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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PERIGO ESPREITA / Tami Hoag
O PERIGO ESPREITA / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PERIGO ESPREITA

 

O que quer, chere,

 

Serena Sheridan respirou fundo e tentou outra vez:

 

Preciso de contratar um guia para me levar ao pântano. O velho Lawrence Gauthier riu como se tivesse ouvido uma boa piada. A sua voz ecoou pela velha loja, abafando o som da música cajun que saía do rádio colocado na prateleira atravancada que ficava por detrás dele, assim como os ruídos do desafio de luta livre que se desenrolava na pequena televisão a preto e branco instalada a um canto. Lawrence estava sentado num banco alto atrás do balcão, com as magras pernas cruzadas, numa posição que fazia lembrar uma garça empoleirada num poleiro com os ombros magros curvados e a cabeça baixa. O rosto era magro, de nariz proeminente, e os olhos lembravam duas contas de azeviche. A pele era escura, bronzeada pelo sol e cheia de rugas como cabedal velho.

 

A gargalhada terminou num ataque de tosse. Estendeu a mão para o tabaco e as mortalhas e abanou a cabeça.

 

Porque quer fazer isso, chereVai à pesca?

 

Riu outra vez, tentando abanar a cabeça e humedecer a extremidade da mortalha ao mesmo tempo.

 

Serena passou as mãos ao longo do seu imaculado casaco de linho cor de ostra que fazia conjunto com a estreita saia do mesmo tecido. Achava que, de facto, não se vestira adequadamente para entrar num sítio daqueles e muito menos para fazer o pedido que acabava de formular.

 

Não, não estou interessada em pescar respondeu.

 

Olhou à sua volta, na esperança de encontrar ali alguém que a pudesse ajudar. Estavam a meio do dia e Lawrence parecia ser a única pessoa a trabalhar na pequena loja atulhada e mal iluminada, embora se ouvisse martelar nas traseiras, onde Serena sabia existir uma pequena oficina ainda mais cheia de coisas e mais mal iluminada, onde os homens consertavam os seus barcos, bebiam cerveja, contavam histórias mirabolantes e liam revistas pornográficas.

 

Ela sabia por lá ter ido espreitar uma vez, quando era criança. Fora sempre obstinada e não aceitara a recusa do avô, que não a deixava acompanhá-lo na pesca. Escondera-se debaixo de um oleado e nesse dia aprendera um certo número de palavras novas, que depois a governanta tentara apagar lavando-lhe a língua com sabão.

 

Preciso de ir ter com o meu avô, Mister Gauthier. Ele foi para o seu acampamento de pesca e eu quero alguém que me leve lá.

 

Lawrence olhou-a, de testa franzida. Por fim, espetou um dedo magro na direcção dela.

 

Você é a garota Sheridan, que foi estudar para médica? -Sim.

 

Sim, sim.

 

Soltou uma pequena gargalhada, satisfeito por se ter recordado.

 

Procura então o Grande Giff?

 

Sim, mas preciso de um guia, de alguém que me conduza até ele.

 

Ele abanou a cabeça, sempre a sorrir, como se ela fosse uma criança muito querida, mas completamente tontinha. Non, chérie. Todos os guias estão agora ocupados até segunda-feira. Vem muita gente pescar para aqui. De resto, não há nenhum suficientemente louco que esteja disposto a ir ao acampamento de Giff e apanhar um tiro na cabeça. Chupou o cigarro fino, segurando-o entre o polegar e o indicador, num gesto inconscientemente europeu. Metade do cigarro desapareceu antes de exalar o fumo. Estendeu a mão livre e acariciou ao de leve o rosto de Serena.

 

Pois é, ma jolie fille. Não conheço ninguém suficientemente louco para se atrever a ir ao acampamento do Grande Giff.

 

Nesse momento ouviu-se uma pancada violenta na oficina, seguida por um impropério em francês. Lawrence ficou imóvel, com a mão estendida para um pequeno cinzeiro que se encontrava sobre o balcão. Nos seus olhos apareceu um brilho malicioso e um ligeiro sorriso encurvou-lhe os lábios.

 

Bem, talvez haja alguém. Quer mesmo ir ter com o seu avô, chèrel

 

Serena apertou as mãos uma na outra, como uma colegial, tentando engolir o nó que se lhe formara na garganta. Não era altura de se amedrontar.

 

É forçoso que eu vá!

 

Lawrence encolheu imperceptivelmente os ombros e gritou, voltando-se para trás:

 

Étienne! Viens ici

 

Serena não sabia bem o que esperara encontrar, mas na verdade não se preparara para enfrentar o homem que surgiu à porta que dava para a oficina. O impacte da súbita presença dele teve sobre ela o mesmo efeito do que se tivesse sido atingida pelas ondas de choque de uma explosão, fazendo-a sentir o coração bater desordenadamente e os joelhos fraquejarem, fenómeno que nunca teria achado possível.

 

A sua primeira impressão foi a de se encontrar em presença de uma força bruta. Ombros largos, braços musculosos. O peito nu estava coberto de suor, um peito largo, forte, onde os músculos sobressaíam sob a pele bronzeada. O seu dorso, formando um V, terminava numa cintura estreita, com o estômago musculoso coberto de pêlos, que desapareciam abaixo da linha da cintura das calças de caqui de um verde desbotado. Serena tinha a certeza de que, mesmo que vivesse cem anos, não voltaria a observar um exemplar tão perfeito de animal masculino.

 

Ergueu os olhos para o rosto dele, sentiu um estranho arrepio percorrê-la dos pés à cabeça e as pontas dos dedos ficaram dormentes. O homem fitou-a com uns grandes olhos cor de âmbar, que faziam lembrar os de uma pantera. As sobrancelhas eram espessas e direitas, o nariz ligeiramente aquilino, mas foi a boca que mais perturbações causou no sistema nervoso de Serena. Os lábios grandes, perfeitamente modelados, eram extremamente sensuais e teriam ficado bem numa mulher atraente, e o efeito dessa boca num rosto tão vincadamente másculo era terrivelmente sexual.

 

O recém-chegado olhou Serena com uma expressão subtilmente desdenhosa, que sugeria que as mulheres não lhe interessavam muito a não ser para as levar para a cama coisa que ele parecia poder fazer regularmente. Tirando um cigarro de trás da orelha, colocou-o ao canto da boca, acendeu-o e disse qualquer coisa a Gauthier num francês cajun, um patois que nenhum francês poderia compreender. Esse dialecto fora quase completamente erradicado do sistema de ensino da Luisiana algumas décadas antes e, embora ocorresse um ressurgimento devido ao recente interesse por tudo o que era cajun, não era ainda muito falado. Mas aquele homem usava-o como se fosse a sua primeira língua.

 

Tendo crescido no triângulo francês da Luisiana, Serena percebia algumas palavras e frases, mas ele falava demasiado depressa para que pudesse compreender mais do que uma sugestão. Contudo, essa era perceptível pela reacção de Gauthier: nova gargalhada seguida de um ataque de tosse e uma forte palmada no ombro do seu bárbaro amigo.

 

Serena sentiu as faces a arder quando o homem contornou o balcão e se encostou, começando a observá-la ousadamente com os seus olhos cor de âmbar. Sentia o olhar dele como uma carícia tangível, passando insolentemente sobre os seus seios, a curva da cintura, o arredondado das ancas, as longas pernas. Nunca imaginara sentir-se tão nua, mesmo com um fato de saia e casaco de executiva.

 

O homem aspirou demoradamente o cigarro, exalou e disse outra frase que provocou novo acesso de riso a Lawrence. Serena olhou-o com frieza, defendendo-se com altivez.

 

Desculpem, mas ensinaram-me que é falta de educação conversar numa língua que as pessoas à nossa volta não possam compreender.

 

Uma sobrancelha escura ergueu-se, sarcástica, e os cantos da boca encurvaram-se ligeiramente. Serena achou que o homem tinha um ar demoníaco. Quando ele falou, a sua voz soou como um ronronar baixo, rouco, que acariciava os seus sentidos como veludo.

 

Eu disse-lhe que você não tem aspecto de quem se quer dar ou vender explicou ele com palavras que lhe rolavam da boca com um sotaque tão forte como o do cajun.

 

Que poderia então eu querer de si? Não estou interessado em damas américaines

 

Disse as últimas palavras com um desprezo arrogante. Serena deu um esticão nas lapelas do seu casaco, endireitando-o, e ergueu mais o queixo acima da gola subida da sua blusa de seda.

 

Asseguro-lhe que também não tenho qualquer interesse em si.

 

Ele afastou-se do balcão e avançou com a graciosidade arrogante de um atleta nato. Serena manteve-se obstinadamente imóvel enquanto ele se aproximava de tal modo que lhe podia sentir o calor do corpo. O coração palpitava-lhe na garganta ao ver que ele erguia uma mão para lhe acariciar a cabeça.

 

Não é isso que os seus olhos me estão a dizer, chère catin.

 

Serena respirou, ofegante, sentindo-se prestes a explodir de fúria. Bateu-lhe com força na mão para a afastar e recuou um passo.

 

Não vim aqui para ser insultada, ou apalpada. Vim procurar um guia, Mister...

 

Doucet. Étienne Doucet. Os amigos chamam-me Lucky.

 

Serena recordava-se vagamente de um Lucky Doucet na escola secundária. Estava vários anos à sua frente, era um atleta, um rapaz solitário com fama de mau. As raparigas cujo principal interesse eram os rapazes ficavam excitadas só por ouvirem mencionar o nome dele, mas os interesses de Serena eram outros.

 

Olhando-o agora pensou que qualquer que tivesse sido outrora a reputação que alcançara certamente a cultivara desde então. Parecia, com efeito, ser a encarnação da palavra sarilhos, só estando semilouca podia sequer considerar a ideia de o contratar. Mas lembrou-se então de Gifford, tinha de o ver, precisava de perceber o que o fizera sair de Chanson du Terre, queria fazer o possível por o convencer a voltar para casa. Por mais duro que Gifford Sheridan se quisesse mostrar, não deixava de ser um velho de setenta e oito anos com uma doença cardíaca.

 

Chamo-me Serena Sheridan disse, com o seu ar mais executivo.

 

Lucky Doucet olhou-a e pestanejou. Os músculos do queixo ficaram tensos, mas logo a seguir a sua expressão descontraiu-se.

 

Sei quem você é respondeu.

 

Serena estranhou o tom defensivo, mas não lhe deu importância.

 

Vim aqui contratar um guia, Mister Doucet. Gifford Sheridan é meu avô. Necessito de alguém que me leve até à cabana onde ele fica quando vai pescar. Mister Gauthier informou-me de que os guias de maior confiança estão todos ocupados durante o fim-de-semana. Aparentemente só o senhor está livre. Interessa-lhe esse trabalho, ou não?

 

Lucky encostou-se novamente ao balcão com ar negligente. Gauthier desligara a televisão para prestar atenção ao diálogo que se desenrolava na sua frente. O rádio transmitia a canção La Jolie Blonde, cantada por Iry Lejeune. O nome da canção vinha a propósito e Lucky aspirou profundamente o cigarro, fazendo com que o fumo penetrasse bem nos seus pulmões, como se com isso quisesse fazer sair os sentimentos que se agitavam dentro de si.

 

Ao entrar ali, tivera a sensação de receber uma violenta pancada no peito. Shelby O choque avivara recordações e emoções que se revolviam dentro de si como a lama e as lianas que se agitavam nas águas do Hayou à passagem de um barco a motor dor, ódio, medo, rodopiavam furiosamente na sua cabeça. A dor e o ódio eram velhos companheiros, o medo era por recear perder o controlo que sentia escorrer-lhe por entre os dedos como uma corda molhada. Esses sentimentos ainda o invadiam, embora soubesse que não era aquela a mulher do seu passado, mas sim a irmã, com quem nunca tivera qualquer contacto. Nem queria ter. Elas eram gémeas, talvez não totalmente idênticas, mas afinal cortadas da mesma peça.

 

Lucky olhou para a rapariga que se encontrava à sua frente, tentando pôr de parte todos os sentimentos para se concentrar apenas no aspecto físico dela. Não seria difícil. Era bonita, desde os cabelos tom de mel, impecavelmente penteados, até à ponta dos sapatos beges, irradiava classe. Nada havia nela que não pudesse ser esculpido em alabastro e posto num museu. Percorreu o rosto angelical de Serena, com os seus grandes olhos escuros e brilhantes, que nesse momento faiscavam furiosamente, e sentiu o desejo crescer dentro de si.

 

Praguejou, atirou a ponta do cigarro para o chão e apagou-o com a ponta da bota. Depois, sem olhar, tirou do balcão uma garrafa de Jack Daniels e bebeu um generoso gole. Lawrence ficou calado, mas voltou a cabeça, abanando-a em sinal de reprovação. Lucky teve noção de estar a proceder mal e pousou-a.

 

Maldito fosse esse Sheridan por ter netas que pareciam o céu na terra. Amaldiçoava as mulheres em geral e a si mesmo em particular. Se tivesse uma ponta de bom senso mandaria a rapariga dar uma curva. Continuaria a fazer o seu trabalho e os Sheridan que fossem à vida.

 

Escolhera viver solitariamente e, contudo, outras vidas continuavam a intrometer-se na sua. Não queria envolver-se nos problemas dos outros. Não desejava tomar parte nos sarilhos que sabia fervilharem na plantação dos Sheridan, a Chanson du Terre, não precisava de recordar dores passadas, mas Giff já o arrastara para lá, de certo modo, e era-lhe difícil recusar-se a aceitar um papel tão pequeno na acção.

 

Amaldiçoou-se a si próprio por se importar. Julgara-se totalmente incapaz de se preocupar com problemas alheios, pois essa sua capacidade ficara totalmente esgotada pelo azedume da experiência por que passara, mas afinal ainda existia, o que significava que precisava de arranjar forças para lidar com isso. Deus o ajudasse.

 

Serena lançou-lhe um olhar que faiscava e voltou-lhe as costas para se dirigir para a porta. Lucky praguejou entre dentes e foi atrás dela, segurando-a por um braço.

 

Onde vai, docinho? Eu não disse que não a levava. Ela olhou fixamente para a grande mão suja que lhe apertava o braço e depois fitou-o com uma expressão de desafio.

 

Talvez eu já não queira ir, Mister Doucet.

 

Segundo parece, não tem por onde escolher. Não há ninguém que a leve à cabana de Giff. Riu, bem-humorado. Nenhum guia é suficientemente louco para o fazer.

 

Mas você é?

 

Ele sorriu como um crocodilo e inclinou-se até a sua boca ficar a escassos centímetros acima da tentação dos lábios dela.

 

É isso mesmo. Sou capaz de fazer seja o que for. Pergunte às pessoas daqui. Todas lhe dirão o mesmo, il n’a ríen qu’il ne va pas faire, esse Lucky Doucet é um louco.

 

Bem, eu sou psicóloga respondeu Serena com u sorriso. Devemos entender-nos, não acha?

 

Lucky largou-lhe o braço como se tivesse sabido de repente que ela era leprosa. O sorriso de arrogância masculina desapareceu-lhe do rosto e a sua expressão tornou-se impenetrável. Voltou-se e encaminhou-se para uma porta lateral que dava directamente para um cais.

 

Serena ficou por momentos imóvel, tentando arranjar forças, ao mesmo tempo que olhava para as costas largas de Lucky Doucet, que se afastava. Sentia as pernas trémulas e o estômago apertado, sabia que o velho Lawrence a olhava, mas não se podia mexer. Nunca tivera uma reacção tão... tão primária na presença de um homem. Era uma mulher sofisticada, educada, que se orgulhava da sua capacidade de conservar o autodomínio em todas as circunstâncias, mas esse autodomínio fora abalado por Lucky e Serena não gostava dessa sensação. Ele era grosseiro, arrogante e... as outras palavras que lhe ocorreram eram demasiado lisonjeiras. Que diferença fazia o aspecto dele? Não passava de um neandertal.

 

Contudo, era também a sua única esperança de poder chegar até Giff, e ela precisava de o ver. Alguém tinha de saber o que se passara. Shelby declarava que não fazia a menor ideia do motivo que levara o avô a abandonar a plantação para ir viver para a sua cabana de pesca. Podia ser apenas devido ao facto de Giff se ter aborrecido por ter Shelby e a família dela na plantação, enquanto a nova casa deles era construída, mas também poderia ser qualquer coisa mais. Não parecia dele abandonar tudo na época mais trabalhosa do ano, entregando a direcção da plantação ao capataz.

 

Shelby insinuara que o avô estava a ficar senil, mas Serena não podia imaginá-lo de outro modo que não fosse totalmente lúcido. No entanto, já não o via há muito tempo.

 

O seu trabalho em Charleston mantinha-a ocupada e não lhe permitia fazer muitas visitas a casa. Sentira-se ansiosa por chegar ali e esperara gozar uns dias de férias na plantação, nesses belos dias de Primavera. Mas fora recebida por Shelby, que a informara da deserção do avô para os pântanos. Há duas semanas que para lá fora. Duas semanas sem dar notícias e Shelby nada fizera a não ser queixar-se.

 

Que esperavas que fizesse? Que fosse atrás dele? Tenho dois filhos para criar, a minha firma imobiliária para dirigir e, além disso, sou a presidente da Junior League, encarregada de enviar alimentos enlatados para os camponeses esfomeados da Guatemala. Tenho responsabilidades, Serena, não posso saltar para um barco e ir à procura dele! E mesmo que pudesse, sei que ele não ouviria uma só palavra do que eu lhe pudesse dizer. Também não esperavas, por certo, que Mason fosse ter com ele, sabes bem como Gifford o trata mal. Eu estou pelos cabelos, a tentar entender-me com ele. Tu é que és a psicóloga. Vai procurá-lo e mete um pouco de senso naquela cabeça dura.

 

Ir ter com ele ao pântano. Serena sentira o sangue gelar-lhe nas veias ao ouvir a sugestão e continuava a sentir o mesmo agora, mas era suficientemente obstinada e estava bastante furiosa para ultrapassar esse medo. Saíra de casa num rompante para procurar um guia, sem sequer se dar ao trabalho de mudar de roupa. Não permitiu a si própria pensar nos seus receios. Tinha de falar com o avô e havia apenas uma maneira de o fazer. Precisava de ir a um sítio que considerava como um verdadeiro inferno na Terra e o único homem que poderia levá-la até lá acabava de se afastar.

 

Serena foi atrás de Lucky Doucet, esforçando-se por caminhar depressa, apesar da saia justa e dos saltos altos, que não tinham sido feitos para andar sobre aquelas tábuas toscas. Quando saiu para o exterior, o forte sol do meio-dia caiu sobre ela avassalador. O cheiro a água suja e a gasolina pairava no ar espesso. Lucky estava parado à porta da oficina.

 

Ainda não falámos nos seus honorários disse Serena, ignorando a possibilidade de ele ter mudado de ideias a respeito de a acompanhar.

 

Tentou respirar fundo, novamente perturbada por aquela presença. Mesmo de tão perto, o peito e o rosto de Lucky pareciam feitos de bronze e não de carne e osso. O homem olhou-a de cima a baixo com uma expressão tal que dava impressão de que ela acabara de o insultar gravemente.

 

Não preciso do seu dinheiro replicou com desdén. Serena ergueu os olhos e fez um gesto de exasperação.

 

Peço desculpa se o ofendi, mas não pensei que consi derasse uma ofensa oferecer um salário justo por um trabalho honesto. Uma ideia burguesa, certamente.

 

Ele ignorou-a e inclinou-se para pegar num caixote cheio de partes de motor. Levantou-o como se não pesasse mais do que uma pena e colocou-o sobre a banca de trabalho, começando a escolher as peças. A sua atitude desdenhosa era extremamente irritante.

 

Porque está a tornar isto tão difícil? perguntou Serena.

 

Porque sou uma pessoa difícil. Você é inteligente e já devia ter percebido isso.

 

Estou sinceramente espantada por considerar que uma mulher pode ser inteligente. Julguei que fosse do tipo dos que só as acham úteis para uma coisa.

 

Eu disse que era inteligente, não que era útil. Só saberei se é útil quando a tiver nua debaixo de mim.

 

Serena sentiu-se invadir por uma vaga de calor e atribuiu isso à fúria que sentia. Subitamente nada tinha a ver com a imagem que lhe ocorreu, a de ver-se deitada nos lençóis revoltos de uma cama com aquele selvagem. Cruzou os braços sobre o peito, num gesto defensivo, e olhou ostensivamente à sua volta antes de voltar a fitar Lucky com hostilidade.

 

Parece-me que fui subitamente transportada para a Idade da Pedra. Está decidido a bater-me na cabeça com um osso de dinossauro e arrastar-me depois para a sua caverna, Conan?

 

Você tem uma língua bem afiada respondeu Lucky, fitando-a com uma expressão zangada e de sobrolhos franzidos.

 

Dirigiu-se para ela, fazendo-a recuar até à porta. Serena engoliu em seco e ficou petrificada quando sentiu as coxas dele roçarem pelas suas. Lucky encostou um braço à ombreira da porta, inclinou-se e ela sentiu no rosto o hálito quente do homem, com um forte cheiro a tabaco e a uísque.

 

Nunca forcei uma mulher confessou Lucky em voz baixa e suave, fitando Serena com os seus olhos que brilhavam como ouro fundido. Nunca precisei de o fazer.

 

Olhou para a boca dela, fascinado. Era rosada e aveludada, apetecia-lhe beijá-la, mas negou a si próprio esse prazer. Era uma mulher sofisticada e não queria nada com ela. Já sofrera bastante e não se podia arriscar. Aprendera a sua primeira lição com a irmã gémea dela. Aproximar-se demasiado da que tinha agora na sua frente seria uma loucura.

 

Contudo, o desejo percorria-lhe o corpo, dando-lhe a sensação de ter febre. O aroma subtil do perfume dela atraía-o. Baixou a cabeça para a curva do pescoço dela e lutou contra o desejo imperioso de beijar um ponto atrás da orelha, mesmo junto da gola subida da blusa rosa-forte. Sentia o seu sexo ficar cada vez mais quente e pesado.

 

Quero contratá-lo como guia disse Serena por entre os dentes cerrados, com voz trémula de desejo ou de raiva ou de ambas as coisas. Não como garanhão.

 

Lucky agradeceu-lhe mentalmente por ter quebrado o encantamento. Recuou, metendo uma das mãos no cós das calças. Sorriu maldosamente e observou.

 

Porque não, querida? Não se arrependeria.

 

Serena olhou-o com repulsa e caminhou para a extremidade do cais, voltando-lhe as costas. Lucky pensou que ferira irremediavelmente a sua sensibilidade feminina. Óptimo, era isso mesmo que pretendia. Quanto maior distanciamento emocional houvesse entre ele e uma mulher como Serena Sheridan, melhor. A mãe dava-lhe uma sova se soubesse que ele falara assim, mas o que se passava ali era mais do que uma questão de boas maneiras, tratava-se de uma questão de sobrevivência.

 

Lucky pegou no caixote com as partes de motor e caminhou ao longo do cais, voltando a cabeça para dizer:

 

Vem ou não vem, chereNão vou ficar todo o dia à sua espera.

 

Serena voltou-se e olhou-o com incredulidade ao vê-lo encaminhar-se para a beira do cais. Reparou pela primeira vez que Lucky tinha o cabelo quase tão comprido como o dela. Usava-o preso atrás, na nuca, com uma tira de cabedal. Um pirata, era o que ele lhe fazia lembrar, tanto no aspecto como na atitude.

 

Está a dizer que vai partir, agora? perguntou ela, apressando-se para o apanhar.

 

Lucky não lhe respondeu. Era perfeitamente óbvio que era o que ele queria fazer. Serena amaldiçoou-o simultaneamente e aos saltos altos, enquanto se esforçava por caminhar mais depressa. Se houvesse um prémio destinado aos patifes, ele ficaria certamente em primeiro lugar, e ela gostaria de lho entregar pessoalmente, sobretudo se lhe pudesse espetar a medalha no peito. Se estivessem em Charleston nunca consentiria ser tratada daquela maneira. Tinha demasiada auto-estima e bom senso, para se deixar atrair por um tipo daquela espécie, por mais sexy que ele fosse. Contudo, não estavam em Charleston, mas sim na Luisiana do Sul, na orla do pântano Atchafalaya, uma das regiões mais selváticas e remotas dos Estados Unidos, e Lucky Doucet não era nenhum modesto empregado ou operário da construção civil que ela pudesse pôr no seu lugar com um olhar frio, antes um espécime raro e pouco mais civilizado do que a região do hayou que os rodeava.

 

Subitamente, o salto de um dos seus sapatos ficou preso entre as tábuas do cais e partiu-se, fazendo com que ela quase caísse e fosse mergulhar de cabeça na água oleosa. Serena praguejou em voz alta, procurando recuperar o equilíbrio, tarefa dificultada pela saia justa, que lhe dificultava os movimentos. Conseguiu por fim endireitar-se antes que fosse demasiado tarde. Lucky parou e voltou-se para ela com uma expressão de indignação fingida.

 

Então, Miss Serena, que linguagem é essa? Que iriam pensar as damas da Junior League?

 

Serena franziu o sobrolho, furiosa, e apoiou-se sobre um pé para descalçar o sapato. No momento em que o pousou no chão sentiu uma falha da madeira enterrar-se-lhe na carne, mas não gritou, nem sequer revelou que sentia dor. Foi atrás de Lucky, a coxear, tentando manter uma aparência de dignidade.

 

Não estou preparada para partir agora, Mister Doucet respondeu por fim. Pensava ir talvez amanhã de manhã.

 

 

Serena estava numa situação em que não podia ganhar. Se mantivesse a sua decisão, perdia a possibilidade de procurar o avô, se cedesse, seria mais um duro golpe no seu orgulho e mais um motivo para aumentar o já grande ego de Lucky Doucet. Aspirou lentamente o ar denso como fumo, com um sabor metálico e amargo. Mantendo o melhor que podia a sua dignidade, empinou o nariz bem-feito e olhou Lucky com frieza.

 

Os olhos dele faiscaram como dobrões de ouro por baixo das pestanas ridiculamente compridas, que pareciam pintadas, e os lábios encurvaram-se num sorriso zombeteiro. O que se passa, chereJá vi que gosta mais de dar ordens do que de as receber. Se quer boleia, venha comigo. Se quer mandar em alguém, procure noutro lado.

 

Serena sentiu o sangue começar a ferver-lhe nas veias e esforçou-se por manter a calma. Apesar do seu nome, a serenidade que aparentava era pouco mais do que um escudo, um mecanismo de defesa, uma camuflagem protectora. Tivera de lutar toda a sua vida contra fortes doses do mau génio e da teimosia dos Sheridan. Agora servia-se uma coisa contra a outra aquele homem estava a fazer tudo para a irritar e ela recusava-se obstinadamente a mostrar-se zangada.

 

Você é detestável, Mister Doucet replicou Serena com voz calma, como se estivesse apenas a fazer um comentário sobre o tempo.

 

Faço sempre o possível por isso.

 

Que simpático.

 

Então, vem? Pousou o caixote com as peças de motor e sentou-se ao lado dela, com as compridas pernas pendendo para a água.

 

Preciso de passar por Chanson du Terre, para ir buscar umas coisas. Tem alguma objecção a isso?

 

Ele olhou-a sem responder e Serena apontou impacientemente para a roupa que trazia.

 

Certamente não quer que eu vá para os pântanos vestida desta maneira.

 

Ele resmungou qualquer coisa e franziu o sobrolho, mas entrou no barco.

 

Não. Venha então. Já estou aqui há demasiado tempo. Veja o sarilho em que me meti. Agora tenho de a levar.

 

Serena aproximou-se da beira do cais e olhou para baixo. Só então se apercebeu de toda a extensão da loucura que estava prestes a cometer. O barco de Lucky não tinha mais de três metros de comprimento, era esguio como uma vagem de ervilha, e quando se sentasse nele não ficaria a mais de um metro de distância das águas escuras do hayou. Quanto à segurança, parecia tão estável como uma folha a flutuar.

 

Serena sentiu o medo apoderar-se dela. Que se passava consigo? Ia pôr a vida em risco, confiando num homem junto de quem não se sentaria num autocarro e metendo-se num barco que lhe parecia tão bom para navegar como o seu sapato partido. No pântano, tudo podia acontecer, uma pessoa podia perder-se e nunca mais ser encontrada.

 

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, fazendo-lhe pele de galinha. Cerrou os lábios e conteve a respiração, esquecendo todas as técnicas de relaxamento que ensinava aos seus doentes. Há muito tempo que não sentia tanto medo, e a intensidade desse medo apanhou-a de surpresa, perturbando-a, escondendo-se no fundo da garganta, como um grito que quisesse libertar-se.

 

Lucky estava de pé na piroga, observando-a, aborrecido pela hesitação dela. Depois Serena empalideceu e a expressão de aborrecimento de Lucky foi substituída por qualquer coisa a que se recusou dar nome. Ela de início encarara a situação como uma mulher capaz de enfrentar todas as circunstâncias, fizera-lhe frente melhor do que muitos homens, mas agora parecia uma peça de porcelana prestes a partir-se devido a uma forte pressão interna. Algo no fundo do seu ser se apiedou disso.

 

Cerrou os dentes, irritado com esse sentimento e cedendo a ele ao mesmo tempo. Por mais endurecido que gostasse de pensar que era não podia ficar ali a vê-la descontrolar-se. Disse a si próprio que era por não querer lidar com uma mulher histérica e, além disso, já decidira que o melhor era fazê-la estar zangada metade do tempo. Um homem tem cuidado se vir uma cobra preparada para morder; as que parecem dóceis e adormecidas é que são perigosas.

 

Não gosta do meu barco, chère? perguntou com a sua voz arrastada, onde se notava uma visível nota de desafio.

 

Bem... hummm... Serena saiu do seu transe com dificuldade, tentando concentrar a atenção na embarcação e na comprida vara que a impelia. Bem, gostava de algo um pouco maior.

 

Talvez um iate? inquiriu sarcasticamente Lucky. Não estamos na Quinta Avenida, querida. Não tenho embarcações para você poder escolher uma à sua medida. Bem, quer descer daí ou tenho de passar o resto do dia a olhar para a sua saia?

 

Serena ficou furiosa com aquelas palavras e isso foi bom, porque lhe fez esquecer o medo que sentia. Juntou os joelhos e apertou a estreita saia em volta das pernas, enquanto descia trémula e desajeitadamente para a piroga, levando o sapato sem salto e a bolsa numa das mãos, e sentindo uma malha a abrir-se na parte de trás de uma das pernas das suas meias.

 

Olhou para a água oleosa com apreensão. A piroga oscilava lentamente e o medo apoderou-se novamente dela. Há aproximadamente quinze anos que não entrava num barco do hayou e duvidava de que se sentisse em segurança ali, mesmo que se tratasse do Queen Elizabeth, mas ele podia ter um maior, com motor, por exemplo.

 

A minha piroga chega-me bem explicou Lucky, estendendo a mão para a ajudar. Certamente não pensava que eu ia andar por aí num iate à espera da oportunidade de transportar uma beldade para um sítio onde ela afinal não devia ir...

 

Serena deitou-lhe um olhar furioso.

 

Não. Apenas tinha alguma esperança de que você não fosse tão pouco civilizado como parece.

 

Lucky riu enquanto as suas grandes mãos rodeavam a cintura de Serena, que arregalou os olhos de surpresa quando os polegares dele roçaram pelos seus seios fazendo com que todo o corpo vibrasse. Soltou um pequeno grito de protesto quando ele a pousou na piroga. A embarcação oscilava assustadoramente e Serena esqueceu o seu orgulho, largou a bolsa e o sapato e agarrou-se às mãos de Lucky.

 

Por instantes ficou presa a ele como se fosse a única coisa que a pudesse impedir de cair nas chamas do inferno e nesses momentos os duros contornos masculinos do corpo dele marcaram-na. Cada músculo, cada contorno do corpo dele ficou gravado na sua memória. Os seios dela comprimiam-se contra o peito de Lucky, a barriga estava encostada à parte de baixo do corpo dele e as grandes mãos pousavam-lhe nas costas. As suas pernas eram sólidas como dois carvalhos. Serena olhou-o, sentindo uma sensação estranhamente primitiva.

 

Oh, sou realmente tão pouco civilizado como pareço declarou Lucky com um sorriso capaz de arrepiar o próprio Diabo, fazendo com que Serena sentisse todos os seus nervos em franja. Pretende fazer alguma coisa quanto a isso? Vai tentar domesticar-me?

 

A sugestão provocou-lhe uma excitação indesejada. Era como se algo explodisse dentro dela e Serena não pôde deixar de se censurar a si própria por essa loucura. Qualquer mulher que tentasse domesticar Lucky Doucet saberia à partida que iria arranjar sarilhos. No entanto, não conseguiu abafar a sensação que essa ideia lhe causou, ao encarar o rosto dele, com o seu queixo firme mal barbeado, a boca de lábios sensuais e olhos que brilhavam com um brilho de ouro. Couraçou-se contra isso, afastando-se um pouco. Ele permitiu que ela o fizesse, mas só depois de lhe mostrar que poderia tê-la todo o dia apertada contra si, se quisesse.

 

Domesticá-lo? exclamou Serena em tom trocista. Preferia neutralizá-lo.

 

Não é preciso replicou Lucky, dando-lhe um pequeno empurrão que a fez sentar no fundo da piroga e voltando-se para remexer no caixote com as peças. Não lhe tocaria nem com uma vara de dez metros, minha senhora É a primeira boa notícia que recebo hoje retorquiu Serena, ignorando uma sensação de desapontamento que assaltou o seu ego feminino, e também a comparação entre Lucky Doucet e uma vara de dez metros.

 

Abanou-se com uma mão, sentindo-se subitamente corada, e viu Lucky tirar o caixote do cais e colocá-lo sobre a piroga. Reparou nos músculos dele sob a pele firme e escura. Depois ele voltou-se e passou por cima do banco onde ela se sentava, fazendo estremecer assustadoramente a piroga.

 

Os dedos de Serena apertaram-se em volta do assento como lapas, ao mesmo tempo que olhava para um reluzente barco de alumínio, com motor, que se encontrava a pouca distância. Parecia grande e luxuoso em comparação com aquela piroga artesanal. Um homem gordo, com um boné na cabeça e camisa aos quadrados, de mangas curtas, puxava nesse momento a corda para ligar o motor.

 

Você deve pensar em entrar no século vinte o mais depressa possível observou Serena, sorrindo docemente. As pessoas utilizam motores.

 

Lucky olhou para a gasolina e o óleo que se misturavam com a água, enquanto o homem gordo puxava a corda. Franziu os sobrolhos, pegou na vara para deslocar a piroga e declarou:

 

Eu não uso.

 

Impeliu-a para a frente, fazendo-a virar para sul.

 

Serena voltou a cabeça e olhou-o por cima dos ombros, alarmada.

 

Este não é o caminho nem para Chanson du Terre, nem para a cabana de pesca de Gifford. Onde pensa que me vai levar, Mister Doucet?

 

Lucky encarou-a fixamente, mas ergueu rapidamente os olhos para não ver os seios dela, que se comprimiam contra a fina seda da blusa.

 

Tenho mais coisas a fazer do que andar a passear a sua cara bonita pelo hayou.

 

Aparentemente era a única resposta que lhe iria dar e a expressão dele revelava que considerava o assunto encerrado.

 

Serena resolveu não forçar a sua sorte, afinal, o barco não era um táxi, por isso não podia decidir como Lucky devia gastar o seu tempo.

 

Olhou em frente e tentou concentrar-se na paisagem em vez de no deslizar sinuoso da piroga nos meandros da água escura. Encontravam-se na extremidade sul da cidade e os únicos edifícios existentes ao longo das margens do hayou eram algumas lojas que vendiam isco para a pesca, uns dilapidados armazéns feitos de cartão coberto de alcatrão, empoleirados sobre pilares, e casas onde se guardavam barcos, feitas de chapa ondulada ferrugenta.

 

Na margem, por entre os arbustos, uma garça-azul, apoiada sobre uma perna, parecia observar a passagem da piroga. Serena observou-a, como se se tratasse de um quadro. O seu vulto gracioso destacava-se sobre um fundo composto por uma trepadeira de flores cor de laranja e enormes fetos verde-escuros. Mais atrás, os ramos de algumas árvores carregadas de bagas vermelhas pareciam erguer os braços para o céu de porcelana azul, no meio de imensos carvalhos com os troncos cobertos de musgo.

 

Lucky impeliu a canoa para um pequeno cais de madeira rodeado de pneus, para o protegerem. A estrutura que se elevava sobre pilares, a uma certa distância, era grande como um celeiro. Tratava-se de uma construção sem nada de notável, pintada de branco e a precisar de pintura. Na fachada, por cima da galeria, havia um grande letreiro com letras vermelhas, com um metro de altura, onde se lia MOSQUITO MOUTON’S. Reclamos de metal enferrujado publicitavam várias marcas de cerveja ao longo de todas as janelas do edifício. Apesar de se estar a meio do dia, havia vários carros parados no parque de estacionamento pavimentado com conchas esmagadas. O som de música saía das portas de batentes duplos, com molas, reforçando os gritos e as gargalhadas ocasionais.

 

Um bar? perguntou imperiosamente Serena, olhando para Lucky de sobrolho franzido, incrédula, quando o viu impelir a piroga ao longo do cais. É aqui que tem de parar para nos atrasar? Num bar?

 

Tenho uns assuntos a tratar aqui. Não demoro. Fique à espera no barco.

 

Espero no...! exclamou Serena, irritada, enquanto ele subia para o cais e se dirigia para o bar sem olhar para trás.

 

Só Deus sabia o que ele iria fazer e quanto tempo demoraria. Entretanto ficaria sentada a apodrecer naquele estúpido barco. O sol caía em cheio sobre ela e o calor tornava-se mais insuportável devido à humidade. Sentia o seu fato de linho encolher, mirrando como uma orquídea a murchar. Era evidente que ficaria irrecuperável, pensou Serena com uma careta, observando a mancha de óleo numa das mangas. Amaldiçoou-se por ter deixado que Shelby a convencesse a procurar tão depressa um guia... se não tivessse permitido que velhos sentimentos se apoderassem dela... se tivesse avaliado calmamente a situação, como faria em Charleston... Era o que o regresso a casa podia provocar numa pessoa. Em Charleston, tinha a sua vida organizada, uma situação estável, uma imagem equilibrada que construíra de si própria entre as pessoas com quem se relacionava. Contudo, ali era a casa dela, o sítio onde nascera, e quando ali chegava passava imediatamente a ser a neta de Gifford Sheridan, gémea de Shelby Sheridan, antiga impulsionadora dos debates na escola secundária. Velhos sentimentos e antigas normas de comportamento vinham ao de cima como fantasmas, apagando o verniz da idade adulta, arrancando-o como a casca de uma árvore.

 

Era em parte uma das razões que a levavam a manter-se afastada dali. Gostava da vida que tinha em Charleston, dedicada à sua profissão, controlando as suas acções. Mas ali era diferente, o próprio ambiente fazia com que se sentisse instável e insegura.

 

Aquele sítio, Mosquito Mouton’s, era um exemplo perfeito disso. Era muito conhecido e ela fora criada na convicção de que só os rufiões o frequentavam. Nenhuma rapariga decente lá entraria, nem sequer se aproximaria. Sentada na piroga de Lucky Doucet, Serena sentiu necessidade de olhar em volta para verificar se haveria ali alguém que a pudesse reconhecer. Sentia-se como uma adolescente que faltasse pela primeira vez às aulas.

 

Cruzando os braços sobre o peito, suspirou e fechou os olhos, pensando no seu bonito apartamento em Charleston, decorado com cores suaves e padrões femininos e com vista para o mar. Nas traseiras tinha um pequeno jardim e encontrava-se muito, muito longe do pântano e de Lucky Doucet.

No instante em que as portas se fecharam, dando passagem a Lucky, todas as cabeças se voltaram na direcção dele.

 

O local estava meio cheio e ficaria a rebentar pelas costuras ao pôr do Sol. Nas traseiras jogava-se e havia raparigas dispostas a tudo a troco de alguns dólares, ou mesmo gratuitamente. A partir dali arranjava-se maneira de assistir a uma luta de cães, a um combate entre homens, ou podia-se ir a um bordel, ou a vários outros antros que não era suposto existirem no civilizado Sul.

 

Era o paradeiro de caçadores furtivos e de indivíduos que tinham mais sombras no seu passado do que o pântano, e mesmo entre eles Lucky Doucet destacava-se como um homem notavelmente perigoso. Os presentes observavam-no com cuidado, as mulheres com cobiça, mas ninguém se aproximava dele.

 

O barman, um homem forte, com uma curta e densa barba grisalha, emitiu um gemido e ergueu os olhos para o tecto como se sofresse de dores. Ergueu a rodilha com que estava a limpar o balcão e levou-a ao seu duplo queixo, como uma velha matrona prestes a desmaiar.

 

Valha-me Deus. Não quero sarilhos aqui disse a Lucky, que se encontrava na extremidade do bar, e os seus dedos curtos, gordos como salsichas, apertavam a rodilha num gesto de súplica. A casa ainda não está completamente arranjada desde a última desordem.

 

Lucky encolheu os ombros ostensivamente, pestanejando com ar inocente.

 

Sarilhos? Eu causei-te sarilhos, Skeeter? Que diabo, venho apenas beber um copo. Dá-me um shot e uma Jax de pescoço comprido.

 

Murmurando preces, Skeeter apressou-se a satisfazer o pedido, enquanto gotas de suor lhe inundavam a cabeça calva.

 

O olhar de Lucky pousou em Pou Perret, um homem baixo com a cara marcada pelas bexigas e o aspecto de um rato-almiscarado, com o seu bigodinho fino e pendente. Estava sentado na extremidade do bar, profundamente embrenhado numa conversa com um árbitro de lutas de galos. Pegando na sua garrafa de cerveja pelo gargalo, Lucky aproximou-se deles e deu uma palmadinha num ombro do árbitro.

 

Eh, amigo, parece que ouvi a sua mãe chamá-lo. O homem olhou para Lucky, abandonou o lugar e, olhando nervosamente para Perrett, dirigiu-se para a zona mais cheia de fumo do bar. Lucky sentou-se no banco ao lado do baixote e apoiou os pés no varão de metal.

 

Que fazes aqui, Pou? Onde está o Willis? Lá atrás a fazer batota no bourré? Tu ficaste aqui de guarda, não, meu malandro?

 

Pou encolheu-se no seu banco, como um cão com receio de que lhe dessem um pontapé. Depois murmurou entre dentes uma sugestão obscena.

 

Isso é anatomicamente impossível, mon ami. respondeu Lucky, bebendo mais um gole de cerveja. Vês as coisas que podias ter aprendido se tivesses ficado na escola depois do sexto ano? Durante todo este tempo tens-te cansado a fazer a ti próprio isso que me sugeriste.

 

Riu da expressão comicamente ofendida de Perrett, enquanto tirava um cigarro de um maço que se encontrava em cima do balcão. Acendeu-o, aspirou profundamente, exalando uma espiral de fumo, encolheu os ombros e sorriu malevolamente.

 

Claro que pode ser que o Willis te ajude nisso, não é? Os olhos de Pou fecharam-se até ficarem só umas pequenas frestas.

 

Bastardo murmurou.

 

A expressão de Lucky permaneceu perigosamente impassível. O sorriso não desapareceu, mas o seu aspecto aconselhava até mesmo os tolos a não se aproximarem dele.

 

Se disseres isso em frente da minha maman corto-te a língua, mon cher. Os meus pais são pessoas perfeitamente respeitáveis, como sabes.

 

Sim admitiu Perrett de má vontade, metendo a cabeça entre os ombros ossudos, como um abutre, e coçando o peito por cima da camisola de algodão preto.

 

Os olhos de Lucky brilhavam naquela meia luz enquanto olhava directamente para a cara de furão de Perrett.

 

Não sabias que eu sou um mutante? Vim directamente do inferno.

 

Perrett agitou-se no seu banco. A superstição brilhava nos seus olhos escuros, como se ele estivesse com febre. Ergueu uma mão para a moeda furada que trazia sempre ao pescoço, suspensa de um fio. Tirou o seu maço de cigarros do alcance de Lucky e acendeu um, fitando o outro pelo canto do olho.

 

Que queres, Doucet?

 

Lucky levou tempo a responder. Levantou-se e afastou o banco para poder ficar mais perto de Perrett. Apagou o cigarro no cinzeiro, bebeu um gole de cerveja e olhou directamente o interlocutor.

 

Nas duas últimas semanas tens andado a farejar na parte errada do pântano.

 

O outro encolheu os ombros, ignorando o aviso.

 

Estamos num país livre. O pântano não é teu, Doucet.

 

Não? replicou Lucky. Bem, esta faca é minha, não é? perguntou, tirando-a da bainha. Depois agarrou Pou pela parte da frente da camisola e aproximou a cara da dele, fazendo-o quase cair do banco. A larga lâmina brilhava a poucos centímetros do nariz do outro. E com ela posso cortar-te aos bocados para fazer isco para os jacarés, não posso?

 

Em volta deles as conversas emudeceram de repente... Do outro lado do bar, Skeeter Mouton gemeu e benzeu-se, dizendo uma prece pela salvação do seu estabelecimento. A jukebox começou a transmitir música de acordeão tocada por Clifton Chenier, tão pouco a propósito como uma banda de música reggae numa igreja.

 

Então, Lucky! Não o cortes aqui. Nunca mais acabava de limpar o sangue do chão.

 

Perrett empalideceu e tentou engolir a saliva, como se estivesse engasgado com uma pedra. Os seus olhos escuros não deixavam de olhar para a faca que Lucky empunhava.

 

Nesse momento a porta abriu-se de rompante e entrou um grupo de homens, cujas expressões revelavam curiosidade e cólera. À frente vinha Gene Willis, um indivíduo corpulento, com umas mãos enormes e uma cara patibular. Era perigoso, já estivera preso, e dirigiu-se para Lucky com uma expressão assassina no olhar.

 

Este largou Perrett, agarrou no copo com o uísque que não bebera e atirou-o à cara de Willis. O homenzarrão uivou e atirou os punhos para a frente, às cegas, para atingir Lucky, que lhe desferiu um pontapé no baixo-ventre. Perrett aproveitou a distracção para pegar na garrafa de cerveja de Lucky e parti-la na beira do balcão, mas, quando se preparava para atingir a cabeça de Lucky com ela, ouviu-se um tiro. As mulheres gritaram e alguém desligou a jukebox. O silêncio foi então quebrado por uma voz de homem.

 

Parem! Ou acabam com isto, ou juro que mato algum de vocês e digo que foi no cumprimento do dever.

 

Perrett largou a garrafa e baixou-se, deslizando como a ratazana que era, enquanto Willis, estendido no chão, gemia com as mãos no baixo-ventre.

 

Lucky recuou lentamente e meteu a faca na bainha, fitando o agente uniformizado que saíra da sala das traseiras onde estivera a jogar às cartas com Willis. Lucky andara na escola com Perry Davis e desde essa altura que antipatizava com ele. O agente era um homem de pele clara e cabelo louro, com cara de bebé e um aborrecido ar de auto-suficiência, que só aumentara com a idade e que era descabido, visto ele ser um péssimo representante da lei.

 

Lucky tirou o cigarro do cinzeiro e levou-o aos lábios.

 

É este o trabalho que achas que deves fazer no Departamento de Vida Selvagem e Pescas, agente Davis? Jogar o bourré num bar à beira da estrada?

 

O outro olhou-o friamente.

 

O que estou aqui a fazer não é da tua conta, Doucet.

 

Não? Um funcionário governamental a jogar nas horas de serviço à custa do dinheiro dos contribuintes, não me diz respeito?

 

Que te importa? Duvido de que pagues impostos e também não és certamente respeitável.

 

Lucky riu.

 

Tens razão, cher. Seria bom não esqueceres isso.

 

Estás a ameaçar-me, Doucet?

 

Quem, eu? Não faço ameaças. Os seus olhos adquiriram o tom de metal frio e a voz baixou ameaçadoramente. Não preciso de as fazer.

 

Um músculo tremeu nervosamente no queixo de Davis.

 

Não tenho medo de ti, Lucky. Lucky tornou a sorrir.

 

Bem, então não deve ser verdade o que as pessoas dizem a teu respeito. És realmente tão parvo como pareces.

 

O rosto pálido de Davis tornou-se vermelho, mas não replicou. Meteu a arma no coldre e fez sinal aos homens para dispersarem e voltarem para o sítio onde estavam antes da discussão.

 

Willis levantou-se com dificuldade. Dobrado sobre si, com um braço sobre o ventre, olhou Lucky com agressividade.

 

Hei-de apanhar-te, meu sacana. Espera e verás. Lucky deitou a ponta do cigarro para o chão e apagou-a com a biqueira da bota.

 

Não vou perder o sono por causa disso, podes crer. Mantém-te afastado do meu pântano, Willis.

 

Voltou-se para a porta para sair e o coração deu-lhe um pulo no peito. Serena Sheridan estava na sua frente, com a sua pequena carteira de cabedal apertada contra o peito, os olhos muito abertos e a bonita boca igualmente aberta com uma expressão chocada. Com o seu simples fato de saia e casaco e o cabelo penteado para trás parecia uma menina que acabasse de ver pela primeira vez um homem nu.

 

Lucky praguejou interiormente. Não queria que aquilo tivesse acontecido. Não era por gosto que se aproximava de Pou Perrett ou de Gene Willis, e também não pedira para ser dama de companhia de Serena Sheridan. Tudo aquilo provinha das vidas dos outros, que teimavam em cruzar-se no seu caminho, o que só o aborrecia.

 

Pegou num braço de Serena e encaminhou-a para a porta.

 

Tem uma verdadeira habilidade para aparecer nos sítios onde não deve, não é verdade?

 

Serena olhou-o, mas ficou calada, profundamente chocada. Qualquer pessoa que visse Doucet acharia que se tratava de um homem duro, mas ela não se tinha apercebido até que ponto poderia ser perigoso. De certo modo, o facto de ele conhecer o avô dela fizera-a esquecer o género de pessoa que ele era. Mas agora, depois de presenciar aquela cena, percebia bem com quem se metera.

 

Tratava-se de um caçador furtivo, um ladrão, que ameaçava pessoas com facas e se ria da autoridade. Praticamente fizera-o na cara do guarda-caça. Só Deus sabia que leis ele seria capaz de infringir sem remorsos.

 

Serena? Serena Sheridan?

 

Perry Davis parou em frente deles, com uma expressão interrogativa, que mostrava claramente quanto ficara surpreendido por a encontrar ali.

 

Este homem está a incomodá-la?

 

O olhar de Serena foi de Lucky para Davis. Era a sua oportunidade, a altura do filme em que toda a gente grita à heroína que fuja, mas ela parecia não poder falar e a oportunidade perdeu-se.

 

Desaparece, Davis disse Lucky. A senhora está comigo.

 

Davis não parecia convencido, mas como Serena continuou calada encolheu os ombros e afastou-se.

 

Conhece aquele tipo? perguntou Lucky, encaminhando^a para a porta.

 

É um amigo da família. Lucky fez uma careta.

 

Devia escolher melhor os seus amigos, querida. Serena quase soltou uma gargalhada, espantada pelo que vira e ouvira. Porque diabo estava ainda ali? Porque não aproveitara a oportunidade de lhe fugir? Olhou Lucky com uma espécie de assombro, tentando descobrir nele algo de bom, alguma qualidade que se evidenciasse no meio daquele rude machismo.

 

Julguei que lhe tinha dito que esperasse no barco observou Lucky irritadamente, olhando-a.

 

Esperei até chegar uma camioneta cheia de rufiões. Tive de escolher entre o menor de dois males e decidi vir ter consigo.

 

E agora não sabe se fez bem?

 

Abriu a porta para lhe dar passagem e Serena foi recebida por um coro de assobios e comentários grosseiros. Fechou os olhos, suspirou e esfregou a testa. Aquele dia era para esquecer.

 

A porta abriu-se de novo e logo que Lucky apareceu e começou a andar ao lado dela fez-se silêncio. Ele passou-lhe então um braço pela cintura, num gesto possessivo mas protector, nada ameaçador sexualmente. Na verdade era quase reconfortante. Serena olhou-o, surpreendida, enquanto Lucky encarava de sobrolho franzido os operários dos poços petrolíferos que ali se encontravam reunidos.

 

Não lhes ensinaram a respeitar as senhoras, na vossa terra? perguntou naquela voz calma que arrepiava Serena.

 

Ninguém respondeu. Aqueles homens eram rudes, não recuariam perante uma luta, mas também não pareciam dispostos a iniciá-la, talvez não fossem tão perigosos como Serena julgara, ou talvez já conhecessem Lucky e a sua faca. Provavelmente estavam todos a pensar no que fazia ela ali, na companhia do homem mais perigoso da Luisiana do Sul.

 

Serena ergueu a cabeça e tentou descer as escadas com a maior compostura.

 

Gostaria de ir para casa, Mister Doucet, se não se importa. Vejo que é um homem muito ocupado e posso arranjar outra maneira de ir ter com o meu avô amanhã.

 

Lucky parou e descansou as mãos na cintura. Olhou para o hayou, franzindo os olhos devido ao sol, e suspirou. Aquilo era estúpido. Queria ver-se livre da rapariga, não queria? Queria que pensasse o pior a respeito dele, não era? Devia sentir-se satisfeito por ela se querer ir embora, mas a verdade é que tal não sucedia. Era um verdadeiro masoquista, sem dúvida. Contudo, não o devia preocupar o facto de uma mulher como Serena Sheridan o olhar com desdém e desconfiança, o sentimento era recíproco a cento e dez por cento. Não podia olhar para ela sem se sentir... o quê?

 

Excitado, mas era apenas uma resposta instintiva. Claro que a desejava, como qualquer homem que não estivesse insensível abaixo da cintura. Serena era bonita como uma deusa à sua maneira fria e etérea. Claro que isso o punha louco. Gostaria de tirar os ganchos do cabelo dela e de passar os dedos por aquela seda cor de mel. Claro que se queria enterrar entre aquelas pernas compridas e elegantes. Claro que a queria beijar e acariciar aqueles seios altos e orgulhosos, mas sabia muito bem o que daí podia resultar.

 

Ira, era o que de facto sentia, e ressentimento. Ela era a gémea de Shelby, e tinha um doutoramento em psicologia. Dieu, que pesadelo!

 

Mas era também a neta de Giff Sheridan, e ele fizera uma promessa ao velho, recordação que o fez suspirar outra vez e praguejar para si, em francês.

 

Olhe disse calmamente, não sei o que você viu e ouviu ali, mas isso nada tem a ver com o facto de eu a levar a Giff. Prometo que chegará lá sã e salva. Não vou dá-la a comer aos jacarés, nem vendê-la aos traficantes de carne branca, nem nada disso. Giff é meu amigo.

 

Serena observava-o atentamente, assombrada. As faces dele estavam coradas. Viu-o mexer os pés nervosamente sobre o pavimento feito de conchas esmagadas do parque de estacionamento, recusando-se a olhá-la. A verdade é que parecia embaraçado, contrito...

 

Céus, que se passaria com ela para pensar aquilo? Lucky Doucet não era nenhum escuteiro prestável, provavelmente comia-os à sobremesa, palitando depois os dentes com psicólogas louras que viam qualidades redentoras onde não as havia. Não devia pensar nele, devia receá-lo, mas isso não acontecia.

 

Obviamente, perdera a sanidade mental. Era aquele lugar selvagem, primitivo, cujo ar estava carregado de aromas que lhe invadiam o cérebro. O que lhe restava do seu senso comum dizia-lhe que não confiasse naquele homem, mas não era capaz de se afastar dele.

 

Estou espantada comentou por fim.

 

Porquê? Por eu não a vender a traficantes de carne branca?

 

Os cantos da boca de Serena ergueram-se num sorriso trocista.

 

Não, por você ter um amigo.

 

 

Chanson du Terre. Mesmo que vivesse cem anos, Serena sabia que nunca se cansaria de a ver, dava-lhe uma sensação de segurança e de tradição. Os Sheridan tinham vivido ali desde que um seu antepassado ganhara a propriedade ao jogo, em 1789. Poderia não ser a sua residência permanente, mas era a sua herança.

 

A mansão ficava na extremidade de uma comprida álea de carvalhos, com os troncos cobertos de musgo, cujos largos ramos se entrelaçavam formando uma abóbada. Era uma espécie de castelo, uma combinação de casa senhorial francesa e do estilo das índias Ocidentais, com um telhado inclinado e rodeada por largas galerias, que se estendiam à volta de todo o edifício de dois andares.

 

À primeira vista, pareceu a Serena como sempre. Graciosa, confortável, mas sem ostentação. Depois, pôs de parte o brilho dourado das recordações e viu-a como ela era de facto agora, como se a estivesse a contemplar pela primeira vez.

 

O telhado precisava de ser reparado devido às fortes chuvas da Primavera. Faltavam telhas e um grande oleado azul cobria parte da ala norte. As colunas da galeria superior necessitavam de ser pintadas e havia algumas falhas na balaustrada, fazendo lembrar um largo sorriso de uma boca a que faltassem dentes. As paredes do rés-do-chão e os lados da casa estavam pintados de amarelo, mas a tinta desbotara e agora a cor era a de um velho pergaminho, em vez do tom amarelo-manteiga de que ela se lembrava.

 

As recordações eram lisonjeiras, pensou Serena, mas a realidade era como ver um velho parente que tivesse envelhecido entre duas visitas.

 

Atravessou o vasto relvado com passos apressados, levando na mão a carteira e os sapatos. No andar de cima abriu-se subitamente uma porta que dava para a galeria e os sobrinhos surgiram numa correria desordenada. Lacey, de seis anos, desceu os largos degraus a gritar estridentemente, seguida de perto por John Mason, de oito, que segurava entre os dedos uma pequena rã.

 

John Mason, deixa a tua irmã em paz! gritou Shelby Sheridan Talbot, que apareceu logo a seguir na galeria. Era um pouco mais baixa que Serena e mais roliça. Os seus olhos castanhos tinham um formato mais exótico e a sua boca parecia ostentar uma expressão petulante de amuo permanente. Para além dessas pequenas diferenças eram fisicamente muito iguais. Shelby parecia pronta para falar na Câmara do Comércio. Trazia um fato de saia e casaco amarelo-vivo que lhe marcava bem as ancas, num toque de feminilidade. A blusa de seda cor de esmeralda fechava com um grande laço no pescoço. Serena sentiu-se trapalhona, comparada com ela.

 

Oh meu Deus, Serena! exclamou dramaticamente Shelby, comprimindo as mãos bem tratadas sobre as faces, e exibindo um grosso anel de brilhantes com um grande topázio.

 

Que te aconteceu? Parece que foste assaltada ou atropelada por um camião. Ou as duas coisas.

 

Muito obrigada replicou Serena, começando a subir os degraus e desejando, pouco caridosamente, ter sido filha única.

 

O temperamento de Shelby era caprichoso como o tempo ensolarado num instante e logo a seguir tempestuoso. Tinha tendência para ser tola e frívola e os seus constantes amuos eram cansativos, além de ter uma maneira de dizer as coisas simultaneamente inocente e astuta, o que tornava enfadonho conversar com ela.

 

Serena entrou na galeria a coxear e com uma expressão de desagrado. Shelby seguiu-a a certa distância, com uma careta de repugnância, tendo o cuidado de não lhe tocar.

 

O meu dia não tem sido famoso, Shelby, e agora não tenho tempo para te contar os pormenores escabrosos disse Serena. Preciso de mudar de roupa para me ir embora. Podes fazer o favor de arranjar alguém que vá buscar o meu carro à cidade? Deixei-o perto da loja de Gauthier. A expressão de Shelby mudou imediatamente, deixando de revelar uma falsa preocupação para mostrar um aborrecimento infantil.

 

Com certeza, Serena. Não tenho mais nada que fazer do que tratar dos teus assuntos. Com franqueza! Chegas a casa num estado lastimoso, deixas-me preocupada e a primeira coisa que fazes é dar uma ordem. É mesmo coisa tua.

 

Serena afastou-se da irmã a coxear. Duvidava sinceramente de que a irmã tivesse sequer dado pela sua ausência. As mais prementes preocupações de Shelby eram o guarda-roupa e os assuntos comunitários em que participava não por dever cívico, mas apenas para obter estatuto social. Era tão bonita e pouco profunda como um lago com flores num jardim japonês.

 

Serena entrou em casa e dirigiu-se para o corredor, lamentando não ter tempo de tomar contacto com o ambiente da casa onde nascera e crescera. Além de ter sido restaurada nos primeiros anos de 1900 e de algumas posteriores modificações para instalação da canalização e da electricidade, a casa pouco mudara através da sua longa história. Era uma arca de tesouro cheia de heranças e antiguidades que fariam crescer água na boca a um director de museu, mas não tinha tempo para apreciar as paredes com painéis de madeira dourados, nem as velhas carpetes turcas que ainda agora pareciam faiscar como jóias sobre o soalho encerado. Dirigiu-se directamente para o seu antigo quarto, onde, ao chegar nessa manhã, nada mais fizera do que deixar as malas antes de sair apressadamente, na sua obstinação de ir procurar um guia.

 

Vais-te embora? perguntou Shelby, parecendo que só nessa altura as palavras da irmã tinham penetrado na sua indignação. Para onde vais? continuou, puxando pela manga do casaco de Serena, como uma criança que procurasse captar a atenção da mãe.

 

Vou falar com Gifford.

 

Não podes ir agora! gritou Shelby num tom de voz dramático, seguindo Serena até ao quarto, pondo-se em posição para se manter dentro do campo de visão da irmã e arvorando a sua expressão mais infeliz, enquanto torcia as mãos dar para maior efeito. Nem penses nisso! Acabaste de chegar e nem sequer tivemos oportunidade de conversar. Nem te falei da minha nova casa e de como os meus filhos vão bem na escola. Também não te disse que posso vir a ser considerada a mulher de negócios do ano pela Câmara do Comércio. Não te podes ir embora!

 

Serena, ignorando a ordem, começou a despir-se, colocando a roupa suja em monte no chão. Olhou para a mala aberta em cima da cama. Sabia que nada tinha ali que fosse apropriado para um pântano. Apesar de ter passado a infância atrás de Gifford, no meio das plantações de cana-de-açúcar, a vida que levava em Charleston não era compatível com o uso de calças de ganga, nem de botas de borracha até aos joelhos.

 

Odille está a preparar uma perna de cabrito para o jantar continuou Shelby.

 

Andava em volta do quarto com movimentos rápidos, nervosos, saltitando de lugar para lugar como uma borboleta, parando apenas o tempo suficiente para endireitar uma boneca ou endireitar o arranjo das flores na jarra de porcelana que se encontrava sobre o toucador de cerejeira esculpida.

 

Nem podes imaginar a luta que travei com ela para a convencer. Na verdade, essa mulher é tão retorcida como o dia é comprido. Tem-me desafiado constantemente desde que eu e Mason nos mudámos para cá. E, além disso, assusta as crianças, disse-lhes que lhes fazia um feitiço e elas julgam que é uma bruxa. Não compreendo por que motivo Gifford a conserva aqui.

 

Gosta de discutir com ela, acho eu observou Serena ao imaginar a impertinente Odile a enfrentar o não menos impertinente Gifford.

 

Odille Fontenot era tão teimosa e trabalhadora como uma mula. Alta e magra, com a pele muito escura e esticada sobre os ossos, tinha uns olhos de um azul-turquesa que brilhavam como jorros de gás com a força da sua personalidade. Era austera, supersticiosa e obstinada. Passara a ser governanta da casa depois de Serena e Shelby partirem e de Mae, a senhora que ajudara a educá-las, se ter ido embora. Odille tinha provavelmente sessenta e muitos anos, mas ninguém se atrevia a perguntar.

 

Serena tirou da mala umas calças de algodão branco e um top de malha também branco com riscas vermelhas. Um rápido olhar para o espelho revelou-lhe que os ganchos estavam a cair-lhe do cabelo, mas não havia tempo para se preocupar com isso.

 

Além disso acrescentou Serena com voz abafada, enquanto enfiava o top pela cabeça, o irmão de Odille é o melhor amigo de Gifford.

 

Shelby deixou subitamente de arranjar os objectos sobre o toucador e olhou para a irmã através do espelho.

 

Disseste que ias ter com Gifford? Quer dizer que vais para o pântano?

 

Serena puxou o fecho das calças e fitou a irmã nos olhos.

 

Não foi isso que me disseste para fazer?

 

As faces de Shelby coraram por baixo da maquilhagem perfeita e ela desviou o olhar, sentindo-se subitamente desconfortável.

 

Julgo que não pensei que fosses capaz.

 

Que achavas que eu iria fazer? Nada? Que ignorasse o problema?

 

Shelby voltou-se então e encarou-a, mudando outra vez de disposição.

 

Que o ignorasses como eu, é isso que queres dizer? replicou com ar indignado. Lamento não estar à altura do que tu esperavas de mim, Serena, mas tenho outras responsabilidades. Se Gifford quer ir viver no meio dum pântano cheio de cobras, eu não posso largar tudo para correr atrás dele.

 

Bem, não precisas de ir replicou Serena com ar cansado. Porque eu vou.

 

Shelby dirigiu-se para a porta que dava para a galeria, enrolou um pedaço do cortinado transparente nos dedos e observou:

 

Não achas que Gifford vai ficar admirado por tu conseguires dominar o pavor que tens do pântano?

 

Serena olhou demoradamente para a irmã com uma expressão que era um misto de cólera e desgosto, mas não fez qualquer comentário, recusou-se a isso. Nunca lhe falara do seu medo pelo pântano nem da maneira como o adquirira. O tema fora tacitamente considerado tabu para as duas, era um assunto perigoso, que Shelby aflorava ao de leve quando se sentia perturbada.

 

Serena nem sequer tinha a certeza de que a irmã percebesse como o assunto era melindroso. Não por ser estúpida, mas por exagerar a importância de tudo o que lhe dizia respeito directamente e por minimizar o resto.

 

Serena calçou as sapatilhas de lona vermelha e fechou a mala com um clique decidido. Não tinha tempo de analisar a psique da irmã, mesmo que quisesse fazê-lo.

 

Vou-me embora declarou com calma, fazendo o possível por controlar-se. Não sei quando voltarei. Conhecendo Gifford como conheço, acho que posso demorar um ou dois dias.

 

Pôs a alça da pequena mochila ao ombro e pegou na mala que estava em cima da cama. Depois, sem olhar para Shelby, dirigiu-se para a porta.

 

Serena, espera chamou Shelby num tom contrito, correndo atrás dela pelo corredor.

 

Não posso, Lucky deu-me dez minutos e tenho a certeza de que se irá embora sem mim só para provar que não cheguei a horas.

 

Lucky? repetiu Shelby, ofegante. Lucky quê?

 

Lucky Doucet respondeu Serena, empurrando a porta de rede com uma perna. Ele vai levar-me à cabana de Gifford.

 

O rosto de Shelby empalideceu dramaticamente, mas Serena não estava a olhar.

 

Valha-me Deus articulou por fim, indo atrás dela. Não podes ir. Fazes ideia do que as pessoas dizem dele?

 

Posso imaginar.

 

Não vás insistiu Shelby levando uma mão ao peito e abanando-se com a outra, como se fosse desmaiar. Não sei como a mãe dele consegue andar de cabeça erguida, coitada. E é uma pessoa muito querida. A família é perfeitamente civilizada, simpática, educada, mas ele... esse Lucky... só arranja sarilhos. Vive no pântano como um animal desde que saiu do exército. Todos dizem que é meio doido.

 

Podem ter razão concordou Serena, lembrando-se das próprias palavras de Lucky sobre o assunto, mas é a única pessoa que consegui encontrar para me levar.

 

Bem, acho que não devias ir com ele. Quem pode adivinhar o que poderá fazer ou dizer?

 

Serena suspirou.

 

Shelby, uma de nós tem de ir ter com Gifford. Tu não estás disposta a fazê-lo e Lucky Doucet é o único capaz de me levar.

 

Shelby amuou, fazendo beicinho e pestanejando.

 

Bem, acho que não devias ir repetiu. Mais nada.

 

Muito bem. Tomo devida nota dos teus protestos. As minhas desculpas a Odille.

 

Tem cuidado.

 

Serena parou ao ouvir a recomendação da irmã. Era muito raro ela demonstrar qualquer preocupação com outra pessoa, pois centrava tudo em si. Podia ser mesquinha, frívola e até cruel, mas de vez em quando revelava alguma afeição, preocupação ou amor, uma pequena jóia que oferecia. Esses gestos eram simultaneamente comoventes e perturbadores.

 

Terei respondeu calmamente.

 

Atravessou o relvado quase a correr, coxeando e com a mala a bater-lhe nas pernas. A sola do pé doía-lhe, pois ainda não tirara a lasca de madeira que lá se enterrara há pouco. Olhava para o cais de embarque e esforçava-se por afastar Shelby do seu pensamento.

 

Durante toda a vida, sempre lhes tinham dito que deviam sentir-se especialmente unidas por serem gémeas, que o elo entre elas devia ser algo de raro, mas Serena ouvira sempre esses comentários com vontade de rir. Ela e Shelby não se assemelhavam em nada, a não ser fisicamente, eram tão diferentes como o Verão e o Inverno. Segundo afirmava Shelby, haviam sido rivais desde o berço: esta parecia sentir ressentimento por Serena ter nascido ao mesmo tempo que ela, como se tivesse feito isso propositadamente para lhe roubar a glória. Tentando evitar essa rivalidade, Serena foi-se afastando da irmã, criando interesses e sonhos diferentes, alargando ainda mais o espaço que as separava. Lamentara sempre o facto de não serem unidas, mas viviam em planos separados e não havia telepatia entre elas. Por vezes, parecia até que não falavam a mesma língua. As únicas coisas que as uniam eram o sangue, a herança e Chanson du Terre.

 

Os elementos do relacionamento das duas eram complexos e, como psicóloga, Serena podia ter achado isso fascinante se se tratasse de outras pessoas, que ela pudesse examinar à distância, com fria objectividade. Contudo, estava demasiado perto, tinha muitas recordações dolorosas que ligavam as diferentes facetas do problema e receava o que pudesse vir a descobrir se afastassse tudo o que rodeava o assunto. Temia ir encontrar um vazio, e que sucederia então? Talvez perdesse a esperança que ainda acalentava no fundo do coração. Era mais simples para ambas deixar as coisas como estavam.

 

Quando se aproximou do cais, viu os sobrinhos, que pareciam vir de lá, correndo e gritando. Passaram por ela sem a ver, fugindo para a segurança da casa e da mãe. Lucky lá estava, fumando um cigarro, com um sorriso malicioso nos cantos da boca.

 

Não é capaz de passar dez minutos sem aterrorizar ninguém? perguntou-lhe Serena.

 

Os seus dez minutos acabaram há cinco. Tem sorte em eu não me ter ido embora.

 

É uma questão de opinião resmungou Serena. Que lhes disse? Não tem vergonha de assustar crianças? De lhes causar pesadelos?

 

Lucky ergueu os olhos para o céu e deitou fora a ponta do cigarro.

 

Essas duas crianças é que são um pesadelo.

 

Eu, se fosse a si, não diria isso de maneira que Shelby ouvisse.

 

Podia dizer coisas bem piores dela replicou Lucky, quase como se falasse para si mesmo.

 

Serena olhou-o com curiosidade. A expressão dele tornara-se fechada e fria. Fechara uma porta, mas Serena sentiu-se compelida a empurrá-la.

 

Conhece a minha irmã? perguntou, apesar de isso lhe parecer tão improvável como... como ela própria ir com ele para o pântano.

 

Lucky não respondeu. Nunca falara a ninguém do seu relacionamento com Shelby e agora não ia certamente contar a história à irmã gémea. Preferia deixar a ferida cicatrizada, embora não completamente curada. De modo algum iria abri-la para contar àquela mulher o que se passara. Além de ser irmã de Shelby, era psicóloga. Não lhe faltava mais nada senão que uma ”doutora” quisesse penetrar na sua psique. Assim, voltou a sua atenção para a bagagem e para a bonita roupa que Serena usava.

 

Onde pensa que vamos, chère! Ao clube?

 

Serena deitou-lhe um frio olhar de princesa distante.

 

Fique sabendo, Mister Doucet, que não tenho no meu guarda-roupa uma colecção de fatos de treino e de camuflados. Não costumo passar os meus tempos livres no pântano.

 

Oh, não acho difícil acreditar nisso. Aposto que está sempre muito ocupada a dar jantares e a ir a concertos, para sequer pensar que o pântano existe.

 

Porque havia de pensar? Não precisa que eu lhe faça coisa alguma. Existe, simplesmente.

 

”Não por muito tempo se a sua irmã puder fazer alguma coisa.” Esse pensamento ocorreu imediatamente a Lucky, mas não o revelou. Não desejava envolver-se mais no assunto. Ia levar Serena até junto de Gifford e mais nada. Não lhe competia a si salvar o pântano, pois já tinha muito que fazer tentando salvar-se a si próprio.

 

De qualquer modo, de que serviria falar com Serena? Ela era uma mulher elegante, sofisticada, morava na cidade e obviamente não sentia qualquer afinidade com o local onde tinha nascido. Que lhe importaria a ela que a Tristar Chemicals quisesse arruinar um delicado ecossistema, que os homens tentavam preservar há anos? Estava convencido de que ela se encontrava a par da questão e que só queria ir falar com o avô para o convencer a vender as terras. Afinal, era irmã gémea da outra. Que mais poderia esperar dela além de engano e traição?

 

Olhou-a vestida com o elegante conjunto desportivo. Estava habituada a ter dinheiro, boas coisas, não seria de espantar que quisesse mais. As mulheres da classe dela pensavam assim: o luxo e o conforto em primeiro lugar, o resto que fosse para o inferno. Não lhe daria ouvidos, ele era apenas um meio para atingir um fim... uma vez mais.

 

Entre no barco ordenou de mau modo, sentindo a irritação dominá-lo.

 

Serena deu um passo para ele, erguendo o queixo numa expressão obstinada.

 

Sabe, Mister Doucet, podíamos entender-nos muito melhor, se deixasse de querer dar-me ordens.

 

Lucky aproximou-se dela, dominando-a com a sua altura, tentando assustá-la com a sua expressão carrancuda.

 

Não quero entender-me bem consigo. Isto é suficientemente claro, Miss Sheridan?

 

Claro como cristal.

 

Serena levantou a cabeça para o fitar, recusando-se a recuar. Lucky conteve a respiração. Mon Dieu, ela era linda! Não importava que representasse tudo aquilo de que ele queria fugir. Às suas hormonas não interessava que ela significasse mais sarilhos do que os que ele podia suportar. Por um instante, ao inclinar-se, sentindo o seu perfume, um desejo ardente apoderou-se dele, fazendo-o esquecer todo o seu bom senso.

 

O olhar de Lucky vagueou sobre as linhas suaves das faces e do queixo de Serena, pela curva perfeita das suas sobrancelhas, pelos seus lábios delicados e rosados. Nesse instante não pensava em mais nada a não ser em beijá-la, passar-lhe os dedos pelo rosto, afastar os fios sedosos do cabelo louro que se tinham soltado do penteado. Queria beijá-la, prová-la, meter-lhe a língua na boca. Era uma loucura.

 

Sentiu um arrepio percorrê-lo, desviou o olhar e, voltando-se, abruptamente, tirou-lhe a mala das mãos e entrou na piroga com ela. Pousou a bagagem no fundo chato da embarcação, juntamente com o resto da sua bagagem, e voltou para a proa, a fim de empunhar a vara, enquanto Serena se instalava. As mãos tremiam-lhe.

 

Deus do céu, não precisava de ter aquele tormento na sua vida, pensou, segurando na vara e olhando para longe. Quanto mais depressa chegasse à cabana de Gifford, melhor. Só queria que o deixassem em paz.

 

Paz, murmurava uma voz trocista dentro dele. Que era isso? Um sonho. Algo que ele tentava constantemente alcançar e que parecia sempre fora do seu alcance, algo que Serena parecia conseguir sem esforço, dado o seu ar calmo, que ela ostentava como um manto de rainha, sentada na piroga com o seu ar altivo. Invejava-lhe isso... Mas, e se ela fosse uma cabra sem sentimentos como a irmã? Nada penetraria a sua armadura de egoísmo, ficaria salvo dos cuidados e dos desgostos.

 

Suspirou, impeliu o barco ao longo do cais e afastou-o, dirigindo-se para longe da civilização, em direcção a casa, à terra do seu coração o pântano de ciprestes do hayou Noir. Pensou naquela solidão que fora a sua salvação, sem voltar nunca a cabeça para a luz que vinha da galeria de Chanson du Terre.

 

 

O que sempre impressionara Serena no pântano era a sua vastidão. Aquela parte da Luisiana era cruzada por um labirinto de cursos de água, alguns tão largos que pareciam querer engolir tudo o que surgia no seu caminho, outros tão estreitos que não eram mais do que uma sucessão de pequenas poças entre a densa floresta de salgueiros e outras árvores com os troncos cobertos de musgo. Até onde a vista podia alcançar via-se apenas água e bosques que pareciam batalhar uns contra os outros a água a querer engolir a terra e vice-versa.

 

Naqueles pântanos era preciso fazer inúmeros desvios para se alcançar um ponto a poucas centenas de metros de distância, e seguir qualquer pista tornava-se quase impossível, de tal modo o labirinto de hayous se revelava impenetrável, tirando ao viajante qualquer noção de direcção e até a percepção do tempo.

 

Poucas pessoas habitavam na zona e mesmo aqueles que ainda ganhavam a vida no pântano preferiam o conforto da civilização, percorrendo os hayous nos seus barcos de alumínio e regressando à cidade ao fim do dia, ficando no local apenas os seus habitantes naturais as cobras, os jacarés., e Lucky Doucet.

 

Os cursos de água por onde seguiam bifurcavam-se cada vez mais, fazendo lembrar rachas num pára-brisas, e Serena tinha a sensação de que Lucky impelia a piroga ao acaso voltando para leste, depois para oeste, em seguida para sul e daí a pouco para norte. Ainda não tinham deixado Chanson du Terre há meia hora e já ela se sentia irremediavelmente perdida. O medo tirava-lhe a possibilidade de fixar o caminho. Ia sentada, com os braços caídos ao longo do corpo e os dedos enclavinhados no banco, como se estivesse preparada para receber uma pancada.

 

Que se passa, querida? perguntou Lucky, mudando de posição e fazendo oscilar a piroga. Tem medo de que o barco se afunde?

 

Serena sentiu o pouco conteúdo do seu estômago subir-lhe à garganta, mas concentrou-se em conter o medo, aparentando uma falsa calma. ”Não deixes que ele veja que tens medo, não deixes que ele veja que tens medo.”

 

Claro que não murmurou.

 

Descanse, que não se afunda declarou Lucky num tom ofendido. A única maneira de entrar água aqui dentro é chover. Fui eu que a construí. É capaz de navegar sobre o orvalho.

 

É assim que ganha a vida? A construir pirogas? perguntou Serena, olhando para o caixote com ferramentas e peças que ele colocara no barco.

 

Havia ali uma grande diversidade de sacos de juta, rolos de arame e redes para apanhar caranguejos, além de um enorme mosquiteiro. Utensílios de pescador, pensou Serena, mas lembrou-se da faca que lhe vira na mão e corrigiu-se, dizendo para si própria: caçador furtivo.

 

Non respondeu Lucky laconicamente.

 

Então que faz? inquiriu ela, voltando-se para o olhar.

 

Ele parecia-lhe um gigante erguendo-se acima dela. Serena pensou se ele lhe iria mentir, ou se quereria chocá-la, contando-lhe a verdade, mas nenhuma das duas hipóteses se concretizou.

 

Faço o que me apetece. Serena ergueu as sobrancelhas.

 

Isso é compensador, hoje em dia?

 

Lucky inclinou a cabeça, mostrando-lhe o perfil.

 

Pás de bêtises murmurou. Às vezes não compensa mesmo nada

 

Enterrou a vara no leito lamacento e impeliu a piroga para a frente. A embarcação avançou, entrando por uma plataforma flutuante de jacintos aquáticos, com as suas flores delicadas cor de lavanda sobre uma densa camada de folhas Outra volta e o hayou tornou-se mais escuro e estreito. A piroga corria sobre aquela superfície semelhante a tinta como um patinador no gelo, atravessando uma zona coberta de folhagem verde e dirigindo-se para uma estreita passagem ladeada por salgueiros, cujos ramos pendiam sobre a água de ambos os lados.

 

Serena respirou fundo antes de entrarem nesse túnel de vegetação. Sentiu a garganta apertada com a súbita ausência de luz e arrepiou-se toda quando os ramos dos salgueiros lhe roçaram pelos braços como línguas de serpente.

 

Quando o barco emergiu do outro lado do túnel, levava outro passageiro: uma grossa cobra preta estava enrolada no fundo da embarcação, como um rolo de fio eléctrico, muito perto das sapatilhas vermelhas de Serena, que tentou gritar, mas não foi capaz. Atirou-se para trás instintivamente, levantando os pés, fazendo balouçar perigosamente a piroga, e ter-se-ia lançado para a água se Lucky não a tivesse agarrado. Puxou-a para si, com um braço, enquanto com o outro devolvia a cobra ao seu elemento natural.

 

É apenas uma pequena cobra-d’água disse desdenhosamente, largando Serena.

 

Com os joelhos a tremer, ela deixou-se cair sobre o banco, sentindo novo arrepio ao ver a cobra nadar para a margem, com a cabeça à superfície e o corpo a ondular como uma fita agitada pelo vento. Mesmo que fosse de borracha, comprada em qualquer armazém, impressioná-la-ia na mesma, era uma cobra e bastava. Contudo, não lhe agradava a ideia de aquele homem conhecer os seus medos, por isso rapidamente se obrigou a recompor-se. O autodomínio era a sua melhor defesa.

 

Desculpe ter reagido exageradamente disse com frieza.

 

Lucky franziu o sobrolho e pensou se não haveria nada que assustasse verdadeiramente aquela mulher. Perdera a cabeça ao ver a cobra, mas logo a seguir voltara a ser a calma, em pessoa, pedindo desculpa como se tivesse arrotado à mesa. Sentia-se prestes a explodir só por a ter apertado contra si durante uns breves segundos e ela continuava ali sentada, com um ar impassível.

 

Lucky foi agitado interiormente por uma explosão de cólera irracional. Como podia ela mostrar-se tão impávida? Como podia ele desejá-la tanto depois do que Serena fizera..., aliás, do que a irmã dela fizera...

 

Lucky sentiu que tudo dentro de si parava ao perceber o que estava a fazer a substituir Serena por Shelby, deixando um antigo ódio vir ao de cima, como uma bolha de ar que tivesse ficado retida no fundo de um lago. E, passados tantos anos, isso continuava a suceder causando nele o mesmo efeito.

 

C’est ein affair à pus finir murmurou, abanando a cabeça num esforço para aclarar as ideias.

 

O quê? perguntou Serena, olhando interrogativamente para ele.

 

Disse que é melhor habituar-se a ver cobras, se quer vir aqui. Há quinze espécies não venenosas e três venenosas: cobras-coral; bocas-de-algodão, compridas como chicotes, e cabeças-de-cobre, grossas como o pulso de um homem.

 

Serena fechou os olhos, como se isso a impedisse de ouvir o que ele dizia, e o seu cérebro aproveitou esse momento para lhe trazer à memória uma das suas mais terríveis recordações. Água lamacenta e três formas escuras ondulantes, debaixo do tronco onde se empoleirara, cabeças negras em forma de seta e bocas que se abriam, deixando ver um interior branco e rosado, e que avançavam na sua direcção.

 

Que diabo se apoderara dela para se lembrar de ir ali? Odiava aquele sítio, aterrorizava-a como mais nada no mundo conseguia fazê-lo. Dilacerava o seu sentido de controlo. Olhou em volta para os fantasmagóricos troncos cinzentos dos ciprestes, para a vegetação impenetrável por detrás deles, tudo envolto em sombras sinistras. Era um lugar de pesadelo.

 

Serena sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos. Queria manter a sua fachada de calma, mas sentia que não estava a ser capaz, fugia-lhe, escapava-lhe como se quisesse segurar-se com as mãos suadas e escorregadias. Até ali fora levada pela teimosia e pela zanga, mas esses sentimentos pareciam tê-la abandonado subitamente, deixando apenas o medo.

 

”Pensa, Serena, pensa em qualquer outra coisa, por exemplo, que o barco é demasiado pequeno.”

 

Passe-me esse cantil.

 

Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Lucky, mas voltou à realidade, satisfeita pela distracção. Pegou nele e entregou-lho, olhando de soslaio enquanto se sentava de lado.

 

Se faz favor, Miss Sheridan disse com voz suave. Obrigado, Miss Sheridan.

 

Não tem de quê, Mister Doucet.

 

Lucky ergueu os olhos para o céu, destapou o cantil e bebeu largamente, movendo os músculos do pescoço ritmadamente.

 

O que está a beber? perguntou Serena, tentando não olhar para o pescoço forte de Lucky.

 

Ele limpou a boca às costas da mão.

 

Água mentiu.

 

O olhar de Serena pousou no cantil e, num gesto inconsciente, passou a língua pelo lábio inferior e engoliu. Lucky, com a sensação de que corria fogo pelas suas veias, atirou-lhe o cantil numa oferta pouco delicada, zangado consigo mesmo por se preocupar com ela e furioso por não conseguir controlar a maneira como o seu corpo reagia à presença da rapariga. Serena pegou no cantil e cheirou-o.

 

Não é água, é uma bebida alcoólica observou, fazendo uma careta.

 

Lucky franziu o sobrolho:

 

Também tem água.

 

Você bebe-a como água, é o que é. Talvez seja por isso que tem tão mau temperamento.

 

Acho-o muito bom resmungou ele.

 

Bem, creio que é o único a pensar assim. Serena cheirou outra vez o cantil e fez uma careta.

 

Quer, ou tem medo de apanhar uma doença por beber do mesmo sítio que uma pessoa como eu? perguntou sarcasticamente Lucky.

 

Ela franziu o sobrolho e ingeriu um gole, em parte para lhe mostrar que estava enganado e em parte para demonstrar coragem. A profissional que existia nela não gostou da última razão, mas ignorou essa desaprovadora voz interior. Ali era apenas uma mulher assustada. Sentia um medo terrível, seria capaz de fazer quase tudo para fugir dali. A verdade é que a experiência pela qual estava a passar criava uma renovada simpatia pelos seus pacientes que sofriam de fobias

 

Como ela suspeitava, aquela beberagem nunca tinha ornamentado as prateleiras de uma loja de bebidas. Era qualquer coisa caseira, e tão forte que provavelmente não haveria graus para a qualificar. Era o género de líquido que podia servir de diluente para tinta ou de ácido para uma pilha. Um fogo líquido abriu-lhe caminho pela garganta, espalhando o calor pelo corpo todo. Como se não estivesse suficientemente quente por olhar para o seu guia, pensou Serena, amaldiçoando as suas hormonas.

 

Talvez a atracção física que sentia por ele fosse alguma espécie de loucura temporária, talvez Lucky Doucet, com os seus ombros largos, os seus olhos de pantera e a sua boca de cortesã, fosse aquilo que o seu cérebro preferia focar para não pensar no pântano. Só essa razão fazia algum sentido para ela, pois, além da aparência física, a lista dos defeitos dele era infindável. Era grosseiro, cruel, chauvinista, extremamente arrogante, possuía um génio violento e bebia. Nenhuma mulher sensata, que se respeitasse a si própria, pensaria sequer em se envolver com ele, fosse a que nível fosse.

 

O seu olhar desviou-se de novo para Lucky. Bem, talvez houvesse um nível... mas é claro que não estava disposta a isso, não lhe interessava o lado estritamente sexual. Com efeito, não se envolvia com quem quer que fosse há muito tempo.

 

Mantinha-se ocupada com o seu consultório e com o trabalho voluntário que fazia numa clínica de doenças mentais numa das zonas mais pobres de Charleston. Tinha amigos e uma vida social agradável, sem nenhum envolvimento romântico. Fora casada com um colega psicólogo, mas o matrimónio desfizera-se por falta de interesse de ambas as partes. Fora baseado na amizade, interesses mútuos e conveniência, e faltara-lhe aquele intenso magnetismo físico que muitas vezes actua como um adesivo que une as duas partes. Tinham-se afastado quase imperceptivelmente e divorciado de modo amigável quatro anos após o enlace.

 

Desde essa altura Serena raramente saía com homens, não tendo encontrado nunca um que a motivasse para mais do que isso, e concluíra que provavelmente não se interessava por sexo. Não inspirara grande paixão ao marido, nem ele provocara nela essa espécie de êxtase de que ouvia outras mulheres falarem. Provavelmente não possuía a capacidade de reagir dessa maneira com um homem, o que talvez tivesse algo a ver com a sua necessidade de controlo emocional. Contudo, ao olhar para Lucky Doucet, pensou que devia reanalisar o assunto.

 

Gosta do que vê, querida? perguntou Lucky lentamente, olhando-a, sem pestanejar, com os seus olhos cor de âmbar.

 

Não especialmente retorquiu Serena, atirando-lhe o cantil, em parte para que ele não reparasse no rubor que lhe subira às faces.

 

Mentirosa.

 

Era mais uma afirmação do que uma acusação. Lucky pegou no cantil, roçando deliberadamente os dedos pelos dela, e Serena retirou apressadamente a mão, o que lhe valeu uma gargalhada divertida, enquanto ela erguia o queixo num ar de desafio.

 

Tem uma alta opinião acerca do seu encanto, Mister Doucet comentou.

 

Oh, não, chère, apenas me limito a transmitir o que vejo.

 

Então sugiro que marque consulta com um optometrista o mais depressa possível. Umas boas lentes poderão poupar a muitas mulheres a sua desagradável companhia

 

Os olhares de ambos fixaram-se desafiadoramente o dela frio e o dele ardendo de intensidade. Serena felicitou-se por fugir a uma situação desastrosa, Lucky congratulava-se por ter despertado o mau génio dela. Continuaram ambos a fitar-se, e o ar em volta parecia cheio de electricidade Numa das margens do hayou, um jacaré que despertara do seu sono enchia a boca com um molho de fetos e de caules de plantas de tabaco, após o que deslizou para a água Serena deu um salto e olhou para o animal com os olhos muito abertos. O jacaré estava no meio dos juncos altos, a poucos metros da piroga, a sua cabeça rugosa fendia a superfície e parecia olhá-la directamente.; Lucky soltou uma gargalhada. Mais non, mon ange, aquele jacaré não a vai apanhar, a não ser que eu a atire para fora da piroga, o que estou quase decidido a fazer.

 

Não duvido replicou Serena, pegando novamente no cantil e bebendo outro gole de falsa coragem.

 

”Que estás a fazer para irritar este homem?”, disse Serena para consigo. ”É um caçador furtivo, um rufião, e sabe-se lá que mais.”

 

Lucky sorriu-lhe malevolamente, lembrando-lhe a proximidade do jacaré.

 

Não admira que Giff viesse esconder-se aqui. Deve ser insuportável estar numa casa com mais outra igual a si ironizou Lucky, impelindo a embarcação com um forte impulso.

 

Serena manteve o olhar fixo no jacaré e as duas mãos firmemente presas no rebordo do banco.

 

Para sua informação, fique sabendo que eu e a minha irmã não somos nada parecidas.

 

Eu sei como é a sua irmã.

 

A fria antipatia que transparecia na afirmação dele fez com que Serena voltasse a cabeça para o olhar.

 

Como? Não posso imaginá-los aos dois nos mesmos círculos sociais.

 

Lucky não respondeu, a porta mental fechou-se outra vez e Serena até imaginou ter ouvido um ruído surdo. Ele, com o rosto transformado numa máscara de pedra, olhou para um ponto distante, como se ela tivesse deixado de existir, e esse silêncio permitiu a Serena tirar as suas próprias conclusões.

 

Talvez Shelby tivesse feito alguma declaração pública acerca dos caçadores furtivos ou sobre sítios como Mosquito Mouton’s. Era mesmo dela subir para uma caixa de sabão e fazer um discurso contra pessoas que achava que procediam mal. As suas opiniões seriam consideradas muito positivas pelas pessoas altamente colocadas, coisa que lhe agradaria imenso, pois adorava ser o centro das atenções, receber elogios e estava sempre disposta a fazer o que fosse preciso para os receber. Seria até muito capaz de hostilizar um homem tão perigoso como Lucky Doucet, mas devia ter pensado no perigo que tal atitude representava e não apenas nos dividendos que obteria a nível comunitário. Serena pensou se a irmã faria ideia de que tinha um inimigo que usava uma faca de mato do tamanho de uma cimitarra.

 

Iam subindo o hayou, num silêncio tão opressivo e pesado como o calor. Tanto mais esmagador quanto mais densa se tornava a vegetação. Era de tal modo confrangedor que os nervos de Serena estavam em franja, a ponto de o grito de uma garça a fazer sobressaltar.

 

Quanto mais profundamente penetravam naquela zona desértica, menos se dava pela intromissão do homem, o único sinal da sua presença era uma ocasional fita de plástico a indicar o local de uma armadilha para caranguejos.

 

Lucky parou junto de uma delas, vermelha, amarrada a um salgueiro-chorão e começou a puxar a funda rede oculta debaixo de água, a qual estava cheia de caranguejos. Fez o mesmo a quatro outras colocadas ao longo da margem, esvaziando o seu conteúdo nos sacos que levava no barco, e entregando-se à sua tarefa como se Serena não estivesse presente. Esta olhava-o com interesse, imaginando se as redes teriam sido ali postas por ele.

 

Estamos quase a chegar? perguntou, quando Lucky começou a impelir a piroga para norte e depois para leste.

 

Quase. Em breve dará por isso.

 

Duvido. Há anos que não venho aqui.

 

Isso não importa garantiu ele.

 

Porquê?

 

Vai ouvir tiros. Serena fez uma careta.

 

Isso é ridículo. O velho Lawrence também falou em tiros. Sei que o meu avô pode ter muito mau feitio, mas daí a atirar sobre as pessoas... isso é absurdo. Porque havia ele de disparar?

 

Para as assustar.

 

E por que motivo quereria ele fazer isso?

 

Para o deixarem em paz.

 

Serena abanou impacientemente a cabeça.

 

Não percebo nada disto. Em primeiro lugar, não me parece coisa de Giff abandonar a plantação durante tanto tempo, nem mesmo durante a época dos caranguejos.

 

Ele lá tem as suas razões disse Lucky enigmaticamente. Serena lançou-lhe um demorado olhar inquisidor, não gostando da ideia de aquele homem saber mais a respeito dos problemas da família do que ela própria. Fazia com que se sentisse como uma intrusa e, além disso, revelava as suas deficiências como neta não vinha a casa com frequência, não estava a par das notícias locais, não visitava a família tantas vezes como devia. A lista dos pecados veniais continuava, aumentando os seus sentimentos de culpa. Contudo, não foi capaz de deixar de fazer a pergunta que lhe queimava os lábios.

 

E que razões são essas, Mister Doucet? O rosto de Lucky manteve-se impassível.

 

Pergunte a Gifford, se quiser. Não me meto na vida das outras pessoas.

 

Isso é muito conveniente. Não tem ninguém com que se preocupar, nem tem de responder perante ninguém, a não ser perante si próprio.

 

Isso é verdade, querida.

 

Então porque me trouxe para aqui, quando é óbvio que preferia vir sozinho?

 

Lucky olhou-a, franzindo as sobrancelhas espessas, e quando falou fê-lo com voz suave e cheia de avisos.

 

Não tente entrar dentro da minha cabeça, doutora Sheridan.

 

Deus me livre, antes cair num poço cheio de víboras. ”Seria exactamente a mesma coisa, chérie”, disse Lucky para consigo, pois sabia que a psicóloga não deixaria de analisar essa afirmação. Ele estava bem, se o deixassem em paz seria óptimo.

 

Como não conhece as razões que levaram Gifford a vir para aqui? perguntou então Lucky, passando à ofensiva. Nunca fala com o seu avô ao telefone? Talvez não queira saber o que se passa aqui! Talvez Chanson du Terre já não lhe interesse!

 

Que espécie de perguntas são essas? contrapôs irritadamente Serena, mordendo o isco como um peixe esfomeado. Claro que me interesso por Chanson du Terre, é a casa da minha família.

 

Lucky encolheu os ombros.

 

Não vive lá, querida.

 

Onde eu moro não é da sua conta.

 

É verdade, como também não é se vierem aí uns buldôzeres e arrasarem tudo. Não foi a minha família que trabalhou e viveu naquelas terras há perto de duzentos anos.

 

Serena olhou-o, sentindo-se como se tivesse apanhado uma martelada na cabeça.

 

O que quer dizer com isso? De que está a falar?

 

De Chanson du Terre, anjo. A sua irmã quer vendê-la à Tristar Chemicals.

 

Isso é absurdo! exclamou Serena ao ouvir aquela afirmação disparatada. Shelby quer tanto vender Chanson du Terre como Scarlet pensaria em desfazer-se de Tara. Obviamente não conhece a minha irmã! Isso nunca poderia suceder, nunca!

 

Continuou a rir-se da ideia, abanando a cabeça, tentando ignorar a terrível certeza que via nos olhos de Lucky, os quais lhe revelavam que ele sabia muitas coisas de que não tinha conhecimento. Uma parte dela rejeitava essa ideia, mas outra agitava-se numa súbita e estranha apreensão.

 

De qualquer modo, não teve tempo de fazer perguntas ou de discutir o assunto, pois, ao passarem uma curva do rio, ouviram a explosão ensurdecedora de um tiro disparado na direcção deles.

 

 

Desta vez Serena gritou mesmo e caiu de joelhos no fumdo da piroga, tapando a cabeça com os braços enquanto as balas caíam na água em frente deles, levantando jactos de água lamacenta e pedaços de folhagem.

 

A sua primeira ideia foi que estavam a ser atacados por algum dos homens a quem Lucky roubava a caça, talvez até o dono das redes que ele esvaziara. Os caranguejos agitavam-se dentro dos sacos, mesmo em frente do nariz dela. Esperou outra rajada de tiros e pensou se Lucky teria alguma arma de fogo com que se defendessem. Espreitou por entre os dedos.

 

Gifford estava na margem, com a espingarda fumegante nas suas grandes mãos. Era um homem alto, de constituição poderosa, que não parecia octogenário, a não ser pela espessa cabeleira completamente branca, com uma madeixa tombada para a testa larga. Com os seus ombros largos e cintura estreita, parecia ainda ser capaz de lutar com um urso e vencer. As feições correctas tinham uma expressão carrancuda, sobrancelhas brancas descaídas, queixo quadrado atirado para a frente de modo agressivo. O nariz estava permanentemente vermelho pelos anos passados ao sol quente do Sul, nas plantações.

 

Caramba, Lucky! gritou com a sua voz de barítono, tão alto que quase rivalizava com o ruído dos tiros. Pensei que era esse patife do Burke!

 

Bem replicou Lucky com voz calma, como se achasse normal atirarem sobre ele. Pode ser que queira mesmo disparar quando vir o que lhe trago.

 

Serena levantou-se, olhando irritadamente para Lucky antes de se voltar para o avô. Tirou o cabelo dos olhos, com uma mão, enquanto com a outra se apoiava a um dos rebordos da piroga, para se endireitar. Emoções díspares agitavam o seu peito ao olhar para o homem que praticamente a criara. Com a adrenalina ainda a latejar-lhe nas veias e o som dos disparos a soar-lhe aos ouvidos, o sentimento de cólera foi dominante.

 

A piroga deslizou até ao velho cais de madeira, apoiado em pilares muito gastos, e Serena nem esperou que parasse, pulou desajeitadamente. A piroga avançou um pouco com o impulso provocado pelo salto e ela bateu com uma perna nas tábuas do cais, mas conseguiu não cair na água lamacenta. Suja, amarrotada, com as calças brancas sujas de sangue, o cabelo desgrenhado em volta dos ombros, dirigiu-se para a margem, a coxear.

 

Que diabo, Gifford, que raio de mania é essa de disparar sobre as pessoas?

 

O velho franziu o sobrolho.

 

E que raio de linguagem é essa na boca de uma senhora?

 

É a que aprendi contigo! replicou Serena, parando em frente do avô, com as mãos nas ancas e olhando-o com uma expressão desafiadora.

 

Bem... bem... murmurou ele sem saber que responder. Abriu a culatra da espingarda e tirou de lá uma bala, que guardou no bolso da desbotada camisa de algodão. Aposto que não a usas em Charleston.

 

Não estou em Charleston.

 

Para variar resmungou Gifford. E que vens aqui fazer? A última coisa que poderia esperar era ver-te aparecer numa piroga.

 

Acredita que não é a minha forma preferida de divertimento declarou Serena, lançando um olhar de censura a Lucky. Conheço maneiras muito melhores de passar o meu tempo livre e em melhor companhia.

 

Ela não gosta do meu temperamento comentou Lucky, que se aproximava, com um saco cheio de caranguejos na mão.

 

Entre outras coisas afirmou Serena.

 

Lucky parou ao lado dela, pousou a mala no chão e acendeu o cigarro que tinha entre os lábios. Entretanto os seus olhos nunca largaram Serena, esta sentia-os pousados sobre ela e, tão quentes como a brasa duma ponta de cigarro Ruborizou-se, enquanto Lucky, inclinando a cabeça para trás, soprava o fumo para o ar.

 

Creio que preciso de ir outra vez para a escola fazer uma reciclagem afirmou laconicamente...

 

Não acredite nele, Miss Serena disse Pepper Fontenot com uma gargalhada rouca, levantando-se da sua cadeira de repouso e dirigindo-se para eles.

 

Pepper era um homem baixo, muito magro, com a mesma pele escura e os mesmos olhos claros da irmã, a formidável Odille. Conseguia ser um indivíduo alegre, apesar de ter vivido toda a vida perto da irmã, e usava o seu largo sorriso tão confortavelmente como o seu velho fato-macaco. Deu uma palmada amigável nas costas de Lucky e acrescentou:

 

 

Este seria capaz de encantar um jacaré, se estivesse com disposição para o fazer.

 

Serena ergueu as sobrancelhas.

 

Então deve ter estado muito mal-disposto ironizou.

 

Talvez fosse da companhia replicou Lucky entre dentes.

 

Serena combateu o impulso juvenil de se voltar e deitar-lhe a língua de fora, por isso virou-se de novo para o avô.

 

Podias dizer que estás contente por me veres observou, sem ser capaz de ocultar que ficara magoada com a fria recepção.

 

Só depois de saber o que vieste aqui fazer.

 

Vim porque saíste de casa há duas semanas sem dares qualquer explicação. Logo que cheguei, de visita, a primeira coisa que me disseram foi que tinhas vindo para aqui e não davas notícias há duas semanas. Que havia de fazer? Dizer ”Oh, que pena não o encontrar!” e continuar com as minhas férias? Podias até ter morrido!

 

Pois bem, não morri. Se é isso que queres saber, podes voltar para casa e dar a notícia. Não vão herdar por enquanto, se isso estiver na minha mão.

 

Que disparate é esse?

 

É o género de disparate que um homem começa a dizer quando tem oitenta anos, está cansado e tem um par de netas ingratas.

 

Fechou a culatra da espingarda com um estalido decidido, pô-la debaixo do braço e voltou-lhe as costas.

 

Serena ficou pregada ao chão, assombrada, vendo-o caminhar, ligeiramente curvado, em direcção à cabana. De cada vez que se encontrava com Gifford, desejava intensamente que o avô gostasse dela e ficava magoada por ele não lhe demonstrar esse amor. Era como se, no momento em que o via, voltasse a ser criança.

 

Estava cansada e frustrada, suja e com fome. Tudo quanto queria era aninhar-se nos braços dele e esquecer o que a levara até ali, mas tal não podia acontecer. Já não era criança e o avô há muito a censurava por ter medo do pântano. Depois de passado um tempo que ele considerava razoável, a sua compreensão transformara-se numa subtil desaprovação e desapontamento, que desde então influenciara o relacionamento de ambos. Achava que ela era cobarde. Ao vê-lo afastar-se, Serena desejou que ele percebesse quanta coragem lhe fora necessária para ir até ali.

 

Sim, realmente não há nada tão enternecedor como uma reunião de família murmurou Lucky, olhando também para Gifford, que se afastava.

 

Serena olhou-o com hostilidade.

 

Não se meta nisto, Doucet.

 

Correu atrás do avô, passando sobre a terra lamacenta e esponjosa que constituía o pátio da frente.

 

A cabana era uma simples estrutura rectangular coberta com tábuas protegidas por alcatrão e elevada acima do solo, assente em fortes pilares feitos de troncos de cipreste, para evitar as inevitáveis cheias da Primavera. O telhado era de chapa de zinco ondulada, manchada de ferrugem e num ângulo estranho via-se uma chaminé. A porta principal estava pintada num tom que fazia mal aos olhos e não havia cortinas nas duas pequenas janelas.

 

A cabana nunca proporcionara muito conforto e obviamente nada que se pudesse dizer decorativo, a não ser que as redes fossem consideradas como tal, e Serena duvidava de que algo tivesse mudado desde a última vez que ali estivera. Era um desses bastiões masculinos onde qualquer coisa esteticamente agradável pareceria pouco viril. Gifford continuava, com certeza, com a mesma velha mobília, que não fora suficientemente boa para o Exército de Salvação vinte anos antes. O pavimento das duas divisões devia ainda estar coberto com o mesmo horroroso oleado cinzento, o género de material que prometia durar para sempre, o que infelizmente acontecia.

 

Serena não iria descobrir isso imediatamente. Gifford não entrou, subiu com uma certa dificuldade até meio da escada e sentou-se com a espingarda sobre as pernas, como se quisesse bloquear a entrada. Serena parou no primeiro degrau, justamente no momento em que os dois grandes cães de pêlo azulado, vindos das traseiras, a rodearam, saltando e pondo novas manchas nas suas calças brancas. Serena repeliu-os, ralhando-lhes.

 

Dantes gostavas deles comentou Giff, olhando-a desaprovadoramente. Suponho que em Charleston não há cães como estes.

 

Serena agitou um dedo em frente da cara dele.

 

Não venhas com essas coisas, Gifford. Não comeces com a conversa de que Charleston me mudou.

 

E mudou, infelizmente.

 

Não foi para isso que vim aqui falar contigo. O velho praguejou desabridamente.

 

Um homem não pode ter um momento de paz resmungou. Vem para aqui a fim de fugir às pessoas, não para ser um desses cretinos que passam a vida em reuniões.

 

Serena ignorou estas palavras e continuou com o que lhe interessava:

 

Nem parece teu vires para aqui, especialmente nesta época do ano. Há muito trabalho a fazer na plantação.

 

Ele encolheu os largos ombros e olhou para os pés.

 

Para isso é que tenho Arnaud, o capataz. Que diabo, ele que dirija os trabalhos. Velhos cansados, como eu, podem vir pescar.

 

Mas sabias que eu vinha visitar-te insistiu Serena. E desde quando és um velho cansado?

 

Desde que descobri que não tenho um herdeiro que queira saber daquilo para que trabalhei toda a vida.

 

Oh, por amor de Deus, Gifford. De que estás a falar?

 

De tu viveres a mais de mil quilómetros de distância e de a tua irmã estar preparada para vender as minhas terras.

 

Mas que disparate é esse de afirmares que Shelby quer tirar-te Chanson du Terre? perguntou irritadamente Serena. Nunca ouvi coisa mais ridícula em toda a minha vida. Desde criança que sempre a ouvi dizer que queria casar, ter filhos e criá-los na plantação. Nunca se lembraria de a vender!

 

Isso mostra bem como estás em contacto com a tua família, minha menina! vociferou Gifford.

 

Oh, com mil demónios! exclamou abruptamente Serena, querendo controlar-se antes de continuar a discussão. Sinceramente já não sei que pensar murmurou mais para si do que para Gifford. Dizem-me que Shelby enlouqueceu e quer vender Chanson du Terre e ela acha que estás a ficar senil...

 

Senil! Gifford pôs-se de pé como um foguete e o seu rosto enrugado adquiriu um tom arroxeado pouco saudável. Por Deus, isso esclarece tudo. Foi por isso que vieste, Serena? É uma visita profissional para veres se perdi o juízo? Depois, aquele advogado cretino que é marido dela poderá declarar-me incapacitado, vender a casa e viver do suor do meu rosto. Raios partam... por Deus... não consentirei isso.

 

Agarrou-se ao corrimão com uma mão, à espingarda com a outra e a sua respiração tornou-se um silvo. Serena subiu os degraus a correr, com o coração a bater descontroladamente.

 

Por amor de Deus, Gifford. Senta-te!

 

Ele obedeceu sem protestar, os joelhos dobraram-se-lhe e deixou-se cair sobre um degrau. A tensão abandonou os seus músculos, os ombros curvaram-se e tentou respirar fundo, enquanto procurava um comprimido no bolso da camisa, depois de tirar de lá a bala e de a pôr descuidadamente de lado.

 

Serena ajoelhou junto dele, toda a tremer. Comprimiu as mãos sobre os lábios, esforçando-se por não chorar, percebendo pela primeira vez como o avô era velho, como era mortal. Viu-o meter um comprimido debaixo da língua e a cor dele mudar lentamente de vermelho para cinzento-pálido. Pareceu envelhecer vinte anos diante dos seus olhos, a sua incrível força interior diminuindo como uma luz que tivesse sido abruptamente apagada.

 

Sente-se bem, Giff? perguntou Lucky com a sua voz profunda, cheia de tensão.

 

Serena percebeu, com um sobressalto, que ele estava mesmo atrás dela e se inclinava para olhar o rosto de Gifford, pousando-lhe uma mão sobre um ombro, num gesto que podia ser de conforto.

 

Gifford soltou uma das suas pragas mais virulentas e Pepper espreitou por baixo do corrimão, sorrindo aliviado.

 

Se é capaz de praguejar dessa maneira é porque já está bom. Quando deixar de o fazer então podem recear que morra.

 

Espertalhão resmungou Gifford.

 

Pepper soltou uma gargalhada rouca e afastou-se, levando na mão o saco com os caranguejos, que os cães não paravam de cheirar. Serena sentiu que perdia as forças, de alívio, e não foi capaz de deixar de estender a mão para tocar no joelho do avô, só para se tranquilizar.

 

Devias ir deitar-te e descansar, Giff. Falamos mais tarde.

 

Não preciso respondeu secamente. Foi apenas uma pequena tontura, nada mais. Não sei quem não ficaria tonto com todas estas coisas à sua volta. Às vezes fico tão furioso que nem consigo ver bem. Faço um comentário a respeito de vender, e a tua irmã, que não seria capaz de vender água no inferno, corre a arranjar um comprador. E tu, onde estavas? A tratar de cabeças na Carolina do Sul, como se não houvesse lunáticos suficientes no Luisiana.

 

Podemos falar disso quando chegarmos a casa replicou calmamente Serena.

 

Havia muitas perguntas a fazer. Por que motivo não lhe telefonara Shelby quando Gifford saíra de casa? Porque negara conhecer as razões que tinham levado Gifford a sair da plantação? Porque teria o avô falado em vender a plantação e o que levara Shelby a concordar e a arranjar um comprador?

 

Sentindo-se um pouco como Alice ao acordar no País das Maravilhas, Serena pôs-se de pé e limpou os olhos. As perguntas teriam de esperar, não iria interrogar Gifford agora e correr o risco de ele ter outro ataque. Tudo seria esclarecido quando estivessem em casa, e quanto mais cedo melhor Voltou-se para o cais e viu que o barco de Gifford estava ancorado ali.

 

Peper, pode preparar o barco?

 

Este abanou a cabeça, sorrindo, um pouco à maneira como o velho Gauthier fizera.

 

Oh, não, chère, eu gosto de estar vivo. Fale com Giff, ele não quer ir a lado nenhum.

 

Serena voltou-se para o avô, que se recusou a olhá-la.

 

Por favor, Gifford. Não podes ficar aqui.

 

Claro que posso.

 

Serena olhou para Lucky, que recuou, desligando-se da conversa.

 

Estamos num país livre.

 

Não posso acreditar nisto disse Serena, furiosa, passando as mãos trémulas pelos cabelos e pela cara.

 

Que diabo, Gifford, quase tiveste um ataque cardíaco em frente dos meus olhos. Não podes aqui ficar.

 

Posso fazer o que me apetecer, menina replicou o velho, levantando-se. Cambaleou um pouco, mas agarrou-se com força ao corrimão e começou a subir os degraus. Não permitirei que tu ou a tua irmã dirijam a minha vida

 

Serena deitou novo olhar a Pepper e a Lucky, procurando ajuda, mas sem obter nenhuma, ambos se limitaram a olhá-la sem nada dizer.

 

Creio que estão todos doidos.

 

Então porque não voltas para Charleston, onde não tens de te preocupar com os teus parentes loucos. Longe da vista, longe do coração replicou friamente Gifford. Tu não queres saber do que se passa aqui.

 

Serena estendeu a mão para o interromper, comprimindo os lábios e tentando conter as lágrimas de frustração.

 

Não discuto isso contigo agora, Gifford.

 

Óptimo. Então vai-te embora e deixa-me em paz

 

Não vou a parte nenhuma respondeu ela. Fico contigo até te convencer a ires para casa.

 

O diabo é que ficas, não te quero aqui gritou Gifford. Lucky, leva-a de novo para Chanson du Terre.

 

Este recuou um passo, franzindo as sobrancelhas ameaçadoramente.

 

Esqueça, não tenho nenhum serviço de ferry. Não vou levá-la agora para casa. Está a escurecer e tenho coisas a fazer.

 

Então pode ficar na tua casa, porque com toda a certeza não vai dormir aqui declarou Gifford. Não quero aturar mulheres ingratas.

 

Ficar com ele? exclamou Serena, com horror.

 

Ficar comigo? protestou Lucky. Entreolharam-se com uma espécie de terror, que não passou despercebido a Gifford e que o fez erguer as sobrancelhas.

 

Ela não fica comigo declarou enfaticamente Lucky. Isso está fora de questão.

 

A casa dele era o seu santuário, o espaço que criara para si próprio a fim de ter alguma paz, o derradeiro bastião da sua sanidade mental. A última pessoa que ele queria que lá penetrasse era aquela mulher, que ele desejava ardentemente, o que era compreensível, mas cujo rosto lhe despertava recordações de dor e de traição de outra.

 

Non, non murmurou, abanando a cabeça. É um disparate.

 

Então também achas que sou tolo? resmungou Gifford. Vocês dois estão bem um para o outro. Podem sentar-se a beber café e a comparar notas sobre a maneira de fugir às responsabilidades.

 

Lucky voltou-se e subiu três degraus para aproximar a cara da de Gifford.

 

Está a passar dos limites disse com ar ameaçador. Eu não lhe devo nada, não devo nada a Chanson du Terre.

 

Oh, isso é verdade retorquiu sarcasticamente Gifford. O olhar feroz de Lucky não o asssustara. Era demasiado velho para se amedrontar com a ideia da sua própria mortalidade. Não deves nada a ninguém, estás por tua conta. Isso é bom para ti, Lucky, podes dar uma palmadinha nas tuas próprias costas quando o pântano desaparecer e tudo morrer.

 

Não me fale de responsabilidades, Gifford. Também tem as suas. Mas onde está você? Veio para aqui a pescar e disparar sobre os representantes da Tristar, mas de que serve isso? Resolve o problema?

 

Eu lido com a situação à minha maneira.

 

Mais oui replicou Lucky, rindo. Trata da situação não tratando dela.

 

Serena meteu-se entre eles.

 

Com licença. Posso dizer uma palavra?

 

Não responderam em uníssono.

 

Ela recuou um passo, incrédula, enquanto Lucky saltava da escada e começava a andar de um lado para o outro. Este conhecia bem Gifford, as mulas não lhe levavam a melhor quando se tratava de teimosia. Se dizia que não queria que Serena ficasse com ele, nada havia a fazer. Seria capaz de a deixar à porta toda a noite, e isso, pese embora a sua decisão de não se deixar arrastar por quaisquer sentimentos, preocupava-o.

 

Olhou Serena de revés e praguejou mentalmente. Ela era tão orgulhosa e teimosa como o avô. Enfrentara-o valentemente, estivera prestes a chorar, preocupada com ele, obviamente amava-o, e Giff não a poupara. Serena parecia uma flor de estufa atirada para a rua no meio de um temporal amarrotada, suja, exausta, e o avô estava decidido a mantê-la afastada. Maldição.

 

Não era que ele se preocupasse com ela, não era que ele quisesse ver-se envolvido, nada tinha a ver com a maneira como Gifford tratava a neta. Pelo que sabia, ela merecia ficar fora da porta toda a noite, as posições estremadas é que o preocupavam, eram mais um exemplo de como as vidas de outras pessoas se metiam no seu caminho. Aquele pântano era o seu mundo, não podia conceber a ideia de o ver destruído. Suspirou e passou as mãos pelo cabelo. Quais eram as suas opções? Queria que Gifford tratasse dos problemas com a Tristar antes que sucedesse algo de catastrófico, como o velho matar Len Burke, ou Shelby lograr vender a plantação a uma empresa com uma história de crimes contra o ambiente, e isso significava obrigar Gifford a voltar para casa a fim de resolver a situação. Serena decidira convencê-lo a acompanhá-la, e tinha a determinação suficiente para o conseguir, mas para tal devia mantê-la afastada da influência venenosa da irmã e perto do velho. E então...

 

Maldição!

 

Examinou o problema sob outro aspecto. Quanto tempo seria preciso para que Serena convencesse Gifford a voltar para casa? Um ou dois dias, três, no máximo. Quanto tempo poderia ele resistir à insistência dela? Lucky decidiu que não precisaria de ficar ao mesmo tempo que ela em casa. Enquanto lá estivesse ele andaria pelo pântano. Havia muitas coisas que o podiam manter ocupado. Contudo, desagradava-lhe a ideia de ser obrigado a fazer fosse o que fosse.

 

Deixou de andar de um lado para o outro, olhou com ar carrancudo para Gifford e disse:

 

Está bem, eu fico com ela...

 

Gifford conseguiu com êxito não sorrir e Serena abriu a boca de espanto. Durante algum tempo ninguém falou. A tensão que havia no ar foi suficiente para fazer com que os cães latissem e se afastassem à procura de um refúgio seguro.

 

Fica comigo? perguntou Serena em voz baixa, olhando para Lucky, furiosa. Fica comigo? repetiu em voz mais alta, voltando-se para Lucky, com as mãos na cintura. Depois virou-se para o avô e continuou: Eu não vou pra casa deste homem! Mal o conheço e o que sei não é lisonjeiro. Por amor de Deus, Gifford! Não podes esperar que eu fique com ele!

 

Quem sabe o que eu posso ou não retorquiu Gifford, arvorando um ar magoado. Sou apenas um pobre velho à espera da morte.

 

Pára com isso! gritou Serena.

 

Olhou-o à luz do Sol que ia desaparecendo e sentiu uma grande bola de medo crescer dentro de si como um balão. A expressão do avô era igual à que recordava quando tinha dezassete anos e o xerife a levara à presença dele depois de a ter apanhado, e a outras duas colegas, a beber uma garrafa de vinho barato junto do estádio de futebol... A voz dela baixou para um sussurro:

 

Gifford?

 

Ele abanou a cabeça:

 

Nem sequer me peças, Serena. Estou tão furioso que era capaz de cuspir fogo. Julgas que podes chegar aqui e convencer-me com duas frases, só porque és doutora e tens um consultório elegante em Charleston? Não sabes o que se passa aqui e não queres saber. Só pensas em pôr todas as peças no seu lugar para poderes prosseguir as tuas férias.

 

Gifford abanou a cabeça e respirou fundo. A sua cor começava a mudar outra vez, a vermelhidão subiu-lhe do pescoço para as faces, como mercúrio a trepar num termómetro.

 

Vai-te embora, ficarás bem com Lucky. Voltou-se e subiu as escadas, entrando na cabana sem sequer olhar para trás. Serena estava atordoada, como se tivesse apanhado uma pancada na cabeça. Bem, tinha o que merecia. Com a sua habitual maneira abrupta, Gifford fora direito ao cerne da questão. De facto, ela julgara que chegava ali, resolvia o assunto e continuava com a sua vida. Herdara do avô os seus modos decididos e isso fizera-a ter sucesso na vida, em Charleston, mas agora não se encontrava lá. Maldito lugar aquele. Serena fechou os olhos e esfregou as mãos na cara, fazendo desaparecer o que restava da sua maquilhagem.

 

É pena, Miss Serena disse Pepper, subindo uns degraus para se sentar ao lado dela, com um saco de caranguejos na mão. Sabe como é o seu avô. Quando se zanga não se sabe o que diz, não pensa em metade do que diz

 

Serena tentou esboçar um sorriso:

 

Achas que me poderás levar para casa?

 

Ele franziu a cara, o que parecia estranho nele.

 

Não posso, o barco não está bom. Lucky trouxe a peça que falta, mas vou levar uns dias a arranjá-lo.

 

Serena não julgara ser possível sentir-se mais abatida, mas enganara-se, agora era como se estivesse completamente perdida. Peper devia aperceber-se disso, porque ficou sem saber o que dizer. Levantou-se e começou a descer a escada.!

 

Porque se deixara levar pelo primeiro impulso e fora para ali sem saber primeiro o que se passava? Agora estava presa naquele sítio terrível, repelida pelo próprio avô, entregue a um homem sem escrúpulos.

 

Voltou-se para olhar Lucky, que fazia festas na cabeça de um dos cães, enquanto a olhava com uma expressão impassível. O Sol desaparecia lentamente e as sombras sinistras iam invadindo tudo, fazendo parecer o sítio ainda mais perigoso.

 

Entre no barco, chère convidou suavemente Lucky. Parece que temos de ficar um com o outro durante mais um tempo.

 

 

Venha convidou Lucky, apontando para a piroga. Amanhã trago-a de novo e poderá massacrá-lo durante todo o dia.

 

Serena seguiu-o relutantemente até à margem e olhou para a floresta escura que se erguia do outro lado do hayou. O medo começou a destruir as suas últimas resistências

 

Pagar-lhe-ei o que quiser se me levar para casa.

 

As palavras saíram-lhe da boca mesmo antes de as pensar, mas não tentou desdizer-se. Era verdade. Era capaz de ficar na cabana com o avô e com Peper, mas a ideia de ir para casa de um estranho e de ele ver o pavor dela... não podia ser. Nesse momento até lhe entregaria as chaves do seu Mercedes, se Lucky concordasse em levá-la de volta à civilização. Apetecia-lhe um longo banho quente, uma refeição, uma aspirina e uma explicação da parte da irmã não necessariamente por essa ordem.

 

O que quiser? murmurou lentamente Lucky, olhando-a com um sorriso malicioso. Isso é tentador, mas não posso levá-la de volta esta noite, tenho outros compromissos.

 

Por favor pediu Serena, forçando-se a dizer a palavra.

 

Lucky inclinou-se, tirou a caixa com as peças para o motor de dentro da piroga e colocou-a na margem.

 

Olhe, meu anjo disse, endireitando-se e pondo as mãos na cintura, tenho a certeza de que pensa que quando chegar a casa a vou amarrar à cama e violá-la durante toda a noite, mas há coisas mais importantes para mim. Terá de se contentar com fantasias.

 

Serena lançou-lhe um olhar de total repugnância, mas ele ignorou-o e impeliu a piroga para mais perto do cais.

 

Allons. Entre no barco, se não quer passar a noite no telheiro com os cães de Gifford.

 

Que havia de fazer? Serena conhecia bem o avô e sabia que ele seria capaz de a deixar ali fora, parecia suficientemente zangado para isso. Nem mesmo a ideia de partilhar a casa com Lucky lhe parecia tão terrível como a de passar a noite ao ar livre, sozinha. Apertando a sua despedaçada capa de orgulho à sua volta, uma vez mais, Serena caminhou pelo delapidado cais para entrar no barco.

 

Afastaram-se da cabana de Gifford e mergulharam mais profundamente na solidão do hayou. Dos dois lados do estreito curso de água, erguiam-se bosques que lhe pareciam impenetráveis. Filas de ciprestes e de salgueiros formavam uma barreira dos dois lados e o crepúsculo lançava sobre a vegetação uma luz surrealista.

 

Serena sentou-se, tentando manter as costas direitas e procurando não chorar. Agora que o confronto com Gifford terminara e a cólera se apaziguara, só sentia desgosto. Fora ter com o avô, não poderia o velho ver isso? Como era possível achá-la tão má que pensasse apenas na herança? Nunca pusera sequer a hipótese de ele morrer, muito menos no que poderia deixar-lhe.

 

Revivia agora o horror de pensar que ele podia ter um colapso a qualquer momento. Não suportava a ideia de o perder, especialmente agora, que parecia tão zangado e desapontado com ela.

 

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e pestanejou furiosamente para as afastar. Não iria chorar agora, em frente de Lucky Doucet, porque não queria dar-lhe mais uma razão para troçar dela. Além disso, receava que, se começasse, não mais conseguisse controlar-se e ainda precisava de enfrentar muita coisa antes de o dia acabar.

 

Não se podia dizer que fosse uma perspectiva animadora, pensou, lutando contra nova vaga de desespero. Sentia-se já como se tivesse sido arrastada pelos cabelos durante muitos metros e brutalmente espancada. A pessoa que ela fora na véspera estava irreconhecível, transformada por aquele lugar, pelas pessoas, pelas memórias e recordações evocadas.

 

Ficara exausta pela provação, mas agarrava-se às últimas forças para mostrar dignidade e não chorar.

 

Lucky estava de pé, atrás de Serena, e observava os pequenos tremores que lhe agitavam os ombros. Ouviu-a conter a respiração e percebeu que ela lutava corajosamente para conter as lágrimas. Era orgulhosa e teimosa. Sentiu qualquer coisa apertar-se no seu peito e fez o possível por a ignorar.

 

Tinha dificuldade em manter diante dela a sua imagem de dureza. A mulher que tentara contratar os seus serviços era segura de si, fria e calma, impecavelmente vestida e penteada. Fora fácil lidar com alguém assim, fora fácil antipatizar com ela. Mas essa mulher desaparecera e os esforços que fazia para se mostrar calma e controlada tinham passado de irritantes a comoventes ou poderiam sê-lo, se ele se deixasse enternecer.

 

Serena fungava, soluçava e procurava afastar os mosquitos que subiam do pântano e esvoaçavam em volta da sua cabeça em formações cerradas. Lucky cerrou os maxilares contra o impulso de sentir simpatia por ela.

 

Odeio este sítio! exclamou Serena tentando afastar os mosquitos com as duas mãos, mas eles dispersavam e voltavam a agrupar-se logo a seguir. Soluçou outra vez e a voz tremia-lhe com o esforço que fazia para não chorar. Sempre detestei este sítio!

 

Bonito!, pensou Lucky. A sorte do pântano estava nas mãos de uma mulher que o odiava. Parou a piroga e prendeu a vara. Depois passou junto de Serena, enquanto ela continuava a agitar as mãos por causa dos mosquitos, chegando quase a roçar-lhe pelas pernas ao fazê-lo, foi buscar uma rede que levava sempre no barco e colocou-a por cima de Serena, como se estivesse a proteger um velho móvel

 

Agora pode parar de se agitar antes que vire a piroga e faça de nós comida para jacarés.

 

Serena estremeceu ao ouvir a palavra jacarés, mas não olhou para a água, a fim de ver se lá estava algum.

 

Muito obrigada pela sua atenção. Não percebo porque motivo os mosquitos não se lançam sobre o alvo enorme e seminu que você é.

 

É possível que apreciem o seu perfume. Têm uns gostos muito citadinos, estes mosquitos. Talvez queira levar alguns consigo quando se for embora.

 

Não comece com essas coisas comigo replicou Serena com a voz rouca de emoção. Não percebe nada disso.

 

Sei que Giff precisa de si aqui retorquiu Lucky, pondo-se novamente em frente de Serena, enquanto a piroga continuava a deslizar. Isto é, se você se interessar minimamente pela sua herança, mas talvez não seja assim. Diz que odeia este sítio. Gostaria então de o ver envenenado e estragado?

 

Gifford nunca permitiria que tal sucedesse.

 

Ele nada poderá fazer se não tratar do assunto agora. O seu avô pensa que os tipos se irão embora se ele se conservar afastado e disparar sobre o representante da Tristar de cada vez que este aparecer.

 

Quer-me fazer crer que ele foge do problema? Gifford Sheridan nunca evitou uma luta em toda a sua vida.

 

Pois bem, está a fazê-lo agora.

 

Isso é ridículo. Se não quer vender a propriedade à Tristar, só precisa de dizer-lhes que não. Não percebo qual é o problema.

 

Eu diria que há aqui muitas coisas que você não compreende, querida retorquiu lentamente Lucky.

 

Uma dessas coisas era ele, pensou Serena, agarrada à orla do mosquiteiro. O homem era uma confusão de contradições, mostrara-se mau para ela num momento e logo a seguir fora buscar o mosquiteiro para a tapar. Dissera-lhe que não se metia nos assuntos das outras pessoas e agora estava a comentar a situação de Gifford. Não o considerava capaz de compaixão, no entanto Lucky estava a evitar que ela passasse a noite ao ar livre, sem qualquer abrigo, e, pondo de parte motivos menos dignos, achava que a compaixão era a única coisa que o fazia levá-la para casa.

 

Serena tentava imaginar que espécie de casa seria a dele. Não tinha grandes esperanças de ficar bem alojada. A sua ideia do refúgio de um caçador furtivo era pouco melhor do que a de um covil com peles de animais espalhadas pelo chão, imaginava uma cabana rodeada de coisas velhas. Haveria provavelmente um telheiro onde guardava os utensílios de que se servia para o seu trabalho, prateleiras com peles roubadas e baldes com restos de rato-almíscarado. Certamente não seria melhor do que a casa de Gifford. Não podia imaginar Lucky a colocar cortinas nas janelas, parecia-lhe antes o género de pessoa que colasse pósteres nas paredes e os considerasse obras de arte.

 

Passaram por uma curva do hayou e apareceu à vista uma pequena e bonita casa situada na encosta de um monte, numa clareira liberta de árvores. As partes laterais, feitas com troncos de cipreste, brilhavam palidamente à luz que esmorecia. Estava construída no antigo estilo da Luisiana e erguida sobre pilares de pedra para a manter afastada do solo húmido. Uma série de degraus dava para a larga galeria que corria ao longo da casa, pontuada por janelas com portadas de madeira e por uma porta com rede. Uma escada exterior dava acesso ao sótão uma característica clássica da arquitectura cajun e as delgadas colunas de madeira que suportavam a parte superior da galeria davam à pequena moradia um ar gracioso.

 

Serena ficou encantada e surpreendida por ver algo tão bonito e bem arranjado no meio daquele pântano, mas ficou ainda mais espantada ao ouvir Lucky dizer que era a casa dele, ao mesmo tempo que franzia a cara ao ver a expressão chocada de Serena, que notou mesmo através do mosquiteiro. O que esperava, chere? Um pardieiro com um terreiro cheio de porcos e de galinhas a esgaravatarem o lixo?

 

Deixe de pôr palavras na minha boca resmungou Serena, sem estar disposta a confessar os seus pensamentos pouco lisonjeiros, por mais óbvios que pudessem ser.

 

Um sorriso lento encurvou os lábios de Lucky, enquanto a fitava intensamente.

 

Quer que eu ponha lá outra coisa?

 

O coração de Serena bateu traiçoeiramente com as imagens que involuntariamente lhe ocorreram, era tudo quanto podia fazer para evitar olhar para a parte da anatomia dele que ficava ao nível dos seus olhos.

 

Monopolizou de facto o mercado da arrogância, não é verdade?

 

Eu? replicou ele inocentemente, levando a mão ao peito. Não. Apenas sei o que uma mulher realmente deseja, mais nada.

 

Tenho a certeza de que não faz a mais pequena ideia daquilo que uma mulher realmente quer retorquiu Serena, desenvencilhando-se do mosquiteiro, pondo-o de lado e estendendo-lhe a mão como se fosse uma rainha, para que a ajudasse a saltar para o pequeno cais. Mas, se quiser praticar a sua teoria em si próprio, não deixe que eu o detenha concluiu, sorrindo.

 

Lucky ficou a vê-la caminhar, perversamente divertido com a resposta. Serena coxeava ligeiramente, mas isso não afectava a maneira atraente como se movimentava, nem a perfeição do corpo moldado pelas calças brancas e justas. Ele podia não adivinhar realmente o que Miss Sheridan queria, mas sabia perfeitamente o que o corpo dele desejava, sentia fogo nas veias. Iam ser dois longos dias.

 

Tirou a piroga da água e deixou-a com a carga de malas e de caranguejos, para ir ter com Serena à galeria. Não gostava de a ter ali, aquele sítio revelava coisas a seu respeito, ela ali estava demasiado perto, enquanto as suas defesas pediam que a conservasse a quilómetros de distância, pelo menos emocionalmente. Podia desejá-la fisicamente, mas nada mais. Aprendera a não permitir que ninguém penetrasse no interior das muralhas que tão dolorosamente construíra à sua volta. Lucky sentir-se-ia mais seguro se Serena continuasse a julgar que ele vivia como um animal, nalgum antigo reboque abandonado.

 

É muito bonita disse delicadamente Serena, enquanto Lucky subia os degraus para a galeria.

 

É apenas uma casa resmungou Lucky, abrindo a porta de rede. Entre e sente-se. Vou tirar-lhe essa farpa de madeira que tem no pé antes que infecte.

 

Serena sorriu ao de leve e declarou com uma expressão de troça:

 

Que anfitrião tão atencioso!

 

O interior da casa foi uma surpresa tão grande para Serena como tinha sido o exterior. Era composto por duas grandes divisões, ambas visíveis da entrada uma área destinada à cozinha e à sala de jantar e outra onde ficava o quarto e uma pequena sala, tudo imaculadamente limpo e arrumado. Não se viam os montes de jornais e de revistas pornográficas que ela esperava encontrar, nem roupa suja, nem tachos e pratos usados. Pelo que Serena podia ver, não havia um único grão de poeira no chão.

 

Lucky riscou um fósforo e acendeu dois candeeiros de querosene colocados sobre a mesa da sala de jantar, inundando a casa com uma suave luz amarelada, e depois saiu sem dizer palavra. Serena sentou-se numa cadeira, ainda maravilhada. A decoração do interior era de um estilo austero, simples e sem adornos, que fazia com que a própria habitação parecesse um pequeno museu. As paredes eram de madeira de cipreste envernizada e a mobília composta por peças antigas meticulosamente restauradas uma larga mesa, um grande aparador francês encostado à parede, cadeiras de carvalho e de vidoeiro com assentos de pele. Na zona da cozinha viam-se plantas misteriosas, que pendiam de uma larga viga, suspensas pelos caules, as quais enfeitavam a janela, por cima do lava-louças, substituindo as cortinas.

 

Lucky parecia dispor de água corrente e tinha um frigorífico, mas não havia electricidade outra contradição. Serena sentia-se desconfortável por perceber que existia nele muito mais do que imaginara. Teria sido fácil detestar um homem que vivesse num pardieiro e cujo modo de vida fosse ser caçador furtivo, mas aquela casa e o seu conteúdo faziam com que o visse a uma luz completamente diferente embora ela não quisesse deixar transparecer essa sua mudança de opinião.

 

Lucky apareceu, saindo do que ela supôs ser a casa de banho, com um estojo de primeiros socorros. Colocou-o em cima da mesa, sentou-se numa cadeira em frente dela e depois puxou-lhe o pé para cima com tanta força que quase a ia fazendo cair da cadeira. Tirou-lhe a sapatilha e olhou para o pé descalço com um olhar feroz, voltando-o para ver melhor à luz. Serena agarrou-se ao braço da cadeira com uma mão e à mesa com a outra, receando cair para trás, e encolheu-se quando Lucky começou a procurar a farpa.

 

Teimosa como o avô! Andar com isto espetado no pé quase todo o dia! resmungou, pegando na pinça. Espèces de têíes dures.

 

Que quer isso dizer? Ai!

 

Que tem a cabeça dura.

 

Ai! Serena tentou fugir com o pé.

 

Esteja quieta!

 

Seu sádico!

 

Pare de se mexer!

 

Oh! Aiii...

 

Já a tirei.

 

Sentiu um alívio imediato logo que a farpa saiu, mas foi de curta duração, pois logo soltou um gemido quando o álcool lhe tocou na ferida, pestanejando furiosamente para afastar as lágrimas que automaticamente lhe chegaram aos olhos.

 

As suas maneiras deixam muito a desejar protestou rudemente.

 

Lucky olhou-a por entre os dedos dos pés e a sua boca curvou-se num sorriso.

 

Sim, os meus modos podem não ser agradáveis, mas na cama garanto-lhe que são, chère.

 

Serena enfrentou os olhos hipnóticos de Lucky e o coração batia-lhe loucamente, enquanto os dedos dele seguiam suavemente o traçado do seu pé e do seu tornozelo. Toda a sensação de dor desapareceu, o desejo incendiava-lhe as veias numa corrente ardente, que a excitava e assustava ao mesmo tempo. Não costumava reagir daquela maneira a um homem, aquilo não devia estar a acontecer. Que sucedera ao seu bom senso? Que acontecera ao seu autodomínio?

 

Fez um esforço para conseguir falar, mas quando o fez foi com uma voz tão rouca e suave que ela própria mal a reconheceu:

 

Isso não é uma promessa, é uma ameaça.

 

Lucky largou o pé de Serena e ergueu-se lentamente. Os seus dedos fecharam-se em volta dos braços da cadeira, que inclinou para trás, ao mesmo tempo que se aproximava mais dela.

 

É? perguntou num sussurro com os lábios junto dos dela. Tem medo de mim, chère?

 

Não murmurou Serena, mas o tremor da sua voz negava o que afirmava.

 

Fitou-o, com os olhos muito abertos, os lábios a tremer, a respiração ofegante. O calor que vinha daquele olhar despertou uma resposta e Serena deu subitamente por si a olhar para a boca dele, essa boca incrivelmente sensual, bem delineada...

 

Não tem medo de mim? repetiu Lucky com palavras mal perceptíveis, inclinando-se ainda mais para ela. Então talvez seja disto que tem medo.

 

Fechou a distância entre os dois, tocando com os seus lábios nos dela, e o ardor foi imediato, explodiu em volta e dentro de ambos, tão brilhante e quente como a luz do candeeiro que brilhava sobre a mesa. Serena soltou um suspiro, ligeiramente ofegante, puxando Lucky mais para si, e este comprimiu os lábios contra os dela, dizendo a si mesmo que queria apenas saboreá-la, nada mais, mas o fogo percorreu-o, o sangue fervia-lhe nas veias. Saborear... apenas saborear... nunca seria o suficiente.

 

A boca de Serena era como seda macia, doce, intoxicante. A língua de Lucky deslizou por entre aqueles lábios frementes, para melhor saborear a experiência. Acariciou, explorou, e ela correspondeu do mesmo modo, reagindo instintivamente, a língua escorregando sinuosamente contra a dele, que mergulhou mais profundamente na sua boca.

 

Um gemido saiu da garganta de Serena, que rodeou com os braços o pescoço de Lucky. Sentia-se tonta, como se o seu corpo flutuasse para fora da cadeira, enquanto ele a erguia, puxando-a para si, as grandes mãos deslizando-lhe pélas nádegas. Lucky estava totalmente excitado, a sua erecção enterra-se na barriga de Serena, dura como granito, tentadora como o pecado, e ela arqueou o corpo contra o dele, sem pensar. Um gemido profundo saiu-lhe da garganta, enquanto Lucky mudava o ângulo do beijo e a sua língua explorava cada vez mais a boca dela.

 

Acariciou-lhe a anca cheia e, apertando-lhe as nádegas, ergueu-a contra si. Ela emitiu um pequeno som assustado, e ele sentiu-se terrivelmente excitado. Desejava-a, oh, como a desejava! Queria possuí-la ali mesmo, em cima da mesa, no chão. Era uma loucura.

 

Deus do céu, que estava a fazer? Lucky ouviu finalmente o alarme soar na sua mente. Que lhe estava Serena a fazer? Afastou-a de si com uma violência que a fez cambalear contra a cadeira onde estivera sentada, mas ela olhou-o com os olhos escurecidos com uma sedutora mistura de medo e de paixão. O cabelo caía-lhe em volta dos ombros, solto, dourado, e a boca, inchada e vermelha da força do beijo, tremia-lhe, enquanto o olhava como se ele fosse algo de selvagem e aterrorizador.

 

Selvagem era exactamente como ele se estava a sentir descontrolado, incapaz de raciocionar. Ofegava, enquanto tentava absorver suficiente oxigénio para poder pensar. Meteu as mãos no cabelo, inclinou a cabeça e fechou os olhos. Autodomínio, precisava de autodomínio.

 

Serena também perdera o controlo da situação e de si própria. Engoliu com força e levou a mão aos lábios doridos. Como podia ter acontecido aquilo? Nem sequer gostava do homem, mas no instante em que a boca dele tocara na sua sentira uma explosão de desejo que lhe fizera esquecer tudo o resto. Não pensara em mais nada que não fosse nisso, no sabor da boca dele, na força dos seus braços, na sensação de lhe sentir o corpo contra o seu. Um arrepio percorreu-a, como um choque. Que Deus a ajudasse, pois não se reconhecia a si própria. O que sucedera ao seu autodomínio, à sua calma e disciplina, à sua capacidade de se distanciar de uma situação e de a analisar?

 

”Tu desejava-lo. Que tal a análise?”

 

Serena abanou a cabeça, atordoada.

 

Creio que estaria mais segura com os cães murmurou.

 

Algo brilhou nos olhos de Lucky e a sua expressão tornou-se fria.

 

Non. Está em segurança nesta casa, minha senhora. Eu vou-me embora.

 

Voltou-se e dirigiu-se para o quarto. Serena ouviu bater portas e quando ele voltou trazia vestida uma camisola preta que se lhe colava ao peito como uma camada de tinta, e também um coldre preso ao ombro, com uma pistola que parecia suficientemente grande para matar um elefante. Serena abriu os olhos de espanto.

 

Não estamos na época da caça.

 

Não percebera que falara em voz alta, mas Lucky voltou-se e fitou-a perturbadoramente, os seus olhos de pantera brilhavam por baixo das sobrancelhas escuras.

 

Estamos, para aquilo que eu quero caçar respondeu com voz suave.

 

Tirou a arma do coldre, verificou se estava carregada e o estalido que se seguiu ecoou sinistramente. Depois desapareceu, saiu, como uma sombra, sem um ruído.

 

Serena sentiu um arrepio na nuca e, por momentos, ficou imóvel, petrificada com medo no calor da noite. Por fim, com grande esforço, forçou os pés a mexerem-se e foi até à porta de rede, para espreitar.

 

A noite estava escura como breu, apenas uns leves raios de luar brilhavam sobre o hayou, fazendo a água parecer uma folha de aço. Julgou ver de relance Lucky a impelir a piroga para junto de uns ciprestes, mas logo a seguir ele desapareceu, como se fosse um fantasma, capaz de se evaporar na escuridão.

 

Deus me ajude! murmurou, passando os dedos sobre o lábio superior. Em que me vim meter agora?

 

 

A piroga deslizava pela superfície escura do hayou tão suavemente como um murmúrio levado pelo vento e imersa no nevoeiro que pairava como fumo em redor dos troncos negros das árvores. O ar estava pesado de aromas, como o perfume de uma cortesã, doce, quase palpável madressilva e jasmim, verbena e glícinia, misturados com o cheiro das matérias em putrefacção abaixo da superfície. Interligados com o aroma, havia ruídos o zunir dos insectos, o coaxar das rãs, o piar dos mochos e o bater das suas asas quando levantavam voo, os gritos dos nutria. Os predadores da noite saíam para caçar e ser caçados.

 

Lucky deixou a piroga deslizar até um enorme carvalho, cujos ramos pendiam para a água. A margem fora absorvida pelas fortes raízes da árvore e formava uma pequena enseada, suficientemente profunda para manter a embarcação a flutuar. Os ramos pendentes formavam um largo dossel e o musgo pendia do tronco como uma cortina rasgada, ocultando a piroga e o seu dono. Era um lugar perfeito para esperar.

 

Lucky tirou um cigarro do maço que trazia no bolso e acendeu-o, dando uma longa fumaça que o apaziguou. A ponta do cigarro brilhou, vermelha, na noite, enquanto o fósforo descrevia uma curva antes de mergulhar. Contudo, logo a sua tensão nervosa subiu de novo, como um fio eléctrico sobrecarregado, devido ao trabalho que ia fazer, e também, em grande parte, à sua frustração sexual. Nunca desejara tanto uma mulher em toda a sua vida, nem na juventude, quando as suas hormonas estavam sempre no máximo, nem mesmo depois de ter passado um ano numa prisão da América Central. Nunca ansiara tanto por uma mulher como naquele momento de loucura cega. Estava a tremer com a intensidade do desejo e ainda meio duro.

 

Maldição! Porquê ela? De todas as mulheres do planeta, porquê ela? Como poderia ser possível olhá-la, lembrar-se da traição de Shelby e continuar a desejá-la?

 

Serena não era como a irmã, sabia isso, esta última nunca iria ter com Gifford, jamais seria capaz de enfrentar o velho Giff, desafiando-o claramente. A maneira que Shelby tinha de conseguir aquilo que queria era mais amuando e batendo as pestanas. Não, em termos de personalidade, não eram nada parecidas, uma era dissimulada e coquete, a outra, toda energia e decisão. Contudo, não queria desejar Serena, ela punha em risco a sua sanidade mental, lembrava-lhe o passado e o romance que dera à sua vida um rumo quase perigoso.

 

Rendera-se aos encantos de Shelby, sucumbira e perdera-se. Era aluno da Universidade de Lafayette, no Sudoeste da Luisiana, jovem, ardente, decidido a conquistar o mundo e a mostrar aquilo de que era capaz. O rapaz alto e melancólico que toda a gente olhava com certa desconfiança seria o primeiro Doucet a ter um diploma universitário, ia ser biólogo. Ter Shelby Sheridan nos braços e na cama era mais uma pena do seu toucado. Nessa Primavera parecia-lhe ser o dono do mundo, depois deu-se uma reviravolta e esse mundo atirou-o abaixo.

 

Lucky fora apenas um meio para Shelby conseguir um fim, um instrumento para ela chegar àquilo que realmente queria John Mason Talbot IV. Este hesitava em desposá-la e Shelby meteu-se com Lucky para lhe provocar ciúmes, um plano simples de executar, e o facto de ela estar grávida dele fora rapidamente solucionado logo que Talbot lhe pusera o anel de noivado no dedo.

 

Lucky ainda sentia a amargura desses dias. Amara tanto Shelby como a ideia de a ter e quando ela o deixou o golpe foi terrível, agravado ao saber da gravidez abortada, facto que o atingiu no mais fundo do seu ser. Shelby despedaçara-lhe o orgulho, com toda a serenidade, e prosseguira a sua vida como se nada tivesse sucedido, enquanto a dor e a humilhação o levaram a abandonar a escola e todos os seus grandes projectos.

 

Num impulso insensato, deixara tudo e alistara-se no exército, fazendo com que a sua vida seguisse por um caminho cinzento e cheio de sombras, onde não havia bem nem mal, apenas missões e objectivos, um sítio onde a alma lhe foi arrancada, pouco a pouco.

 

Haviam passado treze anos, ele sentia ainda a vergonha de ter feito figura de parvo e estava agora a ser tentado por outra.

 

Praguejou em francês e lançou o cigarro para a água. Como se não tivesse já sarilhos suficientes, era obrigado a recordar antigos ressentimentos. Talvez fosse apenas vingança que ele queria ao olhar para Serena, ou talvez estivesse a complicar as coisas sem necessidade, e também podia ser apenas sexo.

 

Bem, o sexo podia ele enfrentar. O sexo seria fabuloso entre eles. Desde o instante em que lhe tocara na boca ficara louco, e ela perdera igualmente o seu frio controlo e respondera ao beijo com todo o ardor que anteriormente reservara para o sarcasmo. Sim, podia encarar o sexo com Serena Sheridan e a ideia de ter toda aquela beleza e ardor debaixo dele e à volta dele quase o fazia enlouquecer.

 

Era o envolvimento emocional que queria ignorar e considerava-se suficientemente inteligente para evitar isso. Não permitiria que Serena se aproximasse dele dessa maneira, não deixava que ninguém o fizesse, nem mesmo a família. Nada tinha para oferecer fosse a quem fosse, guardava avaramente o que restava da sua alma.

 

O som distante do motor de um carro interrompeu-lhe os pensamentos e ficou à escuta, seguindo cuidadosamente a direcção donde vinha o som. Não era de muito longe, talvez do hayou próximo, perto da bifurcação que ia ter ao pequeno curso de água onde se encontrava. Estava no sítio exacto, e um sorriso ameaçador apareceu lentamente no seu rosto escuro. Colocou uns óculos de infravermelhos, empunhou a arma e ficou à espera.

 

Serena não conseguia dormir, nem sequer tentara. Sentia-se completamente exausta, mas o medo era ainda maior Estava sozinha no pântano, não importava muito que fosse numa casa e que tivesse um tecto por cima da cabeça. No dia-a-dia, costumava considerar-se uma mulher segura de si, forte, competente, capaz de enfrentar praticamente todos os problemas que se lhe deparassem, mas aquela situação era impossível de controlar. As recordações eram ainda muito fortes. Cada olhar, cada som, cada cheiro as tornavam mais vivas. Seria capaz de dar o seu braço esquerdo por um VáHum, só um, qualquer coisa que diminuísse o impacte das agulhas que pareciam enterrar-se nos seus nervos.

 

Domina-te, Serena disse em voz alta, apertando os braços em volta do peito num gesto simbólico, enquanto percorria a toda largura a casa de jantar. Se os teus doentes te pudessem ver agora iriam para outro lado com as suas neuroses.

 

Um som que não identificou partiu da varanda no momento em que passava pela porta de rede, o que a fez gritar e dar um salto para o lado, magoando um dedo do pé na perna da mesa. Praguejou em voz baixa e prosseguiu o seu ”passeio”.

 

Desde que Lucky saíra, ela pouco mais fizera do que andar de um lado para o outro. Lavara-se na pequena casa de banho impecável, arranjara um pente e pusera alguma ordem no cabelo. Preparara uma sanduíche com um pão branco, esponjoso, e manteiga de amendoim e comera-a a andar de um lado para o outro. Com efeito, estava demasiado nervosa para se sentar e mesmo para se alimentar, mas sabia por experiência própria que a fome aumentaria ainda mais a sua paranóia. Por isso, andara de um lado para o outro a mastigar.

 

Nada havia para a distrair do seu medo, nem havia televisão, nem rádio, nem estéreo. Viu um CB numa prateleira da cozinha, mas não fazia ideia de como o pôr a trabalhar e nem sequer se podia distrair a desmanchar a mala. Na realidade, mesmo que Lucky a tivesse deixado no cais provavelmente não seria adequado um caçador furtivo ser apanhado a transportar roupa interior de seda e artigos de maquilhagem, os outros frequentadores do pântano poderiam ficar com ideias erradas, nada a faria sair de casa para a ir buscar. Durante a noite havia bichos por toda a parte e Serena podia imaginar-se a caminhar em bicos dos pés, sobre milhares de corpos reptílicos a agitarem-se.

 

”Pára com isso!”, disse para si própria sentindo um espasmo de medo percorrer-lhe as costas e uma náusea subir-lhe à garganta, espessa e amarga como gordura. Ouviu ao longe o som do que lhe pareceu um tiro. Oh, meu Deus murmurou Serena. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e levou uma mão trémula aos lábios. E se ele fosse morto? Se levasse um tiro? E se quem fizesse isso fosse ali a casa para procurar sabia lá o quê?

 

Com o coração a bater desordenadamente, dirigiu-se para a porta, tentando distinguir alguma coisa através do negrume da noite. De momento ouvia apenas o sangue a latejar-lhe nos ouvidos, depois o coaxar das rãs, em seguida um grito estridente, de fazer gelar o sangue nas veias, que poderia ser de um animal a ser morto, ou de uma mulher tomada de histeria. O som agudo rasgou a noite como uma faca a cortar seda e logo a seguir esmoreceu, deixando atrás de si um silêncio fantasmagórico. Serena abafou um soluço e afastou-se lentamente da porta.

 

Retomou o seu passeio entre a janela da frente, o velho sofá e a cama. Deixara de sentir dores na sola do pé e quase desejava senti-las, seria mais qualquer coisa em que pensar para além daquele pavor que a sufocava.

 

Tentou pensar na situação em Chanson du Terre, mas faltavam ainda demasiadas peças para que algo pudesse fazer sentido. De vez em quando, vinham-lhe à memória recordações dos seus últimos momentos com Lucky, mas afastava-as. Não queria ainda pensar nas consequências de se ter sentido tão próxima de um homem que se dizia louco e que usava uma arma.

 

Os dedos de um pé colidiram com um objecto sólido quando se ia a virar novamente para se dirigir para a janela, voltou-se hesitantemente e reparou então na cama de mogno com a cabeceira lindamente esculpida e coberta por uma colcha; era um belo exemplar de tecelagem cajun, num tom de castanho suave, com riscas violeta.

 

A ideia de Lucky, bárbaro e pagão, deitado naquela cama elegante, reacendeu-lhe o desejo. Podia imaginá-lo, com a pele escura sobre os lençóis brancos, com a cabeleira solta na almofada, com os olhos dourados a fitá-la hipnoticamente.

 

Serena abanou a cabeça, espantada. Como poderia desejar um indivíduo tão contrário ao que achava que um homem moderno devia ser? Sabia que havia mulheres que gostavam de ser dominadas, que se derreteriam perante um tipo como Lucky Doucet, mas ela não era dessas. Sempre fora partidária da igualdade entre os sexos e Lucky era retrógrado, machista e chauvinista. Não confiava nele, não o respeitava, nem gostava dele. Como podia desejá-lo? Contudo, os seus olhos percorreram novamente a cama e mais uma vez sentiu o ardor do desejo crescer dentro de si.

 

Afastando os seus pensamentos sobre sexo, Serena ajoelhou em cima da cama e levantou uma ponta da colcha. Debaixo encontravam-se vários caixotes de cartão. Estendeu a mão para um deles, mas os seus dedos imobilizaram-se antes de lhe tocar. E se encontrasse algo que seria melhor desconhecer? Mas também poderia descobrir qualquer coisa que lhe desse indicações sobre a pessoa que Lucky realmente era. Mordeu o lábio, hesitante, mas puxou a caixa para si, ao mesmo tempo que ouvia lá fora um som estranho. O caixote de cartão estava cheio de livros.

 

Céus, quem havia de pensar que ele soubesse sequer ler murmurou para consigo.

 

Os seus dedos percorreram levemente as lombadas e viu que eram sobretudo sobre biologia, de nível universitário. Havia também obras de Shakespeare, vários volumes sobre história de arte, e uma série de pequenos livros, que pareciam muito antigos, com títulos em letras douradas, em francês. Serena retirou cuidadosamente um dos de biologia e abriu-o. As folhas estavam ligeiramente coladas e tinham um leve cheiro adocicado a humidade. Quando chegou à primeira página, leu: ”Etienne Doucet, USL, 1979.”

 

Serena tentou imaginar Lucky percorrendo os corredores da faculdade, com os livros debaixo do braço, mas só conseguia imaginá-lo com um camuflado do exército, trepando a uma torre com uma espingarda na mão. Mas ele tinha sido estudante, e a sério, se aqueles livros significavam alguma coisa. Por que motivo ganhava então a vida por meios ilegais?

 

Tinha vivido como um animal, no pântano, desde que deixara o exército, e as pessoas diziam que era meio doido. Como podia um aluno universitário ter saltado para o exército e daí para o pântano? Que sucedera?

 

Enquanto pensava nisso, Serena voltou a colocar o livro no caixote e empurrou-o para debaixo da cama. Depois deixou-se ficar sentada sobre a colcha, pensativa, enquanto o seu olhar vagueava pelo quarto, tentando decifrar o enigma que era Lucky.

 

O silêncio foi aumentando gradualmente e, na altura em que tomou consciência dele, era absoluto. A noite, que lhe parecera cheia de sons, tornara-se subitamente silenciosa. Serena sentia-se completamente vulnerável. Se alguém quisesse entrar ali, não era uma porta de rede que poderia detê-lo. Julgou ouvir passos ligeiros na galeria, mas o som desapareceu tão depressa que pensou ser imaginação sua. O medo que durante um bocado diminuíra de intensidade voltava agora com mais força. Na noite do pântano havia mais coisas a recear para além das cobras e dos jacarés. As caras dos indivíduos com quem Lucky se confrontara no Mosquito Mouton’s vieram-lhe à memória com uma clareza angustiante e a ameaça do homem corpulento surgiu de novo: ”Hei-de apanhar-te...”

 

Serena apagou o candeeiro de querosene que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira, mergulhando o quarto na obscuridade. Depois pegou num pesado candelabro de metal e dirigiu-se em bicos dos pés para a janela da frente. Lucky era muito capaz de travar os seus próprios combates, tinha a certeza disso, mas, se fosse alguém ali à procura dele, não estava interessada em tornar-se um segundo alvo para a violência deles.

 

Encostou-se à parede, ao lado da janela, e ficou à escuta. Nada... um leve som... ou seria apenas o seu coração a bater? Avançou devagar para a porta, contendo a respiração, com o candelabro erguido no punho fechado.

 

Uma mão agarrou-lhe o braço por trás e nem teve sequer tempo para conseguir gritar, antes de se sentir presa contra a parede. Uma grande mão tapava-lhe a boca e um forte corpo masculino comprimia-se contra o dela, imobilizando-a com toda a facilidade. O candelabro saltou-lhe da mão e foi bater no chão, ruidosamente.

 

Queria partir-me a cabeça, querida?

 

Serena perdeu completamente as forças, a tensão desapareceu subitamente, deixando-a trémula. Lucky tirou-lhe a mão da boca e recuou com um sorriso divertido nos lábios, que desapareceu no instante em que Serena se atirou a ele.

 

Patife! Isto não se faz!

 

Lucky prendeu-lhe os pulsos e segurou-a.

 

Calma, calma!

 

Não quero ter calma! replicou Serena, tentando dar-lhe um pontapé, mas ele esquivou-se com facilidade, o que a fez ficar ainda mais furiosa. Se fizesse a mais pequena ideia de como eu estava assustada... diabos o levem!

 

As lágrimas saltaram-lhe dos olhos, mas desferiu novo pontapé e dessa vez teve a satisfação de o ouvir soltar uma exclamação de dor.

 

Se fizesse ideia...

 

Nessa altura, a emoção foi demasiada e ela sucumbiu. O medo, a recordação da cena com Gifford, a exaustão, a futilidade de tentar magoar Lucky, tudo se abateu sobre ela com a força de uma locomotiva lançada a grande velocidade. Deixou de lutar, as mãos dele soltaram-lhe os pulsos e ela, libertando-se, voltou-se para a porta e tapou a cara com as mãos, enquanto o último tijolo do seu muro de determinação se desmoronava.

 

Não queria estar ali, não queria sentir-se assustada nem ter de enfrentar um homem como Lucky, e também não lhe interessava resolver problemas da família. As lágrimas chegaram contra a sua vontade, mas não teve força para as conter, rolaram-lhe pelas faces, como pérolas.

 

Lucky olhava-a com um sentimento muito parecido com o terror, o som de uma mulher a chorar causava-lhe pânico. Podia enfrentar a frieza dela, as palavras hostis, a fúria., mas lágrimas... Dieul E aquelas eram verdadeiras, não uma choraminguice destinada a conseguir qualquer coisa, e tornava-se evidente que Serena não gostava que ele as visse. Continuava de costas voltadas rigidamente, enquanto tentava parar de chorar. Ficou parado, sem saber que fazer, com as mãos na cintura. Recordou a figura dela no cais, junto da loja de Gauthier, o modo como empalidecera quando olhara para a piroga, a sua fragilidade, e agora essa fragilidade voltava a revelar-se, a sensação de que algo dentro dela se quebrara.

 

Não podia deixar de se comover, sabia o que era sentir algo ceder dentro de si. Não importava quantas vezes dissera a si próprio que não queria envolver-se com ela para além do aspecto físico, nem quão distante se sentia. Era impossível ignorar a dor dela.

 

Aproximou-se por trás e pôs-lhe uma mão num ombro, levemente, mas com firmeza. Serena tentou afastá-lo, mas em vão.

 

Então, chère O que foi? Assustei-a assim tanto? Não queria fazê-lo. Não gosto de entrar pela porta da frente. É um hábito que já salvou a minha miserável vida várias vezes. E desta vez livrou-me de ficar com um galo na cabeça concluiu, afastando o candelabro com a ponta da bota.

 

Não é isso disse Serena em voz baixa, abanando a cabeça e tentando conter as lágrimas que continuavam a rolar-lhe pelas faces. Sentia-se demasiado vencida para se agarrar ao seu orgulho. Porque não havia de lhe contar e acabar com aquilo por uma vez? Provavelmente ele já pensava o pior a respeito dos medos dela, mas que lhe importava? Não tinha de responder perante ele.

 

É este sítio, o pântano murmurou, puxando o cabelo para trás e olhando a escuridão da noite, além da porta de rede. Aterroriza-me.

 

Por isso não foi lá fora buscar a sua mala? Serena disse que sim com a cabeça.

 

Sei que isto lhe deve parecer completamente estúpido, mas o pântano escuro é um dos meus piores pesadelos.

 

Porquê? quis saber Lucky, tirando a mão do ombro dela e afastando-se um pouco. Por que motivo detesta tanto este sítio? É demasiado sujo para si? Demasiado primitivo? Ofende assim tanto a sua sofisticada sensibilidade?

 

A amargura da voz dele enervou ainda mais Serena, que se voltou de repente e o olhou através das lágrimas.

 

Pare com isso! Estou farta do seu snobismo! Está sempre a tentar amesquinhar-me por eu preferir viver numa cidade, ter um emprego normal e roupas normais. Não sabe nada a meu respeito, não faz ideia do motivo pelo qual odeio este sítio!

 

Então conte-me.

 

Lucky falou como se fosse um desafio, dizendo a si próprio que não lhe interessava a resposta dela, mas ficando à espera de a ouvir. Serena soltou um longo suspiro de resignação e apertou os braços em volta do corpo. Depois voltou-se mais uma vez para a porta...

 

Quando tinha dezassete anos perdi-me no pântano começou, tentando falar sem a menor emoção. A minha irmã, eu e alguns amigos viemos no barco de Giff passar o dia aqui. Queríamos apenas passear, divertirmo-nos. Traziamos um cesto com o piquenique e parámos numa clareira para comer. Eu não tinha a certeza de saber onde estava, mas o rapaz que guiava o barco conhecia o local, por isso não me preocupei. Shelby e eu começámos a discutir a respeito de qualquer coisa, já nem sequer me recordo porquê, estávamos sempre assim, a implicar por pequenas coisas, tínhamos opiniões opostas, por mais trivial que fosse o assunto. Bem, quando nos preparávamos para partir, reparei que deixara o meu casaco na clareira e voltei atrás, sozinha, para o ir buscar. Entretanto Shelby convenceu o rapaz que guiava o barco a afastarem-se e a deixarem-me ali.

 

Ela deixou-a lá, sozinha?

 

Shelby, a cabra. Lucky sentiu a cólera invadi-lo, enquanto Serena encolheu os ombros.

 

Foi apenas uma brincadeira de mau gosto. Ela não queria que me sucedesse qualquer mal.

 

Não queria? duvidou Lucky.

 

Não, claro que não, estava apenas furiosa comigo e quis assustar-me. Afastaram-se no barco, tencionando voltar dentro de uma hora, mas entretanto desencadeou-se um temporal.

 

Foi um desses dias em que o céu está azul, tudo calmo e de repente fica escuro observou Lucky.

 

Serena ainda recordava vivamente tudo o que se passara

 

As nuvens a rolarem sobre o pântano, cinzentas e negras, com uma estranha coloração amarela, como fumo nocivo saindo de cem chaminés de fábricas. Podia ainda sentir o cheiro do ar e a pressão atmosférica, momentos antes de a tempestade se desencadear, e ouvia o som ensurdecedor dos trovões, enquanto os relâmpagos rasgavam o céu.

 

Choveu tanto que lençóis de água pareciam abater-se sobre mim. O temporal durou horas e, quando por fim a trovoada amainou, a chuva continuou a cair. Fiquei assustada, sabia que nenhum barco me poderia ir buscar naquelas condições, e pensei que, se conseguisse caminhar na direcção certa, seria capaz de me orientar para chegar a casa. Enganei-me.

 

Calou-se, incapaz de falar no que fora caminhar ao longo de cursos de água engrossados pela chuva que seguiam numa direcção e depois noutra, dando tantas voltas que ela não sabia se ia para casa ou para o inferno. Não queria falar no terror que sentira por ter de passar a noite sem abrigo, sem comida, sem nada. Não podia pôr em palavras o que fora ajoelhar em cima de um tronco partido e ver a água negra agitar-se em redor dela, enquanto três cobras a ameaçavam.

 

A pressão, que foi aumentando dentro dela enquanto falava dessas penosas recordações, fez desaparecer o falso tom calmo da sua voz.

 

Não me recordo de muito do que se passou continuou num sussurro trémulo. Bloqueei essas recordações, mas de estar molhada, de ter frio e de me sentir tão assustada que quase sufocava... tremia de tal modo, com medo, que mal podia andar. Lembro-me do olhar de Gifford quando me encontraram.

 

Quanto tempo levaram?

 

Dois dias.

 

Lucky praguejou interiormente. Ele crescera nos hayous, habituara-se a pescar e a caçar com o pai e os irmãos, explorando o que o rodeava por puro prazer. Para ele era fácil passar dias e dias naquela solidão, conhecia cada planta, cada animal, cada insecto, cada pedaço de lama e de água. Contudo, podia imaginar o género de rapariga que Serena fora, uma jovem meiga, bonita, habituada a uma vida resguardada, sem perigos, e podia imaginar o seu terror. O pântano era um lugar cheio de beleza natural, mas também de violência. Não era um sítio que conviesse a quem não estivesse preparado e Serena fora atirada para lá sem qualquer treino. Dadas as circunstâncias, fora um milagre ter sobrevivido, e fora tudo por culpa de Shelby.

 

Serena encontrava-se agora diante dele, com o seu orgulho desfeito, tremendo como se estivesse a receber choques eléctricos a intervalos regulares, e fora a sua irmã gémea a culpada. Para Lucky isso era impensável, fosse o que fosse que tivesse feito na vida, nunca magoara intencionalmente nenhum dos membros da família.. Mas Shelby fizera-o, não se importava, desde que atingisse os seus fins.

 

A cólera apoderou-se dele ao olhar para Serena, cólera e um sentimento protector que se recusava a admitir. Ela estava de costas voltadas, mas Lucky mudara de posição para lhe ver um pouco do rosto por cima do ombro. Parecia muito nova e triste, ali sentada, com o cabelo caído em redor dos ombros e sem qualquer maquilhagem.

 

Estive uma semana no hospital, por ter estado exposta às intempéries e sofrido picadelas de cobras, e, como pode ver, ainda não me recompus.

 

Serena soltou uma curta gargalhada, onde não havia humor, mas apenas dor, frustração e uma sensação de vergonha. Encolheu os ombros e fungou.

 

Agora conhece o meu triste segredo. A calma, a fria psicóloga, tem uma fobia que não consegue ultrapassar.

 

Lucky fechou os olhos e pôs-lhe os braços em volta, porque sabia que ela precisava muito de conforto. Percebia-lhe isso na voz e não podia deixar de corresponder. Atraiu-a contra o seu corpo grande e sólido, e pensou distraidamente como se adaptava bem ao seu.

 

Serena não lutou contra aquele abraço, não sabia o que significava tal demonstração de ternura da parte de um homem tão duro, mas aceitava-a. Deixou-se repousar contra o peito de Lucky e mergulhou naquela sensação de segurança que os braços dele lhe proporcionavam. Naquele momento não importava que discutissem ou fossem diferentes um do outro, era apenas um homem que lhe oferecia conforto quando tanto precisava. Voltou a cabeça e encostou-lha ao peito, ouvindo-lhe as fortes batidas do coração.

 

Por isso não queria vir aqui na piroga? perguntou meigamente repousando a cara na cabeça dela, sem sequer se aperceber da ternura desse gesto, e certamente sem a reconhecer.

 

Não queria, pronto!

 

Porque veio?

 

Porque era preciso.

 

Se tinha assim tanto medo do pântano, porque não me disse mais cedo?

 

Para lhe dar mais uma razão para troçar de mim? Não, obrigada. Francamente não pensei que os meus medos pudessem interessar a um homem como você.

 

Todos nós temos os nossos medos, chère murmurou ele quase que para consigo.

 

Ela olhou-o por cima do ombro, erguendo as sobrancelhas.

 

Mesmo o grande, o mau Lucky Doucet?

 

Lucky ficou calado. Uma coisa era Serena confessar-se, mas outra, muito diferente, seria o contrário. Ele não podia deixá-la aproximar-se tanto de si. Esforçara-se muito para ultrapassar os seus problemas e não ia permitir agora que uma psicóloga o dissecasse.

 

De que tem medo, Lucky? perguntou Serena com os seus olhos escuros a brilharem de inteligência e de curiosidade. Havia traços das lágrimas nas faces dela e a boca parecia macia e vulnerável.

 

De nada murmurou, voltando-a para si e descendo os lábios sobre os dela. De nada.

 

Beijou-a profundamente, afastando-lhe habilmente os lábios e fazendo deslizar a língua na boca dela, num acto de posse. Ela tinha um sabor doce e salgado, tão bom que o atordoava. Passou-lhe as mãos sobre os cabelos sedosos, prolongando as carícias até à curva das ancas.

 

Durante o tempo em que andara por fora não parara de a desejar, o fogo apenas diminuíra, não se apagara. As chamas reacenderam-se quando a boca de Serena correspondeu à carícia e o corpo dela se comprimiu contra o seu. Da primeira vez afastara-se, mas agora não tinha intenção de o fazer, era só desejo, nada de mais profundo, nem complexo, apenas a reacção natural de um homem querer uma mulher, de um macho conquistar uma fêmea.

 

Com uma mão a prender-lhe as costas, puxou-a mais contra si e, metendo a outra mão por baixo do top, começou a acariciar-lhe a pele sedosa. Com dedos hábeis desapertou o sutiã, com a mão em concha apanhou-lhe um seio, e sentir o mamilo endurecer com o toque dos seus dedos excitou-o ainda mais. Os seus lábios deslizaram pelo queixo e pelo pescoço de Serena até à orelha, fazendo-a estremecer quando sentiu a língua dele na pele delicada da orelha e tremer quando ele murmurou em voz baixa e rouca, quente como a noite:

 

Quero os teus seios na minha boca, quero saborear-te e sentir o teu mamilo entre os meus dentes.

 

Um gemido saiu dos lábios entreabertos de Serena.

 

Quero estar dentro de ti, sentir-te à minha volta, quente e húmida.

 

Serena sentiu-se atordoada com as imagens sedutoras que ele evocava, a sua temperatura subia, com um desejo sexual que parecia febre no seu sangue. Era um desejo inebriante e ao mesmo tempo assustador, o seu corpo apertou-se contra o dele, revelando os seus desejos, apesar de o cérebro ainda procurar controlá-la.

 

Lucky beijou-lhe a garganta, deixando que os dentes lhe roçassem pela pele, sussurrou-lhe um pedido mais explícito ao ouvido, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha. Serena tentou suster o gemido prestes a sair-lhe da garganta, mas não foi capaz de arquear o pescoço para lhe dar melhor acesso.

 

Não murmurou, ofegante, parecendo mais uma afirmação do que uma recusa. Não repetiu com mais veemência.

 

Lucky prendeu-lhe o mamilo entre o polegar e o indicador, pressionando-o levemente. Ergueu um pouco a cabeça e olhou-a com os olhos luminosos de paixão, tão quentes como a luz do candeeiro que se encontrava sobre a mesa,

 

Sim, chère sussurrou.

 

O olhar de Serena pousou na boca dele, essa boca incrivelmente sensual, vermelha e brilhante. Imaginou-a beijando-lhe os seus seios, acariciando-os com a língua, enquanto os dedos dele afagavam as partes mais sensíveis do seu corpo

 

Não murmurou num murmúrio mal audível. Eu mal o conheço.

 

Sabe que sou um homem, eu sei que é uma mulher. Que mais é preciso?

 

Nem sequer gostamos um do outro.

 

Lucky soltou um gemido rouco, vindo da garganta, enquanto a sua boca se aproximava novamente da dela.

 

Estou a gostar muito de si, querida murmurou, tocando gentilmente na entrada dos lábios com a ponta da língua. J’aime te faire l’amour avec toi insistiu junto aos lábios dela. Bien, ma chère, casse pás mon coeur.

 

Ele podia dizer-lhe o que quer que fosse, podia afirmar que ela era feia como uma mula, porque as palavras proferidas em voz baixa e rouca e com a doçura do francês teriam tido o mesmo efeito. Serena sentiu o seu senso comum diluído pelo desejo, uma fraqueza lânguida espalhou-se-lhe pelos braços e pernas. Encostou-se pesadamente a Lucky e o perfume dele encheu-lhe a cabeça almiscarado, quente e indubitavelmente masculino.

 

Ele beijou-a outra vez, enchendo-lhe a boca com o seu sabor, os seus dedos largaram-lhe o seio para irem prenderse em torno do seu pulso direito, puxando-lhe a mão para baixo, para o símbolo da sua virilidade, fazendo-a sentir a dureza e a extensão. Serena gemeu, num som que conseguiu combinar desejo e admiração e Lucky movimentou-se contra a mão dela, encostando-se mais e mordiscando-lhe a orelha.

 

É tudo para si, meu anjo. Deixe-me dar-lhe tudo, chère. Serena sentiu os seus dedos fecharem-se imediatamente e foi invadida por nova onda de calor. Oh, como desejava aquele homem que acabara de conhecer, alguém que era um mistério para ela, mas cuja esmagadora virilidade a assustava e a atraía. Virou a cabeça para respirar fundo e o seu olhar pousou na pistola semiautomática que ele trazia no coldre. O coração quase parou de bater quando olhou para o braço dele: para além da pistola, viu um golpe de uns oito centímetros coberto de sangue coagulado. Ele era um homem perigoso, um criminoso sem escrúpulos.

 

Tremendo das emoções conflituosas que se agitavam no seu interior, Serena afastou-se, dizendo:

 

Está a sangrar.

 

O quê?

 

O seu braço, ao pé da arma observou friamente. Está a sangrar.

 

Isso não é nada respondeu ele, tentando puxá-la para si.

 

Serena recuou, cruzando os braços sobre o peito e tentando evitar-lhe o olhar.

 

Não? Para mim é.

 

Lucky estendeu a mão para afastar uma madeixa de cabelos que Serena deixara cair para a testa.

 

Se eu puser um penso rápido vai comigo para a cama?

 

Não.

 

Porquê?

 

Porque não gosto de ter relações sexuais que nada signifiquem para mim, com homens que mal conheço respondeu Serena, esforçando-se por restaurar a sua fachada de calma.

 

Lucky viu-a erguer o queixo, endireitar os ombros, e ficou ressentido com a rapidez com que ela parecia pôr de lado o desejo que ainda continuava a sentir.

 

Quer dizer que só fode com um homem se tiver a certeza de que ele lhe mete o anel no dedo? perguntou brutalmente.

 

Não foi isso que eu disse.

 

Mas é o que quer dizer.

 

Não, não é, só que não acredito em relações sexuais ocasionais, não vou para a cama com homens que não têm intenção de investir emocionalmente numa relação. Foi isso que eu quis dizer. É capaz de afirmar que está apaixonado por mim?

 

Lucky forçou-se a soltar uma gargalhada.

 

Nem por sombras.

 

Serena cerrou os maxilares, para não revelar como aquelas palavras a magoavam, mas claro que ele não iria dizer que sim, nem agora, nem nunca.

 

Isso encerra a questão, não acha?

 

Apenas por hoje, querida respondeu Lucky, pondo-lhe um dedo debaixo do queixo e fazendo-a erguer a cabeça. Inclinou-se e depositou-lhe um beijo delicado nos lábios.

 

Serena viu-o desaparecer pela porta da frente, sem fazer ideia para onde ele iria. Disse a si própria que não queria saber, mas de qualquer modo estava demasiado interessada para isso ser verdade. Passara por um descalabro emocional e todos os músculos, todos os ossos do corpo lhe doíam.

 

Evitando sequer olhar para a cama, Serena enroscou-se num canto do sofá e tentou não pensar em Lucky, no ardor dele, na sua paixão... na maneira como a abraçara quando lhe dissera que tinha medo...

 

 

Serena ia sentada na piroga, protegendo os olhos do Sol que brilhava como uma bola de fogo para afastar o nevoeiro que pairava no ar. Ainda não se estava a meio da manhã e o calor era já tão opressivo como um casaco de peles em Julho. Vestira uma blusa de algodão, branca, sem mangas, e uns calções de caqui, mas mesmo essa roupa leve, de Verão, agarrava-se-lhe ao corpo, fazendo-a pensar num fato de banho e num dia tranquilo na praia.

 

O facto de saber que Lucky se encontrava atrás de si aumentava ainda o seu desconforto. Sentia o seu olhar pousado nela e endireitou as costas para mostrar que não se deixaria intimidar.

 

Fora procurá-lo às sete e meia, ansiosa por ir ter com Gifford, mas em parte porque não confiava muito em si própria se ficassem sozinhos. Dormira no máximo duas horas depois de se terem separado, na noite anterior, e essas curtas horas tinham sido cheias de sonhos eróticos, protagonizados por ele. Serena sentia-se corar só por pensar nisso e nem sequer queria tentar decifrar o seu significado.

 

Lucky Doucet era um marginal e o facto de ter o corpo de um adónis não podia entrar na apreciação do caso. Não se podia envolver com ele, repetia incessantemente isso, mas de cada vez que julgava ter-se convencido a si mesma voltava-lhe insidiosamente a recordação do modo como a abraçara depois de ela lhe contar como se perdera no pântano. Nesse momento mostrara-se meigo, gentil e compadecido.

 

Não fora nenhuma dessas coisas quando o encontrara nessa manhã. Depois de percorrer as galerias, encontrara apenas um trio de guaxinins bebés a brincar nos degraus. Encaminhara-se em seguida para a escada exterior, que ia dar ao sótão.

 

Lucky saíra de lá, fechara a porta com força e olhara-a com os olhos raiados de sangue e um olhar hostil. Tinha o queixo sombreado pela barba, o cabelo em desalinho e caído sobre os ombros, em ondas escuras.

 

Que diabo vem fazer aqui? perguntou rudemente. Não a quero cá em cima, ouviu?

 

Porquê? quis saber Serena. É aqui que guarda os corpos?

 

C’est pas de ton affaire murmurou ele. Não queira saber o que eu aqui guardo. Não é sítio onde uma bonita psicóloga possa ir meter o nariz. Será muito melhor para si não saber.

 

Essa frase aumentara a curiosidade de Serena. Que esconderia ele ali? Objectos roubados? Bebidas clandestinas? Drogas? Armas? Podia ser qualquer dessas coisas, todas elas, ou algo ainda pior.

 

Não quero saber o que guarda aí respondeu Serena com toda a calma. Apenas vim à sua procura.

 

Lucky desceu um degrau, o que fez com que ficassem ambos quase ao mesmo nível. Olhando-a de uma maneira calculadamente cruel e sedutora ao mesmo tempo, ergueu uma mão para lhe prender o rosto e aproximou a boca da dela.

 

Mudou de ideias, torrãozinho de açúcar?

 

Certamente que não.

 

Fazendo uma careta de repugnância, Serena recuara e abanara-se com a mão para afastar o cheiro.

 

Esteve a beber.

 

Bastante disse Lucky, endireitando-se e afastando-se dela. Devia experimentar fazer o mesmo, descontrainos, e pelo que vi podia aguentar isso.

 

Depois dessa frase, que a enfureceu, Lucky começou a descer as escadas. As suas pesadas botas mal faziam ruído nos degraus de madeira e Serena seguiu-o a uma distância discreta, lutando contra as emoções conflituosas que as várias facetas daquele homem lhe despertavam. O seu pensamento dominante era que quanto mais depressa chegasse junto de Gifford, mais depressa se livraria do estranho encantamento em que Lucky a envolvia.

 

Enquanto esperava impacientemente, sentada à mesa, ele fazia as suas abluções matinais, barbeava-se, tomava duche, e saiu da casa de banho de peito nu, apertando umas calças de ganga, quase brancas de tanto uso. O cabelo comprido estava preso atrás, como de costume, com um atacador de cabedal e em redor do braço atingido pusera uma espécie de ligadura vermelha, que ocultava o feio ferimento que arranjara na noite anterior.

 

O olhar de Serena fixou-se na improvisada ligadura e sentiu algo torcer-se dentro de si. Disse a si própria que era repulsa pela maneira como aquele homem procedia, mas sabia que isso não era de todo verdade, em parte tal sentimento podia ser atribuído directamente ao medo do que pudesse ter sucedido se a bala o tivesse atingido no peito, poderia estar morto e então ninguém decifraria o enigma que era a sua vida.

 

Serena recuou perante a direcção que os seus pensamentos estavam a tomar, esse caminho ia dar a um beco sem saída, a uma dor no coração.

 

Suponho que me vai dizer que o outro ficou pior disse ela, continuando a olhar para a improvisada ligadura no braço forte, o que evitava, pelo menos, que fixasse o peito largo de Lucky e os fortes músculos do seu estômago.

 

Ele olhou para o braço, como se o facto de uma bala o ter roçado fosse a coisa mais natural do mundo, e depois encarou calmamente Serena.

 

Sim, mas ele não passava de um patife asqueroso.

 

Não acha que devia mostrar isso a um médico?

 

Você é entendida no assunto respondeu Lucky, pousando as mãos dos braços da cadeira onde ela estava sentada e aproximando o rosto. Quer ver?

 

Não disse Serena, tensa, sentindo o calor apoderar-se dela de novo.

 

Estava demasiado perto, o corpo de Lucky irradiava uma descarga eléctrica que lhe fazia diminuir o bom senso e estimulava os seus instintos primitivos, ocultos sob uma fachada de sofisticação. O fresco aroma masculino chegava-lhe às narinas e Serena deu por si a pensar no que seria beijá-lo quando a boca dele soubesse a pasta de dentes e não a tabaco.

 

Não? repetiu Lucky em voz baixa, erguendo as sobrancelhas escuras. Há mais alguma parte de mim que queira examinar, doutora Sheridan?

 

A memória de Serena aproveitou a oportunidade de lhe recordar o modo como ele a obrigara a apalpar-lhe a erecção. Engoliu uma praga, mas não conseguiu evitar que o calor lhe subisse ao rosto.

 

Basta dizer, querida. Os seus desejos são ordens, para mim.

 

Serena desviou o olhar do feixe luminoso dos olhos dele e respondeu entre dentes:

 

Gostava que deixasse de perder tempo nessas manobras de sedução e me levasse rapidamente para junto de Gifford.

 

Lucky recuou, com uma expressão fria e fechada.

 

Lá chegará.

 

Quando?

 

Quando eu estiver pronto para a levar. Dirigiu-se às traseiras e colocou no chão um prato com comida para os guaxinins, deitando um olhar a Serena, desafiando-a a fazer um comentário. Ela ficou parada junto da porta, observando calmamente os pequenos animais que rodeavam as grandes botas de Lucky e lhe chamavam a atenção, brincando com os atacadores. Este resmungou em francês, mas não fez qualquer tentativa para os afastar com os pés, parecia aborrecido e embaraçado, e Serena sentiu uma fraqueza no coração que tentava endurecer.

 

É mais fácil alimentá-los do que tê-los constantemente a remexer no meu lixo, mais nada explicou defensivamente. Não é como se fossem animais domésticos.

 

Mal acabara de dizer essas palavras, um dos guaxinins sentou-se sobre as patas traseiras e estendeu as patas da frente para lhe puxar pela perna das calças.

 

Porque não lhes dá um tiro? perguntou docemente. Poderia poupar-se a esse trabalho e com as peles fazia uma camisa.

 

Lucky franziu os olhos e encarou-a, mas o efeito foi estragado quando outro pequeno guaxinim, sentado na balaustrada da galeria, tentou agarrar um botão da camisa de Lucky, que recuou e ralhou com ele em francês. O pequeno animal soltou uma espécie de lamento e Lucky estendeu a mão para o coçar atrás da pequena orelha triangular.

 

Serena sentiu o coração apertar-se. O mauzão, o caçador furtivo, gostava de pequenos animais, mas lembrou a si própria que até mesmo Hitler tinha um cão, e forçou-se a voltar para a mesa, à espera.

 

Só depois de um pequeno-almoço, que constou de peixe-gato frito e de uma garrafa de cerveja, é que Lucky pareceu disposto a levá-la até Gifford.

 

Tenho mais que fazer do que servir de chauffeur resmungou, impelindo a piroga para a afastar do cais.

 

Serena olhou-o por cima do ombro.

 

Estou cansada de o ouvir queixar-se. Se não queria envolver-se nisto, podia ter-me deixado ontem em casa de Gifford. Porque me trouxe para aqui, se estava demasiado ocupado para me levar de volta?

 

Lucky olhou-a lascivamente através dos óculos de sol.

 

Precisa realmente de perguntar, querida? Serena olhou-o com ar atento.

 

Sabe uma coisa? Acho que faz isso de propósito!

 

O quê?

 

Esses comentários sexistas desagradáveis. Creio que são para me fazer perder a paciência, me irritar. Porquê, Lucky? Receia ter uma conversa séria com uma mulher?

 

Não tenho medo de coisa alguma replicou ele com demasiada veemência, dando um violento impulso à vara e pode ter a certeza de que não tenho medo de si.

 

Prosseguiram a viagem num silêncio tão denso como o ar pesado e dessa vez não foram recebidos com tiros ao aproximarem-se da cabana de Gifford. Este estava sentado nos degraus da escada, experimentando isco para pescar, e Pepper Fontenot descansava numa velha cadeira de lona ’, verde e branca, tendo a seus pés, sobre um oleado, um motor de barco desmanchado. O som estridente de uma banda cajun atroava os ares, emitido por um rádio portátil.

 

Então, Giff, que se passa consigo? disse Lucky enquanto impelia o barco ao longo do cais. Está com falta de balas?

 

Gifford levantou-se e pôs as mãos na cintura.

 

Não vou desperdiçar boas balas contigo, Doucet replicou.

 

E comigo? gritou Serena, esperando que Lucky aproximasse a piroga da margem, pois não queria arriscar-se a saltar novamente para o velho cais.

 

Gifford olhou-a demoradamente.

 

Oh, julguei que já fosses a caminho de Charleston. Serena engoliu a dor que as palavras do avô lhe causavam e olhou-o de frente.

 

Já lhe disse que não deixo o pântano sem o levar. Quero que volte para Chanson du Terre comigo.

 

E eu já te disse que não vou. Não podes vir para aqui dar-me ordens, minha menina. Não quero saber dos teus graus universitários. Não podes pôr-te a andar da Luisiana e vires depois dirigir as coisas ao fim-de-semana.

 

Serena não se amedrontou, Lucky viu-a enfrentar o avô de cabeça erguida e praguejou interiormente contra Gifford por ser tão duro para ela, mas depois disse a si mesmo que não se importava. Encostou-se a um poste e acendeu o seu quarto cigarro dessa manhã, aspirando o fumo para a garganta já inflamada.

 

Sentia-se terrivelmente mal. Na melhor das hipóteses nunca dormia mais do que poucas horas seguidas, cheias de pesadelos, mas a noite anterior fora pior do que o habitual. O pouco tempo que descansara fora povoado de recordações de dor e de traição. Como se o consciente não lhe chegasse, o seu subconsciente fizera-lhe lembrar que as mulheres bonitas tinham sido sempre as principais causadoras dos seus problemas. Primeiro Shelby, depois Amalinda Roca, a encantadora viborazinha cuja duplicidade ajudara a que ele fosse parar a uma prisão da América Central.

 

Finalmente desistira de dormir e tentara afogar a sua má disposição e a sua frustração sexual em uísque, conseguindo apenas ficar com uma colossal ressaca. Agora tinha a sensação de que lhe estavam a martelar a cabeça, ao mesmo ritmo que lhe latejava o braço que Gene Willis conseguira atingir.

 

Estás com um aspecto terrível disse Gifford com uma expressão menos dura, fitando Serena com ar preocupado, vendo as olheiras negras que lhe circundavam os olhos. Depois encarou Lucky, a fim de disfarçar a sua preocupação. Tu também tens mau aspecto.

 

Talvez estivessem ambos no inferno alvitrou Pepper, soltando uma risada ao ver o olhar sombrio que Serena e Lucky lhe lançavam, enquanto Gifford se limitava a erguer as sobrancelhas brancas, observando-os mais atentamente..

 

Serena sentiu o rubor subir-lhe às faces ao pensar no que quase acontecera na noite anterior. Só pela graça de Deus e da Smith & Wesson não sucedera uma desgraça. De cabeça baixa passou pelo avô e dirigiu-se para a escada e depois para a galeria.

 

Sabia-me bem uma chávena de café. Ainda o fazes bem forte, Pepper?

 

Negro como a noite e suficientemente forte para fazer encaracolar o teu cabelo louro, pichouette respondeu, Pepper, mostrando os dentes.

 

Óptimo! exclamou Serena, entrando em casa. Gifford ficou nos degraus, olhando para Lucky.

 

Andaste a meter-te com a minha neta?

 

Este levantou os óculos para a cabeça e fitou o velho com um olhar hostil.

 

E que lhe interessa isso, Giff? Só soube dizer-lhe más palavras e não se importou de que ela pudesse passar a noite ao relento.

 

Tenho as minhas razões.

 

Assim como as tem para se esconder aqui! replicou Lucky abanando a cabeça. Ouça o que Serena lhe quer dizer, Giff. Afinal ela veio até aqui, não é verdade?

 

Sim, veio, e também se irá embora, na primeira oportunidade, não quer saber do que se passa. Devia ter algum respeito pela família, pela tradição.

 

E você arranjou uma maneira engraçada de ensinar o respeito troçou Lucky, foi deixá-la passar a noite sozinha no pântano. Isso devia partir-lhe o coração, se o senhor o tivesse.

 

A ideia de que Gifford conhecia o pavor que Serena sentia pelo pântano e a deixara sozinha enfurecia-o, e perceber que ela despertara nele sentimentos protectores ainda o enfurecia mais. Praguejou outra vez, atirou a ponta do cigarro para o chão e apagou-a com a sola da bota, violentamente.

 

Eu devia era lavar as mãos de tudo isto. Só me arranjam complicações.

 

Dizem para aí que já tens sarilhos suficientes com Perrett e com esse grandalhão do Gene Willis comentou Pepper, recostando-se na cadeira, e os seus olhos brilhavam como safiras na cara escura.

 

Como soube isso? perguntou Lucky, de sobrolho franzido.

 

Ouvi com os meus ouvidos replicou o velho com ar trocista, sem se importar minimamente com o olhar feroz que Lucky lhe deitou.

 

Bem, é melhor deixar os seus ouvidos longe disso, ou poderão muito bem levar um tiro.

 

O fim da frase ameaçadora foi interrompido pelo som da porta de rede a ser fechada e o leve estalido soou como o disparo de uma pistola de brinquedo. Serena caminhou pela galeria, tentando concentrar-se no fumo que saía da sua chávena de café e não na conversa que ouvira claramente enquanto estivera dentro de casa.

 

Queres tornar as coisas mais fáceis e explicares-me o que se passa, Gifford? perguntou, sentando-se cuidadosamente no primeiro degrau da escada.

 

O avô olhou-a, de testa franzida.

 

Não devia ser preciso estar a fazer-te um briefing como se fosses uma correspondente no estrangeiro.

 

Serena respirou fundo, demasiado exausta para levar sequer a chávena aos lábios e beber o elixir que era o café de Pepper Fontenot.

 

Por favor, Gifford, já conheço bem as suas opiniões sobre a minha vida. Resido a muitos quilómetros de distância, é certo. As pessoas agem assim. Crescem, mudam-se, organizam a sua vida.

 

Não tens sentido da tradição.

 

Não serei escrava disso, se é o que quer dizer. Aprecio a história de Chanson du Terre, mas não vou ser agricultora. Foi Shelby quem sempre quis continuar a tradição de uma maneira ou de outra. A minha carreira levou-me para outro sítio, o que não significa que não me preocupe com a propriedade ou consigo.

 

Serena falou com uma firmeza e sinceridade que se lia nos seus grandes olhos escuros.

 

É esta a confissão que esperava? Sente-se feliz agora?

 

Nem por isso resmungou o velho, que, mesmo assim, foi sentar-se no degrau ao lado de Serena. Se te preocupasses mais com Chanson du Terre, isto nunca teria sucedido.

 

Mas afinal o que é ”isto”? Que se passa? Gifford pensou um bocado, hesitando, e Serena não o pressionou, esperou pacientemente, enquanto ia bebendo o seu café. Depois, ele soltou um suspiro fundo, passou as mãos pelos cabelos brancos e começou a falar.

 

Uns políticos importantes meteram ideias nas cabeças ocas da tua irmã e do teu cunhado. Acham que Mason Talbot está destinado a ser uma estrela da política, querem que concorra às legislativas do próximo ano. Ele é suficientemente simpático e também estúpido para ser eleito, será uma bela marioneta nas mãos dos reis do petróleo. O seu pai pode ter perdido a fortuna, mas não nenhum dos seus conhecimentos. Tenho a certeza de que o velho John Talbot gostaria de ver o filho na mansão do governador.

 

Mason a concorrer às eleições... murmurou Serena pensativamente. Shelby não me falou nisso.

 

Parece-me que há muitas coisas de que ela não lhe falou, chère observou sombriamente Lucky

 

Serena deitou-lhe um olhar aborrecido e voltou-se de novo para Gifford:

 

Não sei o que terá isso a ver com Chanson du Terre.

 

Pensa bem, Serena. Shelby quer por força que Mason vá para Baton Rouge, por isso não precisam da plantação e o estado em que ela se encontra agora é uma desculpa para a quererem vender. Se a tua irmã conseguisse fazê-lo agora, receberia a sua herança antecipadamente e Mason ficaria com dinheiro suficiente para concorrer às eleições. Toda a gente sabe que a publicidade é que ganha eleições, hoje em dia. Coloquem a cara bonita de Mason nos cartazes e mostrem-na na televisão e nos autocarros, que ninguém se vai importar que ele tenha algodão na cabeça.

 

Serena sentiu-se compelida a defender o cunhado ausente, pois sempre gostara de Mason. Era demasiado retrógrado para o gosto de Gifford e podia ter mais aparência que substância, mas parecia boa pessoa. Por isso disse:

 

Mason tem mais que algodão na cabeça. Formou-se em Direito e foi o quinto do curso.

 

Gifford fez um trejeito que mostrava bem a consideração que tinha pelos homens de leis em geral.

 

Isso não significa que possua um mínimo de bom senso. Tem jeito para descobrir aldrabices e conhece as técnicas. Mas aquele cão também é capaz de farejar uma presa com a rapidez de um raio e nem por isso é nenhum Einstein.

 

Não valia a pena discutir com ele, estavam a afastar-se da questão principal e Serena fê-lo voltar ao assunto com um certo esforço.

 

Disse ontem que tinha falado em vender e Shelby ouviu. Porque o fez?

 

Gifford olhou para os pés com um ar desconfortável, e quando falou fê-lo como um rapazinho que tivesse colado pastilha elástica na cadeira do professor.

 

Que diabo, apenas falei por falar. Tivemos um ano difícil, cana queimada, demasiada chuva na Primavera, os custos da produção a aumentarem, os malditos preços do gasóleo a subirem e a descerem. Estava só a resmungar contra tudo isso, para despertar um pouco o interesse de Shelby, que pensa apenas em redecorar a casa, por isso, uma noite, depois do jantar, disse: ”Por Deus, se vou ter de trabalhar toda a vida nisto para, depois da minha morte, a propriedade ir cair nas mãos de um estranho, então o melhor é vender agora e ir para o Taiti!” Pois bem, ainda nem tivera tempo de cuspir já havia um representante da Tristar a farejar as plantações.

 

Serena ouviu a explicação de testa franzida. Parecera-lhe improvável que Shelby quisesse desfazer-se da propriedade, não por um sentimento de tradição, mas sim por Chanson du Terre representar um estatuto na sociedade, coisa que sempre apreciara acima de tudo. Mas, se tinha deitado as vistas para um nível ainda mais alto e considerasse a venda da propriedade como um meio para atingir esse fim, o caso tomava outro aspecto. O talento dela para esse género de raciocínios era inultrapassável, segundo a experiência de Serena.

 

Porquê a Tristar Chemicals? perguntou. Gifford encolheu os ombros, cansado.

 

Não sei. Talvez haja alguma ligação por intermédio da família de Mason. De que outra maneira poderia ela arranjar comprador? Desde o aparecimento do petróleo, o mercado aqui tem sido macio como manteiga. Para começar, Shelby não é capaz nem sequer de vender iglos aos esquimós, Mason só a deixa ter aquele escritório na cidade para lhe fazer a vontade. Sabes que eu gosto dela, mas reconheço que é uma coisinha tola e sempre o foi. A sua empresa imobiliária é apenas um pretexto para vestir elegantemente e ir às reuniões da Câmara do Comércio.

 

Então, se não quer vender a propriedade concluiu Serena, não se sentindo confortável ao ouvir falar da irmã, basta-lhe dizer isso ao representante da Tristar e fica tudo resolvido.

 

Mas eles não aceitam um não como resposta resmungou ele. Esse maldito Burke é como um pitbull, não consigo afastá-lo nem a bem, nem a mal.

 

Serena fitou o avô com a expressão severa que aprendera com ele.

 

Gifford Sheridan, em toda a minha vida nunca o vi recuar diante de uma luta.

 

Não estou a fazer isso! afirmou ele, erguendo a cabeça.

 

Então porque veio para aqui? perguntou Serena, exasperada.

 

Gifford endireitou orgulhosamente a cabeça, parecendo tão inamovível como o monte Rushmore.

 

Estou a tratar do assunto à minha maneira.

 

Tinham voltado à estaca zero. Serena fechou momentaneamente os olhos e concentrou-se na sua aguda dor de cabeça. Bebeu um gole do café, esperando em vão que a cafeína lhe aumentasse o nível de energia, mas em vez disso ardeu-lhe no estômago como ácido, fazendo-a sentir-se ainda mais desconfortável do que inicialmente.

 

Claro que a obstinação de Gifford não ajudava nada, assim como a irritava o olhar de Lucky fixo nela, através das lentes opacas dos óculos de sol uma experiência enervante na melhor das circunstâncias. Mas seria ainda pior se ele não usasse os óculos, não podia pensar em nada mais perturbador do que o ardor e a intensidade desses olhos cor de âmbar.

 

Pepper quebrou o silêncio, levantando-se indolentemente da cadeira. Sem uma palavra para ninguém, afastou-se em direcção ao hayou e ficou parado durante um momento, aparentemente admirando a vista. Quando se voltou para trás, anunciou:

 

Temos companhia. Estou a ouvir o motor do barco do Perry Davis, o que tem uma válvula estragada.

 

Gifford praguejou, levantou-se e dirigiu-se para a cabana. Voltou empunhando a espingarda e introduziu nela as balas, uma a uma, enquanto descia os degraus e atravessava o pátio.

 

Gifford! exclamou Serena pousando a chávena com o café e correndo para ele. Por amor de Deus!

 

O velho conseguiu disparar um tiro antes de ela chegar. A bala atingiu a superfície do hayou, elevando um jacto de água sobre o barco do guarda da caça. A voz de Perry Davis chegou até eles através de um megafone.

 

Diabos o levem, Gifford. Largue essa arma!

 

Gifford baixou a espingarda, mas não a entregou a Serena, que lha queria tirar, e esta cerrou os dentes e contou até dez, recordando os seus também dez anos de vida profissional para se acalmar, mas não serviu de muito. Sentia-se furiosa com o avô mas sabia que era demasiado parecida com ele e que por isso não conseguia ser racional e objectiva numa situação daquelas.

 

O motor do barco do guarda da caça calou-se e a embarcação ficou a balouçar na água escura, a pouca distância da margem. Perry Davis estava de pé ao volante, com uma expressão indignada de autoridade e o seu rosto de bebé muito corado. Ao lado dele encontrava-se um homem de meia-idade, de cara larga, um pouco gordo e cabelo grisalho cortado curto. Vestia um casaco azul-escuro e uma gravata às riscas, que alargara no colarinho da camisa azul, manchada de suor.

 

Anda para aí aos tiros às pessoas e um dia destes vou ter de o prender, Gifford ameaçou Davis, desligando o megafone.

 

Lucky, que se colocara à esquerda de Serena, disse com ar desdenhoso:

 

Não prendes ninguém. Porque havias de começar com ele?

 

O guarda da caça fez um trejeito com a boca para conter a fúria.

 

Talvez comece por ti.

 

Lucky puxou os óculos para o nariz e olhou-o demoradamente, esboçando um sorriso.

 

Sim? E quem te ajuda?

 

Hei-de apanhar-te, Doucet, garanto-te! ameaçou, apontando um dedo para Lucky. Um patife louco como tu por aí à solta. As pessoas não vão tolerar isso para sempre.

 

Serena podia sentir a tensão de Lucky, que vibrava como um fio eléctrico, e viu os músculos do queixo dele tremerem. Depois o cajun calou-se, não deixando de fitar Davis. Contudo, mesmo a vários metros de distância, o guarda da caça sentiu-se compelido a recuar, afastando-se para a outra extremidade do barco, e fingindo examinar o motor, como se tivesse tirado Lucky dos seus pensamentos. Gifford aproveitou o silêncio para dizer:

 

Burke, dê meia volta e desapareça.

 

O corpulento texano conseguiu fazer aparecer um sorriso na sua cara balofa.

 

Não posso fazer isso, amigo disse afavelmente. Há negócios a tratar.

 

Não tenho nada a dizer-lhe que possa ser ouvido por uma senhora retorquiu Gifford. Não estou interessado na sua oferta. Volte para o Texas antes que o encha de buracos.

 

Gifford interrompeu Serena, conseguindo mostrar-se calma. Porque não convida Mister Burke a desembarcar? Tudo se poderá resolver com uma conversa amigável.

 

Burke encolheu os ombros.

 

A senhora tem toda a razão, Gifford. É bom que lhe dê ouvidos. Não estou farto de lhe dizer isso?

 

Serena percebeu que o representante da Tristar a tomara por Shelby, mas não teve oportunidade de o corrigir.

 

Não tenho de ouvir seja quem for! gritou Gifford, enquanto a cor lhe subia do pescoço para cima. Não estou senil, por Deus! Posso tomar as minhas próprias decisões. Não há mais conversas nenhumas, a não ser que sejam com a minha velha Betsy acrescentou ele levando a arma ao ombro.

 

Gifford! gritou Serena lançando-se sobre ele.

 

Gifford perdeu o equilíbrio e carregou no gatilho. A arma disparou e outra explosão ensurdecedora atroou os ares. A água jorrou sobre o casco da embarcação de Davis, fazendo cair sobre ele e Burke uma chuva de lama e de água. Os dois homens baixaram-se, cobriram as cabeças com os braços e depois endireitaram-se, praguejando.

 

Burke apontou um dedo ameaçador a Gifford.

 

Não quero mais nada consigo, Gifford, é um velho louco. Há inúmeras testemunhas disso. Vou fazer com que o xerife o venha buscar. Não pode disparar assim sobre as pessoas que querem fazer negócio consigo.

 

Vá para o diabo! gritou Giff entrando na água, com o olhar furioso fixo em Burke. Há muito tempo que disse que devia abrir a época de caça aos Texanos. Este estado não estaria como está se os pusessem todos daqui para fora, seus gananciosos filhos da mãe!

 

Serena olhou para a água lamacenta com repugnância e um arrepio percorreu-lhe a espinha. Depois fitou o avô, que avançava em direcção ao barco, e forçou-se a dar o primeiro passo. Sentiu os sapatos enterrarem-se imediatamente no fundo lodoso. Agarrou Gifford pelo cinto e puxou-o para trás.

 

Burke fizera-se muito vermelho, com os olhos saídos das órbitas, como se alguém lhe tivesse apertado o pescoço.

 

Continue, Sheridan! berrou. Diga mais frases como essa! Vão parecer muito bem quando for ouvido para ser dado como interdito.

 

Gifford tentou lançar-se sobre o barco, mas Lucky meteu-se em frente dele e pôs-lhe uma mão no peito.

 

C’est assez. Vá para casa, mon ami pediu calmamente.

 

O velho ficou por momentos imóvel, inclinado para a frente, com a espingarda apertada nas grandes mãos. O único som que se ouvia era o de Beausoleil a tocar J’ai étáu Zydeco, no rádio portátil, uma canção alegre pouco apropriada para a situação.

 

Por favor, Gifford murmurou Serena atrás dele, com a cara encostada às suas largas costas, enquanto sentia os pés cada vez mais enterrados no lodo.

 

Vamos, Giff chamou Pepper da margem. Ele não merece o incómodo.

 

Gifford resmungou uma praga, voltou-se e dirigiu-se para a margem. Depois, acompanhado por Pepper, que falava e gesticulava animadamente, encaminhou-se para a cabana

 

Lucky olhou para Serena, já metida na água até aos joelhos, pálida, que o fitava com os olhos escuros muito abertos.

 

Foute ton quant d’id murmurou. Vá, chère. Eu trato disto.

 

Serena voltou para trás lentamente, com os sapatos cheios de lama.

 

Lucky avançou para o barco, aproximando-se até estar metido até à cintura na água lamacenta.

 

Isto não é maneira de fazer negócio, M’sieu Burke disse em voz tão baixa que pouco mais era do que um sussurro.

 

Burke inclinou-se para a frente, apoiando as mãos nos rebordos do barco e olhando atentamente para Lucky.

 

Então diga ao seu amigo que comece a cooperar ameaçou o texano, falando também em voz baixa, como se a importância da questão requeresse um tom de conspiração. A minha companhia teve muito trabalho para descobrir este sítio e está decidida a ficar com ele.

 

Isso é suposto ser uma ameaça.

 

É um facto, filho.

 

As palavras foram mal escolhidas, pois o tom de voz, o sotaque, o seu ar de comando, tudo conspirou contra ele na mente de Lucky. Numa fracção de segundo viu-se outra vez na América Central, recebendo ordens de um corpulento texano, um tenente-coronel que usava a sua equipa operacional para ganhar muito dinheiro. Lucky descobrira que ele era corrupto e denunciara-o, mas só depois de passar um ano no inferno. Tudo isso lhe ocorreu num repente e as rédeas do controlo escaparam-lhe um pouco por entre os meandros da mente.

 

Sabe? Há muitas coisas de que não tenho a certeza disse para Burke, com um sorriso gélido nos lábios, mas há uma de que estou bem certo.

 

De repente, o sorriso desapareceu. Agarrou no nó da gravata de Burke e deu-lhe um puxão, obrigando-o a ficar, frente a frente com ele.

 

É de que não sou seu filho!

 

O representante da Tristar caiu de cabeça para baixo nas águas do hayou antes de poder sequer protestar e voltou à superfície a cuspir lama.

 

Não devia ter-se inclinado dessa maneira, mom ami disse Lucky, encaminhando-se lentamente para a margem. Pode cair, e nunca se sabe o que acontece a quem mergulha nestas águas.

 

Como se Lucky tivesse o dom de adivinhar, e para lhe dar razão, uma cobra-d’água saiu dentre uns arbustos, perto da margem, e logo Burke, praguejando, tentou subir para o barco. Davis ajudou-o, segurando-o pelo fundo das calças e puxando-o para cima, ao mesmo tempo que gritava para Lucky.

 

Falo a sério, Doucet. Estou farto do teu atrevimento, os teus dias estão contados.

 

Lucky fez uma careta e acenou-lhe. Serena esperava-o na margem, furiosa, e ele reparou que a cor lhe voltara ao rosto.

 

Não é capaz de mostrar respeito por ninguém? perguntou sarcasticamente.

 

Mais, sim. A minha mamã, o meu papá e o papa. Len Burke não é o papa, minha querida, e creio que nem sequer é um bom católico concluiu com ar indulgente.

 

Serena ouviu o ruído do motor do barco de Davis e pouco depois viu-o afastar-se.

 

É isso declarou Serena, parando e erguendo os braços num gesto de derrota, estou farta. Há qualquer coisa neste lugar que enlouquece as pessoas. Não suporto isto. Gifford anda por aí aos tiros às pessoas. Você... você é...

 

Não conseguiu acabar a frase, tão perturbada estava. Apetecia-lhe bater com o pé no chão, parecia-lhe que ali nada era possível controlar. Nem a situação, nem os seus medos, as suas paixões ou o seu temperamento, e acima de tudo o seu guia.

 

Toda esta situação é ridícula insistiu Serena, andando de um lado para o outro na margem, com os braços cruzados sobre o peito. Por que razão Shelby não me disse nada? Porque não me contou o que se passava?

 

Talvez observou Lucky com falsa inocência possa ser por não querer que soubesse. Não terá a sua irmã pensado que podia tratar do assunto sem você saber, até ser demasiado tarde?

 

Serena olhou-o pelo canto do olho.

 

Oh, por amor de Deus, quer convencer-me de que tudo isto é uma conspiração?

 

É disso que se trata realmente, doçura replicou Lucky, encostando-se ao tronco de um enorme carvalho, e tirando um cigarro do maço, que meteu entre os lábios sem o acender.

 

Não seja ridículo ripostou Serena. Está a tentar dizer-me que Shelby tem um conluio com a Tristar para tirar as terras ao seu próprio avô?

 

Lucky encolheu os ombros.

 

Exactamente, percebeu logo à primeira. É um excelente negócio. Shelby recebe uma boa comissão da Tristar, ao mesmo tempo que a sua parte da herança. Além disso, ela e o politicamente ambicioso Mister Talbot trazem indústria para uma cidade com uma economia em depressão. Não há nada como um herói local num ano de eleições, não é?

 

Serena pôs-se em frente dele, pronta para discutir.

 

Você não percebe nada. Em primeiro lugar, Mason não é nada ambicioso. Se fosse, ganhava muito mais dinheiro.

 

Ouviu o seu avô, chère, os poderosos querem que ele ganhe as eleições e o papá dele quer vê-lo governador, assim como Shelby. Acha que ele vai dizer a todas essas pessoas que não? Acha que Shelby o deixaria fazer isso?

 

Você faz com que a minha irmã pareça Lady Macbeth. Ela não é tão calculista e astuta.

 

Lucky sabia exactamente como Shelby era, mas não quis contar as suas próprias experiências. Em vez disso, decidiu relembrar a da própria Serena.!

 

Não é? Não se lembra do que me contou ontem sobre o que ela lhe fez? Deixou-a sozinha no pântano e você podia ter morrido. Mas isso foi uma brincadeira que correu mal.

 

Seria?

 

Serena enfrentou o olhar de Lucky, sentindo que ele estava a reabrir velhas feridas já saradas. Além disso, ninguém ficara mais aliviado do que Shelby quando ela fora encontrada e até lhe pedira, chorando, que a perdoasse, quando ela estava no hospital... mas a verdade é que de vez em quando lhe atirava à cara o receio que Serena tinha do pântano e que resultara do acidente.

 

Afastou esses pensamentos, a sua relação com a irmã gémea era já bastante complicada, não precisava das opiniões de Lucky para reconhecer isso.

 

Deixe de me voltar contra a minha própria irmã. Tenho a certeza de que você tem todas as razões para ser paranóico dado o género de vida que leva, mas eu não estou disposta a ir nessa conversa.

 

Vocês, psicólogos, têm uma palavra para essa atitude, não têm? Recusa, não é?

 

Por falar em recusa murmurou Serena, mudando de assunto. Não posso acreditar no que Gifford está a fazer. Diz que está a tratar do assunto à maneira dele, mas não é verdade. Está a fazer-me...

 

Calou-se de repente quando percebeu o que ele queria. Gifford estava a procurar que ela se interessasse mais pela plantação, queria que fosse Serena a empunhar a bandeira e a lutar pela causa e ao mesmo tempo reavivar nela o sentido do dever e da tradição. Atraíra-a ao pântano, àquele lugar que ela ficara a recear desde os dezassete anos, para isso.

 

Velha raposa matreira! exclamou pondo as mãos nas ancas.

 

O avô manipulara-a como um mestre do xadrez e agora não havia maneira de poder recuar dignamente. Já estava envolvida no assunto e tinha de fazer o melhor que pudesse para o resolver, ou perderia novamente a face perante Gifford. Podia correr o risco de provocar a cólera dele, mas não suportava o seu desapontamento. O velho apostara nela e vencera.

 

Leve-me para casa pediu subitamente, voltando-se para Lucky. Leve-me a Chanson du Terre. Tenho de falar com Shelby e vou resolver esta questão o melhor que puder, mas se Gifford pensa que é capaz de me obrigar a ficar aqui para sempre, está muito enganado.

 

 

Lucky dirigiu-se para casa e deixou lá Serena, dizendo-lhe que voltaria dentro de uma hora para a levar a Chanson du Terre. Ela ficou a vê-lo afastar-se, impelindo a canoa com a vara, e depois entrou em casa. Estava tudo silencioso e calmo. Um dos guaxinins bebés espreitou pela porta de rede das traseiras, apoiando as compridas patas na rede. Quando Serena se dirigiu para lá, o pequeno animal soltou uma espécie de gemido e fugiu e o ruído que fez era exactamente igual ao que ouvira na véspera, e que tanto a assustara. Pousou a mala junto da porta, foi ver o que havia no pequeno frigorífico de Lucky e preparou uma sanduíche de presunto, tendo o cuidado de deixar a cozinha tão impecável como se encontrava. Depois de terminada essa tarefa, faltavam-lhe ainda quarenta minutos de espera.

 

Nessa altura, o seu pensamento voltou-se de novo para o que a esperaria em Chanson du Terre. Tudo aquilo lhe parecia pouco credível: Mason a concorrer às eleições, Shelby a conspirar contra Gifford, a plantação ameaçada...

 

Buldózeres, dissera Lucky, a arrasarem tudo para ali instalarem laboratórios, escritórios, instalações fabris, armazéns. Essa possibilidade, embora remota, perturbava profundamente Serena. Aquela casa fora testemunha silenciosa de muitas épocas históricas. Assistira aos últimos anos do domínio francês na Luisiana, aos dias dourados anteriores que se lhe seguiram e depois à guerra com os ianques. Nos degraus da escada existiam ainda as marcas de quando um oficial embriagado subira os degraus a cavalo. Sobrevivera à reconstrução e à Grande Depressão. Teria escapado a tudo isso para ser agora vítima da ganância?

 

Não, claro que não. A situação actual seria esclarecida e a vida continuaria como sempre, com Gifford a dirigir a plantação, como fazia há quase sessenta anos.

 

E quando Gifford partisse, Shelby fosse para Baton Rouge e ela voltasse para Charleston... que se passaria então?

 

Oh, não... não murmurou para consigo, levantando-se da mesa.

 

Era isso exactamente o que Gifford queria... despertar o seu lado sentimental.

 

Serena voltou os seus pensamentos para outro puzzle... Lucky. Começou andar de um lado para o outro, tentando descobrir o mais que pudesse a respeito dele, pelas coisas que via. Era um exercício de percepção e pesquisa, disse para consigo, não se tratava de simples curiosidade.

 

Contudo, o que discernira ao examinar a casa era quase nada. Mobiliário utilitário, que sucedia ser antigo, nada de frívolo, nada de pessoal, que revelasse mais do que respeito pela sua herança e necessidade de ordem. Não tinha à vista nem livros, nem revistas, nem fotografias, nem quadros nas paredes, mas isso, em si mesmo, era uma revelação. Era um homem que se escondia, a sua casa era isolada, e tudo o que era pessoal estava oculto. Se lhe fosse possível, Lucky nada revelava de si próprio.

 

Porque seria? Essas atitudes não lhe pareciam muito saudáveis, davam-lhe a sensação de que ele construíra um muro de protecção à sua volta. Mas contra o que precisaria de protecção um homem como Lucky? Parecia tão duro, tão confiante em si próprio e, contudo, havia contradições. Dava de comer aos pequenos guaxinins órfãos, defendera-a perante Gifford e abraçara-a para a confortar quando ela se sentira infeliz e com medo. Abriu as altas portas do móvel da sala de jantar, mas encontrou ali apenas o que seria de esperar que lá estivesse. Soltou uma exclamação de desapontamento e hesitou um momento antes de atravessar para a outra divisão, que era, com excepção da qualidade do mobiliário, austera como a cela de um monge.

 

Jackpot sussurrou ao abrir a porta do armário que ficava na parede oposta aos pés da cama.

 

O móvel tinha uma zona de prateleiras pequenas, do lado esquerdo, uma área com cabides à direita e, na base, três grandes gavetas. O guarda-roupa de Lucky compunha-se de fatos de treino, calças de ganga e camisolas de algodão. Havia também um uniforme do exército cheio de condecorações, que lhe despertou interesse, mas o que chamou principalmente a sua atenção foram as prateleiras, onde estavam fotografias emolduradas da família Doucet em várias alturas da sua existência. Havia um retrato a sépia do casamento dos pais um casal bonito, simpático, sorrindo amorosamente e outro, a preto e branco, que mostrava o pai, sorridente, com a mão apoiada num dos ombros de um rapazinho magro, que erguia orgulhosamente numa das mãos um grande peixe Lucky, presumia ela. Viu também outras fotografias mais recentes de vários membros do clã, reconhecíveis pelas parecenças entre si, crianças de várias idades, bebés gorduchos com os vestidos de baptizado cheios de rendas e jovens em idade escolar, fazendo a primeira comunhão.

 

Serena sentiu o coração amolecer ao ver aquelas fotos. Lucky tinha uma família a quem amava não se iria dar ao trabalho de as emoldurar se não se importasse com ela. Porque se teria então isolado tanto?

 

Passou os dedos pela fotografia de Lucky com o pai, detendo-se no rosto sorridente do rapazinho. Queria saber os = segredos dele, estender-lhe a mão e oferecer-lhe qualquer coisa conforto, alívio. Esse desejo não era saudável e não lhe dava alegria, mas não queria negá-lo. Ficou ali, parada, com pena dele, com pena de si própria, desejando nunca ter saído de Charleston. ”

 

A minha mãe mandou o bolo de chocolate, os bolinhos e o pão que cozeu esta manhã. Pu-los sobre o balcão. Serena soltou um grito estridente, deu um salto para trás, como se o armário fosse subitamente cair sobre ela e voltou-se com uma mão no peito, como se quisesse impedir o coração de saltar. Parado à entrada do quarto estava um rapaz com cerca de treze anos, alto e delgado, com umas jeans demasiado curtas e uma camisola que proclamava Breaux Bridge como a capital mundial dos caranguejos. Os seus olhos escuros brilhavam de espanto e de excitação.

 

Ah, não é Lucky, mas ele com certeza está em casa!

 

Logo que acabou de dizer estas palavras, fez-se tão vermelho como o boné que tinha na cabeça, com a pala voltada para trás.

 

Serena soltou uma gargalhada de alívio e fechou a porta do armário.

 

Assustaste-me disse-lhe. Lucky não está agora aqui. Deve voltar dentro de meia hora. Eu sou Serena Sheridan.

 

Will Guidry respondeu o rapaz, avançando dois passos. Parou a meio caminho, olhou para a mão e, achando-a relativamente limpa, estendeu-a para apertar a de Serena. A sua expressão receosa parecia querer dizer que ele esperava que o contacto lhe fosse doloroso.

 

Prazer em conhecer-te, Will. Vais esperar que Lucky chegue?

 

Humm... bem... pode ser murmurou o rapaz, parecendo embaraçado. Meteu as mãos nos bolsos e olhou fixamente para os próprios pés, como se fossem a coisa mais interessante que tivesse visto ultimamente. Vim só trazer-lhe umas coisas. A mamã diz que sabe que ele não aceita nada... o rapaz calou-se, cada vez mais atrapalhado por correr com os pescadores furtivos que andam a tirar os caranguejos das nossas redes e por isso acha que o menos que pode fazer é oferecer-lhe uns bolinhos, visto ele viver aqui sozinho... interrompeu-se de novo, hesitante e apressou-se a corrigir-se... isto é, estava sozinho até... isto é... não sei se... bem, pode ser apenas...

 

Serena olhou-o, estupefacta.

 

O que disseste? perguntou, ignorando a atrapalhação do rapaz, corado até às orelhas. Disseste que ele afastava os ladrões que roubavam as vossas redes?

 

Will mexeu os pés e encolheu os ombros.

 

Bem... ele costuma fazer isso respondeu, olhando para Serena como se a achasse um pouco estranha.

 

Mas eu pensei... murmurou ela, apressando-se a calar-se logo de seguida.

 

Ela pensara aquilo que Lucky quisera. Logo que o vira, achara-o um marginal e ele reforçara essa ideia em todas as oportunidades que tivera. Nesse dia só fizera figura de parva.

 

Temos alguns problemas, sabe confidenciou o rapaz, coçando um cotovelo ossudo. O meu pai foi para o golfo, procurar trabalho, por isso só ficámos nós e a mamã em casa. Os pescadores furtivos acharam que as nossas redes seriam presa fácil e Lucky mostrou-lhes que não.

 

Lucky, o mau Lucky Doucet, a alimentar animais órfãos, a defender o trabalho de mulheres e crianças indefesas, pensou Serena.

 

Ele é um grande homem continuou Will, com ar satisfeito. Mas calculo que já saiba isso.

 

O rapaz baixou abruptamente os olhos e corou intensamente. Estava na idade em que quase tudo lhe parecia uma insinuação sexual e em que qualquer deslize verbal lhe parecia catastrófico.

 

Eu sei murmurou Serena, ainda demasiado espantada para sentir pena do pobre rapaz.

 

Se Lucky não era um pescador ou caçador furtivo, por que motivo lhe fizera crer o contrário? E porque antipatizava com o guarda da caça? Talvez não gostassem um do outro, simplesmente, ou Lucky achasse que Perry Davis não fazia um bom trabalho. Poderia haver várias razões para isso, todas elas válidas. Lá por não ser pescador furtivo, não significava que não praticasse qualquer outra actividade ilícita; aliás, havia ainda o caso do licor ilegal e do sótão onde não queria que Serena entrasse.

 

De qualquer modo concluiu Will, engolindo o seu embaraço, tenho de ir andando. Apontou com o braço na direcção oposta e repetiu: Deixei tudo no balcão da cozinha.

 

Está bem, muito obrigada. Tenho a certeza de que Lucky vai gostar muito respondeu Serena afavelmente, sorrindo-lhe. Prazer em conhecer-te, Will.

 

O rapaz corou e encolheu os ombros.

 

Sim, eu também., até qualquer dia...

 

Will saiu rapidamente e atravessou o pátio num instante, metendo-se numa canoa parada na margem do hayou. Serena acenou-lhe e ficou a vê-la afastar-se, remando. Mesmo ao longe, percebeu que ele corava. Abanou a cabeça, divertida com a ingenuidade do rapaz, e pensou como seria Lucky com a idade dele.

 

Como se não tivesse bastante que fazer para descobrir que espécie de homem ele era. Se não caçava ou pescava furtivamente, então em que se ocupava? Teria uma destilaria clandestina? Seria um homem agressivo, que usava armas, mas com um coração de ouro?

 

O olhar de Serena desviou-se da entrada da casa para os degraus que davam para a galeria superior, onde ele a proibira de entrar.

 

”Não queira saber o que eu aqui guardo... Não é sítio onde uma bonita psicóloga possa ir meter o nariz... Será muito melhor para si não saber.”

 

Seria de facto melhor ou seria apenas para ele ficar mais seguro?

 

Antes de poder dizer a si própria que não o fizesse, já ia a subir as escadas, impelida pelo desejo de compreender aquele homem ou pela necessidade de justificar a sua atracção por ele, não tentou descobrir o verdadeiro motivo. Com efeito, nem pensou nisso. Quase como se pertencessem a outro corpo, viu os pés subirem um degrau de cada vez, uma das mãos estender-se para a maçaneta da porta, a porta a abrir-se.

 

Nada a poderia ter preparado para o que viu, nem com toda a sua imaginação suspeitaria daquilo. Julgara-se disposta a ver fosse o que fosse caixotes com armas, embrulhos com drogas, caixas com mercadorias roubadas, mas não para descobrir beleza, arte.

 

A sala estava repleta de quadros, havia telas por todos os lados, às duas e três, encostadas às paredes. No meio da sala espaçosa, arejada, via-se um cavalete, com uma inacabada.

 

Serena vagueou pelo sótão, que, ao contrário do andar inferior, não estava dividido, era apenas um espaço amplo iluminado por janelas dos dois lados e por uma clarabóia. A luz que se filtrava pelas persianas corridas era suave, espalhando-se pelo chão em formas oblongas sobre as quais pairava uma poeira dourada. Havia uma comprida mesa de trabalho, encostada a uma das paredes, carregada com boiões de vidro, tubos de tinta, pincéis, esboços, lápis e trapos sujos de tinta, e uma pesada tela servia de tapete, cobrindo uma vasta zona do soalho em volta do cavalete. O cheiro das tintas e dos diluentes pairava no ar, como um perfume barato.

 

Então era aquele o grande segredo de Lucky: a sua veia artística! Serena espreitou para as telas que se encontravam voltadas para a parede, cobertas por um lençol. Mostravam o pântano, com árvores envoltas na névoa, captando a sua imobilidade, o sentido de espera. Eram belos, de uma beleza poderosa, cheios de uma negra tensão, magníficos e aterrorizadores.

 

Serena parou em frente de um que mostrava uma garça branca. A grande ave parecia pequena entre os troncos dos ciprestes e o fumo acinzentado do nevoeiro matinal. Serena, parada na sala quente, abafada, sentia-se como se os quadros a atraíssem, engolindo-a por inteiro. Podia sentir o frio da neblina, o cheiro do pântano, ouvia os gritos distantes das aves. Todos os quadros possuíam o dom de atrair quem os via para o centro do pântano, para o âmago da angústia do artista. Eram extraordinários.

 

Oh, Lucky! murmurou ela, escondendo o rosto nas mãos.

 

Era aquilo que ele não quisera que Serena visse para além da fachada de bravata machista, não por ter medo do que ela pudesse encontrar, mas por ser algo de muito pessoal, muito privado. Não era homem que partilhasse facilmente o seu interior, ela sempre o soubera, mas nunca suspeitara de que fosse tão terno, tão cheio de mágoas e de angústia.

 

Com os braços apertados em volta do corpo, Serena olhava para um quadro que representava uma tempestade a abater-se sobre o pântano. O céu era um torvelinho cinzento, verde e amarelo sobre a calma parada do hayou. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

Lucky dissera-lhe mais de uma vez que não a queria a espiar a vida dele, apenas acedera a ser seu guia, embora contra a sua vontade, e depois a ser seu anfitrião, com a mesma falta de vontade. Mas ela pressionara, espiara, desculpando o seu comportamento com o pretexto de se tratar de curiosidade profissional, dizendo a si própria que tinha o direito de saber até que ponto ele era realmente perigoso, e fazendo-o violara o mais básico dos direitos humanos o direito à privacidade.

 

Voltou-se para sair e deu um salto para trás, sentindo o coração apertado. Lucky estava parado à porta, olhando-a, perfeitamente imóvel, mas havia uma terrível tensão vibrando no ar à sua volta, os olhos faiscavam-lhe como relâmpagos ameaçando tempestade.

 

Peço desculpa sussurrou Serena, apercebendo-se de que estava a tremer. Não devia ter vindo aqui.

 

Não, não devia concordou ele com uma voz contida.

 

Lucky olhou-a, esforçando-se por conter a fúria. O que fazia ali era só para si, fora a sua salvação, o seu conforto, quando regressara da América Central. Passara horas naquela sala, a curar as feridas, concentrando-se nas suas telas para manter a sua sanidade mental e afastar as forças que o queriam destroçar. Aqueles quadros representavam os seus sentimentos mais íntimos, a dor a que não podia fugir, o medo a que não conseguia escapar. Deixar que alguém os visse era desnudar a sua alma e exibi-la perante o público. Era impensável, mas sucedera.

 

Não quis espiar disse estupidamente Serena.

 

Claro que quis retorquiu Lucky, começando a pôr panos por cima dos quadros, com movimentos desajeitados de cólera. É o que as psicólogas fazem melhor, não é? Cavarem na cabeça das pessoas, fazer sair os seus segredos.

 

Estava apenas a tentar saber se você fazia algo de ilegal. Tenho o direito de conhecer com quem estou replicou Serena, embora tal argumento lhe parecesse ridículo e estúpido.

 

Lucky voltou-se subitamente e agarrou-a pelos braços, puxando-a de tal modo para si que ela teve de deitar a cabeça para trás a fim de o olhar. Aqui não tem quaisquer direitos. Não pertence a este meio, Shelby, aqui não há regras, a não ser as minhas.

 

Serena emendou ela com voz trémula, reparando no olhar selvagem dele, e sentindo verdadeiramente medo pela primeira vez.

 

”As pessoas dizem que ele é meio louco...”

 

Eu sou Serena, Lucky repetiu suavemente com o coração a bater com toda a força ao observar como ele tentava controlar-se.

 

Lucky pestanejou, enquanto o seu cérebro regressava da escuridão e do frio, ao perceber o que ela dissera. Endireitou-se, largou-a abruptamente e ela tropeçou no cavalete, fazendo com que a tela caísse.

 

Sei quem é observou amargamente, passando as mãos pelo cabelo e começando a andar de um lado para o outro na sala como um tigre enjaulado, de cabeça baixa, os olhos a brilharem de fúria, mágoa e medo. Diabos a levem! Diabos a levem! murmurava, ofegante.

 

Muita coisa lhe fora tirada na vida, a inocência, a juventude. Parecia-lhe que agora só lhe restava a privacidade, o orgulho, e a mulher que se encontrava na frente dele a olhá-lo com olhos tristes cheios de medo tirara-lhe as duas coisas. Não queria o fogo que ela lhe punha nas veias. Diabos a levassem!

 

Serena estendeu as mãos para endireitar o cavalete, equilibrando-se ao mesmo tempo. Olhava para Lucky, via a tempestade de emoções que o abalavam e presenciava a luta que ele travava para conter essas emoções. Enquanto o fitava o seu medo desapareceu e foi substituído por algo mais forte a necessidade de chegar até ele.

 

Lucky, não fiz por mal desculpou-se suavemente. Lamento muito. Lamento mesmo.

 

Ele parou repentinamente e olhou-a de soslaio, com os olhos brilhantes e ardentes como ouro fundido, enquanto um sorriso selvagem aparecia no seu rosto moreno.

 

Lamenta! Invade a minha vida, a minha privacidade, arrasta-me para os seus problemas e tudo quanto tem a dizer é que lamenta. Usa-me em seu proveito e depois remedeia tudo com uma desculpa. Muito civilizado, muito apropriado Dieu! Não é mesmo digno das manas Sheridan?

 

As palavras soaram aos ouvidos de Serena como o toque de címbalos. Se pudesse apagá-las da sua mente tê-lo-ia feito, mas tinham ficado a pairar no ar e ela olhou-o com uma expressão inquisidora, de quem compreende. Conhece bem Shelby? perguntou cuidadosamente, sem querer ouvir a resposta.

 

Suficientemente bem para nunca mais querer nada com ela.

 

Serena não estava preparada para o aguilhão de ciúme que a atravessou ao pensar em Lucky e Shelby juntos. Não lhe parecia possível, mas não tinha outro remédio senão acreditar.

 

Eu não sou Shelby! protestou, envolvendo-se na sua armadura de calma. Não somos nada parecidas. Lamento se o magoou, mas não quero pagar pelos pecados dela.

 

Esqueça isso murmurou ele. Foi noutra vida.

 

Lucky percebeu que Serena lhe queria fazer mais perguntas, mas, antes de ela poder fazê-las, voltou a cabeça e recomeçou a andar para trás e para diante, pondo o assunto de parte, como se não fosse o evento que fizera mudar a sua vida.

 

O que julgava que vinha encontrar aqui, ma petite”? Contrabando? Drogas? Armas?

 

Fez-me pensar que era um caçador furtivo respondeu Serena tranquilamente. Porquê, Lucky? Porque me fez pensar que era mau?

 

”Para a manter afastada. Para não me magoar outra vez.”

 

Lucky apertou as têmporas com as pontas dos dedos, como se quisesse expulsar os pensamentos que pulsavam na sua mente, e, quando começou a dirigir-se para ela, soltou um grito de raiva, de animal impotente, de culpa e de fúria. Serena deu um salto, mas ficou à espera da resposta à sua pergunta. Lucky aproximou-se dela e só nessa altura conseguiu falar.

 

Se vê algo de mau em mim, é porque eu sou assim insistiu.

 

Vi o que quis que eu visse, não aquilo que realmente é.

 

Mais non, chère disse amargamente. Viu-me tal como eu sou.

 

Isso é mentira. E isto? perguntou Serena, erguendo uma mão para a tela que estava no cavalete. Não queria que eu visse porquê? Não há nada de mau nisto. Os seus quadros são belos e comoventes. Porque não queria que eu os visse? São demasiado reveladores?

 

Murmurando uma praga, Lucky agarrou na tela e atirou-a para o outro lado da sala, fazendo com que batesse numa das pernas da mesa de trabalho com um som forte. O esticador de um dos lados partiu-se, estragando o quadro.

 

Tela e tinta exclamou rudemente Lucky. É só o que é. É apenas para passar o tempo. Não faça outra leitura disto, doutora Sheridan avisou, inclinando-se sobre ela. Não procure simbolismos, nem metáforas. Pode ter a certeza de que a única maneira como quero tocar-lhe é com as minhas mãos disse, atraindo-a contra si com violência. É assim que quero, chère sussurou selvaticamente, passando-lhe uma mão pelos cabelos e pelas costas até às ancas, rudemente, sem ternura. É o único modo como quero pretendo tocar-lhe. A mão dele apertou-lhe um seio através do tecido fino da blusa. É só isto que tenho para lhe dar, só o que lhe deixarei tirar-me e, baixando mais a cabeça, beijou-lhe os lábios, com força.

 

Ela devia tê-lo empurrado, o bom senso dizia-lhe que o afastasse de si. Lucky Doucet era um homem com problemas, que não queria partilhar-se, avisara-a lealmente acerca disso, desejava-a fisicamente e nada mais. E mesmo essa reacção parecia contrariá-lo, irritá-lo. Queria-a mas não gostava disso. Por outro lado, Serena era uma mulher demasiado inteligente para cair na armadilha de se entregar a um homem que nunca a amaria, demasiado requintada para querer um bárbaro necessitado de autodomínio para se render completamente.

 

Serena devia tê-lo afastado, mas não o fez, não conseguiu. Desejava os beijos dele, o seu contacto corporal, Lucky despertara nela um instinto adormecido mesmo durante o casamento e que agora se agitava dentro de si, o que a assustava e excitava. Rendeu-se sem luta porque, apesar do seu senso comum lhe afirmar que era errado, a mulher que era dizia-lhe que estava certo.

 

Como mulher nunca conhecera a verdadeira paixão e ansiava por senti-la agora, com aquele homem, aquele guerreiro com alma de artista. Mantivera-o afastado com a ideia de que era um criminoso, apenas por isso. Tratava-se de um homem com medos ocultos, que encobria a sua ternura, os seus receios, a sua solidão interior, a sua bondade, com uma máscara de dureza, um homem que precisava de amor, mas que nunca estenderia a mão para o alcançar. E Serena não o afastou, derreteu-se contra ele.

 

Lucky gemeu, indefeso, quando a boca dela amoleceu sob os seus beijos. Não quisera que aquilo sucedesse, apenas pretendia assustá-la, repeli-la, afastá-la para tão longe que nunca mais se aproximasse emocionalmente, mas no momento em que a resistência de Serena cessou, a cólera dele esfumou-se também. O desejo invadiu-o como uma grande vaga, precisava de a ter contra si, de a abraçar, de a beijar, queria perder-se nela. Era uma loucura, sabia-o, mas tão doce que não lhe podia resistir.

 

Lucky ergueu a cabeça e olhou-a nos olhos, e o que viu foi um espelho da sua própria preplexidade, desejo e consciência desse desejo.

 

Quero-a murmurou por fim quando as suas confusas emoções lhe permitiram falar.

 

Eu sei.

 

As palavras dela pouco mais eram que sombras de sons a passarem-lhe por entre os lábios, inchados pelos beijos. A trança do cabelo desmanchara-se, o cabelo caía-lhe sobre os ombros em desalinho e um raio de luz da clarabóia fazia-o brilhar como ouro. Era a tentação personificada, a que Lucky não tencionava resistir.

 

A noite passada aguentei-me recordou-lhe ele. Desta vez não vou parar, chère.

 

Serena podia senti-lo, duro e urgente contra a sua barriga, e sabia que era verdade. Um arrepio de excitação percorreu-a ao pensar que ele ia possuí-la, reclamá-la como os machos tinham feito às fêmeas desde o princípio dos tempos. Lucky pousou de novo os lábios nos dela, saboreando, acariciando. Serena prendeu-lhe o rosto nas mãos e comprimiu mais os lábios contra os dele, deixando-o saber que não tencionava detê-lo, enquanto a razão e a lógica desapareciam e o instinto passava a comandar. Lucky encheu a boca dela com o seu sabor, rodeou-lhe o corpo com os braços, com a sua força e o seu calor, apertou-a contra si com uma mão, enquanto com a outra tentava abrir a blusa leve que ela vestira. Precisava de sentir a pele dela contra a sua, precisava de a ver. O botão de cima cedeu e meteu a mão pela abertura, fazendo com que os botões caíssem no chão, um a um.

 

Os beijos dele desceram do queixo, seguiram pelo pescoço até aos ombros, enquanto lhe ia despindo a blusa. Fez o mesmo às alças do sutiã e puxou-o para baixo, deixando os seios de Serena expostos ao seu olhar, às suas carícias, aos seus beijos. Ela soltou um grito quando Lucky lhe chupou com força um dos mamilos e meteu os dedos pela seda negra dos cabelos dele, apertando-o mais, sentindo o ardor de ambos aumentar a cada momento.

 

Abraçados, caíram de joelhos sobre a tela tombada no chão e Serena inclinou-se para trás, vencida pelo calor dos beijos, das carícias, as suas próprias mãos movendo-se sem parar sobre os largos ombros de Lucky, puxando-lhe a camisola para cima. O olhar dele escaldava, louco de desejo, e ela sentia que lhe faltava a respiração ao contemplar a perfeição daquele corpo, uma escultura viva de músculos. Lucky olhava-a como um macho, desejando-a com cada fibra do seu corpo, concentrado apenas num objectivo, e Serena soltou um gemido quando ele voltou a apertá-la e o seu corpo se fundiu no dele, a sua pele branca e macia, a dele bronzeada e áspera.

 

Lucky beijou-a com força, selvaticamente, ao mesmo tempo que a apertava ainda mais e, com uma das mãos, lhe desapertava o botão dos calções, que caíram no chão. Serena ofegou na boca dele, quando sentiu depois que ele lhe puxava as calcinhas, rasgando a seda e a renda.

 

Lucky sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto lhe acariciava as ancas nuas e lhe passava as mãos pela redondeza aveludada das nádegas, apertando-as, levantando-as. Com a outra mão procurou o ninho de pêlos claros, encaracolados, entre as coxas, buscando a macieza sedosa ali oculta, enquanto lhe murmurava palavras de amor, de sexo, numa língua que ela não entendia.

 

Serena tentou murmurar o nome dele, mas não foi capaz, soltou apenas um leve gemido quando Lucky lhe introduziu um dedo na parte mais íntima do corpo, fazendo as ancas dela movimentarem-se contra a pressão da mão dele, convidando-o, pedindo quase em silêncio.

 

Lucky ergueu a cabeça e olhou-a. Serena tinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, o corpo arqueado, os seios túrgidos e erguidos. Com o cabelo caído sobre os ombros, parecia um anjo perdido. Não mostrava sinal algum da sua habitual frieza, nem da sua delicada sofisticação, era uma mulher que desejava um homem, aquele, e o seu corpo não fazia segredo disso. Movimentava-se contra a mão dele e a sua pele estava quente e húmida.

 

O desejo de Lucky chegou ao rubro, nunca ansiara tanto por uma mulher. Desejava-a com todas as fibras do seu ser e Serena estava quente e preparada para o receber, o corpo dela pedia-lhe que a possuísse. Olhou-a com as narinas dilatadas, como um garanhão na presença de uma égua, aspirando um aroma que era uma mistura do perfume dela e do cheiro penetrante do sexo.

 

Afastou-se para desabotoar o botão das calças e abrir o fecho, lutando contra a sua erecção, que surgiu, livre, para as mãos ansiosas de Serena. Ela fechou os dedos, medindo a espessura e o comprimento, e depois lentamente, com a mão aberta, roçou o polegar pela ponta aveludada.

 

Ao mesmo tempo, Serena comprimiu os lábios contra o peito de Lucky e passou-lhe a língua sobre um mamilo, fazendo com que ele perdesse o que lhe restava do seu autodomínio e soltasse um grito animalesco, que partiu do fundo da garganta. Tinha de a possuir já, naquele momento.

 

Estendeu Serena no chão e pôs-se em cima dela, tentando penetrá-la com um único impulso, mas ela gritou e enterrou-lhe as unhas nas costas, com o corpo tenso contra a intrusão. Lucky apoiou-se nos cotovelos para a olhar, combatendo o impulso natural de se enterrar completamente na luva apertada do corpo dela.

 

Toma-me todo, querida. Por favor, Serena. Todo, todo.

 

Oh, Lucky murmurou Serena. Não posso. És muito...

 

Chiiuu... murmurou Lucky roçando ternamente os lábios pela testa dela. Descontrai-te, chère continuou, obrigando o seu corpo a mover-se lentamente contra o dela. Descontrai-te. Vai correr bem, vai ser bom, querida, vai ser bom... É isso mesmo.

 

Ela movimentou-se lentamente debaixo dele, fazendo com que ele penetrasse mais um pouco, apertando-o e fazendo-lhe aumentar o êxtase. Lucky avançava com todo o cuidado, combatendo o desejo de a penetrar mais profundamente, de se enterrar completamente nela. Afastou-lhe os cabelos caídos para a cara, beijando-a com ternura, enquanto o corpo de Serena se ia relaxando pouco a pouco.

 

És apertada como um punho sussurrou, ofegante, roçando com os lábios pelos dela. Mon Dieu, esses homens em Charleston não sabem tratar duma mulher bonita? Serena não lhe respondeu, não podia. Não conseguia falar. Não lhe podia dizer que nem sequer se lembrava do nome do último homem com quem fora para a cama, porque se lhe varrera completamente da memória. Só pensava em Lucky, que a beijava, que a acariciava, que a enlouquecia. Passou as mãos pelos músculos das costas dele, escorregadias de suor, deixou-as deslizar ao longo da coluna até às nádegas rijas e apertou-as, puxando-o contra si e fazendo-o penetrar totalmente nela.

 

O grande corpo de Lucky começou a mover-se lentamente, saindo e entrando nela, aumentando gradualmente a rapidez e a força que lhe levantava as ancas do chão a cada novo impulso. Serena erguia o corpo, em arco, indo ao encontro do dele, tensa, à espera de qualquer coisa que até ali desconhecera e apenas imaginara. Era uma experiência pela qual nunca passara, uma sensação de intensa excitação, o crescer de uma bolha de ar dentro dela, fazendo-a esquecer tudo, tudo. Tornava-se simultaneamente assustador e extasiante sentir-se arrastada numa vaga de sensações.

 

Agarrou-se a Lucky como se só ele a pudesse levar para o mundo real, com os braços apertou-lhe as costas e passou-lhe as pernas por cima das estreitas ancas. E a sensação selvática aumentou, cada vez mais viva e mais intensa, inchando até explodir em mil pedaços.

 

Lucky sentiu-a atingir o clímax, ouviu-a gritar o seu nome e em seguida a sua própria consciência diminuiu ao explodir dentro dela. Soltou um grito rouco, incapaz de pensar, de compreender fosse o que fosse para além da sensação maravilhosa de estarem unidos um ao outro. O momento foi tão doce, tão perfeito, tão dourado, que por instantes todo o negrume desapareceu da sua alma e ele sentiu-se limpo, são e em paz pela primeira vez há muito tempo. Agarrou-se a esse sentimento e apertou ainda mais Serena contra si para poder absorver algum do bem que encontrara nela.

 

A noção da realidade voltou-lhe pouco a pouco, como se surgisse do nevoeiro. O lenço sujo de tinta, um pé do cavalete, o sol que passava por entre as frestas, a mulher debaixo dele.

 

Olhou-a e sentiu um aperto no peito, Serena chorava em silêncio, com a cabeça voltada para o lado, as lágrimas a rolarem-lhe em silêncio pelas faces. Tinha-a magoado, possuíra-a com violência. Céus! Em que animal se havia transformado? Deixara que o seu desejo o empolgasse e não se importara com ela. Não podia pensar nisso. Lucky fora educado a respeitar as mulheres, a tratá-las com delicadeza e, apesar do cinismo que se fora entranhando nele com o decorrer dos anos, não suportava a ideia de abusar fisicamente de uma mulher, de a dominar com a sua força. A noção de que magoara Serena, a valente, a corajosa Serena, cuja calma mascarava medos ocultos, era mais do que podia aguentar, por isso a sua mão tremia ligeiramente ao afastar-lhe o cabelo da testa.

 

Serena, Serena, desculpa...

 

Não peças desculpa murmurou ela. Eu estou bem.

 

Magoei-te, fui muito rude e...

 

Não, isto nunca me tinha sucedido antes confessou ela, calando assim o pedido de desculpa dele.

 

Lucky ficou imóvel em cima dela quando compreendeu.

 

Nunca?

 

Serena voltou a cabeça e olhou-o com um sorriso trémulo.

 

Não, não fazia ideia de que podia ser assim. Nunca fui muito boa no sexo.

 

Nada poderia ter reacendido mais, nem mais depressa, o desejo de Lucky, a não ser ela ter-lhe dito que era virgem. Saber que a possuíra como nenhum outro homem fizera era a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido. A possessividade cresceu dentro dele e dessa vez não quis negá-la, nem combatê-la. Serena era sua, Lucky sentiu isso de um modo fundamentalista, instintivo, ela pertencia-lhe.

 

Ainda aninhado no esconderijo recôndito da feminilidade dela, o seu corpo agitou-se fortemente, numa resposta automática. Lucky olhou Serena, sentindo-se vencido por uma profunda emoção a que não sabia dar nome. Ela olhou-o com os seus escuros olhos líquidos, com os lábios a entreabrirem-se suavemente, contendo a respiração.

 

Oh, ma jolie fille murmurou Lucky, baixando a cabeça para lhe roçar os lábios pelo pescoço. Esta pode ter sido a tua primeira viagem ao céu, mas com certeza não é a última.

 

 

Lucky tivera aquele sonho centenas de vezes. Rastejava por um cano de esgoto sob a prisão particular do falso general e rei dos traficantes de droga Juan Rafael Ramos, o cheiro nauseabundo sufocava-o, os gritos dos prisioneiros nas salas de interrogatório chegavam até ele através das paredes de pedra, como se fossem brados etéreos de almas torturadas.

 

Planeara a fuga desde o dia em que recuperara os sentidos depois do primeiro ”interrogatório” feito pelos homens de Ramos. De todas as vezes que era torturado concentrava-se nesse plano, fazendo o seu cérebro focar a liberdade para não pensar na dor cruciante, e visualizara-o em todos os momentos que passara no calabouço escuro e húmido. Agora o fim do túnel encontrava-se quase à vista. Os seus dedos tocaram na grade enferrujada, empurraram-na, e do outro lado, iluminados por uma viva luz alaranjada, estavam Ramos, Amalinda Roca e o tenente-coronel R. J. Lambert.

 

Lançou-se em primeiro lugar sobre este último e matou-o com um pedaço de metal enferrujado. O sangue, espesso e quente, jorrou do corpo como água saindo de uma boca de incêndio e fez uma poça em volta dele, que lhe chegava aos ombros. Ouviu um riso de mulher e voltou-se nessa direcção, lentamente, pois os seus movimentos eram dificultados pelo sangue que o rodeava. Amalinda Roca estava de pé em frente dele, com os cabelos a esvoaçar ao vento como bandeiras.

 

No momento em que a reconheceu, o rosto dela transformou-se num monstro que rugia, enquanto o veneno lhe escorria dos dentes afiados e os seus dedos se transformaram em cobras que lhe rodearam o pescoço e lhe fizeram mergulhar a cabeça no sangue, que continuava a correr, afogando-o. Lucky sentia a pressão, a dor nos pulmões, o pânico a crescer... até que acordou num sobressalto, ofegante, procurando a origem daquele peso. Uma mulher dormia com o rosto sobre o peito dele, no sítio do coração, com o cabelo espalhado como seda prateada. Shelby. Não, não, disse a si próprio, afastando outras feias recordações, não era ela, era Serena.

 

Levou um grande bocado a separar a realidade do pesadelo, para perceber quem era Serena e onde estavam. Fragmentos de pensamentos e de emoções agitavam-se como poeira nas orlas do seu cérebro, que seleccionava dolorosamente as peças apropriadas, tentando freneticamente pôr o resto de lado.

 

Serena ergueu a cabeça e pestanejou, sonolenta, olhando-o numa interrogação silenciosa, mas Lucky não respondeu, desprendeu-se dela e foi até à janela, nu.

 

Um suor frio cobria-lhe a pele. Passou os dedos pelo cabelo e sentiu-o molhado. Estava a tremer violentamente talvez não visivelmente, mas por dentro e o seu coração batia com o som de um trovão. Apoiou os braços no parapeito da janela aberta, tentando apanhar ar fresco e acalmar-se, enquanto não conseguia afastar o pavor que sentia.

 

Eram velhos companheiros seus, os pesadelos e a agitação que se seguia, o receio de não poder afastar a escuridão que rondava o seu cérebro, o cansaço, o desgosto. O que mais desejava era deitar-se e fugir de tudo aquilo, dormindo, mas sabia que nessa noite tal não voltaria a acontecer. Os sonhos eram demasiado reais, demasiado terríveis.

 

Não descansaria mais porque tinha medo e por se envergonhar disso. Um homem mais forte poderia voltar a dormir, um homem melhor não seria perseguido pelos demónios como ele. O facto de saber que Serena estava ali a presenciar os seus medos tornava a vergonha cem vezes pior, e chamou a si as suas mais profundas reservas de cólera e autodefesa para a vencer.

 

Serena, deitada, observava-o. Não lhe podia ver a cara,; mas o luar que o iluminava deixava-a ver que ele mantinha a cabeça baixa e que todos os seus músculos estavam tensos, perfeitamente delineados. Reparou que as costas de Lucky arfavam, como se tivesse dificuldade em respirar. Não fazia ideia de que género de pesadelo o tirara do sono e lhe provocara tal agitação, sabia apenas que queria ajudá-lo, oferecer-lhe força, como ele lhe fizera na noite anterior. Saiu da cama e dirigiu-se também para a janela.

 

Que sucedeu? perguntou calmamente, mas durante um longo momento os únicos sons que ouviu vieram do exterior, foram os estrilos dos insectos, o coaxar das rãs, o grito distante de um guaxinim.

 

Rien respondeu por fim Lucky, que logo abanou a cabeça impacientemente ao perceber que não falara inglês. Nada.

 

Serena estendeu uma mão para lhe tocar.

 

Nada! repetiu ele, voltando-se para ela. Contudo, foi um erro táctico, pois Serena não recuou e,

 

em vez disso, olhou-o no rosto, lendo nele como um professor o teria feito num aluno do primeiro ano. Lucky voltou-se para olhar para fora outra vez, esforçando-se por falar com mais calma.

 

Não é nada contigo, trata-se apenas de recordações da minha estada na América Central.

 

O que estiveste lá a fazer?

 

Um sorriso sarcástico aflorou-lhe aos lábios.

 

Bem, não foi a passear, podes ter a certeza.

 

No exército?

 

Sim, um trabalhinho para o Tio Sam, nada de importante.

 

Não se têm pesadelos sem uma razão.

 

Pás de bêtises murmurou ele.

 

Se quiseres falar disso, pode ser que eu possa ajudar ofereceu-se Serena, com uma expressão preocupada.

 

Tu nem sequer te consegues ajudar a ti própria replicou Lucky com uma gargalhada forçada, mas logo se arrependendo da crueldade das suas palavras.

 

Serena ignorou o ataque verbal, estava assustado e magoado, aquela resposta era natural.

 

É mais fácil resolver os problemas das outras pessoas insistiu.

 

Bem, esquece resmungou ele.

 

Serena encolheu os ombros e fechou os braços sobre o peito. Não parecia ter mais de dezanove anos, com os cabelos louros soltos sobre os ombros, a pele lisa e macia iluminada pelo luar. Lucky sentiu reacender-se o desejo, uma ternura perigosa apoderar-se dele, o que aumentava ainda mais a carga de todas as outras emoções que pesavam sobre ele nesse momento, e pensou se seria capaz de se livrar dela antes de ser vencido pelo amor.

 

Está bem concordou Serena. Pensei que...

 

Pensaste o quê? retorquiu asperamente Lucky. Que, por eu ter passado metade da noite dentro de ti, isso te dá o direito de abrires a minha cabeça para veres que espécie de cobras lá estão dentro? Desengana-te!

 

Serena queria argumentar com ele, ter o direito de lhe perguntar que pesadelos assombravam o seu sono, saber tudo a seu respeito. Desejava que Lucky lhe desse essas informações de boa vontade, mas sabia que ele não o faria, assim como não lhe mostrara os seus quadros ficaria mais satisfeito se ela continuasse a pensar que não passava de um criminoso, e talvez isso também tivesse sido melhor, Serena manter-se-ia afastada do homem que julgara que Lucky era.

 

Ela voltou-se e olhou para a cama que tinham partilhado nas últimas horas. O dia fora passando, chegara a noite e haviam trocado o sótão pelo conforto da cama com o sseu colchão cheio com palha e com ervas perfumadas e flores secas, onde Lucky fizera novamente amor com ela, terna, lentamente, demorando a chegar ao clímax, fazendo-a atingir ainda outro nível de êxtase que nunca conhecera antes.; O seu corpo retinha ainda as sensações e o conhecimento do homem que se encontrava junto dela. Não tires qualquer conclusão apressada do que se passou entre nós murmurou ele. É apenas sexo.

 

A boca de Serena contorceu-se num sorriso triste.

 

Obrigada, por me fazeres sentir como uma mulher fácil, com quem se passa uma noite.

 

Não é nada de pessoal.

 

Oh, compreendo comentou ela secamente. Sou apenas mais uma de uma longa lista de prostitutas baratas” com quem dormiste. Obrigada, sabes realmente como lisonjear uma mulher, Lucky.

 

Se querias ouvir palavras bonitas vieste bater à porta errada. Não há nada de bom dentro de mim.

 

Serena pensou na assombrosa beleza dos quadros dele, mas calou-se. Ele não gostara que os tivesse visto, assim como não queria que descobrisse nada do que se ocultava sob a sua armadura exterior.

 

Estou apenas a ser honesto contigo, chère. Não é o que os psiquiatras pretendem sempre? A verdade?

 

Serena continuou muda. O mais terrível em tudo aquilo era o facto de ela ter preferido que Lucky lhe mentisse naquela altura. Sentia-se emocionalmente tão sensível, tinham-lhe sucedido tantas coisas nos últimos dois dias, que ficaria satisfeita se ele agora a abraçasse e dissesse que a amava, embora não fosse verdade. Mas seria tola se pensasse que Lucky faria isso, ele não deixaria que ninguém se aproximasse tanto, mesmo mentindo.

 

 

Afastou-se, movimentando-se lentamente, pois, pouco habituada ao sexo, todos os músculos do corpo lhe doíam, até mesmo os que já se esquecera que tinha. Foi até à porta de rede e olhou para fora. O medo que sentira na noite anterior desaparecera, outras coisas o haviam substituído pensava em Gifford, em Shelby, na presença bem real e física de Lucky, o seu herói, o seu anti-herói, o seu amante.

 

Ela nunca tivera um amante, nunca encontrara ninguém como Lucky um tipo duro, moreno, perseguido por medos e complexos. Parecia-lhe irreal estar ali com aquele homem. Tinha a sensação de já não se conhecer a si própria, apetecia-lhe ver-se a um espelho para saber se se assemelhava à pessoa que fora dois dias antes.

 

Estás bem? perguntou Lucky.

 

Aproximara-se e pusera-se atrás dela e Serena não resistiu ao impulso de se lhe encostar. Os braços de Lucky rodearam-na automaticamente, oferecendo um conforto que nunca seria capaz de verbalizar.

 

Serena fungou e um sorriso triste apareceu-lhe nos lábios.

 

Claro que sim, apenas tenho a minha vida completamente virada de pernas para o ar.

 

Podes ir-te embora. Voltas para Charlestone e deixas que Gifford trate do assunto sozinho.

 

Não. Ao contrário de ti, sinto que tenho obrigações para com as pessoas. Não posso ir-me embora sem tudo estar resolvido.

 

Lucky percebeu um misto de resignação e de convicção na voz dela e admirou-se de a ter podido confundir com a irmã. A única coisa que possuíam em comum era o físico. Serena mostrava grande integridade e força mental, que agora precisava de usar devido a Gifford e a Shelby. Era simultaneamente forte e frágil, uma combinação que o comovia de maneira que nunca julgara possível. E custava-lhe pensar que ela iria perder o que restava da sua inocência antes de aquele assunto terminar. A verdade é que isso o magoava até um ponto que nunca achara possível.

 

O seu sentido de autopreservação levava-o a negar a si próprio esses sentimentos. Tudo aquilo era desejo e nada mais, um desejo que parecia insaciável e que lavrava no seu interior como brasas ardentes que podiam ser cobertas com cinza, mas nunca completamente apagadas. Inclinou a cabeça e roçou com os lábios pela testa e pelas faces dela.

 

Posso continuar a ter-te até resolveres o assunto? perguntou, enquanto lhe acariciava as costas, o peito e os seios.

 

Serena estremeceu e notou a diferença entre o calor das carícias e a frieza das palavras. Não fingia sentir amor por ela, dizia-lhe apenas a fria, dura verdade. Tentou não se deixar afectar pelas palavras dele, pois Lucky não era homem para assumir um compromisso a longo prazo. Se o queria, faria bem em o aceitar como uma oportunidade de ter sexo e nada mais. Uma aventura, uma odisseia que poderia recordar quando regressasse a Charleston e se espantasse com o que fizera.

 

De qualquer modo não lhe parecia haver alternativa. Queria tê-lo, fosse de que maneira fosse, o corpo respondia agora às carícias dele, como se fossem amantes há semanas e não há horas. Os seus mamilos endureceram quando Lucky lhes tocou através do tecido da camisola que enfiara ao sair da cama. Sentiu o desejo tornar-se mais forte com o contacto da erecção dele sobre a pele macia entre as coxas dela. Lucky fê-la voltar-se e levantou-lhe a camisola, para poderem ficar pele contra pele.

 

Nunca me canso de te possuir sussurrou Lucky. Quero-te outra vez.

 

Serena baixou a cabeça contra o peito dele e murmurou:

 

Não creio que possa.

 

Lucky pôs-lhe um dedo debaixo do queixo, fê-la erguer a cabeça e o que lhe viu nos olhos não foi rejeição, mas embaraço, e sorriu docemente ao compreender.

 

Tenho remédio para isso, querida disse sedutoramente, inclinando-se para lhe aflorar a face. Vamos voltar para a cama e deixas-me beijar isso até ficares melhor.

 

Partiram para Chanson du Terre ainda o nevoeiro baixo pairava sobre o hayou como farrapos de algodão esvoaçando, dando ao pântano o seu aspecto mais estranho. Parecia ser a aurora dos tempos, quando a Terra estava ainda a arrefecer debaixo das águas. Dinossauros não pareceriam deslocados ali.

 

Não era difícil a Serena imaginar que tinham voltado para trás no tempo, que se encontravam na Pré-História e que só ela e Lucky habitavam a Terra. Era uma ideia romântica, mas não quis afastá-la.

 

Lucky impeliu a canoa para a frente, enquanto Serena olhava em volta. Ainda não se sentia bem no pântano duvidava de que alguma vez tal acontecesse, mas as suas percepções tinham-se alterado subtilmente depois de ver os quadros de Lucky. Olhava agora o que a rodeava um pouco através dos olhos dele, tentando compreender melhor tanto o pântano como o homem.

 

Ambos eram cheios de segredos, ambos estavam envoltos em mistério e mergulhados no isolamento e na solidão. Não era de admirar que Lucky se tivesse refugiado ali o pântano compreendia-o. Serena pensou se alguma vez seria também capaz de o perceber plenamente, se conseguiria descobrir os segredos dele, ou se permaneceriam um mistério.

 

O desejo de saber mais a respeito dele crescia, era como uma falha nos seus conhecimentos, uma lacuna que precisava de preencher com detalhes. Queria descobrir que género de rapaz ele fora, porque deixara a universidade, que incidentes o tinham levado a mostrar-se cínico. As questões estavam-lhe na ponta da língua, mas não queria dar-lhes voz, seria um disparate querer aprofundar o relacionamento entre eles. Lucky falara clara e concisamente: podiam partilhar os corpos enquanto ela ali estivesse, oferecerem simpatia ocasionalmente, mas nada mais.

 

Em que pensas?

 

Serena levantou a cabeça surpreendida, olhando Lucky com uma expressão que ele supôs ser de embaraço.

 

Nada murmurou, mas não tinha grande jeito para mentir, provavelmente corara. Lucky olhou-a de testa franzida e ela mudou de assunto antes que ele pudesse comentar. Não estou muito satisfeita por ter de tratar deste assunto de Chanson du Terre. Não me parece que me compita a mim intervir.

 

Tu própria disseste que não havia alternativa.

 

Eu sei, mas não me sinto confortável ao fazê-lo. Shelby vai ficar muito ressentida comigo.

 

Há coisas mais importantes em jogo do que os sentimentos de Miss Shelby observou Lucky com azedume.

 

Serena virou-se no banco da piroga para o ver melhor. Lucky olhava para um ponto distante, com uma expressão impenetrável.

 

A tua família é unida? perguntou.

 

Lucky encolheu interiormente os ombros. Se a família dele era unida? Sim, os seus membros pareciam os fios dos teares cajun... com excepção dele. Desde que regressara mantinha-se distante, embora soubesse que os magoava Os pais, os irmãos, as irmãs, eram boas pessoas, até demasiado, para se arriscarem a sofrer com os problemas e as experiências dele. Visitava-os de tempos a tempos e ocasionalmente encontravam-se, mas continuava a ser o fio solto do tecido da família Doucet, porque ficara distorcido, pensou, com humor.

 

Lucky?

 

Oui disse laconicamente. Somos unidos.

 

Nunca tive a sorte de poder dizer isso acerca da minha irmã e de mim, e o que vai passar-se com a plantação provavelmente ainda piorará as coisas.

 

Como já disse, chérie, há grandes interesses em jogo. Lucky impeliu a piroga para a margem e Serena olhou para o que os rodeava. Pareciam encontrar-se no coração do pântano, não se viam sinais de civilização e não estavam certamente a chegar ao destino. A escuridão era quase completa, o arvoredo mal se distinguia da superfície das águas, Serena olhou interrogativamente para o companheiro.

 

Quero mostrar-te uma coisa.

 

Lucky saltou agilmente da piroga e ela deixou-se ficar sentada, apesar de ele lhe estender a mão para a ajudar.

 

O que é? perguntou, desconfiada.

 

Fica ao fim deste atalho respondeu Lucky, apontando para o bosque.

 

Serena não viu nada que se assemelhasse com um atalho, mas apenas um emaranhado de vegetação e de troncos de árvores. Por saber o que poderia haver no meio do mato, sentiu o antigo medo recrudescer.

 

Lucky prendeu-lhe meigamente o rosto entre as mãos, para que ela o olhasse, não para a floresta.

 

Não tenhas medo deste sítio, chérie murmurou. Estás comigo. Agora és minha e não deixarei que nenhum mal te aconteça.

 

Olhando o rosto duro de Lucky, Serena sentiu uma forte ligação com ele, um elo que fora forjado sem eles se aperceberem disso, enquanto sentiam paixão um pelo outro. Ela era a mulher de Lucky Doucet, ligada a ele pela mais fundamental das maneiras. Ele protegê-la-ia como os machos tinham defendido as suas fêmeas desde os primórdios da humanidade.

 

Confias em mim, chérie?

 

Sim respondeu ela. ”Confio-te a minha vida, até o meu coração.”

 

Confiava nele, o que seria impensável dois dias antes. Nunca acreditaria num homem que lhe parecia tão sem escrúpulos, tão selvagem, que desafiava a autoridade e resolvia os seus problemas pela força. Jamais lhe poderia parecer de confiança, mas ela sabia agora que Lucky não era assim, parecia antes um diamante em bruto duro e escuro por fora, mas brilhando interiormente com mil facetas.

 

Serena deu-lhe a mão, deixou que ele a ajudasse a sair da piroga e, logo que os seus pés tocaram no solo, Lucky ergueu-a nos braços e levou-a ao colo para lhe mostrar o local que queria que ela visse. O caminho por onde passavam era um emaranhado de fetos e de arbustos espinhosos, ladeado por árvores dos dois lados o pântano fizera tudo para apagar passadas intrusões dos homens. Serena não via atalho algum, mas Lucky caminhava com segurança, como se estivesse numa rua citadina.

 

Assim, levou-a até uma pequena clareira, à beira de um curso de água mais pequeno, orlada por magnólias, que perfumavam o ar com o aroma pesado das suas últimas flores. A margem oposta estava cheia de pulicárias e margaridas brancas, além de outras com os centros negros. Destacando-se em silhueta contra a luz do sol-nascente, via-se uma corça e duas crias que ali tinham ido beber.

 

Lucky pôs Serena no chão, conservando-a dentro da protecção dos seus braços, e depois apontou para uma haste de jacintos-d’água que se estendia de margem a margem.

 

Aquilo é capaz de sufocar um hayou até fazê-lo morrer explicou suavemente. Uma planta pode reproduzir-se aos milhares só numa estação, impedindo que a luz chegue às plantas que estão por baixo, as quais morrem. O fitoplâncton de que os peixes se alimentam desaparece, e estes também, as sementes do lago de que os patos se alimentam morrem e eles vão-se embora. O homem introduziu aqui essa planta por acidente.

 

Voltou-se ligeiramente e apontou para as ervas altas ao longo da margem oposta, entre as quais se via a cabeça de um animal semelhante a um castor.

 

Aquilo é um nutria. Foi trazido para a Luisiana nos anos trinta, para experiência de criação. Alguns morreram, mas agora existem tantos nos pântanos que estão a comer tudo. Devoram a erva de tal maneira que esta nunca mais nasce e as companhias petrolíferas não deixarão colocar armadilhas. Sem as raízes da relva para unirem o solo, este fragmenta-se e então a água salgada do golfo entra e envenena tudo. Foi o homem que trouxe o nutria para aqui. Olhas para este sítio e pensas que é mundo distante de tudo, mas tens aqui dois exemplos da intrusão do homem. O pântano pode parecer um lugar remoto, indestrutível, mas é um ecossistema delicado que precisa de equilíbrio, e o homem pode matá-lo num abrir e fechar de olhos.

 

Por que motivo me estás a mostrar isto? perguntou Serena voltando a cabeça para o olhar por cima do ombro.

 

Porque queria que compreendesses, antes de ires falar com Shelby, com Talbot e com a Tristar. Não é só a Chanson du Terre que está envolvida no assunto, e não se trata apenas do teu relacionamento com a tua irmã e com Gifford. É todo um mundo respondeu Lucky, olhando para o que o rodeava como se quisesse conservar tudo na memória antes de ser demasiado tarde. Este pântano está já a morrer pouco a pouco, assoreado pelas terras vindas dos canais que foram construídos para impedir que as águas do Mississipi inundassem terras aráveis que nunca o deviam ser, para começar. A Tristar tem planos para abrir os seus próprios canais de navegação, o que provocará mais assoreamento. Só Deus sabe o que eles deitarão aqui onde ninguém os possa ver, pois já têm uma lista de crimes contra o ambiente do comprimento do teu braço.

 

Serena ouviu-o atentamente, tomando nota não só das palavras, mas dos sentimentos que escondiam. Não era Lucky, o caçador furtivo, o homem duro, quem falava, mas sim Étienne, o estudante de Biologia, o rapaz que crescera naqueles hayous e aprendera a conhecê-los e a amá-los.

 

Amas muito este sítio, não é verdade?

 

Lucky não falou durante um longo momento. Aquele pântano era o seu lar, fora a sua salvação, proporcionara-lhe a solidão que lhe permitira não resvalar, quando estivera à beira da loucura. O silêncio tornou-se mais pesado, aumentando a importância da sua resposta

 

Oui disse finalmente. Este sítio é a minha vida. A confissão atingiu Serena no mais recôndito do coração e sentiu a emoção trazer-lhe lágrimas aos olhos. Era a primeira parte do seu eu interior que Lucky partilhara com ela de livre vontade, sinceramente.

 

Embora o seu cérebro lhe dissesse que era disparate, o coração agarrou fervorosamente essa ténue esperança. Voltou-se para Lucky e abraçou-o, querendo algo a que não se atrevia a dar nome e sentindo nesse momento que faria tudo para salvar aquele lugar, por muito que o temesse, só para dar a Lucky algo mais profundo que o desejo.

 

 

Não podes fazer nada, Mason?

 

Shelby andava impacientemente de um lado para o outro na pequena divisão da qual o marido fizera escritório desde que se tinham mudado para Chanson du Terre. Era uma sala pequena, com as paredes apaineladas a madeira e soalho também de madeira, cheia de estantes com livros e mobilada com sobriedade. Retratos de antepassados austeros olhavam-nos com ar desaprovador do alto das paredes. Shelby ignorou-os, continuando a movimentar-se nervosamente, com os braços cruzados debaixo dos seios, ouvindo apenas o dique dos seus saltos altos, no meio do silêncio.

 

Mason ergueu os olhos dos papéis espalhados sobre a secretária, puxando os óculos para o nariz. O seu olhar, ao observar Shelby, exuberante com o seu novo conjunto vermelho e preto, tinha uma expressão inócua e ligeiramente vaga.

 

Não sei bem o que queres que faça, querida. Shelby voltou-se para ele, com os seus olhos escuros brilhantes de impaciência. Pousou as mãos, de unhas impecavelmente arranjadas e adornadas com um anel de diamantes, sobre a secretária e respondeu:

 

Ouviste o que disse Burke. Ele acha que Gifford devia ser considerado interdito.

 

Então, Shelby murmurou Mason, sorrindo benevolentemente. Abandonou os papéis que estivera a estudar e retorquiu com voz calma: Já te expliquei que isso não pode ser. Em primeiro lugar, o que pensariam as pessoas se o avô da minha mulher fosse declarado interdito para eu lucrar com a venda da sua propriedade? Os eleitores não gostam desse género de coisas e, em segundo lugar, Serena nunca concordaria.

 

Serena! Shelby proferiu o nome da irmã como uma maldição e afastou-se da secretária para recomeçar o seu passeio. Diabos a levem. Porque havia de ter voltado agora que as coisas estavam a correr tão bem para nós? Ela vai estragar tudo o que eu quero fazer. Faz sempre isso.

 

Tem um pouco de calma, meu amorzinho. Pode ser que Serena compreenda quando conhecer toda a história.

 

Vai pôr-se do lado de Gifford afirmou Shery, alisando um fio de cabelo que parecia ter-se desprendido do seu elegante penteado. Tenho a certeza de que ele lhe está a encher a cabeça com disparates, e Deus sabe o que esse Lucky Doucet lhe terá também dito.

 

Porque lhe há-de ter dito alguma coisa? Ela apenas o contratou para a levar até junto de Gifford.

 

Bem... Shelby hesitou, sem saber o que dizer ao reparar no olhar um pouco curioso do marido. Bem... porque ele não regula bem, claro.

 

Mason abanou a cabeça.

 

Estás a enervar-te sem motivo.

 

É bom que um de nós se preocupe. Se não arranjarmos algum dinheiro, em breve estaremos metidos em sarilhos. Precisas de fundos para a tua campanha e temos de pagar a nova casa.

 

Ajudaria se vendêssemos a antiga.

 

Shelby parou, levando a mão ao coração e parecendo magoada, como se as palavras do marido tivessem sido uma farpa espetada no corpo dela.

 

Estou a tentar fazer isso, Mason. Não tenho culpa de que os Loughton desistissem de a comprar no último minuto. Não é por minha culpa que o mercado está em crise.

 

Sei que não tens culpa, amor apressou-se a dizer Mason. Claro que não. Estava apenas a exprimir um desejo em voz alta, mais nada.

 

Continuou a desejar em silêncio, ao pensar que Shelby atingira o limite do seu cartão de crédito mesmo antes da compra daquele conjunto novo. Sentiu-se profundamente preocupado ao pensar no preço exorbitante que teriam custado os sapatos vermelhos que ela calçava. As sugestões que fizera anteriormente para que a mulher diminuísse as despesas tinham sido recebidas com histerismo.

 

Vou dizer-te o que eu desejava replicou Shelby compondo a sua mais eficaz expressão de amuo. Gostava de ser filha única e de que Gifford recuperasse o bom senso. Era isso que eu queria.

 

Preocupas-te demasiado, florzinha acalmou-a Mason. As coisas hão-de correr bem, vais ver. Correm sempre.

 

Ouviu-se uma pancada seca na porta e Odille Fontenot apareceu logo a seguir. O seu vulto magro mantinha-se muito direito e os seus olhos claros e a boca delgada revelavam desaprovação, como sempre. O cabelo formava uma bola grisalha, frisada e desgrenhada, em volta da cabeça. Trazia

um vestido de algodão florido, que, sem conseguir alegrar o seu aspecto sombrio, lhe caía sem graça dos ombros estreitos e magros, como se estivesse num cabide.

 

Devias esperar que te autorizassem a entrar, Odille ralhou Shelby, sem saber muito bem se Odille teria ouvido as palavras dela. As tuas maneiras são horríveis. Se trabalhasses para mim despedia-te por insolência.

 

A criada esboçou um trejeito de indignação.

 

Eu não trabalho para si. Se assim fosse, perdia a cabeça.

 

Shelby inchou como um pombo ofendido.

 

Que impertinência!

 

Queria dizer-nos alguma coisa, Odille? interveio Mason, com tacto.

 

Miss Serena está em casa anunciou com ar ameaçador, voltando-se e saindo da sala sem proferir mais nenhuma palavra.

 

Serena apareceu pouco depois. Deixara as malas à porta e fora imediatamente à procura da irmã, tencionando esclarecer as coisas de imediato.

 

Shelby, Mason, creio que precisamos de conversar disse ela, entrando daí a pouco.

 

Serena! exclamou Shelby fingindo preocupação e avançando para a irmã, enquanto torcia as mãos. Estás bem? Ficámos terrivelmente preocupados contigo! Sabe-se lá o que te podia ter sucedido no pântano, com aquele louco! Gifford veio contigo?

 

Não, não veio.

 

Mason contornou a secretária e aproximou-se dela com os seus modos elegantes e bem-educados. Um sorriso alegrava-lhe o rosto radiante. Era de certo modo atraente, com as suas maneiras impecáveis e suaves, como todos os Talbot. Vestia uma camisa azul, amarrotada, e o seu ar distraído e pachorrento acalmou imediatamente Serena, que conseguiu sorrir-lhe quando ele se aproximou.

 

Serena, que bom ver-te! exclamou, dando-lhe um abraço fraternal e afastando-se em seguida para a olhar bem. Lamento não ter estado aqui para te dar as boas-vindas quando chegaste. Os meus afazeres retiveram-me. Depois, Shelby contou-me que tinhas ido procurar Gifford, sozinha acrescentou, abanando a cabeça com ar de censura, e devo dizer que ficámos preocupados concluiu.

 

A situação com Gifford parecia exigir atenção imediata.

 

Gifford. Sim... acenou afirmativamente com a cabeça, arvorando uma expressão grave, e metendo as mãos nos bolsos das calças claras. Bem, Shelby disse-me que não teve oportunidade de te contar o que se passava.

 

Se bem me lembro replicou friamente Serena, olhando para a irmã, Shelby não tentou contar-me coisa alguma.

 

Esta última arvorou o mesmo ar zangado que tinha feito para o marido e declarou:

 

Isso não é verdade, Serena. Supliquei-te praticamente que ficasses comigo para conversarmos!

 

Disseste-me que não sabias por que motivo tinha Gifford ido para o pântano.

 

Mason meteu-se entre as duas para arbitrar, como um diplomata nato. Creio que o que Shelby quis dizer é que ficámos todos admirados por Gifford se ter ido embora em vez de ficar aqui e tratar do assunto com a sua habitual clareza. As coisas estão um bocado complicadas, como já deves ter percebido.

 

Sim, calculei isso por entre o barulho das detonações respondeu sarcasticamente Serena. Podemos sentar-nos e discutir o caso desde o princípio? perguntou, dirigindo-se para um dos grandes cadeirões de cabedal.

 

Mason olhou para o relógio e esboçou uma expressão contristada.

 

Lamento não poder ficar mais tempo, Serena. Tenho um encontro com um cliente às catorze horas e preciso de me apressar para não chegar atrasado.

 

Olhou para a porta de espelho de um dos armários, abotoou o colarinho e puxou a gravata para cima.

 

Teremos muito tempo de falar no assunto depois do jantar. Mister Burke virá também, assim como o advogado de Gifford. Penso que Lamar poderá falar depois com Gifford, já que ele não veio contigo.

 

Serena soltou um suspiro de impaciência. Queria tratar do assunto imediatamente, quanto mais depressa o resolvesse melhor, mas, pelos vistos, isso era impossível. Olhou para Mason e pensou se ele teria realmente um cliente à espera. O cunhado sorriu de novo, a desculpar-se, e depois de beijar Shelby na face saiu. Serena censurou-se a si mesma por ter esperado encontrar enganos e conspirações onde provavelmente nada disso havia. Mason sempre fora simpático para ela.

 

E eu tenho imensas coisas para fazer hoje declarou subitamente Shelby, começando a andar em volta da secretária, e empilhando os papéis. Há uma casa para vender da Harlen & Marcy’s Stones, porque Harlen vai ser transferido para a Escócia. Vê lá! Além disso, John Mason tem um jogo de futebol, Lacey lição de piano e preciso ainda de supervisionar o jantar. Pedi a Odille que fizesse um bom assado, mas nunca se sabe. É uma velha detestável. John Mason não dormiu durante duas noites porque ela lhe disse que o quarto dele era assombrado por um garoto barbaramente assassinado por um ianque durante a guerra.

 

Serena deixou-se cair na cadeira e inclinou a cabeça para trás. A energia esfuziante da irmã ainda lhe fazia sentir mais o seu próprio cansaço.

 

Shelby parou de mexer nos papéis e olhou-a com uma expressão de preocupação maternal.

 

Meu Deus, Serena, estás com péssimo aspecto! Franziu ligeiramente os sobrolhos. Que te sucedeu lá?

 

Nada.

 

Bem, estás terrível. Precisas de um bom banho e de dormir uma sesta. Vou dizer a Odille que corte umas rodelas de pepino para te tirar essas olheiras, mas ela é capaz de vir atrás de mim com uma faca, é assim mesmo. Não consigo imaginar por que motivo Gifford a conserva aqui.

 

Porque não me disseste que Mason iria provavelmente concorrer às eleições? perguntou abruptamente Serena.

 

A irmã olhou-a como se não compreendesse.

 

Porque tu não me deste oportunidade de o fazer. Tiveste de ir a correr para o pântano antes de eu poder explicar fosse o que fosse. E agora tenho de ir, ao jantar contamos-te tudo. O seu rosto iluminou-se por baixo de uma fina camada dos melhores produtos de Elizabeth Arden. Estou entusiasmada! Olhou para o relógio de pulso de ouro e soltou uma delicada exclamação: Oh! Já estou atrasada! Tenho de ir. Logo à noite falamos.

 

Com certeza que sim murmurou Serena para consigo mesma, ouvindo o ruído dos saltos da irmã afastarem-se pelo corredor.

 

Quando o silêncio a rodeou, pensou na sugestão de Shelby de tomar um demorado banho e dormir um pouco. Pensou em deixar-se adormecer sentada na cadeira, mas forçou-se a levantar-se e saiu para ir procurar James Arnaud, o capataz da plantação.

Chanson du Terre fora em tempos uma propriedade com perto de dez mil acres, mas fora diminuindo com o decorrer do tempo até chegar aos actuais dois mil. O arroz e o anil foram as primeiras culturas que deram dinheiro e este último ainda crescia aqui e ali, espontaneamente. Nos primeiros anos de 1800 fora feita uma experiência com o arroz, depois começaram a plantar cana-de-açúcar em metade da propriedade e as mudanças continuaram. Desde que Serena se lembrava, sempre fora assim. Quanto ao resto do terreno, parte produzia feijão de soja e o resto ficava de pousio.

 

Cultivar cana-de-açúcar constituía um jogo, pois a planta era temperamental com respeito à humidade, vulnerável à geada, às doenças, e decidir quanto à data da colheita tornava-se uma lotaria. Os lavradores procuravam fazê-la o mais tarde possível para a cana ficar mais rica em sacarose, mas era preciso trabalhar dia e noite. Se vinha o frio mais cedo, as plantas apodreciam caso não fossem colhidas imediatamente.

Gifford dissera sempre que a cana-de-açúcar era a cultura perfeita para os Sheridan. Tinham ganho Chanson du Terre ao jogo e parecia apropriado continuarem a jogar, mas ultimamente não estava a ser compensador.

 

James Arnaud praguejava abundantemente enquanto observava um tractor, no barracão onde guardavam as máquinas, e logo informou Serena de que a plantação ia numa espiral descendente que não dava sinais de se inverter nos tempos mais próximos.

 

Amaud era um homem baixo e corpulento, com olhos e cabelo escuro, da sua origem cajun, e tinha um temperamento irascível. Capataz há cerca de dois anos, sempre se mostrara digno da confiança de Gifford e Serena sabia que ele lhe diria a verdade, só não imaginava que fosse tão sombria.

 

A maior parte das sementes da estação anterior tinha sido perdida por doença e as fortes chuvadas da Primavera haviam prejudicado as actuais sementeiras em vários locais onde a drenagem era um problema contínuo. Em resultado disso, não se dispunha de dinheiro para substituir equipamento estragado e tinham sido forçados a recrutar menos pessoal. Era, na realidade, uma situação complicada de mais para ser resolvida por um homem de oitenta anos, e Arnaud declarou a Serena que não censuraria Gifford se ele pensasse em vender e ir para o Taiti.

 

Do que precisavam, disse-lhe ele, era de investir ali mais capital e possivelmente de outras culturas para fazer rotação com a cana, mas o dinheiro era escasso e Gifford avesso a mudanças.

 

Após a conversa com o capataz, Serena ficou ainda mais deprimida. Mesmo depois de solucionado o problema com a Tristar, a situação da plantação não ficaria resolvida. Ela regressaria a Charleston, Shelby iria com Mason para Baton Rouge e Gifford ficaria ali, a envelhecer, vendo esfumar-se um velho sonho.

 

Caminhou ao longo do caminho pisando o pavimento de conchas partidas, observando os edifícios envelhecidos e olhando para os campos de cana, para além do pomar, onde os caules estavam já altos e verdes, erguidos para o céu. Recordava o cheiro forte e agridoce das folhas queimadas, na altura da colheita, quando as máquinas do tamanho de dinossauros percorriam os campos e os trabalhadores se atarefavam por todo o lado. Essa época sempre fora uma das suas melhores recordações da infância, gostava da sensação de pressa e de excitação, depois dos longos e calmos dias de Verão.

 

Passara uma boa infância, ali naquela casa, pensou Serena, enquanto subia os degraus do velho belveder, situado nas traseiras do jardim, por detrás da casa grande. Sentou-se num banco de madeira gasto pelo tempo, satisfeita por estar à sombra, e encostou a cabeça para trás, olhando para a mansão. Odille saiu da porta das traseiras, com um enorme chapéu de palha na cabeça e um cesto no braço. Brandia uma tesoura de jardim e dirigia-se com ar feroz para um canteiro cheio de flores. Numa esquina da casa, John Mason escondia-se atrás de um pilar, preparado para ir assustar Lacey, que brincava com bonecas, sentada na relva. Era uma cena que lhe fazia recordar os dias quentes da Primavera, quando ela e Shelby ali viviam e brincavam, despreocupadas, à sombra de Chanson du Terre.

 

Era o único lar que ela e a irmã tinham conhecido enquanto cresciam. Os seus progenitores haviam-se instalado ali logo após o casamento e o pai, Robert Sheridan, filho único, fora educado desde sempre para tomar o lugar de Gifford à frente da plantação. Serena não deixou de pensar como as coisas seriam diferentes se ele não tivesse morrido, mas falecera num acidente de viação no dia em que elas faziam quinze anos.

 

A mulher precedera-o dez anos e Serena quase não se lembrava da mãe, a não ser pelos adjectivos com que falavam dela um lindo sorriso, uma voz suave, meiga. Recordava-se de o pai ter ficado destroçado com a morte da mulher, podia ouvir ainda o som terrível do seu choro, fechado no quarto, enquanto as senhoras da vizinhança serviam o banquete fúnebre. Não houvera segundo casamento, nem outras crianças, nem filhos que pudessem tomar as rédeas da propriedade.

 

Como seria amar alguém dessa maneira, de tal modo que a morte de um representava quase o mesmo para o outro? Serena não podia imaginar. Nunca conhecera essa profundidade de emoções com um homem e nunca esperara vir a experimentá-las. Na sua profissão, vira demasiados casamentos desfeitos para acreditar que amores desse género pudessem surgir frequentemente.

 

Os seus pensamentos voltaram-se para Lucky e disse a si própria que era natural, depois de ter passado a noite nos braços dele, o que não significava que isso traduzisse algo de definitivo. Mas não a impediu de pensar se ele teria sentido alguma vez esse género de amor. Lucky nem sequer queria que soubessem que batia um coração debaixo da armadura bronzeada que era o seu peito. Porquê? Porque fora enganado, destroçado?

 

Sabia que ele conhecera Shelby e que estivera envolvido com ela, mas ignorava até que ponto. Cada vez que se lembrava disso, sentia incredulidade e ciúme. Teriam sido amantes? Teriam estado apaixonados? Seria Shelby a culpada da desconfiança dele em relação às mulheres? A ideia fez-lhe ficar com um gosto amargo na boca. Era mais uma razão perfeitamente lógica, prática, para não se envolver com Lucky Doucet, mas de qualquer modo já dera esse passo pouco aconselhável. Vira todos os perigos e mesmo assim mergulhara de cabeça.

 

Que confusão, disse Serena para consigo, enquanto um longo suspiro se lhe escapava dos lábios. Arrancou distraidamente um pedaço de tinta que estava a soltar-se do corrimão e abanou a cabeça. Saíra de Charleston completamente despreocupada, pensando apenas em passar umas férias agradáveis, e agora via-se metida num enredo digno de um romance de Judith Kranz.

 

Fora essa uma das razões que a levaram a deixar Chanson du Terre. Em Charleston não tinha complicações familiares, não precisava de pensar se a irmã procedia mal nem de olhar para a casa ancestral e imaginar o que iria ser dela depois de pertencer durante duzentos anos aos Sheridan.

 

Não necessitava de se interrogar se estaria ou não a desapontar Gifford, não tinha de o ver envelhecer. Podia voltar ali apenas para curar uma ocasional crise de nostalgia e sair antes de se tornar necessário enfrentar qualquer coisa tão desagradável como antigas mágoas e velhos medos.

 

”Não podes pôr-te a andar da Luisiana e vires depois dirigir as coisas ao fím-de-semana.”

 

A voz de Gifford soava ainda aos seus ouvidos, censurando-a, com essas palavras o avô atingira-a em cheio e marcara pontos, fazendo-a sentir-se culpada. E enquanto o fazia estava a manobrá-la, de modo que ela ficasse obrigada a enfrentar o problema ou a deixar que aumentassem os seus remorsos. Gifford colocara-a exactamente onde queria e onde ela não desejava estar, tratando de questões que nunca pretendera enfrentar.

Serena, creio que não conheces Mister Burke, da Tristar Chemical disse Mason com a sua voz calma, dirigindo-se-lhe com um sorriso inócuo, quando ela entrou na sala.

 

Com efeito, não fomos formalmente apresentados disse Serena. Creio que no outro dia, na cabana de Gifford, me confundiu com a minha irmã. Eu sou Serena Sheridan

 

Burke deixou que os olhos a percorressem lentamente, observando as linhas do seu corpo realçadas por um vestido de linho cor de caramelo, sem mangas. Depois apertou-lhe a mão e sorriu.

 

Por Deus, quem poderia pensar que havia duas tão bonitas? É um prazer, Miss Sheridan?

 

As suas sobrancelhas ergueram-se de maneira que fez com que Serena detestasse ter de responder à pergunta implícita.

 

Sim murmurou, retirando a mão da mão gorda do homem, que fez um esgar que queria passar por um sorriso. O olhar dele não lhe largava os seios, como um radar.

 

Mas que estava uma jovem bonita como você a fazer no meio daquele pântano? perguntou ele, pousando-lhe a mão num ombro com demasiada familiaridade.

 

Serena afastou aquele contacto indesejado, fingindo endireitar o cabelo meio solto.

 

Serena está aqui de visita, vinda de Charleston. Foi tentar convencer Gifford a vir para casa a fim de se resolver este assunto da melhor maneira.

 

E o seu avô veio consigo?

 

Não, infelizmente não. Como certamente já deve ter percebido agora, ele é muito obstinado.

 

É muito mais que obstinado retorquiu Burke, mostrando os dentes. Tenho até dúvidas quanto à sua sanidade mental.

 

É psicólogo, Mister Burke?

 

Não...

 

Bem, eu sou observou Serena com voz calma e macia como mármore e posso garantir-lhe que, apesar de Gifford ser teimoso e pouco razoável, está no domínio total das suas faculdades.

 

O rosto de Burke fez-se vermelho-escuro, as suas narinas abriram-se como as de um touro e a respiração tornou-se ligeiramente ofegante.

 

Queres uma bebida, Serena? perguntou diplomaticamente Mason.

 

Gim e água tónica, por favor respondeu ela com um sorriso gentil, resistindo à tentação de lamber um dedo e marcar um ponto a seu favor.

 

É para já. E posso refrescar o seu scotch, Len?

 

De testa franzida, Burke seguiu Mason até ao outro lado da sala, onde se encontrava um antigo aparador que servia de bar e de armário das bebidas. Serena aproveitou aqueles breves momentos para observar a sala. Estava como sempre fora paredes de um branco suave, carpetes orientais desbotadas sobre o soalho polido, cortinados de brocado vermelho flanqueando as portas-janelas, que abriam para a galeria. O mobiliário era demasiado pesado e formal para uma pessoa se sentir ali relaxada. Gifford nunca lá punha os pés, a não ser que fosse obrigado a isso, e achava-a um bom sítio para receber as pessoas de quem não gostava. Era muito apropriado que se tivessem reunido ali, pensou Serena olhando as pessoas que a rodeavam.

 

Mason estava já a desempenhar o seu papel de jovem senador, de camisa branca, gravata e calças pretas, menos amarrotado e distraído do que habitualmente parecia. Enquanto tirava os pequenos cubos de gelo com uma pinça ia falando sobre coisas insignificantes. Serena nunca pensara nisso antes, mas agora, ao ver o cunhado, achava que ele talvez viesse a ser um político de sucesso, com os seus modos suaves e insinuantes.

 

Burke, apesar do fato caro e de bom corte, parecia-lhe um indivíduo que não receava sujar as mãos. Tinha um ar de predador, de quem subira a pulso e conseguira o seu estatuto actual à força de trabalho e não tencionava voltar atrás. Não era uma falha grave de carácter num homem ser pomposo, vulgar ou machista, e tinha de admitir que, na véspera, ele tivera direito a mostrar-se irritado afinal de contas, Gifford alvejara-o. Contudo, havia nele algo que a fazia sentir-se desconfortável, algo de estranho nos seus olhos estreitos e na forma da sua boca. Gifford dissera que Burke não era pessoa para aceitar um não como resposta e Serena pensava até que ponto ele poderia chegar para conseguir os seus objectivos.

 

Nessa altura apareceu Shelby, resplandecente num vestido espampanante às flores sobre fundo escuro, muito rodado e com uma gola quadrada, de renda. O cabelo fora elegantemente penteado, puxado e preso na nuca, o que completava perfeitamente a imagem da mulher sulista requintada. O perfume Opium envolvia-a numa nuvem fragrante.

 

Mister Burke! Estou encantada por o ver outra vez! exclamou ela com o seu sorriso mais encantador, enquanto lhe estendia a mão.

 

É um prazer, como sempre, Mistress Talbot respondeu Burke, olhando-a de alto a baixo, como fizera a Serena. Acabo de ter a oportunidade de conhecer a sua também encantadora irmã.

 

O sorriso de Shelby tornou-se mais frio ao olhar para Serena.

 

Estás um pouco melhor agora comentou. Menos abatida.

 

Obrigada respondeu Serena com um sorriso tímido.

 

Aceitou a bebida que Mason lhe estendia e ingeriu um gole de gim, saboreando-o apreciativamente, talvez mais do que devia. O ambiente na sala estava tão tenso que levaria qualquer pessoa a ter vontade de beber.

 

Estive lá em baixo na cozinha a ver como corriam as coisas informou Shelby, olhando para o texano e pestanejando. Vamos ter um belo presunto para o jantar. Espero que goste, Mister Burke. O molho que Odille faz para o acompanhar é simplesmente divinal.

 

Então que sucedeu ao assado? perguntou inocentemente Serena.

 

Shelby deitou-lhe um olhar furioso.

 

Não resultou como eu esperava.

 

É pena.

 

E agora exclamou Mason expansivamente só falta chegar Lamar para começarmos.

 

Shelby fez uma careta de amuo, enquanto remexia a bebida que o marido lhe entregara.

 

Esse velho tolo, não percebo por que razão Gifford ainda confia nele. É embaraçoso não deixar que um advogado casado com a sua própria neta trate dos seus assuntos.

 

Então, Shelby murmurou Mason com um leve ar de censura. Lamar foi o advogado de Gifford desde sempre. Claro que eu não esperava que ele fosse quebrar essa antiga amizade.

 

Bem, eu achava que devia fazê-lo replicou Shelby, levando a mão à pérola do brinco. O que vão as pessoas pensar? Que não te confia os seus negócios. É muito triste e espero que não cause mau efeito na tua campanha.

 

Mason sorriu benevolamente.

 

Isso não me preocupa, querida, nem te deve incomodar a ti.

 

Estou certo de que o facto de proporcionar mais empregos para a comunidade fará com que ninguém pense nisso, Mistress Talbot lembrou astutamente Burke, fazendo girar o cubo de gelo no copo. Trazer a indústria para uma economia estagnada levará Mason muito, muito longe.

 

Não estará a esquecer qualquer coisa, Mister Burke? perguntou Serena. O nosso avô não tem qualquer intenção de vender a propriedade à Tristar.

 

Burke corou outra vez e franziu os olhos, Shelby fitou a irmã como se a quisesse fuzilar com o olhar e Mason sorriu e anunciou:

 

Creio que ouvi o velho Mercedes de Lamar.

 

Lamar Canfíeld tinha setenta anos, era um velho cavalheiro sulista, um advogado da velha escola. Baixo, franzino, com grandes olhos escuros e cabelo branco, muito ralo, que lhe cobria apenas as partes laterais da cabeça, vestia um impecável fato azul-escuro, camisa branca, gravata às riscas e trazia na mão um belo panamá.

 

Shelby! Que prazer voltar a vê-la! exclamou, sorrindo e dirigindo-se para Serena com a graça de Fred Astaire, pegando-lhe na mão e beijando-a cerimoniosamente.

 

Eu sou a Serena, Mister Canfíeld corrigiu gentilmente Serena.

 

Ele recuou, com um largo sorriso, os olhos brilhantes com uma centelha que fizera, nos seus tempos, muitos corações femininos baterem mais depressa.

 

Sim, claro que é Serena, minha querida respondeu ele, sem se atrapalhar. Ainda bem que nos veio visitar. Não o faz com muita frequência continuou, inclinando a cabeça para trás e olhando-a com uma expressão de censura.

 

Serena não pôde deixar de lhe sorrir. Sempre gostara de Lamar, todo ele era delicadezas e sorrisos e com a voz suave de um vendedor de banha de cobra, subindo e descendo dramaticamente de tom. Arvorava os gestos e maneirismos de um encantador charlatão e o brilho, sempre presente, dos seus olhos escuros fazia pensar que não levava ninguém muito a sério, nem sequer a si próprio.

 

Que sorte a nossa termos o prazer da companhia das duas irmãs Sheridan acrescentou, voltando-se e fazendo uma vénia a Shelby, que o olhava com petulante desconfiança que o cumprimento não fez abrandar.

 

O advogado endireitou-se e voltou novamente a sua atenção para Serena.

 

Veio para ficar? Deus sabe que existem muitas mentes perturbadas na nossa região. Podia manter-se entretida.

 

Não respondeu Serena hesitantemente. Encontro-me aqui apenas de visita.

 

Lamar olhou-a por entre as pestanas e deu um estalido com a língua, enquanto Mason se aproximava.

 

Lamar, já conhece Mister Burke, da Tristar, creio?

 

Sim... claro que sim respondeu o velho advogado, arrastando as palavras como se tivesse dificuldade em as pronunciar. É aquele homem do Texas, não é?

 

Pronunciou takes us em vez de Texas, mas era impossível saber se o tinha feito de propósito ou se dera essa impressão pela sua maneira vagarosa de falar.

 

Burke deitou-lhe um olhar gélido, fazendo tilintar o gelo no copo, e nesse momento Odille entrou na sala, lançando a todos um olhar odiento enquanto anunciava o jantar.

 

- Odille, meu amor! exclamou Lamar alegremente. Encantadora como sempre. Diga-me o que poderei fazer para a levar a deixar Gifford!

 

Odille fungou irritadamente, franzindo os olhos de tal modo que os seus globos oculares quase desapareceram.

 

- Nada!

 

Muito loquaz, não é, Shelby? comentou Lamar erguendo uma sobrancelha e dando o braço a Serena.

 

O jantar foi servido numa casa de jantar formal, que pouco mudara em cem anos. Estavam sentados a uma mesa de mogno da qual se tinham servido os proprietários da mansão desde tempos imemoriais e a baixela de prata havia estado escondida no fundo de poços, para escapar à cobiça dos ianques, durante a guerra. Uma das telas representava um antepassado dos Sheridan no relvado de Chanson du Terre, segurando as rédeas de um cavalo de raça, e uma chapa dourada, colocada por baixo, tinha a data de 1799.

 

Uma casa encantadora disse Lamar, enquanto ia cortando o presunto, tão cheia de história.

 

Sim concordou Serena. Seria uma pena destruí-la.

 

Há mais coisas a considerar aqui do que a arquitectura disse Mason. Chanson du Terre é uma bela e velha casa, isso é verdade, mas poderá ser colocada à frente do bem-estar de toda uma comunidade?

 

Essa é uma boa questão, Mason concordou Burke, olhando para Serena, no outro lado da mesa. Não vive aqui, Miss Sheridan, não sabe como o petróleo modificou as coisas. As pessoas mudaram-se para Lafayette e muitas das que permanecem aqui, na Luisiana do Sul, estão perante

 

Take us: leva-nos. (N. da T.)

 

uma situação de desemprego. A nova fábrica da Tristar dará trabalho a duzentas e cinquenta pessoas logo de início e eventualmente a muitas mais.

 

Mas o que custará isso ao ambiente, Mister Burke? Sei que a sua empresa tem uma reputação bastante má nessa área.

 

A expressão do texano tornou-se fria.

 

Não sei onde foi buscar essa informação, mas simplesmente não é verdadeira. A Tristar nunca foi condenada por violação do ambiente ou por actividades poluidoras.

 

Serena ergueu as sobrancelhas. A Tristar, de facto, podia nunca ter sido condenada, mas isso não queria dizer que sobre ela não impendessem acusações ou que nunca tivesse cometido crimes. Apenas não fora penalizada, o que a fez pensar até que ponto os seus donos seriam capazes de ir para evitar que o seu currículo ficasse manchado. Se Len Burke era um exemplo do género de homens que usavam para fazer as aquisições, podia imaginar os tubarões que teriam entre o pessoal jurídico, para conseguirem contornar os obstáculos impostos pelos regulamentos da EPA.

 

O olhar de Serena voltou-se para Mason, cuja campanha política se apoiaria fortemente na Tristar, e pensou se ele se aperceberia de como estava a ser manobrado. A empresa proporcionava-lhe uma plataforma de lançamento, directa ou indirectamente iria fornecer-lhe fundos. Ter-lhe-ia ocorrido que um dia mais tarde iria inevitavelmente ter de pagar esse favor?

 

Não é verdade que a Tristar pensa em construir um canal que contribuiria para o desaparecimento do pântano? perguntou Serena.

 

Buke deitou-lhe um olhar trocista.

 

Não me diga que põe alguns acres de lama e umas cobras à frente dos interesses das pessoas que aqui vivem!

 

O pântano não é uma área inútil replicou Serena ao pensar no olhar de Lucky quando lhe mostrara o seu local predilecto, nessa manhã. É um ecossistema que merece respeito.

 

Shelby soltou uma gargalhada sem humor.

 

És a última pessoa a quem eu esperaria ouvir uma frase dessas, Serena. Desde que me lembro sempre te vi detestares o pântano. Foste viver para Charleston para te afastares dele.

 

Serena olhou a irmã com uma expressão que mal disfarçava a mágoa e a cólera.

 

Seja como for estamos a pôr o carro à frente dos bois, não é verdade? perguntou. A questão é que Gifford tem fortes sentimentos relativamente à tradição e à herança familiar. Ele prefere que Chanson du Terre continue como sempre foi.

 

Como é que isso pode ser? interrogou Shelby, partindo um biscoito em pequenos pedaços e olhando interrogativamente para a irmã. Vais deixar Charleston para dirigires a plantação, Serena?

 

Shelby tem razão apoiou Mason. Mesmo que Gifford não ceda agora, está apenas a retardar o inevitável. Terá de se retirar num futuro não muito distante e acabará por vender. Aceitar a proposta da Tristar é a única coisa prática a fazer, é uma proposta muito generosa, certamente mais do que Chanson du Terre valerá normalmente.

 

A casa está a cair aos bocados comentou Shelby. Não podes deixar de ter reparado que precisa de grandes restauros. Basta olhares para o tecto desta sala, por exemplo.

 

Todos os olhares se voltaram para o tecto e repararam no pesado candeeiro de cobre pendente de uma zona manchada e com a tinta a cair. Parecia que bastaria um puxão para tudo lhes desabar sobre as cabeças.

 

Há outras alternativas replicou Serena, voltando ao assunto. As terras podem ser arrendadas a quem as cultive e pode requerer-se para a casa o estatuto de monumento histórico, o que faria com que houvesse dinheiro para ser restaurada.

 

Mas com que fim? perguntou Mason. Quando Gifford falecer, creio que deixará a casa e a propriedade em partes iguais a ti e a Shelby e a tua irmã já disse que não lhe interessa. Estás preparada para comprar a parte dela, Serena?

 

Se assim for, é melhor ires buscar o teu livro de cheques, querida sugeriu Shelby. Tenho a minha vida e prefiro resolver já o assunto do que esperar.

 

Serena olhou-a com firmeza.

 

Que sucedeu à tua dedicação ao património do Sul? perguntou mordazmente com um sorriso gélido.

 

A reunião desse comité colidiu com as tuas consultas faciais?

 

Shelby bateu com o garfo sobre a mesa e endireitou-se na cadeira, fitando a irmã com um olhar furioso.

 

Não me fales em dedicação! Tu é que te foste embora daqui! Tu é que vives a milhares de quilómetros. Tu é que...

 

Então, então murmurou Mason, com a sabedoria pedida emprestada a Salomão a brilhar-lhe nos olhos, por detrás das lentes. Deixemo-nos de acusações. O facto é que nenhuma das duas quererá dirigir a plantação. O que devemos fazer agora é concentrarmo-nos na proposta de compra de Mister Burke e pensarmos no modo de lidar com Gifford. Tem alguma sugestão a fazer sobre esse ponto, Lamar? Lamar?

 

Canfield dormitara enquanto todos comiam o puré de batata. Shelby ergueu os olhos para o tecto, numa expressão de exaspero, e Burke soltou uma exclamação de impaciência. Odille, que entrara para saber se alguém queria mais molho, deu-lhe uma cotovelada num ombro. O velho advogado acordou sobressaltado e pousou o seu olhar confuso em Serena.

 

Muito obrigado por me ter convidado, Shelby. Está tudo delicioso.

 

Serena resmungou interiormente. Tivera esperanças de encontrar um aliado de peso no advogado de Gifford, mas essa hipótese desvanecera-se.

 

Nos negócios não existe lugar para sentimentalismos interveio Burke, servindo-se de uma nova montanha de fatias de presunto. A propriedade acabará por ser vendida. O melhor que tem a fazer é encarar os factos e aceitar o dinheiro.

 

Nós não podemos tomar essa decisão, Mister Burke respondeu secamente Serena.

 

Ele olhou-a demoradamente.

 

Não podem?

 

O que quer dizer?

 

Burke encolheu os ombros e olhou para Shelby e Mason.

 

Quero dizer que a nossa oferta de compra é firme, precisamos desta propriedade. Se pretende ter algum lucro com isso, sugiro que aplique os seus poderes de persuasão no seu avô, de uma forma ou de outra.

 

A frase fora proferida como uma ameaça. Serena recostou-se para trás na cadeira e observou o texano, que metia garfadas enormes na boca. Gifford tinha razão, uma simples recusa não deteria aquele representante da Tristar. Serena pensou no que iria ser preciso para pôr termo àquele assunto de uma vez por todas, e o que restaria da família quando tudo estivesse acabado.

 

 

Serena vestiu a camisa de noite, sentindo-se como se não dormisse há um mês. O jantar fora uma verdadeira provação, bastante deprimente. E sem quaisquer progressos para o assunto que lhes interessava. Burke mantinha a decisão de comprar Chanson du Terre, Shelby e Mason continuavam a querer vender e ela permanecia no meio.

 

Sentira-se contente por finalmente poder fugir para a tranquilidade do quarto, que não mudara desde o tempo em que ali vivera. Como o resto da casa, parecia possuir uma intemporalidade que desafiava as mudanças. As paredes estavam cobertas com papel de um delicado tom de marfim, com desenhos de flores e de vinhas, a carpete que cobria o chão fora pisada por gerações de Sheridans e a cama de cerejeira, com o seu dossel de tule, oferecia conforto há um século. Serena achava essa ideia reconfortante, a imutabilidade atraía-a, especialmente naquela altura em que se sentia cansada e cheia de incertezas a respeito de tantas coisas. Pelo menos, podia olhar em volta, à luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira, e sentir-se bem-vinda.

 

Apertando o cinto do roupão de seda branca, dirigiu-se para a porta-janela que abria para a galeria e foi apoiar-se na balaustrada, como se não tivesse forças para suportar o peso do corpo. A noite estava escura e sem estrelas, o ar pesado com a promessa de chuva e o aroma das madressilvas e das glicínias. Quantas outras mulheres da família Sheridan teriam estado naquele mesmo sítio, perscrutando a noite, ponderando sobre o futuro? E quantas mais o fariam nos anos vindouros? Nenhuma, se Burke conseguisse o que queria. E se não conseguisse...

 

Uma leve pancada na porta despertou-a dos seus pensamentos. Voltou-se ao ver a cabeça de Shelby aparecer pela porta entreaberta.

 

Posso entrar?

 

Serena limitou-se a encolher os ombros. Estava exausta e a perspectiva de outra discussão com a irmã não era nada agradável.

 

Shelby entrou e fechou a porta, encostando-se a ela e olhando à sua volta, com uma expressão de incerteza nos olhos escuros. Descalçara os sapatos de salto alto e soltara o cabelo, o que lhe dava um aspecto mais jovem e doce. Usava ainda uma variedade de anéis nas mãos bem tratadas e demonstrava a sua hesitação fazendo girar um com um topázio.

 

Estou apenas a tentar ser prática, Serena disse de súbito, como se estivesse no meio de uma conversa e não a começá-la. Julguei que tu fosses quem mais apreciasse isso. Foste sempre tão racional.

 

Não se trata disso retorquiu Serena, afastando-se da porta da galeria e enfiando as mãos nos bolsos fundos do roupão.

 

Pois bem, devia ser. Por amor de Deus, Serena, pensa bem! insistiu, começando a andar em volta do quarto com passos curtos, rápidos e endireitando coisas que não precisavam de ser endireitadas. A propriedade será vendida. Nós temos um comprador pronto a entregar-nos o dinheiro numa bandeja e eu posso garantir-te, como profissional de venda e compra de propriedades, que não aparecem propostas destas todos os dias. Isto é bom para todos nós e Gifford está a meter-se no nosso caminho só por ser teimoso!

 

Ele trabalhou esta terra durante toda a vida respondeu Serena fazendo o papel de advogado do diabo, por hábito e necessidade e não quer ver desaparecer isto tudo.

 

Shelby parou de andar de um lado para o outro, olhou de soslaio para a irmã e declarou com o seu ar petulante:

 

Ele está a manipular-te!

 

Serena não contestou, sabia que era verdade. Por outro lado, tinha toda a atenção concentrada em observar as qualidades de camaleão da irmã, simultaneamente fascinada e horrorizada com as rápidas mudanças que nela ocorriam, reveladoras de problemas que Serena gostaria de negar.

 

Ele é mesmo assim continuou Shelby remexendo nas coisas que se encontravam sobre o toucador, para as pôr a seu gosto. Sente-se agora seguro tendo-nos como reféns. É um velho obstinado.

 

Serias capaz de dar os teus filhos para o bem-estar de outras pessoas? perguntou Serena.

 

Shelby voltou-se para ela, ofendida e incrédula.

 

Dar os meus filhos? Claro que não. Mas não é de modo algum a mesma coisa!

 

Para Giff é. Esta terra faz tanto parte dele como nós. Como se pode esperar que ele desista dela?

 

Shelby corou e bateu impacientemente com o pé no chão, fechando os punhos, como se se preparasse para lutar.

 

Porque é o que todas as outras pessoas querem e porque é o que acabará por suceder. Porque não desiste?

 

Porque é Gifford.

 

Bem, algo terá de ser feito, Serena! anunciou veementemente, recomeçando a andar de um lado para o outro. Está a ser pouco razoável e a magoar-nos a todos. Acho que começou a ficar senil, já te disse isso. E não sou a única pessoa a pensá-lo.

 

Serena lembrou-se das ameaças de Burke acerca de Gifford ser considerado interdito e franziu o sobrolho para a irmã. Conteve-se para dizer que um homem que conseguia manipular tanta gente dificilmente poderia ser considerado senil, mas limitou-se a dizer:

 

Não admitirei que Gifford seja considerado interdito. Não te atrevas sequer a sugerir isso.

 

Seria muito bem feito para ele! insistiu Shelby com a sua habitual expressão de amuo.

 

Serena ficou assombrada pela sugestão e pela atitude da irmã, mas mesmo assim não queria acreditar que a sua gémea fosse capaz de um procedimento tão cruel e egoísta. Olhou-a com desgosto e incredulidade.

 

Não posso crer que a tua ganância te possa arrastar para algo tão feio!

 

Os olhos de Shelby faiscaram de fúria e Serena viu claramente que ela perdera o autodomínio.

 

Ganância! Ganância! gritou, dando uns passos em direcção a Serena, com o rosto manchado de vermelho, e todos os músculos rígidos. Como te atreves a acusar-me? Tu é que és gananciosa, tu e Gifford, além de egoístas! Eu só quero o que é melhor para toda a gente!

 

Certo, pensou Serena. Shelby queria ser a mulher de negócios do ano, ansiava por que Mason ganhasse as eleições, pretendia uma boa conta bancária e ainda por cima a gratidão das pessoas que lucrariam com o negócio, mas nada disse. Ficou calada a olhar para a irmã, sentindo um aperto no estômago, enquanto Shelby andava para trás e para diante, ao longo de todo o comprimento da cama, ofegante.

 

Tu és mesmo assim prosseguiu Shelby. Apareces, vinda de Charleston, e tomas o partido de Gifford só para lhe agradar. Depois vais outra vez para lá sem te importares por teres estragado tudo. Não terás de te preocupar com o assunto. Não vives aqui, mas nós vivemos e temos responsabilidades.

 

E tu não pareces sentir qualquer dever para com o teu próprio avô, para com a casa da família e para com o ambiente respondeu Serena, embora soubesse que faria melhor em ficar calada.

 

Contudo, não conseguia sentir a calma com que habitualmente enfrentava um paciente exaltado nem manter a objectividade com a sua própria família, e a única forma de se manter distanciada dela era sob o aspecto físico. Logo que voltava a casa, sentia-se envolvida numa tempestade de emoções, presa nas densas areias movediças que a arrastavam, tirando-a da sua redoma. Era uma experiência humilhante e exaustiva e nesse momento sentiu que estava a perder o seu autodomínio ao responder:

 

Sabes o que a indústria petroquímica já aqui fez. Destrói a terra e contamina as águas...

 

Dá empregos às pessoas, mantém as cidades vivas...... aumenta o número de casos de cancro, destrói o habitat natural de muitos animais...

 

Por amor de Deus! gritou Shelby erguendo os braços para o tecto. Pareces um daqueles lunáticos de Oregon, que censuram os moradores por expulsar um bando de mochos que não tem o bom senso de construir os seus ninhos noutro sítio. E tudo isso por causa de um local que detestas!

 

Serena recuou, não querendo deixar-se dominar pela cólera, suspirou e cruzou os braços sobre o peito, defensivamente.

 

Lá por não ser um sítio de que eu goste, não quer dizer que o queira ver apagado do mapa. Há ainda pessoas que ali vivem e ganham a vida, sabes.

 

Shelby mostrou-se indignada.

 

Caçadores furtivos, ladrões e vadios. A Tristar far-nos-ia um grande favor se nos livrasse deles.

 

Uma atitude muito caridosa retorquiu Serena.

 

Prática, apenas prática! replicou Shelby, acalmando-se e voltando a personificar a mulher de negócios. É uma questão de lógica, Serena. E, se tu não tens interesse em ficar por aqui, não vejo motivo para não te pores ao nosso lado para resolver o assunto. É o melhor para todos e para Gifford também, se pensares bem. Ele tem setenta e oito anos e sofre do coração continuou, gostando visivelmente da ideia de mostrar preocupação por alguém. Não devia passar o dia nas plantações, não devia preocupar-se com o tempo, com os insectos, com o preço do combustível, nem com a ideia de pensar se aguentará mais um ano. Não devia preocupar-se com coisa alguma e limitar-se a ir à pesca com Pepper e contar as suas histórias aos homens na taberna do Gauthier. Shelby não se calava e Serena deixava-a falar. O ano passado quase fomos à falência insistiu ela, parecendo genuinamente contristada e este há ainda mais problemas, a falência parece inevitável. De que lhe servirá então o seu obstinado orgulho? Isso será a morte dele. Não é melhor desistir agora, sair com dignidade?

 

Serena ficou calada. Os argumentos da irmã eram válidos, faziam sentido e remediariam tudo... a não ser o facto de irem contra o desejo de Gifford e de destruírem o pântano que Lucky tanto amava. Mas poderiam essas coisas comparar-se ao destino de toda uma cidade? Seria uma herança de duzentos anos mais importante que duzentos e cinquenta empregos? Valeria a pena sacrificar um delicado ecossistema natural, que não poderia nunca ser substituído, por causa de alguns empregos?

 

Não sei... murmurou, quase que para consigo. Sentou-se aos pés da cama e encostou-se a uma delgada coluna, passando um braço em volta dela, como uma vinha. Viu o seu reflexo no espelho sobre a cómoda, procurando respostas que não lhe ocorriam. Parecia-lhe que tinha o peso do mundo sobre os seus ombros e só lhe apetecia deixar tudo e ir-se embora, mas não podia, não podia afastar-se de Chanson du Terre, esquecer o seu desejo de agradar a Gifford, ou o complicado relacionamento com a irmã.

 

Não sei o que hei-de fazer murmurou, sentindo uma enorme desolação dentro de si, como uma imensa caverna.

 

A imagem no espelho duplicou-se quando Shelby se sentou ao lado dela. Agora pareciam menos gémeas, pensou Serena, porque ela estava com mau aspecto, com grandes olheiras, pálida e cansada. Aquela guerra emocional destroçava-a. Shelby resistia melhor à tensão com a ajuda de toda uma gama de cosméticos caros que usava, e parecia menos perturbada pela carga emocional, talvez por não lhe sentir o peso. Tivera sempre a habilidade de lançar as culpas para os outros, por isso, embora frustrada com a situação actual, achava que a culpa não era dela. Por certo que dormia como um bebé, pois, apesar da conversa dela sobre as responsabilidades, estas rolavam de cima dos seus ombros como água das costas de um pato.

 

Estás com um ar exausto murmurou Shelby de sobrolho franzido, numa das suas raras expressões de sincera preocupação.

 

Não olhava directamente para Serena, mas observava-a através do espelho, como se estivesse obcecada com a semelhança entre as duas. Serena forçou-se a levantar-se, para evitar isso, e aproximou-se novamente da porta que dava para a galeria, encostando-se à ombreira.

 

Não me tinhas dito que conhecias Lucky Doucet comentou, espreitando pelo canto do olho para ver qual a reacção da irmã.

 

Shelby voltou-se de repente com o rosto agitado por uma multitude de emoções, como nuvens a vogar sobre o céu nocturno.

 

O que te disse ele? perguntou cautelosamente.

 

Pouca coisa respondeu Serena. Aparentemente descansada, Shelby levantou-se devagar, alisou a colcha da cama e depois a saia.

 

Saí algumas vezes com ele quando andava com Mason, para lhe fazer ciúmes confessou sem remorsos. Foi há muito tempo e eu nunca penso nisso. E olha no que ele se tornou. Até me sinto embaraçada por confessar que o conheci. Porque quiseste saber?

 

Por nenhuma razão especial.

 

Deus do céu, Serena! exclamou Shelby genuinamente preocupada. Não estás envolvida com ele, pois não? É perigoso, não podes imaginar o que as pessoas dizem a seu respeito!

 

Serena achava que podia muito bem adivinhar o que todos pensavam de Lucky. Olhá-lo-iam e veriam exactamente o que ele queria. Provavelmente a palavra ”perigoso” ainda seria pouco apropriada para o descrever. Teria Lucky deixado que Shelby visse algo mais dentro dele, interrogou-se Serena, mas obviamente isso não sucedera.

 

Assustava-a pensar como esse facto a fazia feliz. Pisava terreno perigoso, sabia-o, ao imaginar que fora ela a primeira mulher a ver para além das barreiras, a tocar no coração dele, e ao alegrar-se por saber que tal não sucedera com a irmã. Era tolice, já tinha problemas suficientes para ainda se preocupar com Lucky Doucet. A única coisa que ele queria era sexo.

 

Ele disse que te conhecia respondeu por fim. Fiquei curiosa, só isso.

 

Shelby encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta.

 

Oh, não foi nada disse, reduzindo a questão ao nível de importância que lhe atribuía. Lucky Doucet servira os seus propósitos, ela obtivera o que desejara e nada mais interessava. Boa noite despediu-se Shelby.

 

Boa noite.

 

Serena viu a irmã sair. Nada fora resolvido, tinham continuado no carrocel do seu relacionamento, suportando altos e baixos emocionais, para voltarem sempre ao ponto de partida.

 

Suspirou quando a porta se fechou e soltou logo a seguir uma exclamação abafada quando alguém a agarrou por trás

 

Um braço forte rodeou-lhe a cintura e puxou-a contra o que parecia uma parede rochosa, enquanto uma mão lhe tapava a boca, abafando o grito que lhe ia sair da garganta.

 

Preparada para me receber, querida? perguntou Lucky, roçando os lábios pela orelha dela, enquanto as mãos se movimentavam constantemente sobre a seda que lhe cobria o corpo.

 

Diabos te levem protestou Serena, tentando virar-se para lhe bater, mas ele imobilizou-a com uma facilidade ridícula. Assustaste-me terrivelmente.

 

Sim, devias ter medo de mim murmurou Lucky, deslizando os lábios pelo pescoço dela.

 

Gostava de fazer essa declaração muitas vezes, para a convencer da veracidade das suas palavras, mas Serena agora não acreditava. Já vira de relance o homem que ele verdadeiramente era e não estava disposta a aceitar o mito. O seu coração propusera-se descobrir o ser humano que se encobria por detrás da fachada perigosa e, embora essa ideia pudesse parecer fútil, ela queria desenterrar o que sabia existir dentro dele.

 

O facto de Lucky continuar a querer mantê-la na ignorância de como realmente era fazia-a zangar-se com ele e consigo. De todos os homens do mundo, porque teria sido precisamente aquele a prender o seu coração? Dois dias antes nem sequer o via com bons olhos, receava-o, mas agora tinha a certeza de que se apaixonara por ele. Parecia-lhe impossível e tolamente romântico, algo que não seria de esperar da Serena Sheridan que tinha uma vida tão saudável e ordeira em Charleston. Mas não estavam lá e ela não era a mesma pessoa que dali saíra, lembrou resignadamente a si própria.

 

Pára murmurou Serena, revelando na voz o cansaço que toda aquela situação lhe causava.

 

Paro o quê? Isto? Esfregou a cara áspera sobre a pele de Serena, aspirando-lhe o perfume. Ou isto? perguntou, acariciando-lhe ousadamente o ventre e parando na junção das coxas.

 

Serena gemeu com a sensação que a invadiu como as águas soltas de um dique. No espaço de uma noite, Lucky condicionara o corpo dela a responder ao dele, sem reservas, e desejou-o imediatamente. Não podia pensar em mais nada senão em se estender e o receber dentro de si, em amá-lo com todas as partes do seu ser, mas forçou-se a afastar-se, lutando para manter algum autodomínio, algum pedacinho de lucidez.

 

Lucky largou-a, rindo sarcasticamente, e dirigiu-se para o toucador, onde pegou num frasco de perfume, ao mesmo tempo que a observava com os olhos semicerrados. Serena apertou o cinto do roupão e disse:

 

Pára de tentar assustar-me para me afastares de ti.

 

Era isso que eu estava a fazer? E eu a julgar que tentava levar-te para a cama!

 

Sabes bem o que quero dizer.

 

Lucky continuou a mexer nos objectos que se encontravam no toucador, parecendo dar-lhes mais atenção do que às palavras dela, e Serena sentiu a frustração invadi-la, mas não o mostrou, pois sabia que era uma das coisas que ele pretendia.

 

Que estás aqui a fazer hoje? Não tens redes para vigiar?

 

Ele olhou-a sem nada responder, mas depois perguntou:

 

Como correu o jantar?

 

Foi esclarecedor. Burke afirmou que a empresa dele nunca foi condenada por infringir regras relacionadas com poluição.

 

Oh, sim, claro, tal como também nunca o foi por subornar autoridades, ou transportar substâncias para locais não licenciados. Mas, se disser que nunca o fizeram, mente.

 

Não parece disposto a abandonar a ideia de construir aqui.

 

Tenho a certeza que não. É um local perfeito para lançarem substâncias nocivas, e compram um jovem político ansioso por fazer o que eles querem.

 

Abanou a cabeça enquanto examinava o cabo de pau-rosa esculpido de uma escova de cabelo.

 

Mais non, não vai desistir.

 

Serena aproximou-se, vendo os seus compridos dedos de artista tocarem nos objectos.

 

Mas que mais poderá ele fazer? perguntou Serena. Gifford não quer vender e não mudará de ideias. Burke não convencerá Giff a vender.

 

Ao dizer estas palavras, Serena lembrou-se da expressão do corpulento texano ao dizer, durante o jantar, que Gifford teria de ser persuadido, dando-lhe a sensação de ser um homem capaz de utilizar todos os meios para obter o que queria, e o avô dela era um obstáculo. Até que ponto insistiria? Até onde iria para conseguir os seus fins?

 

Serena afastou essas ideias da cabeça e foi pôr-se novamente junto da porta-janela que dava para a galeria, olhando para fora, como se esperasse ver brilhar uma resposta, uma estrela na escuridão.

 

Ele diz que a fábrica dará emprego a duzentas e cinquenta pessoas.

 

Isso é mentira contestou Lucky. Talvez a umas cem, provavelmente a umas setenta e cinco. O resto seria pessoal da companhia. Não temos aqui muitos químicos e engenheiros a procurarem trabalho.

 

Mesmo assim, são mais empregos do que os que Gifford pode dar. O efeito na economia seria muito grande.

 

E no pântano seria devastador...

 

Serena suspirou e levou as mãos à testa para esfregar as têmporas.

 

Isto é mais difícil do que eu pensava.

 

É simples teimou Lucky, estupidamente simples. Preto e branco. Boa gente e má gente.

 

Serena voltou-se e olhou-o.

 

E tu o que és, Lucky? Pensei que não querias saber de nada nem de ninguém. Levas-me a pensar que és má pessoa e depois descubro que fazes de Lone Ranger durante a noite para protegeres mulheres e crianças. Fazes-me pensar que és um caçador furtivo e depois descubro a tua preocupação com o ambiente. Quem és tu, realmente?

 

Confia no que te digo, é melhor não saberes. Serena olhou-o fixamente.

 

Mas quero saber.

 

Já te disse, doutora declarou Lucky, erguendo um dedo em sinal de aviso. Não queiras olhar para dentro da minha cabeça, não vais gostar do que lá encontrarás.

 

Serena enfrentou o olhar dele, a expressão decidida e carrancuda, até intimidatória, mas pareceu ver-lhe um brilho de preocupação nos olhos. Recearia por ele, ou por ela?

 

Sentia o perigoso desejo de o conhecer, para além de mera curiosidade. Uma mulher esperta aproveitaria o aviso e ter-se-ia mantido afastada. Lucky traçara a linha-limite entre ambos e ela atravessara-a como uma tola, física e mentalmente, aproximando-se, querendo saber e tocar-lhe.

 

E no teu coração, que iria eu descobrir? perguntou suavemente Serena, aproximando-se.

 

Descobririas que não o tenho respondeu com o rosto cuidadosamente inexpressivo.

 

Serena abanou a cabeça.

 

Não acredito nisso, tu tens a preocupação de ajudar as pessoas. Meu Deus acrescentou, olhando para a tira de pano que ele ainda trazia em volta do braço, arriscas a vida para as ajudares.

 

Não queiras fazer de mim herói retorquiu Lucky, resistindo ao impulso de se afastar. Pagam-me para isso.

 

Com pão e biscoitos?

 

Em privacidade. As pessoas entram na minha vida e eu expulso-as de lá, é isso que faço, é o que me interessa acrescentou em voz baixa e rouca.

 

É isso que dizes a ti próprio, Lucky? És um mentiroso.

 

É a verdade.

 

Ergueu as mãos para segurar Serena pelos ombros, comprimindo-lhe a carne por baixo da seda, como se quisesse impor a sua opinião fisicamente, e o coração batia-lhe apressadamente quando se debruçou sobre ela, tendo nos olhos um brilho fanático.

 

Eu sou um demónio, não um santo, e se em tempos tive um coração foi-me arrancado há muito. Não procures coisas que não existem.

 

Serena nada disse, mas ergueu uma mão e colocou-lha sobre o peito, aberta, os seus dedos pequenos e brancos destacando-se sobre a camisola preta. Os olhos de ambos não se desfitavam, enquanto sentia o violento pulsar do coração dele, a prova que despedaçava a sua mentira mais do que quaisquer palavras que proferisse.

 

Lucky soltou uma espécie de gemido de frustração e de raiva, lutando contra o medo que aumentava como um balão dentro de si. Afastou-o com dureza, rebelando-se contra ele num esforço que o fez tremer interiormente, como um terramoto, enquanto sacudia Serena pelos ombros.

 

Não quero saber se acreditas ou não disse numa voz enrouquecida. Se queres ir à procura nos teus livros para encontrares uma explicação, fá-lo por tua conta. Não vim aqui para ser analisado, mas para me deitar contigo.

 

A boca de Lucky apertou-se contra a dela com dureza, querendo castigá-la, só que não encontrou resistência, nem medo. Serena mostrava-se meiga e doce, derretendo-se e desejando-o, e isso fez com que a cólera dele se esfumasse. O beijo tornou-se mais suave e Lucky soltou um gemido de rendição, enquanto os lábios dela se abriam convidativamente. O beijo tornou-se mais profundo e sentiu-se perdido. O seu coração batia desordenadamente e apertou Serena contra si, enquanto o seu cérebro debatia a questão de saber se ela seria a pedra que o faria afundar-se, ou o ramo a que deitaria a mão para não se afogar.

 

Nenhuma dessas coisas, disse para consigo, porque o que sentia era desejo e nada mais. Serena não podia magoá-lo, nem curá-lo, ele podia dar-lhe prazer e ela fá-lo-ia esquecer os seus problemas durante algumas horas. Era simples, estupidamente simples, branco e preto.

 

Quero-te murmurou contra os lábios dela. Lucky roçou depois os lábios pela testa de Serena, fê-la virar-se de modo a ficarem de frente para o espelho e ela gostou do que viu: Lucky, grande e másculo atrás dela, rodeando-lhe o corpo com os braços, a cabeça baixa, fítando-a através do espelho; Serena frágil e feminina, branca e dourada, envolta em seda branca contra a pretidão da camisola. Viu os dedos de Lucky desatarem o cinto do roupão e ficou imóvel enquanto ele lho puxava para trás e o deixava deslizar para o chão. A camisa de noite que tinha por baixo era de seda e renda, uma nuvem transparente que lhe moldava o corpo e lhe chegava abaixo dos joelhos.

 

Lucky passou-lhe as mãos pelo corpo, prendendo-lhe os seios cobertos de renda, passeando com os seus dedos pelas ancas dela, por cada curva da sua feminilidade. Depois, apanhou a estreita alça que prendia a camisa com os dentes e fê-la deslizar para um ombro. Serena ficou à espera, enquanto ele lhe acariciava a pele, a beijava, a lambia, devorando cada polegada. Inclinou a cabeça para um lado, a fim de lhe dar acesso ao pescoço, e gemeu baixinho quando os lábios dele o percorreram de alto a baixo. A seguir, Lucky segurou a outra alça com os dedos, puxou-a para baixo e o corpete de seda branca ficou a rodear a cintura de Serena como uma nuvem de espuma. Lucky prendeu-lhe então os seios com as mãos, erguendo-os, apertando-os, juntando-os e passando os polegares pelos mamilos.

 

Serena conteve a respiração, nunca tomara parte em nada tão erótico. Os seus olhos escuros, de longas pestanas, estavam fixos na imagem do espelho, enquanto as grandes mãos morenas de Lucky lhe massajavam os seios. Os mamilos, duros e vermelhos, espreitavam por entre os dedos dele, e então o desejo invadiu-a, forte e ardente, fazendo-lhe experimentar sensações imagináveis.

 

Lucky fez deslizar a mão sobre a seda da camisa de dormir, comprimiu-a sobre o seu baixo-ventre e Serena recostou-se, deixando as suas coxas afastarem-se, enquanto ele metia a mão entre elas, acariciando-a através da seda, afagando-lhe a parte mais sensível do corpo. Depois a camisa caiu-lhe aos pés e, através da névoa do desejo, Serena viu os dedos dele percorrerem os seus pêlos encaracolados, enquanto a febre do desejo se tornava mais intensa. Passando-lhe um braço em redor da cintura, Lucky ergueu-a contra si, fazendo com que a cabeça dela lhe descaísse sobre o ombro, rolando de um lado para o outro, enquanto ele lhe introduzia profundamente um dedo na vagina.

 

Vê murmurou ele em voz baixa e meiga, sedutora como a canção de uma sereia. É isto que eu quero de ti, mon ange.

 

Os olhos dos dois encontraram-se no espelho. Ele acariciou-a ritmadamente, profundamente, Serena gemeu e movimentou-se contra a mão dele, perdendo o autodomínio, sentindo os seus instintos dominarem-na em absoluto, enquanto Lucky a fazia chegar à beira do clímax.

 

Serena murmurou o nome dele, ofegante, os seus seios arfavam-lhe e via a sua imagem no espelho. As mãos de Lucky moviam-se, incansáveis, enquanto a observava através das compridas pestanas, com os olhos cor de âmbar brilhantes de desejo, os lábios sensuais e carnudos ligeiramente afastados, enquanto lhe sussurrava:

 

Vien chérie, vien, vien, vien...

 

O clímax atingiu-a como uma vaga quebrando-se sobre as rochas, tirando-lhe a respiração, o corpo ficou tenso e teria gritado se Lucky não a virasse contra si e colasse os lábios aos dela, beijando-a loucamente, selvaticamente, dobrando-a sobre um braço, com a mão livre sobre o seu cabelo solto.

 

No instante seguinte estavam na cama, Serena estendida sobre os lençóis frescos, Lucky com um joelho sobre o colchão e um pé no chão, enquanto arrancava a roupa do corpo. Ficou magnificamente nu, baixou-se e penetrou-a num só movimento que fez levantar o corpo dela.

 

Serena ergueu o corpo em arco contra ele, recebendo tudo o que ele lhe queria dar e sabendo, no seu íntimo, que não seria o suficiente. Ofereceu-lhe o corpo, deixou-o encher-lho uma e outra vez com daquilo que fazia dele um homem. Recebia os impulsos poderosos de Lucky e sentia as suas costas musculosas debaixo das mãos, o cheiro forte do seu corpo, o sabor dos seus beijos, mas ansiava por algo mais.

 

Serena olhou para o rosto dele e viu o tormento lá estampado, a luta para lhe dar apenas o corpo, não a alma. Por instantes fitou-o e compreendeu a luta terrível que se travava dentro dele e isso fê-la sofrer. Não havia ali lugar para autodomínio ou para raciocínios, Serena só podia dar-lhe amor, por mais louco que isso parecesse, embora soubesse que ele não o queria aceitar, apesar de não ignorar que no fim ficaria com o coração destroçado.

 

Enquanto ele se movia poderosamente em cima e dentro dela, Serena envolveu-lhe o corpo com os braços e apertou o rosto contra o peito dele, desejando ficar assim para sempre estava desesperadamente apaixonada pela primeira vez na sua vida. Lucky atingiu o clímax ao mesmo tempo que ela, o seu grande corpo ficou tenso e os braços apertaram-na, esmagando-a contra si. E, nesse momento de êxtase, Serena permitiu-se acreditar que poderia também ser amada.

 

 

Ela assemelhava-se a um anjo, com o cabelo dourado, sedoso, espalhado sobre a almofada, e as suas pestanas pareciam renda clara sobre as faces. A boca, suave e rosada, estava descontraída pelo sono. Lucky olhava-a e alguma coisa lhe apertava dolorosamente o peito ao estender a mão para lhe tocar, parando a escassos milímetros do seu rosto.

 

Serena era meiga e carinhosa, corajosa e forte, tudo aquilo que ele não julgara possível encontrar numa mulher, mas não podia ceder nem interessar-se por mais do que o seu corpo, isso, em si, já era o céu. Lucky não sabia descrever o que sentia quando estava dentro dela. Serena afastava a escuridão, o frio, arrancara-o à sua existência árida. Podia possuí-la cinco vezes por dia e achar que nunca a tinha bastante. Jamais sentira um desejo tão insaciável por uma mulher e ninguém cedera ainda ao seu desejo com uma rendição tão doce e tão absoluta.

 

Nunca julgara isso possível na pessoa que vira pela primeira vez na loja de Gauthier, mas essa mulher calma, controlada, não era a verdadeira Serena. Pior para ele, pensou Lucky, enquanto os seus lábios se abriam num sorriso triste.

 

Serena não era fria e dura, mas sim uma doce tentação dourada. O céu era perder-se nela, o inferno, saber que não poderia amá-la, pois iria exigir demasiado dele, quereria algo que não lhe podia dar. Não chegaria a esse ponto.

 

Em primeiro lugar, sentia-se aterrorizado com aquilo que ela descobriria as coisas que ele fizera e a que assistira, a fria escuridão que lhe rodeava a alma e lhe subia até ao cérebro. Em segundo lugar, estava assustado com o que sucederia. Passara o último ano a recompor-se dolorosamente, pouco a pouco, reconstruindo-se com os fragmentos que o inferno da prisão lhe deixara, e agora esses fragmentos oscilavam como um castelo de cartas. Um movimento em falso e tudo se desmoronaria.

 

Precisava de paz, de solidão, da sua arte, mais nada. Reduzira a sua vida a essas coisas essenciais, porque não toleraria qualquer outra coisa. Não podia estar junto das pessoas, porque a presença delas o irritava, como se alguém tocasse num nervo exposto. Por necessidade tinha de se concentrar em si, para se manter equilibrado, não podia ter uma mulher cuja profissão era espiar as mentes das pessoas, descobrir os seus segredos, dissecando-os para saber o que as perturbava.

 

Saiu da cama sem acordar Serena, vestiu as calças, puxou o fecho e deixou o botão desabotoado. Depois, dirigiu-se para a porta que comunicava com a galeria e que ficara aberta. Ouvia-se trovejar ao longe, um acompanhamento apropriado para o que se passava dentro e em redor dele, uma ameaça de tempestade no interior e no exterior.

 

Tinha, desde o início, um mau pressentimento a respeito daquele negócio de Chanson du Terre, e as coisas só estavam a dar-lhe razão. Forças opostas erguiam-se umas contra as outras, causando pressão e algumas teriam de ceder. Tirando um fósforo do bolso, acendeu um cigarro, pensando qual dos lados cederia primeiro.

 

Gifford Sheridan era um velho, feroz e duro, na verdade, mas em todo o caso um velho. Se tivesse um filho que herdasse, ou uma neta que quisesse ali ficar, as coisas seriam mais fáceis, mas, tal como se apresentavam, as hipóteses eram contra ele, contra Chanson du Terre, contra o pântano.

 

Do outro lado estavam a Tristar e Burke, que lhe fazia lembrar demasiadamente o coronel Lambert, um homem que não conhecia limites quando se tratava de conseguir o que desejava. Até que ponto iria Burke? E Shelby? Lucky sabia bem do que ela era capaz de fazer para conseguir o que queria.

 

Mason Talbot parecia-lhe pouco mais do que um peão manobrado por Burke e por Shelby, era demasiado medroso para ser instigador fosse do que fosse. Não tinha vontade própria, mas não deixava de ter utilidade, seria uma figura de proa perfeita para unir a cidade a favor do crescimento económico e, uma vez a Tristar ali instalada, Mason, em Baton Rouge, seria um bom porta-voz dos interessados da indústria química.

 

O olhar de Lucky voltou-se outra vez para a cama e para Serena, que franzia a testa e falava enquanto dormia, passando com uma mão pelo sítio onde ele estivera. O peso do problema fora depositado em cheio sobre os seus ombros frágeis e, embora parecesse decidida a fazer o que o avô queria, estaria apenas a adiar o inevitável. Que sucederia quando se fosse embora?

 

Lucky? murmurou ela, soerguendo-se como um gatinho sonolento.

 

Sentando-se e pestanejando à fraca claridade, Serena puxou para trás uma madeixa de cabelos louros que lhe caíra para os olhos. Lucky ficou a observá-la, calado, gozando o prazer de a ver puxar o lençol de algodão para cima e cobrir cuidadosamente os seios, um gesto que lhe pareceu incongruente, dado o que se passara entre os dois na cama.

 

O que estás a fazer? perguntou ela inclinando a cabeça.

 

A fumar um cigarro respondeu Lucky, aspirando profundamente e lançando uma nuvem de fumo para o ar.

 

Serena franziu o sobrolho e saiu da cama, envolta no lençol como se fosse uma túnica grega.

 

Fumas de mais censurou, caminhando, direita a ele, sobre a carpete desbotada. Enroscou-se em Lucky sem esperar que a convidasse, deslizando os braços pela cintura estreita e encostando a cabeça ao peito nu. Ergueu a cabeça, olhou-o e disse meigamente: Não devias fumar. É mau para ti.

 

Lucky não pôde conter uma leve gargalhada de incredulidade. Olhou para o rosto sincero e meigo de Serena e algo semelhante a assombro cresceu dentro dele. Já não conseguia lembrar-se da última vez que tivera alguma preocupação com a saúde. Não por duvidar da sua mortalidade, mas por não se importar. Durante muito, muito tempo, sentira que nada tinha a perder, incluindo a própria vida. Quando regressara da América Central, passara noite após noite a olhar para uma Beretta e para a caixa das munições. A única coisa que o impedira de meter a arma na boca e de puxar o gatilho fora saber o mal que isso iria fazer aos seus pais, católicos ferverosos. Vivera com a morte como companheira constante e agora Serena olhava-o e avisava-o contra o perigo de fumar.

 

O quê? Isto tem graça? perguntou ela, aborrecida.

 

Não, não tem disse sombriamente Lucky. Voltou-se, sem deixar de a abraçar, e apagou o cigarro numa chávena de porcelana que se encontrava numa prateleira.

 

Satisfeita?

 

Não muito replicou Serena. Essa chávena era por onde a minha bisavó bebia o chá.

 

Esta casa está cheia dessas coisas observou Lucky com os braços em volta do corpo dela. Antiguidades, tesouros, heranças passadas de geração em geração, não é?

 

É murmurou Serena, enquanto os seus olhos observavam pelo menos uma dúzia de objectos que tinham visto várias gerações de Sheridans. Sim, é uma espécie de microcosmo da história. Devia ser renovada e aberta ao público como museu.

 

Em vez disso, pode ser destruída e perdida para sempre.

 

Serena olhou-o de sobrolho franzido com uma expressão de preocupação nos olhos escuros.

 

Não podemos esquecer tudo isso durante um bocado? Estou tão cansada.

 

Lucky passou-lhe uma mão pelos cabelos, sentindo-se invadir por uma inesperada vaga de simpatia. Gostaria de lhe resolver todos os problemas, de a proteger, de a guardar só para si durante algum tempo, mas não o podia fazer. Sabia que tinha de se defender da ternura que sentia crescer dentro de si ao olhá-la, mas cedeu por instantes, inclinou-se e beijou-a. Serena parecia cansada, confusa e preocupada. Que mal poderia fazer oferecer-lhe um pouco de conforto?

 

Os lábios dela eram macios e quentes, sob os seus, ávidos, desejosos. Serena comprimiu-se contra ele como se quisesse ser absorvida. O desejo de a proteger aumentou ainda mais e Lucky tentou afastá-lo. Não podia ser o salvador de ninguém; já tinha dificuldade em se ajudar a si próprio. Quando levantou a cabeça, tocou-lhe na cara e murmurou meigamente:

 

Lamento, chère. Sei que não querias este combate.

 

É meu por direito de nascimento, creio respondeu Serena, afastando-se dele e passeando pelo quarto, tocando distraidamente nos objectos que se encontravam sobre os móveis, enquanto com a outra mão segurava o lençol sobre o peito.

 

É uma ironia, sabes? comentou, esboçando um sorriso. Saí daqui porque achei que nunca seria eu própria se ficasse, e agora aqui estou... fez um gesto que abarcava o quarto e toda a casa em geral, olhando em volta com uma vaga sensação de espanto. Dizem que não se pode voltar ao lar, mas eu tenho a sensação de não poder afastar-me.

 

Poderás, e de vez, se a tua irmã conseguir fazer o que pretende replicou Lucky, olhando-a atentamente. Não é o que queres? Deixar o peso da tua herança para sempre?

 

Serena olhou em volta, sentindo o fascínio daquela velha casa descer sobre ela, mas estava demasiado cansada para lutar contra isso. Os seus ombros vergaram-se com resignação. Ficaria para sempre ligada a Chanson du Terre de um modo que nem o tempo nem a distância poderiam alterar, mesmo que quisesse. Era o seu lar e sempre o seria, as suas raízes estavam ali e tinham a profundidade de duzentos anos.

 

Não murmurou suavemente.

 

Não queria a antiga mansão destruída, não suportava ver estranhos a viver ali, não admitia que a Tristar Chemical construísse uma fábrica no sítio onde eram os alojamentos dos escravos, testemunho silencioso de vidas passadas. Não queria ver altas sebes de arame rodeando o que tinham sido plantações de cana-de-açúcar. Desejava que Chanson du Terre continuasse a pertencer a um Sheridan, só que não a ela.

 

Então é bom preparares-te para um combate, querida disse Lucky. Len Burke quer por força esta terra, vai usar todos os truques sujos para a conseguir e a tua irmã estará do lado dele.

 

Não é Shelby quem me preocupa. Lucky olhou-a de lado.

 

Não a subestimes, Serena. Não sei se imaginas aquilo de que ela é capaz.

 

Serena encolheu os ombros, sem dar importância ao que ela própria pensara nos últimos dias. Shelby era egoísta e combativa, mas não impiedosa.

 

É minha irmã respondeu. Provavelmente sei melhor do que tu como ela é.

 

Julgaste que seria capaz de te abandonar no pântano? Essa seta acertou em cheio no alvo e Serena sentiu-a profundamente, mas insistiu teimosamente em não lhe dar importância.

 

Já ali tínhamos estado mais vezes. Shelby não queria que me sucedesse nenhum mal, apenas não pensa nas consequências das suas acções. Só no imediato.

Não contes com isso”, pensou Lucky, mas guardou esse pensamento para si. Achava natural que Serena tivesse um ponto fraco em relação à irmã gémea. Que espécie de pessoa pensaria mal de alguém do seu sangue? Só esperava que esse ponto fraco não a impedisse de ver algo verdadeiramente perigoso antes de ser demasiado tarde.

 

A explosão, que ocorreu pouco antes de amanhecer, fez estremecer as janelas e toda a casa. Serena sentiu o cheiro a fumo antes de estar completamente acordada e saltou rapidamente da cama. O instinto da fuga lançou adrenalina na sua corrente sanguínea.

 

O seu cérebro levou alguns segundos a perceber o que se passava. Ao princípio não sabia onde se encontrava nem qual a origem do ruído. O quarto estava escuro e depois da explosão o único som que se ouvia era o dos trovões ao longe. Por momentos pensou que fora a trovoada que a acordara, mas logo voltou a sentir o cheiro a fumo. Vinha até ela pela porta aberta que dava para a galeria, trazido pelo vento forte que anunciava o temporal que se aproximava.

 

Vestiu o roupão, apertou o cinto e correu para a galeria, olhando para fora. Uma bola de fogo cor de laranja brilhava ao longe e as chamas lambiam os lados do barracão das máquinas. Gritos cortaram o silêncio e Serena viu vários homens aproximarem-se, os seus vultos destacando-se contra a claridade.

 

Lembrou-se subitamente de Lucky, mas ele já se fora embora, e a sua ausência atingiu-a como uma pancada física, só que não havia tempo para pensar quando teria desaparecido, nem como ou porquê.

 

Tirou um vestido do roupeiro, sem olhar, e envergou-o, sem se preocupar com a roupa interior. Enfiou as sapatilhas sujas, correu para a galeria, desceu as escadas, e atravessou o jardim a correr o mais velozmente que podia em direcção ao edifício já envolto em chamas.

 

Na altura em que ali chegou já os homens, com mangueiras, lançavam água sobre as chamas, mas sem resultado. James Arnaud corria de um lado para o outro, gritando para se fazer ouvir acima do crepitar das chamas, dizendo-lhes que se juntassem e fizessem incidir os seus esforços sobre a parte do velho barracão de madeira que ainda não ardia.

 

Que sucedeu? gritou Serena, agarrando-o por um braço.

 

Diabos me levem se sei respondeu o capataz com os seus espessos sobrolhos franzidos numa expressão de fúria. Ouvi a explosão e vim a correr. Provavelmente foi um raio. O que sei é que temos quase todo o nosso equipamento ali e que vamos perdê-lo se não apagarmos depressa este fogo!

 

Alguém chamou os bombeiros?

 

Vêm a caminho e é bom que cheguem depressa. O que nós estamos a fazer é o mesmo que mijar em cima das chamas.

 

Arnaud afastou-se, continuando as aparentemente infrutíferas tentativas para apagar o fogo. Serena ficou parada, impotente, observando, piscando os olhos devido ao brilho das chamas, sentindo o calor abrasador no rosto, mesmo à distância.

 

Por cima deles o céu parecia cruzado por uma rede de linhas brancas e os trovões ribombavam como tiros de canhão. Nuvens escuras, densas, de tempestade, iluminadas pelo brilho fluorescente dos relâmpagos, passavam lá no alto, como enormes esponjas.

 

Vem, chuva! gritou Serena.

 

Mason apareceu a correr vindo de casa, em pijama e apenas com um roupão cujo cinto procurava apertar. O seu ralo cabelo castanho estava espetado, tinha os óculos de lado e calçava sapatos de cabedal reluzentes, mas sem meias.

 

Meu Deus, isto é terrível! exclamou, ainda a puxar o cinto do roupão. Olhou para as chamas que se reflectiam fantasmagoricamente nas lentes. Chamei os bombeiros. Vêm a caminho.

 

Estava a rezar para pedir chuva disse Serena, e de facto grossas gotas começavam a cair, levando-a a voltar a cara para o céu.

 

Mason olhava o fogo que consumia o enorme barracão como um animal voraz, esfomeado, devorando paredes, atingindo o material que se encontrava no interior.

 

Toda aquela maquinaria. Espero que Gifford tenha o seguro em ordem murmurou Mason.

 

A chuva começou a cair com mais força. Ao longe ouviam-se as sereias dos carros dos bombeiros. Mason puxou Serena por um braço.

 

É melhor sairmos daqui para lhes deixarmos o caminho livre. Nada podemos fazer.

 

Serena afastou-se relutantemente do braseiro, pensando em Gifford e sentindo-se impotente, com a sensação de ter falhado. Era absurdo, sabia-o, só que isso não a impedia de experimentar a antiga sensação de incapacidade. Não sabia como, mas devia ter evitado que aquilo sucedesse, que não ocorresse aquela destruição.

 

A chuva já caía em bátegas grossas, fria, encharcando-lhe a blusa de seda que vestira ao acaso, colando-lhe o cabelo à cabeça, não a deixando ver bem. Contudo, as chamas continuavam a erguer-se para o céu nocturno, crepitando, troçando dos esforços da mãe-natureza para a apagar. Ouviu-se de repente o som de qualquer coisa a partir-se e logo a seguir viram parte do telhado cair, soltando uma nuvem de faúlhas cor de laranja. Mason puxou com mais força pelo braço de Serena.

 

Vamos, Serena! Nada podemos fazer. Não é seguro estar aqui!

 

Puxou-a mais para trás. Os relâmpagos rasgavam o céu, os trovões explodiam com um som ensurdecedor e o vento começou a soprar com força, agitando as árvores e dobrando as línguas de fogo que saíam do edifício em chamas. A chuva caía agora em lençóis, apagando finalmente o fogo. O primeiro carro dos bombeiros apareceu e Mason fez com que Serena recuasse mais um pouco.

 

Vamos!

 

Ainda não tinham dado três passos em direcção a casa quando se deu a segunda explosão. Serena viu a bola alaranjada de chamas irromper dentre as paredes em ruínas do barracão e, a partir daí, aquilo que levou apenas uma fracção de segundo a suceder ficou registado no seu cérebro em câmara lenta; os homens a correrem, as chamas a subirem novamente para os céus, o ruído da madeira a arder e a explodir em estilhaços em todas as direcções.

 

Mais tarde lembrou-se de que abrira a boca para gritar, mas não ouvira qualquer som. À força invisível da explosão atingiu-a por trás e lançou-a ao chão como uma boneca de trapos, fez o mesmo a Mason e a violência com que embateu no solo fez com que pequenas pedras e pedaços de conchas esmagadas lhe entrassem na pele. Depois mergulhou na escuridão.

Uma perda total comentou o funcionário da companhia de seguros com a gravidade de alguém que anunciasse a morte de um ente querido.

 

Encontrava-se à porta da sala de jantar, com um impresso nas mãos. Era um homem baixo, calvo e de olhos escuros como os de um spaniel. Tinha as mãos e os braços enegrecidos e uma grande mancha na testa.

 

Chegara praticamente logo a seguir aos bombeiros, juntamente com alguns vizinhos. Um incêndio era algo de importante naqueles sítios, motivo para as pessoas se reunirem, comentarem e oferecerem o seu apoio. E não tinham de esperar duas semanas para que o agente dos seguros aparecesse. Pelo contrário, já se encontrava ali quando se apagaram as últimas labaredas e caíam as últimas vigas.

 

Uma perda total! repetiu lentamente. O edifício e tudo quanto lá estava dentro. Ainda fumega em alguns sítios.

 

Fixe! exclamou John Mason levantando-se da cadeira. Vou ver!

 

Com certeza que não vais, John Mason! opôs-se logo a mãe, franzindo os sobrolhos. Vê o que sucedeu ao teu pai e à tua tia!

 

Serena olhou para o sobrinho, pondo-o de sobreaviso. Estava sentada, ainda trémula, com campainhas nos ouvidos e dores em várias partes do corpo. Tinha cortes e arranhões nas mãos, no queixo e nos joelhos, e a cara e as faces enegrecidas pelo fumo. Não fora tomar duche, e o cabelo colava-se-lhe à cara e ao pescoço e trazia ainda a mesma blusa de seda que vestira quando ouvira a primeira explosão.

 

Na verdade, o seu aspecto geral não era brilhante e o cunhado pouco melhor estava. Naquele momento olhava para a chávena de café que tinha na mão com uma expressão vaga. Tinha também o cabelo empastado e o roupão sujo e amarrotado. Na face direita ostentava um corte, que parecia um traço de tinta vermelha, no rosto cor de cinza.

 

Serena pensou que pareciam ter sido atacados e deixados em qualquer sítio para morrer, mas mesmo assim podiam considerar-se com sorte. Dois dos homens que haviam tentado apagar o incêndio encontravam-se agora no hospital, gravemente feridos devido aos estilhaços da segunda explosão.

 

O seguro estava em dia, não é verdade, Mister York? perguntou Serena, sem saber se falava em voz baixa ou gritava, pois tinha a sensação de ter tampões nos ouvidos.

 

O homem olhou-a com os seus olhos de spaniel, como se receasse que ela lhe chamasse cão mau e o mandasse para a casota.

 

Sim disse hesitantemente. O seguro está em ordem, por esse lado não há problema.

 

Então o que há?

 

Bem... hummm... O homem remexeu os pés como se estivesse a pisar lama. Receio que sim... há... sim.

 

Oh, por amor de Deus! exclamou Shelby servindo-se de uma segunda chávena de café. Diga o que tem a dizer.

 

Estava sentada à cabeceira da mesa, no lugar de Gifford, envergando um roupão de seda verde e com o cabelo elegantemente penteado, como se o incêndio nada tivesse a ver com a rotina da sua vida.

 

York engoliu em seco, como se tivesse dificuldade em falar.

 

Bem... estive agora no local, com o xerife e... bem... segundo vimos, há poucas dúvidas de que se trata de fogo posto.

 

Fogo posto! exclamou incredulamente Serena, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha. Abanou a cabeça, recusando essa possibilidade e todas as suas ramificações. Não, foi um raio.

 

York pareceu acabrunhado.

 

Não... isto é... peço desculpa, Miss Sheridan, mas não foi. O fogo foi deliberadamente ateado. Com efeito, não existem quaisquer dúvidas a esse respeito. Foi um trabalho mal feito continuou, tornando-se mais animado à medida que falava do que sabia. Havia um ponto quente no canto sudoeste do barracão e rastos a partir daí, indicando o percurso do combustível. A madeira queimada apresenta indícios de ter suportado um calor intenso e rápido e sinais de lascas no pavimento de cimento. É evidente que alguém espalhou gasolina ou uma substância semelhante por toda a área, pegando-lhe depois fogo. E, pelo que pudemos ver no que resta de um dos tractores, direi que alguém quis que explodisse.

 

Serena recostou-se na cadeira, levando uma mão aos lábios e a outra às costelas magoadas. Olhou para o lugar onde Len Burke estivera na véspera a comer e a beber à custa deles e dizendo que Gifford tinha de ser persuadido de uma maneira ou de outra.

 

Devem compreender que até este caso estar esclarecido a minha companhia não poderá pagar-lhes o seguro. Lamento concluiu York, mostrando-se novamente hesitante, dar más notícias não era realmente o seu forte. Apertou o impresso que segurava nas mãos e repetiu: Lamento, realmente.

 

Mister York interveio então Mason, tentando reproduzir o seu afável sorriso de político. Com certeza não acredita que foi alguém da nossa família quem perpetrou esse horrível crime?

 

Não... isto é... não sei... não me compete a mim julgar. Terá de haver uma investigação completa. Compreende?

 

Mas, Mister York interrompeu Serena, tentando não pensar em Burke, algum desse equipamento terá de ser substituído imediatamente. Como sugere que o façamos, se a sua companhia não pagar o seguro?

 

York pareceu pensar seriamente no assunto, fazendo caretas que obrigavam a mancha negra a tomar vários feitios. Finalmente fitou-a e Serena teve a sensação de que ele ia começar a chorar.

 

Não sei respondeu por fim. Lamento, lamento imenso.

 

Após uma segunda ronda de perguntas, explicações e desculpas, o funcionário da companhia de seguros despediu-se para ir dar nova vista de olhos ao local, seguido de perto por John Mason.

 

Que homenzinho horroroso! declarou Shelby, escolhendo um muffin do cesto que Odille acabara de trazer, como se fosse a sua mais importante tarefa do dia. Não admira que a mulher ande metida com o vice-presidente do banco.

 

Serena deitou-lhe um olhar escandalizado.

 

Shelby, por amor de Deus! Temos assuntos mais importantes a discutir.

 

Serena tem razão, querida concordou gentilmente Mason.

 

O que é andar metida? quis saber a pequena Lacey, olhando para a mãe.

 

Shelby sorriu e passou a mão pelos caracóis louros da filha.

 

É uma coisa feia, suja, que as mulheres reles às vezes fazem. Não te preocupes com isso.

 

Uma coisa má disse Odille dramaticamente, tirando da mesa a cafeteira do café vazia. Os seus olhos cor de turquesa brilhavam como chamas azuis ao fitar as pessoas sentadas à mesa. Má, é o que se tornou esta casa. Deus tenha misericórdia de nós.

 

Com essas palavras assustadoras, Odille recuou até sair da sala, tendo nos lábios finos uma expresão de desaprovação.

 

Meu Deus observou Shelby, afrontada, fechando mais o roupão. Não sei por que razão Gifford tem esta mulher aqui.

 

Ela é uma bruxa acrescentou Lacey com o seu ar bonacheirão, estendendo a mão para um muffin e levantando-se da mesa para ir atrás do irmão.

 

Serena esfregou as têmporas e suspirou.

 

Fogo posto. Será o vosso Mister Burke a enviar um pequeno aviso ao avô?

 

Houve um momento de assombrado silêncio e depois Mason recuperou a voz.

 

Então, Serena, és capaz de pensar que Len Burke tenha alguma coisa a ver com isto? perguntou com uma gargalhada incrédula. Ele é um homem de negócios honesto, representante de uma firma respeitada. Não podes pensar que seja um incendiário.

 

Serena olhou a irmã e o cunhado com ar grave.

 

Bem, certamente não querem que eu acredite na alternativa.

 

Que um de nós seja o culpado? interrogou Mason. Realmente, Serena, tens passado demasiado tempo com os teus pacientes e estás a tornar-te paranóica. Shelby e eu estávamos deitados. Na verdade, digo-te que me sinto profundamente ofendido com essa ideia insultuosa. Lá por sermos a favor de vender, não quer dizer que queiramos fazer tudo ir pelos ares.

 

Por amor de Deus, Serena! É isso que realmente pensas de nós? perguntou Shelby, visivelmente agitada, mexendo o açúcar que deitara no café. A sua pele perfeita ficou manchada de vermelho e os lábios formaram uma linha fina. Olhou para a irmã, furiosa, e a sua calma aparente desapareceu num instante como fumo. Acusares a tua irmã e o teu cunhado! Não sei em que te tornaste em Charleston. És uma estranha para nós!

 

Serena levou a mão à testa e suspirou profundamente. Sentia-se exausta, tinha a sensação de haver perdido o jeito de falar com as pessoas. O constante dramatismo da irmã tirava-lhe toda a energia.

 

Shelby, podemos pensar sem essas frases teatrais? disse com os dentes cerrados. Eu não os acusei, disse apenas que Mister Burke poderá tirar benefícios deste incêndio. Pode ter sido um aviso, ou um meio de destruir a maquinaria. De qualquer das maneiras, Gifford está sem dinheiro e não pode substituí-la.

 

Bem, isso é um completo disparate declarou Shelby indignadamente. Acho Mister Burke um cavalheiro encantador.

 

Serena nem teve forças para erguer os olhos até ao tecto.

 

O fogo pode não ter nada a ver com a venda da propriedade informou Mason. Giffort arranjou muitos inimigos no decorrer dos anos. Ainda há pouco teve de despedir alguns homens, e isso causa ressentimentos, digo-te eu. Além disso, muita gente é a favor da vinda da Tristar para aqui acrescentou, olhando para o café. É uma cidade pequena, calculo que já todos saibam o que se passa. Gifford está a impedir que haja mais empregos aqui e alguém pode ter querido persuadi-lo a mudar de ideias.

 

Serena levantou-se da mesa, olhando para Mason, e um sorriso desagradável contorceu-lhe os lábios.

 

Mas que interessante escolha de palavras comentou.

 

Que vais fazer? perguntou Shelby, olhando-a com desconfiança.

 

Primeiro vou tomar um duche quente, depois voltarei ao pântano para buscar Gifford, mesmo que seja preciso trazê-lo pelos cabelos.

 

Mergulhar na inconsciência parecia-lhe uma opção mais interessante, mas Serena achava que não podia dar-se ao luxo de dormir. Forçando-se a pôr um pé à frente do outro, levantou-se e saiu da sala de jantar e saiu.

 

Shelby ficou a olhá-la, esperando ouvir o ruído da porta do quarto dela a fechar-se.

 

Bonito! Agora é que é bonito! Vai trazer Gifford para aqui! exclamou com ar amuado. Era só o que faltava. Diabos a levem. Porque raio não ficou afastada disto?

 

Mason estendeu a mão para um muffin.

 

Não te preocupes com o assunto, amor, até pode ser bom. Gifford é capaz de ficar desencorajado ao ver os estragos causados pelo incêndio e ao perceber as dificuldades que irá ter para recuperar o equipamento. Pode ser que desista.

 

Espero que sim, Mason, espero bem que sim.

Serena entrou no quarto, desejosa de se atirar para cima da cama e chorar até adormecer. Virou-se e quase chocou com Lucky, que a agarrou pelos ombros e a observou com o seu olhar intenso.

 

Mon Dieu murmurou, apreensivo. Estás bem?

 

Sim, exceptuando o ataque cardíaco que ia tendo agora. Porque teimas em assustar as pessoas. Alguém te meteu medo em criança?

 

Lucky praguejou entre dentes, largou-a e voltou-se, tentando recuperar o fôlego e fazer com que a respiração voltasse à normalidade.

 

Ouvi contar do incêndio, em pessoas a serem levadas para o hospital e...

 

Serena calou a resposta que tinha na ponta da língua e ficou a observá-lo. Lucky receara por ela, isso era visível nos olhos dele, na sua expressão, via-se como se esforçava por recuperar o controlo das suas emoções. Não fez comentários, mas sentiu uma réstia de esperança. O homem de granito, que não se importava com ninguém, receara por ela.

 

Estou bem murmurou calmamente, e, deixando-se cair sobre o pequeno banco do toucador, descalçou as sapatilhas estragadas e começou a desabotoar a blusa. Viu Lucky andar para trás e para diante ao longo da cama, percebendo que a tensão o abandonava pouco a pouco, enquanto se acalmava à força.

 

Onde estiveste? perguntou.

 

Tive coisas a fazer.

 

Trabalhas realmente a horas estranhas.

 

Tenho uma vida esquisita admitiu secamente Lucky já deves ter reparado.

 

Serena ergueu as sobrancelhas.

 

O quê? Todas as pessoas que eu conheço vivem no pântano e palitam os dentes com uma faca de comando...

 

Serena não quis saber do olhar que ele lhe deitou e começou a despir a blusa, mas parou ao aperceber-se simultaneamente de duas coisas não tinha nada por baixo e os olhos de Lucky tinham-se fixado, ardentes e brilhantes, nos seus seios. Não que sentisse vergonha, apenas algo de estranho. Um medo profundo, primitivo, combinado com a excitação, que não se coadunava com a sua necessidade de controlo e que ela sabia ir arrastá-la para o sofrimento. Conseguiu levantar-se, ignorando os protestos das suas pernas doridas.

 

Preciso de ir tomar um duche disse, apertando a blusa sobre os seios.

 

Lucky olhou-a e todas as emoções que sentira canalizavam-se para uma que ele podia compreender e com a qual sabia lidar a luxúria. Quando soubera da explosão ficara louco de ansiedade, só tinha visões de Serena queimada e ferida entre os destroços. Agora ela estava ali, cansada, um pouco assustada, mas viva. Os seus olhos escuros, muito abertos, olhavam-no com meiguice.

 

Encurtou a distância entre eles em duas longas passadas. Com os dedos afastou a blusa e desnudou-lhe os seios. Serena aproximou-se e aceitou o seu abraço. Lucky então inclinou-se e beijou docemente todos os arranhões e feridas que lhe marcavam o rosto.

 

Preciso de tomar um banho murmurou ela outra vez, com voz trémula, quando ele lhe beijou o pescoço e de ir ter com Gifford continuou, ficando tensa ao sentir as mãos de Lucky acariciarem-lhe os seios, mas tentou corajosamente prosseguir na sua ideia. Levas-me?

 

Ele ergueu a cabeça, fitou-a com o seu olhar escaldante e um sorriso inconscientemente terno espraiou-se-lhe pela boca sensual.

 

Oh, sim, chère. Eu levo-te, com certeza.

 

 

Fogo posto! explodiu Gifford, enquanto o seu rosto se tornava de um vermelho alarmante. Por Deus, isso diz tudo! Tudo! Não sei onde vai este mundo parar! Já ninguém respeita nada.

 

Pôs de lado a espingarda, que estivera a limpar, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, agitadamente. Os seus cães ficaram deitados, vendo-o movimentar-se, olhando-o com uma expressão atemorizada.

 

Esse patife do Burke! Antes de isto acabar hei-de ter a cabeça dele espetada num espeto. E esse pateta do Clifton York! fez um gesto de ameaça com a mão. A lata dele, recusar-se a pagar os prejuízos.

 

Serena pensou nos pedidos de desculpa do homenzinho e sentiu simpatia por ele.

 

Mister York apenas fez o seu trabalho.

 

Praticamente a acusar-me de queimar a minha própria propriedade! resmungou Gifford. Nunca seria capaz de fazer uma coisa tão baixa. Nenhum Sheridan se portou dessa maneira, a não ser aqueles que têm sido postos fora da família, claro.

 

Com certeza concordou secamente Serena, com os braços cruzados sobre a blusa de algodão cor-de-rosa e as pernas traçadas para impedirem os joelhos de tremer.

 

A tempestade dessa madrugada transformara o pequeno pátio num lamaçal, o que quase inutilizara os macios sapatos de cabedal que Serena calçava. Aquela viagem estava a custar-lhe caro, sobretudo em calçado. Se as coisas continuassem assim, acabaria por ter de andar com os chinelos de quarto.

 

Houve alturas neste país em que a honra de um homem significava qualquer coisa prosseguiu Gifford.

 

Parecia tão perturbado por terem posto em causa a sua reputação, como por alguém ser capaz de largar fogo ao barracão das maquinarias. De pé em frente de Serena, com as mãos na cintura, olhava-a como se fosse culpa dela encontrarem-se naquela situação.

 

Tenho a certeza de que a atitude de Mister York nada tem de pessoal disse Serena. É um caso bem claro de fogo posto. Até se saber quem o fez, a companhia de seguros não paga.

 

Gifford resmungou. Umas farripas de cabelo branco caíam-lhe para a testa e os olhos brilhavam-lhe ferozmente.

 

Qualquer tolo perceberia facilmente quem foi, Burke é o responsável. Maldito texano. Este estado devia ter regulamentos nas fronteiras.

 

Burke tem um álibi interveio inesperadamente Lucky. Estava na taberna do Mouton.

 

Serena voltou-se para ele, incapaz de esconder a sua surpresa. Lucky encostava-se indolentemente ao tronco de um grande carvalho, com os olhos baixos e um ar sonolento. Parecia uma pantera, com a sua força contida, à espera de que algum gamo incauto passasse por perto.

 

Como sabes isso?

 

Ele deitou-lhe um olhar inexpressivo, impossível de traduzir, e encolheu os ombros indolentemente.

 

Porque também lá estava.

 

Lucky deixara-a para ir ao Mosquito Mouton’s. Serena fez o possível para não se mostrar magoada. Ele não estava comprometido com ela, lembrou a si própria. Não obstante o que o seu coração desejava, Lucky definira claramente o relacionamento de ambos como sendo apenas sexo. Não tinha, portanto, o direito de se zangar ou ficar ofendida por ele não ter ficado toda a noite.

 

Assuntos a tratar, justificara-se. Que assuntos, àquela hora da madrugada? Serena pensou se seriam do mesmo género a que assistira quando lá estivera começar brigas, ameaçar pessoas com a faca...

 

Claro que tem um álibi declarou Gifford, aborrecido. Um homem como Burke não faz trabalhos sujos com as próprias mãos, contrata alguém. Não seria difícil arranjar um vadio qualquer para atear o fogo. Hoje em dia as pessoas são capazes de tudo por uns dólares.

 

Infelizmente ninguém viu nada insistiu Serena. Quem o fez pode ter fugido antes da primeira explosão ou depois, no meio da confusão que se seguiu. Nem pensei em ver se havia algum carro a afastar-se ou alguém a fugir.

 

Talvez nunca tenha deixado o local comentou calmamente Lucky.

 

Serena suspirou e desviou os cabelos que lhe tinham caído para a testa suada. Sentia os olhos de Lucky fixos nela, mas não levantou os seus. Já tinham discutido o assunto quando se dirigiam para a cabana de Giff. Não podia de modo algum acreditar que fora Shelby quem ateara o fogo. Era simplesmente impossível imaginá-la a espalhar gasolina pelo chão para fazer explodir a maquinaria. Mas podia muito bem ter sido alguém contratado por Burke, insistira Serena, ou também um estranho, compelido por só Deus sabia o quê, que se misturara simplesmente com os outros homens enquanto tentavam salvar o barracão.

 

Bem, não vale a pena fazermos especulações. A verdade é que a questão é complicada e é preciso que voltes para casa agora declarou Serena ao avô.

 

Gifford ergueu as espessas sobrancelhas brancas.

 

Para quê? Para te pores a andar?

 

Serena recusou-se a recuar e respondeu calmamente:

 

Para que enfrentes as tuas responsabilidades. Porque hei-de ser melhor do que tu? perguntou sarcasticamente Giff. Que diabo, eu aprendi contigo, minha menina. Não queria enfrentar o problema, por isso vim-me embora.

 

Acaba com isso replicou Serena, sentindo-se a perder completamente o controlo.

 

Mesmo em ocasiões normais, tinha dificuldade em falar com Gifford de maneira racional e controlada. Ele sabia exactamente em que botões devia tocar e fazia-o com uma satisfação maliciosa, que a enfurecia ainda mais. Olhou-o, contendo a custo a irritação.

 

Pára de querer culpar-me, Gifford, estou farta das tuas manipulações.

 

Sim? Então vais voltar para Charleston, não é? perguntou com uma fingida surpresa. E deixas o teu avô sozinho a enfrentar os incendiários, e os traidores da própria família.

 

Serena cerrou os dentes e murmurou:

 

Não vou a parte alguma.

 

Gifford olhou-a demoradamente, com uma expressão dura: Nem eu insistiu.

 

A pressão entre eles foi aumentando enquanto se fitavam intensamente. Depois, Serena não conteve mais a cólera, soltou uma praga e deu um pontapé na cadeira de repouso, atirando-a pelos ares e assustando os cães, que foram procurar abrigo debaixo da cabana.

 

Diabos te levem, Gifford. Como podes ser tão obstinado?

 

É uma característica da família.

 

Não ouses gozar comigo ameaçou ela, apontando-lhe um dedo ameaçador. Isto é sério.

Sei exactamente como é respondeu calmamente o velho, falando agora com sobriedade e o que está em jogo, Serena, mas não sei se tu perceberás. Julgas que sou apenas um velho tolo que gosta de te contrariar e que me estou a divertir, estragando as vidas das outras pessoas. Mas não, tento salvar uma coisa que faz parte desta família há dois séculos.

 

Ficando aqui escondido no pântano?

 

Gifford abanou a cabeça, revelando impaciência e cansaço nos olhos escuros e na postura da boca.

 

Não percebes, pois não? Uma pessoa tão inteligente como tu e que é capaz de ser tão dura de cabeça como um tijolo. Não pretendo salvar Chanson du Terre de momento, quero que permaneça depois de mim.

 

Serena ouviu as palavras do avô com as lágrimas nos olhos, lágrimas de frustração, de cólera e de mágoa. Sabia exactamente o que ele queria.

 

Queres forçar-me a voltar para aqui, Gifford, e não podes obrigar-me a isso.

 

Não respondeu em voz baixa o velho, mas posso fazer-te ver as consequências, se fugires. Posso pôr tudo nas tuas mãos, dar-te o poder de César. Duzentos anos de herança continuam ou desfazem-se em pó? Será contigo, Serena, ou vendes ou não.

 

As cartas estavam na mesa, o jogo acabara, a manipulação silenciosa terminara. O avô queria depositar tudo nas mãos dela, quando o que mais desejava era fugir dali. Serena olhou-o por entre as lágrimas, odiando-o nesse momento quase tanto como gostava dele, mas não podia voltar-lhe as costas. Gifford significava muito para ela. Não suportava a ideia de o desapontar, nem a de que a considerasse uma cobarde, uma fracassada.

 

Como psicóloga podia agarrar em todos esses pensamentos, dissecá-los, diagnosticá-los e recomendar terapia, mas como neta, como mulher, restava-lhe apenas sentir, impotente e indefesa como uma criança. Não podia distanciar-se e examinar tudo de forma neutral, objectiva, era-lhe impossível olhar a tempestade de uma distância segura. Estava mesmo no centro da tormenta e não havia maneira de sair de lá com dignidade.

 

Pensa nisto durante um minuto insistiu Gifford com uma expressão tão grave e tão dura no rosto que este parecia esculpido em granito. Depois vai ter comigo lá dentro, há uma coisa que precisas de saber antes de te ires embora.

 

Gifford afastou-se lentamente, chamando os cães, e Serena ficou a olhar o hayou, esforçando-se por não chorar, tentando concentrar-se no ruído dos passos que se afastavam e da porta de rede a fechar-se, o som do rádio, o grito de um pássaro nas copas das árvores, ali perto. Com os braços cruzados sobre o peito, fitou as águas lamacentas e a profusão de lírios que cresciam ao longo da margem oposta, forçando-se a si própria a agarrar-se ao último pedaço de dignidade, de orgulho e de controlo.

 

Lucky observava-a, sentindo que tudo dentro de si ansiava por ela. Todos os sentimentos que julgara mortos tinham ressuscitado nos últimos dias e pulsavam agora dentro de si, hipersensíveis, mas não estava feliz com esse regresso, sentia-se mais seguro quando a sua vida era um vácuo. Ressentia-se da intrusão de Serena no seu isolamento emocional, irritava-se por ela fazer com que a desejasse tanto, mas não podia olhá-la com rancor, nem podia afastar-se. Não compreendia como a mulher calma, controlada, que viera de Charleston, fora destroçada em poucos dias, por isso sentia simpatia, empatia, compaixão.

 

Lucky afastou-se da árvore, foi-se pôr atrás dela e passou-lhe os braços em volta do corpo, oferecendo-lhe silenciosamente a sua força. Serena voltou-se, fechando os olhos para tentar impedir as lágrimas de saírem, mas estas rolavam-lhe pelas faces e caíram na camisola preta de Lucky. Sentiu uma forte tentação de se abandonar, de chorar, de pôr o peso dos seus problemas nos ombros largos dele e de pedir-lhe que os resolvesse tal como defendera as redes de , Mrs. Guidry e como protegera os guaxinins órfãos. Mas não o fez, não podia, Lucky não queria os problemas dela, os que tinha já lhe chegavam. Não queria envolvimento nem amor, e o facto de saber isso tornava ainda mais agridoce sentir os braços dele em torno do seu corpo naquele momento em que tanto precisava de alguém em quem se apoiar.

 

Talvez ele mudasse, talvez sentisse por Serena mais alguma coisa do que aquilo que queria admitir. Talvez, quando aquele assunto estivesse resolvido, ele a deixasse aproximar-se o suficiente para ela o ajudar a afastar os demónios que o assombravam. E talvez os porcos voassem...

 

Serena não queria deixar-se arrastar para a armadilha de

pensar que ”Lucky podia mudar pelo amor de uma mulher”.

 

Não, sabia que ambos se tinham juntado devido às circunstâncias, haviam cedido ao desejo físico, e quando isso acabasse cada um iria para seu lado, ele para o pântano e ela... Bem, creio que é melhor ir ver o que mais tem Gifford para mim disse, contendo as lágrimas.

 

Voltou-se para Lucky e olhou-o, com a certeza terrível de que se apaixonara por ele, esse pensamento atingia-a com violência de cada vez que lhe ocorria. Aquele grande guerreiro pensativo, com olhos de pantera e boca sensual, com a alma negra e um coração de ouro, captara uma parte de si mesma que nunca nenhum outro homem tivera, e era pena que não a quisesse.

 

Foram recebidos à porta pelo aroma de beignets quentes e de café forte. Aparentemente, enquanto discutiam no pátio, Pepper atarefara-se diante do fogão quente. O velho negro recebeu Serena com um sorriso triste e uma palmadinha amigável num ombro.

 

Venha cá, Miss Serena. Parece precisar de uma boa chávena do meu café.

 

Não podes injectar-mo directamente nas veias? Tenho a sensação de não dormir há um mês.

 

Pobre pequena murmurou Pepper, olhando de soslaio para Gifford, que se encontrava sentado à sua velha mesa com tampo de fórmica, tendo na mão um envelope.

 

Serena puxou uma cadeira com pernas de metal cromado e um assento de vinil verde, que já se rasgara e fora remendado com adesivo. Do lugar onde Gifford se encontrava via-se o pátio e ela pensou se o avô a teria visto agarrada a Lucky, mas afastou essa ideia. Apesar da maneira como ele a fazia sentir-se, há muito que deixara para trás os dezasseis anos e já não estava à sua guarda. Se quisesse ter um caso com um homem que parecia e procedia como um pirata, isso só a ela dizia respeito.

 

Lucky sentou-se também e tirou um cigarro do maço que trazia no bolso. Pepper falava sozinho a respeito da abundância de caranguejos nesse ano, enquanto colocava na mesa uma cafeteira de esmalte com o café e várias canecas desirmanadas. Os dois cães estavam estendidos no chão como tapetes, olhando para Serena com olhos tristes. O mobiliário parecia ter sido posto ali ao acaso, móveis velhos e estragados, cadeirões com o estofo rasgado, e nas paredes nuas viam-se apenas duas armações de veado. Serena sempre achara que a cabana lhe parecia um simples barracão pela falta de conforto, e há vinte e cinco anos que nada mudava, até a louça e a comida pareciam as mesmas.

 

Gifford colocou o envelope sobre a mesa, obrigando o olhar de Serena a afastar-se da garrafa meio vazia com molho de tabasco. Era branco, vulgar, com o endereço do destinatário no canto superior esquerdo: ”Lamar Canfield, advogado”.

 

Isto é teu.

 

O que é? perguntou Serena, desconfiada, pois já tivera suficientes surpresas desagradáveis.

 

Gifford empurrou-o por cima da mesa.

 

Vê, vê o que é.

 

Serena olhou para o avô, depois para Lucky, que fitava Gifford de rosto franzido, e a seguir para o envelope. Sentindo que ia dar um passo do qual não poderia recuar, abriu-o e tirou de lá uns papéis dobrados. O documento era ridiculamente simples, considerando o poder que continha: dava-lhe plenos poderes para tratar dos negócios de Gifford, incluindo dispor de Chanson du Terre. Estava selado e assinado com a caligrafia firme do velho e de Lamar, e datava de três semanas atrás. Precisava apenas da assinatura dela para se oficializar.

 

Serena ficou a olhar para o documento, sentindo-se manipulada e usada. Caía de facto nas suas mãos um poder que não queria sobre uma casa que não a deixaria partir. O seu primeiro impulso foi atirar os papéis à cara de Gifford, mas não o fez, em vez disso dobrou-os cuidadosamente, voltou a metê-los no envelope, levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.

 

Porque não a pressiona um pouco mais, Gifford? perguntou sarcasticamente Lucky. Poderemos então sentar-nos todos em volta dela para a ver desfazer-se.

 

Vai-se aguentar replicou Gifford, erguendo o queixo. É uma Sheridan.

 

Também a irmã.

 

O velho fungou e desviou o olhar, estendendo distraidamente uma mão para acariciar a orelha de um dos cães que se aproximara para pedir festas.

 

Pepper soltou uma risadinha de desaprovação e sentou-se na cadeira que Serena deixara vaga.

 

Não admira que ela não queira ficar por aqui, consigo a empurrá-la dessa maneira todos os dias. Se fosse eu, também ia para Charleston.

 

Porque não vais? perguntou Gifford ao amigo.

 

Porque, se fosse, não ficava ninguém para o aturar e a Odille acabava por o matar.

 

Espertalhão.

 

Lucky apagou o cigarro no cinzeiro de metal azul, esmagando-o com força, e levantou-se.

 

Não gosto das suas tácticas, Gifford comentou em voz baixa, tensa.

 

Agia por intuição, sabia-o, não reflectidamente. Serena ficara magoada, perturbada, e isso despertara o seu instinto de protecção. Não lhe agradava mas não podia impedir que isso sucedesse.

 

Fiz o que era preciso.

 

Sem se preocupar com o que Serena pudesse sentir. Gifford olhou-o com ar especulativo.

 

E desde quando te importas com os sentimentos das outras pessoas?

 

Lucky não respondeu, a resposta estava algures escondida no seu peito, mas recusava-se a deixá-la sair ou sequer a admiti-la. Limitou-se a olhar demoradamente Gifford e encaminhou-se para a porta.

 

Serena estava na escada, olhando para o hayou, com o envelope na mão, os braços cruzados sobre o peito, pálida e cansada. As manchas escuras debaixo dos olhos contrastavam com o rabo-de-cavalo juvenil que usava.

 

Lucky passou-lhe um braço em volta da cintura e atraiu-a para si.

 

Não quero voltar por enquanto murmurou ela.

 

Não te censuro, querida.

 

Podemos ir para tua casa?

 

Oui, se quiseres.

 

Preciso de me afastar um bocado.

 

Serena fechou os olhos e encostou a cabeça ao peito dele, o que fez a habitual e estranha sensação crescer dentro de si.

 

Eu levo-te, mon petite coeur disse Lucky ternamente, ajudando-a a descer os degraus até à piroga.

Nuvens de temporal corriam do golfo, outra vez, quando a piroga de Lucky deslizou ao longo do cais. Gordas e negras, como fardos de algodão tingidos, rolavam para norte, com o trovão a ribombar atrás delas. Dentro de segundos choveria torrencialmente, pensou Serena, e logo a seguir poderia fazer sol e haver calmaria. O tempo era sempre incerto, irregular, aumentando ainda mais a sensação de o pântano ser um lugar pré-histórico. Nessa ocasião, enquanto as nuvens plúmbeas se amontoavam no céu, o silêncio parecia uma manta que tudo sufocava. Os ramos das árvores estavam imóveis, os pássaros calados.

 

A chuva começou a cair quando chegaram à porta da casa de Lucky, batendo com força no telhado de zinco e entrando pela rede que protegia as janelas. Serena dirigiu-se a uma, para a fechar, mas ele afastou-a.

 

Deixa chover disse, recuando e encaminhando-a para a cama.

 

Mas o soalho... protestou Serena.

 

É madeira de cipreste. Nada o poderá estragar. Despiram-se um ao outro vagarosamente, com o acompanhamento dos trovões, enquanto a chuva caía lá fora, com força, e entrava pela janela.

 

Preciso de ti murmurou Serena, de olhos fechados,. envolta já no torvelinho que lhe percorria o corpo como um vírus.

 

Necessitava de Lucky para esquecer o que a afligia, mesmo que fosse por pouco tempo. Queria perder-se na abençoada sensação de lhe pertencer, mesmo que só temporariamente.

 

Estou aqui respondeu ele, estendendo a mão para tirar o gancho que lhe prendia o cabelo.

 

Serena suspirou quando ele lhe passou a mão pelo cabelo agora solto, que lhe caía sobre os ombros nus, e, erguendo-se nos bicos dos pés, retribuiu o favor, puxando o atilho de cabedal que lhe segurava a cabeleira preta e metendo as mãos pelos cabelos ondulados. Lucky passou-lhe os braços em volta do corpo, erguendo-a, e beijou-a demoradamente. Depois afastou-a.

 

Viens ici, chérie sussurrou, deslizando sobre a cama e estendendo-lhe a mão.

 

Serena olhou-o por momentos, hipnotizada. Ele parecia selvagem, perigoso, mas correspondeu ao pedido e soube-lhe bem sentir a sua sólida força, tal como gostou de se sentir apertada nos seus braços.

 

Fizeram amor lentamente, enquanto a chuva caía. Lucky tomou completamente o comando, enquanto Serena, já deitada, sentia o prazer daqueles momentos. Beijou-a repetidas vezes, longamente, deixando-a lânguida e sem fôlego. Depois sugou-lhe ao de leve os mamilos, e beijou-lhe todo o corpo, o ventre, as ancas, os joelhos.

 

Deitado entre as pernas dela, meteu-lhe as mãos por baixo das nádegas e soergueu-a ligeiramente, acariciando-a intimamente, com a língua, bebendo-lhe o sabor. Serena arqueou as costas, suspirou com o prazer intenso, e o desejo avassalou-a, aumentando como o vento lá fora, arrastando-a para um lugar onde só existiam ela, Lucky e aquele ardor vibrante, que ardia no seu interior e explodiu ao chegar ao clímax.

 

As ondas de choque pulsavam ainda quando Lucky se deitou sobre ela, acariciando-lhe o corpo, e Serena gritou quando o sentiu penetrá-la não de dor, mas de êxtase e logo os seus músculos se retesaram prendendo-o dentro dela, incitando-a a atingir o máximo.

 

Lucky colou a sua boca à dela, abafando-lhe os gemidos, dando-lhe a língua e o sabor do seu próprio corpo. A velha cama rangia com os movimentos de ambos, o trovão ribombava e a chuva batia com força no telhado, mas eles nada ouviram. Chanson du Terre, o passado, o futuro, tudo desaparecera.

 

Lucky só podia pensar em Serena, na sua suavidade, no seu ardor, na maneira como se completavam um ao outro, como ela se lhe ajustava ao corpo como uma luva, no modo como o recebia e parecia não o querer largar. Só podia pensar em dar-lhe prazer e deixar que esse prazer o envolvesse.

 

Lucky movimentava-se devagar, meigamente, demorando o seu próprio clímax, para a fazer atingir um segundo, enquanto as ancas dela se moviam contra as dele, e, metendo uma mão entre eles, esfregou a pele mais sensível de Serena, que gritou, em êxtase, atingindo a crista da vaga, arrastando-o com ela. O corpo de Lucky estremeceu, ficou tenso quando o seu sémen penetrou nela e apertou os braços em volta do corpo de Serena, pensando que nunca se sentira tão vivo. Voltou-se então de lado e deixou-se cair sobre a cama, fisicamente cansado, emocionalmente exausto pela luta constante de sentir e não querer sentir. Encostou o corpo de Serena ao seu e pensou se ela o sentiria tremer interiormente.

 

Lá fora, o temporal passara, a trovoada afastava-se para norte, ouvia-se apenas o som suave da chuva. Dentro de casa, a tempestade de paixão passara e Serena estava nos braços dele, cansada, demasiado exausta para enfrentar todos os sentimentos que, enquanto faziam amor, haviam estado esquecidos, todas as emoções que o gesto de Gifford desencadeara, a pressão que este pusera sobre ela, os conflitos sobre o que tinha de ser feito, as questões a respeito da lealdade para com a família, a recordação do fogo e do seu significado. Como prometera, Lucky afastara-a disso durante uns breves momentos, mas agora tudo voltara.

 

As lágrimas começaram a cair dos olhos de Serena tão depressa como a chuva primaveril, e deixou-as cair sem se preocupar em as esconder ou em desculpar-se. Lucky apertou-a mais contra si, acariciando-lhe o cabelo, roçando-lhe os lábios pela testa, murmurando-lhe palavras meigas em francês, palavras de conforto, e a sua voz suave era quase como uma carícia física, exactamente aquilo de que Serena precisava uma calma compaixão, o terno consolo da compreensão, oferecido com empatia por uma alma gémea.

 

Serena sentiu o coração apertar-se-lhe dolorosamente ao pensar nisso. O que tinham era ténue, uma parte das vidas de ambos que parecia tirada do contexto, como uma flor de estufa que fosse forçada a abrir só durante uma noite. Os sentimentos haviam sido maximizados, o tempo acelerado, e pensou se o que havia entre eles morreria tão depressa como começara.

 

Ela conhecia a resposta e isso fez com que as lágrimas se tornassem mais abundantes e lhe viessem aos lábios palavras que não diria. Para começar, não se devia ter envolvido com ele, mas era demasiado tarde para alterar isso e não podia mudar o que estava no seu coração, por mais inútil que fosse. Suspirou com uma sensação de fatalismo e murmurou com voz fraca e rouca:

 

Amo-te.

 

As palavras penetraram no coração de Lucky como uma lâmina, a sua mão deixou automaticamente de acariciar o cabelo de Serena e todos os músculos do corpo dele ficaram tensos.

 

Não o faças disse Lucky.

 

Serena sentou-se na cama e puxou o lençol para o peito.

 

Não faço o quê? Não te amo, ou não o digo em voz alta?

 

Ele abanou a cabeça, saiu da cama, vestiu as calças e puxou o fecho.

 

Não o faças! repetiu. Não o penses! Não o digas!

 

Ela ficou a vê-lo andar de um lado para o outro, lendo a sua perturbação na postura dos seus ombros musculosos e no ritmo das suas passadas. Andava de cabeça baixa, olhos semicerrados, com o cabelo solto a encobrir-lhe parcialmente a cara.

 

Porque não? perguntou Serena mantendo a voz calma.

 

Ele olhou-a de soslaio.

 

Porque não é verdade. Tu não me conheces. Isto... apontou para a cama é apenas sexo.

 

Para mim não é.

 

Lucky voltou-se com uma expressão cruel, os olhos atormentados.

 

Pois bem, para mim é replicou com agressividade, dando um passo para a cama. Era isto que esperavas ouvir? acrescentou sarcasticamente. És boa na cama, mas nada mais.

 

A dor foi instantânea. Serena pensou que fora culpada de ouvir aquelas palavras, mas isso não diminuiu a ferroada e, mesmo vendo o tumulto de emoções contraditórias nos olhos de Lucky, não se sentia menos magoada. A sua defesa era aquela e agarrar-se-lhe-ia até ao fim, não queria acreditar que existisse mais qualquer coisa entre eles, embora soubesse que era verdade não queria que ela visse para além da sua armadura, nem que lhe tocasse.

 

É apenas sexo repetiu a meia voz, andando para trás e para a frente, aos pés da cama.

 

Não acredito.

 

Não me importo.

 

Se não te importas porque ficas tão perturbado por me ouvires dizer que te amo?

 

Lucky parou e olhou-a com uma expressão que teria gelado muitos homens.

 

Não te armes em psiquiatra comigo.

 

Serena não refutou a acusação, mas encolheu os ombros e ergueu a cabeça. Se estivesse na posse do seu bom senso, deixaria cair a questão, mas a verdade é que, se assim fosse, nunca se teria metido na piroga com ele, no cais de Gauthier.

 

Amo-te, é isso que sinto e precisava de to dizer. Não sei porque ficaste tão perturbado, não te pedi que me dissesses que me amavas.

 

Não, mas esperavas que o fizesse retorquiu Lucky. Serena olhou-o sentindo uma enorme tristeza, como se tivesse uma pedra no peito.

 

Não, não esperava.

 

Lucky praguejou em francês e voltou-se para a janela.

 

Não posso dar-te o que tu queres, Serena. Não o tenho em mim.

 

Oh, penso que sim, apenas receias fazê-lo.

 

Não repetiu ele, olhando para a chuva. Não o tenho, perdeu-se. Nada te posso dar, não sou o género de homem de que tu precisas.

 

O que sabes sobre isso?

 

Sei que não sou eu.

 

E se estiveres enganado?

 

Lucky voltou-se, deixando todas as suas frustrações, desgostos e raiva virem à superfície numa explosão de sentimentos.

 

O que sabes a meu respeito? Formaste um perfil fantasioso, fazendo de mim o herói que não sou. Não passo de um homem que se agarra com as pontas dos dedos à sua sanidade mental, de um assassino treinado que pode perder a cabeça de um momento para o outro. Não tenho nada dentro de mim a não ser pesadelos. É isso que queres? É este o género de homem de que precisas?

 

Com uma expressão selvagem nos olhos, as narinas dilatadas, Lucky debruçou-se sobre a cama e fitou Serena nos olhos.

 

Queres espreitar para dentro do homem que julgas amar, doutora? Saber o que me faz correr? Passei um ano numa prisão da América Central. O oficial que era meu comandante meteu-me lá porque era corrupto e eu ia denunciá-lo. A nossa missão ali era uma dessas que o nosso governo não controla. Disseram à minha família que eu morrera num acidente, num treino, e durante um ano fiquei numa cela imunda, infestada de ratazanas, numa escuridão total. As únicas vezes que me tiravam dali era para me torturarem. Sabes o que isso faz à cabeça de um homem, doutora Sheridan? Endireitou-se e recuou lentamente. No que o transforma? Por isso nada tenho para dar, vivo por mim e para mim e é assim que gosto. Não quero a tua ajuda, nem o teu amor. A única coisa que sempre desejei foi o teu corpo.

 

Voltou-lhe as costas e virou-se para a janela, sentindo-se triste e vazio.

 

Serena ficou sentada durante longos momentos, absorvendo aquelas palavras, condoendo-se não de si mesma, mas de Lucky, esse rapaz sensível que amava a família, o estudante, o artista que vira a sua vida sistematicamente destruída. Condoía-se do homem que ele era agora, atormentado, assustado, só, e ansiava desesperadamente aproximar-se dele, mas sabia que seria repelida.

 

Se querias que eu acreditasse que eras um patife sem coração, devias ter-me deixado na rua naquela primeira noite, junto à cabana de Gifford respondeu ela, desejando em parte que ele o tivesse feito.

 

Tens razão concordou Lucky sarcasticamente, mas não me digas que te enganei, querida. Desde o princípio que te disse como era.

 

Sim, é verdade murmurou ela, mas não passa de uma mentira, entre nós há paixão, raiva e desejo, mas nunca apenas sexo, nunca.

 

Guarda essas bonitas palavras para ti própria resmungou ele. Não quero ouvi-las, não preciso do teu amor.

 

Serena teve vontade de chorar. Nunca conhecera um homem mais carente de afecto. Lucky afastava-se das pessoas, escondia-se do mundo, retirara-se para a solidão do seu pântano a fim de curar as feridas, mas isso não acontecera, elas ainda sangravam, e ele cada vez fugia para mais longe dentro de si mesmo. O coração de Serena ansiava por ajudá-lo, a mulher que ela era desejava tornar isso diferente, mas a psicóloga sabia que tal não sucederia, e porquê, embora isso fosse fraca consolação.

 

Não tinha força para lutar contra o inevitável e, pensando bem, parecia-lhe melhor acabar com tudo ali mesmo.

 

Prosseguir seria fútil, como se decidisse bater com a cabeça numa parede. Perdera qualquer hipótese de manter uma relação sexual com Lucky, mesmo que tivesse estômago para aceitar uma situação desse género. E Deus sabia bem que tinha outros problemas para resolver. O que acontecera entre ambos devia-se a ela ter-se encontrado no lugar errado e à hora errada com o homem errado.

 

Serena levantou-se, procurou as suas roupas e continuou a observá-lo, ainda encostado à janela sem cortinas, pensando como o homem errado lhe poderia parecer tão certo.

 

Lucky voltou-se e olhou-a, envolto na luz prateada que vinha de fora, e as sombras escuras delineavam-lhe um retrato perfeito.

 

Para onde vamos agora?

 

Serena parou no gesto de abotoar a blusa, considerando opções e respostas, e resolveu dizer-lhe:

 

Para Chanson du Terre.

 

 

Era uma longa viagem de regresso. Lucky ia de pé atrás de Serena, silencioso, enquanto esta se impregnava dos sons e dos cheiros do pântano. Seria a sua última viagem por aquela terra deserta, que a assombrara durante tantos anos, pois não tinha intenção de voltar à cabana de Gifford. O velho levara as coisas demasiado longe, da próxima vez teria ele de ir ter com ela, e, quanto a quaisquer outras razões, não as havia, pensou Serena, recusando-se a ceder ao desejo de se voltar e olhar para trás.

 

Concentrou então toda a sua atenção no pântano, esquecendo o seu medo instintivo ao admirar a beleza primitiva do local que Lucky tanto amava. A chuva passara e o sol voltara em força, transformando o pântano numa sauna natural. A humidade erguia-se como fumo da superfície da água e pingava dos festões arrendados do musgo. As flores silvestres reluziam, como pontos brilhantes de cor, entre os tons cinzentos e castanhos. Serena pensou se Lucky alguma vez o teria pintado assim. Mantiveram-se silenciosos por acordo tácito até o cais de Chanson du Terre aparecer à vista.

 

O que vais fazer? perguntou calmamente Lucky, impelindo a piroga para o cais.

 

Resolver tudo respondeu Serena, com os olhos fixos na grande casa. Vou dizer a Burke que faça as malas e tratar de solucionar o caso do incêndio e da companhia de seguros.

 

E então?

 

Ela não lhe respondeu durante um grande bocado. A piroga deslizou ao longo do cais e parou. Serena levantou-se e voltou-se para ele.

 

E que te importa, Lucky? Já tiveste o que querias.

 

Ele nada disse, mas ficou a lutar contra os seus sentimentos contraditórios. Não se importava, disse a si próprio, ela podia voltar para Charleston, onde gostava de viver, isso não lhe importava. Teria o seu pântano, a sua paz, sem Sheridans para perturbarem a placidez da sua vida. Ignorou a dor que sentiu quando Serena saiu do barco e se afastou sem olhar para trás. Não precisava dela, não podia desejá-la, e aquilo era o fim.

 

Com fortes impulsos afastou a piroga do cais e virou para sul, direito a Mosquito Mouton’s, era uma boa noite para se embebedar e brigar.

 

Serena atravessou lentamente o pátio, olhando para o Cadillac branco que se encontrava estacionado ao lado do BMW de Shelby. Era o carro de Burke, sem dúvida. Como Giff dissera, aquele homem era tão tenaz e simpático como um pitbull. Pensou como iria o texano aceitar a decisão dela. Bem não seria, com certeza, não lhe parecia um homem que soubesse perder.

 

Shelby também não gostaria da sua decisão, não admitia que interferissem com os seus planos quando era a glória pessoal que estava em jogo. Considerava a venda da propriedade como o único meio de fazer com que Mason ganhasse as eleições e de ela própria atingir uma posição de destaque e não ficaria nada satisfeita por não concretizar essas ambições. A juntar a tudo isso, havia ainda a antiga rivalidade entre ambas. Gifford mostrara favoritismo, dando-lhe a ela aquilo que Shelby desejava para realizar os seus sonhos.

 

Serena praguejou contra o avô por ele pôr as suas terras acima de tudo o resto e amaldiçoou-se por ter voltado, mas agora os dados estavam lançados, nada havia a fazer a não ser jogar.

 

Estavam todos reunidos na sala da frente. Shelby, resplandecente num vestido de seda vermelha, sem mangas, bastante decotado e com saia rodada, o cabelo elegantemente penteado num estilo que a fazia parecer uma actriz de cinema dos tempos de Carole Lombard. Mason trajava uma indumentária adequada para um jovem senador: calças cinzento-escuras, camisa tom de marfim e gravata cara, ligeiramente à banda. Burke envergava o mesmo fato da outra noite, mas optara por um laço em vez de uma gravata. Voltaram-se todos ao mesmo tempo quando Serena entrou na sala e os seus rostos revelaram expressões de surpresa.

 

Meu Deus, Serena! exclamou Shelby. Estás um caos. É assim que as pessoas se vestem para jantar em Charleston?

 

Ela olhou para a sua blusa branca, de algodão, e para os calções pretos, amarrotados e sujos, e um olhar de relance para o espelho mostrou-lhe que o seu cabelo estava bastante desgrenhado.

 

Sim, tenho um aspecto horrível. Peço desculpa, mas acabo de chegar agora mesmo da cabana de Gifford respondeu Serena, tentando esquecer a tarde que passara com Lucky com a mesma facilidade com que a omitira da conversa. Há-de desculpar, Mister Burke, por não estar mais apresentável disse friamente para o texano. Sinto-me cansada e prefiro não perder tempo a ir arranjar-me primeiro.

 

Gifford não regressou contigo? perguntou Mason de sobrolho franzido por cima dos aros dos óculos.

 

Não.

 

Que disse ele acerca do fogo?

 

Ficou muito preocupado.

 

Mas não voltou para tratar do assunto? perguntou Burke, mordendo a ponta do charuto, o que lhe dava um ar de buldogue. É muito estranho, se querem saber a minha opinião.

 

Não lha pedi respondeu de imediato Serena, demasiado cansada para aderir ao código da hospitalidade sulista.

 

Depois, observou a reacção dele com um interesse clínico. O queixo endureceu, os olhos franziram-se e ela teve a impressão de que ele não gostava de que uma mulher lhe falasse daquela maneira.

 

Mason mostrou-se escandalizado com a falta de boas maneiras da cunhada.

 

Serena! Mister Burke está preocupado com a sanidade mental de Gifford, como todos nós!

 

Percebo bem qual é o interesse de Mister Burke. Quanto a Gifford, garanto-lhes que continua tão astuto como sempre.

 

Procede como um louco! murmurou Shelby, amuada, levando a mão cheia de jóias à pequena bola de diamantes que lhe pendia do pescoço, presa por um fio de ouro. Está a empatar-nos a todos e a atrasar a concretização do negócio. Mister Burke é uma pessoa atarefada, não pode esperar indefinidamente.

 

Não precisa de esperar mais tempo declarou Serena, erguendo o envelope que tinha na mão para que todos o vissem. Gifford passou-me uma procuração para tratar de todos os assuntos como achar melhor.

 

Shelby soltou uma exclamação dramática, mas Serena continuou logo a seguir, pois queria acabar rapidamente com a conversa e não estava com paciência para a teatralidade da irmã.

 

Eu não acho bem vender esta propriedade à Tristar Chemical, Mister Burke. Lamento que tenha perdido o seu tempo aqui.

 

O homem ficou vermelho de raiva. Tirou o charuto da boca e apontou-o a Serena.

 

Não, espere um minuto, não pode fazer isso.

 

Posso, a procuração é válida. Eu não queria esta responsabilidade, mas tenho-a e já tomei a minha decisão.

 

Não posso acreditar! exclamou Burke, voltando-se para Mason. O negócio estava praticamente concluído, Talbot. Ou você mete algum bom senso na cabeça da sua cunhada, ou pode dizer adeus à sua viagem para Baton Rouge.

 

Mason, que pareceu ficar nervoso, virou-se para Serena e o seu sorriso afável parecia hesitante.

 

Serena, não sejamos apressados. Não creio que tenhamos considerado todos os factores. Há aqui muita coisa em jogo.

 

Serena olhou-o com firmeza.

 

Sei o que está em jogo, Mason. Creio que o vejo mais claramente do que tu.

 

Espera! gritou de repente Shelby, atraindo imediatamente a atenção de todos. O que sabes tu acerca seja do que for? O que é que conheces a respeito de viver aqui? Nós estamos a tentar fazer o que é melhor para todos.

 

O que tu queres é encher os bolsos e comprar o lugar de governador para Mason respondeu friamente Serena. Tenho poderes para evitar que destruas a nossa herança com a tua ganância e estou a usá-los, é simples, Shelby. Não queria ter nada a ver com isto, mas agora não há alternativa.

 

Shelby deu uns passos para a irmã, enquanto manchas vermelhas começavam a aparecer na sua pele perfeita.

 

Como te atreves a pregar a tua moralidade e vir-nos dizer o que devemos fazer? Não pedimos a tua interferência.

 

Pois não respondeu Serena, pensando se Lucky não teria razão quando lhe dissera que Shelby queria concluir o negócio antes de ela descobrir o que se passava.

 

Então porque não ficaste fora disto? Porque é que não continuaste em Charleston, com a tua vida confortável e tranquila, como sempre fizeste?

 

Lamento sussurrou Serena, sentindo a sua ligação com a irmã cada vez mais frágil e mais difícil.

 

Lamentas? troçou Shelby dando mais um passo. Só isso?

 

Atirou o copo ao chão sem se importar com o uísque entornado, que fez uma mancha escura na carpete, avançou e estendeu as mãos, dando um abanão a Serena, que a fez cambalear. Esta nem tentou defender-se, física ou verbalmente, as palavras não iriam servir de nada, pois Shelby não atenderia a razões. A sua raiva era visível, sentia-se no ar como a electricidade antes de uma tempestade explosiva e Serena viu, horrorizada, essa tempestade desencadear-se ali.

 

Tu não percebes nada gritou Shelby falando cada vez mais alto, à medida que ia perdendo completamente o domínio. Não te importas com esta casa, nunca te preocupaste. O que queres é agradar a Gifford para que ele te deixe tudo quanto devia ser meu! Ofegante, tentou respirar fundo, contorcendo o rosto de maneira grotesca, enquanto a sua fúria se tornava incontrolável. Estás a estragar tudo, como sempre fizeste! Maldita sejas! Nunca devias ter nascido!

 

Serena nem sequer tentou evitar a forte bofetada que a irmã lhe deu, e, enquanto Shelby corria para fora da sala, a soluçar, não se mexeu, ficou imóvel, no silêncio carregado de electricidade, percebendo que qualquer leve esperança de sentir a irmã mais próxima de si se dissipara para sempre. Burke e Mason olhavam-na, visivelmente incomodados com a cena que tinham acabado de presenciar, e este último foi o primeiro a recompor-se, oferecendo a Serena o seu lenço imaculadamente branco. Ela aceitou-o e ficou a olhá-lo estupidamente.

 

Tens sangue murmurou Mason, contrafeito. Ao canto da boca.

 

Serena levou o lenço aos lábios, mas não olhou para a mancha ensanguentada que lá ficara, já era mau saber que a boca ficara ferida. Olhou, sim, para o envelope que ainda segurava na mão, pensando se Gifford fazia alguma ideia do que fizera.

 

Serena disse calmamente Mason, compreendo que estejas sentimentalmente ligada a Chanson du Terre, mas ouvi-te dizer mais de uma vez que não mudarias a tua vida por causa dela. Discutimos a possibilidade de vender, especialmente agora, quando a plantação tem problemas e o mercado está mau. E há também que levar em conta os estragos devidos ao incêndio.

 

Sim, os prejuízos com o fogo! Gifford tem possibilidades de os cobrir? perguntou Burke.

 

Serena fitou o texano.

 

Penso, Mister Burke, que o único aspecto que lhe pode interessar, quanto ao incêndio, é o seu nome estar ligado a ele.

 

O texano não pareceu chocado com a acusação, o que, para Serena, foi como se admitisse tê-lo posto.

 

Eu não me encontrava nas redondezas quando o sinistro começou declarou Burke, fitando a extremidade do seu charuto, que se apagara. Franziu o sobrolho e continuou calmamente. Tenho testemunhas e não será bom para si tentar provar o contrário. Os olhos tornaram-se-lhe duros como pedras, quando repetiu: Não será mesmo nada bom para si.

 

Serena ergueu as sobrancelhas.

 

Isso é uma ameaça, Mister Burke?

 

É um facto, minha querida.

 

Ela olhou-o friamente, sem lhe dar a perceber que pensava até onde seria ele capaz de ir para obter o que desejava. Passado um momento, recuou uns passos, afastando-se, e replicou:

 

Tem sido um dia exaustivo para mim e a sua presença aqui já não é necessária, Mister Burke. Mason acompanha-o à porta e, visto que nada mais temos a dizer, espero não voltar a vê-lo. Boa noite. Olhou para o cunhado. Mason...

 

Sentiu os olhos deles fixos nas suas costas até sair da sala.

 

O que se propõe fazer, Talbot? perguntou Burke em voz baixa e rouca, fitando-o intensamente. Se o negócio não se concretizar, bem pode dizer adeus à sua carreira política.

 

Ouça, Len respondeu Mason no seu tom mais apaziguador, recuperando o sorriso e voltando-se para o aparador para servir nova bebida ao visitante. Tenho a certeza de que serei capaz de fazer com que Serena mude de opinião, só preciso de um pouco de tempo, mais nada. Gifford manipulou-a e logo que ela se aperceba disso e encare a situação sob uma nova perspectiva, estou convencido de que verá as coisas à nossa maneira.

 

Burke olhou-o demorada e friamente e rematou:

 

É bom que assim seja.

 

Shelby andava de um lado para o outro, mostrando a sua agitação, num quarto em completa desordem. No auge da fúria, atirara com as cadeiras ao chão, assim como a colcha da cama e toda a roupa que guardava no armário. Pisava fatos e vestidos desenhados por costureiros caros, alguns com os preços ainda postos e outros que não teriam sido usados mais de duas vezes. Sem se importar, calcava os tecidos delicados com os saltos altos dos seus sapatos, enquanto se movimentava.

 

Diabos a levem! Diabos a levem! Detesto-a! bradava, enquanto tirava um frasco de Chanel de cima da cómoda e o atirava contra a parede, estilhaçando-o. O quarto ficou imediatamente envolto numa fragância forte, levemente enjoativa, e uma mancha oleosa surgiu no papel de parede.

 

Mason estava sentado na beira da cama, com as mãos em volta dos joelhos. Via a exagerada demonstração de fúria da mulher com a adequada expressão de desagrado: a testa franzida e os cantos dos lábios virados para baixo. Shelby voltou-se então para ele, com uma expressão de fúria nos olhos e o rosto contorcido pela raiva.

 

Faz qualquer coisa! gritou, baixando logo a seguir a voz até se transformar num murmúrio sibilante. Faz qualquer coisa, que diabo! Não fiques aí calmamente sentado, enquanto Serena estraga tudo o que eu sempre quis!

 

Então, Shelby, minha querida, acalma-te!

 

Não me digas isso. Se as pessoas se acalmassem tantas vezes como tu dizes, ficávamos todos catatónicos. Não é altura para estarmos calmos, é preciso acção. Temos de fazer alguma coisa, o nosso futuro depende disto!

 

Eu sei, amorzinho concordou Mason, olhando melancolicamente para o luxuoso guarda-roupa que Shelby espezinhava.

 

Claro que, se ganhasses mais dinheiro como advogado, ou se os teus pais não tivessem perdido a fortuna num estúpido negócio, não estaríamos nestes apuros. Mason emitiu um som que não queria dizer coisa alguma. Só queria que pudéssemos fingir que Serena não voltou murmurou Shelby, voltando a andar para trás e para diante. Passou os dedos pelo cabelo, uma vez e outra, tirando os ganchos e atirando-os também para o chão, fazendo-os cair sobre os delicados tecidos que pisava. Gostava que ela desaparecesse. Gifford devia ter-me passado a procuração a mim, o meu futuro é que está ligado a esta casa, não o de Serena. Devia ter-ma dado, mas não, entregou-lha, e ela não tem o bom senso suficiente para ver o que está certo.

 

Não nos preocupemos agora com isso alvitrou Mason suavemente, levantando-se e estendendo-lhe uma mão. Puxou-a para si, tirou-a de cima de um vestido de seda cor-de-rosa que não fora ainda usado e apertou-a nos braços. Vamos descansar sobre o assunto insistiu roçando-lhe os lábios pelas têmporas. Tudo se há-de resolver, meu amor. Verás.

 

Sim respondeu Shelby, de súbito completamente calma, encostando-se ao marido. Espero ver.

 

 

Telefone, Miss Serena anunciou Odille, entrando na sala de jantar.

 

Shelby levantou a cabeça, deixando de contemplar melancolicamente o croquete de caranguejo que tinha no prato.

 

Sinceramente, Odille. Devias saber que não se interrompe o jantar...

 

Não tem importância desculpou-a Serena afastando a cadeira e levantando-se rapidamente da mesa. De qualquer modo já tinha acabado.

 

Deixou cair o guardanapo em cima do prato em que mal tocara e voltou-se para a governanta, que deitava a Shelby um olhar furioso.

 

Vou atender no hall, Odille, obrigada.

 

Quando saiu da sala, Serena teve a sensação de deixar uma câmara pressurizada, nunca desejara tanto, em toda a sua vida, escapar à companhia dos familiares. O dia fora especialmente cansativo. Passara longas horas com o perito da companhia de seguros e com a polícia no barracão das maquinarias tentando descobrir as causas do incêndio e também mais algumas no escritório de Gifford a pedir ajuda aos vizinhos agricultores, sob a forma de empréstimo de equipamentos. Em seguida tivera de ir ao banco e, para além dessas aliciantes tarefas, de suportara ainda os modos agrestes de Shelby e as tentativas de Mason para a fazer mudar de opinião quanto à venda das terras.

 

O jantar fora a coroa de glória desse dia exaustivo. Como poderia alguém engolir uma garfada de comida, era coisa que não podia compreender, por isso ficou mais do que satisfeita por ter um pretexto para se levantar. Seria capaz de beijar os pés de Odille por isso.

 

Parou junto da mesa do corredor e levantou o auscultador, esperando ouvir a voz de um dos plantadores com quem falara nessa manhã.

 

Fala Serena Sheridan. Em que posso ajudá-lo?

 

É ao contrário disse uma voz abafada de homem. Eu é que quero ajudá-la.

 

Um arrepio percorreu-lhe a espinha e Serena apertou o auscultador com mais força.

 

Quem fala?

 

Um amigo.

 

A voz era áspera e rude, não parecia de um amigo, mas sim a de um estranho. Serena sufocou o medo que a invadiu e falou o mais calmamente que lhe foi possível.

 

Ouça, ou me diz quem é, ou desligo.

 

Não está interessada numa informação que pode relacionar Burke com o incêndio?

 

O seu coração bateu com mais força.

 

Estou a ouvir disse.

 

Vá ter comigo ao extremo do campo de cana-de-açúcar, junto do hayou, dentro de meia hora.

 

Não há outra maneira de fazer isso? perguntou Serena, já que a ideia de ir ao encontro de um desconhecido num sítio deserto não lhe agradava. Não pode dizer-me agora o que sabe?

 

Não se podem ver provas pelo telefone, minha senhora respondeu impacientemente o homem. Quer ou não quer? Se a companhia de seguros não pagar fica em maus lençóis.

 

Por fim, Serena concordou com o encontro, mas resolveu dizer a James Arnaud que a seguisse a curta distância, para o caso de haver problemas. Não lhe agradava a ideia de ir sozinha, longe de tudo, mas também não queria perder uma oportunidade de arranjar provas de fogo posto, pois o futuro de Chanson du Terre podia depender de a companhia de seguros pagar esse dinheiro. A plantação tornara-se agora responsabilidade sua e faria tudo o que fosse preciso.

 

Saiu sem dizer palavra a ninguém e dirigiu-se a casa de Arnaud, onde foi informada por uma filha dele, uma adolescente que mascava pastilha elástica, de que o pai se deslocara ao hospital para ver os homens feridos na explosão. Serena agradeceu à rapariga e seguiu o seu caminho, sem saber o que fazer. Podia pedir a um dos trabalhadores que a acompanhasse mas ignorava se algum deles fora cúmplice de Burke. Pensou ainda em faltar ao encontro, mas nada lhe garantia que o informador telefonasse outra vez.

 

O assunto tinha de ser esclarecido, pois não restavam dúvidas de que Gifford não poderia cobrir nem sequer uma fracção do custo da substituição do barracão e muito menos da maquinaria.

 

Não tinha alternativa. Serena respirou fundo e dirigiu-se para o local do encontro em rápidas passadas.

 

Quando lá chegou, dez minutos depois, não viu ninguém e ficou parada no extremo do campo de cana, fazendo recair o peso do seu corpo ora num pé, ora no outro. Sentia-se nervosa, não gostava de ali estar, nem mesmo que fosse à luz do dia. Aquele campo não ficava longe dos edifícios da plantação, mas não se viam dali, pois os caules verdes das canas já estavam altos. Para norte, o hayou Noir entrava pela propriedade dos Sheridan, separando de certo modo aquele campo dos outros, e os salgueiros ao longo da margem aumentavam ainda mais a sensação de isolamento.

 

Mesmo em pleno dia não era sítio onde ela gostasse de estar, quanto mais quase às nove da noite, com o Sol já a iniciar a sua descida. Em breve ficaria escuro e estava sozinha na orla de um campo de cana-de-açúcar, na margem de um hayou escuro, ouvindo o canto melodioso de um melro enquanto o sol-poente espalhava uma luz alaranjada. Serena ouviu um ruído entre os caules altos e voltou-se de repente, com a respiração suspensa. Uma garça-azul elevou-se nos ares, fantasmagoricamente silenciosa, com as suas longas pernas estendidas e ela forçou-se a respirar fundo, lentamente. Não era um jacaré, nem uma cobra, nem o seu informador.

 

Serena apertou os dedos em volta da lata de spray que guardava na sua bolsa. O ex-marido oferecera-lha quando ela iniciara um trabalho voluntário numa clínica de doenças mentais, em Charleston. A clínica ficava situada num sítio pouco recomendável e ele temera pela sua segurança. Tinha de confessar que por vezes ela própria também tivera um certo receio, mas a verdade é que nunca utilizara o presente dele. Nesse momento tocava-lhe por precaução, só para se tranquilizar, não acreditava realmente que precisasse de protecção. No entanto, não fazia mal estar preparada. Chegara a considerar a possibilidade de uma armadilha, mas pusera-a de parte, Burke não seria tão louco que fosse tentar alguma coisa tão pouco tempo depois do incêndio, pois isso apontaria directamente para ele.

 

Soltou um longo suspiro e olhou em volta, para ver se via alguma das compridas cobras azuladas que costumavam caçar ratos por entre as canas. Não eram venenosas, mas mesmo assim preferia não encontrar nenhuma. Havia também bocas-de-algodão e cabeças-de-cobre, que saíam do hayou à noite e que rastejavam pelos bosques, e só de pensar nisso Serena arrepiou-se, sentiu um nó na garganta. Contudo, tentou convencer-se de que não iriam ter com ela e fez o possível por afastar o pânico.

 

Onde estaria o maldito informador?

 

O som do motor de um barco que parecia aproximar-se, vindo de norte, chamou a sua atenção. Tentou espreitar por entre os ramos emaranhados dos salgueiros para ver o barco e os seus ocupantes, mas era impossível, a luz já estava a desaparecer ao longo do hayou, e tudo se tornava difuso.

 

Por qualquer razão, Serena achara que o seu informador devia seguir o mesmo caminho que ela. Na sua mente decidira que seria um empregado da plantação, que escolhera aquele sítio por ficar relativamente perto dos edifícios onde dormiam os trabalhadores, mas suficientemente escondido para não serem vistos. Não pensara no hayou, nem num barco e amaldiçoou a sua falta de previsão, sentindo um arrepio percorrer-lhe o corpo dos pés à cabeça.

 

Olha quem aqui está, Pou! exclamou Gene Willis, com um sorriso trocista, ao aparecer de súbito por entre os ramos dos salgueiros, afastando os arbustos altos para poder passar. Pou Perret seguia-o como uma doninha de estimação, com os olhos de pálpebras descaídas olhando furtivamente em volta e o bigode agitando-se como se estivesse a farejar o ar para saber se havia perigo.

 

É a mulher do Lucky! Não imaginei encontrá-la aqui, Miss Sheridan!

 

Serena olhou-os com desconfiança, apertando a lata de spray na mão. Reconheceu-os imediatamente, eram os homens que estavam no Mosquito Mouton’s. Duvidava de que alguma vez pudesse esquecer essa cena, Lucky com uma faca na mão, aquele tipo corpulento, de cabelo ruivo, a lançar-se sobre ele, o homenzinho baixo, mal vestido, a pegar numa garrafa partida com um brilho selvagem nos olhos. Poderiam ser o género de homens que alguém contratasse para atear um fogo ou cometer qualquer outro acto criminoso, mas não lhe pareciam capazes de dar uma informação a não ser por determinado preço.

 

Quanto querem? perguntou, tentando mostrar-se o mais calma possível, embora estivesse a tremer por dentro.

 

Ouviste isto, Pou? escarneceu Willis, movimentando-se com a graciosidade de um urso, pois devia pesar tanto como um deles. Serena reparou nas mãos dele, eram enormes e feias, com dedos sujos que faziam lembrar salsichas. A senhora quer pagar-nos. Já não me lembro da última vez que uma senhora nos pagou fosse o que fosse. E tu?

 

Aparentemente Pou tomou a pergunta por uma questão de retórica e ficou calado, mas Serena sentiu os olhos dele fixos nela, ardentes e ferozes como os de um animal, enquanto avançava lentamente, com as mãos atrás das costas.

 

Não foi para isso que aqui vieram? perguntou Serena, tentando ganhar tempo, forçando-se a mostrar-se calma, mas sem largar a lata de spray que tinha dentro da mala. Querem dinheiro?

 

Willis sorriu, com uma expressão que devia ter parecido diabólica, mesmo quando ainda estava no berço.

 

Não, Miss Serena, já nos pagaram. E que diabo acrescentou com uma gargalhada malévola, é um trabalho que de boa vontade faria de graça.

 

Os dois homens iam-se aproximando, lenta e ameaçadoramente e Serena deu um passo para trás. O medo apertava-lhe a garganta.

 

Eu pago-lhes o dobro garantiu, embora não soubesse por que trabalho haviam sido pagos, pois tinha a certeza de que valia a pena oferecer-lhes mais para não o fazerem.

 

Pou olhou de soslaio para Willis, procurando perceber qual a reacção dele. Willis fingiu considerar o oferecimento dela, cantarolando e fazendo caretas exageradas. Passado um minuto abanou a cabeça e sorriu outra vez.

 

Não, não me parece replicou passando uma das suas feias mãos pelo queixo. É que o que temos a ganhar com este trabalho é muito melhor que dinheiro. Não é verdade, Pou?

 

Este sobressaltou-se ao ouvir o seu nome e desviou o olhar do corpo de Serena para o fixar no companheiro.

 

Vamos, Willis. Se ele aparece e nos vê aqui, mata-nos!

 

Se estão à procura de Lucky, ele deve chegar a qualquer momento disse Serena.

 

Não era grande ameaça, mas ela começava a sentir-se um bocado desesperada. Willis limitou-se a sorrir e aproximou-se um pouco mais.

 

Bela tentativa, minha querida, mas sei exactamente onde se encontra Lucky Doucet. Está na taberna do Mouton com uma garrafa de uísque e uma loura oxigenada capaz de chupar a maçaneta de uma porta. Não creio que venha ter connosco tão depressa. É pena, mas vai perder uma grande festa.

 

Serena sentiu um aperto no estômago ao pensar que Lucky estava com outra mulher. Desconcentrou-se apenas por um instante e foi o suficiente para Willis a agarrar, prendendo-lhe o pulso esquerdo.

 

Serena reagiu instantaneamente, tirando o spray da mala e carregando no botão, enquanto o apontava para a cara de Willis. Ele afastou-lhe a mão com uma pancada rápida e forte, que lhe deixou o braço dormente até ao cotovelo, e fez cair a lata do spray e a bolsa, mas foi uma fracção de segundo demasiado tarde, o líquido atingiu-lhe o olho esquerdo e ele largou-a e cambaleou, uivando como um animal selvagem.

 

Serena voltou-se e começou a correr. O coração pulsava-lhe e sentia o sangue latejar nos ouvidos. Parecia-lhe que o seu corpo pertencia a outra pessoa, a alguém que não se apercebesse do perigo que corria. As pernas não se moviam suficientemente depressa, os pulmões não lhe davam ar suficiente para poder gritar. De vez em quando tropeçava, porque os sapatos que trazia não eram próprios para correr.

 

Ouviu Willis praguejar e gritar para o companheiro. Apanha-a, cretino e depois ouviu passos atrás dela.

 

Serena não tinha esperanças de escapar, o caminho estendia-se cada vez mais longo, sem um único edifício à vista. A sua única opção era saltar para o hayou e nadar, ou tentar esconder-se entre as canas-de-açúcar. Poderia, a partir daí, chegar a um sítio onde houvesse gente. Pensou nas cobras que por ali andariam e hesitou, mas não tinha alternativa. Quando sentiu que Perrett se aproximava, entrou subitamente no canavial.

 

Perrett bateu-lhe por trás, atingindo-a com um ombro no meio das costas, atirando-a para a frente, fazendo-a cair, e a violência da pancada provocou-lhe fortes dores em todo corpo. O seu perseguidor aterrou sobre ela e o seu peso originou que deixasse momentaneamente de ver e de respirar. Antes de poder sequer pensar em mexer-se já ele tinha um joelho sobre as suas omoplatas, esmagando-a contra o solo quente e húmido.

 

Perrett utilizou um lenço sujo para a amordaçar, apertando-o com força na nuca, juntamente com alguns cabelos, embora Serena tentasse não se mover. Lágrimas de dor e de medo vieram-lhe aos olhos quando o homem lhe amarrou as mãos atrás das costas, e depressa compreendeu que não podia dar-se ao luxo de chorar. O lenço, com o seu gosto azedo, impedia-a não só de falar, mas também de respirar.

 

Perret levantou-se e fê-la erguer-se também, utilizando a mordaça como o freio de um cavalo, e depois passou-lhe os dedos por baixo do lenço, tornando a mordaça insuportavelmente apertada, repuxando-lhe os cabelos, obrigando-a a pôr-se de pé para a levar até junto de Willis.

 

Este estava meio dobrado sobre si mesmo, com uma mão sobre o olho atingido, e com o outro lançou-lhe um olhar assassino. Serena compreendeu de repente por que motivo as instruções de autodefesa recomendavam colaboração em vez de agressão, pois o que Willis pensara fazer-lhe não tinha comparação com o que lhe passava pela cabeça nesse momento.

 

Serena tentou parar antes de chegar junto dele, mas Perret empurrou-a de novo e a violenta bofetada que recebeu fê-la cair de joelhos, sentindo lágrimas nos olhos e o gosto a sangue na boca.

 

Vais pagar por isto, grande cabra! ameaçou, sempre com a mão a tapar o olho magoado. Vais desejar não teres nascido mulher.

 

Serena tentou levantar-se e afastar-se, mas ele levantou o pé e desferiu-lhe um violento pontapé num ombro. A dor explodiu por todo o corpo e foi novamente atirada com a cara para o chão, sem poder amparar-se na queda.

 

Mete-a no barco ordenou Willis, cambaleando. Perret puxou-a novamente pela mordaça, obrigando-a a levantar-se e empurrou-a sem cerimónia. Tratava-se de um velho barco de alumínio com um enorme motor fora de borda, do género do que os caçadores furtivos poderiam usar, pensou Serena, e que atingia velocidade suficiente para fugir ao guarda da caça ou ao Lucky Doucet. Estava cheio de armadilhas, de oleados, de garrafas de uísque vazias e de latas de cerveja amolgadas. Nos cascos, acima da linha da água, Serena reparou numa série de pequenos orifícios, que bem podiam ter sido causados por balas. Cheirava horrorosamente a peixe e Perret forçou-a a sentar-se sobre um bocado de tecido preto e húmido, de costas contra a amurada, cujo rebordo irregular lhe provocava fortes dores. Perret pôs então o barco em movimento e afastaram-se da margem, enquanto Willis tentava tirar o ardor da vista atingida, molhando-a com cerveja.

 

O medo invadiu Serena, tornando-se cada vez mais intenso à medida que a iam levando para fora das terras dos Sheridan. Queria gritar, mas a mordaça prendia-lhe o grito no fundo da garganta, queria fugir, mas não tinha para onde. À volta dela só havia água escura.

 

Iam levá-la para o pântano e o terror que normalmente sentia ante a perspectiva de ir para lá redobrou e triplicou. Sabia, melhor que ninguém, como era fácil uma pessoa perder-se nos hayou e, quando dessem pelo seu desaparecimento, seria virtualmente impossível encontrá-la. Willis e Perret poderiam fazer o que quisessem, não haveria testemunhas, ninguém ouviria os gritos dela. Subitamente o futuro pareceu-lhe pior do que alguma vez pudera imaginar nos seus mais negros pesadelos.

 

Pensou quais seriam as ordens deles. Burke ter-lhes-ia pago para quê? Para a assustarem e a obrigarem a vender? Para a fazerem desaparecer enquanto fechavam o negócio? Para a conservarem como refém e pedirem um resgate por ela? Seria Chanson du Terre o preço? Parecia-lhe pouco provável. Tornava-se demasiado perigoso para Burke e para a Tristar, o que deixava apenas uma possibilidade: o texano pretendia afastá-la do seu caminho definitivamente.

 

Essa dedução fez aumentar ainda mais o seu pavor e as lágrimas vieram-lhe aos olhos, mas esforçou-se por contê-las. Precisava de todo o seu autodomínio, era essa a sua única esperança. Conservar a lucidez, a calma e procurar uma oportunidade para fugir.

 

Com esforço, forçou o medo a retroceder, comprimiu-o e meteu-o num compartimento mental, fechando a porta à chave, pois não a levaria a parte alguma, era uma perda de tempo e de energia. Não lhe serviria de nada chorar e tremer, nem desejar que aparecesse um salvador. Lucky não iria surgir por entre as árvores, estava no Mouton’s a afogar as suas mágoas e ela encontrava-se sozinha. Poderia escapar ou ser torturada e morta, tão simples como isso.

 

Ainda a tremer, forçou-se por olhar em volta para encontrar alguns pontos de referência. Se se concentrasse suficientemente, poderia memorizar o caminho e regressar, se conseguisse fugir. Achava que era o mesmo que Lucky seguia quando a levava à cabana de Gifford, mas não tinha a certeza. A escuridão aumentava de segundo a segundo, tornando difícil ver, e o hayou bifurcava-se demasiadas vezes para fixar as voltas que davam.

 

O pântano cercava-os, escuro e silencioso, ouvia-se apenas o ruído do motor do velho barco, e Perret diminuiu a velocidade ao seguir pelo meio de um bosque de ciprestes. Willis, sentado num dos bancos, em frente de Serena, deixara de utilizar a cerveja para lavar os olhos e agora bebia-a.

 

Ela sentia os olhos dele percorrerem-lhe o corpo, demorando-se nos seios. Tentou afastar essa sensação, mas esta persistia com a mesma obstinação que os mosquitos que lhe picavam o pescoço, as faces e as partes do corpo descobertas. Serena vestira umas calças e uma camisola com mangas compridas, pois sabia que não devia sair desprotegida, ao crepúsculo. Esquecera, no entanto, o aviso de Lucky a respeito do perfume e pusera um pouco, depois do duche, necessitando de se sentir feminina após um dia inteiro a remexer em cinzas, no barracão da maquinaria, e não se lembrara de se lavar de novo antes de sair de casa.

 

Willis levantou-se do banco, ajoelhou-se sobre o pano, em frente dela, e Serena viu que o seu olho esquerdo estava inchado e quase completamente fechado, dando-lhe um aspecto ainda mais monstruoso. Entornara abundantemente a cerveja por cima da camisa e isso tornava ainda mais intenso o cheiro ácido do seu suor. O homem ergueu uma mão e passou os dedos ásperos e sujos pela face de Serena, sorrindo perfidamente.

 

Não chamam Lucky a esse patife cajun sem razão. És uma mulher e tanto.

 

Serena lutou contra a vontade de fugir ao contacto da mão dele, pois um animal como Willis gostaria de ver que ela tinha medo. Mordeu a mordaça e tentou arvorar uma máscara que esperava fosse totalmente inexpressiva.

 

O que terá visto uma dama como tu naquele patife? perguntou Willis a si próprio, percorrendo com o olhar o corpo de Serena, como se a resposta lá se encontrasse.

 

Depois um sorriso trocista espalhou-se pelos lábios finos, duros, e o olho bom iluminou-se.

 

Aposto que ele é um garanhão e as senhoras como tu se calhar gostam disso, de um homem com o instrumento adequado para o trabalho. Quem diria?

 

Riu, aparentemente tão divertido pela falta de resposta como teria ficado por um protesto.

 

Sabes continuou ele, ainda a passar-lhe a mão pelo queixo. Quando estive preso, em Angola, tinha na parede da minha cela a fotografia de uma loura parecida contigo, e todas as noites sonhava com o que gostaria de lhe fazer. Só que estava nua.

 

Baixou então a mão do queixo de Serena e levou-a ao primeiro botão da blusa de seda, abrindo-o, e ela sentiu o fel subir-lhe à garganta, mas engoliu-o enquanto ele fazia saltar um segundo botão e depois outro, obrigando-a a morder a mordaça com mais força e a olhar em frente, enquanto Willis lhe abria a blusa e lhe observava os seios.

 

1 Angola: cidade do estado da Louisiana onde se localiza uma prisão de máxima segurança, a Louisiana State Penitentiary. (N. do t.)

 

Belas mamas murmurou, aproximando-se mais. Passou com um dedo pela orla de renda do sutiã uma vez, depois outra, enfiando um dedo na parte de dentro para lhe contornar a curva do seio. Mal posso esperar para ver o resto.

 

Serena não pôde conter um arrepio involuntário que lhe percorreu o corpo. A ideia de que aquele homem lhe poderia tocar nas suas partes mais íntimas era totalmente repulsiva. Willis percebeu a reacção e soltou uma gargalhada que continha mais ameaças do que humor.

 

É bom que te vás habituando, Lady Serena, porque eu e o Pou vamos comer-te de todas as maneiras até nos fartarmos.

 

Serena quase vomitou com as imagens mentais que aquele aviso lhe trouxe à mente.

 

Ela tinha tratado vítimas de violações, ouvira narrativas de abusos que a faziam pensar como Deus podia permitir tais atrocidades. Recordou esses detalhes, vívidos e horríveis, olhou para a superfície escura da água e pensou se não seria melhor afogar-se.

 

Pouco depois, chegaram finalmente ao destino. Perret conduziu o barco ao longo de um cais meio arruinado, desligou o motor e Willis desembarcou com a sua caixa frigorífica cheia de cervejas e começou a subir um declive em direcção a uma cabana, deixando Serena com Pou, cujos olhos se fixaram na blusa aberta. Estendeu a mão para tocar no peito dela, mas retirou-a quando ouviu a voz de Willis.

 

Espera até a levarmos para dentro. Os malditos mosquitos põem-me doido.

 

A cabana, que parecia abandonada, era um autêntico pardieiro, como ela julgara que fosse a casa de Lucky antes de a ter visto, rodeado de lama, de ervas daninhas e de lixo: latas de cerveja vazias, pneus velhos e um frigorífico inutilizado. A uma certa distância encontrava-se um automóvel ferrugento.

 

Um carro significava que havia uma estrada ali perto, mas de que lhe serviria se ela não tinha meio de transporte? Apanhá-la-iam, como haviam feito antes, pelo que a sua única esperança era embrenhar-se nos bosques.

 

Que esperança perder-se, na escuridão da noite, amarrada e amordaçada, num sítio que a aterrorizava. O seu antigo medo reaparecia, mas sabia que o novo seria ainda pior. Sobrevivera uma vez no pântano; mas não resistiria ao que os dois malfeitores lhe queriam fazer.

 

Willis já entrara na cabana e Ferret conduziu-a para lá com os dedos metidos na mordaça, puxando-lhe o cabelo. Era um homem franzino, mais ou menos da altura dela e magro, de aspecto anémico, com o peito metido para dentro e as calças sujas pendendo-lhe das ancas não existentes. Não teria nada que se parecesse com a força de Willis, mas era rápido e, se quisesse ver-se livre dele, precisava de fazer melhor do que da primeira vez.

 

Serena começou a andar mais depressa em direcção à cabana, de modo que em vez de a puxar Perret teve de estugar o passo.

 

Estás com pressa, chereperguntou ele, mostrando uma fila de dentes horrorosamente estragados. Também eu.

 

Serena estendeu de repente um pé, fê-lo tropeçar e torceu a parte superior do corpo para a esquerda. Um segundo antes, Perret gozava o seu domínio sobre ela e no momento seguinte encontrava-se estendido no chão no meio de uma confusão de pneus velhos e de arames ferrugentos.

 

Serena não perdeu tempo a olhar para trás para ver se ele a perseguia. Correu desesperadamente para o abrigo das árvores, sem olhar, evitando chocar com os troncos por fracções de segundo e tropeçando nas raízes. Andou em ziguezague, voltou para trás e chocou com ramos que lhe arranhavam as faces e lhe rasgavam a roupa. A escuridão era completa e ela mal distinguia as árvores, pelo que acabou por bater com um ombro numa delas, o que a obrigou a parar, meio dobrada, devido à dor que sentiu.

 

Agachada junto de uma árvore carregada de dióspiros avaliou os seus vários ferimentos aumentados pelo último choque. Começava a sentir as mãos dormentes atrás das costas, mas o que mais lhe doía era o braço em que Willis batera para a fazer deixar cair o spray. O ombro que levara o golpe de Willis sofrera agora o choque com o tronco da árvore e os músculos doíam-lhe devido à posição forçada dos braços. Tinha dores por todo o corpo, era verdade, mas o certo é que estava viva e livre, pelo menos de momento.

 

Respirava com dificuldade, ofegante devido ao esforço de correr e à mordaça. O nó afrouxara um pouco devido a Perrett ter puxado por ele e Serena achava que talvez conseguisse tirá-la. Encostou a cara ao tronco da árvore e esfregou-a contra ela, tentando arrancar o pedaço de pano, e, embora a casca dura lhe arranhasse a pele, continuou. Os progressos foram graduais, mas por fim a mordaça rasgou-se e caiu-lhe da boca, mas, ainda presa ao cabelo na nuca, parecia agora ter uma coleira em volta do pescoço. Serena cuspiu, tentando tirar aquele sabor horrível da boca.

 

De repente sentiu algo rastejar no mato à sua direita e deu um salto, tentando perscrutar a noite. Ouvia os movimentos, mas não sabia o que eram, nem de onde vinham exactamente. Ocorreram-lhe recordações antigas e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, mas engoliu-as, olhando em volta, tentando desesperadamente saber o que a esperava. À noite, o pântano tornava-se um lugar repleto de vida, cheio de caçadores e de caça.

 

Meu Deus, estou a ser caçada murmurou, enquanto lágrimas de desespero lhe faziam arder os olhos.

 

Serena sabia que não beneficiava da camuflagem natural que a maior parte dos animais do pântano possuía, pois destacava-se na escuridão, com a blusa branca e as calças de caqui.

 

A certa distância, atrás dela, ouviu alguém passar por entre o matagal. Forçou-se a continuar a correr, mudando outra vez de direcção e pensando se Perret teria vindo sozinho atrás dela, ou se Willis o acompanharia. Se ao menos pudesse ver, se tivesse as mãos livres, se não estivesse tão assustada, se Lucky aparecesse.

 

Voltaria alguma vez a vê-lo? Parecia-lhe uma estupidez pensar nisso agora, mas não pôde deixar de se interrogar: saberia ele quanto ela o amava? Faria ela própria alguma ideia disso, antes desse dia? Correr para salvar a vida originava que muitas coisas fossem vistas sob outra perspectiva e Serena deu por si a fazer promessas a Deus. ”Se me livrar disto, vou tentar remediar as coisas com Shelby. Perdoarei a Gifford. Darei mais para os necessitados. Esforçar-me-ei mais por me aproximar de Lucky.”

 

Voltaria a vê-lo se continuasse a correr, tinha de acreditar nisso, e tudo se resolveria. Se continuasse a correr, se conseguisse fugir...

 

O ar da noite era como fogo nos seus pulmões, já só ouvia a própria respiração ofegante e as pulsações aceleradas do coração. A cabeça latejava-lhe, o cheiro húmido, forte, da floresta penetrava-lhe nas narinas, o solo esponjoso parecia ceder debaixo dos seus pés. Serena sentia-se completamente desorientada, quase tonta, pairando entre a histeria e o delírio.

 

Pensou que, se conseguisse chegar a casa de Lucky, poderia usar o rádio para pedir ajuda, ou talvez descobrir a arma dele. Mas não chegou lá. Uma raiz fê-la tropeçar e estatelou-se ao comprido, no escuro, caindo justamente junto das botas que protegiam os pés de Gene Willis.

 

 

Vem, coisa fofa, vamos para um sítio onde possamos estar à vontade.

 

Lucky olhou para a loura que se debruçava toda sobre o seu lado direito sem esconder a impaciência. A mulher não tinha autodomínio e ainda menos percepção do perigo. Aproximara-se logo que ele se instalara numa mesa a um canto da sala do Mouton’s, demasiado teimosa ou demasiado estúpida para ver que todos se haviam afastado dele. Apesar de bem municiada noutros aspectos, possuía, sem dúvida, poucos miolos. Ele resmungara agressivamente quando ela se chegara, mas a estupidez da rapariga era tanta que insistia em continuar a seu lado.

 

Era enervante. Lucky não fora ali à procura de uma mulher fácil, mas sim para beber uns copos, na esperança de que algum louco o provocasse e se iniciasse uma briga. Sentia necessidade de bater em alguém, como fizera na noite anterior e tencionava continuar a fazer todas as noites até deixar de pensar nisso.

 

Contudo, a loura, que tinha outras ideias, debruçou-se sobre ele, apertando os braços sob os seios para melhor evidenciar o seu volume. O top preto que usava, o qual parecia destinado a uma criança de doze anos, sem peito, ficava-lhe bem acima da cintura das calças de ganga elástica, muito justas, e mostrava bem que não trazia mais nada por baixo. A mulher parecia ter dificuldade em manter os olhos abertos, talvez devido à espessura das pestanas falsas e da quantidade de sombra que tinha nas pálpebras, e o seu cabelo louro platinado castanho nas raízes fora elaboradamente penteado e tinha laca suficiente para fazer um buraco no ozono do tamanho do lago Pontchartrain. Usava ainda uns brincos semelhantes a candelabros.

 

Lucky olhou-a com repugnância. A mulher não tinha classe, cheirava a perfume barato, a tabaco, e bebera já muito uísque. Era bonita, mas ordinária ainda que o seu corpo fizesse com certeza virar muitas cabeças. Contudo, não despertara nele senão irritação, seria melhor se tivesse um pouco mais de classe, de sobriedade, se se apresentasse como uma senhora... como Serena.

 

Lucky praguejou em francês e engoliu o que restava do seu uísque. O que tinha ele a ver com uma ”senhora”? Uma mulher que queria conhecer o seu interior, tocar nos seus pontos mais sensíveis, que nunca o deixaria manter o distanciamento emocional de que ele precisava. Dissera-lhe desde o início o que daria apenas sexo e, no entanto, ela continuara a pretender mais, desejava amor e Lucky nada queria ter a ver com isso. Fim da história. Então porque pensava nela?, perguntou uma voz interior. Porque gostaria de saber como é que ela tinha resolvido as coisas com Burke e com Shelby? Porque queria saber se ela gastara todas as suas forças e precisava de um ombro para encostar a cabeça?

 

Praguejou e empurrou a loura, estendendo a mão para a garrafa de uísque que se encontrava em cima da mesa, em frente dele, mas a mulher o nome dela entrara-lhe por um ouvido e saíra-lhe pelo outro sentou-se e serviu-se do maço de cigarros dele.

 

És um tipo duro comentou, expelindo uma nuvem de fumo para o tecto numa posição estudada para mostrar bem o perfil. Um homem solitário!

 

Os ombros dela agitaram-se e os seios balouçaram ao ritmo da música que saía da jukebox. Lucky lançou-lhe um olhar sarcástico.

 

E tu, quem és? Filha de Einstein?

 

Ela prosseguiu com a sua rotina de sedução, sem ligar às palavras dele.

 

Gosto de um tipo duro e não me importo de ter uma aventura, se me estás a entender.

 

Leio em ti como num livro aberto.

 

Entãooo... prolongou exageradamente a sílaba, sorrindo largamente e erguendo as sobrancelhas cuidadosamente depiladas.

 

A resposta de Lucky foi adiada pela chegada de Skeeter Mouton, que puxou de uma cadeira e instalou nela o seu corpanzil, limpando o suor da testa com o pano com que fazia o mesmo ao balcão do bar.

 

Um sorriso surgiu-lhe no meio da barba como uma lua em quarto crescente, mas não lhe chegou aos olhos.

 

Olá, por onde tens andado?

 

Lucky ignorou o cumprimento e serviu-se de mais bebida.

 

Estiveste a deitar outra vez água no uísque, Skeeter?

 

O dono do bar levou a mão ao coração, num gesto dramático, e o seu rosto redondo arvorou uma expressão magoada.

 

Eu? Mais non. Madame Mouton é que faz as contas, ela é que é capaz de pôr água nas bebidas. Como podes acusar-me disso, quando vim até aqui para te dar informações?

 

A respeito de quê?

 

Dos teus dois amigos.

 

Lucky preparava-se para dizer a Mouton que não queria saber o que Ferret e Willis andavam a fazer, estava farto de intervir nas batalhas dos outros. Daqui em diante iria manter-se num isolamento rigoroso, não haveria mais damas em apuros nem mais plantações para salvar. Viveria apenas para si próprio, o resto do mundo podia ir para o inferno.

 

Mas Skeeter continuou, sem saber dos pensamentos de Lucky.

 

Eles tiveram um encontro esta tarde.

 

Com quem?

 

Não que lhe importasse, perguntou por mera curiosidade. Olhou para a sala cheia de fumo e viu Len Burke sentado a uma mesa, conversando animadamente com Perry Davis.

 

Com ele? quis saber. Mouton abanou a cabeça.

 

Non. O homem dos petróleos tem estado sempre aqui. Os outros dois receberam uma chamada, saíram e voltaram pouco depois, sorrindo como jacarés e espalhando dinheiro a rodos. Isto foi pouco antes de tu chegares, tu a entrares e eles a saírem pelas traseiras.

 

E então?

 

O gordo Skeeter ergueu os olhos para o tecto e tirou uma nota do bolso do seu avental, passando-a por baixo do nariz de Lucky, como se o cheiro do dinheiro pudesse aumentar o interesse deste pelo assunto.

 

Foi esta a nota que eles deram de gorjeta à criada que os serviu. Toinette mostrou-ma porque nunca recebera uma gorjeta tão grande. Quase ia desmaiando. Vinte dólares! Não é para menos!

 

Lucky olhou para a nota com irritação e viu que era nova, do género das que as pessoas da cidade costumam trazer. Homens como Willis usavam notas de aparência tão suja como os negócios em que as ganhavam, e se ele tinha dado uma daquelas à empregada do bar, era porque possuía muitas mais. Devia ter recebido uma bela quantia para mostrar tal generosidade, pois não era conhecido pela sua filantropia.

 

Toinette diz que Willis trazia no bolso um rolo de notas como esta, grosso como a cauda de um jacaré, e eu calculo que não ganhou esse dinheiro a vender bíblias. Por outro lado, como não voltou ao hayou desde a noite em que os teus tiros lhe encheram o barco de buracos, também não o arranjou a vender caranguejos roubados. Alguém lhe pagou qualquer coisa... Mouton limpou novamente a testa suada. Deve ter sido um trabalho sujo, não achas?

 

Lucky olhou para a nota, esfregando distraidamente o papel rijo. Podia tratar-se do pagamento final por terem ateado o fogo no barracão, mas, se assim fosse, Willis e Perret estariam agora ali a jogar à batota e a beber uísque aguado. Não, era por qualquer outra coisa... que deviam estar a fazer nessa mesma altura.

 

Não sabes onde eles iam?

 

Skeeter abanou a cabeça, franzindo a testa.

 

Willis disse que marcara encontro com uma senhora, mas não lhe prestei atenção. Que senhora aceitara falar com aqueles dois?

 

Shelby, respondeu mentalmente Lucky. Serena tinha razão, não fora a irmã quem ateara o fogo, era um trabalho demasiado sujo e cansativo, indigno dela. E agora pagara-lhes para fazerem outra coisa.

 

Partiram daqui e foram rio acima. Skeeter inclinou a cabeça e sorriu. Puseste ar condicionado no barco deles, cher. Willis nunca conseguirá tapar aqueles buracos todos.

 

A loura, que felizmente permanecera calada nos últimos cinco minutos, ficou de súbito alerta ao ouvir o nome de Willis. Debruçou-se sobre a mesa, de modo a que Lucky lhe pudesse ver melhor os seios.

 

Conhecem o Gene? É um filho da mãe arruaceiro, não é?

 

Inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, que teve a infeliz semelhança com o relinchar de uma mula. Lucky voltou-se lentamente para ela, com uma expressão tão dura que faria muitos homens recuarem, mas a loura limitou-se a piscar-lhe um olho e a sorrir.

 

Como conheces Willis, chère? perguntou ele com uma voz suave como seda.

 

Bem, conheço-o de todas as maneiras. Soltou nova gargalhada alvar e deu uma palmada num braço de Lucky. Ele é que me mandou vir ter contigo, disse que tu irias precisar de uma mulher, ”porque a tua ia a um sítio”. Sorriu-lhe do modo mais deslumbrante, passou-lhe uma mão pela coxa e concluiu: Mais tarde lembra-me de lhe agradecer.

 

Lucky sentiu-se gelar por dentro, murmurou uma oração em francês e levantou-se lentamente, como que em transe, apoiando as mãos na beira da mesa.

 

 

O barco a gasolina quase voava sobre a superfície do hayou a uma velocidade que era perigosa mesmo de dia devido às curvas e contracurvas do percurso e aos ramos dos ciprestes que pendiam sobre o rio. Lucky manobrou para a direita e depois para a esquerda, evitando à justa chocar com um tronco. Olhava em frente, centrando toda a sua energia em conduzir o barco, mas, como conhecia o pântano melhor que ninguém, bastava-lhe focar, visualizar o caminho e reagir numa fracção de segundo para evitar os obstáculos.

 

Saíra da taberna de Mouton como um homem perseguido pelo diabo, parando junto da sua piroga apenas o tempo suficiente para tirar de lá o saco com o equipamento antes de saltar para a embarcação que agora pilotava. Usava os seus óculos de infravermelhos, o que lhe permitia ver o que o cercava, mas não o suficiente, considerando a velocidade a que ia. Tinha a Beretta no coldre do ombro e preferiria levar também a espingarda, mas não era coisa que pudesse guardar na piroga e não tinha tempo para a ir buscar.

 

Logo que, no Mosquito Mouton’s, percebera o que se estava a passar, deduzira que o factor tempo era essencial, pois o que soubera em Chanson du Terre confirmara os seus piores receios. Odille disse-lhe que Serena seguira em direcção à casa de Arnaud, a filha deste vira-a encaminhar-se para o hayou e no fim do caminho, junto da margem, encontrara a bolsa e a lata de spray.

 

Willis e Ferret tinham-na levado e Lucky achava que sabia para onde. Willis tinha um sítio onde guardava os seus galos de combate, sendo suposto tratar-se de um esconderijo secreto, por isso deviam sentir-se ali perfeitamente à vontade. Não deviam contar com que Lucky conhecesse o local e também não acreditavam que ele recusasse as atenções da loura. Teria a seu favor o elemento surpresa, só esperava que não fosse demasiado tarde.

 

A ideia das mãos de Willis e de Perret sobre o corpo de Serena fez-lhe ver tudo vermelho e teve de fazer um esforço para afastar essa imagem. A raiva consumia-o e sabia que não se podia deixar dominar por ela, tinha de se controlar, não seria bom para Serena se ele aparecesse lá como um animal selvagem.

 

Apelou para os seus antigos talentos e instintos, e aprofundou um sentido de profunda calma: ia cumprir uma missão. Conduziria o barco pelo pântano, encontraria Willis e Perret e matá-los-ia por terem tocado na mulher que amava, na ”sua mulher”.

 

Estava apaixonado por Serena Sheridan e se, até então, fora capaz de negar isso, o facto de saber que ela estava em perigo abria novas perspectivas. O que sentia por ela era algo mais profundo do que desejo, fora-o desde o início, mas saber isso não trazia alegria nem conforto ao coração de Lucky. Com efeito, o que lhe fazia era sentir-se desesperado, pois não tinha nada para lhe oferecer, era pouco mais do que um vegetal, vivendo dia a dia. Como poderia tomar a responsabilidade de ter uma mulher? Não a queria, não podia enfrentar isso, o amor nada mudava.

 

Praguejou ao manobrar o leme para evitar um tronco no último segundo. A única coisa que o amor lhe estava a fazer era distraí-lo da sua tarefa. Se não tivesse cuidado, ainda acabaria por morrer antes de salvar Serena.

 

O hayou descrevia uma curva suave para leste e nessa altura Lucky desligou o motor, a partir dali iria a pé. Conduziu o barco para a margem, guardou a chave de ignição no bolso das calças e em seguida amarrou-o ao ramo de um salgueiro, ao mesmo tempo que saltava para terra.

 

Silencioso como uma pantera, avançou por entre as árvores, revivendo fragmentos de outras missões. Por breves instantes recordou o cheiro da floresta tropical, ouviu ao longe os tiros da guerrilha e sentiu o cérebro começar a divagar, mas recompôs-se rapidamente. Era altura de conservar toda a calma e lucidez. Tirou a Beretta do coldre e empunhou-a, ao mesmo tempo que, com a outra mão, ia abrindo caminho pelo denso matagal.

 

Era uma noite quente, silenciosa, o ar estava pesado com o aroma de variadas flores. O coaxar das rãs e o zumbido dos insectos combinavam-se num som estridente que pairava sobre todo o pântano. Lucky apurou o ouvido para procurar identificar outros sons, pensando que talvez Willis tivesse deixado Perret de vigia, mas ouviu apenas os ruídos habituais da noite no pântano, nada mais.

 

Este último pensamento, fez com que sentisse um nó no estômago. Mon Dieu, não podia suportar a ideia de Serena estar a sofrer às mãos de homens como Perret e Willis. Eles eram pouco menos que animais cruéis, astutos, primitivos. Gostariam de a aterrar, simplesmente por ser essa a natureza deles, mas esse prazer seria acrescido por saberem quem era, iriam fazê-la pagar por ele os impedir repetidas vezes de roubarem as redes dos outros.

 

Durante uns segundos terríveis imaginou Serena amarrada, com o rosto contorcido pela dor, um grito a sair-lhe da garganta, as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos, mas levou as mãos às têmporas para afastar essa imagem, que fez com que o medo o invadisse.

 

Mataria Shelby por aquilo, fora ela quem pagara para raptarem a irmã, que era um empecilho, que a impediria de atingir os seus objectivos. Já fizera o mesmo antes, aquando da sua gravidez indesejada, fruto da ligação que mantivera com ele. Esta lembrança provocou-lhe uma vaga de ódio. Rangeu os dentes e esforçou-se por se controlar, não era ocasião para emoções, precisava de entrar no olho do furacão, de se concentrar, de se manter calmo.

 

Parou e ficou por momentos encostado ao tronco de uma árvore, obrigando o corpo a relaxar-se. Respirou fundo e afastou tudo do seu pensamento, deixando apenas uma calma determinação.

Serena entrou na cabana a cambalear, empurrada por Willis, e foi cair no pavimento sujo. A única luz existente vinha de um candeeiro partido colocado a um canto. O quarto cheirava mal, a urina e a ratos. Um velho sofá verde mostrava as molas e o estofo roto e junto dele estava uma mesa de madeira, desconjuntada. Do lado oposto havia uma cama com cabeceira de ferro, ferrugenta, sem lençóis, apenas com um velho cobertor cheio de manchas.

 

Não era um sítio onde pudesse imaginar estar e muito menos morrer, pensou Serena, esforçando-se por se pôr de joelhos, enquanto observava o que a rodeava, procurando uma saída. Existia uma porta nas traseiras, mas parecia-lhe muito distante e tinha Willis na sua frente. O homenzarrão agarrou-a pelo braço magoado e levantou-a, empurrando-a em seguida para a cama.

 

Instala-te comodamente, querida disse ele, soltando uma gargalhada.

 

Não posso estar confortável com as mãos amarradas atrás das costas respondeu Serena, ignorando as dores e sentando-se com custo na beira da cama. Podem desatar-me, sei quando estou vencida. É óbvio que não posso fugir.

 

É isso mesmo concordou Willis inclinando-se para ela. Numa das mãos tinha uma garrafa de uísque e na outra um revólver. Um sorriso de triunfo contorceu-lhe a cara. Não podes fugir e, com as mãos amarradas, também não consegues agarrar numa arma, nem arranhar-nos os olhos quando nos estivermos a divertir. Bela tentativa, Miss Sheridan, mas nada feito. Gosto de ti assim mesmo.

 

Bebeu um gole da garrafa, deixando o líquido escorrer-lhe pelo queixo, e cambaleou em direcção à cama. Serena observava-o, tentando avaliar o seu grau de embriaguez. Willis emborcara várias cervejas durante o caminho e antes disso já devia ter bebido. Se continuasse talvez não pudesse tomar parte na festa, mas havia ainda Ferret a levar em conta.

 

Este ficara à porta, de espingarda em punho, rindo nervosamente ao ver o cúmplice avançar para ela. Serena quase tinha mais medo dele do que de Willis, que era cruel e violento, mas o outro tinha um brilho selvagem nos olhos quando a fitava, levando-a a pensar que o homem estava à beira da loucura.

 

Willis sentou-se também na cama, com as coxas encostadas às de Serena, roçando os lábios pelos dela. Depois pôs-se de pé com dificuldade, pousou a garrafa de uísque em cima da mesa e inclinou-se sobre o rosto dela. O seu hálito e o cheiro do corpo dele seriam suficientes para a fazer recuar, mas manteve-se firme. Enquanto mantivesse a cabeça a funcionar e não se deixasse dominar pelo medo, teria uma hipótese, mas no momento em que o terror a invadisse e cedesse à pressão eles cairiam sobre ela, como lobos sobre um cordeiro.

 

Vês, se eu te desamarrasse podias tentar impedir-me de fazer isto observou Willis com a boca a escassos centímetros da dela.

 

Depois pegou no revólver e o coração de Serena quase parou quando ele lhe roçou o cano pelo queixo, pelo pescoço e depois pelo peito, contornando a renda do sutiã e premindo o aço frio contra o seio. Um arrepio atravessou-a dos pés à cabeça e Willis soltou uma gargalhada.

 

Gostas, Lady Serena? perguntou passando-lhe o cano da arma pelo mamilo. Ainda vais gostar mais disto.

 

Serena sentiu um arrepio de alívio ao vê-lo pôr o revólver em cima da cama, mas logo soltou uma exclamação abafada quando a agarrou pelos cabelos e a atirou para trás inclinando-se depois sobre ela. Aquele gigante, com um sorriso diabólico e um olho inchado e fechado, parecia tirado de um filme de terror. Então, com um risinho arrastado, Willis ergueu a garrafa sobre a cabeça dela e Serena preparou-se para receber uma pancada, mas foi apenas líquido que se lhe espalhou pelo peito, encharcando o sutiã, correndo para o chão e entontecendo-a com o cheiro.

 

Willis debruçou-se mais, apertou-lhe um mamilo entre os lábios, chupando-o através da seda molhada, e em seguida, metendo-lhe um joelho entre as coxas, forçou-a a abrir as pernas e caiu sobre ela, fazendo-a aperceber-se da sua erecção.

 

Serena sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos ao perder as últimas esperanças de fuga, esmagada sob o peso dele. Tivera a oportunidade de fugir e não a aproveitara. Desejava que se limitassem a matá-la, não queria que a última coisa que tivesse de suportar na vida fosse humilhação e aviltamento, não queria morrer levando a recordação de ter sido violada.

 

Fecha os olhos e pensa em Inglaterra”, era o que diziam às mulheres inglesas da época vitoriana para fazer quando tinham de suportar relações sexuais. No caso seria ”fecha os olhos e pensa em Lucky” e Serena ficou com os olhos cheios de lágrimas contidas quando Willis começou a chupar-lhe os mamilos com força e se apertou contra as suas coxas. Mordeu então os lábios até sentir o gosto do sangue, a repugnância que experimentava era terrível, aquilo era uma das piores formas de violência.

 

Eh, quem disse que eras tu o primeiro? perguntou Perret aparecendo de súbito atrás de Willis.

 

Os seus olhos sonolentos estavam quase fechados e o bigode agitava-se, enquanto mexia os maxilares de um lado para o outro. A espingarda continuava nas suas mãos e os dedos passeavam nervosamente sobre a coronha e o cano da arma. Willis levantou a cabeça do peito de Serena, mas não se dignou olhar para o seu companheiro.

 

Já sabias que era eu retorquiu em voz baixa e ameaçadora.

 

Serena observou a cara de Perret com interesse. O homem estava muito vermelho, mexia a boca como se estivesse a ganhar coragem para protestar e o brilho feroz dos seus olhos acentuara-se ao olhar para o peito dela, coberto ainda pelo sutiã molhado.

 

Não foi isso que disseste.

 

Vai para o diabo resmungou Willis, fazendo maior pressão sobre o corpo de Serena e baixando outra vez a cabeça, sem se importar com o outro.

 

Não foi! insistiu Perret. Combinámos que podia ser eu o primeiro!

 

Parece-me que as promessas dele não valem muito interveio Serena, sentindo alguma esperança. A sua habilidade em lidar com as mentes humanas e com as palavras era a sua única arma. Se conseguisse pôr um contra o outro, tinha uma pequena hipótese de sair dali com vida.

 

Tu, cala-te! ordenou Willis voltando-se para ela.

 

Porque hei-de calar-me? Ele é que tem a arma.

 

É verdade declarou Perret, sempre a alisar o cano da espingarda. Eu é que a tenho. Quero que ela seja primeiro para mim.

 

Vai para o diabo repetiu Willis.

 

Posso dar-te um tiro, patife aldrabão!

 

Perret apontou a espingarda para o cúmplice, como se tivesse intenção de fazer o que dizia, mas, em vez de puxar o gatilho, apoiou o cano nas costas de Willis, que praguejando começou a levantar-se, devagar, puxando as calças e olhando o ”amigo” com uma expressão de raiva De súbito num gesto rápido, inesperado num homem tão corpulento agarrou na espingarda pelo cano e virou-a sobre o outro que recuara, por pouco não lhe acertando na cabeça

 

Estúpido, inútil! Nem sequer foste capaz de a trazer do barco para aqui sem fazeres asneira! Bem podes esperar pela tua vez!

 

Mas tu disseste que era eu o primeiro! gritou de novo Perret.

 

Serena observava-os. Gritavam, lançando pragas e msultando-se, ao mesmo tempo que se iam afastando da cama em direcção ao outro lado do quarto. Não havia agora ninguém entre ela e a porta da frente, podia correr para lá Duvidava de que conseguisse escapar, mas era uma possibilidade, talvez lhe dessem um tiro em vez de a perseguirem de novo, e isso parecia-lhe preferível ao género de violação que planeavam. Inclinou-se para a frente, preparando-se para correr, mas de súbito Willis colocou a espingarda ao lado da porta e olhou de relance para ela.

 

Está bem, está bem concordou fazendo um gesto para que Perret se calasse. Vamos tirar à sorte para ver quem é o primeiro.

Puxou de uma moeda e Perret arrancou-lha da mão para ver se não seria falsa ou não

teria duas caras. Devolveu-a e Willis lançou-a ao ar com um gesto rápido.

 

Serena saltou da cama, correu e Perret voltou-se para ela, mas a moeda não chegou a tocar no chão.

 

A porta das traseiras abriu-se e ouviu-se um tiro que fez com que a moeda desaparecesse. O coração de Serena quase parou quando se voltou e viu Lucky parado à entrada, o justiceiro personificado, com as suas calças camufladas, a T-shirt preta, lama nos braços e na cara e uma arma na mão

 

Perret gritou como se tivesse visto um fantasma e voltando-se rapidamente para a porta, estendeu a mão para a espingarda, mas a arma de Lucky disparou outra vez e Perret soltou de novo um grito, agora de dor, levando a mão ao ombro. Caiu para a frente, sobre a porta de rede, e ficou estendido nos degraus, a gemer e a chorar.

 

Willis lançou-se sobre Serena, pondo-lhe um braço em volta do pescoço, mas o impulso fez com que ele tombasse para trás, arrastando-a consigo, e antes que ela pudesse pestanejar já ele tinha o revólver na mão e o apontava a Lucky. Agindo por instinto e pela adrenalina, Serena atirou a cabeça para trás, com toda a sua força, fazendo a bala acertar no tecto e provocando a queda de uma chuva de destroços.

 

Serena libertou-se então do braço do seu raptor e preparou-se para correr até à porta, sentindo campainhas nos ouvidos devido ao ruído ensurdecedor dos tiros, mas sentiu a mão de Willis prender-lhe um tornozelo, fazendo-a cair, e ao voltar a cabeça viu que ele lhe apontava o revólver à cabeça.

 

Nessa altura tudo pareceu passar-se em câmara lenta. A arma estava virada para ela e por detrás Serena viu o rosto feio de Willis, contorcido pela raiva. A boca dele abriu-se, ouviu-o gritar qualquer coisa que não conseguiu perceber, e depois Lucky lançou-se sobre ele como um comboio e ambos rolaram pelo pavimento esburacado. A arma de Willis saltou-lhe da mão e ficou a rodopiar, como um pião.

 

Lucky levantou-o do chão, agarrou-o pela camisa e atirou-o contra a parede. Largara a pistola e empunhava agora a faca de mato, mantendo a lâmina junto da garganta do adversário.

 

O corpo de Willis tremia visivelmente, a sua cara estava cor de cinza e o suor corria-lhe abundantemente da testa, como água ao longo duma cascata.

 

Num murmúrio rouco, Willis invocou os nomes dos vários membros da Sagrada Família, enquanto olhava a morte com os olhos esbugalhados.

 

Oh, eu não chamaria por eles troçou Lucky com uma gargalhada, enquanto um sorriso assustador iluminava os seus olhos de pantera e lhe curvava os cantos da boca. Acariciou o pescoço de Willis com a lâmina da faca. Tenho a sensação de que não estás exactamente bem visto lá em cima.

 

Willis engoliu convulsivamente em seco e a sua maçã-de-adão roçou pela lâmina da faca.

 

Jesus, Doucet murmurou convulsivamente. Não estou armado, isto é um assassínio.

 

Os olhos de Lucky tinham um brilho gelado.

 

Julgas que me importo? Não vai restar muito de ti para o poderem provar. Tocaste na minha mulher e eu vou matar-te. Só gostava de o poder fazer lentamente.

 

Lucky! a voz de Serena chegou até ele, trémula e doce, penetrando dificilmente a sua consciência, como se fosse de outra dimensão. Não faças isso!

 

Lucky olhou-a quando ela apareceu na periferia da sua visão. O rosto e o pescoço de Serena estavam cheios de arranhões, a blusa aberta deixava ver o sutiã rasgado e sujo, tinha um corte ensanguentado a um canto da boca e os lábios inchados. Os seus olhos bonitos e meigos mostravam uma expressão de dor e de terror e, ao vê-la, a fúria de Lucky redobrou.

 

Foi ele quem te fez isso murmurou com os dentes cerrados.

 

Serena nada disse, com receio de que as suas palavras o fizessem enfurecer ainda mais. Percebia que ele lutava para não perder o autodomínio, mas o seu corpo estava tenso, com todos os músculos salientes.

 

Lucky voltou-se novamente para Willis.

 

Hei-de encontrar-te no inferno murmurou numa voz perigosamente baixa, mas tu vais lá chegar muito antes de mim.

 

Fez um ligeiro corte na pele de Willis e gotas de sangue começaram a cair, como lágrimas, sobre a camisa do raptor, que soltou um gemido com os lábios a tremerem.

 

Lucky olhou o sangue, sentiu o seu cheiro nas narinas e imagens várias rodopiaram na sua mente; o coronel Lambert, Amalinda Roca, Shelby. Viu cada um desses rostos nas gotas vermelhas, os seus olhos raivosos, as bocas a rirem, viu cenas fragmentadas do seu passado outros inimigos, outras lutas, outras mortes. Sentiu a escuridão tentar invadir-lhe o cérebro, como uma onda, submergi-lo para sempre, e a sua mão apertou mais o cabo da faca, enquanto Willis continha a respiração.

 

Então ouviu outra vez a voz de Serena, como o chamamento de uma sereia.

 

Não, Lucky, deixa que o xerife se ocupe dele. Não merece que estragues a tua vida.

 

Ela aproximou-se mais, olhando-o com o seu rosto ferido, os olhos cheios de lágrimas.

 

Por favor! Amo-te, preciso de ti!

 

Ele fez-te mal! gritou Lucky, proferindo cada palavra com dolorosa deliberação e mantendo os olhos ainda fixos na faca. Dentro dele desencadeava-se uma tempestade despedaçando-o. Ele fez-te mal! repetiu.

 

Não tanto como isto.

 

O corte tornou-se um pouco mais fundo e Willis emitiu um som estrangulado. O sangue pingou para a faca e Lucky ficou a olhá-lo, fascinado, horrorizado. A escuridão avançou um pouco mais, diminuindo-lhe a visão, estava cansado de lutar contra ela, seria muito mais fácil para todos se a deixasse tomar conta de si, de uma vez por todas.

 

A voz de Serena chegou novamente até ele, tão suave que parecia que estava a falar dentro da sua cabeça.

 

Eu estou salva, Lucky, agora salva-te a ti.

 

Uma parte dele desejava enterrar mais a faca no pescoço de Wilhs, podia ver mentalmente o sangue a jorrar, afogando-o, como sucedia no seu pesadelo. Cairia sobre ele e depois não haveria mais batalhas, nem mais traições a suportar, nem mais amores a abandonar. A mão dele tremia sobre o cabo, sentia-se a perder o controlo, a afundar-se sob um peso que não podia suportar.

 

Pára, Lucky, pára... sussurrou Serena.

 

Olhou-o, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, receosa de que, se pestanejasse, o pudesse perder. Sentia a tensão vibrar em volta dele, o olhar feroz de Lucky estava fixo em Willis, mas ela julgava não ser esse o alvo. A sua expressão era a de alguém que olhava para dentro e via aquilo que mais receava. A luta mais difícil que ali se travava era a de Lucky contra si mesmo e, se perdesse, Serena tinha a terrível sensação de que seria para sempre. Uma parte de si mesma não lamentaria nem um segundo que Willis tivesse aquele fim, mas a vingança estava muito longe de valer o preço que ela iria pagar.

 

Pára, Lucky repetiu, apelando para a sua reserva de calma. Tu podes parar.

 

Estou cansado murmurou Lucky, com uma expressão desolada e receosa, continuando a fitar Willis.

 

Eu sei concordou Serena, avançando mais um passo para ele. Sei que estás cansado, mas és mais forte do que pensas, és melhor do que julgas. Podes vencer isso para sempre. Recua, sai da beira do precipício. Podes fazê-lo, sei que podes. Fá-lo por mim, pela tua família, por ti.

 

Lucky olhou para a faca, para o sangue que dela pingava. Sentia-se oscilar à beira do precipício, o chão cedia-lhe debaixo dos pés, era o abismo da loucura. Mas Serena puxava-o para trás, fazia-o recuar com as suas palavras meigas, com o amor a que ele queria tão desesperadamente agarrar-se, e que sabia nunca ser capaz de aceitar. As pressões em conflito cresciam dentro dele até o fazerem tremer, como se pudessem explodir a qualquer momento.

 

De súbito, com um grande grito de angústia, Lucky afastou a faca do pescoço de Willis, cravou-a na parede e em seguida recuou, enquanto o outro caía no chão, desmaiado

 

Lucky cambaleou, a escuridão fugia do seu cérebro, desaparecendo num clarão fulgurante, e ele sentiu-se estranhamente fraco e desorientado, como se uma força vital lhe tivesse sido subitamente tirada do corpo.

 

Serena tentou sorrir-lhe através das lágrimas que lhe corriam pelas faces.

 

Nunca fiquei tão feliz por ver uma pessoa, em toda a minha vida murmurou.

 

Lucky embriagou-se com a presença dela, sentindo cada golpe, cada ferimento, como se fosse seu. Queria curá-la, fazê-la recuar no tempo, protegê-la daquele pesadelo e impedi-la de presenciar o que acabara de ver. Nesse momento, desejava uma porção de coisas ser forte, lúcido, o género de homem que pudesse ter um futuro com Serena, mas contentava-se em saber que ela estava viva e salva e puxou-a para os seus braços, a fim de provar isso a si mesmo

 

Merci, Dieu murmurou, mergulhando os lábios nos cabelos dela.

 

Todo o corpo lhe tremia devido à luta interior que acabara de travar, a sua respiração era ofegante e as lágrimas caíam-lhe das longas pestanas. Apertou mais Serena contra si, como se quisesse absorvê-la.

 

Je t’aime, je taime, ma douce amie.

 

Serena enterrou a cabeça no peito dele e chorou com um misto de alegria, de alívio e de medo retrospectivo. Lucky amava-a, estava salva e ele também. Tinham hipóteses de vir a ter um futuro em conjunto, mas havia ainda muitas coisas a enfrentar, e tantos sentimentos, não sendo os menos importantes os que experimentara nessa noite. Agora, em segurança nos braços de Lucky, ela começava a pensar em tudo isso.

 

Nunca senti tanto medo murmurou contra o peito dele, chorando cada vez mais.

 

Eu sei, eu sei, chérie. Agora está tudo bem, estás em segurança.

 

Cobriu de beijos fervorosos os cabelos, a testa, as faces, os lábios de Serena, saboreando-lhe o doce sabor. Nunca se cansava de lhe tocar, de a abraçar, de cheirar o leve aroma do seu perfume. Com todo o cuidado, começou a limpar-lhe o cabelo, para lhe tirar as folhas e os pequenos ramos.

 

Lucky?

Gosto muito que me abraces murmurou Serena, mas não poderias desatar-me as mãos primeiro? Também gostava de te abraçar.

 

Lucky largou-a imediatamente, praguejando em francês, depois voltou-a e desamarrou-lhe as mãos. Serena quase gritou de dor quando a circulação se restabeleceu e pôde endireitar os ombros, mas sentia-se tão feliz por estar viva que achou que não devia chorar por isso.

 

Em seguida trataram de Perret e de Willis. Puxaram o magricelas para dentro e Lucky resmungou entre dentes enquanto Serena procurava estancar o sangue que lhe corria do ferimento do ombro. Em seguida amarrou as mãos e os pés dos dois homens e prendeu-os aos pés da cama.

 

Vamo-nos embora daqui disse Lucky quando acabou de amarrar os dois patifes. Depois trago cá o xerife para os levar.

 

Serena disse que sim com a cabeça. Agora que o perigo passara, começava a sentir os efeitos daquilo que sofrera.

 

Doía-lhe o corpo todo e sentia-se vagamente tonta e com as pernas fracas. Lucky apercebeu-se disso, sem uma palavra, pegou-lhe ao colo e, com longas passadas decididas, afastou-se da cabana, em direcção ao matagal.

 

Abriu caminho por entre a escuridão da floresta, e Serena pôs os braços em volta do pescoço dele, apoiando a cabeça no seu ombro, pensando na sensação de segurança que agora experimentava, naquele local que durante tanto tempo receara. Contudo, essa sensação cedeu gradualmente o lugar a um subtil pressentimento.

 

Lucky não pronunciara uma palavra desde que tinham saído da cabana e Serena achava que ele estava a retrair-se, a afastar-se. Podia ter-lhe dito que a amava num momento de intensa emoção, mas ela tinha o terrível pressentimento de que era mais provável que fugisse desse amor do que o confirmasse. Lucky dissera-lhe uma vez que não queria o amor dela, que não tinha nada para lhe dar, e a descoberta de que ainda era capaz de experimentar sentimentos não devia ser bem recebida por um homem que se condenara a si próprio a um exílio emocional. Serena suspirou, pensando que a batalha pela sua vida fora ganha, mas que a do seu coração estava muito longe de acabar.

 

Olha, um barco a sério observou ela, tentando arranjar assunto de conversa quando viu a embarcação em que Lucky viera, parada junto da margem. E tem um motor e tudo.

 

Lucky colocou-a dentro do barco e franziu a testa ao procurar as chaves no bolso.

 

Tem a sua utilidade replicou laconicamente.

 

Sim, agradece ao dono por o ter emprestado.

 

Não posso respondeu Lucky.

 

Porquê?

 

Porque o roubei.

 

Fizeste o quê?

 

Serena calou-se e deixou-se cair sobre um dos bancos, sentindo algo de estranho ao pensar que Lucky fora capaz de roubar por causa dela. O dia fora decididamente muito longo, apetecia-lhe deitar-se e dormir um ano inteiro, mas o pior é que não podia fazer isso.

 

Como soubeste que me tinham apanhado? Perguntou Serena apertando os braços em volta do corpo por causa do frio que começava a sentir, agora que estava longe do calor do corpo de Lucky.

 

Ele não respondeu até encontrar uma manta, guardada num dos cacifos do barco. Colocou-a em volta dos ombros de Serena e tapou-lhe cuidadosamente as pernas.

 

A distracção que me enviaram tinha uma boca muito grande e um cérebro muito pequeno.

 

E era realmente capaz de chupar a maçaneta de uma porta? perguntou Serena, sem conseguir afastar a ironia da sua voz.

 

Eu não estava interessado em descobrir isso respondeu Lucky, tocando no queixo de Serena. Estás com ciúmes?

 

Sim respondeu ela com sinceridade.

 

Lucky não respondeu e pôs o barco em andamento.

 

Teremos de falar também em Burke ao xerife disse Serena, tentando falar de coisas práticas, o que achava mais fácil do que pisar o terreno incerto do relacionamento de ambos. Creio que foi ele quem pagou a Willis e a Perret para...

 

Não, não foi interrompeu Lucky. Skeeter Mouton contou-me que Burke esteve sempre na taberna dele enquanto Willis e Perret saíram para o encontro desta tarde. Voltou-se para ela, encostado ao tabliê dos comandos do barco e cruzou os braços sobre o peito. Tens de encarar a ideia de que foi Shelby quem fez isto!

 

O coração de Serena teve um sobressalto doloroso.

 

Não!

 

Tu atravessaste-te no seu caminho, por isso ela arranjou maneira de se ver livre de ti.

 

Não repetiu Serena, abanando a cabeça.

 

Não podia acreditar, nem sequer queria admitir essa possibilidade. Uma coisa era saber que nunca seria íntima da irmã, outra era pensar que ela a mandara matar. Sabia que Shelby não tinha equilíbrio emocional, que desde a cena da procuração a ficara a detestar, mas aquilo? Assassínio? Não podia acreditar.

 

Como podia Shelby contratar homens como Willis e Perret? Ela nunca se aproximaria de um sítio como a taberna do Mouton.

 

Não precisou de o fazer. Bastar-lhe-ia falar com um amigo da família, Perry Davis.

 

Perry Davis? exclamou Serena, perplexa. Mas ele é...

 

Corrupto até dizer basta respondeu Lucky. Financia o seu vício do jogo recebendo dinheiro dos caçadores furtivos para fechar os olhos, por isso não teve a menor dificuldade em encontrar os homens certos para um trabalho sujo.

 

Serena inclinou-se para a frente e esfregou a testa. Estava a suceder tudo muito depressa. Era terrível, apenas no espaço de alguns dias o seu mundo ordeiro ficara virado de pernas para o ar e Lucky dizia-lhe agora que um homem em quem ela julgava confiar era um criminoso.

 

E o que impediria Burke de se servir de Perry como intermediário? perguntou Serena, conseguindo ainda reflectir apesar do caos que era a sua mente. Ele não quereria estar directamente ligado a pessoas como Perret e Willis e com certeza que pagou para estes atearem o fogo e depois para me raptarem.

 

Não creio, querida respondeu Lucky. Em breve saberemos.

A viagem até à casa de Lucky não foi longa, mas Serena não fazia ideia das horas, a noite prolongara-se indefinidamente. Ia sentada, envolta na manta, Lucky conduzia o barco e nenhum deles falou mais. Quando chegaram, ele prendeu a embarcação e levou Serena para dentro de casa.

 

Ela nem sequer esboçou um protesto. Depois de passado o perigo, e de pensar bem no que lhe podia ter sucedido e nas questões que tinham provocado aquela situação, ficara num tal estado de nervos que se sentia soçobrar. Refugiar-se nos braços de Lucky era o melhor remédio em que poderia ter pensado.

 

Ele levou-a para a casa de banho e despiu-a cuidadosamente enquanto Serena olhava as suas mãos de artista, compridas e fortes, mas delicadas, que lhe tiravam a blusa rasgada e molhada e o sutiã encharcado em uísque. Depois lembrou-se do modo como Willis lhe tocara e estremeceu.

 

Tens medo de mim, chereperguntou suavemente Lucky.

 

Serena abanou a cabeça.

 

Não, é que... Outro arrepio de repulsa atravessou-lhe o corpo e as lágrimas inundaram-lhe os olhos. Ele tocou-me e eu sinto-me... suja.

 

Lucky inclinou-se e beijou as lágrimas que lhe rolavam pela cara. Depois murmurou, com a sua voz suave:

 

Está tudo bem, chérie. Vou fazer desaparecer isso tudo.

 

Encheu a pequena banheira com água morna, perfumada com óleo de uma misteriosa garrafa que tirou do armário dos remédios, acabou de despir Serena e colocou-a cuidadosamente lá dentro.

 

Ela sentia-se no céu. A água estava morna, perfumada, o aroma do óleo penetrava-lhe nas narinas, fazendo-a esquecer todos os cheiros desagradáveis do suor, das bebidas e do medo. Encostou-se para trás, descontraída pela primeira vez há muitas horas. Lucky debruçou-se sobre ela, pondo-lhe um braço em volta dos ombros, e lavou-a cuidadosamente. Passou-lhe suavemente a esponja sobre as faces, limpando com suavidade todos os sítios feridos, e tocou com cuidado no corte que ela tinha ao canto da boca e depois nos seios, enquanto lhe ia dando beijos ternos na boca, enchendo as mãos com a água perfumada e deitando-lha por cima, em cascata, afastando toda a suj idade.

 

Serena não falava com receio de quebrar o encanto. Deixou que Lucky lhe tocasse, que afastasse todas as recordações do que se passara. Apoiava-se na força dele, na sua ternura e carinho, impregnava-se do amor que lhe estava a dar, guardando-o no coração. O dia seguinte surgia-lhe como uma tempestade que estivesse a aparecer no horizonte, na orla do pântano, tornando aqueles momentos ainda mais preciosos. Saboreava-os, rezando para que o que restava da noite durasse para toda a vida.

 

Quando a água arrefeceu, Lucky tirou-a da banheira e secou-a. Em seguida embrulhou-a numa toalha, penteando-lhe os cabelos emaranhados, e desinfectou-lhe os cortes com outro óleo misterioso, após o que a deitou na cama.

 

Serena aninhou-se-lhe nos braços quando ele se deitou, nu, ao lado dela, pousou-lhe o braço na cintura e deitou a cabeça no seu ombro, como se tivesse sido feita para caber ali

 

Lucky? murmurou ela

 

Chiu, cherie Precisas de dormir

 

Não, preciso de ti

 

Ergueu a cabeça e fitou os olhos dele à luz suave da vela que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira

 

Faz amor comigo, Lucky, preciso de sentir o teu carinho, de saber que está tudo bem Por favor

 

Lucky observou o rosto de Serena e o seu coração quase explodiu ao ver uma súplica sincera nos seus olhos escuros e cheios de ternura. Dieu Amava-a tanto Não julgara ser possível voltar a experimentar tal emoção, mas agora sentia esse amor nos seus ossos, nos seus músculos, em todo o seu corpo, tinha o seu gosto agridoce na boca. Amava-a e, embora tivesse bem pouco para lhe dar, podia oferecer-lhe carinho, o contacto do seu corpo, para lhe deixar a recordação dessa ternura

 

Por favor, Lucky pediu Serena

 

Voltando-se de lado, beijou-a ternamente, enquanto com uma mão lhe afagava o corpo Fez amor com ela com uma paciência que não sabia que possuía, com uma ternura a que há muito se negara. Acariciou-a e beijou-a sem fim, até Serena tomar a iniciativa e o guiar para o calor suave entre as suas coxas. Lucky deslizou para dentro dela, com a sensação maravilhosa de formarem apenas um, fazendo amor lenta e ternamente até estarem os dois satisfeitos

 

Não saiu dela logo a seguir, manteve-a junto de si, acariciando-lhe o cabelo, beijando-a ao de leve, ternamente. Por fim, Serena acabou por mergulhar no sono, murmurando

 

Amo-te

 

Lucky ficou a olhá-la até a vela se gastar e o quarto ficar envolto em escuridão

 

Je t’aime, mon coeur sussurrou no silêncio

 

 

Devo dizer que estou um pouco surpreendido com esta mudança súbita comentou Lamar com a sua voz arrastada.

 

Os seus olhos pretos fixaram alternadamente as pessoas que o tinham convocado para ir a Chanson du Terre a umas horas tão pouco apropriadas. Os jovens não tinham o sentido do que era apropriado. Nos tempos em que as boas maneiras ainda eram importantes, ninguém sonharia em chamar alguém antes das nove da manhã.

 

Lamar Canfíeld olhou para a mulher sentada à secretária de Gifford. O seu aspecto era calmo e elegante, com um fato verde-floresta de corte sóbrio, acompanhado por uma blusa de seda cor de champanhe. Trazia ao pescoço um colar com uma simples fieira de pérolas e o cabelo cor de mel estava penteado para trás, em banana. Os seus lábios abriam-se num sorriso plácido, mas fazia girar no dedo um anel com um enorme topázio, revelando assim a tensão em que se encontrava.

 

É realmente muito simples, Mister Canfíeld. Como sabe, Gifford deu-me plenos poderes para resolver os assuntos dele. Quer que eu trate da questão da venda da propriedade como achar melhor. Tomei em consideração todos os factores, examinei todas as opções e a única solução lógica e prática é vender a propriedade à firma de Mister Burke.

 

Lamar mexeu-se na cadeira, fazendo ranger o cabedal, e cruzou as compridas pernas, soltando ao mesmo tempo um suspiro.

 

Há algum problema, Mister Canfíeld? Perguntou Len Burke, que se sentava a curta distância do idoso advogado, obviamente a curar uma ressaca.

 

O branco dos olhos pelo menos o que se podia ver deles, por os ter semicerrados estava raiado de sangue e a pele parecia castanho-esverdeada, muito semelhante à cor do charuto que segurava na mão, sem o ter acendido. Lamar olhou-o com a mesma condescendência que gostava de mostrar para com os vulgares rufiões.

 

Bem, Mister Burke, parece-me uma mudança muito radical. Ainda há poucos dias Miss Sheridan parecia nem querer ouvir falar em vender Chanson du Terre, muito menos a si.

 

Bem, mudou de ideias respondeu Burke. É uma prerrogativa feminina

 

É verdade, Mister Lamar confirmou ela.

 

Estou a ver disse o advogado com ar grave, endireitando-se na cadeira e puxando as lapelas do casaco. Devo dizer-lhe que estou extremamente desapontado com isto, Shelby.

 

Serena apressou-se ela a corrigir.

 

Sim, é claro, Serena. Sei o que o seu avô esperava e desejava ao dar-lhe esses poderes, essa responsabilidade. Ele vai ficar muito triste concluiu dramaticamente, abanando a cabeça com ar desaprovador.

 

Os olhos de Shelby faiscaram e os seus lábios estreitaram-se imperceptivelmente.

 

Mas é bem feito, se quer saber a minha opinião respondeu secamente.

 

Mason interveio com diplomacia, iluminando o rosto com o seu habitual sorriso, enquanto se aproximava da secretária.

 

O que Serena quis dizer foi que, se Gifford deu plenos poderes a outra pessoa para decidir por ele, tem de se sujeitar ao que essa pessoa decidir.

 

- Amen disse Burke pegando numa enorme pasta de cabedal e abrindo-a sobre os joelhos. Podemos começar a assinar a papelada? Tenho tudo aqui escrito nos termos acordados. Preciso apenas de umas assinaturas e podemos considerar o negócio feito.

 

Tirou da mala um grosso maço de papéis, folheou-os até chegar ao último e colocou o documento em cima da secretária para ser assinado.

 

Estou surpreendido por a sua irmã não vir assistir à transacção comentou Lamar, com um leve sarcasmo na voz, ao ver a sua anfitriã pegar na caneta. Ao seu momento de triunfo, por assim dizer.

 

O comentário fez com que Shelby lhe deitasse um olhar cortante, sem, contudo, fazer qualquer comentário.

 

A minha mulher está com uma das suas enxaquecas explicou Mason. Ficou a descansar mais um bocado. Pobrezinha, sofre terrivelmente.

 

Bem, tenho a certeza de que o merece comentou distraidamente Lamar, mas reparou na expressão chocada com que o olharam e acrescentou inocentemente: Descansar mais um bocado, claro.

 

Tirou então do bolso do casaco uns óculos com aros de metal, que pareciam tão velhos como ele, empoleirou-os no nariz e, com a testa franzida, olhou para o documento que se encontrava na sua frente. O nível da tensão na sala subiu mais depressa de que a temperatura num quente dia de Julho, enquanto Lamar lia atentamente, sem fazer o gesto de pegar na caneta. O seu olhar fixou-se na assinatura, demoradamente.

 

Preciso de ver a sua assinatura na procuração pediu com lentidão. Devo ver se conferem. Trata-se apenas de uma formalidade, claro.

 

Com certeza. Está mesmo aqui! concordou Shelby, empurrando o documento por cima da secretária e recostando-se, enquanto fazia girar o anel no dedo.

 

Lamar examinou as duas assinaturas com todo o vagar.

 

Sim, parecem condizer.

 

Claro que sim! disse secamente Shelby.

 

Lamar está apenas a proceder no interesse dos seus clientes explicou placidamente Mason.

 

É isso mesmo, Serena concordou Canfield.

 

Shel... ela cerrou os dentes e falou por entre eles. Podemos continuar, Mister Canfield? Mister Burke é um homem muito ocupado. Tenho a certeza de que estará desejoso por se ir embora.

 

É isso mesmo resmungou este. Assinem o documento, eu entrego o cheque e piro-me daqui. Estou farto desta terra até à raiz dos cabelos.

 

O velho advogado olhou, de rosto franzido, para o texano.

 

Posso garantir-lhe que o sentimento é mútuo, mas faltaria à minha obrigação se não lesse todo o documento antes de o assinar.

 

A cara de Burke ficou de uma cor que chocava horrivelmente com os seus olhos raiados de vermelho e Shelby soltou um gritinho de frustração, enquanto Mason pigarreava e entrelaçava os dedos.

 

Se acha que é necessário, Lamar disse este último por fim.

 

O advogado olhou-os com exagerada perplexidade.

 

Bem, não tenho a certeza absoluta de que seja necessário. Talvez deva consultar a verdadeira Serena.

 

As caras dos três ficaram simultaneamente pálidas quando a porta se abriu e Serena entrou, seguida de Lucky.

 

Os olhos de Shelby abriram-se de assombro ao ver a irmã.

 

Serena! Mas estavas supostamente...

 

Morta concluiu esta quase num murmúrio.

 

Mal conseguia encarar a irmã, mas fitou Burke com intensidade, como se o pudesse fazer confessar só com um olhar. O seu coração batia com força, desesperadamente, tinha de ser Burke, tinha de ser ele.

 

Não replicou Shelby, apenas longe daqui.

 

Foi isso que Mister Burke lhes disse? Que tinha contratado alguém para me afastar do vosso caminho?

 

Não sei de que está a falar interveio beligerantemente Burke, agitando-se desconfortavelmente na cadeira de cabedal. Fosse o que fosse, foi ideia deles acrescentou, apontando com o charuto para Shelby e Mason.

 

Eu não sei nada acerca de alguém ser morto! gritou indignadamente Shelby, levando a mão esquerda às pérolas do colar que tinha ao pescoço. O rosto ficara-lhe subitamente cheio de manchas vermelhas.

 

Serena voltou-se para a irmã, quase sem poder falar, com um terrível aperto no estômago, pensando ”Oh, Deus, permiti que não seja ela”, e Shelby olhou-a de frente durante uns segundos, mas depois desviou o olhar.

 

Eu... eu não sei nada a respeito disso insistiu, ofegante.

 

Não sabias, Shelby?

 

Serena sentia a presença de Lucky atrás de si, sentia o calor dele, a cólera que o dominava, e logo depois viu-o dirigir-se rapidamente para a secretária.

 

Não sabias nada acerca de Gene Willis e Lou Perret levarem a tua irmã, a tua irmã gémea, para o pântano, para a violarem, a matarem e deitarem o corpo num sítio onde nunca ninguém o encontrasse? perguntou com fúria mal contida. Em seguida, pousou as mãos na secretária, e inclinou-se agressivamente para Shelby. Não sabes de nada, pois não, Shelby? Queres que te refresque a memória?

 

O rosto de Shelby ficou cinzento, apesar da maquilhagem, e o blush que tão cuidadosamente aplicara nas faces destacava-se agora, vermelho, sobre a palidez da pele. Os seus olhos estavam muito abertos e recuara juntamente com a cadeira, para fugir à fúria do homem que tinha na sua frente.

 

Eu... eu não sei de que estás a falar. És doido... toda a gente o diz.

 

Mais oui, chère, sou doido sussurrou Lucky, aproximando-se mais. Deus sabe o que posso fazer para me vingar.

 

Os olhos de Shelby encheram-se de lágrimas.

 

Pára com isso, Lucky! ordenou Serena.

 

Receava o que o interrogatório pudesse vir a revelar, tinha medo de que ele estivesse certo e desejava de todo o seu coração que assim não fosse. A ideia de que a sua própria irmã a tentara matar penetrava-lhe como um punhal no mais profundo da alma. Não queria que fosse verdade, temia ter de enfrentar isso, depois de tudo aquilo por que passara na última semana. Julgava já não ter forças.

 

Lucky voltou-se para ela, furioso.

 

Pára com isso! Mon Dieu, ela mandou matar-te!

 

Não! gritou Shelby batendo com as mãos na mesa. Eles deviam afastá-la daqui, mais nada! Diz-lhes, Mason! acrescentou, virando-se para o marido. Disseste que a iam tirar do nosso caminho, nunca falaste em matar! Diz-lhes!

 

O tempo pareceu parar quando todos os olhares se voltaram para Mason Talbot, que estava agora ao lado da mulher, parecendo resignado.

 

Ouve, amor, como de costume não pensaste nas consequências. O que achas que se passaria quando Serena voltasse? Iria estragar todos os nossos planos, claro. Não podiamos deixá-la regressar.

 

Mas ela é minha irmã! exclamou Shelby, atordoada.

 

Tu odeia-la fez notar Mason. Shelby franziu a testa.

 

Mas ela é minha irmã! Nunca pensaria em matá-la! Como pudeste ordenar tal coisa, Mason? perguntou com ar de censura, como se estivesse a admoestar uma criança malcriada.

 

Tu querias que eu concorresse às eleições replicou Mason com voz mais firme, ambicionavas viver em Baton Rouge. Não tínhamos dinheiro para essas coisas, Shelby, com os teus hábitos de gastadora, com a casa nova e a antiga sem ser vendida. Mas nunca pensas em coisas tão vulgares como dinheiro, pois não? Só te interessa obteres o que queres, sem te importares com o custo. Que diabo querias que eu fizesse? continuou, agora a gritar, a sua calma fachada cedia finalmente à tensão, e olhou a mulher com uma expressão torturada. Que havia de fazer, Shelby? Tinha na minha frente uma oportunidade única de possuirmos tudo quanto queríamos de uma só vez. E tu sempre atrás de mim a pressionar-me. Não podia agir doutra maneira.

 

Todo o impacte do seu acto e das consequências que podia ter tido pareceu atingir Shelby nesse momento, Serena viu essa compreensão chegar aos olhos da irmã, como se, de repente, tudo lhe fosse revelado numa visão. Como dissera Mason, Shelby não pensara nas consequências. Como sempre fizera, planeara só o momento, sem sequer imaginar o que sucederia a longo prazo. Agora estava ali sentada como uma criança que tivesse tido uma surpresa desagradável atordoada, magoada, desiludida.

 

Serena desviou os olhos, já cheios de lágrimas, ao ver a expressão de horror distorcer as feições de Shelby quando se virou para o marido. Depois a irmã escondeu a cara nas mãos e começou a soluçar, enquanto Lucky fixava Mason com ar feroz.

 

E Gifford?

 

Mason puxou os óculos para cima, tentou recompor-se e respondeu com ar ausente, como se não estivesse a falar de nada mais grave do que os planos para um piquenique.

 

Teria ficado abatido com o desaparecimento de Serena e a venda da propriedade. Pobre homem, provavelmente acabaria por se suicidar.

 

Serena ouviu-o em silêncio, estupefacta, e abanou a cabeça, sentindo-se tomada de vertigens. Outra faceta da sua vida bem ordenada que se despedaçava. Mason, o calmo, o afável Mason, em quem sempre confiara, de quem sempre gostara, pagara para a matarem, deixara que a sua ganância e o seu amor por Shelby se transformassem num catalizador que o levara ao crime.

 

E o incêndio? perguntou Lucky.

 

Mason baixou a cabeça e os ombros vergaram-se-lhe.

 

Creio que já disse o suficiente sem ter presente o meu advogado respondeu em voz baixa.

 

Está bem, Mason declarou o xerife Hollings, entrando na sala com dois dos seus adjuntos. Já ouvi tudo o que queria, por agora.

 

Serena assistiu, com uma sensação de incredulidade, aos adjuntos a algemarem-nos. Burke resmungou ruidosamente, Mason nada disse e Shelby caiu sobre a secretária e teve de ser ajudada pelo xerife a endireitar-se.

 

A culpa é toda tua! gritou para Serena, ao serem conduzidos para fora da sala.

 

A cara dela estava lavada em lágrimas e suja da pintura preta dos olhos, a sua máscara de beleza derretera-se, revelando ódio e tormentos interiores.

 

Nada disto sucederia se não tivesses voltado! gritou de novo.

 

Serena não conseguiu pensar em nada que pudesse dizer. Olhou a sua gémea e sentiu um terrível vazio. Deviam ter sido mais amigas do que é normal entre irmãs, mas pertenciam a dois mundos diferentes. A única coisa que restava entre elas era pena, amargura e azedume.

 

Lucky apareceu ao lado dela e pôs-lhe meigamente um braço em volta da cintura, convidando-a a encostar-se à força dele. Ficaram silenciosos, vendo o xerife levar os prisioneiros e dizer:

 

Têm o direito de ficar calados. O que disserem pode e será utilizado em tribunal.

 

Lamar ergueu-se lentamente do seu cadeirão de cabedal, coçando o queixo.

 

Creio que vou entregar este pequeno microfone ao xerife Rollings. É simplesmente espantosa a tecnologia que a polícia tem à disposição hoje em dia.

 

Lançou a Serena um olhar de desculpa e deu-lhe uma palmadinha num ombro com a mão enrugada.

 

Lamento realmente tudo o que sucedeu aqui hoje, minha querida. Deve ser um choque terrível para ti.

 

Sim murmurou Serena, mas obrigado pela sua ajuda, Mister Canfield.

 

Não tens de quê. Apenas cumpri o meu dever. Se precisares de mais alguma coisa, não hesites em chamar-me.

 

Soltou um suspiro dramático e ergueu os olhos para o céu.

 

Posso parecer um velho excêntrico, mas ainda tenho alguns trunfos na manga.

 

Serena conseguiu esboçar um pálido sorriso, vendo o velho advogado dirigir-se para o corredor, de chapéu na mão. Depois ouviu-o gracejar com Odille, antes de sair, e em seguida a casa ficou silenciosa.

 

Serena dirigiu-se para a porta-janela que dava para a galeria e sentiu o olhar de Lucky fixo em si com intensidade. Tentando não ouvir as sereias dos carros da Polícia que se afastavam, olhou lá para fora, para o relvado. O hayou era uma fita escura ao pé das árvores, o céu, uma manta de retalhos composta por formações de nuvens que mudavam rapidamente de forma e lhe parecia tão desordenado como ela.

 

Sentia-se como se a sua vida tivesse sido apanhada no meio de um furacão. Tudo ficara destroçado, a família, a imagem de si mesma, a sua sensação de controlo sobre o próprio destino. Fora ali passar uns dias de férias, mas em vez disso a sua vida alterara-se irremediavelmente.

 

Que vai suceder agora?

 

Serena ouviu-se fazer a pergunta a si própria, mas parecia-lhe a fala de outra pessoa. Não podia imaginar porque a teria feito, não pensava que quisesse realmente ouvir a resposta de Lucky.

 

Haverá uma audiência, serão ouvidos pelo juiz e poderão ser concedidas fianças, pelo menos para Burke e Shelby.

 

Serena olhou novamente para Lucky, que estava sentado sobre a secretária, fazendo girar um pesa-papéis de vidro entre as mãos e olhando-a atentamente.

 

Nunca teria desconfiado de Mason murmurou ela. Nunca.

 

Ninguém teria.

 

Lucky pousou o pesa-papéis e foi pôr-se ao lado dela, junto da porta, com uma expressão grave no rosto.

 

Ninguém sabe o que a pressão pode levar um homem a fazer comentou meigamente. Lamento o sucedido com Shelby. Tenho as minhas próprias razões de queixa dela, mas sei que é tua irmã e deve ser duro.

 

As lágrimas encheram os olhos de Serena, enquanto dizia que sim com a cabeça.

 

Sempre desejei que eu e Shelby pudéssemos ser tão unidas como as gémeas devem supostamente ser, mas nunca fomos, muito menos agora. O que sucedeu irá estar sempre entre nós.

 

Lucky abraçou-a e inclinou-se para a beijar.

 

Disse a Hollings que acompanharia um seu adjunto ao sítio onde deixámos Willis e Perret.

 

Serena acenou afirmativamente com a cabeça, esfregando os braços para se aquecer, pois apenas vestira uma camisa fina que fora buscar ao armário de Lucky. Chegava-lhe aos joelhos e precisara de dobrar as mangas cinco vezes para deixar as mãos à vista, mas era bem melhor do que a sua, estragada, e do que as recordações a ela ligadas. Não fora capaz de olhar para aquelas peças de roupa sem estremecer e Lucky levara-as para fora de casa e queimara-as. Depois, emprestara-lhe a camisa e umas velhas calças cinzentas de um fato de treino.

 

Creio que é melhor ir mudar de roupa disse Serena. Deves querer levar as tuas coisas.

 

Fica com elas.

 

As palavras pareciam bastante inócuas, mas ela adivinhou o que ia acontecer, tão seguramente como se Lucky agitasse uma bandeira vermelha. Era o momento por ele escolhido para terminar tudo. Dir-lhe-ia adeus e voltaria para o pântano, e ela ficaria com o coração partido e com uma velha camisa azul.

 

Um souvenir? perguntou secamente, olhando-o por cima do ombro. Uma coisa que eu possa guardar na minha arca de esperanças, quando quiser recordar-te?

 

Lucky recuou um passo, franzindo a testa.

 

Serena, não...

 

Ela ergueu as sobrancelhas.

 

Não queres que eu te recorde? Preferes que finja que nunca estive apaixonada por ti? É isso que queres que eu faça, Lucky? Acreditar que nunca gostaste de mim?

 

Disse-te desde o início o que podíamos ser, apenas amantes.

 

Ela estendeu as duas mãos para o impedir de falar e a cólera fazia-lhe pulsar as artérias na cabeça.

 

Não me venhas com essas conversas, já conheço os limites que estabeleceste. Não me interessa que tenham sido apenas uns dias, o que sentimos um pelo outro vai muito para além do sexo e tu bem o sabes.

 

Sei também que não pode resultar insistiu ele, olhando-a.

 

Serena aguentou o olhar, mostrando-se igualmente obstinada.

 

Tu não deixas que resulte.

 

Lucky voltou-se, erguendo as mãos como se fosse estrangular alguém. Ela ia tornar as coisas muito difíceis para ambos, não se limitaria a aceitar os factos e a deixá-lo ir-se embora. Não, dissecaria, analisaria tudo e tentaria encontrar uma solução.

 

Que diabo, Serena. Não viste o que sucedeu a noite passada? perguntou Lucky olhando para baixo, como se estivesse envergonhado. É esse o género de homem que queres para marido? Para a próxima vez posso resvalar para a loucura.

 

Vi, sim respondeu docemente Serena. Salvaste-me a vida e conseguiste dominar a tua fúria. Vi como cuidaste depois de mim e como fizeste amor comigo. O que sucedeu com Willis não fez com que eu te amasse menos, talvez tenha acontecido o contrário.

 

Lucky abanou impacientemente a cabeça e começou a andar de um lado para o outro.

 

Isso não é amor, Serena, é piedade. Sei o que vês quando olhas para mim, um pobre diabo meio louco que precisa que tomem conta dele.

 

Diabos te levem, Lucky Doucet replicou Serena, zangada, aproximando-se e agarrando-o pela cintura para ele não se afastar, com os olhos brilhantes de fúria no rosto arranhado e ferido. Peço-te que deixes de fazer interpretações dos meus sentimentos. Eu não sinto piedade por ti, tu é que tens pena de ti próprio. És teimoso e orgulhoso e não podes suportar a ideia de não seres perfeito, de teres defeitos e fragilidades como toda a gente. Fazes-me ficar furiosa, mas amo-te. És forte, bom e terno, o teu machismo é uma cobertura para te esconderes. E tu também me amas, olha-me nos olhos e diz-me que não.

 

Não posso dar-te o género de vida que mereces.

 

Mereço ter o homem que amo.

 

Eu vivo no pântano, não suporto as pessoas. Raramente se passa um dia em que não fique meio desorientado. Que espécie de futuro te poderei dar? Que tenho eu para te oferecer, Serena?

 

A resposta dela foi simples e devastadora.

 

O teu coração! Lucky fechou os olhos, como se estivesse a sofrer, e Serena continuou: Não tentes dizer-me que não tens coração, apenas receias entregá-lo. Eu também sei o que é ter medo, Lucky sussurrou, já com as lágrimas a correrem-lhe pela cara.

 

Ele abanou a cabeça, recusando-se a olhá-la, com os músculos do queixo tensos.

 

Sim continuou Serena, olhando-o com sinceridade, com amor. Sei o que é sentirmos que vamos perder o controlo de nós próprios, e poderei ajudar-te. Não por ser psicóloga, mas porque te amo.

 

Tenho de ir murmurou Lucky sem a olhar, o seu rosto era uma máscara dura, impenetrável.

 

Serena sentiu o peso da inutilidade das suas palavras.

 

Lucky não cederia, ia retirar-se para dentro de si mesmo e fechar-lhe a porta, como fizera inúmeras vezes nos últimos dias, e nenhuma das ferramentas da sua profissão a ajudaria a abri-la. O amor era a única chave que possuía e ele estava a tornar bem claro que nem mesmo essa quebraria as correntes que o prendiam ao passado.

 

Esconderes-te não é resposta, Lucky disse tristemente. És um bom homem, forte, com talento. Tens muito para oferecer, se não continuares a fugir da pessoa que realmente és.

 

Deixa-me ir, Serena murmurou Lucky. Ficas melhor sem mim.

 

Serena recuou, de cabeça erguida, lutando contra as lágrimas que lhe enchiam os olhos.

 

Julgas que estás a fazer isto por mim? A tua generosidade, infelizmente, é mal dirigida. Eu não quero isso, desejo um futuro contigo, podemos ter muito mais do que estás disposto a dar-me. Diz-me quando estiveres preparado para me aceitar como sou, eu ficarei à espera.

 

Lucky olhou-a com atenção.

 

Não vais voltar para Charleston?

 

Não. Serena não tinha ainda a certeza da sua decisão mas respondeu com segurança, era a única que devia tomar. Terei de lá voltar para tratar dos meus assuntos mas mais nada. Chanson du Terre é a minha casa, tenho aqui responsabilidades e raízes. É chegada a altura de aceitar isso e de mostrar como realmente sou, em vez do que era em Charleston. Estou farta de ser cobarde, diz-me quando estiveres farto também e, olhando-o demoradamente dirigiu-se para a porta.

 

Um dos adjuntos do xerife meteu a cabeça pela porta entreaberta. O barco está aqui, Lucky. Vamos?

 

Serena parou e ficou à espera, como se fosse a resposta à pergunta que estava no seu coração. O silêncio arrastou-se

 

Sim disse por fim Lucky, falando devagar e em voz baixa. Vamo-nos embora.

 

 

És tu, Serena? gritou Gifford do fundo do seu escritório.

 

Ela parou junto da porta aberta, com as malas na mão.

 

Sim, sou eu, Giff respondeu com ar cansado.

 

Hei, Miss Serena exclamou Pepper, sorrindo largamente, sentado num cadeirão de cabedal. Ergueu a chávena de café, numa saudação. É bom tê-la de volta.

 

Obrigada, Pepper.

 

Serena desejava poder dizer que estava feliz por ter regressado, mas nesse momento apenas se sentia exausta. Tinha a sensação de que se se estendesse sobre a velha carpete oriental, entre os dois cães, dormiria durante semanas. Os animais olharam-na com a sua habitual expressão triste e um deles abriu a boca, mas deitou-se logo a seguir, parecendo exausto pelo esforço.

 

Gifford abandonou os papéis sobre a secretária e atravessou a sala ao encontro de Serena. O seu aspecto era tão enérgico e saudável como sempre, tinha as faces coradas e os olhos brilhantes, com uma luz de inteligência. O cabelo branco, desgrenhado, mostrava que não havia por lá passado pente.

 

Onde diabo estiveste? perguntou. Já devias ter chegado há que tempos. Odille demorou o jantar o mais que pôde.

 

O avião atrasou-se duas horas.

 

Em Charleston não há telefones? inquiriu o avô com o seu habitual sarcasmo.

 

Depois lançou-lhe um olhar de censura, pegou nas malas e seguiu ao longo do corredor. Serena esforçou-se por o acompanhar. O avô tinha quase oitenta anos, mas era capaz de trabalhar mais do que ela nos seus piores dias. Gifford parou à entrada do quarto e pousou a bagagem.

 

Fizeste assustar um velho sem necessidade, e ele também te pode meter medo.

 

Não replicou Serena com um sorriso cansado. Não me assusta, não sou cobarde.

 

Claro que não! exclamou o avô endireitando-se orgulhosamente. És uma Sheridan!

 

Olhou-a então durante longos momentos, suspirou e, erguendo as mãos, pousou-as nos ombros de Serena com meiguice.

 

Estou contente por estares de volta, Serena. Sei que te pressionei para vires mas afinal tu podias ter recusado. Ainda bem que o não fizeste.

 

Serena passou os braços em volta da cintura do avô e abraçou-o. O que se passara mudara o relacionamento deles e complicara-o, mas depois de tudo acabado o mais importante permanecia.

 

Gosto muito de si murmurou Serena, largando o avô.

 

Gifford olhou para os pés, corado. Sentia-se embaraçado por demonstrar à neta a sua afeição.

 

Vens atrás do grande cajun? perguntou subitamente. A pergunta apanhou Serena de surpresa, atingindo-a tão subitamente que não pôde dar uma resposta controlada. Abanou a cabeça e olhou para o chão, receando o que ele pudesse ver na sua expressão.

 

O que se passa? Ele não é suficientemente bom para ti por não usar fatos de seda e não ler o Wall Street Journall

 

Isso fez com que Serena erguesse a cabeça desafiadoramente. Olhou para Gifford, zangada, percebendo tarde de mais que o avô estava de novo a tocá-la como um violino bem afinado.

 

Não é isso e bem o sabe respondeu com franqueza.

 

Lucky passou uns maus bocados, mas é bom homem insistiu Gifford, carrancudo.

 

Eu sei que é. Talvez um dia ele próprio se aperceba disso, mas não posso forçá-lo a acreditar.

 

Gostas dele?

 

Sim.

 

Gifford franziu a testa e as suas hirsutas sobrancelhas brancas formavam um V de desaprovação por cima dos olhos escuros.

 

Gostas dele, mas não vais procurá-lo.

 

Estamos a falar de um relacionamento e não de uma caçada retorquiu Serena secamente. Não posso ir para o pântano com uma espingarda de dardos e trazê-lo até aqui para viver em cativeiro. Não posso forçá-lo a amar-me. Lucky precisa de resolver muitas questões do seu passado, que o perturbam. Quando, e se fizer, então talvez perceba o que podemos ter os dois.

 

Bem, espero que sim.

 

A expressão de Gifford suavizou-se e coçou o queixo.

 

Não me agrada nada pensar que te deixei à porta dele para ficares com o coração partido. Contava conseguir mais alguns bisnetos com esse negócio.

 

Gifford! exclamou Serena, enquanto as suas faces se coloriam com um leve tom rosado

 

O avô não deu sinais de sentir remorsos, nem sequer se deu ao trabalho de se mostrar culpado.

 

Estás magra como um caniço notou ele olhando-a dos pés à cabeça. Vou dizer a Odille que te aqueça um prato com comida.

 

Serena abanou a cabeça, espantada.

 

Não vale a pena, comi no avião.

 

Gifford resmungou a sua desaprovação e seguiu pelo corredor em direcção à cozinha.

 

Não dava essa porcaria nem aos meus cães. Serena ficou a vê-lo afastar-se. Uma das razões por que decidira voltar para casa fora pensar que, depois de tudo o que se passara, Gifford precisaria dela. Mas enganara-se, era bem claro que era capaz de tomar conta de si. Ela é que teria dificuldades em acompanhá-lo.

 

Arrastou a bagagem pelo quarto, descalçou os sapatos, despiu o fato amarrotado que usara na viagem, vestiu o roupão e entregou-se ao trabalho de desmanchar as malas, antes que sucumbisse à fadiga.

 

Desempenhou-se da sua tarefa metodicamente, mas parecia-lhe que todos os seus movimentos eram mecânicos, funcionava de forma automática, tratando dos assuntos do dia-a-dia de forma rotineira, com uma óbvia falta de entusiasmo. O seu cérebro lógico, educado, sabia que essa letargia viria eventualmente a passar, entretanto teria de se aguentar, um dia após outro. Não seria divertido, mas era melhor do que nada. Nos seus momentos mais filosóficos reflectia que isso lhe daria maior simpatia pelos seus futuros pacientes quando os arranjasse.

 

Fora a Charleston para encerrar o consultório, entregar os seus doentes a outros médicos, vender o apartamento e despedir-se dos amigos, e tudo isso fora realizado com um mínimo de dificuldade. No dia seguinte iria a Lafayette procurar um espaço para montar novo consultório. Devia estar entusiasmada com essa tarefa, mas afinal nada diminuía a apatia que a invadira.

 

Tinham sucedido demasiadas coisas em muito pouco tempo, as suas emoções haviam transbordado e parecia agora incapaz de senti-las. Tratava-se de um mecanismo de defesa, estava magoada, por isso o seu cérebro cortara essa sua capacidade. A única altura em que as suas emoções voltavam era de noite, quando estava demasiado cansada e só para lhes poder fugir. Então regressavam em força, deixando-a ainda mais cansada e abatida.

 

Decorrera um mês desde a crise de Chanson du Terre e os culpados ainda não tinham sido julgados Mason, Willis, Ferret e Davis, que, de facto, servira de intermediário para contratar os dois bandidos. Len Burke saíra em liberdade, não se provara nada contra ele, para além do crime de ganância, e, quanto a Shelby, já se confessara culpada da acusação de conspiração. Fora condenada a uma pequena pena suspensa e tinha ido, com as crianças, para a casa dos pais de Mason. Os Talbot haviam pago a fiança do filho e dizia-se que estavam a tentar arranjar-lhe o melhor advogado por intermédio de pessoas que lhes deviam favores. Dizia-se até que tentavam evitar o escândalo de um julgamento, mas Serena não sabia se seria verdade.

 

Na verdade, sentia uma estranha falta de curiosidade a respeito de tudo isso, não estava interessada em punição ou restituição. A confiança que perdera nas pessoas e a desilusão que sofrera não podiam ser reparadas, nem substituídas, queria apenas deitar tudo isso para trás das costas e prosseguir a sua vida.

 

Gifford reinstalara-se na sua casa e agia como se o que se passara fosse apenas algo sem importância. Estava ocupado com a construção de um novo barracão para a maquinaria e com as culturas habituais, enquanto Pepper e James Arnaud pensavam na criação de viveiros de lagostas para arranjar mais dinheiro para a plantação, juntamente com a cana-de-açúcar.

 

A vida ia voltando ao normal, as feridas curavam-se, deixando apenas cicatrizes ocultas como recordação do que se passara.

 

Serena guardou o resto da roupa interior na cómoda e fechou a gaveta. Ao erguer a cabeça, viu a sua imagem reflectida no espelho que se encontrava por cima da cómoda. Espantosamente, o seu aspecto não era diferente do que fora antes de tudo aquilo suceder. Os arranhões e os cortes na cara, marcas da terrível noite no pântano, há muito que haviam cicatrizado, deixando a pele sem cicatrizes. Era de supor que ficasse no seu rosto algum sinal da provação por que passara, mas não, as feridas estavam por dentro, no coração.

 

Lucky saíra dali com o adjunto do xerife e nunca mais voltara. Serena ficara magoada, zangada e com o coração partido. Pensara ir procurá-lo ao pântano, mas acabara por decidir não o fazer. Não queria desistir dele, mas sabia que não o devia pressionar, Lucky é que tinha de decidir. Não podia forçá-lo a amá-la, nem obrigá-lo a casar com ela. Ele é que tinha de chegar à conclusão de que, sozinho, levaria uma vida vazia e de que a resolução dos seus problemas não passava por se esconder das pessoas.

 

No entanto, tornara-se completamente óbvio que não tomara essas decisões e talvez Serena se tivesse enganado a respeito dele, possivelmente não a amava, o que acontecera não fora mais do que desejo sublimado e intensificado pelas circunstâncias. Provavelmente, só ela sentia algo mais para além da paixão desses momentos, apenas ela ficara como que vazia.

 

Enquanto abria uma gaveta e de lá tirava a velha camisa azul de Lucky, Serena censurava-se a si própria. Sabia que não era um procedimento muito saudável, não se tratava assim um coração magoado. Uma sabedoria mais profunda dizia-lhe que precisava de tempo para se curar, nenhum dos seus métodos de terapia alteraria o facto de continuar a amar Lucky Doucet, de sentir a sua falta e de estar magoada por o ter perdido. Aconselhamento algum podia evitar que ela precisasse de ficar perto dele no fim de um longo dia, quando se sentia cansada e lhe apetecia descansar a cabeça no seu peito forte, por isso acabou por tirar a camisa da gaveta, encostou-a às faces, numa carícia, e aspirou o seu perfume.

 

Quase não se passava uma hora sem que ela pensasse em Lucky, se estaria bem, se ainda perseguiria os caçadores furtivos. Continuava a vê-lo de pé, sobre a piroga, impelindo-a silenciosamente através do pântano, ou sentado no estúdio, olhando para uma tela. Não podia deixar de pensar nele, nem de se interrogar: sentiria a falta dela?

 

Lucky fizera aquilo que achava que era certo, mas tal atitude era uma ironia, dado o trabalho que tivera para tentar convencê-la de que não prestava. Às vezes, Serena ficava zangada ao pensar na maneira como ele resolvera decidir o que era bom ou mau para ela, outras vezes sentia uma grande tristeza por Lucky achar que não era digno do amor dela. Chegava a dizer a si própria que o melhor que tinha a fazer era desistir e prosseguir a sua vida, mas à noite, quando estava deitada no seu quarto, a olhar a escuridão, achava isso impossível.

 

Apertando a camisa contra o peito, fechou os olhos e suspirou enquanto a dor derrubava o muro protector que construíra em volta do seu coração. Os perfumes e sons da noite de Verão chegavam até ela através das portas abertas para a galeria, trazendo-lhe à memória a noite em que ela e Lucky se tinham amado naquele quarto.

 

Nenhum outro a fizera sentir-se como quando estava com Lucky, nenhum outro ultrapassara a barreira de calmo autodomínio, tornando-a na mulher que verdadeiramente era. Não fazia sentido, ele devia ser o último homem por quem Serena pensaria apaixonar-se, selvagem, duro, perigoso, e nunca se acharia capaz de se enamorar tão depressa, nem tão profundamente. Não conseguia encontrar uma resposta lógica, mas era a verdade. Ninguém a fizera alguma vez sentir-se tão viva, tão cheia de paixão, de desejo, de ser parte de outra alma, e tinha a triste, a profunda certeza, de que essas sensações não se repetiriam com quem quer que fosse.

 

”Preparada para me receber, querida?”, as palavras de Lucky vieram-lhe à cabeça como fumo, como névoa sobre o hayou. Serena olhou para o espelho e imaginou-o ao lado dela, com o seu olhar ardente a percorrer-lhe o corpo, as mãos a agarrarem-lhe os ombros para a voltar para ele. Fechou os olhos, com a camisa encostada ao peito, e por instantes julgou sentir os braços dele a abraçá-la.

 

Serena?

 

O coração deu-lhe um salto no peito e voltou-se para a porta.

 

Shelby.

 

Não pôde ocultar a surpresa na voz, nem os outros sentimentos provocados pelo aparecimento súbito da irmã. Não tinham voltado a contactar desde o dia fatal no escritório de Gifford, ela não tivera coragem de tomar a iniciativa de ir ver Shelby e esta também não a procurara. Pensara muitas vezes durante quanto tempo iriam continuar naquele limbo, mas agora a sua pergunta ia ter resposta.

 

Posso entrar? perguntou Shelby, tão formal como se fosse uma estranha.

 

Claro que sim respondeu Serena, cruzando os braços sobre o peito, com a camisa de Lucky entre eles.

 

Vim buscar o resto das minhas coisas informou Shelby, entrando e fechando a porta.

 

Serena não fez qualquer comentário, embora soubesse que os últimos pertences da irmã e de Mason há muito haviam sido empacotados e levados para casa dos Talbot, em Lafayette. Shelby decidira dar o primeiro passo. Que diferença fazia que tivesse arranjado uma desculpa para isso?

 

Serena via a irmã andar lentamente pelo quarto, sem revelar a sua energia habitual, mas endireitando uma boneca aqui, um candeeiro ali. Como sempre, apresentava-se impecavelmente arranjada. Trazia um vestido de Verão, de seda estampada, com tons delicados e o cabelo, cuidadosamente penteado, estava preso na nuca, num chignon. Faltavam-lhe apenas as jóias que costumava usar em abundância trazia só o anel de noivado, com diamantes.

 

Serena observava-a com uma curiosidade distante. As emoções provocadas pela presença de Shelby foram-se acalmando, deixando-a vazia outra vez, vagamente desconfiada dos motivos por que a irmã a viera ”visitar”.

 

Suponho que ainda estejas zangada comigo começou Shelby num tom de voz quase de aborrecimento, como se achasse que Serena não tinha razão para estar zangada, mas os movimentos e os olhares de relance mostravam que estava nervosa por não saber a resposta que iria ouvir.

 

Não retorquiu Serena, voltando-se para a olhar no espelho.

 

Shelby fítou-a e franziu a testa.

 

Já esperava isso de ti, da tua habitual bondade disse com azedume. ”Perdoa aos que pecaram contra ti.”

 

Não afirmei que te perdoara respondeu Serena. Não é zanga que sinto quando penso em ti.

 

O que sentes então?

 

Serena ficou calada durante um longo momento, pensando na resposta.

 

Não sei que nome lhe dar. É desgosto, calculo, mas diferente, de certo modo pior.

 

Os olhos das duas encontraram-se no espelho e de súbito Shelby pareceu genuinamente triste.

 

Nunca fomos muito boas como irmãs, pois não? perguntou em voz baixa.

 

Serena abanou a cabeça.

 

Não, receio que não tenhamos sido.

 

Shelby deu alguns passos até ficarem lado a lado, perto mas sem se tocarem, parecidas, mas não iguais, e o seu olhar fixou-se na imagem das duas, no espelho.

 

Como podemos ser tão semelhantes e ao mesmo tempo tão diferentes? murmurou, como se fizesse a pergunta a si própria.

 

Serena ficou calada, não havia respostas simples. Como psicóloga poderia citar um certo número de teorias sobre o assunto, mas, como irmã, de nada valiam. Sabia apenas que se encontravam em lados opostos de um precipício demasiado largo e profundo para ser atravessado. Podia ter havido um ponto, no passado, em que pudessem ter encontrado uma ponte e estendido as mãos uma para a outra, mas esse tempo passara e ambas o sabiam.

 

Gostava que as coisas não tivessem corrido tão mal prosseguiu Shelby, os seus olhos escuros enchendo-se de lágrimas.

 

Seriam os únicos pedidos de desculpa que iria receber, pensou Serena com tristeza. Não haveria remorso, nem uma expressão de dor pelo que se passara, nem pelo que podia ter acontecido. Shelby era incapaz de se autocensurar, era como uma ladra que lamentasse ter sido apanhada em flagrante pela Polícia, mas não se arrependesse de ter roubado. Só tinha pena de que as coisas não tivessem dado certas.

 

Também eu concordou Serena, sabendo que as ideias de ambas eram muito diferentes sobre o que correra mal.

 

O vazio das suas emoções encheu-se subitamente com uma complexa mistura de sentimentos, como uma grande vaga e, como ela respondera à outra pergunta da irmã, o mais forte era algo parecido com desgosto. Estavam ambas vivas, mas morrera algo entre as duas e ela lamentava isso como se alguém tivesse morrido.

 

Meu Deus, Serena disse então Shelby, que continuava a olhar para o espelho. Estás muito abatida.

 

Hei-de ficar bem.

 

Sim, com certeza que sim.

 

E tu?

 

Havemos de conseguir respondeu Shelby erguendo a cabeça num desafio.

 

Deu um passo atrás e a distância entre elas aumentou. O reflexo das duas no espelho tornou-se mais pequeno. Quando a irmã chegou junto da porta e estendeu a mão para a maçaneta, Serena conseguiu falar.

 

Shelby? os olhos de ambas encontraram-se no espelho. Tem cuidado contigo.

 

Uma lágrima rolou pelas faces desta última, que sorriu levemente.

 

Tu também.

 

Serena viu a irmã sair, sentindo que estava a perder a parte de si mesma que nunca chegara a conhecer. Depois, cansada e triste, meteu-se na cama, com a camisa de Lucky apertada contra si e chorou até adormecer, era disso que precisava.

Gifford entrou no quarto sem fazer barulho. Pousou o prato que tinha na mão em cima da cómoda e contornou a cama para olhar a neta adormecida. As lágrimas haviam-lhe deixado as faces húmidas, a sua respiração era ainda trémula, e tinha a camisa azul nas mãos, fazendo-o recordar os tempos em que ela era ainda pouco mais do que um bebé e andava pela casa toda sempre com uma pequena manta daquela cor na mão.

 

Recordou o dia em que a mãe delas tinha sido enterrada, e como ele fora ver as netas, à noite, porque o pai se encontrava demasiadamente abatido para se lembrar disso. Encontrara Serena a dormir, ainda com o vestidinho de veludo preto e as meias-calças brancas que usara no funeral. Tinha só um pé calçado, as lágrimas haviam-lhe deixado o rosto húmido, como agora, e segurava nas mãos a velha manta azul.

 

Lembrava-se de tudo como se tivesse sido na véspera e, contudo, nessa noite, sentia o peso dos anos passados desde então. O amor que sentira por Serena nessa noite não diminuíra nem um bocadinho, não importava que ela fosse agora uma mulher e que a vida tivesse complicado as coisas. Continuava a sentir a dor dela mais profundamente do que se fosse a sua própria. O seu desgosto pelo que Shelby fizera era ainda maior por saber o que Serena sentia, agravado pelo afastamento de Lucky, e tudo isso era mais que suficiente para lhe partir o coração.

 

Sabia que a pressionara ao longo dos anos, que a manipulara, mas fizera tudo por amor e não suportava vê-la sofrer. Não podia mudar o que se passara entre Serena e Lucky, nem remover o que a separava de Shelby, mas podia meter algum senso na cabeça desse teimoso cajun. Bem vistas as coisas, era o mínimo ao seu alcance.

 

Com todo o cuidado, para não a acordar, inclinou-se e ajeitou-lhe o lençol em volta dos ombros. Olhou mais uma vez para ela, voltou-se e saiu silenciosamente, levando consigo o prato com a comida e fechando a luz antes de sair.

 

Lucky verificou a corda que prendia o barco a remos meio submerso e depois saiu lentamente do hayou, em direcção à margem. O dia estava infernalmente quente, o sol batia-lhe nas costas nuas através da névoa húmida, tornando a sua pele ainda mais escura, e o suor escorria-lhe pelo corpo. Calçou então umas velhas luvas de cabedal e agarrou na extremidade da corda que amarrara ao tronco de um carvalho, sem se importar com o seu desconforto, concentrado na tarefa.

 

Há semanas que tirava lixo do hayou, trabalhando literalmente de sol a sol, limpando dúzias de locais onde as pessoas descuidadamente deixavam tudo o que não queriam: frigoríficos velhos, camas de ferro, colchões, fogões, bicicletas e pneus. Era uma tarefa que precisava de ser feita e dedicava-se a isso, labutando até à exaustão, na esperança de conseguir dormir algumas horas ao fim do dia.

 

Quando era preciso, utilizava um guincho para remover os objectos mais pesados, mas só depois de tentar fazê-lo sozinho. O trabalho não o deixava pensar e assim tinha a certeza de que as dores que sentia eram musculares.

 

Pegou na corda e começou a puxá-la lentamente, para tirar pouco a pouco o barco da água. Ofegante, com todos os músculos tensos, sentia que a dor física bloqueava qualquer pensamento que lhe ocorresse, enquanto gotas de suor lhe corriam da fita que usava na testa, fazendo-lhe arder os olhos. Inclinou-se para trás, puxando com força até sentir o sangue latejar-lhe nos ouvidos, por isso nem sequer ouviu o motor de um barco que se aproximava. Quando viu que era Gifford, resmungou interiormente. Por que não o deixariam em paz? Ajustou melhor a corda em volta da mão e voltou a puxar, com mais força, concentrado no seu trabalho, arrastando o barco por mais uns centímetros. O ruído do motor cessou bruscamente, mas Lucky continuou a trabalhar como se estivesse completamente alheio à presença de Gifford Sheridan.

 

Já tive uma mula que fazia isso gracejou Gifford, mas era bastante mais esperta que tu, tenho de reconhecer.

 

Lucky aspirou uma lufada de ar húmido, ajustou a corda e voltou a puxar com toda a sua força, fazendo inchar os músculos do pescoço e dos ombros. A popa do velho barco deu um salto quando a outra extremidade ficou liberta da lama e minutos depois conseguia trazer a embarcação para a margem. Largou então a corda e foi esvaziar a água que a enchia. Gifford observava-o pacientemente, olhando-o por baixo da pala do seu velho boné verde desbotado.

 

O que veio aqui fazer? perguntou Lucky sem o olhar, enquanto tirava uma pequena âncora de dentro do bote e a deixava cair na margem. Julguei que já conseguira tudo quanto pretendia.

 

Que te interessa que eu tenha ou não o que quero? Toda a gente sabe que não te importas com ninguém e só pensas em ti.

 

Lucky continuou a tirar a água do velho barco, sem responder. Só lhe faltava aquilo. A sua vida já era suficientemente miserável sem ter de aturar aquele velho rezingão. Fizera o que fora preciso e mais nada.

 

Partiste-lhe o coração disse sucintamente Gifford. Lucky encolheu-se, aquelas palavras eram como que uma chicotada sobre carne viva. Olhou para o barco cheio de lixo e respondeu apenas:

 

Não lhe pedi que se apaixonasse por mim.

 

Não, mas isso aconteceu, não foi? Só Deus sabe o que ela achou em ti. Olho-te e vejo apenas um tipo teimoso, egoísta, que só pensa em se castigar a si próprio e que não percebe que não tem motivos para o fazer. Gifford encolheu os ombros e suspirou, com os olhos astutos sempre fixos em Lucky. Que diabo, talvez tu gostes de sofrer. Sabes que podes levar uma vida decente ao lado de uma mulher maravilhosa, mas rejeitas tudo isso para sofrer. Os católicos gostam dos seus mártires.

 

Nem sequer pestanejou com o olhar hostil que Lucky lhe deitou, continuou sentado, com os braços apoiados nas coxas, as mãos caídas entre os joelhos, tão calmo como se estivesse a pescar, à espera de que o peixe mordesse o anzol. Lucky voltou-se de repente e dirigiu-se para a margem, dedicando-se a virar o velho barco para acabar de o esvaziar. Quando terminou a operação e o bote fícou de lado, como a carcaça de uma baleia, olhou para Gifford e replicou:

 

Fiz o que era melhor.

 

Não o que era mais fácil contrariou-o Gifford.

 

Nada disso! exclamou Lucky, dando um passo para o velho, com ar agressivo. Porque julga que quis afastar-me dela? Que vida podia oferecer-lhe? Que marido seria para ela?

 

Não grande coisa, de facto, até conseguires meter juízo nessa cabeça, mas não vejo sinais de que isso possa suceder em breve retorquiu sarcasticamente Gifford. Creio que só me resta voltar para casa e dizer a Serena que ela chora todas as noites, até adormecer, por algo que nada vale.

 

O golpe atingiu o alvo em cheio, mais ainda do que Gifford esperava. Lucky ouvira Serena chorar, estivera na galeria de Chanson du Terre, de noite, muito tarde, apenas para a ver de relance, só para matar um pouco as saudades que o consumiam, e vira-a toda enroscada sobre si, na cama, agarrada à camisa que ele lhe deixara. Dissera a si próprio que fizera o que era certo, não merecia aquelas lágrimas, mas a ideia de que ela chorava fora o suficiente para lhe despedaçar o coração.

 

Não posso dar-lhe aquilo de que ela precisa insistiu, olhando para os pés.

 

Do que achas que ela precisa, Lucky? De dinheiro? De um marido executivo? Serena é capaz de ganhar o seu dinheiro. Se quisesse alguém rico há muito que o teria arranjado. Necessita apenas de que tu a ames. Se de facto lhe queres muito, deves ter uma alma muito triste.

 

Serena sabe que eu a amo confessou Lucky contra vontade.

 

Então vai ter com ela.

 

Não posso.

 

Gifford praguejou, perdendo a paciência.

 

Diabos te levem, rapaz. Porquê? Lucky olhou-o demoradamente.

 

Tenho as minhas razões.

 

O velho abriu a boca e corou, mas conteve a irritação.

 

Bem disse por fim, suspirando. Achas que tens uma boa vida sozinho? Estendeu a mão para accionar o motor. Não te preocupes com Serena. Ela há-de recompor-se, é uma Sheridan.

 

O motor começou a ronronar e o barco afastou-se ruidosamente, deixando Lucky tão agitado como as águas que seguiam no rasto da embarcação.

 

Essa sensação ainda não desaparecera ao fim do dia, quando acabou o trabalho e foi para casa, nem abrandara à meia-noite, quando se encontrava sentado no sótão, bebendo uísque e olhando para a tela que tinha na sua frente, iluminada pelo luar. Conseguira conter os seus sentimentos durante as últimas semanas, recusando-se a reconhecê-los, enterrando-os, mas agora vinham à superfície como petróleo nas águas do hayou. Agarravam-se a ele, recusando-se a ser ignorados, enquanto tentava acabar o quadro que estava no cavalete. Há semanas que não pintava. Esperava encontrar ali a mesma tranquilidade que achara ao regressar da América Central, mas quando pegava no pincel e aplicava a tinta sobre a tela não sentia a paz que costumava ter nos braços de Serena, e que não pensara voltar a encontrar.

 

Fora uma revelação inesperada, que não recebera bem. O alívio que em tempos encontrara ali, desaparecera. Recusara o amor que Serena lhe oferecera e não tinha paz, mas apenas infelicidade sob a forma de uma terrível solidão, acompanhada pela sensação de que perdera parte de si mesmo.

 

Não podia sair para o pântano sem pensar no modo como ela confiara nele num local que tanto temia, e a sua casa estava assombrada pela recordação de Serena. Não dormira uma única noite na cama, porque não conseguia deitar-se sem se lembrar do contacto do corpo dela contra o seu. De cada vez que ali voltava, julgava sentir o perfume dela no ar, a sua presença, mas não lhe podia tocar, não a podia ver, nem pedir-lhe que afastasse as sombras da sua alma.

 

Diabos te levem, Serena! murmurou, pondo-se de pé.

 

As emoções eram cada vez mais fortes, atormentando-o. Começou a andar de um lado para o outro em frente do cavalete, apercebendo-se, com uma sensação de pânico, de que não lhes conseguia fugir. Podia trabalhar até cair de exaustão que os sentimentos continuavam dentro dele, esperando uma oportunidade para o torturar, ou beber até ficar inconsciente, e mesmo assim surgiam através do nevoeiro do esquecimento.

 

Chorando de fúria e de frustração, agarrou no quadro por acabar e bateu com ele no chão com toda a força, partindo-o. Depois deixou cair tudo das mãos e recuou, às cegas.

 

Maldita sejas, Serena! gritou para os céus. Voltou-se para a mesa de trabalho e com um braço varreu tudo, atirando tintas, pincéis e boiões para o chão, vociferando acima do ruído. Diabos te levem! Diabos te levem!

 

Cambaleava pela sala, exausto de lutar contra os seus sentimentos, e depois deixou-se cair lentamente sobre a tela onde tinham feito amor pela primeira vez, sentindo-se tão triste e desolado por dentro como nunca estivera em toda a sua vida. Inclinou a cabeça para trás, e voltou-a para cima, para a clarabóia iluminada pela luz branca do luar. As lágrimas caíam-lhe dos olhos, molhando-lhe a testa, o cabelo.

 

Não pedira para se apaixonar, queria apenas que o deixassem em paz, mas agora estava tão só que não podia suportar tal situação. Era um verdadeiro inferno na Terra, e Gifford tivera o atrevimento de lhe dizer que ele seguira o caminho mais fácil.

 

Serena chamara-lhe cobarde, dissera-lhe que ele sentia pena de si próprio e que não queria dar uma oportunidade ao mútuo amor de ambos. Claro que tinha medo, sabia que no fim acabaria por ficar magoado e já sofrera o bastante para a vida inteira.

 

Contudo, Serena estava a pagar pelo sacrifício dele e Lucky nunca passara por esse género de angústia, era muito pior do que qualquer coisa que Ramos e os seus amigos lhe haviam feito, porque era constante, nada o podia aliviar. Sofria com a falta dela, por não lhe poder tocar, por se sentir culpado e por saber que ela tinha razão.

 

Era um cobarde. Tivera medo de amar outra vez, de deixar que Serena se aproximasse, com receio daquilo que esta pudesse ver, mas ela vira o suficiente, e mesmo assim amava-o.

 

Que espécie de louco era para deixar que uma mulher como Serena se afastasse e para continuar a sofrer assim?

 

Um nobre louco que afastara o objecto do seu amor para o proteger, um louco asssustado que desconfiara demasiado do amor, que nada tinha para oferecer à amada senão ele mesmo, porque a sua vida ficara reduzida à mera existência. Aonde iria a partir daí?

 

Lucky olhou demoradamente para o quadro caído no chão à sua frente. Estava partido, torcido, inútil, podia deitá-lo fora, ou tentar salvá-lo, retocando a pintura.

 

À medida que as respostas lhe ocorriam, apoderava-se dele uma sensação de calma. Se Serena merecia um homem melhor do que ele, então teria de se tornar assim. Se nada lhe podia oferecer, então precisava de mudar de vida, porque não suportava a ausência dela. Não queria ser um mártir do seu passado. Já lhe tinham tirado tanta coisa a juventude, a esperança, a família, que não podia permitir que lhe roubassem também Serena.

 

Chegara a altura de deixar tudo para trás e dar um primeiro passo em frente. Tinha um longo caminho a percorrer até se sentir curado, mas nunca lá chegaria se não desse esse passo, e a sua vida não seria digna de ser vivida se ficasse onde estava. Então estendeu lentamente a mão para a tela estragada e levantou-se.

 

 

Serena ficou no passeio, olhando para a tabuleta por cima da porta laçada de preto onde se lia ”Richard Gallery”, escrito com grandes letras douradas, que sobressaíam sobre o fundo negro. O edifício estreito, com três andares, estava ensanduichado entre outros prédios semelhantes, mais de uma vez cuidadosamente restaurados no decorrer da sua longa história. Nas janelas viam-se grades de ferro forjado, lindamente trabalhadas, vasos com gerânios vermelhos e folhas verde-escuras de hera, que espreitavam por entre essas grades. Um pouco mais abaixo, um jovem sentado num banco tocava saxofone para que os transeuntes lhe dessem algumas moedas, enquanto alguns turistas tinham começado a juntar-se para entrar num pequeno restaurante próximo. Ao fundo da rua surgiu uma carruagem, cujo cocheiro ia contando a história daquela zona da cidade aos passageiros enfim, mais uma noite quente de Verão em Nova Orleães.

 

A morada do bairro francês onde se encontrava condizia com a do convite que tinha nas mãos, mas Serena hesitou. Há quatro meses que não via Lucky, ele não fizera qualquer tentativa para entrar em contacto com ela, e o que recebera dificilmente poderia ser considerado um convite pessoal. Tratava-se de um cartão impresso, enviado por uma galeria de arte, e significava apenas que ela fazia parte da lista de endereços. Que lisonjeiro.

 

Um grupo de turistas passou por ela, rindo e conversando, separando-se por causa dela, como um riacho em volta de um rochedo. Serena não se mexeu, olhou para o convite que tinha na mão, recordando o que sentira ao abri-lo. Fora uma mistura de alegria e de tristeza alegria por saber que Lucky dera aquele passo, por ver que ele estava a fazer um esforço para endireitar a vida, e tristeza, por verificar que não fora incluída nessa tentativa.

 

Reconhecia o facto de não conseguir esquecê-lo. Continuava com a sua vida, mas a verdade é que duvidava de que alguma vez conseguisse libertar-se dele, aliás, isso era praticamente impossível pois tinha dentro de si um filho dele.

 

Mordeu os lábios e olhou para a porta da galeria. Durante o caminho até Nova Orleães dissera a si própria que ia ali por causa de Lucky, para lhe mostrar o seu apoio, mas na verdade tratava-se de o poder ver num terreno neutral, e ela precisava disso. Esperava conservar-se fria e calma e dizer-lhe que, embora estivesse para ser mãe, nada esperava dele. Seria a verdadeira imagem da sofisticação e da calma e depois, provavelmente, perderia os sentidos.

 

Vamos entrar, ou era só isto que queria ver? Serena teve um sobressalto ao ouvir aquela voz e olhou para o homem que quisera acompanhá-la a Nova Orleães.

 

Louro e bem-parecido, David Farrell olhava-a com expressão bondosa e um largo sorriso nos lábios.

 

Serena conhecera David e outra psicóloga, trabalhavam juntos e depressa se haviam tornado grandes amigos. Ele era uma pessoa afável, com quem se podia falar e cheio de intuição. Serena sentiu que podia confiar nele pouco tempo depois de o conhecer, algo que não era nada vulgar nela, e de facto não se enganara. Era uma característica que o favorecia na sua profissão e o tornava muito popular entre os amigos. Serena achava que ele era considerado um excelente partido por muitas raparigas solteiras de Lafayette.

 

David insistira em acompanhá-la a Nova Orleães para lhe dar apoio moral e encontrava-se agora ao lado de Serena, com as mãos nos bolsos das calças, esperando pacientemente que ela lhe respondesse.

 

Sim, vamos entrar. Só queria ter a certeza de que é este o local. David ergueu as sobrancelhas, mostrando duvidar do que ouvia. Guarde essas coisas para os seus pacientes, doutor Farrell disse Serena começando a andar à frente dele.

 

A galeria era fria e cheia de luz, com as paredes brancas cobertas de quadros estrategicamente iluminados e um soalho reluzente. Muitas pessoas andavam de um lado para o outro, admirando as obras de Lucky, conversando, comendo aperitivos e bebendo vinho branco por copos de pé alto. Música cajun saía de microfones habilmente ocultos, mas tocada demasiado baixo para ser apreciada.

 

Serena deu por si a pensar que tinha saudades dos hayous e sorriu um pouco ao pensar nisso. Era aquela a vida de que ela gostava em Charleston, mas desejou poder encontrar-se em Chanson du Terre, ouvindo Gifford discutir com Pepper, com música ruidosa como pano de fundo.

 

Não podia imaginar Lucky naquele ambiente, ele era demasiado selvagem e primário. Começou a caminhar por entre a multidão, quase esperando vê-lo aparecer de calças camufladas e tronco nu.

 

Ele tem muito talento comentou Farrell um pouco atrás dela.

 

Tinham parado em frente de um quadro que representava o hayou envolto nos últimos raios do crepúsculo. O quadro tinha um tom de bronze-dourado e era magnífico. Serena olhou-o, recordando a primeira vez que vira obras dele, como se sentira atraída e como tinham feito amor sobre a tela caída no chão.

 

Sim respondeu Serena e estou contente por ele ter finalmente compreendido isso.

 

Creio que esta noite muita gente se está a aperceber do facto. Tenho a impressão de que o seu Lucky Doucet vai ser um homem bastante rico. Já o viu?

 

Não.

 

Bem disse David, tirando um copo de vinho de uma bandeja. Quando quiser diga, que eu desapareço entre a multidão.

 

Subitamente, Serena ficou imóvel, sentindo os olhos de Lucky fixos nela como holofotes. Voltou-se lentamente, respirando com dificuldade, enquanto os seus olhos encontravam os dele, quase do outro lado da sala, que a fitavam como se ela fosse a única mulher existente na Terra, ignorando completamente quem conversava com ele.

 

Serena experimentou uma ligeira tontura quando Lucky se lhe dirigiu, movimentando-se com a graça de um grande gato e com uma força deslocada naquele ambiente, fazendo toda a gente afastar-se para lhe dar passagem.

 

Serena procurou resistir à mistura de emoções que a invadiam e, olhando-o calmamente, murmurou:

 

Oh! Até conseguiram que vestisses uma camisa! É uma ocasião especial.

 

Ele olhou-a de testa franzida e levou a mão à gravata, que já alargara no pescoço. Estava devastadoramente atraente, com umas calças de linho cor de café, camisa tom de marfim e uma gravata de seda castanha. O cabelo continuava comprido, encaracolado, apenas preso na nuca por algo mais discreto que um atacador de cabedal. Serena sentiu nervoso no estômago, não sabia se conhecia aquele Lucky, e quase desejou que ele tivesse ido com calças de algodão.

 

Não tinha a certeza se virias comentou com uma expressão mal-humorada ao ver o homem que se encontrava ao lado dela.

 

Claro que vim, recebi um convite replicou Serena com um leve sarcasmo na voz e mostrando-lhe o cartão, como prova. Trouxe um amigo, mas espero que não te importes. David, este é Lucky Doucet.

 

Muito prazer disse David, estendendo-lhe a mão. Lucky não correspondeu ao cumprimento e percebia-se que a tensão aumentava gradualmente dentro dele. Evitando sorrir, David recuou.

 

Bem, vou dar uma volta por aí. Provavelmente vocês dois terão muito que conversar.

 

Serena viu-o afastar-se entre a multidão e depois voltou-se de novo para Lucky, que a observava com um olhar tão perturbador como sempre. Mesmo passado tanto tempo, ela sentia o seu corpo responder à proximidade dele, o coração bater-lhe mais depressa, um estranho calor invadi-la.

 

Contudo, forçando-se por ignorar as emoções, olhou-o com uma expressão genuinamente afectuosa.

 

Parabéns pela exposição. Sei o que isto significa para ti e estou muito feliz por isso.

 

Lucky nada disse durante uns longos momentos, limitando-se a olhá-la silenciosamente. Passara muitas noites sem dormir, desejando vê-la, mas não iria ter com Serena sem nada para lhe oferecer. Agora bebia-a com os olhos, absorvendo tudo o cabelo louro, tom de mel, elegantemente penteado, o delicado tom róseo das faces e da boca, o castanho líquido dos olhos, a curva orgulhosa do queixo, imaginando-a vestida apenas com a velha camisa azul que fora sua, mas logo pensando se ela a teria usado para o ”amigo”.

 

Estás com bom aspecto disse ele, tentando ver se havia nela uma mudança subtil.

 

Também tu sussurrou Serena.

 

Como está Giff? perguntou Lucky.

 

Óptimo.

 

Bon Dieu, pensou Lucky, havia tanta coisa que lhe queria dizer, no entanto, continuava parado à frente de Serena, trocando banalidades, quase como se ela fosse uma estranha. Talvez quando acabasse de a olhar se isso viesse a suceder as palavras surgissem, mas a verdade é que nunca fora de muitas falas. O que queria era beijá-la, tomá-la nos braços, senti-la contra si, macia e quente. Desejava tirar-lhe os ganchos do cabelo, passar-lhe as mãos pelo corpo, deitá-la, juntar o seu corpo ao dela e sentir a incrível sensação de paz que só Serena lhe proporcionara, mas viera com outro homem.

 

Lucky sentiu alguém tocar-lhe num braço e voltou-se com hostilidade para olhar o dono da galeria de arte, um homem magro, de quarenta e poucos anos, demasiado snobe para o seu gosto. Durante as últimas semanas, tivera de lembrar a si próprio que se tratava do proprietário de uma das melhores galerias da cidade e que Danielle, sua cunhada, se esforçara muito por os apresentar um ao outro. O respeito pela cunhada fora quase a única coisa que o impedira de dizer ao intruso que fosse para o diabo. Isso e o facto de ser a grande oportunidade de mostrar a Serena que decidira dar uma reviravolta na sua vida.

 

O dono da galeria ignorou o olhar hostil de Lucky e disse:

 

Tem de conhecer Annis, Lucky. Ela é crítica de arte do jornal The Times.

 

Acha que isso são boas maneiras? replicou Lucky, olhando-o e à mulher de ar exótico que o acompanhava.

 

Richard aproximou-se mais de Lucky e falou-lhe em voz baixa, enquanto a crítica de arte os olhava com interesse.

 

Annis é uma pessoa muito importante no mundo artístico.

 

Então entenda-se com ela, eu tenho coisas mais importantes para fazer.

 

Serena pigarreou delicadamente.

 

Lucky, vejo que estás ocupado. Falamos mais tarde.

 

Não, agora insistiu ele, voltando-se para ela com uma expressão perigosa no olhar. Depois deu-lhe o braço e dirigiu-se para a porta das traseiras.

 

Vamo-nos embora. Não consigo respirar neste sítio.

 

Mas a tua exposição...

 

Não precisa de que eu aqui esteja.

 

Lucky! protestou Serena, tentando não chamar muito a atenção, estas pessoas vieram para te conhecer!

 

Ele continuou a andar, de sobrolho franzido e com uma expressão determinada no rosto.

 

Se vieram para ver os quadros, óptimo, se foi por causa das bebidas de graça, não me interessa, mas, se querem apenas conhecer-me, vão antes dar uma volta. Não estou em exposição.

 

Os convidados afastaram-se, como o mar Vermelho ante os judeus, para os deixar passar e Serena teve de apressar o passo para acompanhar Lucky. Atravessaram uma pequena cozinha, perante os olhares curiosos do pessoal que servia o beberete, e chegaram ao jardim para onde convergiam vários edifícios do bloco.

 

Caminhos empedrados partiam de uma fonte rumorejante e o ar tépido da noite estava perfumado pelo odor intenso das flores. Lanternas de metal, estrategicamente colocadas, acabavam de se acender, pois a luz do dia desaparecera rapidamente.

 

Tens sorte porque as pessoas acham graça quando os artistas são grosseiros e excêntricos comentou Serena, enquanto Lucky a conduzia para um banco, no canto mais afastado do jardim.

 

Sim, terei grande sucesso, não é verdade?

 

Um verdadeiro êxito! Achas que posso voltar a sentir este braço em breve?

 

Lucky praguejou em francês e largou-lhe o braço. Sentaram-se então no banco de ferro forjado, junto de uma trepadeira de buganvílias, e Lucky murmurou, como que a desculpar-se:

 

Fico um bocado tenso no meio de muita gente. Serena sorriu-lhe.

 

Pareceu-me que estavas muito bem. Lucky encolheu os ombros e murmurou:

 

Estou a fazer o possível para isso.

 

A perigosa necessidade de lhe estender as mãos veio à tona. Queria oferecer-lhe o seu apoio, queria abraçá-lo e dizer-lhe como estava orgulhosa dele, mas sentou-se no banco e ficou calada. Lucky conseguira sair-se bem nos últimos meses, sem o apoio dela, e era bem claro que ele fizera um esforço para ultrapassar os problemas do passado. Serena disse a si própria que estava satisfeita por ele, mas que não podia partilhar aquela vitória. Se queria sobreviver precisava de se manter à distância, tanto emocional como fisicamente.

 

Tens passado bem? perguntou abruptamente Lucky, fitando-a com os seus olhos cor de âmbar, que brilhavam intensamente.

 

Com certeza respondeu Serena devagar e sem convicção. Aguentei-me menos mal.

 

Podia ter-lhe dito a verdade, que se sentira amargurada e só, mas prometera a si própria mostrar-se firme. O silêncio do jardim envolveu-os, os ruídos característicos das grandes cidades chegavam-lhes desvanecidos as buzinas dos carros, alguém a chamar alguém, música de jazz a sair algures de uma janela.

 

Lucky nada ouvia, estava imóvel, sentindo-se desconfortável com os sapatos novos, pensando se teria perdido a oportunidade de um futuro feliz com a única mulher que realmente amara.

 

Senti a tua falta disse de súbito e Serena olhou-o, assombrada, o coração quase parou e deixou de respirar. Senti terrivelmente a tua falta, Serena repetiu.

 

Então porque não foste ter comigo? perguntou ela. A mágoa que sentira durante todos aqueles meses apertava-lhe agora a garganta, quase não a deixando falar.

 

Não podia, não podia ir ter contigo como um falhado.

 

Eu amava-te de qualquer maneira.

 

Ainda me amas? perguntou Lucky, fitando-a fixamente enquanto esperava pela resposta.

 

Passei os últimos quatro meses a tentar esquecer-te.

 

E conseguiste?

 

Serena olhou-o apenas, detestando-o por ele deitar abaixo os muros que erguera à sua volta durante meses, por lhe tirar o seu falso autodomínio. Lucky inclinou-se sobre ela, apoiando um joelho no banco e tornando-a praticamente prisioneira dos seus braços.

 

Conseguiste deixar de gostar de mim? perguntou com a sua voz quente e doce.

 

Serena tentou voltar a cara, mas ele prendeu-lhe o queixo e forçou-a a olhá-lo.

 

Não respondeu Serena, toda a tremer por dentro, enquanto uma lágrima lhe deslizou por entre as pestanas, caindo-lhe na face, tirando-lhe as últimas esperanças de manter o seu orgulho intacto. Não.

 

Então que diabo estás a fazer aqui com outro homem?

 

O ciúme transparecia na voz dele e Serena abriu os olhos, incrédula.

 

David? É apenas um amigo, trabalhamos juntos.

 

Não são amantes?

 

Não! exclamou Serena, aborrecida. Embora isso não seja da tua conta.

 

Lucky recuou um passo, metendo os dedos no cós das calças.

 

Claro que é da minha conta, chère.

 

Sim? perguntou Serena com sarcasmo. E porquê?

 

Porque te amo! quase gritou Lucky.

 

A noite pareceu ficar parada, Serena olhou-o, incapaz de dizer uma palavra e ele fitava-a também, com a respiração ofegante.

 

Amo-te! repetiu em voz baixa.

 

Serena levantou-se lentamente do banco, sem nunca deixar de o olhar.

 

Já tinha perdido a esperança de ouvir isso sussurrou, comovida. Esperei sempre por ti, desejei que voltasses. Abanou a cabeça, enquanto as lágrimas lhe enchiam os olhos, não a deixando ver. Diz isso outra vez pediu, quando Lucky a tomou nos braços. Por favor, diz isso outra vez.

 

Amo-te! e cada palavra dele era um beijo, enquanto a apertava contra si, enlouquecido por sentir de novo aquele corpo. Je t’aime, ma chérie, je t’aime.

 

Lucky quase a esmagou, beijando-a com força, com paixão, com o desejo acumulado durante longos meses. A língua dele roçou a dela, bebendo o seu doce sabor, e depois afastou-a um pouco e beijou as lágrimas que lhe corriam pelas faces.

 

Não chores, meu amor, não chores. Agora está tudo bem.

 

Serena não conseguia conter-se, as emoções eram demasiado fortes e o seu controlo frágil. Comprimiu a cara contra o ombro forte de Lucky e chorou para extravasar todas as suas emoções, agarrando-se a ele, sentindo-lhe a força, agradecendo a Deus por aqueles braços estarem de novo em volta do seu corpo.

 

Casa comigo, Serena murmurou Lucky com voz tensa e rouca de emoção. Preciso muito de ti, posso dar à minha vida uma volta de cento e oitenta graus e mesmo assim, sem ti, continuar a nada valer. Casa comigo.

 

Serena ergueu a cabeça do ombro dele e um sorriso trémulo surgiu-lhe nos lábios. Lucky era um homem duro, obstinado, orgulhoso, a vida com ele nunca seria fácil, nem monótona, mas sem ele não lhe parecia digna de ser vivida. O seu coração vira para além do aspecto físico e descobrira um homem a quem merecia a pena dar as mãos, e agora era ele quem lhas estendia.

 

Casa comigo, Serena repetiu novamente.

 

Sim sussurrou ela.

 

Tem filhos meus.

 

Sim.

 

O sorriso de Serena abriu-se e levou-lhe a mão à ligeira elevação do seu ventre. Não precisou de dizer mais nada, Lucky leu a mensagem nos olhos dela. O amor inundou-o ao imaginá-la com um filho de ambos ao colo, amamentando um bebé de cabelo escuro ao seu branco peito. Subitamente, a vida que ele quase deitara fora parecia-lhe merecedora de ser vivida. Puxou-a mais contra si e abraçou-a demoradamente, enquanto a força do amor o invadia, como vento puro, afastando do seu coração todos os traços de escuridão.

 

Inclinou-se de novo sobre Serena e limpou com os dedos as lágrimas que lhe molhavam as faces.

 

Não sei que espécie de marido serei para ti, chérie confessou. Estou sozinho há muito, muito tempo, mais do que pensas.

 

Não faz mal disse Serena, levantando uma mão para tocar no rosto duro e macio de Lucky.

 

Nunca mais ficarás sozinho.

 

Terei a minha mulher comigo.

 

Para sempre.

 

 

NOTA DA AUTORA

Espero que tenham gostado tanto do ambiente em que decorre este livro como eu apreciei descrevê-lo em palavras. A Luisiana do Sul tem uma paisagem única, com uma história também única e uma rica mistura de antecedentes culturais. Tentei retratar alguma dessa diversidade usando dialectos locais, em especial palavras e frases em cajun.

O cajun difere do francês standard tanto como o inglês isabelino difere do que hoje falamos e escrevemos, e evoluiu separado da língua-mãe, retendo muitas palavras e frases antigas, assim como outras de várias línguas. Existem muitas variantes, porque este dialecto do francês passou de geração em geração apenas oralmente. Cerca de sessenta por cento das palavras do cajun estão incluídas num dicionário de francês, as restantes são apenas do patois local.

Só recentemente foram feitas tentativas para preservar o dialecto escrevendo-o, mas esses esforços têm sido rodeados de muita controvérsia, travando-se discussões sobre como se deve salvá-lo e se vale a pena fazê-lo.

As minhas fontes para as frases e palavras cajun usadas neste livro incluem Conversational Cajun French, por Harry Jannise e Randall P. Whatley, assim como traduções de várias canções folclóricas cajun, por Sharon Arms Doucet, Barry Ancelet e Ann Savoy. Agradeço a todos por manterem vivo o cajun.

 

                                                                                 Tami Hoag  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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