde chegaria a lhe parecer que todos os horrores que seguiram emanavam daquele almoço absolutamente ordinário e se surpreenderia pensando: "Se isto fosse
ficção e eu fora novelista, aí é onde começaria tudo."
   O Clube Cadáver não se contava entre os clubes privados mais prestigiosos de Londres, mas seu círculo de membros o considerava um dos mais úteis. Construído
a começos do século XIX , em sua origem tinha sido a residência de um advogado rico, embora sem especial renome, quem em 1892 legou o edifício, com a adequada
dotação, a um clube privado baseado uns cinco anos antes, que se reunia regularmente em seu salão. O clube era e seguia sendo estritamente masculino, e o principal
requisito para ingressar nele consistia em possuir um interesse profissional pelo assassinato. Agora, como então, figuravam entre seus membros uns quantos oficiais
superiores da polícia já retirados, advogados em ativo e aposentados, quase todos os criminologistas profissionais e aficionados mais prestigiosos, jornalistas de
sucessos
e alguns destacados autores especializados em novela de mistério, todos varões e admitidos por condescendência, posto que o clube era da opinião que, pelo
que ao assassinato se refere, a ficção não pode competir com a vida real. Pouco antes, o clube tinha estado a ponto de passar da categoria de excêntrico à
mais perigosa de clube de moda, um risco que o comitê se apressou a rebater dando bola negra às seis solicitudes seguintes de ingresso. A mensagem
foi recebido. Como se queixava um mal-humorado aspirante, ser rechaçado pelo Garrick resultava embaraçoso, mas sê-lo pelo Cadáver era ridículo. assim, o clube
conservava seu caráter reduzido e, segundo seus excêntricos critérios, seleto.
   Enquanto cruzava Tavistock Square sob a suave luz de setembro, Dalgliesh se perguntou o que avalizava ao Ackroyd para ser membro do clube. de repente recordou
o
livro que seu anfitrião tinha escrito cinco anos antes a propósito de três assassinos célebres: Hawley Harvey Crippen, Norman Thorne e Patrick Mahon. Ackroyd lhe
havia
remetido um exemplar assinado e, ao lê-lo atentamente Dalgliesh, tinha ficado surpreso pela cuidadosa investigação e o ainda mais cuidadoso estilo.
   Ackroyd defendia a tese, não totalmente original, de que os três eram inocentes no sentido de que nenhum tinha pretendido matar a sua vítima, e apresentava
uma argumentação verossímil, já que não de tudo convincente, apoiada em um minucioso exame das provas médicas e forenses. Para o Dalgliesh, a mensagem principal
do livro era que quem desejasse ser absolvidos de assassinato fariam bem em abster-se de esquartejar à vítima, uma prática para a qual os jurados ingleses
mostravam sua repugnância desde fazia muito tempo.
   Tinham ficado na biblioteca para tomar um xerez antes do almoço e Ackroyd já estava ali lhe esperando, acomodado em uma das poltronas de pele. Ao ver
ao Dalgliesh, incorporou-se com uma agilidade surpreendente em alguém de seu tamanho e se aproximou dele dando passos curtos e quase saltitantes, sem aparentar nem
um dia mais
que quando se viram pela primeira vez.
   Me alegro de que tenha podido me dedicar este momento, Adam; já sei quão ocupado está agora.
   Assessor especial do comissionado, membro do grupo de trabalho sobre as brigadas regionais contra o crime e alguma que outra investigação de assassinato para
não perder o costume. Não deve permitir que lhe curvem de trabalho, moço. vou pedir o xerez. Tinha pensado em te convidar a meu outro clube, mas já sabe o
que acontece. Almoçar ali é uma boa maneira de lhe recordar às pessoas que ainda segue vivo, mas todos os membros se aproximam para te felicitar por isso. Comeremos
abaixo, no reservado.
   Ackroyd se tinha casado a uma idade mas bem amadurecida, para assombro e consternação de seus amigos, e vivia em um estado de auto-suficiência conjugal em uma
amena
vila de estilo eduardiano situada no St. John's Wood, onde Nelly Ackroyd e ele se dedicavam à casa e ao jardim, a seus dois gatos siameses e aos achaques em
grande medida imaginários do Ackroyd. O homem possuía, dirigia e financiava com uma cuantiosa rende particular The Paternoster Review, uma mescla iconoclasta de
artigos
literários, críticas e falatórios, estas últimas cuidadosamente investigadas e algumas vezes discretas, embora mais freqüentemente tão maliciosas como certas. Nelly,
além de atender a hipocondria de seu marido, dedicava-se a colecionar com entusiasmo relatos escolar para garotas escritos nos anos vinte e trinta. Seu matrimônio
era um êxito, embora os amigos do Conrad ainda tinham que fazer um esforço para lembrar-se de perguntar pela saúde do Nelly antes de interessar-se pelos gatos.
   A última vez que Dalgliesh tinha estado na biblioteca do clube, sua visita tinha sido profissional e tinha por objeto solicitar informação. Naquela ocasião
tratava-se de um caso de assassinato e o tinha recebido outro anfitrião. Entretanto, não parecia ter trocado grande coisa. A sala, orientada ao sul, dava à praça,
e esta manhã a esquentava um sol que, ao filtrar-se através das finas cortinas brancas, fazia que o minguado fogo resultasse quase desnecessário. Em um princípio
salão de receber, agora fazia as vezes de sala de estar e biblioteca. As paredes estavam cobertas por vitrines de mogno que continham a que provavelmente era
a biblioteca particular de livros sobre o crime mais completa de Londres, com todos os volúmenes das séries Julgamentos britânicos notáveis e Julgamentos famosos,
assim como livros de jurisprudência médica, criminologia e patologia forense, além de algumas primeiras edições do Conan Doyle, Poe, O Fanu e Wilkie Collins, alojadas
em uma vitrine distinta para demonstrar a inata inferioridade da ficção em relação à realidade. A grande vitrine de mogno seguia em seu lugar, cheia de objetos
adquiridos ou doados ao longo dos anos, entre eles o livro de orações de Constance Kent com sua assinatura na guarda, a pistola de faísca que supostamente
utilizou o reverendo James Hackman para assassinar a Margaret Wray, amante do conde do Sandwich, e uma ampola cheia de pós brancos arsênico conforme se dizia, achada
em posse do maior Herbert Armstrong. acrescentou-se uma nova aquisição da última visita do Dalgliesh. Jazia enroscada no lugar de honra, sinistra
como uma serpente letal, sob um rótulo que anunciava que aquela era a soga com que se enforcou ao Crippen. Enquanto se voltava para sair da biblioteca
seguindo ao Ackroyd, Dalgliesh comentou apaciblemente que a exibição pública desse objeto bárbaro era de mau gosto, objeção que Ackroyd repudiou de um modo igualmente
aprazível.
   um pouco morboso, possivelmente, mas chamá-lo bárbaro é ir muito longe. depois de tudo, isto não é o Ateneu. Provavelmente é bom que a alguns dos membros
mais antigos lhes recorde o fim natural de suas anteriores atividades profissionais. Seguiria sendo polícia se não tivéssemos abolido a execução mediante
a forca?
   Não sei. Por isso a mim respeita, a abolição não afeta a este dilema moral em particular, posto que eu preferiria a morte a vinte anos de cárcere.
   Mas não a morte por enforcamento, verdade?
   Não, isso não.
   Para ele, e suspeitava que para a maioria da gente, o enforcamento tinha encerrado sempre um horror especial. Apesar dos informe das diversas Reais
Comissione sobre a pena capital, que lhe atribuíam humanidade, rapidez e a certeza de uma morte foto instantânea, em sua opinião seguia sendo uma das formas mais
desagradáveis
de execução judicial, característica posta de relevo por horripilantes imagens riscadas com tanta precisão como se de um desenho a plumilla se tratasse: as acumulações
de vítimas depois do passo de exércitos triunfantes; as vítimas patéticas e meio dementes da justiça do século XVII ; os rufos de tambor no fortaleza de
os navios, onde a armada cumpria sua vingança e emitia suas advertências; as mulheres do século XVIII condenadas por infanticídio; aquele ritual ridículo mas sinistro
do cuadradito negro colocado sobre a peruca do juiz; a porta dissimulada mas, pelo resto, ordinária que conduzia da cela do réu a esse último e breve
passeio. Estava bem que todo isso tivesse passado à história. Por uns instantes, o Clube Cadáver lhe desejou muito um lugar menos agradável para almoçar, e suas
excentricidades
mais repugnantes que divertidas.
   O reservado do Clube Cadáver era um lugar confortável, situado em uma pequena habitação da planta baixa, na parte traseira da casa, com duas janelas
e uma porta janela que davam a um estreito pátio pavimentado, ao qual delimitava um muro de três metros coberto de hera. O pátio podia alojar três mesas com
comodidade, mas os membros do clube não eram aficionados a comer ao ar livre, nem sequer nos incomuns dias calorosos do verão inglês; ao parecer, isso
devia-se a uma atávica excentricidade, segundo a qual dito costume se considerava incompatível com a adequada apreciação da comida ou com a intimidade indispensável
para a boa conversação.
   Para dissuadir a qualquer membro que pudesse sentir-se tentado de sucumbir a tal capricho, no pátio havia vasos de barro de diversos tamanhos com gerânios e heras
que deixavam pouco espaço livre, que ainda ficava mais restringido pela presença de uma enorme copia em pedra do Apolo do Belvedere apoiada em um rincão da
parede, presente, segundo se rumoreaba, de um dos antigos membros do clube cuja esposa a tinha banido de seu jardim suburbano. Os gerânios ainda estavam
em plena flor, e seus vistosos vermelhos e rosados resplandeciam através do cristal, realçando a primeira impressão de acolhedora domesticidade. Era patente que
em outro
tempo a habitação tinha sido uma cozinha, pois ainda seguia instalado contra uma parede o fogão de ferro original, seus fornos e barrotes agora brunidos até parecer
de ébano. Da viga enegrecida que havia sobre ele pendiam utensílios de ferro e uma fileira de tachos de cobre, amolgados mas resplandecentes. Um aparador de carvalho,
que ocupava toda a longitude da parede oposta, servia de receptáculo para a exibição daqueles presentes e legados dos membros que se julgavam impróprios
ou indignos da vitrine da biblioteca.
   Dalgliesh recordou que no clube regia uma lei não escrita, segundo a qual nenhuma oferenda de um membro, por inadequada ou extravagante que fosse, devia ser rechaçada,
e o aparador, ao igual a toda a habitação, emprestava testemunho dos peculiares gostos e afeições dos doadores.
   Delicadas bandejas do Meissen estavam colocadas, de forma farto incongruente, junto a lembranças Vitorianas decoradas com cintas e vistas de Brighton e Southend-on-Seja.
Uma jarra que parecia um troféu de feira se achava entre uma porcelana vitoriana do Staffordshire sem dúvida alguma original que representava ao Wesley pregando
do púlpito e um magnífico busto do duque do Wellington em mármore de Paradas. Um sortido de jarras comemorativas da coroação e taças antigas do Staffordshire
pendia em precária desordem dos ganchos. Ao lado da porta havia uma pintura sobre cristal que representava o enterro da princesa Carlota; sobre ela,
uma cabeça de alce dissecada, com um velho o Panamá encasquetado no corno esquerdo, contemplava com olhos frágeis e lúgubre desaprovação uma lâmina grande e
truculenta que reproduzia a carga da Brigada Ligeira.
   A cozinha atual não ficava muito longe; Dalgliesh alcançava para ouvir agradáveis tinidos e, de vez em quando, o golpe surdo do elevador de carga da comida ao
baixar
do comilão do primeiro piso.
   Só estava posta uma das quatro mesas, com uma toalha imaculada, e Dalgliesh e Ackroyd tomaram assento junto à janela.
   O menu e a carta de vinhos estavam colocados à direita do lugar que tinha ocupado Ackroyd.
   Enquanto os agarrava, este comentou:
   Os Plant se retiraram, mas agora temos aos Jackson e não sei se a cozinha da senhora Jackson é melhor ainda. Foi uma sorte que os encontrássemos. Ela
e seu marido levavam uma residência para anciões, mas se cansaram do campo e quiseram voltar para Londres. Não precisam trabalhar, mas acredito que este emprego
os
gosta. Mantêm a política de oferecer um menu único cada dia tanto para o almoço como para o jantar. Muito sensato. Hoje, salada de feijões brancos com atum,
seguida de costillar de cordeiro com verduras frescas e salada verde. Logo há o bolo de limão e queijo. As verduras serão frescas, seguro. Ainda as recebemos
da granja do jovem Plant, e também os ovos. Quer ver a carta de vinhos? Tem alguma preferência?
   Deixo-o em suas mãos.
   Ackroyd refletiu em voz alta enquanto Dalgliesh, a quem adorava o vinho mas lhe desgostava falar dele, percorria com um apreciativo olhar aquela desordem
de habitação que, apesar de seu ambiente de caos excêntrico mas organizado ou possivelmente por causa dele, produzia uma sensação de surpreendente quietude. Os discordantes
objetos, colocados sem ânimo de produzir determinado efeito, tinham alcançado com o passado do tempo certa justeza de lugar. Depois de uma prolixa dissertação sobre
os méritos da carta de vinhos, em que ficava claro que Ackroyd não esperava nenhuma contribuição de seu convidado, aquele se decidiu por um Chardonnay. A senhora
Jackson, Aparecida como em resposta a um sinal secreto, trouxe consigo um aroma de pãozinhos quentes e um ar de laboriosa confiança.
   É um prazer conhecê-lo, comandante. Hoje tem todo o reservado para você, senhor Ackroyd. O senhor Jackson se ocupará do vinho.
   Uma vez servido o primeiro prato, Dalgliesh perguntou: por que a senhora Jackson vai vestida de enfermeira?
   Porque o é, suponho. Antes era enfermeira chefe. Também é parteira, conforme acredito, mas isso aqui não nos faz falta.
   "Naturalmente", pensou Dalgliesh, posto que o clube não admitia a mulheres.
   E essa touca escarolada com cintas, não é um pouco excessiva?
   Ah, você crie? Suponho que já nos acostumamos a vê-la. Duvido que agora os membros se sentissem cômodos se a senhora Jackson deixasse de levá-la.
   Ackroyd abordou o objeto da reunião sem perda de tempo. Assim que se acharam a sós, contou-lhe:
   A semana passada estive falando com lorde Stilgoe no Brooks. É tio de minha esposa, entre parêntese. Conhece-o?
   Não. Acreditava que tinha morrido.
   Não sei de onde tiraste essa idéia. Atacou a salada de feijões com ar irritado e Dalgliesh recordou que lhe incomodava qualquer insinuação de que alguém que
ele conhecia pessoalmente pudesse chegar a morrer, e muito menos sem que ele se inteirou. Nem sequer é tão velho como parece; ainda não cumpriu os oitenta
anos. E se mantém notavelmente ativo para sua idade. De fato, está preparando suas memórias. Publicará-as a Peverell Press na próxima primavera. Por isso queria
falar comigo. ocorreu algo mas bem inquietante. Ao menos sua esposa o encontra inquietante. Ela acredita que o ameaçaram que morte. E é certo?
   Bem, recebeu isto.
   Levou-lhe algum tempo tirar da carteira um pequeno retângulo de papel e entregar-lhe ao Dalgliesh. A mensagem estava pulcramente escrito com um ordenador e
não ia assinado.
   "Seriamente lhe parece prudente publicar na Peverell Press? Lembre-se do Marcus Seabright, Joan Petrie e agora Sonia Clements. Dois autores e sua própria editora
mortos em menos de doze meses. Quer você ser o quarto?"
   Mais malintencionado que ameaçador, diria eu comentou Dalgliesh, e a má intenção se dirige mais contra quão editorial contra Stilgoe. Não cabe dúvida de que
a morte da Sonia Clements foi um suicídio. Deixou uma nota para o juiz e lhe escreveu uma carta a sua irmã lhe anunciando que ia matar se. Das outras duas mortes
não recordo nada.
   OH, estão bastante claras, acredito eu. Seabright tinha mais de oitenta anos e o coração delicado.
   Morreu a conseqüência de uma crise de gastroenteritis que lhe provocou um ataque ao coração. De todos os modos, não foi uma grande perda para a Peverell Press.
Fazia
dez anos que não escrevia uma novela.
   Joan Petrie se matou com o carro quando ia a sua casa de campo. Morte acidental. Petrie tinha duas paixões: o uísque e os automóveis rápidos. O único surpreendente
é que se matasse ela antes de matar a alguém mais. Evidentemente, o autor do anônimo acrescentou estas duas mortes para dar peso à mensagem. Mas Dorothy Stilgoe
é
supersticiosa. Tal como ela o vê, que necessidade tem que publicar na Peverell Press, havendo outros editores? Quem está à frente da empresa nestes momentos?
   Agora, Gerard Etienne. E muito à frente. O anterior presidente e diretor gerente, o velho Henry Peverell, morreu a princípios de janeiro e deixou todas suas ações
a sua filha Frances e ao Gerard, em partes iguais. Seu sócio original, Jean-Philippe Etienne, retirou-se fazia coisa de um ano, e já ia sendo hora de que o
fizesse. Suas ações também passaram ao Gerard. Os dois anciões dirigiam a editorial como se fora uma afeição. O velho Peverell sempre havia sustenido a opinião
de que os cavalheiros herdam o dinheiro, não ganham. Jean-Philippe Etienne não participava de forma ativa na empresa desde fazia anos. Teve seu momento de glória
durante a última guerra, já que se converteu em um herói da Resistência na França do Vichy, mas não acredito que fizesse nada memorável após. Gerard
esperava entre bastidores, como o príncipe herdeiro. Agora se encontra no centro do cenário e é provável que logo vejamos ação, se é que não se desencadeia
um melodrama. E Gabriel Dauntsey? Ainda dirige a coleção de poesia?
   Surpreende-me que tenha que me perguntar isso Adam. Não deve permitir que sua paixão por capturar assassinos te faça perder o contato com a vida real. Sim, ainda
dirige-a, embora não tem escrito nenhum poema há mais de vinte anos. Dauntsey é um poeta de antologias. Seus melhores obra são tão boas que não deixam de
aparecer em um sítio ou outro, mas imagino que a maioria dos leitores deve lhe acreditar morto. Pilotou um bombardeiro na última guerra, assim deve ter
mais de setenta anos. Já é hora de que se retire. Hoje em dia, quão único faz é dirigir a coleção de poesia da Peverell Press. Os três sócios restantes
são Claudia Etienne, a irmã do Gerard, James do Witt, que esteve na casa desde que saiu de Oxford, e Frances Peverell, a última dos Peverell. Mas
é Gerard quem dirige a empresa. Sabe quais são seus projetos?
   Se rumorea que quer vender Innocent House e transladar-se ao Docklands. Ao Frances Peverell não gostará de nada. Os Peverell sempre tiveram certa obsessão
pelo Innocent House. Agora pertence à empresa, não à família, mas todos os Peverell a consideraram sempre seu lar.
   Gerard já tem feita algumas mudanças e se despedido de parte do pessoal, como Sonia Clements, é obvio. E tem razão, certamente; deve adaptar a empresa a
as necessidades do século XX se não querer ver como se afunda. Mas o certo é que se criou inimigos. Resulta significativo que na editorial não houvesse nenhum
problema até que Gerard se fez cargo dela. Essa coincidência não passou por cima ao Stilgoe, embora sua esposa segue convencida de que a malevolência se
dirige contra seu marido pessoalmente, não contra a empresa, e contra suas memórias em particular. Perderá muito a Peverell se se retirar o livro?
   Não grande coisa, imagino. É obvio, promocionarán as memórias como se suas revelações pudessem fazer cair ao Governo, desacreditar à oposição e acabar
com a democracia parlamentaria tal como agora se conhece, mas suponho que, como a maior parte das memórias políticas, prometerão mais do que darão. Entretanto,
não acredito que seja possível as retirar. O livro está em produção e não o soltarão pelas boas. Quanto ao Stilgoe, não quererá rescindir o contrato se isso o
obriga a explicar publicamente por que o faz. O que Dorothy Stilgoe quer saber é se Sonia Clements realmente se suicidó e se não se manipulou o Jaguar
do Petrie.
   Acredito que está disposta a admitir que o velho Seabright faleceu de morte natural. E o que se espera de mim?
   Sem dúvida houve uma pesquisa judicial nos dois últimos casos e é de supor que a polícia realizou uma investigação. Sua gente poderia lhes jogar uma olhada aos
papéis, falar com os oficiais que levaram os casos e esse tipo de coisas. Logo, se lhe pudesse assegurar ao Dorothy que um alto cargo da polícia metropolitana
examinou a evidência e a dá por boa, possivelmente deixasse tranqüilos a seu marido e a Peverell Press.
   Isso possivelmente serviria para convencer a de que a morte da Sonia Clements foi um suicídio objetou Dalgliesh, mas se for supersticiosa não acredito que se
dê por satisfeita.
A verdade, não sei o que faria falta para satisfazê-la. A essência da superstição é que não atende a razões. Provavelmente adote a postura de que um editor azarado
é tão mau como um editor assassino. Não pretenderá sugerir a sério que alguém da Peverell Press jogou um veneno não identificável no vinho da Sonia Clements,
verdade?
   Não, não acredito que chegue a esse extremo.
   Mais vale que seja assim; do contrário, os benefícios de seu marido os comerá um pleito por difamação. Surpreende-me que lorde Stilgoe não se dirigiu ao
comissionado ou a mim diretamente. Surpreende-te? Eu acredito entendê-lo. Teria parecido, bom, digamos que um pouco pacato, excessivamente preocupado. Além disso,
ele não
conhece-te e eu em troca sim. É compreensível que tenha querido falar comigo antes. E naturalmente, não cabe imaginar-lhe na delegacia de polícia local, fazendo
fila entre
donos de cães perdidos, algemas maltratadas e condutores afligidos para lhe expor seu problema ao sargento de guarda. Francamente, parece-me que não crie
que tomassem a sério. A seu modo de ver, a inquietação de sua esposa e o próprio anônimo são razões suficientes para lhe pedir à polícia que jogue uma olhada a
o que está ocorrendo na Peverell Press.
   Chegou o cordeiro, rosado, suculento e tão tenro que podia comer-se com colher. Nos minutos de silêncio que Ackroyd considerava tributo necessário a uma comida
perfeitamente preparada, Dalgliesh rememorou sua primeira visão do Innocent House.
   Seu pai o tinha levado a Londres para celebrar que fazia oito anos; foram estar dois dias inteiros visitando a cidade e ficariam a passar a noite com
um amigo que era pároco no Kensington e sua esposa. Recordava a noite anterior, deitado na cama sem poder dormir, quase doente de excitação, a imensidão
cavernosa e o clamor da antiga estação da rua Liverpool, o terror de perder a seu pai, de ver-se engolido e miserável pelo exército de transeuntes
de rosto cinzento. Durante aqueles dois dias nos que seu pai pretendia combinar o prazer com a educação, pois para sua mentalidade acadêmica ambas as coisas
eram indistinguíveis, tentaram era acaso inevitável fazer muitas coisas. A visita tinha resultado entristecedora para um menino de oito anos e lhe tinha deixado
um
lembrança confusa do Iglesias e museus, de restaurantes e comidas estranhas, de torres iluminadas com focos e do cambiante reflexo da luz sobre a superfície negra
e enrugada da água, de grácis cavalos cabrioleantes e de cascos dourados, da fascinação e o terror provocados pela história feita patente em pedra e tijolo.
Mas Londres o apanhou com um feitiço que nenhuma experiência adulta, nenhuma exploração de outras grandes urbes tinha conseguido romper.
   Foi o segundo dia, no que visitaram a catedral de São Pablo e depois tomaram um vapor fluvial no mole da Charing Cross para ir a Greenwich, quando
viu pela primeira vez Innocent House, lhe rutilem sob o sol da manhã, como uma miragem dourada que se elevasse sobre o rielar da água. Seu pai lhe explicou que
o nome provinha do Innocent Walk, que ficava ao outro lado da casa e em cujo extremo tinha existido um tribunal de magistrados a começos do século XVIII
. Os acusados para quem se decretava ingresso na prisão depois da primeira audiência eram conduzidos ao cárcere do Fleet; os mais afortunados percorriam por seu
próprio pé aquele caminho pavimentado que conduzia à liberdade. Logo começou a lhe contar algo sobre os detalhes arquitetônicos da mansão, mas sua voz ficou
apagada pelo ressonante comentário do guia, o bastante forte para ser ouvido desde todas as embarcações do rio.
   E aqui, a nossa esquerda, senhoras e cavalheiros, vão ver vocês um dos edifícios mais interessantes do Támesis: Innocent House, construída em 1830 para
sir Francis Peverell, um destacado editor da época. Sir Francis fez uma viagem a Veneza de que retornou muito impressionado pela CA' d'Ouro, a Casa de Ouro do
Grande Canal. Quem tenha ido de férias a Veneza certamente a terão visto. Assim teve a idéia de encarregar a construção de uma casa de ouro no Támesis.
Lástima que não pudesse importar o clima veneziano. Fez uma breve pausa para deixar passo às risadas de rigor. Na atualidade é sede de uma empresa editorial,
a Peverell Press, de modo que ainda segue em poder da família. conta-se uma história interessante sobre o Innocent House.
   Pelo visto, sir Francis estava tão absorto com a casa que tinha descuidada a seu jovem algema, cujo dinheiro lhe tinha ajudado a construi-la, assim que ela se
atirou
do balcão mais alto e morreu no ato. Segundo a lenda, ainda pode ver-se no mármore uma mancha de sangue que não se tira com nada. diz-se que, na
velhice, sir Francis se voltou louco de remorso e saía sozinho de noite para limpar a mancha delatora. É seu fantasma o que alguns asseguram ter visto esfregando
a mancha sem descanso. Há barqueiros que preferem não navegar muito perto do Innocent House depois de que tenha escurecido.
   Todos os olhos da coberta se tornaram docilmente para a casa, mas agora os passageiros, interessados por aquela história de sangue, aproximaram-se de
o corrimão, e houve murmúrio de vozes e estirar de pescoço, como se a mancha legendária ainda resultasse visível. A imaginação em excesso vivida do pequeno Adam
representou a uma mulher vestida de branco, a cabeleira loira ao vento, jogando-se do balcão como a heroína enlouquecida de alguma novela; continuando
ouviu o golpe surdo e definitivo e viu o hilillo de sangue que se estendia sobre o mármore para derramar-se gota a gota no Támesis. Durante muitos anos a casa,
com seu potente amalgama de beleza e terror, continuou exercendo uma grande fascinação sobre ele.
   O guia se equivocou em um detalhe; talvez a história do suicídio também fora inventada ou estivesse devidamente adornada, mas agora Dalgliesh sabia
que sir Francis tinha ficado cativado, não pela CA' d'Ouro, que face à minuciosidad de suas magníficas talhas e tracerías lhe tinha parecido, ou assim o tinha expresso
em uma carta a seu arquiteto, muito assimétrica para seu gosto, mas sim pelo palácio do Dux Francesco Foscari. De modo que o edifício que seu arquiteto havia
recebido instruções de construir à beira daquela corrente fria e de poderosas marés era CA' Foscari. Tivesse devido resultar incongruente, uma loucura,
inconfundiblemente veneziana e, se por acaso fora pouco, veneziana de mediados do século XV . Não obstante, dava a impressão de que nenhuma outra cidade, nenhuma
outra localização
teria podido lhe convir. Ao Dalgliesh ainda custava compreender como tinha conseguido ter tanto êxito aquele empréstimo descarado de outra era, de outro país, de
um clima
mais suave e mais quente. trocaram-se as proporções e, sem dúvida, esse solo feito teria devido converter o sonho de sir Francis em uma presunção irreal;
entretanto, a redução da escala se executou de um modo brilhante que conseguia manter a dignidade do original. Depois dos balcões exquisitamente esculpidos
dos dois primeiros pisos havia seis grandes janelas centrais em arco em lugar de oito, mas as colunas de mármore com volutas decoradas eram cópia quase exata
do palácio veneziano e os arcos centrais, aqui como ali, tinham o contrapeso de altas e singelas janelas que conferiam à fachada unidade e elegância. Ante
a grande porta curva se abria um pátio de mármore que conduzia a um embarcadero, com uns degraus que baixavam até o rio. A ambos os lados do edifício, caminhos casa
urbanas de uso Regência em obra vista e com pequenos balcões, certamente construídas para alojamento de choferes ou outros membros do serviço, elevavam-se
como humildes sentinelas da magnificência central. Desde aquela celebração de seu oitavo aniversário havia tornado a vê-la muitas vezes do rio, mas nunca
tinha entrado nela. Recordou ter lido que havia um esplêndido teto do Wyatt no vestíbulo principal e pensou que não lhe desgostaria vê-lo. Seria uma lástima
que Innocent House caísse em mãos de filisteus. E o que está ocorrendo exatamente na Peverell Press? perguntou. O que inquieta a lorde Stilgoe além da
nota anônima?
   Assim ouviste os rumores. É difícil dizê-lo. mostram-se bastante evasivos a respeito e não o reprovo. Mas houve um par de pequenos incidentes
que são de domínio público; para falar a verdade, não tão pequenos. O mais grave ocorreu justo antes de Páscoa, quando perderam as ilustrações para o livro do Gregory
Maybrick sobre a conspiração do Guy Fawkes. História popular, sem dúvida, mas Maybrick conhece bem esse período. Todos esperavam que funcionasse bastante bem. Maybrick
tinha conseguido fazer-se com umas lâminas contemporâneas bastante interessantes que não se publicaram nunca, além de alguns documentos escritos, e se perdeu
tudo. Tinha-o em qualidade de empréstimo dos diversos proprietários e mais ou menos lhes tinha garantido que estaria tudo a salvo. perdeu-se? Desapareceu? Foi destruído?
   O que se conta é que Maybrick entregou pessoalmente as ilustrações ao James do Witt, que se encarregava da preparação do livro. Atualmente é o editor
mais antigo da casa.
   Normalmente se ocupa da ficção, mas o velho Peverell, que editava os livros de não ficção, tinha morrido uns três meses antes; suponho que não tinham tido
tempo de encontrar um substituto adequado ou simplesmente queriam economizar dinheiro. Como na maioria das empresas, as demissões abundam mais que os contratos.
Se
rumorea que não poderão seguir muito tempo a flutuação. Não é de sentir saudades, tendo que manter esse palácio veneziano. Seja como for, Do Witt recebeu as ilustrações
em seu escritório e as guardou sob chave no armário diante do Maybrick. Não em uma caixa forte?
   meu amigo, estamos falando de uma editorial, não do Cartier. Conhecendo a Peverell, o único que me surpreende é que Do Witt se incomodasse em fechar o armário
com chave. Era a única chave?
   Vamos, Adam, que agora não está investigando. Para falar a verdade, era-o. Guardava-a na gaveta da esquerda, dentro de uma velha lata de tabaco.
   "Onde se não?", pensou Dalgliesh. Disse: Onde qualquer membro do pessoal ou visitante não acompanhado podia agarrá-la?
   Bem, é evidente que alguém o fez. James não teve necessidade de abrir o armário até passados um par de dias. As ilustrações deviam ser entregues pessoalmente
ao departamento de arte a semana seguinte. Sabia que a Peverell encarrega todo o desenho gráfico a uma assinatura independente?
   Não, não sabia.
   Suponho que resulta mais econômico. trata-se da mesma assina que lhes faz as cobertas há cinco anos; e bastante bem, para falar a verdade. A Peverell nunca
permitiu que decaíssem seus critérios de qualidade quanto à produção e o desenho dos livros. Sempre se pode reconhecer um livro da Peverell só
o tendo entre as mãos. até agora, pelo menos.
   Possivelmente Gerard Etienne troque também isso. Seja como for, quando Do Witt foi procurar o sobre, tinha desaparecido. produziu-se um grande alvoroço, naturalmente.
Todo mundo foi interrogado, houve registros frenéticos e estendeu o pânico. Ao fim, tiveram que confessar-lhe ao Maybrick e aos proprietários. Já imaginará
como tomaram.
   E o material, voltou a aparecer?
   Quando já era muito tarde. Houve dúvidas a respeito de se Maybrick quereria publicar o livro naquelas condições, mas já estava no catálogo e se decidiu
seguir adiante com outras ilustrações e algumas mudanças inevitáveis no texto. Uma semana depois de impresso, reapareceu misteriosamente o sobre com todo seu
contido. Do Witt o encontrou no armário, exatamente onde o tinha deixado.
   O qual sugere que o ladrão sentia certo respeito pela erudição e que nunca tinha tido intenção de destruir os papéis.
   Sugere diversas possibilidades: rancor contra Maybrick, rancor contra a editorial, rancor contra Do Witt ou um senso de humor um pouco retorcido. E a Peverell
não denunciou o roubo à polícia?
   Não, Adam, não depositaram sua confiança em nossos maravilhosos moços de azul. Não quero parecer severo, mas no referente aos rateios domésticas a polícia
não tem uma percentagem notável de casos resolvidos. Os sócios foram da opinião que teriam as mesmas probabilidades de êxito e causariam menos transtornos ao
pessoal se realizavam sua própria investigação. A cargo de quem? Algum deles estava livre de suspeitas?
   Essa é a dificuldade, claro. Não o estavam então e não o estão agora. Suponho que Etienne adotou a estratégia do chefe de Estudos. Já me entende: "Se o
aluno responsável acode confidencialmente a meu estudo depois de classe e devolve os documentos, não se falará mais do assunto." Na escola nunca dava resultado;
não acredito que tivesse mais êxito na Peverell. É evidente que o fez alguém da casa, e não têm uma palmilha muito grande, só umas vinte e cinco pessoas
em total, além dos cinco sócios. A maioria são empregados antigos e leais, certamente, e se conta que os poucos que não o são têm álibi.
   De modo que segue sendo um mistério.
   Ao igual ao segundo incidente. O segundo incidente grave; certamente houve outros casos de menor importância que se puderam silenciar. Este guarda
relação com o Stilgoe, assim é preferível que o tenham oculto até o momento e não tenha passado a ser de domínio público. Isso sim que lhe daria algo para alimentar
sua paranóia! Parece ser que, depois de ler as provas e acordar com o Stilgoe certas modificações, envolveram-nas e as deixaram sob o mostrador do escritório
de recepção para ser recolhidas à manhã seguinte. Alguém abriu o pacote e as manipulou: trocou alguns nomes, alterou a pontuação e tachou um par de frases.
Por fortuna, o impressor que as recebeu era inteligente e algumas das modificações lhe pareceram estranhas, de modo que chamou para assegurar-se. Os sócios hão
conseguido, Deus sabe como, manter este contratempo em segredo para a maior parte do pessoal do Innocent House e, é obvio, para o Stilgoe. Teria sido extremamente
prejudicial para a empresa que tivesse transcendido. Ao parecer, agora guardam sob chave todos os pacotes e papéis antes de ir-se a casa e sem dúvida reforçaram
a segurança com outras medidas.
   Dalgliesh se perguntou se o autor das alterações não teria atuado desde o começo com a intenção de que estas tirassem o chapéu. Pareciam feitas com
muito poucos desejos de enganar.
   Certamente não teria resultado difícil alterar as provas de uma maneira que danificasse o livro sem despertar as suspeitas do impressor. Também resultava curioso,
além disso, que o anônimo não mencionasse a manipulação das provas do Stilgoe. Ou o autor não conhecia este fato, coisa que absolveria aos cinco sócios, ou o anônimo
pretendia assustar ao Stilgoe sem lhe proporcionar dados que pudessem justificar que retirasse o livro. Era um pequeno mistério interessante, mas não se propunha
desperdiçar
nele o tempo de um oficial superior da polícia.
   Não se falou mais da Peverell Press até que começaram a tomar o café na biblioteca.
   Ackroyd se inclinou para diante e perguntou com certo desejo: Posso lhe dizer a lorde Stilgoe que tentará tranqüilizar a sua esposa?
   Sinto muito, Conrad, mas não. Enviarei-lhe uma nota dizendo que a polícia não tem motivos para suspeitar que houvesse manobras ocultas em nenhum dos casos
que lhe interessam. Duvido que lhe resulte muito útil se sua esposa for supersticiosa, mas isso é assunto dele e uma desgraça para ela. E os outros problemas do
Innocent
House?
   Se Gerard Etienne considerar que se violou a lei e quer que a polícia investigue, deve dirigir-se à delegacia de polícia local que lhe corresponda. Como todo
o
mundo?
   Exato. Não estaria disposto a visitar Innocent House e ter um bate-papo informal com ele?
   Não, Conrad. Nem sequer para ver o teto do Wyatt.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

5
 
   A tarde em que Sonia Clements foi incinerada, Gabriel Dauntsey e Frances Peverell compartilharam um táxi para voltar do crematório ao número 12 do Innocent Walk.
Frances permaneceu muito calada durante todo o trajeto, sentada um pouco além do Dauntsey e olhando distraídamente pelo guichê. Ia sem chapéu e o cabelo
castanho claro se curvava, como um casco reluzente, até tocar o pescoço do casaco cinza. Os sapatos, as meias e a bolsa eram negras, e levava um lenço de
gaze negra atado ao pescoço. Era, recordou Dauntsey, a mesma roupa que se pôs para a incineração de seu pai, um luto apropriado à época e discreto,
que mantinha à perfeição o equilíbrio entre a ostentação e o devido respeito. A combinação de cinza e negro, em sua sombria simplicidade, dava-lhe um ar muito
jovem e realçava o que ao Dauntsey mais gostava dela: uma formalidade delicada e passada de moda que recordava às mulheres de sua juventude. Permanecia distanciada
e imóvel, mas suas mãos se agitavam inquietas. Dauntsey sabia que no dedo meio da mão direita levava o anel de compromisso de sua mãe, e observou como
o fazia girar obsessivamente sob a camurça negra da luva. Por uns instantes pensou em estender o braço e lhe agarrar a mão em silêncio, mas resistiu a fazer
um gesto que, disse-se a si mesmo, só conseguiria violentá-los aos dois. Durante todo o caminho de volta ao Innocent Walk, logo que pôde conter-se para não lhe agarrar
a mão.
   tinham-se afeto. Ele era, sabia, a única pessoa do Innocent House a quem ela sentia que podia confiar-se ocasionalmente; entretanto, nenhum dos dois
era dado a demonstrações. Viviam separados por um curto lance de escada, mas só se visitavam se mediava um convite expresso, pois ambos se cuidavam muito
de entremeter-se, de impor sua presença ou de iniciar uma intimidade que o outro pudesse não desejar ou chegasse a lamentar. Em conseqüência, em que pese a que se
gostava do
um ao outro, em que pese a que desfrutavam do um com a companhia do outro, viam-se menos freqüentemente que se vivessem a quilômetros de distância. Quando estavam
juntos falavam
sobre tudo de livros, de poesia, das peças de teatro que tinham visto ou de programas de televisão; estranha vez da gente. Frances era muito escrupulosa para
mexericar e ele sentia idêntica relutância a deixar-se arrastar a uma controvérsia sobre as novidades da casa. Tinha seu emprego, tinha seu apartamento nos baixos
do número 12 do Innocent Walk. Possivelmente nenhuma das duas coisas seguisse sendo seu por muito tempo, mas já tinha completo setenta e seis anos e era muito
velho para lutar. Sabia que o apartamento situado em cima do seu exercia sobre ele uma atração a que era prudente resistir.
   Sentado na poltrona, com as cortinas corridas sobre o suave suspirar médio imaginado do rio e as pernas estendidas ante a chaminé, quando ela o deixava
só para ir fazer o café depois de um de seus escassos jantares compartilhados, ouvia-a mover-se silenciosamente pela cozinha e se sentia embargado por uma sedutora
sensação
de paz e satisfação que seria muito fácil converter em parte regular de sua vida.
   A sala de estar do Frances ocupava toda a longitude da casa. Tudo nela era atrativo: as elegantes proporcione da chaminé original de mármore, o
óleo de um Peverell do século XVIII com sua esposa e filhos pendurado em cima do suporte, a pequena escrivaninha uso reina Ana, as estanterías de mogno a ambos os
lados do
lar, coroadas por um frontón e por duas excelentes cabeças femininas tocadas com véu de noiva em mármore de Paradas, a mesa e as seis cadeiras de comilão estilo
Regência, as cores sutis dos tapetes que resplandeciam sobre o dourado estou acostumado a gentil. Quão singelo resultaria estabelecer uma intimidade que lhe abrisse
as
portas desse suave bem-estar feminino, tão distinto de seus tristes e mau mobiliados aposentos do piso inferior. Às vezes, se ela telefonava para convidá-lo a
jantar, ele se inventava um compromisso anterior e saía a algum pub das cercanias onde enchia as largas horas entre a fumaça e o ruído de fundo, atento a não
voltar muito cedo, posto que a porta de sua moradia, no Innocent Lane, ficava justo debaixo das janelas da cozinha dela.
   Aquele anoitecer tinha a impressão de que Frances possivelmente acolheria com agrado sua companhia, mas não estava disposta a solicitá-la. O não o lamentava.
A incineração
já tinha sido bastante deprimente sem necessidade de ter que comentar suas banalidades; já tinha tido bastante morte para um dia. Quando o táxi se deteve no Innocent
Walk e ela se despediu com um adeus quase precipitado e abriu a porta da rua sem voltar a cabeça nenhuma só vez, Dauntsey experimentou uma sensação de alívio.
Mas duas horas mais tarde, depois de ter terminado a sopa e os ovos mexidos com salmão defumado que constituíam seu jantar favorito e que preparou, como sempre,
com cuidado, mantendo o fogo baixo, apartando amorosamente a mescla dos flancos da frigideira, acrescentando uma colherada final de nata de leite, imaginou
consumindo seu jantar solitária e se arrependeu de seu egoísmo. Não era a noite mais indicada para que ela a passasse a sós.
   Chamou-a por telefone e lhe disse:
   Estava pensando, Frances, se gostaria de jogar uma partida de xadrez.
   Advertiu pelo tom contente da resposta que sua sugestão era recebida com alívio.
   Sim que gostaria, Gabriel. Sobe, por favor. Sim, eu adoraria uma partida.
   A mesa do comilão seguia posta quando chegou. Frances sempre comia com certa formalidade, mesmo que estava sozinha, mas ele se deu conta de que o jantar havia
sido tão singela como a sua. A tabela de queijos e o fruteiro estavam sobre a mesa e era evidente que tinha tomado sopa, mas nada mais. Também se deu conta
de que tinha chorado.
   Me alegro de que tenha subido disse ela, sorridente, esforçando-se por falar em tom jovial.
   Assim tenho uma desculpa para abrir uma garrafa de vinho. Resulta curioso quão resistentes somos a beber a sós. Suponho que se deve a todas aquelas tempranas
advertências
de que beber em solitário é o começo da queda para o alcoolismo.
   Tirou uma garrafa do Château Margaux e ele se adiantou para desarrolhá-la. Não voltaram a falar até que se acomodaram ante o fogo, copo em mão, e ela,
contemplando as chamas, assinalou:
   Tivesse devido estar presente. Gerard tivesse devido estar presente.
   Não gosta dos funerais. OH, Gabriel! A quem gosta? E foi horrível, não crie? A incineração de papai já foi bastante má, mas esta foi pior.
Aquele clérigo patético, que nem a conhecia ela nem conhecia nenhum de nós, tentando parecer sincero, rezando a um Deus no que ela não acreditava, falando
da vida eterna quando ela nem sequer teu uma vida que valesse a pena viver aqui na terra.
   Ele replicou com suavidade.
   Isso não sabemos. Não podemos ser juizes da desdita ou a felicidade de outra pessoa.
   Quis morrer. Não é prova suficiente? Ao menos Gerard assistiu aos funerais de papai. Claro que estava mais ou menos obrigado. O príncipe herdeiro se despede do
velho rei. Não teria ficado bem que não assistisse. depois de tudo, ali havia pessoas importantes, escritores, editores, a imprensa, gente a que desejava impressionar.
Hoje não havia ninguém importante na incineração, assim não tinha por que incomodar-se. Mas tivesse devido vir. depois de tudo, matou-a ele.
   Esta vez Dauntsey falou com mais firmeza.
   Não deve dizer isso, Frances. Não existe o menor indício de que nada do que Gerard fez ou disse causasse a morte da Sonia. Você sabe o que escreveu em sua nota
de despedida. Se tivesse decidido matar-se porque Gerard a tinha jogado, acredito que o haveria dito assim. A nota era explícita.
   Nunca deve dizer isso fora desta habitação. Este tipo de rumores pode produzir grandes prejuízos. prometa-me isso é importante.
   De acordo, prometo-lhe isso. Não o hei dito a ninguém mais que a ti, mas não sou quão única o pensa no Innocent House e alguns o dizem. Ajoelhada naquela
horrível capela tentei rezar, por papai, por ela, por todos nós. Mas era tudo tão absurdo, tão fútil... Só podia pensar no Gerard, em que Gerard houvesse
devido estar conosco no primeiro banco, em que Gerard foi meu amante, em que Gerard já não o é. É muito humilhante. Agora sei a que veio tudo, naturalmente.
   Gerard pensou: "Pobre Frances, com vinte e nove anos e ainda virgem. Terei que fazer algo a respeito. Darei-lhe a experiência de sua vida, ensinarei-lhe o que
está-se perdendo." Sua boa ação do dia. Ou sua boa ação de três meses, mas bem. Suponho que lhe durei mais que a maioria. E o final foi sórdido, sujo. Embora
não o é sempre? Gerard sabe muito bem como começar uma aventura amorosa, mas não sabe terminá-la; não com certa dignidade. Claro que eu tampouco. E fui o bastante
ingênua para pensar que era distinta de suas demais mulheres, que esta vez ia a sério, que estava apaixonado, que queria compromisso, matrimônio. Acreditei que dirigiríamos
a Peverell Press os dois juntos, que viveríamos no Innocent House, que criaríamos aqui a nossos filhos, inclusive que trocaríamos o nome da empresa. Acreditei
que isso lhe agradaria. Peverell e Etienne. Etienne e Peverell. Estava acostumado a praticar as duas alternativas, tratando de decidir qual soava melhor. Acreditei
que ele queria o
mesmo que eu: matrimônio, filhos, um lar adequado, uma vida em comum. É tão irrazonable? meu deus, Gabriel, sinto-me tão estúpida, tão envergonhada.
   Nunca lhe tinha falado com tanta franqueza, nunca lhe tinha mostrado as Honduras de sua angústia. Era quase como se tivesse estado ensaiando as frases em silêncio,
esperando este momento de alívio no que, por fim, encontrava-se com alguém em quem podia confiar e a quem podia confiar-se. Mas vindo do Frances, sempre
tão sensível, reticente e orgulhosa, este jorro incontrolado de amargura e autodesprecio o encheu de consternação. Possivelmente tinham sido os funerais, a lembrança
daquela outra incineração anterior, os que tinham liberado todo o ódio e a humilhação acumulados. Dauntsey não sabia se seria capaz de dirigir a situação,
mas sabia que devia tentá-lo. Aquele caudal de dor exigia algo mais que o brando pábulo do consolo: "O não é digno de ti, esquece-o, a dor passará com o
tempo." Mas isto último era verdade: a dor passava com o tempo, tanto se era a dor da traição como a dor do luto. Quem podia saber o melhor que
ele? Pensou: "O trágico da perda não é que nos aflijamos, mas sim deixamos de nos afligir e, então, possivelmente os mortos morram por fim."
   Falou com voz suave.
   As coisas que você quer, filhos, matrimônio, lar, sexo, são desejos razoáveis, inclusive há quem diria que desejos muito corretos. Os filhos são nossa única
esperança de imortalidade. Não é algo que deva nos envergonhar. É uma desdita, não uma vergonha, que os desejos do Etienne e os teus não coincidam. Fez uma pausa
e acrescentou, perguntando-se se seria prudente, se ela não encontraria suas palavras de uma crua insensibilidade: James está apaixonado por ti.
   Suponho que sim. Pobre James. Alguma vez me há isso dito, mas não lhe faz falta dizê-lo, não crie? Sabe uma coisa? Acredito que, de não ter sido pelo Gerard,
tivesse podido
amar ao James. E o caso é que Gerard nem sequer eu gosto. Não me gostou nunca, nem quando mais o desejava. Isso é o terrível do sexo, que pode existir sem
amor, sem afeto, inclusive sem respeito. OH, eu tratava de me enganar. Quando se mostrava insensível, egoísta ou grosseiro lhe buscava desculpas. Recordava-me que
era um
homem brilhante, arrumado, divertido, um amante maravilhoso. Todo isso era. Todo isso é. Dizia-me mesma que não era razoável lhe aplicar ao Gerard os critérios
mesquinhos que aplicava a outros. E o amava. Quando se ama, não se julga. E agora o odeio. Não sabia que pudesse odiar, odiar seriamente, a outra pessoa. É distinto
a odiar uma coisa, uma doutrina política, uma filosofia, uma marca social. É tão concentrado, tão físico, que me faz adoecer. O ódio é o último em que penso
de noite, e todas as manhãs acordado com ele. Mas está mau, é pecado. Tem que estar mau. Tenho a sensação de estar vivendo em pecado mortal e de que
não posso receber a absolvição porque sou incapaz de deixar de odiar.
   Dauntsey respondeu:
   Não pense nesses términos de pecado e absolvição. O ódio é perigoso. Perverte a justiça. Ah, a justiça! Nunca esperei muito, em questão de justiça.
E o ódio me há voltado aborrecida. Aborreço-me mesma. Sei que te aborreço, querido Gabriel, mas é a única pessoa com a que posso falar e, às vezes, como esta
noite, tenho a sensação de que se não falar me voltarei louca. E é tão sábio... Em todo caso, essa é a reputação que tem.
   Ele protestou com secura.
   É muito fácil lavrar uma reputação de sabedoria. Só faz falta viver muito, falar pouco e fazer menos.
   Mas quando fala convém te escutar. Gabriel, me diga o que tenho que fazer. Para te liberar dele?
   Para me liberar desta dor.
   Estão os meios habituais: álcool, drogas, suicídio. Os dois primeiros conduzem ao terceiro; trata-se só de uma rota mais lenta, mais cara e mais humilhante.
Não lhe aconselho isso. Também poderia assassiná-lo, mas tampouco lhe aconselho isso. Faz-o em sua imaginação tão engenhosamente como quer, mas não na realidade.
Amenos
que queira te apodrecer dez anos no cárcere. Você poderia suportá-lo? perguntou-lhe ela.
   Não durante dez anos. Possivelmente poderia agüentar três, mas não mais. Para confrontar a dor há médios melhores que a morte, já seja a dele ou a tua. te recorde
que a dor é parte da vida, que sentir dor é estar viva. Invejo-te. Se eu pudesse experimentar tal dor, possivelmente ainda seria um poeta. te valore. O fato
de que um homem egoísta, soberbo e insensível se negou a te querer não impede que seja um ser humano. Seriamente precisa te valorar segundo os critérios de
um homem, e não digamos do Gerard Etienne? Pensa que o único poder que tem sobre ti é o que você lhe dá.
   lhe tire esse poder e eliminará a dor. Recorda, Frances, não tem por que seguir na empresa.
   E não me diga que sempre houve um Peverell na Peverell Press.
   Houve-o sempre desde 1792, antes inclusive de que mudássemos ao Innocent House. Papai não teria querido que eu fosse a última.
   Alguém tem que sê-lo, alguém o será. Tinha certo dever com seu pai quando vivia, mas cessou a sua morte. Não podemos ser vassalos dos mortos.
   Nada mais sair de sua boca estas palavras se arrependeu das haver pronunciado, médio temendo que ela replicasse: "E você? Acaso não é você vassalo dos mortos,
de sua esposa, de seus filhos perdidos?" apressou-se a acrescentar: O que você gostaria de fazer se tivesse liberdade de eleição?
   Trabalhar com meninos, acredito. Possivelmente exercer como professora de primário. Tenho um título. Suponho que só necessitaria um ano mais de preparação. E
acredito que eu gostaria
trabalhar no campo ou em uma pequena cidade.
   Pois faz-o. Tem liberdade de eleição. Mas não te ocorra procurar a felicidade: encontra o trabalho adequado, o lugar adequado, a vida adequada; a felicidade
virá se tiver sorte. A maioria recebemos a parte que nos corresponde. E alguns mais da que nos corresponde, embora se concentre em um reduzido espaço de
tempo.
   Sente saudades que não cite ao Blake disse ela, aquele poema a respeito de que "o gozo e a dor se entretecem com finura, um vestido para a alma divina". Como
era?
   O Homem foi feito para a Alegria e a Lamentação; e quando isto corretamente entendemos, pelo Mundo com segurança passamos.
   Embora você não crie na alma divina, verdade?
   Não, esse seria o autoengaño supremo.
   Mas passas com segurança pelo mundo. E entende o que é o ódio. Acredito que sempre soube que odeia ao Gerard.
   Ele protestou.
   Não, Frances, equivoca-te. Não o odeio. Não sinto nada por ele, nada absolutamente. E isso faz que seja muito mais perigoso para ele do que você possa sê-lo jamais.
Não seria melhor que começássemos essa partida?
   Dauntsey tirou o pesado tabuleiro do aparador da esquina e ela colocou a mesa entre as poltronas e foi pelas peças. Enquanto lhe mostrava os punhos fechados
para que escolhesse brancas ou negras, comentou:
   Acredito que deveria me dar um peão de vantagem, o tributo da juventude à velhice.
   Tolices; a última vez ganhou. Jogaremos sem vantagem para ninguém.
   Ela mesma se surpreendeu. Em outro tempo teria acessado a sua petição. Era um pequeno ato de afirmação pessoal, e viu que ele sorria enquanto começava a dispor
as peças com seus dedos rígidos.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

6
 
   A se orita Blackett retornava cada noite a seu lar do Weaver's Cottage, no West Marling, no condado do Kent, onde desde fazia dezenove anos vivia com
uma prima viúva maior que ela, Joan Willoughby. Sua relação era afetuosa, mas nunca tinha sido emocionalmente intensa. A senhora Willoughby se casou com
um clérigo retirado e, quando este morreu aos três anos de matrimônio o tempo máximo, suspeitava em segredo a senhorita Blackett, que qualquer dos dois haveria
podido suportar, pareceu natural que a viúva convidasse a sua prima a abandonar seu insatisfactorio piso de aluguel no Bayswater e a mudar-se à casa de campo. Desde
o princípio daqueles dezenove anos de vida em comum se foi estabelecendo uma rotina, espontânea mais que organizada, que as satisfazia às duas. Era
Joan a que levava a casa e se encarregava do jardim, e Blackie a que, os domingos, preparava a comida principal do dia para consumi-la pontualmente à uma,
responsabilidade que a eximia do serviço matutino, mas não assim do vespertino. Dado que Blackie era primeira em levantar-se, levava-lhe o chá do café da manhã a
seu
prima e preparava o Ovaltine ou o cacau que tomavam cada noite às dez e meia. Foram de férias juntas nas duas últimas semanas de julho, pelo general
ao estrangeiro, já que nenhuma das duas tinha a ninguém que lhe oferecesse uma alternativa melhor. Cada junho esperavam com interesse o campeonato de tênis do Wimbledon
e de vez em quando desfrutavam assistindo durante o fim de semana a um concerto ou ao teatro, ou visitando uma exposição de pintura. diziam-se para seus adentros,
mas nunca em voz alta, que eram afortunadas.
   Weaver's Cottage se elevava no limite setentrional do povo. Em um princípio eram dois cottages de consideração, mas por volta dos anos cinqüenta uma família
com idéias muito claras a respeito do que constituía o encanto doméstico rural os tinha convertido em uma só residência. A coberta de telhas tinha sido substituída
por uma barda de cano da que olhavam três janelas de gablete como outros tantos olhos saltados; as singelas janelas estavam agora providas de parteluces
e se tinha acrescentado um alpendre, no verão coberto de rosas trepadeiras e clemátides. A senhora Willoughby estava apaixonada por cottage, de modo que, embora
as janelas
com parteluces faziam que a sala de estar resultasse decididamente mais escura do que lhe tivesse gostado e algumas vigas de carvalho eram menos autênticas
que outras, nunca reconhecia abertamente tais defeitos. O cottage, com sua barda imaculada e seu jardim, tinha aparecido em muitos calendários, tinha sido fotografado
pelos visitantes com muita freqüência para que ela se preocupasse com pequenos detalhes de integridade arquitetônica. A parte principal do jardim ficava
à frente, e ali a senhora Willoughby se passava quase todas as horas livres, cuidando, plantando e regando o que tinha fama de ser o jardim dianteiro mais impressionante
do West Marling, desenhado tanto para o prazer dos transeuntes como para o das ocupantes do cottage.
   "Pretendo que resulte atrativo ao longo de todo o ano", explicava a quem se detinha a admirá-lo, e isso certamente era o que conseguia. Era uma verdadeira
jardineira, e muito imaginativa.
   As novelo prosperavam sob seus cuidados, e tinha bom olho para a distribuição da cor e a massa.
   O cottage possivelmente não fora de tudo autêntico, mas o jardim era inconfundiblemente inglês. Havia um retalho de grama com uma amoreira, que na primavera estava
rodeado de açafrões, amarilis e, mais tarde, das vistosas trompetistas dos narcisistas. No verão, entupido-los arriates que conduziam ao alpendre eram uma intoxicação
de cor e aroma, em tanto que o sebe de haja, recortado a pouca altura para que não ocultasse à vista os esplendores do outro lado, era símbolo vivente do passo
das estações, desde os primeiros brotos apertados e inseguros até os ocres e vermelhos vibrantes de sua glória outonal.
   Sempre retornava das reuniões do conselho paroquial vigorizada e com os olhos brilhantes.
   Para algumas pessoas, refletia Blackie, aquelas escaramuças quinzenais com o vigário a conta de sua predileção pela nova liturgia frente à antiga
e outros delitos de pequena importância, teriam resultado desalentadoras; Joan, em troca, parecia crescer com elas. acomodou-se ante a mesa, as roliças coxas
separados até esticar a saia de tweed e os pés firmemente apoiados, e encheu as duas taças de amontillado. Uma bolacha salgada rangeu entre os fortes e brancos
dentes, e o delicado pé da taça de cristal esculpido, parte de um jogo, pareceu a ponto de quebrar-se entre seus dedos.
   Agora a ordem é linguagem igualitária. Por favor! Quer que cantemos "Através da noite de dúvida e pesar" no serviço vespertino do domingo que vem,
mas com a letra trocada; agora tem que ser "a pessoa agarra da mão à pessoa e partem sem temor através da noite". Em seguida lhe parei os pés,
com a ajuda da senhora Higginson, graças a Deus. Posso lhe perdoar muitas coisas ao vigário, inclusive que permita a esse gato sarnento que tem sentar-se na
janela com os flocos de aveia, contanto que se comporte devidamente nas reuniões do conselho paroquial, o qual, para lhe fazer justiça, está acostumado a ocorrer
quase sempre.
A senhorita Matlock sugeriu "a irmã agarra da mão à irmã". E o que tem isso de mau?
   Nada, exceto não é o que o autor escreveu. passaste um bom dia?
   Não. Não foi um bom dia.
   Mas a senhora Willoughby seguia pensando na reunião do conselho paroquial.
   Não é que eu goste particularmente esse hino. Nunca me gostou. Não compreendo por que a senhorita Matlock está tão entusiasmada com ele. Nostalgia, suponho.
Lembranças da infância. Não há muito pesar e dúvida na congregação do St. Margaret. Muito bem comidos. Muito acomodados. Embora te asseguro que os haverá
se o vigário tenta suprimir a Sagrada Comunhão dos domingos às oito segundo o livro de 1662. Haverá muita dúvida e pesar na paróquia, se o tentar. O
sugeriu?
   Não abertamente, mas está controlando a assistência. Você e eu devemos seguir indo, e já tentarei convencer a alguém mais do povo. Todas estas novidades vêm
da Susan, claro. Esse homem seria absolutamente razoável se não o açulasse sua esposa. Agora ela começou a falar de preparar-se para o diaconado. Logo quererá
que a ordenem sacerdote. Iria melhor aos duas em uma paróquia de grande cidade. Poderiam levar os banjos e os violões e me atreveria a dizer que às pessoas
gostaria. Como te foi a viagem?
   Não esteve mau. Melhor à volta que esta manhã à ida. Chegamos a Charing Cross com dez minutos de atraso; foi um mau começo para um mau dia. Hoje
eram os funerais da Sonia Clements. O senhor Gerard não assistiu. Tinha muito trabalho, segundo ele. Suponho que a difunta não era bastante importante. Naturalmente,
isso quer dizer que eu também tive que ficar.
   Joan comentou:
   Bom, tampouco é muito de lamentar. As incinerações sempre resultam deprimentes. pode-se obter certa satisfação de um enterro bem levado, mas não
de uma incineração. Por certo, isso me recorda que o vigário se propunha utilizar a nova liturgia para os funerais do velho Merryweather, na terça-feira que vem.
Tive que lhe parar os pés. O senhor Merryweather tinha oitenta e nove anos e já sabe como detestava as mudanças. Sem o livro de 1662, teria a impressão de
não ter recebido um enterro cristão.
   Quando Blackie retornou a casa na terça-feira anterior com a notícia do suicídio da Sonia Clements, Joan reagiu com notável compostura. Blackie se disse que não
devia surpreender-se. Sua prima a desconcertava freqüentemente com uma resposta inesperada às notícias e acontecimentos. Os pequenos transtornos domésticos lhe provocavam
indignação, enquanto que reagia com serenidade estóica ante tragédias de considerável magnitude. Embora, depois de tudo, não se podia esperar que esta tragédia
comovesse-a. Não conhecia a Sonia Clements; nem sequer a tinha visto nunca.
   Ao lhe dar a notícia, Blackie comentou:
   Não é que tenha estado mexericando com o pessoal, é obvio, mas acredito que a impressão geral que reina no escritório é que se matou porque o senhor Gerard
tinha-a jogado à rua. E não acredito que o fizesse com muito tato, além disso. Parece ser que deixou uma nota, mas não dizia nada da demissão. O pessoal, entretanto,
é da opinião que de não ter sido pelo senhor Gerard ainda seguiria conosco.
   A resposta do Joan foi enérgica.
   Isso é ridículo. As mulheres adultas não se matam porque as tenham despedido. Se perder o emprego fora motivo para suicidarse, teríamos que escavar fossas comuns
em grandes quantidades. Foi uma falta de consideração por sua parte, um ato muito irrefletido. Se tinha que matar-se, deveria havê-lo feito em outro lugar. depois
de tudo, houvesse
podido ser você a que encontrasse seu corpo no cuartito dos arquivos. E isso não teria resultado nada agradável.
   Não foi muito agradável para o Mandy Price, a nova interina, embora deva dizer que tomou com muita calma. A algumas jovens teria dado um ataque de histeria
observou Blackie.
   É absurdo ficar histérica por um cadáver. Os cadáveres não podem fazer mal a ninguém.
   Terá muita sorte se não ver nada pior na vida.
   Blackie tomou um sorvo de xerez e contemplou a sua prima com as pálpebras entreabridas, como se fora a primeira vez que a via de um modo desapaixonado. O corpo
sólido e quase sem cintura, as pernas firmes com um começo de veias varicosas sobre uns tornozelos surpreendentemente bem formados, a cabeleira abundante, antes
de um castanho intenso, ainda entupida e só levemente cinza, recolhimento em um grosso coque (um penteado que não tinha trocado desde dia em que Blackie a viu por
primeira vez), o rosto jovial e endurecido pela intempérie. Um rosto razoável, poderia dizer-se. Um rosto razoável para uma mulher razoável, uma das excelentes
mulheres da Barbara Pym, mas sem um ápice da delicadeza e a discrição de uma heroína da Barbara Pym; uma mulher que exercia uma dedicação implacável aos problemas
do povo, dos falecimentos até os rebeldes meninos cantores, com uma vida tão regrada em seus prazeres e deveres como o ano litúrgico que lhe dava forma e
propósito. E também a vida do Blackie tinha tido outrora forma e propósito.
   Agora, ao Blackie parecia que não controlava nada nem sua vida nem seu emprego nem suas emoções e que Henry Peverell, ao morrer, levou-se consigo uma parte
essencial dela.
   Joan disse de repente, acredito que não posso seguir na Peverell. Gerard Etienne se está voltando insuportável. Nem sequer me permite atender suas chamadas pessoais;
recebe-as em seu escritório por uma linha privada. O senhor Peverell estava acostumado a deixar a porta entreabrida, encaixando no marco aquela serpente contra as
correntes
de ar, Sid a lhe Vaiem. Gerard a fecha sempre e tem feito trocar de sítio um armário grande e pô-lo contra o tabique para ter mais intimidade. É uma falta
de consideração. Ainda me tira mais luz. E agora querem que lhe faça sítio à nova interina, Mandy Price, embora todo o trabalho que há para ela passe através
da Emma Wainwright, a secretária pessoal da senhorita Claudia. O lógico seria que a pusessem ao lado da Emma.
   Agora que o senhor Gerard deslocou o tabique, meu escritório resulta pequeno até para uma só pessoa. O senhor Peverell nunca teria aceito dividir a
estadia cortando uma janela e o teto de estuque. Detestava esse tabique e já se opôs a que o instalassem quando fizeram as primeiras reformas. E sua irmã
não poderia fazer algo? perguntou sua prima. por que não fala com ela?
   Eu não gosto de me queixar, e menos a ela. Além disso, o que pode fazer? O senhor Gerard é diretor gerente e presidente. Está destruindo a empresa e ninguém pode
fazer
nada. Nem sequer estou segura de que queiram impedir-lhe salvo possivelmente a senhorita Frances, e a ela não vai escutar a.
   Pois vete. Não está obrigada a seguir trabalhando ali. depois de vinte e sete anos?
   Tempo mais que suficiente para qualquer trabalho, diria eu. Adianta o retiro. Apontou a seu plano de pensões quando o senhor Peverell o estabeleceu. Em
seu momento me pareceu uma decisão muito sensata; aconselhei-te que o fizesse, recorda? Não receberá a pensão completa, certamente, mas algo te chegará. Ou tal
vez poderia te buscar um bom trabajito de só meia jornada no Tonbridge. Com seus conhecimentos e sua experiência não te custaria muito encontrá-lo. Mas por
o que tem que trabalhar? nos podemos arrumar isso e no povo há muito que fazer. Nunca permiti que o conselho paroquial contasse contigo porque está trabalhando
na Peverell. Como lhe disse ao vigário, é secretária pessoal e te passa o dia escrevendo a máquina; não te pode pedir que o faça também pelas noites
e os fins de semana. Tomei-me seu amparo como uma questão pessoal. Mas se te retira será distinto. Geoffrey Harding se queixa de que atuar como secretário
do conselho paroquial começa a ser uma carga muito pesada para ele. Poderia te ocupar disso, para começar. E logo está a Sociedade Literária e Histórica. Não
cabe dúvida de que lhes viria muito bem um pouco de ajuda na secretaria.
   Estas palavras, a vida que tão sucintamente descreviam, horrorizaram ao Blackie. Foi como se, nessas poucas frases ordinárias, Joan a tivesse sentenciado a cadeia
perpétua. Por primeira vez se deu conta da escassa importância do papel que West Marling desempenhava em sua vida. O povo não lhe desagradava; as fileiras de casitas
mas bem insossas, a grama desgrenhada que bordeaba um lago fedido, o pub moderno que tentava em vão parecer do século XVII com sua chaminé de gás e seus
vigas pintadas de negro, nem sequer a pequena igreja com seu bonito chapitel octogonal evocava nela uma emoção tão intensa como o desagrado. Ali era onde
vivia, comia e dormia.
   Mas durante vinte e sete anos o centro de sua vida tinha estado em outro sítio. sentia-se muito satisfeita de retornar cada noite ao Weaver's Cottage, a sua ordem
e comodidade, a compa ía pouco exigente de sua prima, às boas comidas servidas com elegância, ao cheiroso fogo de lenha no inverno e as bebidas no jardim
nas mornas noites do verão. Gostava do contraste entre essa paz rural e o estímulo e as responsabilidades do escritório, a estridente vida do rio. Em alguma
parte tinha que viver, já que não podia fazê-lo com o Henry Peverell. Mas naquele momento compreendeu, em um entristecedor instante de revelação, que a vida no West
Marling seria insuportável sem o trabalho.
   Viu estender-se aquela vida ante si em uma série de brilhantes imagens deslocadas que se projetaram sobre a tela de sua mente em uma seqüência inexorável;
horas, dias, semanas, meses, anos de vazia e predecible monotonia. As pequenas tarefas domésticas que lhe criariam a ilusão de fazer algo útil, ajudar no jardim
sob a supervisão do Joan, atuar como secretária ou datilógrafa para o conselho paroquial ou a sociedade feminina, ir às compras ao Tonbridge os sábados, receber
a Sagrada Comunhão no serviço vespertino os domingos, organizar as excursões que constituiriam os pontos culminantes do mês, sem ser o bastante rica
para escapar, sem nenhuma desculpa que justificasse escapar e nenhum lugar ao que escapar. E por que teria que sentir desejos de ir-se? Era uma vida que sua prima
encontrava
satisfatória e psicologicamente plena: seu lugar assegurado na hierarquia do povo, seu cottage em propriedade, o jardim que lhe proporcionava uma alegria e um interesse
continuados. A maioria da gente diria que Blackie podia considerar-se afortunada por compartilhá-la, afortunada por viver sem pagar aluguel (isso se saberia no
povo; era a classe de dado que conheciam por instinto) em uma formosa casa e em companhia de sua prima. Ela seria a menos respeitada das duas, a menos popular,
a parente pobre. Seu emprego, escassamente compreendido no povo, mas magnificado em importância pelo Joan, proporcionava-lhe dignidade.
   O trabalho, certamente, conferia dignidade, posição, sentido. Acaso não era por isso pelo que a gente temia o desemprego, por isso a alguns homens os
resultava traumático o retiro? E não podia buscá-lo que Joan tinha denominado "um bom trabajito de meia jornada" no Tonbridge.
   Sabia o que isso significaria: trabalhar em um escritório com garotas ao meio adestrar recém saídas da escola ou da academia, sexualmente ativas e em busca
de casal, que se levariam a mal sua eficácia ou a compadeceriam por sua evidente virgindade. Como podia rebaixar-se a aceitar um emprego demedia jornada quando havia
sido secretária pessoal confidencial do Henry Peverell?
   Imóvel, sentada com uma taça de xerez ao meio beber ante ela e contemplando seu resplendor ambarino como hipnotizada, seu coração se sumiu em uma desordenada
confusão e sua voz gritou sem palavras: "OH, querido! por que me abandonou? por que teve que morrer?"
   Apenas o tinha visto fora do escritório, nunca tinha estado em seu piso do número 12 e nunca o tinha convidado ao Weaver's Cottage nem lhe tinha falado de seu
vida privada. Entretanto, durante vinte e sete anos ele tinha sido o centro de sua existência. Blackie tinha passado mais horas com ele que com nenhum outro ser
humano.
Para ela sempre foi o senhor Peverell, enquanto que ele a chamava senhorita Blackett ante outros e Blackie quando se dirigia a ela. Não recordava que suas mãos
houvessem tornado a tocar-se nunca do primeiro encontro, vinte e sete anos antes, quando ela, uma tímida jovencita de dezessete anos recém saída da escola,
tinha acudido ao Innocent House para realizar a entrevista e ele se levantou sorridente de seu escritório para saudá-la. Sua capacidade como taquígrafa e datilógrafa
já a tinha posto a prova a secretária que se despedia para casar-se. Naquele momento, ao contemplar seu de aparência agradável rosto de estudioso e seus olhos incrivelmente
azuis, Blackie compreendeu que aquela era a prova definitiva. Não lhe disse grande coisa do trabalho embora por que tinha que fazê-lo, se a senhorita Arkwright já
tinha-lhe explicado com tudo detalhe o que se esperaria dela, mas lhe perguntou pelo trajeto desde sua casa e lhe disse:
   Temos uma lancha que traz cada dia a alguns membros do pessoal. Pode agarrá-la no mole da Charing Cross e dever trabalhar pelo Támesis; quer dizer,
sempre que não lhe assuste a água.
   E ela se deu conta de que esta era a pergunta decisiva, de que não obteria o emprego se não gostava do rio.
   Não respondeu, a água não me assusta.
   depois disso falou muito pouco mais, pois a idéia de acudir cada dia a aquele palácio resplandecente quase a emudecia. Ao final da entrevista, lhe propôs:
   Se acreditar que tem que estar a gosto aqui, podemos nos dar um mês de prova o um ao outro.
   Ao terminar o mês não lhe disse nada, mas ela sabia que não precisava lhe dizer nada. Permaneceu com ele até o dia de sua morte.
   Recordou a manhã em que tinha sofrido o ataque ao coração. Seriamente fazia só oito meses?
   A porta que comunicava seus escritórios estava entreabierta, como sempre, como lhe gostava.
   A serpente de veludo, com sua pele de intrincado esboçado e sua língua bífida de flanela vermelha, achava-se enroscada ao pé. Ele a chamou, mas com voz tão rouca
e estrangulada que apenas a reconhecia como humana, e ela acreditou que se tratava de um barqueiro que gritava do rio.
   Necessitou um par de segundos para dar-se conta de que aquela voz descarnada e estranha tinha gritado seu nome. Saltou da cadeira, ouviu-a deslizar-se sobre o
chão
e em um instante se encontrou junto ao escritório de seu chefe, olhando-o do alto. Ele estava sentado, muito rígido, como petrificado, sem atrever-se a realizar
nenhum
movimento, aferrando-os braços, com os nódulos brancos e os olhos desencaixados sob uma frente em que o suor começava a condensar-se em brilhantes glóbulos
espessos como pus. A dor, a dor! Chame um médico!
   Prescindindo do telefone que havia sobre o escritório, ela fugiu a seu próprio despacho, como se só naquele lugar familiar pudesse fazer frente à situação.
Manuseou torpemente a guia Telefónica, mas de repente recordou que o nome e o número do médico figuravam na libretita negra que guardava em uma gaveta. Abriu-o
de um puxão e afundou a mão em seu interior para procurá-la, tentando lembrar do nome, desejando desesperadamente voltar para horror do despacho contigüo, mas
temendo ao mesmo tempo o que podia encontrar, sabendo que devia conseguir ajuda e que devia consegui-la imediatamente. Então se lembrou. Naturalmente, a ambulância.
   Devia pedir uma ambulância. Pulsou as teclas do telefone e ouviu uma voz serena, cheia de autoridade.
   Deu-lhe a mensagem. A urgência, o terror de sua voz deveram convencê-los. A ambulância sairia imediatamente.
   O que ocorreu a seguir não o recordava como uma seqüência, mas sim como uma série de imagens desconexas mas vividas. Da porta de seu escritório apenas
teve tempo de vislumbrar ao Frances Peverell, de pé junto ao escritório com expressão de impotência, antes de que Gerard Etienne se aproximasse e a fechasse com
firmeza,
dizendo:
   Não queremos a ninguém aqui. Necessita ar.
   Foi o primeiro dos muitos rechaços que seguiram. Recordou os ruídos que fazia o pessoal da ambulância enquanto tratava de reanimá-lo; sua cabeça volta
para o outro lado quando o tiraram abafado com uma manta vermelha; o rumor de alguém que soluçava, alguém que tivesse podido ser ela mesma; a tolice de seu escritório,
tão vazio como o estava pelas manhãs, quando chegava antes que ele, ou pelas noites, quando ele se ia primeiro, embora agora de modo permanente, vazio para sempre
de tudo o que lhe dava um significado. Nunca mais voltou a vê-lo. Quis ir visitar o hospital, mas, quando perguntou ao Frances Peverell qual seria o melhor
momento, esta lhe respondeu:
   Ainda segue em cuidados intensivos. Só podem visitá-lo-a família e os sócios. Sinto muito, Blackie.
   As primeiras notícias foram tranqüilizadoras. Estava melhor, muito melhor. acreditava-se que não demoraria para sair da unidade de cuidados intensivos. E então,
quatro
dias depois do primeiro, sofreu um segundo ataque ao coração e morreu. Nos funerais, Blackie se sentou no terceiro banco, entre outros empregados da editorial.
Ninguém a consolou. por que teriam que fazê-lo? Ela não formava parte dos oficialmente afligidos, não era membro da família. Quando, ao sair da capela,
enquanto examinava as coroas de despedida, não pôde conter-se mais e rompeu a chorar, Claudia Etienne a olhou fugazmente com uma mescla de pasmo e irritação, como
dizendo: "Se sua filha e seus amigos podem guardar a compostura, por que você não?" Sua aflição se tomou por uma amostra de mau gosto, tão presunçosa como a coroa
que tinha enviado, ostentosa entre os singelos Ramos da família. Recordou também ter ouvido o comentário que Gerard Etienne fez a sua irmã.
   meu deus, Blackie se passou que a raia. Essa coroa não desafinaria em uns funerais da Máfia de Nova Iorque. O que pretende? Fazer acreditar em todo mundo
que era seu amante?
   E ao dia seguinte, em uma pequena cerimônia particular, os cinco sócios arrojaram suas cinzas ao Támesis da terraço do Innocent House. Não a haviam convidado
a participar, mas Frances Peverell foi a seu escritório e lhe disse:
   Possivelmente você gostaria de vir conosco a terraço, Blackie. Acredito que a meu pai teria gostado que estivesse presente.
   Blackie se manteve bastante atrás, procurando não estorvar. Outros se colocaram um pouco distanciados entre si, junto ao bordo da terraço. Os brancos ossos
triturados, que eram tudo o que subtraía do Henry Peverell, achavam-se em um recipiente paradoxalmente similar a uma lata de bolachas. O passavam de emano em
mão, tomavam um punhado do pó granuloso e o deixavam cair ou o jogavam no Támesis. Recordou que a maré estava alta e que soprava uma brisa fresca. A água
do rio, de um marrom ocre, chapaleteaba contra os muros do embarcadero projetando gotitas de espuma. Frances Peverell tinha as mãos úmidas e alguns fragmentos
de osso lhe pegaram à pele; logo as esfregou contra a saia com ar furtivo. Estava perfeitamente serena quando recitou de cor aqueles versos do Cimbelino
que começam assim:
   Não tema já o calor do sol, nem as cóleras do furioso inverno; cumpriste sua missão terrestre, voltaste para a pátria e recebido seus prêmios.
   Blackie teve a sensação de que tinham esquecido decidir por que ordem foram falar, pois se produziu um breve silêncio até que James do Witt se adiantou mais
para o bordo da terraço e pronunciou umas palavras dos Apócrifos: "As almas dos justos estão em mãos de Deus e ali nenhum tortura as tocará." Continuando,
deixou que as cinzas se deslizassem de entre seus dedos como se contasse cada um dos grãos.
   Gabriel Dauntsey leu um poema do Wilfred Owen que ao Blackie resultou desconhecido, mas mais tarde o buscou e lhe intrigou um pouco a eleição.
   Sou o espectro do Shadwell Stair.
   Pelos malecones e os alpendres, e através do cavernoso matadouro, eu sou a sombra que ali caminha.
   Mas minha carne é firme e fresca, e meus olhos tumultuosos como as gemas de abajures e luas no Támesis crescido, quando o crepúsculo navega ondulante pelo
Pool.
   Claudia Etienne foi a mais breve, com apenas dois versos:
   Quão pior pode acontecemos, embora se pensa, é um comprido letargia e uma larga despedida.
   Recitou-os em voz alta, mas bastante depressa, com uma intensidade feroz que deu a impressão de que desaprovava toda aquela charada. Depois de lhe chegou a vez
ao Jean-Philippe Etienne. Não havia o tornado a ver no Innocent House desde seu retiro, um ano antes, e veio desde sua remota residência na costa do Essex conduzido
por sua chofer, para chegar justo antes da hora a que estava prevista a cerimônia e partir imediatamente depois sem assistir ao refrigério preparado em
a sala de juntas. Sua intervenção foi a mais larga e pronunciou as palavras com voz apagada, procurando apoio em um dos adornos do corrimão. Mais tarde, Blackie
soube por Do Witt que era um fragmento das Meditações de Marco Aurelio, mas naquele momento só uma breve passagem lhe gravou na memória:
   Em uma palavra, todas as coisas do corpo são como um rio, e as coisas da alma como um sonho e uma bruma; e a vida é uma guerra e uma morada de peregrino,
e a fama depois da morte só é esquecimento.
   Gerard Etienne foi o último. Arrojou os ossos triturados longe de si, como se se sacudisse todo o passado, e pronunciou umas palavras do Eclesiastés:
   Enquanto a gente está ligado a todos os viventes há esperança, que melhor é cão vivo que leão morto; pois os vivos sabem que têm que morrer, mas o morto nada
sabe, e já não espera recompensa, havendo-se perdido já sua memória.
   Amor, ódio, inveja, para eles já todo se acabou; não terão jamais parte alguma no que acontece sob o sol.
   Depois se retiraram em silêncio e subiram à sala de juntas, onde lhes esperavam o almoço frio e o vinho. E exatamente às dois em ponto Gerard Etienne
cruzou o despacho do Blackie sem dizer nada, entrou na sala contigüa e se sentou pela primeira vez na poltrona do Henry Peverell. O leão tinha morrido e o cão
vivo assumia o mando.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

7
 
   Depois da incineração da Sonia Clements, James do Witt recusou o convite do Frances para ir com o Gabriel e ela no táxi, dizendo que sentia necessidade de
andar e que tomaria o metro na estação do Golders Green. A distância do crematório à estação era major do que tinha imaginado, mas se alegrava de
estar a sós. O resto do pessoal da Peverell Press tinha retornado nos carros da funerária e James não sabia o que teria sido pior, se contemplar a cara
tensa e desventurada do Frances sem esperança de consolá-la, ou ver-se espremido em um automóvel ostentoso e muito cheio, entre uma manada de empregados jovens que
tinham preferido uns funerais a uma tarde de trabalho e cujas línguas, liberadas depois da solenidade espúria da cerimônia, teriam se inibido em sua presença.
Inclusive tinha assistido a interina, Mandy Price. Mas isso era bastante razoável; ao fim e ao cabo, tinha participado do descobrimento do cadáver.
   A incineração tinha resultado um ato lamentável e James se considerava culpado disso.
   Sempre se considerava culpado e, às vezes, refletia que possuir tão vivo sentido do pecado sem a religião que podia mitigá-lo por meio da absolvição
constituía uma incômoda idiossincrasia. A irmã da senhorita Clements, a monja, tinha estado presente nos funerais: apareceu no último momento como por
arte de magia para ocupar um assento do fundo e desapareceu com igual rapidez ao final, sem deter-se mais que para estreitar a mão daqueles empregados da
Peverell Press que se adiantavam a resmungar o pêsames. Antes tinha escrito uma carta a Claudia em que solicitava que a empresa se ocupasse dos acertos
necessários, e agora ele acreditava que tivessem devido fazê-lo melhor. Deveria haver-se tomado mais interesse em vez de deixá-lo tudo em mãos da Claudia, o que
na prática
equivalia a deixá-lo em mãos da secretária da Claudia.
   Pensou que deveria existir um serviço destinado a quem não professa nenhuma religião.
   Certamente o havia e teriam podido descobri-lo se se tivessem tomado a moléstia de fazê-lo.
   Poderia ser um projeto editorial interessante e possivelmente inclusive lucrativo; um livro de ritos funerários alternativos para humanistas, ateus e agnósticos,
uma cerimônia
formal de rememoração, uma celebração do espírito humano que não incluíra nenhuma referência a uma possível continuidade da existência. Enquanto avançava a grandes
passos para a estação, com o comprido abrigo aberto e batendo as asas, entreteve-se selecionando fragmentos de prosa e verso para semelhante livro. Olhe por última
vez
todas as coisas encantadoras, de a Mare, para pôr um toque de melancolia nostálgica. Talvez Non Dolet, do Oliver Gogarty, a ode Ao outono, do Keats, se o
defunto era maior e A uma cotovia, da Shelley, se era jovem. Os Versos escritos sobre a abadia do Tintern, do Wordsworth, para os adoradores da natureza.
Poderia haver canções em lugar de hinos, e o movimento lento do concerto Imperador do Beethoven constituiria uma adequada marcha fúnebre. Por certo, não havia
que descartar o terceiro capítulo do Eclesiastés:
   Tudo tem seu momento e tudo que se faz sob o sol tem seu tempo. Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o plantado;
tempo de matar e tempo de curar; tempo de destruir e tempo de edificar.
   Tivesse podido preparar um pouco apropriado para a Sonia, incluindo possivelmente extratos dos livros que ela tinha encarregado e editado, uma comemoração de
seus vinte e quatro
anos de serviços à empresa que a própria Sonia teria encontrado adequada. Pareceu-lhe um dado curioso a importância que tinham estes ritos funerários, evidentemente
concebidos para consolar e atender às necessidades dos vivos, posto que nunca poderiam afetar aos mortos.
   deteve-se comprar dois cartões de leite semidesnatada e uma garrafa de detergente líquido no supermercado do Notting Hill Gate, antes de entrar sigilosamente
em casa. Era evidente que Rupert estava acompanhado, pois pelo oco da escada baixava com claridade um rumor de vozes e de música. Tinha esperado encontrá-lo
só e se perguntou, como com tanta freqüência estava acostumada fazer, como um homem tão doente podia suportar tanto ruído. Mas, depois de tudo, era um ruído alegre
e Rupert
só o suportava durante um tempo limitado. Era ele, James, quem confrontava logo a inevitável reação. de repente lhe invadiu a sensação de que não podia ver
a ninguém. Em vez de subir dirigiu à cozinha e, sem tirar o casaco, preparou-se um chá, abriu a porta de atrás e saiu com a taça à quietude e a escuridão
do jardim para sentar-se no banco de madeira que havia junto à porta. Era um anoitecer quente para estar no fim de setembro e, sentado ali enquanto a
escuridão se fazia mais profunda, separado do bulício e a brilhante iluminação do Notting Hill Gate por oitenta metros escassos, pareceu-lhe que aquele jardincito
continha, suspensas em sua tranqüila atmosfera, toda a doçura recordada do verão e a abundância margosa do outono.
   Durante dez anos, desde que sua madrinha a legasse, a casa tinha sido uma fonte inesgotável de prazer e contente. Não tinha esperado desfrutar de tão viva ou
complacente satisfação na propriedade, já que da adolescência se esteve enganando com a convicção de que, salvo seus quadros, as posses materiais
careciam de importância para ele. Agora sabia que uma posse, a mais sólida e permanente, tinha passado a ocupar uma posição dominante em sua vida. Gostava da
modesta fachada de estilo Regência, as janelas com portinhas, o duplo salão de receber do primeiro andar, que dava à rua por diante e em cuja parte traseira
tinha construído um estufa com vistas a seu próprio jardim e aos de seus vizinhos. Gostava dos móveis do século XVIII que sua madrinha havia trazido consigo
à casa quando uma pobreza relativa a empurrou para essa rua então humilde, ainda sem aburguesar, ainda um pouco desastrada. Sua madrinha o tinha deixado
tudo exceto os quadros, mas, dado que nessa matéria seus gostos diferiam, James não se afligiu. O salão estava provido de estanterías de um metro vinte de altura
ao longo de todas as paredes, sobre as quais tinha pendurado suas gravuras e aquarelas. A casa ainda conservava um ar de discreta femineidad, mas ele não sentia
nenhum desejo de lhe impor um gosto mais masculino.
   Retornava a ela cada noite, ao pequeno mas elegante saguão com seu empapelado descolorido e a escada brandamente curva, com a sensação de entrar em um mundo
privado, seguro e absolutamente prazenteiro. Isso, antes de acolher ao Rupert.
   Rupert Farlow tinha publicado sua primeira novela na Peverell Press quinze anos antes e James ainda recordava a mescla de entusiasmo e admiração com que havia
lido o manuscrito, entregue não por mediação de um agente, a não ser diretamente a editorial, mal datilografado em um papel inadequado e sem que o acompanhasse
uma carta explicativa, a não ser simplesmente com o nome e a direção do Rupert, como se este desafiasse ao leitor ainda desconhecido a reconhecer sua qualidade.
Seu
segunda novela, publicada ao cabo de dois anos, foi recebida com menos generosidade, como está acostumado a acontecer com as segundas novelas depois de um espetacular
êxito inicial,
mas James não ficou decepcionado. Aí, confirmado, havia um talento de primeira magnitude. E depois, silêncio. Deixou de ver-se ao Rupert em Londres e as cartas e
as
chamadas telefônicas ficavam sem resposta. Se rumoreó que estava no norte da África, em Califórnia, na Índia. E então reapareceu, mas não trazia consigo
nenhuma obra nova. Não houve outra novela e agora já não a haveria. Foi Frances Peverell quem comentou ao James que tinha ouvido dizer que Rupert estava morrendo
de sida em um hospital do oeste de Londres. Ela não foi visitar o, mas James sim, e continuou visitando-o. Rupert estava recuperando-se, mas o pessoal do hospital
não sabia o que fazer com ele. Seu piso resultava inadequado, o caseiro lhe era hostil e ele detestava a camaradagem do hospital. Tudo isto saiu à luz sem mediar
queixa alguma. Rupert nunca se queixava exceto das trivialidades da vida. Ao parecer considerava sua enfermidade não como uma aflição cruel e injusta, mas sim como
um fim ordenado e ineludible, digno de ser agüentado sem amarguras. Rupert morria com valor e com dignidade, mas seguia sendo o Rupert de sempre, malintencionado
ou peralta, falso ou temperamental, segundo o queria descrever. Vacilante, temendo que sua oferta pudesse lhe ofender ou ser mal interpretada, James lhe sugeriu
que
fora a viver com ele no Hillgate Village. A oferta foi aceita e fazia quatro meses que Rupert se instalou ali.
   A tranqüilidade, a velha ordem, a velha segurança, tudo se tinha desvanecido. Ao Rupert resultava difícil subir e baixar escadas, de maneira que James o
tinha instalado uma cama no salão e o doente se passava quase todo o dia ali ou, quando fazia sol, no estufa. No primeiro piso havia um asseio com ducha
e uma habitação pouco maior que um armário, que James tinha convertido em uma cozinha provida de uma bule elétrica e um fogão de dois queimadores no que podia
preparar café ou sanduíches quentes. Na prática, o primeiro piso se converteu em um pequeno apartamento independente do que Rupert se apropriou e no
que tinha imposto sua desordenada, iconoclasta e travessa personalidade. Ironicamente, a casa se tornou menos tranqüila agora que era o lar de um moribundo.
Havia uma constante afluência de visitas: os companheiros atuais e antigos do Rupert, seu reflexólogo, a massagista que deixava a seu passado um aroma de azeites
exóticos,
o pai Michael, que ia, isso dizia Rupert, para ouvi-lo em confissão, mas cujos ofícios eram recebidos, na aparência, com a mesma condescendência divertida com que
aceitava os relativos a suas necessidades corporais. Os amigos estranha vez foram às horas em que James estava em casa, salvo durante os fins de semana, embora
cada noite o recebiam os rastros de suas visitas: flores, revistas, fruta e frascos de azeites aromáticos. Ali conversavam, faziam café, eram convidados a beber.
Um dia James perguntou ao Rupert: Saboreia o vinho o pai Michael?
   Sabe que garrafas tem que subir, isso certamente.
   Muito bem, então.
   Não pensava lhe regular o clarete ao pai Michael, sempre que o homem soubesse o que estava bebendo.
   James, que tinha seu dormitório um piso mais acima, proporcionou ao Rupert uma campainha de latão que tinha encontrado no mercado do Portobello para que pudesse
chamá-lo se necessitava ajuda de noite. Agora dormia mau, médio esperando ouvir a clamorosa chamada, imaginando, semidespierto, o estalo continuado das carretas
de
cadáveres em um Londres acossado pela peste enquanto soava o grito quejumbroso: "Tirem seus mortos."
   Recordava até o último detalhe da conversação que haviam sustenido dois meses antes, os olhos perspicazes e irônicos do Rupert, seu rosto sorridente que
desafiava-o a não acreditar.
   Só lhe conto os fatos. Gerard Etienne sabia que Eric tinha sida e se encarregou de que nos conhecêssemos. Não me queixo, longe disso. Eu tive certa responsabilidade
no assunto. Gerard não acompanhou aos duas até a cama.
   Lástima que não escolhesse melhor.
   Não cria. Também te direi que não me pensei isso muito. Você não chegou a conhecer o Eric, verdade?
   Era formoso. Muito poucas pessoas o são. Atrativas, bonitas, sexy, de aparência agradável, todos os adjetivos de costume, mas não formosas. Eric o era. A beleza
sempre me resultou irresistível. E isso é tudo o que exigia a um amante? Beleza física?
   Rupert o parodiou, com os olhos e a voz brandamente zombadores. E isso é tudo o que exigia a um amante? Querido James, em que classe de mundo vive, que classe
de pessoa é? Não, isso não era tudo o que exigia. Exigia. Em passado, por isso vejo.
   Teria sido um pouco mais delicado por sua parte que emprestasse atenção à gramática. Não, não era tudo. Queria a alguém que também estivesse encaprichado de mim
e tivesse certas habilidades na cama. Não perguntei ao Eric se preferia o jazz à música de câmara ou a ópera ao balé, nem, mais importante, que vinhos eram
seus favoritos. Estou-te falando de desejo, estou-te falando de amor.
   meu deus, é como tratar de lhe explicar Mozart a um surdo para a música. Olhe, deixemo-lo assim:
   Gerard Etienne nos arrojou deliberadamente ao um em braços do outro. O já sabia que Eric tinha sida.
   Possivelmente esperava que nos fizéssemos amantes, possivelmente pretendia que nos fizéssemos amantes, possivelmente não lhe importava no mais mínimo nenhuma
coisa nem a outra. Possivelmente o
fez por divertir-se. Não sei quais eram seus propósitos e tampouco me importa muito. Sei quais eram meus propósitos.
   E Eric, sabendo que padecia uma enfermidade contagiosa, não lhe disse isso? No que pensava, pelo amor de Deus?
   Bom, ao princípio não. Disse-me isso mais tarde. Não o culpo, e se eu não o culpo pode te guardar seus julgamentos morais. E não sei no que pensava. Eu não dedico
a
farejar na mente de meus amigos. Talvez queria a alguém que o acompanhasse no último lance, antes de lançar-se a explorar esse comprido silencio. Logo acrescentou:
Você não perdoa a seus amigos?
   Perdão não me parece uma palavra apropriada para utilizá-la entre amigos. Claro que nenhum de meus amigos me contagiou uma enfermidade mortal.
   Mas, querido James, não é precisamente que você lhes dê ocasião, verdade?
   Tinha interrogado ao Rupert com a insistência impessoal de um perito investigador porque precisava lhe surrupiar a verdade, porque estava desesperado por saber.
Como pode estar seguro de que Etienne sabia que Eric estava doente?
   Não pergunte tanto, James. Parece um fiscal. E você adora os eufemismos, verdade? Sabia porque Eric o disse. Etienne lhe perguntou quando lhe levaria outro
livro. A Peverell Press tinha ido bastante bem com seu primeiro livro de viagens; Etienne o conseguiu barato e provavelmente esperava ficar o seguinte em
as mesmas condições. Eric lhe disse que não haveria mais livros.
   Carecia da energia e as vontades necessárias para isso. Tinha outros projetos para o que ficava de vida.
   E neles entrava você.
   Assim aconteceu. Duas semanas depois daquela conversação, Etienne organizou a excursão pelo rio. Suspeito de por si, não te parece? Não é absolutamente o
tipo de farra que vai ao Etienne.
   Chuf, chuf, velho pai Támesis acima para inspecionar a barreira contra inundações; chuf, chuf, de volta rio abaixo com canapés de salmão defumado e champanha.
E, a propósito, como te liberou?
   Estava na França.
   Assim na França. Seu segundo lar. É curioso que ao velho Etienne lhe tenha satisfeito tanto passar todos estes anos longe de sua terra natal. Gerard e Claudia
tampouco vão por ali, não? Seria de esperar que gostassem de ir de vez em quando a ver o lugar onde papai e seus camaradas o passavam em grande atirando contra
os alemães desde detrás das rochas. Mas eles não vão nunca, e você em troca vai sempre que pode. O que faz ali? Comprovar se for certo tudo o que se diz
dele? por que teria que fazê-lo?
   Só era falar por falar, não me faça conta. Além disso, nunca lhe poderá imputar nada ao velho Etienne. Está autentificado; não cabe dúvida, é um herói legítimo.
   me fale da excursão pelo rio.
   OH, foi o de costume. Datilógrafas que não paravam de soltar risitas nervosas e a senhorita Blackett um pouco achispada, com a cara vermelha e congestionada,
exibindo
essa horrível picardia virginal. trouxe-se aquela serpente contra as correntes de ar; Sid a lhe Vaiem, chamam-na.
   Uma mulher extraordinária. Sem o menor senso de humor, diria eu, exceto com essa serpente.
   Algumas das garotas a desprenderam pela amurada e ameaçaram afogando, e uma fingiu que lhe dava de beber champanha. Ao final a enrolaram ao Eric ao pescoço
e a levou assim até chegar a casa.
   Mas isso foi mais tarde. Enquanto subíamos rio acima fui refugiar me na proa. Eric estava ali sozinho, absolutamente imóvel, como um mascarón de proa. voltou-se
e me olhou. Rupert fez uma pausa e a seguir repetiu quase em um sussurro: voltou-se e me olhou. James, o que acabo de te dizer melhor o esquece.
   Não, não penso esquecê-lo. Está-me dizendo a verdade?
   Certamente. Acaso não a digo sempre?
   Não, Rupert, não sempre.
   de repente se rompeu o sonho. A porta da cozinha se abriu de repente e um amigo do Rupert apareceu a cabeça.
   Tinha-me parecido ouvir a porta da rua. Já vamos. Rupert queria saber se já havia tornado. Sempre revista subir diretamente.
   Sim respondeu. Sempre estou acostumado a subir diretamente. E como é que está aqui fora?
   Perguntou-o com escassa curiosidade, mas James respondeu:
   Estava meditando sobre o terceiro capítulo do Eclesiastés.
   Acredito que Rupert quer verte.
   Agora vou.
   E subiu penosamente, como um ancião, à desordem, a calidez, a exótica e profusa confusão em que se converteu sua sala de estar.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

8
 
   Eram as nove e, no piso superior de uma casa encostada do Westbourne Grove, Claudia Etienne se achava na cama com seu amante.
   Eu gostaria de saber por que sempre se sente um brincalhão depois de uns funerais disse Claudia. A poderosa conjunção da morte e o sexo, suponho. Sabia
que as prostitutas vitorianas estavam acostumadas agradar a seus clientes sobre as lajes dos cemitérios?
   Duro, frio e sinistro. Espero que lhes saíssem hemorróidas. Não me animaria. Estaria todo o momento pensando no cadáver putrefato que tinha debaixo e em
os vermes inchados que entravam e saíam por seus orifícios. Que coisas mais extraordinárias sabe, querida. Estando contigo se aprende muito.
   Sim assentiu Claudia, já sei.
   perguntava-se se ele, quão mesmo ela, estava pensando em algo mais que dados históricos.
   "Estando contigo", havia dito, não "te querendo".
   Ele se voltou para olhá-la e apoiou a cabeça em uma mão. foi muito espantoso o funeral?
   conseguiu ser tedioso e tétrico ao mesmo tempo. Música em conserva, um ataúde que parecia reciclado, uma liturgia revisão para não ofender a ninguém, nem sequer
a Deus, e um clérigo que fazia todo o possível por dar a impressão de que estávamos participando de algo que tinha um sentido.
   Quando me chegar o turno comentou ele, eu gostaria que me queimassem em uma pira funerária junto ao mar, como ao Keats.
   Shelley.
   Como aquele poeta, fora quem fosse. Uma noite cálida e ventosa, sem ataúde e com abundante bebida. Todos os amigos nadariam nus e logo dançariam alegremente
ao redor da fogueira, recebendo meu calor. E a seguinte enjoa se levaria as cinzas. Crie que se deixasse instruções no testamento alguém se encarregaria
de organizá-lo?
   Eu não contaria com isso. Certamente acabará no Golders Green, como todos nós.
   O dormitório era pequeno e o ocupava quase por completo uma cama vitoriana de metro e meio de largura, construída em latão ornamentado e com altas colunas coroadas
por pomos, das quais Declan tinha suspenso uma colcha também vitoriana de recortes, um tanto puída e desfiada em alguns pontos. O suntuoso e multicolorido
dossel, reluzente de seda e cetim, pendia sobre eles quando faziam o amor, iluminado pelo abajur de cabeceira. Algumas fios de seda penduravam soltas e Claudia
sentiu de improviso o impulso de atirar delas. Ao fazê-lo, advertiu que a colcha estava cheia de cartas velhas: os muito finos traços negros de uma mão morta
fazia muito tempo resultavam claramente visíveis. A história de uma família, os triunfos e problemas de uma família os pressionavam do alto.
   O reino do Declan a Claudia parecia um reino se estendia baixo eles. A loja e todo o imóvel eram propriedade do senhor Simon Claudia não conhecia seu nome
de pilha, que alugava ao Declan os dois pisos superiores por uma soma ridícula e lhe pagava com igual parcimônia para que levasse a loja. O senhor Simon sempre
estava presente, sentado com sua calota negra, ante um escritório dickensiano ao lado mesmo da entrada, para saudar os clientes mais apreciados. Além de
isso logo que participava das compras e as vendas, embora sim controlava o fluxo do dinheiro.
   Também dirigia pessoalmente a disposição da parte dianteira do local, a fim de expor os móveis, quadros e objetos mais seletos de forma que destacassem.
O fundo da planta baixa era onde Declan tinha estabelecido seu domínio. tratava-se de um estufa de vidro reforçado com duas palmeiras em cada extremo, os
esbeltos troncos de ferro e as folhas, que tremiam ao roce da mão, de lata grafite de um verde brilhante. Este toque de sol mediterrâneo contrastava com
o ar vagamente eclesiástico do estufa. Alguns dos painéis inferiores tinham sido substituídos por peças de vidro colorido, curiosamente irregulares,
procedentes do Iglesias derrubadas: um quebra-cabeças de anjos de cabelos amarelos e Santos com halo, apóstolos lúgubres, fragmentos de uma cena do Natal
ou a Ultima Jantar, vinhetas domésticas de mãos servindo vinho em taças ou levantando fogaças de pão. Colocados em alegre desordem sobre uma variedade de mesas e
aglomerados
em cadeiras, estavam os objetos adquiridos pelo Declan, e era ali onde seus clientes pessoais revolviam, exclamavam, admiravam e faziam seus descobrimentos.
   E havia descobrimentos que fazer. Declan, como Claudia reconhecia, tinha bom olho. Era um apaixonado pela beleza, a diversidade, a raridade. Possuía conhecimentos
extraordinários em temas dos que ela sabia muito pouco; a Claudia surpreendiam tanto as coisas que sabia como as que ignorava. de vez em quando, seus achados
eram subidos à parte dianteira da loja e imediatamente perdia todo interesse por eles; o amor que sentia por suas aquisições era inconstante.
   "Compreende, Claudia querida, por que tinha que comprá-lo? Verdade que compreende por que não podia deixá-lo passar?" Acariciava, admirava, investigava, desfrutava-se
com cada aquisição, adjudicava-lhe o sítio de honra. Mas ao cabo de três esta meses tinha desaparecido de modo misterioso para ser substituída por um novo entusiasmo.
Não tentava absolutamente exibir ordenadamente as peças; estavam todas revoltas, as que careciam de valor e as boas. Uma figura comemorativa em porcelana
do Staffordshire que representava ao Garibaldi a cavalo, uma molheira gretada do derbi do Bloor, moedas e medalhas, aves dissecadas sob uma cúpula de vidro,
sentimentais aquarelas vitorianas, bustos em bronze do Disraeli e Gladstone, uma pesada cômoda vitoriana, um par de cadeiras art déco em madeira sobredorada, um
urso dissecado, uma boina de oficial das Forças Aéreas alemãs totalmente acartonada.
   Ao examinar este último objeto, Claudia lhe tinha perguntado:
   E isto, como pretende vendê-lo, como a boina do defunto marechal de campo Hermann Goering?
   Não sabia nada do passado do Declan. Uma vez lhe havia dito com um marcado e pouco convincente acento irlandês: "Pois claro, eu só sou um pobre menino do Tipperary,
e minha mamãe está morta e meu papai partiu Deus sabe onde", mas ela não acreditou. Sua voz clara e cuidadosamente cultivada não oferecia nenhum indício de sua procedência
ou sua família. Claudia supunha que, quando se casassem se se casavam, lhe contaria algo de seu passado, e se não ela provavelmente perguntaria. No momento, certo
instinto lhe advertia que não era prudente e lhe impunha silêncio.
   Resultava difícil imaginar-lhe com uma vida anterior ortodoxa: pais e irmãos, a escola, o primeiro trabalho. Às vezes lhe parecia que Declan era um mutante
exótico que se materializou espontaneamente naquela sala abarrotada de coisas e que estendia seus dedos aquisitivos para os objetos de séculos passados,
mas que carecia em si de realidade salvo no momento presente.
   conheceram-se seis meses antes, ocupando assentos contigüos no metro um dia em que se produziu uma importante interrupção no fornecimento de energia
da linha central. Durante a espera, na aparência interminável, que se prolongou até que lhes deram instruções de descer do vagão e sair do túnel andando,
ele olhou de esguelha o exemplar do Independent que levava Claudia e, quando seus olhos se encontraram, sorriu-lhe com ar de desculpa e disse:
   Sinto muito, é uma descortesia, sei, mas tenho um pouco de claustrofobia. Sempre me resulta mais fácil suportar estas demoras se me entretenho lendo. Normalmente
levo algo.
   Já o terminei respondeu ela. Pode agarrá-lo. Além disso, levo um livro na maleta.
   Assim seguiram sentados juntos, os dois lendo, os dois calados, mas ela muito consciente do ter a seu lado. Quando por fim lhes anunciaram que deviam
abandonar o trem, não estendeu o pânico, mas foi uma experiência desagradável e para alguns muito alarmante. Um ou dois graciosos reagiram à tensão com comentários
de duvidoso humorismo e fortes gargalhadas, mas a maioria a agüentou em silêncio. Perto deles havia uma senhora maior visivelmente angustiada, e médio a transportaram
entre os dois, ajudando-a a caminhar pela via. A mulher lhes explicou que estava doente do coração e era asmática, e temia que o pó do túnel pudesse lhe provocar
um ataque.
   Já na estação, uma vez a tiveram deixado aos cuidados de uma das enfermeiras de serviço, ele se voltou para a Claudia e comentou:
   Acredito que nos ganhamos uma taça. Eu, ao menos, necessito-a. vamos procurar um pub?
   Claudia se disse que não havia nada como um perigo comum seguido de uma benevolência compartilhada para favorecer a intimidade, e que seria mais prudente despedir-se
imediatamente e seguir seu caminho. Mesmo assim, aceitou. Quando por fim se separaram, ela já sabia onde acabaria a coisa. Mas não se precipitou. Nunca tinha iniciado
uma
aventura amorosa sem a certeza interior de que controlava a situação, de que era mais amada do que amava, mais suscetível de causar dor que de sofrê-lo.
Agora não estava segura disso.
   Fazia coisa de um mês que eram amantes quando lhe perguntou: por que não nos casamos?
   A sugestão Claudia não podia considerá-la uma proposta era tão surpreendente que ela permaneceu uns instantes em silêncio. Ele prosseguiu: Não te parece uma
boa idéia?
   Claudia se deu conta de que estava sopesando seriamente a sugestão sem saber se para ele não era mais que uma das idéias que expor de vez em quando, sem
esperar que ela as acreditasse e, ao parecer, sem que lhe importasse muito se as acreditava ou não.
   Se falas a sério respondeu devagar, a resposta é que seria uma idéia muito má.
   De acordo; mas podemos nos prometer. Eu gosto da idéia de um compromisso permanente.
   Isso é uma contradição. por que? Ao velho Simon adoraria. Poderia lhe dizer: "Estou esperando a minha noiva." Não se sentiria tão violento quando ficasse
a passar a noite.
   Nunca vi que desse a mais mínima amostra de sentir-se violento. Duvido que lhe importasse que nos dedicássemos a fornicar na sala dianteira, sempre que não
assustássemos aos clientes nem danificássemos o material.
   Entretanto, ele começou a chamá-la "minha noiva" quando falava dela com o velho Simon, e a Claudia pareceu que não podia rechaçar o apelativo sem ficar os
dois como uns parvos e lhe dar ao assunto uma importância que não tinha. Declan não voltou a mencionar o matrimônio, mas lhe desconcertou descobrir que a idéia
começava a arraigar em uma parte de sua mente.
   Aquele entardecer chegou diretamente do crematório, saudou o senhor Simon e passou à sala de atrás sem entreter-se. Declan estava contemplando uma miniatura.
lhe gostava de observá-lo com o objeto que, por transitivo que fora o afeto, despertava momentaneamente seu entusiasmo. Era um retrato de uma dama do século
XVIII , o decote sutiã e a escarolada peitilho pintados com grande delicadeza, o rosto emoldurado por uma alta peruca empoeirada, de um atrativo possivelmente em
excesso
adocicado.
   Pago por um amante rico, suponho. Tem mais aspecto de rameira que de esposa, não te parece? Acredito que poderia ser do Richard Corey. Se o for, trata-se de um
achado.
Compreende, querida, por que tinha que comprá-lo? De onde o tiraste?
   De uma mulher que tinha anunciado uns desenhos que acreditava originais. Não o eram. Isto sim. Quanto lhe pagaste?
   Trezentas e cinqüenta. teria se conformado com menos, porque estava bastante desesperada.
   Mas eu gosto de pulverizar um pouco de felicidade pagando um preço ligeiramente mais elevado do que se espera.
   E vale três vezes mais, não?
   Algo assim. É preciosa, verdade? A pintura, quero dizer. Detrás leva uma mecha de cabelo enroscado. Não acredito que isto deva ir à sala dianteira; poderiam roubá-lo
em um segundo. A vista do velho Simon já não é o que era.
   Eu o vejo bastante doente apontou ela. por que não lhe aconselha que vá ao médico?
   É inútil, já o tentei. Detesta aos médicos e ainda mais os hospitais. Aterroriza-lhe a idéia de que o ingressem em um. Para ele, os hospitais são
sítios onde morre a gente, e não gosta de pensar na morte. Não é de sentir saudades, se ao resto de sua família o exterminaram em Auschwitz.
   Naquele momento Declan se separou dela para tender-se de costas e, olhando a seda de cores iluminada pelo suave resplendor do abajur de cabeceira,
perguntou-lhe: falaste já com o Gerard?
   Não, ainda não. Falarei com ele depois da próxima reunião do conselho.
   Olhe, Claudia, quero a loja. Necessito-a. Tenho-a feito eu. Tudo o que a distingue é minha obra. O velho Simon não pode vender-lhe a outro.
   Já sei. Teremos que procurar que isto não passe.
   Pensou em quão estranho resultava esse impulsiono de dar, de satisfazer todos os desejos de seu amante, como se queria lhe compensar a carga de ser amado. Ou
se devia
à crença irracional e mais profunda de que ele merecia obter o que queria e quando o queria, em virtude simplesmente de sua amabilidade? E quando Declan queria
algo, queria-o com a insistência de um menino malcriado, sem reservas, sem dignidade, sem paciência. Não obstante, Claudia se disse que este desejo em particular
era
adulto e racional. A propriedade, que compreendia os dois apartamentos e toda a loja, era uma ganga por trezentas e cinqüenta mil libras.
   Simon queria vendê-la e queria vender-lhe a ele, mas não podia esperar muito mais. tornaste a falar com ele? perguntou Claudia. Que prazo nos dá?
   Quer que lhe diga algo antes de final de outubro, mas se pode ser antes, melhor. Está desejando ir-se tender seus velhos ossos ao sol.
   Mas não encontrará outro comprador de um dia para outro.
   Não, mas se não lhe damos uma resposta concreta para essa data, tirará-a o mercado e, naturalmente, pedirá mais do que me pede .
   Claudia anunciou lentamente:
   Proporei ao Gerard que compre minha parte na empresa. Refere a suas ações da Peverell Press? Pode as pagar?
   Não sem dificuldades, mas se estiver de acordo encontrará o dinheiro. E não pode conseguir o de outra maneira?
   Ela pensou: "Poderia vender o piso do Barbican e me vir a viver aqui, mas que classe de solução seria essa?" Disse:
   Não tenho trezentas e cinqüenta mil libras guardadas no banco, se quer dizer isso.
   Declan insistiu:
   Gerard é seu irmão. Seguro que te ajudaria.
   Não temos muita relação. Como íamos ter a? Depois da morte de nossa mãe, mandaram a distintas escolas. Apenas nos víamos até que começamos
a trabalhar os dois no Innocent House. Comprará-me as ações se acreditar que lhe convém. Se não, não o fará. Quando o perguntará?
   depois da reunião do conselho de quatorze de outubro. E por que não antes?
   Porque então será o melhor momento.
   Permaneceram deitados em silencio durante uns minutos. de repente, ela propôs:
   Escuta, Declan, vamos ao rio nos dia quatorze. Vem a me buscar às seis e meia e agarramos a lancha até a barreira do Támesis. Não a viu nunca em
a escuridão.
   Não a vi alguma vez. E não fará frio?
   Não especialmente. Ponha roupa de casaco. Levarei um recipiente térmico de sopa e vinho. Asseguro-te que vale a pena ver essas grandes massas que surgem do rio
escuro e se abatem
sobre ti. Vêem vê-lo.
   Poderíamos parar em Greenwich para jantar em um pub.
   Muito bem aceitou. por que não? Irei. Não entendo por que temos que ficar agora, mas irei se não ter que ver seu irmão.
   Isso lhe posso prometer isso    Antes de las seis y media es imposible. La lancha no estará libre hasta esa hora.
   Às seis e meia no Innocent House, então. Podemos sair antes, se quiser.
   antes das seis e meia é impossível. A lancha não estará livre até essa hora.
   Ele observou:
   Faz que pareça algo importante.
   Sim disse ela. Sim, é importante, importante para os dois.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

9
 
   Gabriel deixou ao Frances nada mais terminar a partida, uma partida que ganhou com facilidade. Ela advertiu compungida que parecia muito cansado e se perguntou
se não
teria subido mais por compaixão que por verdadeira necessidade de companhia. O funeral devia ter sido pior para ele que para outros diretores da empresa.
depois de tudo, era o único membro do pessoal pelo que Sonia parecia sentir algum afeto. Ela tinha feito algum intento vacilante por estabelecer uma relação
de amizade, mas Sonia os tinha rechaçado sutilmente, quase como se o fato de ser uma Peverell a inabilitasse para a intimidade. Possivelmente era a única de entre
todos os sócios que sentia uma aflição pessoal.
   O xadrez lhe tinha estimulado a mente; sabia que ir-se à cama em tais condições só a conduziria a uma dessas noites em que breves períodos de sonho
alternavam-se com outros de inquietação, até que a manhã a encontrava mais fatigada que se não se deitou. Movida por um impulso, dirigiu-se ao armário
da sala em busca de seu grosso casaco de inverno; logo, depois de apagar a luz, abriu o ventanal e saiu ao balcão. O ar da noite, limpo e frio, transportava
o aroma familiar e penetrante do rio. Ali, arranca-rabo ao corrimão, teve a sensação de ser um ente imaterial suspenso no ar. Sobre Londres se estendia
uma massa de nuvens baixas, tinta de rosa como uma vendagem de gaze empapado no sangue da cidade. Logo, enquanto olhava, as nuvens se abriram pouco a pouco e viu
o limpo negro azulado do firmamento noturno e uma só estrela. Um helicóptero voou ruidosamente rio acima, como uma enjoyada libélula metálica. Isso mesmo
fazia seu pai, noite detrás noite, antes de ir deitar se. Ela arrumava a cozinha depois de jantar e, ao sair, encontrava-se a sala em penumbra, iluminada tão
só por um abajur tênue, e via a sombra escura daquela figura silenciosa e imóvel que, de pé no balcão, contemplava o rio.
   mudaram-se ao número 12 em 1983, quando a empresa atravessava um de seus períodos de relativa prosperidade e terá que ampliar os escritórios do Innocent House.
O número 12 o ocupava desde fazia muitos anos um inquilino que morreu no momento adequado, deixando-os em liberdade de reformar o imóvel de modo que ficasse
dividida em um apartamento superior para seu pai e ela e outro mais pequeno nos baixos para o Gabriel Dauntsey. Seu pai tinha aceito com filosofia a necessidade
de mudar-se e inclusive, para falar a verdade, tinha dado amostras de recebê-la com agrado. Entretanto, Frances suspeitava que começou a encontrar o apartamento
restritivo
e claustrofóbico a partir do momento em que ela se foi a viver com ele em 1985, ao sair de Oxford.
   Sua mãe, uma mulher de saúde delicada, tinha morrido repentina e inesperadamente de pneumonia viral quando ela tinha cinco anos, e Frances se passou a infância
em
Innocent House com seu pai e uma babá. Teve que chegar à idade adulta para dar-se conta de quão extraordinários tinham sido seus primeiros anos, quão inadequada
a casa como lar familiar para eles dois, pai e filha, inclusive no caso de uma família diminuída pela morte. Não tinha tido companheiros de sua idade. As
escassas plazuelas georgianas do East End superviventes dos bombardeios se converteram em enclaves de moda para a classe média, assim que seus campos de jogo
ficaram reduzidos ao reluzente vestíbulo de mármore e a terraço. Nesta, face ao corrimão protetor, achava-se submetida a uma constante e estreita vigilância,
e jamais lhe permitia montar em bicicleta e jogar à bola. As ruas eram perigosas para uma menina, por isso a tatu Bostock sempre a acompanhava, às vezes
na lancha da empresa, a uma pequena escola privada de Greenwich, ao outro lado do rio, onde se emprestava mais atenção aos bons maneiras que ao cultivo
de uma inteligência inquisitiva, embora em que pese a todo lhe tinha proporcionado uma boa base. A maior parte dos dias, porém, necessitava-se a lancha para recolher
aos empregados no mole do Támesis, de modo que a tatu Bostock e ela eram conduzidas de carro até o túnel de pedestres de Greenwich, e acompanhadas sempre
em seu passeio subterrâneo pelo chofer ou por seu pai para maior segurança.
   Aos adultos nunca lhes ocorreu que pudesse encontrar terrorífico o túnel de pedestres e ela teria morrido antes que confessar-lhe pois sabia desde a primeira
infância que seu pai admirava o valor por cima de todas as demais virtudes. assim, caminhava entre os dois, lhes agarrando a mão em uma simulação de docilidade
infantil, tentando não apertar muito forte, com a cabeça encurvada para que não vissem que tinha os olhos fechados, percebendo o aroma característico do túnel,
ouvindo o eco de seus passos e imaginando que o grande peso de água movediça que gravitava sobre eles, aterradora em sua potência, uma manhã romperia o teto do
túnel e começaria a filtrar-se, primeiro em grossos goterones à medida que cediam os ladrilhos e logo, de repente, em uma quebra de onda ensurdecedora, negra e fedorento
que
arrancaria-os do chão, formando redemoinhos-se e ascendendo até que entre o teto e suas bocas aullantes não houvesse mais que uns centímetros de espaço e de ar.
E depois nem sequer isso.
   Ao cabo de cinco minutos saíam em elevador à luz do dia, para ver a brilhante magnificência da Escola Naval de Greenwich com suas cúpulas as gema e seus
veletas de ponta dourada. Para a menina era como sair do inferno e ficar deslumbrada pela cidade celestial. Ali era também onde estava amarrado o Cutty Sark,
de elevados mastros e esbelto casco. Seu pai lhe falava da Companhia das Índias Orientais e de seu monopólio sobre o comércio com Extremo Oriente durante
o século XVIII , e daqueles grandes veleiros, construídas para ser velozes, que competiam entre si para levar a mercado britânico em um tempo recorde os valiosos
e perecíveis chás da China e a Índia.
   Desde seu mais temprana idade, seu pai lhe contava relatos do rio, que era para ele quase uma obsessão, uma grande artéria sempre fascinadora e constantemente
cambiante
que arrastava em sua poderosa maré toda a história da Inglaterra. Falava-lhe das almadías e as canoas de vime e couro dos primeiros viajantes do Támesis,
das grandes vela quadradas dos navios romanos que levavam seu carregamento ao Londinium, dos navios vikingos com suas largas proas curvadas. Descrevia-lhe o
rio de começos do século XVIII , quando Londres era o maior porto do mundo e os moles e embarcaderos cheios de navios de altos mastros pareciam um bosque
despido pelo vento. Falava-lhe da bronca vida dos malecones e dos muitos ofícios cuja vida derivava daquela corrente sanguínea: estivadores ou arruinadores,
sapateiros que dirigiam as chatas com que se aprovisionava os navios ancorados, fornecedores de soga e de arranjos, construtores de navios, cozinheiros da bordo,
carpinteiros, caçadores de ratos, encarregados de casas de hóspedes, prestamistas, taberneiros, vendedores de fornecimentos marinhos, ricos e pobres por igual, todos
viviam
do rio. Pintava-lhe as grandes ocasione: Enrique VIII navegando rio acima para o Hampton Court na lancha real, os grandes remos elevados em sinal de saudação;
o cadáver de lorde Nelson transportado de Greenwich em 1806, na barcaça construída em principio para o Carlos II; os festejos do rio, suas inundações e tragédias.
Ela desejava mais que nada seu amor e sua aprovação.
   Escutava-lhe obedientemente, fazia as perguntas adequadas, sabia de um modo instintivo que seu pai dava por sentado que ela compartilhava seu interesse pelo rio.
Mas agora se precavia de que o fingimento só tinha servido para acrescentar culpabilidade a sua reserva e acanhamento naturais, que o rio se tornou tão mais
terrorífico quanto que ela não podia reconhecer seus terrores, e a relação com seu pai tão mais remota quanto que se fundava em uma mentira.
   Mas Frances se construiu um mundo próprio e, desperta de noite naquela reluzente e pouco acolhedora habitação infantil, acurrucada sob as mantas
como no útero materno, introduzia-se em sua amável segurança. Nessa vida imaginária tinha uma irmã e um irmão e vivia com eles em uma grande reitoria rural.
Havia um horta com árvores frutíferas e verduras plantadas em pulcras fileiras, separado das amplas extensões de grama por primorosos sebes de boj. Ao final
do jardim havia um arroio aprazível de escassos centímetros de profundidade, que podiam cruzar de um salto, e um velho carvalho com uma casa entre os ramos, confortável
como uma chocita, em que se sentavam a ler e a comer maçãs. Dormiam os três no quarto dos meninos, do que podia ver-se o jardim e a rosaleda até
o campanário da igreja, e não havia vozes ásperas, nem aroma de rio, nem imagem de terror; só doçura e paz. Havia uma mãe, também: alta, formosa, com um comprido
vestido azul e um rosto médio recordado, avançava para ela pela grama com os braços abertos para que se refugiasse entre eles, porque era a mais pequena
e a mais querida.
   Tinha a seu alcance Frances não o ignorava um equivalente adulto deste mundo de quietude.
   Podia casar-se com o James do Witt, mudar-se a sua encantadora moradia do Hillgate Village e lhe dar filhos, os filhos que ela também queria. Podia contar com
seu amor,
estar segura de sua bondade, saber que fossem quais fossem os problemas que trouxesse o matrimônio não haveria crueldade nem rechaço. Talvez poderia aprender, não
a desejá-lo,
posto que isso não depende da vontade, a não ser a encontrar na bondade e a delicadeza um substituto do desejo, de modo que, conforme transcorresse o tempo, as
relações sexuais com ele chegassem a ser possíveis, agradáveis inclusive; em seus momentos mais baixos, o preço que devia pagar por seu amor, nos mais altos um compromisso
de afeto e de fé em que o amor podia, com o tempo, engendrar amor. Mas tinha sido amante do Gerard Etienne durante três meses. E depois daquele prodígio,
daquela pasmosa revelação, comprovou que nem sequer podia suportar que James a tocasse. Gerard, ao tomá-la despreocupadamente e desprezá-la com igual despreocupação,
tinha-a privado inclusive do consolo de sua melhor alternativa.
   O terror do rio, não seu romantismo nem seu mistério, era o que continuava dando pábulo a sua imaginação; e, depois do rechaço brutal do Gerard, esses terrores
que acreditava ter deixado atrás com a infância voltaram a afirmar-se. Este Támesis era uma escura maré de horror: a grade envolta em um matagal de algas empapadas
que
conduzia às vísceras da Torre; o golpe surdo da tocha; a maré que lambia a Escada Velha do Wapping, onde se levava aos piratas, os atava às
pilastras durante a maré baixa e os deixava ali até que a Graça do Wapping os tinham coberto três marés; os cascos pestilentos que jaziam ante o Gravesend
com seu carregamento humano engrilletado. Inclusive os vapores fluviais que cabeceavam rio acima, com a coberta impregnada de risadas e vistosamente estampada de
turistas,
conjuravam imagens não desejadas da maior tragédia do Támesis, ocorrida em 1878, quando o vapor de pás Princess Alice, que retornava carregado de uma viagem a
Sheerness, foi investido por um casco de navio carbonífero e se afogaram seiscentas e quarenta pessoas. Agora, ao Frances parecia que eram seus gritos os que ouvia
nos chiados
das gaivotas e, ao contemplar de noite a negrume do rio salpicada de luz, imaginava as pálidas caras dos meninos afogados, arrancados dos braços de
suas mães, que flutuavam como frágeis pétalas sobre a escura maré.
   Quando tinha quinze anos seu pai a levou por primeira vez a Veneza. Conforme lhe disse, quinze anos era a idade mais temprana a que uma menina podia apreciar
o
arte e a arquitetura do Renascimento, mas já então Frances suspeitava que ele preferia viajar sozinho e que levá-la consigo constituía um dever ao que já não
podia seguir sustrayéndose, embora também fosse um dever que encerrava certa promessa de esperança para os dois.
   Foram as primeiras e últimas férias que passaram juntos. Ela esperava um sol brilhante e caloroso, gondoleiros de chamativo traje sobre uma água azul, resplandecentes
palácios de mármore, janta a sós com seu pai engalanada com algum dos vestidos novos que a senhora Rawlings, o ama de chaves, tinha eleito para a ocasião.
Desejava com desespero que essas férias fossem um novo começo. E começaram mau. Tiveram que viajar durante as férias escolar e a cidade estava
repleta de gente. Durante os dez dias houve um céu plúmbeo e caiu uma chuva intermitente, de grosas gotas que salpicavam uns canais tão parduscos como o
Támesis. Sua impressão foi de ruído constante, roucas vozes estrangeiras, terror de perder a seu pai nas aglomerações, antigas Iglesias mau iluminadas nas
que um assistente se dirigia com passo lento ao interruptor da luz para iluminar um afresco, um quadro, um altar. Naqueles lugares, o ar sempre estava carregado
de incenso e impregnado do aroma acre e mofado da roupa molhada. Seu pai a incitava a abrir-se passo até a primeira fila de turistas, entre trancos e cotoveladas,
e lhe explicava as pinturas em um sussurro, por cima da gritaria de línguas discordantes e as chamadas longínquas de guias peremptórios.
   Um quadro lhe gravou vivamente na memória: Uma mãe amamentando a seu filho sob um céu tormentoso, observada por um homem solitário. Sabia que naquela
pintura havia algo ao que devia responder, algum mistério no tema e a intenção, e desejava compartilhar o entusiasmo de seu pai, dizer algo que, se não obtinha
ser inteligente, ao menos não lhe fizesse apartar a cara com a muda desaprovação a que ela já se acostumou. Nos maus momentos sempre aflorava
a lembrança de palavras ouvidas: "A senhora não voltou a ser a mesma depois de que nascesse a menina. O embaraço a matou, disso não cabe dúvida. E agora olhe com
o que
temos que apechar." A mulher, da que fazia tempo tinha esquecido o nome e a função que desempenhava na casa, certamente não tinha querido dizer mais que
deviam fazer frente a uma casa grande e difícil de dirigir sem a mão firme do ama, mas para a menina o significado da frase tinha estado claro então
e seguia estando claro agora: "Matou a sua mãe e olhe o que nos ficou em troca."
   Outra lembrança daquelas férias se manteve vivido durante os anos que seguiram. Era sua primeira visita à a Accademia e, sujeitando-a com suavidade pelo
ombro, seu pai a conduziu ante um quadro do Vittore Carpaccio, O sonho da Santa Úrsula. Por uma vez estavam sozinhos e, de pé junto a ele, consciente do peso de
sua mão, Frances se encontrou olhando seu dormitório do Innocent House. Ali estavam as janelas as gema arredondadas com a meia lua superior cheia de discos de
vidro verde escuro, a porta do rincão entreabierta, os dois vasos do batente tão parecidos com os de casa, a mesma cama, com as quatro colunas para o
dossel, a alta cabeceira esculpida e a sianinha adornada com borlas. Seu pai comentou:
   Olhe, dorme em uma habitação veneziana do século XV.En a cama havia uma mulher com a cabeça recostada sobre uma mão. Está morta a senhora? perguntou ela.
Morta? por que teria que estar morta?
   Frances percebeu em sua voz a brutalidade já familiar. Não lhe respondeu, não acrescentou nada. O silêncio se prolongou entre os dois até que, com a mão ainda
em
seu ombro, mas agora mais pesada, ou assim o parecia, seu pai a separou do quadro. Outra vez lhe tinha falhado. Sempre tinha sido seu destino ser sensível a todos
os estados de ânimo de seu pai e, ao mesmo tempo, carecer da habilidade e a confiança para enfrentar-se a eles ou responder a sua necessidade.
   Inclusive a religião os separava. Sua mãe tinha sido católica romana, mas os alcances de sua devoção eram algo que Frances ignorava e não tinha meio de averiguar.
A senhora Rawlings, uma correligionária contratada um ano antes da morte de sua mãe, metade como governanta para ajudar a cada vez mais debilitada mulher, metade
como babá, levava-a escrupulosamente a missa todos os domingos, mas além disso não se ocupou de lhe dar nenhuma educação religiosa, por isso a pequena se
formou a idéia de que a religião era algo que seu pai não compreendia e logo que podia tolerar, um segredo feminino do que valia mais não falar diante dele. Não
estavam acostumados a
ir mais de duas vezes à mesma igreja. Houvesse-se dito que à senhora Rawlings gostava de saborear a religião e se dedicava a degustar a variedade de rituais,
arquitetura, música e sermões que lhe oferecia, temerosa de um compromisso prematuro, de ser reconhecida pela congregação, recebida pelo sacerdote na porta
como uma habitual e tentada a participar das atividades da paróquia, possivelmente inclusive de que lhe pedissem que recebesse visitas no Innocent House. Conforme
Frances foi crescendo, começou a suspeitar que, para a senhora Rawlings, encontrar uma igreja nova para a missa matinal do domingo se converteu em uma espécie
de demonstração de iniciativa pessoal, o qual lhe oferecia certa sensação de aventura e proporcionava um elemento de variedade à semana, pelo resto monótona,
e um animado tema de conversação durante a volta a casa.
   "O coro não era muito bom, verdade? Não tem nem comparação com o do Oratório. Temos que voltar um dia ao Oratório, quando me encontrar com forças. Fica
muito longe para ir todos os domingos, mas ao menos o sermão foi curto. depois dos dez primeiros minutos se salvam muito poucas almas, se quer saber meu
opinião."
   Eu não gosto desse pai Ou'Brien. Assim se faz chamar, pelo visto. Muito poucos fiéis. Não sente saudades que se mostrou tão amável na porta. Queria que voltássemos
a semana que vem, claro."
   "Que Via Crucis mais bonito têm. Eu gosto mais assim, em relevo. O pintado que vimos a semana passada no St. Michael era muito gritão, comparado com este.
E ao menos os meninos do coro levavam as sobrepelizes podas; alguém se aconteceu um bom momento engomando."
   Uma manhã de domingo, depois de ouvir missa em uma igreja especialmente aborrecida onde a chuva tamborilava como se fora granizo sobre um telhado provisório
de pranchas de zinco ("Esta gente não é de nossa classe; não voltaremos"), Frances lhe perguntou: por que tenho que ir a missa todos os domingos?
   Porque sua mamãe era católica romana e estabeleceu um acordo com seu pai. Educariam aos meninos segundo os preceitos da Igreja da Inglaterra e às meninas segundo
os da católica romana. E teve a ti.
   Teve-a a ela. O sexo desprezado. A religião desprezada.
   Há muitas religiões no mundo lhe explicou a senhora Rawlings. Cada um pode encontrar algo que lhe convenha. Tudo o que deve recordar é que a nossa é
a única verdadeira. Mas não vale a pena pensar muito nisso, enquanto não faça falta. Parece-me que a semana que vem voltaremos para a catedral. Será Corpus
Christi. Seguro que organizarão todo um espetáculo.
   Quando, aos doze anos, enviaram-na ao convento, foi um alívio para seu pai e para ela. Ao terminar o primeiro trimestre, seu pai foi a recolhê-la pessoalmente
e Frances alcançou para ouvir umas palavras da mãe superiora enquanto os despedia na porta:
   Senhor Peverell, ao parecer a menina não recebeu nenhuma instrução em sua fé.
   Na fé de minha esposa. Se for assim, mãe Bridget, sugiro-lhe que a você instrua.
   Fizeram isso por ela com delicadeza e paciência. E não só isso. Proporcionaram-lhe um breve período de segurança, a sensação de ser apreciada, de que era possível
amá-la. Prepararam-na para Oxford, coisa que ela supunha que devia considerar um benefício adicional, pois a mãe Bridget lhe tinha recalcado com freqüência que
o propósito de uma verdadeira educação católica era preparar às pessoas para a morte. Isso também o fizeram. Pelo que Frances já não estava tão segura era
de que a tivessem preparado para a vida. Certamente, não a tinham preparado para o Gerard Etienne.
   Entrou de novo na sala e fechou com firmeza o ventanal. O ruído do rio se voltou tênue, um sussurro suave no ar da noite. Gabriel lhe havia dito:
"O único poder que tem é o que você lhe dá." Tinha que encontrar como fora a vontade e a coragem suficientes para destruir aquele poder de uma vez para sempre.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

10
 
   As quatro primeiras semanas do Mandy no Innocent House, que tinham começado com o mau auspício de um suicídio e terminariam dramaticamente com um assassinato,
pareceram-lhe, voltando a vista atrás, um dos meses mais felizes de sua vida trabalhista. adaptou-se com rapidez à rotina do escritório; como sempre, e salvo
contadas exceções seus companheiros gostava. Mantinham-na constantemente ocupada, o qual lhe parecia muito bem, e o trabalho era mais variado e interessante que
que estava acostumado a levar a cabo em outras empresas.
   Ao final da primeira semana a senhora Crealey lhe perguntou se estava contente. A resposta do Mandy foi que havia trabalhos piores e que não lhe importava ficar
um pouco mais, o qual era o mais longe que chegava nunca na hora de expressar satisfação por um emprego. No Innocent House a tinha aceito em seguida; a juventude
e a vitalidade combinadas com uma elevada eficiência estranha vez despertam receio durante muito tempo. A senhorita Blackett, depois de uma semana de olhá-la fixamente
com reprobatoria severidade, ao parecer chegou à conclusão de que piores interinas tinha conhecido. Mandy, sempre disposta na hora de detectar o mais conveniente
para seus próprios interesses, tratava-a com uma mescla aduladora de deferência e confiança: ia procurar o café à cozinha, pedia-lhe conselho embora sem intenção
de segui-lo e aceitava algumas das tarefas rotineiras mais aborrecidas com corajosa boa vontade. Para seus adentros pensava que a pobre era patética, digna de lástima.
Estava claro que o senhor Gerard, sem ir mais longe, não podia vê-la nem em pintura, e era natural. A opinião particular do Mandy era que a senhorita Blackett saltaria
irremediavelmente. De todos os modos, estavam muito atarefadas para perder o tempo pensando no pouco que tinham em comum e no muito que cada uma deplorava
a roupa, o penteado e a atitude ante os superiores da outra. Além disso, Mandy não estava sempre no despacho da senhorita Blackett. A senhorita Claudia e o
senhor Do Witt a chamavam com freqüência para lhe ditar todo tipo de textos, e uma terça-feira que George esteve de baixa por causa de um violento transtorno estomacal,
se
fez cargo da recepção e atendeu o posto telefônico sem equivocar-se mais que em umas poucas conexões.
   na quarta-feira e na quinta-feira da segunda semana os passou no departamento de publicidade, ajudando a organizar um par de excursões de promoção e uma sessão
de assinaturas.
Ali, Maggie FitzGerald, a secretária da senhorita Etienne, revelou-lhe alguma das debilidades dos autores, esses seres imprevisíveis e sensíveis em demasia
dos que, como Maggie reconheceu com relutância, dependia em último término a sorte da Peverell Press. Estavam os que intimidavam, aos quais era preferível
deixar em mãos da senhorita Claudia, e os diminuídos e inseguros, que necessitavam apoio constante antes de poder pronunciar uma palavra em um bate-papo da BBC
ou em quem a perspectiva de um almoço literário produzia uma mescla de terror inarticulado e indigestão. Não menos difíceis de dirigir eram os agressivos e
confiados, que, de não contê-los, desfariam-se do encarregado da promoção de suas obras e saltariam a qualquer livraria que houvesse a emano com a oferta de assinar
exemplares, reduzindo assim ao caos um programa cuidadosamente estabelecido. Mas os piores, confiou-lhe Maggie, eram os presunçosos, que estavam acostumados a ser
os que vendiam
menos livros, mas exigiam viagens em primeira, hotéis de cinco estrelas, uma limusine e um alto cargo da editorial a seu lado, e enviavam coléricas cartas de
protesto se suas sessões de assinatura não atraíam uma cauda que desse a volta à maçã. Esses dois dias em publicidade, Mandy desfrutou de do entusiasmo juvenil da
palmilha, das vozes animadas que gritavam sobre a estridência perpétua do telefone, os agentes ruidosamente recebidos que retornavam à base para conversar
e intercambiar notícias, a sensação de urgência e de crise iminente, e retornou a contra gosto a sua cadeira no despacho da senhorita Blackett.
   Entusiasmavam-lhe menos as chamadas para ir tomar notas ao despacho do senhor Bartrum, o responsável pela contabilidade, que, como lhe disse confidencialmente
à senhora Crealey, era amadurecido e aborrecido e a tratava como se fosse um zero à esquerda. O departamento de contabilidade estava no número 10 e, depois de cada
sessão com o senhor Bartrum, Mandy fazia uma escapada ao piso de acima para passar uns minutos de bate-papo, flerte e intercâmbio ritual de insultos com os três
empregados da seção de envios. Estes viviam em um mundo particular de chãos nus e mesas de cavaletes, de cinta adesiva e enormes novelos de corda, com
um aroma característico e excitante a livros recém saídos da imprensa. Gostava dos três: Dave, o do chapéu de monte, que apesar de sua escassa estatura
tinha uns bíceps como balões de futebol e podia levantar pesos extraordinários; Ken, que era alto, lúgubre e calado, e Cari, o encarregado do armazém, que estava
na empresa desde que era um moço. "Este não lhes vai funcionar", dizia às vezes, lhe dando uma palmada a uma caixa de cartão.
   Não se equivoca nunca lhe assegurou Dave em tom de admiração. É capaz de distinguir um best- seller de um fracasso nada mais cheirá-lo. Nem sequer lhe faz falta
lê-lo.
   Sua boa disposição para preparar o chá e o café às duas secretárias pessoais e os sócios lhe dava ocasião de conversar duas vezes ao dia com a encarregada
da limpeza, a senhora Demery. Os domínios da senhora Demery tinham seu centro na grande cozinha e a salita adjacente da planta baixa, ao fundo da casa.
A cozinha estava provida de uma mesa retangular de pinheiro, o bastante grande para dez pessoas, um fogão de gás, outro elétrico e um forno de microondas, uma pia
dobro, um frigorífico enorme e uma parede coberta de pequenas despensas. Ali, de doze a dois do meio-dia, em uma atmosfera carregada de discordantes aromas de cozinha,
toda a palmilha salvo os altos cargos comia seus sándwiches, esquentava ao forno suas rações de massa ao curry envoltas em papel de estanho, fazia omeletes, fervia
ovos, fritava toucinho para sanduíches e se preparava chá ou café.
   Os cinco sócios nunca comiam com eles. Frances Peverell e Gabriel Dauntsey se foram ao edifício do lado, a seus apartamentos separados do número 12, enquanto
que os dois Etienne e James do Witt tomavam a lancha rio acima para almoçar na cidade ou foram andando ao Prospect do Whitby ou a algum dos pubs do Wapping
High Street. A cozinha, sem sua presença inhibidora, era o centro da fofoca. Nela se recebiam as notícias, comentavam-se interminavelmente, adornavam-se
e se divulgavam. Mandy se sentava em silencio ante sua caixa de sándwiches, sabendo que, quando ela estava presente, os empregados de nível médio em particular se
mostravam desusadamente discretos.
   Fossem quais fossem suas opiniões sobre o novo presidente e o possível futuro da empresa, a lealdade e o sentido de sua posição na empresa lhes vedavam
toda crítica aberta em presença de uma interina. Mas quando estava a sós com a senhora Demery, preparando o café da manhã ou o chá da tarde, esta não
tinha tais inibições.
   Acreditávamos que o senhor Gerard e a senhorita Frances foram casar se. Ela também acreditava, a pobre. E logo estão a senhorita Claudia e seu gigoló. A senhorita
Claudia com um gigoló! Venha já, senhora Demery.
   Bom, possivelmente não seja exatamente um gigoló, embora seja bastante jovem. Em qualquer caso, mais que ela. Vi-o quando veio à festa de compromisso do senhor
Gerard.
É bonito, isso terá que reconhecê-lo. A senhorita Claudia sempre teve bom olho para os meninos bonitos. dedica-se às antiguidades, sabe? supõe-se que são
noivos, mas ela não leva anel, se te fixar.
   Mas a senhorita Claudia já é bastante velha, não? E a gente como não lhe dá tanta importância aos anéis.
   Pois essa lady Lucinda bem que leva um, não? Uma esmeralda assim de grande engastada entre diamantes. Ao senhor Gerard teve que lhe custar um bom maço. Não sei
por
o que quer casar-se com a irmã de um conde. E o bastante jovem para ser filha dela, além disso. Eu não o vejo decente.
   Ao melhor faz ilusão uma esposa com título nobiliário, senhora Demery. Já sabe: lady Lucinda Etienne. Ao melhor gosta de como sonha.
   Isso já não conta tanto como antes, Mandy, não da maneira em que se comportam hoje em dia algumas dessas antigas famílias. Não são melhores que outros. Em minha
juventude
era distinto; então lhes tinha um respeito. E esse irmão dele, conde ou não conde, tampouco é que valha muito a pena, se tivermos que acreditar a metade do que sai
nos periódicos. E a senhora Demery concluiu pronunciando a frase com que invariavelmente dava por finalizada toda conversação: Ah, viver para ver!
   A primeira segunda-feira do Mandy na empresa, um dia tão ensolarado que quase se podia acreditar que havia tornado o verão, a jovem viu com certa inveja ao primeiro
grupo
de empregados embarcar às cinco e meia na lancha que devia levá-los a Charing Cross. Seguindo um impulso, perguntou ao Fred Bowling, o barqueiro, se podia
fazer com ele a viagem de ida e volta. Ele não pôs objeção, de modo que saltou a bordo. Durante o trajeto de ida permaneceu sentado ao leme em silêncio, como Mandy
imaginou que devia fazer sempre; mas quando o grupo desembarcou e empreenderam a volta ao Innocent House a favor da corrente, a jovem começou a lhe fazer
pergunta sobre o rio e se surpreendeu ao comprovar seus conhecimentos. Não havia nenhum edifício que não fora capaz de identificar, nenhuma história que desconhecesse,
nenhum companheiro de ofício ao que não reconhecesse e poucas embarcações cujo nome não soubesse.
   Por ele soube Mandy que o obelisco da Cleopatra foi construído ante o templo do Isis no Heliópolis por volta do ano 1450 A. do C., e transportado por mar a Inglaterra
para ser instalado à beira do rio em 1878. Formava parte de um casal, e o outro estava no Central Park de Nova Iorque.
   Mandy se imaginou o grande recipiente, com seu núcleo de pedra, agitando-se nas águas turbulentas do golfo da Vizcaya como um imenso peixe. O barqueiro o se
à o botequim do Doggett's Coat and Badge, junto à ponte do Blackfriars, e o habl da regata de remo Doggett's Coat and Badge que vem disputando-se desde 1722
entre a Old Swan Inn da ponte de Londres e a Old Swan Inn da Chelsea, a primeira carreira para embarcações de remo que se celebrou no mundo. Seu sobrinho havia
tomado parte nela. Enquanto cabeceavam sob os grandes pilares da ponte da Torre, foi capaz de lhe dizer a longitude de cada lance, acrescentando que o passo
elevado ficava a 43 metros da superfície da água durante a maré alta. Quando chegaram ao Wapping falou do James Lê, um agricultor do Fulham que cultivava
legumes para o mercado e que em 1789 viu na janela de uma casita uma formosa flor gasta por um marinheiro do Brasil. James Lê comprou a flor por oito libras,
plantou galhos e ao ano seguinte amassou uma fortuna ao vender trezentas novelo por uma guinea cada uma. E que flor diria você que era?
   Não sei, senhor Bowling, não entendo de novelo.
   Vamos, Mandy, a ver se o adivinha. Poderia ser uma rosa? Uma rosa? Claro que não era uma rosa! Rosas as houve sempre na Inglaterra. Não, era uma fúcsia.
   Mandy elevou a vista para ele e viu que seu rosto bronzeado e enrugado, ainda voltado para o fronte, sorria em silêncio. Que estranha era a gente, pensou. Nada
pelo que lhe tinha contado sobre os esplendores e os horrores do rio era para ele tão docemente notável como o descobrimento daquela simples flor.
   Ao aproximar-se do Innocent House Mandy divisou as figuras dos dois últimos passageiros, James do Witt e Emma Wainwright, dispostos a embarcar. Tinha escurecido
e o rio se tornou tão denso e liso como o azeite, uma maré negra que ao passo da lancha se abria formando uma cauda de peixe de espuma branca. Mandy cruzou
a terraço para sua motocicleta. Não se entreteve. Não era supersticiosa nem especialmente medrosa, mas depois de obscurecer Innocent House se voltava mais misteriosa
e até um pouco sinistra, até com os dois globos que projetavam sobre o mármore sua luz cálida e suave. Mandy avançou olhando à frente, evitando baixar a vista
se por acaso encontrava a legendária mancha de sangue, e evitando elevar a para não ver o balcão do qual aquela esposa transtornada se arrojou à morte
muitos anos atrás.
   E assim foram acontecendo os dias. Sempre de despacho em despacho, voluntariosa, conscienciosa, rapidamente aceita. Não havia nada que escapasse ao olhar penetrante
e experimentada do Mandy: a infelicidade da senhorita Blackett e o indiferente desdém com que a tratava o senhor Gerard; o rosto pálido e tenso da senhorita
Frances, estóica em sua desdita; o olhar nervoso com que George seguia ao senhor Gerard cada vez que este passava por recepção; as conversações ouvidas pela metade
que se interrompiam quando chegava ela. Mandy sabia que os empregados estavam preocupados com o futuro. Toda Innocent House se achava envolta em uma atmosfera
de inquietação, quase de presságio, que Mandy podia perceber e inclusive em ocasiões quase saborear, posto que se considerava, como sempre, meramente uma espectadora
privilegiada, uma estranha sobre a que não pendia nenhuma ameaça pessoal, que cobrava ao finalizar a semana, não devia fidelidade a ninguém e podia partir quando
queria. Às vezes, ao terminar o dia, quando a luz começava a minguar, o rio se convertia em uma maré negra e os passos ressonavam de um modo espectral sobre
o mármore do vestíbulo, pensava nas horas que precedem a uma forte tempestade; aí estavam a crescente escuridão, a pesadez e o intenso aroma metálico do
ar, o saber que essa tensão não podia rompê-la mais que o primeiro estalo do trovão e um violento rasgo do céu.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

11
 
   Era na terça-feira 14 de outubro. A reunião dos sócios do Innocent House devia começar às dez na sala de juntas, e às dez menos quarto, como tinha por
costume, Gerard já tinha ocupado seu assento ante a mesa de mogno ovalada; no centro do lado que ficava frente à janela e o rio. Às dez, sua irmã
Claudia estaria sentada a sua direita e Frances Peverell a sua esquerda.
   James do Witt estaria frente a ele, com o Gabriel Dauntsey a sua direita. Esta ordem não se modificou desde dia, nove meses antes, em que assumisse formalmente
o cargo de presidente e diretor gerente da Peverell Press. Aquela suas quinta-feira quatro colegas se ficaram dando voltas ante a sala de juntas, como se a
nenhum gostasse da idéia de entrar sozinho. Gerard foi para eles, abriu sem vacilar a dobro porta de mogno, entrou confidencialmente a grandes passos e se instalou
em
o antigo assento do Henry Peverell. Depois dele entraram juntos os outros quatro sócios e se sentaram em silêncio, como obedecendo a um plano preestabelecido que
instituía
e reafirmava ao mesmo tempo sua posição na empresa. Gerard tinha ocupado o assento do Henry Peverell como por direito próprio, e por direito próprio lhe correspondia.
Frances, recordou, tinha permanecido muito pálida e quase muda durante aquela breve reunião; logo, levando-o à parte, James do Witt lhe havia dito:
   "Era necessário que ocupasse o assento de seu pai? Só leva dez dias morto."
   Voltou a sentir a mescla de surpresa e ligeira irritação que a pergunta lhe tinha produzido em seu momento. Que assento queriam que ocupasse? O que tivesse querido
James, perder o tempo enquanto os cinco se cediam cortesmente o passo uns aos outros e discutiam em quem devia recair a honra de ter vistas ao rio e em quem
não, dando voltas à mesa como se jogassem a uma espécie de jogo de cadeiras musicais sem acompanhamento? A poltrona de braços lhe correspondia ao diretor gerente,
e ele, Gerard Etienne, era o diretor gerente. Que relevância tinha o tempo que levasse morto o velho Peverell? Em vida, Henry tinha ocupado aquele assento e
aquele lugar na mesa, e de ali dirigia ocasionalmente o olhar para o rio em seus irritantes momentos de contemplação privada, enquanto outros esperavam
com paciência a que se reatasse a reunião. Mas agora estava morto. Sem dúvida James não tinha pretendido sugerir que deixassem a poltrona sempre vacante como uma
espécie de relíquia, que colocassem uma placa comemorativa no assento.
   Para ele, pergunta-a era própria da sensibilidade exacerbada e autocomplaciente do James, assim como de outra coisa que lhe resultava mais desconcertante e interessante,
posto que se referia a sua própria pessoa. Às vezes lhe parecia que os processos mentais de outros eram tão radicalmente distintos dos seus que, na prática,
habitavam uma dimensão distinta da razão. Feitos que para ele eram evidentes de por si exigiam a suas quatro sócios prolongadas reflexões e discussões antes
de ser aceitos com relutância, e as discussões se complicavam com emoções confusas e considerações pessoais que a ele lhe desejavam muito tão irrelevantes como
irracionais. dizia-se freqüentemente que, para eles, tomar uma decisão era como alcançar o orgasmo com uma mulher frígida, algo que exigia uma tediosa estimulação
prévia e um gasto desproporcionado de energia. Em ocasiões se sentia tentado de lhes expor esta analogia, mas sempre decidia, sonriendo interiormente, que era
preferível guardar-se para si a ocorrência. Frances, sem ir mais longe, não a encontraria divertida. Mas esta manhã voltaria a ocorrer. As alternativas que se
apresentavam-lhes eram crudas e ineludibles. Podiam vender Innocent House e utilizar o capital para consolidar e expandir a empresa, podiam negociar um acordo com
outra editorial no que ao menos se conservasse o nome da Peverell Press e podiam fechar a empresa. A segunda opção só era uma rota mais larga e tediosa
que levaria por volta da terceira, uma rota que começava invariavelmente com otimismo público e terminava em uma extinção ignominiosa. E ele não tinha nenhuma intenção
de seguir esse caminho trilhado. Terei que vender a casa. Frances tinha que dar-se conta, todos tinham que dar-se conta de que não podiam conservar Innocent House
e manter-se de uma vez como editorial independente.
   levantou-se da mesa e se aproximou da janela. Enquanto olhava, um casco de navio de linha obstruiu repentina e silenciosamente seu campo de visão, tão perto que
por
um instante distinguiu com claridade um olho de boi iluminado e, no semicírculo de claridade, a cabeça de uma mulher, delicada como um camafeu, que com os brancos
braços em alto deslizava os dedos por entre uma auréola de cabelo, e imaginou que seus olhos se encontravam em uma surpreendida e fugaz intimidade. perguntou-se
brevemente,
sem verdadeira curiosidade, com quem compartilharia a cabine marido, amante, amiga? e que planos teriam para a noite. Ele não tinha nenhum. Segundo um arraigada
costume
nele, ficava tudas as quintas-feiras a trabalhar até tarde. Não veria a Lucinda até na sexta-feira. Esse dia tinham previsto assistir a um concerto na borda sul
e,
depois, jantar na Bombay Brasserie, posto que Lucinda tinha expresso sua preferência pela cozinha hindu. Gerard pensou no fim de semana sem entusiasmo, mas
com tranqüila satisfação. Uma das virtudes da Lucinda era sua capacidade de decisão. Se lhe tivesse perguntado ao Frances onde preferia jantar, lhe teria respondido:
"Onde você queira, carinho", e se a comida resultava decepcionante e ele se queixava, diria-lhe, inclinando-se para ele e deslizando um braço sob o seu para incitá-lo
ao bom humor: "Era perfeitamente comestível; em realidade não esteve tão mal. Além disso, que importância tem, carinho? Estamos juntos."
   Lucinda nunca tinha sugerido que sua companhia pudesse compensar nem desculpar um jantar mau preparado e mau servida. de vez em quando ele se perguntava se em
realidade
seria assim.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

12
 
   É uma reunião privada, senhorita Blackett disse Etienne. Temos que discutir assuntos confidenciais. Eu mesmo tomarei minhas próprias notas. Há muito que datilografar,
de modo que estará ocupada.
   Falou em tom cortante, com uma nota de desdém. A senhorita Blackett se ruborizou e emitiu um breve e silencioso ofego. O caderno de notas lhe escapou de entre
os dedos e ela se agachou, muito enrijecida, a recolhê-lo; logo se incorporou e se dirigiu para a porta em um patético intento por salvar a dignidade. Crie que
esteve bem? perguntou-lhe James do Witt. Faz mais de vinte anos que Blackie toma notas nas reuniões dos sócios. Sempre esteve presente.
   Uma perda de tempo para ela e para nós.
   Frances Peverell objetou:
   Não tinha por que lhe dar a entender que não confiamos nela.
   Não o tenho feito. De todos os modos, quando houver que falar dos incidentes ocorridos ultimamente, ela é tão suspeita como outros e não vejo por que a haveria
de tratar de um modo distinto que ao resto do pessoal. Não tem álibi para nenhum deles e lhe apresentaram numerosas ocasiões.
   Gabriel Dauntsey replicou:
   Quão mesmo a mim ou a qualquer dos que estamos aqui. Não falamos já bastante desse brincalhão anônimo? Nunca serviu que nada.
   Talvez. Seja como for, isso pode esperar. Primeiro as notícias importantes. Hector Skolling aumentou sua oferta pelo Innocent House em outras trezentas mil
libras. Quatro milhões e médio.
   É a primeira vez no curso das negociações que utilizou as palavras "oferta final", e quando o diz terá que lhe acreditar. É um milhão mais do que
eu acreditava que nos veríamos obrigados a aceitar; é mais do que vale em términos puramente comerciais. Mas um imóvel vale o que alguém esteja disposto a pagar
por ele, e ao Hector Skolling gosta desta casa. depois de tudo, seu império está no Docklands. Existe uma clara diferença entre os edifícios que constrói para
alugar e o tipo de casa no que está disposto a viver. Proponho que aceitemos verbalmente hoje mesmo e ponhamos aos advogados a trabalhar nos detalhes para
poder fechar o trato antes de um mês.
   Acreditava que já o tínhamos discutido na última reunião sem chegar a nenhuma conclusão observou James do Witt. Acredito que se consultas as atas...
   Não me faz falta. Não penso dirigir esta empresa me apoiando no que a senhorita Blackett tenha a bem anotar nas atas.
   Que, por certo, ainda não assinaste.
   Exatamente. E proponho que no futuro celebremos estas reuniões mensais com um programa menos formal. Você sempre diz que esta é uma sociedade de amigos
e colegas e que sou eu o que insiste em procedimentos tediosos e burocracias desnecessárias. A que vem, então, tanto formalismo de programas, atas e resoluções
quando se trata da reunião mensal dos sócios?
   Do Witt respondeu:
   comprovou-se que é útil. E eu pessoalmente não acredito ter utilizado nunca a expressão "amigos e colegas".
   Frances Peverell estava sentada completamente rígida e com a cara muito branca. Interveio de repente:
   Não pode vender Innocent House.
   Etienne não a olhou, mas sim manteve o olhar fixo em seus papéis.
   Posso. Podemos. Temos que vendê-la se quisermos que sobreviva o negócio. Não se pode dirigir uma editorial de maneira eficaz de um palácio veneziano no
Támesis.
   Minha família o tem feito durante cento e sessenta anos.
   falei que eficácia. Sua família não necessitava que a editorial fora rentável; estavam protegidos por suas rendas privadas. Em tempos de seu avô, a edição
nem sequer era uma profissão de cavalheiros; era uma afeição de cavalheiros. Hoje em dia o editor deve ganhar dinheiro e ganhar o de um modo eficiente; do contrário
vai à quebra. É isso o que querem? Eu não tenho nenhuma intenção de ir à quebra. Pretendo fazer rentável a Peverell Press e, quando o tiver conseguido,
ampliá-la.
   Gabriel Dauntsey falou com voz pausada. Para poder vendê-la? Para fazer uns milhões e abandoná-la?
   Etienne fez caso omisso.
   vou desfazer me do Sydney Bartrum, para começar. É um contável competente, sem dúvida, mas necessitamos a alguém que ofereça muito mais. Proponho-me contratar
a um diretor financeiro com a missão de que encontre dinheiro para nos desenvolver e estabeleça um sistema financeiro adequado.
   Já temos um sistema financeiro perfeitamente adequado protestou Do Witt. Os auditores nunca se queixaram. Sydney leva dezenove anos conosco. É um
contável honrado, consciencioso e laborioso.
   Exatamente. Isso é o que é, e nada mais que isso. Como já hei dito, necessitamos algo mais.
   Por exemplo, preciso conhecer a margem de benefício sobre o custo bruto de cada livro que publicamos. Outras empresas dispõem desta informação. Como podemos
ir eliminando aos autores improdutivos se não sabermos quais são? Necessitamos a alguém que ganhe dinheiro para nós, não que se limite a nos dizer cada ano como
gastamo-lo. Eu já sei como o gastamos. Se nos bastasse um contável competente, eu mesmo poderia ocupar o cargo. Não sente saudades que o defenda, James.
É patético, cinza e não especialmente eficiente. Naturalmente, isso lhe confere um atrativo imediato. Reconhece o mais baixo assim que o vê. Teria que fazer
algo com esse síndrome de coração lhe sangrem.
   James avermelhou, mas respondeu com grande calma.
   Nem sequer me cai bem esse homem. Horrorizo-me cada vez que me chama "senhor Do Witt". Sugeri-lhe que me chamasse Do Witt ou James, mas me olhou como se lhe houvesse
proposto uma indecência.
   Mesmo assim, é um contável absolutamente capaz e leva dezenove anos aqui. Conhece a empresa, conhece-nos e sabe como trabalhamos.
   Trabalhávamos, James, trabalhávamos.
   Frances acrescentou:
   E se casou o ano passado. Sua mulher e ele acabam de ter um filho. E o que tem isso que ver com que seja ou não o homem adequado para o posto? pensaste em alguém?
perguntou Do Witt.
   Pedi ao Patterson Macintosh, da agência de contratação que proponha alguns nomes.
   Isso nos custará umas quantas libras. As agências de contratação não trabalham barato. É curioso que hoje não se possa contratar pessoal sem estas agências, que
não se possa melhorar a eficiência sem especialistas em estudos de tempos e deslocamentos e que terei que chamar assessores de direção para que nos digam como
temos que nos dirigir. A metade das vezes, esses supostos especialistas não são mais que homens de palha aos que se recorre para que reduzam a palmilha quando
os diretores não se atrevem a fazê-lo eles mesmos. conheceste a algum assessor de direção que não recomendasse se despedir de parte do pessoal? Pagam-lhes por dizer
isso e a verdade é que sabem lhe tirar um bom proveito.
   Tudo isto nos teria devido consultar protestou Frances.
   Lhes está consultando.
   Em tal caso, já podemos deixar de falar do assunto. Não vai ocorrer. Innocent House não se vende.
   vende-se, se um só de vós está de acordo nisso. Não faz falta mais. esqueceste quantas ações possuo? A casa não é tua, Fran. Sua família se a
vendeu à empresa em 1940, recorda-o. Certo, venderam-na muito troca, mas certamente não deviam lhe ver muitas possibilidades de sobreviver aos bombardeios
do East End. Estava assegurada por debaixo de seu valor e, de todos os modos, não se tivesse podido reconstruir. coloque-lhe isso na cabeça, Fran: já não é a casa
dos Peverell.
por que se preocupa tanto? Você não tem filhos. Não há nenhum Peverell que possa herdar.
   Frances avermelhou e fez gesto de levantar-se, mas Do Witt a conteve.
   Não, Frances, não vá disse com voz serena. Isto temos que discuti-lo entre todos.
   Não há nada que discutir.
   fez-se o silêncio absoluto, até que o rompeu a voz sossegada do Dauntsey. Exigirá-se a minha poesia que renda seu oito e médio por cento nítido, ou o que seja?
   Seguiremos publicando seus volúmenes, Gabriel, por descontado. Haverá ir quantos livros que estaremos obrigados a manter.
   Espero que meus não constituam uma obrigação muito onerosa.
   Entretanto, a venda da casa implica que não poderá seguir vivendo no número doze.
   Skolling quer tudo o imóvel, o edifício principal e as duas casas adjacentes. Sinto-o seriamente.
   Mas, depois de tudo, vivi no número doze durante mais de dez anos pagando um aluguel ridículo.
   Bem, esse foi o acordo ao que chegou com o Henry Peverell e, naturalmente, tinha direito a tomar o que te oferecia. Fez uma pausa e acrescentou: E a seguir tomando.
Mas tem que compreender que não se pode permitir que as coisas sigam assim.
   OH, sim, compreendo-o. Não se pode permitir que as coisas sigam assim.
   Etienne continuou como se não o tivesse ouvido.
   E já é hora de desfazer-se do George. Tivéssemos devido retirá-lo faz anos. O operador do posto telefônico é o primeiro contato que tem a gente com a empresa.
necessita-se uma garota jovem, vital e atrativa, não um homem de sessenta e oito anos. São sessenta e oito, não? E não me digam que leva vinte e dois anos na casa.
Já sei quanto tempo leva; esse é precisamente o problema.
   Não só se ocupa do posto telefônico assinalou Frances. Abre cada dia os escritórios, encarrega-se do alarme alarme anti-roubo e sabe fazer toda classe de trabalhos
e reparações.
   Tem que saber. Nesta casa sempre há uma coisa ou outra danificada. Já vai sendo hora de que mudemos a um edifício moderno, construído a propósito e administrado
com eficiência. E ainda não começamos a incorporar tecnologia moderna. Acreditavam-lhes perigosamente inovadores quando trocaram umas quantas máquinas de escrever
por ordenadores para tratamento de textos.
   Por certo, tenho outra boa notícia: é possível que convença ao Sebastian Beacher para que deixe a seus editores atuais. Não está nada contente com eles. Mas
se for um escritor escandalosamente mau, e não muito melhor como pessoa! exclamou Frances.
   O negócio editorial consiste em lhe dar ao público o que quer, não em fazer julgamentos morais.
   O mesmo poderia aduzir se fabricasse cigarros.
   Aduziria-o se fabricasse cigarros. Ou uísque, para o caso é o mesmo.
   A analogia não é válida objetou Do Witt. poderia-se alegar que a bebida é decididamente benéfica se se ingerir com moderação. Em troca, nunca se poderá alegar
que uma má novela seja outra coisa que uma má novela. Malote para quem? E o que entende você por má? Beacher conta uma história sólida, mantém constantemente
a ação, proporciona essa mescla de sexo e violência que ao parecer quer a gente. Quais somos nós para lhes dizer aos leitores o que lhes convém? Além disso,
não há dito sempre que o importante é que a gente se acostume a ler? Que comecem com novelas românticas trocas e possivelmente logo passem ao Jane Austen ou ao George
Eliot. Pois bem, não vejo por que teriam que fazê-lo; passar aos clássicos, quero dizer. O argumento é teu, não meu. O que tem de mau a novela sentimental troca,
se resultar que é o que gostam? Parece-me uma amostra de suficiência argumentar que a novela popular só se justifica se conduzir a coisas mais elevadas.
   Bom, o que Gabriel e você consideram coisas elevadas. Pretende dizer que não se deveria fazer julgamentos de valor? Interveio Dauntsey. Fazemo-los todos os dias
de nossa vida.
   Pretendo dizer que não deveria fazê-los por outros. Pretendo dizer que eu, como editor, não devo fazê-los. Além disso, há um argumento irrefutável: se não se
me
permite obter benefícios com os livros populares, bons ou maus, não posso costear a edição de livros menos populares para o que vós consideram a minoria
seleta.
   Frances Peverell se voltou para ele.
   Tinha o semblante avermelhado e lhe resultava difícil controlar a voz. por que diz sempre "eu"? Todo o momento está dizendo: "vou fazer isto, vou publicar
aquilo." Pode que seja o presidente, mas não é a empresa. A empresa somos nós.
   Conjuntamente. Os cinco. E agora não nos reunimos como comitê de edição. Isso será a semana que vem. Agora teríamos que estar falando do futuro de
Innocent House.
   Disso falamos. Proponho que aceitemos a oferta e fechemos o trato de palavra. E aonde propõe que nos mudemos?
   A um edifício de escritórios no Docklands, junto ao rio. Rio abaixo, se pode ser. Temos que discutir se comprarmos ou consertamos um arrendamento a longo prazo,
mas
as duas coisas são possíveis. Os preços nunca estiveram mais baixos. Docklands nunca foi melhor investimento. E agora que já funciona a ferrovia ligeira do Docklands
e vão ampliar o metro, o acesso será mais fácil. Não necessitaremos a lancha. E despedir do Fred depois de tantos anos? objetou Frances.
   Minha querida Frances, Fred é um barqueiro qualificado. Fred não terá problemas para encontrar outro trabalho.
   Tudo é muito precipitado, Gerard disse Claudia. Estou de acordo em que certamente terá que desprender-se da casa, mas não é necessário que o decidamos esta
amanhã. nos dê algo por escrito; as cifras, por exemplo. Discutamos o assunto quando tivermos tido tempo de pensá-lo.
   Perderemos a oferta replicou Gerard. Parece-te provável? Vamos, Gerard. Se Hector Skolling quiser a casa, não vai retirar se porque tenha que esperar a resposta
uma semana. Aceita-a, se assim ficar mais tranqüilo. Sempre podemos nos jogar atrás se decidirmos outra coisa.
   Eu queria falar da última novela do Esmé Carling disse Do Witt. Na última reunião sugeriu rechaçá-la.  Morte na ilha do Paraíso? Já a rechacei.
Acreditava que estava decidido.
   Do Witt replicou com voz lenta e sossegada, como se se dirigisse a um menino teimoso.
   Não, não estava decidido. comentou-se brevemente e se postergou a decisão.
   Como tantas outras vezes. Vós quatro me recordam a definição de uma junta: um grupo de pessoas que antepor o prazer da conversação à responsabilidade
da ação e o ardor da decisão. Algo pelo estilo. Ontem falei com a agente do Esmé e lhe dava a notícia. E a confirmei por escrito com uma cópia para
Carling. Suponho que a nenhum dos pressente lhe ocorrerá dizer que Esmé Carling é uma boa novelista; nem tampouco que é rentável. Eu, pessoalmente, espero
de um escritor que seja uma coisa ou a outra, preferivelmente as duas.
   publicamos coisas piores objetou Do Witt.
   Etienne se voltou para ele ao tempo que soltava uma gargalhada.
   Sabe Deus por que a defende, James. É você quem está desejoso de publicar novelas literárias, candidatas ao prêmio Booker, obritas sensíveis que impressionem
à máfia literária. Faz cinco minutos me criticava que tentasse captar ao Sebastian Beacher. Não pretenderá sugerir que Morte na ilha do Paraíso contribuirá
a aumentar o prestígio da Peverell Press, suponho. Vamos, imagino que não a vê como o próximo Livro do Ano do Whitbread. E a propósito, identificaria-me
muito mais com seus supostos livros para o Booker se alguma vez figurassem na lista de candidatos selecionados para o prêmio.
   James respondeu:
   Estou de acordo contigo em que certamente já é hora de que nos dela desprendamos. São os meios, e não o fim, o que não vejo bem. Na última reunião
sugeri, se o recordar, que publicássemos seu último livro e logo lhe anunciássemos com tato que se suprimia a série de mistério popular.
   Muito pouco convincente observou Claudia. É a única autora da série.
   James prosseguiu, dirigindo-se diretamente ao Gerard.
   O livro necessita uma revisão rigorosa, mas ela o aceitará se o dizemos com tato. Terá que reforçar o argumento e a parte central é frouxa. Mas a
descrição da ilha é boa, e o modo em que cria uma atmosfera de ameaça é excelente. Além disso, melhorou na caracterização dos personagens. Não perderemos
dinheiro. Faz trinta anos que a editamos. É uma relação muito larga.
   Eu gostaria de conclui-la com generosidade e boa vontade, isso é tudo.
   Já concluiu sentenciou Gerard Etienne. Somos uma editorial, não uma casa de beneficência.
   Sinto muito, James, tem que saltar.
   Teria podido esperar a que se reunisse o comitê de edição.
   Certamente teria esperado se não tivesse chamado seu agente. Carling insistia em saber se tínhamos fixado a data de publicação e o que nos propúnhamos organizar
como festa de apresentação. Uma festa! Um velório seria mais apropriado. Não tinha sentido lhe mentir. Disse-lhe que o livro não alcançava o nível exigível e que
não íamos publicar o. Ontem o confirmei por escrito.
   Sentará-lhe mau. Claro que lhe sentará mau! Alos autores sempre lhes sinta mal o rechaço. Equipassem-no ao infanticídio. E os livros anteriores que temos
em catálogo?
   Bom, isso pode que ainda nos dê algum dinheiro.
   Frances Peverell interveio repentinamente.
   James tem razão. ficamos de que voltaríamos a discuti-lo. Não tinha absolutamente nenhuma autoridade para falar com o Esmé Carling nem com a Velma Pitt-Cowley.
Poderíamos muito bem publicar esta novela e lhe dizer com delicadeza que tinha que ser a última. Está de acordo, verdade, Gabriel? Crie que deveríamos ter aceito
Morte na ilha do Paraíso?
   Os quatro sócios olharam ao Dauntsey e esperaram como se fora um tribunal supremo. O ancião estava examinando uns papéis, mas para ouvir isto elevou o olhar
para o Frances e sorriu brandamente.
   Não acredito que isso tivesse amortecido o golpe, verdade? Não se pode rechaçar a um autor; o que se rechaça é o livro. Se publicarmos sua última novela, logo
nos
trará outra e voltaremos a nos ver ante o mesmo dilema. Gerard atuou que um modo prematuro e suponho que não especialmente diplomático, mas acredito que a decisão
era correta. Uma novela é digna de ser publicada ou não o é.
   Me alegro de que tenhamos resolvido algo.
   Etienne começou a reunir seus papéis.
   Sempre e quando for consciente de que é quão único resolvemos lhe recordou Do Witt.
   Não haverá mais negociações sobre a venda do Innocent House até que hajamos tornado a reunimos e nos tenha proporcionado as cifras e um plano comercial completo.
   Já têm um plano comercial. Dava-lhes isso o mês passado.
   Um que possamos entender. Voltaremos a nos reunir dentro de uma semana. Seria conveniente que pudesse distribuir os informe um dia antes. E necessitamos alternativas:
um plano comercial apoiado no suposto de que vendemos Innocent House e outro apoiado no suposto de que não a vendemos.
   O segundo lhe posso apresentar isso agora mesmo replicou Etienne. Ou chegamos a um acordo com o Skolling ou vamos à quebra. E Skolling não é um homem paciente.
   Apazigua-o com uma promessa sugeriu Claudia. lhe diga que se decidimos vender terá uma primeira opção.
   Etienne sorriu.
   Ah, não; não acredito que possa lhe fazer uma promessa assim. Quando seu interesse pela casa se faça público, poderíamos atrair cinqüenta mil libras mais. Não
me parece provável,
mas nunca se sabe.
   Dizem que o museu do Greyfriars anda procurando um lugar para albergar sua coleção de pintura marítima.
   Não vamos vender Innocent House disse Frances Peverell, nem ao Hector Skolling nem a ninguém.
   Para vender esta casa terá que passar por cima de meu cadáver. Ou do teu.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

13
 
   No despacho das secretárias, Mandy elevou a vista ao ver entrar no Blackie, quem se dirigiu a seu escritório com andar majestosos e o rosto avermelhado,
sentou-se ante o ordenador e começou a teclar. Ao cabo de um minuto, a curiosidade venceu à discrição e Mandy perguntou: O que acontece? Acreditava que você sempre
tomava
nota nas reuniões dos sócios.
   Blackie respondeu com uma voz estranha, áspera, mas ao mesmo tempo com uma leve nota de vindicação triunfante.
   vê-se que já não.
   "Pobre infeliz, jogaram-na", pensou Mandy. O que disse foi: A que vem tão secreto? O que fazem ali encerrados? O que fazem? As mãos do Blackie interromperam
seu desassossego tecer sobre o teclado.
   Estão afundando a empresa, isso fazem. Estão destruindo todo aquilo pelo que o senhor Peverell trabalhou, tudo o que construiu e defendeu durante mais de trinta
anos. Pensam vender Innocent House. O senhor Peverell amava esta casa. pertenceu a sua família há mais de cento e sessenta anos. Innocent House é a Peverell
Press. Se se acabar uma, acaba-se a outra. O senhor Gerard está decidido a vendê-la desde que o senhor Etienne se retirou, e agora que se pôs à frente não há
ninguém que possa impedir-lhe Além disso, tampouco lhes importa. À senhorita Frances não vai gostar de lhe, mas está apaixonada por ele; além disso, ninguém lhe
faz muito caso à
senhorita Frances. A senhorita Claudia é sua irmã e o senhor Do Witt não tem guelra para lhe parar os pés. Ninguém as tem. Possivelmente o senhor Dauntsey, mas é
muito velho e já não lhe importa nada. Nenhum deles pode lhe plantar cara ao senhor Gerard. Mas ele já sabe o que penso. Por isso não quer que esteja ali com
eles. Sabe que não estou de acordo. Sabe que se pudesse o impediria.
   Mandy viu que estava ao bordo das lágrimas, mas eram lágrimas de cólera. Coibida, desejosa de consolá-la mas incómodamente consciente de que mais tarde Blackie
lamentaria esta confidência desacostumada, comentou:
   Pode chegar a ser um estúpido, certamente. Já vi como a trata às vezes. por que não se vai e tenta trabalhar como interina uma temporada? lhe peça os papéis
e lhe diga onde pode meter-se seu emprego.
   Blackie, que lutava por dominar-se, tratou de recuperar ao menos a dignidade.
   Não seja absurda, Mandy. Não tenho nenhuma intenção de ir. Sou uma secretária de direção, não uma interina. Não o fui nunca e nunca o serei.
   Há coisas piores. Que tal um café, então? Poderia fazê-lo agora mesmo, não vale a pena esperar. Com um par de bolachas de chocolate.
   Está bem, mas não perca o tempo conversando com a senhora Demery. Tem que passar a limpo umas coisas quando terminar com essas cartas. E, Mandy, o que lhe
hei dito é confidencial. falei com maior liberdade da devida e não quero que saia destas paredes.
   "A boas horas", pensou Mandy. Acaso a senhorita Blackett não se dava conta de que não se falava de outra costure em todo o edifício? Respondeu:
   Sei ter a boca fechada. A fim de contas, não vai nem me vem. antes de que deixem esta casa eu já me terei partido.
   Acabava de levantar-se quando soou o telefone de seu escritório e, ao desprendê-lo, ouviu a voz preocupada do George falando em tais sussurros de conspirador
que
logo que conseguia lhe entender. Sabe onde está a senhorita FitzGerald, Mandy? Não posso avisar ao Blackie porque está na reunião dos sócios e tenho aqui à senhora
Carling. Quer ver o senhor Gerard e não acredito que possa retê-la muito mais.
   Não se preocupe, a senhorita Blackett está aqui. Mandy lhe aconteceu o auricular. É George. A senhora Carling está em recepção pedindo a gritos ver o senhor Gerard.
   Pois não vai poder.
   Blackie agarrou o aparelho, mas antes de que pudesse dizer nada se abriu a porta de repente e irrompeu a senhora Carling, que apartou ao Mandy de um empurrão
e avançou
em retidão para o despacho principal. Ao ver que estava vazio, deu meia volta e se plantou ante elas.
   Bem, onde está? Onde está Gerard Etienne?
   Blackie, tentando aparentar certa dignidade, abriu a agenda que se achava sobre seu escritório.
   Acredito que não tem você cita para hoje, senhora Carling. Claro que não tenho entrevista! depois de trinta anos na casa, não necessito uma entrevista para ver
meu editor.
Não sou uma agente que vem a lhe vender um contrato de publicidade. Onde está?
   Está na reunião dos sócios, senhora Carling.
   Acreditava que se celebrava a primeira quinta-feira do mês.
   O senhor Gerard a passou a hoje.
   Então, terei que interrompê-la. Estão na sala de juntas, suponho.
   dirigiu-se para a porta, mas Blackie foi mais veloz e, tomando a dianteira, fechou-lhe o passo.
   Não pode subir, senhora Carling. As reuniões dos sócios não se interrompem jamais. Tenho instruções de reter inclusive as chamadas telefônicas urgentes.
   Em tal caso, esperarei a que terminem.
   Blackie, ainda de pé, viu seu assento firmemente ocupado, mas conservou a calma exterior.
   Não sei quando terminarão. Possivelmente mandem subir sanduíches. Além disso, não tem uma sessão de assinaturas em Cambridge à hora do almoço? Direi-lhe ao senhor
Gerard que
esteve aqui e sem dúvida ficará em contato com você quando tiver um momento livre.
   O contratempo recente e a necessidade de restabelecer sua posição ante o Mandy, deram a sua voz um tom mais autoritário do que exigia o tato, mas mesmo assim
a ferocidade da resposta as surpreendeu a ambas. A senhora Carling se levantou da cadeira com tal ímpeto que a deixou dando voltas e se ergueu com a cara quase
tocando a do Blackie. Era sete ou oito centímetros mais baixa que ela, mas ao Mandy pareceu que esta diferença a fazia mais terrorífica, não menos. Os músculos
sobressaíam-se como sogas de seu pescoço estirado, seus olhos flamejavam e, sob o nariz ligeiramente aquilino, sua boca pequena e maligna como uma navalhada vermelha
cuspiu
veneno. Quando tiver um momento livre! Zorra estúpida! Idiota soberba e presunçosa! Com quem se acreditou que está falando? É meu talento o que lhe pagou
o salário há veintitantos anos, não o esqueça. Já é hora de que alguém lhe diga qual é seu verdadeiro papel nesta empresa.
   Só porque trabalhou para o senhor Peverell, que a tolerava e lhe seguia a corrente e fazia que se sentisse necessária, acredita que pode atuar como uma rainha
ante
pessoas que já formavam parte da Peverell Press quando você ainda era uma colegiala mucosa. O velho Henry a malcriou, é obvio, mas eu posso lhe dizer
o que pensava realmente de você. E por que? Pois porque ele mesmo me disse isso, por isso posso. Estava farto de tê-la sempre a seu lado, olhando-o com olhos de
vaca
apaixonada. Estava farto e cansado de sua devoção. Queria que se fora, mas não tinha têmpera para jogá-la. Nunca teve muita têmpera, o pobre. Se o tivesse tido,
agora não estaria Gerard Etienne ao mando. lhe diga que quero vê-lo, e que procure que seja a minha conveniência, não à sua.
   A voz do Blackie saiu de entre uns lábios tão brancos e rígidos que ao Mandy pareceu que logo que podiam mover-se.
   Não é verdade. você minta. Não é verdade.
   E então Mandy se assustou. Estava acostumada às brigas de escritório. Em seus mais de três anos de trabalho temporário tinha sido testemunha de alguns choques
de
temperamento impressionantes e, como um botecito impetuoso, tinha cabeceado alegremente entre os restos do naufrágio em mares tumultuosos. De fato, Mandy desfrutava
com uma boa briga de escritório; não havia melhor antídoto contra o aborrecimento. Mas isto era distinto. deu-se conta de que aqui havia sofrimento autêntico, verdadeiro
dor, uma malignidad deliberada que surgia de um ódio aterrador. Aquele era um pesar que não podia entreter-se com café recém feito e um par de bolachas da lata
que a senhora Demery reservava para os sócios. Por um espantoso instante acreditou que Blackie ia jogar a cabeça para trás para ficar a uivar de angústia.
Quis lhe tender uma mão para consolá-la, mas soube instintivamente que não podia lhe oferecer nenhum consolo e que logo o intento seria mal interpretado.
   Soou uma portada. A senhora Carling se partiu.
   Blackie repetiu:
   É mentira. Tudo são mentiras. Ela não sabe nada.
   Claro que não lhe assegurou Mandy com firmeza. Claro que são mentiras; qualquer pode dar-se conta. Não é mais que uma zorra ciumenta. Eu não lhe faria nenhum
caso.
   Vou ao quarto de banho.
   Era evidente que Blackie ia vomitar. Mandy se perguntou se devia acompanhá-la, mas uma vez mais decidiu que não. Blackie pôs-se a andar com a rigidez de um autômato
e ao sair quase se chocou com a senhora Demery, que trazia um par de pacotes.
   chegaram com o segundo correio e pensei que podia trazê-los explicou a senhora Demery . Se pode saber o que lhe passa?
   Está transtornada. Os sócios não quiseram que estivesse presente na reunião e, se por acaso fora pouco, logo veio a senhora Carling exigindo ver o senhor
Gerard e ela o impediu.
   A senhora Demery se cruzou de braços e se apoiou no escritório do Blackie.
   Suponho que esta manhã terá recebido a carta de rechaço de sua nova novela. E você como sabe isso, senhora Demery?
   Aqui acontecem muito poucas coisas das que eu não me inteire. Isto trará problemas, note no que te digo.
   Se a novela não for bastante boa, por que não a acerta ou escreve outra?
   Pois porque não se crie capaz de fazê-lo; por isso. É o que acontece com os autores quando os rechaçam. É o que os tem constantemente aterrorizados: perder
o talento, padecer o bloqueio do escritor. Por isso resulta tão difícil tratar com eles. Difíceis, isso são os escritores. Terá que lhes dizer constantemente o
maravilhosos que são ou se vêm abaixo. Vi-o mais de uma vez. O senhor Peverell sim sabia como tratá-los. Tinha o toque justo com os escritores, o senhor
Peverell. Ao senhor Gerard lhe custa mais. É distinto. Não entende por que não podem fazer seu trabalho e deixar de queixar-se.
   Era uma opinião com a que Mandy coincidia o bastante. Podia lhe dizer ao Blackie e na verdade acreditá-lo que o senhor Gerard era um estúpido, mas lhe resultava
difícil
evitar que gostasse. Tinha a sensação de que, chegado o caso, poderia trabalhar com o senhor Gerard. Mas a chegada do Blackie, muito antes do que Mandy se
esperava, impediu novas confidências. A senhora Demery se retirou discretamente e Blackie, sem dizer uma palavra, voltou a sentar-se ante o teclado.
   Durante a hora seguinte trabalharam em um silêncio opressivo, quebrado unicamente quando Blackie repartia ordens. Mandy teve que ir ao quarto de fotocópias para
tirar três cópias de um original recém-chegado que, a julgar pelos três primeiros parágrafos, não era provável que aparecesse em letra impressa, recebeu um montão
de papéis extremamente aborrecidos para datilografar e logo teve que enfrentar-se à tarefa de retirar todos os documentos de mais de dois anos de antigüidade que
houvesse
na gaveta de "Conservar por um tempo". Tudo o escritório utilizava este útil arquivo como depósito para aqueles documentos aos que não se podia encontrar um lugar
adequado, mas que doía atirar ao cesto de papéis. Havia pouco nele que tivesse menos de doze anos, já que expurgar a gaveta de "Conservar por um tempo" era uma tarefa
extremamente impopular. Mandy tinha a sensação de estar sendo injustamente castigada pelo arrebatamento de confiança do Blackie.
   A reunião dos sócios terminou antes que de costume. Só eram as onze e meia quando Gerard Etienne, seguido de sua irmã e Gabriel Dauntsey, cruzou a passo
vivo o despacho para entrar no seu. Claudia Etienne acabava de deter-se para dizer algo ao Blackie quando a porta interior se abriu de repente e reapareceu
Gerard. Mandy viu que fazia um esforço por dominar sua cólera. agarrou minha agenda pessoal? perguntou ao Blackie.
   É obvio que não, senhor Gerard. Não está na gaveta da direita de seu escritório?
   Se estivesse não teria vindo a perguntar-lhe    Supongo que aceptará que cuidar de mis agendas forma parte de sus responsabilidades. Si no encuentra la agenda,
me gustaría recuperar por lo menos el lápiz. Es
   Pu-la à corrente na segunda-feira pela tarde e a deixei outra vez na gaveta. Após não tornei a vê-la.
   Ontem pela manhã estava aqui. Se não a agarrou você, mais lhe vale descobrir quem foi.
   Suponho que aceitará que cuidar de minhas agendas forma parte de suas responsabilidades. Se não encontrar a agenda, eu gostaria de recuperar pelo menos o lápis.
É
de ouro e lhe tenho bastante apego.
   Ao Blackie lhe pôs a cara escarlate. Claudia Etienne os olhava com uma sobrancelha sardónicamente arqueada. Mandy se cheirou que ia desencadear uma batalha e
começou a estudar os traços do caderno de taquigrafia como se de repente se tornaram incompreensíveis.
   A voz do Blackie bateu as asas ao bordo da histeria. Acusa-me de benjamima, senhor Gerard? trabalhei nestes escritórios vinte e sete anos, mas... Lhe quebrou
a
voz.
   Ele replicou com impaciência.
   Não seja boba. Ninguém a acusa de nada. Seu olhar tropeçou com a serpente enroscada na asa de um arquivo. E pelo amor de Deus, desfaça-se dessa maldita
serpente! Atire-a ao rio. Faz que isto pareça uma creche.
   Ato seguido entrou em seu escritório e sua irmã o seguiu. Blackie, sem dizer uma palavra, agarrou a serpente e a meteu em uma gaveta de seu escritório.
   Logo se voltou para o Mandy. Você que miras? Se não ter nada que datilografar, em seguida te encontrarei algo. Enquanto isso, me faça um café.
   Mandy, armada com esta nova notícia para deleite da senhora Demery, obedeceu de boa vontade.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

14
 
   Declan devia chegar às seis e meia para a excursão pelo rio, e eram as seis e quinze quando Claudia entrou no despacho de seu irmão. Eram os últimos
que ficavam no edifício. As quintas-feiras, Gerard ficava invariavelmente a trabalhar, mas a maior parte do pessoal estava acostumado a ir-se cedo para aproveitar
o horário
de comércio noturno. Gerard estava sentado ante o escritório, no atoleiro de luz de seu abajur, mas ficou em pé ao vê-la entrar. Suas maneiras com ela eram
sempre corteses, sempre impecáveis. Freqüentemente, Claudia se perguntava se seria uma mutreta para evitar que se criasse um clima de intimidade entre ambos.
   sentou-se frente a ele e disse sem preâmbulos:
   Escuta, apoiarei-te na venda do Innocent House; apoiarei-te em todos seus projetos, se a isso vamos. Com meu voto poderá te impor a outros. Mas necessito
dinheiro: trezentas e cinqüenta mil libras. Quero que me compre a metade das ações, ou todas se o preferir.
   Não posso.
   Poderá quando se enfaixa Innocent House. Uma vez assinados os contratos, resultará-te fácil reunir um milhão. Com minhas ações terá uma maioria permanente. Isso
dará-te poder absoluto.
   Vale a pena pagá-lo. Eu permanecerei na empresa, mas com menos acione ou nenhuma.
   Gerard respondeu com voz fica.
   Certamente merece a pena pensá-lo, mas agora não. Não posso utilizar o dinheiro da venda; pertence à sociedade. Além disso, necessitarei-o para o traslado e
meus outros projetos. Mas pode reunido você. Pode reunir trezentas e cinqüenta mil libras. Se eu puder, você também.
   Não tão facilmente. Não sem muitos obstáculos e demoras. E o necessito com urgência. Necessito-o para fim de mês. por que? O que vais fazer?
   Investir no negócio de antiguidades com o Declan Cartwright. Tem ocasião de comprar o negócio ao velho Simon: trezentas e cinqüenta mil libras pelo imóvel
de quatro pisos e todo o gênero.
   É muito bom preço. O velho o aprecia e preferiria que ficasse ele a loja, mas está impaciente por vender. É velho, está doente e tem pressa.
   Cartwright é um menino bonito, mas trezentas e cinqüenta mil libras, não é lhe pôr um preço muito alto?
   Não sou tola. Não lhe porei o dinheiro na mão. Seguirá sendo meu dinheiro investido em uma empresa comum. Declan tampouco é tolo. Sabe o que faz.
   Pensa te casar com ele, não?
   É possível. Você estranha?
   um pouco. Acrescentou: Acredito que lhe tem mais afeto do que ele tem a ti. Isso sempre é perigoso.
   OH, as coisas estão mais igualadas do que crie. Ele sente por mim tanto como é capaz de sentir, e eu sinto por ele tanto como sou capaz de sentir. Nossa
capacidade de sentir é distinta, nada mais. Os dois lhe damos ao outro o que podemos dar.
   Ou seja, que te propõe comprá-lo. Não é assim como você e eu conseguimos sempre o que queríamos, comprando-o? E o que me diz da Lucinda e você? Tão seguro
sente-se de estar fazendo o adequado? Para ti, quero dizer. Ela não me preocupa. Esse ar de virtuosa fragilidade não me engana absolutamente. Sabe cuidar de si
mesma, asseguro-lhe isso. Além disso, os de sua classe sempre o fazem.
   vou casar me com ela.
   Bem, não faz falta que o diga em um tom tão beligerante. Ninguém lhe pretende impedir isso E a propósito, pensa lhe dizer a verdade a respeito de ti..., de nós?
Ou mais exatamente, pensa dizer-lhe a sua família?
   Responderei às perguntas razoáveis. No momento não têm feito nenhuma, nem razoável nem irrazonable. Graças a Deus, não estamos na época em que terei que
solicitar o consentimento dos pais e as noivas deviam contribuir alguma prova de saúde moral e probidade econômica. De todos os modos, só tem a seu irmão,
e ele parece supor que disponho de uma casa onde alojá-la e do dinheiro suficiente para mantê-la com umas comodidades razoáveis.
   Mas você não tem casa, verdade? Não me imagino vivendo no apartamento do Barbican. Faltaria-lhes espaço.
   Acredito que lhe gosta de Hampshire. Seja como for, disso podemos falar quando se aproximar a data das bodas. E conservarei o apartamento do Barbican. É prático,
pelo escritório.
   Bem, espero que funcione. Embora, francamente, acredito que Declan e eu temos mais possibilidades. Não confundimos o sexo com o amor. E pode que não te resulte
tão fácil sair desse matrimônio. Certamente a Lucinda entrarão escrúpulos religiosos contra o divórcio. Além disso, divorciar-se é uma vulgaridade e um transtorno,
e sai caro. depois de dois anos de separação não teria maneira de evitá-lo, de acordo, mas seriam uns anos muito incômodos. Você não gostaria de fracassar em público.
   Ainda não me casei. É um pouco logo para falar de como reagirei ao fracasso. Não fracassarei.
   A verdade, Gerard, não vejo que esperas tirar limpo, exceto uma bela esposa dezoito anos mais jovem que você.
   Muita gente pensaria que isso já é suficiente.
   Só os ingênuos. É a fórmula do desastre. Não é de sangue real, não tem por que te casar com uma virgem totalmente inadequada para ti só por manter
a dinastia. Ou acaso é isso o que pretende, fundar uma família? Sim, acredito que é isso. Tornaste-te convencional com os anos. Quer uma vida acomodada, filhos...
   Parece o motivo mais razoável para casar-se. Há quem diria que o único motivo razoável.
   Cansaste-te que te divertir por aí e agora procura uma virgem jovem, formosa e a ser possível de boa família. Francamente, acredito que te teria ido melhor com
Frances.
   Isso nunca foi uma possibilidade.
   Para ela sim. Imagino como aconteceu, naturalmente. Encontramo-nos ante uma virgem de quase trinta anos, obviamente desejosa de experiência sexual. E quem
melhor para oferecer-lhe que meu ardiloso hermanito? Mas foi um engano. Ganhaste-te a inimizade do James do Witt e isso não lhe pode permitir isso    Gerard respondió
con calma.
   Ele nunca me há dito nada do assunto.
   Claro que não. Não é o estilo do James. Ele é dos que atuam, não dos que falam. Um conselho: não te aproxime muito aos balcões dos pisos altos
do Innocent House. Uma morte violenta na casa já é o bastante.
   Gerard respondeu com calma.
   Obrigado pelo aviso, mas não sei se James do Witt seria o principal suspeito. depois de tudo, se me ocorresse algo antes de me casar e redigir um novo testamento,
você ficaria minhas ações, meu apartamento e o dinheiro de meu seguro de vida. Com perto de dois milhões e médio se podem comprar muitas antiguidades.
   Claudia estava na porta quando ele voltou a falar, em tom frio e sem levantar a vista do papel.
   Por certo, a ameaça do escritório atacou de novo.
   Ela se voltou e perguntou bruscamente: O que quer dizer? Como? Quando?
   Este meio-dia, às doze e meia para ser precisos. Alguém enviou um fax daqui à livraria Better Books de Cambridge para cancelar a sessão de assinatura
do Carling. Quando chegou ali se encontrou os pôsteres desprendidos, a mesa e a cadeira retiradas, ao público dispersado e a maioria dos livros relegados a
a trastienda. Pelo visto fervia de raiva. Me teria gostado de estar ali para vê-la. Mierda! Quando o soubeste?
   Seu agente, Velma Pitt-Cowley, chamou às três menos quarto, quando tornei de almoçar. Estava tentando me localizar da uma e meia. Carling o
telefonou da livraria. E não há dito nada até agora?
   Esta tarde tive coisas mais importantes que fazer que ir dando voltas pelo escritório pedindo limitadas às pessoas. Além disso, isso corresponde a ti, embora
eu não lhe concederia muita importância. Esta vez tenho certa idéia de quem pode ter sido o responsável. De todos os modos, não é muito importante.
   Para o Esmé Carling, sim disse Claudia com severidade. Pode detestá-la, desprezá-la ou compadecê-la, mas não a subestime. Poderia resultar uma inimizade mais
perigosa
pelo que imagina.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

15
 
   A sala do primeiro piso do Connaught Arms, no Waterloo Road, estava abarrotada. Matt Bayliss, o dono do pub, não albergava dúvidas quanto ao êxito do recital
de poesia. Às nove os ganhos da barra já tinham superado os de qualquer outra noite de quinta-feira. A salita do piso alto estava acostumado a utilizar-se para os
almoços
havia pouca demanda de jantares quentes no Connaught Arms, mas também estava disponível para outras funções, e seu irmão, que trabalhava em uma organização
artística, tinha-o convencido de que permitisse celebrar ali o ato da quinta-feira de noite. A idéia era que certo número de poetas com obra publicada lessem
alguns poemas intercalados com as leituras de todos quão afeiçoados queriam tomar parte. O preço da entrada se fixou em uma libra e Matt havia
montado ao fundo da sala uma barra em que se servia vinho. Nunca tivesse imaginado que a poesia fosse tão popular nem que tantos de seus paroquianos aspirassem
a expressar-se em verso. A venda inicial de entradas tinha sido satisfatória, mas havia uma constante afluência de recém chegados e gente do bar que, ao ter
notícia do espetáculo, subia, jarra de cerveja em mão, pela estreita escada.
   As inclinações de seu irmão Colin eram variadas e se inscreviam entre as tendências de moda: arte negra, arte feminina, arte gay, arte da Commonwealth,
arte acessível, arte inovadora, arte para o povo. O acontecimento dessa noite se anunciou como "Poesia para o povo". O interesse pessoal do Matt
estava na cerveja para o povo, mas não tinha visto nada que impedisse de combinar provechosamente as duas. Colin ambicionava converter o Connaught Arms em centro
reconhecido para a declamação de poesia contemporânea e plataforma pública para os novos autores. Ao observar ao ajudante chamado para a ocasião, que não cessava
de abrir garrafas de tinjo californiano, Matt descobriu em seu interior um interesse inesperado para a cultura contemporânea. de vez em quando subia do bar para
ver como ia o espetáculo. Os versos lhe resultavam em grande medida incompreensíveis; certamente, muito poucos rimavam ou tinham um metro discernible, que era sua
definição
da poesia, mas todos despertavam aplausos entusiastas. Como a maioria dos poetas aficionados e do público fumava, o ambiente estava carregado de vapores
de cerveja e tabaco.
   A estrela anunciada da velada era Gabriel Dauntsey. Tinha solicitado aparecer cedo, mas quase todos os poetas que tinham intervindo antes que ele haviam
superado seu limite de tempo, sem mostrar-se suscetíveis em particular os aficionados às insinuações bisbiseadas do Colin.
   assim, eram quase as nove e meia quando Dauntsey avançou a passo lento para a tribuna. Lhe escutou em respeitoso silêncio e lhe aplaudiu ruidosamente,
mas ao Matt deu a impressão de que aqueles poemas de uma guerra que, para a imensa maioria dos pressente, era já história, tinham pouco que ver com as
preocupações atuais dos assistentes. Depois, Colin se abriu passo a empurrões até chegar a seu lado. Seriamente tem que partir já? uns quantos estávamos
pensando em ir logo para jantar algo por aí.
   Sinto muito, me faria muito tarde. Onde posso encontrar um táxi?
   Matt poderia pedi-lo por telefone, mas certamente encontrará um antes se se aproximar do Waterloo Road.
   Dauntsey desapareceu discretamente, quase sem que ninguém se fixou nele nem lhe tivesse dado as obrigado, deixando ao Matt com a sensação de que em certo
modo se tinham levado mal com o ancião.
   Acabava de cruzar a porta quando um casal entrada em anos interpelou ao Matt na barra. foi-se já Gabriel Dauntsey? Minha esposa tem uma primeira edição
de seus poemas e adoraria que a assinasse. Acima não o vemos por nenhuma parte. Têm carro? perguntou Matt.
   Estacionado a umas três maçãs daqui. É o mais perto que encontramos.
   Bom, foi-se faz um momento. Vai andando. Se se derem pressa pode que o alcancem. Se se distraem indo procurar o carro certamente o perderão.
   Saíram apressadamente; a mulher, libero em mão e com olhos ofegantes.
   Aos três minutos entraram de novo. Do outro lado da barra Matt lhes viu cruzar a porta sustentando ao Gabriel Dauntsey entre os dois. O poeta se apertava
contra a frente um lenço ensangüentado. Matt foi para eles. O que passou?
   A mulher, visivelmente conmocionada, respondeu:
   Assaltaram-lhe. Três homens, dois negros e um branco. Estavam agachados sobre ele, mas ao nos ver puseram-se a correr. Tiraram-lhe a carteira.
   O homem procurou com o olhar uma cadeira desocupada e acomodou ao Dauntsey nela.
   Terá que chamar à polícia e pedir uma ambulância decidiu.
   A voz do Dauntsey soou mais vigorosa do que Matt se imaginava.
   Não, não, estou bem. Não quero que chamem a ninguém. Só é um arranhão, pela queda.
   Matt o olhou indeciso. Parecia mais conmocionado que ferido. E do que serviria chamar à polícia? Não temam a menor possibilidade de apanhar aos assaltantes,
assim que o incidente ficaria reduzido a outro delito menor que acrescentar a suas estatísticas de delitos denunciados e não resolvidos.
   Matt, embora defensor acérrimo da polícia, em geral preferia não vê-la por seu bar com muita freqüência.
   A mulher se voltou para seu marido e falou com firmeza.
   Temos que passar por diante do hospital St. Thomas. Levaremo-lo a urgências. É o mais prudente.
   Dauntsey, pelo visto, não tinha voz no assunto.
   Matt pensou que queriam livrar-se da responsabilidade o antes possível e não o reprovava.
   Quando se tiveram partido, subiu ao piso de acima para ver se fazia falta mais vinho e viu sobre uma mesa, ao lado da porta, um montão de magros volúmenes.
Sentiu um arranque de compaixão para o Gabriel Dauntsey. O pobre diabo nem sequer se ficou assinando seus livros. Embora possivelmente era melhor assim. Teria resultado
violento para todos que não os vendesse.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

16
 
   À manhã seguinte, sexta-feira 15 de outubro, Blackie despertou sentindo o peso do medo. Seu primeiro pensamento consciente foi de temor ao dia e ao que podia
lhe esperar. ficou a bata e baixou a preparar o chá matutino, enquanto contemplava a possibilidade de despertar ao Joan alegando uma dor de cabeça, lhe dizer que
não
pensava ir ao escritório e lhe pedir que telefonasse mais tarde para transmitir suas desculpas e a promessa de retornar na segunda-feira. Entretanto, não cedeu à
tentação.
na segunda-feira chegaria com grande rapidez, trazendo consigo uma carga de ansiedade ainda mais pesada. Além disso, sua ausência resultaria suspeita. Todo mundo
sabia que nunca
faltava ao trabalho, que nunca estava doente. Tinha que ir ao escritório como se fosse um dia corrente.
   Não pôde tomar o café da manhã. O mero feito de pensar nos ovos e o toucinho lhe dava náuseas, e a primeira colherada de cereais lhe entupiu na boca. Na estação
comprou o acostumado Daily Telegraph, mas não o abriu durante toda a viagem, limitando-se a olhar sem ver o lhe cintilem caleidoscopio das zonas suburbanas
do Kent.
   Passavam cinco minutos da hora de saída da lancha. O senhor Do Witt, geralmente tão pontual, baixou correndo pela rampa do embarcadero da Charing Cross
justo quando Fred Bowling começava a pensar que teria que largar amarras.
   Perdão a todos, dormi-me. Obrigado por me esperar. Acreditei que teria que tomar a segunda lancha.
   Já estavam todos os habituais da primeira viagem: o senhor Do Witt, ela mesma, Maggie FitzGerald e Amy Holden, de publicidade, o senhor Elton, de direitos, e
Ken, do armazém. Blackie ocupou seu assento de costume na proa. Lhe teria gostado de sentar-se a sós na popa, mas isso também podia resultar suspeito. Se
sentia anormalmente consciente de todos seus gestos e palavras, como se se achasse submetida a interrogatório. Ouviu que James do Witt contava a outros que o
senhor Dauntsey tinha sido vítima de um assalto. Tinha ocorrido depois de sua leitura de poesia. Um casal que saía do pub o tinha encontrado quase imediatamente
e o tinha acompanhado ao departamento de urgências do hospital St. Thomas. Tinha sofrido mais pela comoção que pelo assalto em si e já se encontrava bem. Blackie
não fez nenhum comentário. tratava-se simplesmente de outro percalço menor, de outro golpe de má sorte. Em comparação com o peso cansativo de sua angústia, não parecia
ter muita importância.
   Pelo general Blackie desfrutava de da viagem pelo rio. Levava mais de vinte e cinco anos fazendo-o e ainda lhe fascinava. Mas esse dia todos os marcos familiares
do percurso lhe desejavam muito meros postes indicadores no caminho para o desastre: o elegante forjado da ponte ferroviária do Blackfriars; a ponte do Southwark,
com os degraus do Southwark Causeway dos que Christopher Wren era conduzido a remo até a outra borda do rio quando fiscalizava as obras de construção
da catedral de São Pablo; a ponte de Londres, nos extremos do qual outrora se exibiam as cabeças dos traidores cravadas em ganchos; a porta dos
Traidores, verde de algas e ervas, e o Buraco do Morto, sob a ponte da Torre, onde, por tradição, pulverizavam-se fora dos limites da cidade as
cinzas dos mortos; a própria ponte da Torre; o branco e azul celeste da elevada passarela com sua resplandecente insígnia de ouro; HMS Belfast, ao serviço
de Sua Majestade, com suas cores atlânticas. Todo isso o viu com olhos aos que nada interessava. Blackie se disse que aquele desassossego era absurdo e desnecessário.
Só tinha um pequeno motivo de culpa, que possivelmente, depois de tudo, não era em realidade tão importante nem tão merecedor de recriminação. Mas o desassossego,
que por então
equivalia já a um medo ativo, intensificava-se à medida que se aproximava do Innocent House, e lhe pareceu que seu estado de ânimo se contagiava ao resto do grupo.
O senhor Do Witt estava acostumado a fazer o trajeto em silêncio, muitas vezes lendo, mas as garotas normalmente conversavam com vivacidade. Essa manhã permaneceram
todos calados
enquanto a lancha se bamboleava com lentidão para a argola onde Fred estava acostumado a amarrá-la, à direita dos degraus.
   Do Witt disse de repente:
   Innocent House. Bem, aqui estamos...
   Sua voz encerrava uma nota de jovialidade espúria, como se acabassem de retornar de uma excursão em bote, mas sua expressão era séria. Blackie se perguntou o
que
ocorreria-lhe, no que estaria pensando.
   Logo, pouco a pouco, subiu com outros os degraus banhados pela maré que conduziam a terraço de mármore, fortalecendo-se para confrontar o que pudesse
lhe proporcionar o dia.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

17
 
   George Copeland, de pé depois do amparo de seu mostrador de recepção com ar de embaraçosa impotência, ouviu com alívio o rumor de passos sobre os paralelepípedos.
Assim por fim tinha chegado a lancha. Lorde Stilgoe deixou de andar airadamente de um lado a outro e os dois se voltaram para a porta. Os recém chegados entraram
em grupo, com o James do Witt à cabeça. O senhor Do Witt jogou um olhar ao rosto preocupado do George e se apressou a perguntar: O que acontece, George?
   Foi lorde Stilgoe o que respondeu. Sem saudar do Witt, anunciou-lhe torvamente:
   Etienne desapareceu. Estava chamado com ele às nove em seu escritório. Quando cheguei só estavam o recepcionista e a encarregada da limpeza. Não estou
acostumado a este trato. Meu tempo está valioso, embora o do Etienne não o seja. Esta manhã tenho uma entrevista no hospital. Como que desaparecido? replicou Do
Witt
imediatamente. Suponho que o terá atrasado o tráfico.
   Tem que estar na casa, senhor Do Witt interveio George. deixou a jaqueta na poltrona de seu escritório. fui olhar ao ver que não respondia às chamadas.
E esta manhã, quando cheguei, a porta principal não estava fechada com a Banham. Entrei só com a Yale. E o alarme não estava conectado. A senhorita Claudia
acaba de chegar. Está-o comprovando.
   Passaram todos ao vestíbulo, como movidos por um impulso comum. Claudia Etienne, com a senhora Demery ao lado, saía do despacho do Blackie.
   George tem razão disse. Não pode andar muito longe. Sua jaqueta está na poltrona e o molho de chaves na gaveta superiora da direita. voltou-se para o George.
olhou no número dez?
   Sim, senhorita Claudia. O senhor Bartrum já chegou, mas não há ninguém mais no edifício. Olhou-o ele e tornou a chamar; diz que o Jaguar do senhor
Gerard está estacionado ali, no mesmo sítio onde estava ontem à noite. E as luzes da casa? Estavam acesas quando chegou você?
   Não, senhorita Claudia. E tampouco havia luz em seu escritório. Em nenhuma parte.
   Naquele momento apareceram Frances Peverell e Gabriel Dauntsey. George advertiu que o senhor Dauntsey não tinha bom aspecto. ajudava-se com um fortificação e
levava
um trocito de esparadrapo no lado direito da frente. Ninguém se fixou. George se perguntou se seria o único que se deu conta.
   Não terão visto o Gerard no número doze, verdade? Parece que desapareceu disse a senhorita Claudia.
   Não o vimos respondeu Frances.
   Mandy, que chegava justo detrás deles, tirou-se o casco e anunciou:
   Tem o carro aqui. Vi-o ao passar, ao final do Innocent Passage.
   Claudia replicou em tom reprobatorio.
   Sim, Mandy, já sabemos. irei olhar acima. Tem que estar no edifício. Outros que esperem aqui.
   encaminhou-se a passo vivo para a escada, seguida de perto pela senhora Demery. Blackie, como se não tivesse ouvido a ordem, emitiu um breve ofego e pôs-se a
correr
torpemente em detrás delas.
   Maggie FitzGerald observou:
   A senhora Demery sempre se as acerta para estar na medula mas falou com voz insegura e, ao ver que ninguém fazia nenhum comentário, ruborizou-se como se desejasse
não haver dito nada.
   O grupito se deslocou silenciosamente até formar um semicírculo, quase, pensou George, como empurrado com suavidade por uma mão invisível. Tinha aceso as
luzes do vestíbulo e o teto pintado resplandecia sobre eles, como contrapondo seu esplendor e sua permanência às insignificantes preocupações e as angústias
sem importância dos pressente. Todos os olhos se voltaram para o alto. George pensou que pareciam personagens de um quadro religioso, com o olhar fixo no
céu à espera de alguma aparição sobrenatural. Permaneceu entre eles, sem saber muito bem se seu lugar estava aí ou atrás do mostrador. Fez o que lhe diziam,
como sempre, mas um pouco surpreso de que os sócios esperassem com tanta docilidade. Embora, por que não? Não serviria de nada que se dedicassem a percorrer em turba
toda a casa. Três exploradoras eram mais que suficientes. Se o senhor Gerard estava no edifício, a senhorita Claudia o encontraria. Ninguém falava nem se movia,
exceto James do Witt, que se aproximou silenciosamente ao Frances Peverell. Ao George pareceu que levavam horas esperando, paralisados, como atores de um quadro
vivente,
embora não podiam ter acontecido mais que uns minutos.
   Nesse momento, Amy, com voz que o medo fazia estridente e percorrendo com um olhar frenético o grupo, anunciou:
   gritou alguém. ouvi um grito.
   James do Witt não se voltou para ela, mas sim manteve os olhos cravados na escada.
   Não gritou ninguém a corrigiu serenamente. Imaginaste-lhe isso, Amy.
   E então se repetiu, mas esta vez mais potente e inconfundível: um guincho de desespero. Avançaram para o pé da escada, mas ficaram ali.
Era como se ninguém se atrevesse a dar o primeiro passo escada acima. produziu-se um novo silêncio e depois começaram os gemidos: primeiro um lamento distante e
logo mais forte e cada vez mais próximo. George, ao que o terror mantinha parecido no chão, não identificou a voz. Parecia-lhe tão desumana como o som de uma
sereia ou o miado de um gato na noite. OH, Meu deus! sussurrou Maggie FitzGerald. meu deus! O que está passando?
   E naquele momento, de um modo espetacularmente repentino, apareceu a senhora Demery no alto da escada. Ao George pareceu que se materializou
de um nada. A senhora Demery sustentava ao Blackie, cujos chorados tinham descido de tom para converter-se em graves e convulsos soluços.
   James do Witt falou em voz baixa, mas muito clara. O que ocorre, senhora Demery? O que aconteceu? Onde está o senhor Gerard?
   No despachito dos arquivos. Morto! Assassinado! Isso aconteceu. Está ali atirado, médio nu e rígido como uma tabela podre. Algum demônio o estrangulou
com essa puñetera serpente. Tem ao Sid a te Vaiem enroscada ao pescoço com a cabeça metida na boca.
   James do Witt se moveu ao fim. equilibrou-se para a escada. Frances fez gesto de segui-lo, mas ele se voltou e lhe disse em tom premente:
   Não, Frances, não. E a apartou brandamente para um lado. Lorde Stilgoe foi atrás dele com um desajeitado anadeo de ancião, aferrando-se aos passamanes. Gabriel
Dauntsey,
depois de uns instantes de vacilação, também os seguiu.
   Que alguém me dê uma mão, não? É um peso morto gritou a senhora Demery.
   Frances acudiu imediatamente a seu lado e lhe aconteceu um braço pela cintura ao Blackie.
   Enquanto as olhava, George pensou que era a senhorita Frances quem necessitava que a sustentaram. Baixaram juntas, quase levando ao Blackie em velo entre as duas.
Blackie gemia e sussurrava: "Sinto muito, sinto muito." Juntas a conduziram para o fundo da casa, cruzando o vestíbulo, enquanto o grupito as seguia com o olhar
em um silêncio consternado.
   George voltou para seu mostrador, a seu posto telefônico. Aquele era seu lugar. Era ali onde se sentia seguro, onde tinha o controle. Era ali onde podia confrontar
a situação.
   Ouviu vozes. Aqueles soluços atrozes se apaziguaram, mas agora se ouviam as agudas recriminações da senhora Demery e um coro de vozes femininas. As
separou-se de sua mente. Tinha que trabalhar; seria melhor que começasse. Tentou abrir a caixa de segurança situada sob o mostrador, mas lhe tremiam tanto as mãos
que não conseguia colocar a chave na fechadura. Soou o telefone.
   George deu um violento coice e procurou provas o auricular. Era a senhora Velma Pitt-Cowley, a agente da senhora Carling, que queria falar com o senhor
Gerard. George, reduzido ao silêncio pelo sobressalto inicial, as arrumou para dizer que o senhor Gerard não podia ficar. Até a seus próprios ouvidos, sua voz soou
aguda, cascata, artificial.
   A senhorita Claudia, então. Suponho que está na casa.
   Não respondeu George. Não. O que acontece? É você, verdade, George? O que lhe ocorre?
   George, afligido, cortou a chamada. O telefone voltou a soar imediatamente, mas não o desprendeu e, ao cabo de uns segundos, cessou o ruído. ficou olhando
o aparelho com tremente impotência. Era a primeira vez que fazia uma coisa assim. Passou o tempo, segundos, minutos. Até que lorde Stilgoe se ergueu ante o mostrador
e George pôde lhe cheirar o fôlego e sentir a força de sua ira triunfal.
   me ponha com o Scotland Yard. Quero falar com o comissionado. Se está ocupado, pergunte pelo comandante Adam Dalgliesh.
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original
  
   SEGUNDO LIVRO
   MORTE DE UM EDITOR
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

18
 
   A inspetora Kate Miskin apartou com o cotovelo uma caixa de embalagem média vazia, abriu o balcão de seu novo apartamento no Docklands e, apoiando-se no corrimão
de carvalho gentil, contemplou o tênue resplendor da água, desde o Limehouse Reach, rio acima, até a grande curva que formava mais abaixo em torno da Isle of Dogs.
Só eram as nove e quinze da manhã, mas a bruma matutina já se dissipou e o céu, quase sem nuvens, começava a brilhar com uma brancura opaca na
que se captavam vislumbres de um transparente azul claro. Era uma manhã mais própria da primavera que de meados de outubro, mas do rio emanava um aroma outonal,
intenso como o aroma de folhas molhadas e densa terra misturado com o penetrante aroma salobre do mar. A maré estava em pleamar e ao Kate parecia ver o vigoroso
puxão da corrente sob os puntitos de luz que cintilavam e dançavam como vaga-lumes sobre a superfície frisada da água; é mais, quase sentia seu poder. Com
este apartamento, com esta vista, tinha completo outro desejo, tinha dado outro passo que a afastava daquele insípido piso do tamanho de uma caixa, no mais alto
do
edifício Ellison Fairweather, onde tinha passado os dezoito primeiros anos de sua vida.
   Sua mãe tinha morrido aos poucos dias de dar a luz e a seu pai não o conhecia. Tinha-a criado sua anciã e relutante avó materna, a qual acolheu a contra gosto
a uma menina que a convertia virtualmente em prisioneira daquele piso alto do que já não se atreveria a sair de noite em busca da companhia, o brilho e o
calor do pub local, e em quem tinha ido crescendo o ressentimento contra a inteligência de sua neta e contra uma responsabilidade que não estava em condições
de assumir, por idade, por estado de saúde e por temperamento. Kate tinha descoberto muito tarde, justo no momento da morte de sua avó, quanto a queria.
Agora lhe parecia que ao produzir-se essa morte, cada uma lhe tinha pago à outra os atrasos de amor de toda uma vida. Sabia que nunca se liberaria por completo
do edifício Ellison Fairweather. Ao subir a seu novo apartamento no elevador grande e moderno, rodeada de óleos cuidadosamente embalados que ela mesma havia
pintado, acordou-se do elevador do Ellison Fairweather, com as paredes imundas e borradas, o fedor a urina, as bitucas, as latas de cerveja
atiradas. Freqüentemente estava avariado como conseqüência de atos de vandalismo, e a avó e ela tinham que subir quatorze pisos a pé carregadas com as bolsas da
compra e a lavanderia, detendo-se em cada patamar para que a avó recuperasse o fôlego. Ali sentada, rodeada de bolsas de plástico e escutando resfolegar a
a avó, feito-se uma promessa: "Quando for major me afastarei de tudo isto. Irei do maldito edifício Ellison Fairweather para sempre. Não retornarei jamais.
Nunca voltarei a ser pobre.
   Nunca voltarei a cheirar este aroma."
   Para levar a cabo seu projeto tinha eleito o corpo de polícia, resistindo a tentação de matricular-se em sexto grau e de optar pela universidade, impaciente
por começar a ganhar dinheiro, por ir-se dali. Aquele primeiro apartamento Vitoriano no Holland Park foi o começo. Depois da morte de sua avó permaneceu nove meses
mais no piso, pois sabia que partir imediatamente seria desertar, embora ignorava do que, acaso de uma realidade que devia confrontar, e também sabia que devia
expiar algo, aprender coisas sobre ela mesma, e que aquele era o sítio onde as aprenderia.
   Chegaria um momento no que seria correto ir-se, no que poderia fechar a porta com a sensação de um pouco consumado, de que deixava detrás de si um passado que
não podia trocar, mas que podia aceitar com suas misérias, seus horrores e, sim, também suas alegrias, um passado com o que podia reconciliar-se e ao que podia integrar
nela mesma. E esse momento tinha chegado já.
   O apartamento, naturalmente, não era como ela sonhava ao princípio. imaginou-se em um dos amplos armazéns reformados que se encontravam junto ao
ponte da Torre, com janelas altas e habitações enormes, robustas vigas de carvalho e, sem dúvida, um persistente aroma a especiarias.
   Mas, até com um mercado imobiliário à baixa, aquilo excedia seus meios. E o apartamento, eleito depois de uma minuciosa busca, não era um mau substituto.
Tinha solicitado a hipoteca mais alta a que podia acessar, na crença de que era economicamente acertado comprar o melhor que pudesse permitir-se. Tinha uma habitação
grande, de cinco metros e médio por quase quatro, e outras duas mais pequenas, uma delas com sua própria ducha. A cozinha era bastante espaçosa para comer nela
e estava bem equipada. A terraço que dava ao sudoeste, e que se estendia ao longo de toda a sala de estar, era estreita, mas mesmo assim cabiam umas cadeiras e uma
mesita. No verão poderia comer ali. E se alegrava de que os móveis comprados para seu primeiro apartamento não tivessem sido baratos. O sofá e as duas poltronas
de
pele autêntica ficariam muito bem naquele entorno moderno. Menos mal que finalmente se decidiu pelo marrom em vez do negro. O negro estava muito
de moda. E a mesa e as cadeiras de madeira de olmo despretensioso também ficavam bem.
   Além disso, o piso apresentava outra grande vantagem: estava em uma esquina do edifício e tinha duas vistas ao exterior e dois terraços. Do dormitório via o amplo
e resplandecente panorama do Canary Wharf, a torre, similar a um imenso lápis celular com a ponta coroada de luz, a grande curva branca do edifício contigüo, o
água remansada do antigo mole das Índias Ocidentais e a ferrovia ligeira do Docklands, com seus sulcos elevados e seus trens, que pareciam brinquedos
de corda. Esta cidade de vidro e concreto se iria voltando mais buliçosa à medida que se instalassem novas empresas. Poderia contemplar do alto o espetáculo
multicolorido e sempre cambiante de meio milhão de homens e mulheres que se moviam de um lado a outro desenvolvendo sua vida trabalhista. Da outra terraço, que dava
ao sudoeste, via-se o rio e o tráfico lento e imemorial do Támesis: gabarras, embarcações de recreio, lanchas da polícia fluvial e das autoridades do
porto de Londres, navios de linha que remontavam a corrente para atracar junto à ponte da Torre. Ao Kate adorava o estímulo do contraste e naquele
apartamento podia passar a vontade de um mundo a outro, do novo ao antigo, da água remansada ao rio de poderosas marés que T. S. Eliot chamou um poderoso deus
pardo.
   O apartamento resultava especialmente adequado para um oficial da polícia, com um sistema de interfone na entrada principal, duas fechaduras de segurança
e uma cadeia na porta do piso.
   Havia também um estacionamento subterrâneo ao que tinham acesso todos os residentes. Isso também era importante. E os deslocamentos a New Scotland Yard não
seriam complicados; depois de tudo, estavam no mesmo lado do rio. E possivelmente poderia ir de vez em quando em um navio fluvial até o embarcadero do Westminster.
Chegaria a conhecer o rio, a participar de sua vida e sua história.
   Despertaria pela manhã com o chiado das gaivotas e sairia a esse vazio fresco e branco. Naquele momento, suspensa ali entre o cintilação da água
e o alto e delicado azul do céu, sentiu um impulso extraordinário que já a tinha invadido em outras ocasiões e que, a seu entender, devia ser o mais parecido
a uma experiência religiosa. Possuiu-a uma necessidade, quase física em sua intensidade, de rezar, de elogiar, de dar obrigado sem saber a quem, de gritar com uma
alegria
mais profunda que a que lhe produzia seu próprio bem-estar físico, seus lucros e inclusive a beleza do mundo.
   Tinha deixado as estanterías fixas no piso antigo, mas outras novas construídas segundo suas instruções cobriam toda a parede oposta à janela. Frente
a elas, ajoelhado junto a uma caixa, Alan Scully ordenava os livros. A própria Kate se surpreendeu ao descobrir quantos tinha adquirido desde que o conhecia.
Não eram escritores dos que lhe tivessem falado jamais na escola, mas agora se sentia agradecida à secundária do Ancroft. A escola tinha feito todo o
possível por ela. Os professores e professoras aos que então desprezava, em sua arrogância, eram em realidade, agora se dava conta, pessoas esforçadas que lutavam
por impor disciplina, por dar provisão enfrentando-se diariamente a classes numerosas e dezesseis idiomas distintos, por satisfazer necessidades encontradas, por
abordar
os entristecedores problemas familiares de alguns dos meninos e prepará-los para superar uns exames que ao menos lhes abririam as portas de algo melhor. Entretanto,
a maior parte de sua instrução a tinha adquirido depois da escola. Depois de seus abrigos para bicicletas e em seu campo de jogos de asfalto tinha aprendido
tudo o que carecia de importância respeito ao sexo e nada que fora importante. Isso foi Alan quem o ensinou, isso e muito mais. Fez-lhe conhecer livros, não com
superioridade, não como se se considerasse uma espécie do Pigmalión, mas sim porque queria compartilhar com alguém a quem amava as coisas que ele amava. E agora
tinha chegado
o momento de que isso também se acabasse.
   Kate ouviu sua voz.
   Se tomarmos um descanso, prepararei café. Ou só está contemplando o panorama?
   Estou contemplando o panorama. me desfrutando. O que te parece, Alan?
   Era a primeira vez que ele via o piso e Kate o tinha mostrado com algo do orgulho de uma menina com um brinquedo novo.
   Eu gostarei quando te tiver instalado. Quer dizer, se chegar a vê-lo quando te tiver instalado. O que fazemos com estes livros? Quer separar os de poesia, os
de ficção e os de não ficção? Agora mesmo temos ao Dalgliesh ao lado do Defoe. Defoe? Não sabia que tivesse nenhum. Nem sequer eu gosto de Defoe. Ah, separados,
parece-me.
   E logo segundo o sobrenome do autor.
   O Dalgliesh é uma primeira edição. Considera necessário comprá-lo encadernado em tecido porque é seu chefe e trabalha com ele?
   Não. Leio seus poemas para tentar entendê-lo melhor. E é assim?
   De fato, não. Não consigo relacionar a poesia com o homem. E quando o consigo, é aterrador.
   Repara em muitas coisas.
   Vejo que não está assinado. Ou seja que não o pediste.
   Resultaria violento para os dois. Não jogue com ele, Alan. Deixa-o na prateleira.
   aproximou-se e se ajoelhou junto a ele. Alan não tinha mencionado seus livros profissionais, e agora viu que formavam um ordenado montão junto à caixa de embalagem.
Um por um, começou a colocá-los na prateleira mais baixo: um exemplar das últimas Estatísticas Criminais; a Lei da evidência criminal e policial de 1984;
Guia da lei de justiça criminal de 1991, do Blackstone;
   Direito policial, do Butterworth; Legislação moderna sobre a evidência, do Keane; Direito penal, do Clifford Hogan; Manual de formação policial e o Relatório
Sheehy. Kate pensou que era a coleção de uma profissional ao início de sua carreira e se perguntou se, ao deixá-los à parte e não mencioná-los, Alan não teria pretendido
fazer uma espécie de comentário, possivelmente inclusive emitir um julgamento inconsciente sobre algo mais que a biblioteca do Kate. Pela primeira vez em anos viu
sua relação com
os olhos de um observador independente e crítico. Aqui temos a uma mulher de carreira, uma profissional triunfadora e ambiciosa que sabe aonde quer chegar. Enquanto
cada dia se enfrenta aos detrito desordenados de vistas sem disciplina, excluiu cuidadosamente a desordem da própria. Um complemento necessário desta bem
organizada auto-suficiência é um amante inteligente, arrumado, disponível quando lhe necessita, hábil na cama e pouco exigente fora dela.
   Durante três anos Alan Scully tinha satisfeito admiravelmente esta necessidade. Ela sabia que, em troca, tinha-lhe dado afeto, lealdade, doçura e compreensão;
não lhe havia flanco dar nada disso.
   Mas era de sentir saudades que Alan, havendo-se comprometido como o tinha feito, queria ser para ela algo mais que o equivalente de um acessório de moda?
   Kate moeu o café em grão, deleitando-se com seu aroma. Nenhuma infusão sabia jamais tão bem como cheiravam os grãos. Tomaram o café sentados no chão, apoiados
os duas em uma caixa ainda por abrir.
   na quarta-feira que vem, que vôo agarra? perguntou ela.
   O BA175. Sai às onze. Não trocaste que idéia?
   Esteve a ponto de responder: "Não, Alan, não posso. É impossível", mas se conteve. Não era impossível. Nada lhe impedia de trocar de idéia. A resposta sincera
era
que não queria. Tinham discutido o problema muitas vezes e Kate já sabia que não podia haver nenhum acerto.
   Compreendia o que ele sentia e o que queria. Alan não pretendia lhe fazer nenhuma chantagem. Lhe tinha apresentado a ocasião de trabalhar três anos em Princeton
e
estava impaciente por ir-se. Era importante para sua carreira, para seu futuro. Mas ficaria em Londres e conservaria seu emprego atual na biblioteca se ela se
comprometia, se aceitava casar-se com ele ou, ao menos, viver com ele e lhe dar um filho.
   Não se tratava de que considerasse a carreira do Kate menos importante que a própria; se era necessário, deixaria temporalmente seu emprego e ficaria em casa
enquanto
ela ia trabalhar.
   Sempre lhe tinha reconhecido esta igualdade essencial. Mas se tinha cansado de estar na periferia de sua vida. Ela era a mulher a que amava e com a que queria
viver. Renunciaria a Princeton, mas não para continuar como estavam, vendo-se unicamente quando o trabalho o permitia, sabendo que era seu amante mas que nunca
poderia ser nada mais.
   Não estou preparada para o matrimônio nem a maternidade disse Kate. Acaso não o esteja nunca, sobre tudo para a maternidade. Não o faria bem. Nunca aprendi,
compreende-o.
   Não acredito que faça falta uma aprendizagem prévia.
   Faz falta um cuidado amoroso. Isso eu não posso dá-lo. Não se pode dar o que nunca se teve.
   Ele não discutiu nem tratou de convencê-la. Já tinha passado a hora de falar. Comentou:
   Ao menos ficam outros cinco dias, e o de hoje acaba de começar. Desembalamo-lo todo esta manhã e almoçamos em algum pub do rio, o que te parece? Possivelmente
no Prospect do Whitby.
   Teria que nos dar tempo. Tem que comer. A que hora deve voltar para o Yard?
   Às dois respondeu ela. Só disponho de meio-dia livre porque hoje Daniel Aaron está de licença. Sairei o antes que possa e jantaremos aqui. Uma comida fora
já é suficiente. Podemos comprar comida a China preparada.
   Alan estava levando as taças de café à cozinha quando soou o telefone. Gritou:
   Sua primeira chamada. Isto te passa por enviar cartões anunciando a mudança de direção. Chamará-te todo mundo para te desejar boa sorte.
   Mas a chamada foi breve e Kate logo que disse nada enquanto durou. depois de pendurar, voltou-se para ele.
   Era da Brigada. Uma morte suspeita. Querem que vá agora mesmo. É à beira do rio, assim Dalgliesh passará a me recolher com a lancha da Divisão
do Támesis. Sinto muito, Alan.
   Pareceu-lhe que se passou os três últimos anos dizendo: "Sinto muito, Alan."
   olharam-se em silêncio uns instantes, até que ele disse:
   foi assim desde o começo, segue sendo-o e sempre o será. O que quer que faça, Kate? Continúo desempacotando?
   de repente, a idéia de que ficasse sozinho ali lhe desejou muito insuportável.
   Não respondeu, deixa-o. Já o farei logo. Pode esperar.
   Mas ele seguiu esvaziando caixas enquanto ela se trocava os texanos e o suéter, adequados para as poeirentas tarefas da mudança e a limpeza do apartamento,
por umas calças de veludo cotelê marrom, uma elegante jaqueta de tweed e um pólo de fina lã cor nata. trancou-se a espessa cabeleira de perto do cocuruto
e sujeitou o extremo da trança com um passador.
   A sua volta, lhe dedicou o breve sorriso apreciativo de costume e perguntou: É sua roupa de trabalho? Nunca sei se te veste para o Dalgliesh ou para os suspeitos.
   Evidentemente, para o cadáver não é.
   Este cadáver em particular não está precisamente atirado em uma sarjeta replicou ela.
   Eram relativamente novos esse ciúmes do chefe, e possivelmente fossem sintoma e ao mesmo tempo causa da mudança que experimentava sua relação.
   Saíram em silêncio. Enquanto Kate fechava por fora as duas fechaduras, ele voltou a falar. Voltarei a verte antes de que vá na próxima quarta-feira? perguntou.
   Não sei, Alan. Não sei.
   Mas sabia. Se este caso era tão importante como prometia sê-lo, esperariam-lhe jornadas de trabalho de dezesseis horas, talvez mais. Mais tarde recordaria com
prazer e inclusive com tristeza as escassas horas que tinham acontecido juntos no piso. Entretanto, o que sentia naqueles momentos era algo muito mais embriagador,
e o sentia cada vez que a chamavam para investigar um caso novo. Era seu trabalho, um trabalho para o que se preparou, que sabia fazer bem e que a satisfazia.
Consciente já de que aquela podia ser a última vez que o visse durante anos, no pensamento se separava dele, preparando-se mentalmente para a tarefa que o
esperava.
   Alan tinha deixado o carro em um dos espaços assinalados à direita do pátio exterior, mas não subiu a ele. adiantou-se com o Kate e esperou a seu lado a chegada
da lancha da polícia. Quando se fez visível a esbelta silhueta azul escuro da embarcação, voltou-lhe as costas sem dizer nada e retornou para o carro.
Entretanto, não o pôs em seguida em marcha. Quando a lancha se deteve, Kate soube que ele seguia observando-a enquanto a alta e escura figura lhe oferecia a mão
da proa para ajudá-la a subir a bordo.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

19
 
   O inspetor Daniel Aaron recebeu a chamada quando se aproximava da avenida Eastern. Não lhe fez falta parar o carro para anotá-la: a mensagem era breve e clara.
Uma morte suspeita no Innocent House, Innocent Walk. Devia acudir imediatamente. Robbins levaria a maleta com o necessário.
   A mensagem não tivesse podido chegar em melhor momento. Sua primeira reação foi entusiasmo ante a idéia de que por fim se apresentava o trabalho importante que
tanto tinha desejado. Fazia só três meses que tinha substituído ao Massingham na Brigada Especial e estava desejando demonstrar sua valia. Mas ainda havia outro
motivo.
Naqueles momentos se dirigia a casa de seus pais, no The Drive, Ilford. Era seu quadragésimo aniversário de bodas e tinham organizado um almoço de celebração
com a irmã de sua mãe e seu marido. Ele tinha solicitado um dia de licença com suficiente antecipação, sabendo que se tratava de uma ocasião familiar que não seria
razoável evitar, mas não a esperava com impaciência. O dia prometia um almoço pretensioso mas insosso no restaurante de umas lojas de departamentos eleita por
sua mãe, seguido de uma tarde de aborrecido bate-papo familiar. Era consciente de que sua tia o tinha por um filho desnaturado, um sobrinho insatisfactorio e um
mal
judeu. Possivelmente nesta ocasião não expressaria abertamente sua censura, mas esta frágil tolerância não contribuiria a alegrar a atmosfera.
   Dobrou por uma rua lateral e deteve o automóvel para chamar por telefone. A chamada ia resultar difícil e preferia não estar conduzindo enquanto a fazia.
Ao pulsar as teclas percebeu em seu interior uma confusão de emoções: alivio por ter uma desculpa válida para não assistir ao almoço, uma intensa relutância a
dar a notícia, entusiasmo porque estava a ponto de intervir em um caso que prometia ser gordo e o habitual sentimento de culpa, irracional e destruidor de tudo
prazer. Não estava disposto a perder o tempo em discussões e explicações prolongadas. Kate Miskin podia estar já na cena do crime. Seus pais deveriam
aceitar que tinha um trabalho que fazer.
   Foi seu pai o que desprendeu o telefone. Ainda não saíste, Daniel? Disse que viria cedo para passar um momento tranqüilo conosco antes de que
chegassem outros. Onde está?
   Na avenida Eastern. Sinto muito, papai, mas não posso ir. Acabo de receber uma chamada da Brigada. É um caso urgente. Assassinato. Tenho que ir diretamente
à cena do crime.
   Logo agarrou o telefone sua mãe. O que há dito, Daniel? Há dito que não vem? Mas tem que vir. Prometeu-me isso. Estão aqui seus tios. Hoje faz quarenta
anos que nos casamos. Que classe de celebração será se não poder ter a meus dois filhos comigo? Prometeu-me isso.
   Já sei que lhe prometi isso. Não estaria agora na avenida Eastern a não ser tivesse tido intenção de ir. Acabo de receber a chamada.
   Mas está de licença. Do que serve que lhe dêem o dia livre se logo lhe chamam desta maneira? Não pode encarregar-se outro? por que tem que ser você sempre?
   Não sempre tenho que ser eu. Mas hoje sim. É um caso urgente. Um assassinato. Um assassinato! E prefere andar metido em um assassinato antes que estar com seus
pais.
   Assassinato. Morte. Não pode pensar nos vivos?
   Sinto muito, tenho que ir. antes de pendurar o telefone, acrescentou com voz áspera: Que vá bem o almoço.
   Tinha sido pior do que esperava. Permaneceu sentado uns segundos, esforçando-se por recuperar a calma, combatendo uma irritação que começava a converter-se
em cólera. Finalmente soltou a embreagem, manobrou para trocar de direção aproveitando o caminho de entrada a uma casa e se somou à corrente do tráfico. Era
a hora ponta da manhã e os automóveis se moviam com lentidão e a intervalos caprichosos. Tampouco teve sorte com os semáforos. Cale detrás rua, seu avanço
via-se freado por aquelas luzes vermelhas que se acendiam ante ele com lhe exasperem perversidade. Ainda não podia imaginar-se sequer a cena de morte violenta à
que se dirigia com tão tediosa lentidão, mas, uma vez ali, a tarefa absorveria todos seus pensamentos e energias. afastava-se fisicamente daquela casa do Ilford
um penoso quilômetro atrás de outro, mas enquanto isso não podia se separar de sua mente nem a casa nem a vida que esta continha.
   A família se mudou ali quando ele tinha dez anos e David treze, da casa encostada do Whitechapel em que ambos tinham nascido. E para ele, o lar
seguia sendo o número 27 da Balaclava Terrace. Era uma das poucas ruas que as bombas do inimigo não tinham destruído e que, depois, tinha sobrevivido tenazmente
enquanto os pisos e casas dos arredores se afundavam entre nuvens de pó acre e se elevavam as altas torres de uma cidade estranha. Mas sua rua também haveria
acabado desaparecendo de não ser pela excentricidade e a resolução de uma anciã residente em uma plazuela vizinha, cujos esforços por conservar algo do antigo
East End coincidiram com uma escassez de recursos municipais para os projetos mais aventurados. Assim Balaclava Terrace ainda seguia em pé e sem dúvida tinha adquirido
prestigio ao transformar-se em refugio contra a estridente modernidade para jovens executivos, internos do Hospital de Londres e estudantes de medicina que compartilhavam
alojamento. Nenhum membro de sua família tinha retornado ali jamais. Para seus pais a mudança tinha representado o cumprimento de um sonho, um sonho que se
voltou quase aterrador quando começou a haver possibilidades de que se fizesse realidade e se converteu em objeto de constantes conversações, compreendidas só pela
metade,
até bem entrada a noite. Seu pai, superados os exames de contabilidade, tinha obtido uma ascensão. Isso devia trazer consigo um afastamento do passado, um
deslocamento para o nordeste que supunha também um deslocamento para cima na escala social e, ao mesmo tempo, outro deslocamento, embora fora de poucos
quilômetros, daquela remota aldeia polonesa da que emigrasse seu bisavô. A questão da hipoteca foi motivo de nervosas especulações financeiras em busca
de alternativas. Mas tudo tinha saído bem. Aos seis meses de mudar-se, um falecimento inesperado na empresa se traduziu em uma nova ascensão que afiançou
a segurança econômica. Na casa do Ilford havia uma cozinha com todos os acessórios modernos e um conjunto de sofá e poltronas na sala de estar. As mulheres que iam
à sinagoga
local vestiam com elegância; agora, sua mãe era das mais elegantes. Daniel suspeitava que ele era o único membro da família que sentia falta de Balaclava
Terrace. envergonhava-se da casa do Ilford e se envergonhava de si mesmo por desdenhar o que tanto havia flanco conseguir. disse-se que se alguma vez levava a
Kate Miskin a sua casa, preferiria que visse Balaclava Terrace e não The Drive, no Ilford. Mas que diabos importava ao Kate Miskin onde ou de que maneira vivia
ele? Convidá-la a sua casa estava desconjurada. Só levava três meses trabalhando com ela na Brigada Especial. Que diabos tinha que ver Kate Miskin com seu
vida de família?
   Acreditava conhecer a raiz de sua insatisfação: era a inveja. Quase da mais temprana infância tinha sabido que seu irmão maior era o preferido de sua mãe,
quem já tinha completo trinta e cinco anos quando nasceu David e quase tinha perdido a esperança de ter um filho. O amor entristecedor que sentiu por seu primogênito
foi uma revelação de tal intensidade que absorveu quase por completo todo o afeto maternal que podia dar. Nascido ao cabo de três anos, Daniel foi bem recebido,
mas não obsessivamente desejado. Recordava que, quando tinha quatorze anos, viu uma mulher que se inclinava sobre o cochecito de uma vizinha para contemplar ao recentemente
nascido e comentava: "Assim que este é o que faz cinco. Mas todos trazem consigo o amor suficiente, verdade?" Ele não tinha tido nunca a sensação de ter trazido
o seu.
   E quando David terna onze anos sofreu um acidente. Daniel ainda recordava o efeito que produziu em sua mãe. Os olhos enlouquecidos com que se aferrou a seu pai,
o rosto lívido a causa do pânico e a dor, que se tinha convertido de repente no rosto de uma desconhecida frenética, os insuportáveis soluços, as largas
horas junto à cabeceira do David no Hospital de Londres enquanto ele ficava aos cuidados de uns vizinhos. Ao fim terá que lhe amputar a perna esquerda por
debaixo do joelho. Sua mãe acompanhou a casa ao filho mutilado com uma ternura exultante, como se se tivesse levantado de entre os mortos. Mas Daniel sabia de
todos modos que não podia competir com ele. David era corajoso, nunca se queixava, não causava problemas. Ele era anti-social, ciumento, difícil. Também era inteligente.
Suspeitava
que era mais inteligente que David, mas logo renunciou a sua rivalidade acadêmica. Foi David o que se matriculou na Universidade de Londres, estudou direito, obteve
a licenciatura e agora trabalhava em um despacho especializado em casos criminais. E era um ato de desafio que aos dezoito anos, nada mais sair da escola,
Daniel tivesse ingressado na polícia.
   dizia-se, e médio acreditava, que seus pais se envergonhavam desta profissão. Certamente, nunca alardeavam de seus êxitos como o faziam com os do David. Recordou
um fragmento de conversação que teve lugar na anterior janta de aniversário de sua mãe. Ao recebê-lo na porta, esta lhe advertiu:
   Não lhe hei dito à senhora Forsdyke que é polícia. Naturalmente, o direi se pergunta a que te dedica.
   Seu pai acrescentou com voz sossegada:
   E está na Brigada Especial do comandante Dalgliesh, mamãe, que intervém nos delitos particularmente delicados.
   Daniel replicou com uma acritud que surpreendeu inclusive a ele mesmo.
   Não sei se contribuirá a lavar a vergonha. E o que fará essa galinha velha, a fim de contas? Deprimir-se em cima do coquetel de camarões? por que tem que lhe
incomodar
meu trabalho, a não ser que seu marido ande metido em algum negócio sujo? "meu deus, já tornei a começar. E o dia de seu aniversário", disse-se então. essa alegra
cara. Tem um filho respeitável. Pode lhe dizer à senhora Forsdyke que David se dedica a mentir para que os delinqüentes não vão ao cárcere e eu dedico a
mentir para encerrá-los.
   Bem, agora podiam divertir-se criticando-o enquanto lhes serviam as peças. E Bela estaria com eles, naturalmente. Era advogada, como David, mas ela haveria
encontrado um oco para celebrar o aniversário de seus pais. Bela, a futura nora perfeita. Bela, que aprendia yiddish, que visitava o Israel duas vezes ao ano
e arrecadava recursos para ajudar aos imigrantes da Rússia e Etiópia, que assistia ao Beit Midrash, o centro de estudos talmúdicos da sinagoga, que celebrava
o sabbath; Bela, que voltava para ele seus olhos escuros, carregados de recriminação, e se interessava pela estado de sua alma.
   Era inútil lhes dizer: "Já não acredito em nada disso." até que ponto eram crentes seus pais? Se os fizessem sair a declarar sob juramento e lhes perguntassem
se seriamente acreditavam que Deus entregou a Torá ao Moisés no monte Sinaí e que suas vidas dependiam da exatidão da resposta, o que responderiam? Havia-lhe
formulado esta pergunta a seu irmão e ainda recordava a resposta. Em seu momento lhe surpreendeu, e ainda lhe surpreendia, pois expor a desconcertante possibilidade
de que no David houvesse sutilezas que ele nunca tinha compreendido.
   Certamente mentiria. Há crenças pelas que realmente vale a pena morrer, e isso não depende de que sejam estritamente certas ou não.
   Sua mãe, certamente, nunca seria capaz de lhe dizer: "Não me importa se crie ou não, quero que o sabbath esteja aqui conosco. Quero que lhe vejam na sinagoga
com seu pai e seu irmão." E não era hipocrisia intelectual, embora ele tentava convencer-se de que o era. poderia-se aduzir que poucos seguidores de qualquer religião
acreditavam todos os dogmas de sua fé, exceto os fundamentalistas, e bem sabia Deus que esses eram muito mais perigosos que qualquer não crente.
   Bem sabia Deus. Que natural resultava, e que universal, deslizar-se à linguagem da fé.
   Possivelmente sua mãe tinha razão, embora jamais seria capaz de reconhecer a verdade. As formas externas eram importantes. Praticar a religião não consistia só
em
um assentimento intelectual. Ser visto na sinagoga equivalia a proclamar: "Este é meu sítio, esta é minha gente, estes são os valores segundo os quais intento
viver, isto é o que gerações de meus antepassados têm feito de mim, isto é o que sou." Recordou as palavras que lhe tinha dirigido seu avô depois de seu Bar
Mitzvah:
   "O que é um judeu sem sua crença? O que Hitler não pôde nos fazer, faremo-nos isso nós mesmos?" Os antigos ressentimentos acumulados. Até judeu nem sequer
estava-lhe permitido o ateísmo. Arrasado da infância pelo peso da culpa, não podia rechaçar sua fé sem sentir a necessidade de desculpar-se ante o Deus no
que já não acreditava. E sempre estava ali, no fundo de sua mente, qual muda testemunha de sua apostasia, aquele comovedor exército em marcha de humanidade nua:
jovens,
maiores e meninos afluindo como uma maré escura para as câmaras de gás.
   Detido ante outro semáforo em vermelho, pensou na casa que nunca seria um lar, viu com o olho claro da mente as janelas reluzentes, os pendentes visillos
de encaixe com seus laços, o imaculado jardim dianteiro, e se disse: "por que devo definir tomando como referência o dano que outros causaram a minha raça? A
culpa já era bastante má; tenho que carregar também com o peso da inocência? Sou judeu, não basta com isso? Devo representar ante mim mesmo e outros a maldade
da espécie humana?"
   Chegou por fim à auto-estrada, onde, tão misteriosamente como de costume, o tráfico se aliviou e lhe permitiu pôr o carro a uma boa velocidade.
Com sorte chegaria ao Innocent House em cinco minutos.
   Esta morte não era comum, este mistério não resolveria com facilidade. Não teriam chamado à equipe para um caso de rotina. Possivelmente nenhuma morte era comum
e
nenhuma investigação puramente rotineira para aqueles aos que afetava de perto. Mas esta lhe brindaria a oportunidade de lhe demonstrar ao Adam Dalgliesh que não
equivocou-se ao escolhê-lo em substituição do Massingham. E pensava aproveitá-la. Não havia nada, nem no âmbito pessoal nem no profissional, que tivesse prioridade
sobre isto.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

20
 
   A lancha da polícia cabeceou ao tomar a curva setentrional do rio, entre o Rotherhite e a rua Narrow, contra uma vigorosa corrente. A brisa tinha aumentado
até converter-se em um vento ligeiro e a manhã era mais fria do que lhe tinha parecido ao Kate ao despertar. Algumas nuvens, finos fiapos de vapor branco, se
deslocavam e dissolviam sobre o pálido azul do céu. Não era a primeira vez que via Innocent House do rio, mas quando apareceu repentinamente, depois da
curva do Limehouse Reach, Kate emitiu uma breve exclamação admirativa e, ao voltar-se para o rosto do Dalgliesh, viu nele um fugaz sorriso. Sob o sol da
amanhã, a casa reluzia com tão irreal intensidade que por um instante acreditou que estava iluminada com focos. Enquanto o piloto parava o motor da lancha e a
aproximava habilmente à fileira de pneumáticos pendurados à direita dos degraus do embarcadero, Kate quase tivesse podido acreditar que a casa formava parte do
cenário de um filme, um palácio insustancial de cartão pedra e grude atrás de cujos efêmeros muros o diretor, os atores e os iluminadores já se trabalhavam em excesso
em torno do corpo do defunto, ao tempo que a maquiadora acudia a toda pressa para enxugar uma frente reluzente de suor e aplicar uma última gota de sangue
artificial. Esta fantasia a desconcertou; não era propensa a teatralizar a vida nem a deixar voar a imaginação, mas lhe resultava difícil sustraerse à sensação
de que se tratava de uma situação preparada, da qual era ao mesmo tempo partícipe e espectadora, e a imobilidade solene do grupo de recepção contribuiu
a reforçá-la.
   Havia dois homens e duas mulheres. As mulheres estavam um pouco mais adiantadas e flanqueadas pelos homens. Permaneciam agrupados na espaçosa terraço de mármore,
imóveis como estátuas, contemplando a manobra de atraque com expressão séria e, na aparência, crítica. Durante o curto trajeto Dalgliesh tinha tido tempo
de começar a pôr ao Kate à corrente dos fatos, de modo que a jovem pôde supor quem eram. A mulher alta e moréia devia ser Claudia Etienne, a irmã
do morto, e a outra Frances Peverell, a última da família Peverell.
   O major dos homens, que parecia ter completo sobradamente os setenta anos, era sem dúvida Gabriel Dauntsey, o editor de poesia, e o mais jovem James de
Witt. Os via tão compostos como se um diretor os tivesse colocado cuidadosamente atendendo aos ângulos da câmara, mas quando Dalgliesh se aproximou de
eles o grupito se desfez e Claudia Etienne avançou com a mão tendida para fazer as apresentações. Logo se voltou. Outros a seguiram por um curto beco
pavimentado e entraram pela porta lateral da casa.
   Ao outro lado do mostrador de recepção havia um homem de idade sentado ante o quadro de conexões. Com sua cara Lisa e pálida que formava um ovalóide quase perfeito,
as bochechas salpicadas de pequenos círculos vermelhos sob uns olhos bondosos, tinha o aspecto de um velho palhaço. Quando entraram elevou a vista para eles, e Kate
viu em seus olhos luminosos um olhar em que se mesclavam a apreensão e a súplica. Era um olhar que já tinha visto antes. A presença da polícia podia
ser necessária, talvez inclusive a esperava com impaciência, mas estranha vez era recebida sem nervosismo, nem sequer pelos inocentes. Durante os primeiros segundos
perguntou-se, sem que viesse ao caso, que profissões eram convidadas sem reservas aos lares da gente. Médicos e encanadores deviam figurar entre os primeiros
lugares da lista, e as parteiras provavelmente encabeçariam a partilha. perguntou-se o que se sentiria ao ser recebido com as palavras, sortes de coração: "Obrigado
a Deus que está você aqui." Então soou o telefone e o ancião se voltou para atender a chamada. Sua voz era grave e muito agradável, mas continha uma inconfundível
nota de ansiedade, e lhe tremiam as mãos.
   Peverell Press, bom dia. Não, temo-me que o senhor Gerard não pode ficar. Quer que diga a alguém que lhe chame mais tarde? Elevou de novo o olhar,
esta vez em direção a Claudia Etienne, e disse com expressão necessitada: É a secretária do Matthew Evans, do Fabers, senhorita Etienne. Quer falar com o senhor
Gerard. É pela reunião da próxima quarta-feira sobre a pirataria literária.
   Claudia agarrou o auricular.
   Sou Claudia Etienne. lhe diga por favor ao senhor Evans que lhe chamarei assim que possa. Agora vamos fechar os escritórios para o resto do dia. Temo-me que houve
um acidente. lhe diga que Gerard Etienne morreu. Sei que compreenderá que não possa falar com ele nestes momentos.
   Pendurou o telefone sem esperar resposta e olhou ao Dalgliesh.
   É inútil que tratemos de ocultá-lo, verdade? A morte é a morte. Não é uma moléstia provisória, uma pequena dificuldade local. Não se pode fingir que não
aconteceu. De todos os modos, a imprensa não demorará para inteirar-se.
   Falou com voz áspera, e a expressão de seus escuros olhos era dura. Parecia mais uma mulher poseída pela cólera que pela aflição. Continuando, voltou-se
para o recepcionista e prosseguiu com mais suavidade.
   Deixe uma mensagem na secretária eletrônica, George, dizendo que hoje permanecerá fechada o escritório.
   Logo vá tomar se um café bem carregado. A senhora Demery está por alguma parte. Se chegarem outros empregados, lhes diga que se vão a casa. E se irão, senhorita
Claudia? Quero dizer que não se conformarão com que o eu diga, verdade?
   Claudia Etienne franziu o sobrecenho.
   Talvez não. Suponho que deveria dizer-lhe eu. Ou melhor ainda, chamaremos o senhor Bartrum. Está na casa, verdade, George?
   O senhor Bartrum está em seu escritório do número dez, senhorita Claudia. Há dito que tinha muito trabalho pendente e que preferia ficar. Como não está na
casa principal, não acreditava que houvesse inconveniente.
   Chame-o, por favor, e lhe peça que deva falar comigo. O se ocupará dos que cheguem tarde. Possivelmente alguns possam levar o trabalho a casa. lhes diga que
na segunda-feira dirigirei a todos eles. voltou-se para o Dalgliesh. É o que estivemos fazendo até agora, enviar aos empregados a casa. Espero que não tenha sido
um equívoco. Pareceu-nos melhor que não houvesse muita gente por no meio.
   Em seu momento teremos que falar com todos respondeu Dalgliesh, mas isso pode esperar. Quem encontrou a seu irmão?
   Fui eu. Blackie, a senhorita Blackett, a secretária de meu irmão, ia comigo, quão mesmo a senhora Demery, encarregada-a da limpeza. Subimos juntas. Quem
das três foi primeira em entrar na habitação?
   Eu.
   Então, se quer me mostrar o caminho. Seu irmão, estava acostumado a subir em elevador ou pela escada?
   Pela escada. Mas normalmente não subia até o último piso. Isso é o mais extraordinário, que estivesse no despacho dos arquivos.
   Então subiremos pela escada disse Dalgliesh.
   depois de encontrar o corpo de meu irmão, fechei a porta com chave lhe advertiu Claudia Etienne. A chave a tem lorde Stilgoe. Pediu-me isso e a dava. Por
que não, se o fazia feliz?
   Suponho que pensou que algum de nós podia voltar a subir e embrulhar as pistas.
   Lorde Stilgoe já se adiantava para eles.
   acreditei correto me fazer carrego da chave, comandante. Tenho que falar com você em privado. O adverti. Sabia que cedo ou tarde aqui haveria uma tragédia.
   Tendeu-lhe a chave, mas foi Claudia quem a agarrou. Dalgliesh perguntou:
   Lorde Stilgoe, sabe você como morreu Gerard Etienne?
   Não, certamente. Como ia ou seja o?
   Então, falaremos mais tarde.
   Mas vi o cadáver, é obvio. acreditei que era meu dever. Abominável. Bem, já o adverti. É evidente que esta atrocidade forma parte da campanha
contra mim e contra meu livro.
   Dalgliesh repetiu:
   Mais tarde, lorde Stilgoe.
   Como era habitual nele, não se apressava a examinar o cadáver. Kate sabia que, por rápido que respondesse a um aviso de assassinato, sempre chegava com o mesmo
aspecto pausado. Tinha-lhe visto elevar a mão para conter a um sargento de patrício em excesso entusiasta, enquanto lhe dizia: "Não corra tanto, sargento. Não é
você
médico. Não se pode ressuscitar aos mortos."
   Logo Dalgliesh se voltou para a Claudia Etienne. Subimos?
   A mulher se voltou por volta dos três sócios, que, com lorde Stilgoe, agruparam-se em silêncio como à espera de instruções, e lhes indicou:
   Possivelmente seja melhor que me esperem na sala de juntas. Eu irei assim que possa.
   Lorde Stilgoe objetou, em um tom mais razoável do que Kate se esperava:
   Sinto muito, comandante, mas me temo que não posso esperar mais. Por isso estava chamado com o senhor Etienne a hora tão temprana. Queria comentar com ele o tema
de
minhas memórias antes de ingressar no hospital para me submeter a uma pequena operação. Tenho que estar ali às onze. Não quero me arriscar a perder a cama. Telefonarei-lhe
a você mesmo ou ao comissionado do Yard do hospital.
   Kate se deu conta de que Do Witt e Dauntsey acolhiam esta sugestão com alívio.
   O grupito cruzou a soleira do vestíbulo. Naquele primeiro momento de revelação Kate emitiu uma silenciosa exclamação de assombro. Por um instante lhe travou
o passo, mas resistiu a tentação de deixar correr muito livremente a vista. A polícia sempre invadia a intimidade; era ofensivo comportar-se como se uma
fosse uma visitante de pagamento. Mas tinha a sensação de que naquele momento único de revelação tinha percebido simultaneamente todos os detalhes da magnificência
da habitação: intrincado-los segmentos do chão de mármore; as seis colunas de mármore jaspeado com seus capiteis de elegante relevo; a riqueza do teto
pintado, um panorama de Londres no século XVIII : pontes, chapiteles, torre, casas e navios de altos mastros, todo isso unificado pelos limites azuis do
rio; a elegante escalinata dobro; a balaustrada que descendia em curva até terminar em bronzes de moços risonhos montados em golfinhos, que sustentavam em alto
os grandes globos de luz. À medida que subiam a magnificência se voltava menos aparente e o detalhe decorativo mais contido, mas era entre dignidade, proporção
e elegância como ascendiam resolutamente para a crua profanação do assassinato.
   No terceiro piso havia uma porta forrada de feltro verde que se achava aberta. Subiram por uma escada estreita, Claudia Etienne em cabeça com o Dalgliesh
a seu lado e Kate fechando a marcha.
   A escada torceu à direita antes de que a última meia dúzia de degraus os conduzisse a um corredor de uns três metros de largura, com as portas de
ralo de um elevador à esquerda da entrada. A parede da direita carecia de portas, mas havia uma fechada na da esquerda e outra justo em frente
deles que estava aberta.
   Esta é a sala dos arquivos, onde guardamos os papéis antigos. Ao despachito dos arquivos se vai por aí.
   Resultava óbvio que a sala dos arquivos em outro tempo tinha estado dividida em duas habitações, mas ao demolir o tabique de separação tinha ficado uma
câmara muito larga que ocupava quase toda a longitude da casa. As fileiras de estanterías de madeira, perpendiculares à porta e quase tão altas como o teto,
estavam tão juntas que logo que havia espaço para mover-se entre elas com comodidade. Entre fileira e fileira penduravam várias lâmpadas sem tela. A luz natural
proporcionavam-na seis janelas alargadas pelas quais Kate pôde entrever o elaborado relevo em pedra de um corrimão. Dobraram à direita, pelo espaço
de pouco mais de um metro que ficava livre entre os extremos das estanterías e a parede, e chegaram a outra porta.
   Claudia Etienne entregou a chave ao Dalgliesh sem dizer nada. Ao agarrá-la, lhe pediu:
   Se pode suportar a idéia de entrar de novo, eu gostaria que confirmasse que o corpo de seu irmão e a habitação se encontram exatamente igual a estavam
a primeira vez que entrou. Se lhe parecer muito angustiante, não se preocupe. Seria conveniente, mas não é essencial.
   Não me importa respondeu ela. Resulta-me mais fácil agora que se tivesse que fazê-lo amanhã.
   Ainda não posso acreditar que seja real. Em tudo isto não há nada que me pareça real, nada que me dê essa sensação. Suponho que manhã terei assumido que o é e
que a realidade é definitiva.
   Foram suas palavras as que Kate encontrou irreais. Em sua cadência mesurada havia uma nota de falsidade, de histrionismo, como se as tivesse preparado de antemão.
Mas se disse que não devia apressar-se a julgar. Era muito fácil interpretar equivocadamente a desorientação que produz a dor. Sem dúvida sabia melhor que a maioria
quão estranha e inadequada pode resultar a primeira reação falada ante a comoção ou a pena. lembrou-se da esposa de um condutor de ônibus que tinha morrido
apunhalado em um pub do Islington: sua primeira reação tinha consistido em lamentar que aquela manhã não se trocou de camisa nem tivesse ido selar a
bolão de aposta.
   E entretanto a mulher amava a seu marido e o chorou sinceramente.
   Dalgliesh introduziu a chave na fechadura e a fez girar com facilidade. Abriu a porta. Do interior brotou como um miasma um acre aroma gasoso. O cadáver
semidesnudo pareceu saltar para eles com a crua teatralidad da morte e por um instante ficou suspenso na irrealidade, uma imagem extraordinária e poderosa
que tingia a quieta atmosfera.
   O corpo se achava tendido de costas, com os pés para a porta. Levava calça e meias três-quartos cinzas. Os sapatos de fina pele negra pareciam novos,
pois as reveste estavam quase livres de arranhões. Era curioso, pensou Kate, como se fixava uma nesses detalhes. Da cintura para cima ia nu; e tinha uma
camisa branca feita uma bola na mão direita estendida. A serpente de veludo lhe dava duas voltas ao pescoço, a cauda apoiada sobre o peito, a cabeça
embutida na boca muito aberta. Sobre esta, os olhos abertos e frágeis, inequivocamente os olhos da morte, nos que Kate por um instante acreditou advertir
um olhar de ofendida surpresa. Tudas as cores eram muito vivas, de um brilho pouco natural. O intenso castanho escuro do cabelo, o artificial tom avermelhado que
tingia a cara e o peito, a crua brancura da camisa, o verde doentio da serpente. A sensação de uma força física que emanava do corpo foi tão poderosa
que Kate retrocedeu instintivamente e notou o brando impacto de seu ombro contra o da Claudia.
   Sinto-o se desculpou, e a desculpa convencional lhe desejou muito inadequada embora só se referisse a esse breve contato físico.
   Então a imagem se desvaneceu e voltou a afirmá-la realidade. O cadáver se transformou no que era, carne morta ao nu, adornada grotescamente, exposta
como em um cenário.
   E então, de um olhar rápido da soleira, captou os detalhes da habitação. Era pequena, de apenas dois metros e médio por pouco mais de três e médio,
e deprimente como um barracão de execução, o chão de madeira ao descoberto, as paredes nuas. Havia uma janela estreita e bastante alta, perfeitamente fechada,
e uma só lâmpada branca com tela pendurada em metade do teto. Do marco da janela pendia um cordão quebrado de uns sete ou oito centímetros de longitude. A
a esquerda da janela havia uma pequena chaminé vitoriana recubierta de azulejos de cores com frutas e flores. Em algum momento se desmontou a grade
para substitui-la por uma antiquada estufa de gás. Pega à parede de em frente havia uma mesita de madeira com um luminária de mesa moderno de cor negra e duas bandejas
metálicas,
cada uma das quais continha uns quantos envelopes de papel marrom muito usados. Kate, com a sensação de que havia algum detalhe incongruente, procurou a parte restante
do cordão da janela e o descobriu debaixo da mesa, como se alguém o tivesse deslocado inadvertidamente com o pé ou tivesse querido tirar o de no meio.
Claudia Etienne seguia de pé a seu lado. Kate se fixou em sua imobilidade, em sua respiração superficial e controlada. Estava assim a habitação? Chama-lhe a atenção
algo que antes não a chamasse? perguntou Dalgliesh.
   Está tudo igual respondeu ela. Como ia ser de outro modo? Ao sair fechei a porta com chave. Não me fixei muito na habitação quando..., quando o encontrei.
Tocou o corpo?
   Ajoelhei-me junto a ele e lhe toquei a cara. Estava muito frio, mas antes de tocá-lo já sabia que estava morto. Permaneci ajoelhada quando as outras se foram,
acredito... Fez uma pausa e prosseguiu com voz resolvida: Apoiei brevemente minha bochecha na sua. E o quarto?
   Agora o encontro estranho. Não subo com freqüência; a última vez foi quando encontrei o corpo da Sonia Clements, mas o vejo distinto, mais vazio, mais limpo.
E falta uma coisa: a grabadora. Gabriel, o senhor Dauntsey, dita-lhe ao aparelho e está acostumado a deixá-lo sobre a mesa. Além disso, a primeira vez que entrei
não vi que o cordão
da janela estivesse quebrado. Onde está a parte que falta? Está Gerard deitado em cima?
   Está debaixo da mesa respondeu Kate.
   Claudia Etienne o olhou e comentou:
   Que curioso. Seria mais lógico que estivesse debaixo da janela.
   cambaleou-se e Kate alargou o braço para ajudá-la, mas a jovem se refez e a conteve com um gesto.
   Obrigado por subir conosco, senhorita Etienne disse Dalgliesh. Sei que não foi fácil. Isso é tudo o que queria lhe perguntar, no momento. Kate, por favor...
   Mas antes de que Kate pudesse mover-se, Claudia Etienne se adiantou.
   Não me toque. Sou perfeitamente capaz de baixar a escada eu sozinha. Estarei com outros na sala de juntas, se me necessitar de novo.
   Mas sua descida pela estreita escada se viu obstaculizado. ouviu-se um rumor de vozes masculinas, de passos rápidos e ligeiros. Ao cabo de uns segundos, Daniel
Aaron entrou apressadamente na habitação, seguido de dois policiais do departamento de investigação da cena do crime, Charlie Ferris e seu ajudante.
   Sinto chegar tarde, senhor. Estava muito mal o tráfico no Whitechapel Road.
   Seu olhar se cruzou com a do Kate e Daniel lhe dedicou um encolhimento de ombros e um fugaz sorriso afligido. Kate o apreciava e o respeitava. Não lhe resultava
difícil trabalhar com ele.
   Comparado com o Massingham, era uma melhora desde qualquer ponto de vista, mas, ao igual à o Massingham, nunca lhe agradava descobrir que Kate tinha chegado
à cena do crime antes que ele.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

21
 
   Os quatro sócios se congregaram na sala de juntas do primeiro piso menos por um intuito deliberado que pela sensação não formulada de que era mais
prudente permanecer juntos, ouvir que palavras pronunciavam outros, sentir ao menos o distração espúrio da camaradagem humana, não retirar-se a um isolamento suspeito.
Mas ali não tinham nada que fazer e nenhum estava disposto a ordenar que lhe trouxessem expedientes, documentos ou material de leitura, por medo de que o gesto se
interpretasse como uma amostra de calejada indiferença. A casa parecia curiosamente silenciosa. Em algum lugar, sabiam, os escassos empregados que ainda seguiam
no edifício deviam estar conferenciando, discutindo, conjeturando. Eles também temam que discutir assuntos, acordar uma redistribuição provisória do trabalho,
mas fazê-lo naqueles momentos lhes parecia uma falta de sensibilidade tão brutal como lhe roubar a um morto.
   Ao princípio, entretanto, sua espera não foi larga. Aos dez minutos de sua chegada à casa, apareceu o comandante Dalgliesh com a inspetora Miskin. Enquanto
a alta e escura figura se aproximava da mesa em silêncio, quatro pares de olhos se voltaram e o contemplaram com expressão séria, como se sua presença, desejada
e médio temida ao mesmo tempo, fora uma intrusão em sua aflição compartilhada. Permaneceram imóveis enquanto ele apartava uma cadeira para a inspetora e tomava
assento a sua vez, as mãos apoiadas sobre a mesa.
   Lamento lhes haver feito esperar, mas me temo que depois de uma morte sem explicação é inevitável que haja esperas e moléstias começou. Terei que falar com cada
um de vocês por separado, mas confio em não demorar muito em concluir estas entrevistas. Há algum quarto na casa com um telefone que possa utilizar sem
causar muitos transtornos? Só o necessitarei para o resto do dia. Instalaremos o centro de operações na delegacia de polícia de polícia do Wapping.
   Foi Claudia quem respondeu:
   Se ocupasse toda a casa durante um mês, os transtornos seriam leves em comparação com o transtorno de um assassinato.
   Se for um assassinato interveio Do Witt com voz fica, e pareceu que a habitação, já em silêncio, voltava-se mais silenciosa ainda enquanto aguardavam sua resposta.
   Não conheceremos com certeza a causa da morte até depois da autópsia. O patologista forense estará aqui dentro de pouco e então saberei quando é provável
que disponha dessa informação. É possível que além disso terei que realizar algumas análise de laboratório, que também levam seu tempo.
   Pode utilizar o despacho de meu irmão disse Claudia. Parece o mais adequado. Está na planta baixa, entrando na direita. Para chegar ali terá que acontecer
o despacho de sua secretária, mas a senhorita Blackett pode deixá-lo livre se isso expuser algum inconveniente. Necessita algo mais?
   Quereria, por favor, uma lista de todos os empregados atuais e os despachos que ocupam, assim como o nome de qualquer que tenha deixado a empresa, mas estivesse
trabalhando nela durante todo o período de atuação do brincalhão. Tenho entendido que realizaram vocês uma investigação sobre estes incidentes. Necessito
conhecer os detalhes e tudo o que tenham podido descobrir sobre eles.
   Assim está você informado assinalou Do Witt.
   informou-se à polícia. Também me seria útil dispor de um plano do edifício.
   Há um nos arquivos disse Claudia. Faz um par de anos fizemos algumas reforma interiores e o arquiteto riscou planos novos do interior e o exterior.
Os desenhos originais da casa e a decoração estão nos arquivos, mas suponho que seu interesse não é puramente arquitetônico.
   Nestes momentos, não. Com o que medidas de segurança conta o edifício? Quem tem as chaves?
   Respondeu de novo a senhorita Etienne:
   Cada um dos sócios tem um jogo de chaves de todas as portas. A entrada principal dá a terraço e ao rio, mas só se utiliza já nas grandes ocasione,
quando a maioria dos convidados chega em lancha. Não revistam ser muito freqüentes, nestes tempos. A última foi dez de julho, quando combinamos a festa anual
do verão com a celebração do compromisso de meu irmão.
   A porta do Innocent Walk é quão principal dá à rua, mas apenas se utiliza. devido à peculiar distribuição da casa, obriga a passar pelos aposentos
do serviço e a cozinha. Sempre está fechada com chave e ferrolho. Agora o está; lorde Stilgoe examinou as portas antes de que chegassem vocês. Deu a impressão
de que ia fazer algum comentário sobre as atividades de lorde Stilgoe, mas se conteve e prosseguiu: Normalmente utilizamos a porta lateral que dá ao Innocent
Lane, por onde entraram vocês. Pelo general permanece aberta durante o dia, enquanto George Copeland está no posto telefônico. George tem chave dessa porta,
mas não da porta de atrás nem da que dá ao rio. O alarme alarme anti-roubo se controla de um quadro de mandos que há junto ao posto telefônico. As portas e as
janelas dos três pisos estão fechadas. É um sistema bastante rudimentar, temo-me, mas em realidade nunca tivemos problemas de roubo.
   A casa em si, naturalmente, possui um valor quase inestimável, mas poucos dos quadros são originais, por exemplo. No despacho do Gerard há uma grande caixa
forte e, depois de um incidente no que alguém manipulou as provas de imprensa do livro de lorde Stilgoe, fizemos instalar armários com fechadura em três despachos
e sob o mostrador de recepção, para poder guardar sob chave os manuscritos e papéis importantes quando fechamos de noite.
   E normalmente, quem chega primeiro pela manhã e abre o edifício?
   Está acostumado a ser George Copeland respondeu Gabriel Dauntsey. Começa a jornada às nove e a essa hora já está acostumada estar ante o posto telefônico. É uma
pessoa de confiança.
Se se atrasar, como alguma vez pode ocorrer já que vive ao sul do rio, o mais provável é que sejamos a senhorita Peverell ou eu.
   Temos apartamentos independentes no número doze, quer dizer, o edifício que há à esquerda do Innocent House. É um pouco aleatório. Quem chega primeiro,
abre a porta e desconecta o alarme. A porta do Innocent Lane tem uma fechadura Yale e outra de segurança. Esta manhã o primeiro em chegar foi George,
como de costume, e pôde entrar utilizando unicamente a chave da Yale. O sistema de alarme também estava desligado, assim, naturalmente, supôs
que já tinha chegado algum de nós. Quem de vocês quatro foi o último em ver o senhor Etienne? inquiriu Dalgliesh.
   Eu respondeu Claudia. antes de sair fui a seu escritório para falar com ele, justo antes das seis e meia. Normalmente as quintas-feiras estava acostumada ficar
trabalhando.
Ainda estava sentado ante seu escritório. Possivelmente houvesse alguém mais no edifício a aquela hora, mas acredito que já se partiram todos. Evidentemente, não
o
comprovei nem registrei a casa. Era de domínio público que seu irmão ficava a trabalhar tudas as quintas-feiras?
   sabia-se no escritório. Certamente outras pessoas também sabiam. Encontrou-o como de costume? prosseguiu Dalgliesh. Não lhe disse que tivesse intenção de
trabalhar no despachito dos arquivos?
   Encontrei-o exatamente igual a de costume e não mencionou para nada o despachito dos arquivos. Por isso eu sei, não acredito que visitasse nunca essa habitação.
Não tenho a menor ideia de por que subiu ali nem por que morreu ali, se é que realmente morreu ali.
   Os quatro pares de olhos se cravaram outra vez no rosto do Dalgliesh. O não fez nenhum comentário. Depois de expor formalmente a esperada pergunta de se conheciam
a alguém que pudesse desejar a morte do Etienne e receber suas breves e igualmente esperadas respostas, levantou-se da cadeira e a mulher polícia, que não havia
dito nada em todo o momento, também se levantou. Continuando, Dalgliesh lhes deu as obrigado calmadamente e ela se fez um pouco a um lado para que ele fora o
primeiro em passar pela porta.
   Quando se tiveram partido reinou o silêncio durante o meio minuto, até que Do Witt comentou:
   Não é precisamente o tipo de polícia ao que alguém lhe pergunta a hora. Pessoalmente, acredito que já resulta bastante aterrador para os inocentes, assim sabe
Deus
que impressão causará aos culpados. Conhece-o, Gabriel? depois de tudo, dedicam-lhes ao mesmo ofício.
   Dauntsey elevou o olhar e respondeu:
   Conheço sua obra, naturalmente, mas acredito que não nos tínhamos visto nunca. É um excelente poeta.
   OH, isso sabemos todos. O que sente saudades é que nunca tenha tentado tirar-lhe a seu editor. Esperemos que seja igualmente bom como investigador.
   É curioso que não nos tenha perguntado nada sobre a serpente, verdade? disse Frances. O que ocorre com a serpente? replicou Claudia bruscamente.
   Não nos perguntou se sabíamos algo disso.
   OH, já o fará disse Do Witt. me acredite, já o fará.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

22
 
   No despachito dos arquivos, Dalgliesh perguntou: pôde falar com o doutor Kynaston, Kate?
   Não, senhor. Está na Austrália, visitando seu filho. Virá o doutor Wardle. Estava no laboratório, assim não acredito que tarde em chegar.
   A investigação não começava sob os melhores auspícios. Dalgliesh estava acostumado a trabalhar com Milhares Kynaston, ao que apreciava como pessoa e respeitava
como um dos patologistas forenses mais prestigiosos do país, se não o que mais. Tinha dado é obvio, possivelmente de um modo irrazonable, que seria Kynaston o que
se acuclillaría junto a este cadáver, os roliços dedos do Kynaston embainhados em luvas de látex, finos como uma segunda pele, os que se moveriam sobre o corpo
com tanta delicadeza como se aqueles membros hirtos ainda pudessem esticar-se sob sua mão escudriñadora. Reginald Wardle era um patologista forense perfeitamente
capaz;
não o teria contratado a polícia metropolitana se não o fora. Faria um bom trabalho. Seu relatório seria tão minucioso como o do Kynaston e não se faria esperar.
No estrado das testemunhas, se chegava o caso, seria igualmente eficaz, precavido mas preciso, inconmovible sob o interrogatório. Entretanto, Dalgliesh sempre
tinha-o encontrado irritante e suspeitava que esta ligeira antipatia, não o bastante intensa para chamá-la aversão nem para prejudicar sua colaboração, era mútua.
   Quando lhe chamava, Wardle ia com presteza à cena do crime neste sentido não lhe podia censurar, mas invariavelmente entrava passeando com ociosa
despreocupação, para demonstrar a escassa importância da morte violenta, e desse cadáver em particular, em seu esquema pessoal das coisas. Tinha propensão
a suspirar e estalar com a língua enquanto examinava o corpo, como se o problema que este expor fora mais fastidioso que interessante e logo que justificasse
que a polícia lhe tivesse arrancado das preocupações mais imediatas de seu laboratório. Na cena do crime proporcionava um mínimo de informação, talvez
por cautela natural, embora muito freqüentemente as arrumava para dar a impressão de que a polícia o pressionava de um modo irrazonable para que formulasse um
julgamento prematuro. As palavras que com mais freqüência pronunciava ante um cadáver eram: "Terá que esperar, comandante, terá que esperar. Logo o terei na
mesa e então saberemos."
   Além disso, sabia promocionarse bem. Na cena do crime podia parecer um colega aborrecido e relutante, mas logo resultava ser um brilhante orador de sobremesa
e provavelmente desfrutava de mais comidas grátis que a maioria dos membros de sua profissão. Dalgliesh, ao que lhe resultava difícil acreditar que alguém pudesse
oferecer-se voluntário para assistir a um jantar prolongado e habitualmente medíocre e muito menos desfrutá-la, pela satisfação de ficar em pé ao terminá-la,
acrescentava em privado este dado à lista de pequenas maldades do Wardle. Entretanto, uma vez em sua sala de autópsias, o doutor Wardle era outro homem. Ali, acaso
porque se encontrava em seu reino reconhecido, parecia orgulhar-se de manifestar sua considerável habilidade e se mostrava muito bem disposto a compartilhar opiniões
e propor teorias.
   Dalgliesh tinha trabalhado outras vezes com o Charlie Ferris e se alegrava de vê-lo. Seu apodo de "o Furão" poucas vezes se utilizava em sua presença, mas era
possivelmente
um apelido muito adequado para prescindir dele por completo. Tinha uns ojillos penetrantes de pestanas muito claras, um nariz alargado sensível a todos
os matizes do olfato e uns dedos minúsculos e exigentes capazes de recolher objetos pequenos como por magnetismo. No trabalho apresentava uma aparência excêntrica
e às vezes grotesca; o traje que preferia para a busca se compunha de umas ajustados calças de algodão, compridos ou curtos, um suéter, luvas de cirurgião
e um gorro de natação de borracha. Seu credo profissional era que nenhum assassino abandona a cena do crime sem depositar alguma evidência física, e sua tarefa consistia
em encontrá-la.
   A busca de costume, Charlie comentou Dalgliesh, mas necessitaremos um engenheiro que desmonte a estufa de gás e redija um relatório. lhes diga que é urgente.
Se o canhão está obstruído com escombros, que os mandem ao laboratório junto com amostras de qualquer peça solta do revestimento interior da chaminé. É
uma estufa de gás muito antiga das que se usavam para os quartos dos meninos, com chave de passagem extraíble. Não sei se aí encontraremos alguma rastro útil, quase
seguro que não. Terá que examinar todas as superfícies da chaminé em busca de rastros. O cordão da janela é importante. Eu gostaria de saber se se rompeu
pelo desgaste natural ou se o desfiaram deliberadamente. Duvido que possa dizer-se com certeza, mas possivelmente o laboratório sirva de ajuda.
   Deixando-os enfrascados em sua tarefa, ajoelhou-se junto ao corpo, examinou-o atentamente durante uns instantes e logo estendeu a mão e lhe tocou a bochecha.
Eram sua imaginação e a rubicundez da pele as que a faziam parecer ligeiramente morna ao tato? Ou acaso o calor dos dedos tinha emprestado durante uns
segundos uma vida espúria à carne morta? Deslocou a mão para a mandíbula procurando não desalojar a serpente. A carne estava branda e o osso se moveu
sob seu suave apresso.
   voltou-se para o Kate e Dão.
   A ver o que lhes diz esta mandíbula. Com cuidado. Quero que a serpente siga em seu sítio até depois da autópsia.
   ajoelharam-se por turno, primeiro Kate e logo Daniel; tocaram a mandíbula, examinaram atentamente a cara, apoiaram as mãos sobre o tronco nu.
   A rigidez cadavérica está bem estabelecida na parte superior do corpo, mas a mandíbula está solta disse Daniel.
   O qual quer dizer...
   Foi Kate quem concluiu a frase.
   Que alguém rompeu a rigidez da mandíbula várias horas depois da morte. É de supor que teve que fazê-lo a fim de lhe colocar a serpente na boca.
Mas por que se tomou a moléstia? por que não se limitou a enroscá-la em torno do pescoço? Tivesse produzido o mesmo efeito.
   Mas não seria tão espetacular objetou Daniel.
   Pode ser. Mas agora sabemos que alguém manipulou o cadáver várias horas depois da morte. Pôde ser o assassino, se é que se trata de um assassinato. Pôde
ser outra pessoa. Se a serpente tivesse estado enroscada ao pescoço e nada mais, nunca teríamos suspeitado que houve uma segunda visita à cena.
   Talvez seja precisamente o que o assassino queria que soubéssemos observou Daniel.
   Dalgliesh estudou a serpente com interesse. Media aproximadamente um metro e meio de comprimento e resultava evidente que estava destinada a evitar correntes
de ar.
A parte superior do corpo era de veludo a raias e a inferior de outro gênero mais resistente de cor marrom. Sob a suavidade do veludo se notava granulosa
ao tato.
   ouviram-se uns passos de alguém que cruzava lentamente a sala dos arquivos. Daniel comentou:
   Parece que já chegou o doutor Wardle.
   O forense media mais de um metro noventa, e sua imponente cabeça se projetava sobre uns ombros largos e ossudos dos que a jaqueta, ligeira e mau adaptada
ao corpo, pendurava como suspensa de um cabide de arame. Tanto pelo nariz aquilino e manchado, como pela voz tonante e os olhos rápidos e perspicazes dominados
por umas povoadas sobrancelhas tão exuberantes e vigorosas que pareciam ter vida própria, toda sua aparência correspondia ao estereótipo de um coronel irascível.
Sua estatura
tivesse podido representar um inconveniente para um trabalho no que freqüentemente os cadáveres jaziam ocultos em sarjetas, bocas-de-lobo, armários e tumbas improvisadas,
mas seu volumoso corpo podia introduzir-se com inesperada facilidade, e inclusive com graça, nos lugares de mais difícil acesso. Ao entrar, contemplou a habitação
como se deplorasse sua austera simplicidade e o pouco atrativo assunto que o tinha arrancado de seu microscópio, e em seguida se ajoelhou junto ao corpo e exalou
um
lúgubre suspiro.
   Quererá você que lhe diga o momento aproximado da morte, é obvio. Essa é sempre a primeira pergunta depois de "Está morto?", e, sim, está morto.
Nisso estamos todos de acordo.
   O corpo já frio, a rigidez cadavérica plenamente estabelecida. Há uma exceção interessante, mas já falaremos dela mais tarde. Tudo parece indicar que
leva de treze a quinze horas morto. Na habitação faz mais calor de que seria de esperar nesta época do ano. tomaram a temperatura? Vinte graus.
Isso, junto com o fato de que o metabolismo provavelmente era muito pronunciado no momento da morte, pôde atrasar o início da rigidez. Sem dúvida
terão comentado já entre vocês a interessante anomalia. Mesmo assim, me fale dela, comandante, me fale dela. Ou você, inspetora. Vejo que o está desejando.
   Ao Dalgliesh não teria sentido saudades que acrescentasse: "Seria muito esperar que se abstiveram de tocá-lo."Olhou ao Kate, que respondeu:
   A mandíbula está frouxa. A rigidez cadavérica se inicia na cara, a mandíbula e o pescoço entre cinco e sete horas depois da morte, e fica plenamente
estabelecida às dezoito horas. Logo desaparece na mesma seqüência. Isso quer dizer que, ou está desaparecendo já na mandíbula, o qual indicaria
que a morte se produziu umas seis horas antes do calculado, ou que lhe abriram a boca pela força. Eu diria, quase com plena certeza, que o segundo. Os
músculos faciais não estão frouxos.
   Às vezes me pergunto, comandante replicou Wardle, por que se molesta em chamar um patologista.
   Kate prosseguiu sem intimidar-se.
   O qual quer dizer que lhe colocaram a cabeça da serpente na boca não no momento de morrer, a não ser entre cinco e sete horas mais tarde, pelo menos. De
maneira que a morte não se produziu por asfixia, ou em todo caso não por causa da serpente. Embora não o acreditamos em nenhum momento.
   A coloração e a posição do corpo sugerem que morreu de barriga para baixo e que posteriormente lhe deram a volta. Seria interessante saber por que acrescentou
Dalgliesh.
Possivelmente porque assim resultava mais fácil colocar a serpente e lhe colocar a cabeça na boca? sugeriu Kate.
   Possivelmente.
   Dalgliesh não disse mais e o doutor Wardle reatou o exame. Já se tinha intrometido no terreno do patologista mais do que era prudente. Logo que albergava dúvida
alguma sobre a causa da morte e se perguntava se o silêncio do Wardle não se deveria mais à perversidade que à cautela.
   Não era o primeiro caso que ambos tinham visto de intoxicação por monóxido de carbono. A lividez cadavérica, mais pronunciada que de costume devido à maior
lentidão na extravasación do sangue, e a coloração vermelho cereja da pele, tão intensa que o corpo parecia pintado, eram inconfundíveis e sem dúvida concluem
lhes.
   Um caso de manual, não é certo? observou Wardle. Não acredito que façam falta um patologista forense e um comandante da polícia metropolitana para diagnosticar
envenenamento
por monóxido de carbono. Mas não nos entusiasmemos muito. Será melhor que o ponhamos na mesa, não crie? Assim as sanguessugas do laboratório poderão lhe extrair
amostras de sangue e nos dar uma resposta em que possamos confiar. Quer que deixemos a serpente na boca?
   Acredito que sim. Preferiria que ficasse como está até o momento da autópsia.
   Que sem dúvida quererá que se pratique imediatamente, se não antes. Não é assim sempre?
   Posso fazê-la esta tarde. Tínhamos que ir a um jantar, mas a anfitriã a cancelou. Um repentino ataque de gripe, ou isso diz. Às seis e meia no depósito
de costume, se puder você chegar a tempo. Telefonarei-lhes para que o tenham tudo preparado. Já vem para aqui o furgão da carne?
   Chegará de um momento a outro respondeu Kate.
   Dalgliesh sabia muito bem que o patologista começaria a fazer a autópsia tanto se ele chegava a tempo como se não, embora, naturalmente, estaria presente. Não
havia
esperado que Wardle se mostrasse tão complacente, mas isso lhe fez recordar que, na hora da verdade, sempre o era.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

23
 
   Nada mais ver a senhora Demery, Dalgliesh teve a certeza que não teria problemas com ela; já tinha tratado antes com outras de sua espécie. As senhoras Demery,
segundo sua experiência, não tinham complexos a respeito da polícia, da que em geral supunham que trabalhava bem e de sua parte, mas tampouco viam nenhum motivo
para tratá-la com respeito exagerado nem para atribuir aos agentes varões mais sentido comum do que normalmente possuía o resto de seu gênero. Eram, sem dúvida,
tão
propensas a mentir como qualquer outra testemunha quando se tratava de proteger aos seus, mas seu caráter íntegro e sua carência de imaginação as impulsionavam a
dizer a verdade que a fim de contas era o menos complicado e, uma vez dita, não achavam razão para torturá-la consciência com dúvidas sobre seus próprios motivos
ou sobre as intenções das demais pessoas. Dalgliesh suspeitava que encontravam aos homens um pouco ridículos, sobre tudo quando se embelezavam com togas e perucas
e se lançavam a pontificar em tom arrogante utilizando uma linguagem fora do alcance da gente comum, e que não estavam dispostas a deixar-se exortar, intimidar
nem desprezar por tão exasperantes personagens.
   Agora Dalgliesh tinha sentado ante si a um novo exemplar desta excelente espécie, que o examinava abertamente com olhos luminosos e inteligentes. O cabelo,
obviamente recém tingido, era de um vivo laranja dourado, penteado em um estilo que podia ver-se nas fotografias da época eduardiana: firmemente recolhido na
nuca e os lados, com uma franja de encrespados cachos que lhe caía sobre a frente. Ao fixar-se em seu afiada nariz e seus olhos brilhantes e ligeiramente exoftálmicos,
à mente do Dalgliesh acudiu a imagem de um cão de lãs exótico e inteligente.
   Sem esperar a que ele desse começo à conversação, a senhora Demery lhe anunciou:
   Eu conheci seu papai, senhor Dalgliesh. Ah, sim? Quando, senhora Demery? Durante a guerra?
   Sim, isso mesmo. Evacuaram a seu povo, a meu irmão gêmeo e a mim. lembra-se dos gêmeos Carter? Bom, é impossível que se lembre, claro. Então não
era você nenhuma chispita nos olhos de seu pai. Que cavalheiro mais encantador! Não nos alojaram na reitoria porque ali tinham às mães solteiras. Levaram-nos
a casa da senhorita Pilgrim. Ai, Deus, que espantoso era aquele povo, senhor Dalgliesh! Não sei como pôde você suportá-lo; quando era um menino, quero dizer.
   Tirou-me as vontades de campo para toda a vida aquele povo. Barro, chuva e essa peste tão horrível das granjas. E que aborrecimento!
   Suponho que, para uns meninos de cidade, não devia haver muito que fazer.
   Eu não diria isso. Coisas que fazer havia, vá que sim, mas a que começava às fazer te metia em uma boa confusão. Como construir um dique no arroio do povo,
por exemplo? Assim ouviu falar disso! Como íamos figurar nos que se alagaria a cozinha da senhora Piggott e se afogaria seu velho gato? Mas é curioso
que saiba.
   O rosto da senhora Demery expressava a mais viva satisfação.
   Você e seu irmão formam parte do folclore local, senhora Demery. Seriamente? Isso está bem. lembra-se dos cerditos do senhor Stuart?
   O senhor Stuart se lembra. Já tem mais de oitenta anos, mas há coisas que se gravam para sempre na memória.
   ia ser uma carreira estupenda. Pusemos aos condenados bichinhos mais ou menos alinhados, mas logo se esparramaram por todo o povo. Bom, mais que nada
por toda a estrada do Norwich. Mas, Meu deus, que espantoso era aquele povo! Que silêncio! De noite não nos deixava dormir tanto silêncio. Era como estar
mortos. E que escuridão! Nunca tinha visto uma escuridão como aquela. Era como se jogassem por cima uma manta de lã negra até que te afogava. Billy e
eu não podíamos suportá-la. Nunca tínhamos tido pesadelos até que nos evacuaram. Quando vinha nossa mamãe a nos visitar não parávamos de chorar a gritos. Lembro-me
muito bem daquelas visitas: mamãe nos arrastando por aquele caminho aborrecido e Billy e eu chiando que queríamos voltar para casa. Dizíamo-lhe que a senhorita Pilgrim
não nos dava de comer e que sempre nos perseguia com a sapatilha. E o da comida era verdade; em todo o tempo que estivemos ali não comemos uma batata frita
como Deus manda. Ao final mamãe nos fez voltar para casa para que não lhe déssemos mais a lata. Aí já se arrumou a coisa. Passávamo-nos isso em grande, sobre tudo
quando
começaram os bombardeios. Tínhamos um daqueles refúgios no jardim, e que bem que estávamos ali com mamãe, a avó, a tia Edie e a senhora Powell do
número quarenta e dois quando lhe bombardearam a casa! E não estava muito escuro o refúgio? perguntou Dalgliesh.
   Tínhamos as lanternas, não? E quando não era o momento mesmo do bombardeio se podia sair a olhar os focos anti-aéreos. Que bonito ficava o céu com todas
aquelas luzes! E que ruído!
   Aqueles canhões..., bom, era como se um gigante estivesse rasgando partes de prancha ondulada.
   Bom, como dizia mamãe, se dá a seus filhos uma infância feliz, não há muito que a vida possa lhes fazer logo.
   Dalgliesh teve a sensação de que seria vão discutir esta otimista visão da educação infantil. dispunha-se a sugerir diplomáticamente que já era hora
de abordar o objeto de sua conversação, mas a senhora Demery lhe adiantou.
   Bom, já está bem de falar dos velhos tempos. Estará você desejando me perguntar por este assassinato. É essa a impressão que lhe deu, senhora Demery?
Que se trata de um assassinato?
   É de lógica, não? Não pôde ficar ele mesmo essa serpente ao pescoço. Estrangularam-no?
   Não saberemos como morreu até que tenhamos o resultado da autópsia.
   Bom, pois me pareceu que o tinham estrangulado, com toda a cara de cor rosa e essa serpente metida na boca. Agora que, olhe o que lhe digo, não havia
visto nunca um morto que tivesse tão bom aspecto. Tinha melhor cara morto que quando vivia, e quando vivia tinha muito boa cara. Era um homem bonito, vá que
sim. Sempre me recordou um pouco ao Gregory Peck de jovem.
   Dalgliesh lhe pediu que descrevesse com exatidão todo o ocorrido desde sua chegada ao Innocent House.
   Venho todos os dias laborables de nove a cinco, menos as quartas-feiras. As quartas-feiras vêm da agência de limpeza de escritórios A Superior, dizem que para
fazer uma limpeza a fundo de todo o edifício. A Superior, assim se chamam, mas ficaria melhor A Inferior. Suponho que fazem o que podem, mas não é o mesmo
que se tivessem um interesse pessoal pelo trabalho. George vem meia hora antes e lhes abre a porta. Normalmente revistam acabar por volta das dez. E a você quem
abre-lhe, senhora Demery? Tem as chaves?
   Não. O ancião senhor Etienne me propôs dar isso mas não quis ter essa responsabilidade. Já há muitas chaves em minha vida. Normalmente está acostumado a abrir
George; ou,
se não, o senhor Dauntsey ou a senhorita Frances. Segundo quem chegue antes. Esta manhã não estavam nem a senhorita Peverell nem o senhor Dauntsey, mas me tem aberto
George, que já estava aqui, assim comecei a limpar tranqüilamente a cozinha. Não aconteceu nada até justo antes das nove, quando chegou esse lorde
Stilgoe dizendo que tinha uma entrevista com o senhor Gerard. Estava você presente quando chegou lorde Stilgoe?
   Pois olhe, sim. Estava conversando um pouco com o George. Lorde Stilgoe não ficou muito contente ao saber que não havia ninguém na casa, além do recepcionista
e de
mim. George começou a chamar os distintos despachos para ver se encontrava ao senhor Gerard, e estava lhe dizendo a lorde Stilgoe que seria melhor que esperasse
em recepção
quando chegou a senhorita Etienne. A senhorita perguntou ao George se Gerard estava em seu escritório e George lhe disse que tinha chamado, mas que não respondia
ninguém,
assim que a senhorita Etienne foi ver se estava e lorde Stilgoe e eu a seguimos. A jaqueta do senhor Gerard estava sobre o respaldo da poltrona, e a poltrona afastada
do escritório, o que me pareceu um pouco estranho. Logo ela olhou na gaveta da direita e encontrou as chaves. O senhor Gerard sempre deixava suas chaves ali quando
estava no despacho. É um molho bastante pesado e não gostava de levar tanto peso no bolso da jaqueta. A senhorita Claudia disse: "Tem que estar aqui;
talvez está no número dez com o senhor Bartrum", assim voltamos para recepção e George disse que já tinha chamado ao número dez. O senhor Bartrum estava
em seu escritório, mas não tinha visto o senhor Gerard, embora tinha o Jaguar ali. O senhor Gerard sempre deixava o carro estacionado no Innocent Passage porque
era
mais seguro. De maneira que a senhorita Claudia disse:
   "Tem que estar aqui. Será melhor que comecemos para buscá-lo." A estas alturas já tinha chegado a primeira lancha, e logo apareceram a senhorita Frances e o
senhor Dauntsey. Pareceu-lhe preocupada a senhorita Etienne?
   Mas bem intrigada, se me compreender. Disse-lhe: "Bom, olhei em toda a planta baixa e ao fundo da casa, e na cozinha não está." E a senhorita Claudia disse
algo assim como que não era muito provável que estivesse ali, verdade?, e começou a subir a escada, e eu fui detrás dela com a senhorita Blackett.
   Não me há dito que a senhorita Blackett estivesse na casa. Ah, não? Pois já estava, tinha chegado com a lancha. Claro que uma já não se fixa tanto nela,
agora que não está o ancião senhor Peverell. Mas o caso é que estava, embora ainda tinha posto o casaco, e subiu a escada conosco. Três mulheres
para procurar um só homem?
   Bom, assim foi a coisa. Suponho que eu subi por curiosidade. Por uma espécie de instinto, em realidade. Mas não sei por que subiu a senhorita Blackett; terá que
perguntar-lhe a ela. A senhorita Claudia disse: "Começaremos a procurar por acima", e isso foi o que fizemos.
   Então, foi diretamente à sala dos arquivos?
   Exato, e dali ao despachito que há ao fundo. A porta não estava fechada com chave. Como a abriu, senhora Demery? O que quer dizer? Abriu-a como se abrem
sempre as portas. Abriu-a toda de repente? Abriu-a devagar? Diria você que se mostrava apreensiva?
   Não, que eu me fixasse. Abriu-a sem mais. E, bom, aí estava ele. Atirado de costas com toda a cara rosa e essa serpente enroscada ao pescoço e com a cabeça
dentro da boca. Tinha os olhos abertos e um olhar muito fixo. Era horrível! Eu em seguida me dava conta de que estava morto, note-o que lhe digo, mas, como
já lhe hei dito, nunca o tinha visto com melhor aspecto. A senhorita Claudia lhe aproximou e se ajoelhou a seu lado. Logo disse: "vão chamar à polícia. E fora
daqui as duas." Bastante brusca, a verdade. Claro que era seu irmão. Eu em seguida me dou conta quando não me querem em um sítio, assim que fui. Tampouco tinha
tanto interesse em ficar. E a senhorita Blackett?
   Estava justo detrás de mim. Pensei que ia ficar a chiar, mas o que fez foi soltar uma espécie de gemido agudo. Passei-lhe um braço pelos ombros. Estava
tremendo de uma maneira espantosa. Disse-lhe: "Vamos, querida, vamos, aqui não pode fazer nada." Assim que fomos escada abaixo. Pareceu-me que chegaríamos antes
que com o elevador, que sempre se entope, mas pode que tivesse sido melhor ir em elevador. Custou-me bastante lhe fazer baixar a escada, de tanto como tremia.
E um par de vezes quase lhe dobraram as pernas. Houve um momento em que pensei que teria que deixá-la no chão e baixar a pedir ajuda. Quando chegamos ao último
lance, estavam lorde Stilgoe, o senhor Do Witt e todos outros ali nos olhando. Suponho que à lombriga a cara e o estado em que estava a senhorita Blackett se deram
conta de que tinha passado algo muito mau.
   Então o disse. Pareceu-me que ao princípio não podiam acreditar-lhe e então o senhor Do Witt pôs-se a correr escada acima com lorde Stilgoe, e o senhor
Dauntsey detrás deles. O que ocorreu então, senhora Demery?
   Ajude a sentar-se à senhorita Blackett e fui procurar um copo de água. Não chamou à polícia?
   Isso o deixei para eles. O morto não ia escapar, verdade? Que pressa havia? Além disso, se tivesse chamado teria sido um equívoco, porque quando voltou
lorde Stilgoe foi diretamente ao mostrador de recepção e disse ao George: "Chame new Scotland Yard. Quero falar com o comissionado. Se não poder ser, com o
comandante Adam Dalgliesh." Direto às alturas, claro.
   Logo a senhorita Claudia me pediu que fora a preparar café bem carregado, e isso fiz. Estava branca como um lençol, a pobre. Bom, tampouco é para sentir saudades,
verdade?
   O senhor Gerard assumiu os cargos de presidente e diretor gerente faz relativamente pouco, não é certo? perguntou Dalgliesh. Apreciava-o muito o pessoal?
   Bom, se tivesse sido o sol do escritório agora não teriam que levar-lhe em uma bolsa de plástico, digo eu. Alguém não o apreciava, isso está claro. Naturalmente,
para ele não deveu ser fácil ocupar o lugar do senhor Peverell. Todo mundo respeitava ao senhor Peverell. Era uma muito belo pessoa. Mas eu me levava perfeitamente
bem com o senhor Gerard. Não lhe dava problemas nem ele me dava isso . De todos os modos, não acredito que no escritório haja muitos que chorem por ele. Claro que
um assassinato
é um assassinato, e haverá uma comoção, isso seguro. E tampouco lhe fará muito bem à empresa, digo eu. Olhe, aqui tem uma idéia; a ver o que lhe parece. Poderia
ser
que se tivesse matado ele mesmo e que logo o brincalhão esse que temos no escritório lhe tivesse posto a serpente ao pescoço para demonstrar o que opinava dele.
Talvez valeria a pena pensá-lo.
   Dalgliesh não lhe disse que já o tinham pensado. Perguntou: Sentiria saudades saber que se matou ele mesmo?
   Bom, se quiser que lhe diga a verdade, sim. Muito ufano para isso, diria eu. Além disso, por que ia fazer o? A empresa tem seus problemas, de acordo, mas
que empresa não os tem hoje em dia? Teria saído adiante. Não imagino ao senhor Gerard fazendo quão mesmo Robert Maxwell. Claro que, quem ia imaginar se o    Haga
una pregunta directa y tendrá una respuesta directa, inspectora. ¿Le impresionó mucho a la señorita Claudia encontrarlo así? Eso es lo que quiere saber,
do Robert Maxwell? Ou seja que em realidade não há maneira se soubesse, verdade? Misteriosa, isso é a gente, misteriosa. Eu mesma poderia lhe contar um par de coisas
sobre
quão misteriosa é a gente.
   À senhorita Etienne deveu lhe impressionar muito encontrá-lo assim interveio Kate. Ao fim e ao cabo era seu irmão.
   A senhora Demery centrou sua atenção no Kate, embora não pareceu muito agradada por esta intrusão de uma terceira pessoa em seu tete a tete.
   Faça uma pergunta direta e terá uma resposta direta, inspetora. Impressionou-lhe muito à senhorita Claudia encontrá-lo assim? Isso é o que quer saber,
não? Pois terá que perguntar-lhe a ela. Eu não sei. Estava ao lado do corpo, inclinada sobre ele, e não voltou a cara em todo o momento que estivemos ali a
senhorita Blackett e eu, que não foi muito. Não sei o que sentia. Só sei o que disse.
   "Fora daqui as duas." Bastante áspero.
   A comoção, possivelmente. Vocês verão.
   E a deixaram sozinha com o morto.
   Como ela queria, pelo visto. De todos os modos, não tivesse podido ficar. Alguém tinha que ajudar à senhorita Blackett a baixar a escada. É um bom sítio
para trabalhar, senhora Demery? perguntou Dalgliesh. Está contente aqui?
   Tão bom como qualquer outro. Olhe, senhor Dalgliesh, eu já tenho sessenta e três anos. Não é uma idade do outro mundo, de acordo, e ainda conservo a vista
e as pernas, e sou muito melhor trabalhadora que outros que poderia nomear. Mas aos sessenta e três anos não te põe a procurar outro emprego, e eu gosto de trabalhar.
Morreria de aborrecimento sem sair de casa. E estou acostumada a este sítio; levo aqui quase vinte anos. Pode que não goste a todo mundo, mas me
convém. E fica à mão; bom, mais ou menos. Ainda sigo no Whitechapel. Agora tenho um pisito moderno o mar de bonito. Como vem até aqui?
   Em metro até o Wapping e logo a pé. Não está longe. E não me assustam as ruas de Londres. Eu já andava pelas ruas de Londres antes de que ninguém pensasse
em você. O ancião senhor Peverell sempre dizia que me mandaria um táxi se alguma manhã não me via com ânimos de fazer a viagem. E o teria mandado. Era um cavalheiro
muito especial, o senhor Peverell. Isso demonstra o que pensava de mim. É bonito ver que lhe apreciam.
   Certamente, é-o. me fale da limpeza da sala dos arquivos, senhora Demery, a grande e o despachito onde encontraram ao senhor Etienne. É responsabilidade
dela ou se cuida a companhia da limpeza?
   Ocupo-me eu. os da agência nunca sobem ao último piso. Isso o decidiu o ancião senhor Peverell. Aquilo está cheio de papéis, já sabe, e tinha medo de
que ficassem a fumar e o incendiassem tudo. Além disso, essas pastas são confidenciais. Não me pergunte por que. Joguei-lhes uma olhada a um par delas e só
há um montão de cartas e manuscritos velhos, por isso eu vi. Não é como se guardassem os expedientes do pessoal nem coisas reservadas pelo estilo.
   Mas o senhor Peverell lhes dava muita importância aos arquivos. O caso é que ficou acordado que dessas habitações me encarregaria eu. Quase nunca sobe ninguém,
se não ser o senhor Dauntsey, assim não tomo muitas moléstias. Não vale a pena. Normalmente subo uma segunda-feira ao mês e faço uma passada rápida para tirar o
pó.
Passa a aspiradora pelo chão?
   Pode que lhe dê uma passada se me parece que lhe faz falta. Ou pode que não. Como já lhe hei dito, só sobe ali o senhor Dauntsey, e ele logo que suja. Já há
bastante que fazer no resto da casa para ter que carregar com a aspiradora até o último piso e perder o tempo em coisas que não fazem falta.
   Sim, já compreendo. Quando foi a última vez que limpou o quarto pequeno?
   Dava-lhe uma passada rápida; na segunda-feira fez três semanas. na segunda-feira que vem voltarei a subir. Ao menos é o que faria normalmente, mas suponho que
quererá você deixar
a porta fechada.
   No momento, sim, senhora Demery. Vamos lá?
   Tomaram o elevador, que subiu com lentidão mas sem sacudidas. A porta do despachito dos arquivos estava aberta. O engenheiro da companhia do gás não
tinha chegado ainda, mas os dois policiais especializados e os fotógrafos ainda estavam ali. Até gesto do Dalgliesh, saíram da habitação e ficaram à
espera.
   Não entre, senhora Demery lhe indicou Dalgliesh. Fique na porta e me diga se vir alguma mudança.
   A senhora Demery passeou o olhar pelo quarto com lentidão. Seus olhos se detiveram brevemente na linha de giz que assinalava o contorno do corpo ausente,
mas não fez nenhum comentário.
   Depois de uma pausa de só uns segundos, observou:
   Seus moços lhe deram uma boa limpeza, né?
   Não limpamos nada, senhora Demery.
   Pois alguém teve que fazê-lo. Aqui não há três semanas de pó. Olhe o suporte da chaminé e o chão. Alguém aconteceu a aspiradora. me valha Deus!
De maneira que se entreteve limpando o quarto antes de matá-lo! E com meu Hoover!
   voltou-se para o Dalgliesh, quem viu nascer em seu olhar uma mescla de indignação, horror e temor supersticioso. Até o momento, nada do que rodeava a morte
do Etienne a tinha afetado tão profundamente como aquela cela da morte limpa e preparada. Como sabe, senhora Demery?
   A aspiradora se guarda em um cuartito da planta baixa, ao lado da cozinha. Quando fui procurar a esta manhã, pensei: "Alguém utilizou este aparelho."
Como se deu conta?
   Porque estava graduada para limpar um chão liso, não um tapete. O mando tem duas posições, já me entende. Quando a guardei, estava na posição de
limpar tapetes, porque o último que tinha feito com ela eram os tapetes da sala de juntas. Está segura, senhora Demery?
   Não para jurá-lo diante de um tribunal. Há coisas que se podem jurar e coisas que não. Suponho que eu mesma teria podido tocar o mando sem me dar conta. O único
que sei é que quando fui agarrar a esta manhã me disse: "Alguém utilizou este aparelho." Perguntou a alguém se a tinha utilizado? A quem o ia perguntar,
se não havia ninguém? Além disso, não acredito que fora nenhum dos empregados. Para que foram agarrar a aspiradora? Isso é meu trabalho, não deles. Pensei que ao
melhor
tinha sido algum da companhia de limpeza, mas também seria estranho, porque trazem todo o material que necessitam.
   E a aspiradora, estava no sítio de costume?
   Sim, exatamente. E o cabo estava enrolado da mesma maneira em que eu o tinha deixado.
   Mas o mando não estava na mesma posição. Vê alguma outra costure no quarto que lhe chame a atenção?
   Bom, falta o cordão da janela, não? Suponho que o terão tirado vocês. Já começava a estar velho e desfiado. na segunda-feira passada, quando apareci a cabeça,
disse-lhe ao senhor Dauntsey que terei que trocá-lo, e ele me respondeu que já o diria ao George. George se encarrega de todas estas coisas. É muito manhoso, este
George.
Quando falei com o senhor Dauntsey, a janela estava médio aberta. Normalmente está acostumado a tê-la assim. Não me pareceu que lhe desse muita importância, mas,
como já hei
dito, pensava falar com o George. E essa mesa a moveram. Eu nunca a movo quando Quito o pó. você veja-o mesmo. Está uns cinco centímetros mais à direita;
nota-se por essa linha tão fina de sujeira que há na parede onde antes estava a mesa.
   E não vejo a grabadora do senhor Dauntsey. Antes havia uma cama neste quarto, mas a tiraram quando a senhorita Clements se matou. Outra coisa que tal. Já havemos
tido duas mortes nesta habitação, senhor Dalgliesh. Parece-me que já seria hora de que a fechassem para sempre.
   antes de despedir da senhora Demery, Dalgliesh lhe pediu que não dissesse nada a ninguém sobre o possível uso que se deu a seu aspiradora, mas com escassa
esperança de que se guardasse a notícia para si durante muito tempo.
   Quando a mulher se partiu, Daniel perguntou: até que ponto podemos confiar nesta declaração, senhor? Acredita que seriamente é capaz de advertir se houverem
limpo recentemente a habitação? Poderiam ser imaginações delas.
   Ela é a perita, Daniel. E a senhorita Etienne também se fixou na limpeza da habitação.
   A própria senhora Demery reconheceu que não está acostumado a incomodar-se em limpar o chão. E agora não há nenhuma bolinha de pó, nem sequer nos rincões. Alguém
o
limpou recentemente, e não foi a senhora Demery.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

24
 
   Os quatro sócios seguiam esperando na sala de juntas. Gabriel Dauntsey e Frances Peverell estavam sentados ante a mesa ovalada de mogno, perto mas sem chegar
a tocar-se. Frances tinha a cabeça encurvada e estava absolutamente imóvel. Do Witt se achava ante a janela com uma mão no cristal, como se precisasse apoiar-se.
Claudia, de pé, examinava atentamente a grande copia do Grande Canal, do Canaletto, pendurado junto à porta. A magnificência da sala diminuía e ao mesmo tempo
fazia mais presente a carga de temor, pesar, cólera ou culpa que cada um suportava.
   Pareciam atores de uma obra excessivamente elaborada, com um luxuoso cenário no que se investiu uma fortuna, mas cujos intérpretes eram aficionados
que não se sabiam os diálogos e se moviam com gestos rígidos e faltos de prática. Quando Dalgliesh e Kate saíram da habitação, Frances havia dito: "Deixemos
a porta aberta", e Do Witt, sem pronunciar uma palavra, havia tornado atrás para deixá-la entreabrida. Necessitavam a sensação de um mundo exterior, o som de
vozes longínquas, por leve e esporádico que fosse. A porta fechada seria muito semelhante à poltrona vazia no centro da mesa, a uma esperando a entrada
impaciente do Gerard, o outro sua presença dirigente.
   Sem olhar a seu redor, Claudia comentou:
   Ao Gerard nunca gostou deste quadro. Acreditava que se sobrevaloraba ao Canaletto, que era muito preciso, muito plano. Dizia que podia imaginar-se aos aprendizes
pintando cuidadosamente as ondas.
   Não era Canaletto o que não gostava de replicou Do Witt; era só este quadro. Dizia que lhe aborrecia ter que estar sempre lhes explicando às visitas que é uma
cópia.
   Frances falou com voz neutra:
   Incomodava-lhe. Recordava-lhe que o avô vendeu o original em um mau momento pela quarta parte do que valia.
   Não replicou Claudia com firmeza. Não gostava de Canaletto.
   Do Witt se apartou devagar da janela.
   A polícia não se dá pressa observou. A senhora Demery deve estar desfrutando, suponho, fazendo sua imitação favorita de uma mulher da limpeza cockney, de
bom caráter mas de língua afiada. Espero que o comandante saiba apreciá-la.
   Claudia abandonou seu concentrado exame do quadro e se voltou para outros.
   Posto que isso é precisamente o que ela é, não acredito que seja apropriado chamá-lo uma imitação. Entretanto, é certo que se volta loquaz quando se excita.
Temos que procurar que não nos aconteça . Refiro-me a nos voltar loquazes, a falar muito, a lhe dizer à polícia costure que não tem por que saber. Em
que coisas está pensando? perguntou Do Witt.
   Em que não estávamos precisamente de acordo quanto ao futuro da empresa. A polícia pensa de um modo estereotipado. Posto que a maioria dos delinqüentes
atua de um modo estereotipado, aí está provavelmente sua força.
   Frances Peverell elevou a cabeça. Ninguém a tinha visto chorar, mas tinha a cara abotagada e macilenta, os olhos apagados sob umas pálpebras inchadas, e ao falar
sua voz soou quebrada e um tanto quejumbrosa. E o que importa que a senhora Demery fale? O que importa o que digamos? Nenhum dos que estamos aqui tem nada que
ocultar. O que ocorreu é óbvio. Gerard morreu de morte natural ou por um acidente, e alguém, a mesma pessoa que esteve nos gastando brincadeiras pesadas, encontrou
o corpo e decidiu lhe dar um ar de mistério ao assunto. Deve ter sido terrível para ti, Claudia, encontrar o dessa maneira, com a serpente enroscada ao pescoço.
Mas sem dúvida há uma explicação lógica. Tem que havê-la.
   Claudia se voltou para ela com tanta veemência como se estivessem em metade de uma rixa. Que classe de acidente? Pretende sugerir que Gerard sofreu um acidente?
Que classe de acidente?
   Frances se encolheu no assento, mas respondeu com voz firme:
   Não sei. Eu não estava ali quando ocorreu. Só era uma idéia.
   Uma idéia muito estúpida.
   Claudia interveio Do Witt com voz mais carinhosa que reprobadora, não devemos brigar.
   Temos que manter a calma e permanecer juntos. Como vamos permanecer juntos? Dalgliesh quererá nos ver por separado.
   Não fisicamente juntos. Como sócios. Como equipe.
   Frances prosseguiu como se ele não tivesse falado.
   Ou um ataque ao coração. Ou uma apoplexia. Poderia ter sido qualquer das duas coisas. Pode-lhe ocorrer ao mais são.
   Claudia replicou:
   Gerard tinha o coração em perfeito estado. Não se pode subir ao Cervino se se tiver o coração delicado. E não imagino a um candidato mais improvável para uma
apoplexia.
   Do Witt falou em tom conciliador.
   Ainda não sabemos por causa do que morreu. Terá que esperar o resultado da autópsia.
   Enquanto isso, o que vamos fazer?
   Seguir adiante respondeu Claudia. Isso por descontado; seguir adiante.
   Sempre que fique pessoal. Pode que a gente não queira seguir na empresa, sobre tudo se a polícia dá a entender que a morte do Gerard não foi normal.
   A gargalhada da Claudia foi áspera como um soluço. Que não foi normal! Pois claro que não foi normal! Encontramo-lo morto, médio nu, com uma
serpente de brinquedo enroscada ao pescoço e a cabeça do animal metida na boca. Nem o policial menos suspicaz diria que isso é normal.
   Queria dizer, é obvio, se houver suspeitas de assassinato. Todos temos esta palavra na mente. Talvez já seja hora de que alguém a pronuncie.
   Frances se voltou para ele. Assassinato? por que foram assassinar o? Além disso, não havia sangue, verdade? Não encontrastes nenhuma arma. E ninguém tivesse podido
envenená-lo. Envenená-lo, com o que? Quando teria podido ingerir o veneno?
   Há outras maneiras respondeu Claudia. Quer dizer que o estrangularam com o Sid a lhe Vaiem? Ou que o asfixiaram? Mas Gerard era forte. Para isso teria sido
necessário dominá-lo fisicamente. Como ninguém dizia nada, acrescentou: Não sei por que estão os dois tão interessados em sugerir que Gerard morreu assassinado.
   Do Witt se aproximou e tomou assento a seu lado.
   Ninguém o está sugiriendo, Frances disse com suavidade; só nos expomos a possibilidade. Mas tem razão, naturalmente. É melhor esperar ou seja como morreu.
O que mais me intriga é que estivesse no despachito dos arquivos. Não recordo que subisse ao último piso nenhuma só vez. E você, Claudia?
   Tampouco. E não pode ser que estivesse trabalhando ali. Se lhe tivesse ocorrido fazê-lo, não teria deixado as chaves na gaveta do escritório. Já sabe o
suscetível que era em questão de segurança. Só deixava as chaves na gaveta enquanto ele estava trabalhando em sua mesa. Se saía do despacho pelo tempo que
fosse, ficava a jaqueta e se metia o molho de chaves no bolso.
   Todos o vimos fazer muitas vezes.
   O fato de que se encontrou o corpo nos arquivos não implica forzosamente que morrera ali assinalou Do Witt.
   Claudia se sentou em frente dele e se inclinou para diante sobre a mesa. Quer dizer que pôde morrer em seu escritório?
   Possivelmente morreu ou o mataram ali e logo o transladaram. Pôde morrer ante seu escritório por alguma causa natural, um ataque ao coração ou uma apoplexia,
como há dito
Frances, e logo alguém se levou o corpo.
   Mas isso exigiria uma força considerável.
   Não tanta, se o que o fez utilizou um dos carros para transportar livros e subiu o corpo no elevador. Quase sempre há um carro esperando junto à
porta do elevador.
   Mas sem dúvida a polícia é capaz de descobrir se tiverem movido um corpo depois da morte.
   Sim, se o encontrarem ao ar livre. Há restos de terra, ramitas, erva esmagada, rastros de arrastramiento. Não sei se lhes resultaria tão fácil com um corpo
descoberto dentro de um edifício.
   Suponho que cedo ou tarde condescenderão a nos dizer algo. O certo é que não se dão pressa.
   Falavam os dois como se não houvesse ninguém mais na sala. de repente, interveio Frances. Têm que discuti-lo como se a morte do Gerard fosse uma espécie de
enigma, uma novela policíaca, algo que tivéssemos lido ou visto por televisão? Estamos falando do Gerard, não de um desconhecido, não de um personagem de uma obra
teatral. Gerard está morto. Está no piso de acima com essa horrível serpente em torno do pescoço, e nós aqui sentados como se não nos importasse nada.
   Claudia lhe dirigiu um olhar especulativo tinto de desdém. O que quer que façamos? Que fiquemos sentados sem dizer nada? Que leiamos um bom livro? Que
perguntemos ao George se já chegaram os periódicos? Acredito que nos falar ajuda.
   Gerard era meu irmão. Se eu posso manter certa serenidade, você também pode. Compartilhou sua cama, ao menos por algum tempo, mas nunca chegou a compartilhar
sua vida.
   Do Witt a interpelou com voz fica: Compartilhou-a você, Claudia? Ou algum de nós?
   Não, mas quando esta morte me golpeie seriamente, quando cria seriamente o que ocorreu, asseguro-te que o chorarei. Não se preocupe por isso. Sim, chorarei-o,
mas
ainda não, não aqui nem agora.
   Gabriel Dauntsey tinha permanecido sentado de cara à janela, contemplando o rio. Naquele momento falou pela primeira vez, e outros se voltaram e o olharam
como se recordassem de súbito que estava ali.
   Acredito que é possível que tenha morrido por intoxicação de monóxido de carbono. Tinha a pele muito rosada, que é um dos sintomas, e na habitação fazia um
calor pouco natural. Não te deu conta, Claudia, de que fazia muito calor ali dentro?
   Houve uns instantes de silêncio e, ao fim, Claudia respondeu:
   Dava-me conta de muito pouco, além de ver o Gerard e aquela serpente. Quer dizer que pôde ter morrido a causa do gás?
   Sim. Acredito que pôde morrer a causa do gás.
   A palavra vaiou no ar.
   Mas não dizem que o novo gás do mar do Norte é inofensivo? objetou Frances. Acreditava que já não era possível suicidarse colocando a cabeça no forno de gás.
   Foi Do Witt quem o explicou.
   O gás não é tóxico. Se se utilizar corretamente, é de tudo inofensivo. Mas se Gerard acendeu a estufa de gás e a habitação não estava bem ventilada, é
possível que a estufa ardesse mau e produzira monóxido de carbono. De ser assim, pôde ofuscar-se e perder o sentido antes de compreender o que estava ocorrendo.
   E depois alguém encontrou o corpo, apagou o gás e lhe pôs a serpente ao pescoço concluiu Frances. Foi um acidente, como eu dizia.
   Dauntsey falou com voz serena e contida:
   Não é tão singelo. por que acendeu a estufa? Ontem à noite não fez muito frio. E se a acendeu, por que fechou a janela? Quando vi o corpo estava
fechada, e na segunda-feira, quando utilizei esse despacho por última vez, deixei-a aberta.
   E se pensava ficar trabalhando nos arquivos o tempo suficiente para necessitar a estufa, por que deixou a jaqueta e as chaves em seu escritório? Tudo isto
carece de sentido disse Do Witt.
   Seguiu um silêncio, súbitamente quebrado pelo Frances.
   Esquecemo-nos que a Lucinda. Alguém tem que dizer-lhe meu deus, sim! exclamou Claudia. Alguém tende a esquecer a lady Lucinda. Não sei por que, mas não me a
imagino jogando-se no Támesis presa da dor. Sempre vi algo estranho nesse compromisso.
   Mesmo assim replicou Do Witt, não podemos deixar que o leia amanhã no periódico ou o ouça pela rádio. Algum de nós deveria chamar lady Norrington; ela
pode encarregar-se de lhe dar a notícia a sua filha. Acredito que o melhor seria que o dissesse você, Claudia.
   Suponho que sim, sempre que não me peça que vá em pessoa a oferecer consolo. Será melhor que o faça agora mesmo. Chamarei desde meu escritório; quer dizer, se
não o ocupou a polícia.
   Ter à polícia aqui é como ter ratos em casa: constantemente intui que estão roendo, embora em realidade não os ouça nem os veja, e uma vez entram
tem a sensação de que nunca poderá te liberar deles.
   ficou em pé e pôs-se a andar para a porta, com a cabeça erguida de um modo pouco natural, mas com passo incerto. Dauntsey fez gesto de incorporar-se, mas
suas extremidades intumescidas pareceram incapazes de responder e foi Do Witt quem se apressou a situar-se junto a ela. Mas Claudia meneou a cabeça, apartou com
suavidade o braço que pretendia lhe oferecer sustento e saiu da habitação.
   Ainda não tinham transcorrido cinco minutos quando retornou.
   Não estava em casa anunciou, e não é o tipo de mensagem que se possa deixar na secretária eletrônica.
   Voltarei a tentá-lo mais tarde. E seu pai? inquiriu Frances. Não é mais importante?
   Naturalmente que é mais importante. irei ver lhe esta noite.
   abriu-se a porta sem chamada prévia e o sargento Robbins apareceu a cabeça.
   O senhor Dalgliesh lamenta ter que lhes fazer esperar mais do que se figurava e lhe agradeceria ao senhor Dauntsey que subisse ao despacho dos arquivos.
   Dauntsey se levantou imediatamente, mas a rigidez que lhe tinha invadido detrás permanecer tanto tempo sentado lhe fez mover-se com estupidez. O fortificação,
pendurado em
o respaldo do assento, caiu ruidosamente ao chão. Frances Peverell e ele se ajoelharam de uma vez para recolhê-lo e, depois do que a outros soou como uma resistência
e um breve intercâmbio de sussurros em tom quase conspirador, Frances se apoderou do fortificação, incorporou-se com o rosto avermelhado e o entregou ao Dauntsey.
O
ancião se apoiou nele durante uns segundos e a seguir voltou a pendurá-lo do respaldo e se encaminhou para a porta sem sua ajuda, devagar mas com passo firme.
   Quando se teve partido, Claudia Etienne comentou:
   Eu gostaria de saber por que Gabriel tem o privilégio de ser o primeiro.
   Respondeu-lhe James do Witt:
   Certamente porque utiliza o despachito dos arquivos mais que a maioria de nós.
   Acredito que eu nunca o utilizei disse Frances. A última vez que estive ali foi quando se levaram a cama. Você tampouco sobe muito, verdade, James?
   Nunca trabalhei ali; ou, ao menos, não por mais de meia hora. A última vez foi faz coisa de três meses. Subi a procurar o contrato original do Esmé Carling,
mas não pude encontrá-lo. Quer dizer que não encontrou sua antiga pasta?
   Encontrei a pasta e me levei isso a despachito para estudá-la, mas o contrato não estava.
   Não é de sentir saudades interveio Claudia sem muito interesse. Faz trinta anos que a temos em catálogo. Certamente alguém deveu arquivá-lo mal faz vinte
anos. E a seguir, em um súbito arranque de energia, acrescentou: Olhem, não vejo razão alguma para perder o tempo só porque Adam Dalgliesh tem vontades de conversar
com um camarada poeta. Não é obrigatório que fiquemos nesta habitação.
   Frances a olhou com expressão duvidosa.
   Há dito que queria nos ver juntos objetou.
   Bem, já nos viu juntos. Agora nos verá por separado. Quando me necessitar, encontrará-me em meu escritório. Digam-se o de minha parte, querem?
   Uma vez teve saído, James opinou:
   Acredito que tem razão. Pode que não nos sintamos de humor para trabalhar, mas é pior esperar aqui sentados, olhando essa poltrona vazia.
   Mas não o olhamos, verdade? evitamos cuidadosamente olhá-lo, apartando a vista para qualquer outra parte, como se Gerard fosse algo embaraçoso. Eu
agora não posso trabalhar, mas tomaria um pouco mais de café.
   Pois vamos buscá-lo. A senhora Demery deve andar por algum sítio. A verdade é que eu gostaria de ouvir sua versão da entrevista com o Dalgliesh. Se isso não limpar
a atmosfera, é que nada pode consegui-lo.
   dirigiram-se os dois juntos para a porta. antes de sair, Frances se voltou para ele.
   Estou muito assustada, James. Deveria sentir aflição e dor, deveria me sentir horrorizada pelo acontecido. Fomos amantes. Houve um tempo em que o amei, e agora
está morto. Deveria estar pensando nele, na atroz irrevocabilidad de sua morte. Deveria estar rezando por ele. Tentei-o, mas unicamente me saem palavras
sem sentido. O que na verdade sinto é por completo egoísta, por completo ignóbil. É medo. Medo à polícia? Dalgliesh não é nenhum bárbaro.
   Não, o que temo é pior. Dá-me medo o que está ocorrendo aqui. Essa serpente... Quem é o que fez isso ao Gerard, é maligno. Não nota a presença do
mau no Innocent House? Eu a percebo há meses. Isto só deve ser o fim inevitável, a conclusão a que conduziam todas essas pequenas maldades. Minha mente
teria que estar cheia de dor pelo Gerard. Mas não é assim; está cheia de terror, de terror e da espantosa premonição de que isto não é o final.
   James respondeu com suavidade:
   Não há emoções boas nem más. Sentimos o que sentimos. Duvido que nenhum de nós sinta um intenso pesar, nem sequer Claudia. Gerard era um homem notável,
mas não se fazia querer.
   Eu tento me convencer de que sinto aflição, mas provavelmente não se trate mais que da tristeza universal e impotente que se experimenta sempre ante a
morte dos jovens, os inteligentes, os sãs. E inclusive isto o domina uma curiosidade fascinada e salpicada de apreensão.
   Voltou o rosto para ela e prosseguiu: Tem-me aqui, Frances. Quando me necessitar, se me necessitar, terá-me aqui. Não serei um estorvo. Não te imporei meu
presença só porque a comoção e o medo hajam nos tornado vulneráveis aos dois. Limito-me a te oferecer o que necessite quando o necessitar.
   Já sei. Obrigado, James.
   Frances estendeu a mão e por um instante a posou sobre a cara do James. Era a primeira vez que o tocava por vontade própria. A seguir se voltou para
a porta e, ao fazê-lo, passou-lhe inadvertido o resplendor de alegria e de triunfo que invadia o rosto dele.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

25
 
   Vinte anos antes, Dalgliesh tinha ouvido o Gabriel Dauntsey ler seus poemas na Sala Purcell, na borda sul. Não tinha intenção de dizer-lhe mas, enquanto
esperava a chegada do ancião, reviveu o acontecimento com tanta claridade que escutou as pisadas que se aproximavam pela sala dos arquivos com algo semelhante
à impaciência emocionada da juventude. Das duas guerras mundiais, a primeira era a que tinha produzido a melhor poesia, e às vezes Dalgliesh ocupava seu tempo
tratando de imaginar por que tinha sido assim. Acaso porque o ano 1914 tinha visto morrer a inocência, porque o cataclismo tinha varrido algo mais que uma geração
brilhante? O caso é que durante vários anos foram somente três? pareceu que Dauntsey podia ser o Wilfred Owen de seu tempo, embora sua guerra fora muito distinta.
Entretanto, a promessa daqueles dois primeiros volúmenes não se cumpriu e Dauntsey não havia tornado a publicar nada mais. Dalgliesh se disse que a palavra
promessa, com sua sugestão de um talento ainda por confirmar, logo que resultava adequada. Um ou possivelmente dois daqueles poemas tempranos tinham um nível que
poucos
poetas de posguerra tinham alcançado.
   depois daquela leitura, Dalgliesh tinha averiguado tudo o que Dauntsey queria que se soubesse de sua história: que, sendo residente na França, achava-se
na Inglaterra por negócios quando se declarou a guerra, enquanto que sua esposa e seus dois filhos ficavam apanhados pelos invasores alemães; que sua família desapareceu
por completo dos registros oficiais e que só detrás anos de busca, uma vez finalizada a guerra, pôde descobrir que os três, ocultos sob uma falsa identidade
para evitar o internamento, tinham morrido a conseqüência de uma incursão de bombardeiros britânicos na França ocupada. O próprio Dauntsey tinha servido em
o Comando de Bombardeiros da RAF, mas se livrou da última e mais trágica ironia; não tinha tomado parte naquela incursão. A sua era a poesia da guerra
moderna, da perda, a dor e o terror, da camaradagem e o valor, a covardia e a derrota. Os fortes, sinuosos e brutais versos se iluminavam com passagens
de beleza poesia lírica, como obuses que estalassem na mente. Os grandes Lancasters que se elevavam como pesadas bestas com a morte encerrada no ventre; os
céus escuros e silenciosos que exploravam em uma cacofonia de terror; os tripulantes quase adolescentes dos que ele, algo major, era responsável e que, noite
depois de noite, voavam precariamente alojados naquele frágil casca de ovo de metal, conhecendo a aritmética da sobrevivência, sabendo que aquela podia ser a noite
em que cairiam do céu como uma tocha chamejante. E sempre a culpa, a sensação de que aquele terror de cada noite, ao mesmo tempo temido e desejado, era uma
reparação, que havia uma traição que só a morte podia expiar, uma traição pessoal que refletia uma maior desolação universal.
   E agora estava aqui; um ancião como qualquer outro, se é que algum ancião podia qualificar-se de forma tão neutra, não curvado, a não ser sustentando-se mediante
um esforço disciplinado, como se a resistência e a coragem pudessem superar com êxito os estragos do tempo. A velhice pode produzir uma corpulência fofa que felpa
o caráter transformando-o em enrugada nulidade ou, como neste caso, descarnar o rosto de maneira que os ossos destacam como um esqueleto provisoriamente revestido
de uma carne tão seca e delicada como o papel. Mas o cabelo, embora cinza, era ainda vigoroso, e os olhos que naquele momento se fixavam nele com um olhar
interrogativa e irônica tão negros e penetrantes como Dalgliesh recordava.
   Dalgliesh apartou a cadeira da mesa e a deixou junto à porta. Dauntsey se sentou.
   Subiu você com lorde Stilgoe e o senhor Do Witt. Viu algo nesta habitação que lhe chamasse a atenção, além da presença do corpo? perguntou Dalgliesh.
   Ao princípio, não, além de um aroma desagradável. Um cadáver semidesnudo e tão grotescamente adornado como este o estava toma por assalto os sentidos. Ao cabo
de um minuto, possivelmente menos, adverti outras coisas, e com extraordinária claridade. A habitação me desejou muito distinta, estranha. Pareceu-me nua, embora
não o estava,
desacostumbradamente limpa, mais calorosa do habitual.
   O corpo parecia muito..., muito desordenado; a habitação, em troca, muito ordenada. A cadeira estava em seu lugar exato, as pastas pulcramente dispostas sobre
a mesa. Naturalmente, precavi-me de que faltava a grabadora. Estavam as pastas como você as tinha deixado?
   Não, por isso lembrança. As duas bandejas estão trocadas de sítio. A que tem o menor número de pastas deveria estar à esquerda. Eu tinha deixado dois
montões, o da direita maior que o da esquerda. Trabalho de esquerda a direita com várias pastas de uma vez, entre seis e dez segundo seu tamanho. Quando termino
com uma, a passo ao montão da direita. Uma vez revisadas as seis, devolvo-as à sala dos arquivos e inserido uma regra na última para que se veja até
onde cheguei.
   Vimos a regra em um oco da prateleira inferior da segunda fileira. Significa isso que só completou uma fileira?
   É um trabalho muito lento. Tendo a me interessar pelas cartas antigas, embora não mereça a pena as conservar. encontrei muitos que sim o merecem: cartas
de escritores do século XX e de outros que mantiveram correspondência com o Henry Peverell ou com seu pai, embora não os publicava a empresa. Há cartas do H. G.
Wells, do Arnold Bennett, de membros do grupo do Bloomsbury e inclusive algumas mais antigas. Que sistema emprega?
   Dito a grabadora uma descrição do conteúdo de cada pasta e minha recomendação, já seja "destruir", "duvidosa", "conservar" ou "importante". A seguir,
uma datilógrafa passa a lista a máquina e a junta a examina periodicamente. Na prática, ainda não se eliminou nada. Pareceu-nos precipitado destruir qualquer
costure antes de conhecer o futuro da empresa. Quando utilizou esta habitação por última vez?
   na segunda-feira. Estive trabalhando aqui todo o dia. A senhora Demery apareceu a cabeça por volta das dez da manhã, mas disse que não queria me incomodar. Só
deve tirar
o pó uma semana de cada quatro, aproximadamente, e mesmo assim o faz de um modo superficial. Fez-me notar que o cordão da janela estava muito puído e lhe respondi
que o diria ao George para que se encarregasse de trocá-lo. Ainda não falei com ele. E você não se deu conta?
   Temo-me que não. A janela levava várias semanas aberta. Prefiro-o assim. Suponho que ao chegar o frio me teria dado conta. Como esquenta a habitação?
   Com uma estufa elétrica sempre. De fato, é de minha propriedade. Prefiro-a à estufa de gás.
   Não quero dizer que a estufa de gás me parecesse perigosa, mas, como não fumo, nunca levo fósforos em cima quando as necessito. Era mais fácil trazer a estufa
elétrica de meu apartamento. É muito ligeira, de modo que ao terminar a jornada me volto isso a levar a número doze ou a sotaque aqui se tiver intenção de seguir
trabalhando
ao dia seguinte. na segunda-feira me levei isso a casa. E fechou a porta com chave ao partir?
   Não, nunca a fecho. A chave está na fechadura, geralmente deste lado, mas não a utilizei nunca.
   Dalgliesh observou:
   A fechadura parece relativamente nova. Quem a fez instalar?
   Henry Peverell. Gostava de trabalhar aqui acima de vez em quando. Não sei por que, mas era um homem solitário. Suponho que a fechadura devia lhe proporcionar
uma maior sensação de segurança. Mas em realidade não é nova; muito mais nova que a porta, isso sim, mas acredito que deve levar aí ao menos cinco anos.
   Mas não leva cinco anos sem ser utilizada disse Dalgliesh. Está bem engordurada, a chave gira com facilidade. Ah, sim? Eu não a utilizo, assim não me tinha fixado.
Mas é curioso que esteja engordurada. Pode que o tenha feito a senhora Demery, embora me parece pouco provável.
   Dalgliesh inquiriu: Gostava de Gerard Etienne?
   Não, mas o respeitava. Não porque tivesse qualidades necessariamente merecedoras de respeito; respeitava-o porque era muito distinto a mim. Sua virtude procedia
em parte
de seus defeitos. E era jovem. Não podia atribuir-se nenhum mérito nem responsabilidade por sê-lo, mas isso lhe conferia um entusiasmo que a maioria de outros já
não
temos e que, em minha opinião, a empresa necessita. Possivelmente nos queixássemos do que fazia ou nos desgostasse o que se propunha fazer, mas ao menos sabia aonde
se
dirigia. Suspeito que sem ele nos sentiremos à deriva. Quem ocupará agora o cargo de diretor gerente?
   OH, sua irmã, Claudia Etienne. O cargo lhe corresponde ao possuidor do maior número de ações e, por isso eu sei, Claudia herdará as dele. Isso lhe proporcionará
a maioria absoluta. Para fazer o que? quis saber Dalgliesh.
   Não sei. Terá que perguntar-lhe a ela. Duvido que ela mesma saiba. Acaba de perder a seu irmão. Não acredito que tenha dedicado muito tempo a pensar no futuro
da Peverell Press.
   A seguir Dalgliesh lhe perguntou como tinha passado o dia e a noite anteriores. Dauntsey baixou a vista e esboçou um leve sorriso zombador. Era muito inteligente
para não compreender que o que lhe estava pedindo era seu álibi. Permaneceu um breve momento em silêncio, como se estivesse ordenando seus pensamentos. Ao fim respondeu.
   Estive na reunião dos sócios das dez até as onze e meia. Ao Gerard gostava de acabar em duas horas, mas ontem terminamos antes que de costume.
depois da reunião, enquanto descíamos da sala de juntas, troquei umas palavras com ele sobre o futuro da coleção de poesia. Acredito que, além disso, tentava
obter meu apoio a seus planos de vender Innocent House e transladar a empresa ao Docklands. E você o considerava desejável?
   Considerava-o necessário. Fez uma pausa e acrescentou: Por desgraça.
   Depois de uma nova pausa seguiu falando de forma lenta e pausada, mas com escassa ênfase, detendo-se de vez em quando para escolher uma palavra antes que outra,
franzindo a frente de vez em quando como se a lembrança fora dolorosa ou incerta. Outros escutaram seu monólogo em silêncio.
   Logo saí do Innocent House e dirigi a meu apartamento para me arrumar, pois devia sair.
   Quando digo me arrumar, refiro-me simplesmente a me passar um pente pelo cabelo e me lavar as mãos. Não estive muito tempo em casa. Tinha convidado a um poeta
jovem, Damien Smith, a almoçar no Ivy. Gerard estava acostumado a dizer que James do Witt e eu gastávamos o dinheiro tratando com atenção autores em proporção inversa
a sua importância
para a empresa. Pareceu-me que ao moço gostaria de ir ao Ivy. Estávamos citados ali à uma. Fui em lancha até a ponte de Londres e uma vez ali tomei
um táxi até o restaurante. O almoço durou em total umas duas horas; às três e meia estava de volta a meu apartamento. Preparei-me um chá e às quatro voltei
a meu escritório.
   Estive trabalhando ao redor de uma hora e meia. "A última vez que vi o Gerard foi no asseio da planta baixa. Está na parte de atrás da casa, ao lado
das duchas. As mulheres revistam utilizar o asseio do primeiro piso. Ao entrar me cruzei com o Gerard. Não nos dissemos nada, mas acredito que me fez um gesto com
a cabeça
ou sorriu. Houve uma espécie de saudação fugaz, nada mais. Não voltei a vê-lo. Retornei a meu apartamento e me passei as duas horas seguintes lendo os poemas que
havia
eleito para a reunião da noite, pensando neles, tomando café. Escutei as notícias das seis na BBC. Pouco depois me chamou Frances Peverell para me desejar
boa sorte. ofereceu-se a ir comigo. Acredito que considerava que devia me acompanhar alguém da editorial. Falamos disso um par de dias antes e consegui
dissuadi-la. Uma das poetisas que ia ler era Marigold Riley. Não é má, mas grande parte de sua obra é escatológica. Sabia que ao Frances não gostaria nem
os poemas, nem a companhia, nem o ambiente. Disse-lhe que preferia ir sozinho, que tê-la a meu lado poria nervoso, e não era do todo mentira. Fazia quinze anos
que não lia meus versos. A maioria dos assistentes deviam supor que já tinha morrido. Já começava a desejar não ter aceito. A presença do Frances faria
que me perguntasse se se encontrava a desgosto, até que ponto lhe desagradava todo aquilo, e só incrementaria meu desassossego. Pedi um táxi por telefone e fui
passadas as sete e meia.
   Dalgliesh lhe interrompeu. A que hora, exatamente?
   Pedi que o táxi estivesse no beco às oito menos quarto e suponho que o fiz esperar ir minutos, não mais. deteve-se outra vez e logo prosseguiu: O
que ocorreu no Connaught Arms não pode lhe interessar muito. Havia o número suficiente de pessoas para justificar minha presença. Suponho que a leitura foi o bastante
melhor do que me figurava, mas havia muita gente e muito ruído. Não era consciente de que a poesia se converteu em um esporte de massas. bebia-se
e se fumava muito, e alguns dos poetas eram mas bem jogo de dados ao excesso. A coisa se prolongou em demasia. Queria lhe pedir ao patrão que chamasse um táxi por
telefone,
mas estava falando com um grupo de gente e me parti sem que ninguém me emprestasse muita atenção.
   Esperava encontrar um táxi ao final da rua, mas me assaltaram antes de chegar. Eram três, parece-me, dois negros e um branco, mas não poderia identificá-los.
Só percebi umas figuras que arremetiam contra mim, um forte empurrão nas costas, umas mãos que me registravam os bolsos.
   Foi um ataque gratuito. Se me tivessem pedido a carteira, a teria dado. O que outra coisa podia fazer? A levaram?
   Sim, a levaram. Pelo menos já não a tinha quando olhei. A queda me aturdiu por ir instantes. Quando recuperei a lucidez vi um homem e uma mulher agachados
junto a mim. Tinham estado na leitura e queriam me dar alcance. Ao cair dava um golpe na cabeça e estava sangrando um pouco. Tirei o lenço e o apertei contra
a ferida. Pedi-lhes que me levassem a casa, mas disseram que tinham que acontecer diante do hospital St. Thomas e insistiram em me deixar ali.
   Diziam que devia me fazer uma radiografia. Naturalmente, não pude teimar em que me levassem a casa ou me buscassem um táxi. Foram muito amáveis, mas não acredito
que queriam tomar-se muitas moléstias. No hospital me fizeram esperar um bom momento. Havia casos mais urgentes que atender.
   Finalmente, uma enfermeira me enfaixou a ferida e me anunciou que devia ficar a que me fizessem uma radiografia. Outra espera. O resultado foi satisfatório, mas
queriam me ter toda a noite em observação. Assegurei-lhes que em casa estaria bem atendido e lhes roguei que chamassem o Frances para lhe explicar o ocorrido e que
pedissem-me um táxi. Pensei que certamente estaria pendente de minha chegada para saber que tal tinha ido a leitura e que se preocuparia se às onze ainda não havia
retornado. Devia ser uma e meia quando cheguei a casa, e em seguida a chamei por telefone.
   Frances queria que subisse a seu apartamento, mas lhe disse que me encontrava perfeitamente e que o que mais precisava era um banho. depois de me banhar voltei
para
chamar e baixou ao momento.
   Dalgliesh perguntou: E não insistiu em baixar a seu apartamento assim que você chegou?
   Não. Frances nunca se entremete se acreditar que alguém deseja estar a sós, e o certo é que eu desejava estar a sós, sequer por um momento. Não me sentia com
ânimos
para dar explicações nem escutar expressões de condolência. O que precisava era uma taça e um banho. Bebi, banhei-me e logo a chamei por telefone. Sabia que estava
inquieta e não queria fazê-la esperar até a manhã seguinte para saber o que tinha ocorrido. Acreditei que o uísque me sentaria bem, mas em realidade me deixou o
bastante
enjoado. Suponho que sofri uma espécie de comoção tardia. Quando bateu na porta, não me encontrava muito bem. Estivemos um ratito falando e em seguida insistiu
em que devia me deitar. Disse que ficaria em meu apartamento no caso de eu necessitava algo durante a noite. Acredito que temia que estivesse muito pior do que
assegurava-lhe e queria estar a meu lado para chamar um médico se meu estado piorava. Não tentei dissuadi-la, embora sabia que o único que me fazia falta era uma
noite de repouso. Pensei que se deitaria na habitação livre, mas acredito que se envolveu em uma manta e passou toda a noite na sala, junto a minha porta. Quando
despertei pela manhã estava vestida e me tinha preparado uma taça de chá. Tratou de me convencer para que ficasse em casa, mas quando terminei de me vestir me encontrava
muito melhor e decidi ir ao Innocent House. Chegamos juntos a recepção justo quando acabava de chegar a primeira lancha do dia. Foi então quando nos disseram que
Gerard tinha desaparecido. E essa foi a primeira notícia que teve do assunto? quis saber Dalgliesh.
   Sim. Gerard tinha o costume de ficar a trabalhar até mais tarde que a maioria de nós, em especial as quintas-feiras. Também estava acostumado a chegar mais tarde
pela
amanhã, exceto os dias em que tínhamos reunião de sócios, pois gostava que começassem às dez em ponto. Naturalmente, quando saí para dar a leitura supunha
que já se partiu a casa.
   Então, não o viu quando saiu para o Connaught Arms?
   Não, não o vi. Nem viu entrar em ninguém no Innocent House?
   A ninguém. Não vi ninguém.
   E quando lhes disseram que o tinham encontrado morto, subiram os três ao despachito dos arquivos?
   Sim, subimos juntos Stilgoe, Do Witt e eu. Foi uma reação natural à notícia, suponho, a necessidade de comprová-lo pela gente mesmo. James chegou o primeiro.
Stilgoe
e eu não podíamos seguir seu passo. Quando chegamos, Claudia ainda estava ajoelhada junto ao corpo de seu irmão. Ao nos ver, levantou-se e estendeu um braço para
nós. Foi um gesto curioso, como se queria expor aquela atrocidade à vista pública. E quanto tempo permaneceram no quarto?
   Não pôde chegar a um minuto. Mas me pareceu mais. Estávamos agrupados justo na porta, olhando sem acreditar o que víamos, consternados. Acredito que não falou
ninguém.
   Sei que eu não o fiz. Tudo o da habitação era extremamente vivido. Foi como se a comoção tivesse emprestado a meus olhos uma extraordinária nitidez de percepção.
Vi todos os detalhes do corpo do Gerard e da habitação em si com uma claridade extraordinária. Então falou lorde Stilgoe. Disse: "vou chamar à polícia.
Aqui não podemos fazer nada. Esta habitação deve fechar-se imediatamente e eu guardarei a chave." fez-se cargo da situação. Saímos todos juntos e Claudia fechou
a porta. Stilgoe ficou a chave. O resto já o conhece.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

26
 
   No curso das inumeráveis conversações sobre a tragédia que ocupariam as semanas e os meses seguintes, o pessoal da Peverell Press geralmente
coincidia em que a experiência do Marjorie Spenlove tinha sido singular. A senhorita Spenlove, a corretora de textos mais antiga da editorial, chegou às
nove e quarto em ponto, sua hora de costume. Murmurou-lhe um "bom dia" ao George, quem, aniquilado ante seu posto telefônico, não se fixou nela. Lorde Stilgoe, Dauntsey
e Do Witt estavam no despachito dos arquivos com o cadáver, a senhora Demery atendia ao Blackie no guarda-roupa rodeada pelo resto do pessoal e o vestíbulo
achava-se momentaneamente vazio.
   A senhorita Spenlove subiu diretamente a seu escritório, tirou-se a jaqueta e se sentou a trabalhar.
   Quando trabalhava, permanecia alheia a tudo o que não fora o texto que tinha diante. A Peverell Press assegurava que nenhuma obra revisão por ela continha
jamais um engano sem detectar. A senhorita Spenlove raiava a perfeição quando trabalhava com obras de ensaio, já que com os jovens novelistas modernos às vezes o
resultava difícil distinguir entre os enganos gramaticais e seu cultivado e muito elogiado estilo natural. Sua perícia ia além das questões de linguagem;
nenhuma imprecisão geográfica ou histórica passava inadvertida, nenhuma incongruência de clima, topografia ou vestuário ficava sem comprovar. Os autores apreciavam
sua colaboração, embora a reunião que tinham com ela para aprovar o texto definitivo freqüentemente lhes deixava a sensação de haver-se submetido a uma sessão particularmente
traumática com uma lhe intimidem diretora de escola à velho uso.
   O sargento Robbins e um agente de patrício tinham registrado o edifício pouco depois de chegar.
   O registro foi mas bem superficial; ninguém podia supor a sério que o assassino estivesse ainda no lugar, a não ser que fora um membro do pessoal. Mas
ao sargento Robbins lhe passou por cima o pequeno quarto de asseio do segundo andar, um engano certamente compreensível. Logo, quando baixava para ir chamar ao Gabriel
Dauntsey, seu fino ouvido detectou o ruído de uma tosse no despacho contigüo e, ao abrir a porta, encontrou-se cara a cara com uma senhora maior que trabalhava ante
um escritório. A mulher o olhou com severidade por cima de seus óculos de meia lua e inquiriu: E quem é você, se se pode saber?
   Sou o sargento Robbins da polícia metropolitana, senhora. Como entrou você?
   Pela porta. Trabalho aqui. Este é meu escritório. Sou corretora de textos da Peverell Press e, como tal, tenho direito a estar aqui. Duvido muitíssimo que possa
dizê-lo mesmo de você.
   Estou de serviço, senhora. encontrou-se morto ao senhor Gerard Etienne em circunstâncias suspeitas. Quer dizer que o assassinaram?
   Ainda não estamos seguros. Quando morreu?
   Saberemos melhor quando recebermos o relatório do patologista forense. Como morreu?
   Ainda não conhecemos a causa da morte.
   Parece-me, jovem, que é muito pouco o que sabe. Possivelmente seja melhor que volte quando estiver melhor informado.
   O sargento Robbins abriu a boca e voltou a fechá-la com firmeza, contendo-se bem a tempo para não dizer: "Sim, senhorita. Muito bem, senhorita." retirou-se,
fechou a porta a suas costas e seguiu baixando. Estava a metade da escada quando se deu conta de que não lhe tinha perguntado o nome. Acabaria sabendo-o,
naturalmente. Era uma pequena omissão em um breve encontro que, devia reconhecê-lo, não tinha sido dos melhores. Como era um homem sincero e moderadamente propenso
a conjeturas, reconheceu também que isso se devia em parte para assombroso parecido físico e de voz que a senhora do despacho apresentava com a senhorita Addison,
a
primeira professora do sargento depois de sair do maternal, quem acreditava que os meninos se comportam melhor e são mais felizes quando sabem do primeiro momento
quem
é o que manda.
   A senhorita Spenlove ficou mais afetada pela notícia do que tinha deixado traslucir. Depois de terminar a página em que estava trabalhando, chamou o posto telefônico.
Poderia me localizar à senhora Demery, George? Quando procurava informação, a senhorita Spenlove acreditava na conveniência de ir a um perito. Senhora Demery?
Há um jovem vagando pela casa que diz ser sargento da polícia metroplitana. Assegurou-me que o senhor Etienne está morto, possivelmente assassinado. Se souber
você algo a respeito, agradeceria-lhe que subisse a me instruir. Ah!, e já estou a ponto para o café.
   A senhora Demery, abandonando ao Blackie aos cuidados do Mandy, teve muito gosto em agradá-la.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

27
 
   Dalgliesh, acompanhado pelo Kate, entrevistou-se com os restantes sócios no despacho do Gerard Etienne. Daniel estava ocupado no despachito dos arquivos,
onde o técnico do gás já tinha começado a desmontar a estufa; uma vez realizada esta tarefa e enviadas ao laboratório as amostras de escombros da chaminé,
iria à delegacia de polícia do Wapping para preparar o centro de operações. Dalgliesh já tinha falado com o delegado, que se tinha resignado filosoficamente à intrusão
e a ceder temporalmente um de seus escritórios. Dalgliesh tinha a esperança de que não fosse por muito tempo. Se aquilo era um assassinato, e em seu foro interno

não albergava a menor duvida de que o era, não era provável que o número de suspeitos fosse muito elevado.
   Não sentia nenhum desejo de sentar-se ante o escritório do Etienne, em parte por consideração aos sentimentos dos sócios, mas sobre tudo porque uma confrontação
mediada por um metro vinte de carvalho claro investia qualquer entrevista de uma formalidade mais apropriada para inibir ao suspeito ou provocar sua hostilidade
que
para surrupiar informação útil. Perto da janela, em troca, havia uma pequena mesa de conferências da mesma madeira, com seis cadeiras, de modo que se acomodaram
ali. A larga caminhada da porta resultaria lhe intimide para todos os convocados salvo os mais seguros de si, mas Dalgliesh duvidava que incomodasse a Claudia
ou ao James do Witt.
   advertia-se que a habitação tinha sido em tempos um comilão, mas se tinha profanado sua elegância com o tabique do extremo, que cruzava os adornos de estuque
do teto e bisecaba uma das quatro altas janelas que se abriam sobre o Innocent Passage. A magnífica chaminé de mármore com seus elegantes relevos ficava em
o despacho da senhorita Blackett. E aí, no despacho do Etienne, os móveis escritório, cadeiras, mesa de conferências e arquivos eram quase agressivamente
modernos. Possivelmente inclusive tinham sido escolhidos deliberadamente para que contrastassem com as colunas de mármore e o cornisamento de pórfido, as duas esplêndidas
aranhas, uma das quais quase tocava o tabique, e o dourado dos Marcos sobre o verde claro das paredes. Os quadros eram de cenas rurais convencionais,
quase com certeza da época vitoriana. Estavam bem, mas possivelmente muito repintados, muito sentimentais para seu gosto.
   Não acreditava que aqueles fossem os quadros que tinham pendurado nessa sala os primeiros moradores da casa, e se perguntou que retratos dos Peverell tinham adornado
em outro tempo as paredes.
   Ficava ainda um dos móveis originais: uma mesita para vinho em bronze e mármore, de evidente estilo Regência. De modo que um aviso de passados esplendores,
pelo menos, ainda se mantinha em uso. Dalgliesh sentiu curiosidade por saber o que pensava Frances Peverell da profanação da sala e se agora, morto Gerard Etienne,
suprimiria-se o tabique. perguntava-se também se Gerard Etienne era insensível a toda a arquitetura ou se só desdenhava a dessa casa em particular. Acaso
o tabique e o discordante mobiliário moderno eram uma maneira de assinalar a inconveniência da habitação para seus propósitos, um rechaço deliberado de um passado
dominado pelo sobrenome Peverell e não o sobrenome Etienne?
   Claudia Etienne cruzou os dez metros que separavam a porta da mesa de conferências com soltura e confiança e se sentou como se estivesse outorgando um favor.
Estava muito pálida, mas guardava bem a compostura, embora ele suspeitava que suas mãos, afundadas nos bolsos do cárdigan, teriam resultado mais reveladoras
que o rosto tenso e grave. Dalgliesh lhe expressou sua condolência com simplicidade e, esperava, com sinceridade, mas ela o interrompeu em seco. veio por lorde
Stilgoe?
   Não. vim pela morte de seu irmão. Lorde Stilgoe ficou indiretamente em contato comigo por mediação de um amigo mútuo. Tinha recebido um anônimo
que causou um grande transtorno a sua esposa; ela o interpretava como uma ameaça contra sua vida. Lorde Stilgoe queria garantias oficiais de que a polícia não suspeitava
nada impróprio nas três mortes relacionadas com o Innocent House, as de dois autores e a da Sonia Clements.
   Garantias que você, naturalmente, pôde lhe dar.
   Que os pertinentes departamentos da polícia puderam lhe dar. Deveu as receber faz uns três dias.
   Espero que ficasse satisfeito. O egocentrismo de lorde Stilgoe raia na paranóia. Mas mesmo assim, dificilmente pode supor que a morte do Gerard constitui
um intento deliberado de sabotar suas preciosas memórias. Ainda me surpreende, comandante, que tenha vindo você em pessoa, e com tão impressionante desdobramento
de forças. Trata você a morte de meu irmão como um assassinato?
   Como uma morte inexplicada e suspeita. Por isso tenho que incomodá-la nestes momentos.
   Ficaria reconhecido se colaborasse, não só comigo pessoalmente, mas também lhe explicando ao pessoal que a invasão de sua intimidade e a perturbação de seu trabalho
são até certo ponto inevitáveis.
   Acredito que o compreenderão.
   Teremos que tomar impressões digitais com fins de exclusão. As que não sejam necessárias como prova se destruirão quando o caso se dê por resolvido.
   Para nós será uma experiência nova. Se for necessário, certamente, devemos aceitá-lo.
   Suponho que pedirá a todos, e em particular aos sócios, que lhe apresentemos um álibi.
   Preciso saber o que fez ontem à noite, senhorita Etienne, e com quem esteve a partir das seis.
   Ela replicou:
   Tem você a pouco invejável tarefa, comandante, de me dar o pêsames pela morte de meu irmão ao mesmo tempo que me pede um álibi que demonstre que não
matei-o eu. E o faz com certa elegância. Felicito-lhe; embora, claro, tem você muita prática. Ontem à noite estive no rio com um amigo, Declan Cartwright. Quando
fale com certamente lhe dirá que sou sua noiva. Eu prefiro a palavra "amante". Saímos pouco depois das seis e meia, quando a lancha retornou de transportar
a alguns membros do pessoal ao mole da Charing Cross. Estivemos no rio até as dez e meia aproximadamente, possivelmente um pouco mais; depois voltamos aqui
e fui com o Declan em meu carro a seu piso do Westbourne Grove. Vive em cima de uma loja de antiguidades que ele mesmo leva para seu proprietário. Darei-lhe a direção,
é obvio. Estive com ele até as duas da madrugada e logo retornei ao Barbican. Tenho um piso ali, debaixo do de meu irmão.
   Muito tempo para passá-lo no rio uma noite de outubro.
   Uma formosa noite de outubro. Navegamos rio abaixo para ver a barreira do Támesis e logo voltamos atrás e amarramos no mole de Greenwich. Jantamos no
Papillon, na rua de Greenwich Church. Tínhamos reservado mesa para as oito e calculo que permanecemos ali mais ou menos uma hora e meia. Logo remontamos o
rio até passado a ponte da Battersea e voltamos aqui, como lhe hei dito, pouco depois das dez e meia. Viu-lhes alguém, à parte, naturalmente, do pessoal
do restaurante e outros clientes?
   Não havia muito tráfico no rio. Mesmo assim, deveu nos ver muita gente, mas isso não quer dizer que se lembrem de nós. Eu estava na ponte e Declan
permaneceu a meu lado a maior parte do tempo. Enquanto navegávamos, vimos o menos duas lanchas da polícia. Atreveria-me a dizer que se fixaram em nós;
esse é seu trabalho, não? Viu-lhes alguém ao embarcar ou quando retornaram?
   Não, que eu saiba. Não vimos nem ouvimos ninguém. E não sabe de ninguém que desejasse a morte de seu irmão?
   Já me perguntou isso antes.
   O volto a perguntar, agora que falamos em privado. É isso certo? Acaso nada do que se diz a um agente de polícia é realmente privado? Minha resposta
é a mesma. Não sei de ninguém que o odiasse tanto como para matá-lo. Certamente há pessoas que não se entristecerão por sua morte. Nenhuma morte é universalmente
lamentada. Toda morte redunda em benefício de alguém. Quem se beneficiará desta morte?
   Eu. Sou a herdeira do Gerard. Naturalmente, isso teria trocado assim que se casasse. Conforme estão as coisas, herdo suas ações da empresa, o piso do Barbican
e a importância de seu seguro de vida. Não o conhecia muito bem, não nos criamos como irmãos carinhosos. Fomos a distintos colégios e a distintas universidades,
e levávamos
distinta vida. Meu piso do Barbican está debaixo do dele, mas não tínhamos o costume de nos visitar freqüentemente. Teria parecido uma intrusão na intimidade do
outro. Mas eu gostava e o respeitava. Estava de sua parte. Se o assassinaram, espero que o assassino se apodreça no cárcere durante o resto de sua vida. Não ocorrerá,
é obvio. Damo-nos muita pressa em esquecer aos mortos e perdoar aos vivos. Talvez precisamos demonstrar compaixão porque somos incómodamente conscientes
de que um dia podemos necessitá-la. A propósito, aqui estão suas chaves. Tinha pedido você um jogo. retirei as do carro e as do piso.
   Obrigado disse Dalgliesh enquanto as agarrava. Não é necessário que lhe assegure que permanecerão em meu poder ou sob a custódia de algum membro de minha equipe.
Sabe
já seu pai que seu filho morreu?
   Ainda não. Penso sair em meu carro por volta do Bramwell-on-Seja ao entardecer. Meu pai vive como um recluso e não recebe chamadas telefônicas. E embora não
fora assim, preferiria dizer-lhe cara a cara. Quer você vê-lo?
   É importante que o veja. Agradeceria-lhe que lhe perguntasse se estaria disposto a me receber amanhã à hora que lhe resulte mais cômoda.
   O perguntarei, mas não sei se acessará. É muito resistente às visitas. Vive com uma francesa entrada em anos que cuida dele. O filho da mulher é sua chofer.
Está casado com uma jovem do lugar e suponho que quando Estelle mora a acontecerá. Ela, certamente, não se retirará: considera um privilégio dedicar sua vida a
um herói da França. Meu pai, como sempre, tem bem organizada a vida. Digo-lhe isto para que saiba com o que vai se encontrar. Não acredito que sua petição seja bem
recebida. É tudo?
   Também preciso ver os parentes da Sonia Clements. Sonia Clements? Mas que relação pode haver entre seu suicídio e a morte do Gerard?
   Nenhuma que eu saiba nestes momentos. Sabe se tinha parentes ou se vivia com alguém?
   Só uma irmã e, quando se suicidó, fazia três anos que não viviam juntas. É monja e forma parte de uma comunidade no Kemptown, perto de Brighton. Levam uma
residência para doentes terminais. Acredito que se chama Convento do St. Anne. Estou segura de que a mãe superiora lhe permitirá vê-la. depois de tudo, os policiais
são como os inspetores de Fazenda, verdade? Por desagradável ou inoportuna que resulte sua presença, quando batem na porta terá que deixá-los entrar. Deseja
alguma outra coisa de mim?
   O despachito dos arquivos ficará atado, e eu gostaria de fechar também a sala dos arquivos. Durante quanto tempo?
   Tanto como seja necessário. Representará um grande transtorno?
   Claro que será um transtorno. Gabriel Dauntsey está revisando os expedientes antigos e o trabalho já vai bastante atrasado sobre o previsto.
   Compreendo que será um transtorno. O que lhe perguntei é se seria um grande transtorno. Podem prosseguir as atividades da editorial sem acessar a essas dois
habitações?
   Evidentemente, se acreditar que é importante teremos que nos arrumar as que estaban de baja por enfermedad o de vacaciones. Era casi como si el bromista eligiera
deliberadamente momentos en los que todos los socios y la mayor parte de
   Obrigado.
   Para terminar, perguntou-lhe pelo brincalhão pesado do Innocent House e as medidas adotadas para descobrir ao culpado. Em conjunto, a investigação parecia
ter sido tão superficial como infrutífera.
   Gerard o deixou mais ou menos em minhas mãos lhe explicou Claudia, mas não cheguei muito longe. Quão único fiz foi uma lista dos incidentes conforme se produziam
e das pessoas que se encontravam no edifício no momento apropriado ou podiam ser responsáveis. Quer dizer, virtualmente todo mundo, exceto os empregados
que estavam de desce por enfermidade ou de férias. Era quase como se o brincalhão escolhesse deliberadamente momentos nos que todos os sócios e a maior parte de
os empregados estivessem pressentem e qualquer tivesse podido ser o responsável. Gabriel Dauntsey tem um álibi para o último incidente, o fax que se enviou
ontem desde estes escritórios à livraria Better Books de Cambridge: no momento do envio, tinha saído para almoçar com um de nossos autores no Ivy. Mas
outros sócios e o pessoal estávamos aqui. Gerard e eu fomos em lancha a Greenwich e almoçamos na Trafalgar Tavern, mas não nos partimos daqui até
a uma menos vinte. O fax se enviou às doze e meia. Carling devia começar a assinar à uma. O sucesso mais recente, é obvio, é o roubo da agenda pessoal
de meu irmão. Puderam levar-lhe da gaveta de seu escritório em qualquer momento da quarta-feira. A sentiu falta de ontem pela manhã assim que chegou.
   me fale da serpente lhe pediu Dalgliesh. Sid a lhe Vaiem? Sabe Deus quanto faz que está aqui. Uns cinco anos, parece-me. Alguém a deixou depois de uma
festa de Natal do pessoal. A senhorita Blackett a utilizava para manter entreabierta a porta que comunicava com o despacho do Henry Peverell. converteu-se
em uma espécie de mascote do escritório. vê-se que Blackie lhe agarrou afeto.
   E ontem seu irmão lhe disse que se desfizera dela.
   O terá contado a senhora Demery, suponho. Sim, o disse. Não estava de um humor muito bom depois da reunião dos sócios e, pela causa que fora,
vê-la ali lhe irritou. A senhorita Blackett a guardou em uma gaveta de seu escritório. Viu você como o fazia?
   Sim. Eu mesma, Gabriel Dauntsey e nossa taquimecanógrafa interina, Mandy Price. Imagino que a notícia não demorou para correr por tudo o escritório.
   Dalgliesh perguntou: Seu irmão saiu da reunião mal-humorado?
   Eu não hei dito isso. Hei dito que não estava de um humor muito bom. Ninguém o estava. Não é nenhum secreto que a Peverell Press tem problemas. Se quisermos
seguir no negócio, temos que confrontar a venda do Innocent House.
   Deve ser uma perspectiva muito pouco grata para a senhorita Peverell.
   Não acredito que a nenhum de nós lhe agrade. A sugestão de que algum dos sócios tentasse o impedir de agredindo ao Gerard é ridícula.
   Não é uma sugestão que eu tenha feito assinalou Dalgliesh.
   Finalmente, deixou-a partir.
   Claudia acabava de chegar à porta quando Daniel apareceu a cabeça. Abriu-lhe a porta para deixá-la passar e, antes de falar, esperou a que ela tivesse saído
da habitação.
   O engenheiro do gás já terminou, senhor. É o que supúnhamos. O canhão da chaminé está muito obstruído. Parecem fragmentos do revestimento interno do
canhão, mas também há muita areia e cisco que se foram acumulando com os anos. Mandará-nos um relatório oficial, mas não tem nenhuma dúvida do ocorrido:
com a chaminé no estado em que se encontra, a estufa era letal.
   Só em uma habitação sem a ventilação adequada replicou Dalgliesh. Hão-nos isso dito muitas vezes. A combinação letal foi a estufa acesa e a janela
impossível de abrir.
   Havia um entulho particularmente grande atravessado no canhão prosseguiu Daniel. Pôde cair por si só do revestimento da chaminé ou ter sido desprendido
deliberadamente. Não há maneira se soubesse. Algumas parte do revestimento basta as tocar para que caiam em pedaços. Quer lhe jogar uma olhada, senhor?
   Sim, subirei agora mesmo.
   E além dos entulhos, quer que enviemos também a estufa ao laboratório?
   Sim, Daniel, tudo o que haja.
   Não teve que acrescentar: "E quero rastros, fotografias, todo o lote." como sempre, trabalhava com peritos na morte violenta.
   Enquanto subiam pela escada, perguntou: Alguma noticia sobre a grabadora desaparecida ou a agenda do Etienne?
   até agora não, senhor. A senhorita Etienne se há oposto energicamente a que registremos os escritórios dos empregados que voltaram para casa ou estão hoje de
baixa. acreditei que não quereria você pedir um mandamento de registro.
   por agora não é necessário e duvido que chegue a sê-lo. O registro pode realizar-se na segunda-feira, quando estiverem todos os empregados. Se o assassino se
levou a grabadora
por uma razão determinada, a estas horas provavelmente esteja no fundo do rio. Se a levou o brincalhão do escritório, poderia aparecer em qualquer sítio. E
o mesmo se pode dizer da agenda.
   Pelo visto disse Daniel, era a única grabadora deste tipo que havia no escritório. Era propriedade pessoal do senhor Dauntsey. As outras, maiores, funcionam
a pilhas e conectadas à rede com cintas de toca-fitas habituais, de dez por seis centímetros. O senhor Do Witt pergunta se poderia vê-lo sem muita demora, senhor.
Vive
com um amigo doente de gravidade e lhe tinha prometido voltar cedo.
   Muito bem. Receberei-o em seguida.
   O engenheiro do gás, com o casaco posto e a ponto para ir-se, expressou com veemência sua desaprovação, obviamente dividido entre um interesse quase patrimonial
pelo aparelho e a indignação profissional por seu mau uso.
   Fazia quase vinte anos que não via uma estufa desta classe. Teria que estar em um museu, mas não há nada que lhe impeça de funcionar corretamente. É sólida,
está bem feita. É das que se instalavam nos quartos para meninos. A chave de passagem é extraíble, note-se, para que os meninos não pudessem acioná-la sem dar-se
conta. O que aconteceu aqui está muito claro, comandante. O canhão da chaminé está completamente obstruído. Este cisco deve levar anos acumulando-se.
   Sabe Deus quando lhe fizeram a última revisão a esta estufa. Era uma morte anunciada. Vi-o outras vezes, sem dúvida você também, e voltaremos a vê-lo.
A gente não pode dizer que não o advertiram o bastante. Os aparelhos de gás necessitam ar. Se não haver ventilação, funcionam mau e se acumula monóxido de carbono.
O gás é um combustível perfeitamente seguro se se utilizar como é devido. Teria estado a salvo com a janela aberta?
   É de supor que sim. A janela é alta e bastante estreita, mas se tivesse estado aberta como é preciso não lhe teria passado nada. Como o encontraram? Dormido
na cadeira, suponho. É o que está acostumado a ocorrer. Entra-lhes um pouco de sonho, dormem e já não despertam.
   Há piores maneiras de morrer comentou Daniel.
   Não, senhor; se for você engenheiro de gás, não as há. É uma ofensa para o produto. Suponho que necessitará um relatório, comandante. Bem, em seguida o terá.
Era jovem, verdade? Isso faz que ainda seja pior. Não sei por que, mas é assim. Abriu a porta e antes de sair passeou o olhar pela habitação. Eu gostaria de saber
por que subiu a trabalhar aqui. É curioso que escolhesse este lugar. diria-se que em um edifício destas dimensões tem que haver suficientes despachos sem necessidade
de subir aqui acima.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

28
 
   James do Witt fechou a porta a suas costas e se deteve uns instantes junto a ela com ar indiferente, como perguntando-se se, depois de tudo, ia incomodar se
em entrar; finalmente, cruzou a habitação com passo ágil e desenvolvido e deslocou a cadeira vazia a um lado da mesa. Importa-lhe que me sente aqui? Enfrentar-se
a você com a mesa de por meio, como se fôssemos adversários, resulta mas bem lhe intimidem. Acordada desagradáveis lembranças de entrevistas com o tutor.
   Vestia de um modo informal, com uns texanos azul escuro e um folgado pulôver de ponto acanalado, provido de reforços de pele em cotovelos e ombros, que parecia
excedente do exército. Nele o conjunto resultava quase elegante.
   Era muito alto sem dúvida mais de um metro oitenta e um tanto desajeitado, e movia com certa desmaña as bonecas largas e ossudas. A cara, que possuía algo do
melancólico
humor de um palhaço, era enxuta e de rasgos inteligentes, as bochechas lisas sob os proeminentes ossos. Uma grossa mecha de cabelo castanho claro lhe caía sobre
a larga frente. Tinha os olhos semicerrados, sonolentos baixo os inchadas pálpebras, mas eram uns olhos aos que lhes escapava pouco e que não delatavam nada.
Quando voltou a falar, sua voz suave e agradável resultou curiosamente inadequada para as palavras, pronunciadas com lentidão:
   Acabo de ver a Claudia. Tem aspecto de estar mortalmente cansada. Realmente era necessário interrogá-la hoje? depois de tudo, acaba de perder a seu único irmão
em circunstâncias desoladoras.
   Dalgliesh respondeu:
   Dificilmente poderia considerar um interrogatório. Se a senhorita Etienne nos tivesse pedido que o interrompêssemos, ou se eu a tivesse visto muito afetada,
é evidente que haveríamos posposto a entrevista. E Frances Peverell? Para ela não será menos desagradável. Não pode esperar até manhã para entrevistá-la?
   Não, a não ser que se encontre muito angustiada para ver-me agora. Nesta classe de investigação, precisamos obter a maior informação possível no menor
tempo possível.
   Kate se perguntou se quem lhe preocupava de verdade era Frances Peverell, e não Claudia Etienne.
   Suponho que tirei o turno ao Frances. Sinto muito, mas meus planos para o dia se viram alterados e meu amigo, Rupert Farlow, ficará sozinho se às
quatro e meia não cheguei a casa.
   De fato, Rupert Farlow é meu álibi. Dou por sentado que o propósito principal desta entrevista é que o presente alguma. Ontem voltei para casa na primeira
lancha, às cinco e meia, e cheguei ao Hillgate Village por volta das seis e meia. Da Charing Cross ao Notting Hill Gate fui em metro.
   Rupert lhe confirmará que estive em casa com ele todo o tempo. Não veio ninguém e, coisa insólita, ninguém chamou por telefone. Se não lhe importar, conserte
uma entrevista
antes de ir ver o. Está doente de gravidade e alguns dias são melhores que outros para ele.
   Dalgliesh lhe formulou a pergunta de rigor: se conhecia alguém que pudesse desejar a morte do Gerard Etienne. Inimigos políticos, por exemplo, utilizando a
palavra em seu sentido mais amplo? Santo Deus, não! Gerard era uma liberal impecável, ao menos de palavra, se não nos fatos. E a fim de conta o que importa é
o que se diz. Tinha as opiniões liberais corretas. Sabia o que não pode dizer-se nem publicar-se na Inglaterra de hoje, e não o dizia nem o publicava. Acaso
pensasse-o, como todos outros, mas isso ainda não é delito. Para falar a verdade, duvido que lhe interessassem muito os assuntos políticos e sociais, nem sequer
os
que afetam à edição. Podia fingir interesse se acreditava conveniente, mas duvido que o sentisse. O que lhe interessava? O que sentia profundamente?
   A fama. O êxito. Ele mesmo. A Peverell Press. Queria presidir uma das maiores editoriais privadas do país; a maior, em realidade, e a de mais êxito. A
música; Beethoven e Wagner em particular. Era pianista e tocava bastante bem. Lástima que não mostrasse a mesma sensibilidade em seu trato com as pessoas. Seu casal
atual suponho que também lhe interessaria.
   Estava prometido.
   Com a irmã do conde do Norrington. Claudia telefonou a sua mãe. Imagino que a estas horas já terá dado a notícia a sua filha. E o compromisso não
expor nenhum problema?
   Não que eu saiba. Claudia poderia sabê-lo, mas o duvido. Gerard era reservado a respeito de lady Lucinda. Apresentou-nos isso a todos, é obvio. Deu uma festa
aqui
em dez de julho, em lugar da acostumada festa do verão, para celebrar ao mesmo tempo o compromisso e o aniversário de sua noiva. Acredito que a conheceu no Bayreuth
em ano passado, mas tirei a impressão, embora poderia estar equivocado, de que ela não estava ali pelo Wagner. Acredito que sua mãe e ela tinham ido visitar uns
primos do Continente. Em realidade, sei muito pouco dela. O anúncio do compromisso foi uma surpresa, certamente. Não nos figurávamos que Gerard tivesse ambições
sociais, se disso se tratava. O que estava claro era que lady Lucinda não contribuía nenhum dinheiro à empresa. Linhagem, mas sem recursos. Naturalmente, quando
esta
gente se queixa de pobreza só quer dizer que tem uma ligeira dificuldade momentânea para pagar os gastos de seu herdeiro no Eton. Contudo, não cabe dúvida de que
lady Lucinda contava entre os interesses do Gerard. E logo está o montañismo. Se lhe tivesse perguntado a ele por seus interesses, certamente teria chamado o montañismo,
embora, que eu saiba, só escalou uma montanha em sua vida.
   Kate perguntou de improviso: Que montanha?
   Do Witt se voltou para ela e sorriu. Foi um sorriso inesperado que lhe transformou a cara.
   O Cervino. Provavelmente isso lhe diga tudo o que precisa saber sobre o Gerard Etienne.
   É de supor que pensava introduzir mudanças na empresa prosseguiu Dalgliesh. E não todos deviam ser gratos.
   Isso não significa que não fossem necessários, e suponho que o seguem sendo. A manutenção da casa se come os benefícios anuais há decênios. Suponho
que poderíamos permanecer aqui se reduzíramos nosso catálogo na metade, despedíssemo-nos de duas terceiras partes do pessoal, aceitássemos um recorte do trinta por
cento em nosso próprio salário e nos contentássemos vivendo do fundo editorial e ser uma pequena casa de prestígio. Mas isso não lhe teria gostado ao Gerard Etienne.
E a outros?
   Bom, às vezes resmungávamos e escoiceávamos contra o aguilhão, mas acredito que nos dávamos conta de que Gerard tinha razão: terei que crescer ou morrer. Hoje
em dia uma
editorial não pode viver só da edição comercial. Gerard queria absorver uma empresa com um bom catálogo de textos de direito e há uma que está a ponto para
que alguém a agarre; e também queria entrar no campo do livro de texto. ia fazer falta dinheiro, por não falar de energia e de certa dose de agressividade
comercial. Não sei se todos teríamos tido estômago para isso. Sabe Deus o que ocorrerá agora.
   Suponho que haverá uma reunião dos sócios, confirmará-se a Claudia como presidenta e diretora gerente e se adiarão todas as decisões desagradáveis por
um mínimo de seis meses. Isso teria divertido ao Gerard. O teria considerado típico.
   Dalgliesh, que não desejava retê-lo muito tempo, dispôs-se a terminá-la entrevista lhe perguntando pelo brincalhão do escritório.
   Não tenho nem idéia de quem pode ser o responsável. Nas reuniões mensais dos sócios têm perdido muito tempo falando do assunto, mas não chegamos
a nenhuma conclusão. É estranho, em realidade. Com uma palmilha de só trinta pessoas, a estas alturas deveríamos ter alguma pista, embora só fora por um
processo de eliminação. Naturalmente, a maior parte do pessoal leva anos na empresa, e eu haveria dito que todos, os antigos e os novos, achavam-se livres
de suspeita. E os incidentes se produziram sempre quando virtualmente todos estávamos pressentem. Possivelmente era o que pretendia o brincalhão, dificultar a eliminação.
Os mais graves, é obvio, foram o desaparecimento das ilustrações para o livro sobre o Guy Fawkes e a manipulação das provas de imprensa de lorde Stilgoe.
   Mas, de fato apontou Dalgliesh, nenhum dos dois resultou catastrófico.
   Para falar a verdade, não. Este último assunto com o Sid a te Vaiem parece ser de outra ordem. Outros se dirigiam contra a empresa, mas lhe colocar ao Gerard
na boca
a cabeça dessa serpente constitui sem dúvida um ato de malevolência pessoal contra ele. Para lhe economizar a pergunta, posso lhe dizer que sabia onde encontrar
a
Sid. Suponho que quando a senhora Demery terminou de fazer sua ronda tudo o escritório devia sabê-lo.
   Dalgliesh pensou que já era hora de deixá-lo partir. Como irá até o Hillgate Village?
   pedi um táxi; demoraria muito em lancha até a Charing Cross. Amanhã às nove e meia estarei aqui, se deseja saber algo mais. Embora não acredito que possa
lhe ser útil. Ah, também posso lhe dizer já que não matei ao Gerard nem lhe pus a serpente ao pescoço. Nunca me ocorreria lhe convencer das virtudes da novela literária
gaseándolo até morrer. É assim como supõe você que morreu? inquiriu Dalgliesh. Equivoco-me? Para falar a verdade, foi idéia do Dauntsey; não posso me atribuir o
mérito.
Mas quanto mais penso nisso mais verossímil me parece.
   retirou-se com a mesma elegância sem urgência com que tinha entrado.
   Dalgliesh refletiu que interrogar a suspeitos era muito parecido a entrevistar candidatos como membro de um comitê de seleção. Sempre existia a tentação de
avaliar a atitude de cada um e formar uma opinião provisória antes de convocar ao seguinte solicitante. Esta vez esperou em silêncio. Kate, como sempre, se
tinha dado conta de que era mais prudente guardar silêncio, mas ele suspeitava que lhe teria gostado de fazer um par de comentários mordazes sobre a Claudia Etienne.
   Frances Peverell foi a última. Entrou na habitação com algo semelhante à docilidade de uma colegiala bem educada, mas sua compostura se veio abaixo quando
viu a jaqueta do Etienne pendurada do respaldo de sua poltrona.
   Não acreditei que ainda estivesse aqui disse.
   Pôs-se a andar para ela com a mão tendida, mas se conteve imediatamente e se voltou para o Dalgliesh, quem viu que lhe tinham cheio os olhos de lágrimas.
   Sinto-o se desculpou Dalgliesh. Possivelmente deveríamos havê-la retirado.
   Claudia teria podido levar-lhe mas teve outras coisas em que pensar. Pobre Claudia.
   Suponho que terá que encarregar-se das pertences de seu irmão, de toda sua roupa.
   sentou-se e olhou ao Dalgliesh como uma paciente à espera do juízo do especialista. Suas facções eram suaves e levava o cabelo, castanho claro com mechas
douradas, talhado com uma franja que lhe caía sobre as retas retrocede e os olhos, de cor verde azulada. Dalgliesh suspeitou que a expressão tensa e angustiada que
refletiam era algo duradouro antes que uma resposta à desgraça presente, e se perguntou que classe de pai tinha sido Henry Peverell. A mulher que tinha ante
sim não mostrava absolutamente o egocentrismo arrogante de uma filha única malcriada. Parecia uma mulher que durante toda sua vida tinha reagido às necessidades
de outros, mais acostumada a receber críticas implícitas que louvores. Carecia por completo do aprumo da Claudia Etienne ou a elegância dégagée do James de
Witt. Vestia uma saia de tweed em suaves tons azuis e marrons, com um pulôver azul de pescoço fechado e cárdigan a jogo, mas sem a acostumada fileira de pérolas.
Poderia ter levado o mesmo nos anos trinta e nos cinqüenta, pensou Dalgliesh, a roupa de jornal das inglesas de boa família; de um bom gosto sóbrio,
convencional e caro, incapaz de ofender a ninguém.
   Dalgliesh comentou em tom amável:
   Sempre acreditei que é a pior tarefa depois da morte de alguém. Relógios, jóias, livros, quadros: todo isso pode dar-se aos amigos, e parece justo e conveniente.
Mas os objetos de vestir são muito pessoais para as dar de presente. Paradoxalmente, só podemos suportar que as usem, não as pessoas que conhecemos, a não ser os
estranhos.
   Ela respondeu com afã, como se lhe agradecesse sua compreensão.
   Sim, eu senti o mesmo quando morreu papai. Ao fim, dava todos seus trajes e sapatos ao Exército de Salvação. Espero que os fizessem chegar a alguém que os necessitasse,
mas foi como tirar papai do piso, como tirar o de minha vida. Apreciava você ao Gerard Etienne?
   Frances baixou a vista para as mãos entrelaçadas e logo o olhou de marco em marco.
   Estive apaixonada por ele. Queria dizer-lhe eu mesma, porque estou segura de que cedo ou tarde o averiguará e é melhor que saiba por mim. Mantivemos uma relação
amorosa, mas terminou uma semana antes de que ele anunciasse seu compromisso. De comum acordo?
   Não, não de comum acordo.
   Dalgliesh não precisava lhe perguntar o que tinha sentido ante essa traição. O que havia sentido, e seguia sentindo, tinha-o escrito na cara.
   Sinto-o disse. Não deve lhe resultar fácil falar de sua morte.
   Não é tão doloroso como para que me impeça de falar. me diga, por favor, senhor Dalgliesh: você crie que Gerard morreu assassinado?
   Ainda não podemos estar seguros, mas é mais uma probabilidade que uma possibilidade. Por isso temos que interrogá-la hoje mesmo. Quereria que me explicasse o
que ocorreu
exatamente ontem à noite.
   Suponho que Gabriel, o senhor Dauntsey, já lhe terá explicado que o assaltaram. Não fui com ele ao recital de poesia porque se mostrou inflexível em que queria
ir
sozinho. Acredito que tinha a sensação de que não ia gostar de me. Mas tivesse devido ir com ele alguém da Peverell Press. Não tinha lido em público há uns
quinze anos e não esteve bem que fora sozinho. Possivelmente se tivesse ido eu com ele não o teriam assaltado. Por volta das onze e meia recebi uma chamada do hospital
St. Thomas
para me dizer que estava ali e que teria que esperar a que lhe fizessem uma radiografia, e para me perguntar se me ocuparia dele em caso de que lhe permitissem partir.
Pelo visto, estava bastante decidido a ir-se e queriam assegurar-se de que não passaria a noite sozinho. Estive aparecendo na janela da cozinha para vê-lo chegar,
mas não ouvi o táxi. Sua porta de entrada está no Innocent Lane, mas certamente o taxista deveu torcer na travessa e o deixou ali. Gabriel deveu me chamar
nada mais chegar. Disse-me que se encontrava bem, que não tinha nenhuma fratura e que ia tomar um banho. Depois, alegraria-lhe que baixasse a seu piso. Não acredito
que
em realidade quisesse lombriga, mas sabia que não ficaria tranqüila até me haver assegurado de que estava bem.
   Dalgliesh perguntou:
   Então, não tem você chave de seu piso? Não podia esperá-lo ali?
   Tenho a chave, em efeito, e ele tem a de meu piso. É uma precaução razoável se por acaso se produz um incêndio ou uma inundação e precisamos acessar ao piso
do outro em sua ausência. Mas não me ocorreria utilizá-la sem que Gabriel me tivesse pedido isso. Quanto tempo demorou para baixar depois da primeira chamada? quis
saber Dalgliesh.
   A resposta, naturalmente, tinha uma importância crucial. Cabia a possibilidade de que Gabriel Dauntsey tivesse matado ao Etienne antes de sair para participar
na leitura de poesia às sete e quarenta e cinco. A margem de tempo era muito justo, mas podia fazer-se. Entretanto, ao parecer só teria tido ocasião de
retornar à cena do crime depois da uma da noite.
   Repetiu a pergunta. Quanto demorou o senhor Dauntsey em chamá-la para que baixasse? Tente ser precisa.
   Não pôde ser muito. Suponho que uns oito ou dez minutos, possivelmente um pouco menos. Uns oito minutos, diria eu, o tempo justo de tomar um banho. Seu quarto
de banho
está debaixo do meu. Não ouço correr a água do grifo, mas sim a que escapa pelo deságüe. Ontem à noite estive atenta para ouvi-la. E teve que esperar oito minutos?
   Não olhava o relógio. por que ia fazer o? Mas estou segura de que não demorou um tempo excessivo. Como se lhe ocorresse de repente a possibilidade, acrescentou:
Não
dirá você a sério que suspeita do Gabriel, que acredita que voltou para o Innocent House e matou ao Gerard, verdade?
   O senhor Etienne morreu muito antes de meia-noite. O que consideramos agora é a possibilidade de que lhe enroscassem a serpente ao pescoço umas horas depois de
sua morte.
   Isso quereria dizer que alguém subiu deliberadamente ao despachito dos arquivos, sabendo que Gerard estava morto, sabendo que estava ali. Mas a única
pessoa que podia sabê-lo era o assassino. O que está você dizendo é que acredita que o assassino voltou para despachito dos arquivos ao cabo de umas horas.
   Se houve um assassino. Ainda não sabemos. Mas Gabriel estava doente! Tinham-no assaltado! E é um ancião. Tem mais de setenta anos.
   E padece de reumatismo. Está acostumado a andar com fortificação. É impossível que o fizesse nesse tempo. Está absolutamente segura disso, senhorita Peverell?
   Sim, estou segura. Além disso, é verdade que se banhou. Ouvi escapar a água.
   Mas não pode afirmar que fora a água do banho objetou Dalgliesh com delicadeza. O que podia ser, se não? Não se limitou a deixar o grifo aberto, se for isso o
que
pretende insinuar.
   De havê-lo feito, o teria ouvido imediatamente. A água de que lhe falo não começou a correr até transcorridos uns oito minutos desde a primeira chamada. Quase
em seguida voltou a chamar para me dizer que já podia me receber. Baixei imediatamente. Ia em bata. notava-se que acabava de banhar-se. Tinha o cabelo e a cara úmidos.
E o que ocorreu então?
   Já tinha tomado um pouco de uísque e não queria nada mais, assim insisti em que se deitasse. À lombriga decidida a passar a noite em seu piso, explicou-me onde
havia
lençóis limpa para a cama livre. Não acredito que tenha dormido ninguém nessa habitação há anos. Ele dormiu em seguida, e eu me acomodei em uma poltrona da
sala, diante da chaminé elétrica. Deixei a porta aberta para poder lhe ouvir, mas não despertou. Despertei eu antes que ele, pouco depois das sete, e preparei
uma taça de chá. Tentei não fazer ruído, mas acredito que deveu ouvir que me movia pela casa. Quando despertou eram aproximadamente as oito. Nenhum dos dois tinha
pressa. Sabíamos que George abriria Innocent House. Tomamos o café da manhã um ovo duro cada um e dirigimos ao escritório pouco depois das nove. E não subiu você
a
ver o corpo do senhor Etienne?
   Gabriel sim subiu. Eu não. Eu esperei com outros ao pé da escada. Mas quando ouvimos aquele horrível gemido agudo acredito que compreendi que Gerard tinha morrido.
   Dalgliesh advertiu que a mulher começava a angustiar-se de novo. Tinha averiguado tudo o que lhe interessava saber no momento. Deu-lhe as obrigado amavelmente
e a deixou partir.
   Uma vez Frances se retirou, permaneceram uns instantes em silêncio até que ao fim Dalgliesh comentou:
   Bem, Kate, todos nos apresentaram limitadas desinteressadas e convincentes. O amante da Claudia Etienne, o hóspede doente do James do Witt e Frances Peverell,
obviamente incapaz de acreditar que Gabriel Dauntsey possa ser culpado de nenhum ato malicioso e muito menos de assassinato. tentou ser sincera quanto ao lapso
de tempo transcorrido desde que Dauntsey chegou a casa até que ela baixou a vê-lo. É uma mulher sincera, mas eu juraria que seus oito minutos ficam curtos.
   Não sei se se deu conta de que Dauntsey lhe proporciona um álibi, além de proporcionar-lhe ela a ele. Embora, claro, carece de importância, não? Teve
tempo de sobra para ir ao Innocent House e fazer a jogada da serpente antes de que Dauntsey chegasse a casa. E também teve tempo de sobra para matar ao Etienne.
Não dispõe de nenhum álibi para as primeiras horas do entardecer. deu-se pressa em fazer constar o da água do banho, o fato de que Dauntsey não podia haver-se
limitado a abrir o grifo e deixar correr a água.
   Não, mas há outra possibilidade. Pense-o, Kate.
   Kate refletiu uns instantes e ao fim disse:
   Sim, claro, teria podido fazer-se assim.
   O qual quer dizer que precisamos conhecer a capacidade da banheira. E teremos que fazer um cálculo do tempo. Não o peça ao Dauntsey. Robbins terá
que imaginar-se que é um velho reumático de setenta e seis anos. Que comprove quanto demora para chegar da porta do Dauntsey no Innocent Lane até o cuartito
dos arquivos, fazer o que terei que fazer ali e retornar. Subindo pela escada?
   Que o comprove pela escada e em elevador. Tratando-se desse elevador, certamente é mais rápido pela escada.
   Enquanto começavam a recolher os papéis, Kate pensou no Frances Peverell. Dalgliesh se tinha mostrado atento com ela, mas acaso era alguma vez brutal em um
interrogatório? Seu comentário sobre a roupa dos defuntos tinha sido sincero. Ao mesmo tempo, tinha resultado grandemente eficaz de cara a ganhá-la confiança
do Frances Peverell. Certamente se compadecia da mulher, possivelmente inclusive gostava, mas no curso da investigação não se deixaria influir por nenhum sentimento
pessoal. "E eu o que?", perguntou-se Kate, não pela primeira vez. Acaso Dalgliesh não mostrava um desapego semelhante, uma inexorabilidade comparável, em todos os
aspectos
de sua vida profissional? Pensou: "Respeita-me, alegra-se de me ter na equipe, confia em mim, às vezes inclusive acredito que gosta. Mas, se falhasse estrepitosamente
no trabalho, quanto duraria?"
   Dalgliesh lhe anunciou:
   Agora tenho que voltar para o Yard por um par de horas. Reunirei-me com o Daniel e você no depósito de cadáveres para assistir à autópsia, embora possivelmente
não possa ficar 
até o final. Tenho uma reunião com o comissionado e o ministro às oito na Câmara dos Comuns. Não sei quando poderei escapar, mas irei diretamente a
Wapping e examinaremos os dados de que dispomos até agora.
   ia ser uma noite muito larga.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

29
 
   Faltavam dois minutos para as três e Blackie estava sentada a sós ante seu escritório. Curvava-a certa apatia devida em parte para a comoção tardia e em parte
ao medo, que convertia qualquer ação em um esforço intolerável. Supunha que podia ir-se a casa, embora ninguém o havia dito. Havia papéis que arquivar, cartas
ditadas pelo Gerard Etienne que ainda temam que datilografar-se, mas lhe desejava muito algo assim como indecente, além de inútil, arquivar documentos que ele jamais
reclamaria
e datilografar cartas que sua mão nunca assinaria. Mandy se tinha partido meia hora antes, certamente depois de que lhe dissessem que já não a necessitavam.
   Blackie a tinha observado enquanto ela tirava o casco vermelho da última gaveta do escritório e se grampeava as cremalheiras da ajustada jaqueta de couro.
Coberta por aquela cúpula reluzente, com seu corpo tão fraco e as largas pernas embainhadas em umas malhas negras de ponto, converteu-se instantaneamente,
como sempre, na caricatura de um inseto exótico.
   As últimas palavras que dirigiu ao Blackie, pronunciadas em um tom de sobressaltada compaixão, foram:
   Olhe, não teria que perder o sonho por ele. Não me vai tirar isso, e mas bem eu gostava, por isso cheguei a lhe conhecer. Mas com você se comportava como um
porco. Seguro que se encontrará bem? Refiro a quando se for a casa.
   Ela respondeu:
   Sim, Mandy, obrigado. Já estou perfeitamente bem. foi a comoção. depois de tudo, eu era sua secretária pessoal. Você só o conheceste umas semanas e
como datilógrafa interina.
   Estas palavras, um torpe intento por recuperar a dignidade, inclusive lhe soaram repressivas e pomposas. Mandy as recebeu com um encolhimento de ombros
e se foi dizer nada mais; os ecos de seu ruidoso adeus à senhora Demery ressonaram no vestíbulo.
   Mandy tinha saído notavelmente animada de sua entrevista com a polícia e tinha ido imediatamente à cozinha para comentá-la com a senhora Demery, George e Amy.
Ao Blackie teria gostado de estar com eles, mas tinha julgado impróprio de sua posição que a encontrassem tagarelando com o pessoal ajudante. Era consciente,
além disso, de que não teriam acolhido com agrado tal intromissão em sua intimidade e suas especulações. Por outra parte, tampouco os sócios a tinham convidado a
reunir-se
com eles quando estavam encerrados na sala de juntas, nem tinha ido ver a ninguém exceto a senhora Demery quando a chamavam pedindo mais café e sanduíches.
Blackie tinha a sensação de que no Innocent House não havia nenhum lugar no que sua presença fosse desejada nem no que pudesse já sentir-se como em casa.
   Pensou nas últimas palavras do Mandy. Era isso o que lhe havia dito à polícia, que o senhor Gerard se comportava como um porco com ela? Mas, o que pergunta:
claro que o havia dito. por que ia guardar silêncio sobre nada do que ocorria no Innocent House Mandy a forasteira, que tinha chegado muito depois de
que começasse a série de brincadeiras pesadas, que podia sentir um interesse despreocupado e quase prazenteiro pela intriga, refugiada na segurança que lhe proporcionava
o conhecimento de sua própria inocência, livre de afetos pessoais, alheia a qualquer lealdade pessoal?
   Mandy, a cujos ojillos perspicazes nada passava por cima, devia ter sido um presente para a polícia. E tinha estado muito tempo com eles, quase uma hora,
sem dúvida muito mais do que sua importância na empresa podia justificar. Uma vez mais, e em vão, posto que já não se podia trocar nada, Blackie repassou mentalmente
sua entrevista. Não a tinham chamado dos primeiros.
   Tinha tido tempo para preparar-se, para pensar no que diria. E o tinha pensado. O medo lhe tinha aguçado a mente.
   A entrevista teve lugar no despacho da senhorita Claudia, e com apenas dois policiais pressente: a inspetora e um sargento. Blackie tinha acudido acreditando
que veria a comandante Dalgliesh, e sua ausência a desconcertou de tal maneira que respondeu às primeiras perguntas sem saber muito bem se realmente tinha começado
a entrevista, médio esperando vê-lo aparecer pela porta. Também lhe surpreendeu que nenhum magnetófono gravasse a conversação. A polícia quase sempre o fazia
assim nas séries policíacas que a sua prima gostava de ver no Weaver's Cottage, mas possivelmente isso vinha mais tarde, quando já tinham um suspeito principal e
o interrogavam
depois de lhe haver informado de seus direitos. E então, naturalmente, estaria presente um advogado. Agora se achava sozinha. Não tinha havido nenhuma advertência
prévia,
nenhuma insinuação de que aquilo fora algo mais que uma informal conversa preliminar. A inspetora se encarregou de fazer quase todas as perguntas enquanto o sargento
tomava notas, mas ele também intervinha de vez em quando sem coibir-se ante sua superiora, com uma tranqüila segurança que dava a entender que estavam acostumados
a trabalhar juntos. Os dois se mostraram muito corteses, quase indulgentes, mas ela não se deixou enganar: apesar de tudo, estavam-na interrogando, e inclusive as
expressões formais de simpatia, a delicadeza, formavam parte de sua técnica. Ao refletir em seu escritório, ao Blackie surpreendeu que tivesse sido capaz de dar-se
conta disso, que tivesse podido reconhecê-los como quão inimigos eram inclusive em seu tumultuoso temor.
   Começaram com uma série de perguntas singelas sobre o tempo que levava na empresa, de como se fechava o edifício de noite, quem tinha chaves e
quem podia manipular os alarmes alarme anti-roubo, a distribuição habitual da jornada e inclusive os turnos para o almoço. Enquanto as respondia, Blackie começou
a sentir-se mais a suas largas, embora era consciente de que as faziam precisamente com essa intenção.
   Ao fim, a inspetora Miskin comentou:
   Trabalhou você para o senhor Henry Peverell durante vinte e sete anos, até o momento de sua morte, e logo passou a trabalhar para o senhor Etienne quando este
assumiu os cargos de presidente e diretor gerente em mês passado de janeiro. Deveu ser uma mudança difícil para você e para a empresa.
   Já se esperava algo assim. Tinha a resposta a ponto.
   Era distinto, certamente. Levava tanto tempo trabalhando para o ancião senhor Peverell que, naturalmente, confiava em mim. O senhor Gerard era mais jovem e tinha
outros métodos de trabalho. Tive que me adaptar a uma personalidade distinta. A todas as secretárias pessoais ocorre quando as circunstâncias lhes fazem trocar
de chefe. Encontrava satisfatório trabalhar para o senhor Etienne? Gostava como chefe?
   Esta vez foi o sargento quem falou, enquanto seus olhos escuros de olhar neutro procuravam os dela.
   Respeitava-o respondeu Blackie.
   Não é exatamente o mesmo.
   Não sempre pode te gostar do chefe. Acredito que começava a me acostumar a ele. E ele a você? E ao resto da empresa? Estava introduzindo muitas mudanças, verdade?
As mudanças sempre provocam alguma dor, sobre tudo em uma organização que leva muito tempo funcionando. No Yard sabemos muito bem. Não houve demissões, ameaças
de demissões, um possível traslado a uma nova sede, a proposta de vender Innocent House?
   A isso replicou:
   Terão que perguntar-lhe à senhorita Claudia. O senhor Gerard não comentava a política da empresa comigo.
   A diferença do senhor Peverell. O passo de confidente a secretária corrente não pôde ser agradável.
   Ela não disse nada. Continuando, a inspetora Miskin se inclinou para diante e lhe pediu em tom confidencial, quase como se fossem um par de moças a ponto
de compartilhar um segredo feminino:
   nos fale da serpente. nos fale do Sid a lhe Vaiem.
   Então Blackie lhes contou como tinha chegado a serpente ao escritório uns cinco anos antes, o dia da festa de Natal, gasta por uma taquimecanógrafa
interina de cujo nome e direção já ninguém se lembrava. Depois da festa, a serpente ficou ali esquecida e não voltou a aparecer até passados seis meses, quando
Blackie a encontrou empelotada ao fundo da gaveta de sua mesa. Utilizava-a para enrolá-la no pomo da porta que comunicava seu escritório com o do senhor
Peverell. Ele preferia que a porta permanecesse entreabrida para poder chamar o Blackie pessoalmente quando a necessitava; nunca lhe tinha gostado de utilizar o
telefone.
Sid a lhe Vaiem se converteu em uma espécie de mascote da empresa, presente na excursão anual pelo rio e na festa de Natal, mas Blackie já não a
empregava para manter a porta entreabierta. Ele senhor Etienne a preferia fechada.
   O sargento perguntou: Onde estava acostumado a estar a serpente?
   Geralmente, enroscada sobre o arquivo da esquerda. Às vezes estava pendurada de algum atirador.
   nos conte o que ocorreu ontem. Ao senhor Etienne lhe incomodou ver a serpente no despacho, verdade?
   Saiu de seu escritório lhe explicou ela, tentando manter a voz serena e viu o Sid pendurada da asa de um arquivo. Pareceu-lhe que seu aspecto não era adequado
para um escritório e me pediu que me desfizera dela. E você o que fez?
   Meti-a em uma gaveta de meu escritório; a gaveta superiora da direita.
   Isto é muito importante, senhorita Blackett interveio a inspetora Miskin, e estou segura de que é você o bastante inteligente para compreender por que. Quem
estava em seu escritório quando guardou a serpente na gaveta?
   Só Mandy Price, que compartilha o despacho comigo, o senhor Dauntsey e a senhorita Claudia.
   Logo o senhor Gerard e ela passaram a seu escritório. O senhor Dauntsey deu uma carta ao Mandy para que a datilografasse e também se foi. E ninguém mais?
   Na habitação não havia ninguém mais, mas suponho que alguns dos pressente o comentariam no escritório. Não acredito que Mandy tivesse a boca fechada. E qualquer
que procurasse a serpente certamente teria cuidadoso na gaveta da direita. Refiro-me a que era o sítio mais natural para guardá-la. E não pensou em atirá-la?
   Ao recordá-lo na intimidade de seu escritório, deu-se conta de que tinha reagido à pergunta com excessivo calor, que sua voz tinha contido uma nota de
zangado ressentimento. Atirar ao Sid a lhe Vaiem? Não, por que teria que fazê-lo? Ao senhor Peverell gostava da serpente. Encontrava-a graciosa. Não fazia nenhum
mau ali. depois de tudo, meu escritório não é um lugar ao que sola entrar o público. Limitei-me a guardá-la na gaveta. Pensei que possivelmente me podia levar isso
a casa.
   Perguntaram-lhe pela visita do Esmé Carling e sua insistência em ver o senhor Etienne. Blackie compreendeu que alguém devia ter falado, que o incidente
não lhes vinha de novas, de modo que lhes contou a verdade ou, ao menos, tanta verdade como foi capaz de dizer em voz alta.
   A senhora Carling não é um de nossos autores mais amigáveis e estava extremamente zangada.
   Acredito que seu agente lhe havia dito que o senhor Etienne não desejava publicar seu último livro. Queria falar com ele a toda costa, mas tive que lhe explicar
que estava
reunido com os sócios e que não os podia incomodar. Ela replicou com umas frases extremamente ofensivas a propósito do senhor Peverell e de nossa relação confidencial.
Acredito que opinava que eu tinha exercido muita influência na empresa. Ameaçou voltando mais tarde para entrevistar-se com o senhor Etienne esse mesmo dia?
   Não, nada disso. Em outras circunstâncias possivelmente tivesse insistido em ficar até que terminasse a reunião, mas tinha que ir assinar exemplares de suas obras
em uma livraria de Cambridge.
   Mas o ato foi suspenso a conseqüência de um fax enviado às doze e meia desde estes escritórios. Enviou você esse fax, senhorita Blackett?
   A secretária cravou o olhar naqueles olhos cinzas.
   Não, não fui eu. Sabe quem o enviou?
   Não tenho a menor ideia. Foi durante a hora do almoço. Eu estava na cozinha, esquentando uma bandeja de espaguetes a boloñesa do Marks amp; Spencer. Tudo
o momento esteve entrando e saindo gente. Não recordo onde se encontrava ninguém em particular às doze e meia exatamente. Quão único sei é que eu não estava
em meu escritório. E o despacho não estava fechado com chave?
   Claro que não. Nunca fechamos os despachos durante o dia.
   E assim tinha seguido. Pergunta a respeito das brincadeiras pesadas, pergunta a respeito de quando tinha saído do escritório a noite anterior, do trajeto até
sua casa,
da hora a que tinha chegado, de como tinha passado a velada. Nenhuma lhe resultou difícil. Ao fim, a inspetora Miskin deu por concluída a entrevista, mas
sem nenhuma sensação de que realmente tivesse terminado. Quando chegou o momento de ir-se, Blackie descobriu que lhe tremiam as pernas. Teve que sujeitar-se firmemente
à cadeira durante uns segundos antes de sentir-se em condições de chegar até a porta sem cambalear-se.
   Duas vezes tinha tentado estabelecer comunicaci n com o Weaver's Cottage, mas não respondia ninguém. Joan devia estar no povo ou de compras na cidade;
mas possivelmente era melhor assim.
   Aquela notícia era para dá-la em pessoa, não por telefone. perguntou-se se valia a pena chamar de novo para lhe dizer que voltaria para casa mais cedo que de
costume, mas o mero feito de desprender o auricular lhe desejava muito um esforço excessivo. Enquanto tratava de animar-se à ação, abriu-se a porta e a senhorita
Claudia apareceu a cabeça.
   Ah, ainda está você aqui. A polícia deseja que se vá todo mundo a casa. Não o há dito ninguém? O escritório está fechada, de todos os modos. Fred Bowling
está preparado para levá-la a Charing Cross na lancha. Ao lhe ver a cara, acrescentou: encontra-se bem, Blackie? Quer que a acompanhe alguém a casa?
   A idéia consternou ao Blackie. Além disso, quem podia acompanhá-la? Sabia que a senhora Demery ainda estava no edifício, preparando inumeráveis taças de café
para
os sócios e a polícia, mas certamente não agradeceria que a enviassem a fazer uma viagem de uma hora e meia até o Kent. Ao Blackie não o cost imaginar-se essa viagem,
o bate-papo, as perguntas, a chegada ao Weaver's Cottage as duas juntas, ela escoltada a contra gosto pela senhora Demery como se se tratasse de uma menina que havia
cometido uma travessura ou de uma prisioneira sob vigilância. Joan certamente se sentiria obrigada a lhe oferecer um chá à senhora Demery. Blackie imaginou a cena
com as três na sala de estar do cottage, onde sua irmã e ela ouviriam uma versão extremamente adornada dos acontecimentos do dia oferecida pela senhora
Demery, faladora e vulgar, mas ao mesmo tempo solícita, uma mulher da que resultaria quase impossível livrar-se.
   Estou perfeitamente, muito obrigado, senhorita Claudia respondeu. Lamento me haver levado de uma maneira tão tola. Foi a comoção.
   Todos sofremos uma comoção.
   A senhorita Claudia falou com voz átona. Possivelmente suas palavras não pretendiam ser uma recriminação; só o pareciam. Fez uma pausa como se queria dizer algo
mais, ou
talvez julgasse que devia dizê-lo, e acrescentou:
   na segunda-feira pode ficar em casa se ainda está angustiada. Não é imprescindível que venha. Se a polícia quer lhe perguntar algo mais, já sabe onde encontrá-la.
E ato seguido, desapareceu.
   Era a primeira vez que se viam a sós, sequer brevemente, do descobrimento do cadáver. Blackie desejou ter encontrado algo que dizer, alguma palavra
de condolência, mas o que podia lhe dizer que fora ao mesmo tempo verídico e sincero? "Nunca eu gostei e eu não gostava a ele, mas lamento que tenha morrido." E
era isso certo, em realidade?
   Na estação da Charing Cross estava acostumada a deixar-se levar pela multidão da hora ponta, uma corrente enérgica e resolvida. Lhe fez estranho
estar ali no meio da tarde, envolta em uma tranqüilidade surpreendente para uma sexta-feira e uma atmosfera calada de indecisa atemporalidad.
   Um casal de idade, excessivamente vestida para a viagem, a mulher obviamente com seus melhores objetos, estudava com nervosismo o horário de saídas, o homem
arrastando uma pesada mala de rodas bem sujeita com correias. A uma palavra da mulher, o homem se adiantou bruscamente e imediatamente a mala caiu de lado
com um golpe surdo. Blackie os observou uns instantes enquanto se esforçavam em vão por levantá-la e em seguida se aproximou para ajudá-los. Mas enquanto lutava
com o vulto, pouco manejável e de peso mau repartido, não cessou de sentir sobre ela seus olhares inquietos e suspicazes, como se temessem que queria apoderar-se
de
sua roupa interior.
   Completada a tarefa, deram-lhe as obrigado em um murmúrio e se afastaram, sustentando a mala entre os dois e lhe dando uns tapinhas de vez em quando como se
tratassem de apaziguar a um cão recalcitrante.
   O horário indicava que Blackie tinha que esperar meia hora, o tempo suficiente para tomar um café sem pressas. Enquanto o bebia, enquanto aspirava seu aroma
familiar e se esquentava as mãos em torno da taça, pensou que aquela viagem inesperada a uma hora temprana normalmente teria constituído um pequeno prazer, que
o vazio desacostumado da estação lhe teria recordado, não os desconfortos da hora ponta, a não ser as férias da infância, o tempo livre para o café,
a grata certeza de chegar a casa antes de que obscurecesse. Mas naqueles momentos qualquer prazer ficava anulado pela lembrança do horror, por aquela
persistente e importuno amálgama de medo e culpabilidade. Blackie se perguntou se alguma vez voltaria a ver-se livre dela. Mas ao fim estava de caminho a casa.
Ainda não tinha decidido em que medida se confiaria a sua prima. Havia coisas que não podia nem devia lhe dizer, mas ao menos poderia contar com o consolo do Joan,
com
a quietude familiar e ordenada do Weaver's Cottage.
   O trem, meio vazio, saiu no horário, mas mais tarde Blackie não recordaria nada da viagem, de como tinha aberto seu carro no estacionamento do East Marling
nem do percurso até o West Marling e o cottage. Quão único poderia recordar depois era sua chegada ante a grade do jardim e o que então saltou aos olhos.
Permaneceu uns instantes imóvel, olhando fixamente com incrédulo horror. Sob o sol outonal, o jardim se estendia ante ela violado, assolado, fisicamente arrancado,
destroçado e arrojado até lado. Ao princípio, desorientada pela comoção, confundida pela lembrança das grandes borrascas da vos anteriores, crey que Weaver's
Cottage tinha sido alcançado por um estranho furacão localizado. Mas foi uma idéia fugaz. Aquela destruição, mais mesquinha, mais discriminada, era obra de mãos
humanas.
   Blackie desceu do carro com a sensação de que os membros já não lhe pertenciam e andou com passo rígido para a grade, a que se aferrou em busca de sustento.
Foi então quando começou a discernir cada ato independente de barbárie. A cerejeira florescida à direita da entrada, cujos matizes outonais de amarelo e
vermelho vivo tingiam o ar, tinha tudo os ramos baixos arrancados, as cicatrizes da casca como outras tantas chagas abertas. A amoreira plantada no centro
do jardim, o orgulho especial do Joan, tinha sofrido similares estragos e o banco de fitas de seda brancos que rodeava seu tronco estava quebrado e estilhaçado,
como se umas
grosas botas tivessem saltado sobre ele. As roseiras, devido talvez ao espinhoso de seus ramos, estavam inteiros, mas arrancados de raiz e aglomerados, e o te arrie
de ásteres tempranos e crisântemos brancos, que Joan tinha plantado ao pé do escuro sebe com a intenção de obter um efeito de neve acumulada, jazia a molhos
sobre o atalho. A rosa que coroava o alpendre tinha derrotado aos intrusos; entretanto, estes tinham arrancado tanto as clemátides como as glicinias, deixando
a fachada do cottage extrañamente nua e indefesa.
   A moradia estava vazia. Blackie a percorreu habitação por habitação gritando o nome do Joan até muito depois de que resultasse evidente que não se encontrava
em casa. Começava a sentir as primeiras pontadas de verdadeira naufraga quando ouviu o golpe da cancela do jardim e viu sua prima empurrando a bicicleta pelo
atalho. Saiu correndo a seu encontro, lhe perguntando a gritos: O que ocorreu? Está bem?
   Sua prima, sem dar amostras de surpresa por encontrá-la em casa muito antes da hora acostumada, respondeu com aspereza.
   Já vê o que ocorreu. Vândalos. Eram quatro, cada um com sua moto. Quase os surpreendo em plena tarefa. Ao voltar do povo os vi partir, mas estavam
muito longe para que pudesse tomar a matrícula. chamaste à polícia?
   Certamente. Têm que vir do East Marling e tomam com calma. Se ainda tivéssemos nossa polícia no povo, tudo isto não teria acontecido. É obvio,
é inútil que se dêem pressa.
   Não os agarrarão. Esses já se escaparam. E embora os agarrassem, o que lhes fariam? Nada; lhes pôr uma pequena multa ou uma sentença condicional. meu deus, se
a
polícia não é capaz de nos proteger, ao final teremos que nos armar. Oxalá tivesse uma pistola.
   Blackie protestou.
   Não pode matar a ninguém só porque te tenha destroçado o jardim. Que não posso? Eu sim poderia.
   Enquanto entravam no cottage, Blackie advertiu com assombro e sobressalto que Joan tinha chorado. Os signos eram inconfundíveis: os olhos, desacostumbradamente
pequenos e apagados, ainda injetados em sangue; a cara torcida, tinta de um cinza doentio e salpicada de crudas mancha vermelhas. Aquele tinha sido uma ofensa contra
que sua calma e seu estoicismo habituais resultavam impotentes. Teria suportado mais facilmente um ataque contra sua pessoa. Mas a cólera se impôs já
à aflição, e a cólera do Joan era formidável.
   tornei outra vez ao povo para ver que mais tinham feito. Não muito, pelo visto. Pararam a almoçar no Moonraker's Arms, mas armaram tanto alvoroço que
a se ora Baker se neg a lhes servir nada mais e Baker os jogou à rua. Então começaram a dar voltas com as motos pelo prado do povo, até que a senhora
Baker saiu a lhes dizer que não estava permitido. Estavam muito provocadores e agressivos, acelerando as motos e fazendo muitíssimo ruído, mas ao final se foram
quando
saiu Baker e os ameaçou chamando à polícia. Suponho que isto foi sua maneira de vingar-se. E se voltarem?
   OH, esses não voltarão. Para que? Procurarão outra coisa bela que destruir. meu deus, que geração criamos? Estão melhor alimentados, melhor educados e melhor
cuidados que qualquer geração anterior, mas se comportam como uns bárbaros ignorantes. O que nos está ocorrendo? E que não me falem da parada; pode que estejam
em parada, mas conduzem motos caras e os dois levavam um cigarro na boca.
   Não todos são assim, Joan. Não pode julgar a toda uma geração por uns quantos.
   Tem razão, naturalmente. Me alegro de que esteja aqui. Era a primeira vez em seus dezenove anos de vida em comum que Joan expressava abertamente sua necessidade
do apoio e o consolo do Blackie. Depois de uma pausa, prosseguiu: foi muito considerado por parte do senhor Etienne te deixar sair mais cedo. O que ocorreu?
Chamou-te alguém do povo para lhe dizer isso Mas isso não pode ser. Já devia estar em caminho quando aconteceu tudo.
   E então Blackie falou de maneira concisa mas vivida.
   A notícia daquele grotesco horror teve ao menos o mérito de apartar os pensamentos do Joan da violação de seu jardim. deixou-se cair na cadeira mais próxima
como se lhe falhassem as pernas, mas escutou em silêncio, sem exclamações de horror ou de surpresa. Quando Blackie teve terminado, levantou-se e a olhou fixamente
aos olhos durante um quarto comprido de minuto, como se queria assegurar-se de que ainda se achava em seu são julgamento. Ato seguido, falou em tom enérgico.
   Será melhor que fique sentada. vou acender o fogo. As duas sofremos uma boa comoção e é importante conservar o calor. E trarei o uísque. Havemos
de falar deste assunto.
   Enquanto Joan a ajudava a instalar-se mais comodamente na poltrona da chaminé, esponjando as almofadas e lhe aproximando a banqueta com uma solicitude pouco freqüente
nela, Blackie não pôde por menos que advertir que o rosto e a voz de sua prima expressavam nem tanto indignação como certa satisfação carrancuda, e refletiu
que não havia nada como o horror vigário do assassinato para distrair a atenção das próprias e menos egregias desgraça.
   Quarenta minutos mais tarde, sentada ante o crepitar do fogo de lenha, sossegada pelo calor e a mordida do uísque que guardavam para casos de emergência,
Blackie se sentiu distanciada pela primeira vez dos traumas do dia. Sobre o tapete, Arabella se desperezó com delicadeza e curvou as garras em uma espécie de
êxtase, a pelagem branca avermelhada pela dança das chamas. Joan tinha aceso o forno antes de sentar-se a seu lado e Blackie percebeu o apetitoso aroma de
um assado de cordeiro que se filtrava pela porta da cozinha. deu-se conta de que em realidade estava faminta, de que talvez lhe seria possível desfrutar inclusive
com a comida. sentia-se ligeira de corpo, como se lhe tivessem tirado fisicamente dos ombros uma carga de culpa e temor. em que pese a sua anterior resolução, encontrou-se
falando do Sydney Bartrum.
   ia ficar na rua, compreende? Eu mesma datilografei a carta do senhor Gerard a uma agência de contratação. Naturalmente, não podia lhe explicar diretamente
ao Sydney o que se preparava; sempre considerei que o trabalho de uma secretária pessoal é extremamente confidencial. Mas tampouco me pareceu justo não lhe dizer
nada. casou-se recentemente mais de um ano e agora tem uma filha pequena. E já passa dos cinqüenta. Não lhe resultará fácil encontrar outro emprego. Assim, quando
o
senhor Gerard me pediu que o chamasse para falar dos orçamentos, deixei uma cópia da carta em cima de meu escritório. O senhor Gerard sempre o fazia esperar,
assim saí do despacho para lhe dar uma oportunidade. Estou segura de que a leu. É uma reação instintiva lhe jogar um olhar a uma carta se a deixar aberta
diante de ti.
   Mas esta ação, tão alheia a seu caráter e a seu comportamento habitual, não se havia devido à compaixão. Agora se dava conta disso e se perguntou por que
não o tinha compreendido antes. O que tinha sentido naqueles momentos era que formava causa comum com o Sydney Bartrum; os duas eram vítimas do desprezo apenas
dissimulado do senhor Gerard. Ao lhe deixar ler a carta, Blackie fazia um pequeno gesto de desafio. Era acaso esse primeiro gesto o que lhe tinha dado valor para
a seguinte e mais decisiva rebelião?
   Mas a leu? perguntou Joan.
   Teve que lê-la. Não me delatou; pelo menos, o senhor Gerard não me disse nada do assunto nem me jogou em cara meu descuido. Mas ao dia seguinte Sydney solicitou
entrevistar-se com ele e acredito que lhe perguntou se seu posto de trabalho estava seguro. Não os ouvi falar, mas não esteve muito momento dentro, e quando saiu
estava chorando.
te figure, Joan, um homem adulto chorando. Depois de um breve silêncio, acrescentou: Por isso não lhe hei dito nada à polícia. De que tinha saído chorando?
   Da carta. Não o hei dito a ninguém. E é quão único não lhes há dito?
   Sim mentiu Blackie. O único.
   Acredito que tem feito bem. A senhora Willoughby, com as robustas pernas separadas e firmemente apoiadas no chão e a mão tendida para a garrafa de uísque,
falou em tom sentencioso: por que oferecer voluntariamente uma informação que pode ser irrelevante e inclusive enganosa? Claro que, se lhe perguntarem isso diretamente,
terá que dizer a verdade.
   Isso mesmo pensei eu. De momento, nem sequer sabemos com certeza que o tenham assassinado. Refiro-me a que pôde morrer por causas naturais, um ataque ao coração
possivelmente, e mais tarde alguém lhe enrolou a serpente ao pescoço. Pelo visto, isso é o que opina todo mundo. É exatamente o que faria o brincalhão do escritório.
   Mas a senhora Willoughby se apressou a rechaçar esta cômoda teoria.
   Não, acredito que possamos estar razoavelmente seguras de que se trata de um assassinato. Fizessem-lhe logo ao corpo o que lhe fizessem, a polícia não estaria
ali
tanto tempo, nem teriam atribuído o caso a alguém tão importante, se albergassem alguma dúvida. Já ouvi falar desse comandante Dalgliesh. Se acreditassem que se
tráfico de uma morte natural, não teriam enviado a um oficial de sua categoria. Embora, claro, há dito que foi lorde Stilgoe quem chamou new Scotland Yard e isso
pôde influir na polícia. Os títulos ainda conservam certo poder. Poderia ser um suicídio ou um acidente, certamente; mas, a julgar pelo que acaba de me contar,
nenhuma das duas coisas me parece provável. Não; se quer saber minha opinião, foi um assassinato. E o culpado é alguém da casa.
   Blackie protestou.
   Mas não Sydney. Sydney Bartrum seria incapaz de matar uma mosca.
   Pode ser. Mas também pode que seja capaz de esmagar algo muito maior e perigoso.
   Seja como for, a polícia comprovará tudo seus álibis. Lástima que ontem à noite fosse às compras ao West End em lugar de vir diretamente a casa. Não haverá
ninguém no Liberty ou no Jaeger que possa responder por ti?
   Não acredito. Já sabe que não comprei nada; só estive olhando. E as lojas estavam muito enche.
   É ridículo supor que tenha tido nada que ver com isso, naturalmente, mas a polícia deve tratar a todo mundo por igual, ao menos ao princípio. OH, bem,
não serve de nada preocupar-se até que conheçamos a hora exata da morte. Quem o viu por última vez? sabe-se já?
   A senhorita Claudia, parece-me. Está acostumado a ser das últimas em partir.
   Exceto, naturalmente, o assassino. Eu gostaria de saber como as arrumou para fazer subir à vítima ao despachito dos arquivos. Imagino que morreu ali.
Caso que o estrangulassem ou o asfixiassem com o Sid a lhe Vaiem, o assassino teve que dominá-lo antes fisicamente. Um jovem robusto não se deita docilmente para
deixar que o assassinem. Teriam podido drogá-lo, certamente, ou aturdido com um golpe o bastante forte para deixá-lo inconsciente, mas não tanto como para machucá-lo.
A senhora Willoughby, ávida leitora de novelas policíacas, conhecia suficientes assassinos de ficção peritos nesta difícil técnica. Depois de uma breve reflexão,
prosseguiu: A droga teriam podido administrar-lhe com o chá da tarde, mas então teria que ser uma droga insípida e de ação muito lenta. Vejo-o difícil,
Ü bem, naturalmente, teriam podido estrangulá-lo com algo brando para não deixar marcas; umas malhas ou umas médias, por exemplo. Um cordão não lhe teria servido
de
nada ao assassino, porque se veria claramente o rastro debaixo da serpente. Espero que a polícia tenha pensado em tudo isto.
   Estou segura de que pensaram em tudo, Joan.
   Enquanto saboreava um sorvo de uísque, Blackie pensou que havia algo curiosamente tranqüilizador no interesse desinhibido do Joan e suas conjeturas sobre o crime.
Não em vão tinha em seu dormitório cinco prateleiras cheias de novelas policíacas: Agatha Christie, Dorothy L. Sayers, Margery Allingham, Ngaio Marsh, Josephine
Tey
e os escassos escritores modernos que Joan julgava dignos de acotovelar-se com estes representantes da Idade de Ouro do assassinato de ficção. A fim de contas, por
o que tinha que sentir Joan nenhuma aflição pessoal? Só tinha estado uma vez no Innocent House, três anos antes, quando assistiu à festa de Natal da empresa.
Exceto de nome, conhecia muito poucos membros do pessoal.
   Sumida em tais reflexões, o horror do Innocent House começou a lhe parecer irreal, inócuo, uma elegante trama literária, sem aflição, sem dor, sem perda,
a culpa e o horror desinfetados e reduzidos a um enigma engenhoso. Contemplou as chamas saltarinas e quase lhe pareceu ver surgir de entre elas a imagem da
senhorita Marple, a bolsa sujeita contra o peito em gesto de proteger-se, que cravava nela seus olhos anciões, sábios e bondosos e lhe assegurava que não havia
nada que temer, que tudo terminaria bem.
   O fogo e o uísque se combinaram para produzir uma sonolência satisfeita, de tal maneira que a voz de sua prima, ouvida de um modo intermitente, parecia chegar
de uma grande distancia. Se não começavam para jantar logo, ficaria dormida. Sacudindo-a modorra, perguntou: Não seria hora de que começássemos a pensar na
jantar?
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

30
 
   encontraram-se às seis e quinze nos degraus que baixavam ao rio nas proximidades da estação de Greenwich, entre um muro alto e a rampa de
uma casinha para botes. Era um lugar discreto, um bom lugar para reunir-se. Havia uma praia pequena e pedregosa, e ainda naqueles momentos, de volta a casa
no carro e longe do rio, seguia ouvindo o suave chapaleteo das ondas esgotadas, o chiar e entrechocar dos calhaus, o murmúrio da maré ao retirar-se.
Gabriel Dauntsey tinha chegado o primeiro à entrevista, mas não se tornou enquanto Bartrum lhe aproximava. Quando falou, fez-o com voz sossegada, quase em tom
de desculpa.
   acreditei que tínhamos que falar, Sydney. Ontem de noite o vi entrar no Innocent House.
   A janela de meu quarto de banho dá ao Innocent Lane. Apareci por acaso e o vi. Deviam ser as sete menos vinte.
   Sydney já sabia de antemão o que ia escutar, e agora que ao fim tinham sido pronunciadas as palavras, recebeu-as com algo muito semelhante ao alívio.
   Respondeu imediatamente, desejando que Dauntsey lhe acreditasse.
   Mas voltei a sair em seguida. O juro. Se tivesse esperado, se tivesse seguido olhando um minuto mais, me teria visto sair. Não passei da recepção. Perdi
o valor. Disse-me que seria inútil raciocinar e suplicar. Nada lhe teria feito trocar de idéia, nada o teria convencido. Juro-lhe, senhor Dauntsey, que ontem à noite
não voltei
a vê-lo depois de sair de meu escritório.
   Sim, teria sido inútil. Gerard não era suscetível aos rogos. E acrescentou: Nem às ameaças. Como podia ameaçá-lo? Minha situação era de impotência. Teria podido
me despedir a semana que vem e eu não tivesse sido capaz de impedir-lhe E se fazia algo que me inimizasse ainda mais com ele, me teria dado uma dessas referências
astutamente formuladas que não admitem réplica, mas que garantem que nunca volte a encontrar outro trabalho. Tinha-me em seu poder. Me alegro de que tenha morrido.
Se fosse um homem religioso, fincaria-me de joelhos e agradeceria a Deus que tenha morrido. Mas eu não o matei. Tem que me acreditar. Se não me você crie, senhor
Dauntsey, quem me acreditará, Meu deus?
   A pessoa que se achava junto a ele não se moveu nem disse nada, mas sim seguiu contemplando o rio por cima do negro pedregal. Finalmente, com humildade, o
recém-chegado perguntou: O que pensa fazer?
   Nada. Tinha que falar com você para averiguar se o havia dito à polícia, se se propõe dizer-lhe Perguntaram-me se tinha visto entrar em alguém em
Innocent House, naturalmente. Perguntaram-nos isso a todos. Menti-lhes. Menti e penso seguir mentindo, mas será inútil se você já o há dito ou se perder os
nervos.
   Não, não o hei dito. Disse-lhes que cheguei a casa na hora de costume, justo antes das sete.
   Chamei a minha esposa por telefone nada mais ouvir a notícia, antes de que se apresentasse a polícia, e lhe pedi que confirmasse que tinha chegado na hora de
sempre
se alguém chamava para perguntar-lhe nada más. Si la policía pierde el tiempo sospechando de los inocentes, tendrá menos posibilidades de capturar al culpable. Y
ya no estoy tan seguro como en otro
   Por sorte fui o primeiro em chegar. Tinha tudo o escritório para mim sozinho. Desgostou-me muito lhe pedir que mentisse, mas não lhe deu importância. Estava segura
de que eu era inocente, de que não tinha feito nada do que tivesse que me envergonhar. Esta noite o explicarei com mais detalhe. Sei que o entenderá. Chamou-a
antes de saber se se tratava de um assassinato?
   Do primeiro momento acreditei que era um assassinato. A serpente, o cadáver semidesnudo... Como podia tratar-se de uma morte natural? Logo acrescentou simplesmente:
Obrigado por guardar silêncio, senhor Dauntsey. Não o esquecerei.
   Não tem por que me dar as obrigado. É o mais razoável. Não lhe estou fazendo nenhum favor; não tem por que me estar agradecido. É questão de sentido comum,
nada mais. Se a polícia perder o tempo suspeitando dos inocentes, terá menos possibilidades de capturar ao culpado. E já não estou tão seguro como em outro
tempo de que não cometam enganos.
   O contável, com grande atrevimento, perguntou-lhe: E isso lhe importa? Quer que apanhem ao culpado?
   Quero que averigúem quem lhe pôs essa serpente ao pescoço ao Gerard e lhe colocou a cabeça na boca. Isso foi uma abominação, uma profanação da morte. Prefiro
que o culpado seja condenado e o inocente vindicado. Suponho que é o que quer a maioria da gente. Isso, depois de tudo, é o que entendemos por justiça.
Mas não me sinto ofendido pessoalmente pela morte do Gerard nem por nenhuma outra morte; já não. Não acredito ter a capacidade de me afetar intensamente por nada.
Eu não o assassinei; já matei o bastante. Não sei quem o fez, mas o assassino e eu temos algo em comum: não nos vimos obrigados a olhar a nossas vítimas cara
a cara. Acredito que há algo especialmente ignóbil em um assassino que nem sequer tem que confrontar a realidade do que tem feito.
   O outro se rebaixou à humilhação final. E meu emprego, senhor Dauntsey? Acredita que segue estando em perigo? Para mim é muito importante. Sabe quais são os projetos
da senhorita Etienne ou de outros sócios?
   Compreendo que tem que haver mudanças. Poderia aprender novos métodos, se o considerarem necessário.
   E não me importa que ponham a alguém por cima de mim se estiver melhor preparado. Posso trabalhar lealmente como subordinado. E acrescentou com amargura: O senhor
Gerard
acreditava que eu só servia para isso.
   Dauntsey respondeu:
   Não sei o que se decidirá, mas me atreveria a afirmar que não haverá nenhuma mudança importante antes de seis meses, pelo menos. E se eu tiver algo que ver com
isso,
seu emprego não corre perigo.
   voltaram-se para mesmo tempo e andaram sem dizer nada para a rua secundária onde tinham estacionado os carros.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

31
 
   A casa que Sydney e Julie Bartrum tinham eleito, e que estavam pagando com a hipoteca mais elevada que tinham podido obter, ficava perto da estação de
Buckhurst Hill, em uma estreita estrada em costa mais parecida com uma via rural que a uma rua suburbana. Era uma casa convencional dos anos trinta, com uma
janela a modo de mirante, um alpendre na parte dianteira e um jardincito detrás. Tudo o que continha o tinham eleito Julie e ele juntos. Nenhum dos dois havia
gasto nada do passado, salva lembranças. E Gerard Etienne tinha ameaçado lhe tirando este lar, esta segurança obtida a base de esforço e as inumeráveis
coisas que a acompanhavam. Se aos cinqüenta e dois anos ficava sem trabalho, que esperanças teria de seguir ganhando o mesmo salário? O dinheiro da indenização
iria minguando mês detrás mês e chegaria um momento em que inclusive pagar a hipoteca se converteria em uma carga impossível de confrontar.
   Sua mulher saiu da cozinha assim que ouviu o ruído da chave na fechadura. como sempre, estendeu os dois braços e lhe deu um beijo na bochecha, mas esta
noite seus braços estavam tensos e se aferrou a ele quase com desespero. O que ocorre, carinho? O que passou? Não quis te chamar ao despacho. Disse-me que não o
fizesse.
   Não, não teria sido prudente. Não há nada que deva preocupar-se, querida. Tudo irá bem.
   Mas disse que o senhor Etienne morreu. Que o mataram.
   Vamos à sala, Julie, e lhe contarei isso tudo.
   Julie se sentou muito perto dele e esteve muito calada enquanto ele falava. Quando teve terminado, disse-lhe:
   Não podem acreditar que tenha tido nada que ver com isso, carinho. É absurdo, é uma estupidez.
   Você não lhe faria mal a ninguém. É doce, bondoso, amável. É totalmente impossível que pensem uma coisa assim.
   Certamente. Mas às vezes se cevam em um inocente, interrogam-no, suspeitam dele; às vezes inclusive o detêm e o levam a julgamento. Não seria a primeira vez.
E eu fui o último em partir do escritório. Tinha coisas importantes que fazer e fiquei depois da hora de saída. Por isso te chamei nada mais saber o
que tinha acontecido. Pareceu-me mais sensato lhe dizer à polícia que ontem cheguei na hora de costume.
   claro que sim, carinho. Tem toda a razão. Me alegro de que me haja isso dito.
   lhe surpreendeu um pouco que sua mulher tivesse aceito a petição de mentir sem nenhuma inquietação, nenhuma sensação de culpabilidade. Possivelmente as mulheres
mentiam
com mais facilidade que os homens se acreditavam que era por uma causa justa. Não teria devido preocupar-se se por acaso lhe causava um cargo de consciência. Ao
igual a ele,
Julie sabia muito bem de que parte estava. chamou alguém...? Alguém da polícia, quero dizer lhe perguntou.
   Sim, chamou um tal sargento Robbins. Só queria saber a que hora chegou ontem à noite. Nada mais.
   Não me contou nada nem me há dito que o senhor Gerard estava morto. E não lhe deste a entender que já sabia?
   Claro que não. Já me tinha avisado. Perguntei-lhe por que queria sabê-lo e me há dito que já me explicaria isso você quando chegasse a casa, que estava bem
e que não devia me preocupar.
   De maneira que a polícia não tinha perdido o tempo. Bem, era de esperar. Tinham querido comprovar sua versão antes de que pudesse acordar um álibi com seu
esposa.
   Já vê por que o dizia, carinho. Verdadeiramente, acredito que temos feito bem em nos preparar.
   claro que sim. Mas crie seriamente que ao senhor Gerard o assassinaram?
   Parece ser que ainda não sabem como morreu. O assassinato é uma possibilidade, mas há outras. Possivelmente teve um ataque ao coração e logo alguém lhe pôs a
serpente
ao pescoço. Que coisa mais horrível! É algo horroroso. É uma perversidade.
   Não pense mais nisso lhe aconselhou. Não tem nada que ver conosco. Não nos afeta, nem nos afetará se mantivermos o que havemos dito. Não se pode fazer nada.
   Julie não se imaginava o muito que lhes afetava. Essa morte tinha sido sua salvação. Sydney não lhe tinha confessado seus temores de perder o emprego nem o ódio
e
o temor que Etienne despertava nele. Seu silêncio se devia em parte a que não queria preocupá-la, mas era consciente de que o motivo principal tinha sido o orgulho.
Necessitava que ela acreditasse um homem próspero, respeitado, indispensável para a empresa. Agora já não tinha por que saber nunca a verdade. Decidiu que não lhe
diria
nada de seu anterior entrevista com o Dauntsey. por que angustiá-la? Tudo ia sair bem.
   Como de costume, antes de jantar subiram juntos para contemplar a sua filhinha dormida. A menina estava em seu quarto, na parte de atrás da casa, que havia
decorado ele mesmo com ajuda da Julie.
   Quando a transladaram do enxoval de bebê ao berço com corrimões e ele a viu pela primeira vez ali, sem travesseiro, deitada de barriga para cima, Julie lhe explicou
que era a
postura recomendada. Não pronunciou as palavras "para evitar a morte no berço", mas os dois sabiam a que se referia. Seu maior temor, do que nunca se falava,
era que lhe ocorresse algo à menina. Sydney estendeu a mão e acariciou sua felpuda cabeça. Parecia incrível que um cabelo humano pudesse ser tão suave ao tato,
uma cabeça humana tão vulnerável. Afligido de amor, sentiu o desejo de agarrar à menina em braços e estreitá-la contra sua bochecha, de envolver a mãe e filha em
um
abraço poderoso, eterno e inquebrável, das proteger contra todos os terrores do presente e todos os terrores por vir.
   Aquela casa era seu reino. disse-se a si mesmo que a tinha obtido por amor, mas experimentava para ela algo similar ao feroz sentido de posse de um conquistador.
Pertencia-lhe por direito e, antes que perdê-la, mataria a uma dúzia do Etiennes. antes da Julie, ninguém o tinha encontrado jamais digno de ser amado. Carente de
atrativo físico, larguirucho e ossudo, sem senso de humor e tímido, sabia que não era digno de amor; os anos passados no lar infantil o tinham ensinado.
Seu pai não morria nem sua mãe te abandonava se foi digno de amor. O pessoal do lar atuava de forma muito profissional, mas aos meninos não lhes oferecia
amor. A atenção, como o alimento, distribuía-se cuidadosamente por turnos. Os meninos se sabiam rechaçados. Sydney tinha assimilado este conhecimento com as papa
do café da manhã. Depois do lar infantil tinha vindo uma sucessão de pensões, habitações com direito a cozinha, pisitos de aluguel, estudos noturnos e exames,
taças de café aguado, comidas solitárias em restaurantes econômicos, cafés da manhã preparados em uma cozinha compartilhada, prazeres solitários, sexo solitário,
insatisfactorio
e envolto em sentimentos de culpabilidade.
   Agora se sentia como um homem que tivesse vivido sempre clandestinamente, sumido em uma escuridão parcial. Com a Julie tinha emerso à luz do sol, os olhos deslumbrados
por um mundo jamais imaginado de luz e som, de cor e sensações. alegrava-se de que Julie tivesse estado casada antes, embora quando faziam o amor as arrumava
para lhe fazer sentir que era ela a inexperiente, a que encontrava pela primeira vez satisfação. E ele se dizia que possivelmente era assim. O sexo com ela tinha
sido uma
revelação. Jamais teria podido acreditar que fora um pouco tão singelo e ao mesmo tempo tão maravilhoso. alegrava-se também, com um alívio não isento de culpabilidade,
de que o primeiro matrimônio da Julie tivesse sido um fracasso e de que Terry a tivesse abandonado. Assim não teria que temer comparações com um primeiro amor idealizado
e imortalizado pela morte. Muito poucas vezes aludiam ao passado; para ambos, as pessoas que viviam, moviam-se e falavam nesse passado eram outras pessoas, não
eles. Uma vez, ao princípio de estar casados, Julie lhe havia dito:
   "Rezava por encontrar a alguém a quem amar, alguém a quem pudesse fazer feliz e que me fizesse feliz. Alguém que me desse um filho. Já quase tinha renunciado
à esperança, e então encontrei a ti. É como um milagre, carinho, a resposta a uma oração." Estas palavras o tinham exaltado. Por uns instantes se sentiu
como um agente do próprio Deus. Ele, que em toda sua vida só tinha conhecido o que era sentir-se impotente, embriagou-se de repente de poder.
   Tinha sido feliz na Peverell Press até que Gerard Etienne assumiu a direção. sabia-se um contável consciencioso e apreciado. Trabalhava largas horas de mais
sem as cobrar. Fazia o que Jean- Philippe Etienne e Henry Peverell esperavam dele; e o que esperavam dele estava a seu alcance fazê-lo. Mas um deles se havia
retirado e o outro tinha morrido, e o jovem Gerard Etienne tinha ocupado a poltrona de diretor gerente. Nos anos anteriores logo que tinha intervindo na empresa;
dedicou-se a observar e aprender, a esperar seu momento, a obter seu título de máster em administração de empresas, a formular uns projetos nos que
não havia lugar para um contável de cinqüenta e dois anos de idade com uma preparação mínima. Gerard Etienne, jovem, triunfador, arrumado e rico, que durante toda
seu
vida privilegiada tinha pego o que desejava sem o menor remorso, tinha pretendido lhe tirar a ele, ao Sydney Bartrum, tudo o que fazia que sua vida merecesse
ser vivida. Mas agora Gerard Etienne estava morto, tendido em um depósito de cadáveres com uma serpente embutida na boca.
   Apertou o braço com que rodeava a sua esposa e disse:
   Baixemos para jantar, querida. Estou faminto.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

32
 
   A entrada da delegacia de polícia do Wapping era tão pouco chamativa que facilmente podia lhes passar por alto aos não iniciados. Do rio, sua fachada de tijolo,
agradável e despretensioso, e a nota doméstica de uma janela a modo de mirante pareciam próprias de um edifício antigo e utilitário, a residência de um comerciante
do século XVIII que preferia viver em cima de seu armazém. De pé ante a janela da sala onde tinham instalado o centro de operações, Daniel contemplava desde
o alto a larga rampa, as três docas do mole flutuante com seu flotilla de lanchas da polícia e o carro de aço inoxidável, situado em um lugar discreto,
que se utilizava para recolher e lavar com a ajuda de uma mangueira os cadáveres dos afogados, e pensou que poucos viajantes fluviais com um mínimo de perspicácia
deixariam de advertir a função do edifício.
   Desde que chegasse com o sargento Robbins, depois de cruzar o estacionamento de veículos e subir pela escada de ferro que conduzia ao interior da delegacia de
polícia,
com sua atmosfera de eficiência silenciosa, tinha estado constantemente atarefado. Tinha montado os ordenadores, disposto mesas para o Dalgliesh, Kate e ele mesmo,
e chamado ao escritório do juiz para consertar os detalhes da autópsia e a pesquisa. Também se tinha posto em contato com o laboratório de exames forenses;
as fotografias tomadas na cena do crime, de uma crua nitidez carente de sombras que parecia reduzir o horror a um exercício de técnica fotográfica, já
estavam cravadas com tachinhas no tablón de anúncios. Previamente se tinha entrevistado com lorde Stilgoe em sua habitação particular do Hospital de Londres.
Por fortuna, o efeito da anestesia geral, os mímicos das enfermeiras e o número de visitas que recebia tinham afastado temporalmente sua atenção do assassinato,
de modo que acolheu o relatório do Daniel com surpreendente equanimidade, sem exigir, como em realidade este se imaginava, a presença imediata do Dalgliesh junto
a
sua cabeceira.
   Do mesmo modo, Daniel tinha explicado a situação aos responsáveis pelo escritório de imprensa da polícia metropolitana. Quando se divulgasse a história, seriam
encarregado-los de organizar conferências de imprensa e manter informados aos meios de comunicação. Havia certo número de detalhes que a polícia, em benefício
da investigação, não pensava fazer públicos, mas o extravagante uso da serpente seria conhecido por todos os empregados do Innocent House ao dia seguinte
a mais demorar e, logo, seria questão de horas que se comentasse nas editoriais de Londres e saísse nos periódicos. O escritório de imprensa provavelmente ia
a ter muito trabalho.
   Robbins, que obviamente considerou a inatividade de sua superior justificação suficiente para fazer uma pausa, lhe aproximou e comentou:
   É interessante estar aqui, verdade? A delegacia de polícia de polícia mais antiga do Reino Unido.
   Se está desejando me dizer que a polícia fluvial se criou em 1798, trinta e um anos antes que a metropolitana, já sabia.
   Não sei se tiver visto o museu que têm, senhor. Está no que era a oficina de carpintaria do antigo estaleiro. Levaram-me a visitá-lo quando estava na academia
de polícia. Há algumas peças interessantes: grilhões, sabres da polícia, uniformes antigos, um arca de cirurgião, documentos de princípios do século XIX e
descrições do desastre do Princess Alice. É uma coleção fascinante.
   Isso provavelmente explica o escasso entusiasmo com que nos receberam: devem suspeitar que o conservador do museu metropolitano quer apoderar-se dela
ou que pretendemos lhes roubar as melhores peças. A mim o que eu gosto de são seus brinquedos novos.
   Baixo eles, o rio tinha estalado em uma tumultuosa erupção de espuma. Um par de canoas hinchables semirrígidas de alta velocidade, de cor negra, cinza e laranja
brilhante, cada uma com dois tripulantes providos de cascos de segurança e jaquetas de um verde fluorescente, rodearam as lanchas da polícia em um viraje fechado,
roçando apenas a superfície da água, antes de sair rugindo rio abaixo como perigosos brinquedos para adultos.
   Robbins observou:
   Não levam assentos. Suponho que esses balanços para trás serão duros para os músculos.
   Devem ir aproximadamente a quarenta nós. Acredita que teremos tempo para lhe jogar uma olhada ao museu, senhor?
   Eu não contaria com isso.
   Em opinião do Daniel, o sargento Robbins, que tinha ingressado nas forças de polícia logo que graduar-se em uma universidade de recente fundação com um título
de História, era quase muito bom para ser real. Tinha ante si ao filho modelo que sem dúvida qualquer mãe desejaria: de aspecto saudável, ambicioso sem chegar
à falta de escrúpulos, metodista devoto e comprometido, ou assim se rumoreaba, com uma moça de sua Igreja. Certamente se casariam depois de um noivado virtuoso
e logo engendrariam uns filhos admiráveis que iriam às escolas adequadas, superariam os exames adequados, não causariam dor nem pesar a seus pais e, a seu
devido tempo, acabariam metendo-se na vida da gente por seu próprio bem, já fora como professores, assistentes sociais ou possivelmente inclusive policiais. Tal
como Daniel
via as coisas, Robbins tivesse tido que demitir faz muito, decepcionado por umas atitudes machistas que podiam degenerar com grande facilidade em violência, por
os inevitáveis embustes e compromissos que suportava seu trabalho e pelo trabalho em si, com sua diária constatação da baixeza do crime e da desumanidade do
homem para com o homem. Ele, entretanto, parecia imperturbável e tão idealista como sempre. Daniel supunha que tinha uma vida secreta, como a maior parte de
a gente. Resultava quase impossível viver sem tê-la.
   Mas Robbins era particularmente perito em manter oculta a sua. Daniel pensou que ao Ministério do Interior lhe conviria passeá-lo pelo país para demonstrar
aos jovens idealistas que saíam da escola as vantagens de uma carreira na polícia.
   Reataram sua tarefa. Ficava muito pouco tempo antes de sair para o depósito, mas nada justificava que o perdessem. Daniel tomou assento e se dispôs a
revisar os papéis do Etienne. Um primeiro olhar superficial lhe tinha bastado para surpreender-se pela quantidade de trabalho que tinha assumido Gerard Etienne.
A
empresa publicava uns sessenta livros ao ano, com um total de trinta empregados. O mundo editorial lhe era completamente alheio; não tinha nem idéia de se aquela
cifra
era normal, mas a estrutura administrativa lhe resultava estranha e a carga do Etienne desproporcionada. Do Witt era o diretor editorial, com a colaboração
do Gabriel Dauntsey como editor de poesia, mas este, além disso e de seu trabalho nos arquivos, não parecia que fizesse nada mais. Claudia Etienne era a responsável
de vendas e publicidade, além disso do pessoal, e Frances Peverell se ocupava de contratos e direitos. Gerard Etienne, em sua qualidade de presidente e diretor gerente,
fiscalizava a produção, a contabilidade e o armazém, e levava, com muito, a carga mais pesada.
   Ao Daniel também interessou descobrir o longe que tinha levado Etienne seu projeto de vender Innocent House. As negociações com o Hector Skolling levavam
vários meses em marcha e estavam muito avançadas. Ao examinar as atas das reuniões mensais dos sócios, encontrou muito poucas referências a muito do que
estava ocorrendo. Enquanto Dalgliesh e Kate se ocupavam das entrevistas formais, ele tinha averiguado quase tanto como eles escutando as intrigas da senhora
Demery e conversando com o George e os escassos empregados que havia no edifício. Possivelmente os sócios desejassem oferecer a imagem de um conselho relativamente
unido e com
um propósito comum, mas todos os dados que tinha reunido até o momento mostravam uma realidade muito distinta.
   Soou o telefone. Era Kate. Ela voltava para seu piso para trocar-se e ao Dalgliesh o tinham chamado do Yard. reuniriam-se os três no depósito.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

33
 
   O depósito de cadáveres da autoridade local se modernizou pouco antes, mas seu exterior permanecia intacto. Era um edifício de uma só planta do típico
tijolo cinza de Londres, ao que se acessava por um curto beco sem saída, com um pátio dianteiro delimitado por um muro de uns dois metros e meio de altura.
Não havia número de rua nem rótulo algum que proclamasse sua função; quem tinha algo que fazer ali já sabiam como chegar. A imagem que oferecia aos curiosos
era a de uma empresa pouco ativa e não especialmente próspera, onde as mercadorias chegavam em caminhonetes sem distintivos exteriores e eram desembaladas com discrição.
À direita da porta havia uma garagem o bastante grande para dar capacidade a duas caminhonetes de funerária, que comunicava através de uma dobro porta com uma reduzida
zona de recepção a cuja esquerda havia uma sala de espera. Dalgliesh, que chegou um minuto antes das seis e meia, encontrou nela ao Kate e Daniel lhe esperando.
tentou-se que a sala de espera resultasse acolhedora, para o qual a havia provido de uma mesita baixa e redonda, quatro cômodas poltronas e um grande televisor
que Dalgliesh nunca tinha encontrado apagado. Acaso sua função era menos de entretenimento que de terapia; em seus imprevisíveis momentos de ócio, os técnicos de
laboratório
precisavam substituir, sequer momentaneamente, a corrupção silenciosa da morte pelas brilhantes e efêmeras imagens do mundo vivente.
   Dalgliesh advertiu que Kate tinha trocado suas habituais calças e sua jaqueta de tweed por uns texanos e uma jaqueta a jogo, e que se recolheu a
grosa trança de cabelo loiro sob uma boina de montar. Sabia muito bem por que. O também ia vestido de um modo informal. O aroma entre adocicado e cítrico do desinfetante
voltava-se quase imperceptível à meia hora de estar ali, mas permanecia dias inteiros na roupa e impregnava todo o armário de aroma de morte.
   Em seguida tinha aprendido a não ficar nada que não pudesse meter na máquina de lavar roupa, enquanto ele tomava banho obsessivamente, elevando o rosto para o
jorro a pressão
como se a mordida da água pudesse arrancar fisicamente algo mais que o aroma e as imagens das duas horas anteriores.
   Dalgliesh devia reunir-se com o comissionado no despacho do ministro, na Câmara dos Comuns, às oito em ponto. De um modo ou outro, tinha que encontrar
tempo para voltar para seu piso do Queenhithe e tomar banho antes de ir à entrevista.
   Recordava vividamente como teria podido esquecê-la? a primeira autópsia a que tinha assistido quando era um jovem agente de patrício. A vítima do assassinato
era uma prostituta de vinte e dois anos e a identificação formal do cadáver apresentou certas dificuldades, já que a polícia não tinha conseguido localizar a nenhum
parente ou amigo íntimo. O corpo branco e desnutrido que jazia sobre a mesa, com os vergões do látego como estigmas morados, tinha-lhe parecido em sua pálida
frigidez a testemunha muda e definitiva da desumanidade masculina. Ao passear o olhar pela sala de autópsias repleta de gente, a falange da oficialidade, não
tinha podido menos de pensar que Theresa Burns recebia na morte muita mais atenção por parte dos agentes do Estado da que tinha recebido em vida. Então
o patologista era o doutor McGregor, da velha escola de individualistas ilustres, um estrito presbiteriano que insistia em realizar todas as autópsias em aroma
espiritual, já que não físico de santidade. Dalgliesh recordava sua reprimenda a um técnico que tinha respondido com uma breve risada ao comentário engenhoso de
um colega:
"Em meu depósito não admito risadas. Não é uma rã o que estou dissecando aqui."
   O doutor McGregor não aceitava música profana enquanto operava e sentia predileção pelos salmos métricos, cuja lúgubre cadência tendia a reduzir a velocidade
do trabalho além de entristecer o espírito. Entretanto, tinha sido uma das autópsias do McGregor a de um menino assassinado, acompanhada pelo Pé Jesu do Bach,
o que tinha inspirado ao Dalgliesh um de seus melhores poemas, e supunha que devia sentir-se agradecido por isso. Ao Wardle importava muito pouco que classe de música
soava durante seu trabalho, sempre que não fora pop. Esta vez teriam que escutar as familiares e insustanciales melodias da FM clássica.
   Havia duas salas de autópsias, uma com quatro mesas de disección e outra com uma só mesa. Esta última era a que Reginald Wardle preferia para os casos de assassinato,
mas, como a habitação era pequena, produziu-se uma aglomeração inevitável quando os peritos em mortes violentas começaram a ocupar seus postos à força de
trancos: o patologista e seu ajudante, os dois técnicos do depósito, quatro agentes da polícia, o oficial de enlace com o laboratório, o fotógrafo e seu ajudante,
o encarregado de analisar a cena do crime e os peritos em impressões digitais, além de um patologista em práticas a quem o doutor Wardle apresentou como doutor
Manning, ao tempo que anunciava que tomaria notas do procedimento. Desgostava-lhe utilizar o microfone suspenso.
   Dalgliesh pensou que, com seus macacos de algodão pardo, os membros do grupo pareciam um punhado de empregados de mudanças pouco ativos. Tão somente as capas
de plástico
para o calçado permitiam supor que talvez sua missão fora um pouco mais sinistra. Os técnicos já levavam posta a máscara facial, mas com o visor ainda
elevado. Mais tarde, quando recebessem os órgãos no cubo e os pesassem, o visor estaria baixado como medida de amparo contra o sida e contra o risco, mais
freqüente, da hepatite B. O doutor Wardle, como de costume, só levava uma bata verde claro sobre as calças e a camisa. Ao igual à maior parte
dos patologistas forenses, tomava sua própria segurança com grande despreocupação.
   O cadáver, empacotado e atado em sua mortalha de plástico, jazia sobre o carro na sala de espera. A uma indicação do Dalgliesh, os técnicos rasgaram o plástico
e o apartaram. produziu-se uma pequena explosão de ar, parecida com um suspiro, e o plástico crepitou como uma carga elétrica.
   O corpo ficou ao descoberto como se fora um enorme bolo de Natal. Os olhos tinham perdido seu brilho; só a serpente sujeita à bochecha com cinta adesiva,
sua cabeça tapando a boca, parecia conservar certa vitalidade. Dalgliesh experimentou um intenso desejo de ordenar que a retirassem só assim o corpo recuperaria
certa dignidade e se perguntou fugazmente por que tinha insistido em mantê-la onde a tinham encontrado até o momento da autópsia. Teve que fazer um esforço
para não estender a mão e arrancar-lhe ele mesmo ao cadáver, mas se conteve e procedeu a efetuar a identificação formal, estabelecendo assim a cadeia dos fatos.
   Este é o cadáver que vi pela primeira vez às nove e quarenta e oito da sexta-feira quinze de outubro no Innocent House, Innocent Walk, Wapping.
   Dalgliesh sentia um respeito considerável pelo Marcus e Len, tanto no pessoal como em sua função de técnicos do depósito. Havia pessoas, entre elas alguns
membros da polícia, às que lhes resultava difícil acreditar que alguém pudesse trabalhar voluntariamente em um depósito de cadáveres, como não fora para satisfazer
uma compulsão psicológica excêntrica, se não sinistra, mas Marcus e Len pareciam felizmente livres inclusive do tosco humor negro que alguns profissionais utilizavam
como defesa contra o horror ou a repugnância, e realizavam sua tarefa com uma competência desapaixonada, com uma calma e dignidade que ele encontrava impressionantes.
   Além disso, também tinha tido ocasião de comprovar as moléstias que se tomavam para deixar apresentáveis aos cadáveres antes de que fossem vê-lo-los parentes
mais próximos. Muitos dos corpos submetidos a disección clínica ante seus olhos eram de anciões, doentes ou falecidos de morte natural, o qual, até sendo uma
tragédia para seus seres queridos, dificilmente podia ser motivo de angústia para um desconhecido. Mas ao Dalgliesh teria gostado de saber como estes homens se enfrentavam
psicologicamente aos jovens assassinados, violado-los, as vítimas de acidente ou violência. Em uma época em que ao parecer nenhum pesar, nem sequer os inerentes
à condição humana, podia suportar-se sem a ajuda de um conselheiro, quem aconselhava ao Marcus e ao Len? Ao menos, deviam ser imunes à tentação de deificar
aos ricos e famosos. Ali, no depósito de cadáveres, reinava a igualdade definitiva. O que importava ao Marcus e ao Len não era o número de médicos eminentes
que se tinha congregado em torno do leito mortuário nem o esplendor dos funerais previstos, a não ser o estado de decomposição do corpo e se seria necessário
acomodar ao cadáver no volumoso frigorífico.
   A bandeja sobre a que jazia o corpo, agora nu, foi depositada no chão para que o fotógrafo pudesse mover-se a sua redor com mais facilidade. Quando
este se manifestou satisfeito das primeiras fotos mediante um gesto da cabeça, os dois técnicos lhe deram a volta ao corpo com suavidade, procurando que não
desprendesse-se a serpente. Finalmente, com o corpo de barriga para cima, levantaram a bandeja e a colocaram sobre os suportes que havia ao pé da mesa de disección,
o buraco redondo em cima do ralo. O doutor Wardle efetuou seu acostumado exame geral do cadáver e ato seguido centrou sua atenção na cabeça. Arrancou
a cinta adesiva, retirou cuidadosamente a serpente como se se tratasse de um exemplar biológico de extraordinário interesse e começou a examinar a boca, contudo
o aspecto, pensou Dalgliesh, de um dentista excessivamente entusiasta. O comandante recordou o que Kate Miskin lhe tinha confessado em certa ocasião, quando fazia
pouco que trabalhava para ele e lhe resultava mais fácil confiar-se: que era esta parte da autópsia, não a posterior extração sistemática dos órgãos principais
e a ação de pesá-los na balança, o que mais lhe revolvia as tripas, como se os nervos mortos estivessem somente em repouso e ainda pudessem reagir ao
entrar em contato com os dedos enluvados e escudriñadores como o faziam em vida. Dalgliesh percebia a presença do Kate um pouco detrás dele, mas não se voltou
para olhá-la. Tinha a certeza de que não ia deprimir se, nem naquele momento nem mais tarde, mas supunha que, como ele, a inspetora experimentava algo mais que
um interesse profissional pelo desmembramiento do que tinha sido um homem jovem e são, e uma vez mais sentiu uma leve dor pesarosa pelo muito que o trabalho
policial exigia à delicadeza e a inocência.
   De repente o doutor Wardle emitiu um grunhido grave que era quase um resmungo, sua reação característica quando encontrava algo interessante.
   lhe jogue um olhar a isto, Adam. No véu do paladar. Um arranhão bem nítido. Produzido depois da morte, a julgar por seu aspecto.
   Na cena do crime o tratava de "comandante", mas aqui, rei de seus domínios, tão cômodo com seu trabalho como sempre o estava, utilizava o nome de pilha
do Dalgliesh.
   Este se inclinou para o cadáver.
   diria-se que depois da morte lhe colocaram um objeto de arestas duras na boca ou o tiraram dela. Pelo aspecto da ferida, eu diria que o tiraram.
   É difícil afirmá-lo com plena segurança, certamente, mas isso me parece também. A direção do arranhão vai do fundo do paladar para os dentes
superiores. O doutor Wardle se fez a um lado para que Kate e Daniel pudessem observar a boca por turno. Logo acrescentou: Não se pode dizer com exatidão quando se
produziu, certamente, salvo que foi depois da morte.
   Possivelmente o próprio Etienne se meteu o objeto na boca, fora o que fosse, mas o tirou outra pessoa.
   E com um pouco de força, e possivelmente depressa observou Dalgliesh. Se tivesse acontecido antes de que se instaurasse o rigor mortis, a extração teria sido
mais
rápida e fácil. Quanta força terei que aplicar para abrir a mandíbula uma vez estabelecida a rigidez?
   Não resulta difícil, certamente, e ainda resultaria mais fácil se a boca estivesse parcialmente aberta, de maneira que se pudessem introduzir os dedos e utilizar
as duas mãos. Um menino não seria capaz de fazê-lo, mas você não procura um menino.
   Nesse momento interveio Kate:
   Se lhe colocaram a cabeça da serpente na boca imediatamente depois de extrair o objeto duro e pouco depois da morte, não poderia haver na malha
alguma mancha visível de sangue? Quanta sangue brotaria depois da morte? Imediatamente depois da morte? disse o doutor Wardle. Não muita. Mas já não
estava vivo quando se produziu este arranhão.
   Olharam todos de uma vez a cabeça da serpente. Dalgliesh comentou:
   Faz quase cinco anos que esta serpente ronda pelo Innocent House. É mais fácil imaginar uma mancha que vê-la. Não há rastros visíveis de sangue. Possivelmente
no
laboratório possam encontrar algo. Se a meteram na boca nada mais retirar o objeto, deveria haver alguma rastro biológico. Tem alguma idéia, doutor, de
que classe de objeto era? inquiriu Daniel.
   Bem, não vejo que haja nenhuma outra marca nas malhas brandas nem na cara interna dos dentes, o qual sugere que se tratava de algo que a vítima pôde
introduzir-se na boca com relativa facilidade, embora não me ocorre por que diabos quereria fazê-lo. Mas isso já é coisa de vocês.
   Daniel prosseguiu.
   Se queria esconder algo, por que não o meteu em um bolso das calças? Escondê-lo na boca lhe obrigava a estar calado. Não teria podido falar
normalmente com um objeto entre a língua e o véu do paladar, embora fora pequeno. Mas suponhamos que já sabia que ia morrer.
   Suponhamos que se encontrou encerrado na habitação com o gás saindo, a chave de passagem desaparecida, uma janela que não se podia abrir...
   Mas teríamos encontrado o objeto igualmente embora só o tivesse metido no bolso lhe interrompeu Kate.
   A não ser que o assassino conhecesse a existência desse objeto e retornasse mais tarde para buscá-lo.
   Em tal caso, tem sua lógica que o escondesse na boca, embora fosse algo que o assassino não sabia que existia. Ao meter-lhe na boca se assegurava de que
encontrariam-no ao lhe fazer a autópsia, se não antes.
   Mas sim que sabia; o assassino, quero dizer observou Kate. Voltou para procurar o que fora e acredito que o encontrou. Abriu a mandíbula pela força para tirá-lo
e logo utilizou a serpente para dar a impressão de que tinha sido obra do brincalhão pesado.
   Daniel e ela estavam absolutamente concentrados em sua conversação, como se não houvesse ninguém mais na sala. Daniel objetou:
   Mas seriamente acreditava que não íamos descobrir o arranhão?
   Por favor, Daniel. Não sabia que lhe tinha feito um arranhão no paladar. Quão único sabia era que tinha que romper a rigidez e que isso não podia nos passar por
alto. Assim utilizou a serpente. E, de não ter sido pelo arranhão, nos teríamos tragado isso. Estamos procurando um assassino que sabia algo sobre o tempo
que demora para aparecer e desaparecer a rigidez e que esperava que o corpo fora encontrado em um prazo relativamente breve. Se se tivesse demorado um dia mais em
encontrá-lo, não teria feito falta a serpente.
   Dalgliesh sabia que corriam o risco de teorizar antes de contar com todos os dados. A autópsia ainda não tinha concluído. Ainda não se confirmou a causa
da morte, embora se sentia razoavelmente seguro, e sabia que também o doutor Wardle, de qual seria essa causa.
   Kate perguntou: Que classe de objeto? Algo pequeno e de arestas duras... Uma chave? Um molho de chaves? Uma cajita metálica?
   Ou a toca-fitas de uma grabadora pequena sugeriu Dalgliesh sosegadamente.
   Dalgliesh partiu antes de que terminasse a autópsia. O doutor Wardle explicava a seu ajudante que as amostras de sangue para o laboratório deviam tomar-se
da veia femoral e não do coração, e por que. Dalgliesh duvidava que a autópsia pudesse revelar nada mais, e se surgia algo não demoraria para sabê-lo. Havia documentos
que devia examinar antes de ir a sua entrevista na Câmara e não andava demasiado de tempo. Teria sido inútil passar primeiro pelo Yard antes de ir a sua casa, de
modo
que William, sua chofer, tinha recolhido a maleta de seu escritório e o esperava no pátio exterior, refletindo em seu rosto afável e bochechudo um nervosismo cuidadosamente
controlado.
   A intensa chuva da tarde tinha ido amainando até converter-se em uma garoa fina e constante. Dalgliesh, com o guichê semiabierta, saboreava o penetrante
aroma salgado do Támesis. Os semáforos do Embankment rabiscavam o ar de escarlate e, enquanto esperava a que trocassem, um cavalo da polícia, de flancos
reluzentes, pisava o asfalto brilhante com seus finos cascos. A escuridão tinha descendido a pernadas sobre a cidade, convertendo-a em uma fantasmagoria de
luz em que cale e plazuelas se estremeciam transformadas em movediços colares de branco, vermelho e verde. Dalgliesh abriu a maleta e tirou os papéis para proceder
a uma leitura rápida dos principais assuntos. Tinha chegado o momento de adaptar as engrenagens de sua mente a uma preocupação mais imediata e talvez em último
término mais importante. Pelo general não lhe resultava difícil fazê-lo, mas esta vez persistiam as imagens do depósito.
   Algo pequeno, um pouco de cantos agudos, tinha sido extraído da boca do Etienne depois da instauração da rigidez na parte superior do corpo. Cabia dentro
do possível que esse algo fora uma toca-fitas; o desaparecimento do magnetófono sugeria certamente essa possibilidade. Isso permitia inferir que Etienne tinha gravado
o nome de seu assassino e que este tinha retornado mais tarde para eliminar a prova. Mas sua mente rechaçava esta hipótese singela. O assassino do Etienne havia
procurado que na habitação não ficasse nada que lhe permitisse deixar uma mensagem: tinha limpo o chão e o suporte da chaminé, levou-se todos os
papéis, a agenda do Etienne lhe tinha sido roubada no dia anterior com o correspondente lápis de ouro. Inclusive nisso tinha pensado o assassino. Etienne não havia
tido nem sequer a oportunidade de rabiscar um nome no chão de madeira nua. por que, pois, ia cometer a estupidez de deixar um magnetófono a disposição
de sua vítima?
   Havia outra explicação, naturalmente: o magnetófono podia ter servido para um propósito específico. De ser assim, o caso prometia resultar mais intrigante e
enigmático do que em um princípio parecia.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

34
 
   Eram mais das dez e meia quando Dalgliesh retornou ao centro de operações instalado na delegacia de polícia do Wapping. Robbins já tinha terminado seu turno de
serviço.
Kate e Daniel tinham comprado sanduíches ao voltar do depósito e se arrumaram com eles e café enquanto anoitecia. Já tinham trabalhado uma jornada de doze horas,
mas ainda não tinham terminado. Dalgliesh queria avaliar os progressos realizados e fazer uma idéia clara de onde se achavam antes de iniciar a fase seguinte
da investigação.
   Nada mais chegar tomou assento e se passou dez minutos examinando os documentos que Daniel havia trazido do despacho do Gerard Etienne. Logo fechou a pasta sem
fazer nenhum comentário, consultou seu relógio e perguntou:
   Bem, então, que conclusões provisórias extraíram que os dados que conhecemos até o momento?
   Daniel interveio imediatamente, como Kate imaginava que faria. Não lhe incomodou. Tinham a mesma graduação, mas Kate era seu superior por antigüidade no
serviço; apesar disso, não experimentava nenhuma necessidade de sublinhá-lo. Ser o primeiro em falar tinha suas vantagens: impedia que outro se atribuíra o mérito
das idéias próprias e demonstrava entusiasmo. Por outra parte, havia certa sabedoria em esperar o momento adequado. A inspetora observou que Daniel apresentava
minuciosamente sua exposição dos fatos; certamente, pensou, tinha estado ensaiando-a mentalmente desde sua volta do depósito.
   Morte natural, suicídio, acidente ou assassinato. As duas primeiras possibilidades ficam descartadas. Não necessitamos os informe do laboratório para saber que
trata-se de uma intoxicação por monóxido de carbono; a autópsia já o deixou claro. Também deixou claro que, pelo resto, morreu em perfeito estado de saúde.
E não há absolutamente nada que faça pensar em um suicídio, assim não acredito que faça falta perder o tempo nisso. "De modo que chegamos ao suposto de uma morte
acidental. Se se tratar de um acidente, o que temos que acreditar? Que Etienne decidiu subir a trabalhar no despachito dos arquivos por alguma razão, deixando-a
jaqueta na poltrona de seu escritório e as chaves na gaveta da mesa. Que teve frio, que acendeu o fogo com uns fósforos que nada nos permite supor que
levasse em cima e que, logo, o trabalho o absorveu de tal maneira que não se deu conta de que a estufa funcionava defectuosamente até que foi muito tarde.
Além das evidentes incongruências, sugiro que, se a coisa se desenvolveu assim, o teríamos encontrado desabado sobre a mesa, não tendido no chão
de costas, semidesnudo e com a cabeça apontando à estufa. No momento, sotaque a serpente à margem. Acredito que devemos distinguir com claridade entre o que
ocorreu no momento da morte e o que lhe ocorreu depois ao cadáver. É óbvio que alguém o encontrou quando já se instaurou o rigor mortis na parte
superior do corpo, mas nada nos indica que a pessoa que lhe colocou a serpente na boca lhe tirasse a camisa ou o transladasse da mesa ao lugar onde foi
descoberto.
   A camisa deveu tirar-lhe ele mesmo opinou Kate. Aferrava-a com a mão direita. Dava a impressão de que a tinha tirado com a idéia de utilizá-la para
apagar o fogo. Observem a fotografia. A mão direita segue sujeitando parte da camisa e o resto aparece cobrindo o corpo. me dá a impressão de que
morreu de barriga para baixo e que o assassino deu a volta ao corpo, talvez com o pé, e logo lhe abriu a boca pela força. Olhem a posição dos joelhos, ligeiramente
dobradas. Não morreu nessa postura. Os resultados da autópsia permitem supor que morreu de barriga para baixo. Acredito que ia engatinhando em direção ao fogo.
   Bem, estou de acordo. Mas não podia ter a esperança de apagar o dessa maneira. A camisa teria aceso.
   Já sei que não podia, mas é a impressão que dá. Possivelmente em sua estado de confusão lhe pareceu possível extinguir assim o fogo.
   Dalgliesh não interveio, mas escutou com atenção enquanto eles discutiam.
   Isso sugere que era consciente do que estava lhe ocorrendo disse Daniel. Mas, em tal caso, o normal teria sido abrir a porta para que entrasse o ar e
fechar o passado do gás.
   Mas suponhamos que a porta estivesse fechada por fora e que faltasse a chave de passagem da estufa. Quando tratou de abrir a janela, o cordão se rompeu porque
alguém o tinha desfiado para estar bem seguro de que cederia quando atirassem dele com um pouco de força. O assassino deveu apartar antes a mesa e as cadeiras
para que Etienne não pudesse encarapitar-se a elas a fim de alcançar a janela e romper o cristal. A janela estava entupida. Não tivesse podido abri-la embora a
alcançasse, a não ser que tivesse algo com que rompê-la. O magnetófono, possivelmente?
   Muito pequeno, muito frágil. De todos os modos, estou de acordo em que o teria tentado. Inclusive teria podido golpear o cristal com os nódulos, mas
não tinha nenhum rastro de machucados nas mãos. Acredito que o assassino apartou os móveis antes de que Etienne entrasse na habitação. Sabemos pelas marcas
da parede que normalmente a mesa está uns centímetros mais à esquerda.
   Isso não prova nada. Pôde havê-la movido a mulher da limpeza.
   Não hei dito que demonstre nada, mas é significativo. Tanto Gabriel Dauntsey como a senhora Demery disseram que a mesa não se encontrava em seu lugar habitual.
   Isso não os descarta como suspeitos.
   Não hei dito que os descarte. Dauntsey é um suspeito óbvio; ninguém teve melhor oportunidade que ele. Mas, se Dauntsey apartou a mesa e as cadeiras, sem dúvida
se
teria incomodado em voltar a deixar a mesa exatamente onde estava. A não ser que tivesse pressa, naturalmente. interrompeu-se e se voltou para o Dalgliesh com ar
excitado. E claro que tinha pressa, senhor. Devia estar de volta no tempo que tivesse necessitado para banhar-se.
   Estamos indo muito depressa objetou Daniel. Tudo isto são conjeturas.
   Eu o chamaria dedução lógica.
   Dalgliesh falou pela primeira vez.
   A teoria do Kate é razoável e concorda com os fatos que conhecemos. Mas não temos nenhuma pingo de evidência irrefutável. E não esqueçamos a serpente. Hão
podido averiguar quem sabia que estava na gaveta do escritório da senhorita Blackett, à parte, naturalmente, da senhorita Blackett, Mandy Price, Dauntsey
e os irmãos Etienne?
   Foi Kate quem respondeu.
   A notícia tinha deslocado por tudo o escritório antes de que terminasse a tarde, senhor. Mandy lhe contou à senhora Demery, quando estavam as duas fazendo café
em
a cozinha pouco depois das onze e meia, que Etienne lhe tinha ordenado à senhorita Blackett que se desfizera da serpente.
   A senhora Demery reconhece que possivelmente o disse a um par de pessoas enquanto passava com o carrinho servindo o chá da tarde. "Um par de pessoas" provavelmente
quer dizer todos os despachos do edifício. A senhora Demery não precisou muito o que lhes tinha contado em realidade, mas Maggie FitzGerald, de publicidade, estava
completamente segura de que lhes disse que o senhor Gerard lhe tinha ordenado à senhorita Blackett que se desfizera da serpente e que ela a tinha metido em
a gaveta do escritório. O senhor Sydney Bartrum, de contabilidade, assegura que não sabia. Disse que nem ele nem seu pessoal têm tempo para conversar com o pessoal
auxiliar do escritório e que, em qualquer caso, tampouco lhes é possível fazê-lo: seu departamento está no número dez e eles mesmos se preparam ali o chá de
a tarde. Do Witt e a senhorita Peverell reconheceram que sabiam. Por outra parte, a gaveta da senhorita Blackett é o primeiro lugar onde a qualquer se
ocorreria-lhe olhar.
   Parece ser que tinha um apego sentimental ao Sid a lhe Vaiem, como a chamam, e não teria querido atirá-la. E por que a senhora Demery se incomodou em fazer
correr a notícia? sentiu saudades Daniel. Não acredito que possa considerar um escândalo de importância para o escritório.
   Não, claro, mas é evidente que suscitou certo interesse. A maior parte do pessoal sabia ou suspeitava que Gerard Etienne não lamentaria perder de vista à senhorita
Blackett. Certamente se perguntavam quanto tempo ia agüentar, ou se se despediria ela mesma antes de que a jogassem à rua. Qualquer incidente entre os
dois seria tema de conversação.
   Já vêem a importância da serpente assinalou Dalgliesh. Ou foi o assassino quem a enroscou ao pescoço ao Etienne e lhe embutiu a cabeça na boca, provavelmente
para explicar a quebra da rigidez na mandíbula, ou o brincalhão encontrou o corpo por acaso e aproveitou a oportunidade para cometer uma baixeza
particularmente aborrecível. E se o fez o assassino, trata-se da mesma pessoa que o brincalhão? Todas essas sacanagens, formavam parte de um plano minuciosamente
esboçado que se remonta até o primeiro incidente? Isso concordaria bem com o cordão puído. Se o assassino o preparou deliberadamente para que se rompesse ao atirar
dele, teve que fazê-lo ao longo de um tempo. Ou acaso compreendeu a importância da mandíbula solta e utilizou a serpente por impulso a fim de dissimular
o fato de que tinha extraído algo da boca do Etienne?
   Ainda existe outra possibilidade, senhor disse Daniel. Suponhamos que o brincalhão encontra o corpo, acredita que é uma morte natural ou acidental e decide fazer
que
pareça um assassinato só para complicar as coisas. Pôde ser ele ou ela quem trocou de sítio a mesa, além de lhe enroscar a serpente ao pescoço ao cadáver.
   Kate protestou.
   Não teria podido desgastar o cordão da janela; isso teve que fazer-se antes. Além disso, por que ia incomodar se em mover a mesa? Isso só podia confundir o
assunto e fazer que a morte parecesse um assassinato se o brincalhão já sabia que Etienne tinha morrido intoxicado por monóxido de carbono.
   Tinha que sabê-lo. Apagou a estufa de gás.
   Isso o teria feito de todos os modos aduziu Kate. O cuartito devia ser como um forno. voltou-se para o Dalgliesh. Acredito que há uma teoria que quadra com todos
os fatos, senhor. A primeira intenção foi que a morte parecesse acidental. O assassino pensava ser ele quem descobrisse o corpo e que estaria sozinho quando ocorresse.
Desta maneira, quão único devia fazer era colocar a chave de passagem em seu sítio e apagar o gás, uma reação perfeitamente natural, e a seguir deixar os
móveis como estavam, recolher a cinta magnetofónica e dar o alarme. Mas não encontrava a cinta e, quando ao fim a encontrou, não pôde agarrá-la sem romper a rigidez
da mandíbula. Sabia que isso não lhe aconteceria inadvertido a um policial competente nem aos patologistas forenses, de modo que utilizou a serpente para dar a impressão
de que se tratava de uma morte acidental complicada pela malignidad do brincalhão do escritório.
   Esta vez foi Daniel o que protestou. E por que teve que levar o magnetófono? Refiro-me ao assassino. por que ia deixar o? Tinha que agarrar a cinta, assim
que o mesmo lhe dava levá-la grabadora.
   E o mais natural seria que a tivesse atirado ao Támesis. voltou-se para o Dalgliesh. Acredita que existe alguma possibilidade de encontrá-la no fundo do rio,
senhor?
   É improvável respondeu Dalgliesh. E embora se encontrasse, a cinta não estaria intacta. O assassino se teria encarregado de apagar qualquer mensagem. Duvido que
se
justificasse o gasto da busca, mas de todos os modos será melhor que o consulte com os da polícia fluvial. Averigúe qual é a profundidade do rio no Innocent
House.
   Há outra coisa, senhor interveio Daniel. Se o assassino queria lhe deixar uma mensagem a sua vítima, por que não o escreveu? por que teve que utilizar uma cinta?
De um modo ou outro, tinha que voltar para recuperá-lo. Lhe teria sido igual de fácil recuperar um papel, possivelmente mais.
   Mas o risco seria major replicou Dalgliesh. Se Etienne tivesse tido tempo suficiente antes de perder o conhecimento, teria podido romper o papel e esconder
cada parte por separado.
   E embora não o rompesse, é mais fácil esconder um papel que uma cinta. O assassino sabia que possivelmente não disporia de muito tempo; tinha que recuperar a
mensagem
o mais depressa possível. Além disso, há outro aspecto: uma voz falada não se pode passar por cima, e uma mensagem escrita sim. O mais interessante de todo este
caso é por
o que o assassino precisava deixar uma mensagem, na forma que fora.
   Para desfrutar-se sugeriu Daniel. Para ter a última palavra. Para demonstrar quão inteligente é.
   Ou para lhe explicar à vítima por que tinha que morrer acrescentou Dalgliesh. De ser assim, é muito possível que o motivo deste assassinato não seja evidente.
Pode remontar-se
ao passado, inclusive a um passado longínquo.
   Mas, então, por que teve que esperar até agora? Se o assassino for alguém do Innocent House, teria podido matar ao Etienne em qualquer momento dos últimos
vinte anos. Gerard Etienne estava na empresa desde que saiu de Cambridge. O que ocorreu nos últimos tempos que justifique a necessidade de sua morte?
   Dalgliesh respondeu:
   Etienne assumiu as funções de presidente e diretor gerente, propunha-se impulsionar a venda do Innocent House e estava a ponto de contrair matrimônio. Crie
que seu compromisso poderia ser significativo, senhor?
   Algo pode sê-lo, Kate. Amanhã pela manhã irei ver o pai do Etienne. Claudia Etienne saiu por volta do Bradwell-on-Seja no meio da tarde para lhe dar
a notícia e lhe pedir que me conceda uma entrevista. Não ficará a passar a noite. Pedi-lhe que a receba a você manhã no piso do Etienne, no Barbican.
Mas o primeiro é comprovar todas as limitadas, começando pelos sócios e empregados do Innocent House. Daniel, Robbins e você teriam que falar com o Esmé Carling.
Averigúem aonde foi quando partiu daquela livraria de Cambridge. Em dez de julho se celebrou a festa de compromisso do Gerard Etienne; temos que comprovar
a lista de convidados e entrevistar aos assistentes. Terá que atuar com muito tato. A estratégia, naturalmente, consistirá em lhes perguntar se deram um passeio
pelo interior da casa e se viram algo estranho ou suspeito. Mas, é obvio, concentraremo-nos nos sócios. Houve alguém que visse a Claudia Etienne
e seu acompanhante quando navegavam pelo rio, e a que hora? Comprovem no hospital St. Thomas a que hora chegou Gabriel Dauntsey e quando partiu, e seu álibi,
é obvio. Eu sairei cedo para o Bradwell-on-Seja, mas espero estar de volta a primeira hora da tarde. No momento, acredito que podemos dar a jornada por
concluída.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

35
 
   Os sócios passaram a noite da sexta-feira cada um por seu lado. De pé ante a mesa da cozinha, enquanto tratava de reunir forças para decidir o que jantaria, Frances
refletiu que isso não tinha nada de estranho. Fora do Innocent House tinham vistas independentes e, às vezes, lhe parecia que quando não estavam no escritório
faziam um esforço deliberado por distanciar-se, quase como se queriam demonstrar que quão único tinham em comum era o trabalho. Poucas vezes comentavam entre si
seus compromissos sociais. Em ocasiões, Frances acudia convidada à festa de outro editor e lhe surpreendia distinguir por um instante os rasgos elegantes da Claudia
entre um grupo de pessoas que falavam com gritos, ou estava no teatro com uma amiga de seus tempos de colegiala no convento e via o Dauntsey abrir-se passo penosamente
pela fila de em frente, e então se saudavam com cortesia como simples conhecidos. Mas aquela noite tinha a sensação de que um pouco mais forte que o costume
mantinha-os separados, de que à medida que tinha ido avançando o dia se tornaram mais resistentes a falar da morte do Gerard, de que a franqueza daquela
hora de isolamento compartilhado na sala de juntas se permutou em cauteloso receio da intimidade.
   James, como ela bem sabia, não tinha eleição: devia voltar para casa com o Rupert. Frances lhe invejava a inexcusabilidad de tal obrigação. Ela não conhecia seu
amigo; nunca tinha estado em casa do James da chegada do Rupert e, ao pensar nisso, perguntou-se como seria sua vida em comum. Ao menos ele tinha a alguém
com quem compartilhar as angústias do dia, um dia que agora lhe desejava muito de desmesurada duração. Tinham saído cedo do Innocent House, por acordo tácito,
e ela se ficou esperando enquanto Claudia fechava a porta e conectava o alarme. Estará bem, Claudia? perguntou-lhe, e antes de terminar a frase já
advertiu claramente a futilidade, a banalidade da pergunta.
   Por um instante pensou em oferecer-se para acompanhá-la a casa, mas temeu que esta sugestão se interpretasse unicamente como uma confissão de debilidade, de sua
própria
necessidade de companhia. E Claudia, depois de tudo, tinha a seu noivo, se é que era seu noivo. Provavelmente preferiria recorrer a ele antes que ao Frances.
   Nestes momentos, quão único quero é chegar a casa e estar a sós respondeu Claudia. E logo acrescentou: E você, Frances? Estará bem?
   A mesma pergunta sem sentido, sem resposta possível. Tratou de imaginar como teria reagido Claudia se lhe tivesse respondido: "Não, não estou bem. Não quero
ficar sozinha. me faça companhia esta noite, Claudia. Fica a dormir no quarto que tenho livre."
   Podia telefonar ao Gabriel, por descontado. Lhe teria gostado de saber que fazia, o que pensava, naquele piso singelo e escassamente mobiliado que estava justo
debaixo
do dela. Também lhe havia dito: "Estará bem, Frances? me chame se quiser companhia." Oxalá houvesse dito em troca: "Importa-te que subida um momento, Frances?
Não quero estar sozinho." Entretanto, tinha-lhe deixado a responsabilidade da iniciativa. Chamá-lo equivalia a confessar uma debilidade, uma necessidade que possivelmente
não o fora grata. perguntou-se o que teria Innocent House para que às pessoas custasse tanto expressar uma necessidade humana ou mostrar umas a outras uma
simples bondade recíproca.
   Por último, abriu uma sopa de cogumelos e ferveu um ovo. sentia-se extraordinariamente cansada. Acurrucada toda a noite na poltrona do Gabriel, as escassas
horas de sonho intermitente não tinham sido a melhor preparação para um dia de naufraga quase contínua. Contudo, sabia que não lhe resultaria fácil dormir. Por isso,
depois de lavar os utensílios do jantar, dirigiu-se à habitação que fora o dormitório de seu pai e que ela tinha convertido em uma salita de estar e se
sentou diante do televisor. As imagens brilhantes passaram ante seus olhos: as notícias, um documentário, uma comédia, um filme antigo, uma peça teatral moderna.
Enquanto pulsava os botões, saltando rapidamente de canal, os rostos cambiantes, sorridentes, risonhos, graves, magistrais, as bocas que se abriam e fechavam
sem parar atuaram como uma droga visual que não significava nada, que não evocava nenhuma emoção, mas que ao menos lhe proporcionava uma companhia espúria, um consolo
efêmero e irracional.
   À uma se foi à cama, levando consigo um copo de leite quente orvalhado com um chorrito de uísque. O remédio foi eficaz e Frances se sumiu na inconsciência
com o último pensamento de que, depois de tudo, ia gozar da bênção do sonho.
   O pesadelo voltou a assediá-la a altas horas da madrugada, o velho e conhecida pesadelo mas sob uma nova aparência, mais terrível, mais intensamente real.
Ia andando pelo túnel de Greenwich entre seu pai e a senhora Rawlings. Levavam-na da mão, mas seu apertão era um aprisionamento, não um consolo. Não podia
fugir e não havia nenhum lugar aonde fugir. A suas costas se ouvia ranger o teto do túnel, mas não se atrevia a voltar a cabeça porque sabia que inclusive olhar
atrás
significaria o desastre. Ante ela se estendia o túnel, cuja longitude era maior que na vida real, com um círculo de brilhante luz natural ao extremo. A medida
que caminhavam, o túnel se alargava e o círculo ia fazendo-se cada vez mais pequeno, até que só foi um platito reluzente e ela soube que logo se converteria
em um puntito de luz e logo desapareceria. Seu pai andava muito erguido, sem olhá-la, sem falar. Levava o capote de tweed com uma curta capa sobre os ombros
que sempre ficava no inverno e que ela tinha entregue ao Exército de Salvação. Ele estava zangado porque o tinha agradável sem consultar-lhe mas tinha obtido
encontrá-lo e recuperá-lo. Ao Frances não sentiu saudades ver a serpente que tinha enroscada ao pescoço. Era uma serpente de verdade, enorme como uma cobra, que
se inchava
e se contraía, lhe envolvendo os ombros, vaiando com sua vitalidade maligna, lista para apertar até lhe cortar a respiração. E sobre eles, os azulejos do teto
estavam molhados e já começavam a cair os primeiros goterones. Mas ela viu que não eram gotas de água, mas sim de sangue. E de súbito se largou e pôs-se a correr,
gritando
a voz em pescoço, para aquele inalcançável ponto de luz, enquanto um pouco mais adiante o teto se gretava e cedia, e a quebra de onda negra e aniquiladora da morte
equilibrava-se sobre ela extinguindo o último brilho de luz.
   Despertou e se encontrou apoiada contra a janela, golpeando o cristal com as mãos. Com a consciência chegou o alívio, embora o horror do pesadelo permaneceu
como uma mancha em sua mente. Mas ao menos agora sabia do que se tratava. aproximou-se da cama e acendeu a luz. Eram quase as cinco. Não valia a pena tratar de
conciliar outra vez o sonho. ficou a bata, abriu as cortinas e abriu as janelas. Com a habitação em penumbra a suas costas, viu rielar tenuemente o
rio e algumas estrelas no alto. O terror do pesadelo começava a minguar, mas o substituía aquele outro terror sem esperança de despertar.
   De repente pensou no Adam Dalgliesh. Também seu piso se achava junto ao rio, no Queenhithe. perguntou-se como podia saber onde vivia, e recordou ter lido algo
nos periódicos a respeito de seu último e aplaudido livro de poemas. Era um homem muito reservado, mas esse dado ao menos se divulgou. Era curioso que suas vidas
estivessem unidas por essa escura maré de história. Lhe teria gostado de saber se ele também estava acordado, se dois ou três quilômetros rio acima sua alta e escura
silhueta se achava de pé, contemplando esse mesmo rio perigoso.
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original
  
   TERCEIRO LIVRO
   
   DESENVOLVIMENTO
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

36
 
   na sábado 16 de outubro Jean-Philippe Etienne deu seu passeio matutino às nove, como de costume. Nem a hora nem o rato variavam nunca, fossem quais fossem
a estação e o clima. Punha-se a andar pela crista de rocha que separava as restingas dos campos arados onde se dizia que se elevou o forte romano de
Othona e, deixando atrás a capela anglocelta do St. Peter-on-the- Wall, rodeava o promontório até chegar ao estuário do Blackwater. Estranha vez se cruzava com
alguém no curso de seu ambulación matinal, nem sequer no verão, quando algum visitante da capela ou observador de pássaros se decidia a sair cedo, mas
se se encontrava com alguém lhe dirigia uma saudação cortesa e nada mais. Os habitantes do lugar sabiam que se instalou na Othona House para viver em solidão
e respeitavam seu desejo. Não aceitava chamadas telefônicas nem recebia visitas. Mas essa manhã às dez e meia iria até ali um visitante ao que não se podia rechaçar.
   Sob a crescente luz do dia, contemplou o sereno estreito do estuário e as luzes da ilha da Mersea, e pensou nesse desconhecido comandante Dalgliesh. O
mensagem que tinha irradiado à polícia por mediação da Claudia era inequívoco: não tinha nenhuma informação que dar sobre a morte de seu filho, nenhuma teoria
que propor, nenhuma possível explicação do mistério que sugerir, nenhum suspeito que mencionar. Sua opinião particular era que Gerard tinha morrido de um modo
acidental, por estranhas ou suspeitas que pudessem parecer algumas circunstâncias. Uma morte acidental parecia mais provável que qualquer outra explicação e,
certamente, mais provável que um assassinato. Assassinato. As densas consonantes do horror ressonaram em sua mente com um ruído surdo, sem evocar nada mais que repugnância
e incredulidade.
   E ali, tão imóvel como se se ficou petrificado sobre a estreita franja de praia onde as ondas minúsculas se desfaziam em uma fina mancha de espuma
suja, enquanto via apagar uma a una as luzes do outro lado do estreito à medida que ia clareando o dia, rendeu a seu filho o relutante tributo da lembrança.
Muitos das lembranças eram turbadores, mas já que lhe assediavam a mente e não os podia repelir, possivelmente seria melhor que os aceitasse, desse-lhes um sentido
e os
disciplinasse. Gerard tinha chegado à adolescência tendo muito claro um tema: era filho de um herói. Isso era importante para um moço, para qualquer moço,
mas em especial para um tão orgulhoso como ele. Possivelmente se sentisse ofendido por seu pai, insuficientemente amado, infravalorizado, descuidado, mas podia passar
sem
o amor se tinha o orgulho, o orgulho do sobrenome e do que esse sobrenome representava. Sempre tinha sido importante para ele saber que o homem cujos gens
levava tinha sido submetido a prova como poucos de sua geração e tinha saído gracioso dela. Passavam os decênios e as lembranças se esfumavam, mas ainda
podia-se julgar a um homem pelo que tinha feito nos turbulentos anos da guerra. A reputação do Jean- Philippe era firme e inviolável. Outros heróis de
a Resistência tinham visto manchada sua reputação pelas revelações de anos posteriores, mas ele nunca. As medalhas que já não luzia as tinha ganho merecidamente.
   Jean-Philippe tinha observado o efeito que este conhecimento produzia no Gerard; a premente necessidade de obter a aprovação e o respeito de seu pai, a
necessidade de competir, de justificar-se a olhos de seu pai. Não era este o motivo de que aos vinte e um anos tivesse escalado o Cervino? Até aquele momento, nunca
tinha mostrado o menor interesse pelo alpinismo. A façanha lhe exigiu tempo e dinheiro. Contratou ao melhor guia do Zermatt, quem, com bom julgamento, impô-lhe um
período
de vários meses de rigoroso treinamento antes de tentar a ascensão e fixou condições estritas: o grupo voltaria atrás antes do assalto final ao topo se
ele considerava que Gerard era um perigo para sua própria segurança ou a de outros. Mas não voltaram atrás. A montanha foi conquistada. Isso era algo que Jean-Philippe
não tinha obtido.
   E logo estava a Peverell Press. Durante seus últimos anos de atividade, Jean-Philippe sabia que era pouco mais que um passageiro da nave, um passageiro tolerado
ao que ninguém incomodava e que não causava problemas a ninguém. Quando o poder passasse à mãos do Gerard, este transformaria a Peverell Press. E Jean-Philippe lhe
outorgou
esse poder. Transferiu vinte de suas ações da empresa ao Gerard e quinze a Claudia. Gerard só precisava conservar o apoio de sua irmã para assegurar o
controle majoritário. E por que não? Os Peverell tinham tido sua época; era o momento de que os Etienne ficassem à frente.
   E mesmo assim Gerard acudia mês detrás mês a lhe apresentar os informe, como se fora um administrador prestando contas ao dono. Não pedia conselho nem aprovação;
não
eram seus conselhos nem sua aprovação o que o fazia acudir. Às vezes Jean-Philippe acreditava que aqueles viaje eram uma forma de expiação, uma penitência voluntariamente
imposta, um dever filial empreendido quando o ancião já tinha deixado atrás tais inquietações e suas mãos rígidas foram soltando pouco a pouco aqueles frágeis fios
que o atavam à família, à empresa, à vida. Escutava-lhe, em ocasiões fazia algum comentário, mas nunca se decidiu a lhe dizer: "Não quero saber
nada. Já não me importa.
   Pode vender Innocent House, te transladar ao Docklands, vender a empresa, queimar os arquivos.
   Meu último interesse pela Peverell Press se esgotou quando joguei no Támesis aqueles fragmentos de osso triturado. Para suas ativas preocupações, estou tão morto
como Henry Peverell. Os dois deixamos atrás estas inquietações. Não cria que estou vivo porque ainda falo contigo, porque ainda realizo algumas das funções
de um homem." Permanecia sentado sem mover-se, estendendo de vez em quando uma mão tremente para seu copo de vinho, um copo grosso e de pesada base que podia
dirigir com mais facilidade que uma taça. A voz de seu filho lhe chegava da lonjura.
   Resulta difícil saber se for preferível comprar ou alugar. Em princípio, estou a favor de comprar.
   Os aluguéis são ridiculamente baixos nestes momentos, mas não o serão quando expirar o contrato. Por outra parte, parece sensato assinar um contrato de aluguel
a curto prazo para os próximos cinco anos e deixar livre o capital para aquisições e ampliações. O negócio editorial se apóia nos livros, não nos bens
imóveis. A Peverell Press leva cem anos esbanjando seus recursos em manter Innocent House, como se a casa fora a empresa. Perde a casa e perdeste
a editorial. Tijolos e argamassa elevados a símbolo, inclusive no logotipo.
   Pedra e mármore disse Jean-Philippe. E ao ver o cenho intrigado de seu filho, acrescentou: Pedra e mármore, não tijolos e argamassa.
   A fachada posterior é de tijolo. A casa é um híbrido arquitetônico. A gente elogia ao Charles Fowler pela brilhantismo com que soube combinar a elegância
de finais da época georgiana com o gótico veneziano do século XV, mas mais teria lhe valido não tentá-lo. Hector Skolling pode ficar com o Innocent House
se quiser, e que lhe aproveite.
   Para o Frances será uma desdita.
   Disse-o por dizer algo. As desditas do Frances não o comoviam. O vinho lhe resultava agradável ao paladar. Era uma sorte que ainda pudesse saborear aqueles
robustos tintos.
   Gerard respondeu:
   Já o superará. Todos os Peverell se consideram obrigados a amar Innocent House, mas duvido que lhe importe muito. Seguindo a associação de idéias, prosseguiu:
Viu o anúncio de meu compromisso no Teme do passado segunda-feira?
   Não. Já não me incomodo em ler os periódicos. O Spectator inclui um resumo das principais notícias da semana. Essa meia página me basta para comprovar
que o mundo segue indo mais ou menos como foi sempre. Espero que seja feliz no matrimônio. Eu fui.
   Sim, sempre me deu a impressão de que mamãe e você lhes entendiam bastante bem.
   Jean-Philippe percebeu seu sobressalto. O comentário, tosco e inadequado, ficou pendurando entre os dois como um farrapo de fumaça acre.
   Não estava pensando em sua mãe replicou Jean-Philippe com voz serena.
   E ali, contemplando a extensão de água mansa, pareceu-lhe que só naqueles confusos e turbulentos dias da guerra tinha estado verdadeiramente vivo. Era
jovem, estava apaixonadamente apaixonado, vivificado pelo perigo constante, estimulado pelos ardores do mando, exaltado por um patriotismo simples e sem complicações
que para ele se converteu em uma religião. Entre as ambíguas lealdades da França do Vichy, a sua era clara e absoluta. Após, nada tinha menosprezado
o portento, a excitação, a fascinação daqueles anos. Sua resolução não vacilou nem sequer depois de que matassem ao Chantal, embora lhe desconcertou dar-se conta
de que culpava de sua morte tanto ao maquis como aos invasores alemães. Nunca tinha acreditado que a resistência mais eficaz consistisse na ação armada nem em
o assassinato de soldados alemães. E logo, em 1944, chegaram a liberação e o triunfo, e com eles uma reação tão inesperada e intensa que o deixou desmoralizado,
quase apático. Só então, no momento da vitória, teve tempo e lugar para chorar ao Chantal. sentia-se como um homem vazamento de toda capacidade de emocionar-se,
à exceção daquela pesadumbre entristecedora que em sua triste futilidade lhe desejava muito parte de uma aflição maior, uma aflição universal.
   Sentia pouca inclinação à vingança e contemplou com enojada repulsão os rapados de cabeça às mulheres acusadas de "relações sentimentais com o inimigo",
os ajuste de contas, as purgações realizadas pelo maquis, a justiça sumária que executou a trinta pessoas no Puy-dê- Me dê sem um julgamento formal. alegrou-se,
como a maior parte da população, quando se restabeleceu o devido curso da lei, mas os processos e os veredictos não lhe proporcionaram nenhuma satisfação.
   Não se compadecia dos que tinham traído à Resistência nem dos que tinham torturado ou assassinado, mas naqueles tempos de ambigüidade muitos colaboradores
do regime do Vichy faziam o que acreditavam melhor para a França, e se as potências do Eixo tivessem ganho a guerra, talvez isso teria sido o melhor para a França.
Entre eles havia pessoas decentes que escolheram o bando equivocado por razões não de tudo ignóbeis; outros eram débeis; a alguns os movia o aborrecimento
ao comunismo, e a outros seduzia o atrativo insidioso do fascismo. Não podia odiar a nenhum deles. Até sua própria fama, seu próprio heroísmo, sua própria inocência
lhe voltaram repugnantes.
   Precisava afastar-se da França e se foi a Londres. Sua avó era inglesa. Falava o idioma de um modo impecável e estava familiarizado com as peculiaridades
dos costumes ingleses, todo o qual lhe ajudou a suavizar seu autoimpuesto desterro. Mas não se instalou na Inglaterra porque sentisse nenhum afeto especial por
o país nem por seus habitantes. Foi em Londres, em uma festa não recordava qual nem em que lugar, onde apresentaram a Margaret, uma prima do Henry Peverell. Era
bonita, sensível e sedutoramente infantil, e se apaixonou romanticamente dele, apaixonou-se por seu heroísmo, de sua nacionalidade, inclusive de seu acento. Ele,
por sua parte,
encontrou aduladora sua adulação isenta de críticas, e lhe resultou difícil não responder ao menos com afeto e um carinho protetor à vulnerabilidade da jovem.
Mas nunca chegou a querê-la. Só tinha querido a um ser humano. Com o Chantal morreu também sua capacidade de experimentar qualquer sentimento mais intenso que o
afeto.
   Mesmo assim se casou com ela e a levou a Toronto. E quando, ao cabo de quatro anos, esse novo exílio começou a resultar fastidioso, retornaram a Londres, agora
com duas criaturas. Ingressou na Peverell Press por convite do Henry, investiu um capital considerável na empresa, agarrou em troca suas ações e passou o resto
de sua vida trabalhista naquela extravagante loucura à beira de um rio setentrional e estranho. Supunha que podia considerar-se razoavelmente satisfeito. Sabia o
que
a gente o tinha por um homem tedioso, mas não lhe surpreendia; de fato, ele mesmo se aborrecia. O matrimônio durou. Fez a sua esposa Margaret Peverell tão feliz
como
era capaz de sê-lo; suspeitava que as mulheres da família Peverell não eram capazes de sentir muita felicidade. Margaret desejava desesperadamente ter filhos,
e lhe tinha proporcionado devidamente o filho e a filha que ela desejava. Era assim como, então e agora, Jean-Philippe concebia a paternidade: o dom de algo
necessário para a felicidade de sua esposa, já que não para a sua; algo que, uma vez dado como um anel, um colar ou um carro novo, já não exigia dele nenhuma
outra responsabilidade, posto que a responsabilidade se entregava com o presente.
   E agora Gerard estava morto e um policial desconhecido vinha a lhe dizer que seu filho tinha sido assassinado.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

37
 
   A entrevista do Kate e Daniel com o Rupert Farlow tinha sido consertada para as dez. Sabiam que seria quase impossível estacionar no Hillgate Village, de maneira
que deixaram
o automóvel na delegacia de polícia de polícia do Notting Hill Gate e subiram a pé o suave pendente da colina sob os altos olmos da avenida do Holland Park.
Kate pensou em quão estranho resultava voltar tão logo a essa parte de Londres tão familiar. Tinha deixado seu piso apenas três dias antes, mas era como se se houvesse
afastado do bairro na imaginação além de fisicamente e, ao aproximar-se agora ao Notting Hill Gate, parecia-lhe ver a estridente aglomeração urbana com olhos de
forasteira. Mas, é obvio, nada tinha trocado: a discordante e pouco distinguida arquitetura dos anos trinta, a pletora de rótulos guias de ruas, as cercas
que a faziam sentir um animal de rebanho, as largas jardineiras de concreto com seus arbustos de folha perene talheres de pó, as fachadas dos comércios
que derramavam seu nome em rios de gritã luz vermelha, verde e amarela, a incessante carreira do tráfico.
   Inclusive seguia estando o mesmo mendigo junto à porta do supermercado com o grande alsaciano tendido a seus pés sobre uma palhinha, murmurando aos transeuntes
sua petição de moedas para comprar um sanduíche. além de toda aquela atividade se estendia Hillgate Village com sua aparência tranqüila de fachadas multicoloridos
e estucadas.
   Quando passaram ante o mendigo e se detiveram logo no semáforo, Daniel comentou:
   Onde eu vivo temos uns quantos como esse. Sentiria-me tentado de entrar na loja para comprar um sanduíche se não temesse provocar uma alteração do
ordem, e se o cão e ele não parecessem já muito superalimentados. Você revista lhes dar algo?
   Não aos de sua espécie e não com freqüência. Às vezes. Reprovo-me isso mesma, mas o faço.
   Nunca mais de uma libra.
   Para que a gastem em bebida e drogas.
   Uma doação tem que ser sem condições. Embora seja uma libra. Embora seja a um mendigo. E de acordo, já sei que é fazer a vista gorda a um delito.
   Tinham cruzado a rua pelo passo de pedestres quando de repente Daniel falou de novo.
   na sábado que vem teria que ir ao Bar Mitzvah de minha primo.
   Pois vê; quer dizer, se for importante.
   Ao chefe não gostará que peça uma permissão. Já sabe como se as gasta quando estão investigando um caso.
   Não durará todo o dia, verdade? Peça-lhe Esteve muito pormenorizado quando Robbins solicitou um dia livre porque se morreu seu tio.
   Mas isso foi para um funeral cristão, não para um Bar Mitzvah judeu. E o que outra classe de Bar Mitzvah há? Não seja injusto. O chefe não é assim e você sabe.
Já lhe hei isso dito: se for importante, peça-lhe se não, não. Importante para quem? Como quer que saiba? Para o menino, suponho.
   Apenas o conheço. Duvido que lhe importe muito que eu atira ou não. Embora, pensando-o bem, somos uma família pequena; só tem duas primos. Suponho que gostaria
que estivesse presente.
   Minha tia certamente preferiria que não fosse. Assim teria outra ofensa contra minha mãe.
   Não pretenderá que o chefe dita se for mais importante agradar a sua primo ou desgostar a sua tia.
   Se for importante para ti, vê. por que tem que lhe dar tantas voltas?
   Ele não respondeu e, enquanto subiam pela rua Hillgate, Kate pensou: "Possivelmente é porque para ele se trata de algo sério." Ao refletir sobre esta breve conversação,
sentiu-se surpreendida. Era a primeira vez que lhe abria, sequer de um modo vacilante, a porta de sua vida privada. E Kate tinha acreditado que, como ela, guardava
com quase obsessiva vigilância esse portal essencialmente inviolado. Nos três meses transcorridos desde que tinha chegado à Brigada, não tinham falado nunca de
sua ascendência judia; para falar a verdade, não tinham falado de quase nada que não fora o trabalho. Interessava-lhe realmente seu conselho ou só a utilizava para
ordenar
seus pensamentos? Se necessitava conselho, era assombroso que o pedisse a ela. Kate tinha notado nele do primeiro momento certa atitude defensiva que, se
não se dirigia com tato, podia voltar-se Espinosa, e lhe incomodava um pouco a necessidade de tato em uma relação profissional. O trabalho policial suportava suficientes
tensões de por si para em cima ter que tranqüilizar a um colega ou congraçar-se com ele.
   Mas Daniel gostava; ou possivelmente seria mais exato dizer que começava a lhe gostar de sem saber muito bem por que. Era de compleição robusta, apenas mais alto
que ela,
de facções pronunciadas e cabeleira loira, quando ela a tivesse imaginado moréia. Seus olhos de cor cinza piçarra brilhavam como calhaus polidos e quando se
zangava, obscureciam-se até voltar-se quase negros. Kate percebia neles tanto sua inteligência como uma ambição similar a dela. Além disso, parecia não ter
nenhum problema em trabalhar com uma mulher que o superava em fila ou, se o tinha, sabia ocultá-lo com mais habilidade que a maioria de seus colegas. Kate se disse
que começava a encontrá-lo sexualmente atrativo, como se esta admissão formal e regular do fato pudesse protegê-la contra os perigos da proximidade. Havia
visto muitos colegas esbanjar sua vida privada e profissional para arriscar-se a este tipo de complicação, sempre muito mais fácil de iniciar que de cortar.
   Desejosa de corresponder a sua confiança e temendo haver-se mostrado muito indiferente, comentou:
   Entre os alunos da secundária do Ancroft havia uma dúzia de religiões. Sempre estávamos celebrando uma ou outra festividade ou cerimônia. Por isso general
significava fazer muito ruído e vestir-se de ornamento. A postura oficial era que todas as religiões são igualmente importantes e devo dizer que, em meu caso, isso
me
levou a convencimento de que todas são igualmente carentes de importância. Suponho que se a religião não se acostumar com convicção se converte em outra disciplina
aborrecida mais. Possivelmente é que sou pagã por natureza. Não suporto toda essa ênfase no pecado, o sofrimento e o julgamento final. Se acreditasse em Deus, eu
gostaria
que fosse inteligente, jovial e divertido.
   Duvido que te oferecesse muito consolo enquanto conduziam às câmaras de gás observou ele . Possivelmente então preferisse um deus de vingança. É esta rua, não?
   Kate se perguntou se já se cansou do tema ou se estava lhe advertindo que não se metesse em seu território privado. Respondeu:
   Sim. Pelo visto, os números altos ficam no outro extremo.
   Havia um interfone à esquerda da porta. Kate pulsou o botão e, para ouvir uma voz masculina, anunciou:
   A inspetora Miskin e o inspetor Aaron. Devemos ver ao senhor Farlow. Espera-nos.
   Permaneceu atenta ao zumbido que indicaria que se aberto a fechadura, mas em seu lugar voltou a ouvir a mesma voz.
   Em seguida baixo.
   A espera de um minuto e médio lhe desejou muito muito larga. Kate acabava de consultar o relógio pela segunda vez quando se abriu a porta e se encontraram ante
um jovem
corpulento, descalço e vestido com umas calças muita ajustadas de quadros brancos e azuis e um suéter branco. Levava o cabelo talhado em mechas rígidas e muita
curtos que davam a sua cabeça redonda o aspecto de uma escova arrepiada. Seu nariz era largo e carnudo, e seus braços curtos e arredondados, com uma pátina de pêlo
castanho,
pareciam tão suaves e roliços como os de um bebê. Kate pensou que tinha a consistência acolhedora de um osito de peluche, a falta unicamente, para completar o
quadro, de uma etiqueta com o preço pendurada do brinco que levava na orelha esquerda. Entretanto, os olhos azul claro que ao princípio se cravaram nos seus
com expressão de cautela, mostraram depois um franco antagonismo, e quando falou não houve simpatia em sua voz. Sem emprestar atenção ao cartão de identificação
que Kate lhe mostrava, sugeriu:
   Será melhor que subam.
   No estreito vestíbulo fazia muito calor e o ar estava impregnado de um aroma exótico, mescla de flores e especiarias, que ao Kate teria parecido agradável
se não tivesse sido tão intenso.
   Subiram atrás de seu guia por uma estreita escada e se encontraram em uma sala de estar que ocupava toda a longitude da casa. Um arco curvado mostrava o lugar
onde antes devia elevar o tabique divisório. Ao fundo tinham construído uma pequena galeria a modo de invernáculo com vistas ao jardim. Kate, que acreditava haver
elevado à categoria de arte a capacidade de observar os detalhes de seu entorno sem delatar uma curiosidade muito evidente, centrou toda sua atenção no homem
ao que tinham ido visitar. Estava recostado sobre travesseiros em uma cama individual situada à direita da galeria coberta e era patente que se achava a ponto
de morrer. A jovem polícia havia visto muitas vezes a debilitação extrema refletida na tela do televisor; estava quase habituada a contemplar desde sua sala
de estar olhos carentes de vida e membros consumidos pela inanição. Mas, naquele momento, ao tê-la ante si pela primeira vez, perguntou-se como um ser humano
podia estar tão diminuído e seguir respirando, como os grandes olhos, que pareciam flutuar livremente em suas conchas, podiam envolvê-la com tal olhar de intensa
e levemente irônica diversão. O doente tinha posto um batín de seda escarlate que não conseguia dar cor ao amarelo insalubre da pele. junto à cabeceira
do leito havia uma mesita de jogo com uma cadeira ao outro lado e dois baralhos preparados sobre o toalha de mesa verde. Ao parecer, Rupert Farlow e seu companheiro
estavam a
ponto de começar uma partida de cesta.
   Sua voz não era potente, mas tampouco trêmula; o eu essencial ainda seguia vivo, ainda seguia presente em suas inflexões nítidas e claras.
   me desculpem se não me levantar. O espírito está disposto, mas a carne é débil. Tenho que reservar minhas energias para procurar que Ray não me olhe as cartas.
Sentem-se,
por favor, se encontrarem onde fazê-lo. Gostariam de tomar algo? Já sei que em teoria não podem beber quando estão de serviço, mas insisto em considerar sua presença
uma visita social. Onde escondeste a garrafa, Ray?
   O moço, sentado à mesa de jogo, não se moveu. Kate respondeu:
   Não tomaremos nada, obrigado. E esperamos terminar em seguida. Queríamos falar com você a respeito da tarde e noite da quinta-feira.
   Me tinha figurado isso.
   O senhor Do Witt diz que ao sair do escritório veio diretamente a casa e esteve aqui com você toda a noite. Poderia confirmá-lo?
   Se James lhes houver dito isso é que é verdade. James nunca minta. É uma das características que seus amigos encontram exasperantes. E é verdade?
   Naturalmente. Não o há dito ele? A que hora chegou a casa?
   Na hora de costume. ao redor das seis e meia, não é isso? Ele o dirá. Certamente já o há dito.
   Kate, depois de apartar um montão de revistas, sentou-se em um sofá de estilo Vitoriano situado frente à cama. Quanto faz que vive você aqui com
o senhor Do Witt?
   Rupert Farlow voltou para ela seus olhos imensos cheios de dor, deslocando a cabeça com lentidão como se o peso de seu crânio nu se tornou excessivo
para o pescoço. Pergunta-me quanto faz que compartilho com ele esta casa em contraposição a, digamos, compartilhar sua vida, compartilhar sua cama?
   Sim, isso lhe pergunto.
   Quatro meses, duas semanas e três dias. Tirou-me do hospital. Não sei muito bem por que. Possivelmente lhe excita viver com um moribundo. A alguns ocorre. Não
havia escassez
de visitantes no hospital, o asseguro; somos a obra de beneficência que sempre encontra voluntários. O sexo e a morte, do mais excitante. A propósito,
não fomos amantes. Está apaixonado por essa garota tão aborrecida e convencional, Frances Peverell. James é depresivamente heterossexual. Pode você lhe estreitar
a
emano sem nenhum temor e inclusive entregar-se a um contato físico mais íntimo, se gosta de provar sorte.
   Daniel decidiu intervir:
   Chegou do trabalho às seis e meia. Voltou a sair mais tarde?
   Não, que eu saiba. deitou-se por volta das onze e estava aqui quando despertei às três e meia, às quatro e quinze e às seis menos quarto. Anotei cuidadosamente
as horas. Ah, e também me emprestou alguns serviços bastante chatos por volta das sete da manhã. Certamente, não teria tido tempo de voltar para o Innocent
House e carregar-se ao Gerard Etienne entre essas horas. Mas possivelmente deva lhes advertir que não sou muito digno de crédito. É o que lhes diria de todos os
modos. Não me convém
muito que encerrem ao James no cárcere, verdade?
   Tampouco lhe convém encobrir a um assassino aduziu Daniel.
   Isso não me inquieta. Se se levarem ao James, dá igual a me levem também. Causaria eu mais moléstias ao sistema de justiça criminal que vocês a mim.
É a vantagem de ser um moribundo: não tem muitos atrativos, mas escapa ao poder da polícia. Contudo, devo tentar lhes ser útil, verdade? Há um detalhe
que confirma o dito. Não chamou por volta das sete e meia, Ray, e falou com o James?
   Ray tinha pego as cartas e estava as baralhando com habilidade.
   Sim, é verdade, às sete e meia. Chamei para ver como te encontrava. James estava aqui a essa hora.
   Já o vêem. Verdade que foi oportuno que o recordasse?
   Kate falou movimento por um impulso: É você..., sem dúvida tem que sê-lo..., o Rupert Farlow que escreveu Jaula de loucas? Tem-na lido?
   Me deu de presente um amigo por Natal. Conseguiu encontrar um exemplar encadernado em tecido; pelo visto, vão bastante procurados. Disse-me que a primeira edição
se
tinha esgotado e que não publicaram uma segunda.
   Uma poli lida. Acreditava que só existiam nas novelas. Gostou?
   Sim, eu gostei. Depois de uns instantes de silêncio, acrescentou: Pareceu-me maravilhosa.
   Ele elevou a cabeça e olhou ao Kate.
   Estava muito agradado com esse livro disse em um tom de voz distinto e tão fico que apenas lhe ouviu.
   Ao olhá-lo aos olhos, Kate viu consternada que estavam reluzentes de lágrimas. O frágil corpo começou a tremer sob seu sudário escarlate e ela sentiu o
impulso, tão forte que quase teve que combatê-lo fisicamente, de aproximar-se e estreitá-lo entre seus braços. Desviou o olhar e, esforçando-se porque sua voz soasse
normal, anunciou-lhe:
   Não lhe fatigaremos mais, mas possivelmente tenhamos que voltar para lhe pedir que nos assine uma declaração.
   Encontrarão-me em casa. E se não estar, não é provável que obtenham uma declaração. Ray os acompanhará à porta.
   Os três baixaram a escada em silêncio. Já na porta, Daniel se voltou para o jovem.
   O senhor Do Witt nos há dito que na quinta-feira pela tarde não chamou ninguém a esta casa, assim um dos dois minta ou se equivoca. É você?
   O menino se encolheu de ombros.
   De acordo, pode que me tenha confundido. Não é nada grave. Possivelmente foi outro dia.
   Ou possivelmente nenhum dia. É perigoso mentir em uma investigação por assassinato. Perigoso para você e para o inocente. Se tiver alguma influência sobre o senhor
Farlow, deveria lhe explicar que a melhor maneira de ajudar a seu amigo quer dizer a verdade.
   Ray tinha a mão na porta. Replicou:
   Não me venha com essa mierda. por que ia fazer o? Isso é o que sempre diz a polícia, que com a verdade ajuda a ti mesmo e ao inocente. lhe dizer a verdade
a pasma vai em interesse da pasma. Não trate de me dizer que vai no nosso. E se querem voltar, será melhor que chamem antes.
   Está muito fraco para que o incomodem.
   Daniel abriu a boca, mas se conteve e não disse nada. A porta se fechou firmemente a suas costas. Puseram-se a andar pela rua Hillgate sem falar. Ao cabo
de um momento, Kate observou:
   Não deveria haver dito aquilo de sua novela. por que não? Não há nada de mau nisso. Quer dizer, se foi sincera.
   Precisamente minha sinceridade foi o mau. Transtornou-o. Fez uma pausa e acrescentou: Quanto crie que vale esse álibi?
   Não grande coisa. Mas se mantiver o dito, e suponho que o manterá, embora averigüemos algo sobre Do Witt, teremos problemas.
   Não necessariamente. Dependerá da força que tenham as possíveis prova. Se o álibi nos parecer pouco convincente, também o parecerá com um jurado.
   Se é que alguma vez levamos a esse menino ante um jurado.
   Kate permaneceu uns instantes em silêncio.
   De todos os modos, intriga-me uma coisa. Pode que tenha sido casualidade, mas me chama a atenção. Está claro que esse amigo dele, Ray, mentiu, mas como sabia
Farlow que o álibi se necessitava para as sete e meia? Ou acaso acertou por uma pura questão de sorte?
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

38
 
   A entrevista do Dalgliesh com o Jean-Philippe Etienne, transmitida pela Claudia Etienne, consertou-se para as dez e meia, o que lhe exigiria sair de Londres
algo cedo. A hora da entrevista era surpreendentemente precisa para um homem que, cabia supor, era dono de seu tempo.
   Dalgliesh se perguntou se Etienne não a teria eleito para assegurar-se de que, mesmo que a entrevista se prolongasse mais do esperado, não se sentiria na
obrigação de convidá-lo a almoçar.
   Também isso lhe convinha. Almoçar a sós em um lugar estranho onde ninguém o conhecesse nem o identificasse, embora a comida resultasse decepcionante, um lugar
onde pudesse comer com a confiança de que ninguém saberia quem era e nenhum telefone poderia localizá-lo, constituía para ele um prazer incomum e, depois da entrevista,
pensava desfrutá-lo ao máximo. Tinha uma entrevista no Yard às quatro da tarde e logo iria diretamente ao Wapping para ouvir o relatório do Kate. Não ficaria
tempo para dar um passeio em solitário nem para explorar alguma igreja de aspecto interessante mas, bem cuidadoso, algo terei que comer.
   Estava escuro quando saiu e o dia clareava por volta de uma manhã seca embora sem sol. Mas quando se desprendeu dos últimos subúrbios do leste de Londres e começou
a circular entre as cores apagadas da campina do Essex, o dossel cinza se iluminou até converter-se em uma bruma branca e transparente com a promessa de que
o sol possivelmente acabaria atravessando-a. além dos sebes recortados, entre os que esporadicamente se elevava algum que outra árvore confundida pelo vento, os
campos arados do outono, com os primeiros brotos verdes do trigo de inverno, estendiam-se até o horizonte longínquo. Dalgliesh experimentou uma sensação de liberação
sob o muito largo céu do East Anglia, como se o peso de uma preocupação antiga e familiar se dissolvesse momentaneamente.
   Pensou no homem ao que ia ver. dirigia-se a Othona House com escassas expectativas, mas não de tudo despreparado. Não tinha tido suficiente tempo para
investigar minuciosamente o histórico do Etienne, mas se tinha passado uns quarenta minutos na Biblioteca de Londres e tinha falado por telefone com um ex
membro da Resistência que residia em Paris, cujo nome lhe tinha sido proporcionado por um contato na embaixada francesa. Agora sabia um pouco do Jean- Philippe
Etienne, herói da Resistência na França do Vichy.
   O pai do Etienne tinha sido proprietário de um próspero periódico e uma imprensa no Clermont- Ferrand, e foi um dos primeiros e mais ativos membros da
Organisation do Résistance de l'Armée. Quando em 1941 muri de câncer, seu filho único, recém casado, hered o negócio e ocup seu lugar na luta contra as autoridades
do Vichy e as forças de ocupação alemãs. Ao igual a seu pai, era gaullista fervente e intensamente anticomunista; desconfiava do Front National porque
tinham-no baseado os comunistas, embora muitos de seus amigos cristãos, socialistas e intelectuais pertenciam a ele. Mas Etienne era solitário por natureza
e trabalhava melhor com seu próprio grupo, pequeno e recrutado em segredo. Sem enfrentar-se abertamente com as principais organizações, concentrou-se na propaganda
antes que na luta armada, publicando seu próprio periódico clandestino, distribuindo panfletos dos aliados lançados do ar, proporcionando regularmente
a Londres valiosa informação e tentando inclusive subornar e desmoralizar aos soldados alemães mediante a introdução de propaganda em seus acampamentos. O
periódico da família seguiu editando-se, mas já não era tanto uma publicação informativa como um periódico literário, com uma cautelosa postura apolítica que
permitiu ao Etienne receber mais papel e tinta de imprensa, então racionados e baixo estreita supervisão, dos que lhe correspondiam. Mediante uma cuidadosa administração
e utilizando toda classe de subterfúgios, Etienne conseguia desviar parte desses recursos a sua produção clandestina.
   Durante quatro anos levou uma dobro vida com tanto êxito que nem os alemães suspeitaram nunca dele nem os membros da Resistência o denunciaram como colaborador.
A profunda desconfiança que sentia para o maquis se incrementou quando, em 1943, um dos grupos mais ativos causou a morte de sua esposa ao voar o trem em
que viajava. Etienne tinha terminado a guerra como um herói; embora não era tão conhecido como Alphonse Rosier, Serge Fischer ou Henri Martin, seu nome figurava
em
o índice dos livros que tratavam sobre a Resistência do Vichy. ganhou-se suas medalhas e sua paz.
   menos de duas horas depois de sair de Londres, Dalgliesh abandonou a A12 ao sudeste do Maldon e se dirigiu para o este cruzando uma campina plaina e aborrecida
até chegar ao atrativo povo do Bradwell-on-Seja, com sua igreja de campanário quadrado e seus casitas de tablones pintadas em rosa, branco e ocre, com cestos
de crisântemos tardios pendurados nos portais. Anotou mentalmente o King's Head como um possível lugar para almoçar. Uma estreita estrada conduzia, segundo o
indicador, à capela do St. Peter-on-the-Wall, e Dalgliesh não demorou para vê-la: um longínquo edifício alto e retangular que se recortava contra o céu. Ao parecer
conservava-se igual a quando seu pai o tinha levado ali pela primeira vez aos dez anos de idade, com umas proporções tão sóbrias e singelas como a casa
de bonecas de uma menina. Havia um abrupto atalho peatonal que chegava até a capela, separado da estrada por uma cerca fixa de madeira, mas a pista que
conduzia a Othona House, umas centenas de metros à direita, estava aberta. Um poste indicador, de madeira que começava a gretar-se e letras quase indecifráveis,
tinha pintado o nome da casa, mas como, junto com a visão do compartimento coberto e as chaminés, confirmou-lhe que aquela pista era o único acesso. Dalgliesh
refletiu que Etienne dificilmente teria podido engenhar um método mais eficaz para desalentar aos visitantes e, por uns instantes, pensou em percorrer a pé os
novecentos metros que o separavam da casa antes que pôr em perigo a suspensão. Um olhar ao relógio lhe indicou que eram as 10.25. Chegaria quase exatamente
à hora convinda.
   A pista que conduzia até a Othona House apresentava profundas roderas, e os buracos ainda estavam cheios de água de chuva da noite anterior. Por um lado confinava
com campos arados que se estendiam até onde alcançava a vista, sem sebes nem indício algum de habitação humana. À esquerda havia uma larga sarjeta bordeada
por um matagal de sarças carregadas de amoras e, mais à frente, uma fileira irregular de nodosos troncos retorcidos quase completamente talheres de hera. A ambos
os lados
do caminho, altas ervas secas, já dobradas pelo peso das vagens de sementes, agitavam-se caprichosamente a impulsos da brisa. Sob sua cuidadosa condução,
o Jaguar se estremecia e avançava a tombos; Dalgliesh começava a lamentar não havê-lo deixado à entrada do imóvel quando os buracos da pista se fizeram menos
freqüentes e as gretas menos profundas, e pôde percorrer os últimos cem metros a maior velocidade.
   A casa, rodeada por um muro de tijolo alto e curvado que parecia relativamente moderno, seguia resultando invisível à exceção dos telhados e chaminés,
mas era evidente que a entrada ficava de cara ao mar.
   Dalgliesh torceu para a direita para rodear o muro e pela primeira vez viu o edifício com claridade.
   Era uma casa agradável e bem proporcionada de tijolo vermelho descolorido pelo tempo, com uma fachada quase com toda certeza de estilo reina Ana. O edifício
central estava coroado por uma mureta holandesa cuja curvatura reproduzia a do elegante pórtico da entrada principal. Aos lados se estendiam duas asas idênticas,
com janelas de oito cristais sob uma cornija de pedra decorada com um relevo de conchas. Estas conchas esculpidas constituíam a única indicação de que a casa
elevava-se na costa, mas mesmo assim parecia extrañamente desconjurado, com uma simetria digna e uma calma aprazível mais próprias do recinto de uma catedral que
daquele promontório remoto e desolado. Não havia nenhum acesso direto ao mar. Othona House estava separada dos escolhos por uns cem metros de restinga salgada,
um empapada e traidor tapete de suaves tons azuis, verdes e cinzas, com retalhos de um verde ácido onde as poças de água de mar refulgiam como gemas engastadas.
Dalgliesh alcançou para ouvir o rumor do mar, mas naquele dia sereno, no que apenas um ligeiro vento fazia sussurrar os canos, chegava-lhe com a suavidade de um
brando suspiro.
   Atirou da campainha e ouviu seu tangido apagado no interior da casa, mas transcorreu mais de um minuto antes de que seus ouvidos captassem o rumor de uns passos
arrastados. produziu-se o chiado de um ferrolho ao correr-se e se ouviu girar a chave antes de que, lentamente, abrisse-se a porta.
   A mulher que ficou olhando-o com inexpressivo desinteresse era anciã certamente, pensou Dalgliesh, encontrava-se mais perto dos oitenta anos que dos setenta,
mas não havia nada de frágil em sua carnuda solidez. Levava um vestido negro abotoado até o pescoço e fechado com um broche de ônix rodeado de aljófares sem
brilho. Suas avultadas pernas surgiam de umas botas negras de cordões e seus peitos se sobressaíam, informe como um travesseiro, por cima de um grande avental branco
engomado. Tinha a cara larga, da cor do sebo, e os maçãs do rosto eram duas cristas angulosas baixo os enrugados e suspicazes olhos. antes de que ele pudesse dizer
nada, perguntou-lhe:
   Vous êtes o commandant Dalgliesh?
   Oui madame, je viens voir monsieur Etienne, s'IL vous plaît.
   Suivez-moi.
   A pronúncia de seu sobrenome foi tão estranha que ao princípio lhe soou estranho, mas a voz da mulher era grave e potente, e tinha uma nota de confiada autoridade.
Talvez na Othona House fora uma servente, mas não era servil. apartou-se a um lado para lhe deixar acontecer e Dalgliesh esperou enquanto ela fechava e assegurava
a porta.
O ferrolho situado por cima de sua cabeça era grosso; a chave, grande e antiquada. Fez-a girar com certa dificuldade. As veias de suas mãos salpicadas e descoloridas
pela idade ressaltavam como cordões morados, e os dedos, fortes e gastos pelo trabalho, estavam retorcidos.
   A mulher o conduziu por um corredor revestido de painéis até uma habitação da parte traseira da casa. Pegando as costas à porta aberta como se Dalgliesh
fora portador de alguma enfermidade contagiosa, anunciou: "O commandant Dalgliesh." A seguir fechou a porta com firmeza, como se se sentisse impaciente por
afastar-se daquele hóspede indeseado.
   Depois da escuridão do corredor, a habitação lhe surpreendeu por sua claridade. Duas janelas altas, de muitos cristais e providas de portinhas, davam a um jardim
sem árvores cruzada por atalhos de lajes no que ao parecer se cultivavam verduras e ervas aromáticas. A única nota de cor a punham uns gerânios tardios
plantados nos grandes vasos de barro de argila que bordeaban o caminho principal. Era evidente que a estadia servia ao mesmo tempo como biblioteca e sala de estar.
Três paredes estavam providas de estanterías até uma altura que podia alcançar-se sem esforço, com mapas e gravuras dispostas sobre elas. No centro da
habitação havia uma mesa redonda coberta de livros. À esquerda, uma chaminé de pedra com um singelo mas elegante friso ornamental. Um pequeno fogo de
lenha ardia sobre o ralo do lar.
   Jean-Philippe Etienne estava sentado à direita do fogo em uma poltrona alta de couro verde rematado com botões, mas não fez gesto de levantar-se até que
Dalgliesh chegou quase a seu lado; então ficou em pé e lhe tendeu a mão. Dalgliesh percebeu durante apenas dois segundos o apertão da carne fria. Naquele
momento lhe parecia que podia distinguir o contorno de cada osso, a contração de cada músculo do rosto do Etienne. Sua figura enxuta se mantinha erguida, embora
andava com rigidez, e sua polida elegância não mostrava nenhum indício de decrepitude. O cabelo cinza era escasso e estava penteado para trás de uma frente limpa;
o largo nariz me sobressaía sobre uma boca larga e quase sem lábios, as orelhas grandes jaziam plainas contra o crânio e, baixo os elevados maçãs do rosto, as visíveis
venha
pareciam a ponto de sangrar. Etienne levava uma jaqueta de veludo que recordava um batín Vitoriano sobre umas rodeados calças negras.
   Com idêntica rigidez teria podido levantar um latifundiário do século XIX para receber a uma visita, mas sua presença, Dalgliesh o advertiu imediatamente,
era acolhida com tão pouco agrado nessa elegante biblioteca como o tinha sido sua chegada à casa.
   Etienne lhe assinalou a poltrona que havia frente ao dele e voltou a sentar-se. Logo disse:
   Claudia me entregou sua carta, mas lhe rogo que se abstenha de me renovar suas condolências. Não podem ser sinceras. Você não conhecia meu filho.
   Não faz falta conhecer uma pessoa para lamentar que tenha morrido muito jovem e sem necessidade replicou Dalgliesh.
   Tem você razão, naturalmente. A morte dos jovens sempre resulta mais amarga pela injustiça da mortalidade: os jovens se vão, os velhos seguem
vivendo. Tomará você algo? Veio? Café?
   Café, por favor.
   Etienne saiu ao corredor e fechou a porta a suas costas. Dalgliesh lhe ouviu chamar, por isso lhe pareceu, em francês. À direita da chaminé pendurava o
cordão bordado de uma campainha, mas pelo visto Etienne preferia não utilizá-la em sua relação com o pessoal da casa. Quando retornou a sua poltrona, prosseguiu:
   Tinha você que vir para ver-me, compreendo-o, mas não posso lhe dizer nada que lhe sirva de ajuda.
   Não sei por que morreu meu filho, a não ser que fora, como parece o mais provável, por acidente.
   Sua morte está rodeada de certo número de singularidades que permitem supor que pôde não ter sido acidental objetou Dalgliesh. Sei que isto deve lhe resultar
doloroso e o lamento. A que singularidades se refere?
   O fato de que morrera por intoxicação de monóxido de carbono em uma habitação que logo que visitava. Um cordão de janela quebrado que pôde partir-se quando atiraram
dele, com o que teria resultado impossível abrir a janela. Um magnetófono desaparecido. Uma chave de passagem extraíble na estufa de gás que pôde haver-se retirado
depois de acender a estufa. A posição do corpo.
   Etienne protestou.
   Não me há dito nada novo. Minha filha esteve ontem comigo. Está claro que todos os indícios são absolutamente circunstanciais. Havia alguma rastro na chave
do gás?
   Só um borrão. A superfície é muito pequena para obter nada útil.
   Até tomando todas juntas, estas hipóteses são menos... singulares, há dito você?, que a sugestão de que Gerard morreu assassinado. As singularidades
não constituem nenhuma prova.
   Passar por cima o assunto da serpente. Sei que no Innocent House há um brincalhão malicioso, mas sem dúvida suas atividades não merecem a atenção de todo um comandante
de New Scotland Yard.
   Merecem-na, senhor, se complicarem, obscurecem ou estão relacionadas com um assassinato.
   ouviram-se passos no corredor. Etienne se dirigiu imediatamente para a porta e a manteve aberta para deixar passar à ama de chaves. A mulher entrou com uma
bandeja em que levava uma cafeteira, uma jarrita marrom, açúcar e uma taça grande. Depositou a bandeja sobre a mesa e, depois de olhar de soslaio ao Etienne, saiu
da habitação. Etienne serve o café e ofereceu a taça ao Dalgliesh. Era evidente que ele não pensava beber, e Dalgliesh se perguntou se se trataria de uma argúcia,
não muito sutil, para situá-lo em desvantagem. Não havia nenhuma mesita junto a sua poltrona, de modo que deixou a taça sobre o suporte da chaminé.
   Etienne voltou para seu assento.
   Se meu filho foi assassinado, quero que seu assassino compareça ante a justiça, embora desconfie de lhe assegurou. Possivelmente não seja necessário que lhe diga
isto,
mas é importante que o diga e que você me cria. Se me encontrar pouco serviçal é porque não posso lhe emprestar nenhuma ajuda. Sabe se seu filho tinha algum inimigo?
   Não conheço nenhum. Sem dúvida tinha rivais profissionais, autores insatisfeitos, colegas que não o apreciavam, estavam molestos com ele ou o invejavam; isso
é o que está acostumado a acontecer tratando-se de um homem de êxito. Mas não sei de ninguém que pudesse desejar sua morte. Há algo em seu passado ou no de você,
alguma injustiça,
alguma ofensa antiga ou imaginária que tivesse podido provocar um rancor duradouro?
   Etienne fez uma pausa antes de responder e Dalgliesh advertiu pela primeira vez o silêncio que reinava na habitação. O fogo crepitou de repente com um pequeno
estalo de chamas e uma chuva de faíscas caiu sobre o lar. Etienne olhou o fogo. Rancor? repetiu. Houve um tempo em que os inimigos da França foram meus
inimigos e combati contra eles da única maneira que podia. Alguns dos que sofreram devem ter filhos e netos. Parece-me absurdo supor que tenham decidido
vingar-se em meu filho. E logo está minha própria gente, as famílias de quão franceses foram detidos e fuzilados a conseqüência das atividades da Resistência.
Alguns poderiam sustentar que tinham uma ofensa legítima, mas sem dúvida não contra meu filho. Sugiro-lhe que concentre sua atenção no presente, não no passado,
e
nas pessoas que normalmente tinham acesso ao Innocent House. A meu entender, essa seria a linha de investigação mais adequada.
   Dalgliesh agarrou a taça. O café, sozinho, como ele o queria, ainda estava muito quente para bebê-lo. Voltou a deixá-lo no suporte e prosseguiu:
   A senhorita Etienne nos há dito que seu filho estava acostumado a vir a lhe ver com regularidade. Discutiam vocês os assuntos da empresa?
   Não discutíamos nada. Pelo visto, sentia a necessidade de me manter informado dos acontecimentos, mas não me pedia conselho nem eu o dava. Já não me interessa
a empresa; de fato, apenas me interessou durante os últimos cinco anos que trabalhei nela. Gerard queria vender Innocent House e transladar-se ao Docklands. Não
é,
acredito, nenhum secreto. Ele o considerava necessário e sem dúvida o era. Sem dúvida o segue sendo. Guardo uma lembrança confusa de nossas conversações; falava
de
dinheiro, aquisições, mudanças na palmilha, aluguéis, um possível comprador para o Innocent House. Lamento que minha memória não seja mais precisa. Mas os anos que
passou você na empresa não foram desventurados?
   Pergunta-a, advertiu Dalgliesh, foi recebida como uma rabugice. aventurou-se em um terreno proibido. Etienne respondeu:
   Nem felizes nem desventurados. Desempenhava uma função, embora, como lhe digo, nos últimos cinco anos foi cada vez menos importante. Entretanto, duvido que nenhum
outro trabalho me tivesse satisfeito mais. Henry Peverell e eu tivéssemos tido que nos partir antes. A última vez que visitei Innocent House foi arrojar uma
parte de suas cinzas ao Támesis. Não voltarei a ir.
   Dalgliesh comentou:
   Seu filho tinha previstas diversas mudanças, alguns, sem dúvida, mal acolhidos.
   Toda mudança é sempre mal acolhido. Me alegro de me haver situado fora de seu alcance.
   Alguns dos que sentimos aversão por certos aspectos do mundo moderno podemos nos considerar afortunados: já não precisamos viver nele.
   Ao observá-lo enquanto por fim bebia a sorvos o café, Dalgliesh viu que o homem estava tão tenso como se fora a saltar da poltrona e se deu conta de que Etienne
era um verdadeiro recluso. A companhia humana, exceto a das poucas pessoas que viviam com ele, resultava-lhe intolerável durante mais de um breve lapso, e estava
chegando ao final de sua resistência. Era hora de ir-se; não averiguaria nada mais.
   Uns minutos mais tarde, enquanto Etienne o acompanhava até a porta principal uma cortesia que não tinha esperado, Dalgliesh fez um comentário sobre a idade
e a arquitetura da casa. De tudo o que havia dito, foi o único que suscitou em seu anfitrião uma resposta interessada.
   A fachada é de estilo reina Ana, como suponho que você saberá, mas o interior é principalmente Tudor. A casa original que se elevava neste lugar era muito
mais antiga. Ao igual à capela, está construída sobre as muralhas do estabelecimento romano da Othona; daí o nome da casa.
   Estava pensando que eu gostaria de visitar a capela, se me permite deixar o carro aqui.
   É obvio.
   Mas concedeu a permissão a contra gosto, como se até a presença do Jaguar em seu pátio dianteiro constituíra uma intrusão perturbadora. Apenas Dalgliesh havia
cruzado a porta quando esta se fechou firmemente a suas costas e se ouviu o chiado do ferrolho.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

39
 
   Dalgliesh médio esperava encontrar a capela fechada, mas a porta cedeu sob sua mão, de modo que se internou em seu silêncio e simplicidade. O ar estava muito
frio e cheirava a terra e argamassa, um aroma nada eclesiástico, mas sim mas bem doméstico e contemporâneo. A capela estava escassamente mobiliada. Havia um altar
de pedra
com uma cruz grega sobre ele, uns quantos bancos, dois vasos com flores secas, um a cada lado do altar, e um fichário com guias e folhetos. Dalgliesh dobrou
um bilhete, meteu-o na escova e, continuando, agarrou uma das guias e se sentou em um banco a estudá-la, sem saber muito bem por que experimentava aquela
sensação de vazio e de leve depressão. A capela, depois de tudo, era um dos edifícios eclesiásticos mais antigos da Inglaterra, acaso o mais antigo, o
único monumento que sobrevivia naquela parte da Inglaterra da Igreja anglocelta, fundada por são Cedd, quem desembarcou no velho forte romano da Othona
no remoto ano 653. A capela, pois, elevou-se plantando cara ao frio e inóspito mar do Norte durante treze séculos. Se havia algum lugar no que pudesse
perceber os ecos moribundos do canto plano e a vibração de 1.300 anos de prece murmurada, sem dúvida era aquele.
   Que o edifício fosse considerado santo ou vazio de santidade era uma questão de percepção pessoal, e sua incapacidade para experimentar naqueles momentos algo
distinto à descarga de tensão que sentia sempre que se encontrava completamente a sós constituía um fracasso de sua imaginação, não do lugar em si. Desejou,
com uma intensidade que era quase um desejo, poder ouvir o mar sentado ali em silêncio; aquele incessante ir e vir que, mais que nenhum outro som natural, comovia
a mente e o coração com a sensação do inexorável passado do tempo, dos séculos de vidas humanas desconhecidas e incognoscibles, com suas fugazes misérias e seus
alegrias ainda mais fugazes. Mas ele não tinha ido ali a meditar, a não ser a pensar no assassinato e nos vexames mais imediatos do assassinato. Deixou a guia a
um
lado e repassou mentalmente a recém concluída entrevista.
   Tinha sido uma visita insatisfactoria. A viagem era necessária, mas tinha resultado ainda mais improdutivo do que se temia. Entretanto, não conseguia desprender-se
da convicção de que na Othona House havia algo importante que averiguar e que Jean-Philippe Etienne tinha eleito não dizer-lhe Cabia a possibilidade, é obvio,
de que Etienne não o houvesse dito porque era algo que tinha esquecido, algo que ele considerava insignificante, talvez inclusive algo que não era consciente de
saber.
Dalgliesh voltou a pensar no fato central do mistério: a grabadora desaparecida e os arranhões que Gerard Etienne tinha na boca. O assassino se havia sentido
na necessidade de lhe dizer algo a sua vítima antes de que morrera, de lhe falar enquanto se estava morrendo. Quem quer que tivesse sido o responsável, queria que
Etienne muriese, mas também queria que soubesse por que morria. devia-se só a uma vaidade irresistível do assassino ou acaso existia outra razão enterrada na
vida passada do Etienne? De ser assim, parte dessa vida estava presente na Othona House e ele não tinha conseguido descobri-la.
   perguntou-se o que teria conduzido ao Etienne a terminar sua vida naquela úmida língua de terra em um país estrangeiro, naquela lôbrega costa penteada pelo
vento, onde a restinga se estendia como uma esponja azeda e médio esmiuçada que absorvia as franjas do gélido mar do Norte. Tinha saudades alguma vez os Montes
de sua província natal, o falatório de vozes francesas na rua e no café, o som, os aromas e as cores da França rural? Tinha ido a aquele lugar
desolado para esquecer o passado ou para revivê-lo? Que relação podiam ter aqueles desventurados acontecimentos, antigos e longínquos, com a morte de seu filho quase
cinqüenta anos mais tarde, um filho de mãe inglesa, nascido no Canadá e assassinado em Londres? Que tentáculos, se os havia, estendiam-se desde aqueles anos tumultuosos
para enroscar-se em torno do pescoço do Gerard Etienne?
   Jogou uma olhada ao relógio. Ainda faltava um minuto para as onze e meia. tomaria algum tempo para visitar os monumentos da igreja do St. George, em
Bradwell, mas atrás dessa breve visita não teria desculpa possível para não empreender a volta a Londres e almoçar em New Scotland Yard.
   Ainda permanecia sentado, sujeitando fracamente a guia com uma mão, quando se abriu a porta e entraram duas mulheres de idade. Foram vestidas e calçadas para
caminhar,
e cada uma levava uma mochila pequena. Pareceram desconcertadas e um pouco receosas ao encontrá-lo ali, por isso Dalgliesh, acreditando que a presença de um
homem só podia lhes incomodar, saudou-as com um apressado "bom dia" e partiu. Da porta, voltou um instante a cabeça e viu que já estavam de joelhos,
e se perguntou o que era o que encontravam naquele lugar silencioso e se, de ter chegado com mais humildade, não teria podido encontrá-lo ele também.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

40
 
   O piso do Gerard Etienne se achava na oitava planta do Barbican. Claudia Etienne havia dito que estaria ali esperando-os às quatro em ponto. Quando
Kate chamou, a porta se abriu imediatamente e, sem dizer uma palavra, a irmã da vítima se fez a um lado para que pudessem passar.
   Começava a obscurecer, mas a grande habitação retangular seguia cheia de luz, do mesmo modo em que uma habitação conserva o calor do dia depois da posta
do sol. As largas cortinas, que pareciam de linho cor nata, estavam abertas para deixar ver, ao outro lado da cristaleira, um atrativo panorama do lago
e o elegante chapitel de uma igreja da cidade. A primeira reação do Daniel foi desejar que o piso fora dele; a segunda, pensar que em todas suas visitas
aos lares de vítimas de assassinato nunca tinha visto nenhum tão impessoal, tão ordenado, tão livre dos rastros da vida que o tinha habitado. Parecia
um piso de amostra, cuidadosamente mobiliado para atrair a um comprador. Mas teria que ser um comprador rico: nada do que havia nesse apartamento era barato.
E se equivocava ele ao julgá-lo impessoal, posto que falava de seu proprietário com tanta claridade como a mais abarrotada sala de estar dos bairros baixos ou a
quarto de qualquer furcia. Daniel teria podido jogar a aquele jogo da televisão: "Descreva ao proprietário deste apartamento." Varão, jovem, rico, de gostos
refinados, organizado, solteiro; não havia nada feminino naquela sala. Amante da música, evidentemente; a luxuosa equipe estereofônica era de esperar, possivelmente,
em qualquer piso de um solteiro acomodado, mas não o piano de concerto. Todos os móveis eram modernos, de madeira clara sem polir e trabalhada com elegância.
   Havia armários, estanterías e um escritório. Em um extremo da habitação, perto de uma porta que sem dúvida alguma conduzia à cozinha, havia uma mesa de comilão
redonda com seis cadeiras a jogo.
   Não havia chaminé. O ponto focal da sala era o ventanal, e um sofá comprido e duas poltronas de suave pele negra estavam dispostos de cara ao mesmo ao redor
de uma mesita de café.
   Só havia uma fotografia. Sobre uma estantería baixa, em um marco de prata, estava o retrato de estudo de uma jovem, sem dúvida a prometida do Etienne. Os finos
cabelos caíam da raia central até emoldurar uma cara alargada e de facções delicadas, ir olhos grandes e a boca possivelmente muito pequena, mas com um
lábio superior carnudo e belamente curvado. tratava-se de um objeto de luxo mais adquirido como de costume? Considerando que podia resultar ofensivo contemplar
a foto com muita atenção, voltou-se para o único quadro, um óleo grande do Etienne com sua irmã que se achava pendurado na parede oposta ao ventanal.
No inverno, com as cortinas fechadas, essa vivida imagem seria o centro da habitação: cores, formas, pinceladas que proclamavam quase agressivamente a mestria
do artista. Talvez essa mesma semana, ou a seguinte, lhes teria dado a volta ao sofá e as poltronas a fim de que ficassem de cara à pintura, e para o Etienne
teria começado oficialmente o inverno. Esta identificação com a rotina da vida do morto desejou muito ao Daniel irracional e um tanto inquietante. Depois
de tudo, não havia ali nenhuma evidência da presença do Etienne: nem a comida ao meio terminar, nem um cinzeiro sem esvaziar, nem outros pequenos desórdenes e enredos
da vida ordinária.
   Viu que Kate estava examinando o óleo. Era muito natural; todo mundo sabia que gostava da arte moderna. A inspetora se voltou para a Claudia Etienne.
   É um Freud, não? É magnífico.
   Sim. Meu pai o encarregou como presente para o Gerard quando fez vinte e um anos.
   Estava tudo aí, pensou Daniel, aproximando-se dela: a arrogante atitude, a inteligência, a segurança, a certeza de que a vida era sua com apenas tomá-la.
junto à figura central, sua irmã, mais jovem, mais vulnerável, olhava ao pintor com olhos precavidos, como desafiando-o a fazer o pior de que fora capaz.
   Claudia Etienne perguntou: Querem café? Em seguida parecerá. Nunca se podia contar encontrando comida nesta casa; Gerard estava acostumado a comer fora, mas sempre
tinha vinho e café. Podem ir à cozinha, se quiserem, mas ali não há nada que ver. Todos os papéis do Gerard estão nessa escrivaninha. abre-se pelo lado; tem um
fechamento dissimulado. Olhem quanto gostem, mas não se levarão nenhuma alegria. Os documentos de importância os guardava no banco; quanto aos papéis de trabalho,
estavam todos no Innocent House e já os têm vocês. Gerard sempre vivia como se acreditasse que ia morrer em qualquer momento. Há uma coisa, entretanto. Hei
encontrado esta carta na palhinha, ainda sem abrir. Leva data de treze de outubro, assim certamente chegou na terça-feira com o segundo correio. Não vi
razão para não abri-la.
   Tendeu-lhes um sobre branco, liso. O papel que continha era da mesma alta qualidade, com a direção em relevo. A caligrafia era grande, uma letra quase de
menina. Daniel a leu por cima do ombro do Kate.
   Querido Gerard:
   Tenho que te dizer que quero romper nosso compromisso. Suponho que deveria acrescentar que lamento te fazer danifico, mas não acredito que lhe aduela exceto em
seu orgulho. Afetará-me
mais a mim, mas não muito nem por muito tempo. Mamãe acredita que teríamos que publicar um aviso no Teme, já que anunciamos o compromisso, mas nestes momentos
não me parece muito importante. te cuide. Foi divertido enquanto durou, mas não tanto como teria podido sê-lo.
   LUCINDA
   
   Debaixo havia um aplique: "me avise se quiser que te devolva o anel."
   Daniel pensou que era bom que se encontrou a carta sem abrir. Se Etienne a tivesse lido, um advogado defensor teria podido utilizá-la para aduzir
um motivo de suicídio. Desta maneira, tinha escassa importância para a investigação.
   Kate se dirigiu a Claudia. Estava informado seu irmão de que lady Lucinda se dispunha a romper o compromisso?
   Não que eu saiba. Certamente, agora ela lamentará ter escrito essa carta. Já não pode fazer o papel de prometida afligida de dor.
   O escritório era moderno, singelo e na aparência despretensioso, mas com um interior habilmente desenhado e provido de numerosas gavetas e fichários. Tudo
estava em uma ordem impecável: faturas pagas, algumas fatura ainda pendentes, talonários de cheques dos dois últimos anos sujeitos com uma borracha elástica, um
gaveta com sua carteira de investimentos. Era patente que Etienne só conservava o necessário, limpando sua vida à medida que a vivia, desprezando o supérfluo, levando
sua vida social, for do tipo que fosse, por telefone e não por carta. Fazia só uns minutos que tinham posto mãos à obra quando retornou Claudia Etienne trazendo
uma bandeja com uma cafeteira e três taças. Deixou a bandeja na mesa baixa e os dois policiais se aproximaram para agarrar suas taças. Ainda estavam os três de pé,
Claudia
Etienne com a taça na mão, quando se ouviu o ruído de uma chave na fechadura.
   Claudia soltou um som estranho algo entre um ofego e um gemido e Daniel viu que seu rosto se convertia em uma máscara de terror. A taça lhe escapou de entre
os dedos e uma mancha marrom se estendeu rapidamente pelo tapete. A mulher se agachou para recolhê-la, e suas mãos escavaram na branda superfície com um tremor
tão violento que não pôde voltar a deixar a taça na bandeja.
   Ao Daniel pareceu que seu terror contagiava a ele e ao Kate, de modo que também eles contemplaram a porta fechada com olhos cheios de horror.
   A porta se abriu pouco a pouco e o original da fotografia se materializou na habitação.
   Sou Lucinda Norrington lhes anunciou. Quais são vocês? Sua voz era clara e aguda, de uma menina.
   Kate havia se tornado instintivamente para sustentar a Claudia, e foi Daniel quem respondeu.
   Polícia. A inspetora Miskin e o inspetor Aaron.
   Claudia conseguiu dominar-se rapidamente e se incorporou com estupidez, rechaçando a ajuda do Kate. A carta da Lucinda jazia sobre a mesa junto à bandeja do
café. Daniel teve a impressão de que todos os olhos estavam fixos nela.
   Claudia falou com voz áspera e gutural. por que vieste?
   Lady Lucinda deu ir passos para o interior da habitação.
   vim por essa carta. Não queria que ninguém pensasse que Gerard se havia suicidado por mim.
   Além não o fez, verdade? Refiro a suicidarse. Como pode estar segura? perguntou Kate com suavidade.
   Lady Lucinda voltou para ela seus enormes olhos azuis.
   Porque se gostava de muito. A gente que se gosta não se suicida. E de todos os modos, nunca se teria matado porque eu lhe desse cabaças. Não me queria; só queria
uma idéia que se feito de mim.
   Claudia Etienne tinha recuperado sua voz normal.
   Adverti-lhe que o compromisso era uma loucura, que foi uma garota egoísta, estirada e mas bem tola, mas acredito que possivelmente fui injusta contigo. Não é
tão tola
como supunha. De fato, Gerard não chegou a ler sua carta. Encontrei-a aqui sem abrir.
   Então, por que a abriu? Não ia dirigida a ti.
   Alguém tinha que abri-la. lhe teria podido devolver isso mas não sabia quem a tinha enviado.
   Nunca tinha visto sua letra.
   Lady Lucinda perguntou: Posso ficar minha carta?
   Respondeu-lhe Kate.
   Nós gostaríamos de conservá-la por algum tempo, se nos permitir isso.
   Ao parecer, lady Lucinda tomou como uma declaração de fato, não como uma petição.
   Mas me pertence protestou. Escrevi-a eu.
   É possível que só a necessitemos por muito pouco tempo, e não pensamos publicá-la.
   Daniel, que ignorava o que dizia exatamente a lei em relação à propriedade das cartas, perguntou-se se, em realidade, tinham algum direito a ficar a e o que
faria Kate se lady Lucinda insistia em levar-lhe Também se perguntou por que Kate estava tão interessada na carta; a fim de contas, Etienne não tinha chegado
a lê-la. Mas como podiam estar seguros disso? Só tinham a palavra de sua irmã de que a tinha encontrado sobre a palhinha ainda sem abrir. Lady Lucinda
não opôs mais reparos; encolheu-se de ombros e se voltou para a Claudia.
   Sinto muito o do Gerard. Foi um acidente, não? Essa é a impressão que deu a mamãe por telefone, mas esta manhã alguns periódicos insinúan que poderia
tratar-se de algo mais complicado.
   Não o assassinaram, verdade?
   Cabe a possibilidade respondeu Kate.
   De novo os olhos azuis fixaram nela um olhar especulativo.
   Que extraordinário. Acredito que não conheci nunca a ninguém que morrera assassinado. Conhecido pessoalmente, quero dizer.
   aproximou-se da fotografia e a colheu com as duas mãos para estudá-la atentamente, como se não a tivesse visto nunca e não se sentisse muito agradada
com o que o fotógrafo tinha feito de suas facções. Continuando, anunciou:
   Levarei-me isto. depois de tudo, Claudia, não te faz nenhuma falta.
   Em rigor observou Claudia, quão únicos podem dispor de seus pertences são os testamentos ou a polícia.
   Bom, à polícia tampouco faz nenhuma falta. Não quero que fique aqui no piso vazio, e menos se Gerard foi assassinado.
   Assim não era imune à superstição. Este descobrimento intrigou ao Daniel: não casava bem com seu aprumo. Observou-a enquanto ela contemplava a fotografia
e deslizava pelo cristal um comprido dedo de unha rosada, como se queria comprovar se havia pó. Logo, a jovem se voltou para a Claudia.
   Suponho que haverá algo para envolvê-la, não?
   Pode que haja uma bolsa de plástico na gaveta da cozinha, olha-o você mesma. E se houver alguma outra coisa que seja tua, este poderia ser um bom momento para
recolhê-la.
   Lady Lucinda nem sequer se incomodou em passear o olhar pela habitação.
   Não há nada mais.
   Se quiser café, traz outra taça. Está recém feito.
   Não quero café, obrigado.
   Esperaram em silêncio até que, em menos de um minuto, retornou com a fotografia metida em uma bolsa de plástico dos armazéns Harrods. dirigia-se para a
porta quando Kate a deteve. Poderíamos lhe fazer umas perguntas, lady Lucinda? Pensávamos lhe pedir uma entrevista de todos os modos, mas já que está aqui nos economizaremos
tempo todos. Quanto tempo? Quero dizer, quanto vão durar essas perguntas?
   Não muito. Kate se voltou para a Claudia. Importa-lhe que utilizemos este piso para a entrevista?
   Não sei como poderia impedir-lhe Suponho que não esperarão que me retire à cozinha, verdade?
   Não será necessário.
   Ou ao dormitório. Possivelmente resultaria mais cômodo.
   Olhava fixamente a lady Lucinda, que respondeu muito tranqüila.
   Não lhe saberia dizer isso Não estive nunca no dormitório do Gerard.
   sentou-se na poltrona que tinha mais perto e Kate o fez no de em frente. Daniel e Claudia se sentaram entre ambas, no sofá. Quando viu seu prometido por
última vez? começou Kate.
   Não é meu prometido. Claro que então ainda o era. Vi-o na sábado passada. na sábado nove de outubro?
   Suponho, se na sábado passada foi dia nove. Pensávamos ir ao Bradwell-on-Seja para visitar seu pai, mas o tempo estava chuvoso e Gerard disse que a casa
de seu pai já era bastante lúgubre de por si sem necessidade de chegar sob a chuva e que iríamos outro dia. Assim, como Gerard queria voltar a ver o díptico
do Wilton, pela tarde estivemos na asa Sainsbury da National Gallery, e daí fomos tomar o chá ao Ritz. De noite não o vi, porque mamãe queria que
fora com ela ao Wiltshire a passar a noite e no domingo com meu irmão. Mamãe queria falar dos acertos matrimoniais antes de ver os advogados. E como estava
o senhor Etienne na sábado quando o viu, além de deprimido pelo tempo?
   Não estava deprimido pelo tempo. A visita a seu pai não corria nenhuma pressa. Gerard não se deprimia pelas coisas que não podia trocar.
   E as que podia trocar, trocava-as? interveio Daniel.
   Ela se voltou para olhá-lo e, de repente, sorriu.
   Exatamente. Logo acrescentou: Essa foi a última vez que o vi, mas não quão última falei com ele. na quinta-feira de noite falamos por telefone. Falou você com
ele faz dois dias, a noite em que morreu? perguntou Kate com voz cuidadosamente controlada.
   Não sei quando morreu. Encontraram-no morto ontem pela manhã, não? Eu falei com ele por sua linha particular a noite anterior. A que hora, lady Lucinda?
   Por volta das sete e vinte, suponho. Possivelmente fora um pouco mais tarde, mas estou segura de que foi antes das sete e meia porque mamãe e eu tínhamos que
sair
de casa a essa hora para ir jantar com minha madrinha e eu já estava vestida. Pensei que tinha o tempo justo para telefonar ao Gerard.
   Queria uma desculpa para que não se alargasse a conversação. Por isso estou tão segura da hora. Do que queria lhe falar? Já lhe tinha escrito para romper o compromisso.
   Já sei. Supunha que teria recebido a carta pela manhã e queria lhe perguntar se estava de acordo com mamãe em que devíamos publicar um anúncio no Teme,
ou se preferia que escrevêssemos cada um a nossos amigos pessoais e deixássemos simplesmente que corresse a notícia.
   Naturalmente, agora mamãe quer que rompa a carta e não diga nada; mas não o farei. Claro que tampouco poderia fazê-lo, porque vocês já a viram. Enfim,
ao menos não terá que preocupar-se com o anúncio no Teme. Assim se economizará algumas libera.
   O alfilerazo de veneno foi tão repentino e se desvaneceu tão depressa que Daniel quase tivesse podido acreditar que não o tinha percebido. Como se não tivesse
ouvido
nada, Kate perguntou: E o que lhe disse Gerard do anúncio, da ruptura do compromisso? Não lhe perguntou você se tinha recebido a carta?
   Não lhe perguntei nada. Não falamos de nada absolutamente. Disse-me que não podia falar porque tinha uma visita. Está segura disso?
   A voz aguda e cristalina era quase inexpressiva.
   Não estou segura de que tivesse uma visita. Como ia estar o? Não ouvi ninguém nem falei com ninguém exceto com o Gerard. Possivelmente foi só uma desculpa para
não falar
comigo, mas estou segura de que me disse isso. E com essas mesmas palavras? Quero que isto fique bem claro, Lady Lucinda. Não lhe disse que não estava sozinho ou
que havia
alguém com ele? Empregou a palavra "visita"?
   Já o hei dito. Disse-me que tinha uma visita. E isso ocorreu, digamos, entre as sete e vinte e as sete e meia?
   Mais perto das sete e meia. O carro veio a nos buscar a mamãe e a mim exatamente a essa hora.
   Uma visita. Daniel fez um esforço para não olhar ao Kate pela extremidade do olho, mas sabia que seus pensamentos seguiam o mesmo curso. Se verdadeiramente Etienne
tinha utilizado esta palavra e a moça parecia estar segura disso, isso sem dúvida queria dizer que Etienne estava com alguém alheio à empresa. Não era verossímil
que tivesse utilizado o término para referir-se a um sócio ou um membro da palmilha. De ser assim, não teria sido mais natural que dissesse "estou ocupado", ou "estou
reunido", ou "estou com um colega"? E se alguém tinha ido ver o aquela noite, com entrevista prévia ou sem ela, esse alguém ainda não tinha dado sinais de vida.
Por
que não, se a visita tinha sido inocente, se tinha deixado ao Gerard vivo e com boa saúde? Não tinha cotada nenhuma cita na agenda do despacho do Etienne, mas
isso não demonstrava nada. O visitante podia lhe haver telefonado por sua linha privada em qualquer momento do dia, ou haver-se apresentado inesperadamente sem haver
sido convidado. De todos os modos só era um indício circunstancial, como tantos outros indícios neste caso cada vez mais desconcertante.
   Não obstante, Kate seguia insistindo. Acabava de lhe perguntar a lady Lucinda quando tinha estado no Innocent House por última vez.
   Não voltei ali da festa de dez de julho. Em parte se organizou para celebrar meu aniversário, porque fazia vinte anos, e em parte como festa de compromisso.
   Temos a lista de convidados disse Kate. Suponho que teriam liberdade para mover-se por toda a casa se queriam, ou não?
   Alguns o fizeram, parece-me. Já sabe como são os casais nas festas: gostam de apartar-se de outros. Não acredito que nenhum quarto estivesse fechado com
chave, embora Gerard disse que tinham advertido ao pessoal que guardasse todos os papéis em um sítio seguro. E por acaso não viu você que alguém subisse
aos pisos altos da casa, por volta do quarto dos arquivos?
   Bem, para falar a verdade, sim. Foi bastante curioso. Tinha que ir ao serviço, mas o da planta baixa, que era o que utilizavam as convidadas, estava ocupado.
Então recordei que havia um quarto de banho pequeno no último piso e decidi ir a esse. Subi pela escada e vi baixar a duas pessoas. Não eram absolutamente a
classe de gente que me teria imaginado encontrar. Além disso, tinham uma expressão de culpabilidade. Foi estranho seriamente. Quais eram, lady Lucinda?
   George, o velho que atende o posto telefônico em recepção, e essa mujercita insossa que está casada com o contável, não recordo como se chama, Sydney Bernard
ou
algo pelo estilo. Gerard apresentou a todos os empregados e a suas algemas. Foi aburridísimo. Sydney Bartrum?
   Isso; sua mulher. Levava um vestido extraordinário de tafetán azul celeste com uma bandagem rosa na cintura. voltou-se para a Claudia Etienne. Não te lembra,
Claudia? Era de saia muito larga, coberta de tul rosa, e mangas abullonadas. Horroroso!
   Claudia respondeu com secura.
   Lembro-me. Disse-lhe algum dos dois para que tinham subido ao último piso?
   Para o mesmo que eu, suponho. Ela ficou muito tinta e balbuciou algo sobre o quarto de banho. Eram extraordinariamente parecidos; a mesma cara redonda, o
mesmo sobressalto. George estava como se o tivessem surpreso com a mão na caixa. Mas foi estranho, não acreditam? Que estivessem os dois juntos, quero dizer.
George não era dos convidados, é obvio; só estava ali para recolher os casacos dos homens e vigiar que não penetrasse ninguém. E se a senhora Bartrum queria
ir ao serviço, por que não o disse a Claudia ou a alguma das mulheres da palmilha?
   E logo, comentou-o você com alguém? perguntou Kate. Com o senhor Gerard, por exemplo.
   Não, não era tão importante; só curioso. Quase o tinha esquecido, até agora. Ouça, há alguma outra coisa que queiram saber? Parece-me que já estive aqui bastante
momento. Se querem voltar a falar comigo, será melhor que me escrevam e procurarei consertar um encontro.
   Nós gostaríamos de ter uma declaração assinada, lady Lucinda. Possivelmente poderia ir à delegacia de polícia de polícia do Wapping logo que lhe seja possível
disse Kate. Com
meu advogado?
   Se o preferir ou se o julgar necessário, sim.
   Suponho que não fará falta. Mamãe disse que possivelmente me conviria ter um advogado que se ocupasse de meus interesses na investigação, se por acaso saía o
da ruptura
do compromisso, mas não acredito que tenha já nenhum interesse, se Gerard morreu antes de ler minha carta.
   ficou em pé e lhes estreitou formalmente a mão ao Kate e ao Daniel, embora sem fazer nenhum gesto para a Claudia Etienne. Mas ao chegar à porta se voltou
e se dirigiu a esta.
   Nunca se incomodou em fazer o amor comigo quando estávamos prometidos, assim não acredito que o matrimônio tivesse resultado muito divertido para nenhum dos dois,
não te parece, Claudia?
   Daniel conjeturou que, de não ter estado eles dois diante, a jovem teria utilizado uma expressão mais grosseira. Lady Lucinda acrescentou: Ah, e será melhor que
lhe
você fique isto. Deixou uma chave sobre a mesa baixa. Suponho que não voltarei a vir a este piso.
   Ao sair fechou a porta com firmeza, e um segundo mais tarde lhe ouviram fechar a porta principal com a mesma irrevocabilidad.
   Claudia disse:
   Gerard era um romântico. Dividia às mulheres entre aquelas com as que se podia ter aventuras e aquelas com as que alguém se casava. A maioria dos homens
supera esta miragem sexual antes de cumprir os vinte e um. Certamente era uma reação contra as muitas conquistas sexuais realizadas com muita facilidade.
Eu gostaria de saber quanto tempo teria durado esse matrimônio. Bem, pelo menos se economizou essa decepção. Pensam ficar muito mais?
   Já não muito mais respondeu Kate.
   Ao cabo de uns minutos se dispuseram a partir. A última imagem da Claudia Etienne que se levou Daniel foi a de uma figura alta que, em pé junto ao ventanal,
contemplava as torres da cidade sob um céu cada vez mais escuro. Claudia respondeu a sua despedida sem voltar a cabeça e eles a deixaram no silêncio e
a tolice do piso, fechando sigilosamente as portas detrás de si.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

41
 
   depois de abandonar a rua Hillgate, Daniel e Kate recolheram o carro que tinham deixado na delegacia de polícia de polícia do Notting Hill Gate e percorreram
nele
a breve distancia que os separava da loja do Declan Cartwright. A loja estava aberta, e na sala dianteira um homem barbado e já ancião, meio doido com
uma calota e embainhada em um comprido abrigo negro ao que os anos tinham conferido um tom cinza esverdeado, mostrava a um cliente um escritório Vitoriano, acariciando
a marchetaria da tampa com dedos amarelados e esqueléticos. Pelo visto, estava muito absorto para precaver-se de sua chegada até a pesar do tinido de
a campainha, mas o cliente elevou a vista e então o ancião se voltou para eles. Senhor Simon? perguntou Kate. Temos uma entrevista com o senhor Declan Cartwright.
   Sem lhe dar tempo a tirar o cartão de identificação, o homem se apressou a lhes indicar:
   Está ao fundo. Sigam reto. Está ao fundo.
   E se voltou rapidamente para o escritório, com um tremor tão violento nas mãos que os dedos repicaram contra a tampa. Kate se perguntou o que haveria
em seu passado que lhe tinha infundido um medo tal à autoridade, um terror tal à polícia.
   Cruzaram a loja e, depois de baixar três degraus, entraram em uma espécie de estufa. Entre uma massa de objetos díspares, Declan Cartwright estava conversando
com um cliente. Era um homem corpulento e muito moreno, vestido com um capote com pescoço de astracã e um truhanesco chapéu flexível, e estava examinando um camafeu
com um cristal de aumento. Kate supôs que um homem que elegia mostrar uma aparência tão semelhante à caricatura de um facínora dificilmente se atreveria a
sê-lo em realidade. Assim que os viu chegar, Cartwright disse: por que não vais tomar te uma taça e lhe pensa isso, Charlie? Volta dentro de meia hora ou assim.
   Agora tenho aqui a pasma. Estou metido em um assassinato. Não ponha essa cara, não fui eu; só tenho que lhe proporcionar um álibi a alguém que houvesse
podido fazê-lo.
   O cliente, depois de dirigir um olhar de soslaio ao Kate e Daniel, afastou-se com ar despreocupado.
   Kate voltou a tirar o cartão de identificação, mas Declan a recusou sem olhá-la.
   Está bem, não se incomode. Conheço a polícia quando a vejo.
   A inspetora pensou que devia ter sido um menino excepcionalmente bonito; ainda ficava algo de infantil naquela cara de maroto, com seu molho de cachos de cabelo
indisciplinados sobre a frente limpa, os olhos muito grandes e a boca belamente formada, embora com uma careta petulante.
   Entretanto, na avaliação que fez tanto dela como do Daniel, seu olhar desprendia uma sexualidade muito adulta. Kate notou que Daniel ficava rígido a seu
lado e pensou: "Não é seu tipo e, certamente, tampouco o meu."
   Ao igual a Farlow, respondia a suas perguntas com uma despreocupação meio zombadora, mas havia uma diferença essencial: com o Farlow, tinham percebido uma inteligência
e uma força que seguiam dominando ao corpo patéticamente enfraquecido; Declan Cartwright se mostrava ao mesmo tempo débil e assustado, tão assustado como o velho
Simon mas por um motivo distinto. Sua voz era insegura, suas mãos estavam inquietas e seus intentos de brincar resultavam tão pouco convincentes como seu acento.
   Minha noiva me advertiu que viriam. Suponho que não estão aqui para admirar antiguidades, mas acabam de me chegar umas cositas preciosas do Staffordshire. Tudo
legalmente adquirido. Poderia lhes fazer um preço muito bom, se não terem de considerá-lo como um suborno à polícia no exercício de suas funções. A senhorita
Etienne e você estão prometidos em matrimônio? perguntou Kate.
   Eu sou seu prometido, mas não estou seguro de que ela seja minha prometida. Terão que perguntar-lhe a ela. Com a Claudia, estar prometidos é uma situação flutuante
que depende muito de seu estado de ânimo em cada momento. Mas na quinta-feira de noite, quando fomos de excursão pelo rio, estávamos prometidos. Ou ao menos acredito
que o estávamos. Quando organizaram essa excursão?
   Faz algum tempo. O dia do funeral da Sonia Clements, para ser exatos. Terão ouvido falar da Sonia Clements, é obvio.
   um pouco estranho, não crie?, organizar uma excursão pelo rio com tanta antecipação comentou Kate.
   A Claudia gosta de preparar as coisas com uma semana de adiantamento mais ou menos. É uma mulher muito bem organizada. Mas o certo é que havia uma razão: na quinta-feira
quatorze de outubro pela manhã se celebrou a reunião mensal dos sócios. Claudia tinha que me contar como tinha ido. E lhe contou como tinha ido?
   Bom, disse-me que os sócios foram vender Innocent House e transladar a empresa ao Docklands, e que se despediriam de alguém, acredito que ao contável. Não recordo
os detalhes. Era tudo bastante aborrecido.
   Não parece que isto justificasse as moléstias de uma excursão pelo rio interveio Daniel.
   Ah, mas no rio podem fazer-se outras coisas além de falar de negócios, embora a cabine resulte um pouco estreita. Esses grandes salientes de aço da barreira
do Támesis são muito eróticos. Recomendo-lhes que façam a prova com uma lancha da polícia: poderiam levar uma surpresa.
   Kate tomou de novo a palavra: A que hora começou a excursão e a que hora terminou?
   Começou às seis e meia, quando a lancha voltou da Charing Cross e nos ficamos nós. Terminou por volta das dez e meia, quando chegamos ao Innocent House
e Claudia me acompanhou a casa em seu carro. Suponho que seriam ao redor das onze quando chegamos aqui.
   Como ela já lhes haverá dito, ficou aqui comigo até as duas. Acredita que o senhor Simon poderia confirmar sua declaração? perguntou Daniel. Ou acaso não vive
aqui?
   Para falar a verdade, não acredito que possa. Sinto muito. O pobrecito se está ficando completamente surdo. Sempre subimos a escada nas pontas dos pés para não
lhe incomodar,
mas é uma precaução de tudo desnecessária. Mesmo assim, possivelmente possa confirmar nossa hora de chegada. É possível que deixasse sua porta entreabrida. Dorme
mais tranqüilo
se souber que o menino já está em casa e a salvo em seu camita. Mas não acredito que ouvisse nada depois disso.
   Então, não foi você ao Innocent House em seu próprio carro? inquiriu Kate.
   Eu não conduzo, inspetora. Lamento muito a contaminação produzida pelos veículos de motor e não quero contribuir a ela. Verdade que é um gesto muito cívico?
Por outra parte, está também o fato de que, quando tentei aprender a conduzir, a experiência me resultava tão aterradora que ia todo o momento com os olhos fechados
e nenhum instrutor queria me aceitar. Fui ao Innocent House em metro. Muito tedioso. Tomei a Circle Line desde o Notting Hill Gate até a estação do Tower Hill e,
uma vez ali, agarrei um táxi. É mais fácil ir pela Central Line até a rua Liverpool e agarrar o táxi ali, mas, de fato, não o fiz assim, se é que isso tem
a menor importância.
   Kate lhe pediu detalhes da velada e não se surpreendeu ao comprovar que confirmava a declaração da Claudia Etienne.
   Então interveio Daniel, estiveram jimios das seis e meia da tarde até a madrugada?
   Exatamente, sargento. É você sargento, verdade? Se não, sinto-o muitíssimo, mas é que tem você todo o aspecto de um sargento. Estivemos juntos desde
as seis e meia até as duas da madrugada. Suponho que não lhes interessará saber o que fizemos entre, digamos, as onze da noite e as duas. Se lhes interessar,
será melhor que o perguntem à senhorita Etienne. Ela poderá lhes oferecer uma descrição apta para seus castos ouvidos. Imagino que desejarão uma declaração assinada,
não é assim?
   Ao Kate proporcionou uma satisfação considerável responder que, em efeito, queriam uma declaração oficial e que podia passar-se pela delegacia de polícia do Wapping
para fazê-la.
   Ao ser interrogado pelo Kate, de um modo tão delicado e paciente que ao parecer só serve para incrementar seu terror, o senhor Simon confirmou que os tinha ouvido
chegar às onze. Estava atento à chegada do Declan porque sempre dormia melhor se sabia que havia alguém na casa; era por isso, em parte, por isso lhe havia
proposto ao senhor Cartwright que fora a viver ali. Mas assim que ouviu a porta, ficou dormido. Se algum dos dois havia tornado a sair mais tarde, ele não
teria podido dizê-lo.
   Enquanto abria a portinhola do carro, Kate comentou:
   Estava morto de medo, não te parece? Refiro ao Cartwright. Crie que é um patife, um parvo ou as duas coisas de uma vez? Ou só um menino bonito com bom olho
para as quinquilharias? Que demônios pode ver nele uma mulher inteligente como Claudia Etienne?
   Vamos, Kate. Desde quando a inteligência tem algo que ver com o sexo? Em realidade, temo-me que são incompatíveis; a inteligência e o sexo, quero dizer.
   Para mim não o são. A inteligência me excita.
   Sim, já sei. Que insinúas? replicou ela com aspereza.
   Nada. Eu comprovei que vai melhor com mulheres bonitas, de bom caráter e complacentes, que não sejam muito brilhantes.
   Como a maior parte dos de seu sexo. Deveria aprender a superá-lo. Quanto crie que vale esse álibi?
   Mais ou menos, como a do Rupert Farlow. Cartwright e Claudia Etienne teriam podido matar ao Etienne, levar diretamente a lancha ao mole de Greenwich e estar
no restaurante às oito sem nenhum problema. Não há muito tráfico no rio uma vez que obscureceu; as probabilidades de que alguém os visse são mas bem
escassas. Outra aborrecida tarefa de comprovação.
   Tem um motivo; os dois o têm observou Kate. Se Claudia Etienne for o bastante parva para casar-se com ele, terá uma esposa rica. Crie que tem guelra
para matar a alguém? perguntou Daniel.
   Não fizeram falta muitas guelra, verdade? Só teria tido que enrolar ao Etienne para que subisse a aquela habitação da morte. Não teve que apunhalá-lo,
nem lhe pegar, nem estrangulá-lo. Nem sequer teve que lhe ver a cara a sua vítima.
   Mas um dos dois teria tido que voltar mais tarde para lhe pôr a serpente. Aí sim que teria feito falta valor. Não imagino a Claudia Etienne lhe fazendo
isso a seu próprio irmão.
   OH, não sei o que te dizer. Se estava disposta a matá-lo, por que teria que lhe assustar profanar o cadáver? Quer conduzir você ou conduzo eu?
   Enquanto Kate se sentava ao volante, Daniel telefonou ao Wapping. Era evidente que havia notícias. Quando pendurou o auricular, depois de uns minutos de conversação,
anunciou-lhe:
   chegou o relatório do laboratório. Robbins acaba de me ler os resultados da análise de sangue, até os detalhes mais aborrecidos. A saturação do sangue
era do setenta e três por cento.
   Certamente demorou muito pouco em morrer. Parece que a morte deveu produzir-se por volta das sete e meia. Com trinta por cento se experimenta enjôo e dor
de cabeça; com quarenta por cento, falta de coordenação e confusão mental; com cinqüenta por cento, esgotamento, e com um sessenta, perda da consciência.
A debilidade pode apresentar-se repentinamente a conseqüência da hipoxia muscular.
   Kate perguntou: Há-te dito algo dos entulhos que obstruíam o canhão da chaminé?
   Procediam da mesma chaminé. É o mesmo material. Mas já o supúnhamos.
   Sabemos que a estufa de gás não era defeituosa e não temos nenhum rastro significativo. E o cordão da janela?
   Isso já é mais difícil. O mais provável é que o desgastassem deliberadamente com algum instrumento romo ao longo de um período indeterminável de tempo, mas
não estão seguros aos cem por cem. As fibras estavam esmagadas e rotas, não cortadas. O resto do cordão era velho e em alguns pontos estava debilitado, mas
não puderam ver nenhuma razão para que se partisse por aquele lugar a não ser que o tivessem manipulado deliberadamente. Ah, e há outro dado: encontraram uma
minúscula mancha de substância mucosa na cabeça da serpente. Isso quer dizer que a embutiram na boca imediatamente depois de retirar o objeto duro,
ou muito pouco depois.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

42
 
   no domingo 17 de outubro Dalgliesh decidiu levar-se ao Kate consigo para entrevistar à irmã da Sonia Clements, a irmã Agnes, em seu convento de Brighton.
Teria preferido ir sozinho, mas um convento, até sendo este anglicano e até sendo ele filho de um pároco com tendências afins à alta Igreja, era um território
alheio no que terei que internar-se com circunspeção. Sem uma mulher a modo de carabina, possivelmente não lhe permitissem ver a irmã Agnes mais que em presença
de
a mãe superiora ou de alguma outra monja. Dalgliesh não sabia muito bem o que esperava obter dessa visita, mas o instinto, do que às vezes desconfiava mas do
que tinha aprendido a não fazer caso omisso, dizia-lhe que havia algo que averiguar. As duas mortes, tão distintas, estavam relacionadas por algo mais que aquela
habitação
nua do último piso em que uma pessoa tinha eleito a morte e a outra tinha lutado por viver. Sonia Clements tinha trabalhado vinte e quatro anos na Peverell
Press; era Gerard Etienne quem a tinha despedido. Constituía essa decisão desumana motivo suficiente para o suicídio? E se não, por que tinha eleito morrer?
Quem tivesse podido sentir-se tentado de vingar essa morte?
   O tempo seguia sendo aprazível. A bruma temprana se limpou com a promessa de outro dia de sol suave, embora possivelmente esporádico. Inclusive o ar de Londres
encerrava
algo da doçura do verão, e uma brisa ligeira arrastava finos farrapos de nuvens por um firmamento azul. Enquanto percorria o aborrecido e tortuoso trajeto até
os subúrbios do sul de Londres com o Kate ao lado, Dalgliesh sentiu ressurgir um desejo juvenil por ver e ouvir o mar, e desejou que o convento estivesse situado
em
a costa. Durante a viagem falaram pouco. Dalgliesh preferia conduzir em silêncio e Kate podia tolerar uma viagem inteira a seu lado sem sentir a necessidade de conversar;
não era, refletiu ele, a menor de suas virtudes. Tinha passado pelo piso novo do Kate para recolhê-la, mas tinha esperado dentro do Jaguar a que aparecesse em
lugar de tomar o elevador e chamar a sua porta, o que acaso a tivesse feito sentir na obrigação de convidá-lo a passar. Dalgliesh valorava muito a própria
intimidade para arriscar-se a invadir a dela. Kate baixou à hora em ponto, como ele se figurava.
   Tinha um aspecto distinto, e Dalgliesh se deu conta de que muito poucas vezes a via com saia.
   Sorriu interiormente e se perguntou se seu ajudante teria duvidado antes de decidir-se, até chegar à conclusão de que suas acostumados calças podiam considerar-se
inadequados para uma visita a um convento. Suspeitou que, apesar de seu sexo, possivelmente se encontraria mais cômodo ali que Kate.
   Sua esperança, nunca realista, de roubar cinco minutos para uma caminhada a passo vivo pelo bordo da praia se viu frustrada. O convento se elevava em terreno
elevado, junto a uma estrada principal insossa mas com muito tráfico, da que se achava separado por uma parede de tijolo de dois metros e médio. A cancela
estava aberta e, ao cruzá-la, viram um ornado edifício de cru tijolo vermelho, claramente Vitoriano e claramente desenhado com fins a uma instituição, certamente
para albergar às primeiras irmãs da ordem. Os quatro pisos de janelas idênticas, muito juntas e ordenadas com precisão, evocaram no Dalgliesh a incômoda
imagem de uma prisão, idéia que possivelmente lhe tinha ocorrido também ao arquiteto, pois o fino chapitel que coroava um extremo do edifício e a torre do outro
extremo pareciam mas bem um aplique de última hora, destinado tanto a humanizar como a embelezar. Uma ampla franja de cascalho subia em curva até uma porta
principal de carvalho quase negro com reforços de ferro, que se houvesse dito mais apropriada para a entrada de uma fortaleza normanda. À direita distinguiram uma
igreja também de obra vista, o bastante grande para servir como paróquia, com um campanário desprovido de graça e estreitas janelas em arco pontudo. À
esquerda, o contraste: um edifício baixo, moderno, com uma terraço coberta e um pequeno jardim convencional, que Dalgliesh supôs seria o asilo para moribundos.
   Ante o convento só havia um carro, um Ford, e Dalgliesh estacionou limpamente a seu lado. Ao baixar, deteve-se um instante e voltou a vista atrás por cima de
os jardins encostados até que pôde vislumbrar o canal da Mancha. Curtas ruas de casitas pintadas de cor azul celeste, rosa e verde, cujos cobertos apresentavam
uma frágil geometria de antenas de televisão, discorriam em paralelo até as capas azuladas do mar; uma domesticidade precisamente ordenada que contrastava com
o pesado mazacote Vitoriano que tinha a suas costas.
   Não se via sinal de vida no edifício principal, mas, ao voltar-se para fechar o carro, viu aparecer por uma esquina do asilo a uma monja com um paciente
em cadeira de rodas. O paciente levava uma boina de raias brancas e azuis com uma borla vermelha e se cobria com uma manta recolhimento até o queixo. A monja se
inclinou para sussurrar algo e o paciente riu, uma leve cascata lhe tilintem de alegres nota no ar calado.
   Dalgliesh atirou da cadeia de ferro que pendurava à esquerda da porta; inclusive através da grosa porta de carvalho com cintas de ferro, ouviu seu retintín
ressonante. A mira quadrada se abriu e apareceu uma monja de rasgos aprazíveis. Dalgliesh deu seu nome e elevou o cartão de identificação. A porta se abriu
imediatamente e a monja, sem falar mas ainda sonriendo, fez gesto de lhes convidar a entrar. encontraram-se em um vestíbulo espaçoso que cheirava, não desagradablemente,
a desinfetante suave. O chão, de ladrilhos brancos e negros formando quadros, parecia recém esfregão, e nas nuas paredes destacava o retrato em sépia,
sem dúvida alguma Vitoriano, de uma formidável monja de expressão grave que Dalgliesh supôs seria a fundadora da ordem, assim como uma reprodução do Cristo
na carpintaria, do Millais, em um marco de madeira profusamente esculpido. A monja, ainda sonriendo, ainda calada, conduziu-os a um cuartito adjacente ao vestíbulo
e, com um gesto algo teatral, indicou-lhes que tomassem assento. Dalgliesh se perguntou se seria surdo-muda.
   A sala de espera estava mobiliada de um modo austero, mas não inóspito. A mesa central, extremamente polida, sustentava uma terrina de rosas tardias, e havia
dois
poltronas estofadas em cretone descolorido ante as janelas dobre. O único adorno das paredes era um grande crucifixo barroco em madeira e prata, de um horrendo
realismo, situado à direita da chaminé. Parecia espanhol, pensou Dalgliesh, e dava a impressão de ter formado parte da decoração de uma igreja. Sobre
a chaminé havia uma cópia ao óleo de uma Virgem María lhe oferecendo uvas ao Menino Jesus, que demorou algum tempo em identificar como A Virgem das uvas, do Mignard.
Uma placa de latão ostentava o nome do doador. Havia quatro cadeiras de comilão de respaldo reto, pouco tentadoramente alinhadas contra a parede da direita,
mas Dalgliesh e Kate permaneceram de pé.
   Não lhes fizeram esperar muito. A porta se abriu e entrou uma monja de gestos enérgicos e seguros que lhes tendeu a mão. São vocês o comandante Dalgliesh
e a inspetora Miskin? Bem-vindos ao St. Anne. Sou a mãe Mary Clare. Já falamos por telefone, comandante. Querem tomar uma taça de café?
   A mão que apertou brevemente a dele era roliça, mas estava fria.
   Não, obrigado, mãe recusou. É você muito amável, mas esperamos não incomodá-la muito momento.
   Não havia nada lhe intimidem nela. O comprido hábito azul cinzento apertado por um cinturão de couro conferia dignidade a seu corpo baixo e robusto, mas ela parecia
sentir-se tão cômoda como se aquele traje formal fosse a roupa de trabalho diária. Uma singela e pesada cruz de madeira escura lhe pendurava de um cordão em torno
do
pescoço, e seu rosto, brando e esbranquiçado como massa de pão, sobressaía-me como o de um bebê da touca que o oprimia. Entretanto, os olhos que havia depois dos
óculos
de aço eram ardilosos, e a boquita, com toda sua delicada suavidade, encerrava a promessa de uma firmeza sem arranjos. Dalgliesh se deu conta de que Kate e ele
eram submetidos a um escrutínio tão minucioso como discreto.
   Logo, com uma pequena inclinação de cabeça, disse-lhes:
   Farei chamar à irmã Agnes. Faz um dia precioso, possivelmente gostariam de dar um passeio com ela pela rosaleda.
   Dalgliesh compreendeu que era uma ordem, não uma sugestão, mas soube que nesse breve primeiro encontro tinham superado alguma prova particular; se ela não houvesse
ficado satisfeita, estava seguro de que a entrevista se teria celebrado naquele quarto e fiscalizada por ela. A mãe superiora atirou do cordão da campainha
e a monjita sorridente que lhes tinha aberto a porta acudiu de novo. Quererá lhe perguntar à irmã Agnes se teria a bondade de vir?
   Seguiram esperando em silêncio, ainda de pé. Em menos de dois minutos se abriu a porta e uma monja alta entrou sozinha. A mãe superiora os apresentou.
   A irmã Agnes. Irmã, o comandante Dalgliesh de New Scotland Yard e a inspetora Miskin. Sugeri-lhes que possivelmente gostariam de passear pela rosaleda.
   Com uma inclinação de cabeça, mas sem despedida formal, deixou-os a sós.
   A monja que os contemplava com olhos cautelosos não teria podido ser mais distinta da mãe superiora. Levavam o mesmo hábito, embora a cruz era mais pequena,
mas lhe dava uma dignidade hierática, remota e um pouco misteriosa. A mãe superiora parecia vestida para uma sessão nos fogões; em troca, resultava
difícil imaginar-se à irmã Agnes em um lugar que não fora ante o altar. Era muito fraca, de membros largos e facções pronunciadas, e a touca contribuía a
pôr de relevo seus maçãs do rosto altos, a poderosa linha de suas sobrancelhas e a configuração inflexível de sua larga boca.
   Então, vamos olhar as rosas, comandante? propô-lhe.
   Dalgliesh lhe abriu a porta e Kate e ele a seguiram por onde tinham chegado com passos quase silenciosos.
   A irmã os conduziu pelo caminho principal a rosaleda aterrazada. Os maciços estavam dispostos em três largas fileiras separadas por atalhos de cascalho
paralelos, cada um quatro degraus de pedra mais abaixo que o anterior. Teriam o sítio justo para caminhar os três e um junto a outro, primeiro pelo atalho superior
e os degraus de baixada, logo depois de volta pelo segundo atalho até o segundo lance de degraus e, finalmente, ao longo dos quarenta metros do atalho
inferior, antes de voltar a vista, em um triste perambular, às janelas do convento. perguntou-se se não haveria um jardim mais reservado na parte de atrás do
convento, mas se o havia, estava claro que não se julgou oportuno que passeassem por ele.
   A irmã Agnes andava entre os dois, com a cabeça erguida. Sua estatura quase igualava o metro oitenta e oito dele. Em cima do hábito levava uma jaqueta
larga de ponto, de cor cinza, e mantinha as mãos profundamente afundadas cada uma na bocamanga oposta, para esquentar-lhe Ao vê-la com os braços assim,
unidos e apertados contra o corpo, Dalgliesh recordou velhas fotos que tinha visto de doentes mentais em camisa de força e se sentiu incômodo. Dava a impressão
de que ia entre os dois como uma presa sob escolta, e se perguntou se seria essa a imagem que ofereciam os três a qualquer que pudesse observá-los em segredo
das altas janelas. Esta mesma idéia, e não era agradável, deveu ocorrer-se o também ao Kate, porque, murmurando uma desculpa, ficou um pouco atrás e fez
gesto de atar o cordão de seus mocasines. Quando voltou a lhes dar alcance, situou-se ao lado do Dalgliesh.
   Foi este quem rompeu o silêncio.
   Agradeço-lhe que nos tenha recebido começou. Lamento ter que incomodá-la, sobre tudo porque deve parecer uma intrusão em uma dor íntima, mas tenho que lhe fazer
umas perguntas sobre a morte de sua irmã.
   "Uma intrusão em uma dor íntima." Esse foi a mensagem telefônica que me transmitiu a mãe superiora. Suponho que utilizará você freqüentemente estas palavras,
não
é assim, comandante?
   Às vezes meu trabalho é inseparável da intrusão. E tem perguntas concretas às que espera eu possa responder ou se trata de uma intrusão mais geral?
   um pouco de cada.
   Mas você já sabe como morreu minha irmã. Sonia se matou, não pode haver dúvida disso. Deixou uma nota no lugar que escolheu para fazê-lo e a mesma manhã de seu
morte jogou uma carta ao correio para mim. Nem sequer considerou que a notícia merecesse um selo de correio urgente. Chegou-me ao cabo de três dias.
   Dalgliesh perguntou: Importaria-lhe me comunicar o que dizia essa carta? Já sei, naturalmente, o que dizia a nota dirigida ao juiz.
   A monja permaneceu em silêncio uns segundos, que pareceram muito mais largos, e ao fim falou sem ênfase, como se recitasse um fragmento de prosa aprendido de
memória.
   "O que vou fazer parecerá um pecado a seus olhos. Por favor, tenta compreender que o que você considera pecaminoso é para mim natural e correto. Fizemos
eleições distintas, mas conduzem ao mesmo fim. Depois de uns anos de vacilação, ao menos não ficam dúvidas quanto à morte. Tenta não me chorar muito
tempo; a dor só é uma complacência. Não teria podido ter uma irmã melhor." Depois de uma pausa, acrescentou: Era isso o que queria ouvir, comandante?
   Francamente, não vejo que relevância pode ter para sua investigação atual.
   Devemos ter em conta tudo o que ocorreu no Innocent House nos meses anteriores à morte do Gerard Etienne e pudesse estar sequer remotamente relacionado
com dita morte. E um destes fatos é o suicídio de sua irmã. Ao parecer, no Innocent House e nos círculos literários de Londres se rumorea que Gerard
Etienne a impulsionou a tomar essa decisão. Se foi assim, possivelmente algum amigo, algum amigo especial, pôde querer vingá-la.
   Eu era a amiga especial da Sonia disse ela. Não tinha amigos especiais além de mim, e eu não tinha nenhum motivo para desejar a morte ao Gerard Etienne. O
dia e a noite de sua morte estive aqui. Pode-o comprovar facilmente.
   Dalgliesh protestou.
   Não pretendia insinuar que estivesse você relacionada pessoalmente em modo algum com a morte do Gerard Etienne. Pergunto-lhe se souber de alguma outra pessoa
próxima a sua irmã que tivesse podido tomar-se a mal a maneira em que morreu.
   Ninguém mais que eu. Mas me levei a mal, comandante. O suicídio é o desespero definitivo, o rechaço definitivo da graça de Deus, o pecado supremo.
   Então, irmã replicou Dalgliesh com voz fica, possivelmente receba a misericórdia suprema.
   Chegaram ao final do primeiro atalho e juntos baixaram os degraus e dobraram à esquerda. de repente, a irmã Agnes comentou:
   Eu não gosto das rosas em outono. São essencialmente flores do verão. As rosas de dezembro são as mais deprimentes, casulos parduscos e enrugados sobre uma
matagal de espinhos. Quase não suporto passear por aqui em dezembro. Como nós, as rosas não sabem quando morrer.
   Mas hoje quase podemos acreditar que é verão observou ele. Logo acrescentou: Suponho que saberá você que Gerard Etienne morreu por intoxicação de monóxido de
carbono em
a mesma habitação que sua irmã. Em seu caso, é improvável que se trate de suicídio. Poderia ser morte acidental: um canhão de chaminé obstruído que provocou
o mau funcionamento da estufa de gás; mas temos que ter em conta uma terceira possibilidade, a de que a estufa fora manipulada deliberadamente. Está você
dizendo que acredita que foi assassinado? perguntou a monja.
   Não se pode descartar. O que devo lhe perguntar é se tiver você algum motivo para supor que sua irmã pôde ter manipulado a estufa. Não pretendo insinuar
que formasse parte de uma conspiração para matar ao Etienne, mas poderia ser que tivesse projetado um suicídio que parecesse morte acidental e logo tivesse trocado
de idéia? Como posso responder eu a isso, comandante?
   Era uma conjetura remota, mas tinha que perguntá-lo. Se alguém for a julgamento por assassinato, a defesa sem dúvida apontará esta possibilidade.
   Se se tivesse incomodado em fazer passar sua morte por um acidente, teria economizado muitas angústias a outras pessoas disse ela, mas os suicidas poucas vezes
fazem-no. depois de tudo, é o ato de agressão definitivo, e que satisfação há na agressão se só fizer mal a gente mesmo?
   Não teria sido muito difícil fazer que o suicídio parecesse acidental; me ocorreriam várias maneiras, mas nenhuma que implicasse desmontar uma estufa de gás
e obstruir o canhão da chaminé. Duvido que Sonia tivesse sabido como fazê-lo. Não teve inclinações mecânicas em vida, assim por que ia ter as à hora
de morrer?
   E a nota que lhe enviou, não dizia nada mais? Nenhum motivo, nenhuma explicação?
   Não respondeu ela secamente. Nenhum motivo, nenhuma explicação.
   Dalgliesh prosseguiu.
   Pelo visto, deu-se em supor que sua irmã se matou porque Gerard Etienne lhe havia dito que já não era necessária. Parece-lhe provável?
   A monja não respondeu e, ao cabo de um minuto, Dalgliesh insistiu com suavidade.
   Como irmã dela, como alguém que a conheceu muito bem, satisfaz-lhe essa explicação?
   Ela se voltou e pela primeira vez o olhou à cara de cheio. Esta pergunta é relevante para sua investigação?
   Poderia sê-lo. Se a senhorita Clements sabia um pouco do Innocent House ou de alguma das pessoas que trabalhavam ali, um pouco tão inquietante para ela que contribuiu
a sua morte, esse algo poderia estar relacionado com a morte do Gerard Etienne.
   Outra vez se voltou. Perguntou: Há alguma possibilidade de que volte a expor o modo em que morreu minha irmã? Formalmente? Nenhuma absolutamente. Sabemos como
morreu Sonia Clements. Eu gostaria de saber por que, mas o veredicto da pesquisa foi correto. Legalmente, aí acaba tudo.
   Seguiram andando em silêncio. A monja parecia estar considerando um curso de ação.
   Dalgliesh pôde perceber, ou acaso imaginou, os músculos endurecidos pela tensão no braço que roçou fugazmente o seu. Quando ela falou por fim, fez-o
com voz áspera.
   Posso satisfazer sua curiosidade, comandante. Minha irmã morreu porque a abandonaram as duas pessoas que mais lhe importavam, e a abandonaram definitivamente;
possivelmente
as duas únicas pessoas que jamais lhe importaram. Eu pronunciei os votos uma semana antes de que se matasse; Henry Peverell tinha morrido oito meses antes.
   Até o momento Kate tinha permanecido calada. Então perguntou: Quer você dizer que estava apaixonada por senhor Peverell?
   A irmã Agnes se voltou e a olhou como se até então não tivesse advertido sua presença.
   Logo apartou de novo a cara e com um estremecimento quase imperceptível apertou ainda mais os braços contra o peito.
   Foi seu amante durante os oito últimos anos de sua vida. Ela o chamava amor. Eu o chamava uma obsessão. Não sei como o chamava ele. Nunca os viu juntos em
público. Sua relação se manteve absolutamente secreto por desejo rápido dele. A habitação onde faziam o amor era a mesma em que se matou. Eu sempre sabia quando
tinham estado juntos. Eram as noites em que ficava até mais tarde no escritório. Quando chegava a casa, notava-lhe o aroma dele.
   Kate protestou.
   Mas por que tão secreto? O que lhe assustava? Nenhum dos dois estava casado nnaquele tempo, naquele tempo, os dois eram adultos. O que fizessem não incumbia a
ninguém
mais que a eles.
   Quando lhe fiz essa pergunta tinha as respostas preparadas, ou melhor dizendo, as respostas que lhe tinha dado ele. Disse-me que ele não desejava voltar a casar-se,
que
queria permanecer fiel à lembrança de sua esposa, que lhe repugnava a idéia de que seus assuntos particulares fossem tema de conversação no escritório, que a relação
desgostaria a sua filha. Minha irmã aceitou todas as desculpas. Pelo visto, bastava-lhe que ele necessitasse o que ela podia lhe oferecer. Podia ser o mais singelo,
naturalmente,
que minha irmã resultasse adequada para satisfazer uma necessidade física, mas não o bastante formosa, jovem nem rica para que se sentisse tentado de casar-se com
ela.
E acredito que, para ele, o segredo devia emprestar um estímulo adicional ao assunto. Talvez isso fora o que lhe gostava, humilhá-la, comprovar até onde chegava
sua devoção, escapulir-se subrepticiamente para aquele cuartito deprimente como um cavalheiro Vitoriano disposto a lhe fazer um favor à donzela. O que mais me
incomodava não era o pecaminoso da relação, a não ser sua vulgaridade.
   Dalgliesh não se esperava tanta franqueza, tanta confiança. Embora possivelmente não era de sentir saudades: a irmã Agnes devia ter suportado meses de silêncio
autoimpuesto
e, agora, ante dois desconhecidos aos que nunca mais teria que voltar a ver, podia liberar a amargura acumulada.
   Eu era a maior, mas só lhe levava dezoito meses prosseguiu a monja. Sempre estivemos muito unidas. Isso o destruiu ela: não podia ficar ao mesmo tempo
com ele e com sua religião, assim que o escolheu a ele. Destruiu a confiança que havia entre nós. Que confiança podia haver se cada uma desprezava ao deus da
outra? Não lhe parecia bem sua vocação? perguntou Dalgliesh.
   Não a compreendia. Nem ele tampouco. Ele a considerava uma retirada do mundo e da responsabilidade, da sexualidade e do compromisso, e ela acreditava o que acreditava
ele. Naturalmente, minha irmã já conhecia meus projetos desde fazia algum tempo. Suponho que tinha a esperança de que não me aceitassem em nenhuma parte. Não há
muitas
comunidades que acolham a candidatas de idade amadurecida; os conventos não se constróem como refúgio para fracassados e decepcionados. E ela sabia, é obvio, que
eu não tinha nenhuma habilidade prática que oferecer. Era, sou, restauradora de livros. A reverenda mãe ainda me dá permissão de vez em quando para trabalhar em
bibliotecas
de Londres, Oxford e Cambridge, sempre que houver uma casa adequada, quero dizer um convento, onde possa me alojar. Mas estes trabalhos são cada vez menos freqüentes.
necessita-se muito tempo para restaurar e voltar a encadernar um manuscrito ou um livro valioso, mais tempo de que podem prescindir de mim.
   Dalgliesh recordou uma visita que tinha feito três anos antes ao Corpus Christi College, de Cambridge, em que lhe mostraram a Bíblia de Jerusalém que se levava
baixo escolta à abadia do Westminster para as sucessivas coroações, junto com um dos mais antigos exemplares iluminados do Novo Testamento. Aquele tesouro
recém encadernado, extraído amorosamente de sua caixa especial, foi depositado sobre um suporte de livro acolchoado em forma de V e seu custódio passou as folhas
com ajuda de uma
espátula de madeira para não as tocar com as mãos. Através de cinco séculos, Dalgliesh contemplou maravilhado os minuciosos desenhos, ainda tão brilhantes como
quando as cores fluíam com delicada precisão da pluma do artista, desenhos que, em sua beleza e sua humanidade essencial, quase o tinham movido às lágrimas.
considera-se mais importante seu trabalho aqui? perguntou-lhe.
   julga-se segundo outros critérios. Aqui, minha falta dos conhecimentos práticos mais habituais não é nenhuma desvantagem: qualquer pode aprender em pouco tempo
a dirigir uma máquina de lavar roupa, a acompanhar aos pacientes em cadeira de rodas ao quarto de banho, a repartir os urinols. E nem sequer sei se estes serviços
se necessitarão
muito tempo mais. O sacerdote que oficia como nosso capelão está preparando-se para ingressar na Igreja católica romana, depois da decisão da Igreja de
Inglaterra de ordenar a mulheres. A metade das irmãs querem segui-lo. O futuro do St. Anne como ordem anglicana é incerta.
   Terminaram de percorrer os três atalhos em toda sua longitude e, depois de dar meia volta, empreenderam a volta. A irmã Agnes acrescentou:
   Henry Peverell não foi a única pessoa que se interpôs entre nós durante os últimos anos de vida de minha irmã. Estava também Eliza Brady. OH, não faz
falta que se incomode em localizá-la, comandante; morreu em 1871. Inteirei-me de sua existência por um relatório de uma pesquisa publicado em um periódico Vitoriano
que
encontrei em uma livraria de velho na Charing Cross Road e que, por desgraça, ensinei a Sonia. Eliza Brady tinha treze anos. Seu pai trabalhava para um comerciante
em carvão e sua mãe tinha morrido de parto. Eliza se converteu em mãe de seus quatro irmãos e irmãs menores, além disso do bebê. Seu pai declarou na pesquisa
que Eliza fazia de mãe para todos. A menina trabalhava quatorze horas diárias: lavava, acendia o fogo, cozinhava, fazia as compras, cuidava de toda sua família.
Uma manhã, enquanto secava ao fogo os fraldas do bebê, apoiou-se no ralo, que cedeu para as chamas. A moça sofreu horríveis queimaduras e esteve agonizando
até que, ao cabo de três dias, morreu. Sua história afetou muitíssimo a minha irmã. Dizia-me: "De maneira que esta é a justiça de seu Deus misericordioso. Assim
recompensa
aos inocentes e os bons. Não tinha bastante matando-a; tinha que fazê-la morrer de um modo horrível, lentamente e com agonia." Minha irmã chegou quase a obcecar-se
com a Eliza Brady. Converteu-a em uma espécie de figura de culto. Se tivesse tido uma fotografia dela, certamente teria rezado ante ela, embora não sei a quem.
   Mas se queria um motivo para renunciar a Deus, por que teve que ir buscá-lo no século XIX? objetou Kate. Na atualidade não faltam tragédias. Só tinha
que olhar a televisão ou ler a imprensa. Só tinha que pensar no Bosnia. Eliza Brady leva mais de cem anos morta.
   A irmã Agnes assentiu.
   Isso mesmo lhe disse, mas Sonia me respondeu que a justiça não depende do tempo e que não deveríamos nos deixar dominar pelo tempo. Se Deus for eterno, sua justiça
é eterna. E também sua injustiça.
   Kate perguntou:
   antes de que se produzira esse afastamento de sua irmã, estava acostumado a visitar Innocent House com freqüência?
   Com freqüência não, mas ia de vez em quando. De fato, uns meses antes de que decidisse que tinha vocação, me expôs a possibilidade de trabalhar por horas
no Innocent House. Jean-Philippe Etienne estava muito interessado em examinar e catalogar os arquivos, e ao parecer opinava que eu podia ser a pessoa adequada para
fazê-lo. Os Etienne sempre tiveram bom olho para as gangas e certamente supunha que eu trabalharia tanto por afeição como pelo dinheiro. Mas Henry Peverell
não aprovou sua proposta e, naturalmente, compreendi-o muito bem. Conheceu você ao Jean-Philippe Etienne? quis saber Dalgliesh.
   Cheguei a conhecer bastante bem a todos os sócios. Os dois anciões, Jean-Philippe e Henry, pareciam aferrar-se quase tercamente a um poder que, na aparência,
nenhum dos dois era capaz nem tinha vontades de exercer. Gerard Etienne era o jovem turco, o herdeiro visível. Nunca me entendi muito bem com a Claudia Etienne,
mas eu gostava de James do Witt. Do Witt é um exemplo de pessoa que leva uma boa vida sem a ajuda de uma crença religiosa. Pelo visto, há quem nasce
com um déficit de pecado original; neles, a bondade quase não pode considerar um mérito.
   Mas sem dúvida não faz falta uma crença religiosa para levar uma boa vida assinalou Dalgliesh.
   Possivelmente não. Pode que a crença na religião não influa no comportamento. Mas a prática da religião tem que influir sem dúvida.
   Naturalmente, não esteve você presente na última festa que deram interveio Kate, mas assistiu a alguma das festas anteriores? Sabe se os convidados
podiam passear-se pela casa com plena liberdade?
   Só assisti a duas festas. Estavam acostumados a dar uma no verão e outra no inverno. Certamente, nada impedia aos convidados circular a agradar pela casa, embora
não acredito
que o fizessem muitos. Parece uma descortesia aproveitar uma festa para explorar habitações que pelo general revistam considerar-se privadas. Claro que no Innocent
House quase tudo são despachos e possivelmente isso marque uma diferença.
   Mas as festas do Innocent House eram bastante formais; controlava-se a lista de convidados e ao Henry Peverell desgostava muito receber em casa a mais de
oitenta pessoas em cada ocasião. A Peverell Press nunca organizou as típicas festas literárias, com um excesso de convidados se por acaso a algum de seus autores
ofende-lhe que o deixem à margem, habitações muito enche e sufocantes onde os convidados fazem equilíbrios com seus pratos de comida fria e bebem vinho branco
morno de medíocre qualidade enquanto se falam com gritos. A maioria dos convidados chegava pelo rio, assim resultava relativamente fácil, suponho, repelir a
intrusos e parasitas.
   Não havia muito mais que averiguar. De comum acordo, deram a volta ao chegar ao extremo do seguinte atalho e retrocederam sobre seus passos. Retornaram com
a irmã Agnes até a porta principal e ali se despediram dela sem entrar outra vez no convento. A monja olhou ao Dalgliesh e ao Kate com grande intensidade,
lhes sustentando o olhar, forçando-os a um momento de atenção concentrada, como se pudesse obrigá-los por um ato de vontade a respeitar sua confiança.
   Logo que tinham saído dos terrenos do convento e se achavam esperando no primeiro semáforo em vermelho quando Kate deu rédea solta a sua indignação.
   Assim por isso havia uma cama no cuartito dos arquivos, e por isso a porta tinha fechadura e fecho. meu deus, que bode! A irmã Agnes tinha razão:
o homem se escapulia para esse quarto como um mesquinho déspota Vitoriano. Humilhava-a, utilizava-a. Já imagino o que devia ocorrer ali acima. Esse
homem era um sádico.
   Dalgliesh replicou com suavidade.
   Não tem nenhuma prova disso, Kate. por que diabos o suportava ela? Era uma profissional perita e bem considerada. Teria podido partir.
   Estava apaixonada por ele.
   E sua irmã está apaixonada por Deus. Busca a paz, mas não me deu a impressão de que a tivesse encontrado. Inclusive o futuro do convento está no ar.
   O fundador de sua religião não a prometeu. "Não vim a trazer a paz, a não ser a espada." Olhou-a de soslaio e advertiu que a entrevista não significava nada para
ela. Acrescentou: A visita foi útil.
   Agora sabemos por que morreu Sonia Clements, e não teve nada que ver, ou muito pouco, com o tratamento que recebeu do Gerard Etienne. Parece ser que não existe
ninguém
que tenha motivos para vingar sua morte. Já sabíamos que os convidados ao Innocent House podiam vagar a seu desejo pela casa, mas é bom que a irmã Agnes
nos tenha confirmado isso. E logo está essa curiosa informação sobre os arquivos: segundo a irmã Agnes, foi Henry Peverell quem não quis que lhe encomendassem a
tarefa de examiná-los. Só depois de sua morte Jean-Philippe Etienne confiou o trabalho ao Gabriel Dauntsey.
   Teria resultado mais interessante que tivessem sido os Etienne quem não quisesse que ninguém pinçasse nos arquivos observou Kate. Está muito claro por que Henry
Peverell não queria que a irmã da Sonia Clements se instalasse a trabalhar ali; isso teria transtornado o arreglito que tinha com seu amante.
   Dalgliesh respondeu:
   Essa é a explicação óbvia e, como a maioria das explicações óbvias, provavelmente a correta. Mas poderia ser que nos arquivos houvesse algo que Henry
Peverell não queria que saísse à luz, algo que sabia ou suspeitava que estava ali. Mesmo assim, faz-se difícil ver que relação poderia ter isso com a morte de
Gerard Etienne. Como bem há dito, teria resultado mais interessante que tivessem sido os Etienne quem insistisse em deixar os arquivos em paz. Entretanto,
acredito que vamos ter que lhes jogar uma olhada a esses papéis. A todos, senhor?
   Se for necessário, Kate, a todos.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

43
 
   Às nove e meia da noite do domingo, Daniel e Robbins estavam no último piso do Innocent House revisando os arquivos. Utilizavam a mesa e a cadeira
do quarto pequeno. O método que Daniel tinha eleito consistia em ir seguindo as prateleiras, retirar qualquer pasta que parecesse oferecer esperanças e levar-lhe
Poco después de las nueve y media decidió que ya estaba bien por un día. Era muy consciente de su renuencia a volver al piso de Bayswater, una desgana tan intensa
ao despachito dos arquivos para examiná-la mais a fundo.
   tratava-se de uma tarefa desalentadora, posto que nenhum deles sabia o que estava procurando;
   Daniel tinha calculado que entre os dois demorariam várias semanas em concluir o trabalho, mas de fato avançavam mais depressa do que se imaginava. Se a intuição
de seu chefe era correta e havia documentos que podiam arrojar alguma luz sobre o assassinato do Etienne, por força alguém devia havê-los consultado em dia
relativamente recente. Isso queria dizer que as muito velhos pastas do século XIX , muitas das quais era patente que não tinham sido tocadas em mais de cem anos,
podiam deixar de lado com tranqüilidade, ao menos no momento. Não temam nenhum problema de luz; as lâmpadas nuas que penduravam do teto ficavam o bastante
perto das pastas. Mas era um trabalho cansado, aborrecido e sujo, e Daniel o fazia sem esperança.
   Pouco depois das nove e meia decidiu que já estava bem por um dia. Era muito consciente de sua relutância a voltar para piso do Bayswater, uma inapetência tão
intensa
que quase qualquer alternativa lhe desejava muito preferível. Desde que Fenella se partiu aos Estados Unidos, Daniel passava o menor tempo possível em seu piso.
Tinham-no comprado entre os dois apenas dezoito meses antes, e às poucas semanas de viver juntos se deu conta de que seu compromisso de compartilhar uma hipoteca
e uma vida em comum tinha sido um engano.
   Lhe havia dito:
   Naturalmente, querido, teremos habitações separadas. Os dois necessitamos espaço para nossa intimidade.
   Mais tarde Daniel se perguntaria se na verdade tinha ouvido essas palavras. Não só Fenella não necessitava nenhuma intimidade, mas também tampouco tinha intenção
de respeitar
a dele, menos por um propósito deliberado, parecia-lhe, que por uma absoluta falta de compreensão do significado da palavra. Recordou muito tarde o que
tivesse devido ser uma saudável lição da infância. Em uma ocasião ouviu que uma amiga de sua mãe dizia a esta muito agradada: "Em nossa casa sempre havemos
respeitado os livros e a cultura", enquanto seu filho de seis anos arrancava sistematicamente as páginas do exemplar do Daniel da ilha do tesouro sem que ninguém
chamasse-lhe a atenção. Isso teria que lhe haver ensinado que o que as pessoas acreditavam de si mesmos estranha vez coincidia com seu verdadeiro modo de comportar-se.
Até
assim, Fenella tinha marcado um recorde na irreconciliabilidad entre crença e ação. O piso sempre estava cheio de gente; os amigos batiam na porta, se
alimentavam em sua cozinha, discutiam e se reconciliavam em seu sofá, faziam chamadas internacionais por seu telefone, esvaziavam-lhe a geladeira e se bebiam sua
cerveja.
O piso nunca estava em silêncio; nunca estavam sozinhos os dois. O dormitório do Daniel se converteu no dormitório comum, em grande medida porque o da Fenella estava
acostumada
estar temporalmente ocupado por algum conhecido sem casa. Atraía às pessoas para ela como uma soleira iluminada. A sua era a atração de um bom humor inquebrável.
Certamente teria cativado à mãe do Daniel, se ele tivesse permitido que chegassem a conhecer-se, lhe prometendo imediatamente converter-se ao judaísmo.
   Fenella era, por cima de tudo, muito complacente.
   Seu gregarismo compulsivo ia acompanhado de um abandono nas tarefas domésticas que não cessou de assombrar ao Daniel durante seus dezoito meses de convivência
e
que este nunca pôde reconciliar com a minuciosa atenção que Fenella concedia aos menores detalhes decorativos. Recordava-a sustentando contra a parede da
sala três gravados pequenos, montados verticalmente sobre uma cinta larga com um laço no alto. Parece-te bem aqui, carinho, ou ficaria melhor cinco centímetros
mais à esquerda? Você o que diz?
   A ele logo que podia lhe importar, tendo como tinham uma cozinha com a pia cheia de pratos por lavar, um quarto de banho que para abri-lo terei que empurrar
a porta contra o peso de um montão de toalhas sujas e fedorentos, as camas sem fazer e a roupa dispersada pelo dormitório. Esta negligência para os quehaceres
domésticos se combinava na Fenella com uma necessidade compulsiva de tomar banho e lavar sua roupa. O piso ressonava constantemente com os estalos continuados e
chiados da
máquina de lavar roupa e o vaio da ducha.
   Daniel recordou como lhe tinha anunciado o fim de sua relação.
   Carinho, Terry quer que vá a Nova Iorque a viver com ele. na quinta-feira que vem, em realidade. Enviou-me uma passagem em primeira. acreditei que não te importaria.
Ultimamente não nos estávamos divertindo muito juntos, verdade? Não crie que em nossa relação desapareceu algo fundamental? perdeu-se algo precioso que
havia antes. Não tem a sensação de que algo se esgotou? Além de minhas economias?
   Por favor, querido, não seja mesquinho. Não é próprio de ti.
   Lhe perguntou: E seu trabalho? Como lhe arrumará isso para trabalhar nos Estados Unidos? Não é fácil conseguir um cartão de residência.
   OH, não me incomodarei em procurar trabalho, ao menos de momento. Terry está forrado. Diz que posso me entreter decorando seu apartamento.
   A separação careceu de acritud. Era quase impossível, comprovou Daniel, zangar-se com ela, assim acolheu com resignação, inclusive com irônica diversão, o descobrimento
de que essa amabilidade ia acompanhada de um sentido comercial mais agudo do que ele imaginava.
   Carinho, acredito que será melhor que me compre minha parte do piso pela metade do que nos custou, não a metade do que vale agora. baixou muitíssimo de preço;
todos os pisos baixaram. Estou segura de que poderá conseguir uma hipoteca mais elevada. E se me paga a metade do que custaram os móveis, deixarei-lhe isso todos.
Tem que ter algo onde te sentar, céu.
   Daniel não acreditou que valesse a pena mencionar que quase todos os móveis os tinha pago embora não eleito ele, e que nenhum gostava. Logo se deu conta
de que as mais valiosas de suas pequenas aquisições tinham desaparecido com ela e era de supor que para então se achavam em Nova Iorque. A quinquilharias ficou
no piso, e ele carecia de tempo e de vontades para desfazer-se dela. Fenella o deixou com uma hipoteca asfixiante, um piso cheio de móveis que não gostava,
uma escandalosa fatura Telefónica composta principalmente de chamadas Nova Iorque e uma minuta de advogado que só poderia pagar a prazos. E o mais irritante foi
descobrir quanto a sentia falta de, às vezes.
   No patamar da escada situado ante a sala dos arquivos havia também um pequeno quarto de banho. Enquanto Robbins se lavava as mãos para arrancar-se
a sujeira de decênios, Daniel, por impulso, telefonou à delegacia de polícia do Wapping. Kate já se partiu. Esperou, embora menos de um segundo, e marcou o número
de sua casa.
   Respondeu em seguida, e lhe perguntou: O que faz?
   Ordenando papéis. E você?
   Desordenando papéis. Ainda estou no Innocent House. Quer que vamos tomar algo?
   Ela vacilou um par de segundos e respondeu: por que não? Onde te parece?
   O Town of Ramsgate. Vem-nos bem aos dois. Ficamos ali dentro de vinte minutos?
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

44
 
   Kate estacionou o carro ao pé do Wapping High Street, a uns cinqüenta metros do Town of Ramsgate. Enquanto se dirigia para o pub, Daniel surgiu do beco
que conduzia às Antigas Escadas do Wapping.
   Estava olhando o mole das Execuções lhe explicou. Crie que os piratas ainda estavam vivos quando os atavam aos postes durante a maré baixa e os deixavam
ali até que os tivessem coberto três marés?
   Eu diria que não. Certamente os enforcavam antes. O sistema penal do século XVIII era bárbaro, mas nem tanto.
   Abriram a porta do local e se inundaram no cintilação multicolorido e a jovialidade de um pub londrino em uma noite de domingo. O estreito botequim do
século XVII estava abarrotada, de modo que Daniel teve que abrir acontecer com cotoveladas e empurrões por entre a multidão de paroquianos para obter sua pinta do
Charrington's
Ale e meia pinta para o Kate. Um casal dej livres dois assentos no extremo da sala mais próximo à porta do jardim e Kate se apressou a ocupá-los.
   Se Daniel a tinha chamado principalmente para falar, mais que para beber, aquele sítio era tão bom como qualquer outro. No pub reinava a ordem, mas o
ruído era muito. Sobre aquele fundo de vozes animadas e súbitos arranques de risadas, poderiam falar com mais intimidade e chamar menos a atenção que se o bar estivesse
vazio.
   Kate advertiu que Daniel estava de um humor estranho e se perguntou se, ao chamá-la, não teria procurado mais um competidor para um encontro de boxe que uma companheira
de bebida. Mas a chamada tinha sido bem recebida. Alan não tinha telefonado e, com o piso já quase em ordem, a tentação de chamar ela, de vê-lo uma vez mais
antes de que se fora, começava a ser muito intensa para seu gosto. Alegrou-lhe sair do piso e afastar-se da tentação.
   Certamente ao Daniel tinha azedado o humor a tarde de frustração que tinha passado nos arquivos. Ao dia seguinte tocaria o turno a ela e, provavelmente,
com as mesmas expectativas de êxito. Entretanto, se o objeto que lhe tinham arrancado ao Etienne da boca era na verdade uma cinta, se o assassino tinha tido
que lhe explicar à vítima por que a tinha atraído para sua morte, era muito possível que o motivo jazesse no passado, inclusive em um passado remoto: uma velha
maldade, uma ofensa imaginária, um perigo oculto. A decisão de examinar os arquivos podia ser uma das célebres intuições do chefe, mas, como todas suas intuições,
tinha uma base lógica.
   Com o olhar fixo em sua cerveja, Daniel perguntou:
   Trabalhou com o John Massingham no caso Berowne, verdade? Você gostava?
   Era um bom polícia, embora não tanto como ele se figurava. Não, eu não gostava. por que?
   Ele deixou a pergunta sem responder.
   A mim tampouco. Estivemos juntos na Divisão H, os dois como sargentos. Chamava-me "menino judeu". Isso não tinha que chegar a meus ouvidos, naturalmente; sem
dúvida
lhe teria parecido uma falta de tato insultar a um companheiro cara a cara. E devo reconhecer que a frase completa era "nosso engenhoso menino judeu", mas não sei
por que me parece que não o dizia como um completo.
   Já que ela não dizia nada, prosseguiu.
   Quando Massingham utiliza a expressão "quando triunfar", sabe que não se refere a chegar a superintendente em chefe. refere-se a herdar o título de seu pai:
lorde Dungannon, chefe de polícia.
   Não lhe fará nenhum dano. Chegará ali antes que qualquer dos dois.
   "Antes que eu, seguro", pensou Kate. Em seu caso, a ambição devia reger-se pela realidade.
   Alguma mulher tinha que ser primeira em chegar a chefe de polícia; podia ser ela, mas era uma loucura contar com isso. Provavelmente tinha ingressado no corpo
com dez anos de antecipação.
   Conseguirá-o, se seriamente o desejar lhe assegurou.
   Possivelmente. Não é fácil ser judeu.
   Kate tivesse podido replicar que tampouco era fácil ser mulher no mundo machista da polícia, mas se tratava de uma queixa habitual e não tinha nenhuma intenção
de choramingar ante o Daniel.
   Não é fácil ser uma filha ilegítima. É-o? Acreditava que agora estava de moda.
   Não as ilegítimas como eu. E o mesmo ocorre aos judeus; têm prestígio, ao menos.
   Não os judeus como eu. Em que sentido é difícil?
   Não pode ser um ateu contente como as demais pessoas: sente constantemente a necessidade de lhe explicar a Deus por que não pode acreditar nele. E logo tem
uma mãe judia. Isso é absolutamente essencial, vai com o lote: se não ter uma mãe judia, não é judeu. Uma mãe judia quer que seu filho se case com uma boa
garota judia, dê-lhe netos judeus e se deixe ver com ela na sinagoga.
   Isto último poderia fazê-lo de vez em quando sem violentar muito sua consciência, se é que os ateus a têm.
   Os ateus judeus, sim. Esse é o problema. vamos olhar o rio.
   Na parte de atrás do botequim havia um jardincito com vistas ao Támesis que nas calorosas noites do verão resultava incômodo porque estava acostumado a estar
cheio
de gente, mas em uma noite de outubro poucos habituais se sentiam inclinados a tirar suas bebidas ao ar livre, de modo que Kate e Daniel saíram a um silêncio
fresco e perfumado pelo rio. O único abajur que brilhava pendurada na parede projetava um suave resplendor sobre as cadeiras de jardim colocadas patas acima
e os grandes vasos de barro de gerânios de lenhoso caule. Avançaram juntos e deixaram as jarras sobre a parede baixa que dava ao rio.
   Houve um silêncio. de repente, Daniel falou bruscamente.
   Não apanharemos a esse tipo. por que está tão seguro? replicou ela. E por que tem que ser um tipo? Poderia ser uma mulher. E por que é tão derrotista? O chefe
é provavelmente o investigador mais inteligente da Inglaterra.
   É mais provável que seja um homem. Desmontar e montar a estufa de gás mas bem parece obra de um homem. Em todo caso, suponhamos que o é. Não o apanharemos
porque é tão inteligente como o chefe e tem além disso uma grande vantagem: o sistema de justiça criminal está de sua parte, não da nossa.
   tratava-se de um ressentimento familiar. A desconfiança quase paranóica que Daniel sentia para os advogados era uma de suas obsessões, similar ao desgosto que
causava-lhe que lhe chamassem Dão, abreviando seu nome. Kate estava acostumada para lhe ouvir dizer que o sistema de justiça criminal não pretendia tanto condenar
ao culpado
como proporcionar uma engenhosa e lucrativa carreira de obstáculos onde os advogados pudessem demonstrar sua astúcia.
   Isso não é nenhuma novidade observou ela. Faz quarenta anos que o sistema de justiça criminal favorece aos delinqüentes. Temos que aceitá-lo assim. Os parvos
tratam de compensá-lo manipulando as provas para que pareçam mais fortes quando estão puñeteramente seguros de que seu homem é o culpado, mas o único que
consegue-se assim é desacreditar à polícia, deixar ao culpado em liberdade e promover novas leis que ainda fazem mais difícil demonstrar a culpabilidade.
   Você sabe, sabemos todos. A solução está em conseguir provas sólidas e honradas e em obter que se sustentem ante um tribunal.
   Em um caso realmente grave, as provas sólidas revistam as proporcionar os informadores e os agentes infiltrados. Pelo amor de Deus, Kate, sabe tão bem
como eu. E resulta que devemos dar-lhe à defesa adiantado, com o que não podemos as utilizar sem pôr vistas em perigo. Sabe quantos casos importantes
tivemos que abandonar nos últimos seis meses, só na polícia metropolitana?
   Neste caso não será assim, verdade? Quando tivermos provas, apresentaremo-las.
   Mas não as teremos. A não ser que um deles se derrube, e isso não ocorrerá. Tudo é circunstancial. Não temos um só feito que possamos relacionar com nenhum
dos suspeitos.
   Qualquer deles teria podido fazê-lo. Um deles o fez. Poderíamos reunir indícios contra qualquer deles, mas o caso não chegaria aos tribunais.
O departamento legal o rechaçaria. E se chegasse, não imagina o que diria a defesa? Etienne pôde subir a aquela habitação por suas próprias razões. Não podemos
demonstrar que não foi assim. Pôde ir procurar algo aos arquivos, um contrato antigo. Não pensa demorar muito, assim deixa a jaqueta e as chaves em seu escritório.
   Então tropeça com um pouco mais interessante do que se imaginava e se sinta a estudá-lo. Entra-lhe frio, assim fecha a janela, rompendo acidentalmente
o cordão, e acende a estufa. Quando se dá conta do que está acontecendo já se encontra muito desorientado para chegar à estufa e apagá-la. E morre.
Logo, ao cabo de várias horas, o vândalo do escritório encontra o cadáver e lhe ocorre acrescentar um toque de mistério morboso ao que, em realidade, é um lamentável
acidente.
   Kate replicou:
   Todo isso já o falamos e não se sustenta em pé. por que caiu ao lado da estufa? por que não foi para a porta? Etienne era inteligente e devia 
conhecer o risco de acender uma estufa de gás em um quarto mau ventilado, assim por que fechou a janela?
   De acordo, estava tentando abri-la, não fechá-la, quando se rompeu o cordão.
   Dauntsey diz que a última vez que esteve nessa habitação a janela estava aberta.
   Dauntsey é o principal suspeito; podemos prescindir de sua declaração.
   A defesa não prescindirá. Não se pode construir um caso prescindindo das provas que não convenham.
   De acordo, digamos que tentava abrir ou fechar a janela. Deixemos isso.
   Mas por que tinha que acender a estufa, para começar? Não fazia tão frio. Onde estão esses documentos que tanto lhe interessaram? Os que havia sobre a mesa
eram contratos de faz cinqüenta anos, autores já falecidos dos que ninguém se lembra. Que interesse podiam ter para ele?
   O brincalhão os trocou. Não podemos saber que documentos estava examinando em realidade. por que tinha que trocá-los? E se Etienne foi ao cuartito a trabalhar,
onde estavam a pluma, o lápis, a caneta?
   foi ler, não a escrever.
   Não podia escrever, verdade? Nem sequer pôde rabiscar o nome de seu assassino. Não tinha nada com o que escrever. Alguém lhe roubou a agenda que levava um lápis
incorporado. Nem sequer pôde escrever seu nome no pó, porque não havia pó. E o que me diz da lesão que tinha no paladar? Isso é incontrovertível,
é um fato.
   Que não está relacionado com ninguém. Não conseguiremos demonstrar como se produziu o arranhão se não podermos apresentar o objeto que o produziu. E não sabemos
que objeto
foi. Provavelmente não saberemos nunca. Quão único temos são suspeitas e provas circunstanciais; nem sequer temos as suficientes para pôr a um dos
suspeitos sob vigilância. Imagina que protestos, se o fizéssemos? Cinco pessoas respeitáveis, nenhuma só delas com antecedentes penais. E dois com álibi.
   Kate protestou:
   Nenhuma das dois vale um pimiento. Rupert Farlow reconheceu francamente que juraria que Do Witt tinha estado com ele tanto se era certo como se não. E essa história
de que o necessitou várias vezes durante a noite..., já viu que interesse teve em nos dar as horas exatas, né?
   Suponho que quando te está morrendo tende a te fixar na hora exata.
   E Claudia Etienne assegura que esteve com seu noivo. Esse noivo vai casar se com uma mulher muito rica, puñeteramente mais rica que faz só uma semana. Crie que
duvidaria em mentir por ela se o pedisse?
   Muito bem concedeu Daniel. É fácil lhes subtrair crédito aos álibis, mas podemos demonstrar que sejam falsas? E poderia ser que nos houvessem dito os dois a
verdade. Não podemos dar por sentado que mintam. E se houverem dito a verdade, Claudia Etienne e Do Witt são inocentes. O que nos leva outra vez ao Gabriel Dauntsey.
Ele teve os meios e a oportunidade, e carece de álibi para a meia hora anterior a sua saída para aquele recital em um pub.
   Mas isso se aplica igualmente ao Frances Peverell, e ela sim que tinha um motivo. Etienne a plantou por outra e se propunha vender Innocent House contra seus
desejos. Ninguém tinha mais motivos que ela para desejar sua morte. E trata de convencer a um jurado de que um ancião de setenta e seis anos com reumatismo pôde
subir aquelas
escadas ou agarrar aquele elevador lento e rangente, fazer o que tinha que fazer no despachito dos arquivos e voltar para seu piso em coisa de oito minutos. De
acordo, Robbins fez o ensaio e, embora muito justo, resultava factível, mas não se tinha que acontecer a planta baixa para recolher a serpente.
   Só temos a palavra do Frances Peverell de que fossem oito minutos. Poderiam estar colocados os dois no assunto; sempre foi uma de nossas possibilidades.
E o ruído da banheira ao esvaziar-se não significa nada. Vi a banheira, Kate: é dessas antiquadas, grandes e sólidas. poderia-se afogar a um par de adultos em
ela. Só teve que abrir um pouco o grifo para que a banheira se fora enchendo lentamente enquanto ele saía, dar um mergulho ao chegar para ficar convincentemente
molhado e chamar o Frances Peverell. Mas eu diria que estavam os dois de acordo.
   Não pensa com claridade, Daniel. É toda essa historia sobre a água do banho o que deixa ao Frances Peverell a salvo. Se estavam os dois de acordo, por que haviam
de inventar uma complicada história de banheiras, água corrente e oito minutos? por que não se limitou a dizer que esteve esperando seu táxi, que estava preocupada
porque demorava para retornar e que, quando o viu chegar, fez-o subir ao piso dela e o teve ali toda a noite? Há uma habitação livre, verdade? A fim e ao
cabo, trata-se de um assassinato; não acredito que lhe preocupasse muito a possibilidade de dar lugar a falatórios.
   Poderíamos demonstrar que ele não dormiu nessa cama. Se Frances Peverell nos tivesse contado essa história, teríamos chamado aos forenses. Não se pode dormir
toda
a noite em uma cama sem deixar algum indício, já sejam cabelos ou suor.
   Bem, pois eu acredito que ela nos há dito a verdade. Esse álibi é muito arrevesada para não ser autêntica.
   Isso é provavelmente o que nos queriam fazer acreditar. meu deus, este assassino é inteligente. É inteligente e tem sorte. Pensa por um momento na Sonia Clements.
matou-se nessa habitação. por que não pôde desgastar ela o cordão da janela e obstruir o canhão da chaminé?
   Kate respondeu:
   Olhe, Daniel, o chefe e eu o estivemos comprovando esta manhã, até onde pudemos, ao menos. Sua irmã afirma que Sonia Clements não tinha aptidões
mecânicas. Além disso, por que tinha que manipular a estufa? Com a esperança de que alguém, várias semanas mais tarde, acendesse-a misteriosamente, atraíra ao Etienne
a essa habitação e o encerrasse para que se intoxicasse com o monóxido de carbono?
   Claro que não. Mas possivelmente tinha pensado suicidarse assim, de modo que parecesse um acidente, para não prejudicar a Peverell Press. Possivelmente pensava
fazê-lo desde
que morreu o senhor Peverell.
   Logo, quando Gerard Etienne a despediu de um modo tão desumano...
   Se foi desumano.
   Suponhamos que foi. depois disso, já não lhe importava que a empresa saísse prejudicada ou não; provavelmente queria prejudicá-la ou, ao menos, prejudicar a
Etienne. Assim já não se incomodou em fazer passar sua morte por um acidente: matou-se de um modo mais agradável, com pastilhas e vinho, e deixou uma nota de suicídio.
Escuta, Kate, isto eu gosto. Tem uma espécie de lógica demencial.
   Mais demencial que lógica. Como podia saber o assassino que Clements tinha manipulado o gás? Não é provável que o dissesse ela. Quão único conseguiste
é que a teoria da morte acidental pareça mais verossímil. Sua teoria é um presente para a defesa. Já imagino ao advogado defensor lhe tirando todo o suco:
"Senhoras e cavalheiros do jurado, Sonia Clements teve tanta ocasião de manipular a estufa de gás como meu defendido, e Sonia Clements está morta."
   Muito bem disse Daniel. Sejamos otimistas. Apanharemo-lo e, então, o que lhe ocorrerá? Dez anos de cárcere se tiver má sorte, menos se sabe comportar-se. Quereria
que jogassem uma soga ao pescoço?
   Não. E você?
   Não, não quereria que voltássemos para enforcamento. Mas não sei se minha postura é muito racional; de fato, nem sequer sei se for honesta. Em minha opinião,
a pena
de morte é um fator dissuasivo, de modo que o que devo dizer é que estou disposta a aceitar que pessoas inocentes corram um risco maior de morrer assassinadas,
com tal de salvar minha consciência dizendo que já não executamos aos assassinos.
   Daniel lhe perguntou: Viu aquele programa de televisão a semana passada? Aquele sobre o sistema correcional nos Estados Unidos?
   Correcional. Boa palavra. Os internos ficavam bem corrigidos, certamente. Executados com uma injeção letal depois de sabe Deus quantos anos na galeria
da morte.
   Sim, vi-o. poderia-se argumentar que tiveram um fim puñeteramente mais fácil que suas vítimas.
   Um fim mais fácil que o que tem a maioria dos seres humanos, se a isso vamos.
   assim, aprova a morte por vingança?
   Daniel, eu não hei dito isso. É só que não pude sentir muita compaixão por eles.
   Assassinaram em um Estado onde está em vigor a pena de morte, e logo pareciam ofendidos porque o Estado se propunha cumprir o que estava em suas leis. Nenhum
mencionou a sua vítima. Nenhum pronunciou a palavra "arrependimento".
   Alguém a pronunciou.
   Então deveu me passar por alto.
   Não foi o único que te passou por cima. Está tentando brigar comigo?
   Só tento averiguar o que criar.
   O que eu cria é meu assunto. Inclusive em questões relacionadas com o trabalho?
   Sobre tudo em questões relacionadas com o trabalho. Além disso, isto não está relacionado com o trabalho mais que indiretamente. O programa pretendia que me escandalizasse.
Reconheço que estava bem feito: o produtor não se excedeu; não se pode dizer que fora injusto. Mas ao final davam um número ao que os espectadores podiam chamar
para expressar sua indignação. Quão único digo é que não senti a indignação que eles obviamente pretendiam provocar. Além disso, eu não gosto dos programas de televisão
que tentam me dizer o que devo sentir.
   Em tal caso, terá que deixar de olhar documentários.
   Uma lancha da polícia, esbelta e veloz, passou navegando rio acima, o foco de proa penteando a escuridão, a esteira, uma branca cauda de espuma. Quase em seguida
desapareceu, e a superfície alvoroçada se assentou em uma suave calma ondulante, sobre a qual as luzes refletidas dos pubs do rio arrojavam resplandecentes atoleiros
de prata. Pequenos grumos de espuma surgiram flutuando da escuridão para desfazer-se contra a parede do rio. fez-se um silêncio. Estavam os dois de pé, ao meio
metro de distância, contemplando o rio. de repente, voltaram-se simultaneamente e seus olhares se encontraram. Kate não podia ver a expressão do Daniel à luz
do único abajur de parede, mas percebeu sua força e ouviu que lhe acelerava a respiração. E naquele momento experimentou uma descarga de desejo físico tão
poderosa que teve que estender a mão e apoiar-se na parede para não jogar-se em seus braços.
   Kate disse Daniel, fazendo um gesto rápido para ela. Mas a jovem se deu conta do que ia acontecer e se apartou a um lado com igual rapidez. O que
ocorre, Kate? perguntou-lhe com suavidade. Logo, com voz sardônica, acrescentou: Ao chefe não gostaria?
   Não organizo minha vida privada segundo as preferências do chefe.
   Daniel não a tocou. Teria resultado mais fácil, pensou ela, se o tivesse feito.
   Verá lhe explicou, perdi a um homem ao que amava por culpa do trabalho. por que teria que me complicar isso por um ao que não amo? Crie que o complicaria,
seu trabalho ou o meu?
   OH, Daniel, não é o que ocorre sempre?
   Ele comentou, em um tom algo zombador:
   Disse-me que devia aprender a me afeiçoar às mulheres inteligentes.
   Mas não me ofereci a formar parte da aprendizagem.
   Daniel deixou escapar uma risada contida que rompeu a tensão. Naquele momento ao Kate gostou enormemente, em grande medida porque, a diferença da maioria
dos homens, era capaz de aceitar o rechaço sem rancor. Mas por que não? Nenhum dos dois podia fingir-se apaixonado. Ela pensou: "Os dois somos vulneráveis,
os dois estamos um pouco sozinhos, mas esta não é a solução."
   Enquanto se voltavam para retornar ao interior do pub, lhe perguntou:
   Se agora estivesse com o chefe e te pedisse que fosse com ele a sua casa, iria?
   Kate refletiu uns segundos e chegou à conclusão de que merecia uma resposta sincera.
   Certamente. Sim, iria. E isso seria amor ou sexo?
   Nenhuma das duas coisas respondeu. Chama-o curiosidade.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

45
 
   na segunda-feira pela manhã, Daniel marcou o número do posto telefônico do Innocent House e pediu ao George Copeland que acudisse ao Wapping durante a hora do
almoço.
O zelador chegou justo passada a uma e meia, e trouxe consigo à habitação um peso de angústia e tensão que pareceu embargar o ar. Quando Kate comentou que
fazia calor na sala e que possivelmente estaria mais cômodo se se tirava o casaco, ele o fez imediatamente, como se a sugestão tivesse sido uma ordem, mas o seguiu
com olhar apreensivo enquanto Daniel o recolhia e o pendurava, como se temesse que aquele fora só o primeiro passo de um desnudamiento premeditado. Observando seu
rosto infantil, Daniel pensou que devia ter trocado pouco da adolescência. As bochechas redondas com caminhos luas de cor vermelha, tão definidas como remenda,
tinham a lisura da borracha, em incongruente contraste com a seca arbusto de cabelo cinza. Os olhos refletiam uma expressão de fatigada esperança, e a voz, atrativa
mas insegura, estava mais disposta, suspeitou, a congraçar-se que a afirmar.
   Provavelmente o tinham intimidado na escola, pensou Daniel, e logo a vida o tinha tratado a patadas. Mas ao parecer tinha encontrado seu oco no Innocent
House, em um emprego que pelo visto lhe convinha e que obviamente desempenhava de um modo satisfatório. Quanto teria durado essa situação sob a nova ordem?,
perguntou-se.
   Kate lhe convidou a tomar assento ante ela com mais cortesia da que teria mostrado com a Claudia Etienne ou com qualquer de outros suspeitos varões, mas
ele se sentou tão rígido como uma tabela, as mãos como garras fechadas sobre seu regaço.
   Kate começou:
   Senhor Copeland, durante a festa de compromisso do senhor Etienne, nos dia dez de julho, lhe viu baixar com a senhora Bartrum do piso dos arquivos do Innocent
House. O que tinham ido fazer ali?
   Formulou a pergunta com suavidade, mas seu efeito foi tão devastador como se o tivesse empurrado contra a parede e lhe tivesse gritado à cara. Ele se encolheu
literalmente em sua cadeira e as luas vermelhas flamejaram e cresceram, para logo desvanecer-se em uma palidez tão extrema que Daniel se aproximou instintivamente,
médio
acreditando que ia deprimir se. Reconhece que subiram ao último piso? perguntou Kate.
   O suspeito recuperou a voz.
   Ao quarto dos arquivos, não; não fomos ali. A senhora Bartrum queria ir ao serviço. Acompanhei-a ao do último piso e a esperei fora. por que não utilizou
os asseios do vestuário de senhoras do primeiro piso?
   Tentou-o, mas os dois cubículos estavam ocupados e havia cauda. Ela estava..., tinha pressa.
   De modo que a acompanhou você acima. Mas por que o pediu a você e não a alguma das empregadas da casa?
   Era uma pergunta, pensou Daniel, que teria sido mais lógico lhe fazer à senhora Bartrum. Sem dúvida em um momento ou outro assim seria.
   Copeland permaneceu em silêncio. Kate insistiu: Não teria sido mais natural que o tivesse pedido a uma mulher?
   Possivelmente sim, mas é tímida. Não conhecia nenhuma, e eu estava ali no mostrador.
   E o conhecia, não é isso? Ele não pronunciou nenhuma palavra, mas assentiu com uma leve inclinação de cabeça. conhecem-se muito bem?
   Então ele a olhou de marco em marco e respondeu:
   É minha filha. O senhor Sydney Bartrum está casado com sua filha? Isso o explica tudo. É perfeitamente natural e compreensível: ela se dirigiu a você porque é
você seu pai. Mas isso não é de conhecimento comum, verdade? por que é um segredo?
   Se o digo, terá que saber-se? você tem que dizer que o hei dito?
   Não temos que dizer-lhe a ninguém exceto à comandante Dalgliesh, e não saberá ninguém mais a não ser que se trate de algo relevante para nossa investigação.
Isso não podemos sabê-lo até que nos explique isso.
   Foi o senhor Bartrum, quer dizer, Sydney, quem quis que não se soubesse. Queria mantê-lo em segredo, ao menos ao princípio. É um bom marido, quê-la e são
felizes os dois. Seu primeiro marido era um animal. Ela fez todo o possível porque o matrimônio fora um êxito, mas acredito que sentiu um grande alívio quando ele
a
deixou. Sempre tinha andado com mulheres e ao final se foi com uma delas.
   divorciaram-se, mas ela ficou muito afetada. Perdeu toda a confiança em si mesmo. Menos mal que não tinham filhos. Como conheceu senhor Bartrum?
   Um dia minha filha veio a me buscar ao trabalho. Normalmente sou o último em sair, assim que ninguém a viu exceto o senhor Bartrum. Como não lhe arrancava o carro,
Julie
e eu nos oferecemos a levá-lo e, quando chegamos a sua casa, ele nos convidou a tomar um café. Suponho que devia sentir-se obrigado.
   Desde aí veio tudo. Começaram a escrever-se, e os fins de semana ele ia vê-la ao Basingstoke, onde ela vivia e trabalhava.
   Mas no Innocent House deviam saber que você tinha uma filha.
   Não estou seguro. Sabiam que era viúvo, mas nunca me perguntavam pela família. Além disso, Julie não vivia comigo; trabalhava na delegação de Fazenda do Basingstoke
e não vinha muito por casa. Acredito que deviam sabê-lo, mas nunca me perguntavam por ela. Por isso foi tão fácil manter as bodas em segredo. E por que não havia
se soubesse?
   O senhor Bartrum, Sydney, disse que queria que sua vida privada fora privada, que o matrimônio não tinha nada que ver com a Peverell Press, que não queria que
os empregados mexericassem sobre seus assuntos particulares. Não convidou a ninguém da empresa à bodas, embora sim disse aos diretores que se casava. Bom,
claro que não tinha mais remédio, porque tinham que lhe trocar o código fiscal. E logo lhes disse o da menina e lhe ensinou a foto a todo mundo. Está muito orgulhoso
dela. Eu acredito que ao princípio não queria que a gente soubesse que se casou..., bom, que se tinha casado com a filha do recepcionista. Certamente tinha
medo de perder prestígio. criou-se em um orfanato, e faz quarenta anos essas instituições para meninos não eram o que são agora. Na escola o desprezavam, o
faziam sentir inferior, e não acredito que o tenha esquecido nunca. Sempre se preocupou muito por sua posição na empresa. E o que opina sua filha de tudo isto, do
secreto, do ocultar que o senhor Bartrum é seu genro?
   Não acredito que lhe importe. A estas alturas já não deve nem lembrar-se. A empresa não significa nada para ela. Desde que se casaram, a única vez que esteve
no Innocent
House foi com motivo da festa de compromisso do senhor Gerard. Queria ver a casa por dentro e, sobre tudo, queria ver o número 10, o despacho onde ele trabalha.
Está muito apaixonada por ele. Agora têm a menina e são felizes os dois. Sydney lhe trocou a vida. Suponho que se só os visse no escritório não seria o mesmo,
mas vou visitar os quase todos os fins de semana e vejo a Rosie, a menina, sempre que quero.
   Passeou o olhar do Daniel ao Kate, como implorando sua compreensão, e prosseguiu.
   Já sei que parece estranho e acredito que agora Sydney o lamenta. Mais ou menos me deu isso a entender. Mas compreendo como ocorreu. Pediu-nos de forma impulsiva
que
não o disséssemos a ninguém e, quanto mais tempo passava, mais impossível resultava dizer a verdade. Além disso, ninguém nos perguntou nada. A ninguém interessava
saber com
quem se tinha casado. Ninguém me perguntava por minha filha. A gente só se interessa por sua família se falas dela, e mesmo assim é mais que nada por cortesia.
   Em realidade não lhes importa. Mas seria muito mau para o senhor Bartrum, para o Sydney, que se soubesse agora. E eu não gostaria que ele pensasse que vim a dizer-lhe
por tu vida doméstica. ¿Te gustaría que lo hiciera? Está claro lo que sucedió: sintió el pretencioso impulso de mantenerlo en secreto y luego se dio cuenta de que
Tem que saber-se?
   Não respondeu Kate. Acredito que não.
   Pareceu ficar mais tranqüilo. Daniel lhe ajudou a ficar o casaco. Quando retornou, depois de acompanhá-lo à porta, encontrou-se ao Kate dando voltas por
a habitação e completamente enfurecida. A mierda todos os malditos esnobes idiotas e pomposos...! Este homem vale por dez Bartrums! Sim, claro, já entendo
como ocorreu, a insegurança social, quero dizer. É o único dos empregados de alto nível que não esteve em Oxford nem em Cambridge, verdade? Parece ser que
a seu sexo importam estas coisas, sabe Deus por que. E te diz algo da Peverell Press, né? Esse homem leva trabalhando para eles..., desde quando? Há
quase vinte anos, e nem sequer lhe perguntaram nunca por sua filha.
   Se lhe tivessem perguntado assinalou Daniel, teria respondido que estava casada e muito satisfeita, obrigado. Mas por que tinham que perguntar? O chefe não se
interessa
por sua vida doméstica. Você gostaria que o fizesse? Está claro o que aconteceu: sentiu o pretensioso impulso de mantê-lo em segredo e logo se deu conta de que
tinha que seguir fazendo-o se não queria ficar como um parvo. Eu gostaria de saber o que Bartrum estaria disposto a pagar para que não tirasse o chapéu. Mas ao menos
já sabemos por que Copeland e a senhora Bartrum subiram juntos ao último piso; embora não o fazia falta nenhuma desculpa, pode subir sempre que quiser. Um
pequeno problema que nos tiramos de cima.
   Em realidade, não objetou Kate. No Innocent House foram todos muito discretos, especialmente os sócios, mas a senhora Demery e os empregados jovens nos hão dito
o suficiente para nos fazer uma idéia bastante aproximada do que ocorria. Com o Gerard Etienne ao mando, quanto crie que teriam durado Copeland e Bartrum na
empresa? Copeland quer a sua filha e ela quer a seu marido; sabe Deus por que, mas pelo visto é assim. Vivem felizes juntos, têm uma filha.
   Os dois tinham muito que perder, não?, tanto Bartrum como Copeland. E não esqueçamos uma coisa do George Copeland: é o que se ocupa das pequenas reparações
da casa. É um manitas.
   Provavelmente é o suspeito que teria tido menos problemas para desconectar a estufa de gás. E teria podido fazê-lo em qualquer momento sem nenhum perigo;
a única pessoa que utiliza habitualmente o despachito dos arquivos é Gabriel Dauntsey, e ele nunca acende a estufa. Se tiver frio, traz-se sua própria estufa
elétrica. Não é um pequeno problema que nos tiramos de cima; é outra maldita complicação.
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original
  
   QUARTO LIVRO
   A EVIDÊNCIA ESCRITA
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

46
 
   O anoitecer da quinta-feira 21 de outubro, Mandy saiu do escritório uma hora mais tarde que o acostumado. Tinha ficado com o Maureen, sua companheira de piso,
em que
encontrariam-se no pub White Horse da rua Wanstead para jantar ali e assistir à atuação de um grupo musical. tratava-se de uma celebração por partida
dobro: Maureen fazia dezenove anos e tinha começado a sair com o bateria do conjunto Os diabos a cavalo. A atuação estava prevista para as oito, mas
o grupo se reuniria no pub uma hora antes para jantar. Mandy se tinha levado uma muda de roupa ao escritório na mala da moto e pensava ir diretamente
ao White Horse. A perspectiva da velada e, sobre tudo, de voltar a ver a líder do conjunto, Roy de que tinha decidido que gostava bastante ou, ao menos,
que estava disposta a que gostasse se a noite ia bem, tinha projetado sobre a jornada um resplendor de alegre espera que nem sequer a silenciosa e
quase maníaca concentração da senhorita Blackett no trabalho conseguiu obscurecer. Agora a senhorita Blackett trabalhava para a senhorita Claudia, que se havia
instalado no despacho de seu defunto irmano. Três dias depois de sua morte, Mandy alcançou para ouvir como a respirava a isso o senhor Do Witt.
   É o que ele tivesse querido. Agora é a presidenta e diretora gerente, ou o será quando aprovarmos a necessária resolução. Não podemos deixar o despacho
vazio. Ao Gerard não teria gostado que o conservássemos como um santuário a sua memória.
   uns quantos empregados se partiram da empresa imediatamente, mas os que ficaram, já fora por desejo ou por necessidade, encontraram-se unidos por
uma camaradagem tácita apoiada na experiência compartilhada. Juntos esperavam, interrogavam-se e, quando não estavam pressentem os sócios, intercambiavam rumores
e
conjeturas. Os olhos brilhantes do Mandy e seus ouvidos atentos não deixavam escapar nada. Tinha chegado a lhe parecer que Innocent House a tinha cativada de um
modo
misterioso, e se dirigia cada manhã a trabalhar estimulada por uma mescla de excitação e curiosidade amadurecida de medo. Aquele cuartito nu, onde o dia que
apresentou-se na empresa tinha podido contemplar o cadáver da Sonia Clements, dominava sua imaginação tão poderosamente que todo o último piso, ainda fechado
salvo para a polícia, tinha adquirido para ela algo do poder aterrador de um conto de fadas: era como a toca de Barba Azul, o território proibido do horror.
Não tinha visto o cadáver do Gerard Etienne, mas em sua imaginação refulgia com a vivida nitidez de um sonho. Às vezes, antes de dormir, imaginava os dois
corpos juntos no quarto a senhorita Clements tendida em sua triste decrepitude, o semidesnudo corpo masculino no chão a seu lado e observava aterrorizada
como seus olhos frágeis e apagados piscavam e se iluminavam, e como a serpente começava a palpitar e cobrava uma vida lamacenta, estendendo sua vermelha língua em
busca da boca morta para contrair os músculos e sufocar a respiração. Mas sabia que estas imaginações ainda eram controláveis. A segurança que lhe proporcionava
o conhecimento de sua inocência, assim como o sentimento permanente de que não corria verdadeiro perigo, permitiam-lhe desfrutar da euforia meio culpado do terror
simulado. Mas também sabia que Innocent House estava infectada de um medo que ia além de suas caprichosas imaginações. Pela manhã, quando descia da
moto, o aroma do medo começava a impregná-la como se se tratasse da névoa do rio, e quando cruzava o portal esse medo se intensificava e a envolvia. Via
o medo no amável olhar do George quando a saudava, na cara tensa e os olhos inquietos da senhorita Blackett, nos passados do senhor Dauntsey enquanto,
súbitamente envelhecido e sem rastro algum de vigor, subia penosamente a escada. Ouvia o medo nas vozes de todos os sócios.
   na quarta-feira pela manhã, justo antes das dez, a senhorita Claudia convocou ao pessoal na sala de juntas. Acudiram todos, inclusive George, que havia
deixado o posto telefônico conectado à secretária eletrônica, e Fred Bowling, o piloto da lancha. Levaram cadeiras para formar um semicírculo e os outros três sócios
ocuparam
seu lugar na mesa, a senhorita Peverell à direita da senhorita Claudia e os senhores Do Witt e Dauntsey a sua esquerda. Quando se recebeu a chamada convocando
a reunião, a senhorita Blackett pendurou o telefone e disse: "Você também, Mandy. Você já é da casa." E Mandy, até a seu pesar, experimentou uma breve quebra de
onda de satisfação.
Os primeiros em chegar foram sentando-se, um tanto coibidos, na segunda fila, e ao Mandy não passou por cima o peso coletivo de excitação, espera e inquietação.
   Quando a última em chegar-se escabulló, ruborizada, para um assento da primeira fila e a porta da sala ficou fechada, Claudia perguntou: Onde está a
senhora Demery?
   Respondeu-lhe a senhorita Blackett:
   Possivelmente acreditou que não estava incluída.
   Todo mundo está incluído. vá procurar a, por favor, Blackie.
   A senhorita Blackett saiu apressadamente e, depois de um par de minutos durante os quais todos os pressente esperaram em completo silêncio, retornou com a senhora
Demery, que ainda tinha posto o avental. A recém chegada abriu a boca como se fora a fazer algum comentário depreciativo, mas evidentemente o pensou melhor,
voltou a fechá-la e se sentou na única cadeira que ficava livre, no centro da primeira fila.
   A senhorita Claudia começou:
   Em primeiro lugar, quero lhes dar as obrigado por sua lealdade. A morte de meu irmão e a forma em que se produziu têm suposto uma horrível comoção para todos.
São momentos difíceis para a Peverell Press, mas espero e acredito seriamente que juntos os superaremos. Temos uma responsabilidade para nossos autores e para
os livros que esperam lhes publiquemos com o mesmo nível de qualidade que caracterizou a Peverell Press há mais de duzentos anos. Me comunicaram
já os resultados da pesquisa: meu irmão morreu por intoxicação de monóxido de carbono, produzido sem dúvida alguma pela estufa de gás que há no despachito
dos arquivos.
   A polícia ainda não está em condições de dizer a maneira exata em que se produziu a morte. Sei que já falaram todos vocês com o comandante Dalgliesh ou
com um de seus oficiais. É provável que sigam realizando entrevistas, e estou segura de que farão vocês o que esteja em sua mão para ajudar à polícia em seu
investigação, ao igual a todos os sócios. "E agora, umas palavras sobre o futuro. Certamente terão ouvido rumores sobre um projeto de vender Innocent House
e transladar a empresa a outro lugar. Todos esses projetos ficam em suspense. As coisas seguirão como estão, pelo menos até no próximo mês de abril, data em
que finaliza o ano financeiro. O que ocorra depois dependerá em grande medida do êxito de nosso catálogo de outono e do bem que vá por Natal. Este
ano o catálogo é especialmente forte e todos nos sentimos otimistas, mas devo lhes comunicar que não há nenhuma possibilidade de que se aumente o salário a ninguém
durante o que fica de ano e que os sócios aceitaram uma redução de dez por cento. Não haverá mais mudanças na palmilha atual, ao menos até o próximo
abril, mas é inevitável que se leve a cabo certa reorganização. Eu assumirei os cargos de presidenta e diretora gerente, ao princípio em funções; o qual
quer dizer que serei a responsável por produção, contabilidade e armazém, como o era meu irmão. A senhorita Peverell assumirá minhas responsabilidades atuais como
diretora de publicidade e vendas, e o senhor Do Witt e o senhor Dauntsey acrescentarão contratos e direitos a suas responsabilidades editoriais. contratamos a Virginia
Scott-Headley, do Herne amp; Illingworth, como relações públicas; é uma profissional muito competente e com uma grande experiência, e também se encarregará de fazer
frente à avalanche de perguntas sobre a morte de meu irmão que estamos recebendo tanto por parte de jornalistas como de pessoas de fora da empresa. Até
o momento, George o veio resolvendo magnificamente, mas quando chegar a senhorita Scott-Headley todas essas chamadas lhe serão dirigidas a ela. Não acredito que
seja necessário dizer nada mais, salvo que a Peverell Press é a editorial independente mais antiga do país e que todos os sócios estão decididos a que sobreviva
e prospere. Isso é tudo. Obrigado por sua assistência. Alguma pergunta?
   produziu-se um silêncio sobressaltado durante o qual pareceu que a gente fazia provisão de valor para falar. A senhorita Claudia o aproveitou para levantar-se
da
mesa e encabeçar rapidamente a retirada.
   Ao cabo de um momento, na cozinha, enquanto preparava o café da senhorita Blackett, a senhora Demery se mostrou mais loquaz.
   Não há nenhum que tenha nem idéia do que se tem que fazer. Isso ficou bem claro. O senhor Gerard podia ser todo um hijoputa, mas ao menos sabia o queria
e como consegui-lo. Não venderão Innocent House, a senhorita Peverell já se encarregou disso, suponho, e o senhor Do Witt a terá apoiado. Mas, se não venderem
a casa, como pensam mantê-la? diga-me isso você, a ver. Os que tenham um pouco de sentido comum, já podem começar a procurar outro emprego por aí.
   Logo, só no despacho, enquanto ordenava seu escritório, Mandy pensou em como se notavam esses sessenta minutos de mais. Innocent House dava a impressão de haver-se
esvaziado de repente.
   Enquanto subia pela escada para o vestuário de senhoras do primeiro piso, onde ia trocar se, suas pegadas ressonavam fantasmagóricamente sobre o mármore
como se uma pessoa invisível a seguisse a escassa distância. Quando se deteve no patamar para aparecer pelo corrimão, viu brilhar os dois globos de luz ao
pé da escada como duas luas flutuantes em um salão que agora parecia cavernoso e misterioso. trocou-se a toda pressa; embutiu dentro da bolsa a roupa que
levava posta, passou-se pela cabeça uma saia curta feita de muitas capas de retalhos de algodão e uma camiseta a jogo, e se calçou as altas e reluzentes expulsa.
Possivelmente fora uma pena ficar as para ir de moto, mas eram bastante resistentes e resultava mais fácil que as levar na mala. Que silêncio havia! Inclusive o
depósito do inodoro rugiu como uma avalanche ao esvaziar-se. Foi um alívio ver o George, com o casaco posto e o velho chapéu de tweed na cabeça, sentado ainda detrás
o mostrador de recepção enquanto guardava na caixa de segurança três pacotes que deveriam recolher ao dia seguinte. O brincalhão malintencionado não havia tornado
a atuar do assassinato, mas as precauções se mantinham em vigor.
   Mandy lhe perguntou: Não é curioso o silêncio que há quando se foram todos? Sou a última?
   Só ficamos a senhorita Claudia e eu. E eu me parto agora mesmo. A senhorita Claudia conectará os alarmes.
   Saíram juntos, e George se assegurou de deixar a porta fechada a suas costas. Durante todo o dia tinha cansado uma chuva intensa e incessante que dançava sobre
o pátio de mármore, jorrava pelas janelas e quase impedia de ver a enchente massa cinza do rio. Mas fazia pouco que tinha cessado de chover e, sob o resplendor
das luzes traseiras do carro do George, os paralelepípedos do Innocent Passage brilhavam como castanhas recém cortadas. No ar soprava a primeira mordida do
inverno. Ao Mandy começou a lhe gotejar o nariz, e afundou a mão na bolsa para tirar um lenço e o cachecol. antes de subir à moto esperou a que George, com
lhe exasperem lentidão, tirasse seu velho Metro à passagem em marcha atrás. Depois de um instante de vacilação, a moça correu a lhe dar o sinal de que não vinha
ninguém
pelo Innocent Walk. Nunca vinha ninguém, mas George saía invariavelmente em marcha atrás como se aquela manobra fora sua diária partida de jogo de dados com a morte.
Quando George acelerou até perder-se de vista, depois de lhe fazer um gesto de despedida e agradecimento, ela se disse que ao menos o homem já não teria que preocupar-se
por seu emprego e se alegrou por ele.
   A senhora Demery lhe tinha contado que se rumoreaba que o senhor Gerard tinha intenção de despedi-lo.
   Mandy avançou serpenteando por entre o tráfico vespertino com sua acostumada habilidade e um desdém jovial para os gritos ocasionais de algum que outro condutor
ofendido. Tinham transcorrido pouco mais de trinta minutos quando viu ante si a fachada do White Horse, uma imitação do estilo Tudor, festoneada com luzes de
cores. elevava-se um pouco se separada da rua, em um solar de uns cem metros onde as fileiras de casas suburbanas cediam seu lugar a uma franja de arbustos e matagais
ao bordo do bosque do Epping. O pátio dianteiro já estava completamente cheio de carros, entre os que distinguiu a caminhonete do conjunto e o Festa do Maureen.
Mandy levou lentamente a moto até o estacionamento da parte posterior, mais pequeno, e detrás agarrar a bolsa da mala se abriu passo pelo corredor que conduzia
aos asseios de senhoras, onde se uniu ao buliçoso caos de moças que penduravam os casacos e se trocavam de sapatos sob um pôster que lhes recordava que elas
eram as responsáveis por seus pertences. Todas faziam fila para ocupar um dos quatro cubículos e pulverizavam seus trastes de maquiagem sobre a estreita prateleira
que se estendia sob um comprido espelho. Foi então, depois de fazer-se com um lugar ante o espelho e enquanto registrava a bolsa em busca da nécessaire de plástico
onde levava sua maquiagem, quando Mandy se deu conta de algo que lhe fez dar um tombo ao coração: faltava-lhe o moedeiro, o moedeiro de pele negra que servia
também de carteira e continha seu dinheiro, seu único cartão de crédito e o cartão da caixa automática, apreciados símbolos de sua situação econômica, assim como
a
chave Yale de casa. Suas ruidosas exclamações de desalento atraíram a atenção do Maureen, que interrompeu sua cuidadosa aplicação de eye-liner.
   Vazia a bolsa. É o que eu faço sempre lhe aconselhou. Ato seguido reatou a tarefa de pintá-los olhos de negro sem a menor preocupação.
   Para o que lhe importa resmungou Mandy.
   depois de apartar os produtos de maquiagem do Maureen a um lado, derrubou o conteúdo da bolsa. Mas o moedeiro não estava. E então se lembrou. Devia 
haver-se enredado com o cachecol e o lenço, quando os tirou da bolsa à saída do Innocent House. Certamente ainda estaria ali, atirado sobre os paralelepípedos.
Teria que voltar a buscá-lo. O único consolo era que não havia muitas possibilidades de que o tivesse encontrado ninguém: Innocent Walk, e Innocent Lane em particular,
sempre estavam desertos depois de obscurecer. perderia-se o jantar, mas, com sorte, não mais de meia hora da atuação.
   E então lhe ocorreu uma idéia. Podia chamar por telefone ao senhor Dauntsey ou à senhorita Peverell. Assim ao menos saberia se o moedeiro estava ali. Possivelmente
pensassem que era uma frescura por sua parte, mas Mandy confiava em que a nenhum dos dois lhe importasse muito. Tinha trabalhado muito pouco para o senhor Dauntsey
e a senhorita Peverell, mas quando tinha feito algo sempre lhe tinha parecido que o agradeciam; além disso, tratavam-na com muita correção. Só lhes custaria
um minuto ir olhar; não tinham que andar mais que uns quantos metros. E não era quão mesmo se ainda seguisse chovendo. o da chave era uma lata. Se o moedeiro
estava ali, quando terminasse a atuação seria muito tarde para ir recolhê-lo. Se Maureen não tinha outros planos para a noite, voltaria para casa com ela; de
o contrário, não ficaria mais remedeio que despertar ao Shirl ou ao Pete.
   Mas não podiam queixar-se: quantas vezes a tinham despertado a ela para que lhes abrisse a porta?
   Perdeu um pouco de tempo enquanto enrolava ao Maureen para que lhe desse as moedas necessárias para a chamada e esperava que uma das duas cabines ficasse
livre, e um minuto mais quando descobriu que o agendinha de telefones que precisava estava na outra cabine. Chamou primeiro à senhorita Peverell, mas lhe respondeu
a mensagem
da secretária eletrônica, gravado pela senhorita Peverell com voz fica, quase em tom de desculpa. Havia muito pouco sitio para dirigir o agendinha de telefones,
que lhe caiu ao chão com
um golpe surdo. Fora da cabine, dois homens gesticularam com impaciência. Bem, pois teriam que esperar: se o senhor Dauntsey estava em casa, não pensava pendurar
até que lhe dissesse se tinha dado com seu moedeiro. Encontrou o número e o marcou. Não houve resposta. Deixou que soasse o timbre até muito depois de ter perdido
a esperança, mas ao fim teve que pendurar. Já não ficava outra alternativa. Não podia suportar a idéia de passá-la velada e a noite em velo. Tinha que voltar
ao Innocent House.
   Esta vez circulava contra a corrente principal do tráfico, mas apenas se se deu conta das incidências do trajeto: sua mente era um revoltillo de ansiedade,
impaciência e irritação. Ao Maureen não haveria flanco nada levá-la ao Wapping no Festa, mas quando se viu que Maureen deixasse passar a ocasião de
um jantar? Mandy também começava a sentir-se faminta, mas se disse que, com sorte, teria tempo de pedir um sanduíche na barra antes da atuação.
   Innocent Walk estava, como de costume, deserto. A parte posterior do Innocent House se erguia como um bastión escuro contra o céu da noite; e de repente,
quando Mandy elevou a vista, com a cabeça arremesso para trás, voltou-se tão insustancial e instável como uma parte de cartão que redemoinhasse sobre as nuvens baixas
velozmente impulsionadas pelo vento e tintas de rosa pelas luzes da cidade. Os atoleiros da sarjeta se secaram já e, ao chegar ao extremo do Innocent
Lane, envolveu-a um vento frio que transportava o penetrante aroma do rio. Os únicos sinais de vida eram umas janelas iluminadas no piso alto do número
12. Pelo visto, a senhorita Peverell já estava em casa. Mandy desceu da moto ao final do Innocent Lane, porque não queria incomodá-la com o ruído do motor nem
ver-se retida com perguntas e explicações. Avançou com o sigilo de um ladrão para o tênue rielar do rio, até o lugar onde tinha estacionado a Yamaha durante
o dia.
   Os abajures do pátio davam suficiente luz para assisti-la na busca, mas não houve necessidade de busca: o moedeiro jazia exatamente onde ela esperava
encontrá-lo. Mandy emitiu uma breve e quase inaudível exclamação de alívio e o meteu no mais fundo de um bolso da jaqueta provido de cremalheira.
   Resultava menos fácil ver a esfera do relógio, de modo que se aproximou do rio. Em ambos os extremos da terraço, os dois grandes globos de luz sustentados por
golfinhos
de bronze projetavam atoleiros brilhantes sobre a movediça superfície da água, que tremia como uma grande capa de cetim negro, sacudida, alisada e brandamente ondulada
por uma mão invisível. Mandy consultou seu relógio: as oito e vinte; era mais tarde que o que supunha. de repente se deu conta de que seu entusiasmo pela atuação
tinha minguado muito. A quebra de onda de alívio experimentada ao encontrar o moedeiro tinha infundido nela certa relutância a empreender qualquer atividade que
requeresse
esforço, e, nesse estado de letargia satisfeita, a perspectiva da acolhedora claustrofobia que lhe oferecia sua habitação, da cozinha por uma vez a sua inteira
disposição e do resto da velada ante o televisor ia ganhando em atrativo segundo a segundo. Tinha aquele vídeo de o Niro, O cabo do medo, que terei que
devolver ao dia seguinte: duas libras esterlinas atiradas se não o via essa noite. Sem pressas já, voltou-se quase inconscientemente para contemplar a fachada do
Innocent
House.
   As dois novelo inferiores se achavam tenuemente iluminadas pelas luzes do pátio, e as esbeltas colunas de mármore reluziam com suavidade contra as janelas
mortas, negras e cavernosas aberturas para um interior que já conhecia muito bem, mas que agora lhe desejava muito misterioso e imponente. Que curioso, pensou, que
ali
dentro tudo estivesse igual a quando se partiu: os dois ordenadores talheres com suas capas, o pulcro escritório da senhorita Blackett com sua pilha
de bandejas portapapeles e a agenda colocada justo à direita, o arquivo fechado com chave, o tablón de anúncios à direita da porta. Todas essas coisas
ordinárias permaneciam ali mesmo que não houvesse ninguém para as ver. E não havia ninguém, ninguém absolutamente.
   Pensou no cuartito nu do último piso, o quarto em que tinham morrido duas pessoas. A cadeira e a mesa deviam seguir em seu lugar, mas não haveria nenhuma
cama, nenhum cadáver de mulher, nenhum homem semidesnudo arranhando as pranchas do chão. De súbito voltou a ver o corpo da Sonia Clements, mas mais real, mais pavoroso
que quando o visse em carne e osso. E então recordou o que lhe tinha contado Ken, o do armazém, quando foi levar uma mensagem ao número 10 e ficou conversando:
que lady Sarah Peverell, a esposa do Peverell que construíra Innocent House, arrojou-se do balcão mais alto e tinha morrido esmagada contra o mármore.
   Ainda se vê a mancha de sangue lhe havia dito Ken enquanto transladava uma caixa de livros da prateleira ao carro. Isso sim: procura que a senhorita Frances não
te pilhe
procurando-a; à família não gosta que se fale dessa história. Mas não podem apagá-la, embora já gostariam, e não haverá sorte nesta casa até que a apaguem.
E ainda ronda por aqui, essa lady Sarah. Pregúntaselo a qualquer barqueiro do rio.
   Ken, naturalmente, pretendia assustá-la, mas isso tinha ocorrido no fim de setembro, um suave dia de sol, e Mandy tinha desfrutado com o relato, que só
acreditou pela metade e lhe produziu um agradável calafrio de autoinducido temor. Logo perguntou ao Fred Bowling se era certo, e recordava sua resposta:
   Neste rio há muitos fantasmas, mas nenhum que ronde pelo Innocent House.
   Isso foi antes de que morrera o senhor Gerard. Possivelmente agora sim rondavam.
   Enquanto pensava nisso, o medo começou a fazer-se real. Elevou o olhar para o balcão mais alto e se imaginou o horror dessa queda, o agitar de braços, o
único grito por força tinha que ter gritado, o sinistro rangido do corpo ao estelar se contra o mármore. de repente se ouviu um chiado frenético que a sobressaltou,
mas só era uma gaivota. O pássaro descendeu em picado para ela, posou-se por uns instantes no corrimão e reatou seu bato as asas rio abaixo.
   Mandy se deu conta de que estava ficando geada. Era um frio estranho, que gotejava do mármore como se a terraço fora de gelo, e o vento do rio que o
soprava na cara era cada vez mais cru. Estava lhe jogando um último olhar ao rio, à lancha que jazia vazia e silenciosa, quando seus olhos divisaram algo branco
no alto do corrimão, à direita dos degraus de pedra que desciam para o Támesis. Ao princípio lhe pareceu que alguém tinha pacote um lenço à
corrimão. aproximou-se com curiosidade e viu que era uma folha de papel cravada em uma das estreitas puas. E havia algo mais, um brilho de metal dourado ao pé da
corrimão. Mandy se agachou e, um pouco desorientada pelo medo autoinducido, demorou uns segundos em descobrir do que se tratava.
   Era a fivela de uma estreita correia de couro, a correia de uma bolsa marrom. A correia, muito tirante, inundava-se sob a rugosa superfície da água, e baixo essa
superfície havia algo apenas visível, algo grotesco e irreal, como a cabeça abombada de um inseto gigantesco com milhões de patas peludas que a maré agitava
brandamente. E de súbito Mandy compreendeu que estava vendo o cocuruto de uma cabeça humana. Ao final da correia havia um corpo humano. E enquanto o contemplava
horrorizada, a corrente deslocou o corpo e uma mão branca surgiu lentamente da água, a boneca murcha como o caule de uma flor murcha.
   Durante uns segundos a incredulidade lutou contra a compreensão, até que, médio desvanecida de espanto e horror, fincou os joelhos e se aferrou ao corrimão.
Percebeu o metal frio que lhe raspava as mãos e logo sua pressão contra a frente. ficou de joelhos, incapaz de mover-se, enquanto o terror lhe espremia o
estômago e convertia suas extremidades em pedra. Nessa fria nada, só seu coração estava vivo, um coração convertido em uma grande bola de ferro candente que o
golpeava as costelas como se pudesse lhe fazer atravessar o corrimão e empurrá-la ao rio. Não se atrevia a abrir os olhos; abri-los era ver o que ainda não podia
acreditar
de tudo: a dobro correia de couro esticada pelo horror de mais abaixo.
   Não teria sabido dizer quanto tempo permaneceu ajoelhada ali antes de recuperar o sentido e a capacidade de movimento, mas pouco a pouco foi percebendo o
intenso aroma do rio nas fossas nasais, a frieza do mármore nos joelhos, o paulatino apaziguamento de seu coração. As mãos que sujeitavam o corrimão
estavam tão rígidas que necessitou uns dolorosos segundos para desprender dela os dedos. ficou em pé e, repentinamente, recuperou as forças e a lucidez.
   Cruzou o pátio à carreira, sem dizer uma palavra, e começou a esmurrar a primeira porta, a do Dauntsey, e a chamar o timbre. As janelas estavam escuras e não
perdeu tempo esperando uma resposta que sabia não ia chegar, mas sim pôs-se a correr ao longo da casa até chegar à fachada do Innocent Walk e pulsou
o timbre do Frances Peverell, deixando o polegar direito sobre o botão enquanto sacudia a aldrava com a mão esquerda. A resposta foi quase imediata. Não ouviu
o precipitado rumor de passos na escada, mas a porta se abriu de par em par e viu o James do Witt com o Frances Peverell a seu lado. Mandy balbuciou algumas
incoerências, assinalou para o rio e pôs-se a correr de novo, consciente de que foram atrás dela. detiveram-se o bordo da terraço e olharam as três para a água.
Mandy se surpreendeu pensando: "Não estou louca. Não foi um sonho.
   Ainda está aqui."
   A senhorita Peverell exclamou: OH, não! OH, por favor, Meu deus, não! E a seguir se voltou, desfalecida.
   James do Witt a agarrou entre seus braços, mas não antes de que Mandy a tivesse visto benzer-se.
   Não passa nada, carinho, não passa nada tratou ele de consolá-la.
   A voz do Frances ficou médio sufocada pela jaqueta do James.
   Sim passa. Como não vai passar? Logo se largou e, com uma energia e uma serenidade assombrosas, perguntou: Quem é?
   Do Witt não voltou a olhar o que havia no rio, mas sim desprendeu com cuidado a folha de papel do corrimão e a examinou.
   Esmé Carling respondeu. Isto parece uma nota de suicídio.
   Frances exclamou: Outra não! Outra vez, não! O que diz?
   Não resulta fácil lê-la. voltou-se e sustentou o papel de maneira que a luz do globo caísse sobre ele. Quase não havia márgenes, como se tivessem recortado a
folha
ao mesmo nível as palavras, e o agudo florón do corrimão tinha perfurado e rasgado o papel. Parece escrito de seu punho e letra.
   Vai dirigido a todos nós.
   Alisou o papel e leu em voz alta.
   "Aos sócios da Peverell Press. Deus queira que lhes apodreçam todos! Durante trinta anos explorastes meu talento, ganhastes dinheiro comigo, hão-me
descuidado como escritora e como mulher, trataste-me como se meus livros não fossem dignos de ostentar seu precioso selo. O que sabem da escritura criativa?
Só um de vós tem escrito alguma palavra, e seu talento, que tivesse, morreu faz anos. Eu e os escritores como eu somos os que mantivemos seu viva
casa. E agora me jogam, sem explicações, sem direito a apelar, sem uma oportunidade para reescribir ou revisar. depois de trinta anos estou acabada. Sim, acabada.
Despediste-me que mesmo modo que os Peverell despediram durante gerações a quão serventes não desejavam. Não compreendem que isto acaba comigo como
pessoa, além de como escritora? Mas ao menos posso fazer que seu nome empreste em todo Londres, e me acreditem que o farei. Isto só é o princípio."
   Pobre mulher se lamentou Frances. OH, pobre mulher. por que não veio a nos ver, James? Teria servido de algo?
   aconteceu quão mesmo com a Sonia. Se terei que fazê-lo, teria se podido fazer de outra maneira, com compaixão, com um pouco de bondade.
   James do Witt respondeu com suavidade:
   Agora já não podemos fazer nada por ela, Frances. Teremos que chamar à polícia. Mas não podemos deixá-la assim! É muito horrível. É obsceno! Temos
que tirá-la; lhe fazer a respiração artificial.
   Está morta, Frances lhe explicou ele com paciência.
   Mas não podemos deixá-la assim. Por favor, James, temos que tentá-lo.
   Mandy tinha a sensação de que se esqueceram dela. Agora que já não estava sozinha, aquele terrível medo paralizador tinha desaparecido. O mundo se havia
voltado, se não normal, ao menos familiar e controlável. Pensou: "Não sabe o que fazer. Deseja agradá-la, mas não quer tocar o corpo. Não pode tirá-lo ele sozinho
e não
suporta a idéia de que lhe ajude." O que disse foi:
   Se queriam tratar de lhe fazer a respiração boca a boca, teriam que havê-la tirado em seguida.
   Agora já é muito tarde.
   James respondeu, e ao Mandy pareceu que com uma grande tristeza:
   Sempre foi muito tarde. Além disso, a polícia não quererá que ninguém manipule o corpo. Manipular o corpo? Mandy encontrou graciosa a expressão e teve
que reprimir o impulso de soltar uma risita, consciente de que se começava a rir acabaria chorando. "OH, Meu deus pensou. por que não faz algo de uma maldita
vez?"
   Se vocês ficarem aqui, posso ir chamar à polícia se ofereceu. me dê a chave e me diga onde está o telefone.
   No vestíbulo respondeu Frances com voz neutra. E a porta está aberta. Bom, parece-me que está aberta. voltou-se de o Witt, súbitamente frenética.
OH, Meu deus! fechei com a chave dentro, James?
   Não respondeu ele com paciência. Tenho-a eu. Estava na fechadura.
   dispunha-se a dar a chave ao Mandy quando ouviram um rumor de passos que se aproximavam pelo Innocent Lane e viram aparecer ao Gabriel Dauntsey e Sydney Bartrum.
Os dois levavam gabardina e sua chegada contribuiu uma tranqüilizadora sensação de normalidade. Ao vê-los os três ali parados, olhando para eles, alarmaram-se
e apertaram o passo basta acabar correndo.
   ouvimos vozes disse Dauntsey. Ocorre algo?
   Mandy agarrou a chave, mas não se moveu do sítio. A fim de contas, não havia nenhuma pressa; a polícia não poderia salvar à senhora Carling. Já ninguém podia
ajudá-la.
E outras duas caras apareceram ao rio, outras duas vozes murmuraram seu horror.
   deixou uma nota lhes informou Do Witt. Aqui, no corrimão. Condena a todos nós.
   Tirem da água, por favor lhes rogou Frances.
   Dauntsey assumiu o controle da situação. Ao olhá-lo, ao olhar a pele que à luz dos globos parecia tão verde e doentia como as algas do rio, as
linhas que lhe sulcavam o rosto como cicatrizes negras, Mandy pensou: "É muito velho. Não deveria lhe ocorrer isto. O que pode fazer ele?"
   O ancião se voltou de o Witt.
   Sydney e você poderiam içá-la dos degraus. Eu não tenho força.
   Suas palavras fizeram reagir ao James, que sem outra objeção começou a descender com cuidado pelos limosos degraus, sujeitando-se ao corrimão. Mandy viu
que se estremecia involuntariamente ao sentir a mordida da água fria nas pernas. Pensou: "O melhor seria que o senhor Do Witt sustentara o corpo dos
degraus, enquanto o senhor Dauntsey e o senhor Bartrum atiram da correia, mas não quererão fazê-lo assim." E, na verdade, a idéia de ver surgir da água o rosto
afogado enquanto os dois homens atiravam da correia, como se estivessem enforcando-a de novo, era tão horrenda que a moça se perguntou como tinha podido ocorrer-se
o    Dauntsey respondió con voz serena. También él se agarraba a la barandilla, como si necesitara apoyo.
Outra vez teve a sensação de que se esqueceram de sua presença. Frances Peverell se apartou um pouco, com as mãos obstinadas ao corrimão e o olhar
fixa no rio. Mandy imaginou o que sentia: queria que tirassem o cadáver da água e que lhe tirassem aquela horrível correia; precisava ficar até que fizessem
isso, mas não suportava ver como o faziam. Para o Mandy, em troca, desviar a vista era mais horrível que olhar. Se tinha que estar ali, preferia saber que imaginar.
E naturalmente, tinha que estar ali; ninguém havia tornado a mencionar seu oferecimento de ir chamar à polícia. E não havia nenhuma pressa. O que importava que chegassem
mais tarde ou mais cedo? Nada do que pudessem trazer com eles, nada do que pudessem fazer devolveria a vida à senhora Carling.
   Do Witt, que tinha seguido baixando cautelosamente, estava com a água pelos joelhos.
   Agarrando-se com a mão direita à parte inferior do corrimão, procurou provas com a esquerda até encontrar a roupa empapada e começou a atirar do cadáver
para si. A superfície do rio se quebrou em pequenos ondulações e a correia se afrouxou e em seguida voltou a esticar-se.
   Se alguém desabotoasse a fivela, acredito que poderia subir o corpo aos degraus.
   Dauntsey respondeu com voz serena. Também ele se agarrava ao corrimão, como se necessitasse apoio.
   Não deixe que a leve a corrente, James. E não solte o corrimão. Poderia cair à água.
   Foi Bartrum quem baixou um par de degraus e se inclinou sobre o corrimão para soltar a fivela. À luz dos globos, suas mãos se viam esbranquiçadas e os
dedos pareciam salsichas inchadas.
   Esteve um bom momento manuseando a fivela com estupidez, como se não soubesse como funcionava.
   Quando por fim a desabotoou, Do Witt disse:
   Necessitarei as duas mãos. Que alguém me agarre da jaqueta.
   Dauntsey descendeu para situar-se ao lado do Bartrum no segundo degrau. Escorando o um ao outro, sujeitaram com força a jaqueta de o Witt enquanto
este atirava do cadáver com as duas mãos e lhe tirava a correia do pescoço. O corpo ficou tendido de barriga para baixo sobre os degraus. Do Witt o agarrou pelas
pernas,
que sobressaíam da saia como dois palitos, e Bartrum e Dauntsey agarraram um braço cada um. Subiram entre os três o vulto empapado e o depositaram sobre o
mármore em posição propensa. Continuando, Do Witt lhe deu a volta com delicadeza. Mandy só vislumbrou por um instante o rosto, terrível na morte a boca
aberta com a língua fora, os olhos semiabiertos sob as pálpebras enrugadas, o horrendo sinal da correia em torno do pescoço, antes de que Dauntsey se tirasse
a gabardina com assombrosa velocidade e cobrisse o cadáver. Por debaixo do tecido começou a gotejar um hilillo de água escura como o sangue, fino ao princípio mas
cada vez mais abundante, que se estendeu pelo mármore.
   Frances Peverell se aproximou do cadáver e se ajoelhou a seu lado.
   Pobre mulher. OH, pobre mulher repetiu.
   Mandy viu que movia os lábios em silêncio e supôs que devia estar rezando. Esperaram todos sem dizer nada; no ar silencioso da noite, os roucos
ofegos dos homens ressonavam com estranha intensidade. Ao parecer, o esforço de tirar o corpo da água tinha deixado a Do Witt e Bartrum sem forças nem capacidade
de decisão, de modo que foi outra vez Dauntsey quem se fez cargo da situação.
   Alguém deve ficar junto ao corpo. Sydney e eu esperaremos aqui. Você leva às mulheres a casa, James, e avisa à polícia. Necessitaremos todos café quente
ou um pouco mais forte, e em abundância.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

47
 
   A porta do número 12 se abria a um estreito saguão retangular. Mandy seguiu ao Frances Peverell e James do Witt por um íngreme lance de escada enmoquetado
em verde claro, que terminava em um patamar, maior e mais quadrado, com uma porta justo em frente. Mandy se encontrou em uma sala de estar que ocupava todo o
largo da fachada. As duas janelas altas que davam ao balcão tinham as cortinas corridas para proteger a estadia da noite e o frio. Em uma cesta, junto
ao lar, havia uma pilha de carvão. O senhor Do Witt apartou o ralo de latão e acomodou ao Mandy em uma das cadeiras de respaldo alto. de repente, começaram a mostrar-se
tão solícitos com ela como se fora uma convidada, possivelmente, pensou Mandy, porque preocupar-se com ela ao menos lhes mantinha ocupados.
   A senhorita Peverell se deteve junto a ela e lhe disse:
   Sinto-o muitíssimo, Mandy: dois suicidas, e as encontraste você às dois. Primeiro a senhorita Clements e agora ela. O que podemos te oferecer? Café? Brandy?
Também há vinho tinjo.
   Mas, não deve ter jantado, verdade? Tem fome?
   Bastante, sim.
   de repente se deu conta de que, em realidade, estava esfomeada. O aroma quente e aromático que alagava todo o piso resultava quase intolerável. A senhorita Peverell
olhou a Do Witt e comentou:
   Íamos jantar pato à laranja. Você o que diz, James?
   Eu não tenho apetite, mas seguro que Mandy sim.
   Mandy pensou: "Deve ter o justo para dois. Certamente comprado no Marks amp; Spencer. Estupendo para os que podem permitir-lhe A senhorita Peverell
tinha organizado uma agradável janta íntima. E era evidente que o tinha feito com muito esmero. No outro extremo da sala havia uma mesa posta com toalha branca,
três taças reluzentes para cada comensal e um par de candelabros de prata com as velas ainda por acender. Ao aproximar-se, Mandy viu que a salada já estava servida
em pequenos boles de madeira: delicadas folhas em diversas tonalidades de verde e vermelho, frutos secos torrados e pedacinhos de queijo. Havia uma garrafa de vinho
tinjo
aberta e uma de branco em um enfriador. A salada não gostava; o que desejava com veemência era comida quente e saborosa.
   notava-se, além disso, que a senhorita Peverell não só se esmerou na preparação do jantar: o conjunto estampado em azul e verde, de saia vincada e
blusa solta com um laço ao flanco, era de seda autêntica e realçava sua cor natural. Muito sério para ela, é obvio, muito convencional e um pouco
insípido. E a saia era muito larga; não favorecia em nada sua figura, que poderia ser espetacular se a senhorita Peverell soubesse vestir melhor. As pérolas que
cintilavam
sobre a seda certamente eram autênticas. Mandy desejou que o senhor Do Witt soubesse apreciar todos esses esforços. A senhora Demery lhe havia dito que estava apaixonado
da senhorita Peverell desde fazia anos e que, agora que o senhor Gerard já não se interpunha, parecia que o assunto começava a encarrilhar-se.
   O pato vinha acompanhado de ervilhas e patatitas novas. Mandy, varrida totalmente sua insegurança por uma quebra de onda de fome, equilibrou-se vorazmente sobre
ele.
Os dois se sentaram com ela à mesa. Nenhum comeu, mas ambos se serviram uma taça de tinjo. Atendiam-na com ânsia solícita, como se de algum modo se sentissem
responsáveis pelo ocorrido e tratassem de repará-lo. A senhorita Peverell insistiu em lhe servir uma segunda ração de verduras, e o senhor Do Witt lhe encheu a taça.
de vez em quando se retiravam os duas à habitação que Mandy supôs devia ser a cozinha e que dava ao Innocent Passage; do comilão se ouvia o murmúrio
apagado de suas vozes, e Mandy compreendeu que estavam dizendo coisas que não queriam dizer em sua presença, enquanto observavam e emprestavam ouvido a iminente
chegada
da polícia.
   Sua ausência momentânea lhe deu ocasião de examinar mais atentamente a sala enquanto comia.
   Sua elegante simplicidade era muito sóbria, muito convencional para o gosto do Mandy, mais excêntrico e iconoclasta, mas teve que reconhecer que não estava
mau se a gente tinha suficiente dinheiro para pagar-lhe A combinação de cores também era bastante convencional: um verde azulado suave com toques de vermelho rosado.
As cortinas de cetim drapeado penduravam de barras singelas, e a cada lado da chaminé havia uma estantería cheia de livros, cujos lombos reluziam à luz de
as chamas. Em cada um das prateleiras superioras havia o que parecia ser a cabeça em mármore de uma moça com uma coroa de flores e um véu que lhe cobria
a cara; certamente pretendiam ser noivas, mas os véus, maravilhosamente delicados e realistas, mas bem pareciam sudários. Mandy, com a boca cheia de pato,
pensou que aquilo resultava morboso. O quadro que pendurava sobre o suporte da chaminé representava a uma mãe do século XVIII abraçada a suas duas filhas e estava
claro que era um original, ao igual a uma curiosa pintura de uma mulher deitada na cama, em uma habitação, que ao Mandy recordou sua visita escolar a Veneza.
As duas poltronas de brincalhonas, colocados um a cada lado do fogo, estavam estofos em linho liso de um rosa descolorido, mas só um deles, com o respaldo
e o assento talheres de rugas, parecia utilizar-se freqüentemente. Assim aí era onde se sentava a senhorita Peverell, pensou Mandy, olhando a poltrona desocupada
e, mais à frente, o rio. Supôs que a imagem pendurada na parede da direita era um ícone, mas não pôde compreender por que ninguém tinha que querer uma Virgem María
tão velha e renegrida nem um Menino com cara de adulto que, a julgar por seu aspecto, não tinha comido quente em várias semanas.
   Mandy não invejava a habitação nem nada do que continha, e pensou com satisfação na espaçosa água-furtada de teto baixo que ocupava na casa alugada
do Stratford East: a parede que ficava frente à cama, com seus chapéus pendurados em um tabuleiro provido de cabides, em uma impetuosa floração de cintas, flores
e feltro de cor; a única cama, apenas o bastante larga para duas pessoas se de vez em quando algum amigo ficava a passar a noite, coberta com sua manta
de raias; a mesa de desenho onde fazia seus desenhos; as enormes almofadas pulverizadas pelo chão; a equipe de música e o televisor; o fundo armário que continha
sua roupa. Só existia outra habitação em que lhe tivesse gostado mais estar.
   de repente ficou quieta, com o garfo no ar, e escutou com atenção: sem dúvida o que se ouvia era um rangido de pneumáticos sobre os paralelepípedos. Aos poucos
segundos, James e Frances saíram da cozinha.
   chegou a polícia lhe anunciou James do Witt. Dois carros. Não pudemos ver quantas pessoas vieram. voltou-se para o Frances Peverell e pela primeira vez
falou em tom de incerteza, necessitado de apoio. Não sei se deveria baixar.
   OH, acredito que não. Não quererão que haja muita gente. Gabriel e Sydney podem explicar-lhe tudo. Além disso, suponho que quando terminarem subirão aqui. Quererão
falar
com o Mandy. É a testemunha mais importante; depois de tudo, foi quem a encontrou. sentou-se de novo à mesa e falou com suavidade. Imagino que estará desejando
ir a casa, Mandy. O senhor Do Witt ou eu mesma lhe acompanharemos mais tarde, mas acredito que deve ficar até que venha a polícia.
   Ao Mandy em nenhum momento lhe tinha ocorrido fazer outra coisa. Respondeu:
   Não há nenhum problema. Acreditarão que sou azarado, não? Ali aonde vou, encontro um suicídio.
   Disse só médio a sério, mas, para sua surpresa, a senhorita Peverell lhe replicou quase gritando. Não diga isso, Mandy! Não tem que pensá-lo sequer! É uma
superstição! Ninguém vai acreditar que é azarado. Escuta, Mandy, eu não gosto da idéia de que fique sozinha esta noite. Não preferiria chamar a seus pais...? A você
mãe... Não seria melhor que esta noite fosse a sua casa? Poderia vir ela a te recolher.
   "Como se fora um maldito pacote", pensou Mandy.
   Não sei onde está disse. E se sentiu tentada de acrescentar: "Talvez no Rede Cow, no Hayling Island."
   Mas as palavras da senhorita Peverell e a amabilidade que a tinha movido a pronunciar despertaram nela uma necessidade até então inconsciente de
consolo feminino, do ambiente acolhedor e familiar da habitação do Whitechapel Road. Sentiu desejos de aspirar aquela cálida e carregada atmosfera em que o
aroma de bebida se mesclava com o do perfume da senhora Crealey, de acurrucarse ante a estufa de gás naquela poltrona que a envolvia como um útero, de ouvir o
tranqüilizador rumor do tráfico do Whitechapel Road. Não se encontrava cômoda nesse apartamento elegante, e aquelas pessoas, com toda sua amabilidade, não eram de
os seus. Queria estar com a senhora Crealey.
   Poderia telefonar à agência apontou. Ao melhor ainda encontro à senhora Crealey.
   Frances Peverell pareceu surpreender-se, mas conduziu ao Mandy a seu dormitório, no piso de acima.
   Aqui poderá falar com mais intimidade, e há um quarto de banho ao lado se por acaso o precisa disse.
   O telefone estava na mesinha de noite e sobre ele pendurava um crucifixo. Mandy já tinha visto crucifixos antes, pelo general no exterior das Iglesias,
mas este era distinto. O Cristo, quase imberbe, era muito jovem, e sua cabeça, em lugar de cair sobre o peito, estava arremesso para trás com a boca muito aberta,
como se pedisse a gritos vingança ou compaixão. Mandy pensou que não era o tipo de objeto que gostaria de ver junto a sua cama, mas sabia que aquela imagem era poderosa.
As pessoas religiosas rezavam diante de um crucifixo e, se tinham sorte, suas preces eram atendidas.
   Valia a pena tentá-lo. Enquanto marcava o número do escritório da senhora Crealey, ficou olhando a figura de prata coroada de espinhos e pronunciou mentalmente
as palavras: "Faz que responda, por favor, faz que esteja no despacho. Faz que responda, por favor, faz que esteja no despacho." Mas o telefone seguiu emitindo
seu zumbido intermitente e não houve resposta.
   menos de cinco minutos depois soou o timbre da porta. James do Witt baixou a abrir e retornou com o Dauntsey e Bartrum.
   Frances Peverell perguntou: O que ocorre, Gabriel? veio o comandante Dalgliesh?
   Não, só a inspetora Miskin e o inspetor Aaron. Ah, e também esse sargento jovem e um fotógrafo. Agora estão esperando a que chegue o médico da polícia
e certifique que está morta. Pois claro que está morta! exclamou Frances. Não faz falta um médico da polícia para vê-lo.
   Já sei, Frances, mas pelo visto é o procedimento estabelecido. Não, não quero vinho, obrigado.
   Sydney e eu estivemos bebendo no Sailor's Return das sete e meia.
   Café, então. Quer um café? Você também, Sydney?
   Sydney Bartrum parecia coibido.
   Não, obrigado, senhorita Peverell. Seriamente, tenho que ir. Disse a minha esposa que ficaria jantando em um pub com o senhor Dauntsey e que chegaria um pouco
tarde,
mas sempre estou em casa antes das dez.
   Naturalmente que deve ir-se. Já começará a estar preocupada. Pode chamá-la daqui.
   Sim, acredito que será o melhor. Obrigado.
   Bartrum saiu do quarto atrás dela. Do Witt perguntou: Como o tomaram? Refiro-me à polícia.
   Profissionalmente respondeu Dauntsey. Como foram tomar se o Não hão dito grande coisa.
   Tenho a impressão de que não lhes gostou de muito que movêssemos o corpo. Nem tampouco que lêssemos a nota.
   Do Witt se serve outra taça de vinho. Que diabos esperavam que fizéssemos? Além disso, a nota ia dirigida a nós. Se não a tivéssemos lido, não sei se nos haveriam
comunicado o que dizia. Têm-nos bem às escuras em relação à morte do Gerard.
   Subirão assim que chegue o furgão para levar o corpo disse Gabriel. Depois de uma pausa, acrescentou: Parece-me que possivelmente a vi chegar. Sydney e eu tínhamos
ficado
em nos encontrar no Sailor's Return às sete e meia, e quando chegava ao Wapping Way vi um táxi que entrava no Innocent Walk. Viu o passageiro?
   Não, não estava tão perto. De todos os modos, o mais provável é que não me tivesse fixado. Mas sim que vi o condutor: era um homem grande, de raça negra. A polícia
acredita que isso facilitará sua localização. Os taxistas negros ainda são minoria.
   Bartrum, terminada sua chamada, entrou de novo na sala. Depois de seu habitual pigarro nervoso, anunciou-lhes:
   Bem, será melhor que vá. Obrigado, senhorita Peverell, mas não ficarei tomando café.
   Prefiro voltar para casa. A polícia há dito que não é necessário que fique. Contei-lhes tudo o que sei, que estive no pub com o senhor Dauntsey desde
as sete e meia. Se querem me perguntar algo mais, encontrarão-me no escritório amanhã pela manhã. Não se pode interromper o trabalho.
   A falsa animação de sua voz os desconcertou; por um instante, ao elevar a vista do prato, Mandy acreditou que ia dara mão a todos os pressente. Logo
voltou-se e partiu, e Frances Peverell foi acompanhar o até a porta. Ao Mandy deu a sensação de que todos se alegravam de ver-se livres dele.
   fez-se um silêncio incômodo; a conversação ordinária, o bate-papo corriqueiro de sobremesa, os comentários sobre o trabalho..., tudo parecia inadequado, quase
indecoroso.
Innocent House e o horror da morte era quão único tinham em comum. Mandy se deu conta de que os outros estariam mais a suas largas sem ela, que os laços
da angústia e o horror compartilhados estavam afrouxando-se e que já começavam a recordar-se que ela só era a taquimecanógrafa interina, a companheira de intrigas
da senhora Demery, que ao dia seguinte a história correria por todo Innocent House e que quanto menos dissessem agora, melhor.
   de vez em quando, um deles ia chamar por telefone a Claudia Etienne. Pelas breves conversações subseqüentes, Mandy deduziu que não estava em casa; havia
outro número ao que podiam tratar de chamá-la, mas James do Witt disse:
   Vale mais deixá-lo. Já falaremos com ela mais tarde. De todos os modos, aqui não pode fazer nada.
   Logo Frances e Gabriel passaram à cozinha para fazer café e esta vez James ficou com o Mandy. Perguntou-lhe onde vivia e ela o disse. Do Witt comentou que
não gostava da idéia de que voltasse para um piso vazio e lhe perguntou se haveria alguém em casa quando chegasse. Mandy, que preferiu mentir para economizar-se
explicações
e moléstias, disse-lhe que sim. depois disso, pareceu que já não lhe ocorriam mais pergunta e ficaram os dois em silêncio, escutando os leves sons que chegavam
da cozinha. Mandy pensou que era como estar em um hospital à espera de más notícias, como tinha estado com sua mãe quando operaram por última vez à avó.
Tiveram que esperar em uma habitação anônima e escassamente mobiliada, em um silêncio inóspito, sentadas ao bordo da cadeira, sentindo-se tão incômodas como se
não tivessem direito a estar ali, sabendo que em algum lugar fora do alcance da vista e do ouvido os peritos na vida e a morte se entregavam a suas misteriosas
manipulações, enquanto elas não podiam fazer outra coisa que permanecer sentadas e esperar. Mas esta vez a espera não foi larga. Logo que tinham terminado de tomar
o café quando soou o timbre da porta. menos de um minuto depois, a inspetora Miskin e o inspetor Aaron se achavam com eles. Cada um levava uma espécie
de maleta grande, e Mandy se perguntou se seria sua equipe para casos de assassinato.
   A inspetora Miskin lhes anunciou:
   Falaremos com mais parada quando dispusermos dos resultados da autópsia. Agora só quero lhes fazer umas poucas perguntas. Quem a encontrou?
   Eu respondeu Mandy, e desejou não estar sentada à mesa ante o prato vazio e rebañado.
   Parecia haver algo indecoroso nessa prova de apetite. Em um arranque de ressentimento, pensou:
   "Mas por que tem que perguntá-lo? A estas horas já sabe muito bem quem a encontrou." Que fazia aqui? Não eram horas de estar trabalhando interveio o inspetor
Aaron.
   Não estava trabalhando.
   Mandy se deu conta de que tinha respondido com voz zangada e, dominando-se, relatou-lhes brevemente os acontecimentos dessa malfadada tarde.
   A inspetora Miskin lhe perguntou:
   depois de encontrar o moedeiro onde esperava, o que a impulsionou a aproximar-se do rio? Como quer que saiba? Aproximei-me porque estava ali, suponho. Logo acrescentou:
Queria ver a hora e perto do rio havia mais luz. E não viu nem ouviu ninguém mais, nem então nem ao chegar?
   Ouça, se tivesse visto alguém já o haveria dito. Não vi ninguém nem ouvi nada; só o papel no corrimão. Assim que me aproximei e então vi a bolsa em
o chão, ao pé do corrimão, e as correias que desciam para a água. E quando olhei, vi o que havia ao final da correia, não?
   Frances Peverell interveio com voz apaziguadora.
   É uma reação instintiva aproximar-se do rio para contemplá-lo, sobre tudo de noite. Eu sempre o faço quando estou perto. É seriamente necessário que a senhorita
Price responda a suas perguntas agora mesmo? Já lhes há dito tudo o que sabe. Deveria estar em sua casa. teve uma experiência terrível.
   O inspetor Aaron não a olhou, mas a inspetora Miskin falou de novo, esta vez com mais delicadeza. Sabe a que hora chegou ao Innocent House?
   Às oito e vinte. Olhei a hora quando cheguei junto ao rio.
   O inspetor Aaron observou:
   Há um bom trecho do White Horse até aqui. Não pensou em chamar por telefone à senhorita Peverell ou ao senhor Dauntsey para que procurassem o moedeiro?
   Fiz-o. O senhor Dauntsey não estava em casa e a senhorita Peverell tinha a secretária eletrônica conectada.
   Faço-o às vezes quando tenho visita explicou a senhorita Peverell. James chegou em táxi justo depois das sete, e suponho que o se or Dauntsey estaria no
Sailor's Return com o Sydney Bartrum.
   Isso nos há dito. Algum de vocês viu ou ouviu um pouco desacostumado, algum ruído no Innocent Lane, por exemplo?
   olharam-se o um ao outro. Frances Peverell respondeu:
   Não acredito que pudéssemos ouvir passos sobre os paralelepípedos, não desde esta habitação. Por volta das oito estive um momento na cozinha para preparar as
saladas; sempre
faço-o no último momento. A janela da cozinha dá ao Innocent Lane, de modo que se naqueles momentos tivesse chegado um táxi à porta do Innocent House
estou segura de que o teria ouvido. Não ouvi nada.
   Eu não ouvi nenhum táxi declarou James do Witt, e nem a senhorita Peverell nem eu vimos nem ouvimos nada no Innocent Lane depois de minha chegada. ouviam-se os
sons habituais
do rio, mas amortecidos pelas cortinas. Acredito que se produziram certos ruídos ao começo da velada, mas não recordo a que hora. Certamente, não foram
tão insólitos para nos fazer sair ao balcão a ver o que ocorria. Ao final se acostuma um aos ruídos do rio. Como chegou aqui, senhor? perguntou o inspetor
Aaron. Em carro?
   Em táxi. Nunca conduzo por Londres. Teria que lhes haver dito antes que vim desde minha casa. Esta tarde não estive no escritório; tinha uma entrevista com o
dentista.
O que levava na bolsa? perguntou de súbito Frances Peverell. Parecia pesar muito.
   Pesa muito reconheceu a inspetora Miskin. Hei aqui a causa.
   Agarrou a bolsa de plástico em que o inspetor Aaron levava a bolsa da vítima e a esvaziou sobre a mesa.
   Todos olharam em silêncio enquanto desabotoava as correias. O manuscrito estava encadernado em cartolina azul celeste, com o título da novela e o nome
da autora escrito em letras maiúsculas: MORTE NA ILHA DO PARAÍSO, ESMÉ CARLING. E rabiscadas em grossos traços de tinta vermelha ao largo de toda a coberta
havia as palavras "RECHAÇADO... E DEPOIS DE TRINTA ANOS", seguidas de três enormes signos de exclamação.
   Frances Peverell disse:
   De modo que o trouxe consigo, além da nota de suicídio. Todos somos um pouco culpados.
   Deveríamos ter atuado com mais bondade. Mas tirá-la vida... E da maneira que o tem feito... Quanta solidão e quanto horror. Pobre mulher.
   Voltou-lhes as costas, e James do Witt lhe aproximou, mas sem tocá-la. Olhando à inspetora Miskin, Do Witt perguntou:
   Ouça, temos que seguir falando esta noite? Estamos todos conmocionados. Entenderia-o se houvesse alguma dúvida.
   A inspetora Miskin devolveu o manuscrito à bolsa.
   Sempre há dúvidas até que se conhecem os fatos replicou com voz serena. Quando soube a senhorita Carling que a editorial tinha rechaçado sua novela?
   A senhora Carling. Era viúva. divorciou-se faz algum tempo e logo seu marido morreu corrigiu James do Witt. Soube a manhã do dia em que morreu Gerard Etienne.
Veio ao escritório para falar com ele, mas estávamos reunidos e teve que partir a Cambridge para uma sessão de assinatura de livros. Mas isso já sabem vocês.
A sessão que se suspendeu antes de sua chegada?
   Sim, essa mesma. E ficou em contato com algum de vocês depois da morte do senhor Etienne, ou com alguém da empresa, que vocês saibam?
   Do Witt e Frances Peverell voltaram a olhar-se.
   Comigo não disse Do Witt. Falou contigo, Frances?
   Não, nenhuma palavra. É bastante estranho, agora que o penso. Se ao menos tivéssemos podido falar, nos explicar, possivelmente isto não teria ocorrido.
   O inspetor Aaron rompeu seu silêncio de repente. Quem decidiu tirá-la do rio? quis saber.
   Fui eu. Frances Peverell voltou para ele seu olhar bondoso, embora carregada de recriminação.
   Não acreditaria você que poderiam reanimá-la, verdade?
   Não, suponho que não acreditava, mas era tão terrível vê-la ali pendurada, tão... Fez uma pausa e acrescentou: Tão desumano.
   Não todos somos oficiais de polícia, inspetor interveio Do Witt. Alguns ainda temos instintos humanos.
   O inspetor Aaron avermelhou, olhou à inspetora Miskin e conteve sua ira com dificuldade.
   A inspetora Miskin falou com voz fica.
   Esperemos que possam conservá-los. Suponho que à senhorita Price gostaria de voltar para casa.
   O inspetor Aaron e eu a levaremos.
   Mandy protestou com a obstinação de uma menina.
   Não quero que me levem. Quero ir eu sozinha na moto.
   A moto estará segura aqui, Mandy aduziu Frances Peverell com suavidade. Se quiser, podemos guardá-la na garagem do número dez.
   Não quero deixá-la na garagem. Quero voltar para casa em minha moto.
   Ao final se saiu com a sua, mas a inspetora Miskin insistiu em segui-la com o carro da polícia. Mandy se deu o gosto de serpentear entre o tráfico,
dificultando o seguimento tanto como foi possível.
   Quando chegaram a sua casa, no Stratford High Street, a inspetora Miskin elevou o olhar para as escuras janelas e comentou:
   Acreditava que havia dito que haveria alguém em casa.
   Há alguém em casa. Estão todos na cozinha. Ouça, posso me cuidar eu sozinha. Não sou uma menina, vale? Querem me deixar tranqüila de uma vez?
   Jogou pé a terra e o inspetor Aaron desceu do carro e lhe ajudou a entrar a Yamaha pela porta para deixá-la no saguão. Quando o tiveram feito, Mandy fechou
a porta sem dizer uma palavra.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

48
 
   Não lhe haveria flanco nada dar as obrigado disse Daniel. É uma boa peça, essa garota.
   É pela comoção.
   Não estava tão conmocionada como para não jantar.
   A delegacia de polícia do Wapping estava em silêncio. Só viram um agente de polícia enquanto subiam à sala onde se achava o centro de operações. Permaneceram
uns instantes imóveis ante a janela antes de correr as cortinas. As nuvens se dispersaram e o rio fluía largo e acalmado, criando seus desenhos e redemoinhos
de luz sob o aguijonazo das altas estrelas. Mas, de noite, em uma delegacia de polícia sempre reinava uma estranha sensação de paz e isolamento; inclusive quando
havia
agitação e a calma ficava rota por fortes pisadas e ruidosas vozes masculinas, a atmosfera mantinha uma quietude peculiar, como se o mundo exterior com sua violência
e seus terrores pudesse espreitar à espera, mas não turvar essa tranqüilidade essencial. Também a camaradagem era mais estreita: os colegas falavam menos, mas com
maior liberdade. No Wapping, entretanto, não podiam esperar camaradagem; Kate sabia que, em certo modo, eram uns intrusos. A delegacia de polícia lhes oferecia hospitalidade,
dava-lhes todo tipo de facilidades, mas não por isso deixavam de ser uns estranhos.
   Dalgliesh estava visitando a chefia de polícia do Durham por algum misterioso assunto dos comissionados, e ela ignorava se tinha empreendido já a volta
a Londres. Chamou para averiguá-lo e lhe disseram que acreditavam que ainda estava ali. Tentariam localizá-lo e lhe pediriam que ficasse em contato com ela.
   Enquanto esperavam, Kate comentou: Ficou convencido de seu álibi? Refiro a do Esmé Carling. Estava em casa a noite em que morreu Etienne?
   Daniel se sentou atrás de seu escritório e começou a jogar com o ordenador. Tratando de reprimir a irritação, respondeu:
   Sim, fiquei convencido. Já leíste meu relatório. Esteve com uma menina do mesmo edifício, Daisy Reed; passaram toda a velada juntas, até meia-noite ou mais tarde.
A
menina o confirmou. Não fui incompetente, se for isso o que quer dizer.
   Não é isso. Tranqüilo, Daniel. Mas, em realidade, alguma vez a consideramos suspeita, verdade? O canhão da chaminé obstruído, o cordão puído... Tudo exigia
muita planejamento prévio.
   Nunca contemplamos a possibilidade de que fora a assassina.
   Então, quer dizer que me dava por satisfeito com muita facilidade?
   Não; só quero me assegurar de que ficou satisfeito.
   Olhe, fui com o Robbins e com uma mulher polícia do Departamento de Menores. Entrevistei ao Esmé Carling e à menina por separado. Aquela noite estiveram juntas;
a maioria das noites, em realidade. A mãe saiu trabalhar, ou seja, a fazer strip tease, alternar, prostituir-se ou o que seja. A menina esperava a que se houvesse
partido e então se escapulia ao piso do Carling. Pelo visto, gostava às duas. Comprovei todos os detalhes daquela noite e suas histórias coincidiam.
Ao princípio, a menina não queria reconhecer que tinha estado com o Carling; tinha medo de que sua mãe lhe impedisse de fazer essas escapadas ou de que o Departamento
de
Menores ficasse em contato com a Assistência Social e ao final a levassem a Amparo. Naturalmente, tiveram que fazê-lo; ficar em contato com a Assistência
Social, quero dizer. Em vista das circunstâncias, o que outra coisa podiam fazer? A menina disse a verdade. Além disso, a que vêm agora estas dúvidas?
   Mas é estranho, não crie? Temos a uma mulher a que acabam de rechaçar um livro depois de trinta anos. apresenta-se no Innocent House rugindo de fúria
para enfrentar-se ao Gerard Etienne, mas não lhe deixam falar com ele porque está em uma reunião. Então vai se assinar livros e, ao chegar, descobre que alguém de
Innocent House cancelou a sessão. Suponho que a essas alturas devia estar fervendo de raiva. E então, você o que diria que faz? Ir-se a casa tranqüilamente
e escrever uma carta ou voltar aquela mesma tarde para as ver-se com o Etienne? Certamente sabia que as quintas-feiras ficava a trabalhar até mais tarde; ao parecer,
quase todos os que tinham algo que ver com o Innocent House sabiam. E seu comportamento posterior também resulta estranho. Sabia que Gerard Etienne era o responsável
do rechaço de seu manuscrito. Quando Gerard Etienne morreu, por que não voltou e fez outro intento de que lhe aceitassem o livro?
   Certamente sabia que não serviria de nada. Os sócios não teriam revogado uma decisão do Etienne estando tão recente sua morte. E além disso, certamente a compartilhavam.
   Kate prosseguiu:
   E esta noite também houve vários detalhes estranhos, não te parece? Frances Peverell e Do Witt teriam tido que ouvir o táxi se tivesse chegado pelo Innocent
Lane até a entrada habitual, ou seja que, onde pediu que a deixassem exatamente?
   Provavelmente em algum ponto do Innocent Walk, e logo seguiu a pé até o rio. Havendo paralelepípedos no Innocent Lane, sabia que era muito possível que Dauntsey
ou a senhorita Peverell ouvissem o táxi. Ou possivelmente se apeou ao final do Innocent Passage. É o acesso mais próximo ao lugar onde se encontrou o corpo.
   Mas a cancela do final da passagem estava fechada. Se chegou ao rio por esse caminho, quem lhe abriu o portão e voltou a fechá-lo? E o que me diz da mensagem?
Pareceu-te uma típica nota de suicídio?
   Não é típica, possivelmente, mas o que é uma nota de suicídio típica? A um jurado não custaria muito chegar a convencer-se de que é autêntica. E quando a escreveu?
   Suponho que justo antes de matar-se. Não é o tipo de coisa que se prepara adiantado e se deixa à mão se por acaso de repente faz falta.
   Então, por que não menciona a morte do Gerard Etienne? Sem dúvida sabia que era o principal responsável pelo rechaço de sua novela. Mas, claro que sabia;
tanto Mandy Price como a senhorita Blackett nos hão descrito de que maneira irrompeu no despacho para falar com ele. Sem dúvida sua morte teve que influir em seus
sentimentos para a Peverell Press. E embora não fora assim, embora seguisse sentindo o mesmo rancor, não é estranho que a nota não faça nenhuma referência a seu
morte?
   Naquele momento soou o telefone. Era Dalgliesh. Kate lhe informou com claridade e precisão, e lhe explicou que não tinham podido localizar ao doutor Wardle porque
tinha sido chamado para outro caso, mas que tampouco tinham tentado procurar um substituto dado que se moveu o corpo. Naqueles momentos se encontrava em
o depósito de cadáveres. Daniel teve a sensação de que Kate escutava muito momento sem falar, exceto algum que outro "Sim, senhor".
   Finalmente, pendurou o auricular e lhe anunciou:
   Voltará esta noite em avião. Diz que não temos que entrevistar a ninguém do Innocent House até que tenhamos os resultados da autópsia. Isso pode esperar. Amanhã
tem que tentar localizar ao taxista e comprovar se alguém viu esta noite alguma costure no rio entre as sete e a hora em que Mandy encontrou o cadáver,
embora seja uma dessas embarcações que celebram festas a bordo. As chaves do piso do Carling estavam na bolsa e parece ser que não tinha parentes próximos,
de modo que amanhã pela manhã iremos ali. Está no Hammersmith, no edifício Mount Eagle Mansions. Quer que a agente da senhora Carling se reúna conosco
no piso às onze e meia. Mas, antes que nada, ele e eu entrevistaremos de novo ao Daisy Reed. E há outra coisa. Maldita seja, Daniel, nos teria que haver
ocorrido a nós. O chefe quer que os peritos examinem a lancha amanhã a primeira hora. A Peverell Press terá que arrumar-lhe de outro modo para transladar
a seus empregados desde a Charing Cross. meu deus, sinto-me como uma perfeita idiota. O chefe deve estar perguntando-se se alguma vez somos capazes de ver mais à
frente
de nossos próprios narizes.
   Assim que lhe parece que pôde utilizar a lancha para pendurar-se desde ela. Certamente, lhe teria resultado mais fácil assim.
   Pôde utilizá-la Carling... ou outra pessoa.
   Mas a lancha estava amarrada em seu lugar de costume, ao outro lado dos degraus.
   Exatamente. Assim, se a utilizaram, é que alguém a moveu antes e depois da morte do Carling. Demonstremo-lo e estaremos mais perto de demonstrar que
isto foi um assassinato.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

49
 
   Às dez, Gabriel Dauntsey já se retirou a seu apartamento e James do Witt e Frances estavam sozinhos. Os dois se deram conta de que tinham fome. Mandy
acabou-se as duas rações de pato, mas nenhum deles se teria sentido com ânimos de ingerir um prato tão elaborado. encontravam-se na incômoda situação
de necessitar alimento, sem ser capazes de pensar em nada que gostasse de comer. Ao final, Frances preparou uma grande omelete de ervas e a compartilharam com mais
agradar de que tivessem podido imaginar. Como por um acordo tácito, logo que falaram da morte do Esmé Carling.
   antes de que Dauntsey se fora, Frances tinha comentado:
   Todos somos culpados, não é certo? Nenhum de nós soube opor-se realmente ao Gerard.
   Teríamos devido insistir em falar do futuro do Esmé. Alguém teria tido que ir ver a, falar com ela.
   James lhe tinha respondido com delicadeza.
   Não podíamos publicar seu livro, Frances. E não porque fora uma novela comercial; necessitamos ficção popular. Mas era uma novela comercial malote. Era um mau
livro.
   E Frances tinha replicado: Um mau livro? O crime definitivo, o pecado contra o Espírito Santo. Bem, não cabe dúvida de que o pagou caro.
   A amargura destas palavras, sua ironia, tinha-lhe surpreso. O comentário era impróprio dela. Mas Frances tinha perdido parte de sua doçura e passividade
depois da ruptura com o Gerard.
   Do Witt contemplava a mudança com uma sombra de pesar, mas reconhecia que isso era uma manifestação mais de sua própria necessidade psicológica recorrente de
procurar
e amar ao vulnerável, ao inocente, ao dolorido e ao fraco, de dar antes que receber. Sabia que assim não podia fundar uma relação em condições de igualdade; que
uma bondade constante e acrítica podia resultar, em sua condescendência sutil, tão opressiva para a pessoa amada como a crueldade ou a negligência. Era assim como
reforçava seu eu, mediante o conhecimento de que lhe necessitava, dependia-se dele, lhe admirava por uma compaixão que, quando a contemplava com olhar sincero,
era uma forma sutil de predomínio emocional e orgulho espiritual? No que era melhor que Gerard, para quem o sexo formava parte de seu jogo pessoal de poder e
ao que lhe divertia seduzir a uma virgem devota porque sabia que, para ela, entrega-a supunha um pecado mortal? James sempre tinha amado ao Frances e ainda a
amava. Queria tê-la em sua vida, em sua casa, em seu leito, assim como em seu coração. E possivelmente seria possível agora que podiam amar-se de igual a igual.
   Naqueles momentos se sentia muito resistente a deixá-la, mas não tinha eleição. Ray, o amigo do Rupert, devia partir às onze e meia, e Rupert estava muito
doente para ficar solo embora fora umas horas. Além disso, havia outra dificuldade: James considerava que não podia oferecer-se a passar a noite na habitação livre
sem pecar de presunção. depois de tudo, possivelmente ela preferisse confrontar a sós seus demônios particulares antes que sofrer o desconforto de sua presença.
E ainda
havia algo mais. Queria fazer o amor com o Frances, mas era algo muito importante para que acontecesse porque a comoção e a tristeza a tinham afetado até
o ponto de fazê-la ir a seu leito, não por um desejo igual ao dele, a não ser por necessidade de consolo. Pensou: "Em que embrulho estamos colocados todos. Que difícil
é nos conhecer nós mesmos e, quando o obtemos, que difícil é trocar."
   Mas o problema resolveu por si só quando disse: Está segura de que não te importa ficar reveste esta noite, Frances?
   Ela respondeu com firmeza.
   Claro que não. Além disso, Rupert te necessita em casa e, se me fizer falta companhia, Gabriel está no piso de abaixo. Mas não me fará falta. Estou acostumada
a estar
sozinha, James.
   Ela pediu um táxi por telefone e James retornou a casa pelo caminho mais curto, descendo do táxi na estação do Bank e tomando o metro até o Notting Hill
Gate.
   Viu a ambulância nada mais dobrar a esquina da rua Hillgate. O coração lhe deu um tombo.
   Pôs-se a correr enquanto os enfermeiros baixavam ao Rupert pelos degraus da entrada em uma maca. Não se via nada dele salvo a cara por cima da manta,
uma cara que, até então, no extremo da debilidade e mostrando o reflexo da morte, para o James nunca tinha perdido sua beleza. Ao contemplar aos dois
homens que manipulavam a maca com mãos peritas, pareceu-lhe que eram seus próprios braços os que percebiam a insuportável leveza de sua carga.
   Vou contigo lhe disse.
   Mas Rupert meneou a cabeça.
   Melhor que não. Não querem muita gente na ambulância. Virá Ray.
   Exato disse Ray. Vou com ele.
   Estavam impacientem por ir-se. Já havia dois carros esperando para passar. Subiu à ambulância e contemplou o rosto do Rupert sem dizer nada.
   Perdoa a desordem da sala se desculpou Rupert. Já não voltarei. Agora poderá ordená-lo tudo e convidar ao Frances sem que nenhum dos dois experimente a necessidade
de esterilizar toda a baixela. Aonde lhe levam? perguntou James. Ao mesmo hospital?
   Não, ao Middlesex.
   Amanhã irei verte.
   Melhor que não.
   Ray já estava sentado na ambulância, instalado comodamente como se fora o lugar que lhe correspondia por direito. E era o lugar que lhe correspondia por direito.
Rupert falou de novo.
   James se inclinou para ouvi-lo.
   Aquela história do Gerard Etienne sobre o Eric e eu, você a creíste?
   Sim, Rupert, acreditei-me isso.
   Não era verdade. Como ia ser o? Era uma tolice. Não ouviste falar dos períodos de incubação? Você a creíste porque lhe precisava acreditar isso Pobre James!
Como devia odiá-lo! Não ponha essa cara. Parece consternado.
   James teve a sensação de que tinha perdido a voz. E quando por fim falou, as palavras lhe horrorizaram por sua futilidade banal. Estará bem, Rupert?
   Sim, estarei bem. Por fim estarei bem. Não se preocupe, e não me visite. Recorda o que disse G. K.
   Chesterton: "Devemos aprender a amar a vida sem confiar nunca nela." Eu nunca o tenho feito.
   Não recordava ter descido da ambulância, mas ouviu o suave estalo das portas ao fechar-se firmemente ante sua cara. O veículo só demorou uns segundos
em desaparecer depois da esquina, mas ele permaneceu muito momento olhando, como se se afastasse por uma larga estrada reta e pudesse contemplá-lo até que se perdesse
de vista.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

50
 
   Mount Eagle Mansions, não longe da ponte do Hammersmith, resultou ser uma grande construção vitoriana de tijolo vermelho, com a aparência desastrada e descuidada
do edifício que adoece em espera de um novo proprietário. O grandioso alpendre de estilo italiano, excessivamente ornamentado com molduras de estuque que começavam
a desmoronar-se, estava renhido com a Lisa fachada e conferia ao edifício um ar de ambigüidade excêntrica, como se o arquiteto, por falta de inspiração ou de dinheiro,
não tivesse podido completar seu desenho original. Kate pensou que, a julgar pelo alpendre, certamente tinha sido uma sorte. Mas era evidente que seus habitantes
não
tinham renunciado a conservar o valor de sua propriedade. As janelas, ao menos as que ficavam ao nível da rua, estavam podas, as diversas cortinas caíam
em dobras regulares e em alguns batentes tinham instalado jardineiras das que pendiam heras e gerânios pendentes sobre os tijolos imundos.
   A rolha e a aldrava, em forma de uma enorme cabeça de leão, estavam brunidos até a brancura, e havia uma grande esteira de junco, claramente nova, com
o nome "Mount Eagle Mansions" tecido entre os fios. À direita da porta havia uma fileira de timbres, cada um com um cartão na ranhura contigüa.
A do apartamento 27, recortada de um cartão de visita, rezava "Sra.
   Esmé Carling" em uma florida caligrafia. A do apartamento 29 só exibia a palavra "Reed" em maiúsculas. A chamada do Kate foi respondida aos poucos segundos
por uma voz feminina em que, pese ao crepitar do interfone, podia-se discernir um tom de mal-humorada resignação.
   Muito bem, já podem subir.
   Não havia elevador, embora as dimensões do vestíbulo ladrilhado sugeriam que se projetou instalar um. Ao longo de uma parede se estendia uma dobro
fileira de rolhas claramente numeradas; encostada à outra havia uma pesada mesa de mogno, com patas elaboradamente esculpidas, sobre a que viram uma série de notificações
e cartas devolvidas e um montão de periódicos atrasados pacote com uma corda, todo isso ordenadamente disposto. Mais acima, na parede, uns redemoinhos de água saponácea
já seca mostravam que se feito algum tento por limpar a pintura, embora o único resultado tinha sido fazer mais visível a sujeira. O ar cheirava a líquido
para móveis e desinfetante. Nem Kate nem Dalgliesh disseram nada, mas, enquanto subiam a escada e passavam ante as grosas portas com suas miras e seus dobre
fechaduras de segurança, Kate notou crescer nela uma excitação combinada com certa apreensão, e se perguntou se a figura silenciosa que avançava a seu lado também
sentia o mesmo. Era uma entrevista importante. Quando descessem por essa escada, o caso possivelmente estivesse resolvido.
   Ao Kate surpreendeu que Esmé Carling não pudesse permitir-se nada melhor que um apartamento naquele edifício nada impressionante. Absolutamente podia considerar-se
uma moradia de prestígio para receber a entrevistadores e jornalistas, caso, naturalmente, que os recebesse. Pelo pouco que sabiam dela, não parecia tratar-se
de uma reclusa literária, e, depois de tudo, era bastante conhecida.
   Ela mesma, Kate, tinha ouvido falar do Esmé Carling, embora não tivesse lido nenhuma de suas obras. Isso, naturalmente, não implicava que a renda de seus escritos
fora cuantiosa; tinha lido em uma revista que, embora existia um muito pequeno número de novelistas de êxito que eram milionários, inclusive os bem considerados
tinham problemas para viver de seus direitos de autor. Mas seu agente estaria com eles dentro de uma hora e era inútil perder o tempo em conjeturas sobre o Esmé
Carling, a escritora de mistério, quando todas as perguntas não demorariam para ser respondidas pela pessoa melhor situada para sabê-lo.
   Dalgliesh tinha preferido entrevistar ao Daisy antes inclusive de examinar o apartamento da senhora Carling, e Kate acreditava saber por que: a menina podia lhes
proporcionar
informação vital; qualquer secreto que se ocultasse depois da porta do número 27 podia esperar. Os detritos de uma vida truncada por um assassinato tinham sua própria
história que contar. A informação facilitada pelos resíduos patéticos da vítima, por suas cartas ou faturas, podia ser mal interpretada, mas os objetos
em si não mentiam, não trocavam sua versão dos fatos, não inventavam limitadas. Eram os vivos os que deviam ser entrevistados enquanto o horror do assassinato
ainda estava afresco em sua mente. Um bom investigador respeitava a aflição e às vezes a compartilhava, mas nunca era lento em explorá-la, embora se tratasse da
aflição
de uma menina.
   Chegaram à porta e, antes de que Kate pudesse elevar a mão para o timbre, Dalgliesh lhe disse:
   você encarregue-se de falar, Kate.
   Sim, senhor respondeu ela sem vacilar, embora o coração lhe deu um tombo. Dois anos antes quase se teria posto a rezar: "meu deus, permite que o faça bem, por
favor." Agora, com mais experiência, confiava em que assim seria.
   Não tinha perdido o tempo tratando de imaginar como seria Shelley Reed, a mãe da menina.
   No trabalho policial, a prudência aconselhava não adiantar-se à realidade com prejuízos prematuros e artificiosos. Entretanto, quando soou o chiado de
a cadeia e se abriu a porta, teve que fazer um esforço para ocultar sua reação inicial de surpresa. Se fazia difícil acreditar que aquela moça de cara roliça
que os olhava com o ressentimento áspero de uma adolescente fosse mãe de uma menina de doze anos. Dificilmente podia ter completo mais de dezesseis quando nasceu
Daisy. Seu rosto, desprovido de maquiagem, ainda conservava parte da brandura relatório da infância. A boca, de gesto triste, era muito carnuda e se curvava para
abaixo nas comissuras. O largo nariz estava perfurado em uma aleta por uma reluzente bolinha de adorno a jogo com as que luzia nas orelhas. O cabelo, de
um loiro brilhante que contrastava com as escuras e espessas sobrancelhas, pendurava-lhe em uma franja quase até os olhos e emoldurava o rosto entre encrespados
cachos.
Os olhos, sob umas pálpebras tão grossas que pareciam inchados, estavam muito separados e algo esquinados. Só sua figura sugeria maturidade. Pesado-los peitos penduravam
livremente sob um pulôver comprido de impoluto algodão branco, e suas pernas largas e bem formadas estavam embainhadas em meias negras. Ia meio-fio com sapatilhas
de estar por casa bordadas com fio prateado. A expressão dura e resolvida de seu olhar se transformou em um respeito cauteloso quando viu o Dalgliesh, como se reconhecesse
nele uma autoridade mais capitalista que a de um assistente social. E quando falou, Kate detectou uma nota de fatigada resignação em seu desafio ritual.
   Será melhor que entrem, embora não sei do que lhes vai servir. Seus homens já falaram com o Daisy. A menina lhes disse tudo o que sabia. Cooperamos com a polícia,
e o único que tiramos troca é que venha a maldita Assistência Social a nos incomodar. Não é coisa sua como ganho a vida. De acordo, faço strip tease, e o que?
Ganho a vida e mantenho a minha filha. Tenho um trabalho legal, não? Os jornais sempre se estão queixando das mães solteiras que vivem da Segurança Social;
pois eu tenho um trabalho, mas não me vai durar muito se tiver que me passar aqui toda a tarde respondendo perguntas idiotas. E não queremos mulheres polícia do
Departamento
de Menores.
   A que veio a última vez com aquele menino judeu era uma idiota total.
   Não se tinha movido da soleira enquanto lhes dedicava esta bem-vinda, mas ao fim se apartou a contra gosto e puderam entrar em um saguão tão pequeno que apenas
cabiam os três.
   Dalgliesh lhe anunciou:
   Sou o comandante Dalgliesh, e esta é a inspetora Miskin, que não é do Departamento de Menores. É investigadora; os dois o somos. Lamentamos ter que incomodá-la
de novo, senhora Reed, mas temos que falar com o Daisy. Sabe já que a senhora Carling morreu?
   Sim, já sabe. Todo mundo sabe, não? Saiu nas notícias locais. E agora me vai dizer que não foi um suicídio e que a matamos nós. Está muito afetada
Daisy? Como quer que saiba? Não está renda-se, mas nunca sei o que acontece a cabeça dessa menina. De todos os modos, seguro que quando acabarem vocês com ela
estará afetada. Está aí; chamei à escola para dizer que não irá até a tarde. E, ouça, me faça um favor: que seja rápido, vale? Tenho que sair a comprar.
E a menina estará bem cuidada esta noite. Não comecem a preocupar-se com o Daisy. A senhora da limpeza virá na hora do jantar. E depois disso, podem lhe pedir
à Assistência Social que a cuide, se tanto os inquieta.
   A sala de estar era estreita e dava uma sensação de abarrotado desconforto combinado com uma impressão de estranheza, que intrigou ao Kate até que viu uma chaminé
artificial, com o suporte repleto de cartões de felicitação e pequenos adornos de porcelana, instalada contra a parede exterior, sem saída de fumaças. À direita,
uma porta aberta permitia ver uma cama pequena médio desfeita e coberta de objetos de vestir. A senhora Reed se apressou a fechá-la. À direita da porta
havia uma barra com cortinas em que Kate vislumbrou uma apertada fileira de vestidos; à esquerda, um televisor enorme com um sofá diante, e uma mesa quadrada
com quatro cadeiras em frente da janela dobro. Em cima da mesa havia um montão de livros que pareciam de texto, e ante os livros uma menina vestida com um uniforme
composto de saia vincada azul marinho e blusa branca, que se voltou para eles quando entraram.
   Kate pensou que poucas vezes tinha visto uma criatura mais desprovida de beleza. Estava claro que era filha de sua mãe, mas, por algum capricho dos gens,
os rasgos maternais apareciam superpuestos de um modo incongruente sobre seu rosto frágil e magro. Os olhos que olhavam através dos cristais dos óculos
eram pequenos e estavam muito separados; o nariz, larga como a da mãe; a boca, igual de carnuda e com a curvatura para baixo mais pronunciada. Mas
tinha a cútis delicada e de uma cor extraordinária, de um dourado pálido e esverdeado como o das maçãs vistas sob a água. O cabelo, de uma cor entre dourado
e castanho claro, pendurava como fios de seda em torno de um rosto que parecia mais doentio que infantil. Kate olhou ao Dalgliesh de soslaio e em seguida apartou
precipitadamente
a vista. deu-se conta de que seu chefe sentia compaixão e ternura; já lhe tinha visto antes essa expressão, por depressa que a dominasse, por mais fugaz que fora,
e
surpreendeu-lhe a quebra de onda de ressentimento que esta vez provocou nela. Com toda sua sensibilidade, não era distinto de outros homens. Sua primeira reação
ante o
sexo feminino era uma resposta estética: agradar ante a beleza e pesar compassivo ante a fealdade. As mulheres pouco agraciadas se acostumavam a esse olhar; não
ficava outro remédio. Mas sem dúvida a uma menina lhe podia economizar essa brutal revelação de uma injustiça humana universal. podia-se legislar contra toda classe
de discriminação menos contra esta. As mulheres atrativas tinham vantagem em tudo, do trabalho até o sexo, enquanto que as muito feias eram denegridas e rechaçadas.
E esta menina nem sequer mostrava a promessa dessa fealdade distintiva, carregada de sexualidade, que, se ia acompanhada de inteligência e imaginação, podia resultar
muito mais erótica que a simples beleza.
   Nunca se poderia fazer nada para corrigir a queda dessa boca muito grosa, para juntar mais esses olhos porcinos. Durante uns segundos breves, Kate sentiu
uma confusão de emoções, entre elas, e não a menor, desgosto consigo mesma: se Dalgliesh tinha experiente uma piedade instintiva, o mesmo lhe tinha ocorrido
a ela, e era uma mulher. Ela, ao menos, teria podido julgá-la segundo distintos critérios. Em resposta a um gesto da mãe, Dalgliesh tomou assento no sofá
e Kate ocupou uma cadeira frente a Daisy. A senhora Reed se deixou cair no sofá com ar beligerante e acendeu um cigarro.
   Eu fico. Não entrevistarão à menina sem mim.
   Não podemos falar com o Daisy se não estar você diante, senhora Reed replicou Dalgliesh. Há um procedimento especial para entrevistar aos menores. Seria conveniente
que não nos interrompesse, a menos que considere que obramos de má fé.
   Kate, sentada ante a menina, falou-lhe com suavidade.
   Sentimos muito o de seu amiga, Daisy. A senhora Carling era amiga tua, verdade?
   Daisy abriu um dos livros da escola e fingiu ficar a ler. Respondeu sem levantar o olhar.
   Eu gostava.
   Quando gostamos a uma pessoa, normalmente essa pessoa também nós gostamos; pelo menos, me ocorre. Já sabe que a senhora Carling morreu. É possível
que se tenha matado ela mesma, mas ainda não sabemos. Temos que averiguar como e por que morreu, e queremos que nos ajude. Ajudará-nos?
   Então Daisy a olhou. Seus ojillos, de uma inteligência desconcertante, eram tão duros como os de um adulto e tão dogmáticos como só os de um menino podem
sê-lo.
   Não quero falar com você replicou. Quero falar com o que manda. Voltou o rosto para o Dalgliesh e acrescentou: Quero falar com ele.
   Bem, aqui me tem lhe respondeu Dalgliesh. Mas é o mesmo, Daisy, dá igual com quem fale.
   Se não ser com você, não falo.
   Kate, desconcertada, levantou-se da cadeira tratando de ocultar a decepção e o sufoco, mas Dalgliesh a conteve com um gesto e se sentou na cadeira do
lado.
   Vocês acreditam que à tia Esmé a assassinaram, verdade? O que lhe farão quando o agarrarem? perguntou-lhe Daisy.
   Se o tribunal o considerar culpado, irá ao cárcere. Mas não estamos seguros de que a senhora Carling fora assassinada. Ainda não sabemos como nem por que morreu.
   A senhora Summers, da escola, diz que colocar às pessoas no cárcere não lhe faz nenhum bem.
   A senhora Summers tem razão concedeu Dalgliesh. Mas não se está acostumado a mandar às pessoas ao cárcere para que lhes faça bem. Às vezes é necessário proteger
a outras
pessoas, ou dissuadir, porque à sociedade preocupa muito o que a pessoa culpado tem feito e o castigo reflete essa preocupação.
   Kate pensou: "meu deus, agora temos que perder o tempo discutindo sobre a bondade das penas de privação de liberdade e a filosofia do castigo judicial?"
Mas obviamente Dalgliesh estava disposto a mostrar-se paciente.
   A senhora Summers diz que executar às pessoas é de bárbaros.
   Neste país já não executamos a ninguém, Daisy.
   Na América sim.
   Sim, em algumas parte dos Estados Unidos, e também em outros países, mas na Inglaterra já não se faz. Acredito que isso já sabe, Daisy.
   A menina, pensou Kate, mostrava-se deliberadamente recalcitrante. perguntou-se o que pretendia Daisy com isso à parte, naturalmente, de ganhar tempo e amaldiçoou
mentalmente
à senhora Summers. Em sua época de estudante tinha conhecido a um par de pessoas assim, sobre tudo a senhorita Crighton, que tinha feito todo o possível para dissuadi-la
de ingressar na polícia porque, segundo ela, este corpo albergava aos agentes repressivos e fascistas da autoridade capitalista. Kate teria querido lhe perguntar
à menina o que faria a senhora Summers com o assassino da senhora Carling se é que havia um assassino, à parte, naturalmente, de lhe oferecer compreensão, lhe dar
bons conselhos e lhe pagar um cruzeiro pelo mundo. Ou melhor ainda, lhe teria encantado levar a senhora Summers a que visse algumas vítimas de assassinato e confrontasse
as cenas de assassinato que ela, Kate, tinha tido que confrontar. Irritada pelo reaparecimento de antigos prejuízos e ressentimentos que acreditava ter superado,
e de lembranças que preferia esquecer, manteve o olhar fixo no rosto do Daisy. A senhora Reed não dizia nada, mas aspirava energicamente a fumaça do cigarro.
O ambiente estava carregado.
   Sentado perto da menina, Dalgliesh prosseguiu:
   Temos que averiguar como e por que morreu a senhora Carling, Daisy. Pôde ser por sua própria mão, mas também é possível, tão somente possível, que morrera assassinada.
Se foi assim, temos que averiguar quem o fez. É nosso trabalho. Por isso estamos aqui. viemos porque acreditam que pode nos ajudar.
   Já lhes disse o que sabia a aquele inspetor e à mulher polícia.
   Dalgliesh não replicou. Seu silêncio e o que implicava desconcertaram visivelmente ao Daisy. Depois de uma breve pausa, a menina prosseguiu em tom defensivo.
Como sei
que não tentarão carregar o assassinato do senhor Etienne a tia Esmé? Ela disse que possivelmente tentariam carregar-lhe a ela, acreditava que podiam arrumar as
coisas para
fazê-la passar por culpado.
   Não acreditam que a senhora Carling tivesse nada que ver com a morte do senhor Etienne lhe assegurou Dalgliesh. E não vamos carregar lhe o assassinato a ninguém.
O que
queremos é averiguar a verdade. Acredito saber duas coisas a respeito de ti, Daisy: que é inteligente e que, se promete dizer a verdade, dirá a verdade. Promete-me
isso?
Como sei que posso confiar em você?
   Peço-te que confie em nós. Você mesma tem que decidir se pode fazê-lo ou não. É uma decisão importante para uma menina, mas não pode esquivá-la. Agora bem,
não nos minta. Antes que nos mentir, preferiria que não nos dissesse nada.
   Kate pensou que era uma estratégia muito arriscada e esperou não ter que ouvir a seguir que a senhora Summers tinha advertido a seus alunos que não confiassem
na polícia. Daisy cravou seus olhos de cerdito nos do Dalgliesh. O silêncio pareceu interminável.
   Finalmente, Daisy anunciou:
   De acordo. Direi a verdade.
   A voz do Dalgliesh não trocou.
   Quando vieram a verte o inspetor Aaron e a mulher polícia, disse-lhes que tinha o costume de passar as veladas em casa da senhora Carling, para fazer
os deveres e jantar com ela. É certo?
   Sim. Às vezes me deitava na habitação que não ocupava ela e às vezes no sofá. Logo tia Esmé despertava e me trazia de volta aqui antes de que chegasse
mamãe.
   Ouça interveio a senhora Reed, a menina está segura em casa. Sempre fecho as duas fechaduras ao partir e ela tem seu jogo de chaves. E sotaque um número de
telefone. Que complicações tenho que fazer? levar-me isso comigo ao clube?
   Dalgliesh não lhe emprestou atenção. Seu olhar seguiu fixa no Daisy. O que faziam quando estavam juntas?
   Eu fazia os deveres e às vezes ela escrevia um pouco, e logo olhávamos a televisão. Deixava-me ler seus livros. Tem muitíssimos livros sobre assassinatos, e sabia
tudo sobre os assassinos da vida real. Eu estava acostumado a me baixar o jantar e às vezes comia algo da sua.
   Parece que passavam bons momentos juntas. Suponho que se alegraria de que lhe fizesse companhia.
   Não gostava de estar sozinha de noite apontou a mãe. Dizia que ouvia ruídos na escada e não se sentia segura nem sequer Com as duas fechaduras. Dizia que se
uma pessoa que guardava uma cópia das chaves tinha um descuido, um assassino podia as agarrar, subir sem fazer ruído e meter-se no piso. Ou podia estar no
coberto quando se fazia de noite, baixar com uma corda e entrar pela janela. Algumas noites incluso ouvia o assassino dar golpecitos no cristal. E sempre era
pior quando na televisão faziam alguma filme de medo. Não gostava de olhar a televisão a sós.
   "Pobre menina", pensou Kate. De modo que esses eram os horrores vividamente imaginados dos que Daisy, só em casa uma noite atrás de outra, refugiava-se no piso
da senhora Carling. E do que fugia Esmé Carling? Do aborrecimento, da solidão, de seus próprios temores imaginários? Era improvável que entre elas existisse
um vínculo de amizade, mas cada uma satisfazia a necessidade de companhia e segurança da outra, proporcionava-lhe os pequenos consolos domésticos de um lar.
   Dalgliesh prosseguiu:
   Disse-lhes ao inspetor Aaron e à mulher polícia do Departamento de Menores que na quinta-feira quatorze de outubro, o dia em que morreu o senhor Etienne, esteve
no piso da senhora Carling das seis da tarde até que ela te acompanhou a casa ao redor da meia-noite. Era verdade?
   Aqui estava por fim a pergunta crucial, e ao Kate pareceu que esperavam a resposta contendo o fôlego. A menina seguiu olhando ao Dalgliesh com a mesma
calma. Sua mãe exalou audiblemente uma baforada de fumaça, mas não disse nada.
   Passaram os segundos, até que Daisy respondeu:
   Não, não era verdade. Tia Esmé me pediu que mentisse por ela. Quando lhe pediu isso?
   na sexta-feira, o dia depois de que matassem ao senhor Etienne, veio a me buscar à saída da escola. Esperava-me na porta. Logo me acompanhou a casa no
ônibus. Sentamo-nos acima, onde não havia muita gente, e me disse que viria a polícia a me perguntar por ela e que devia lhes dizer que tínhamos passado a tarde
e a noite juntas. "Disse que podiam suspeitar que tinha matado ao senhor Etienne porque era uma escritora de mistério e sabia muito sobre assassinatos e porque sabia
inventar planos muito inteligentes. Disse que talvez a polícia queria lhe carregar a morte do senhor Etienne porque tinha um motivo para matá-lo.
   Na Peverell Press, todo mundo sabia que odiava ao senhor Etienne porque lhe tinha rechaçado seu livro.
   Mas você não acreditava que o tivesse feito ela, verdade, Daisy? por que não?
   Seus ojillos penetrantes não se separaram dos do Dalgliesh.
   Você já sabe por que.
   Sim, e a inspetora Miskin também. Mas nos diga isso    No me contó mucho. Dijo que había estado allí y que había visto al señor Etienne, pero que estaba vivo
cuando ella se fue. Alguien llamó para pedirle que subiera
   Se o tivesse feito ela, teria subido a me pedir o álibi aquela mesma noite, antes de que voltasse mamãe. Mas não me pediu isso até depois de que encontrassem
o corpo. Além disso, não sabia a que hora tinha morrido o senhor Etienne; por isso queria um álibi desde meia tarde até a noite. Tia Esmé disse que devíamos contar
a mesma história porque a polícia tentaria nos pilhar.
   Assim que lhe contei ao inspetor tudo o que tínhamos feito, menos o que tínhamos visto pela televisão, mas o tínhamos feito a noite anterior.
   Dalgliesh comentou:
   É a forma mais segura de inventar um álibi. Em essência está dizendo a verdade, assim não tem que temer que a outra pessoa diga algo distinto. Foi idéia
tua?
   Sim.
   Esperemos que não te dedique nunca ao crime, Daisy. Isto é muito importante e quero que o pense bem antes de responder a minhas perguntas. Fará-o?
   Sim. Contou-te sua tia Esmé o que tinha ocorrido no Innocent House aquela quinta-feira de noite, a noite em que morreu o senhor Etienne?
   Não me contou muito. Disse que tinha estado ali e que tinha visto o senhor Etienne, mas que estava vivo quando ela se foi. Alguém chamou para lhe pedir que subisse
ao último piso e disse a tia Esmé que não demoraria para voltar. Mas demorava muito e ela se cansou de esperar, assim ao fim se foi. foi sem voltar a vê-lo?
   Isso me disse. Disse que esteve esperando muito momento e que ao final se assustou. Dá muito medo Innocent House quando se foram todos e a casa fica fria e silenciosa.
Houve uma senhora que se matou ali, e a senhora Carling diz que às vezes se vê seu fantasma. Assim não esperou a que voltasse o senhor Etienne. Perguntei-lhe se
havia
visto o assassino e me respondeu: "Não, não o vi. Não sei quem o fez, mas sei quem não o fez." Disse a quem se referia?
   Não. Disse-te se era um homem ou uma mulher, a pessoa que não o tinha feito?
   Não. E você tirou a impressão de que se referia a um homem ou a uma mulher, Daisy?
   Não sei. Disse-te alguma outra costure a respeito dessa noite? Tenta recordar suas palavras exatas.
   Disse-me algo, mas naquele momento não lhe encontrei nenhum sentido. Disse: "Ouvi a voz, mas a serpente estava ante a porta. por que estava a serpente ante
a porta? E que momento mais estranho para tomar emprestada uma aspiradora." Disse-o em voz muito baixa, como se falasse sozinha. Perguntou-lhe o que tinha querido
dizer?
   Perguntei-lhe que classe de serpente era, se era uma serpente venenosa, se tinha mordido ao senhor Etienne. E ela disse: "Não, não era uma serpente de verdade,
mas
possivelmente era igual de mortífera, a sua maneira."
   Dalgliesh repetiu:
   "Ouvi a voz, mas a serpente estava ante a porta. E que momento mais estranho para tomar emprestada uma aspiradora." Está segura dessas palavras?
   Sim. Não disse de quem era a voz?
   Não, disse o que acabo de lhe contar. Acredito que queria guardar algo em segredo. Gostava dos segredos e os mistérios. Quando voltou a te falar do assassinato?
   Anteontem, enquanto estava aqui fazendo os deveres. Disse-me que na quinta-feira de noite iria ao Innocent House para falar com alguém. Disse: "Agora terão que
seguir publicando minhas obras. Não fica mais remédio." Disse que possivelmente necessitasse que lhe proporcionasse outro álibi, mas ainda não estava segura. Perguntei-lhe
que
a quem ia ver e me respondeu que de momento não me diria isso, que tinha que ser um segredo. Não acredito que me pensasse dizer isso nunca; acredito que era muito
importante
para dizer-lhe a ninguém. Disse-lhe: "Se for ver o assassino, pode que lhe mate a ti também", e ela me respondeu que não era tão tola, que não ia ver nenhum assassino.
Disse: "Não sei quem é o assassino, mas pode que manhã de noite saiba." Não me disse nada mais.
   Dalgliesh lhe tendeu a mão por cima da mesa e a menina a estreitou.
   Obrigado, Daisy, ajudaste-nos muito. Teremos que te pedir que escribas todo isto e o firmes, mas em outro momento. E me levarão a Amparo?
   Não acredito que exista nenhuma possibilidade, verdade? voltou-se para a senhora Reed, que respondeu com expressão sombria e inflexível.
   Antes terão que passar por cima de meu cadáver.
   A mulher os acompanhou até a porta e, de repente, ao parecer movida por um impulso, saiu ao patamar com eles e fechou a suas costas. Sem lhe emprestar atenção
ao Kate, falou-lhe diretamente com o Dalgliesh.
   O senhor Maçom, o diretor da escola do Daisy, diz que é inteligente. Quero dizer, inteligente seriamente.
   Acredito que tem razão, senhora Reed. Deveria estar orgulhosa dela.
   Diz que poderia conseguir uma dessas becas do Governo para ir a uma escola distinta, a um internato. E o que opina Daisy?
   Diz que não lhe importaria. Não está contente nessa escola. Acredito que gostaria de ir, mas que não me quer dizer isso 51
   Kate sentiu uma ligeira pontada de irritação. Tinham coisas que fazer. Terei que examinar o apartamento da senhora Carling, e seu agente chegaria às onze
e meia.
   Mas Dalgliesh não deu nenhuma amostra de impaciência. por que Daisy e você não o falam a fundo com o senhor Maçom? A decisão deve tomá-la Daisy.
   A senhora Reed resistia a deixá-los, como se ainda precisasse escutar algo mais, uma segurança que só ele podia lhe dar. Dalgliesh acrescentou:
   Não deve acreditar que seja à força mau para o Daisy só porque lhe resulta conveniente.
   Poderia ser o melhor para as duas.
   Obrigado, obrigado sussurrou ela, e entrou de novo no piso.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

51
 
   O apartamento da senhora Carling ficava um piso mais abaixo e na parte frontal do edifício.
   Pesada-a porta de mogno estava provida de um fechamento normal e duas fechaduras de segurança, uma Banham e uma Ingersoll. As chaves giraram com facilidade e,
ao
empurrar a porta, Dalgliesh arrastou com ela uma pilha de cartas. O saguão cheirava a mofo e estava muito escuro. Dalgliesh procurou provas o interruptor da luz
e o acionou, revelando imediatamente a singela estrutura do apartamento: um estreito corredor com duas portas em frente e uma a cada lado. agachou-se para recolher
os envelopes e viu que se tratava de simples notificações: dois deles sem dúvida continham faturas e no outro se exortava à senhora Carling a abri-lo imediatamente
para ter a possibilidade de ganhar meio milhão. Havia também uma folha de papel dobrada com uma mensagem laboriosamente escrito à mão:
   "Sinto muito, mas amanhã não poderei vir. Tenho que ir à clínica com o Tracey pelo da pressão alta. Espero vê-la na sexta-feira que vem. Sra. Darlene Morgan."
   Dalgliesh abriu a porta que tinha justo diante e acendeu a luz. encontraram-se na sala de estar. As duas janelas que davam à rua estavam fechadas,
e as cortinas de veludo vermelho ao meio correr. Mesmo que a aquela altura não havia perigo de olhares indiscretos, nem sequer do piso alto dos ônibus,
a metade inferior de ambas as janelas se achava coberta por um visillo.
   A principal fonte de luz artificial procedia de uma espécie de terrina investida de cristal, decorado com um tênue desenho de mariposas e pintalgado pelos corpos
negros e ressecados de moscas apanhadas, que pendurava de um rosetón central. Havia três abajures de mesa com tela de franjas rosadas, uma sobre uma mesita situada
junto a uma poltrona perto do fogo, outra sobre uma mesa quadrada colocada entre as duas janelas, e a terceira sobre um enorme escritório com porta de persiana apoiado
contra a parede da esquerda. Como se necessitasse desesperadamente luz e ar, Kate abriu as cortinas e abriu uma das janelas; a seguir foi acendendo
todas as luzes do quarto.
   Aspiraram o ar frio, que produzia uma enganosa sensação de frescura campestre, e passearam o olhar por uma habitação que ao fim podiam ver com claridade.
   A primeira impressão, reforçada pelo resplendor rosa dos abajures, era de uma intimidade acolchoada e passada de moda que resultava tão mais atrativa quanto
que a proprietária não tinha feito nenhuma concessão ao gosto popular contemporâneo. diria-se que tinham mobiliado a sala nos anos trinta e a tinham deixado
intacta após. Quase todos os móveis pareciam herdados: o escritório com porta de persiana que continha uma máquina de escrever portátil, as quatro
cadeiras de mogno de formas e épocas discordantes, uma vitrine de estilo eduardiano em que diversos objetos de porcelana e parte de um serviço de chá apareciam
mais amontoados que ordenados, dois tapetes descoloridos dispostas de um modo tão inadequado que Dalgliesh suspeitou que tampavam buracos no carpete. Tão somente
o sofá e as duas poltronas a jogo que bordeaban a chaminé, providos de amaciadas almofadas e estofadas em linho com um estampado de rosas em amarelo e rosa claro,
eram relativamente novos. A chaminé em si parecia original: um recarregado artefato em mármore cinza, com uma grosa suporte e uma churrasqueira rodeada por uma dobro
fileira de azulejos ornamentais com figuras de flores, frutas e pássaros. Em ambos os extremos do suporte, dois cães do Staffordshire com cadeia dourada ao pescoço
contemplavam a parede oposta com olhos brilhantes; e entre os dois se estendia uma massa de adornos: uma taça da coroação do Jorge VI e outra da rainha Isabel,
uma caixa laqueada em negro, dois minúsculos castiçais de bronze, uma figurinha moderna de porcelana que representava a uma mulher com miriñaque sustentando a um
cão
mulherengo entre os braços e um jarro de cristal esculpido com um ramo de prímulas artificiais.
   detrás dos adornos havia duas fotografias em cor. Uma delas parecia tomada em uma entrega de prêmios: Esmé Carling, rodeada de caras risonhas, fazia gesto
de apontar com uma pistola de imitação. Na segunda a via em um ato de assinatura de livros, e era evidente que se tratava de uma pose cuidadosamente preparada.
Um comprador esperava a seu lado com ar de espera, a cabeça inclinada em um ângulo pouco natural para sair na foto, enquanto a senhora Carling, com a
pluma elevada sobre a página, sorria seductoramente à câmara. Kate a examinou uns instantes, tratando de conciliar as angulosas facções de marsupial, a
boca pequena e o nariz levemente farpado, com o consternador rosto afogado e desfigurado que tinha sido o primeiro que visse do Esmé Carling.
   Dalgliesh intuiu a atração que esta caseira e amaciada habitação exercia sobre o Daisy. Nesse amplo sofá tinha lido, cuidadoso a televisão e dormido brevemente
antes de ser conduzida a sua própria habitação. Aí tinha um refúgio contra o terror de suas imaginações, no terror simulado que se encerrava entre as cobertas
dos livros, higienizado e convertido em ficção para ser saboreado, compartilhado e deixado de lado, não mais real que as chamas que dançavam no fogo de troncos
artificiais e tão fácil de desconectar como elas. Aí tinha encontrado segurança, companhia e, sim, certa classe de amor, se amor era a satisfação de uma necessidade
mútua. Jogou um olhar aos livros. As prateleiras continham exemplares em rústica de novelas de mistério e policíacas, mas se deu conta de que poucos dos autores
estavam vivos; as preferências da senhora Carling se decantavam para as escritoras da Idade de Ouro. Todos esses volúmenes pareciam muito lidos. Baixo eles havia
uma prateleira de obras sobre crímenes reais: o caso Wallace, Jack o Destripador ou as assassinas mais célebres da época vitoriana, Adelaide Bartlett e Constance
Kent. As prateleiras inferiores se achavam ocupados por exemplares de suas próprias obras encadernados em pele e com os títulos gravados em ouro, um luxo, conjeturou
Dalgliesh, que não devia ter ajudado a Peverell Press. A visão desta vaidade inofensiva o deprimiu e suscitou nele um espiono de compaixão. Quem herdaria
esse histórico acumulado de uma vida vivida para o assassinato e acabamenta pelo assassinato? Em que prateleira de sala de estar, dormitório ou desculpado encontrariam
um
lugar de respeito ou de tolerância esses livros? Ou acaso seriam adquiridos por um livreiro de lance e vendidos em lote, realçado seu valor pela horrenda e oportuna
morte da autora? Dalgliesh começou a ler aqueles títulos tão rememorativos dos anos trinta, de policiais de povo que iam em bicicleta à cena
do crime e se sobressaltavam ante os latifundiários, de autópsias realizadas por excêntricos praticantes de medicina geral atrás de suas operações vespertinas e
de
improváveis desenlaces na biblioteca, e tirou as novelas para as folhear ao azar. Morte no baile, ambientada ao parecer no mundo das competições de
baile de salão, Cruzeiro à morte, Morte por afogamento, Os assassinatos do muérdago. Voltou às deixar em seu lugar sem o menor sentimento de superioridade.
por que tinha que o ter? disse-se que provavelmente a senhora Carling tinha proporcionado prazer a mais pessoas com suas novelas policíacas que ele com seus poemas.
E se o prazer era de distinta índole, quem podia afirmar que um fora inferior ao outro? Ao menos ela tinha respeitado o idioma inglês e o tinha utilizado tão
bem como podia; em uma época que tendia ao analfabetismo, isso não carecia de importância. Durante trinta anos tinha subministrado a fantasia do assassinato, a cara
aceitável da violência, o terror controlável. Dalgliesh esperou que, quando por fim se enfrentou cara a cara com a realidade, o encontro tivesse sido
breve e piedoso.
   Kate entrou na cozinha. Dalgliesh a seguiu e juntos contemplaram a confusão. Na pia se amontoavam os pratos sujos, sobre o fogão havia uma frigideira
sem lavar, e o cubo do lixo transbordava de latas vazias e vasilhas de cartão, alguns deles esmagados contra o chão imundo.
   Kate disse:
   Não teria querido que víssemos sua cozinha assim. Que má sorte que a senhora Morgan não tenha podido vir esta manhã!
   Dalgliesh lhe dirigiu um olhar de soslaio e, ao ver que o rubor alagava seu rosto, soube que, de repente, a observação lhe tinha desejado muito irracional e absurda
e que desejava não havê-la formulado.
   Mas seus pensamentos tinham ido na mesma direção. "Senhor, permite que conheça meu fim e o número de meus dias; que me seja dado saber quanto tenho que viver."
Sem dúvida eram muito poucos os que podiam rezar esta oração com sinceridade. o melhor que se podia esperar ou desejar era o tempo suficiente para recolher os restos
pessoais, arrojar os segredos às chamas ou ao cubo do lixo e deixar a cozinha em ordem.
   Durante um par de segundos, enquanto abria as gavetas e os armários, viu-se transportado a aquele cemitério do Norfolk e voltou a ouvir a voz de seu pai, uma
imagem foto instantânea de poderosa intensidade que trazia consigo o aroma do feno segado e da terra do Norfolk acabada de remover, o embriagador perfume das açucenas.
Aos paroquianos gostava que o filho do pároco se achasse presente nos funerais do povo, de modo que durante as férias escolar sempre assistia.
   Para ele, um enterro de povo era mais um ato interessante que uma imposição. Logo compartilhava a mesa do funeral, tratando de conter seu apetite adolescente
enquanto os parentes do defunto o abarrotavam do tradicional presunto cozido e o condensado bolo de frutas e lhe expressavam seu reconhecimento.
   Muito amável por sua parte ter vindo, señorito Adam. Papai o teria agradecido. Tinha-lhe muita avaliação, papai.
   E a boca pegajosa de bolo murmurava a mentira cortês:
   Eu também lhe tinha muita avaliação, senhora Hodgkin.
   Permanecia respetuosamente em pé enquanto o velho Goodfellow, o sacristão, e os homens da funerária introduziam o ataúde na fossa disposta a recebê-lo,
ouvia o brando golpear da terra do Norfolk sobre a tampa, escutava a voz grave e cultivada de seu pai enquanto a brisa lhe revolvia os grisalhos cabelos e
enchia-lhe a sobrepeliz. representava-se mentalmente ao homem ou a mulher que tinha conhecido, o corpo amortalhado e encaixotado entre seda artificial, envolto
em mais luxo da que jamais tinha tido em vida, e se imaginava todas as etapas de sua dissolução: o sudário putrefato, a lenta decomposição da carne,
o afundamento final da tampa do ataúde sobre os ossos nus. Da infância, nunca tinha podido acreditar essa esplêndida proclamação de imortalidade: "E embora
os vermes destruam este corpo, ainda em minha carne verei deus."
   Passaram ao dormitório da senhora Carling, mas não se entretiveram muito nele. Era grande, albergava muitos móveis e estava desordenado e não muito limpo.
Sobre o penteadeira dos anos trinta com seu espelho triplo descansava uma grande bandeja de plástico com um desenho de violetas, em que se acumulava uma profusão
de frascos meio vazios com diversas loções para as mãos e o corpo, expulse gordurentos, pintalabios e sombra para os olhos. Sem pensar, Kate desenroscou a tampa
do bote maior de nata apóie e viu uma única depressão ali onde o dedo da senhora Carling se afundou na superfície. Este rastro, tão efêmera,
por um instante lhe pareceu permanente e indelével, e fez aparecer em sua mente a imagem da morta de um modo tão vivido que ficou paralisada com o bote
na mão, como se a tivessem surpreso em um ato de violação pessoal. Os olhos do espelho lhe devolveram seu olhar, culpado e um tanto envergonhada. voltou-se
para dirigir-se ao armário roupeiro e abriu a porta. Com o sussurro da roupa pendurada surgiu também um aroma que lhe recordou outros registros, outras vítimas,
outras
habitações: o aroma rançoso e agridoce da idade, do fracasso e da morte. Kate se apressou a fechar a porta, mas não antes de ter visto as três garrafas
de uísque esconde entre a fileira de sapatos. Pensou: "Há momentos nos que detesto meu trabalho." Mas esses momentos eram escassos e só eram momentos.
   O quarto de convidados era uma cela estreita e mau proporcionada, em que uma só janela alta se abria ao panorama de uma parede de tijolo impregnada de
decênios de imundície londrino e sulcada por grosas encanamentos de deságüe. Não obstante, feito-se algum intento, embora mal encaminhado, para que a habitação
resultasse acolhedora: as paredes e o teto estavam revestidos de um papel no que se entrelaçavam madressilvas, rosas e hera; as cortinas, de elaboradas dobras,
eram de um gênero a jogo, e sobre o único divã, colocado sob a janela, havia um cobertor rosa claro, sem dúvida eleito para entoar com o rosa das flores.
O intento de embelezar, de impor intensidade feminina a uma nada deprimente, tão somente conseguia sublinhar os defeitos da habitação. Era evidente que a decoração
escolheu-se pensando em convidados do sexo feminino, mas Dalgliesh não pôde imaginar-se a uma mulher dormindo apaciblemente nessa cela claustrofóbica e em
excesso decorada. Certamente, nenhum homem poderia fazê-lo, com essa opressiva doçura sintética do teto, essa cama muito estreita para resultar cômoda e essa
mesinha de noite que não era a não ser uma frágil reprodução, muito pequena para conter algo mais que a lamparita.
   O tempo que dedicaram a examinar o apartamento não foi tempo perdido. Kate recordava uma das primeiras lições que tinha aprendido ao princípio de sua carreira
como agente de polícia: conhece a vítima. Toda vítima morre por ser quem é, por ser o que é, por estar onde está em um momento determinado. quanto mais se
sabe da vítima, mais perto se está de seu assassino. Mas quando ao fim se sentaram ante o escritório do Esmé Carling o fizeram procurando dados mais concretos.
   Tiveram sua recompensa nada mais abri-lo. O escritório estava mais ordenado e menos abarrotado do que se figuravam. Sobre um montão de faturas recentes ainda
por pagar havia duas folhas de papel. A primeira era sem lugar a dúvidas um rascunho da nota encontrada no corrimão do Innocent House. Havia poucas modificações;
a versão definitiva da senhora Carling não diferia muito de sua primeira efusão de ira e dor. Entretanto, em comparação com a caligrafia firme e pulcra de
a nota final, a escritura parecia uma sucessão de ganchos de ferro. Aí temam a confirmação, se lhes tivesse feito falta, de que eram suas próprias palavras, escritas
de seu punho e letra. Debaixo encontraram o rascunho de uma carta escrita pela mesma mão. Levava data da quinta-feira 14 de outubro.
   Querido Gerard:
   Acabo de saber a notícia por meu agente. Sim, por meu agente! Nem sequer tiveste a decência nem a valentia de me dizer isso pessoalmente. Teria podido me pedir
que fora a seu escritório para falar contigo; tampouco te haveria flanco nada me convidar a almoçar ou para jantar para me dar a notícia. Ou acaso é tão mesquinho
como
desleal e covarde?
   Possivelmente temia ficar em ridículo se começava a gritar no restaurante. Sou muito dura para isso, como já comprovará. Seu rechaço de Morte na ilha do
Paraíso não teria sido menos injusto, injustificado e ingrato, mas ao menos teria podido te dizer tudo isto à cara. E agora nem sequer posso falar contigo
por telefone. Não sente saudades; essa condenada mulher, a senhorita Blackett, serve muito bem para interceptar chamadas, já que não para outra coisa. Enfim, ao
menos isso
demonstra que inclusive você é capaz de sentir vergonha. Tem a menor ideia do que tenho feito pela Peverell Press, desde muito antes de que você tivesse nenhum
poder? E que dia desastroso para a empresa resultou esse! Tenho escrito um livro ao ano durante trinta anos, todos com boas vendas, e se o último não se vendeu como
era de esperar, quem tem a culpa? O que têm feito para promocionarme com o vigor e o entusiasmo que exige minha reputação? Hoje tenho que ir a Cambridge para assinar
exemplares. Quem convenceu à livraria para que organizasse o ato? Eu. E irei sozinha, como de costume. A maioria dos editores se preocupa de que seus autores
principais vão adequadamente acompanhados e recebam a devida atenção. Mas, em que pese a tudo, estarão meus seguidores, e comprarão. Tenho leitores fiéis que acodem
a mim para que lhes proporcione o que pelo visto nenhum outro escritor de mistério lhes proporciona: uma trama interessante, bem escrita e sem essa mescla de sexo,
violência e linguagem obscena que, conforme parece, crie que pede o público de hoje. Bem, pois não é assim. Se tiver tão pouca idéia do que realmente querem os leitores,
fará quebrar a Peverell Press até antes do que prediz o mundo editorial.
   Naturalmente, terei que estudar a melhor maneira de proteger meus interesses. Se acontecer com outro editor, penso me levar comigo meus anteriores obra; não cria
que pode me jogar pela amurada e seguir te aproveitando desse valioso material. E outra coisa: esses misteriosos percalços que se produzem na Peverell Press não
começaram até que você ocupou o cargo de diretor gerente. Eu em seu lugar iria com cuidado. Já houve duas mortes no Innocent House.
   Eu gostaria de saber se isto é também um rascunho prévio e se chegou a enviar a versão definitiva comentou Kate. Pelo general escrevia suas cartas a máquina,
mas aqui não há nenhuma cópia ao carvão. Se a jogou ao correio, possivelmente pensou que causaria mais efeito escrita à mão. Esta poderia ser a cópia.
   A carta não estava entre a correspondência que Gerard Etienne tinha em seu escritório. Eu diria que não a enviou. Em lugar disso, acudiu ao Innocent House para
falar
com ele e, vendo que não ia ser lhe possível, partiu a Cambridge para assinar livros, descobriu que o ato se suspendeu por indicação da Peverell Press,
retornou a Londres em um estado de grande indignação e decidiu ir ver o Etienne ao entardecer. Parece ser que quase todo mundo sabia que as quintas-feiras se
ficava trabalhando até a noite. É possível que telefonasse para lhe anunciar que ia para ali; bem cuidadoso, Etienne dificilmente podia impedir-lhe E se chamou
por sua linha particular, a chamada não teve que acontecer a senhorita Blackett.
   Kate observou:
   Se se levou o primeiro papel consigo, é curioso que não agarrasse também esta carta e a entregasse pessoalmente. Embora suponha que é possível que o fizesse
e que logo Etienne a rompesse ou o assassino a encontrasse e a destruíra.
   Parece-me improvável objetou Dalgliesh. Acredito mais provável que se levasse a invectiva dirigida aos sócios, possivelmente com a intenção de cravá-la no tablón
de
anúncios da sala de recepção. Desta maneira poderiam vê-la não só os sócios, mas também todos os membros do pessoal e os visitantes.
   Não acredito que a deixassem aí à vista, senhor.
   Claro que não. Mas certamente ela esperava que a vissem umas quantas pessoas antes de que chegasse a conhecimento dos sócios. "Isso ao menos provocaria certo
revôo. É provável que a invectiva só fora o primeiro golpe de sua campanha de vingança. Deveu passar umas horas muito malotes quando se inteirou de que Gerard havia
morto. Se realmente deixou a nota na sala de recepção, e talvez também o original da novela, sua presença demonstraria que tinha estado no Innocent House
aquela noite quando a maioria do pessoal já se partiu a casa. Sem dúvida esperava nossa chegada, dado que a presença da nota a convertia em um
dos principais suspeitos. Então lhe ocorre preparar um álibi com o Daisy. Mas, quando ao fim chega a polícia, não se fala para nada da nota; isso
quer dizer que, ou não compreendemos sua importância, o qual é pouco provável, ou alguém a retirou. E então a pessoa que tirou a nota do
tablón de anúncios a chama para tranqüilizá-la. E em efeito a tranqüiliza, porque Carling crie estar falando com um aliado, homem ou mulher, não com um assassino.
   Tudo encaixa, senhor. É lógico e verossímil.
   É simples conjetura de principio a fim, Kate. Não se sustentaria ante um tribunal. É uma teoria engenhosa que quadra com todos os dados que conhecemos até o
momento, mas é circunstancial.
   Só temos um detalhe que tende a corroborá-la: se Carling pendurou a falsa nota de suicídio no tablón de anúncios antes de partir do Innocent House, o
papel mostraria o rastro de uma ou mais tachinhas. Foi este o motivo de que a recortassem tão pulcramente antes de trespassá-la no corrimão?
   No escritório logo que havia nenhuma outra coisa de interesse. A senhora Carling recebia poucas cartas ou, se as recebia, destruía-as. Entre as que conservava
havia
um maço de envelopes de correio aéreo atados com uma cinta e guardados em uma das casinhas. Eram de uma amiga que residia na Austrália, uma tal Marjorie Rampton,
mas a correspondência se foi voltando cada vez mais rotineira com o passado do tempo até extinguir-se gradualmente. Além disso, havia maços de cartas
de admiradores, todas com uma cópia ao carvão da resposta unida à carta original. Era evidente que a senhora Carling se tomava consideráveis moléstias para
satisfazer a seus leitores. Na gaveta superiora do escritório havia uma pasta com o rótulo "Investimentos" que continha várias cartas de seu agente de bolsa; ao
parecer, possuía um capital de pouco mais de 32.000 libras, juiciosamente investidas em valores de primeira ordem e ações de interesse variável. Em outra pasta havia
uma cópia de seu testamento. Era um documento breve, pelo que legava uma manda de 5.000 libras à Fundação de Escritores e a um clube de escritores de mistério,
e o grosso de suas posses a amiga da Austrália. Outra pasta continha documentos relacionados com seu divórcio, que tinha tido lugar fazia quinze anos; depois de
um exame rápido, Dalgliesh viu que tinha sido um assunto duro, mas, do ponto de vista dela, não especialmente vantajoso. Os pagamentos eram pequenos e se interrompiam
com a morte do Raymond Carling, acontecida fazia cinco anos. E isso era tudo. O conteúdo do escritório confirmou o que Dalgliesh já suspeitava: aquela mulher vivia
para seu trabalho. Se o tiravam, o que ficava?
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

52
 
   Velma Pitt-Cowley, a agente literária da senhora Carling, comprometeu-se a ir ao apartamento às onze e meia, mas chegou com seis minutos de
atraso. Logo que teve cruzado a soleira, resultou evidente que não estava de muito bom humor. Quando Kate lhe abriu a porta, irrompeu na habitação a uma velocidade
que parecia dar a entender que era ela quem tinha devido esperar, deixou-se cair na primeira poltrona que encontrou e se inclinou para desprender do ombro a cadeia
dourada da bolsa e depositar sobre o tapete uma avultada carteira. Só então se dignou conceder alguma atenção ao Kate e Dalgliesh. Mas, quando o fez e seu
olhar encontrou a do Dalgliesh, seu estado de ânimo trocou sutilmente e suas primeiras palavras demonstraram que estava disposta a mostrar-se amável.
   Lamento chegar tarde e com tantas pressas, mas já sabem o que são as coisas. Tive que passar antes pelo escritório e fiquei para almoçar no Ivy à uma
menos quarto. É uma entrevista bastante importante, para falar a verdade. O escritor com o que devo me reunir veio ex-professo de Nova Iorque esta manhã. E logo
surgiram
outras coisas, como ocorre sempre que aparece a cabeça pelo escritório. Hoje em dia não lhe podem confiar a ninguém as tarefas mais singelas. Saí assim que pude,
mas
o taxista se meteu em um entupo no Theobalds Road. meu deus, que tragédia a pobre Esmé. Uma verdadeira tragédia! O que ocorreu? afogou-se ela mesma, verdade? Se
afogou, ou se enforcou, ou as duas coisas de uma vez. É terrível, seriamente.
   Depois de ter expresso a adequada consternação, a senhora Pitt-Cowley se acomodou na poltrona com maior superioridade e se recolheu a saia do distinto traje
negro quase até a entrepierna, mostrando umas pernas muito largas e bem formadas, embainhadas em umas meias tão finas que logo que davam um brilho apagado aos
pronunciados ossos. Era evidente que se vestiu com cuidado para a entrevista da uma menos quarto, e Dalgliesh se perguntou que cliente, atual ou em potência,
merecia uma elegância que combinava sabiamente a competência profissional com o atrativo sexual. Sob a jaqueta de bom corte, com sua fileira de botões de latão,
levava uma camisa de seda de pescoço alto. Um chapéu de veludo negro, atravessado por uma flecha dourada na parte dianteira, cobria-lhe a cabeleira de cor
castanho claro, atalho formando uma franja que lhe chegava justo à altura das grosas sobrancelhas e bem escovada aos lados em espessas mechas que lhe caíam
quase até os ombros. Ao falar, gesticulava; os dedos, compridos e bem providos de anéis, riscavam incessantes desenhos no ar, como se estivesse comunicando-se
com surdos, e de vez em quando lhe encolhiam os ombros em um espasmo súbito. Paradoxalmente, os gestos não pareciam guardar nenhuma relação com suas palavras,
e Dalgliesh conjeturou que essa afetação não era tanto um sintoma de nervosismo ou insegurança como um truque concebido em principio para atrair a atenção para
suas notáveis mãos, mas que tinha chegado a converter-se em um hábito inquebrável. Sua irritação inicial lhe tinha surpreso; segundo sua experiência, as pessoas
relacionadas com um assassinato espetacular, sempre que não se afligissem pela vítima nem se sentissem ameaçadas pela investigação policial, estavam acostumados
a gozar-se
na emoção indireta de seu roce com a morte violenta e a notoriedade de estar no caso. Estava acostumado a encontrar olhadas ligeiramente envergonhadas,
mas ávidas de curiosidade. O mau humor e a preocupação pelos próprios assuntos ao menos representavam uma mudança.
   A mulher percorreu a habitação com o olhar e se fixou no escritório aberto e o montão de papéis que havia sobre a mesa.
   meu deus, é muito horrível estar sentada aqui, em seu piso, e que vocês tenham que registrar suas coisas comentou. Já sei que devem fazê-lo, que é seu trabalho,
mas me produz uma sensação estranha. Parece que está mais presente agora que quando ainda vivia aqui. Tenho a impressão de que em qualquer momento vou ouvir seu
chave na fechadura e que entrará, encontrará-nos assim, sem ter sido convidados, e armará um escândalo.
   A morte violenta destrói a intimidade, temo-me respondeu Dalgliesh. Estava acostumado a armar muitos escândalos?
   A senhora Pitt-Cowley prosseguiu como se não lhe tivesse ouvido. Sabe o que seriamente eu gostaria agora? O que seriamente preciso é um bom café puro muito carregado.
Não haveria nenhuma possibilidade de consegui-lo?
   Era ao Kate a quem olhava, e foi Kate quem respondeu.
   Há um bote de café em amadureço na cozinha e uma vasilha de leite sem abrir no frigorífico.
   Estritamente falando, suponho que necessitaríamos a permissão do banco, mas duvido muito que ninguém proteste.
   Já que Kate não fazia gesto de ir para a cozinha, Velma lhe dirigiu um largo olhar especulativo, como se estivesse avaliando a possível capacidade de
chatear de uma datilógrafa nova. Logo, com um encolhimento de ombros e uma revoada de dedos, optou pela prudência.
   Será melhor deixá-lo, suponho, embora ela já não o vai necessitar, verdade? Em realidade, não posso dizer que goste de bebê-lo em uma de suas taças.
   Está claro que para nós é importante saber todo o possível a respeito da senhora Carling interveio Dalgliesh. Por isso lhe agradecemos que esteja aqui conosco
esta manhã. Sua morte deve lhe haver produzido uma comoção e compreendo que não lhe terá resultado fácil vir, mas é importante.
   A voz e o olhar da senhora Pitt-Cowley expressaram uma apaixonada intensidade.
   OH, isso já o vejo. Quero dizer que compreendo perfeitamente que devem fazer perguntas. É obvio, ajudarei-lhes no que possa. O que quer saber? Quando se
inteirou que a notícia?
   Esta manhã, pouco depois das sete, antes de que vocês me chamassem para me pedir que viesse aqui. Telefonou-me Claudia Etienne; despertou, para falar a verdade.
Não é precisamente uma notícia agradável para começar a jornada. Teria podido esperar, mas suponho que não queria que o lesse no periódico da tarde ou que
inteirasse-me ao chegar ao escritório; já sabe com que velocidade circulam os rumores nesta cidade. depois de tudo, sou a agente do Esmé, ou mas bem o era, e suponho
que Claudia pensou que devia ser primeira em sabê-lo e que correspondia a ela me dizer isso Mas Esmé suicidarse! É estranho. É o último que me esperava que
fizesse. Embora, claro, foi o último que fez. OH, Deus, sinto muito. Em um momento assim, nada do que se diz parece adequado.
   Então, surpreendeu-lhe a notícia? Não surpreende sempre? Quero dizer que, inclusive quando uma pessoa que ameaçou com suicidarse o faz de verdade, sempre
resulta surpreendente, um pouco irreal. Mas Esmé! E da maneira em que o fez, além disso; quero dizer que não é precisamente a maneira mais cômoda de ir-se.
   Claudia não parecia saber muito bem como tinha morrido. Só me disse que se pendurou do corrimão do Innocent House e que o corpo se encontrou sob o
água. afogou-se, enforcou-se ou que exatamente?
   Dalgliesh respondeu:
   É possível que a senhora Carling muriese afogada, mas não conheceremos a causa da morte até que se realize a autópsia.
   Mas foi um suicídio? Quero dizer, estão seguros disso?
   Ainda não estamos seguros de nada. Lhe ocorre alguma razão pela que a senhora Carling tivesse podido querer tirá-la vida?
   Afetou-lhe muito que a Peverell Press rechaçasse Morte na ilha do Paraíso, suponho que está informado disso. Mas estava mais zangada que deprimida. Estava
furiosa, para falar a verdade. Não me teria sentido saudades que tentasse vingar-se deles de algum jeito, mas certamente não suicidándose. Além disso, fazem falta
guelra.
Não quero dizer que Esmé fora covarde, mas..., não sei, não a vejo enforcando-se nem atirando-se ao rio. Vá forma de morrer! Se realmente queria tirá-la vida, há
maneiras mais fáceis. Note-se na Sonia Clements, por exemplo. Já sabe você o que aconteceu, naturalmente: Sonia se matou com pastilhas e álcool. É o que escolheria
eu, e houvesse dito que também Esmé.
   Mas como protesto público é menos eficaz repôs Kate.
   Não é tão espetacular, de acordo, mas do que serve um protesto público espetacular se não estar aí para ver os efeitos? Não, se Esmé tivesse querido matar-se
o teria feito na cama, com lençóis limpa, floresça no dormitório, sua melhor camisola e uma digna nota de despedida na mesinha de noite. Miúda era ela
para as aparências!
   Kate recordou as habitações de suicidas às que tinha devido acudir, o vômito, a roupa de cama suja, o cadáver rígido e grotesco, e pensou que o suicídio
estranha vez era tão digno na prática como na imaginação. Perguntou: Quando a viu por última vez?
   A última hora da tarde do dia seguinte à morte do Gerard Etienne. Deveu ser na sexta-feira quinze de outubro. Aqui ou em seu escritório? perguntou Dalgliesh.
   Aqui, nesta habitação. De fato, foi uma casualidade. Quero dizer que não tinha pensado vir a vê-la. Tinha um jantar com o Dicky Mulchester, do Herne amp; Illingworth,
para falar de um cliente, e me ocorreu que seu editorial podia estar interessada em Morte na ilha do Paraíso. Era uma possibilidade remota, mas ultimamente
agarraram a uns quantos escritores policíacos. Ao passar por aqui de caminho ao restaurante vi que havia sitio para estacionar e pensei que podia subir e lhe pedir
ao Esmé
sua cópia do original. Havia menos tráfico de que supunha e dispunha de uns dez minutos para falar com ela. Ainda não nos tínhamos visto depois da morte de
Gerard. É curioso, verdade?, o modo em que as coisas mais insignificantes decidem nossos atos. Se não tivesse visto sítio livre, não acredito que me tivesse detido.
Além disso, também me interessava conhecer a reação do Esmé ante a morte do Gerard. Claudia não me havia dito grande coisa e pensei que certamente Esmé poderia me
dar
mais detalhe. Sempre estava à corrente de todos os rumores. Embora já lhe hei dito que não podia ficar muito tempo; o motivo principal de minha visita era recolher
o manuscrito. Como a encontrou? perguntou Dalgliesh.
   A senhora Pitt-Cowley não respondeu imediatamente. Sua expressão se tornou pensativa e suas mãos inquietas se apaziguaram momentaneamente. Dalgliesh pensou que
estava
avaliando a entrevista à luz dos acontecimentos posteriores, e que possivelmente a encontrava mais significativa do que lhe tinha parecido em seu momento.
   Agora que o penso respondeu ao fim, acredito que se comportou de uma maneira mas bem estranha.
   Eu supunha que quereria falar do Gerard, de como e por que morreu, se tinha sido ou não um assassinato, mas se negou em redondo a comentá-lo. Disse que era muito
atroz e doloroso, que tinha publicado na Peverell Press desde fazia trinta anos e que, por mal que a tivessem tratado, a morte do Gerard a tinha afetado
profundamente. Bom, tinha-nos afetado a todos, mas me surpreendeu que Esmé o tirasse de um modo tão pessoal. Logo me disse que tinha um álibi para a
tarde e a noite anteriores; pelo visto, esteve todo o tempo com a filha de uma vizinha.
   Lembrança que em seu momento me pareceu um pouco estranho que se incomodasse em me contar isso depois de tudo, ninguém ia acusar a de estrangular ao Gerard com
uma serpente,
ou como quero que muriese.
   Ah, e lembrança que me perguntou se eu acreditava que os sócios trocariam de opinião a respeito Da ilha do Paraíso agora que Gerard tinha morrido. Sempre o havia
considerado o principal responsável pelo rechaço. Disse-lhe que eu não confiaria muito nisso, que certamente tinha sido uma decisão de todo o comitê de edição
e que, de todos os modos, os sócios não quereriam opor-se aos desejos do Gerard agora que estava morto. Então comentei que talvez ao Herne amp; Illingworth lhe interessaria
editá-la e lhe pedi que me emprestasse seu original. Também aí reagiu de uma maneira curiosa. Disse-me que não sabia onde o tinha. Tinha-o estado procurando essa
mesma
amanhã e não o tinha encontrado. Logo me disse que estava muito transtornada pela morte do Gerard para pensar tão logo na ilha do Paraíso. Resultou-me
difícil acreditá-lo; depois de tudo, não fazia nem dois minutos que me tinha perguntado se eu acreditava que os sócios trocariam de opinião e aceitariam a novela.
Não acredito
que tivesse o manuscrito. Ou, se o tinha, não me queria dar isso Fui pouco depois.
   Em total, estive aqui uns dez minutos. E não voltou a falar com ela?
   Não, nenhuma só vez. É estranho, agora que o penso. depois de tudo, Gerard Etienne era seu editor, e teria sido normal que viesse a meu escritório embora só
fosse conversar. Pelo general, não lhe podia tirar isso de cima. Quanto fazia que era você seu agente? Conhecia-a bem?
   menos de dois anos, em realidade. Mas sim, inclusive nesse breve período de tempo cheguei a conhecê-la bastante bem; já se encarregou ela de que assim fora. A
dizer
verdade, herdei-a. Seu anterior agente era Marjorie Rampton, que a tinha representado desde que escreveu seu primeiro livro. Disso faz trinta anos. Estavam muito
unidas.
Com freqüência está acostumado a haver uma amizade pessoal entre agente e escritor; não pode te esforçar ao máximo por um cliente se não o apreciar pessoalmente
além de
respeitar sua obra. Mas o do Marge e Esmé ia mais longe. Não me interprete mau, estou-lhe falando de amizade. Não pretendo insinuar nada..., bom, nada sexual. As
duas eram viúvas, sem filhos, e suponho que tinham muitas coisas em comum. Estavam acostumados a ir de férias juntas e acredito que Esmé pediu ao Marge que fora
seu testamento literário.
Isso vai ser um transtorno, se não trocou o testamento:
   Marge partiu a Austrália para viver com suas sobrinhas assim que me vendeu a agência e ainda segue ali, que eu saiba.
   nos fale do Esmé Carling lhe pediu Dalgliesh. Que classe de mulher era?
   meu deus, isto é horrível. O que posso lhe dizer? Parece desleal, inclusive indecoroso, criticá-la agora que morreu, mas não posso fingir que era agradável. Era
um desses clientes que constantemente estão chamando por telefone ou apresentando-se no escritório. Nunca encontram nada bem. Sempre acreditam que poderia fazer
mais
por eles, obter um adiantamento mais substancioso do editor, vender os direitos para o cinema, lhes conseguir uma série de televisão. Em minha opinião, doeu-lhe
perder
ao Marge e acreditava que eu não lhe emprestava toda a atenção que seu gênio merecia, mas em realidade lhe dedicava mais tempo de que merecia. A verdade é que tenho
outros
clientes, e a maioria deles muito mais proveitosos. Causava-lhe mais moléstias das que valia a pena tomar-se por ela? sugeriu Kate.
   A senhora Pitt-Cowley lhe dedicou um olhar especulativo e desdenhoso.
   Eu não teria utilizado essas palavras, mas, se quer saber a verdade, não me teria partido o coração que se procurou outro agente. Olhem, eu não gosto
ter que dizer isto, mas qualquer do escritório lhes dirá o mesmo. Em grande parte isso era devido à solidão: sentia falta da o Marge e lhe doía que a houvesse
abandonado. Mas Marge era uma boa peça. Na hora de escolher entre suas preciosas sobrinhas e Esmé, não teve que pensar-lhe E acredito que Esmé se dava conta de que
lhe estava esgotando o talento. moravam-se grandes problemas. Que a Peverell Press rechaçasse Morte na ilha do Paraíso só era o começo. Foi coisa
do Gerard Etienne?
   Basicamente, sim. Na Peverell Press se fazia o que Etienne queria. Mas duvido que nenhum outro sócio estivesse muito interessado em conservá-la, salvo possivelmente
James
do Witt, e Do Witt não pinta muito na Peverell. Chamei assim que recebi a carta do Gerard e armei um escarcéu, naturalmente, mas não serve de nada. E sinceramente,
a última novela não estava à altura, nem sequer a sua altura habitual. Conhece você sua obra?
   Dalgliesh respondeu com cautela.
   Ouvi-a mencionar, é obvio, mas nunca tenho lido nada dela.
   Não era tão má. Quero dizer que era capaz de escrever uma prosa coerente, e isso já é bastante estranho hoje em dia. Desde não ser assim, a Peverell Press não
haveria
publicado sua obra. Era irregular.
   Justo quando pensava: "meu deus, não posso seguir lendo este tostón", encontrava-te um fragmento realmente bom e de repente o livro cobrava vida. E havia
tido uma idéia original para seu detetive, ou seus detetives, melhor dizendo. trata-se de um matrimônio aposentado, os Mainwaring, Malcolm e Mavis. Ele é um diretor
de banco retirado e ela tinha sido professora. Estava muito bem pensado. Com o envelhecimento geral da população, chegava bem ao público; a identificação do
leitor e todo isso. Um casal de aposentados aborrecidos que se lança depois das pistas, com tempo de sobra para fazer do assassinato sua afeição; toda uma vida de
experiência
para tomar a dianteira à polícia, a sabedoria da velhice que se impõe à insensata imaturidade da juventude..., este tipo de coisas. Está bem um detetive
com um pouco de artrite, para variar. Mas começavam a cansar; os Mainwaring, quero dizer. Esmé teve a brilhante ideia de fazer que Malcolm se atasse com as suspeitas
jovens, e Mavis tinha que ir resgatar o de seus enredos. Suponho que pretendia dar um ar de amenidade, mas a coisa já resultava pentelho. Quero dizer, o sexo
geriátrico está bem se for o que a um interessa, mas o público não o quer nas novelas populares e Esmé se estava voltando cada vez mais explícita. Lingerie
fina com sangue. Não é seu mercado, realmente. Não vai com o personagem do Malcolm Mainwaring. E, é obvio, não sabia inventar argumentos. meu deus, detesto ter
que dizê-lo, mas não sabia. Há dito você que queria a verdade. Estava acostumado a roubar idéias de outros autores, só autores mortos, naturalmente, e lhes dava
seu toque pessoal.
Começava a resultar um pouco evidente. Isso foi o que deu ao Gerard Etienne a oportunidade de rechaçar Morte na ilha do Paraíso: disse que era uma leitura aborrecida
e que as únicas partes que não o eram se pareciam muito a Assassinato sob o sol, da Agatha Christie. Acredito que inclusive chegou a pronunciar a temida palavra
"plágio".
Logo, naturalmente, estava o outro problema do Esmé, que não facilitava o trato com ela.
   Velma esboçou no ar o contorno da catedral de São Pablo, com cúpula e tudo, e terminou fazendo o gesto de levar um copo aos lábios. Está dizendo
que era alcoólica?
   Ia caminho de sê-lo. Começava a lhe falhar a cabeça a partir do meio-dia. E nos últimos seis meses tinha piorado o bastante.
   Então, não ganhava muito dinheiro?
   Nunca ganhou muito dinheiro. Esmé nunca esteve na primeira divisão. Mesmo assim, ia bem até faz coisa de três anos. Podia viver de seus livros, que é mais de
o que podem dizer muitos escritores. Tinha um bom número de fiéis aficionados (1) que tinham maturado com os Mainwaring, mas à medida que foram morrendo não
atraía a leitores jovens. O ano passado se produziu um grande fagote nas vendas das edições de bolso. Temia-me que íamos perder esse contrato.
   O qual suponho que explica que vivesse neste piso comentou Kate. Não é precisamente um lugar de prestígio.
   Bem, lhe convinha. É uma moradia de amparo oficial com um aluguel baixo, quero dizer realmente baixo. Teria tido que estar louca para deixá-lo.
De fato, contou-me que estava economizando para comprar uma casita de campo nos Cotswolds ou no Herefordshire; suponho que já se via entre as rosas e as glicinias.
Pessoalmente, acredito que se teria morrido de aborrecimento. Já vi outros casos.
   Dalgliesh perguntou:
   Escrevia novelas policíacas, relatos de mistério. Parece-lhe que tivesse podido ver-se no papel de detetive aficionado, tentar resolver ela mesma um crime,
se se cruzava um em seu caminho? refere-se você a meter-se com um assassino de verdade, com quem é que matou ao Etienne?
   Teria que estar louca. Esmé não era um grande fogaréu, mas tampouco era idiota. Não digo que não se atrevesse; tinha muitas guelra, sobre tudo depois de tomar-se
um par de whiskis, mas isso teria sido uma idiotice.
   Possivelmente não acreditasse que estava tratando com o assassino. Caso que lhe tivesse ocorrido uma idéia sobre o assassinato, seria mais provável que nos expusera
isso
ou que se sentisse tentada de investigar um pouco por sua conta?
   Possivelmente se inclinasse pelo segundo, se considerava que não havia perigo e que podia tirar algum benefício do assunto. Seria todo um triunfo, não crie? Refiro-me
à publicidade que obteria:
   "Novelista de mistério avantaja ao Scotland Yard." Sim, me imagino pensando um pouco parecido. Mas insinúa você que realmente tentou fazer algo assim?
   Interessava-me saber se, a seu julgamento, tivesse podido fazê-lo.
   Digamos que não me surpreenderia. Fascinavam-lhe os crímenes da vida real, as investigações, os julgamentos por assassinato, esse tipo de coisas. Bom, só tem
que lhe jogar uma olhada a sua biblioteca. E tinha um alto conceito de sua própria inteligência. Além disso, pode que não fora consciente do risco; não acredito
que tivesse
muita imaginação, não no que se refere à vida real.
   De acordo, já sei que parece estranho dizer isso de uma novelista, mas tinha vivido tanto tempo entre assassinatos de ficção que não acredito que se desse conta
de
que os assassinatos da vida real são distintos, que não são algo que se possa controlar, converter em argumento e resolver limpamente no último capítulo. E
não chegou a ver o cadáver do Gerard Etienne, verdade? Não acredito que tivesse visto um morto em sua vida. Só podia imaginar-lhe e certamente a morte não lhe parecia
mais real e pavorosa que suas restantes imaginações. Estou indo muito longe? Quero dizer, me avise se começar a dizer os mais completos disparates.
   Realizando uma complicada manobra com as mãos, a senhora Pitt-Cowley lhe dirigiu um olhar de histriônica sinceridade que não conseguiu ocultar do todo uma penetrante
expressão inquisitiva.
   Dalgliesh se disse que não devia subestimar sua inteligência.
   Não são disparates lhe assegurou. O que ocorrerá agora com seu último livro?
   Bom, não acredito que a Peverell Press queira aceitá-lo. Seria distinto, é obvio, se Esmé tivesse morrido assassinada: um dobro assassinato, editor e autora brutalmente
eliminados em menos de quinze dias. Contudo, inclusive o suicídio tem um valor publicitário, sobre tudo se for espetacular.
   Suponho que poderei negociar um contrato satisfatório com alguém.
   Dalgliesh se sentiu tentado de dizer: "É uma lástima que já não exista a pena de morte em nosso país. Poderia fazer-se coincidir a data de publicação com
a da execução."
   Como se lhe tivesse lido o pensamento, a senhora Pitt-Cowley pareceu sobressaltar-se por uns instantes, mas em seguida se encolheu de ombros e prosseguiu:
   Pobre Esmé. Se realmente teve a brilhante ideia de obter publicidade gratuita, não cabe dúvida que o conseguiu. Lástima que não possa aproveitá-la. Mas é uma
sorte para seus herdeiros.
   "E para ti também", pensou Kate. Sabe quem herdará seu dinheiro? perguntou-lhe.
   Não, nunca me disse isso. Como já lhes expliquei, Marge era seu testamento, ou um de seus testamentos.
   Mas me alegra poder dizer que em nenhum momento sugeriu me transpassar esse privilégio quando me fiz cargo da agência. Claro que tampouco o tivesse aceito.
Fiz muito pelo Esmé, mas tudo tem seus limites. Sinceramente, não se fazem vocês ideia do que exigem muitos autores: lhes buscar encargos, fazê-los aparecer em
reuniões da televisão, lhe dar de comer ao gato quando se vão de férias, lhes agarrar da mão quando se divorciam... Por dez por cento das vendas nacionais
pretendem que seja seu agente, sua enfermeira, seu confidente, seu amiga, tudo. O que sim sei é que não tinha família; seu ex-marido tem uma filha e netos não sei
onde,
no Canadá, parece-me, embora não acredito que Esmé lhes tenha deixado nada. Mas tem que haver algum dinheiro, disso não cabe dúvida, e eu diria que o receberá Marge.
Ao
melhor posso negociar uma reedição de suas primeiras novelas.
   Uma cliente proveitosa, a fim de contas observou Dalgliesh. depois de morta, já que não em vida.
   Bem, a vida tem estas coisas, não?
   E com este comentário a modo de conclusão, a senhora Pitt-Cowley consultou seu relógio e se inclinou para recolher a bolsa e a carteira.
   Mas Dalgliesh ainda não estava disposto a deixá-la partir.
   Suponho que a senhora Carling lhe contaria o da suspensão de sua sessão de assinatura de livros em Cambridge comentou. Que se me contou isso! De fato, chamou-me
desde
a livraria. Tentei falar com o Gerard Etienne, mas suponho que estaria almoçando. Logo, pela tarde, pu-me em contato com ele. Esmé estava absolutamente raivosa
e não dizia mais que incoerências. Quero dizer autênticas incoerências. E com toda a razão, é obvio. A Peverell Press tem muitas explicações que dar.
Senti-o pela gente da livraria, porque Esmé se desafogou com eles, embora dificilmente lhes pode jogar a culpa. Como máximo, suponho que se poderia aduzir
que tivessem devido chamar a Peverell Press assim que receberam o fax para assegurar-se de que não era uma brincadeira, e provavelmente o teriam feito se a editorial
não tivesse mantido tão em segredo os problemas que estava tendo. Quando chegou o fax, o diretor tinha saído, e a garota que o recebeu supôs que a coisa
ia a sério. Bem, e isso é certo no sentido de que procedia da Peverell Press. Para tranqüilizar ao Esmé, prometi-lhe que eu mesma me ocuparia de esclarecer
as coisas com o Gerard, e o teria feito de não ser pelo assassinato. Isso situou as queixa do Esmé em outra perspectiva. Ainda tenho intenção de discutir o assunto
com
a empresa, mas há um momento e um lugar para cada coisa. Posso ir já? Não quero chegar tarde à entrevista.
   Só ficam por fazer umas poucas perguntas respondeu Dalgliesh. Qual era sua relação com o Gerard Etienne? refere-se a minha relação profissional?
   Sua relação.
   Velma Pitt-Cowley permaneceu uns instantes em completo silêncio. Viram-na sorrir levemente, com uma expressão que era de uma vez lúbrica e rememorativa. Por
fim disse:
   Era profissional. Suponho que falávamos por telefone um par de vezes ao mês, por término médio. Quando morreu, fazia uns quatro meses que não nos víamos. Uma
vez me deitei com ele. Foi faz coisa de um ano. Os dois assistimos a uma festa no rio. Os dois ficamos até o amargo final. Era quase meia-noite e eu estava
bastante bebida. Ao Gerard a bebida não ia, não suportava perder o controle. ofereceu-se a me levar a casa e a noite terminou da maneira habitual. Não voltou para
acontecer. Algum dos dois o teria desejado? interveio Kate.
   Acredito que não. Ao dia seguinte me mandou um buquê de flores espetacular. Gerard não era precisamente sutil, mas suponho que sempre é melhor que deixar cinqüenta
libera na mesinha de noite. Não, eu não queria que se repetisse; tenho um saudável instinto de conservação e não vou por aí convidando a que me rompam o coração.
Mas acreditei que devia mencioná-lo. Na festa havia muita gente que pôde adivinhar como terminaria a noite. Sabe Deus como se divulgam estas coisas, mas sempre
acabam sabendo-se. Se por acaso lhes interessa, os acontecimentos dessa noite e, sobre tudo, os da manhã seguinte que recordo com maior claridade, deixaram-me bem
disposta para ele e não ao contrário. Mas não tão bem disposta para propiciar um segundo encontro. Suponho que quererão me perguntar onde estava a noite
em que morreu.
   Dalgliesh respondeu com expressão grave:
   Seria-nos útil sabê-lo, senhora Pitt-Cowley.
   É curioso, mas estive naquela leitura de poesia em que participou Gabriel Dauntsey, no Connaught Arms. Parti-me pouco depois de que ele terminasse sua intervenção.
Tinha ido em companhia de um poeta, ou de alguém que se faz chamar poeta, e ele queria ficar, mas eu já estava farta de ruído, cadeiras incômodas e fumaça de tabaco.
A essas alturas todo mundo tinha bebido bastante e a festa não dava sinais de terminar. Parti-me por volta das dez, acredito, e voltei diretamente para casa em meu
carro,
assim não tenho álibi para o resto da noite. E ontem à noite? Quando morreu Esmé? Mas se foi um suicídio, você mesmo o há dito.
   Seja qual for a maneira em que morreu, é útil saber onde estava a gente nesse momento.
   Mas se não saber quando morreu. Estive no escritório até as seis e meia e logo parti a casa. Passei toda a noite em casa, e sozinha. É isso o que queria saber?
Olhe, comandante, seriamente tenho que ir.
   Dalgliesh a reteve.
   As duas últimas perguntas. Sabe quantas cópias havia do original de Morte na ilha do Paraíso, e se a da senhora Carling tinha algum rasgo distintivo?
   Acredito que haveria umas oito em total. Tive que enviar cinco a Peverell Press, uma para cada um dos sócios. Não sei por que não podiam fotocopiar o manuscrito
eles mesmos, mas o queriam assim. Eu só tinha um par de cópias. Esmé sempre se fazia encadernar sua cópia em azul celeste. Um original encadernado não resulta
muito prático para trabalhar; de fato, é uma maldita moléstia. Os editores e os corretores preferem receber o manuscrito grampeado por capítulos ou com as folhas
completamente soltas. Mas Esmé sempre se fazia encadernar sua exemplar.
   E quando deveu ver à senhora Carling nos dia quinze de outubro, a tarde seguinte à morte do Gerard Etienne, deu-lhe a impressão de que se sentia reacia
a lhe entregar seu original e que por isso fingia, possivelmente, não saber onde estava, ou mas bem de que em realidade já não se achava em sua posse?
   A senhora Pitt-Cowley, como se reconhecesse a importância da pergunta, demorou algum tempo em responder. Como posso sabê-lo? disse ao fim. Mas lembrança que
minha petição a desconcertou. Acredito que estava turvada. E, a verdade, não me ocorre como tivesse podido perder de vista o manuscrito; não estava acostumado a
tratar com descuido
as coisas que eram importantes para ela, e tampouco é que o piso seja tão grande. Além disso, nem sequer se incomodou em buscá-lo. Postos a fazer conjeturas, eu
diria
que já não tinha o manuscrito em seu poder.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

53
 
   Quando retornaram ao carro, Dalgliesh anunciou:
   Conduzirei eu, Kate.
   Ela ocupou o assento da esquerda e se grampeou o cinturão sem dizer nada. Gostava de conduzir e sabia que o fazia bem, mas quando Dalgliesh, como era
o caso, decidia encarregar-se ele mesmo, agradava-lhe sentar-se a seu lado em silêncio e contemplar de vez em quando as mãos fortes e sensíveis que se apoiavam ligeiramente
sobre o volante. Enquanto cruzavam a ponte do Hammersmith lhe dirigiu um fugaz olhar de soslaio e viu em seu rosto uma expressão que conhecia muito bem: um ensimismamiento
reservado e severo, como se estivesse suportando com estoicismo alguma dor pessoal. Quando entrou em formar parte de sua equipe, Kate acreditava que essa expressão
era
de ira controlada, e lhe assustava a mordida repentina de frio sarcasmo que, suspeitava, era uma de suas defesas contra a falta de controle e que seus subordinados
tinham chegado a temer. No transcurso das últimas duas horas e meia tinham obtido informação vital e Kate, embora se sentia impaciente por conhecer a reação
do Dalgliesh, guardava-se bem de romper o silêncio. Ele conduzia tranqüilo, com a acostumada competência, e resultava difícil acreditar que parte de sua mente estivesse
em outro lugar. Preocupava-lhe possivelmente a vulnerabilidade da menina, enquanto repassava mentalmente suas declarações? Reprimia asperamente sua indignação pela
barbárie
premeditada da morte do Esmé Carling, uma morte que agora sabiam tinha sido assassinato?
   Em outros oficiais de fila superiora, essa expressão de reserva severo tivesse podido refletir ira ante a incompetência do Daniel. Se Daniel lhe tivesse tirado
à menina a verdade do ocorrido aquela quinta-feira de noite, possivelmente Esmé Carling ainda seguiria convida. Mas realmente podia considerar-se incompetência?
Tanto Carling
como a menina tinham referido a mesma história, e era uma história convincente. Os meninos estavam acostumados a ser boas testemunhas e poucas vezes mentiam. Se
lhe tivesse correspondido
a ela entrevistar ao Daisy, o teria feito melhor? O teria feito melhor esta manhã, de não ter estado Dalgliesh presente? Duvidava muito que Dalgliesh pronunciasse
nenhuma palavra de recriminação, mas isso não impediria que Daniel o reprovasse a si mesmo. Kate se alegrava de todo coração de não achar-se em sua pele.
   Tinham deixado atrás a ponte do Hammersmith quando Dalgliesh falou por fim.
   Acredito que Daisy nos há dito tudo o que sabia, mas as omissões são uma frustração, verdade? Uma só palavra mais e tudo seria muito distinto. A serpente estava
ante a porta. Que porta? Ouviu uma voz. Masculina ou feminina? Alguém levava uma aspiradora. Homem ou mulher?
   Mas ao menos não temos que nos apoiar na inverossimilhança dessa nota de suicídio para estar seguros de que foi um assassinato.
   Daniel estava trabalhando no centro de operações instalado na delegacia de polícia do Wapping. Kate, ante o embaraçoso da situação, tivesse querido deixá-lo a
sós com o Dalgliesh, mas era difícil fazê-lo sem que a estratagema resultasse muito evidente. Dalgliesh resumiu em poucas palavras o resultado de suas visitas
dessa manhã. Daniel ficou em pé. Sua reação, que ao Kate fez pensar em um detento disposto a escutar a sentença, pareceu instintiva. O rosto vigoroso
de seu companheiro estava muito pálido.
   Sinto muito, senhor. Tivesse devido desmontar esse álibi. Foi um grave engano.
   Um engano desventurado, sem dúvida.
   Deveria dizer, senhor, que o sargento Robbins não ficou convencido. Do primeiro momento teve a sensação de que Daisy mentia e tivesse querido pressioná-la
mais.
   Dalgliesh comentou:
   Com os meninos alguma vez resulta fácil, verdade? Se tivesse que produzir um enfrentamento de vontades entre o Daisy e o sargento Robbins, não sei se não apostaria
pelo Daisy.
   Ao Kate pareceu interessante que Robbins não se confiou da menina. Pelo visto, era capaz de combinar sua crença na nobreza essencial do homem com
a relutância a acreditar algo que dissesse uma testemunha. Possivelmente, posto que era religioso, estava mais disposto que Daniel a acreditar no pecado original.
De todos
modos, tinha sido generoso por parte do Daniel mencionar sua incredulidade; generoso e, possivelmente, ficando cínica e conhecendo chefe, também prudente.
   Como obstinadamente resolvido a ficar no pior, Daniel acrescentou:
   Mas se não me tivesse convencido, Esmé Carling ainda estaria viva.
   Pode ser. Não se deixe dominar muito pela culpa, Daniel. A pessoa responsável pela morte do Esmé Carling é a pessoa que a matou. O que se sabe da
autópsia? Algo inesperado?
   Morte por inibição vagal, senhor. Morreu assim que lhe apertaram a correia em torno do pescoço.
   Quando a meteram na água já estava morta.
   Bem, ao menos foi rápido. E a lancha? houve notícias da Ferris?
   Sim, senhor, e boas. Ao Daniel lhe iluminou a cara. encontrou algumas fibras minúsculas de tecido enganchados em uma lasca do chão da cabine.
São de cor rosa, senhor. A vítima levava uma jaqueta de tweed rosa e mostarda. Com um pouco de sorte, o laboratório poderá estabelecer uma identificação.
   olharam-se uns aos outros. Kate se deu conta de que todos experimentavam a mesma euforia contida. Uma pista física ao fim, algo que podia etiquetar-se, medir-se,
analisar-se cientificamente, apresentar-se como prova ante um tribunal. Já sabiam pelo Fred Bowling que Esmé Carling não tinha estado na lancha do verão anterior.
Se as fibras coincidiam, teriam uma prova de que a tinham matado na lancha. E se era assim, quem a tinha deslocado logo até o outro lado dos degraus?
Quem, se não o assassino?
   Dalgliesh observou:
   Se as fibras coincidirem, poderemos demonstrar que Carling esteve ontem de noite na cabine da lancha. A inferência óbvia é que morreu ali. Certamente,
é um plano judicioso por parte do assassino: pôde esperar com o cadáver oculto até que não houvesse ninguém no rio e escolher o momento de atá-la ao corrimão
sem ser observado. Mas, embora as fibras a relacionem com a lancha, isso não significa que também a relacionem com o assassino. Teremos que recolher os casacos
e jaquetas de todos quão suspeitos estiveram na cena do crime e enviá-los ao laboratório. Encarregará-se você de fazê-lo, Daniel? Inclusive os do Mandy
Price e Bartrum?
   Todos.
   Agora só nos falta encontrar o menor rastro de fibra rosa em alguma das jaquetas interveio Kate.
   Não só isso objetou Dalgliesh. Há uma complicação, Kate: quase todos poderão alegar que se ajoelharam junto ao cadáver do Esmé Carling, inclusive que o tocaram.
A presença de uma fibra em sua roupa pode explicar-se de mais de uma maneira.
   Daniel acrescentou: E o que apostamos a que esse assassino sabia condenadamente bem o que estava fazendo? Estou seguro de que se tirou a jaqueta antes de aproximar-se
a sua vítima e logo se assegurou condenadamente bem de que estava limpo.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

54
 
   Mandy tinha intenção de chegar cedo ao trabalho à manhã seguinte, mas, com grande assombro por sua parte, ao despertar descobriu que tinha dormido muito
e que já eram as nove menos quarto. E muito provavelmente teria seguido dormindo se Maureen e Mike não se encetaram em uma de suas discussões sobre a
disponibilidade e o estado do quarto de banho; como de costume, Maureen gritava do alto da escada e Mike lhe respondia vociferando da cozinha. Ao
cabo de um minuto soou um golpe na porta de seu dormitório, seguido imediatamente da irrupção do Maureen. Estava claro que tinha um de seus dias maus.
   Mandy, essa puñetera moto que tem ocupa toda a entrada. por que não a deixa no pátio dianteiro como faz todo mundo?
   Era uma queixa perene. A indignação despertou ao Mandy imediatamente.
   Porque algum gilipollas me roubaria isso, por isso a coloco dentro. E a moto fica dentro.
   Logo acrescentou mal-humorada: Suponho que é muito esperar que o quarto de banho esteja livre.
   Está livre, se não te importar que pareça uma mierda. Mike o deixou asqueroso, como sempre. Se quer te banhar, terá que limpá-lo você mesma. E ainda por cima
esqueceu-se de que esta semana tocava a ele comprar papel higiênico. Não sei por que sempre tenho que ser eu a que pense em tudo e faça todo o trabalho nesta
casa.
   Evidentemente, ia ser um desses dias. Nem Maureen nem Mike estavam em casa quando Mandy chegou a noite anterior. Tinha subido a deitar-se, embora tinha tentado
permanecer acordada, atenta ao ruído da porta, desejosa de lhes explicar o acontecido. Mas não tinha podido ser. em que pese a seus esforços, dormiu-se. E antes
de estar vestida ouviu duas violentas portadas em rápida sucessão.
   partiram-se, e Maureen nem sequer se incomodou em lhe perguntar por que não tinha voltado para pub.
   As coisas não melhoraram quando chegou ao Innocent House. Esperava ser primeira em dar a notícia, mas isso já era impossível. Os sócios tinham chegado todos cedo.
George, que estava ocupado atendendo uma chamada, dirigiu-lhe uma desesperada olhar de súplica ao vê-la entrar, como se qualquer ajuda tivesse que ser bem recebida.
Era evidente que a notícia se estendeu além do Innocent House.
   Sim, temo-me que é verdade... Sim, parece que se trata de um suicídio... Não, lamento-o mas não conheço os detalhes... Ainda não sabemos como morreu... Sinto
muito...
Sim, veio a polícia... Sinto muito... Não, a senhorita Etienne não pode ficar neste momento... Não, o senhor Do Witt tampouco está livre. Se quiser que lhe chame
algum deles... Não, sinto muito. Não sei quando estarão disponíveis.
   Pendurou o auricular e comentou:
   Um dos autores do senhor Do Witt. Não sei como se inteirou da notícia. Possivelmente chamou a publicidade e Maggie ou Amy o hão dito. A senhorita Etienne
encarregou-me que diga o menos possível, mas não é fácil. A gente não se dá por satisfeita com o que eu lhes digo.
   Querem falar com algum dos sócios.
   Mandy replicou:
   Eu não perderia o tempo com eles. lhes diga: "equivoca-se de número", e pendure. Se insistir, já verá como em seguida se cansam.
   O salão estava vazio. A casa parecia extrañamente distinta, extrañamente silenciosa, como se estivesse de luto. Mandy esperava encontrar-se à polícia na
escritório, mas não havia nenhum sinal de sua presença. Em seu escritório, a senhorita Blackett se achava sentada ante o ordenador, olhando a tela como se estivesse
hipnotizada. Mandy nunca a tinha visto tão piorada: estava muito pálida e seu rosto parecia haver-se convertido de repente no de uma anciã.
   Mandy lhe perguntou: encontra-se você bem? Tem muito má cara.
   A senhorita Blackett se esforçou por manter a dignidade e o domínio de si.
   Pois claro que não me encontro bem, Mandy. Como vai encontrar se bem algum de nós?
   É a terceira morte que se produz em dois meses. É espantoso. Não sei o que lhe está ocorrendo à empresa. Desde que morreu o senhor Peverell, nada voltou para
ir bem na Peverell Press. E sente saudades que possa estar tão animada; depois de tudo, encontrou-a você.
   Parecia com o bordo do pranto. Mas havia algo mais: a senhorita Blackett tinha medo. Mandy quase podia cheirar seu terror.
   Sim, bom, lamento que tenha morrido, claro respondeu com desassossego. Mas não é quão mesmo se a conhecesse, verdade? E além disso, já era velha. E o fez ela
mesma. Foi sua eleição.
   Devia querer morrer. Quero dizer que não é como a morte do senhor Gerard.
   A senhorita Blackett, com o rosto avermelhado, exclamou: Não era velha! E o que se o era? Os velhos têm tanto direito a viver como você!
   Não hei dito que não o tenham.
   É o que deste a entender. Deveria pensar mais antes de falar, Mandy. Há dito que era velha e que sua morte não tinha importância.
   Não hei dito que não tivesse importância.
   Mandy tinha a sensação de estar afundando-se em um redemoinho de emoções irracionais que não podia compreender nem controlar. E naquele momento se deu conta
de que a senhorita Blackett estava a ponto de romper a chorar. Experimentou um grande alívio quando se abriu a porta e entrou a senhorita Etienne.
   Ah, está aqui, Mandy. Não sabíamos se lhe veríamos hoje. Encontra-te bem?
   Sim, obrigado, senhorita Etienne.
   Parece ser que a semana que vem andaremos bastante escassos de pessoal. Suponho que você também quererá partir assim que se desvaneça a emoção inicial.
   Não, senhorita Etienne, eu gostaria de ficar. E em um brilho de inspiração financeira, acrescentou: Se parte do pessoal partir e terá que fazer mais trabalho,
acredito
que me corresponderia um aumento de salário.
   A senhorita Etienne lhe dirigiu um olhar que ao Mandy pareceu mais cínica e divertida que de desaprovação. Depois de uma pausa de uns segundos, respondeu:
   Muito bem. Falarei com a senhora Crealey. Dez libras mais por semana. Mas o aumento não é uma recompensa por não partir. Não subornamos ao pessoal para que
trabalhe na Peverell Press nem cedemos à chantagem. Receberá-o porque seu trabalho o merece. voltou-se para a senhorita Blackett. É provável que esta tarde venha
a polícia. Pode que queiram utilizar outra vez o despacho do senhor Gerard, quer dizer, meu escritório. De ser assim, instalaria-me no piso de acima com a senhorita
Frances.
   Quando se teve retirado, Mandy perguntou: por que não pede você também um aumento? Teremos uma sobrecarga de trabalho se não contratarem a alguns substitutos,
e isso pode levar algum tempo. É o que dizia você antes: três mortes em dois meses. A gente o pensará duas vezes antes de aceitar um emprego aqui.
   A senhorita Blackett tinha começado a teclar, a vista fixa em sua caderneta de taquigrafia.
   Não, obrigado, Mandy. Eu não me aproveito de meus chefes em sua hora de necessidade. Tenho alguns princípios.
   Ah, bem, suponho que pode permitir-lhe me parece que se estiveram aproveitando de você durante veintitantos anos, mas, enfim, você verá. vou telefonar
à senhora Crealey e logo farei o café.
   Mandy tinha tentado falar com a senhora Crealey antes de sair de casa, mas sua chamada não tinha obtido resposta. Esta vez sim a obteve, e Mandy deu a
notícia sucintamente, ateniéndose aos fatos diretos e omitindo toda referência a suas próprias emoções. Em presença da senhorita Blackett, que escutava
com repressiva desaprovação, era prudente ser o mais breve e desapaixonada possível. Os detalhes podiam esperar até sua sessão da tarde no ninho.
   pedi um aumento lhe anunciou. Pagarão-me dez libras mais por semana. Sim, isso mesmo pensei eu. Não, hei dito que ficaria. Esta tarde irei à agência
assim que termine de trabalhar e já falaremos.
   Pendurou o auricular. Era um sintoma do estranho humor da senhorita Blackett, pensou, que se tivesse abstido de lhe recordar que não devia utilizar o telefone
do escritório para suas chamadas pessoais.
   Na cozinha encontrou mais gente da que normalmente estava acostumado a haver antes das dez. Os empregados que preferiam preparar-se seu café da manhã antes que
pagar
um tanto semanal pela beberagem do mesmo nome que servia a senhora Demery, poucas vezes apareciam até passadas as onze. Mandy se deteve ante a porta e ouviu
o rumor amortecido de várias vozes. Quando abriu, o bate-papo se interrompeu imediatamente e todos voltaram a cabeça com expressão culpado, mas ao ver que era
ela a receberam com alívio e uma aduladora atenção. A senhora Demery estava ali, naturalmente, e também Emma Wainwright, a anoréxica ex-secretária pessoal
da senhorita Etienne, que agora trabalhava para a senhorita Peverell, junto ao Maggie FitzGerald e Amy Holden de publicidade, o senhor Elton de direitos e contratos,
e Dave, do armazém, que pelo visto tinha vindo do número 10 com a desculpa pouco convincente de que no armazém se ficaram sem leite. percebia-se um
intenso aroma de café e alguém se preparou umas torradas. Na cozinha reinava um acolhedor ambiente de conspiração, mas inclusive ali Mandy notou a presença
do medo.
   Acreditávamos que possivelmente não viria comentou Amy. Pobre Mandy! Teve que ser horroroso; eu me teria morrido ali mesmo. Se houver um cadáver na casa, seguro
que você
encontra-o. Vamos, conta. afogou-se, enforcou-se, ou o que? Nenhum dos sócios quer nos dizer nada.
   Mandy teria podido mencionar que não foi ela quem encontrou o corpo do Gerard Etienne, mas se limitou a relatar os acontecimentos da noite anterior. Sem
embargo, ainda não tinha terminado quando se deu conta de que os estava decepcionando. Tinha esperado com impaciência esse momento, mas, agora que era o centro de
sua curiosidade, sentia-se extrañamente reacia a satisfazê-la, quase como se houvesse algo indecoroso em converter a morte da senhora Carling em tema de fofoca.
A imagem daquele rosto morto e empapado, a maquiagem disolvida pela água de maneira que parecia nua e indefesa em sua fealdade, flutuava entre ela e seus
ávidos ouvintes. Mandy não conseguia compreender o que lhe acontecia, por que suas emoções tinham que ser tão confusas, tão desazonadoras em sua perplexidade. O
que lhe havia
dito à senhorita Blackett era verdade: nem sequer conhecia a senhora Carling. O que experimentava não podia ser aflição. Por outro lado, não tinha motivos para
sentir-se culpado. Que sentimento era, pois, que a embargava?
   A senhora Demery permanecia inexplicavelmente calada. Estava dispondo taças e pratos em seu carrinho, sem dizer nada, mas seus ojillos penetrantes se moviam
com rapidez de rosto em rosto como se cada um deles encerrasse um segredo que um instante de descuido lhe impediria de vislumbrar. Leíste a nota de suicídio,
Mandy? perguntou Maggie.
   Não, mas o senhor Do Witt a leu em voz alta. Devia dizer que os sócios se levaram muito mal com ela e que pensava lhes pagar com a mesma moeda. "Farei
que seus nomeie emprestem", acredito que dizia. Não me lembro muito bem.
   Você a conhecia melhor que muitos, Maggie interveio o senhor Elton. Fez aquela grande gira de publicidade com ela faz uns dezoito meses. Como era?
   Não causava problemas. Entendia-me muito bem com o Esmé. Às vezes era um pouco exigente, mas tenho feito gira muito piores. E se interessava por seus leitores;
nada o
parecia muita moléstia.
   Sempre tinha uma palavra amável quando faziam fila para lhe pedir que lhes assinasse um livro, e escrevia o que eles queriam, toda classe de mensagens pessoais.
Não era como Gordon Holgarth. Quão único obtêm dele é uma assinatura mau feita, uma careta de desdém e uma baforada de fumaça de charuto na cara. Crie que era
do tipo suicida? Há um tipo suicida? Não sei muito bem o que significam estas palavras. Mas se quer saber se me surpreendeu que se matasse, a resposta é sim.
Surpreendeu-me. E muito.
   A senhora Demery falou por fim.
   Se é que se matou.
   Teve que fazê-lo, senhora Demery. Deixou uma nota.
   Uma nota muito curiosa, se Mandy a recordar bem. Teria que lhe jogar uma olhada para ficar convencida. E o que está claro é que a polícia não o está. Por
que razão se levaram a lancha, se não? Por isso nos trouxeram em táxi desde a Charing Cross esta manhã, em lugar de vir na lancha? perguntou Maggie. Acreditava
que se tinha quebrado. Fred Bowling não há dito nada da polícia quando veio a nos buscar.
   Terão-lhe ordenado que não fale, suponho. Mas vá se a levaram: vieram esta manhã a primeira hora e a levaram a reboque. Figurava-me que
tinham-no feito antes de chegar eu, assim que o perguntei. Agora a têm na delegacia de polícia do Wapping.
   Maggie estava jogando água fervendo sobre os grãos de café, mas se interrompeu com a chaleira no ar. Quer dizer, senhora Demery, que a polícia acredita que
a senhora Carling foi assassinada?
   Não sei o que crie a polícia. Sei o que acredito eu, e Esmé Carling não era das que se suicidan. Ela não.
   Emma Wainwright estava sentada em um extremo da mesa, agarrando com seus dedos largos e esqueléticos uma taça de café. Não tinha feito nenhum tento por beber-lhe
Claro que puede evitarlo: sólo lo hace para molestar a los demás. Y ha sido ella la que ha empezado. Me ha llamado la Mecanógrafa de la Muerte. Yo no traigo la
mas sim contemplava o tênue redemoinho de espumeante leite como hipnotizada pela repugnância.
   Naquele momento elevou o olhar e comentou, com sua voz áspera e um tanto gutural:
   É o segundo cadáver que encontra desde que chegou ao Innocent House, Mandy. até agora, nunca tínhamos tido esta aula de problemas. Acabarão te chamando
a Datilógrafa da Morte. Se seguir assim, será-te difícil encontrar outro emprego.
   Mandy, enfurecida, cuspiu sua réplica.
   Não tão difícil como a ti. Pelo menos eu não pareço recém saída de um campo de concentração. Teria que verte. Dá pena.
   Durante uns segundos houve um silêncio horrorizado. Seis pares de olhos se voltaram rapidamente para a Emma e se apartaram imediatamente. Ela seguia sentada,
muito
quieta, e de repente se levantou médio cambaleando-se e arrojou a taça de café contra a pia, ao outro lado do quarto, onde se fez pedacinhos com um ruído espetacular.
Continuando, emitiu um gemido agudo, prorrompeu em pranto e saiu a toda pressa da cozinha. Amy lançou um gritito e se enxugou uma salpicadura de café quente
da bochecha.
   Maggie estava escandalizada.
   Não tivesse devido dizer isso, Mandy. foi uma crueldade. Emma está doente. Não pode evitá-lo.
   Claro que pode evitá-lo: só o faz para incomodar a outros. E foi ela a que começou. Chamou-me a Datilógrafa da Morte. Eu não trago a
má sorte. Não tenho a culpa de ter encontrado os cadáveres.
   Amy olhou ao Maggie. Crie que deveria ir com ela?
   Será melhor que a deixemos em paz. Já sabe como é. Está doída porque a senhorita Claudia tomou ao Blackie como secretária pessoal em lugar da ela. Já
há-lhe dito à senhorita Claudia que quer ir-se quando terminar esta semana. Em minha opinião, o que lhe acontece é que está assustada. E não sei se o reprovo.
   Rasgada entre uma colérica necessidade de justificar-se e um remorso que resultava tão mais desagradável quanto que muito poucas vezes o experimentava, Mandy
teve a sensação de que também lhe aliviaria atirar os pratos contra a parede e tornar-se a chorar. O que estava ocorrendo a todos, ao Innocent House, a
ela mesma? Era isso o que a morte violenta os fazia às pessoas? Tinha suposto que o dia seria agradavelmente emocionante, cheio de interessantes conversa
e conjeturas, e que ela se converteria no centro de toda a atenção. Em troca, tinha sido um inferno do primeiro momento.
   abriu-se a porta e entrou a senhorita Etienne.
   Maggie, Amy e Mandy, há trabalho por fazer disse com frieza. Se não terem intenção de fazê-lo, seria melhor que o dissessem francamente e lhes partissem a casa.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

55
 
   Dalgliesh havia dito que queria ver todos os sócios às três na sala de juntas e que a senhorita Blackett devia estar com eles. Ninguém opôs nenhuma
objeção à convocatória nem à presença da secretária. Do mesmo modo, sem protestos nem perguntas, entregaram os objetos que levavam postas no momento
em que se encontrou o cadáver do Esmé Carling. Embora, naturalmente, pensou Kate, eram pessoas inteligentes; não precisavam perguntar o porquê. A inspetora refletiu
no fato de que nenhum deles tivesse solicitado a presença de um advogado e se perguntou se temiam que a petição resultasse sospechosamente prematura, se
consideravam-se capazes de cuidar eles mesmos de seus próprios interesses ou se os fortalecia o saber se inocentes.
   Dalgliesh e ela se sentaram no mesmo lado da mesa, frente à senhorita Blackett e os sócios. Durante seu anterior encontro na sala de juntas, depois de
a morte do Gerard Etienne, Kate tinha percebido neles uma mescla de emoções: curiosidade, consternação, pesar e apreensão.
   Agora tão somente advertia medo. Era como uma infecção. Parecia que o contagiassem uns aos outros, impregnando inclusive o ar da habitação. Entretanto,
quão única o manifestava exteriormente era a senhorita Blackett. Dauntsey, com um aspecto muito envelhecido, sentou-se com a resignação de um paciente em espera
de ser ingressado em um geriátrico. Do Witt se situou junto ao Frances Peverell; sob as grossas pálpebras, seu olhar permanecia atenta e vigilante. A senhorita
Blackett estava sentada no bordo da cadeira, com a concentração tremente de um animal apanhado. Tinha o rosto muito branco, mas umas manchas febris o
cobriam de vez em quando as bochechas e a frente como se se tratasse do açoite de uma enfermidade. Frances Peverell mantinha as facções em tensão e se passava
a língua pelos lábios. Claudia Etienne, que tinha tomado assento a seu lado, era a mais composta: a via tão elegante como sempre. Kate observou que se havia
aplicado a maquiagem a consciência e se perguntou se o teria feito como um gesto de desafio ou como um pequeno mas valoroso intento de impor normalidade no
caos psicológico do Innocent House.
   Dalgliesh depositou sobre a mesa a última mensagem do Esmé Carling, agora envolto em uma capa de plástico, e o leu de principio a fim com voz quase inexpressiva.
Ninguém abriu a boca. Logo, sem fazer nenhum comentário sobre o que acabava de ler, disse em tom cometido:
   Temos motivos para acreditar que a senhora Carling veio ao Innocent House durante a tarde em que se produziu a morte do senhor Etienne.
   Claudia falou com voz aguda. Que Esmé veio aqui? por que?
   É de supor que para ver seu irmão. Tão inverossímil o encontra? No dia anterior se inteirou de que a Peverell Press rechaçava sua última novela
e aquela mesma manhã a primeira hora tinha tentado falar com o senhor Etienne, mas a senhorita Blackett o impediu. Estava reunido! protestou Blackie. Não
pode-se interromper uma reunião de sócios! Tenho instruções estritas de não lhes passar nem sequer as chamadas telefônicas urgentes.
   Ninguém lhe joga a culpa, Blackie a cortou Claudia, impaciente. Fez você bem em não deixá-la passar.
   Dalgliesh prosseguiu como se não tivesse havido nenhuma interrupção.
   Ao sair destes escritórios se foi diretamente à estação da rua Liverpool e, ao chegar a Cambridge para assinar seus livros, descobriu que o ato se havia
suspenso a conseqüência de um fax enviado daqui. Era provável que voltasse tranqüilamente para casa e não fizesse nada?
   Vocês a conheciam. Não lhes parece muito mais provável que viesse aqui e tentasse de novo expor seus queixa ao senhor Etienne em um momento em que pudesse
encontrá-lo a sós, sem o amparo de sua secretária? Ao parecer não era nenhum secreto que as quintas-feiras estava acostumada ficar até mais tarde.
   Do Witt objetou:
   Mas sem dúvida vocês fizeram as oportunas comprovações e lhe perguntaram onde estava a aquelas horas. Se realmente suspeitarem que Gerard foi assassinado, Esmé
Carling por força devia contar-se entre os suspeitos.
   Comprovamo-lo, em efeito. Apresentou-nos um álibi muito convincente: uma menina que assegurava ter estado com ela em seu apartamento das seis e meia até
a meia-noite. A menina se chama Daisy e já nos há dito tudo o que sabe: a senhora Carling a convenceu de que lhe proporcionasse um álibi para essa noite e reconheceu
ter estado no Innocent House.
   E agora condescende você a dizer nos interveio isso Claudia. Bem, comandante, ao menos é uma mudança. Já era hora de que nos dissesse algo concreto. Gerard era
meu
irmão. veio você insinuando do primeiro momento que sua morte não foi acidental, mas não parece que se ache mais perto de explicar como nem por que morreu.
   Do Witt falou em voz baixa:
   Não seja ingênua, Claudia. O comandante não nos está informando em atenção a seus sentimentos fraternais; está nos dizendo que a menina, Daisy, foi interrogada
e revelou tudo o que sabe, assim é inútil que ninguém tente localizá-la, suborná-la, comprá-la nem silenciá-la do modo que seja.
   O que estas palavras implicavam era tão patente e, ao mesmo tempo, tão consternador que Kate médio esperou que se elevasse um coro de protestos irados. Entretanto,
não houve nenhuma. Claudia avermelhou intensamente e pareceu a ponto de replicar, mas se conteve. Os restantes sócios ficaram paralisados e em silêncio, sem nenhum
desejo, ao parecer, de procurar o olhar de outros.
   Era como se o comentário tivesse aberto atalhos de conjetura tão indesejáveis e pavorosos que valia mais não explorá-los.
   assim resumiu Dauntsey, com voz possivelmente muito cuidadosamente controlada, encontraram um suspeito do que se sabe que esteve aqui e, provavelmente, em
o momento oportuno. Se não tinha nada que ocultar, por que não deu conta de seus atos?
   Do Witt acrescentou:
   Bem pensado, é estranho que permanecesse tão calada após. Não acredito que esperasse uma carta de pêsames, Claudia, mas sim teria sido lógico receber notícias
dela, possivelmente um novo intento de que lhe aceitássemos a novela.
   Certamente pensou que seria mais correto esperar um pouco sugeriu Frances. Teria sido uma amostra de insensibilidade que começasse a nos importunar sendo tão
recente
a morte do Gerard.
   Certamente, teria sido o momento menos propício para nos fazer trocar de opinião precisou Do Witt.
   Claudia falou com aspereza:
   Não teríamos trocado de opinião. Gerard estava no certo: é uma má novela. Não teria beneficiado em nada nossa reputação nem a dela, se a isso vamos.
   Mas teríamos podido rechaçá-la mais amavelmente, falar com ela, explicar o objetou Frances.
   Claudia se voltou para ela:
   Pelo amor de Deus, Frances, não comece outra vez com o mesmo. Do que teria servido? Um rechaço é um rechaço; a decisão lhe teria sentado mal embora se
tivéssemo-la comunicado no Claridge's com champa a e lagosta Thermidor.
   Dauntsey, que parecia ter estado seguindo o fio de seus próprios pensamentos, comentou:
   Não me ocorre de que maneira Esmé Carling tivesse podido ter nada que ver com a morte do Gerard, mas suponho que cabe a possibilidade de que fora ela quem
enroscasse-lhe a serpente ao pescoço. Isso o vejo mais próprio de seu estilo. Quer dizer que encontrou o corpo e decidiu lhe acrescentar uma espécie de comentário
pessoal?
perguntou Claudia.
   Dauntsey prosseguiu:
   Embora não parece muito provável, verdade? Gerard ainda devia estar vivo quando chegou ela. É de supor que lhe abriu ele.
   Não necessariamente objetou Claudia. Possivelmente aquela noite tinha deixado a porta entreabrida ou mal fechada. Não era próprio do Gerard descuidar a segurança,
mas não
é impossível. Possivelmente Esmé encontrou a maneira de entrar quando já estava morto.
   Embora fora assim apontou Do Witt, por que ia subir ao despachito dos arquivos?
   Parecia que tivessem esquecido, no momento, a presença do Dalgliesh e Kate.
   Procurando o Gerard respondeu Frances. Não seria mais provável que o esperasse em seu escritório? interveio de novo Dauntsey. Tinha que saber que estava na casa,
já que a jaqueta seguia pendurada no respaldo de sua poltrona. cedo ou tarde voltaria. E além disso, está o assunto da serpente. Teria sabido onde encontrá-la?
   Refutada assim sua própria sugestão, Dauntsey voltou a sumir-se no silêncio. Claudia olhou brevemente a outros sócios, como se seu mudo assentimento lhe respirasse
a dizer o que estava pensando. Continuando, olhou ao Dalgliesh de marco em marco.
   Compreendo que esta nova informação em relação à presença do Esmé Carling no Innocent House a noite em que morreu Gerard faz ver seu suicídio sob uma luz
distinta. Mas, quaisquer que fossem as circunstâncias de sua morte, é impossível que algum dos sócios interviesse nela. Todos podemos dar conta de
nossos atos.
   Kate pens: Não quer utilizar a palavra "álibi".
   Eu estava com meu prometido prosseguiu Claudia. Frances e James estavam juntos. Gabriel estava com o Sydney Bartrum. voltou-se por volta dele e sua voz se fez
dura de repente.
Muito valente por sua parte, Gabriel, ir sozinho a pé até o Sailor's Return sendo tão recente o assalto.
   Faz mais de sessenta anos que ando sozinho pela cidade; não deixarei de fazê-lo por um assalto guia de ruas.
   E foi muito oportuno que casualmente te partisse justo quando chegava o táxi do Esmé.
   Do Witt falou em voz baixa:
   Fortuito, Claudia, não oportuno.
   Mas Claudia estava olhando ao Dauntsey como se fora um desconhecido.
   Possivelmente inclusive algum empregado do pub possa confirmar a que hora chegaram Sydney e você, embora, naturalmente, é um dos locais mais buliçosos do rio
e
que tem a barra mais larga, além de uma entrada pelo passeio do rio, e chegaram por separado. Duvido que possam dizer uma hora exata, se é que alguém
lembra-se de dois clientes em particular. Não fariam nada que chamasse a atenção, suponho.
   Dauntsey replicou com voz contida.
   Não fomos ali com essa intenção. por que foram? Ignorava que freqüentasse o Sailor's Return. Não imaginava que fora o tipo de local que revista freqüentar;
em conjunto, muito ruidoso. E tampouco sabia que Sydney e você fossem companheiros de taças.
   Ao Kate pareceu como se de repente tivessem empreendido uma guerra particular. Nesse momento se ouviu fica exclamação angustiada do Frances: Não sigam, por
favor, não sigam! E seu álibi, Claudia? É mais digna de confiança? perguntou Do Witt.
   Claudia se voltou para ele.
   Ou a tua, se a isso vamos. Pretende dizer que Frances não mentiria por ti?
   É possível; não sei. Mas acontece que não é necessário. Frances e eu estivemos juntos das sete.
   Sem ver nada, sem ouvir nada, sem reparar em nada disse Claudia. Completamente absortos o um no outro. antes de que Do Witt pudesse replicar, prosseguiu. É curioso,
verdade?, que feitos na aparência pouco importantes desencadeiem os acontecimentos mais transcendentais. Se a alguém não lhe tivesse ocorrido enviar um fax para
cancelar a sessão de assinatura de exemplares, possivelmente Esmé não teria tornado aqui aquela noite, não teria visto o que viu e, portanto, possivelmente não teria
morrido.
   Blackie não pôde suportá-lo mais: primeiro a antipatia logo que dissimulada dos sócios e agora este horror. levantou-se de um salto e exclamou: Basta já, por
favor,
basta já! Não é certo. matou-se ela mesma. Mandy a encontrou. Mandy o viu. Todos sabem que se matou ela mesma. O fax não teve nada que ver.
   Claro que se matou disse Claudia com aspereza. Qualquer outra idéia é fruto da imaginação da polícia. por que aceitar um suicídio quando se pode optar
por um pouco mais emocionante? E para o Esmé esse fax deveu ser a última gota. A pessoa que o enviou carga com uma grave responsabilidade.
   Olhava fixamente ao Blackie. As cabeças de outros se voltaram como se Claudia tivesse atirado de um fio invisível. de repente, esta exclamou: Foi você! Já
supunha-o. Foi você, Blackie! Você o enviou!
   Todos viram consternados como Blackie abria a boca lenta e silenciosamente. Durante uns segundos que lhes pareceram mas bem minutos, a mulher conteve a respiração
e, finalmente, estalou em incontenibles soluços. Claudia se levantou da cadeira e a agarrou pelos ombros; por um instante deu a impressão de que ia sacudi-la.
E as demais sacanagens? E as provas manipuladas? E as ilustrações roubadas? Também foi você? Não, não! Juro-o! Só o fax. Nada mais. Só isso. Foi muito
desconsiderada com o senhor Peverell. Disse coisas terríveis. Não é verdade que estivesse farto de mim. preocupava-se comigo.
   Confiava em mim. OH, Deus, oxalá estivesse morta como ele!
   levantou-se cambaleando-se e, sem deixar de chiar, precipitou-se para a porta com as mãos estendidas, como uma cega procurando provas seu caminho. Frances
fez gesto de levantar-se e Do Witt já estava em pé quando Claudia lhe agarrou o braço.
   Pelo amor de Deus, James, deixa-a em paz. Não a todos é grato que nos Prestes seu ombro para chorar sobre ele; alguns preferimos agüentar nossas próprias
desditas.
   James se ruborizou e voltou a sentar-se imediatamente.
   Acredito que podemos deixá-lo já disse Dalgliesh. Quando a senhorita Blackett se serenou, a inspetora Miskin falará com ela.
   Felicidades, comandante replicou Do Witt. É você muito ardiloso; conseguiu que lhe façamos o trabalho. Teria sido mais amável interrogar ao Blackie em privado,
mas se teria necessitado mais tempo, não é isso?, e possivelmente não tivesse tido tanto êxito.
   morreu uma mulher e meu trabalho consiste em descobrir como e por que respondeu Dalgliesh.
   Temo-me que a amabilidade não é prioritária para mim.
   Frances, ao bordo do pranto, olhou a Do Witt e se lamentou: Pobre Blackie! OH, Meu deus, pobre Blackie! O que farão agora com ela?
   Foi Claudia quem respondeu.
   A inspetora Miskin a consolará e logo o senhor Dalgliesh a fritará a perguntas. Ou, se tiver sorte, ao reverso. Não se preocupe pelo Blackie. Não a condenarão
à forca por ter enviado esse fax; de fato, nem sequer é um delito. voltou-se bruscamente e dirigiu a palavra ao Dauntsey.
   Sinto muito, Gabriel. Sinto-o muitíssimo. Não sabe quanto o sinto. Não entendo o que me passou.
   meu deus, devemos permanecer unidos. Já que ele não dizia nada, acrescentou em tom quase de súplica: Não acreditará que tenha sido um assassinato, verdade? Refiro-me
à morte do Esmé. Crie que a matou alguém?
   Dauntsey respondeu com voz fica.
   Já ouviste a comandante ler a mensagem que deixou para nós. Seriamente te pareceu uma nota de suicídio?
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

56
 
   O senhor Winston Johnson era corpulento, negro e afável, e dava a impressão de não sentir-se intimidado pelo ambiente de uma delegacia de polícia e de tomar-se
com filosofia
a perda de possíveis clientes que podia derivar-se de sua visita forçosa ao Wapping. Sua voz tinha um agradável tom de baixo profundo, mas o acento era cockney puro.
Quando Daniel se desculpou pela necessidade de lhe incomodar em horário de trabalho, respondeu-lhe:
   Calculo que não perdi muito. De caminho para aqui subi a um casal que queria ir ao Canary Wharf. Turistas norte-americanos. E dos que dão boa
gorjeta, além disso. Por isso chego um pouco tarde.
   Daniel lhe tendeu uma fotografia do Esmé Carling.
   Esta é a passageira que nos interessa. na quinta-feira de noite ao Innocent Walk. Recorda-a?
   O senhor Johnson agarrou a fotografia com a mão esquerda.
   Perfeitamente. Parou-me na ponte do Hammersmith por volta das seis e meia. Queria chegar ao número dez do Innocent Walk às sete e meia. Nenhum problema.
Não ia demorar uma hora em fazer esse trajeto, a não ser que o tráfico estivesse muito mal ou se recebeu uma ameaça de bomba e seus moços tivessem fechado
alguma rua. Mas tudo foi bem. Quer dizer que chegaram antes das sete e meia?
   Teríamos chegado antes, mas ela me chamou através do cristal quando íamos pela Torre e me disse que não queria chegar cedo. Pediu-me que fizesse tempo.
Perguntei-lhe que aonde queria ir e me disse: "A qualquer parte, contanto que cheguemos ao Innocent Walk às sete e meia."
   De maneira que a levei até o Isle of Dogs, dava umas quantas voltas e logo voltei pela auto-estrada. Isso fez subir uns xelins o preço da carreira, mas suponho
que lhe dava igual. Dezoito libras em total, custou-lhe, e ainda deixou gorjeta. Como chegou ao Innocent Walk?
   Saí da auto-estrada pela rua Garnet abaixo e logo pelo Wapping Wall. Viu alguém em particular? Alguém em particular? Havia um par de tipos por ali,
mas eu não me fixei em ninguém em particular.
   Ia conduzindo, não? Disse-lhe algo a senhora Carling durante o trajeto?
   Só o que já lhe hei dito, que não queria chegar ao Innocent Walk até as sete e meia e que desse umas quantas voltas. Algo assim. E está você seguro de que
queria ir ao número dez do Innocent Walk, não ao Innocent House?
   Ao número dez me disse e ao número dez a levei. Justo ao lado da grade de ferro que há no extremo do Innocent Passage. Deu-me a impressão de que não
queria entrar mais no Innocent Walk. Nada mais girar pela travessa, deu uns golpes no cristal e me disse que ali estava bem. Viu se a cancela do Innocent
Passage estava aberta?
   Não estava totalmente aberto, mas isso não quer dizer que estivesse fechada.
   antes de fazer a seguinte pergunta Daniel já sabia qual seria a resposta, mas necessitava que ficasse perseverança disso. Disse-lhe o que ia fazer no Innocent
Walk? Se ia ver alguém, por exemplo.
   Isso não era meu assunto, verdade, chefe?
   Talvez não, mas às vezes os passageiros falam.
   Inclusive muito, alguns. Mas esta não. Esteve todo o momento calada, apertando aquela bolsa grande que levava.
   Apareceu outra fotografia. Esta bolsa?
   Pode ser. Era pelo estilo. Mas, olho, não poderia jurá-lo. Deu-lhe a impressão de que estava cheio, como se levasse dentro algo volumoso ou pesado?
   Aí não posso lhe ajudar, companheiro. Mas vi que o tinha pendurado ao ombro e que era grande. E poderia jurar que na quinta-feira levou a esta mulher desde o
Hammersmith
até o Innocent Walk e a deixou viva no extremo do Innocent Passage às sete e meia?
   Bom, certamente não a deixei morta. Sim, é claro que sim que posso jurá-lo. Quer que faça uma declaração?
   Sua colaboração foi muito valiosa, senhor Johnson. Sim, nós gostaríamos de ter sua declaração. Tomaremos no despacho do lado.
   O senhor Johnson saiu acompanhado de um policial de patrício. Quase imediatamente, voltou a abri-la porta e o sargento Robbins apareceu a cabeça. Não se esforçava
em dissimular sua excitação.
   Estava comprovando o tráfico do rio, senhor. Acabamos de receber uma chamada das autoridades do porto de Londres, em resposta a que lhes fiz eu faz
coisa de uma hora. Sua lancha, a Royal Nore, passou ontem à noite ante o Innocent House. Seu presidente celebrou um jantar privado a bordo. A comida se servia aos
oito e três
dos convidados tinham vontades de ver Innocent House, assim estavam em coberta. Calculam que deveriam ser as oito menos vinte. Podem jurar, senhor, que então
não havia nenhum cadáver pendurando do corrimão e que não viram ninguém no pátio. E outra coisa, senhor: estão completamente seguros de que a lancha se achava
à esquerda dos degraus e não à direita. Refiro-me à esquerda olhando do rio.
   Daniel disse lentamente: Vá Por Deus...! Assim que o instinto do chefe não lhe enganava. Mataram-na na lancha. O assassino ouviu aproximá-la embarcação das
autoridades do porto de Londres e manteve o corpo oculto até o momento de pendurá-lo.
   Mas por que a esse lado do corrimão? por que trocou de sítio a lancha?
   Porque esperava que não nos déssemos conta de que a tinha matado ali. Quão último deseja é que os especialistas coloquem os narizes na lancha. E outra coisa:
saiu a receber a à cancela de ferro forjado que fecha o extremo do Innocent Passage. O assassino tinha chave e estava esperando-a na soleira do lado.
Era mais seguro permanecer nesse extremo do pátio, o mais longe possível do Innocent House e do número doze.
   Ao Robbins lhe tinha ocorrido uma objeção. Não era muito arriscado trocar a lancha de sítio? A senhorita Peverell e o senhor Do Witt teriam podido ouvi-lo
do piso e sem dúvida teriam baixado a investigar.
   Dizem que não teriam podido ouvir um táxi a não ser que se internasse pelo Innocent Lane. Podemos verificá-lo, naturalmente. E se ouviram o motor deveram acreditar
que era uma lancha que passava pelo rio. Tinham as cortinas corridas, recorde. E é obvio, sempre existe outra possibilidade. Qual, senhor?
   a de que fossem eles os que moveram a lancha.
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

57
 
   Às cinco e meia do sábado, um dia normalmente ocupado, a loja estava deserta e o rótulo de "fechado" pendurava depois do cristal. Claudia pulsou o timbre
situado a um lado e aos poucos segundos apareceu a figura do Declan e se abriu a porta. Assim que Claudia teve entrado, ele jogou uma rápida olhada para ambos
extremos da rua e voltou a fechar com chave a suas costas. Onde está o senhor Simon? perguntou ela.
   No hospital. dali venho. Está muito mal. Ele acredita que é câncer. E o que dizem os médicos?
   vão fazer lhe umas provas. Acreditam que se trata de algo grave. Esta manhã fiz que chamasse o doutor Cohen, seu médico de cabeceira. Assim que o viu lhe disse:
"Por
o amor de Deus, por que não me chamou antes?" Simon sabe que não sairá do hospital; ele mesmo me há isso dito. Escuta, passemos dentro, quer? Ali estaremos
mais cômodos.
   Nem a beijou nem a tocou.
   Ela pensou: "Fala-me como se fora uma cliente." Tinha-lhe ocorrido algo além da enfermidade do velho Simon. Nunca o tinha visto dessa maneira. diria-se
que estava poseído por uma mescla de excitação e terror. Seu olhar era quase frenético e a pele lhe reluzia de suor. Inclusive percebia seu aroma: um aroma cruel
e
alheio. Seguiu-o até o estufa. A estufa elétrica instalada na parede tinha as três barras acesas e na habitação fazia muito calor. Os objetos
familiares pareciam estranhos, diminuídos, os restos mesquinhos de vidas mortas e desatendidas.
   Claudia ficou olhando-o sem sentar-se. Incapaz de permanecer quieto em um sítio, Declan percorria os escassos metros de espaço livre como um animal enjaulado.
Vestia com mais formalidade que de costume, e a insólita seriedade do traje e a gravata contrastava com sua inquietação quase maníaca, com o cabelo desordenado.
Claudia se perguntou quanto momento levaria bebendo. Havia uma garrafa de vinho quase vazia e um só copo utilizado entre os objetos revoltos em uma das mesas.
   de repente, Declan interrompeu sua desassossegada caminhada e se voltou para ela, que viu em seu olhar uma expressão de súplica, vergonha e medo ao mesmo tempo.
   esteve aqui a polícia começou. Escuta, Claudia, tive que lhes contar o da quinta-feira, a noite em que morreu Gerard. tive que lhes dizer que me deixou
no mole da Torre, que não estivemos todo o momento juntos. tiveste? replicou ela. Como que tiveste?
   Tiraram-me isso pela força. Com o que, com empulgueras e pinzas ao vermelho? Retorceu-te os braços Dalgliesh e te esbofeteou? Levaram-lhe aos calabouços
do Notting Hill e lhe deram uma surra, procurando não deixar marcas? Já sabemos quão bem o fazem. Todos vemos a televisão.
   Dalgliesh não veio. Eram esse menino judeu e um sargento. Não te pode imaginar quão mau o passei, Claudia. Acreditam que a novelista, Esmé Carling, foi
assassinada.
   Isso não podem sabê-lo.
   Digo-te que é o que eles acreditam. E sabem que eu tinha um motivo para assassinar ao Gerard.
   Se o assassinaram.
   Sabiam que eu necessitava dinheiro e que você me tinha prometido consegui-lo. Teríamos podido atracar a lancha no Innocent House e fazê-lo entre os dois.
   Mas não o fizemos.
   Não querem acreditá-lo. E tudo isto lhe hão isso dito eles diretamente?
   Não, mas não fazia falta. Dei-me conta de que o pensavam.
   Claudia lhe explicou com paciência:
   Olhe, se suspeitassem a sério de lhe teriam interrogado em uma delegacia de polícia de polícia depois de te informar de seus direitos e teriam gravado a entrevista
com
um magnetófono. Foi isso o que fizeram?
   Claro que não. Não lhe convidaram a acompanhá-los à delegacia de polícia nem lhe disseram que podia chamar um advogado?
   Nada disso. Ao final me disseram que devia ir à delegacia de polícia do Wapping e assinar uma declaração.
   Então, o que lhe têm feito, em realidade?
   Insistiam em saber se estava completamente seguro de que tínhamos estado todo o tempo juntos e de que havia me trazido para casa em seu carro desde o Innocent
House.
Não paravam de repetir que era muito melhor dizer a verdade. O inspetor utilizou as palavras "cúmplice de assassinato", disso estou seguro. Está-o? Pois eu não.
   O caso é que a hei dito. Dá-te conta do que tem feito? A voz da Claudia surgia, contida, de uns lábios que já não pareciam deles. Se Esmé Carling
foi assassinada, provavelmente Gerard também foi, e isso quer dizer que uma só pessoa é responsável pelas duas mortes. Seria muita coincidência ter
dois assassinos em uma mesma empresa. Quão único conseguiste é te fazer suspeito de duas mortes, não de uma.
   Ele quase chorava.
   Mas quando Esmé morreu estávamos aqui juntos. Veio diretamente do escritório. Eu mesmo te abri. Passamos a noite juntos. Fizemos o amor. O hei dito.
   Mas o senhor Simon já não estava quando cheguei, verdade? Só me viu você. Que prova temos? Mas estávamos juntos! Temos um álibi! Os dois a temos!
E crie que agora vão lhe dar crédito? reconheceste que mentiu a respeito da noite em que se produziu a morte do Gerard; por que não teria que mentir também
a respeito da noite em que morreu Esmé? se preocupava tanto salvar o pele que não foste capaz de ver que te estava afundando mais na mierda.
   Declan se voltou de costas e se serve mais vinho. Logo elevou a garrafa e perguntou: Quer um pouco? irei procurar outro copo.
   Não, obrigado.
   Ele se voltou de novo.
   Ouça disse, acredito que não deveríamos seguir nos vendo, ao menos por algum tempo. Será melhor que não nos vejam juntos até que tudo isto se esclareceu.
   ocorreu outra coisa, não? observou Claudia. Não é só o assunto do álibi.
   Foi quase cômico o modo em que lhe trocou a cara. A expressão de medo e vergonha foi alagada por um arrebatamento de entusiasmo, de satisfação maliciosa. "O que
infantil é", pensou Claudia, tratando de imaginar que novo brinquedo lhe tinha cansado nas mãos. Mas sabia que o desprezo que sentia era mais por ela mesma que
por ele.
   Declan assentiu, desejoso de que compreendesse.
   É certo, ocorreu outra coisa. Bastante boa, de fato. Simon mandou chamar a seu advogado. vai fazer um testamento no que me deixa todo o negócio e
o imóvel. A que outra pessoa poderia deixar-lhe Não tem parentes. Sabe que já nunca irá se tomar o sol, assim tanto dá que me eu fique. me prefere deixar isso piso,
sus acciones, el dinero de su seguro de vida.
a mim a que fique o Governo.
   Compreendo disse ela. E compreendia. Já não era necessária. O dinheiro herdado do Gerard já não fazia falta. Se a polícia suspeitar realmente de ti prosseguiu
sem perder
a calma, coisa que duvido, o fato de que deixemos de nos ver não influirá em nada. Em todo caso, parecerá mais suspeito. É precisamente o que fariam dois culpados.
Mas tem razão: não voltaremos a nos ver; nunca mais, se de mim depende. Não me necessita e, certamente, eu não te necessito. Poses certo encanto de homem anti-social
e não está mal como entretenimento, mas não é que seja o melhor amante do mundo, verdade?
   Surpreendeu-lhe ser capaz de chegar à porta sem titubear, mas lhe custou um pouco abri-la. Naquele momento se deu conta de que o tinha a suas costas.
   Já vê você que tal isso sonha aduziu Declan com voz quase suplicante. Pediu-me que fora a navegar pelo rio contigo. Disse que era importante.
   E o era. ia falar com o Gerard depois da reunião dos sócios, recorda? Acreditava que podia ter uma boa notícia para ti.
   E logo me pediu um álibi. Pediu-me que dissesse que tínhamos estado juntos até as duas. Chamou-me do despachito dos arquivos assim que lhe
ficou sozinha com o corpo.
   Teve o tempo justo. E foi o primeiro em que pensou. Explicou-me o que devia lhes dizer. Obrigou-me a mentir.
   E o há dito assim à polícia, claro.
   Estava claro que era isso o que pensavam. O que deve pensar todo mundo. Levou-te a lancha você sozinha; esteve sozinha no Innocent House. herdaste seu
piso, suas ações, o dinheiro de seu seguro de vida.
   Claudia notou a dureza da porta contra suas costas. Olhou-o à cara e viu aparecer o medo em seus olhos enquanto lhe falava. E não te dá medo estar comigo?
Não te dá pânico estar aqui a sós comigo? Já matei a duas pessoas, por que teria que importar matar a outra? Poderia ser uma maníaca homicida, nunca se sabe,
verdade? meu deus, Declan! Seriamente crie que assassinei ao Gerard, um homem que valia dez vezes mais que você, para comprar esta casa e essa patética coleção de
lixo que acumula para tentar te convencer a ti mesmo de que sua vida tem sentido, de que é um homem?
   Não recordava ter aberto a porta, mas a ouviu fechar-se com firmeza detrás de si. A noite lhe pareceu muito fria, e descobriu que tremia com violência. "De modo
que terminou pensou. terminou com rancor, acritud, vis insultos sexuais, humilhação. Embora, não acontece assim sempre?" Afundou as mãos nos bolsos
do casaco e, com os ombros encolhidos, andou a passo vivo para o carro estacionado.
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   QUINTO LIVRO
   A PROVA DEFINITIVA
   
   (Dalgliesh 09) O Pecado Original

58
 
   na segunda-feira, por volta da queda da tarde, Daniel estava trabalhando a sós na sala dos arquivos. Não sabia muito bem o que lhe tinha levado de novo a aqueles
prateleiras repletas e mofadas, como não fora o cumprimento de uma autoimpuesta penitencia. Não podia deixar de pensar nem um momento na falha que tinha cometido
com o álibi do Esmé Carling. Não só lhe tinha enganado Daisy Reed, mas também também Esmé Carling, e a ela teria podido pressioná-la mais. Dalgliesh não havia tornado
a mencionar o engano, mas provavelmente não o esqueceria. Daniel não sabia o que era pior, se a tolerância do chefe ou o tato do Kate.
   Trabalhava sem interrupção, levando-se montões de umas dez pastas cada um ao despachito dos arquivos. Tinham posto ao seu dispor uma estufa elétrica
e fazia bastante calor. Mas o quarto não era cômodo. Sem a estufa, o frio atacava imediatamente com um helor quase antinatural; com ela, a habitação não demorava
em resultar muito calorosa. Daniel não era supersticioso. Não tinha a sensação de que os espectros turvados dos mortos observavam sua busca metódica e
solitária. A habitação era sombria, inóspita, vulgar, e tão somente evocava uma vaga inquietação nascida, paradoxalmente, não do contágio do horror, mas sim de sua
ausência.
   Acabava de retirar o seguinte lote de pastas de uma prateleira alta quando viu atrás delas um paquetito envolto em papel marrom e pacote com uma velha corda.
O
levou a mesa e, depois de lutar com os nós, finalmente conseguiu desfazê-los. Era um antigo Livro da Reza encadernada em pele, de uns quinze centímetros
por dez, com as iniciais F. P. gravadas em oro sobre a coberta.
   O livro parecia muito usado; as iniciais resultavam quase indecifráveis. Abriu-o pela primeira página, rígida e amarelada, e viu grosseiramente inscrita a seguinte
lenda: "Impresso pelo John Baskett, Impressores de Suas Muito excelentes Majestades e Herdeiros do Thomas Newcomb e Henry Hills, defuntos. 1716. Cum Privilegio."
Começou
a folheá-lo com certo interesse. Havia finas linhas vermelhas que desciam pelos márgenes e a parte central de cada página. Embora não sabia muito sobre o Livro do
Rezo anglicano, examinou suas páginas amareladas e quebradiças com bastante atenção e descobriu que havia uma "Oração especial de Ação de Obrigado que se rezará
cada ano nos Quinto dia de Novembro, pela feliz Salvação do Rei Jaime I e Parlamento do Traidor e Sangrento intento de Massacre mediante o uso de Pólvora".
Daniel duvidou que esta prece seguisse formando parte da liturgia anglicana.
   Foi então quando se deslizou uma folha de papel de entre as últimas páginas do livro. Em algum momento tinha estado dobrada e era mais branca que as folhas
do Livro da Reza, mas igual de grosa. Não levava cabeçalho. A mensagem estava escrita em tinta negra, com traços inseguros, mas resultava tão legível como o
dia em que fora redigido:
   Eu, Francis Peverell, escrevo isto de minha própria mão nos dia 4 de setembro de 1850 no Innocent House, em minha última agonia. A enfermidade que se deu procuração
de mim há dezoito meses logo terá concluído sua tarefa e, pela graça de Deus, ficarei livre. Minha mão tem escrito as palavras "pela graça de Deus"
e não vou apagar as. Não tenho nem forças nem tempo para correções. Entretanto, quão máximo posso esperar de Deus é a graça da extinção. Não albergo
esperanças de Paraíso nem temo os dores do Inferno, posto que sofri já meu Inferno aqui na terra durante os últimos quinze anos. recusei todos
os paliativos para minha presente agonia. Não hei meio doido o láudano do esquecimento. A morte de minha mulher foi mais piedosa que a minha. Esta confissão não
pode trazer distração
nem à mente nem ao corpo, posto que não pedi absolvição nem confessado meu pecado a nenhuma alma vivente. Tampouco o reparei. Como pode um homem reparar
o assassinato de sua esposa?
   Escrevo estas palavras porque a justiça a sua memória exige que se conte a verdade.
   Entretanto, não resolvo fazer confissão pública nem a lavar de sua memória a mancha do suicídio. Matei-a porque necessitava seu dinheiro para terminar as obras
do Innocent House. Tinha-me gasto o que ela contribuiu como dote, mas ficavam outros capitais investidos que me tinham sido negados e que a sua morte passariam
a meu poder.
   Ela me queria, mas se negava a me entregar isso pois considerava minha paixão pela casa uma obsessão e um pecado. Acreditava que me ocupava mais do Innocent House
que
dela ou de nossos filhos, e tinha razão.
   O ato não tivesse podido resultar mais fácil. Era uma mulher reservada, cujo acanhamento e escassa afeição à companhia impediam de ter amizades íntimas. Todos
seus parentes tinham morrido e a servidão a tinha por desventurada. Por isso, para preparar o terreno, confiei a alguns de meus colegas e amigos que me sentia
inquieto por sua estado de saúde e de ânimo. Em vinte e quatro de setembro, em uma serena noite de outono, fiz-a subir ao terceiro piso com a desculpa de lhe mostrar
algo. Estávamos sozinhos na casa, além do serviço. Saiu comigo ao balcão. Era uma mulher magra e foi questão de segundos elevar a em velo e arrojá-la à
morte. Logo, sem me apressar, baixei à biblioteca. Quando vieram a me dar a terrível noticia me encontraram ali sentado, lendo tranqüilamente. Nunca suspeitaram
de mim. por que foram fazer o? Ninguém podia suspeitar que um homem respeitável tivesse assassinado a sua esposa.
   vivi para o Innocent House e matado por ela, mas, da morte de minha esposa, a casa não me proporcionou nenhum prazer. Sotaque esta confissão para que
transmita-se ao filho maior de cada geração e imploro a quem a leia que guardem o segredo. Receberá-a em primeiro lugar meu filho Francis Henry, e logo, com
o tempo, seu filho, e todos meus descendentes. Não fica nada que esperar nesta vida nem na próxima, e não tenho nenhuma mensagem que dar. Escrevo porque é necessário
que conte a verdade antes de morrer.
   Tinha assinado ao pé com o nome e a data.
   depois de ler a confissão, Daniel permaneceu imóvel em seu assento durante dois largos minutos, refletindo. Não sabia por que essas palavras, que lhe falavam
desde
uma distância de mais de um século e médio, tinham-lhe afetado tão poderosamente. Parecia-lhe que não tinha direito às ler, que o adequado seria voltar a deixar
a
folha dentro do Livro da Reza, envolver de novo o livro e depositá-lo outra vez na estantería. Entretanto, supunha que deveria lhe comunicar pelo menos ao Dalgliesh
o que tinha descoberto. Era esta confissão o motivo de que Henry Peverell se mostrou tão resistente a que ninguém examinasse os arquivos? Ele devia conhecer
sua existência. A tinham dado a ler ao chegar à maioria de idade, ou acaso se perdeu antes de chegar a suas mãos para converter-se em uma lenda de
família da que se falava em sussurros, mas sem reconhecer abertamente sua realidade? Em todo caso, não podia ter nenhuma relação com a morte do Gerard: era
uma tragédia dos Peverell, uma vergonha dos Peverell, tão antiga como o papel que tinha recolhido a confissão. Resultava compreensível que a família quisesse
guardar o segredo; seria muito desagradável ter que explicar, cada vez que alguém admirava a casa, que o dinheiro com que se construiu procedia de um assassinato.
Depois de uma breve reflexão, pôs o papel onde o tinha encontrado, envolveu cuidadosamente o Livro da Reza e o deixou a um lado.
   Soou um ruído de passos, leves mas claramente audíveis, que se aproximavam pela sala dos arquivos. Por um instante, recordando a aquela esposa assassinada,
percorreu-lhe um ligeiro estremecimento de temor supersticioso. Mas em seguida se impôs a razão: eram os passos de uma mulher viva, e ele sabia de quem.
   Claudia Etienne se deteve na porta e perguntou sem preâmbulos: Tem para muito?
   Não. Possivelmente uma hora, ou pode que menos.
   Eu irei às seis e meia. Deixarei todas as luzes apagadas menos as da escada. Quererá as apagar você quando se for e conectar o alarme?
   É obvio.
   Abriu a pasta mais próxima e fingiu estudar seu conteúdo. Não queria falar com ela. Naquelas circunstâncias, seria uma imprudência deixar-se arrastar a
uma conversação sem a presença de terceiros.
   Claudia prosseguiu.
   Lamento ter mentido a respeito de meu álibi para a morte do Gerard. Fiz-o em parte por medo; mas mais que nada pelo desejo de evitar complicações. Mas
não o matei eu; não foi nenhum de nós. Ele não respondeu nem a olhou. Claudia lhe interrogou, com uma nota de desespero. Quanto vai durar tudo isto? Não pode
dizer-me isso Não tem nem idéia? O juiz nem sequer autorizou ainda a incineração do corpo de meu irmão. Não compreende o que isto significa para mim?
   Então a olhou. Se tivesse sido capaz de ter piedade dela, ao ver sua cara nesse momento se teria tido piedade.
   Sinto-o respondeu. Agora não posso falar disso.
   Sem acrescentar uma só palavra, Claudia girou em redondo e partiu. Daniel esperou até que se apagou o rumor de suas pegadas e foi fechar com chave a
porta da sala dos arquivos.
   Tivesse devido recordar que Dalgliesh a queria fechada em todo momento.
   
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59
 
   Às 6.25 Claudia guardou sob chave as pastas com as que tinha estado trabalhando e subiu a lavar-se e a procurar o casaco. A casa estava profusamente iluminada.
Da morte do Gerard, detestava trabalhar sozinha em penumbra. Agora, as aranhas, os spots de parede e os grandes globos situados ao pé da escada iluminavam
o esplendor dos tetos pintados, as minuciosas talhas da madeira e as colunas de mármore de cor; já apagaria o inspetor Aaron quando baixasse. arrependia-se
de ter cedido ao impulso de ir ao cuartito dos arquivos. Tinha subido com a esperança de que, ao vê-lo a sós, poderia lhe surrupiar alguma informação sobre
o desenvolvimento da investigação, alguma idéia aproximada de quando ia terminar. O impulso tinha sido uma loucura, e seu resultado uma humilhação. Para ele, ela
não era uma pessoa; não a via como um ser humano, como uma mulher sozinha, assustada, afligida por inesperadas e onerosas responsabilidades. Para ele, para o Dalgliesh,
para o Kate Miskin, não era mais que um dos suspeitos, possivelmente o principal. perguntou-se se todas as investigações de assassinato desumanizavam a quem se via
afetados por elas.
   A maior parte dos empregados deixavam o carro estacionado depois da cancela fechada com chave do Innocent Passage. Claudia era quão única utilizava a garagem.
Estava muito afeiçoada com seu Porsche 911; já tinha sete anos, mas não queria trocá-lo e lhe desgostava deixá-lo à intempérie.
   Abriu a porta do número 10, cruzou a passagem e entrou na garagem. Elevou a mão para o interruptor da luz e o acionou. Não ocorreu nada; evidentemente,
fundiu-se a lâmpada. E então, enquanto permanecia ali indecisa, percebeu o som de uma respiração suave e a afligiu o conhecimento, imediato e
aterrador, de que alguém esperava escondido na escuridão. Justo naquele momento, um laço de couro caiu sobre sua cabeça e se fechou em torno de seu pescoço. Notou
um violento puxão para trás e o rangido do me choque contra o concreto, que a aturdiu por uns instantes, e logo seu roce na nuca.
   A correia era larga. Claudia estendeu os braços para tratar de lutar com quem a sujeitava, mas lhe falhavam as forças e, cada vez que tentava mover-se,
o laço se estreitava mais e sua mente passava por uma agonia de dor e terror até sumir-se em uma inconsciência fugaz. debateu-se fracamente ao extremo da correia
como um peixe moribundo no anzol, agitando em vão os pés em busca de um ponto de apoio no rugoso concreto.
   E então ouviu sua voz.
   Quieta, Claudia, não te mova. Não te mova e escuta. Não passará nada enquanto não te mova.
   Ela cessou de lutar e imediatamente se afrouxou a tremenda pressão. O homem lhe falou com voz fica e persuasiva. Claudia ouviu o que lhe dizia e seu cérebro confuso
compreendeu ao fim: estava lhe dizendo que devia morrer e por que.
   Quis gritar que era um terrível engano, que não era verdade, mas tinha a voz estrangulada e sabia que só poderia sobreviver se permanecia completamente imóvel.
O homem começou a lhe explicar que pareceria um suicídio. A correia ficaria atada ao volante do carro, e o motor em marcha; para então ela já teria morrido,
mas ele necessitava que a garagem estivesse cheia de gases tóxicos.
   Tudo isto o explicou com paciência, quase amavelmente, como se fora importante que o compreendesse. Fez-lhe ver que ela já não tinha álibi para nenhum
dos dois assassinatos; a polícia acreditaria que se matou por medo ao cárcere ou por remorso.
   E por fim terminou de falar. Ela pensou: "Não morrerei. Não deixarei que me mate. Não morrerei aqui, desta maneira, arrastada pelo chão da garagem como um animal."
Apelou a toda sua força de vontade.
   Pensou: "Devo fingir que estou morta, desvanecida, inconsciente. Se consigo surpreendê-lo, posso girar bruscamente e lhe arrebatar a correia. Se consigo me pôr
em
pé poderei dominá-lo."
   Fez provisão de forças para este último gesto. Mas ele esperava que o fizesse e estava prevenido: assim que começou a mover-se, o laço se esticou de novo e esta
vez não se afrouxou.
   O assassino esperou até que ao fim cessaram as atrozes convulsione, até que se extinguiram os últimos estertores. Então soltou a correia e, agachando-se,
comprovou que o fôlego já não animava aquele corpo. A seguir se incorporou e, depois de tirar a lâmpada do bolso, ergueu-se para enroscá-la no portalámparas
vazio que pendurava do teto baixo. Com a garagem por fim iluminado, agarrou as chaves que sua vítima levava no bolso, abriu a portinhola do automóvel e atou
o extremo da correia ao volante. Suas mãos enluvadas trabalhavam depressa e sem vacilação. Por último, pôs o motor em marcha. O cadáver jazia em uma postura
desajeitada, como se antes de morrer Claudia se arrojou do carro, sabendo que ou o laço ou os mortíferos gases acabariam com sua vida. E foi em
esse momento quando ouviu as pisadas que se aproximavam pela passagem.
   
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60
 
   Eram as 6.27. No piso do Frances Peverell soou o telefone. Assim que James pronunciou seu nome, ela se deu conta de que ocorria algo mau.
   Perguntou imediatamente: O que acontece, James?
   Rupert Farlow morreu. Morreu no hospital faz uma hora.
   OH, James, sinto-o muitíssimo. Estava com ele?
   Não, estava Ray. Rupert não quis que houvesse ninguém mais. É muito estranho, Frances. Quando vivia aqui, a casa me resultava quase insuportável; às vezes temia
voltar
e ter que me enfrentar com a desordem, os aromas e os transtornos. Mas agora que morreu quereria que estivesse como antes. Detesto-a. É uma casa brega, afetada,
aborrecida e convencional, um museu para alguém com o coração morto. Eu gostaria de rompê-lo tudo. Serviria-te de ajuda que eu fora ali? Diz-o a sério, Frances?
Ela captou com alegria um brilho de alívio em sua voz. Está segura de que não será muita moléstia?
   Claro que não será nenhuma moléstia. Saio em seguida. Ainda não são seis e meia; pode que Claudia não se partiu ainda. Se a encontro, pedirei-lhe que
leve-me até a estação do Bank e tomarei a Central Line. Será o mais rápido. Se já não estiver, pedirei um táxi.
   Frances pendurou o auricular. Sentia-o pelo Rupert, mas só o tinha visto uma vez, anos antes, quando acudiu ao Innocent House. E sem dúvida essa morte durante
tanto tempo esperada, aguardada com tanto sofrimento isento de queixa, devia lhe haver chegado como uma liberação. Mas James a tinha chamado, necessitava-a,
queria estar com ela. sentia-se embargada de alegria. Agarrou a jaqueta e o xale do perchero da entrada e quase se arrojou escada abaixo para correr para
Innocent Lane. Mas a porta do Innocent House estava fechada e não se via brilhar nenhuma luz através da janela da sala de recepção. Claudia se havia
partido. Pôs-se a correr para o Innocent Walk, pensando que ainda podia encontrá-la no carro, mas viu que a porta da garagem estava fechada. Chegava muito
tarde.
   Decidiu chamar um táxi do telefone de parede que havia na passagem, ante o número 10; seria mais rápido que voltar para seu piso. Foi chegar ante as portas
da garagem quando ouviu o som inconfundível de um motor em marcha. Isso a surpreendeu e a desconcertou. O Porsche da Claudia, seu querido 911, era muito antigo
para estar provido de catalisador. Como podia cometer a imprudência de ter o motor em marcha dentro de uma garagem fechada? Tal descuido não era próprio da Claudia.
   A porta que dava ao número 10 estava fechada com chave. Isso em si não era de sentir saudades: Claudia sempre entrava na garagem por ali e depois a fechava. Mas
sim resultava estranho encontrar a luz da passagem ainda acesa e a porta lateral da garagem entreabrida. Frances gritou o nome da Claudia, precipitou-se para a
porta e a abriu de um empurrão.
   A luz estava acesa, uma luz dura, cruel, sem sombras. Frances ficou petrificada, com todos os músculos e nervos paralisados por um segundo de revelação
e horror instantâneos. Ele estava ajoelhado junto ao corpo, mas ao vê-la ficou em pé e se aproximou em silencio até bloquear a porta. Frances o olhou aos
olhos: eram os mesmos olhos de sempre, cheios de sabedoria e um tanto fatigados, uns olhos que tinham visto muito e durante muito tempo. OH, não! sussurrou.
Gabriel, você não. OH, não.
   Não gritou. Era tão incapaz de gritar como de mover-se. Quando lhe falou, fez-o com a voz aprazível que ela tão bem conhecia.
   Sinto muito, Frances. Dá-te conta, verdade, de que não me é possível deixar ir?
   E então ela se cambaleou e sentiu que se sumia em uma piedosa escuridão.
   
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61
 
   No cuartito dos arquivos Daniel consultou seu relógio. As seis em ponto. Levava duas horas ali, mas não tinha perdido o tempo. Pelo menos tinha encontrado
algo; as duas horas de busca se viram recompensadas. Possivelmente não resultasse útil para a investigação, mas tinha certo interesse.
   Quando apresentasse a confissão à equipe, talvez o chefe considerasse que sua intuição tinha ficado vindicada, embora de um modo menos frutífero do que se
esperava, e ordenasse a suspensão da busca. Nada lhe impedia de dá-la já por terminada.
   Entretanto, o êxito tinha reavivado seu interesse: quase tinha chegado ao final de uma fileira. Já que estava nisso, podia baixar e examinar a trintena de pastas
que ficava por revisar na prateleira superiora. Gostava que cada tarefa tivesse um final limpo e definido. Além disso, ainda era cedo; se partia, se
sentiria na obrigação de voltar para o Wapping, e naqueles momentos não gostava de confrontar de novo a compreensão ou a piedade do Kate. assim, deslocou a
escada de mão ao longo da estantería.
   A pasta, volumosa mas não fora do normal, achava-se encaixada entre outras dois e, ao atirar delas, deslizou-se da prateleira. uns quantos papéis soltos
caíram-lhe sobre a cabeça como folhas secas. Daniel desceu da escada com cuidado e os recolheu. Os restantes documentos estavam unidos por meio de grampos, certamente
ordenados segundo a data. Duas coisas lhe chamaram a atenção: a pasta em si era de cartolina marrom e muito antiga, em tanto que alguns papéis pareciam recentes
e estavam o bastante limpos para ter sido arquivados fazia menos de cinco anos; por outra parte, embora a pasta não levava nenhum rótulo, entre os papéis
que recolhia do chão lhe saltou uma e outra vez à vista a palavra "judeu". Daniel o levou tudo à mesa do despachito.
   Os papéis não estavam numerados e só podia supor que se achavam na ordem correta, mas um deles suscitou sua curiosidade. Era uma proposta de novela,
datilografada com pouca habilidade e carente de assinatura. O cabeçalho rezava: Proposta aos sócios da Peverell Press. Leu:
   O marco e o tema universal e unificador desta novela, provisoriamente titulada Pecado original, é a participação do Governo do Vichy na deportação
de judeus franceses entre 1940 e 1944. No transcurso desses quatro anos foram deportados quase 76.000 judeus, a grande maioria dos quais morreu nos campos
de concentração da Polônia e Alemanha. O livro narrará a história de uma família dividida pela guerra, em que uma jovem mãe judia e seus gêmeos de quatro
anos de idade ficam apanhados na França ocupada, são escondidos por seus amigos e obtêm documentos falsos, para ser logo traídos, deportados e assassinados
em Auschwitz. A novela explorará o efeito desta traição uma pequena família entre milhares de vítimas no marido da mulher, nos traídos e nos
traidores.
   Daniel examinou os papéis sem achar nenhuma resposta à proposta nem nenhuma comunicação da Peverell Press. A pasta continha o que evidentemente
eram documentos de investigação e de trabalho. A novela estava bem documentada, extraordinariamente bem documentada para tratar-se de uma obra de ficção; ao
comprido dos anos, o autor se pôs em contato, mediante uma visita pessoal ou por escrito, com uma considerável variedade de organismos nacionais e internacionais:
os Arquivos Nacionais de Paris e Toulouse, o Centro de Documentação Judia Contemporânea de Paris, a Universidade do Harvard, o Escritório de Registros Públicos
e o Real Instituto de Assuntos Internacionais, em Londres, e os Arquivos da República Federal Alemã, na Coblenza. Havia também fragmentos extraídos dos
periódicos do movimento da Resistência L'Humanité, Témoignage Chrétien e O Franc-Tireur, assim como minutas de alguns prefeitos da zona não ocupada. Daniel
olhou-os por cima: cartas, informe, documentos oficiais, cópias de minutas, declarações de testemunhas oculares... A investigação era muito ampla e em alguns
aspectos peculiarmente precisa: o número de deportados, os horários dos trens, o papel desempenhado pela polícia do Pierre Laval e inclusive as mudanças efetuadas
na hierarquia alemã na França durante a primavera e o verão de 1942. Logo se fez evidente que o investigador tinha procurado que seu nome não aparecesse
em nenhuma parte. As cartas escritas por ele tinham seu nome e direção tachados ou recortados; dirigida-las a ele conservavam o nome e direção do remetente,
mas se tinha eliminado qualquer outro dado que tivesse permitido identificar ao destinatário. Não se via nenhum indício de que todo esse material se utilizou,
de que se começou sequer o livro, e muito menos terminado.
   Resultava cada vez mais claro que ao investigador lhe interessava uma região em especial e um ano determinado. A novela, se isso era, ia centrando cada vez mais.
Ao princípio era como se uma bateria de focos se passeasse por um extenso território fazendo ressaltar um incidente, uma configuração interessante, uma figura solitária,
um trem em marcha; mas, pouco a pouco, seus faz se foram coordenando para iluminar um só ano: 1942. Foi um ano no que os alemães exigiram um grande aumento
nas deportações da zona não ocupada. Os judeus, uma vez reunidos em grupos, eram conduzidos ao Vel d'Hiv ou ao Drancy, um enorme complexo de apartamentos
situado em um subúrbio do nordeste de Paris. Este último campo servia como estação de passagem para Auschwitz.
   Na pasta havia três informe de testemunhas presenciais: a gente era de uma enfermeira francesa que tinha trabalhado com um pediatra no Drancy durante quatorze
meses,
até que não pôde seguir suportando a acumulação de desgraças, e os outros dois de superviventes do campo, que ao parecer os tinham redigido em resposta a
uma solicitude específica do investigador. Uma mulher tinha escrito:
   Em 16 de agosto de 1942 me detiveram os Gardes Mobiles. Não me assustei porque eram franceses e porque se mostraram muito corretos no momento da detenção.
Não sabia o que se propunham me fazer, mas lembrança que tinha a sensação de que não seria muito mau. Disseram-me que pertences podia me levar e me fizeram
passar um exame médico antes de me transladar. Enviaram ao Drancy e foi ali onde conheci a jovem mãe dos gêmeos. Ela se chamava Sophie, mas não recordo
o nome dos nem vos. Ao princípio tinha estado no Vel d'Hiv, mas logo a transladaram ao Drancy. Lembro-me bem da mulher e os meninos embora não falávamos
com freqüência. Contou-me muito pouco de sua vida, exceto que tinha vivido perto do Aubière com um nome falso.
   O único que lhe preocupava eram seus filhos. Por então estávamos no mesmo barracão com outros cinqüenta internos. Vivíamos em uma grande miséria. Havia escassez
de camas e de palha para os colchões, o único alimento que recebíamos era sopa de couve e estávamos doentes de disenteria. No Drancy morreu muita gente; acredito
que
mais de quatrocentas pessoas nos dez primeiros meses. Lembrança o pranto dos meninos e os gemidos dos moribundos. Para mim, Drancy foi tão mau como Auschwitz;
passei simplesmente de uma sala do inferno a outra.
   O segundo supervivente do campo descrevia os mesmos horrores, embora de um modo mais gráfico, mas não recordava a nenhuma mãe jovem com gêmeos.
   Daniel ia passando as folhas como em transe. Tinha compreendido já aonde lhe conduzia essa viagem, e ao fim encontrou a prova: uma carta escrita por uma tal Enjoe-Louise
Robert, do Quebec.
   Estava escrita a emano em francês e vinha acompanhada de uma tradução datilografada.
   Enjoe-meu nome é-Louise Robert e sou de nacionalidade canadense, viúva de Émile Édouard Robert, um francocanadiense. Conheci-o e me casei com ele no Canadá no
ano 1958. Morreu faz dois anos. Eu nasci em 1928, de modo que em 1942 tinha quatorze anos.
Pascal quem preparou os documentos falsos para Sophie e os gêmeos. Ésse era
seu trabalho ma Resistência, contudo não recordo si enão já o sabia.
Recomendou a minha mãe que não fizesse nem dissesse nada, que essas
coisas ocorriam por alguma razão. Contudo, ao dia seguinte minha mãe foi
ver o senhor Etienne e quando voltou falou com meu avô. Acredito que não
fizesse diferença que os ouvissem, pois enquanto falavam eu lia na mesma
habitação. Minha mãe disse que o senhor Etienne havia delatado Sophie
aos alemães, mas que havia sido necessário.
Se não a castigavam por ter acolhido a judeus na granja era precisamente porque confiavam nele e apreciavam sua amizade. Se não tinham deportado ao Pascal nem lhe
tinham condenado a trabalhos forçadas era graças a sua boa  relação com os alemães. O senhor Etienne perguntou a minha mãe o que era mais importante para ela: a
honra da França, a segurança de sua família ou três judeus. A partir de então não se voltou a falar do Sophie e os gêmeos; era como se nunca tivessem existido.
Se eu perguntava por eles, minha mãe se limitava a responder: "Isso já terminou. acabou-se." O dinheiro da organização seguia chegando, embora não era muito, e
meu avô disse que devíamos ficar o Então fomos muito pobres.
 Acredito que alguém escreveu perguntando pelo Sophie e os meninos uns dezoito meses depois de que os tivessem levado, mas minha mãe respondeu que as autoridades
começavam a suspeitar e que Sophie se foi a casa de uns amigos no Lyon e que não sabia sua direção. depois disso deixou de chegar dinheiro.
  Sou a única que fica de minha família. Meu avô morreu em 1946 e minha mãe um ano mais tarde, de câncer. Pascal se matou com a moto em 1954. depois de me casar
 não voltei nunca para o Aubière. Não recordo nada mais do Sophie e os meninos, salvo que joguei muito de menos aos gêmeos quando os levaram.
  A carta estava datada em 18 de junho de 1989. Dauntsey tinha necessitado mais de quarenta anos de investigação para encontrar a Enjoe-Louise Robert e sua prova
 definitiva. Mas não se deteve aí: o último documento da pasta levava data de 20 de julho de 1990 e estava redigido em alemão, também com a tradução  anexa. Dauntsey
tinha seguido a pista de um dos oficiais alemães do Clermont-Ferrand. Em frases diretas e linguagem oficial, um ancião retirado e com residência  na Baviera tinha
revivido durante uns minutos um pequeno incidente de um passado recordado só pela metade. A verdade da traição ficava confirmada.
  Na pasta ainda havia outro papel, guardado dentro de um sobre. Daniel o abriu e encontrou uma fotografia em branco e negro que devia ter mais de cinqüenta  anos,
descolorida mas ainda nítida. Era evidente que a tinha tomado um aficionado, e nela se via uma jovem sorridente, de cabelos escuros e olhar doce,  que rodeava com
os braços a seus dois filhos. Os meninos se apoiavam em sua mãe e olhavam à câmara sem sorrir, com os olhos muito abertos, como se fossem conscientes  da importância
daquele instante, de que o estalo do obturador fixaria para sempre sua frágil mortalidade. Daniel lhe deu a volta à foto e leu: "Sophie  Dauntsey. 1920-1942.
  Martin e Ruth Dauntsey. 1938-1942."
  Fechou a pasta e durante uns segundos permaneceu tão imóvel como se fora uma estátua.
  Logo se levantou, passou à sala dos arquivos e começou a perambular entre as estanterías, detendo-se de vez em quando para golpear com a palma da mão  os suportes
metálicos. Estava poseído por uma emoção que reconhecia como ira, mas que não se parecia com nenhum acesso de ira que tivesse experiente antes. Ouviu  um estranho
ruído desumano e de repente se deu conta de que eram seus gritos pela dor e o horror do que tinha descoberto. Não lhe ocorreu destruir as provas;  isso não podia
fazê-lo e não o pensou nem por um momento. Mas podia avisar ao Dauntsey, lhe acautelar de que estavam perto e de que tinham descoberto o móvel que  faltava.  Surpreendeu-lhe
por uns instantes que Dauntsey não tivesse recuperado e destruído aqueles papéis. Já não os necessitava.
  Nenhum tribunal tinha que vê-los. Não os tinha recolhido com tal paciência, com tal minuciosidad, ao longo do meio século, para apresentá-los ante um tribunal.
 Dauntsey tinha sido juiz e jurado, fiscal e demandante. Acaso os teria destruído se a sala não tivesse estado fechada, se Dalgliesh não tivesse intuído que o motivo
 desse crime jazia no passado e que a evidência que faltava podia ser uma evidência escrita.
  de repente soou o timbre do telefone, duro e insistente como um alarme. Daniel deixou de andar e ficou paralisado, como se responder à chamada pudesse destruir
 sua intensa preocupação e lhe devolver às banalidades clamorosas do mundo exterior. Mas seguia soando. aproximou-se do telefone de parede e, ao desprendê-lo, ouviu
 a voz do Kate.
  demoraste muito em responder.
  Sinto muito. Estava baixando pastas. Está bem, Daniel?
  Sim. Sim, estou bem.
  Kate lhe anunciou:
  recebemos notícias do laboratório. As fibras concordam. Carling foi assassinada na lancha. Mas nos objetos dos suspeitos não se encontrou  nem rastro da mesma
fibra.
  Suponho que era muito esperar. Assim que algo adiantamos, mas não muito. O chefe está pensando em interrogar ao Dauntsey amanhã, com magnetófono e lhe informando
 de seus direitos. Não tiraremos nada em limpo, mas suponho que terá que tentá-lo. Não se virá abaixo. E outros tampouco.
  Pela primeira vez Daniel percebeu na voz do Kate o leve hesitação do desespero. encontraste algo interessante? acrescentou ela.
  Não, nada interessante. Deixo-o já. Vou a casa.
  (Dalgliesh 09) O Pecado Original
 62

  Voltou a colocar a fotografia dentro do sobre e se guardou o sobre no bolso. A seguir colocou todas as pastas em seu lugar correspondente da prateleira  superior,
entre elas a de cartolina marrom; apagou as luzes, abriu a porta por dentro e a fechou com chave por fora. Claudia Etienne tinha deixado acesas  todas as luzes
da escada e ele foi apagando enquanto baixava. as da planta baixa as acendeu para ver por onde ia. Todos seus atos eram deliberados,  extraordinários, como se cada
um deles tivesse um valor singular. Jogou um último olhar ao grande teto abovedado, sumiu o salão em trevas, conectou os alarmes  e por último apagou a luz da recepção
e abandonou Innocent House, fechando a porta detrás de si. perguntou-se se voltaria a entrar nela alguma vez e sorriu  com ironia ao pensar que, em um momento como
aquele, resolvido já a cometer a perfídia imperdoável, a grande iconoclasia, ainda era capaz de atender meticulosamente  às coisas que careciam de importância.
  Não viu sinais de vida nas pequenas janelas laterais do número 12. Chamou o timbre do Dauntsey e elevou a vista para as escuras janelas. Não houve resposta. 
Talvez estava com o Frances Peverell. Correu para o Innocent Walk e foi então quando, ao olhar para a esquerda, viu que o Rover cor nata do Dauntsey abandonava
 seu estacionamento diante da garagem. Deu instintivamente uns passos para ele, mas em seguida se deu conta de que era inútil chamá-lo; com o ruído do motor e 
o estalo continuado das rodas sobre os paralelepípedos, não lhe ouviria.
  precipitou-se para seu Golfe GTI, estacionado no Innocent Lane, e empreendeu a perseguição. Tinha que falar com ele aquela mesma noite. Ao dia seguinte podia
 ser  muito tarde. Dauntsey só lhe levava meio minuto de vantagem, mas até essa pequena diferença podia resultar crucial se encontrava limpa a entrada à  auto-estrada
ao final do Garnet Road. Mas teve sorte: chegou a tempo de ver que o automóvel girava à direita neste direção, para os subúrbios do Essex,  não para o centro de
Londres.
  Durante os sete ou oito quilômetros seguintes conseguiu não perder de vista o Rover. O tráfico de veículos que retornavam a suas casas ainda era intenso uma 
reluzente massa de metal que avançava com lentidão e Daniel, até conduzindo com toda a habilidade de que era capaz, de uma maneira mais egoísta que ortodoxa, apenas
 ganhava distância. de vez em quando perdia ao Dauntsey, mas ao cabo de uns instantes, quando o tráfico melhorava ligeiramente, descobria que ainda circulava pela
 mesma estrada. E Daniel começou a suspeitar aonde se dirigia. Conforme avançava se sentia mais seguro; e quando ao fim se aproximaram da A12 já não ficou nenhuma
 dúvida. Entretanto, em cada semáforo, em cada pausa, em cada lance de estrada limpa, sua mente se concentrava nos dois assassinatos que o tinham levado a aquela
 perseguição, a aquela resolução.
  Agora via o plano inteiro em toda seu brilhantismo, toda sua simplicidade inicial. O assassinato do Etienne se projetou de modo que parecesse um acidente, se
 tinha calculado em todos seus detalhes durante semanas, provavelmente meses, esperando com paciência o momento adequado. A polícia sempre tinha sabido que Dauntsey
 era o principal suspeito. Ninguém tinha tantas facilidades como ele para trabalhar no despachito dos arquivos sem ser incomodado. Provavelmente tinha fechado 
a porta com chave enquanto desmontava a estufa de gás, desprendia os entulhos da chaminé e voltava a instalar a estufa com o canhão convenientemente obstruído.
 O cordão da janela o tinha desgastado deliberadamente ao longo de semanas. E tinha eleito a noite ideal para o assassinato, uma quinta-feira, o dia em que, como
 todo mundo sabia, Etienne ficava a trabalhar a sós.
  Tinha-o preparado tudo para as sete e meia, justo antes de sair para o Connaught Arms. Tinha sido fortuito aquele compromisso? O ato se celebrou  por acaso a
mesma noite que ele tinha eleito para o assassinato? Ou, pelo contrário, tinha eleito aquela noite para que coincidisse com o recital  de poesia? Não lhe teria
resultado difícil consertar alguma outra entrevista.
  Sempre tinha parecido estranho que se incomodou em ir à leitura de poesia; não tinha participado nenhum outro poeta de renome e o acontecimento  logo que podia
considerar-se de importância literária.
  Deveu esperar o momento oportuno para introduzir-se às escondidas no Innocent House, quando já se partiram todos exceto Etienne, e subir sigilosamente  ao cuartito
dos arquivos. Mas até no caso de que Etienne tivesse saído inesperadamente de seu escritório e o tivesse visto, não lhe haveria dito nada. por que  ia fazer o?
Dauntsey tinha uma chave do edifício, era um dos sócios, podia ir e vir a seu desejo. Etienne teria suposto que subia a seu escritório do terceiro  piso para procurar
algum papel que necessitava antes de dirigir-se ao Connaught Arms.
  E logo, o que? Deveu fazer os últimos preparativos uma hora antes. Daniel via claramente cada um de seus atos e sua conseqüência. Dauntsey tinha pego a  mesa
e a cadeira e as tinha tirado; era importante que Etienne não tivesse nenhum meio de alcançar a janela. Logo limpou a habitação. Não devia haver pó ou  sujeira
onde Etienne pudesse escrever o nome de seu assassino. A agenda com o lápis já a tinha roubado antes, para evitar que Etienne a levasse em um bolso  da jaqueta
ou da calça. A seguir Dauntsey acendeu a estufa de gás, abriu a chave ao máximo a fim de que começassem a acumulá-los gases antes de  que chegasse sua vítima e
a retirou. Por último, colocou o magnetófono no chão e o conectou. Queria que Etienne soubesse que ia morrer, que não tinha nenhuma  possibilidade de salvação,
que naquele edifício deserto e isolado ninguém ouviria seus gritos nem seus golpes na porta um esforço que só contribuiria a acelerar  seu fim, que sua morte era
tão inevitável como se o tivessem arrojado à câmara de gás de Auschwitz.
  Mas, sobre tudo, queria que Etienne soubesse por que devia morrer.
  Assim tinha ficado disposta a cena para o assassinato. Logo, justo antes das sete e meia, Dauntsey chamou o despacho do Etienne do telefone situado  junto à porta
do cuartito dos arquivos. O que deveu lhe dizer? "Sobe em seguida, encontrei algo importante." Etienne, naturalmente, lhe teria feito conta.  por que não? Enquanto
subia a escada, possivelmente se perguntasse se Dauntsey tinha descoberto uma pista da identidade do brincalhão pesado. Em todo caso, carecia  de  importância o
que pensasse: a chamada procedia de um homem no que confiava e ao que não tinha motivos para temer. A voz deveu ser imperiosa, a mensagem intrigante.  É obvio que
tinha subido.
  A cena do crime estava preparada, poda e vazia. O que aconteceu depois? Dauntsey estaria esperando junto à porta. Não deveu produzir-se mais que um breve  intercâmbio
de palavras. O que ocorre, Dauntsey?
  Teria falado em tom impaciente, um pouco arrogante:
  É aí dentro, no despachito dos arquivos. Já o verá você mesmo. Há uma mensagem gravada nessa toca-fitas. Escuta-o e compreenderá.
  E Etienne, perplexo mas sem suspeitar nada estranho, tinha entrado na habitação onde devia morrer.
  A porta se fechou rapidamente, a chave girou na fechadura. Sid a lhe Vaiem já estava escondida entre as pastas do arquivo, e Dauntsey a estendeu ao pé  da porta
para obstruir inclusive aquela mínima entrada de ar. No momento, não terei que fazer nada mais. Podia partir ao recital de poesia.
  Tinha previsto retornar do Connaught Arms por volta das dez para concluir sua obra. E poderia tomar-lhe com calma. A porta teria que permanecer vários minutos
 aberta para que se dispersassem as fumaças. Continuando, voltaria a colocar a chave na fraude e deixaria a habitação como estava antes. Teria que pôr  a mesa e
a cadeira em seu sítio, dispor as bandejas sobre a mesa como estavam acostumados a estar. E não teria pensado em nada mais? Teria sido judicioso acrescentar  outra
pasta  ao montão existente, documentos que Etienne tivesse podido procurar ou descobrir, que tivessem despertado seu interesse, um expediente que lhe tivesse incitado
a  subir  ao despachito dos arquivos; um contrato antigo, por exemplo, talvez um pouco relacionado com o Esmé Carling. Dauntsey teria podido agarrá-lo antes e guardá-lo
oculto  entre outros papéis, preparado para ser utilizado. E logo, depois de assegurar-se de que a chave ficava na parte interior da porta, teria se partido levando-se
 a serpente consigo.
  Teria podido trabalhar sem pressas, certamente movendo-se pelo Innocent House com ajuda de uma lanterna, mas sabendo que uma vez estivesse no cuartito de  os
arquivos poderia acender a luz sem perigo. Teria baixado ao despacho do Etienne para recolher a jaqueta e as chaves, pendurado a jaqueta no respaldo de  a cadeira,
depositado as chaves sobre a mesa. É obvio, não teria podido devolver o pó ao suporte da chaminé e ao chão, mas realmente se haveria  fixado alguém na limpeza excepcional
da habitação se de um princípio a morte tivesse parecido acidental?
  E a cena teria falado por si mesmo. Aí estava Etienne, estudando um expediente que obviamente lhe interessava. Devia ter pensado trabalhar ali algum  tempo, posto
que tinha subido com a jaqueta e as chaves e tinha aceso a estufa. Tinha fechado a janela, rompendo o cordão ao fazê-lo. Certamente se  teria encontrado o corpo
desabado sobre a mesa ou no chão de barriga para baixo, como se se arrastasse para a estufa. O único enigma teria sido por que não se havia  dado conta do que estava
lhe ocorrendo e não tinha aberto a porta imediatamente, mas um dos primeiros sintomas da intoxicação por monóxido de carbono  era a confusão mental. Não se teria
estabelecido a rigidez da mandíbula, não teria sido necessário lhe colocar a cabeça da serpente na boca; teria resultado  um exemplo quase perfeito de morte acidental.
  Mas ao Dauntsey lhe tinham torcido as coisas. O assalto, as horas perdidas no hospital, o tardio retorno a casa tinham transtornado todos seus planos. Quando
 por fim chegou a seu piso, dispunha de muito pouco tempo. Frances estava lhe esperando, de modo que devia atuar com extraordinária celeridade. E em um momento
em  que  achava-se fisicamente debilitado! Mas ainda lhe funcionava o cérebro. Abriu um pouco o grifo da banheira de forma que a sua volta a encontrasse mais ou
menos enche.  Certamente se tinha tirado a roupa e só tinha posto o batín; convinha-lhe mais entrar nu no cuartito dos arquivos. Mas tinha que voltar ali, e  aquela
mesma noite. depois de seu acidente, resultaria muito suspeito que fora o primeiro em chegar ao Innocent House à manhã seguinte. E o mais importante  de tudo, tinha
que recuperar aquela cinta, aquela cinta delatora com sua confissão de assassinato.
  Etienne tinha escutado a mensagem; Dauntsey se tinha dado pelo menos essa satisfação. Sua vítima tinha sido consciente de que estava condenada, mas, em um  rasgo
de engenho, lhe tinha ocorrido a maneira de vingar-se. Decidido a que se encontrasse a prova condenatória, colocou-se a toca-fitas na boca. E era evidente  que
logo, desorientado, tinha tido a idéia de apagar a estufa com ajuda da camisa. arrastava-se engatinhando pelo chão quando lhe sobreveio a perda da  consciência.
Quanto tinha demorado Dauntsey em encontrar a cinta? Não muito, naturalmente.
  Mas teve que romper a rigidez da mandíbula para apoderar-se dela e compreendeu que já não ficava nenhuma esperança de que a morte pudesse passar por acidental.
 Era por isso pelo que logo tinha cooperado tão plenamente com a polícia e tinha famoso a ausência do magnetófono, inclusive a limpeza da habitação? Eram  detalhes
que a polícia acabaria conhecendo por outras pessoas; resultava prudente ser o primeiro em mencioná-los. E tinha tido que transladar a mesa e a cadeira  a toda
pressa; nem sequer se tinha dado conta de que tinha colocado a mesa com o lado oposto contra a parede, de modo que a posição das bandejas ficava  investida, nem
de que havia um pequeno sinal na parede que indicava que a mesa tinha sido movimento. Além disso, não dispunha de tempo para ir procurar a jaqueta  e  as chaves
do Etienne.
  Mas o que podia fazer com a mandíbula, uma vez rota a rigidez? A idéia de recorrer ao Sid a lhe Vaiem, a serpente, deveu ser uma inspiração. Tinha-a ali  mesmo,
ao alcance da mão; não precisava perder tempo em ir procurar a. Quão único devia fazer era enroscá-la em torno do pescoço do Etienne e lhe embutir a  cabeça na
boca. Tinha empreendido aquela série de brincadeiras malintencionadas para embrulhar a investigação se a morte do Etienne não se considerava acidental,  mas não
podia suspeitar a importância que chegaria a cobrar para ele.
  Logo, ao sair, viu o original do Esmé Carling, encadernado em azul, sobre o mostrador da sala de recepção, e sua mensagem parecida com tachinhas na  parede. Deveu
ser um momento de pânico, mas certamente não durou muito. O mais provável era que Esmé Carling se partiu do Innocent House antes de que  ele chamasse o Etienne
para fazê-lo subir ao quarto dos arquivos. Possivelmente Dauntsey se deteve uns instantes a refletir sobre a conveniência de voltar atrás  para  assegurar-se, e
chegou à conclusão de que não valia a pena: estava claro que se partiu, deixando o manuscrito e a nota como proclamação pública de seu  indignação. Diria Carling
à polícia que tinha estado ali ou guardaria silêncio? Dadas as circunstâncias, Dauntsey concluiu que não mencionaria sua visita.  Mas decidiu levar o manuscrito
e a nota. Era um assassino previdente, tão previdente para contemplar já naqueles momentos a possibilidade de que Carling tivesse  que morrer.
  (Dalgliesh 09) O Pecado Original
 63

  Frances recuperava e perdia o conhecimento, despertando a uma compreensão médio imprecisa para desvanecer-se outra vez quando sua mente roçava brevemente a realidade,
 rechaçava seu horror e se refugiava de novo no esquecimento. Quando voltou em si por completo permaneceu uns minutos tendida, sem mover-se, sem respirar apenas,
 avaliando  a situação passo a passo, como se essa aceitação gradual fizesse mais suportável a realidade. Estava viva. encontrava-se tendida sobre o flanco esquerdo
no chão  de um carro, coberta por uma manta de viagem. Tinha os tornozelos e as mãos atados. Estava amordaçada com algo brando, certamente seu próprio xale de seda.
O avanço  do veículo era irregular; em uma ocasião se deteve, e Frances notou uma suave sacudida quando atuaram os freios. Deviam estar parados ante um semáforo.
Isso  queria dizer que viajavam em uma corrente de tráfico. Tentou desprender-se da manta, mas descobriu que a tinha muito rodeada ao corpo. Entretanto, até  estando
maça de pés e mãos, ao menos podia mover-se. Se havia carros a seu redor, cabia a possibilidade de que algum automobilista olhasse pelo guichê,  visse as sacudidas
da manta e sentisse saudades. Apenas lhe tinha ocorrido a idéia quando o carro ficou em marcha de novo e avançou com suavidade.
  Estava viva. Devia aferrar-se a isso. Talvez Gabriel tivesse intenção de matá-la, mas lhe teria resultado muito fácil fazê-lo enquanto ela jazia inconsciente
 na garagem. por que não a tinha matado então? Resultava inconcebível que queria mostrar-se compassivo com ela: que compaixão tinha tido com o Gerard, com  Esmé
Carling, com a Claudia? achava-se em mãos de um assassino. A palavra ressonou em sua mente como um aldabonazo e despertou o terror que permanecia adormecido  desde
 que tinha recuperado o conhecimento. O medo, primitivo e incontrolável, alagou-a como uma quebra de onda humilhante, aniquiladora de todo pensamento e vontade.
Naquele  momento compreendeu por que não a tinha matado na garagem. O assassinato da Claudia, como os outros dois, devia parecer um suicídio ou um acidente. Gabriel
não podia  deixar dois cadáveres no chão da garagem; tinha que desfazer-se dela, mas de uma maneira distinta. O que lhe teria ocorrido? Fazê-la desaparecer por
completo?  Um assassinato que Dalgliesh não tivesse esperanças de resolver, posto que não haveria cadáver? Recordou ter lido em alguma parte que não era necessário
apresentar  o  corpo para demonstrar legalmente que alguém tinha sido assassinado, mas possivelmente Gabriel não o tinha tido em conta. Estava louco; tinha que
estar louco. Naqueles  mesmos momentos podia estar fazendo planos, pensando, tratando de imaginar a melhor maneira de livrar-se dela: levar o carro até o bordo
de um escarpado  e arrojá-la ao mar; enterrá-la em alguma sarjeta, ainda atada; jogá-la ao poço de uma mina abandonada, onde jamais a encontrariam e morreria de
fome e de sede.  Uma imagem acontecia a outra, a qual mais pavorosa: a aterradora queda na escuridão para o fragor do fluxo, a asfixiante mescla de folhas e terra
úmida pisoteada  sobre seus olhos e sua boca, o túnel vertical da mina onde morreria lentamente de fome em claustrofóbica agonia.
  O automóvel circulava com mais regularidade. Deviam haver-se desprendido dos últimos tentáculos de Londres; certamente se achavam em campo aberto. Fazendo  um
esforço, conseguiu acalmar-se. Estava viva. Ainda havia esperança, e se ao fim devia morrer, tentaria confrontar a morte com valentia. Gerard e Claudia, agnósticos
 os dois, teriam morrido com valor embora não lhes tivesse permitido morrer com dignidade. Do que servia sua religião se não a ajudava neste transe?
  Fez ato de contrição, rezou depois pelas almas do Gerard e Claudia e, em último lugar, rezou por si mesmo e por sua própria segurança. As palavras familiares
 e tranqüilizadoras lhe contribuíram o consolo de que não estava sozinha. Continuando, tentou urdir algum plano. Posto que ignorava o que Gabriel pensava fazer
com  ela, resultava difícil decidir que estratégia seria a melhor. Mas uma coisa era segura: ele não teria força suficiente para carregar com seu peso sem ajuda,
mas  como  queria dizer que deveria lhe desatar ao menos os tornozelos. Ela era mais jovem e mais forte, de modo que lhe seria fácil deixá-lo atrás. Se lhe apresentava
a ocasião,  tentaria escapar correndo. Mas, ocorresse o que ocorresse ao final, não lhe suplicaria clemência.
  Enquanto isso, devia procurar que não lhe intumescessem muito os membros. As mãos, torcidas com violência depois das costas, estavam atadas com algo brando, 
possivelmente sua gravata ou um meia três-quartos. depois de tudo, Gabriel não devia ir preparado para mais de uma vítima. Entretanto, havia resolvido o problema
 com eficácia:  ao Frances resultava impossível liberar-se. Os tornozelos estavam atados com a mesma firmeza, embora em uma postura mais cômoda. Entretanto, inclusive
atada podia  esticar e relaxar os músculos das pernas, e o fato de entregar-se a tão pequeno preparativo para a fuga lhe proporcionou forças e valor. disse-se,
além disso, que  não devia perder a esperança de ser resgatada. Quanto demoraria James em descobrir que tinha desaparecido?
  Provavelmente não faria nada antes de uma hora; atribuiria seu atraso ao tráfico ou a algum problema no metro. Mas logo chamaria o número 12 e, ao não obter 
resposta, tentaria localizar a Claudia em seu piso do Barbican. E talvez nem sequer então se sentisse excessivamente preocupado. Mas sem dúvida não esperaria  mais
de uma hora e meia. Possivelmente tomaria um táxi para ir ao número 12. Possivelmente, com um pouco de sorte, ouviria o ruído do motor do Porsche encerrado  na
garagem.
  Uma vez encontrado o cadáver da Claudia e conhecida a ausência do Dauntsey, daria-se o alarme a todas as unidades da polícia para que interceptassem seu carro.
 Devia aferrar-se a essa esperança.
  Gabriel seguia conduzindo. Frances, por sua parte, não podia consultar o relógio para saber que hora era, e tampouco tinha nem idéia de que direção levavam. Não
 esbanjou suas energias perguntando-se por que Gabriel tinha matado. Era inútil; isso só podia dizer-lhe ele, e possivelmente ao final o dissesse. O que fez, em
troca,  foi pensar em sua própria vida. O que tinha sido sua vida, a não ser uma série de concessões? O que lhe tinha dado a seu pai, a não ser uma aquiescencia
tímida que  só havia  servido para reforçar sua insensibilidade e seu desdém? por que tinha ingressado tão docilmente na empresa quando ele o tinha indicado, para
encarregar do departamento  de direitos e contratos?
  Podia realizar seu trabalho satisfatoriamente; era conscienciosa e metódica, minuciosa nos detalhes.
  Mas não era isso o que queria fazer com sua vida. E Gerard? No fundo de seu coração, sempre tinha sabido que sua exploração sexual não era mais que isso; Gerard
 tinha-a tratado com desprezo porque ela se converteu em um ser desprezível. Quem era, em realidade? O que era? Frances Peverell, mansa, complacente,  bondosa,
a que nunca se queixava, um apêndice de seu pai, de seu amante, da empresa. Agora que sua vida possivelmente chegava a seu fim, ao menos podia dizer: "Sou  Frances
 Peverell. Sou eu mesma." Se vivia para casar-se com o James, ao menos poderia lhe oferecer um trato de igualdade. Tinha encontrado valor para confrontar a morte,
 mas isso,  a fim de contas, não era tão difícil. Milhares de pessoas o faziam diariamente, inclusive meninos. Já era hora de que encontrasse o mesmo valor para
confrontar a  vida.
  sentia-se curiosamente em paz. de vez em quando rezava uma oração, pronunciava mentalmente os versos de algum de seus poemas favoritos, rememorava momentos  de
alegria. Inclusive tentou dormir um pouco, e talvez o teria conseguido se um inclinação brusca do carro não a tivesse sobressaltado.
  Gabriel devia conduzir por um terreno acidentado. O Rover se bamboleava, dava tombos, saltava nos buracos, e Frances com ele. Depois veio outro lance menos  irregular,
certamente, pensou ela, uma pista de terra. Então o carro se deteve e lhe ouviu abrir a portinhola.
  (Dalgliesh 09) O Pecado Original
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  No Hillgate Village, James jogou outro olhar ao relógio que repousava sobre o suporte da chaminé.
  Eram as 7.42. Tinha transcorrido algo mais de uma hora desde que chamasse o Frances. Já teria que ter chegado. Repetiu uma vez mais o cálculo rápido que havia
 vindo fazendo durante os últimos sessenta minutos. Entre o Bank e Notting Hill Gate havia dez estações; contando dois minutos por estação, seriam uns vinte  para
todo o trajeto, e quinze minutos para chegar ao Bank. Mas possivelmente não tinha encontrado a Claudia e tinha tido que chamar um táxi. Mesmo assim, a viagem  não
podia  durar sessenta minutos, nem sequer em hora ponta e pelo centro de Londres, a não ser que houvesse um entupo excepcional, cale fechadas ou uma alerta terrorista.
 Voltou a chamar casa do Frances; tal como supunha, não houve resposta. A seguir marcou de novo o número da Claudia, mas também foi em vão. Isso não lhe surpreendeu:
 Claudia tinha podido ir diretamente a reunir-se com o Declan Cartwright, ou possivelmente tinha um compromisso para ir jantar ou ao teatro. Nada lhe permitia supor
 que Claudia  tivesse que estar em casa. Conectou a rádio e sintonizou uma emissora local, mas teve que esperar outros dez minutos para escutar o boletim de notícias.
advertia-se  aos viajantes que havia uma retenção na Central Line. Não deram nenhuma razão, coisa que habitualmente indicava a existência de uma ameaça do IRA,
mas disseram  que quatro estações entre o Holborn e Marble Arch se achavam fechadas ao público. Assim que esta era a explicação. Frances ainda podia demorar uma
hora mais em chegar.  assim, não ficava mais remedeio que armar-se de paciência e esperar.
  Começou a percorrer com nervosismo a sala de estar. Frances sofria uma ligeira claustrofobia. Ele sabia o muito que detestava utilizar o túnel peatonal de Greenwich.
 Desgostava-lhe viajar de metro.
  Não estaria apanhada ali se não tivesse querido acudir a toda pressa para estar a seu lado. James esperou que não se apagaram as luzes do trem, que não tivesse
 que permanecer sentada, sem amigos, na mais completa escuridão. E de súbito teve uma visão extraordinariamente vivida e angustiosa do Frances abandonada, moribunda,
 em um túnel escuro e opressivo, longe dele, inalcançável e sozinha.
  Expulsou de sua mente essa imagem morbosa e olhou de novo o relógio. Esperaria meia hora mais e tentaria ficar em contato com os Transportes de Londres para 
averiguar se a linha já estava aberta ou quanto calculavam que ia prolongar se o atraso. aproximou-se da janela e, movendo-se depois das cortinas, contemplou a
 rua iluminada e desejou que sua força de vontade pudesse fazê-la aparecer.
  (Dalgliesh 09) O Pecado Original
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  Daniel se achava por fim na A12, onde o tráfico era mais ligeiro. Procurava não exceder o limite de velocidade; seria desastroso que o parasse uma patrulha  da
polícia. Mas Dauntsey devia tomar as mesmas precauções para não chamar a atenção, para não ser detido. Neste sentido circulavam em iguais condicione,  mas seu carro
era mais rápido. Pensou na melhor maneira de adiantá-lo uma vez tivesse sua presa à vista. Em circunstâncias normais, quase com toda segurança Dauntsey  reconheceria
seu carro, provavelmente o identificaria ao primeira olhada, mas não acreditava que se deu conta de que alguém lhe seguia. Não estaria atento à  presença de um
perseguidor.
  O melhor seria esperar a que a estrada se enchesse e arriscar-se a adiantá-lo enquanto seus carros se mesclavam na corrente do tráfico.
  E então, pela primeira vez, lembrou-se da Claudia Etienne. Horrorizou-lhe que, em sua preocupação por dar alcance ao Dauntsey e lhe advertir qual era sua situação,
 não lhe tivesse ocorrido pensar que ela podia correr perigo. Mas seguro que estava bem. Quando a tinha visto por última vez se dispunha a ir-se a casa; já devia
 de encontrar-se a salvo. Dauntsey ia diante dele, no Rover. O único risco era que ela tivesse decidido visitar seu pai e naquele mesmo instante se achasse  caminho
da Othona House; mas essa era uma razão de mais para chegar ali o primeiro. Não valia a pena tratar de deter o Dauntsey, adiantá-lo, lhe fazer gestos com  a mão.
Dauntsey só pararia se se via obrigado a fazê-lo, e Daniel precisava falar com ele, acautelá-lo, mas com calma, não investindo-o com seu carro. A última  cena da
tragédia devia desenvolver-se em paz.
  E então divisou por fim o Rover. Estavam aproximando-se da redondeza do Chelmsford e o tráfico era cada vez mais intenso. Esperou o momento apropriado,  somou-se
à corrente de carros do sulco de adiantamento e deixou atrás ao Dauntsey.
  Esmé Carling devia ter acontecido uns dias maus depois do descobrimento do cadáver. Sem dúvida esperava que chegasse a polícia para interrogá-la sobre a nota
 cravada no tablón e o manuscrito abandonado, mas unicamente se apresentaram Robbins e ele com perguntas inofensivas a respeito de seu álibi, e um álibi  era o
que lhes tinha dado. Tinha mantido admiravelmente a compostura, isso devia reconhecer-lhe Daniel não tinha suspeitado em nenhum momento que talvez soubesse  algo
mais. E depois? Que pensamentos lhe tinham passado pela cabeça? Tinha-lhe chamado Dauntsey ou tinha sido ela a que ficou em contato com ele? O segundo,  quase com
toda certeza. Dauntsey não teria tido necessidade de matá-la se não lhe houvesse dito que lhe tinha visto baixar a escada carregado com a aspiradora.  Também ele
devia ter acontecido maus momentos e também ele tinha mantido o sangue-frio. Esmé Carling não lhes havia dito nada e ele tinha devido de acreditar-se  em  salvo.
  E então se teria produzido a chamada Telefónica, a sugestão de que tinham que ver-se, a ameaça implícita de ir à polícia se não publicavam seu livro.  A ameaça,
é obvio, era infundada: Carling não podia ir à polícia sem revelar que ela também tinha estado no Innocent House aquela noite, e tinha um motivo  para eliminar
ao Etienne tão capitalista como o de qualquer outro. Mas a mente da escritora, engenhosa, intrigante, retorcida, um pouco obsessiva, tinha suas limitações.  Não
pensava com claridade nem era muito inteligente. Como exatamente, perguntou-se, tinha-a atraído Dauntsey a aquela entrevista? Disse-lhe possivelmente que sabia
 ou suspeitava  quem tinha matado ao Etienne e que juntos podiam descobrir a verdade e desfrutar de um triunfo compartilhado? Chegaram ao menos ao acordo provisório
de que ela  guardaria silêncio e lhe devolveria o manuscrito e a nota e se encarregaria de que se publicasse sua novela? Carling havia dito ao Daisy Reed que a
Peverell  Press teria que publicá-la. Quem, se não um dos sócios, podia lhe haver dado essa garantia? teria se apresentado Dauntsey nessa breve conversação como
seu  defensor e seu salvador ou como um companheiro de conspiração? Nunca saberiam, a menos que Dauntsey decidisse dizer-lhe    Una cosa estaba clara: Esmé Carling
había  acudido a la cita sin miedo. No sabía quién era el asesino, pero creía saber con certeza quién no podía serlo. Era ella
  Uma coisa estava clara: Esmé Carling tinha ido à entrevista sem medo. Não sabia quem era o assassino, mas acreditava saber com certeza quem não podia sê-lo. Era
 ela  a visita que estava no despacho do Etienne quando este tinha recebido a chamada, e, ao princípio, tinha esperado a que retornasse. Logo, cada vez mais impaciente,
 tinha subido ao cuartito dos arquivos e, ao sair do despacho da senhorita Blackett, tinha visto baixar ao Dauntsey com a aspiradora. Ao chegar acima havia  visto
a serpente ante a porta e ouvido uma voz no interior: dentro do cuartito havia alguém falando. A porta não era muito grosa e provavelmente se deu conta  de que
não era a voz do Etienne. Depois, quando tirou o chapéu o corpo, acreditou que podia estar segura da inocência do Dauntsey. Ela mesma o tinha visto baixar  pela
escada quando Etienne ainda estava vivo e falando com seu assassino no despachito dos arquivos. E como tinha arrumado Dauntsey seu álibi para o assassinato  do
Esmé Carling? Agora o compreendia, claro; Bartrum e ele se ficaram a sós com o cadáver antes de que chegasse a polícia. Não tinha sido Dauntsey quem  tinha sugerido
que as mulheres entrassem em casa, que eles dois esperariam junto ao corpo? Foi então quando deveu consertar seu álibi. Mas era estranho que  Bartrum tivesse acessado.
Tinha-lhe prometido Dauntsey lhe ajudar a conservar seu emprego? A obter uma ascensão? Ou acaso existia uma dívida anterior que saldar?  Fora  qual fosse o motivo,
tinha-lhe proporcionado o álibi. E o pub no que se reuniram meia hora mais tarde que o que asseguravam estava bem eleito: nenhum  empregado do Sailor's Return recordava
com exatidão a que hora tinham entrado dois clientes determinados nesse botequim amplo, ruidosa e cheia de gente.
  O assassinato em si deveu apresentar poucos problemas, pois o único momento de perigo tinha sido o de mover a lancha. Mas isso, naturalmente, não podia evitar-se.
 Dauntsey necessitava a lancha; só na segurança de sua cabine podia matá-la sem ser visto desde terra ou do rio.
  Esmé Carling era uma mulher magra e não pesava muito, mas Dauntsey tinha setenta e seis anos e lhe teria resultado mais fácil pendurá-la da lancha que carregar
 com seu corpo, morto ou vivo, pelos escorregadios degraus banhados pela corrente. E inclusive mover a lancha não representava um grande perigo se mantinha o motor
 desço de revoluções. A única pessoa que vivia nos arredores era Frances, e Dauntsey sabia por experiência o pouco que se ouvia desde sua sala de estar quando 
estavam corridas as cortinas. Além disso, embora tivesse ouvido o ruído de um motor, teria se incomodado em averiguar o que ocorria? Ao fim e ao cabo, era um som
 habitual  no rio. Mas depois do assassinato tinha que devolver a lancha a seu sítio. Dauntsey não podia ter a certeza de que não tivesse ficado nenhum rastro da
escritora  na cabine, por pequeno que fora, e menos se tinha havido luta. Era importante que ninguém relacionasse a lancha com sua morte.
  Carling chegou a sua última e fatídica entrevista em um táxi. Isso deveu ser idéia do Dauntsey, e idéia dela, também, que o táxi a deixasse no extremo do Innocent
 Passage. Ele estaria esperando-a na sombra, imóvel junto ao postigo. O que lhe haveria dito? Que poderiam falar com maior discrição se baixavam ao rio? Certamente
 já teria deixado preparados na cabine o manuscrito e a nota dos sócios. Que mais teria levado ali? Uma soga para estrangulá-la, um xale, um cinturão?  Ou possivelmente
contava com que ela trouxesse sua bolsa de costume? Sem dúvida o tinha visto levar muitas vezes, e a correia era forte.
  Daniel, com o olhar fixo na estrada e as mãos brandamente apoiadas sobre o volante, imaginou a cena que devia haver-se desenvolvido naquela  estreita cabine.
Teriam falado muito? Possivelmente nada absolutamente. Ela já devia haver dito ao Dauntsey por telefone que lhe tinha visto baixar as escadas de  Innocent House
levando a aspiradora. Isso a sentenciava.
  Dauntsey não precisava saber nada mais. Teria sido mais fácil e mais seguro obrar sem perda de tempo. Daniel se imaginou ao Dauntsey fazendo-se a um lado, lhe
 cedendo  cortesmente o passo à entrada da cabine, a correia da bolsa sobre o ombro do Carling... E logo o brusco puxão da correia para cima, a queda e o  esperneio
no chão da cabine, as velhas mãos aferrando em vão o laço de couro enquanto ele o esticava com todas suas forças. Teve que haver ao menos um segundo  de compreensão
horrorizada antes de que uma inconsciência piedosa lhe obscurecesse a mente para sempre.
  E esse era o homem ao que pretendia advertir, não porque ficasse alguma possibilidade de fuga, mas sim porque inclusive o horror da morte do Esmé Carling o  parecia
só uma parte pequena e inevitável de uma tragédia maior e mais universal. Durante toda sua vida a escritora tinha tecido mistérios, explorado coincidências,  disposto
os fatos para que se adaptassem à teoria, manipulado a seus personagens, desfrutado da vaidade do poder sub-rogado. Sua tragédia era que, ao final,  tinha confundido
a ficção com a vida real.
  Foi ter deixado atrás Maldon e sacado para o sul pela B1018 quando Daniel se deu conta de que se perdeu. Pouco antes se deteve  um minuto no borda da estrada
para consultar o mapa, lamentando a cada segundo de tempo perdido. Para chegar ao Bradwell-on-Seja pela rota mais curta devia  deixar a B1018 por um desvio à esquerda
e cruzar os povos do Steeple e St. Lawrence. Pregou de novo o mapa e seguiu conduzindo por uma paisagem escura e desolada.  Mas a estrada, mais larga do que se
figurava, apresentou dois desvios à esquerda que não recordava ter visto no mapa e nenhum sinal do primeiro povo.  Um instinto que jamais tinha conseguido explicarlhe
disse que estava dirigindo-se para o sul, não para o este. deteve-se em um cruzamento para consultar os indicadores  e, à luz dos faróis, viu o nome do Southminster.
Tinha tomado sem dar-se conta a estrada que discorria mais ao sul e era mais larga.
  A escuridão era intensa e espessa como uma névoa. E então as nuvens deixaram um oco à lua e pôde ver um bar de estrada, fechado e abandonado, dois casitas  de
tijolo com tênues luz depois das cortinas e uma só árvore torcida pelo vento com um fragmento de pôster branco parecido na casca que batia as asas como um  pássaro
prisioneiro. Aos dois lados da estrada se estendia um terreno desolado e varrido pelo vento, fantasmagórico sob a fria luz da lua.
  Seguiu adiante. A estrada, com suas voltas e revoltas, parecia interminável. O vento, que tinha começado a aumentar, açoitava brandamente o carro. E ali  estava
por fim o desvio à direita que conduzia ao Bradwell-on-Seja; Daniel viu que estava cruzando os subúrbios do povo, em direção à maciça torre da  igreja e as luzes
do pub. Girou uma vez mais por volta das restingas e o mar. Não se via nem rastro do carro do Dauntsey, e não havia maneira de saber qual dos dois  chegaria antes
a Othona House. Daniel só sabia que aquele seria o fim da viagem para os dois.
  (Dalgliesh 09) O Pecado Original
 66

  abriu-se a portinhola de atrás. depois da envolvente escuridão, do aroma da gasolina, do tapete, de seu próprio medo, o ar fresco iluminado por  a lua acariciou
o rosto do Frances como uma bênção. A jovem só ouvia o suspiro do vento, só via a silhueta escura que se inclinava sobre ela. Gabriel  estendeu as mãos e manipulou
torpemente a mordaça. Por um instante ela notou o roce de seus dedos sobre a bochecha. Logo ele se agachou e lhe desatou os tornozelos.  Os nós não eram complicados;
de ter tido as mãos livres, ela mesma teria podido desfazê-los.
  Gabriel não precisou cortar as ataduras. Significava isso que não levava nenhuma faca? Mas ao Frances já não inquietava sua própria segurança. de repente, teve
 o convencimento de que não a tinha levado ali para matá-la. Gabriel tinha outras preocupações, para ele mais importantes.
  Falou-lhe com uma voz natural e aprazível, a voz que ela tinha conhecido, a que despertava sua confiança, a que gostava de ouvir.
  Se te voltar, Frances, será-me mais fácil te desatar as mãos.
  Teria podido ser seu libertador quem lhe falava, não seu carcereiro. Frances se voltou e em uns segundos teve as mãos livres. Tentou tirar as pernas do carro,
 mas as tinha rígidas e lhe tendeu uma mão para ajudá-la.
  Não me toque disse ela.
  As palavras resultaram ininteligíveis: a mordaça tinha estado mais apertada do que ela acreditava, e tinha a mandíbula fixa em um rictus de dor. Mas ele a  entendeu.
Retrocedeu imediatamente e ficou olhando-a enquanto ela descendia penosamente e se apoiava no veículo para sustentar-se em pé. Era o momento que  tinha estado esperando,
a oportunidade de escapar correndo, pouco importava para onde. Mas Gabriel se desentendeu dela e Frances compreendeu que não fazia  falta correr, que não valia
a pena tratar de fugir. Tinha-a levado até ali por necessidade, mas já não constituía um perigo para ele, sua presença já não tinha  importância. Os pensamentos
do Dauntsey se achavam em outro lugar. Frances podia escapar a tropicões com suas pernas intumescidas; ele não o impediria nem trataria  de segui-la. Estava afastando-se
dela, olhando para o contorno escuro de uma casa, e Frances pôde perceber a intensidade de sua concentração. Para ele, aquele era  o final de um comprido viaje.
Onde estamos? perguntou-lhe. Que sítio é este?
  Ele respondeu com voz cuidadosamente controlada.
  Othona House. vim a ver o Jean-Philippe Etienne.
  dirigiram-se juntos para a porta principal. Gabriel atirou da campainha. Ela ouviu seu tangido até através da grosa prancha de carvalho. A espera não foi  larga.
Ouviram o chiado do ferrolho e o girar da chave na fechadura. Depois se abriu a porta e a robusta silhueta de uma mulher de idade vestida de negro  recortou-se
contra a luz do saguão.
  Monsieur Etienne vous attend disse.
  Gabriel se voltou para o Frances.
  Não acredito que conheça o Estelle, o ama de chaves do Etienne. Não se preocupe. dentro de uns minutos poderá chamar para pedir ajuda. Enquanto isso, se quiser
 ir com o Estelle, ela se ocupará de ti.
  Ela replicou:
  Não necessito que ninguém se ocupe de mim. Não sou uma menina. Trouxeste-me contra minha vontade; agora que estou aqui, fico contigo.
  Estelle os conduziu por um comprido corredor ladrilhado que levava a parte posterior da casa e, uma vez ante a porta, apartou-se para lhes ceder o passo. A  habitação,
obviamente um estudo, estava recubierta de painéis escuros, e o ar estagnado conservava o aroma penetrante da fumaça de lenha.
  Na chaminé de pedra, as chamas se moviam como línguas e a madeira crepitava e vaiava. Jean- Philippe Etienne se achava sentado em uma grande poltrona de brincalhonas
 à direita do lar. Não se levantou. De pé junto à janela, olhando para a porta, estava o inspetor Aaron. Tinha posto um volumoso jaquetão de pele  de cordeiro que
contribuía a sublinhar a corpulência de sua figura. Tinha o semblante muito pálido, mas naquele momento um lenho se partiu e, por um instante, a  crepitante  chama
o fez resplandecer de vida corada. Seus cabelos estavam desordenados, revoltos pelo vento. Devia ter chegado justo antes que eles, pensou Frances,  e estacionado
seu carro fora da vista.
  Sem emprestar atenção a jovem, o inspetor se dirigiu imediatamente ao Dauntsey.
  Segui-lhe até aqui. Tenho que falar com você.
  tirou-se um sobre do bolso, extraiu uma fotografia de seu interior e, depois de depositá-la sobre a mesa, contemplou o rosto do Dauntsey em silêncio. Ninguém
 se  moveu.
  Dauntsey respondeu:
  Já sei o que veio a me dizer, mas o momento de falar passou. Não está aqui para falar, a não ser para escutar.
  Foi então quando Aaron pareceu advertir a presença silenciosa do Frances. por que está você aqui? perguntou-lhe em tom brusco, quase acusador.
  Ao Frances ainda doía a boca, mas respondeu com voz firme e clara.
  Porque me trouxe pela força. vim atada e amordaçada. Gabriel matou a Claudia.
  Estrangulou-a na garagem. Vi o cadáver. Não vai deter o? matou a Claudia e matou aos outros dois.
  Etienne se tinha posto em pé e naquele momento emitiu um som estranho, algo entre um gemido e um suspiro, e voltou a desabar-se na poltrona. Frances correu  para
ele.
  Sinto muito, sinto-o muito disse, deveria havê-lo dito com mais delicadeza.
  Logo, ao elevar o olhar, viu o rosto horrorizado do inspetor Aaron. O inspetor se voltou para o Dauntsey e lhe falou quase em um sussurro.
  Assim terminou você o trabalho.
  Não se atormente, inspetor. Não teria podido salvá-la. Já estava morta antes de que saísse você do Innocent House. voltou-se para o Jean-Philippe Etienne. Em
 pé, Etienne lhe ordenou.
  Quero verte de pé.
  Etienne se incorporou lentamente na poltrona e estendeu a mão para o fortificação. levantou-se com sua ajuda. Fez um esforço visível por se ter em pé, mas se
 cambaleou e possivelmente teria cansado se Frances não se adiantou para sustentá-lo pela cintura. Não disse nada, mas manteve a vista fixa no Dauntsey.
  Este prosseguiu:
  Passa atrás da poltrona. Pode te apoiar nele.
  Não preciso me apoiar. Apartou o braço do Frances com firmeza. Só foi um intumescimento passageiro por ter estado sentado. Não penso me pôr atrás da poltrona
 como se estivesse no banquinho. Se tiver vindo aqui como juiz, não esqueça que o habitual é escutar os alegações por escrito antes do julgamento e castigar unicamente
 se houver  um veredicto de culpabilidade.
  Já houve um julgamento. Celebrei-o eu durante mais de quarenta anos. Agora te peço que reconheça que entregou a minha mulher e meus filhos aos alemães, que  de
fato os enviou a Auschwitz para que fossem assassinados. Como se chamavam?
  Sophie Dauntsey, Martin e Ruth. Utilizavam o sobrenome do Loiret. Tinham documentos falsos.
  Você foi uma das contadas pessoas que sabiam. Sabia que eram judeus, sabia onde viviam.
  Etienne replicou com calma.
  Seus nomes não me dizem nada. Como quer que me lembre? Não foram os únicos judeus que denunciei ao Governo do Vichy e aos alemães. Como ia lembrar me  de seus
nomes e suas famílias? Fiz o que era necessário naqueles momentos. Se queria conservar minha quota de papel, tinta e recursos para a imprensa clandestina,  era
importante que os alemães seguissem confiando em mim. Como quer que me lembre de uma mulher e dois meninos, depois de cinqüenta anos?
  Eu as lembrança disse Dauntsey.
  E agora vieste em busca de vingança. Segue sendo doce, depois de cinqüenta anos?
  Não é vingança, Etienne. É justiça.
  OH, não, Gabriel, não te engane. É vingança. A justiça não exige que ao final venha a me anunciar o que tem feito. Mas chama-o justiça se isso tranqüilizar  sua
consciência. É uma palavra forte; espero que saiba o que significa. Eu não estou seguro se soubesse. Possivelmente o representante da lei possa nos ajudar.
  Significa olho por olho e dente por dente disse Daniel.
  Dauntsey seguia olhando ao Jean-Philippe.
  Não te tirei mais do que me tirou, Etienne. Um filho e uma filha por um filho e uma filha.
  Também assassinou a minha esposa, mas a tua já estava morta quando averigüei a verdade.
  Sim, estava fora do alcance de sua má vontade. E da minha.
  Pronunciou as últimas palavras com voz tão fica que Frances se perguntou se realmente as tinha ouvido.
  Matou a meus filhos prosseguiu Gabriel; eu matei aos teus. Não tenho posteridade; você tampouco a terá. Depois da morte do Sophie não pude amar a nenhuma outra
 mulher. Não acredito que nossa existência tenha nenhum sentido nem que haja um futuro depois da morte. Posto que não há Deus, não pode haver justiça divina. Devemos
 nos fazer nossa justiça nós mesmos, e aqui, na terra. Há-me flanco quase cinqüenta anos, mas me tenho feito justiça.
  Teria sido mais eficaz se tivesse atuado antes. Meu filho teve sua juventude, sua virilidade; conheceu o êxito, o amor das mulheres. Isso não pôde tirar-lhe nos
 quita las fuerzas, el talento, los recuerdos, las alegrías, incluso la capacidad de afligirnos. ¿Por qué habríamos de consentir que se llevara también el imperativo
 Seus filhos não o tiveram. A justiça deve ser rápida, além de eficaz. A justiça não espera cinqüenta anos. O que tem que ver o tempo com a justiça? O tempo  tira-nos
as forças, o talento, as lembranças, as alegrias, inclusive a capacidade de nos afligir. por que teríamos que consentir que se levasse também o imperativo  da justiça?
Tinha que me assegurar, e isso também era justiça. Demorei mais de vinte anos em localizar a duas testemunhas decisivas. Mas nem sequer então tinha  pressa. Não
tivesse podido suportar dez anos ou mais de cárcere; agora não será necessário. Aos setenta e seis anos não há nada que não se possa suportar. Logo seu  filho 
decidiu casar-se. Tivesse podido nascer um menino.
  A justiça exigia que só morreram dois.
  Etienne perguntou: E por isso deixou a seus editores e veio a Peverell Press em 1962? Já suspeitava de mim?
  Começava a suspeitar. Os fios de minha investigação começavam a entrelaçar-se. Pareceu-me conveniente me instalar perto de ti. E lembrança muita bem que te alegrou
 de contar comigo e com meu dinheiro.
  Naturalmente. Henry Peverell e eu acreditávamos ter conseguido um talento de primeira fila.
  Tivesse devido guardar suas energias para a poesia, Gabriel, não as esbanjar em uma obsessão inútil nascida de seu próprio sentimento de culpa. Você não teve
 a  culpa de que sua mulher e seus filhos ficassem apanhados na França; foi uma imprudência deixá-los naqueles momentos, é obvio, mas nada mais. Você foi e eles
 morreram. por que tiveste que lavar essa culpa assassinando a inocentes?
  Mas, claro, assassinar a inocentes é seu forte, não? Participou do bombardeio do Dresde. Nada do que eu tenho feito pode competir com o horror e a magnitude 
dessa façanha.
  Daniel objetou, quase em um sussurro:
  Isso foi distinto. Era uma atroz necessidade da guerra.
  Etienne voltou o olhar para ele.
  Também para mim foi uma necessidade da guerra. Fez uma pausa e, quando falou de novo, Frances detectou em sua voz uma nota de triunfo logo que controlada. Se
 quiser  obrar como Deus, Gabriel, antes deveria te assegurar de que poses a sabedoria e os conhecimentos de Deus. Nunca tive filhos. Aos treze anos sofri uma infecção
 viral; sou absolutamente estéril. Minha esposa necessitava um filho e uma filha, e para satisfazer sua obsessão maternal acessei a proporcionar-lhe Los dos habrían
 debido saberlo desde el primer momento.
  Adotamos ao Gerard e a Claudia no Canadá e os trouxemos conosco a Inglaterra. Não existiam laços de sangue nem entre eles nem comigo. Prometi a minha mulher 
que nunca se divulgaria publicamente a verdade, mas Gerard e Claudia souberam ao cumprir os quatorze anos. O efeito que isso produziu no Gerard foi desafortunado.
 Os dois teriam devido sabê-lo do primeiro momento.
  Frances soube que Gabriel não precisava perguntar se era verdade. Teve que fazer um esforço para olhá-lo. Por um instante o viu desmoronar-se fisicamente, como
 se os músculos da cara e o corpo se desintegrassem ante seus próprios olhos. Gabriel era um ancião, mas um ancião com energia, inteligência e vontade; naquele
 momento, tudo o que estava vivo nele se dissolveu enquanto o olhava. Frances se dirigiu rapidamente para ele, mas Gabriel a conteve com um gesto e, lenta e dolorosamente,
 obrigou-se a permanecer erguido.
  Tratou de falar, mas não lhe saíram as palavras. Logo se voltou e pôs-se a andar para a porta.
  Ninguém disse nada, mas os três o seguiram pelo corredor até sair de noite e o olharam enquanto caminhava para a estreita crista de rocha que bordeaba  a restinga.
  Frances correu em detrás dele e, quando lhe deu alcance, sujeitou-o pela jaqueta. Gabriel tentou largar-se, mas ela se aferrou e lhe falhavam as forças.  Foi
Daniel, que tinha posto-se a correr para eles, quem tomou entre seus braços e a afastou fisicamente dali. A jovem resistiu e tratou de liberar-se, mas  os braços
do inspetor eram como cintas de ferro. Teve que contemplar necessitada como Gabriel se internava na restinga.
  Deixe-o estar. Deixe-o estar disse Daniel. Vá atrás dele! gritou ao Jean-Philippe Etienne. Detenha-o! Faça-o voltar!
  Daniel perguntou com voz fica:
  Voltar, para que? Mas não poderá chegar ao mar!
  Foi Etienne quem, ao chegar junto a eles, observou:
  Não precisa chegar. Esses atoleiros são fundos. Um homem pode afogar-se em um palmo de água, se quer morrer.
  Seguiram-no com o olhar. Frances seguia retida entre os braços do Daniel; de repente sentiu pulsar o coração do inspetor junto ao dela. A figura cambaleante 
era uma mancha escura contra o firmamento noturno. elevou-se, caiu, ergueu-se de novo e reatou o penoso avanço. As nuvens voltaram a deslocar-se e, à luz  da lua,
puderam distingui-lo com maior nitidez. de vez em quando caía, mas logo voltava a levantar-se, imenso como um gigante, com os braços elevados em atitude  de amaldiçoar
ou de realizar um último gesto de súplica. Frances se deu conta de que estava lutando por chegar ao mar, desejando penetrar em sua fria imensidão,  mais  longe
e mais fundo, até alcançar em um chapinho o bem-aventurado e definitivo esquecimento.
  Então voltou a cair e esta vez não se levantou. Frances acreditou vislumbrar o resplendor da lua sobre a superfície do atoleiro. Pareceu-lhe que tinha quase tudo
 o corpo submerso, mas já não o via claramente: só era outro vulto escuro entre os montecillos herbosos daquele baldio alagado.
  Esperaram em silêncio, mas não se produziu nenhum movimento. Gabriel tinha passado a formar parte da restinga e da noite. Então Daniel a soltou e ela  apartou-se
uns passos. O silêncio era absoluto. E ao fim lhe pareceu que podia ouvir o mar, nem tanto um som como um palpitar rítmico no ar sereno.
  Acabavam de voltar-se para a casa quando a noite vibrou com um áspero ronco metálico que cresceu rapidamente até converter-se em um estrondo. Sobre eles  brilharam
as luzes geme as de um helicóptero. Os três ficaram olhando-o enquanto o aparelho descrevia três círculos no ar e se posava no campo contigüo  a Othona House. Frances
pensou: "De modo que encontraram o cadáver da Claudia." Sem dúvida James se cansou de esperá-la e ao final tinha retornado ao Innocent  House em sua busca.
  Imóvel ao bordo do campo, ainda um pouco se separada dos outros, viu as três figuras que corriam escondidas sob as grandes pás do rotor para logo erguer-se  e
avançar para ela sobre o terreno pedregoso e a erva sacudida pelo vento: o comandante Dalgliesh, a inspetora Miskin e James. Etienne se dirigiu a seu  encontro.
detiveram-se falar em grupo. Ela pensou: "Que o diga Etienne. Eu esperarei."
  Logo Dalgliesh se separou de outros e foi para ela. Não a tocou, mas se inclinou desde sua elevada altura e a olhou à cara com fixidez. Está você bem?
  Agora sim.
  Dalgliesh sorriu.
  Em seguida falaremos. Do Witt insistiu em vir conosco e era menos moléstia deixar que se saísse com a sua.
  Voltou outra vez com o Etienne e Kate, e juntos se dirigiram para a Othona House.
  Frances pensou: "Por fim sou eu mesma. Tenho algo digno de lhe oferecer." Não pôs-se a correr para a figura que esperava. Não a chamou gritos. Lentamente, mas
 com  toda a intensidade de seu ser, caminhou sobre a erva açoitada pelo vento e se jogou entre seus braços.
  Daniel ouviu chegar o helicóptero, mas não se moveu. Permanecia na crista de rocha e seguia olhando por volta do mar, além das restingas salobres. Esperou em
 paciente solidão até que ouviu uns passos cada vez mais próximos e Dalgliesh se deteve seu lado. Estava detido? perguntou-lhe.
  Não, senhor. Vim a acautelá-lo, não a detê-lo. Não lhe adverti de seus direitos. Falei-lhe, mas não com as palavras que você teria pronunciado. Deixei-o ir. O
 deixou ir deliberadamente? Não lhe escapou?
  Não, senhor. Não me escapou. E em uma voz tão baixa que não esteve seguro de que Dalgliesh lhe tivesse ouvido, acrescentou: Mas agora é livre.
  Dalgliesh lhe voltou as costas e se encaminhou para a casa; já tinha averiguado o que queria saber. Ninguém mais lhe aproximou. De pé ao bordo das restingas,
 ao bordo do mundo, Daniel se sentia isolado, submetido a uma quarentena moral. Pareceu-lhe ver uma luz trêmula, brilhante como o fósforo, que ardia e saltava entre
 os montículos de erva e os negros atoleiros de água estancada. Não alcançava a ver as ondas que rompiam brandamente, mas sim para ouvir o rumor do mar, um brando
 gemido  eterno como o de um pesar universal. E então as nuvens se moveram e a lua, quase enche, derramou sua luz fria sobre a restinga e sobre a longínqua figura
queda.  Daniel percebeu uma sombra junto a ele e, ao voltar-se, viu que era Kate. Com imenso assombro e compaixão, deu-se conta de que tinha o rosto banhado em
lágrimas.
  Não tentava lhe ajudar a escapar explicou. Sabia que não podia escapar, mas não suportava a idéia de vê-lo algemado, no calabouço, no cárcere. Queria lhe dar
 a oportunidade de tomar seu próprio caminho a casa.
  É um imbecil, Daniel disse ela. É um maldito imbecil.
  Daniel se voltou para ela e perguntou: O que fará? O chefe? Você o que crie que fará? meu deus, Daniel, teria podido ser muito bom. Foi muito bom.
  Etienne nem sequer recordava como se chamavam. Logo que recordava o que tinha feito. Não sentia nenhum remorso, nenhuma culpa. Uma mãe e dois meninos pequenos.
 Não existiam. Não eram humano. Lhe teria inquietado mais ter que matar a um cão. Para ele não eram pessoas.
  Podiam sacrificar-se. Não contavam. Eram judeus.
  Kate exclamou: E Esmé Carling? Velha, feia, sem filhos, sozinha. Não muito boa escritora. Era sacrificable? Não tinha muito, de acordo: um piso, a filha de outra
 mulher  para lhe fazer companhia pelas noites, umas quantas fotografias, os livros. Que direito tinha ele a decidir que sua vida não contava?
  Daniel lhe replicou em tom amargo:
  Está muito segura, verdade, Kate? Muito segura de saber o que está bem. Deve resultar muito tranqüilizador não ter que confrontar nunca um dilema moral. O código
 penal e o regulamento da polícia: aí tem tudo o que necessita, verdad?Estoy segura de algumas costure disse ela. Estou segura quanto ao assassinato. Como  poderia
ser inspetora de polícia, se não fora assim?
  Dalgliesh chegou junto a eles. Em um tom de voz tão normal como se estivessem amigablemente reunidos na sala da delegacia de polícia do Wapping, anunciou-lhes:
  A polícia do Essex não tentará resgatar o corpo até que se faça de dia. Quero que leve ao Kate de volta a Londres em seu carro. sente-se capaz?
  Sim, senhor, estou em perfeitas condições de conduzir.
  Se não ser assim, que conduza Kate. O senhor Do Witt e a senhorita Peverell virão comigo no helicóptero. Sem dúvida quererão voltar para sua casa o antes possível.
 Logo me reunirei com vocês dois no Wapping, esta mesma noite.
  Permaneceu de pé com o Kate a seu lado até que as três figuras se encontraram com o piloto e subiram ao helicóptero. A máquina cobrou vida com um capitalista
 rugido e as grandes crucifica começaram a girar lentamente, fizeram-se imprecisas, voltaram-se invisíveis. O helicóptero se elevou inclinado para o céu. Etienne
 e  Estelle estavam no bordo do campo, olhando-o com o rosto voltado para o alto. Daniel pensou: "Parecem turistas. Sente saudades que não saúdem com a mão." O
 disse ao Kate:
  Deixei-me algo na casa.
  A porta principal estava aberta. Kate entrou no saguão com ele e o seguiu até o estudo, procurando manter uns passos mais atrás para que não se  sentisse como
um detento sob escolta. A luz da habitação estava apagada, mas as chamas do lar projetavam sombras dançantes sobre as paredes e o teto  e tingiam a polida superfície
da mesa de um resplendor avermelhado, como se estivesse manchada de sangue.
  A fotografia ainda estava aí. Por um instante lhe surpreendeu que Dalgliesh não a tivesse levado, mas em seguida recordou que carecia de importância. Já não haveria
 nem julgamento nem provas. Não seria necessário apresentá-la como evidência ante um tribunal. Já não fazia nenhuma falta. Não servia para nada.
  Deixou-a sobre a mesa e, voltando-se para o Kate, caminhou junto a ela em silencio para o carro.
  1. Em espanhol no original. (N. do T.)

 

 

                                                                  P. D. James

 

 

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