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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PÊNDULO DE FOUCAULT - p.2 / Umberto Eco
O PÊNDULO DE FOUCAULT - p.2 / Umberto Eco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PÊNDULO DE FOUCAULT

Parte II

 

Pessoas que encontramos pela rua..., se dão em segredo à prática de Magia Negra, ligam-se ou procuram ligar-se aos Espíritos das Trevas, para satisfazer seu desejo de ambição, ódio, amor, para fazer - numa palavra - o Mal.

(J.K. Huysmans, Prefácio a J. Bois, Le satanisme et Ia magie, 1895, pp. VIII-IX)

 

Achei que o projeto Hermes fosse uma idéia apenas em esboço.

Não conhecia ainda o Sr. Garamond. Enquanto nos dias seguintes me demorava pelas bibliotecas à cata de ilustrações sobre os metais, na Manuzio já estavam trabalhando.

Dois meses depois vi nas mãos de Belbo um número, ainda cheirando a tinta, do Parnaso Enótrio, com um longo artigo, "Renascer do ocultismo", no qual o famoso hermetista Dr. Moebius - pseudônimo novinho em folha de Belbo, que assim ganhava sua primeira remuneração extra no Projeto Hermes - falava do miraculoso renascimento das ciências ocultas no mundo moderno e anunciava que a Manuzio pretendia enveredar por esse caminho editando uma nova coleção, a Isis Revelada.

Nesse ínterim o Sr. Garamond tinha escrito uma série de cartas às várias revistas dedicadas a hermetismo, astrologia, tarô, ufologia, assinando com um nome qualquer, e pedindo informações sobre a nova coleção anunciada pela Manuzio. Em vista disto os redatores das revistas haviam lhe telefonado pedindo informações e ele bancara o misterioso, dizendo não poder ainda revelar os primeiros dez títulos, que estavam no entanto em composição. Dessa maneira o universo dos ocultistas, certamente bastante agitado por contínuos rufares de tantãs, já estava agora ao corrente do Projeto Hermes.

"Disfarcemo-nos de flores", dizia-nos o Sr. Garamond, que nos havia acabado de convocar à sala do mapa-múndi, "que as abelhas aparecem".

Mas não era tudo. Garamond queria mostrar-nos o folder ("dépliant", como o chamava - mas é assim que se diz nas editoras milanesas): uma coisa simples, quatro páginas, mas em papel acetinado. A primeira página reproduzia aquilo que seria o emblema da capa da série, uma espécie de sinete dourado (chama-se Pentáculo de Salomão, explicava Garamond) em fundo negro, a borda da página enquadrada por uma decoração que evocava muitas suásticas entrelaçadas (a suástica asiática, precisava Garamond, aquela que aponta no sentido do sol, e não a nazista que segue como os ponteiros do relógio). No alto, no lugar do título dos volumes, uma legenda: "há mais coisas entre o céu e a terra...” Nas páginas internas celebrava-se a glória da Manuzio a serviço da cultura, depois com alguns slogans eficazes acenava-se ao fato de que o mundo moderno exige certezas mais profundas e luminosas do que a ciência lhe pode dar: "Do Egito, da Caldéia, do Tibete, uma sabedoria esquecida para o renascimento espiritual do Ocidente."

Belbo perguntou-lhe a quem se destinavam os folders e Garamond sorriu como sorri, dizia Belbo, a alma danada do rajá de Assam*.

 

* Referência a um personagem de Emilio Salgari. (N. do T.)

 

"Mandei buscar na França o anuário de todas as sociedades secretas que existem hoje no mundo, e não me venham perguntar como é que pode haver um anuário público das sociedades secretas, há, aqui está ele, éditions Henry Veyrier, com endereço, número de telefone, código postal. Antes, quero que Belbo dê uma olhada nele para eliminar as que não interessam, pois vejo que aí também figuram os jesuítas, o Opus Dei, os Carbonários e o Rotary Club, mas deixando todas aquelas que tenham colorações ocultas, como já assinalei algumas."

Folheava: "Vejam aqui: Absolutistas (que acreditam na metamorfose), Aetherius Society da Califórnia (relações telepáticas com Marte), Astara de Lausanne (juramento de segredo absoluto), Atlanteans da Grã-Bretanha (procura da felicidade perdida), Builders of the Adytum da Califórnia (alquimia, cabala, astrologia), Círculo E.B, de Perpignan (dedicado a Hator, deusa do amor e guardiã da Montanha dos Mortos), Círculo Eliphas Levi de Maule (não sei quem seja este Levi, deve ser aquele antropólogo francês ou como se chama), Cavaleiros da Aliança Templar de Toulouse, Colégio Druídico das Gálias, Convent Spiritualists of Jericho, Cosmic Church of Truth da Flórida, Seminário Tradicionalista de Ecône na Suíça, Mórmons (estes já encontrei até numa novela policial, mas talvez não existam mais), Igreja de Mitra em Londres e Bruxelas, Igreja de Satã de Los Angeles, Igreja Luciferiana Unificada da França, Igreja Rosicruciana Apostólica de Bruxelas, Irmãos das Trevas ou Ordem Verde da Costa do Ouro (talvez estes não, quem sabe lá em que língua escrevem), Escuela Hermetista Occidental de Montevidéu, National Institute of Kabbalah de Manhattan, Central Ohio Temple of Hermetic Science, Tetra-Gnosis de Chicago, Irmãos Antigos da Rosa-Cruz de Saint Cyr-sur-Mer, Fraternidade Joanita pela Ressurreição Templar em Kassel, Fraternidade Internacional de Ísis de Grenoble, Ancient Bavarian Illuminati de São Francisco, lhe Sanctuary of the Gnosis de Sherman Oaks, Grail Foundation of America, Sociedade do Graal do Brasil, Hermetic Brotherhood of Luxor, Lectorium Rosicrucianum da Holanda, Movimento do Graal de Estrasburgo, Ordem de Anúbis de Nova York, Temple of Black Pentacle de Manchester, Odinist Fellowship da Flórida, Ordem da Jarreteira (nela deve estar metida até mesmo a rainha da Inglaterra), Ordem do VriI (maçonaria neonazista, sem endereço), Militia Templi de Montpellier, Ordem Soberana do Templo Solar de Monte Cano, Rosa-Cruzes do Harlem (estão vendo, até os negros, agora), Wicca (associação lucifenina de obediência céltica, invocam os 72 gênios da Cabala)..., em suma, devo continuar?"

"Existem todas, no duro?" perguntou Belbo.

"E até mais. Ao trabalho, faça a lista definitiva e depois expedimos as cartas. Mesmo se forem estrangeiras. Entre essa gente as notícias viajam. Agora só falta fazer uma coisa. Precisamos circular pelas livrarias adequadas e falar não só com os livreiros mas também com os clientes. Deixar escapar na conversa que existe uma coleção assim e assado."

Diotallevi fez-lhe notar que não podiam expor-se daquela maneira, que era preciso arranjar propagandistas-coruja, e Garamond disse para procurá-los: "Desde que sejam de graça."

Bela pretensão, comentou Belbo ao voltarmos para a sala. Mas os deuses do subsolo nos protegiam. Exatamente naquele momento entrou Lorenza Pellegnini, mais solar que nunca. Belbo tornou-se radiante, ela viu os folders e se interessou por eles.

Ao saber do projeto da casa ao lado, seu rosto se iluminou: "Que bacana, tenho um amigo simpaticissimo, ex-tupamaro uruguaio, que trabalha numa revista chamada Picatrix e me leva sempre a sessões espíritas. Fiz amizade com um ectoplasma fabuloso, que agora sempre chama por mim toda vez que se materializa!"

Belbo olhou para Lorenza como se lhe fosse perguntar alguma coisa, mas depois desistiu. Creio que já se habituara a esperar de Lorenza as freqüentações mais preocupantes, mas que tivesse decidido preocupar-se apenas com aquelas que pudessem lançar uma sombra sobre o seu relacionamento amoroso (amava-a?). E naquela referência à Picatrix tinha visto, mais que o fantasma do coronel, a figura do uruguaio simpaticissimo. Mas Lorenza já estava falando de outra coisa e nos revelava estar freqüentando muitas daquelas pequenas livrarias onde se vendem os livros que a Ísis Revelada gostaria de publicar.

"São um espetáculo, sabiam", estava dizendo. "A gente encontra ali ervas medicinais, e instruções para fazer um homúnculo, exatamente como Fausto fez com Helena de Tróia, oh Jacopo vamos fazer nós dois, quero tanto ter um homúnculo seu, depois saímos aí com ele como se fosse um bassê. É fácil, segundo o livro basta recolher num frasco um pouco de sêmen humano, não será difícil para você, espero, não fique encabulado, seu tolo, depois mistura-se com hipômanes, ao que parece um líquido que é..., secregado..., segretado..., como se diz?...”

"Segregado", sugeriu Diotallevi.

"É mesmo? Em suma, aquilo que expelem as éguas grávidas, já aí acho que é mais difícil, pois se eu fosse uma égua grávida não ia querer que me viessem recolher o hipômanes, principalmente se se tratasse de desconhecidos, mas creio que se possa encontrar sintético, como os agarbates. Depois mete-se tudo num frasco e deixa-se macerar durante quarenta dias e pouco a pouco vamos vendo formar-se uma figurinha, como um fetozinho, que dois meses depois se transforma num homúnculo belíssimo, e sai dali e se põe a nosso serviço - creio que não morrem nunca, imagine podem até levar flores ao seu túmulo quando você morrer!"

"E que mais se vê nessas livrarias?" perguntou Belbo.

"Gente fantástica, gente que fala com os anjos, que faz ouro, além de mágicos profissionais com cara de mágico profissional...”

"Como é a cara do mágico profissional?"

"Têm em geral o nariz aquilino, as sobrancelhas de um russo e os olhos rapaces, usam cabelo até o pescoço, como os pintores de antigamente, e barba, mas não cerrada, com mechas entre o queixo e as faces, e bigodes que se projetam para a frente e caem até os lábios em tufos, e por força, já que os lábios são muito levantados em relação aos dentes, pobrezinhos, e os dentes saem para fora, todos um tanto acavalados. Não deviam sorrir com aqueles dentes, mas o fato é que sorriem com doçura, mas os olhos (já lhes disse que são rapaces, não?) nos fitavam de maneira inquietante."

"Facies hermetica", comentou Diotallevi.

"Será? Vejam, isso. Quando entra alguém e pergunta por um livro, digamos, que tenha rezas contra os espíritos do mal, eles informam logo ao livreiro o título certo, que é precisamente aquele que o livreiro não tem. No entanto, se você faz amizade com eles e lhes pergunta se o livro é eficaz, sorriem de novo com compreensão como se falassem a respeito de crianças e dizem que é preciso estar-se sempre muito atento a esse gênero de coisas. Depois citam casos de diabos que fizeram coisas horrendas a amigos seus, a gente se assusta e eles nos tranqüilizam dizendo que muitas vezes tudo não passa de histeria. Em suma, você já não sabe se acredita neles ou não. Quase sempre os livreiros me dão varinhas de incenso, certa vez um me deu uma figuinha de marfim contra o mau-olhado."

"Agora, se lembrar", disse-lhe Belbo, "quando for outra vez por lá pergunte se sabem algo sobre a nova coleção da Manuzio, e pode até mostrar o folder a eles."

Lorenza lá se foi com uma dúzia de folders. Imagino que nas semanas seguintes até tenha trabalhado bem, mas não acreditava que as coisas pudessem acontecer tão depressa. Poucos meses depois a Sra. Grazia já não conseguia mais segurar os diabólicos, como havíamos definido os AEPs com interesses ocultísticos. Que, como queria a natureza deles, eram legião.

 

Invoca as forças da Távola da União, seguindo o Supremo Ritual do Pentagrama, com o Espírito Ativo e Passivo, com Eheieh e Agla. Retorna ao altar e recita a seguinte Invocação aos Espíritos Enoquianos:

Ol Sonuf Vaorsag Goho lad Balt, Lonsh Calz Vonpho, Sobra Z-ol Ror I Ta Nazps, od Graa Ta Malprg... Ds Hol-q Qaa Nothoa Zimz, Od Commah Ta Nopbloh Zien...

(Israel Regardie, The Original Account of lhe Teachings, Rites and Ceremonies of lhe Hermetic Order of lhe Golden Dawn, Ritual for Invisibility, St. Paul, Liewellyn Publications, 1986, p. 423)

 

A sorte nos ajudou, e tivemos um primeiro colóquio de altíssima qualidade, pelo menos relativamente à nossa iniciação.

Na ocasião o trio estava completo, eu Belbo e Diotallevi, e quando entrou o convidado pouco faltou para que déssemos um grito de surpresa. Tinha a facies hermetica descrita por Lorenza Pellegrini, e além do mais vestia roupa preta.

Entrou olhando em torno com circunspecção e se apresentou (professor Camestres). A pergunta "professor de quê?" fez um gesto vago, como a convidar-nos à reserva. "Desculpem", disse, "não sei se os senhores se ocupam do problema de um ponto de vista puramente técnico, comercial, ou se estão filiados a algum grupo iniciático...”

Tranqüilizamo-lo. "Não se trata de excesso de prudência de minha parte", disse, "mas não gostaria de ter qualquer envolvimento com alguém da OTO." Logo, diante de nossa perplexidade: "Ordo Templi Orientis, o conciliábulo dos últimos pretensos seguidores de Aleister Crowley... Vejo que não estão familiarizados com... Melhor assim, pois não haverá preconceitos da parte dos senhores." Aquiesceu em sentar-se. "Porque, vejam só, a obra que lhes gostaria de apresentar entra corajosamente em confronto com a de Crowley. Nós todos, inclusive eu, permanecemos fiéis às revelações do Líber AM vel legis, que como talvez saibam foi ditado a Crowley em 1904, no Cairo, por uma inteligência superior de nome Aiwaz. A esse texto se atêm igualmente os seguidores da OTO até hoje, e às suas quatro edições, a primeira das quais precedeu de nove meses o arrebentar da guerra dos Balcãs, a segunda de nove meses a Primeira Guerra Mundial, a terceira de nove meses a guerra sino-japonesa, a quarta de nove meses as chacinas da guerra civil espanhola...”

Não pude evitar de cruzar os dedos. Ele percebeu meu gesto e sorriu funéreo: "Compreendo a preocupação dos senhores. Considerando que lhes estou trazendo aqui agora a quinta reedição daquele livro, o que poderá acontecer daqui a nove meses? Nada, podem estar tranqüilos, pois o que lhes proponho é o Liber legis revisto e acrescido, já que tive a ventura de ser visitado não por uma simples inteligência superior, mas pelo próprio AI, princípio supremo, ou na verdade Hoorpaar-Kraat, que seria portanto o duplo ou o gêmeo místico de Ra-Hoor-Kuit. Minha única preocupação, até mesmo para impedir influências nefastas, é que esta minha obra possa ser publicada no solstício do inverno."

"Isso podemos ver", disse Belbo encorajante.

"Sinto-me contente com isto. O livro fará furor nos ambientes iniciáticos, pois como os senhores poderão compreender minha fonte é mais séria e mais acreditada que a de Crowley. Não sei como Crowley podia levar a efeito os rituais da Besta sem ter em conta a Liturgia da Espada. Só desembainhando a Espada se compreende o que vem a ser o Mahapralaya, ou seia o Terceiro olho da Kundalini. Além do mais, em sua aritmologia, totalmente baseada no Número da Besta, não levou em conta 93, 118, 444, 868 e 1001, e os Novos Numeros.”

"Que significam?" perguntou Diotallevi de repente excitado.

"Ah", disse o professor Camestres, "como já se dizia no primeiro Liber legis, cada número é infinito, e não há diferença!"

"Compreendo", disse Belbo. "Mas o senhor não acha que tudo isso seja um tanto obscuro para o leitor comum?"

Camestres quase saltou da cadeira. "Mas é absolutamente indispensável. Quem compreendesse esses segredos sem a necessária preparação iria precipitar-se no Abismo! Só em torná-los públicos de maneira velada incorro em graves riscos, podem estar certos. Circulo no âmbito de adoração da Besta, mas de modo bem mais radical que Crowley, como verão nas minhas páginas sobre o congressus cum daemone, as prescrições para o adorno do templo e a conjugação carnal com a Dama Escarlate e a Besta que Ela Cavalga. Crowley só foi até o congresso carnal dito contra a natureza, e eu busco levar o ritual para além do Mal como assim o concebemos, e afloro o inconcebível, a pureza absoluta da Goetia, o extremo umbral do Bas-Aumgn e do Sa-Ba-Ft...”

A Belbo só restava agora sondar a capacidade financeira de Camestres. Fê-lo com longos circunlóquios, ao fim dos quais chegou à conclusão de que este, assim como Bramanti, não tinha a menor intenção de autofinanciar-se. Começava então a fase de desvencilhamento, com a branda proposta de ficar com os originais para exame durante uma semana, e depois se veria. Mas nesse ponto Camestres aferrara o manuscrito contra o peito, dizendo que nunca fora tratado com tamanha desconfiança, e saiu porta afora deixando entender que tinha meios não-convencionais de fazer arrepender-se quem o havia ofendido.

Em pouco tempo, no entanto, tínhamos dezenas de originais garantidamente AEPs. Requeriam um mínimo de escolha, visto que se queria igualmente vendê-los. Excluída a hipótese de podermos ler todos, consultávamos os índices, dando uma olhada no texto e depois comentando as nossas descobertas.

 

Daí decorre uma extraordinária pergunta. Os egípcios conheciam a eletricidade?

(Peter Kolosimo, Terra senza tempo, Milão, Sugar, 1964, p. 111)

"Descobri um texto sobre as civilizações desaparecidas e os países misteriosos", dizia Belbo. "Parece que a princípio existia um continente Mu, para os lados da Austrália, e dali se difundiram as grandes correntes migratórias. Uma vai para a ilha de Avalon, outra para o Cáucaso e as nascentes do Indo, depois vêm os celtas, os fundadores da civilização egípcia e por fim a Atlântida...”

"Velharias: de gente que escreve livros sobre Mu sou capaz de pôr em cima da mesa uma centena", disse eu.

"Mas este talvez valha a pena. Além disso tem um belíssimo capítulo sobre as migrações gregas no Yucatán, contada no baixo-relevo de um guerreiro, em Chichén Itzá, que se assemelha a um legionário romano. Duas gotas d’água...”

"Todos os elmos do mundo ou têm plumas ou crinas de cavalo", disse Diotallevi. "Não constitui prova."

"No teu conceito, no dele não. O autor encontra a adoração da serpente em todas as civilizações e deduz daí que todas têm uma origem comum...”

"Quem não já adorou a serpente?" disse Diotallevi. "Salvo naturalmente o Povo Eleito."

"É verdade, eles adoravam os bezerros."

"Foi um momento de fraqueza. Eu descartaria também esse, mesmo valendo a pena. Celtismo e arianismo, Kaly-yuga, crepúsculo do ocidente e espiritualidade da 55. Posso ser paranóico, mas isso me cheira a nazista."

"Para a Garamond não é necessariamente uma contra-indicação."

"Sim, mas para tudo há um limite. Porém li um outro sobre gnomos, ondinas, salamandras, elfos e sílfides, fadas... Mas vêm à baila mesmo aqui as origens da civilização ariana. Parece que os SS nascem  dos Sete Anões."

"Não dos Sete Anões, mas dos Nibelungos."

"Mas estes de quem se fala aqui são o Pequeno Povo irlandês.

E os maus são as fadas, os pigmeus são bons, só que um pouco despeitados."

"Ponha-o à parte. E Casaubon encontrou alguma coisa?"

"Só um texto curioso sobre Cristóvão Colombo: analisa sua assinatura e encontra imediatamente uma relação com as pirâmides. Ele tinha a intenção de reconstruir o Templo de Jerusalém, dado que era o grão-mestre dos Templários no exílio. Como era notoriamente um judeu português e portanto exímio cabalista, foi com invocações talismânicas que conseguiu domar a tempestade e Livrar-se do escorbuto.

Não examinei os textos sobre a Cabala porque imaginei que Diotallevi os tivesse visto."

"Todos com letras hebraicas trocadas, fotocopiados desses panfletos do Livro da Interpretação dos Sonhos."

"Atentem a que estamos escolhendo textos para a Ísis Revelada.

Não nos percamos em filologia. Talvez aos diabólicos agradem as letras hebraicas extraídas do Livro da Interpretação dos Sonhos. Estou incerto em relação a todas as contribuições sobre a maçonaria. O Sr. Garamond me recomendou que tivesse os pés no chão, pois não quer imiscuir-se nas diatribes entre os vários ritos. Contudo não desprezarei este sobre o simbolismo maçônico na gruta de Lourdes. Nem este outro, muito bonito, sobre a aparição de um cavaleiro, provavelmente o conde de São Germano, íntimo de Franklin e de Lafayette, no momento da invenção da bandeira dos Estados Unidos. Embora explique bastante bem o significado das estrelas, entra em estado de confusão a propósito das listras."

"O conde de São Germano?" disse eu. "Vejam só!"

"Por quê, conhece-o?"

"Se lhes disser que sim, não vão me acreditar. É melhor deixar para lá. Tenho aqui uma monstruosidade de quatrocentas páginas contra os erros da ciência moderna: O átomo, uma mentira judaica, O erro de Einstein e o segredo místico da energia, A ilusão de Galileu e a natureza imaterial da lua e do sol."

"Nessa linha", disse Diotallevi, "o que mais me agradou foi esta resenha das ciências fortianas."

"E que são?"

"Decorrem do nome de um certo Charles Hoy Fort, que havia colecionado uma grande quantidade de notkias inexplicáveis. Uma chuva de rãs em Birmingham, pegadas de um animal legendário em Devon, escadas misteriosas e impressões de ventosas na superfície de algumas montanhas, irregularidade na precessão dos equinócios, inscrições sobre meteoritos, neve negra, temporais de sangue, seres alados a oito mil metros nos céus de Palermo, rotas luminosas nos mares,  restos de gigantes, cascata de folhas mortas na França, precipitações de matéria viva em Sumatra, e naturalmente todas as marcas deixadas em Machu Picchu e outros cumes da América do Sul que atestam a aterrissagem de potentes astronaves em época pré-histórica. Não estamos sozinhos no universo."

"Nada mal", disse Belbo. "O que me intriga, a mim, no entanto são estas quinhentas páginas sobre as pirâmides. Sabiam que a pirâmide de Quéops se encontra exatamente no trigésimo paralelo, o que atravessa o maior número de terras emersas? Que as relações geométrica encontradas na pirâmide de Quéops são as mesmas que se encontram em Pedra Pintada na Amazônia? Que o Egito possuía duas serpentes com plumas, uma no trono de Tutankhamon e outra na pirâmide de Sakkara, e isto nos leva a Quetzalcoatl?"

"Que tem a ver Quetzalcoatl com a Amazônia, se faz parte do panteão mexicano?" perguntei.

"Bem, talvez tenha perdido o nexo. De outra forma como justificar que as estátuas da ilha da Páscoa sejam megalíticas como as celtas? Um dos deuses polinésios se chama Ya e é claramente o Lod dos hebreus, como o antigo húngaro lo-v’, o deus grande e bom. Um antigo manuscrito mexicano mostra a Terra como um quadrado circundado pelo mar, tendo ao centro uma pirâmide que traz na base a inscrição Aztlan, semelhante a Atlas ou Atlântida. Por que de ambos os lados do Atlântico se encontram pirâmides?"

"Porque é mais fácil construir pirâmides do que esferas. Porque o vento produz as dunas em forma de pirâmide e não de Partenon."

"Odeio o espírito do lluminismo", disse Diotallevi.

"Continuo. O culto de Rá não aparece na religião egípcia antes do Novo Império e portanto provém dos celtas. Recorde-se são Nicolau e seu trenó. No Egito pré-histórico a nave solar era um trenó. Tendo em vista que esse trenó não poderia escorregar na neve no Egito,  sua origem devia ser nórdica...”

Não cedemos: "Mas antes da invenção da roda os trenós eram usados até mesmo sobre a areia."

"Não interrompa. O Livro diz que primeiro é necessário identificar as analogias e depois encontrar as razões. E aqui diz que, no fim,  mesmo as razões são científicas. Os egípcios conheciam a eletricidade,  senão não poderiam ter feito aquilo que fizeram. Um engenheiro alemão encarregado de construir os esgotos de Bagdá descobriu pilhas elétricas ainda em funcionamento que remontavam aos Sassânidas. Nas escavações da Babilônia vieram à luz acumuladores fabricados há quatro mil anos. E finalmente a arca da aliança (que devia recolher as tábuas da lei, a vara de Aarão e um vaso de maná do deserto) era uma espécie de cofre elétrico capaz de produzir descargas da ordem dos quinhentos volts."

"Já vi isto num filme."

"E agora? Donde acham que os argumentistas de cinema tiram suas idéias? A arca era feita de madeira de acácia, revestida de ouro no interior e no exterior - o mesmo princípio dos condensadores elétricos, dois condutores separados por um isolante. Era circundada por uma grinalda toda de ouro. Colocada numa zona seca onde o campo magnético acumulava 500-600 volts por metro vertical. Aqui se diz que Porsenna por meio da eletricidade tinha conseguido libertar seu reino da presença de um terrível animal chamado Volt."

"Foi por isso que Volta escolheu este sobrenome exótico. Antes chamava-se simplesmente Szmrszlyn Krasnapolsky."

"Sejamos sérios. Mesmo porque além dos manuscritos tenho aqui um leque de cartas que propõem revelações sobre as relações entre Joana d’Arc e os Libri Sibillini, Lilith demônio talmúdico e a grande mãe hermafrodita, o código genético e a escrita marciana, a inteligência secreta das plantas, o renascimento cósmico e a psicanálise. Marx e Nietzsche na perspectiva de uma nova angelologia, o Número de Ouro e os Cortiços de Matera, Kant e o ocultismo, mistérios eleusinos e o jazz, Cagliostro e a energia atômica, homossexualidade e gnose, Golem e a luta de classes, para terminar com uma obra em oito volumes sobre o Graal e o Sagrado Coração."

"Que pretende demonstrar? Que o Graal é uma alegoria do Sagrado Coração ou que o Sagrado Coração é uma alegoria do Graal?"

"Compreendo a diferença e a aprecio, mas creio que para o autor vão bem as duas coisas. Em suma, a esta altura já não sei mais como proceder. Precisamos ouvir o Sr. Garamond."

Ouvimo-lo. Disse que em princípio não se devia botar de lado nada, e ouvir a todos.

"Mas veja o senhor que a maior parte dessa tralha repete coisas que se encontram em todas as edições de bancas de jornais", disse eu.

"Os autores, mesmo aqueles editados, se copiam entre si, um dá como testemunho a afirmação de outro, e todos usam como prova decisiva uma frase de Jâmblico, por assim dizer."

"E então?" disse Garamond. "Vão querer vender aos leitores alguma coisa que ignorem? Acontece que os livros da Ísis Revelada falam exatamente das mesmas coisas que os Outros falam. Confirmam-se entre si, logo são verdadeiros. Desconfiem da originalidade."

"De acordo", disse Belbo, "mas é preciso saber o que é óbvio e o que não é. Precisamos de um consulente."

"De que tipo?"

"Não sei. Deve ser menos estapafúrdio que um diabólico, mas deve conhecer bem o mundo deles. E depois nos dirá que o devemos considerar para a Hermética. Um estudioso sério do hermetismo renascentista...”

"Muito bem", disse Diotallevi, "mas aí no primeiro instante em que lhe pomos na mão o Graal e o Sagrado Coração ele sai batendo a porta."

"Então esquece."

"Acho que conheço a pessoa adequada", disse eu. "Um tipo certamente erudito, que leva bastante a sério estas coisas, mas com elegância, direi mesmo com ironia. Conheci-o no Brasil, mas agora já deve estar em Milão. Devo ter o telefone dele em algum lugar."

"Contate-o", disse Garamond. "Com cautela, depende do preço. E trate de utilizá-lo igualmente para a maravilhosa aventura dos metais."

Agliê pareceu contente de me ouvir. Pediu-me notícias da deliciosa Amparo, fiz-lhe timidamente compreender que se tratava de um assunto já encerrado, desculpou-se, fez algumas observações corteses sobre a facilidade com que os jovens podem abrir sempre novos capítulos em sua vida. Acenei-lhe com um projeto editorial. Mostrou-se interessado, disse que teria todo o prazer em conversar conosco e marcamos um encontro em sua casa.

Desde o início do Projeto Hermes até aquele dia eu me divertira despreocupadamente à custa de meio mundo. Agora estes começavam a apresentar a conta. Eu também era uma abelha que corria em direção à flor, mas não sabia ainda.

 

Durante o dia chegarás junto à rã várias vezes e proferirás palavras de adoração. E lhe pedirás que realize os milagres que desejas... Nesse ínterim farás uma cruz sobre a qual deverás imolá-la.

(De um Ritual de Aleister Crowley)

 

Agliê morava para os lados da praça Susa: uma pequena rua particular, sobradinho fim de século, sobriamente floral. Veio abrir-nos a porta um velho criado de jaqueta listrada, que nos fez entrar num pequeno salão e pediu-nos que aguardássemos a chegada do senhor conde.

"Então o homem é conde?" perguntou Belbo.

"Não lhe disse? É o próprio São Germano, redivivo."

"Não pode ser redivivo, se nunca morreu", sentenciou Diotallevi. "Não será acaso Ashaverus, o judeu errante?"

"Segundo alguns o conde de São Germano era também o Judeu Errante."

"Estão vendo?"

Agliê entrou, sempre impecável. Apertou-nos a mão e logo se desculpou: uma desagradável reunião, de todo imprevista, o obrigava a estar ainda por uns dez minutos no seu escritório. Ordenou ao criado que nos trouxesse café e pediu-nos que sentássemos. Depois saiu, afastando uma pesada cortina de couro antigo. Não era uma porta, e enquanto tomávamos café ouvíamos vozes excitadas que nos chegavam do compartimento ao lado. A princípio começamos a conversar entre nós em tom normal, para não ouvirmos o que diziam, mas Belbo observou que talvez os perturbássemos com isto. Num instante de silêncio ouvimos uma voz, e uma frase, que suscitaram nossa curiosidade. Diotallevi levantou-se com ar de quem ia admirar uma estampa seiscentista que havia na parede, exatamente ao lado da cortina. Era uma caverna nas montanhas, à qual alguns peregrinos chegavam subindo por sete degraus. Daí a pouco fingíamos os três estar examinando a gravura.

A voz que tínhamos ouvido era certamente a de Bramanti, que dizia: "Em suma, eu não mando diabo à casa de ninguém!"

Naquele dia concluímos que Bramanti além do aspecto também tinha voz de anta.

A outra voz era a de um desconhecido, com forte sotaque francês, e de tom estrídulo, quase histérico. Por vezes se introduzia no diálogo a voz de Aglié, suave e conciliante.

"Vamos, senhores", estava dizendo agora Aglié, "já que vieram pedir meu veredicto, e me sinto honrado por isso, agora é preciso que me escutem. Antes de mais nada permita-me que lhe diga, meu caro Pierre, que acho pelo menos imprudente de sua parte o ter escrito aquela carta...

"O caso e muito simple, senhorr conde", respondia a voz francesa, "o Sr. Brramanti aqui escreve um artigo, numa revista que tudos nós estimamos, onde faz ironia a bem dizerr pesada contra alguns luciferrianos que aceitam a hóstia sem nem mesmo crerrem na presença real, para tirarr disso dinheiro e patati e patatá. Ora, tudos sabem que a única Eglise Luciferienne reconhecida é aquela de que sou modestamente Tauroboliaste e Psicopompo, e sabe-se que minha igreja não praa o satanismo vulgar e não faz mixórdia com as hóstias, como o chanoine". Docre à Saint-Sulpice. Na carta eu disse que não somos satanistas vieux jeu, adorradores du Grand Tenancier du Mal, e que não temos necessidade de fazer momices da Igreja de Roma, com todos aqueles cibórios e aquelas como se diz casubole... Somos principalmente Palladianos, mas como todo mundo sabe, para nos Lucifér é o prancípio do bem, e Adonis sim é o prancípio do mal porque foi ele que criou este mundo e Lucifér tinha tentado de se oporr...”

"Está bem", dizia Bramanti excitado. "já disse, posso ter pecado por leviandade, mas isto não o autorizava a ameaçar-me de sortilégio!"

"Ora essa! A minha era uma metafóra! O senhorr foi quem por ricochete me fez o envoûtement!"

"Coisa nenhuma, eu e meus confrades não temos tempo a perder para expulsar diabretes! Nós praticamos o Dogma e Ritual da Alta Magia, não somos feiticeiros!"

"Senhorr conde, apelo para si. O Sr. Brramanti tem evidentes ligaçons com o abbé Boutroux, e desse sacerdote o senhorr sabe bem que mandou tatuar crucifixes nas plantas dos pés para poder pisar sobre nosso senhorr, ou melhorr sobre seu... Bon, faz sete dias encontrei esse pretenso abate na livraria Du Sangreal, o senhorr conhece, ele sorri para mim, muito asquerroso como de costume, e me diz que orra pois muito bem que vamos ver uma noite destas... Mas que querr dizerr por uma noite destas? Querr dizerr que, dois dias depois começam as visitas, estou parra me deitarr e sinto na carra uns chocs fluidicos, o senhor sabe que são emanaçons facilmente reconocíveis."

"Vai ver que esfregou a sola dos sapatos no carpete."

"Ah, é? E então por que haviam de voarr os bibelôs, um dos meus alambiques me haleu na testa, caiu por terra meu Bafomé de gesso, que erra uma lembrança de meu povre pai, e na parrede aparreceram escritas em letras ruges, orduras que não ouso dizer? Ora sabem muito bem que há um ano o finado monsieur Gros havia acusado aquele abbé de fazerr cataplasmas com matéria fecal, perdoem-me, e o abate o condenou à morte - duas semanas depois o povre monsieur Gros morria misterriosamente. Até o jury de honra convocado pelos martinistas de Lyon concluiu que esse Boutroux manubra substâncias venenosas."

"Com base em calúnias...” dizia Bramanti.

"Oh não me diga! Um processo sobre matérria dessa naturreza é sempre indiciárrio...”

"Sim, mas no tribunal não foi dito também que Gros era um alcoólatra com cirrose em último grau."

"Mas não seja puerril! A feitiçarria procede pelas vias naturrais, e se alguém tem cirrose vão acertá-lo exactamente no órgano doente, é o abc da magia negra...”

"E então todo aquele que morrer de cirrose é o bom Boutroux, não me faça rir!"

"Pois então conte-nos o que aconteceu em Lyon naquelas duas semanas... Capela desconsagrada, hóstia com o tetragrámmaton, o seu Boutroux com uma longa veste ruja com a cruz virrada parra baixo, e madame Olcott, a sua vidente particularr, parra não dizerr mais, que lhe aparrece com o tridente sobre a fronte, e os calices vazios que se enchem sozinhos de sangue, e o abate a cuspirr na boca dos fiéis... E verdade ou non?"

"Mas o senhor leu demais Huysmans, meu caro!" ria-se Bramanti. "Foi um evento cultural, uma reevocação histórica, como as celebrações da escola de Wicca e dos colégios druídicos!"

"Olé, o carnaval de Veneza...”

Ouvimos um alvoroço, como se Bramanti estivesse a ponto de atirar-se contra o adversário, e Agliê o contivesse a custo. "Está vendo como é, está vendo não é mesmo?", dizia o francês com a voz acima do tom. "Mas preste atençon Bramanti, pergunte ao seu amigo Boutroux o que lhe aconteceu! Se ainda não sabe, ele está no hospital, pergunte a ele quem lhe quebrou a carra! Mesmo não praticando aquela goetia deles, sei também algumas coisas, e quando percebi que minha casa estava assombrada, tracei no chão o círculo de defesa, e embora eu próprio não creio mas os seus diabretes sim, ergui o escapulárrio do Carmelo, e lhes fiz o contra-sinal, l’envoútement retourné, e zás. O seu abate deve ter passado uns maus bocados!"

"Veja só!" bufava Bramanti, "veja que é ele quem faz os malefícios.

"Senhores, vamos acabar com isto", disse Agliè, gentil mas firme. "Agora ouçam-me. Sabem o quanto aprecio no plano cognoscitivo estas revisitações de rituais dessuetos, e para mim a igreja luciferiana ou a ordem de Satã são igualmente respeitáveis para além de suas diferenças demonológicas. Conhecem meu cepticismo a respeito, mas afinal de contas pertencemos sempre à mesma cavalaria espiritual e os conclamo a um mínimo de solidariedade. Além do mais, senhores, mesclar o Príncipe das Trevas com meros despeitos pessoais! Se fosse verdadeiro seria pueril. Vamos acabar com essas histórias de ocultistas. Comportam-se como vulgares franco-maçons. Boutroux é um dissociado, sejamos francos, e melhor seria, caro Bramanti, que o convidasse a revender a um ferro-velho aquela sua parafernália de Fausto dos subúrbios...”

"Ah ah, c’est bien dit ça", ria à socapa o francês, "c’est de la brocanterie...”

"Redimensionemos os fatos. Houve um debate sobre o que chamaremos formalismos litúrgicos, os ânimos se inflamaram, mas não acreditamos em quimeras. Saiba, caro Pierre, não excluo de todo a presença em sua casa de entidades estranhas, é a coisa mais normal do mundo, mas com um mínimo de bom senso poderíamos explicar tudo como sendo um poltergeisi...”

"Ah, isto não excluo", disse Bramanti, "a conjuntura astral naquele período...”

"E então! Vamos, um aperto de mão e um abraço fraterno."

Ouvimos sussurros de desculpas recíprocas. "Até o senhor sabe", estava dizendo Bramanti, "às vezes para identificar aquele que verdadeiramente espera a iniciação, é preciso admitir inclusive o folclore. Até aqueles comerciantes do Grand Orient, que não crêem em nada, têm um cerimonial."

"Bien entendu, le rituel, ah ça...”

"Mas não estamos mais nos tempos de Crowley, entenderam?"

disse Agliè. "Agora me despeço. Tenho outros visitantes."

Voltamos rapidamente ao divã, e ficamos à espera de Agliè com circunspecção e desenvoltura.

 

Portanto nossa alta tarefa consiste em encontrar ordem nestas sete medidas, uma ordem que seja capaz, suficiente e distinta, e que tenha sempre os sentidos despertos e a memória percutida... Esta alta e incomparável colocação tem não somente a propriedade de nos conservar as ditas coisas palavras e artes..., mas nos dá ainda a verdadeira sabedoria...

(Giulio Camillo Delminio, L‘Idea del Theatro, Firenze, Torrentino, 1550, Introdução)

 

Poucos minutos depois Agliè entrava. "Desculpem-me, caros amigos, mas estou saindo de uma discussão bastante desagradável para dizer o mínimo. Como sabe nosso amigo Casaubon, considero-me um cultor da história das religiões, e isso faz com que não raro alguns recorram às minhas luzes, mais talvez ao meu bom senso que à minha doutrina. É curioso, sabem, mas entre os adeptos de estudos sapienciais encontramos às vezes personalidades bastante singulares... Não me refiro aos costumeiros buscadores de consolações transcendentais ou aos espíritos melancólicos, mas mesmo a pessoas de profundo saber, e de grande finura intelectual, que no entanto se entregam a extravagâncias noturnas e perdem o sentido de limite entre a verdade tradicional e o arquipélago do surpreendente. As pessoas com as quais me reunia estavam questionando sobre conjecturas pueris. Mas, como se costuma dizer, isto acontece nas melhores famílias. Mas, por favor, acompanhem-me ao meu pequeno escritório, onde poderemos conversar em ambiente mais confortável."

Ergueu a cortina de couro, e nos fez entrar no aposento. Não diríamos que fosse um escritório pequeno, amplo como era, e decorado com delicadas estantes de antiquário, recobertas de livros bem encadernados, certamente todos de respeitável idade. O que nos surpreendeu, mais que os livros, foram algumas vitrinazinhas cheias de objetos incertos, que nos pareceram pedras, e pequenos animais, não percebemos se empalhados ou mumificados ou artisticamente reproduzidos. Todo o conjunto como que submerso numa luz difusa e crepuscular. Parecia provir de uma grande janela geminada ao fundo, de vidraças reticuladas a chumbo em formato de losangos, de uma transparência cor de âmbar, mas a luz da janela se amalgamava com a de uma grande lâmpada pousada sobre uma mesa de mogno escuro, recoberta de papéis. Era uma dessas lâmpadas que se encontram às vezes sobre as mesas de leitura das velhas bibliotecas, um enorme garrafão verde com cúpula, capaz de projetar um oval branco sobre a página, deixando o resto do ambiente numa penumbra de opalescência. Este jogo de luzes diversas, ambas artificiais, de qualquer forma no entanto reavivava em vez de ofuscar a policromia do teto.

Era um teto abobadado, que o efeito decorativo pretendia estivesse sustentado dos quatro lados por pequenas colunas cor de tijolo com diminutos capitéis dourados, mas o trompe-l’oeil das imagens que o compunham, repartidas por sete zonas, fazia-o parecer uma abóbada de arestas, e a sala inteira assumia um tom de capela mortuária, impalpavelmente pecaminosa, melancolicamente sensual.

"Meu pequeno teatro", disse Agliè, "à maneira daquelas fantasias renascentistas onde se representavam enciclopédias visuais, coleções do universo. Mais do que uma habitação, uma máquina para recordar. Não há imagem que se veja que, combinando-se devidamente com outras, não revele ou sintetize um mistério do mundo. Observem aquela série de figuras, que o pintor quis fazer semelhantes às do palácio de Mântua: são os trinta e seis decanos, senhores do céu. E por capricho, e fidelidade à tradição, de quem encontrei esta esplêndida reconstrução devida a não se sabe quem, quis que mesmo os pequenos objetos correspondessem, nos escrínios, às imagens do teto, resumindo os elementos fundamentais do universo, o ar, a água, a terra e o fogo. O que explica a presença desta graciosa salamandra, por exemplo, obra-prima de taxidermia de um caro amigo meu, ou esta delicada reprodução em miniatura, na verdade um pouco tardia, da eolípila de Eros, onde a água contida na esfera, quando se ativa este fornozinho a álcool que lhe serve de alguidar, aquece-se e escapa por esses biquinhos laterais, provocando a rotação. Mágico instrumento, que os sacerdotes egípcios já usavam em seus santuários, como nos ensinam tantos textos ilustres. Usavam-no para simular um prodígio, pois as turbas veneram os prodígios, ao passo que o verdadeiro prodígio está na lei áurea que regula a mecânica secreta e simples, aérea e elementar, do ar e do fogo. Esta é a sabedoria que tinham nossos ancestrais, e os homens da alquimia, e que os construtores de cíclotrons perderam. Por isso volto o olhar para o meu teatro da memória, filho de tantos outros, mais vastos, que fascinaram os grandes espíritos do passado, e sei. Sei, mais do que os assim chamados sábios. Sei que assim como é embaixo, assim é no alto. E não há mais o que saber."

Ofereceu-nos charutos cubanos, de forma curiosa, não retos, mas contorcidos, encrespados, bem como encorpados e grossos. Emitimos algumas exclamações de admiração e Diotallevi se aproximou das estantes.

"Oh", dizia Agliè, "uma biblioteca mínima, como vêem, não mais que duas centenas de livros, tenho muitos mais em minha casa de família. Mas modestamente todos os daqui são de valor e raridade, naturalmente não dispostos ao acaso, pois a ordem das matérias verbais segue a das imagens e dos objetos."

Diotallevi ensaiou timidamente tocar num dos volumes. "Tenha a bondade", disse Agliè, "é o Oedypus Aegyptiacus de Athanasius Kircher. Como sabem, ele foi o primeiro depois de Horapollus a tentar interpretar os hieróglifos. Homem fascinante, quem me dera ter aqui um museu das maravilhas como o dele, que hoje se crê disperso, porque não encontra quem sabe procurar... Conversador amabilíssimo. Como ficou satisfeito no dia em que descobriu que este hieróglifo significava ‘os benefícios do divino Osíris sejam providos de cerimônia sagrada e da cadeia dos gênios...’ Depois veio aquele embusteiro do Champollion, homem odiento, creiam-me, de uma vaidade infantil, que insistia em afirmar que o sinal correspondia apenas ao nome de um faraó. Que engenho têm os modernos em envilecer os símbolos sagrados. A obra não é no entanto assim tão rara: custa menos que uma Mercedes. Mas vejam no entanto esta, a primeira edição de 1595 do Amphitheatrum sapientiae aeternae de Khunrath. Dizem que só existem dois exemplares no mundo. Este é o terceiro. Já esta aqui é a primeira edição do Telluris Theoria Sacra de Burnetius. Não lhe posso olhar as gravuras à noite sem experimentar uma sensação de claustrofobia mística. A profundidade de nosso globo... Insuspeitada, não é verdade? Vejo que o Dr. Diotallevi está fascinado pelos caracteres hebraicos do Traicté des Chiffres de Vigenère. Veja agora este: é a primeira edição da Kabbala denudata de Knorr Christian von Rosenroth. Os senhores certamente sabem, pois o livro foi traduzido, de modo parcial e inepto, e divulgado em inglês no princípio deste século por aquele infeliz McGregor Mathers... Conhecerão algo sobre aquele escandaloso conciliábulo que tanto fascinou os estetas britânicos, a Golden Dawn. Daquele bando de falsificadores de documentos iniciáticos só poderia sair uma série de degenerações sem fim, da Stella Mattutina às igrejas satânicas de Aleister Crowley, que evocava os demônios para obter a graça de alguns gentis-homens devotos do vice anglais. Soubessem, caros amigos, quantas pessoas dúbias, a dizer o menos, ocorre-nos encontrar quando nos dedicamos a estes estudos, mas os senhores verão com seus próprios olhos assim que começarem a publicar essa matéria."

Belbo aproveitou-se da ocasião que lhe fornecia Agliè para entrar no assunto. Disse-lhe que a Garamond desejava publicar uns poucos livros ao ano de caráter, disse, esotérico.

"Oh, esotérico", sorriu Aghié, e Belbo enrubesceu.

"Digamos..., hermético?"

"Oh, hermético", sorriu Agliè.

"Bem", disse Belbo, "talvez esteja usando os termos confusamente, mas decerto o senhor sabe de que gênero se trata."

"Oh", sorriu ainda Agliè, "não se trata de um gênero. É um saber. O que os senhores desejam é publicar uma resenha do saber não-degenerado. Talvez para os senhores seja apenas uma questão de escolha editorial, mas se eu vier a trabalhar nela para mim será uma espécie da procura da verdade, uma queste du Graal."

Belbo advertiu que, assim como o pescador que atira sua rede está sujeito a recolher também conchas vazias e saquinhos de plástico, na Garamond iriam aparecer muitos originais de discutível seriedade, motivo por que se procurava um leitor rigoroso que soubesse separar o trigo do joio, assinalando inclusive as escórias curiosas, pois havia uma outra editora amiga que gostaria lhe fossem encaminhados os autores que não fossem rigorosamente de primeira plana... Naturalmente tratava-se ainda de fixar uma forma digna de remuneração.

"Graças aos céus sou daqueles que se costumam chamar uma pessoa abastada, que além de curiosa é igualmente cuidadosa. Basta-me, no curso de minhas investigações, encontrar outro exemplar de Khunrath, ou outra bela salamandra embalsamada, ou um chifre de narval (que me envergonharia de fazer figurar em minha coleção, mas que no entanto o tesouro de Viena exibe como sendo um chifre de unicórnio), e ganho com uma rápida e agradável transação muito mais que os senhores me possam oferecer por dez anos de consultoria. Verei seus originais datilografados com espírito de humildade. Estou convencido de que mesmo no texto mais esquálido encontrarei um reflexo qualquer, se não da verdade, pelo menos de bizarra mentira, e não raro os extremos se tocam. Vou-me enfadar apenas com a obviedade, e por esse enfado é que os senhores me pagarão. Com base no enfado que eu venha a ter, enviarei aos senhores no fim do ano uma pequena nota, que manterei nos limites do valor simbólico. Se a julgarem excessiva, mandem-me uma caixa de vinho de boa qualidade."

Belbo ficou perplexo. Estava acostumado a tratar com colaboradores teimosos e famintos. Abriu a maleta que trazia consigo e dela tirou um original volumoso.

"Não gostaria que o senhor fizesse uma avaliação demasiado otimista. Veja por exemplo este, que me parece típico da média."

Agliè abriu o original: "A língua secreta das Pirâmides... Vejamos o índice... O Pyramidion... Morte de Lord Carnavon... O testemunho de Heródoto...” Fechou-o. "Os senhores leram?"

"Eu, rapidamente, nos últimos dias", disse Belbo.

Devolveu-lhe o maço. "Pois então me confirme se minha apreciação está correta." Sentou-se por trás da escrivaninha, meteu a mão no bolso do casaco, dele retirou o porta-pílulas que eu já vira no Brasil, girou-o entre os dedos delicados e finos que ainda há pouco haviam acariciado seus livros prediletos, ergueu os olhos para a decoração do teto, e pareceu-me recitar um texto que conhecesse desde muito.

"O autor deste livro lembrará aos seus leitores que Piazzi Smyth descobriu as medidas sagradas e esotéricas das pirâmides em 1864. Permitam-me que cite apenas em números inteiros, porque na minha idade a memória começa a trair-nos... É curioso observar que a base das pirâmides seja um quadrado de 232 metros de lado. A altura originária era de 148 metros. Isso traduzido em cúbitos sagrados egípcios dá uma base de 366 cúbitos ou seja o número de dias do ano bissexto. Para Piazzi Smyth a altura multiplicada por 10 à nona potência dá a distância da Terra ao Sol: 148 milhões de quilômetros. Uma boa aproximação para aqueles tempos, visto que hoje a distância calculada é de 149 milhões e meio de quilômetros, e não se quer dizer com isso que os modernos tenham razão. A base dividida pela largura de uma das pedras dá 365. O perímetro da base é de 931 metros. Dividindo-se pelo dobro da altura tem-se 3, 14, o número PI. Esplêndido, não é verdade?"

Belbo sorria embaraçado. "Impossível. Mas diga-me como faz para...”

"Deixa o Dr. Agliè falar, Jacopo", disse solícito Diotallevi.

Agliè agradeceu-lhe com um sorriso educado. Falava enquanto percorria o olhar pelo teto, mas me pareceu que sua inspeção não era nem ociosa nem casual. Seus olhos seguiam um traçado, como se lesse nas imagens o que fingia reevocar na memória.

 

Ora, do ápice à base, as medidas da Grande Pirâmide, em polegadas egípcias, são 161.000.000.000. Quantos seres humanos viveram na terra de Adão até hoje? Uma boa aproximação seria algo entre 153.000.000.000 e 171.000.000.000.

(Piazzi Smyth, Our Inheritance in the Great Pyramid, London, Isbister, 1880, p. 583)

 

"Imagino sustente o nosso autor que a altura da pirâmide de Quéops seja igual à raiz quadrada do número dado pela superfície de cada um dos lados. Naturalmente as medidas vão referidas em pés, mais próximos dos cúbitos egípcios e hebraicos, e não em metros, porque o metro é uma medida abstrata inventada nos tempos modernos. O cúbito egípcio em pés é igual a 1, 728. Embora não tenhamos as alturas precisas podemos refazê-las por meio do piramidião, que era a pequena pirâmide colocada no ápice da grande pirâmide para constituir-lhe a ponta. Era de ouro ou de outro metal que luzisse ao sol. Ora tomemos a altura do piramidião, multipliquemo-la pela altura da pirâmide inteira, multipliquemos o total por dez elevado à quinta e teremos a largura da circunferência equatorial. Tem mais, se tomarmos o perímetro da base e o multiplicarmos por vinte e quatro elevado à terceira e dividido por dois, teremos o raio médio da Terra. E ainda, a área coberta pela base da pirâmide multiplicada por 96 por dez à oitava dá cento e noventa e seis milhões oitocentos e dez mil milhas quadradas que correspondem à superfície terrestre. E isso?"

Belbo adorava manifestar estupefação, de hábito, usando uma expressão que aprendera na cinemateca, vendo a cópia original de Yankee Doodle Dandy com James Cagney: "I am flabbergasted!" E assim disse. Evidentemente Agliè conhecia igualmente bem o inglês coloquial porque não conseguiu esconder sua satisfação sem se envergonhar desse ato de vaidade. "Caros amigos", disse, "quando um autor, cujo nome desconheço, elabora uma compilação sobre o mistério das pirâmides, só vai conseguir dizer aquilo que até mesmo as crianças sabem. Teria ficado surpreso se dissesse algo de novo."

"Logo", hesitou Belbo, "este senhor está dizendo simplesmente verdades comprovadas."

"Verdades?" riu-se Agliè, abrindo de novo sua carteira de charutilhos finíssimos e deliciosos. "Quid est veritas, como dizia um conhecido meu de muitos anos. Em parte trata-se de um monte de tolices. Para início de conversa, se dividirmos a base exata da pirâmide pelo dobro exato de sua altura, calculando-se mesmo os decimais, não se obtém o número PI e sim 3, 1417254. Ínfima diferença, mas que conta. Além disso um discípulo de Piazzi Smyth, Flinders Petrie, que fez medidas também em Stonehenge, diz ter surpreendido o mestre um dia a limar os ressaltos graníticos da antecâmara real para que as contas dessem certo... Ninharias, talvez, mas Piazzi Smyth não era homem de inspirar confiança, basta ver a maneira como dava o nó da gravata. Contudo em meio a tantas idiotices vamos encontrar igualmente verdades irrefutáveis. Senhores, querem ter a bondade de seguir-me até a janela?"

Escancarou teatralmente os batentes, convidou-nos a olhar para fora, e nos mostrou ao longe, no ângulo entre a ruazinha e o grupo de casas, um pequeno quiosque de madeira onde se vendiam provavelmente bilhetes de loteria.

"Senhores", disse, "convido-os a avaliar as medidas daquele quiosque. Verão que o comprimento do patamar é de 149 centímetros, vale dizer um centésimo milionésimo da distância da Terra ao Sol. A altura posterior dividida pela largura da janela dá 176/56 = 3, 14. A altura frontal é de 19 decímetros, o que é equivalente ao número de anos do ciclo lunar grego. A soma das alturas das duas arestas anteriores e das duas posteriores perfaz 190 x 2 + 176 x 2 = 732, que é a data da vitória de Poitiers. A espessura da base é de 3,10 centímetros e a largura das molduras da janela é de 8, 8 centímetros. Substituindo os números inteiros pelas correspondentes letras alfabéticas teremos C10 H8, que é a fórmula da naftalina."

"Fantástico", disse eu, "o senhor mediu?"

"Não", disse Agliè. "Mas um certo Jean-Pierre Adam fê-lo em relação a um outro quiosque. Presumo que os quiosques de loteria tenham mais ou menos as mesmas dimensões. Com os números podemos fazer tudo o que quisermos. Se temos o número sagrado 9 e queremos obter 1314, data em que morreu na fogueira Jacques de Molay - data significativa para aqueles que como eu se professam devotos da tradição cavaleirosa templar - que devemos fazer? Multiplicá-lo por 146, data fatídica da destruição de Cartago. Como cheguei ao resultado? Dividi 1314 por dois, por três etc., até encontrar uma data satisfatória. Podia ter dividido 1314 por 6,28 - o dobro de 3,14 - e obteria 209. Pois bem, este é o ano em que subiu ao poder Átalo I, rei de Pérgamo. Satisfeitos?"

"Quer dizer que o senhor não acredita em numerologia de espécie alguma", disse Diotallevi desiludido.

"Eu? Creio firmemente nelas, creio que o universo seja um conceito admirável de correspondências numéricas e que a leitura do número, e a sua interpretação simbólica, sejam uma via de conhecimento privilegiada. Mas se o mundo, ínfero e súpero, é um sistema de correspondências onde tout se tient, é natural que o quiosque e a pirâmide, ambos obra humana, inconscientemente tenham reproduzido em sua estrutura as harmonias do cosmo. Esses pretensos piramidólogos descobrem através de meios incrivelmente complicados uma verdade linear, e bem mais antiga, e já sabida. A lógica da pesquisa e da descoberta é que é pervertida, porque é a lógica da ciência. A lógica da sapiência não tem necessidade de descobertas, porque já sabe. Por que se precisa demonstrar aquilo que não poderia ser de outra maneira? Se há um segredo, é bem mais profundo. Estes autores permanecem simplesmente na superfície. Imagino que se refiram até mesmo àquelas patranhas de que os egípcios conheciam a eletricidade...”

"Não lhe pergunto mais como fez para adivinhar."

"Estão vendo? Contentam-se com a eletricidade como um engenheiro Marconi qualquer. Seria menos pueril a hipótese da radioatividade. Conjectura interessante que, diversamente da hipótese elétrica, explicaria a conclamada maldição de Tutankhamon. Como conseguiram os egípcios erguer as enormes pedras das pirâmides? Erguem-se pedregulhos com descargas elétricas, fazem-nos voar com a fissão nuclear? Os egípcios tinham descoberto a maneira de eliminar a força de gravidade, e possuíam o segredo da levitação. Uma outra forma de energia... Sabe-se que os sacerdotes caldeus acionavam máquinas sagradas mediante puros sons, os de Carnaque e de Tebas podiam fazer escancarar as portas de um templo com o som de sua voz - e a que outra coisa poderá referir-se, reflitamos, a lenda do Abre-te Sésamo?"

"E então?" perguntou Belbo.

"Aí está, meu amigo. Eletricidade, radioatividade, energia atômica, o iniciado sabe que tudo isso são metáforas, disfarces superficiais, convencionais mentiras, no máximo piedosos sucedâneos dealguma força ancestral, e esquecida, que o iniciado procura, e um dia conhecerá. Talvez devêssemos falar", e hesitou um instante, "das correntes telúricas."

"De quê?" perguntou não sei mais quem de nós três.

Agliè parecia desiludido: "Estão vendo? Estava à espera de que entre os postulantes dos senhores houvesse alguém capaz de me dar algo mais interessante. Mas estou vendo que é tarde. Bem, meus amigos, o pacto está feito, e o resto não passa de divagações de um velho estudioso."

Enquanto nos estendia a mão, entrou o camareiro e sussurrou-lhe alguma coisa ao ouvido. "Oh, a minha cara amiga", disse Agliè, "tinha-me esquecido. Peça-lhe que espere um minuto..., não, no salão não, na salinha turca."

A cara amiga devia ser familiar à casa, pois que estava agora a porta do escritório, e sem olhar para nós, na penumbra do dia já chegando ao fim, avançava firme em direção a Agliè, e acariciando-lhe o rosto com denguice lhe dizia: "Simão, não me faça esperar na ante-sala!" Era Lorenza Pellegrini.

Agliè inclinou-se levemente, beijou-lhe a mão, e lhe disse, indicando-nos: "Minha querida Sophia, sabe muito bem que a casa é sua, esta e qualquer outra que sua presença ilumine. Mas estava me despedindo aqui destas visitas."

Lorenza apercebeu-se de nós e fez um alegre sinal de cumprimento não me lembro jamais de tê-la visto surpresa ou embaraçada com qualquer coisa. "Oh mas que beleza", disse, "vocês também conhecem meu amigo! Jacopo, como estás." (Não perguntou como estava, disse-lhe.)

Vi Belbo empalidecer. Despedimo-nos, Agliè disse estar contente por aquele conhecimento comum. "Considero esta nossa amiga uma das criaturas mais autênticas que jamais tive a ventura de conhecer. Em sua franqueza encarna, permitam-me esta fantasia de velho sabedor, a Sophia exilada sobre a Terra. Mas ouve, minha doce Sophia, não consegui avisá-la a tempo, a noitada prometida foi adiada para daqui a algumas semanas. Sinto muito."

"Não importa", disse Lorenza, "ficarei esperando. E vocês, estão indo ao bar?" perguntou-nos, ou melhor ordenou. "Ótimo, ainda fico aqui uma meia hora. Quero que Simão me dê um de seus elixires, que vocês precisam provar, e ele diz ser só para os eleitos. Depois os encontro lá."

Agliè sorriu com um tom de tio indulgente, fê-la sentar-se e nos acompanhou até a saída.

Ganhamos a rua e nos aviamos para o Pílades, em meu carro. Belbo permanecia mudo. Nada falamos durante todo o trajeto. Mas no balcão do bar conseguimos romper o encanto.

"Espero não tê-los jogado nas mãos de um louco", disse eu.

"Não", disse Belbo. "O homem é inteligente, e sutil. Só que vive num mundo diverso do nosso." Depois acrescentou, sombrio: "Ou quase."

 

A Traditio Templi postula de per si uma tradição de cavalaria templar, cavalaria espiritual e iniciática...

(Henri Corbin, Temple et contemplation, Paris, Flammarion, 1980)

 

"Acho que consegui entender esse seu Agliè, Casaubon", disse Diotallevi, que no Pílades havia pedido um frisante branco, enquanto todos nós temíamos por sua saúde espiritual. "É um curioso das ciências secretas, que desconfia dos diletantes e dos que ouvem por alto. Mas, como entreouvimos hoje, apesar de desprezá-los os ouve assim mesmo, os critica mas não se dissocia deles."

"Hoje o senhor, o conde, o margrave Agliè ou seja lá o que for, pronunciou uma expressão-chave", disse Belbo. "Cavalaria espiritual. Despreza-os mas sente-se ligado a eles por um vínculo de cavaleiro espiritual. Acho que o entendi."

"Em que sentido?" perguntamos.

Belbo estava agora no terceiro martini (uísque à noite, preconizava, porque acalma e induz à rêverie, martini ao fim da tarde porque

excita e fortalece). Pôs-se a falar-nos de sua infância em***, como já havia feito uma vez comigo.

"Isso foi entre 1943 e 1945, quero dizer na passagem do fascismo à democracia, depois novamente à ditadura da república de Salò, mas ia com a guerra dos partigiani nas montanhas. Eu tinha onze anos no inicio desta história e vivia na casa de meu tio Carlos. Morávamos na cidade, mas em 1943 os bombardeios estavam se intensificando e minha mãe resolveu que devíamos migrar, como então se dizia. Em*** moravam tio Carlos e tia Catarina. Tio Carlos provinha de uma família de lavradores, e havia herdado a casa de***, com as terras que foram dadas a meias a um tal de Adelino Canepa. O meeiro trabalhava, colhia cereais, fazia vinho, e entregava metade dos proventos ao proprietário. Situação de tensão, é óbvio: o meeiro se considera explorado, o mesmo acontecendo com o proprietário que achava só estar desfrutando metade dos rendimentos de suas terras. Os proprietários odiavam os meeiros e os meeiros odiavam os proprietários. Mas conviviam, no caso de tio Carlos. Tio Carlos em 1914 tinha-se alistado voluntário nos grupos alpinos. Temperamento rude de piemontês, pondo acima de tudo o dever e a pátria, tornara-se primeiro-tenente e depois capitão. Para encurtar a história, numa batalha do Carso, viu-se ao lado de um recruta idiota que tinha deixado uma granada explodir-lhe nas mãos - senão por que haveria de chamá-la de granada de mão? Em suma, estava para ser atirado à vala comum quando um enfermeiro percebeu que ainda estava vivo. Levaram-no para um hospital de campanha, extrairam-lhe um olho, que havia ficado pendurado por fora da órbita, cortaram-lhe o braço, e segundo tia Catarina inseriram-lhe também uma placa de metal sob o couro cabeludo, porque havia perdido um pedaço da caixa craniana. Em suma, uma obra-prima de cirurgia, por um lado, e um herói, por outro. Medalha de prata, cruz de cavaleiro da coroa de Itália, e depois da guerra um posto seguro na administração pública. Meu tio acabou coletor de impostos em***, onde havia herdado a propriedade dos seus, e foi residir na velha casa, ao lado da qual vivia Adelino Canepa e sua família."

Tio Carlos, como coletor de impostos, era um dos figurões do lugar. E como mutilado de guerra e cavaleiro da coroa de Itália, não podia senão simpatizar com o governo que estava no poder, dando-se o caso de que este era a ditadura fascista. E tio Carlos, era fascista?

"Na medida em que, como se dizia em sessenta e oito, o fascismo havia revalorizado os ex-combatentes e os gratificava com condecorações e promoções na carreira, digamos que tio Carlos fosse moderadamente fascista. O bastante para ser odiado por Adelino Canepa, que ao contrário era antifascista, por motivos bem claros. Tinha que dirigir-se a ele todos os anos para acertar sua declaração de renda. Chegava à coletoria com ar cúmplice e arrogante, depois de haver tentado seduzir tia Catarina com algumas dúzias de ovos. E se encontrava em frente a tio Carlos, que não só como herói era incorruptível, mas que conhecia melhor do que ninguém o quanto Canepa lhe havia roubado ao longo do ano, e não lhe perdoava um centavo. Adelino Canepa julgou-se vitima da ditadura, e começou a espalhar calúnias sobre tio Carlos. Moravam na mesma casa, um no andar de cima, outro ao rés do chão, encontravam-se de manhã e de noite, mas não se cumprimentavam jamais. Os contatos eram feitos através de tia Catarina, e depois de nossa chegada por intermédio de minha mãe - a quem Adelino Canepa exprimia toda a sua simpatia pelo fato e compreensão de ser cunhada de um monstro. O tio voltava para casa todas as tardes as seis, com seu costumeiro jaquetão cinza, o chapéu e um exemplar da Stampa ainda por ler. Caminhava ereto, como alpino, com o olho acinzentado que fixava o monte a conquistar. Passava diante de Adelino Canepa que àquela hora tomava a fresca sentado a um banco do jardim, e era como se este não existisse. Depois cruzava pela Sra. Canepa à entrada do andar de baixo, tirava-lhe cerimoniosamente o chapéu, e subia. Assim todas as tardes, ano após ano."

Eram oito horas, Lorenza não chegava como havia prometido, Belbo andava pelo quinto martini.

"Chega 1943. Certa manhã tio Carlos entrou em meu quarto, despertou-me com um grande beijo e disse rapaz quer saber a maior notícia do ano? Botaram Mussolini fora do poder. Nunca cheguei a saber se tio Carlos sofreu ou não por isso. Era um cidadão integérrimo e um servidor do Estado. Se sofreu, não falou a respeito, e continuou a recolher os impostos para o governo Badoglio. Depois veio o 8 de dezembro, a região em que vivíamos caiu sob o controle da República Social, e tio Carlos se acomodou. Recolhia os tributos para a República Social. Adelino Canepa no entanto começava a gabar-se de seus contatos com os primeiros contingentes de partigiani, feitos lá nos montes, e prometia exercer uma exemplar vingança. Nós os mais jovens não sabíamos ainda o que eram os partigiani. Fantasiávamos a seu respeito, mas ninguém os tinha visto ainda. Falava-se de um chefe badogliano, um tal Terzi (um nome de guerra, naturalmente, como ocorria então, e que muitos diziam haver tomado daquele Terzi das histórias em quadrinhos). Era um ex-comandante dos carabineiros, que nas primeiras refregas contra os fascistas e a SS tinha perdido uma perna, mas que comandava todas as brigadas que havia nas colinas em torno a***. E a fatalidade aconteceu. Um dia os partigiani aparecem na vila. Tinham descido das colinas e vagueavam pelas estradas, ainda sem uniforme definido, apenas com lenços azuis, disparando rajadas de metralhadora para o alto, apenas para marcar sua presença. A notícia circulou, todos se trancaram em casa, não se sabia ainda que raça de gente fossem. Tia Catarina expressou algumas leves preocupações, porquanto se diziam amigos de Adelino Canepa, ou pelo menos Adelino Canepa se dizia amigo deles, quem sabe iriam fazer alguma coisa contra o tio? E fizeram. Fomos informados que por volta das onze horas uma coluna de partigiani com metralhadoras apontadas havia entrado na coletoria e prendido o tio, levando-o para destino ignorado. Tia Catarina se estirou na cama, começou a sair-lhe uma espuma esbranquiçada pela boca e profetizou que tio Carlos tinha sido morto. Bastava um golpe com a coronha do fuzil, que por causa da placa subcutânea morreria do golpe. Atraído pelos gritos da tia chegou Adelino Canepa seguido da mulher e filhos. A tia gritou-lhe que era um judas, que fora ele quem denunciara o tio aos partigiani só porque recolhia impostos para a República Social, Adelino Canepa jurou por tudo que havia de mais sagrado que aquilo não era verdade, mas via-se que estava se sentindo responsável, por ter dado demais com a língua nos dentes. A tia o expulsou dali. Adelino Canepa chorou, apelou para minha mãe, recordou todas as vezes em que nos entregou um coelho ou um frango por uma quantia irrisória, minha mãe trancou-se num silêncio respeitoso, tia Catarina continuou a expelir espuma branca, pela boca. Eu chorava. Finalmente, depois de duas horas de agonia, ouvimos gritos, e tio Carlos apareceu de bicicleta, que manejava com um só braço, como que parecendo vir de algum passeio. Logo se apercebeu de todo aquele alvoroço no jardim e teve a cara-de-pau de perguntar o que havia acontecido. Odiava os dramas, como toda a gente daquelas nossas bandas. Subiu, acercou-se do leito de dor em que tia Catarina ainda esperneava seus gambitos descarnados, e perguntou-lhe por que estava assim tão agitada."

"Que havia acontecido?"

"Aconteceu que os partigiani de Terzi tinham provavelmente dado ouvidos às calúnias de Adelino Canepa e identificaram tio Carlos como um dos representantes locais do regime, prendendo-o para dar uma lição a toda a gente do povoado. Tio Carlos foi levado num caminhão para fora da cidade e encontrou-se defronte de Terzi, fulgindo em suas condecorações de guerra, a metralhadora na mão direita, a esquerda apoiada na muleta. E tio Carlos, mas estou certo de que não foi por astúcia, foi por instinto, hábito, ritual cavaleiroso, destacou-se dos circunstantes, bateu-lhe continência e apresentou-se, major dos alpinos Carlos Covasso, mutilado de guerra e inválido da pátria, condecorado com medalha de prata. E Terzi, destacando-se igualmente dos circunstantes, também se apresenta, suboficial Rebaudengo, dos Reais Carabineiros, comandante da brigada badogliana Bettino Ricasoli, medalha de bronze. Onde, perguntara tio Carlos? E Terzi, atento à hierarquia: Na colina de Pordoi, senhor major, altitude 327. Cáspite, teria dito tio Carlos, eu estava na altitude 328, terceiro regimento, Sasso di Stria! Na batalha do solstício? Na batalha do solstício. E o canhoneio do monte Cinco Dedos? Ora, com mil demônios se não me recordo! E a carga de baioneta na vigília de São Cipriano? Com todos os raios! Enfim, coisas do gênero. Depois, um deles sem braço, o outro sem a perna, como um só homem deram um passo à frente e se abraçaram. Terzi lhe teria dito veja senhor major, acontece que o senhor recolhe impostos para o governo fascista submisso ao invasor. Veja, comandante, lhe teria dito tio Carlos, tenho família e recebo proventos do governo central, que é este que aí está mas que não fui eu que escolhi, que faria o senhor no meu lugar? Caro major, lhe teria respondido Terzi, em seu lugar procederia como o senhor, mas pelo menos trate de levar a coisa menos à risca, deixe afrouxar um pouco. Veremos, lhe teria dito tio Carlos, nada tenho contra os senhores, que também são filhos da Itália e valorosos combatentes. Creio que se entenderam porque ambos diziam Pátria com P maiúsculo. Terzi ordenou que dessem uma bicicleta ao senhor major e meu tio regressou a casa. Adelino Canepa não deu mais as caras por alguns meses. Aí está, não sei bem se cavalaria espiritual é exatamente isto, mas o certo é que há vínculos que sobrevivem acima dos partidos."

 

Porque sou a primeira e a última. Sou a preferida e a odiada. Sou a prostituta e a santa.

(Fragmento de Nag Hammadi, 6, 2)

 

Entrou Lorenza Pellegrini, Belbo olhou para o teto e pediu um último martini. Havia tensão no ar e fiz sinal de levantar-me. Lorenza me reteve. "Não, venham todos comigo, hoje é o vernissage de Riccardo, que está inaugurando uma nova tendência! E grande, você o conhece bem, Jacopo."

Eu sabia quem era esse Riccardo, andava sempre pelo Pílades, mas então não compreendi por que Belbo se concentrou com maior empenho ainda em fixar o teto. Depois de ler os files é que vim a saber que Riccardo era o homem da cicatriz, com quem Belbo não teve coragem de sair na briga.

Lorenza insistia, a galeria não era longe do Pílades, tinham organizado uma festa para valer, até mesmo uma bacanal. Diotallevi ficou inteiramente desconcertado e disse logo que tinha de se retirar, eu estava na dúvida, mas era evidente que Lorenza queria também que eu fosse, e até isto fazia sofrer Belbo, que via distanciar-se o momento do diálogo a sós. Mas não pude fugir ao convite e lá fomos.

Eu não apreciava muito esse Riccardo. No início dos anos sessenta produzia quadros muito chatos, diminutas tessituras em negro e cinza, muito geométricas, um pouco op-art, que faziam dançar os olhos. Eram intituladas Composição 15, Paralaxe 17, Euclides X. Mal começou sessenta e oito expunha nas casas ocupadas, tinha mudado muito pouco a palheta, então apenas contrastes violentos de negro e branco, a malha era maior, e os títulos soavam Ce n‘est qu‘un début, Molotov, Cem flores. Quando voltei a Milão vi-o expor num círculo onde se adorava o Dr. Wagner, havia eliminado o negro, trabalhava com estruturas brancas, onde os contrastes eram dados apenas com os relevos dos traços num papel Fabriano poroso, de modo que os quadros, explicava, revelavam perfis diversos segundo a incidência da luz. Intitulavam-se Elogio da ambigüidade, A/Través, Ça, Bergstrasse e Denegação 15.

Naquela noite, mal entrei na nova galeria, compreendi que a poética de Riccardo havia sofrido profunda evolução. A exposição se intitulava Megale Apophasis. Riccardo tinha passado para o figurativo, com uma palheta rutilante. Jogava com citações, e como não acreditava que ele soubesse desenhar, imagino trabalhasse projetando na tela o diapositivo de algum quadro célebre - a escolha girava entre pompiers fim-de-século e simbolistas dos inícios do atual. Sobre o traçado original trabalhava com uma técnica pontilhada, por meio de gradações infinitesimais de cores, percorrendo ponto a ponto todo o espectro, de modo a iniciar sempre de um núcleo muito luminoso e acabar em negro absoluto - ou vice-versa, segundo o conceito místico ou cosmológico que quisesse exprimir. Havia montanhas de onde emanavam raios de luz, decompostos num polvilhado de esferas de cores tênues, através das quais se viam céus concêntricos com acenos de anjos de asas transparentes, algo assim como o Paraíso de Doré. Os títulos eram Beatrix, Mystica Rosa, Dante Gabriele 33, Fiéis de A mor, A tanor, Homunculus 666 - donde a paixão de Lorenza pelos homúnculos, conforme me disse. O quadro maior se intitulava Sophia, e representava uma espécie de fusão de anjos negros que esfumava na base gerando uma criatura branca acariciada por grandes mãos lívidas, decalcada naquela que se vê erguida contra o céu em Guernica. A mistura era dúbia, e de perto a execução resultava tosca, mas vista de dois ou três metros o efeito era muito lírico.

"Sou um realista da velha guarda", me sussurrou Belbo, "só entendo Mondrian. Que representa um quadro não-geométrico?"

"Mas ele antes era geométrico", disse eu.

"Aquilo não era geometria. Eram pastilhas de azulejo de banheiro.”

Enquanto isto Lorenza tinha corrido a abraçar Riccardo, ele e Belbo trocaram um sinal de cumprimento. Havia atropelo, a galeria se apresentava como um loft de New York, de paredes inteiramente brancas e com os tubos de canalização aparentes no teto. Quanto será que gastaram para retrodatá-la assim. Num canto um sistema de amplificação atordoava os visitantes com música oriental, coisas com sitar, se bem recordo, daquelas em que não se reconhece a melodia. Todos passavam alheios diante dos quadros para aglomerar-se junto à mesa ao fundo, e pegar seu copo de papel. Havíamos chegado quando a festa já ia avançada, a atmosfera densa de fumo, algumas garotas de quando em vez ameaçando movimentos de dança no centro da sala, mas todos ainda ocupados em conversar, e em consumir o bufê, na verdade bastante variado. Sentei-me num divã aos pés do qual jazia uma grande taça de vidro, ainda cheia pela metade de salada de frutas. Estava a fim de servir-me de um pouco, pois não havia jantado, mas tive a impressão de nela distinguir a marca de um pé que tivesse pisado no meio os cubinhos de fruta, reduzindo-os a um pavê homogêneo. O que não era impossível, pois o pavimento estava coalhado de poças de vinho branco, e alguns convidados já se moviam com dificuldade.

Belbo tinha conseguido apoderar-se de um copo e movia-se com indolência, sem meta aparente, vez por outra dando uma palmadinha no ombro de alguém. Andava à cata de Lorenza.

Mas poucos estavam firmes. A gente estava entregue a uma espécie de movimento circular, como abelhas que procurassem uma flor ainda desconhecida. Eu não procurava nada, no entanto me havia erguido, e me deslocava seguindo os impulsos que me eram enviados pelo grupo. Vi um pouco à frente Lorenza, que vagava mimando agnições passionais com um e com outro, a cabeça erguida, o olhar propositalmente míope, os ombros e os seios firmes e retos, um passo divertido de girafa.

A certo ponto, o fluxo natural imobilizou-me num ângulo por detrás de uma mesa, com Belbo e Lorenza de costas um para o outro, finalmente reunidos, talvez por acaso, e bloqueados assim como eu. Não sei se haviam percebido a minha presença, mas com aquele grande barulho de fundo ninguém mais ouvia o que diziam os outros. Consideravam-se isolados, e fui obrigado a lhes ouvir a conversa.

"Então", dizia Belbo, "onde foi que conheceu esse seu Agliè?"

"Meu? Deve ser seu também, pelo que vi hoje. Você pode conhecer Simão e eu não. Essa é boa."

"Por que o chama de Simão? Por que ele a chama de Sophia?"

"Ah, é uma brincadeira! Conheci-o em casa de amigos, está ouvindo? E acho-o fascinante. Beija minha mão como se eu fosse uma princesa. E podia ser meu pai."

"Cuidado para que não se torne o pai de seu filho."

Tive a impressão de me ouvir falando a Amparo na Bahia. Lorenza tinha razão. Agliè sabia como se beija a mão de uma jovem senhora que ignora este rito.

"Por que Simão e Sophia?" insistia Belbo. "Ele se chama Simão?"

"uma história maravilhosa. Você sabia que nosso universo é fruto de um erro e que um pouco é por minha culpa? Sophia era a parte feminina de Deus, porque então Deus era mais fêmea do que macho, foram vocês homens que depois lhe puseram a barba e o chamaram de Ele. Eu era a sua metade boa. Diz Simão que eu quis gerar o mundo sem pedir permissão, eu a Sophia, que se chama também, espera lá, a Ennoia. Creio que minha parte masculina não queria criar - talvez não tivesse coragem, talvez fosse impotente - e eu em vez de conjugar-me com ele quis fazer o mundo sozinha, não resisti, creio que tenha sido por excesso de amor, é verdade, adoro todo esse universo muito doido. Por isso sou a alma deste mundo. Assim diz Simão."

"Que simpático. Diz isso a todas?"

"Não, estúpido, só a mim. Porque me compreende melhor que você, não procura reduzir-me à sua imagem. Compreende que deve deixar-me viver minha vida a meu modo. E foi assim que fez Sophia, pôs-se a fazer o mundo Deparou com a matéria primordial, que era asquerosa, creio que não usava desodorante, e não foi de propósito mas parece que foi ela quem fez o Demo..., como se diz?"

"Não será o Demiurgo?"

"Isso, ele mesmo. Não me lembro se foi Sophia quem fez esse Demiurgo ou se já existia e ela o induziu a fazer, do informe, o mundo em que depois nos tornamos. O Demiurgo devia ser um trapalhão e não sabia fazer o mundo como se deve, nem sequer deveria tê-lo feito de todo, porque a matéria é má e ele não estava autorizado a meter nela as mãos. Em suma arranjou aquilo que estamos vendo e Sophia ficou metida lá dentro. Prisioneira do mundo."

Lorenza falava, e bebia muito. A cada dois minutos, enquanto muitos se tinham posto a oscilar suavemente no meio da sala, com os olhos fechados, Riccardo passava diante dela e despejava alguma coisa no copo. Belbo procurava interrompê-lo, mas Riccardo ria sacudindo a cabeça, e ela se rebelava, dizendo que suportava melhor o álcool do que Jacopo porque era mais jovem.

"Okay, okay", dizia Belbo. "Não dê ouvidos ao vovô. Dê ouvidos a Simão. Que foi que lhe disse mais?"

"Isto, que sou prisioneira do mundo, ou antes dos anjos maus... porque nesta história os anjos são maus e ajudaram o Demiurgo a fazer toda esta confusão..., os anjos maus, dizia, me mantêm entre eles, não me querem deixar escapar, e me fazem sofrer. Mas de tempos em tempos entre os homens há quem me reconheça. Como Simão. Disse-me que já lhe havia acontecido uma outra vez, há mil anos - porque não disse mas Simão é praticamente imortal, você nem pode imaginar quanta coisa ja viu...

"Está bem, está bem. Mas agora não beba mais."

"Ssst... Simão encontrou-me uma vez quando eu era prostituta num bordel de Tiro, e me chamava Helena...”

"Aquele sujeito lhe disse isto? E você ficou toda contente. Permita-me que lhe beije a mão, putalhona de meu universo de merda... Que cavalheiro."

"No caso a putalhona seria aquela Helena. Além disso, naquele tempo quando se dizia prostituta queria dizer-se que uma mulher era livre, sem vínculos, uma intelectual, uma que não queria bancar a doméstica. Você sabe melhor do que eu que a prostituta era uma cortesã, uma que tinha salão, hoje estaria trabalhando em relações públicas, você é capaz de chamar de puta uma mulher que faz relações públicas, como se fosse uma baiaca qualquer dessas que pegam chofer de caminhão na estrada?"

Nesta altura Riccardo passou novamente ao seu lado e puxou-a pelo braço. "Vamos dançar", disse.

Foram para o meio da sala, executando suaves movimentos um tanto desvairados, como se batessem num tambor. Mas de quando em quando Riccardo a puxava contra si, e lhe pousava a mão na nuca, possessivamente, e ela o seguia de olhos cerrados, o rosto aceso, a cabeça caída para trás, com os cabelos que lhe escorriam pelos ombros, em vertical. Belbo acendia um cigarro após o outro.

Pouco depois Lorenza agarrou Riccardo pela cintura e fê-lo mover-se lentamente, até chegarem a um passo de Belbo. Continuando a dançar, Lorenza tomou-lhe o copo da mão. Segurava Riccardo com a esquerda, o copo com a direita, volvia o olhar um tanto úmido para Jacopo, e parecia chorar mas lhe sorria... E lhe falava.

"E não foi a única vez, sabe?"

"A única o quê?" perguntou Belbo.

"A única vez que encontrou a Sophia. Alguns séculos depois de Simão houve também Postel."

"Um que entregava cartas?"

"Idiota. Era um sábio do Renascimento, que lia hebreu...”

"Hebraico."

"Dá no mesmo. Lia como as crianças lêem Mickey. À primeira vista. Pois bem, num hospital de Veneza encontrou uma velha criada analfabeta, a sua Joanna, olhou-a e disse, já vi tudo, esta é a nova encarnação da Sophia, da Ennoia, a Grande Mãe do Mundo que desceu entre nós para redimir o mundo inteiro que tem uma alma feminina. E assim Postel leva Joanna consigo, todos o chamam de louco, mas ele lhufas, a adora, quer libertá-la da prisão dos anjos, e quando ela morre ele fica a olhar para o sol durante uma hora e passa muitos dias sem beber nem comer, possuído por Joanna, que não existe mais mas é como se existisse, porque sempre está lá, e habita o mundo, pois de tempos em tempos refloresce, ou seja, reencarna... Não é uma história de fazer chorar?"

"Estou banhado em lágrimas. E você gosta tanto assim de ser Sophia?"

"Mas eu sou até mesmo para você, meu amor. Sabe que antes de me conhecer você usava umas gravatas horríveis e tinha caspa na gola do paletó?"

Riccardo voltara a segurar-lhe a nuca. "Posso participar da conversa?" perguntou.

"Você fica quietinho e dance. Não passa do instrumento de minha luxúria."

"Deixa comigo."

Belbo continuava como se o outro não existisse: "Então você é sua prostituta, sua feminista que faz relações públicas, e ele é o seu Simão."

"Eu não me chamo Simão", disse Riccardo, com a boca já emplastrada.

"Não estamos falando a seu respeito”, disse Belbo. Com pouco eu estava embaraçado por causa dele. De hábito tão cioso de seus próprios sentimentos, Belbo colocava em cena sua disputa amorosa em frente a uma testemunha, ou antes, de um rival. Mas lembrando-me de nossa última conversa percebi que, pondo-se a nu defronte do outro - no momento em que o adversário verdadeiro era ainda um terceiro - ele reafirmava na única maneira que lhe era concedida a sua posse de Lorenza.

Entrementes Lorenza lhe respondia, depois de haver pedido outro copo a alguém: "Mas por brincadeira. Pois eu amo você."

"Ainda bem que não me odeia. Ouça, estou a fim de voltar para casa, tive uma crise de gastrite. Ainda sou prisioneiro da matéria baixa. Simão a mim não prometeu coisa alguma. Você vem comigo?"

"Mas vamos ficar mais um pouco. Está tão bom. Não está se divertindo? Além disso não vi ainda os quadros. Você sabe que Riccardo fez um sobre mim?"

"Quantas coisas gostaria de fazer sobre ti", disse Riccardo.

"Não seja vulgar. Sai pra lá. Estou falando com Jacopo, Jacopo, por deus, só você pode fazer suas brincadeiras intelectuais com seus amigos, e eu não? Quem é que me trata como uma prostituta de Tiro? Você."

"Esta é muito boa. Eu. Sou eu quem lança você nos braços dos velhos."

"Porque nunca me tentou tomar entre os seus. Não é um sátiro. Você tem raiva de não ter vontade de me levar para a cama e de me considerar apenas um partner intelectual."

"Allumeuse."

"Isto mesmo é que você não devia ter dito. Riccardo, vamos procurar alguma coisa para beber."

"Não, espera", disse Belbo. "Agora me diga se o leva mesmo a sério, quero saber se você está doida ou não. E pára de beber. Diga-me se o leva a sério, anda!"

"Mas, amor, isto é uma brincadeira nossa, minha e dele. O bonito da história é que quando Sophia compreende quem é, e se liberta da tirania dos anjos, fica livre do pecado...”

"E você parou de pecar?"

"Por favor, reconsidere", disse Riccardo beijando-a pudicamente na fronte.

"Ao contrário", respondeu ela a Belbo, sem olhar para o pintor, "tudo aquilo já não é mais pecado, pode-se fazer o que se quiser para se libertar da carne, pois se está além do bem e do mal."

Deu um safanão em Riccardo e o afastou de si. Proclamou em altas vozes: "Eu sou a Sophia e para libertar-me dos anjos devo perpetar..., perpretar..., per-pe-trar todos os pecados, até mesmo os mais deliciosos!”

Avançou, cambaleando levemente, até um ângulo da sala onde estava sentada uma garota vestida de negro, os olhos muito maquiados, a carnadura pálida. Arrastou-a para o meio do salão e começou a ondular com ela. Estavam quase ventre contra ventre, os braços soltos ao longo do corpo. "Posso amar até você", disse. E beijou-a na boca.

Os outros se haviam colocado em semicirculo em redor das duas, um tanto excitados, e alguém gritou qualquer coisa. Belbo havia sentado, com uma expressão impenetrável, e observava a cena como um empresário que assistisse à apresentação de um candidato. Estava suado e tinha um tique no olho esquerdo, que eu nunca lhe havia notado.

De repente, quando Lorenza já estava dançando há pelo menos uns cinco minutos, apelando cada vez mais para o exibicionismo, ele teve um rompante: "Agora venha cá."

Lorenza parou, abriu as pernas, estendeu os braços para a frente e gritou: "Eu sou a prostituta e a santa!"

"Você é uma bosta", disse Belbo levantando-se. Avançou para ela, agarrou-a com violência pelo pulso, e arrastou-a em direção à porta.

"Vamos parar", gritou ela, "eu não permito...” Depois rompeu em lágrimas e lançou-lhe os braços em torno ao pescoço. "Amor, mas eu sou a sua Sophia, não precisa ficar zangado por isso...”

Belbo passou-lhe ternamente o braço em torno aos ombros, beijou-a nas têmporas, consertou-lhe os cabelos, depois disse para a sala: "Desculpem, é que ela não está habituada a beber assim."

Ouvi algumas risadinhas entre as pessoas da sala. Creio que Belbo também as ouviu. Ao ver-me à porta fez algo que nunca soube se era dirigido a mim, aos outros, ou a ele mesmo. Fê-lo em surdina, quando os outros já tinham se desinteressado deles.

Segurando sempre Lorenza pelos ombros, voltou-se de viés para a sala e disse baixinho, com o tom de quem diz uma vulgaridade: "Quiquiriqui."*

 

* Refere-se ao grito do Dr. Unrath no Anjo Azul, romance de Heinrich Mann, e no filme com MarIene Dietrich. (N. do T.)

 

Quando então alguma Sumidade Cabalística te quiser dizer alguma coisa, não penses que seja coisa frívola, coisa vulgar ou comum: mas um mistério, um oráculo...

(Thomaso Garzoni, Il Theatro de vari e diversi cervelli mondani, Venezia, Zanfretti, 1583, discurso XXXVI)

 

O material iconográfico encontrado em Milão e Paris não bastava. O Sr. Garamond me autorizou passar alguns dias em Munique, no Deutsches Museum.

Andava à noite nos harezinhos do Schwabing - ou naquelas criptas imensas onde tocam senhores idosos de bigodes, metidos em calções curtos de couro, e onde os amantes sorriem em meio à densa fumaça dos vapores suínos por cima de canecos de chope de um litro, um casal ao lado do outro - e passava as tardes a percorrer o fichário das reproduções. As vezes abandonava o arquivo e passeava pelo museu, onde reconstruíram tudo aquilo que um ser humano possa ter inventado, aperta-se um botão e um diorama petrolífero se anima com as sondas em ação, entra-se num verdadeiro submarino, faz-se os planetas girarem, brinca-se de produzir ácidos e reações em cadeia - um Conservatoire menos gótico e de todo futurível, freqüentado por escolares endemoninhados que aprendem a amar os engenheiros.

No Deutsches Museum fica-se sabendo ainda tudo sobre mineração: desce-se por uma escada e entra-se numa mina, repleta de perfurações, elevadores para homens e cavalos, galerias pelas quais se arrastam crianças (espero que de cera) macilentas e exploradas. Percorrem-se corredores tenebrosos e intermináveis, pára-se de súbito à beira de poços negros e sem fundo, sente-se um frio nos ossos, e quase se percebe o cheiro do grisu. Escada que se sobe a um de cada vez.

Estava seguindo por uma galeria secundária, desesperado de rever a luz do dia, quando percebi, inclinado sobre a boca de um abismo, alguém que me pareceu reconhecer. A face não me era nova, rugosa e sombria, os cabelos brancos, o olhar de coruja, mas senti que a roupa devia ser diversa, como se tivesse visto aquela pessoa com um uniforme qualquer, como se reencontrasse depois de muito tempo um padre em trajes civis, ou um capuchinho sem barba. Ele também me olhou e também se mostrou hesitante. Como acontece nestes casos, depois de uma saraivada de olhares furtivos, alguém tomou a iniciativa e ele me cumprimentou em italiano. De repente consegui visualizá-lo em suas vestes habituais: devia trazer um longo guarda-pó amarelecido e certamente seria o Sr. Salon. A. Salon, taxidermista. Tinha seu laboratório a poucas portas do meu escritório, no corredor da grande fábrica recondicionada onde eu bancava o Marlowe da cultura. Algumas vezes cruzei por ele pelas escadas e trocamos um sinal de cumprimento.

"Curioso", disse apertando-me a mão, "somos co-inquilinos há tantos anos e nos apresentamos aqui nas vísceras da Terra, a mil quilômetros de distância."

Trocamos algumas frases de cortesia. Tive a impressão de que ele sabia perfeitamente bem o que eu fazia, o que não era pouco, porquanto eu próprio não sabia com exatidão. "Mas por que aqui num museu da técnica? Em sua editora os senhores se ocupam de coisas bem mais espirituais, me parece."

"Como é que sabe?"

"Oh," fez um gesto vago, "as pessoas falam, eu recebo muitas visitas...”

"Que tipo de gente vem a um empalhador, perdão, a um taxidermista?"

"Vários. O senhor dirá como todo mundo que não se trata de uma profissão vulgar. Mas os clientes não me faltam, e são de todos os tipos. Museus, colecionadores privados."

"Não vejo com freqüência animais empalhados nas casas particulares", disse eu.

"Não? Depende das casas que o senhor freqüente... Ou das adegas."

"Há quem guarde animais empalhados nas adegas?"

"Alguns o fazem. Nem todos os presépios estão à luz do sol, ou da lua. Temo esse tipo de clientes, mas sabe como é, o trabalho... Temo os seres subterrâneos."

"Por isso passeia pelos subterrâneos?"

"Questão de controle. Temo os subterrâneos mas quero entendê-los. Não que haja muitas possibilidades. As catacumbas de Roma, me dirá. Mas ali não há mistérios, estão cheias de turistas, e sob o controle da igreja. Há os esgotos de Paris... Já esteve lá? Podem ser visitados às segundas, quartas e no último sábado de cada mês, entrando-se pela Ponte de l’Alma. Também esse é um percurso de turistas. Naturalmente em Paris também existem as catacumbas, e as caves subterrâneas. Para não falar no metrô. O senhor já esteve no número 145 da rue Lafayette?"

"Confesso que não."

"Um pouco fora de mão, entre a Gare de l’Est e a Gare du Nord. Um edifício à primeira vista imperceptível. Só o começamos a observar devidamente ao notarmos que as portas que parecem de madeira são na verdade de ferro pintado, e as janelas dão para quartos desabitados há séculos. Nem uma só luz. Mas as pessoas passam e não sabem."

"Não sabem o quê?"

"Que a casa é falsa. É apenas uma fachada, um invólucro sem teto, sem interior. Vazio. É apenas a boca de uma chaminé. Serve para a aeração e a descarga de vapores do metrô regional. E quando a gente percebe, tem a impressão de estar diante da boca dos mundos inferiores, que bastaria penetrar por aquelas paredes para ter acesso à Paris subterrânea. Já me aconteceu passar horas e horas diante daquelas portas que mascaram a porta das portas, a estação de partida para a viagem ao centro da Terra. Por que o senhor acha que a fizeram?"

"Para a ventilação do metrô, o senhor mesmo disse."

"Bastavam umas escotilhas. Não, é diante desses subterrâneos que começo a suspeitar. Compreende?"

Parecia iluminar-se ao falar da obscuridade. Perguntei-lhe por que suspeitava dos subterrâneos.

"Porque se existem os Senhores do Mundo, só podem estar no subsolo, é uma verdade que todos adivinham mas que poucos ousam exprimir. Talvez o único que tenha ousado dizê-lo às claras tenha sido Saint-Yves d’Alveydre. Conhece?"

Talvez tivesse ouvido algum dos diabólicos mencioná-lo, mas tinha recordações imprecisas.

"E aquele que nos falou de Agarttha, a sede subterrânea do Rei do Mundo, o centro oculto da Sinarquia", disse Salon. "Não teve qualquer medo, mostrava-se seguro de si. Mas todos aqueles que o seguiram publicamente acabaram eliminados, porque sabiam demais."

Começamos a andar pelas galerias, e o Sr. Salon me falava lançando olhares distraídos ao longo do caminho, à embocadura de novas vias, à abertura de outros poços, como se buscasse na penumbra a confirmação de suas suspeitas.

"O senhor já se perguntou alguma vez por que todas as metrópoles modernas, no século passado, se puseram a construir a toda a pressa os metropolitanos?"

"Para resolverem seus problemas de circulação. Ou não?"

"Quando não havia tráfego automobilístico mas circulavam apenas as carroças? Esperava uma explicação mais sutil, tratando-se de um homem do seu talento!"

"O senhor tem alguma?"

"Talvez", disse Salon, e pareceu dizê-lo com ar absorto e ausente. Mas era uma forma de interromper o discurso. De fato logo afirmou que precisava ir-se. Depois de ter-me apertado a mão, deteve-se ainda um segundo, como se tomado por um pensamento casual: "A propósito, aquele coronel..., como se chamava, aquele que veio há alguns anos à Garamond falar-lhes de um tesouro dos Templários? O senhor não soube mais dele?"

Senti-me como que vergastado por aquela brutal e indiscreta ostentação de conhecimentos sobre assuntos que julgava reservados e sepultos. Quis perguntar-lhe como conseguira saber, mas tive medo. Limitei-me a dizer-lhe, com ar indiferente: "Oh, uma história antiga, de que já me esqueci. Mas a propósito: por que disse "a propósito"?"

"Eu disse a propósito? Ah, sim, certo, parece-me que ele havia encontrado qualquer coisa num subterrâneo...”

"Como sabe?"

"Não sei. Não me lembro de quem me falou sobre isso. Talvez um cliente. Mas sempre fico curioso quando entra em cena um subterrâneo. Mania de velho. Boa tarde."

Lá se foi, e eu fiquei a refletir sobre o significado daquele encontro.

 

Em certas regiões do Himalaia, entre os vinte e dois templos que representam os vinte e dois Arcanos de Hermes e as vinte e duas letras de alguns alfabetos sagrados, o Agarttha forma o Zero místico, o inencontrável... Um tabuleiro de xadrez colossal que se estende sob a Terra, através de quase todas as regiões do Globo.

(Saint-Yves d’Alveydre, Mission de I’Inde en Europe, Paris, Calmann Lévy, 1886, p. 54 e 65)

 

Quando voltei a encontrar Belbo e Diotallevi, levantamos juntos várias hipóteses. Salon, excêntrico e bisbilhoteiro, que se deleitava de alguma forma com os mistérios, havia conhecido Ardenti, e tudo acabava aí. Ou então: Salon sabia algo sobre o desaparecimento de Ardenti e trabalhava para aqueles que o tinham feito desaparecer. Outra hipótese ainda: Salon era um informante da polícia...

Depois vimos outros diabólicos, e Salon se confundiu entre os seus stmiles.

Alguns dias após tivemos Agliè na redação, para informar sobre alguns originais, que Belbo lhe havia mandado. Julgava-os com precisão, severidade, indulgência. Agliè era astuto, não lhe fora necessário muito para perceber o jogo duplo da Garamond-Manuzio, e não mais lhe ocultamos a verdade. Parecia compreender e justificar. Destruía um texto com poucas observações mordazes, e depois observava com educado cinismo que para a Manuzio podia servir perfeitamente.

Perguntei-lhe o que saberia dizer-me sobre Agarttha e Saint-Yves d'Alveydre.

"Saint-Yves d’Alveydre...” disse. "Um homem bizarro, sem dúvida, desde jovem freqüentava os seguidores de Fabre d’Olivet. Era um simples funcionário do Ministério do Interior, mas muito ambicioso... Não julgamos que tenha procedido bem quando se casou com Marie-Victoire...”

Agliè não havia resistido. Passara à primeira pessoa. Evocava recordações. "Quem era Marie-Victoire? Adoro os mexericos", disse Belbo.

"Marie-Victoire de Risnitch, belíssima quando era íntima da imperatriz Eugênia. Mas quando encontrou Saint-Yves já havia passado dos cinqüenta. E ele estava nos trinta. Mésalliance para ela, é natural. Mas não só, para dar-lhe um título havia comprado não me lembro que terras, que pertenceram a um certo marquês d’Alveydre. E assim o nosso desenvolto personagem pôde tornar-se daquele título, enquanto em Paris cantavam couplets sobre o "gigolô". Podendo viver então de rendas, dedicou-se a seu sonho. Meteu na cabeça a idéia de encontrar uma fórmula política que conduzisse a uma sociedade mais harmoniosa. Sinarquia como o contrário de anarquia. Uma sociedade européia, governada por três conselhos que representassem o poder econômico, o poder judiciário e o poder espiritual, ou seja a igreja e a ciência. Uma oligarquia iluminada que eliminasse as lutas de classe. Já ouvimos falar de coisas piores."

"Mas e Agarttha?"

"Dizia que fora visitado um dia por um misterioso afegão, um tal de Hadji Scharipf, que afegão não podia ser, já que o nome é claramente albanês... E este lhe havia revelado o segredo da sede do Rei do Mundo - ainda que Saint-Yves jamais tenha usado esta expressão, foram os outros que o fizeram mais tarde - Agarttha, o Inencontrável."

"Mas onde se dizem tais coisas?"

"Na Mission de I’Inde en Europe. Uma obra que tem influencia do muitos pensadores políticos contemporâneos. Havia em Agarttha cidades subterrâneas, e abaixo delas seguindo em direção ao centro havia cinco mil pundit que a governavam - obviamente o número cinco mil recorda as raízes herméticas da língua védica, como os senhores perfeitamente sabem. E cada raiz é um hierograma mágico, ligado a uma potência celeste e com a sanção de uma potência infernal. A cúpula central de Agarttha é aclarada no alto por uma série de espelhos que deixam chegar a luz através apenas da gama enarmônica das cores, das quais o espectro solar de nossos tratados de física não constitui senão a diatônica. Os sábios de Agarttha estudam todas as línguas sagradas para chegarem a uma línguagem universal, o Vattan. Quando abordam mistérios muito profundos erguem-se da terra levitando para o alto e iriam esfacelar o crânio contra a abóbada da cúpula se seus confrades não os contivessem. Preparam os raios, orientam as correntes cíclicas dos fluidos interpolares e extratropicais, as derivações interferenciais nas diversas zonas de latitude e longitude da Terra. Selecionam as espécies, e criam pequeníssimos animais porém de virtudes psíquicas extraordinárias, como um dorso de tartaruga com uma cruz amarela em cima e com um olho e uma boca em cada extremidade. Animais polípodos que podem se mover em todas as direções. Em Agarttha provavelmente se refugiaram os Templários após sua dispersão, e ali exercem funções de vigilância. Algo mais?"

"Mas..., ele falava a sério?" perguntei.

"Creio que tomasse a história ao pé da letra. A princípio consideramo-lo um exaltado, depois nos demos conta de que aludia, talvez de modo visionário, a uma direção oculta da história. Não se diz que a história é um enigma sanguinolento e insensato? Não é possível, deve haver um desígnio. É necessário que exista uma Mente. Por isso algumas criaturas sensatas pensaram, no correr dos séculos, nos Senhores ou no Rei do Mundo, talvez não como uma pessoa física, mas uma categoria, uma classe coletiva, a encarnação sempre e sempre provisória de uma Intenção Estável. Algo com o que estavam certamente em contato as grandes ordens sacerdotais ou cavaleirosas desaparecidas."

 "O senhor acredita nisto?" perguntou Belbo.

 "Pessoas mais equilibradas do que ele buscam os Superiores Desconhecidos."

 "E os encontram?"

Agliè riu-se quase de si para si, com bonomia. "E que Superiores Desconhecidos seriam esses se se deixassem conhecer pelo primeiro que viesse? Senhores, o trabalho nos espera. Ainda temos um original, e por coincidência é exatamente um tratado sobre sociedades secretas."

 "Coisa boa?" perguntou Belbo.

 "Bem pode imaginar. Mas para a Manuzio poderia servir."

 

Não podendo dirigir abertamente os destinos terrestres porque os governos a isso se oporiam, aquelas associações misteriosas só podem agir por meio de sociedades secretas... Essas sociedades secretas, criadas à medida que sua necessidade se fazia sentir, estão divididas em grupos distintos e aparentemente opostos, professando de quando em vez as mais antagônicas opiniões para dirigir separadamente e com confiança todos os partidos religiosos, políticos, econômicos e literários, e estão ligadas, a fim de terem um endereço comum, a um centro desconhecido onde nasceu a mola poderosa que busca movimentar assim de maneira invisível todos os cetros da Terra.

(J.M. Hoene-Wronski, cit, por P. Sédir, Histoire et doctrine des Rose-Croix, Rouen, 1932)

 

Um dia vi o Sr. Salon à porta de seu laboratório. De repente, naquele lusco-fusco, esperei que ele emitisse o pio da coruja. Cumprimentou-me como um velho amigo e me perguntou como iam as coisas. Fiz-lhe um gesto vago, sorri-lhe, e segui em frente.

Assaltou-me de novo o pensamento de Agarttha. Tal como me contara Agliè, as idéias de Saint-Yves podiam constituir algo de fascinante para um diabólico, mas não eram inquietantes. No entanto nas palavras, e na fisionomia, de Salon em Munique eu advertira alguma inquietação.

Por isso ao sair resolvi dar um salto à biblioteca e procurar a Mission de l‘Inde en Europe.

Havia a confusão de costume na sala dos arquivos e no balcão de pedidos. Aos empurrões me apoderei da gaveta que procurava, encontrei as indicações, preenchi a ficha e passei-a ao encarregado. Informou-me que o livro estava emprestado com outra pessoa e, como acontece nas bibliotecas, pareceu contente por isso. Mas naquele exato momento ouvi uma voz às minhas costas: "Olhe aqui está, acabo de restituí-lo." Voltei-me. Era o comissário De Angelis.

Reconheci-o, ele reconheceu-me - com demasiada rapidez, direi. Eu o vira em circunstâncias que para mim eram excepcionais, ele durante uma investigação rotineira. Além do mais nos tempos de Ardenti eu usava uma barbinha rala e o cabelo um pouco mais comprido. Que olho.

Será que me tinha sob observação desde que voltara do Brasil? Ou talvez fosse apenas bom fisionomista, os policiais devem cultivar o espírito de observação, memorizar os nomes, as caras...

"O Sr. Casaubon! E andamos lendo os mesmos livros!"

Estendi-lhe a mão: "Agora já sou doutor, faz pouco. É possível até que venha a fazer o concurso e entre para a polícia, como o senhor me aconselhou naquele dia. Assim posso ter prioridade nos livros."

"Basta chegar primeiro", me disse. "Mas agora que devolvi o livro, pode lê-lo em seguida. Mas antes permita que lhe ofereça um café."

O convite me embaraçava, mas não podia fugir a ele. Sentamo-nos num bar das proximidades. Perguntou-me por que estava interessado na missão da Índia, e fui tentado de repente a perguntar-lhe a mesma coisa, mas resolvi primeiro arranjar cobertura. Disse-lhe que continuava nas horas vagas os meus estudos sobre os Templários: os Templários segundo Eschenbach abandonam a Europa e vão para a Índia e segundo alguns para o reino de Agarttha. Agora tocava a ele revelar-se. "Antes do mais", perguntei-lhe, "como é que o senhor se interessa também por esse tema?"

"Ah sabe", respondeu, "desde quando o senhor me aconselhou aquele livro sobre os Templários comecei a me dedicar a este assunto. O senhor bem sabe que dos Templários se chega automaticamente a Agarttha." Touché. Depois disse: "Estava brincando. Procurei o livro por outras razões. E porque...” Hesitou. "Em suma, quando não estou de serviço freqüento as bibliotecas. Para não me tornar uma máquina, ou para não permanecer apenas um investigador de polícia, veja lá o senhor qual a fórmula mais gentil. Mas conte-me a seu respeito."

Exibi-lhe minha resenha autobiográfica, até o ponto da maravilhosa história dos metais.

Perguntou-me: "Mas naquela editora, e na editora ao lado, não estão fazendo livros sobre ciências ocultas?"

Como havia sabido a respeito da Manuzio? Informações recolhidas quando tinha Belbo sob controle, há alguns anos? Ou andava ainda na pista de Ardenti?

"Com todos aqueles tipos como o coronel Ardenti que pintavam na Garamond e que a Garamond procurava descarregar sobre a Manuzio", disse eu, "o senhor Garamond acabou resolvendo cultivar o filão. Parece que dá lucro. Se está à procura de tipos como o velho coronel ali o senhor os encontra aos potes."

Disse: "Sim, mas Ardenti desapareceu. Espero que os outros não."

"Ainda não, estive para dizer infelizmente. Mas perdoe-me a curiosidade, comissário. Imagino que na sua profissão seja um tanto comum os casos de gente que desaparece ou coisa pior. O senhor dedica a cada um deles um tempo assim..., tão longo?"

Olhou-me com expressão divertida: "E que lhe faz pensar que ainda dedique tempo ao coronel Ardenti?"

Pois bem, aquilo era um jogo e chegara a minha vez de jogar. Devia pagar para ver e ele devia descobrir as cartas. Eu nada tinha a perder. "Vamos lá, comissário", disse-lhe, "o senhor sabe tudo a respeito da Garamond e da Manuzio, e está aqui à procura de um livro sobre Agarttha...”

"Por que, então Ardenti lhe havia falado sobre Agarttha?"

Atingido, de novo. Na verdade Ardenti nos havia falado inclusive sobre Agarttha, por quanto me lembrava. Procurei sair-me bem: "Não, mas tinha uma história sobre os Templários, como se recorda."

"Certo", disse. Depois acrescentou: "Mas não deve pensar que acompanhemos um caso até a sua solução final. Isto só acontece na televisão. Ser policial é o mesmo que ser dentista, vem um paciente, usa-se a broca, faz-se um curativo, manda-se que volte dentro de quinze dias, e enquanto isto passam por nós cem outros pacientes. Um caso como aquele do coronel pode permanecer no arquivo até por dez anos, depois no correr de outro caso, recolhendo-se a confissão de um tipo qualquer, escapa algum indício, e bangue, circuito mental, e volta-se a pensar um pouco... Até que dispare outro curto-circuito, ou que não ocorra nada, e estamos conversados."

"E que lhe ocorreu recentemente que o fez disparar o curto-circuito?"

"Pergunta indelicada, não acha? Mas não há nada de mistério, pode crer. O coronel voltou à baila por acaso, estávamos investigando um tipo, por motivos completamente diversos, e nos demos conta de que ele freqüentava o clube Picatrix, de que o senhor já deve ter ouvido falar...”

"Não, conheço a revista, mas não a associação. Que houve lá?"

"Oh nada, nada, gente tranqüila, talvez um pouco exaltada. Mas me lembrei que Ardenti também o freqüentava - a habilidade do policial está toda nisto, em se lembrar de onde já ouviu o nome ou viu um rosto, mesmo a dez anos de distância. E por isso me perguntei o que poderia ter acontecido na Garamond. Tudo aqui."

"E que tem a ver o clube Picatrix com suas investigações políticas?"

"Pode ser a indiscrição da consciência tranqüila, mas o senhor tem o ar de ser tremendamente curioso."

"Foi o senhor que me convidou para o café."

"É verdade, e estamos ambos em nossas horas de folga. Olhe, de um certo ponto de vista neste mundo tudo tem a ver com tudo." Era um belo filosofema hermético, pensei. Mas súbito acrescentou: "Com isto não estou dizendo que tudo tem a ver com a política, mas sabe... Houve época em que andavam a buscar os das brigadas vermelhas nas casas ocupadas e os das brigadas negras nos clubes de artes marciais, hoje bem que podia ser o contrário. Vivíamos num mundo estranho. Posso lhe garantir, nossa profissão era mais fácil há dez anos. Hoje até mesmo entre as ideologias não há mais religião. Há vezes em que penso em transferir-me para o setor de entorpecentes. Pelo menos o cara que vende heroína vende heroína e não se discute. Baseia-se em valores conhecidos."

Permaneceu um tempo em silencio, incerto - creio. Depois tirou do bolso do paletó um caderninho que parecia um livro de missa. "Ouça, Casaubon, o senhor freqüenta por ofício pessoas um tanto estranhas, vai às bibliotecas à procura de livros ainda mais estranhos. Ajude-me. Que sabe sobre a sinarquia?"

"Agora é que o senhor me encabulou. Quase nada. Ouvi falar a respeito de Saint-Yves, e é tudo."

"E que andam falando por aí?"

"Se andam falando por aí, o fazem sem que eu saiba. Para falar franco, isso me cheira a fascismo."

"De fato, muitas dessas teses vem sendo retomadas pela Action Française. E se as coisas parassem por aí, eu estaria à vontade. Encontro um grupo que fala de sinarquia e consigo atribuir-lhe uma coloração política. Mas começo a estudar o assunto e fico sabendo que por volta de 1929 um tal Vivian Postel du Mas e uma Jeanne Canudo fundam o grupo Poláris que se inspira no mito de um Rei do Mundo, e em seguida se propõem a um projeto sinárquico: serviço social contra os lucros capitalistas, eliminação da luta de classes através de movimentos cooperativos... Parece um socialismo do tipo fabiano, um movimento personalista e comunitário. Mas seja o Poláris sejam os fabianos irlandeses, o fato é que são acusados de emissários de uma conspiração sinárquica organizada pelos judeus. E quem os acusa? Uma Revue Internationale des Sociétés Secrètes que fala de um complô judaico-maçônico-bolchevista. Muitos de seus colaboradores estão ligados a uma sociedade integralista de direita, mais secreta ainda, a Sapinière. E afirmam que todas as organizações políticas revolucionárias não passam da fachada de um complô diabólico, urdido num cenáculo ocultístico. O senhor me dirá, por favor, se estamos enganados: Saint-Yves acaba por inspirar grupos reformistas, a direita faz de cada vara um feixe e vê a todas elas como filiações demo-pluto-social-judaicas. Até Mussolini pensava assim. Mas por que são acusados de serem dominados por cenáculos ocultistas? Pelo pouco que sei, basta ver a Picatrix, aquilo é gente que pensa pouquíssimo no movimento operário."

"Também a mim me parece, ó Sócrates. E agora?"

"Obrigado pelo Sócrates, mas aqui está o melhor. Quanto mais leio sobre o assunto mais as idéias me confundem. Nos anos quarenta nascem vários grupos que se dizem sinárquicos, e falam de uma nova ordem européia guiada por um conselho de grandes cabeças acima dos partidos. E para onde se convergem esses grupos? Para o ambiente dos colaboracionistas de Vichy. Agora, o senhor me diz, estamos embrulhados de novo, a sinarquia é de direita. Alto lá. Depois de tanto ler, me dou conta de que todos estão de acordo sobre o único ponto: a sinarquia existe e governa secretamente o mundo. Mas aqui está o mas...

"Qual mas?"

"Mas em 24 de janeiro de 1937 Dimitri Navachine, maçom e martinista (não sei o que quer dizer martinista, mas parece que se trata de uma daquelas seitas), conselheiro econômico do Front popular depois de ter sido diretor de um banco moscovita, é assassinado por uma Organização secreta d’action révolutionnaire et nationale, mais conhecida como a Cagula, financiada por Mussolini. Diz-se então que a Cagula é dirigida por uma sinarquia secreta e que Navachine teria sido morto porque havia descoberto os mistérios. Um documento provindo de ambientes da esquerda denuncia durante a ocupação alemã um Pacto sinárquico do Império, responsável pela derrota francesa, pacto esse que seria a manifestação de um fascismo latino do tipo português. Mas depois vem a furo que o pacto teria sido redigido por du Mas e Jeanne Canudo, e conteria as idéias que vinham publicando e divulgando por toda a parte. Nada de secreto. Mas como secretas, e até mesmo secretíssimas, essas idéias são reveladas em 1946 por um certo Husson, denunciando um pacto sinárquico revolucionário de esquerda, e as revela num escrito Synarchie, panorama de 25 années d’activité occulte, assinando-se..., espera que me lembro, isto, Geoffroy de Charnay."

"Essa é boa", disse eu, "Charnay era o companheiro de Molay, o grão-mestre dos Templários. Morreram juntos na fogueira. Temos aqui então um neo-Templário que ataca a sinarquia de direita. Mas a sinarquia nasce em Agarttha, que é o refúgio dos Templários!"

"Não lhe dizia? Veja, o senhor está me dando uma pista a mais. Infelizmente só serve para aumentar a confusão. Logo a direita denuncia um Pacto sinárquico do Império, socialista e secreto, mas que de secreto não tem nada, e o mesmo pacto sinárquico secreto, como viu, é denunciado também pela esquerda. Agora vejamos esta nova interpretação: a sinarquia é um complô jesuíta para subverter a Terceira República. Tese exposta por Roger Mennevée, de esquerda. Para que eu viva tranqüilo, minhas leituras me dizem ainda que em 1943 em alguns meios militares de Vichy, a favor de Pétain sim, mas antigermânicos, circulam documentos demonstrando que a sinarquia era um complô nazista: Hitler um Rosa-Cruz influenciado pelos maçons, os quais como vê passam do complô judaico-bolchevista para o complô imperial-germânico."

"E assim estamos arrumados."

"Quem dera. Eis outra revelação. A sinarquia é um complô dos tecnocratas internacionais. E a tese que sustenta em 1960 um tal Villemarest em Le 14 complot du 13 mai. O complô tecnossinárquico visa a desestabilizar os governos, e para fazê-lo instiga as guerras, apóia e fomenta golpes de Estado, provoca cisões internas nos partidos políticos favorecendo as lutas de correntes... Reconhece esses sinárquicos?"

"Sim senhor, é o SIM, o Estado Imperialista das Multinacionais como nos falavam dele as Brigadas Vermelhas alguns anos antes."

"Resposta exata! E então o que faz o comissário De Angelis se encontra em alguma parte uma referência a sinarquia? Vai perguntar ao Dr. Casaubon, entendido nos Templários."

"E eu lhe digo que existe uma sociedade secreta com ramificações em todo o mundo, conspirando para difundir o boato de que existe um complô universal."

"O senhor brinca, mas eu...

"Não estou brincando. Venha ler os originais que chegam à Manuzio. Mas se prefere uma interpretação mais terra-a-terra, é como a anedota do gago que diz não ter sido aceito como locutor da rádio porque não estava inscrito no partido. Precisamos sempre atribuir a alguém nossos próprios fracassos, as ditaduras encontram sempre um inimigo externo para unir seus próprios sequazes. Como dizia alguém, para cada problema complexo há uma solução simples, só que errada."

"E se encontro uma bomba num trem enrolada num papel mimeografado que fala de sinarquia, ficarei contente em dizer que se trata de uma revolução simples para um problema complexo?"

"Por quê? O senhor encontrou bombas em trens que... Não, desculpe. São problemas deveras que não me dizem respeito. Mas por que motivo me fala a esse respeito?"

"Porque esperava que o senhor soubesse mais do que eu. Talvez porque me alivie um pouco ver que o senhor também se sente perdido neste campo. O senhor diz que tem que ler malucos demais, e considera isso uma perda de tempo. Para mim, os textos de seus malucos - digo seus, da gente normal - são textos importantes. Para mim talvez o texto de um louco explique como funciona a mente daquele que põe uma bomba num trem. Ou tem medo de se transformar num espia da polícia?"

"Não, palavra de honra. No fundo procurar idéias nos fichários é a minha profissão. Se deparar com a informação adequada me lembrarei do senhor."

Enquanto se levantava, deixou cair a última pergunta: "E nos seus originais..., nunca encontrou nenhuma referência ao Tres?"

"Que vem a ser?"

"Não sei. Deve ser uma associação, ou qualquer coisa do gênero, nem sei ao certo se existe. Ouvi falar dela, e me veio à lembrança a propósito dos malucos. Meus cumprimentos a seu amigo Belbo. Diga-lhe que não lhes estou vigiando os movimentos. É que a minha profissão é de fato terrível, e o caso é que me agrada."

Ao voltar para casa me perguntava quem tinha feito melhor negócio. Ele me contara uma boa quantidade de coisas, eu nada. Poderia suspeitar, talvez que ele houvesse extraído de mim algo de que eu não me desse conta. Mas por suspeita cai-se até na psicose da conspiração sinárquica.

Quando contei o episódio a Lia, ela me disse: "Para mim estava sendo sincero. Queria era mesmo desabafar. Você acha que ele encontra alguém na polícia que lhe dê atenção quando indaga se Jeanne Canudo era de esquerda ou de direita? Ele queria saber se era só quem não entendia, ou se a história era de fato complicada. E você não lhe soube dar a única resposta verdadeira."

"Existe alguma?"

"Claro. Que não há nada para se compreender. Que a sinarquia é Deus."

"Deus?"

"Sim. A humanidade não suporta o pensamento de que o mundo tenha surgido por acaso, por engano, só porque quatro átomos sem critério se chocaram na auto-estrada molhada. E então é preciso encontrar uma conspiração cósmica, Deus, os anjos ou os demônios. A sinarquia decorre dessa mesma função em proporções mais reduzidas."

"E então eu lhe devia explicar que as pessoas põem bombas nos trens porque estão à procura de Deus?"

"Talvez."

 

O príncipe das trevas é um cavalheiro.

(Shakespeare, King Lear, III, iv, 140)

 

Estávamos no outono. Certa manhã fui à via Marchese Gualdi, porque precisava pedir autorização ao Sr. Garamond para encomendar algumas fotos em cores do exterior. Dei com Agliè na sala de espera da Sra. Grazia, inclinado sobre o fichário dos autores da Manuzio. Não o incomodei, pois já estava atrasado para o meu encontro.

Terminada a conversa técnica, perguntei ao Sr. Garamond o que fazia Agliè na sala de sua secretária.

"Aquele homem é um gênio", disse Garamond. "Pessoa de uma sutileza, de uma doutrina extraordinária. Uma noite destas levei-o a jantar com alguns outros autores nossos e ele me deixou fazer um figurão. Que palestra, que estilo. Cavalheiro de velha estirpe, grão-senhor, não perdeu a forma. Que erudição, que cultura, direi mais, que informação. Contou-nos histórias curiosíssimas sobre personagens de há cem anos passados, juro-lhe, como se os tivesse conhecido pessoalmente. E sabe que idéia me deu, ao voltar para casa? Ele logo ao primeiro lance havia fotografado os meus convidados, e agora os conhecia melhor do que eu. Disse-me não ser necessário esperar que os autores para a Isis Revelada apareçam por si mesmos. Trabalho desperdiçado, e originais para ler, além de não se saber se estão dispostos a contribuir para as despesas. Em vez disto temos uma verdadeira mina a explorar: o fichário de todos os autores publicados pela Manuzio durante os últimos vinte anos! Compreende? Escrevemos a esses nossos antigos e gloriosos autores, ou pelo menos àqueles que ficaram com as sobras, para dizer-lhes caro senhor que inauguramos uma coleção sapiencial e tradicional de alta espiritualidade. Um autor da sua finura não gostaria de fazer uma incursão por essa terra incógnita etc, etc, etc.? Um gênio, afirmo-lhe. Creio que deseja reunir-se conosco no próximo domingo. Quer nos levar a um castelo, uma rocha, direi mais, uma esplêndida vila na região de Turim. Parece que por ali ocorrem coisas extraordinárias, um rito, uma celebração, um sabá, durante o qual alguém fabricará ouro ou mercúrio ou qualquer coisa de parecido. É todo um mundo a descobrir, caro Casaubon, mesmo sabendo-se que tenho o máximo respeito por aquela ciência à qual o senhor se está dedicando com tanta paixão, e devo dizer até que estou muito, muito satisfeito com a sua colaboração - eu sei, temos que examinar aquele pequeno ajuste financeiro a que o senhor se referiu, não me esqueci, falaremos dele a seu tempo. Agliè me disse que estará presente inclusive aquela senhora, aquela bela senhora - talvez não de fato belíssima, mas certamente um tipo, tem alguma coisa no olhar - aquela amiga de Belbo, como se chama...”

"Lorenza Pellegrini."

"Penso que seja. Existe alguma coisa entre ela e o nosso Belbo?"

"Acho que são bons amigos."

"Ah! Assim é que responde um cavalheiro. Bravo Casaubon. Mas não era por curiosidade, é que eu me sinto em relação a todos vocês uma espécie de pai e..., glissons, à la guerre comme à la guerre... Até logo."

Tínhamos de fato um encontro com Agliè, nas colinas de Turim, me confirmou Belbo. Encontro duplo. No princípio da noite, uma festa no castelo de um rosacruciano abastado, e depois Agliè nos levaria a alguns quilômetros de distância onde iria realizar-se, naturalmente à meia-noite, um ritual druidico sobre o qual tinha sido muito vago.

"Estive pensando", acrescentou Belbo, "que devemos acertar ainda uns pontos sobre a história dos metais, e aqui estamos sempre muito ocupados. Por que não partimos no sábado e passamos dois dias na minha velha casa de***? O lugar é muito bonito, vai ver, as colinas valem a pena. Diotallevi vem conosco e talvez também venha Lorenza. Naturalmente... traga quem você quiser."

Não conhecia Lia, mas sabia que eu tinha uma companheira. Eu disse que iria só. Há dois dias tinha brigado com Lia. Tinha sido uma idiotice qualquer, na verdade tudo voltaria às boas em uma semana. Mas sentia necessidade de afastar-me de Milão por uns dias.

Assim chegamos a***, o trio da Garamond e Lorenza Pellegrini. Tinha havido um momento de tensão na partida. Lorenza estava à nossa espera mas no momento de entrar no carro dissera: "Acho melhor ficar, pois assim vocês podem trabalhar em paz. Depois vou com Simão para encontrar vocês."

Belbo, que tinha as mãos ao volante, estendeu os braços e, olhando fixo para a frente, disse devagar: "Entra." Lorenza entrou no carro e durante toda a viagem, sentada no banco da frente, manteve o braço em volta do pescoço de Belbo, que dirigia em silêncio.

***continuava aquela cidadezinha que Belbo havia conhecido durante a guerra. Poucas casas novas, nos disse, agricultura em declínio, porque os jovens se mandavam todos para as cidades grandes. Mostrou-nos algumas colinas, agora transformadas em pasto, que no passado eram douradas plantações de trigo. O vilarejo aparecia de repente, a uma volta do caminho, aos pés de uma colina, onde estava a casa de Belbo. A colina era baixa e deixava ver além a vastidão de Monferrato, coberta de uma leve névoa luminosa. Enquanto subíamos, Belbo nos mostrou uma pequena colina em frente, quase pelada, no topo da qual havia uma capela, flanqueada por dois pinheiros. "O Bricco", disse. Depois acrescentou: "Para vocês não tem a menor importância, mas nós costumávamos fazer piquenique ali na segunda-feira de Páscoa. Agora de carro lá se chega em cinco minutos, mas naquela época ia-se a pé, e era uma verdadeira peregrinação."

 

Chamo teatro [o lugar em que] as ações das palavras e dos pensamentos, e em particular de um discurso e de uma discussão, são mostradas como num teatro público, onde se representam tragédias e comédias.

(Robert Fludd, Utriusque Cosmi Historia, Tomi Secundi Tractatus Primi Sectio Secunda, Oppenheim (?), 1620 (?), p. 55)

 

Chegamos à mansão. Mansão por assim dizer: um sobrado patriarcal, que tinha no andar de baixo as grandes adegas onde Adelino Canepa - o meeiro embirrado que havia denunciado o tio aos partigiani - fabricava vinho com uvas colhidas na propriedade dos Covasso. Via-se que estava desabitada há tempos.

Numa pequena casa de colonos ao lado ainda morava uma velha, nos disse Belbo, tia de Adelino - os demais já haviam ambos morrido, os tios, os Canepa, e só restava a centenária a cultivar uma hortazinha, com quatro galinhas e um porco. As terras foram vendidas para pagar os impostos de transmissão, as dívidas, não se lembrava mais. Belbo foi bater à porta da casa de colono, a velha apareceu à janela, levou algum tempo a reconhecer o visitante, depois lhe fez amplas manifestações de apreço. Queria que entrássemos em sua casa, mas Belbo acabou com a história, cumprimentando-a e agradecendo muito.

Assim que entramos no sobrado, Lorenza lançava exclamações de júbilo à medida que descobria as escadas, os corredores, os quartos sombrios com seus móveis antigos. Belbo estava na defensiva, observando que cada um tem o palácio que pode, mas no fundo comovido. Vinha ali de quando em vez, nos disse, mas cada vez mais raro.

"Mas aqui se trabalha bem, no verão a casa é fresca e no inverno as paredes grossas a protegem do gelo, e há fogões de aquecimento por todo lado. Naturalmente, quando era rapazote, fugido da cidade, habitávamos apenas aqueles dois quartos laterais ao fundo do grande corredor. Agora estou utilizando a ala dos tios. Trabalho aqui onde era o escritório de tio Carlos." Ali havia uma dessas antigas secretárias, com pouco espaço para pousar os papéis mas mil e uma gavetinhas à vista ou escondidas. "Não conseguiria meter aqui em cima o Abulafia", disse. "Mas nas poucas vezes que venho aqui me agrada escrever à mão, como fazia em criança." Mostrou-nos um armário majestoso: "Aqui está, quando eu morrer, não se esqueçam, aqui está toda a minha produção literária juvenil, poesias que compus aos dezesseis anos, esboços de aventuras em seis volumes que escrevi aos dezoito..., e vai por aí...”

"Vamos ver, vamos ver!" gritou Lorenza batendo as mãos, e avançando felina em direção do ariano.

"Alto lá", disse Belbo. "Não há nada para ver. Nem mesmo eu vejo mais essa papelada. Em todo caso depois de morto virei queimar tudo."

"Isto aqui deve ser lugar de fantasmas, suponho", disse Lorenza.

"Sem dúvida. Nos tempos do tio Carlos, não, era muito alegre. Era geórgico. Agora venho aqui precisamente por ser bucólico. É belo trabalhar à noite enquanto os cães ladram no vale."

Fez-nos ver os aposentos onde iríamos dormir: o meu, o de Diotallevi e o de Lorenza. Lorenza olhou o quarto, tocou a velha cama com uma grande coberta branca, farejou os lençóis, disse que parecia estar numa história dos tempos da avó porque cheiravam a alfazema, Belbo disse que não era verdade, era só cheiro de mofo, Lorenza disse que não importava e depois, apoiando-se à parede, avançando levemente as ancas e o púbis para a frente, como se estivesse a derrotar o flipper, perguntou: "Mas vou dormir aqui sozinha?"

Belbo olhou para o outro lado, mas nesse lado estávamos nós, olhou de novo para o outro, depois adiantou-se para o corredor e disse: "Depois tratamos disto. Em todo caso aí tem um refúgio só para você." Diotallevi e eu nos afastamos, e ouvimos Lorenza perguntar a Belbo se se envergonhava dela. Ele observava que se lhe não tivesse mostrado o quarto seria ela a perguntar onde ele achava que ela iria dormir. "Eu fiz a primeira jogada, assim você não tem escolha", dizia. "O astuto afegão!" dizia ela, "pois agora vou dormir no meu quartinho." "Está bem, está bem", dizia Belbo irritado, "mas nós estamos aqui para trabalhar, vamos para a varanda."

E fomos trabalhar então numa grande varanda, onde havia sido construída uma pérgula, diante de refrigerantes e muito café. As bebidas alcoólicas estavam banidas até a noite.

Da varanda via-se o Bricco, e no alto da colinazinha do Bricco uma grande construção sem adornos muito simples, com um pátio e um campo de futebol. Em torno moviam-se figurinhas multicores, crianças, pareceu-me. Belbo foi quem nos mostrou: "É o oratório salesiano. Foi ali que dom Tico me ensinou a tocar. Na banda."

Lembrei-me da corneta que Belbo não ganhara de presente, aquela vez depois do sonho. Perguntei: "Corneta ou clarim?"

Teve um átimo de pânico: "Como foi que... Ah, é verdade, eu lhe contei a história do sonho e da corneta. Não, dom Tico me ensinou a tocar corneta, mas na banda eu tocava gênis".

"Que diabo é gênis?"

"Velhas histórias de menino. Agora vamos trabalhar."

Mas enquanto trabalhávamos vi que olhava com freqüência na direção do oratório. Tive a impressão de que, para poder olhá-lo bem, nos falasse de outra coisa. Vez por outra interrompia a discussão: "Aqui embaixo houve um dos mais furibundos tiroteios do fim da guerra. Aqui em*** havia uma espécie de acordo entre fascistas e partigiani. Na primavera, durante dois anos seguidos, os partigiani haviam ocupado o lugarejo, e os fascistas não vinham perturbá-los. Os fascistas não eram destas bandas, os partigiani sim eram todos rapazes do lugar. Em caso de choques sabiam como mover-se entre as plantações de milho, as capoeiras e as moitas. Os fascistas se entocavam na cidade, e saiam só para os rastreamentos. No inverno era mais difícil para os partigiani estar ao desabrigo, não havia onde se esconder, você podia ser visto de longe na neve e com uma metralhadora era fácil abater-se alguém até a um quilômetro de distância. Então os partigiani subiam para as colinas mais altas. E ali também estavam à vontade, pois conheciam as passagens, as grutas, os refúgios. E os fascistas ficavam controlando a planície. Mas naquela primavera estávamos às vésperas da libertação. Os fascistas ainda andavam por aqui, mas tinham receio, suponho, de voltar para a cidade, porque pressentiam que o golpe final seria dado lá embaixo, como aconteceu depois no 25 de abril. Talvez por contingência dos acordos, os partigiani esperavam, não queriam o confronto, agora já se sentiam seguros de que em breve aconteceria algo, à noite a BBC dava noticias cada vez mais confortantes, intensificavam-se as mensagens especiais para a Franchi*,

 

* Organização da resistência italiana, comandada por Edgardo Sogno, cujo nome de guerra era Franchi. (N. do T.)

 

amanhã vai chover ainda, tio Pedro trouxe o pão, ou coisas desse gênero, talvez tu Diotallevi as tivesses ouvido... Em suma, deve ter sido um mal-entendido, os partigiani desceram quando os fascistas ainda não se haviam retirado, a verdade é que um dia minha irmã estava aqui na varanda e foi lá dentro dizer que havia dois rapazes brincando de perseguir um ao outro de metralhadora na mão. Não nos espantamos, deviam ser rapazes que para passar o tempo andavam brincando com as armas; uma vez por brincadeira um havia disparado de verdade e a bala foi plantar-se no tronco de uma árvore da rua embaixo da qual minha irmã brincava. Ela nem percebera aquilo, foram os vizinhos que lhe disseram, e então lhe ensinaram a correr para casa quando visse duas pessoas brincando com armas. Estão brincando de novo, disse entrando, para mostrar que sabia obedecer. Foi nesse momento que ouvimos a primeira rajada. Só que foi seguida de uma outra, e mais outra, e logo as rajadas eram tantas, que se ouviam os golpes secos dos fuzis, o tá-tá-tá das metralhadoras de niào, algum estampido mais surdo, talvez de granada, e por fim o pipocar da metralhadora pesada. Percebemos que não estavam mais brincando. Mas não tivemos tempo de discutir o assunto porque já então nem ouvíamos mais as nossas vozes. Pim pum bangue ratatatá. Agachamo-nos para nos esconder embaixo do tanque, eu minha irmã e minha mãe. Depois chegou tio Carlos, arrastando-se de gatinhas pelo corredor, para nos dizer que daquele lado estávamos muito expostos, que era melhor ir para o outro. Fomos transferidos para a outra ala, onde tia Catarina chorava porque a avó tinha saído...”

"Foi quando encontraram a avó com a cara metida no chão no meio dos dois fogos...”

"E como sabe disto?"

"Você me contou em setenta e três, naquele dia depois à passeata."

“Puxa que memória. Com você a gente precisa estar atento ao que diz... Mas foi isso mesmo. Meu pai também não estava em casa.Como soubemos depois, estava no meio do tiroteio e escondeu-se numportão, e não podia sair porque atiravam em quem passasse de um lado ou de outro da rua, e do alto da torre da prefeitura um manípulo da Brigada Negra varria a praça com metralhadora. Escondido no portão estava também a ex-autoridade fascista da cidade. A certo pontodisse que conseguiria correr para casa, bastando virar a esquina. Esperou um momento de silêncio, saiu para fora do portão, chegou até aesquina e foi atingido nas costas pela metralhadora da prefeitura. Areação emotiva de meu pai, que havia já feito até mesmo a PrimeiraGuerra Mundial, foi esta: é melhor ficar escondido no portão."

"É um lugar realmente cheio de recordações dulcissimas este aqui", observou Diotallevi.

"Podem não acreditar", disse Belbo, "mas são dulcíssimas. E são as únicas coisas verdadeiras que recordo."

Os outros não compreenderam, eu intúi - e agora sei. Principalmente naqueles meses, em que estava navegando na mentira dos diabólicos, e depois de anos em que havia colecionado desilusões das mentiras românticas, os dias de*** lhe voltavam à memória como um mundo em que uma bala é uma bala, ou te desvias ou levas com ela, e as duas partes ajustavam contas frente a frente, marcadas pelas suas cores, o vermelho e o negro, ou o cáqui e o verae-gris, sem equívocos - ou pelo menos assim lhe parecia então. Um morto era um morto era um morto era um morto. Não como o coronel Ardenti, desaparecido por engodo. Pensei que talvez lhe devesse falar sobre a sinarquia, que já se insinuava naqueles anos. Não tinha sido talvez sinárquico o encontro entre tio Carlos e Terzi, ambos colocados nos extremos opostos do mesmo ideal cavaleiroso? Mas por que roubar a Belbo a sua Combray? As recordações eram doces porque lhe falavam de uma única verdade que havia conhecido, e só depois iniciara a dúvida. Salvo que, como me havia deixado compreender, mesmo naqueles dias da verdade permaneceu como espectador. Guardava na lembrança o tempo em que via o nascer da memória alheia, da História, e de tantas histórias que não seria ele a escrever.

Ou teria havido um momento de glória e de escolha? Porque disse: "Mas também naquele dia pratiquei o ato de heroismo de minha vida."

"Ó meu John Wayne", disse Lorenza. "Conta."

"Oh não foi nada. Depois de me arrastar para o lado dos tios, eu me obstinava em permanecer de pé no corredor. A janela ficava ao fundo, nós no primeiro andar, ninguém poderia acertar-me, achava. E me sentia como o comandante em meio ao quadrado das tropas, enquanto as balas assoviam em torno. Depois tio Carlos se enraiveceu, arrastou-me para dentro de um modo bruto, eu estava a ponto de chorar porque acabava assim a minha diversão, quando naquele preciso instante ouvimos três tiros, vidros quebrados e uma espécie de ricochete, como se alguém tivesse atirado no corredor uma bola de tênis. Uma bala tinha penetrado pela janela, batera no cano de água, ricocheteara e fora encravar-se no chão, exatamente no ponto em que eu estava antes. Se ainda ali estivesse de pé, me teria acertado a perna. Quem sabe."

"Meu Deus, não queria ver você perneta", disse Lorenza.

"Talvez hoje estaria contente", disse Belbo. Na verdade, também naquele caso não havia escolhido. Fora arrastado para dentro pelo tio.

Depois de algum tempo distraiu-se de novo. "A certo ponto veio ter aqui em cima o Adelino Canepa. Disse-nos que estaríamos todos mais seguros se fôssemos para a adega. Ele e o tio não se falavam há anos, já lhes contei. Mas no momento da tragédia Adelino voltara a ser um ente humano, e o tio até lhe apertou a mão. Foi assim que passamos uma hora no escuro em meio aos tonéis, sentindo um odor de incontáveis colheitas que nos subia um pouco à cabeça, enquanto lá fora disparavam. Depois as rajadas enfraqueceram, o som dos tiros nos chegava mais brando. Percebemos que um dos grupos se retirava mas não sabíamos ainda qual. Até que de uma janelinha acima de nossas cabeças, que dava para um beco, ouvimos uma voz, em dialeto: "Monssu, i’é d’la repubblica bele si?"

"Que significa isto?" perguntou Lorenza.

"Aproximadamente: cavalheiro, poderia ter a gentileza de nos informar se estamos ainda nas paragens adeptas da República Social Italiana? Naqueles tempos república era uma palavra terrível. Tratava-se de um partigiano que interrogava um passante, ou alguém à janela, e portanto o beco estava de novo praticável, e os fascistas se tinham ido embora. Já estava escurecendo. Daí a pouco chegaram afinal o pai e a avó, cada qual a contar sua aventura. Minha mãe e a tia foram preparar alguma coisa de comer, enquanto o tio e Adelino Canepa estavam cerimoniosamente recolhendo os cumprimentos. Por todo o resto da noite continuamos a ouvir rajadas distantes, para os lados das colinas. Os partigiani caçavam os fujões. Tínhamos vencido."

Lorenza beijou-o nos cabelos e Belbo fez um sinal de escárnio com o nariz. Sabia que vencera por interposta brigada. Na verdade havia assistido a um filme. Mas por um momento, correndo o risco do ricochete da bala, entrara no filme. Mas só de passagem, como em Hellzapoppin’, quando se trocam as películas e um índio chega a cavalo durante uma festa e pergunta no baile para onde foram, alguém lhe responde "para lá", e ele desaparece numa outra história.

 

Começou a soar sua esplendida corneta com tal força que toda a montanha em torno ressoou.

(Johann Valentin Andreae, Die Chymische Hochzeit des Christian Rosencreutz, Strassburg, Zetzner, 1616, 1, p. 4)

 

Estávamos no capítulo sobre as maravilhas dos condutos hidráulicos, e que seria ilustrado por uma gravura do século XVI tirada das Spiritaíia de Héron na qual se via uma espécie de altar sobre o qual um autômato - por meio de uma engenhoca a vapor - tocava uma corneta.

Reconduzi Belbo às suas lembranças: "Mas como é mesmo aquela história do seu Ticho Brahe ou como se chama, que lhe ensinou a tocar corneta?"

"Dom Tico. Nunca soube se era seu sobrenome ou o nome próprio. Nunca mais voltei ao oratório. Eu havia ido lá por acaso: a missa, o catecismo, os esportes, e ganhava-se um santinho do Beato Domingos Sávio, aquele adolescente de calças amarrotadas de fazenda grosseira, que nas estátuas está sempre aferrado à batina de Dom Bosco, com os olhos no céu, para não ouvir os companheiros que contam anedotas indecentes. Descobri que Dom Tico estava organizando uma banda de música, composta de rapazes de dez a quatorze anos. Os menores tocavam clarim, flautim, saxofone soprano, e os mais velhos agüentavam com o bombardino e o bombo. Usavam uniforme, blusão cáqui e calças azuis com um bonezinho de viseira. Um sonho, e quis ser um deles. Dom Tico disse que precisava de um gênis."

Esquadrinhou-nos com superioridade e recitou: "Gênis no jargão bandístico é uma espécie de trombone pícolo que na verdade se chama saxorne sopranino em mi bemol. É o instrumento mais imbecil de toda a banda de música. Faz umpa-umpa-umpa-umpap quando o tom da marcha sobe e depois do parapapá-pa-pa-pá-pááá passa a baixar o tom e faz pa-pa-pa-pa-pá... Mas se aprende facilmente, pertence à família dos metais como o trompete. O trompete requer mais fôlego e uma boa embocadura - sabem, aquela espécie de calo circular que se forma nos lábios, como Armstrong. Com uma boa embocadura economiza-se o fôlego e o som sai límpido e puro, sem que se sinta o sopro - por outro lado não se devem inflar as maçãs do rosto, aí não, isso só acontece na ficção e nas caricaturas."

"Mas a corneta?"

"A corneta eu aprendi sozinho, naquelas tardes de verão em que não havia ninguém no oratório, e eu me escondia na platéia do teatrinho... Mas estudava corneta por motivos eróticos. Estão vendo aquele povoado lá embaixo, a um quilômetro do oratório? Era ali que morava Cecilia, filha da benfeitora dos salesianos. Toda vez que a banda se exibia, nos dias de festa, depois da procissão, no pátio do oratório e principalmente no teatro, antes das récitas da filodramática. Cecília e a mãe estavam sempre na primeira fila no lugar de honra, junto ao pároco da catedral. Naquelas ocasiões a banda começava com uma marcha chamada O Bom Princípio, que abria com o som das cornetas, as cornetas em si bemol, de ouro e prata, bem polidas para o evento. Os comnetistas se levantavam e faziam o solo. Depois sentavam-se e a banda atacava. Tocar corneta era o único meio de me fazer notar por Cecilia."

"Ou então?" perguntou Lorenza enternecida.

"Não havia alternativa. Primeiro, eu tinha treze anos e ela treze e meio, e uma menina de treze anos e meio já é uma mulher, ao passo que o menino não é mais que um molecote. Além de tudo ela amava o saxofonista contralto, um tal de Papi, horrendo e pelado, conforme me parecia, e só tinha olhos para ele, que halia lascivo, porque o saxofone, quando não é o de Ornette Coleman e é tocado numa banda - principalmente pelo horrendo Papi - é (ou me parecia então) um instrumento caprino e vulgar, que tem a voz, como direi, de uma modelo que desandou a beber e a fazer a vida...”

"Que fazem as modelos que fazem a vida? Que é que você sabe disto?"

"Pois bem, Cecilia não sabia nem mesmo que eu existia. Enquanto me afadigava a subir a colina para ir buscar leite num curral lá no alto, ia inventando histórias esplêndidas, em que ela era raptada pelas Brigadas Negras e eu corria para salvá-la; enquanto as balas me assoviavam nos ouvidos e faziam chaque chaque caindo nos restolhos, eu lhe revelava aquilo que ela não podia saber, que sob identidade falsa eu dirigia a resistência em todo o Monferrato, e ela me confessava que sempre havia esperado isso, e àquele ponto me envergonhava, porque sentia como uma golfada de mel nas veias - juro-lhes que nem sequer me umedecia o prepúcio, era outra coisa, bem mais terrível e grandiosa - e ao voltar para casa corria a confessar-me... Creio que o pecado, o amor e a glória sejam aquilo, quando você desce pela corda feita de lençóis amarrados à janela de Villa Triste*,

* Mansão ajardinada em Milão onde a SS torturava os partigiani capturados. (N. do T.)

 

com ela enlaçada ao seu pescoço, suspensa no vazio, e sussurra que sempre sonhara com você. O resto é apenas sexo, cópula, perpetuação da semente infame. Mas para encurtar se eu passasse à corneta Cecilia não poderia ignorar-me, eu de pé, deslumbrante, e o miserável saxofone sentado. A corneta é guerreira, angélica, apocalíptica, vitoriosa, soa a carga, o saxofone faz dançar os gostosões do subúrbio com os cabelos untados de brilhantina, de rosto colado com moças suadas. Eu estudava cometa, como um louco, até que me apresentei a Dom Tico e lhe pedi que me ouvisse, e me sentia como Oscar Levant quando faz o primeiro teste na Broadway com Gene Kelly. E Dom Tico me disse: "Você é cornetista, mas...”

"Não seja dramático", disse Lorenza, "conta logo, não nos deixe com o fôlego suspenso."

"Mas eu tinha que arranjar alguém para me substituir no gênis. Arranja-te, foi o que disse Dom Tico. E eu logo me arranjei. Deveis saber então, ó caros filhos meus, que naqueles tempos viviam em *** dois miseráveis colegas de escola embora dois anos mais velhos do que eu, e isto muito lhes revelará sobre a atitude deles no aprendizado. Estes dois brutos se chamavam Annibale Cantalamessa e Pio Bo.*

 

* Os nomes significam em italiano Canta-a-missa e Pio Boi. (N. do T.)

 

Um: histórico."

"Que foi?" perguntou Lorenza.

Expliquei, cúmplice: "Quando Salgari se refere a um fato verdadeiro (ou que ele supunha verdadeiro) - digamos, que Touro Sentado chamado depois Little Big Horn come o coração do general Custem - ao fim da história mete uma nota ao pé de página dizendo: 1. Histórico."

"Isto mesmo. E histórico que Annibale Cantalamessa e Pio Bo se chamavam assim, nem era esse o seu lado pior. Eram mandriões, surrupiavam revistas de histórias em quadrinhos nas bancas de jornais, roubavam figurinhas de bala dos que tinham coleções e deixavam o sanduíche de presunto apoiado sobre o livro de aventuras terra-mar-e-ar que você lhes havia emprestado mal ganhara de presente de Natal. O Cantalamessa se dizia comunista, o Bo fascista, mas estavam ambos dispostos a se vendem ao adversário por uma atiradeira, contavam histórias de conteúdo sexual, com imprecisos conhecimentos anatômicos, e faziam competições para saber quem tinha se masturbado mais vezes na noite anterior. Eram indivíduos prontos a tudo, por que não ao gênis? Foi assim que resolvi conquistá-los. Eu engrandecia a farda dos músicos executantes, levava-os a execuções públicas, deixava-os entrever sucessos amatórios com as Filhas de Maria... Caíram no engodo. Eu passava os dias no teatrinho, com uma longa vara na mão, como tinha visto nas ilustrações dos opúsculos sobre os missionários, lhes dava pancadas nos dedos quando erravam a nota - o gênis só tem três teclas que se movem com o indicador, o médio e o anular, e o resto é questão de embocadura, já disse. Não vos entediarei por mais tempo, ó meus pequenos ouvintes: chegou o dia em que pude apresentar a Dom Tico dois gênis, não direi perfeitos mas, pelo menos na primeira prova, preparada depois de longas tardes insones, aceitáveis. Dom Tico estava convencido, lhes havia fornecido os uniformes, e me passara à corneta. E ao cabo de uma semana, na festa de Maria Auxiliadora, abertura da estação teatral com O pequeno parisiense, as cortinas fechadas, diante das autoridades, eu estava de pé, a tocar o início de O Bom Princípio."

"Oh esplendor", disse Lorenza, com o rosto ostensivamente aspergido de um terno ciúme. "E Cecilia?"

"Não estava. Talvez estivesse doente. Que sei? Não estava."

Ergueu o olhar circularmente para a platéia, porque àquele ponto se sentia bardo - ou jogral. Calculou a pausa. "Dois dias depois Dom Tico me mandava chamar e me explicava que Annibale Cantalamessa e Pio Bo haviam arruinado a noite. Não mantinham o ritmo, distraíam-se nas pausas, soltavam piadinhas, não entravam no momento exato. "O gênis", me disse Dom Tico, "é a ossatura da banda, é sua consciência rítmica, a alma. A banda é como um rebanho, os instrumentos são as ovelhas, o maestro é o pastor, mas o gênis é o cão fiel e rosnador que mantém as ovelhas a passo. O maestro olha principalmente para o gênis, e se o gênis o acompanha, as ovelhas todas seguirão. Meu caro Jacopo, devo pedir-te um grande sacrifício mas tens que voltar para o gênis, junto com aqueles dois. Tu tens senso de ritmo, me ajudarás a mantê-los no compasso. Prometo-te que assim que eles se tornarem autônomos, farei com que voltes à corneta!" Eu devia tudo a Dom Tico. Disse-lhe que sim. E na festa seguinte as cornetas mais uma vez se levantaram e tocaram o ataque de abertura do Bom Princípio diante de Cecilia, novamente na primeira fila. Eu estava no limbo, gênis entre os gênis. Quanto aos dois miseráveis, jamais se tornaram autônomos. E eu nunca mais voltei à corneta. A guerra acabou, voltei para a cidade, abandonei os metais, e de Cecilia não soube mais nem mesmo o sobrenome."

"Pobre menino rico", disse Lorenza abraçando-lhe os ombros.

"Mas eu ainda resto."

"Pensei que você preferia os saxofones", disse Belbo. Depois beijou-lhe as mãos, girando apenas a cabeça. Voltou a ficar sério. "Ao trabalho", disse. "Vamos fazer uma história do futuro, e não uma crônica do tempo perdido."

À noite foi muito celebrada a queda da proibição antialcoólica.

Jacopo parecia haver-se esquecido de seus humores elegíacos, e se mediu com Diotallevi. Imaginavam máquinas absurdas, para descobrir a cada passo que já tinham sido inventadas. À meia-noite, depois de uma noitada cheia, todos acharam que já era hora de experimentarmos o que era dormir naquelas colinas. Meti-me na cama do velho quarto, com os lençóis mais úmidos do que estavam de tarde. Jacopo havia insistido para que usássemos o braseirinho - uma espécie de armação oval que mantém as cobertas levantadas, e sob a qual se põe um pequeno fogareiro com brasas - isso talvez para nos fazer provar todos os prazeres da vida no campo. Mas quando a umidade é latente, o braseirinho a leva para fora, sente-se uma tepidez deliciosa mas o tecido parece molhado. Paciência. Acendi um abajur daqueles de franjas, em que as mariposas batem as asas antes de morrer, como quer o poeta. E procurei adormecer lendo um jornal.

Mas durante uma ou duas horas ouvi passes no corredor, um abrir e fechar de trincos, a última vez (a última que ouvi) uma porta bateu com violência. Lorenza Pellegrini estava pondo os nervos de Belbo à prova.

Já quase caindo no sono ouvi arranharem a minha, digo porta. Podia ser que fosse um animal (mas não tinha visto nem cães nem gatos pela casa) e tive a impressão de que era um convite, uma solicitação, uma isca. Talvez Lorenza estivesse fazendo aquilo porque se sabia observada por Belbo - Talvez não. Havia considerado até então Lorenza como propriedade de Belbo - pelo menos nos meus cotejos - e desde que estava com Lia me tornara insensível a outros fascínios. Os olhares maliciosos, freqüentemente de conluio, que Lorenza me lançava às vezes na redação ou no bar, quando queria gozar Belbo, como à procura de um aliado ou de uma testemunha, faziam parte - sempre havia pensado - de uma brincadeira de sociedade - e além disso Lorenza Pellegrini tinha a virtude de olhar a todos com um ar de quem desafia sua capacidade amatória - mas de maneira curiosa, como se sugerisse "te desejo, mas para mostrar-te que tens medo" - Aquela noite, sentindo aquele rascar, aquele escorrer de unhas contra o verniz do batente, provei uma sensação diversa: dei-me conta de que desejava Lorenza.

Meti a cabeça embaixo do travesseiro e pensei em Lia. Quero fazer um filho com Lia, disse para mim. E vou ensinar a ele (ou ela) a tocar corneta, mal comece a soprar.

 

De três em três árvores, de ambos os lados, estava apenas uma lanterna, e uma esplêndida virgem, igualmente vestida de azul, a acendia com uma tocha maravilhosa e eu me demorava, mais que o necessario, a admirar o espetáculo que era de uma beleza indizível.

(Johann Valentin Andreae, Die Chymische Hochzeit des Christian Rosencreutz, Strassburg, Zetzner, 1616, 2, p. 21)

 

Por volta do meio-dia Lorenza veio se reunir a nós na varanda, sorridente, e anunciou que havia encontrado um excelente trem que passava por*** às dez e meia e com apenas uma baldeação estaria de volta a Milão pela tarde. Perguntou se a acompanhávamos até a estação.

Belbo continuou a folhear os apontamentos e disse: "Pensei que Agliè estivesse esperando também pois você, pareceu-me até que havia organizado toda essa expedição por sua causa."

"Pior para ele", disse Lorenza. "Quem me acompanha?"

Belbo se levantou e nos disse: "Vou lá um instante e volto. Depois podemos ficar ainda por aqui uma ou duas horas. Lorenza, você tem maleta?"

Não sei se disseram algo mais no trajeto para a estação. Belbo tornou após uns vinte minutos e voltou a trabalhar sem se referir ao incidente.

 

Às duas encontramos um confortável restaurante na praça do mercado, e a escolha da comida e dos vinhos permitiu a Belbo reevocar outros eventos de sua infância. Mas falava como se citasse trechos de uma biografia alheia. Havia perdido a felicidade narrativa do dia anterior. Ao meio da tarde nos aviamos ao encontro de Agliè e Garamond.

 

Belbo guiava em direção ao sudoeste, enquanto a paisagem mudava pouco a pouco de quilômetro em quilômetro. As colinas de***, mesmo no outono avançado eram baixas e suaves; agora no entanto à medida que avançávamos, o horizonte se tornava cada vez mais amplo, embora a cada curva aumentassem os picos, sobre os quais se encarapitavam os povoados. Mas entre um pico e outro abriam-se horizontes intermináveis - para além da sebe, como completava Diotallevi, verbalizando judiciosamente as nossas descobertas. Assim enquanto subíamos em terceira descortinavam-se a cada volta vastas extensões de perfil ondulado e contínuo, que no limite da planura já se esfumava num embaçamento quase invernal. Parecia uma planície modulada de dunas, e era meia montanha. Como se a mão de um demiurgo inábil tivesse comprimido os cimos que lhe parecessem excessivos, transformando-os numa marmelada cheia de corcovas que só ia acabar no mar, quem sabe, ou até aos declives de cadeias mais ásperas e acentuadas.

Chegamos ao vilarejo onde, no bar da praça central, tínhamos marcado encontro com Agliè e Garamond. Ao saber que Lorenza não estava conosco, Agliè, se ficara contrariado com isso, pelo menos não deixou transparecer. "A nossa primorosa amiga não quer partilhar com outros os mistérios que a definem. Pudor singular, que eu muito aprecio", disse. E foi tudo.

Seguimos caminho, à frente a Mercedes de Garamond e atrás a Renault de Belbo, por vales e colinas, até que, quando a luz do sol já estava enfraquecendo, chegamos à vista de uma estranha construção trepada sobre a colina, uma espécie de castelo do século XVIII, amarelo, do qual saiam, pelo menos me pareceu assim a distância, varandas floridas e arborizadas, viçosas não obstante a estação.

Ao chegarmos ao pé da escarpa, encontramo-nos num espaço onde já estavam estacionados muitos outros carros. "Paramos aqui", disse Agliè, "e prosseguimos a pé".

O crepúsculo agora se tornava noite. A subida estava delineada pela luz de uma infinidade de archotes, acesos ao longo do aclive.

 

Curioso, mas de tudo quanto aconteceu, desde aquele momento até tarde da noite, só tenho recordações ao mesmo tempo límpidas e confusas. Reevocava-as aquela noite no periscópio e notava um ar de família entre as duas experiências. Muito bem, me dizia, agora estás aqui, numa situação desnatural, aturdido por um imperceptível bafio de madeira velha, suspeitando estar dentro de um túmulo, ou no interior de um vaso onde se esteja processando uma transformação. Bastaria esticar a cabeça para fora da cabine para ver na penumbra objetos, que hoje pareciam imóveis, a se agitarem como sombras eleusinas entre os vapores de um encantamento. E assim foi a noitada no castelo: as luzes, as surpresas do percurso, as palavras que ouvia, e mais tarde certamente os incensos, tudo conspirava para me fazer crer que sonhasse, mas de forma anômala, assim como quando se está próximo de despertar e se sonha que se sonha.

Não deveria recordar nada. E no entanto recordo tudo, como se o não tivesse vivido eu próprio e me fosse contado por alguém.

Não sei se o que recordo, com lucidez tão confusa, foi o que de fato aconteceu ou se o que desejaria que tivesse acontecido, mas certamente foi naquela noite que o Piano tomou forma em nossa mente, como desejo de dar uma forma qualquer àquela experiência informe, transformando em realidade fantástica aquela fantasia que alguém havia desejado real.

"O percurso é ritual", nos estava dizendo Agliè enquanto subíamos. "Estes são jardins suspensos, os mesmos - ou quase os mesmos - que Salomon de Caus havia imaginado para os hortos de Heidelberg - quero dizer, para o eleitor palatino Frederico V, no grande século rosacruciano. A luz é pouca, mas assim é que deve ser, pois melhor é intuir do que ver: nosso anfitrião não reproduziu com fidelidade o projeto de Salomon de Caus, mas concentrou-o num espaço mais reduzido. Os jardins de Heidelberg imitavam o macrocosmo, mas quem os reconstruiu aqui imitou somente o microcosmo. Estão vendo aquela gruta, construída em rocaille?... Decorativa, sem dúvida. Mas Caus tinha presente o emblema da Atalanta Fugiens de Michael Maier em que o coral é a pedra filosofal. Caus sabia que por meio das formas dos jardins se podiam influenciar os astros, pois há caracteres que pela sua configuração imitam a harmonia do universo...”

"Prodigioso", disse Garamond. "Mas como pode um jardim influenciar os astros?"

"Há signos que se inclinam uns para os outros, que se olham uns aos outros e que se abraçam, e obrigam ao amor. E não têm, não devem ter, forma definida. Cada qual, segundo dita seus ímpetos ou o arrebatamento de seu espírito, experimenta determinadas forças, como acontecia com os hieróglifos dos egípcios. Só pode haver ligação entre nós e os seres divinos através de sigilos, de figuras, caracteres e outras cerimônias. E assim são estes jardins. Cada aspecto deste terraço reproduz um mistério da arte alquímica, embora não estejamos em grau de lê-los, nem mesmo o nosso hospedeiro. Singular dedicação ao segredo, convenhamos, da parte deste homem que gasta tudo quanto acumulou ao longo dos anos para desenhar ideogramas de que não conhece a significação."

Subíamos, e de terraço em terraço os jardins mudavam de fisionomia. Alguns tinham forma de labirinto, outros figuras de emblemas, mas se podia ver o desenho dos terraços inferiores apenas dos terraços superiores, e foi assim que distingui do alto o formato de uma coroa e muitas outras simetrias que não havia notado ao passar por elas, e que em todo caso não as saberia decifrar. Cada terraço, visto por quem se movesse entre as sebes, por efeito de perspectiva mostrava algumas imagens mas, visto novamente do terraço superior, provia novas revelações, talvez de sentido contrário - e cada degrau daquela escada falava assim duas línguas distintas ao mesmo tempo.

Percebemos, à medida que subíamos, pequenas construções. Uma fonte de estrutura fálica, que se abria embaixo de uma espécie de arco ou pequeno pórtico, com um Netuno que pisava sobre um golfinho, uma porta com colunas vagamente assírias, e um arco de forma imprecisa, como se tivessem sobreposto triângulos e polígonos a polígonos, com cada vértice encimado pela estátua de um animal, um alce, um macaco, um leão...

"E tudo isto revela alguma coisa?" perguntou Garamond.

"Indubitavelmente! Bastaria ler o Mundus Symbolicus de Picinelli, que Alciato tinha antecipado com singular intuição profética. Todo o jardim pode ser lido como um livro, ou como um encantamento, o que vem a ser a mesma coisa. Pudessem, sabendo, pronunciar em voz baixa as palavras que o jardim nos diz, e seriam capazes de dirigir uma das inumeráveis forças que atuam no mundo sublunar. O jardim é um aparelho para dominar o universo."

 

Mostrou-nos uma gruta. Uma incongruência de algas e esqueletos de animais marinhos, não sei se naturais, de gesso, ou pedra... Entrevia-se lá dentro uma náiade abraçada à base da cauda escamosa de um grande peixe bíblico que estava pousado na corrente de água, a qual fluía da concha que um tritão erguia à maneira de ânfora.

"Gostaria que apreendessem o significado profundo dessa imagem que seria de outra forma um banal divertimento hidráulico. Caus sabia muito bem que se se tomar um vaso e o encher de água e o tapar por cima, mesmo se depois se abrir um furo no fundo, a água não sai por ele. Mas se se abre um furo também em cima, a água deflui ou esguicha embaixo."

"Não é óbvio?" perguntei. "No segundo caso o ar entra por cima e comprime a água para baixo."

"Típica explicação científica, em que se troca a causa pelo efeito, ou vice-versa. O senhor não deve perguntar por que a água sai no segundo caso. Deve perguntar por que se recusa a sair no primeiro."

"E por que se recusa?" perguntou ansioso Garamond.

"Porque se saísse permaneceria o vácuo no vaso, e a natureza tem horror ao vácuo. Nequaquam vacui era um princípio rosacruciano, que a ciência moderna esqueceu."

"Impressionante", disse Garamond. "Casaubon, em nossa maravilhosa história dos metais estas coisas devem ser mencionadas, recomendo-lhe. E não me diga que a água não é um metal. Fantasia, é o que precisa."

"Desculpe-me", disse Belbo a Agliè, "mas o seu argumento é post hoc ergo ante hoc. Aquilo que vem depois causa o que vinha antes."

"Não se precisa raciocinar segundo seqüências lineares. A água desta fonte não o faz. A natureza não o faz, a natureza ignora o tempo. O tempo é uma invenção do Ocidente."

Enquanto subíamos cruzávamos com outros convidados. Observando alguns deles Belbo dava cotoveladas em Diotallevi, que comentava em voz baixa: "Aquele, sim, tem facies hermetica."

Foi entre os peregrinos de facies hermetica, um pouco isolado, com um sorriso de severa indulgência nos lábios, que cruzei com o Sr. Salon. Sorri-lhe, sorriu-me.

"O senhor conhece Salon?" perguntou-me Agliè.

"O senhor conhece Salon?" perguntei-lhe eu. "Para mim é bastante natural, moro no seu edifício. Que pensa dele?"

"Conheço-o muito pouco. Alguns amigos dignos de fé me afirmam que é olheiro da polícia."

Eis como Salon sabia a respeito da Garamond e de Ardenti. Que conexão haveria entre Salon e De Angelis? Mas me limitei a perguntar a Agliè: "E o que faz um olheiro da polícia numa festa como esta?"

"Os olheiros da polícia", disse Agliè, "vão a todo lado. Qualquer experiência é útil para inventar suspeitas. Junto à polícia a gente se torna tanto mais poderoso quanto mais coisas sabe, ou dá mostras de saber. E não importa que essas coisas sejam verdadeiras. O importante, recorde, é possuir um segredo."

"Mas por que Salon foi convidado a vir aqui?" perguntei.

"Meu amigo", respondeu Agliè, "provavelmente porque o nosso anfitrião segue aquela regra áurea do pensamento sapiencial segundo a qual qualquer erro pode ser o portador desconhecido da verdade. O verdadeiro esoterismo não tem medo dos contrários."

"O senhor quer dizer que no fim todos estão de acordo entre si."

"Quod ubique, quod ab omnibus et quod semper. A iniciação é a descoberta de uma filosofia perene."

 

Assim filosofando haviamos chegado ao alto do terraço, penetrando por um sendeiro em meio a um amplo jardim que conduzia à entrada da mansão, ou castelinho que fosse. A luz de uma tocha, maior que as outras, encravada no alto de uma coluna, vimos uma jovem envolta em vestes azuis constelada de estrelas de ouro, que sustinha na mão uma corneta, daquelas que na ópera são tocadas pelos arautos. Como num daqueles autos sagrados em que os anjos ostentam plumas de cartolina, a jovem trazia sobre os ombros duas grandes asas brancas decoradas com formas amigdalóides assinaladas no centro por um ponto, que com um pouco de boa vontade teriam podido passar por olhos.

Vimos o professor Camestres, um dos primeiros diabólicos que nos haviam visitado na Garamond, o adversário da Ordo Templi Orientis. Custamos a reconhecê-lo porque estava mascarado de maneira que nos pareceu singular, mas que Agliè definia como apropriada para o evento: uma túnica de linho branco com os lados cingidos por uma fita vermelha que se cruzava no peito e atrás nas costas, e um curioso chapéu estilo século XVIII sobre o qual despontavam quatro rosas vermelhas. Ajoelhou-se diante da jovem da corneta e disse-lhe algumas palavras.

"Na verdade", murmurou Garamond, "há mais coisas entre o céu e a terra...”

Passamos através de um portal decorado de cenas legendárias que me evocou o cemitério de Staglieno*.

 

* Cemitério de Gênova, com estátuas de extremo mau gosto. (N. do T.)

 

No alto, acima de uma complexa alegoria neoclássica, vi esculpida as palavras CONDOLEO ET CONGRATULOR.

No interior, os convidados eram muitos e estavam bastante animados aglomerados diante de um bufê num amplo salão de entrada, do qual partiam duas escadarias para o andar superior. Descobri outros rostos não desconhecidos, entre os quais Bramanti e - surpresa - o comendador De Gubernatis, AEP já explorado pela Garamond, mas talvez ainda não colocado diante da horrenda possibilidade de ter todos os exemplares de sua obra-prima transformados em pasta de papel, porque veio ao encontro de nosso diretor externando-lhe respeito e reconhecimento. Veio apresentar seus cumprimentos a Agliè um tipo miúdo, de olhos inflamados. Pelo seu inconfundível acento francês, reconhecemos Pierre, aquele que havíamos ouvido acusar Bramanti de sortilégio através da porta do escritório de Agliè.

Aproximei-me do bufê. Havia garrafas com líquidos coloridos, que não consegui identificar. Servi-me de uma bebida amarela que parecia vinho, que não era ruim, sabia a licor, certamente alcoólica. Talvez contivesse alguma coisa estranha: a cabeça começou a girar-me. Em meu redor se aglomeravam facies hermetica junto a rostos severos de policiais aposentados, recolhendo fragmentos de conversas...

 

"No primeiro estágio deverias conseguir comunicar-te com outras mentes, depois projetar em outros seres pensamentos e imagens, carregar os lugares com estados emotivos, adquirir autoridade sobre o reino animal. Num terceiro tempo tenta projetar teu duplo num ponto qualquer do espaço: bilocalização como fazem os jogues, devendo tu aparecer simultaneamente em várias formas distintas. Trata-se em seguida de passar ao conhecimento supra-sensível das essências vegetais. Enfim tenta a desassociação, que consiste em investir o conjunto telúrico do corpo, dissolver-se num lugar e reaparecer em outro, integralmente - digo - e não apenas no duplo. Ültimo estágio, o prolongamento da vida física...

"Não a imortalidade...”

"Não imediatamente."

"Mas tu?"

"É preciso concentração. Não te nego que seja trabalhoso. Sabes, não tenho mais vinte anos...”

 

Reencontrei meu grupo. Estavam entrando num aposento de paredes brancas e de ângulos recurvos. Ao fundo, como num museu Grévin - mas a imagem que me aflorou à mente aquela noite foi a do altar que eu vira no Rio no terreiro de umbanda - duas estátuas quase de tamanho natural, de cera, revestidas por material cintilante que me parecia de péssimo gosto. Uma delas representava uma dama sobre um trono, com vestes imaculadas, ou quase, consteladas de paetês. Sobre ela pendiam, presos por fios, criaturas de forma imprecisa, que me pareciam ter sido feitas com tecido Lenci*.

 

* Bonecas de kitsch de tecido marca Lenci, usadas para enfeitar os sofás, camas etc. (N. do T.)

 

Num ângulo um amplificador deixava sair um som longínquo de cornetas, este de boa qualidade, talvez algo de Gabrieli, e o efeito sonoro era de melhor gosto que o efeito visual. Para a direita, outra figura feminina, vestida de veludo carmesim com um cinto branco, a cabeça coroada de louros, junto a uma balança dourada. Agliè estava nos explicando os vários significados, mas mentiria se dissesse que lhe prestava muita atenção. Interessava-me mais a expressão de alguns convidados, que passavam em frente das imagens com ar de reverência, e comoção.

"Não são diferentes daqueles que vão aos santuários ver a virgem negra com vestes cobertas de corações de prata", disse a Belbo. "Pensam talvez que aquela seja a mãe de Cristo em carne e osso? Não, mas também não pensam o contrário. Deleitam-se com a similitude, sentem o espetáculo como visão, e a visão como realidade."

"Sim", disse Belbo, "mas o problema não está em saber se são melhores ou piores do que os que vão ao santuário. Estava me perguntando quem somos nós. Nós que consideramos Hamlet mais real que o nosso porteiro. Terei o direito de julgar estes aqui, eu que ando à cata de Madame Bovary para convidá-la a cear?"

Diotallevi sacudia a cabeça e me dizia em voz baixa que não se deviam reproduzir imagens das coisas divinas, e que aquelas eram todas epifanias do bezerro de ouro. Mas se divertia.

 

A alquimia é portanto uma casta meretriz, que tem muitos amantes, mas a todos engana e a nenhum deles concede o seu amplexo. Transforma os tolos em mentecaptos, os ricos em miseráveis, os filósofos em loucos, e os enganados em loquazes enganadores...

(Tritêmio, Annalium Hirsaugensium Tomi II, S, Gallo, 1690, 141)

 

A sala ficou de improviso na penumbra e as paredes se iluminaram. Percebi que estavam quase inteiramente recobertas por uma tela semicircular sobre a qual iriam projetar imagens. Ao surgirem me dei conta de que parte do teto e do movimento eram de material refletor, e refletores eram igualmente alguns dos objetos que antes haviam chamado minha atenção pela sua vulgaridade, os paetês, a balança, um escudo, algumas taças de cobre. Encontravam-se imersos num ambiente equóreo, onde as imagens se multiplicavam, se segmentavam, se fundiam com as sombras dos presentes, o pavimento refletia o teto, este o pavimento, e ambos as figuras que apareciam nas paredes. Junto com a música, difundiram-se pela sala odores sutis, a princípio incensos indianos, depois outros, mais imprecisos, por vezes desagradáveis.

De início a penumbra se esfumou numa escuridão absoluta, depois ouviu-se um borbulhar glutinoso, um fervilhar de lava, e estávamos numa cratera, onde uma matéria viscosa e escura estremecia ao fulgor intermitente de labaredas amarelas e azuladas.

Uma água gorda e pegajosa evaporava para o alto para voltar a descer ao fundo como orvalho ou chuva, e vagava em torno um odor de terra fétida, um bafio de mofo. Respirava a sepulcro, a tártaro, a tênebras, corria ao meu redor um líquido venenoso que escorria entre línguas de estrume, húmus, pó de carvão, lama, mênstruo, fumaça, chumbo, esterco, cortiça, escuma, nafta, negro mais negro que o negro, que estava agora se aclarando para deixar aparecer dois répteis - um azulado e outro róseo - enlaçados numa espécie de amplexo, a morder-se reciprocamente a cauda, formando como que uma única figura circular.

 

Era como se tivesse bebido álcool além da conta, não via mais meus companheiros, desaparecidos na penumbra, não reconhecia as figuras que deslizavam ao meu lado e percebia-as apenas como delineamentos decompostos e fluidos... Foi então que me senti tomado pela mão. Sei que não era real, contudo não ousei então voltar-me para não descobrir que me havia enganado. Mas sentia o perfume de Lorenza e só então percebi o quanto a desejava. Devia ser Lorenza. Estava ali, a retomar aquele diálogo feito de roçares, de rascar de unhas contra a porta, que deixara em suspenso na noite anterior. Enxofre e mercúrio pareciam conjugar-se num calor úmido que me fazia palpitar as virilhas, mas sem violência.

Esperava o Rébis, o menino andrógino, o sal filosofal, o coroamento da obra em branco.

Parecia-me saber tudo. Talvez me aflorassem à mente as leituras dos últimos meses, talvez Lorenza me comunicasse seu saber através do toque de sua mão, cuja palma eu sentia levemente suada.

E me surpreendia a murmurar nomes remotos, nomes que certamente, sabia-o, os filósofos haviam dado ao Branco, mas com os quais eu - talvez - estivesse chamando tremulamente Lorenza - não sei, ou talvez apenas os repetisse de mim para mim como uma ladainha propiciatória: Cobre branco, Cordeiro imaculado, Aibathest, Alborach, Água-benta, Mercúrio purificado, Ouro-pigmento, Azoch, Baurach, Cambar, Caspa, Cerusa, Cera, Chaia, Comerisson, Eletro, Eufrates, Eva, Fada, Favônio, Fundamento da Arte, Pedra preciosa de Givinis, Diamante, Zibach, Ziva, Velo, Narciso, Lírio, Hermafrodito, Hae, Hipóstase, Hyle, Leite da Virgem, Pedra única, Lua cheia, Mãe, Óleo vivido, Legumes, Ovos, Fleuma, Ponto, Raiz, Sal da Natureza, Terra folhada, Teves, Tincar, Vapor, Estrela da Noite, Vento, Virago, Vidro do Faraó, Urina de Menino, Abutre, Placenta, Mênstruo, Servo fugitivo, Mão esquerda, Esperma dos Metais, Espírito, Estanho, Suco, Enxofre untuoso...

Na secreção, agora acinzentada, se estava desenhando um horizonte de rochas e árvores ressequidas, além das quais um sol negro se punha. Depois veio uma luz quase escurecida, e apareceram imagens cintilantes, que se refletiam por toda a parte criando efeitos de calidoscópio. Os eflúvios ora eram litúrgicos, eclesiásticos, comecei a ter uma dor de cabeça, uma sensação de peso na fronte, entrevia uma sala faustosa coberta de tapeçarias douradas, talvez um banquete nupcial, com um noivo principesco e uma noiva vestida de branco, depois um rei ancião e uma rainha no trono, ao lado deles um guerreiro, e outro rei de pele escura. Diante do rei um pequeno altar sobre o qual pousava um livro coberto de veludo negro e um lume num candelabro de marfim. Junto ao candelabro um globo giratório e um relógio tendo ao alto uma pequena fonte de cristal, da qual corria um líquido cor de sangue. Acima da fonte havia talvez uma caveira, em cujos olhos rastejava uma serpente branca...

Lorenza soprava levemente palavras ao meu ouvido. Mas não ouvia sua voz.

A serpente se movia ao ritmo de uma música triste e lenta. Os velhos monarcas traziam agora uma veste negra e diante deles estavam seis ataúdes cobertos. Ouviram-se alguns sons cavos de tuba, e apareceu um homem com um capuz negro. A princípio foi uma execução hierática, como se se desenrolasse em câmara lenta, que o rei aceitava com dolente alegria, inclinando dócil a cabeça. Depois o encapuzado vibrou uma acha, uma lâmina, e foi o movimento rápido de um pêndulo, o impacto da lâmina se mutiplicou por cada uma das superfícies refletoras, e de cada superfície para as outras superfícies, foram mil cabeças que rolaram, e a partir daquele momento as imagens se sucederam sem que eu conseguisse acompanhar os acontecimentos. Creio que aos poucos todos os personagens, inclusive o rei de pele escura, foram decapitados e depostos nos ataúdes, em seguida toda a sala se transformou numa costa marinha, ou lacustre, e vimos atracar seis baixéis iluminados para os quais se transladaram os féretros, e que depois se afastaram sobre o espelho de água desaparecendo na noite, tudo se desenrolando enquanto os incensos se faziam palpáveis sob a forma de densos vapores, por um momento temi estar entre os condenados, e muitos em torno a mim murmuravam "as núpcias, as núpcias...”

Eu perdera o contato com Lorenza e só então voltava a procurá-la entre as sombras.

 

Agora a sala era uma cripta, ou uma tumba suntuosa, de abóbada iluminada por um carbúnculo de extraordinária grandeza.

Em cada ângulo apareciam mulheres com túnicas virginais, em torno a uma caldeira em dois planos, um castelinho com embasamento de pedra no pórtico que parecia um forno, duas torres laterais das quais saíam dois alambiques que terminavam num bujão ovóide, e uma terceira torre central, que terminava em forma de fonte...

No embasamento do castelinho se divisavam os corpos dos decapitados. Uma das mulheres trouxe uma caixa da qual extraiu um objeto redondo que depôs sobre o embasamento, num fórnice da torre central, e de repente a fonte no topo pôs-se a borbotar. Levei algum tempo para reconhecer o objeto, era a cabeça do mouro, que agora ardia como um cepo, pondo em ebulição a água da fonte. Vapores, sopros, gorgulhos...

Lorenza desta vez estava pousando a mão em minha nuca, acariciando-a como eu a vira fazer, furtiva, com Jacopo no automóvel. A mulher trazia uma esfera de ouro, abria um registro no forno do embasamento e deixava correr sobre a esfera um líquido denso e rubro. Depois a esfera abriu-se e em lugar do líquido rubro continha um ovo grande e belo, branco como a neve. As mulheres tomaram-no e o puseram sobre o solo, num covo de areia amarela, até que o ovo se rompeu e dele saiu um pássaro, ainda disforme e ensangüentado. Mas bebendo o sangue dos decapitados começou a crescer diante de nossos olhos tomando formas belas e esplendorosas.

Agora estavam decapitando o pássaro e reduzindo-o a cinzas sobre um pequeno altar. Alguns estavam empapando as cinzas, vertendo aquela pasta em duas fôrmas, depois pondo as fôrmas a cozer num forno, soprando o fogo com dois tubos. Por fim as fôrmas foram abertas e apareceram duas figuras frágeis e graciosas, quase transparentes, um menino e uma menina, não medindo mais que quatro palmos, macias e carnosas como criaturas vivas, mas de olhos ainda vítreos, minerais. Foram postas sobre duas almofadas e um velho deixou pingar gotas de sangue em suas bocas...

Surgiram outras mulheres trazendo cornetas douradas, decoradas com coroas verdes e puseram uma delas sobre a cabeça do velho, o qual inclinando a cabeça fê-la roçar pela boca das duas criaturas, suspensas ainda entre um langor vegetal e um doce sono animal, e começou a insuflar alma em seus corpos... A sala voltou a encher-se de luz, a luz desvaneceu-se em penumbra, e depois numa obscuridade interrompida por relâmpagos alaranjados, onde houve um imenso clarão de alvorada enquanto algumas cornetas soavam altas e ressonantes, e depois um fulgor de rubi, insuportável. Naquele ponto perdi de novo Lorenza, e percebi que não haveria mais de encontrá-la.

Tudo se fez de um vermelho flamejante que se esvaneceu aos poucos em índigo e violeta, e a tela desapareceu. Minha dor de cabeça estava se tornando insuportável.

 

"Mysterium Magnum", dizia Agliè, agora em voz alta e calmamente, ao meu lado. "O renascimento do novo homem através da morte e da paixão. Uma bela execução, devo dizer, embora o gosto alegórico talvez tenha incidido sobre a precisão das fases. O que viram foi uma representação, é claro, mas falava de uma Coisa. E o nosso anfitrião pretende haver produzido tal Coisa. Venham comigo, vamos ver o milagre realizado."

 

E se tais monstros são gerados, força é pensar que sejam obra da natureza, mesmo quando pareçam diversos do homem.

(Paracelso, De Homuncutis, in Operum Volumen Secundum, Genevae, De Tournes, 1658, p. 475)

 

Levou-nos para fora ao jardim, e de imediato me senti melhor. Não ousava perguntar aos outros se Lorenza havia chegado. Fora sonho apenas. Mas depois de alguns passos entramos numa estufa, e de novo o calor sufocante me aturdiu. Entre as plantas, quase todas tropicais, estavam seis ampolas de vidro, em formato de pêra - ou de lágrima - hermeticamente fechadas com um selo, cheias de um líquido azulíneo. Dentro de cada frasco flutuava um ser de cerca de vinte centímetros: reconhecemos o rei de cabelos grisalhos, a rainha, o mouro, o guerreiro e os dois adolescentes coroados de louro, um azul e outro rosa... Agitavam-se com graciosos movimentos natatórios, como se estivessem em seu elemento.

Era difícil concluir se se tratava de modelos de plástico, de cera, ou de seres vivos, mesmo porque a leve turvação do líquido não deixava perceber se o tímido arfar que os animava fosse efeito óptico ou realidade.

"Parece que crescem a cada dia", disse Agliè. "Toda manhã os frascos são enterrados em montes de estrume fresco de cavalo, ainda quente, que fornece a temperatura ideal para o crescimento. Por isso em Paracelso aparecem prescrições nas quais se diz que os homúnculos devem ser mantídos em crescimento à temperatura do ventre do cavalo. Segundo nosso anfitrião, estes homúnculos falam com ele, transmitem-lhe segredos, emitem vaticínios, este lhe revela as verdadeiras medidas do Templo de Salomão, aquele ensina como exorcizar demônios... Para ser honesto, nunca os ouvi falar."

Tinham fisionomias muito instáveis. O rei olhava com ternura a rainha e tinha um olhar profundamente terno.

"Nosso anfitrião contou-me que encontrou certa manhã o adolescente azul, que teria conseguido fugir de sua prisão, tentando violar o vaso de sua companheira... Mas estava fora de seu elemento, respirava com dificuldade, e conseguiram salvá-lo mesmo a tempo, fazendo-o retornar ao líquido."

"Terrível", disse Diotallevi. "Eu é que não queria tê-los. Ter que carregar esses vasos para toda a parte e procurar esterco em todos os lugares aonde fosse. E nas férias, como se faz? Deixamo-los com o porteiro?"

"Mas talvez", concluiu Agliè, "se trate apenas de lúdios, os diabinhos de Cartésio. Ou de autômatos."

"Diabos, diabos", dizia Garamond. "O senhor, Dr. Agliè, está me revelando um novo universo. Devemo-nos tornar todos um pouco mais humildes, caros amigos. Há mais coisas entre o céu e a terra... Mas enfim, à la guerre comme à la guerre...”

Garamond estava simplesmente deslumbrado. Diotallevi mantinha um ar de interessado cinismo, Belbo não manifestava sentimento algum.

Queria acabar com minhas dúvidas e disse-lhe: "Que pena Lorenza não tenha vindo, ela iria se divertir."

"Pois então", respondeu, ausente.

Lorenza não tinha vindo. Eu estava como Amparo no Rio. Sentia-me mal. Sentia-me como defraudado. Não me haviam trazido o agogo.

Deixei o grupo, voltei a entrar no edifício passando ao largo das pessoas, fui em direção ao bufê, pedi um refrigerante, temendo que até este contivesse um filtro. Fiquei à procura do toalete, para poder molhar as têmporas e a nuca. Encontrei-o, e me senti aliviado. Mas ao sair dei com uma escadinha em caracol que me despertou a curiosidade e não pude resistir a uma nova aventura. Talvez mesmo me achando então recuperado, ainda estivesse à procura de Lorenza.

 

Pobre néscio! Serás tão ingênuo de crer que te ensinem abertamente os segredos mais importantes e transcendentais? Asseguro-te que quem quiser explicar segundo o sentido ordinário e literal as palavras que escreveram os Filósofos Herméticos, acabará preso nos meandros de um labirinto do qual não poderá fugir, e não haverá fio de Ariadne para guiá-lo na saída.

(Artéfio)

 

Fui dar numa sala abaixo do nível do chão, iluminada com parcimônia, de paredes em rocaille como a fonte do parque. Num ângulo percebi uma abertura, semelhante à campânula de uma corneta que estivesse enfiada no muro, e mesmo de longe já senti que dela provinham rumores. Aproximei-me e os rumores se tornaram mais distintos, até que pude colher frases, nítidas e precisas como se tivessem sido pronunciadas ao meu lado. Uma orelha de Dionísio!

A orelha estava evidentemente ligada a uma das salas superiores e colhia as falas daqueles que passavam junto à embocadura.

 

"Senhora, vou dizer-lhe aquilo que não disse a mais ninguém. Estou cansado... Trabalhei com o cinabre, e com o mercúrio, sublimei espíritos, fermentos, sais de Cerro, de aço e suas escórias, e não encontrei a Pedra. Depois preparei águas fortes, águas corrosivas, águas ardentes, mas o resultado era sempre o mesmo. Usei cascas de ovos, enxofre, vitríolo, arsênico, sal amoníaco, sal de vidro, sais álcalis, sal comum, sal-gema, salitre, sal de soda, sal tincálico, sal de tártaro, sal alembrot; mas, creia, não confio neles. É preciso evitar os metais imperfeitos avermelhados, senão será iludida como eu fui. Experimentei tudo: sangue, cabelos, a alma de Saturno, as marcassitas, o aes ustum, o açafrão de Marte, as escórias e a espuma de ferro, o litargírio, o antimônio; nada. Empenhei-me em extrair água e óleo da prata, calcinei a prata tanto com um sal preparado quanto sem sal algum, e com a aquavita, e só extraí óleos corrosivos, eis tudo. Operei com o leite, o vinho, o coalho, o esperma das estrelas que caem à Terra, a celidônia, a placenta dos fetos, misturei mercúrios aos metais reduzindo-os a cristais, busquei nas próprias cinzas... Finalmente...”

"Finalmente?"

"Não há nada no mundo que requeira mais cautela que a verdade. Dizê-la é o mesmo que fazer uma sangria no coração...”

"Basta, basta, o senhor me exalta...”

"Só à senhora ouso confessar o meu segredo. Não pertenço a época nem a lugar algum. Fora do tempo e do espaço vivo minha eterna existência. Há seres para os quais já não existe anjo da guarda: eu sou um deles...”

"Mas para que o senhor me trouxe aqui?"

Outra voz: "Caro Bálsamo, está brincando de bancar o imortal?"

"Imbecil! A imortalidade não é uma brincadeira. É um fato."

Estava para ir-me, enfastiado daquela bisbilhotice, quando ouvi a voz de Salon. Falava baixo, tenso, como se estivesse segurando alguém pelo braço. Reconheci também a voz de Pierre.

"Vamos lá", dizia Salon, "não vai me dizer que também está aqui para esta palhaçada alquímica. Nem vai me dizer que veio ao jardim para tomar a fresca. Sabia que depois Heidelberg de Caus aceitou uma incumbência do rei da França para ocupar-se da limpeza de Paris?"

"Les façades?"

"Não era Malraux. Suspeito que se tratasse dos esgotos. Curioso, não é mesmo? Esse senhor inventava laranjais e pomares simbólicos para os imperadores, mas o que lhe interessava mesmo eram os subterrâneos de Paris. Naqueles tempos em Paris não havia de fato uma rede de esgotos. Era um misto de canais à flor do chão e condutos enterrados, dos quais muito pouco se sabia. Os romanos desde os tempos da república sabiam tudo sobre sua Cloaca Máxima, e mil e quinhentos anos mais tarde em Paris não se sabe nada do que se passa no subsolo. E Caus aceita o convite do rei porque deseja saber algo mais. O que seria? Depois de Caus, Colbert para limpar os condutos cobertos - este era o pretexto, e note que estamos no tempo do Máscara de Ferro - para lá envia os galés, mas estes começam a navegarno esterco, seguem a corrente até o Sena, e fogem num barco, sem que ninguém ousasse afrontar essas temíveis criaturas envoltas por um fedor insuportável e por nuvens de moscas... Então Colbert coloca gendarmes nas várias saídas do rio, e os forçados morrem nos cuniculos. Em três séculos em Paris conseguiram apenas abrir três quilômetros de esgotos. Mas no século XVIII abrem-se vinte e seis quilômetros, e exatamente às vésperas da revolução. Isto não lhe diz nada?"

"Oh, o senhor sabe, isto...”

"É que está chegando ao poder gente nova, que sabe algo que a gente de antes não sabia. Napoleão manda esquadras de homens que avançam pela escuridão, por entre os detritos humanos da metrópole. Quem teve a coragem de trabalhar lá embaixo naquele tempo deve ter encontrado muita coisa. Anéis, ouro, colares, jóias, quanta coisa não terá caído sabe-se lá donde naqueles corredores. Os que tinham estômago para engolir aquilo que encontravam saíam depois, tomavam um laxativo e se tornavam ricos. E descobriu-se que muitas casas tinham uma passagem subterrânea que levava diretamente à fossa."

"Ça, alors...”

"Numa época em que se despejavam os urinóis pela janela? E por que se encontraram a partir de então fossas com uma espécie de passeios laterais, e argolas de ferro incrustadas no muro, para que se pudesse nelas agarrar? Essas passagens correspondem àqueles tapis francs onde a canalha - a pègre, como se dizia então - se reunia, e caso a polícia chegasse podiam fugir e reaparecer em outra parte."

"Folhetim...”

"O senhor acha? A quem está tentando proteger? No tempo de Napoleão III o barão Haussmann obriga por lei todas as casas de Paris a construírem uma retrete autônoma, e depois um corredor subterrâneo que conduzia aos esgotos gerais... Uma galeria de dois metros e trinta de altura e de um metro e meio de largura. Está percebendo? Cada casa de Paris coligada por um corredor subterrâneo aos esgotos. E sabe qual a extensão atual dos esgotos de Paris? Dois mil quilômetros, e em vários estratos ou níveis. E tudo isso teve início com aquele que projetou em Heidelberg estes jardins...”

"E enton?"

"Estou vendo que o senhor não quer mesmo falar no assunto. E no entanto sabe algo que não quer dizer-me."

"Peço-lhe por favorr. Já é tarde, estou sendo esperrado parra um reunion." Rumor de passos.

 

Não compreendia o que Salon tinha em mente. Olhei em volta, espremido como estava entre a rocaille e a abertura da orelha, e senti-me no subsolo, eu também sob uma abóbada, e me pareceu que a embocadura daquele canal fonúrgico não fosse outra coisa senão o início de uma descida aos cunículos obscuros que se projetavam em direção

ao centro da Terra, fervilhante de Nibelungos. Senti frio. Estava para me afastar quando ouvi ainda uma voz: "Venha. Vamos agora iniciar. Na sala secreta. Chame os outros."

 

Esse Velo de Ouro é guardado por um Dragão tricípite, do qual a primeira cabeça deriva das águas, a segunda da terra e a terceira do ar. É necessário que essas três cabeças acabem num único Dragão poderosíssimo, que devorará todos os outros Dragões.

(Jean d’Espagnet, Arcanum Hermeticae Philosophiae Opus, 1623, 138)

 

Encontrei meu grupo novamente. Disse a Agliè que tinha ouvido alguém murmurar a respeito de uma reunião.

"Ah", disse Agliè, "estão curiosos! Mas compreendo. Quando se penetra nos mistérios herméticos quer-se saber de tudo. Pois bem, nesta noite deve ocorrer, pelo que eu saiba, a iniciação de um novo membro da Ordem da Rosa-Cruz Antiga e Aceita."

"Pode-se ver?" perguntou Garamond.

"Não se pode. Não se deve. Não se deveria. Não se poderia. Mas faremos como aqueles personagens da mitologia grega, que viram aquilo que não deviam, e enfrentaram a ira dos deuses. Permitirei que dêem uma olhada." Fez-nos subir por uma escadinha até um corredor sombrio, afastou um toldo, e de uma janela envidraçada pudemos lançar a vista sobre uma sala inferior, iluminada por alguns braseiros ardentes. As paredes estavam atapetadas de damasco, bordado a flor-de-lis, e no fundo erguia-se um trono recoberto por um palanquim dourado. Dos lados do trono, emoldurados em papelão, ou em material plástico, pousados sobre dois tripés, um sol e uma lua, um tanto rústicos como execução, mas recobertos de papel laminado ou lâminas de metal, naturalmente de ouro e prata, que faziam certo efeito, pois cada astro era diretamente animado pelas chamas de um braseiro. Por cima do palanquim pendia do teto uma enorme estrela, reluzente de pedras preciosas, ou vidrilhos. O teto estava revestido de damasco azul constelado de grandes estrelas argênteas.

Diante do trono, uma comprida mesa decorada com palmas sobre a qual estava pousada uma espada, e imediatamente diante da mesa um leão empalhado, de fauces escancaradas. Alguém havia evidentemente colocado uma lampadazinha vermelha no interior da cabeça, pois os olhos brilhavam incandescentes e a goela parecia despejar chamas. Pensei que devia estar aí a mão do Sr. Salon e me dei finalmente conta a que espécie de clientes curiosos aludira em nosso encontro na mina de Munique.

Á mesa estava Bramanti, vestido com uma túnica escarlate e paramentos verdes bordados, uma capa branca com franjas douradas, uma cruz cintilante ao peito, e um chapéu de formato vagamente mitral, ornado por um penacho vermelho e branco. Diante dele, hieraticamente compostas, uma vintena de pessoas, igualmente de túnica escarlate, mas sem paramentos. Todos traziam ao peito alguma coisa dourada que me pareceu reconhecer. Recordei-me de um retrato renascentista, de um grande nariz habsbúrgico, daquele curioso cordeiro de patas pendentes, estrangulado vivo. Aqueles ali estavam adornados com uma imitação aceitável do Tosão de Ouro.

Bramanti agora falava, com os braços erguidos, como se pronunciasse uma ladainha, e os presentes respondiam a intervalos. Depois Bramanti levantou a espada e todos tiraram da túnica um estilete, ou uma espátula, e os ergueram no alto. Foi então que Agliè abaixou o toldo. Havíamos visto até demais. Afastamo-nos dali (a passos de Pantera Cor-de-Rosa, como precisou Diotallevi, excepcionalmente bem informado sobre as perversões do mundo contemporâneo), e retornamos ao jardim, um tanto ofegantes.

Garamond estava aturdido. "Mas são..., maçons?"

"Oh", disse Agliè, "que quer dizer maçons? São adeptos de uma ordem de cavalaria, que se origina dos Rosa-Cruzes e indiretamente dos Templários."

"Mas tudo isto não tem a ver com a maçonaria?" perguntou novamente Garamond.

"Se há algo em comum com a maçonaria, em tudo aquilo que viram, é que mesmo o rito de Bramanti é uma espécie de hobby para profissionalistas e politiqueiros de província. Mas foi assim no início: a maçonaria era uma pálida especulação sobre a lenda templar. E esta é a caricatura de uma caricatura. Exceto que aqueles senhores a estão levando terrivelmente a sério. Ai de nós! O mundo pulula de rosacrucianos e templaristas como aqueles que viram esta noite. Não será deles que se deve esperar uma revelação, mesmo sendo entre eles que se possa encontrar um iniciado digno de fé."

"Mas apesar de tudo", perguntou Belbo, e sem ironia, sem desconfiança, como se a pergunta lhe dissesse respeito pessoalmente, "apesar de tudo, o senhor os freqüenta. Em quem acredita..., em quem acreditava - me desculpe - entre todos aqueles?"

"Em ninguém, naturalmente. Tenho ar de pessoa crédula? Observo-os com a frieza, a compreensão, o interesse com os quais um teólogo pode observar a turba napolitana que grita à espera do milagre de são Gennaro. Essa multidão testemunha uma fé, uma necessidade profunda, e o teólogo circula em meio à gente suada e babosa porque poderia encontrar entre ela o santo que se ignora, o portador de uma superior verdade, capaz de um dia deitar nova luz sobre o mistério da santíssima trindade. Mas a santíssima trindade não é são Gennaro."

Não se deixava apanhar. Não sabia como definir seu ceticismo hermético, seu cinismo litúrgico, aquela descrença superior que o levava a reconhecer a dignidade de todas as superstições que desprezava.

"É simples", estava respondendo a Belbo, "se os Templários, os verdadeiros, deixaram um segredo e instituíram uma continuidade, será necessário portanto andar-se à procura deles, e nos ambientes em que mais facilmente poderiam mimetizar-se, onde eles próprios talvez inventem ritos e mitos para se moverem inobservados como os peixes na água. Que faz a polícia quando busca o evadido sublime, o gênio do mal? Busca nos bas-fonds, nos bares mal freqüentados por onde circulam de hábito os marginais de pequeno porte, que jamais chegarão a conceber os crimes grandiosos do procurado. Que faz o estratego do terror para recrutar seus próprios futuros acólitos, e encontrar-se com os seus, e reconhecê-los? Move-se naqueles círculos de pseudo-destruidores onde tantos, que nunca o serão por deficiência de índole, imitam às claras os supostos comportamentos de seus ídolos. Busca-se a luz perdida nos incêndios, ou naquelas moitas onde, depois da labareda, as chamas borbotam sob os restolhos, a borra, a folhagem semi-comburida. E onde melhor poderia disfarçar-se o verdadeiro Templário senão em meio à multidão de suas caricaturas?"

 

Consideremos como sociedades druídicas por definição as sociedades que se definem druídicas no título ou no escopo, e que conferem iniciação aos que fazem apelo ao druidismo.

(M. Raoult, Les druides. Les sociétés initiatiques celtes contemporaines, Paris, Rocher, 1983, p. 18)

 

Aproximava-se a meia-noite, e segundo o programa de Agliè era quando nos esperava a segunda surpresa da noite. Deixamos os hortos palatinos e retomamos viagem através das colinas.

Após três quartos de hora de viagem, Agliè fez-nos estacionar os dois carros à entrada de uma mata. Era preciso atravessar uma brenha para se chegar a uma clareira, e não havia estradas nem caminhos.

Prosseguimos, ligeiramente em subida, tropeçando nas moitas: o solo não estava molhado, mas os sapatos escorregavam sobre um depósito de folhas murchas e de raízes viscosas. Agliè de vez em quando acendia uma lanterna para descobrir passagens praticáveis, mas logo a apagava - dizia - para não assinalar nossa presença aos celebrantes. Diotallevi tentou a certo ponto fazer um comentário, não me recordo bem, talvez evocando Chapeuzinho Vermelho, mas Agliè, e com certa tensão, pediu-lhe que se calasse.

Quando estávamos para sair da hrenha, começamos a ouvir vozes distantes. Finalmente chegamos à orla da clareira, que agora surgia iluminada por luzes difusas, como chamas, ou melhor, tochas que ondulavam quase ao nível do chão, fulgores flébeis e argênteos, como se uma substância gasosa queimasse com frieza química em bolhas de sabão que vagavam por cima da relva. Agliè pediu que parássemos naquele lugar, ainda ao abrigo dos arbustos, e esperássemos, sem nos deixarmos ver.

"Em breve chegarão as sacerdotisas. Também na escuridão as druidesas. Trata-se de uma invocação à grande virgem cósmica Mikil - de que são Miguel não passa de uma adaptação popular cristã, sob a forma de anjo, portanto andrógino, e que por isso pôde tomar o lugar de uma divindade feminina."

"Mas de onde vêm?" sussurrou Diotallevi.

"De vários lugares, da Normandia, da Noruega, da Irlanda... O evento é bastante singular e esta é uma área propícia para o rito."

"Por quê?" perguntou Garamond.

"Porque alguns lugares são mais mágicos do que outros."

"Mas quem são..., na vida real?" perguntou de novo Garamond.

"Pessoas comuns. Datilógrafas, corretoras de seguros, poetisas.

Gente que poderíamos encontrar amanhã sem reconhecer."

Estávamos avistando agora uma pequena turba que se aprestava a invadir o centro da clareira. Percebi que as pequenas luzes frias que tínhamos visto eram pequenas lâmpadas que as sacerdotisas traziam à mão, e que eu julgara ao nível do chão porque a clareira estava no alto de uma colina, e de longe eu havia vislumbrado na escuridão as druidesas que, subindo do vale, emergiam à borda da clareira, do lado oposto da planície. Estavam vestidas com tünicas brancas, que flutuavam leves ao vento. Dispuseram-se em círculo, e ao centro se encontravam três celebrantes.

"São as três hallouines de Lisieux, Clormacnois e Pino Torinese", disse Agliè. Belbo perguntou por que precisamente aquelas e Agliè encolheu os ombros: "Silêncio, esperemos. Não posso resumir em três palavras o ritual e a hierarquia da magia nórdica. Contentem-se com o que lhes digo. Se não lhes digo mais é porque não sei..., ou não posso dizer. Devo respeitar alguns compromissos de reserva...

Tinha notado no centro da clareira um monte de pedras, que lembravam ainda que vagamente um dólmen. Provavelmente a clareira tinha sido escolhida por causa da presença daquelas rochas. Uma celebrante subiu sobre a pedra e tocou uma corneta. Parecia, mais ainda do que aquela que tínhamos visto horas antes, um clarim na marcha triunfal da Aída. Mas deixava sair um som veludoso e noturno, que parecia vir de muito longe. Belbo tocou-me o braço: "É o ramsinga, o ramsinga dos tugues junto ao baniano sagrado...”

Fui indelicado. Não me dei conta de que ele estava gracejando exatamente para afastar outras analogias, e afundei o punhal na chaga.

"Certamente seria menos sugestivo se usassem o gênis", disse.

Belbo anuiu. "Estão aqui exatamente porque não querem o gênis", disse ele. Pergunto-me agora se não foi naquela noite que ele começou a perceber uma ligação entre seus sonhos e o quanto lhe estava acontecendo naqueles meses.

Agliè não havia acompanhado a nossa conversa mas nos tinha ouvido sussurrar. "Não se trata de um aviso, nem de um chamado", disse, "trata-se de uma espécie de ultra-som, para estabelecer contato com as ondas subterrâneas. Vejam, agora as druidesas estão todas de mãos dadas, em círculo. Criam uma espécie de acumulador vivo, para receber e concentrar as vibrações telúricas. Agora deve aparecer a nuvem...”

"Que nuvem?" sussurrei.

"A tradição chama-a nuvem verde. Esperem...”

Eu não esperava nenhuma nuvem verde. Mas quase repentinamente elevou-se da terra uma caligem branda - uma névoa, diria, se fosse uniforme e maciça. Mas era uma formação em flocos, que se agrumava num ponto e logo, levada pelo vento, elevava-se em tufos como uma meada de algodão-doce, punha-se a flutuar em torno e ia enovelar-se em outro ponto da clareira. O efeito era singular, às vezes apareciam as árvores ao fundo, às vezes tudo se confundia num vapor esbranquiçado, em outras o floco se esfumegava no centro da clareira, distraindo-nos a vista do que acontecia, e deixando desimpedidos as orlas e o céu, onde continuava a resplender a Lua. Os movimentos dos flocos eram repentinos, inesperados, como se obedecessem ao impulso de um sopro caprichoso.

Pensei nalgum artifício químico, depois refleti: estávamos a cerca de seiscentos metros de altura, e era possível que se tratasse de fato de nuvens verdadeiras. Previstas pelo rito, evocadas? Talvez não, mas as celebrantes tinham calculado que àquela altura, em circunstâncias favoráveis, aquelas camadas erráticas à flor da terra poderiam formar-se.

Era difícil fugir ao fascínio da cena, mesmo porque as vestes das celebrantes se amalgamavam com a brancura da fumaça, e suas figuras pareciam sair daquela obscuridade láctea, e reentrar nela, como se fossem geradas por ela.

Houve um momento em que a nuvem havia invadido todo o centro do prado e alguns flocos, que subiam desfiando-se para o alto, estavam quase ocultando a Lua, embora não a ponto de tornar lívida a clareira, sempre iluminada às bordas. Então vimos uma druidesa sair da nuvem, e correr em direção à mata, gritando, os braços estendidos para a frente, de modo que pensei que nos tivesse descoberto e nos lançasse maldições. Mas, chegando a poucos metros de nós, mudou de direção e se pôs a correr em torno da nebulosa, desapareceu pela esquerda na brancura para reaparecer à direita depois de alguns segundos, novamente chegou bem perto de nós, de modo que lhe pude ver o rosto. Era uma sibila de grande nariz dantesco sobre uma boca fina como uma rágada, que se abria como uma flor submarina, privada de dentes, salvo os dois incisivos e um canino assimétrico. Ouvi, ou pareceu-me ouvir, ou creio agora me recordar que ouvisse - e superponho àquela lembrança outras recordações - juntamente com uma série de palavras que então julguei gaélicas, algumas evocações numa espécie de latim, algo assim como “o pegnia (oh, e oh!, intus) et eee uluma!!!", e de repente a névoa quase desapareceu, a clareira tornou-se límpida, e vi que havia sido invadida por uma vara de porcos, o pescoço gordo circundado por uma corrente de maçãs ácidas. A druidesa que havia soado a corneta, ainda sobre o dólmen, estava brandindo um punhal.

"Vamos embora", disse Agliè, seco. "Agora acabou."

Dei-me conta, ouvindo-o, de que a nuvem estava agora acima de nós e à nossa volta, e quase não enxergava mais meus vizinhos.

"Como acabou?" perguntou Garamond. "Parece-me que o melhor vai começar agora!"

"Acabou o que se podia ver. Não se pode mais. Respeitemos o rito. Vamos embora."

Voltou pela mata, agora absorvida pela umidade que se acumulara. Movíamo-nos aos estremeções, escorregando sobre um fundo de folhas pútridas, ofegantes e desordenados como um exército em fuga.

Encontramo-nos na estrada. Poderíamos estar de volta a Milão em menos de duas horas. Antes de entrar em seu carro com Garamond, Agliè despediu-se de nós: "Desculpem se interrompi o espetáculo. Queria que ficassem conhecendo algo, alguém que vive em torno a nós, e para quem no fundo até os senhores trabalham. Mas não se podia ver mais que isso. Quando soube deste evento tive que prometer que não perturbaria a cerimônia. Nossa presença teria influenciado negativamente as fases subseqüentes."

"Mas e os porcos? E que está acontecendo agora?" perguntou Belbo.

"O que eu podia dizer já disse."

 

"Em que te faz pensar aquele peixe?"

"Em outros peixes."

"E em que te fazem pensar os outros peixes?"

"Em outros peixes."

(Joseph Heller, Catch 22, New York, Simon & Schuster, 1961, XXVII)

 

Voltei do Piemonte com muitos remorsos. Mas, ao rever Lia, esqueci todos os desejos que me haviam aflorado.

No entanto aquela viagem tinha me deixado outros sinais, e acho agora preocupante que então não me preocupasse com eles. Estava pondo definitivamente em ordem, capítulo por capítulo, as imagens para a história dos metais, e não conseguia mais fugir ao demônio das semelhanças, como já me havia acontecido no Rio. Que havia de diverso entre esta estufa cilíndrica de Réaumur, 1750, esta câmara quente para a incubação de ovos, e este atanor do século XVIII, ventre materno, útero escuro para a incubação de sabe-se lá que metais místicos? Era como se tivessem instalado o Deutsches Museum no castelo piemontês que eu visitara na semana anterior.

Tornava-se para mim cada vez mais difícil separar o mundo da magia daquele que hoje chamamos o universo da precisão. Encontrava personagens que eu havia estudado na escola como sendo portadores da luz matemática e física em meio às trevas da superstição, e descobria agora que haviam trabalhado com um pé na Cabala e outro no laboratório. Estava relendo talvez a história inteira através dos olhos dos nossos diabólicos? Mas depois encontrava textos insuspeitos que me diziam como os físicos positivistas mal saídos das universidades andaram a freqüentar sessões mediúnicas e cenáculos astrológicos, e como Isaac Newton havia chegado à lei da gravitação universal porque acreditava na existência de forças ocultas (recordava-me de suas explorações no terreno da cosmologia rosacruciana).

Fizera da incredulidade um princípio científico, mas agora tinha de desconfiar até dos mestres que me haviam ensinado a me tornar incrédulo.

Disse comigo: sou como Amparo, não creio mas acontece. E me surpreendia a refletir sobre o fato de que na verdade a altura da grande pirâmide era um milionésimo da distância entre a Terra e o Sol, ou que na realidade delineavam-se analogias entre a mitologia céltica e a mitologia ameríndia. E estava começando a interrogar tudo quanto me circundava, as casas, os nomes das lojas comerciais, as nuvens no céu, e as gravuras na biblioteca, para que me contassem não a sua história mas uma outra, que decerto ocultavam mas que afinal revelavam em virtude de suas misteriosas semelhanças.

 

Lia salvou-me, pelo menos no momento.

Contara-lhe tudo (ou quase) sobre a visita ao Piemonte, e cada tarde voltava a casa com novas e curiosas noticias para acrescentar ao meu fichário de remissões recíprocas. Ela comentava: "Come, que você está magro como um palito." Uma noite ela estava sentada junto à escrivaninha, dividira o tufo de cabelo ao meio da fronte para me olhar direto nos olhos, tinha posto as mãos no colo como faz uma dona de casa. Nunca se havia sentado assim, afastando as pernas, com a saia esticada de um joelho ao outro. Pensei que era uma pose desleixada. Mas depois observei-lhe o rosto, e pareceu-me mais luminoso, no qual se diluía um colorido tênue. Ouvia-a - mas ainda não sabia por quê - com todo o respeito.

"Pim", me disse, "não me agrada o modo como você está vivendo esta história da Manuzio. A princípio você recolhia fatos como quem recolhe conchas. Agora parece que está marcando os números da loto."

"É só porque me divirto mais, com aqueles."

"Não se diverte, se apaixona, o que é diverso. Tenha cuidado pois isso pode deixar você doente."

"Agora não exageremos. No máximo os doentes são eles. A gente não fica maluco por ser enfermeiro do manicômio."

"Isto ainda não foi demonstrado."

"Sabe que sempre desconfiei das analogias. Pois agora me encontro numa festa de analogias, numa Coney Island, um Primeiro de Maio em Moscou, num Ano Santo de analogias, e percebo que algumas são melhores que as outras e me pergunto se na verdade não deve haver uma razão."

"Pim", continuou Lia, "tenho visto o seu fichário, pois sou eu quem o põe em ordem. Tudo o que os seus diabólicos possam descobrir já está aqui, olhe bem", e tocava no ventre, nos lados, nas coxas e na fronte. Sentada assim, com as pernas afastadas que esticavam a saia, frontalmente, parecia uma babá sólida e florida - ela sempre tão esguia e flexível - porque uma sabedoria pacata a iluminava com uma autoridade matriarcal.

"Pim, não há arquétipos, o que há é o corpo. Dentro do ventre é bonito, porque é lá que cresce o filho, é lá que você enfia o passarinho todo alegre, e é lá que desce a comida gostosa, e por isso é que são belos e importantes a caverna, as saliências, o cunículo, o subterrâneo, e até mesmo o labirinto feito com as nossas boas e santas tripas, e quando alguém quer inventar alguma coisa importante faz com que venha dali, porque dali também você veio no dia em que nasceu, e a fertilidade está sempre num buraco, onde alguma coisa primeiro apodrece e depois de repente surge uma tamareira, um baobá. Mas o alto é melhor que o baixo, porque se você está com a cabeça para cima o sangue vem para a sua cabeça, porque os pés fedem mais do que os cabelos, porque é melhor subir numa árvore para colher os frutos do que acabar embaixo da terra engordando os vermes, porque raramente nos faz mal tocar o alto a gente deve ficar mesmo na varanda e de hábito nos faz mal cair ao chão, eis por que o alto é angélico e o baixo é diabólico. Mas assim como é verdade o que eu disse antes sobre o meu ventre, são verdadeiras ambas as coisas, é belo o baixo e o dentro, num sentido, e no alto é belo o alto e o fora, e isto nada tem a ver com o espírito de Mercúrio e a contradição universal. O fogo tem calor e o frio provoca a broncopneumonia, principalmente quando se é um sábio de há quatro mil anos, e por isso o fogo tem misteriosas virtudes, até porque serve para cozinhar o frango. Mas o frio também conserva esse mesmo frango e se você põe a mão no fogo causa uma bolha desse tamanho, logo se você está pensando numa coisa conservada há milênios, como a sabedoria, deve imaginá-la num monte, no alto (pois já vimos que é bom), mas numa caverna (que é igualmente boa) e no frio eterno das neves tibetanas (que é ótimo). E se depois quiser saber por que a sabedoria vem do Oriente e não dos Alpes suíços, é porque o corpo de seus antepassados de manhã, quando despertava ainda no escuro, olhava para o leste esperando que surgisse o sol e não chovesse, ora porra."

"Sim, mãezinha."

"Claro que sim, meu filhinho. O sol é bom porque faz bem ao corpo, e porque tem o bom senso de reaparecer todos os dias, logo é bom tudo aquilo que retorna, não aquilo que passa e vai e o que se viu se viu. A maneira mais fácil de se voltar ao lugar por onde se passou sem seguir duas vezes pelo mesmo caminho é caminhar em círculo. E como o único animal que se enrosca em círculo é a serpente, eis a razão de tantos ritos e cultos da serpente, porque é difícil representar o retorno do sol enrodilhando um hipopótamo. Além disso se você quer fazer uma cerimônia para invocar o sol, convém mover-se em círculo, porque movendo-se em linha reta você se afasta de casa e a cerimônia deve ser brevíssima, e por outro lado o círculo é a estrutura mais cômoda para um rito, e sabem disso até mesmo os engolidores de fogo nas praças públicas, porque em círculo todos vêem da mesma forma quem está no centro, ao passo que numa tribo inteira disposta em fila como um batalhão de soldados, os que estiverem mais longe não verão tão bem, daí por que o círculo e o movimento rotatório e o retorno cíclico são fundamentais em todos os cultos e em todos os ritos."

"Sim, mãezinha."

"Claro que sim. E agora passemos aos números mágicos que tanto atraem os seus autores. Você sabe que um não é dois, um é o seu trabalhinho ali, uma é a minha tarefazinha lá e um são o nariz e o coração e logo está vendo quanta coisa importante é um. E dois são os olhos, as orelhas, as narinas, meus seios, seus bagos, as pernas, os braços e as nádegas. Três é o mais mágico de todos porque o nosso corpo não o conhece, não temos nada que seja em três, e devia ser um número misteriosíssimo que atribuíamos a Deus, onde quer que vivêssemos. Mas pensando bem, eu tenho só uma coisinha e você tem só um coisinho - fica quieto e nada de blagues - e se pusermos essas duas coisinhas juntas acaba dando uma nova coisinha e acabamos em três. Precisamos então de um professor universitário para descobrir que todos os povos têm estruturas ternárias, trinitárias ou coisas do gênero? Mas não faziam religiões utilizando o computador, de modo algum, era tudo gente de bem, que varriam com vassouras mesmo, e todas essas estruturas ternárias não são um mistério, são a narrativa daquilo que você faz e do que eles faziam. Mas dois braços e duas pernas fazem quatro, e eis que quatro é igualmente um belo número, principalmente quando se pensa que os animais têm quatro patas e de quatro é que andam as crianças pequenas, como bem sabia a Esfinge. Cinco não falemos disso, são os dedos da mão, e com as duas mãos tens aquele número sagrado que é o dez, e por força são dez até mesmo os mandamentos, por outro lado se fossem doze, quando o padre diz um, dois, três e mostra os dedos, para chegar aos dois últimos tinha que pedir emprestado a mão do sacristão. Agora toma o corpo e conta todas as coisas que despontam do tronco, braços e pernas, cabeça e pênis são seis, mas para a mulher são sete, por isso me parece que entre os seus autores o número seis nunca foi tomado a sério senão como o dobro de três, porque funciona só para os machos, os quais não têm nada sete, e como eles é que mandam preferem vê-lo como número sagrado, esquecendo-se que também as minhas tetas despontam para fora, mas paciência. Oito - meu deus, não temos nenhum oito..., não, espere, se não contarmos braços e pernas como um, mas como dois, por causa dos cotovelos e dos joelhos, temos oito grandes ossos longos que balançam para fora, e tome estes oito e mais o tronco e tens nove, e se puder mete aí também a cabeça e temos dez. E sempre girando em torno consegue-se arrancar todos os números que quisermos, pense nos buracos...”

"Nos buracos?"

"Sim, quantos buracos tem o corpo?"

"Bem", comecei a contar. "Olhos narinas orelhas boca cu, oito."

"Está vendo? Outra região em que o oito é um belo número. Mas eu tenho nove! E com o nono faço vir ao mundo, e eis por que o nove é mais divino que o oito! Mas quer a explicação de outras figuras recorrentes? Quer a anatomia do seu menir, de que os seus autores falam tanto? Fica em pé de dia e se emplasta de noite - até mesmo o seu coisinho, não me venha dizer o que ele faz de noite, mas o certo é que trabalha direito e depois repousa espalhado. Logo a posição vertical é a vida, e está em relação com o Sol, e os obeliscos erguem-se para o alto como as árvores, enquanto a posição horizontal e a noite são o sono e portanto a morte, daí todos adorarem o menir, as pirâmides, as colunas e ninguém adorar os balcões e as balaustradas. Já ouviu alguma vez falar de um culto arcaico ao balaústre sagrado? Está vendo? E mesmo porque o corpo não nos permite, se adoramos uma pedra vertical, mesmo quando somos muitos todos a vêem, mas se adoramos uma coisa horizontal só a vêem os que estão na primeira fila e os outros ficam se empurrando dizendo também quero, também quero, o que não é um belo espetáculo para cerimônia mágica...”

"Mas os rios?...”

"Os rios não é porque são horizontais, mas porque neles tem água, e não vai querer que explique a relação entre a água e o corpo... Oh, em suma, fomos feitos assim, com este corpo, todos, e por isso elaboramos os mesmos símbolos a milhões de quilômetros de distância e por força tudo se assemelha, e por isso as pessoas com sal na cabeça quando vêem um fornilho do alquimista, todo fechado e quente por dentro, pensam na barriga da mãe que faz a criança, e só os seus diabólicos vêem a Madona que está para fazer o menino e pensam que seja uma alusão ao fornilho do alquimista. Assim é que se passaram milhares de anos a buscar uma mensagem, quando tudo já estava ali, bastava olharem-se no espelho."

"Você diz sempre a verdade. É o meu Eu, que vem a ser o meu Tu visto por Ti. Quero descobrir todos os secretos arquétipos do corpo." Aquela noite inauguramos a expressão "fazer arquétipos" para indicar nossos momentos de ternura.

Enquanto já me entregava ao sono, Lia me tocou no ombro. "Estava me esquecendo", disse ela. "Estou grávida."

 

Devia ter escutado Lia. Falava com o conhecimento de quem sabe de onde nasce a vida. Introduzindo-nos nos subterrâneos de Agarttha, nas pirâmides de Ísis Revelada, havíamos entrado na Geburah, a sefirah do terror, o momento em que a cólera se faz sentir no mundo. Não me tinha deixado seduzir, fosse embora por um átimo, pelo pensamento de Sophia? Diz Moisés Cordoveu que o Feminino é a esquerda, e todas as suas direções são de Geburah... A menos que o macho ponha em atuação essas tendências para adornar a Esposa, e enternecendo-a faça-a caminhar para o bem. O mesmo que dizer que cada desejo deve ficar dentro de seus próprios limites. De outra forma Geburah se torna a Severidade, a aparência obscura, o universo dos demônios.

Disciplinar o desejo... Assim fizera naquele terreiro de umbanda, havia tocado o agogô, tomando parte no espetáculo atuando na orquestra, e me havia livrado do transe. Da mesma forma fizera com Lia, regulara o desejo em homenagem à Esposa, e fora premiado na profundeza de minhas gônadas, meu sêmen tinha alcançado a bendição.

Mas não soube me manter assim. Estava prestes a ser seduzido pela beleza de Tiferet.

 

TIFERET

Sonhar que se mora numa cidade nova e desconhecida significa morrer dentro em breve. De fato, os mortos habitam algures, não se sabe onde.

(Gerolamo Cardano, Somniorurn Synesiorum, Basilea, 1562, 1, 58)

 

Se Geburah é a sefirah do mal e do medo, Tiferet é a sefirah da beleza e da harmonia. Dizia Diotallevi: é a especulação iluminante, a árvore da vida, o prazer, a aparência purpurina. É a concordância entre a Regra e a Liberdade.

Naquele ano foi para nós o ano do prazer, da subversão jocosa do grande texto do universo, no qual se celebram os esponsais da Tradição com a Máquina Eletrônica. Criávamos, e tínhamos satisfação com isso. Foi o ano em que inventamos o Plano.

Pelo menos para mim, seguramente, foi um ano feliz. A gravidez de Lia se processava serenamente, graças à Garamond e a minha agência começava a viver agora sem dificuldades, mantinha o pequeno estúdio no velho edifício do subúrbio, mas havíamos reformado o apartamento de Lia.

A maravilhosa história dos metais já estava nas mãos dos tipógrafos e dos revisores. E foi naquela altura que o Sr. Garamond teve uma de suas idéias geniais: "Uma história ilustrada das ciências mágicas e herméticas. Com o material que nos chega dos diabólicos, com a competência que já adquiriram, com a consultoria daquele homem incrível que é Agliè, os senhores estão em condições de preparar no espaço de no máximo um ano um volume de grande formato, quatrocentas páginas inteiramente ilustradas, gravuras a cores de tirar o fôlego. Reciclando parte do material iconográfico da história dos metais."

"Bem", objetei, "o material é diverso. Que faço por exemplo com a foto de um ciclotron?"

"Que faz? Imaginação, Casaubon, imaginação! Que ocorre naquelas máquinas atômicas, naqueles pósitrons megatrônicos ou que nome tenham? A matéria se empapa, deita-se uma pitada de queijo e ela se transforma em quark, buracos negros, urânio centrifugado sei lá o quê! A magia transformada em coisa, Hermes e Alquermes - em suma são os senhores que me devem dar a resposta. Aqui à esquerda a gravura de Paracelso, do Abracadabra com seus alambiques, sob fundo dourado, e à direita os quasares, os agitadores de água pesada, a antimatéria gravitacional-galáctica, em suma, será que vou ter que fazer tudo sozinho? O mago não é aquele que não entendia nada e fazia suas lambanças com o argueiro no olho, mas o cientista que arrancou os segredos ocultos da matéria. Descobrir o maravilhoso à nossa volta, levantar a suspeita de que no monte Palomar sabem mais do que aquilo que dizem...”

Para encorajar-me aumentou-me o pagamento, de maneira quase sensível. Pus-me à descoberta das miniaturas do Liber Solis de Trismosin, do Liber Mutus, do Pseudo-Lúlio. Abarrotei os arquivos com pentáculos, árvores sefiróticas, decanos, talismãs. Percorria as salas mais esquecidas das bibliotecas, adquiria dezenas de volumes naqueles livreiros que antigamente vendiam a revolução cultural.

Circulava em meio aos nossos diabólicos com uma desenvoltura de psiquiatra que se afeiçoa aos seus pacientes, e acha balsâmicas as brisas que sopram no parque vetusto de sua clínica particular. E em breve começa a escrever páginas sobre o delírio, depois páginas de delírio. E não se dá conta de que os seus doentes o seduziram: crê haver-se tornado um artista. Assim nasceu a idéia do Plano.

Diotallevi aderiu ao jogo porque para ele era oração. Quanto a Jacopo Belbo, acreditava divertir-se tanto quanto eu. Só agora compreendo que não extraía daquilo um verdadeiro prazer. Participava dele como alguém que rói as unhas.

Ou melhor jogava para encontrar pelo menos um dos falsos endereços, ou o palco sem ribalta, do qual fala no file dito Sonho. Teologias substitutivas para um Anjo que não chegaria nunca.

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filename: Sonho

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Não me recordo se me aconteceu sonhar um sonho dentro do outro, se eles se sucederam durante a mesma noite, ou se simplesmente se alternaram.

Estou à procura de uma mulher, uma mulher que conheço, com a qual tive relações intensas, que não consigo entender por que as tenha afrouxado - eu, por minha culpa, não aparecendo mais. Parece-me inconcebível que tenha deixado passar tanto tempo. Procuro-a certamente, procuro-as, porque a mulher não é uma só, mas muitas, todas perdidas da mesma maneira, por indolência minha - e sou tomado de incerteza, pois uma só me bastaria, porque isto eu sei, que perdi muito perdendo-a. Como acontece não encontro, não tenho mais, não me decido a abrir a agenda onde está seu número de telefone, e se acaso a abro é como se fosse míope, nela não consigo ler os nomes.

Sei onde ela está, ou na verdade não sei em que lugar, mas sei como é, tenho a clara lembrança de uma escada, de um saguão, de um patamar. Não percorro a cidade à procura do local, sou logo tomado por uma espécie de angústia, de bloqueio, continuo a remoer porque permiti, ou quis, que esse relacionamento se rompesse - faltando propositadamente ao último encontro. Estou certo de que ela espera a minha chamada. Se ao menos soubesse como se chama, sei perfeitamente quem é, salvo que não consigo reconstituir-lhe os traços.

Vez por outra, na sonolência que se segue, contesto o sonho. Procura lembrar-te, conheces e te recordas de tudo e com tudo já encerraste todas as contas, ou talvez nem sequer as tenhas aberto. Não há nada que não saibas onde esteja. Não há nada.

Permanece a desconfiança de haver esquecido qualquer coisa, de havê-la deixado entre as dobras da solicitude, como se esquece uma cédula, um bilhete com uma anotação preciosa num bolsinho das calças ou num velho casaco, e só a certa altura se dá conta de que aquela era a coisa mais importante, a decisiva, a única.

Da cidade tenho uma imagem mais nítida. É Paris, estou na rive gauche, sei que atravessando o rio me encontrarei numa praça que poderia ser a place des Vosges..., não, mais aberta, porque ao fundo ergue-se uma espécie de Madeleine. Ultrapassando a praça, girando por trás da igreja, encontro uma rua (há uma livraria de livros antigos na esquina) que se inclina em curva para a direita, cortando uma série de ruelas, e sei que estou certamente no Bairro Gótico de Barcelona. Poder-se-ia desembocar numa rua, muito ampla, cheia de luzes, e é naquela rua, recordo-me com evidência eidética, que à direita, ao fundo de uma viela sem saída, está o Teatro.

É incerto o que ocorria naquele lugar de delícias, seguramente algo de levemente e alegremente escuso, como um strip-tease (por isso não ouso pedir informações), do qual já sabia bastante a ponto de querer ali voltar, cheio de excitação. Mas em vão, no caminho de Chatham Road as ruas se confundem.

Acordo com o gosto desse encontro falido. Não consigo conformar-me por não saber o que foi que perdi.

Outras vezes estou numa grande casa de campo. É ampla, mas sei que existe outra ala, e não sei mais como chegar a ela, como se as passagens tivessem sido emparedadas. E naquela outra ala há quartos e quartos, bem que os vi uma vez, é impossivel que os tenha sonhado em outro sonho, mas com móveis antigos e gravuras desbotadas, consolos com teatrinhos do século XIX feitos de papelão corrugado, divãs com grandes forros bordados, e estantes com uma infinidade de livros, todos os anais do Jornal Ilustrado das Viagens e das Aventuras de Terra, Mar e Ar, não é verdade que se tenham esfrangalhado de tanto manuseio, e a mãe os tenha dado ao apanhador depapéis. Pergunto-me se não terei confundido os corredores e as escadas, porque é ali que gostaria de construir meu bom retiro, entre aqueles odores de velharias preciosas.

Por que não posso sonhar com o serviço militar como todo mundo?

 

Era uma estrutura de seis metros de lado, posta no centro da sala: a superfície era formada por muitos cubinhos de madeira, do tamanho de dados, alguns maiores que os outros e ligados entre si por tios muito finos. Em cada face dos cubos estava colado um quadradinho de papel, e nesses quadradinhos estavam escritas todas as palavras de sua língua, com todas as suas conjugações e declinações, mas sem ordem alguma... A uma ordem sua os alunos agarraram cada um uma das quarenta manivelas de ferro que estavam fixadas em torno ao quadro, imprimindo-lhe um rápido movimento giratório, e assim modificando a disposição das palavras. O professor ordenou então a trinta e seis dos alunos que lessem em voz baixa as diversas linhas, tais como apareciam no quadro e, sempre que encontrassem três ou quatro palavras consecutivas que pudessem constituir um fragmento de frase, as ditassem aos quatro outros estudantes...

(J. Swift, Gulliver’s Travels, III, 5)

 

Creio que ao elaborar sobre o sonho Belbo tenha, mais uma vez, voltado ao pensamento da oportunidade perdida, e ao seu voto de renúncia por não ter sabido aproveitar - se é que houve alguma vez - o Momento. O Plano teve início porque havia se resignado a construir para si momentos fictícios.

Perguntei-lhe certa vez por um texto qualquer, e ele começou a revistar em sua mesa uma pilha de manuscritos ali empilhados perigosamente, e sem qualquer critério de tamanho ou grandeza, apenas uns postos sobre os outros. Havia localizado o texto que procurava e tentara arrancá-lo da pilha, derrubando o resto. As pastas se abriram e as folhas se arrancaram de seus frágeis fechos de metal.

"Não podia começar dividindo a pilha em duas e procurar na primeira metade?" perguntei. Tempo perdido: ele fazia sempre assim.

E respondia invariavelmente: "A Gudrun depois apanha e põe em ordem. Precisa ter uma missão na vida, senão perde a sua própria identidade".

Mas naquela vez eu estava pessoalmente interessado na salvação dos manuscritos, porquanto agora fazia parte da casa: "Mas a Gudrun não será capaz de recompô-los, vai colocar folhas erradas em pastas erradas."

"Se tivesse ouvido esta, Diotallevi exultaria. Delas sairiam livros diferentes, ecléticos, casuais. Está na lógica dos diabólicos."

"Mas assim nos encontraremos na situação dos cabalistas. Milênios para encontrar a combinação exata. Está simplesmente substituindo por Gudrun a macaca que bate para todo o sempre na máquina de escrever. A diferença está apenas na duração. Em termos de evolução não teremos ganho coisa alguma. Não há um programa que permita a Abulafia fazer este trabalho?"

Entrementes entrara Diotallevi.

"Claro que há", dizia Belbo, "e teoricamente permite a inserção de dois mil dados. Basta ter-se a paciência de escrevê-los. Admitamos que sejam versos de poesias existentes. O programa lhe pergunta quantos versos deve ter a poesia, você decide, dez, vinte, cem. Depois o programa extrai do relógio interno do computador o número de segundos, e o randomiza, ou em palavras pobres extrai dele uma fórmula de combinações sempre nova. Com dez versos podem-se obter milhares e milhares de poesias casuais. Ontem meti na máquina versos do tipo fremem tanto as tílias frescas, tenho as púlpebras cansadas, ah se a aspidistra quisesse, a vida agora te dou e semelhantes. Eis alguns resultados."

 

Conto as noites, soa o sistro...

Oh morte, a tua vitória...

Oh, morte a tua vitória...

Ah se a aspidistra quisesse...

 

Do coração da alvorada

chegaste albatroz sinistro

(ah se a aspidistra quisesse...)

Oh, morte a tua vitória.

 

Fremem tanto as tílias frescas,

conto as noites, soa o sistro,

oh gentil que te partiste.

Fremem tanto as tílias frescas.

 

"Surgem repetições que não pude evitar, parece que complicaria demais o programa. Mas mesmo as repetições têm um certo sentido poético".

"Interessante", disse Diotallevi. "Isto me reconcilia com a tua máquina. Logo se eu lhe metesse dentro toda a Torah e depois lhe dissesse - como é o termo? - para randomizar, ela chegaria à verdadeira e própria Torah e recombinaria os versículos do Livro?"

"Claro, é apenas questão de tempo. És capaz de consegui-lo em poucos séculos."

Aí eu disse: "Mas se em vez disso metermos aí uma dezena de frases extraídas das obras dos nossos diabólicos, tais como os Templários fugiram para a Escócia, ou o Corpus Hermeticum chegou a Florença em 1460, e acrescentarmos alguns conectivos como é evidente que ou isto prova que, podemos obter seqüências reveladoras. Depois preenchemos os claros, ou valorizamos as repetições como sendo vaticínios, insinuações e advertências. Na pior das hipóteses, inventaremos um capitulo inédito da história da magia."

"Genial", disse Belbo, "vamos começar imediatamente."

"Não, já são sete horas. Amanhã."

"Pois vou fazê-lo esta noite. Ajude-me apenas um instante, apanhe do chão um punhado daquelas páginas, ao acaso, tome a primeira frase que encontrar, e ela vai nos servir de dado."

Agachei-me e recolhi: "José de Arimatéia leva o Graal para a França.”

"Ótimo, registrado. Vá em frente."

"Segundo a tradição templar, Godofredo de Bouillon estabelece em Jerusalém o Grande Priorado do Sião. Debussy era um Rosa-Cruz."

"Desculpem-me", disse Diotallevi, "mas é necessário também inserir alguns dados neutros, como por exemplo que o coala vive na Austrália ou que Papin inventou a panela de pressão."

"Minnie é a noiva de Mickey", sugeri.

"Não exageremos."

"Exageremos, sim. Se começarmos a admitir a possibilidade de que haja um único dado, em todo o universo, que não revele qualquer coisa a mais, já estaremos fora do pensamento hermético."

"É verdade. Pois ponha a Minnie. E se me permitem, porei um dado fundamental: Os Templários entram sempre."

"Isto é evidente", confirmou Diotallevi.

Continuamos por mais alguns minutos. Depois estava ficando realmente tarde. Mas Belbo nos disse que não nos preocupássemos. Iria continuar sozinho. Gudrun veio dizer que já estavam fechando, Belbo comunicou-lhe que ficaria a trabalhar mais um pouco e lhe pediu que apanhasse as folhas do chão. Gudrun emitiu alguns sons que podiam pertencer tanto a um latim sem flexões como à língua keremis*,

 

* Latim sem flexões, língua universal proposta por Giuseppe Peano (1858-1932); keremis, língua aglutinante, falada apenas numa perdida república soviética. (N. do T.)

 

e que exprimiam indignação e desapontamento tanto numa quanto noutra, índice do parentesco universal entre todas as línguas, descendentes de um único tronco adâmico. E continuou, randomizando melhor do que um computador.

 

Na manhã seguinte, Belbo estava radiante. "Funciona", disse.

"Funciona e produz resultados inesperados." Mostrou-nos o output impresso.

 

Os Templários entram sempre

Não é verdade o que se segue

Jesus foi crucificado sob Pôncio Pilatos

O sábio Ormuz fundou no Egito a Rosa-Cruz

Há cabalistas em Provença

Quem se casou nas bodas de Caná?

Minnie é a noiva de Mickey

Só consegue

Se

Os druidas veneravam as virgens negras

Então

Simão o Mago identifica a Sophia numa prostituta de Tiro

Quem se casou nas bodas de Caná?

Os Merovíngios se dizem reis por direito divino

Os Templários entram sempre

 

"Um tanto confuso", disse Diotallevi.

"Não sabes enxergar as conexões. E não dás a devida importância à interrogação que ocorre duas vezes: quem se casou nas bodas de Caná? As repetições são chaves mágicas. Naturalmente integrei, mas integrar a verdade é direito do iniciado. Eis minha interpretação: Jesus não foi crucificado, e por isso os Templários renegavam o crucifixo. A lenda de José de Arimatéia envolve uma verdade mais profunda: Jesus, e não o Graal, desembarca na França entre os cabalistas de Provença. Jesus é a metáfora do Rei do Mundo, do fundador real da Rosa-Cruz. E com quem desembarca Jesus? Com sua mulher. Por que nos Evangelhos não se diz quem se casou em Caná? Simplesmente porque eram as bodas de Jesus, bodas de quem não se podia falar porque eram com uma pecadora pública, Maria Madalena. Eis por que então todos os iluminados, de Simão o Mago a Postel, vão procurar o princípio do eterno feminino num bordel. Portanto Jesus é o fundador da estirpe real da França."

 

Se nossa hipótese é correta, o Santo Graal..., era a estirpe e os descendentes de Jesus, o "Sang real" de que eram guardiães os Templários... Ao mesmo tempo o Santo Graal devia ser, ao pé da letra, o receptáculo que havia recebido e contido o sangue de Jesus. Em outras palavras devia ser o seio de Madalena.

(M. Baigent, R. Leigh. H. Lincoln, The HoIy Blood and the Holy Graal, 1982, London, Cape, XlV)

 

"Bem", disse Diotallevi, "ninguém te levaria a sério".

"Pelo contrário, venderia alguns cem mil exemplares", disse sério. "A história existe, foi escrita, com variações mínimas. Trata-se de um livro sobre o mistério do Graal e os segredos de Rennes-le-Château. Em vez de só ler manuscritos devias ler também aquilo que publicam os outros editores."

"Santos Serafins", disse Diotallevi. "Eu não disse? Esta máquina só diz aquilo que todo mundo já sabe." E lá se foi desconsolado.

"Serve e muito", disse Belbo magoado. "Veio-me uma idéia que já havia ocorrido a outros? E daí? Isto se chama poligênese literária.

O Sr. Garamond diria que é prova de que digo a verdade. Aqueles senhores devem ter meditado sobre isto durante anos, ao passo que resolvi tudo numa noite.

"Estou do seu lado, a brincadeira vale uma missa. Mas creio que a regra será inserir muitos dados que não provenham dos diabólicos. O problema não é encontrar relações ocultas entre Debussy e os Templários. Isto todos fazem. O problema está em encontrar relações ocultas, por exemplo, entre a Cabala e as velas de automóvel."

Dizia ao acaso, mas dera a Belbo uma deixa. Falou-me a respeito alguns dias depois.

 

"O amigo tinha razão. Qualquer dado se torna importante se está conjugado a outro. A conexão muda a perspectiva. Induz a pensar que todos os aspectos do mundo, todas as vozes, toda palavra escrita ou dita não tem o sentido que parece, mas nos fala de um Segredo. O critério é simples: suspeitar, suspeitar sempre. Podemos mesmo até ler o que está por trás de uma placa de sentido proibido."

"Certo. Moralismo cátaro. Horror da reprodução. O sentido é proibido porque é logro do Demiurgo. Não é por essa via que se encontrará o Caminho."

"Ontem à noite me caiu às mãos o manual de automóvel. Não sei se foi a penumbra, ou se qualquer coisa que me tinha dito, mas invadiu-me a suspeita de que aquelas páginas diziam Alguma Coisa Mais. E se o automóvel existisse apenas como metáfora da criação? Mas não se deve ficar limitado ao aspecto exterior, ou à ilusão do painel, é necessário ver aquilo que só o Artífice vê, o que está por baixo. O que está por baixo é como o que está por cima. É a árvore das sefirot".

"Não me diga."

"Não sou eu quem digo. Ela se diz. Antes de tudo, a árvore motora é uma Árvore, como a própria palavra diz. Pois bem, se contarmos o motor dianteiro, as duas rodas da frente, a freagem, o câmbio, os dois eixos, o diferencial e as duas rodas traseiras, teremos dez articulações, como as sefirot."

"Mas as posições não coincidem."

"Quem foi que disse? Diotallevi nos explicou que em certas versões Tiferet não era a sexta mas a oitava sefirah, e estava sob Nezah e Hod. A minha é a árvore de Belboth, de outra tradição."

"Fiat."

"Mas continuemos com a dialética da Árvore. No alto o Motor, Omnia Movens, do qual diremos que é a Fonte Criadora. O Motor comunica sua energia criativa às duas Rodas Sublimes - a Roda da Inteligência e a Roda da Sabedoria."

"Isto se o carro for de tração dianteira...”

"A beleza da árvore de Belboth é que admite metafísicas alternativas. Imagine-se um cosmo espiritual com tração dianteira, onde o Motor à frente comunica imediatamente seus desígnios às Rodas Sublimes, enquanto na versão materialística temos a imagem de um cosmo degradado, em que o Movimento vem impresso por um Motor Ültimo às duas Rodas Infimas: do fundo da emanação cósmica se libertam as forças baixas da matéria."

"E com motor e tração traseiros?"

"Satânico. Coincidência do Súpero e do Ínfero. Deus se identifica com os movimentos da matéria grosseira posterior. Deus como aspiração eternamente frustrada à divindade. Deve depender da Ruptura dos Vasos."

"Não será a Ruptura do Silencioso?"

"Isto nos Cosmos Abortivos, onde o hálito venenoso dos Arcontes se expande no Eter Cósmico. Mas não nos percamos no caminho. Depois do Motor e das duas Rodas, vem a Freagem, a sefirah da Graça que estabelece ou interrompe a corrente de Amor que liga o restante da Árvore à Energia Superna. Um Disco, uma mandala que acaricia outra mandala. Dali o Escrínio de Mutações, ou a caixa de mudanças, como dizem os positivistas, que é o princípio do mal porque permite à vontade humana aumentar ou diminuir o processo contínuo das emanações. Por isso o câmbio automático custa mais, porquanto aqui é a própria Árvore que decide segundo o Equilíbrio Soberano. Depois vem um Eixo, que por acaso tem o nome de um mago do Renascimento, Cardam*,

 

* Cardam é a forma francesa de Cardano (Gerolamo), matemático italiano (1501-1576) inventor inclusive da engenhosa suspensão, também chamada junta universal. (N. do T.)

e a seguir uma Dupla Cônica - note-se a oposição com os quatro Cilindros do motor - na qual há uma Coroa (Keter Menor) que transmite o movimento às rodas terrestres. E aqui se torna evidente a função da sefirah da Diferença, ou diferencial, que com majestoso senso de Beleza distribui as forças cósmicas às duas Rodas da Glória e da Vitória, as quais num cosmo não-abortivo (de tração dianteira) seguem o movimento dado pelas Rodas Sublimes.

"A leitura é coerente. E o cerne do Motor, sede do Uno, Coroa?"

"Mas basta ler com olhos de iniciado. O Sumo Motor vive de um movimento de Aspiração e Descarga. Uma complexa respiração divina, em que originariamente as unidades, ditas Cilindros (evidente arquétipo geométrico), eram duas, gerando depois uma terceira, e por fim se contemplam e se movem por mútuo amor na glória da quarta. Nesta respiração no Primeiro Cilindro (nenhum deles é primeiro por hierarquia, mas por admirável alternância de posição e correspondência), o Pistão - etimologia de Pistis Sophia - desce do Ponto Morto Superior ao Ponto Morto Inferior enquanto o Cilindro volta a encher-se de energia em estado puro. Simplifico, pois aqui entrariam em jogo hierarquias angélicas, ou Mediadores da Distribuição, que como diz o manual "permitem a abertura e o fechamento das Velas que põem em comunicação o interior dos Cilindros com os condutos de aspiração da mistura"... A sede interna do Motor só pode se comunicar com o resto do cosmo através dessa mediação, e aqui creio que se revela talvez, não quero dizer a heresia, mas o limite originário do Uno, que de qualquer forma depende, para criar, dos Grandes Excêntricos. Será preciso dar uma leitura mais atenta ao Texto. Em todo caso quando o Cilindro se enche de Energia, o Pistão sobe ao Ponto Morto Superior e realiza a Compressão Máxima. É a tsimtsum. E neste ponto que se dá a glória do Big Bang, a Combustão e a Expansão. Uma Centelha dispara, a mistura arde e inflama, esta é, diz o manual, a única Fase Ativa do Ciclo. E aí, aí se na mistura se insinuam as conchas, as qelippot, gotas de matéria impura como água ou Coca-Cola, a Expansão não ocorre, ou ocorre em disparos abortivos."

"Shell não quer dizer talvez qelippot? Aí então dá para desconfiar. Daqui por diante só Leite de Virgem...”

"Vamos verificar. Pode ser uma maquinação das Sete Irmãs, princípios inferiores que querem controlar o processo da criação... Em todo caso, depois da Expansão, vem a grande expiração divina, que nos textos mais antigos é chamada de Descarga. O Pistão sobe novamente ao Ponto Morto Superior e expele a matéria informe já agora comburida. Mal se obtém essa operação de purificação recomeça o Novo Ciclo. Que se pensarmos bem é igualmente o mecanismo neoplatônico do Exodo e do Párodo, admirável dialética do Para Cima e Para Baixo."

"Quantum mortalia pectora caecae noctis habent! Os filhos da matéria nunca se deram conta disto!"

"Por isto os mestres da Gnose dizem que não se deve confiar nos Hílicos mas nos Pneumáticos."

"Amanhã lhes preparo uma interpretação mística do catálogo telefônico...”

"Sempre ambicioso o nosso Casaubon. Cuidado que ele acaba resolvendo o problema insondável do Um e dos Múltiplos. Melhor avançar com calma. Estudemos primeiro o mecanismo das máquinas de lavar roupa."

"Elas falam por si. Transformação alquímica, da obra em negro à obra mais branca que o branco."

 

Da Rosa, nada digamos agora...

(Sampayo Bruno, Os Cavaleiros do Amor, Lisboa, Guimarães, 1960, p. 155)

 

Quando se entra num estado de suspeita não se deixa de lado mais indício algum. Depois das extravagâncias sobre a árvore-motora estava disposto a ver sinais reveladores em qualquer objeto que me caísse às mãos.

Mantinha contato com meus amigos brasileiros, e soube que em breve iria realizar-se em Coimbra uma convenção sobre cultura lusitana. Mais pelo desejo de rever-me do que em louvor à minha competência, os amigos do Rio conseguiram fazer com que me convidassem. Lia não podia ir, estava no sétimo mas, a gravidez lhe havia apenas retocado a linha miúda, transformando-a numa delicada madona flamenga, mas preferia não enfrentar a viagem.

Passei tres alegres noitadas em companhia de velhos amigos e, quando entramos de novo no ônibus em direção a Lisboa, surgiu uma discussão se devíamos parar em Fátima ou Tomar. Tomar era o castelo onde os Templários portugueses se haviam entrincheirado depois que a benignidade do rei e do papa os havia salvo do processo e da ruína, transformando-os na Ordem dos Cavaleiros de Cristo. Eu não podia perder um castelo dos Templários, e por sorte o resto da comitiva não morria de amores por Fátima.

Se eu pudesse imaginar um castelo templário, esse seria o de Tomar. Sobe-se até ele por um caminho fortificado que costeia os bastiões externos por seteiras em formato de cruz, e ali se respira o ar dos cruzados desde o primeiro instante. Os Cavaleiros de Cristo haviam prosperado durante séculos naqueles recantos: a tradição quer que tanto D. Henriques o Navegador quanto Cristóvão Colombo tenham pertencido a eles, e na verdade ambos se deram à conquista dos mares - fazendo a fortuna de Portugal. A longa e feliz existência que haviam desfrutado naquele lugar fizera com que o castelo fosse reconstruído e ampliado em vários séculos, a ponto de terem sido à sua parte medieval acrescentadas alas renascentistas e barrocas. Comovi-me ao entrar na igreja dos Templários, com sua rotunda octogonal que reproduz a do Santo Sepulcro. Despertou-me a curiosidade o fato de que naquela igreja, conforme o local, as cruzes templárias tinham formas diferentes: problemas que já havia enfrentado ao examinar a confusa iconografia a respeito. Enquanto a cruz dos cavaleiros de Malta permanecera mais ou menos a mesma, a dos Templários parecia ter sofrido as influências do século ou da tradição local. Eis por que para os caçadores de Templários basta encontrar uma cruz qualquer em qualquer parte para se descobrir nela um rastro dos Cavaleiros.

Depois nossa guia nos levou a ver a janela manuelina, a janela por excelência, uma abertura, uma collage de achados marinhos e submarinos, algas, conchas, âncoras, amarras e correntes, como a celebrar as aventuras marítimas dos Cavaleiros. Mas de ambos os lados da janela, como a cerrar numa cintura as duas torres que a enquadravam, viam-se esculpidas as insígnias da Jarreteira. Que estaria fazendo o símbolo de uma ordem inglesa naquele mosteiro fortificado português? A guia não nos soube dizer, mas pouco depois, num outro lado, creio que o noroeste, nos mostrou as insígnias do Tosão de Ouro. Não pude deixar de pensar no jogo sutil de alianças que unia a Jarreteira ao Tosão de Ouro, e este aos Argonautas, os Argonautas ao Graal, e o Graal aos Templários. Recordava as fantasias de Ardentie algumas páginas encontradas nos manuscritos dos diabólicos... Tive um sobressalto quando nossa guia nos fez visitar uma sala secundária, de teto dividido em algumas chaves de abóbada. Eram pequenas rosetas, mas em algumas vi esculpida uma face barbuda e um tanto caprina. O Bafomé...

Descemos a uma cripta. Depois de sete degraus, uma pedra nua conduz à abside, onde poderia levantar-se um altar ou um trono de grão-mestre. Mas chegava-se aí passando sob sete chaves de abóbada, cada uma delas em forma de rosa, cada uma maior que a outra, e a última, mais larga, sobreposta a um poço. A cruz e a rosa, e num mosteiro templar, e numa sala certamente construída antes dos manifestos rosacrucianos... Fiz algumas perguntas à guia, que sorriu: "Se o senhor soubesse quantos estudiosos de ciências ocultas vêm aqui em peregrinação... Dizem que esta teria sido a sala de iniciações...”

Penetrando por acaso numa sala ainda não restaurada, decorada com poucos móveis empoeirados, encontrei o chão atulhado de caixinhas de papelão. Revistei-as ao acaso, e me vieram às mãos fragmentos de livros em hebraico, presumivelmente do século XVII. Que coisa fariam os judeus em Tomar? A guia me disse que os Cavaleiros tinham boas relações com a comunidade hebraica local. Fez-me chegar à janela e me mostrou um jardim à francesa, estruturado como um pequeno e elegante labirinto. Obra, me disse, de um arquiteto judeu do século XVIII, Samuel Schwartz.

O segundo encontro em Jerusalém... E o primeiro no Castelo. Não era assim que dizia a mensagem de Provins? Por deus, o Castelo da Ordenação encontrada por Ingolf não era o improvável Monsalvato dos romances de cavalaria, Avalon a Hiperbórea. Se tivessem que marcar um lugar para a primeira reunião que outro teriam podido escolher os Templários de Provins, mais destros em dirigir capitanias do que em ler romances da Távola Redonda? Tomar, é claro, o castelo dos Cavaleiros de Cristo, um lugar onde os sobreviventes da ordem gozavam de plena liberdade, de garantias imutáveis, e no qual estavam em contato com os agentes do segundo grupo!

Voltei de Tomar e de Portugal com a mente em chamas. Estava levando finalmente a sério a mensagem que Ardenti nos havia exibido. Os Templários, depois de se constituírem em ordem secreta, elaboram um plano que deve durar seiscentos anos e concluir-se em nosso século. Os Templários eram pessoas sérias. Logo se falavam de um castelo, falavam de um lugar verdadeiro. O plano começava em Tomar. E então qual devia ter sido o percurso ideal? Qual a seqüência dos outros cinco encontros? Lugares onde os Templários pudessem contar com amizades, proteção, cumplicidade. O coronel falava em Stonehenge, Avalon, Agarttha... Tolices. A mensagem pedia releitura.

Naturalmente, dizia comigo mesmo ao voltar para casa, não se trata de descobrir o segredo dos Templários, mas de construí-lo.

 

Belbo parecia perturbado com a idéia de voltar ao documento que lhe havia deixado o coronel, e só foi encontrá-lo vasculhando de má vontade uma das gavetas de baixo de sua escrivaninha. No entanto, observei, ele o havia conservado. Relemos juntos a mensagem de Provins. Depois de tantos anos.

 

Começava com a frase cifrada segundo Tritêmio: Les XXXVI inuisibles separez en six bandes. E em seguida:

 

a la ... Saint Jean

36 p charrete de fein

6 ... entiers avec saiel

p ... les blancs mantiax

r ... s ... chevaliers de Pruins pour la .. j .nc

6 foiz 6 en 6 places

chascune foiz 20 a ... 120 a …

iceste est l’ordonation

al donjon li premiers

it li secunz joste iceus qui ... pans

it al refuge

it a Nostre Dame de l’altre part de I’iau

it a l’ostel des popelicans

it a la pierre

3 foiz 6 avant la feste ... ia Grant Pute.

 

"Trinta e seis anos depois da carreta de feno, na noite de São João do ano 1344, seis mensagens seladas pelos cavaleiros dos mantos brancos, cavaleiros relapsos de Provins, para a vingança. Seis vezes em seis lugares, vinte anos de cada vez num conjunto de cento e vinte anos, eis o Plano. Os primeiros no castelo, depois novamente com aqueles que comeram o pão, de novo no refúgio, de novo em Nossa Senhora além do rio, de novo em casa dos popelicans, e de novo na pedra. Vejam, a mensagem diz que em 1344 os primeiros devem ir ao Castelo. E na verdade os cavaleiros se instalarão em Tomar em 1357. Ora devemos perguntar aonde devem ir os do segundo núcleo. Vamos lá: imaginem que são Templários em fuga, onde iriam constituir o segundo núcleo?"

"Mas... Se é verdade que os da carreta fugiram para a Escócia... por que não haveriam de comer pão na Escócia?"

Havia me tornado imbatível na cadeia das associações. Bastava partir de um ponto qualquer. Escócia, Highlands, ritos druídicos, noite de São João, solstício de verão, fogos de São João, Ramo de ouro... Eis uma pista, embora frágil. Lera algo sobre os fogos de São João no Ramo de Ouro de Frazer.

Telefonei para Lia. "Pegue aí por favor o Ramo de Ouro e veja o que há sobre os fogos de São João."

Lia nestas coisas era admirável. Logo achou o capítulo. "Que quer você saber? É um rito antiqüíssimo, praticado em quase todos os países da Europa. Celebra o momento em que o Sol está no ápice de seu caminho, e São João foi acrescentado para cristianizar a história...”

"E comem pão na Escócia?"

"Deixe-me ver... Parece que não. Ah, aqui está, não comem pão no dia de São João, mas na noite de primeiro de maio, a noite dos fogos de Beltane, uma festa de origem druidica, especialmente nas Terras Altas escocesas...

"Aí está! E por que comem o pão?"

"Fazem uma massa de farinha e aveia que é assada sobre as brasas... Depois segue-se um rito que lembra os antigos sacrifícios humanos... São grandes broas que se chamam bannock...”

"Como? Soletre para mim!" Soletrou, agradeci-lhe, disse-lhe que era a minha Beatriz, minha Fada Morgana e outras coisas afetuosas. Procurei lembrar-me de minha tese. O núcleo secreto, segundo a lenda, refugia-se na Escócia junto do rei Robert the Bruce e os Templários ajudam o rei a vencer a batalha de Bannock Burn. Como recompensa o rei os integra na nova ordem dos Cavaleiros de Santo André da Escócia.

Tirei da estante um grande dicionário de inglês e procurei: ban nok em inglês medieval (bannuc em antigo saxão, bannach em gaélico) é uma espécie de torta, cozida ao fogo ou à grelha, de cevada, aveia ou outro cereal. Burn é torrente, rio. Bastava traduzir como haviam traduzido os Templários franceses mandando notícias da Escócia aos seus compatriotas de Provins, que daí resultava algo assim como o rio ou a torrente da broa, ou da torta, ou do pão. Quem comeu o pão foi quem venceu a batalha da torrente do pão, logo o núcleo escocês, que provavelmente àquela época já se havia expandido por todas as ilhas britânicas. Lógico: de Portugal para a Inglaterra, eis o caminho mais curto, a não ser a viagem do Pólo à Palestina.

 

Que as tuas vestes sejam cândidas... Se for noite, acende muitas luzes, para que tudo fulgure... Agora começa a combinar algumas letras, ou muitas, desloca-as e combina-as até que teu coração se aqueça. Está atento ao movimento das letras e ao que podes produzir ao combiná-las. E quando sentires que teu coração já está aquecido, vires que através da combinação de letras retiras algo que não havias conseguido conhecer por ti só ou com o auxílio da tradição, quando estiveres pronto a receber o influxo da potência divina que penetra em ti, emprega então toda a profundidade de teu pensamento em imaginar em teu coração o Nume e Seus anjos superiores, como se fossem seres humanos que estivessem ao teu lado.

(Abulafia, Hayye ha-’OIam ha-Ba)

 

"Faz sentido", disse Belbo. "E em tal caso qual seria o Refúgio?"

"Os seis grupos se instalam em seis lugares, mas só um deles é chamado de o Refúgio. Curioso. Isto quer dizer que nos outros lugares, como em Portugal ou na Inglaterra, os Templários podiam viver sem serem perturbados, ainda que sob outro nome, ao passo que neste têm de esconder-se. Direi que o Refúgio é o lugar onde se refugiaram os Templários de Paris, após haverem abandonado o Templo. Como igualmente me parece mais econômico que o percurso vá da Inglaterra para a França, por que não achar que os Templários tivessem construído um refúgio na própria Paris, num lugar secreto e protegido? Eram bons políticos e imaginavam que em duzentos anos as coisas teriam mudado e poderiam então agir à luz do sol, ou quase."

"Está bem, Paris. Mas como nos arranjamos com o quarto lugar?"

"O coronel pensava em Chartres, mas se colocamos Paris como terceiro lugar não podemos usar Chartres como quarto, porque evidentemente o plano deve interessar a todos os centros da Europa. E além disso estamos abandonando a pista mística para elaborar uma pista política. A deslocação parece ocorrer segundo uma sinusóide, pelo que devemos remontar ao Norte da Alemanha. Ora, além do rio ou da água, ou seja além-Reno, no território alemão, há uma cidade, não uma igreja, de Nossa Senhora. Vizinha a Dantzig havia a cidade da Virgem, ou seja Marienburg."

"E por que um encontro em Marienburg?"

"Porque era a capital dos Cavaleiros Teutônicos! As relações entre os Templários e os Teutônicos não estavam envenenadas como entre os Templários e os Hospitalários, que ali estavam como abutres à espera da supressão do Templo para apossar-se de seus bens. Os Teutônicos foram criados na Palestina pelos imperadores germânicos como oposição aos Templários, mas bem cedo foram chamados para o Norte, a fim de deter a invasão dos bárbaros prussianos. E o fizeram de modo tão perfeito que no correr de dois séculos se tornaram um Estado que se estende sobre todos os territórios bálticos. Movem-se entre a Polônia, a Lituânia e a Livônia. Fundam Koenigsberg, são derrotados uma única vez por Aleksandr Nevski na Estônia, e mais ou menos quando os Templários são presos em Paris fixam a capital de seu reino em Marienburg. Se havia um plano da cavalaria espiritual para a conquista do mundo, os Templários e os Teutônicos tinham dividido suas zonas de influência."

"Sabe o que lhe digo?" disse Belbo. "Concordo. Agora o quinto grupo. Onde estão esses popelicans?"

"Não sei", disse eu.

"Está me desiludindo, Casaubon. Talvez devêssemos perguntar ao Abulafia."

"Não senhor", respondi melindrado. "Abulafia nos deve sugerir conexões inéditas. Mas os popelicans são um dado, não uma conexão, e os dados são assunto para Sam Spade. Quero alguns dias de prazo."

"Dou-lhe duas semanas", disse Belbo. "Se dentro de duas semanas não me trouxer os popelicans, traga-me uma garrafa de Ballantines 12 Years Old."

 

Muito caro para o meu bolso. Ao cabo de uma semana trazia os popelicans aos meus vorazes sodalícios.

"Está tudo claro. Sigam-me porque temos de remontar ao quarto século, em território bizantino, enquanto na área mediterrânea já se difundiram os movimentos de inspiração maniqueísta. Comecemos pelos arcônticos, seita fundada na Armênia por Pedro de Cafarbaruch, que devemos admitir é um nome e tanto. Antijudaicos, o diabo se identifica com Sabaoth, o deus dos judeus, que vive no sétimo céu. Para alcançar a Grande Mãe da Luz no oitavo céu é necessário refutar tanto Sabaoth quanto o batismo. De acordo?"

"Refutemos", disse Belbo.

"Mas os arcônticos são ainda gente boa. No quinto século aparecem os messalianos, que entre outras coisas sobreviveram na Trácia até o século XI. Os messalianos não são dualistas, mas monárquicos. No entanto viviam de cama e mesa com as potências infernais, tanto é verdade que em alguns textos são designados por borboritos, de borboros, lama, por causa das coisas inomináveis que faziam."

"E que faziam?"

"As de costume. Homens e mulheres erguiam para o céu, recolhida na palma da mão, a própria ignomínia, ou seja esperma ou mênstruo, e depois a comiam dizendo que era o corpo de Cristo. E se por acaso engravidavam suas mulheres, no momento azado lhes metiam a mão no ventre, arrancavam-lhes o embrião, esmagavam-no em um almofariz, misturavam-no com mel e pimenta e toma a comer.

"Que nojo", disse Diotallevi. "mel e pimenta!"

"Estes são portanto os messalianos, que alguns chamam de estratióticos e fibiônitos, outros harbélitos, mescla de naaseanos e femiônitos. Mas para outros padres da Igreja os barbélitos eram gnósticos em retardo, e portanto dualistas, adoravam a Grande Mãe BarbeIo, e os seus iniciados chamavam de horhorianos aos hilicos, ou seja os filhos da matéria, para distingui-los dos psíquicos, que já eram melhores, e dos pneumáticos, que eram os próprios eleitos, o Rotary Club de toda aquela história. Mas talvez os estratióticos fossem apenas os hílicos dos mitraístas."

"Não é tudo um tanto confuso?" perguntou Belbo.

"Por força. Essa gente toda não deixou documentos. As únicas coisas que sabemos sobre eles provêm das intrigas de seus inimigos. Mas não importa. Isto é só para dizer o lio que era naquele tempo a área médio-oriental. E para dizer de onde surgem os paulicianos. Que são os seguidores de um certo Paulo de Samósata, a quem se unem alguns iconoclastas expulsos da Albânia. A partir do século VIII esses paulicianos crescem a valer, transformando-se de seita em comunidade, de comunidade em bando, de bando em poder político, com os quais os imperadores de Bizâncio começam a se preocupar, mandando-lhes ao encontro os exércitos imperiais. Difundem-se até os confins do mundo árabe, invadem o território bizantino até os limites do mar Negro. Instalam colônias um pouco por toda a parte, e vamos encontrá-los até mesmo no século XVII quando são convertidos pelos jesuítas, existindo ainda algumas comunidades nos Balcãs ou para além. Ora em que acreditam esses paulicianos? Em Deus, uno e trino, mas admitem que o Demiurgo tenha interferido na criação do mundo, com os resultados que todos sabemos. Rejeitam o Velho Testamento, refutam os sacramentos, desprezam a cruz, não veneram a Virgem, porque Cristo para eles encarnou-se diretamente no céu e passou através da Virgem como se atravessasse um túnel. Os bogomilos, que se inspiraram em parte neles, dirão que Cristo entrou por um ouvido de Maria e saiu pelo outro, sem que ela sequer desse por isso. Alguns os acusam ainda de adorar o sol e o diabo e de misturar o sangue das crianças ao pão e ao vinho eucaristico."

"Como todos."

"Eram tempos em que ir à missa para um herético devia ser um verdadeiro sofrimento. Era melhor tornar-se muçulmano. Mas era gente assim. E falo deles para explicar como esses heréticos dualistas ao se difundirem pela Itália e a Provença serão chamados popelicanos, publicanos, populicanos, tantas gallice etiam dicuntur ab aliquis popelicant!"

"Aqui estão eles."

"De fato. Os paulicianos continuam no nono século a enlouquecer os imperadores de Bizâncio até que o imperador Basilio jura que se puser as mãos no chefe deles, Chrissocheir, o qual havia invadido a igreja de São João de Deus em Ffeso e dado água benta de beber aos cavalos...”

"...sempre aquele vício", disse Belbo.

"...lhe plantará três flechas na cabeça. Manda-lhe de encontro o exército imperial, estes o capturam, cortam-lhe a cabeça, mandam-na ao imperador, que a põe sobre uma mesa, sobre um trumeau, sobre uma colunazinha de pórfiro e zac zac zac manda-lhe três flechadas, creio que uma em cada olho e a terceira na boca."

"Gente boa", disse Diotallevi.

"Não faziam isto por maldade", disse Belbo. "Eram questões de fé. Substância de coisas esperadas. Prossiga, Casaubon, que o nosso Diotallevi não compreende essas finuras teológicas, é um porco deicida."

"Para concluir: os cruzados encontram os paulicianos. Encontram-nos próximo de Antioquia por ocasião da primeira cruzada, onde aqueles combatem ao lado dos árabes, e os encontram no cerco de Constantinopla onde a comunidade pauliciana de Filipópolis procura entregar a cidade ao czar búlgaro Joannitsa para causar despeito aos franceses, conforme diz Villehardouin. Aqui está o nexo com os Templários e conseqüentemente resolvido o nosso enigma. A lenda quer que os Templários se tenham inspirado nos cátaros, mas ao contrário são os cátaros que se inspiraram nos Templários. Encontraram as comunidades paulicianas no decorrer das cruzadas e estabeleceram com elas misteriosas ligações, tal como já haviam estabelecido com os místicos e os heréticos muçulmanos. E por outro lado, basta seguir a pista da Ordenação. Só podem passar pelos Balcãs."

"Por quê?"

"Porque me parece claro que o sexto encontro seja em Jerusalém. A mensagem diz que devem ir à pedra. E onde é que existe uma pedra, que até hoje os muçulmanos veneram e que se quisermos vê-la temos de tirar os sapatos? Exatamente no centro da Mesquita de Ornar em Jerusalém, onde outrora estava o Templo dos Templários. Não sei quem estaria esperando em Jerusalém, talvez um núcleo de Templários sobreviventes e disfarçados, ou cabalistas ligados aos portugueses, mas o certo é que para chegar a Jerusalém procedendo da Alemanha a estrada mais lógica é essa dos Balcãs, e ali os esperava o quinto núcleo, o dos paulicianos. Vejam como nesse ponto o Plano se torna límpido e prático."

"Confesso que me persuade", disse Belbo. "Mas em que parte dos Balcãs os popelicant esperam?"

"A meu ver os sucessores naturais dos paulicianos eram os bogomilos búlgaros, mas os Templários de Provins não podiam então saber que poucos anos depois a Bulgária seria invadida pelos turcos e permaneceria sob seu domínio durante cinco séculos."

"Pode-se portanto admitir que o Plano se tenha interrompido na passagem dos alemães para os búlgaros. E quando devia isso ocorrer?"

"Em 1824", disse Diotallevi.

"Desculpe-me, mas por quê?"

Diotallevi traçou rapidamente um diagrama.

 

PORTUGAL INGLATERRA FRANÇA ALEMANHA BULGÁRIA JERUSALEM

 1344  1464  1584  1704  1824  1944

 

"Em 1344 os primeiros grão-mestres de cada um dos grupos se entronizam nos seis lugares prescritos. No curso de cento e vinte anos se sucedem em cada grupo seis mestres e em 1464 o sexto mestre de Tomar encontra o sexto mestre do grupo inglês. Em 1584 o duodécimo mestre inglês encontra o duodécimo mestre francês. A cadeia prossegue nesse ritmo, e se falhou o encontro com os paulicianos, essa falha se deu em 1824."

"Admitamos que tenha falhado", disse eu. "Mas não compreendo por que homens tão argutos, tendo tido nas mãos quatro sextos da mensagem final, não tivessem sido capazes de reconstitui-la. Ou ainda por que, tendo falhado o encontro com os búlgaros, não se tivessem posto em contato com o núcleo sucessivo."

"Casaubon", disse Belbo, "mas acha mesmo que os legisladores de Provins eram uns patetas? Se queriam que a revelação permanecesse oculta por seiscentos anos haveriam de tomar suas precauções. Cada mestre de um grupo sabe onde encontrar o mestre do núcleo sucessivo, mas não onde encontrar os outros, e nenhum dos outros sabe onde encontrar os mestres dos grupos precedentes. Basta que os alemães tenham perdido os búlgaros para não saberem mais onde encontrar os hierosolimitanos, enquanto estes não saberão onde encontrar nenhum dos outros. E quanto a reconstituir uma mensagem a partir de fragmentos incompletos, depende da maneira pela qual os fragmentos foram divididos. Claro, nunca em seqüência lógica. Basta faltar um só pedaço e a mensagem será incompreensível, e aquele que tiver o pedaço que falta não saberá o que fazer com ele."

"Imaginemos", disse Diotallevi, "que o encontro não tenha ocorrido, a Europa é hoje teatro de um balé secreto, entre grupos que se procuram e não se encontram, cada um deles sabendo que bastaria um nadinha apenas para se tornar senhor do mundo. Como se chama aquele empalhador do qual nos falou, Casaubon? Talvez a conspiração exista de fato e a história não passe do resultado dessa batalha para reconstituir a mensagem perdida. Nós não os vemos, e eles, invisíveis, agem ao nosso redor."

A Belbo e a mim veio evidentemente a mesma idéia, e começamos a falar juntos. Faltava-nos muito pouco para chegar à conexão exata. Já havíamos no entanto aprendido que pelo menos duas expressões da mensagem de Provins, a referência a trinta e seis invisíveis separados em seis grupos, e o lapso de cento e vinte anos, apareciam inclusive no curso do debate sobre os Rosa-Cruzes.

"No fim das contas eram alemães", disse eu. "Vou ler os manifestos rosacrucianos."

"Mas se disse que eram falsos", disse Belbo.

"E daí? Também nós estamos construindo um modelo falso."

"É verdade", disse. "Estava me esquecendo."

 

Elles deviennent le Diable: débiles, timorées, vaiIantes à des heures exceptionnelles, sanglantes sans cesse, lacrymantes, caressantes, avec des bras qui ignorent les lois... Fi! Fi! EIIes ne valent rien, elles sont faites d’un côté, d’un os courbe, d’une dissimulation rentrée... Elles baisent te serpent...

(Jules Bois, Le satanisme et Ia magie, Paris, Chailley, 1895, p. 12)

 

Estava se esquecendo, agora sei. É certamente a esse período que pertence este file, breve e doidão.

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filename: Ennoia

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Chegaste em casa, de repente. Tinhas a erva. Eu não queria, porque não permito que substância alguma vegetal interfira no funcionamento de meu cérebro (mas minto, porque fumo tabaco e bebo destilados de cereais). Contudo, nas poucas vezes em que no início dos anos sessenta alguém me forçava a participar de uma roda de joint, com aquele papel de cigarro viscoso impregnado de saliva, e a última tragada com o alfinete, me vinha a vontade de rir.

Mas ontem tu me ofereceste, e pensei que talvez fosse teu modo de oferecer-te, e fumei com vontade. Dançamos agarrados, como não se faz há muito e - que vergonha - enquanto girava no pickup a Quarta de Mahler. Senti como se entre os meus braços estivesse levitando uma criatura antiga, de rosto doce e enrugado de velha cabra, uma serpente que surgia do fundo das minhas costas, e te adorava como um ser antiqüíssimo e universal. Provavelmente continuava a mover-me estreitado ao teu corpo, mas sentia também que estavas alçando vôo, transformando-te em ouro, abrindo portas fechadas, movendo os objetos no ar. Eu estava penetrando em teu ventre escuro, Megale Apophasis. Prisioneira dos anjos.

Não eras quem eu procurava? Talvez esteja sempre a esperar por ti. Cada vez que te perdi por não reconhecer-te? Cada vez que te perdi foi por ter-te reconhecido e não ousado? Cada vez que te perdi foi por ter-te reconhecido mas sabendo que devia perder-te?

Mas onde foi que acabaste ontem à noite? Acordei pela manhã, com dor de cabeça.

 

Recordemos bem, no entanto, as alusões secretas a um período de 120 anos que o irmão A..., sucessor de D e último da segunda linha de sucessão - que viveu entre muitos de nós - nos dirige sobre a terceira linha de sucessão...

(Fama Fraternitatis, in AIlgemeine und general Reformation, Cassel, Wessel, 1614)

 

Precipitei-me a ler por inteiro os dois manifestos dos Rosa-Cruzes, a Fama e a Confessio. E dei uma olhadela também nas Núpcias Químicas de Christian Rosencreutz, de Johann Valentin Andreae, porque Andreae era o autor presuntivo dos manifestos.

Esses dois manifestos haviam aparecido na Alemanha entre 1614 e 1616. Cerca de trinta anos após o encontro de 1584 entre os franceses e os ingleses, mas quase um século antes de os franceses se reunirem com os alemães.

Li os manifestos com o propósito de não acreditar no que diziam, mas querendo ver através deles, como se dissessem alguma coisa mais. Sabia que para fazê-lo dizer outras coisas devia saltar trechos, e considerar algumas proposições como sendo mais relevantes do que outras. Mas era exatamente aquilo que os diabólicos e seus mestres nos estavam ensinando. Que quando nos movemos no tempo sutil da revelação não devemos seguir as cadeias obstinadas e obtusas da lógica e sua monótona seqüencialidade. Por outro lado, tomando-os ao pé da letra, os dois manifestos eram um cúmulo de absurdos, enigmas e contradições.

Conseqüentemente não podiam dizer aquilo que estavam dizendo na aparência, e portanto não eram um chamamento a uma profunda reforma espiritual, nem a história do pobre Christian Rosencreutz. Eram uma mensagem em código que se devia ler sobrepondo-lhe uma reticula que deixasse livres certos espaços e encobrisse outros. Como a mensagem cifrada de Provins, na qual se contavam somente as iniciais. Eu não tinha a retícula, mas bastava pressupô-la, e para pressupô-la bastava ler com desconfiança.

 

Que os manifestos falavam do Plano de Provins era inconteste. No túmulo de C.R. (alegoria da Grange-aux-Dîmes, na noite de 23 de junho de 1344!) tinha sido colocado por cautela um tesouro para que os pósteros o descobrissem, um tesouro "escondido..., por cento e vinte anos". Que esse tesouro não fosse de tipo pecuniário era igualmente claro. Não se condenava apenas a ingênua avidez dos alquimistas, mas se dizia abertamente que o que estava prometido era uma grande mutação histórica. Se alguém não o tivesse compreendido, bem, o manifesto seguinte voltava a dizer que não se devia ignorar uma oferta concernente aos miranda sextae aetatis (as maravilhas do sexto e último encontro!) e reiterava: "Se ao menos prouvesse a Deus trazer até nós a luz de seu sexto Candelabrum..., se se pudesse ler tudo num único livro e lendo-o se compreendesse e recordasse o que aconteceu... Como seria bom se pudéssemos transformar por meio do canto (da mensagem lida a viva voz!) as rochas (Iapis exillis!) em pérolas e pedras preciosas...” E se falava ainda de segredos arcanos, e de um governo a ser instaurado na Europa, e de uma "grande obra" que seria realizada...

Dizia-se que C.R, tinha ido á Espanha (ou a Portugal?) e mostrara aos doutos de lá como "alcançar os verdadeiros indicia dos séculos futuros" mas em vão. Por que em vão? Por que um grupo templar alemão, no início do século XVII, trazia a público um segredo ciosíssimo, como se fosse preciso sair a descoberto para reagir a um bloqueio qualquer no processo de transmissão?

Ninguém podia negar que os manifestos tentavam reconstruir as fases do Plano da forma como as havia sintetizado Diotallevi. O primeiro irmão de que se mencionava a morte, ou o fato de que tivesse chegado ao "limite", era o irmão I.O, que morrera na Inglaterra. Portanto alguém havia chegado triunfalmente ao primeiro encontro. E eram mencionadas uma segunda e uma terceira linhas de sucessão. E até aqui tudo devia ter funcionado bem: a segunda linha, a inglesa, encontra a terceira linha, a francesa, em 1584, e aqueles que escrevem no início do século XVII só podem falar do que ocorreu com os três primeiros grupos. Nas Núpcias Químicas, escritas por Andreae em sua juventude, e conseqüentemente antes dos manifestos (mesmo se tenham aparecido em 1616), são mencionados três templos majestosos, em três lugares que já deviam ser sabidos.

Contudo me dava conta de que em vez disso os dois manifestos falavam, sim, nos mesmos termos, mas como se tivesse ocorrido alguma coisa inquietante.

Por exemplo, por que tanta insistência sobre o fato de que fosse chegado o tempo, fosse chegado o momento, malgrado o inimigo tivesse posto em ação todas as suas astúcias para que a causa não se realizasse? Que causa? Dizia-se que a meta de C.R, era Jerusalém, mas que não havia conseguido alcançá-la. Por quê? Louvavam os árabes porque esses trocavam mensagens entre si, ao passo que na Alemanha os doutos não sabiam ajudar-se uns aos outros. E referiam-se a "um grupo mais numeroso que quer o pasto todo para si". Aqui não só se falava de alguém que estava procurando desvirtuar o Plano para perseguir um interesse particular, mas ainda de um desvirtuamento efetivo.

A Fama dizia que no início alguém havia elaborado uma escrita mágica (mas claro, a mensagem de Provins) porém que o relógio de Deus bate cada minuto "enquanto o nosso não consegue soar nem sequer as horas". Quem havia perdido as batidas do relógio divino, quem não havia sabido chegar a um certo ponto no momento exato? Havia referências a um núcleo originário de irmãos que teriam podido revelar uma filosofia secreta, mas que haviam resolvido dispersar-se pelo mundo.

Os manifestos denunciavam um estorvo, uma incerteza, um sentido de extravio. Os irmãos da primeira linha de sucessão tinham feito de modo a serem substituídos cada qual "por um sucessor digno", mas "esses haviam determinado manter em segredo..., o lugar de sua sepultura e até hoje não sabemos onde estão sepultos".

A que se aludia? O que era isso que não se sabia? De qual "sepulcro" se desconhecia a localização? Era evidente que os manifestos tinham sido escritos porque determinada informação andava perdida, e fazia-se apelo a quem porventura tivesse conhecimento dela, para que se apresentasse.

O final da Fama era inequívoco: "Pedimos novamente a todos os doutos da Europa..., que considerem com ânimo benévolo nossa oferta..., de nos comunicar suas reflexões... Porque se até o momento não revelamos ainda nosso nome..., aquele que nos fizer chegar o próprio nome poderá conferir conosco a viva voz, ou - se houver qualquer impedimento - por escrito."

Exatamente aquilo que se propunha fazer o coronel publicando a sua história. Obrigar alguém a sair do silêncio.

Tinha havido um salto, uma pausa, um parêntese, um desmalhe. Não estava escrito no túmulo de R.C, post 120 annos patebo apenas para recordar o ritmo dos encontros, estava escrito ainda Nequaquam vacuum. Não "o vácuo não existe", mas antes "não deve existir o vácuo". Mas em vez disso se havia criado um vácuo que devia ser preenchido!

 

Mas ainda uma vez me perguntava: por que esse discurso era feito na Alemanha, onde apenas a quarta linha devia simplesmente aguardar com santa paciência que chegasse a sua vez? Os alemães não podiam queixar-se - em 1614 - de um encontro marcado em Marienburg, porquanto esse encontro de Marienburg estava previsto para 1704!

Só uma conclusão era possível: os alemães recriminavam o fato de não se ter verificado o encontro precedente!

Eis a chave! Os alemães da quarta linha estavam-se lamentando de que os ingleses da segunda linha haviam perdido os franceses da terceira! Mas claro. Podiam-se reconhecer no texto alegorias de uma transparência de todo pueril: abre-se o sepulcro de C.R, e aí são encontradas as firmas dos irmãos do primeiro e do segundo círculos, mas não as do terceiro! Os portugueses e os ingleses lá estão, mas onde estão os franceses?

Em resumo, ambos os manifestos dos Rosa-Cruzes aludiam, sabendo-se lê-los, ao fato de que os ingleses haviam perdido os franceses. E segundo o que havíamos estabelecido os ingleses eram os únicos a saber onde haveriam de encontrar os franceses, e os franceses os únicos a saber onde encontrar os alemães. Mas ainda se em 1704 os franceses houvessem descoberto os alemães, ter-se-iam apresentado a eles sem os dois terços daquilo que lhes deviam entregar.

Os Rosa-Cruzes saem a descoberto, arriscando o que arriscam, pois essa é a única maneira de salvar o Plano.

 

Não sabemos tampouco com certeza se os Irmãos da segunda linha tinham os mesmos conhecimentos que os da primeira, nem que tenham sido admitidos no conhecimento de todos os segredos.

(Fama Fraternitatis, in Allgemeine und general Reformation, Cassel, Wessel, 1614)

 

Disse isso peremptoriamente a Belbo e a Diotallevi: concordaram que o sentido secreto dos manifestos era claríssimo até mesmo para um ocultista.

"Agora está tudo claro", disse Diotallevi. "Tínhamo-nos obstinado em pensar que o plano se houvesse interrompido na passagem entre os alemães e os paulicianos, ao passo que se interrompeu em 1584 na passagem entre a Inglaterra e a França."

"Mas por quê?" perguntou Belbo. "Temos alguma boa razão que explique não terem em 1584 os ingleses conseguido realizar o encontro com os franceses? Os ingleses sabiam onde era o Refúgio, ou antes, eram os únicos a sabê-lo."

Queria a verdade. E ativou Abulafia. Pediu, para experimentar, uma conexão de apenas dois dados. E o output foi:

 

Minnie é a noiva de Mickey

Trinta dias tem novembro com abril junho e setembro

 

"Como interpretar?" perguntou Belbo. "Minnie tem um encontro com Mickey, mas por engano acha que é a 31 de setembro, ao passo que Mickey...”

"Esperem todos!" disse eu. "Minnie só podia cometer um erro se marcasse o encontro para 5 de outubro de 1582!"

"E por quê?"

"A reforma gregoriana do calendário! Mas é natural. Em 1582 entra em vigor a reforma gregoriana que corrige o calendário juliano, e para restabelecer o equilíbrio abole dez dias do mês de outubro, do dia 5 ao dia 14"!

"Mas o encontro está marcado para se dar na França em 1584, na noite de São João, ou seja 23 de junho", disse Belbo.

"Precisamente. Mas, se bem recordo, a reforma não entrou logo em vigor em toda a parte." Consultei o Calendário Perpétuo que tinhamos na estante. "Aqui está, a reforma foi promulgada em 1582, foram abolidos os dias 5 a 14 de outubro, mas isso funciona só para o papa. A França adota a reforma em 1583 e abole os dias 10 a 19 de dezembro. Na Alemanha ocorre um cisma e as religiões católicas adotam a reforma em 1584, como na Boêmia, enquanto as religiões protestantes só vão adotá-la em 1775, putcha, quase duzentos anos depois, para não falar na Bulgária - este é um dado a se ter presente - que a adota apenas em 1917. Vejamos agora na Inglaterra... Passa à reforma gregoriana em 1752! É natural, por ódio aos papistas aqueles anglicanos resistem também eles por dois séculos. E agora vejam só o que aconteceu. A França aboliu dez dias no final de ‘83 e em junho de 1584 já todos estavam habituados. Mas quando na França é 23 de junho de 1584 na Inglaterra ainda é 13 de junho e imaginem se um bom inglês, ainda que templário, e principalmente naqueles tempos em que as informações andavam em câmara lenta, estaria a par da história. Guiam à esquerda até hoje e ignoram o sistema métrico decimal... Logo os ingleses se apresentam ao Refúgio no dia 23 de junho lá deles, que para os franceses já era 3 de julho. Ora vamos supor que o encontro não se devia realizar ao som das fanfarras, mas que era antes um encontro furtivo no local exato e na hora justa. Os franceses vão ao seu lugar no dia 23 de junho, esperam um, dois, três, sete dias, e depois se mandam pensando que alguma coisa devia ter acontecido. Quem sabe desistiram precisamente na véspera e os ingleses chegam a 3 de julho e não encontram ninguém. Quem sabe também estes esperam uns Oito dias, e voltam sem encontrar ninguém. Neste ponto os dois grão-mestres estão perdidos."

"Sublime", disse Belbo. "O negócio foi este. Mas por que tomaram a frente os Rosa-Cruzes alemães, e não os ingleses?"

 

Pedi mais um dia de prazo, revistei meus arquivos e voltei à editora esfuziante de orgulho. Tinha encontrado uma pista, aparentemente mínima, mas assim é que trabalha Sam Spade, nada é irrelevante para seus olhos de lince. Por volta de 1584 John Dee, mago e cabalista, astrólogo da rainha da Inglaterra, foi encarregado de estudar a reforma do calendário juliano.

"Os ingleses encontraram os portugueses em 1464. Depois daquela data parece que as ilhas britânicas começam a ser invadidas por um fervor cabalístico. Trabalha-se com aquilo que se aprendeu, preparando-se para o próximo encontro. John Dee é o primeiro da fila neste renascer da magia e do hermetismo. Organiza uma biblioteca pessoal de quatro mil volumes que parece advinda dos Templários de Provins. A sua Monas Ierogliphica parece inspirada diretamente na Tabula smaragdina, bíblia dos alquimistas. E que faz John Dee de 1584 para a frente? Lê a Steganographia de Tritêmio! E a lê em manuscrito, porque ela será publicada pela primeira vez apenas nos primeiros anos do século XVII. Grão-mestre do núcleo inglês que sofreu a decepção do encontro frustrado, Dee quer descobrir o que teria acontecido, onde estaria o erro. E como além disso é um bom astrônomo, dá um tapa na testa e diz que imbecil que fui. E se põe a estudar a reforma gregoriana, conseguindo para isso o apanágio de Isabel, para ver como reparar o erro. Mas se dá conta de que é tarde demais. Não sabe com quem estabelecer contato na França, mas tem contatos com a área da Europa Central. Praga nos tempos de Rodolfo II é um laboratório alquímico, e é de fato naqueles anos que Dee vai a Praga e encontra Khunrath, o autor daquele Amphitheatrum sapientiae aeternae cujas tábuas alegóricas inspirarão tanto Andreae quanto os manifestos rosacrucianos. Que ligações estabelece Dee? Não sei. Destruído pelo remorso de haver cometido um erro irreparável, morre em 1608. Nenhum perigo, porque em Londres surge outra figura que já agora por consenso das gentes foi um Rosa-Cruz e dos Rosa-Cruzes falou em sua Nova Atlântida. Refiro-me a Francis Bacon."

"Bacon fala mesmo a esse respeito?" perguntou Belbo.

"Não propriamente, mas um certo John Heydon reescreve a Nova Atlântida sob o título de The Holy Land, e nela mete os Rosa-Cruzes. Mas para nós está bem assim. Bacon não fala abertamente do assunto por motivos óbvios de reserva, mas é como se falasse."

"E quem viver verá."

"Exato. E é exatamente por inspiração de Bacon que se procura ampliar ainda mais as relações entre o ambiente inglês e o ambiente alemão. Em 1613 realizam-se as núpcias de Isabel, filha de Jaime I que agora ocupa o trono, com Frederico V, eleitor palatino do Reno. Após a morte de Rodolfo II, Praga não é mais o lugar propício, passando a Heidelberg. As núpcias dos dois príncipes são um triunfo de alegorias templares. No curso das cerimônias londrinas a direção está a cargo do próprio Bacon, e tem lugar a representação de uma alegoria à cavalaria mística com a aparição de Cavaleiros no alto de uma colina. É claro que Bacon, tendo sucedido a Dee, é agora o grão-mestre do núcleo templar inglês...”

"...e como é o verdadeiro autor dos dramas de Shakespeare, devemos reler igualmente todo Shakespeare, que certamente não falava de outra coisa senão do Plano", disse Belbo. "Noite de São João, sonho de uma noite de verão. Eu me pergunto como é que ninguém até agora tinha atentado para esses sintomas, essas evidências. Tudo me parece de uma clareza quase insuportável."

"Estávamos sendo desviados pelo pensamento racionalista", disse Diotallevi, "eu sempre disse".

"Deixa Casaubon continuar, pois me parece que fez uma excelente pesquisa."

"Há pouco mais a dizer. Depois das festas londrinas têm início as comemorações de Heidelberg, onde Salomon de Caus havia construído para o eleitorado os jardins pênseis de que vimos uma pálida reevocação aquela noite no Piemonte, como bem recordam. E no decorrer daquelas festas aparece um carro alegórico que celebra o esposo na figura de Jasão, e no alto dos dois mastros da nave representada sobre o carro aparecem os simbolos do Tosão de Ouro e da Jarreteira, espero não se tenham esquecido que o Tosão de Ouro e a Jarreteira aparecem igualmente nas colunas de Tomar... Tudo coincide. No correr de um ano aparecem os manifestos rosacrucianos, o sinal que os Templários ingleses, valendo-se da ajuda de alguns amigos alemães, lançam por toda a Europa, para reatarem os fios do Plano interrompido."

"Mas aonde querem chegar?"

 

Nos inuisibles pretendus sont (à ce que l’on dit) au nombre de 36, separez en six bandes.

(Effroyables pactions faictes entre le diable & les pretendus Inuisibles, Paris, 1623, p. 6)

 

"Talvez tentassem uma operação dupla, por um lado lançando um sinal para os franceses e por outro reatando os fios esparsos do núcleo alemão, que provavelmente fora fragmentado pela Reforma luterana. Mas é precisamente na Alemanha que vai ocorrer a confusão mais forte. Da saída dos manifestos até cerca de 1621, os autores vão receber mais respostas que esperavam...”

Citei alguns dos inumeráveis opúsculos que haviam aparecido sobre a matéria, com os quais me divertira aquela noite em Salvador com Amparo. "Provavelmente entre todos estes deve haver alguma coisa, mas esta se confunde com uma pletora de exaltações, de entusiasmos que levam à risca os manifestos, de provocações talvez, que tentam impedir a operação, de pastiches... Os ingleses procuram intervir no debate, controlá-lo, não sendo por acaso que Robert Fludd, outro templário inglês, escreve no curso de um ano três obras para insinuar a verdadeira interpretação dos manifestos... Mas a reação é já agora incontrolável, tem início a guerra dos trinta anos, o eleitor palatino é vencido pelos espanhóis, o Palatinato e Heidelberg tornam-se terras de pilhagem, a Boêmia está em chamas... Os ingleses decidem se voltar novamente para a França e tentar ali. E eis por que em 1623 os Rosa-Cruzes surgem com seus manifestos em Paris, e se dirigem aos franceses com mais ou menos as mesmas ofertas que haviam dirigido aos alemães. E o que se lê num dos libelos escritos contra os Rosa-Cruzes em Paris, por alguém que desconfiava deles ou queria turvar as águas? Que eram adoradores do diabo, é óbvio, mas como até mesmo na calúnia não se consegue apagar a verdade, insinua-se que eles se reuniam no Marais."

"E então?"

"Mas não conhece Paris? O Marais é o bairro do Templo e, por acaso, o bairro do gueto hebreu! Além do fato de esses libelos dizerem que os Rosa-Cruzes estão em contato com uma seita cabalística ibérica, os Alumbrados! Talvez os panfletos contra os Rosa-Cruzes, aparentemente tentando atacar os trinta e seis invisíveis, procurem favorecer sua identificação... Gabriel Naudé, bibliotecário de Richelieu, escreve as Instructions à la France sur la vérité de I’histoire des Frères de la Rose-Croix. Que instruções? É um porta-voz dos Templários do terceiro núcleo, um aventureiro que se insere num jogo que não é o seu? Por um lado parece que até ele quer fazer os Rosa-Cruzes passarem por diabólicos de segunda categoria, por outro lado lança insinuações, diz que ainda estão em atividade três colégios rosacrucianos, o que seria verdade, após o terceiro núcleo ainda existem três. Dá indicações mais ou menos fantasiosas (um estaria na India nas ilhas flutuantes) mas sugere que um dos colégios seria nos subterrâneos de Paris."

"Então acha que tudo isso explica a guerra dos trinta anos?" perguntou Belbo.

"Sem duvida alguma", disse eu, "Richelieu recebe informações privilegiadas de Naudé, quer ter uma participação direta na história, mas estraga tudo, intervém por via militar e agita ainda mais as águas. Porém não deixarei de liso outros dois fatos. Em 1619 reúne-se o capítulo dos Cavaleiros de Cristo em Tomar, após quarenta e seis anos de silêncio. Havia-se reunido em 1573, poucos anos antes do 1584, provavelmente para preparar a viagem a Paris juntamente com os ingleses, e depois do caso dos manifestos rosacrucianos se reúne de novo, para decidir que linha traçar, se deve associar-se à operação dos ingleses ou tentar outros caminhos."

"Certo", disse Belbo, "trata-se agora de gente perdida num labirinto, este escolhe um caminho, aquele outro, outro mais lança protestos, não se sabendo se as vozes que respondem são as de um outro ou se são o próprio eco... Todos avançam às apalpadelas. E que farão no entretempo os paulicianos e os hierosolimitanos?"

"Sei lá", disse Diotallevi. "Mas não deixarei de lado o fato de que nesta época é que se difunde a Cabala luriana e que se começa a falar da Ruptura dos Vasos... E naquela época circula cada vez mais a idéia da Torah como mensagem incompleta. Há um escrito hasídico poiaco que diz: se em vez deste tivesse ocorrido um outro evento outras combinações teriam nascido das letras. Embora esteja claro, não agrada aos cabalistas que os alemães tenham querido antecipar os tempos. A justa sucessão e a ordem da Torah permaneceram escondidas, conhecidas apenas pelo Santo, que Ele seja louvado. Mas não me façam dizer tolices, Se até mesmo a santa Cabala for envolvida no Plano...”

"Se há um Plano, deve envolver tudo. Ou é global ou não explica nada", disse Belbo. "Mas Casaubon nos havia mencionado um segundo indício."

"Sim. Aliás é uma série de indícios. Antes ainda de falhar o encontro de 1584, John Dee já tinha começado a ocupar-se de estudos cartográficos e a promover expedições navais. E em associação com quem? Com Pedro Nufiez, o cosmógrafo real de Portugal... Dee influencia as viagens de descoberta de uma passagem a noroeste em direção a Catai, investe dinheiro na expedição de um tal Frobisher, que se lança em direção ao Pólo e torna de lá com um esquimó que todos tomam por mongol, instiga Prancis Drake e o impele a fazer a viagem em torno do mundo, insiste para que se demande ao Leste porque o Leste é o princípio de todo conhecimento oculto, e à partida de não sei qual expedição invoca a proteção dos anjos."

"E isto que vem a ser?"

"Parece-me que Dee não estava propriamente interessado na descoberta dos lugares, mas na sua representação cartográfica, e por isso havia trabalhado em contato com Mercator e Ortelius, grandes cartógrafos. É como se, pelos fragmentos da mensagem que tinha entre as mãos, houvesse compreendido que a reconstrução final devia levar à descoberta de um mapa, e procurasse chegar a ele por conta própria. Aliás, seria tentado a dizer mais, como o Sr. Garamond. Seria possível que a um estudioso de seu estofo escapasse a discrepância entre os calendários? E se o fizesse de propósito? Dee dá a impressão de querer reconstituir a mensagem sozinho, passando por cima dos outros nucleos. Suspeito que com Dee tenha tido início a idéia de que a mensagem pudesse ser reconstituída por meios mágicos ou científicos, mas sem precisar esperar que o Plano se cumpra. Síndrome de impaciência. Está nascendo o burguês conquistador, inquina-se o princípio de solidariedade sobre o qual se fundamenta a cavalaria espiritual. Se esta era a idéia de Dee, não falemos de Bacon. A partir daquele momento os ingleses trataram de proceder à descoberta do segredo capitalizando todos os segredos da nova ciência."

"E os alemães?"

"Os alemães teriam concordado em seguir os caminhos da tradição. Assim podemos explicar pelo menos dois séculos da história da filosofia, empirismo anglo-saxão contra idealismo romântico...”

"Estamos reconstruindo gradativamente a história do mundo", disse Diotallevi. "Estamos reescrevendo o Livro. Agrada-me, agrada-me."

 

Outro caso curioso de criptografia foi apresentado ao público em 1917 por um dos melhores historiógrafos de Bacon, o Dr. Alfred Von Weber Ebenhoff, de Viena. Baseando-se no mesmo sistema já utilizado para as obras de Shakespeare, começou a aplicá-lo à obra de Cervantes... Prosseguindo na investigação descobriu uma perturbadora prova material: a primeira tradução inglesa do Dom Quixote feita por Shelton contém correções à mão feitas por Bacon. Concluiu daí que essa versão inglesa seria o original do romance e que Cervantes publicara dele simplesmente uma versão espanhola.

(J. Duchaussoy, Bacon, Shakespeare ou Saint-Germain?, Paris, La Colombe, 1962, p. 122)

 

Que nos dias seguintes Jacopo Belbo se pusesse a ler de modo compulsivo uma infinidade de obras históricas sobre o período dos Rosa-Cruzes é algo que me parece óbvio. Todavia quando nos relatou suas conclusões, forneceu-nos a nua trama de suas fantasias, das quais extraímos preciosas sugestões. Sei agora que em vez disso estava escrevendo no Abulafia uma história bem mais complexa na qual o jogo frenético das citações se mesclava com seus mitos pessoais. Posto diante da possibilidade de combinar fragmentos de uma história alheia, estava achando de novo o estímulo para escrever, de forma narrativa, sua própria história. A nós jamais o revelou. E para mim permanece ainda a dúvida se estaria experimentando, com alguma coragem, suas possibilidades de articular uma ficção ou se estaria se identificando, como um diabólico qualquer, com a Grande História que estava revolvendo.

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filename: O estranho gabinete do Dr. Dee

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Por muito tempo me esqueço de ser Talbot. Desde quando resolvi que devia chamar-me KelIey, pelo menos. No fundo só havia adulterado documentos, como todos fazem. Os homens da rainha são impiedosos. Para cobrir minhas pobres orelhas decepadas fui obrigado a usar este barrete negro, e todos passaram a murmurar que eu era um mago. Pois seja. O Dr. Dee sob essa fama prospera.

Fui encontrá-lo em Mortlake e estava examinando um mapa. Mostrou-se vago, o diabólico velho. Brilhos sinistros nos seus olhos astutos, a mão ossuda que acariciava a barbicha caprina.

- É um manuscrito de Roger Bacon, disse-me, que me foi emprestado pelo imperador Rodolfo II. Conhece Praga? Aconselho-o a visitá-la. Pode vir a encontrar aí algo que mudará a sua vida. Tabu la locorum rerum et thesaurorum absconditorum Menabani...

Espreitando vi algo das transcrições que o doutor estava tentando fazer com um alfabeto secreto. Mas ele escondeu de súbito o manuscrito embaixo de uma pilha de papéis amarelecidos. Viver numa época, e num ambiente, em que toda folha de papel, mesmo quando mal acaba de sair do fabricante, já está amarelada.

Havia mostrado ao Dr. Dee algumas das minhas produções, mormente os versos sobre a Dark Lady. Luminosissima imagem da minha infância, escura porque reabsorvida pela sombra do tempo, e subtraída à minha posse. E um calhamaço trágico, a história de Jim do Pango que regressa à Inglaterra em companhia de sir Walter Raleigh, e descobre que o pai foi morto pelo irmão incestuoso. Meimendro.

- Você tem talento, Kelley, disse-me Dee. Mas não tem dinheiro. Há um rapaz, filho natural de alguém que você não pode nem sequer imaginar quem seja, a quem desejo fazer famoso e respeitado. Como tem pouco talento, você será sua alma secreta. Escreva, e viva à sombra da glória dele, só ele e eu saberemos que é a sua, Kelley.

E eis-me há anos a redigir os calhamaços que, para a rainha e a Inglaterra inteira passam como sendo desse jovem pálido. If I have seen further it is by standing on ye sholders of a Dwarf. Tinha trinta anos e não permitirei a ninguém dizer que esta é a idade mais bela da vida.

- William, disse-lhe eu, deixa crescer os cabelos sobre as orelhas, entrega-te. Tinha um plano (passar-me por ele?).

Pode-se viver odiando o Agita-lança que na realidade se é? That sweet thief which sourly robs from me. - Calma Kelley, me disse Dee, crescer na sombra é privilégio de quem se dispõe à conquista do mundo. Keepe a Lowe Profyle. William será uma das nossas fachadas. E me pôs ao corrente - oh, apenas em parte - da Conspiração Cósmica. O segredo dos Templários! - O lugar, perguntei? - Ye Globe.

Por muito tempo vinha me deitando cedo, mas uma vez, à meia-noite, vasculhei a arca privada de Dee, e tendo descoberto fórmulas quis evocar os anjos como ele faz nas noites de lua cheia. Dee veio me encontrar de bruços, no centro do circulo do Macrocosmo, como se ferido por açoite. Na fronte, o Pentáculo de Salomão. Agora preciso afundar ainda mais sobre os olhos meu capuz.

- Isso você não sabe fazer ainda, disse-me Dee. Toma cuidado, senão lá se vai o seu nariz. I wilI show you Fear in a Handful of Dust...

Ergueu no ar a mão descarnada e pronunciou a palavra terrível: Garamond! Senti arder uma chama em meu interior. Fugi (na noite).

Foi preciso um ano para que Dee me perdoasse e me dedicasse o seu Quarto livro dos Mistérios, "post reconciliationem kellianam".

Nesse verão fui vítima de uma fúria abstrata. Dee convocou-me a Mortlake, éramos eu, William, Spenser e um jovem aristocrático de olhar fugaz, Francis Bacon. He had a delicate, Iively, hazel Eie. Doctor Dee told me it was like the Eie of a Viper.

Dee pôs-nos ao corrente de uma parte da Conspiração Cósmica. Tratava-se de encontrar em Paris a ala franca dos Templários, e casar juntamente com eles as duas partes de um mesmo mapa. Iriam Dee e Spenser, acompanhados por Pedro Núñez.

A mim e a Bacon confiou alguns documentos, sob juramento, para que fossem abertos caso eles não tornassem.

Tornaram, cobrindo de insultos o evento. - Não é possível, dizia Dee, o Plano é matemático, tem a perfeição austral da minha Monas lerogliphica. Devíamos encontrá-los, era a noite de São João.

Odeio ser depreciado. Disse: - A noite de São João para vocês ou para eles?

Dee deu um tapa na testa, e vomitou horríveis palavrões.

- Oh, disse, from what power hast thou this powerful might? O pálido William correu a anotar a frase, plagiário imbecil. Dee consultava febril calendários e efemérides. - Sangue de Deus, Nome de Deus, como pude ser tão estúpido? Insultava Núñez e Spenser. Depois: - Amanasiel Zorobabel, gritou. E Núñez foi atingido como por um invisível aríete no estômago, recuou pálido alguns passos, e amoleceu por terra. - Imbecil, gritou-lhe Dee.

Spenser estava pálido. Disse a custo: - Pode-se lançar uma isca. Estou terminando um poema, uma alegoria sobre a rainha das fadas, onde havia tentado meter um Cavaleiro da Cruz Vermelha... Deixa-me escrever. Os verdadeiros Templários nele se reconhecerão, compreenderão que sabemos, e entrarão em contato conosco...

- Eu te conheço, disse Dee. Até que o tenhas escrito e que as pessoas cheguem a tomar conhecimento desse teu poema há de passar um lustro ou talvez mais. Mas a idéia da isca não é de todo má.

- Por que não se comunica com eles por meio de seus anjos, doutor? perguntei-lhe.

- Imbecil, disse de novo, e desta vez para mim. Não leu Tritêmio? Os anjos do destinatádo só intervêm para tornar clara uma mensagem se é este que a recebe. Meus anjos não são correios a cavalo. Os franceses estão perdidos. Mas tenho um plano. Sei como encontrar alguns da linha alemã. Temos que ir a Praga.

Ouvimos um rumor, uma pesada cortina de damasco estava sendo erguida, entrevimos por ela uma diáfana mão, depois Ela apareceu, a Virgem Altiva. - Majestade, dissemos ajoelhando-nos. - Dee, disse Ela, sei de tudo. Não creiais que meus antepassados tenham salvo os Cavaleiros para depois lhes conceder o domínio do mundo. Exijo, compreendei, que no fim o segredo seja apanágio de minha Coroa.

- Majestade, quero o segredo, a todo custo, e o quero para a Coroa. Quero encontrar os outros possessores, se é este o caminho mais curto, mas quando me houverem estupidamente confiado o que souberem, não me será difícil eliminá-los, seja a punhal seja a água tofana.

Na face da Rainha Virgem desenhou-se um sorriso atroz.

- Está bem assim, disse, meu caro Dee... Não quero muito, apenas o Poder Total. E a vós, se o conseguirdes, a Jarreteira. A ti, William - e se voltava com lúbrica doçura para o pequeno parasita - uma outra jarreteira, e um outro velo de ouro. Segue-me.

Sussurrei ao ouvido de William: - Perforce I am thine, and that is in me... William gratificou-me com um olhar de untuoso reconhecimento e seguiu a rainha, desaparecendo por trás da cortina. Je tiens Ia reine!

 

Fui com Dee à Cidade de Ouro. Percorremos passagens estreitas e malcheirosas não distantes do cemitério hebraico, e Dee me dizia para tomar cuidado. - Se a notícia do encontro falhado se tiver difundido, dizia, os outros grupos já estarão se movirnentando por conta própria. Temo os judeus, os hierosolimitanos têm muitos agentes aqui em Praga...

Era noite. A neve cintilava azulada. À entrada escura do bairro judeu amontoavam-se os tabuleiros de mercado natalino, e no meio, revestido de pano vermelho, o obsceno palco de um teatro de fantoches iluminado por tochas fumegantes. Mas logo em seguida se passava sob uma arcada de pedra de cantaria e junto a uma fonte de bronze, de cujo ralo pendiam longas franjas de gelo, e se entrava no átrio de uma outra passagem. Nas velhas portas cabeças de leão aferravam anéis de bronze. Um leve frêmito percorria aquelas paredes, inexplicáveis rumores estertoravam dos tetos baixos, e se infiltravam nas goteiras. As casas traíam sua vida interior misteriosa, ocultas senhoras da vida... Um velho usurário, envolto numa sotaina esfarrapada, quase nos esbarrou passando, e me pareceu ouvi-lo murmurar: - Cuidado com Athanasius Pernath... Dee murmurou: - Tenho mais receio é de outro Athanasius... E de súbito estávamos no beco dos Fabricantes de Ouro...

Ali, e as orelhas que já não tenho me tremem ao recordá-lo sob o gasto capuz, de repente, na escuridão de uma nova e inopinada passagem parou à nossa frente um gigante, uma horrível criatura escura de expressão átona, o corpo encouraçado por uma pátina brônzea, apoiado em um nodoso bastão espiralado de madeira branca. Um intenso odor de sândalo emanava daquela aparição. Experimentei uma sensação de horror mortal, coagulado por encanto, todo, por aquele ser que me estava defronte. E no entanto não conseguia arredar os olhos do diáfano globo luminoso que lhe envolvia os ombros, no qual podia a custo distinguir o vulto rapace de um íbis egípcio, e atrás dele uma pluralidade de vultos, pesadelos de minha imaginação e da minha memória. Os contornos do fantasma que nos cortava o passo na escuridão da via se dilatavam e se encolhiam, como se uma lenta respiração mineral invadisse a inteira figura... E - horror - em lugar dos pés, ao fixá-los, vi sobre a neve cotos de perna informes cuja carne, escura e exangue, encrespava como em tumores concêntricos.

Oh minhas vorazes lembranças...

- O Golem! disse Dee. Depois ergueu ambos os braços para o céu, e sua sotaina negra tombava com suas largas mangas para o solo, como a criar um cíngulum, um cordão umbilical entre a posição aérea das mãos e a superfície, ou as profundidades, da terra. - Jezebel, Malkuth, Smoke Gets in Your Eyes! disse. E de repente o Gelem se dissolveu como um castelo de areia batido pelo ímpeto do vento, ficamos quase cegos com as partículas de seu corpo de argila que se fragmentavam como átomos no ar, e ao fim tivemos aos nossos pés um montículo de cinzas combunidas. Dee inclinou-se, remexeu naquela poeira com seus dedos descarnados, e dela extraiu uma tira de papel que escondeu no peito.

Foi a essa altura que surgiu da sombra um velho rabino, de gorro sebento que muito se assemelhava ao meu capuz. - Dr. Dee, presumo, disse. - Here Comes Everybody, respondeu humilde Dee, Rabi Allevi. Que prazer vê-lo... E ele: - Por acaso viram um ser passar aqui por estas bandas?

- Um ser? disse Dee fingindo estupor. Por quem gerado?

- Ao diabo Dee, disse Rabi Allevi. Era o meu Gelem.

- O seu Gelem? Não sei de nada.

- Tome cuidado Dr. Dee, disse lívido Rabi Allevi. Este é um jogo muito maior do que imagina.

- Não sei do que fala Rabi Allevi, disse Dee. Viemos aqui fabricar algumas onças de ouro para o vosso imperador. Não somos necromantes sem categoria.

- Devolva-me pelo menos a tira, implorou Rabi Allevi.

- Que tira? indagou Dee com diabólica ingenuidade.

- Seja maldito Dr. Dee, disse o rabino. E na verdade vos digo que não vereis o raiar do novo século. E afastou-se na noite, murmurando obscuras consoantes sem quaisquer vogais. Oh, Língua Diabólica e Sagrada!

Dee estava apoiado à parede úmida da passagem, o rosto lívido, os cabelos hirtos, como os da serpente. - Conheço Rabi Allevi, disse. Vou morrer a 5 de agosto de 1608, pelo calendário gregoriano. E portanto Kelley, ajude-me a realizar meu projeto. Sereis vós quem o deveis levar a termo. Gilding pale streams with heavenly alchymy, recorde-se. Eu haverei de lembrar-me, e William comigo, e contra mim.

 

Nada mais disse. A névoa tênue que roça o dorso na vidraça, a fumaça amarela que roça o dorso na vidraça, roçava com a língua os contornos da noite. Estávamos agora em outro beco, vapores esbranquiçados emanavam das grades ao nível do chão, pelas quais se entreviam casebres de paredes tortas, superpostas por sucessões de cinzas caliginosas... Entrevi, enquanto descia a escada às apalpadelas (os degraus imprevistamente ortogonais) a figura de um velho de sobrecasaca lisa e de chapéu alto e cilíndrico. Dee também o viu: - Caligari! exclamou. Ele também aqui, e em casa de Madame Sosostris, lhe Famous Clairvovante! Temos que andar ligeiro.

Apressamos o passo e chegamos à porta de um casebre, numa viela incertamente iluminada, sinistramente semítica.

Batemos, e a porta se abriu como por encanto. Entramos num amplo salão, adornado de candelabros de sete braços, tetragramas em relevo, estrelas-de-davi irradiadas. Velhos violinos, cor de moldura dos quadros antigos, estavam empilhados à entrada sobre um estrado de anamórfica irregularidade. Um grande crocodilo pendia, mumificado, da abóbada da espelunca, oscilando levemente à brisa da noite, ao fosco clarão de uma só tocha, ou de muitas - ou de nenhuma. Ao fundo, diante de uma espécie de tenda ou palanquim, sob a qual se erguia um tabernáculo, num genuflexório, um velho murmurava sem cessar e blasfemamente os setenta e dois nomes de Deus. Percebi, por subitânea fulguração do Nous, que era Heinrich Khunrath.

- Ao sólido Dee, disse ele, voltando-se e interrompendo sua oração, que desejas? Parecia um tatu empalhado, um iguana sem idade.

- Khunrath, disse Dee, o terceiro encontro não se realizou.

Khunrath explodiu numa horrível imprecação: - Lapis Exillis! E agora?

- Khunrath, disse Dee, vós podeis lançar uma isca e pôr-me em contato com a linha templar germânica.

- Vejamos, disse Khunrath. Poderei pedir a Maier, que está em contato com muita gente da corte. Mas me direis o segredo do Leite Virginal, do Forno Secretíssimo dos Filósofos.

Dee sorriu - oh o sorriso divino daquele Sábio! Encolheu-se então como se estivesse rezando e sussurrou a meia voz: - Quando quiserdes transformar e dissolver em água ou em Leite Virginal o Mercúrio sublimado, metei-o sobre a lâmina na fornalha com a taça contendo a Coisa díligentemente pulverizada, não devendo cobri-la mas fazendo de modo que o ar quente atinja a matéria nua, submetendo-a a um fogo de três carvões, e mantendo-o vivo por três dias solares, depois é retirá-lo e moê-lo bem sobre o mármore fino até se tornar impalpável. Feito isto metei a matéria dentro de um alambique de vidro, fazendo-a destilar em Balneum Mariae, sobre um caldeirão de água, posto de tal maneira que não se aproxime da água a menos de dois dedos, mas permaneça suspenso no ar, ao mesmo tempo em que se mantém o fogo sob o banho. Então, e só então, embora a matéria da prata não toque a água, mas se encontre naquele ventre quente e úmido, ela se transmutará em água.

- Mestre, disse Khunrath caindo de joelhos e beijando a mão descarnada e diáfana do Dr. Dee. Mestre, assim farei. E terás o que desejas. Recorda-te destas palavras, a Rosa e a Cruz. Delas ouvirás falar.

Dee envolveu-se na sua sotaina de ferreiro, da qual surgiam apenas os olhos cintilantes e malignos. - Vamos embora, Kelley, disse. Este homem agora é nosso. E tu Khunrath, mantém distante o Golem até nosso retorno a Londres. E depois, que Praga seja uma fogueira apenas.

Fez menção de afastar-se. Khunrath arrastando-se agarrou-lhe a fímbria do manto: - Virá, talvez, a ti, um dia, um homem. Que deseja escrever sobre ti. Sê amigo dele.

- Dá-me o Poder, disse Dee com uma expressão indizível no rosto descarnado, que sua fortuna estará assegurada.

Saímos. Estava assinalada uma depressão sobre o Atlântico, que se deslocava para oeste ao encontro de um anticiclone situado sobre a Rússia.

- Sigamos para Moscou, disse-lhe.

- Não, respondeu, retornemos a Londres.

- A Moscou, a Moscou, murmurava demente. Sabias bem, Kelley, que nunca haverias de ir ali. Esperava-te a Torre.

 

Regressamos a Londres. O Dr. Dee falou: - Eles estão procurando chegar à solução antes de nós. KeHey, escreva aí alguma coisa para William..., alguma coisa diabolicamente insinuante a respeito deles.

Ventre do demônio, de fato o fiz, mas depois William inquinou o texto e transpôs tudo de Praga para Veneza. Dee estava entregue a todas as fúrias. Porém o pálido e asqueroso William sentia-se protegido por sua real concubina. Não lhe bastava. Como eu, pouco a pouco, lhe passasse seus melhores sonetos, perguntava-me com olhar impudico a seu respeito, sobre Ti, my Dark Lady. Que horror sentir teu nome em seus lábios mesquinhos (não sabia que, espírito dúplice e vicário por destino, ele a estava querendo para Bacon). - Basta, disse-lhe. Estou cansado de construir na sombra a tua glória. Escreve por ti mesmo.

- Não posso, respondeu-me, com o olhar de quem havia visto um Lêmure. Ele não me permite.

- Quem, Dee?

- Não, o Verulâmio. Ainda não percebeste que ele agora é que dirige o jogo? Está me obrigando a escrever obras para depois se gabar de serem suas. Compreendeste Kelley, eu sou o verdadeiro Bacon, mas os pósteros não saberão. Oh parasita! Como odeio aquele demônio!

- Bacon é um miserável, mas tem talento, disse eu. Por que não escreve de mão própria?

Não sabia que lhe faltasse tempo. Só nos demos conta anos mais tarde quando a Alemanha foi invadida pela loucura Rosa-Cruz. Aí então, coligindo dados esparsos, palavras que ao correr da pena deixara escapar, compreendi que o autor dos manifestos dos Rosa-Cruzes era ele. Escrevia-os sob o falso nome de Johann Valentin Andreae!

Não havia então compreendido para quem Andreae escrevia, mas agora, na escuridão desta cela onde definho, mais lúcido que Dom Isidro Parodi, agora sei. Quem mo disse foi Soapes, meu companheiro de prisão, um ex-templário português: Andreae escrevia um romance de cavalaria para um espanhol que entrementes jazia em outra prisão. Não sei por quê, mas o projeto servia ao infame Bacon, que teria querido passar à história como autor secreto das aventuras do cavaleiro da Mancha, e que pedia a Andreae para lhe redigir em segredo a obra da qual ele depois se fingiria o verdadeiro autor oculto, para poder gozar na sombra (mas por quê, por quê?) o triunfo de um outro.

Porém divago, agora que passo frio nesta masmorra e o polegar me dói. Estou redigindo, ao frouxo clarão de uma candeia moribunda, as últimas obras que passarão sob o nome de William.

 

O Dr. Dee morreu, murmurando Luz, mais Luz, e pedindo um palito. Depois disse: Qualis Artifex Pereo! Fez-se matar por Bacon. Há anos, antes que a rainha desaparecesse, contraditória de mente e coração, de algum modo o Verulâmio a havia seduzido. Então seus traços se haviam alterado e estava reduzida ao estado de esqueleto. Sua alimentação se limitava a um pãozinho branco e a sopa de chicória. Conservava a seu lado uma espada e nos momentos de cólera a imergia com violência nas cortinas e nos damascos que cobriam as paredes de seu retiro. (E se por detrás estivesse escondido alguém, para escutar? Ou um rato, um rato? Boa idéia velho Kelley, é preciso anotá-la.) Com a velha reduzida a esse estado, foi fácil a Bacon fazer-lhe crer que era William, o seu bastardo - apresentando-se a seus pés, com ela agora cega, coberto por uma pele de carneiro. O Velo de Ouro! Diria que pretendesse o trono, mas sabia que desejava bem mais, o controle do Plano. Foi então que se tornou visconde de Santo Albano. E, como se sentisse poderoso, eliminou Dee.

 

A rainha está morta, viva o rei... Eu era agora uma testemunha importuna. Fez-me cair numa cilada, numa noite em que finalmente a Dark Lady teria podido ser minha, e dançava abraçada comigo, perdida sob o controle de ervas capazes de dar visões, ela a Sophia eterna, com seu rosto enrugado de velha cabra... Entrou com uma escolta de soldados, fez-me cobrir os olhos com um lenço, e compreendi de súbito: o vitríolo! E como ria, Ela, como te rias, Pin Ball Lady - oh maiden virtue rudely strumpeted, oh gilded honor shamefully misplac’d! - enquanto ele te tocava com suas mãos rapaces, e tu o chamavas Simão, beijando-lhe a cicatriz sinistra...

Para a Torre, para a Torre, ria-se o Verulâmio. E desde então aqui vegeto, com aquela larva humana que se diz Soapes, e os carcereiros me conhecem apenas como Jim do Pango. Estudei a fundo, e com ardente zelo, filosofia, jurisprudência e medicina, e infelizmente até mesmo teologia. E eis-me aqui, pobre louco, sem saber de mais nada.

 

De uma seteira assisti às núpcias reais, com os cavaleiros da cruz vermelha que caracolavam ao som das cornetas. Eu devia estar ali a soar a corneta. Cecilia bem sabia, e mais uma vez foi-me arrebatado o prêmio, a meta. Tocava William. Eu escrevia na sombra, para ele.

- Direi como te vingares, sussurrou-me Soapes, e naquele dia se revelou da forma que realmente era, um abade bonapartista, há séculos encerrado naquela masmorra.

- Sairás daqui? perguntei-lhe.

- lf..., havia começado a responder. Depois calou-se. Batendo com a colher na parede, num misterioso alfabeto que me confessou haver recebido de Tritêmio, tinha iniciado a transmissão de uma mensagem a alguém que estava na cela ao lado. O conde de Monsalvat.

 

Passaram-se anos. Soapes nunca parou de bater na parede. Agora sei por quê e com que fim. Chama-se Noffo Dei. Dei (por que misteriosa cabala Dei e Dee soam tão afins? Quem denunciou os Templários?), instruído por Soapes, denunciou Bacon. O que terá dito não sei, mas há poucos dias o Verulâmio foi encarcerado. Acusado de sodomia porque, disseram (tremo ao pensar que seja verdade), porque tu, a Dark Lady, a Virgem Negra dos druidas e dos Templários, outra coisa não eras, ou não és, do que o eterno andrógino, saído das mãos sapientes de quem, de quem? Agora, agora sei, de teu amante, o conde de São Germano! Mas quem é São Germano senão o mesmo Bacon (quantas coisas sabe Soapes, esse obscuro templário de muitas vidas...)?

 

O Verulâmio saiu da prisão, readquirindo por artes mágicas os favores do monarca. Agora, disse-me William, passa as noites às margens do Tâmisa, no Pilad’s Pub, jogando naquela estranha máquina, inventada por um certo Nolano que ele depois mandou horrivelmente queimar em Roma, depois de o haver atraído a Londres para arrancar-lhe seu segredo, uma máquina astral, devoradora de esferas desvairadas, que por infinitos e universos mundos, entre um mutilar de luzes angélicas, desferindo obscenos golpes de besta triunfante com o púbis contra a caixa, para fingir simular as aventuras dos corpos celestes na morada dos Decanos e compreender os últimos segredos de sua magna instauração, e o próprio segredo da Nova Atlântida, ele chamou Gottlieb’s, parodiando a língua sagrada dos manifestos atribuídos a Andreae... Ah! exclamo para mim (s’écria-t-il), agora lucidamente cônscio, mas tarde demais e em vão, enquanto o coração me pulsa vitoriosamente sob as rendas do colete: eis por que me tomou a corneta, amuleto, talismã, vínculo cósmico que podia comandar os demônios. Que estará tramando em sua Casa de Salomão? É tarde, repito para mim, agora já lhe foram dados demasiados poderes.

 

Dizem que Bacon está morto. Soapes me assegura não ser verdade. Ninguém há que lhe tenha visto o cadáver. Vive sob um falso nome junto ao landgrave de Hesse, ora iniciado nos mistérios máximos, pronto a prosseguir sua torva batalha pelo triunfo do Plano, em seu nome e sob o seu controle.

Após aquela morte presumida veio encontrar-me William, com seu sorriso hipócrita, que a grade não conseguia ocultar-me. Perguntou-me por que no soneto 111 eu o fizera escrever sobre um certo Tintureiro, citando-me o verso To What lt Works in, Like the Dyer’s Hand...

- Jamais escrevi estas palavras, disse-lhe. E era verdade... É claro, Bacon foi quem as inseriu, antes de desaparecer, para deixar algum sinal misterioso àqueles que pudessem hospedar São Germano de corte em corte, como especialista em tinturas... Creio que o futuro procurará fazer acreditar que tenha sido ele quem escreveu as obras de William. Como tudo se torna evidente, quando se olha das sombras de uma masmorra!

 

Where Art Thou, Muse, That Thou Forget’st So Long? Sinto-me cansado, doente. William espera de mim novo material para as suas velhacas clowneries no Globe.

Soapes está escrevendo. Olho por cima de seus ombros. Traça uma mensagem incompreensível: Rivverrun, past Eve and Adam’s... Esconde o papel, olha para mim, vê-me mais pálido que um Espectro, lê a Morte nos meus olhos. E murmura para mim: - Descansa. Não tenhas receio. Escreverei por ti.

E assim está fazendo, máscara de uma máscara. Eu lentamente me extingo, e ele me subtrai até a última luz, a da escuridão.

 

Embora a vontade seja boa, contudo seu espírito e suas profecias parecem evidentes ilusões do demônio... Elas são em grau de enganar muitas pessoas curiosas e de causar grande dano e escândalo à igreja de Deus Nosso Senhor.

(Parecer sobre Guillaume Postel enviado a Inácio de Loiola pelos padres jesuítas Salmeron. Lhoost e Ugoletto, 10 de maio de 1545)

 

Belbo contou-nos com indiferença o que havia imaginado, sem nos ler suas páginas, e eliminando as referências pessoais. Deu-nos mesmo a entender que Abulafia lhe havia fornecido as combinações. Eu já havia encontrado em algum lugar a indicação de que Bacon fosse o autor dos manifestos dos Rosa-Cruzes. Mas um indício me surpreendeu: que Bacon fosse visconde de Santo Albano.

Alguma coisa me rondava a cabeça, algo que tinha a ver com a minha velha tese. Passei a noite seguinte a revirar meus arquivos.

"Senhores", disse na manhã seguinte com certa solenidade aos meus cúmplices, "não podemos inventar conexões. Elas existem. Quando em 1164 são Bernardo lança a idéia de um concílio em Troyes para legitimar os Templários, entre os encarregados de organizar a operação estava o prior de Santo Albano, que entre outras coisas traz o nome do primeiro mártir inglês, evangelizador das ilhas britânicas, nascido exatamente em Verulam, que era o feudo de Bacon. Santo Albano, celta e indubitavelmente druída, iniciado como são Bernardo."

"É pouco", disse Belbo.

"Esperem. Esse prior de Santo Albano é o abade de Saint-Martin-des-Champs, a abadia onde será instalado o Conservatoire des Arts des Métiers!"

Belbo reagiu. "Por Deus!"

"Não só", acrescentei, "mas o Conservatoire foi imaginado como uma homenagem a Bacon. Aos 25 brumário do ano III a Convenção autorizou seu Comité d’lnstruction Publique a publicar a obra completa de Bacon. E aos 18 vendemiário do mesmo ano a mesma Convenção vota uma lei para fazer construir uma casa das artes e dos ofícios que deveria reproduzir a idéia da Casa de Salomão de que fala Bacon na Nova Atlântida, como o lugar em que estariam recolhidas todas as invenções técnicas da humanidade."

"E então?" perguntou Diotallevi.

"É que no Conservatoire está o Pêndulo", disse Belbo. E pela reação de Diotallevi compreendi que Belbo o havia posto ao corrente de suas reflexões sobre o pêndulo de Foucault.

"Vamos com calma", disse eu. "O pêndulo foi inventado e instalado no século passado. Por ora deixemo-lo de parte."

"Deixá-lo de parte?" disse Belbo. "Mas por acaso nunca deu uma olhada na Mônada Hieroglífica de John Dee, o talismã que devia concentrar toda a sabedoria do universo? Não lhe parece um pêndulo?"

 

"Está bem", disse eu, "admitamos ser possível estabelecer uma relação entre os dois fatos. Mas como se passa de Santo Albano ao Pêndulo?"

Vim a sabê-lo no curso de alguns dias.

"Portanto, o prior de Santo Albano é o abade de Saint-Martin-des-Champs, que se transforma assim num centro filotemplar. Bacon, por via de seu feudo, estabelece contato iniciático com os druidas seguidores de santo Albano. Agora escutem: enquanto Bacon inicia sua carreira na Inglaterra, na França Guillaume Postel encerra a sua."

(Detectei uma imperceptível contração no rosto de Belbo, recordei-me do diálogo na exposição de Riccardo, Postel evocava para ele quem lhe havia furtado idealmente Lorenza. Mas foi coisa de um instante.)

"Postel estuda o hebraico, busca mostrar que esta é a matriz comum de todas as línguas, traduz o Zohar e o Bahir, tem contatos com os cabalistas, lança um projeto de paz universal afim daquele dos grupos rosacrucianos alemães, procura convencer o rei de França a fazer uma aliança com o sultão, visita a Grécia, Síria, Ásia Menor, estuda o árabe, numa palavra reproduz o itinerário de Christian Rosencreutz. E não é por acaso que assina alguns escritos com o nome de Rosispergius, aquele que esparze o orvalho. E Gassendi em seu Examen Philosophiae Fluddanae diz que Rosencreutz não vem de rosa mas de ros, orvalho. Em seu manuscrito fala de um segredo a ser guardado até que venham os tempos propícios e diz: "Porque não se atiram pérolas aos porcos." E sabem onde aparece esta citação evangélica? No frontispício das Núpcias Químicas. E padre Marino Mersenne, ao denunciar o rosacruciano Fludd, diz que é da mesma massa desse atheus magnus que é feito Postel, Por outro lado parece que Dee e Postel se encontraram em 1550, e quiçá não soubessem então, e não poderiam sabê-lo senão trinta anos mais tarde, que eram eles dois os grão-mestres do Plano destinados a se encontrarem em 1584. Ora Postel declara, ouçam esta, que por ser descendente direto do filho mais velho de Noé, e visto que Noé é o fundador da estirpe céltica e portanto da civilização druídica, o rei de França é o único pretendente legítimo ao título de Rei do Mundo. Assim mesmo, o Rei do Mundo de Agarttha, mas disse-o três séculos antes. Deixemos de lado o fato de que se enamora de uma velhota, Joanna, e a considera a Sophia divina, o homem não devia ter todos os seus parafusos no lugar. Observemos bem que tinha inimigos poderosos, que o chamavam de cão, monstro execrável, cloaca de todas as heresias, possuído por uma legião de demônios. Contudo, mesmo com o escândalo de Joanna, a Inquisição não o considera herético, porém amens, digamos um tanto pancada. Ou seja, não se ousa destruir o homem porque se sabe que é porta-voz de algum grupo bastante poderoso. Assinalo a Diotallevi que Postel viaja também pelo Oriente e é contemporâneo de Isaac Luria, tirem-se daí as conseqüências que se queira. Pois bem, em 1564 (ano em que Dee escreve a Monas Hieroglyphica) Postel retrata suas heresias e se retira..., adivinhem para onde? Para o mosteiro de Saint-Martin-des-Champs! O que espera? Evidentemente espera 1584."

"Evidentemente", confirmou Diotallevi.

Prossegui: "Perceberam bem? Postel é o grão-mestre do núcleo francês, à espera de contato com o grupo inglês. Mas morre em 1581, três anos antes do encontro. Conclusões: primeiro, o incidente de 1584 acontece porque no momento justo falta uma mente aguda como Postel, que estaria a nível de compreender o que estava acontecendo com a confusão dos calendários; segundo, Saint-Martin era o lugar em que os Templários sempre se sentiram em casa e onde se homizia, à espera, o homem encarregado de estabelecer o terceiro contato. Saint-Martin-des-Champs era o Refúgio!"

"Tudo encaixa como num quebra-cabeça."

"Mas acompanhem-me. Na época do encontro frustrado Bacon tem apenas vinte anos. Mas em 1621 torna-se visconde de Santo Albano. O que encontra na herança de seus antepassados? Mistério. A verdade é que precisamente naquele ano alguém o acusa de corrupção e fá-lo encarcerar por algum tempo. Bacon havia encontrado alguma coisa que causava temor. A quem? Mas foi certamente naquela época que Bacon compreendeu que Saint-Martin estava sob controle, e concebeu a idéia de ali realizar sua Casa de Salomão, o laboratório onde se pudesse, por meios experimentais, chegar à descoberta do segredo."

"Mas", perguntou Diotallevi, "que podemos encontrar que possa relacionar os herdeiros de Bacon com os grupos revolucionários dos fins do século XVIII?"

"Será talvez a maçonaria?" disse Belbo.

"Esplêndida idéia. Aliás foi o que nos sugeriu Agliè aquela noite no castelo."

"Vamos precisar de reconstituir os acontecimentos. Que aconteceu exatamente naqueles meios?"

 

Ao sono eterno..., não escapariam portanto senão aqueles que já em vida tinham sabido orientar sua consciência para o mundo superior. Os Iniciados, os Adeptos, estão no limite de tal via. Conseguida a recordação, a anámnesis, conforme a expressão de Plutarco, eles se tornam livres, seguem sem vínculos, coroados celebram os "mistérios" e vêem sobre a terra a multidão daqueles que não são iniciados e que não são "puros" esmagar-se e revolver-se no lodo e nas trevas.

(Julius Evola, La tradizione ermetica, Roma, Edizioni Mediterranee, 1971, p. 111)

 

Com grande bazófia candidatei-me a uma pesquisa rápida e precisa. Antes não houvesse prometido. Encontrei-me num atoleiro de livros que iam desde estudos históricos a bisbilhotices herméticas, sem que me fosse possível distinguir facilmente as notícias confiáveis daquelas fantasiosas. Trabalhei como um autômato durante uma semana e por fim decidi elaborar uma lista quase incompreensível de seitas, lojas e conventículos. Não que durante sua feitura não tivesse sentido vez por outra um frêmito, quando via nomes conhecidos que não esperava encontrar em tais companhias, e coincidências cronológicas que julguei curioso registrar. Mostrei o documento a meus dois cúmplices.

 

1645 Londres: Ashmole funda o Invisible College, de inspiração rosacruciana.

1662 Do Invisible College nasce a Royal Society, e desta, como todos sabem, a Maçonaria.

1666 Paris: Académie des Sciences.

1707 Nasce Claude-Louis de Saint Germain, se de fato nasceu.

1717 Criação de uma Grande Loja Londrina.

1721 Anderson promulga a Constituição da maçonaria inglesa. Pedro o Grande, iniciado em Londres, funda uma loja na Rússia.

1730 De passagem por Londres, Montesquieu é aí iniciado.

1737 Ramsay afirma a origem templar da maçonaria. Origem do Rito Escocês, doravante em luta com a Grande Loja Londrina.

1738 Frederico, então príncipe herdeiro da Prússia, é iniciado. Será o protetor dos enciclopedistas.

1740 Nasce na França nessa época um grande número de lojas: os Ecossais Fidéles de Toulouse, o Souverain Conseil Sublime, a Mère Loge Ecossaise du Grand Globe Français, o Collège des Sublimes Princes du Royal Secret de Bordéus, a Cour des Souverains Commandeurs du Temple de Carcassonne, os Philadelphes de Narbonne, o Chapitre des RoseCroix de Montpellier, os Sublimes Elus de la Verité...

1743 Primeira aparição pública do conde de São Germano. É criado em Lyon o grau de Cavaleiro Kadosch, que deve vingar os Templários.

1753 Willermoz funda a loja da Parfaite Amitié.

1754 Martines de Pasqually funda o Templo dos Eleitos Cohen (ou talvez o tenha feito em 1760).

1756 O barão von Hund funda a Estrita Observância Templar. Há quem diga ter-se inspirado em Frederico II da Prússia. Fala-se aí pela primeira vez dos Superiores Desconhecidos. Há quem insinue que os Superiores Desconhecidos sejam Frederico e Voltaire.

1758 Chega a Paris o conde de São Germano e oferece seus serviços ao rei na qualidade de químico especializado em tinturaria. Freqüenta os salões da Pompadour.

1759 Formar-se-ia um Conseil des Empereurs d’Orient e d’Occident que três anos mais tarde promulgaria a Constituição e o regulamento de Bordéus no qual terá origem o Rito Escocês Antigo e Aceito (que no entanto só aparecerá oficialmente em 1801). Típica desse rito será a multiplicação dos graus que se elevam ao número de trinta e três.

1760 São Germano numa ambígua missão diplomática na Holanda. Tem que fugir, acaba preso em Londres e depois libertado. Dom Pernety funda os Iluminados de Avinhão. Martines de Pasqually funda os Chevaliers Maçons Elus de L’Univers.

1762 São Germano na Rússia.

1763 Casanova encontra São Germano na Bélgica: faz-se chamar de Surmont, e transforma uma moeda em ouro.

Willermoz funda o Souverain Chapitre des Chevaliers de l’Aigle Noire Rose-Croix.

1768 Willermoz entra para os Eleitos Cohen de Pasqually. Editado apocrifamente em Jerusalém Les plus secrets mystères des hauts grades de la maçonnerie devoilée, ou le vrai Rose-Croix: ai se diz que a loja dos Rosa-Cruzes fica na montanha de Heredon, a sessenta milhas de Edimburgo.

Pasqually encontra Louis Claude de Saint Martin, que se tornará famoso como Le Philosophe Inconnu. Dom Pernety torna-se bibliotecário do rei da Prússia.

1771 O duque de Chartres, conhecido depois por Philippe Egalité, torna-se o grão-mestre do Grand Orient, depois Grand Orient de France, e procura unificar todas as lojas. Resistência por parte das lojas de rito escocês.

1772 Pasqually parte para São Domingos e Willermoz e Saint Martin fundam um Tribunal Souverain que se tornará depois a Grande Loge Ecossaise.

1774 Saint Martin se retira para tornar-se o Philosophe Inconnu e um delegado de Estrita Observância Templar vai tratar com Willermoz. Nasce daí um Diretório Escocês da Província de Auvergne. Do Diretório de Auvergne nascerá o Rito Escocês Retificado.

1776 São Germano, sob o nome de conde Welldone, apresenta projetos químicos a Frederico II.

Nasce a Société des Philathétes para congregar todos os hermetistas.

Loja das Neuf Soeurs: a ela aderem Guillotin e Cabanis, Voltaire e Franklin. Weishaupt funda os Iluminados da Baviera. Segundo alguns foi iniciado por um comerciante dinamarquês, Kólmer, que retornava do Egito, e que seria o misterioso Altotas mestre de Cagliostro.

1778 São Germano encontra-se em Berlim com Dom Pernety. Willermoz funda a Ordre des Chevaliers Bienfaisants de la Cité Sainte. A Estrita Observância Templar entra em acordo com o Grande Oriente para que seja aceito o Rito Escocês Retificado.

1782 Grande convenção de todas as lojas iniciáticas em Wilhelmsbad.

1783 O marquês Thomé funda o Rito de Swedenborg.

1784 São Germano teria morrido no curso dos trabalhos de instalação de uma fábrica de tinturas para o landgrave de Hesse.

1785 Cagliostro funda o Rito de Mênfis, que se tornará o Rito Antigo e Primitivo de Mênfis-Misraim, aumentando o número dos altos graus para noventa. Estoura, maquinado por Cagliostro, o escândalo do Colar da Rainha. Dumas o descreve como uma conspiração maçônica com o fim de desacreditar a monarquia.

Supressão da ordem dos Iluminados da Baviera, suspeita de tramas revolucionárias.

1786 Mirabeau é iniciado pelos Iluminados da Baviera em Berlim. Aparece em Londres um manifesto rosacruciano atribuído a Cagliostro. Mirabeau escreve a Cagliostro e a Lavater.

1787 Já há cerca de setecentas lojas na França. Sai publicado o Nachtrag de Weishaupt, que descreve o diagrama de uma organização secreta na qual cada adepto pode conhecer apenas o próprio imediato superior.

1789 Tem início a Revolução Francesa. Crise das lojas na França.

1794 Aos oito vendemiário o deputado Grégoire apresenta à Convenção o projeto de um Conservatório de Artes e Ofícios. Será instalado em Saint-Martin-des-Champs em 1799, pelo Conselho dos Quinhentos.

O duque de Brunswick convida as lojas a se dissolverem porque uma venenosa seita subversiva está agora inquinando todas elas.

1798 Prisão de Cagliostro em Roma.

1801 É anunciada em Charleston a fundação oficial de um Rito Escocês Antigo e Aceito, com 33 graus.

1824 Documento da corte de Viena ao governo francês: são denunciadas associações secretas como os Absolutos, os Independentes, a Alta Loja dos Carbonários.

1835 O cabalista Oettinger diz haver encontrado São Germano em Paris.

1846 O escritor vienense Franz Graffer publica a relação de um encontro entre seu irmão e São Germano, entre 1788 e 1790. São Germano recebe o visitante folheando um livro de Paracelso.

1864 Bakunin funda a Aliança Social-democrática inspirada, segundo alguns, nos Iluminados da Baviera.

1865 Fundação da Societas Rosicruciana in Anglia (segundo outras fontes, em 1860 ou 1867). A ela aderem Bulwer-Lytton, autor do romance rosacruciano Zanoni.

1875 Helena Petrovna Blavatsky funda a Sociedade Teosófica. Sai Ísis Revelada. O barão Spedalieri proclama-se membro da Gran Loja dos Irmãos Solitários da Montanha, Irmão ILuminado da Antiga e Restaurada Ordem dos Maniqueus e Alto Iluminado dos Martinistas.

1877 Madame Blavatsky fala do papel teosófico de São Germano. Entre as suas encarnações constam as de Roger e Francis Bacon, Rosencreutz.

Proclo, santo Albano.

O Grande Oriente de França suprime a invocação ao Grande Arquiteto do Universo e proclama liberdade de consciência absoluta. Rompe os vínculos com a Gran Loja Inglesa, e se torna inteiramente leiga e radical.

1879 Fundação da Societas Rosicruciana nos Estados Unidos.

1880 Tem início a atividade de Saint-Yves d’Alveydre. Leopold Engler reorganiza os Iluminados da Baviera.

1884 Leão XIII condena a maçonaria na encíclica !-!umanum Genus Os católicos se desligam e os racionalistas aderem.

1888 Stanislas de Guaita funda a Ordre Kabbalistique de Ia Rose-Croix.

Fundação na Inglaterra da Hermetic Order of the Golden Dawn.

Onze graus, de neófito a lpsissimus. Dela é imperador McGregor Mathers, cuja irmã se casa com Bergson.

1890 Joséphin Péladan abandona Guaita e funda a Rose + Croix Catholique du Temple et du Graal, proclamando-se Sar Merodak. A contenda entre os rosacrucianos de Guaita e os de Péladan ficará conhecida guerra das duas rosas.

1898 Aleister Crowley é iniciado na Golden Dawn. Fundará depois a ordem de Thelema por conta própria.

1907 Da Golden Dawn nasce a Stella Matutina, à qual adere Yeats.

1909 Na América do Norte Spencer Lewis "desperta" o Anticus Mysticus Ordo Rosae Crucis e em 1916 executa com sucesso num hotel a transformação de um pedaço de zinco em ouro.

Max Heidel funda a Rosacrucian Fellowship. Em data incerta seguem-se o Lectorium Rosicrucianum, Les Frères Ainés de Ia Rose-Croix, a Fraternitas Hermetica, o Templum Rosae-Crucis.

1912 Annie Besant, discípula de madame Blavatsky, funda em Londres a ordem do Templo da Rosa-Cruz.

1918 Nasce na Alemanha a Sociedade Thule.

1936 Nasce na França La Grand Prieuré des Gaules. Nos "Cahiers de la fraternité polaire", Enrico Contardi-Rhodio fala de uma visita que lhe teria feito o conde de São Germano.

 

"Que significa tudo isto?" perguntou Diotallevi.

"Não me pergunte a mim. Queriam dados, não é mesmo? Pois tomem. Não sei de mais nada."

"Precisamos consultar Agliè. Desconfio que nem mesmo ele conhece todas estas organizações."

"Imagine, se isto é o seu pão! Mas podemos pô-lo à prova. Acrescentemos uma seita que não existe. Fundada recentemente."

Voltou-me à lembrança a curiosa pergunta de De Angelis, se eu ja havia ouvido falar alguma vez do Tres. E disse: "O Tres."

"E que vem a ser isso?" perguntou Belbo.

"Se há o acróstico deve haver o texto subjacente", disse Diotallevi, "de outra forma os meus rabinos não teriam podido praticar o Notarikon. Vejamos... Templi Resurgentes Equites Synarchici. Que tal?"

O nome nos agradou, e metemo-lo no fim da lista.

"Com todos estes conventículos, inventar um a mais não era coisa fácil", disse Diotallevi, tomado de uma crise de vaidade.

 

Se fosse o caso de se definir com uma simples palavra o caráter dominante da maçonaria francesa do século XVIII, uma só palavra seria adequada: diletantismo.

(René Le Forestier, La Franc-Maçonnerie Templière et Occultiste, Paris, Aubier, 1970, 2)

 

Na noite seguinte convidamos Agliè a visitar o Pílades. Embora os novos freqüentadores do lugar tivessem retornado ao paletó e à gravata, a presença de nosso convidado, com seu jaquetão azul de risca-de-giz e sua camisa imaculada, a gravata segura por um alfinete de ouro, não deixou de provocar uma certa sensação. Por sorte às seis da tarde o Pílades estava bastante vazio.

Agliè desnorteou Pilades pedindo um conhaque de excelente marca. Havia, naturalmente, mas reinava, intacto, numa prateleira por trás do balcão de zinco, talvez há vários anos.

Agliè falava olhando o licor à contraluz, depois aquecendo-o com ambas as mãos, deixando ver com isso nos punhos duas abotoaduras de ouro de estilo vagamente egípcio.

Mostramos-lhe a lista, dizendo havê-la extraído dos originais datilografados dos nossos diabólicos.

"É correto que os Templários estivessem ligados a antigas lojas dos mestres pedreiros que se formaram durante a construção do Templo de Salomão. Como é certo que esses associados se referissem ao sacrifício do arquiteto do Templo, Hiram, vítima de misterioso assassínio, e se voltassem para a sua vingança. Depois da perseguição muitos dos cavaleiros do Templo certamente confluíram para aquelas confrarias de artesãos, fundindo o mito da vingança de Hiram com o da vingança de Jacques de Molay. No século XVIII em Londres existiam lojas de pedreiros verdadeiramente ditos, as chamadas lojas operativas, mas gradualmente alguns gentis-homens entediados, ainda que respeitabilíssimos, atraídos por seus ritos tradicionais, se empenharam em delas participar. Assim a maçonaria operativa, coisa de pedreiros de verdade, foi-se transformando em maçonaria especulativa, coisa de pedreiros simbólicos. Nesse clima um certo Desaguliers, divulgador de Newton, influencia um pastor protestante, Anderson, que promulga a constituição de uma loja de Irmãos Maçons, de inspiração deísta, e começa a falar das fraternidades maçônicas como se fossem corporações que remontassem a quatro mil anos, aos fundadores do Templo de Salomão. Eis a razão da mascarada maçônica, o avental, o esquadro, o martelo. Mas talvez por isso mesmo a maçonaria vira moda, atrai os nobres, pelas árvores genealógicas que deixa entrever, mas agrada ainda mais aos burgueses, que não só podem reunir-se de par a par com os nobres mas são até mesmo autorizados a portar o espadim. Miséria do mundo moderno que nasce, os nobres têm necessidade de um ambiente onde entrar em contato com os novos produtores de capital, enquanto estes - digamos - buscam uma legitimação."

"Mas parece que os Templários entram nessa história depois."

"Quem primeiro estabelece uma relação direta com os Templários é Ramsay, de quem prefiro não falar. Suspeito que fosse inspirado pelos jesuítas. De sua pregação é que nasce a ala escocesa da maçonaria."

"Escocesa em que sentido?"

"O rito escocês é uma invenção franco-alemã. A maçonaria londrina havia instituído os três graus de aprendiz, companheiro e mestre. A maçonaria escocesa multiplica os graus, porque multiplicar os graus significa multiplicar os níveis de iniciação e de segredo... Os franceses, que são fátuos por natureza, ficaram loucos com isso...

"Mas qual segredo?"

"Nenhum, é óbvio. Se houvesse um segredo - ou antes se eles o houvessem possuído - sua complexidade teria justificado a complexidade dos graus de iniciação. Ramsay ao contrário multiplica os graus para fazer crer que existe um segredo. Podem imaginar o frêmito dos bons comerciantes que finalmente podiam tornar-se príncipes da vingança...”

 

Agliè foi pródigo em mexericos maçônicos. E falando passava, como era de seu costume, gradualmente a reevocações na primeira pessoa. "Naqueles tempos escreviam-se na França couplets sobre a nova moda dos pedreiros-livres, as lojas se multiplicavam e por elas circulavam monsenhores, frades, marqueses e comerciantes, e os membros da casa real tornavam-se grão-mestres. Na Estrita Observância Templar daquele sujeito que era o von Hund entravam Goethe, Lessing, Mozart, Voltaire, surgindo lojas entre os militares, conspirando-se nos regimentos a vingança de Hiram e discutindo-se sobre a revolução iminente. E para os outros a maçonaria era uma société de plaisir, um clube, um símbolo de status. Aí se encontrava de tudo, Cagliostro, Mesmer, Casanova, o barão de Holbach, D’Alembert... Enciclopedistas e alquimistas, libertinos e herméticos. E foi o que se viu ao estourar a revolução, quando os membros de uma mesma loja se achavam divididos, parecendo que a grande fraternidade entrava em crise para sempre...”

"Não era uma oposição entre o Grande Oriente e a Loja Escocesa?"

"Em termos. Um exemplo: na loja das Neuf Soeurs tinha entrado Franklin, que naturalmente objetivava sua transformação laica - a ele só interessava sustentar a revolução americana... Mas ao mesmo tempo um dos grão-mestres era o conde de Milly, que estava à procura do elixir da longa vida. Como era um imbecil, ao fazer suas experiências envenenou-se e morreu. Por outra parte pensem em Cagliostro: por um lado inventa ritos egípcios, por outro andava implicado no caso do colar da rainha, um escândalo arquitetado pelas novas castas dirigentes para desacreditar o Ancien Régime. Cagliostro também estava no meio, compreendem? Procurem imaginar a raça de gente com quem era preciso conviver...”

"Deve ter sido difícil", disse Belbo com compreensão.

"Mas quem são", perguntei, "esses barões von Hund que buscam os Superiores Desconhecidos...”

"Em torno à farsa burguesa haviam surgido grupos de intenções bem diversas, que para fazer adeptos talvez se identificassem com as lojas maçônicas, porém perseguindo fins mais iniciáticos. É a este ponto que ocorre a discussão sobre os Superiores Desconhecidos. Mas infelizmente von Hund não era uma pessoa séria. A princípio faz seus adeptos acreditarem que os Superiores Desconhecidos sejam os Stuarts. Depois estabelece que a finalidade da ordem é resgatar os bens originários dos Templários, e angaria fundos por toda parte. Não os achando suficientes, cai nas mãos de um certo Starck, que dizia ter recebido o segredo da fabricação do ouro diretamente dos verdadeiros Superiores Desconhecidos que estavam em Petersburgo. Logo em torno a Von Hund e a Starck precipitam-se teósofos, alquimistas a um tanto por onça, rosacrucianos de última hora, e todos juntos elegem grão-mestre um cavaleiro integérrimo, o duque de Brunswick. Que logo percebe estar em muito má companhia. Um dos membros da Observância, o landgrave de Hesse chama junto a si o conde de São Germano julgando que aquele senhor pudesse fabricar ouro para ele, e paciencta, naquele tempo acontecia fazer-se a vontade dos poderosos. Mas de quebra também se julgava são Pedro. Asseguro-lhes, uma vez Lavater, que era hóspede do landgrave, teve de fazer uma bruta cena com a duquesa de Devonshire porque esta se acreditava Maria Madalena."

"Mas e este Willermoz, esses Martines de Pasqually, que fundam uma seita dentro da outra...”

"Pasqually era um aventureiro. Praticava operações teúrgicas numa câmara secreta, os espíritos angélicos se mostravam a ele sob a forma de passagens luminosas e caracteres hieroglíficos. Willermoz o havia levado a sério porque era um entusiasta, honesto mas ingênuo. Fascinado pela alquimia, acreditava numa Grande Obra à qual os eleitos deviam dedicar-se, para descobrir o ponto de aliança (ou liga) dos seis metais nobres estudando os cálculos extraídos das seis letras do primeiro nome de Deus, que Salomão fizera conhecer a seus eleitos."

"E então?"

"Willermoz funda muitas regras e entra em muitas lojas ao mesmo tempo, como se usava fazer naqueles tempos, sempre à procura de uma revelação definitiva, temendo que essa estivesse oculta sempre mais além - como na verdade ocorre - aliás esta é talvez a única verdade... E assim se junta aos Eleitos Cohen de Pasqually. Mas em ’72 Pasqually desaparece, parte para São Domingos, abandona tudo em alto-mar. Por que se eclipsa? Suspeito que tenha entrado de posse de algum segredo e não quisesse compartilhá-lo. Em todo caso, paz à sua alma, desaparece naquele continente, obscuro como havia merecido...”

"E Willermoz?"

"Naqueles anos houve uma comoção generalizada pela morte de Swedenborg, homem que teria podido ensinar muita coisa ao Ocidente enfermo, se o Ocidente lhe tivesse dado ouvidos, mas então o século corria em direção à loucura revolucionária para seguir as ambições do Terceiro Estado... Ora é naqueles anos que Willermoz ouve falar da Estrita Observância Templar de von Hund e fica fascinado por ela. Fora-lhe dito que um Templário que assim se declara, digo fundando uma associação pública, não é um Templário, mas o século XVIII era uma época de grande credulidade. Willermoz tenta com von Hund várias alianças como se vê pela lista dos senhores, até que von Hund é finalmente desmascarado - e o duque de Brunswick o expulsa da organização."

Deu outra olhadela na lista: "Ah, e Weishaupt, ia-me esquecendo. Os Iluminados da Baviera, com um nome assim, no início atraem muitas mentes generosas. Mas aquele Weishaupt era um anarquista, diríamos hoje um comunista, e sabe lá que desatinos praticavam naquele ambiente, golpes de Estado, destronamento de soberanos, banhos de sangue... Notem que já admirei muito Weishaupt, mas não por suas idéias, antes por sua límpida concepção de como deve funcionar uma sociedade secreta. Mas podemos ter esplêndidas idéias organizativas e finalidades bastante confusas. Em suma o duque de Brunswick põe-se a gerir a confusão deixada por von Hund e percebe que a partir de então no universo maçônico alemão se encontram três princípios, o filão sapiencial e ocultista, aí compreendidos alguns Rosa-Cruzes, o filão racionalista, e o filão anárquico-revolucionário dos Iluminados da Baviera. E então propõe às várias ordens e ritos um encontro em Wilhelmsbad para um "convento" como o chamavam na época, digamos de estados gerais. Estavam em discussão as seguintes perguntas: a ordem tem por origem de fato uma antiga sociedade, e qual? há de fato os Superiores Desconhecidos, guardiães da tradição antiga e quem são? quais os verdadeiros fins da ordem? esse fim é a restauração da ordem dos Templários? E vai por aí afora, inclusive abordando o problema se a ordem devia ou não ocupar-se das ciências ocultas. Willermoz adere entusiasta, iria encontrar finalmente resposta às perguntas que fazia a si mesmo honestamente, durante toda a vida... E aqui nasce o caso de Maistre."

"Que Maistre?" perguntei. "Joseph ou Xavier?"

"Joseph."

"O reacionário?"

"Se foi reacionário não o foi bastante. Era um homem curioso. Notem que este defensor da Igreja católica, exatamente quando os primeiros pontífices começam a promulgar bulas contra a maçonaria, se faz membro de uma loja, com o nome de Josephus a Floribus. Mais ainda, aproxima-se da maçonaria quando em 1773 um breve papal condena os jesuítas. Naturalmente de Maistre se aproxima das lojas de tipo escocês, é natural, não é um iluminista burguês, é um iluminado - mas devem atentar a essas distinções, porque os italianos chamam iluministas aos jacobinos, ao passo que em outros países se chamam com o mesmo nome os seguidores da tradição - uma confusão curiosa...”

 

Estava saboreando o seu conhaque, tirou da cigarreira de metal quase branca uns cigarrillos de forma inusitada ("são confeccionados especialmente por meu tabaconista londrino", dizia, "como os charutos que viram em minha casa, tenham a bondade, são excelentes...”), falava com os olhos perdidos na lembrança.

"De Maistre... Um homem de fino trato, ouvi-lo era um prazer espiritual. E havia adquirido grande autoridade nos círculos iniciáticos. No entanto em Wilhelmsbad traiu a expectativa de todos. Envia uma carta ao duque, na qual nega taxativamente a filiação templar, os Superiores Desconhecidos e a utilidade das ciências esotéricas. Refuta por fidelidade à Igreja católica, mas o faz com argumentos de enciclopedista burguês. Quando o duque leu a carta num cenáculo de íntimos, ninguém quis acreditar. De Maistre então afirmava que a finalidade da ordem era apenas uma reintegração espiritual e que os cerimoniais e os ritos tradicionais serviam apenas para manter alerta o espírito místico. Louvava todos os novos símbolos maçônicos mas dizia que a imagem que representa muitas coisas não representa mais nada. E que - desculpem-me - é contrário a toda tradição hermética, porque o símbolo tanto é mais pleno, relevante, quanto mais for ambíguo, fugaz, senão onde estaria o espírito de Hermes, o deus das mil faces? E a propósito dos Templários, de Maistre dizia que a ordem do Templo havia sido criada pela avareza e a avareza a havia destruído, eis tudo. O saboiano não podia se esquecer que a ordem fora destruída com o consentimento do papa. Nunca devemos confiar nos legitimistas católicos, por mais ardente que seja sua vocação hermética. Até mesmo a resposta sobre os Superiores Desconhecidos era ridícula: não existem, e a prova é que não os conhecemos. Foi-lhe objetado que certamente não os conhecíamos, porque de outra forma não seriam desconhecidos, acham que essa era uma boa maneira de raciocinar? Curioso como um crente daquela têmpera fosse tão impermeável ao sentido do mistério. Após o que de Maistre consignava o apelo final, voltemos ao evangelho e abandonemos as loucuras de Mênfis. Não fazia mais que repor a linha milenária da Igreja. Compreende-se em que clima se tenha transcorrido a reunião de Wilhelmsbad. Com a defecção de uma autoridade como de Maistre, Willermoz é reduzido à minoria, e tudo o que se pôde fazer foi no máximo um acordo. Manteve-se o rito templar, adiou-se qualquer conclusão sobre as origens, em suma um fracasso. Foi naquele momento que o escocesismo perdeu sua oportunidade, e se as coisas tivessem ocorrido de outra maneira talvez a história do século a seguir se mostrasse diferente."

"E depois?" perguntei. "Não se concertou mais nada?"

"Mas que queriam que fosse concertado, para usar esse termo... Três anos mais tarde, um pregador evangélico que se unira aos Iluminados da Baviera, um certo Lanze, morre atingido por um raio num bosque. Encontraram no corpo instruções da ordem, o governo bávaro interveio, descobre-se que Weishaupt estava tramando contra o governo, e a ordem foi suprimida no ano seguinte. Não só, mas foram publicados escritos de Weishaupt com o suposto projeto dos iluminados, que desacreditam por um século todo o neotemplarismo francês e alemão... Notem que provavelmente os iluminados de Weishaupt estavam do lado da maçonaria jacobina e se tinham infiltrado no filão neotemplar para destruí-lo. Não será de espantar se aquela raça tivesse atraído para seu lado o próprio Mirabeau, o tribuno da revolução. Querem ouvir uma confidência?"

"Diga."

"Homens como eu, interessados em reatar os laços de uma Tradição perdida, vêem-se desorientados diante de um evento como o de Wilhelmshad. Alguém havia adivinhado e se calara, alguém sabia e mentiu. E depois já era tarde demais, primeiro o turhilhão revolucionário, depois o alvoroço do ocultismo do século XIX... Vejam na sua lista, uma consagração da má-fé e da credulidade, um passar de rasteiras, excomunhões recíprocas, segredos que circulam pela boca de todos. O teatro do ocultismo."

"Os ocultistas são pouco confiáveis, não disse?" perguntou Belbo.

"É preciso saber distinguir-se ocultismo de esoterismo. O esoterismo é a busca de um saber que não se transmite senão por simbolos, sigilosos para os profanos. O ocultismo, ao contrário, que se difunde no século XIX, é a ponta do iceberg, aquele pouco que aflora do segredo esotérico. Os Templários eram iniciados, e a prova é que, submetidos a tortura, morrem para salvar o seu segredo. A força com que o ocultaram é que nos dá a segurança de sua iniciação, e nos faz pesarosos de não sabermos o que sabiam. O ocultista é um exibicionista. Como dizia Péladan, um segredo iniciático revelado não serve para nada. Infelizmente Péladan não era um iniciado, mas um ocultista. O século XIX é o século da delação. Todos se afanam em publicar os segredos da magia, da teurgia, da Cabala, do tarô. E quiçá acreditam neles."

Agliè continuava a percorrer nossa lista, com um ou outro sorriso de comiseração. "Helena Petrovna. Bela mulher, no fundo, mas não disse uma única coisa que já não estivesse escrita em todas as paredes... De Guaita, um bibliômano drogado. Papus: esse é bom." Depois parou de repente. "Tres... Mas de onde tiraram esta informação? De que original?"

Ótimo, pensei, deu-se conta da interpolação. Mantivemo-nos na incerteza: "Olha, essa lista foi feita consultando-se vários textos, cuja maior parte já devolvemos aos autores, por ser coisa de mau gosto. Lembra-se de onde extraímos esse Tres, Belbo?"

"Não me lembro. Diotallevi?"

"Já se passaram tantos dias... Mas é importante saber?"

"De forma alguma", assegurou-nos Agliè. "É que nunca ouvi nenhuma referência a respeito. Não sabem mesmo dizer-me quem o Citou?"

Lamentávamos muito, mas não nos lembrávamos.

Agliè tirou o relógio do bolso do colete. "Meu Deus, tenho outro compromisso. Vão me desculpar."

 

Deixou-nos a sós, e lá ficamos a discutir.

"Agora está tudo claro. Os ingleses lançam a proposta maçônica para coalizar todos os iniciados da Europa em torno do projeto baconiano."

"Mas o projeto só se realiza pela metade: a idéia que os baconianos elaboram é tão fascinante que produz resultados contrários às suas expectativas. O filão dito escocês tenciona fazer do novo conventículo a maneira de reconstituir a sucessão, e entra em contato com os templários alemães."

"Agliè acha a história incompreensível. É óbvio. Só nós agora podemos dizer o que aconteceu, o que queremos que tenha acontecido. Aquela altura os vários núcleos nacionais se põem em liça uns contra os outros, não excluirei a possibilidade de que Martines de Pasqually fosse um agente do grupo de Tomar, os ingleses renegam os escoceses, que além disso são franceses, os franceses estão evidentemente divididos em dois grupos, os filoingleses e os filoalemães. A maçonaria é a cobertura exterior, o pretexto graças ao qual todos esses agentes dos diversos grupos - sabe Deus onde estão os paulicianos e os hierosolimitanos - se encontram e se confrontam procurando arrancar qualquer fiapo de segredo uns dos outros."

"A maçonaria como sendo o Rick’s Bar de Casablanca", disse Belbo. "O que vira de cabeça para baixo a opinião comum. A maçonaria não é uma sociedade secreta."

"Isto, apenas um porto franco, como Macau. Uma fachada. O segredo estava em outra parte."

"Pobres maçons."

"O progresso exige suas vítimas. Admitam no entanto que estamos encontrando uma racionalidade imanente na história."

"A racionalidade da história é efeito de uma boa reescritura da Torah", disse Diotallevi. "E nós assim estamos fazendo, e que sempre seja bendito o nome do Altíssimo."

"Está bem", disse Belbo. "Agora os baconianos têm Saint-Martin-des-Champs, a ala neotemplar franco-alemã está se dissolvendo numa miríade de seitas... Mas não decidimos ainda de que segredo se trata."

"Agora é que quero vê-los", disse Diotallevi.

"Ver-nos? Mas se todos estamos nesta, e se dela não sairmos honradamente faremos uma figura miserável."

"Com quem?"

"Mas com a história, com o tribunal da Verdade."

"Quid est veritas?" perguntou Belbo.

"Nós", disse eu.

 

Essa erva é chamada Arrancadiabo pelos Filósofos. Já ficou provado que só essas raízes podem arrancar o diabo do corpo e afastar suas alucinações... Administrada a uma jovem atormentada à noite pelo diabo, tal erva fez com que ele fugisse.

(Johannes de Rupescissa, Trattato sulla Quintessenza, II)

 

Nos dias que se seguiram não me importei com o Plano. A gravidez de Lia estava chegando a termo e sempre que podia estava com ela. Lia acalmava as minhas ânsias porque, dizia, ainda não estava na hora. Tinha entrado para um curso de parto sem dor e eu procurava acompanhar os exercícios. Lia havia rejeitado a ajuda que a ciência punha à sua disposição para saber antecipadamente o sexo do nascituro. Queria a surpresa. Eu aceitara aquela bizarrice. Apalpava-lhe o ventre, não indagava o que viria dali, e havíamos decidido chamá-lo A Coisa.

Perguntava apenas de que maneira poderia participar do parto.

"A Coisa também é minha", dizia eu. "Não quero bancar esse pai que se vê nos filmes, a passear de um lado para o outro nos corredores, fumando cigarro após cigarro."

"Pim, mais do que isso você não pode fazer. Chega um momento em que só eu posso participar. Além do mais você não fuma e não vai querer adquirir o vício só para essa ocasião."

"E então que faço?"

"Participe antes e depois. Depois, se for homem, você o educará, o plasmará, criará o seu belo édipo como convém, você se prestará sorridente ao parricídio ritual quando chegar o momento, e sem fazer barulho, depois um dia lhe mostrará seu miserável escritório, os fichários, os rascunhos da maravilhosa história dos metais e lhe dirá meu filho um dia tudo isto será seu."

"E se for mulher?"

"Lhe dirá minha filha um dia tudo isto será do malandro do seu marido."

"E antes?"

"Durante as dores do parto, entre uma dor e outra há um intervalo que se precisa contar, pois à medida que esse intervalo diminui o momento do parto se aproxima. Contaremos juntos e você me dará o ritmo, como os remadores nas regatas. Será como se fizesse sair A Coisa você também aos poucos de seu esconderijo escuro. Pobrezinho pobrezinha... Veja, agora está ali tão bem no escuro, sugando os seus líquidos como um polvo, tudo grátis, e de repente, pluft, espirra fora à luz do sol, piscará os olhos e dirá onde foi diabos que vim parar?"

"Pobrezinho pobrezinha. E ainda não terá conhecido o Sr. Garamond. Vem, vamos experimentar a contagem."

Contávamos no escuro seguros pela mão. Fantasiávamos. A Coisa era uma coisa real que ao nascer daria sentido a todas as fábulas dos diabólicos. Pobres diabólicos, que passavam as noites a simular núpcias químicas perguntando-se se na verdade delas teria resultado um ouro de dezoito quilates ou se a pedra filosofal seria a lapis exillis, um miserável Graal de érisol: e o meu Graal estava ali na barriga de Lia.

"Sim", dizia Lia fazendo-me passar a mão sobre o seu vaso pançudo e teso, "é aqui que se macera a sua boa matéria-prima. Aquela gente que você viu no castelo, que é que pensava que ocorresse no vaso?"

"Oh, que dele transbordasse a melancolia, a terra sulfurosa, o chumbo negro, o óleo de Saturno, que fosse um Fstige de modificações, assações, fumações, liquefações, empastações, impregnações, submersões, terra fétida, sepulcros pútridos...”

"Mas que eram, impotentes? Não sabiam que no vaso amadurece a nossa Coisa, uma coisa toda branca e bela e cor-de-rosa?"

"Claro que sabiam, mas para eles até mesmo sua barriga é uma metáfora, cheia de segredos...”

"Os segredos não existem, Pim. Sabemos bem como se forma a Coisa com seus nervinhos, seus musculozinhos, seus olhinhos, seus baçozinhos, seus pancreazinhos...”

"O santo Deus, quantos baços? Será o Bebê de Rosemary?"

"É por assim dizer. Mas devemos estar preparados para aceitá-la mesmo se for de duas cabeças."

"Como não? Vou ensiná-la a fazer um dueto de corneta e clarim... Não, porque devia então ter quatro mãos, o que seria demais, embora pense só que grande concertista de piano íamos ter, para não falar no concerto para a mão esquerda. Brr... Mas, além disso, até os meus diabólicos sabem que no dia em que você estiver na clínica haverá também a obra em branco, nascerá o Rébis, o andrógino...”

"Puxa, só nos faltava isso. Ouve que é melhor: vamos chamá-lo Giulio, ou Giulia, como o nome de meu avô, está bem?"

"Não me desagrada, soa bem."

 

Teria bastado que eu ficasse nisto. Que tivesse escrito um livro branco, um grimoire decente, para todos os adeptos da Ísis Revelada, para explicar-lhes que o secretum secretorum não devia ser mais procurado, que a leitura da vida não encerrava nenhum sentido oculto, e que tudo estava ali, na barriga de todas as Lias do mundo, nos quartos das clínicas, nos enxergões, à margem dos rios, e que as pedras que saem do exílio e o santo Graal outra coisa não são que macaquinhos que gritam com o cordão umbilical a lhes balançar ainda e o médico a lhes dar palmadinhas na bunda. E que os Superiores Desconhecidos, para A Coisa, éramos eu e Lia, mas que logo nos haveria de reconhecer, sem ter que andar por aí a perguntar àquele bobalhão do de Maistre.

Mas não, nós - os sardônicos - queríamos brincar de esconder com os diabólicos mostrando-lhes que, se tinha de haver uma conspiração cósmica, nós sabíamos inventar uma que não podia ser mais cósmica.

Bem-feito - disse para mim aquela noite - agora estás aqui a esperar o que vai acontecer sob o pêndulo de Foucault.

 

Direi que este monstruoso cruzamento nao provém certamente de um útero materno, mas com certeza de um Efialta, de um íncubo, ou de algum outro horrendo demônio, como se tivesse sido concebido de um fungo pútrido e venenoso, filho de Faunos e de Ninfas, mais parecido com um demônio do que com um homem.

(Athanasius Kircher, Mundus Subterraneus, Amsterdam, Jansson, 1665, II, pp. 279-280)

 

Aquele dia eu quis estar em casa, pressentia algo, mas Lia me pedira para não bancar o príncipe consorte e fosse trabalhar. "Ainda há tempo, Pim, não vai nascer agora. Eu também preciso sair. Vai."

Estava para chegar à porta de meu estúdio quando se abriu a do Sr. Salon. Apareceu o velho, no seu avental amarelo de trabalho. Não pude deixar de cumprimentá-lo e ele me convidou a entrar. Nunca tinha visto o seu laboratório, e entrei.

Se por trás daquela porta havia antes um apartamento, Salon deve ter mandado botar abaixo as divisórias porque o que vi foi um antro, de dimensões vastas e imprecisas. Por alguma remota razão arquitetônica, aquela ala do edifício era coberta por mansarda, e a luz penetrava pela vidraça oblíqua. Não sei se os vidros estavam sujos ou se eram foscos, ou se Salon os havia recoberto para evitar o sol a pino, ou ainda se eram as pilhas de objetos que proclamavam por todo canto o temor de deixar espaços vazios, mas o certo é que no antro se espalhava uma luz de crepúsculo tardio, mesmo porque o grande vão estava dividido por prateleiras de velhas farmácias as quais se abriam como arcadas que escandiam aberturas, passagens, perspectivas. A tonalidade dominante era o marrom, marrons os objetos, as estantes, as mesas, o amálgama difuso da luz do dia e a de velhas lâmpadas que iluminavam alguns recantos como se fossem borrões. A primeira impressão era a de que havia entrado na oficina de um fabricante de alaúdes em que os artífices tinham desaparecido nos tempos de Stradivarius e a poeira se tivesse acumulado pouco a pouco sobre o ventre zebrado das tiorbas.

Depois, habituando os olhos pouco a pouco, compreendi que me encontrava, como devia ter suposto, num zôo petrificado. Ao alto um ursinho se agarrava a um ramo artificial, com olhos lúcidos e vítreos, ao meu lado pairava uma coruja atônita e hierática, em frente sobre a mesa estava uma doninha - ou uma fuinha, ou um furão, não sei. No centro da mesa, um animal pré-histórico que de início não reconheci como um felino analisado em raios X.

Podia ser um puma, um leopardo, um cão de grandes dimensões, distinguia-lhe o esqueleto no qual tinha sido enfiado em parte um chumaço de estopa sustentado por uma armadura de ferro.

"É o alão de uma rica senhora de coração de manteiga", escarneceu Salon, "que quer se lembrar dele como nos tempos de sua vida conjugal. Está vendo? Tira-se a pele do animal, esfrega-se internamente com sabão arsenical, depois deixa-se macerar e embranquiçar os ossos... Veja naquela estante que bela coleção de colunas vertebrais e caixas torácicas. Um belo ossário, não lhe parece? Depois os ossos são ligados com fios metálicos e uma vez reconstituído o esqueleto monta-se sobre ele uma armadura, normalmente utilizo o feno, e às vezes papelão ou gesso. Por fim monta-se a pele. Reparo os danos da morte e da corrupção. Veja só este mocho, não parece vivo?"

A partir de então todo mocho vivo me teria parecido morto, destinado por Salon àquela esclerótica eternidade. Olhei na cara esse embalsamador de faraós bestiais, suas sobrancelhas tufosas, seus zigomas pardacentos, e procurei perceber se se tratava de um ser vivo ou não antes de uma obra-prima de sua própria arte.

Para melhor observá-lo dei um passo atrás e senti algo me roçar a nuca. Voltei-me com um arrepio e vi que tinha posto em movimento um pêndulo.

Um grande pássaro esquartejado oscilava seguindo o movimentoda lança que o trespassava. Esta lhe entrava pela cabeça e no peito aberto via-se que lhe penetrava ali onde outrora tinha estado o coração e o papo, e que se atava em nó para ramificar-se em tridente emborcado. Uma parte, mais espessa, perfurava-lhe o lugar onde tinha havido as vísceras e apontava para a terra como uma espada, enquanto dois floretes penetravam as patas e irrompiam simetricamente dos artelhos. O pássaro balouçava levemente e as três pontas indicavam no solo o traço que ali deixariam se o tivessem aflorado.

"Belo exemplar de águia real", disse Salon. "Mas ainda preciso trabalhá-la mais um pouco. Estava exatamente escolhendo os olhos para ela." E me mostrava uma caixa cheia de córneas e pupilas de vidro, como se o algoz de santa Luzia tivesse ajuntado o cimélio de sua carreira. "Nem sempre é fácil como no caso dos insetos, quando basta uma caixinha e um alfinete. Os invertebrados por exemplo são tratados com formol."

Senti um odor de câmara mortuária. "Deve ser um trabalho apaixonante", disse eu. E entrementes pensava naquela coisa viva que palpitava no ventre de Lia. Assaltou-me um pensamento gélido: se A Coisa morresse, disse para mim, quero eu mesmo sepultá-la, para que nutra todos os vermes do chão e fecunde a terra. Só assim a sentirei ainda viva...

Estremeci, porque Salon estava falando, e tirava uma estranha criatura de uma de suas estantes. Tinha uns trinta centímetros de comprimento e era certamente um lagarto, um réptil de longas asas negras e membranosas, com crista de galo e fauces escancaradas eriçadas de minúsculos dentes em serra. "Bonito, não é mesmo? Uma das minhas composições. Usei uma salamandra, um morcego, as escamas de uma serpente... Um dragão das profundezas. Inspirei-me ali...” Apontou-me em cima de outra mesa um grosso volume in-fólio, encadernado em pergaminho antigo, com guardas de couro. "Custou-me os olhos da cara, não sou bibliófilo, mas este eu queria ter. É o Mundus Subterraneus de Athanasius Kircher, primeira edição, de 1665. Aqui está o dragão. Igual, não lhe parece? Vive nas anfractuosidades dos vulcões, dizia aquele bom jesuíta, que sabia tudo, do sabido, do ignoto e do inexistente...”

"O senhor pensa sempre nos subterrâneos", disse-lhe, recordando nossa conversa em Munique e as frases que havia captado através do ouvido de Dionísio. Abriu o volume em outra página: havia uma imagem do globo terrestre que aparecia como um órgão anatômico túmido e negro, atravessado por uma teia de aranha de veias luminescentes, serpentiformes e flamejantes. "Se Kircher tinha razão, há mais sendeiros no interior da terra do que na superfície. Se algo ocorre na natureza, vem do calor que fumega lá dentro...” Eu pensava na obra em negro, no ventre de Lia, na Coisa que buscava irromper de seu doce vulcão.

"...e se algo ocorre no mundo dos homens, é ali embaixo que se trama."

"Quem diz é o padre Kircher?"

"Não, ele se ocupa apenas da natureza... Mas é singular que a segunda parte deste livro seja sobre a alquimia e os alquimistas e que exatamente ali, veja só, neste ponto, haja um ataque aos Rosa-Cruzes. Por que ataca os Rosa-Cruzes num livro sobre o mundo subterrâneo? Era astuto esse nosso jesuíta, sabia que os últimos Templários se haviam refugiado no reino subterrâneo de Agarttha...”

"E ainda estão por lá, ao que parece", arrisquei.

"Ainda estão", disse Salon. "Não em Agarttha, mas em outros intestinos. Talvez aqui embaixo de nós. Agora até Milão tem seu metropolitano. Quem foi que o quis? Quem dirigiu as escavações?"

"Diria que foram os engenheiros especializados."

"Aí está, o senhor gosta de tapar os olhos com as mãos. No entanto na casa editora em que trabalha publicam-se livros de não se sabe quem. Quantos judeus existem entre os seus autores?"

"Não pedimos carteira genética de nossos editados", respondi-lhe seco.

"Não pense que sou anti-semita. Alguns de meus melhores amigos são judeus. Refiro-me a um certo tipo de judeus...”

"Quais?"

"Eu sei...”

 

Abriu seu cofrezinho. Numa desordem indescritível ali estavam colarinhos, elásticos, utensílios de cozinha, insignias de várias escolas técnicas, até mesmo um monograma da imperatriz Alexandra Feodorovna e a cruz da Legião de Honra. Além de tudo sua alucinação fazia-o identificar o sinete do Anticristo sob a forma de um triângulo ou de dois triângulos criazados.

(Alexandre Chayla, "Serge A. Nilus et les Protocoles", La Tribune Juive, 14 de maio de 1921, p. 3)

 

"Veja", acrescentou, "eu nasci em Moscou. Foi exatamente na Rússia, quando era jovem, que apareceram os documentos secretos judeus em que se dizia claramente que para subjugar os governos era necessário trabalhar no subsolo. Ouça aqui." Tomou um caderninho onde havia copiado à mão algumas citações: ""Nessa época todas as cidades terão ferrovias metropolitanas e passagens subterrâneas: será de lá que faremos saltar aos ares todas as cidades do mundo." Protocolos dos Sábios de Sião, documento número nove!"

Veio-me a idéia de que sua coleção de vértebras, a caixa de olhos, as peles que se estendiam sobre as armaduras, proviessem de algum campo de extermínio. Mas não, nada tinham a ver com um velho nostálgico, que trazia do passado velhas recordações do anti-semitismo russo.

"Se não me engano existe um conciliábulo de judeus, não todos, que trama alguma coisa. Mas por que nos subterrâneos?"

"Parece-me evidente! Quem trama, se trama, trama escondido, não à luz do Sol. Desde o tempo dos tempos que todos sabem disso. O domínio do mundo significa o domínio daquilo que está embaixo. Das correntes subterrâneas."

Lembrei-me de uma pergunta de Agliè em seu escritório, e da druidesa no Piemonte, que evocavam as correntes telúricas.

"Por que os celtas escavavam santuários no coração da Terra, com galerias que se comunicavam com um poço sagrado?" continuava Salon. "O poço penetrava em veios radioativos, é sabido. Como foi construída Glanstonbury? E não se trata talvez da ilha de Avalon, dali de onde se origina o mito do Graal? E quem inventa o Graal senão um judeu?"

De novo o Graal, santo deus. Mas qual Graal, o Graal só existe um, que é a minha Coisa, em contato com os veios radioativos do útero de Lia, e que talvez agora estivesse navegando feliz em direção à boca do poço, talvez se preparando para sair e eu aqui metido entre estes mochos empalhados, cem dos quais mortos e um que finge estar ainda vivo.

"Todas as catedrais são construídas lá onde os celtas tinham seu menir. Por que plantavam pedras no terreno, com o esforço incrível que isto custava?"

"E por que os egípcios faziam um esforço incrível para erguer pa‘a o alto as suas pirâmides?"

"De fato. Antenas, termômetros, sondas, agulhas como aquelas dos médicos chineses, plantadas onde o corpo reage, nos pontos nodais. No centro da Terra há um núcleo de fusão, algo assim parecido com o Sol, até mesmo um verdadeiro Sol em torno do qual alguma coisa gira, em trajetórias diferentes. Órbitas de correntes telúricas. Os celtas sabiam onde estavam elas, e como dominá-las. E Dante, e Dante? Que pretende contar-nos com a história de sua descida às profundezas? Compreende, caro amigo?"

Não me parecia ser seu caro amigo, mas continuava a ouvi-lo. Giulio Giulia, o meu Rébis plantado como Lúcifer no centro do ventre de Lia, mas ele, ela, a Coisa estivesse de cabeça para baixo ou projetada para o alto, de qualquer modo estaria saindo. A Coisa é feita para sair das vísceras, para revelar-se em seu segredo límpido, e não para estar ali de cabeça baixa à procura de um segredo viscoso.

Salon continuava, agora perdido num monólogo que parecia repetir de cor: "Sabe o que são os leys ingleses? Sobrevoe a Inglaterra e verá que todos os lugares sagrados estão unidos por linhas retas, uma rede de linhas que se entrecruzam por todo o território, ainda visíveis porque inspiraram o traçado das estradas atuais...”

"Se eram lugares sagrados, eram ligados por estradas, e as estradas sempre se procura faze-las o mais reto possível...”

"Será? Mas por que ao longo dessas linhas é que migram as aves? Por que assinalam os trajetos seguidos pelos discos voadores? É um segredo que se perdeu após a invasão romana, mas há quem o conheça ainda...”

"Os judeus", sugeri.

"Eles também procuram. O primeiro princípio alquímico é VITRIOL: Visita Interiora Terrae, Rectificando Invenies Occultum Lapidem."

Lapis exillis. A minha Pedra que estava lentamente saindo do exílio, do doce e desmemoriado hipnótico exílio do eficiente receptáculo de Lia, sem buscar outras profundidades, a minha Pedra bela e branca que quer a superfície... Tive vontade de correr a casa, esperar junto com Lia a aparição da Coisa, hora por hora, o triunfo da superfície reconquistada. No antro de Salon havia o bafio dos subterrâneos, os subterrâneos são a origem que devemos abandonar, e não a meta a ser alcançada. E no entanto acompanhava Salon, e no entanto maquinava novas idéias maliciosas para o Plano. Enquanto aguardava a única Verdade deste mundo sublunar estava me danando todo para arquitetar novas mentiras. Cego como os animais do subsolo.

Estremeci. Tinha que sair do túnel. "Preciso ir-me", disse. "Quem sabe me podia aconselhar alguns livros sobre o tema."

"Bah, tudo quanto escreveram sobre estas coisas é falso, falso como a alma de Judas. O que eu sei aprendi com meu pai...”

"Geólogo?"

"Oh não", riu-se Salon, "não, de forma alguma. Meu pai - não tenho de que me envergonhar, são águas passadas - trabalhava na Okrana. Diretamente sob as ordens do Chefe, o legendário Rakkovsky."

Okrana, Okrana, algo assim, como o KGB, não era a policia secreta czarista? E Rakovsky, quem era? Quem tinha um nome parecido? Meu Deus, o misterioso visitante do coronel, o conde Rakosky...

Não, bobagem, estava me deixando levar pelas coincidências. Eu não empalhava animais mortos, gerava animais vivos.

 

Quando sobrevém o Branco na matéria da Grande Obra, a Vida venceu a Morte, seu Rei ressuscitou, a Terra e a Agua se tornaram Ar, passa a ser o regime da Lua, seu Filho nasceu... Então a Matéria adquiriu um tal grau de fixidez que o Fogo não conseguiria mais destruí-la... Quando o artista vê a brancura perfeita os Filósofos dizem que é necessário rasgar os livros, porque estes se tornaram inúteis.

(Dom J. Pernety, Dictionnaire mytho-hermétique. Paris, Bauche, 1758. "Blancheur")

 

Inventei uma desculpa, na pressa. Creio ter dito "minha pequena vai ter filho amanhã", Salon me deu parabéns, com ar de não haver percebido quem era o pai. Corri para casa, para respirar ar puro.

Lia não estava. Na mesa da cozinha havia um papel: "Amor, rompeu a bolsa de água. Você não estava no escritório. Vou para a clínica de táxi. Vá me encontrar lá, estou me sentindo só."

Tive um momento de pânico, devia estar ali contando junto com Lia, ou estar no escritório, onde pudesse ser facilmente encontrável. Era culpa minha, A Coisa nasceria morta. Lia morreria com ela. Salon iria empalhar ambas.

Entrei na clínica como se tivesse labirintite, perguntei a pessoas que nada sabiam, enganei-me duas vezes de departamento. Dizia a todos que bem deviam saber onde Lia estava tendo a criança, e todos me diziam para me acalmar porque ali todas as mulheres estavam tendo ou iam ter crianças. Finalmente, não sei como, encontrei-me num quarto. Lia estava pálida, mas de uma palidez cor de pérola, sorridente. Alguém lhe havia levantado o tufo de cabelo, recolhendo-o sob uma touca branca. Pela primeira vez vi a fronte de Lia em todo o seu esplendor. Tinha ao lado uma Coisa.

"É Giulio", disse.

O meu Rébis. Eu também o tinha feito, e não com fragmentos de corpos mortos, e sem sabão arsenical. Era perfeito, tinha todos os dedos nos lugares certos.

Tratei de vê-lo todo. "Oh que peruzinho bonito, olha só que sacão o dele!" Depois pus-me a beijar Lia na fronte nua: "Mas o mérito é seu, minha querida, tudo depende do vaso."

"Claro que o mérito é meu, seu molenga. Eu contei sozinha."

"Eu sempre conto com você", lhe disse.

 

O povo subterrâneo atingiu o máximo do saber... Se nossa louca humanidade iniciasse uma guerra contra eles, seriam capazes de fazer saltar aos ares a superfície do planeta.

(Ferdinand Ossendowski, Beast, Men and Gods, 1924, V)

 

Permaneci ao lado de Lia mesmo depois que ela saiu da clínica, pois mal chegou em casa, enquanto estava trocando as fraldas da criança, rompeu a chorar dizendo que jamais devia ter tido um filho. Alguém depois nos explicou que isso era uma reação normal: depois da excitação pela vitória do parto sobrevém uma sensação de impotência diante da imensidade da tarefa. Naqueles dias, em que vagabundeava em casa sentindo-me totalmente inútil, ou em todo caso inadaptado para a amamentação, passei longas horas a ler tudo aquilo que consegui encontrar sobre as correntes telúricas.

Ao voltar ao trabalho falei a respeito delas com Agliè. Fez um gesto excessivamente aborrecido: "Pobres metáforas para aludir ao segredo da serpente Kundalini. Também a geomancia chinesa procurava na terra os traços do dragão, mas a serpente telúrica queria significar apenas a serpente iniciática. A deusa repousa sob a forma de serpente enrodilhada e dorme o seu eterno letargo. Kundalini respira suavemente, palpita com um leve sibilo e une os corpos pesados aos corpos leves. Como um vértice, ou uma turbina hidráulica, como a metade da sílaba OM."

"Mas a que segredo alude a serpente?"

"Às correntes telúricas. Mas às verdadeiras."

"E o que são as verdadeiras correntes telúricas?"

"Uma grande metáfora cosmológica, e aludem à serpente."

Ao diabo Agliè, disse comigo. Eu sei mais que isso.

 

Reli meus apontamentos a Belbo e a Diotallevi, e não tivemos mais dúvidas. Estávamos finalmente em condições de prover os Templários com um segredo digno. Era a solução mais econômica, mais elegante, e conseguia encaixar todas as peças de nosso quebra-cabeça milenário.

Ora pois, os celtas sabiam das correntes telúricas: tiveram conhecimento delas por meio dos atlântidas, quando os sobreviventes do continente submerso emigraram em parte para o Egito e em parte para a Bretanha.

Os atlântidas por sua vez haviam aprendido tudo com aqueles nossos ancestrais que de Avalon, através do continente Mu, se haviam espalhado até o deserto central da Austrália - quando todos os continentes eram um único núcleo percorrivel, a maravilhosa Pangéia. Bastaria saber-se ler ainda (como sabem os aborígines, mas que no entanto se calam) o misterioso alfabeto gravado no maciço de Ayers Rock, para se ter a Explicação. Ayers Rock é antípoda do grande monte (desconhecido) que é o Pólo, o verdadeiro, o Pólo iniciático, e não aquele ao qual pode chegar qualquer explorador burguês. Como de costume, e como é evidente para quem não tenha os olhos embaciados pelo falso saber da ciência ocidental, o Pólo que se vê é aquele que não é, e o que é ninguém consegue ver, a não ser algum adepto, que mantém os lábios selados.

Os celtas no entanto acreditavam que bastaria descobrir o plano global das correntes. Eis por que erigiam megálitos: os menires eram aparelhos radioestésicos, como sondas, como tomadas elétricas fixadas nos pontos onde as correntes se difundiam em diversas direções. Os Leys assinalavam o percurso de uma corrente já identificada. Os dolmens eram câmaras de condensação de energia onde os druidas buscavam com artifícios geomânticos extrapolar o projeto global. Os cromlech e Stonehenge eram observatórios micromacrocósmicos onde se tentava adivinhar, através da seqüência das constelações, a ordem das correntes - pois, como preconiza a Tábula Esmeraldina, o que está por cima é isomorfo ao que está por baixo.

Mas o problema não era aquele, ou pelo menos não era só aquele. E isso havia compreendido a outra ala da emigração atlântida. Os conhecimentos ocultos dos egípcios haviam passado de Hermes Trismegisto a Moisés, que fez bem em não revelá-lo aos seus seguidores maltrapilhos com o papo ainda cheio de maná - aos quais havia transmitido os dez mandamentos, pois estes pelo menos eles estavam em condições de compreender. A verdade, que é aristocrática, Moisés gravou-a em línguagem cifrada no Pentateuco. E isto haviam percebido os cabalistas.

"Imagine só", dizia eu, "tudo já estava escrito como num livro aberto nas medidas do Templo de Salomão, e os custódios do segredo eram os Rosa-Cruzes que constituíam a Grande Fraternidade Branca, ou de fato os essênios, os quais como é sabido põem Jesus a par de seu segredo, motivo, de outra forma incompreensível, pelo qual Jesus acaba crucificado...”

"Certo, a paixão de Cristo é uma alegoria, um anúncio do processo dos Templários."

"De fato. E José de Arimatéia traz ou leva de volta o segredo de Jesus para o país dos celtas. Mas evidentemente o segredo está ainda incompleto, os druidas cristãos conhecem dele apenas um fragmento, donde o significado esotérico do Graal: há qualquer coisa, mas não sabemos que coisa seja. Somente um núcleo de rabinos que permaneceu na Palestina suspeita do que poderia ser a coisa que o Templo já dizia por extenso. Estes confiam seu segredo aos sete iniciáticos muçulmanos, aos sufis, aos ismaelitas, aos motocallemins. E é desses que os Templários o aprendem."

"Finalmente os Templários. Estava preocupado."

Dávamos toques de polegar ao Plano, que, como uma argila macia, obedecia aos nossos desejos fabulatórios. Os Templários haviam descoberto o segredo durante aquelas noites insones, abraçados aos companheiros de sela, no deserto onde soprava inexorável o simum. Haviam-no arrancado fio por fio àqueles que conheciam os poderes de concentração cósmica da Pedra Negra de Meca, herança espiritual dos magos babilônicos - porque estava claro a esta altura que a Torre de Babel não era outra coisa senão a tentativa, infelizmente por demais apressada e justamente falha pela soberba de seus projetistas, de construir-se um menir mais potente que todos, salvo que os arquitetos babilônicos haviam feito mal as contas porque, como o havia demonstrado o padre Kircher, se a torre tivesse chegado ao cume, seu peso excessivo teria feito rodar o eixo da Terra em noventa graus ou talvez mais, e o nosso pobre globo ficaria, em vez de com uma coroa itifálica apontada erétil para o alto, com um apêndice estéril, com uma mêntula amolecida, uma cauda simiesca, balouçando pendurada para baixo, uma Shekinah perdida nos abismos vertiginosos de um Malkut antártico, flácido hieróglifo para pingüins.

"Mas, afinal, qual o segredo descoberto pelos Templários?"

"Calma, lá chegaremos. Foram precisos sete dias para fazer o mundo. Esperemos."

 

A Terra é um corpo magnético: de fato, como alguns cientistas descobriram, é ela toda um grande magneto, como Paracelso observou há cerca de trezentos anos.

(H. P. Blavatsky, Isis Unveiled, New York, Bouton, 1877, I, p. XXIII)

 

Tentamos, e chegamos a ele. A Terra é um grande ímã, cuja força e direção de suas correntes são determinadas também pela influência das esferas celestes, os ciclos sazonais, a precessão dos equinócios e os ciclos cósmicos. Por isso o sistema das correntes é mutável. Mas deve mover-se como os cabelos, que, conquanto cresçam em toda a calota craniana, parecem originar-se em espiral de um ponto existente na nuca, exatamente onde são mais rebeldes ao penteado. Identificado esse ponto, ali colocada a estação mais potente, poder-se-iam dominar, dirigir, comandar todos os fluxos telúricos do planeta. Os Templários haviam percebido que o segredo não consistia apenas em conhecer o mapa global, mas em saber onde estava seu ponto crítico, o Omphalós, o Umbilicus Telluris, o Centro do Mundo, a Origem do Comando.

Toda a fabulação alquimica, a descida ctônia da obra em negro, a descarga elétrica da obra em branco, não passavam de simbolos, transparentes para os iniciados, desta auscultação centenária cujo resultado final deveria ser a obra em rubro, o conhecimento global, o domínio fulgurante do sistema planetário das correntes. O segredo, o verdadeiro segredo alquimico e templar estava na identificação da Fonte daquele ritmo interno, suave, tremendo e regular como o palpitar da serpente Kundalini, ainda ignorado em muitos de seus aspectos, mas certamente preciso como um relógio, da única, verdadeira Pedra jamais caída em exílio do céu, a Grande Mãe Terra.

Era aliás o que queria saber Filipe o Belo. Daí a maliciosa insistência dos inquisidores sobre o misterioso beijo in posteriori parte spine dorsi. Queriam o segredo de Kundalini. Sodomia, no duro.

"Tudo perfeito", dizia Diotallevi. "Mas quando soubermos dirigir as correntes telúricas, que fazemos com elas? Níquel?"

"Mas ora vamos", dizia eu, "não apreciam o sentido da descoberta? Finquem no Umbilicus Telluris a antena mais potente. Estar de posse daquela estação significa poder prever as chuvas e as secas, desencadear furacões, maremotos, terremotos, rachar ao meio os continentes, afundar as ilhas no abismo (certamente a Atlântida desapareceu em conseqüência de um experimento imprudente), fazer levitar as florestas e as montanhas... Dão-se conta disto? Diverso da bomba atômica, que causa mal igualmente a quem a joga. Você de sua torre de comando telefona, sei lá, ao presidente dos Estados Unidos e lhe diz: quero um fantastilhão de dólares até amanhã, ou ainda a independência da América Latina, ou o Havaí, ou a destruição de suas reservas nucleares, senão a falha da Califórnia se abre definitivamente e Las Vegas se transforma num cassino flutuante...”

"Mas Las Vegas é em Nevada...”

"E que importa, controlando as correntes telúricas você pode separar Nevada, o Cobrado, tudo. Depois telefona para o Soviete Supremo e lhes diz meus amigos, de hoje até segunda quero todo o caviar do Volga, e a Sibéria para fazer dela uma loja de sorvete, senão sorvo os Urais, faço transbordar o Cáspio, mando a Lituânia e a Estônia à deriva e faço-as mergulhar na Fossa das Filipinas."

"É verdade", admitia Diotallevi. "Um poder imenso. Reescrever a Terra como a Torah. Deslocar o Japão para o golfo do Panamá."

"Pânico em Wall Street."

"Melhor que escudo espacial. Melhor que transmutar os metais em ouro. Dirige-se a descarga certa, põe-se em orgasmo as vísceras da Terra, em dez segundos se consegue fazer aquilo que levaria bilhões de anos, e o Ruhr inteiro se transforma para você numa jazida de diamantes. Eliphas Levi dizia que o conhecimento das marés fluídicas e das correntes universais representa o segredo da onipotência humana."

"Deve ser assim", dizia Belbo, "é como transformar a Terra inteira numa câmara orgônica. É óbvio, Reich era certamente um Templário."

"Todos eram, menos nós. Ainda bem que nos demos conta disso. Agora quem lhes marca o compasso somos nós."

 

De fato o que teria detido os Templários depois de descoberto o segredo? Deviam desfrutá-lo. Mas entre saber e saber fazer há uma grande distância. Entretanto, instruídos pelo diabólico são Bernardo, os Templários haviam substituído os menires, pobres estacas célticas pelas catedrais góticas, bem mais sensíveis e potentes, com suas criptas subterrâneas habitadas por virgens negras, em contato direto com os veios radioativos, e haviam coberto a Europa com uma rede de estações receptotransmissoras que comunicavam umas às outras as potencias e as direções dos fluídos, os humores e as tensões das correntes.

"Afirmo que descobriram as minas de prata do Novo Mundo, provocaram erupções, depois controlando a corrente do Golfo fizeram defluir o mineral sobre costas portuguesas. Tomar era o centro de separação, a Floresta do Oriente, o celeiro principal. Eis a origem da riqueza deles. Mas não passavam de migalhas. Logo perceberam que para desfrutar integralmente o seu segredo teriam que esperar um desenvolvimento técnico que requeria pelo menos o espaço de seiscentos anos."

Por isso os Templários haviam organizado o Plano de modo que só os seus sucessores, quando estivessem em condições de usar devidamente aquilo que sabiam, descobrissem onde se localizava o Umbilicus Telluris. Mas de que modo haviam distribuído os fragmentos da revelação pelos trinta e seis cavaleiros espalhados pelo mundo? Seriam outras tantas partes da mesma mensagem? Mas para que se precisa de uma mensagem tão complexa para dizer o Umbilicus é, por exemplo, Baden-Baden, ou Cuneo, ou Chattanooga?

Um mapa? Mas um mapa tem um sinal sobre o ponto em que se acha o Umbilicus. E quem tiver em mãos o fragmento com o sinal fica sabendo já de tudo e não precisa juntar os outros fragmentos. Não, a coisa devia ser mais complexa. Ficamos quebrando a cabeça com isso por mais alguns dias até que Belbo resolveu recorrer ao Abulafia. E a resposta foi:

 

Guillaume Postel morreu em 1581.

Bacon é visconde de Santo Albano.

O Pêndulo de Foucault está no Conservatoire.

 

Havia chegado o momento de se encontrar uma função para o Pêndulo.

 

Eu estava em condições de propor alguns dias depois uma solução mais elegante. Um diabólico nos havia proposto um texto sobre o segredo hermético das catedrais. Segundo o nosso autor um dia os construtores de Chartres haviam deixado um fio de prumo apenso do arco de uma abóbada, e daí haviam facilmente deduzido a rotação da Terra. Eis a razão do processo a Galileu, observara Diotallevi, a Igreja farejara nele um Templário - não, redargüira Belbo, os cardeais que tinham condenado Galileu eram adeptos dos Templários infiltrados em Roma, que se tinham apressado em tapar a boca do maldito toscano, Templário traidor que estava para soprar tudo o que sabia, por vaidade, com quatrocentos anos de antecipação à data de execução do Plano.

Em todo caso essa descoberta explicava por que sob o Pêndulo aqueles mestres pedreiros haviam traçado um labirinto, imagem estilizada do sistema de correntes subterrâneas. Busquemos uma imagem do labirinto de Chartres: um relógio solar, uma rosa-dos-ventos, um sistema venoso, um rastro viscoso dos movimentos sonolentos da Serpente. Um mapa-múndi das correntes.

"Muito bem, suponhamos que os Templários se serviram do Pêndulo para indicar o Umbilicus. Em vez do labirinto, que não deixa de ser sempre um esquema abstrato, põem no chão um mapa do mundo digamos, que o ponto assinalado pela ponta do Pêndulo a e dizem a determinada hora é aquele onde está localizado o Umbilicus. Mas onde?"

"O lugar está fora de questão: é Saint-Martin-des-Champs, o Refúgio."

"Sim", sutilizava Belbo, "mas suponhamos que à meia-noite o Pêndulo oscile ao longo de um eixo - vamos dizer ao acaso - Copenhague-Capetown. Onde estará o Umbigo, na Dinamarca ou na África do Sul?"

"Observação justa", disse eu. "Mas o nosso diabólico nos conta igualmente que em Chartres há uma fissura num dos vitrais do coro e que a determinada hora do dia um raio de Sol penetra por ela e vai incidir sempre sobre o mesmo ponto, sempre sobre a mesma pedra do pavimento. Não recordo que conclusão ele extrai desse fato, mas em todo caso trata-se de um grande segredo. Eis o mecanismo. No coro de Saint-Martin há uma janela com uma greta no ponto em que dois vidros coloridos ou foscos foram juntados um ao outro pela massa de chumbo. Foi calculada minuciosamente, e com toda a probabilidade há seiscentos anos que alguém se dá ao trabalho de mantê-la em forma. Ao nascer do Sol de determinado dia do ano...”

"...que não pode ser outro senão o dia 24 de junho, dia de são João, festa do solstício de verão...”

"...isto, naquele dia e naquela hora, o primeiro raio de Sol que penetra pela janela bate no Pêndulo e ali onde o Pêndulo está no momento em que for atingido pelo raio de Sol, naquele preciso ponto do mapa é que estará o Umbilicus!"

"Perfeito", disse Belbo. "Mas se o céu estiver encoberto?"

"Espera-se pelo ano seguinte."

 

"Desculpem-me", disse Belbo. "O último encontro é em Jerusalém. Não seria do ápice da cúpula da Mesquita de Omar que deveria estar pendente o Pêndulo?"

"Não", convenci-o. "Em certas partes do globo o Pêndulo executa o próprio círculo em 36 horas, no Pólo Norte gastaria só as 24 horas e no equador o plano de oscilação não teria variação alguma. Logo o lugar conta. Se os Templários fizeram sua descoberta em Saint-Martin, o cálculo só vale para Paris, porque na Palestina o Pêndulo assinalaria uma curva diferente."

"E quem lhe disse que fizeram a descoberta em Saint-Martin?"

"O fato de haverem escolhido Saint-Martin para o Refúgio, de que desde o prior de Santo Albano a Postel, à Convenção, o terem mantido sob controle, e de que depois das primeiras experiências de Foucault tenham feito pendurar o Pêndulo lá em cima. Há indícios mais que suficientes."

"Mas o último encontro é em Jerusalém."

"E daí? Em Jerusalém a mensagem será recomposta, e isso não é algo que tome apenas uns minutos. Depois preparam-se por todo um ano e no dia 23 de junho do ano seguinte todos os seis grupos se encontram em Paris, para saber finalmente onde encontrar o Umbilicus e meter mãos à obra na conquista do mundo."

"Contudo", insistia Belbo, "há uma outra coisa que não me cai bem. Que a revelação final diga respeito ao Umbilicus, isso os trinta e seis sabiam. O Pêndulo já era usado nas catedrais e portanto não era segredo. Mas que pretendia Bacon ou Postel ou o próprio Foucault - porque certamente se ele montou essa dança do Pêndulo é porque fazia parte da trinca também -, que pretendia, pergunto, santo deus, ao meter um mapa do mundo sob o pavimento e orientá-lo segundo os pontos cardeais? Estamos perdidos no caminho."

"Não estamos", disse eu. "A mensagem diz uma coisa que ninguém podia saber: que mapa usar!"

 

Um mapa não é o território.

(Alfred Korzybski, Science and Sanity, 1933; 4ª ed., The International Non-Aristotelian Library, 1958, II, 4, p. 58)

 

"Tenham presente a situação da cartografia no tempo dos Templários", dizia-lhes. "Naquele século circulavam mapas árabes, que entre outras coisas situavam a África no alto e a Europa embaixo, mapas de navegadores, tudo somado bastante precisos, e mapas de trezentos ou quatrocentos anos antes, que nas escolas ainda eram tidos por bons. Notem que para revelar onde esteja o Umbilicus não se tem necessidade de um mapa preciso, no sentido que hoje emprestamos ao termo. Basta que seja um mapa que tenha a seguinte característica: uma vez orientado, mostra o Umbilicus no ponto em que o Pêndulo se ilumina na alvorada do dia 24 de junho. Ora estejam atentos: admitamos, por pura hipótese, que o Umbilicus seja Jerusalém. Em nossos mapas modernos, Jerusalém está localizada num certo ponto, que mesmo hoje depende do tipo de projeção. Mas os Templários dispunham de mapa feito sabe-se lá como. Pois bem, que nos importam eles? Não é o Pêndulo que está em função do mapa, mas o mapa que está em função do Pêndulo. Estão me acompanhando? Poderia ser o mapa mais insensato do mundo, desde que, uma vez posto embaixo do Pêndulo, um raio de Sol fatídico do raiar do dia 24 de junho identifique o ponto em que ali, naquele mapa, e não em outro qualquer, apareça Jerusalém."

"Mas isto não resolve o nosso problema", disse Diotallevi.

"Claro que não, e tampouco o dos trinta e seis invisíveis. Porque, se não identificarmos o mapa certo, adeus. Procuremos pensar num mapa orientado de modo canônico com o leste em direção à abside e o oeste voltado para a nave, porque assim é que estão orientadas as igrejas. Agora levantemos uma hipótese qualquer, e digo ao acaso: que naquela madrugada fatal o Pêndulo deva encontrar-se em cima de uma zona levemente a leste, quase nos limites do quadrante sudeste. Se se tratasse de um relógio, diríamos que o Pêndulo deveria assinalar as cinco e vinte e cinco. Está bem? Pois agora estão percebendo."

Fui apanhar uma história da cartografia.

"Eis aqui, número um, um mapa do século XII. Retoma a estrutura do mapa em T, no alto está a Ásia com o Paraíso Terrestre, à esquerda a Europa, à direita a África, e aqui além da África puseram até os Antípodas. Número dois, um mapa inspirado no Somnium Scipionis de Macróbio, mas que sobrevive em várias redações até o século XVI. A África é um pouco estreita, mas paciência. Agora prestem atenção, orientemos ambos os mapas da mesma maneira e vamos ver que no primeiro as cinco e vinte e cinco correspondem à Arábia, e no segundo à Nova Zelândia, visto que naqueles pontos estão os Antípodas. Podemos saber tudo sobre o Pêndulo, crias se não soubermos que mapa usar estamos perdidos. A mensagem continha instruções, cifradíssimas, de onde encontrar o mapa certo, talvez desenhado especialmente para esse fim. A mensagem diria onde se deveria procurar o mapa, em que manuscrito, ou biblioteca, abadia ou castelo. E podia até acontecer que Dee ou Bacon ou outros ainda tivessem também reconstituído a mensagem, quem sabe, e esta dissesse que o mapa está em tal lugar, mas no entanto, com tudo o que havia acontecido na Europa, a abadia que o encerrava havia sido incendiada, o mapa fora roubado, depois oculto sabe-se lá onde. Quem sabe alguém possui o mapa, mas não sabe para que serve, ou sabe que serve para algo mas não sabe exatamente para quê, e anda pelo mundo a procurar quem o queira adquirir. Imaginem só, toda uma circular de ofertas, pistas falsas, mensagens que dizem outra coisa e são lidas como se falassem do mapa, ou mesmo que falem do mapa e sejam lidas como se aludissem, sei Lá, à produção de ouro. E provavelmente alguns estão procurando reconstituir diretamente o mapa a partir de bases conjecturais."

"Que tipo de conjecturas?"

"Por exemplo, correspondências micromacrocósmicas. Aqui está outro mapa. Sabem de onde vem? Aparece no segundo tratado da Utriusque Cosmi Historia de Robert Fludd. Fludd é o homem da Rosa-Cruz em Londres, não podemos esquecer. Ora que faz o nosso Roberto de Fluctibus, como gostava de ser chamado? Já não apresenta um mapa e sim uma estranha projeção do globo inteiro do ponto de vista do Pólo, do Pólo místico naturalmente, e portanto do ponto de vista de um Pêndulo ideal apenso a uma chave de abóbada ideal. É um mapa concebido para ser colocado embaixo de um Pêndulo! São evidências irrefutáveis, como pode ser que ninguém tenha pensado...”

"É que os diabólicos são lentos, lentos", dizia Belbo.

"É que nós somos os únicos herdeiros dos Templários. Mas deixem-me prosseguir: reconheceram o esquema, pois não, é uma rótula móvel, como as que usava Tritêmio para as suas mensagens cifradas. Este não é um mapa. É um projeto de máquina para tentar variações, produzir mapas alternativos, até encontrar-se o que sirva à medida certa!

 

Fludd é quem o diz, na legenda: este é o esboço de um instrumentum, no qual ainda é preciso trabalhar."

"Mas Fludd não era aquele que se obstinava em negar a rotação da Terra? Como poderia pensar no Pêndulo?"

"Devemos tomar muito cuidado com os iniciados. Um iniciado nega aquilo que sabe, nega sabê-lo, mente para encobrir um segredo."

"Isto", dizia Belbo, "explicaria por que Dee já tanto se empenhava com os cartógrafos reais. Não para conhecer a "verdadeira" forma do mundo, mas para reconstituir, entre todos os mapas perdidos, o único que lhe servia, e portanto o único certo."

"Nada mal, nada mal", dizia Diotallevi. "Encontrar a verdade reconstruindo exatamente um texto mendaz."

 

A principal ocupação desta Assembléia, e a mais útil, deve ser - a meu aviso - a de se dedicar à história natural seguindo os desenhos de Verulâmio.

(Christian Huygens, Carta a Colbert, Oeuvres Completes, La Haye, 1888-1950, VI, pp. 95-96)

 

As vicissitudes dos seis grupos não estariam limitadas à procura do mapa. Provavelmente os Templários, nas duas primeiras partes da mensagem, que estavam em mãos dos portugueses e dos ingleses, aludiam a um Pêndulo, mas as idéias sobre os pêndulos eram então ainda bastante obscuras. Uma coisa é fazer oscilar um fio de prumo e outra construir um mecanismo de precisão que viesse a ser iluminado pelo Sol no próprio instante de nascer. Para isso os Templários haviam calculado seis séculos. A ala baconiana põe-se ao trabalho naquele sentido e tenta atrair para seu lado todos os iniciados que busca desesperadamente contatar.

Coincidência não-casual, o homem dos Rosa-Cruzes, Salomon de Caus, redige para Richelieu um tratado sobre os relógios solares. Depois de Galileu em diante, há uma pesquisa desatinada sobre pêndulos. O pretexto é como usá-los para determinar as longitudes, mas quando em 1681 Huygens descobre que um pêndulo, preciso em Paris, atrasa em Caiena, compreende de imediato que isto depende da variação da força centrífuga devida à rotação da Terra. E quando publica seu Horologium, no qual desenvolve as intuições galileanas sobre o pêndulo, quem o chama a Paris? Colbert, o mesmo que chama Salomon de Caus a Paris para se ocupar do subsolo!

Quando em 1661 a Academia deI Cimento*

 

* Literalmenle. Academia de Testes, entidade para experiências científicas, instituída em Florença, que durou de 1657 a 1667. (N. do T.)

 

antecipa as conclusões de Foucault, Leopoldo de Toscana a dissolve no curso de cinco anos, e logo após recebe de Roma, como oculto galardão, o chapéu de cardeal.

Mas não bastava. Mesmo nos séculos sucessivos a caça ao pêndulo continua. Em 1742 (um ano antes da primeira aparição documentada do conde de São Germano!) um certo De Mairan apresenta uma memória sobre os pêndulos à Académie Royale des Sciences; em 1756 (quando nasce na Alemanha a Estrita Observância Templar!) um tal de Bouguer escreve "sur la direction qu’affectent tons les fils à plomb".

Eu encontrava títulos fantasmagóricos, como aquele de Jean Baptiste Biot, de 1821: Recueil d‘observations géodesiques, astronomiques et physiques, exécutées par ordre du Bureau des Longitudes de France, en Espagne, en France, en A ngleterre et en Ecosse, pour déterminer Ia variation de Ia pésanteur et des degrés terrestres sur Ie prolongement du méridien de Paris. Na França, Espanha, Inglaterra e Escócia! E em correlação com o meridiano de Saint-Martin! E Sir Edward Sabine, que em 1823 publica, An Account of Experiments to Determine the Figure of lhe Earth by Means of the Pendulum Vibrating Seconds in Different Latitudes? E aquele misterioso Conde Feodor Petrovich Litke, que em 1836 publica os resultados de suas pesquisas sobre o comportamento do pêndulo no curso de uma navegação em volta ao mundo? E por conta da Academia Imperial de Ciências de Petersburgo. Por que também os russos?

 

E se entrementes um grupo, certamente de descendência baconiana, tivesse resolvido descobrir o segredo das correntes sem mapa e sem pêndulo, interrogando de novo, desde o início, a respiração da serpente? Eis que vinham a propósito as intuições de Salon: é mais ou menos no tempo de Foucault que o mundo industrial, criação da ala baconiana, inicia as escavações das redes metropolitanas no coração das capitais européias.

"É verdade", dizia Belbo, "o século XIX é obsidiado pelos subterrâneos, iean Valjean, Fantornas e Javert, Rocambole, todo um vai-vém pelos condutos e cloacas. O meu deus, agora que penso nisto, toda a obra de Júlio Verne é uma revelação iniciática dos mistérios do subsolo! Viagem ao centro da Terra, vinte mil léguas submarinas, as cavernas da ilha misteriosa, o imenso reino subterrâneo das Índias Negras! Seria curioso reconstruir um mapa de suas viagens extraordinárias, certamente encontraríamos um esboço das volutas da Serpente, uma carta de leys reconstruída para cada continente. Verne explora de alto a baixo a rede das correntes telúricas."

Eu colaborava. "Como se chama o protagonista das Índias Negras? John Garral, quase um anagrama de Graal."

"Não sejamos extravagantes, vamos manter os pés na terra. Verne lança sinais bem mais explícitos. Robur le Conquérant, R. C. Rosa-Cruz. E Robur lido ao contrário dá Rubor, o vermelho da rosa."

 

Phileas Fogg. Um nome que é uma firma: Eas, em grego, tem o significado de globalidade (é portanto equivalente a pan e a poly) e Phileas é o mesmo que Polífilo. Quanto a Fogg, é a neblina, em inglês... Sem dúvida Verne pertence à Sociedade "Le Brouillard". Ele teve até mesmo a gentileza de precisar para nós as relações entre essa sociedade e a Rosa + Cruz, porque, afinal, que mais será esse viajante nobre chamado Phileas Fogg senão um Rosa + Cruz?... E, mais, não pertence talvez ao Reform-Club, cujas iniciais R.C, designam a Rosa + Cruz reformadora? E esse Reform-Club surge em Pall-Mall, evocando assim mais uma vez o Sonho de Polífilo.

(Michel Lamy, Jules Verne, initié et initiateur, Paris, Payot, 1984, pp. 237-238)

 

A reconstituição tomou-nos dias e dias, interrompíamos nosso trabalho para revelarmos uns aos outros nossas últimas conexões, líamos tudo o que nos caía sob as mãos, enciclopédias, jornais, histórias em quadrinhos, catálogos editoriais, em leitura transversal e à procura de curtos-circuitos possíveis, pusemo-nos a vasculhar os sebos, fuçávamos as bancas de jornais, pilhávamos descaradamente os manuscritos dos nossos diabólicos, entrávamos triunfantes no escritório despejando sobre a mesa o resultado de nossos últimos achados. Enquanto reevoco aquelas semanas todo o acontecimento me parece fulmíneo, frenético, como um filme de Larry Semon, aos arrancos e pulinhos, como portas que se abrem e se fecham em velocidade supersônica, pastelões que voam na cara uns dos outros, fugas por escadas, para a frente e para trás, batidas de velhos automóveis, derrubada de prateleiras em lojas comerciais, entre rajadas de caixas de embalagem, garrafas, queijos moles, esguichos de sifão, explosões de sacos de farinha. Por outro lado, ao recordar os interstícios, os tempos mortos - o resto da vida que se desenvolvia em torno a nós -, posso reler tudo como uma história em câmara lenta, com o Plano que se formava a passo de ginástica rítmica, como a rotação lenta do discóbolo, as cautas oscilações dos arremessadores de peso, os tempos longos do golfe, as esperas insensatas do beisebol. Em todo caso, fosse qual fosse o ritmo, a sorte nos premiava, porque quando se quer encontrar conexões encontra-se sempre, por toda a parte e em tudo, o mundo explode numa rede, num vórtice de parentescos e tudo faz remissão a tudo, tudo explica tudo...

Eu não dizia nada a Lia, para não aborrecê-la, mas a verdade é que estava até mesmo descuidando de Giulio. Acordava à noite, e me dava conta de que Renato Cartésio dava as iniciais R.C., ele que com tamanha energia procurou e depois negou haver encontrado os Rosa-Cruzes. Por que tanta obsessão pelo Método? O método servia para procurar a solução do mistério que estava então fascinando todos os iniciados da Europa... E quem havia celebrado a magia do gótico? René de Chateaubriand. E quem havia escrito, nos tempos de Bacon, o Steps to the Temple? Richard Crashaw. E além deles, Ranieri de’ Calzabigi, René Char, Raymond Chandler? E Rick de Casablanca?

 

Esta ciência, que não se perdeu, pelo menos quanto à sua parte material, foi ensinada aos construtores religiosos pelos monges de Cîteaux... Estes eram conhecidos, no século passado, como Compagnons de la Tour de France. É a eles que Eiffel recorre para construir sua torre.

(L.Charpentier, Les mystères de la cathédrale de Chartres, Paris, Laffont, 1966, pp. 55-56)

 

Agora tínhamos a inteira modernidade percorrida por toupeiras laboriosas que perfuravam o subsolo espiando o planeta em sua parte inferior. Mas devia haver alguma coisa mais, alguma empresa que os baconianos haviam iniciado, e cujos resultados, cujas etapas estavam sob os olhos de todos, e ninguém se havia dado conta... Porque perfurando o solo se testavam as faldas profundas, mas os celtas e os Templários não se haviam limitado a perfurar poços, haviam plantado suas estacas diretamente para o céu, para se comunicar de megálito a megálito, e colher os influxos das estrelas...

A idéia apresentou-se a Belbo numa noite de insônia. Havia chegado à janela e vira ao longe, por cima dos telhados de Milão, as luzes da torre metálica da radiotelevisão italiana, a grande antena citadina. Uma prudente e moderada torre de Babel. E àquele ponto havia compreendido.

"A Torre Eiffel", veio nos dizer na manhã seguinte. "Como não havíamos pensado nisto antes? O megálito de metal, o menir dos últimos celtas, a agulha oca mais alta de todas as agulhas góticas. Por que Paris iria ter necessidade desse monumento inútil? E a sonda celeste, a antena que recolhe informações de todos os espigões herméticos fixados na crosta da Terra, desde as estátuas da ilha de Páscoa, de Machu Picchu, da estátua da Liberdade em Bedloe’s Island, já reclamada por Lafayette, do obelisco de Luxor, da torre mais alta de Tomar, do Colosso de Rodes, que continua a transmitir das profundezas do porto onde não é mais encontrado, dos templos nas selvas bramânicas, dos torreões da Grande Muralha, dos cimos de Ayers Rock, das agulhas da catedral de Estrasburgo, com as quais se encantava o iniciado Goethe, das faces do Mount Rushmore, quantas coisas havia compreendido o iniciado Hitchkock, da antena do Empire State, digam-me lá a que império aludiriam essas criações de iniciados americanos senão ao império de Rodolfo de Praga! A Torre capta informações do subsolo e as confronta com as que lhe provêm do céu. E quem nos dá a primeira terrificante imagem cinematográfica da Torre? René Clair em Paris qui dort. René Clair, R.C."

Havíamos feito a releitura de toda a história da ciência: a própria estação espacial se tornava compreensível, com seus satélites alucinados que outra coisa não fazem senão fotografar a crosta da Terra para detectar as tensões invisíveis, os fluxos submarinos, as correntes de ar quente. E para falar entre si, falar à Torre, falar a Stonehenge...

 

É uma coincidência curiosa que a edição in-fólio de 1623, que leva o nome de Shakespeare, contenha exatamente trinta e seis obras.

(W.F.C. Wigston, Francis Bacon versus Phantom Captain Shakespeare: The Rosicrucian Mask, London, Kegan Paul, 1891, p. 353)

 

Quando permutamos os resultados de nossas fantasias pensávamos, e com razão, estar procedendo por meio de associações indébitas, curtos-circuitos extraordinários, nos quais nos envergonharíamos de fazer fé - se no-los tivessem imputado. É que nos confortava o entendimento - até então tácito, como impõe a etiqueta da ironia - de que estávamos parodiando a lógica alheia. Mas nas longas pausas em que cada um de nós acumulava provas para as reuniões coletivas, e com a consciência tranqüila de acumular peças para uma paródia de mosaico, nosso cérebro ia se acostumando a associar, associar, associar uma coisa qualquer a quaisquer outras coisas, e para fazê-lo automaticamente devia adquirir hábitos. Creio que não haja diferença, a partir de um certo momento, entre habituar-se a fingir que se crê e habituar-se a crer.

É a mesma história do espião: infiltra-se nos serviços secretos do adversário, habitua-se a pensar como eles, se sobrevivem é porque conseguem isso, óbvio que depois de algum tempo passam para o outro lado, que se tornou o dele. Ou como a daqueles que vivem sós com um cão, falam com ele o dia inteiro, a princípio esforçam-se por compreender a sua lógica, depois querem que seja o cão a compreender a deles, primeiro acham que o cão é tímido, depois ciumento, depois irritadiço, por fim passam o tempo a fazer-lhe despeitos e cenas de ciúme, quando estão seguros de que o cão se tornou igual a eles, são eles que se tornam como o cão, e quando estão orgulhosos de havê-lo humanizado, na verdade foram eles que se encanzinaram.

Talvez porque estivesse em contato cotidiano com Lia, e com o menino, dos três era eu o menos afetado pelo jogo. Tinha a persuasão de conduzi-lo, sentia-me como se ainda tocasse o agogô durante o rito: estava do lado de quem produz e não de quem padece as emoções. Quanto a Diotallevi eu não sabia, agora sei, Diotallevi estava habituando seu corpo a pensar em diabólico. E Belbo estava se compenetrando até mesmo a nível de consciência. Eu me habituava, Diotallevi se corrompia, Belbo se convertia. Mas todos estávamos lentamente perdendo aquela luz intelectual que nos faz sempre distinguir o similar do idêntico, a metáfora da coisa em si, aquela qualidade misteriosa e fulgurante e belíssima pela qual sempre estamos em condições de achar que alguém é um animal mas sem pensar de fato que lhe estejam crescendo pêlos e caninos, ao passo que o doente pensa "animalescamente" e logo vê alguém que ladra ou grunhe, anda de rojo ou alça vôo.

Podíamo-nos ter dado conta do que ocorria a Diotallevi, se não estivéssemos tão excitados. Direi que tudo começou no fim do verão. Ele voltou das férias mais magro, mas não era a esbelteza nervosa de quem houvesse passado semanas a caminhar pelas montanhas. Sua carnação delicada de albino revelava agora matizes amarelentos. Se o notamos, atribuímo-lo à idéia de que teria passado as férias inclinado sobre seus cilindros rabínicos. Mas na verdade pensávamos em outra coisa.

De fato, nos dias que se seguiram estávamos em condições de conciliar pouco a pouco também as alas estranhas ao filão baconiano.

Por exemplo, a maçonologia corrente encara os Iluminados da Baviera, que preconizavam a destruição das nações e a desestabilização do Estado, não só como os inspiradores do anarquismo de Bakunin mas ainda do próprio marxismo. Pueril. Os Iluminados eram provocadores que os baconianos haviam infiltrado entre os teutônicos, mas em algo bem diverso estavam pensando Marx e Engels quando iniciavam o Manifesto de 1848 com a eloqüente frase "um espectro se agita pela Europa". Por que afinal aquela metáfora tão gótica? O Manifesto comunista alude sarcasticamente à caça fantasmática ao Plano que agita a história do continente desde alguns séculos. E propõe uma alternativa tanto aos baconianos como aos neo-Templários. Marx era judeu, talvez inicialmente fosse o porta-voz dos rabinos de Gerona, ou de Safed, e procurava inserir na busca todo o povo de Deus. Depois a iniciativa lhe ata as mãos, identifica a Shekinah, o povo em exílio no Reino com o proletariado, trai as expectativas de seus inspiradores, reverte as linhas de tendência do messianismo judaico. Templários de todo o mundo, uni-vos. O mapa aos operários. Esplêndido! Que melhor justificativa histórica para o comunismo?

"Sim", dizia Belbo, "mas os baconianos também tiveram seus acidentes de percurso, não acham? Alguns deles partem pela tangente com um sonho científico e acabam num beco sem saída. Quero dizer, no fim da dinastia, os Einsteins, os Fermi, que buscavam o segredo no cerne do microcosmo fazem a invenção errada. Em vez da energia telúrica, limpa, natural, sapiencial, descobrem a energia atômica, tecnológica, suja e poluída...”

"Espaço-tempo, o erro do Ocidente", dizia Diotallevi.

"É a perda do Centro. A vacina e a penicilina como caricaturas do Elixir da longa vida", intervim.

"Como aquele outro Templário, Freud", dizia Belbo, "que em vez de escavar nos labirintos do subsolo físico escava nos do subsolo psíquico, como se sobre esse já não tivessem dito tudo e melhor os alquimistas."

"Mas és tu", insinuava Diotallevi, "que tratas de publicar os livros do Dr. Wagner. Para mim a psicanálise é coisa de neuróticos."

"Sim, e o pênis é apenas um símbolo fálico", concluí. "Vamos, senhores, não andemos de roda livre. E não percamos tempo. Ainda não sabemos onde colocar os paulicianos e os hierosolimitanos."

 

Mas antes de haver podido responder ao novo quesito havíamos encontrado outro grupo que não fazia parte dos trinta e seis invisíveis, mas que se inserira no jogo com bastante rapidez e já havia descoberto os projetos em parte, agindo como elemento de confusão. Os jesuítas.

 

O Barão von Hund, o Cavaleiro Ramsay..., e muitos outros que fundaram os graus desses ritos, trabalhavam segundo as instruções do Geral dos Jesuítas... O Templarismo é Jesuitismo.

(Carta a Mme Blawatsky de Charles Sotheran, 32 ... A e P.R. 94 ... Memphis, K.R. +, K. Kadosch, M.M. 104, Eng, etc., Iniciado da Fraternidade Inglesa dos Rosa-Cruzes e outras sociedades secretas, 11.1.1877; de Isis Unveiled, 1877, p. 390)

 

Haviamo-nos encontrado vezes sem conta, desde os tempos dos primeiros manifestos Rosa-Cruzes. Já em 1620 surge na Alemanha uma Rosa Jesuítica onde se recorda que o simbolismo da rosa é católico e mariano, antes de ser sacruciano, insinuando-se que as duas ordens são solidárias, e a Roza-Cruz após uma das reformulações da mística jesuítica para uso dos povos da Alemanha reformada.

Recordava-me das palavras de Salon sobre o rancor com que o padre Kircher havia post o pelourin os Rosa-Cruzes e precisamente quando falava da profundidade do globo terráqueo.

"O padre Kircher, dizia eu, “é o personagem central desta história. Porque este homem, que tantas vezes demonstrou possuir senso de observação e gosfo pelas experiências, afogou depois essas poucas e boas idéias em milhares de páginas que transbordam de hipóteses inacreditáveis? Mantinha correspondência com os melhores cientistas ingleses, e a seguir cada um de seus livros retoma os típicos temas rosacrucianos, aparentemente para contestá-los, mas na verdade para fazê-los seus, para deles oferecer sua versão contra-reformista. Na primeira edição da Fama, aquele Sr. Haselmayer, que os jesuítas condenaram às galés por suas idéias reformistas, esforça-se por dizer que os bons e verdadeiros jesuítas são eles, os Rosa-Cruzes. Pois bem, Kircher escreve seus trinta e tantos volumes para sugerir que os bons e verdadeiros Rosa-Cruzes são eles, os jesuítas. Os jesuítas estão tentando apoderar-se do plano. O próprio padre Kircher avoca-se o estudo do pêndulo, e o faz, ainda que à sua maneira, inventando um relógio planetário para saber a hora exata em todas as sedes da Companhia espalhadas pelo mundo."

"Mas como faziam os jesuítas para saber o que era o Plano, quando os Templários preferiram deixar-se matar a confessá-lo?" perguntava Diotallevi. Não valia responder que os jesuítas sempre foram mais espertos que o diabo. Queríamos uma explicação mais sedutora.

 

Descobnimo-la bem rápido. Guillaume Postel, de novo. Folheando a história dos jesuítas de Cretineau-Joly (e quantas boas gargalhadas demos por causa desse nome infeliz) descobrimos que Postel, tomado por furores místicos, por uma sede de regeneração espiritual, havia em 1544 encontrado Santo Inácio de Loiola em Roma. Santo Inácio o havia recebido com entusiasmo, mas Postel não conseguiu renunciar às suas idéias fixas, aos seus cabalismos, ao seu ecumenismo, e essas coisas os jesuítas não podiam suportar, muito menos a idéia mais fixa de todas, sobre a qual Postel não admitia transigir, a de que o Rei do Mundo devia ser o Rei de França. Inácio era santo, mas espanhol.

Assim a certa altura chegaram ao rompimento, Postel abandonando os jesuítas - ou os jesuítas o pondo porta afora. Mas se Postel fora jesuíta, ainda que por um breve período, deveria ter confiado a Santo Inácio - a quem jurara obediência perinde ac cadaver - o segredo de sua missão. Caro Inácio, deveria ter-lhe dito, saiba que recebendo-me recebe comigo o segredo do Plano templar de que indignamente sou o representante francês, e ademais, como estamos todos à espera do terceiro encontro secular de 1584, tanto faz esperá-lo ad majorem Dei gloriam.

Logo os jesuítas, por intermédio de Postel, e por força de um momento de fraqueza seu, vêm a saber do segredo dos Templários. Um segredo de tal monta é partilhado. Santo Inácio passa à eterna beatitude, mas seus sucessores continuam velando, e tendo Postel debaixo de olho. Querem saber com quem ele se encontrará naquele fatídico 1584. Mas, azar, Postel morre antes disso, conquanto - como assegurava uma de nossas fontes - um jesuíta desconhecido estivesse presente ao seu leito de morte. Os jesuítas não sabem quem seja o sucessor.

"Desculpe-me, Casaubon", tinha dito Belbo, "mas há algo que não me entra. Se as coisas estavam assim, os jesuítas não podiam saber que em 1584 o encontro não se realiza."

"No entanto é preciso não esquecer", havia observado Diotallevi, "que conforme me dizem os gentios, esses jesuítas eram homens de ferro que não se deixavam engrolar facilmente."

"Ah, quanto a isso", dissera Belbo, "um jesuíta papa dois Templários no almoço e outros dois no jantar. Foram até mesmo dissolvidos, e mais de uma vez, mas sempre interferiram nos governos de toda a Europa, e talvez o façam até hoje."

Era necessário metermo-nos na pele de um jesuíta. Que faria um jesuíta se Postel lhe fugisse das garras? Eu, pessoalmente, tive súbito uma idéia, mas era de tal forma diabólica que nem mesmo os nossos diabólicos, pensava eu, seriam capazes de digeri-la: os Rosa-Cruzes eram uma invenção dos jesuítas!

"Tendo morrido Postel", propus, "os jesuítas - astutos como são - previram matematicamente a confusão dos calendários e decidiram tomar uma iniciativa. Arquitetam a mistificação rosacruciana, calculando exatamente aquilo que acabaria acontecendo. Em meio a tantos exaltados que abocam a isca, talvez alguém dos núcleos autênticos, tomado de surpresa, dê um passo à frente. Neste caso, imaginem a fúria de Bacon: Fltidd, seu imbecil, não podia ficar calado? Mas visconde, My Lord, eles pareciam ser dos nossos... Cretino, não lhe havia ensinado a não se fiar nos papistas? Você é que devia ser queimado, e não aquele pobre de Nola!"*

 

* Giordano Bruno. (N. do T.)

 

"Mas então", dizia Belbo, "por que quando os Rosa-Cruzes se transferem para a França os jesuítas, ou aqueles polemistas católicos que trabalhavam para eles, os atacam como heréticos e endemoniados?"

"Mas não vai querer pensar que os jesuítas trabalhem linearmente, que jesuítas seriam esses?"

Havíamos discutido bastante sobre minha proposta, mas finalmente resolvemos, de comum acordo, que era melhor a hipótese original: os Rosa-Cruzes eram a isca lançada aos franceses pelos baconianos e pelos alemães. Contudo os jesuítas, assim que apareceram os manifestos, compreenderam logo. E entraram imediatamente no jogo, para embaralhar as cartas. O escopo dos jesuítas era evidentemente impedir a reunião dos grupos inglês e alemão com o grupo francês, e qualquer golpe, por mais baixo que fosse, valia a pena.

Enquanto isto iam registrando notas, acumulando informações e as metiam..., onde? No Abulafia lá deles, disse Belbo de troça. Mas Diotallevi, que nesse ínterim se havia documentado por conta própria, disse que não se tratava de brincadeira. Certamente, os jesuítas estavam construindo o imenso, o potentíssimo calculador eletrônico que deveria trazer uma conclusão para a misturada paciente e centenária de todos os fiapos de verdades e mentiras que estavam recolhendo.

"Os jesuítas", dizia Diotallevi, "haviam compreendido aquilo que nem os pobres e velhos Templários de Provins nem a ala baconiana tinham ainda intuído, ou seja que a reconstituição do mapa poderia ser obtida por via combinatória, quer dizer por processos que antecipavam de muito os modernos cérebros eletrônicos! Os jesuítas são os primeiros a inventar o Abulafia! Padre Kircher relê todos os tratados sobre a arte combinatória, de Lúlio em diante. E vejam o que publica em sua Ars Magna Sciendi...”

"Parece mais um modelo de crochê", brincava Belbo.

"Pois fique sabendo que são todas as combinações possíveis entre n elementos. O cálculo fatorial, o da Sefer Jesirah. O cálculo das combinações e das permutações, a própria essência da Temurah!"

Era de fato isso. Uma coisa era conceber o vago projeto de Fludd, para identificar o mapa partindo de uma projeção polar, outra coisa saber quantas tentativas seriam necessárias, e poder experimentar todas elas, para chegar à solução ótima. E sobretudo uma coisa era criar o modelo abstrato das combinações possíveis e outra inventar uma máquina capaz de mantê-las em função. E o certo é que tenha sido Kircher ou seu discípulo Schott, acabam por projetar uns orgãozinhos mecânicos, mecanismos com cartões perfurados, computadores ante litteram. Baseados no cálculo binário. Cabala aplicada à mecânica moderna.

IBM: Jesus Babbage Mundi, Iesum Binarium Magnificamur.

AMDG: Ad Maiorem Dei Gloriam? Qual nada: Ars Magna, Digitale

Gaudium! IHS: Iesus Hardware & Software!

 

Formou-se no seio das trevas mais densas uma sociedade de novos indivíduos que se conhecem sem nunca se terem visto, entendem-se sem que lhes sejam necessárias explicações, servem-se sem cultivar amizade... Essa sociedade adota o tipo de obediência cega do regime jesuítico, as provas e o cerimonial exterior da maçonaria e as evocações subterrãneas e a incrível audácia dos Templários... O conde de São Germano não terá feito mais que imitar Guillaume Postel, que tinha a mania de se acreditar mais velho do que em verdade era?

(Marquis de Luchet, Essai sur Ia secte des illuminés, Paris, 1789, V e XII)

 

Os jesuítas haviam compreendido que, quando se quer desestabilizar o adversário, a melhor técnica consiste em criar seitas secretas, esperar que os mais entusiastas a elas se precipitem, e aí capturá-los todos. Ou seja, se temes o complô, organiza um, que assim todos os que poderiam aderir àquele acabam caindo sob teu controle.

Lembrava-me de certa reserva que Agliè manifestara em relação a Ramsay, o primeiro a aventar uma conexão direta entre a maçonaria e os Templários, insinuando haver vínculos com os meios católicos. Na verdade já Voltaire denunciara Ramsay como homem dos jesuítas. Diante do nascimento da maçonaria inglesa, os jesuítas respondem da França com o neotemplarismo escocês.

Por esse motivo se compreendia por que, em resposta a essa trama, em 1789 um certo marquês de Luchet havia escrito, anônimo, um célebre Essai sur Ia secte des illuminés, em que espinafrava os iluminados de todas as raças, da Baviera ou de onde fossem, anarquistas anti-clericais ou místicos neotemplários, e punha no mesmo saco (incrível como todas as peças de nosso quebra-cabeça estavam se encaixando, pouco a pouco e de maneira admirável!) até mesmo os paulicianos, para não falar de Postel e São Germano. E lamentava que essa forma de misticismo templar tivesse encontrado acatamento na maçonaria, a qual em si mesma era uma sociedade de pessoas honestas e excelentes.

Os baconianos haviam inventado a maçonaria como o Rick’s Bar de Casablanca, o neotemplarismo jesuítico tornava inútil sua invenção, e Luchet era enviado como killer para expulsar todos os grupos que não fossem baconianos.

A essa altura, porém, tínhamos que levar em conta outro fato, do qual o pobre Agliè não conseguia capacitar-se. Por que de Maistre, que era homem dos jesuítas, e isso uns bons sete anos antes que tivesse dado as caras o marquês de Luchet, havia ido a Wilhelmshad semear a cizânia entre os neotemplários?

"O neotemplarismo andava muito bem aí pela metade do século XVIII", dizia Belbo, "mas já no fim do século ia terrivelmente mal, primeiro porque dele se haviam apoderado os revolucionários, para os quais de Deusa Razão a Ente Supremo tudo era motivo para cortar a cabeça do rei, vejam Cagliostro, e depois porque na Alemanha nele haviam metido a pata os príncipes germânicos, principalmente Frederico da Prússia, cujos fins não coincidiam exatamente com os dos jesuítas. Quando o neotemplarismo místico, seja lá quem o tenha inventado, produz a Flauta Mágica, é natural que os homens de Loiola resolvam desembaraçar-se dele. É como em finanças, você compra uma sociedade, torna a vendê-la, liquida-a, leva-a à falência, reavalia seu capital, dependendo do plano geral, sem nunca se preocupar em onde acabará o porteiro. Ou como um carro usado: quando não funciona mais manda-se para o ferro-velho."

 

Não se encontrará no verdadeiro código maçônico outro Deus senão Manes. É o mesmo Deus dos maçons cabalistas, dos antigos Rosa-Cruzes: o Deus dos maçons martinistas... Por outro lado, todas as infâmias atribuídas aos Templários são exatamente aquelas que se atribuíam aos Maniqueus.

(Abbé Barruel, Mémoires pour servir à l’histoire du jacobinisme, Hamburgo, 1798, 2, XIII)

 

A estratégia dos jesuítas apresentou-se-nos clara quando descobrimos padre Barruel. Este sacerdote, entre ‘97 e ‘98, como reação à Revolução Francesa, escreve as suas Memórias para servir à história do jacobinismo, um verdadeiro romance de folhetim que se inicia, por coincidência, com os Templários. Estes, depois da condenação de Molay à fogueira, se transformam em sociedade secreta para destruir a monarquia e o papado e para criar uma república mundial. Apoderam-se no século XVIII da franco-maçonaria, que se torna instrumento de suas idéias. Em 1763 fundam uma academia composta por Voltaire, Turgot, Condorcet, Diderot e d’Alembert que se reúne em casa do barão de Holbach e, conspira aqui conspira ali, em 1776 faz nascer os jacobinos. Os quais aliás não passavam de marionetes nas mãos dos verdadeiros cabeças, os Iluminados da Baviera - regicidas por vocação.

Ferro-velho, no duro. Depois de haver rompido a maçonaria em duas com a ajuda de Ramsay, os jesuítas a unificam novamente para combatê-la de frente.

 

O livro de Barruel havia causado certo efeito, tanto que nos Archives Nationales franceses constavam pelo menos dois relatórios da polícia solicitados por Napoleão sobre as sedes clandestinas. Esses relatórios foram redigidos por um certo Charles de Berkheim, o qual - como fazem todos os serviços secretos, que vão buscar notícias reservadas precisamente onde já foram publicadas - não encontra nada melhor que copiar descaradamente primeiro o livro de Luchet, e em seguida o de Barruel.

Diante daquelas descrições enregelantes dos Iluminados e da lúcida denúncia de um diretório de Superiores Desconhecidos capazes de dominar o mundo, Napoleão não hesita: decide-se tornar um deles. Faz nomear seu irmão José grão-mestre do Grande Oriente e ele próprio, segundo afirmam várias fontes, entra em contato com a maçonaria e, segundo outras, se torna imediatamente altíssimo dignitário. Não é claro no entanto de que rito se trate. Talvez, por cautela, de todos.

De que sabia Napoleão nós não sabíamos, mas não nos esquecíamos de que havia passado algum tempo no Egito, onde pôde talvez entrevistar-se com algum sábio à sombra das pirâmides (a este ponto até uma criança compreendia que os famosos quarenta séculos que o contemplavam do alto eram uma clara alusão à Tradição Hermética).

Mas na verdade devia saber de muita coisa, pois em 1806 convoca uma assembléia de judeus franceses. As razões oficiais eram banais, tentativa de reduzir a usura, de assegurar a fidelidade das minorias israelitas, de encontrar novos financiadores... Mas isso não explica por que houvesse decidido chamar àquela assembléia de Grão Sinédrio, evocando a idéia de um diretório de Superiores, mais ou menos Desconhecidos. Na verdade o astuto corso havia identificado os representantes da ala hierosolimitana, e procurava recompor os vários grupos dispersos.

"Não é por acaso que em 1808 as tropas do marechal Ney se encontram em Tomar. Estão vendo o nexo?"

"Só estamos aqui para isso."

"Ora Napoleão, na iminência de bater os ingleses, tem em mãos quase todos os centros europeus, e por intermédio dos judeus até mesmo os hierosolimitanos. Que lhe falta ainda?"

"Os paulicianos."

"Exatamente. E nós ainda não resolvemos onde foram parar. Mas Napoleão nos dá a boa dica, pois vai buscá-los onde estão, na Rússia."

 

Bloqueados durante séculos na área eslava, era natural que os paulicianos se tivessem reorganizado sob os vários rótulos dos grupos místicos russos. Um dos conselheiros influentes de Alexandre I era o príncipe Galitzin, ligado a algumas seitas de inspiração martinista. E quem encontrávamos na Rússia, com bem doze anos de antecedência a Napoleão, plenipotenciário dos Sabóias, reatando vínculos com os cenáculos místicos de São Petersburgo? De Maistre.

Àquela altura já desconfiava de todas as organizações de ilumnados, que para eles significava o mesmo que iluministas, responsáveis pelo banho de sangue da revolução. Naquela época na verdade falava, repetindo quase literalmente Barruel, de uma seita satânica que queria conquistar o mundo, e provavelmente pensava em Napoleão. Se portanto o nosso grande reacionário se propunha seduzir os grupos martinistas era porque havia intuído lucidamente que eles, embora inspirando-se nas mesmas fontes do neotemplarismo francês e alemão, eram no entanto a expressão de um único grupo não ainda corrompido pelo pensamento ocidental: os paulicianos.

Todavia, ao que parece, o plano de de Maistre não surtira efeito. Em 1816 os jesuítas são expulsos de Petersburgo e de Maistre retorna a Turim.

"Está bem", dizia Diotallevi, "voltamos a encontrar os paulicianos. Façamos Napoleão sair de cena porquanto evidentemente não teve êxito em seu intento, porque senão lhe teria bastado estalar os dedos em Santa Helena para fazer tremer os seus adversários. Que ocorre agora então a toda aquela gente? Estou começando a perder a cabeça."

"Metade deles já a havia perdido", falou-nos Belbo.

 

Oh como haveis desmascarado bem aquelas seitas infernais que preparam a via do Anticristo... Há no entanto uma dessas seitas que não haveis tocado senão superficialmente.

(Carta do capitão Simonini a Barruel, em La civiltà cattolica, 21.10.1882)

 

A manobra de Napoleão com os judeus tinha provocado uma correção de rota junto aos jesuítas. As Mémoires de Barruel não contemplavam nenhuma alusão aos judeus. Mas em 1806 Barruel recebe uma carta de certo capitão Simonini que lhe recorda que também Manes e o Velho da Montanha eram judeus, que os maçons tinham sido fundados pelos judeus e que os judeus se haviam infiltrado em todas as sociedades secretas existentes.

A carta de Simonini, feita habilmente circular em Paris, tinha posto em dificuldades a Napoleão, que mal acabara de contatar o Grão Sinédrio. Esse contato havia preocupado inclusive os Paulicianos, porque naqueles anos o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Moscovita declarava: "Napoleão se propõe reunir hoje todos os judeus que a cólera de Deus dispersou pela face da Terra para fazê-los subverter a Igreja de Cristo e proclamá-lo o verdadeiro Messias."

O bom Barruel aceita a idéia de que a conspiração não seja apenas maçônica mas judaico-maçônica. Entre outras, a idéia dessa conspiração satânica dava azo a atacar um novo inimigo, ou seja a Alta Loja Carbonária, e conseqüentemente os padres anticlericais do Renascimento, de Mazzini a Garibaldi.

"Mas tudo isso ocorre no início do século XIX", dizia Diotallevi.

"Em vez disso a grande ofensiva anti-semita tem inicio no fim do século, com a publicação dos Protocolos dos Sábios de Sião. E os Protocolos aparecem na área russa. Logo são uma iniciativa pauliciana."

"Natural", disse Belbo. "É claro que a esta altura o grupo hierosolimitano estava dividido em três grandes troncos. O primeiro, por intermédio dos cabalistas espanhóis e provençais, vai inspirar a ala neo-templar, o segundo foi absorvido pela ala baconiana, e se tornaram cientistas e banqueiros. É contra esses que se arremessam os jesuítas. Mas há ainda um terceiro tronco, e esse estabeleceu-se na Rússia. Os judeus russos são em boa parte pequenos comerciantes e emprestadores de dinheiro, e portanto malvistos pelos camponeses pobres; e em boa parte, como a cultura judaica é uma cultura do Livro e todos os judeus sabem ler e escrever, vão engrossar as fileiras da intelligentsia liberal e revolucionária. Os paulicianos são místicos, reacionários, ligados a fio duplo com os feudatários, e se infiltraram na corte. Óbvio que entre eles e os hierosolimitanos não possa haver fusões. Logo são interessados em desacreditar os judeus e, por intermédio dos judeus - isso aprenderam com os jesuítas -, põem em dificuldade os adversários deles no exterior, sejam os neotemplaristas sejam os baconianos."

 

Não pode haver qualquer dúvida. Com todo o poder e o terror de Satã, o reino do Rei triunfante de Israel avizinha-se de nosso mundo não-renegado; o Rei nascido do sangue de Sião, o Anti-Cristo, avizinha-se do trono da potência universal.

(Serguei Nilus, Epílogo aos Protocolos)

 

A idéia era aceitável. Bastava considerar quem havia introduzido os Protocolos na Rússia.

Um dos mais influentes martinistas do fim do século, Papus, obtivera as boas graças de Nicolau II durante uma visita sua a Paris, e em seguida se desloca a Moscou levando consigo um tal Philippe, ou mais precisamente Philippe Nizier Anselme Vachod. Possuído pelo diabo aos seis anos de idade, curandeiro aos treze, magnetista em Lyon, havia encantado tanto Nicolau II quanto a histérica de sua esposa, Philippe fora convidado à corte, designado médico da academia militar de São Petersburgo, general e conselheiro de Estado.

Seus adversários decidiram então contrapor-lhe uma figura igualmente carismática para minar-lhe o prestígio. E encontram Nilus.

Nilus era um monge peregrino, que em hábito talar peregrinava (que haveria de fazer senão isso?) pelos bosques ostentando uma grande barba de profeta, duas mulheres, uma filhinha e uma assistente ou amante que fosse, todas as que caíam na sua lábia. Meio guru, daqueles que depois fogem com a féria, meio eremita, daqueles que gritam que o fim está próximo. E com efeito sua idéia fixa eram as tramas do Anticristo.

O plano dos seguidores de Nilus era fazê-lo ordenar-se pope de modo que desposando depois (uma esposa a mais uma esposa a menos) Helena Alexandrovna Ozerova, dama de honra da czarina, se tornasse confessor dos soberanos.

"Sou uma pessoa dócil", dizia Belbo, "mas começo a suspeitar que a matança de Tsarkoie Tselo talvez tenha sido uma operação de desratização."

Em resumo, a certo ponto os partigiani de Philippe haviam acusado Nilus de levar vida lasciva, e Deus sabe se não tinham razão também eles. Nilus teve que deixar a corte, mas a essa altura alguém lhe veio em auxílio passando-lhe o texto dos Protocolos. Já que todos faziam uma bruta confusão entre martinistas (que se inspiravam em Saint Martin) e martinesistas (seguidores daquele Martines de Pasqually que era tão pouco do agrado de Agliè), e como Pasqually segundo voz corrente era judeu, desacreditando-se os judeus desacreditavam-se os martinistas e desacreditando os martinistas liquidava-se com Philippe.

Com efeito uma primeira versão incompleta dos Protocolos já havia aparecido em 1903 no Znamia, um jornal de Petersburgo dirigido por um anti-semita militante, Kruschevan. Em 1905, com o beneplácito da censura governativa, esta primeira versão, completa, era reenfeixada anonimamente em livro, A fonte de nossos males, presumivelmente editado por um certo Boutmi, que com Kruschevan havia participado da fundação da União do Povo Russo, conhecida depois por Centúria Negra, que recrutava criminosos comuns para levar a efeito pogroms e atentados de extrema direita. Boutmi teria continuado a publicar, já agora com seu próprio nome, outras edições da obra, com o título Os inimigos da raça humana - Protocolos provenientes dos arquivos secretos da chancelaria central de Sião.

Mas tratava-se de livrecos baratos. A versão completa dos Protocolos, aquela que seria traduzida no mundo inteiro, sai em 1905 na terceira edição do livro de Nilus O Grande no Pequeno: o Anticristo é uma possibilidade política iminente, Tsarkoie Tselo, sob a égide de uma seção local da Cruz Vermelha. A aparência era a de uma profunda reflexão mística, e o livro acabou nas mãos do czar. O metropolita de Moscou prescreve sua leitura a todas as igrejas moscovitas.

"Mas qual é", perguntei, "a conexão dos Protocolos com o nosso Plano? Aqui se fala sempre desses Protocolos, não é melhor lê-los?"

"Nada de mais simples", nos tinha dito Diotallevi, "há sempre um editor que os republica - houve tempo que o faziam até mostrando indignação, por dever documentário, pouco a pouco recomeçaram a fazê-lo com satisfação."

"Como são Gentis."

 

A única sociedade que conhecemos capaz de nos fazer concorrência nestas artes seria a dos jesuítas. Mas conseguimos desacreditar os jesuítas aos olhos da plebe estúpida porque essa é uma sociedade manifesta, ao passo que nós nos mantemos por trás dos bastidores guardando o segredo.

(Protocolos, V)

 

Os Protocolos são uma série de vinte e quatro declarações programáticas atribuídas aos Sábios de Sião. Os propósitos desses Sábios mostram-se bastante contraditórios, pois ora querem abolir a liberdade de imprensa, ora estimular o libertinismo. Criticam o liberalismo, mas parecem enunciar o programa que as esquerdas radicais atribuem as multinacionais capitalistas, inclusive o uso do esporte e da educação visual como elementos de imbecilização do povo. Analisam várias técnicas para assenhorar-se do poder mundial, elogiam a força do dinheiro. Decidem incitar revoluções em todos os países explorando o descontentamento das massas e confundindo-as por meio da divulgação de idéias liberais, mas o que querem é estimular as desigualdades. Calculam como instaurar em todos os países regimes presidencialistas controlados por fantoches dos Sábios. Resolvem fazer estourar guerras, aumentando a produção de armamentos e (já o dissera mesmo Salon) a construção de metropolitanos (subterrâneos!) para ter um modo de minar as grandes cidades.

Dizem que os fins justificam os meios e se propõem encorajar o anti-semitismo tanto para controlar os judeus pobres como para enternecer o coração dos gentios diante da infelicidade deles (processo custoso, dizia Diotallevi, mas eficaz). Afirmam com candor "temos uma ambição sem limites, uma avidez devoradora, um desejo impiedoso de vingança e um ódio intenso" (exibindo um estranho masoquismo porque reproduzem com gosto o clichê do judeu maldito que já estava circulando na imprensa anti-semita e que adornará a capa de todas as edições de seu livro), e decidem abolir o estudo dos clássicos e da história antiga.

"Em suma", observava Belbo, "os Sábios de Sião eram um bando de escrotos."

"Nada de brincadeiras", dizia Diotallevi. "Este livro foi levado muito a sério. Mais que tudo uma coisa me surpreende. É que, procurando aparentar um plano judeu com séculos de antiguidade, todas as suas referências incidem sobre pequenos itens polêmicos franceses do fim do século. Parece que a menção à educação visual com o propósito de imbecilizar as massas aludia ao programa educacional de Leon Borgeois, que fez nomear nove maçons para o seu governo. Em outra passagem aconselha a eleição de pessoas comprometidas com o escândalo do Panamá e nessas condições estava Emile Loubet, que em ‘99 se torna presidente da república. A referência ao metrô é devida ao fato de que naquela época os jornais de direita protestavam contra o fato de a Compagnie du Métropolitain ter um número demasiado de acionistas judeus. Por esse motivo é que se admite tenha sido o texto elaborado na França no último decênio do século XIX, por ocasião do affaire Dreyfus, para enfraquecer a frente liberal."

"Pois a mim o que mais impressiona", tinha dito Belbo, "é a sensação do déjà vu. A síntese da história é que esses Sábios relatam um plano para a conquista do mundo, e esse é um discurso que já haviamos ouvido. Procurem excluir algumas referências a fatos e problemas do século passado, substituam os subterrâneos do metrô pelos subterrâneos de Provins, e todas as vezes em que estiver escrito judeus leiam Templários e sempre que virem escrito Sábios do Sião escrevam os Trinta e Seis Invisíveis divididos em seis grupos... Meus amigos, esta é a Ordonation de Provins!"

 

Voltaire lui-même est mort jésuite: en avoit-il le moindre soupçon?

(F.N. de Bonneville, Les Jésuites chassés de Ia Maçonnerie ei leur poignard brisé par les Maçons, Orient de Londres, 1788, 2, p. 74)

 

Tínhamos tudo sob os olhos há tempos, e não nos havíamos dado conta de todo. No curso de seis séculos seis grupos se batem para realizar o Plano de Provins, e cada um deles toma o texto ideal daquele Plano, muda-lhe simplesmente o sujeito, e o atribui ao adversário.

Depois que os Rosa-Cruzes aparecem na França, os jesuítas utilizam o Plano com efeito negativo: desacreditam os Rosa-Cruzes, desacreditam os baconianos e a nascente maçonaria inglesa.

Quando os jesuítas inventam o neotemplarismo, o marquês de Luchet atribui o plano aos neotemplários. Os jesuítas, que agora já estão combatendo os neotemplários, através de Barruel copiam Luchet, mas atribuem o plano a todos os franco-maçons em geral.

Contra-ofensiva baconiana. Andando a espulgar todos os textos da polêmica liberal e laicista tínhamos descoberto que de Michelet e Quinet a Garibaldi e Gioberti, atribuía-se a Ordonation aos jesuítas (e talvez a idéia viesse do templário Pascal e de seus amigos). O tema se torna popular com O Judeu Errante de Eugéne Sue e seu malvado personagem monsieur Rodin, quintessência da conspiração jesuítica no mundo. Mas pesquisando em Sue acabamos encontrando algo mais: um texto que parecia decalcado - mas com a antecipação de meio século - dos Protocolos, palavra por palavra. Tratava-se do último capítulo de Os Mistérios do Povo. Neste livro o diabólico plano jesuíta era explicado até o último detalhe delituoso num documento enviado pelo geral da Companhia, padre Roothaan (personagem histórico) ao Sr. Rodin (este personagem do Judeu Errante). Rodolfo de Gerolstein (por sua vez herói dos Mistérios de Paris) dele toma possessão e o revela aos democráticos: "Veja, caro Lebrenn, como essa trama infernal é bem urdida, que dores pavorosas, que dominação horrenda, que terrível despotismo se reserva à Europa e ao Mundo, se por desgraça vier a concluir-se...

Parecia o prefácio de Nilus aos Protocolos. E Sue atribuía aos jesuítas a divisa (que reencontraremos depois nos Protocolos, atribuída aos judeus) "o fim justifica os meios".

 

Não nos venham pedir que apresentemos outras provas mais para ficar demonstrado que esse grau dos Rosa-Cruzes foi habilmente introduzido pelos chefes da maçonaria... A identidade de sua doutrina, de seu ódio e de suas práticas sacrílegas com as da Cabala, dos Gnósticos e dos Maniqueus, nos indica a identidade dos autores, que são os Judeus Cabalistas.

(Mons. Léon Meurin, S.J., La Franc-Maçonnerie, Synagogue de Satan, Paris, Retaux, 1893, p. 182)

 

Quando saem os Mistérios do Povo, os jesuítas vêem que a Ordonation lhes é atribuída, lançam mão da única tática ofensiva que ainda não tinha sido explorada por ninguém e, recuperando a carta de Simonini, atribuem a Ordonation aos judeus.

Em 1869 Gougenot de Mousseaux, célebre por dois livros sobre a magia no século XIX, publica Les Juifs, lê judaïsme et Ia judïsation dês peuples chrétiens, onde diz que os judeus usam a Cabala e são adoradores de Satã, visto que uma filiação secreta liga diretamente Caim aos gnósticos, aos Templários e aos maçons. De Mousseaux recebe uma bênção especial do papa Pio IX.

Mas o Plano romanceado por Sue acaba reciclado também por outros, que não os jesuítas. Era uma bela história, quase novelesca, acontecida muito tempo depois. Depois da aparição dos Protocolos, que havia levado muito a sério, em 1921 o Times tinha descoberto que um proprietário rural russo monarquista refugiado na Turquia comprara de um ex-oficial da polícia secreta russa refugiado em Constantinopla um grupo de livros antigos entre os quais um sem capa, em cuja lombada se lia apenas "Joli", com um prefácio datado de 1864 e que parecia a fonte literal dos Protocolos. O Times havia feito pesquisas junto ao British Museum e descobrira o livro original de Maurice Joly, Dialogue aux enfers entre Montesquieu et Machiavel, editado em Bruxelas (mas com a indicação Genêve, 1864). Maurice Joly nada tinha a ver com Cretineau-Joly, mas a analogia assim mesmo ficara revelada, alguma coisa tinha forçosamente que significar.

O livro de Joly era um panfleto liberal contra Napoleão III em que Maquiavel, que representava o cinismo do ditador, discutia com Montesquieu. Joly havia sido preso por essa iniciativa revolucionária, passara quinze meses na prisão e em 1878 se matara, O programa dos judeus dos Protocolos tinha sido tomado quase literalmente do que Joly atribuia a Maquiavel (o fim justifica os meios), e através de Maquiavel a Napoleão. O Times todavia não se dera conta (mas nós sim) de que Joly havia copiado a mancheias o documento de Sue, anterior de pelo menos sete anos.

Uma autora anti-semita, apaixonada pela teoria do complô e dos Superiores Desconhecidos, Nesta Webster, diante desse fato que reduzia os Protocolos a um plágio banal, havia provido uma intuição luminosíssima, como somente o verdadeiro iniciado, ou o caçador de iniciados, sabe ter. Joly era iniciado, conhecia o plano dos Superiores Desconhecidos, e odiando Napoleão III o havia atribuído a ele, mas isso não significava que o plano não existisse independentemente de Napoleão. Como o Plano relatado nos Protocolos se amoldava exatamente àquilo que os judeus de hábito fazem, logo era o plano dos judeus. A nós não restava senão corrigir a Sra. Webster segundo essa mesma lógica: como o plano se amoldava perfeitamente àquilo que deviam pensar os Templários, era um plano dos Templários.

 

Além do mais, a nossa lógica era a dos fatos. Achamos muito interessante a história do cemitério de Praga. Dizia respeito a um tal Hermann Goedsche, pequeno funcionário postal prussiano, que já havia publicado documentos falsos para desacreditar o democrata Waldeck, acusado de querer assassinar o rei da Prússia. Desmascarado, passou a ser redator do órgão dos grandes proprietários conservadores, Die Preussische Kreuzezeitung. Depois com o nome de sir John Retcliffe começou a escrever romances de sensação, entre os quais Biarritz em 1868. Nele descrevia uma cena ocultística que se passava num cemitério de Praga, muito parecida com a reunião dos Iluminados que Dumas havia descrito no início de José Bálsamo, em que Cagliostro, chefe dos Superiores Desconhecidos, entre os quais está Swedenborg, urde o complô do colar da rainha. No cemitério de Praga reúnem-se os representantes das doze tribos de Israel que expõem seu plano de conquistar o mundo.

Em 1876 um panfleto russo reporta a cena de Biarritz, mas como se tivesse ocorrido realmente. E assim o faz, em 1881, na França o Le Contemporain. Nele se diz que a noticia provém de fonte segura, o diplomata inglês sir John Readcliff. Em 1896 um tal Bournand publica o livro, Les Juifs, nos contemporains, e reporta a cena do cemitério de Praga, dizendo que o discurso eversor fora feito pelo rabino John Readcliff. Uma tradição posterior dirá ainda que o verdadeiro Readcliff tinha sido levado ao cemitério fatal por Ferdinand Lassalle, perigoso revolucionário.

E esses planos são mais ou menos os mesmos descritos em 1880, poucos anos antes, pela Revue des Etudes Juives (anti-semita) que publicara duas cartas atribuidas a judeus do século XV. Os judeus de Arles pediram ajuda aos judeus de Constantinopla por estarem sendo perseguidos, e estes respondem: "Bem amados irmãos em Moisés, se o rei de França vos obriga a fazer-vos cristãos, fazei-vos, por não poderdes proceder de outra maneira, mas conservai a lei de Moisés em vosso coração. Se vos espoliam de vossos bens fazei com que vossos filhos se tornem comerciantes, de modo a pouco a pouco poderem espoliar os bens dos cristãos. Se atentam contra as vossas vidas fazei com que vossos filhos se tornem médicos e farmacêuticos, para que estes lhes tirem a vida. Se destroem as vossas sinagogas, fazei com que vossos filhos se tornem cônegos e clérigos para que venham a destruir-lhes as igrejas. Se vos submetem a outros vexames, fazei com que vossos filhos se tornem advogados e notários e se imiscuam nos negócios de todos os estados, de modo que, submetendo os cristãos ao vosso jugo, dominareis o mundo e podereis vingar-vos deles."

Tratava-se sempre do plano dos jesuítas e, por alto, da Ordonation templar. Poucas variações, permutaçÕes mínimas: os Protocolos estavam-se fazendo sozinhos. Um projeto abstrato de complô migrava de um complô para o outro.

E quando estávamos engendrando o modo de identificar o elo perdido, que unia toda aquela história a Nilus, encontramos Rakovsky, o chefe da terrível Okrana, a polícia secreta do czar.

 

Uma cobertura é sempre necessária. No escondimento reside grande parte de nossa força. Por isso devemos sempre esconder-nos sob o nome de uma outra sociedade.

(Die neuesten Arbeiten des Spartacus und Philo im dem Illuminaten-Orden, 1794, p. 143)

 

Precisamente naqueles dias ao lermos uma página qualquer dos nossos diabólicos demos com a referência de que o conde de São Germano, entre seus múltiplos disfarces, havia assumido também o de Rackoczi, ou pelo menos assim o havia identificado o embaixador de Frederico II em Dresden. E o landgrave de Hesse, junto ao qual São Germano, aparentemente, havia morrido, dissera que esse era de origem transilvana e se chamava Ragozki. Acresce que Comênio havia dedicado sua Pansofia (obra certamente em odor de rosacrucianismo) a um fandgrave (quantos iandgraves nesta nossa história) que se chamava Ragovsky. Ultimo retoque no quebra-cabeça, respigando um alfarrabista da praça Castello, encontrei uma obra alemã sobre a maçonaria, anônima, na qual uma ignota mão havia acrescentado no falso rosto uma nota segundo a qual o texto era devido a um tal Karl Aug. Ragotgky. Considerando que o misterioso indivíduo que talvez houvesse assassinado o coronel Ardenti se chamava Rakosky, eis que encontrávamos assim um modo de inserir, nas pistas do Plano, o nosso conde de São Germano.

"Não estamos dando poderes demais a esse aventureiro?" perguntava preocupado Diotallevi.

"Não, não", respondia Belbo, "ele merece. É como o molho de soja nos pratos chineses. Se não tem, não é chinês. Olha Agliè, que entende destas coisas: por acaso toma por modelo Cagliostro ou Willermoz? São Germano é a quintessência do Homo Hermeticus."

 

Pierre Ivanovitch Rakovsky. Jovial, insinuante, felino, inteligente e astuto, falsário genial. Pequeno funcionário, que depois em contato com grupos revolucionários é preso, em 1897, pela polícia secreta e acusado de ter dado asilo a amigos terroristas que haviam atentado contra o general Drentel. Passa para o lado da polícia e se inscreve (vejam bem) nas Centúrias Negras. Em 1890 descobre em Paris uma organização que fabricava bombas para atentados na Rússia, e consegue fazer com que sejam capturados em seu país sessenta e três terroristas. Dez anos depois será descoberto que as bombas eram feitas pelos seus próprios subordinados.

Em 1887 divulga a carta de um certo Ivanov, revolucionário arrependido, que assegura ser a maioria dos terroristas composta de judeus e em 1890 uma "confession par un vieillard ancien révolutionnaire" em que os revolucionários exilados em Londres são acusados de serem agentes britânicos. Em 1892 um falso texto de Plekhanov em que se acusa a direção do partido Narodnaia Volia de ter feito publicar aquela confissão.

Em 1902 procura constituir uma liga franco-russa anti-semita. Para consegui-lo usa uma técnica afim à dos Rosa-Cruzes. Afirma que a liga existe, facilitando assim sua criação. Mas usa também outra técnica: mistura astutamente o verdadeiro com o falso, e ostensivamente nega o verdadeiro, de modo que ninguém duvida mais do falso. Faz circular em Paris um misterioso apelo aos franceses para que apóiem uma Liga Patriótica Russa com sede em Karkov. No apelo ataca a si mesmo como sendo a pessoa que quer fazer fracassar a liga e faz votosde que ele, Rakovsky, venha a mudar de idéia. Auto-acusa-se de servir-se de personalidades desacreditadas como Nilus, o que era exato.

Por que se podem atribuir os Protocolos a Rakovsky?

O protetor de Rakovsky era o ministro Serguei Witte, um progressista que queria transformar a Rússia num país moderno. Por que o progressista Witte se servia de Rakovsky era algo que só Deus sabia, mas nós agora estávamos preparados para tudo. Witte tinha um adversário político, um tal de Erie de Cyon, que já o havia atacado publicamente com temas polêmicos que recordam certos trechos dos Protocolos. Mas nos escritos de Cyon não havia menção aos judeus, porque ele próprio era de origem judaica. Em 1897, por ordem de Witte, Rakovsky manda revistar a residência de Cyon em Territat, e encontra um panfleto de Cyon calcado no livro de ioly (ou nu de Sue), em que se atribuía a Witte as idéias de Maquiavel-Napoleão III. Rakovsky, com seu gênio de falsificador, substitui os judeus por Witte e põe o texto em circulação. O nome Cyon parece feito de propósito para lembrar Sion (Sião), e assim demonstrar que um autorizado expoente judeu denuncia uma conspiração judaica. Eis como teriam nascido os Protocolos. A esta altura o texto cai inclusive nas mãos de Juliana ou Justine Glinka, que em Paris freqüenta os salões de Mme Blawatsky, e nas horas vagas espreita e denuncia os revolucionários russos no exílio. Justine Glinka é seguramente um agente dos paulicianos, os quais estão ligados aos camponeses e portanto querem convencer o czar de que os programas de Witte são os mesmos do complô internacional judeu. Justine envia o documento ao general Orgeievsky, e este através do comandante da guarda imperial fá-lo chegar às mãos do czar. Witte se encontra em apuros.

Assim Rakovsky, arrastado por seu rancor anti-semita, contribui para a desgraça de seu protetor. E provavelmente ainda para a sua própria. De fato a partir daquele momento perdemos sua pista. São Germano possivelmente havia assumido novos disfarces e novas reencarnações. Mas nossa história adquirira um perfil plausível, racional e límpido, porque fora sufragada por uma série de fatos, verdadeiros - dizia Belbo - como verdadeiro é Deus.

 

Tudo isso me fazia trazer de volta à mente a história de De Angelis sobre a sinarquia. O melhor da história toda - certo de nossa história, mas talvez até mesmo da História, como insinuava Belbo com olhar febricitante, enquanto me mostrava as suas fichas - é que grupos em luta mortal estavam se exterminando mutuamente usando cada um as mesmas armas do outro. "O primeiro dever de um bravo infiltrado", comentava eu, "é denunciar como infiltrados aqueles junto aos quais se infiltra."

Belbo dizia: "Lembro-me de uma história de***. Eu via sempre, à tardinha, numa ruela estreita, um tal de Remo, ou um nome assim do gênero, na sua baratinha preta. Tinha bigodes negros, bastos cabelos negros, camisa negra, e dentes também negros, horrivelmente cariados. E beijava uma garota. E eu tinha nojo daqueles dentes negros que beijavam aquela coisa bela e loira, não me lembro sequer do rosto dela, mas para mim era virgem e prostituta, era o eterno feminino. E eu me martirizava com aquilo.” Belbo adotava instintivamente um tom áulico para patentear seu intento irônico, cônscio de se ter deixado transportar por langores inocentes da memória. "Eu me perguntava sem cessar por que aquele Remo, que pertencia às Brigadas Negras, podia se mostrar assim à vontade, mesmo nos períodos em que*** não estava ocupada pelos fascistas. E dizia para mim mesmo que corria o rumor de que ele era um infiltrado dos partigiani. Fosse ou não fosse, o certo é que uma tarde vejo-o dentro da mesma baratinha negra, com os mesmos dentes negros, a beijar a mesma garota loira, mas com um lenço vermelho no pescoço e uma camisa cáqui. Tinha-se bandeado para as Brigadas Garibaldinas. Todos lhe faziam festas, e adotara o nome de guerra de X-9, como o personagem de Alex Raymond, que eu lia no almanaque de aventuras. Bravo X-9, lhe diziam... E eu o odiava ainda mais, porque possuía a garota com o consentimento do povo. Mas alguns diziam que era um infiltrado fascista entre os partigiani, talvez porque desejassem a garota, mas assim era, e X-9 era suspeito."

"E depois?"

"Desculpe, Casaubon, mas por que lhe interessam tanto as minhas histórias?"

"Porque você narra, e as narrativas são fatos do imaginário coletivo."

"Good point. Então uma manhã X-9 estava transitando fora de seus domínios, talvez tivesse marcado um encontro com a garota num campo qualquer, para levar às vias de fato aquela miserável bolinação e mostrar-lhe que sua verga era menos cariada que seus dentes - desculpem-me, mas não consigo apreciá-lo nem mesmo hoje -, em suma, eis que os fascistas lhe preparam uma armadilha, trazem-no de volta à cidade e, às cinco da manhã, no dia seguinte, o fuzilam."

Pausa. Belbo olhava para as mãos, que estavam postas, como se estivesse orando. Depois abriu-as e disse: "Era a prova de não ser um infiltrado."

"Moral da história?"

"Quem lhe disse que as histórias devem ter sempre um significado moral? Mas, pensando bem, talvez quisesse dizer que às vezes para provarmos uma coisa qualquer precisamos morrer."

 

Ego sum qui sum.

(Êxodo 3, 14)

 

Ego sum qui sum. An axiom of hermetic philosophy.

(Mme Blawatsky, Isis Unveiled, p.1)

 

Quem és? perguntaram a um só tempo trezentas vozes enquanto vinte espadas cintilavam nas mãos dos fantasmas mais próximos...

- Ego sum qui sum, disse.

(Alexandre Dumas, Joseph Balsamo, II)

 

Voltei a encontrar-me com Belbo na manhã seguinte. "Escrevemos ontem uma bela página de folhetim", disse-lhe. "Mas, se quisermos traçar um Plano exeqüível, talvez devêssemos nos manter mais próximos da realidade."

"Que realidade?" perguntou-me. "Talvez seja só nos folhetins que nos dão a verdadeira medida da realidade. Temos sido enganados."

"Por quem?"

"Por aqueles que nos fizeram crer que de um lado está a grande arte, aquela que representa personagens típicos em circunstâncias típicas, e de outro o romance de aventuras, que narra a respeito de personagens atípicos em circunstâncias atípicas. Sempre achei que um verdadeiro dândi jamais faria amor com uma Scarlett O’Hara e tampouco com a Dama das Camélias. Eu usava os folhetins para viajar um pouco para fora da vida. Sentia-me seguro, pois eles me propunham o inatingível. Mas era o contrário."

"O contrário?"

"Sim. Proust é que tinha razão: a vida é representada melhor pela música ruim do que por uma Missa Solene. A arte brinca conosco e nos anima, nos faz ver o mundo como os artistas queriam que fosse. O folhetim finge brincar, mas o mundo que nos faz ver ali é o mundo que de fato é, ou pelo menos como será. As mulheres são mais parecidas com Milady do que com Madame Bovary, Fu Manchu é mais real do que Nathan o Sábio, e a História é mais parecida com a contada por Sue do que aquela projetada por Hegel. Shakespeare, Melville, Balzac e Dostoievski fizeram folhetim. O que aconteceu de fato foi o que eles contaram antes dos romances em fascículos."

"É que é mais fácil imitar o folhetim do que a arte. Tornar-se a Gioconda é uma obra, tornar-se Milady segue o nosso penchant natural pela facilidade."

Diotallevi, que até então se mantinha em silêncio, observou afinal: "Vejam o nosso Agliè. Acha mais fácil imitar São Germano que Voltaire."

"Sim", dissera Belbo, "no fundo até as mulheres acham mais interessante São Germano que Voltaire."

Encontrei depois este file, em que Belbo resumira nossas conclusões em termos romanescos. Digo em termos romanescos porque me dou conta de que se divertia em reconstituir os fatos sem meter neles, de seu, senão uns pequenos trechos de lembranças. Não consegui identificar todas as citações, os plágios e os empréstimos, mas reconheci muitos trechos desse furioso collage. Mais uma vez, para fugir à inquietação da História, Belbo havia escrito e revisitado a vida por interposta escritura.

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filename: O retorno de São Germano

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Já lá se vão cinco séculos que a mão vindicativa do Onipotente arrancou-me das profundezas da Àsia para vagar por estas terras. Trago comigo o pavor, a desolação, a morte. Mas sus, sou o notário do Plano, ainda que os outros não o saibam. Já vi coisas piores do que estas, e o maquinar da noite de São Bartolomeu custou-me mais tédio do que quanto agora me apresto a fazer. Oh, por que então se contraem meus lábios neste satânico sorrir? Sou aquele que é, se o maldito Cagliostro não me tivesse usurpado até mesmo este último direito.

Mas o triunfo está próximo. Soapes, quando eu era KelIey, tudo me ensinou, na Torre de Londres. O segredo consiste em se tornar um outro.

Com astutos enredos fiz com que Joseph Balsamo fosse encarcerado na fortaleza de San Leo, e me apoderei de seus segredos. Como São Germano desapareci, e agora todos acham que sou o conde de Cagliostro.

 

Há pouco soou a meia-noite em todos os relógios da cidade. Que insuspeitada quietude. Este silêncio não me convence. A noite é esplêndida, conquanto friíssima, alta a Lua no céu ilumina com seu álgido clarão as velhas ruelas impenetráveis de Paris. Poderiam ser dez horas: o campanário da abadia dos Black Friars lentamente soou ainda há pouco as oito. O vento sacode com lúgubre estrídulo as bandeirolas de ferro sobre a desolada planície dos telhados. Uma espessa colcha de nuvens recobre o céu.

Capitão, remontemos? Não, ao contrário, aprofundemos. Danação, dentro em breve o Patna afundará de proa, salta Jim do Pango, salta. Não darei talvez, para fugir a esta angústia, um diamante do tamanho de uma noz? Ir à bolina, baixa a mezena, iça o papafigo, ou que mais queira, h-ostes da desgraça, soprai!

Ranjo horrivelmente as arcadas dentárias enquanto um palor de morte me inflama o rosto céreo de chamas esverdeadas.

Como cheguei aqui, eu a própria imagem da vingança? Os espíritos do inferno sorriem com desprezo ante as lágrimas do ser cuja voz ameaçadora os fizeram tremer tantas vezes no próprio seio de seu abismo de fogo.

Sus, uma face.

Quantos degraus tive de descer para penetrar neste casebre? Sete? Trinta e seis? Não há pedra que não tenha rocado, passo que não tenha feito, que não ocultasse um hieróglifo. Quando os tiver manifestado, o Mistério será finalmente revelado aos meus fiéis. Depois bastará decifrá-lo, e a solução será a Chave, por trás da qual se esconde a Mensagem, que ao iniciadado, e só a ele, dirá claramente qual seja a natureza do Enigma.

Do enigma à sua decifração, o passo é breve, e dela sairá lampejante o hierograma, no qual se acrisolará a prece da interrogação. Depois a mais ninguém poderá ser desconhecido o Arcano, véu, manta, tapete egípcio que cobre o Pentáculo. E dali para a luz declarando o sentido oculto do Pentáculo, a Pergunta Cabalística à qual só poucos poderão responder, para dizer com voz de trovão qual seja o Signo Insondável. Inclinados diante dele, Trinta e Seis Invisíveis deverão dar a resposta, a enunciação da Runa cujo sentido está aberto apenas aos filhos de Hermes, e a esses seja dado o Sigilo Zombeteiro, Máscara atrás da qual se perfila o rosto que estes procuram colocar a nu, o Rebus Místico, o Anagrama Sublime...

 

- Sator Arepo! grito com voz de fazer tremer um espectro. E abandonando a rota que mantém por obra sagaz de suas mãos homicidas, Sator Arepo aparece expedito ao meu comando. Reconheço-o, e já suspeitava quem fosse. E Luciano o despachante mutilado, que os Superiores Desconhecidos destinaram para executor do meu intento infame e sanguinário.

- Sator Arepo, pergunto zombeteiro, sabes qual a resposta final que se oculta no Sublime Anagrama?

- Não, conde, responde o incauto, mas espero-o saber de vossa boca.

Um riso infernal sai de meus lábios pálidos e ressoa sob as abóbadas antigas.

- Engano! Só o verdadeiro iniciado sabe que não sabe!

- Sim, mestre, responde obtuso o despachante mutilado, como quiserdes. Estou pronto.

Estamos num sórdido casebre em Clignancourt. Esta noite devo punir-te, a ti antes de tudo, tu que me iniciaste na nobre arte do delito. A ti, que finges amar-me, e o que é pior o crês, e aos inimigos sem nome com os quais passarás o próximo week-end. Luciano, testemunha importuna das minhas humilhações, me emprestará seu braço - o único - e depois morrerá.

Um casebre com um alçapão no assoalho, na encosta de uma espécie de barranco, de reservatório, de intestino subterrâneo, usado desde tempos imemoriais para depósito de mercadorias contrabandeadas, inquietantemente úmido porque confina com os condutos dos esgotos de Paris, labirinto do delito, e as velhas paredes transudam indizíveis miasmas, de modo que basta, com a ajuda de Luciano, fidelíssimo no mal, perfurar um buraco na parede para que a água entre aos borbotões, alague o sótão, faça ruir as paredes já periclitantes, tornando o barranco a um só nível com o resto dos condutos, por onde agora deslizam matérias putrefactas, a superfície enegrecida que se entrevê do alto do alçapão é agora vestíbulo da perdicão noturna: ao longe, bem longe, o Sena, e após o mar...

Do alçapão desce uma escadinha de corda suspensa do bordo superior, e sob esta, ao nível da água, está agarrado Luciano, com um punhal: uma das mãos segura a estaca do último degrau, a outra sustém o punhal, a terceira pronta a agarrar a vítima. Agora espera, e em silêncio - digo-lhe - verás.

Convenci-te a eliminar todos os homens com cicatriz - vem comigo, sê minha para sempre, eliminemos as presenças importunas, sei bem que não o amas, me disseste, ficaremos só tu e eu, e as correntes subterrâneas.

Agora entraste, altiva como uma vestal, rouca e encarquilhada como uma megera - ó visão do inferno que abala os meus ombros centenários e me corra o peito na mordaça do desejo, ó esplêndida mulata, instrumento da minha perdição. Com as mãos aduncas lacero a camisa de fina cambraia que me adorna o peito, e com as unhas o estrio de sulcos sangüinosos, enquanto um calor atroz me arde os lábios frios como as mãos da serpente. Um surdo rugido sai das mais negras cavernas de minh’alma e irrompe de minhas arcadas ferinas - eu centauro vomitado do tártaro - e quase não se ouve voar uma salamandra, porque o uivo contenho, e me avizinho de ti com um sorriso atroz.

- Minha amada, minha Sophia, digo-te com a graça felina com que sabe falar apenas o chefe secreto da Okrana. Vem, eu te esperava, aninha-te comigo nas trevas, e espera - e tu ris rouca, víscida, pregustando uma herança qualquer ou um butim, um manuscrito dos Protocolos para vendê-lo ao czar... Como sabes ocultar por trás da face angelical a tua natureza demoníaca, pudicamente enfaixada em teus andróginos blue-jeans, a T-shirt quase transparente que nada obstante oculta o lírio infame estampado em tuas carnes brancas pelo carrasco de LiIIe!

 

Chega o primeiro ingênuo, atraído por mim à armadilha. Distingo-lhe as feições a Custo, sob o capote que o envolve, mas me mostra o sinal dos templários de Provins. É Soapes, o sicário do grupo de Tomar. - Conde, diz-me ele, é chegado o momento. Por anos sem conta temos errado dispersos pelo mundo. Vós tendes o último fragmento da mensagem, eu tenho o que aparece no início do Grande Jogo. Mas esta é outra história. Reunamos nossas forças, e os outros...

Completo sua frase: - Os outros, para o inferno. Vai, irmão, no centro do aposento existe um escrínio, no escrínio o que vens buscando há séculos. Não temas a obscuridade, que ela em vez de ameaçar-nos rios protege.

O ingênuo move seus passes, quase às apalpadelas. Um baque, surdo. Precipita-se rio alçapão, e à flor da água Luciano o agarra e vibra-lhe sua lâmina, um corte rápido na garganta, o borbulhar do sangue se confunde com o efervescer do líquido ctônio.

 

Batidas à porta. - És tu, Disraeli?

- Sim, responde o desconhecido, no qual os maus leitores terão reconhecido o grão-mestre do grupo inglês, lá agora alçado aos fastígios do poder, mas ainda não pago. Ei-lo que fala: - My Lord, it is useless to deny, because it is impossible to conceal, that a great part of Europe is covered with a network of these secret societies, just as the superficies of the earth is now being covered with railroads...

- Já o disseste aos Comuns em 14 de julho de 1856, nada se me escapa. Ao cerne da questão.

O judeu baconiano impreca entre os dentes. Prossegue: - São já em demasia. Os trinta e seis invisíveis agora são trezentos e sessenta. Multiplicado por dois, setecentos e vinte. Subtraindo-se os cento e vinte anos ao término dos quais as portas se abrirão, temos aí seiscentos, como a carga de Balaklava.

Homem diabólico, a ciência secreta dos números não tem segredos para ele. - E daí?

- Nós temos ouro, tu tens o mapa. Unamo-nos, e seremos invencíveis.

Com um gesto hierático indico-lhe o escrínio fantasmático que ele, cego de cobiça, pensa vislumbrar na escuridão. Avança, e cai.

Ouço o sinistro luzir da lâmina de Luciano, e apesar das trevas vejo o estertor que cintila nas tácitas pupilas do inglês.

Justiça é feita.

 

Espero o terceiro, o mensageiro dos Rosa-Cruzes franceses, Montfaucon de Villars, pronto a trair, já estou prevenido, os segredos de sua seita.

- Sou o conde de Gabalis, apresenta-se, mendaz e fátuo.

Poucas palavras me bastam sussurrar para induzi-lo a despachar-se para o seu destino. Cai, e Luciano, ávido de sangue, executa sua tarefa.

Tu sorris comigo na sombra, e me dizes que és minha, e teu será o meu segredo. Iludes-te iludes-te, sinistra caricatura da Shekinah. Sim, sou teu Simão, espera, que o melhor ainda ignoras. E quando o souberes tê-lo-ás deixado de saber.

 

Quem chega? Um a um entram os outros.

Padre Bresciani havia me informado que representando os iluminados alemães viria uma certa Babette de lnterlaken, bisneta de Weishaupt, a grande virgem do comunismo helvético, crescida em meio à canalha, à rapina e ao sangue, perita em penetrar os segredos impenetráveis, em abrir despachos sem violaros selos, em propinar venenos segundo lhe ordene a sua seita.

Entra, então, a jovem agatodêmone do delito, envolta num casaco de pele de urso branco, os longos cabelos loiros que lhe escorrem por sobre o atrevido decote, olhar altivo, ar sarcástico. E com o mesmo fraseado encaminho-a para a perdição.

Ah, ironia da línguagem - este dom que a natureza nos deu para calar os segredos dos nossos propósitos! A Iluminadacai vítima da Treva. Ouço-a vomitar horríveis imprecações, a impenitente, enquanto Luciano gira-lhe o punhal três vezes no coração. Déjà vu, déjà vu...

 

É a vez de Nilus, que por um instante havia acreditado possuir a czarina e o mapa. Imundo monge luxurioso, querias o Anticristo? Encontrá-lo-ás à tua frente, mas não lhe faças caso. E cego o encaminho, entre mil místicas lisonjas, à emboscada infame que o espera. Luciano esquarteja-lhe o peito com uma ferida em forma de cruz, e ele se aprofunda no sono eterno.

 

Devo superar a ancestral desconfiança do último, o Sábio de Sião, que pretende ser Ashverus, o Judeu Errante, imortal como eu. Não confia, enquanto sorri untuoso com a barba ainda ensopada do sangue das tenras criaturas cristãs de quem costuma fazer pasto rio cemitério de Praga. Sabe que sou Rakovsky, devo superá-lo em astúcia. Faço-lhe perceber que no escrínio estão além do mapa diamantes brutos, ainda por lapidar. Conheço o fascínio que os diamantes brutos exercem sobre essa raça deicida. Vai em direção ao seu destino arrastado pela cupidez e é a seu Deus, cruel e vingador, que impreca enquanto morre, trespassado como Hiram, e difícil lhe é entrementes imprecar, pois não consegue de seu Deus pronunciar o nome.

 

Ilusão, que acreditava haver levado a cabo a Grande Obra.

Como se açoitada por um turbilhão, ainda uma vez abre-se a porta do casebre e nela surge uma figura de rosto lívido, as mãos cruzadas devotamente sobre o peito, o olhar fugaz, que não consegue ocultar sua natureza porquanto cinge as negras vestes de sua negra Companhia. Um filho de Loiola!

- Cretineau! grito, induzido em erro.

Ele ergue a mão num gesto hipócrita de bênção. - Não sou aquele que sou, diz-me com um sorriso que já nada tem de humano.

É verdade, esta sempre foi a sua técnica: às vezes negam-se a si mesmos a sua própria existência, às vezes proclamam a força de sua ordem para intimidar os ignaros.

- Nós somos sempre um outro daquele que pensais, filhos de Belial (diz agora o sedutor de soberanos). Mas tu, ó São Germano...

- Como sabes que o seja de fato? pergunto perturbado.

Sorri ameaçador: - Tu me conheceste em outros tempos, quando me tentaste afastar da cabeceira de Poste!, quando sob o nome de Abade de Herblay fiz com que fosses terminar uma de tuas encarnações nas entranhas da Bastilha (oh, como ainda sinto no rosto a máscara de ferro a que a Companhia, com a ajuda de Colbert, me havia condenado!), me conheceste quando eu espionava os teus conciliábulos com d’Holbach e Condorcet...

- Rodin! exclamo, como atingido por um raio.

- Sim, Rodin, o geral secreto dos jesuítas! Rodin, a quem não enganarás fazendo-me cair no alçapão, como fizeste com os outros incautos. Sabe, São Germano, que não há delito, artifício nefasto, esparrela criminal, que não tivéssemos inventado antes de vós, para maior glória deste nosso Deus que justifica os meios! Quantas cabeças coroadas fizemos cair na noite que não tem manhã, em emboscadas muito mais sutis, para obter o domínio do mundo. E agora queres impedir que, a um passo da meta, metamos nossas mãos rapaces num segredo que há cinco séculos move a história do mundo?

Rodin, falando dessa forma, se torna assustador. Todos aqueles instintos de ambição sanguinária, sacrílega, execrável que se haviam manifestado nos papas do Renascimento, transparecem agora sobre a fronte daquele filho de Inácio. Bem vejo: uma sede de domínio insaciável agita-lhe o sangue impuro, um suor ardente o inunda, uma espécie de vapor nauseabundo se difunde em seu redor.

Como ferir este último inimigo? Sobrevém-me a intuição inesperada, que só sabe nutrir aquele para quem as intenções humanas, há séculos, já não possuem penetrais invioláveis.

- Olha-me, digo, também eu sou uma Tigre.

De um só golpe arrasto-te para o meio do quarto, arranco-te a T-shirt, lacero o cinto da atilada couraça que oculta as graças de teu ventre cor de âmbar. Agora tu, à pálida luz da Lua que penetra pela porta entrefechada, te ergues, mais bela que a serpente que seduziu Adão, soberba e lasciva, virgem e prostituta, vestida apenas com o teu carnal poder, porque a mulher desnuda é a mulher armada.

O klaft egípcio desce sobre os teus bastos cabelos, azuis à força de tão negros, o seio palpitante sob a leve musselina. Em torno da pequenina fronte arqueada e pertinaz se envolve o uraeus de ouro de olhos de esmeraldas, dardejando sobre tua cabeça sua tríplice língua de rubi. Oh a tua túnica de véu negro de reflexos argênteos, presa por uma echarpe bordada de funestos arcos-íris, em pérolas negras. Teu púbis intumescido raspado a fio para que tenhas, aos olhos de teus amantes, a nudez de uma estátua! As pontas de teus mamilos já levemente excitadas pela fricção das plumas de tua escrava malabar, tingidos pelo mesmo carmim que te ensangüenta os lábios, convidativos como uma ferida!

Rodin agora arqueja. As longas abstinências, a vida gasta num sonho de poder, não fez mais que prepará-lo cada vez mais para o seu desejo incontível. Diante desta rainha bela e impudica, de olhos negros como os olhos do demônio, de ombros torneados, cabelos olorosos, de pele branca e tenra, Rodin é tomado da expectativa de carícias insuspeitas, de volúpias inefáveis, freme em sua própria carne, como freme um deus silvano ao mirar uma ninfa desnuda que se espelha nas águas que já perderam Narciso. Adivinho na contraluz o ríctus incontido, está como petrificado pela Medusa, esculpido no desejo de uma virilidade reprimida e agora no crepúsculo, chamas obcecantes de lascívia lhe retorcem as carnes, é como um arco reteso para a meta, estendido até o ponto em que cede e se parte.

De chofre caiu ao solo, rastejante diante daquela aparição, a mão como um artelho estendido a invocar um sorvo de elixir.

- Oh, estertor, oh como és bela, oh esses pequenos dentes de lobinha que cintilam quando cerras os lábios róseos e túmidos... Oh os teus grandes olhos de esmeralda que ora faíscam e ora se enlanguescem. Oh demônio de volúpia.

Oh quanto sofre, o miserável, quando moves agora tuas ancas arrochadas pelo tecido azul índigo e projetas o púbis para levares o flipper à última demência.

- Oh visão, disse Rodin, sê minha, por um instante apenas, culmina com um átimo de prazer uma vida passada a serviço de uma divindade ciosa, consola com um relâmpago de luxúria a eternidade de chamas a que a tua visão agora me impele e arrasta. Peço-te que aflores o meu rosto com teus lábios, tu Antinéia, tu Maria Madalena, tu que desejei na face das santas conturbadas pelo êxtase, que cobicei no curso de minhas adorações hipócritas dos vultos virginais, ó Senhora, tu que és bela como o Sol, branca como a Lua, eis que renego a Deus, aos Santos e ao próprio Pontífice Romano, direi mais, renego a Loiola, e o juramento criminoso que me vincula à Companhia, impetro um beijo apenas, e que por ele eu morra.

Deu ainda um passo, rastejando sobre os joelhos encolhidos, a túnica soerguida à cintura, a mão ainda mais tesa em direção àquela inatingível felicidade. De improviso, precipitou-se para trás, os olhos que pareciam saltar-lhe das órbitas. Atrozes convulsões imprimiam às linhas de seu corpo desumanos sobressaltos, semelhantes aos que a pilha de Volta produz na face dos cadáveres. Uma espuma azulada lhe empurpura a boca, da qual sai uma voz sibilante e estrangulada, como a de um hidrófobo, pois quando chega à sua fase paroxística, como diz muito bem Charcot, esta espantosa enfermidade que é a satiríase, punição da luxúria, imprime à vítima os mesmos estigmas da raiva canina.

É o fim. Rodin prorrompe num riso insensato. Logo tomba ao solo exânime, imagem viva do rigor cadavérico.

Num só instante a mente se lhe transtorna e morre em danação.

Limitei-me a arrastar o corpo até a boca do alçapão, agindo com cautela, para não manchar meus borzeguins de verniz na túnica sebenta de meu último inimigo.

Não havia necessidade do punhal homicida de Luciano, mas o sicário não consegue controlar seus gestos, diante da feral coação de repeti-los. Ri, e apunhala um cadáver já privado de vida.

 

Agora te conduzo à boca do alçapão, acaricio-te o pescoço e a nuca, enquanto te inclinas para apreciar a cena, e digo-te: - Estás satisfeita com teu Rocambole, ó meu amor inacessível?

E enquanto anuis lasciva e escarneces salivando no vão, estendo imperceptivelmente os dedos, que fazes meu amor, nada Sophia, te mato, agora sou Joseph Balsamo e já não tenho precisão de ti.

A druida dos Arcontes expira, precipitada na água. Luciano ratifica com um golpe de lâmina o veredicto de minha mão impiedosa e digo-lhe: - Agora podes voltar para cima, meu servo fiel, minha alma danada, e enquanto sobe e me oferece o dorso enfio-lhe nas escápulas um fino estilete de lâmina triangular, que quase não deixa cicatriz. Ele se precipita no vão, fecho a vigia, e pronto, abandono o casebre, enquanto oito corpos navegam em direção do Chatelet, por condutos só conhecidos por mim.

Volto para a minha habitação do Faubourg Saint-Honoré, olho-me no espelho. Eia, digo para mim, sou o Rei do Mundo. De minha agulha oca domino o universo. Há certos momentos em que minha potência me faz perder a cabeça. Sou um mestre da energia. Ébrio de autoridade.

 

Ai de mim, que a vingança da vida não tardou a chegar. Meses mais tarde, na cripta mais profunda do castelo de Tomar, já agora senhor do segredo das correntes subterrâneas e mestre dos lugares sagrados daqueles que formam os Trinta e Seis Invisíveis, último dos últimos Templários e Superior Desconhecido de todos os Superiores Desconhecidos, devo esposar Cecilia, a andrógina dos olhos de gelo, da qual agora já nada me separa. Reencontrei-a após séculos, depois de me ter sido roubada pelo homem do saxofone. Agora ela caminha equilibrando-se no alto do encosto do banco do jardim, azul e loira, e não sei ainda o que tem sob a tule vaporosa que a adorna.

A capela está escavada na rocha, o altar encimado por uma tela inquietante em que figuram os suplícios dos danados nas profundezas do inferno. Alguns monges encapuzados fazem-me tenebrosamente ala, e mesmo assim não me perturbo, fascinado que estou pela fantasia ibérica...

Mas - horror - a tela se ergue, e acima dela, obra admirável de algum Arcimboldo das cavernas, aparece outra capela, em tudo semelhante àquela onde estou, e ali, diante de outro altar, ajoelhada está Cecilia e junto dela - um suor gelado me aljofra a fronte, eriçam-se-me os cabelos na cabeça - quem vejo a ostentar escarnecendo a sua cicatriz? O outro, o verdadeiro Joseph Balsamo, que alguém teria libertado de sua masmorra de San Leo!

E eu? É nessa altura que o mais velho dos anciãos desvenda o seu capuz, e nele reconheço o horrível sorriso de Luciano, não se sabe como indene ao meu punhal, aos esgotos, à vasa sanguinolenta que o devia arrastar então cadáver para o fundo silencioso dos oceanos, ora bandeado para os meus inimigos por justa sede de vingança.

Os monges libertam-se de suas túnicas e aparecem envoltos em armaduras até agora disfarçadas, uma cruz flamejante sobre o manto cândido como a neve. São os Templários de Provins!

Agarram-me, obrigam-me a voltar a cabeça, e atrás de mim agora surge um carrasco com dois ajudantes disformes, sou posto numa espécie de garrote, e com o ferrete em brasa marcamme como presa eterna do carcereiro, imprimindo-se para sempre o sorriso infame de Bafomé em minhas costas - agora compreendo, para que eu possa substituir Balsamo em San Leo, ou antes retomar o lugar que me era destinado até a eternidade.

Mas me reconhecerão, digo para mim, e á que todos crêem agora que eu seja ele, e ele o danado, alguém virá talvez em meu auxílio - os meus cúmplices pelo menos - não se pode substituir um prisioneiro sem que ninguém o perceba, não estamos mais nos tempos do Máscara de Ferro... Ilusão! Num átimo percebo, enquanto o carrasco empurra-me a cabeça contra uma bacia de cobre da qual sobem vapores esverdeados... O vitríolo!

Colocam-me uma venda sobre os olhos, o rosto é impelido em contato com o líquido voraz, uma dor lancinante, insuportável, a pele de minha face, do nariz, da boca, do queixo, se encarquilha, se escama, basta um instante, e quando sou reerguido pelos cabelos meu rosto já está irreconhecível, uma tabes, uma varíola, um indizível nada, um hino à repugnância, voltarei para a masmorra como a ela voltam muitos fugitivos que tiveram a coragem de se desfigurar para não serem recapturados.

Ah, grito derrotado e, segundo o narrador, uma palavra sai de meus lábios corroídos, um suspiro, um grito de esperança: Redenção!

Mas redenção de quê, velho Rocambole, não sabias bem que não devias tentar ser um protagonista! Foste punido, e por tuas próprias artes. Humilhaste os escritores da ilusão, e agora - estás vendo - escreves, com o álibi da máquina. Iludes-te de seres espectador, porque te lês na tela como se as palavras fossem de outro, mas caíste na armadilha, eis que buscas deixar pegadas na areia. Ousaste modificar o texto do romance do mundo, e o romance do mundo te enreda em sua trama, e te enleia em seu entrecho, que não foste tu a decidir.

Melhor tivesses permanecido em tuas ilhas, Jim do Pango, e ela assim te acreditasse morto.

 

O partido nacional-socialista não tolerava as sociedades secretas porque ele próprio era uma sociedade secreta, com seu grão-mestre, sua gnose racista, seus ritos e iniciações.

(René Alleau, Les sources occultes du nazisme, Paris, Grasset, 1969, p. 214)

 

Creio que foi nesse período que Agliè escapou ao nosso controle.

Era a expressão que havia usado Belbo, em tom excessivamente indiferente. Atribuí-o ainda uma vez a possíveis ciúmes. Silenciosamente obcecado pelo poder que Agliè exercia sobre Lorenza, motejava em altas vozes sobre o poder que Agliè estava adquirindo junto ao Sr. Garamond.

Talvez fosse ainda culpa nossa. Agliè começara a seduzir Garamond quase um ano antes, a partir dos dias da festa alquímica no Piemonte. Garamond lhe havia confiado o arquivo dos AEPs a fim de que pudesse ali localizar novas vítimas a serem estimuladas a engordar o catálogo da Ísis Revelada, e agora o consultava para quaisquer decisões, certamente lhe dando um pró-labore mensal. Gudrun, que efetuava explorações periódicas ao fundo do corredor, além da porta de vidro que dava acesso ao reino acolchoado da Manuzio, murmurava às vezes em tom preocupado que o Sr. Agliè se havia praticamente instalado na sala da Sra. Grazia, ditava-lhe cartas, acompanhava novos visitantes ao gabinete do Sr. Garamond, em suma - e aqui a inveja subtraía a Gudrun ainda mais vogais - fazia-a de empregada. Na verdade poderíamos perguntar por que Agliè passava horas e horas no fichário de endereços da Manuzio. Já tivera tempo suficiente para identificar todos os AEPs que pudessem ser aliciados como novos autores da Ísis Revelada. Contudo continuava a escrever, a contatar, a convocar. Mas no fundo estávamos encorajando a sua autonomia.

A situação não desagradava a Belbo. Quanto mais Agliè na via Marchese Gualdi tanto menos Agliè na via Sincero Renato, e portanto a menor possibilidade de que certas repentinas irrupções de Lorenza Pellegrini - às quais ele sempre mais pateticamente se iluminava, sem qualquer tentativa, já agora, de ocultar a sua excitação - fossem perturbadas pela entrada imprevista de "Simão".

Também não desagradava a mim, agora já sem interesse pela Ísis Revelada e cada vez mais preso à minha história da magia. Pensava ter aprendido com os diabólicos tudo quanto podia aprender, e deixava que Agliè gerisse os contatos (e os contratos) com os novos autores.

Não desagradava igualmente a Diotallevi, no sentido de que o mundo parecia importar-lhe cada vez menos. Voltando agora a pensar nele, via-o emagrecer de modo preocupante, às vezes o surpreendia à mesa de trabalho, inclinado sobre um original, o olhar no vazio, a caneta quase a cair-lhe da mão. Não estava adormecido, estava exausto.

Mas havia outra razão para aceitarmos que Agliè fizessSe aparições cada vez mais raras, nos restituísse os manuscritos que havia reprovado e desaparecesse ao longo do corredor. Na realidade não queríamos que ouvisse as nossas conversas. Se nos fosse perguntado por quê, diríamos que por vergonha, ou por delicadeza, dado que estávamos parafraseando metafísicas nas quais ele de certo modo acreditava. Na realidade fazíamos isso por desconfiança, deixávamo-nos tomar pouco a pouco pela natural reserva dos que sabem possuir um segredo, e estávamos insensivelmente repelindo Agliè para o vulgo dos profanos, nós que lentamente, e sempre menos sorridentes, vínhamos conhecendo aquilo que havíamos inventado. Por outro lado, como disse Diotallevi num instante de bom humor, agora que tínhamos um São Germano verdadeiro não sabíamos o que fazer com o suposto.

Agliè não parecia melindrar-se com as nossas esquivanças. Cumprimentava-nos com muita distinção e lá se ia. Com uma distinção que ralava à altivez.

Certa segunda-feira de manhã eu havia chegado tarde ao escritório, e encontrei Belbo, que logo me convocou impaciente à sua sala, para onde fora chamado também Diotallevi. "Grandes novidades", tinha dito. Estava para começar a falar quando chegou Lorenza. Belbo estava indeciso entre a alegria daquela visita e a impaciência de dizer-nos das suas descobertas. Logo em seguida ouvimos bater à porta e apareceu Agliè: "Não os queria importunar, desculpem, não se incomodem. Não tenho poderes para desfazer tão importante consistório. Vim só avisar a nossa cara Lorenza que estou lá do outro lado com o Sr. Garamond. E espero ter o poder ao menos de convocá-la para um xerez ao meio-dia, em minha sala."

Na sua sala. Daquela vez Belbo perdera o controle. Pelo menos, da forma como podia perdê-lo. Esperou que Agliè saísse e disse entre os dentes: "Destapa o rabo."

Lorenza, que estava ainda fazendo gestos cúmplices de alegria, perguntou-lhe que queria dizer, uma expressão turinense. Significa queira tirar a tampa, ou ainda, se preferir, tenha vossa excelência a bondade de tirar a tampa. Na presença de uma pessoa arrogante e empertigada, que se supõe entalada pela própria imodéstia, e que essa imoderada autoconsideração tenha o corpo dilatado em virtude de uma tampa que, enfiada no esfíncter, impede que toda aquela dignidade aerostática se dissolva, eis senão que, convidando-se a personagem a retirar tal rolha, condenamo-la a perseguir o próprio e irreversível afrouxamento, não raro acompanhado de um sibilo agudíssimo e redução do sobrevivente invólucro externo a pobre coisa, definhada imagem e fantasma exangue daquela prisca majestade."

"Não o achava tão vulgar."

"Agora já sabe."

Lorenza havia saído, fingindo irritação. Eu sabia que Belbo estava sofrendo ainda mais: uma raiva verdadeira o teria pacificado, mas um mau humor mostrado em cena o induzia a pensar que, em Lorenza, fossem igualmente teatrais as aparências de paixão, sempre.

E foi por isso, creio, que com determinação nos disse súbito: "Vamos em frente." E queria dizer procedamos com o Plano, vamos trabalhar a sério.

"Estou indisposto", dissera Diotallevi. "Não me sinto muito bem. Tenho algo aqui", e tocava o estômago, "creio que seja gastrite."

"Imagina só", lhe dissera Belbo, "eu que bebo não tenho gastrite... Como arranjaste uma gastrite, com água mineral?"

"Pode ser", dizia sorrindo Diotallevi, arrastado. "Ontem eu me excedi. Estou acostumado com a Fiuggi e bebi San Pellegrino."*

 

* Marcas de águas minerais italianas, a primeira sem, a segunda com gás. (N. do T.)

 

"Então precisas tomar cuidado, estes excessos podem acabar contigo. Mas vamos em frente, porque há dois dias morro de vontade de lhes contar que finalmente sei a razão pela qual há séculos os trinta e seis invisíveis não conseguem determinar a forma do mapa. John Dee se havia enganado, a geografia precisa ser refeita. Vivemos no interior de uma terra oca, envoltos pela superfície terrestre. E Hitler sabia disto."

 

O nazismo foi o momento em que o espírito de magia se apoderou das alavancas do progresso material. Lenin dizia que o comunismo é o socialismo mais a eletricidade. Em certo sentido, o hitlerismo era o guenonismo mais as divisões blindadas.

(Pauwels e Bergier, Le matin des magiciens, Paris, Gallimard, 1960, 2, VII)

 

Belbo tinha conseguido encaixar até Hitler no plano. "Tudo escrito, preto no branco. Está provado que os fundadores do nazismo estavam ligados ao neotemplarismo teutônico."

"Não nos parece."

"Não estou inventando nada, Casaubon, desta vez não estou inventando!"

"Calma, quando é que inventamos coisas? Sempre partimos de dados objetivos, ou pelo menos de noticias do domínio público."

"Também desta vez. Em 1912 nasce uma Germanenorden que propugna por uma ariosofia, ou antes uma filosofia da superioridade ariana. Em 1918 um certo barão Sebottendorff funda uma filiação, a Thule Gesellschaft, sociedade secreta, enegésima variação da Estrita Observância Templar, mas com fortes colorações racistas, pangermanísticas e neo-arianas. Em 1933 esse Sebottendorff escreverá ter sido ele quem semeou o que Hitler iria cultivar depois. Por outro lado, nos redutos da Thule Gesellschaft é que aparece a cruz gamada. E quem adere imediatamente à Thule? Rudolph Hesse, a alma-danada de Hitler! E após Rosenberg! E o próprio Hitler! Além de tudo vocês leram nos jornais que Hesse, em seu cárcere de Spandau, ainda hoje se ocupa de ciências esotéricas. Von Sebottendorff em 1924 escreve um libelo contra a alquimia, e observa que as primeiras experiências de fissão nuclear atômica demonstram a verdade da Grande Obra. E escreve um romance sobre os Rosa-Cruzes! Além disso dirigirá uma revista astrológica, a Astrologische Rundschau, e Trevor-Roper escreveu que os grandes chefes nazistas, com Hitler à frente, não davam um passo sem antes traçar um horóscopo. Em 1943, parece que foi consultado um grupo de médiuns para descobrirem onde Mussolini era mantido prisioneiro. Em suma, todo o grupo dirigente nazista está ligado ao neo-ocultismo teutônico."

Belbo parecia haver esquecido o incidente com Lorenza, e eu o secundava, dando pisadas no aceieraaor ua reconstituição: "No fundo podemos considerar sob esse enfoque também o poder de Hitler como arrebatador das massas. Fisicamente era um pigmeu, tinha a voz estridula, como é que conseguia eletrizar a gente? Devia possuir propriedades mediúnicas. Provavelmente, instruído por algum druida ao partido, sabia pôr-se em contato com as correntes subterrâneas. Ele próprio era uma antena, um menir biológico. Transmitia energia das correntes aos fiéis do estádio de Nurembergue. Por uns tempos conseguiu fazê-lo, depois as baterias se descarregaram."

 

Ao mundo inteiro: declaro que a Terra é oca e habitável interiormente, que contém diversas esferas sólidas, concêntricas, colocadas uma dentro da outra, e é aberta em ambos os pólos por uma extensão de doze ou dezesseis graus.

(J. Cleves Symmes, capitão de infantaria, 10 de abril de 1818; cit. in Sprague de Camp e Ley, Lands Beyond, New York, Rinehart, 1952, X)

 

"Meus parabéns, Casaubon, em sua inocência acabou tendo a intuição exata. A verdadeira, a única obsessão de Hitler eram as correntes subterrâneas. Hitler era adepto da teoria da Terra oca, a Hohlweltlehre."

"Meninos, eu vou me retirar, estou com gastrite", dizia Diotallevi.

"Espera, que agora vem o melhor. A Terra é oca: não habitamos do lado de fora, sobre a crosta externa, coisa nenhuma, mas lá dentro, na superfície côncava interna, O que pensamos ser o céu é uma massa de gás com zonas de luz brilhante, gás que preenche o interior do globo. Todas as medidas astronômicas têm que ser revistas. O céu não é infinito, mas circunscrito. O Sol, se de fato existe, não é maior do que na verdade aparece. Um corpúsculo de trinta centímetros de diâmetro no centro da Terra. Os gregos já o haviam suspeitado."

"Esta agora é invenção tua", disse cansadamente Diotallevi.

"Invenção minha coisa nenhuma! A idéia já havia sido aventada nos primeiros anos do século XIX, na América, por um tal de Symmes. Depois retoma-a no final do século um outro americano, um certo Tedd, que se apóia sobre experiências alquímicas e a leitura de Isaias. E depois da Primeira Guerra Mundial a teoria é aperfeiçoada por um alemão, como se chama, fundando a seguir o movimento da Hohlweltlehre que conforme a própria palavra diz é a teoria da Terra oca. Ora Hitler e os seus acham que a teoria da Terra oca corresponde exatamente aos seus princípios, e por isso mesmo - segundo dizem alguns - erraram uns bons tiros com a V1 exatamente porque calcularam a trajetória partindo da hipótese de uma superfície cõncava e não convexa. Hitler já está agora convencido de que o Rei do Mundo é ele, e de que o Estado-Maior nazista são os Superiores Desconhecidos. E onde habita o Rei do Mundo? Dentro, embaixo, não fora. É partindo desta hipótese que Hitler decide reverter toda a ordem das pesquisas, a concepção do mapa final, o modo de interpretar o Pêndulo! É necessário repactuar com os seis grupos e refazer todos os cálculos desde o princípio. Considerem a lógica das conquistas hitlerianas... Primeira reivindicação, Dantzig, por ter sob seu domínio os lugares sagrados do grupo teutônico. Depois conquista Paris, põe o Pêndulo e a Torre Eiffel sob seu controle, contata os grupos sinárquicos e os insere no governo de Vichy. A seguir assegura a neutralidade, e de facto a cumplicidade do grupo português. Quarto objetivo, é óbvio, a Inglaterra, mas sabemos que não é fácil. No meio-tempo, procura com as campanhas da África atingir a Palestina, mas também naquele caso não obtém êxito. Então visa a submissão dos territórios paulicianos, invadindo os Balcãs e a Rússia. Quando presume ter em mãos quatro sextos do Plano, manda Hess em missão secreta à Inglaterra propor uma aliança. Como os baconianos não abocanham a isca, tem uma intuição: aqueles que possuem a parte mais importante do segredo só podem ser os inimigos de sempre, os judeus. E não é necessário ir procurá-los em Jerusalém, onde só permaneceram poucos. O fragmento da mensagem do grupo hierosolimitano não se encontra de fato na Palestina, mas nas mãos de algum grupo da Diáspora. E fica assim explicado o Holocausto."

"Em que sentido?"

"Mas basta pensar um instante. Imagina que queres cometer um genocídio...”

"Por favor", disse Diotallevi, "agora estamos mesmo exagerando, estou passando mal do estômago, vou-me embora".

"Espera, por deus, quando os Templários destripavam os sarracenos tu te divertias, porque aquilo se havia passado há tanto tempo, e agora vens aí com esse moralismo de pequeno intelectual. O que estamos procurando aqui é refazer a História, e nada há que devamos temer."

Deixamo-lo continuar, subjugado por sua energia.

"O que mais espanta no genocídio dos judeus é sua duração, primeiro são mantidos em campos de concentração a passar fome, depois são espoliados de tudo e ficam nus, depois as duchas, depois a conservação meticulosa de montanhas de cadáveres, a classificação e arquivamento das roupas, o recenseamento dos bens pessoais... Não era um procedimento racional, se se tratasse apenas de extermínio. Passava a ser racional se se tratasse de procurar, procurar uma mensagem que um naqueles milhões de pessoas, o representante hierosolimitano dos Trinta e Seis Invisíveis, conservava, nas pregas da roupa, na boca, tatuado na pele... Só o Plano explica a inexplicável burocracia do genocídio! Hitler procura na pessoa física dos judeus a sugestão, a idéia que lhe permita determinar, graças ao Pêndulo, o ponto exato em que, sob a abóbada côncava que a Terra oca provê a si mesma, as correntes subterrâneas se interceptam - pois nesse ponto, prestem atenção à perfeição da concepção, se realiza, por assim dizer, a intuição hermética milenária: o que está por baixo é igual ao que está por cima! O Pólo Místico coincide com o Cerne da Terra, o desígnio secreto dos astros outra coisa não é que o desígnio secreto dos subterrâneos de Agarttha, não há diferença entre o céu e o inferno, e o Graal, o Iapis exillis, é o lapis ex coelis no sentido em que é a Pedra Filosofal que nasce como envolvimento, termo, limite, útero ctônio dos céus! E quando Hitler houver identificado aquele ponto, no centro oco da Terra que é o centro perfeito do céu, será o senhor do mundo de que é Rei por direito de raça. E eis por que até seu último instante, no abismo de seu bunker, ele pensa poder determinar ainda o Pólo Místico."

"Chega", dissera Diotallevi. "Agora estou mal de verdade. Fez-me mal."

"Ele está se sentindo mal mesmo, e não por questões ideológicas", disse eu.

Só então Belbo pareceu compreender. Ergueu-se solícito e foi amparar o amigo que se apoiava à mesa, parecendo a ponto de desmaiar.

"Desculpa-me, meu caro, mas estava me deixando arrastar. É verdade que não te sentes mal porque eu disse aquelas coisas? Há vinte anos que pilheriamos juntos, não é mesmo? Mas estás mal a sério, talvez seja mesmo gastrite. Olha que neste caso basta uma pastilha antiácida. E um saco de água quente. Vamos lá, eu te acompanho a casa, será melhor que chame um médico, é bom saber de que se trata."

Diotallevi disse que podia ir sozinho para casa, de táxi, que ainda não estava moribundo. Iria deitar-se. Logo chamaria um médico, prometeu-nos. E que não fora a história de Belbo que o havia afetado, já estava se sentindo assim desde a véspera. Belbo pareceu aliviado e acompanhou-o ao táxi.

Voltou preocupado: "Pensando bem, já há algumas semanas que ele anda com uma cara horrível. De olheiras... Mas santo deus, eu devia ter morrido de cirrose há dez anos e ainda estou firme, e ele que vive como um asceta é que vai ter gastrite, ou talvez pior, isso me parece mais úlcera. Ao diabo o Plano. Estamos levando todos uma vida de doidos."

"Pois acho que com uma pastilha de antiácido a coisa passa", disse eu.

"Também acho. Mas se aplica um saco de água quente ainda é melhor. Esperemos que tenha juízo."

 

Qui operatur in Cabala..., si errabit in opere aut non purificatus accesserit, deuorabitur ab Azazale.

(Pico della Mirandola, Conclusiones Magicae)

 

A crise de Diotallevi ocorreu em fins de novembro. Esperávamo-lo no escritório no dia seguinte e ele nos telefonou dizendo que precisava recuperar-se. O médico dissera que os sintomas não eram preocupantes, mas seria melhor fazer alguns exames.

Belbo e eu estávamos associando sua doença ao Plano, que talvez tivéssemos levado longe demais. Com meias palavras nos dizíamos que era irracional, mas nos sentíamos culpados. Esta era a segunda vez que eu me sentia cúmplice de Belbo: a primeira foi quando emudecemos juntos (com De Angelis), desta vez - juntos - havíamos falado demais. Era irracional sentirmo-nos culpados - estávamos então convictos disto - mas não podíamos evitar o incômodo. E por isso evitamos por mais de um mês falar no Plano.

Duas semanas mais tarde Diotallevi reapareceu e nos disse com tom desenvolto que pedira uma licença para tratamento de saúde a Garamond. Haviam-lhe aconselhado um tratamento, sobre o qual não quis estender-se muito, que o obrigava a apresentar-se na clínica a cada dois ou três dias, o que o teria debilitado ainda mais. Não sei quanto poderia debilitar-se ainda: tinha agora o rosto da mesma cor dos cabelos.

"E acabemos com aquelas histórias", tinha dito, "fazem mal à saúde, como vêem. É a vingança dos Rosa-Cruzes".

"Não te preocupes", dissera-lhe Belbo sorrindo, "que plantamos um pontapé no rabo deles, e logo te deixam em paz. Basta um gesto."

E estalava os dedos.

O tratamento durou até o início do ano-novo. Eu me havia mergulhado na história da magia - a verdadeira, a séria, dizia para mim mesmo, e não a que havíamos inventado. Garamond vinha à nossa sala pelo menos uma vez por dia para saber notícias de Diotallevi. "E façam o favor de me informar de qualquer exigência, quero dizer, de qualquer problema que surja, de qualquer circunstância em que eu, ou o Estado, possamos fazer algo pelo nosso valoroso amigo. Para mim é como um filho, direi mais, um irmão. Em todo caso estamos num país civilizado, graças a deus, por mais que se diga desfrutamos de excelente serviço social."

Agliè se mostrara solícito, havia perguntado o nome da clínica e telefonara ao diretor, seu caríssimo amigo (além do mais, dissera, irmão de um dos nossos AEPs com o qual estava agora em negociações cordialíssimas). Diotallevi seria tratado com especiais cuidados.

Lorenza estava abalada. Passava pela Garamond quase todos os dias, para saber notícias. Isto devia tornar Belbo feliz, mas ele tirara do fato uma conclusão sombria. Embora presente, Lorenza lhe fugia ainda mais pois não vinha por sua causa.

Pouco antes do Natal surpreendi um fragmento de conversação.

Lorenza dizia-lhe: "Posso lhe garantir, uma neve magnífica e têm uns chalezinhos maravilhosos. Você pode fazer esqui de fundo. Está bem?"

Deduzi daí que passariam o fim do ano juntos. Mas depois do Dia de Reis, Lorenza apareceu um dia no corredor e Belbo lhe disse: "Feliz ano-novo", esquivando-se à sua tentativa de um abraço.

 

Partindo daqui chegamos a uma região chamada Milestre..., na qual se dizia habitar o chamado Velho da Montanha... E havia de fato no alto de elevados montes, que circundavam um vale, um muro muito alto e espesso, que abarcava ao redor de uma extensão de XXX milhas, a cujo interior se entrava por duas portas ocultas, furadas no monte.

(Odorico da Pordenone, De rebus incognitis, Impressus Esauri, 1513, c. 21, p. 15)

 

Um dia, em fins de janeiro, eu passava pela via Marchese Gualdi, onde havia estacionado o carro, quando vi Salon, que saía da Manuzio. "Um bate-papo com o amigo Agliè...” foi o que me disse. Amigo? Pelo que eu recordava da festa do Piemonte, Agliè não gostava dele. Era Salon quem estava metendo o nariz na Manuzio ou era Agliè quem o estava usando possivelmente para algum contato?

Não me deu tempo para refletir sobre o caso, porque me ofereceu um aperitivo, e acabamos entrando no Pilades. Nunca o tinha visto naquelas bandas, mas cumprimentou o velho Pilades como se o conhecesse desde muito. Mal nos sentamos perguntou-me como ia a minha história da magia. Sabia até disso. Resolvi provocá-lo a propósito da Terra oca e daquele Sebottendorff citado por Belbo.

Ele se riu. "Ah, é verdade que malucos dessa espécie é o que não falta em sua editora! A propósito dessa história da Terra oca nada sei. Mas quanto a Von Sebottendorff, eh, aquele era um tipo estranho... Arriscou meter na cabeça de Hitler e companhia idéias suicidas para o povo alemão.

"Que idéias?"

"Fantasias orientais. Esse homem tinha prevenções contra os judeus e caía de amores pelos árabes e os turcos. Sabe que no gabinete de despachos de Himmler, além da Mein Kampf havia sempre o Corão? Sebottendorff quando jovem se havia apaixonado por não sei que seita iniciática turca, e pôs-se a estudar a gnose islâmica. Ele dizia "Führer", mas pensava no Velho da Montanha. E quando todos juntos fundaram a SS, pensavam numa organização semelhante àquela dos Assassinos... Pergunte-se por que na Primeira Guerra Mundial a Alemanha e a Turquia eram aliadas...”

"Mas como o senhor sabe destas coisas?"

"Creio que já lhe disse que meu pobre pai trabalhou na Okrana russa. Pois bem, recordo que naqueles tempos a polícia czarista andava preocupada com os Assassinos, creio que foi Rakovsky quem teve a primeira intuição... Depois abandonaram a pista, porque se entravam os Assassinos não entravam mais os judeus, e o perigo então eram os judeus. Como sempre. Os judeus regressaram à Palestina e obrigaram aqueles a saírem das cavernas. Mas esta história de que estamos falando é muito confusa, melhor acabá-la por aqui."

Parecia arrependido de ter dito tanto, e se despediu às pressas. Havia acontecido alguma coisa mais. Depois de tudo o que sucedeu, estou certo de não haver sonhado, mas naquele dia pensei que tivesse alguma alucinação, porque, acompanhando Salon enquanto saía do bar, pareceu-me vê-lo encontrar-se, na esquina, com um individuo de feições orientais.

Em todo caso Salon me tinha dito o suficiente para despertar o orgasmo da minha imaginação. Velho da Montanha e Assassinos não me eram de modo algum desconhecidos: havia me referido a eles em minha tese, porquanto os Templários eram acusados de ter conluios até mesmo com eles. Como é possível que me tivesse esquecido?

Foi assim que recomecei a dar trabalho à mente, e sobretudo aos dedos, manuseando velhos fichários, quando tive uma idéia tão brilhante que não consegui me conter.

 

Apareci de repente certa manhã na sala de Belbo: "Estamos redondamente enganados. Fizemos uma bruta trapalhada."

"Calma, Casaubon, que foi? Oh, meu deus, o Plano." Teve um momento de hesitação. "Sabe que não tenho boas notícias de Diotallevi? Ele não diz nada, mas telefonei à clínica e não quiseram me afirmar nada de concreto porque não sou parente - ele não tem parentes, quem está cuidando dele agora? Mas não me agradou aquela reticência. É algo de benigno, dizem, mas a terapia não foi suficiente, melhor será que se recupere de modo definitivo por mais um mês, e talvez valha a pena tentar-se uma pequena intervenção cirúrgica... Em suma, aquela gente não me disse a verdade e a história cada vez me agrada menos."

Não soube o que responder, comecei a folhear uma coisa qualquer para fazer esquecer minha entrada triunfal. Mas foi Belbo quem não resistiu. Era como um jogador a quem mostrassem de repente um maço de cartas. "Que diabo", disse. "A vida no entanto continua. Vamos, fale."

"Está tudo errado. Enganamo-nos em tudo, ou em quase tudo. Vejamos: Hitler faz o que faz com os judeus, mas nada arranca do buraco. Ocultistas de meio mundo, durante séculos e séculos, se esmeram em aprender o hebraico, escabaleiam por toda a parte, e o máximo que conseguem extrair é o horóscopo. Por quê?"

"Mas... Porque o fragmento dos hierosolimitanos continua ainda oculto em alguma parte. Por outro lado, nunca veio a furo o fragmento dos paulicianos, pelo que saibamos...”

"Esta é uma resposta típica de Agliè, não nossa. Tenho uma saída melhor, Os judeus não entram nesta história."

"Como assim?"

"Os judeus nada têm que ver com o Plano. Não podem entrar nele. Procuremos imaginar a situação dos Templários, primeiro em Jerusalém, e depois nas capitanias da Europa. Os cavaleiros franceses encontram-se com os alemães, com os portugueses, com os espanhóis, com os italianos, com os ingleses, todos eles têm relações com a área bizantina, e sobretudo se medem com o adversário, o turco. Um adversário com quem se bate mas com quem também se trata, já o vi mos. Aquelas eram as forças em campo, e as relações se faziam entre gentis-homens de igual categoria. Quem eram os judeus naquele tempo na Palestina? Uma minoria racial religiosa, tolerada, respeitada pelos árabes que os viam com benévola condescendência, mas pessimamente tratados pelos cristãos, pois não podemos nos esquecer que no curso das várias cruzadas, de passagem, saqueavam os guetos, e tome lá para ver o que é bom. E vamos admitir que os Templários, com todo o fedor que tinham sob o nariz, ficassem lá a trocar informações místicas com os judeus? Qual nada. Nas capitanias da Europa os judeus eram vistos como usurários, gente sem princípios, dos quais se devia aproveitar mas sem lhes dar confiança. Estamos falando aqui de um relacionamento entre cavaleiros, estamos construindo o plano de uma cavalaria espiritual, e não podemos admitir que os Templários de Provins possam introduzir no assunto cidadãos de segunda categoria, podemos? De maneira alguma."

"Mas toda a magia do Renascimento se põe a estudar a Cabala."

"Claro, estamos já próximos do terceiro encontro, está todo mundo indócil, à procura de atalhos, o hebraico surge como língua sagrada e misteriosa, os cabalistas se empenham por conta própria e com outras finalidades, e os trinta e seis espalhados pelo mundo metem na cabeça que uma língua incompreensível possa encerrar sabe-se lá que segredos. Será Pico della Mirandola a dizer que nulla nomina, ut significativa et in quantum nomina sunt, in magico opere virtutem habere non possunt, nisi sint Hebraica. Pois bem: Pico della Mirandola era um babaca."

"Apoiado!"

"E além do mais como italiano estava excluído do Plano. Que haveria de saber? Pior para os vários Agrippa, Reuchlin e companhia que se atiram sobre aquela falsa pista. Estou reconstituindo a história de uma pista falsa, está claro? Nós nos deixamos influenciar por Diotallevi, que estava cabalando. Diotallevi cabalava e nós inserimos os judeus no Plano. Mas se Diotallevi fosse especialista em cultura chinesa, teríamos metido os chineses no Plano?"

"Talvez sim."

"Talvez não. Mas não é o caso de rasgarmos as vestes, simplesmente fomos induzidos em erro por todos. O erro foi de todos, de Postel em diante, provavelmente. Estavam convencidos, duzentos anos depois de Provins, que o sexto grupo era o hierosolimitano. E não era."

"Mas desculpe, Casaubon, fomos nós que corrigimos a interpretação de Ardenti, e dissemos que o encontro sobre a pedra não se referia a Stonehenge e sim à pedra da Mesquita de Omar."

"E nos enganamos. Há muitas outras pedras. Devíamos pensar num lugar fundado sobre a pedra, na montanha, uma rocha, uma cordilheira, um despenhadeiro... O sexto encontro se dará na fortaleza de Alamut."

 

E apareceu Kairos, que tinha na mão um cetro que significava a realeza, e o entregou ao primeiro deus criado, o qual o tomou e disse: "Teu nome secreto será de trinta e seis letras."

(Hasan-i Sabbãh, Sargozast-i Sayyid-nã)

 

Tinha apresentado minha peça de resistência, agora devia dar explicações. Havia-as coligido nos dias seguintes, longas, minuciosas, documentadas, e agora na mesa do Pílades mostrava a Belbo provas e mais provas, que ele examinava com olhar cada vez mais anuviado, acendendo os cigarros nas guimhas, estendendo a cada cinco minutos os braços para fora, o cálice vazio com um resíduo de gelo no fundo, e Pílades, que se precipitava a reforçar as doses, sem esperar nossos pedidos.

As primeiras fontes eram exatamente aquelas em que apareciam as primeiras narrativas sobre os Templários, de Gerardo de Estrasburgo a Joinville. Os Templários haviam entrado em contato, às vezes em conflito, mas amiúde em misteriosa aliança, com os Assassinos do Velho da Montanha.

A história era naturalmente mais complexa. Começava depois da morte de Maomé, com a cisão entre os seguidores da lei ordinária, os sunitas, e os que davam apoio a Ali, genro do Profeta, marido de Fátima, que se vira usurpado da sucessão. Eram os entusiastas de Ali, que se reconheciam na shi’a, o grupo dos adeptos, que tinham dado vida à ala herética do Islã, os xiitas. Uma doutrina iniciática, que via a continuidade da revelação não na remeditação tradicional das palavras do Profeta, mas na pessoa própria do Imã, senhor, chefe, epifania do divino, realidade teofânica, Rei do Mundo.

Ora que ocorria a esta ala herética do islamismo, que ia sendo aos poucos infiltrada por todas as doutrinas esotéricas da bacia mediterrânica, desde os maniqueus aos gnósticos, dos neoplatônicos à mística irânica, de todas aquelas sugestões que haviam desde anos seguido o curso de seu desenvolvimento ocidental? A história era longa, não conseguíamos desenredá-la, mesmo porque os vários autores e protagonistas árabes tinham nomes imensos, os textos mais sérios os transcrevíamos com sinais diacríticos, e noite adentro não conseguíamos mais distinguir entre Abú "Abdi’l-lã Muhammad b. ‘Ali ibn Razzãm at-Tã’i al-Küfi, Abú Muhammad ‘Ubaydu’llãh, Abú Mu’ini’d-Din Nãsir ibn Hosrow Marwãzi Qobãdyãni (creio que um árabe teria a mesma dificuldade em distinguir entre Aristóteles, Aristóxeno, Aristarco, Aristides, Anaxiniandro, Anaxímenes, Anaxágoras, Anacreonte, e Anacársis).

Mas uma coisa era certa. O xiismo cinde-se em dois troncos, um deles dito duodecímano, que permanece à espera de um Imã desaparecido e venturo, e outro que é aquele dos ismailitas, nascido no reino dos Fatímidas do Cairo, e que depois de várias peripécias se afirma como ismailismo reformado na Pérsia, por obra de um personagem fascinante, místico e feroz. Hasan Sabbãh. E é aí que Sabbãh põe o próprio centro, a própria sede inconquistável a sudoeste do Cáspio, na fortaleza de Alamut, o Ninho do Gavião.

Aí Sabbãh se rodeava de seus acólitos, os fidã’iyyun ou fedain, fiéis até a morte de que ele se utilizava para levar a cabo seus assassinios políticos, instrumentos da gihàd hafi, a guerra santa secreta. Os fedain, ou como ele os chamasse, ficariam mais tarde tristemente famosos com o nome de Assassinos - que hoje não é um bom nome, mas que então para eles era esplêndido, emblema de uma raça de monges guerreiros que muito se assemelhavam aos Templários, prontos a morrer pela fé. Cavalaria espiritual.

A fortaleza ou o castelo de Alamut: a Pedra. Construída no alto de uma crista aérea de quatrocentos metros de extensão e com largura as vezes de apenas alguns passos, no máximo trinta, vista de longe, a quem chegasse pela estrada de Azerbaizian, parecia uma muralha natural, branca ofuscada pelo Sol, azulada ao entardecer purpúreo, pálida na madrugada e sanguínea no alvorecer, em certos dias enevoada entre as nuvens ou faiscante de relâmpagos Ao longo de seus bordos superiores distinguia-se a custo um adorno impreciso e artificial de torres tetragonais, que de cima pareciam uma série de lâminas de rocha que se precipitassem para o alto por centenas de metros, ameaçando-nos cair em cima, sendo a vertente mais acessível um escorregadio polvilhado de saibro, que até hoje os arqueólogos não conseguem subir; naquele tempo lá se chegava por alguma escadaria secreta denteada na rocha em caracol, como a descascar uma maçã fóssil, bastando um único arqueiro para defendê-la. Inconquistável, vertiginosa no Além. Alamut, a fortaleza dos Assassinos. Ali só se chega cavalgando as águias.

Ali Sabbãh reinava, e depois dele os que seriam conhecidos como o Velho da Montanha, primeiro entre todos o seu sulfúreo sucessor Sinãn.

Sabbãh havia inventado uma técnica de domínio, sobre os seus e sobre os adversários. Aos inimigos dizia que se não estivessem dispostos a satisfazer seus desejos os mataria. E dos Assassinos não se podia fugir. Nizãmu’l-Mulk, primeiro-ministro do sultão, no tempo em que os cruzados ainda se afanavam em conquistar, Jerusalém, ao ser transportado de liteira ao lugar de suas mulheres, foi mortalmente apunhalado por um sicário que se aproxima dele vestido de dervixe. O atabeque de Hims, quando saía de seu castelo para comparecer à oração da sexta-feira, circundado por um pelotão de soldados armados até os dentes, acaba sendo apunhalado pelos sicários do Velho.

Sinãn decide mandar matar o marquês cristão Conrado de Montefeltro, e instrui dois de seus sicários, que se insinuam entre os infiéis imitando-lhes os hábitos e a língua, após duros treinamentos. Disfarçados de monges, enquanto o bispo de Tiro oferecia um banquete ao insciente marquês, saltam-lhe em cima e o ferem. Um Assassino é morto pelos guarda-costas, outro refugia-se numa igreja, espera que para ali seja transportado o ferido, ataca-o, liquida-o, morre beato.

Isso porque, diziam os historiógrafos árabes da linha sunita, e depois os cronistas cristãos, de Odorico de Pordenone a Marco Pólo, o Velho da Montanha havia descoberto uma maneira atroz de tornar seus cavaleiros fidelíssimos até o sacrifício extremo, máquinas de guerra invencíveis. Levava-os muito jovens ainda sonhadores para o alto da rocha, enfraqueciam-nos com delícias, vinho, mulheres, flores, banquetes deliqüescentes, aturdia-os de haxixe - daí o nome da seita. E quando já não podiam mais renunciar às beatitudes perversas daquela ficção de Paraíso, arrancavam-nos do sono e os colocavam diante da alternativa: vai e mata, se o conseguires este Paraíso que agora deixas será teu de novo para sempre, se fracassas voltarás novamente para a geena do teu dia-a-dia.

E eles, atordoados pela droga, acessíveis aos seus desejos, sacrificavam-se para sacrificar, matadores condenados à morte, vítimas destinadas a fazerem vítimas.

Como os temiam, como os mitificavam os cruzados nas noites sem Lua enquanto o simüm sibilava no deserto! Como os Templários os admiravam, toleirões subjugados por aquela límpida vontade de martírio, que se submetiam a lhes pagar pedágio, pedindo-lhes em troca tributos formais, num jogo de concessões mútuas, cumplicidade, irmandade de armas, estripando-se em campo aberto, acariciando-se em segredo, sussurrando-se mutuamente suas visões místicas, fórmulas mágicas, refinamentos alquímicos...

Com os Assassinos os Templários aprenderam os ritos ocultos. Só a imbele insipiência dos bailios e dos inquisidores do rei Filipe os havia impedido de compreender que a cuspida na cruz, o beijo no ânus, o gato preto e a adoração de Bafomé outra coisa não eram que a repetição de outros ritos, que os Templários executavam sob o influxo do primeiro segredo que haviam aprendido no Oriente, o uso do haxixe.

E então era óbvio que o Plano nascesse, devesse nascer ali: pelos homens de Alamut os Templários souberam das correntes subterrâneas, com os homens de Alamut reuniram-se em Provins e instituiram a trama oculta dos trinta e seis invisíveis, e por isso Christian Rosencreutz teria viajado a Fez e a outros lugares do Oriente, por isso ao Oriente teria se deslocado Postel, por isso do Oriente, e do Egito, sede dos ismailitas fatímidas, os magos do Renascimento teriam importado a divindade epônima do Plano, Hermes, Hermes-Teuth ou Toth, e com figuras egípcias havia assombrado os seus ritos o intrigante Cagliostro. E os jesuítas, os jesuítas, menos tolos do que houvéssemos suposto, com o bom Kircher se haviam imediatamente debruçado sobre os hieróglifos, e o copta, e as outras línguas orientais, não passando o hebraico senão de uma cobertura, uma concessão à moda da época.

 

Estes textos não se destinam ao comum dos mortais... A percepção gnóstica é um caminho reservado a uma elite... Porque, segundo as palavras da Bíblia: não deiteis pérolas a porcos.

(Kamal Jumblatt, Entrevista a Le Jour, 31.3.1967)

 

Arcana publicata vilescunt: et gratiam prophanata amittunt. Ergo: ne margaritas obijce porcis, seu asinus substerne rosas.

(Johann Valentin Andreae, Die chymische Hochzeit des Christian Rosencreutz, Strassburg, Zetzner, 1616, frontispício)

 

E por outro lado, onde encontrar alguém que soubesse esperar sobre a pedra durante seis séculos e que sobre a pedra tivesse esperado? É verdade, Alamut por fim caiu sob a pressão mongólica, mas a seita dos ismailitas sobreviveu em todo o Oriente, mesclando-se de um lado com o sufismo não-xiita, e dando origem por outro à terrível seita dos drusos, e sobrevivendo ainda entre os khoia indianos, seguidores do Aga lKhan, a pouca distância do local de Agarttha.

Mas havia descoberto algo mais. Sob a dinastia dos Fatímidas os conceitos herméticos dos antigos egípcios, através da academia de Heliópolis, tinham sido redescobertos no Cairo, onde havia sido fundada uma Casa das Ciências. A Casa das Ciências! Onde teria se inspirado Bacon para a sua Casa de Salomão, qual teria sido o modelo do Conservatoire"?

"É isto, é isto, não há a menor dúvida", dizia Belbo inebriado.

Depois: "Mas, e então os cabalistas?"

"É apenas uma história paralela. Os rabinos de Jerusalém intuem que alguma coisa aconteceu entre os Templários e os Assassinos, e os rabinos da Espanha, circulando sob a aparência de emprestar dinheiro a juros pelas capitanias européias, farejam qualquer coisa. Estão excluídos do segredo, e num ato de orgulho nacional decidem agir por conta própria. O quê, nós, o Povo Eleito, somos mantidos à parte do segredo dos segredos? E zac, inicia-se a tradição cabalística, a tentativa heróica da diáspora, dos marginalizados, para consegui-lo a despeito dos senhores, dos dominadores que pretendem saber tudo."

"Mas, agindo assim, dão aos cristãos a impressão de saber tudo na verdade."

"E a determinada altura alguém comete a gafe colossal. Confunde Ismael com Israel."

"Logo Barruel, os Protocolos e o Holocausto são apenas fruto de uma troca de consoantes."

"Seis milhões de judeus mortos por um erro de Pico della Mirandola."

"Ou talvez haja outra razão. O povo eleito se havia arrogado o encargo da interpretação do Livro. Difundiu uma obsessão. E os outros, nada encontrando no Livro, se vingaram. A gente tem medo de quem nos põe cara a cara com a Lei. Mas os Assassinos, por que não se manifestaram antes?"

"Mas Belbo! Lembre-se de como aquela região se avilta a partir da batalha de Lepanto. Sebottendorff compreende no entanto que alguma coisa devia ser buscada entre os dervixes turcos, mas Alamut já não existe, estes se ocultaram sabe-se lá onde. Esperam. E então chega o momento, protegidos pelo irredentismo islâmico põem a cabeça de fora. Metendo Hitler no Plano tínhamos encontrado uma boa razão para a Segunda Guerra Mundial. Pondo agora os Assassinos estamos explicando tudo o que ocorre há anos entre o Mediterrâneo e o golfo Pérsico. E aqui encontramos um lugar para meter o Tres, Templi Resurgentes Equites Synarchici. Uma sociedade que se propõe restabelecer finalmente os contatos com as cavalarias espirituais de credos diversos."

"Ou que estimula os conflitos para confundir tudo e pescar em águas turvas. É claro. Chegamos ao fim de nosso trabalho de remendar a História. Quem sabe no momento supremo o Pêndulo irá revelar que o Umbilicus Mundi é Alamut?"

"Agora não exageremos. Deixarei este último ponto em suspenso."

"Como o Pêndulo."

"Como queira. Não se pode dizer tudo aquilo que nos passa pela cabeça."

"Isto mesmo. O rigor antes de tudo."

 

Aquela noite eu estava orgulhoso de haver arquitetado uma bela história. Era um esteta, que usa a carne e o sangue do mundo para criar Beleza. Belbo era agora um adepto. Como todos, não por iluminação, mas faute de mieux.

 

Claudicat ingenium, delirat língua, labat mens.

(Lucrécio, De rerum natura, III. 453)

 

Deve ter sido naqueles dias que Belbo procurou analisar o que lhe estava ocorrendo. Mas sem que a severidade com que se sabia analisar pudesse desviá-lo do mal a que se estava habituando.

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filename: E se houvesse?

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Inventar um Plano: o Plano te justifica a tal ponto que não és nem mesmo responsável pelo próprio Plano. Basta atirar a pedra e esconder a mão. Não haveria falha se de fato houvesse um Plano.

Mas nunca houve Cecilia porque os Arcontes fizeram Annibale Cantalamessa e Pio Bo incapazes para o mais simpático dos instrumentos de sopro. Fugiste em frente ao Canaletto porque os Decanos queriam reservar-te para outro holocausto. E o homem da cicatriz tem um talismã mais poderoso que o teu.

Um Plano, um culpado. O sonho da espécie. An Deus sit. Se há, é culpa sua.

A coisa de que perdi o endereço não é o Fim, é o Princípio. Não o objeto a possuir mas o objeto que me possui. Mal comum meia alegria, que outra coisa diz o Mito? Octossílabo duplo.

Quem escreveu aquele pensamento, o mais tranqüilizador que até agora foi pensado? Ninguém poderá tirar-me da cabeça que este mundo é fruto de um deus tenebroso do qual prolongo a sombra. A fé conduz ao Otimismo Absoluto.

É verdade, forniquei (ou não forniquei): mas foi Deus que não soube resolver o problema do Mal. Vamos dissolver o feto no crisol, com mel e pimenta. Deus o quer.

Se há mesmo necessidade de crer, que seja uma religião que não te faça sentir culpado. Uma religião incoerente, fumigante, subterrânea, que não acaba nunca. Como um romance, e não como uma teologia.

Cinco caminhos para um só ponto de chegada. Que desperdício. Um labirinto, em vez, que leve a toda parte e a parte alguma. Para morrer com estilo, viver de forma barroca.

Só um mau Demiurgo nos faz sentir bons.

Mas se não houvesse o Plano cósmico? Que logro, viver no exílio quando ninguém te mandou para la. E exilado de um lugar que não existe. E se houvesse o Plano, mas te passasse despercebido para sempre?

Quando a religião cede, a arte acode. Inventas o Plano, metáfora daquele incognoscível. Até uma conspiração humana pode preencher o vazio. Não publicaram o meu Coração e paixão porque não pertenço à camarilha templar.

Viver como se houvesse um Plano: a pedra dos filósofos.

lf vou cannot beat them, join them. Se existe o Plano, basta adequar-se a ele...

Lorenza põe-me à prova. Humildade. Se tivesse a humildade para invocar os Anjos, mesmo sem crer neles, e de traçar o círculo perfeito, encontraria a paz. Talvez.

Crê que haja um segredo que te sentirás iniciado. Não custa nada.

Criar uma esperança imensa que jamais possa ser erradicada porque não existe a raiz. Antepassados que não existem jamais irão dizer que os traíste. Uma religião que se pode observar traindo-a ao infinito.

Como Andreae: criar por brincadeira a maior revelação da história e, enquanto os outros nela se perdem, jurar pelo resto de tua vida que não foste tu.

 

Criar uma verdade de contornos indecisos: mal alguém procure defini-la, excomungá-lo. Justificar apenas o que for mais impreciso do que tu. Jamais d’ennemis à droite.

Para que escrever romances? Reescreve a História. A História que depois te tornas.

Por que não os situa na Dinamarca, Sr. Guilherme Agitalança? Jim do Pango Johann Valentin Andreae Lucasmateus corre pelo arquipélago de Sonda entre Patmo e Avalon, da Montanha Branca a Mindanau, da Atlântida a Tessalonica... No concílio de Nicéia, Orígenes corta os próprios testículos e os mostra a sangrar aos pedras da Cidade do Sol, a Hiram que range os dentes filíoque filioque enquanto Constantino planta as unhas rapaces nas órbitas vazias de Robert Fludd, morte morte aos judeus do gueto de Antioquia, Dieu et mon droit, agito-lhe o Beauceant, em cima dos ofitos e dos borboritos que borborigmam venenosos. Soar de clarins, e eis que chegam os Chevaliers Bienfaisants de la Cité Sainte com a cabeça do Mouro hirta sobre a lança, o Rébis, o Rébis! Furacão magnético, despenca a Tour. Escarnece Raékovsky sobre o cadáver estorricado de Jacques de Molay.

 

Não te possuí, mas nosso fazer explodir a história.

 

Se o problema é essa ausência de ser, se o ser é isso que se diz de muitas maneiras, quanto mais falamos mais o ser existe. O sonho da ciência é que de ser temos muito pouco, concentrado e dizível, E = mc2. Engano. Para salvar-se até o início da eternidade é necessário querer que se seja um ser ao acaso. Como uma serpente enrodilhada num marinheiro bêbedo. Inextricável.

 

Inventar, inventar desordenadamente, sem se preocupar com o nexo, de modo a não conseguir fazer mais o resumo. Um simples jogo de estafeta para símbolos, um revelando o outro, sem parar. Decompor o mundo numa sarabanda de anagramas em cadeia. E depois crer no Inexprimível. Não é esta a verdadeira leitura da Torah? A verdade é o anagrama de um anagrama. Anagrams = ars magna.

 

Isso deve ter acontecido naqueles dias. Belbo havia resolvido levar a sério o universo dos diabólicos não por excesso mas por deficiência de fé.

Humilhado por sua incapacidade de criar (e tinha usado durante toda a vida os desejos frustrados e as páginas jamais escritas, umas como metáforas das outras e vice-versa, o todo como símbolo de sua presumida, impalpável covardia), agora estava se dando conta de que construindo o Plano na realidade havia criado. Estava se enamorando de seu Golem e dele extraía motivo de consolo. A vida - a sua e a da humanidade - como arte, e à falta de arte a arte como mentira. Le monde est fait pour aboutir à un livre (faux). Mas agora procurava acreditar naquele livro falso porque, já o dissera por escrito, se tivesse havido um complô ele não teria sido mais covarde, vencido e pusilânime.

Daí o que aconteceu depois, sua utilização do Plano - que sabia irreal - para derrotar um rival - que acreditava real. E depois, quando percebeu que o Plano o estava envolvendo como se de fato existisse, ou como se ele, Belbo, fosse feito da mesma massa de que era feito o seu Plano, faz uma viagem a Paris como indo ao encontro de uma revelação, uma desforra.

Vítima do remorso cotidiano, por anos e anos, de haver apenas freqüentado seus próprios fantasmas, estava encontrando alívio em divisar fantasmas que se estavam tornando objetivos, percebidos até mesmo por outro, ainda que fosse este o Inimigo. Correu a jogar-se na boca do lobo? Decerto, porque aquele lobo tomava forma, era mais real do que o um do Pango, talvez mais real do que Cecilia, do que a própria Lorenza Pellegrini.

Belbo, enfermo de tantos encontros não-realizados, sentia que agora marcava um encontro real. E de tal maneira que já não podia mais faltar a ele por covardia, porque tinha sido posto contra a parede. O medo obrigava-o a ser corajoso. Inventando havia criado o principio de realidade.

 

A lista n° 5, seis camisetas, seis cuecas e seis lenços, sempre intrigou os estudiosos, fundamentalmente pela total ausência de meias.

(Woody Allen, Getting Even, New York, Random House, 1966, "The Metterling List", p. 8)

 

Naqueles dias, há pouco mais de um mês, Lia decretou que umas férias me haveriam de fazer bem. Você está com a fisionomia cansada, dizia. Talvez o Plano me tivesse exaurido. Por outro lado, o pimpolho, como diziam os avós, estava precisando de ar puro. Uns amigos nos haviam emprestado uma casinha na montanha.

Não partimos logo. Precisava ainda tratar alguns assuntos em Milão, e Lia achava não haver nada mais repousante que umas férias na cidade, quando se sabe que depois se vai.

Naqueles dias falei com Lia sobre o Plano pela primeira vez. A princípio estava ocupada demais com a criança: sabia vagamente que eu com Belbo e Diotallevi estava resolvendo uma espécie de charada que me tomava dias e noites inteiras, mas não lhe dissera nada mais que isso, desde quando me fez aquele sermão sobre a psicose das semelhanças. Talvez me envergonhasse.

Naqueles dias contei-lhe todo o Plano, completo em seus mínimos detalhes. Ela sabia da doença de Diotallevi, e eu me sentia com rabo-de-palha, como se tivesse feito alguma coisa que não devia, e procurasse contar-lhe só para bancar o forte.

E Lia me disse: "Pim, essa história não me agrada."

"Não acha atraente?"

"As sereias também eram atraentes. Diga-me uma coisa: que sabe do seu inconsciente?"

"Nada, não sei nem mesmo se existe."

"Pois bem. Agora imagine se um patusco vienense, para divertir os amigos, se pusesse a inventar toda aquela história do Ego, de édipo, e imaginasse sonhos que de fato nunca teve, e pequenos Hans que nunca tinha visto... E depois que aconteceu? Que havia milhões de pessoas prontas a se tornarem neuróticas a sério. E outros milhares prontos a explorá-las."

"Lia, você é paranóica."

"Eu, não. Você!"

"Admito que sejamos paranóicos, mas pelo menos isto você tem que conceder-nos: partimos do texto de Ingolf. Ora, estamos diante de uma mensagem dos Templários, aí nos vem o desejo de decifrá-la a fundo. Talvez exageramos, para gozar os decifradores de mensagens, mas o certo é que havia a mensagem."

"Contudo o que você sabe é apenas o que lhes disse esse Ardenti, que pelo visto era doido de pedra. Além do mais eu gostaria muito de ver essa mensagem."

Nada de mais fácil, eu a tinha em minha pasta.

Lia tomou a folha, olhou-a de frente e por detrás, enrugou o nariz, ergueu o tufo de cabelo dos olhos para ver melhor a primeira parte, a cifrada. E disse: "Isto é tudo?"

"Não lhe basta?"

"Basta e sobra. Dê-me dois dias para refletir." Quando Lia me pede dois dias para refletir é para demonstrar-me que sou estúpido.

Acuso-a sempre disto, e ela me responde: "Se percebo que você é estúpido é porque gosto de você de fato. Gosto de você mesmo sendo estúpido. Isso não o tranqüiliza?"

Por dois dias não tocamos no assunto, e além do mais ela esteve quase sempre fora. À noite via-a encolhida no seu cantinho onde tomava notas, arrancando folha após folha do bloco.

Ao chegarmos à montanha, a criança brincou o dia inteiro no gramado, Lia preparou o jantar, e disse-me que comesse porque eu estava magro feito um palito. Depois do jantar pediu-me que lhe preparasse um uísque com muito gelo e pouca soda, acendeu um cigarro como só faz nos momentos importantes, fez-me sentar a seu lado e explicou-me.

"Preste atenção, Pim, porque vou lhe demonstrar que as explicações mais simples são sempre as mais verdadeiras. Aquele coronel lhe disse que Ingolf havia encontrado uma mensagem em Provins, e eu não ponho em dúvida. Terá descido ao subterrâneo e terá de fato encontrado um estojo com este texto aqui", e batia o dedo sobre os versículos em francês. "Ninguém nos disse que encontrou um estojo abarrotado de diamantes. A única coisa que o coronel contou a vocês foi que segundo os apontamentos de Ingolf ele tinha vendido um estojo: e por que não, era uma coisa antiga, deve ter ganho até um bom dinheiro com ele, mas ninguém nos afirma que depois tenha vivido disto. É possível que tenha recebido uma pequena herança do pai, quem sabe?"

"E por que o estojo tem que ser de pouco valor?"

"Porque esta mensagem é um rol de roupa. Quer ver, vamos relê-la."

 

a la ... Saint Jean

36 p charrete de fein

6 ... entiers avec saiel

p ... les blancs mantiax

r ... s ... chevaliers de Pruins pour la .. j .nc

6 foiz 6 en 6 places

chascune foiz 20 a ... 120 a …

iceste est l’ordonation

al donjon li premiers

it li secunz joste iceus qui ... pans

it al refuge

it a Nostre Dame de l’altre part de I’iau

it a l’ostel des popelicans

it a la pierre

3 foiz 6 avant la feste ... ia Grant Pute.

 

"E então?"

"Mas santa paciência, você não teve nunca a idéia de consultar um guia turístico, um sumário histórico sobre a cidade de Provins? Descobririam logo que la Grange-aux-Dîmes onde foi encontrada a mensagem era o local onde se reuniam os comerciantes, porque Provins era o centro das feiras da Champagne. E que essa Grange se situa na rue St. Jean. Em Provins comerciava-se de tudo, mas em particular o bom negócio eram as peças de fazenda, os draps ou dras como se escrevia então, e cada peça era autenticada com uma marca de garantia, uma espécie de selo, de timbre. O segundo produto mais importante de Provins eram as rosas, as rosas cor-de-rosa que os cruzados haviam trazido da Síria. Eram de tal maneira famosas que quando Edmundo de Lancaster desposa Branca de Artois e recebe também o título de conde de Champagne, coloca a rosa rósea de Provins em seu brasão, e eis a razão da guerra das duas rosas, visto que os Yorks tinham como insígnia uma rosa branca."

"E quem foi que lhe disse isto?"

"Um livrinho de duzentas páginas editado pelo Departamento de turismo de Provins, que encontrei no centro de cultura francesa. Mas a história não acaba aí. Em Provins há uma fortaleza denominada o Donjon, como a própria palavra diz, há uma Porte-aux-Pains, há uma Eglise du Refuge, havia várias igrejas como é óbvio consagradas a Nossa Senhora disto Nossa Senhora daquilo, havia ou ainda há uma rue de la Pierre Ronde, onde havia uma pierre de cens, sobre a qual os súditos do conde iam depositar as moedas da dízima. E também uma rue des Blancs Manteaux e um caminho chamado da Grande Putte Muce, pelas razões que deixo a você adivinhar, ou bem porque era uma rua que levava aos bordéis."

"E os popelicans?"

"Os cátaros haviam estado em Provins, os quais foram devidamente queimados, sendo que o grande inquisidor era um cátaro arrependido, a quem chamavam Robert le Bougre. Portanto nada de estranho que houvesse uma rua ou uma zona que fosse então indicada como o lugar dos cátaros, mesmo depois que os cátaros não existiam mais."

"Já em 1344...”

"Mas quem foi que lhe disse que este documento é de 1344? O coronel leu 36 anos após a carreta de feno, mas lembre-se que naqueles tempos um p escrito de certa maneira com uma espécie de apóstrofo queria dizer post, mas outro p sem apóstrofo queria dizer pro. O autor deste texto é um pobre comerciante que tomou algumas notas sobre os negó-

cios realizados na Grange, ou seja à rue St. Jean, e não na noite de São

João, aqui registrando o preço de trinta e seis soldos, ou denários ou ou-

tra moeda que fosse por uma ou por todas as carretas de feno."

"E os cento e vinte anos?"

"E quem falou de anos? Ingolf encontrou algo que transcreveu como 120 a... Mas quem disse que era um a? Fui verificar numa tabela de abreviaturas em uso naqueles tempos e encontrei que para denier ou dinarium usavam-se estranhos signos, um que parecia um delta e outro um teta, uma espécie de círculo cortado à esquerda. Mal escrito e às pressas, e por um pobre negociante, eis que um exaltado como o coronel vem a interpretá-lo como um a, porque já havia lido em alguma parte a história dos 120 anos, que como você bem sabe poderia ser lida em quase todas as histórias dos Rosa-Cruzes, ele queria encontrar algo que se assemelhasse a post 120 annos patebo! E então que faz? Encontra it e o lê como iterum. Mas iterum abrevia-se itm, ao passo que it quer dizer item, ou seja idem, por isso mesmo é usado nas listas repetitivas. Nosso negociante está calculando quanto lhe vão render certas ordenações, ou encomendas, que recebeu, e faz a lista das entregas. Deve entregar dez maços de rosas de Provins, que é o que significam aqueles r ... s ... chevaliers de Pruins. E ali onde o coronel lia vainjance (porque tinha em mente o cavaleiro Kadosch) deve-se ler jonchée. As rosas eram usadas para fazer coroas de flores ou tapetes florais, por ocasião das várias festas. E daí, vejamos como podemos ler a mensagem de Provins:

 

Na rua Saint Jean.

36 soldos por carreta de feno.

Seis panos novos com sinetes

na rua dos Blancs Manteaux.

Rosas dos cruzados para fazer uma jonchée (juncada):

seis maços de seis nos seis lugares que se seguem,

cada um a 20 denúrios, que fazem ao todo 120 denãrios.

Eis em que ordem:

os primeiros no Donjon (fortaleza)

item os segundos àqueles da Porte-aux-Pains

item à Igreja do Refúgio

item à Igreja de Notre Dame, do outro lado do rio

item ao velho edifício dos cátaros

item na rua da Pierre Ronde.

E três maços dos seis antes da festa, na rua das putas

 

porque até elas, pobrezinhas, talvez quisessem celebrar a festa fazendo uma bela coroa de rosas."

"Jesus", disse-lhe, "mas não é que você tem razão."

"Claro que tenho. É um rol de roupa, garanto-lhe."

"Um momento. É possível que esta mensagem seja de fato um rol de roupa, mas a primeira é cifrada e fala dos trinta e seis invisíveis."

"De fato. O texto em francês eu matei em uma hora, mas o outro me fez penar dois dias. Tive que estudar Tritêmio, na Ambrosiana e na Trivulziana*,

 

* Nome de duas bibliotecas de Milão. (N. do T.)

 

e você sabe como são os bibliotecários, antes de deixarem a gente pôr a mão num livro antigo olham para você como se quisessem comê-lo. Mas a história é simplissima. Antes de mais nada, e isto devia ter descoberto sozinho, você tem certeza que o francês de ‘les 36 inuisibles separez en six bandes’ seja o mesmo do nosso negociante? E o certo é que até vocês se haviam dado conta de que se tratava da expressão usada num panfleto do século XVIII, quando os Rosa-Cruzes apareceram em Paris. Mas acabaram raciocinando como os seus diabólicos: se a mensagem está cifrada segundo o método de Tritêmio, isso significa que Tritêmio copiou dos Templários, e como cita uma frase que circulava nos meios rosacrucianos, quer dizer que o plano atribuído aos Rosa-Cruzes era o mesmo plano dos Templários. Mas tente inverter o raciocínio, como faria qualquer pessoa sensata: como a mensagem está escrita à maneira de Tritêmio, foi escrita depois de Tritêmio, e como cita expressões que circulavam no século XVII rosacruciano, foi escrita depois do século XVII. Qual será a esta altura a hipótese mais econômica? Ingolf encontra a mensagem de Provins, e, por ser como o coronel um alucinado pelos mistérios herméticos, lê trinta e seis e cento e vinte e pensa logo nos Rosa-Cruzes. E como é alucinado por criptografia, diverte-se a resumir a mensagem de Provins em línguagem cifrada. Faz um exercício, e escreve segundo o criptossistema de Tritêmio a sua bela frase rosacruciana."

"Explicação engenhosa. Mas vale tanto quanto a conjectura do coronel."

"Até aqui, concordo. Mas conjectura por conjectura tanto faz mais uma, e todas juntas se sustentam umas às outras. Você agora já está mais seguro de haver adivinhado, não? Que parti de uma suspeita. As palavras usadas por Ingolf não são as sugeridas por Tritêmio. São do mesmo estilo assírio-babilônico cabalístico, mas não são as mesmas. Além do mais se Ingolf queria palavras que começassem com as letras que lhe interessavam, em Tritêmio encontraria quantas quisesse. Por que não escolheu aquelas?"

"Por quê?"

"Talvez porque necessitasse de certas letras precisas também na segunda, na terceira, na quarta posição. Talvez o nosso Ingolf quisesse uma mensagem em cifra múltipla. Queria ser melhor do que Tritêmio. Tritêmio sugere quarenta criptossistemas maiores: num deles só valem as iniciais, em outro a primeira e a terceira letras, em outro ainda uma inicial sim e outra não, e assim por diante, de modo que com um pouco de boa vontade é possível inventar cem outros sistemas.

Quanto aos dez criptossistemas menores, o coronel só considerou a primeira rótula, que é a mais fácil. Mas as seguintes funcionam segundo o princípio da segunda, da qual aqui está a cópia. Imagine que o círculo interno seja móvel e que você o possa fazer rodar de modo que o A inicial coincida com qualquer outra letra do círculo exterior. Você terá assim um sistema em que o A corresponde a X e assim por diante, outro em que o A coincide com o U e assim por diante... Com vinte e duas letras em cada círculo, podem-se obter não dez mas vinte e um criptossistemas, só se anulando o vigésimo segundo, em que o A coincide com o A...”

"Não vá me dizer que você para cada uma das letras de cada palavra experimentou todos os vinte e um sistemas...”

"Tive muita presença de espírito e sorte mais ainda. Como as palavras mais curtas são as de seis letras, é óbvio que só as primeiras seis o importantes, e o resto está aí para enfeite. Por que seis letras? Imaginei que Ingolf tivesse cifrado a primeira, depois houvesse saltado uma, tivesse cifrado a terceira, depois saltasse duas e cifrasse a sexta. Se para a inicial usasse a rótula número um, para a terceira letra experimentei a rótula número dois, e fez sentido. Então experimentei a rótula número três para a sexta letra, e fez sentido de novo. Não excluo a hipótese de que Ingolf tenha usado também outras letras, mas três evidências me bastam, e se você quiser continua por sua conta."

 

"Não me deixe em suspenso. Que foi que você obteve?"

"Olhe de novo a mensagem, sublinhei as letras que contam."

 

Kuabris Defrabax Rexulon Ukkazaal Ukzaab Urpaefel Taculbain Habrak Hacoruin Maquafel Tebrain Hmcatuin Rokasor Himesor ArgaabiI Kaquaan Docrabax Reisaz Reisabrax Decaiquan Oiquaquil Zaitabor Qaxaop Dugraq Xaelobran Disaeda Magisuan Raitak Huidal Uscolda Arabaom Zipreus Mecrim Cosmae Duquifas Rocarbis

 

"Ora, a primeira mensagem sabemos qual é, aquela sobre os trinta e seis invisíveis. Agora veja o que resulta, substituindo-se conforme a segunda rótula as letras de três em três: chambre des demoiselles, l’aiguilIe creuse."

"Mas eu conheço, isto, é...”          

"En aval d’Etretat - La Chambre des Demoiselles - Sous le Fort du Fréfossé - Aiguille Creuse. É a mensagem decifrada por Arsène Lupin quando descobre o segredo da Agulha Oca! Lembra-se: em Etretat ergue-se junto à praia a Agulha Oca, um castelo natural, habitável em seu interior, arma secreta de Júlio César quando invadia a Gália, e depois dos reis de França. A fonte do imenso poder de Lupin. E você sabia que os lupinólogos são tão alucinados por essa história, a ponto de fazerem peregrinações a Etretat, à procura de outras passagens secretas, anagramando cada palavra de Leblanc... Ingolf era também um lupinólogo tal como era um rosacrucianólogo, e por isso tome lá cifra."

"Mas os meus diabólicos sempre poderiam dizer que os Templários conheciam o segredo da agulha, e que portanto a mensagem teria sido escrita em Provins no século XIV...”

"Certo, sei disso. Mas aí é que vem a terceira mensagem. Terceira rótula aplicada a cada seis letras. Veja só: merde i’en ai marre de cette steganographie. E este é francês moderno, os Templários não falavam asssim. Assim falava Ingolf, que depois de quebrar a cabeça cifrando as suas maluquices, divertiu-se mais uma vez mandando ao diabo, em linguagem cifrada, aquilo que estava fazendo. Mas como não fosse destituído de argúcia, peço-lhe que observe que as três mensagens têm cada uma trinta e seis letras. Meu caro Pim, Ingolf fazia a mesma brincadeira que vocês estão fazendo, e o imbecil daquele coronel o levou a sério.

"Então por que foi que Ingolf desapareceu?"

"Ninguém lhe disse que ele foi assassinado. Ingolf andava cheio de ficar em Auxerre, conversando só com o farmacêutico e a filha solteirona que choramingava o dia inteiro. Quem sabe vai a Paris, dá sorte vendendo um de seus livros raros, encontra uma viuvinha jeitosa e resolve mudar de vida. Como aqueles maridos que saem para comprar cigarro e a mulher nunca mais volta a vê-los."

"E o coronel?"

"Você não me disse que nem mesmo aquele policial estava seguro de que o houvessem matado? Deve ter-se metido em alguma encrenca, suas vítimas o localizaram, e ele se mandou. A esta altura estará quem sabe vendendo a Torre Eiffel a algum turista americano e se chama Dupont."

Eu não podia ceder em todas as frentes. "Está bem, partimos de um rol de roupa, mas na maior parte do tempo fomos bastante engenhosos. Nós sabíamos muito bem que estávamos inventando. Era como se fizéssemos poesia."

"O plano de vocês não tem nada de poético. Tem de grotesco. Não ocorre às pessoas incendiar de novo Tróia só porque leram Homero. Com ele o incêndio de Tróia tornou-se algo que nunca foi, jamais será e no entanto será sempre. Faz muito sentido, porque é tudo claro, tudo límpido. Os manifestos rosacrucianos de vocês não eram nem claros nem límpidos, eram um borborigmo e prometiam um segredo. Por isso é que tanto procuraram torná-los verdadeiros, e cada um de vocês neles encontrou o que queria. Em Homero não há nenhum segredo. O plano de vocês está cheio de segredos, porque está cheio de contradições. Por isso poderiam encontrar milhares de inseguros dispostos a se reconhecerem neles. Ponham tudo fora. Homero não andou fingindo. Vocês fingiram o tempo todo. O mal de se fingir é que todos nos acreditam. As pessoas não acreditaram em Semmelweis, que dizia aos médicos para lavarem as mãos antes de tocarem nas parturientes. Dizia coisas simples demais. As pessoas acreditam é naqueles que vendem loção para crescer o cabelo. Sentem por instinto que aquilo reúne verdades que não se coadunam, que não é lógico e nem é feito de boa-fé. Mas como lhe disseram que Deus é complexo, e insondável, eles acabam achando que a incoerência é a coisa mais próxima da natureza de Deus. O inverossímil é a coisa mais parecida com o milagre. Vocês inventaram uma loção para crescer o cabelo. Não me agrada, é um jogo sujo."

Não é que esta história tenha arruinado os nossos dias na montanha. Dei boas caminhadas, li alguns livros bons e sérios, nunca estive tanto tempo ao lado da criança. Mas entre mim e Lia havia ficado alguma coisa por dizer. Por um lado Lia me pusera de costas contra a parede e lhe desagradava ter-me humilhado, e por outro lado não estava convencida de haver-me convencido.

Na verdade eu sentia saudades do Plano, não queria jogá-lo fora, convivera demasiado com ele.

Não faz muito levantei-me cedo, para tomar o único trem para Milão. E em Milão iria receber o telefonema de Belbo de Paris, e daria início à aventura que ainda não acabei de viver.

Lia tinha razão. Devíamos ter falado sobre isto antes. Mas não teria acreditado nela da mesma forma. Eu vivera a criação do Plano como o momento de Tiferet, o coração do corpo sefirótico, o acordo da regra com a liberdade. Diotallevi me dissera que Moisés Cordoveu nos advertira: "Quem se envaidece por causa de sua Torah em relação ao ignorante, vale dizer sobre a totalidade do povo de Iahveh, está fazendo com que Tiferet se envaideça em relação a Malkut." Mas só agora compreendo em sua fulgurante simplicidade o que seja Malkut, o Reino desta Terra. Em tempo ainda de compreender, mas já tarde demais para sobreviver à verdade.

Lia, não sei se voltarei a vê-la. Se assim for, a última imagem que tive de você foi a daquela manhã, sonolenta embaixo das cobertas. Beijei os seus cabelos e hesitava em sair.

 

NEZAH

Não vês aquele negro cão que circunda pelos restolhos e a seara?... Parece-me vê-lo estender em torno aos nossos pés sutis círculos mágicos... O círculo se fecha e se aproxima.

(Fausto, I, às portas da cidade)

 

O que havia acontecido em minha ausência, principalmente nos últimos dias que antecederam meu retorno, podia-o deduzir por meio apenas dos files de Belbo. Mas somente um deles era claro, seqüenciado de informações ordenadas, o último, provavelmente aquele que havia escrito antes de embarcar para Paris, de modo que eu ou algum outro - à memória futura - o pudéssemos ler. Os demais textos, que certamente havia escrito como de hábito para si mesmo, não eram de fácil interpretação. Somente eu, que havia agora entrado no universo privado de suas confidências ao Abulafia, podia decifrá-los, ou pelo menos deles extrair conjecturas.

Era início de junho. Belbo andava agitado. Os médicos haviam aceito a idéia de que ele e Gudrun fossem os únicos parentes de Diotallevi, e finalmente haviam falado. Diante das perguntas dos tipógrafos e revisores Gudrun agora respondia esboçando um dissílabo com os lábios protendidos, sem deixar escapar um único som. Assim se denomina a doença tabu.

Gudrun ia visitar Diotallevi todos os dias, e creio que o perturbasse por causa de seus olhos fulgentes de piedade. Ele sabia, mas se envergonhava de que os outros também soubessem. Falava com dificuldade. Belbo havia escrito: "O rosto é todo zigomas." Os cabelos lhe estavam caindo, mas a terapia era assim mesmo. Belbo descrevia: "As mãos são só dedos."

Creio que no curso de um de seus penosos colóquios Diotallevi tivesse antecipado a Belbo aquilo que depois lhe diria no último momento. Belbo já estava conscientizando que esse identificar-se com o Plano era um mal, ou talvez mesmo o Mal. Mas, talvez para objetivar o Plano e restituí-lo à sua dimensão puramente fictícia, ele o houvesse escrito, palavra por palavra, como se fossem as memórias do coronel. Narrava-o como um iniciado que comunicasse seu último segredo. Creio que para ele isto fosse a cura: restituía à literatura, por pior que fosse, aquilo que não era vida.

Mas no dia 10 de junho deve ter acontecido alguma coisa que o havia perturbado. Os apontamentos a propósito são confusos, procuro conjecturar.

 

Lorenza então o havia convidado para ir com ela de carro à Riviera, onde se encontraria com uma amiga que lhe devia entregar um documento, uma escritura, uma bobagem qualquer que podia perfeitamente ser enviada pelo correio. Belbo havia topado, satisfeitíssimo com a idéia de passar um domingo com ela junto ao mar.

Tinham ido a um lugar, não consigo precisar exatamente aonde, mas talvez perto de Portofino. A descrição de Belbo era feita com estados de espírito, não transpareciam paisagens mas excessos, tensões, desalentos. Lorenza cumprira sua incumbência enquanto Belbo esperava num bar, depois lhe disse que podiam ir comer peixe num restaurante bem em cima da praia.

A partir daí a história se fragmentava, consigo deduzi-la através de trechos de diálogo que Belbo alinhara sem aspas, como se transcrevesse na hora para não deixar perder uma série de epifanias. Tinham ido de carro até onde se podia, depois seguiram por aquelas veredas lígures junto à costa, floridas e impérvias, e chegaram ao restaurante. Mas, logo que se sentaram, viram sobre a mesa ao lado um cartão que a dizia reservada para o Dr. Agliè.

Mas olha que acaso, devia ter dito Belbo. Que horrível coincidência, teria dito Lorenza, não queria que Agliè soubesse que ela estava ali e com ele. Por que não queria, que havia de mal, por que Agliè teria o direito de ficar com ciúmes? Mas que direito, é uma questão de bom gosto, pois me havia convidado para sairmos hoje e eu disse que estava ocupada, não vai querer que eu banque a mentirosa. Você não está bancando a mentirosa, pois de fato está ocupada comigo, e isto não é nada de que se tenha de envergonhar. Envergonhar-me não, mas permita que tenha os meus princípios de delicadeza.

Resolveram ir-se embora, e já estavam iniciando a volta pelas veredas, quando de repente Lorenza parou, vendo chegar pessoas que Belbo não conhecia, amigos de Agliè, dissera ela, e não queria que eles a vissem. Situação humilhante, ela debruçada sobre o parapeito de uma pontezinha suspensa sobre uma encosta de oliveiras, com o rosto coberto por um jornal, como se morresse de vontade de saber o que estava acontecendo no mundo, ele a dez passos de distância, fumando como se passasse ali por acaso.

Os convidados de Agliè já haviam passado, mas agora, dizia Lorenza, se fossem continuar subindo a vereda acabariam por encontrar Agliè, que decerto estava para chegar. Belbo dizia ao diabo, ao diabo, e se fosse? E Lorenza a lhe dizer que ele não tinha um mínimo de sensibilidade. Solução, chegar ao local de estacionamento evitando a vereda e costeando os barrancos. Fuga arquejante, por uma série de taludes escavados, tendo Belbo perdido um dos saltos do sapato. Lorenza dizia não vê como é muito mais bonito por aqui, mas se continuar fumando sem parar vai acabar sem fôlego.

Conseguiram chegar ao carro e Belbo disse que o melhor agora era voltarem para Milão. Não, disse Lorenza, talvez Agliè se tenha atrasado, vamos cruzar por ele na estrada, ele conhece o seu carro, o dia está bonito, vamos pelo interior, deve ser ótimo, depois retornamos à auto-estrada do Sol e vamos jantar no Além-Pó padovano.

Mas por que no Além-Pó padovano, e que quer dizer com ir pelo interior, só há uma solução, veja aqui no mapa, teríamos que subir todo o tempo os Apeninos, parar em Bobbio, e dali seguir para Piacenza, você está é doida, pior que Aníbal com os elefantes. Você não tem o gosto da aventura, teria dito ela, e depois imagina só quantos restaurantezinhos podemos encontrar naqueles altos. Antes de chegar a Uscio existe o Manuelina que tem doze estrelas no guia Michelin, todos os peixes que se possam imaginar.

O Manuelina estava lotado, com uma fila de clientes que não se desgrudavam das mesas em que estava chegando o café. Lorenza disse não importa, continuando a subir alguns quilômetros encontraremos cem outros lugares ainda melhores do que este. Afinal conseguiram um restaurante às duas e meia, num vilarejo infame que no dizer de Belbo até os mapas militares se envergonhariam de registrar, onde acabaram comendo massa escaldada com molho de lata. Belbo lhe perguntava o que havia por trás daquilo tudo, porque não era por acaso que a fizera levar exatamente onde Agliè devia vir, queria era provocar alguém mas ele não conseguia saber qual dos dois, e ela a lhe perguntar se era paranóico.

Depois de Uscio tinha tentado um atalho, e ao atravessar um vilarejozinho que mais parecia estar numa tarde de domingo na Sicília no tempo dos Bourbons, um grande cão negro se interpôs no meio do caminho, como se jamais tivesse visto um automóvel. Pareceu que Belbo o havia atingido com os pára-choques dianteiros, mas que não havia acontecido nada, em vez disso mal pararam o carro viram que o pobre animal tinha a barriga vermelha de sangue, com alguma coisa estranha e rósea (pudendas, vísceras?) a vazarem de dentro, deitando baba.

Algumas pessoas do lugar já haviam acorrido, criava-se uma assembléia popular. Belbo perguntava quem era o dono do cão, que pagaria os danos, mas o cão não tinha dono. Representava talvez os dez por cento da população daquele lugar abandonado por Deus, mas ninguém sabia de quem era, embora todos o conhecessem de vista. Alguém dizia que era preciso procurar o delegado para dar-lhe um tiro de misericórdia, e pronto.

Estavam procurando o delegado, quando chegou uma senhora que se dizia zoófila. Tenho seis gatos, disse ela. Que tem isso a ver, perguntara Belbo, este é um cão, que está morrendo e eu estou com pressa. Cão ou gato, é preciso que se tenha um pouco de caridade, respondeu a senhora. Nada do delegado, é preciso procurar alguém da sociedade de proteção aos animais, ou talvez o hospital da cidade mais próxima, talvez o animal possa ser salvo.

O Sol batia a pino sobre Belbo, Lorenza, sobre o carro, o cão e os circunstantes, e não se punha nunca, Belbo tinha a impressão de ter saído só de cuecas, mas não conseguia despertar, a senhora não largava a presa, o delegado inencontrável, o cão continuava a sangrar e arquejava com débeis vagidos. Está nas vascas, disse Belbo acadêmico, e a senhora dizia, claro que está nas vascas, sofre o pobrezinho, e o senhor não podia ter tido mais cuidado? O vilarejo estava gradualmente sofrendo uma explosão demográfica, Belbo Lorenza e o cão tinham-se transformado no espetáculo daquele triste domingo. Uma mocinha com um sorvete na mão aproximou-se e perguntou se eles não eram aqueles artistas da tevê que estavam organizando o concurso de Miss Apeninos Lígures, Belbo lhe disse para dar o fora senão faria com ela o mesmo que fizera ao cão, e a garota começou a chorar. Finalmente chegou o médico do serviço público dizendo que a mocinha era filha dele e que Belbo não sabia com quem estava tratando. Numa rápida troca de desculpas e apresentações viera a furo que o doutor havia publicado o Diário de um Médico de Província pela editora Manuzio de Milão. Belbo deixou-se cair na armadilha e disse que era uma das pessoas gradas da Manuzio, e agora o doutor queria que ele e Lorenza ficassem para o jantar, Lorenza se impacientava e lhe dava cotoveladas nas costelas, daqui a pouco acabaremos nos jornais, os amantes diabólicos, você não podia ficar calado?

O Sol continuava sempre a pino enquanto os campanários soavam as completas (estamos na Ultima Thule, comentava Belbo entre os dentes, sol durante seis meses, de meia-noite a meia-noite, e os meus cigarros acabaram), o cão se limitava a sofrer e ninguém já lhe dava importância, Lorenza dizia que estava com um ataque de asma, Belbo agora já tinha certeza de que o cosmo fora um erro do Demiurgo. Finalmente teve a idéia de que eles podiam partir com o carro à procurade socorro no centro médico mais próximo. A senhora zoófila estava de acordo, que seguissem e fossem logo, podiam confiar num senhor que editava poesia, ela também era apaixonada pelos poetas românticos.

Belbo botou-se a caminho e já havia ultrapassado cinicamente o centro mais próximo, Lorenza maldizia todos os animais com que o Senhor havia emporcalhado a Terra do primeiro ao quinto dia inclusive, Belbo estava de acordo mas se abalançava a criticar inclusive a obra do sexto dia, e até mesmo o repouso do sétimo, pois achava que fora o domingo mais maldito que jamais lhe havia passado.

 

Estavam iniciando a descida para o vale apenino, mas embora pelo mapa parecesse fácil, levaram muitas horas nisso, passaram por Bobbio, e quase à noite chegaram a Piacenza. Belbo exausto, queria estar com Lorenza pelo menos durante o jantar, e tomara um quarto de casal no único hotel onde ainda havia vaga, próximo à estação. Quando subiram ao quarto, Lorenza disse que não dormiria num lugar daqueles por nada deste mundo. Belbo disse que iria tentar alguma coisa melhor, que lhe desse tempo apenas de ir ao bar e tomar um martini. Só tinham um conhaque nacional, voltou ao quarto e não encontrou mais Lorenza. Voltou à portaria para indagar a respeito e encontrou uma mensagem: "Querido, descobri um ótimo trem para Milão. Embarco. Semana que vem nos vemos."

Belbo correu à estação e a plataforma já estava vazia. Como num filme de caubói.

Belbo acabou dormindo em Piacenza. Quis ler um policial, mas até a banca da estação estava fechada. No hotel só achou uma revista do Touring Club.

Para sua infelicidade a revista trazia uma reportagem sobre os passos apeninos que eles tinham acabado de atravessar. Lembrava-se deles - esmaecidos como se o acontecimento lhe tivesse ocorrido há muito tempo - como sendo apenas uma terra árida, assolada, poeirenta, coberta de detritos minerais. Nas páginas acetinadas da revista no entanto eram um território de sonho, de se voltar a visitar até mesmo a pé, a fim de poder desfrutá-lo passo a passo. A Samoa de Jim do Pango.

 

Como pode um homem correr ao encontro de sua ruína só porque atropelou um cão? Mas foi o que ocorreu. Belbo decidira aquela noite em Piacenza que voltando novamente a viver o Plano não iria sofrer novas derrotas, pois no Plano era ele a decidir quem, como e quando.

E deve ter sido naquela noite que resolveu vingar-se de Agliè, embora não soubesse bem por quê e de quê. Planejou fazer entrar Agliè no Plano, sem que este o soubesse. Por outro lado era típico de Belbo procurar revanches de que ele fosse a única testemunha. Não por pudor, mas por desconfiança do testemunho alheio. Fazendo Agliè introduzir-se no Plano, ele seria anulado, dissolvendo-se na fumaça como o pavio de vela. Irreal como os Templários de Provins, os Rosa-Cruzes, e o próprio Belbo.

Não devia ser difícil, pensava Belbo: havíamos reduzido à nossa medida Napoleão e Bacon, por que não Agliè? Mandaremos também ele à procura do Mapa. Libertei-me de Ardenti e de sua lembrança colocando-o numa ficção melhor que a dele. O mesmo sucederá com Agliè.

 

Creio que acreditasse nisso a sério, tanto pode o desejo frustrado.

Seu file terminava, e nem podia ser de outra forma, com a obrigatória citação de todos aqueles que foram derrotados pela vida: Bin ich ein Gott?

 

Qual é a influência oculta que age através da imprensa, por trás de todos os movimentos subversivos que nos circundam? Há diversos Poderes em ação? Ou há um só Poder, um grupo que dirige todos os outros, o círculo dos Verdadeiros Iniciados?

(Nesta Webster, Secret Societies and Subversive Movements, London, Boswell, 1924, p. 348)

 

Talvez tivesse esquecido seu propósito. Talvez lhe bastasse tê-lo escrito. Talvez fosse suficiente que voltasse logo a ver Lorenza. Seria novamente tomado pelo desejo e o desejo o teria obrigado a compactuar com a vida. Mas em vez disso na própria segunda-feira de tarde apareceu-lhe no escritório Agliè, cheirando a água-de-colônia esotérica, sorridente, a entregar-lhe alguns originais a serem condenados, e dizendo que os havia lido durante um excelente fim de semana na Riviera italiana. Belbo foi tomado novamente pelos seus rancores. E decidiu gozá-lo fazendo-o cair numa cascata.

Assim, com ares de mistério, fizera-o compreender que há mais de dez anos andava oprimido por um segredo iniciático. Um manuscrito fora confiado a ele por um certo coronel Ardenti, que se dizia possuidor do Plano dos Templários... O coronel fora seqüestrado ou assassinado por alguém que se havia apoderado de seus papéis, e tinha deixado a editora levando consigo um texto resumo, propositadamente errado, fantasioso, decididamente pueril, que servia apenas para fazer compreender que ele havia posto os olhos sobre a mensagem de Provins e sobre os verdadeiros apontamentos finais de Ingolf, aqueles que seus assassinos estavam agora procurando. Contudo a pastinha fina, contendo apenas umas dez páginas, em cujas dez páginas estava o verdadeiro texto, o que fora de fato encontrado entre os papéis de Ingolf, aquela havia permanecido em mãos de Belbo.

Mas que coisa curiosa, teria dito Agliè, conte lá. E Belbo lhe teria contado. Contado todo o Plano tal como o havíamos concebido, e como se fosse a revelação daquele manuscrito remoto. Dissera-lhe inclusive, em tom cada vez mais circunspecto e confidencial, que também um policial, um tal De Angelis, havia chegado à beira da verdade, mas se chocara contra o seu silencio hermético - era o caso de dize-lo - dele, Belbo, o guardador do maior segredo da humanidade. Um segredo que depois, no fim do fim, se reduzia ao segredo do Mapa.

E àquele ponto havia feito uma pausa, cheia de subentendidos como todas as grandes pausas. Sua reticência sobre a verdade final garantia a verdade das premissas. Nada, para quem de fato acredita numa tradição secreta (calculava), é mais fragoroso que o silêncio.

"Mas que interessante, que interessante", continuava a dizer Agliè, tirando a tabaqueira do colete, com ares de pensar em outra coisa. "E... e o mapa?"

E Belbo pensava: velho voyeur, estás ficando excitado, estou vendo, com todos os teus ares de São Germano não passas de um reles trapaceiro que vive do jogo das três cartas, mas depois acabas comprando o Coliseu do primeiro vigarista um pouco mais esperto do que tu. Agora te mando à procura do mapa, e assim desaparecerás nas entranhas da Terra, arrastado pelas correntes, até bater a cabeça contra o pólo sul de alguma estaca céltica.

E com ares circunspectos: "Naturalmente no manuscrito está também o mapa, ou melhor sua descrição precisa, com referências ao original. É surpreendente, o senhor não imagina como pode ser tão simples a solução do problema. O mapa estava ao alcance de todos, todos o podiam ver, milhares de pessoas passaram defronte dele todos os dias, durante séculos. E, além disso, o sistema de orientação é tão elementar que basta memorizar o esquema, e o mapa se pode reproduzir sem qualquer dificuldade, em qualquer lugar. Tão simples e tão imprevisível... Veja só - digo apenas para lhe dar uma idéia - é como se o mapa estivesse inscrito na pirâmide de Quéops, escancarado diante dos olhos de todos, e todos durante séculos e séculos leram, releram e decifraram a pirâmide para encontrar nela outras alusões, outros cálculos, sem intuir a incrível, a esplêndida simplicidade. Uma obra-prima de inocência. E de perfídia. Os Templários de Provins eram uns magos".

"O senhor aviva de fato a minha curiosidade. E não me pode mostrar o mapa?"

"Confesso-lhe que destruí tudo, as dez páginas e o mapa. Estava amedrontado, o senhor compreende, não?"

"Não vai me dizer que destruiu um documento de tamanha importância...”

"Destruí-o, mas já lhe disse que a revelação era de absoluta simplicidade. O mapa está aqui", e tocava a fronte - e começava a rir, porque se lembrou da anedota do alemão que diz "está todo ki no minha rabo". "Há mais de dez anos que trago aqui comigo aquele segredo, há mais de dez anos que trago o mapa aqui", e tocava de novo a fronte, "como uma obsessão, e estou apavorado com o poder que obteria para mim se me decidisse a assumir a herança dos Trinta e Seis Invisíveis. Agora entende por que convenci o Sr. Garamond a editar a Isis Revelada e a História da Magia. Espero encontrar o contato certo." E depois, cada vez mais arrastado pelo papel que havia assumido, e para pôr Agliè definitivamente à prova recitou-lhe quase literalmente as palavras ardentes que Arsêne Lupin pronuncia em frente a Beautrelet no final de A Agulha Oca: "Em certos instantes a minha força me faz girar a cabeça. Estou ébrio de poder e de autoridade."

"Mas vamos lá, meu caro amigo", teria dito Agliè, "e se por acaso tivesse dado crédito excessivo às fantasias de um exaltado? Está seguro de que esse texto era autêntico? Por que não confia na minha experiência destas coisas? Soubesse quantas revelações desse gênero já tive em minha vida, de que tive o mérito de pelo menos demonstrar a inconsistência. Basta-me um olhar sobre o mapa para avaliar-lhe a autenticidade. Envaideço-me de possuir alguma competência, ainda que modesta, mas precisa, no campo da cartografia tradicional."

"Dr. Agliè", teria dito Belbo, "o senhor seria o primeiro a recordar-me que um segredo iniciático revelado não serve para mais nada. Calei-me por anos, posso calar-me ainda."

E calava. Também Agliè, por menos idiota que fosse, vivia a sério o seu papel. Havia passado a vida a deleitar-se com segredos impenetráveis, e acreditava firmemente, já agora, que os lábios de Belbo estariam selados para sempre.

Naquele momento havia entrado Gudrun dizendo que o encontro de Bolonha tinha sido marcado para sexta-feira ao meio-dia. "O senhor pode tomar o TEE da manhã", disse ela.

"Ótimo trem o TEE", dissera Agliè. "Mas é sempre necessário reservar passagens, principalmente nesta época." Belbo disse que mesmo indo à estação no último momento encontrava lugar, quanto mais não fosse no vagão-restaurante, onde serviam o café da manhã. "Faço votos", lhe tinha dito Agliè. "Bolonha, bela cidade. Mas tão quente em junho...”

"Vou lá ficar só umas duas ou três horas. Tenho que discutir um texto de epigrafia, temos alguns problemas com as reproduções." Depois havia disparado: "Não são ainda as minhas férias. Estas serão em fins de junho, pode ser que me decida... O senhor compreende. E confio em sua discrição. Falei-lhe como se fala a um amigo."

"Sei calar ainda melhor que o senhor. Agradeço-lhe em todo caso sua confiança, sinceramente." E foi-se embora.

 

Belbo havia saído satisfeito daquele encontro. Plena vitória de sua narratividade austral sobre as misérias e as vergonhas do mundo sublunar.

 

No dia seguinte recebeu um telefonema de Agliè: "Peço-lhe desculpas, caro amigo. Encontro-me diante de um pequeno problema. O senhor sabe que pratico um modesto comércio de livros antigos. Chegou-me ontem de Paris uma dezena de volumes encadernados, do século XVIII, de certo valor, que devo fazer chegar sem falta até amanhâ às mãos de meu correspondente em Florença. Deveria levá-los pessoalmente, mas estou retido aqui por outro compromisso importante. Assim pensei numa solução. O senhor está indo a Bolonha. Eu o esperaria amanhã na estação, dez minutos antes da partida do trem, entrego-lhe uma pequena valise, o senhor a coloca no porta-bagagem acima de sua poltrona e a deixa ali ficar em Bolonha, bastando apenas descer por último para se garantir de que ninguém a levou. Em Florença meu correspondente subirá ao trem durante a parada, e a retirará. Para o senhor será um pequeno incômodo, bem sei, mas se me puder fazer este favor ser-lhe-ei eternamente grato."

"Com muito gosto", respondera Belbo, "mas como fará seu amigo em Florença para saber onde deixei a valise?"

"Sou mais previdente que o senhor e reservei lugar, a poltrona 45, vagão 8. Reservado até Roma, de modo que nem em Bolonha nem em Florença poderá ser ocupado por outra pessoa. Veja que, em troca do trabalho que lhe causo, ofereço-lhe a segurança de viajar sentado, sem ter que ir acampar-se no vagão-restaurante. Não ousei mandar tirar-lhe igualmente a passagem pois não quis que pensasse pretendesse pagar de maneira tão indelicada a sua gentileza."

Sem dúvida um cavalheiro, havia pensado Belbo. Vai me mandar uma caixa de vinhos de qualidade. Para beber à sua saúde. Ontem queria fazê-lo desaparecer nas profundezas da Terra. Hoje já lhe estou prestando um favor. Paciência, não posso dizer não.

 

Na quarta-feira de manhã Belbo seguiu para a estação a tempo, já havia adquirido a passagem para Bolonha e encontrara Agliè junto ao vagão 8, com a valise à mão. Era bastante pesada, mas não embaraçosa.

Belbo conseguiu colocar a valise sobre o porta-bagagem da poltrona 45, e se instalou com seu maço de jornais. As notícias do dia eram os funerais de Berlinguer. Logo em seguida um senhor de barba veio ocupar o lugar ao seu lado. Belbo achou que já o vira em algumlugar (pensando depois que talvez fosse na festa do Piemonte, mas não estava certo). A partida do trem o compartimento estava lotado.

Belbo lia os jornais, mas o passageiro de barba tentava puxar conversa com todos. Começava a fazer comentários sobre o calor, sobre a insuficiência do ar condicionado, sobre o fato de que em junho não se sabe nunca se se deve vestir roupas de verão ou de meia-estação. Fizera notar que a melhor solução era usar um blazer leve, exatamente como o que Belbo trajava, e lhe perguntou se era inglês. Belbo respondeu que era inglês, Burberry, e continuou a ler. "São os melhores", continuou a falar o homem, "mas esse seu é especialmente bonito porque não tem aqueles botões dourados que são demasiado vistosos. E se me permite combina muito bem com sua gravata bordô." Belbo agradecera e voltara aos jornais. O senhor continuava a falar com os demais sobre a dificuldade de combinar as gravatas com os paletós, e Belbo continuava lendo. Bem sei, pensava, todos estão me achando um mal-educado, mas não entro nos trens para fazer relacionamento humano. Já os tenho em demasia em terra.

Então o senhor lhe tinha dito: "O senhor lê um bocado de jornais, e de todas as tendências. Deve ser algum juiz ou político." Belbo respondera que não, que trabalhava numa editora de livros de metafísica árabe, esperando com isto aterrorizar o adversário. O outro ficou evidentemente aterrorizado.

Em seguida chegou o condutor. Perguntou por que Belbo tinha reserva de lugar até Roma se ia saltar em Bolonha. Belbo disse que havia mudado de idéia no último momento. "Que bom", disse o senhor da barba, "poder tomar as próprias decisões assim de um momento para o outro, sem estar preocupado com o bolso. Eu o invejo."

Belbo sorrira e se voltara para o outro lado. Sim senhor, dizia para si mesmo, agora todos me acham um perdulário, ou alguém que tivesse assaltado um banco.

Em Bolonha Belbo levantou-se e preparou para descer. "Olha que o senhor está esquecendo a sua valise", disse-lhe o passageiro vizinho.

"Não, alguém em Florença virá retirá-la", tinha dito Belbo, "e até mesmo lhe peço que dê nela uma olhada até lá".

"Fique tranqüilo", adiantou-se logo o senhor de barba. "Confie em mim."

 

Belbo regressara a Milão pela noite, trazendo para casa duas latinhas de patê e alguns biscoitos cream crackers, e ligara a televisão. Ainda os funerais de Berlinguer, naturalmente. De modo que a notícia surgiu quase de passagem, ao final do noticiário.

Na manhã anterior, no TEE que fazia o trecho Bolonha—Florença, no vagão 8, um passageiro de barba demonstrara suspeitas quanto a um viajante que descera em Bolonha deixando uma valise no porta-bagagem de sua poltrona. Na verdade dissera que alguém a viria retirar em Florença, mas não é assim precisamente que agem os terroristas? E além disso por que teria feito reserva de lugar até Roma, se iria descer em Bolonha?

Uma crescente inquietação tomou conta dos ocupantes do compartimento. A certa altura o passageiro de barba disse que não resistia à tensão. Era melhor cometer um erro que morrer, e havia avisado o chefe do trem. Este fizera parar o comboio e mandar chamar a Polfer. Não se sabe exatamente o que havia acontecido, o trem parado na montanha, os passageiros que enxameavam inquietos ao longo da linha, os técnicos da polícia que chegavam... Estes abriram a maleta e encontraram dentro um dispositivo de relojoaria marcado para a hora de chegada do trem em Florença. Explosivos suficientes para fazer saltar aos ares uma dezena de pessoas.

A polícia não havia conseguido localizar depois o senhor de barba. Talvez tivesse feito baldeação e descido em Florença porque não queria aparecer nos jornais. O noticiário fazia um apelo para que ele se apresentasse às autoridades.

Os outros passageiros recordavam de maneira extraordinariamente lúcida o homem que havia deixado a valise. Era um indivíduo que despertava suspeitas à primeira vista. Usava um blazer inglês azul sem botões dourados, uma gravata bordô, era do tipo taciturno, parecia querer passar despercebido a todo custo. Mas havia deixado escapar que trabalhava em jornal, ou numa editora, em algo que tinha a ver (e aqui as opiniões das testemunhas variavam) com física ou metano ou metempsicose. Mas seguramente tinha a ver com os árabes.

Polícia civil e militar de alerta. Já haviam colhido alguns indícios, por meio da triagem dos inquiridos. Dois cidadãos líbios foram detidos em Bolonha. O desenhista da polícia havia esboçado um retrato falado, que agora aparecia na tela. O desenho não se parecia com Belbo, mas Belbo se parecia com o desenho.

Não podia ter dúvidas. O homem da valise era ele. Mas a valise continha os livros de Agliè. Telefonou para ele, mas ninguém respondeu.

Já era tarde, não ousou sair, tentou dormir pela ação de um sonífero. Ao acordar de manhã tentou novamente encontrar Agliè. Silêncio. Saiu para comprar os jornais. Por sorte a primeira página ainda estava ocupada pelos funerais de Berlinguer, e a notícia do trem com o retrato falado aparecia nas páginas internas. Voltara para casa com a gola do casaco levantada, quando percebeu que ainda estava de blazer. Por sorte não trazia a gravata bordô.

Enquanto procurava reconstituir mais uma vez os fatos, o telefone tocou. Uma voz desconhecida, estrangeira, com sotaque levemente balcânico. Um telefonema melífluo, como de alguém que nada tivesse a ver com o assunto e só falasse para ajudar. Pobre Sr. Belbo, havia se metido numa história bastante desagradável. Nunca se deve aceitar bancar de correio para os outros, sem antes verificar o conteúdo dos embrulhos. Certamente estaria em apuros se alguém denunciasse à polícia que era ele, o Sr. Belbo, o passageiro da poltrona 45.

Claro que se poderia evitar aquele passo extremo, bastava que o Sr. Belbo se prontificasse a colaborar. Por exemplo, dizendo onde estava o mapa dos Templários. E como Milão estava se tornando uma cidade muito quente, pois todos sabiam que o terrorista do TEE havia partido de Milão, era mais prudente que se transferisse todo o caso para território neutro, digamos Paris. Por que não marcar um encontro na livraria Sloane, 3 rue de la Manticore, dentro de uma semana?

Talvez fosse melhor que Belbo se pusesse em viagem imediatamente, antes que alguém o identificasse. Livraria Sloane, 3 rue de la Manticote. Ao meio-dia de quarta-feira dia 20 de junho iria encontrar alguém que já conhecia de vista, o senhor de barba com quem havia conversado tão amavelmente no vagão. Este o convidaria a encontrar outros amigos, e depois, pouco a pouco, em boa companhia, a tempo para as férias de verão, finalmente contaria tudo o que sabia, e assim a história toda acabaria sem traumas. Rue de la Manticore, número 3, fácil de guardar.

 

São Germano... Muito sutil e espirituoso... Dizia possuir todas as espécies de segredo... Servia-se freqüentemente, para as suas aparições, daquele famoso espelho mágico que fez parte de sua fama... Como evocava, por efeitos catóptricos, as sombras esperadas, e quase sempre reconhecidas, seu contato com o outro mundo era coisa provada.

(Le Coulteux de Canteleu, Les sectes et les sociétés secrétes, Paris, Didier, 1863, pp. 170-171)

 

Belbo sentiu-se perdido. Estava tudo claro. Agliè supunha que sua história fosse verdadeira, queria o mapa, havia arquitetado aquela tramóia, e agora o tinha entre os dedos. Belbo iria a Paris, revelar o que não sabia (mas que o não soubesse só ele o sabia, eu havia partido sem deixar endereço, Diotallevi estava à morte), ou então todos os policiais da Itália lhe iriam saltar em cima.

Seria possível que Agliè se entregasse a um jogo assim tão sórdido? Que ganharia com aquilo? Precisava agarrar aquele velho louco pela gola, e só o arrastando à polícia poderia sair daquela enrascada.

Tomara um táxi e fora até o sobrado, próximo da piazza Piola.

Janelas fechadas, e à entrada um cartaz de uma agência imobiliária: ALUGA-SE. Mas que loucura, Agliè morava ali não faz uma semana, ele fonara para lá. Tocou a campainha do prédio ao lado. "Aquele senhor? Mas mudou-se mesmo ontem. Não sei para onde foi, conhecia-o apenas de vista, era uma pessoa muito reservada, andava sempre em viagem, creio."

Só restava informar-se na agência. Mas ali ninguém havia ouvido falar de Agliè. O palacete havia sido alugado em seu tempo por uma firma francesa. Os pagamentos eram feitos regularmente por via bancária. O contrato fora rescindido no espaço de vinte e quatro horas, e haviam renunciado ao depósito de caução. Todo o relacionamento entre proprietário e inquilino era feito por correspondência, por intermédio de um Sr. Ragotgky. E não sabiam de mais nada.

Não era possível. Rakosky ou Ragotgky que fosse, o misterioso visitante do coronel. Procurado pelo astuto De Angelis e pela Interpol, ei-lo que andava por aí livremente a alugar imóveis. Em nossa história o Rakosky de Ardenti era uma reencarnação do Rackovsky da Okrana, e estes do indefectível São Germano. Mas que tinham a ver com Agliè?

Belbo tinha ido ao escritório, subindo como um ladrão, e se trancado em sua sala. Havia procurado avaliar a situação.

Era de se perder o juízo, e Belbo estava certo de já o haver perdido. E ninguém em quem pudesse confiar. E enquanto estava enxugando o suor da face, quase maquinalmente folheava as páginas datilografadas em cima de sua mesa, que haviam chegado no dia anterior, sem nem mesmo saber o que fazia, e de repente ao abrir uma delas deu com o nome de Agliè ali escrito.

Havia guardado o titulo da obra. Era um opúsculo de um diabólico qualquer, A Verdade sobre o Conde de São Germano. Voltou a reler a página. Nela se dizia, citando a biografia de Chacornac, que Claude-Louis de Saint-Germain se havia passado sucessivamente por Monsieur de Surmont, conde Soltikof, Mister Welldone, marquês de Belmar, príncipe Rackoczi ou Ragozki, e assim por diante, mas que os nomes de família eram conde de Saint-Martin e marquês de Agliè, proveniente de uma propriedade piemontesa de seus antepassados.

Ótimo, Belbo agora podia estar tranqüilo. Não apenas ele estava sendo procurado sem escapatória por terrorismo, não só o Plano era verdadeiro, não só Agliè havia desaparecido no espaço de dois dias, mas ainda por cima não se tratava de um simples mitômano e sim do verdadeiro e imortal conde de São Germano, que ele nada fazia para ocultar. A única coisa verdadeira, naquele redemoinho de falsidades que se estavam verificando, era seu nome. Ou antes não, até seu nome também era falso, Agliè não era Agliè, mas não importava quem fosse na verdade, porque de fato estava se comportando, e já havia anos, como o personagem de uma história que nós inventamos somente muito mais tarde.

Em todo caso, Belbo não tinha alternativa. Agliè tendo desaparecido, não poderia mostrar à policia quem lhe havia entregue a valise.

E mesmo se a policia tivesse acreditado nele, viria a furo que a valise fora recebida de alguém procurado pela polícia por homicídio, a quem ele Belbo vinha usando como consultor há pelo menos dois anos. Belo álibi.

Mas para poder conceber toda essa história - que por si só já era passavelmente romanesca - e para induzir a polícia a aceitá-la como boa, era necessário pressupor uma outra, que se situava para além da própria ficção. Ou seja que o Plano, inventado por nós, correspondesse ponto por ponto, inclusive a trabalhosa procura final do mapa, a um plano verdadeiro, no qual entrassem Agliè, Rakosky, Rackovsky, Ragotgky, o senhor de barba, o Tres, todos, e até mesmo os Templários de Provins. E que o coronel estivesse certo. Mas que estivesse certo enganando-se, porque no final das contas nosso Plano era diferente do seu, e se o seu era verdadeiro o nosso não poderia ser, ou o contrário, e portanto se nós tínhamos razão por que dez anos antes Rakosky teria que roubar do coronel um memorial falso?

Só de ler o que Belbo havia confiado ao Abulafia naquela manhã me vinha a tentação de bater a cabeça contra a parede. Para convencer-me de que a parede, pelo menos a parede, era de verdade. Imaginava como devia ter-se sentido ele, Belbo, aquele dia, e nos dias seguintes. Mas a coisa não acabava aí.

A procura de alguém que pudesse interrogar telefonara para Lorenza. E não a encontrou. Estava pronto a apostar que não a veria mais.

De qualquer modo Lorenza era uma criatura inventada por Agliè, Agliè era uma criatura inventada por Belbo e Belbo não sabia mais quem o havia inventado. Abriu de novo o jornal. A única coisa certa era que ele era o homem do retrato falado. Para convencê-lo tinha recebido exatamente naquele momento, no escritório, um novo telefonema. O mesmo acento balcânico, as mesmas recomendações. Encontro em Paris.

"Mas quem são vocês?" havia gritado Belbo.

"Somos o Tres", respondera a voz. "E sobre o Tres você não sabe mais que nós."

Então se decidira. Tomara o telefone e chamara De Angelis. Na delegacia teve dificuldades em localizá-lo, parecia que o comissário não trabalhava mais ali. Depois haviam cedido à sua insistência e o transferiram para outro ramal.

"Ah quem está falando, Dr. Belbo?" dissera De Angelis em tom que a Belbo pareceu um tanto sarcástico. "O senhor me encontrou por acaso. Estou fazendo as malas."

"As malas?" Belbo receou uma alusão velada.

"Fui transferido para a Sardenha. Parece ser um posto tranqüilo."

"Dr. De Angelis, preciso falar-lhe com urgência. É sobre aquela história...”

"Qual história?"

"A do coronel. E também daquela outra... Uma vez o senhor perguntou a Casaubon se ele já tinha ouvido falar do Tres. Pois eu ouvi. Tenho coisas importantes a lhe contar."

"Pois não me conte. Essas coisas já não me dizem respeito. E depois não lhe parece que já seja um pouco tarde?"

Mas "Admito-o, é que deixei de lhe dizer algo, há uns anos passados, agora queria revelar-lhe."

"Não, Dr. Belbo, não me revele nada. Mas fique sabendo que alguém deve estar ouvindo a nossa conversa telefônica e quero dizer que não desejo ouvir do senhor revelação alguma e que eu também não sei de nada. Tenho duas filhas. Pequenas. E já me fizeram saber que algo poderá acontecer-lhes. E para provar que não estavam brincando, ontem de manhã minha mulher ao ligar o carro fez explodir o motor. Foi uma explosão de proporções reduzidas, pouco mais que um morteiro, mas o bastante para me alertar que se quiserem fazê-lo de fato que o farão. Fui ao meu chefe e lhe disse que sempre cumpri meu dever, até mais que o necessário, mas que não sou um herói. Poderia até dar minha vida, mas não a de minha mulher e das meninas. Pedi-lhe para ser transferido. E depois fui dizer a todos que sou um covarde, que estou tirando o corpo fora. E agora digo o mesmo ao senhor e a quem nos esteja ouvindo. Arruinei com minha carreira, perdi a confiança em mim mesmo, para dizer a verdade sinto-me um homem desonrado, mas assim salvo minha família. A Sardenha é belíssima, me dizem, não vou precisar mais de gastar dinheiro para mandar as crianças à praia no verão. Passe bem."

"Espere, a coisa é grave, estou em apuros...”

"O senhor está em apuros? Pois fico contente por isto. Quando lhe pedi ajuda o senhor não me deu. E nem o seu amigo Casaubon. Mas agora que se encontra em apuros vem pedir a minha. Pois eu também estou. O senhor chegou atrasado. A polícia está a serviço do cidadão, como dizem nos filmes, é isto que o senhor está pensando? Pois então, dirija-se à polícia, fale com meu sucessor."

Belbo desligou o telefone. Tudo perfeito: haviam até mesmo impedido que recorresse ao único policial que lhe poderia dar crédito.

Depois pensou que Garamond, com todos os seus conhecimentos, chefes de polícia, comissários, delegados, altos funcionários, teria podido dar-lhe a mão. Correu para ele.

Garamond ouviu com afabilidade sua história, interrompendo-o com exclamações corteses como "mas não me diga", "mas olha o que me está dizendo", "parece até coisa de romance, direi mais, uma invenção". Depois cruzou os dedos, fixando Belbo com infinita simpatia, e disse: "Meu filho, permita-me que o chame assim porque eu podia ser seu pai - oh deus, seu pai talvez não, porque sou ainda um homem jovem, diria mais, um homem juvenil, mas um irmão mais velho, se me consente. Estou lhe falando de coração, e nos conhecemos há tantos anos. Minha impressão é que está superexcitado, no limite de suas forças, com os nervos em pandarecos, direi mais, com estresse. Não creia que eu não aprecie o seu esforço, sei que se dá de corpo e alma à nossa editora, e um dia até levarei isso em consideração mesmo em termos, como direi, materiais, pois isso não é nada que irá estragá-lo. Mas em seu caso tiraria umas férias. Está me dizendo que se encontra numa situação embaraçosa. Francamente, não quero dramatizar o caso, mesmo sabendo, se me permite, que seria desagradável para a Garamond que um funcionário seu, o melhor deles, estivesse envolvido numa história pouco clara. Está dizendo que alguém quer que vá a Paris. Não desejo entrar em detalhes, acredito e pronto. E então? Pois vá lá e ponha tudo às claras, não é melhor? Falou-me que se encontra em termos - como direi - conflitantes com um cavalheiro como o Dr. Agliè. Não quero saber o que aconteceu exatamente entre os dois, nem vou ficar ruminando demasiado sobre o caso de homonímia de que me falou. Quanta gente neste mundo se chama Germano, não é verdade? Se Agliè lhe diz, lealmente, venha a Paris que tudo se esclarecerá, pois bem, por que não ir a Paris, isto não vai ser o fim do mundo. A sinceridade é fundamental nas relações humanas. Vá a Paris e se tiver algo a dizer não seja reticente. O que se tem no coração deve-se ter na boca. Que são todos esses segredos? O Dr. Agliè, se bem entendi, está ressentido porque não lhe revelou onde está um mapa, um papel, uma mensagem, ou seja lá o que for, que tem e que não lhe serve para nada, enquanto talvez para o bom Agliè isto seja importante para os seus estudos. Estamos a serviço da cultura, ou me engano? Pois então dê-lhe, esse mapa, esse atlas, essa carta topográfica que não quero saber nem mesmo o que seja. Se ele lhe atribui tanto valor, deve ter lá suas razões, certamente respeitáveis, pois um cavalheiro é sempre um cavalheiro. Vá a Paris, um belo aperto de mão e tudo estará resolvido. Está bem? E não se aflija mais que o necessário. Sabe que estamos sempre aqui." Depois acionou o interfone: "Sra. Grazia... Ora, não está, nunca está quando precisamos dela. Você tem seus transtornos, caro Belbo, mas se soubesse dos meus. Agora vá, se encontrar no corredor a Sra. Grazia mande-a aqui. E descanse, está ouvindo."

Belbo saíra. Na secretaria a Sra. Grazia não estava, e viu acesa a luz vermelha da linha privativa de Garamond, que evidentemente estava telefonando a alguém. Não resistiu à tentação (creio que pela primeira vez em sua vida cometia uma indelicadeza). Levantou o fone e interceptou a conversa. Garamond estava dizendo a alguém: "Não se preocupe. Creio que o consegui convencer. Ele irá a Paris... Nada mais que minha obrigação. Não é à toa que pertencemos à mesma cavalaria espiritual."

Logo também Garamond fazia parte do segredo. De qual segredo? Daquele que só ele, Belbo, podia agora revelar. E que não existia.

Já era noite. Foi até o Pílades, trocou quatro palavras com um qualquer, excedeu-se no álcool. E na manhã seguinte procurou o único amigo que lhe havia restado. Foi visitar Diotallevi. Ia procurar auxílio junto a um homem que estava morrendo.

E desse último colóquio deixou no Abulafia uma narrativa febril da qual não consigo distinguir o que pertence a Belbo e o que se deve a Diotallevi, porque em ambos os casos era como o murmúrio de quem diz a verdade sabendo que já não é o momento de se enganar com a ilusão.

 

E foi assim que aconteceu com o rabino Ismahel bem Elisha e seus discípulos, que estudando o livro Jesirah se enganaram nos movimentos e caminharam para trás, e se aprofundaram na terra até o umbigo, por causa da força das letras.

(Pseudo Saadya, Comentário ao Sefer letzirah)

 

Nunca o vira assim tão albino, mesmo quase não tendo mais cabelos, nem sobrancelhas nem cílios. Parecia uma bola de bilhar.

"Desculpa-me", havia lhe dito, "mas posso falar de uns casos meus?"

"Fala, peço-te. Pois eu já não tenho mais casos. Só necessidades. E com n maiúsculo."

"Sabes que descobriram uma nova terapia. Estas coisas devoram aqueles que têm vinte anos, mas com as pessoas de cinqüenta andam mais devagar e nos dão tempo de encontrar a solução."

"Pode falar por ti. Eu ainda não tenho cinqüenta anos. Tenho ainda um físico jovem. E o privilégio de morrer mais depressa do que tu. Mas estás vendo que falo com dificuldade. Conta lá a tua história, que assim eu descanso."

Por obediência, por respeito, Belbo acabou lhe contando toda a sua história.

E então Diotallevi, respirando como A Coisa dos filmes de ficção científica, falou por sua vez. E tinha agora a transparência da Coisa, aquela ausência de limites entre o exterior e o interior, entre a pele e a carne, entre a leve pelugem loura que lhe transparecia ainda do pijama aberto no ventre e a mucilaginosa decomposição das vísceras que só os raios X, ou uma doença em estágio avançado, conseguem tornar evidentes.

"Jacopo, estou aqui em um leito, não posso ver o que acontece lá fora. Pelo que sei, tudo que me contaste se desenrola apenas dentro de ti, ou acontece lá fora. Num caso ou no outro, que tu ou o mundo se tenham tornado loucos, a coisa é a mesma. Em ambos os casos alguém embaralhou e misturou e acavalou as palavras do Livro mais do que devia."

"Que queres dizer?"

"Nós pecamos contra a Palavra, aquela que criou o mundo e o mantém de pé. Tu agora foste punido, como eu fui punido. Não há diferença entre ti e mim."

Veio uma enfermeira, deu-lhe alguma coisa para umedecer os lábios, disse a Belbo que era necessário não afadigá-lo, mas Diotallevi se rebelou: "Deixe-me continuar. Preciso dizer a Verdade ao meu amigo. Você sabe lá o que é a Verdade?"

"Oh eu, mas que pergunta é esta, doutor...”

"Pois então deixe-nos em paz. Devo dizer ao meu amigo uma coisa importante. Ouve lá, Jacopo. Como no corpo do homem há membros e articulações e órgãos, também os há na Torah, entendes? E assim como na Torah há membros e articulações e órgãos, o mesmo ocorre no corpo dos homens, entendeste?"

"Entendi."

"O rabino Meir, quando aprendia com o rabino Akiba, misturava vitríolo no tinteiro, e o mestre não dizia nada. Mas quando o rabino Meir perguntou ao rabino Akiba se estava procedendo bem, este lhe respondeu: meu filho, sê cauto no teu trabalho, porque é um trabalho divino, e basta saltares uma letra ou escreveres uma letra a mais para destruíres todo o mundo... Nós buscamos reescrever a Torah, mas não nos preocupamos com as letras a mais ou a menos...

"Estávamos brincando...”

"Não se brinca com a Torah."

"Mas nós brincávamos com a história, com o que os outros escreveram...”

"Haverá uma escrita que possa destruir o mundo e que não seja o Livro? Dá-me um pouco de água, não, no copo não, molha aquele lenço. Obrigado. Agora escuta. Misturar as letras do Livro significa misturar o mundo. Não se escapa. De qualquer livro, mesmo da cartilha. Aqueles tipos lá, como o teu Dr. Wagner, não dizem que quem brinca com as palavras faz anagramas e transtorna o léxico tem coisas más na alma e odeia seu pai?"

"Não é bem assim. Esses são psicanalistas, fazem assim para ganhar dinheiro, não são como os teus rabinos."

"Rabinos, rabinos todos. Falam todos da mesma coisa. Achas que os rabinos que falam da Torah estejam falando de um pergaminho? Falam de nós, que procuramos refazer nosso corpo por meio da linguagem. Agora escuta. Para manipular as letras do Livro é preciso que se tenha muita piedade, e nós não tivemos. Todo livro é entrançado com o nome de Deus, e nós anagramamos todos os livros da história, sem rezar. Fica calado, escuta. Aquele que se ocupa da Torah mantém o mundo em movimento e mantém em movimento o próprio corpo enquanto lê, ou reescreve, porque não há parte do corpo que não tenha seu equivalente no mundo... Molha o lenço, obrigado. Se alteras o Livro, alteras o mundo, se alteras o mundo alteras o corpo. Isso não tínhamos compreendido. A Torah deixa sair uma palavra de seu escrínio, aparece por um momento e de repente se oculta. E se revela por um momento só ao seu amante. É como uma mulher belíssima que se esconde em seu palácio num pequeno aposento insuspeitado. Tem um único amante, do qual ninguém conhece a existência. E se alguém que não seja ele quiser violá-la, e pôr-lhe as sujas mãos em cima, ela se rebela. Ela conhece o seu amante, abre uma pequena fresta, e se mostra por um átimo. E súbito se esconde novamente. A palavra da Torah revela-se apenas àquele que a ama. E nós procuramos falar de livros sem amor e por irrisão...”

Belbo molhou-lhe ainda uma vez os lábios com o lenço. "E então?"

"E então quisemos fazer aquilo que não nos era permitido e que não estávamos preparados para fazer. Manipulando as palavras do Livro quisemos construir o Golem."

"Não entendo...”

"Não podes mais entender. Estás prisioneiro da tua criatura. Mas a tua história se desenvolve ainda no mundo exterior. Não sei como, mas dele podes sair. Para mim é diferente, estou experimentando em meu corpo aquilo que fizemos por brincadeira no Plano.

"Não digas besteiras, é um processo das células...”

"E que são as células? Durante meses como rabinos devotos pronunciamos com os nossos lábios diversas combinações das letras do Livro. GCC, CGC, GCG, CGG. Aquilo que nossos lábios diziam nossas células aprendiam. Que foi que fizeram as minhas células? Inventaram um Plano diferente, e agora andam por conta própria. As minhas células estão inventando uma história que não é a de todos. Elas agora aprenderam que se pode blasfemar anagramando o Livro e todos os livros do mundo. E assim aprenderam a fazer com meu corpo. Invertem, transpõem, alternam, permutam, criam células jamais vistas e sem sentido, ou com sentido contrário ao sentido correto. Deve haver um sentido correto, e sentidos falsos, senão morremos. Mas elas jogam sem fé. às cegas. Jacopo, até enquanto pude ler, nestes últimos meses, li muitos dicionários. Estudava a história das palavras para poder compreender o que acontecia no meu corpo. Nós rabinos fazemos assim. Já refletiste alguma vez que o termo retórico metátese é semelhante ao termo oncológico metástase? Que é metátese? Em vez de "desvairo", dizes "desvario". Em vez de "amoras" dizes "aromas". E a Temurah. O dicionário diz que metathesis quer dizer deslocamento, transposição. E metastasis quer dizer mutação e deslocamento. Que estúpidos os dicionários. A raiz é a mesma, ou é o verbo metathitemi ou o verbo methistemi. Mas metathitemi quer dizer meto no meio, desloco, transfiro, ponho em vez de, ab-rogo uma lei, mudo um sentido. E methisthemi? Mas é a mesma coisa, desloco, transmudo, permuto, transponho, mudo a opinião comum, perco o juízo. Nós, e quem quer que busque um sentido secreto além da letra, estamos perdendo o juízo. E foi isso o que fizeram as minhas células, obedientes. Por isso eu morro, Jacopo, e tu o sabes."

"Estás dizendo isto porque estás mal...”

"Agora digo isto porque finalmente compreendi tudo do meu corpo. Eu o estudo dia a dia, sei aquilo que ocorre com ele, só que não posso intervir, as células não me obedecem mais. Morro porque convenci as minhas células de que a regra não existe, e de que se pode fazer de qualquer texto o que bem se quiser. Passei a vida a convencer-me disso, eu, com o meu cérebro. E meu cérebro deve ter-lhes transmitido a mensagem, a elas. Por que devo pretender que elas sejam mais prudentes que meu cérebro? Morro porque fomos fantasiosos além de todos os Limites."

"Escuta, o que acontece contigo nada tem a ver com o nosso Plano...”

"Não? E por que te acontece aquilo que está acontecendo? O mundo está se comportando como as minhas células."

Deixara-se cair exausto. O doutor havia entrado e murmurara muito baixo que não se podia submeter àquele estresse quem estava morrendo.

Belbo saíra, e aquela foi a última vez que viu Diotallevi.

Pois bem, escreveu, sou procurado pela polícia pelas mesmas razões por que Diotallevi tem câncer. Pobre amigo, ele morre, mas eu, eu que não tenho câncer, que faço? Vou a Paris buscar a regra da neoplasia.

Não se rendeu logo. Permaneceu trancado em casa durante quatro dias, pôs em ordem seus files, frase após frase, para encontrar uma explicação. Depois redigiu seu relato, como um testamento, contando para si mesmo, a Abulafia, a mim ou a quem o pudesse ler. E por fim partiu na terça-feira.

Creio que Belbo tinha ido a Paris para dizer a eles que não havia segredo algum, que o verdadeiro segredo era deixar andar as células segundo sua sabedoria instintiva, porque com o procurar segredos sob a superfície se reduzia o mundo a um câncer imundo. E que o mais imundo e estúpido de todos era ele, que não sabia nada e havia inventado tudo - e muito lhe devia custar, porém desde algum tempo aceitara a idéia de que era um covarde, e De Angelis lhe mostrara que de heróis só há uns poucos.

Em Paris deve ter havido o primeiro contato e Belbo se deu conta de que Eles não acreditavam em suas palavras. Eram simples demais.

Agora estavam à espera de uma revelação, sob pena de morte. Belbo não tinha revelações a fazer e, última de suas covardias, tinha medo de morrer. E então tratou de fazer desaparecer as suas pistas, e me havia chamado. Mas eles o tinham preso.

 

C’est une leçon par la suite. Quand votre ennemi se reproduira, car il n’est pas à son dernier masque, congédiez-le brusquement, et surtout n’allez pas le chercher dans les grottes.

(Jacques Cazotte, Le diable amoureux, 1772, página suprimida nas edições seguintes)

 

Agora, perguntava a mim mesmo no apartamento de Belbo, depois de ler as suas confissões, que devo fazer? Não tem sentido ir à procura de Garamond, De Angelis lá se foi, Diotallevi dissera tudo o que tinha a dizer. Lia estava longe num lugar sem telefone. São seis horas da manhã de sábado 23 de junho, e se algo tiver que acontecer acontecerá esta noite, no Conservatoire.

Tenho que tomar uma decisão imediata. Por quê, me perguntava aquela noite no periscópio, não preferi fingir que não sabia nada? Tinha diante de mim os textos de um louco, que falava de seus colóquios com outros loucos e de seu último colóquio com um moribundo superexcitado, ou superdeprimido. Não estava nem mesmo seguro de que Belbo me havia telefonado de Paris, talvez falasse a poucos quilômetros de Milão, talvez da cabine telefônica da esquina. Por que empenhar-me numa história talvez imaginária, que não me dizia respeito?

Mas isso eu me perguntava no periscópio, enquanto sentia os pés me entorpecerem, e a luz diminuir, e eu provava o medo desnatural e naturalíssimo que todo ser humano deve sentir de noite sozinho, estando num museu deserto. Aquela manhã ao contrário não tinha medo. Só curiosidade. E talvez senso de dever, de amizade.

E resolvi que devia ir também a Paris, não sabia bem fazer o quê, mas não podia deixar Belbo sozinho. Talvez ele esperasse isto de mim, apenas isto para penetrar na calada da noite na caverna dos tugues e, quando Suyodhana estivesse para imergir-lhe o punhal do sacrifício no coração, eu irromperia sob a abóbada do templo com os meus sipaios de fuzil carregado a metralha, e o traria dali são e salvo.

 

Por sorte tinha um pouco de dinheiro comigo. Em Paris tomei um táxi e pedi que me levasse à rue de la Manticore. O chofer passou o tempo todo xingando, porque não encontrava a rua nem mesmo naqueles guias especiais que eles têm, e de fato era um beco tão estreito quanto um corredor de trem, para os lados da velha Biêvre, por trás da igreja de Saint Julien le Pauvre. O táxi não pôde nem entrar por ele, e me deixou à esquina.

Entrei pela ruela meio desconfiado sem ver nenhuma porta que desse para ela, até que a certo ponto o caminho se alargava um pouco, e lá estava a livraria. Não sei por que tinha o número 3, já que não havia nenhuma outra casa de número um ou dois, ou outro qualquer. Tratava-se de uma lojazinha mínima com apenas uma abertura, e metade da porta era usada como vitrina. Dos lados umas poucas dezenas de livros, o suficiente para indicar o gênero. Embaixo uma série de pêndulos radioestésicos, varetas de incenso, pequenos amuletos orientais ou sul-americanos. Muitos maços de cartas de tarô, em estilos e confecções diversos.

O interior não era mais confortável, um amontoado de livros nas paredes e pelo chão, com uma mesinha ao fundo, e um livreiro que parecia ali de propósito para permitir a um escritor escrever que ele era mais velho que seus livros. Compulsava um grande registro escrito à mão, desinteressado dos clientes. Por outro lado só havia naquele momento dois visitantes, que levantavam nuvens de poeira tirando velhos volumes, quase todos desprovidos de capa, de prateleiras penditantes, e se punham a ler, sem ter jeito de quem vai comprar.

O único espaço não atulhado das prateleiras estava tomado por um cartaz. Cores berrantes, uma série de retratos arredondados de cercadura dupla, como nos cartazes do mágico Houdini. "Le Petit Cirque de l’Incroyable. Madame Olcott et ses liens avec l’Invisible." Uma cara oleosa e masculina, duas tranças de cabelo negro recolhidas em coque sobre a nuca, me parecia já ter visto aquele rosto. "Les Derviches Hurleurs et leur danse sacrée. Les Freaks Mignons, ou Les Petits fils de Fortunio Liceti." Uma assembléia de mostrengos pateticamente imundos. "Alex et Denys, les Géants d’Avalon. Theo, Leo et Geo Fox, Les Enlumineurs de l’Ectoplasme...”

A livraria Sloane de fato fornecia tudo, do berço à tumba, até mesmo o são divertimento noturno, de se levar as crianças antes de esmagá-las no almofariz. Eu ouvi um telefone tocar, e vi o livreiro pôr de lado uma pilha de papéis, a fim de poder encontrar o fone. "Oui monsieur”, estava dizendo, "c’est bien ça." Ouviu por alguns minutos em silêncio, primeiro anuindo, depois assumindo um ar perplexo, mas - eu diria - para uso dos circunstantes, como se todos pudessem ouvir aquilo que ele ouvia e não quisesse assumir a responsabilidade disso. Depois adotou aquela expressão escandalizada do comerciante parisiense quando lhes pedimos algo que não têm no estabelecimento, ou dos porteiros de hotel quando vêm nos dizer que não tem quartos vagos. "Ah non, monsieur. Ah, ça... Non, non, monsieur, c’est pas notre boulot. lci, vous savez, on vend des livres, on peut bien vous conseiller sur des catalogues, mais ça... Il s’agit de problémes trés personnels, et nous... Oh, alors, il-y-a - sais pas, moi - des curés, des..., oui, si vous voulez, des exorcistes. D’accord, je le sais, on connait des confrères qui se prêtent... Mais pas nous. Non, vraiment la description ne me suffit pas, et quand même... Désolé monsieur. Comment? Oui..., si vous voulez. C’est un endroit bien connu, mais ne demandez pas mon avis. C’est bien ça, vous savez, dans ces cas, la confiance c’est tout. A votte service, monsieur".

Os outros dois clientes haviam saído, eu me sentia embaraçado. Por fim decidi-me, atraí a atenção do velho com um jato de tosse, e lhe disse que procurava um conhecido, um amigo que costumava passar por aquelas bandas, monsieur Agliè. Olhou para mim como se eu fosse o homem do telefonema. Talvez, disse-lhe, não o conhecesse como Agliè, mas como Rakosky, ou Soltikoff, ou... Olhou de novo para mim, comprimindo os olhos, sem nenhuma expressão, e observou que eu tinha amigos curiosos com muitos nomes. Disse-lhe que não se importasse, que havia perguntado por perguntar. Espere, disse-me, meu sócio está chegando e talvez ele conheça a pessoa que o senhor procura. Enquanto isto, sente-se, ao fundo há uma cadeira. Vou dar um telefonema e fiscalizo. Havia levantado o fone e discado um número, e em seguida pôs-se a falar em voz baixa.

Casaubon, disse comigo, és mais estúpido que Belbo. Então que esperas? Que Eles agora cheguem e digam oh que bela combinação, veio também o amigo de Jacopo Belbo, venha, venha também o senhor...

Ergui-me de um salto, despedi-me e saí. Percorri em um minuto a rue de la Manticore, andei por outras ruelas, encontrei-me ao longo do Sena. Imbecil, continuei falando comigo, que pretendias? Chegar lá, encontrar Agliè, agarrá-lo pela gola do paletó, ele se desculpava, tinha sido tudo um equívoco, aqui está seu amigo, não lhe tocamos num fio de cabelo. E agora sabem que também estás aqui.

Já passava do meio-dia, à noite algo iria se passar no Conservatoire. Que devia fazer? Havia entrado pela rue Saint Jacques e a cada instante me voltava para trás. A um certo ponto pareceu-me que um árabe me seguia. Mas por que pensava que fosse um árabe? A característica dos árabes é que não parecem árabes, pelo menos em Paris, em Estocolmo seria diferente.

Tinha passado diante de um hotel, entrara e pedira um quarto. Enquanto subia com a chave, por uma escada de madeira que dava num primeiro andar com balaustrada, de onde se podia avistar o balcão da portaria, vi que ali entrara o pretenso árabe. Depois notei no corredor outras pessoas que bem podiam ser árabes. Natural, naquela parte da cidade só havia hotéis para árabes. Que é que eu pretendia?

Entrei no quarto. Era decente, tinha até telefone, pena que não soubesse nem mesmo a quem telefonar.

E ali adormeci, inquieto, até as três. Depois lavei o rosto e me dirigi para o Conservatoire. Agora não me restava outra coisa a fazer, entrar no museu, lá ficar até depois de fecharem e esperar a meia-noite.

Assim havia feito. E a poucas horas da meia-noite encontrava-me no periscópio, a esperar qualquer coisa.

Nezah é para alguns intérpretes a sefirah da Resistência, da Suportação, da Paciência constante. Esperava-se de fato uma Prova. Mas para outros intérpretes é a Vitória. A vitória de quem? Talvez naquela história de derrotados, de diabólicos enganados por Belbo, de Belbo enganado pelos diabólicos, de Diotallevi enganado por suas células, no momento eu era o único vitorioso. Estava à espreita no periscópio, sabia dos outros e os outros não sabiam de mim. A primeira parte do meu projeto tinha saído segundo os planos.

E a segunda? Sairia segundo meus planos, ou segundo o Plano, que não mais me pertencia?

 

HOD

Para as nossas Cerimônias e Ritos, temos duas longas e belas Galerias, no Templo dos Rosa-Cruzes. Numa delas colocamos modelos e exemplos de todas as invenções mais raras e excelentes, na outra as Estátuas dos principais Inventores.

(John Heydon, The English Physitians Guide: Or A HoIy Guide, London, Ferris, 1662, The Preface)

 

Estava no periscópio há muito tempo. Já seriam dez horas, ou dez e meia. Se alguma coisa devesse ocorrer, ocorreria na nave da abadia, diante do Pêndulo. Logo devia apressar-me em descer, para encontrar um refúgio, e um ponto de observação. Se chegasse demasiado tarde, depois que já tivessem entrado (por onde?), Eles me teriam descoberto.

Descer. Movimentar-me... Não desejava fazer outra coisa há algumas horas, mas agora que podia, agora que era prudente fazê-lo, sentia-me como paralisado. Teria que atravessar as salas de noite, usando a lanterna com moderação. Pouca luz noturna filtrava pelas grandes janelas, se tivesse imaginado um museu tornado espectral pelo clarão da Lua, estaria muito enganado. As vitrinas recebiam das janelas reflexos imprecisos. Se não me movesse com cautela, poderia ir de encontro a uma coisa qualquer com um fragor de cristais, ou de tralhas de ferro. Acendia a lanterna de quando em quando. Sentia-me como se estivesse no Crazy Horse, vez por outra uma luz imprevista me revelava uma nudez, mas não de carne, e sim de porcas, de tarraxas, de arrebites.

E se de repente iluminasse uma presença viva, a figura de alguém, um enviado dos Senhores, que estivesse acompanhando como num espelho o meu percurso? Quem haveria de gritar primeiro? Assestava o ouvido. Com que fim? Não fazia ruído, arrastava-me. Logo ele também.

Durante a tarde estudara atentamente a seqüência das salas, estava convencido de que mesmo no escuro poderia encontrar a escadaria. Em vez disso estava agora vagando quase às apalpadelas, e perdera o senso de direção.

Talvez estivesse passando por alguma sala pela segunda vez, talvez jamais tivesse sequer saído da mesma, talvez aquilo, aquele errar entre máquinas sem sentido, fosse o rito.

Na verdade não queria descer, na verdade queria retardar o encontro.

Tinha saído do periscópio depois de um longo, impiedoso exame de consciência, no correr de muitas horas havia revisto nosso erro dos últimos anos e procurara atinar com o porquê, sem qualquer razão racional, de estar eu naquele lugar à procura de Belbo, que fora parar ali por motivos ainda menos racionais. Porém, mal pusera os pés fora, tudo havia mudado. Enquanto avançava ia pensando com a cabeça de outro. Transformara-me em Belbo. E como Belbc agora no término de sua viagem para a iluminação, sabia que cada objeto terreno, até o mais ínfimo, é lido como o hieróglifo de outra coisa, e que não há outro que seja o correspondente real do Plano. Oh, era astuto, bastava-me um relâmpago, um olhar num lampejo de luz, para compreender. Não me deixava enganar.

 

Motor de Froment: uma estrutura vertical de base romboidal, que encerrava, como uma figura anatômica que exibisse as próprias costelas artificiais, uma série de bobinas, sei lá, pilhas, rotores, ou que raios se chamem nos livros escolares, acionadas por uma correia de transmissão que se encaixava num pinhão através de uma roda dentada... Para que teria podido servir? Resposta, para medir as correntes telúricas, é óbvio.

Acumuladores. Que acumulam? Não podia deixar de imaginar os Trinta e Seis Invisíveis como outros tantos obstinados secretários (os custódios do segredo) que batessem à noite em seu címbalo escrivão para dele arrancar um som, uma centelha, um chamado, empenhados num diálogo de costa a costa, entre abismo e superfície, de Machu Picchu a Avalon, zip zip zip, pronto pronto pronto, Pamersiel Pamersiel, eu captei o frêmito, a corrente Mu 36, aquela que os brâmanes adoravam como a suave respiração de Deus, agora insiro o pino, circuito micromacrocósmico em ação, tremem sob a crosta do globo todas as raízes de mandrágora, ouve-se o canto da Simpatia Universal, câmbio e desligo.

Meu Deus, os exércitos se ensangüentavam nas planícies da Europa, os papas lançavam anátemas, os imperadores se encontravam hemofílicos e incestuosos no pavilhão de caça dos Hortos Palatinos, para fornecer uma cobertura, uma fachada suntuosa para o trabalho deles, que na Casa de Salomão auscultavam os débeis chamados do Umbilicus Mundi.

Eles estavam aqui, acionando estes eletrocapiladores pseudotérmicos exatetragramáticos - assim teria dito Garamond, não é mesmo? - e no entanto, que sei, alguém teria inventado uma vacina, ou pequena lâmpada, para justificar a maravilhosa aventura dos metais, mas a finalidade era bem outra, ei-los todos aqui congregados à meia-noite para fazer girar esta máquina estática de Ducretet, uma roda transparente que parece uma bandoleira, e atrás duas bolinhas vibráteis sustentadas por duas varinhas em arco, talvez agora se toquem, dela extraindo centelhas, Frankenstein esperava que assim pudesse dar vida ao seu golem e em vez não, o sinal que esperava era um outro: conjectura, trabalha, cava cava velha toupeira...

...Uma máquina de costurar (que mais seria, daquelas que aparecem nas propagandas com a gravura, juntamente com a pílula para desenvolver os seios, e com a enorme águia que volta das montanhas trazendo nas garras o amargo regenerador, Robur le Conquérant, R-C), mas se acionada faz girar uma roda, a roda um anel, o anel..., que faz o anel, quem ausculta o anel? A etiqueta dizia "as correntes induzidas do campo terrestre". Com impudicícia, podem-na ler até as crianças em suas visitas vespertinas, tanto a humanidade acreditava que estivesse andando em outra direção, podia se tentar tudo, a experiência suprema, dizendo que servia à mecânica. Os Senhores do Mundo nos enganaram por séculos. Estávamos envoltos, enfaixados, seduzidos pelo complô, e escrevíamos poemas em louvor à locomotiva.

Eu ia e vinha. Teria podido imaginar-me pequeninissimo, microscópico, e eis que seria um viajante atônito pelas ruas de uma cidade mecânica, cheia de torres de arranha-céus metálicos. Cilindros, baterias, garrafas de Leiden uma sobre a outra, pequeno carrossel da altura de vinte centímetros, tourniquet électrique à attraction et repulsion. Talismã para estimular as correntes de simpatia. Colonnade étincelante formée de neuf tubes, électroaimant, uma guilhotina, ao centro - e parecia um prelo de tipografia - pendiam ganchos suspensos por correntes de estrebaria. Uma prensa na qual se pode enfiar a mão, uma cabeça para esmagar. Sino de vidro movido por uma bomba pneumática a dois cilindros, uma espécie de alambique e por baixo uma taça e à direita uma esfera de cobre. São Germano ali cozinhava as suas tinturas para o landgrave de Hesse.

Um porta-pipos com uma quantidade de pequenas clepsidras de formato alongado como as mulheres de Modigliani, com um material impreciso dentro, sobre duas filas de dez cada uma, em cada uma a intumescência superior se expandia a uma altura diversa, como balõezinhos que estivessem para alçar vôo, seguros à terra por um peso de bola. Aparelho para a produção do Rébis, sob os olhos de todos.

Seção de vidraria. Havia voltado sobre os meus passos. Garrafinhas verdes, um anfitrião sádico estava me oferecendo venenos em quintessência. Máquinas de ferro para fazer as garrafas, abriam-se e fechavam-se com duas manoplas, e se alguém em vez da garrafa metesse dentro o pulso? Zac, como devia acontecer com aquelas grandes tenazes, os tesourões, aqueles bisturis de bico recurvado que podiam ser enfiados no esfíncter, nos ouvidos, no útero, para tirar um feto ainda fresco a ser acrisolado com mel e pimenta para satisfazer a sede de Astarte... A sala que atravessava agora tinha vitrinas amplas, nelas entrevia botões para pôr em movimento pontas helicoidais que avançariam inexoráveis em direção dos olhos das vítimas, o Poço e o Pêndulo, estávamos quase na caricatura, nas máquinas inúteis de Goldberg, aos troncos de tortura onde Perna de Pau levava o Camundongo Mickey, l’engrenage extérieur à trois pignons, triunfo da mecânica renascentista, Branca, Ramelli, Zonca, conhecia essas engrenagens, eu as havia paginado para a maravilhosa aventura dos metais, mas aqui foram postas depois, no século passado, já estavam prontas para conter os rebeldes depois da conquista do mundo, os Templários haviam aprendido com os Assassinos como fazer calar Noffo Dei, no dia em que o houvessem capturado, a suástica de von Sebottendorff entortaria em direção do Sol os membros apaixonados dos inimigos dos Senhores do Mundo, tudo pronto, esperavam um aceno, tudo sob os olhos de todos, o Plano era público, mas ninguém pudera adivinhá-lo, fauces crepitantes haviam cantado seu hino de conquista, grande orgia de bocas reduzidas a puro dente que se encavilhavam uma contra a outra, num espasmo feito de tique-taque como se todos os dentes tivessem caído por terra no mesmo momento.

E por fim havia chegado em frente ao émetteur à étincelles soufflées projetado para a Torre Eiffel, para a emissão dos sinais horários entre a França Tunísia e Rússia (Templários de Provins, Paulicianos e Assassinos dé Fez - Fez não é na Tunísia e os Assassinos estavam na Pérsia, mas e daí, não se pode sutilizar um pouco quando se vive nas espirais do Templo Sutil), já havia visto aquela máquina imensa, mais alta do que eu, com as paredes perfuradas por uma série de escotilhas, de tomadas de ar, quem iria convencer-me de que fosse um aparelho de rádio? Mas sim, eu o conhecia, tinha passado ao lado dele ainda naquela tarde. O Beaubourg!

Sob os nossos olhos. E de fato para que deveria servir aquele imenso caixotão no centro de Lutécia (Lutécia, a escotilha do mar de lama subterrâneo), ali, onde em certa época estava o Ventre de Paris, com aquelas trombas preênseis de correntes aéreas, aquela insânia de tubos, de condutos, aquela orelha de Dionisio escancarada sobre o vazio exterior para emitir sons, mensagens, sinais até o centro do globo e restituir-lhe vomitando informações do inferno? Primeiro o Conservatoire, como laboratório, depois a Torre como sonda, e por fim o Beaubourg, como máquina receptotransmissora global. Claro que não tinham erguido aquela imensa ventosa só para entreter quatro estudantes cabeludos e morrinhentos que caminhavam ouvindo o último disco em auriculares japoneses. Sob os nossos olhos. O Beaubourg como porta para o reino subterrâneo de Agarttha, o monumento dos Éqüites Synarchici Resurgentes. E os outros, dois, três, quatro bilhões de Outros, o ignoravam, ou se esforçavam por ignorá-lo. Estúpidos e Hilicos. E os Pneumáticos, diretos ao seu escopo, por seis séculos.

 

A certo momento dei com a escadaria. Desci, cada vez mais cauteloso. A meia-noite estava próxima. Tinha que me esconder no meu observatório antes que Eles chegassem.

Creio que eram as onze, talvez menos. Tinha atravessado a sala de Lavoisier, sem acender a lanterna, lembrado das alucinações da tarde, tinha percorrido o corredor das miniaturas ferroviárias.

Na nave já havia alguém. Via luzes, móveis e frouxas. Ouvia tropéis, rumor de objetos removidos ou arrastados.

Apaguei a lanterna. Teria ainda tempo de chegar à guarita? Esgueirava-me ao longo da vitrina dos trens, e logo me aproximei da estátua de Gramme, no transepto. Sobre um embasamento de madeira, em forma cúbica (a pedra cúbica de Esod!), erguia-se como para guardar a entrada do coro. Recordava-me mais ou menos que a minha estátua da Liberdade estava situada imediatamente às suas costas.

A face anterior do embasamento era emborcada para a frente, formando como que uma passarela que permitia a saída de um conduto. E dali saiu de fato um indivíduo com um lampião - talvez de gás, com vidros coloridos, que lhe iluminava a face de labaredas avermelhadas. Encolhi-me num ângulo e ele não me viu. Alguém que estava no coro veio reunir-se a ele. "Vite", disse-lhe, "depressa, vão chegar dentro de uma hora."

Aquela era então a vanguarda, que estava preparando alguma coisa para o rito. Se não eram muitos, poderia ainda iludi-los e alcançar a Liberdade. Antes que Eles chegassem, vindos quem sabe donde, e em que número, surgindo pelo mesmo caminho. Permaneci abaixado durante muito tempo, acompanhando os reflexos das lanternas na igreja, o alternar-se periódico das luzes, os momentos de maior e menor intensidade. Calculava o momento em que eles se afastariam da Liberdade e quanto esta poderia ainda permanecer na sombra. A um certo momento, joguei ao azar, esgueirei-me pelo lado esquerdo de Gramme - comprimindo-me ao máximo contra a parede e contraindo os músculos abdominais. Por sorte era magro como um palito. Lia... Escondi-me, deslizando na guarita.

Para tornar-me menos perceptível, deixei-me escorregar por terra, obrigado a encolher-me numa posição quase tetal. Aceleravam-se as batidas do coração, e dos dentes.

Precisava distender-me. Respirei ritmicamente com o nariz, aumentando aos poucos a intensidade das aspirações. Creio que, sob tortura, seja assim que se possa conseguir perder os sentidos para escapar à dor.

De fato senti precipitar-me lentamente no abraço do Mundo Subterrâneo.

 

A nossa causa é um segredo dentro de um segredo, o segredo de alguma coisa que permanece velada, um segredo que só um outro segredo pode explicar, é um segredo sobre um segredo que se contenta com um segredo.

(Ja’far-al-Sâdiq, sexto Imã)

 

Emergi lentamente à consciência. Ouvia sons, era perturbado por uma luz agora mais forte. Sentia os pés entorpecidos. Tentei levantar-me lentamente sem fazer ruído e me pareceu que estava pisando sobre uma porção de ouriços-do-mar. A Sereiazinha. Fiz alguns movimentos silenciosos, fletindo-me na ponta dos pés, e a sensação diminuiu.

Só então, esticando a cabeça cautelosamente, à esquerda e à direita, e estando seguro de que a guarita permanecia bastante na sombra, consegui dominar a situação.

A nave estava toda iluminada. A luz de lanternas, que agora eram dezenas e dezenas, trazidas pelos convocados que estavam chegando às minhas costas. Saindo certamente do conduto, passavam em fila pela minha esquerda e iam chegar ao coro e se dispunham na nave. Meu Deus, pensei, A Noite do Monte Calvo em versão Walt Disney.

Não falavam a plena voz, sussurravam, mas todas juntas produziam um cicio acentuado, como o bruaá dos coros de opera.

À minha esquerda as lanternas estavam postas no chão em semi-círculo, perfazendo com uma circunferência achatada a curva oriental do coro, e indo tocar o ponto extremo daquele pseudo-semicírculo, na parte sul, a estátua de Pascal. Ali havia sido colocado um braseiro ardente, sobre o qual alguém jogava ervas, essências. A fumaça chegava até a guarita e me secava a garganta, provocando-me uma sensação de superexcitado aturdimento.

Entre o oscilar das lanternas, percebi que no centro do coro alguma coisa se agitava, uma sombra sutil e mobilíssima.

O Pêndulo! O Pêndulo já não oscilava no lugar de costume a meio do cruzeiro. Estava agora apenso, mais alto, da chave da abóbada, no centro do coro. Uma esfera maior, um fio mais resistente, que me parecia uma corda ou um cabo de metal retorcido.

O Pêndulo estava agora imenso, do tamanho que deve ter sido mostrado no Panthéon. Era como ver-se a Lua ao telescópio.

Quiseram restituir-lhe suas dimensões originais como os Templários o deviam ter experimentado pela primeira vez, meio milênio antes de Foucault. Para permitir-lhe oscilar livremente haviam eliminado algumas infra-estruturas, criando no anfiteatro do coro aquela rude antístrofe simétrica assinalada pelas lanternas.

Perguntei-me como o Pêndulo conseguia manter a constância de suas oscilações, agora que sob o pavimento do coro não podia estar mais o regulador magnético. Depois compreendi. À borda do coro, junto aos motores Diesel, estava um indivíduo que - pronto a deslocar-se como um gato para acompanhar as variações do plano de oscilação - imprimia à esfera, vez por outra, quando esta avançava em sua direção, um leve impulso, com um movimento preciso da mão, com um leve toque dos dedos.

Estava de fraque, como Mandrake. Depois, observando seus outros companheiros, percebi que se tratava de um prestidigitador, um ilusionista do Petit Cirque de Madame Olcott, um profissional capaz de dosar a pressão das pontas dos dedos, do pulso seguro, hábil em trabalhar com desvios infinitesimais. Talvez fosse capaz de perceber, com a sola finíssima de seus sapatos luzidios, as vibrações das correntes, e de mover as mãos segundo a lógica da esfera, e da terra à qual a esfera respondia.

Seus comparsas. Agora também os via. Moviam-se entre os automóveis da nave, deslizavam ao lado das draisiennes e dos motociclos, quase rolavam na sombra, este portando uma cadeira de espaldar alto e uma mesa coberta de pano vermelho no vasto ambulacro do fundo, aquele colocando outras lanternas. Pequenos, noturnos, gaguejantes, como crianças raquíticas, de um que estava passando ao meu lado pude distinguir os traços mongolótdes e a cabeça calva. Les Freaks Mignons de Madame Olcott, os imundos mostrengos que vira no cartaz da Sloane.

O circo ali estava au grand complet, staff, polícia, coreógrafos do rito. Vi Alex e Denys, les Géants d’Avalon, envoltos numa armadura de couro brochado, verdadeiramente gigantescos, de cabelos louros, apoiados contra a grande mole da Obéissante, com os braços cruzados à espera.

Não tive tempo de me fazer outras perguntas. Alguém havia entrado com solenidade, impondo silêncio com a mão erguida. Reconheci Bramanti só porque estava com a túnica escarlate, a capa branca e a mitra com as quais o vira vestido aquela noite no Piemonte. Bramanti aproximou-se do braseiro, atirou-lhe alguma coisa dentro que provocou uma chamarada, seguida de fumaça densa e branca, espalhando lentamente um perfume pela sala inteira. Como no Rio, pensava, como na festa alquimica. E não tenho um agogô. Levei o lenço ao nariz e à boca, como um filtro. Mas já Bramanti me parecia duplo, e o Pêndulo oscilava diante de mim em múltiplas direções, como um carrossel.

Bramanti começou a salmodiar: "Alef bet gimel dalet he waw zain het tet jod kaf lamed mem nun samek ajin pe sade qof resh shin tau!"

A turba respondia, orante: "Parmesiel, Padiel, Camuel, Aseliel, Barmiel, Gediel, Asyriel, Maseriel, Dorchtiel, Usiel, Cabariel, Raysiel, Symiel, Armadiel...”

Bramanti fez um sinal, e alguém emergiu da multidão, pondo-se de joelhos aos seus pés. Só por um instante vi-lhe o rosto. Era Riccardo, o homem da cicatriz, o pintor.

Bramanti estava interrogando-o e este respondia, recitando de memória as fórmulas do ritual.

"Quem és?"

"Sou um adepto, ainda não admitido nos mistérios mais altos do Tres. Preparei-me em silêncio, na meditação analógica do mistério de Bafomé, na consciência de que a Grande Obra gira em torno de seis selos intactos, e de que só no fim conheceremos o segredo do sétimo."

"Como foste recebido?"

"Passando pela perpendicular ao Pêndulo."

"Quem te recebeu?"

"Um Místico Legado."

"Reconhecê-lo-ias?"

"Não, porque estava mascarado. Conheço apenas o Cavaleiro de grau superior ao meu e este o Naômetra de grau superior ao dele e cada qual conhece apenas um. E assim o quero."

"Quid facit Sator Arepo?"

"Tenet Opera Rotas."

"Quid facit Satan Adama?"

"Tabat Amata Natas. Mandaba Data Amata, Nata Sata".

"Trouxeste a mulher?"

"Sim, está aqui. Entreguei-a a quem me foi ordenado. Ela está pronta."

"Vai, e permanece à espera."

O diálogo se havia desenvolvido num francês aproximativo, de ambas as partes. Depois Bramanti disse: "Irmãos, estamos aqui reunidos em nome da Ordem Única, a Ordem Ignota, à qual até ontem não sabíeis pertencer e pertencíeis desde sempre! Juremos. Anátema sobre os profanadores do segredo. Anátema sobre os sicofantas do Oculto, anátema sobre quem tenha feito espetáculo dos Ritos e Mistérios!"

"Anátema!"

"Anátema sobre o Invisível Colégio, sobre os filhos bastardos de Hiram e da viúva, sobre os mestres operadores e especuladores da mentira do Oriente ou do Ocidente, Antiga, Aceita ou Retificada, sobre Misraim e Mênfis, sobre Filateti e as Nove Irmãs, sobre a Estrita Observância e sobre a Ordo Templi Orientis, sobre os Iluminados da Baviera e de Avignon, sobre os Cavaleiros Kadosch, sobre os Eleitos Cohen, sobre a Perfeita Amizade, sobre os Cavaleiros da Aguia Negra e da Cidade Santa, sobre os Rosacrucianos da Inglaterra, sobre os Cabalistas da Rosa + Cruz do Ouro, sobre a Golden Dawn, sobre a Rosa Cruz Católica do Templo e do Graal, sobre a Stella Matutina, sobre o Astrum Argentinum e sobre Thelema, sobre Vril e sua Thule, sobre todos os antigos e místicos usurpadores do nome da Grande Fraternidade Branca, sobre os Vigilantes do Templo, sobre todos os Colégios e Priorados de Sião ou das Gálias!"

"Anátema!"

"Quem quer que por ingenuidade, vontade própria, proselitismo, cálculo ou má-fé tenha sido iniciado em loja, colégio, priorado, capítulo, ordem que ilicitamente se refira à obediência aos Superiores Desconhecidos e aos Senhores do Mundo, que venha hoje a abjurar e implorar exclusiva reintegração no espírito e no corpo da única e verdadeira observância, o Tres, Templi Resurgentes Equites Synarchici, a ordem mística triúnica e trinosófica secretíssima dos Cavaleiros Sinárquicos da Renascença Templar!"

"Sub umbra alarum tuarum!"

 

"Que agora entrem os dignitários dos 36 graus últimos e secretíssimos!"

E enquanto Bramanti chamava os eleitos um a um, estes iam entrando com suas vestes litúrgicas, todos trazendo sobre o peito a insígnia do Tosão de Ouro.

"Cavaleiro do Bafomé, Cavaleiro dos Seis Selos Intactos, Cavaleiro do Sétimo Selo, Cavaleiro do Tetragrámmaton, Cavaleiro Justiceiro de Florian e Dei, Cavaleiro do Atanor... Venerável Naômetra da Torre de Babel, Venerável Naômetra da Grande Pirâmide, Venerável Naômetra das Catedrais, Venerável Naõmetra do Templo de Salomão, Venerável Naômetra do Horto Palatino, Venerável Naômetra do Templo de Heliópolis...”

Bramanti recitava as dignidades e os designados entravam em grupos, de modo que não conseguia atribuir a cada um o respectivo título, mas certamente entre os primeiros doze vi De Gubernatis, o velho da livraria Sloane, o professor Camestres e outros que havia encontrado aquela noite no Piemonte. E creio que, como Cavaleiro do Tetragrámmaton, vi o Sr. Garamond, composto e hierático, compenetrado de seu novo papel, que com mãos trêmulas apalpava o Tosão que tinha sobre o peito. Entrementes Bramanti continuava: "Místico Legado de Carnaque, Místico Legado da Baviera, Místico Legado dos Barbelognósticos, Místico Legado de Camelot, Místico Legado de Montsegur, Místico Legado do Imã Oculto... Supremo Patriarca de Tomar, Supremo Patriarca de Kilwinning, Supremo Patriarca de Saint-Martin-des-Champs, Supremo Patriarca de Marienbad, Supremo Patriarca da Okrana Invisível, Supremo Patriarca in partibus da Fortaleza de Alamut...”

E certamente o Patriarca da Okrana era Salon, sempre pardo de rosto mas sem o balandrau e agora resplandecente em sua túnica amarela bordada de vermelho. Seguia-o Pierre, o psicopompo da Eglise Luciferienne, que no entanto trazia sobre o peito, em lugar do Tosão de Ouro, um punhal numa bainha dourada. Enquanto isto Bramanti continuava: "Sublime Hierógamo das Núpcias Químicas, Sublime Psicopompo Rodostaurótico, Sublime Referendário dos Arcanos Arcaníssimos, Sublime Fsteganógrafo da Monas Hieroglífica, Sublime Connector Austral Utriusque Cosmi, Sublime Guardião do Túmulo de Rosencreutz... Imponderável Arconte das Correntes, Imponderável Arconte da Terra Oca, Imponderável Arconte do Pólo Místico, Imponderável Arconte dos Labirintos, Imponderável Arconte do Pêndulo dos Pêndulos...” Bramanti fez uma pausa, e me pareceu pronunciar a última fórmula a contragosto: "E o Imponderável entre os Imponderáveis Arcontes, o Servo dos Servos, Humílimo Secretário do Édipo Egípcio, Mensageiro Ínfimo dos Senhores do Mundo e Porteiro de Agarttha, Último Turiferário do Pêndulo, Claude-Louis, conde de Saint-Germain, príncipe Rakoczi, Príncipe de Saint-Martin e marquês de Agliè, senhor de Surmont, marquês de Welldone, marquês de Monferrato, de Aymar e Belmar, conde Soltikof, cavaleiro Schoening, conde de Tzarogy!"

Enquanto os demais se dispunham no ambulacro, fazendo frente ao Pêndulo e aos fiéis da nave, entrava Agliè, de jaquetão azul de riscas-de-giz, pálido e de rosto contraído, como se acompanhasse uma alma ao sendeiro do Hades, também essa pálida e desvanecida por uma droga, vestida apenas com uma túnica branca e semitransparente, Lorenza Pellegrini, os cabelos caídos sobre os ombros. Vi-a de perfil enquanto passava, pura e lânguida como uma adúltera pré-rafaelita. Diáfana demais para não estimular ainda uma vez o meu desejo.

Agliè levou Lorenza para junto do braseiro, próximo da estátua de Pascal, fez-lhe uma carícia no rosto ausente e um sinal aos Géants d’Avalon, que se puseram a seu lado, segurando-a. Depois foi sentar-se à mesa, de frente para os fiéis, e podia vê-lo perfeitamente, enquanto tirava do colete a sua tabaqueira e a acariciava em silêncio antes de falar.

"Irmãos, cavaleiros. Estais aqui porque nestes últimos dias os Místicos Legados vos informaram, e portanto ora sabeis todos as razões pelas quais estamos reunidos. Devíamo-nos reunir na noite de 23 de junho de 1945, quando talvez alguns de vós ainda nem tivessem nascido - pelo menos na forma atual, bem entendido. Estamos aqui porque depois de errar dolorosamente durante seiscentos anos encontramos finalmente alguém que sabe. Como veio a sabê-lo - e o saiba mais que nós - é um inquietante mistério. Mas espero que esteja aqui presente - e não poderias faltar, não é verdade, amigo que já te mostraste tão curioso uma outra vez - espero dizia que esteja presente entre nós quem o poderá confessar. Ardenti!"

O coronel Ardenti - era ele, sem dúvida, corvino como sempre, embora um tanto envelhecido - avançou do meio da assistência e se postou diante daquilo que se estava tornando o seu tribunal, mantendo-se à distância do Pêndulo, que assinalava um espaço intransponível.

"Há quanto tempo não nos vemos, irmão", sorria Agliè. "Sabia que, divulgando a notícia, não poderias resistir. Então? Sabes o que disse o prisioneiro e ele afirma tê-lo sabido de ti. Logo tu sabias e calavas."

"Conde", disse Ardenti, "o prisioneiro mente. Humilho-me ao dizê-lo, mas a honra antes de tudo. A história que a ele confiei não é aquela sobre a qual os Místicos Legados me falaram. A interpretação da mensagem - sim, é verdade, eu conseguira apoderar-me de uma mensagem, não vos ocultei isso há anos em Milão - é diferente... Eu não estaria em condições de lê-la como o prisioneiro a leu, por isso daquela vez eu procurava ajuda. E devo dizer que não encontrei encorajamento, mas só desconfiança, desafios e ameaças...” Talvez quisesse dizer algo mais, porém fitando Agliè fixava igualmente o Pêndulo, que estava agindo sobre ele como um encantamento. Hipnotizado, caiu de joelhos e disse apenas: "Perdão, porque não sei."

"Estás perdoado, por saberes que não sabes", disse Agliè. "Vai. Logo, irmãos, o prisioneiro sabe mais coisas do que qualquer de nós sabia. Sabe até mesmo quem somos, e nós o soubemos dele. Precisamos proceder com rapidez, em breve será madrugada. Enquanto vós permaneceis aqui em meditação, eu agora me retiro novamente com ele para arrancar-lhe a revelação."

"Ah não, senhor conde!" Pierre havia avançado um passo adiante no hemiciclo com as pupilas dilatadas. "Durante dois dias o senhor falou com ele sem nos prevenir, e ele não viu nada, não falou nada, não ouviu nada, como os três macaquinhos. Que deseja perguntar-lhe mais agora, esta noite? Não, aqui em nossa frente, diante de todos!"

"Esteja calmo, caro Pierre. Fiz com que fosse conduzida aqui esta noite esta que considero a mais perfeita encarnação da Sophia, ligame místico entre o mundo dos erros e o Ogdóade Superior. Não me perguntes como e por quê, mas com essa mediadora o homem falará. Diz a eles quem és tu, Sophia."

E Lorenza, sempre sonambúlica, quase escandindo as palavras com dificuldade:

"Eu sou..., a prostituta e a santa."

"Ah muito boa, essa", riu-se Pierre. "Temos aqui la créme de l’initiation e recorremos às putas. Não, queremos o homem aqui e já, diante do Pêndulo!"

"Não sejamos pueris", disse Agliè. "Concedam-me apenas uma hora. Por que acham que ele falaria aqui, diante do Pêndulo?"

"Ele irá falar ao desfazer-se. Le sacrifice humain!" gritou Pierre para os da nave. E os da nave, em altas vozes: "Le sacrifice humain!"

Ergueu-se Salon: "Conde, puerilidade à parte, o irmão tem razão. Não somos policiais".

"O senhor não deveria dizê-lo", motejou Agliè.

"Não somos policiais e não consideramos digno proceder com os métodos de confissão costumeiros. Mas não creio igualmente que os sacrifícios possam valer às forças do subsolo. Se estas nos quisessem dar um sinal, já o teriam feito. Além do prisioneiro, alguém mais sabia, só que está desaparecido. Pois bem, esta noite temos a possibilidade de pôr em confronto com o prisioneiro aqueles que sabiam e...” fez um sorriso, fixando Agliè com olhos entrecerrados sob as sobrancelhas hirsutas, "de pô-lo inclusive em confronto conosco, ou com alguns de nós...”

"Que está pretendendo dizer, Salon?" perguntou Agliè, com voz certamente insegura.

"Se o senhor conde me permite, eu gostaria de explicá-lo", disse Madame Olcott. Era ela, reconhecia-a, a mesma do cartaz. Lívida numa veste esverdeada, os cabelos luzidios de óleo, recolhidos sobre a nuca, uma voz rouca de homem. Pareceu-me, na livraria Sloane, que já conhecesse aquela face, e agora me lembrava: era a druidesa que chegou muito perto de nós na clareira, aquela noite. "Alex, Denys, tragam aqui o prisioneiro."

Havia falado de maneira imperiosa, o murmúrio na nave parecia ser-lhe favorável, os dois gigantes haviam obedecido confiando Lorenza a dois Freaks Mignons. Agliè tinha as mãos contraídas sobre os braços da cátedra e não havia ousado opor-se.

Madame Olcott fizera um sinal aos seus mostrengos, e entre a estátua de Pascal e a Obéissante foram colocadas três poltronas, sobre as quais ela estava agora fazendo acomodar três indivíduos. Todos três eram de cor escura, pequenos de estatura, nervosos, com grandes olhos brancos. "Os gêmeos Fox, o senhor os conhece bem, conde. Theo, Leo, Geo, sentem-se, e preparem-se."

Naquele momento reapareceram os gigantes de Avalon trazendo pelo braço o próprio Jacopo Belbo, que mal chegava aos ombros dos dois. Meu pobre amigo estava lívido, com a barba por fazer há muitos dias, as mãos atadas atrás das costas e a camisa aberta sobre o peito.

Entrando naquela liça enfumaçada piscou várias vezes os olhos. Não pareceu surpreender-se pela assembléia de hierofantes que se via em frente, naqueles últimos dias devia ter-se habituado a esperar de tudo.

Não esperava no entanto ver o Pêndulo, não naquela posição. Mas os gigantes o arrastavam para diante da cátedra de Agliè. Do Pêndulo agora só ouvia o levíssimo rascar que fazia aflorando-lhe as costas.

Um só instante se voltou, e viu Lorenza. Emocionou-se, fez menção de chamá-la, tentou desvencilhar-se, mas Lorenza, que no entanto o fixava ausente de expressão, parecia não reconhecê-lo.

Belbo estava certamente para perguntar a Agliè que havia feito a ela, mas não teve tempo. Do fundo da nave, na direção da caixa e das armações de livros, ouviu-se um rufar de tambores, e algumas notas estridentes de flautas. De um golpe as portinholas de quatro automóveis se abriram e de dentro deles saíram quatro seres que eu já havia visto, também estes, no cartaz do Petit Cirque.

Um chapéu de feltro sem abas, como um fez, grandes capotes negros fechados até o pescoço, Les Derviches Hurleurs saíram dos automóveis como ressuscitados que surgissem do sepulcro e se agacharam às bordas do circulo mágico. Ao fundo as flautas modulavam agora uma música suave, enquanto esses com igual suavidade batiam as mãos no chão e inclinavam a cabeça.

Da carlinga do aeroplano de Breguet, como o muezim do minarete, inclinou-se um quinto dervixe, que começou a salmodiar numa língua desconhecida, gemendo, lamentando-se, em tons estrídulos, enquanto os tambores voltavam a rufar, crescendo de intensidade.

Madame Olcott estava agora inclinada por trás dos irmãos Fox e lhes sussurrava frases de encorajamento. Os três se haviam abandonado sobre as poltronas, as mãos estendidas sobre os braços destas, com os olhos fechados, começando a transpirar e agitando todos os músculos da face.

Madame Olcott voltara a dirigir-se à assembléia dos dignitários.

"Agora os meus bravos irmãozinhos trarão para o meio de nós três pessoas que sabem." Fez uma pausa, e depois anunciou: "Edward Kelley, Heinrich Khunrath e...”, outra pausa, "o conde de São Germano."

Pela primeira vez vi Agliè perder o controle. Levantou-se da cátedra, e cometeu um erro. Depois se lançou em direção à mulher - evitando quase por acaso a trajetória do Pêndulo - gritando: "Víbora, embusteira, sabes muito bem que isto não pode ser...” Depois para a nave: "Impostura, impostura! Segurem-na!"

Mas ninguém se moveu, antes mesmo Pierre correu a tomar lugar junto à cátedra e disse: "Continuemos, madame."

Agliè se acalmou. Recuperou o sangue-frio, pôs-se de parte, confundindo-se com os circunstantes. "Avante", desafiou, "vamos ver, então."

Madame Olcott ergueu o braço como para dar o sinal de partida.

A música adquiriu tons cada vez mais agudos, fragmentou-se numa cacofonia de dissonâncias, os tambores rolavam arrítmicos, os dançarinos que já haviam começado a mover o busto para a frente e para trás, à direita e à esquerda, se haviam erguido, tirado os mantos e estendido os braços rígidos, como se estivessem para levantar vôo. Depois de um átimo de imobilidade começaram a redemoinhar em torno de si mesmos, usando o pé esquerdo como perno, o rosto erguido para o alto, concentrados e perdidos, enquanto suas cabeleiras encrespadas acompanhavam as piruetas alargando-se em forma de sino e parecendo flores arrastadas por um furacão.

No entretempo os médiuns haviam-se como que encolhido, o rosto tenso e desfigurado, pareciam querer defecar sem conseguir, respiravam rouquenhos. A luz do braseiro se havia atenuado, e os acólitos de Madame Olcott tinham apagado todas as lanternas que estavam no chão. A igreja estava só iluminada pelo brilho das lanternas da nave.

E pouco a pouco verificou-se o prodígio. Dos lábios de Theo Fox começava a sair como que uma espuma esbranquiçada que pouco a pouco se solidificava, e uma espuma análoga, com pequeno retardo, agora saía das bocas de seus dois irmãos.

"Força, irmãozinhos", sussurrava insinuante Madame Olcott, "força, façam força, assim, assim...”

Os dançarmos cantavam, de maneira fragmentária e histérica, fazendo oscilar e depois girar a cabeça, lançando gritos que a princípio eram convulsos, depois eram estertores.

Os médiuns pareciam tresandar uma substância de início gasosa, depois mais consistente, era como uma lava, um albume que se desprendia lentamente, saía e descia, escorria-lhes pelas costas, o peito, as pernas, com movimentos sinuosos que recordavam os dos répteis.

Não compreendia mais se aquilo lhes saía dos poros da pele, da boca, dos ouvidos, dos olhos. A multidão se comprimia para a frente, lançando-se mais e mais em direção dos médiuns, dos dançarmos. Eu havia perdido todo o medo: seguro de poder confundir-me com todas aquelas pessoas, havia saído da guarita, expondo-me ainda mais aos vapores que se expandiam sob a abóbada.

Em torno aos médiuns adejava uma luminescência de contornos lactiginosos e imprecisos. A substância estava para desincorporar-se deles e assumia formas amebóides. Da massa que provinha de um dos irmãos se havia destacado uma espécie de ponta, que se encurvava e volta a subir sobre seu corpo, como se fosse um animal que quisesse golpear com o bico. No topo da ponta estavam-se formando duas excrescências retrácteis, como os chifres de uma lesma...

Os dançarmos tinham os olhos fechados, a boca cheia de espuma, e sem cessar o movimento de rotação em torno a si mesmos haviam iniciado em círculo, tanto quanto o espaço podia permitir-lhes, um movimento de revolução em torno ao Pêndulo, conseguindo miraculosamente movimentar-se sem cruzar com sua trajetória. Redemoinhando sem parar, deixando flutuar os longos cabelos negros, as cabeças que pareciam voar fora do pescoço. Gritavam, como naquela noite no Rio, houu houu houuuuu...

As formas brancas se definiam, uma delas havia assumido uma vaga aparência humana, outra era ainda um falo, uma ampola, um alambique, e a terceira estava assumindo claramente o aspecto de um pássaro, de uma coruja de grandes olhos e orelhas eretas, o bico adunco de velha professora de ciências naturais.

Madame Olcott interrogava a primeira forma: "És tu, Kelley?"

E da forma saía uma voz. Não era certamente Theo Fox a falar, era uma voz distante, que silabava com esforço: "Now... I do reveale, a... a mighty Secret if you marke it well...”

"Fala, fala", insistia Olcott. E a voz: "This very place is cal’d by many names... Earth... Earth is the lowest element of AlI... When thrice yee have turned this Wheele about., thus my greate Secret I have revealed...”

Theo Fox fez um gesto com a mão, como a pedir dispensa. "Relaxa um pouco apenas, mas mantém a forma...” disse-lhe Madame Olcott. Depois voltou-se para a forma da coruja: "Eu te reconheço Khunrath, que nos queres dizer?"

A coruja pareceu dizer: "Hallelu... Iàah... Hallelu..., laàh...

"Was?"

"Was helfen Fackeln Licht..., oder Briln..., so die Leut..., nicht sehen..., wollen...”

"Nós queremos", dizia Madame Olcott, "diz o que sabes...”

"Symbolon kósmou..., tâ ántra..., kai tân enkosmiôn..., dunámeôn eríthento... oi theológoi...”

Também Leo Fox estava no extremo de suas forças, a voz da coruja se havia enfraquecido ao chegar ao fim. Leo havia reclinado a cabeça, e mantinha a forma com dificuldade. Implacável, Madame Olcott o incitava a resistir e se voltava para a última forma, que agora estava igualmente adquirindo feições antropomórficas. "Saint-Germain, Saint-Germain, és tu? Que sabes?"

E a forma se pôs a solfejar uma melodia. Madame Olcott ordenou com um gesto aos músicos que atenuassem sua chorumela, enquanto os dançarmos já não ululavam porém seguiam a piruetar cada vez mais prostrados.

A forma cantava: "Gentle love this hour befriends me...”

"És tu, te reconheço", dizia convidativa Madame Olcott. "Fala, diz alguma coisa, onde...”

E a forma: "II était nuit... La tête couverte du voile de lin..., j’arrive..., je trouve un autel de fer, j’y place le rameau mystérieux... Oh, je crus descendre dans un abîme..., des galeries composées de quartiers de pierre noire..., mon voyage souterrain...”

"É falso, é falso", gritava Agliè, "irmãos, todos vós conheceis este texto, é da Très Sainte Trinosophie, que eu próprio escrevi, qualquer um pode lê-la por sessenta francos!" Correra em direção a Geo Fox e estava agarrando-o pelo braço.

"Pára, impostor", gritou Madame Olcott, "que assim o matas!"

"E que fosse!" gritou Agliè derrubando o médium da poltrona.

Geo Fox tentou sustentar-se agarrando-se à sua própria secreção que, arrastada na queda, dissolveu-se em baba pelo solo. Geo se prostrou na gosma viscosa que continuava a vomitar, até se enrijecer sem vida.

"Detém-te, ó louco", gritava Madame Olcott, agarrando Agliè.

E em seguida aos outros dois irmãos: "Resisti, meus pequenos, eles devem falar ainda. Khunrath. Khunrath, diz-lhes que és tu mesmo!"

Leo Fox, para sobreviver, estava tentando reabsorver a coruja. Madame Olcott se havia colocado por trás dele e lhe comprimia as têmporas para incliná-lo à sua protérvia. A coruja percebeu que estava prestes a desaparecer e se revoltou contra seu próprio parturiente: "Phy, Phy Diabolo”, sibilava, procurando bicar-lhe os olhos. Leo Fox emitiu um gorgolejo como se lhe houvessem cortado a carótida e caiu de joelhos. A coruja desapareceu numa vasa repelente (phiii, phiii, fazia), e nela caiu a sufocar-se o médium, ali permanecendo acocorado e imóvel. Olcott furibunda se havia voltado para Theo, que estava resistindo bravamente: "Fala. Kelley, estás ouvindo?"

KelIey não falava mais. Tendia a desencarnar-se do médium, que agora urrava como se se lhe arrancassem as vísceras e procurava readquirir aquilo que havia produzido, batendo as mãos no vazio. "Kelley, de orelhas cortadas, não trapaceies mais uma vez", gritava Olcott.

Mas Kelley, não conseguindo separar-se do médium, tentava sufocá-lo. Havia-se tornado uma espécie de goma de mascar da qual o último dos irmãos Fox procurava desvencilhar-se em vão. Depois até mesmo Theo caiu de joelhos, tossindo, confundia-se com a coisa parasita que o devorava, rodou por terra saracoteando como se estivesse envolto em chamas. Aquilo que fora Kelley o recobriu primeiro como um sudário, depois morreu liquefazendo-se e o deixou despejado no chão, a metade de si mesmo, a múmia de uma criança embalsamada por Salon. Naquele exato momento os quatro dançarmos pararam em uníssono, agitaram os braços no ar, por poucos segundos se afogaram como se estivessem afundando a pique, logo se prostraram ganindo como cães e cobrindo a cabeça com as mãos.

Nesse ínterim Agliè havia voltado ao ambulacro, enxugando o suor da fronte, com um lenço que lhe ornava o bolsinho do paletó. Inspirou duas vezes, e levou à boca uma pastilha branca. Depois impôs silêncio.

"Irmãos, cavaleiros. Acabais de ver a que misérias esta mulher nos pretendeu submeter. Serenemo-nos e voltemos ao meu projeto. Dai-me uma hora para conduzir o prisioneiro."

Madame Olcott estava posta à parte, inclinada sobre seus médiuns, numa dor quase humana. Pierre, porém, que havia seguido toda a cena sentado na cátedra, readquiriu o controle da situação. "Não", disse, "só há um meio. Le sacrifice humain! Tragam a mim o prisioneiro!"

Magnetizados por sua energia, os gigantes de Avalon haviam agarrado Belbo, que acompanhara a cena atônito, e o haviam suspendido diante de Pierre. Este, com a agilidade de um ilusionista, se havia levantado, pusera a cátedra sobre a mesa e arrastara o conjunto para o centro do coro, agarrara de passagem o fio do Pêndulo e, imobilizando a esfera, empurrava-a no sentido contrário. Foi um átimo: como seguindo um plano - e talvez durante a confusão tivesse havido algum acordo - os gigantes subiram ao pódio, içaram Belbo sobre a cátedra e um deles enrolou-lhe em volta do pescoço, duas vezes, o fio do Pêndulo, enquanto o segundo mantinha suspensa a esfera, apoiando-se sobre a borda da mesa.

Bramanti precipitou-se diante da forca, emproado de majestade em sua túnica escarlate, e havia salmodiado: "Exorcizo igitur te per Pentagrammaton, et in nomine Tetragrammaton, per Alfa et Omega, qui sunt in spiritu Azoth. Saddai, Adonai, Jotchavah, Eieazereie! Michael, Gabriel, Raphael, Anael. Fluat Udor per spiritum Floim! Maneat Terra per Adam Iot-Cavah! Per Samael Zebaoth et in nomine Eloim Gibor, veni Adramelech! Vade retro Lilith!"

 

Belbo permaneceu rijo sobre a cátedra, a corda ao pescoço. Os gigantes não tinham mais necessidade de sustê-lo. Se fizesse um simples movimento em falso cairia daquela posição instável, e o laço lhe cortaria a garganta.

"Imbecis", gritava Agliè, "como o reporemos em seu eixo?" Pensava na salvação do Pêndulo.

Bramanti havia sorrido: "Não se preocupe, conde. Não estamos aqui para misturar suas tinturas. Este é o Pêndulo, tal como foi concebido por Eles. Ele saberá aonde ir. Em todo caso, para convencer uma Força a agir, nada melhor que um sacrifício humano."

Até aquele momento Belbo havia tremido. Vi-o distender-se, não digo tranqüilizar-se, mas observar a platéia com curiosidade. Creio que naquele instante, diante do confronto entre os dois adversários, vendo diante de si os corpos desarticulados dos médiuns, a seu lado os dervixes que ainda estremeciam gemendo, os paramentos dos dignitários descompostos, tivesse readquirido seu dom mais autêntico, o senso do ridículo.

Naquele momento, estou seguro, decidiu que não devia deixar-se mais amedrontar. Talvez sua posição elevada lhe tivesse dado um sentido de superioridade, enquanto observava da boca de cena aquela assembléia de insensatos perdidos numa vingança de Grand Guignol, e ao fundo, quase no átrio, os mostrengos agora já desinteressados dá contenda, a se darem de cotovelo e a soltarem risadinhas, como Annibale Cantalamessa e Pio Bo.

Voltou apenas o olhar ansioso em direção a Lorenza, segura novamente dos braços pelos gigantes, agitada por rápidos tremores. Lorenza estava readquirindo consciência. Chorava.

Não sei se Belbo decidira não lhe dar o espetáculo de seu medo, ou se sua decisão era antes o único modo com que podia fazer seu desprezo, e sua autoridade, pesarem sobre aquela gentalha. Porém mantinha-se rígido, a cabeça erguida, a camisa aberta ao peito, as mãos atadas para trás, valentemente, como se nunca tivesse conhecido o medo.

Aplacado pela pacatez de Belbo, conformado em todo caso com a interrupção das oscilações do Pêndulo, sempre ansioso por conhecer o segredo, agora no instante final da procura de toda uma vida, ou de muitas, resolvido a retomar o poder sobre os seus sequazes, Agliè havia se voltado novamente para Jacopo: "Vamos lá, Belbo, decida-se. Está vendo que se encontra numa situação, para dizer o menos, embaraçosa. Pare com essa comédia."

Belbo não havia respondido. Olhava para além, como se por discrição quisesse evitar ouvir um diálogo que tivesse surpreendido por acaso.

Agliè insistia, conciliante como se falasse a uma criança: "Compreendo o seu ressentimento e, se me permite, a sua reserva. Compreendo que lhe repugne confiar um segredo tão intimo, e tão cioso, a uma plebe que acaba de lhe oferecer um espetáculo tão pouco edificante. Pois bem, poderá confiar apenas a mim o seu segredo, ao meu ouvido. Vou fazê-lo descer e sei que me dirá uma palavra, uma só palavra."

E Belbo: "Acha?"

Então Agliè mudou de tom. Pela primeira vez em sua vida o via imperioso, sacerdotal, excessivo. Falava como se estivesse endossando uma daquelas vestes egípcias de seus amigos. Percebi que seu tom era falso, parecia estar parodiando aqueles a quem não havia nunca regateado sua indulgente comiseração. Mas ao mesmo tempo falava bastante compenetrado daquele seu papel inédito. Por um desígnio seu qualquer - pois não podia ser por instinto - estava introduzindo Belbo numa cena de melodrama. E então recitou, e recitou bem, pois Belbo não advertiu nenhum enredo, e ouviu seu interlocutor como se outra coisa não esperasse dele.

"Agora você vai falar", disse Agliè, "e falará, e não poderá permanecer fora deste jogo. Calando, estará perdido. Falando participará da vitória. Porque, em verdade lhe digo, esta noite você, eu e todos nós estaremos em Hod, a sefirah do esplendor, da majestade e da glória, Hod, que governa a magia cerimonial e ritual, Hod, o momento em que se descerra a eternidade. Este momento eu o sonhei por séculos. Falará e se unirá aos únicos que, depois de sua revelação, poderão declarar-se os Senhores do Mundo. Humilhai-vos, e sereis exaltados. Falará porque assim o ordeno, falará porque o digo, e minhas palavras efficiunt quod figurant!"

 

E Belbo disse, já agora invencível: "Ora, vá destapar o rabo...”

 

Agliè, ainda que esperasse uma negativa, empalideceu com o insulto. "Que foi que disse?" perguntou Pierre histérico. "Não fala", resumiu Agliè. Havia aberto os braços, com um gesto entre a rendição e a condescendência, dizendo a Bramanti: "É vosso."

E Pierre, desfigurado: "Assaz, assaz, le sacrifice humain, le sacrifice humain!"

"Sim, que morra, encontraremos de qualquer forma a resposta", gritava entretanto convulsa Madame Olcott, que retornava à cena e se lançava em direção a Belbo.

Quase ao mesmo tempo Lorenza também se havia movido.

Desvencilhava-se da pressão dos gigantes e se colocara diante de Belbo, aos pés da forca, com os braços estendidos como levantados para deter uma invasão, gritando entre lágrimas: "Mas estão todos loucos, isto é coisa que se faça?" Agliè, que já se estava retirando, permaneceu um instante interdito e depois avançou para contê-la.

Logo tudo ocorreu num segundo. A trança de cabelos de Madame Olcott se havia desfeito, ela, toda rancor e chamas como uma medusa, partiu de unhas em riste em direção a Agliè, arranhou-lhe o rosto e, atirando-o para um lado com a violência do ímpeto que havia acumulado naquele ataque, fé-lo recuar, tropeçar numa das pernas do braseiro, girar sobre si mesmo como um dervixe e bater com a cabeça contra uma das máquinas, caindo por terra com o rosto coberto de sangue.

Pierre no mesmo instante se havia arremessado contra Lorenza, e ao se atirar arrancou da bainha o punhal que lhe pendia do peito, eu agora o via de esguelha e não compreendi de imediato o que estava ocorrendo, mas vi Lorenza tombar aos pés de Belbo com o rosto de cera, e Pierre arrancar a lâmina gritando: "Enfin, le sacrifice humain!" E então, voltando-se para a nave, em altas vozes: "I’a Cthulhu! l’a S’halunt’n!”

 

Junta, a massa que enchia a nave se havia movido, e alguns caíam no atropelo, outros ameaçavam fazer tombar a máquina de Cugnot. Ouvi - creio pelo menos, mas não posso ter imaginado uma particularidade assim tão grotesca - a voz de Garamond que dizia: "Por favor, senhores, um mínimo de compostura...” Bramanti, extático, ajoelhava-se diante do corpo de Lorenza, declamando: "Asar. Asar! Quem me agarra o pescoço? Quem me ajoelha ao chão? Quem me apunhala o peito? Sou indigno de transpor os limiares da casa de Maat!"

 

Talvez ninguém quisesse, talvez o sacrifício de Lorenza bastasse, mas os acólitos estavam agora empurrando-se para o círculo mágico, tornado acessível pela parada do Pêndulo, e alguém - teria jurado que fosse Ardenti - fora arremessado pela turba contra a mesa, que desapareceu literalmente debaixo dos pés de Belbo, resvalando para fora, enquanto, em virtude do mesmo impulso, o Pêndulo iniciava uma oscilação rápida e violenta arrebatando sua vítima consigo. A corda se havia esticado com o peso da esfera e se envolvera, agora estreitamente como um laço, em torno ao pescoço de meu pobre amigo, que arrojado a meia altura, pendurado ao longo do fio do Pêndulo, voara de um golpe em direção à extremidade oriental do coro, e estava agora voltando para trás, já sem vida (espero), em minha direção.

A turba atropelando-se havia de novo recuado para os bordos, para deixar espaço ao prodígio. O encarregado de manter as oscilações, inebriado pelo renascimento do Pêndulo, secundava-lhe o ímpeto agindo diretamente contra o corpo do enforcado. O eixo de oscilação formava uma diagonal entre meus olhos e uma das janelas, certamente aquela com a rachadura, da qual deveria penetrar dentro de poucas horas o primeiro raio de Sol. Por isso não via Jacopo oscilar de frente para mim, mas creio que assim se passaram as coisas, que seja esta a figura que traçava no espaço...

O pescoço de Belbo parecia uma segunda esfera inserida ao longo do trecho do fio que ia da base à chave da abóbada e - por assim dizer - enquanto a esfera se mantinha à direita, a cabeça de Belbo, a outra esfera, inclinava-se à esquerda, e depois o inverso. Por longo espaço as duas esferas moveram-se em direções opostas de modo que descreviam no espaço não mais uma reta, porém uma estrutura triangular. Mas, enquanto a cabeça de Belbo seguia a tração do fio reteso, seu corpo - talvez, antes num último espasmo, agora com a espástica agilidade de uma marionete de madeira - traçava outras direções no vazio, independente da cabeça, do fio e da esfera sotoposta, os braços aqui, as pernas ali - e tive a sensação de que, se alguém tivesse fotografado a cena com a câmara de Muybridge, registrando no filme cada momento de uma sucessão espacial, registrando os dois pontos extremos em que vinha encontrar-se a cabeça a cada período, os dois pontos de parada da esfera, os pontos do cruzamento ideal dos fios, independentes, de ambos, e os pontos intermediários assinalados pela extremidade do plano de oscilação do tronco e das pernas, Belbo enforcado no Pêndulo, digo, teria desenhado no espaço a árvore das sefirot, resumindo no seu momento extremo o próprio acontecer de todos os universos, fixando no seu vagar as dez etapas do respiradouro exangue e da dejeção do divino no mundo.

Depois, enquanto o oscilador continuava a estimular aquele fúnebre balanço, por uma atroz composição de forças, uma migração de energias, o corpo de Belbo se havia tornado imóvel, e o fio com a esfera se moviam pendularmente apenas de seu corpo para baixo, e o resto - que ligava Belbo à abóbada - permanecia agora a prumo. Assim Belbo, escapando ao erro do mundo e aos seus impulsos, havia-se tornado ele próprio, agora, um ponto de suspensão, o Perno Fixo, o Lugar no qual se sustêm a abóbada do mundo, e sob seus pés apenas oscilavam o fio e a esfera, de um pólo ao outro, sem paz, com a terra a fugir sob eles, mostrando sempre um continente novo - esfera que não sabia indicar, e jamais saberia, onde estava o Umbigo do Mundo.

Enquanto a matilha dos diabólicos, por um instante atônita diante do portento recomeçava a vociferar, achei que a história havia de fato terminado. Se Hod é a sefirah da Glória, Belbo havia tido a sua.

Um só gesto impávido o havia reconciliado com o Absoluto.

 

O pêndulo ideal consiste em um fio finíssimo, incapaz de resistência a flexão e torção, de comprimento L, ao qual se prende uma massa pelo baricentro. No caso da esfera o baricentro é o centro, no caso do corpo humano é um ponto a 0, 65m de sua altura, medido a partir dos pés. Se o enforcado tem uma altura de 1,70m o baricentro fica a 1,l0m de seus pés e o comprimento L corresponde a esse comprimento. Ou seja, se do alto da cabeça ao pescoço tem-se 0,30m, o baricentro será de 1,70 - 1,10 = 0,60m da cabeça e a 0,60 - 0,30 = 0,30m do pescoço do enforcado. O período de pequenas oscilações do pêndulo, determinado por Huygens, é dado pela fórmula:

Nota: T é independente do peso do enforcado (igualdade dos homens diante de Deus)...

Um pêndulo duplo com duas massas seguras pelo mesmo fio... Movendo-se A, A oscila e pouco depois se imobiliza e oscila B. Se os pêndulos acoplados possuem massas ou comprimentos diferentes, a energia passa de um para o outro mas os tempos dessas oscilações da energia não são iguais... Esse vaguear da energia ocorre inclusive se em vez de se deixar A oscilar livremente depois de havê-lo posto em movimento, se continua a fazê-lo mover-se periodicamente com uma força. Ou seja se o vento sopra em rajadas sobre o enforcado (em anti-sintonia), com pouco o enforcado não mais se move e o Pêndulo de Foucault oscila como se estivesse empernado ao enforcado.

(De uma carta pessoal de Mano Salvadori, Columbia University. 1984)

 

Nada mais me prendia àquele lugar. Aproveitei-me da confusão, para alcançar a estátua de Gramme.

O pedestal ainda estava aberto. Entrei, desci, e ao término da escadinha encontrei-me num pequeno patamar, iluminado pela lamparina, sobre o qual surgia uma escada em caracol, de pedra. E ao fim dessa entrei por um corredor de abóbadas bastante altas, fracamente iluminado. De inicio não me dei conta de onde me encontrava, e de onde provinha o contínuo rumor de água corrente que escutava. Depois habituei os olhos: era um conduto de fossas, uma espécie de balaustrada cujo corrimão me havia impedido de cair na água, mas não me impedia de perceber o bafio repugnante, entre químico e orgânico. Pelo menos alguma coisa, de toda a nossa história, era verdadeiro: os esgotos de Paris. Os de Colbert, de Fantomas, de De Caus?

Seguia o conduto principal evitando os desvios mais escuros, e esperando que algum sinal me avisasse onde pôr fim à minha corrida subterrânea. Em todo caso corria para longe do Conservatoire, e em comparação com aquele reino da noite os esgotos de Paris eram um refrigério, a liberdade, o ar puro, a luz.

Nos olhos tinha uma única imagem, o hieróglifo traçado no coro pelo corpo morto de Belbo. Não conseguia atinar que desenho fosse, a que desenho correspondesse. Agora sei que há uma lei física, mas a maneira pela qual o sei torna ainda mais emblemático o fenômeno. Aqui, na casa de campo de Jacopo, entre tantos apontamentos seus, encontrei uma carta de alguém, que em resposta a uma indagação sua descrevia-lhe como funcionava um pêndulo, e como se comportaria se ao longo do fio fosse apenso um outro peso. Portanto Belbo, quem sabe desde quando, ao pensar no Pêndulo, imaginava-o como um Sinal e um Calvário. Não havia morrido vitima de um Plano de recente preparo, havia preparado na fantasia sua morte há tempos, sem saber que, acreditando que o poder de criação lhe fora negado, a sua perquirição estava projetando a realidade. Ou talvez não, queria morrer de tal modo que provasse a si mesmo e aos outros que, mesmo à falta de gênio, a imaginação é sempre criativa.

De qualquer modo, perdendo havia vencido. Ou perde tudo, quem se dedica a essa maneira única de vencer? Perde tudo quem não consegue compreender que a vitória há sido outra. Mas no sábado à noite eu ainda não o havia descoberto.

 

Andava pelo conduto, tal como Postel, talvez perdido na mesma treva, e de repente senti o sinal. Uma lâmpada mais forte, fixada ao muro, me mostrava outra escada, de aspecto precário, que ia dar a um alçapão de madeira, Tentei a empresa, e me encontrei num sótão atulhado de garrafas vazias, que imbricava para um corredor com duas latrinas, tendo nas portas as figurinhas do homem e da mulher. Estava no mundo dos vivos.

Detive-me ofegante. Só naquele momento voltei a pensar em Lorenza. Então chorei. Mas ela estava escorrendo das minhas veias, como se nunca tivesse existido. Não conseguia nem mesmo recordar-lhe as feições. Daquele mundo de mortos, era a mais morta.

No fim do corredor encontrei nova escada, uma porta. Entrei num ambiente enfumaçado e malcheiroso, uma taverna, um bistrô, um bar oriental, garçons escuros, clientes suados, espetinhos gordurosos e canecos de cerveja. Saí da porta como alguém que já estivesse ali, e fosse lá dentro urinar. Ninguém me notou, ou talvez o homem da caixa que, vendo-me emergir dos fundos, fez-me um sinal imperceptível com os olhos entrecerrados, um okay, como a dizer estou sabendo, vai em frente, não vi nada.

 

Se os olhos pudessem ver os demônios que povoam o universo, a existência seria impossível.

(Talmud, BeraKhoth, 6)

 

Havia saído do bar e me encontrava entre as luzes da Porte St-Martin. Oriental era a taverna da qual havia saído, orientais as outras lojas em torno, ainda iluminadas. Odor de cuscuz e falafel, e gente. Jovens em tropel, famintos, muitos de blusão de pele, comitivas. Não podia entrar num bar para beber qualquer coisa. Perguntei a um rapaz o que estava havendo. A manifestação, no dia seguinte seria a grande manifestação contra a lei Savary. Chegavam de ônibus.

Um turco - um druso, um ismailita disfarçado me convidava em mau francês a entrar num lugar qualquer. Jamais, fugir de Alamut. Não sei quem está a serviço de quem. Desconfiar.

Atravesso o cruzamento. Agora ouço o rumor dos meus passos. A vantagem das grandes cidades basta andar alguns metros para se recuperar a solidão.

Mas de repente, depois de uns poucos blocos, à esquerda, o Conservatoire, pálido na noite. Do exterior, perfeito. Um monumento que dorme o sono dos justos. Prossigo a sul, em direção ao Sena. Tinha uma meta em mente, mas não me era clara. Queria perguntar a alguém o que havia acontecido.

Belbo morto? O céu está sereno. Cruzo por um grupo de estudantes. Silenciosos, tomados pelo genius loci. A esquerda o perfil da igreja de Saint-Nicolas-des-Champs.

Prossigo pela rue St-Martin, atravesso a rue aux Ours, grande, parece um bulevar, receio perder a direção, que de resto não conheço. Olho a meu redor e à minha direita, num ângulo, vejo duas vitrinas das Editions Rosicruciennes. As luzes estão apagadas, mas à claridade dos postes, um pouco ao clarão da lanterna, consigo decifrar o conteúdo. Livros e objetos Histoire des juifs, comte de St-Germain, alchimie, monde caché, les maisons secrétes de la Rose-Croix, a mensagem dos construtores das catedrais, cátaros, Nova Atlântida, medicina egípcia, o templo de Carnaque, Bagavad Gita, reencarnação, cruzes e candelabros rosacrucianos, bustos de Ísis e Osíris, incensos em caixas e bastões, tarô. Um punhal, uma espátula de abrir cartas de estanho, com punho redondo trazendo o emblema dos Rosa-Cruzes. Que fazem, querem brincar comigo?

Agora passo em frente ao Beaubourg. De dia é uma festa campesina, agora a praça está quase deserta, um ou outro grupo silencioso e adormecido, escassas luzes das brasseries de frente. É verdade. Grandes respiradouros que absorvem energia da terra. Talvez as multidões que o lotam de dia sirvam para fornecer as vibrações, a máquina hermética se nutre de carne fresca.

Igreja de Saint-Merri. Em frente, uma Librairie la Vouivre, em sua quase totalidade ocultista. Não devo deixar-me tomar pela histeria. Sigo pela rue des Lombards, talvez para evitar uma fileira de rapazes escandinavos que saem às risadas de uma taverna ainda aberta. Silêncio, não sabem que Lorenza também morreu?

Mas estará mesmo morta? E se o morto fosse eu? Rue des Lombards: dela se ramifica perpendicular a rue Flamel, e ao fundo desta se descortina, branca, a Tour Saint-Jacques. No cruzamento, uma livraria Arcane 22, tarôs e pêndulos. Nicolas Flamel, alquimista, uma livraria alquímica, e a Tour Saint-Jacques: com aqueles grandes leões brancos na base, esta inútil torre gótica tardia às margens do Sena, cujo nome já serviu até para uma revista esotérica, a torre onde Pascal havia realizado experiências sobre o peso do ar e parece que ainda hoje, a 52 metros de altura, existe uma estação de pesquisas climatológicas. Talvez tivessem começado ali, antes de se erigir a Torre Eiffel. Há zonas privilegiadas. E ninguém dá por isso.

Volto em direção a Saint-Merri. Outras risadas de jovens. Não quero ver gente, giro em volta da igreja, pela rue du Cloitre Saint-Merri - uma porta do transepto, velha, de madeira bruta. À esquerda abre-se uma praça, confim extremo do Beaubourg, iluminada profusamente. No espaço as máquinas de Tinguely e outros artefatos multicores que flutuam sobre a água de uma piscina ou laguinho artificial, num suspeito deslocamento de rodas dentadas, e ao fundo encontro novamente os andaimes de tubos de ferro e as grandes bocas hiantes do Beaubourg - como um Titanic abandonado contra uma parede comida pela hera, náufrago numa das crateras da Lua. Onde as grandes catedrais não prevaleceram, as grandes escotilhas oceânicas cochicham em contato com as Virgens Negras. Só o descobre quem sabe circunavegar Saint-Merri. E, portanto preciso continuar, tenho uma pista, estou pondo a nu uma das tramas d’Eles, no próprio centro da Cidade Luz, a trama dos Obscuros.

Tomo pela rue des Juges Consules, e me vejo novamente diante da fachada de Saint-Merri. Não sei por que, mas algo me leva a acender a lanterna e a assestar a luz contra o portal. Gótico floreado, arcos em colchete.

E de repente, procurando aquilo que não esperava encontrar, na arquivolta do portal o vejo.

Bafomé. Exatamente onde os semi-arcos se conjugam, enquanto no ápice do primeiro está uma pomba do espírito santo com um esplendor em raios de pedra, no segundo, cercado por anjos suplicantes, ele, o Bafomé, com suas asas tremendas. Na fachada de uma igreja. Sem pudor.

Por que ali? Porque estamos muito próximos do Templo. Onde está o Templo, ou o que terá restado dele? Retorno para trás, subo em direção nordeste, e me vejo na esquina da rue de Montrnorency. No número 51, a casa de Nicolas Flamel. Entre Bafomé e o Templo. O sagaz espagirico sabia bem com quem devia acertar as contas. Lixeiras repletas de imundícies, diante de uma casa de época imprecisa, Taverne Nicolas Flamel. A casa é velha, foi restaurada com finalidades turísticas, por diabólicos de ínfima categoria, Hílicos. Junto há um bar americano com um cartaz publicitário da Apple: "secouez-vous les puces" (as pulgas são os bugs, os vírus dos erros de programas de computador). Soft-Hermes. Dir Temurah.

Agora estou na rue du Temple, percorro-a e chego à esquina com a rue de Bretagne onde fica o square du Temple, um jardim Lívido como um cemitério, a necrópole dos cavaleiros sacrificados.

Rue de Bretagne até o cruzamento com a rue Vieille du Temple. Rue Vieille du Temple depois do cruzamento com a rue Barbette onde há lojas estranhas de lâmpadas elétricas bizarras, em forma de ganso, de folha de hera. Muito ostensivamente modernas. Não nos enganemos.

Rue des Francs-Bourgeois: estou no Marais, conheço bem, em breve aparecerão os velhos açougues kosher, que têm a ver os judeus com os Templários, depois que decidimos que o lugar deles no Plano competia aos Assassinos de Alamut? Por que estão aqui? Procuro uma resposta? Não, talvez queira apenas afastar-me do Conservatoire. Ou antes me dirijo confusamente para um Lugar, sei que não pode ser aqui, mas procuro apenas lembrar-me de onde seja, como Belbo, que buscava em sonho um endereço esquecido.

Encontro um grupo obsceno. Riem mal, caminham de maneira desconjuntada obrigando-me a descer da calçada. Por um momento temo que sejam enviados do Velho da Montanha, e que estejam à minha procura. Não é verdade, desaparecem na noite, mas falam uma língua estrangeira, que sibila xiita, talmúdica, copta como uma serpente do deserto.

Vêm ao meu encontro figuras andróginas envoltas em capas compridas. Capas Rosa-Cruzes. Ultrapassam-me, entram pela rue de Sévigné. Agora já é noite alta. Fugi do Conservatoire para encontrar a cidade de todos, e percebo que a cidade de todos é concebida como uma catacumba de percursos preferenciais para os iniciados.

Um bêbedo. Talvez finja. Desconfiar, desconfiar sempre. Passo por um bar ainda aberto, os garçons com aventais compridos até os joelhos já estão juntando mesas e cadeiras. Consigo ainda entrar e me servem uma cerveja. Bebo-a de um gole e peço outra. "Que sede, hem?" diz um deles. Mas sem cordialidade, com suspeita. Claro, tenho sede, desde as cinco da tarde não bebo, mas pode-se ter sede mesmo sem ter passado a noite sob um pêndulo. Imbecis. Pago e vou-me embora, antes que possam imprimir meus traços na memória.

E estou na esquina da place des Vosges. Percorro as arcadas. Qual era mesmo aquele velho filme em que ressoavam os passos solitários de Mathias, o apunhalador demente, de noite, na place des Vosges? Detenho-me. Ouço passos atrás de mim? Claro que não, eles também se detiveram. Bastariam algumas redomas, e estes pórticos se transformariam em salas do Conservatoire.

Tetos baixos do século XVI, arcos plenos, galerias de estampas e antiquários, móveis. Place des Vosges, tão baixa com os portões velhos e canelados e tortos e carcomidos, onde vive gente que não sai dali há centenas de anos. Homens de opas amarelas. Uma praça habitada só por taxidermistas. Saem somente à noite. Conhecem a vigia, o sumidouro, pelo qual se penetra no Mundus Subterraneus. Sob os olhos de todos.

L’Union de Recouvrement des Cotisations de séCurité sociale et d’allocations familiales de la Patellerie número 75, ou 1. Porta nova, talvez ali estejam os ricos, mas logo depois há uma porta velha descascada como uma casa da via Sincero Renato, depois no número 3 uma porta refeita recentemente. Alternância de Hílicos e Pneumáticos. Os Senhores e seus escravos. Aqui onde estão estas vigas encravadas deve ter existido um arco. É evidente, aqui houve uma livraria ocultista e já não há. Um bloco inteiro esvaziado. Esvaziado numa noite. Como Agliè. Agora sabem que alguém sabe, começam a entrar na clandestinidade.

Estou na esquina da rue de Birague. Vejo a teoria dos pórticos infinitos sem vivalma, preferiria que estivesse escuro, mas há a luz amarelada das lâmpadas. Poderia gritar que ninguém me escutaria. Silenciosos, por trás daquelas janelas fechadas das quais não filtra um fio de Luz, os taxidermistas escarneceriam com suas balandranas amarelas.

Contudo não, entre os pórticos e o jardim central há automóveis estacionados e algumas raras sombras que passam. Mas isto não torna o convívio mais afável. Um grande pastor alemão atravessa a rua à minha frente. Um cão negro e solitário à noite. Onde está Fausto? Talvez mande o fiel Wagner passear o cão?

Wagner. Eis a idéia que estava me revolteando pela cabeça sem aflorar à tona. O Dr. Wagner, é ele que quero. Poderá dizer-me se deliro, a que fantasmas emprestei substância. Poderá dizer-me que nada é verdade, que Belbo está vivo e o Tres não existe. Que alívio se eu estivesse doente.

Abandono a praça quase a correr. Sou seguido por um carro. Não, talvez esteja só querendo estacionar. Tropeço em sacos plásticos de lixo. O carro estaciona. Não era a mim que queria. Estou na rue St. Antoine. Procuro um táxi. Como por evocação, ele aparece.

Grito-lhe:"Sept, avenue Elisée Reclus."

 

Je voudrais être la tour, pendre à la Tour Eiffel.

(Blaise Cendrars)

 

Não sabia onde era, não ousava perguntar ao motorista, pois quem toma um táxi àquela hora é que quer ir para casa, senão deve ser no mínimo um assassino, e além do mais ele já começou reclamando que o centro ainda estava cheio daqueles malditos estudantes. ônibus estacionados por todos os lados, uma bagunça, se dependesse dele fuzilava todos, e por isso tinha que dar uma grande volta. Completava praticamente todo o périplo de Paris quando me deixou no número sete de uma rua solitária.

Ali não morava nenhum Dr. Wagner. Seria então no dezessete? Ou vinte e sete? Fiz duas ou três tentativas, depois caí em mim. Mesmo ce tivesse identificado o portão, iria por acaso tirar o Dr. Wagner da cama àquela hora da noite para lhe contar a minha história? Havia chegado ali pelas mesmas razões que fora da Porte St-Martin à place des Vosges. Fugia. E agora fugia do lugar para o qual havia fugido ao fugir do Conservatoire. Não estava precisando de um psicanalista, mas de uma camisa-de-força. Ou de sonoterapia. Ou de Lia. Para me tomar a cabeça e apertá-la forte contra o seio e a axila dizendo-me para ficar bonzinho.

Estava procurando o Dr. Wagner ou a avenue Elisée Reclus? Porque agora me recordava de que tinha encontrado aquele nome no curso de minhas leituras para o Plano, era alguém do século passado que havia escrito não me recordo que livro sobre a terra, o subsolo, os vulcões, alguém que sob o pretexto de fazer geografia acadêmica estava metendo o nariz no Mundus Subterraneus. Um daqueles. Eu fugia deles, e os encontrava sempre à minha volta. Pouco a pouco no correr de alguns séculos teriam ocupado esta Paris inteira. E o resto do mundo.

Devia voltar ao hotel. Conseguiria encontrar um outro táxi? Pelo que pude depreender, devia estar em pleno subúrbio. Encaminhei-me em direção do lugar de onde provinha uma luz mais clara e difusa e se entrevia o céu aberto. O Sena?

E chegando à esquina a vi.

Á minha esquerda. Devia suspeitar que estava ali, emboscada nas vizinhanças, naquela cidade o nome das ruas traçava uma mensagem inequívoca, estava-se sempre de sobreaviso, pior para mim que não pensara nisso.

Lá estava, a imunda aranha mineral, o símbolo, o instrumento do poder deles: deveria fugir dela mas em vez disso me sentia atraído para a teia, movendo a cabeça de baixo para o alto e vice-versa, porquanto agora já não podia abarcá-la com um só olhar, estava praticamente dentro, apunhalado pelas suas mil quinas, bombardeado pelas empenas que desciam de toda parte, bastava mover-se para me esmagar facilmente com uma de suas patas de autômato.

A Torre. Do único lugar da cidade em que não era vista de longe, de perfil, a debruçar-se amigável sobre o oceano de telhados, frívola como num quadro de Dufy. Estava acima de mim, planava no alto. Eu lhe adivinhava a ponta, mas me movia primeiro em torno e depois dentro do embasamento, limitado entre um pé e outro, discernia as curvaturas, o ventre, as partes pudendas, imaginava-lhe o vertiginoso intestino, unificado com o esôfago daquele seu pescoço de girafa politécnica. Perfurada, tinha o poder de obscurecer a luz que havia em torno, e à medida que me movia ela me ofertava de perspectivas distintas, diversos fórnices cavernosos que enquadravam movimentos de zooms sobre a treva.

Agora à sua direita, ainda baixa no horizonte, para os lados do nordeste, havia saído uma foice de Lua. As vezes a torre a emoldurava como se fosse uma ilusão de óptica, uma fluorescência projetada numa de suas telas retorcidas, mas bastava mover-me, as telas mudavam de formato, a Lua já não estava lá, tinha ido emaranhar-se entre algumas costelas metálicas, o animal a havia triturado, digerido, feito com que desaparecesse em outra dimensão.

Tesseract. Cubo tetradimensional. Agora via através de uma arcada uma luz móvel, ou mesmo duas, vermelho e branco, que lampejavam, certamente um avião demandando Roissy, ou Orly, sei lá. Mas de súbito - deslocara-me eu, o avião, ou a Torre - as luzes desapareciam por trás de uma nervura, esperava vê-las reaparecer na quadratura seguinte, e não as via mais. A Torre tinha cem janelas, todas móveis, e cada qual dava para um segmento diverso do espaço-tempo. Suas costelas não traçavam dobras euclidianas, rasgavam o tecido do cosmo, emborcavam catástrofes, desfolhavam páginas de mundos paralelos.

Quem tinha dito que aquela agulha de Notre Dame de la Brocante servia para "suspendre Paris au plafond de l’univers”? Ao contrário, servia para suspender o universo na própria agulha - é natural, não é o Ersatz do Pêndulo? Como a haviam chamado? Supositório solitário, obelisco vazio, glória do arame, apoteose do pilar, altar aéreo de um culto idolátrico, abelha no coração da rosa-dos-ventos, triste como uma ruína, colosso abjeto cor de noite, símbolo disforme da força inútil, prodígio absurdo, insensata pirâmide, guitarra, tinteiro, telescópio, prolixa como um discurso de ministro, deus antigo e besta moderna... Era isto e muito mais, e se eu possuísse o sexto sentido dos Senhores do Mundo, agora que estava prisioneiro de seu feixe de cordas vocais incrustadas de pólipos de arrebites, haveria de ouvi-la sussurrar a rouca música das esferas, ela que estava naquele momento sugando ondas do coração da Terra oca para retransmiti-las a todos os menires do mundo. Rizoma de articulações cravadas, artroses cervicais, próteses de uma prótese - que horror, ali onde me encontro, para me despedaçar no abismo teria que me precipitar para o alto. Estava certamente saindo de uma viagem através do centro da Terra, estava na vertigem antigravitacional dos antípodas.

Não era fantasia minha, eis que agora me surgia a prova incumbente do Plano, mas em breve se daria conta de que eu era o espião, o inimigo, o grão de poeira na engrenagem da qual ela era a imagem e o motor, dilataria insensivelmente um losango daquele seu rendilhado plúmbeo e me teria engolido, e eu desapareceria numa prega de seu nada, transferido para o Além.

Se permanecesse ainda um pouco sob o seu rendilhado, seus grandes artelhos se teriam fechado, ter-se-iam curvado como presas, me teriam sugado, e depois o animal retomaria sua posição soturna de criminoso e sinistro apontador de lápis.

Outro avião: esse não vinha de parte alguma, ela o havia gerado entre uma e outra de suas vértebras de mastodonte descarnado. Eu a contemplava, sem fim, como o projeto para o qual ela havia nascido. Se conseguisse ficar ali sem ser devorado teria podido acompanhar seus afastamentos, suas lentas revoluções, seu descompor-se e recompor-se infinitesimal sob a brisa fria das correntes, talvez os Senhores do Mundo a soubessem interpretar como um traçado geomântico, e nas suas imperceptíveis metamorfoses teriam lido sinais decisivos, mandados inconfessáveis. A Torre girava por cima de minha cabeça, chave de parafuso do Pólo Místico. Ou talvez não, estava imóvel como um perno magnetizado, e fazia revoltear a abóbada celeste. A vertigem era a mesma.

Como se defende bem a Torre, dizia comigo, de longe pisca afetuosa, mas se te aproximas, se procuras penetrar o seu mistério, ela te mata, gela teus ossos, simplesmente ostentando o terror insensato de que é feita. Agora sei que Belbo morreu e que o Plano é real, porque real é a Torre. Se não consigo fugir, fugir mais uma vez, não poderei dizê-lo a ninguém. E preciso dar o alarme.

Rumor. Alto, estamos de volta à realidade. Um táxi que avançava a grande velocidade. Consegui com um salto fugir do cinturão mágico, fiz-lhe ostensivos sinais, quase arriscando ser atropelado, porque o motorista só freou no último segundo, como se parasse de má vontade - no percurso me haveria de dizer que a ele também, quando passa por ali de noite, a Torre causa medo, e acelera. "Por quê?" perguntei-lhe. "Parce que..., parce que ça fait peur, c’est tout."

Cheguei rápido ao hotel. Tive que tocar a campainha durante algum tempo para despertar o porteiro sonolento. Disse comigo: preciso dormir, agora. O resto fica para amanhã. Tomei uns comprimidos, o bastante para envenenar-me. Depois não me recordo mais.

 

Tem a loucura um grande pavilhão.

Recolhe gente de qualquer rincão,

Desde que tenha bens e posição.

(Sebastian Brant, Das Narrenschiff, 46)

 

Despertei às duas da tarde, estonteado e catatônico. Recordava exatamente tudo, mas não tinha a menor garantia de que fosse real tudo quanto recordava. A princípio pensei correr imediatamente lá embaixo para comprar os jornais, depois achei que em todo caso, mesmo se uma companhia de spahi tivesse penetrado no Conservatoire logo depois do evento, a notícia não teria tido tempo de aparecer nos jornais da manhã.

Depois Paris naquele dia tinha mais em que pensar. O porteiro foi logo me contando, assim que desci à procura de um café. A cidade estava em alvoroço, muitas estações de metrô estavam fechadas, em alguns lugares a polícia disparava, os estudantes eram em grande numero e estavam exagerando.

Encontrei numa lista telefônica o número do Dr. Wagner. Cheguei mesmo a telefonar, mas era óbvio que no domingo não estivesse no consultório. Queria de qualquer maneira dar uma espreitada no Conservatoire, Lembrava-me que abria também aos domingos à tarde.

 

O Quartier Latin estava agitado. Passavam grupos vociferantes com bandeiras. Na Ile de la Cité vi uma barreira da polícia. Ao fundo ouviam-se disparos. Devia ter sido assim em sessenta e oito. À altura da Sainte Chapelle tinha havido uma agitação, sentia-se o cheiro do lacrimogênio. Ouvi uma rajada de tiros, não sei se eram os policiais ou os estudantes, as pessoas junto a mim corriam, refugiamo-nos todos atrás de umas grades, com um cordão de policiais defronte, enquanto na rua havia confusão. Que vergonha, eu agora com os burgueses idosos, a esperar que a revolução se acalmasse.

Depois encontrei o caminho livre, passando por ruas secundárias em frente ao velho mercado, e cheguei à rue St-Martin. O Conservatoire estava aberto, com seu pátio branco, a placa na fachada: "O Conçervatoire des Arts et Métiers instituído por decreto da convenção de 19 vendemiário do ano III..., no antigo priorado de Saint-Martin-des-Champs fundado no século XI." Tudo normal, com uma pequena multidão dominical, insensível à quermesse estudantil.

Havia entrado - grátis aos domingos - e tudo estava como no dia anterior antes das cinco. Os guardiães, os visitantes, o Pêndulo em seu lugar de costume... Buscava os traços do quanto havia ali acontecido, mas, se de fato aconteceu, alguém havia feito uma limpeza conscienciosa. Se de fato aconteceu.

 

Não me lembro de como passei o resto da tarde. Não me lembro sequer do que vi vadiando pelas ruas, obrigado de quando em vez a desviar o rumo para evitar a manifestação. Telefonei para Milão, só para experimentar. Por esconjuro disquei o número de Belbo. Depois o de Lorenza. Depois o da Garamond, que só podia estar fechada. No entanto, se esta noite ainda é hoje, tudo aconteceu ontem. Mas de ontem a esta noite transcorreu uma eternidade.

Já à tardinha dei-me conta de que estava em jejum. Queria tranqüilidade, e uma boa comida. Junto ao Forum des Halles entrei num restaurante que me prometia peixe. Até demais. A mesa estava bem defronte a um aquário. Um universo bastante irreal capaz de arremessar-me novamente num clima de suspeita absoluta. Nada é por acaso. Aquele peixe parece um hesicasta asmático que está perdendo a fé e acusa Deus de haver diminuído o sentido do universo. Sabaoth Sabaoth, como consegues ser tão maligno a ponto de me fazeres acreditar que não existes? Como um câncer, a carne se estende sobre o mundo... Aquele outro parece a Minnie, fica piscando os longos cílios e faz uma boquinha em coração. Minnie é a noiva de Mickey. Almoço uma salada louca com um haddock molengo como carne de bebê. Com mel e pimenta. Os paulicianos estão aqui. Aquele plana atrás dos corais como o aeroplano de Breguet - longas batidas de asas de lepidóptero, pareço alguém que fita embevecido o seu feto de homúnculo abandonado no fundo de um atanor agora esburacado, atirado no lixo em frente à casa de Flamel. E depois um peixe templar, todo lorigado de negro, busca Noffo Dei. Passa raspando ao hesicasta asmático, que navega absorto e irritado para o indizível. Volto a olhar, do outro lado da rua percebo a insígnia de um outro restaurante, CHEZ R... Rosa-Cruz? Reuchlin? Rosispergius? Rackovskyragotzitzarogi? Sinaturas, sinaturas.

Vejamos, a única maneira de causar constrangimento ao diabo é fazê-lo acreditar que não acreditamos nele. Não há muito o que raciocinar sobre a corrida noturna por Paris, e sobre a visão da Torre. Sair do Conservatoire, depois de se ter visto ou acreditado ver aquilo que se viu, e viver a cidade como um pesadelo é normal. Mas que foi que vi no Conservatoire?

Tinha necessidade absoluta de falar com o Dr. Wagner. Não sei por que havia metido na cabeça que aquilo era a panacéia, mas foi assim. Terapia da palavra.

Como consegui chegar até de manhã? Creio haver entrado num cinema em que levavam A Dama de Xangai, de Orson Welles. Quando chegou a cena dos espelhos, não agüentei mais e saí. Mas talvez não seja verdade, posso ter apenas imaginado.

Hoje de manhã telefonei às nove ao Dr. Wagner, o nome Garamond me permitiu ultrapassar a barreira da secretária, o doutor pareceu recordar-se de mim, e diante da urgência que lhe impunha me disse que fosse para lá imediatamente, às nove e meia, antes que chegassem os primeiros clientes. Pareceu-me gentil e compreensivo.

 

Talvez tenha sonhado até a visita ao Dr. Wagner. A secretária perguntou-me as generalidades de costume, preparou uma ficha, fez-me pagar a consulta. Por sorte já tinha a passagem de volta.

Um consultório de dimensões reduzidas, sem o clássico divã. Janelas para o Sena, à esquerda a sombra da Torre. O Dr. Wagner ouviu-me com afabilidade profissional - no fundo era justo, não estava mais frente a um de seus editores, mas a um de seus clientes. Com um gesto amplo e pacato convidou-me a sentar diante dele, do outro lado da mesa, como um empregado de ministério. "Et alors?" Assim dizendo, imprimiu um impulso à poltrona giratória, ficando de costas para mim. Estava de cabeça baixa, e me pareceu que tivesse as mãos postas.

Não me competia senão falar.

E falei, como uma catarata, botei tudo para fora, do princípio ao fim, o que pensava há dois anos passados, o que pensava no ano anterior, aquilo que pensava que Belbo tivesse pensado, e Diotallevi. E principalmente o que havia acontecido na noite de São João.

Wagner não me interrompeu uma só vez, não anuiu jamais nem mostrou desaprovação. Pelo que sei, podia ter até mergulhado no sono. Mas devia ser a sua técnica. E eu falando. Terapia da palavra.

Depois esperei palavras, suas, que me salvassem.

Wagner ergueu-se, com extrema lentidão. Sem se voltar em minha direção deu uma volta em torno da escrivaninha e chegou até a janela. Agora olhava através dos vidros, as mãos cruzadas por trás das costas, absorto.

Em silêncio, por cerca de dez, quinze minutos.

Depois, sempre de costas para mim, com voz incolor, calma, tranqüilizadora: "Monsieur, vous êtes fou."

Ele permaneceu imóvel, eu também. Depois de outros cinco minutos, compreendi que não havia mais o que dizer. Fim da sessão.

Saí sem me despedir. A secretária abriu-me um amplo sorriso, e me achei na avenue Elisée Reclus.

Eram onze horas. Apanhei minhas coisas no hotel e me precipitei para o aeroporto, confiando na sorte. Tive que esperar duas horas, e enquanto esperava telefonei para a Garamond, a cobrar, porque não tinha mais dinheiro. Atendeu Gudrun, parecia apatetada mais que de costume, tive de lhe gritar três vezes para que dissesse sim, oui, yes, que aceitava a chamada a cobrar.

Chorava: Diotallevi havia morrido sábado à meia-noite.

"E ninguém, nenhum de seus amigos no enterro, hoje de manhã, que vergonha! Nem mesmo o Sr. Garamond, que dizem estar de viagem no exterior. Só eu, a Grazia, Luciano e um senhor todo de preto, barba, suíças em caracol e um chapelão que parecia um papa-defuntos.

Sabe Deus de onde vinha. Mas onde estava, Sr. Casaubon? E onde está Belbo? Que está acontecendo?"

Murmurei explicações confusas e desliguei o telefone. Chamaram meu vôo, e entrei no avião.

 

JESOD

A teoria social da conspiração... é uma conseqüência da falta de referência a Deus, e da conseqüente pergunta: "Quem está em seu lugar?"

(KarI Popper, Conjectures and Refutations, London, Routledge, 1969, I, 4)

 

A viagem me fez bem. Não só havia deixado Paris, mas tinha deixado o subsolo, na verdade até mesmo o solo, a crosta terrestre. Céu e montanhas ainda brancas de neve. A solidão a dez mil metros de altura, e aquela sensação de embriaguez que o vôo sempre dá, a pressurização, a travessia de uma leve turbulência. Pensava que só lá em cima é que estava voltando a ter os pés em terra. E decidi fazer um balanço das coisas, primeiramente arrolando os fatos em minha agenda, depois deixando-me seguir, de olhos fechados.

 

Resolvi anotar antes de tudo as evidências inconfundíveis.

Não restava dúvida de que Diotallevi havia morrido. Gudrun me tinha dito. Gudrun sempre permaneceu fora de nossa história, não seria capaz de entendê-la, e portanto acabou sendo a única pessoa a dizer a verdade. Depois era também certo que Garamond não estava em Milão. É verdade que poderia estar em qualquer outra parte, mas o fato de que ali não estava e não esteve nos últimos dias passados deixava crer que estivesse em Paris, onde o vi.

Da mesma forma, Belbo não estava.

Ora, vamos admitir que o que vi sábado à noite em Saint-Martin-des-Champs tenha de fato acontecido. Talvez não como o tenha visto, dopado pela música e os incensos, mas alguma coisa terá acontecido. É como a história de Amparo. Ao voltar para casa não estava certa de ter sido possuída pela Pomba Gira, mas sabia certamente que estivera naquela tenda de umbanda, e acreditava que - ou se havia comportado como se - a Pomba Gira a tivesse possuído.

Finalmente, aquilo que Lia me disse na montanha era verdade, sua leitura era absolutamente convincente, a mensagem de Provins não passava de um rol de roupa. Jamais tinha havido reuniões de Templários na Grange-aux-Dimes. Não havia Plano nem mensagem alguns.

O rol de roupa tinha sido para nós um jogo de palavras cruzadas com casas ainda vazias, mas sem as definições. Logo é preciso preencher as casas de modo que tudo se encaixe devidamente. Mas talvez o exemplo seja impreciso. Nas palavras cruzadas cruzam-se palavras e as palavras devem cruzar-se numa letra comum. No nosso jogo não cruzávamos palavras, mas conceitos e fatos, e portanto as regras eram diversas, e eram fundamentalmente três.

Primeira regra, os conceitos se ligam por analogia. Não há regras para se decidir de início se uma analogia é boa ou má, porque qualquer coisa é semelhante a qualquer outra sob certo grau de relacionamento. Exemplo. Batata se cruza com maçã, porque ambas são vegetais e arrendondadas. De maçã vai-se a serpente, por conexão bíblica. De serpente a rosca, por similitude formal, de rosca a salva-vidas e daí a roupa de banho, de banho a carta náutica, de carta náutica a papel higiênico, de higiene ao álcool, do álcool à droga, da droga à seringa, da seringa ao buraco, do buraco ao terreno, do terreno à batata.

Perfeito. A segunda regra diz de fato que, se ao fim tout se tient, o jogo é válido. De batata a batata, tout se tient. Logo é certo.

Terceira regra: as conexões não devem ser inéditas, no sentido de que já devam ter sido usadas pelo menos uma vez, melhor ainda se várias por outros. Somente assim os cruzamentos parecem verdadeiros, por serem óbvios.

Que era pois a idéia do Sr. Garamond: os livros dos diabólicos não devem inovar, devem repetir o que já foi dito, senão onde irá acabar a força da Tradição?

Foi assim que fizemos. Não inventamos nada, salvo a disposição das peças. Assim havia feito Ardenti, não tinha inventado nada, simplesmente havia disposto as peças de maneira tacanha, por ser menos culto do que nós, e não ter as peças todas.

Eles tinham as peças, mas não o esquema da palavra cruzada. E além disso - mais uma vez - éramos mais brilhantes do que eles.

Lembrava-me de uma frase que Lia me dissera na montanha, quando me reprovava por ter feito um jogo baixo: "As pessoas têm fome de planos, se você lhes oferece um caem em cima como uma alcatéia de lobos. Basta inventar que crêem. Não é necessário aparentá-lo mais imaginário do que de fato é."

No fundo acontece sempre assim. Um jovem Eróstrato se amargura por não saber como ficar famoso. Aí vê um filme em que um rapaz franzino dispara contra a rainha da country music e se torna o acontecimento do dia. Encontrou a fórmula, sai dali, vai e mata John Lennon.

É o mesmo para os AEPs. Que faço para me tornar um poeta publicado que acaba nas enciclopédias? E Garamond explica: simples, basta pagar. O AEP nunca havia pensado nisso antes, mas visto que existe o plano da Manuzio, identifica-se com ele. O AEP está convencido de que esperava pela Manuzio desde a infância, só não sabia que ela existia.

Conseqüência, Inventamos um Plano inexistente e Eles não só o tomaram por bom, como também se convenceram de que estavam nele desde muito, ou seja identificáramos fragmentos de seus projetos desordenados e confusos como momentos do Plano, o nosso, preparado segundo uma irrefutável lógica da analogia, do indício, da suspeita.

Mas se inventando um plano os outros o realizam, o Plano é como se existisse, logo, passa a existir.

A partir desse momento turbas de diabólicos percorrerão o mundo à procura do mapa.

Havíamos oferecido um mapa a pessoas que procuravam vencer uma obscura frustração que tinham. Qual? A resposta tinha sido sugerida pelo último file de Belbo: não haveria falha se de fato tivesse havido um Plano. Derrota, mas não por culpa tua. Sucumbir diante de uma conspiração cósmica não é vergonha. Não és covarde, és mártir.

Não te lamentes de seres mortal, presa de mil microrganismos que não dominas, não és responsável pelos teus pés pouco preênseis, pelo desaparecimento da cauda, dos cabelos e dos dentes que não voltam a crescer, dos neurônios que semeias de passagem, das veias que se endurecem. São os Anjos Invejosos.

E o mesmo vale para a vida de todo dia. Como as quedas da bolsa. Ocorrem porque alguém executa um movimento falho qualquer, e todos os movimentos falhados criam juntos o pânico. Aí quem não tem os nervos bons pergunta: mas quem foi que arquitetou esta conspiração, a quem aproveita? E aí! Se não encontras um inimigo que tenha conspirado, sentirias a culpa. Ou antes, como te sentes culpado, inventas uma conspiração, ou mesmo várias. E, para vencê-las, deves organizar o teu complô.

E quanto mais inventivos os complôs alheios, para justificar tua incompreensão, tanto mais te enamoras deles, e concebes o teu à medida daqueles. Que foi o que aconteceu quando entre jesuítas e baconianos, paulicianos e neotemplários, cada um exprobrava o plano do outro. Diotallevi havia advertido então: "Certo, atribuis a outro aquilo que estás fazendo, e como estás fazendo uma coisa odiosa os outros se tornam odiosos. Mas como os outros no entanto gostariam, em geral, de fazer precisamente aquela coisa odiosa que estás fazendo, colaboram contigo deixando crer que - sim - na realidade aquilo que lhes atribuis é o que sempre desejaram fazer. Deus cega aqueles que quer perder, basta ajudá-LO."

Um complô, se deve haver um complô, deve ser secreto. Devia haver um segredo que se o conhecêssemos não nos sentiríamos mais frustrados, porque ou o segredo levaria à salvação ou o conhecimento do segredo se identificaria com a salvação. Existe um segredo assim tão luminoso?

Certo, com a condição de não conhecê-lo nunca. Revelado, não poderia senão desiludir-nos. Não me havia falado Agliè da tensão para o mistério, que agitava a época dos Antoninos? E no entanto acabara de chegar alguém que se declarava filho de Deus, o filho de Deus que se faz carne, e redime os pecados do mundo. Era um mistério de pouca monta? E prometia a salvação a todos, bastava amar o seu próximo. Era um segredo de nada? E deixava como legado que quem pronunciasse as palavras justas no momento exato poderia transformar um pedaço de pão e meio copo de vinho na carne e no sangue do filho de Deus, e com eles nutrir-se. Era um enigma de se jogar fora?

E induzia os Padres da Igreja a conjecturar, e depois a declarar, que Deus fosse Uno e Trino e que o Espírito procedia do Pai e do Filho, mas não o Filho do Pai e do Espírito. Era uma formulazinha para os Hílicos? No entanto aqueles, que tinham agora a salvação ao alcance da mão - do it yourself - nada. A revelação está toda aqui? Que banalidade: e toca a rodar histéricos com suas liburnas por todo o Mediterrâneo em busca de um outro saber perdido, do qual aquele dogma dos trinta denários fosse apenas o véu superficial, a parábola para os pobres de espírito, o hieróglifo alusivo, um piscar de olhos aos Pneumáticos. O mistério trinitário? Fácil demais, deve haver algo por trás disso.

Houve alguém, Rubinstein creio, que quando lhe perguntaram se acreditava em Deus respondia: "Oh não, creio..., em algo muito maior...” Mas havia também um outro (talvez Chesterton?) que dissera: quando os homens não crêem mais em Deus, não é que não crêem mais em nada, mas crêem em tudo.

Tudo não é um segredo muito grande. Não há segredos grandes demais, porquanto mal são revelados parecem pequenos. Um segredo que se esvazia. Um segredo que deflui. O segredo da planta orchis é que ela diz respeito e age sobre os testículos, mas os testículos estão aí para significar um signo zodiacal, este uma hierarquia angélica, esta uma gama musical, a gama uma relação entre humores, e assim por diante, e a iniciação consiste em aprender a não se parar nunca, descasca-se o universo como se fosse uma cebola, e como a cebola é toda casca, imaginemos uma cebola infinita, que tenha o centro em toda parte e a circunferência em lugar algum, feita para anel de Moebius.

O verdadeiro iniciado é aquele que sabe que o mais poderoso dos segredos é um segredo sem conteúdo, porque nenhum inimigo conseguirá fazê-lo confessar, nenhum fiel conseguirá subtraí-lo.

Agora me parecia mais lógica, conseqüente, a dinâmica do rito noturno, diante do Pêndulo. Belbo havia sustentado possuir um segredo, e por isso havia adquirido poder sobre Eles. O impulso imediato, até mesmo o de um homem prudente como Agliè, que logo bateu o tantã para convocar os demais, era o de arrancá-lo de Belbo. E quanto mais este se recusava a revelá-lo, tanto maior imaginavam que fosse o segredo, e quanto mais jurava não possuí-lo, tanto mais ficavam convencidos de que o possuía e de que era um segredo verdadeiro, porquanto se fosse falso já o teria revelado.

Por séculos a procura desse segredo era o cimento que os mantinha unidos, para além das excomunhões, das lutas intestinas, dos ataques de surpresa. Agora estavam prestes a conhecê-lo. E foram assaltados por dois temores: que o segredo fosse decepcionante, e que - tornando-se conhecido de todos - não remanescesse mais nenhum segredo. Teria sido o fim deles.

Foi nesse ponto que Agliè intuiu que, se Belbo tivesse falado, todos teriam sabido, e ele, Agliè, teria perdido a aura imprecisa que lhe conferia carisma e poder. Se Belbo o confiasse a ele apenas, Agliè continuaria a ser São Germano, o imortal - a dilação de sua morte coincidia com a dilação do segredo. Tentou induzir Belbo a falar-lhe ao ouvido, e quando compreendeu que isso não seria possível provocou-o não só preconizando a sua rendição, mas ainda mais dando-lhe o espetáculo de sua fatuidade. Oh, conhecia-o bem, o velho conde, sabia que a gente daquelas bandas é marcada pela teimosia e o senso de ridículo até mesmo sob o medo. Obrigou-o a erguer o tom do desafio e a dizer não de modo categórico.

E os outros, pelo mesmo temor, preferiram matá-lo. Perdiam o mapa - teriam séculos para buscá-lo ainda - mas salvavam o frescor de seu decrépito e baboso desejo.

 

Lembrava-me de uma história que me havia contado Amparo. Antes de vir para a Itália, tinha passado alguns meses em Nova York, e fora morar num daqueles bairros da pesada, onde transcorrem a maioria dos telefilmes de ação policial. Voltava para casa sozinha, às duas da manhã. E quando lhe perguntei se não tinha medo dos maníacos sexuais, ela me revelou seu método. Mal o maníaco se aproximava e começava a agir como tal, ela o tomava pelo braço e dizia: "Oba, então vamos para a cama." O sujeito fugia, confuso.

Se és um maníaco sexual, não queres o sexo, só queres desejá-lo, no máximo roubá-lo, possivelmente sem a aquiescência ou o conhecimento da vítima. Se te põem diante do sexo e dizem Aqui e Agora, é natural que fujas, senão que raio de maníaco serias.

E ficamos a excitar-lhes a vontade, a oferecer-lhes um segredo que mais vazio não podia ser, porque nem mesmo nós o conhecíamos, mas que ainda por cima sabíamos ser falso.

O avião sobrevoava o monte Branco e os passageiros passaram todos para o mesmo lado para não perderem a revelação daquele obtuso bubão crescido por distonia das correntes subterrâneas. Eu pensava que, se o que estava pensando era certo, talvez agora as correntes não existissem, tanto como não existiu a mensagem de Provins, mas a história da decifração do Plano, assim como a havíamos reconstruído, outra coisa não era senão a História.

 

Voltava na memória ao último file de Belbo. Mas então, se o ser é assim vazio e frágil a ponto de suster-se apenas sobre a ilusão daqueles que buscam o seu segredo, na verdade - como dizia Amparo aquela noite na tenda, após sua derrota - então não há redenção, somos todos escravos, dai-nos um patrão, que o merecemos...

Não é possível. Não é possível porque Lia me ensinou que há outra coisa, e tenho a prova disso, chama-se Giulio e neste momento está brincando num vale, e puxa uma cabra pelo rabo. Não é possível porque Belbo disse duas vezes não.

 

O primeiro não disse-o ao Abulafia, e a quem tentasse violar seu segredo. "Tens a senha?" era a pergunta. E a resposta, a chave do saber, era "não". Há nisso algo de verdadeiro, e não é apenas saber que a palavra mágica não existe, mas que tampouco a sabemos. Mas quem saiba admiti-lo pode saber algo, pelo menos o quanto pude saber.

O segundo não disse-o sábado à noite, recusando a salvação que lhe era oferecida. Podia ter inventado um mapa qualquer, citar um daqueles que eu lhe havia mostrado, que, com o Pêndulo apenso daquela maneira, aquele bando de insensatos jamais teria identificado o Umbilicus Mundi, e se acaso o houvessem, teriam perdido outros decênios em compreender que não era aquele. Em vez disso, não quis render-se, preferiu a morte.

Não é que não quisesse curvar-se à lascívia do poder, não quis curvar-se à sua falta de sentido. E isto quer dizer que sabia de qualquer maneira que, por frágil que seja o nosso ser, por infinita e sem escopo que seja nossa interrogação do mundo, há algo que tem mais sentido que o resto.

Que teria intuído Belbo, talvez apenas naquele momento, que lhe permitiu contradizer seu último file desesperado, e não delegar seu destino a quem lhe garantia um Plano qualquer? Que havia compreendido - finalmente - capaz de lhe permitir jogar a vida, como se tudo quanto devesse saber já tivesse descoberto há muito, sem se dar conta senão agora, e como se diante desse seu único, verdadeiro e absoluto segredo, tudo quanto acontecia no Conservatoire, fosse irremediavelmente estúpido - e estúpido àquela altura fosse o obstinar-se em viver?

Faltava-me algo, um elo da cadeia. Parecia-me conhecer agora todas as gestas de Belbo, da vida à morte, menos uma.

 

Na chegada, enquanto procurava o passaporte, encontrei no bolso a chave desta casa. Eu a havia apanhado quinta-feira passada junto com a do apartamento de Belbo. Lembrei-me daquele dia em que Belbo nos mostrou o velho armário que continha, dizia, sua opera omnia, ou antes, a sua juvenilia. Talvez Belbo tivesse escrito algo que não se podia encontrar no Abulafia, e esse algo estava sepulto certamente aqui em***.

Nada havia de racional na minha conjectura. Uma boa razão - disse - para achá-la boa. Enfim.

Fui à procura de meu carro, e vim para cá.

 

Não encontrei nem mesmo a velha parenta dos Canepa, ou zeladora que fosse, que vimos daquela vez. Talvez tivesse morrido também ela no entretempo. Aqui não há ninguém. Atravessei as várias salas, há cheiro de mofo, pensei talvez acender o braseirinho em um dos quartos. Mas não tem sentido aquecer a cama no verão, mal se abrem as janelas entra o ar tépido da noite.

Mas a Lua não veio com o crepúsculo. Como em Paris sábado à noite. Só foi sair muito mais tarde, só agora vejo aquele pouco que lá está - menos que em Paris - a levantar-se lentamente acima das colinas mais baixas, num vale entre o Bricco e outra corcova amarela, talvez já toda ceifada.

Creio haver chegado aqui pelas seis da tarde, estava ainda claro. Não trouxe nada de comer, depois, correndo a casa, entrei na cozinha e encontrei um salame pendurado a uma trave. Jantei salame e água fresca, creio que aí pelas dez. Agora estou com sede, trouxe aqui para o escritório do tio Carlos uma garrafa de água, que emborco a cada dez minutos, depois desço, volto a enchê-la, e recomeço. Devem ser três da manhã agora. Mas a luz está apagada e tenho dificuldade em enxergar o relógio. Reflito, olhando a janela. Há como uns pirilampos, umas estrelas cadentes nos flancos das colinas. Raros carros que passam, descendo para o vale, ou subindo para os vilarejos lá nos cocurutos. Quando Belbo era rapazinho não devia ver essas coisas. Não havia os carros, não havia aquelas estradas. à noite se fazia blecaute.

Abri o armário da juvenilia, mal aqui cheguei. Completamente atulhado de papel, que compreendia desde os cadernos de dever da escola primária aos cadernos de poesia e prosa dos tempos de adolescência. Todos escrevem poesia na mocidade, depois os verdadeiros poetas tratam de destruí-las e os maus poetas tratam de publicá-las. Belbo era demasiadamente alheado para salvá-las, indefeso demais para destruí-las. Sepultou-as no armário de tio Carlos.

Li durante algumas horas. E por outras longas horas, até este momento, meditei sobre o último texto que havia encontrado, quando estava quase para desistir.

Não sei quando Belbo o terá escrito. São folhas e mais folhas onde se entrelaçam nas entrelinhas caligrafias diversas, ou antes a mesma caligrafia em tempos diversos. Como se o houvesse escrito muito cedo, aos dezesseis ou dezessete anos, depois o tivesse encostado, e voltasse a ele mais tarde aos vinte, depois de novo aos trinta, e mesmo mais tarde. Até então não devia ter renunciado a escrever - para depois só recomeçar com o Abulafia, mas sem ousar recuperar estas linhas, submetendo-as à humilhação eletrônica.

Ao lê-las, parecem contar uma história bem conhecida, os acontecimentos de*** entre 1943 e 1945, tio Carlos, os partigiani, o oratório, Cecilia, a corneta. Conheço o prólogo, eram os temas obsessivos do Belbo sensível, ébrio desiludido e dolente. A literatura de memórias, também ele o sabia, era o último refúgio da canalha.

Mas eu não sou um crítico literário, sou mais uma vez Sam Spade, em busca da última pista.

E foi assim que encontrei o Texto-Chave. Representa provavelmente o último capítulo da história de Belbo em***. Depois, não pode ter acontecido mais nada.

 

Quando a guirlanda que rodeava a corneta começou a arder, vi abrir-se um buraco do teto e uma língua de fogo projetar-se com toda a força da boca da corneta e penetrar nos cadáveres. Em seguida, o buraco foi novamente fechado e a corneta foi afastada.

(Johann Valentin Andreae, Die Chymische Hochzeit des Christian Rosencreutz, Strassburg, Zetzner, 1616, 6, pp. 125-126)

 

O texto contém lacunas, superposições, falhas, palavras biffées - vê-se mesmo que acabo de chegar de Paris. Mais do que relê-lo, revivo-o.

Devia ser aí pelos fins de abril de 1945. Os exércitos alemães já estavam agora em retirada, os fascistas se dispersando. Em todo caso*** estava agora, definitivamente, sob o controle dos partigiani.

Depois da última batalha, aquela que Jacopo nos havia contado exatamente nesta casa (há quase dois anos), várias brigadas partigiani combinaram reunir-se em***, para daí investirem contra a cidade. Esperavam apenas um sinal da Rádio Londres, deviam pôr-se em movimento quando Milão também estivesse pronta a insurgir-se.

Haviam chegado também componentes das formações garibaldinas, comandados por Ras, um gigante de barba negra, muito popular na região: estavam vestidos com uniformes de fantasia, cada um diferente do outro, com exceção dos lenços e da estrela no peito, que eram ambos vermelhos, e empunhavam armas ocasionais, um com um velho fuzil, outro com uma metralhadora apanhada do inimigo. Faziam contraste com as brigadas badoglianas, de lenço azul, uniforme cáqui semelhante ao inglês, e as novíssimas metralhadoras sten. Os aliados ajudavam os badoglianos com material generosamente lançado de pára-quedas à noite, quando passava, como agora fazia há dois anos, todas as noites às onze horas, o misterioso Espião, avião de reconhecimento inglês que ninguém sabia o que estava reconhecendo, já que não se viam luzes por quilômetros e quilômetros.

Havia tensões entre garibaldinos e badoglianos, diziam que na noite da batalha os badoglianos se haviam arremessado contra o inimigo gritando "Viva o rei", mas alguns deles afirmavam que era por força do hábito, que se há de gritar quando se parte para o assalto, isto não queria dizer que fossem necessariamente monárquicos e sabiam também eles que o rei tinha grandes culpas. Os garibaldinos criticavam, pode gritar viva o rei quem se lança a um assalto a baioneta em campo aberto, mas não escondendo-se numa esquina de rua com o sten na mão. É que estavam mesmo vendidos aos ingleses.

Contudo haviam chegado a um modus vivendi, todos queriam um comando unificado para o ataque à cidade, e a escolha recaiu em Terzi, que comandava a brigada melhor treinada, era o mais antigo veterano, tinha feito a grande guerra, um herói que desfrutava a confiança do comando aliado.

Nos dias seguintes, creio que com alguma antecedência à insurreição de Milão, partiram todos para conquistar a cidade. Haviam chegado boas notícias, a operação tivera êxito, as brigadas estavam regressando vitoriosas a***, mas tinha havido mortos, corria boato de que Ras morrera em combate e que Terzi estava ferido.

Aí uma tarde começaram a ouvir o ruído das viaturas, de cantos de vitória, a gente correra para a praça principal, da estrada estadual estavam chegando os primeiros contingentes, punhos erguidos, um agitar de armas das janelas dos carros ou da carroceria dos caminhões. Ao longo do caminho já haviam coberto os partigiani de flores.

De repente alguém gritou Ras Ras, e Ras lá estava, acachapado no pára-lama traseiro de um dodge, com a barba desgrenhada e os tufos de pêlos negros e suados que lhe saíam da camisa aberta ao peito, a saudar a multidão sorridente.

Junto com Ras havia descido do dodge também Rampini, um rapaz míope que tocava na banda, pouco mais velho que os outros, que desaparecera há três meses, diziam que para reunir-se aos partigiani. E de fato lá estava ele, com o lenço vermelho ao pescoço, o dólmã cáqui, umas calças azuis. Era o uniforme da banda de Dom Tico, mas usava agora um cinturão com o coldre e a pistola. Com seus óculos espessos que lhe valeram tantas ironias por parte de seus velhos colegas do oratório, olhava agora as garotas que se enxameavam em torno como se fosse Flash Gordon. Jacopo se perguntava se Cecilia estaria ali em meio à gente.

No espaço de meia hora a praça estava colorida de partigiani, a multidão gritava em voz alta Terzi, Terzi, e queria um discurso.

Numa varanda do prédio da prefeitura apareceu Terzi, apoiado em sua muleta, pálido, procurando com a mão acalmar a turha. Jacopo esperava o discurso, porque toda a sua infância, como a de todos os meninos de sua idade, havia sido marcada por grandes e históricos discursos do Duce, de que se recitavam de cor na escola as citações mais significativas, ou seja, se decorava tudo porquanto todas as frases eram citações significativas.

Obtido o silêncio, Terzi havia falado, com voz rouca, que se ouvia a custo. Disse apenas: "Cidadãos, amigos. Depois de tantos e penosos sacrifícios..., eis-nos aqui. Glória aos que tombaram pela liberdade.

E chega. Voltou para dentro.

Mas lá fora a multidão gritava, os partigiani erguiam as metralhadoras, os stens, os fuzis, os noventa e um, e disparavam rajadas de festim, com as cápsulas a caírem em torno e os garotos que se enfiavam entre as pernas dos soldados, e dos civis, porque uma colheita assim jamais tinham feito, havendo o risco de a guerra terminar dentro de um mês.

 

Contudo havia mortos. Por uma coincidência atroz, eram ambos de San Davide, um lugarejo logo acima de***, e as famílias reclamavam sepultura para os seus mortos no cemitério local.

O comando partigiano havia resolvido que deviam fazer um funeral solene, as companhias em formação, os carros fúnebres enfeitados, a banda de música do município, o pároco da catedral. E a banda do oratório.

Dom Tico aquiesceu no ato. Antes de mais nada, dizia, porque sempre tivera sentimentos antifascistas. Depois, como murmuravam os músicos, era um ano em que os fizera estudar como exercício duas marchas fúnebres, e tinha que fazê-las executar um dia ou outro. Por fim, diziam os maliciosos do lugar, para fazer esquecer a Giovinezza*

* Giovinezza era o hino fascista. (N. do T.)

 

A história da Giovinezza tinha sido assim.

Meses antes, antes de haverem chegado os partigiani, a banda de Dom Tico tinha saído para uma festa de não sei que padroeiro, e foram detidos no caminho pelas Brigadas Negras. "Toque a Giovinezza, reverendo", havia comandado o capitão, tamborilando os dedos sobre o cano da metralhadora. Que fazer, como se aprenderia a dizer depois? Dom Tico tinha dito, rapazes, vamos tentar, a pele é a pele. Marcara o tom com o diapasão, e o horrendo amontoado de entes cacofônicos havia atravessado*** tocando algo que só "a mais temerária esperança de resgate" teria permitido confundir com a Giovinezza. Uma vergonha para todos. Por terem cedido, dizia depois Dom Tico, mas principalmente por terem tocado como cães. Padre sim, antifascista também, mas antes de tudo a arte pela arte.

Jacopo não estava aquele dia. Tivera tonsilite. Só estavam Annibale Cantalamessa e Pio Bo, cuja simples presença deve ter contribuído de maneira radical para a queda do fascismo. Mas para Belbo o problema era outro, pelo menos no momento em que o escrevia. Tinha perdido outra ocasião de saber se saberia dizer não. Talvez por isso tenha morrido enforcado no Pêndulo.

Em síntese, haviam marcado os funerais para o domingo de manhã. Na praça da matriz estavam todos. Terzi com suas colunas, tio Carlos e algumas pessoas gradas da comunidade, com condecoração da grande guerra ao peito, e não importava quem tinha sido fascista quem não tinha, tratava-se de homenagear os heróis. Lá estava o clero, a banda do município, de terno preto, os carros fúnebres puxados a cavalos com gualdrapas de franjas brancas, creme, prateadas e pretas. O cocheiro vinha vestido como um marechal de Napoleão, chapéu de dois bicos, mantelete e capa grande, nas mesmas cores dos arneses dos cavalos. E havia a banda do oratório, boné de viseira, paletozinho cáqui e calças azuis, luzida de metais, negra de madeiras e cintilante de pratos e de bombos.

Entre*** e San Davide havia uns cinco ou seis quilômetros de curvas em subida. Daquelas que os aposentados, aos domingos à tarde, percorrem a jogar bocha, uma partida, uma parada, um garrafão de vinho outra partida, e assim por diante, até chegarem ao santuário no alto.

Alguns quilômetros morro acima não são nada para quem joga bocha, e talvez seja fácil percorrê-los em formação, armas aos ombros, o olhar firme, respirando o ar fresco da primavera. Mas é preciso experimentar fazê-lo tocando, as bochechas infladas, o suor que cai aos borbotões, o fôlego que falha. A banda municipal estava cansada de fazer aquilo, mas para os meninos do oratório tinha sido uma prova. Agüentaram como heróis, Dom Tico batia o diapasão no ar, os clarins guinchavam exaustos, os saxofones baliam asfixiados, o bombardino e a corneta lançavam gritos de agonia, mas tinham conseguido chegar até os pés da ladeira que levava ao cemitério. Há muito que Annibale Cantalamessa e Pio Bo só fingiam tocar, mas Jacopo havia mantido o seu papel de cão de pastor, sob o olhar benedicente de Dom Tico. Peito a peito com a banda municipal, não tinham feito má figura, a ponto de Terzi e outros comandantes das brigadas dizerem: bravo, rapazes, foi uma façanha soberba.

Um comandante de lenço azul e um arco-íris de condecorações das duas guerras mundiais, dissera: "Reverendo, deixa os rapazes descansarem aqui mesmo, que eles não agüentam mais. Deixem para sair mais tarde, no fim. Vamos arranjar uma caminhonete para levá-los a***."

Correram todos para a hospedaria, e os músicos da banda municipal, velhos executantes tornados coriáceos à força de tantos funerais, sem a menor discrição haviam corrido para as mesas encomendando dobrada e vinho à vontade. E lá ficaram a dar tripas à tripa até a noite. Os rapazes de Dom Tico ao contrário se haviam aglomerado junto ao balcão, onde o dono estava servindo granitês de menta, verdes como uma experiência química. O gelo afundava de im jato na garganta e fazia vir uma dorzinha no meio da testa, como sinusite.

Depois voltaram para o cemitério, onde a caminhonete estava à espera. Iam subindo em vozerio, e já agora estavam todos apinhados, todos de pé, chocando-se com os instrumentos, quando saiu do cemitério o comandante já dito, e falou: "Reverendo, para a cerimônia final precisamos do corneteiro, sabe, para os toques de praxe. Coisa de uns cinco minutos."

"Corneteiro", chamara Dom Tico, profissional. E o desgraçado titular do privilégio, ora suado de granitê verde e saudoso da bóia familiar, indolente campesino impermeável a qualquer frêmito estético e a qualquer solidariedade de idéias, começou a lamentar-se, que já era tarde, que queria voltar para casa, que já não tinha mais saliva, etcétera etcétera, pondo em embaraço Dom Tico, que se envergonhava em frente do comandante.

E naquele ponto Jacopo, entrevendo na glória do entardecer a imagem suave de Cecilia, avançou e disse: "Se ele me empresta a corneta eu toco."

Brilho de reconhecimento nos olhos de Dom Tico, suado alívio do esquálido corneteiro titular. Troca de instrumentos, como duas sentinelas.

 

E Jacopo havia adentrado o cemitério, guiado pelo psicopompo com as condecorações de Adis Abeba. Tudo em torno era branco, o muro batido pelo sol, os túmulos, as flores das árvores da cerca, a sobrepeliz do pároco pronto para a bênção, salvo o marrom fanado das fotos sobre as lápides. E a grande mancha de colorido que forneciam os ranchos de soldados enfileirados diante das sepulturas.

"Meu jovem", dissera o chefe, "você fica aqui ao meu lado, e depois ao meu comando, dê o toque de atenção, sentido. Em seguida, ao comando, o toque de recolher. Fácil, não?"

Facílimo. Salvo que Jacopo nunca havia tocado nem o atenção nem o recolher.

Segurava a corneta com o braço direito encolhido, contra as costelas, a boca do instrumento ligeiramente para baixo, como se faz com uma carabina, esperava, peito para a frente barriga para dentro cabeça erguida.

Terzi pronunciava um discurso enxuto, de frases muito curtas. Jacopo pensava que para emitir o toque devia erguer os olhos para o céu e se assim ficasse o Sol o teria cegado. Mas assim morre um comneteiro e já que se morre apenas uma vez tanto melhor que o fizesse bem.

Então o comandante lhe havia sussurrado: "Agora." E começava a gritar: "Aaa...” E Jacopo não sabia como era o toque de atenção.

A estrutura melódica devia ser bem mais complexa, mas naquele momento só fora capaz de tocar dó-mi-sol-dó, e àqueles rudes homens de guerra parecia bastar. O dó final fora entoado depois de haver tomado fôlego, de modo a prolongá-lo ao máximo, para dar-lhe tempo - como escrevera Belbo - de chegar até o sol.

 

Os partigiani mantinham-se imóveis no atenção. Os vivos imóveis como os mortos.

 

Só os coveiros se moviam, ouvia-se o rumor dos ataúdes que desciam às fossas, e o friccionar das cordas contra a madeira dos caixões ao serem retiradas. Mas era um movimento débil, como o chispar de um reflexo sobre uma esfera, daí aquela leve variação de luz que serve apenas para dizer que no Esfero nada escorre.

A seguir o rumor abstrato de um apresentar-armas. O pároco havia murmurado as fórmulas da aspersão, os comandantes se haviam aproximado das covas e nelas atirado um punhado de terra. E àquele ponto uma ordem repentina havia provocado uma descarga para o céu, tá-tá-tá, ta-pum, com os pássaros que se elevavam em gritaria das árvores em flor. Mas mesmo aquilo não era movimento, era como se sempre o mesmo instante se apresentasse sob perspectivas diversas, e olhar um instante para sempre não quer dizer olhá-lo enquanto o tempo passa.

Por isso Jacopo se mantinha firme, insensível à própria queda das cápsulas que lhe rolavam aos pés, nem tinha voltado a colocar a corneta de lado, porém mantinha-a ainda na boca, os dedos sobre as chaves, rígido no atenção, o instrumento que apontava diagonalmente para o alto. Ainda estava tocando.

Sua longuíssima nota final não se havia ainda interrompido: imperceptível aos circunstantes, saía ainda da boca da corneta como um sopro leve, uma aragem que ele continuava a emitir na embocadura mantendo a língua entre os lábios levemente abertos, sem premi-los contra o bocal do instrumento. Este se mantinha estendido sem apoiar-se no rosto, por pura tensão dos cotovelos e das costas.

Jacopo continuava a emitir aquela ilusão de nota por sentir que naquele momento estava desnovelando um fio que freava o Sol. O astro se havia paralisado no seu curso, fixara-se num meio dia que poderia durar por toda a eternidade. E tudo dependia de Jacopo, bastava interromper aquele contato, afrouxar o fio, e o Sol teria corrido dali, como um balãozinho, e com ele o dia e o evento daquele dia, aquela ação sem fases, aquela seqüência sem antes nem depois, que se desenvolvia imóvel só porque assim era no seu poder de querer e de fazer.

Se tivesse parado para emitir uma nova nota, ter-se-ia ouvido como que um rasgo, bem mais fragoroso que o das rajadas que o estavam ensurdecendo, e os relógios voltariam a palpitar taquicardíacos.

Jacopo desejava com toda a alma que aquele homem ao lado não comandasse o descansar - poderia recusar-me, dizia para si, e permaneceria assim para sempre, fazendo durar o fôlego enquanto pudesse.

Creio que tivesse entrado naquele estado de aturdimento e vertigem que se apossa do mergulhador quando tenta não voltar à tona quer prolongar a inércia que o faz deslizar pelo fundo. Tanto que, ao procurar depois exprimir o que então sentira, as frases do caderno que eu agora estava lendo se rompiam assintáticas, mutiladas por pontos de suspensão, raquíticas de elipses. Mas estava claro que naquele momento - não, não disse assim, mas estava claro: naquele momento estava possuindo Cecilia.

 

É que Jacopo Belbo não podia ter compreendido então - nem compreendia agora quando escrevia insciente sobre si mesmo - que estava celebrando uma vez para sempre as suas núpcias químicas, com Cecilia, com Lorenza, com Sophia, com a terra e com o céu. Único talvez entre os mortais estava levando finalmente a termo a Grande Obra.

Ninguém lhe tinha dito ainda que o Graal é uma taça mas igualmente uma lança e sua corneta levantada a cálice era ao mesmo tempo uma arma, um instrumento de dulcíssimo domínio, que dardejava para o céu e ligava a terra com o Pólo Místico. Com o único Ponto Fixo que o universo jamais tivesse tido: com aquele que ele fazia existir, só por aquele instante, com o seu sopro.

Diotallevi não lhe havia ainda dito que se pode estar em Jesod, a sefirah do Fundamento, o signo da aliança do arco superior que se tende para enviar flechas à altura de Malkut, que é seu alvo. Jesod é a gota que brota da flecha para produzir a árvore e o fruto, é a anima mundi porque é o momento em que a força viril, procriando, lega entre eles todos os estados do ser.

Saber romper aquele Cingulum Veneris significa reparar o erro do Demiurgo.

 

Como se pode passar uma vida procurando a Ocasião, sem se dar conta de que o momento decisivo, aquele que justifica o nascimento e a morte, já passou? Não retorna, mas foi, irreversivelmente, pleno fulgurante, generoso como toda revelação.

Aquele dia Jacopo Belbo havia fixado nos olhos a Verdade. A única que lhe seria concedida, porque a verdade que estava aprendendo é que a verdade é brevfssima (depois, o resto é comentário). Por isso estava tentando domar a impaciência do tempo.

Não havia compreendido então, certamente. Nem mesmo quando escrevia a respeito, ou quando decidira não mais escrever.

Compreendi-o eu esta noite: é preciso que o autor morra para que o leitor se dê conta de sua verdade.

A obsessão do Pêndulo, que havia acompanhado Jacopo Belbo por toda a sua vida adulta, tinha sido - como os endereços perdidos do sonho - a imagem daquele outro momento, registrado e depois suprimido, em que ele havia de fato tocado a abóbada do mundo. E este, o momento em que havia gelado o espaço e o tempo disparando sua flecha de Zenão, não tinha sido um signo, um sintoma, uma alusão, uma figura, uma sinatura, um enigma: era o que era e nada significava senão aquilo, o momento impreterível quando as contas estão feitas.

Jacopo Belbo não tinha compreendido que tivera seu momento e que este lhe deveria bastar por toda a vida. Não o havia reconhecido, havia passado o resto de seus dias a procurar além, até o desespero. Ou talvez o suspeitasse, de outra forma não teria voltado com tamanha freqüência à lembrança da corneta. Mas recordava-a como perdida, ao passo que a havia ganho.

Creio, espero, rogo que, no instante em que morreu oscilando com o Pêndulo, Jacopo Belbo tenha compreendido isto, e encontrado a paz.

 

Depois foi ordenado o descansar. Teria cedido de qualquer maneira, pois o fôlego já lhe faltava. Havia interrompido o contato, depois havia soado uma só nota, alta e de intensidade decrescente, suave, para habituar o mundo à melancolia que estava à sua espera.

O comandante lhe dissera: "Bravo, meu rapaz. Agora pode ir. Bela corneta."

O pároco tinha-se escafedido, os partigiani desceram por outro portão onde os esperavam suas viaturas, os coveiros se retiraram após tapar as fossas. Mas Jacopo havia saído por último. Não conseguia abandonar aquele recanto de felicidade.

 

A caminhonete do oratório não estava mais na pracinha.

Jacopo perguntava-se como era possível, como fora que Dom Tico podia tê-lo abandonado assim. A distância do tempo, a resposta mais provável é que tenha havido um equívoco, que alguém tivesse dito a Dom Tico que os partigiani levariam o rapaz para baixo. Mas Jacopo naquele momento havia pensado - e não sem razão - que entre o atenção e o descansar haviam passado muitos séculos, os rapazes esperado até a velhice, a morte, e suas cinzas se tivessem dispersado para formar aquela leve névoa que agora estava azulando a extensão das colinas diante de seus olhos.

Jacopo estava só. As suas costas um cemitério agora vazio, nas mãos a corneta, diante as colinas que se esfumavam cada vez mais azuladas umas atrás das outras no conglomerado do infinito e, vingador, sob sua cabeça, o sol em liberdade.

Resolveu chorar.

 

Mas de repente apareceu o coche funerário com seu auriga engaIanado como um general do imperador, todo de creme e preto e prata, os cavalos ataviados de máscaras barbáricas que deixavam descobertos apenas os olhos, cobertos de gualdrapas, as coluninhas torsas que sustentavam o tímpano assírio-greco-egípcio, todo branco e dourado. O homem do bicorne havia sustado um átimo diante daquele corneteiro solitário e Jacopo lhe havia perguntado: "Me leva para casa?"

O homem era de boa paz. Jacopo subiu para a boléia ao lado dele, e no carro dos mortos havia iniciado seu retorno ao mundo dos vivos. Aquele Caronte de folga esporeava taciturno os seus corcéis fúnebres pelos morros abaixo, Jacopo hirto e hierático, com a corneta recolhida sob o braço, a viseira do boné luzente, compenetrado de seu novo papel, inopinado.

Haviam descido as colinas, a cada curva abria-se uma nova extensão de videiras azuis azinhavradas, sempre numa luminosidade que ofuscava, e após um tempo incalculável havia aproado em***. Atravessaram a praça principal, com seus alpendres, deserta como só podem ser desertas as praças da província num domingo de tarde. Um colega de escola numa esquina da praça vislumbrara Jacopo sobre o coche, a corneta embaixo do braço, o olhar fixo no infinito, e lhe fizera um sinal de admiração.

 

Jacopo entrou em casa, não queria comer, nem contou coisa alguma. Agachou-se na varanda, e se pôs a tocar a corneta como se tivesse surdina, soprando baixinho para não perturbar o silêncio da sesta.

O pai veio para junto dele e sem maldade, com a serenidade de quem conhece as leis da vida, lhe tinha dito: "Dentro de um mês, se tudo correr como se espera, voltamos para casa. Não vai querer tocar corneta na cidade. O dono da casa nos mandaria embora. Então é melhor começar a esquecê-la. Se você tem mesmo tendência para a música, vamos lhe arranjar umas lições de piano." Depois, vendo-lhe os olhos brilhantes: "Vamos lá, seu bobo. Não está vendo que os dias maus acabaram?"

No dia seguinte Jacopo restituiu a corneta a Dom Tico. Duas semanas depois a família abandonava*** regressando ao futuro.

 

MALKUT

Mas o que me parece deplorável é que vejo alguns insensatos e estúpidos Idólatras, os quais... imitam as grandezas do culto do Egito; e que buscam a divindade, de que não têm a mínima idéia, nos excrementos de coisas mortas e inanimadas; que com tudo isso escarnecem não apenas dos divinos e cautelosos cultores, mas também de nós..., e o que é pior triunfam com isto, vendo seus loucos ritos granjearem tanta reputação... - Não te mostres fastidiado com isto, ó Momo, disse Ísis, porque o fado ordenou a vicissitude das trevas e da luz. - Mas o mal está, respondeu Momo, em que eles têm por certo que estão na luz.

(Giordano Bruno, Spaccio dela bestia trionfante, 3)

 

Deveria estar em paz. Pois compreendi. Não disse um daqueles que a salvação nos chega quando se atinge a plenitude da consciência?

Eu compreendi. Devia estar em paz. Quem dizia que a paz surge da contemplação da ordem, da ordem compreendida, usufruída, realizada sem resíduos, alegria, triunfo, cessação do esforço? Tudo está claro, límpido, e a vista se pousa sobre o todo e suas partes, e vê como as partes convergem para o todo, surpreende o centro onde escorre a linfa, o sopro, a raiz do porquê...

Devia estar extenuado pela paz. Da janela do escritório de tio Carlos contemplo a colina, e esse retalho de Lua que está surgindo. A ampla corcova do Bricco, os dorsais mais modulados das colinas ao fundo, contam a história de lentos e sonolentos tumultos da mãe terra, que espreguiçando e bocejando fazia e desfazia cerúleos planos no cavernoso relampaguear de cem vulcanos. Nenhuma direção profunda das correntes subterrâneas. A terma se escamava em sua sonolência e trocava uma superfície por outra. Onde antes pastavam amonites, diamantes. Onde antes germinavam diamantes, vides. A lógica das moramas, da avalanche, do desmoronamento. Desloca-se uma pedrinha do lugar, por acaso, trepida, cai, deixa espaço na descida (eh, o horror vacui!), uma outra lhe cai em cima, e eis o alto. Superfície. Superfície de superfície sobre superfície. A sabedoria da Terra. E de Lia. O abismo é o sorvedouro de uma planície. Por que adorar o sorvedouro?

Mas por que a compreensão não me dá paz? Por que amar o Destino, se te mata tanto quanto a Providência e o Complô dos Arcontes? Talvez não tenha ainda compreendido tudo, falta-me um espaço, um intervalo.

Onde li que no momento final, quando a vida, superfície sobre superfície, está encrostada de experiência, ficamos sabendo de tudo, o segredo, o poder e a glória, por que nasceste, por que estás morrendo. É como tudo teria podido ocorrer diversamente? És sábio. Mas a maior sabedoria, naquele momento, é saber que soubeste tarde demais. Compreende-se tudo quando não há mais nada para se compreender.

Agora sei qual é a Lei do Reino, da pobre, desesperada, esmolambada Malkut onde se exilou a Sabedoria, andando tateante para recuperar a própria lucidez perdida. A verdade de Malkut, a única verdade que brilha na noite das sefirot, é que a Sabedoria se mostra nua em Malkut, e descobre que o próprio mistério está no não-ser, nem que seja por um momento, que é o último. Depois recomeçam os Outros.

E com os outros os diabólicos, a procurar abismos onde se oculta o segredo que é a sua loucura.

 

Ao longo das faldas do Bricco estendem-se filas e filas de vinhedos. Agora as vi, nunca tinha visto iguais nos meus tempos. Nenhuma Doutrina dos Números jamais poderá dizer se nascem em subida ou em descida. Em meio às fileiras, mas deve-se caminhar por elas descalço os calcanhares um tanto calosos, desde pequeno, estão os pés de pêssego. São pêssegos amarelos que crescem apenas entre as fileiras de uvas, esborracham-se com a pressão do polegar, e o caroço solta quase por si, limpinho como após um tratamento químico, exceto pela presença de algum bicho gordo e branco da polpa que a ele permanece aderido por instantes. Pode-se comê-los sem quase sentir o veludo da pele, que te faz correr arrepios desde a língua até a virilha. Houve época em que por ali pastavam dinossauros. Depois outra superfície recobriu aquela. Contudo, como Belbo no momento em que tocava a corneta, quando dei uma mordida no pêssego compreendi o Reino e estava unificado com ele. Depois, só argúcia. Inventa, inventa o Plano, Casaubon. Foi o que fizeram todos, para explicar os dinossauros e os pêssegos.

Compreendi. A certeza de que nada havia para compreender, esta devia ser a minha paz e o meu triunfo. Mas aqui estou eu, que compreendi tudo, e Eles à minha procura, pensando que possuo a revelação que sordidamente desejam. Não basta haver compreendido, se os outros se recusam e continuam a interrogar. Estão à minha procura, devem ter encontrado minha pista em Paris, sabem que agora estou aqui, ainda querem o Mapa. E por mais que lhes diga que não há mapa algum, sempre haverão de querê-lo. Belbo tinha razão: mas vai te foder, imbecil, que vais querer, matar-me? Pois vamos acabar com isto. Matem-me, mas que o Mapa não existe, não digo, que ninguém aprende a ser esperto sozinho...

Dá-me pena pensar que não verei mais Lia e o menino, a Coisa Giulio, minha Pedra Filosofal. Mas as pedras sobrevivem sozinhas. Talvez esteja agora vivendo o seu Momento. Achou uma bola, uma formiga, uma folhinha de grama, e está vendo no abismo o paraíso, também ele há de sabê-lo tarde demais. Será bom, e bem, que consuma assim, sozinho, o seu dia.

Merda. Mas nos dá raiva. Paciência, logo que morra esquecerei.

 

É noite alta, vim de Paris esta manhã, onde deixei demasiadas pistas. Já terão tempo de adivinhar onde estou. Daqui a pouco chegarão. Queria escrever tudo que pensei desde aquela noite até agora. Mas se Eles o lessem, extrairiam de meus escritos outra nebulosa teoria e passariam a eternidade procurando decifrar a mensagem secreta que se oculta por trás da minha história. É impossível, diriam, que nos tenha contado apenas que estava brincando conosco. Não, talvez ele não soubesse, mas o Ser nos enviava uma mensagem através de seu silêncio.

Que tenha escrito ou não, não faz diferença. Procurariam sempre um outro sentido, até mesmo no meu silêncio. Foram feitos assim. Estão cegos à revelação. Malkut é Malkut e basta.

Mas vá-se lá dizer-lhes. Não têm fé.

 

E agora tanto faz estar aqui, esperando, a olhar a colina.

 

É tão bela.

 

                                                                                            Umberto Eco

 

                      

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