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O PÉRIPLO DE BALDASSARE / Amin Maalouf
O PÉRIPLO DE BALDASSARE / Amin Maalouf

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Nas vésperas do ano 1666, o mundo vive um pavor supersticioso, já que, segundo a Bíblia, 666 é o número da Besta e anuncia o Apocalipse. Baldassare Embriaco, um negociante de livros e antiguidades, descendente de uma família genovesa há muito radicada no Levante, inicia por esta altura uma busca que o leva a percorrer diversas cidades. É durante esta viagem que, em Inglaterra, assiste ao Grande Incêndio de Londres, em Setembro de 1666. Mas nem mesmo este incidente o faz desistir do seu propósito: Baltasar está decidido a recuperar um livro que vendera a um emissário francês, intitulado O Centésimo Nome, uma obra da qual se diz que contém o nome secreto de Deus e permite divisar o futuro.

 

 

 

 

                             O Centésimo Nome

       

Quatro longos meses nos separam ainda do ano da Besta, e ela já aí está. A sua sombra obscurece-nos os peitos e as janelas das nossas casas.

À minha volta, as pessoas já não sabem falar de outra coisa. O ano que se aproxima, os sinais prenunciadores, as predições... Por vezes digo a mim mesmo: deixá-la vir! Deixá-la esvaziar por fim o seu alforge de prodígios e de calamidades! Depois reconsidero, regresso em memória a todos esses bons anos normais em que cada dia se passava na espera das alegrias da noite. E maldigo abertamente os adoradores do apocalipse.

Como começou esta loucura? Em que espírito germinou ela primeiro? Debaixo de que céus? Não poderia dizer com exactidão, e, no entanto, de certa maneira, sei-o. Daqui onde me encontro, vi o medo, o medo monstruoso, nascer e crescer e expandir-se, vi-o insinuar-se nos espíritos, até nos dos meus familiares, até no meu, vi-o sacudir a razão, espezinhá-la, humilhá-la e depois devorá-la.

Vi acabarem-se os dias felizes.

Até aqui, vivera com serenidade. Prosperava, tinha boa aparência e fortuna, um pouco mais em cada estação; não cobiçava nada que não estivesse ao meu alcance; os meus vizinhos adulavam-me mais do que me invejavam.

E, de súbito, tudo desaba à minha volta.

Esse livro estranho que aparece, depois desaparece por minha culpa...

A morte do velho Idriss, de que ninguém me acusa, é certo... A não ser eu mesmo.

E essa viagem que tenho de fazer a partir de segunda-feira, a despeito das minhas reticências. Uma viagem da qual hoje me parece que não regressarei.

Não é pois sem apreensão que traço estas primeiras linhas neste caderno novo. Ainda não sei de que maneira vou relatar os acontecimentos que se deram, nem aqueles que já se anunciam. Um simples relato dos factos? Um diário íntimo? Um roteiro? Um testamento?

Talvez devesse falar primeiro daquele que em primeiro lugar despertou as minhas angústias a propósito do ano da Besta. Chamava-se Evdokime. Um peregrino de Moscóvia, que veio bater-me à porta há dezassete anos, pouco mais ou menos. Porquê dizer pouco mais ou menos? Tenho a data exacta no meu registo comercial. Foi a vinte de Dezembro de 1648.

Sempre anotei tudo, e principalmente os ínfimos detalhes, aqueles de que acabaria por me esquecer.

Antes de entrar pela minha porta, o homem fizera o sinal da cruz com dois dedos estendidos, depois baixara-se para não chocar com o arco de pedra. Trazia uma grossa capa negra, tinha mãos de lenhador, dedos grossos, uma espessa barba loura, mas uns olhos minúsculos e a testa estreita.

A caminho da Terra Santa, não fora por acaso que parara em minha casa. Tinham-lhe dado o endereço em Constantinopla, dizendo-lhe que era aqui, e só aqui, que tinha hipóteses de encontrar aquilo que procurava.

- Gostaria de falar ao senhor Tommaso.

- Era o meu pai, disse eu. Morreu em Julho.

- Deus o receba no Seu Reino!

- E que ele acolha também os santos mortos da vossa família! A troca de palavras fazia-se em grego, a nossa única língua comum, embora nem eu nem ele, com toda a evidência, a praticássemos correntemente. Troca hesitante, insegura, em consequência do luto, para mim ainda doloroso, para ele inesperado; e também devido ao facto de que, falando ele a um «papista apóstata» e eu a um «cismático tresmalhado», tínhamos o cuidado de não pronunciar nenhuma palavra que pudesse ferir as crenças do outro.

Após um breve silêncio comum, continuou: - Lamento muito que o vosso pai nos tenha deixado.

Ao dizer isto, passeava o olhar pela loja, procurando sondar aquela confusão de livros, de estatuetas antigas, de objectos de vidro, de vasos pintados, de falcões empalhados; e perguntando-se - a si mesmo, mas poderia muito bem exprimi-lo em voz alta - se, não estando já o meu pai, eu poderia ser apesar de tudo de alguma ajuda. Eu tinha já vinte e três anos, mas a minha cara, redondinha e barbeada, devia ter ainda reflexos infantis. Eu tinha-me erguido, com o queixo espetado. - O meu nome é Baldassare, fui eu que lhe sucedi. O meu visitante não deu qualquer sinal de me ter ouvido. Continuava a passear o olhar pelas mil maravilhas que o rodeavam, com um misto de encanto e de angústia. De todas as lojas de curiosidades, a nossa era, desde há cem anos, a mais bem fornecida e a mais conceituada do Oriente. Vinham procurar-nos de todos os lugares, de Marselha, de Londres, de Colónia, de Ancona, como de Esmirna, do Cairo e de Ispahan.

Depois de me medir uma vez mais com o olhar, o meu russo deve ter-se conformado.

- Sou Evdokime Nikolaevitch. Venho de Voronej. Elogiaram-me muito a sua casa.

Assumi imediatamente o ar da confidência, era essa, então, a minha maneira de ser afável.

- Estamos neste comércio há quatro gerações. A minha família é de Génova, mas há muito tempo que se instalou no Levante...

Ele abanou várias vezes a cabeça, querendo dizer que sabia tudo isso. Na verdade, se lhe tinham falado de nós em Constantinopla, era a primeira coisa de que deviam tê-lo informado. «Os últimos genoveses nesta parte do mundo...» Com algum epíteto, algum gesto evocador de loucura ou uma extrema originalidade transmitida desde sempre de pai para filho. Eu sorri e calei-me. Ele voltou-se imediatamente para a porta, gritando um nome e uma ordem.

Apareceu um criado, um homenzinho corpulento de fato negro entufado, com um gorro direito na cabeça, e os olhos no chão. Trazia uma caixa cuja tampa levantou para dela retirar um livro, que estendeu ao seu senhor.

Julguei que tinha a intenção de mo vender, e fiquei imediatamente de pé atrás. No comércio de curiosidades, muito cedo aprendemos a desconfiar dessas personagens que chegam com ares importantes, declinam a sua genealogia e as suas nobres relações, distribuem ordens à esquerda e à direita, e que, no fim de contas, só nos querem vender um qualquer traste venerável. Único para eles, e portanto, por via de consequência, único no mundo, não é verdade? Se lhes propomos algum preço que não corresponda àquele que tinham imaginado, melindram-se, dizem-se não apenas explorados, mas insultados. E acabam por se afastar proferindo ameaças.

O meu visitante não tardaria a tranquilizar-me: não estava em minha casa nem para vender nem para regatear.

- Esta obra acaba de ser impressa em Moscovo há alguns meses. E já todos aqueles que sabem ler a leram.

Indicou-me com o dedo o título em caracteres cirílicos, e pôs-se a recitar com fervor: - «Kniga o vere...», antes de se lembrar de que era preciso traduzir: «O Livro da Fé una, verdadeira e ortodoxa.» Olhou-me pelo canto do olho para ver se essa formulação fizera ferver o meu sangue de papista. Eu estava impassível. Tanto por fora como por dentro. Por fora o sorriso polido do mercador. Por dentro o sorriso trocista do céptico.

- Este livro anuncia que o apocalipse está às nossas portas! Indicou-me uma página, perto do fim.

- Está aqui escrito com todas as letras que o Anticristo aparecerá, de acordo com as Escrituras, no ano do Papa de 1666.

Repetiu este número por quatro ou cinco vezes, ocultando de cada vez um pouco mais o «mil» do início. Depois observou-me, esperando as minhas reacções.

Eu tinha, como toda a gente, lido o Apocalipse de João, e tinha-me detido por momentos nessas frases misteriosas do décimo terceiro capítulo: «Que aquele que tem a inteligência conte O número da Besta.

Porque o seu número é um número de homem e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.»

- Está escrito 666 e não 1666 - sugeri eu timidamente.

- É preciso ser cego para não ver um sinal tão evidente!

Um sinal. Quantas vezes ouvi esta palavra, bem como a de «presságio»! Tudo se torna sinal ou presságio para quem está à espreita, disposto a maravilhar-se, disposto a interpretar, disposto a imaginar concordâncias e aproximações. O mundo está cheio desses infatigáveis espreitadores de sinais - eu conheci bastantes naquela loja! Dos mais encantadores e dos mais sinistros!

O homem chamado Evdokime parecia irritado com a minha relativa frieza, que a seus olhos traía ao mesmo tempo a minha ignorância e a minha impiedade. Não querendo melindrá-lo, tive de fazer um esforço sobre mim mesmo para dizer:

- Tudo isso é, na verdade, estranho e inquietante...

Ou uma frase qualquer deste género. Tranquilizado, o homem recomeçou:

- Foi por causa deste livro que vim até aqui. Procuro textos que possam esclarecer-me.

Quanto a isso, eu compreendia, com efeito. Ia poder ajudá-lo.

Devo dizer que a fortuna da nossa casa ao longo das últimas décadas se edificou sobre o entusiasmo do cristianismo pelos velhos livros orientais - principalmente gregos, coptas, hebraicos e siríacos - que pareciam encerrar as mais antigas verdades da Fé, e que as cortes reais, nomeadamente as da França e da Inglaterra, procuravam adquirir para apoiar o seu ponto de vista nas querelas entre os católicos e os defensores da Reforma. A minha família vasculhou desde há perto de um século os mosteiros do Oriente em busca desses manuscritos, que se encontram hoje às centenas na Biblioteca Real de Paris ou na Bodleian Library de Oxford, para citar apenas as mais importantes.

- Não tenho muitos livros que falem especificamente do Apocalipse, nem principalmente da passagem que menciona o número de Besta. No entanto, tem aqui...

E passei em revista algumas obras, dez ou doze, em diversas línguas, especificando o seu conteúdo, enumerando por vezes as cabeças dos capítulos. Não desgosto deste aspecto da minha profissão. Julgo possuir o tom e a maneira. Mas o meu visitante não mostrava o interesse que eu pensava suscitar. De cada vez que eu mencionava um livro, ele manifestava por pequenos gestos dos dedos, por fugas do olhar, a sua decepção, a sua impaciência.

Acabei por compreender.

- Falaram-vos de um livro concreto, não é verdade ?

Ele pronunciou um nome. Enredando-se nas sonoridades árabes, mas eu não tive qualquer dificuldade em compreender.

Abou-Maher al-Mazandarani. Para dizer a verdade, já esperava por isso havia momentos.

Aqueles que têm a paixão dos livros velhos conhecem o de Mazandarani. De ouvir falar, porque poucas pessoas o tiveram nas mãos. Ainda não sei, de resto, se ele existe verdadeiramente, e se alguma vez existiu.

Explico-me, porque em breve vou parecer escrever coisas contraditórias: quando mergulhamos em obras de certos autores célebres e reconhecidos, vemo-los muitas vezes mencionar esse livro; para dizer que um dos seus amigos, um dos seus mestres, o tivera outrora na sua biblioteca... Em contrapartida, nunca encontrei, escrita por uma pena respeitada, a confirmação sem ambiguidade da presença desse livro. Ninguém que dissesse claramente «tenho-o», «folheei-o», «li-o», ninguém que citasse passagens dele. De modo que os negociantes mais sérios, bem como a maioria dos letrados, estão persuadidos de que essa obra nunca existiu, e que as raras cópias que aparecem de tempos a tempos são obra de falsários e de mistificadores.

Esse livro lendário intitula-se A Revelação do nome oculto, mas chamam-lhe geralmente O Centésimo Nome. Quando eu tiver explicado de que nome se trata, compreender-se-á porque é que ele foi desde sempre tão cobiçado.

Ninguém ignora que, no Alcorão, são mencionados noventa e nove nomes de Deus, a que alguns preferem chamar «epítetos». Misericordioso, Vingador, Subtil, Aparente, Omnisciente, Arbitro, Herdeiro... E esse número, confirmado pela Tradição, sempre induziu, nos espíritos curiosos, esta interrogação que parece evidente: não haveria, para completar esse número, um centésimo nome, oculto? Citações do Profeta, que alguns doutores da lei contestam mas que outros reconhecem como autênticas, afirmam que há realmente um nome supremo que bastaria pronunciar para afastar qualquer perigo, para obter do Céu qualquer favor. Noé conhecia-o, diz-se, e foi assim que conseguiu salvar os seus quando do Dilúvio.

Facilmente se imagina o atractivo extraordinário de uma obra que pretende revelar um tal segredo neste tempo em que os homens receiam um novo Dilúvio. Vi desfilar na minha loja toda a espécie de personagens, um carmelita descalço, um alquimista de Tabriz, um general otomano, um cabalista de Tiberíades, todos à procura desse livro. Sempre considerei meu dever explicar a essas pessoas por que motivo, em minha opinião, isso não passava de uma miragem. Geralmente, quando os meus visitantes acabavam de ouvir a minha argumentação, resignavam-se. Uns desapontados. Outros tranquilizados; se não podem ter esse livro, preferem acreditar que mais ninguém no mundo o terá...

A reacção do moscovita não foi nem uma nem outra. A princípio, pareceu divertido, como que para me fazer compreender que não acreditava nem numa palavra das minhas arengas de vendedor. Quando, agastado pelas suas mímicas, decidi interromper-me, ele murmurou, subitamente grave, e mesmo suplicante:

- Vendei-mo, e eu dou-vos imediatamente todo o ouro que possuo!

Meu pobre amigo, apeteceu-me dizer-lhe, tendes sorte em ter calhado com um mercador honesto. Os escroques não deixarão de aliviar-vos em breve do vosso ouro!

Pacientemente, recomecei a explicar-lhe que esse livro, que eu soubesse, não existia; e que só autores ingénuos e crédulos, ou então intrujões, pretendiam o contrário.

A medida que eu argumentava, o seu rosto congestionava-se. Como um doente condenado a quem quisessem explicar calmamente, com um sorriso nos lábios, que o remédio de que ele esperava a cura nunca foi composto. Eu via nos seus olhos, não a decepção ou a resignação, nem mesmo a incredulidade, mas o ódio, filho do medo. Abreviei as minhas explicações, para aterrar numa conclusão prudente:

- Só Deus conhece a verdade!

O homem já não me escutava. Tinha avançado. Com as suas mãos poderosas agarrara-me pelo vestuário, puxado-me para si, esmagando-me o queixo contra o seu peito de gigante. Julguei que ia estrangular-me, ou que ia partir-me o crânio contra a parede. Felizmente, o criado aproximou-se, tocou-lhe no braço e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Palavras tranquilizadoras, suponho, porque o patrão me largou imediatamente, repelindo-me com um gesto desdenhoso. Depois saiu da loja murmurando uma imprecação na sua língua.

Nunca mais voltei a vê-lo. E sem dúvida teria acabado por esquecer até o seu nome se a sua passagem não tivesse marcado o início de um estranho desfile de visitantes. Levei tempo a aperceber-me disso, mas hoje tenho a certeza: depois desse Evdokime, as pessoas que vinham à loja não eram já as mesmas, já não se comportavam da mesma maneira. Não trazia o peregrino de Moscóvia nos olhos esse terror, que alguns qualificariam de «santo». Eu descobria-o agora em todos os olhares. E com ele essa atitude de impaciência, de urgência, essa insistência angustiada.

Isto não são apenas impressões. Aqui, é o mercador que fala, com os dedos nos registos: depois da visita desse homem, não se passou um dia sem que viessem falar-me de apocalipse, de Anticristo, da Besta e do seu mímero.

Por que não dizê-lo abertamente, foi o apocalipse que assegurou o grosso das minhas receitas ao longo destes últimos anos. Sim, é a Besta que me veste, é a Besta que me alimenta. Assim que a sua sombra se perfila num livro, os compradores acorrem de toda a parte, de bolsas abertas. Tudo se vende a preço de ouro. Tanto obras mais eruditas como as mais fantasistas. Tive mesmo

Nas minhas estantes uma certa Descrição minuciosa da Besta e dos numerosos monstros do Apocalipse, em latim, com quarenta desenhos explicativos...

Mas se esse entusiasmo mórbido assegura a minha prosperidade, ele não deixa de me inquietar.

Não sou homem de seguir as loucuras do momento, sei conservar a razão quando à minha volta as pessoas se agitam. Dito isto, também não sou desses seres obtusos e arrogantes que formam opiniões como as ostras formam as suas pérolas, e depois se fecham sobre elas. Tenho as minhas ideias, as minhas convicções, mas não sou surdo à respiração do mundo. Não posso ignorar esse medo que se difunde. Bem posso sorrir, encolher os ombros, praguejar contra a imbecilidade e a frivolidade, mas o assunto perturba-me.

No combate que opõe em mim a razão à desrazão, esta última tem marcado pontos. A razão protesta, faz troça, obstina-se, resiste, e eu ainda tenho lucidez suficiente para observar esse confronto com algum distanciamento. Mas, precisamente, esse resto de lucidez força-me a reconhecer que a desrazão toma conta de mim. Um dia, se isto continuar, já não serei capaz de escrever estas frases. Talvez volte mesmo a esquadrinhar estas páginas para apagar o que acabo de escrever. Porque aquilo a que chamo hoje desrazão se terá tornado na minha crença. Essa personagem, esse Baldassare, se viesse um dia a existir, não o queira Deus!, abomino-o e desprezo-o e maldigo-o com tudo o que me resta de inteligência e de honra.

As minhas palavras, bem sei, carecem de serenidade. É que os rumores que tumultuam o mundo se insinuaram em mim. Palavras como as de Evdokime, ouço-as agora na minha própria casa.

Por minha culpa, aliás.

Há ano e meio, como o meu comércio não parava de prosperar, decidi apelar aos dois filhos da minha irmã Plaisance para que viessem ajudar-me, se iniciassem no convívio com os objectos raros, e se preparassem para um dia me suceder. Esperava muito, principalmente do mais velho, Jaber. Um jovem aplicado, minucioso, estudioso, já quase um erudito ainda antes da idade madura.

Ao contrário do mais novo, Habib, pouco dado aos estudos, sempre a vagabundear pelas ruelas. Deste, pouco esperava. Tinha ao mesmo tempo esperança de o tornar ajuizado, confiando-lhe as suas primeiras responsabilidades.

Trabalho perdido. Habib tornou-se, ao crescer, um incorrigível sedutor. Constantemente sentado ao pé da janela da loja, de olho à espreita, distribui cumprimentos e sorrisos, e ausenta-se a todo o instante para encontros misteriosos cujo teor adivinho facilmente. Quantas jovens do bairro, no momento de ir encher a cantarinha à fonte, acham mais curto o caminho que passa diante daquela janela... Habib, «bem-amado», os nomes raramente são inocentes. Jaber, por seu lado, continua ao fundo da loja. Tem o rosto cada vez mais branco de tanto estar ao abrigo do sol. Lê, copia, tira notas, arruma, consulta, compara. Se os seus traços se iluminam por vezes, não é graças à filha do sapateiro que acaba de aparecer, ao fim da rua, e que avança de andar descuidado; é porque acaba de descobrir, na página duzentos e trinta e sete do Comentário dos comentários, confirmação daquilo que julgara adivinhar, na véspera, na leitura da Ultima Exegese... As obras absconsas, rebarbativas, limito-me a folheá-las, por obrigação, e mesmo assim não sem inúmeras paragens e suspiros. Ele não. Parece deleitar-se com elas, como se se tratasse das mais suculentas guloseimas.

Tanto melhor, dizia eu a princípio para mim mesmo. Não me desagradava vê-lo tão aplicado, apontava-o como exemplo ao irmão, e começava mesmo a passar-lhe algumas tarefas. Os clientes mais minuciosos, eu não hesitava em confiar-lhos. Ele ficava horas a discutir com eles, e embora o comércio não seja a sua principal preocupação, acabava por fazê-los comprar montanhas de livros.

Eu só teria de felicitar-me por isso se ele não tivesse também começado a ter comigo, e com o fervor da sua idade, conversas irritantes sobre o fim dos tempos, que estaria iminente, e sobre os presságios que o anunciavam. Seria influência daquelas leituras? Ou de alguns clientes. A princípio, julguei que me bastaria dar-lhe uma palmadinha no ombro pedindo-lhe que não desse crédito a essas patranhas; o rapaz era de aparência dócil, e achei que ele me obedeceria nisso como noutras coisas. Era conhecê-lo mal, e

conhecer mal principalmente a nossa época, as suas paixões e as suas obsessões.

A acreditar no meu sobrinho, estaria marcado o encontro, desde sempre, com o fim dos tempos. Aqueles que se encontram hoje na terra terão o duvidoso privilégio de assistir a esse macabro coroamento da história. A ele próprio isso não lhe causa, ao que me parece, nem tristeza nem abatimento. Antes uma espécie de orgulho, sem dúvida misturado com medo, mas também com um certo júbilo. Todos os dias descobre numa nova fonte, latina, grega ou árabe, confirmação das suas previsões. Tudo converge, afirma, para uma data única, a mesma que já citava - que erro cometi em lhe falar disso! - o livro russo da Fé. 1666. O ano que vem. «O ano da Besta», como ele se compraz em chamar-lhe. Em apoio da sua convicção, alinha uma bateria de argumentos, de citações, de cômputos, de cálculos sábios, e uma interminável litania de «sinais».

Quando se procuram sinais, encontram-se, tal é sempre a minha opinião, e faço questão de consigná-la uma vez mais aqui com a minha tinta, para o caso de, no turbilhão de loucura que se apodera do mundo, eu acabasse um dia por esquecê-la. Sinais manifestos, sinais eloquentes, sinais perturbadores, tudo aquilo que procuramos demonstrar acaba por se verificar, e encontraríamos outros tantos se procurássemos demonstrar o contrário.

Escrevo-o, e penso-o. Mas nem por isso estou menos abalado com a aproximação do dito «ano».

Tenho ainda presente no espírito uma cena que ocorreu há dois ou três meses. Tivemos de trabalhar até bastante tarde, os meus sobrinhos e eu, para o inventário antes do Verão, e estávamos os três extenuados. Eu tinha-me deixado cair numa cadeira, com os braços em meia-lua à volta do registo aberto, e a meu lado estava um candeeiro a azeite que começava a fraquejar. Quando, de súbito, Jaber veio debruçar-se do outro lado da mesa, com a cabeça a tocar na minha, e as mãos apoiadas nos meus cotovelos até me magoar. Todo o seu rosto estava vermelho e a sua sombra desmesurada cobria os móveis e as paredes. Murmurou numa voz de além-túmulo:

«O mundo é como esta lamparina, consumiu o óleo que lhe estava concedido, só lhe resta a última gota. Olha! A chama vacila! Em breve o mundo se apagará.»

Com a fadiga, e também com a ajuda de tudo aquilo que se diz à minha volta sobre as predições do Apocalipse, senti-me subitamente como que esmagado sob o chumbo daquelas palavras. Julguei que nem teria já a força para me levantar. E que deveria esperar, assim prostrado, que a chama sufocasse diante dos meus olhos, e que as trevas me envolvessem...

Quando a voz de Habib se ergueu atrás de mim, risonha, zombeteira, ensolarada, salutar:

- Bumeh! Não vais parar de torturar o nosso tio. «Bumeh», «mocho», «ave agoirenta», é assim que o mais novo alcunha o seu irmão mais velho desde a infância. E ao pôr-me de pé, nessa noite, subitamente tolhido de cansaço, jurei nunca mais o chamar de outro modo.

No entanto, por mais que eu grite «Bumeh!», e pragueje, e resmungue, não consigo impedir-me de ouvir as suas palavras, que se aninham no meu espírito. De modo que, por minha vez, começo a ver sinais onde, ainda ontem, não teria visto mais que coincidências; coincidências trágicas ou edificantes ou divertidas, mas teria apenas resmungado algumas sílabas de espanto, enquanto hoje me sobressalto, me agito, tremo. E preparo-me mesmo para desviar o rumo calmo da minha existência.

É verdade que os acontecimentos destes últimos tempos não podiam deixar-me indiferente. Quando mais não fosse essa história com o velho Idriss!

Limitar-me a encolher os ombros como se tudo isso não me dissesse respeito não teria sido sabedoria, mas inconsciência e cegueira do coração.

Idriss viera procurar refúúgio na nossa aldeola de Gibelet havia sete ou oito anos. Andrajoso, quase sem bagagem, parecia tão pobre como velho. Nunca se soube com exactidão quem ele era, de onde tinha vindo, nem de que é que fugira. Uma perseguição. Uma dívida? "Uma vingança de famílias." Que eu saiba, não confiou o seu

segredo a ninguém. Morava sozinho, num casebre que conseguira alugar por uma quantia módica.

Esse velho, que eu não encontrara muitas vezes e com o qual nunca trocara mais de duas palavras seguidas, apresentou-se no mês passado na loja apertando contra o peito um grosso livro que, desajeitadamente, me propôs que comprasse. Folheei-o. Uma banal recolha de versificadores sem renome, numa caligrafia trémula e irregular, mal encadernado, mal conservado.

- É um tesouro sem par - disse no entanto o velho. - Tenho-o do meu avô. Nunca me teria separado dele se a necessidade em que me encontro...

Sem par? Devia haver o mesmo livro em metade das casas do país. Aqui está um livro que ficará comigo, disse para mim mesmo, até ao dia da minha morte! Mas como poderia eu despedir um pobre miserável que engolira o orgulho e o pudor para obter com que subsistir?

- Deixai-mo ficar, hajj Idriss, e eu vou mostrá-lo a alguns clientes que poderão estar interessados.

Eu já sabia como ia proceder. Exactamente como teria feito o meu pai. Deus tenha a sua alma, se ainda estivesse no meu lugar. Por descargo de consciência, impus-me ler alguns dos poemas. Tal como vira ao primeiro olhar, obras menores, aqui e ali alguns versos bem cinzelados, mas no conjunto a obra mais comum, mais vulgar, mais invendável que podia haver. No melhor dos casos, se tivesse um cliente apaixonado pela poesia árabe, poderia obter dele seis maidins, mais provavelmente três ou quatro... Não, eu tinha um uso melhor para aquele livro. Alguns dias depois da visita de Idriss, um dignitário otomano de passagem veio comprar diversos objectos; e como ele insistia em que eu lhe concedesse um desconto de cortesia, ofereci-lhe aquele livro como brinde, o que o contentou.

Esperei uma semana, depois fui visitar o velho. Meu Deus, como a sua casa era sombria! E como estava desguarnecida! Empurrei uma portinhola de madeira a desfazer-se, e encontrei-me numa divisão com o chão desguarnecido, as paredes nuas. Idriss estava sentado no chão, sobre uma esteira da cor da lama. Sentei-me a seu lado, de pernas cruzadas.

- Uma alta personagem passou pela minha loja, e ficou feliz quando lhe propus o vosso livro. Aqui está a quantia que vos cabe.

Eu não lhe disse nada que fosse falso, note-se bem! Não suporto mentir, ainda que, por aquilo que omitia, intrujasse um pouco. Mas enfim, só procurava preservar a dignidade daquele pobre homem tratando-o mais como fornecedor do que como pedinte! Tirei pois da bolsa três moedas de um maidim, depois três moedas de cinco, simulando calcular com a maior justeza.

Ele franziu os olhos.

- Eu não esperava tanto, meu filho. Nem sequer metade... Agitei um dedo no ar.

- Nunca deveis dizer isso a um comerciante, hajj Idriss. Ele pode ser tentado a explorar-vos.

- Convosco, não corro nenhum risco, Baldassare efendil Vós sois o meu benfeitor.

Comecei a levantar-me, mas ele reteve-me.

- Tenho mais qualquer coisa para vós.

Desapareceu por alguns instantes atrás da tapeçaria, depois regressou, trazendo outro livro.

Outra vez? Disse para mim mesmo. Talvez ele tenha uma biblioteca completa na outra sala. Em que diabo vim eu meter-me?

Como se tivesse ouvido o meu protesto mudo, ele apressou-se a tranquilizar-me:

- É o último livro que me resta, e faço questão de vo-lo oferecer, a vós e a mais ninguém!

Colocou-mo sobre as palmas das mãos, como sobre um atril, aberto na primeira página.

Santo Deus!

O Centésimo Nome!

O livro de Mazandarani!

Se eu esperava encontrá-lo em semelhante pardieiro!

- Hajj Idriss, esse é um livro raro! Não devíeis separar-vos dele assim!

- Ele já não é meu, agora é vosso. Guardai-o! Lede-o! Eu nunca consegui lê-lo.

Virei as páginas com avidez, mas estava demasiado escuro, e não consegui decifrar nada além do título. O Centésimo Nome! Deus do Céu!

Ao sair de casa dele, com a preciosa obra debaixo do braço, eu estava como que em estado de embriaguez. Será possível que este livro, que todo o mundo cobiça, esteja agora na minha posse? Quantos homens vieram dos extremos da terra à sua procura, aos quais eu respondia que ele não existia, quando se encontrava a dois passos de mim, no mais miserável dos pardieiros! E eis que este homem que eu mal conheço mo oferece! Tudo isto é tão perturbador, tão inimaginável! Dei comigo a rir sozinho, na rua, como um tonto.

Estava eu assim, exaltado mas ainda incrédulo, quando um transeunte me interpelou.

- Baldassare efendil

Reconheci imediatamente a voz do xeque Abdel-Bassit, o imã da mesquita de Gibelet. Quanto a saber como pôde ele reconhecer-me, sendo cego de nascença e sem que eu tivesse dito uma palavra...

Caminhei para ele, e saudámo-nos com as fórmulas usuais, i - De onde vindes, para caminhardes assim como se dançásseis? - Da casa de Idriss. < - Ele vendeu-vos um livro? - Como é que sabeis?

- Por que outra razão iríeis vós a casa desse pobre homem? - Disse ele, rindo.

- É verdade - confessei, rindo da mesma maneira. - Um livro ímpio?

- Porque havia de ser ímpio?

- Se não fosse, seria a mim que ele o proporia!

- A falar verdade, ainda não sei grande coisa sobre o que este livro pode conter. Em casa de Idriss está demasiado escuro, e eu espero chegar a minha casa para o ler.

O xeque estendeu a mão.

- Mostrai-mo!

Tem permanentemente nos lábios entreabertos como que um sorriso à espera. Nunca sei quando ele sorri verdadeiramente. De qualquer modo pegou no livro, folheou-o durante alguns segundos diante dos olhos fechados, depois devolveu-mo dizendo:

- Está demasiado escuro aqui, não vejo nada!

E riu-se, agora sem reserva, olhando para o céu. Eu não sabia se a cortesia me impunha que me associasse à sua jovialidade. Na dúvida, limitei-me a um ligeiro tossicar, a meio caminho entre o riso discreto e o aclarar da garganta.

- E que livro é esse? - Perguntou ele.

A um homem que vê, pode ocultar-se a verdade; mentir é por vezes uma habilidade necessária. Mas àquele cujos olhos estão apagados, mentir é miserável, uma baixeza, uma indignidade. Por um certo sentido da honra, e talvez também por superstição, devia a mim mesmo dizer-lhe a verdade; que envolvi no entanto em prudentes condicionais:

- Poderia acontecer que este livro fosse aquele que é atribuído a Abou-Maher al-Mazandarani, O Centésimo Nome. Mas eu espero chegar a casa para verificar a sua autenticidade.

Ele golpeou três, quatro vezes o solo com a bengala, respirando ruidosamente.

- Por que haveria necessidade de um centésimo nome? A mim ensinaram-me desde a infância todos os nomes de que tinha necessidade paras rezar, por que haveria de precisar de um centésimo? Dizei-me vós, que lestes tantos livros em todas as línguas!

Tirou do bolso um rosário de prece, e pôs-se a desfiá-lo nervosamente à espera da minha resposta. Que responder? Eu não tinha mais razões do que ele para defender o nome oculto. Senti-me no entanto obrigado a explicar:

- Como sabeis, alguns pretendem que o nome supremo permite realizar prodígios...

- Quais prodígios? Idriss possui esse livro há anos, que prodígio realizou ele em seu favor? Tornou-o menos miserável? Menos decrépito? De que desgraça o preservou ele?

Depois, sem esperar a minha resposta, afastou-se varrendo o ar e a poeira com a sua bengala indignada.

Quando cheguei a casa, o meu primeiro cuidado foi esconder o livro dos meus sobrinhos; principalmente de Bumeh, de tal modo estava convencido de que se ele o visse, se lhe tocasse, entraria imediatamente em transe. Meti portanto o objecto debaixo da camisa, e uma vez no interior voltei a escondê-lo, às ocultas de todos, debaixo de uma velha estatueta extremamente frágil que estimo particularmente e na qual proibira a toda a gente que mexesse, ou sequer que lhe limpasse o pó.

Foi no sábado passado, 15 de Agosto. Prometi a mim mesmo consagrar o dia de domingo a um exame escrupuloso do livro de Mazandarani.

Assim que me levantei ?- bastante tarde, como todos os domingos, à hora dos descrentes -, passei pelo pequeno corredor que liga o meu quarto à loja, peguei no livro e instalei-me à minha mesa com um nervosismo infantil. Tinha fechado a porta por dentro para que os meus sobrinhos não viessem surpreender-me, e descido as cortinas para desencorajar os visitantes. Estava pois em sossego e ao fresco, mas ao abrir o livro apercebi-me de que não tinha luz suficiente. Decidi portanto aproximar a cadeira da janela grande.

Enquanto a deslocava, bateram à porta. Lancei uma praga e fiquei à escuta, na esperança de que o importuno se desencorajasse e seguisse o seu caminho. Infelizmente, bateram de novo. Não com um dedo tímido, mas com o punho, com autoridade, com insistência.

- Já vou - gritei. Apressei-me a voltar a pôr o livro debaixo da estatueta antiga antes de ir abrir a porta.

Aquela insistência fizera-me pensar que poderia tratar-se de uma personagem de alta condição, e era-o de facto. O cavaleiro Hugues de Marmontel, emissário da corte de França. Um homem de vasta cultura, fino conhecedor das coisas do Oriente, e que já viera muitas vezes a minha casa durante os últimos anos, para efectuar importantes compras.

Viajava, disse ele, de Seyde para Tripoli, de onde embarcaria para Constantinopla, e não podia pensar em atravessar Gibelet sem bater à porta da nobre habitação dos Embriaci. Agradeci-lhe as palavras e a solicitude, e naturalmente convidei-o a entrar. Afastei as cortinas, e deixei-o andar à vontade por entre as curiosidades, como ele gosta de fazer. Seguia-o apenas à distância para responder a eventuais perguntas, mas evitando importuná-lo com explicações que ele não pedisse.

Folheou primeiro um exemplar da Geographia sacra, de Samuel Bochart.

- Adquiri-o assim que foi publicado, e volto a ele sem parar. Enfim, é um livro que fala dos fenícios, os vossos antepassados... Queria dizer os antepassados das pessoas deste país.

Deu dois passos, depois parou de repente.

- Estas estatuetas são fenícias, não é verdade? De onde vêm elas?

Senti orgulho ao dizer que fora eu que as encontrara e desenterrara, num campo próximo da praia.

- Tenho uma grande ternura por esse objecto - confessei.

O cavaleiro disse simplesmente: «Ah!», surpreendido por que um negociante pudesse falar em tais termos de um objecto destinado à venda. Um pouco melindrado, calei-me. E esperei que ele se voltasse para mim para me perguntar o porquê dessa ternura.

Quando o fez, expliquei-lhe que aquelas duas estatuetas haviam sido enterradas outrora uma ao lado da outra e, que com o tempo, o metal tinha enferrujado de tal maneira que as duas mãos se encontram agora como que soldadas uma à outra. Gosto de pensar que se trata de dois amantes que a morte tinha separado, mas que a terra, o tempo e a ferrugem reuniram um ao outro, indissociavelmente. Todos aqueles que os vêem falam de duas estatuetas; eu prefiro falar como se fosse apenas uma - a estatueta dos amantes.

Ele estendeu a mão para agarrá-la, e eu supliquei-lhe que tivesse cuidado, porque o mínimo choque poderia separá-las. Achando sem dúvida que eu não lhe falara com suficiente deferência, ele intimou-me a que manipulasse eu próprio a minha estatueta. Levei-a portanto, com infinitas precauções, para aproximá-la da janela. Pensava que o cavaleiro me seguiria, mas quando me voltei, ele continuava no mesmo lugar. Nas suas mãos, tinha O Centésimo Nome.

Estava lívido, e eu fiquei tão lívido como ele.

- Há quanto tempo o tendes?

- Desde ontem.

- Não me dissestes um dia que, em vossa opinião, este livro não existia?

- Sempre o pensei. Mas também vos preveni de que de vez em quando circulavam falsificações.

- Este seria uma dessas falsificações?

- Ainda não tive tempo para me assegurar disso.

- Quanto pedis por ele?

Estive quase a responder: «Não está à venda!», mas reconsiderei. Nunca deve dizer-se isso a uma personagem de alta posição. Porque ela responde imediatamente: «Se assim é, vou levá-lo emprestado.» E então, para evitar melindres, temos de confiar. E claro, há grandes possibilidades de que não voltemos a ver o livro nunca mais, nem o cliente. Aprendi-o abundantemente à minha custa.

- Na realidade - balbuciei - esse livro pertence a um velho louco que vive no mais miserável dos casebres de Gibelet. Ele está convencido de que o livro vale uma fortuna.

- Quanto?

- Uma fortuna, digo-vos eu. É um demente!

Nesse instante, notei que o meu sobrinho Bumeh estava atrás de nós, e observava a cena, mudo, embaraçado. Eu não o ouvira entrar. Pedi-lhe que se aproximasse para o apresentar ao nosso eminente visitante. Esperava assim desviar a conversa para tentar escapar à armadilha que se fechava. Mas o cavaleiro limitou-se a um breve aceno de cabeça antes de repetir:

- Quanto, por este livro, signor Baldassare? Estou à espera! Que número havia eu de lançar? As obras mais preciosas, vendia-as a seiscentos maidins. Por vezes, muito excepcionalmente, o preço subia até mil, que equivalem a outros tantos soldos torneses.

- Ele quer mil e quinhentos! Mas eu não vou vender-vos esta falsificação por tal preço!

Sem dizer nada, o meu visitante desatou a bolsa e contou-me a soma em boas moedas francesas. Depois estendeu o livro a um dos seus homens, que foi colocá-lo entre as bagagens.

- Gostaria de levar também essas estatuetas de barretes dourados. Mas suponho que o pouco dinheiro que me resta não será bastante!

- Quanto aos dois amantes, não estão à venda, eu ofereço-vo-los. Cuidai bem deles!

Propus depois a Marmontel que ficasse para almoçar, mas ele declinou o convite, secamente. Um homem da sua escolta explicou-me que o cavaleiro devia retomar o caminho o mais depressa possível se queria chegar a Tripoli antes da noite. O seu barco ia aparelhar logo no dia seguinte com destino a Constantinopla.

Acompanhei-os até às portas de Gibelet sem obter do emissário nem mais uma palavra, nem um olhar de despedida.

Quando voltei, vi Bumeh a chorar, cerrando os punhos de raiva. - Porque é que lhe deste aquele livro? Não compreendo! Eu também não compreendia por que tinha agido daquela maneira. Num momento de fraqueza, tinha perdido ao mesmo tempo O Centésimo Nome, a estatueta que tinha em tanta estima, e a estima do emissário. Mais ainda que o meu sobrinho, eu teria razões para me lamentar. Mas precisava de me justificar, fosse como fosse.

- Que é que tu queres? As coisas aconteceram assim! Não pude agir de outro modo! Aquele homem é, em todo o caso, o emissário do rei de França!

O meu pobre sobrinho soluçava como uma criança. Então agarrei-o pelos ombros.

- Consola-te, aquele livro era uma falsificação, tu e eu sabemos.

Ele soltou-se brutalmente.

- Se era uma falsificação, cometemos uma vigarice vendendo-o àquele preço. E se, por milagre, ele não era falso, então não devíamos separar-nos dele nem por todo o ouro da terra! Quem to vendeu?

- O velho Idriss.

- Idriss? E por que preço?

- Ele tinha-mo dado.

- Então, não queria por certo que o vendesses.

- Nem mesmo por mil e quinhentos maidins? Com esse dinheiro, ele poderia comprar uma casa, roupas novas, contratar uma criada, talvez até casar-se...

Bumeh não estava com disposição para graças. Ele raramente está com disposição para graças.

- Se bem compreendo, tencionas dar todo esse dinheiro a Idriss.

- Sim, todo, e ainda antes de o fazer entrar na nossa caixa! Levantei-me imediatamente, meti as moedas numa bolsa de couro, e saí.

Como iria o velho reagir?

Iria censurar-me por ter vendido aquilo que devia ser um presente?

Iria, pelo contrário, ver na incrível soma que eu lhe levava um presente do Céu?

Ao empurrar a portinhola do seu pardieiro, vi, sentada na soleira, uma mulher da vizinhança, com a testa apoiada nas mãos. Perguntei-lhe, por cortesia, antes de entrar, se hajj Idriss estava. Ela levantou a cabeça e disse-me apenas: ,

«Twaffa.» Ele morreu!

Estou convencido de que o seu coração parou no próprio instante em que eu cedi o seu livro ao cavaleiro de Marmontel. Já não consigo afastar essa ideia da minha cabeça!

Não me perguntara eu como ia o velho reagir àquilo que eu tinha feito? Conhecia agora a sua reacção!

Será a má consciência que me alucina? Infelizmente, os factos aí estão. A coincidência é demasiado comprovadora. Cometi um erro muito grande, terei de repará-lo!

Não me ocorreu imediatamente a ideia de que devia perseguir aquele livro até Constantinopla. De resto, ainda não estou convencido da utilidade dessa expedição. Mas deixei-me persuadir de que não havia nada melhor a fazer.

Primeiro, foram as jeremiadas de Bumeh, mas eu já as esperava, estava antecipadamente irritado com elas, e quase não pesaram na minha decisão. Tanto mais que ele queria partir imediatamente, o insensato! Segundo ele, aquilo que acabava de acontecer eram outros tantos sinais enviados pelo Céu em minha intenção. Assim, a Providência, desesperada por me ver insensível às suas manifestações, teria sacrificado a vida daquele pobre homem com o único objectivo de me abrir finalmente os olhos.

- Abrir os olhos para quê O que é que eu devia compreender?

- Que o tempo urge! Que o ano maldito está à nossa porta! Que a morte ronda à nossa volta! Tiveste a tua salvação e a nossa nas tuas mãos, tiveste O Centésimo Nome na tua posse e não soubeste conservá-lo!

- De qualquer modo, já não posso fazer nada. O cavaleiro já está longe. Também isso é obra da Providência.

- É preciso alcançá-lo! É preciso pormo-nos a caminho imediatamente!

Encolhi os ombros. Nem queria já responder. Não posso prestar-me a tais infantilidades. Partir agora.. Cavalgar toda a noite? Para sermos degolados pelos ladrões de estradas?

- Quanto a morrer, prefiro morrer no ano que vem com o resto dos meus semelhantes do que preceder assim o fim dos tempos!

Mas o maroto não me largava.

- Se não podemos já alcançá-lo em Tripoli, sempre poderemos alcançá-lo em Constantinopla!

De súbito, atrás de nós, uma voz jovial.

- Em Constantinopla? Bumeh nunca teve, na sua vida, uma ideia tão boa!

Habib! Também ele entrava na dança!

- Já voltaste das tuas vagabundagens? Eu bem sabia que no dia em que tu e o teu irmão se entendessem por fim em alguma coisa, seria o meu fim!

- Não quero saber das vossas histórias do fim do mundo, e esse livro infernal não me interessa. Mas há muito tempo que sonho com a Grande Cidade. Não foste tu que me disseste que quando tinhas a minha idade, o teu pai, nosso avô Tommaso, quis que conhecesses Constantinopla?

O argumento não valia nada, vinha totalmente fora de propósito. Mas ele soube tocar-me no meu ponto mais fraco, a veneração que tenho pelo meu pai desde a sua morte, por tudo o que ele dizia, por tudo o que ele fazia. Ao ouvir Habib, senti um nó na garganta, os meus olhos pararam, e ouvi-me a mim mesmo murmurar:

- O que dizes é verdade. Talvez devêssemos lá ir.

No dia seguinte realizou-se no cemitério muçulmano a inumação de Idriss. Não éramos muitos os que lá estávamos - os meus sobrinhos e eu, três ou quatro vizinhos, bem como o xeque Abdel-Bassit, que dirigia a prece, e que veio agarrar-me no braço, no final da cerimónia, para me pedir que o acompanhasse a sua casa.

- Fizestes bem em vir, disse-me ele, enquanto eu o ajudava a transpor o muro baixo que borda o cemitério. - Esta manhã, perguntava a mim mesmo se iria enterrá-lo sozinho. Esse infeliz não tinha ninguém. Nem filho nem filha, nem sobrinho nem sobrinha. Nenhum herdeiro, mas é verdade que se os tivesse, não teria nada para lhes deixar. A sua única herança, foi a vós que ele a deu. Esse livro de desgraça...

Esta observação mergulhou-me num abismo de contemplação. Eu vira aquele livro como um presente de reconhecimento, não como uma doação; mas num certo sentido, era-o - ou, em todo o caso, tornara-se. E eu permitira-me vendê-lo! O velho Idriss, na sua nova morada, iria perdoar-me?

Caminhámos um longo momento em silêncio por uma estrada ascendente, pedregosa, e sem sombra. Abdel-Bassit com os seus pensamentos, eu com os meus - antes com os meus remorsos. Depois ele disse-me, enquanto ajustava o turbante na cabeça:

- Soube que ides deixar-nos em breve. Onde ides?

- A Constantinopla, se Deus quiser.

Ele parou, esticou a cabeça de lado como para espreitar o clamor da cidade distante.

- Istambul! Istambul! Para aqueles que têm olhos, é difícil dizer que não há nada para ver no mundo. E no entanto, isso é verdade, acreditai. Para conhecer o mundo, basta escutá-lo. Aquilo que vemos nas viagens nunca passa de uma aparência. Sombras que perseguem outras sombras. As estradas e os países não nos ensinam nada que não saibamos já, nada que não possamos escutar em nós mesmos na paz da noite.

O religioso talvez não esteja errado, mas a minha decisão está tomada, partirei! Contra a minha opinião, e até contra a minha vontade - partirei! Não sou capaz de passar os quatro próximos meses, e depois os doze meses do ano fatídico, sentado na minha loja de comerciante a escutar as predições, a anotar sinais, a ouvir censuras, e a repisar os meus receios e os meus remorsos!

As minhas convicções não mudaram; continuo a maldizer a tolice e a superstição, persuadido de que a lanterna do mundo não está prestes a apagar-se...

Dito isto, eu, que duvido de tudo, como poderia não duvidar também das minhas dúvidas?

Hoje é domingo. A inumação de Idriss foi na segunda-feira passada. E é amanhã, de madrugada, que nos poremos a caminho.

Partiremos os quatro, eu, os meus sobrinhos, e Hatem, o meu empregado, que se ocupará da equipagem e das provisões. Teremos dez mulas, nem menos uma. Quatro servirão apenas de montadas, as outras transportam as bagagens. Assim, nenhum animal estará demasiado carregado, e iremos, se Deus quiser, em boa marcha.

O meu outro empregado, Khalil, honesto mas pouco expedito, ficará aqui para se ocupar da loja ao lado de Plaisance, a minha boa irmã Plaisance, que não vê com bons olhos esta viagem repentina. Separar-se assim dos seus dois filhos e do irmão entristece-a e inquieta-a, mas ela sabe que não serviria de nada opor-se. No entanto, esta manhã, quando estávamos todos com a febre dos últimos preparativos, veio perguntar-me se não seria preferível adiar a nossa partida por algumas semanas. Lembrei-lhe que era absolutamente necessário atravessar a Anatólia antes da estação fria. Ela não insistiu. Apenas murmurou uma prece, e pôs-se a chorar em silêncio. Habib começou então a arreliá-la, enquanto o outro filho, mais horrorizado do que enternecido, a intimava a ir depressa lavar os olhos com água de rosas, porque as lágrimas da véspera, disse ele, são de mau agoiro para a viagem.

Quando eu falara a Plaisance em levar os filhos comigo, ela não se opusera. Mas os escrúpulos maternos tinham de acabar por se exprimir. Só Bumeh era capaz de pensar que as lágrimas de uma mãe podem atrair a desgraça...

 

Páginas escritas

na minha casa de Gibeelet

na véspera da partida

 

Tinha arrumado o meu caderno, a tinta, os calamos e o pó secador para os levar na viagem, mas devo ir buscá-los neste mesmo domingo à noite e recolocá-los sobre esta mesma mesa. E que aconteceu, ao fim da tarde, um incidente desagradável que esteve quase a pôr em causa a nossa partida. Trata-se de um assunto que me exaspera ao mais alto grau, que até me humilha, e que eu gostaria de passar em silêncio. Mas prometi a mim mesmo confiar tudo a estas páginas e não me furtarei a isso.

Na origem de todo esse tumulto, está uma mulher, Marta, a quem aqui chamam, com uma piscadela de olho, «a viúva». Ela casara-se, há alguns anos, com um indivíduo que toda a gente sabia ser um vadio; originário, de resto, de uma família de vadios, todos escroques, ratoneiros, larápios, salteadores, naufragosos, todos sem excepção, grandes e pequenos, até onde havia memória deles! E a bela Marta, que era então uma rapariga desenvolta,,, esperta. indomável, maliciosa mas que não era nada má pessoa, apaixonou-se por um deles - um tal Sayyaf.

Ela poderia ter conseguido qualquer partido nesta cidade, eu próprio - porquê negar? - bem gostaria que ela tivesse sido minha! O pai dela era o meu barbeiro, e um companheiro que eu apreciava. Quando ia de manhã a casa dele, para me barbear, e a via, saía de lá a cantarolar. Ela tinha na voz, no andar, nas pestanas, no olhar, esse não sei quê que excita um homem vivo. A minha inclinação não escapara ao pai dela, que me dera a entender que ficaria contente e lisonjeado com uma tal aliança. Mas a pequena tinha-se embeiçado pelo outro; uma manhã soube-se que ela se tinha deixado raptar, e que um sacerdote sem deus os tinha casado. O barbeiro morreu de desgosto alguns meses mais tarde, legando à filha única uma casa, um pomar, e mais de duzentos sultaninos de ouro.

O marido de Marta, que nunca trabalhara na sua vida, teve então a ideia de se lançar no grande comércio e de fretar um navio. Convenceu a mulher a confiar-lhe as economias do pai, até à última moeda, e partiu para o porto de Tripoli. Nunca mais voltaria a ser visto.

A princípio, contou-se que fizera fortuna com um carregamento de especiarias, que mandara construir uma frota, e que projectava vir pavonear-se diante de Gibelet. Parece que Marta passava então todos os seus dias com as amigas diante do mar, à espera dele, muito orgulhosa. Em vão - nem frota, nem fortuna, nem marido. Ao fim de algum tempo, outros rumores, muito menos gloriosos, começaram a circular. Ele teria morrido num naufrágio. Ou então, tornado pirata, teria sido preso pelos turcos e enforcado. Mas dizia-se também que tinha arranjado esconderijo nas proximidades de Esmirna, e que agora tinha ali mulher e filhos. O que mortificava a esposa, que nunca engravidara durante a sua breve vida em comum, e que se diz que é estéril.

Para a infeliz Marta, sozinha havia já dez anos, nem casada nem livre, sem recursos, sem irmão nem irmã, sem filhos, vigiada por toda a família de vadios do marido receosos de que ela pensasse em manchar a honra do esposo vagabundo, aquilo era um calvário

todos os dias. Então ela pusera-se a clamar, com uma insistência que frisava a loucura, que lhe haviam dito de boa fonte que Sayyat tinha morrido, e que ela era portanto viúva, bem viúva; mas quando se vestiu de negro, a família do dito defunto insurgira-se contra ela, acusando-a de trazer a desgraça ao ausente. Depois de apanhar algumas pancadas cujas marcas toda a gente lhe podia ver na cara e nas mãos, «a viúva» resignara-se a vestir de novo roupas de cor.

Mas nem por isso se deu por vencida. Nestas últimas semanas, ela teria confiado, diz-se, a algumas das suas amigas, que alimentava o desígnio de se deslocar a Constantinopla, a fim de verificar junto das altas autoridades se o marido tinha mesmo morrido, e de só regressar munida de um firmão sultânico provando que era viúva e livre de refazer a sua vida.

E parece que ela pôs mesmo a sua ameaça em prática. Este domingo de manhã, ela não estava na missa; teria deixado Gibelet de noite, levando roupas e jóias. Imediatamente surgiram alguns murmúrios, que me põem nomeadamente a mim em causa. É irritante, é ofensivo, e sobretudo - deveria eu ir ao ponto de jurar, com a mão sobre o Evangelho? - é muito simplesmente falso, falso, falso. Há anos que não troco nem uma palavra com Marta; desde o funeral do pai, parece-me. Quando muito saudei-a algumas vezes na rua, levando furtivamente o dedo ao meu chapéu. Nada mais. Para mim, no mesmo dia em que soube do seu casamento com aquele vadio, a página estava virada.

Contudo, segundo o rumor, eu ter-me-ia entendido secretamente com ela para a transportar até Constantinopla; e como me era impossível levá-la à vista de toda a aldeola, tê-la-ia aconselhado a partir antes de mim, e a esperar-me em algum lugar combinado, onde eu a recuperaria. Vai-se mesmo ao ponto de pretender que foi por causa dela que nunca me casei, o que nada tem a ver com a verdade, como talvez um dia eu tenha ocasião de explicar...

Por mais falsa que seja, a história tem ares de verdade, e parece-me que a maioria das pessoas acredita nela. A começar pelos irmãos do marido de Marta, que se dizem convictos da minha culpabilidade, insultados pelas minhas pretensas manigâncias, e decididos a vingar a sua honra. Esta tarde, o mais exaltado deles, chamado Rasmi, irrompeu pela minha casa brandindo uma espingarda, e jurando que ia cometer o irreparável. Foi preciso o meu sangue frio e o de Hatem, o meu empregado, para o dominar. Exigia que eu adiasse a partida para demonstrar a minha boa fé. É verdade que desse modo eu teria varrido rumores e suspeitas. Mas por que havia de dar garantias de honestidade a um clã de vadios? E depois, até quando deveria adiar a viagem? Até que Marta reaparecesse? E se ela tivesse partido para sempre?

Habib e Jaber mostraram-se contrários a qualquer adiamento, e creio que teria perdido a sua estima se tivesse fraquejado. Aliás, nem por um momento estive inclinado a ceder. Pesei simplesmente os prós e os contras como era judicioso fazer, antes de responder firmemente que não. Então o homem anunciou que partiria connosco amanhã. Fazia questão, disse, de se assegurar por si mesmo de que a fugitiva não estava à nossa espera em algum lugarejo dos arredores. Os meus sobrinhos e o meu empregado estavam indignados, e a minha irmã ainda mais, mas eu chamei-os à razão. «A estrada é de todos! Se esse homem decidiu seguir a mesma direcção que nós, não podemos impedi-lo.» Disse isto em voz alta, acentuando cada palavra, a fim de que o importuno compreendesse que se fizesse o caminho ao mesmo tempo que nós, não o faria na nossa companhia.

Sobrestimo sem dúvida a subtileza da personagem, e não devo certamente contar com as suas boas maneiras. Mas nós somos quatro e ele é só um. A sua presença na nossa esteira irrita-me mais do que me inquieta. Que o Céu faça com que não tenhamos de nos confrontar durante a nossa viagem com criaturas mais temíveis que aquele fanfarrão bigodudo!

Na aldeia deAnfé, 24 de Agosto de 1665

Como os arredores de Gibelet não são seguros ao crepúsculo, esperámos que clareasse para passar a porta. O tal Rasmi já lá estava, pronto a seguir-nos os passos, puxando a rédea para aquietar a besta.

Ele parece ter escolhido para esta viagem uma montada bastante nervosa que, espero, depressa o vai cansar do nosso andamento.

Assim que chegámos à estrada costeira, o homem afastou-se de nós para escalar um promontório, de onde passeou o olhar pelas redondezas enquanto cofiava o bigode com as duas mãos.

Observando-o pelo canto do olho, perguntava a mim mesmo pela primeira vez o que teria sido feito dessa infeliz Marta. E senti de repente vergonha por, até agora, só ter pensado nela para evocar o dissabor que o seu desaparecimento me causava. Era com a sua sorte que eu devia inquietar-me. Não teria ela cometido algum acto desesperado? Talvez o mar atirasse o seu corpo para a praia. Acabariam então as murmurações. Seriam vertidas algumas raras lágrimas. E depois o esquecimento.

E eu, choraria essa mulher que esteve para ser minha? Ela agradava-me, eu queria-lhe bem, espreitava outrora os seus risos, o seu bamboleio, as suas madeixas, o tilintar das suas pulseiras, poderia amá-la ternamente, apertá-la contra mim todas as noites. Ter-me-ia apegado a ela, à sua voz, ao seu andar, às suas mãos. Ela estaria ao meu lado, esta manhã, à hora da partida. Também ela teria chorado, como a minha irmã Plaisance, e procurado fazer-me renunciar à viagem.

Amodorrado pelos solavancos da montada, o meu espírito vogava, cada vez mais distante. Revia agora a silhueta dessa mulher que, desde há anos, eu não voltara a contemplar. Ela tinha recuperado esses olhares agarotados do tempo bendito em que era ainda apenas a filha do barbeiro. Censurava-me a mim mesmo por não a ter desejado o bastante para amá-la. Por tê-la deixado desposar a sua desgraça...

O seu valoroso cunhado subiu ainda por várias vezes às colinas que ladeiam a estrada. Girou sobre si mesmo, e uma vez até chamou: «Marta! Sai do teu esconderijo, eu vi-te!» Nada se mexeu. Aquele homem tem o bigode maior do que o cérebro!

Nós os quatro seguíamos o nosso caminho ao mesmo ritmo, sem parecer notar os seus galopes, os seus saltinhos, nem as suas batidas de pernas. Mas, ao meio-dia, quando Hatem nos preparou de comer - apenas pão caseiro simples enrolado com queijo local, orégão, e azeite - propus ao intruso que partilhasse a nossa refeição. Nem os meus sobrinhos nem o meu empregado aprovaram a minha generosidade; e, dado o comportamento do malcriado, sou obrigado a dar-lhes razão. Porque ele se apoderou daquilo que lhe oferecíamos para ir devorá-lo sozinho, como um animal, do outro lado da estrada, voltando-nos as costas. Demasiado selvagem para comer connosco, mas não bastante orgulhoso para se recusar a deixar-se alimentar. Mesquinha personagem.

Vamos passar a primeira noite em Anfé, uma aldeia à beira-mar. Um pescador ofereceu-nos pousada e o jantar. Quando abri a minha bolsa para lhe oferecer um presente de gratidão, ele recusou, depois chamou-me de lado para me pedir que lhe revelasse antes o que sabia dos rumores acerca do ano que vem. Usei do meu tom mais douto para tranquilizá-lo. Isso não passa, disse-lhe, de rumores falsos, que se espalham assim, de tempos a tempos, quando os homens perdem a coragem. Não devemos deixar-nos levar por eles! Não se diz nas Escrituras: «Não sabereis nem o dia nem a hora»?

O meu anfitrião ficou tão aliviado com estas palavras que, não contente por nos ter oferecido hospitalidade, me agarrou a mão e ma beijou. As minhas faces coraram de vergonha. Ah, se o bom homem soubesse por que absurda razão eu empreendera aquela viagem! Que falso sábio eu sou!

Antes de me deitar, impus-me escrever estes parágrafos, à luz de uma vela de fumo rançoso. Não estou certo de ter dado conta daquilo que é importante. E não me será fácil distinguir todos os dias o fútil do essencial, o anedótico do exemplar, os atalhos suspeitos dos verdadeiros caminhos. Mas avançarei de olhos abertos.

Em Tripoli, 25 de Agosto

Hoje livrámo-nos sem dúvida do companheiro indesejável. Mas para encontrar outros enfados.

Esta manhã, diante da casa onde dormimos, Rasmi esperava-nos, de bigode lustroso, pronto para partir. Devia ter passado a noite noutra casa da aldeia, suponho, em casa de algum bandido seu conhecido. Quando nos pusemos a caminho, ele seguiu-nos, durante alguns minutos. Subiu a um promontório, como ontem, para inspeccionar as redondezas. Depois virou a rédea para regressar em direcção a Gibelet. Os meus companheiros ainda se perguntam se não se tratava de uma dissimulação, e se o homem não vai procurar surpreender-nos mais adiante. Penso que não. Penso que não voltaremos a vê-lo.

Ao meio-dia, chegámos a Tripoli. Esta deve ser bem a minha vigésima visita, mas nunca passo as suas portas sem sentir um aperto de emoção. Foi aqui que os meus antepassados puseram pela primeira vez os pés no solo do Levante, há mais de meio milénio. Nesse tempo, os cruzados cercavam a cidade, sem conseguirem tomá-la. Um dos meus antepassados, Ansaldo Embriaco, ajudara-os então a construir uma cidadela capaz de vencer a resistência dos sitiados, e oferecera a ajuda dos seus navios para impedir o acesso ao porto; em recompensa, obtivera o senhorio de Gibelet.

Esta permaneceu durante dois bons séculos apanágio dos meus. E mesmo quando o último Estado Franco do Levante foi destruído, os Embriaci souberam obter dos mamelucos triunfantes o direito de conservarem o seu feudo por mais alguns anos. Estivéramos entre os primeiros cruzados a chegar, fomos os últimos a partir. E mesmo assim, não partimos de verdade. Não sou eu a prova viva disso?

Quando terminou a prorrogação, e tivemos de abandonar aos tnuçulmanos o nosso domínio de Gibelet, o que restava da família decidiu regressar a Génova. «Regressar» não é a palavra apropriada, todos eles tinham nascido no Levante, e na sua maioria nunca tinham posto os pés na sua cidade de origem. O meu antepassado da época, Bartolomeo, depressa caiu no langor e no abatimento. Porque se os Embriaci tinham sido, na época das primeiras cruzadas, uma das famílias mais destacadas, se haviam tido outrora em Génova o seu bairro, o seu hotel, o seu clã de dependentes, uma torre com o seu nome e a maior fortuna da cidade, eram agora suplantados por outras casas que se haviam tornado mais ilustres, os Dória, os Spinola, os Grimaldi, os Fieschi. O meu antepassado considerou-se desclassificado. Sentia-se mesmo exilado. Genovês, ele queria sê-lo, era-o, pela língua, pelo fato, pelos costumes; mas genovês do Oriente!

Os meus voltaram pois a partir pelas rotas do mar, lançaram âncora em diversos portos tais como Caffa ou Kassandreia ou Chio, antes que um deles, Ugo, o meu bisavô, tivesse a ideia de regressar a Gibelet onde - em troca de alguns serviços prestados - obteve das autoridades a restituição de uma parcela do seu antigo feudo. A nossa casa teve de fazer cruzes sobre as suas pretensões senhoriais para recuperar a sua vocação original, o negócio; mas a recordação da época gloriosa ficou. Segundo os documentos que continuo a ter em meu poder, eu sou, em linha directa varonil, o décimo oitavo descendente do homem que conquistou Tripoli.

Quando vou ao bairro dos livreiros, como poderia não acariciar com o olhar a Cidadela sobre a qual flutuou outrora o pendão dos Embriaci? Os mercadores divertem-se com isso, aliás, gritando quando me vêem chegar: «Atenção, o genovês vem retomar a Cidadela, barrem-lhe o caminho!» Eles saem das suas lojas e barram-me efectivamente o caminho, mas para sonoros abraços, e para me oferecer a cada passo café e xarope fresco. São pessoas acolhedoras por natureza, mas devo acrescentar que para eles sou igualmente um colega compreensivo e o melhor dos clientes. Quando não venho abastecer-me aqui, são eles que me enviam, por sua própria iniciativa, as peças que poderiam interessar-me e não são do seu ramo, quer dizer, no essencial, as relíquias, os ícones e os velhos livros da Fé cristã. São na sua maioria muçulmanos ou judeus, e a clientela de cada um deles vem principalmente dos seus correligionários, que procuram em primeiro lugar aquilo que diz respeito à sua própria Fé.

Justamente, ao chegar este meio-dia à cidade, desloquei-me directamente a casa de um muçulmano meu amigo, Abdessamad. Estava sentado à porta da sua loja, rodeado pelos seus irmãos e alguns outros livreiros da sua rua. No momento em que, depois da roda de salamaleques, e depois de ter apresentado os meus sobrinhos àqueles que não os conheciam, fui convidado a dizer o que me trazia, a minha língua ficou presa. Uma voz dizia-me que faria melhor em não revelar nada, era a voz da razão e eu deveria tê-la escutado. Rodeado daquelas pessoas respeitáveis, que faziam todas de mim um lato conceito, que me consideravam um pouco como seu decano, se não pela idade e a erudição, ao menos pela notoriedade e pela fortuna, eu sentia bem que não seria assisado confessar o verdadeiro motivo da minha visita. Mas tinha também no ouvido uma outra voz, menos sábia, que me sussurrava: afinal, se o velho Idriss no seu pardieiro tinha uma cópia da obra tão cobiçada, por que não teriam os livreiros de Tripoli uma? Igualmente falsa, talvez, mas que me dispensaria de fazer o trajecto até Constantinopla!

Depois de longos segundos durante os quais todos os olhares se tinham acumulado pesadamente sobre a minha testa, acabei por lançar:

- Algum de vós teria entre os seus livros esse tratado de Mazandarani de que tanto se fala, nestes últimos tempos, O Centésimo Nome?

Fiz a minha pergunta no tom mais ligeiro, mais desprendido, mais irónico que era possível. Mas imediatamente o silêncio caiu sobre a pequena multidão que me rodeava; e também, pareceu-me, sobre a rua, sobre toda a cidade. Todos os olhares fugiram no mesmo instante, para pousarem no meu amigo Abdessamad. Que, também ele, já não olhava para mim.

Ele aclarou a garganta, como se se preparasse para falar, mas foi um riso que ele emitiu, um riso sacudido, um riso forçado, que interrompeu bruscamente para beber um gole de água. Antes de dizer dirigindo-se a mim:

- As tuas visitas dão-nos sempre prazer!

O que significava que esta estava terminada. Levantei-me, confuso, saudei numa palavra aqueles que estavam mais perto de mim; os outros já tinham dispersado.

Ao dirigir-me para a hospedaria onde íamos passar a noite, sentia-me moído. Hatem veio dizer-me que ia comprar algumas provisões, Habib murmurou-me que ia passear para os lados do porto, e eu deixei partir um e outro sem uma palavra. Só Jaber ficou a meu lado, mas nem com ele troquei uma única palavra. Que lhe diria eu? «Maldito sejas tu, Bumeh, foi por tua culpa que fui humilhado!?» Culpa dele, culpa de Evdokime, de Idriss, de Marmontel, de tantos outros, mas principalmente por minha própria culpa, era principalmente a mim que me competia preservar a minha razão, a minha reputação e a minha dignidade.

Pergunto-me no entanto por que razão os livreiros reagiram daquela maneira. Uma atitude seca, brutal para quem sempre os conheceu afáveis e circunspectos. Eu esperava quando muito sorrisos divertidos. Não uma tal hostilidade. A minha pergunta tinha no entanto sido formulada delicadamente! Não compreendo. Não compreendo.

Por ter escrito estas linhas, recupero a minha calma. Mas aquele incidente pôs-me de mau humor para o resto do dia. Peguei-me com Hatem, porque não fez as compras que eu queria; depois com Habib, que regressou do seu passeio depois do cair da noite.

A Bumeh, fonte primeira da minha desgraça, não achei nada para dizer.

A caminho, 26 de Agosto

Como pude eu mostrar-me tão ingénuo?

A coisa estava diante dos meus olhos, e eu não a vi!

No momento em que acordei, esta manhã, Habib já não estava. Tinha-se levantado muito cedo, e murmurara ao ouvido de Hatem que tinha de comprar qualquer coisa no mercado da Cidadela, após o que se encontraria connosco ao pé da porta dos Bassatine, no nordeste da cidade. «Espero que ele lá esteja antes de nós, gritei, porque não esperarei por ele nem um minuto.» E dei imediatamente sinal de partida. A porta não fica longe da estalagem, depressa lá chegámos. Passeei o olhar pelas quatro direcções, nada de Habib à vista. «Dêmos-lhe tempo para chegar», suplicou o meu empregado, que teve sempre um fraco por aquele rapaz. «Não esperarei muito tempo!» respondi batendo o pé. Mas tinha de esperar, forçosamente. Que outra coisa poderia fazer? Partíamos para uma longa viagem, não ia abandonar assim o meu sobrinho a meio do caminho!

Ao fim de uma hora, quando o sol já ia bem alto no céu, Hatem gritou-me, falsamente entusiasmado: «Aí vem Habib, a correr, está a fazer sinais, é um bravo rapaz, afinal. Deus o guarde, sempre afectuoso, sempre sorridente, o importante, meu senhor, é que não lhe tenha acontecido nenhuma desgraça...» Toda esta tagarelice, evidentemente, para lhe evitar um raspanete! Mas eu recusei deixar-me enternecer. Havia uma hora que o esperávamos! Não ia agora saudá-lo ou sorrir-lhe, nem sequer quis olhar na direcção de onde ele vinha. Esperei apenas um minuto mais, o tempo para que ele chegasse até nós, depois avancei dignamente para a porta da cidade.

Habib estava agora atrás de mim, eu sentia a sua presença, ouvia-o respirar muito perto do meu ouvido. Mas continuava de costas voltadas para ele. Começarei a falar com ele, dizia a mim mesmo, quando me tiver beijado respeitosamente a mão e me tiver prometido nunca mais se ausentar assim sem a minha permissão! Se temos de continuar esta viagem juntos, quero saber a todo o instante onde se encontram os meus sobrinhos!

Ao chegar diante do oficial de guarda à porta, saudei-o com uma fórmula polida, declinei a minha identidade, e meti-lhe na mão a moeda de prata adequada.

- É seu filho? - Perguntou o homem indicando a pessoa que me seguia.

- Não, sou sobrinho.

- E essa mulher?

- É a sua esposa - disse Habib

- Podem passar!

Minha esposa?

Eu não disse nada no momento, e nem sequer arrisquei um olhar para trás, para não trair a minha surpresa. A mínima titubeação diante do oficial otomano, a mínima hesitação embaraçada, e iríamos todos parar à prisão.

Minha esposa?

Preferi passar primeiro a porta, afastar-me da alfândega e dos soldados, continuando a olhar a direito à minha frente. Depois voltei-me.

Era Marta.

Era «a viúva».

Vestida de negro, e de cara alegre.

Não, confesso, até aqui não tinha compreendido nada, suspeitado de nada. E Habib soube fazer as coisas, devo dizer. Ele que tantas vezes joga com a sua esperteza para encantar mulheres e homens, não tinha deixado escapar, durante os últimos dias, o mínimo sorriso entendido, a mínima palavra de duplo sentido. Parecia tão indignado como eu com as acusações proferidas por Rasmi. As quais não eram afinal tão infundadas como eu pensara.

Mais tarde, o meu sobrinho dir-me-á, suponho, como se arranjaram as coisas. Para quê, de resto? No essencial, eu adivinho. Adivinho porque é que ele se juntou tão curiosamente ao irmão para me incitar a empreender esta viagem a Constantinopla. Imagino que se apressou então a informar «a viúva», que deve ter sentido que a ocasião era propícia para fugir. Saiu portanto de Gibelet, depois deve ter passado uma noite em Tripoli, em casa de alguma prima, ou num convento. Tudo isso parece tão límpido, que nem preciso que me confessem. Mas antes de me colocarem todo o quadro diante dos olhos, não tinha visto nada.

Que fazer agora? Até ao fim do dia, caminhei a direito à minha frente, de rosto fechado, sem uma palavra. O amuo não resolve nada, bem sei. Mas, a menos que queira renunciar a toda a autoridade sobre os meus, e a toda a dignidade, não posso proceder como se não tivesse sido enganado.

O problema é que sou esquecido por natureza, e complacente, sempre tentado a perdoar. Tive de fazer um esforço, todo esse dia, para não desistir da minha atitude. Preciso de aguentar ainda um dia ou dois, nem que tenha de sofrer mais do que aqueles que procuro punir.

Eles quatro, atrás de mim, já não ousam falar uns com os outros a não ser em voz baixa, e é melhor assim.

Na aldeia, do alfaiate, 27 de Agosto

Também hoje se juntou a nós um companheiro de viagem inesperado. Mas desta vez um homem de bem.

Tínhamos passado uma noite execrável. Eu conhecia um albergue na estrada, mas havia muito tempo que lá não ia. Talvez lá tivesse estado numa estação mais propícia, não guardara a memória daquelas nuvens de mosquitos, daquelas paredes bafientas e rachadas, daqueles eflúvios de águas estagnadas... Acabei por passar a noite inteira a gesticular, a dar palmadas de cada vez que um zumbido ameaçador me soava aos ouvidos.

De manhã, quando foi preciso retomar o caminho, quase não tinha dormido. Mais tarde, nesse dia, dormitei várias vezes em cima da montada, e estive quase a cair. Felizmente, Hatem veio colocar-se muito perto de mim para, de vez em quando, me segurar. Bravo homem, afinal, é com ele que estou menos zangado.

Por volta do meio-dia, quando levávamos já umas boas cinco horas de caminho, e eu procurava com o olhar um canto com sombra onde tomar a refeição, a nossa estrada ficou de repente impedida por um grande ramo folhoso. Teria sido fácil afastá-lo, ou contorná-lo, mas eu parei, perplexo. Na maneira como estava colocado, muito direito no meio da estrada, havia qualquer coisa de incongruente.

Passeava o olhar pelos arredores, procurando compreender, quando Bumeh veio murmurar-me ao ouvido que era melhor tomar por aquele carreiro que descia, lá em baixo à nossa direita, e retomar a estrada mais adiante.

- Se o vento, disse ele, arrancou este ramo da árvore, depois o arrastou até este lugar dando-lhe esta postura, só pode ser um aviso do Céu, e seríamos loucos se o desafiássemos.

Praguejei contra a superstição, mas segui o seu conselho. É verdade que, enquanto ele me falava, eu tinha notado à nossa direita, no prolongamento do atalho que ele queria fazer-me seguir, uma mata que me convinha. Só por ver, de longe, aquela espessura de verde, parecia-me ouvir o correr de uma fonte fresca. E tinha fome. Ao meter por aquele caminho, vimos umas pessoas que se afastavam nas suas montadas, três ou quatro, pareceu-me. Sem dúvida tiveram a mesma ideia que nós, disse para mim mesmo - sair da estrada, tomar a sua refeição à sombra; mas cavalgavam a bom andamento, chicoteando os animais, como se fugissem de nós. Quando chegámos à mata, já eles tinham desaparecido no horizonte.

Foi Hatem o primeiro a gritar:

- Bandidos! Eram bandidos, salteadores de estradas! A sombra de uma nogueira, jazia um homem. Despido, e como que morto. Chamámo-lo de longe, assim que o vimos; não se mexeu. Já conseguíamos ver na sua testa e na barba manchas de sangue. Fiz o sinal da cruz. Mas quando Marta gritou: «Meu Deus! Ele está morto!», e soltou um lamento, o homem soergueu-se, tranquilizado por aquela voz feminina, e com as mãos dissimulou prontamente a sua nudez. Até então receava, disse-nos, que os seus agressores tivessem voltado para trás, por qualquer remorso, por assim dizer, para acabar com ele.

- Puseram um ramo na estrada, então eu preferi tomar por este atalho, dizendo para mim mesmo que devia haver algum perigo por ali. Mas era aqui que eles estavam emboscados. Regressava de Tripoli, onde fui comprar tecido; sou alfaiate de profissão. O meu nome é Abbas. Eles tiraram-me tudo, dois burros com a carga, e o dinheiro, e os sapatos, e também as roupas! Deus os amaldiçoe! Que tudo aquilo que eles me roubaram lhes fique atravessado na garganta, como uma espinha de peixe!

Voltei-me para Bumeh.

- Um aviso do Céu, aquele ramo, dizias tu? Pois bem,

desengana-te! Era uma astúcia de bandidos!

Mas ele recusou desdizer-se:

- Se nós não tivéssemos passado por este atalho, sabe Deus o que teria acontecido a este infeliz! Foi porque nos viram chegar que os malfeitores se afastaram tão depressa!

O homem, a quem Hatem acabava de estender uma das minhas camisas, e que estava a vesti-la, aprovou:

- Só o Céu vos pôde guiar por aqui, por minha sorte! Sois pessoas de bem, isso vê-se nas vossas caras. Só os homens honestos viajam com mulher e filhos. São seus filhos, esses dois belos jovens? Que o Todo-Poderoso zele por eles!

Era a Marta que ele se dirigia. Ela tinha-se aproximado para lhe limpar o rosto com um lenço molhado em água.

- São nossos sobrinhos - respondeu ela, não sem uma ligeira hesitação e um breve olhar na minha direcção, como para se desculpar.

- Deus vos abençoe - repetiu o homem. - Deus vos abençoe a todos, não vos deixarei partir sem vos oferecer um fato a cada um, não me digam que não, é o mínimo, salvaram-me a vida. Deus vos abençoe! E a próxima noite, vão passá-la em minha casa, em nenhum outro lugar!

Não podíamos recusar, tanto mais que chegámos à sua aldeia ao cair da noite; tínhamo-nos desviado do nosso caminho para o acompanhar a casa; depois do que acabava de sofrer, não podíamos deixá-lo continuar sozinho.

Ele mostrou-se muito agradecido, e insistiu em dar, apesar da hora tardia, um verdadeiro festim em nossa honra. De todas as casas da aldeia, trouxeram-nos os pratos mais deliciosos, uns com carne e outros sem carne. Todos gostam do alfaiate e o respeitam, e ele descreveu-nos, aos meus sobrinhos, ao meu empregado, à «minha esposa» e a mim, como os seus salvadores, os nobres instrumentos da Providência a quem ficaria devedor para toda a vida.

Não poderíamos sonhar com uma etapa mais reconfortante, que apagou todos os dissabores do início da viagem, e apaziguou as tensões entre mim e os meus companheiros.

Quando chegou a hora de deitar, o nosso anfitrião jurou em voz alta que nós dormiríamos no seu quarto, a «minha esposa» e eu, enquanto ele e a mulher passariam a noite na sala, com o filho, os meus sobrinhos, o meu empregado e a sua criada. Eu quis recusar, mas o homem zangou-se, tinha jurado, disse ele, e eu não podia fazê-lo trair o seu juramento. E claro, era demasiado tarde para que eu pudesse revelar que aquela pessoa que viajava comigo não era minha mulher. Ter-me-ia desconsiderado, teria perdido a estima daquela gente que me punha nas nuvens. Não, não podia fazer isso, mais valia continuar a dissimular, até ao dia seguinte.

E assim nos achámos, «a viúva» e eu, naquele quarto, separados dos outros por um simples tabique, mas sozinhos, e para toda a noite. A luz da vela que nos tinham deixado, eu via os olhos de Marta rirem-se. Os meus não riam. Eu esperaria que ela estivesse ainda mais constrangida do que eu. Mas não estava. Por pouco não a ouvíamos rir às gargalhadas. Era indecente. Eu tinha a impressão de estar constrangido por dois.

Depois de alguns gestos de hesitação, acabámos por nos deitar na mesma cama, debaixo do mesmo cobertor, mas vestidos, e muito afastados um do outro.

Passaram-se então longos minutos no escuro silencioso e de respiração cruzada; depois, a minha vizinha inclinou o rosto para o meu lado.

- Não deveis zangar-vos com Habib. Se ele escondeu a verdade, a culpa é minha, fui eu que o fiz jurar não dizer nada, tinha medo de que os meus projectos de fugir fossem descobertos, e o meu cunhado me degolasse.

- O que está feito, está feito.

Respondi secamente. Não me apetecia nada encetar uma conversa. Mas depois de um breve silêncio comum, ela continuou:

- E claro, Habib fez mal em dizer ao oficial que eu era vossa mulher. Mas o pobre rapaz foi apanhado desprevenido. Sois um homem respeitado, e tudo isto vos embaraça, não é verdade. Eu, vossa mulher? Deus vos guarde disso!

- O que está dito, está dito!

Lancei a minha frase sem reflectir. E só depois, quando as nalavras de Marta e as minhas me ressoaram juntas na cabeça, é que me apercebi do sentido que a minha frase podia ter assumido. Na situação estranha em que nos tinham colocado, cada palavra era uma laje escorregadia «- Eu, vossa mulher? - O que está dito, está dito!» Estive quase a corrigir-me, explicitar-me, rectificar... Mas para quê? Só me teria atolado. Olhei então na direcção da minha vizinha para tentar compreender o que ela tinha compreendido; ela arvorava, pareceu-me, o rosto travesso da sua juventude. Eu sorri, por minha vez. E esbocei no escuro um gesto de resignação.

Talvez precisássemos daquela troca de palavras para podermos adormecer com toda a serenidade um ao lado do outro, nem demasiado próximos, nem demasiado afastados.

28 de Agosto

Ao acordar, eu estava de muito bom humor, e a «minha esposa» também. Os meus sobrinhos fustigaram-nos com os seus olhares durante todo o dia, intrigados, desconfiados; mas o meu empregado parecia divertido.

Tínhamos previsto partir ao amanhecer, mas tivemos de desistir; durante a noite começara a chover, e de manhã ainda chovia torrencialmente. O dia anterior tinha sido nebuloso, dos mais agradáveis para quem anda na estrada, mas sentia-se bem que as nuvens não se limitariam a trazer-nos sombra. Não tínhamos outro remédio senão ficar junto dos nossos anfitriões mais um dia e uma noite; Deus os abençoe, eles fazem-nos sentir a cada instante como a nossa presença lhes é agradável e leve. i; *

Chegada a hora de deitar, o bom alfaiate jurou de novo que enquanto estivéssemos debaixo do seu tecto, «a minha esposa protegida» e eu próprio não dormiríamos noutro lugar além do seu quarto. Pela segunda vez, deixei-o decidir. Demasiado docilmente.

talvez... Deitámo-nos, Marta e eu, um ao lado do outro, de boa vontade. Sempre vestidos, sempre afastados. Simples vizinhos de cama, como ontem. Com a única diferença de que agora tagarelávamos sem parar, sobre isto e sobre aquilo, sobre o acolhimento dos nossos anfitriões, sobre o tempo que poderia fazer no dia seguinte. «A viúva» pusera um perfume que eu não sentira na véspera.

Tinha começado a falar-lhe das razões que me levaram a iniciar esta viagem, quando Habib irrompeu no nosso quarto. Aproximou-se sem fazer ruído, descalço, como se esperasse surpreender-nos.

- Venho dormir para aqui, disse ele quando notei a sua presença. Há demasiados mosquitos na outra sala, eles devoram-nos.

Suspirei.

- Fizeste bem em vir. Aqui, os mosquitos não podem entrar, a porta é demasiado estreita...

Teria eu deixado transparecer toda a minha irritação? A minha vizinha colou a cabeça à minha, para me sussurrar, o mais baixo possível:

- É ainda uma criança!

Ela procurava, uma vez mais, desculpá-lo. Talvez quisesse também fazer-me compreender que o ciúme que Habib mostrava era injustificado. Porque eu podia supor que se ele tinha conspirado com ela para a fazer escapar à família do marido e permitir-lhe juntar-se a nós, não era apenas por espírito cavalheiresco, mas porque sentia alguma coisa por ela, embora ela tivesse sete ou oito anos mais do que ele.

Ciumento, acho que ele é. Primeiro deitou-se junto à parede, enrolado no seu cobertor. Ainda que não dissesse nada, eu ouvia-lhe a respiração irregular - ele não dormia. A sua presença irritava-me. Por um lado, eu dizia a mim mesmo que devia, logo no outro dia, explicar-lhe claramente que as minhas duas noites ao lado da «viúva» eram apenas fruto das circunstâncias que ele sabia, e que não devia pensar mal. Por outro lado, não via e continuo a não ver por que devia explicar-me a este miúdo. Não fui eu que quis colocar-me nesta situação embaraçosa! Sou complacente;

Mas não devem agitar-me demasiado o sangue! Se por acaso me desse vontade de cortejar Marta, não iria pedir autorização aos meus sobrinhos, nem a ninguém!

Voltei-me para ela, resolutamente, e murmurei-lhe, não muito baixo:

- Se é realmente uma criança, hei-de corrigi-lo como a uma criança!

Ao aproximar-me, senti com mais força o seu perfume, e tive vontade de me aproximar ainda mais. Mas Habib tinha-me ouvido; se não conseguiu compreender o que eu dizia, ao menos ouvira o murmúrio. Então veio rastejando com o cobertor deitar-se aos nossos pés, impossibilitando-nos o mínimo movimento.

Estava tentado a desferir-lhe um pontapé vigoroso, «por inadvertência», quando ele estivesse a dormir. Mas preferi vingar-me de outra maneira: agarrei a mão de Marta na minha, para conservá-la, debaixo do cobertor, até de manhã.

Perto do Oronte, 29 de Agosto

Esta manhã já não chovia, e pudemos retomar o nosso caminho. Eu tinha dormido muito pouco, de irritado que estava pela conduta inconveniente do meu sobrinho.

Mas talvez fosse preferível que a noite terminasse assim. Pensando bem, era melhor sentir ao despertar as tenazes do desejo em vez das do remorso.

Despedimo-nos dos nossos anfitriões, que ainda nos obsequiaram carregando as nossas mulas de provisões, suficientes para vários dias de viagem. Possa o Céu dar-nos a oportunidade de lhes mostrar por nossa vez a nossa hospitalidade!

A estrada é agradável depois da chuva, nem sol, nem calor excessivo, nem poeira que se levante. Lama, sem dúvida; mas suja apenas os cascos das bestas. Só parámos quando começou a escurecer.

Contornámos a cidade de Homs para ir arribar, para a noite, num convento construído nas margens do Oronte; eu pernoitara ali outrora por duas vezes com o meu pai, quando de uma viagem a Alepo, na ida e depois no regresso, mas ninguém aqui se lembrava disso.

Quando passeava, ao anoitecer, à beira do rio, nos jardins do mosteiro, um jovem monge de olhos esbugalhados veio interrogar-me, numa voz febril, acerca dos rumores sobre o próximo ano. Por mais que amaldiçoasse «os rumores mentirosos» e «as superstições», ele parecia perturbado. Falou dos sinais inquietantes que teriam sido relatados pelos camponeses da vizinhança, o nascimento de um vitelo com duas cabeças, e uma fonte antiga que secara bruscamente. Falou-me também de mulheres que se teriam comportado de uma maneira até então inaudita, mas manteve-se demasiado alusivo, e confesso que não compreendi bem o que procurava descrever.

Esforcei-me por tranquilizá-lo, o melhor que podia, evocando, mais uma vez, as Escrituras, e a incapacidade dos mortais para prever o amanhã. Não sei se os meus argumentos o reconfortaram. Sem dúvida deixei-lhe, ao separar-me dele, um pouco da minha aparente serenidade; mas levando sob as minhas pálpebras um pouco do seu pavor.

A caminho, 30 de Agosto

Acabo de reler as páginas que escrevi nestes últimos dias, e estou aterrado com elas.

Empreendi esta viagem pelas razões mais nobres, preocupado com a sobrevivência do universo, com a reacção dos meus semelhantes aos dramas que se predizem. E eis que, por causa desta mulher, me encontro metido nas ruelas lamacentas onde se comprazem os seres vis. Ciúmes, intrigas, mesquinhices - quando o mundo inteiro poderia ser aniquilado amanhã!

O xeque Abdel-Basit tinha razão. Para quê percorrer o mundo, se é para ver nele aquilo que está já à minha frente.

Precisava de recuperar o autodomínio! Recuperar a minha inspiração primeira, molhar o meu cálamo apenas na tinta mais venerável, nem que ela fosse também a mais amarga.

2 de Setembro

Fala-se muitas vezes do enjoo no mar, e raramente do enjoo nas montadas, como se fosse menos degradante sofrer na ponte de um barco do que sobre o lombo móvel de uma mula, de um camelo ou de uma pileca.

É no entanto disso que eu sofro há três dias, sem contudo me decidir a interromper a viagem. Mas tenho escrito muito pouco.

Chegámos ontem à tarde à modesta cidade de Maarra, e foi só ao abrigo dos seus muros meio desmoronados que me senti reviver, e que recuperei o gosto do pão.

Esta manhã, fui passear pelas ruas de comércio, quando ocorreu um incidente dos mais estranhos. Os livreiros daqui nunca me tinham visto, por isso pude interrogá-los sem rodeios acerca do Centésimo Nome. Não obtive mais do que trejeitos de ignorância - sincera ou fingida, não sei. Mas diante da última loja, a mais próxima da grande mesquita, quando me preparava para arrepiar caminho, um alfarrabista muito velho, a quem eu ainda não tinha feito a pergunta, aproximou-se de mim, de cabeça descoberta, para me colocar um livro nas mãos. Abri-o ao acaso, e - por um impulso para o qual ainda não encontro explicação - pus-me a ler em voz clara estas linhas sobre as quais os meus olhos caíram em primeiro lugar:  

Eles dizem que o Tempo morrerá breve Que os dias estão sem fôlego Eles mentiram.

Trata-se de uma obra de Abu-1-Ala, o poeta cego de Maarra.

Porque é que aquele homem mo colocou assim nas mãos? Porque é que o livro se abriu justamente nesta página? E que foi que me levou a fazer a leitura no meio de uma rua concorrida?

Um sinal? Mas que sinal é esse que vem desmentir todos os sinais?

Comprei o livro ao velho livreiro; ele será sem dúvida, durante esta viagem, o menos insensato dos meus companheiros.

Em Alepo, 6 de Setembro

Chegados ontem ao anoitecer, tivemos de passar todo este dia a negociar com um caravaneiro ávido e manhoso. Ele pretendia - entre mil outras intrujices - que a presença de um rico negociante genovês e da sua mulher lhe impunha o reforço da escolta contratando mais três latagões. Respondi-lhe que éramos quatro homens para uma só mulher, e que saberíamos defender-nos se os bandidos nos atacassem. Então ele passeou o olhar por nós, pelos meus sobrinhos de pernas magricelas, pelo meu empregado claramente civil, e demorou-se mais que tudo na minha pança de comerciante próspero, antes de desatar num riso descortês. Estive tentado a voltar-lhe as costas de uma vez para sempre, e dirigir-me a outra pessoa, mas contive-me. Não tenho escolha. Precisaria de esperar uma semana ou duas, correr o risco de apanhar os primeiros grandes frios da Anatólia, sem estar seguro de encontrar uma escolta mais amena. Então, engolindo o meu orgulho, fingi rir com ele dando uma palmada na barriga e adiantando-lhe a soma que ele exigia, trinta e duas piastras - que não são menos de dois mil e quinhentos maidins.

Enquanto sopesava as moedas na mão, ele tentou fazer-me prometer que se chegássemos todos ao destino sãos e salvos com a mercadoria, eu o gratificaria com mais algumas moedas. Lembrei-lhe que não tínhamos nenhuma mercadoria, nada além das nossas coisas pessoais e das provisões, mas tive de prometer mostrar-me reconhecido se a viagem decorresse pelo melhor do princípio ao fim.

Partiremos depois de amanhã, terça-feira, ao amanhecer. Para alcançar Constantinopla, se Deus permitir, dentro de quarenta dias.

Segunda-feira, 7 de Setembro

Esperava, depois das incomodidades da viagem, e antes daquelas que vão seguir-se, um dia de oásis, todo feito de repouso, de fresquidão, de passeio e de serenidade. Mas esta segunda-feira reservava-me algo muito diferente disso. A sufocação, um susto a seguir a outro, e um mistério que ainda não esclareci.

Tendo acordado cedo, deixei a estalagem para me dirigir ao bairro da antiga tanoaria, à procura de um arménio, mercador de vinho, cujo endereço guardara. Não tive qualquer dificuldade em encontrá-lo, e comprei-lhe duas bilhas de malvasia para a viagem. Ao sair de casa dele, fui subitamente tomado de uma estranha sensação. No patamar de uma casa vizinha, havia um grupo de homens a conversar que olhavam furtivamente na minha direcção. Qualquer coisa brilhara nos olhos de um deles, e foi como se eu tivesse visto luzir uma lâmina.

Quanto mais eu avançava pelas ruelas, mais me sentia espiado, perseguido, cercado. Seria uma simples impressão? Lamentava agora ter-me aventurado por ali sozinho, sem o meu empregado, sem os meus sobrinhos. Lamentava também não ter voltado para a tenda do arménio assim que sentira o perigo. Mas era demasiado tarde, dois desses homens caminhavam à minha frente, e quando me voltei, vi outros dois que me cortavam a retirada. À minha volta, a rua tinha-se esvaziado por não sei que sortilégio. Parecera-me, alguns segundos antes, que estava numa rua movimentada, não verdadeiramente buliçosa, mas também não vazia. E agora, ninguém. Um deserto. Já me via trespassado por alguma faca, antes de ser despojado. Aqui termina a minha viagem, disse para mim mesmo, tremendo. Queria gritar por socorro, mas não me saía nenhum som da garganta.

minha volta, algum caminho de fuga, notei, à direita, a porta de uma casa. Num último sobressalto, rodei o puxador, a porta abriu-se. Só havia ali um corredor sombrio. Esconder-me ali não teria servido de nada, era como se eu próprio escolhesse o lugar onde havia de ser degolado. Atravessei portanto o corredor, enquanto os meus perseguidores ali penetravam por sua vez. Encontrei no extremo uma outra porta, ligeiramente entreaberta. Não tive tempo de bater, empurrei-a com o ombro, e lancei-me com todas as minhas forças para o interior.

Desenrolou-se então uma cena que não sei com que palavras qualificar, da qual presentemente ouso sorrir, mas que, no momento, me fez tremer pouco menos do que as lâminas dos malfeitores.

Havia naquela casa uma dúzia de homens, descalços, prosternados, a recitar uma prece. E eu, para além de interromper assim a sua cerimónia, para além de espezinhar os seus tapetes de prece, tropecei, no meu impulso, na perna de um deles, lancei um palavrão vindo das longínquas ruas miseráveis de Génova, e espalhei-me a todo o comprido. As duas bilhas de vinho chocaram durante a queda, uma delas quebrou-se, e o líquido ímpio derramou-se, gorgolejando, sobre os tapetes da pequena mesquita.

Deus do Céu! Ainda antes de sentir medo, eu sentia vergonha. Acumular, em alguns segundos, tanta profanação, tanto sacrilégio, grosseria, blasfémia! Que dizer àqueles homens? Como explicar-lhes? Com que palavras exprimir-lhes a minha contrição, o meu remorso. Nem sequer tinha força para me pôr de pé. Então o mais idoso deles, que estava na primeira fila e dirigia a prece, veio pegar-me pelo braço para me ajudar a levantar, dizendo-me estas palavras desconcertantes:

- Perdoa-nos, Mestre, se não nos ocupamos de ti antes de incluir a nossa prece. Mas dá-te ao incómodo de entrar para ali, atrás daquele tabique, e espera-nos!

Estaria eu a sonhar? Teria compreendido mal? Aquele tom amável talvez me tivesse tranquilizado se eu não soubesse de que maneira se puniam geralmente tais transgressões. Mas que fazer? Não podia sair para a rua, e também não queria agravar o meu caso perturbando ainda mais as suas preces com desculpas ou lamentações. Não tinha outra saída senão entrar docilmente para trás do tabique. Havia ali uma sala nua, iluminada por uma pequena Incarna que dava para um jardim. Encostei-me à parede, com a cabeça para trás, e cruzei os braços.

Tive de esperar muito tempo. Terminada a prece, eles entraram todos juntos na minha cela, e dispuseram-se em meia-lua à minha volta. Ficaram por momentos a contemplar-me, sem uma palavra, consultando-se com o olhar. Depois o seu decano voltou a falar-me, no mesmo tom delicado da primeira vez:

- Se o Senhor se nos apresentou desta maneira para nos pôr à prova, ele sabe agora que estamos prontos a acolhê-lo. E se tu és um simples passante, que Deus te julgue segundo as tuas intenções.

Sem saber o que dizer, refugiei-me no silêncio. Aliás, o homem não me fizera nenhuma pergunta, ainda que, nos seus olhos e nos dos seus companheiros, houvesse um abismo de espera. Dirigi-me para a saída exibindo um ar enigmático, e eles afastaram-se para me deixar partir. Lá fora, os meus perseguidores tinham-se esgueirado, e pude regressar à estalagem sem mais embaraço.

Gostaria tanto que me esclarecessem sobre o que acaba de acontecer. Mas preferi não contar nada da minha triste aventura aos meus próximos. Parece-me que se os meus sobrinhos soubessem até que ponto fui imprudente, a minha autoridade sobre eles ficaria abalada. E que eles se achariam desde então no direito de cometer todas as loucuras sem que eu pudesse censurá-los por nada.

Mais tarde, hei-de contar-lhes. Entretanto, basta-me ter confiado o meu segredo a estas páginas. Não é essa, de resto, a função deste diário?

É que me acontece por vezes interrogar-me: porquê escrevê-lo, com esta escrita velada, quando sei que nunca ninguém o lerá? Quando, de resto, desejo que ninguém o leia? Porque, precisamente, ele ajuda-me a clarificar os meus pensamentos, bem como as minhas recordações, sem ter de me trair confiando-as aos meus companheiros de viagem.

Outros que não eu escrevem como falam, mas eu escrevo como me calo.

A caminho, 8 de Setembro

Hatem acordou-me demasiado cedo, e tenho ainda a sensação de ter um sonho por acabar. Não tinha dormido o suficiente, mas foi preciso corrermos a juntar-nos à caravana junto da porta de Antioquia.

No meu sonho, era perseguido por uns homens, e de cada vez que julgava ter-lhes escapado, encontrava-os de novo à minha frente, a barrar-me a passagem e mostrando-me dentes de feras.

Depois do que vivi ontem, aquele sonho não podia surpreender. O que, em contrapartida, me surpreende e me perturba, é que ao acordar continuei a sentir-me espiado. Por quem? Pelos bandidos que queriam roubar-me? Ou por aquela estranha congregação cuja prece interrompi? Sem dúvida não sou perseguido nem por uns nem por outros, mas não consigo evitar voltar-me continuamente.

Contanto que este resto de noite que se agarra ao meu dia se afaste à medida que eu me afastar de Alepo!

9 de Setembro

Esta manhã, depois de uma noite passada nas tendas, num campo juncado de vestígios antigos, de capitéis quebrados enterrados na areia e debaixo das ervas, o caravaneiro veio perguntar-me, à queima-roupa, se a mulher que me acompanhava era mesmo minha. Respondi que sim, esforçando-me por parecer melindrado. Então ele pediu desculpa, jurando que não pensava nada de mal, mas que já não se lembrava se eu lho tinha dito.

Isso pôs-me, para o resto do dia, de má catadura, a remoer. Duvidaria ele de alguma coisa? Alguém, entre a centena de viajantes, teria reconhecido «a viúva»? Isso não é impossível.

Mas talvez o caravaneiro tenha surpreendido alguma conversa, algum olhar cúmplice entre Marta e Habib, de que quisesse, com a sua pergunta, prevenir-me.

À medida que escrevo estas linhas, as minhas dúvidas intensificam-se, como se, ao arranhar estas folhas, arranhasse também com a pena as feridas do amor próprio...

Por hoje, não escreverei nem mais uma palavra.

11 de Setembro

Hoje ocorreu um incidente, um desses incidentes vis que eu prometera a mim mesmo não voltar a mencionar. Mas como ele me preocupa, e não posso abrir-me com ninguém, mais vale evocá-lo em algumas palavras...

A caravana tinha parado para que cada qual pudesse alimentar-se e fazer uma curta sesta, antes de retomar o caminho à hora fresca. Tínhamo-nos espalhado ao acaso, alguns viajantes debaixo de cada árvore, sentados ou deitados, quando Habib se debruçou ao ouvido de Marta, lhe murmurou qualquer coisa, e ela desatou num riso sonoro. Todos quantos estavam nas imediações a ouviram, voltaram-se para ela, depois para mim com expressões apiedadas. Alguns trocaram com os seus vizinhos observações em voz baixa, que os faziam sorrir ou tossicar, e que eu não conseguia ouvir.

Preciso de dizer até que ponto esses olhares me embaraçaram, e feriram, e humilharam? Nesse momento, prometi a mim mesmo ter Uma conversa com o meu sobrinho, para intimá-lo a comportar-se melhor. Mas que poderia eu dizer-lhe? Que havia ele feito de condenável?

Não sou eu que me comporto como se a mentira que me une a Marta me desse prerrogativas?

Num certo sentido, dá-mas, sim. Visto que as pessoas da caravana a consideram minha esposa, não posso deixá-la comportar-se com ligeireza sem que a minha honra sofra com isso.

Fiz bem em confiar-me assim ao meu diário. Agora sei que os sentimentos que me perturbam não são injustificados. Não se trata de modo nenhum de ciúme, mas de honra e de respeitabilidade: não posso admitir que o meu sobrinho murmure em público à orelha daquela que todos julgam ser minha mulher, e que a faça desatar a rir-se!

Pergunto a mim mesmo se escrever tudo isto me irrita ou me acalma. Talvez a escrita desperte as paixões só para melhor as extinguir, como na caça esses batedores que buscam a caça para expô-la às flechas.

12 de Setembro

Estou contente por não ter cedido ao desejo de admoestar Habib ou Marta. Tudo o que pudesse dizer-lhes pareceria ditado pelo ciúme. Contudo, Deus é minha testemunha, não é de ciúme que se trata! Ter-me-ia coberto de ridículo, e tê-los-ia feito murmurar e rir à minha custa. Querendo defender a minha respeitabilidade, não teria feito mais que espezinhá-la.

Preferi reagir de outra maneira. Esta tarde, convidei Marta para vir cavalgar a meu lado, e pu-la ao corrente das razões que me levaram a empreender esta viagem. É possível que Habib lhe tenha já referido o assunto, mas ela nada deixou transparecer, mostrando-se pelo contrário muito atenta à minha explicação, embora não estivesse muito inquieta, parece-me, acerca do próximo ano.

Quis dar à nossa conversa uma certa solenidade; até agora, tinha considerado a presença de Marta connosco como um facto imposto, por vezes incómodo ou embaraçoso, outras vezes estrambólico.

reativo, quase reconfortante; pela confiança que hoje lhe stemunhei, acolhi-a de certo modo no seio dos meus.

Não sei se agi bem, mas a nossa conversa trouxe-me uma sensação de bem-estar e de alívio. No fim de contas, eu era o único a sofrer com as tensões que reinavam no nosso pequeno grupo desde a etapa de Tripoli. Não sou daqueles que se sustentam da adversidade, aspiro a viajar na companhia de sobrinhos afectuosos, de um empregado dedicado... Tratando-se de Marta, ainda não sei o que desejo, no fundo de mim mesmo. Uma espécie de vizinha atenciosa? Mais do que isso? Não posso escutar apenas os meus apetites de homem só, mas cada dia que passo nas estradas incitar-me-á a escutá-los mais. Sei que devia fazer esforços para não a rodear demasiado das minhas atenções, das quais não ignoro as causas, tanto na minha alma como no meu corpo.

Desde que deixámos a casa do alfaiate, não passei mais nenhuma noite sozinho ao lado dela. Dormimos algumas vezes na tenda, outras vezes numa estalagem, mas sempre os cinco juntos, ou com outros viajantes ainda. Se nada fiz para que acontecesse de outro modo, acontece-me desejar que uma nova circunstância nos force a encontrar-nos os dois sozinhos.

A falar verdade, desejo-o continuamente.

15 de Setembro

Amanhã é a festa da Cruz, e esta noite tive com o caravaneiro uma grave disputa a esse respeito.

Tínhamos parado para a noite num caravançarai nos arredores de Alexandreta, e eu passeava um pouco no pátio, para esticar as pernas, quando surpreendi uma conversa. Um dos viajantes, um homem muito velho, alepino a julgar pelo sotaque, e muito pobre a julgar pelas suas roupas remendadas, estava a perguntar ao caravaneiro a que horas partiríamos amanhã porque ele gostava de passar, nem que fosse por um instante, pela igreja da Cruz, onde se encontra, segundo ele, um fragmento da Verdadeira Cruz. O homem tinha falado timidamente, e gaguejando um pouco.

o que excitou, ao que parece, a soberba do nosso caravaneiro, que lhe respondeu no tom mais desdenhoso que nos íamos pôr a caminho desde os primeiros alvores do dia, que não tínhamos tempo a perder nas igrejas, e que se ele fazia questão de ter um pedaço de madeira, bastava-lhe apanhar este - e indicou-lhe no chão um pedaço de tronco apodrecido.

Então aproximei-me, e disse em voz alta que fazia questão de que ficássemos em Alexandreta algumas horas mais para poder assistir à missa pela festa da Cruz.

O caravaneiro sobressaltou-se ao ouvir-me, porque se julgava a sós com o velho. Sem dúvida teria evitado falar daquele modo diante de testemunhas. Mas, depois de uma breve hesitação, recuperou a confiança e respondeu-me - mais polidamente no entanto do que ao outro infeliz - que era impossível retardar a partida, e que os viajantes se queixariam. Acrescentou mesmo que isso prejudicaria toda a caravana, e deu a entender que eu deveria pagar uma indemnização. Então eu elevei o tom, exigindo que me esperassem até ao fim do ofício divino, e ameaçando queixar-me em Constantinopla junto do residente genovês, e mesmo junto da Sublime Porta.

Ao dizer isto, eu corria riscos. Não tenho acesso à Porta, e nos tempos que correm o residente genovês não tem o braço comprido; ele próprio sofreu vexames no ano passado, e seria incapaz de me proteger ou de obter uma reparação. Deus seja louvado, o caravaneiro nada sabia disso. Não ousou tomar as minhas ameaças de ânimo leve, e eu senti que ele vacilava. Se estivéssemos sozinhos, ele teria procurado, tenho a certeza, arredondar as arestas. Mas agora havia à nossa volta todo um círculo de viajantes atraídos pelas nossas altas vozes, e diante dos quais ele não podia recuar sem perder a face.

De súbito, um viajante aproximou-se dele. Tinha uma faixa verde enrolada à volta da cabeça, como se estivéssemos no meio de uma tempestade de areia. Pousou a mão no ombro do caravaneiro, e ficou assim, alguns instantes, a olhá-lo sem dizer palavra - ou talvez tenha dito uma, em voz baixa, que eu não ouvi. Seguidamente, afastou-se, em passo lento,

Então, o meu adversário, com o rosto como que melindrado, como que dorido, cuspiu para o chão, depois anunciou:

- Por culpa deste homem, não partiremos amanhã!

«Este homem», era eu. Apontando o dedo na minha direcção, o caravaneiro julgava indicar o culpado, mas todos aqueles que ali estavam tinham compreendido que ele estava a designar o vencedor.

Estou contente com a minha vitória? Sim, estou contente, estou encantado e satisfeito e orgulhoso. O velho alepino cristão veio agradecer-me, elogiando a minha piedade.

Eu não quis desenganá-lo, mas a piedade nada tem que ver com o que acabo de fazer. Não é de piedade que se trata mas de sabedoria profana. Em tempo normal raramente vou à missa, não celebro a festa da Cruz, e não atribuo às relíquias mais que o seu valor em piastras; mas as pessoas teriam deixado de me respeitar se eu tivesse deixado insultar daquele modo os símbolos da minha religião e da minha nação.

E como no caso de Marta. Que ela seja minha mulher na realidade ou apenas nas aparências, a minha honra ligou-se a ela e eu devo preservá-la.

14 de Setembro, festa da Cruz

Não paro de pensar no incidente de ontem. É raro que eu reaja com tanta veemência, e sinto um aperto na barriga, mas não lamento a minha temeridade.

Ao reler o relato que fiz ontem à noite, parece-me que não disse suficientemente a que ritmo o meu coração batia. Houve alguns longos segundos de braço-de-ferro silencioso em que o caravaneiro se perguntava se eu tinha tantas protecções como dizia, e em que também eu me perguntava de que modo poderia ainda furtar-me ao confronto sem perder a face. E claro, tinha de olhar o homem nos olhos, fazendo-o sentir que estava seguro de mim e evitando que ele percebesse a minha fraqueza.

Dito isto, houve igualmente um momento em que eu já não tinha medo. Um momento em que tinha deixado a minha alma de mercador para assumir a de domador. E desse instante, ainda que dos mais fugazes, estou orgulhoso.

Terá sido a minha vontade que arrancou a decisão? Terá sido a intervenção do árabe da cabeça cingida. Talvez eu devesse agradecer-lhe... Ontem, não quis dirigir-me a ele, para que não se pensasse que eu estava em dificuldade e que a sua intervenção me salvara. Mas hoje, procurei-o com os olhos, e não o encontrei.

Não paro de pensar nele, e visto que não estou envolvido em nenhum braço-de-ferro, visto que este caderno não é uma arena e já não tenho à minha volta a multidão dos espectadores, posso escrever que senti um imenso alívio quando esse homem interveio, que a minha vitória é um pouco sua, e que sou um pouco seu devedor.

Que pode ele ter dito para fazer ceder assim o nosso caravaneiro?

Quase me esquecia de escrever que me desloquei, com os meus sobrinhos, o meu empregado, «a viúva» e uma dúzia de outros viajantes, à igreja da Cruz. Marta vestira, pela primeira vez, um vestido de cor, o mesmo, azul de gola debruada a vermelho, que eu a vira usar em rapariga, quando ia à igreja de Gibelet nos dias de festa com o seu pai, o barbeiro. Desde que se juntara a nós para esta viagem, só se tinha vestido de preto; por bravata, porque era a cor que a família do marido lhe proibia. Deve ter achado que agora a bravata não tinha sentido.

Durante toda a missa, os homens olhavam para ela, uns furtivamente, outros com insistência, o que não provocou em mim - Deus é minha testemunha! - nenhum desagrado nem nenhum ciúme.

16 de Setembro

Um joalheiro judeu de Alepo, chamado Maimoun Toleitli, veio ter comigo esta manhã. Tinha ouvido falar, disse, da minha grande erudição, e ardia de impaciência por me conhecer. Por que não me tinha abordado mais cedo? Perguntei-lhe. Ele teve um silêncio incomodado.

Compreendi imediatamente que preferira deixar passar a festa da Cruz; é verdade que alguns dos meus correligionários, quando encontram um judeu durante esta jornada, julgam-se obrigados a mostrar-se rancorosos com ele, como se se tratasse de um acto de justa vingança, de grande piedade. Fi-lo compreender, com as palavras adequadas, que eu não era assim. E expliquei-lhe que se tinha exigido que parássemos em Alexandreta, não fora para fazer prevalecer a minha religião sobre as dos outros, mas simplesmente para me fazer respeitar.

- Fizestes muito bem - disse-me ele. - O mundo é assim...

- O mundo é assim - repeti. - Se ele fosse diferente, eu teria proclamado as minhas dúvidas mais do que as minhas crenças.

Ele sorriu, e baixou a voz para dizer:

- Quando a fé se torna rancorosa, benditos sejam aqueles que duvidam!

Eu sorri por minha vez e baixei a voz:

- Somos todos transviados.

Havia apenas cinco minutos que nos falávamos e já éramos irmãos. Havia nos nossos murmúrios essa conivência de espírito que nenhuma religião pode fazer nascer, e que nenhuma pode aniquilar.

17 de Setembro

O nosso caravaneiro decidiu hoje fazer-nos sair da rota habitual para nos levar à beira do golfo de Alexandreta. Pretende que uma vidente o proibiu de passar por um certo lugar na quarta-feira, sob pena de ser degolado, e que o atraso que eu ocasionei o forçou a mudar de itinerário. Os viajantes não protestaram - que poderiam eles dizer, de resto? Um argumento discute-se, uma superstição não se discute.

Abstive-me de intervir, para não provocar um novo incidente. Mas desconfio que aquele trapaceiro desviou a caravana para se dedicar a algum tráfico. Tanto mais que os habitantes da aldeia onde ele nos conduziu têm uma péssima reputação. Piratas

contrabandistas!

Hatem e os meus sobrinhos relatam-me toda a espécie de rumores. Eu aconselho-os a serem circunspectos...

O meu empregado ergueu a tenda, mas eu não tenho pressa de lá deitar-me. Marta vai deitar-se sozinha mesmo ao fundo atravessada, e nós, os quatro homens, um depois do outro, virando para ela o alto do crânio. Sentirei o seu perfume e ouvirei a sua respiração toda a noite sem a ver. A presença de uma mulher é por vezes um suplício tão grande!

À espera de que o sono me chegasse, fui sentar-me sobre uma pedra para escrever algumas linhas à luz de um fogo de campo, quando avistei Maimoun. Ele também não tinha pressa de ir dormir, e fomos dar um passeio pela praia. O marulhar das ondas é propício às confidências, e eu contei-lhe em pormenor a minha estranha aventura em Alepo. Ele que mora nessa cidade, devia ter uma explicação. De facto, forneceu-me uma que, de momento, me satisfaz.

- Esses homens tinham mais medo de ti do que tu deles - começou por me dizer. - Eles praticam o seu culto às escondidas das autoridades, que os perseguem. São suspeitos de rebelião e de insubmissão. Toda a gente em Alepo conhece, no entanto, a sua existência. Os seus adversários chamaram-lhes "os Impacientes" por troça, mas esse nome agradou-lhes e eles reivindicam-no. Segundo eles, o imã oculto, último representante de Deus na terra, está já entre nós, preparado para se revelar quando chegar enfim a hora propícia, para pôr fim aos sofrimentos dos crentes. Outros grupos situam o advento do imã num futuro mais ou menos distante, mais ou menos indeterminado, enquanto os Impacientes estão persuadidos de que a coisa está iminente, que o salvador está ali, algures, em Alepo, ou em Constantinopla, ou noutro lugar, que percorre o mundo, o observa, e se prepara para rasgar o véu do segredo. Mas, perguntam esses homens, como reconhecê-lo se chegássemos a encontrá-lo? É isso que eles discutem constantemente entre si, disseram-me. Pois que o imã se dissimula, não deve ser notado pelos seus inimigos, é preciso estarem preparados para encontrá-lo sob os mais inesperados disfarces. Ele que herdará um dia todas as riquezas do mundo, poderia vir em farrapos; ele que é sábio entre os sábios, poderia apresentar-se sob a aparência de um alienado; ele que é piedade e devoção, poderia cometer as piores transgressões. É por isso que esses homens se impõem venerar os mendigos, os loucos e os debochados. Assim, quando tu apareceste no meio deles à hora da prece, proferiste uma praga, e depois espalhaste vinho sobre os seus tapetes de prece, julgaram que procuravas pô-los à prova. É claro, não estavam seguros, mas para o caso em que tu fosses o Esperado, não queriam correr o risco de te acolher mal. A sua crença dita-lhes que se mostrem amáveis com toda a gente, mesmo que seja um judeu ou um cristão, porque o imã poderia bem adoptar, por disfarce, uma Fé diferente. E mesmo com aquele que os persegue, devem mostrar-se amáveis, porque isso seria, uma vez mais, uma camuflagem possível... Mas se são tão amáveis com todos, porque é que os perseguem? «Porque eles esperam aquele que há-de abater todos os tronos, e abolir todas as leis.»

Eu nunca tinha ouvido falar desses estranhos sectários... No entanto, disse-me Maimoun, eles existem há muito tempo. «Mas é verdade que estão a tornar-se mais numerosos, e mais fervorosos; mais imprudentes, também. Porque há esses rumores que circulam sobre o fim dos tempos, e os espíritos fracos deixam-se levar...»

Estas últimas palavras doeram-me. Ter-me-ia eu tornado também num desses «espíritos fracos» que o meu novo amigo fustiga? Por vezes corrijo-me, maldigo a superstição e a credulidade, esboço um sorriso de desprezo, ou de piedade... Enquanto eu próprio ando em perseguição do Centésimo Nome!

Mas como poderia eu manter a minha razão intacta quando os sinais se multiplicam no meu percurso? A minha recente aventura em Alepo não é, sob este aspecto, das mais desconcertantes? Não se poderia dizer que o Céu, ou qualquer outra força invisível, procura confortar-me no meu descaminho?

18 de Setembro

Maimoun confiou-me hoje que sonhava ir viver para Amsterdão, nas Províncias Unidas.

Primeiro julguei que falava como joalheiro, e que esperava encontrar nessa região distante pedras mais bonitas para cinzelar e clientes mais prósperos. Mas ele falava como sábio, como homem livre e também como homem ferido.

- Dizem-me que essa é a única cidade do mundo onde um homem pode dizer «sou judeu» como outros dizem no seu país «sou cristão», «sou muçulmano», sem temer pela sua vida, pelos seus bens, nem pela sua dignidade.

Quis interrogá-lo um pouco mais, mas ele parecia tão emocionado por me ter dito algumas palavras que tinha a garganta apertada e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Por isso eu não disse mais nada e caminhámos um ao lado do outro em silêncio.

Mais tarde na estrada, quando vi que ele estava mais tranquilo, disse-lhe, pondo-lhe a mão sobre o braço:

- Um dia, se Deus quiser, toda a terra será Amsterdão. Ele esboçou um sorriso de amargura.

- é o teu coração puro que te inspira essas palavras. O burburinho do mundo diz outra coisa, uma coisa muito diferente...

: Em Tarso, na madrugada de segunda-feira, 21 de Setembro

Falo e volto a falar com Maimoun durante horas todos os dias, fiz-lhe confidências sobre a minha fortuna, sobre a minha família; mas há dois temas que ainda me repugna abordar de frente.

O primeiro refere-se às verdadeiras razões que me levaram a empreender esta viagem; a esse respeito, disse apenas que precisava de fazer compras de livros em Constantinopla, e ele teve a delicadeza de não me perguntar que livros. Desde a nossa primeira conversa, foram as nossas dúvidas que nos aproximaram um do outro e um certo amor pela sabedoria e pela razão; se eu lhe confessasse agora que cedi às crenças vulgares e aos temores comuns, nerderia todo o crédito a seus olhos. Irei então guardar o segredo até ao fim da viagem? Talvez não. Talvez chegue um momento em que eu possa fazer-lhe todas as confidências sem prejuízo para a nossa amizade.

O outro tema refere-se a Marta. Qualquer coisa me reteve de revelar ao meu amigo a verdade sobre ela.

Como é meu costume, não disse nada de falso, nem uma única vez os meus lábios pronunciaram «minha mulher» ou «minha esposa»; limito-me a não falar dela, e quando, de vez em quando, ele me faz evocá-la, eu fico no vago, preferindo dizer «os meus» ou «os meus próximos», como o fazem muitas vezes, por pudor extremo, os homens deste país.

Só ontem, atravessei, parece-me, essa linha invisível que separa o «deixar crer» do «fazer crer». E sinto algum remorso por isso.

Como nos aproximávamos de Tarso, a pátria de S. Paulo, Maimoun veio dizer-me que tinha na cidade um primo muito querido, em casa de quem contava dormir em vez de no caravançarai com o resto dos viajantes, e que ficaria honrado se pudéssemos passar a noite sob o mesmo tecto, a «minha esposa» e eu, bem como os meus sobrinhos e o meu empregado.

Eu devia ter declinado o convite, ou pelo menos deixá-lo insistir. Mas a minha boca respondeu no mesmo instante que nada me daria mais prazer. Se Maimoun ficou surpreendido com essa precipitação, não o mostrou, dizendo-se pelo contrário encantado com tal prova de amizade.

E esta noite, desde a chegada da caravana, dirigimo-nos a casa desse primo, chamado Eleazar, um homem de certa idade e uma grande prosperidade. A sua casa é disso testemunho, erguendo-se em dois andares num jardim de amoreiras e oliveiras. Julguei perceber que ele se dedicava ao comércio do azeite e do sabão, mas não falámos dos nossos negócios, apenas das nossas nostalgias. O homem não se cansava de recitar poemas à glória da sua cidade natal, Mossoul; lembrava-se, de lágrimas nos olhos, das suas ruelas, das fontes, das personagens pitorescas, e das suas próprias asneiras de miúdo; era evidente que nunca se consolara de a ter deixado para se instalar aqui, em Tarso, onde tivera de retomar um negócio próspero fundado pelo avô da sua mulher.

Enquanto nos preparavam de comer, ele chamou a filha, e pediu-lhe que nos indicasse o nosso quarto, a Marta e a mim.

Houve então uma cena um tanto trivial, mas que eu devo relatar. Tinha observado que os meus sobrinhos, principalmente Habib, estavam à espreita, desde que eu os tinha informado do convite de Maimoun. E mais ainda depois de termos entrado na casa. Porque era evidente, desde o primeiro olhar, que aquele não era um lugar onde nos amontoariam cinco ou seis num mesmo quarto para dormir. Quando Eleazar pediu à filha que conduzisse «o nosso convidado e a esposa» ao seu quarto, Habib agitou-se, eu tive a impressão de que ele se preparava para dizer qualquer coisa inconveniente. Tê-lo-ia ele feito? Ignoro. Mas tive essa impressão no momento e, para atalhar o escândalo, adiantei-me rapidamente, perguntando ao nosso anfitrião se podia dizer-lhe duas palavras em privado. Habib teve um ligeiro sorriso tranquilizado - prevendo sem dúvida que o seu tio Baldassare, finalmente emendado, ia encontrar algum pretexto para não passar mais uma noite «embaraçosa». Deus me perdoe, não era nada essa a minha intenção. Tendo saído com o nosso anfitrião para o jardim, disse-lhe:

- Maimoun tornou-se como um irmão para mim, e vós mesmo, seu primo de quem ele tanto gosta, considero-vos já como um amigo. Simplesmente, sinto-me constrangido por chegar assim de improviso, com mais quatro pessoas...

- Sabei que a vossa visita me aquece o coração, e que a melhor maneira de me manifestar a vossa amizade, é sentir-vos à vontade sob o meu tecto, como se estivésseis na vossa própria casa.

Enquanto alinhava estas palavras generosas, ele avaliava-me com o olhar, um pouco intrigado, perguntando-se sem dúvida por que achara eu útil fazê-lo levantar, e chamá-lo de parte, para lhe dizer uma coisa tão banal, que não se afasta das cortesias usuais; pensou talvez que eu tinha outra razão, inconfessável - ligada, sem dúvida, à religião - para não dormir em sua casa, e esperava que eu insistisse em ir-me embora. Mas eu apressei-me a ceder, agradecendo-lhe a sua hospitalidade. E voltámos ao salão de braço dado, arvorando um e outro um sorriso grave.

A filha do nosso anfitrião tinha voltado para a cozinha; entretanto, um dos criados viera trazer bebidas frescas e frutos secos. Eleazar pediu-lhe que deixasse tudo em cima da mesa para ir mostrar aos meus sobrinhos o quarto deles, no andar de cima. Depois a filha voltou sozinha, alguns minutos mais tarde, e ele pediu-lhe outra vez que nos conduzisse, à «minha esposa» e a mim, ao nosso quarto.

Assim se passaram as coisas. Depois jantámos. Após o que toda a gente foi deitar-se. Menos eu. Disse que precisava de caminhar um pouco lá fora, sem o que não conseguiria conciliar o sono, e Maimoun acompanhou-me, bem como o seu primo. Não queria que os meus sobrinhos nos vissem subir juntos, Marta e eu, para o mesmo quarto.

Contudo eu tinha pressa de estar com ela, e alguns minutos depois, fui ter com ela ao quarto.

- Quando te retiraste com o nosso anfitrião, pensei que lhe ias confessar acerca de nós dois...

Eu encarava-a, enquanto ela falava, para tentar saber se ela queria exprimir uma censura, ou alívio.

- Acho que o teríamos magoado se recusássemos o seu convite - respondi. - Espero que não estejas muito zangada...

- Começo a habituar-me - disse ela.

E nada, nem na sua voz, nem nos seus traços, traía o mínimo desagrado. Nem o mínimo acanhamento.

- Então, vamos dormir!

Ao pronunciar estas palavras, envolvi-lhe os ombros com o braço, como para um passeio.

São um pouco assim, as minhas noites ao pé dela, como um passeio sob as árvores com uma rapariga, quando estremecemos assim que as nossas mãos se tocam. Estar assim deitados ao pé um do outro torna-nos tímidos, delicados, comedidos. Não é mais delicado roubar um beijo nesta postura?

Que estranha corte eu lhe faço! Só lhe peguei na mão ao segundo encontro, e no escuro tinha corado. Neste terceiro encontro, pus o braço em volta dos seus ombros. E de novo corei.

Ela ergueu a cabeça, desfez a cabeleira e espalhou-a, negra, sobre o meu braço descoberto. Depois adormeceu sem uma palavra.

Tive vontade de saborear uma e outra vez esse prazer esboçado. Não que eu faça questão de o manter sempre assim tão casto. Mas não me canso desta vizinhança ambígua, desta cumplicidade que aumenta, deste desejo de doces tormentas, numa palavra, deste caminho pelo qual avançamos juntos, secretamente alegres, e pretendendo de cada vez que é só a Providência que nos empurra um para o outro. Esse jogo encanta-me, não tenho a certeza de querer passar para o outro lado das colinas.

Um jogo perigoso, eu sei. A todo o instante, o fogo pode envolver-nos. Mas como o fim do mundo estava longe esta noite!

22 de Setembro

Que foi que eu fiz de tão repreensível? Que houve na noite passada em Tarso de mais que nas duas noites passadas na aldeia do alfaiate? Mas os meus comportam-se comigo como se eu acabasse de fazer o inadmissível! Todos evitam o meu olhar. Os meus dois sobrinhos, que na minha presença só se falam em voz baixa, como se eu já não existisse. E mesmo Hatem, que se afadiga é certo à minha volta como qualquer empregado à volta do seu patrão, mas há no seu comportamento, na sua expressão, nos seus modos, qualquer coisa de afectado, de demasiado obsequioso, em que leio uma censura muda. Também Marta parece fugir da minha companhia, como se receasse parecer cúmplice.

Cúmplice de quê. Deus do Céu? Que fiz eu a não ser desempenhar o meu papel nesta comédia escrita pelos mesmos que me acusam? Que deveria eu fazer? Revelar a todos os nossos companheiros de viagem, e antes de mais ao caravaneiro, que aquela mulher não é minha, para ela ser banida e insultada? Ou então devia dizer a Abbas o alfaiate, e depois a Maimoun e ao seu primo, que Marta é minha mulher, mas que não posso dormir com ela, para que toda a gente fique a colocar-se mil questões insidiosas? Fiz aquilo que um homem de honra deve fazer, proteger «a viúva» sem se aproveitar dela. Será crime se eu encontro nessa posição patusca algum reconforto, e algum prazer subtil? Isto era o que eu podia dizer-lhes se quisesse justificar-me, mas não lhes direi absolutamente nada. O sangue dos Embriaci que me corre nas veias manda-me que me cale. Basta-me saber que estou inocente, e que a minha mão amante se manteve pura.

Inocente talvez não seja a palavra. Sem querer dar razão a esses ranhosos que me confundem, devo reconhecer, no segredo destas páginas, que procurei um pouco os aborrecimentos que me acontecem. Abusei das aparências, e agora são as aparências que abusam de mim. Essa é que é a verdade. Em vez de ter, na presença dos meus sobrinhos, um comportamento exemplar, deixei-me levar por um certo jogo, empurrado pelo desejo, pelo tédio, pelos solavancos da estrada, pela vaidade - eu sei lá! Levado também, parece-me, pelo espírito do tempo, pelo espírito do ano da Besta. Quando se sente o mundo a pontos de soçobrar, qualquer coisa se desordena, os homens caem na extrema devoção ou no extremo deboche. Por mim, ainda não cheguei, graças a Deus, a tais excessos, mas parece-me que perco pouco a pouco o sentido das conveniências e da responsabilidade. Não haverá, no meu comportamento para com Marta, um toque de desatino que não pára de aumentar a cada etapa e que me faz tomar por coisa normal o facto de dormir na mesma cama com uma pessoa que pretendo ser minha mulher, abusando tanto da generosidade do nosso anfitrião como da do seu primo, quando dormem sob o mesmo tecto outras quatro pessoas que sabem que minto? Quanto tempo poderia continuar-se por este caminho de perdição? E como poderia eu retomar a minha vida em Gibelet quando a coisa fosse divulgada?

Aí está como eu sou! Há um quarto de hora que comecei a escrever, e já me preparo para dar razão àqueles que me criticam. Mas isto são apenas escritas, garatujas de tinta entrelaçadas, e que ninguém lerá.

Tenho a meu lado uma grande vela; gosto do cheiro da cera, parece-me propício à reflexão e às confidências. Estou sentado no chão, encostado à parede, com o caderno sobre os joelhos. Atrás de mim, pela janela coberta com um cortinado que o vento faz inchar, chegam-me os relinchos dos cavalos no pátio, e por vezes os risos de soldados bêbedos. Estamos no primeiro caravançarai dos contrafortes do Tauro, na estrada de Konya, que devemos alcançar dentro de oito dias, se tudo correr bem. A minha frente os meus dormem, ou procuram dormir, estendidos em todos os sentidos. Cobrindo-os assim com o olhar, não consigo já estar aborrecido com eles; nem com os filhos da minha irmã que são como meus próprios filhos, nem com o meu empregado que me serve com devoção mesmo quando lhe acontece censurar-me à sua maneira, nem com aquela estranha que cada vez é menos estranha.

Na manhã deste dia de segunda-feira, estava numa disposição muito diferente. Praguejando contra os meus sobrinhos, negligenciando «a viúva», encarregando Hatem de vinte tarefas inúteis, tinha-me afastado deles para cavalgar calmamente ao lado de Maimoun. Que, por sua vez, não me olhava de modo diferente da véspera - era pelo menos a impressão que eu tinha quando a caravana se pôs em marcha.

No momento em que saíamos de Tarso, um viajante que seguia à nossa frente indicou-nos com o dedo um casebre em ruínas, depois um velho poço, afirmando que fora ali que S. Paulo nascera. Maimoun veio segredar-me ao ouvido que duvidava muito disso, visto que o apóstolo de Jesus era de uma família rica, da tribo de Benjamim, e que possuía tecelagens de tendas em pêlo de cabra.

- A casa dos seus pais devia ser tão vasta como a do meu primo Eleazar.

Como eu me surpreendia com os seus conhecimentos sobre uma religião que não era a sua, ele mostrou-se modesto.

- Apenas li alguns livros, para limitar a minha ignorância.

Também eu, pela minha profissão, e também por curiosidade natural, tinha lido alguns livros sobre diversas religiões actuais, bem como sobre as antigas crenças dos romanos e dos gregos. E acabámos por comparar os seus méritos respectivos, sem que nenhum de nós criticasse, é claro, a religião do outro.

Simplesmente, quando eu disse, durante a troca de impressões, que em minha opinião um dos mais belos preceitos do cristianismo era «Ama o teu próximo como a ti mesmo», notei em Maimoun um ricto de hesitação. Como eu o encorajasse, em nome da nossa amizade, e também em nome das dúvidas comuns, a dizer-me o fundo do seu pensamento, ele confessou:

- Essa recomendação parece, à primeira vista, irrepreensível, e de resto, ainda antes de ter sido tomada por Jesus, encontrava-se já, em termos semelhantes, no capítulo dezanove do Levítico, versículo dezoito. Contudo, ela suscita em mim certas reticências...

- Que lhe censuras tu?

- Ao ver aquilo que a maioria das pessoas fazem das suas vidas, ao ver o que elas fazem da sua inteligência, não quero que me amem como a si mesmas.

Eu queria responder-lhe, mas ele levantou a mão.

- Espera, há outra coisa mais inquietante, em meu entender. Nunca se poderá impedir certas pessoas de interpretarem esse preceito com mais arrogância do que generosidade: o que é bom para ti é bom para os outros; se tu deténs a verdade, deves reconduzir as ovelhas tresmalhadas ao justo caminho, e por todos os meios... De onde os baptismos forçados que os meus antepassados tiveram de sofrer em Toledo, outrora. Essa frase, tu vês, eu ouvia-a mais vezes na boca dos lobos do que nas das ovelhas, por isso desconfio dela, perdoa-me...

- As tuas palavras surpreendem-me... Ainda não sei se diga que estás certo ou errado, preciso de reflectir... Sempre pensei que essa frase era a mais bela...

- Se procuras a mais bela frase de todas as religiões, a mais bela que alguma vez saiu da boca de um homem, não é essa. É outra, mas foi igualmente Jesus que a pronunciou. Ele não foi buscá-la às escrituras, apenas escutou o seu coração.

Qual? Eu estava à espera. Maimoun parou por momentos a sua montada para dar solenidade à citação:

- Que aquele que nunca pecou atire a primeira pedra!

25 de Setembro

Haveria, na frase citada ontem por Maimoun, alguma alusão a Marta? Toda a noite não parei de fazer a mim mesmo a pergunta. No seu olhar não havia qualquer censura, mas talvez um subtil convite a falar. Porque continuaria eu a calar-me, de resto, se a palavra do Cristo me absolvia, aos olhos do meu amigo, do pouco que eu pudesse ter cometido, bem como das minhas omissões mentirosas?

Decidi pois dizer-lhe tudo, tudo, já esta manhã: quem é Marta, porque é que ela se encontra entre nós, quais as relações que tivemos os dois e quais as relações que não tivemos. Depois do episódio um pouco grotesco que ocorreu na casa de Eleazar, era urgente não dissimular mais nada, se não a nossa amizade sofreria com isso. E depois, neste caso que se complica a cada etapa, eu ia precisar dos conselhos de um amigo ponderado e compreensivo.

Conselhos, ele quase não mos deu hoje, apesar da minha insistência, se não o de não mudar nada daquilo que faço e digo desde o início da viagem; mas prometeu-me reflectir mais intensamente na coisa, e voltar a falar-me se tivesse alguma ideia capaz de me evitar os abalos que se anunciam.

O que me alegra é que ele não me levasse a mal por tanta dissimulação, pelas minhas meias mentiras. A coisa parece, pelo contrário, diverti-lo. Saúda Marta com mais deferência ainda, pareceu-me, e como que uma secreta admiração.

É verdade que ela dá provas de coragem ao agir como faz. Penso constantemente em mim, no meu embaraço, no meu amor próprio, quando não corro nenhum risco a não ser o de alguns mexericos malevolentes, ou invejosos. Quando a ela, poderia perder tudo neste pequeno jogo, até a própria vida. Não duvido nem por um instante de que se o cunhado a encontrasse, no princípio da viagem, a teria degolado sem o mínimo escrúpulo, e depois regressaria a casa dos seus pavoneando-se. No dia em que Marta regresse a Gibelet, mesmo munida do papel que espera, enfrentará de novo os mesmos

perigos.

Terei eu nesse dia coragem para defendê-la?

25 de Setembro de 1665

Esta manhã, vendo Marta afastada do nosso grupo, solitária, pensativa, melancólica sobre a sua montada, decidi voltar para o seu lado, para seguir muito perto dela, como tinha feito há alguns dias. Mas, desta vez, queria menos contar-lhe os meus receios e as minhas esperanças do que interrogá-la e ouvi-la. A princípio, ela esquivou-se e devolveu-me as minhas perguntas. Mas eu mostrei-me insistente; que ela mesma me dissesse antes o que foi a sua vida, nestes últimos anos, e o que a impeliu para este mesmo caminho!

Se eu esperava uma litania de queixas, não previa que o interesse que eu manifestava pelas suas desgraças ia derrubar nesta mulher um dique e soltar tanta raiva. Uma raiva de que, sob a doçura dos seus sorrisos, eu não suspeitava.

- Falam-me sem parar do fim do mundo, disse ela, e julgam que me metem medo. Para mim o mundo acabou no dia em que o homem que eu amava me traiu. E depois de me ter feito trair o meu próprio pai. Desde então, o sol já não brilha para mim, e pouco me importa que viesse a apagar-se. E esse dilúvio que predizem também não me assusta, ele tornaria todos os homens e todas as mulheres iguais na desgraça. Meus iguais na desgraça. Que venha o Dilúvio, seja ele de água ou de fogo! Eu já não teria de correr pelas estradas para reclamar um papel que me autorize a viver, um maldito firmão de lá de cima para certificar que posso de novo amar e unir-me a um homem! Não mais teria de correr, ou então toda a gente se porá a correr em todos os sentidos! Sim, toda a gente! Os juízes, os janízaros, os bispos e até o sultão! Todos a correr como gatos surpreendidos por um fogo de Verão nas ervas secas! Ah, se o Céu me permitisse ver isso! As pessoas têm medo de ver aparecer a Besta.

Eu não tenho medo dela. A Besta? Ela sempre esteve aí, muito perto de mim, todos os dias encontrei o seu olhar de desprezo, na minha casa, na rua, e mesmo sob o tecto da igreja. Todos os dias senti a sua mordedura! Ela não parou de me devorar a vida.

E Marta continuou ainda neste tom, durante longos minutos. Relatei as suas palavras tal como as fixei, não sem dúvida palavra por palavra, mas o mais perto possível. Em mim mesmo, eu dizia: meu Deus, como tu deves ter sofrido, mulher, desde esse tempo tão distante em que eras ainda a travessa e despreocupada filha do barbeiro!

Em dado momento, aproximei-me dela, para colocar a minha mão ternamente sobre a sua. Então ela calou-se, dirigiu-me um breve olhar de reconhecimento, depois cobriu o rosto para chorar.

No resto do dia, não fiz mais que pensar nas suas palavras, e segui-la com os olhos. Tenho hoje por ela, mais do que antes, um imenso afecto paternal. Desejo senti-la feliz, mas não ousaria prometer-lhe a felicidade. Quando muito poderia jurar nunca mais a fazer sofrer.

Resta saber se, para evitar fazê-la sofrer, eu deveria aproximar-me mais dela, ou antes afastar-me...

26 de Setembro

Hoje contei finalmente a Maimoun o que me levou a empreender esta viagem, pedindo-lhe que me dissesse, com a franqueza de um amigo, os sentimentos que as minhas palavras lhe inspiravam. Não deixei nada na sombra, nem o peregrino de Moscóvia, nem o livro de Mazandarani, nem o número da Besta, nem as extravagâncias de Bumeh, nem a morte do velho Idriss. Precisava do olhar de um joalheiro, experiente nos falsos brilhos, e capaz de distinguir o verdadeiro. Mas ele respondeu às minhas interrogações com outras interrogações, e tornou mais pesadas as minhas angústias com as suas próprias angústias. Ou, pelo menos, com as dos seus próximos...

Começou por me escutar em silêncio. Se nada daquilo que eu dizia parecia surpreendê-lo, ele tornava-se a cada uma das minhas frases um pouco mais pensativo, e como que oprimido. Quando terminei, tomou-me as duas mãos nas suas.

- Tu falaste-me como a um irmão. é a minha vez de te abrir agora o coração. As razões da minha viagem não são assim tão diferentes das que tu acabas de me expor. Também eu parti pelas estradas por causa desses malditos rumores. Contra minha vontade, praguejando contra a credulidade, a superstição, os cálculos e os pretensos «sinais», mas parti em todo o caso, não pude deixar de fazê-lo, senão o meu pai morreria. Nós somos, tu e eu, vítimas do desatino dos nossos próximos...

Leitor assíduo dos textos sagrados, o pai de Maimoun está persuadido desde há muitos anos de que o fim do mundo está iminente. Segundo ele, está escrito com todas as letras no Zohar, o livro dos cabalistas, que no ano de 5408, aqueles que repousam na poeira se erguerão. Ora esse ano do calendário judaico corresponde ao ano de 1648 da nossa era.

- Isso foi há dezassete anos, e a Ressurreição não aconteceu. Apesar de todas as preces, de todos os jejuns, de todas as privações que o meu pai nos impôs, à minha mãe, às minhas irmãs e a mim, e que na época nós aceitávamos com fervor, nada aconteceu. Desde então, perdi todas as minhas ilusões. Vou à sinagoga quando é preciso que lá vá, para me sentir próximo dos meus, rio com eles quando é preciso rir, choro quando é para chorar, para não me mostrar insensível às suas alegrias ou às suas desgraças. Mas já não espero nada de ninguém. Ao contrário do meu pai, que não ficou mais ajuizado. Ele não pode admitir que o ano profetizado pelo Zohar tenha sido apenas mais que um ano vulgar. Está persuadido de que alguma coisa aconteceu, nesse ano, de que nós não ouvimos falar, mas que em breve se nos revelará, a nós e a todo o universo.

Desde então, o pai de Maimoun não faz mais que espreitar os sinais, nomeadamente aqueles que respeitam ao ano da espera frustrada, 1648. Na verdade, passaram-se alguns acontecimentos graves, nesse ano - mas já houve algum ano sem acontecimentos graves? A guerra da Alemanha acabou; ao fim de trinta anos de massacres, foi concluída a paz. Não se devia ver nisso o princípio de uma nova era? No mesmo ano, começaram as perseguições sangrentas contra os judeus da Polónia e da Ucrânia, conduzidas por um chefe de bando cossaco, e até hoje ainda não pararam.

- Antigamente, diz o meu pai, entre uma calamidade e outra, havia sempre um período de trégua; desde esse maldito ano, as calamidades sucedem-se num rosário ininterrupto, nunca conhecêramos um tal encadeamento de desgraças. Não será isto um sinal?

Um dia, já farto, eu disse-lhe: "Pai, sempre acreditei que esse ano devia ser o da Ressurreição, que ela ia pôr fim aos nossos sofrimentos, e que devíamos esperar por ele com alegria e esperança!" Ele responde-me: "Essas dores são as do parto, e esse sangue é o que acompanha o nascimento!" Assim, desde há dezassete anos, o meu pai tem estado constantemente à espreita dos sinais. Mas nem sempre com o mesmo fervor. Por vezes, passava meses sem falar nisso uma única vez, depois dava-se um acontecimento, uma desgraça na família, ou a peste, ou a miséria, ou a visita de alguma personagem, e imediatamente a história recomeçava. Nestes últimos anos, embora tenha tido graves problemas de saúde, só falava da Ressurreição como uma esperança distante. Mas desde há alguns meses, já não sossega. Esses rumores que correm entre os cristãos sobre a aproximação do fim dos tempos viraram-no do avesso. Há discussões intermináveis no seio da nossa comunidade sobre o que vai acontecer ou não, sobre o que devemos temer ou chamar com os nossos votos. De cada vez que um rabino de Damasco, de Jerusalém, de Tiberíades, do Egipto, de Gaza ou de Esmirna passa por Alepo, as pessoas comprimem-se à sua volta para o interrogar febrilmente sobre aquilo que ele sabe ou prevê. E então, muito recentemente, desde há algumas semanas, o meu pai, cansado de ouvir opiniões contraditórias, cismou em ir a Constantinopla para solicitar a opinião de um velho hakham originário, como nós, de Toledo. Só ele, segundo o meu pai, detém a verdade. "Que ele me diga que é chegada a hora, e deixarei tudo para me consagrar à devoção; que ele me diga que a hora não chegou, e eu retomarei o quotidiano da minha vida." Como não era possível deixá-lo tomar a estrada no seu estado, ele que tem mais de setenta anos e que mal se pode ter de pé, decidi que seria eu que iria visitar o rabino a Constantinopla, munido de todas as perguntas que o meu pai quisesse fazer, e regressar com as respostas. E é assim que me encontro nesta caravana, como tu, por causa desses rumores insensatos, quando no nosso foro íntimo não podemos deixar de rir, um e outro, da credulidade dos homens.

Maimoun graceja, ao comparar assim a sua atitude à minha. Elas só na aparência se assemelham. Ele partiu pelas estradas por piedade filial, e sem nada mudar das suas convicções; enquanto eu me deixei contagiar pelo desatino que me rodeia. Mas nada lhe disse sobre isso, para quê rebaixar-me aos olhos de um homem que estimo? E porquê insistir naquilo que nos distingue, quando ele próprio não pára de mencionar as coisas que nos aproximam?

27 de Setembro

A etapa de hoje terá sido menos árdua que as anteriores. Depois de quatro dias nos caminhos ascendentes do Tauro, com passagens muitas vezes exíguas, perigosas, alcançámos o planalto da Anatólia; e depois dos caravançarais mal cuidados, infestados pela soldadesca dos janízaros, encarregados em princípio de nos proteger dos salteadores de estradas mas cuja presença, em vez de nos tranquilizar, nos obrigava a fechar-nos nos nossos aposentos, tivemos a boa fortuna de aterrar num albergue decente, frequentado apenas por comerciantes de passagem.

A nossa alegria foi no entanto um pouco ofuscada quando o proprietário nos relatou rumores provenientes de Konya, segundo os quais a cidade estaria assolada pela peste e as suas portas fechadas a todos os viajantes.

Por inquietantes, esses rumores tiveram a vantagem de me reaproximar dos meus, que vieram rodear-me, esperando a minha opinião sobre o que conviria fazer. Alguns viajantes teriam já decidido arrepiar caminho logo ao amanhecer, sem mais demora; é verdade que eles se tinham juntado a nós em Tarso, ou, quando muito, em Alexandreta; nós que vimos de Gibelet, e estamos já a meio do percurso, não podemos ceder assim ao primeiro susto.

O caravaneiro propõe-se avançar um pouco mais, disposto a modificar a nossa rota mais tarde se as circunstâncias o impuserem. A personagem desagrada-me hoje tanto como no primeiro dia, mas a sua atitude parece-me sensata. Portanto avancemos, e seja o que Deus quiser!

28 de Setembro

Disse hoje a Maimoun algumas palavras que ele achou pertinentes, o que me incita a consigná-las por escrito.

Ele acabava de me dizer que os homens hoje se dividem entre aqueles que estão convencidos de que o fim do mundo está próximo, e aqueles que continuam cépticos - ele e eu estamos entre estes últimos. Respondi-lhe que em minha opinião os homens se dividem também entre os que receiam o fim do mundo e os que o convocam com os seus votos, falando os primeiros a esse propósito de dilúvio e de cataclismo, e os outros de ressurreição e de libertação.

Ao dizer isto, eu pensava não apenas no pai do meu amigo, e nos Impacientes de Alepo, mas também em Marta.

Depois Maimoun perguntou se, na época de Noé, os homens se teriam igualmente dividido entre aqueles que aplaudiam o Dilúvio e aqueles que lhe eram hostis.

E desatámos a rir, a tal ponto que as nossas mulas se espantaram.

29 de Setembro

Recolho de vez em quando alguns versos ao acaso no livro de Abu-l-Ala, que um velho livreiro de Maarra me colocou nas mãos há três ou quatro semanas. Hoje, descobri estes:

Os homens quereriam que um imã se erguesse E tomasse a palavra ante uma multidão muda Ilusão enganadora; não há outro imã além da razão Só ela nos guia de dia e de noite.

Apressei-me a lê-los a Maimoun, e tivemos, em silêncio, sorrisos cúmplices.

Um cristão e um judeu conduzidos pelo caminho da dúvida por um poeta muçulmano cego? Mas há mais luz nos seus olhos apagados do que no céu da Anatólia.

Perto de Konya, 30 de Setembro

Os rumores de peste não foram infelizmente desmentidos. A nossa caravana teve de contornar a cidade para ir armar as suas tendas para oeste, nos jardins de Merâm. Há aqui uma multidão, porque numerosas famílias de Konya fugiram da epidemia para se refugiar neste lugar de ar sadio, no meio das fontes.

Chegámos por volta do meio-dia, e a despeito das circunstâncias, reina aqui um espírito... Eu ia dizer «de festa»... Não, de festa não, mas de passeio despreocupado e resignado. Por todo o lado, vendedores de xarope e de sumo de alperce fazem tilintar os copos que acabam de enxaguar nas fontes; por todo o lado expositores fumegantes que aliciam e tentam, e atraem grandes e pequenos. Mas eu não quero desviar os meus olhos da cidade muito próxima, cujas torres da muralha vejo, cujas cúpulas e minaretes adivinho. Ali, um outro fumo sobe, que cobre tudo, que tudo ensombra. Esse cheiro não chega até nós, graças a Deus, mas sentimo-lo todos com as narinas da alma, e ele gela-nos o sangue. A peste, huno da morte. Largo a pena para me persignar. Antes de retomar o meu relato.

Maimoun, que se juntou aos meus para a refeição, falou longamente com os meus sobrinhos, e um pouco com Marta. Na atmosfera que reinava à nossa volta, não pudemos deixar de evocar o fim dos tempos, e eu tive ocasião de verificar que Bumeh não ignorava nada das predições do Zohar acerca do ano judaico de 5408, que corresponde ao nosso ano de 1648.

- No ano 408 do sexto milénio - recitou ele de memória - aqueles que repousam na poeira erguer-se-ão. Chamam-lhes os filhos de Heth.

- Quem são os filhos de Heth? - Perguntou Habib, que se comprazia sempre em exibir, perante a erudição do irmão, a sua própria ignorância.

- Na Bíblia, esse é o nome que se dá habitualmente aos hititas. Mas o que importa aqui, não é a significação da palavra Heth, mas o seu valor numérico que, em hebraico, é justamente 408.

Valor numérico! Como esta noção me irrita de cada vez que a ouço! Em lugar de compreender o sentido das palavras, os meus contemporâneos põem-se a calcular o valor das letras; ordenam-nas como lhes convém, acrescentam, cortam, dividem e multiplicam e acabam sempre por atingir o número que os surpreenda, que os tranquilize ou os encha de pavor. E assim que o pensamento dos homens se desfia, é assim que a sua razão se debilita e se dissolve nas superstições!

Não creio que Maimoun dê crédito a essas futilidades, mas a maioria dos seus correligionários acreditam nela, e a maioria dos meus, e a maioria dos muçulmanos com os quais tive oportunidade de falar disso. Mesmo pessoas instruídas, sábios, aparentemente razoáveis, gabam-se de dominar essa ciência indigente, essa ciência dos pobres de espírito.

As minhas palavras são tanto mais virulentas nestas páginas quanto, durante o dia, durante a discussão, eu não dissera nada. Apenas um trejeito de incredulidade quando ouvi «valor numérico». Mas abstive-me de interromper a discussão. Eu sou assim. Sempre fui assim, desde a infância. Quando se desenrola uma discussão à minha volta, fico curioso de ver onde ela vai dar, quem reconhecerá o seu erro, como vai cada um responder - ou evitar responder - aos argumentos do outro. Observo, e deleito-me com as coisas que aprendo, anoto em mim mesmo as reacções de uns e de outros, sem por isso sentir a vontade irreprimível de exprimir em voz alta a minha opinião.

E este meio-dia, se algumas observações suscitavam em mim protestos mudos, outras coisas que se diziam interessavam-me ou surpreendiam-me. Como quando Bumeh me fez notar que foi precisamente em 1648 que foi publicado na Moscovia O Livro da Fé una, verdadeira e ortodoxa, onde era referido, sem qualquer ambiguidade, o ano da Besta. Não foi por causa desse livro que o peregrino Evdokime partiu pelas estradas, que ele passou por Gibelet, visita a que se seguiu todo aquele desfile de clientes assustados? Foi pois nesse ano que a Besta entrou, se assim se pode dizer, na minha vida. O pai de Maimoun dizia-lhe que alguma coisa tinha acontecido em 1648, cuja importância não fora medida. Sim, quero admitir, qualquer coisa se engrenou talvez nesse ano. Para os judeus, para os moscovitas. E também para mim e para os meus.

- Mas por que havia de anunciar-se justamente em 1648 um acontecimento que deveria produzir-se em 1666? Há aqui um mistério que me escapa!

- Eu também não compreendo - aprovou-me Maimoun.

- Para mim, não há qualquer mistério - disse Bumeh com uma tranquilidade irritante.

Todos os olhares ficaram evidentemente suspensos dos seus lábios. Ele levou tempo antes de explicar, num tom altivo.

- De 1648 a 1666, vão dezoito anos. Calou-se.

- E daí? - Perguntou Habib, mastigando ostensivamente um grande bocado de pasta de alperce.

- Dezoito, compreendes? Seis mais seis mais seis. Os três últimos degraus para o Apocalipse.

Fez-se um silêncio pesado, pesado, pesado. Tive de súbito a impressão de que o fumo pestilencial se aproximava de nós, que nos envolvia. O mais pensativo era Maimoun, como se Bumeh acabasse de resolver para ele um enigma muito antigo. Hatem atarefava-se à nossa volta, perguntando-se o que tínhamos nós todos, porque só apanhara farrapos da conversa.

Fui eu que quebrei o silêncio:

- Espera, Bumeh! Estás a contar-nos futilidades. Não preciso de te ensinar que no tempo de Cristo e dos evangelistas, não se escrevia seis seis seis como tu fazes hoje em árabe, escrevia-se em algarismos romanos. E três vezes seis não quer dizer nada.

- E podes dizer-me como se escrevia seiscentos sessenta e seis no tempo dos romanos?

- Tu sabes. Escrevia-se assim.

Peguei num bocado de madeira caído e tracei no chão DCLXVI.

Maimoun e Habib debruçaram-se por cima do número que eu acabava de escrever. Bumeh não se mexeu do lugar, e nem sequer olhou, limitando-se a perguntar-me se não tinha notado nada de especial no número que acabava de traçar. Não, não via.

- Não reparas que todos os algarismos romanos estão aí, por ordem, e cada um uma única vez?

- Nem todos, respondi eu, demasiado depressa. - Falta...

- Anda, continua, estás no bom caminho. Falta o algarismo inicial. O M, escreve-o! Temos então MDCLXVI. Mil seiscentos sessenta e seis. Os números estão agora completos. Os anos estão completos. Nenhum se lhes juntará.

Depois estendeu a mão e apagou o número até ao último traço murmurando uma fórmula qualquer aprendida.

Malditos! Malditos sejam os números e aqueles que os cultivam!

3 de Outubro

Desde que deixámos os arredores de Konya, não é de peste que os viajantes falam, mas de uma curiosa fábula, espalhada pelo próprio caravaneiro, e que, até aqui, eu não tinha achado útil relatar. Se a evoco agora, é porque ela acaba de ter um desenlace exemplar.

O homem pretendia que uma caravana se tinha perdido, há alguns anos, quando se dirigia a Constantinopla, e que, desde então, vagueia, em desgraça, pelos caminhos da Anatólia, vítima de uma maldição. De tempos a tempos cruza-se com outra caravana, e os seus viajantes desorientados pedem que lhes indiquem o caminho, ou fazem outras perguntas, as mais inesperadas; quem quer que lhes responda, nem que seja uma única palavra, atrai sobre si a mesma maldição, e terá de errar assim com eles até ao fim dos tempos.

Porque é que essa caravana foi amaldiçoada? Diz-se que os viajantes tinham afirmado aos seus próximos que se dirigiam em peregrinação a Meca, quando na realidade pretendiam chegar a Constantinopla. O Céu tê-los-ia então condenado a vaguear, sem nunca alcançarem o seu destino.

O nosso homem afirmou que já tinha encontrado por duas vezes a caravana fantasma, mas que não se tinha deixado enganar. Por mais que os viajantes perdidos se comprimissem à sua volta, lhe sorrissem, o agarrassem pelas mangas, o lisonjeassem, ele procedera como se não os visse, e assim conseguira evitar o sortilégio e prosseguir a sua viagem.

Como se poderia reconhecer a caravana fantasma? - Perguntaram os nossos companheiros mais angustiados. - Não há nenhum meio, respondeu ele, ela é em tudo parecida com as caravanas normais, os seus viajantes são semelhantes a todos os viajantes, e é precisamente por isso que tantas pessoas se confundem e se deixaram enfeitiçar.

Ao relato do caravaneiro, alguns dos nossos encolhiam os ombros, outros pareciam assustados e olhavam constantemente ao longe para verificar se não havia alguma caravana suspeita no horizonte.

Eu faço parte, naturalmente, daqueles que não deram qualquer crédito a esses contos; a prova é que há três dias que eles circulam da frente da caravana até à cauda e depois voltam da cauda até à frente, e eu não achara necessário referir nas minhas páginas essa vulgar fábula de caravaneiro.

Mas hoje, ao meio-dia, cruzámo-nos mesmo com uma caravana. Acabávamos de parar à beira de um rio para almoçar. Empregados e serviçais andavam atarefados a reunir gravetos e acender fogueiras, quando surgiu uma caravana numa colina próxima. Em alguns minutos, estava ao pé de nós. Uma frase atravessou o nosso grupo: «São eles, é a caravana fantasma.» Estávamos todos como que paralisados, tínhamos sobre a testa como que uma sombra estranha, e só falávamos em voz baixa, de olhos fixos naqueles que chegavam.

Estes aproximavam-se, demasiado depressa ao que nos parecia, no meio de uma nuvem de poeira e de bruma.

Quando chegaram ao pé de nós, puseram todos o pé em terra, e correram na nossa direcção, entusiasmados, aparentemente, por encontrarem semelhantes e um canto de fresquidão. Aproximaram-se, com largos sorrisos, saudaram-nos, com fórmulas em árabe, em turco, em persa, em arménio. Os nossos estavam incomodados, mas nem um se mexeu, nem um se levantou, nem um respondeu à saudação que lhe dirigiam. - Porque é que não falam connosco? - Acabaram eles por perguntar. - Nós ofendemo-vos em alguma coisa sem querer. - Os nossos continuavam impassíveis.

Os outros já se voltavam para partir, melindrados, quando, de súbito, o nosso caravaneiro soltou uma imensa gargalhada, a que respondeu um riso ainda mais sonoro do outro caravaneiro. «Maldito sejas tu, disse este último avançando, de braços abertos. Contaste-lhes outra vez a tua história da caravana fantasma. E eles acreditaram!»

Um pouco por todo o lado, as pessoas levantavam-se, abraçavam-se, convidavam-se umas às outras, para se fazerem perdoar.

Esta noite, ainda não se fala de outra coisa, e cada viajante afirma à sua volta que nunca acreditou. No entanto, quando os viajantes da outra caravana se tinham aproximado, toda a gente estava pálida e ninguém ousara dirigir-lhes a palavra.

4 de Outubro

Hoje contaram-me outra fábula, mas esta não me faz sorrir.

Um homem veio ter comigo à hora do almoço vociferando, gesticulando. Afirmava que o meu sobrinho se aproximara demasiado da sua filha, e ameaçava resolver o assunto com sangue. Hatem e Maimoun tentaram chamá-lo à razão, e o caravaneiro também interveio para contê-lo, mas devia estar encantado de me ver assim num embaraço.

Procurei Habib com os olhos, mas ele tinha desaparecido. Para mim, essa fuga era já uma confissão de culpa, e amaldiçoei-o por me ter metido naquela situação.

O homem, entretanto, só fazia gritar cada vez mais, falando em degolar o culpado e espalhar o seu sangue diante da caravana, para que toda a gente soubesse como se lava a honra maculada.

A nossa volta, o ajuntamento continuava a crescer. Ao contrário da querela do outro dia com o caravaneiro, desta vez eu não tinha a cabeça erguida, nem vontade de sair vitorioso. Queria apenas que o escândalo acabasse, e poder continuar esta viagem até ao fim sem pôr em perigo a vida dos meus.

Por isso rebaixei-me ao ponto de ir ao encontro desse indivíduo, de lhe tocar no braço, de lhe sorrir, de lhe prometer que obteria satisfação e que a sua honra sairia deste caso tão pura como um sultanino de ouro. O qual sultanino não é, diga-se de passagem, nenhum modelo de pureza, dado que não pára de ser alterado à medida que o Tesouro otomano se esvazia... Dito isto, eu não fizera essa comparação por acaso, queria que o homem ouvisse falar de ouro, e que compreendesse que eu estava disposto a pagar o preço da sua honra. Ele vociferou ainda um pouco, mas em tom mais baixo, e como se apenas repercutisse os ecos dos seus últimos ladridos.

Então puxei-o pelo braço para longe do ajuntamento. Uma vez afastado, renovei-lhe as minhas desculpas, e disse-lhe explicitamente que estava disposto a indemnizá-lo.

Enquanto eu iniciava assim a humilhante negociação, Hatem veio puxar-me pela manga para me suplicar que não me deixasse enganar. Ao vê-lo, o homem recomeçou as suas jeremiadas, e eu tive de ordenar ao meu empregado que me deixasse resolver a coisa à minha maneira.

E paguei. Um sultanino, acompanhado da promessa solene de castigar severamente o meu sobrinho e de impedi-lo de girar de futuro em volta da dita jovem.

Só ao anoitecer Habib se apresentou à minha frente. Hatem estava a seu lado, bem como um outro viajante que eu já tinha visto andar com eles. Os três asseguraram-me que eu tinha sido vítima de uma vigarice. Segundo eles, o homem a quem eu pagara a moeda de ouro não é um pai extremoso, e a jovem que o acompanha não é nada sua filha, mas uma prostituta, e isso é de notoriedade pública em toda a caravana.

Habib afirmou que nunca visitara essa mulher, e nisso mente - pergunto-me mesmo se Hatem não o terá acompanhado. Mas quanto ao resto, acho que eles dizem a verdade. Assentei-lhes em todo o caso um bom par de estalos a cada um.

Assim, existe nesta caravana um lupanar ambulante, que o meu próprio sobrinho frequenta - e eu nem sequer me tinha apercebido!

Ao fim de todos estes anos no negócio, continuo a ser incapaz de distinguir um proxeneta de um pai extremoso!

De que é que me serve escrutar o universo se nem sei ver aquilo que está debaixo do meu nariz?

Sofrer assim por ser feito de tão fraca argila!

O que me aconteceu ontem abalou-me mais do que eu teria imaginado.

Sinto-me enfraquecido, sinto-me esgotado, aturdido, tenho os olhos permanentemente baços e os membros doridos. É talvez o enjoo das montadas que se apodera novamente de mim... Sofro a cada passo e esta viagem pesa-me. Lamento tê-la empreendido.

Todos os meus procuram consolar-me, trazer-me à razão, mas tanto as suas palavras como os seus gestos se perdem num nevoeiro cada vez mais espesso. Também estas linhas se enevoam e os meus dedos amolecem.

Senhor!

Em Scutari, sexta-feira, 30 de Outubro de 1665

Durante vinte e quatro dias não escrevi nem uma linha. É verdade que estive a dois passos da morte. Hoje retomo a pena num albergue de Scutari, na véspera de atravessar o Bósforo para chegar finalmente a Constantinopla.

Foi pouco depois da etapa de Konya que senti os primeiros sintomas da doença. Uma vertigem que primeiro atribuí à fadiga da viagem, depois ao dissabor que me causara a má conduta do meu sobrinho bem como a minha própria credulidade. Os meus aborrecimentos continuavam no entanto suportáveis e não falei deles aos meus companheiros, nem sequer nestas páginas. Até ao dia em que me senti de repente incapaz de segurar a pena e em que tive de me afastar do grupo duas vezes seguidas para vomitar.

Os meus próximos e alguns outros viajantes tinham-se reunido, murmurando não sei que juízos inspirados pelo meu estado, quando o caravaneiro veio ter comigo, com três dos seus esbirros.

Decretou que eu estava atacado de peste, nada menos; que a tinha contraído certamente nos arredores de Konya; e que era urgente separar-me da caravana. Eu deveria a partir daí caminhar atrás, a mais de seiscentos passos do viajante mais próximo. Se me curasse, ele voltaria a aceitar-me; se eu fosse forçado a parar, ele confiava-me a Deus e não esperaria por mim.

Marta protestou, assim como os meus sobrinhos, o meu empregado, e também Maimoun, e alguns outros viajantes à nossa volta. Mas foi preciso resolver-se. Eu próprio, durante toda a discussão, que durou uma boa meia hora, não disse nem uma palavra. Sentia que se abrisse a boca, ficaria logo doente de novo. Envolvi-me então no hábito da dignidade ferida, enquanto no meu íntimo desfiava todos os insultos genoveses e desejava que o homem morresse empalado!

Esta quarentena durou quatro dias inteiros, até à nossa chegada a Afyonkarahisar, a Cidadela negra do Ópio, lugarejo de nome inquietante que é efectivamente dominado pela silhueta sombria de uma cidadela muito antiga. Assim que ficámos instalados no caravançarai dos viajantes, o caravaneiro veio visitar-me. Para dizer que estava enganado, que eu não estava, evidentemente, atacado de peste, que observara que eu estava restabelecido, e que poderia, logo na manhã seguinte, reintegrar-me no comboio. Os meus sobrinhos começaram a querelar com ele, mas eu mandei-os calar. Não suporto ver atacar alguém que faz por se corrigir. Tudo o que ele merecia ouvir, era necessário ter-lho dito antes. Respondi portanto cortesmente ao homem, aceitando o seu convite para regressar.

O que eu não lhe digo, nem aos meus próximos de resto, é que a despeito das aparências eu não estava curado, de modo nenhum. Sentia nas profundezas do meu corpo uma febre difusa que continuava a aquecer como um braseiro de inverno, e estava surpreendido que à minha volta ninguém notasse a vermelhidão do meu rosto.

Na noite seguinte, foi o inferno. Eu tremia e agitava-me e ofegava, as minhas roupas e os lençóis estavam encharcados. Na confusão das vozes e dos ecos que assediavam a minha cabeça debilitada, ouvi «a viúva» murmurar à minha cabeceira:

- Ele não parte amanhã. Se ele se metesse ao caminho no seu estado, morreria antes de chegar a Listana.

Listana era, no falar das gentes de Gibelet, um dos múltiplos nomes que designavam Istambul ou Islambul, Bizâncio, a Porta, Constantiniyé...

E na verdade, de manhã, não fiz qualquer tentativa para me levantar. Sem dúvida tinha esgotado as minhas forças durante os dias anteriores, era preciso dar ao corpo tempo para se recompor.

Mas ainda não estava convalescente, longe disso. Daquilo por que passei nos três dias que se seguiram, só guardo imagens de sombra. Acho que rocei a morte de tão perto que algumas articula-ções ainda hoje continuam rígidas, como deveriam estar, outrora, as de Lázaro ressuscitado. Perdi nesse combate com a doença algumas libras de carne, como quem atira a uma fera um quarto de carne para acalmá-la. Ainda não falo disso sem balbuciar, devo ter também alguma rigidez na alma. As palavras vêm-me com dificuldade.

Contudo, aquilo que me ficará na memória dessa pausa forçada em Afyonkarahisar, não é nem o sofrimento nem a aflição. Abandonado pela caravana, cobiçado pela morte, sem dúvida. Mas de cada vez que entreabria os olhos, via Marta sentada a meu lado sobre as pernas dobradas, que me fixava com um sorriso de inquietação mitigada. E quando voltava a fechar os olhos, a minha mão esquerda permanecia agarrada entre as suas duas mãos, uma por baixo, palma contra palma, apertada; a outra por cima, deslizando por vezes lentamente nas costas dos meus dedos numa carícia de reconforto e de infinita paciência.

Ela não recorreu a nenhum curandeiro nem nenhum boticário, que teriam acabado comigo mais seguramente do que a febre. Marta tratou-me simplesmente com a sua presença, com alguns goles de água fresca, e com as suas mãos que não me deixavam partir. E eu não parti. Durante três dias, tal como disse, a morte rondara, eu parecia ser para ela uma presa já ganha. Depois, no quarto dia, como que cansada, ou apiedada, afastou-se.

Não quero deixar a impressão de que os meus sobrinhos ou o meu empregado me tinham abandonado. Hatem nunca estava longe, e os dois jovens, entre dois passeios à cidade, voltavam para se informar do meu estado, preocupados, contritos - uma devoção mais constante não seria própria da sua idade. Deus os guarde, não lhes censuro nada, senão o terem-me arrastado para esta expedição. Mas é principalmente para Marta que vai a minha gratidão. Não, gratidão não é a palavra adequada. Seria mesmo, da minha parte, o cúmulo da ingratidão se me limitasse a dizer gratidão. Aquilo que foi pago em lágrimas não se reembolsa em água salgada.

Ainda não consigo medir até que ponto esta etapa me abalou. Para qualquer ser, o fim do mundo é antes de mais nada o seu próprio fim, e o meu parecera-me de súbito iminente. Sem esperar o ano fatídico, eu estava a deslizar para fora do mundo, quando duas mãos me seguraram. Duas mãos, um rosto, um coração que eu sabia capaz de saltos de amor e de obstinação rebelde, mas talvez não de uma ternura tão poderosa, tão envolvente. Desde aquela etapa em que por um quiproquó tínhamos ficado na mesma cama, marido e mulher na aparência, eu dizia a mim mesmo que uma noite, pela inelutável lógica dos sentidos, eu chegaria a mudar o desejo em paixão para conduzir as coisas ao seu termo, com risco de o lamentar ao romper do dia. Agora digo a mim mesmo que Marta é mais minha mulher na realidade do que nas aparências, e que no dia em que me unir a ela, não será nem por jogo, nem por embriaguez, nem por impulso dos sentidos, mas será o acto mais caloroso e mais legítimo. Que ela esteja ou não, nesse dia, liberta do juramento que a ligou outrora ao cretino do seu esposo.

Digo «esse dia» porque ele ainda não chegou. Estou persuadido de que ela o espera tanto como eu, mas a ocasião ainda não se apresentou. Se estivéssemos na estrada de Tarso, e a próxima noite tivesse de passar-se na casa do primo de Maimoun, ter-nos-íamos unido pelos corpos como estamos já unidos pelas nossas almas. Mas de que serve olhar para trás, estou aqui, às portas de Constantinopla, vivo, e Marta não está longe. O amor alimenta-se tanto de paciência como de desejo - não é essa a lição que aprendi dela em Afyonkarahisar.!»

Só ao fim de oito dias retomámos a viagem, juntando-nos a uma caravana proveniente de Damasco, onde se encontravam, acaso curioso, duas pessoas minhas conhecidas, um perfumista e um sacerdote. Parámos um dia em Kutahya, e outro em Izmit, para chegar a Scutari hoje, ao princípio da tarde. Alguns dos nossos companheiros decidiram correr para o barco sem esperar mais; eu preferi poupar os meus esforços, dar-me tempo para uma sesta reparadora, e percorrer tranquilamente amanhã, sábado, a última etapa da viagem. Passámos, desde Alepo, cinquenta e quatro dias na estrada, em vez dos quarenta previstos, e sessenta e nove desde Gibelet. Contanto que Marmontel não tenha partido já para França, levando O Centésimo Nome!

Em Constantinopla, 31 de Outubro de 1665

Hoje Marta deixou de ser «minha mulher». As aparências conformam-se agora com a realidade, esperando que a realidade se conforme um dia com as aparências.

Não que eu tenha decidido, depois de amarga reflexão, pôr fim a uma confusão que durava havia dois meses, e que se me tornara a cada etapa um pouco mais familiar, mas as coisas passaram-se hoje de tal maneira que teria sido necessário enganar descaradamente toda a gente para que a ficção persistisse.

Uma vez atravessado o estreito, numa tal confusão de pessoas e de animais que julguei que a embarcação ia naufragar, pus-me à procura do albergue de um genovês chamado Barinelli, onde o meu pai e eu nos havíamos alojado quando da nossa visita a Constantinopla há vinte e quatro anos. O homem morreu, e a casa já não é albergue, mas pertence à mesma família, e um dos netos do antigo dono ainda ali vive, só com uma criada que eu avistei de longe.

Quando me apresentei ao jovem Barineili e lhe disse o meu nome, ele fez um comovente elogio dos meus gloriosos antepassados Embriaci, e insistiu para que ficássemos em casa dele. Depois perguntou-me quem eram as nobres pessoas que me acompanhavam. Respondi sem muita hesitação que eram os meus dois sobrinhos; o meu empregado, que lá fora se ocupava dos animais; assim como uma respeitável dama de Gibelet, uma viúva, que viera a Constantinopla por certas formalidades administrativas, e que fizera a viagem sob a nossa protecção.

Não nego que senti um aperto no coração. Mas eu não podia responder de outra maneira. A estrada enfeita-se por vezes de fábulas, tal como o sono se ornamenta de sonhos, mas é preciso saber abrir os olhos à chegada.

Para mim o despertar chama-se Constantinopla. Amanhã mesmo, domingo, irei apresentar-me em trajes de cerimónia na embaixada de França, ou mais exactamente na igreja da embaixada, à procura do cavaleiro de Marmontel. Espero que ele não me queira muito mal por tê-lo feito pagar tanto pelo livro de Mazandarani. Se for necessário, faço-lhe um considerável reembolso em troca da permissão para copiá-lo. Precisarei sem dúvida, para o convencer, de desdobrar toda a minha habilidade de genovês, de negociante de curiosidades e de levantino.

Irei sozinho ao seu encontro, não confio o bastante nos meus sobrinhos. Uma palavra impetuosa, ou pelo contrário demasiado servil, um gesto de impaciência, e essa personagem tão orgulhosa irritar-se-ia imediatamente.

3 de Novembro

Senhor, por onde começar o meu relato deste dia?

Pelo princípio? Acordei sobressaltado, para ir ao bairro de Pêra assistir à missa da embaixada... >

Ou pelo fim? Fizemos toda esta viagem de gibelet a Constantinopla para nada...

Na igreja havia uma multidão sombria. Damas de negro e murmúrios acabrunhados. Foi em vão que procurei com os olhos, entre a assistência, o cavaleiro de Marmontel ou algum outro rosto conhecido. Chegando a correr no começo do ofício, tivera apenas tempo para me descobrir, persignar, e tomar lugar na ponta de uma fila, atrás.

Apercebendo-me então da extrema tristeza que reinava, tentei dois ou três olhares interrogativos em direcção ao meu vizinho mais próximo, mas ele teimou piedosamente em não dar pela minha presença. Não era apenas por ser dia de Todos os Santos, mas houvera, com toda a evidência, um luto recente, a morte de uma personagem eminente, e eu fiquei reduzido às suposições. Sabia que o antigo embaixador, Monsieur de la Haye, estava muito doente havia anos; preso durante cinco meses no castelo das Sete Torres por ordem do sultão, saíra de lá atacado pela doença da pedra, e tão fraco que por várias vezes correra o rumor da sua morte. Foi ele, disse para mim mesmo; como o novo embaixador é nem mais nem menos que o seu filho, toda aquela consternação não era de modo nenhum surpreendente.

Quando o oficiante, um capuchinho, começou o seu elogio fúnebre gabando a personagem de alta linhagem, o servidor devotado do grande rei, o homem de confiança experimentado em missões delicadas, e evocando, em palavras veladas, os perigos que correm aqueles que cumprem os seus nobres deveres num país infiel, eu já não tinha a menor dúvida. As relações entre a França e a Porta Sublime nunca foram tão acrimoniosas, a tal ponto que o novo embaixador, nomeado há já quatro anos, ainda não ousou assumir as suas funções, por receio de sofrer os mesmos vexames que seu pai.

Cada palavra do sermão me reforçava ainda mais a minha ideia. Até ao momento em que, no meandro de uma longa frase, foi finalmente pronunciado o nome do falecido.

Tive um sobressalto tão grande que todos os rostos se voltaram para mim, e um murmúrio atravessou a assembleia dos fiéis, e o pregador se interrompeu alguns segundos, aclarou a garganta, e estendeu o pescoço, procurando ver se a pessoa tão chorosa não era algum parente chegado do cavaleiro defunto.

Marmontel!

Ter justamente vindo a esta igreja para lhe falar depois da missa, e ser informado da sua morte!

Ter passado dois longos meses no caminho, através da Síria, da Cilicia, do Tauro e do planalto da Anatólia, quase ter perdido a vida, na única esperança de voltar a encontrá-lo e de lhe pedir emprestado, por alguns dias, O Centésimo Nome. Para saber que eles pereceram um e outro - sim, o homem e o livro, desaparecidos, desaparecidos no mar!

Terminado o ofício, fui ter com o capuchinho, que me disse chamar-se Thomas de Paris, e que se encontrava na companhia de um negociante francês muito conceituado, o senhor Roboly. Expliquei-lhes as razões da minha confusão, e contei-lhes que por várias vezes o cavaleiro tinha visitado a minha modesta loja para efectuar algumas aquisições por conta de Sua Majestade. Eles sentiram por mim, pareceu-me, uma lisonjeira estima, e interrogaram-me com alguma ansiedade acerca da visita do cavaleiro a Gibelet, no mês de Agosto, sobre o que me dissera acerca da sua última travessia, e sobre as inquietações premonitórias que ele pudesse alimentar.

O padre Thomas mostrava-se de uma infinita prudência, ao contrário do senhor Roboly, o qual não tardou a confiar-me que em sua opinião o naufrágio do cavaleiro não era devido às intempéries, como pretendem as autoridades, mas a um ataque dos piratas, visto que o mar estava calmo ao largo de Esmirna quando o drama aconteceu. Ele tinha mesmo começado a dizer-me que não acreditava que os ditos piratas tivessem actuado por sua própria iniciativa, quando o eclesiástico o fez calar com um franzir de sobrancelhas. «Não sabemos nada acerca disso! - Decretou ele. - Que seja feita a vontade de Deus, e que cada qual receba do Céu a retribuição que mereceu!»

É verdade que já não servia de nada especular sobre as verdadeiras causas do drama, e ainda menos sobre as acções das autoridades sultânicas.

Para mim, em todo o caso, tudo isso não tinha já a mínima importância. O homem que eu viera procurar, assim como o livro que esperava retomar-lhe ou pedir-lhe emprestado, repousavam agora no reino de Neptuno, nas entranhas do mar Egeu, ou talvez já nas entranhas dos seus peixes.

Devo confessar que depois de me ter apiedado da sua sorte, e de me haver lamentado de tantos trabalhos para nada, comecei a interrogar-me sobre o sentido que podia ter esse acontecimento, e sobre os ensinamentos que devia tirar dele. Depois da morte do velho Idriss, do desaparecimento de Marmontel e do Centésimo Nome, não deveria eu renunciar a esse livro e regressar prudentemente a Gibelet?

Não é essa a opinião do nosso encarregado dos sinais. Segundo o meu sobrinho Bumeh, o Céu quis por certo infligir-nos uma lição - afogar o emissário do rei de França para dar uma lição a um negociante genovês, bela lógica! Mas adiante - o Céu quis pois castigar-nos, castigar-me principalmente a mim, por ter deixado escapar aquela obra quando a tinha na minha posse. Mas não se trata de me fazer renunciar, muito pelo contrário. Deveríamos redobrar os nossos esforços, estar dispostos a passar por outros sofrimentos, outras decepções, para merecer de novo a recompensa suprema, o livro salvador.

Que fazer então, segundo ele? Voltar a procurar. Não há, em Constantinopla, os maiores e os mais antigos livreiros do mundo inteiro? Deveríamos interrogá-los um por um, remexer nas suas prateleiras, nos armazéns, e acabaremos por encontrar.

Neste ponto - mas só neste ponto! - não deixo de lhe dar razão. Se há um lugar onde se pudesse encontrar alguma cópia, autêntica ou falsa, do Centésimo Nome, só pode ser Constantinopla.

Esta verdade quase não pesou, no entanto, na decisão que tomei de não partir imediatamente de regresso a Gibelet. Uma vez passado o primeiro choque da notícia inesperada, convenci-me de que não serviria de nada ceder ao abatimento nem principalmente enfrentar de novo - e em plena estação fria! - os incómodos da viagem quando ainda não estou inteiramente restabelecido. Esperemos um pouco, disse para mim mesmo, rebusquemos as lojas dos alfarrabistas e dos confrades negociantes de curiosidades, deixemos também a Marta o tempo de efectuar as suas diligências, depois tomaremos medidas.

Talvez que prolongando algumas semanas esta viagem, eu volte a dar-lhe um sentido. Eis o que digo a mim mesmo antes de virar esta página, e não ignoro que isto é uma astúcia para calar a minha angústia e enganar a minha confusão.

3 de Novembro

Não paro de pensar naquele infeliz Marmontel, e esta noite, pela segunda vez consecutiva, vi-o no meu sonho! Como lamento que, na sua segunda visita, não nos tenhamos separado em melhores termos. Quando lhe pedi mil e quinhentos maidins como preço do livro de Mazandarani, ele deve ter amaldiçoado, para si mesmo, a ganância do genovês. Como poderia ele adivinhar que eu tinha simplesmente escrúpulos em separar-me de uma obra que um pobre homem me havia oferecido? As minhas intenções eram das mais nobres, mas ele não podia adivinhá-las. E nunca mais poderei reabilitar-me a seus olhos.

Possa o tempo atenuar o meu remorso!

À tarde, recebi no meu quarto a visita do meu amável hospedeiro, o senhor Barinelli. Ele tinha verificado primeiro, entreabrindo delicadamente a porta, que eu já não estava a fazer a sesta; a um sinal meu, entrou timidamente dando-me a entender que vinha saber notícias minhas em consequência daquilo que lhe haviam dito. Depois sentou-se, de costas direitas, os olhos baixos, como para condolências. Entrou depois a criada, que ficou de pé até que eu lhe pedi instantemente que se sentasse. Ele dizia-me palavras de sã consolação, à maneira genovesa, enquanto ela nada dizia, nada compreendia, limitando-se a escutar o seu senhor, toda voltada para ele, como se a sua voz fosse a mais bela das músicas. Quanto a mim, simulando apreciar aquilo que ele me dizia sobre os decretos da providência, achava mais a minha consolação em observá-los a um e a outro.

Aqueles dois enterneciam-me. Ainda não falei deles nestas páginas, tendo demasiado a dizer sobre Marmontel, mas desde que estamos aqui, falo muitas vezes a seu respeito com os meus, principalmente com Marta, e gracejamos amavelmente acerca deles.

A sua história é estranha. Vou tentar contá-la tal como a ouvi, talvez ela me liberte por alguns instantes das preocupações que me assaltam.

Na Primavera passada, Barinelli, ao dirigir-se ao mercado dos ourives para algum negócio, passou pelo mercado dos escravos, a que aqui se chama Esir-pazari. Um mercador abordou-o, segurando pela mão uma mulher jovem, cujas qualidades se pôs a elogiar. O genovês disse-lhe que não tencionava comprar uma escrava, mas o outro insistiu, dizendo:

- Não a compres, se não queres, mas ao menos fica com ela!

Para acabar com aquilo mais depressa, Barinelli lançou um olhar à rapariga, decidido a continuar imediatamente o seu caminho. Mas quando os seus olhos se encontraram, ele teve, disse, «a sensação de ter reencontrado uma irmã cativa». Quis perguntar-lhe de onde vinha, mas ela não compreendeu nem o seu turco, nem o seu italiano. O mercador explicou-lhe imediatamente que ela falava uma língua que ali ninguém compreendia. Acrescentou que tinha também um outro pequeno defeito, uma ligeira manqueira, devida a uma ferida na coxa. Levantou-lhe o vestido para mostrar a cicatriz, mas Barinelli baixou-lho imediatamente com mão firme dizendo que a levava tal como era, sem precisar de ver mais.

Voltou pois para casa com aquela escrava, que só lhe conseguiu dizer que se chamava Liva. Estranhamente, o primeiro nome de Barinelli é Livio.

Desde então, vivem juntos a mais comovente história de amor. Estão constantemente de mãos dadas, devoram-se com os olhos. Livio olha-a como se ela fosse, não sua escrava, mas a sua princesa, a sua mulher adorada. Quantas vezes o vi levar a mão dela aos lábios, para aí depor um beijo, aproximar a cadeira para que ela se sentasse, ou passar-lhe ternamente a mão pelos cabelos e pela testa, esquecendo que os nossos olhos os olhavam. Todos os esposos do mundo, e todos os apaixonados, teriam inveja daqueles dois.

Liva tem os olhos rasgados e as maçãs do rosto salientes, mas com os cabelos claros, quase louros. Podia muito bem vir de um povo das estepes. Acho que ela é descendente dos mongóis, mas de um mongol que tenha raptado alguma sabina da Moscóvia; ela própria nunca soube explicar de onde era nem como se encontrara cativa. O seu apaixonado assegura-me que ela compreende agora tudo o que ele lhe diz; ao ver a maneira como lho diz, não me surpreende que ela compreenda.

Acabará por aprender o italiano, a menos que seja Barinelli a aprender a língua das estepes.

Já disse que ela estava grávida? O seu Livio proíbe-a agora de subir ou descer as escadas sem ser a seu lado, para lhe segurar o braço.

Ao reler-me, descubro que chamei a Liva «sua criada». Prometi a mim mesmo nunca apagar aquilo que escrevi, mas devo rectificar. Não queria chamar-lhe «escrava», e hesitava em chamar-lhe concubina ou amante. Depois do que acabo de contar, parece-me evidente que ela deveria ser chamada «sua mulher», muito simplesmente. Barinelli considera-a como sua esposa, trata-a muito melhor do que as esposas são tratadas, e amanhã ela será a mãe dos seus filhos.

4 de Novembro

Os meus espalharam-se desde manhã pela cidade, cada qual à procura das sombras que o assediam.

Bumeh foi bisbilhotar nas lojas dos alfarrabistas, onde lhe falaram vagamente de um grande coleccionador de livros que possuiria, diz-se, um exemplar do Centésimo Nome; não conseguiu saber mais nada.

Habib partiu com o irmão, atravessaram o Corno de Ouro no mesmo barco, mas voltaram cada um à sua hora, e duvido que tenham caminhado muito tempo lado a lado.

Marta dirigiu-se ao palácio do sultão para tentar saber se um homem com o nome do seu marido não foi enforcado há dois anos como pirata; Hatem, que fala bem turco e se desembaraça melhor do que nós todos nos arcanos, acompanhou-a; se não conseguiram respigar nada sobre o assunto até agora, obtiveram algumas informações úteis sobre a maneira de proceder em semelhantes circunstâncias, e voltarão à carga já amanhã.

Quanto a mim, voltei a ir visitar o padre Thomas na sua igreja de Pêra. Quando do nosso primeiro encontro, no domingo, não tive oportunidade - nem, de resto, o desejo - de lhe confessar claramente por que motivo o desaparecimento de Marmontel me afectava tanto. Evocara em termos vagos objectos preciosos que o cavaleiro me teria comprado, e dos quais deveríamos voltar a falar em Constantinopla. Desta vez expliquei-lhe, como a um confessor, as verdadeiras razões da minha confusão. Ele agarrou-me pelo pulso, durante alguns longos segundos, para que eu não dissesse nem mais uma palavra, enquanto meditava ou rezava para si mesmo. Depois disse-me:

- Para um cristão, a única maneira de se dirigir ao Criador, é pela oração. Mostramo-nos modestos e submissos, expressamos-Lhe, se queremos, queixas e esperas, e terminamos com ámen, que a sua vontade seja feita. Inversamente, o orgulhoso procura nos livros dos magos as fórmulas que lhe permitirão, pensa ele, inflectir a vontade do Senhor, ou desviá-la, imaginam a Providência como uma nau de que eles, pobres mortais, poderiam desviar o leme segundo a sua conveniência. Deus não é uma nau. Ele é o Senhor das naus e dos mares e do céu calmo e das tempestades, Ele não se deixa governar pelas fórmulas dos mágicos. Ele não se deixa aprisionar nem nas palavras nem nos números, Ele é o inapreensível, o imprevisível. Ai de quem pretenda domesticá-Lo! Dizeis-me que o livro que Marmontel vos comprou possui virtudes extraordinárias...

- Não, padre - corrigi eu - não fiz mais do que relatar-vos as tolices que se contam; se eu próprio acreditasse nas virtudes desse livro, nunca me teria separado dele.

- Pois bem, meu filho, haveis feito bem em separar-vos dele, pois que vós, que haveis viajado entregue à Providência, estais aqui em Constantinopla, enquanto o cavaleiro, que embarcara entre as suas bagagens esse livro pretensamente salvador, nunca chegou! Deus tenha misericórdia dele!

Se eu procurava junto do padre Thomas pormenores do naufrágio, não fiquei a saber nada de novo; mas se procurava consolação, ele proporcionou-ma, e ao deixar a igreja tinha o passo mais lesto, a minha melancolia destes últimos dias tinha-se dissipado.

Principalmente, a sua última reflexão a propósito da viagem tinha-me proporcionado - para quê mentir? - uma sensação de reconforto. Por isso, à noite, assim que Bumeh regressou, e depois de o ter deixado especular sobre as possibilidades que tínhamos de obter uma nova cópia do Centésimo Nome, lancei, com um suspiro, e atribuindo-me desavergonhadamente a paternidade dessa judiciosa observação.

- Não sei se regressaremos com esse livro, mas é uma felicidade que não tenhamos vindo com ele.

- E por que razão?

- Porque o cavaleiro, que viajava precisamente na companhia desse livro...

Marta sorriu, os olhos de Hatem cintilaram, e Habib riu-se sem cerimónia, pousando a mão no ombro do irmão, que se afastou desdenhosamente, e, vexado, respondeu sem olhar para mim:

- O nosso tio imagina que O Centésimo Nome é uma relíquia sagrada fazedora de milagres. Nunca consegui explicar-lhe que não é o objecto em si que pode salvar o seu possuidor, mas a palavra que está oculta no interior. O livro que Idriss possuía era apenas a cópia de uma cópia. E nós mesmos, que viemos fazer a esta cidade? Pedir o livro ao cavaleiro, se ele quisesse, para copiá-lo! Não é pois o objecto que procuramos, mas a palavra oculta.

- Qual palavra? - Perguntou Marta, inocente.

- O nome de Deus.

- Queres dizer: Alá?

Bumeh assumiu, para lhe responder, o seu tom mais douto, mais pedante.

- Alá é apenas a contracção de "al-ilah", que quer dizer simplesmente "o deus". Não é pois o seu nome, mas apenas uma designação. Como se dissesses "o sultão". Mas o sultão tem também um nome, chama-se Muhammad, ou Murad ou Ibrahim, ou Osman. Como o papa, a quem chamam Santo Padre, mas que tem também o seu nome próprio.

- Porque os papas e os sultões morrem - disse eu - e são substituídos. Se eles não morressem, se continuassem a ser sempre os mesmos, já não seria necessário designá-los por um nome e um número, bastaria dizer "o Papa", "o Sultão"...

- Não deixas de ter razão. Visto que Deus não morre, e nunca é substituído por outro, não precisamos de o chamar de outro modo. O que não quer dizer que ele não tenha outro nome, um nome íntimo. Ele não o confia ao comum dos mortais, mas apenas àqueles que merecem conhecê-lo. Esses são os verdadeiros Eleitos, e basta-lhes pronunciar o nome divino para escapar a todos os perigos e afastar todas as calamidades. Vão responder-me que se Deus só revela o seu nome àquele que Ele escolheu, isso quer dizer que não basta possuir o livro de Mazandarani para ter esse privilégio. Sem dúvida. O infeliz Idriss esteve toda a vida de posse desse livro, é possível que não tenha aprendido nada. Para merecer conhecer o nome supremo, é preciso dar prova de uma piedade excepcional, ou de um saber sem par, ou revelar qualquer outra qualidade que não é partilhada pelo resto dos mortais. Mas também acontece Deus tomar amizade por alguém que, aparentemente, em nada se distingue dos outros. Envia-lhe sinais, confia-lhe missões, revela-lhe segredos, e transforma a sua vida obscura numa epopeia memorável. Não devemos perguntar-nos por que razão tal pessoa foi escolhida e não uma outra. Aquele que abrange num mesmo olhar o passado e o futuro não se preocupa com as nossas considerações de hoje.

O meu sobrinho julgar-se-á verdadeiramente designado pelo Céu? Foi essa a sensação que tive enquanto ele falava assim. Há nesse rosto ainda infantil, sob o velo claro, como que um tremor que me inquieta. Chegado o dia, saberei eu reconduzir este rapaz a casa de sua mãe? Ou será ele que me arrastará ainda pelas estradas, como nos arrastou a todos até aqui ?

Não, nem todos! O que acabo de escrever não é verdade! Marta veio pelas suas próprias razões; Habib por espírito cavaleiresco ou por galantaria; e Hatem não fez mais que seguir o seu amo a Constantinopla como o teria seguido a qualquer outro lado. Só eu cedi às injunções de Bumeh, e é a mim que cabe refreá-lo. Contudo, não o faço. Escuto-o com complacência quando sei que a sua razão é desrazão e que a sua fé é impiedade.

Talvez eu devesse comportar-me de outro modo com ele. Contradizê-lo, interrompê-lo, troçar dele, numa palavra tratá-lo como um tio trata o seu jovem sobrinho, em vez de manifestar tanta estima pela sua pessoa, pela sua erudição. A verdade é que sinto em relação a ele uma certa apreensão, e mesmo um certo terror, que devo superar.

Nem que ele fosse um enviado do Céu ou um mensageiro das Trevas, é ainda assim meu sobrinho, e hei-de obrigá-lo a comportar-se como tal!

5 de Novembro

Fui ao palácio do sultão com Marta, a seu pedido. Saí de lá imediatamente a pedido do meu empregado, que achou que a minha presença tornava a sua tarefa mais difícil. Vestira as minhas mais belas roupas para me fazer respeitar, não fiz mais do que atiçar à minha volta a avidez e a cobiça.

Tínhamos entrado no primeiro pátio do palácio, com centenas de outros peticionários, todos tão silenciosos como se estivessem num lugar de oração. Mas é o terror que inspira a proximidade daquele que tem sobre toda a gente direito de vida e de morte. Eu nunca tinha entrado num lugar semelhante, e tinha pressa de me afastar daquela multidão que mexericava em voz baixa, que se movia rasando a areia, e que suava tristeza e medo.

Hatem queria encontrar-se na Armaria com um escrivão que lhe prometera certas informações, em troca de uma pequena soma. Chegados à porta do edifício, que fora outrora a igreja de Santa Irene, o meu empregado pediu-me que esperasse cá fora, com receio de que o funcionário, ao ver-me, aumentasse as suas exigências. Mas era tarde de mais. Por azar, o homem saía precisamente nesse instante para qualquer negócio, e não deixou de me olhar de alto a baixo. Quando regressou ao seu posto, alguns minutos depois, as suas pretensões tinham sido multiplicadas por quinze. Não se pede a um genovês próspero o mesmo que se pede a um aldeão sírio que acompanha uma pobre viúva. As dez aspras passaram a cento e cinquenta, e as informações foram, além disso, incompletas, porque o homem, em vez de dizer tudo o que sabia, reteve o essencial, na esperança de obter uma nova retribuição. Assim, informou-nos de que, segundo o registo que havia consultado, o nome de Sayyaf, marido de Marta, não figurava entre os dos condenados, mas que havia um segundo registo ao qual ele ainda não pudera ter acesso. Foi preciso pagar, e agradecer, continuando na incerteza.

Hatem queria ainda ir ter com outra pessoa, «sob a cúpula», para lá da porta da Salvação. Pediu-me que não o acompanhasse, e eu eclipsei-me, mais divertido que vexado, para esperar por eles cá fora, em casa de um vendedor de café que tínhamos visto à chegada. Estas diligências exasperam-me, e nunca lá teria ido se Marta não tivesse insistido. A partir de agora, dispenso-me dessa maçada, e desejo-lhes que sejam bem sucedidos o mais depressa possível, e ao menor custo.

Voltaram a sair ao fim de uma hora. A personagem com que Hatem ia encontrar-se pediu-lhe que voltasse na quinta-feira próxima. E também escrivão, mas da Torre da Justiça, onde recebe inúmeras súplicas, que transmite às altas esferas. Como preço do encontro fixado, cobrou uma moeda de prata. Se eu me tivesse mostrado, ele teria exigido uma moeda de ouro.

6 de Novembro, sexta-feira

Aconteceu hoje o que tinha de acontecer. Não à noite, na cama da confusão, por meio de um abraço subreptício, mas em plena manhã, quando lá fora as ruelas fervilhavam. Estávamos ali, ela e eu, na casa do senhor Barinelli, no andar superior, debruçados atrás das gelosias, a contemplar o vaivém das pessoas de Gaiata como duas mulheres ociosas. A sexta-feira é aqui dia de prece e, para alguns, dia de passeio, de festim, ou de repouso. Os nossos companheiros tinham saído, e o nosso anfitrião saiu por sua vez. Ouvimos a porta bater, depois vimo-lo avançar, com precaução, na rua por baixo de nós, contornando a cada passo montes de entulho, ele e a sua bela mulher, grávida e claudicante, agarrada ao seu braço, e que de súbito tropeçou e esteve a ponto de cair porque olhava o seu homem mais do que olhava para onde punha os pés. Ele agarrou-a mesmo a tempo, admoestou-a brandamente passando-lhe a mão protectora pela testa, e traçou com o dedo uma linha imaginária que ia dos olhos aos pés. Ela fez sinal com a cabeça de que tinha compreendido bem, e a sua marcha recomeçou, mais lenta.

Ao observá-los, tivemos, Marta e eu, pelos aborrecimentos deles, um riso de inveja. As nossas mãos tocaram-se, depois fecharam-se uma sobre a outra como as mãos deles. Os nossos olhares encontraram-se, e como que por um jogo em que nenhum de nós queria ser o primeiro a desviar, ficámos assim, por um longo momento, cada um no espelho do outro. A cena poderia ter sido ridícula ou infantil, se, passados momentos, uma lágrima não tivesse corrido pela face esquerda de Marta. Uma lágrima tanto mais surpreendente quanto no seu rosto o sorriso não se havia ainda apagado. Levantando-me então, contornei a mesa baixa onde tínhamos as nossas chávenas de café ainda fumegantes, para ficar atrás dela, pousar os braços nos seus ombros e no seu peito, apertando suavemente.

Ela inclinou então a cabeça para trás, entreabriu os lábios e fechou os olhos. Teve ao mesmo tempo um suspiro de abandono.

Beijei-a na testa, depois suavemente nas pálpebras, depois no canto dos lábios de um lado, do outro, aproximando-me timidamente da sua boca. A sua boca que, entretanto, não tomei completamente, mas acariciei primeiro com os meus lábios trémulos, que não paravam de pronunciar «Marta», bem como todas as palavras italianas e árabes que dizem «meu coração», «meu amor», «minha amiga», minha filha», e depois «quero-te bem».

E achámo-nos um no côncavo do outro. A casa estava ainda silenciosa e o mundo lá fora cada vez mais distante.

Tínhamos dormido três vezes lado a lado, mas eu não havia descoberto o seu corpo, tal como ela não tinha sentido o meu. Na aldeia do alfaiate Abbas segurei-lhe na mão, uma noite inteira, por bravata, e em Tarso ela espalhara a sua cabeleira negra sobre o meu braço. Dois longos meses de timidez e de esboços, de um lado e do outro, com o medo e a esperança de atingir este instante. Já disse como a filha do barbeiro era bela? Continua a sê-lo igualmente, e não perdeu em frescura aquilo que ganhou em ternura. Em ternura e em raiva, deveria eu dizer. Nenhum amplexo se parece com aquele que se lhe seguirá. O seu, outrora, devia ser ao mesmo tempo guloso e fugidio, impudente, indolente. Não o conheci, mas ao olhar bem a mulher e os seus braços adivinha-se o amplexo. Hoje, ela é, sim, tão raivosa como terna, os seus braços enlaçam como quem nada para a salvação, respira como se tivesse até agora a cabeça debaixo de água, e toda a indolência é apenas fingida.

- Em que pensas?- Perguntei-lhe quando recuperámos um pouco o fôlego e a serenidade.

- No nosso hospedeiro e na sua criada, tudo deveria separá-los, e no entanto eles dão-me a impressão de serem os mais felizes dos humanos.

- Também poderíamos ser os mais felizes dos humanos.

Ela disse «Talvez!», com um suspiro, e olhando para o outro lado.

- Porquê apenas "talvez"?

Ela inclinou-se por cima de mim, como para sondar os meus olhos e os meus pensamentos de mais perto. Depois sorriu, e depôs um beijo entre as minhas sobrancelhas.

- Não digas mais nada. Anda cá!

Deitou-se novamente de costas, e puxou-me vigorosamente para si. A mim que sou grande como um búfalo, fez-me ela sentir que era leve sobre o seu seio como um recém-nascido.

- Aproxima-te!

O seu corpo tornou-se para mim uma pátria familiar, colinas e gargantas e atalhos de sombra e de pastagens, terra tão vasta e generosa, e de súbito tão exígua, aperto-a, ela aperta-me, as suas unhas enterram-se nas minhas costas, enterram-se para me marcar a pele com números arredondados.

Sem fôlego, murmurei ainda na minha língua «Quero-te bem!», ela respondeu-me na sua; «Meu amor!», depois repetiu, quase a chorar: «Amor!» E eu chamei-lhe então: «Minha mulher!»

Mas ela é ainda a mulher de outro, maldito seja ele!

8 de Novembro de 1665

Tinha jurado a mim mesmo nunca mais voltar ao palácio, e deixar Hatem intrigar à sua maneira. Mas hoje decidi acompanhá-los, a ele e a Marta, até à Porta Alta, para esperar por eles toda a manhã na mesma cafetaria. Se a minha presença não tem qualquer incidência sobre as diligências feitas, ela adquiriu, desde agora, uma nova significação. Obter o papel que a tornaria uma mulher livre não pode ser já para mim uma preocupação acessória ajuntar às verdadeiras preocupações da viagem, a saber a busca de Marmontel e do Centésimo Nome. O cavaleiro já não existe, o livro de Mazandarani aparece-me hoje como uma miragem atrás da qual nunca deveria ter corrido. Enquanto Marta está aqui, não já uma intrusa, mas a mais minha de todos os meus, como poderia eu abandoná-la à sua sorte nos meandros otomanos? Não posso pensar em regressar tranquilamente ao país sem ela. E ela própria nunca poderá regressar a Gibelet e enfrentar a família de meliantes do marido sem um papel do sultão que volte a fazer dela uma mulher livre.

Logo no dia seguinte ao seu regresso, seria degolada. A sua sorte está agora ligada à minha. E como eu sou um homem de honra, a minha sorte está igualmente ligada à sua.

Eis-me a falar disso como de uma obrigação. Não é apenas uma obrigação, mas há também uma obrigação que seria ilusório negar. Não estou unido a Marta por acidente ou por um impulso súbito. Amadureci o meu desejo por muito tempo, deixei actuar a sabedoria do tempo, depois um dia, nesta bendita sexta-feira, levantei-me do lugar onde estava sentado, tomei-a nos braços indicando-lhe que a desejava com todo o meu ser, e ela entregou-se. Que indivíduo seria eu se, depois disso, a abandonasse? Para quê usar um nome tão venerável se deixo um filho de estalajadeiro como Barinelli mostrar-se mais nobre do que eu?

Uma vez que estou tão seguro da atitude que devo adoptar, porquê então discutir, porquê argumentar assim comigo mesmo, como se procurasse persuadir-me? É que a escolha que estou a fazer leva-me para muito mais longe do que eu julgava ir. Se Marta não obtém aquilo que veio buscar, se recusam consignar por escrito que o marido morreu, ela não poderá regressar ao país, e portanto eu também não. Que faria eu então? Resignar-me-ia, para não abandonar esta mulher, a abandonar tudo o que possuo, tudo o que os meus antepassados construíram, para errar por esse mundo?

Tudo isto me dá vertigens, e seria mais avisado, parece-me, esperar para ver o que cada dia me dará.

Hatem e Marta saíram do palácio à hora da refeição, esgotados e desesperados. Tiveram de desembolsar cada aspra que traziam, e prometer mais, sem ter obtido nada em troca.

O escrivão da Armaria afirmou-lhes logo que tinha consultado o segundo registo dos condenados, e subtraiu-lhes algumas boas moedas antes mesmo de lhes revelar o que lá tinha encontrado. Uma vez pago o dinheiro, anunciou-lhes que o nome de Sayyaf não figurava. Mas acrescentou imediatamente, a meia voz, que tinha sabido da existência de um terceiro registo, reservado aos crimes mais graves, e que era impossível consultar sem untar as mãos a duas ou três altas personagens.

Exigiu para isso um adiantamento de cento e sessenta aspras, mas contentou-se, magnânimo, com as cento e quarenta e oito que os seus visitantes ainda tinham consigo, ameaçando nunca mais os receber se eles voltassem a mostrar-se tão pouco prevenidos.

9 de Novembro de 1665

O que se passou hoje dá-me vontade de deixar esta cidade o mais depressa possível, e até Marta me suplica que o faça. Mas para ir aonde? Sem esse maldito firmão, ela não poderia regressar a Gibelet, e só aqui, em Constantinopla, pode esperar obtê-lo.

Deslocámo-nos, tal como ontem, ao palácio do sultão, a fim de prosseguir as diligências, e tal como ontem, instalei-me no café enquanto o meu empregado e «a viúva», toda vestida de negro, penetravam no primeiro pátio, chamado «pátio dos janízaros», no meio de uma multidão de peticionários. Estava resignado a esperar como ontem durante três ou quatro horas, perspectiva que quase não me afligia, visto que o dono do café me faz agora o mais caloroso acolhimento. É um grego, originário de Cândia, e não pára de me repetir que tem muito prazer em receber um genovês, para que possamos dizer juntos todo o mal que pensamos dos venezianos. A mim eles nunca me fizeram nada, mas o meu pai sempre me disse que devíamos amaldiçoá-los, e eu devo à sua memória o não divergir. Ao homem do café, deram eles mais graves razões para lhes querer mal; ele não disse as coisas claramente, mas julguei adivinhar, por diversas alusões, que um deles lhe seduziu a mãe antes de a abandonar, que isso a matou de dor e de vergonha, e que foi educado no ódio ao seu próprio sangue. Fala um grego misturado com palavras italianas e turcas, e chegamos a ter longas conversas entrecortadas pelos pedidos dos clientes, muitas vezes janízaros muito jovens que bebem o seu café do alto das montadas e atiram depois ao ar a chávena vazia, que o nosso homem se empenha em agarrar no meio dos risos; à frente deles, finge divertir-se, mas assim que se afastam, cruza os dedos e murmura uma imprecação grega.

Hoje, não discutimos durante muito tempo. Ao fim de meia hora, Hatem e Marta regressaram pálidos e trémulos. Mandei-os sentar, e beber grandes goles de água fresca, antes que pudessem contar-me o seu desaire.

Tinham atravessado o primeiro pátio, e dirigiam-se ao segundo, para chegarem de novo «debaixo da cúpula» quando viram, junto da porta da Salvação que separa os dois pátios, um ajuntamento fora do comum. Em cima de uma pedra, uma cabeça cortada. Marta desviou os olhos, mas Hatem não hesitou em aproximar-se.

- Olha - disse-lhe ele - reconhece-lo?

Ela obrigou-se a olhar. Era o escrivão da Torre da Justiça, o mesmo com quem eles se haviam encontrado «sob a cúpula», e que lhes marcara entrevista para a próxima quinta-feira! Bem desejariam saber por que o haviam submetido a tal castigo, mas não ousaram perguntar nada, e abriram caminho em direcção à saída apoiando-se um ao outro, e escondendo o rosto com receio de que a sua aflição fosse interpretada como sinal de uma cumplicidade qualquer com o supliciado!

- Não volto a pôr os pés naquele palácio- disse-me Marta enquanto seguíamos na barca que nos conduzia para Gaiata.

Evitei contradizê-la, para não a fazer sofrer mais, mas será necessário que ela obtenha esse maldito papel!

10 de Novembro

Para expulsar dos olhos de Marta as imagens da cabeça cortada, levei-a a passear pela cidade. Maimoun deixara-me, ao partir de Afyonkarahisar com a sua caravana, o endereço de um dos seus primos em casa de quem pensava alojar-se. Disse a mim mesmo que era talvez chegado o momento de ir saber notícias dele. Tive alguma dificuldade em encontrar a casa, que no entanto é mesmo em Gaiata, apenas a algumas ruas daquela onde estamos alojados.

Bati à porta. Ao fim de alguns momentos, um homem veio entreabri-la, e fez-nos quatro ou cinco perguntas antes de nos convidar a entrar. Quando, por fim, decidiu afastar-se e pronunciar algumas frias palavras de cortesia, eu já tinha jurado a mim mesmo não pisar a soleira da sua casa. Ele insistiu um pouco, mas para mim a coisa estava entendida. Apenas soube dele que Maimoun permanecera somente alguns dias em Constantinopla, e retomara de imediato o caminho sem dizer aonde ia - pelo menos o primo não me considerou digno de o saber. Para qualquer eventualidade, deixei o meu endereço, quero dizer o de Barinelli, para o caso de o meu amigo regressar antes de nós partirmos, e para que eu próprio não tenha de voltar por notícias a casa daquele homem pouco acolhedor.

Depois atravessámos o corno de ouro para nos deslocarmos à cidade, onde Marta comprou, por minha insistência, dois belos tecidos, um negro mas com fios prateados, o outro de seda crua semeada de estrelas azul-celeste. «Tu ofereceste-me a noite e a madrugada», disse ela. Se não estivéssemos no meio de pessoas, eu tê-la-ia abraçado.

No novo mercado das especiarias, encontrei um genovês que acaba de se instalar ali há alguns meses, e que possui já uma das mais belas perfumarias de Constantinopla. Embora nunca tenha posto os pés na cidade dos meus antepassados, não consigo impedir-me de sentir orgulho quando me acontece encontrar um compatriota respeitado, audacioso e próspero. Pedi-lhe que compusesse para Marta o perfume mais subtil que uma dama alguma vez tenha usado. Dei a entender que ela era minha esposa, ou minha noiva, sem no entanto o dizer claramente. O homem fechou-se no seu armazém e regressou com um soberbo frasco verde-escuro, ventrudo como um paxá antes da sesta. Cheirava a aloés, a violeta, a ópio e aos dois âmbares.

Quando perguntei ao genovês quanto lhe devia, ele fez semblante de não querer aceitar nada, mas isso era apenas cortesia de mercador. Não tardou a dizer-me um preço ao ouvido, que eu teria achado disparatado se não tivesse visto os olhos de Marta maravilharem-se diante do presente que eu lhe dava.

Não serei eu vaidoso ao representar assim o noivo generoso, desatando sem parar a minha bolsa num gesto conquistador, fazendo as minhas encomendas ainda antes de perguntar o preço? Que importa, sou feliz, ela é feliz, e não me envergonho da minha vaidade!

No caminho de regresso, parámos numa costureira de Gaiata para que ela lhe tirasse as medidas. E ainda num sapateiro que expunha à entrada da sua loja uns sapatos elegantes. Marta protestava sempre, e depois deixava-se submeter, sabendo-me intratável. Sem dúvida não sou seu marido legítimo, mas já o sou mais do que o outro, e assumo todos os deveres do meu cargo como se eles fossem outros tantos privilégios. Compete ao homem vestir a mulher que o despe, e perfumar aquela que enlaça. Como lhe compete defender, com risco da própria vida, o passo frágil que se ligou ao seu.

Eis que me ponho a falar como um pagem apaixonado. É tempo de pousar a pena por esta noite, e de soprar a tinta viva que cintila...

14 de Novembro

Há quatro dias que insisto e volto a insistir com Marta para que faça calar os seus temores e se dirija de novo ao palácio, e só hoje ela acabou por aceitar. E lá fomos, levando Hatem, atravessámos o braço de mar, caminhámos protegendo-nos com um guarda-chuva de uma chuva intermitente. Para distraí-la, eu falava-lhe disto e daquilo, num tom jovial, mostrando-lhe à nossa volta as belas moradias e as vestimentas estranhas dos transeuntes, e trocávamos piscadelas de olho para não rirmos cedo de mais. Até ao momento em que atingimos o recinto do palácio. O seu rosto ensombrou-se, então, e eu já não consegui alegrá-la.

Parei, como de costume, no cafeteiro da Cândia, e «a viúva» lá foi em direcção à Alta Porta, virando-se a cada passo para me lançar olhares de adeus, como se não fôssemos voltar a ver-nos mais.

Olhares que me arrancavam o coração, mas é preciso que ela obtenha esse maldito firmão, para que possamos ser livres de nos amarmos! Mostrei-me portanto mais firme do que estava, e fiz-lhe valentemente sinal para que fosse, que atravessasse a porta. Ela foi incapaz. A cada passo, tremia um pouco mais, e abrandava. Por mais que o bravo Hatem a ajudasse, e a exortasse em voz baixa, as pernas já não a levavam. Ele teve de se resignar a trazê-la para junto de mim, quase a arrastando. Em lágrimas, abatida, e desculpando-se entre dois soluços por se ter mostrado tão fraca.

- Assim que me aproximo da porta, tenho a impressão de ver a cabeça cortada. E nem sequer consigo engolir a saliva.

Consolei-a como pude. Hatem perguntou-me se devia lá ir mesmo assim. Após reflexão, disse-lhe que fosse apenas ter com o escrivão da Armaria, para lhe perguntar o que tinha encontrado no terceiro registo, e voltar imediatamente. O que ele fez. E a resposta do funcionário foi aquela que eu receava: «Não há nada no terceiro registo. Mas descobri que existe um quarto registo...» Pelo seu incómodo, exigiu ainda duas piastras. A nossa desgraça tornou-se uma renda para aquela triste personagem.

Saímos dali tão desencorajados, tão abatidos, que fomos incapazes de trocar três palavras durante todo o trajecto de regresso.

Que fazer agora? Mais valia deixar que a noite acalmasse as minhas angústias. Se conseguisse adormecer...

15 de Novembro

Como a noite não trouxesse solução para o meu problema, quis mitigar as minhas angústias na religião. Mas já estou um pouco arrependido. Não nos improvisamos crentes, assim como não nos improvisamos descrentes. Até o altíssimo deve estar cansado das minhas mudanças de humor.

Tendo ido este domingo de manhã à igreja de Pêra, perguntei ao padre Thomas, depois da missa, se queria ouvir-me em confissão.

Considerando que devia haver alguma urgência, ele pediu desculpa aos numerosos fiéis que o rodeavam, para me levar ao confessionário, e ouvir-me falar - tão desajeitadamente! - de Marta e de mim. Antes de me dar a absolvição, fez-me prometer que não me aproximaria «dessa pessoa» enquanto ela não se tornasse minha mulher. Dirigiu-me também, no meio das suas admoestações, algumas palavras de reconforto, mas eu não tenho a certeza de cumprir a minha promessa.

No princípio do ofício, eu não tinha qualquer intenção de me confessar. Estava ajoelhado na penumbra, no meio de uma nuvem de incenso, sob ogivas imponentes, a repisar as minhas angústias, quando fui tomado por esse desejo. Acho que aquilo que me impeliu é muito menos um acesso de piedade do que um acesso de aflição. Os meus sobrinhos, o meu empregado e Marta, que me tinham acompanhado todos à igreja, tiveram de esperar por mim bastante tempo. Se eu tivesse reflectido, teria adiado a minha confissão, para lá ir sozinho. Raramente me confesso, e toda a gente em Gibelet o sabe; para conquistar o padre, ofereço-lhe de tempos a tempos algum velho livro de preces, e ele finge acreditar que eu cometo poucos pecados. Por isso o meu gesto de hoje equivale a uma confissão pública, eu bem o vi na atitude dos meus quando saí. Os olhos de Hatem que riam; os dos meus sobrinhos que ora me repreendiam, ora me evitavam; e os de Marta, sobretudo, que gritavam: «Traidor!» Que eu saiba, ela não se confessou.

Ao chegar a casa, achei indispensável reuni-los muito solenemente à minha volta para lhes anunciar que tencionava casar com Marta assim que ela obtivesse a quitação do seu primeiro casamento, e que acabava de falar disso ao capuchinho. Acrescentando, sem acreditar muito nisso, que se, por um acaso, a sua viuvez fosse confirmada nos próximos dias, nos casaríamos aqui mesmo, em Constantinopla.

- Vós sois para mim como filhos, e quero que gosteis de Marta como da vossa própria mãe.

Hatem inclinou-se sobre a minha mão, depois sobre a da minha futura esposa. Habib abraçou-me a mim e a ela com uma vivacidade que me deitou bálsamo no coração; Marta apertou-o longamente contra si, e eu não senti desta vez, juro, nenhum ciúme; estou convencido de que nunca antes eles haviam estado tão próximos. Quanto a Bumeh, veio abraçar-nos também ele, à sua maneira, mais furtiva, enigmática. Parecia mergulhado em reflexões das quais nunca saberemos nada. Talvez dissesse a si mesmo que aquela perturbação imprevista era mais um sinal, uma dessas inumeráveis perturbações das almas que antecedem o fim dos tempos.

Esta noite, no momento em que escrevo estas linhas, sozinho no meu quarto, sinto picar-me o remorso. Se pudesse reviver este dia, revivê-lo-ia de modo diferente. Nem confissão, nem anúncio solene. Mas pouco importa! O que está feito, está feito! Nunca contemplamos a nossa própria vida do alto de um promontório!

16 de Novembro

Ao acordar, os meus remorsos são os mesmos. Para aquietá-los, digo a mim mesmo que a minha confissão me livrou de um fardo que me oprimia. O que não é exacto. O acto da carne só me pesou nos ombros no momento em que me ajoelhei na igreja, não antes. Antes, eu não chamava pecado àquilo que aconteceu na sexta-feira. Neste momento detesto-me por lhe ter chamado assim. Se julgava descarregar-me de um peso no confessionário, fiquei, pelo contrário, mais carregado.

Além disso, as questões que me angustiavam permanecem: Onde ir agora? Onde levar os meus? Que sugerir a Marta? Sim, que fazer?

Hatem veio dizer-me que em sua opinião, a solução menos má seria obter de algum funcionário, contra uma forte retribuição, um certificado falso que atestasse que o marido de Marta havia sido mesmo executado. Não rejeitei a proposta com ar furioso como um homem honesto deveria fazer, ganhei demasiados cabelos brancos neste mundo para acreditar ainda na pureza, na justiça, ou na inocência, e até, a dizer a verdade, inclino-me para respeitar mais um certificado falso que liberta do que um autêntico que subjuga. Contudo, depois de reflectir, disse que não, porque a solução não me parecia razoável.

Regressar a Gibelet e casar-me ali na igreja com base num papel falso, que eu sei que é falso? Passar o resto da vida no receio de ver a minha porta abrir-se de súbito e entrar um homem que eu terei enterrado prematuramente para me casar com a sua esposa? Não sou capaz de me decidir a isso, não!

17 de Novembro

Esta terça-feira, para me distrair das minhas angústias, dediquei-me a um dos meus prazeres preferidos: sair sozinho pelas ruas da cidade e perder-me durante um dia inteiro no mercado dos livreiros. Mas quando, nas proximidades da mesquita Solimaniah, mencionei candidamente o nome de Mazandarani a um comerciante que me perguntava o que eu procurava, o homem franziu as sobrancelhas, fez-me sinal para que baixasse depressa a voz, verificou que mais ninguém além dele me ouvira, depois convidou-me a entrar e ordenou ao filho que saísse para que pudéssemos falar sem testemunhas. Mesmo quando ficámos sozinhos, só falou em voz muito baixa, a tal ponto que eu precisava de um esforço constante para o ouvir. Segundo ele, as mais altas autoridades teriam sido recentemente informadas de certas predições sobre o dia do juízo, que estaria muito próximo; um astrólogo teria dito ao grão-vizir que todas as mesas seriam em breve viradas, as refeições seriam levantadas, os maiores turbantes rolariam pelo chão com as cabeças que os usavam, e que todos os palácios se desmoronariam sobre aqueles que neles moram. Com receio de que esses rumores provocassem pânico ou sedição, teria sido dada ordem para apreender e destruir todos os livros que anunciam a iminência do fim dos tempos; aqueles que os copiam, os vendem, os propagam ou comentam são passíveis dos mais severos castigos. Tudo isto se passa em grande segredo, assegurou-me o bom homem, que me mostrou a loja fechada de um vizinho que teria sido preso e supliciado sem que os seus próprios irmãos tenham ousado informar-se do seu destino.

Estou infinitamente grato a este colega por se ter dado ao incómodo de me prevenir do perigo, e de ter assim confiado em mim apesar das minhas origens. Mas talvez fosse mesmo por causa das minhas origens que ele sentiu confiança. Se as autoridades quisessem pô-lo à prova ou espiá-lo, não seria um genovês que teriam enviado, não é verdade?

Aquilo que hoje fiquei a saber ilumina com uma nova luz o que me aconteceu em Alepo, e faz-me compreender um pouco melhor a reacção invulgar dos livreiros de Tripoli quando mencionei à sua frente O Centésimo Nome.

Deveria mostrar-me mais discreto, mais circunspecto, e principalmente evitar, de futuro, correr as livrarias com o nome desse livro nos lábios. Deveria, sim, é o que me digo hoje, mas não tenho a certeza de manter por muito tempo essa atitude sensata. Porque se as palavras daquele homem de bem me incitam à prudência, elas têm igualmente por efeito atiçar a minha curiosidade por esse maldito livro que não pára de escarnecer de mim.

18 de Novembro

Hoje fui novamente visitar os livreiros, até ao cair da noite. Olhei, observei, remexi, sem no entanto me informar acerca do Centésimo Nome.

Fiz algumas aquisições, nomeadamente a de uma obra rara que procurava havia muito tempo, O Conhecimento dos Alfabetos Ocultos, atribuído a Ibn-Wahchiya. Contém dezenas de escritas diferentes, impossíveis de decifrar para quem não seja iniciado; se tivesse podido adquiri-lo antes, talvez me tivesse inspirado nele para escrever este diário. Mas agora é tarde, já tenho os meus hábitos, tenho o meu próprio disfarce, e já não o mudarei.

Escrito na sexta-feira, 27 de Novembro de 1665

Acabo de atravessar, sem motivo, uma longa semana de pesadelo, e ainda sinto o medo nos ossos. Mas recuso-me a partir. Recuso-me a partir como vencido, quebrado, e humilhado.

Não ficarei em Constantinopla mais do que o necessário, mas não partirei antes de ter obtido reparação por aquilo que sofri. ,

A minha provação começou na quinta-feira 19, quando Bumeh veio anunciar-me, muito exaltado, que conseguira por fim conhecer a identidade do coleccionador que possui uma cópia do Centésimo Nome. No entanto eu tinha proibido o meu sobrinho de procurar esse livro, mas talvez o tivesse feito com demasiada frouxidão. E se ainda o censurei nesse dia, não pude impedir-me de interrogá-lo imediatamente sobre o que tinha apurado.

O coleccionador em questão não me era desconhecido, um homem nobre da Valáquia, um voivoda chamado Mircea, que reunira no seu palácio uma das mais belas bibliotecas de todo o Império, e que tinha mesmo enviado a casa do meu pai, há muito tempo, um emissário encarregado de comprar um livro de salmos em pergaminho, com iluminuras maravilhosas e ilustrado com ícones. Disse para mim mesmo que se me apresentasse em sua casa, ele se recordaria dessa compra, e me diria talvez se possui uma cópia do livro de Mazandarani.

Dirigimo-nos a casa do voivoda ao fim da tarde, à hora a que as pessoas se levantam da sesta. Bumeh e eu, sozinhos, os dois vestidos à genovesa, e não sem que tenha feito o meu sobrinho prometer que me deixaria conduzir a conversa. Eu não queria enfurecer o nosso anfitrião interrogando-o logo de início sobre uma obra de autenticidade duvidosa, e conteúdo igualmente duvidoso. Era pois necessário abordar o assunto com um subterfúgio.

Sumptuosa no meio das casas turcas que a rodeiam, a residência do voivoda da Valáquia usurpa um pouco a sua designação de palácio; ninguém duvida de que ela o deve à qualidade do seu proprietário mais do que à sua arquitectura; dir-se-ia uma residência de sapateiro aumentada doze vezes, ou doze habitações de sapateiros adquiridas pelo mesmo comprador e reunidas entre si, tendo, em baixo, o seu muro cego ou quase, e no andar de cima as suas sacadas de madeira e as gelosias castanhas. Mas é pelo nome de palácio que toda a gente a designa, a tal ponto que o labirinto de ruelas que a rodeia tem já o seu nome. Falei de sapateiros porque este é justamente um bairro de sapateiros, de marroquineiros, e também de conceituados encadernadores, de que o nosso coleccionador deve ser, suponho, o mais regular dos clientes.

Fomos recebidos à porta por um combatente valáquio vestido com uma longa túnica de seda verde que ocultava mal um sabre e uma pistola, e assim que declinámos nomes e qualidades, sem necessidade de precisar o objecto da nossa visita, fomos introduzidos num pequeno gabinete com as paredes cobertas de livros até por cima da única porta. Eu dissera: «Baldassare Embriaco, negociante de curiosidades e de livros antigos, e o meu sobrinho Jaber.» Já suspeitava que aqui a minha profissão seria um infalível sésamo.

O voivoda veio ter connosco pouco depois, seguido de outro combatente, vestido como o primeiro, com a mão pousada na guarda do sabre. Ao ver o nosso aspecto, o amo fez-lhe sinal para que saísse tranquilo, e sentou-se num divã à nossa frente. Uma criada trouxe imediatamente para todos café e xarope, pousou tudo numa mesa baixa e saiu fechando a porta.

Cortês, o nosso anfitrião começou por nos interrogar sobre as fadigas da viagem, depois disse-se honrado com a nossa visita, sem nos perguntar as razões dela. É um homem de muita idade, sem dúvida perto dos sessenta anos, magro, de rosto macilento, ornado de uma barba branca. Vestia menos ricamente que os seus homens, apenas uma longa camisa branca bordada, solta por cima de umas calças do mesmo tecido. Falava italiano, e explicou-nos que durante os seus muitos anos de exílio, tinha passado algum tempo em Florença, na corte do grão-duque Ferdinand, que teve de abandonar porque queriam forçá-lo a tornar-se católico. Elogiou longamente a finura dos Médicis, bem como a sua generosidade, antes de deplorar a sua actual fraqueza. Fora junto deles que aprendera a amar as coisas belas, e decidira consagrar a sua fortuna à aquisição de livros antigos, em vez das intrigas principescas.

- Mas muitas pessoas, tanto na Valáquia como em Viena, pensam que eu continuo a conspirar, e imaginam que os meus livros são apenas uma diversão. Quando estes seres de couro ocupam o meu pensamento de dia e de noite. Descobrir a existência de um livro, persegui-lo de país em país, assediá-lo por fim, adquiri-lo, possuí-lo, isolar-me com ele para o fazer confessar os seus segredos, achar-lhe depois na minha casa um lugar digno dele, eis os meus únicos combates, as minhas únicas conquistas, e nada é mais agradável para mim do que conversar com entendidos neste gabinete.

Depois do seu preâmbulo tão insinuante, eu sentia-me em condições de lhe dizer, com as palavras adequadas, o que me trazia a sua casa.

- Tenho a mesma paixão que Vossa Senhoria, mas com menos mérito, visto que faço pelas necessidades do negócio aquilo que vós fazeis pelo amor das coisas. As mais das vezes, quando procuro um livro, é para revendê-lo a alguém que mo encomendou. Só esta viagem a Constantinopla tem um outro motivo. Um motivo que não é habitual em mim, e que hesito em revelar àqueles que me interrogam. Mas convosco, que me haveis reservado um acolhimento digno da vossa posição mais que da minha, que sois um autêntico coleccionador e um homem de saber, não usarei de qualquer rodeio.

E comecei efectivamente a falar como não tinha previsto fazê-lo, sem astúcias nem rodeios, das profecias sobre a aparição próxima da Besta no ano de 1666, do livro de Mazandarani, das circunstâncias em que o velho Idriss mo confiara, como eu o cedera a Marmontel, e o que no mar acontecera ao cavaleiro.

Sobre este último ponto, o voivoda abanou a cabeça, indicando que soubera da notícia. Sobre o resto não reagiu, mas quando falou, depois de mim, disse-me que tinha ouvido as diversas predições sobre o ano que vem, e evocou o livro russo da Fé, que eu próprio evitara mencionar, para maior concisão.

- Tenho um exemplar desse livro, enviado pelo patriarca Nikon em pessoa, que conheci outrora, na minha juventude, em Nijni-Novgorod. Uma obra perturbadora, confesso. Quanto ao livro do Centésimo Nome, é verdade que me venderam uma cópia dele, há sete ou oito anos, mas não lhe dei grande importância. O próprio vendedor me confessara que se tratava muito provavelmente de uma falsificação. Adquiri-o apenas por curiosidade, porque é um dos livros de que os coleccionadores gostam de falar quando se encontram. Como esses animais fabulosos de que falam os caçadores durante as ágapes. Conservei-o por pura vaidade, confesso, sem nunca ter procurado mergulhar nele. Aliás, conhecendo muito mal o árabe, teria sido incapaz de lê-lo sem a ajuda de um intérprete.

- E haveis-vos separado dele?- Perguntei, tentando evitar que as batidas do meu coração me fizessem tremer a língua.

- Não, eu nunca me separo de nenhum livro. Há muito tempo que os meus olhos não pousam sobre esse, mas ele deve estar aqui, algures, talvez no segundo andar com outros livros árabes...

Uma ideia me ocorreu. Estava a revirá-la na cabeça para apresentá-la apropriadamente, quando o meu sobrinho, transgredindo as minhas recomendações, me surpreendeu.

- Se desejais, posso traduzi-lo para italiano ou para grego. Lancei-lhe imediatamente um olhar de desaprovação. Não que a sua proposta fosse absurda, eu próprio ia sugerir qualquer coisa do género, mas havia na sua intervenção um tom abrupto que cortava com a nossa conversa de antes. Eu receava que o nosso anfitrião se insurgisse, e vi nos seus olhos que ele hesitava um pouco sobre a resposta a dar. Eu tripudiava. Teria conduzido a coisa de modo diferente.

O voivoda teve para Bumeh um sorriso condescendente.

- Agradeço-vos a vossa proposta. Conheço no entanto um monge grego que lê perfeitamente o árabe, e que terá o que é preciso de paciência para traduzir esse livro e escrevê-lo numa bela caligrafia. É um homem da minha idade; os jovens têm demasiada impaciência para esses trabalhos. Mas se desejais, um e outro, percorrer o livro do Centésimo Nome e copiar algumas linhas, posso trazer-vo-lo. Com a condição de que ele não saia deste gabinete.

- Ficaríamos muito agradecidos. Levantou-se, saiu e fechou a porta atrás de si.

- Farias melhor em ficar calado, como me tinhas prometido, - disse eu ao meu sobrinho. - Assim que abriste a boca, ele abreviou a conversa. E permite-se agora dizer-nos "com a condição de que"...

- Mas vai trazer-nos o livro, e é isso que conta. Foi para isso que fizemos a viagem.

- Que teremos nós tempo para ler?

- Poderemos já verificar se ele é parecido com aquele que estava na nossa posse. E depois eu sei muito bem aquilo que lá vou procurar em primeiro lugar.

Estávamos a disputar-nos assim quando ouvimos gritos vindos do exterior, com o ruído de passos de homens a correr. Bumeh levantou-se para ir ver o que se passava, mas eu fui brusco com ele.

- Fica sentado! E lembra-te de que estás na casa de um príncipe!

Os gritos afastaram-se do gabinete, depois, ao fim de um minuto, aproximaram-se de novo acompanhados de pancadas violentas que faziam tremer as paredes da sala. E de um cheiro inquietante. Não suportando mais, entreabri a porta, e gritei por minha vez. As paredes e os tapetes estavam em chamas, um fumo espesso enchia a casa. Homens e mulheres corriam transportando baldes de água e gritando em todas as direcções. No momento em que saía, voltei-me Bumeh, e encontrei-o ainda no seu lugar.

- Fiquemos sentados - zombou ele - estamos em casa de um príncipe!

O descarado! Dei-lhe uma valente bofetada, pelo que acabava de dizer e por tantas outras coisas que até então refreara em mim. Já o fumo invadia a sala e nos fazia tossir. Corremos para a saída, atravessando três vezes barragens de chamas.

E quando nos achámos na rua, com a vida salva, mas com inúmeras pequenas queimaduras no rosto e nas mãos, não tivemos tempo de respirar antes que um perigo muito mais grave ainda nos viesse ameaçar. Por causa de um mal-entendido que quase nos custou a vida.

Centenas de pessoas do bairro tinham-se concentrado para contemplar o fogo, quando o guarda que nos abrira a porta à chegada nos indicou com a mão. Gesto pelo qual quisera indicar ao seu amo ou a outro guarda que nós não estávamos na casa e que tínhamos conseguido salvar-nos. Mas os basbaques interpretaram esse gesto de maneira muito diferente. Imaginando que estávamos na origem do sinistro, e que o guarda quisera indicar os culpados, aquela gente começou a apedrejar-nos. Fomos obrigados a correr para escapar aos projécteis, o que pareceu confirmar que éramos os incendiários e que procurávamos fugir depois da nossa malfeitoria. Lançaram-se em nossa perseguição, armados de paus, de facas, de tesouras e de cordas, e não nos era já possível interromper a corrida para tentar chamá-los à razão. Mas quanto mais corríamos, mais assustados parecíamos, e mais aquela gente se enraivecia, e ficava mais numerosa. Era agora todo o bairro que corria atrás de nós. Não podíamos ir muito longe. Dali a poucos passos, eles iam alcançar-nos. Eu tinha a impressão de sentir a respiração deles na nuca.

De súbito apareceram à minha frente dois janízaros. Em tempo normal, só à vista dos seus barretes com longas plumas caídas, eu ter-me-ia lançado na primeira ruela à esquerda ou à direita para evitar cruzar-me com eles. Mas era o Céu que no-los enviava naquele instante. Estavam diante de uma loja de sapateiro, e voltaram-se, intrigados, para a origem do tumulto, pousando a mão no copo do sabre. Eu gritei: «Amân! Amân!» o que quer dizer «Vida salva!», e lancei-me nos braços de um deles como uma criança nos braços da mãe. De uma olhadela verifiquei que o meu sobrinho tinha executado o mesmo gesto. Os militares consultaram-se com o olhar, depois puxaram-nos vigorosamente para trás deles gritando por sua vez à multidão: «Amân!»

Os nossos perseguidores pararam instantaneamente, como se acabassem de chocar contra uma parede de vidro. Menos um indivíduo, um homem ainda novo que vociferava como um demónio, e que, pensando bem, devia ser um desequilibrado. Em vez de se imobilizar como os outros, continuou no seu ímpeto, e atirou os braços para a frente para tentar agarrar a camisa de Bumeh. Ouviu-se um silvo. Eu nem sequer vira o meu janízaro desembainhar, e depois desferir o golpe. Vi-o apenas limpar o sabre nas costas do infeliz que jazia a seus pés. Tinha sido atingido na base do pescoço, de um golpe tão profundo que o ombro se separara do corpo como um ramo cortado. Nem sequer tivera um último suspiro. Apenas o som abafado do corpo já inerte a cair. Fiquei por um longo momento de olhos fixos na ferida de onde saía o sangue escuro, fervilhando de uma fonte subterrânea que demorou algum tempo a esgotar-se. Quando consegui finalmente desviar o olhar, a multidão já se tinha evaporado. Restavam ali apenas três homens, no meio da calçada, a tremer. Os janízaros tinham-lhes ordenado que não fugissem como os outros e lhes explicassem o que tinha acontecido. Eles indicaram atrás de si as chamas do incêndio, depois apontaram para nós. Eu disse imediatamente que nada tínhamos a ver com aquilo, que somos honestos negociantes de livros que viemos tratar de negócios com o voivoda de Valáquia, e que poderíamos prová-lo.

- Têm a certeza de que são eles os criminosos?- Perguntou o mais velho dos janízaros.

Os três homens do bairro hesitaram a pronunciar-se, com medo de colocarem a sua própria cabeça na balança. Finalmente, um deles falou por todos:

- Diz-se que esses estrangeiros deitaram fogo ao palácio. Quando quisemos fazer-lhes perguntas, eles fugiram como só os culpados fogem.

Eu gostaria de responder, mas os janízaros fizeram-me calar com um gesto, e ordenaram-nos, a mim e a Bumeh, que caminhássemos à frente deles.

De vez em quando, eu olhava por cima do ombro. A multidão tinha-se reconstituído, e seguia-nos, mas a uma distância respeitável. E lá atrás, mais longe, adivinhava-se a vermelhidão das chamas e o tumulto dos que tentavam apagá-las. O meu sobrinho caminhava tranquilo, sem me lançar o mínimo olhar de angústia nem de conivência. Estou convencido de que aquele grande espírito estava preocupado com outra coisa que não os meus vulgares temores de mortal injustamente suspeito de um crime, e levado por dois janízaros pelas ruelas de Constantinopla, para um destino desconhecido.

A nossa escolta conduziu-nos para a residência de uma personagem aparentemente importante, Morched Agha. Eu nunca ouvira o seu nome, mas ele deu-me a entender que foi ainda há pouco comandante de janízaros, e que nessa qualidade ocupou altas funções em Damasco. Falou aliás connosco em árabe, um árabe visivelmente aprendido já para o tarde, e com forte sotaque turco.

A primeira coisa que notei nele foram os seus dentes. Eram tão finos, tão gastos, que pareciam apenas uma fila de agulhas negras. O aspecto pareceu-me repugnante, mas era evidente que ele não sentia vergonha nem embaraço. Descobria-os largamente a cada sorriso, e sorria sem parar. Também é verdade que, quanto ao resto, a sua aparência era a de um homem respeitável, barrigudo como eu, de cabelos grisalhos sob um boné branco, debruado de prata e sem mácula, barba cuidada, modos acolhedores.

Assim que fomos introduzidos em sua casa, deu-nos as boas-vindas e disse-nos que tínhamos muita sorte por os janízaros nos terem conduzido a sua casa, em vez de nos levarem a um juiz, ou à torre dos prisioneiros.

- Esses jovens são como meus filhos, confiam em mim, sabem que sou um homem de justiça e de compaixão. Tenho amigos altamente colocados, muito altamente, se compreendem bem o que quero dizer, e nunca usei das minhas relações para fazer condenar um inocente. Por vezes, pelo contrário, fiz agraciar algum culpado que conseguira apiedar-me.

- Posso jurar-vos que estamos inocentes, isto foi um simples equívoco. Mas eu vou explicar.

Ele escutou-me atentamente, abanando a cabeça por diversas vezes como que a concordar. Depois tranquilizou-me:

- Pareceis um homem respeitável, ficai sabendo que serei para vós um amigo e um protector.

Estávamos numa vasta sala mobilada apenas de tapetes e coxins. A nossa volta, além de Morched Agha e dos nossos dois janízaros, uma meia dúzia de homens todos armados, que de repente me pareceram militares desfardados. Houve um tumulto no exterior.

Um guarda saiu, depois voltou para murmurar ao ouvido do nosso anfitrião, subitamente preocupado.

- Parece que o incêndio alastra. Não têm conto já as vítimas. Voltou-se para um dos janízaros.

- As pessoas do bairro viram que vocês traziam os nossos amigos para aqui?

- Sim, alguns homens seguiram-nos à distância. Morched Agha mostrava-se cada vez mais inquieto.

- Precisamos de estar atentos durante toda a noite. Nenhum de vós deve dormir. E se vos perguntarem onde estão os nossos amigos, direis que os levámos para a prisão para que sejam julgados.

Dirigiu-nos uma piscadela de olho acentuada, descobriu as suas agulhas negras, e disse-nos num tom tranquilizador:

- Não tenhais receio, confiai em mim, esses maltrapilhos já não vos deitarão a mão.

Depois fez sinal a um dos seus homens para que lhe trouxessem alguns pistacios para rilhar. Os dois janízaros escolheram esse momento para se retirarem.

Mas devo interromper aqui o meu relato por esta noite. O dia foi esgotante, e a minha pena começa a pesar. Retomá-la-ei ao amanhecer.

Escrito no sábado, 28

Mais tarde, deram-nos de jantar, depois indicaram-nos um quarto onde podíamos dormir, o meu sobrinho e eu, sós. O sono não me chegou, durante toda a noite, e de manhã, continuava sem dormir quando Morched Agha se debruçou por cima de mim para me abanar.

- É preciso que vos levanteis imediatamente. Sentei-me.

- Que se passa?

- A multidão juntou-se lá fora. Parece que metade do bairro ardeu, e que há centenas de mortos. Eu jurei-lhes, pelo túmulo do meu pai, que não estáveis aqui. Se eles voltam a insistir, tenho de deixar entrar alguns deles para que verifiquem com os seus próprios olhos. é preciso esconder-vos. Vinde!

Conduziu-nos, a mim e ao meu sobrinho, para um armário cuja porta abriu com uma chave.

- É preciso descer alguns degraus. Tende cuidado, não há luz. Descei devagar, apoiando-vos à parede. Em baixo, há uma pequena sala. Irei lá ter logo que possa.

Ouvimo-lo fechar a porta do armário e rodar duas vezes a chave na fechadura.

Ao chegar lá abaixo, procurámos às apalpadelas um lugar para nos sentarmos, mas o chão estava enlameado e não havia cadeira nem tamborete. Só pude encostar-me à parede, rezando para que o nosso anfitrião não nos deixasse muito tempo naquele buraco.

- Se este homem não nos tivesse tomado sob a sua protecção, estaríamos agora no fundo de uma masmorra - disse subitamente Bumeh, que não abria a boca havia horas.

No escuro, eu não conseguia ver se ele sorria.

- É uma boa altura para escarnecer - disse-lhe eu. - Talvez quisesses que Morched Agha nos deitasse como pasto à multidão enraivecida? Ou então que nos entregasse a um juiz que se apressaria a fazer-nos condenar para acalmar a opinião pública? Não te mostres tão ingrato! E não exibas essa soberba! Não te esqueças de que foste tu que me arrastaste ontem para casa do voivoda. E que foste também tu que me impeliste a fazer esta viagem! Nunca devíamos ter saído de Gibelet!

Falei-lhe não em árabe mas em genovês, como faço espontaneamente sempre que estou perante as adversidades do Oriente.

Devo reconhecer que com a passagem das horas, e depois dos dias, comecei a ter, para mim mesmo, um discurso que não era assim tão diferente do de Bumeh, que eu suspeitara de troça, e taxara de ingratidão. Em certos momentos pelo menos; porque noutros momentos, eu bendizia a minha boa estrela, que tinha posto Morched Agha no meu caminho. Oscilava constantemente entre duas impressões. Por vezes, apenas via naquele homem o notável sábio e grisalho, preocupado com a nossa sorte, o nosso bem-estar, e desculpando-se sempre que nos causava, a seu pesar, algum incómodo; e por vezes já só via nele aquela boca negra de peixe voraz. Quando achava o tempo longo, e que os perigos que nos ameaçavam pareciam afastados, chegava a perguntar-me se não seria absurdo encontrarmo-nos assim fechados na casa de um desconhecido, que não era nem um funcionário encarregado de manter a ordem, nem um amigo. Por que fazia ele aquilo por nós? Por que se punha ele de mal com as pessoas do bairro, e até com as autoridades, às quais deveria entregar-nos logo no primeiro dia? Depois ele mandava abrir a porta da masmorra, chamava-nos, fazia-nos subir à casa, geralmente de noite, e fazia-nos partilhar a sua refeição e dos seus homens, instalando-nos no lugar de honra, oferecendo-nos os melhores bocados de frango ou de borrego, antes de nos explicar em que pé estava o nosso caso.

Ai de nós, ai de nós, dizia-nos, o perigo mortal aproxima-se.

- As pessoas do bairro vigiam constantemente a minha porta, convencidas de que ainda estais escondidos em minha casa. Por toda a cidade, procuram-se os responsáveis pelo incêndio. As autoridades prometeram um castigo exemplar...

Se fôssemos apanhados, nem sequer poderíamos esperar um verdadeiro julgamento. Seríamos empalados nesse mesmo dia e expostos nas praças. Enquanto estávamos escondidos em casa do nosso benfeitor, não corríamos nenhum risco. Mas não podíamos ficar ali demasiado tempo. Todos os segredos acabam por se descobrir. Aliás, o juiz tinha enviado o seu escrivão para uma visita de inspecção. Ele devia suspeitar de alguma coisa.

Neste momento, escrevo estas frases com uma mão que já não treme. Mas durante nove dias e nove noites, vivi o pesadelo, sem que a presença do meu sinistro sobrinho atenuasse em nada a minha aflição.

O desenlace só ontem aconteceu. Depois de me ter deixado recear que o juiz poderia fazer em qualquer momento uma devassa em boa e devida forma, e que era cada vez mais perigoso albergar-me assim, o meu anfitrião veio anunciar-me enfim uma boa notícia.

- O juiz convocou-me esta manhã. Fui visitá-lo murmurando já a minha última prece. E quando ele começou por me dizer que sabia que estáveis escondidos em minha casa, e que os janízaros lho haviam confessado, lancei-me aos seus pés para lhe suplicar que me poupasse a vida. Então ele pediu-me que me levantasse, e disse que aprovava a minha atitude nobre, pois tinha assumido a defesa de dois inocentes. Porque ele próprio está convencido da vossa inocência. Se os espíritos não se tivessem exaltado, ele ter-vos-ia dito que saísseis imediatamente de cabeça erguida. Mas prefere mostrar-se prudente. Antes de sair, será preciso munir-vos de um salvo-conduto. Só Vossa Excelência, disse-lhe eu, poderia fornecer-lhes um tal documento. Ele disse que precisava de reflectir, e pediu-me que voltasse lá esta tarde. Que achas tu disto?

Eu respondi que estava contente, que era a mais reconfortante das notícias.

- Será preciso oferecer ao juiz um presente digno de tal favor.

- Evidentemente. Que soma deveríamos oferecer-lhe?

- Terás de reflectir cuidadosamente, esse cádi é uma personagem considerável. É orgulhoso, e não quererá regatear. Vai simplesmente olhar para aquilo que lhe oferecemos. Se acha bastante, aceita-o, e manda-nos entregar o salvo-conduto. Se o acha insuficiente, atira-mo ao rosto, e nós partiremos, tu, o teu sobrinho e eu, para a eternidade!

Passou lentamente a mão pelo pescoço, de um lado, depois do outro, e eu fiz, instintivamente, o mesmo gesto.

Quanto dinheiro devia eu oferecer para salvar a vida? Como responder a esta pergunta? Há algum valor para lá do qual eu preferisse perder a vida e a do meu sobrinho?

- Comigo, tenho apenas quatro piastras e sessenta aspras. Sei que é insuficiente...

- Quatro piastras e meia. É o que será necessário distribuir aos meus homens para lhes agradecer o terem-nos protegido e servido a todos durante dez dias.

- Era o que eu tencionava fazer. Queria também mandar-te, a ti, nosso anfitrião, nosso benfeitor, assim que regressasse a casa, o mais sumptuoso dos presentes.

- Esquece-te de mim, eu não quero nada. Estás aqui, na minha casa, dia e noite, e não te deixei desatar a bolsa. Não arrisco a minha vida como o fiz para obter presentes. Acolhi-vos aqui, a ti e ao teu sobrinho, porque estava convencido desde o primeiro instante de que estáveis inocentes. Por nenhuma outra razão. E não dormirei tranquilo antes de saber que estais em segurança. Mas para o juiz, será efectivamente necessário encontrar o presente que convém, e ai de nós se cometemos o mínimo erro de apreciação.

- Por que meio se deveria pagar-lhe?

- Ele tem um irmão, um comerciante próspero e respeitado. Escreverás para ele uma confissão de dívida, dizendo que te enviou mercadoria, por um certo valor, e que te comprometes a pagar-lhe o devido dentro de uma semana. Se não tens a soma em tua casa, poderás pedi-la emprestada.

- Desde que haja quem queira emprestar-me...

- Escuta, meu amigo! Escuta o conselho de um homem de cabelos brancos! Começa antes de mais nada por sair deste mau passo, conservando a cabeça em cima dos ombros. Mais tarde, pensarás nos emprestadores. Não percamos mais tempo, vou começar a redigir o acto. Tragam-me com que escrever!

Perguntou-me o nome completo, o lugar de residência habitual, o meu endereço nesta cidade, a minha religião, as minhas origens, a minha profissão exacta, e pôs-se a caligrafar com mão segura. Deixando no entanto uma linha em branco.

- Quanto escrevo? ; Hesitei. *

- Em tua opinião?

- Não posso ajudar-te. Não sei a quanto se eleva a tua fortuna. A quanto se eleva a minha fortuna? Talvez, contando tudo aquilo que deve ser contado, duzentos e cinquenta mil maidins, ou seja cerca de três mil piastras... Mas será essa a pergunta a fazer? Não deveria antes saber quais as somas que o juiz costuma receber quando presta semelhantes serviços?

De cada vez que me ocorre um número, a minha garganta aperta-se. E se o magistrado dissesse que não? Não poderia eu acrescentar ainda uma piastra? Ou três? Ou doze?

- Quanto?

- Cinquenta piastras!

O homem mostrou-se pouco satisfeito.

- Eu vou escrever cento e cinquenta!

Pôs-se a escrever, e eu não protestei. Depois mandou dois dos seus homens assinarem como testemunhas, bem como eu e o meu sobrinho.

- Agora, rezem a Deus para que tudo corra bem. Senão, morreremos todos.

Abandonámos a residência de Morched Agha ontem às primeiras horas da manhã, quando as ruas estavam ainda pouco animadas, depois de os seus homens terem verificado que ninguém nos espiava. Estávamos munidos de um salvo-conduto um tanto sumário em virtude do qual nos era permitido viajar por todo o império sem sermos inquietados. Na base do documento, uma assinatura onde só se conseguia ler uma única palavra, «cádi».

Regressámos a rasar as paredes em direcção à nossa casa de Gaiata, sujos, despojados, se não como mendigos, pelo menos como viajantes esgotados por várias etapas sucessivas, e que, no caminho, tivessem enfrentado a morte por mais de uma vez. Apesar do nosso salvo-conduto, temíamos ser controlados por alguma patrulha, e mais ainda dar de caras com os homens do bairro sinistrado.

Só ao chegar a casa soubemos a verdade: logo no dia seguinte ao incêndio, tínhamos sido ilibados. Embora padecendo e aniquilado pela perda da sua casa e dos seus livros, o nobre voivoda reunira as pessoas do seu bairro para lhes dizer que nos tinham acusado injustamente; o sinistro fora provocado pelas brasas de um cachimbo de água que uma criada deixara cair sobre um tapete de lã. Várias pessoas do seu séquito tinham sofrido queimaduras mais ou menos superficiais, mas ninguém morrera. Com excepção do jovem estouvado abatido à nossa frente pelos janízaros.

Inquietos com o nosso desaparecimento, Marta, Habib e Hatem vieram por notícias logo no dia seguinte, e tinham-nos naturalmente encaminhado para a casa de Morched Agha. O qual lhes afirmara que nos tinha albergado por uma noite para nos salvar da multidão, e que nós tínhamos partido logo depois. Talvez, sugeriu ele, tivéssemos preferido deixar a cidade durante algum tempo por medo de sermos presos. Os meus agradeceram calorosamente ao nosso benfeitor, o qual lhes pediu que o informassem logo que tivessem notícias, porque, disse, tinha nascido entre nós uma grande amizade. Enquanto eles mantinham esta conversa cortês, Bumeh e eu jazíamos na masmorra debaixo dos seus pés, imaginando que o nosso carcereiro se esforçava para nos fazer escapar às garras da multidão.

- Hei-de fazê-lo pagar, disse eu, tão certo como eu me chamar Embriaco! Ele há-de devolver-me o dinheiro, e será ele a ir parar à masmorra, a menos que seja empalado.

Nenhum dos meus pensou em contrariar-me, mas quando fiquei sozinho com o meu empregado, ele veio suplicar-me:

- Meu senhor, é melhor renunciar a perseguir esse homem!

- Nem pensar. Nem que seja preciso ir até ao grão-vizir!

- Se um caide de um pequeno bairro vos tirou a bolsa e vos subtraiu uma confissão de dívida de cento e cinquenta piastras para vos libertar, quanto achais que seria necessário desembolsar na antecâmara do grão-vizir para obter satisfação?

Respondi:

- Pagarei o que for preciso, mas quero ver esse homem empalado!

Hatem evitou contrariar-me de novo. Limpou a mesa à minha frente, agarrou numa chávena vazia, depois saiu, de olhos baixos. Ele sabe que se não deve ofender o meu amor próprio. Mas também sabe que cada palavra que me dizem cava um sulco no meu espírito, seja qual for a resposta que dê no momento.

De facto, esta manhã já não estou na mesma disposição de ontem. Já não penso em vingar-me antes de abandonar esta cidade. Quero partir, levando os meus. E não quero mais nada com esse maldito livro, parece-me que de cada vez que me aproximar dele, acontecerá uma desgraça. Primeiro o velho Idriss, depois Marmontel. Agora o incêndio. Não é a salvação que esse livro nos traz, mas a calamidade. A morte, o naufrágio, o incêndio. Não quero mais isso, vou-me embora.

Marta também me suplica que deixe esta cidade sem demora. Ela não porá mais os pés no palácio. Está convencida de que as diligências que aí fizesse não serviriam para nada. Ela deseja ir agora a Esmirna - não lhe disseram que o marido se tinha estabelecido para esses lados? Está convencida de que é lá que pode obter esse papel que lhe restituirá a liberdade. Seja, vou levá-la a Esmirna. Se ela lá encontrar o que procura, regressaremos juntos a Gibelet. Onde me casarei com ela, e a levarei para viver em minha casa. Não quero prometer-lho desde já, demasiadas ciladas nos separam ainda desse dia. Mas gosto de acariciar a ideia de que o próximo ano, que se diz ser o da Besta e de mil calamidades profetizadas, será para mim o ano de núpcias. Não o fim dos tempos, mas outro começo.

 

                           A voz de Sabbatai

 

No porto, domingo, 29 de Novembro de 1665

O meu caderno tinha ainda um bom número de páginas em branco, mas com estas linhas inauguro outro, que acabo de comprar no porto. O primeiro já não está na minha posse. Se eu não pudesse voltar a vê-lo, depois de tudo o que nele escrevi desde Agosto, acho que perderia o gosto de escrever, e um pouco o gosto de viver. Mas ele não se perdeu, fui simplesmente forçado a deixá-lo no domicílio de Barinelli, quando o deixei esta manhã à pressa, e tenho esperança de recuperá-lo, já esta noite se Deus quiser. Hatem foi buscá-lo, com algumas outras coisas. Confio na sua habilidade...

Por agora, volto no entanto às peripécias desta longa jornada, em que terei sofrido bastantes vexames. Alguns que esperava, outros que não.

Esta manhã, portanto, quando me preparava para me dirigir à igreja de Pêra com todos os meus, chegou um dignitário turco com grande equipagem. Sem pôr o pé em terra mandou um dos seus procurar-me. Os habitantes do bairro saudavam-no todos com deferência, e alguns deles descobriam-se, depois eclipsavam-se pela ruela mais próxima.

Quando me apresentei, saudou-me em árabe do alto da sua montada ajaezada e eu retribuí-lhe a saudação. Falou-me como se nos conhecêssemos de longa data e chamou-me seu amigo e irmão. Mas os seus olhos franzidos diziam uma coisa muito diferente.

Convidou-me a ir um dia dar-lhe a honra de uma visita a sua casa, e eu respondi polidamente que a honra seria minha, enquanto me perguntava quem poderia ser aquela personagem, e que me quereria. Ele indicou-me então um dos seus homens, dizendo que mo mandaria quinta-feira próxima para que me escoltasse a sua casa. Desconfiado, depois de tudo o que me aconteceu nestes últimos dias, eu não tinha qualquer vontade de ir assim à casa de um desconhecido, e respondi que, infelizmente, devia deixar a cidade antes de quinta-feira por um assunto urgente, mas que aceitaria de bom grado o seu generoso convite para uma próxima estada nesta capital bendita. Para mim mesmo, murmurava: Não tão cedo!

De súbito, o homem tirou do bolso o acto que o meu carcereiro me fizera assinar por logro e coerção. Desenrolou-o, afirmou que o seu nome figurava nele, e disse sentir-se consternado por eu pensar em partir antes de liquidar a minha dívida. É então o irmão do juiz, pensei eu. Mas ele podia muito bem ser qualquer outra personagem poderosa mancomunada com o meu carcereiro, e este ter-lhe-ia destinado a confissão de dívida pretendendo inscrever nela o nome do irmão do juiz. O qual juiz sem dúvida só existe nas maquinações de Morched Agha. «Ah, vós sois o irmão do cádi», disse eu no entanto, a fim de ganhar tempo para reflectir, e para indicar àqueles que nos escutavam que eu não sabia bem quem era aquele homem. O seu tom endureceu:

- Sou irmão de quem eu quero! Mas não de um cão genovês! Quando vais pagar-me o que me deves?

As amabilidades tinham aparentemente terminado.

- Permite-me que veja esse acto? «U

- Tu sabes muito bem o que aqui está escrito! - Respondeu ele, fingindo impaciência.

Mas estendeu-mo, sem o largar, e eu aproximei-me para ler.

- Esse dinheiro, disse eu, só será devido dentro de cinco dias.

- Quinta-feira, na próxima quinta. Virás visitar-me com toda a soma, sem uma aspra a menos. E se tentas esquivar-te daqui até lá, faço-te passar o resto da tua vida na prisão. Os meus homens vão vigiar-te de dia e de noite. Onde ias agora?

- É domingo, ia à igreja.

- Fazes bem, vai à igreja! Reza pela tua vida! Reza pela tua alma! E principalmente despacha-te a encontrar um bom prestamista!

Ordenou a dois dos seus homens que ficassem de sentinela diante da porta da casa, e foi-se embora com o resto da sua equipagem, saudando-me muito menos polidamente que à chegada.

- Que vamos nós fazer agora? - Perguntou Marta. Eu reflecti apenas um instante.

- Aquilo que íamos fazer antes de aquele homem chegar. Vamos à missa.

Na igreja, não rezo com muita frequência. Quando lá vou, é para me deixar embalar pelas vozes cantantes, pelo incenso, pelas imagens, as estátuas, as abóbadas, os vitrais, ou dourados, e vogar em intermináveis meditações, que são mais devaneios, devaneios profanos, por vezes até libertinos.

Deixei de rezar, lembro-me bem, na idade de treze anos. O meu fervor decaiu no dia em que deixei de acreditar em milagres. Deveria contar aqui em que circunstâncias isso aconteceu - hei-de fazê-lo, mas mais tarde. Demasiadas coisas aconteceram hoje, que me preocupam, e não estou com espírito para longas digressões. Queria apenas assinalar que hoje rezei, e que pedi ao Céu um milagre. Esperava-o com confiança, e tinha mesmo - Deus me perdoe! - a sensação de o ter merecido. Sempre fui um comerciante honesto, e mais do que isso, um homem de bem. Quantas vezes estendi a mão a pobres pessoas que Ele mesmo - que Ele me perdoe ainda! - tinha abandonado! Nunca me apropriei dos bens dos mais fracos, nem humilhei aqueles que dependem de mim para a sua subsistência. Por que permitiria ele que alguém se encarniçasse assim contra mim, que me arruinem, que ameacem a minha liberdade e a minha vida?

De pé na igreja de Pêra, fixei sem pudor por cima do altar a imagem do Criador, dominando como o Zeus antigo entre os raios de ouro, e pedi-Lhe um milagre. No momento em que escrevo estas linhas, ainda não sei se o milagre aconteceu. Só o saberei amanhã.

Não antes do amanhecer. Mas houve já, parece-me, um primeiro sinal.

Escutei distraidamente o sermão do padre Thomas, consagrado ao período do Advento, e aos sacrifícios que lhe devemos consagrar para agradecer a Deus por nos ter enviado o Messias. Até ao momento em que, nas últimas frases, ele pediu aos fiéis que consagrassem uma oração fervorosa àqueles, de entre a assistência, que deverão fazer-se ao mar amanhã, para que a sua viagem decorra sem perigos, e que, por bondade do Todo-Poderoso, os elementos não se desencadeiem. Alguns olhos voltaram-se para um cavalheiro, na primeira fila, que tinha debaixo do braço um chapéu de capitão, e que dirigiu ao oficiante uma ligeira reverência de reconhecimento.

Nesse mesmo instante, a solução que eu procurava impôs-se-me ao espírito: partir imediatamente, sem sequer voltar a passar pela casa do senhor Barinelli. Ir directamente para o barco, embarcar, passar lá a noite, para nos afastarmos o mais depressa possível daqueles que nos perseguem. Triste época esta em que o inocente não tem outro recurso senão fugir. Mas Hatem tem razão, se cometo o erro de recorrer às autoridades, arrisco-me a deixar lá a fortuna e a vida. Esses malfeitores parecem tão seguros dos seus actos, não se pavoneariam assim senão tivessem cúmplices nas mais altas esferas. Eu, o estrangeiro, «o infiel», «o cão genovês», nunca obterei justiça contra eles. Se me obstinasse, poria em perigo a minha própria vida e a dos meus próximos.

Ao sair da igreja, fui ter com o capitão do navio, que se chama Beauvoisin, e perguntei-lhe se, por algum acaso, ele não pensaria em fazer escala em Esmirna. A dizer a verdade, no estado de espírito em que me tinha posto esta manhã a visita do meu perseguidor, estava disposto a ir para qualquer lugar. Mas teria assustado o meu interlocutor se o tivesse deixado perceber que procurava fugir. Fiquei feliz ao saber que o navio previa efectivamente fazer escala em Esmirna, para carregar alguma mercadoria e desembarcar o senhor Roboly, o mercador francês que eu encontrara na companhia do padre Thomas, e que desempenhava as funções de embaixador interino. Concordámos num preço, tanto para a passagem como para a alimentação, dez escudos de França, o que dá trezentos e cinquenta maidins, pagáveis metade no embarque e outra metade à chegada. O capitão recomendou-me vivamente que não me atrasasse para a partida, que será aos primeiros alvores do dia, e eu respondi-lhe que para não correr nenhum risco embarcaríamos já esta tarde.

O que fizemos. Vendi as mulas que me restavam, e enviei Hatem a casa de Barinelli para que lhe explicasse a nossa partida precipitada e me trouxesse o meu caderno e algumas outras coisas. Depois subi com Marta e os meus sobrinhos a bordo do navio. Onde nos encontramos neste momento. O meu empregado ainda não voltou. Espero-o a todo o momento. Ele previu entrar em casa do estalajadeiro por uma porta esconsa, nas traseiras, a fim de iludir a vigilância dos nossos perseguidores. Confio na sua habilidade, mas não deixo de estar inquieto. Comi uma refeição muito ligeira, pão, tâmaras, frutos secos. Parece ser a melhor maneira de evitar os enjoos.

Não é no entanto o enjoo que me assusta, neste momento. Sem dúvida fiz bem em embarcar tão à pressa, e não voltar a passar pela casa de Barinelli, mas não posso evitar de pensar que, desde há já algumas horas, certas pessoas nesta cidade começaram a procurar-nos. Se tiverem o braço um pouco longo, e se lembrarem de vir procurar para os lados do porto, nós podemos ser apanhados como malfeitores. Talvez eu devesse confessar ao capitão as razões da minha pressa, ao menos para que ele se mostre discreto acerca da nossa presença a bordo, e saiba o que responder se alguma personagem duvidosa vier à nossa procura. Mas não ousei pô-lo ao corrente das minhas desgraças, com receio de que ele se negasse a transportar-nos.

Esta noite será longa. Até que tenhamos abandonado o porto, amanhã de manhã, todos os ruídos me inquietarão. Senhor, como posso eu ter derivado assim, sem haver cometido o mínimo delito, da condição de negociante honesto e respeitado para a condição de fora da lei?

A este mesmo respeito, ao falar, em frente da igreja, com o capitão Beauvoisin, ouvi-me dizer que viajava com o meu empregado, os meus sobrinhos e a «minha mulher». Sim, tendo.

Desde a minha chegada a Constantinopla, posto fim a esse engano, eis que na véspera da minha partida volto a pôr a moeda falsa em circulação, se assim se pode dizer. E da maneira mais irreflectida possível: estas pessoas em cuja companhia vou viajar não são os anónimos da caravana de Alepo, há entre eles alguns homens bons que conhecem o meu nome, e com os quais eu talvez tenha de lidar um dia.

Já o capitão pôde dizer ao padre Thomas que aceitou transportar-me com a minha mulher. Imagino a cara deste último. Obrigado pelo segredo da confissão, ele não deve tê-lo corrigido, mas adivinho o que ele poderá ter pensado.

O que é que me leva a agir assim? Os espíritos simples dirão que é o amor que, pretensamente, torna as pessoas insensatas. Sem dúvida, mas não é só o amor. Há também a aproximação do ano fatídico, esse sentimento de que os nossos actos não terão continuidade, de que o fio dos acontecimentos se vai quebrar, de que o tempo do castigo nunca mais virá, de que o bem e o mal, o aceitável e o inaceitável se confundirão em breve sob um mesmo dilúvio, e que os caçadores morrerão no mesmo instante que as suas presas.

Mas são horas de fechar este caderno... Foram a espera e a angústia que me levaram a escrever esta noite o que escrevi. Amanhã escreverei talvez uma coisa muito diferente.

Segunda-feira, 30 de Novembro de 1665

Se eu pensava que a manhã me traria a salvação, estou muito desapontado e tenho dificuldade em dissimular a minha angústia aos meus companheiros.

Todo o dia se passou na espera, e tenho dificuldade em explicar àqueles que me interrogam porque é que fico a bordo quando todos os outros passageiros e membros da tripulação aproveitam a paragem para esquadrinhar o mercado. A única explicação que encontrei, é que fiz, durante a minha estada, mais despesas do que previra, que estou portanto com pouco dinheiro, e que não quereria oferecer aos meus sobrinhos nem à «minha mulher» ocasião para me fazerem gastar ainda mais.

A razão do nosso atraso, é que o capitão soube durante a noite que o embaixador de França, Senhor de la Haye, chegara finalmente a Constantinopla para assumir as suas funções, cinco anos depois de haver sido nomeado para suceder a seu pai. Para todos os franceses desta região, um acontecimento considerável, que se espera que restabeleça melhores relações entre a coroa de França e a do Grande Senhor. Fala-se em renovar as Capitulações, assinadas no século passado entre Francisco I e o grande Solimão. O nosso capitão, o armador, bem como o senhor Roboly, fizeram questão de se deslocar junto do embaixador para lhe dar as boas-vindas e apresentar as suas homenagens.

Julgo ter compreendido que por motivo de certas complicações o embaixador ainda não pôs pé em terra, que as conversações com as autoridades sultânicas ainda não foram concluídas, e que o seu barco, o Grande César, está fundeado à entrada do porto. O que faz temer que só partamos amanhã à tarde, o mais cedo, e talvez mesmo depois de amanhã.

Será possível que os nossos perseguidores não pensem, daqui até lá, em vir procurar-nos no porto? A nossa sorte é que eles julguem que partimos para Gibelet por via terrestre, e nos procurem antes para os lados de Scutari, e na estrada de Izmit.

É também possível que essas personagens vesgas tenham usado de basófia para me intimidar, e obrigar-me a pagar-lhes, mas que receiem tanto como eu as complicações que resultariam de umincidente no porto, com súbditos estrangeiros que os embaixadores e os cônsules não deixariam de proteger.

Hatem regressou são e salvo, mas de mãos vazias. Não conseguiu introduzir-se em casa de Barinelli, vigiada à frente e nas traseiras.

O máximo que conseguiu foi enviar ao nosso anfitrião uma mensagem pedindo-lhe que guardasse bem as nossas coisas em sua casa, esperando que pudéssemos recuperá-las.

Sofro por não ter já o meu caderno comigo, e por imaginar que olhos torpes possam desvelar a minha prosa íntima. O véu com que a cubro conseguirá protegê-la? Não devia pensar demasiado nisso, nem inquietar o sangue, nem cultivar o remorso. Mais vale confiar no Céu, na minha boa estrela, e principalmente em Barinelli, por quem sinto a maior afeição, e que quero julgar incapaz de agir indelicadamente.

No mar, primeiro de Dezembro de 1665

Ao acordar, a mais reconfortante das surpresas: já não estávamos no porto. Tinha passado uma noite de náuseas e de insónia, e só com o aproximar da madrugada conseguira encontrar o sono, para acordar a meio da manhã em pleno mar Propontido.

A razão desta partida, é que o senhor Roboly renunciou finalmente à sua viagem para ficar algum tempo junto do embaixador, e informá-lo das coisas que aconteceram na sua ausência, enquanto ele assegurava a interinidade. Por isso o nosso armador considerou inútil demorar-se mais tempo, porque ele próprio não tinha nenhuma obrigação de ir saudar o Senhor de la Haye, só tendo pensado em fazê-lo na companhia do Senhor Roboly.

Assim que me apercebi de que tínhamos partido, o meu enjoo desapareceu, quando normalmente ele ainda se agrava quando nos afastamos do porto.

Se os ventos nos forem favoráveis, e o mar continuar calmo, estaremos em Esmirna, dizem-me, em menos de uma semana. Mas estamos em Dezembro, e seria de espantar que o mar continuasse manso.

Visto que estou agora mais sereno, vou consignar aqui, como tinha prometido, o incidente que me fizera distanciar da religião, e me fizera sobretudo duvidar dos milagres.

Tinha deixado de acreditar, dizia eu, na idade de treze anos. Até então, viam-me constantemente de joelhos, com um rosário na mão, no meio das mulheres vestidas de negro, e sabia de cor as virtudes de todos os santos. Mais de uma vez me dirigi à capela de Ephrem, humilde cela numa rocha, onde viveu outrora um anacoreta dos mais piedosos, cujos inúmeros prodígios são hoje enaltecidos na região de Gibelet.

Um dia, por volta dos treze anos, portanto, ao regressar de uma dessas peregrinações, quando os meus ouvidos ainda ressoavam com uma litania de milagres, não consegui evitar contar ao meu pai a história do paralítico que pudera regressar da montanha a pé, e da louca da aldeia de Ibrine que recuperara a razão no próprio instante em que a sua testa tocara na rocha fria que foi morada do santo. Afligia-me a frouxidão do meu pai relativamente às coisas da Fé, principalmente depois que uma piedosa dama de Gibelet me dera a entender que se a minha mãe morrera tão prematuramente - eu tinha apenas quatro anos, e ela pouco mais de vinte - fora porque à sua cabeceira ninguém rezara com o fervor necessário. Estava pois desgostoso com o meu pai e desejava reconduzi-lo ao bom caminho.

Ele escutou as minhas edificantes histórias sem manifestar nem cepticismo nem assombro. Com o rosto impassível e abanando continuamente a cabeça. Quando esvaziei o meu saco do dia, ele levantou-se tocando-me com a mão no ombro para que eu não me mexesse e foi buscar ao seu quarto um livro que eu tinha visto várias vezes nas suas mãos.

Pousando-o sobre a mesa, ao lado do candeeiro, começou a ler-me, em grego, diversas histórias que contavam, todas elas, curas milagrosas. Omitiu precisar qual o santo que havia operado esses milagres, preferindo, disse, fazer com que eu adivinhasse. Este jogo agradou-me. Sentia-me suficientemente competente para reconhecer o estilo do autor dos prodígios. Santo Arsénio, talvez Ou Bartolomeu? Ou Simão Estilita? Ou talvez Prosérpina? Hei-de adivinhar!

O relato mais fascinante, e que me fizera soltar aleluias, contava que um homem ficara com um pulmão trespassado por uma flecha, que aí se alojara; tendo passado uma noite ao pé do santo, ele sonhou que este lhe havia tocado, e de manhã estava curado; a sua mão direita estava fechada, e quando ele a abriu, achou a ponta da flecha que se havia espetado no seu corpo. Esta história da flecha fez-me crer que podia ser S. Sebastião. Não, disse o meu pai. Pedi-lhe que me deixasse adivinhar outra vez. Mas ele não quis prolongar o jogo, e anunciou-me simplesmente que o autor dessas curas milagrosas era... Asclépio. Sim, Asclépio, o deus grego da medicina, no seu santuário de Epidauro, onde inumeráveis peregrinos se dirigiram, durante séculos. O livro que continha esses relatos era a célebre Périégèse, ou Descrição da Grécia, escrita por Pausanias no segundo século da nossa era.

Quando o meu pai me revelou de que se tratava, fui abalado até ao mais íntimo da minha fé.

- Isso são mentiras, não são?

- Não sei. Talvez sejam mentiras. Mas as pessoas acreditaram nelas o suficiente para voltarem, ano após ano, a procurar a cura no templo de Asclépio.

- As falsas divindades não podem fazer milagres!

- Sem dúvida. Tu deves ter razão.

- E tu, acreditas nisso?

- Não faço a menor ideia.

Levantou-se, e foi colocar o livro de Pausanias no lugar de onde o tinha tirado.

Desde esse dia, nunca mais fui em peregrinação à capela de Ephrem. Também quase não rezei mais. Sem no entanto me ter tornado num verdadeiro descrente. Pouso hoje sobre tudo quanto reza e se ajoelha e se prosterna o mesmo olhar que o meu pai, desiludido, distante, nem respeitoso nem desdenhoso, por vezes intrigado, mas livre de qualquer certeza. E quero acreditar que o Criador prefere, de todas as suas criaturas, justamente aquelas que souberam tornar-se livres. Um pai não fica satisfeito por ver os seus filhos saírem da infância para se tornarem homens, mesmo que as garras nascentes destes o arranhem um pouco? Porque é que Deus havia de ser um pai menos benevolente?

No mar, quarta-feira, 2 de Dezembro

Passámos os Dardanelos e singrámos direitos ao sul. O mar está calmo e eu passeio na ponte, Marta pelo meu braço, como uma dama de França. Os homens da tripulação olham-na furtivamente, apenas o necessário para me fazer sentir quanto me invejam, e mantendo-se respeitosos, de modo que me chego a orgulhar da sua atitude sem sentir ciúme.

Dia após dia, imperceptivelmente, acostumei-me à sua presença, a tal ponto que já não lhe chamo «a viúva», como se essa alcunha não fosse já digna dela; é no entanto com o objectivo de obter a prova da sua viuvez que partimos para Esmirna. Ela está convencida de que obterá satisfação; eu, por mim, estou mais céptico. Receio que voltemos a cair nas mãos de alguns funcionários venais que nos subtraiam piastra a piastra todo o dinheiro que nos resta. Nesse caso, melhor será seguir o conselho que me dera Hatem, e obter uma falsa certidão de óbito. Continuo a não gostar dessa solução, mas não a excluo, como último recurso, se todas as outras vias honestas se fecharem. Está fora de questão, em qualquer caso, regressar a Gibelet abandonando a mulher que amo, e é evidente que não poderíamos regressar juntos ao país sem um papel, autêntico ou forjado, que nos permitisse viver sob o mesmo tecto.

Talvez não o tenha dito bastante nestas páginas, estou agora apaixonado como nunca o estivera na minha juventude. Não que eu queira reavivar as velhas feridas, que sei profundas e ainda não saradas apesar da passagem dos anos - quero apenas dizer que o meu primeiro casamento era um casamento de razão, enquanto aquele que projecto com Marta é casamento de paixão. Um casamento de razão, aos dezanove anos, e aos quarenta anos um casamento de paixão? Assim terá sido a minha vida, não me queixo, venero demasiado aquele de quem devia queixar-me, e não posso censurá-lo por ter querido que eu casasse com uma genovesa. Foi porque os meus avós sempre se casaram com mulheres genovesas que puderam preservar a sua língua, os seus costumes e o apego à sua terra de origem. Nisso, o meu pai não deixava de ter razão, e de qualquer maneira por nada no mundo eu quereria contrariálo. A nossa infelicidade foi termos dado com Elvira.

Era a filha de um negociante genovês de Chipre, tinha dezasseis anos, e o pai, como o meu, estava persuadido de que o seu destino era tornar-se minha mulher. Eu era de certo modo o único jovem genovês naquela parte do mundo, e a nossa união parecia na ordem das coisas. Mas Elvira tinha-se prometido a si mesma a um jovem de Chipre, um grego, a quem amava excessivamente e de quem os pais a queriam afastar, por qualquer meio. Ela viu em mim, desde o primeiro dia, um perseguidor, ou no mínimo um cúmplice dos seus perseguidores, quando eu era tão forçado como ela àquele casamento. Mais dócil, mais ingénuo, curioso de descobrir esses prazeres que se dizem supremos, divertido também com o ritual das festas, mas obedecendo às mesmas exigências paternas.

Demasiado orgulhosa para se submeter, demasiado apaixonada pelo outro para me escutar, ou me olhar ou me sorrir, Elvira foi na minha vida um episódio triste que só a sua morte precoce abreviou. Não ouso dizer que isso me aliviou. Nada, tratando-se dela, evoca para mim o alívio, a paz, nem a serenidade. Toda essa desventura só me deixou uma tenaz prevenção contra o casamento e as suas cerimónias, e também contra as mulheres. Desde os vinte anos de idade que sou viúvo e estava resignado a continuar a sê-lo. Se fosse mais propenso à oração, teria ido viver para um convento. Só as circunstâncias desta viagem me fizeram pôr em causa as minhas desconfianças enraizadas. Mas se sei imitar os gestos dos crentes, continuo a ser, também nesse domínio, um homem que duvida...

Como me é penoso evocar essas velhas histórias! Cada vez que volto a pensar nelas, recomeço a sofrer. O tempo não recompôs nada, ou tão pouco...

Domingo, 6 de Dezembro

Três dias de tempestade, nevoeiro, trovões, ventos de chuva, náusea, vertigem. Os pés fogem-me como os de um afogado. Procuro apoio nas paredes de madeira, nos fantasmas que passam. Tropeço num balde, dois braços estranhos põem-me novamente de pé, volto a cair logo em seguida no mesmo lugar. Por que não fiquei eu em casa, na serenidade da minha loja, a traçar, calmamente, colunas direitas no meu registo? Que loucura me impeliu à viagem? Que loucura, sobretudo, me fez vir para o mar?

Não foi ao morder o fruto proibido que o homem irritou o Criador, mas ao aventurar-se pelo mar! Que pretensioso é avançar de corpos e bens sobre a imensidão fervilhante, traçar rotas por cima do abismo, arranhando com as pontas dos remos as costas dos monstros escondidos, Behemot, Rahad, Leviatan, Abadon, serpentes, bestas, dragões! Está aí o insaciável orgulho dos homens, o seu pecado incessantemente renovado a despeito dos castigos.

Um dia, diz o Apocalipse, muito depois do fim do mundo, quando o Mal tiver por fim sido derrotado, o mar deixará de ser líquido, e não será mais que um continente vitrificado sobre o qual se poderá caminhar a pé enxuto. Acabam-se as tempestades, os afogamentos, as náuseas. Apenas um gigantesco cristal azul.

Entretanto, o mar continua ser o mar. Este domingo de manhã, conhecemos um momento de trégua. Vesti roupas limpas, e pude escrever estas linhas. Mas de novo o sol se cobre de escuro, as horas confundem-se, e sobre a nossa orgulhosa carraca, marinheiros e passageiros agitam-se.

Ontem, no mais forte da tempestade, Marta veio encolher-se de encontro a mim. Com a cabeça no meu peito e a anca colada à minha. O medo tornara-se um cúmplice, um amigo. E o nevoeiro um estalajadeiro complacente. Agarrámo-nos, desejámo-nos, unimos os lábios, e as pessoas passavam à nossa volta sem nos verem.

Terça-feira, 8

Depois da breve aberta de domingo, encontramo-nos de novo no meio das intempéries. Não sei se intempéries é a palavra apropriada, o fenómeno é tão estranho... O capitão disse-me que em vinte e seis anos de navegação em todos os mares, nunca vira uma coisa assim. Não certamente no mar Egeu, em todo o caso. Esta espécie de nevoeiro viscoso que estagna pesadamente, e que o vento não empurra. O ar ficou espesso e tomou uma cor de cinza.

O nosso navio é constantemente sacudido, abalroado, empurrado, mas não avança. Como se estivesse empalado nos dentes de uma forquilha. Tenho subitamente a impressão de não estar em parte nenhuma, e de não ir para parte nenhuma. A minha volta, as pessoas não param de se persignar, movendo os lábios. Eu não devia ter medo, mas tenho medo como uma criança à noite numa casa de madeira, quando a última vela se apagou e as tábuas rangem. Procuro Marta com o olhar. Está sentada, de costas para o mar, à espera que eu acabe de escrever. Tenho pressa de arrumar a minha escrivaninha para lhe ir pegar na mão e conservá-la muito tempo na minha, como naquela noite na aldeia do alfaiate, em que dormimos na mesma cama. Ela era então a intrusa na minha viagem, e agora é a bússola dessa viagem. O amor é sempre uma intrusão. O acaso faz-se carne, a paixão faz-se razão.

O nevoeiro torna-se ainda mais espesso, e o sangue pulsa nas minhas têmporas.

Quarta-feira, 9

É o crepúsculo ao meio-dia, mas o mar já não nos sacode. Tudo está calmo no barco, as pessoas não se interpelam, e quando falam, é em voz baixa e receosa como se estivessem na presença de um rei. Os albatrozes voam baixo acima das nossas cabeças, e também outras aves, de plumagem negra, cujo nome ignoro, e que soltam gritos desagradáveis.

Surpreendi Marta a chorar. Não queria dizer-me a razão, e pretendia que era apenas do cansaço e das angústias da viagem. Quando insisti, acabou por confessar:

- Desde que nos fizemos ao mar, qualquer coisa me diz que nunca chegaremos a Esmirna.

Uma premonição? O eco da sua angústia, e de todas as suas desgraças?

Depressa a fiz calar, depressa lhe pus a mão na boca como se pudesse ainda impedir a sua frase de partir pelo éter para os ouvidos do Céu. Supliquei-lhe que nunca mais pronunciasse semelhante frase num barco. Não devia ter insistido para a fazer falar. Mas - Senhor! - como poderia eu adivinhar que ela era tão desprovida de superstição? Não sei se devo admirá-la por isso ou se devo assustar-me.

Hatem e Habib segredam sem parar, ora graves, ora divertidos, e calam-se assim que eu me aproximo.

Quanto a Bumeh, passeia pela ponte, de manhã à noite, mergulhado em insondáveis meditações. Silencioso, absorto, tendo ao canto dos lábios aquele sorriso distante que não é um sorriso. A penugem da sua barba continua rala, quando o irmão mais novo se barbeia há três anos. Talvez ele não olhe bastante para as mulheres. Não olha para nada, aliás, nem homens nem cavalos nem enfeites. Só conhece a pele dos livros. Várias vezes passou ao pé de mim sem me ver.

Mas à noite, veio propôr-me uma adivinha:

- Conheces as sete Igrejas do Apocalipse?

- Já li os nomes delas, há Éfeso, e Filadélfia, e Pérgamo, creio, e Sardes, e Tiatira...

- É isso, Tiatira, é a que eu tinha esquecido.

- Espera, isso são apenas cinco!

Mas, sem esperar, o meu sobrinho pôs-se a recitar, como para si mesmo:

- Eu, João, vosso irmão e companheiro na perseguição, na realeza e na tolerância com Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho por Jesus. Era o dia do Senhor; fui inspirado pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz poderosa, semelhante ao som de uma trombeta. Dizia: "Aquilo que vês, escreve-o num livro e envia-o às sete Igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatria, Sardes, Filadélfia e Laodiceia."

Senhor! Por que me tinha eu esquecido de Esmirna?

Sexta-feira, 11

O pressentimento de Marta era falso, chegámos a Esmirna.

Visto que agora tenho os pés em terra firme, posso enfim escrevê-lo sem que a mão me trema: também eu tinha, ao longo de toda a travessia, a mesma impressão que ela. Mais que uma impressão, uma convicção atroz. E um aperto nas entranhas, que me esforçava corajosamente por esconder dos outros. Tinha, é verdade, a sensação de ter embarcado para a minha última viagem. Talvez esta seja, afinal, a minha última viagem, mas não terá terminado antes da etapa de Esmirna. Só me perguntava como chegaria o fim. A princípio, quando a tempestade se desencadeou, convencera-me de que íamos morrer num naufrágio. Depois, à medida que o mar e o céu se acalmavam, e que ao mesmo tempo escureciam, os meus receios tornavam-se mais ambíguos, menos confessáveis. Não tinha já os medos normais de todos aqueles que embarcam, não percorria o horizonte à procura dos piratas, ou da tempestade, ou dos monstros de que se fala, não receava o fogo, nem a epidemia, nem os rombos, nem cair pela borda fora. Já não havia horizonte, nem borda. Só aquele crepúsculo ininterrupto, só aquele nevoeiro viscoso, aquela nuvem baixa de fim do mundo.

Estou convencido de que todos os meus companheiros de travessia tinham a mesma sensação. Adivinhava-o pelos seus olhares de condenados incrédulos, e pelos seus murmúrios. Também vi com que pressa desembarcaram.

Deus seja louvado, estamos agora na terra de Esmirna.

Está ainda crepúsculo, é verdade, mas o crepúsculo na sua hora devida. Desde que entrámos na baía, o céu desanuviou-se. Amanhã veremos o sol.

Em Esmirna, sábado, 12 de Dezembro de 1665

Dormimos no convento dos capuchinhos, e eu sonhei com um naufrágio. Enquanto estava no mar, passava os dias receoso, mas quando adormecia, sonhava que estava em terra firme, na minha casa de Gibelet.

Os religiosos acolheram-nos cortêsmente, mas sem solicitude. No entanto, eu fizera-me recomendado pelo padre Thomas de Paris, um pouco abusivamente, é certo. Se lhe tivesse pedido uma carta de recomendação, ele ter-ma-ia dado. As coisas aconteceram tão depressa que nem sequer o avisei da minha partida iminente. Não queria que os meus perseguidores, em Constantinopla, deslocando-se à igreja, pudessem saber da sua boca onde tinha eu ido. Sem dúvida poderia pedir-lhe que não dissesse nada, mas então teria sido necessário explicar-lhe por que era perseguido, e incitá-lo a mentir para me proteger... Em suma, vim sem recomendação, e fiz como se a tivesse. Até chamei ao padre Thomas «meu confessor», descrição que não era mentirosa, embora abusiva e um pouco gabarola.

Mas não era disso que eu queria principalmente falar hoje. Quis seguir a cronologia das minhas notas, falar primeiro da noite passada, do meu sonho. Antes de chegar ao essencial. Às coisas estranhas que se passam nesta cidade, e que em todo o lado me relatam. As minhas fontes são numerosas. Sendo a principal delas um velho capuchinho, o padre Jean-Baptiste de Douai, que vive há vinte anos no Levante, e que, antes, vivera quinze anos em Génova, da qual mantém a nostalgia, e que venera como se fosse a sua cidade natal; diz-se lisonjeado por conversar assim com um descendente dos gloriosos Embriaci, e abre-me o seu coração como se me conhecesse desde a infância. Mas também me fio, para aquilo que vou relatar, noutros estrangeiros que encontrei hoje, bem como em pessoas daqui.

Todos afirmam que um homem desta cidade, um judeu chamado Sabbatai, ou Shabtai, ou ainda Shabethai, se proclamou Messias, e anuncia o fim do mundo para 1666, fixando uma data precisa, no mês de Junho, acho eu. O mais estranho, é que a maioria das pessoas de Esmirna, mesmo entre os cristãos ou os turcos, e mesmo entre aqueles que troçam da personagem, parecem persuadidas de que a sua profecia se cumprirá. Até o padre Jean-Baptiste em pessoa, que afirma que a aparição de falsos messias é justamente o sinal que confirma a iminência do fim dos tempos.

Dizem-me que os judeus não querem trabalhar, que passam os dias em preces e jejuns rituais. As suas lojas estão fechadas, e os viajantes têm grande dificuldade em encontrar um cambista. Não pude confirmá-lo hoje, nem ontem à tarde, porque é o seu sabbat, mas hei-de verificá-lo amanhã, que é dia do Senhor para nós mas não para os judeus nem para os turcos. Irei ao seu bairro, situado no flanco da colina, na direcção do velho castelo, enquanto os estrangeiros, que são aqui principalmente ingleses e holandeses, residem à beira mar, dos dois lados da avenida junto ao porto. Poderei ver então com os meus olhos se me disseram a verdade.

13 de Dezembro

Os judeus gritam prodígio, e para mim, que sempre vivi num país otomano, é realmente um prodígio: o seu pretenso messias está são e salvo, vi-o com os meus próprios olhos sair livre para a rua, cantar em altos gritos! No entanto, esta manhã, toda a gente o dav; por morto.

Foi convocado pelo cádi que dita a lei em Esmirna, e que tem o hábito de castigar com o maior rigor sempre que a ordem pública é ameaçada. Ora, o que se passa em Esmirna é, para as autoridades, mais do que uma ameaça, um desafio inaudito, para não dizer um insulto. Já ninguém trabalha. Não só os judeus. Nesta cidade, que é uma daquelas onde se encontram mais comerciantes estrangeiros, já não se compra nem se vende nada. Os carregadores do porto não querem carregar nem descarregar as mercadorias. As lojas e oficinas estão fechadas, e as pessoas juntam-se nas praças, a conversar sobre o fim dos tempos e o aniquilamento dos impérios. Diz-se que começam a chegar delegações dos países mais distantes para se prosternarem aos pés de Sabbatai, a quem os seus partidários chamam não apenas messias mas também rei dos reis.

Digo os «seus partidários», e não «os judeus», porque estes ,estão muito divididos. A maior parte acredita que é ele o Esperado anunciado pelos profetas, mas alguns rabinos vêem nele um impostor e um profanador, porque se permite pronunciar em vão o nome de Deus, coisa proibida entre os judeus. Os seus partidários dizem que nada pode ser interdito ao Messias, e que essa transgressão é na verdade o sinal de que este Sabbatai não é um fiel como os outros. Os conflitos entre estas duas facções continuam, ao que parece, há já meses, sem que a coisa transpirasse para fora da sua comunidade. Mas desde há alguns dias, a controvérsia assumiu uma feição muito diferente. Eclodiram incidentes nas ruas, judeus acusaram outros judeus de serem descrentes, diante de uma multidão de cristãos e de turcos que não compreendiam nada.

E ontem ocorreu um incidente grave, à hora da prece, numa grande sinagoga a que aqui chamam sinagoga portuguesa. Os adversários de Sabbatai estavam lá reunidos, e não queriam que ele lá fosse. Mas ele chegou, rodeado pelos seus partidários, e começou a demolir à machadada a porta do edifício. Foi por motivo desse incidente que o cádi decidiu convocá-lo. Fiquei a saber do caso esta manhã, muito cedo, pela boca do padre Jean-Baptiste, que se interessa de perto por esses acontecimentos. Foi ele que me encorajou a ir postar-me diante da residência do cádi, para ver chegar Sabbatai, e informá-lo daquilo que visse. Não me fiz rogado, a minha curiosidade fica cada dia mais aguçada, e sinto como um privilégio ser assim testemunha de tão sérias perturbações. Um privilégio e também - por que hei-de continuar a temer esta palavra - um sinal. Sim, um sinal. Como designar de outro modo aquilo que acontece? Parti de Gibelet por causa de todos os rumores acerca do ano da Besta, e vi-me alcançado na estrada por uma mulher a quem sempre falaram de Esmirna porque é precisamente aqui que o seu marido teria sido visto pela última vez! Por amor dela, vim ter a esta cidade, e eis que descubro que é precisamente aqui e agora que o fim do mundo é anunciado. Estamos apenas a alguns dias de 1666, e começo a perder as minhas dúvidas como outros perdem a fé. Por causa de um falso messias, perguntar-me-ão? Não, por causa daquilo que vi hoje, e que a minha razão já não me permite compreender.

A residência do cádi não pode comparar-se com os palácios de Constantinopla, mas é de longe a mais imponente de Esmirna. Três andares de finas arcadas, um portal diante do qual só se passa de cabeça baixa, e um vasto jardim onde pastam os cavalos da guarda. E que o cádi não é apenas juiz, mas faz também as vezes de governador. E se o sultão é o homem de Deus na terra, o cádi é o homem do sultão na cidade. É a ele que compete manter os súbditos no temor, sejam eles turcos, arménios, judeus ou gregos, ou mesmo estrangeiros. Não se passa uma semana sem que um homem seja supliciado, enforcado, empalado, decapitado ou, se a personagem é de alta estirpe e a Porta assim o decide, respeitosamente estrangulado. Por isso as pessoas nunca se aproximam demasiado da residência.

E ainda esta manhã, se os basbaques eram uma multidão nas vizinhanças, estavam disseminados pelas ruelas do bairro, a espiar, prontos a sumir-se ao primeiro alerta. Entre eles, numerosos judeus de barrete vermelho, que conversavam febrilmente em voz baixa, mas também muitos comerciantes estrangeiros, vindos como eu para assistir à cena.

De súbito, um clamor. «Lá está ele!», disse-me Hatem, indicando-me com o dedo um homem de barba ruiva, vestindo uma longa capa e um gorro ornado de pedrarias. Atrás dele iam uns quinze dos seus próximos, enquanto uma centena de outros os seguiam à distância. Caminhava a passo lento mas decidido, como convém a um dignitário, e de súbito começou a cantar, em voz baixa, e agitando as mãos como se arengasse à multidão. Atrás dele, alguns adeptos simulavam cantar também, mas as suas vozes não lhes saíam das gargantas, só se ouvia a voz dele. A nossa volta, outros judeus sorriam de contentamento, enquanto espreitavam pelo canto do olho um pequeno grupo de janízaros que montava guarda.

Sabbatai passou muito perto deles sem os olhar, e continuando a entoar os seus cantos ainda com mais vigor. Eu estava persuadido de que eles iam agarrá-lo, maltratá-lo, mas limitaram-se a largos sorrisos divertidos, como que para lhe dizer: «Vamos a ver com que garganta vais cantar quando o cádi tiver pronunciado a sentença!»

A espera foi longa. Muitos judeus oravam abanando o busto, alguns já choravam. Quanto aos mercadores da Europa, alguns mostravam-se preocupados, outros pareciam trocistas, ou desdenhosos, cada qual segundo o seu sentir. Mesmo no seio da nossa pequena companhia, nem todos tínhamos a mesma atitude. Bumeh estava radiante, muito orgulhoso de constatar que o rumo dos acontecimentos confirma já as suas previsões para o próximo ano; como se, por se ter mostrado perspicaz, ele tivesse direito a um tratamento de favor na hora do apocalipse! O irmão, entretanto, já se esqueceu do falso messias e do apocalipse, não tendo outra, preocupação além de mirar uma jovem judia que está descuidadamente encostada a uma parede, a alguns passos de nós, com um pé descalço e curvado; de vez em quando, lança um olhar ao meu sobrinho, e sorri escondendo a parte baixa do rosto. À frente dela, um homem, que poderia ser seu marido ou seu pai, volta-se por vezes, de sobrancelhas franzidas, como se desconfiasse de alguma coisa, mas não vê nada. Só Hatem segue, como eu, essas galantes manobras que toda a gente sabe antecipadamente que não darão em nada, mas é de crer que o coração muitas vezes se alimenta dos seus próprios desejos, e até que ele se esvazia depois de os saciar. Quanto a Marta, manifestou muita compaixão pelo homem que ia ser condenado, depois debruçou-se para mim para me perguntar se não teria sido perante esse mesmo juiz de Esmirna, e naquele mesmo edifício, que o seu próprio marido fora conduzido, há alguns anos, antes de ser enforcado. E acrescentou, murmurando: «Deus tenha misericórdia dele!» Quando devia pensar, como eu, de resto: - Prouvera que possamos obter a prova disso!

De súbito, um novo clamor: o condenado saiu! Nada condenado, aliás, saiu livre, seguido de todos os seus, e quando aqueles que o esperavam o viram sorrir e fazer-lhes sinal, puseram-se a gritar: «A direita do Eterno fez brilhar o seu poder!» Sabbatai respondeu-lhes com uma frase semelhante, depois recomeçou a cantar, como à chegada, e desta vez muitas outras vozes ousaram erguer-se, sem no entanto cobrirem a dele. Porque ele gritava, até se esfalfar, e tinha o rosto vermelho.

Os janízaros que estavam de guarda não sabiam que dizer. Em tempo normal, já teriam actuado, de sabre no ar. Mas aquele homem saía livre de casa do juiz, como poderiam eles prendê-lo? Seriam eles próprios culpados de desobediência. Por isso resolveram não intervir. E decidiram mesmo, a uma ordem gritada pelo comandante, ir abrigar-se no jardim do palácio. Algumas pessoas puseram-se a gritar, em hebraico e em espanhol: «Viva o rei Sabbatai!» Depois partiram, em cortejo e cantando cada vez mais alto, em direcção ao bairro judeu. Desde aí, toda a cidade está em ebulição.

Um prodígio, dizia eu? Sim, um prodígio, como poderia eu designar a coisa de outro modo? Neste país têm-se cortado cabeças por trinta vezes menos do que aquilo que eu vi hoje! Até depois de anoitecer, desfilam cortejos em todos os sentidos, chamando os habitantes de todas as crenças ora ao regozijo, ora à penitência e ao jejum! Anunciando o advento dos tempos novos, os tempos da Ressurreição. Chamam ao ano que vem não o «ano da Besta», mas o «ano do Jubileu». Por que razão? Ignoro-o. O que parece evidente, em contrapartida, é que eles parecem felizes por ver terminar estes tempos que não lhes trouxeram, dizem eles, mais que humilhações e perseguições e sofrimentos. Mas o que serão os tempos futuros? Como será o mundo depois do fim do mundo? Será preciso que morramos primeiro num qualquer cataclismo, para que sobrevenha a Ressurreição? Ou será isso apenas o começo de uma nova era, de um novo reino, o reino de Deus restabelecido na terra, depois de todos os governos humanos terem demonstrado século após século a sua injustiça e a sua corrupção?

Esta noite, em Esmirna, cada qual tem a impressão de que esse reino está às nossas portas, e que os outros, incluindo o do sultão, serão destruídos. Será por isso que o cádi deixou Sabbatai partir em liberdade? Procuraria ele poupar o soberano de amanhã, como o fazem tantas vezes os altos dignitários quando sentem mudar os ventos?

Um mercador inglês disse-me hoje, num tom entendido, que os judeus pagaram uma elevada soma ao juiz para que deixasse sair o «seu rei» são e salvo. Quando a Sublime Porta tiver conhecimento do que se passou hoje em Esmirna, será a cabeça do cádi que cairá! Nenhum homem prudente assumiria semelhante risco! Devo acreditar no que me disse um mercador judeu recentemente chegado de Ancona, a saber que o juiz turco, quando se achou na presença de Sabbatai, ficou ofuscado por uma luz misteriosa, e foi tomado de tremuras; tendo-o acolhido sem se levantar, e dirigindo-se-lhe num tom humilhante, acompanhou-o depois à saída rendendo-lhes homenagens, e suplicando-lhe que lhe perdoasse o seu comportamento inicial. Também nisso tenho dificuldade em acreditar. Estou confuso, e nada do que ouço me satisfaz.

Talvez veja mais claro amanhã.

Segunda-feira, 14 de Dezembro de 1665

Ainda hoje estou tentado a gritar prodígio, mas não quero aviltar esta palavra usando-a na sua acepção vulgar. Por isso falarei antes de inesperado, de imprevisto e de coincidência bendita: acabo de encontrar numa rua de Esmirna o homem com quem mais queria conversar.

Tinha dormido pouco a noite passada. Tudo aquilo que se passa me perturba no mais alto grau, estou constantemente a voltar-me sobre mim mesmo, na cabeça e na cama, a perguntar-me em que devo acreditar, em quem acreditar, e como preparar-me para as perturbações que se anunciam.

Lembro-me de ter escrito na véspera da partida que a minha razão ameaçava vacilar. Como diabo poderia ela não vacilar? No entanto esforço-me continuamente por desenredar os fios do mistério, serenamente, tão serenamente como me é possível fazê-lo. Mas já não posso encerrar-me dia e noite na cidadela da razão, de olhos fechados, com as palmas das mãos apertadas contra os ouvidos, a repetir a mim mesmo que tudo isso é falso, que o mundo inteiro está enganado, e que os sinais só se tornam sinais porque as pessoas estão à espreita deles.

Desde que saí de Gibelet e até ao fim da minha estada em Constantinopla, não me aconteceu, admito-o, nada de extraordinário, nada que não possa explicar-se pelas peripécias da vida. A morte de Marmontel depois da do velho Idriss? No momento, esses desaparecimentos abalaram-me, mas está na ordem das coisas que um velho morra e que um barco naufrague. E também o caso para o incêndio no palácio do nobre coleccionador valáquio. Numa grande cidade onde tantas construções são de madeira, tais desastres são coisa corrente. é verdade que, em cada um desses casos, estava em causa o livro de Mazandarani. Em tempo normal, isso ter-me-ia titilado, intrigado; eu teria debitado alguns adágios de circunstância; depois voltaria às minhas preocupações de comerciante.

Foi durante a viagem por mar que a cidadela da razão foi abalada, digo-o com toda a lucidez. E com toda a lucidez reconheço também que nenhum incidente notável se produziu que possa justificá-lo. Apenas impressões, das mais vagas: aqueles dias anormalmente escuros; aquela tempestade, que se desencadeou tão bruscamente e tão bruscamente passou; e todas aquelas pessoas que se movimentavam em silêncio entre o nevoeiro, como se já não fossem mais que almas penadas.

Depois assentei os pés no porto de Esmirna. Em passo pouco firme, mas esperando recuperar lentamente os sentidos, e voltar a ser, nesta cidade onde tantos mercadores europeus gostam de permanecer, o mercador genovês que sou, que sempre fui.

Infelizmente, os acontecimentos que se produzem desde a minha chegada não me dão tempo para recuperar os sentidos. Já não posso falar de circunstâncias fortuitas, e proceder como se, ao fim desta viagem provocada pelo medo do ano que vem, fosse o puro acaso que me conduziu ao próprio lugar onde o fim dos tempos ia ser proclamado. Em Esmirna, enquanto ao partir de Gibelet não pensava de modo nenhum em dirigir-me a esta cidade! Tive de mudar o meu itinerário por causa de uma mulher que nem sequer devia fazer parte da viagem. Como se Marta estivesse encarregada de me conduzir ao lugar onde o meu destino me esperava. Onde, de súbito, todas as peripécias do caminho adquiriram enfim o seu sentido.

Agora, cada um dos acontecimentos que me conduziram até aqui aparece, se não como um sinal, ao menos como um marco no itinerário sinuoso que a Providência me traçou, e que eu segui de uma etapa à outra acreditando ser o meu próprio guia. Devo continuar a fazer de conta que sou eu próprio que tomo as decisões? Devo, em nome da razão e do livre arbítrio, pretender que foi a minha vontade que me fez vir até Esmirna, e que foi o acaso que me fez desembarcar aqui no momento preciso em que aqui se anunciava o fim dos tempos? Não estarei eu a chamar lucidez àquilo que não passa de cegueira? Já fiz esta pergunta a mim mesmo, e parece-me que deveria fazê-la ainda por mais de uma vez, sem esperar resposta...

Por que estou eu a dizer tudo isto, e a debater assim comigo mesmo? Sem dúvida porque o amigo que hoje encontrei me fez o discurso que eu próprio teria feito há alguns meses, e que tive vergonha de contradizê-lo de olhos nos olhos, revelando-lhe assim a fraqueza do meu espírito.

Mas antes de evocar mais demoradamente esse encontro, talvez deva relatar os acontecimentos deste dia.

Tal como ontem, e como anteontem, a maioria das pessoas de Esmirna quase não trabalharam. Logo de manhã, correu o boato de que Sabbatai tinha proclamado que esta segunda-feira era um novo sabhat, que devia ser observado como o outro. Não me souberam dizer se ele tinha falado deste dia de hoje ou de todas as segundas-feiras futuras. Um mercador inglês que encontrei na rua fez-me notar que entre a sexta-feira dos turcos, o sábado dos judeus e o nosso domingo e agora a segunda-feira de Sabbatai, as semanas de trabalho efectivo vão ser muito reduzidas. Por enquanto, em todo o caso, como disse mais acima, ninguém pensa em trabalhar, com excepção no entanto dos mercadores de doçarias, para quem estes dias de gozos inesperados são uma sorte. As pessoas deambulam continuamente, não apenas os judeus mas principalmente eles, que andam de festa em festa, de procissão em procissão, e que discutem com fervor.

Passeando esta tarde nas proximidades da sinagoga portuguesa, assisti numa praceta a uma cena estranha. Uma multidão reunida à volta de uma jovem caída no chão diante da porta de uma casa, e que parecia tomada de convulsões. Pronunciava frases entrecortadas, de que nada compreendi, a não ser algumas palavras dispersas, «o Eterno», «os cativos», «o teu reino», mas as pessoas pareciam atentas a cada respiração, e alguém atrás de mim explicou ao seu vizinho:

«É a filha de Eliakim Haber. Faz profecias. Vê o rei Sabbatai sentado no seu trono.» Afastei-me, enquanto a jovem continuava a profetizar. Não me sentia à vontade. Como se me tivesse introduzido na casa de um moribundo sem ser da família, nem sequer do bairro. E além disso, devo acreditar que o destino me esperava noutro sítio. Ao abandonar a praça, tinha-me precipitado por uma série de ruelas, em passo decidido, como se soubesse sem sombra de dúvida onde ia e com quem ia encontrar-me.

Desemboquei numa rua mais larga, onde se tinham concentrado algumas pessoas, olhando todas na mesma direcção. Chegava um cortejo. A cabeça, Sabbatai, que vi pela segunda vez em dois dias. Também desta vez ele cantava em voz alta. Não um salmo, nem uma prece, nem uma aleluia, mas, estranhamente, uma canção de amor, um velho romance espanhol. «Encontrei Meliselda, a filha do rei, radiosa e bela.» O rosto do homem era ruivo, como a sua barba, e o seu olhar brilhava como o de um jovem apaixonado.

De todas as casas da rua, as pessoas tinham tirado os seus tapetes mais preciosos, para os estenderem no chão à frente dos pés dele, de modo que nem uma única vez teve de pisar a areia ou o saibro. Embora estejamos em Dezembro, não faz muito frio nem chove, está antes um sol apenas um pouco velado, que banha a cidade e as suas gentes numa luminosidade primaveril. A cena a que assisti não poderia ter-se desenrolado debaixo de chuva. Os tapetes ter-se-iam enterrado na lama, e o romance espanhol só teria inspirado lágrimas de nostalgia. Em vez disso, neste suave dia de Inverno, o fim do mundo não é acompanhado de nenhuma tristeza, de nenhuma mágoa. O fim do mundo apareceu-me por instantes como o começo de uma longa eternidade de festa. Sim, eu, o intruso - mas hoje havia no bairro dos judeus muitos outros intrusos além de mim - já me perguntava a mim mesmo se não estivera errado ao recear a aproximação do ano fatídico. Dizia também a mim mesmo que este período, que me habituei a colocar sob o signo do medo, me fizera conhecer o amor, e me fazia viver mais intensamente do que em qualquer outra época. Ia mesmo ao ponto de dizer que me sentia hoje mais jovem do que aos vinte anos, a ponto de me persuadir que esta juventude continuaria indefinidamente. Quando chegou um amigo que me confundiu de novo com o apocalipse.

Maimoun. Maldito seja ele, bendito seja.

Ultimo cúmplice da minha razão destroçada, coveiro das minhas ilusões.

Caímos nos braços um do outro. Eu feliz por apertar nos braços o meu melhor amigo judeu, e ele feliz por fugir de todos os judeus da terra para se refugiar nos braços de um «gentio».

Ele caminhava mesmo na cauda do cortejo, com ar ausente, acabrunhado. Assim que me viu, saiu da fila, sem a mínima hesitação, para me arrastar para longe.

- Vamos embora deste bairro! Preciso de te falar! Descemos a colina, em direcção à grande escarpa onde residem os comerciantes estrangeiros.

- Há um estalajadeiro francês que acaba de se instalar perto da alfândega, disse Maimoun, vamos cear a casa dele e beber o seu vinho.

A caminho, começou a contar-me as suas desgraças. O pai, tomado de um súbito fervor, decidira vender por tuta-e-meia tudo o que possuía para vir a Esmirna.

- Perdoa-me, Baldassare, meu amigo, há coisas que eu te escondi durante as nossas longas conversas. Elas ainda eram secretas, e eu não queria trair a confiança dos meus. Agora, tudo veio a lume, para nossa desgraça. Tu, antes de chegares a Esmirna, nunca tinhas ouvido falar do nome de Sabbatai Tsevi. Salvo talvez em Constantinopla...

- Não, confessei eu, nem isso. Só depois de estar em Esmirna.

- Eu, encontrei-o no Verão passado, em Alepo. Ficou lá várias semanas, e o meu pai até o convidou para nossa casa.

Era muito diferente da personagem que vês hoje. Discreto, falava com modéstia, não se dizia nem rei nem messias e não se pavoneava pelas ruas a cantar. Por isso, a sua visita a Alepo não suscitou agitação fora da nossa comunidade. Mas entre nós, foi o começo de um debate que ainda continua. Porque, na roda de Sabbatai, se murmurava já que ele era o Messias esperado, que um profeta de Gaza chamado Nathan Achkenazi o reconhecera como tal, e que ele se manifestaria dentro de pouco tempo. As pessoas estavam e continuam divididas. Recebemos do Egipto três cartas que afirmavam todas elas que aquele homem era indubitavelmente o Messias, enquanto de Jerusalém, um hakham dos mais respeitados escreveu para nos dizer que esse homem era um impostor, e que se devia desconfiar das suas palavras e de cada um dos seus gestos. Todas as famílias estavam divididas, a nossa mais que todas. O meu pai, desde o primeiro instante em que lhe falaram de Sabbatai, viveu sempre na espera do seu advento. Enquanto eu, seu filho único, carne da sua carne, não acreditei nisso nem por um instante. Tudo isto vai acabar muito mal. A nossa gente, que vive desde há séculos na discrição, na contenção, sem elevar a voz, começa de súbito a gritar que o seu rei vai em breve governar o mundo inteiro, que o sultão otomano vai ajoelhar-se diante dele e oferecer-lhe o seu próprio trono. Sim, eles dizem em voz alta coisas tão insensatas, sem pensarem um instante que a cólera do sultão poderia desencadear-se contra nós. Pára de temer o sultão, diz-me o meu pai, ele que passou a vida a recear a sombra do mais ínfimo funcionário enviado pela Porta Sublime! Porquê temer o sultão? O seu reinado acabou, a era da Ressurreição vai começar em breve! O meu pai queria absolutamente partir para Constantinopla, como eu te disse, e fui eu que parti em seu lugar, com receio de que ele não pudesse suportar as provas da viagem. Ele tinha prometido esperar por mim, e eu tinha prometido regressar com a opinião dos maiores hakhams, aqueles que são unanimemente respeitados por todos os nossos. Eu mantive a minha promessa, mas o meu pai não. Assim que cheguei à capital, tratei de visitar um após outro os homens mais eruditos, tendo o cuidado de anotar cada uma das suas palavras. Mas o meu pai estava demasiado impaciente, não esperou por mim. Um dia soube que ele deixara Alepo com dois rabinos e alguns outros notáveis. A sua caravana passou por Tarso duas semanas depois da nossa, depois seguiu a estrada costeira até Esmirna. Antes de sair de casa, vendera ao desbarato tudo aquilo que possuíamos. - Por que fizeste isso? - perguntei-lhe. E ele respondeu: - Para que nos serviriam ainda algumas pedras em Alepo, se a era da Ressurreição já começou? - "Mas se esse homem não fosse o Messias? E se o tempo da Ressurreição ainda não tiver chegado? - O meu pai respondeu-me: -   Se não queres partilhar a minha alegria, não és meu filho! - Sim, ele vendeu tudo, depois veio lançar o dinheiro aos pés de Sabbatai. Que, para mostrar o seu reconhecimento, acaba de nomeá-lo rei! Sim, Baldassare. O meu pai foi nomeado rei, devemos celebrar o seu advento. Eu já não sou filho do joalheiro Isaac, mas filho do rei Asa! Tu deves-me veneração», disse-me Maimoun tomando uma bela golada de vinho de França.

Eu estava um pouco embaraçado, sem saber até que ponto devia associar-me aos seus sarcasmos.

- Talvez eu deva precisar, acrescentou o meu amigo, que Sabbatai nomeou hoje nada menos de sete reis, e ontem uma dezena. Nenhuma cidade acolheu tantos reis ao mesmo tempo!

Assim apresentados, os acontecimentos tão estranhos a que acabo de assistir aparecem efectivamente como uma desoladora bufonaria. Devo acreditar no que me diz Maimoun? Ou deveria, pelo contrário, contradizê-lo, explicar-lhe por que estou eu próprio tão abalado, eu que no entanto já há muito tempo não acreditava em milagres, e que durante muito tempo desprezei em silêncio aqueles que acreditavam?

Não, não argumentei com ele, não lhe fiz frente. Teria vergonha de lhe confessar que eu próprio, sem ser de modo nenhum judeu nem esperar o que eles esperam, estou abalado por tantas coincidências inexplicáveis, por tantos sinais. Teria vergonha de ler nos seus olhos a decepção, o desprezo por este «espírito fraco» em que me tornei. Como também não queria dizer-lhe o contrário daquilo que penso, limitei-me a escutá-lo.

Desejo que ele tenha razão. Com todo o meu ser espero que o ano de 1666 seja um ano normal, com alegrias normais, mágoas normais, e que eu o atravesse com todos os meus do ano novo ao ano novo como já passei quarenta outros anos. Mas não consigo convencer-me disso. Nenhum de todos esses anos se anunciaram deste modo. Nenhum se fizera anteceder de um rasto de sinais. Quanto mais ele se aproxima, mais o tecido do mundo se desfaz, como se os fios fossem servir para uma nova tecedura.

Perdoa-me, Maimoun, meu razoável amigo, se sou eu que me engano, como eu te perdoo se foste tu que te enganaste. Perdoa-me também por ter fingido aprovar-te, enquanto estávamos sentados à mesa do teu estalajadeiro francês, para vir responder-te à noite nestas páginas, sem tu saberes. Como fazer de outro modo? As palavras que proferimos deixam marcas nos corações, aquelas que escrevemos enterram-se e arrefecem sob uma tampa de couro morto. Principalmente as minhas, que ninguém virá ler.

15 de Dezembro de 1665

Restam apenas deste ano dezassete dias, e Esmirna é varrida desde a alfândega até à velha cidadela pelo vento dos boatos. Alguns são alarmistas: o sultão teria ordenado pessoalmente que Sabbatai fosse posto a ferros e conduzido a Constantinopla sob forte escolta; mas à noite, o pseudo-messias continuava em sua casa, glorificado pelos seus, e teria nomeado, diz-se, sete novos reis, entre os quais um mendigo da cidade chamado Abraão o Ruivo. Outros rumores falam de uma personagem misteriosa que teria aparecido à porta de uma sinagoga, um velho de longa barba sedosa, que nunca ninguém tinha visto; interrogado sobre a sua identidade, teria respondido que era o profeta Elias, convidando os judeus a unirem-se em torno de Sabbatai.

Este tem ainda, segundo Maimoun, numerosos detractores entre os rabinos, e também entre os ricos comerciantes da comunidade, mas eles não ousam atacá-lo em público, e preferem fechar-se em suas casas com receio de serem tratados como infiéis e descrentes pela multidão. Alguns deles teriam mesmo abandonado Esmirna pela estrada de Magnésia.

Hoje ao meio-dia, convidei Maimoun a jantar no mesmo estalajadeiro francês. Ontem à noite foi ele quem pagou tudo. Visto que o seu pai esbanjou a fortuna, ele deve estar em dificuldades, ou estará dentro de pouco tempo, mas eu não quis fazer-lho sentir, para não o melindrar, e deixara-me convidar. Servem neste lugar a melhor cozinha de todo o império, e eu estou encantado por tê-lo descoberto. Há dois outros estalajadeiros franceses nesta cidade, instalados há muito tempo, mas este é o mais procurado. Não hesita em gabar o seu vinho, que os turcos não hesitam em beber. Em contrapartida, evita servir presunto, e afirma delicadamente que ele próprio não é muito apreciador. Não lamento ter voltado à sua mesa, e enquanto estiver em Esmirna, hei-de lá voltar.

Só fiz mal em revelar a minha descoberta ao padre Jean-Baptiste, que me censurou por frequentar a casa de um huguenote, e beber o vinho da heresia. Mas nós não estávamos sós quando ele proferiu essas palavras ridículas, e desconfio que disse aquilo que o seu auditório precisava de ouvir. Ele já viveu o suficiente no Levante para saber que um bom vinho não tem outra cor além da sua, nem outro espírito além do seu.

16 de Dezembro

Convidei Marta para ir este meio-dia a casa do senhor Moineau Ézéchiel - é assim que se chama o estalajadeiro huguenote. Não tenho a certeza de que ela tenha apreciado a cozinha, mas apreciou o convite, e quase abusou do vinho. Retive-a a meio caminho entre alegre e embriagada.

De regresso ao convento, ficámos sozinhos à hora da sesta. Tínhamos pressa de nos apertar um contra o outro, e fizemo-lo sem qualquer prudência. Eu estava constantemente de ouvido à escuta, com receio de que os meus sobrinhos viessem surpreender-nos, ou um dos padres capuchinhos. Do meu empregado nada receava, ele sabe não ver nada quando é preciso, nem ouvir nada.

Essa inquietação não diminuiu em nada a nossa felicidade, muito pelo contrário. Parece-me que cada segundo reclamava o seu peso em prazer, mais do que o segundo anterior, de modo que o nosso amplexo se tornava cada vez mais vigoroso, louco, violento, ofegante. Os nossos corpos cheiravam ao vinho quente, e prometemo-nos anos de felicidade, quer o mundo viva ou morra.

Estávamos esgotados muito antes de que alguém chegasse. Ela tinha adormecido. Eu tinha vontade de fazer o mesmo, mas teria sido imprudência a mais. Ajustei-lhe suavemente o vestido, depois tapei-a até ao pescoço sob um pudico cobertor. Antes de traçar algumas linhas no meu caderno.

Os meus sobrinhos só regressaram a meio da noite. Não voltei a ver o padre Jean-Baptiste, que ontem recebeu visitantes, e que sem dúvida passou o dia inteiro na sua companhia. Que lhes faça bom proveito, a todos. Devem ter recolhido um monte de novos rumores. Eu recolhi apenas um orvalho de vinho na boca extasiada de uma mulher. Se o mundo pudesse ignorar-nos todos os dias como nos ignorou hoje! Se pudéssemos viver e amar-nos assim na penumbra, dia após dia, esquecendo todas as profecias! E embriagar-nos de vinho herético e de amores condenados!

Senhor! Só Tu podes fazer com que a Tua vontade não seja feita!

17 de Dezembro

Deixei hoje o convento dos capuchinhos para me instalar na casa de um comerciante inglês que nunca antes conhecera. Mais uma dessas coisas inauditas que me acontecem como que para me impedir de esquecer que não vivemos em tempos normais. Eis-me pois instalado nesta casa estranha como se fosse a minha, e esta noite escrevo as minhas páginas sobre uma secretária de madeira de cerejeira, brilhante de verniz vermelho e novo, à luz de um candelabro de prata maciça. Marta está à minha espera. Tem aqui o seu próprio quarto, com uma porta para o meu, e será ao lado dela, na sua cama e em nenhum outro lugar, que me deitarei esta noite, bem como nas próximas.

Tudo aconteceu muito depressa, como se o assunto já tivesse sido amplamente negociado pela Providência, e nós apenas devêssemos reunir-nos aqui em baixo para selá-lo com um aperto de mão. Sendo o lugar de reunião, é claro, a mesa do estalajadeiro huguenote, onde vou agora todos os dias, e mesmo mais de uma vez por dia. Esta manhã, passei para tomar apenas uma taça de vinho e algumas azeitonas, antes de ir jantar ao convento. Estavam dois homens sentados à mesa, aos quais o dono da casa me apresentou. Um deles era inglês, e o outro holandês, mas pareciam bons amigos, enquanto as suas nações, como se sabe, não se entendem. Eu tivera a oportunidade de dizer ao senhor Moineau a actividade que exercia, e acontece que o meu inglês, que se chama Cornelius Wheeler, é igualmente negociante de curiosidades. O outro, o holandês, é pastor protestante; o seu nome é Coenen - um homem de alta estatura, muito magro, com a cabeça calva e ossuda como a dos velhos grandes.

Fiquei imediatamente a saber que o meu colega se preparava para partir ao fim do dia de Esmirna para Inglaterra, e que o seu barco se encontrava já acostado no cais. A decisão de partir fora tomada precipitadamente, por razões familiares que não me foram especificadas, de modo que não estava prevista nenhuma disposição quando à casa. Estávamos à mesa havia apenas um quarto de hora, eu conversava cortesmente com o pastor sobre o passado dos Embriaci, sobre Gibelet, sobre Sabbatai e os acontecimentos em curso, enquanto Wheeler não dizia grande coisa, e mal parecia escutar aquilo que nós dizíamos, de tal modo estava mergulhado nas suas preocupações. De súbito, emergiu do seu torpor para me perguntar, à queima-roupa, se aceitava instalar-me por algum tempo em sua casa.

- Para o caso de chegarmos em breve ao reino do caos, disse ele com uma certa ênfase, gostaria de saber que uma alma nobre zela pela minha casa.

Não querendo aceitar com demasiada prontidão, informei-o de que estava em Esmirna apenas por um curto período, tendo um assunto premente a resolver, e que também eu poderia arrumar as bagagens de um dia para o outro. Mas não objectara sem dúvida com bastante convicção, pois que o homem considerou inútil responder ao argumento, e perguntou-me apenas se me incomodaria dar alguns passos com o pastor e com ele próprio para que me mostrasse «a minha nova morada».

Já indiquei, penso, que o bairro dos estrangeiros era apenas uma única avenida ao longo da praia. De um extremo ao outro, e dos dois lados, alinham-se lojas, armazéns, oficinas, uma boa centena de casas, algumas estalagens de reputação feita, e quatro igrejas, entre as quais a dos capuchinhos. As residências viradas para o mar são mais apreciadas que as que estão voltadas para a colina, para a velha cidadela e os bairros onde vivem as pessoas locais, turcos, gregos, arménios ou judeus. A casa de Wheeler não é nem a maior nem a mais segura, visto que está situada no extremo da avenida, e o mar vem bater, por assim dizer, à sua porta. Mesmo quando está calmo, como hoje, o seu rugido ouve-se. Em tempo de ondulação, devia ser ensurdecedor.

O que esta casa tem de mais bonito, é a vasta sala onde me encontro neste momento, à volta da qual se alinham os quartos, e que está ornamentada com uma multidão de estátuas, estatuetas, fragmentos de colunatas antigas, e também de mosaicos, tudo desenterrado pelo próprio Wheeler, que efectua as suas próprias escavações e faz grande comércio desses objectos.

Aquilo que contemplo à minha volta, e que me dá a impressão de habitar no local de um santuário grego ou de uma villa antiga, é certamente apenas o refugo do refugo, apenas peças rachadas, quebradas, amputadas, ou que existem em triplicado e em quadruplicado. As mais belas presas foram, sem qualquer dúvida, encaminhadas para Londres, onde o meu anfitrião as terá vendido a preço de ouro. Tanto melhor para ele! Sei por experiência que as pessoas daqui nunca querem adquirir essas velhas esculturas; aqueles que têm os meios para isso não têm o gosto, e a maioria dos turcos desprezam-nas, quando não se obstinam a desfigurá-las sob pretexto religioso.

Quando embarcou hoje, e embora se tratasse de um embarque precipitado, Wheeler tinha um bom número de caixas, a maior e mais pesada das quais continha, como ele próprio me disse, um magnífico sarcófago ornado de baixos-relevos, descoberto em Filadélfia. Depois de aceitar o seu convite, não podia evidentemente deixá-lo partir para o porto na companhia apenas do pastor. Felizmente para ele, porque descobrimos ao chegar ao cais que os estivadores se recusavam a carregar, qualquer que fosse o preço que lhes propusessem. Por que razão? Não consegui saber, mas a sua teimosia participa evidentemente na atmosfera geral, feita de confusão nos espíritos, de desregramento nas atitudes, de universal irritação, bem como de impunidade. Apelei a Hatem e aos meus sobrinhos, e assim, com catorze braços - contando os do pastor e do empregado de Wheeler - as caixas puderam ser embarcadas. Só o sarcófago resistiu às nossas forças, e foi preciso subornar os marinheiros para que colaborassem por sua vez e, com a ajuda de cordas, o içassem enfim para bordo.

Depois de agradecer aos capuchinhos pelo seu acolhimento, e de fazer uma generosa oferenda para a reparação da sua igreja cuja parede sofreu, disseram-me, com o último tremor de terra, vim instalar-me aqui com todos os meus.

Wheeler deixou-nos na casa uma jovem criada de olhar fugidio, de quem me disse que estava ao seu serviço havia pouco tempo, e que suspeitava de que ela roubava a louça e a comida. Talvez também dinheiro, e roupas, ele não sabia. Se alguma vez eu tivesse vontade de despedi-la, não devia hesitar. Porque não o fez ele próprio? Não lho perguntei. Ainda não a vi. Ela atravessou a casa por duas vezes, descalça, de cabeça baixa e envolvida num xaile de xadrez vermelho e preto.

Distribuímos os quartos. São seis, sem contar o da criada, construído em água-furtada, e ao qual se chega por uma escada simples. Hatem ficou com o que ocupa normalmente o empregado do nosso anfitrião; os meus sobrinhos ficaram cada qual com o seu.

Assim como Marta e eu, para manter as aparências, mas não faço tenção de dormir longe dela.

Vou de resto juntar-me a ela sem mais demora.

18 de Dezembro

Há na casa de Wheeler um sexto quarto, que eu propus esta manhã a Maimoun.

Desde a sua chegada a Esmirna, ele vive com o pai em casa de um certo Issac Laniado, ele próprio originário de Alepo, fervoroso adepto de Sabbatai e vizinho próximo da família do referido messias, o que obriga o meu amigo a uma contínua dissimulação. Ele abrira-se comigo, perguntando-se com muitos suspiros se poderia suportar mais um longo sabbat na companhia deles.

No entanto, declinou o meu convite.

- é quando os nossos próximos se transviam que devemos ficar junto deles - disse-me. Não insisti.

Na cidade, continua o doce caos. Perde-se o medo das leis, como se o Reino que está para vir fosse o da misericórdia e do perdão, e de modo nenhum o da ordem. Mas esta impunidade não provoca nenhum desencadeamento das paixões, nem motins, nem sangue derramado, nem pilhagens. O lobo anda ao lado do cordeiro sem procurar devorá-lo, como se diz algures nas Escrituras. Esta noite, uns vinte judeus, homens e mulheres, desceram em procissão do seu bairro até ao porto, cantando «Meliselda, filha de rei» e brandindo archotes; desafiavam assim ao mesmo tempo a sua própria lei, que os proíbe de acender o fogo na sexta-feira à noite, e a lei do país, que reserva apenas aos comerciantes estrangeiros o direito de sair à noite alumiando-se com archotes. Chegados perto da minha casa, cruzaram-se com um esquadrão de janízaros que caminhavam a passo atrás do oficial. Os cantos baixaram, alguns instantes, antes de retomarem com mais força, continuando cada grupo o seu caminho sem se preocupar com o outro.

Quanto tempo durará ainda esta embriaguez? Um dia? Três dias? Quarenta dias? Aqueles que acreditam em Sabbatai afirmam: pelos séculos dos séculos. Uma nova era vai começar em breve, dizem eles, que nada conseguirá já encerrar. A Ressurreição, uma vez iniciada, nunca mais parará. A Ressurreição não será seguida da morte. Aquilo que acabará, é a humilhação, é o rebaixamento, é o cativeiro, o exílio, a dispersão.

E eu, em tudo isto, onde é que estou, e que deveria eu desejar? Maimoun censura o pai por ter abandonado tudo para seguir o seu rei messias. E eu próprio não terei feito muito pior? Não deixei a minha cidade, o meu comércio, a minha vida tranquila, por causa dos rumores de apocalipse, e sem ter sequer a esperança da Salvação?

Essas pessoas, esses transviados, que atravessam a noite do sabbat brandindo os seus archotes, não serei eu tão louco como eles, ao desafiar como o faço as leis da religião e as do príncipe, ao instalar-me com conhecimento dos meus na cama de uma mulher que não é minha e que é talvez ainda de outro? Quanto tempo poderei ainda viver nesta mentira? E quanto tempo, principalmente, continuarei impune?

Se a perspectiva do castigo me ocorre em certos momentos, ela não me desvia dos meus desejos. O olhar de Deus inquieta-me menos que o olhar dos homens. A noite passada, pela primeira vez, tomei Marta nos meus braços sem precisar de espreitar janelas e portas, sem que os meus ouvidos ficassem à espreita de um ruído de passos. Depois despi-a lentamente, lentamente desatei as fitas, desabotoei os botões, desapertei todos os tecidos para os fazer deslizar para o chão, antes de soprar a vela. Com um braço erguido e dobrado ela tapava os olhos, apenas os olhos. Conduzi-a pela mão até à cama, onde a deitei e depois me deitei muito junto a ela. O seu corpo cheirava ao perfume que tínhamos comprado juntos em casa daquele genovês em Constantinopla. Murmurei-lhe que a amava e que a amaria sempre. Ao sentir no ouvido o sopro das minhas palavras, ela rodeou-me com os braços e atraiu-me para o seu corpo tépido murmurando palavras de alegria, de pressa, de consentimento, de abandono.

Tomei-a com o ímpeto de um amante e a serenidade de um esposo.

Poderia eu amá-la assim se não reinasse à nossa volta, nesta cidade, e no mundo, uma soberana embriaguez?

19 de Dezembro

O pastor holandês veio visitar-me de manhã cedo, dizendo que queria apenas certificar-se de que eu estava bem na casa do seu amigo. Quando lhe respondi com um certo entusiasmo que já ali vivia como se ela fosse minha, ele achou necessário retorquir que não devia no entanto esquecer-me nunca de que ela não me pertencia. Observação fútil, com a qual me melindrei, ao ponto de lhe responder secamente que quisera simplesmente sublinhar a minha gratidão, que só me tinha instalado nesta casa para ser prestável, que me encontrava muito bem no convento dos capuchinhos e que poderia perfeitamente voltar para lá. Eu julgava que ele ia pegar no chapéu e partir, ou talvez intimar-me a partir eu próprio com toda a minha tribo, mas, depois de um momento de hesitação, soltou uma risadinha, pediu desculpa, tossicou, pretextou um malentendido que imputou ao seu mau conhecimento do italiano - que no entanto fala tão bem como eu! - em suma, corrigiu-se sem ambiguidade, de modo que quando quis levantar-se, cinco minutos depois, pousei-lhe a mão no braço pedindo-lhe que se deixasse estar, e que esperasse como amigo o café que a «minha esposa» nos preparava.

Depois deste prelúdio um tanto desajeitado, iniciámos a conversa num tom completamente diferente, e não tardei a descobrir que estava perante um erudito e um sábio. Soube assim por ele que circulavam rumores havia meses em diversas cidades da Europa acerca das tribos perdidas de Israel, que teriam aparecido na Pérsia, e que teriam levantado um numeroso exército. Afirma-se que se teriam apoderado da Arábia, teriam derrotado as forças otomanas, e progredido mesmo até Marrocos; em Tunes, este ano, a caravana dos peregrinos teria- desistido de partir para Meca, com receio de as encontrar pelo caminho. Segundo Coenen, que não acredita nesses rumores, estes ter-se-iam propagado a partir de Viena, cercada pelas tropas do sultão, e depois de Veneza, que está em guerra há trinta anos contra a Porta Sublime, e que ganha coragem ao imaginar assim que aliados inesperados se preparam para atacar os muçulmanos pela retaguarda.

O pastor disse-me que os viajantes que param em Esmirna lhe trazem todos os meses cartas nesse sentido, vindas da Holanda, da França, da Suécia, e principalmente de Inglaterra, onde muitas pessoas estão atentas a todos os acontecimentos extraordinários que possam anunciar o fim dos tempos e o segundo advento do Cristo. A este respeito, o que se passa nesta cidade só poderá agudizar a sua impaciência.

Quando lhe disse que eu próprio seguia esses desenvolvimentos com uma grande curiosidade, que já tivera ocasião de ver com os meus próprios olhos por duas vezes o dito messias, que esses fenómenos não deixavam de me perturbar, mas que um judeu meu amigo se mostrara por seu lado mais céptico, Coenen exprimiu o vivo desejo de conhecê-lo. Eu prometi transmitir o seu convite a Maimoun logo que possível.

Ao evocar as coisas que mais me haviam perturbado durante os últimos dias, mencionei o facto, em meu entender inexplicável, de o cádi ter deixado Sabbatai sair livre, no domingo passado, e de nenhuma medida ter sido tomada pelas autoridades para pôr fim aos excessos e fazer com que as pessoas voltem ao trabalho. O pastor respondeu que, segundo informadores dignos de fé, o juiz tinha recebido uma avultada soma de alguns ricos comerciantes judeus, fiéis de Sabbatai, para que não fizesse mal a este último.

- Não ignoro, disse eu, até que ponto os dignitários otomanos podem ser corrompidos, nem a que ponto podem ser movidos pela avidez. Mas, no caso presente, é o caos que se instala. Logo que estes acontecimentos sejam conhecidos em Constantinopla, algumas cabeças vão rolar. Achas que o cádi estaria disposto a arriscar a sua por algumas moedas de ouro?

- Meu jovem amigo, não percebemos nada da marcha do mundo se imaginamos que os homens agem sempre com sabedoria. O desatino é o princípio activo da História.

E acrescentou que, em sua opinião, se o cádi deixou Sabbatai sair em liberdade, não foi apenas porque o teriam subornado, mas também porque teria achado que aquele homem que chegava a sua casa cantando salmos era um louco, perigoso talvez para a sua própria comunidade, mas que não ameaçava em nada o poder do sultão. Era o que um janízaro afecto à protecção dos mercadores holandeses teria relatado ao pastor. E é provavelmente o que o cádi murmura aos ouvidos dos janízaros para desculpar a sua tolerância.

Num outro plano, notei hoje que o meu sobrinho Bumeh deixou crescer a barba e os cabelos. Não me teria apercebido disso se ele não tivesse vestido uma camisa branca flutuante que o faz parecer-se com certos dervixes. Ausenta-se durante todo o dia, e quando regressa ao anoitecer quase não fala. Talvez eu devesse perguntar-lhe por que se veste assim.

20 de Dezembro

Maimoun veio procurar refúgio em minha casa. Recebi-o de braços abertos, e instalei-o no último quarto livre, que de toda a maneira lhe destinara. Até aqui ele declinara o meu convite, mas um incidente ocorrido esta manhã fê-lo mudar de atitude. Está ainda completamente abalado.

O pai pedira-lhe que o acompanhasse a casa de Sabbatai. Não era a primeira vez que lá ia, mas arranjava sempre maneira de se manter à distância, retirado, perdido entre a multidão dos fiéis, a observar de longe os testemunhos de fidelidade e as manifestações de alegria. Desta vez, o pai, que se tornara «rei», exigiu que ele se aproximasse do seu benfeitor e obtivesse a sua bênção. O meu amigo obedeceu, avançou de olhos baixos, beijou furtivamente a mão do «messias», e deu imediatamente um passo atrás para deixar o lugar aos outros. Mas Sabbatai reteve-o pela manga, fê-lo levantar os olhos, fez-lhe duas ou três perguntas, num tom amável. Depois, subitamente, erguendo a voz, pediu-lhe, bem como ao pai e a dois rabinos de Alepo que estavam com eles, que proferisse o Nome Inefável de Deus. Os outros fizeram-no imediatamente, mas Maimoun, que era no entanto o menos piedoso de todos, hesitou. Acontecia-lhe por vezes não seguir à letra os preceitos da Fé, e murmurar as preces na sinagoga sem o mínimo fervor, como se o seu coração ficasse separado daquilo que os seus lábios diziam. Mas daí e cometer uma tal transgressão, isso não! Absteve-se pois de pronunciar o Nome, pensando que Sabbatai se contentaria com ter sido obedecido pelos outros três. Era conhecê-lo mal. Continuando a segurar Maimoun pela manga, o pretenso messias pôs-se a explicar à assembleia que nestes novos tempos, aquilo que era interdito já não o é, que aqueles que acreditam no advento da nova era não deveriam recear a transgressão, e os que têm fé nele deveriam saber que não lhes pediria nada que não estivesse conforme à vontade real do Altíssimo, principalmente se isso parece ir contra a Sua vontade aparente.

Todos os olhares estavam agora voltados para o meu amigo, incluindo o do seu próprio pai, que lhe dizia para ter confiança «no nosso rei messias» e fazer aquilo que ele lhe pedia.

- Eu nunca teria pensado, disse-me Maimoun, que havia de viver até ao dia em que o meu pai, que me educou no respeito pela nossa lei, me pediria que a transgredisse da pior maneira. Se tal coisa pôde acontecer, se a piedade se confunde com a impiedade, é porque o fim dos tempos deve efectivamente estar próximo.

Perdeu-se na contemplação e na melancolia. Tive de abaná-lo para que retomasse o fio da sua história.

- E que fizeste?

- Disse a Sabbatai que aquilo que ele me pedia era grave, e que eu precisava de ir recitar algumas preces antes de o fazer. Depois, sem pedir licença, retirei-me. E assim que me achei no exterior, caminhei direito até aqui.

Jurou-me que enquanto «esta loucura» não tiver acalmado, não voltará a pôr os pés no bairro judeu. Aprovei a sua atitude, e declarei-me encantado por recebê-lo debaixo do meu tecto.

Falei em seguida da visita do pastor holandês, e informei-o do desejo deste em conhecê-lo. Ele não recusou, mas exprimiu o voto de não ir lá antes de passarem alguns dias, não tendo de momento qualquer vontade de falar com um estranho daquilo que acabava de acontecer.

- Ainda tenho o espírito muito agitado, estou mergulhado na confusão, e não quero dizer coisas de que amanhã me arrependa.

Respondi-lhe que não havia pressa, e que faríamos bem em manter-nos, um e outro, afastados de todo esse tumulto.

Segunda-feira, 21 de Dezembro de 1665

Haveria então funcionários íntegros no país otomano? Ainda não ouso afirmá-lo, e é já bastante incongruente que eu possa simplesmente fazer a mim mesmo a pergunta!

Há já alguns dias, Marta insiste para que reiniciemos aqui as diligências empreendidas em Constantinopla, esperando que elas se mostrem menos infrutíferas. Fui pois visitar o escrivão da prisão de Esmirna, um certo Abdellatif de quem me disseram que tinha o registo de todas as condenações pronunciadas nesta parte da Ásia Menor e nas ilhas do Egeu. O homem deixou-me formular o meu pedido, tomou notas, pediu alguns esclarecimentos, antes de me dizer que precisaria de uma semana para me dar uma resposta satisfatória. O que me fez naturalmente evocar a recordação desagradável daquele outro escrivão, o da Armaria do palácio sultânico, que nos subtraíra uma soma após outra a pretexto de consultar diversos registos. Mas eu estava decidido a pagar sem resmungar muito, nem que fosse só para mostrar a Marta que não recuaria diante de nenhum sacrifício. Perguntei portanto ao homem, segundo a fórmula em uso, «quanto seria necessário para compensar os seus informadores». Eu tinha já a mão na bolsa. O homem, num gesto claro, fez-me sinal de que a retirasse.

- Porque é que Vossa Excelência havia de pagar, se ainda não obteve nada?

Receando irritá-lo se insistisse, retirei-me, prometendo voltar dentro de uma semana, e rogando ao altíssimo que o recompensasse segundo os seus méritos, fórmula com. que nenhum homem honesto pode melindrar-se.

A Marta e a Hatem, que me esperavam cá fora, à sombra de uma nogueira, contei-lhes a cena como acabo de fazê-lo, palavra a palavra. Ela disse que estava confiante; talvez o Céu se inclinasse enfim favoravelmente sobre a sua sorte. O meu empregado mostrou-se mais céptico; para ele, a indulgência dos poderosos nunca é mais que a promessa de uma maior calamidade futura.

Veremos. Em tempo normal, teria alinhado pela opinião dele, mas hoje não deixo de ter alguma esperança. Passam-se tantas coisas inauditas. Um vento de estranheza varre o mundo... Já nada deveria surpreender-me, nada.

23 de Dezembro de 1665

Estou a tremer, a gaguejar.

Serei capaz de contar os acontecimentos como se se tivessem passado com outra pessoa, sem soltar urros a cada linha, e sem falar continuamente de prodígio?

Talvez devesse esperar que as emoções assentassem no fundo de mim, no soalho da minha alma, como a borra numa chávena de café. Deixar passar dois dias, uma semana. Mas quando os acontecimentos deste dia tiverem arrefecido, outros terão ocorrido, ainda escaldantes...

Ater-me pois, tanto quanto seja ainda capaz, àquilo que tinha decidido. Escrever a cada dia a sua pena. Um resumo, uma data. Sem reler, voltar a página para que ela esteja pronta a acolher as surpresas por vir. Até ao dia em que ela ficará em branco - o fim, o meu próprio fim, ou então o fim do mundo.

Mas volto antes ao princípio...

Esta tarde, tendo conseguido vencer as reticências de Maimoun, fui com ele ao domicílio do pastor Coenen. Que nos recebeu de braços abertos, nos ofereceu com o café deliciosas doçarias turcas, depois começou a falar de Sabbatai, em termos comedidos, procurando pelo canto do olho apreciar as reacções do meu amigo. Relatou primeiro palavras muito elogiosas pronunciadas pelo pretenso messias em relação a Jesus, cuja alma, dizia ele, estava indissociavelmente ligada à sua. «Farei com que ele tome de futuro o seu lugar entre os profetas», teria dito diante de testemunhas. Maimoun confirmou que Sabbatai só falava de Jesus em termos deferentes e afectuosos, e que evocava muitas vezes com tristeza os sofrimentos que lhe haviam sido infligidos.

O pastor confessou-se ao mesmo tempo surpreendido e encantado com tais palavras, lamentando que Sabbatai não dê provas da mesma sabedoria quando fala das mulheres.

- Não é verdade que ele prometeu torná-las iguais aos seus esposos, e libertá-las da maldição de Eva? Foi o que me contaram de fonte fidedigna. Segundo ele, as mulheres deveriam no futuro viver totalmente a seu gosto, sem obedecer a nenhum homem.

Interrogado com o olhar, Maimoun confirmou sem grande ardor.

O pastor continuou:

- Sabbatai teria mesmo dito que homens e mulheres não mais deviam estar separados, nem nas casas nem mesmo nas sinagogas, e que amanhã, no reino que ele vai construir, cada qual poderá ir com quem desejar, sem qualquer restrição nem vergonha.

- Isso nunca ouvi - disse firmemente Maimoun. - Nem nada parecido. - E lançou-me um olhar que queria dizer: Baldassare, meu amigo, porque é que me fizeste vir a esta cilada?

Então eu levantei-me, bruscamente.

- Tendes coisas bem bonitas nesta casa. Permitiríeis ao negociante que eu sou que lançasse uma olhadela?

- É claro, vede!

Eu esperava que o meu amigo se levantasse por sua vez, e que aproveitasse a diversão por mim criada para se afastar de tema tão embaraçoso, e interromper aquilo que estava a tornar-se num interrogatório. Mas ele ficou no seu lugar, com receio de melindrar o nosso anfitrião. É verdade que se tivéssemos saltado os dois a pés juntos, no mesmo momento, a fuga teria sido manifesta, e um tanto grosseira. A conversa continuou portanto, sem mim, que no entanto não perdia nem uma palavra, e inspeccionava móveis, livros e bibelôs apenas com um olhar vago.

Atrás de mim, Maimoun explicava a Coçnen que a maioria dos rabinos não acreditavam em Sabbatai, mas que não ousavam exprimir-se claramente porque a populaça estava inteiramente com ele. Aqueles que se recusavam a reconhecê-lo como rei messias tinham de se esconder, ou até abandonar a cidade, com receio de serem maltratados na rua.

- É verdade que Sabbatai disse que ia a Constantinopla dentro de alguns dias para tomar posse da coroa do sultão e sentar-se no seu lugar no trono?

Maimoun pareceu horrorizado por esta sugestão, e elevou o tom:

- As coisas que eu vos digo têm algum valor aos vossos olhos?

- É claro, respondeu o pastor, algo embaraçado. Vós sois, de todos os homens de bem que interroguei, o mais preciso, o mais sábio e o mais perspicaz...

- Então acreditai se vos disser que Sabbatai nunca, em nenhum momento, manifestou tais pretensões.

- No entanto, aquele que me relatou essas palavras é um dos seus próximos.

Baixou a voz e pronunciou um nome, que eu não consegui captar. Apenas ouvi Maimoun inflamar-se:

- Esse rabino é um louco! Todos os que pronunciam tais palavras são loucos! Quer se trate dos partidários de Sabbatai, que já imaginam que o mundo lhes pertence, ou dos seus adversários, que querem a sua perda a qualquer preço. Se tais inépcias chegassem amanhã aos ouvidos do sultão, todos os judeus seriam massacrados, e também todos os habitantes de Esmirna!

Coenen deu-lhe razão, antes de continuar sobre um outro tema:

- É verdade que chegou uma carta do Egipto...

Não ouvi a continuação da pergunta. O meu olhar estava fixo. A minha frente, numa prateleira baixa, meio dissimulada atrás de uma mesinha da Zelândia, estava uma estatueta. Uma estatueta que eu conhecia! A minha estatueta! A minha estatueta dos dois amantes, miraculosamente preservada! Baixei-me, depois acocorei-me, para agarrá-la, para acariciá-la e revirá-la em todos os sentidos. Nenhuma dúvida possível! Aquelas duas cabeças cónicas cobertas de uma folha de ouro, aquela estranha ferrugem que reuniu as duas mãos, que as soldou para lá da morte... Não existe em nenhuma parte do mundo um objecto idêntico!

Esperei alguns segundos, engoli duas ou três vezes a saliva, para que a minha voz não me traísse.

- Reverendo, onde conseguistes obter isto?

- Ah, as estatuetas? Foi Wheeler quem mas ofereceu.

- Disse-vos se foi ele mesmo quem as desenterrou? - Perguntei inocentemente.

- Não. Eu tinha ido visitá-lo, quando veio um homem bater à porta para lhe vender certos objectos que transportava numa carroça. Cornelius comprou-lhe quase tudo o que ele tinha, e como eu me tivesse mostrado interessado nessas estatuetas votivas, que vêm provavelmente de algum templo antigo, ele insistiu em dar-mas de presente. Vós, que sois um grande negociante de curiosidades, tais objectos devem ser para vós moeda corrente.

- Vejo-os passar por vezes, com efeito. Mas este não se parece com nenhum outro.

- Deveis ter olho para estes objectos, mais do que eu. Que tem este de especial?

O pastor não parecia especialmente interessado naquilo que eu dizia. Escutava-me e questionava-me apenas com a polidez necessária para não parecer indiferente, dizendo sem dúvida para si mesmo que eu tinha as reacções normais do homem apaixonado pelo seu negócio, e esperando que retomasse em silêncio o meu giro de inspecção para voltar ao único tema que hoje lhe interessava: Sabbatai. Então aproximei-me dele, levando com precaução «os dois amantes».

- O que esta estatueta tem de particular, é que ela é formada, como vedes, por duas personagens reunidas pelos acasos da ferrugem. Isto é um fenómeno raro, e eu reconheceria este objecto entre mil. Por essa razão, posso afirmar-vos com toda a certeza que a estatueta que seguro aqui à vossa frente se encontrava, há quatro meses, na minha própria loja, em Gibelet. Eu dera-a graciosamente ao cavaleiro de Marmontel, emissário do rei de França, que acabava de me comprar por muito alto preço um livro raro. Ele fez-se ao mar em Tripoli, levando este objecto. Naufragou antes de chegar a Constantinopla.

E eis que volto a encontrar a minha estatueta sobre esta prateleira.

Coenen levantou-se, as suas pernas não suportavam já estar dobradas. Estava lívido, como se eu o tivesse acusado de roubo, ou de assassínio.

- Eu preveni Cornelius Wheeler contra esses bandidos vestidos de mendigos que andam a vender-nos ilegalmente objectos de valor. Todos uns malfeitores sem fé nem lei. E agora, tenho a sensação de ser cúmplice das suas malfeitorias, e receptador. A minha casa está manchada!? Deus te castigue, Wheeler!

Procurei tranquilizá-lo, nem ele nem o inglês tinham nada a censurar-se visto que não sabiam a origem da mercadoria. Ao mesmo tempo, interroguei-o delicadamente sobre aquilo que o vendedor transportava além dos meus «amantes». Queria evidentemente saber se O Centésimo Nome também tinha sobrevivido. Não partira ele no mesmo navio, nas mesmas bagagens? Bem sei que um livro é mais perecível do que uma estatueta metálica, e os naufragosos que causaram a perda do navio, que massacraram os homens para se apoderarem das riquezas transportadas, bem poderiam ter conservado estatuetas cobertas de uma camada de ouro e deitar um livro pela borda fora.

- Cornelius comprou muitas coisas a esse homem.

- Livros?

- Um livro, sim.

Se eu esperava uma resposta tão clara!

- Um livro em língua árabe com o qual parecia maravilhado. Enquanto o vendedor estivera presente, disse-me Coenen, o seu amigo não parecera atribuir-lhe muita importância. Mas assim que o homem se foi, contente por ter conseguido desfazer-se de tantas mercadorias, o inglês não se conteve mais; pôs-se a virar e revirar o livro nas suas mãos, lendo e relendo a primeira página.

- Parecia tão feliz com a sua aquisição que quando lhe fiz uma pergunta sobre a idade das estatuetas, ele ofereceu-mas imediatamente. Apesar dos meus protestos, não quis ouvir nada, e ordenou ao empregado que embalasse o presente e depois o fosse levar a minha casa.

- Não vos disse nada sobre o próprio livro?

- Pouca coisa. Que se trata de um livro raro, e que numerosos clientes lho reclamam há anos, imaginando que lhes proporcionará não sei que poderes e que divinas protecções. Um talismã, de certo modo. Lembro-me de lhe ter dito que um verdadeiro crente não precisava de tais artifícios, e que para ganhar os favores do Céu bastava praticar o bem e repetir as orações que o Nosso Salvador nos ensinou. Wheeler concordou, assegurou-me que ele próprio não acreditava nessas patranhas, mas que como comerciante ficava feliz por ter adquirido um objecto cobiçado que poderá vender por bom preço.

Depois de dizer isto, Coenen voltou às suas jeremiadas, perguntando se o Céu lhe perdoaria por haver aceitado, num momento de desatenção, um presente de cuja proveniência duvidosa não suspeitava. Quanto a mim, fiquei - e ainda estou neste momento - mergulhado em dilemas que julgava já passados. Se o livro do Centésimo Nome não desapareceu, não deveria eu recomeçar a procurá-lo? Esse livro é uma sereia, aqueles que ouviram o seu canto não podem esquecê-lo. Eu fiz mais do que ouvir o seu canto, tive a sereia nos meus braços, acariciei-a, possuí-a por um breve momento antes de ela me escapar para se fazer ao largo. Ela mergulhou, e eu julguei-a submergida para sempre, mas uma sereia não se afoga no mar. Apenas começava a esquecer-me dela, ei-la que surge, muito perto de mim, para me fazer sinal, para me chamar de novo aos meus deveres de namorado suspiroso.

- Onde está esse livro agora?

- Wheeler nunca mais me falou dele. Não sei se o levou consigo para Inglaterra, ou se o deixou em Esmirna, na sua casa.

Em Esmirna? Em sua casa?

Quer dizer na minha? Quem poderia censurar-me por tremer e gaguejar ao escrever estas linhas?

24 de Dezembro

Nada daquilo que fiz hoje constitui crime punível; mas foi sem dúvida um abuso de hospitalidade. Remexer assim de ponta a ponta a casa que me foi confiada, como se ela fosse o antro de um receptador! Que o meu inglês me perdoe, eu tinha de fazê-lo, precisava de tentar recuperar o livro que me fez partir pelas estradas. Sem ilusões, de resto. Ficaria muito surpreendido se o meu colega, tendo compreendido a importância dessa obra, a tivesse abandonado no local. Não irei ao ponto de supor que foi por causa do Centésimo Nome que ele decidiu subitamente partir, deixando a sua casa e os seus bens à guarda do desconhecido que eu sou. Mas não posso excluir desde logo uma tal hipótese.

Coenen disse-me que Cornelius Wheeler pertence a uma família de livreiros que tem uma loja desde há muito no velho mercado Saint Paul, em Londres. Nunca visitei esse mercado nem essa cidade, mas para aqueles que, como eu, fazem comércio de livros antigos, esse lugares parecem familiares. Assim como deve ser familiar, para alguns livreiros e coleccionadores de Londres ou de Oxford, o nome da casa Embriaco em Gibelet - pelo menos eu gosto de pensar que sim. Como se um fio invisível ligasse, para além dos mares, aqueles que se apaixonam pelas mesmas coisas; a minha alma de mercador diz-me que o mundo seria um lugar muito mais caloroso se os fios se tornassem inumeráveis e a tecedura se tornasse mais espessa, mais apertada.

De momento, contudo, não me alegra saber que alguém, no outro extremo do mundo, aspira a possuir o mesmo livro que eu, e que esse livro está agora num barco rumo a Inglaterra. Irá ele naufragar, como o infeliz Marmontel? Não o desejo. Deus é minha testemunha. Só desejaria que, por qualquer inexplicável sortilégio, o livro ainda estivesse nesta casa. Não o encontrei, e embora não possa dizer que busquei em todos os cantos, estou convencido de que não o encontrarei.

Todos os meus participaram na caça ao tesouro, com excepção de Bumeh, que se ausentou durante todo o dia. Está muitas vezes ausente, nestes últimos tempos, mas hoje eu tenho evitado censurá-lo por isso. Agradava-me que não soubesse que procurávamos o livro de Mazandarani, e sobretudo que não tivesse conhecimento de onde se encontra agora o objecto que ele cobiça mais do que todos nós. É que podia arrastar-nos até à Inglaterra em sua perseguição!

De resto fiz toda a minha gente prometer que não lhe diria uma única palavra traiçoeira acerca de tudo isto. Ameacei-os mesmo com] os piores castigos se me desobedecessem.

A tarde, quando estávamos todos recostados no salão, tão esgotados pela decepção como pela fadiga, Habib disse: «Pois bem, não teremos esse presente de Natal!» Todos rimos, e eu pensei que efectivamente, nesta véspera de Natal, teria sido um belo presente para todos.

Estávamos ainda a rir quando alguém bateu à porta. Era o criado de Coenen, que nos trazia, embrulhada numa écharpe de cor púrpura, a estatueta dos dois amantes. «Depois do que fiquei a saber ontem, não poderia manter esse objecto debaixo do meu tecto», dizia a mensagem que a acompanhava.

O pastor não pretendia de modo nenhum oferecer-nos um presente de Natal, presumo, mas foi assim que a sua encomenda nos apareceu. Com excepção do livro do Centésimo Nome, nada me poderia ter dado maior prazer.

Mas tive de dissimular a estatueta imediatamente, e fazer que todos prometessem guardar silêncio. Se não, o meu sobrinho, ao vê-la, teria adivinhado tudo.

Quanto tempo poderei ocultar-lhe a verdade? Não deveria eu antes aprender a dizer-lhe não? Era o que deveria ter dito desde a primeira vez em que ele me pediu para empreender esta viagem. Em vez de me colocar neste declive escorregadio, sem nada para me deter. Salvo, talvez, o pára-choques das datas. Daqui por uma semana, o Ano...

27 de Dezembro

Deu-se há pouco uma peripécia pouco gloriosa. Registo-a neste caderno apenas com o objectivo de me acalmar, e não voltarei a falar dela.

Tinha-me recolhido ao meu quarto muito cedo para fazer algumas contas, e em dado momento levantei-me para ir verificar se Bumeh já tinha regressado, porque nestes últimos tempos as suas ausências se tornaram demasiado frequentes, e inquietantes, dado o seu estado de espírito e o da cidade.

Não o tendo encontrado no quarto, e pensando que ele podia ter ido ao jardim para qualquer necessidade nocturna, saí por minha vez, e fiquei a andar para lá e para cá junto à entrada. A noite estava suave, espantosamente suave para um mês de Dezembro, era preciso apurar o ouvido para ouvir as ondas, que no entanto estavam próximas.

De súbito ouvi um som curioso, como um arquejo ou um grito abafado. Vinha do telhado, onde fica o quarto da criada. Aproximei-me sem ruído, e subi lentamente a escada. Os arquejos continuavam.

Pergunto: «Quem está aí?» Ninguém responde, e os ruídos param. Chamo a criada pelo nome: «Nasmé! Nasmé!» e é a voz de Habib que ouço: «Sou eu, tio. Está tudo bem. Podes ir dormir!»

Ir dormir? Ele podia ter dito outra coisa, talvez eu me tivesse mostrado compreensivo, talvez tivesse fechado os olhos, visto que eu próprio não tenho sido irrepreensível nestes últimos tempos. Mas falar-me assim, como a um caquético, ou a um pobre de espírito?

Entro no quarto como um louco. É minúsculo e muito sombrio, mas adivinho as duas silhuetas, e pouco a pouco reconheço-os. «Foi a mim que disseste para voltar para a cama...» Debito-lhe um rosário de pragas genovesas, e esbofeteio-o com toda a força. O malcriado! Quanto à criada, dou-lhe até de manhã para arrumar as suas coisas e ir-se embora.

Agora que a minha cólera diminuiu um pouco, digo a mim mesmo que era o meu sobrinho quem merecia o castigo, mais do que aquela infeliz. Não ignoro que sedutor ele pode ser. Mas nunca castigamos como devemos, castigamos como podemos. Expulsar a criada e ralhar com o meu sobrinho, é injusto, eu sei. Mas que outra coisa fazer? Esbofetear a criada e expulsar o meu sobrinho?

Demasiadas coisas acontecem em minha casa que não aconteceriam se me comportasse de outro modo. Ao escrever isto, sofro, mas talvez sofresse ainda mais não o escrevendo. Se não me tivesse permitido viver a meu gosto com uma mulher que não é minha, se não tivesse tomado tantas liberdades com as leis do Céu e com as dos homens, o meu sobrinho não se teria comportado como se comportou, e eu não precisaria de punir.

O que acabo de escrever é verdade. Mas também é verdade que se as ditas leis não fossem tão cruéis, nem Marta nem eu teríamos necessidade de contorná-las. Num mundo em que tudo é governado pela arbitrariedade, por que havia de ser eu o único a sentir-me culpado de transgressão? E por que seria eu o único a sentir remorsos?

Precisarei de aprender um dia a ser injusto sem estados de alma.

Segunda-feira, 28 de Dezembro de 1665

Fui hoje de novo falar àquele funcionário otomano, Abdellatif, o escrivão da prisão de Esmirna, e aprece-me que não me enganei ao chamar-lhe íntegro. É-o até muito mais do que eu tinha pensado. Que os próximos dias não me contradigam!

Fui ter com ele na companhia de Marta e de Hatem, e com uma bolsa suficientemente fornecida para responder às exigências habituais. Recebeu-me polidamente no gabinete sombrio que partilha com mais três funcionários, os quais recebiam, ao mesmo tempo, os seus próprios «clientes»; fazendo-me sinal para que me inclinasse por cima do seu ombro, disse-me em voz baixa que tinha procurado em todos os registos disponíveis sem nada encontrar acerca do homem que nos interessa. Agradeci-lhe pelo seu incómodo, e perguntei-lhe, levando a mão à bolsa, quanto lhe haviam custado as suas investigações. Ele respondeu-me, elevando subitamente a voz: «São duzentas aspras!» Achei a soma elevada, sem ser no entanto exagerada, nem inesperada. De qualquer modo, não tinha a intenção de discutir, e depositei-lhe as moedas na concha da mão. Agradeceu-me com uma fórmula habitual, e levantou-se para me acompanhar, o que não deixou de me surpreender. Porque é que aquele homem, que me recebera sem se dignar levantar-se, e sem me convidar a sentar, se levantava agora e me agarrava assim pelo braço como se eu fosse um amigo de longa data, ou um benfeitor?

Uma vez cá fora, abriu-me a mão, deitou nela todas as moedas que eu acabava de lhe dar, e desceu-me os dedos sobre elas dizendo «Não me deveis esse dinheiro, eu só tive de consultar um registo, o que faz parte do trabalho pelo qual já sou retribuído. Ide, que Deus vos guarde, e vos faça encontrar aquilo que procurais.»

Fiquei confuso. Perguntando a mim mesmo se aquilo era um remorso autêntico ou alguma astúcia otomana suplementar visando obter mais dinheiro ainda, e se devia portanto insistir ou ir-me embora, como ele me convidava, com uma simples palavra de gratidão. Mas Marta e Hatem, que tinham observado a surpreendente manobra, começaram a salmodiar como se acabassem de presenciar um milagre. «Bendito sejas! O melhor dos homens! O mais meritório dos servidores do sultão nosso senhor! Que o Altíssimo zele por ti e pelos teus próximos!»

- Basta! - gritou o homem. - Juraram causar a minha perda? Vão-se embora, e que eu não volte a ver-vos!

Afastámo-nos, levando connosco as nossas interrogações.

29 de Dezembro de 1665

Apesar das repreensões daquele homem, voltei a ir visitá-lo hoje. Sozinho, desta vez. Precisava de compreender por que razão ele se tinha comportado assim. Não sabia como iria ele receber-me, e tinha mesmo, ao longo do caminho que vai do bairro dos mercadores estrangeiros até à cidadela, o pressentimento de que ia encontrar o seu lugar vazio. Normalmente só nos lembramos dos nossos pressentimentos e só falamos deles quando se verificam. Neste caso, o meu pressentimento era enganador, Abdellatif estava lá. Falava com uma mulher já de certa idade, e fez-me sinal que esperasse um momento até acabar de atendê-la. Quando ela saiu, rabiscou algumas palavras num caderno, depois levantou-se e conduziu-me para o exterior.

- Se vindes para me dar essas duzentas aspras, incomodaste-vos em vão.

- Não, disse eu, vinha apenas agradecer-vos uma vez mais a vossa solicitude. Ontem, os meus amigos puseram-se a ulular, e eu não pude manifestar-vos a minha gratidão. Há meses que faço diligências, e de todas as vezes saí praguejando, perdoai-me. Graças a vós, saí daqui agradecendo o Céu e à Porta, ainda que não estivesse mais perto do meu objectivo. É tão raro nos nossos dias encontrar um homem íntegro. Compreendo que os meus amigos tenham reagido assim. Mas a vossa modéstia sofreu com a exuberância deles, e mandaste-os calar.

Eu não tinha colocado claramente a pergunta que me titilava nos lábios. O homem sorriu, suspirou, colocou-me a mão no ombro.

- Desenganai-vos, não foi por modéstia que mandei calar os vossos amigos, mas por sensatez e por prudência.

Hesitou um momento, como se procurasse as palavras. Depois passeou o olhar à sua volta para se assegurar de que ninguém o observava.

- Num lugar onde a maioria aceita dinheiro sujo, aquele que se obstina a recusar surge como uma ameaça para os outros, como um denunciador possível, e os outros fazem tudo para se verem livres dele. De resto, não se acanharam para mo dizer: se queres manter a cabeça em cima dos ombros, deves fazer como nós, não deves mostrar-te nem pior nem melhor. Como eu não tenho vontade de morrer, mas também não tenho vontade de me sujar nem de me condenar, prefiro agir como fiz convosco. Dentro do edifício vendo-me, e cá fora resgato-me.

Estranha época a nossa, em que o bem é forçado a disfarçar-se sob os ouropéis do mal!

Talvez seja tempo de que os tempos se acabem...

30 de Dezembro de 1665

Esta manhã Sabbatai partiu para Constantinopla sem que se saiba qual o destino que ali o espera. Embarcou num caíque, acompanhado por três rabinos, um de Alepo, um de Jerusalém e o terceiro vindo da Polónia, ao que me dizem. Iam igualmente na viagem três outras pessoas, entre elas o pai de Maimoun. O meu amigo desejaria juntar-se a eles para estar próximo do pai, mas o pseudo-messias opôs-se.

O mar parece encapelado e há nuvens negras no horizonte, mas todos aqueles homens subiram a bordo cantando, como se a presença do seu mestre eliminasse tempestades e ondulações.

Ainda antes da sua partida, havia numerosos boatos, que Maimoun me trazia constantemente da cidade alta para me fazer partilhar as suas inquietações e a sua perplexidade. Os fiéis de Sabbatai afirmam que ele vai a Constantinopla para se encontrar com o sultão, para o informar de que os tempos novos chegaram, os tempos da Redenção e da Libertação, e convencê-lo a submeter-se-lhes sem resistência; acrescentam que durante essa entrevista, o altíssimo ia manifestar a Sua vontade através de um prodígio retumbante, de maneira que o sultão, aterrorizado, não possa deixar de se lançar de joelhos e entregar a coroa àquele que se terá tornado, em seu lugar, a sombra de Deus na terra.

Os adversários de Sabbatai pretendem, pelo contrário, que ele não partiu de modo nenhum como conquistador, mas que foram as próprias autoridades otomanas, pela voz do cádi, que lhe ordenaram que abandonasse Esmirna dentro de três dias e se dirigisse a Constantinopla, onde deveria ser detido à sua chegada. A coisa é plausível, é mesmo a única tese plausível. Qual o homem que em seu perfeito juízo poderia acreditar nessa entrevista miraculosa, no fim da qual o monarca mais poderoso do mundo deporia a sua coroa aos pés de um rubicundo cantarolante? Não, não acredito nisso, e Maimoun ainda menos. Mas esta noite, no bairro judeu, a maioria das pessoas tomam a coisa por certa.

Aqueles que têm dúvidas dissimulam-nas, e fingem preparar-se já para o regozijo.

Bumeh parece acreditar também que o mundo está a ponto de desabar. O contrário seria de espantar. Sempre que há uma alternativa, o meu sobrinho opta pelo ramo mais tolo. Tolo, insisto, mas sempre capaz de argumentar e de nos fazer reflectir, se não de nos desconcertar.

- Se as autoridades, diz ele, pretendem prender Sabbatai logo que ele ponha pé em terra, porque o deixaram partir assim, livre, no navio que ele escolheu, em vez de o expedirem sob escolta para a prisão? Como poderiam elas ter a certeza do lugar onde ele vai desembarcar?

- Que estás tu a querer dizer-nos, Bumeh? Que o sultão vai submeter-se sem mais cerimónia, assim que esse homem lho tenha ordenado? Certamente, também tu perdeste a razão.

- A razão só tem mais um dia para viver. O novo ano vai começar, a nova era vai começar, aquilo que parecia razoável em breve vai parecer ridículo, o que parecia insensato impor-se-á como a própria evidência. Aqueles que tiverem esperado o último momento para abrir os olhos serão cegados pela luz.

Habib troçou, e eu encolhi os ombros, voltando-me para Maimoun em busca da sua aprovação. Mas o meu amigo estava como que ausente. Pensava sem dúvida no pai, no seu velho pai doente e extraviado, revia-o a embarcar no caique sem um gesto de adeus, sem um olhar, e perguntava-se se ele não iria assim ao encontro da humilhação ou da morte. Já não sabia em que acreditar, nem sobretudo o que desejar. Ou antes, sabia, mas isso era fraco consolo.

Tenho discutido bastante com ele, desde que moramos juntos, para saber exactamente como se apresenta o seu dilema. Se o pai pudesse ter razão, se Sabbatai fosse o rei messias, se o esperado milagre se produzisse, se o sultão caísse de joelhos reconhecendo o fim dos tempos antigos, e que os poderosos já não seriam poderosos, que os arrogantes já não seriam arrogantes, e que os humildes já não seriam humilhados, se todo esse sonho louco pudesse, pela vontade do Céu, tornar-se realidade, como poderia Maimoun não chorar de alegria por isso? Mas não é isso que vai acontecer, repete-me ele. Sabbatai não lhe inspira nenhuma confiança, nenhum recolhimento, nenhuma espera, nem alegria nenhuma.

- Estamos ainda longe da esperada Amsterdão - diz-me ele, rindo para não chorar.

31 de Dezembro de 1665

Senhor, o último dia!

Ando às voltas desde esta manhã sem conseguir comer, nem falar, nem pensar. Rumino e repiso sem parar as causas do meu medo. Quer se acredite ou não em Sabbatai, não há dúvida de que a sua aparição neste momento preciso, em vésperas do ano fatídico, e nesta cidade designada pelo apóstolo João como uma das sete Igrejas referidas em primeiro lugar pela mensagem do Apocalipse, não pode ser inteiramente devida a um conjunto de coincidências. O que me aconteceu ao longo dos últimos meses também não pode explicar-se sem referência à aproximação dos tempos novos, sejam eles os da Besta ou da Redenção, e aos sinais que os anunciam. Será necessário que os enumere uma vez mais?

Enquanto os meus faziam a sesta, instalei-me à mesa para escrever aquilo que este dia me inspira. Pensava escrever um verdadeiro testamento, depois fiquei-me apenas por estas linhas que terminavam com uma interrogação, deixando a mão por longos momentos suspensa no ar sem me decidir a recomeçar outra vez a enumeração dos sinais que marcaram estes últimos meses da minha vida e da dos meus. Acabei por arrumar a escrivaninha, perguntando-me se teria novamente a oportunidade de molhar o cálamo na tinta. Saí para caminhar pelas ruas quase desertas, depois ao longo da praia, igualmente abandonada, e onde o som das vagas e do vento teve a virtude de me acalmar, aturdindo-me.

De regresso a casa, deitei-me por alguns minutos em cima da cama, quase sentado, de tal modo a minha cabeça estava alta em cima das almofadas empilhadas. Depois levantei-me de excelente humor, decidido a não deixar o meu último dia - se ele fosse efectivamente o último - acabar na melancolia e no medo.

Tinha concebido o projecto de levar toda a minha família a jantar no estalajadeiro francês. Mas Maimoun pediu desculpa, dizendo que devia ir ao bairro judeu para se encontrar com um rabino que vinha de Constantinopla, e que talvez o informasse do que ali esperava Sabbatai e os seus. Bumeh disse que ia ficar fechado no seu quarto, a meditar até de madrugada, como cada um de nós deveria fazer. E Habib, ainda desgostoso ou amuado, também não queria sair. Sem me desencorajar, exortei Marta a acompanhar-me, e ela não disse que não. Mostrou-se mesmo encantada, como se a data de hoje não a impressionasse de nenhum modo.

Pedi ao senhor Moineau que nos servisse muito simplesmente o que tivesse de melhor. O prato de que ele mais se orgulhasse, como cozinheiro, com o melhor vinho da sua reserva. Como se fosse a nossa última refeição, pensei eu, sem o dizer, e sem que essa perspectiva me perturbasse demasiado. Creio que me resignei.

Quando regressámos, como toda a gente parecia dormir, fui para o quarto de Marta, cuja porta tranquei por dentro. Depois jurámos dormir apertados um contra o outro até de manhã - ou, pelo menos, pensei eu meio divertido meio apavorado, até à coisa que aconteceria de manhã no ano da Besta. Mas, após o amplexo, a minha companheira adormeceu e eu perdi o sono. Mantive-a durante um longo momento contra mim, talvez uma hora, depois afastei-a suavemente, levantei-me, cobri-me, e fui retomar a escrivaninha.

Prometi outra vez a mim mesmo fazer o balanço destes últimos meses, enumerar os sinais, na esperança de que alinhá-los na folha me revelaria de súbito o sentido oculto das coisas. Mas eis que, pela segunda vez hoje, desisti. Limitei-me a consignar as minhas banais actividades da tarde e da noite e agora não escreverei mais.

Que horas da noite poderão ser? Ignoro. Vou-me deitar ao pé de Marta, tendo o cuidado de não a acordar, e esperando que as minhas ideias sosseguem para que o sono venha.

Sexta-feira, 1 de Janeiro de 1666

O ano da Besta começou e é uma manhã como qualquer outra. A mesma luz atrás das janelas, os mesmos ruídos no exterior; e ouvi cantar um galo nas vizinhanças.

Bumeh no entanto não desarma. Nunca disse, pretende ele, que o mundo ia desaparecer assim de um dia para o outro. É verdade, nunca o afirmou claramente, mas ontem comportava-se como se as portas do Inferno estivessem a ponto de se abrir. Faria bem em desistir daquele ar desdenhoso e confessar-se tão ignorante como todos nós. Isso nem lhe passaria pela cabeça. Está sempre a profetizar, à sua maneira.

- Os novos tempos hão-de estabelecer-se ao seu próprio ritmo - proclama o meu sobrinho oráculo.

Poderia demorar um dia, uma semana, ou um mês, ou mesmo o ano inteiro - o que é certo, afirma ele, é que o impulso está dado, a metamorfose do mundo está em curso, e tudo será selado antes do fim de 1666. Ele e o irmão pretendem hoje que nunca tiveram medo, e que só eu, seu tio, estava assustado. Quando ontem, de manhã até à noite, respiravam com dificuldade e andavam às voltas com olhares de presas encurraladas.

Maimoun, que passou a tarde de ontem e o dia de hoje no bairro judeu, informa-me de que nestas últimas semanas a sua comunidade de Constantinopla estava suspensa das notícias que lhes chegavam de Esmirna, e que todos, ricos e pobres, letrados e ignorantes, homens santos ou vigaristas, todos, com excepção de alguns raros sábios, esperavam a vinda de Sabbatai com uma esperança desmesurada. Limpam-se as casas e as ruas, ornamentam-se como para um casamento, e espalha-se o boato, como em Esmirna, como em muitos outros lugares, ao que parece, de que o sultão se prepara para depor o seu turbante e o seu diadema aos pés   do rei messias em troca da vida salva e de um lugar no Reino futuro, o Reino de Deus na terra.

Domingo, 3 de Janeiro de 1666

Na igreja dos capuchinhos, o pregador acomete contra aqueles que anunciam o fim do mundo, contra os que glosam com os números e todos os que se deixam iludir. Afirma que o ano que começa será um ano como os outros, e troça do messias de Esmirna. Os fiéis sorriem dos seus sarcasmos, mas persignam-se com pavor sempre que ele menciona a Besta ou o Apocalipse.

4 de Janeiro

Hoje ao meio-dia deu-se, por minha culpa, um incidente que poderia ter tido as piores consequências. Mas, graças a Deus, tive suficiente presença de espírito para restabelecer a barca que começava a naufragar. Tinha saído para passear com Marta, e com Hatem, e os nossos passos conduziram-nos para o lado da mesquita nova, onde há numerosos livreiros. Ao contemplar as suas pilhas de livros, apeteceu-me de repente interrogá-los sobre O Centésimo Nome. Os meus desaires anteriores, em Tripoli e depois em Constantinopla, deviam ter-me incitado à prudência, mas o meu desejo de possuir esse livro foi mais forte, e inventei, com toda a má-fé, as melhores razões para me afastar da prudência. Disse a mim mesmo que na atmosfera que reinava em Esmirna, e ainda que a efervescência tivesse diminuído depois da partida de Sabbatai, certas coisas que em dado momento poderiam ter sido suspeitas ou interditas, seriam agora toleradas. Convenci-me também de que as minhas apreensões eram de qualquer modo excessivas, e sem dúvida até injustificadas.

Agora sei que não o eram. Apenas pronunciei o nome de Mazandarani e o título do livro, a maioria dos olhares tornaram-se fugidios, outros desconfiados, e alguns puseram-se mesmo ameaçadores. Nada de preciso me disseram, e nada fizeram contra mim; tudo se passou de uma maneira silenciosa, inapreensível.

Indemonstrável; fiquei no entanto hoje com a certeza de que as autoridades preveniram claramente os livreiros contra esse livro, e contra qualquer pessoa que o procurasse. Em Esmirna e em Constantinopla como em Tripoli ou Alepo, e em todas as cidades do Império.

Com receio de ser acusado de pertencer a alguma irmandade secreta que procurasse abalar o trono do sultão, mudei imediatamente de discurso e lancei-me numa descrição minuciosa e fantástica da encadernação do livro «tal como ma descreveram», menti, afirmando que era só isso que interessava ao negociante que eu sou. Duvido de que esta mudança de discurso tenha iludido os meus interlocutores. Mas a verdade é que um deles, hábil comerciante, correu a buscar na sua loja uma obra cuja encadernação se assemelhava um pouco àquela que eu tinha descrito - toda em madeira embutida, com o título incrustado a nácar, e finas dobradiças como as dos pequenos cofres. Eu já tivera na minha loja uma obra encadernada daquela maneira bastante incomum, mas não era evidentemente O Centésimo Nome...

A obra que o livreiro me trouxe hoje fala do poeta turco Yunus Emre, morto no século viii da Hégira, século xiv da nossa era. Apenas o folheei um pouco, para constatar que não se tratava de uma simples colectânea, mas de uma mistura de poemas, de comentários e de anedotas biográficas. Inspeccionei principalmente a encadernação, e passei-lhe várias vezes os dedos por cima para verificar que estava correctamente damasquinada, sem qualquer rugosidade. E, claro está, comprei-o. Com todas aquelas pessoas a observar-me, não podia desmentir as palavras que acabava de dizer. O livreiro, que mo vendeu por seis piastras, fez um bom negócio. Mas eu também. Por seis piastras, aprendi uma lição que vale o meu peso em ouro: nunca mais falarei do Centésimo Nome num país otomano!

Terça-feira, 5 de Janeiro de 1666

Ontem à noite, pouco antes de adormecer, li algumas passagens do livro que me venderam ontem. Ouvira algumas vezes o nome de Yunus Emre, mas nunca lera nada até agora. Há dezenas de anos que leio poetas de todos os países, e aprendo por vezes os seus versos, e nunca tinha lido nada assim. Não ouso dizer que é o maior, mas é para mim o mais surpreendente.

Uma mosca derrubou uma águia E fi-la morder a poeira Esta éapura verdade Eu próprio vi a poeira

O peixe subiu ao álamo Para comer alcatrão com vinagre A cegonha pariu um burrinho Que língua falará ele?

Se, ao acordar, estava feliz por ter descoberto este livro, a noite aconselhara-me no entanto a que não o conservasse, mas que o oferecesse antes como presente a um homem que soubesse apreciar a sua língua melhor do que eu - Abdellatif, o escrivão íntegro. Tinha uma dívida para com ele que fazia questão de saldar, sem saber muito bem qual a maneira mais apropriada. Nem uma jóia, nem um tecido de valor, que os seus princípios lhe ditariam que recusasse, nem um Alcorão com iluminuras, que um muçulmano aceitaria mal da mão de um genovês. Nada melhor, disse a mim mesmo, que um livro profano, de leitura agradável, que ele leria de tempos a tempos com prazer, e que lhe recordaria a minha gratidão.

De manhã parti pois para a cidadela, com o meu presente debaixo do braço. O homem pareceu a princípio espantado. Senti-o mesmo um tanto desconfiado, como se receasse que eu lhe pedisse em troca algum serviço que o colocasse de mal com a sua consciência. Avaliou-me lentamente com o olhar, a tal ponto que eu começava a lamentar o meu gesto. Mas imediatamente o seu rosto se descontraiu, ele deu-me um abraço, chamou-me seu amigo, e chamou um homenzinho sentado ao pé da porta para que nos trouxesse café.

Quando, ao fim de alguns minutos, eu me levantei para partir, ele acompanhou-me à rua segurando-me pelo braço. Parecia ainda muito emocionado com o meu gesto, que não esperava de maneira nenhuma. Antes de o deixar, perguntou-me pela primeira vez onde eu residia habitualmente, onde estava alojado em Esmirna, e por que razão me interessava pelo destino do marido de Marta. Expliquei-lhe sem rodeios que esse indivíduo a abandonara havia anos, que ela não voltara a ter notícias dele, e não sabia portanto se era ainda casada ou não. Abdellatif mostrou-se ainda mais desolado por não poder fazer nada para dissipar essa incerteza.

No caminho de regresso, pus-me a pensar de novo na sugestão que Hatem me fizera há algumas semanas, a de obter para Marta um certificado falso que atestasse a morte do marido. Se houvesse que recorrer um dia a tais meios, disse para mim mesmo, não seria a este novo amigo, a este homem tão recto, que poderia pedir ajuda.

Até agora, quis explorar as vias menos arriscadas. Mas quanto tempo será preciso ainda esperar? Quantos escrivães, quantos juizes, quantos janízaros precisaria eu ainda de interrogar e subornar, sem obter nunca o mínimo resultado? Não é a despesa que me inquieta. Deus proveu-me abundantemente. Mas será necessário regressar a Gibelet, sem tardar demasiado, e será necessário possuir um documento qualquer que possa restituir à «viúva» a sua liberdade. Ela não pode voltar a ficar à mercê da família do marido!

Ao chegar a «minha casa», com a cabeça ainda a zumbir, e verificando que todos estavam à minha espera para se sentarem à mesa, tive por um instante a tentação de perguntar a cada um deles se não achava que era chegado o momento de regressar à nossa terra natal. Mas passeei o olhar à minha volta, e imediatamente me impus silêncio. A minha direita estava sentado Maimoun, e à minha esquerda, Marta. Para ela, se eu sugerisse o regresso à nossa terra natal, era como se a abandonasse ou, pior ainda, como se a entregasse de mãos atadas aos seus perseguidores; e para ele, que morava agora em minha casa, como dizer-lhe que tinha chegado o momento de deixar Esmirna? Era como se dissesse que estava farto de o albergar, como se o expulsasse.

Estava a pensar que tivera razão em me calar, e que se tivesse aberto a boca sem reflectir, havia de lamentá-lo até ao fim dos meus dias. Quando Bumeh, voltando-se para mim, disse bruscamente:

- Devíamos era ir a Londres, pois é lá que se encontra o livro que procuramos.

Sobressaltei-me. Por duas razões. A primeira, foi a maneira como o meu sobrinho me olhou enquanto falava - era como se tivesse ouvido a pergunta que eu engolira, e lhe desse a resposta. É apenas uma impressão, bem sei, uma falsa impressão, uma impressão insensata. Nada deveria permitir que aquele iluminado adivinhasse os meus pensamentos! No entanto, havia no seu olhar, no tom da sua voz, uma mistura de segurança e de ironia que me deixou pouco à vontade. A segunda razão de ficar surpreendido, é que eu fizera prometer a todos nada dizerem a Bumeh acerca da estatueta reencontrada, nem do facto de Wheeler poder estar de posse do livro de Mazandarani. Quem pode ter traído esse segredo? Habib, é claro. Olhei para ele, e ele olhou para mim por sua vez, directamente nos olhos, com descaramento, desafiador. Eu devia ter contado com isso. Depois do que se passou no dia seguinte ao Natal, da bofetada que ele apanhou e da criada despedida, eu devia estar à espera que ele se vingasse!

Voltando-me para Bumeh, respondi com irritação que não tinha qualquer intenção de seguir novamente os seus conselhos, e que no dia em que deixasse Esmirna, seria para regressar a minha casa em Gibelet, e a nenhuma outra parte. «Nem Londres, nem Veneza, nem o Peru, nem a China, nem o país dos búlgaros!» gritei.

Ninguém à volta da mesa ousou contradizer-me. Todos, incluindo Habib, baixaram os olhos em sinal de submissão. Mas eu faria mal em acreditar que esta discussão está encerrada. Agora que sabe onde se encontra o livro, Bumeh vai-me atormentar como ele sabe fazer.

7 de Janeiro

Choveu todo o dia, em gotinhas frias e finas, picantes como alfinetes. Passei o dia sem pôr o nariz fora de casa uma única vez, e sem me afastar muito da braseira. Sinto uma dor no peito, talvez devida ao frio, que aliás desapareceu quando me aqueci. Não falei disso a ninguém, nem mesmo a Marta, para quê inquietá-la?

Desde quarta-feira, não voltámos a falar do nosso regresso, nem do nosso próximo destino, mas Bumeh voltou a trazer o tema à baila esta noite. Para dizer que se empreendemos esta longa viagem para recuperar o livro do Centésimo Nome, não seria razoável regressar a Gibelet sem o haver obtido, e passar o resto do ano calamitoso a mortificarmo-nos e a tremer. Estive quase a responder no mesmo tom de anteontem, mas a atmosfera tinha-se desanuviado e não se prestava a palavras de autoridade. Por isso preferi interrogar uns e outros sobre a atitude a adoptar.

Comecei por Maimoun que, a princípio, se escusou a imiscuir-se num assunto que dizia respeito à nossa família; depois, quando insisti, aconselhou educadamente os meus sobrinhos a confiarem na minha idade e no meu juízo. Um convidado respeitoso poderia responder de outro modo? Mas ele suscitou, da parte de Bumeh, esta réplica: «Já tem acontecido que numa família o filho se comporte mais sabiamente que o pai!» Maimoun ficou embaraçado, por um breve momento, antes de soltar uma grande gargalhada. Tocou no ombro do meu sobrinho, como a dizer-lhe que tinha captado a alusão, que apreciava o seu espírito de réplica e não lhe queria mal por isso. Mas não disse mais uma palavra em todo o serão.

Por meu lado, aproveitei essa troca de impressões e depois os risos, para evitar lançar-me numa nova discussão com Bumeh acerca da Inglaterra. Tanto mais que sentia de novo esta dor no peito, e principalmente não queria irritar-me. Marta também não expressou nenhuma opinião. Mas quando Habib retorquiu ao irmão: «Se há alguma coisa a achar, será aqui, em Esmirna, que a acharemos. Não sou capaz de vos dizer porquê, mas sinto que é assim. Bastará que nos mostremos pacientes!», ela aprovou-o com um grande sorriso e com um «Deus te guarde, disseste tudo o que era preciso dizer!»

Eu, que a cada dia fico mais desconfiado, digo a mim mesmo que a atitude de Habib se explica, como sempre, por razões do coração. Ele ausentou-se hoje durante todo o dia, e ontem também. O seu amuo passou, e deve estar de novo na esteira de uma mulher.

8 de Janeiro

Aquilo que fiquei a saber hoje vai mudar o rumo da minha existência. Alguns dirão que é ao mudar que uma existência retoma o rumo que sempre deveria ter sido o seu. Sem dúvida...

Ainda não falei disso a ninguém, principalmente a Marta, a primeira interessada. Acabarei por lhe falar do caso, é claro, mas não sem antes ter reflectido longamente, sozinho, sem me deixar influenciar por ninguém, e ter decidido o caminho que convém

Esta tarde, portanto, ao levantar-me depois da sesta, Hatem veiodizer-me que um rapaz queria falar-me. Trazia-me uma nota escrita pela mão do escrivão Abdellatif perguntando-me se podia honrá-lo com uma visita ao seu domicílio, cujo caminho o seu filho me indicaria.

Ele mora perto da Cidadela, numa casa menos modesta do que eu poderia supor, mas que partilha, julguei compreender, com três dos seus irmãos e respectivas famílias. Reina ali um contínuo vaivém de miúdos que brigam, de mulheres descalças que os perseguem, e de homens que levantam a voz para se fazerem obedecer.

Uma vez cumpridas as cortesias, Abdellatif conduziu-me a uma sala mais tranquila no andar de cima, onde me convidou a sentar no chão, a seu lado.

- Acho que sei onde se encontra o homem que procurais.

Uma das suas sobrinhas trouxe-nos bebidas frescas. Ele esperou, para continuar, que ela saísse fechando a porta atrás de si.

Informou-me então de que o tal Sayyaf tinha sido preso em Esmirna, há cinco ou seis anos, por furto, mas que só ficara um ano na prisão. Desde aí, ter-se-ia instalado nas ilhas, em Quios, onde teria arranjado forma de prosperar sabe Deus por meios de que traficâncias.

- Se ele nunca mais foi incomodado, é porque beneficia de certas protecções... Parece mesmo que os habitantes da região têm medo dele.

O meu amigo calou-se por instantes, como que a retomar fôlego.

- Hesitei um pouco antes de vos chamar, pois não devo fornecer tais informações a um mercador genovês. Mas ficaria de mal comigo mesmo se deixasse um homem de bem continuar a perder o seu tempo e o seu dinheiro à procura de um tratante.

Exprimi-lhe a minha gratidão por todas as fórmulas árabes e turcas que me vieram à boca, dei-lhe um grande abraço e beijei-o na barba como a um irmão. Depois despedi-me sem o deixar adivinhar de modo nenhum a confusão em que ele acabava de me precipitar.

Que deveria eu fazer agora? E que deveria Marta fazer? Ela empreendera esta viagem com o único objectivo de obter a prova de que o marido tinha morrido. Ora, é o contrário que acaba de constar. O homem está vivo, e ela já não é viúva. Poderemos continuar a viver sob o mesmo tecto? Poderemos alguma vez regressar juntos a Gibelet? Tudo isto me dá vertigens.

Voltei da casa de Abdellatif há apenas duas horas, e afirmei aos meus, que me esperavam com inquietação, que ele queria apenas mostrar-me um velho gomil de ouro que a sua família possuía. Marta não pareceu acreditar, mas ainda não me sinto preparado para lhe dizer a verdade. Fá-lo-ei amanhã, sem dúvida, ou o mais tardar depois de amanhã. Porque ela há-de certamente querer pedir a minha opinião sobre a conduta a seguir, e eu sinto-me, no momento presente, incapaz de aconselhá-la. Se ela fosse tentada a ir a Quios deveria eu dissuadi-la? E se ela teimasse, deveria lá ir com ela?

Gostaria que Maimoun estivesse aqui, esta noite, para lhe pedir a sua opinião como o fiz em Tarso, e em tantas outras ocasiões. Mas ele prometeu passar o sabhat com o rabino chegado de Constantinopla, e só voltará sábado à noite ou domingo.

Hatem também é um homem de bom conselho, e de bom senso. Vejo-o atarefado, no outro extremo da sala, enquanto espera que eu acabe de escrever, para vir falar-me. Mas ele é meu empregado, eu sou o seu amo, e repugna-me mostrar-me à frente dele indeciso, e assim desamparado.

9 de Janeiro

Disse finalmente a verdade a Marta mais cedo do que tinha previsto.

Tínhamos ido para a cama, ontem à noite, e eu tomei-a nos braços. Quando ela apertou contra mim a cabeça, o peito e as pernas, tive de súbito a sensação de estar a abusar dela. Então ergui-me, encostei-me à parede, fi-la sentar-se também e agarrei-lhe as mãos calorosamente nas minhas.

- Soube hoje uma coisa, em casa do escrivão, e esperava ficar sozinho contigo para te falar disso.

Esforcei-me por assumir o tom mais neutro, nem o das melhores notícias, nem o das condolências. Teria sido inconveniente, parece-me, anunciar com voz contrita que certo homem não tinha morrido. Um homem a quem ela tinha adquirido o hábito de detestar, mas que nem por isso deixava de ser ainda seu marido, que foi o seu grande amor e que, muito antes de mim, a tivera nos seus braços.

Marta não deixou transparecer nem surpresa nem decepção, nem confusão, nada. Apenas deixou de se mover. Imóvel, como uma estátua de sal. Silenciosa. Mal respirando. As suas mãos estavam ainda nas minhas, mas porque ela as tinha esquecido.

Eu próprio fiquei imóvel e mudo. A observá-la. Até que ela disse, sem sair do seu torpor:

- Que poderia eu dizer-lhe?

Em vez de responder ao que não era uma verdadeira pergunta, aconselhei-a a deixar passar uma noite antes de tomar qualquer decisão. Não pareceu ouvir. Virou-me as costas e não disse mais nada até de manhã.

Quando acordei, ela já não estava na cama. Tive um momento de inquietação, mas assim que saí do quarto vi-a no salão a esfregar os puxadores das portas e a limpar o pó das estantes. Algumas pessoas, quando estão angustiadas, ficam sem força nem para se segurarem de pé, enquanto outras, pelo contrário, agitam-se e gesticulam até ao esgotamento. Na noite passada eu tinha pensado que Marta pertencia à primeira categoria. É evidente que me tinha enganado. O seu torpor foi apenas passageiro.

Terá ela já tomado a sua decisão? No momento em que escrevo estas linhas, ignoro-o. Não lhe fiz a pergunta, com receio de que ela se sinta obrigada pelo que tinha dito à noite. Parece-me que se estivesse verdadeiramente decidida a partir, teria começado a arrumar as suas coisas. Deve hesitar ainda.

Não lhe dou pressa, deixo-a hesitar.

10 de Janeiro

Como eram doces essas primeiras noites em que nos deitávamos um ao lado do outro fingindo obedecer aos caprichos da Providência, ela brincando a ser minha e eu fingindo acreditar. Agora que nos amamos já não brincamos e os lençóis são tristes.

Se me mostro desiludido, é porque a decisão de Marta está tomada e não acho nenhum argumento para dissuadi-la. Que poderia eu dizer-lhe? Que faria mal em ir ver o marido, residindo ele perto daqui, e tendo ela empreendido esta viagem justamente para resolver este assunto e dissipar as suas dúvidas? Ao mesmo tempo, estou persuadido de que nada de bom resultará do seu reencontro. Se esse indivíduo decidisse fazer valer os seus direitos sobre a sua esposa legítima, ninguém poderia opor-se a isso, nem ela, nem principalmente eu.

- Que pensas tu dizer-lhe?

- Pergunto-lhe por que partiu, por que não me deu notícias, e...

Se conta regressar à nossa terra natal.

- E se ele te obrigasse a ficar junto dele?

- Se me quisesse assim tanto não me teria abandonado.

Esta resposta não vale nada! Encolhi os ombros, afastei-me para a beira da cama, virei-lhe as costas, calei-me.

Que a Sua vontade seja feita! Repito-o sem parar: Que a Sua vontade seja feita! Mas rogo também para que a Sua vontade não seja demasiado cruel como é por vezes.

13 de Janeiro

Deambulo pelas ruas, e pelas praias, por vezes sozinho, muitas vezes com Maimoun. Falamos disto e daquilo, de Sabbatai, do pai dele, de Amsterdão, de Génova, de Veneza e dos otomanos - de tudo, excepto dela. Mas assim que regresso a casa esqueço-me das nossas belas palavras e não registo nada. Há três dias que não escrevo uma linha. Para manter um diário de viagem é preciso cultivar preocupações múltiplas, e eu já só tenho uma. Preparo-me, no recolhimento, para a ideia de perder Marta.

Assim que ela me anunciou a sua decisão de se dirigir a casa do marido, nunca mais disse nada. Não mencionou nenhuma data, e não se preocupou com as modalidades da viagem até Quios. Estará ainda indecisa? Para que não se sinta pressionada, não lhe faço nenhuma pergunta. Falo-lhe por vezes do pai, de Gibelet, e de algumas recordações agradáveis, como o nosso encontro inesperado na barreira de Tripoli, ou a nossa noite em casa do alfaiate Abbas, que Deus o proteja!

À noite, já não a tomo nos meus braços. Não porque ela tenha voltado a ser, a meus olhos, a mulher de outro, mas porque não quero que se sinta em falta. Tinha mesmo pensado em não voltar a dormir no seu quarto, a voltar para o meu, que pouco utilizei nestes últimos tempos.

Depois de um dia de hesitação, mudei de ideia. Teria cometido assim um enorme erro de apreciação. O meu gesto não teria sido o de um amante cavalheiresco, disposto a sacrificar-se para não embaraçar a sua amante, mas uma deserção, um abandono, e Marta teria visto nisso um convite para regressar sem demora ao seu «lar».

Continuo portanto a dormir junto dela. Beijo-a na testa e seguro-lhe por vezes a mão sem me aproximar muito. Desejo-a mais do que antes, mas não farei nada que possa inquietá-la. Que ela queira falar com o marido, e fazer-lhe perguntas que há anos lhe atormentam a cabeça, compreendo. Nada no entanto a obriga a lá ir imediatamente. O homem está instalado em Quios há anos, não vai partir amanhã. Nem depois de amanhã. Nem dentro de uma semana. Nem daqui por um mês. Não, não há pressa. Podemos ainda agarrar algumas migalhas sobre a mesa antes que ela seja levantada.

17 de Janeiro

Marta passou parte da noite no seu quarto, a chorar, a chorar. Fui várias vezes acariciar-lhe a testa, os cabelos, e as costas com as mãos. Ela não disse nada, não me sorriu, mas também não se furtou às minhas carícias.

Quando nos deitámos, ela continuava a chorar. Eu sentia-me desarmado. Para não estar calado, pronunciava frases banais que não podiam consolá-la - «Tudo se há-de arranjar, verás!» - que mais dizer?

Quando, subitamente, ela se voltou para mim, para me lançar, num tom ao mesmo tempo colérico e lastimável:

- Não me perguntas o que tenho?

Não, não tinha nenhuma razão para lho perguntar. Sabia porque é que ela chorava, pelo menos julgava saber.

- Tenho um atraso - anunciou-me.

Tinha as faces da cor da cera, e olhos esbugalhados de pavor. Precisei de vários segundos para compreender o que ela procurava dizer-me.

- Estás grávida? A minha cor devia ser agora tão cadavérica como a dela.

- Acho que sim. Já tenho uma semana de atraso.

- Ao fim de uma semana, não se pode ter a certeza. Ela pousou a mão sobre o ventre liso.

- Eu tenho a certeza. A criança está cá.

- Mas tinhas-me dito que não podias engravidar.

- Foi o que sempre me disseram. Parou de chorar, mas continuou aparvalhada, sempre com a

mão no ventre, a apalpá-lo. Limpei-lhe os olhos com o lenço, depois fui sentar-me muito junto dela, na beira da cama, e agarrei-a pelos ombros.

Ao tentar reconfortá-la, não me sentia menos desamparado do que ela. Nem menos culpado. Tínhamos transgredido todas as leis de Deus e dos homens vivendo como marido e mulher, persuadidos de que os nossos folguedos não teriam consequências. Por causa da suposta esterilidade de Marta, que nos devia parecer uma maldição e na qual víamos, pelo contrário, um favor do Céu, uma promessa de impunidade.

A promessa não foi cumprida, a criança está cá.

A criança. O meu filho. O nosso filho.

Eu que sonho ter um herdeiro, e eis que o Céu me dá um, concebido no seio da mulher que amo!

E Marta, que tanto sofreu por ser ou se julgar estéril, ei-la que traz um filho, concebido não na cama do patife com o qual se perdera na sua juventude, mas sob o tecto de um homem de bem que a ama e que ela ama!

Devíamos sentir, um e outro, a mais completa alegria, este devia ser o momento mais belo da nossa existência, não é verdade? Mas não é assim que o mundo nos manda reagir. Devemos considerar o filho como uma maldição, como uma punição. Devemos recebê-lo no luto, e ter saudades do tempo bendito da esterilidade.

Se o mundo é assim, então eu digo: que se acabe! Que seja varrido por um dilúvio de água ou de fogo, ou pelo sopro da Besta, que seja aniquilado, tragado, que morra!

Quando, no Verão passado, Marta, cavalgando a meu lado nas montanhas da Anatólia, me dissera que não receava o fim do mundo, mas que pelo contrário o esperava, o desejava, eu não compreendera bem a sua raiva. Agora compreendo-a, partilho-a. Mas é ela que fraqueja.

- Tenho de ir ao encontro do meu marido, na sua ilha, o mais depressa possível.

- Para que ele pense que o filho é dele?

Ela fez que sim com a cabeça, e acariciou-me a testa e o rosto com ar miserável.

- Mas esse filho é meu! *

- Queres que lhe chamem bastardo?

- E tu, queres que lhe chamem filho de um patife?

- Sabes bem que tem de ser assim. Não podemos fazer nada quanto a isso!

Eu que tinha admirado Marta porque ousara rebelar-se contra a sua sorte, não podia dissimular a minha decepção.

- Diz-se que o filho que trazem no ventre dá coragem às mães, mas a ti o filho no teu seio tornou-te medrosa.

Ela afastou-se de mim.

- Tenho falta de coragem, dizes tu? Vou meter-me de novo nas mãos de um homem que já não me ama, que me vai insultar e espancar e fechar-me até ao fim da minha vida. Tudo isso para evitar que o meu filho seja amanhã chamado bastardo. É a essa mãe que tu chamas medrosa?

Talvez eu não devesse censurá-la, mas penso em cada palavra daquilo que disse. Ela responde-me que vai sacrificar-se? O sacrifício de si mesma pode ser tanto coragem como cobardia. A pura coragem é enfrentar o mundo, defender-se contra os seus ataques passo a passo, e morrer de pé. Oferecer-se aos golpes é, no melhor dos casos, uma fuga honrosa.

Por que havia eu de aceitar que a mulher que comecei a amar vá viver com um malfeitor, levando o filho que concebemos juntos.

O que ela não esperava ter e que eu lhe dei? Porquê? Porque um padre bêbedo de Gibelet lhes pôs um dia as mãos sobre a cabeça enquanto gaguejava três frases rituais?

Malditas sejam as leis dos homens, os seus fingimentos, as suas casulas e as suas cerimónias!

Segunda-feira, 18 de Janeiro de 1666

Maimoun, a quem acabo de me confiar, dá razão a Marta e diz que eu estou errado. Escuta os meus argumentos sem os compreender, e só tem uma resposta na boca: «O mundo é assim!»

Diz que seria loucura trazer a criança e dar à luz fora do domicílio do marido, e que isso a poderia matar de angústia e de vergonha. Cada dia que passa a tornará mais febril, diz-me ele, e eu não devia tentar retê-la por mais tempo.

Para atenuar a minha dor, diz-se persuadido de que um dia, antes que passe muito tempo, ela voltará para mim. «O Céu distribui muitas vezes as desgraças àqueles que não as merecem, mas por vezes também aos que as merecem», promete ele franzindo os olhos como que para discernir o lado oculto das coisas. Quer dizer com isso que o marido de Marta poderia sofrer a sorte merecida pelos bandidos, que a realidade poderia confirmar o rumor, e que a futura mãe do meu filho regressaria então viúva... Isso sei-o eu. Tudo pode acontecer, é claro. Mas não seria lamentável viver à espera da morte de um rival, rogando todos os dias ao Céu que o afogasse ou fizesse enforcar? Um homem mais jovem do que eu, ainda por cima! Não, não é assim que encaro a continuação da minha existência. Argumento, debato-me, sabendo que para mim a batalha está antecipadamente perdida. Já que Marta não ousará deixar o seu ventre crescer sob o meu tecto, já que ela só pensa em dissimular a sua falta na cama de um esposo que a abomina, não poderei retê-la contra a sua vontade. As suas lágrimas já não secam, ela parece emagrecer de hora para hora e definhar.

Que posso eu esperar ainda? Que imediatamente depois de ter encontrado o marido, ela decida por qualquer razão não ficar com ele, ou que ele próprio a repudie. Ou ainda, eu poderia pagar a esse indivíduo uma certa soma para que ele fizesse anular o casamento pretendendo que nunca foi consumado. O homem é sensível ao dinheiro; se eu lhe fizer um preço, partiremos juntos da casa dele, Marta, o nosso filho e eu.

Aqui estou eu a tecer um conto de fadas! É porque preciso de manter algumas razões para viver, nem que sejam ilusórias. Mentir a si próprio é por vezes a passadeira insubstituível para atravessar as desgraças...

19 de Janeiro

Marta anunciou-me durante a noite que partiria amanhã para Quios. Disse-lhe que a acompanharia, e prometi imediatamente não me interpor de maneira nenhuma entre ela e o marido, limitando-me a rondar por aquelas paragens para que ela possa recorrer a mim em caso de urgência. Ela aceitou, não sem me fazer jurar ainda por duas vezes que não faria nada que ela não me tenha expressamente pedido, explicando-me que o marido lhe cortaria o pescoço à entrada da porta se desconfiasse do que se passou entre nós.

Há duas maneiras de chegar à ilha a partir de Esmirna. Pela estrada até ao extremo da península, após o que só será necessário atravessar o estreito, pouco mais de uma hora na barca, para alcançar a cidade que tem o nome de Quios. Ou então tudo por mar, de um porto ao outro. Foi esta a solução que me aconselhou Hatem, que se informou minuciosamente a pedido de Marta. Será preciso contar com um dia de viagem se o vento estiver favorável, e dois dias se não estiver.

O meu empregado acompanha-nos, e eu tinha mesmo pensado em levar os meus sobrinhos. Não prometi eu à minha irmã Plaisance nunca me separar deles? Mas, depois de haver pesado os prós e os contras, preferi deixá-los em Esmirna. Temos de resolver em Quios um assunto delicado, e receio que um ou o outro cometesse alguma inconveniência. Talvez eu tivesse mudado de ideia se eles tivessem insistido para nos acompanhar. Mas não, nenhum deles mo pediu; o que me intrigou, devo dizê-lo, e me inquietou um pouco. Pedi a Maimoun que olhasse por eles como um pai, até ao meu regresso.

Quanto tempo ficarei na ilha? Não faço ideia. Alguns dias? Duas ou três semanas? Veremos. Marta regressará comigo? Ainda espero que sim. Regressar na sua companhia à «nossa» casa de Esmirna aparece-me já como a mais bela coisa que possa acontecer-me, quando ainda aqui estou, neste momento, e ainda posso contemplar as paredes, as portas, os tapetes e os móveis enquanto escrevo estas linhas.

Maimoun disse-me que no meu regresso, partirá para uma longa viagem que o levará a Roma, a Paris, a Amsterdão é claro, e a outros lugares ainda. Promete falar-me disso quando eu tiver o espírito mais livre para o escutar. Mas terei eu verdadeiramente o espírito mais livre ao regressar de Quios?

Ele deseja que eu o acompanhe no seu périplo. Logo verei. De momento, o mínimo projecto esgota-me. Os meus sonhos estão circunscritos: ir a Quios na companhia de Marta, regressar de Quios na sua companhia.

22 de Janeiro

Aproximar-se de Quios por mar, ver desenhar-se pouco a pouco a linha da costa, as montanhas na retaguarda e nas proximidades do mar os inumeráveis moinhos, deveria aliviar o coração do viajante como uma lenta recompensa. A ilha faz-se desejar como uma terra prometida, antecâmara do Céu. Mas o viajante forçado que eu sou só espera o momento de voltar a partir.

Durante toda a travessia, Marta manteve-se silenciosa, e os seus olhos evitaram cuidadosamente cruzar-se com os meus. Enquanto Hatem, procurando alegrar-me, me transmitia uma fábula que lhe haviam contado anteontem no porto de Esmirna, e segundo a qual haveria em Quios, para o interior da ilha, um convento onde vivem umas muito curiosas freiras; como em certos mosteiros, os viajantes seriam aí recebidos, mas de uma maneira muito diferente, pois durante a noite, essas santas mulheres vêm introduzir-se, diz-se, junto dos visitantes para lhes prodigalizar atenções que vão muito além daquilo que é exigido pelo amor ao próximo.

Apressei-me a demolir secamente as ilusões do meu empregado, assegurando-lhe que tinha lido e ouvido fábulas semelhantes a propósito de muitos outros lugares. Mas quando vi que ele me acreditara, e que se lhe apagara uma luz nos olhos, lamentei um pouco ter assim quebrado o seu sonho. Sem dúvida me teria mostrado mais complacente se tivesse ainda a minha jovialidade.

Na ilha de Quios, 23 de Janeiro de 1666

Desde que chegámos, Hatem passa o tempo nas lojas, nas tabernas e nas ruelas do velho porto, a interrogar as pessoas acerca do homem que procuramos. Curiosamente, ninguém parece conhecê-lo.

Abdellatif ter-me-ia enganado? Não vejo por que havia ele de fazê-lo. Teria ele próprio sido enganado pelos seus informadores? Talvez estes últimos se tenham simplesmente enganado na ilha, confundindo Quios com Patmos, ou Samos, ou Castro, que outrora se chamava Mitilene.

De qualquer modo, o rumo que os acontecimentos tomam não me desagrada. Mais alguns dias de investigações, e regressaremos a Esmirna. Marta protestará, chorará, mas acabará por se decidir.

E há-de saltar-me ao pescoço no dia em que lhe trouxerem, pago a preço de ouro - nem que eu enterre nisso um terço da minha fortuna. - um firmão atestando que o marido está mesmo morto. Então casaremos, e se o Céu não se mostrar demasiado encarniçado contra os amantes, o antigo marido terá a gentileza de não voltar a pôr os pés em Gibelet.

Na nossa velhice, rodeados dos filhos e dos netos, recordar-nos-íamos com assombro desta expedição de Quios, agradecendo ao Céu por tê-la tornado tão infrutífera.

24 de janeiro

Que encanto teria eu achado nesta ilha se aqui viesse noutras circunstâncias! Tudo é agradável ao meu coração quando esqueço, por um instante, o que aqui me trouxe. As casas são bonitas, as ruas limpas e bem pavimentadas, as mulheres passeiam com elegância e os seus olhos sorriem aos estrangeiros. Tudo aqui evoca para mim o passado esplendor de Génova, a cidadela é genovesa, o vestuário é genovês, e também todas as mais belas recordações. Até os gregos, quando ouvem o meu nome e descobrem as minhas origens, me apertam contra o coração amaldiçoando Veneza. Sei que eles também amaldiçoam os turcos, mas nunca em voz alta. Desde que os genoveses partiram, há cem anos, esta ilha não conheceu nenhum governo compassivo, as pessoas que aqui encontrei nestes últimos dias todas o reconhecem, cada qual à sua maneira.

Esta manhã, levei Marta à missa. Uma vez mais - quem dera que não seja a última! - ela entrou a porta da igreja pelo meu braço, e eu tinha a cabeça orgulhosa e o coração miserável. Fomos a Saint-Antoine, que pertence aos padres jesuítas. Aqui, os sinos das igrejas tocam como nos países cristãos, e organizam-se procissões nas ruas pelas festas, com as opas, o pálio, os fanais e os ouros do Santíssimo Sacramento. Foi o rei de França que obteve outrora do Grande Turco que o culto latino pudesse praticar-se assim, publicamente, e a Porta respeita ainda esse privilégio. Mesmo neste domingo normal, as famílias mais prósperas chegaram para a missa em grande cortejo. A meu lado, as pessoas modestas murmuravam com mais orgulho do que inveja os nomes ilustres, Giustiniani, urghesi, Castelli, eu julgar-me-ia em Itália se não houvesse, a dois passos da igreja, bem à vista sobre um cabeço, dois janízaros de sentinela.

Depois da missa, Marta foi falar demoradamente com um padre. Esperei por ela cá fora, e quando saiu não lhe perguntei nada e ela nada me disse. Talvez se tenha apenas confessado. Olhamos de um modo estranho aqueles que se confessam quando somos nós próprios o pecado.

25 de Janeiro

Hatem empenha-se ainda em procurar o nosso homem, Marta suplica-lhe que revire todas as pedras, enquanto eu rogo a todos os santos para que ele não ache nada.

Ao anoitecer, o meu empregado disse-me que talvez tenha uma pista. Quando estava numa taberna do bairro grego, um marinheiro veio dizer-lhe que conhecia Sayyaf o qual mora, segundo ele, não na cidade de Quios mas mais para sul, perto de uma aldeia chamada Katarraktis, numa estrada que vai para a península do Cabo Mastico. Para nos conduzir até lá, o informador exige um sultanino de ouro. A soma parece-me excessiva, mas concordei. Não quero que Marta me acuse mais tarde de não ter feito tudo para satisfazê-la. Ela diz agora que tem a certeza de estar grávida, e quer encontrar o marido o mais depressa possível, seja qual for a vida que irá ter junto dele. «Depois, Deus disporá das nossas existências como entender!»

Aceitei pois pagar ao intermediário, um certo Drago, a soma que ele exigia, e pedi a Hatem que mo traga amanhã, para eu poder vê-lo com os meus próprios olhos, ouvi-lo e sondá-lo.

No fundo de mim mesmo, espero ainda que se trate de um vulgar intrujão que se limitará a embolsar a sua gorda moeda antes de desaparecer tal como apareceu. Deve ser a primeira vez que o negociante que eu sou roga assim ao Céu que o roubem, que lhe mintam e o enganem!

A noite, quis tomar Marta nos meus braços pela que poderia bem ser a última vez. Mas ela repeliu-me chorando e não me dirigiu a palavra uma única vez. Talvez queira habituar-me a não tê-la mais junto de mim, e habituar-se a si mesma a nunca mais dormir encostada ao meu ombro.

A sua ausência já começou.

26 de Janeiro

Neste instante, estou tentado a escrever que sou o homem mais feliz do ultramar e de Génova, como dizia o meu falecido pai. Mas ainda é prematuro. Direi apenas que tenho uma grande esperança. Sim, grande esperança, grande esperança. De recuperar Marta, de reconduzi-la a Esmirna, depois à minha casa de Gibelet, onde nascerá o nosso filho. Que o Céu faça com que o meu ardor não me abandone tão depressa como me invadiu.

Se pareço jovial, é porque o homem que deve levar-nos até ao marido de Marta veio hoje visitar-nos com excelentes notícias. Eu que desejava que ele desaparecesse sem deixar rasto, já não lamento ter podido encontrar-me com ele, falar-lhe e ouvi-lo. Oh, não tenho nenhuma ilusão quanto à personagem, um rato de taberna reles, e não ignoro que me contou tudo o que contou com o único objectivo de me subtrair uma segunda moeda de ouro, atraído sem dúvida pela facilidade com que eu tinha desembolsado a primeira.

Mas volto aos factos de que tanto me alegro: o chamado Drago disse-me que Sayyaf voltou a casar-se no ano passado, e que em breve será pai de um filho: a sua nova esposa seria filha de um rico e poderoso notável da ilha, o qual ignora, claro está, que o genro já era casado. Suponho que os sogros descobrirão um dia muitas outras facetas ocultas desse patife, e se arrependerão de uma tal aliança, mas - que Deus me perdoe! - não procurarei abrir-lhes os olhos. Que cada um pague os seus próprios erros, que cada um carregue a sua cruz, eu já me curvo bastante ao peso da minha.

Que me livrem deste peso, e eu vou-me embora desta ilha sem olhar para trás.

Se estas notícias me alegram tanto, é porque elas poderiam mudar por completo o comportamento do marido de Marta. Em vez de procurar recuperá-la, como teria feito se não se tivesse casado outra vez, Sayyaf deveria ver agora na sua chegada à ilha uma ameaça para a nova existência que construiu para si mesmo. Drago, que o conhece bem, está convencido de que ele estaria disposto a concluir qualquer acordo para preservar a sua situação; poderia mesmo ir até ao ponto de assinar, diante de testemunhas, um documento certificando que o seu primeiro casamento nunca foi consumado, e que está portanto ferido de nulidade. Se as coisas se passarem assim, Marta estará livre dentro de pouco tempo! Livre para voltar a casar, livre para casar comigo, livre para dar um nome de pai ao seu filho.

Ainda não chegámos aí, bem sei. O marido da «viúva» ainda não assinou nada, nem prometeu nada. Mas o que Drago diz é o próprio bom senso. Tenho muita esperança, sim, e Marta, no meio das lágrimas, das náuseas, das preces, chega até a sorrir.

27 de Janeiro

é amanhã que Drago vai conduzir-nos a casa de Sayyaf Digo «nos» porque é esse o meu desejo, mas Marta prefere ir sozinha. Ela afirma que poderá mais facilmente obter aquilo que quer se discutir a sós com o marido; receia que ele se irrite ao vê-la rodeada de homens e suspeite da sua ligação comigo. Não deixa de ter razão, sem dúvida, mas eu não posso deixar de ficar inquieto à ideia de que ela vai pôr-se - nem que seja por uma hora - à mercê de semelhante patife.

Finalmente, chegámos a um compromisso que me parece razoável: iremos juntos até à aldeia de Katarraktis. Há ali, ao que me dizem, um pequeno convento grego onde param muitos viajantes, que oferece bom vinho de Fita e a melhor comida, e que tem a vantagem de se encontrar a pouca distância da casa desse homem. Estaríamos ali à nossa vontade para esperar o regresso de Marta.

28 de Janeiro

Eis-nos pois no convento, e procuro escrever para que o tempo me pareça menos longo. Molho a ponta do cálamo na tinta, como outros suspiram, ou protestam, ou rezam. Depois traço na folha palavras amplas como na minha juventude teria deambulado a grandes passadas.

Marta desapareceu há mais de uma hora. Via-a meter por uma ruela. O meu coração sobressaltou-se, retive a respiração, murmurei o seu nome, mas ela não se voltou. Avançava a passo firme, como os condenados resignados. Drago, que caminhava à sua frente, indicou-lhe uma porta. Ela entrou, a porta voltou a fechar-se. Só consegui entrever a casa do bandido, oculta por uma cerca e por árvores altas.

Um monge veio propor-me que comesse alguma coisa, mas eu prefiro esperar que Marta tenha voltado para tomarmos a refeição juntos. De qualquer maneira, tenho a garganta apertada e o estômago tolhido, não poderei engolir nem digerir nada enquanto ela não estiver comigo. Estou impaciente. Digo a mim mesmo sem parar que devia tê-la impedido de lá ir, se necessário pela força. Mas quê, em todo o caso não ia sequestrá-la? Que o Céu atenue os meus escrúpulos, que ela regresse sã e salva, senão passarei o resto da vida cheio de remorsos.

Há quanto tempo ela partiu? Tenho a alma tão enevoada que me sinto incapaz de distinguir o minuto da hora. No entanto, sou um homem paciente; como todos os negociantes de curiosidades espero por vezes semanas inteiras o rico cliente que prometeu voltar e não voltará. Mas hoje não tenho nenhuma paciência. Comecei a achar o tempo longo desde o instante em que ela desapareceu. Ela, levando o filho.

Na companhia de Hatem fui dar uma volta pelas ruas, apesar da chuva fina que começou a cair. Entrámos na ruela, até à porta da casa de Sayyaf Não ouvimos nenhum ruído, nem vimos nada além de trechos de paredes amareladas atrás de uma cortina de ramos de pinheiro. A ruela termina num beco sem saída e nós voltámos para trás.

Estive tentado a bater à porta, mas jurei a Marta não fazer nada disso e deixá-la resolver este problema à sua maneira. Não a trairei.

Já é quase crepúsculo, Marta não regressou, e eu não voltei a ver Drago. Recuso-me ainda a meter na boca seja o que for, enquanto ela não estiver comigo. Releio as linhas anteriores, em que escrevi «não a trairei», e pergunto-me se a trairia por intervir, ou por não intervir.

Começa a anoitecer, e aceitei tomar uma tigela de sopa em que me deitaram vinho tinto. Umas fortes goladas de vinho que deram à sopa uma cor de beterraba e um gosto de xarope adulterado para que as minhas angústias se acalmem, os meus dedos parem de tremer, e eu pare de martelar o chão. Rodeiam-me e cuidam de mim e poupam-me como um doente grave ou como um viúvo choroso.

Sou o viúvo que nunca foi esposo. Sou o pai incógnito. Serei o amante traído. Entre cobardias e escrúpulos, deixei chegar a noite pálido, mas ao amanhecer o meu sangue genovês voltará a irrigar-me, ao amanhecer insurgir-me-ei.

O sol está a nascer, eu não dormi, e Marta ainda não voltou. No entanto, domino-me, mantenho o discernimento. Não estou tão fora de mim como devia estar. Estarei resignado ao que se passa? Tanto melhor se os outros o pensam, mas eu sei do que sou capaz para recuperá-la.

Hatem velou por mim toda a noite, com receio de que eu cometesse algum acto insensato. Foi quando reacendi esta vela, abri a escrivaninha, pousei o tinteiro, alisei as folhas, depois comecei a traçar estas palavras, que vi a cabeça do meu empregado descair para trás, de boca aberta.

A minha volta todos dormem, mas Marta, onde dorme ela? Onde quer que esteja, na cama de um homem ou numa masmorra, tenho a certeza de que não pregou olho, e que neste momento pensa em mim como eu penso nela.

O seu rosto não me abandona, está presente no meu espírito como se o visse à luz desta vela. Mas eu não vejo mais nada. Não consigo imaginar o lugar onde ela se encontra, as pessoas que a rodeiam, as roupas que veste ou que já não veste. Falo de cama, de masmorra, como poderia falar de chicote, de vergalho, de bofetadas e de rosto tumefacto.

Os meus receios vão talvez muito para além. Porque me acontece pensar que o bandido do marido dela, para não pôr em perigo o seu novo casamento, poderia pensar em fazê-la desaparecer. A ideia já me ocorrera ontem, mas eu afastei-a. Há demasiadas testemunhas, e Sayyaf não ignora. Eu, Hamet, Drago, e até os monges, que viram Marta chegar connosco, antes de a conduzirmos até àquela porta. Se tenho medo de novo, é porque as noites sem dormir reavivam as angústias. E também porque não consigo imaginar onde Marta poderá ter passado esta noite.

A dizer a verdade, tudo é possível, tudo. Incluindo reencontros calorosos entre os dois esposos, que se tivessem recordado de súbito dos seus amores antigos, que se tivessem abraçado, com tanto mais arrebatamento quanto tinham, um e outro, bastantes coisas por que pedir perdão. Por causa do seu estado, Marta não poderia desejar uma saída mais reconfortante que a de ser possuída logo na primeira noite. Assim, jogando um pouco com as datas, faria Saayaf acreditar que o filho é dele.

Há, evidentemente, a outra esposa, e os sogros. Cuja presença torna impensável essa festa harmoniosa. Por Marta, eu deveria lamentá-lo; por mim mesmo deveria talvez alegrar-me. Não, não posso alegrar-me. Porque volto a pensar nas soluções extremas a que esse homem poderia recorrer. Neste maldito assunto, nada pode alegrar-me, nada me pode reconfortar. Principalmente a esta hora tão matinal, tão tardia, em que o meu espírito fatigado já só desenha a negro. Ele já não desenha, de resto, apenas garatuja.

Chego ao fim desta página, e farei bem em aproveitar isso para me deitar alguns instantes, deixando a tinta secar sozinha.

 

                             Um céu sem estrelas

 

Em Génova, 3 de Abril de 1666

Durante cinco meses relatei diariamente, ou quase, as peripécias da viagem, e já não tenho o mínimo vestígio de tudo aquilo que escrevi. Um primeiro caderno ficou em casa de BarinelUi, em Constantinopla; e o segundo no convento de Quios. Deixei-o de manhã no meu quarto, ainda aberto na última página para que a tinta tivesse tempo de secar. Prometi a mim mesmo voltar à noite para dar conta de tudo o que acontecesse durante aquele dia decisivo. Nunca mais voltei.

Decisivo, aquele teria, tê-lo-á sido, infelizmente, muito mais do que eu esperava. Encontro-me separado de todos aqueles a quem amo, de todos os meus, e doente. Graças a Deus, a Fortuna que me abandonou com uma mão agarrou-me com a outra. Despojado, sim, mas como um recém-nascido sobre o seio da mãe. Minha mãe reencontrada. Minha terra-mãe. Minha praia-mãe.

Génova, cidade-mãe.

Desde que aqui estou, penso todos os dias em escrever, para contar a minha viagem, para dar conta dos meus sentimentos, que hesitam sem parar entre o desânimo e a exuberância. Se não escrevi nada até hoje, foi principalmente por causa da perda do meu caderno. Não ignoro que as minhas palavras acabarão um dia no esquecimento, toda a nossa existência está ligada ao esquecimento, mas precisamos ao menos de uma aparência de duração, uma ilusão de permanência, para persistir. Como poderia eu escrevinhar estas páginas, preocupar-me ainda em descrever os acontecimentos e os sentimentos com as palavras mais justas, se não posso voltar a elas dentro de dez anos, dentro de vinte anos, para aí reencontrar o que foi a minha vida? E no entanto, escrevo, volto a escrever e escreverei. A honra dos mortais está talvez na sua inconstância.

Mas volto à minha história. Naquela manhã, em Quios, depois de uma noite de espera, decidi ir procurar Marta, custasse o que custasse. Ao escrever isto, tenho a impressão de falar de uma vida anterior, tendo derivado, desde a partida da mulher que amo, para uma espécie de além adulterado. O seu ventre deve estar já um tanto arredondado, imagino, e pergunto a mim mesmo se verei um dia o filho que vai nascer da minha semente. Mas preciso de parar de gemer, de recuperar o autodomínio, de me recompor. Preciso que as palavras que escrevo apaguem a minha melancolia em vez de reavivá-la, para que eu possa contar tudo serenamente como a mim mesmo prometi.

Portanto, depois de ter passado pelo sono cerca de uma hora no albergue-convento dos monges de Katarraktis, levantei-me sobressaltado, decidido a deslocar-me a casa do marido de Marta. Desistindo de me chamar à razão, Hatem não teve outro remédio senão acompanhar-me.

Bati à porta, um guarda abriu. Um gigante de cabeça rapada, de barba e bigode abundantes, que nos perguntou o que queríamos sem nos convidar a entrar. Dirigiu-se-nos num grego de piratas, sem a mínima fórmula de polidez, sem um sorriso, com a mão a tactear no cabo de um punhal curvo. Atrás dele, a alguns passos, dois outros energúmenos do mesmo jaez, de pernas mais curtas mas com os rostos igualmente enrugados. Eu fulminava, enquanto o meu empregado mantinha uma fleuma subalterna. Todo sorrisos, todo salamaleques, mais do que seria necessário, em minha opinião, para semelhantes grosseirões, explicou-lhes que vínhamos de Gibelet, da terra natal do seu amo, e que este último ficaria feliz por saber que estávamos de passagem na sua ilha.

- Ele não está!

O homem preparava-se para fechar a porta, mas Hatem não se deixou desencorajar.-

- Se ele está ausente, poderíamos talvez saudar a sua esposa, que é nossa parente...

- Quando ele está ausente, a mulher não recebe ninguém! - Desta vez a porta fechou-se, e apenas tivemos tempo de afastar as cabeças, os pés e os dedos. Um comportamento de chacal, mas aos olhos da lei, era eu, o honesto comerciante, que estava errado, enquanto o patife e os seus esbirros estavam no seu direito. Marta casou com aquele homem, e como ele não teve a elegância de a tornar viúva, continua sua mulher; nada me autoriza a tirar-lha, nem mesmo a voltar a vê-la se ele não ma quiser mostrar. Eu nunca devia tê-la deixado entregar-se assim e colocar-se na sua dependência. Por mais que repita a mim mesmo que ela fez aquilo que queria fazer, e que eu não tinha nenhum argumento para a impedir, o meu sentimento de remorso não diminui. Dito isto, se cometi um erro de julgamento, e se tenho consciência de dever expiá-lo, nem por isso me resigno. Pagar o meu erro, sim, mas por um preço razoável! Não devia deixar Marta aviltar-se para sempre em casa desse homem. Eu colocara-a naquele embaraço, devia encontrar o meio de a livrar dele.

Um meio, mas qual? Nas brumas do meu espírito, adensadas por uma noite sem dormir ou quase, só via uma falha na couraça do inimigo: o seu segundo casamento. Essa fora a minha primeira ideia. Fazer Sayyaf recear que o seu poderoso e rico sogro local soubesse a verdade; e levá-lo assim a conciliar...

Poderia contar em páginas inteiras como desejava que as coisas evoluíssem, e como elas evoluíram, mas ainda estou demasiado enfraquecido e receio voltar a cair na melancolia. Por isso abrevio, limitando-me a relatar em algumas palavras a sequência desse dia de aflição.

Ao regressar para o albergue depois da nossa breve expedição, avistámos ao longe a camisa verde do tal Drago, que parecia estar à nossa espera à sombra de um muro. Mas quando Hatem lhe fez sinal para que se aproximasse, ele virou-se e fugiu a sete pés. Ficámos tão surpreendidos com o seu comportamento que nem sequer tentámos correr atrás dele. De resto, nos dédalos da aldeia, nunca o teríamos encontrado.

Num instante, tudo se tornou límpido no meu espírito: nunca houve segunda esposa, nem sogro notável local, o marido de Marta estivera sempre a troçar de nós. Quando soube que o procurávamos, mandou um dos seus acólitos, aquele Drago, ter connosco, para nos fazer morder o anzol. Deixando-nos entrever a possibilidade de um acordo fácil em nossa vantagem, adormecera a nossa desconfiança. Deixei partir a minha amiga, persuadido de que ela ia obter, sem ter de parlamentar muito, o acordo de Sayyaf para dizer que o casamento nunca fora consumado, e pedir a sua anulação.

Um dos monges estalajadeiros, a quem nada tínhamos dito até então para não divulgar muito os nossos projectos, soltou uma grande gargalhada: o seu vizinho gibeletiano vivia notoriamente com uma devassa apanhada num porto de Cândia, e que não era em nada, mas em nada, filha de um notável de Quios.

Que mais podia eu fazer? Lembro-me de ter passado o resto desse dia maldito e uma parte da noite sem me mexer, sem comer, fingindo procurar ainda nos cantos do meu cérebro de mercador genovês alguma última parada à desgraça, quando não fazia mais do que enregelar e flagelar-me.

A dado momento, ao crepúsculo, o meu empregado veio dizer-me, num tom simultaneamente contrito e firme, que já era tempo de eu admitir a evidência, que não havia mais nada a tentar, e que qualquer nova diligência só poderia tornar a nossa situação e a de Marta mais embaraçosa ainda, e mais perigosa.

Sem sequer levantar os olhos, respondi:

- Hatem, já alguma vez te bati?

- O meu amo foi sempre muito bom!

- Se te atreves a aconselhar-me mais uma vez a abandonar Marta e partir, bato-te tanto que esquecerás para sempre que eu possa ter sido bom!

- Então o meu amo faria melhor em bater-me imediatamente,! porque enquanto não tiver renunciado a desafiar a Providência, eu não desistirei de pô-lo de sobreaviso.

- Vai-te! Desaparece da minha vista! A cólera é por vezes geradora de ideias; enquanto enxotava!

Hatem, o ameaçava, o mandava calar, uma centelha iluminou-me o espírito. Ela ia em breve confirmar as piores suspeitas do meu empregado, mas no momento pareceu-me engenhosa.

O meu propósito era ir ter com o comandante dos janízaros, para lhe comunicar certos receios que tinha. A esposa desse homem é minha prima, diria eu, e constou-me que ele a teria estrangulado. Bem sei que era jogar um pouco alto, mas falar de assassínio era a única maneira de fazer as autoridades intervirem. E depois, principalmente, os meus temores não eram fingidos. Tinha realmente receio de que tivesse acontecido uma desgraça a Marta. Se não, dizia para mim mesmo, por que nos teriam impedido de entrar naquela casa?

O oficial escutou as minhas explicações, tanto mais alambicadas quanto as exprimia numa mistura de mau grego e de mau turco, com umas palavras de italiano e de árabe aqui e ali. Quando falei de assassínio, ele perguntou-me se eram apenas rumores ou se eu tinha a certeza. Eu disse que tinha a certeza, sem o que não teria vindo incomodá-lo. Ele perguntou-me imediatamente se estaria disposto a responder por isso com a minha cabeça. Fiquei assustado, evidentemente. Mas estava decidido a não desistir. Então, em vez de responder à sua perigosa pergunta, abri a bolsa e tirei três belas moedas, que coloquei em cima da mesa à frente dele. Ele arrebanhou-as com um gesto experiente, pôs na cabeça o boné emplumado, e ordenou a dois dos seus homens que o acompanhassem.

- Também posso ir?

Não fiz a pergunta sem hesitar. Por um lado, não tinha muita vontade de mostrar a Sayyaf até que ponto estava interessado no destino da sua mulher, com receio de que ele descobrisse o que havia entre mim e ela. Mas, por outro lado, o oficial não conhecia Marta, e poderiam indicar-lhe uma mulher qualquer dizendo-lhe que era ela e que estava de boa saúde; e ela mesma não ousaria dizer nada se não me visse.

- Eu não devia levar-vos comigo, posso ter aborrecimentos se isso se vier a saber.

Ele não disse que não, e nos seus lábios desenhou-se um sorriso entendido, enquanto os olhos espreitavam a mesa onde eu tinha colocado as moedas decisivas. Abri a bolsa para um presente sumplementar, que desta vez lhe pus directamente na mão. Enquanto os seus homens observavam a manobra, que não parecia surpreendê-los nem perturbá-los.

O grupo partiu, três militares e eu. No caminho vi Hatem atrás de um muro a fazer-me sinais, e fingi não dar por ele. Ao passar diante do convento-estalagem, pareceu-me entrever à janela dois dos monges bem como a velha criada, a quem o espectáculo parecia divertir.

Entrámos na casa do marido de Marta com autoridade. O oficial tamborilou à porta, e gritou uma ordem, o gigante calvo abriu, depois desviou-se, sem dizer nada, para deixá-lo passar. Daí a instantes Sayyaf acorreu, apressado, todos sorrisos, como se os seus amigos mais queridos tivessem vindo fazer-lhe uma visita inesperada. Primeiro para o otomano, depois para mim. Disse que estava contente por voltar a ver-me, chamou-me amigo e primo e irmão, sem deixar adivinhar a raiva que devia sentir por mim.

Desde o tempo em que eu o via na nossa terra, ele tinha engordado sem se tornar mais digno, um porco gordo e barbudo em pantufas, eu nunca teria reconhecido sob a sua gordura luzidia, sob os seus panos e os seus ouros, o moinante que corria descalço pelas ruelas de Gibelet.

Por polidez, e também um pouco por astúcia, fingi apreciar o reencontro, não me furtei aos seus abraços, e até lhe chamei, ostensivamente, «meu primo». O que me permitiu, assim que fomos instalados no salão, pedir notícias da «nossa prima, sua esposa, Marta Khanum». Fiz um esforço para me exprimir em turco, para que o oficial não perdesse nada da nossa conversa. Sayyaf disse-me que ela estava bem, apesar das fadigas da viagem, e explicou ao otomano que como esposa devotada, ela havia atravessado os mares e as montanhas para se juntar àquele a quem o Céu a deu.

- Espero, disse eu, que ela não esteja demasiado cansada para vir saudar o seu primo.

O marido pareceu embaraçado; eu lia nos seus olhos que ele era culpado de um acto abominável. E quando ele disse: «Se ela se sentir melhor, há-de levantar-se para vir saudar-vos; ontem à noite, estava incapaz de levantar a cabeça», fiquei convencido sem a menor dúvida de que tinha acontecido uma desgraça. De raiva, de inquietação e de desespero, saltei do meu lugar, disposto a agarrar o criminoso pela garganta; só a visão do representante da ordem me dissuadiu de me lançar sobre ele. Contive pois os meus gestos; mas não as minhas palavras, que verteram sobre aquele indivíduo e a sua casta tudo aquilo que me ia no coração havia muito tempo. Chamei-lhe todos os nomes que ele merecia, patife e malfeitor e bandido e pirata, salteador de estradas e degolador, marido desertor, marido indigno, que não merecia nem limpar os sapatos daquela que se lhe entregara, e desejei-lhe que morresse empalado.

O homem deixou-me falar. Não respondeu, não protestou a sua inocência. Apenas, enquanto eu me inflamava cada vez mais, vi-o fazer sinal a um dos seus esbirros, que se eclipsou. No momento quase não dei atenção a isso, e continuei a minha diatribe elevando o tom, e misturando todas as línguas, a ponto que o oficial, importunado, me mandou enfim calar. Esperou que eu obedecesse, que eu me sentasse de novo, para pedir ao outro:

- Onde está a tua mulher, quero vê-la. Vai chamá-la!

- Aí vem ela, precisamente.

E Marta entrou, seguida pelo esbirro que se tinha eclipsado. Foi então que compreendi que o marido troçara de mim, uma vez mais. Ele fazia questão de que ela se apresentasse no momento conveniente, quer dizer não antes que eu me desconsiderasse e me traísse amplamente.

De todos os erros que cometi, é desse que mais me arrependo, ainda hoje; acho que vou sentir remorsos para toda a vida. A falar verdade, não sei verdadeiramente até que ponto pude trair-me, traí-la a ela, trair o nosso amor e a nossa conivência. E que já não sei o que posso ter dito sob o efeito da raiva. Estava convencido de que aquele malfeitor a tinha assassinado, tudo no seu comportamento parecia atestá-lo, e já nem ouvia as palavras que me saíam da boca. Ele, pelo contrário, escutava-as bem, plácido e altivo, como um juiz a ouvir a confissão de uma mulher adúltera.

Perdoa-me, Marta, todo o mal que posso ter-te causado! Eu nunca mo hei-de perdoar. Revejo-te, de olhos baixos, não ousando olhar nem para o teu marido nem para aquele que tinha sido teu amante. Contrita, distante, resignada, sacrificada. Já pensando só, imagino, no filho que trazes, desejando apenas que aquela mascarada terminasse e que o teu marido te recebesse o mais depressa possível na sua cama para que pudesses convencê-lo dentro de alguns meses, que a tua gravidez é dele. Eu teria sido na tua existência apenas um momento de desgraça, um momento de ilusão e de engano e de vergonha, mas por Deus, mulher, eu amei-te, e hei-de amar-te até ao fim dos meus dias. E não encontrarei a paz neste mundo nem no outro enquanto não tiver reparado os erros que cometi. No momento, naquela sala de armadilhas onde eu fora como justiceiro para acabar na pele do culpado, gostaria de ter de algum modo retirado o que dissera, para evitar que fosses tu, Marta, a pagar pela minha tagarelice. Mas calei-me, com receio de que ao tentar desculpar-te, te sobrecarregasse ainda mais. Levantei-me, desvairado, sonâmbulo, e saí sem uma palavra para ti, sem um olhar de adeus.

Ao regressar ao convento, vi ao longe o minarete do bairro turco, ainda me veio a ideia de ir até lá, subir os degraus a correr e lançar-me no vazio. Mas uma pessoa não se mata assim por impulso súbito, eu que não sou nem soldado nem assassino nunca me deixei dominar pela ideia de morrer, nunca alimentei essa coragem e tenho medo. Medo da morte desconhecida, medo do medo no momento em que deveria saltar, medo também da dor quando a minha cabeça batesse no chão, e os ossos se quebrassem. Também não queria que os meus próximos fossem humilhados, enquanto Sayyaf faria a festa e beberia e dançaria obrigando Marta a bater palmas.

Não, não hei-de matar-me, murmurei. A minha vida não acaba ainda, mas a minha viagem está agora terminada. O livro do Centésimo Nome está perdido, Marta está perdida, já não tenho nenhuma razão nem de resto a força para percorrer o mundo, vou recuperar os meus sobrinhos a Esmirna, e depois, sem mais demora, regressarei a casa, a Gibelet, à minha boa loja de negociante de curiosidades, para ali esperar pacientemente que passe o ano maldito.

Ao meu empregado, que me esperava em frente do albergue, anunciei imediatamente as minhas intenções, e pedi-lhe que estivesse preparado para partir antes do fim do dia. Passaríamos a noite na cidade de Quios, de onde partiríamos logo no dia seguinte para Esmirna. Dali, depois de nos termos despedido de Maimoun, do pastor Coenen e de alguns outros, embarcaríamos no primeiro navio que partisse para Tripoli.

Hatem deveria ter-se mostrado encantado, e em vez disso vi desenhar-se no seu rosto os sinais do maior terror. Não tive tempo para lhe perguntar a razão, porque uma voz gritou atrás de mim:

- Tu, genovês!

Voltei-me e vi o oficial com os seus homens. Fez-me sinal para que me aproximasse.

- De joelhos, à minha frente!

Ali? No meio da rua? Com todas aquelas pessoas que já se juntavam atrás das paredes dos quintais, das janelas, dos troncos das árvores, para não perder nada do espectáculo?

- Fizeste-me perder a face, cão genovês, e agora é a tua vez de te humilhares! Mentiste-me, serviste-te de mim e dos meus homens!

- Juro que estava convencido de tudo aquilo que lhes disse!

- Silêncio! Tu e os teus, julgam sempre que tudo lhes é permitido, que nunca vos acontecerá nada porque no último momento o vosso cônsul virá salvar-vos. Pois bem, desta vez não! Nenhum cônsul te salvará das minhas mãos! Quando é que vocês acabarão por compreender que esta ilha já não é vossa, e que ela pertence agora, e para sempre, ao sultão padixá, nosso senhor? Tira os sapatos, põe-nos ao ombro e caminha atrás de mim!

Dos dois lados da rua choviam os risos dos maltrapilhos. E quando o nosso miserável cortejo se pôs em marcha, houve como que uma atmosfera de feira com que toda a gente, salvo Hatem, parecia alegrar-se, a começar pelos janízaros. Dichotes, apupos e risos. Para tentar consolar-me, dizia a mim mesmo que tinha a sorte de não ser humilhado assim nas ruas de Gibelet, mas naquele lugar onde ninguém me conhece e onde nunca mais terei de cruzar o olhar de uma daquelas pessoas que me viam assim.

A nossa chegada ao posto, ataram-me as mãos atrás das costas com um cordel, depois fizeram-me descer para uma espécie de fossa pouco profunda, cavada no chão do edifício, e tão estreita que não teria sido necessário amarrar-me para me impedir de me mexer.

Ao fim de uma ou duas horas, vieram buscar-me, desamarraram-me as mãos e conduziram-me ao oficial. Que parecia mais calmo, e também encantado com a partida que acabava de me pregar. E que, de imediato, me propôs implicitamente um negócio.

- Hesito quanto àquilo que devia fazer de ti. Devia fazer-te condenar por falsa acusação de assassínio. O chicote, a prisão, e pior ainda se acrescentarmos o adultério.

Calou-se. Quanto a mim, abstive-me de responder, os meus protestos de inocência não convenceriam ninguém, nem a minha própria irmã. Era culpado de falsa acusação de assassínio e também era culpado de adultério. Mas o homem dissera-me que hesitava entre duas atitudes. Deixei-o continuar.

- Também poderia deixar-me comover, fechar os olhos a tudo o que tu fizeste e limitar-me a expulsar-te para a tua terra natal...

- Eu saberei mostrar-me reconhecido.

Por «reconhecido», eu queria antes dizer «persuasivo». O oficial estava à venda, mas era preciso que me comportasse como se fosse eu a mercadoria cujo preço devia ser determinado. Não negarei que, quando as coisas chegam a esta fase, recupero a coragem. Perante a lei, a dos homens ou a do Céu, sinto-me desarmado. é quando se começa a fixar um preço que recupero a palavra. Deus fez-me rico numa terra de injustiça, eu suscito a avidez dos poderosos mas também tenho com que amansá-los.

Concordámos num preço. Não sei se «concordámos» é a palavra apropriada. A dizer a verdade, o oficial pediu-me simplesmente que colocasse a bolsa em cima da mesa. O que eu fiz sem resmungar, e estendi-lhe imediatamente a mão como fazem os mercadores quando querem selar um acordo. Ele hesitou um momento, depois aceitou apertá-la arvorando uma careta altiva. No momento seguinte, abandonou a sala, onde entraram os seus homens para me amarrarem de novo e reconduzirem à masmorra.

Ao amanhecer, quando eu ainda não tinha adormecido, vendaram-me os olhos, enrolaram-me num pedaço de juta como uma mortalha, e deitaram-me em cima de um carrinho de mão que puxaram através de carreiros abruptos até um lugar onde me despejaram sem consideração. Adivinhei que estava na praia porque o chão não era duro, e porque ouvia o som das ondas. Depois carregaram-me às costas para um barco como se fosse um baú ou um fardo amarrado com cordas.

Em Génova, 4 de Abril

Preparo-me para retomar o fio da minha história, sentado no terraço de uma casa amiga, respirando os odores primaveris, escutando os doces ruídos da cidade, desta língua de mel que é a língua do meu sangue. E contudo, no meio deste paraíso, choro ao pensar ainda naquela que lá está, prisioneira de ventre pesado, culpada de ter querido ser livre e de me ter amado.

Só muito depois do embarque soube qual era o meu destino. Tinham-me deitado num fundo de porão, e o capitão recebera ordens para me conservar a venda nos olhos enquanto a costa de Quios não tivesse desaparecido no horizonte, ordens que ele respeitou escrupulosamente. Ou quase - quando ele me deixou subir à ponte, adivinhavam-se ainda as cristas das montanhas; alguns marinheiros indicaram-me mesmo, ao longe, a silhueta de um castelo, que me disseram chamar-se Polienou ou Apolienou. Em todo o caso estávamos muito longe de Katarraktis, e a caminho do poente.

A maneira como eu tinha sido expulso pelas autoridades valeu-me, curiosamente, a confiança do capitão, um calabrês dos seus sessenta anos, de longos cabelos brancos, chamado Domenico, magro como um cão sem dono e que estava sempre a praguejar - «Antepassados meus!» - sempre a ameaçar os seus marinheiros de enforcá-los ou atirá-los aos peixes, mas que tomou afeição por mim ao ponto de me contar as suas rapinas.

O seu barco - um bergantim - chama-se Charibdos. Se tinha lançado a âncora em Katarraktis, cujo ancoradouro é frequentado quase só por barcos de pescadores, é porque se dedica a um contrabando dos mais lucrativos. Compreendi imediatamente que se tratava de mástique, que não se produz em nenhuma outra parte além de Quios, e que as autoridades turcas reservam exclusivamente para o uso do harém do sultão, onde é moda que essas nobres damas o mastiguem de manhã à noite para terem dentes brancos e hálito perfumado. Os camponeses da ilha que cultivam essa planta preciosa a que se chama lentisco - e que quase se confunde com o pistacheiro de Alepo - têm a obrigação de o fornecer às autoridades a troco de uma retribuição fixada por estas; os que têm um excedente procuram vendê-lo para seu próprio benefício, o que lhes pode valer longos anos de prisão ou de galés, e por vezes a morte. Mas, a despeito dessa ameaça, o engodo do ganho é mais forte, e instalou-se o contrabando, em que colaboram muitas vezes os aduaneiros e outros representantes da lei.

O capitão Domenico gabou-se à minha frente de ser o mais hábil e o mais temerário dos traficantes. Durante os últimos dez anos, jurou-me, veio nada menos do que trinta vezes às costas da ilha para carregar a mercadoria proibida, sem nunca se deixar apanhar. Disse-me claramente que os janízaros beneficiavam das suas liberalidades, o que não me surpreendeu, dada a maneira como fui expulso.

Para o calabrês, desafiar assim as barbas do sultão no seu próprio reino e arrancar-lhe os mimos que ele destina às suas favoritas não é apenas um ganha-pão, mas um acto de bravura, e quase um acto de piedade. Durante as nossas longas vigias no mar, contou-me em pormenor cada uma das suas aventuras, principalmente aquelas em que esteve quase a ser apanhado, das quais ria mais do que das outras, e bebia goladas de aguardente para se lembrar de que tivera medo. A sua maneira de beber divertia-me. Colocava os lábios no gargalo de uma garrafa de pele que tinha sempre ao alcance da mão, erguia-a muito alto e ficava um longo momento assim, de boca no ar, como se segurasse um oboé e se preparasse para soprar a sua música.

Por vezes, quando falava das mil astúcias a que recorrem os camponeses para escapar às leis otomanas, o capitão ensinava-me coisas. Outras vezes, não me ensinava nada. Não me lembro se já disse que a nossa família, antes de vir para Gibelet, se tinha estabelecido em Quios, e se entregara justamente ao comércio do mástique. Tudo isso parou no tempo do meu trisavô, mas a memória permaneceu. Os Embriaci não se esquecem de nada nem nunca renegam nada; feitos guerreiros ou negócio, glórias e desgraças, as suas vidas sucessivas acrescentam-se umas às outras como os cernes se juntam todos os anos ao tronco do carvalho; as folhas morrem no Outono e por vezes os ramos partem-se, sem que o carvalho deixe de ser ele mesmo. O meu avô falava-me do mástique como me falava das cruzadas, explicava-me como se recolhiam as preciosas lágrimas recortando a casca do lentisco, reproduzindo à minha frente, ele que nunca vira essa árvore, os gestos que o seu avô lhe ensinara.

Mas volto ao capitão contrabandista, e ao perigoso comércio a que ele se dedica, para dizer que as suas melhores clientes são as damas de Génova. Não que elas se preocupem mais com o seu hálito e com a brancura dos seus dentes do que as venezianas, as pisanenses ou as parisienses. Mas Quios foi durante muito tempo genovesa, e ganharam-se hábitos. E embora os otomanos se tenham apoderado da ilha há cem anos, as nossas damas nunca quiseram renunciar ao seu mástique. Os seus homens também não, e fazem ponto de honra em obter o indispensável artigo, como se se tratasse de uma vingança sobre o destino e sobre o sultão que o encarna. Deslocar o maxilar de cima para baixo, de baixo para cima, ter-se-ia tornado um acto de orgulho? Visto o preço que essas damas pagam pela sua goma, esse movimento de boca deve revelar a sua categoria mais do que o mais caro dos adornos.

Como eu me mostro ingrato com a minha zombaria! Não é graças a essas damas e ao seu querido mástique que eu me encontro agora neste terraço de Génova em vez de secar numa masmorra otomana? Mastigai, senhoras, mastigai!

O capitão não quis fazer qualquer escala nas ilhas gregas, com receio de que os aduaneiros otomanos se lembrassem de subir a bordo. Rumou directamente à Calábria, para uma angra próxima de Cantazaro, sua cidade natal, onde jurou, segundo me disse, fazer uma oferenda ao seu santo patrono de cada vez que regressa do Levante são e salvo. Acompanhei-o à igreja de San Domenico, com mais razões para rezar do que ele.

De joelhos, numa sala fria e pouco iluminada, no meio dos cheiros do incenso, murmurei, sem grande convicção, um juramento pouco custoso: se recuperasse Marta com o filho que ela traz no ventre, havia de chamar-lhe Domenico se fosse um rapaz, e Domenica se fosse uma menina.

Depois desta escala fizemos mais três, subindo ao longo da costa, para nos abrigarmos das tempestades e também para nos reabastecermos de água, vinho e comida antes de chegarmos a Génova.

5 de Abril

Sempre dissera a mim mesmo que havia de chorar um dia diante de Génova, mas as circunstâncias do reencontro não serão as que eu tinha imaginado. Foi nesta cidade que nasci muito antes do meu nascimento, e não tê-la visto nunca tornava-a mais querida ao meu coração, como se a tivesse abandonado e devesse amá-la mais para que ela me perdoasse. Ninguém pertence tanto a Génova como os genoveses do Oriente. Ninguém sabe amá-la como eles. Que ela caia, e eles vêem-na de pé; que ela se torne feia, e eles vêem-na bela; que seja arruinada e achincalhada, e vêem-na próspera e soberana. Nada resta já do seu império além da Córsega, e esta magra república costeira em que cada bairro vira as costas ao outro, e onde todos amaldiçoam o rei católico enquanto se acotovelam na antecâmara dos seus representantes; enquanto no céu dos genoveses do exílio brilham os nomes de Caffa, de Tana, de lalta, de Mavocastro, de Famagusta, de Tenedos, de Foceia, de Pêra e de Gaiata, de Samotrácia e de Cassandreia, de Lesbos, de Lemnos, de Samos, de Içaria, como de Quios e de Gibelet - tantas estrelas, galáxias, tantas rotas iluminadas!

O meu pai dizia-me sempre que a nossa pátria não era a Génova de hoje, era a Génova eterna. Mas acrescentava imediatamente que em nome da Génova eterna, eu devia amar a de hoje, por mais diminuída que ela esteja, e mesmo que devia ser-lhe dedicado à medida da sua miséria; como uma mãe impotente. Pedia-me sobretudo que não quisesse mal à nossa cidade se, no momento em que a visitasse, ela não me reconhecesse. Eu era ainda muito jovem e não compreendia verdadeiramente o que ele queria dizer-me. Como poderia Génova reconhecer-me, ou não me reconhecer? Contudo, no momento em que, ao amanhecer do último dia no mar, avistei ao longe a cidade nas suas colinas, as flechas erguidas, os telhados pontiagudos, as janelas estreitas, e em primeiro as torres ameadas, quadradas ou redondas, uma das quais eu sabia que tinha ainda o nome dos meus, não pude deixar de pensar que Génova também me olhava, e perguntava-me precisamente se ela ia reconhecer-me.

O capitão Domenico não me tinha reconhecido. Quando declinei o meu nome, não reagiu. Era evidente que nunca ouvira falar dos Embriaci, nem do papel deles nas cruzadas nem do seu senhorio em Gibelet. Se confiou em mim ao ponto de contar as suas proezas no contrabando, foi porque eu sou genovês, e fui expulso de Quios, onde não voltaria, disse ele a si mesmo, a pôr os pés. Não foi esse o caso do seu comanditário genovês, o senhor Gregório Mangiavacca, que veio receber a mercadoria, um gigante de barba ruiva, vestido de amarelo, de verde e de plumas como um papagaio das ilhas, e que ao ouvir pronunciar o meu nome teve um gesto de que nunca me esquecerei. Um gesto cheio de ênfase de que eu quase sorri, mas que acabou por me fazer chorar de emoção.

Ainda agora, ao recordar essa cena, as minhas mãos tremem e enevoam-se-me os olhos.

Ainda não tínhamos desembarcado, o negociante tinha subido a bordo com dois funcionários da alfândega, eu acabava de me apresentar, «Baldassare Embriaco, de Gibelet», e preparava-me para lhe explicar em que circunstâncias me achara a bordo daquele barco, quando ele me interrompeu e me agarrou os dois ombros, sacudindo-me como se quisesse brigar comigo.

- Baldassare Embriaco... Filho de quem.

- Filho de Tommaso Embriaco.

- Tommaso Embriaco, filho de quem?

- Filho de Bartolomeo - disse eu em voz baixa, com receio de desatar a rir.

- Filho de Bartolomeo Embriaco, filho de Ugo, filho de Bartolomeo, filho de Amsaldo, filho de Pitro, filho de...

E enumerou assim, de memória, toda a minha genealogia até à nona geração, como nem eu mesmo seria capaz de fazer.

- Como é que conheceis os meus antepassados?

Como única resposta, o homem agarrou-me pelo braço, perguntando:

- Dais-me a honra de vir morar debaixo do meu tecto? Sem ter nenhum lugar para onde ir, e sem uma única moeda, genovesa ou otomana, eu não podia deixar de ver neste convite a obra da Providência. Por isso evitei recorrer às cortesias convencionais, aos «não queria...», aos «não devia...», aos «tenho vergonha de o importunar assim...»; eu era evidentemente bem vindo à residência do senhor Gregório, tinha mesmo a estranha sensação de que havia séculos que ele esperava o meu regresso àquele cais do porto de Génova.

Chamou dois dos seus homens, apresentou-me pronunciando Embriaco sempre com a mesma ênfase. Eles descobriram-se de maneira respeitosa, e curvaram-se numa profunda vénia; depois, erguendo-se, pediram-me que fizesse o favor de lhes indicar as minhas bagagens, para que pudessem encarregar-se delas. O capitão Domenico que, desde o princípio, assistia à cena, orgulhoso de haver transportado tão nobre personagem mas um tanto confuso por não ter ele próprio reagido quando eu declinara o meu nome, explicou em voz baixa que eu não tinha bagagem, visto que havia sido expulso manu militari pelos janízaros otomanos.

Interpretando o episódio à sua maneira, o senhor Gregório sentiu por isso ainda mais admiração pelas minhas veias onde corria, segundo ele, o sangue mais nobre; informou os seus homens - e todos aqueles que se encontravam a duzentos passos de nós - que eu era esse herói que havia desafiado as leis do sultão infiel e forçado as pesadas portas das suas prisões. Os heróis como eu não cruzam os mares com bagagens como vulgares negociantes de curiosidades!

Comovente Gregório, tenho uma certa vergonha de troçar assim do seu fervor. Aquele homem é todo memória, todo fidelidade, e eu não quereria desgostá-lo. Instalou-me na sua casa como se fosse minha, e como se devesse aos meus antepassados tudo aquilo que possui e tudo aquilo que é. O que não é nada assim, evidentemente. A verdade é que os Mangiavacca faziam parte, outrora, do clã que os meus antepassados dirigiam. Uma família cliente, aliada, tradicionalmente a mais devotada de todas. Depois houvera, infelizmente, reveses de fortuna para os Embriaci - o meu pai e o meu avô diziam simplesmente "Talbergo", como se se tratasse de uma vasta casa comum. Empobrecidos, dispersos pelas feitorias do Ultramar, dizimados pelas guerras, pelos naufrágios, pela peste, privados de descendência, sofrendo a concorrência de famílias mais novas, os meus perderam pouco a pouco a sua influência, a sua voz já não era escutada, o seu nome já não era venerado, e todas as famílias clientes os abandonaram para seguir outros senhores, nomeadamente os Dória. Quase todas, insiste o meu anfitrião, visto que os Mangiavacca transmitiam de pais para filhos, desde há gerações, a recordação da época feliz.

Hoje, o senhor Gregório é um dos homens mais ricos de Génova. Em parte graças ao mástique importado de Quios, que ele é o único a vender em toda a cristandade. Possui o palácio onde me encontro neste momento, perto da igreja de Santa Madalena, nos montes que dominam o porto. E outro, mais vasto ainda, ao que parece, à beira do rio Varenna, onde residem a mulher e os três filhos. Os navios por ele fretados cruzam todos os mares, tanto os mais próximos como os mais perigosos, até à costa do Malabar e às Américas. Não deve nada da sua fortuna aos Embriaci, mas obstina-se em honrar a memória dos meus antepassados como se fossem ainda os seus benfeitores. Pergunto-me se, ao agir assim, não obedece a uma espécie de superstição que o faz acreditar que perderia a protecção do Céu se cortasse com o passado.

Seja como for, as coisas inverteram-se, e agora é ele que nos enche de favores. Cheguei a esta cidade como um filho pródigo, arruinado, perdido, desesperado, e foi ele que me acolheu como um pai e que mandou matar o grande bezerro gordo. Moro na sua casa como se estivesse na minha, passeio no seu jardim, sento-me à sombra no seu terraço, bebo o seu vinho, sou servido pelos seus criados, molho as minhas penas nas suas tintas. E ele ainda acha que eu me comporto como um estranho porque ontem me viu aproximar de uma rosa têmporã e respirar-lhe o perfume sem a colher. Tive de lhe jurar que no meu próprio jardim de Gibelet também não a teria colhido.

Se a hospitalidade de Gregório tornou a minha aflição mais suportável, não pôde fazer-me esquecê-la. Desde aquela maldita noite passada na masmorra dos janízaros, em Quios, não se passa um dia em que não sinta de novo aquela dor no peito que sentira em Esmirna. Esse é no entanto o mais leve de todos os meus sofrimentos, só me preocupo com ele quando me agarra, assim que me deixa esqueço-o. Enquanto o sofrimento chamado Marta não me deixa nunca, nem de dia nem de noite.

Ela que empreendera esta viagem para obter a prova que a tornaria livre, ei-la agora prisioneira. Colocou-se sob a minha protecção e eu não a protegi.

E a minha irmã Plaisance, que me confiara os seus dois filhos fazendo-me prometer que nunca me afastaria deles, não a traí eu?

E Hatem, o meu empregado tão fiel, não o abandonei também a ele, de certa maneira? É verdade que ele me dá menos cuidado, imagino-o por vezes como esses peixes ágeis que, apanhados nas redes dos pescadores, ainda encontram força para se escapar da barca e saltar para o mar. Tenho confiança nele, e a sua presença em Quios é bastante tranquilizadora. Se ele não conseguir fazer nada por Marta, voltará a Esmirna para me esperar com os meus sobrinhos ou para os reconduzir a Gibelet.

Mas e ela, Marta? Com aquele filho no ventre nunca conseguirá escapar!

6 de Abril

Hoje passei o dia a escrever, mas não neste novo caderno. Uma longa carta à minha irmã Plaisance, e outra mais curta aos meus sobrinhos e a Maimoun para o caso de estarem ainda em Esmirna. Ainda não sei como fazer chegar estas cartas aos seus destinatários, mas Génova é uma cidade continuamente atravessada por mercadores e viajantes, e com a ajuda de Gregório hei-de encontrar um meio.

A minha irmã, pedi-lhe que me escrevesse logo que pudesse para me tranquilizar acerca do destino dos seus filhos e de Hatem; contei-lhe um pouco as minhas desventuras, sem insistir muito naquilo que diz respeito a Marta. Em contrapartida, consagrei uma boa metade das páginas a Génova, à minha chegada, ao acolhimento do meu anfitrião, e a tudo o que ele disse sobre a glória dos nossos.

Aos meus sobrinhos, recomendei-lhes sobretudo que regressassem a Gibelet o mais depressa possível, se não o tivessem feito já.

Insisti igualmente com todos para que me escrevam cartas detalhadas. Mas ainda estarei aqui quando chegarem as suas respostas?

7 de Abril

Estou em Génova há dez dias e é a primeira vez que passeio pela cidade. Até agora não tinha deixado a residência do meu anfitrião e o jardim que a rodeia, prostrado, por vezes acamado, arrastando-me penosamente de uma cadeira para outra, de um banco para outro. Foi quando fiz o esforço para voltar a escrever que recomecei a viver. As palavras voltaram a ser palavras, e as rosas, rosas.

Se o senhor Mangiavacca, que se mostrara tão enfático a bordo do barco no primeiro dia, revelou-se depois um anfitrião delicado. Pressentindo que depois das provas por que passara eu precisaria de uma convalescença, abstivera-se de me importunar. Hoje, sentindo-me recomposto, propôs-me pela primeira vez que o acompanhasse ao porto, onde vai todos os dias para os seus negócios, Pediu ao cocheiro que nos levasse pela Praça San Mateo, onde fica o palácio dos Dória, depois junto da alta torre dos Embriaci, antes de tomar pela arriba até ao cais onde uma multidão de empregados o esperavam. Antes de me deixar para tratar dos seus negócios, ordenou ao cocheiro que me trouxesse de volta passando por certos lugares que lhe enumerou. Nomeadamente a Rua Balbi, onde se adivinha ainda o que foi a liberalidade de Génova. Diante de cada monumento ou lugar memorável, o cocheiro voltava-se para mim e explicava aquilo que víamos. Tem o mesmo sorriso do seu amo, e o mesmo entusiasmo ao falar das nossas glórias passadas. Eu abanava a cabeça, sorria-lhe e, em certo sentido, tenho inveja dele. Tenho inveja dele e do seu amo por pousarem nesta paisagem um olhar cheio de orgulho. Enquanto eu, por meu lado, só posso sentir nostalgia. Gostaria tanto de viver na época em que Génova era a mais resplandecente das cidades, e a minha família a mais resplandecente das suas famílias. Não me consolo de só hoje ter vindo ao mundo. Que tarde que é, meu Deus! Como esta terra está decaída! Tenho a sensação de ter nascido no crepúsculo dos tempos, incapaz de imaginar o que foi o sol do meio-dia.

8 de Abril

Pedi hoje emprestadas ao meu anfitrião trezentas libras em moeda sonante. Ele não queria que lhe redigisse uma declaração de dívida, mas eu escrevi-a na mesma e datei-a e assinei-a em devida forma. Quando vencer o prazo, terei de querelar novamente com ele para que aceite ser reembolsado. Será em Abril de 1667, o ano da Besta já terá passado, já teremos tido todo o tempo para verificar se as suas assustadoras promessas foram cumpridas. Que será então das nossas dívidas?

Sim, que será das dívidas quando o mundo se tiver extinguido com os homens e as suas riquezas? Serão elas simplesmente esquecidas? Ou serão tidas em conta para fixar o destino último de cada um? Os maus pagadores serão punidos? Aqueles que pagam o que devem dentro do prazo ganharão mais facilmente o paraíso? Os maus pagadores que respeitam a quaresma serão julgados com mais clemência do que os bons pagadores que não a respeitam? O que são preocupações de mercador, dir-me-ão! Sem dúvida, sem dúvida. Mas eu tenho todo o direito de fazer estas perguntas, visto que é do meu destino que se trata. Valer-me-á alguma clemência aos olhos do Céu o facto de ter sido, toda a minha vida, um comerciante honesto? Serei julgado mais severamente que qualquer outro, que enganou constantemente os seus clientes e associados, mas que nunca cobiçou a mulher do próximo?

Que o Altíssimo me perdoe se digo as coisas assim: lamento os meus erros, as minhas imprudências, mas de modo nenhum os meus pecados. Não é o ter possuído Marta que me atormenta, mas tê-la perdido.

Como me afastei daquilo que estava a dizer! Comecei a falar da minha dívida, quando um encadeamento de ideias me levou a Marta, e aos meus remorsos tão escaldantes. O esquecimento é uma graça que não obterei. E que, de resto, não peço. Peço reparação, medito sem parar na desforra que um dia saberei tirar. Penso e volto a pensar no episódio lamentável que me fez expulsar de Quios, tento imaginar o que deveria ter feito, como poderia frustrar astúcias e velhacarias. Como um almirante no dia seguinte a uma derrota, não paro de deslocar na minha mente os navios, as esquadras, as canhoneiras, para encontrar a conjunção que me teria permitido triunfar.

Hoje não direi mais nada dos meus projectos, mais nada a não ser que eles respiram em mim e me fazem viver.

Ao fim da manhã, levei a ordem de pagamento a kpiazza Banchi, onde a depositei nos irmãos Baliani, cujo elogio Gregório me havia feito.

Abri uma conta onde deixei quase toda a soma, retirando em moeda apenas vinte florins, para efectuar algumas pequenas compras e distribuir gorjetas aos criados do meu anfitrião, que me servem com tão boa vontade.

Ao voltar a pé para casa, tinha a estranha sensação de começar uma nova vida. Noutro país, rodeado de pessoas que nunca tinha visto antes destes últimos dias. E no bolso moedas novas. Mas é uma vida a crédito em que disponho de tudo sem que nada me pertença.

9 de Abril

Não conseguia compreender porque é que a família de Gregório não vive com ele. Que possua dois palácios ou três ou quatro, isso não me surpreende, é um costume muito antigo entre os genoveses mais abastados. Mas que viva assim separado da mulher intrigava-me. Ele acaba de me revelar a razão disso, não sem um certo gaguejar de timidez, embora ele não seja desses homens que coram por tudo e por nada. A sua senhora, diz ele, que se chama Orietina, e que é muito piedosa, afasta-se todos os anos durante a quaresma, com receio de que ele seja tentado a infringir a obrigação de castidade.

Suspeito que a infringe na mesma, porque regressa por vezes de certas visitas diurnas ou nocturnas com um brilho nos olhos que não engana. Ele não procura de resto negar a coisa. «A abstinência não convém ao meu temperamento, mas é melhor que o pecado não seja cometido sob o tecto desta casa abençoada.»

Não posso deixar de admirar esta maneira de lidar com os rigores da fé, eu que finjo ignorar os preceitos mas que hesito sempre no limiar das transgressões maiores.

10 de Abril

Contaram-me hoje notícias espantosas sobre Sabbatai e a sua estada em Constantinopla. Parecem fábulas mas, por meu lado, acredito sem esforço.

A minha fonte é um religioso originário de Lerici, que passou estes últimos dois anos num convento de Gaiata. Um primo do meu anfitrião, que o convidou para cear para mo apresentar e me fazer ouvir o seu relato. «O venerável irmão Egídio, o mais santo, o mais erudito...», inflamou-se Gregório. «Frades», «padres» e «abades» tenho-os encontrado da todas as espécies, por vezes santos e muitas vezes intrujões, por vezes poços de sabedoria e muitas vezes de uma infinita ignorância, desde há muito tempo que aprendi a venerá-los só com provas dadas. Escutei pois este, observei-o, questionei-o sem preconceitos, e no final ele soube inspirar-me confiança. Não conta nada que não tenha visto com os seus próprios olhos, ou que lhe foi certificado por testemunhas irrepreensíveis. Encontrava-se em Janeiro passado em Constantinopla, onde toda a população estava emocionada, não apenas os judeus, mas também os turcos e os diversos cristãos, estrangeiros ou súbditos otomanos, que esperavam todos eles os acontecimentos mais extraordinários.

O relato que o irmão Egídio nos fez poderia resumir-se do seguinte modo. Quando Sabbatai chegou ao mar de Marmara, a bordo do caíque que o transportava de Esmirna, foi preso pelos turcos ainda antes de acostar, e aqueles do seu povo que se tinham reunido para aclamá-lo ficaram aflitos ao vê-lo manietado por dois oficiais como um malfeitor. Mas ele próprio não parecia nada afectado e gritava àqueles que se lamentavam que não tivessem qualquer receio, porque os seus ouvidos em breve iam ouvir aquilo que nunca tinham ouvido.

Estas palavras devolveram a confiança àqueles que vacilavam; esqueceram aquilo que os seus olhos viam para se apegarem apenas à sua esperança, que parecia tanto menos razoável quanto o grão-vizir queria ocupar-se pessoalmente daquele grave caso. Tinham-lhe relatado o que se dizia entre os fiéis de Sabbatai, a saber que este viera a Constantinopla com o objectivo de se fazer proclamar rei, e que o próprio sultão se ia prosternar à frente dele; haviam-lhe contado também que os judeus já não trabalhavam, que os cambistas faziam feriado todos os dias, que o comércio do Império sofria um prejuízo considerável. Ninguém duvidava de que na ausência do seu soberano, que se encontrava em Andrinopla, o grão-vizir ia tomar as medidas mais rigorosas, e que a cabeça do pseudo-messias seria prontamente separada do corpo e exposta num alto poste, para que ninguém ousasse nunca mais desafiar a dinastia otomana, e para que os negócios retomassem o seu curso.

Mas aconteceu em Constantinopla o mesmo que tinha acontecido em Esmirna, e de que eu tinha sido testemunha. Introduzido junto da personagem mais poderosa do Império depois do sultão, Sabbatai não foi recebido com bofetadas, nem com admoestações, nem com promessas de castigo. Compreenda-se ou não, o grão-vizir acolheu-o bem, pediu aos guardas que o desamarrassem, mandou-o sentar, conversou pacientemente com ele sobre isto e aquilo, e algumas pessoas juram tê-los ouvido rir e tratarem-se por «meu amigo respeitado».

Quando chegou o momento de proferir a sentença, não foi nem a morte nem o chicote, mas uma pena tão leve que pareceu uma homenagem: Sabbatai está agora detido numa cidadela, onde o autorizam a receber os seus fiéis de manhã à noite, a rezar e a cantar com eles, a dirigir-lhes sermões e recomendações, sem que os seus guardiães se interponham de alguma maneira. Mais incrível ainda do que isso, diz o irmão Egídio, o falso messias pede por vezes aos guardas que o levem à beira-mar para fazer as suas abluções rituais, e eles obedecem-lhe como se estivessem às suas ordens, levam-no onde ele deseja e esperam que termine para o reconduzir. O grão-vizir ter-lhe-ia concedido cinquenta aspras que lhe são pagas todos os dias na prisão a fim de que não lhe falte nada.

Que mais dizer? Não é isto um prodígio considerável, que desafia o entendimento? Um ser sensato não poria em dúvida semelhante fábula? Eu próprio teria seguramente praguejado contra a credulidade dos homens se não tivesse assistido em Esmirna, em Dezembro, a acontecimentos comparáveis. é verdade que desta vez se trata do grão-vizir, e não de um cádi de província, e a proeza é tanto mais incrível. Mas é o mesmo prodígio, e não posso duvidar dele.

Esta noite, no sossego do meu quarto, escrevendo à luz de um candelabro, penso em Maimoun, e pergunto-me como teria ele reagido se ouvisse este relato. Teria acabado por dar razão a seu pai, e ter-se-ia juntado como ele àqueles que a si mesmo se chamam «os crentes» e chamam aos outros judeus «infiéis»? Não, acho que não. Ele afirma-se um homem de razão, para quem um prodígio não substitui um bom argumento. Se estivesse connosco esta noite, teria franzido os lábios, imagino, e desviado o olhar, como eu o vi fazer mais de uma vez quando a conversa ambiente o incomodava.

Com todo o meu ser desejo que seja ele quem tem razão, e eu que esteja errado! Conquanto que todos esses prodígios se revelem falsos! Que todos esses sinais se revelem enganadores! Que este ano se revele um ano como os outros, nem o fecho dos tempos passados, nem a abertura de tempos desconhecidos! Que o Céu não confunda os seres de bom senso! E possa fazer com que a inteligência triunfe sobre a superstição!

Pergunto-me por vezes o que pensa o Criador de tudo o que os homens dizem. Gostaria tanto de saber para que lado se inclina a Sua benevolência. Para o lado daqueles que predizem ao mundo um fim brusco, ou para o lado dos que lhe predizem uma longa estrada? Para o lado dos que se apoiam na razão, ou para o lado dos que a desprezam e a envilecem?

Antes de fechar este caderno, devo assinalar com a data de hoje que dei ao irmão de Egídio as duas cartas que escrevi. Ele vai partir em breve para o Oriente, e prometeu fazê-las chegar aos seus destinatários. Se não pelas suas próprias mãos, pelo menos por intermédio de outro eclesiástico.

11 de Abril

Gregório, o meu anfitrião, pensaria em casar-me com a sua filha?

é a sua mais velha, tem treze anos, e chama-se Giacominetta. Esta noite, enquanto passeávamos no seu jardim, falou-me dela, dizendo-me que era de uma grande beleza, que a sua alma era ainda mais branca do que o seu rosto. E acrescentando subitamente que se eu quisesse pedir a mão dela, faria melhorem não esperar muito, dado que em breve iam chover os pedidos. Ria muito alto, mas eu sei reconhecer o que é riso e o que o não é. Tenho a certeza de que reflectiu longamente sobre isso, e que como hábil negociante tem já o seu plano em mente. Não sou o jovem e belo partido com que as jovens sonham, e a minha fortuna não pode comparar-se à sua. Mas chamo-me Embriaci, e não duvido de que ele ficaria encantado por dar tal patronímico à sua filha. Seria mesmo para ele, suponho, o apogeu de uma laboriosa ascensão.

Também a mim, semelhante união só podia sorrir-me se não houvesse Marta e a criança que ela traz no ventre!

Deste modo, abster-me-ia de casar por fidelidade a uma mulher de quem a vida já me separou, e que continua, perante Deus e perante os homens, esposa de outro?

Assim apresentada, a minha atitude parece irracional, eu sei. Mas também sei que tal é a inclinação do meu coração, e que seria irracional ir contra ela.

12 de Abril

Gregório mostrou-se, durante todo o dia, sombrio, abatido, muito pouco loquaz contrariamente aos seus hábitos, a tal ponto que receei tê-lo ofendido pela maneira pouco entusiástica como lhe respondi ontem quando me falou da sua filha. Mas não se trata disso. Era outra coisa que o inquietava, rumores provenientes de Marselha, segundo os quais se preparava uma batalha gigantesca entre, por um lado, as armadas francesa e holandesa, e pelo outro a armada inglesa.

Eu soube ao chegar a Génova que o rei de França tinha declarado guerra à Inglaterra em Janeiro, mas dizia-se que o havia feito contra vontade, para respeitar na sua forma as cláusulas de um pacto, e que ninguém aqui parecia acreditar que chegasse até ao confronto. Agora, os augúrios já não são os mesmos, fala-se de autêntica guerra, fala-se de dezenas de navios que convergem para o mar do Norte, transportando milhares de soldados, e ninguém está mais inquieto que Gregório. Ele pensa ter sete ou oito barcos nessas paragens, alguns mesmo já para lá de Lisboa, a caminho de Bruges, Antuérpia, Amsterdão e Londres, e que poderiam ser todos abordados ou destruídos. Foi à noite que ele se abriu comigo, e vi-o escrever numa folha datas, nomes e números, abatido como noutras circunstâncias pode ter estado exuberante.

A dado momento, à noite, perguntou-me, sem erguer os olhos:

- Achas que o Céu está a punir-me porque não respeito a quaresma?

- Podes dizer que o rei de França teria dirigido a sua armada contra a Inglaterra porque o signor Gregório Mangiavacca não jejuou durante a quaresma? Estou convencido de que os maiores historiadores se debruçarão amanhã sobre essa grave questão.

Ele ficou por momentos confuso, antes de desatar numa longa gargalhada.

- Vós, os Embriaci, nunca fostes muito piedosos, mas o Céu não vos abandona!

O meu anfitrião ficou descontraído, mas de modo nenhum reconfortado. Porque a perda dos seus navios e do carregamento, se acontecesse, quereria precisamente dizer que a sua boa estrela o teria abandonado.

13 de Abril

Os rumores misturam-se às notícias, os sons de guerra misturam-se ao alarido do apocalipse esperado. Génova atarefa-se e dormita sem alegria como em tempo de peste. A Primavera espera às portas da cidade o fim da quaresma. As flores são ainda raras, as noites húmidas, e os risos abafados. Será a minha própria angústia que eu contemplo no espelho do mundo? Será a angústia do mundo que se reflecte na superfície dos meus olhos?

Gregório falou-me outra vez da filha. Para dizer que aquele que casar com ela será para ele muito mais que um genro, um filho. O filho que o Céu não quis dar-lhe. De resto esse filho, se o tivesse, não teria sobre as suas irmãs mais do que a vantagem dos músculos e da temeridade. Pela inteligência subtil, pela coragem ponderada, Giacominetta não lhe dá motivos para se lamentar, sem falar evidentemente da ternura filial nem da piedade. Feitas as contas, ele conforma-se bem com a decisão da Providência, desde que, no entanto, a ausência de um filho seja compensada no dia em que as filhas se casem.

Ouvi o seu discurso como o pode ouvir um amigo, intervindo a cada silêncio com fórmulas de bons votos, sem dizer nada que pudesse comprometer-me, mas também sem nada que pudesse denotar reticências ou embaraço. Se ele não procurou saber mais sobre as minhas disposições, não duvido de que voltará à carga uma e outra vez.

Deveria eu pensar em fugir?

Faço a pergunta de uma maneira descortês, e ingrata, eu sei. Este homem é o meu benfeitor, apareceu na minha vida no momento da pior provação, para ma tornar mais suave, para transformar a humilhação em bravura e o exílio em regresso. Se acredito, por pouco que seja, nos sinais da providência, Gregório é um deles. O Céu colocou-o no meu caminho para me arrancar às garras do mundo, e em primeiro lugar às minhas próprias errâncias. Sim, foi isso que ele fez, e é isso que lhe censuro. Ele quereria desviar-me de um caminho sem saída, de uma perseguição sem objecto. Em suma, ele propõe-me que arrume a minha vida estragada, para envergar outra. Uma casa nova, uma mulher ingénua, um país recuperado, onde nunca mais serei o estrangeiro, o infiel... É a proposta mais sábia e mais generosa que podem fazer a um homem. Eu deveria correr à igreja mais próxima para me ajoelhar e dar graças. E para murmurar em intenção do meu pai, cuja alma nunca está longe, que vou finalmente desposar uma filha de Génova, como ele sempre me pediu. Em vez disso recalcitro, considero-me importunado, digo-me embaraçado, projecto fugir. Fugir para onde? Para ir disputar a um malfeitor a sua mulher legítima?

Mas só a amo a ela!

Que o Céu e Gregório e o meu pai me perdoem, só a amo a ela!

Marta... Era junto dela que eu poderia deitar-me neste instante, e abraçá-la, e consolá-la, e acariciar lentamente o ventre que traz o meu filho.

15 de Abril

O meu anfitrião torna-se cada dia um pouco mais insistente, e esta estada em casa dele, que começara sob as melhores estrelas, pesa-me agora. Hoje, as notícias do norte eram más, e Gregório lamentava-se. Haviam-lhe contado que os ingleses tinham abordado navios que rumavam aos portos da Holanda ou que partiam deles, e que os holandeses, por sua vez, assim como os franceses, abordavam todos os navios que frequentavam os portos da Inglaterra. «Se isso é verdade, toda a minha fortuna vai ser devorada. Nunca devia ter-me empenhado em tantas empresas ao mesmo tempo. Nunca hei-de perdoar-me, porque me tinham avisado dos riscos da guerra, e eu não quis escutar nada!»

Disse-lhe que se chorava assim por simples rumores, não teria já lágrimas bastantes quando as más notícias chegassem verdadeiramente. É a minha maneira de consolar, e ela arrancou-lhe um breve sorriso, e uma observação afectuosa e admirativa sobre a fleuma dos Embriaci.

Mas logo voltou às suas jeremiadas: «Se eu ficasse arruinado, completamente arruinado, desistirias tu de pedir a mão de Giaccminetta?»

Agora ele ia longe de mais. Ignoro se era a angústia que assim o desvairava, ou se ele se aproveitava do seu drama para me arrancar uma promessa. Em todo o caso, falava como se a minha união com a sua filha fosse uma coisa já assente entre nós, a tal ponto que qualquer hesitação que eu pudesse manifestar se aparentasse a uma renúncia, e no pior momento, como se eu abandonasse o navio com receio do naufrágio. Sentia-me indignado. Sim, intimamente, estava a ferver. Mas que fazer? Habito debaixo do seu tecto, sou seu devedor a vários títulos, e ele está a passar por uma provação, como poderia eu humilhá-lo? Além disso, não é um favor que me pede, é um presente que me faz ou julga fazer, e o pouco entusiasmo que manifestei até agora é já quase um insulto.

Respondi de uma maneira que podia consolá-lo um pouco sem me comprometer: «Estou convencido de que dentro de três dias, notícias tranquilizadoras virão dissipar essas nuvens.»

Interpretando as minhas palavras como uma esquiva, ele achou por bem fazer, suspirando pelas narinas ruivas, esta reflexão que me pareceu deslocada: «Pergunto a mim mesmo quantos amigos teria ainda se ficasse arruinado...»

Eu retorqui então, também suspirando: «Queres que rogue ao Céu que me dê oportunidade de provar a minha gratidão?» Ele reflectiu um instante.

- Podes dispensar-te disso - disse, com uma leve tosse de desculpa.

Depois agarrou-me pelo braço, e arrastou-me para o jardim onde recomeçámos a falar como amigos.

Mas a minha irritação não diminuiu, e digo a mim mesmo que é tempo de pensar em partir. Com que destino? Esmirna, para o caso de os meus lá estarem ainda? Não, antes para Gibelet. Mas em Esmirna, com a ajuda do escrivão Abdellatif, talvez eu pudesse fazer alguma coisa por Marta. Penso nisso por vezes, e ocorrem-me ideias...

Acalento ilusões, sem dúvida. No meu íntimo sei que é demasiado tarde para salvá-la. Mas não será também demasiado cedo para renunciar?

17 de Abril

Informei-me esta manhã acerca dos barcos que estão de partida « para Esmirna. Encontrei um que levanta ferro daqui por dez dias, na terça-feira a seguir à Páscoa. A data convém-me. Poderia assim ter um breve encontro com a esposa e as filhas de Gregório sem me demorar demasiado no seio da família reunida.

Ainda não disse nada ao meu anfitrião. Fá-lo-ei amanhã, ou depois de amanhã. Não há pressa, mas seria deselegante esperar até à véspera da minha «deserção»...

17 de Abril

Neste dia de Ramos, quando se festeja já, sem o confessar, o fim próximo da quaresma, o meu anfitrião mostrou-se um pouco mais tranquilo quanto à sorte dos seus barcos e dos carregamentos. Não que tenha recebido notícias frescas, mas levantou-se de melhor humor.

A ocasião era propícia, e eu aproveitei-a. Antes de lhe anunciar a minha partida, contei-lhe miudamente as circunstâncias da minha viagem, que até aqui calara, ou disfarçara. Devo dizer que aquilo que me aconteceu só pode ser revelado aos mais íntimos dos íntimos. Mas é preciso dizer também que de cada vez que estávamos juntos, ele se apoderava da conversa e não a largava mais. Agora eu sabia tudo sobre ele, sobre os seus antepassados e também sobre os meus, sobre a mulher e as filhas, e sobre os negócios; por vezes ele tinha a conversa jovial, e por vezes aflita, mas nunca estava calado, a tal ponto que quando me fazia uma pergunta eu mal tinha tempo de iniciar a minha frase e já ele retomava a palavra. Eu não pensava de resto em disputar-lha, e ainda menos em queixar-me disso. Nunca fui loquaz. Sempre preferi escutar, e reflectir ou antes fingir; porque, a falar verdade, eu devaneio mais frequentemente do que reflicto.

Hoje, no entanto, perturbei os meus hábitos e os dele. Recusando com mil astúcias deixar-me interromper, contei-lhe tudo, ou pelo menos o essencial e uma boa parte do supérfluo. O livro do Centésimo Nome, o cavaleiro de Marmontel e o seu naufrágio, os meus sobrinhos e as suas extravagâncias, Marta a falsa viúva, o filho que ela espera - sim, mesmo disso eu tinha de falar - assim como as minhas pálidas aventuras na Anatólia, em Constantinopla, no mar, em Esmirna, depois em Quios. Até os meus remorsos actuais, e os meus restos de esperança.

Quanto mais avançava no meu relato, mais o meu anfitrião parecia abatido, sem que eu soubesse verdadeiramente se eram as minhas desgraças que o afectavam assim ou as consequências delas para os seus projectos. Porque, neste ponto, ele não se deixou enganar. Eu ainda não lhe dissera que contava partir, tinha simplesmente explicado as razões pelas quais não estava em condições de casar com a sua filha, nem de me eternizar em Génova, quando ele me perguntou, lacónico, por uma vez:

- Quando é que vais deixar-nos?

Sem irritação aparente nem grosseria, não, ele não me expulsava. Se eu tivesse a mínima dúvida a esse respeito, teria abandonado a sua casa no mesmo minuto. Não, a sua pergunta era uma simples constatação, triste, amarga e consternada.

Murmurei a minha resposta vaga, «Dentro de alguns dias», e quis imediatamente continuar com agradecimentos, com a minha gratidão, a minha dívida para com ele. Mas ele bateu-me no ombro e foi deambular sozinho pelo jardim.

Estou aliviado ou envergonhado.Estou mais envergonhado do que aliviado?

19 de Abril

Está a nascer o dia e não preguei olho. Durante toda a noite ruminei ideias inúteis que me esgotaram sem adiantar nada: devia ter dito isto, em vez daquilo; ou aquilo em vez disto; e depois a minha vergonha por tê-lo ferido. Já me esqueci da sua insistência, das suas manobras de rústico, para só pensar nos meus próprios remorsos.

Traí eu verdadeiramente a sua confiança? No entanto, não lhe havia prometido nada. Mas ele soube persuadir-me de que me tinha mostrado ingrato.

Penso tanto na reacção de Gregório, na recordação que conservará de mim, que me esqueço de fazer as únicas perguntas que contam: terei tomado a decisão acertada? Terei razão para partir, em vez de aceitar a vida nova que ele me oferece? Que vou eu fazer a Esmirna? Que miragem vou perseguir? Como posso acreditar que vou recuperar Marta, e recuperar o meu filho? Se não corro para o precipício, corro para o pé da falésia, onde o meu caminho acabará.

Hoje, sofro por ter melindrado o meu anfitrião. Amanhã chorarei por não lhe haver obedecido.

20 de Abril

Estou tocado por um frenesim de confidências, como uma jovem nos seus primeiros amores. Eu, habitualmente silencioso, considerado taciturno, que falo por economia e não confio a não ser nestas páginas, contei já por duas vezes a minha vida, no domingo ao meu anfitrião para me justificar a seus olhos, e hoje a um perfeito desconhecido. Levantei-me esta manhã com uma ideia fixa: oferecer a Gregório um presente sumptuoso que o fizesse esquecer as nossas amarguras e nos permitisse separarmo-nos como amigos. Não tinha nenhuma ideia precisa, mas tinha visto numa rua próxima do porto um enorme armazém de curiosidades que prometera a mim mesmo visitar «como colega», e onde estava convencido de que encontraria o objecto idóneo - talvez uma grande e bela estátua antiga que ocuparia um lugar no jardim da casa Mangiavacca e ali recordaria para sempre a minha passagem.

Logo à primeira, a loja pareceu-me familiar. A disposição das mercadorias é aproximadamente a mesma que na minha casa: os velhos livros deitados nas prateleiras; ao alto, as aves empalhadas; no chão, aos cantos, grandes vasos esbeiçados que não nos resignamos a deitar fora e que conservamos, de um ano para o outro, sabendo que ninguém os comprará... O dono do lugar também se parece comigo, um genovês dos seus quarenta anos, glabro, bastante corpulento.

Apresentei-me, e o acolhimento foi dos mais calorosos. Ele ouvira falar de mim - não apenas dos Embriaci, mas de mim em particular, porque alguns dos seus clientes haviam já passado por Gibelet. Ainda antes que eu dissesse o que procurava, convidou-me a sentar num patiozinho sombrio e fresco, encomendou a uma criada xaropes frescos, e veio sentar-se à minha frente. Também os seus, disse-me, viveram muito tempo no ultramar, em diversas cidades. Mas tinham regressado à pátria havia setenta anos e ele próprio nunca tinha saído de Génova.

Quando lhe contei que estive recentemente em Alepo, em Constantinopla, em Esmirna e em Quios, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Dizendo que tinha inveja de mim por ter andado assim «por toda a parte», quando ele próprio sonha todos os dias com os destinos mais longínquos sem nunca ter tido a coragem para se aventurar.

- Duas vezes por dia vou até ao porto, observo os barcos que partem ou que chegam, falo com os marinheiros, com os armadores, vou beber com eles nas tabernas para os ouvir pronunciar os nomes das cidades onde pararam. Todos me conhecem, agora, e devem murmurar nas minhas costas que sou doido. É verdade que fico inebriado ao ouvir nomes estranhos, mas nunca fui suficientemente sábio para partir.

- Suficientemente louco, quer dizer!

- Não, disse bem, suficientemente sábio. Porque entre os ingredientes que compõem a verdadeira sabedoria, esquecemos demasiadas vezes a pitada de loucura.

Ao falar, tinha lágrimas nos olhos, e então eu disse-lhe:

- Queríeis estar no meu lugar, e eu gostaria de estar no vosso. Disse-lho para aliviar os seus remorsos, mas - por todos os santos! - pensava-o, e penso-o. Gostaria de estar neste momento sentado na minha loja, com uma bebida fresca na mão, sem ter nunca pensado em empreender esta viagem, sem nunca ter encontrado a mulher cuja infelicidade causei e que causou a minha, sem nunca ter ouvido falar do Centésimo Nome.

- Porquê isso?- Perguntou ele, para me fazer contar as minhas viagens. E eu pus-me a falar. Daquilo que me levou às estradas, das minhas breves alegrias, das minhas desventuras, das minhas mágoas. Apenas omiti o meu diferendo com Gregório, limitando-me a dizer que este me havia acolhido generosamente à minha chegada, e que antes de o deixar fazia questão de lhe mostrar todo o meu reconhecimento com um presente digno da sua generosidade...

Neste ponto da nossa conversa, o meu colega - ainda não disse que ele se chamava Melchione Baldi - deveria, como bom comerciante, incitar-me a dizer qual o presente em que eu pensara. Mas é de querer que a nossa conversa lhe agradava, pois que voltou às minhas viagens para me fazer várias perguntas sobre o que tinha visto em tal lugar ou em tal outro, depois interrogou-me acerca do livro de Mazandarani de que nunca ouvira falar. Depois de me haver deixado explicar por longos momentos, perguntou-me onde contava eu ir agora.

- Ainda não sei se deva regressar directamente a Gibelet, ou parar antes em Esmirna.

- Não dissestes que o livro que vos fez empreender esta viagem se encontra agora em Londres?

- Será isso razão para que eu o persiga até lá?

- Oh, não! Eu que tenho os dois pés pregados ao chão, com que direito poderia aconselhar-vos a empreender semelhante viagem? Mas se vos decidirdes, voltai a passar por aqui no regresso para me contardes o que tiverdes visto!

Depois levantámo-nos, para ir ver num segundo pátio, do outro lado da loja, algumas estátuas antigas ou recentes. Uma delas, descoberta para os lados de Ravena, pareceu-me adequada para o jardim do meu anfitrião. Representa Baco, ou talvez um imperador no momento das ágapes, segurando uma taça e rodeado de todos os frutos da terra. Se não encontrar nada que me agrade mais, ficarei com ela.

Ao regressar a pé a casa de Gregório, tinha o passo ligeiro e prometi a mim mesmo voltar a visitar aquele colega tão acolhedor. De qualquer modo, terei de lá voltar, pela estátua.

Devo oferecê-la tal como está, ou deveria fazê-la erguer sobre um pedestal? Tenho de perguntar isso a Baldi, que deve conhecer os usos nesta matéria.

21 de Abril

Gregório fez-me prometer não partir de sua casa sem o ter avisado vários dias antes. Eu quis saber a razão, mas ele fez-se misterioso.

Depois perguntou-me se tinha optado por um qualquer destino. Respondi-lhe que continuava a hesitar entre Gibelet e Esmirna; e que me acontece perguntar-me por que não ir a Londres.

Ele mostrou-se surpreendido com esta nova extravagância, mas passados alguns minutos veio dizer-me que isso talvez não fosse má ideia. Respondi que era uma ideia entre outras, e que ainda não tomara nenhuma decisão. Ao que ele retorquiu que eu não devia sobretudo apressar-me, e que ele próprio seria o homem mais feliz do mundo se a minha hesitação se prolongasse ainda «até ao Natal».

Bravo Gregório, acho que pensa cada palavra que me disse.

Acho também que no dia em que me for de sua casa, terei saudades desta etapa tranquila. No entanto, preciso de voltar a partir pelas estradas, e muito antes do Natal.

22 de Abril

A mulher de Gregório e as suas três filhas chegaram hoje, tendo visitado sete igrejas no caminho, como exige a tradição da Sexta-feira Santa. A senhora Orietina é magra e seca e toda vestida de negro. Não sei se está assim por ser quaresma, mas parece-me que para ela é quaresma todo o ano.

Só deveria regressar no sábado, véspera de Páscoa, mas decidiu enfrentar a intemperança do marido dois dias antes. Se fosse eu o seu marido. Deus me livre, ela nada teria a temer dos meus ardores nem durante a quaresma, nem o resto do tempo.

Por que falo eu dela com tanta ferocidade? Pela razão de que, desde o momento em que chegou, e quando eu me tinha juntado ao marido e às pessoas da casa para lhe desejar bom regresso, ela me lançou um olhar que queria dizer que eu não era bem-vindo em sua casa, e que nunca devia ter cruzado a porta.

Ter-me-ia ela tomado por companheiro de deboche de Gregório? Teria sabido, pelo contrário, dos projectos deste último para mim e para a sua filha, e procuraria mostrar o seu desacordo com tal iniciativa, ou, pelo contrário, o seu despeito pela minha reacção tão pouco pressurosa? Em todo o caso, a partir do momento em que ela chegou, senti-me estranho nesta casa. Pensei mesmo em partir imediatamente, mas contive-me. Não queria fazer uma afronta àquele que me acolheu como um irmão. Fingi acreditar que a mulher se comportou assim por causa da fadiga, por causa da quaresma e dos sofrimentos suportados por Nosso Senhor nesta semana, e que interditam as expressões de alegria. Mas não me demorarei mais por aqui. Já esta tarde não fiquei para jantar, pretextando uma visita a um colega.

Quanto à famosa Giacominetta, que o pai tanto me elogiara, nem a vi, por assim dizer. Correu para o seu quarto sem saudar ninguém, suspeito de que a mãe a escondeu deliberadamente.

É tempo, é mais que tempo de partir.

Passo a mais penosa das noites mesmo sem sofrer de nada. De nada? Sim, sofro por não ser já bem-vindo nesta casa. Tenho dificuldade em adormecer, como se o meu próprio sono fosse roubado, ou mendigado aos meus anfitriões. A expressão que se formou no rosto da mulher de Gregório não parou de se amplificar durante a noite, de se tornar mais feia. Já não posso ficar mais aqui. Nem até ao Natal, nem mesmo até à Páscoa, que é daqui a dois dias. Nem mesmo até de manhã. Vou deixar uma nota de cortesia, e sair em bicos de pés. Dormirei num albergue próximo do porto, e assim que haja um barco, embarcarei.

Para o Oriente ou para Londres? Recuperar o livro, primeiro? Ou esquecê-lo e tentar antes salvar Marta - mas de que modo?

ou ainda esquecer todas as minhas loucuras e voltar para junto dos meus em Gibelet?

Mais do que nunca, hesito.

23 de Abril, Sexta-feira Santa

Estou no meu novo quarto, no albergue chamado A Cruz de Malta. Da minha janela vejo a bacia do porto, dezenas de embarcações com as velas recolhidas. Tenho já talvez diante dos olhos o navio que há-de levar-me. Ainda estou em Génova, mas já a deixei. É sem dúvida por isso que sinto já saudades dela, e reencontro a minha nostalgia de emigrado.

Pus portanto em prática a minha ameaça, fugi da casa de Gregório, apesar dos imprevistos que, no último momento, se ergueram no meu caminho. De manhã cedo, muito cedo, reuni as minhas raras bagagens, deixei uma breve nota escrita agradecendo-lhe a sua hospitalidade, uma nota da quaj bani qualquer subentendido malevolente, ou mesmo ambíguo, apenas agradecimentos, palavras de gratidão e de amizade. Nem sequer uma promessa de reembolsar as trezentas libras que lhe devo, o que o teria melindrado. Coloquei a carta bem à mostra, com algumas moedas para o pessoal da casa; arrumei o quarto como se nunca ali tivesse habitado; e saí.

Cá fora começava a fazer dia, mas a casa continuava escura e silenciosa. Se os criados estavam levantados, evitavam fazer barulho., O quarto onde eu dormia fica no primeiro andar, no cimo de uma escada de madeira que eu prometia a mim mesmo descer com precaução, com receio de que ela rangesse muito.

Estava ainda no primeiro degrau, segurando-me bem ao corrimão para não tropeçar no escuro, quando apareceu uma luz. Saída não sei de onde, uma jovem, que só podia ser Giacominetta. Trazia um candelabro de dois braços, que iluminou subitamente os degraus da escada bem como o rosto dela. Sorria. Um sorriso divertido, cúmplice. Eu não podia bater em retirada. Ela vira-me, levando a minha bagagem, e não tive outro remédio senão seguir o meu caminho. Sorrindo como ela, e piscando o olho como para a fazer partilhar o meu segredo. Era tão radiosa como a mãe era baça, e não pude deixar de me perguntar se a filha era diferente por natureza, tendo adquirido a jovialidade do pai, ou se era apenas a idade que explicava o comportamento de cada uma delas.

Ao chegar ao fundo da escada, saudei-a simplesmente com a cabeça, sem uma palavra, depois dirigi-me para a porta, abri-a, e voltei a fechá-la suavemente atrás de mim. Ela tinha-me seguido com a luz, mas não dissera nada, não perguntara nada, nem procurara deter-me. Atravessei a álea até ao portão, que o jardineiro me abriu. Pus-lhe uma moeda na mão, e afastei-me.

Com receio de que Gregório, avisado pela filha, procurasse alcançar-me, tomei pelas ruelas mais escuras, caminhando depressa, a direito à minha frente, até ao porto. Até ao referido albergue, em cuja tabuleta tinha reparado na semana passada.

Depois de escrever estas palavras, vou baixar as cortinas, descalçar-me e deitar-me em cima da cama. Dormir, nem que sejam alguns minutos, far-me-ia muito bem. Reina aqui um cheiro a lavanda seca, e os lençóis parecem limpos.

Era meio-dia, tinha dormido duas ou três boas horas quando fui acordado por um barulho infernal. Era Gregório que batia à minha porta. Tinha vasculhado, disse-me, todos os albergues de Génova para me descobrir. Chorava. Segundo ele, eu tinha-o traído, tinha-o apunhalado, tinha-o humilhado. Desde há trinta e três gerações, os Mangiavacca estão unidos aos Embriaci como a mão está soldada ao braço, e num momento de irritação, eu tinha cortado de um golpe seco os nervos, as veias e os ossos. Disse-lhe que se acalmasse, que se sentasse, que não havia nem traição, nem amputação, nem nada desse género, nem sequer amargura. A princípio, abstive-me de lhe revelar os meus verdadeiros sentimentos, a verdade deve merecer-se, e ao comportar-se assim ele não a merecia. Afirmei por isso que queria deixá-lo com a sua família recuperada, e que partia de sua casa com a melhor recordação que é possível. Isso não é verdade, disse ele, fora a frieza da sua mulher que me fizera partir.

Cansado de negar, acabei por admitir que sim, que era verdade, a atitude da sua esposa não me encorajara a permanecer. Então ele sentou-se na cama, e chorou como eu nunca vira um homem chorar.

- Ela é assim com todos os meus amigos, disse por fim, mas é apenas aparência. Quando tiveres aprendido a conhecê-la melhor...

Insistiu e voltou a insistir para que voltasse. Mas eu resisti. Não me via a regressar envergonhado ao redil depois daquela saída. Ter-me-ia desconsiderado aos olhos de todos. Apenas prometi ir tomar o almoço de Páscoa à sua mesa, e é um compromisso honroso.

24 de Abril, sábado de Aleluia.

Voltei a passar hoje pela casa de Melchione Baldi, para lhe confirmar a minha escolha da estátua de Baco, e pedir-lhe se podia mandar entregá-la em casa de Gregório. Ele convidou-me a sentar, mas tinha na sua loja uma pessoa de alta estirpe - uma dama Fieschi, acho eu - com o seu numeroso séquito; preferi portanto eclipsar-me, prometendo voltar noutra altura, e deixando ao meu colega o nome do albergue, que fica a dois passos de sua casa, para o caso de ele querer visitar-me.

Gostaria que o meu presente chegasse aos meus anfitriões amanhã ao fim da tarde, à maneira de agradecimento depois do almoço de festa que terei passado na sua companhia. Mas Baldi não tem a certeza de encontrar distribuidores no Domingo de Páscoa, e pediu-me que esperasse até segunda-feira.

25 de Abril dia de Páscoa

Julgando antecipar-se aos meus desejos, Melchione Baldi colocou-me hoje numa situação de vergonha e de embaraço.

Não lhe havia eu pedido que mandasse entregar a estátua aos meus anfitriões no domingo ao fim da tarde? Esperava assim que no momento em que tivesse abandonado a sua residência, tendo

partilhado o seu almoço pascal, eles recebessem o presente por meio do qual eu exprimiria o meu reconhecimento. Como a entrega não parecia possível nesse dia, eu disse a mim mesmo que o meu gesto poderia perfeitamente acontecer no dia seguinte, e que seria mesmo mais delicado assim. A polidez dá-se bem com uma certa lentidão.

Mas Baldi não queria correr o risco de me decepcionar. Por isso arranjou maneira de encontrar quatro jovens carregadores que vieram bater à porta dos meus anfitriões quando estávamos ainda a meio da refeição. Toda a gente se levantou, puseram-se a correr em todas as direcções, de onde resultou uma tal confusão, uma tal balbúrdia... Eu não sabia já com que toalha esconder a cara, principalmente quando os carregadores, todos inexperientes e talvez um pouco bêbedos, derrubaram no jardim um banco de pedra que se partiu em dois, e começaram a espezinhar os canteiros de flores como uma horda de javalis.

Que vergonha!

Gregório corava de raiva contida, a mulher troçava, e as filhas riam. O que devia ser um gesto de elegância tinha-se transformado numa ruidosa chocarrice!

Este dia tinha-me reservado já algumas outras surpresas.

Assim que passei, por volta do meio-dia - e talvez pela última vez - a porta da casa Mangiavacca, Gregório recebeu-me como um irmão, e pegou-me pelo braço para me levar ao seu gabinete, onde conversámos enquanto esperávamos que a mulher e as filhas estivessem prontas. Perguntou-me se tinha tomado uma decisão quanto à minha partida, e eu respondi que continuava determinado a partir nos próximos dias, e que continuava inclinado a regressar a Gibelet, ainda que hesitasse quanto ao rumo a tomar.

Ele repetiu então que sentiria a minha partida, que eu seria sempre bem-vindo a sua casa, e que se apesar de tudo decidisse permanecer em Génova, faria com que eu nunca me arrependesse; depois perguntou-me se excluía já a ida a Londres. Respondi que ainda não a excluía, mas que a despeito da atracção que sobre mim exercia o livro do Centésimo Nome, a sabedoria mandava que se regressasse ao Oriente, para retomar nas mãos o meu comércio abandonado havia demasiado tempo, e para me assegurar de que a minha irmã havia recuperado os filhos.

Gregório, que só parecia ouvir metade do que eu lhe dizia, pôs-se a fazer o elogio das cidades pelas quais eu passaria se tomasse o barco para Inglaterra, tais como Nice ou Marselha ou Agde, Barcelona ou Valência, e principalmente Lisboa.

Depois perguntou-me, com a mão pesadamente pousada no meu ombro:

- No caso de mudares de ideia, poderias prestar-me um serviço?

Respondi, com toda a sinceridade, que nada me daria mais prazer do que reembolsá-lo um pouco da minha dívida moral depois de tudo que ele havia feito por mim. Explicou-me então que a situação que se tinha criado nos últimos tempos por causa da guerra anglo-holandesa perturbara um pouco os seus negócios, e que teria uma mensagem importante a fazer chegar ao seu agente em Lisboa, um certo Cristoforo Gabbiano. Tirou então da gaveta uma carta já escrita, e fechada com o seu selo.

- Toma-a, disse-me, e guarda-a preciosamente. Se decidires partir para Londres por via marítima, passarás forçosamente por Lisboa. E então, ficar-te-ei infinitamente reconhecido por levares esta carta a Gabbiano em mão própria. Prestar-me-ias um enorme serviço! Pelo contrário, se optares por outro destino, e não tiveres tempo de me devolver a carta, promete-me que a queimas sem sequer a abrir!

Prometi.

Outra surpresa, bastante agradável, foi quando, pouco antes de nos sentarmos à mesa, Gregório convidou a filha mais velha para passear comigo no jardim. Esses poucos minutos confirmaram as minhas melhores impressões sobre esta jovem. Sempre sorridente, caminhando com graça, e sabendo o nome de cada flor. Ouvia-a falar dizendo a mim mesmo que se a minha vida tivesse decorrido de outro modo, se eu não tivesse encontrado Marta, se não tivesse a

minha casa, o meu comércio e a minha irmã do outro lado do mar, poderia ser feliz com a filha de Gregório... Mas é demasiado tarde, e desejo-lhe que seja feliz sem mim.

Não sei se, para concluir esta enumeração das vãs peripécias do meu dia pascal, deveria assinalar o facto de que a esposa do meu amigo, a virtuosa senhora Orietina, me acolheu hoje com um sorriso, e uma certa manifestação de alegria. É sem dúvida porque sabe que estou prestes a partir para não mais voltar.

Segunda-feira, 26 de Abril

Estava sentado no meu quarto, diante da janela, com o olhar distante, quando a porta se abriu bruscamente. Voltei-me. No vão da porta estava um marinheiro muito jovem que me perguntava ofegante, sem largar o puxador, se eu queria partir para Londres. Exaltado, no mesmo instante, por aquilo que me pareceu um apelo do destino, disse que sim. Ele suplicou-me então que me apressasse, porque iam retirar a escada daí a pouco. Reuni à pressa as minhas magras bagagens em dois pacotes que ele levou debaixo do braço como asas de anjo. O rapaz tinha longas madeixas louras seguras pelo boné mole. Segui-o pelas escadas, depois pelo vestíbulo, parando só para deitar à mulher do estalajadeiro algumas moedas e uma palavra de despedida.

Corremos em seguida pelas ruelas, depois pelo cais, até à passarela, que subi com a língua de fora. Ah, cá estais finalmente, lançou-me o capitão, já íamos partir sem vós. Eu estava demasiado esfalfado para fazer a menor pergunta, só os meus olhos se esbugalharam de espanto, mas ninguém deu por isso.

Escrevo estas linhas a bordo do Sanctus Dionisius. Sim, já estou no mar.

Tendo chegado a Génova sem o ter previsto, deixo-a um mês depois da mesma maneira, ou quase. Estava ainda a pesar os inconvenientes e as vantagens de um regresso rápido a Gibelet, e os de uma passagem primeiro por Esmirna, ou por Quios, ou por qualquer outro desvio, quando a minha rota estava já traçada pela Providência sem que eu soubesse.

Sentado num caixote para recuperar o fôlego, não parava de perguntar a mim mesmo se seria realmente de mim que estavam à espera. Não seria antes outro viajante que o jovem marinheiro tinha a missão de ir buscar ao albergue da Cruz de Malta? Levantei-me portanto, e varri com os olhos o cais em toda a sua extensão, esperando ver um homem acorrer gritando e agitando os braços. Mas não havia nenhum homem a correr. Havia apenas carregadores vergados, alfandegários tranquilos, empregados, basbaques, passeantes endomingados.

Entre estes últimos reconheci um rosto familiar. Baldi. Melchione Baldi. A quem amaldiçoei cem vezes ontem em casa de Gregório. Encostado a um muro, fazia-me sinais. Tinha o rosto brilhante de suor e de contentamento. Ele dissera-me que passava os seus domingos, os seus dias de festa e todas as suas horas de ócio no porto, a ver chegar e partir os navios, e a fazer falar os marinheiros. Comerciante e sonhador, «ladrão», ou antes «receptador de viagens»... Depois do embaraço que me causou ontem, devia apetecer-me lançar-lhe censuras mais do que sorrisos, e estive quase a desviar os olhos para evitar cruzar-me com os seus. Mas teria sido mesquinho agir desse modo, quando me preparo para deixar Génova para sempre. O homem julgava agradar-me, e deve ainda imaginar, neste momento, que tudo correu bem com a estátua de Baco, e que eu lhe estou grato. Então, esquecendo o meu ressentimento, dirigi-lhe um sinal de amizade, caloroso e apressado como se acabasse de reconhecê-lo de longe. Ele animou-se, agitou todos os membros, manifestamente feliz com aquele último encontro. Também eu - e este é um traço que muitas vezes a mim mesmo censurei - estava aliviado com aquela reconciliação muda. Lentamente, o navio começou a afastar-se do cais. Baldi ainda me fazia sinais com um lenço branco, e eu fazia-lhe também, intermitentemente, sinais com a mão. Ao mesmo tempo, continuava a olhar à minha volta, procurando ainda compreender por que prodígio me encontrava naquele barco. Não estava, e continuo a não estar no momento em que escrevo estas linhas, nem triste nem alegre. Apenas intrigado.

Talvez fosse assisado escrever ao fundo desta página «Que seja feita a Sua vontade!», visto que de todas as maneiras o será...

No mar, 27 de Abril

Falei ontem de Providência, porque foi assim que vi escreverem os poetas e os grandes viajantes. Mas não sou tolo. Salvo se considerarmos que somos todos - poderosos ou fracos, hábeis ou ingénuos - seus instrumentos cegos, a Providência nada tem que ver com esta viagem! Sei perfeitamente qual a mão que traçou a minha rota, qual a mão que me conduziu para o mar, em direcção ao poente, em direcção a Londres.

No momento, com a estafa, com a surpresa, no meio da confusão da partida, não tinha compreendido. Mas, esta manhã, tudo é claro aos meus olhos. Ao dizer tudo, só exagero um pouco. Sei quem me impeliu assim, adivinho por meio de que habilidades Gregório me fez aceitar a ideia de partir para Inglaterra, mas não discirno ainda todos os seus cálculos. Suponho que continua a procurar fazer-me casar com a filha, e que quis evitar que eu partisse para Gibelet, de onde provavelmente nunca mais voltaria. Esta viagem de alguns meses ao outro lado do mundo dá-lhe talvez a sensação de me conservar ainda um pouco no seu círculo.

Mas não quero mal a Gregório, nem seja a quem for. Ninguém me obrigou a partir. Bastaria que eu dissesse não ao emissário louro, e estaria ainda em Génova, ou a caminho do Oriente. Mas corri para apanhar esta nau!

Se Gregório é culpado, eu sou um dos seus cúmplices, como o são a Providência, o ano da Besta, e O Centésimo Nome.

No mar, 28 de Abril

Ontem à tarde, quando acabava de escrever algumas linhas resignadas, vi passar na ponte o jovem marinheiro louro que me fora buscar ao albergue. Fiz-lhe sinal para que se aproximasse, com a intenção de lhe fazer duas ou três perguntas prementes. Mas ele tinha nos olhos um medo infantil; por isso limitei-me a meter-lhe na mão uma moeda de prata, sem dizer palavra.

O mar está calmo, desde a nossa partida, mas não deixara de me sentir doente. Até parece que a contrariedade me abana mais do que as ondas.

Neste instante, a cabeça não me anda à roda, nem as entranhas. Mas ainda não me atrevo a debruçar-me muito tempo sobre as minhas páginas. O cheiro da tinta, que normalmente não sinto, hoje incomoda-me.

Paro de súbito.

3 de Maio

Esta segunda-feira de manhã, quando, pela primeira vez desde há uma semana, caminhava na ponte com pé mais ou menos firme, o cirurgião do barco veio perguntar-me se eu era realmente o futuro genro do senhor Gregório Mangiavacca. Divertido com esta descrição bastante abusiva, e pelo menos prematura, respondi que era na verdade um dos seus amigos mas não da sua parentela, e inquiri de que maneira soubera que nós nos conhecíamos. Ele mostrou-se subitamente constrangido, como a censurar-se por ter dito aquilo, e desapareceu imediatamente a pretexto de que o capitão o chamara.

Este incidente revelou-me que se devem murmurar muitas coisas nas minhas costas. Talvez até gracejem a meu respeito à hora da sopa. Devia zangar-me, mas digo: pouco importa! Deixá-los troçar! Não custa nada troçar do bom e barrigudo Baldassare Embriaco, negociante de curiosidades. Enquanto troçar do capitão seria arriscar-se ao chicote. No entanto, Deus sabe se ele mereceria os sarcasmos, e muito mais do que isso!

Imagine-se: em vez de seguir a rota habitual, parar em Nice e em Marselha, ou pelo menos num destes dois portos, decidiu rumar direito a Valência, em Espanha, a pretexto de que o vento de nordeste nos levaria até lá em cinco dias. Mas o vento mostrou-se caprichoso. Tendo-nos empurrado até ao largo, esfalfou-se; depois mudou de sentido todas as noites. De modo que ao oitavo dia de viagem, ainda não estamos em parte nenhuma! Não vemos nem a costa espanhola nem a costa francesa, nem sequer a Córsega, a Sardenha ou as ilhas Baleares. Onde estamos nós agora? Mistério! O capitão afirma saber, e ninguém a bordo ousa contradizê-lo. Veremos. Alguns viajantes já não têm víveres, e a maioria quase não tem água. Ainda não chegámos ao desastre, mas caminhamos para ele, a toda a vela!

5 de Maio

A bordo do Sanctus Dionisius, quando duas pessoas murmuram à parte, é porque falam do capitão. Alguns erguem então os olhos para o céu, outros ousam agora rir. Mas por quanto tempo a sua inconsciência nos fará apenas rir e murmurar?

Quanto a mim, estou perfeitamente restabelecido, passeio, como abundantemente, discuto com uns e com outros, e olho já com condescendência aqueles que, à minha volta, ainda sofrem de enjoo.

Para as minhas refeições, não previ nada mais a não ser comprar o que aqui se vendesse. Lamento não ter contratado um cozinheiro, nem feito provisões, mas tudo aconteceu tão depressa! Lamento sobretudo já não ter Hatem. Contanto que não lhe tenha acontecido nenhuma desgraça e se encontre são e salvo em Gibelet...

... Onde, diga-se a propósito, eu próprio deveria ir. Hoje penso que sim; enquanto não tinha partido na direcção oposta, não o pensava. É assim. Encolho os ombros. Evito lamentar-me. Trauteio virado para o mar uma canção genovesa. Registo no meu caderno, entre duas decisões do destino, as minhas intensas tergiversações ...

Sim, é assim, resigno-me. Visto que de qualquer maneira tudo acaba debaixo da terra, que importa o caminho! E por que havia eu de tomar por atalhos em vez de desvios?

6 de Maio

«Um bom capitão transforma o Atlântico em Mediterrâneo; um mau capitão transforma o Mediterrâneo em Atlântico» - isto foi o que ousou dizer hoje em voz alta um dos passageiros do navio, um veneziano. Não era a mim que se dirigia, mas a todos aqueles que estavam reunidos junto ao filerete. Se evitei falar-lhe, fixei no entanto a sua fórmula, prometendo a mim mesmo reproduzi-la nestas páginas.

É verdade que todos temos a sensação de estar perdidos no meio da imensidão marítima, e que esperamos com angústia o momento em que alguém gritará «Terra à vista!» quando nos encontrarmos nas águas mais familiares, e na melhor estação.

Segundo o último boato, deveríamos acostar amanhã à tarde entre Barcelona e Valência. Se nos dissessem «Será Marselha», ou «Aigues-Mortes», ou «Mahon», ou «Argel», nós acreditávamos, de tal modo perdemos todos as nossas referências.

Algures no Mediterrâneo, 7 de Maio de 1666

Troquei hoje algumas frases com o capitão. Tem quarenta anos, chama-se Centurione, e posso escrever com todas as letras que é um doido!

Não escrevo «doido» querendo dizer temerário, ou imprudente, ou lunático, ou extravagante... Escrevo «doido» querendo dizer doido. Julga-se perseguido por demónios alados, e pensa escapar-lhes seguindo rotas sinuosas!

Se um passageiro me dissesse semelhantes coisas, ou um marinheiro, ou o cirurgião, ou o carpinteiro, eu teria corrido ao capitão para que o pusesse a ferros e o desembarcasse na primeira escala. Mas que fazer quando o louco é o capitão?

Se ao menos fosse um louco enraivecido, furioso, um louco aos berros, um louco manifesto, ter-nos-íamos juntado para o dominar, avisaríamos as autoridades do porto onde íamos arribar.

Mas nada disso! O homem é um louco pacífico, deambula dignamente, discute, graceja, e distribui as suas ordens com a segurança dos chefes.

Até hoje, eu quase não lhe falara. Apenas duas palavras, em Génova, quando cheguei a correr e ele me disse que o navio esteve quase a partir sem mim. Mas esta manhã, quando deambulava sobre a ponte, passou ao pé de mim; saudei-o cortesmente, e as suas primeiras palavras foram das mais convencionais. Como é costume entre genoveses que se respeitam, falámos primeiro das nossas famílias, e ele proferiu palavras sensatas para evocar a fama dos Embriaci e o passado de Génova.

Comecei a dizer para mim mesmo que todos esses sarcasmos que circulavam a seu respeito eram injustos, quando apareceu uma ave a voar muito baixo por cima das nossas cabeças. O seu grito fez-nos erguer os olhos, e eu notei que o meu interlocutor estava inquieto.

- Que pássaro é este? - Perguntei. - Uma gaivota? Um guincho? Um albatroz?

- É um demónio! - Respondeu o capitão, subitamente nervoso.

Primeiro julguei que aquilo era uma maneira de amaldiçoar aquele volátil, por causa dos malefícios que pudesse causar. Depois perguntei-me se não haveria uma variedade de aves a que os homens do mar dessem aquele nome.

Entretanto o homem continuava. Cada vez mais agitado:

- Eles perseguem-me! Onde quer que eu vá, encontram-me! Nunca me deixarão em paz!

Bastara um bater de asas para que ele caísse no seu delírio.

- Há anos que me perseguem em todos os mares...

Não era comigo que ele falava, apenas me tomava como testemunha na sua obscura conversa consigo mesmo, ou com os seus demónios.

Ao fim de alguns segundos deixou-me, murmurando que ia dar ordens para que mudássemos de rota a fim de desorientar os nossos perseguidores.

Deus do Céu, onde nos levará este homem?

Decidi não falar a ninguém do que aconteceu, pelo menos por enquanto. A quem falar, de resto? E para dizer o quê? E fazer o quê? Fomentar uma rebelião? Propagar no navio o medo, a suspeição, a sedição, e assumir a responsabilidade pelo sangue que poderia ser vertido? Tudo isso é demasiado grave. E ainda que o silêncio não seja a solução mais corajosa, parece-me que devo esperar, observar, reflectir, mantendo o espírito alerta.

Felizmente que tenho este caderno para lhe murmurar as coisas que tenho de calar.

8 de Maio

Tive esta manhã uma conversa com o passageiro veneziano. Chama-se Girolamo Durazzi. Foi uma conversa breve, mas cortês. Se o meu saudoso pai pudesse ler estas linhas, eu teria escrito «foi cortês, mas breve»...

Há também connosco um persa a quem as gentes do barco chamam a meia voz «o príncipe». Não sei se ele é príncipe, mas tem aspecto disso, e dois homens corpulentos seguem-no de perto, vigiando à direita à esquerda, à direita à esquerda, como se temessem pela vida dele. Usa uma barba curta e um turbante negro tão fino, tão achatado, que parece uma simples faixa de seda. Não fala a ninguém, nem sequer aos seus dois guardas, limita-se a caminhar olhando a direito à sua frente, e só pára por vezes para contemplar o horizonte, ou o céu.

Domingo, 9 de Maio de 1666

Finalmente lançámos âncora. Nem em Barcelona, nem em Valência, mas na ilha de Minorca, nas Baleares, e mais precisamente no porto de Mahon. Ao reler as minhas últimas páginas, constato que se trata de facto de um dos numerosos destinos previstos pelo boato. É um pouco como se este nome estivesse inscrito na face do dado lançado em nossa intenção pela Providência.

Mais do que procurar, no meio da loucura, um último sinal de coerência, por que não abandonar esta nau demente? Eu devia dizer: que eles se vão todos deitar a perder sem mim! O capitão, o cirurgião, o veneziano, e o «príncipe» persa! Contudo, não me vou embora. Contudo, não fujo. Importar-me-ia ainda a sobrevivência destes desconhecidos? Ou será a minha sobrevivência que já não me importa? Coragem suprema, ou suprema resignação? Não sei, mas fico.

No último momento, ao ver a confusão em volta das barcas, decidi mesmo não descer a terra, chamar antes o jovem marinheiro louro e encarregá-lo de fazer compras para mim. Chama-se Maurizzio, e tem a sensação de me dever alguma coisa por causa da partida que me pregou. A falar verdade, não estou zangado com ele; a visão das suas madeixas louras traz-me um certo reconforto - mas é melhor que ele não saiba isso.

11 de Maio

Nunca teria pensado tornar-me amigo de um veneziano!

É verdade que no mar, quando dois comerciantes se encontram durante uma longa travessia, sempre se estabelece uma conversa. Mas as coisas com ele foram além disso, encontrámos desde as primeiras frases tantas preocupações comuns que me esqueci imediatamente de todas as prevenções que o meu pai me inculcara.

Sem dúvida o contacto entre nós foi facilitado pelo facto de Girolamo Durazzi, embora nascido em Veneza, ter vivido desde a infância sob diferentes céus do Oriente. Primeiro em Cândia.

Escrevi a lista daquilo que queria; pelo embaraço dele, compreendi que nunca aprendera a ler. Fi-lo portanto decorá-la e recitá-la, e dei-lhe largamente com que pagar. No regresso, disse-lhe que ficasse com o troco, o que o deixou muito contente. Acho que de futuro virá todos os dias perguntar-me se preciso de alguma coisa, e colocar-se ao meu serviço. Não substituirá Hatem, mas tem, como este, o ar ao mesmo tempo sagaz e honesto. Que mais pedir a um empregado?

Um dia hei-de arrancar a Maurizzio o nome da pessoa que o enviou a buscar-me ao albergue da Cruz de Malta. Tenho verdadeiramente necessidade disso, quando sei exactamente o que ele me vai dizer? Sim, pensando bem, tenho necessidade. Quero ouvir com os meus próprios ouvidos que Gregório Mangiavacca lhe pagou para que me chamasse naquele dia, e me fizesse correr até ao barco que me leva neste momento em direcção à Inglaterra! A Inglaterra, ou sabe Deus aonde...

Dito isto, não estou nada apressado. Estamos juntos neste barco ainda durante semanas, e bastará que me mostre paciente e hábil para que este miúdo acabe por confessar tudo.

Depois em Tsaritsine, junto ao rio Volga. E, desde há pouco tempo, mesmo em Moscovo, onde parece gozar de um grande prestígio. Mora no Bairro dos Estrangeiros, que está a tornar-se, diz-me ele, uma cidade na cidade. Encontram-se ali hoteleiros franceses, pasteleiros vienenses, pintores italianos ou polacos, militares dinamarqueses ou escoceses, e, claro está, negociantes e aventureiros de todas as origens. Arranjaram mesmo, no exterior da cidade, um terreno onde se defrontam equipas de jogadores, de bola nos pés, à maneira da Inglaterra. O conde de Carlisle, embaixador do rei Carlos, assiste por vezes em pessoa.

12 de Maio

O meu amigo veneziano convidou-me ontem para cear nos seus aposentos. (Continuo a hesitar e a sorrir embaraçado de cada vez que escrevo «meu amigo veneziano», mas continuarei a fazê-lo, e um dia hei-de habituar-me!) Tem consigo um cozinheiro, um criado e mais outro servidor. Era assim que eu devia ter-me equipado, em vez de embarcar sozinho, como um vagabundo, como um banido!

Durante a refeição, o meu amigo revelou-me as razões da sua viagem a Londres. Tem por missão recrutar artesãos ingleses para se estabelecerem em Moscovo. Não é, a bem dizer, mandatado pelo csar Alexis, mas obteve dele protecção e encorajamento. Todos os homens hábeis serão bem-vindos, seja qual for a sua profissão, com a única condição de que se não dediquem ao proselitismo. O soberano, que é sábio, não quer que a sua cidade se transforme num refúgio dos fanáticos, adeptos da república cristã, que se diz serem numerosos na Inglaterra, mas que se escondem ou se exilam desde o regresso do rei Carlos, há seis anos.

Girolamo tentou convencer-me a ir eu próprio estabelecer-me em Moscovo. Fez-me ainda uma descrição atraente da vida no Bairro dos Estrangeiros. Eu disse-lhe «talvez», por cortesia, e para encorajá-lo a prosseguir o seu relato, mas a sua proposta não me tentou. Tenho quarenta anos, sou demasiado velho para recomeçar a minha vida num país de que ignoro a língua e os costumes. Já tenho duas pátrias, Génova e Gibelet, e se tivesse de deixar uma seria pella outra.

Além disso, estou habituado a contemplar o mar, sentiria a falta dele se um dia tivesse de me afastar. É verdade que não me sinto à vontade num barco, prefiro ter os dois pés em terra firme. Mas nas proximidades do mar! Preciso dos seus odores acres! Preciso das suas ondas que morrem e nascem e morrem! Preciso que o meu olhar se perca na sua imensidão!

Concebo que as pessoas possam adaptar-se a outra imensidão, a da areia do deserto, ou a das planícies nevadas, mas não quando se nasceu onde eu nasci, e se tem nas veias sangue genovês.

No entanto, compreendo facilmente aqueles que deixam um dia o seu país e todos os seus próximos, e que até mudam de nome, para começar uma nova vida num país sem limites. Quer seja nas Américas ou na Moscóvia. Os meus antepassados não fizeram isso mesmo? Os meus antepassados, mas também todos os antepassados de todos os humanos. Todas as cidades foram fundadas e povoadas por pessoas vindas de outros lugares, e também todas as aldeias, a terra só se encheu por sucessivas migrações. Se eu tivesse ainda o coração inconstante e as pernas ligeiras, talvez me tivesse afastado do meu mar natal para ir ter a esse Bairro dos Estrangeiros cujo nome só por si me tenta.

13 de Maio

Será verdade que o rei de França concebeu o projecto de invadir as terras do sultão otomano, e que mandou mesmo os seus ministros prepararem um plano de ataque detalhado? Girolamo garante-me que sim, citando em apoio das suas palavras diversos testemunhos que nada me autoriza a pôr em dúvida. Afirma mesmo que o rei encetou conversações com o sufi da Pérsia para que este, grande inimigo do sultão, provoque distúrbios numa data combinada a fim de atrair os exércitos turcos para a Geórgia, a Arménia e a Atropatena. Enquanto isso, com a ajuda dos venezianos, o rei Luís apoderarse-ia da Cândia, das ilhas do Egeu, dos Estreitos, e talvez mesmo da Terra Santa.

Embora a coisa não me pareça de modo nenhum impensável, surpreende-me que o meu veneziano fale dela tão abertamente a um homem que conheceu há tão pouco tempo. é um linguareiro, certamente, mas eu faria mal em censurá-lo por isso, pois graças a ele fico a saber tantas coisas, quando a única razão da sua indiscrição é a sua amizade por mim e a confiança que me testemunha.

Ruminei toda a noite nos projectos do rei de França, e não posso alegrar-me com eles. É claro, se a sorte das armas lhe fosse favorável, e se ele pudesse apoderar-se duradouramente das ilhas, dos Estreitos, e do conjunto do Levante, eu não teria de que me queixar. Mas se ele se lançasse com os venezianos numa qualquer empresa temerária e sem futuro, seria sobre mim e os meus semelhantes, sim, sobre os nossos mercadores da Europa estabelecidos nas Escalas, que recairia a vingança do sultão. Quanto mais penso nisso mais me convenço de que uma tal guerra seria, desde o seu começo, uma calamidade para mim e para os meus. Queira o Céu que ela nunca aconteça!

Acabo de reler estas últimas linhas, bem como as que as precedem, e pergunto-me de súbito se não será perigoso escrever tais coisas e formular semelhantes desejos. é claro, escrevo tudo isto com a minha algaravia própria, que mais ninguém poderia decifrar. Mas isso só vale para os meus escritos íntimos, que dissimulo desse modo aos meus próximos, e a eventuais coscuvilheiros. Se as autoridades se metessem no caso um dia, se um qualquer vali, um paxá, um cádi, metesse na cabeça descobrir o que aqui escrevi, e me ameaçasse com o empalamento ou me submetesse à tortura para que eu lhe desse as minhas chaves, como poderia eu enfrentá-lo? Revelar-lhe-ia o segredo do meu código, e ele poderia então ler que eu ficaria contente se o rei de França viesse a apoderar-se do Levante.

Talvez eu devesse rasgar esta página no dia em regresse ao Oriente. E evitar mesmo, de futuro, falar de tais coisas. Dou sem dúvida provas de uma prudência excessiva, nenhum vali nem nenhum paxá virá bisbilhotar as minhas notas. Mas quando se está na minha posição, quando se está num país estrangeiro há tantas gerações, à mercê de todas as avanias, de todas as denúncias, a prudência não é já apenas uma atitude, ela é a argila de que sou feito.

14 de Maio

Troquei hoje algumas palavras com o persa a quem dão a alcunha de príncipe. Continuo sem saber se é príncipe ou mercador, ele não mo disse.

Passeava como de costume, e eu encontrava-me no seu caminho. Sorriu-me, e eu vi nisso um encorajamento para o abordar. Quando dei um passo na sua direcção, os seus homens alarmaram-se, mas com um gesto ele indicou-lhes que estivessem quietos, e saudou-me com uma ligeira vénia. Pronunciei então algumas palavras de acolhimento em árabe, e ele dirigiu-me as respostas apropriadas.

Com excepção das fórmulas consagradas que todo o muçulmano conhece, o homem fala árabe com dificuldade. Pudemos no entanto apresentar-nos um ao outro, e creio que ocasionalmente poderemos ter uma conversa. Disse-me que se chama Ali Esfahani e viaja em negócios. Duvido de que seja esse o seu verdadeiro nome. Ali é entre eles o nome mais comum, e Ispahan é a sua capital. A falar verdade, este «príncipe» não me revelou grande coisa acerca de si próprio. Mas agora estamos apresentados um ao outro, e voltaremos a falar-nos.

Quanto a Girolamo, o meu amigo veneziano, continua a enaltecer Moscovo e o tsar Alexis, que tem em grande estima. Descreve-o como um soberano preocupado com a sorte dos seus súbditos, e desejoso de atrair para o seu reino comerciantes, artesãos e homens de saber. Mas nem toda a gente na Rússia olha os estrangeiros com tanta benevolência. Se o tsar parece encantado com o que acontece na sua capital, que até então não fora mais do que uma vasta aldeia melancólica, se ele posa de bom grado para os pintores, se se informa das últimas excentricidades, e deseja ter de futuro a sua própria companhia de comediantes, como o rei de França, há na própria Moscovo, e principalmente no resto do país, milhares de popes caturras que julgam ver em todas essas novidades a marca do Anticristo. O que se passa no Bairro dos Estrangeiros é aos olhos deles apenas deboche, corrupção, impiedade e blasfémia, tudo sinais anunciadores do reino iminente da Besta.

A este respeito, Girolamo relatou-me um incidente dos mais reveladores. Uma companhia de comediantes napolitanos fora, no Verão passado, apresentar-se em Moscovo em casa de um primo do tsar. Havia actores, músicos, malabaristas, ventríloquos... Em dado momento, um homem chamado Percivale Grasso apresentou um espectáculo bastante impressionante: um polichinelo com cabeça de lobo, primeiro deitado no chão, que se levantou e depois começou a falar, a cantar, a caminhar, bamboleando-se, e por fim a dançar, sem que se visse em nenhum momento a mão do homem que o animava de cima de um escabelo oculto por um tapete.. Toda a gente na assistência parecia subjugada. E de súbito, um pope levantou-se, começou a gritar que era o próprio demónio que tinham ali à frente; e citava frases do Apocalipse que diziam: «e foi-lhe dado o poder de animar a imagem da besta, e de fazer falar essa imagem». Tirou então do bolso uma pedra que lançou para o palco. Algumas outras pessoas, vindas com ele, fizeram a mesma coisa. Depois puseram-se todos a proferir imprecações contra os napolitanos, contra os estrangeiros, e contra aqueles que se li associam, de alguma maneira, àquilo que eles consideram satãnismos e impiedades. E a anunciar a iminência do fim dos tempos, e do Juízo Final. Os espectadores começaram a fugir, uns atrás dos outros; mesmo o primo do tsar não ousou opor-se àqueles raivosos; e a companhia teve de deixar Moscovo na madrugada do dia seguinte.

Enquanto o meu amigo me contava tudo isto, com muitos pormenores, recordei-me daquele visitante que viera ter comigo em Gibelet, há alguns anos, trazendo consigo um livro em que se anunciava o fim do mundo, justamente, para este mesmo ano, para 1666. Chamava-se Evdokime. Falei dele a Girolamo. O nome não lhe diz nada, mas conhece bem O Livro da Fé una, verdadeira e ortodoxa, e não se passa um dia sem que evoquem à sua frente essa profecia. Ele próprio toma-a com ligeireza, falando de grosseira tolice, de ignorância e superstição, o que muito me reconfortou; mas acrescenta que lá, a maioria das pessoas acredita firmemente nisso. Alguns avançam mesmo uma data precisa. Pretendem, à fé não sei de que cálculo, que o mundo não viverá para lá de S. Simão, que calha no dia um de Setembro, e que é para eles o dia de ano novo.

15 de Maio de 1666

Julgo ter ganho hoje a confiança do «príncipe» de Ispahan, ou antes, deveria dizer, despertado o seu interesse.

Tínhamo-nos cruzado, durante um passeio, e demos alguns passos juntos, durante os quais enumerei as diversas cidades que atravessei no decorrer dos últimos meses. A cada nome, ele aquiescia polidamente com a cabeça, mas quando mencionei Esmirna, notei uma mudança no seu olhar. Para me incitar a falar dela um pouco mais, repetiu num tom evocador «Izmir, Izmir», que é o nome turco da cidade. si Disse-lhe que passei lá quarenta dias, e que vi com os meus próprios olhos, e por duas vezes, o judeu que se pretende messias. O meu interlocutor pegou-me então pelo braço, chamou-me seu honorável amigo, e confessou-me que lhe haviam contado muitas coisas contraditórias sobre esse «Sabbatai Levi».

Eu corrigi:

- O nome, tal como o ouvi pronunciado por judeus, seria antes Sabbatai Zevi, ou Tsevi.

Ele agradeceu-me por ter corrigido assim o seu erro, e pediu-me que lhe dissesse aquilo que vira exactamente, para que soubesse distinguir, em tudo aquilo que se ouve acerca dessa personagem, o fio preto do fio branco.

Contei-lhe algumas coisas e prometi-lhe mais.

16 de Maio

Ontem falei da confiança do «príncipe», que eu teria ganho, depois reconsiderei, para falar antes da sua curiosidade, que tinha despertado. Tinha razão para fazer essa distinção, mas hoje posso retomar a palavra «confiança». Porque se, ontem, o homem apenas me fez falar, hoje falou ele próprio.

Não me fez verdadeiras confidências - por que havia de mas fazer, aliás? Mas, vindo dele, quero dizer de uma personagem que está num país estrangeiro e que, é evidente, cultiva o segredo, o pouco que me disse é um testemunho de estima, e uma marca de confiança.

Disse-me nomeadamente que a sua viagem não era de negócios, no sentido em que vulgarmente se entende, mas para observar o mundo, e para se informar das coisas estranhas que nele acontecem. Estou convencido, sem que ele mo tenha dito, que se trata de uma alta personagem, talvez do próprio irmão do grande sufi, ou de um primo.

Pensei em apresentá-lo a Girolamo. Mas o meu amigo veneziano é um pouco volúvel, o outro poderia ficar assustado, e em vez de se abrir pouco a pouco como uma rosa tímida, pode fechar-se completamente.

Conviverei pois com eles separadamente, a menos que eles próprios se encontrem, sem ser por meu intermédio.

17 de Maio

O príncipe convidou-me hoje para o seu «palácio». A palavra não é excessiva se considerarmos a relatividade das coisas. Os marinheiros dormem num celeiro, eu numa cabina, Girolamo e o seu séquito numa casa, e Ali Esfahani, que ocupa toda uma sucessão de salas, e que as revestiu de tapetes e de coxins à moda da Pérsia, está como num palácio. Conta entre a sua gente um mordomo, um tradutor, um cozinheiro e seu ajudante, um criado de quarto, e quatro homens para todo serviço, além de dois guardas a quem chama as «minhas feras».

O tradutor é um eclesiástico francês, originário de Toulouse, que se faz chamar «padre Ange». A sua presença junto de Ali não deixou de me surpreender, tanto mais que falaram um com o outro em persa. Não consegui saber mais nada, porque o homem se eclipsou assim que o seu amo lhe disse que poderíamos entender-nos em árabe.

Durante o serão, o meu anfitrião contou-me uma fábula das mais estranhas, segundo a qual todas as noites, desde o princípio deste ano, várias estrelas desaparecem do céu. Bastaria, disse ele, que se observasse a abóbada na escuridão, fixando os lugares onde há uma grande concentração de estrelas, para constatar que algumas delas se apagam de súbito para não mais se reacenderem. Parece convencido de que o céu se vai esvaziar pouco a pouco ao longo do ano até ficar completamente negro.

Para confirmar as suas palavras, sentei-me na ponte uma boa parte da noite, de cabeça inclinada para trás, a observar o céu. Tentei fixar pontos precisos, mas os meus olhos sempre se enevoavam. Ao fim de uma hora senti frio e fui deitar-me antes de poder assegurar-me fosse do que fosse.

18 de Maio

Contei a fábula das estrelas ao meu amigo veneziano, que desatou a rir ainda antes de eu terminar. Felizmente não lhe disse de quem ouvira esta história. E felizmente que tive a sensatez de não apresentar aqueles dois companheiros um ao outro.

Continuando a troçar dos rumores de fim do mundo, Girolamo disse-me coisas que não deixaram de me inquietar. Sinto na sua companhia o mesmo mal-estar que há tempo sentia com Maimoun; por um lado, tenho muita vontade de partilhar da sua serenidade, do seu desprezo por todas as superstições, o que me leva a aprovar ostensivamente as suas palavras; mas ao mesmo tempo, não consigo impedir essas superstições, mesmo as mais aberrantes, de se aninharem no meu espírito. «E se essas pessoas tivessem razão?», «E se as suas predições acontecessem?», «E se o mundo estivesse verdadeiramente a menos de quatro meses da sua extinção?» - estas perguntas dão voltas na minha cabeça, a meu pesar, e embora esteja convencido da sua vacuidade não consigo desfazer-me delas. O que me aflige e me causa vergonha, duplamente vergonha. Vergonha de partilhar os temores dos ignorantes, e vergonha de adoptar com o meu amigo uma atitude tão velhaca, aprovando-o com acenos de cabeça entendidos e ao mesmo tempo desmentindo-o no meu coração.

Passei por essas sensações uma vez mais ontem, enquanto Girolamo me falava de certos moscovitas a quem chamam Capitons, e que desejam a morte, disse ele, «porque estão persuadidos de que o Cristo vai voltar em breve a este mundo para aqui estabelecer o seu reino e eles quereriam estar no número daqueles que aparecerão com ele, no seu cortejo, em vez de estarem no meio da multidão dos pecadores que vão sofrer a sua ira. Essas pessoas vivem à margem de qualquer autoridade, em pequenos grupos espalhados pela imensidão do território. Acham que o mundo inteiro é agora governado pelo Anticristo, que toda a terra está povoada por condenados, mesmo a Moscóvia, e mesmo a sua igreja cujas preces e ritos eles já não reconhecem. O seu chefe recomenda-lhes que se deixem morrer de fome, porque assim não se tornam culpados de suicídio. Mas outros, sentindo-se pressionados pelo tempo, já não hesitam em transgredir a lei divina da pior maneira. Não se passa já uma semana sem que se relate, de uma ou de outra região desse vasto país, as histórias mais assombrosas. Grupos mais ou menos numerosos reúnem-se numa igreja, ou mesmo num vulgar celeiro, trancam as portas e lançam deliberadamente fogo, imolando-se assim famílias inteiras, no meio das preces e dos gritos das crianças». Essas imagens perseguem-me desde o instante em que Girolamo as evocou. Penso nelas de dia e de noite, e não paro de me perguntar se é concebível que todas essas pessoas morram para nada. Pode uma pessoa verdadeiramente enganar-se a esse ponto e sacrificar a sua vida de maneira tão cruel por simples erro de juízo? Não posso deixar de ter respeito por eles, mas o meu amigo veneziano diz que não tem respeito nenhum. Compara-os a animais ignorantes, e acha o seu comportamento ao mesmo tempo estúpido, criminoso e ímpio. Quando muito sente para com eles um pouco de piedade, mas dessa piedade que é apenas a crosta do desprezo. E quando lhe confesso que acho a sua atitude cruel, responde-me que nunca será tão cruel como eles são consigo mesmos, para com as suas mulheres e os seus filhos.

19 de Maio

Se a extinção das estrelas me parece difícil de verificar, o que a fábula do meu amigo persa demonstra sem sombra de dúvida é que ele está preocupado como eu com tudo o que se diz a propósito desde ano maldito.

Não, como eu não, muito mais do que eu. Eu continuo dividido entre os meus amores, os meus negócios, os meus sonhos banais, as minhas preocupações normais, e tenho de violentar todos os dias o meu temperamento apático para não renunciar à perseguição de o Centésimo Nome. Penso no apocalipse por intermitências, creio nas coisas sem acreditar muito, o céptico que o meu pai criou em mim preserva-me dos grandes excessos de Fé - ou talvez devesse dizer que me impossibilita qualquer constância, quer na conservação da razão quer na procura de quimeras.

Mas voltando ao meu «príncipe» e amigo. Enumerou-me hoje as predições que apurou a propósito do ano em curso. Vindas de todos os cantos do mundo, elas são muito numerosas. Algumas que eu conhecia, outras que não, ou mal. Ele sabe sobre isso muito mais do que eu, mas eu também sei coisas que ele ignora.

Há antes de mais, é claro, as predições dos moscovitas e dos judeus. As dos sectários alepinos e dos fanáticos ingleses. As de um certo jesuíta português, muito recentes. E há depois as dos quatro maiores astrólogos da Pérsia - as mais inquietantes, segundo ele - que em geral nunca estão de acordo e disputam os favores do soberano, e que teriam afirmado todos a uma voz que neste ano os homens chamarão Deus pelo seu nome hebraico, como o fizera Noé, e que acontecerão coisas que não aconteceram desde Noé.

- Um novo dilúvio inundaria o mundo? - Perguntei.

- Sim, mas desta vez um dilúvio de fogo!

A maneira como o meu novo amigo pronunciou esta última frase fez-me lembrar o meu sobrinho Bumeh. Aquele tom triunfante para anunciar as piores calamidades! Como se o Criador, ao fazê-los partilhar a confidência, lhes houvesse implicitamente prometido a imunidade.

20 de Maio

Voltei a pensar, durante a noite, nas palavras dos astrólogos persas. Não tanto a ameaça de um novo dilúvio, que encontramos em todas as previsões sobre o fim do mundo, mas antes a alusão ao nome de Deus, e singularmente ao seu nome hebraico. Suponho que este é o tetragrama sagrado que ninguém deve pronunciar - se eu li correctamente a Bíblia - com a excepção do sumo sacerdote, e uma única vez por ano, no Santo dos Santos, no dia das Expiações.

Que deverá acontecer quando, a pedido de Sabbatai, milhares de homens em todo o mundo começarem a articular em voz alta o nome inefável? O Céu não ficará enfurecido, a ponto de aniquilar a terra e aqueles que a povoaram?

Esfahani, com quem hoje discuti longamente, não vê nada as coisas da mesma maneira. Para ele, se o nome inefável é proferido pelos homens, não é para desafiar os desígnios de Deus, mas pelo contrário para apressar o seu cumprimento, para apressar o fim dos tempos, para apressar a libertação; e pareceu-me que não está nada incomodado com o facto de o pseudo-messias de Esmirna preconizar essa transgressão universal.

Perguntei-lhe então se, em sua opinião, o tetragrama revelado a Moisés poderia ser esse centésimo nome de Alá procurado por certos exegetas do Alcorão. A minha pergunta agradou-lhe, a tal ponto que me rodeou os ombros com a mão direita e fez-me dar assim alguns passos, quase me empurrando, e esse tipo de familiaridade, vinda dele, fez-me corar.

- É um prazer - disse ele por fim com uma certa emoção na voz - é um prazer viajar na companhia de um erudito.

Abstive-me de desenganá-lo, embora a meus olhos um erudito fosse o homem capaz de responder a uma tal pergunta, mais do que o homem que a faz.

- Vinde! Acompanhai-me!

Conduziu-me para uma pequena salinha a que chamou «o meu gabinete dos segredos». Suponho que antes de aquela personagem embarcar nesta nau, aquele lugar nem sequer tinha nome, nem «gabinete», nem «quarto», nem «cabina», mas era apenas um lugar vago onde se deixavam esquecidos alguns sacos esventrados. Mas os tabiques de madeira estão agora revestidos de tapetes, e o chão está coberto com uma carpete à medida, e o ar está cheio de incenso. Sentámo-nos frente a frente em espessas almofadas. Do tecto estava suspensa uma cadeia de azeite. Trouxeram-nos café e doces, que colocaram sobre um baú à minha esquerda. Do outro lado, havia uma larga abertura irregular que dava para o horizonte azul. Eu tinha a doce impressão de ter voltado ao quarto de criança, em Gibelet, diante do mar.

- Deus tem um centésimo nome, oculto, que viria juntar-se aos noventa e nove que nós conhecemos? Se o tem, qual é ele? É um nome hebraico? Um nome siríaco? Um nome árabe? Como reconhecê-lo se o virmos num livro ou se o ouvirmos? Quem é que, no passado, o conheceu? E que poderes confere esse nome àqueles que o detêm?

O meu amigo começara a alinhar as perguntas sem pressa. Olhando-me, por vezes; mas a maior parte do tempo voltado para o mar. Eu contemplava então à vontade o seu perfil de águia magra e as suas sobrancelhas untadas.

- Desde o alvorecer do Islão, os sábios debatem em torno de um versículo do Alcorão, que aparece três vezes em termos semelhantes, e que sofre diversas interpretações.

Esfahani citou-o desfiando cuidadosamente as sílabas: «fa sabbih bismi rabika-1-azím»; o que poderia ser traduzido por: «Glorifica o nome do teu Senhor, o muito grande».

A ambiguidade resulta do facto de que, na construção da frase árabe, o epíteto «1-azim», «o muito grande» poderia referir-se tanto ao Senhor, como ao seu nome. No primeiro caso, haveria apenas neste versículo uma exortação muito normal a glorificar o nome do Senhor. Mas se é a segunda interpretação que está certa, o versículo poderia ser entendido como se dissesse; «glorifica o teu senhor pelo seu nome maior», o que deixaria entender que existe, entre os diferentes nomes de Deus, um nome maior, superior a todos os outros, e cuja invocação teria virtudes especiais.

«O debate prosseguia assim havia séculos, os partidários de cada interpretação achavam ou julgavam achar no Alcorão, ou em diversas frases atribuídas ao Profeta, argumentos para apoiar a sua tese e anular a dos outros. Quando um novo argumento, um argumento poderoso, foi apresentado por um erudito de Bagdade, conhecido pelo nome de Mazandarani. Não digo que ele convenceu toda a gente, as pessoas continuam ainda hoje nas suas posições divergentes, tanto mais que esse homem não era uma personagem das mais recomendáveis, dizia-se que praticava a alquimia, escrevia com alfabetos mágicos e cultivava diversas ciências ocultas. Mas tinha numerosos discípulos, a sua casa nunca estava vazia, ao que se diz; por isso o seu argumento abalou as certezas, e despertou o apetite tanto dos sábios como dos profanos.

Segundo «o príncipe», o argumento de Mazandarani poderia resumir-se do seguinte modo: se o versículo em questão pôde ser compreendido de duas maneiras diferentes, é porque Deus - que é, para os muçulmanos, o próprio autor do Alcorão - quis essa ambiguidade.

- De facto - insistiu Esfahani - sem no entanto indicar claramente que aprovava essa opinião, se Deus escolheu essa formulação e não outra, e se Ele a repetiu por três vezes em termos quase idênticos, isso não pode decerto ser um erro nem por inépcia nem por inadvertência nem por desconhecimento da língua - todas essas hipóteses são impensáveis tratando-se d'Ele. Se Ele o fez, foi forçosamente de propósito!

Tendo transformado assim, de certo modo, a dúvida em certeza e a obscuridade em claridade, Mazandarani perguntou a si mesmo: porque é que Deus quis essa ambiguidade? Porque é que Ele não disse claramente às Suas criaturas que o nome supremo não existe? E respondeu: se o Criador decidiu exprimir-se de maneira ambígua sobre a questão do nome supremo, não foi evidentemente para nos enganar, para nos iludir - tais desígnios, vindos da Sua parte, seriam, uma vez mais, impensáveis; ele não podia deixar-nos crer que o nome supremo poderia existir se não existisse! Por conseguinte, o nome supremo existe, necessariamente; e se o Altíssimo não no-lo diz de maneira mais explícita, é porque a Sua infinita sabedoria Lhe diz que mostre o caminho apenas aos homens que o merecem. A leitura do versículo já citado - «Glorifica o nome do teu Senhor, o muito grande», - como para muitos outros versículos alcorânicos, a multidão continuará persuadida de ter compreendido tudo o que havia para compreender; enquanto os eleitos, os iniciados, poderão insinuar-se pela porta subtil que ele terá entreaberto em sua intenção. Considerando que tinha estabelecido assim, sem sombra de dúvida, que o centésimo nome existe, e que Deus não nos proíbe de tentar conhecê-lo, Mazandarani prometera aos seus discípulos dizer num livro aquilo que esse nome não é, e aquilo que ele é.

- Esse livro, ele escreveu-o? - Perguntei eu, numa voz um pouco envergonhada.

- Também sobre isso as opiniões divergem. Alguns pretendem que nunca o escreveu, outros afirmam que o escreveu, e que se intitula O Livro do centésimo nome, ou O Tratado do centésimo nome, ou ainda A Revelação do nome oculto.

- Vi passar pela minha loja um livro com esse título, mas nunca soube se era da autoria de Mazandarani. - Era ainda o que eu podia dizer de menos falso sem me trair.

- Ainda o tendes?

- Não. Antes mesmo de poder lê-lo, um emissário do rei de França pediu-mo, e eu dei-lho.

- No seu lugar, eu não teria dado esse livro, pelo menos antes de o ter lido. Mas não o lamente, era certamente uma falsificação...

Julgo ter reproduzido bastante fielmente as palavras de Esfahani, pelo menos no essencial, porque conversámos durante três horas inteiras. Ele falou-me com sinceridade, acho eu, e tenciono falar-lhe com a mesma sinceridade nos nossos próximos encontros. Continuando a interrogá-lo, porque ele sabe, tenho a certeza, infinitamente mais coisas do que aquilo que me disse.

21 de Maio

1 Dia fútil, fútil.

Assim como o dia de ontem me trouxera muitas alegrias, muitos conhecimentos, o de hoje só me trouxe decepções e motivos de irritação.

Logo ao acordar sentia-me de humor enjoado. Um regresso do enjoo, devido aos abalos do navio, ou talvez eu tivesse abusado, na véspera, das doçarias persas à base de pinhões, de pistácios, de grãos e de cardamomo.

Não me sentindo em forma, nem com apetite, decidi fazer dieta todo o dia nos meus estreitos aposentos, a ler.

Gostaria de continuar com «o príncipe» a nossa conversa, mas não estava em condições de me apresentar diante de quem quer que fosse; disse a mim mesmo, para me consolar, que talvez fosse melhor não me mostrar demasiado insistente, demasiado curioso, como se quisesse tirar-lhe nabos da púcara.

Quando, logo ao princípio da tarde, à hora em que toda a gente faz a sesta, decidi ir dar uma volta, a ponte estava efectivamente deserta. Mas avistei de súbito, a alguns passos de mim, o capitão, encostado à amurada, aparentemente mergulhado em alguma meditação. Se é certo que não tinha vontade de lhe falar, também não queria parecer fugir-lhe. Por isso continuei o meu passeio no mesmo passo, e ao chegar junto dele saudei-o cortesmente. Ele correspondeu, mas com ar um tanto ausente. Para não prolongar demasiado o silêncio, perguntei-lhe quando iríamos acostar, e em que porto.

Esta era, ao que me parece, a pergunta mais vulgar, a mais banal que um passageiro pode fazer ao capitão. Mas o Centurione voltou para mim um queixo desconfiado.

- Porquê essa pergunta? Que é que procura saber.

Por que diabo havia um passageiro de querer saber onde vai o navio em que está embarcado? Mas eu mantive o sorriso, para explicar, quase a desculpar-me:

- É que não comprei bastantes víveres na nossa última escala, e começam a faltar-me algumas coisas...

- Fizestes mal! Um viajante deve mostrar-se previdente.

Por pouco não me repreendeu. Reuni tudo o que me restava de paciência e de polidez para pronunciar uma desculpa e afastar-me.

Uma hora depois, ele enviou uma sopa por intermédio de Maurizzio.

Mesmo que estivesse de perfeita saúde, nunca lhe teria tocado; muito menos ainda hoje, com as entranhas frágeis.

Pedindo ao jovem marinheiro que transmitisse os meus agradecimentos, disparei alguns sarcasmos bem sentidos dirigidos ao capitão. Mas Maurizzio obstinou-se em fazer de conta que não ouvia, e eu não tive outro remédio se não fazer de conta que não tinha dito nada.

Assim foi o meu dia, e agora estou diante da minha página, com o cálamo na mão, e lágrimas nos olhos. De repente, tudo me falta aqui. A terra firme de Gibelet e de Esmirna e Génova e Marta e até Gregório.

Fútil dia, fútil.

24 de Maio

Lançámos âncora no porto de Tânger, que fica para lá de Gibraltar e das colunas de Hércules, e que pertence desde há pouco tempo à coroa da Inglaterra - coisa que eu ignorava, confesso, até esta manhã. É verdade que pertenceu durante séculos a Portugal, que o havia conquistado facilmente; mas quando a infanta Catarina de Bragança se casou há quatro ou cinco anos com o rei Carlos, levou-lhe dois ou três lugares como dote, sendo este um deles, e o outro Bombaim, nas índias. Dizem-me que os oficiais ingleses enviados para aqui não gostam do lugar, e fazem afirmações descorteses sobre aquilo que consideram um presente sem valor.

No entanto, a cidade pareceu-me graciosa, com as principais ruas direitas e largas, ladeadas por casas solidamente construídas. Vi aqui igualmente campos de laranjeiras e de limoeiros, que exalam um perfume dos mais inebriantes. Reina aqui uma suavidade ligada à proximidade do Mediterrâneo, do Atlântico, do deserto que não está longe, e das montanhas do Atlas. Nenhuma outra região, parece-me, se situa assim na encruzilhada destes quatro climas. Em minha opinião, esta é uma terra que qualquer rei gostaria de possuir. Enquanto passeava, encontrei um velho burguês português que nasceu nesta cidade e que se recusou a abandoná-la com os soldados do seu rei. Chama-se Sebastião Magalhães. (Não será um descendente do célebre navegador? Não, se fosse ter-mo-ia dito, seguramente...) Foi ele que me contou aquilo que se murmurava, e disse estar persuadido de que as zombarias dos oficiais ingleses são unicamente devidas ao facto de que a esposa do seu soberano é «papista»; alguns deles pensam que o próprio papa favoreceu esse casamento secretamente para tentar reconduzir a Inglaterra ao seu seio.

Mas, a crer no que disse o meu interlocutor, essa aliança explicar-se-ia de modo diferente: Portugal está constantemente em guerra com a Espanha, a qual não renunciou a reconquistá-lo, e procura reforçar os laços com os inimigos do seu inimigo.

Tinha prometido a mim mesmo que, na primeira escala, convidaria regiamente os meus dois amigos persa e veneziano, não tendo a possibilidade de os tratar devidamente a bordo. Pensava informar-me acerca das melhores mesas do lugar, e quando tive a sorte de encontrar o senhor Magalhães, pedi-lhe conselho.

Respondeu-me imediatamente que eu era bem-vindo a sua casa; agradeci-lhe e repliquei sinceramente que tinha vários convites a fazer, e que me sentiria incomodado se voltasse a bordo sem ter retribuído a minha dívida para com os meus amigos. Mas ele não quis saber.

- Se tivésseis o vosso irmão nesta cidade, não os convidaríeis para a mesa dele ? Fazei de conta que assim é, e estai certo de que estaremos muito melhor para conversar entre amigos na minha biblioteca do que numa taberna do porto.

25 de Maio

Não consegui pegar na pena ontem à noite. Ao regressar da casa de Magalhães estava escuro, e eu tinha comido e bebido demasiado para poder escrever.

O nosso anfitrião tinha mesmo insistido em que passássemos a noite em sua casa, o que não teria sido de recusar depois de tantas noites passadas em camas moventes. Mas tive receio de que o capitão decidisse aparelhar antes de amanhecer, e preferi despedir-me.

É agora meio-dia, e o barco continua encostado ao cais. Tudo parece tão calmo à nossa volta. Parece-me que não vamos partir tão cedo.

O serão de ontem decorreu agradavelmente, mas não havia entre nós nenhuma língua comum, o que tirou à reunião uma parte do seu interesse. E claro, o padre Ange tinha acompanhado o seu amo para lhe servir de intérprete, mas só indolentemente desempenhou a sua tarefa. Por vezes estava ocupado a comer; outras vezes não tinha ouvido, e pedia que repetíssemos; e outras vezes ainda traduzia em duas palavras lapidares uma longa explicação, seja porque não tinha fixado tudo, seja porque algumas coisas que tinham sido ditas não lhe convinham.

Assim, em dado momento, Esfahani, que tinha mostrado um grande interesse pela Moscóvia e por tudo aquilo que o veneziano contava das suas gentes e dos seus costumes, quis informar-se das diferenças religiosas que podiam existir entre os ortodoxos e os católicos. Girolamo pôs-se a explicar-lhe tudo aquilo que o patriarca de Moscovo censurava ao papa. O padre Ange não apreciava ter de repetir tais coisas, e quando Durazzi disse que os moscovitas, tal como os ingleses, se compraziam em chamar «Anticristo» ao santo padre, o nosso eclesiástico indignou-se, largou ruidosamente a faca, e lançou ao veneziano com o lábio trémulo:

- Faríeis melhor em aprender persa para dizer essas coisas, porque eu não desejo macular nem a minha boca nem o ouvido do príncipe.

A cólera fizera o padre Ange falar em francês, mas todas as pessoas presentes, quaisquer que fossem as suas línguas, compreenderam a palavra «prince». Por mais que o eclesiástico tentasse emendar-se, o mal estava feito. Não sei se seria num incidente semelhante que estava a pensar aquele que outrora disse «tradutor, traidor».

Assim, ao fim de um mês de navegação, sei finalmente que Esfahani é na verdade príncipe. Antes de desembarcar em Londres, talvez tenha acabado por saber quem é ele realmente, e por que razão viaja.

Ontem à noite, à mesa, quando acabávamos de falar uma vez mais da cedência de Tânger pelos portugueses, ele debruçou-se para mim, pedindo que lhe explicasse um dia, em pormenor, as afinidades e inimizades entre as diversas nações cristãs. Prometi dizer-lhe o pouco que sabia. E, à maneira de introdução expliquei-lhe, meio a brincar, que se quiséssemos compreender alguma coisa do que se passa à nossa volta, era preciso ter presente no espírito que os ingleses detestam os espanhóis, que os espanhóis detestam os ingleses , que os holandeses detestam uns e outros, que os franceses detestam abundantemente todos os três...

De súbito, Girolamo, que tinha compreendido, sabe Deus como, aquilo que eu acabava de dizer em à parte, e em árabe, disse-me:

- Explicai-lhe também que os sienenses maldizem os florentinos, e que os jenoveses preferem os turcos aos venezianos...

Traduzi fielmente, antes de protestar com a mais hipócrita das veemências.

- A prova de que já não temos nenhum ressentimento contra Veneza, é que tu e eu falamos como amigos.

- Agora, sim, falamos como amigos. Mas a princípio, sempre que tu me saudavas,

olhavas à tua volta para te assegurares de que nenhum genovês te tinha visto.

Voltei a negar. Mas talvez ele não deixe de ter razão. Só que eu olhava menos à minha volta do que para Céu, onde presumivelmente estão todos os meus antepassados, paz às suas almas.

Traduzi as palavras que trocámos a «sua alteza» mas não sei bem se ele as terá compreendido. Sim, provavelmente, compreendeu. Não haverá, para os lados da Pérsia, Génovas e Venezas, Florenças e Sienas, cismáticos, fanáticos, bem como reinos e povos que se querelam como os nossos ingleses, espanhóis e portugueses?

Só ao fim do dia o Sanctus Dionisius aparelhou. Poderíamos ter passado a última noite entre os lençóis acolhedores que nos propunha Magalhães. Teria sido uma noite das mais reparadoras! Mas faço mal em abandonar Tânger formulando queixas em vez de bendizer o Céu por um encontro inesperado que iluminou esta escala. Espero que tenhamos dado ao nosso anfitrião tanta felicidade como ele nos deu a nós. E que a nossa passagem tenha atenuado um pouco a sua melancolia. No tempo dos portugueses, ele era uma personagem respeitada; desde que os ingleses tomaram posse da praça, tem a sensação de haver perdido toda a consideração. Mas que fazer? - Diz-me. Não pode, com mais de sessenta anos, abandonar a sua casa e as suas terras para ir recomeçar a vida noutro lugar. Tanto mais que os ingleses não são inimigos, mas aliados, e que a sua rainha se chama Catarina de Bragança.

- Eis-me exilado sem ter deixado o meu país.

São palavras que o genovês do ultramar pode compreender, não é verdade?

Bendito sejas, Sebastião Magalhães, e que Deus te encha de paciência!

26 de Maio

Talvez haja afinal de contas uma certa coerência na loucura do capitão.

Segundo Grirolamo, se Centurione decidiu parar em Tânger evitando todos os portos da costa espanhola, é porque transporta para Inglaterra um carregamento importante e receia que este seja apanhado. É por essa razão que ele se dirige agora para Lisboa, não pensando em parar nem em Cadiz nem em Sevilha. Ainda não contei a Durazzi - nem a ninguém - o episódio dos demónios voadores, mas quero crer que a loucura pode ser simulada pelo capitão para mascarar o seu itinerário errático.

Se ainda não consigo persuadir-me disso, bem gostaria de que fosse verdade. Prefiro saber o navio comandado por um homem diabolicamente astuto, a um outro alienado.

O príncipe Ali convidou-nos hoje, a Girolamo e a mim, para a sua mesa. Eu esperava que o padre Ange estivesse connosco, mas o nosso anfitrião explicou-nos que o seu intérprete fizera voto de jejuar durante todo este dia e de manter silêncio, consagrando-se à contemplação. Acho sobretudo que ele não queria traduzir palavras ímpias. Foi portanto a mim que me coube converter o italiano em árabe, e o árabe em italiano. Eu conheço evidentemente as duas línguas e não sinto qualquer dificuldade em passar de uma para a outra, mas nunca tivera de traduzir assim, durante toda uma refeição, cada palavra que se dizia, e achava a tarefa esgotante. Não pude apreciar nem a cozinha nem a conversa.

Além do esforço ligado à própria tradução, tive de fazer face, como o padre Ange, ao embaraço que Durazzi se esmera em causar.

Ele é um desses homens incapazes de reter as palavras que lhe chegam à ponta da língua. Assim, não conseguiu evitar falar novamente dos projectos do rei de França sobre a guerra contra o sultão, e o facto de que o sufi da Pérsia se teria comprometido a apanhar os otomanos pela retaguarda. Ele queria que o nosso anfitrião nos dissesse se essa aliança tinha realmente sido concluída. Eu tentava dissuadir o meu amigo de fazer aquela pergunta demasiado delicada, mas ele teimou, de uma maneira que frisava a grosseria, em que eu a traduzisse palavra por palavra. Por excesso de polidez, ou por fraqueza, fi-lo, e tal como eu já esperava, o príncipe recusou-se secamente a responder. Pior do que isso, ele disse subitamente que estava cansado, ensonado, e tivemos de levantar-nos imediatamente.

Tenho a sensação de ter sido humilhado, e de ter perdido dois amigos de uma só vez.

Esta noite, pergunto a mim mesmo se o meu pai não teria razão, afinal, para detestar os venezianos, para os considerar arrogantes e velhacos, e acrescentar

- principalmente quando tinha em casa outros visitantes italianos - que é quando eles usam as suas máscaras que menos se dissimulam.

27 de Maio

Esta manhã, ao abrir os olhos, uma das «feras» do príncipe Ali estava à minha frente. Estive quase a soltar um grito de horror, mas o homem não se mexeu. Esperou que eu me sentasse, esfregasse os olhos, para me estender uma mensagem em que o seu amo me pedia que fosse tomar o café com ele.

Esperava que ele me falasse outra vez do Centésimo Nome, mas depressa compreendi que apenas queria apagar a impressão que eu pudesse ter ontem quando ele quase nos pôs fora.

Ao convidar-me sem Girolamo, ele queria também marcar a diferença.

Não voltarei a tomar a iniciativa de os reunir..

1 de Junho

Acabo de me lembrar da predição feita por Sabbatai e segundo a qual a era da Ressurreição começaria no mês de Junho, no qual entramos nesta mesma manhã. Em que dia de Junho? Ignoro. Fora o irmão Egídio que me falara dessa predição, e não creio que me tenha precisado a data.

Acabo de reler a página correspondente, a de 10 de Abril, e constato que não falei dessa predição. No entanto, lembro-me de a ter ouvido. Mas talvez não tenha sido nesse dia.

Lembro-me agora, foi em Esmirna pouco depois da minha chegada a essa cidade. Sim, tenho a certeza, mesmo que não me seja possível verificar, pois já não tenho o meu caderno...

Durazzi não ouvira falar de um fim do mundo anunciado para Junho. Riu-se, como para o primeiro de Setembro dos iluminados moscovitas.

- O fim do mundo, para mim, é se cair ao mar - disse irreverentemente.

Uma vez mais, pergunto a mim mesmo se isso é sabedoria, ou...

Em Lisboa, 3 de Junho

Ao fim de oito dias de navegação, o Sanctus Dionisius lançou âncora hoje ao meio-dia no porto de Lisboa. Mal tínhamos chegado, tive de enfrentar um grave percalço, que por pouco não se transformou em desastre. Não cometi nenhuma falta, a não ser ignorar aquilo que outros já sabiam; mas não há pior falta que a Ignorância...

Pouco antes de descermos a terra, e quando me preparava para, primeiro que tudo, visitar o senhor Cristoforo Gabbiano, a quem devia entregar a carta de que Gregório me encarregou, Esfahani fez-me chegar uma mensagem na sua bela escrita pedindo-me que fosse visitá-lo aos seus aposentos. Ele estava furioso contra o padre Ange, a quem acusava de falta de respeito, de tacanhez de espírito e de ingratidão. Pouco depois, vi o religioso sair por sua vez de uma cabina, trazendo as suas coisas e mostrando-se também igualmente encolerizado. A causa da sua querela, é que o príncipe desejava visitar um jesuíta português de quem me tinha falado durante a viagem, o Padre Vieira, que teria feito certas profecias acerca do fim do mundo, e outras que anunciavam a derrocada iminente do império otomano. Desde que soubera, há alguns meses, da existência desse padre, o persa prometera a si mesmo encontrar-se com ele sem falta, se alguma vez passasse por Lisboa, e pedir-lhe mais pormenores sobre essas predições, que muito lhe interessavam.

Mas quando convidou o padre Ange a acompanhá-lo para essa visita e servir-lhe de intérprete, o religioso insurgiu-se, afirmando que esse jesuíta era um herético, um ímpio, e que se recusava a encontrar-se com ele. Não tendo conseguido demovê-lo, o príncipe esperava que eu pudesse substituí-lo. Não vi nisso qualquer inconveniente, bem pelo contrário. Estava tão interessado como ele no que esse homem nos pudesse dizer. Tanto acerca do fim dos tempos como acerca do destino do império em cujo território resido. Apressei-me portanto a aceitar, e aproveitei a alegria que causara a Esfahani para o fazer prometer-me não ser rigoroso com o padre Ange, que devia obedecer à sua Fé e aos votos que fizera, e ver na sua atitude a prova de uma lealdade rigorosa, em vez de uma traição.

Mal tínhamos posto pé em terra, dirigimo-nos, o príncipe, as suas «feras» e eu, para uma grande igreja do bairro do porto. Diante da qual me cruzei com um jovem seminarista, a quem perguntei se, por acaso, conhecia o padre Vieira e se podia indicar-me o lugar onde ele residia. O seu olhar turvou-se um pouco, mas ele pediu-me que o acompanhasse ao presbitério. O que eu fiz, enquanto o príncipe e os seus homens ficaram cá fora.

Uma vez no interior, o seminarista convidou-me a sentar, e prometeu ir procurar um superior que poderia informar-me mais convenientemente. Ausentou-se por alguns minutos, depois regressou para me dizer que «o vigário» ia chegar. Esperei, esperei, depois comecei a ficar impaciente, tanto mais que o príncipe continuava na rua. A dado momento, não suportando mais, levantei-me, e abri a porta pela qual o jovem tinha saído. Ele estava ali, a espiar-me pela fresta, e sobressaltou-se como um danado ao ver-me.

- Talvez tenha vindo numa altura pouco conveniente, disse eu polidamente. Se quiser, voltarei amanhã. O nosso barco acaba de chegar, e ficamos em Lisboa até domingo.

- Sois amigos do padre Vieira?

- Não, ainda não o conhecemos, mas ouvimos falar dos seus escritos.

- Já os lestes?

- Não, infelizmente, ainda não.

- Sabeis onde ele reside neste momento?

Eu começava a achá-lo irritante. E a dizer a mim mesmo que tinha sem dúvida dado com um débil de espírito.

- Se eu soubesse onde reside o padre Vieira, não teria vindo perguntar-vos!

- Ele está na prisão, por ordem do Santo Ofício!

O meu interlocutor começou a explicar-me por que motivos o jesuíta havia sido internado por ordem da Inquisição, mas eu pretextei estar com pressa para abandonar o edifício o mais rapidamente possível, e pedi a Esfahani e aos seus homens que acelerassem o passo sem olhar para trás. Não saberia dizer de que é que tinha exactamente medo. Embora convencido de que não poderiam acusar-me de nada, não queria de modo nenhum, no próprio dia da minha chegada a esta cidade, ter de comparecer diante de um vigário, um bispo, um juiz, ou qualquer outro representante da autoridade, e sobretudo diante do Santo Ofício!

Quando, de regresso a bordo, contei a Durazzi o que nos tinha acontecido, ele disse-me que sabia que a Inquisição tinha condenado Vieira, e que este se encontrava na prisão desde o ano passado.

- Devias ter-me dito que querias encontrar-te com esse padre, eu tinha-te avisado. Se fosses tão falador comigo como eu sou contigo, terias evitado esse percalço! - Sermoneou ele.

Sem dúvida. Mas teria provavelmente atraído mil outros.

Por outro lado - e para evocar por momentos os bons aspectos das viagens - informei-me esta noite acerca das melhores mesas de Lisboa, para poder convidar os meus amigos amanhã à noite, o que não consegui fazer durante a nossa estada em Tânger. Falaram-me de uma taberna muito conceituada onde se temperam os peixes com especiarias vindas de todos os cantos do mundo. Prometera a mim mesmo não voltar a reunir o persa e o veneziano, mas agora o príncipe sabe distinguir entre Girolamo e eu, e devo calar as minhas prevenções e as minhas delicadezas. Não somos assim tantos neste barco a poder conversar como cavalheiros!

No mar, 4 de Junho de 1666

Esta manhã cedo fui a casa do senhor Gabbiano, e essa visita, que devia ter sido breve, cortês e em suma banal, mudou o curso da minha viagem - bem como o dos meus companheiros.

Achei o seu endereço sem qualquer dificuldade, pois ele tem os seus escritórios nas proximidades do porto. É filho de pai milanês e de mãe portuguesa, e reside em Lisboa há mais de trinta anos, onde agora se ocupa dos interesses de numerosos negociantes de todas as origens, além dos seus próprios negócios. Quando Gregório me falara dele, eu ficara com a impressão de que era um agente ao seu serviço, e quase seu empregado; mas talvez eu tivesse interpretado mal as suas palavras. O homem, em todo o caso, parece ser um armador próspero, e os seus escritórios ocupam um edifício de quatro andares, onde se afadigam permanentemente umas sessenta pessoas. O calor era sufocante, apesar da hora matinal, e Gabbiano era abanado por uma mulata, sentada atrás dele; e como aparentemente isso não lhe bastava, agitava de vez em quando as folhas que lia para que lhe refrescassem as pálpebras. Embora solicitado por cinco outros visitantes que lhe falavam todos ao mesmo tempo, mostrou-se solícito ao ouvir o meu nome e o de Mangiavacca, e abriu imediatamente a carta antes de a ler em silêncio, de sobrancelhas franzidas; chamou imediatamente o secretário para lhe murmurar com ar grave algumas palavras ao ouvido, e pediu-me desculpa por ter de se ocupar por momentos das outras pessoas. O empregado ausentou-se por alguns minutos, depois voltou portador de uma soma considerável - perto de dois mil florins.

Como eu manifestasse a minha surpresa, Gabbiano estendeu-me a carta, que eu tinha recebido já timbrada. Além das fórmulas de uso, Gregório pedia-lhe apenas que me confiasse em mão a referida soma, que eu devia levar-lhe para Génova.

Que procura o meu «pseudo-sogro» fazer? Forçar-me a passar de novo por sua casa ao regressar de Londres? Sem dúvida. Esses cálculos são mesmo próprios dele!

Tentei explicar ao meu anfitrião que hesitava em levar comigo uma soma tão importante, tanto mais que não tencionava de modo nenhum voltar a passar por Génova. Mas ele não quis ouvir nada. Devia efectivamente essa soma a Gregório, e visto que este a reclamava, não podia deixar de lha enviar. Depois disto, fez-me compreender que me cabia a mim passar por Génova ou achar outro meio de fazer chegar esse dinheiro ao seu destinatário.

- Mas eu não tenho, no barco, nenhum lugar seguro... Mantendo-se cortês, o homem dirigiu-me um sorriso

ligeiramente enervado, e mostrou-me com um gesto todas aquelas pessoas à sua volta, já impacientes. Claramente, ele não podia, além dos seus próprios problemas, deixar-se sobrecarregar com os meus. Meti a pesada bolsa no meu saco de tela. Depois levantei-me, resignado, preocupado, e lancei-lhe como se falasse comigo mesmo:

- Dizer que vou transportar uma tão grande soma até Londres! Esta última flecha, lançada às cegas, foi a que deu no alvo.

- A Londres, dizeis? Não, acreditai, seria uma loucura, não façais isso! Acabo de receber notícias muito seguras segundo as quais vários navios que se dirigiam para Inglaterra foram abordados pelos holandeses. Além disso, decorre uma grande batalha no mar, na vossa rota. Seria uma loucura aparelhar agora.

- O capitão tenciona partir depois de amanhã, domingo.

- É demasiado cedo! Ide dizer-lhe da minha parte que não deve ir. Poria o seu barco em perigo. Ou, melhor, dizei-lhe que me venha visitar esta tarde, sem falta, que eu explico-lhe o que se passa. Quem é o vosso capitão?

- Chama-se Centurione, acho eu. Capitão Centurione. Gabbiano fez um trejeito que significava que não o conhecia.

Estive quase a chamá-lo de parte para lhe falar da loucura do capitão, mas senti que isso seria desastrado. As pessoas à nossa volta agitavam-se, lançando-me olhares enervados; o que eu tinha a dizer era delicado; e depois, se aquele homem falasse directamente com Centurione, não havia dúvida de que ele próprio perceberia aquilo que eu ia esforçar-me por lhe explicar.

Corri portanto ao barco, onde fui direito aos aposentos do capitão. Este estava sozinho, mergulhado em alguma meditação, ou em alguma conversa muda com os seus demónios. Pediu-me cortesmente que me sentasse à sua frente, e levantou para mim a cabeça com uma lentidão de grande sábio.

- Que se passa?

Enquanto eu lhe comunicava aquilo que ouvira, ele pareceu escutar-me intensamente; e quando lhe disse que o senhor Gabbiano desejava falar-lhe pessoalmente para o informar de todas as circunstâncias que tornavam perigosa a viagem para Londres, Centurione arregalou os olhos, levantou-se da cadeira, tocou-me no ombro pedindo-me que o esperasse no meu lugar e não saísse dali, porque devia ausentar-se para dar algumas ordens aos seus homens, e depois iríamos juntos visitar esse Gabbiano.

Em dado momento, enquanto eu estava ainda à espera dele, o capitão voltou a passar num pé de vento pelos seus aposentos, só para me assegurar de que estava a tomar todas as disposições para que pudéssemos partir. Eu estava convencido de que, ao dizer isso, ele queria dizer «para que pudéssemos partir, eu e ele, para casa de Gabbiano». Compreendi mal, ou então ele enganou-me. O que ele acabava de fazer, enquanto eu o esperava, era ordenar aos seus homens que largassem amarras e abrissem as velas para deixar Lisboa o mais depressa possível.

Voltou para me informar agora sem qualquer ambiguidade:

- Vamos fazer-nos ao largo! ! Saltei como um louco do lugar onde estava sentado. E o outro,

calmamente, pediu-me que voltasse a sentar-me para que pudesse explicar-me a verdade das coisas.

- Não notou nada nesse indivíduo que foi visitar?

Tinha notado muitas coisas, mas não via a que é que ele queria aludir. Nem por que motivo se permitia chamar a tal personagem «esse indivíduo».

Então o capitão continuou: - Não notou nada nesse Gabbiano?

Pela maneira como acabava de pronunciar este nome, compreendi finalmente. E fiquei horrorizado. Se o louco que estava à minha frente tinha entrado no seu delírio só de ver passar uma gaivota ou um alcatraz, em que demência não ia ele mergulhar ao saber que o homem que lhe pedia para adiar a sua viagem se chamava justamente «Gabbiano »? ( Nota 1 ) E felizmente que ele me considerou como um amigo que vinha avisá-lo da conjura, e não como um demónio disfarçado de viajante genovês. E felizmente que o meu nome é Embriaco, e não Marangone , ( Nota 2 ) como se chamava um mercador amalfitano com o qual o meu pai tinha antigamente negócios!

Assim, acabávamos de deixar Lisboa!

O meu primeiro pensamento não foi para mim nem para os meus companheiros de infortúnio, que íamos ter de navegar no meio das canhoneiras enfurecidas, e que corríamos risco de morte ou de cativeiro; não, o meu primeiro pensamento foi - estranhamente - para lamentar os infelizes que acabávamos de abandonar em Lisboa. Eu achava inadmissível que o capitão não quisesse esperar o seu regresso a bordo, mesmo sabendo que essa censurável negligência ia talvez preservar-lhes as vidas, e evitar-lhes as desgraças que vão inexoravelmente abater-se sobre nós.

Pensei em primeiro lugar, evidentemente, nos dois amigos que tinha feito durante esta viagem, Durazzi e Esfahani. Vira-os partir um e outro esta manhã, ao mesmo tempo que eu, e pude verificar, infelizmente, que não tinham regressado a bordo. Tinham-me prometido ser meus convidados esta noite, e eu prometia a mim mesmo tratá-los de uma maneira que fosse digna da sua condição e da nossa amizade, e que eles esqueceriam...

Mas tudo isso estava agora ultrapassado, eu navego para o desconhecido sob a direcção de um louco, e os meus amigos estão talvez já a lamentar-se no cais ao ver o Sanctus Dionisius a afastar-se inexplicavelmente.

Esta noite, a bordo, não sou o único desamparado. Os raros passageiros, e todos os membros da tripulação, têm a sensação de se

 

( Nota 1 ) - Gabbiano: esta palavra italiana significa tanto gaivota como alcatraz.

( Nota 2.) Marangone: corvo marinho. (N. do T.)

 

tornarem reféns cujo resgate nunca ninguém pagará. Reféns do capitão ou dos demónios que o perseguem, reféns do destino, futuras vítimas da guerra - temos a sensação de sermos já todos, negociantes ou marinheiros, ricos ou pobres, nobres ou servos, apenas um conjunto de vidas perdidas.

No mar, 7 de Junho de 1666

Em vez de rumar para norte e seguir ao longo das costas portuguesas, o Sanctus Dionisius dirige-se desde há três dias para oeste, como se partisse para o Novo Mundo. Estamos agora no meio da imensidão atlântica, o mar está a ficar agitado, e a cada sacudidela ouço gritos.

Eu devia estar apavorado, não estou. Devia estar furioso, não estou. Devia agitar-me, correr, fazer mil perguntas ao capitão louco, e estou sentado à oriental na minha cabina, em cima de um cobertor dobrado em oito. Tenho a serenidade das ovelhas. Tenho a serenidade dos velhos moribundos.

Neste instante, não receio nem o naufrágio nem o cativeiro, receio apenas o enjoo.

8 de Junho

Ao anoitecer do quarto dia, o capitão, achando talvez que tinha derrotado suficientemente os demónios que o perseguem, acaba de mudar de rumo em direcção ao norte.

Quanto a mim, ainda não consigo desfazer-me das vertigens nem das náuseas. Fico no quarto, e evito escrever muito.

Maurizzio trouxe-me esta noite o rancho dos marinheiros. Não lhe toquei.

12 de Junho

Hoje, nono dia da nossa viagem em direcção a Londres, o Sanctus Dionisius imobilizou-se durante três horas no alto mar - mas eu seria incapaz de dizer em que ponto do oceano nos encontrávamos, e ao largo de que costa.

Acabávamos de nos cruzar com outro navio genovês, o Alegrancia, que nos fez sinais e nos enviou um emissário, que foi içado para bordo. Imediatamente se espalharam rumores que confirmam que se desenrolaria uma batalha encarniçada entre holandeses e ingleses, tornando arriscada a rota que tomámos.

O mensageiro ficou apenas alguns minutos nos aposentos do capitão. Depois, este último fechou-se sozinho por um longo momento, sem dar qualquer ordem aos seus homens, enquanto a nossa nau era sacudida no mesmo lugar, com as velas recolhidas. Sem dúvida Centurione hesitava sobre a decisão a tomar. Deveria arrepiar caminho? Deveria abrigar-se algures e esperar notícias? Ou modificar a trajectória para contornar a zona dos combates?

Segundo Maurizzio, que interroguei esta noite, teríamos retomado quase o mesmo rumo, desviando-nos ligeiramente para nordeste. Eu disse-lhe claramente que achava insensato, da parte do capitão, que assumisse tais riscos, mas de novo o jovem marinheiro fingiu não me ouvir. Ainda desta vez, não insisti, não querendo fazer pesar sobre os seus ombros de miúdo tão pesadas inquietações.

22 de Junho

A noite passada, sofrendo de insónia, e de um regresso do enjoo, saí para passear na ponte, e notei ao longe, para a direita, uma luz suspeita, que a meus olhos pareceu uma nau incendiada.

De manhã, constatei que ninguém a não ser eu tinha visto aquilo. Cheguei mesmo a perguntar-me se os meus olhos me não teriam enganado quando, à noite, ouvi ao longe o som das canhoneiras.

Agora, todo o navio está em desassossego. Vamos alegremente direitos ao campo de batalha, ninguém pensa em chamar o capitão à razão nem em contestar a sua autoridade. Serei eu o único a saber que ele é louco?

23 de Junho

Os sons de guerra intensificam-se, à nossa frente e também atrás de nós, mas continuamos a avançar, imperturbáveis, para o nosso rumo - para o nosso destino.

Muito me surpreenderia se chegássemos a Londres sãos e salvos... Graças a Deus, não sou astrólogo nem adivinho, e engano-me muitas vezes. Contanto que me engane também desta vez. Nunca pedi ao Céu que me preservasse do erro, mas apenas que me preservasse da desgraça.

Gostaria de que a minha estrada fosse ainda longa e marcada por desvarios. Sim, viver muito tempo e cometer ainda mil erros, mil faltas, e mesmo um certo número de pecados memoráveis...

É o medo que me faz escrever estas linhas insensatas. Vou secar a tinta e arrumar o meu caderno sem demora para escutar calmamente como um homem os ruídos da guerra próxima.

Sou ainda livre, e estou prisioneiro.

Sábado, 26 de Junho de 1666

Esta manhã, ao alvorecer, uma canhoneira holandesa veio direita a nós, e ordenou-nos que recolhêssemos as velas e içássemos a bandeira branca, o que fizemos.

Alguns soldados subiram a bordo, apoderaram-se do navio e conduzem-no agora, diz-me Maurizzio, rumo a Amsterdão.

Que destino nos estará ali reservado? Ignoro.

Suponho que toda a carga será confiscada, o que não me importa.

Suponho igualmente que seremos detidos como prisioneiros, e que os nossos bens nos serão tirados. Desse modo, perderei a soma que Gabbiano me confiou, assim como o meu próprio dinheiro, e esta escrivaninha, e este caderno...

Tudo isso me tira a vontade de escrever.

Em cativeiro, 28 de Junho de 1666

Dois marinheiros foram atirados ao mar pelos holandeses. Um era inglês, mas o outro era siciliano. Houve dois gritos de terror, e um grande tumulto. Eu corri à notícia, mas depois, ao ver o ajuntamento, e os soldados armados a gesticularem e gritarem na sua língua, arrepiei caminho. Foi Maurizzio quem me contou, um pouco mais tarde, o que tinha acontecido. Ele tremia da cabeça aos pés. Procurei consolá-lo, embora eu próprio não esteja tranquilo.

Até aqui, as coisas tinham-se passado sem grande emoção. Todos nos resignávamos a este desvio em direcção a Amsterdão, tanto mais que estávamos convencidos de que a conduta do capitão não podia continuar até ao fim sem castigo. Mas a matança de hoje fez-nos compreender que éramos mesmo prisioneiros, que poderíamos continuar a sê-lo indefinidamente, e que os mais imprudentes de nós - bem como os mais azarados - poderiam sofrer a pior das sortes.

Imprudente, o marinheiro inglês, que, tendo sem dúvida bebido um pouco, achara por bem dizer aos holandeses que a sua esquadra acabaria por ser derrotada. E azarado o siciliano, que se achava ali por acaso, e quis interceder a favor do seu camarada, a quem iam matar.

No cativeiro, 29 de Junho

A partir de agora já não saio da minha cabina, e não sou o único a reagir assim. Maurizzio diz-me que as pontes estão desertas, que só os holandeses por ali deambulam, e que os membros da tripulação já só abandonam os seus lugares para executar as ordens que lhes são dadas. O capitão tem agora a seu lado um oficial holandês que o vigia e o comanda - mas disso, não me queixarei.

2 de Julho

A noite passada, depois de ter apagado o candeeiro, senti subitamente frio, estando tão tapado como na véspera e na antevéspera, e apesar de o dia ter sido bastante suave. Talvez eu tivesse, mais do que frio, medo... No meu sonho, de resto, vi-me agarrado pelos marinheiros holandeses, atirado ao chão, depois despido e chicoteado até sangrar. Acho que gritei de dor, e que foi esse grito que me acordou. Não voltei a adormecer. Tentei no entanto recuperar o sono, mas a minha cabeça era como um fruto que se recusa a amadurecer, e os meus olhos já não se fechavam.

4 de Julho

Um marinheiro holandês empurrou hoje a porta da minha cabina, inspeccionou o lugar olhando em volta, e saiu sem dizer palavra. Um quarto de hora depois, um dos seus colegas fez exactamente os mesmos gestos, mas este último murmurou uma palavra que deve querer dizer «bom dia». Pareceu-me que procuravam alguém, mais do que alguma coisa.

Não devemos estar já muito longe do nosso destino, e não paro de me perguntar qual a atitude a tomar quando lá estivermos.

Que fazer, principalmente, do dinheiro que me confiaram em Lisboa, do meu próprio dinheiro, e deste caderno?

A dizer a verdade, posso escolher entre duas atitudes.

Ou seja, considero que vou ser tratado como um negociante estrangeiro, com consideração, e talvez mesmo permissão para entrar nas Províncias Unidas - caso em que deveria levar todo o meu «tesouro» comigo quando descesse a terra.

Ou considero que o Sanctus Dionisius será tratado como presa de guerra, que a sua carga será confiscada, que os homens que estão a bordo, incluindo eu mesmo, serão detidos durante algum tempo antes de serem expulsos com o seu navio - e nesse caso terei interesse em deixar o meu «tesouro» num esconderijo, rogando ao Céu que ninguém o descubra, e que eu possa recuperá-lo no fim desta provação.

Ao fim de duas horas de hesitação, inclino-me para a segunda atitude. Contanto que não venha a lamentá-la!

Vou desde já arrumar o meu caderno e a minha escrivaninha no esconderijo onde se encontra já o dinheiro de Gregório - na parede, atrás de uma tábua mal pregada. Depositarei ali também metade do dinheiro que me resta: é preciso que encontrem comigo uma soma razoável, senão desconfiarão do meu subterfúgio, e obrigar-me-ão a revelá-lo.

Estou um pouco tentado a conservar o meu caderno. O dinheiro ganha-se ou perde-se, mas estas páginas são a carne dos meus dias. e principalmente o meu último companheiro. Sinto escrúpulos em separar-me dele. Mas sem dúvida será preciso.

14 de Agosto de 1666

Há mais de quarenta dias que não escrevia uma linha. Estava em terra, sequestrado, e o meu caderno no mar no seu esconderijo.

Deus seja louvado! Estamos incólumes um e o outro, e enfim reunidos.

Hoje estou demasiado abalado para escrever. Amanhã, a minha alegria estará dominada, e contarei.

Não. Se me é difícil escrever no estado em que estou, é ainda mais difícil conter-me e não escrever. Vou pois contar esta triste aventura que termina pelo melhor. Sem demasiados pormenores, mas apenas como quem atravessa um ribeiro saltando de uma pedra para a outra.

Na quarta-feira, 8 de Julho, o Sanctus Dionisius entrou no porto de Amsterdão de cabeça baixa, como um animal cativo puxado por corda atada ao pescoço. Eu estava na ponte, com o saco de lona ao ombro, as mãos apoiadas na amurada, de olhos fixos nas paredes rosadas, nos telhados acastanhados, nos chapéus negros do cais - enquanto todos os meus pensamentos estavam noutro lugar.

Assim que acostámos, ordenaram-nos, sem violência mas sem cerimónias, que abandonássemos o navio, e caminhássemos até um edifício no extremo do cais onde fomos encerrados. Não era propriamente uma prisão, apenas um recinto com telhado, com homens de guarda diante das duas portas, que não nos deixavam sair. Fomos divididos em dois grupos, ou talvez em três. Comigo estavam os raros passageiros restantes, e uma parte da tripulação, mas não Maurizzio nem o capitão.

Ao terceiro dia, um dignitário da cidade veio inspeccionar o local, e proferiu, olhando para mim, palavras tranquilizadoras; no entanto, o seu rosto manteve-se severo, e não formulou nenhuma promessa precisa.

Uma semana depois, vi chegar o capitão, acompanhado de diversas pessoas que eu não conhecia. Chamou pelos seus nomes os marinheiros mais vigorosos, e eu compreendi que era para descarregar a mercadoria que estava a bordo. Reconduziram-nos ao «recinto» ao fim do dia, para voltarem a vir buscá-los no dia seguinte, e ainda no outro dia.

Uma pergunta queimava-me os lábios: no momento de esvaziar o navio, teriam remexido nas cabinas dos passageiros? Durante muito tempo procurei uma maneira de fazer a pergunta, que pudesse satisfazer a minha curiosidade sem levantar suspeitas; mas por fim renunciei. Na situação em que me encontrava, a impaciência era a pior conselheira.

Durante esses longos dias de angústia e de espera, quantas vezes pensei em Maimoun, em tudo o que ele me dizia acerca de Amsterdão, e em tudo aquilo que eu me acostumara a dizer também dela. Essa cidade então distante tornara-se para nós um lugar de devaneio cúmplice, e um horizonte de esperança. Por vezes prometíamos a nós próprios lá ir juntos, viver lá algum tempo, e talvez Maimoun ali se encontrasse, de resto, como projectava. Quanto a mim, lamento agora ter lá posto os pés. Lamento ter vindo como prisioneiro ao país dos homens livres. Lamento ter passado em Amsterdão tantas noites e tantos dias sem ter visto outra coisa além do reverso dos seus muros.

Passaram ainda duas semanas antes que nos fizessem voltar ao Sanctus Dionisius. Sem de resto nos autorizarem ainda a levantar ferro. Continuávamos privados de liberdade, mas a bordo do nosso navio, patrulhado a todas as horas por destacamentos de soldados.

Para melhor nos vigiarem, confinaram-nos todos a uma parte do navio. A minha cabina era do outro lado, e por prudência impus a mim próprio não ir lá para não trair o meu segredo.

E mesmo quando o navio finalmente aparelhou, abstive-me durante algum tempo de voltar aos meus antigos aposentos, dado que um destacamento holandês permaneceu a bordo até que saímos do Zuiderzee, que é uma espécie de mar interior, para chegar ao mar do Norte.

Só hoje pude verificar que o meu tesouro estava ainda intacto, no seu esconderijo. Deixei-o lá, limitando-me a retirar a minha escrivaninha e este caderno.

15 de Agosto

A bordo, todos os marinheiros se embebedam, e eu próprio bebi um pouco.

Curiosamente, desta vez, não senti enjoo ao sair do porto. E apesar de tudo o que ingeri, caminho na ponte a passo firme.

Maurizzio, que está tão tocado como os mais velhos, informou-me de que o capitão, quando o nosso navio foi inspeccionado, afirmara que apenas um terço da carga era destinada a Londres, e os outros dois terços a um mercador de Amsterdão. Chegado a esta última cidade, teria mandado chamar o homem, que conhecia muito bem. Como este não estivesse na cidade, foi preciso esperar o seu regresso. Depois as coisas aconteceram muito depressa. Compreendendo o que acabava de acontecer, e só vendo benefício na operação, o negociante confirmou as palavras de Centurione e recebeu a mercadoria. As autoridades limitaram-se a apreender o terço restante, antes de libertar os homens e o navio.

Louco - dessa ninguém me tira! - mas aparentemente hábil, o nosso capitão! A menos que haja neste homem duas almas sobrepostas, que alternadamente se ocultam uma à outra.

17 de Agosto

Segundo Maurizzio, o nosso capitão teria, uma vez mais, enganado os holandeses, fazendo-lhes crer que regressava a Génova, enquanto singra agora direito a Londres.

19 de Agosto

Subimos o estuário do Tamisa, e já não tenho nenhum companheiro a bordo - quero dizer ninguém com quem ter uma conversa de homem decente. Sem mais nada que fazer, deveria escrever, mas tenho o espírito vazio, e a minha mão não aquece.

Londres, chego cá sem nunca ter pensado em cá vir.

Segunda-feira, 23 de Agosto de 1666

Chegámos ao desembarcadouro da ponte de Londres aos primeiros alvores do dia, depois de termos sido interceptados por três vezes ao subir o estuário, de tal modo os ingleses estão de sobreaviso depois dos seus últimos confrontos com os holandeses.

Assim que cheguei, deixei os meus magros pertences num albergue à beira do Tamisa, perto das docas, para partir à procura de Cornelius Wheeler. Sabia, através do pastor Coenen, que a sua loja era perto da catedral de São Paulo, e bastou-me fazer algumas perguntas aos outros comerciantes para que eles me conduzissem até lá.

Quando, ao entrar, pedi para ver o senhor Wheeler, um jovem empregado conduziu-me ao andar de cima a um homem muito velho de rosto magro e triste, que descobri ser o pai de Cornelius. Este encontra-se em Bristol, disse-me ele, e só voltará daqui por duas ou três semanas; mas se eu precisasse de alguma informação ou de algum livro, ele teria muito gosto em me satisfazer.

Eu tinha-me já apresentado, mas como o meu nome não lhe dizia aparentemente nada, expliquei-lhe que era aquele genovês a quem Cornelius confiara a sua casa de Esmirna.

- Espero que não tenha acontecido nenhuma desgraça - inquietou-se o ancião.

Não, a casa não sofreu nada, tranquilizai-vos, não fiz a viagem para anunciar um desastre, estou em Londres para os meus próprios negócios. Falei-lhe um pouco do meu negócio, que não podia deixar de lhe interessar visto que se aparenta com o seu. Evoquei as obras que se vendem, e aquelas que já ninguém procura.

Em dado momento da conversa, introduzi uma palavra sobre o Centésimo Nome, dando a entender que não ignorava que Cornelius o tinha trazido de Esmirna. O meu interlocutor não se sobressaltou ostensivamente, mas julguei adivinhar no seu olhar um lampejo de viva curiosidade. E talvez de desconfiança.

- Infelizmente, não leio o árabe. Para o italiano, o francês, o latim e o grego, poderia dizer-vos exactamente quais os livros que temos nestas prateleiras. Mas quanto ao árabe e ao turco, será preciso esperar por Cornelius.

Descrevi-lhe insistentemente o aspecto da obra, o seu tamanho, os dourados em forma de losangos concêntricos na encadernação de couro verde... Foi então que o jovem empregado, que andava por ali a escutar-nos, achou útil intervir.

- Não será o livro que o chaplain veio buscar?

O velho Wheeler trespassou-o com o olhar, mas o mal, se assim posso dizer, estava feito. De nada servia dissimular.

- Com efeito, deve ser esse livro, vendemo-lo há alguns dias, mas olhai à vossa volta, tenho a certeza de que encontrareis alguma coisa que vos interesse.

Pediu ao empregado que trouxesse tais e tais obras, cujos nomes eu nem quis fixar; não podia largar a presa.

- Fiz um longo trajecto para adquirir esse livro, ficar-vos-ia grato se me indicásseis onde poderei encontrar esse chaplain, vou tentar comprar-lho.

- Haveis de desculpar, eu não devo dizer-vos quem comprou o quê, nem principalmente dar-vos o endereço dos nossos clientes.

- Se o vosso filho confiou em mim o suficiente para me confiar a sua casa com tudo o que ela contém...

Não precisei de continuar.

- Está bem, Jonas vai acompanhar-vos.

De caminho, o jovem, sem dúvida enganado pelas palavras inglesas que ouvira da minha boca, despejou sobre mim uma onda de confidências de que não percebi quase nada. Limitava-me a abanar a cabeça enquanto contemplava a confusão das ruelas. Apenas soube por ele que o homem que íamos visitar fora outrora o capelão do exército de Cromwell. Jonas não foi capaz de me dizer o nome do homem, parecia nem sequer compreender a minha pergunta, nunca ouvira outro nome a não ser chaplain.

Visto que o comprador do meu livro era um homem da Igreja, eu estava convencido de que nos dirigíamos à catedral próxima, ou alguma capela, ou um presbitério. Qual não foi a minha surpresa quando o empregado parou diante da porta de uma cervejaria - «ale house», dizia o letreiro. Quando entrámos, doze pares de olhos brumosos fixaram-nos demoradamente. Fazia escuro como ao crepúsculo, embora ainda não fosse meio-dia. As conversas tinham-se transformado em murmúrios, dos quais eu era indiscutivelmente o único tema. Não se devem ver muitas vezes por aqui vestuários genoveses. Saudei num aceno de cabeça, e Jonas perguntou à patroa - uma mulher grande e rechonchuda de cabeleira reluzente, com os seios meio descobertos - se o chaplain estava. Ela fez simplesmente um gesto com o dedo, indicando o andar de cima. Tomámos imediatamente por um corredor, ao fim do qual havia uma escada de degraus rangentes. Depois, mesmo ao cimo, uma porta fechada a que o empregado bateu, antes de rodar o puxador chamando a meia voz:

«Chaplain!»

O dito capelão não tinha, em meu entender, nada de um homem da Igreja. Ao dizer «nada», exagero. Tinha, sem qualquer dúvida, uma espécie de solenidade natural. Já pela sua alta estatura, e também por aquela barba abundante que o fazia parecer-se com um pope ortodoxo, se não um eclesiástico inglês. Uma mitra, uma casula pelos ombros, uma cruz na mão, e ele tornar-se-ia um bispo acima das suas ovelhas. Mas não espalhava à sua volta nem piedade, nem perfume de castidade, nem qualquer temperança. Muito pelo contrário, apareceu-me de imediato como um pagão amante de

patuscadas. Em cima da mesa baixa, à sua frente, havia três canecas de cerveja, duas vazias e uma a três quartos. Acabava sem dúvida de beber uma golada, pois que se lhe viam no bigode algumas bolhas brancas de espuma.

Com um largo sorriso, convidou-nos a sentar. Mas Jonas desculpou-se, pois tinha de regressar a casa do patrão. Meti-lhe uma moeda na mão, e o capelão pediu-lhe que ao sair nos encomendasse duas canecas. Dali a pouco a patroa trouxe ela mesma as duas cervejas, bastante solícita e respeitosa, e o homem de Deus agradeceu-lhe com uma boa palmada nas nádegas, não uma palmada discreta, mas tão ostensiva que parecia de propósito para me chocar. Não procurei dissimular o meu embaraço, e creio que eles teriam ficado bastante vexados, um e outro, se eu tivesse achado a coisa banal.

Antes que ela subisse, eu tivera tempo para me apresentar, e para dizer que acabava de chegar a Londres. Esforcei-me por falar em inglês, penosamente. Para me poupar outros sofrimentos, o homem respondeu-me em latim. Um latim de erudito que soava de modo estranho naquele lugar. Suponho mesmo que ele quis parafrasear Virgílio ou outro poeta antigo ao lançar-me:

- Assim, abandonastes um país regado pela Graça, para virdes a esta região lavrada pela Maldição!

- O pouco que vi até agora não me dá de modo nenhum essa impressão. Constato, desde que cheguei, uma certa liberdade de atitudes, e uma inegável jovialidade...

- É isso mesmo, um país maldito! Temos de nos fechar no andar de cima, e beber de manhã à noite para nos julgarmos livres. Se um vizinho invejoso pretende que blasfemámos, somos chicoteados em público. E se parecemos demasiado bem conservados para a nossa idade, somos suspeitos de feitiçaria. Eu preferia ser prisioneiro entre os turcos...

- Se dizeis isso, é porque nunca saboreastes as masmorras do sultão!

- Talvez - admitiu ele.

Depois da passagem da patroa, e apesar do embaraço que eu sentira no momento, a atmosfera desanuviou, e senti-me suficientemente à vontade para confessar àquela personagem, sem rodeios, os motivos da minha visita. Assim que mencionei O Centésimo Nome, o seu rosto iluminou-se e os lábios estremeceram. Julgando que se preparava para me dizer alguma coisa a propósito desse livro, calei-me, com o coração acelerado, mas ele com um gesto da sua caneca de cerveja fez-me sinal para que continuasse, sorrindo ainda mais. Então, jogando jogo franco, eu disse-lhe exactamente por que razão me interessava pelo livro. Ao fazê-lo, corria riscos. Se essa obra contém efectivamente o nome salvador, como poderia eu pedir àquele santo homem que mo cedesse? E por que preço? Um melhor comerciante teria falado desse livro e do seu conteúdo em termos mais comedidos, mas sentia por instinto que teria sido pouco hábil tentar enganá-lo. Eu que procuro o livro da salvação, como poderia, aos olhos de Deus, obtê-lo por logro? Serei alguma vez mais astuto que a Providência?

Impus pois a mim mesmo revelar claramente ao chaplain o valor desse texto. Falei-lhe de tudo aquilo que entre os livreiros se diz a seu respeito, das dúvidas acerca da sua autenticidade, e das diversas especulações sobre as suas supostas virtudes.

- E vós - perguntou ele - qual é a vossa opinião?

Ele mantinha invariavelmente o mesmo sorriso, que eu não conseguia decifrar, e que começava a achar irritante. Mas esforcei-me por não deixar transparecê-lo.

- A minha opinião nunca foi definida. Um dia, digo a mim mesmo que esse livro é a coisa mais preciosa do mundo, e no dia seguinte sinto vergonha por ter sido tão crédulo e tão supersticioso.

No seu rosto, o sorriso tinha desaparecido. Ergueu a caneca e estendeu-a na minha direcção num gesto de incensório, depois esvaziou-a de um trago. Com esse gesto queria, disse ele, prestar homenagem à minha sinceridade, para ele inesperada.

- Eu julgava que me iríeis apresentar um qualquer aranzel de mercador, pretender que procuráveis esse livro para um coleccionador, ou então que ele vos fora recomendado pelo vosso pai no leito de morte. Não sei se fostes honesto por natureza ou por suprema habilidade, não vos conheço o bastante para poder julgar, mas a vossa atitude agrada-me. "

Calou-se. Empunhou a caneca vazia, depois voltou a pousá-la imediatamente na mesa baixa antes de dizer:

- Afastai essa tapeçaria atrás de vós! O livro está aí!

Fiquei por instantes estupefacto, perguntando a mim mesmo se teria compreendido bem. Habituara-me de tal modo às armadilhas, às decepções, às rejeições, que ouvir dizer-me tão simplesmente que o livro estava ali desarmava-me. Perguntei-me mesmo se aquilo não seria o efeito da cerveja, que tinha bebido de um trago, tanta sede tinha.

No entanto, levantei-me. Afastei cerimoniosamente a tapeçaria escura e poeirenta que ele me indicara. O livro estava mesmo ali. O Centésimo Nome. Teria esperado vê-lo numa espécie de escrínio, rodeado de velas, ou então aberto em cima de uma estante. Não, nada disso, estava deitado numa prateleira, com algumas outras obras, assim como penas, tinteiros, uma resma de folhas em branco, um pacote de alfinetes, e diversos objectos em desordem. Agarrei-o com mão hesitante, abri-o na página de título, assegurei-me de que era mesmo aquele que o velho Idriss me havia oferecido no ano anterior, e que julgara irremediavelmente desaparecido.

Surpreendido? Sim, surpreendido. E legitimamente abalado. Tudo isto tem qualquer coisa de milagre! É o meu primeiro dia em Londres, o meu pé mal se habituou à terra firme, e o livro que persigo há um ano já está nas minhas mãos! O meu anfitrião concedeu-me o tempo da emoção. Esperou que eu voltasse lentamente a sentar-me, com o livro apertado contra as palpitações do meu coração. Depois disse-me,, sem qualquer entoação interrogativa:

- É mesmo aquele que procuráveis...

Eu disse que sim. A falar verdade, não conseguia distinguir grande coisa, não havia luz na sala. Mas tinha visto o título, e antes disso tinha reconhecido o livro pelo exterior. Não tinha a mínima dúvida.

- Suponho que ledes perfeitamente o árabe. Eu disse novamente que sim.

- Então tenho um negócio a propor-vos.

Ergui os olhos ainda agarrado ao tesouro reencontrado.

O capelão parecia meditar intensamente, e a sua cabeça pareceu-me ainda mais imponente, ainda mais volumosa, mesmo abstraindo da sua barba e da grenha esbranquiçadas.

- Tenho um negócio a propor-vos, repetiu, como que a ganhar ainda alguns segundos de reflexão. Vós quereis esse livro, e eu quero apenas compreender o que ele contém. Lede-mo, de ponta a ponta, depois podereis levá-lo.

Uma vez mais eu disse sim, sem sombra de hesitação.

Que bem fiz em vir a Londres! Era aqui que a minha boa estrela me esperava! A minha tenacidade foi recompensada! A teimosia que recebi em herança dos meus antepassados foi-me útil! Estou orgulhoso de ser do sangue deles, e de não ter desmerecido!

Em Londres, terça-feira, 24 de Agosto de 1666

A minha tarefa não será fácil, bem sei.

Precisarei de numerosas sessões para estas cerca de duzentas páginas, para traduzi-las do árabe para o latim, e principalmente para explicitá-las, quando o autor nunca quis ser explícito. Mas vi imediatamente na proposta inesperada do capelão uma possibilidade, para não dizer um sinal. O que ele me oferece, não é apenas a recuperação do livro de Mazandarani, mas é também a possibilidade de mergulhar nele estudiosamente, como eu o não teria feito por mim mesmo. Ter de ler este texto frase a frase, ter de traduzi-lo palavra a palavra para o tornar inteligível para um auditor exigente, eis seguramente a única maneira de saber, de uma vez por todas, se as suas páginas abrigam uma grande verdade secreta.

Quanto mais penso nisso, mais me sinto exaltado e perplexo ao mesmo tempo. Assim, terá sido necessário ter seguido este livro desde Gibelet a Constantinopla, depois de Génova a Londres, até esta taberna, até à toca deste curioso capelão, para me entregar por fim à tarefa mais necessária. Tenho quase a impressão de que tudo o que vivi desde há um ano era apenas um prelúdio, uma série de provas que o Criador me quis fazer passar antes de ser digno de conhecer o Seu nome íntimo.

No último parágrafo, escrevi: «Desde há um ano.» Não é uma aproximação, há exactamente um ano, dia por dia, que a minha viagem começou, pois foi na segunda-feira 24 de Agosto do ano passado que deixei Gibelet. Já não tenho à mão o texto que escrevi nessa ocasião - espero que Barinelli o tenha recuperado, e conservado, e que possa um dia fazer-mo chegar!

Mas estou a desviar-me... Dizia eu pois que se tivesse diante dos olhos as páginas que escrevi no início da viagem, não teria encontrado grande coisa em comum entre o meu projecto inicial e o itinerário que tive de seguir. Não pensava ir mais além de Constantinopla, e certamente não a Inglaterra. E não pensava encontrar-me assim sozinho, sem nenhuma das pessoas que partiram comigo, sem sequer saber o que poderá ter acontecido a uns e a outros. Ao longo deste ano, tudo mudou à minha volta e em mim. Só não variou, parece-me, o meu desejo de regressar à minha casa de Gibelet. Não, pensando melhor, não tenho tanta certeza. Desde a minha passagem por Génova, acontece-me pensar por vezes que era para lá que devia regressar. Em certo sentido foi de lá que parti. Se não eu próprio, ao menos a minha família. A despeito do desalento sentido pelo antepassado distante Bartolomeo quando quisera reinstalar-se ali, parece-me que só lá um Embriaco pode sentir-se em sua casa. Em Gibelet serei sempre o estrangeiro... Contudo, é no Levante que vive a minha irmã, é lá que estão enterrados os meus pais, é lá que está a minha casa, é lá que está a loja que assegura a minha relativa prosperidade. Estive quase a escrever é lá que vive a mulher que comecei a amar. O meu espírito confunde-se, seguramente. Marta já não está em Gibelet, não sei se ela poderá lá voltar algum dia, e nem sequer sei se ainda é viva. Talvez eu deva parar de escrever, por esta noite...

25 de Agosto

Ao acordar retomo o meu caderno para voltar a falar de datas. Preparava-me para fazê-lo ontem à noite, quando a evocação de Marta me fez esquecer disso. Era para dizer que em Londres existe uma confusão de que eu não suspeitava antes de chegar. Estamos hoje a 25 de Agosto, mas para as pessoas daqui estamos apenas a 15! Por ódio ao papa, que toda a gente aqui chama «anticristo», os ingleses recusaram-se - como os moscovitas - a alinhar pelo calendário gregoriano que prevalece entre nós desde há mais de oitenta anos.

Teria ainda várias coisas a dizer sobre esta questão, mas estão à minha espera na cervejaria. Será lá que decorrerão as sessões de leitura, e será lá que habitarei a partir de agora. Prometi levar para lá as minhas bagagens já esta manhã.

Por várias vezes desde segunda-feira, o capelão, bem como Bess, a taberneira, tinham-me convidado para ir viver ali, a fim de evitar as idas e vindas que a polícia do rei poderia achar suspeitas. A princípio recusei, querendo manter um pouco as distâncias relativamente àquelas pessoas bastante acolhedoras mas que eu não conhecia o suficiente para partilhar todos os seus dias e todas as suas noites. Mas, ontem à noite, quando depois do jantar saí para voltar ao meu albergue, tive a sensação de ser espiado. Era mesmo mais que uma sensação, era uma certeza. Seriam meliantes? Seriam agentes do governo? Tanto num caso como noutro, não desejava nada reviver a mesma prova todas as noites.

Sei que não é prudente conviver de tão perto com um homem como o capelão, que foi outrora uma personagem influente, e de quem as autoridades continuam a desconfiar. Se pensasse apenas na minha segurança, deveria efectivamente manter as distâncias. Mas a minha principal preocupação não é a prudência, de outro modo não teria vindo até Londres à procura do Centésimo Nome, e há muitas outras coisas que teria evitado fazer. Não, a minha preocupação hoje é recuperar esse livro, e partir daqui logo que possível levando-o debaixo do braço.

E é vivendo nas proximidades deste homem, e cumprindo o meu contrato com ele, que poderei mais rapidamente atingir o meu objectivo.

Depois de me ter instalado num quarto no último andar, mesmo por cima do capelão e longe da algazarra da sala grande, Bess subiu a escada por três vezes para se assegurar de que não me faltava nada.

Estas pessoas são de comércio agradável, acolhedoras, generosas, gostam de rir e da boa mesa. Parece-me que a estada será bastante agradável, mas não tenciono eternizar-me aqui.

26 de Agosto

Deveria começar hoje a minha leitura em voz alta do Centésimo Nome. Mas depressa tive de me interromper, por um motivo estranho que muito me inquieta. Éramos quatro na sala onde vive o capelão, tendo este chamado dois jovens que parecem seus discípulos e que fazem as vezes de escribas. Um deles, chamado Magnus, deveria ocupar-se de transcrever cuidadosamente a tradução latina do texto, o outro, que se chama Calvin, devia anotar os comentários.

Escrevo «deveria», «devia», porque as coisas não se passaram como nós prevíamos. Eu tinha começado por ler e traduzir o título integral, Revelação do nome oculto do Senhor das criaturas; depois o nome completo de Mazandarani, Abou-Maher Abbas filho de Fulano, filho de Sicrano, filho de Beltrano... Mas apenas virei a primeira página, a sala escureceu, como se uma nuvem de fuligem tivesse vindo tapar o sol, impedindo os raios de chegarem até nós. Até mim, deveria eu dizer, porque as outras pessoas que estavam na sala não pareciam ter notado o que acabava de acontecer.

No mesmo instante, Bess empurrou a porta para nos trazer cervejas, o que me deu uma breve trégua. Mas imediatamente os olhares se voltaram de novo para mim, e o capelão, intrigado com o meu silêncio, perguntou-me o que tinha e por que não continuava a leitura. Respondi que estava com uma enxaqueca, que me parecia ter a cabeça apertada num torno, e que isso me toldava os olhos. Ele aconselhou-me a ir descansar, para que pudéssemos retomar a leitura amanhã.

Assim que ele proferiu estas palavras, fechei o livro e tive nesse mesmo instante a sensação de ter voltado à luz. Senti um imenso bem-estar, que tive o cuidado de dissimular, com receio de que os meus anfitriões imaginassem que o mal-estar era simulado.

E no momento em que escrevo estas linhas no meu caderno, tenho a impressão de que esse obscurecimento nunca aconteceu, de que apenas o sonhei. Mas sei, sem sombra de dúvida, que não é assim. Alguma coisa me aconteceu, da qual não sei o que pensar, nem o que dizer - foi por isso que não confessei a verdade ao capelão quando me perguntou por que tinha interrompido a leitura. Qualquer coisa cuja natureza me escapa, mas que me traz à memória um incidente de há mais de um ano, que na altura não me parecera conter nenhum mistério. Regressava de casa do velho Idriss com o livro que ele me tinha oferecido, e tinha-o folheado na minha loja; parecia-me então que a luz era suficiente, mas não conseguira lê-lo. Também na véspera, de resto, se tinha produzido o mesmo fenómeno, que me tinha impressionado ainda menos. Quando estava em casa de Idriss, exactamente, na sua cabana. É claro, esta era muito escura, mas não ao ponto de tornar as páginas interiores deste livro totalmente indecifráveis, quando conseguira ler sem problemas o título, cujos caracteres não eram sensivelmente maiores.

Há aqui um fenómeno que não sei explicar, que me inquieta e me perturba e me assusta.

Seria uma maldição ligada a este texto?

Seria o meu próprio terror de ver desenharem-se à minha frente os caracteres do nome supremo?

Pergunto a mim mesmo se todos aqueles que abordaram O Centésimo Nome não terão tido a mesma sensação, a mesma cegueira. Talvez este texto esteja colocado sob o signo de um encantamento protector, de um amuleto enredado, de um talismã - eu sei lá!

Se é esse o caso, nunca chegarei ao fim. A menos que a maldição seja também, de um modo ou de outro, levantada ou «desatada».

Mas a presença de um tal nó, de uma tal maldição, não será também, em si mesma, a prova de que não se trata de um livro como os outros, e de que contém efectivamente as verdades mais preciosas, as mais indizíveis, as mais temíveis, as mais interditas?

27 de Agosto de 1666

Ontem à tarde, enquanto escrevia o meu diário de viagem à luz do dia, que aqui cai muito tarde, tive a surpresa de ver Bess entrar no meu quarto. A porta estava entreaberta, ela batera, depois empurrara a porta no mesmo movimento. Arrumei o meu caderno em cima da cama, sem parecer apressar-me, e prometendo a mim mesmo retomá-lo quando ela saísse. Mas ela ficou um longo momento, após o que eu já não tinha no espírito aquilo que me preparava para escrever.

Bess mostrou-se inquieta com a minha enxaqueca, da qual prometia a si mesma livrar-me. Falou de «desatar» qualquer coisa nas minhas costas ou na minha nuca, e essa palavra despertou a minha curiosidade. Ela convidou-me a sentar numa cadeira baixa, e atrás de mim, com os dedos e as palmas das mãos, amassava-me pacientemente a carne e os ossos. Não tendo a dor que pretendia, mas uma dor manhosa e inconfessável, não pude avaliar a eficácia do seu método. A sua aplicação no entanto era comovente, e para não a melindrar disse-lhe que me sentia de repente reanimado. Ela propôs então vir exercer a sua arte da mesma maneira quando eu estivesse mergulhado na leitura. Apressei-me a recusar. E assim que ela saiu do meu quarto, dei por mim a rir sozinho. Imaginava-me a ler, a traduzir, rodeado pelo capelão e pelos seus dois discípulos, enquanto uma boa mulher me massajava os ombros e as costas e a nuca, com as suas mãos de curandeira. Imagino que a serenidade do auditório sofreria com isso...

Dito isto, terei de acabar por encontrar um remédio para a minha enfermidade, sem o que a minha leitura terá de ser interrompida dentro de pouco tempo. Hoje houve como que uma breve clareira que me permitiu ler algumas linhas da apresentação de Mazandarani, depois a escuridão voltou. Aproximei-me um pouco da janela, e tive a impressão de que as páginas eram mais legíveis, mas isso pouco durou, a luz não tardou a enfraquecer, e em breve já não via nada. Envoltos, os meus olhos e eu, em espessas trevas. O capelão e os seus discípulos mostraram-se decepcionados, e irritados, mas não me acusaram de nada, e aceitaram adiar a leitura para amanhã.

Agora tenho a certeza de que uma vontade poderosa protege este texto contra os olhares ávidos. O meu faz parte deles. Não sou um ser santo, não tenho mais mérito do que qualquer outro, e também eu se estivesse no lugar do Altíssimo, não seria por certo a um indivíduo como eu que revelaria o segredo mais precioso! Eu, Baldassare Embriaco, negociante de curiosidades, honesto mas sem grande piedade, sem qualquer santidade, sem sofrimentos nem sacrifícios a fazer valer, nem pobreza, por que diabo haveria de ter o privilégio de ser escolhido por Deus como depositário do Seu nome supremo? Por que havia Ele de me aceitar assim na Sua intimidade a exemplo de Noé, de Abraão, de Moisés ou de Job? Seria preciso muito orgulho, e muita cegueira, para imaginar por um instante que Deus poderia ver em mim um ser de excepção. Algumas das Suas criaturas são notáveis pela beleza, pela inteligência, pela piedade, pela devoção, pelo temperamento, e Ele poderia gabar-se, se assim ouso dizer, de ser o seu autor. Mas não pode gabar-se nem lamentar-se de me haver criado a mim. Deve contemplar-me do alto do Seu trono celeste se não com desdém, ao menos com indiferença...

E no entanto aqui estou em Londres, tendo atravessado metade do mundo em busca deste livro, e tendo-o reencontrado contra todas as expectativas! Será loucura pensar que, mau grado tudo aquilo que acabo de dizer, o Altíssimo me segue com o olhar, e me guia em certos caminhos que sem Ele eu não poderia conhecer? Todos os dias tenho nas minhas mãos O Centésimo Nome, já lhe desbravei algumas páginas, avanço passo a passo no seu labirinto. Só esta estranha cegueira retarda a minha progressão, mas este é talvez apenas um obstáculo depois de outros, uma prova depois de outras, que acabarei por transpor. Graças à minha perseverança, à minha teimosia, ou pela vontade insondável do Senhor das criaturas...

28 de Agosto de 1666

Também hoje houve uma clareira, um pouco menos breve que a de ontem. Parece-me que a minha perseverança dá frutos. Havia continuamente sobre o livro ou sobre os meus olhos como que um véu de sombra, mas que não obscurecia as palavras. Consegui pois ler três páginas inteiras antes que a sombra se adensasse, e as linhas se confundissem.

Nessas páginas, Mazandarani procura refutar a opinião muito difundida segundo a qual o nome supremo, se existe, não deveria ser pronunciado pelos homens, porque os seres e os objectos que se podem nomear são aqueles sobre os quais se pode exercer uma certa autoridade, enquanto Deus não pode, com toda a evidência, ser objecto de qualquer dominação. Para afastar essa objecção, o autor compara o islão ao judaísmo. Se a religião de Moisés sanciona efectivamente aqueles que pronunciam o nome inefável, e se esforça por encontrar os meios para evitar qualquer menção directa do nome do Criador, a religião de Maomé opôs-se resolutamente a essa atitude, exortando os crentes a pronunciar dia e noite o nome de Deus.

De facto, confirmei eu ao capelão e aos seus discípulos, não há, nos países do islão, uma conversa em que não surja dez vezes o nome de Alá, nenhum tratado em que as duas partes não jurem incessantemente por Ele, «wallah», «billah», «bismillah», nenhuma fórmula de acolhimento, ou de despedida, ou de ameaça, ou de exortação, ou mesmo de lassidão, em que ele não seja explicitamente invocado.

Esse encorajamento a repetir incessantemente o nome de Deus não se aplica apenas a Alá, mas aos noventa e nove nomes que lhe são atribuídos, bem como ao centésimo para aqueles que o conheçam. Mazandarani cita aliás o versículo que está na origem de todos os debates sobre o nome supremo - «Glorifica o nome do teu Senhor, o muito grande» - fazendo notar que o Alcorão não se limita a dizer-nos que existe um nome «muito grande», mas nos convida claramente a glorificar Deus por esse nome...

Ao ler esta passagem, lembrei-me das palavras que, no mar, me dissera o príncipe Ali Esfahani, e disse para mim mesmo que a despeito das suas negações, estou convencido de que ele já teve oportunidade de ler a obra de Mazandarani. Perguntei-me então se, enquanto o folheava, ele teria sentido, como eu, esta cegueira passageira. E foi no preciso momento em que esta interrogação me atravessou o espírito que o obscurecimento voltou, impedindo-me de continuar a leitura... Agarrei a cabeça com as mãos, simulando uma forte enxaqueca, e os meus amigos lamentaram-me, procuraram tranquilizar-me e sugerir remédios. O mais eficaz, disse-me Magnus, que sofre por vezes dessas dores, seria mergulhar... na escuridão mais total. Ah, se ele soubesse!

Embora a sessão tenha sido curta, os meus amigos estão hoje menos decepcionados. Li, traduzi, expliquei, e se pudesse fazer o mesmo dia após dia, este livro em breve não teria nenhum segredo para eles - nem para mim.

Não retomamos a leitura amanhã, mas na segunda-feira. Quem dera que eu pudesse «oficiar» nas mesmas condições que hoje. Não peço ao Céu que rasgue de uma vez por todas este véu que obscurece os meus olhos, peço-Lhe apenas que o levante um pouco cada dia. Será isto pedir demasiado?

Domingo, 29 de Agosto

Esta manhã eles foram todos cedo à missa, que é aqui obrigatória a tal ponto que os recalcitrantes, frequentemente denunciados pelos seus vizinhos, são punidos com prisão, por vezes com chicotadas, e incómodos diversos. Eu, como estrangeiro e «papista», estou dispensado disso. Mas é do meu interesse, disseram-me, não pavonear demasiado a minha cabeça de ímpio pelas ruas.

Fiquei pois no meu quarto a descansar, a ler e a escrever, ao abrigo dos olhares. Raramente tenho ocasião de preguiçar para que o não aprecie.

O meu quarto é como um torreão por cima da cidade, dando para a direita sobre uma fila de telhados, e para a esquerda sobre a catedral de S. Paulo que, dadas as suas dimensões, parece muito próxima. O espaço à volta da minha cama é reduzido, mas basta passar por cima de algumas caixas e meter-me entre as vigas para me encontrar num vasto sobrado onde reina a fresquidão. Sentei-me ali na penumbra durante um longo momento. Talvez haja ali ratos e percevejos, mas eu não os vi. Estive, durante toda a manhã, de humor sereno, contente por me terem esquecido e desejando que me esquecessem ainda por muito tempo, nem que eu tivesse de jejuar até à noite.

30 de Agosto

Devíamos retomar a leitura, mas o chaplain ausentou-se esta manhã sem me avisar. Os seus jovens discípulos também. Bess disse-me que voltarão dentro de três ou quatro dias. Embora ela se tenha mostrado inquieta, não me fez nenhuma confidência.

Mais um dia de ociosidade, portanto, e não me queixo disso. Mas, em vez de preguiçar no meu quarto ou nas dependências, decidi passear por Londres.

Como me sinto estrangeiro nesta cidade! Tenho constantemente a impressão de atrair os olhares, olhares sem amenidade, em nenhuma outra parte os viajantes são espiados com tanta hostilidade. Será por causa da guerra que continua com os holandeses e com os franceses? Será por causa das velhas guerras intestinas, que puseram o irmão contra o irmão, o filho contra o pai, e instalaram por muito tempo nos espíritos a amargura e a suspeição? Será por causa dos Fanáticos, que são ainda legião, e que são rapidamente enforcados desde que descobertos? Talvez por tudo isso ao mesmo tempo, a tal ponto que os inimigos - reais ou supostos - são aqui inumeráveis.

Tinha vontade de visitar a catedral de S. Paulo, mas desisti, com receio de que algum sacristão se zangasse e me denunciasse. Todo o «papista» é suspeito, principalmente se é originário de Itália; era pelo menos essa a minha impressão durante todo o passeio Tive de lutar a todo o instante comigo mesmo para vencer a sensação de mal-estar que me acompanhava a cada passo. O único lugar onde me sentia em segurança era entre os livreiros que têm as suas lojas nas proximidades do cemitério de S. Paulo. Junto deles, eu já não era um estrangeiro, já não era um papista, era um confrade e um cliente.

Sempre pensei isso, mas hoje penso-o ainda mais: o negócio é a única actividade respeitável, e os mercadores são os únicos seres civilizados. Não eram os mercadores que Jesus deveria expulsar do Templo, mas os soldados e os padres!

31 de Agosto

Preparava-me para sair a dar uma nova volta para o lado das livrarias, quando Bess me convidou para beber uma cerveja na sua companhia, e sentámo-nos à mesa a um canto da taberna como se fôssemos clientes. Ela levantou-se várias vezes para servir bebidas ou trocar algumas palavras com os clientes habituais. Mas no conjunto houve pouco vaivém, e o barulho era apenas o necessário, nem demasiado baixo para que fossemos forçados a murmurar, nem demasiado alto para que tivéssemos que gritar.

Algumas palavras de Bess escaparam-me, mas parece-me que percebi quase tudo, e também ela me compreendeu. Mesmo quando, levado pelo meu relato, eu punha mas minhas frases mais italiano do que inglês, ela abanava a cabeça ainda mais para me indicar que tinha compreendido tudo. Acredito de bom grado. Todo o ser dotado de razão e de boa vontade pode compreender um pouco de italiano!

Bebemos bem umas duas ou três canecas cada um - ela talvez um pouco mais; mas não era a embriaguez que nos guiava. Nem o tédio, de resto, nem a simples curiosidade, nem o desejo de tagarelice. Tínhamos, um e outro, necessidade de encontrar um ouvido amigo, e uma mão amiga. Falo disto com surpresa, porque acabo de descobrir, ao fim de quarenta anos de existência, a sensação de plenitude que podem proporcionar algumas horas passadas em comunhão íntima e casta com uma desconhecida.

No início da nossa longa conversa, houve uma espécie de jogo infantil. Estávamos sentados, com as canecas na mão, que acabávamos de tocar proferindo uma qualquer fórmula; ela sorria, e eu já me perguntava se teríamos alguma coisa a dizer um ao outro, quando ela tirou do bolso do avental um canivete, com o qual traçou um rectângulo na madeira.

- Isto é a nossa mesa - disse ela.

Desenhou um pequeno círculo do meu lado, outro do seu lado.»

- Esta sou eu, este és tu.

Eu tinha adivinhado, esperava a continuação.

Estendeu a mão até ao extremo da mesa e traçou sem cerimónia um risco tortuoso que terminou no pequeno círculo que me representava; depois, a partir do extremo oposto, um traço ainda mais tortuoso que terminou nela.

- Eu cheguei daqui, e tu dali. Hoje estamos sentados à mesma mesa. Eu conto-te o meu caminho, tu contas-me o teu?

Nunca conseguirei recordar com suficiente exactidão tudo o que Bess me disse hoje, sobre si mesma, sobre Londres e a Inglaterra destes últimos anos - as guerras, as revoluções, as execuções, os massacres, os Fanáticos, a grande peste... Antes de escutá-la, eu pensava saber algumas coisas sobre este país; agora sei que não sabia nada.

Que deveria eu registar de tudo isso nestas páginas? Em primeiro lugar, aquilo que diz respeito às pessoas com quem convivo desde a minha chegada. E também o que se refere ao objecto da minha viagem, os rumores e as crenças que predizem o fim dos tempos. Nada mais.

Aquilo que penso relatar, não o escreverei esta tarde. Tenho a cabeça pesada, de súbito, e não me sinto capaz de alinhar as palavras e as ideias de maneira coerente. Vou para a cama, sem esperar pela noite. Amanhã levanto-me cedo e recomeço a escrever, de espírito claro.

Quarta-feira, 1 de   Setembro de 1666

Esta manhã, acordei sobressaltado. Acabava de me lembrar daquilo que me dissera o meu amigo veneziano no barco que nos levava para Génova, e que devo ter relatado neste mesmo caderno. Não dissera ele que os moscovitas esperavam o fim do mundo para este dia, um de Setembro, que é para eles o começo do novo ano? Só depois de aspergir o rosto com água fria me lembrei de que em Moscovo, tal como em Londres, o dia que agora começou é o de quarta-feira 22 de Agosto. Trata-se portanto apenas de um falso alerta. O fim do mundo é apenas daqui por dez dias. Ainda tenho tempo para me refastelar, cavaquear com Bess, e visitar os livreiros.

Espero que dentro de dez dias torne a tomar ainda a coisa com a mesma ligeireza!

Mas deixemo-nos de basófias, devo registar imediatamente aquilo que soube através de Bess, antes que me esqueça. Ao fim de um dia e uma noite, já certas frases se enredam.

Ela falou-me primeiro da peste. Um rapaz muito jovem acabava de entrar na taberna, e ela disse-me, indicando-o com o queixo, que ele era o último sobrevivente da sua família. E que ela própria tinha perdido tal ou tal dos seus parentes. Quando foi isso? No ano passado. Baixou a voz e debruçou-se ao meu ouvido para murmurar: «Ainda hoje, há pessoas que morrem de peste, mas quem o disser em voz alta é incomodado.» O próprio rei mandou celebrar missas para agradecer ao Céu ter posto fim à epidemia. Quem ousasse afirmar que ela não acabou estaria quase a acusar de mentira o rei e o Céu! A verdade, no entanto, é que a peste ronda pela cidade, e mata. Umas vinte pessoas por semana, quando não são duas ou três vezes vinte. É verdade que isso não é grande coisa quando pensamos que há um ano, a peste matava em Londres mais de mil pessoas por dia! A princípio, enterravam as vítimas de noite, para evitar que a população se apavorasse; quando as coisas se agravaram, já nem se podia tomar essa precaução. Começou-se então a reunir cadáveres tanto de dia como de noite. As carroças passavam mesmo pelas ruas, sobre as quais as pessoas atiravam os corpos dos seus pais, ou dos seus filhos, ou dos seus vizinhos, como se se tratasse de colchões podres!

- A princípio, temos medo pelos nossos parentes, disse Bess. Mas, à medida que as pessoas vão morrendo, já só temos uma ideia na cabeça: salvar-nos!, sobreviver! e que morra o mundo inteiro! Não chorei nem a minha irmã, nem os meus cinco sobrinhos e sobrinhas, nem o meu marido - Deus me perdoe! Já não tinha lágrimas! Tenho a impressão de ter atravessado esse período de olhos esgazeados, como uma sonâmbula. Perguntando apenas a mim mesma se aquilo algum dia teria fim...

Os ricos e poderosos tinham desertado da cidade, a começar pelo rei e pelos chefes da Igreja. Os pobres ficaram, porque não tinham nenhum lugar para onde ir; aqueles que erravam pelas estradas morriam de fome. Mas houve também alguns seres nobres que se obstinaram em querer combater o mal, ou pelo menos aliviar os sofrimentos dos outros. Alguns médicos, alguns religiosos. O nosso chaplain era um deles. Ele podia ter-se ido embora, também, explicou-me ela. Não é desprovido, e um dos seus irmãos possui uma casa em Oxford que foi, de todas as cidades do reino, a mais poupada. Ele não quis fugir. Ficou no bairro, obstinando-se em visitar os doentes, em reconfortá-los. Dizia-lhes que o mundo estava a ponto de se extinguir, e que eles mesmos partiam um pouco antes dos outros; dentro de algum tempo, quando estivessem alojados nos jardins do paraíso, rodeados dos frutos deliciosos do Éden, veriam chegar o resto das pessoas, e caber-lhes-ia a eles reconfortá-las.

- Vi-o à cabeceira da minha irmã, segurava-lhe a mão e conseguia serená-la, e até arrancar-lhe um sorriso de beatitude. Agia da mesma maneira com todos aqueles que visitava. Ignorava os conselhos dos seus amigos, e desafiava mesmo a quarentena. Era vê-lo, nesses tempos de miséria, caminhar pelas ruas quando as pessoas se metiam na toca, uma enorme silhueta toda branca, com os hábitos todos brancos, os longos cabelos brancos, a longa barba branca, dir-se-ia Deus Pai! Quando as pessoas avistavam uma cruz vermelha desenhada numa casa, persignavam-se e desviavam-se para evitá-la. Ele caminhava a direito para a porta. Deus há-de recompensá-lo um dia...

Mas as autoridades não lhe manifestaram qualquer gratidão por ser tão dedicado, e a populaça ainda menos. No fim do ano passado, quando a peste começava a enfraquecer, foi preso por um alabardeiro que o acusou de ajudar à propagação do mal pelas visitas que fazia aos empestados; e quando foi liberto oito dias depois, descobriu que a sua casa tinha sido incendiada de alto a baixo. Tinham espalhado o boato de que ele tinha uma poção secreta que lhe permitia sobreviver, mas se recusava a deixar que os outros partilhassem dela. Enquanto ele estava detido, uma horda de maltrapilhos entrou na sua casa para descobrir a pretensa poção, saqueou tudo, levou tudo o que podia ser levado, depois deitou fogo a tudo o resto, tanto para manifestar a sua raiva como para dissimular a sua malfeitoria.

Queriam obrigá-lo a abandonar a cidade, assegura Bess. Mas ela ofereceu-lhe alojamento, por gratidão, e está orgulhosa disso. Porque é que querem mal ao velho? Por causa das suas actividades passadas. Ela falou-me longamente sobre isso, citando numerosos nomes de que eu não conhecia nem metade nem um terço; por isso não consegui reter grande coisa. Quando muito que o chaplain, que havia sido capelão no exército de CromwelU, tinha depois entrado em conflito com este último, e tentara fomentar uma rebelião contra ele. Foi de resto por esse motivo que na restauração da monarquia, faz agora seis anos, quando os dignatários da revolução foram todos perseguidos, ou condenados ao exílio, e o próprio cadáver de Cromwell foi desenterrado para ser enforcado e queimado em público, o chaplain foi relativamente poupado. Mas não perdoado, como nunca será totalmente perdoado quem se rebelou contra a monarquia, ou quem, de perto ou de longe, foi cúmplice da execução do rei Carlos. O chaplain faz parte, e segundo Bess - fará sempre parte, até à morte e para lá dela, desses mal amados.

Antes de interromper o meu relato, uma última coisa, que menciono rapidamente com receio de que me deslize da memória, e à qual prometo voltar: as desgraças da Inglaterra começaram - também elas, deveria eu dizer - em 1648. Esta data reaparece constantemente na minha pena: o fim das guerras da Alemanha; o advento do ano judaico da Ressurreição e o início das grandes perseguições de que Maimoun me falou vagamente; a publicação do livro russo da Fé, que fixava a data do fim do mundo para este ano; e na Inglaterra a decapitação do rei, acontecimento cuja maldição todo o país transporta ainda, e que decorreu, segundo o calendário daqui, no final do ano de 1648; do mesmo modo, para mim, esse ano foi o da visita de Evdokime, o peregrino da Moscóvia, que está na origem das minhas desgraças, bem como o da morte do meu pai, em Julho...

É de crer que nesse ano se abriu uma porta, uma porta maléfica pela qual chegaram - para o mundo e para mim - diversas calamidades. Lembro-me de que Bumeh tinha falado dos três últimos degraus, três vezes seis anos, que iam conduzir do ano do prólogo ao ano do epílogo.

A minha razão repete-me que alinhando números e números se sugere toda a espécie de coisas sem nada provar. E de momento, para esta noite ao menos, tento escutar ainda o que diz a minha razão.

2 de Setembro

Anteontem eu falava, a propósito da minha longa conversa com Bess, de uma comunhão íntima e casta. Desde a noite passada, ela é um pouco mais íntima, e menos casta.

Tinha passado o dia inteiro a escrever, e avançava muito devagar. Escrevo na minha língua, mas em letras árabes, e com o meu próprio código, o que implica muitos ajustes antes de que cada palavra seja anotada. Quando, para além disso, tento lembrar-me daquilo que Bess me disse em inglês, o exercício torna-se esgotante.

Fiz no entanto progressos, como prova todo este texto que alinhei ontem, escrito durante a manhã, depois terminado à tarde. Não que eu tenha fixado nestas páginas tudo aquilo que tencionava reter, mas aliviei a memória de muitas coisas que poderiam ter-se perdido.

Por duas vezes, Bess trouxe-me de comer e de beber, e demorou-se um pouco a ver-me traçar estas letras misteriosas, da direita para a esquerda. Já não escondo o meu caderno quando a oiço vir, ela está dentro de todos os meus segredos, agora, e confio nela. Simplesmente, deixo-a acreditar que escrevo em árabe normal, nunca lhe revelarei - nem a ela nem a ninguém! - que utilizo uma linguagem disfarçada que me é própria.

Quando a sala de baixo ficou vazia à hora de fechar, Bess veio propor-me que jantássemos juntos e conversássemos outra vez como tínhamos feito na véspera. Prometi-lhe ir ter com ela lá em baixo, na mesma mesa de ontem, assim que tivesse acabado o parágrafo que estava a escrever.

Mas o parágrafo alongou-se, e eu não me atrevia a interromper nem a encurtar, com receio de nunca mais me lembrar, depois de uma nova conversa, das coisas que tinha ouvido antes. Esquecendo a minha promessa, escrevia, portanto, escrevia sem pensar em mais nada, de modo que a minha hospedeira teve tempo para arrumar tudo na sala de baixo, e depois voltar a subir sem que eu tivesse largado a pena.

Longe de manifestar qualquer irritação, ela saiu em bicos de pés, para voltar alguns minutos depois com um tabuleiro que colocou sobre a minha cama. Prometi-lhe que estava mesmo nas últimas linhas, e que depois jantaríamos juntos; ela fez-me sinal para que não me apressasse, e voltou a sair.

Mas eu voltei a mergulhar imediatamente no meu relato, esquecendo de novo a mulher e o jantar, e convencido de que também ela me esquecera. No entanto, quando a chamei, entrou imediatamente, como se estivesse à espera atrás da porta; continuava com o mesmo sorriso e não manifestava nenhuma impaciência. Tanta delicadeza tocava-me e surpreendia-me. Agradeci-lhe por isso, o que a fez corar. Ela que não corava com uma grande palmada nas nádegas, corava com uma palavra de agradecimento!

Sobre o tabuleiro que ela trouxera, havia carne seca cortada em fatias finas, um queijo, pão mole e daquela cerveja a que ela chama «cremosa», mas que é principalmente muito condimentada. Perguntei-lhe se não queria comer comigo, ela disse-me que tinha tasquinhado durante todo o dia ao servir os clientes, o que era seu costume, e que nunca tinha fome à hora das refeições. Tinha simplesmente trazido uma cerveja igual para que pudéssemos brindar tocando as canecas. Por isso, depois de me ter visto a escrever, ela viu-me a comer. Um olhar em tudo comparável ao da minha irmã Plaisance, ou outrora da minha pobre mãe, olhar que envolve completamente aquele que come e a sua comida, que acompanha com os olhos cada bocado, e que nos faz voltar a ser crianças. Eu estava de súbito em minha casa, na casa desta estrangeira. Não pude mesmo impedir-me de pensar nas palavras de Jesus, «Eu tinha fome e tu deste-me de comer». Contudo eu não estava ameaçado pela fome; sofri, ao longo da minha vida, mais da intemperança do que da penúria; mas havia na maneira como aquela mulher me alimentou qualquer coisa de seio maternal. Senti no mesmo instante por ela, pelo seu pão, pela sua cerveja cremosa, pela sua presença, o seu sorriso atento, a sua postura paciente, o seu avental manchado, as suas redondezas desajeitadas, uma afeição ilimitada.

Ela estava de pé, descalça, encostada à parede, com a caneca na mão. Levantei-me com a minha própria cerveja para brindar, depois agarrei-a ternamente pelos ombros dizendo-lhe mais uma vez obrigado a meia voz, antes de lhe depor um beijo leve na base da testa, entre as sobrancelhas.

Ao afastar-me, vi que os seus olhos estavam rasos de lágrimas; que os seus lábios, esboçando um sorriso, estremeciam de espera. Ela agarrou desajeitadamente os meus dedos na sua mão gorducha, apertando com força. Puxei-a então para mim e acariciei-lhe lentamente com a palma da mão os cabelos e o vestido. Deixou-se ir de encontro a mim e deitou-se como que debaixo de um cobertor em tempo de muito frio. Envolvi-a então inteiramente com as mãos, com os braços, sem apertar demasiado, antes aflorando-a, como se, com as pontas dos dedos e as palmas das mãos, verificasse às apalpadelas os limites do seu corpo, do seu rosto trémulo, das suas pálpebras que ocultavam uns olhos húmidos, e até às ancas.

Entre as suas duas passagens pelo meu quarto, ela tinha mudado de vestido e aquele que trazia agora era verde-escuro, com reflexos ondeados e um toque sedoso. Estava tentado a deitar-me contra ela sobre a cama muito próxima, mas decidi continuar de pé. Apreciava o ritmo das coisas e principalmente não queria acelerá-lo. Ainda não caíra a noite, lá fora era quase de dia, e nós não tínhamos nenhum motivo para abreviar os nossos prazeres como noutras alturas se quereria abreviar os sofrimentos. Mesmo quando ela quis atirar-se para cima da cama, eu mantive-a de pé; ficou surpreendida, creio, e deve ter feito perguntas a si mesma, mas deixou-me conduzir a dança. Quando os amantes se deitam demasiado cedo, perdem metade das delícias. O primeiro tempo do amor passa-se de pé, quando vogamos agarrados um ao outro, aturdidos, cegos, cambaleantes; não será melhor que o passeio se prolongue, falando ao ouvido e roçando os lábios, despindo-se um ao outro lentamente e de pé, abraçando-se perdidamente depois de cada peça de roupa tirada?

Ficámos pois assim, um longo momento, a derivar à volta da cama, com murmúrios lentos e carícias lentas. As minhas mãos aplicaram-se a despi-la, depois a envolvê-la, e os meus lábios escolhiam pacientemente no seu corpo fremente os pontos onde colher, onde pousar, onde colher outra vez, das pálpebras que lhe velavam os olhos, às mãos que dissimulavam os seios, às ancas largas brancas nuas. A amante um campo de flores, e os meus dedos e os meus lábios um enxame de abelhas.

Em Esmirna, numa certa quarta-feira no convento dos capuchinhos, eu conhecera um momento de prazer intenso, quando com Marta nos tínhamos amado receando a todo o instante o aparecimento dos meus sobrinhos, ou de Hatem, ou de algum monge. Aqui, em Londres, esta quarta-feira de amplexos tinha um sabor igualmente enfeitiçante, mas de maneira inversa. Lá, a pressa e a urgência davam a cada momento uma intensidade furiosa; enquanto aqui, o tempo ilimitado dava a cada gesto uma ressonância, uma duração, ecos que o enriqueciam e o intensificavam. Lá, éramos animais perseguidos, perseguidos pelos outros e pela sensação de desafiar o interdito. Aqui, nada disso, a cidade ignorava-nos, o mundo ignorava-nos, e nós não nos sentíamos de modo nenhum em falta, vivíamos à margem do mal e do bem, na penumbra do interdito. A margem do tempo, também. O sol cúmplice punha-se com uma suave lentidão, e a noite cúmplice prometia ser longa. íamos poder esgotar-nos um e outro gota a gota, até à última delícia.

7 de Setembro

O capelão regressou, tal como os seus discípulos. Já estavam em casa quando me levantei. Ele nada me disse sobre os motivos da sua ausência, e eu nada lhe perguntei. Apenas murmurou uma desculpa.

Mais vale escrevê-lo já no começo desta página, qualquer coisa se estragou hoje nas minhas relações com estas pessoas. Lamento-o e sofro com isso, mas não creio que pudesse evitar aquilo que aconteceu.

O capelão regressou contrariado, irritado, e deu desde logo mostras de uma grande impaciência.

- Precisamos de avançar hoje mesmo com esse texto, para dele retirar a substância, se há nele alguma substância. Ficaremos aqui, de dia e de noite, e aquele que se cansar não é dos nossos.

Surpreendido por estas palavras, e também pelo tom, e pelos rostos fechados que me rodeavam, respondi que faria tudo o que pudesse para chegar ao fim da leitura, mas também acentuei que os sofrimentos que tinham atrasado a minha leitura não eram culpa minha. Pareceu-me detectar aqui e ali trejeitos dubitativos, que deixei passar, persuadido de que não tinha razão. E claro que não tinha mentido quanto ao essencial, pois não tenho culpa nenhuma nesses acessos de cegueira que atrasaram a leitura; mas tinha mentido quanto aos sintomas, e simulado por vezes dores de cabeça. Talvez eu devesse ter confessado desde o início qual o mal que me afecta, por mais misterioso que ele seja. Agora é demasiado tarde, confirmaria as suas piores suspeitas se reconhecesse que tinha mentido, e se me lançasse na descrição de sintomas tão inauditos. Decidi pois não me contradizer, e esforçar-me por ler o melhor que pudesse.

Mas, neste dia, o Céu não foi meu aliado. Em vez de me facilitar um pouco a tarefa, complicou-a. Assim que abri o livro, as trevas instalaram-se. Não era apenas o livro que me era fechado, mas toda a sala, as pessoas, as paredes, a mesa, e até a janela eram agora da cor da tinta.

Por um instante, tive a sensação de haver perdido para sempre o uso dos meus olhos, e disse a mim mesmo que o Céu, depois de me ter lançado vários avisos que eu teimara em ignorar, decidira fazer-me sofrer o castigo merecido.

Fechei precipitadamente o livro, e de imediato consegui ver de novo. Não a visão plena que poderia alcançar ao meio-dia, mas como se fosse já ao anoitecer e o quarto estivesse iluminado por um candelabro. Um ligeiro véu persistiu, e persiste ainda no momento em que escrevo estas linhas. É de crer que existe no céu uma nuvem cuja sombra só a mim me cobre. As páginas deste caderno ficaram escuras a meus olhos como se tivessem envelhecido cem anos num dia. Quanto mais falo disto, mais me inquieto, e mais difícil me é continuar o meu relato.

Mas tem de ser.

- Que se passa agora? - Perguntou o capelão quando me viu fechar o livro.

Tive a presença de espírito para responder:

- Tenho uma proposta a fazer-vos. Vou subir para o meu quarto, ler o livro tranquilamente, e tomar notas, depois volto aqui amanhã de manhã com o texto em latim. Se esse procedimento me permite evitar as enxaquecas, repetimo-lo todos os dias e poderemos assim avançar regularmente na leitura.

Eu soube ser convincente, e o velho aceitou, sem grande entusiasmo é certo, e não sem me ter feito prometer voltar com vinte páginas traduzidas, nem menos uma.

Subi pois, seguido ao que me pareceu por um ou outro dos discípulos, a quem ouvi caminhar para lá e para cá diante da minha porta. Fingi não notar essa atitude de desconfiança para não ser forçado a mostrar-me melindrado. Uma vez sentado à mesa, coloquei O Centésimo Nome à minha frente, aberto no meio mas de face para baixo, e pus-me antes a folhear este caderno, onde tive a felicidade de

encontrar, no dia 20 de Maio, o resumo que tinha feito das palavras do meu amigo persa. Baseando-me naquilo que ele me dissera sobre o debate acerca do nome supremo e sobre a opinião de Mazandarani, redigi aquilo que amanhã apresentarei como uma tradução do que este último escreveu, tendo-me igualmente inspirado, para imitar o estilo, no pouco que tinha lido no princípio do livro maldito...

Por que escrevi eu «maldito!? Será ele maldito? Será bendito? Estará enfeitiçado? Ainda não sei nada disso. Sei apenas que está protegido por um escudo. Protegido de mim, em todo o caso.

8 de Setembro

Tudo correu bem. Li o meu texto em latim, e Magnus copiou-o palavra a palavra. O capelão disse que era assim que deveríamos ter procedido desde o princípio. Apenas me incitou a andar mais depressa na leitura.

Espero que isto seja apenas uma manifestação do seu entusiasmo recuperado, e que ele moderará as suas expectativas. Se não, receio o pior. Porque o subterfúgio a que recorri não pode continuar indefinidamente. Hoje, recorri àquilo que me dissera Esfahani, e também um pouco à minha memória. Poderia ainda recordar-me de algumas outras coisas que ouvi acerca do Centésimo Nome, mas não posso continuar indefinidamente este estratagema. Um dia ou outro, será preciso chegar ao fim deste livro, e citar o nome esperado, ou apenas aquilo que Mazandarani supõe.

Talvez eu devesse fazer, nos próximos dias, uma nova tentativa de leitura.

Tinha começado esta página cheio de esperança, mas a minha confiança no futuro diminuiu em algumas linhas, como diminui a luz de cada vez que abro o volume proibido.

9 de Setembro

Passei a noite de ontem e esta manhã a encher páginas em latim que pretendem interpretar o texto de Mazandarani. Por isso, não tenho já tempo nem força para pegar na pena para os meus próprios escritos, e limitar-me-ei a notas breves.

O capelão perguntou-me quantas páginas tinha conseguido traduzir até agora, respondi quarenta e três como poderia ter respondido dezassete ou sessenta e seis. Perguntou-me quantas páginas faltavam e eu respondi cento e trinta. Ele repetiu-me então que esperava que eu terminasse a leitura dentro de alguns dias, e certamente antes do fim da próxima semana.

Prometi, mas sinto a armadilha fechar-se. Talvez devesse fugir daqui...

10 de Setembro

A noite, Bess veio ter comigo. Fazia escuro, e ela deitou-se a meu lado. Nunca mais voltara depois do regresso do capelão. Saiu antes do amanhecer.

Se eu decidisse fugir, deveria avisá-la?

De manhã, terminei o meu texto do dia. A minha imaginação tomou o testemunho dos meus conhecimentos, que se esgotam. Os outros escutaram-me no entanto com mais atenção ainda. É verdade que eu fiz Mazandarani dizer que o nome supremo de Deus, quando tiver sido revelado, encherá de espanto e de pavor todos aqueles que julgam conhecê-lo.

Sem dúvida ganhei, junto dos meus três auditores, tempo e crédito. Mas não é aumentando aposta que colocamos a sorte do nosso lado!

11 de Setembro

É hoje que começa o novo ano russo, e não parei de pensar nisso durante toda a noite. Vi mesmo em sonho o peregrino Evdokime ameaçar-me com os raios e incitar-me ao arrependimento.

Quando nos reunimos, por volta do meio-dia, no quarto do capelão, comecei por evocar esta data na esperança de criar uma diversão. Exagerando um pouco, relatei as palavras que o meu amigo Girolamo me dissera no Sanctus Dionisius, a saber que este dia de S. Simão, que marca para eles o ano novo, será o último. E que o mundo vai ser destruído por um dilúvio de fogo.

Apesar dos olhares insistentes que os discípulos lhe dirigiam, o capelão manteve-se em silêncio. Escutando-me apenas distraidamente, e quase com indiferença. E embora evitasse pôr em dúvida aquilo que eu dizia, aproveitou um momento de silêncio para me fazer voltar à vaca fria. Contrariado, alisei as folhas e comecei a ler as minhas mentiras do dia...

Domingo, 12 de Setembro de 1666

Senhor! Senhor! Senhor!

Que mais dizer?

Senhor! Senhor!

Será possível que a coisa tenha acontecido?

A meio da noite, Londres começou a arder. E agora dizem-me que os bairros ardem um após outro. Da minha janela vejo o apocalipse avermelhado, das ruas sobem os gritos das criaturas apavoradas, e o céu está limpo de estrelas.

Senhor! Será possível que o fim do mundo seja assim? Não a irrupção súbita do nada, mas um fogo que se espalha pouco a pouco, um fogo eu visse subir como sobe a água do dilúvio, e pelo qual me sentisse submergido?

Será o meu próprio fim que eu contemplo da janela, que vejo aproximar-se, e que, debruçado sobre a minha página, me aplico a descrever?

O fogo avança, vai devorar tudo, e eu que estou sentado a esta mesa de madeira, a confiar os meus últimos pensamentos a um maço de papel inflamável! Loucura! Loucura! Mas esta loucura não será uma súmula da minha condição de mortal? Sonho com a eternidade quando a minha sepultura já está cavada, confiando piedosamente a minha alma àquele que se prepara para ma arrancar. Ao nascer separavam-me da morte alguns anos, hoje separam-me dela talvez algumas horas; mas aos olhos da eternidade, o que é um ano? O que é um dia? O que é uma hora? O que é um segundo? Essas medidas só têm sentido para um coração que bate.

Bess tinha vindo dormir comigo. Estávamos ainda abraçados um ao outro quando se ouviram gritos da vizinhança. Pela janela via-se ao longe, mas não muito longe, na direcção do Tamisa, a vermelhidão monstruosa, e por vezes algumas línguas de fogo erguiam-se e depois baixavam.

Pior ainda que as chamas e que a vermelhidão, aquele sinistro rangido, como se uma bocarra gigantesca de animal mordesse a madeira das casas, quebrasse, mastigasse, voltasse a mastigar e depois cuspisse.

Bess correu ao seu quarto para se cobrir, porque viera para o meu quarto seminua, depois voltou, seguida em breve pelo capelão e pelos seus dois discípulos que tinham dormido na casa. Estavam todos no meu quarto ao amanhecer, porque é da minha janela, a mais alta da casa, que o incêndio se vê melhor.

No meio das interjeições, dos choros, das preces, um ou outro mencionava uma rua ou um prédio alto que o incêndio tinha alcançado, ou contornado. Não conhecendo todos aqueles lugares, eu não sabia muito bem em que momento devia emocionar-me, ou inquietar-me, ou tranquilizar-me um pouco. E não queria importuná-los com as minhas perguntas de estrangeiro. Por isso retirei-me, afastei-me da janela, que deixei aos seus olhos habituados, limitando-me a registar no meu canto os comentários deles, os seus medos, os seus gestos.

Ao fim de alguns minutos, descemos juntos, uns atrás dos outros, pelas frágeis escadas de madeira para a sala de baixo, onde já não ouvíamos o clamor do fogo mas o da multidão que crescia continuamente e que parecia em fúria.

Se sobreviver tempo bastante para cultivar estas recordações, conservarei na memória algumas cenas triviais. Magnus, que saíra um momento para a rua, voltara para anunciar, em lágrimas, que a sua igreja, a igreja do seu protector, S. Magnus, perto da Ponte de Londres, estava em chamas. Durante esse dia de desgraça, ia haver mil notícias deste género, mas eu nunca hei-de esquecer a infinita aflição daquele jovem tão devotado à sua Fé, e que acusava mudamente o Céu de o haver traído.

A porta da ale house não se abriu em toda a manhã. Quando Magnus, ou Calvin, ou Bess iam por notícias, entreabriam-na para os deixar sair, e depois novamente para os deixar entrar. O capelão não se levantou uma única vez da poltrona onde tinha ancorado pesadamente. Quando a mim, abstive-me de aparecer na rua, em consequência dos rumores que se espalharam desde o amanhecer, e segundo os quais o incêndio teria sido ateado por aqueles a quem aqui chama os «papistas».

Acabo de escrever «desde o amanhecer», o que não é exacto. Gostaria de ser rigoroso até ao meu último suspiro, e não foi assim que as coisas aconteceram. De madrugada, o rumor dizia que o fogo tinha sido originado numa padaria da cidade, por causa de um forno mal apagado, ou de uma criada que teria adormecido, deixando as chamas propagarem-se primeiro nessa rua, que se chama Pudding Lane, e que fica muito perto do albergue onde passei as minhas duas primeiras noites londrinas.

Uma hora mais tarde, alguém na nossa rua disse a Calvin que houvera um assalto das esquadras holandesa e francesa, que puseram fogo à cidade a fim de criar uma grande confusão de que iam aproveitar-se para lançar ataques, e que era de esperar o pior.

Passada mais uma hora, não eram já as esquadras que estavam em causa, mas os agentes do papa, do «anticristo», que procuravam «uma vez mais» demolir este país de bons cristãos. Dizem-me mesmo que a multidão deteve algumas pessoas pela simples razão de não serem daqui. Não é bom ser estrangeiro quando a cidade está em chamas, por isso me escondi prudentemente durante todo este dia. Primeiro na grande sala de baixo, depois, quando vieram alguns vizinhos aos quais não se podia fechar a porta na cara, tive de me dissimular mais longe ainda, mais alto, no meu quarto, no meu «observatório» de madeira.

Foi para enganar a angústia, entre as minhas longas estadas à janela, que me pus a escrever estes parágrafos no meu caderno.

O sol pôs-se, e o incêndio continua a grassar. A noite é vermelha e o céu parece vazio.

Será possível que todas as outras cidades estejam em fogo como Londres? E que cada uma delas imagine, como Londres, que é a única Gomorra?

Será possível que neste mesmo dia, Génova esteja também em chamas? E Constantinopla? E Esmirna? E Tripoli? E mesmo Gibelet?

A luz enfraquece, e esta noite não acenderei nenhuma vela. Deito-me às escuras, a respirar os odores invernais da madeira queimada, e rogarei a Deus que me dê a coragem para adormecer uma vez mais.

Segunda-feira, 13 de Setembro de 1666

O apocalipse não está consumado, o apocalipse continua. é para mim o ordálio.

Londres nunca mais acaba de se abrasar e eu escondo-me do fogo num ninho de madeira seca.

Ao acordar, no entanto, desci para a sala grande onde encontreiBess, o capelão e os seus discípulos, abatidos cada um na sua cadeira, donde não se tinham mexido durante toda a noite. A minha amiga só abriu os olhos para me suplicar que voltasse para o meu esconderijo, com receio de que me vissem ou me ouvissem. Durante a noite, vários estrangeiros teriam sido presos, entre os quais dois genoveses. Não lhe disseram os nomes deles, mas a notícia era segura. Ela prometeu levar-me com que me alimentar, e eu vi nos seus olhos a promessa de um amplexo. Mas como poderíamos nós amar-nos numa cidade a arder?

No momento em que eu retomava prudentemente o caminho da escada, o capelão reteve-me pela manga.

- Parece bem que a vossa predição está em vias de se confirmar - disse ele com um sorriso forçado.

Ao que respondi com veemência que não era a minha predição, mas a predição dos moscovitas, que um amigo veneziano me havia contado no mar e que eu apenas transmitira. Nos tempos que correm, faço principalmente questão de não aparecer como um profeta da desgraça, já se queimaram tagarelas inofensivos por menos do que isso! O homem compreendeu a minha inquietação e pediu desculpa, dizendo que tinha feito mal em falar assim.

Quando Bess veio ter comigo um pouco mais tarde, repetiu-me as suas desculpas, jurando-me que o capelão não falara a ninguém dessa predição, e que tinha consciência do perigo que me faria correr se espalhasse tais rumores.

Encerrado o incidente, pedi-lhe notícias acerca do incêndio. Depois de um breve abrandamento, ele teria recomeçado a propagar-se, alimentado pelo vento leste; citou-me uma dezena de ruas que eram hoje presas das chamas, e cujos nomes não consegui reter. Única notícia tranquilizadora: na nossa rua, que no entanto se chama Wood Street, o fogo só progride muito lentamente. Por consequência, não se encara ainda nenhuma evacuação. Muito pelo contrário, uns primos de Bess vieram colocar móveis no quarto dela com receio de que a sua casa, mais próxima do Tamisa, seja em breve devastada.

Mas isto é apenas uma trégua. Se esta casa está hoje ao abrigo, já não o estará amanhã, e certamente não depois de amanhã. E bastaria que o vento soprasse um pouco mais do sul para que nos atingisse antes mesmo de podermos fugir. Isto, registo-o nestas páginas, mas não o disse a Bess, com receio de parecer também aos seus olhos como uma sinistra Cassandra.

Terça-feira, 14 de Setembro de 1666

Tive de me refugiar no sótão. Em suspenso, como esta casa, como esta cidade, como este mundo. Diante do espectáculo da cidade em fogo, deveria poder escrever como Nero cantava, mas a minha voz já só sai em frases desarticuladas.

Bess diz-me que espere, que não faça nenhum barulho, e que não tenha medo.

Espero. Não me mexo, não procuro já contemplar as chamas, e vou mesmo deixar de escrever.

Para escrever preciso de um pouco de urgência e de um pouco de serenidade. Demasiada serenidade torna os dedos preguiçosos, demasiada urgência torna-os indomáveis.

Parece que a populaça revista agora as casas à procura dos culpados escondidos.

Por todo o lado onde fui este ano, senti-me culpado. Mesmo em Amsterdão! Sim, Maimoun, meu amigo, meu irmão, ouves-me? Mesmo em Amsterdão!

Como vou eu morrer? Pelo fogo? Pela multidão? Já não escrevo. Espero.

 

                       A tentação de Génova

 

Em Génova, sábado, 23 de Outubro de 1666

Hesitei muito tempo antes de retomar a escrita. Esta manhã arranjei finalmente um caderno de folhas cosidas, cuja terceira página escrevinho neste momento, não sem volúpia. Mas não tenho a certeza se continuarei.

Já por três vezes tinha assim inaugurado cadernos virgens, prometendo a mim mesmo registar neles os meus projectos, os meus desejos, as minhas angústias, as minhas impressões das cidades e dos homens, alguns farrapos de humor e de sabedoria, como antes de mim o fizeram muitos viajantes e cronistas do passado. Não tenho o talento deles, e as minhas páginas não valem aquelas a que eu limpava o pó nas minhas estantes; contudo, procurei dar conta de tudo aquilo que me acontecia, mesmo quando a prudência ou o orgulho me impeliam a calar-me, e mesmo quando a lassidão me invadia. Salvo quando estava atingido pela doença, ou sequestrado, escrevi todas as noites, ou quase. Enchi centenas de páginas em três cadernos diferentes, e não me resta nenhum deles. Escrevi para o fogo.

O primeiro caderno, que contava o começo do meu périplo, perdeu-se quando tive de deixar Constantinopla à pressa; o segundo ficou em Quios quando de lá fui expulso; o terceiro ardeu sem dúvida no incêndio de Londres. E eis-me contudo a alisar as páginas do quarto, mortal esquecido da morte, Sísifo lastimável.

Na minha loja de Gibelet, quando por vezes tinha de lançar ao fogo um velho livro apodrecido e decomposto, não podia impedir-me de pensar um instante com ternura no infeliz que o tinha escrito. Era por vezes a única obra da sua vida, tudo o que ele esperava deixar como vestígio da sua passagem. Mas a sua fama tornar-se-á fumo cinzento como o seu corpo se tornará pó.

Descrevo a morte de um desconhecido, quando é de mim que se trata!

A morte. A minha morte. Que importância pode ela ter, e que importância têm os livros, que importância tem a fama, se o mundo inteiro vai arder amanhã como Londres?

O meu espírito está tão perturbado esta manhã! No entanto é preciso que escreva. É preciso que a minha pena se levante e caminhe, apesar de tudo. Que este caderno sobreviva ou arda, escreverei, escreverei.

Primeiro, contar como fugi do inferno de Londres.

Quando o incêndio se declarou, fui forçado a esconder-me para escapar à fúria de uma populaça louca que queria degolar papistas. Sem outra prova da minha culpa a não ser a minha qualidade de estrangeiro, originário da mesma península que o «anticristo», citadinos comuns ter-me-iam detido, maltratado, torturado, e depois lançado às chamas da fornalha com a sensação de fazerem bem às suas almas. Mas já evoquei essa loucura no caderno que se perdeu, e não tenho mais força para voltar ao assunto. Aquilo sobre que ainda quero dizer uma palavra, é o meu medo. Os meus medos, melhor dizendo. Porque eu tinha dois medos e um terceiro. Medo das chamas em fúria, medo da multidão em fúria, e medo também do que podia significar aquele drama, ocorrido no próprio dia que os moscovitas tinha indicado como o do apocalipse. Não quereria voltar a glosar sobre a palavra «sinal». Mas como não se assustar com semelhante concordância? Durante todo esse maldito dia 11 de Setembro - o primeiro do mês segundo o calendário dos ingleses - não parei de pensar nessa profecia de desgraça, discutindo-a longamente com o capelão; não irei ao ponto de dizer que

esperávamos de um momento para o outro aquele imenso fragor de um mundo que se despedaça, e a balbúrdia anunciada pelas Escrituras, mas estávamos de ouvido à escuta. E foi no fim desse mesmo dia, por volta da meia-noite, que subiu o clamor funesto. Do meu quarto podia observar a progressão das chamas, e ouvir os gritos.

No meu infortúnio, contudo, uma consolação: a dedicação daquelas pessoas que me rodeavam, que se tinham tornado a minha família, quando, três semanas antes, ignoravam a minha existência como eu ignorava a delas. Bess, o capelão, bem como os seus jovens discípulos.

Não vá imaginar-se que a minha gratidão para com Bess é a de um homem solitário que encontrou a consolação nos braços nus de uma taberneira compreensiva! O que a presença dessa mulher apaziguou em mim, não foi a sede carnal de um viajante, foi a minha angústia original. Nasci estrangeiro, tenho vivido estrangeiro e hei-de morrer mais estrangeiro ainda. Sou demasiado orgulhoso para falar de hostilidade, de humilhações, de rancor, de sofrimentos, mas sei reconhecer os olhares e os gestos. Há braços de mulheres que são lugares de exílio, e outros que são a terra natal.

Depois de me haver escondido e protegido e alimentado e tranquilizado, Bess veio dizer-me ao terceiro dia do incêndio que era preciso tentar uma saída. O fogo aproximava-se inexoravelmente; e, por esse motivo, a populaça afastava-se. Podíamos tentar insinuar-nos entre as duas demências para correr até à Ponte, subir a bordo da primeira embarcação, e afastar-nos assim da fornalha.

Bess disse-me que o capelão aprovava essa conduta, ainda que preferisse, por ele, ficar ainda mais algum tempo na casa. Se esta fosse preservada do fogo, a sua presença preservá-la-ia também da pilhagem. Os seus dois discípulos ficariam com ele, para vigiar e apoiá-lo com os seus braços se fosse preciso fugir.

No momento de me despedir, em vez de pensar apenas em salvar a minha vida, o meu espírito estava ocupado com o livro do Centésimo Nome. Durante todos esses dias e essas noites, aliás, ele nunca estivera ausente dos meus pensamentos.

à medida que me apercebia de que a minha estada em Londres se aproximava do fim, não podia deixar de me perguntar se acharia argumentos para convencer o capelão a deixar-me levá-lo. Pensei mesmo em levá-lo contra sua vontade. Em roubá-lo, sim! Coisa que nunca me julgaria capaz de fazer noutras circunstâncias, num ano normal. De resto, não sei se teria levado até ao fim o meu detestável projecto. Felizmente, não tive ocasião para isso. Não precisei sequer de me servir dos argumentos que tinha preparado. Quando bati à porta do seu quarto para lhe dizer adeus, o velho pediu-me para esperar um instante, depois autorizou-me a entrar. Encontrei-o sentado no seu lugar habitual, com o livro sobre as palmas das mãos estendidas, gesto de oferenda que nos deixou mudos e imóveis, tanto um como o outro, por um longo momento.

Depois disse-me, em latim, com alguma solenidade:

- Tomai-o, ele é vosso, mereceste-lo. Eu tinha-vos prometido, em troca do vosso compromisso de traduzi-lo, e sei agora bastante daquilo que ele diz. Sem vós, não saberei nada mais. E de resto, é demasiado tarde.

Agradeci-lhe com palavras comovidas, e dei-lhe um abraço. Depois prometemos um ao outro, sem acreditar muito nisso, que voltaríamos a ver-nos, se não neste mundo ao menos no outro. «O que não pode tardar, no que me diz respeito», disse ele. «E a todos nós!», continuei eu, indicando num gesto eloquente aquilo que se passava à nossa volta. Ter-nos-íamos lançado uma vez mais numa discussão sobre o destino do mundo se Bess não me tivesse apressado, num tom suplicante. Ela queria que partíssemos imediatamente!

No momento de sair, voltou-se uma última vez para mim, inspeccionou a minha farpela de inglês, e fez-me prometer que não abriria uma única vez a boca, que não olharia os transeuntes nos olhos, e teria apenas o ar triste e esgotado.

Da nossa ale house até ao Tamisa, havia um quarto de hora de marcha em linha recta, mas não era possível ir «em linha recta», pois teríamos encontrado o fogo pela frente. Bess preferiu, com toda a razão, contornar toda a zona incendiada. Começou mesmo por tomar, à esquerda, por uma viela que parecia conduzir na direcção oposta. Segui-a sem discutir. Depois houve outra viela, e uma terceira, e talvez ainda umas outras quinze ou vinte, não as contei, nem tentei saber onde estávamos. Tinha os olhos nos pés para não cair nos buracos, para não chocar contra os destroços nem caminhar sobre as imundícies. Seguia a grenha avermelhada de Bess como na guerra se pode seguir um penacho ou um estandarte. Confiava-lhe a minha vida como uma criança dá a mão à mãe. E não tive de me queixar disso.

Só uma vez tivemos um alerta. Ao desembocar numa pequena praça, num lugar chamado «Fosso dos cães», perto da muralha, demos com um ajuntamento de uns sessenta homens que maltratavam alguém. Para não parecer que fugia, Bess aproximou-se deles, falou com uma mulher nova que ali estava, e soube que um novo incêndio acabava de deflagrar no bairro, e que aquele estrangeiro - um Francês - tinha sido surpreendido a rondar nas proximidades.

Eu gostaria de poder dizer que intervim junto daqueles enraivecidos para os dissuadir de cometer uma malvadez. Na falta disso, gostaria de dizer ao menos que tentei intervir e que Bess me impediu. A verdade, infelizmente, é que segui o meu caminho o mais depressa que pude, demasiado contente por não ter sido referenciado, e não estar no lugar daquele infeliz, como bem poderia ser o caso. Evitei mesmo olhar aquelas pessoas, com medo de que o seu olhar se cruzasse com o meu. E assim que a minha amiga meteu, sem pressa, por uma ruela quase deserta, segui-lhe os passos. O fumo subia de uma casa de tabiques. Curiosamente, era no andar superior que se viam algumas línguas de fogo. Bess avançou mesmo assim, sem se voltar, e sem se apressar muito, e eu segui-a no mesmo ritmo. Feitas as contas, se eu tivesse de escolher, preferia morrer cercado pelo fogo que cercado pela multidão.

O resto do percurso foi quase sem obstáculos. Respirávamos um cheiro acre, o céu estava velado de fumo, e estávamos os dois esgotados e ofegantes, mas Bess soubera escolher o caminho mais seguro. Alcançámos o Tamisa para lá da Torre de Londres, antes de voltar em direcção ao embarcadouro situado mesmo ao pé desta, diante da escada chamada Irongate Stairs, ou «da Porta de Ferro».

Havia ali umas quarenta pessoas à espera, entre as quais? mulheres em lágrimas. A volta das pessoas amontoavam-se malas, fardos grandes e pequenos, e também móveis, que nos faziam perguntar como os teriam conseguido trazer até aqui. Bess e eu devíamos ser os mais leves, porque eu só tinha nas mãos um saco de tela que ela me tinha emprestado. Devíamos parecer muito pobres, e no entanto os menos infelizes. Era evidente que todos os outros tinham perdido as suas casas, ou resignavam-se a perdê-las, como a maioria dos habitantes da cidade. Eu levava na minha magra bagagem o livro pelo qual tinha percorrido metade do mundo, e saía ileso do inferno.

Ao ver os rostos desfeitos que nos rodeavam, estávamos resignados a esperar muito tempo uma embarcação. Esta chegou no entanto ao fim de alguns minutos. Acostou ao pé de nós, meio cheia de citadinos em fuga, a outra metade ocupada por pipas empilhadas. Havia ainda alguns lugares, mas dois latagões guardavam o acesso, dois grandes diabos barbudos com braços como coxas, com as cabeças envoltas em lenços molhados.

Um deles lançou, no tom menos acolhedor:

- é um guinéu por pessoa, homem mulher ou criança, pagável imediatamente. Se não, não sobem!

Fiz sinal a Bess, que lhe disse, contrariada.

- Está bem, nós pagamos.

O homem estendeu-me a mão, eu saltei para a embarcação, que se pusera enviesada para que só uma pessoa pudesse subir de cada vez. Tendo subido a bordo, voltei-me, e estendi a mão na direcção de Bess para ajudá-la a subir. Ela apenas me tocou na mão, depois recuou fazendo «não» com a cabeça.

- Vem! - Insisti.

Voltou a fazer «não» com a cabeça, e com a mão um sinal de adeus. No seu rosto havia um sorriso triste, mas também, parece-me, um remorso, uma hesitação.

Alguém me puxou para trás pela camisa, para que outras pessoas pudessem embarcar. Depois um dos dois marinheiros veio reclamar o pagamento. Tirei da bolsa dois guinéus, mas dei-lhe só um.

Ainda sinto, no momento em que escrevo estas linhas, um aperto no coração.

Aquela despedida passou demasiado depressa, e demasiado mal. Eu devia ter falado com Bess, antes que o barco chegasse, para me informar do que ela desejava. Comportei-me sempre como se estivesse combinado que ela me acompanharia, nem que fosse uma parte do caminho. Quando deveria ser claro que ela não viria, que não tinha nenhum motivo para deixar a sua taberna e os seus amigos para me seguir: de qualquer modo, nunca lho pedi, nem nunca pensei em fazê-lo. De onde vem então este sentimento de culpa que se reanima de cada vez que falo dela, ou de Londres? É sem dúvida porque a deixei como uma estranha, quando ela me deu em alguns dias aquilo que seres muito mais próximos não me darão em toda uma vida; porque tenho uma dívida para com ela, e não a reembolsarei nunca, de maneira nenhuma; porque escapei ao inferno de Londres, e ela voltou para lá sem que eu tentasse suficientemente impedi-la; porque a deixei naquele cais sem poder dirigir-lhe uma palavra de agradecimento, nem um gesto de ternura; porque no último momento, me pareceu que ela hesitava, e que uma palavra firme da minha parte talvez a tivesse decidido a saltar para o barco; e por outros motivos ainda... Ela não me quer mal por isso, estou convencido; mas eu hei-de detestar-me por muito tempo.

Oiço a voz de Gregório que acaba de regressar do porto. Devo ir sentar-me com ele, e comer alguma coisa. Retomarei a escrita à tarde, enquanto ele faz a sesta.

A mesa, o meu anfitrião falou-me de vários negócios respeitantes ao seu futuro e ao meu. Ainda procura convencer-me a ficar em Génova. Por vezes, suplico-lhe que não insista mais, e outras vezes dou-lhe esperança. É que eu próprio não sei em que estou.

Tenho a sensação de que já é tarde, que o tempo urge, e ele pede-me que não corra mais, que ponha fim à minha errância e tome o meu lugar junto dele, como um filho. A tentação é grande, mas tenho também outras tentações, outras obrigações, outras urgências. Detesto-me já por ter deixado Bess tão bruscamente; como me sentiria se abandonasse Marta à sua sorte? Ela que traz dentro dela o meu filho, e que não seria hoje prisioneira se eu a tivesse protegido melhor.

O pouco tempo que me resta, gostaria de empregá-lo a saldar as minhas dívidas, e reparar os meus erros, e Gregório quer que eu esqueça o passado, que esqueça a minha casa e a minha irmã, que esqueça os meus antigos amores, para começar em Génova uma vida nova.

Estamos nas últimas semanas do ano fatídico, será este o momento de começar uma nova vida?

Estas interrogações esgotaram-me, e eu deveria afastá-las do meu espírito para retomar o fio do relato.

Estava eu pois no momento em que partia de Londres naquele barco. Os passageiros, a meia voz, prediziam a forca aos grosseirões que nos transportavam, os quais arvoravam caras alegres e cantarolavam, tão bom era o negócio. Eles devem ter feito, em alguns dias, mais dinheiro que num ano inteiro, e deviam rogar ao Céu que atiçasse o fogo para fazer durar a colheita.

De resto, não contentes em terem extorquido tais somas, apressaram-se a acostar, assim que saímos da cidade, e expulsaram-nos do seu barco como quem descarrega um rebanho de gado. Tínhamos navegado uns vinte minutos, pouco mais. Aqueles que ousavam protestar, eles declaravam que nos tinham afastado do incêndio e salvo as vidas, e que nós deveríamos agradecer-lhes de joelhos em vez de discutir o preço da viagem. Por mim, não protestei, com medo de que o meu sotaque me traísse. E enquanto os nossos «benfeitores» voltavam a partir em direcção a Londres para recolher outros guinéus mais, e a maioria dos meus companheiros de infortúnio, após um momento de hesitação, partiam juntos pela estrada em direcção à aldeia mais próxima, eu decidi esperar a passagem de outra embarcação. Só uma outra pessoa decidira também esperar, um grande louro bastante corpulento que, como eu, não dizia palavra, e que evitava olhar para mim. Na confusão, eu não tinha reparado nele mais que em qualquer outro, mas agora que estávamos sozinhos, ia ser difícil continuarmos a ignorar-nos.

Não sei durante quantos minutos ficámos mudos a vigiar-nos um ao outro por cima do ombro, fingindo, cada qual de seu lado, espreitar algum barco no horizonte, ou procurar no saco qualquer coisa que se tivesse esquecido de trazer.

A situação pareceu-me de repente muito ridícula. Por isso caminhei para ele, com um largo sorriso, para dizer, no melhor inglês que podia:

- Como se o incêndio não bastasse, tínhamos de vir dar com estes abutres!

Ao ouvir as minhas palavras, o homem pareceu mais alegre do que seria normal. Avançou para mim de braços abertos:

- Também sois do estrangeiro?

Disse-o num tom estranho, como se «do estrangeiro» - «from abroad» - fosse uma proveniência precisa, e o «estrangeiro» fosse um país, e nós, por esse motivo, compatriotas.

O seu inglês era menos rudimentar que o meu, mas assim que lhe confessei as minhas origens, ele experimentou cortesmente o italiano, ou antes aquilo que ele julgava ser o italiano e que, aos meus ouvidos, não se parecia com nenhuma língua identificável. Quando o fiz repetir pela terceira vez a mesma frase, ele disse-a antes em latim, com o que ficámos satisfeitos um e outro.

Não tardei a saber muitas coisas sobre ele. Que era bávaro, que era cinco anos mais velho do que eu, e que tinha vivido desde os dezanove anos em diversas cidades estrangeiras, em Saragoça, em Moscovo durante três anos, em Constantinopla, em Goteburg, em Paris, em Amsterdão durante três anos e meio, e depois em Londres havia nove anos.

- Ontem, a minha casa ardeu, e não pude salvar nada. Não possuo nada além do conteúdo deste saco.

Disse-me isto num tom ligeiro, aparentemente divertido, e eu perguntei a mim mesmo de imediato se ele não estaria mais afectado por aquela calamidade do que queria mostrar. Por ter discutido longamente com ele depois, estou convencido de que não mentiu quanto aos seus sentimentos. Ao contrário de mim, aquele homem é um verdadeiro viajante. Tudo o que o liga a um lugar - paredes, móveis, uma família - acaba por se lhe tornar insuportável; inversamente, tudo o que o impele a partir, seja uma bancarrota, um desterro, uma guerra ou um incêndio, é bem-vindo.

Este frenesim apoderou-se dele quando era ainda criança, durante as guerras alemãs. Descreveu-me as atrocidades que haviam sido cometidas, congregações massacradas nas igrejas, aldeias dizimadas pela fome, bairros incendiados e depois arrasados - assim como as forcas, as fogueiras, as gargantas cortadas.

Seu pai era impressor em Ratisbona. O bispado confiara-lhe a edição de um missal que continha uma imprecação contra Lutero. A tipografia foi incendiada, e a sua casa também. A família saiu ilesa, mas o pai, obstinado, decidiu reconstruir, tal e qual, a casa e a oficina, no mesmo local. Enterrou nisso tudo o que lhe restava de fortuna - para que lhas demolissem outra vez assim que ficaram terminadas, e desta segunda vez, morreu-lhe a esposa e uma filha de tenra idade. O filho, o meu companheiro, jurou então que nunca construiria nenhuma casa, nunca se prenderia a uma família, e nunca mais se apegaria a nenhum pedaço de terra.

Ainda não disse que ele se chamava Georg, e que deu como sobrenome Caminarius - ignoro o seu verdadeiro nome. Parece provido de uma fortuna inesgotável, que não dilapida mas gasta sem parcimónia. Sobre os seus rendimentos, manteve-se discreto, e apesar de todas as minhas astúcias de mercador, geralmente hábil a pressentir a origem do dinheiro, não consegui saber se ele tinha uma herança, uma renda anual ou alguma actividade lucrativa. Esta, se a tem, não deve ser confessável, porque falámos e falámos durante os dias que se seguiram sem que ele a evocasse uma única vez...

Mas preciso de voltar antes ao relato da minha fuga, para dizer que depois de uma espera de mais de uma hora, durante a qual tivemos por diversas vezes ocasião de agitar os braços para embarcações que passavam, um pequeno barco acostou por fim. Havia apenas dez homens a bordo, que nos perguntaram para onde íamos, anunciando de imediato que nos levariam até ao fim do mundo, se desejássemos, desde que não fosse para a Holanda, e desde que nos mostrássemos generosos.

Georg disse-lhes que gostaríamos de ir até Douvres, e eles propuseram-se levar-nos mais longe ainda, até Calais. Pediram por esse trajecto quatro guinéus, dois de cada um de nós, o que, em tempo normal, me teria parecido exorbitante; mas, visto a soma que acabávamos de pagar por um trajecto vinte vezes mais curto, não tínhamos nenhuma razão para regatear.

A travessia decorreu sem surpresas desagradáveis. Parámos em muitos lugares para nos abastecermos de água e de víveres, antes de desembocar pelo estuário do Tamisa para singrar rumo à costa francesa, que alcançámos na sexta-feira, 17 de Setembro. Em Calais, formos rodeados por um bando de miúdos, que se mostraram surpreendidos e desdenhosos quando viram que não tínhamos bagagens para carregar. No porto, e nas ruas, dezenas de pessoas abordaram-nos para perguntar se era verdade que Londres tinha sido destruída pelo fogo. Todos pareciam atordoados por um acontecimento tão inaudito, sem no entanto irem ao ponto de se mostrar entristecidos.

Foi em Calais, à noite, ao procurar o meu caderno para nele registar algumas notas, que descobri que já não o tinha.

Tê-lo-ia deixado cair por inadvertência na minha corrida através da cidade? Ou alguma mão lesta mo teria roubado na confusão, no barco daqueles dois piratas?

A menos que me tenha esquecido dele no meu quarto, ou nas águas-furtadas onde me tinha refugiado... Tinha no entanto a sensação de o ter arrumado antes de ir buscar O Centésimo Nome. O qual continua na minha posse.

Deveria alegrar-me por ter sido a minha prosa vã que desapareceu, em vez do livro que me fez percorrer o mundo?

Sem dúvida, sem dúvida...

Estou aliviado, em todo o caso, por não ter perdido os florins que me tinham sido confiados em Lisboa para Gregório, e por ter podido entregar-lhos em vez de aumentar ainda mais a minha dívida para com ele.

Eis que a minha pena recuperou os seus hábitos, e recomeça valentemente a manter um diário de viagem, como se eu não tivesse perdido os meus três cadernos anteriores, como se Londres não tivesse ardido, como se o ano funesto não estivesse a avançar inexoravelmente para o seu termo.

Como proceder de outro modo? A pena que manuseio manuseia-me a mim igualmente; devo seguir o seu caminhar assim como ela segue o meu.

Mas como é tarde já! Escrevo como quem come depois do jejum, e já é tempo de me levantar da mesa.

24 de Outubro

Este domingo de manhã fui à igreja da Santa Cruz com Gregório e toda a sua família, como se eu fosse o genro que ele quer que eu seja. No caminho, voltou a dizer-me, agarrando-me pelo braço, que se eu me instalasse em Génova, tornar-me-ia o fundador de uma nova dinastia de Embriaci, que faria esquecer a glória dos Spinola, dos Malaspina e dos Fieschi. Não desprezo de modo nenhum o sonho generoso de Gregório, mas não consigo partilhá-lo.

Assistia à missa o irmão Egídio, primo do meu anfitrião, com quem eu tinha almoçado em Abril e a quem tinha confiado cartas para os meus. Ainda não recebi nenhuma resposta, mas é verdade que é preciso contar três ou quatro meses para que uma carta chegue a Gibelet, e outros tantos para que venha de lá.

Em contrapartida, disse-me, recebeu ontem mesmo por correio notícias frescas de Constantinopla, muito espantosas e sobre as quais queria falar comigo. Gregório convidou-o imediatamente para vir «abençoar a nossa magra pitança», o que ele fez com prontidão e apetite.

A carta, que tinha consigo, relata factos ocorridos há seis semanas, e que eu hesito ainda em considerar verídicos. Escrita por um dos seus amigos, religioso da sua ordem, e que se encontra em missão em Constantinopla, relata que as autoridades teriam descoberto, através de um rabino da Polónia, que Sabbatai se preparava para fomentar uma revolta; que teria sido levado ao palácio do sultão, em Andrinopla, e intimado a fazer um milagre imediatamente, sem o que seria torturado e decapitado - a menos que renunciasse à Fé dos seus pais e abraçasse a dos turcos. Segundo a carta, de que o irmão Egídio me leu algumas passagens, o milagre que exigiam dele consistia em manter-se em algum lugar, todo nu, para que os melhores arqueiros da guarda sultaniana o tomassem como alvo das suas flechas; se ele conseguisse impedir que as pontas lhe penetrassem na carne, é porque era um enviado do Céu. Não esperando semelhante exigência, Sabbatai teria pedido um prazo de reflexão, que lhe foi recusado. Então ele disse que pensava havia muito tempo em adoptar a fé de Maomé, e que em nenhum lugar poderia proclamar a sua conversão com mais solenidade que na presença do soberano. Assim que ele proferiu estas palavras, pediram-lhe que tirasse o gorro de judeu, para que um servidor lhe pudesse cingir a cabeça com um turbante branco. Mudaram igualmente o seu nome judeu pelo de Mehemed efendi, e outorgaram-lhe o título de «capidji bachi otourak», que quer dizer «guardião honorário das portas» sultanianas, com o vencimento que corresponde a esse cargo.

Segundo o irmão Egídio, o homem só deve ter renegado em aparência, «como os de Espanha que são cristãos ao domingo e judeus às escondidas ao sábado», o que Gregório aprovou. Ainda duvido de que essa história seja verdadeira, mas se o é, e se aconteceu durante o incêndio de Londres, como negar que isso seja um sinal perturbador, mais um?

Esperando que outros rumores venham varrer as minhas dúvidas ou, pelo contrário, confirmá-las, preciso de retomar o relato da minha viagem, com receio de que novos acontecimentos me façam esquecer os antigos.

Em Calais só ficámos dois dias e três noites no hotel que nos acolheu, mas eles foram dos mais reparadores. Tivemos, Georg e eu, uma cama cada um numa grande sala que dava para o passeio e para a extensão marítima. De manhã, ventava e chovia sem parar, uma chuva oblíqua e fina. A tarde, pelo contrário, mostrou-se ensolarada, e vimos os citadinos deambularem em famílias inteiras ou em grupos de amigos. Tivemos prazer em fazer o mesmo, o meu companheiro e eu, não sem antes termos comprado a preço de ouro sapatos novos e roupas limpas em casa de um vigarista junto ao porto. Digo vigarista porque esse homem vende sapatos sem ser sapateiro, e fatos sem ser alfaiate, e não duvido de que ele obtém a mercadoria através de carregadores e marinheiros que roubam os viajantes, rapinando um baú e fingindo perder outro. Acontece mesmo que alguns viajantes, não tendo mais vestuário, vão para comprar outro e reconhecem as suas roupas. Contaram-me um dia a história de um napolitano que, tendo reconhecido assim as suas coisas, exigiu que lhas devolvessem, e foi imediatamente estrangulado pelos receptadores que receavam ser denunciados. Mas isso não foi em Calais... Dito isto, e apesar do preço que tivemos de desembolsar, não estávamos descontentes por encontrar tão depressa roupas convenientes.

Enquanto deambulávamos ao longo do passeio, falando disto e daquilo, Georg fez-me notar à minha volta as mulheres agarradas aos braços dos homens, que riam com eles e pousavam por vezes a cabeça nos seus ombros; e principalmente aquelas pessoas, homens e mulheres, que se cruzavam, e se beijavam nas faces, duas, três, quatro vezes seguidas, por vezes muito perto dos lábios; não me escandalizo com isso, mas devo anotá-lo, sendo a coisa pouco comum. Nunca em Esmirna, nem em Constantinopla, nem em Londres, nem em Génova, se veriam homens e mulheres falarem livremente em público, e segurarem-se, e beijarem-se. E o meu companheiro confirma-me que nas suas diversas peregrinações, da Espanha à Holanda, e da sua Baviera natal à Polónia e à Moscóvia, nunca observara tais atitudes. Ele também não as desaprovava, mas não se cansava de as observar e de se admirar.

Ao amanhecer de segunda-feira, 20 de Setembro, instalámonos a bordo do coche colectivo que liga Calais a Paris. Teríamos sem dúvida feito melhor em alugar viatura e cocheiro, como desejava Georg; teríamos pago muito mais caro, mas pararíamos nas melhores casas, avançaríamos mais depressa, poderíamos acordar às horas que mais nos conviessem e conversar abertamente durante todo o percurso como cavalheiros. Em vez disso fomos acolhidos como mesquinhos, alimentados de restos - salvo em Amiens - dormimos os dois nos mesmos lençóis húmidos e encardidos, despertados antes do amanhecer; e tivemos de passar quatro longos dias aos solavancos num coche que mais parecia uma carroça de bois do que uma diligência.

O veículo estava equipado com dois bancos um em frente do outro, que seriam confortáveis para duas pessoas cada um, mas que estavam previstos para três. Bastava que um ou outro fosse um ; pouco corpulento, para que ficássemos nádega contra nádega durante todo o trajecto. Ora éramos cinco, e se dois de nós podiam sentar-se mais ou menos correctamente, os outros três não podiam deixar de estar apertados. Tanto mais que dos cinco, só um era esguio, enquanto os outros quatro transbordavam de saúde. Eu em primeiro lugar, que sempre fui bastante saudável, e que engordei ainda mais com a cerveja amanteigada de Bess; tal como Georg, que é ainda um pouco mais corpulento, embora a sua grande altura lhe dissimule a corpulência.

Quanto aos nossos dois últimos companheiros de viagem, não só eram gordos, como tinham ainda outros pesos. Dois padres, que discutiam em voz alta sem parar; quando um deles se calava, era porque o outro já tinha começado a falar. As suas palavras enchiam o habitáculo, e tornavam o ar espesso e raro, a tal ponto que Georg e eu, que habitualmente tínhamos tanto prazer em conversar, não trocávamos mais do que olhares importunados e por vezes alguns fracos murmúrios. O pior é que aqueles homens de Deus, não se limitando a descarregar sobre nós as suas opiniões, nos tomavam constantemente por testemunhas, não para nos convidar a dar nossa opinião, mas como se esta já fosse conhecida, e naturalmente idêntica à deles, a tal ponto que já nem tínhamos necessidade de expressá-la.

Algumas pessoas só sabem falar assim. Tenho-as encontrado muitas vezes, na minha loja e noutros lugares, capazes de despejar sobre nós a sua abundante tagarelice, intimando-nos de certo modo a aquiescer; se formulamos alguma observação subtil, convencem-se de que ela apenas serve para apoiar o que dizem, e inflamam-se ainda mais; para as fazer ouvir uma opinião contrária, é preciso ser brusco, e mesmo indelicado.

Quanto aos nossos santos homens, o seu tema preferido eram os huguenotes. A princípio, eu não compreendia por que razão eles debatiam o assunto com tanta vivacidade, visto que um e outro eram da mesma opinião. A saber que os defensores da Reforma não tinham lugar no reino de França, e que era preciso expulsá-los para que este país recuperasse a paz e os favores do Céu. Que há demasiada benevolência para com eles, e que havemos de nos arrepender; que essas pessoas se alegram com as desgraças da França e que o rei não tardaria a perceber a perfídia delas... Era tudo no mesmo tom, com imprecações, e comparações entre Lutero, Calvino, Coligny, Zwingli e diversas espécies de bestas maléficas, serpentes, escorpiões ou parasitas, que era conveniente esmagar. Sempre que um dos dois emitia uma opinião, o seu companheiro aprovava-o e acrescentava.

Foi Georg quem me fez compreender as razões de semelhante discurso. Numa das nossas trocas mudas, fez-me sinal, discretamente, para olhar o nosso quinto companheiro. O homem sufocava. As suas faces magras estavam vermelhas, a testa luzidia de suor, os olhos não desgrudavam do chão, ou das suas pernas fechadas. Era evidente que aquelas palavras o atingiam. Ele era «dessa raça», para usar a expressão dos nossos companheiros de viagem.

Aquilo que me entristeceu, e decepcionou, foi que o meu companheiro bávaro sorria de vez em quando aos cruéis sarcasmos que choviam sobre o infeliz huguenote. E na primeira noite, discutimos asperamente sobre isso.

- Nada, disse Georg, me fará intervir a favor daqueles que incendiaram por duas vezes a minha casa, e provocaram a morte da minha mãe.

- Aquele homem nada tem a ver com isso. Olha para ele! Nunca queimou nem as asas de uma mosca!

- Sem dúvida, e por isso não me pegarei com ele. Mas também não o defenderei! E não me fales de liberdade de credo, vivi bastante em Inglaterra para saber que eu, o «papista» como eles dizem, não tinha nem liberdade nem respeito pela minha Fé. Sempre que fui insultado, tive de me forçar a sorrir e a seguir o meu caminho, com a sensação de não passar de um cobarde. E tu, durante a tua estadia, não tinhas constantemente vontade de esconder que eras «papista»? E não aconteceu que insultassem a tua Fé na tua presença?

Tudo o que ele dizia era certo. E jurava por todos os santos que aspirava à liberdade de crença mais ainda do que eu. Mas acrescentando que para ele, a liberdade devia ser concedida por uns e por outros de maneira recíproca; como se estivesse na ordem das coisas que a tolerância responda à tolerância e a perseguição à perseguição.

Durante o segundo dia de viagem, a dita perseguição não cessou. E os dois eclesiásticos conseguiram mesmo fazer-me participar dela - a meu pesar! - quando um deles me perguntou, à queima-roupa, se eu não achava que o nosso coche tinha sido concebido para quatro passageiros, e não para seis. Não pude deixar de concordar, demasiado contente por ver a discussão orientar-se para outra coisa que não a querela entre papistas e huguenotes. Mas o homem, fortalecido com a minha resposta, pòs-se a comentar pesadamente sobre o facto de que todos estaríamos mais à vontade se viajássemos quatro em vez de cinco.

- Algumas pessoas estão a mais, neste país, e não se apercebem disso.

Fingiu hesitar, antes de rectificar, escarnecendo.

- Eu disse neste país, que Deus me perdoe, queria dizer precisamente neste coche. Espero que o meu vizinho não se ofenda...

No terceiro dia, o cocheiro parou numa terriola chamada Breteuil, e veio abrir a porta. O huguenote levantou-se pedindo desculpa.

- Já nos deixais? Não continuais até Paris? - Perguntaram maliciosamente os dois padres.

- Infelizmente, não - vociferou o homem, que saiu sem um olhar para nenhum de nós.

Ficou por momentos na traseira do coche para retirar a sua bagagem, depois gritou ao cocheiro que podia partir. Era já ao crepúsculo, e os cavalos foram chicoteados com mais vigor para conseguir chegar a Beauvais antes da noite.

Se entro nestes pormenores, que não deveriam ter lugar neste diário, é porque preciso de contar o epílogo desta penosa viagem. Tendo pois chegado a Beauvais, ouvimos um grande grito. Os nossos dois padres acabavam de descobrir que as bagagens - que lhes pertenciam todas - tinham caído pelo caminho. A corda que as sustinha havia sido cortada, e no barulho da estrada não tínhamos prestado atenção à sua queda. Lamentando-se, eles tentaram convencer o cocheiro a refazer o mesmo caminho para as recuperar, mas ele não quis saber.

Para a quarta jornada, o coche esteve finalmente tranquilo. Os nossos dois tagarelas não disseram nem mais uma palavra contra o huguenote, quando, pela primeira vez, teriam tido razões para lhe querer mal. Nem sequer procuraram acusá-lo, sem dúvida para não confessarem que aquele herético tivera a última palavra. Passaram o dia a murmurar orações, com um breviário na mão. Não era o que deviam ter feito desde o princípio?

25 de Outubro

Prometi a mim mesmo contar hoje a minha visita a Paris, depois a passagem por Lyon, por Avignon e por Nice, a viagem até Génova, e como me achei hóspede de Mangiavacca, quando nos tínhamos separado sem grande amizade. Mas ocorreu um acontecimento que ocupa todo o meu espírito e não sei se ainda terei paciência para voltar atrás.

De momento, em todo o caso, não falarei mais do passado - mesmo próximo. Falarei apenas da viagem futura.

Porque voltei a ver Domenico. Ele viera visitar o seu comanditado, e como Gregório estava ausente, fui que o recebi. Evocámos primeiro as nossas recordações comuns - aquela noite de Janeiro em que, tremendo de frio e de medo no saco em que me tinham encerrado, foi içado a bordo do seu navio, para ser conduzido até Génova.

Génova, outra vez. Depois da humilhação em Quios, em vez da morte que eu esperava, vim ter a Génova. E depois do incêndio de Londres, Génova. é aqui que de cada vez renasço, como naquele jogo florentino em que os que perdem regressam à casa inicial...

Na minha conversa com Domenico, tive a sensação de que este capitão contrabandista tinha por mim uma admiração sem limites, e que eu acho imerecida. A razão disso é que arrisquei a minha vida por amor de uma mulher, enquanto ele próprio e os seus homens, que brincam com a morte em cada viagem, o fazem apenas pelo ganho.

Perguntou-me se tinha notícias da minha amada, se ela ainda estava prisioneira, e se ainda tinha esperança de recuperá-la. Jurei-lhe que pensava nela de dia e de noite, onde quer que estivesse, em Génova, em Londres, em Paris ou no mar, e que nunca renunciaria a arrancá-la das mãos do seu perseguidor.

- Por que meio esperas tu conseguir isso? As palavras saíram-me sem que eu reflectisse:

- Um dia, partirei contigo, deixas-me no mesmo lugar onde me recebeste, e eu hei-de arranjar maneira de lhe falar...

- Eu aparelho daqui por três dias. Se ainda estiveres na mesma disposição, fica sabendo que és bem-vindo a bordo, e que farei tudo para te ajudar.

Como eu começasse a balbuciar agradecimentos, procurou minimizar o seu mérito.

- De qualquer modo, se os turcos decidirem um dia deitar-me a mão, serei empalado. Por causa de todo o mastique que lhes tiro, desde há vinte anos, contra as suas leis. Que eu te ajude ou não, isso não me valerá nem graça nem castigo suplementar. Não poderão empalar-me duas vezes.

Eu estava como que inebriado por tanta coragem e tanta generosidade. Levantei-me para lhe apertar calorosamente a mão e abraçá-lo como um irmão.

Estávamos assim enlaçados quando Gregório fez a sua entrada.

- Então, Domenico, estás de chegada ou de partida?

- São reencontros - disse o calabrês.

Os dois compadres começaram imediatamente a falar dos seus negócios - florins, fardos, carga, nau, tempestade, escalas... Enquanto eu me fechava no meu próprio devaneio até deixar de ouvi-los...

26 de Outubro

Hoje embebedei-me como nunca o tinha feito na minha vida, sem outro motivo além do facto de que Gregório acabava de receber do seu administrador seis pipas de vernaccia, produzidas nos seus próprios outeiros de Cinqueterre, fazia questão de provar este vinho imediatamente e não tinha debaixo do seu tecto outro companheiro de bebedeira além de mim.

Quando já estávamos os dois bastante alegres, o senhor Mangiavacca arrancou-me uma promessa cujos termos ele próprio formulou, mas que eu aceitei, com a mão sobre o Evangelho: irei com Domenico até Quios; se não conseguir arrancar Marta ao seu homem, renunciarei a persegui-la; depois passarei por Gibelet para ordenar os meus negócios, regular o que deve ser regulado, vender o que deve ser vendido, e confiar o meu comércio aos filhos da minha irmã; enfim, na Primavera, voltarei para me instalar em Génova, desposar Giacominetta com grande pompa na igreja da Santa Cruz, e trabalhar com ele, que será agora de verdade – o meu sogro.

o meu futuro parece traçado, para os próximos meses, e para o resto da minha vida. Mas ainda é preciso que haja no final desse acordo, além da minha assinatura e da de Gregório, a assinatura de Deus!

27 de Outubro

Gregório confessa candidamente que me embebedou para me fazer prometer, e ri-se. Além disso, conseguiu fazer-me confirmar a minha promessa ao acordar, quando já estava sóbrio.

Sóbrio, sim, mas ainda toldado, de espírito e de entranhas.

Que estúpido comportamento tive, quando me preparo para partir já amanhã!

Embarcar assim, já portador do enjoo? Incapaz de me manter de pé em terra firme?

Talvez Gregório quisesse precisamente impedir-me de partir. Dele, nada me surpreenderia. Mas isso não o conseguirá. Partirei. E voltarei a ver Marta. E conhecerei o meu filho.

Gosto de Génova, é verdade. Mas posso gostar dela também para lá do mar, como sempre fiz, e antes de mim os meus antepassados.

No mar, domingo, 31 de Outubro de 1666

Um forte vento nordeste empurrou-nos para a Sardenha, quando seguíamos para a Calábria. Como este barco, a barca da minha vida...

Na acostagem, o casco bateu violentamente, e nós receámos o pior. Mas uns mergulhadores, iluminados pelo sol oblíquo da manhã, regressaram assegurando-nos que o Charybdos estava intacto. Voltamos a partir.

No mar, 9 de Novembro

O mar está constantemente agitado e eu constantemente doente. Muitos velhos marinheiros o estão tanto como eu - se isso é algum consolo.

Todas as noites, entre duas náuseas, rezo para que a natureza seja mais clemente connosco, e eis que Domenico me informa de que reza pelo contrário. As suas preces são, com toda a evidência, melhor ouvidas que as minhas. E agora que ele me explicou as suas razões, vou provavelmente imitá-lo.

- Enquanto o mar estiver agitado, disse-me, estamos em segurança. Porque mesmo que os guardas costeiros nos avistassem, nunca se atreveriam a lançar-se em nossa perseguição. É por isso que navego de preferência no Inverno. Assim tenho apenas um adversário, o mar, e não o adversário que mais temo. Mesmo que ele decidisse levar-me a vida, isso não seria uma desgraça assim tão grande, porque me terá feito escapar ao suplício da empalação que me espera no dia em que for apanhado. Morrer no mar é um destino de homem, como morrer no combate. Enquanto a empalação nos faz praguejar contra aquela que nos pôs no mundo.

As suas palavras reconciliaram-me de tal modo com a ondulação que fui encostar-me à amurada, expondo o rosto aos chuviscos das ondas, e recolhendo na língua as gotinhas salgadas. É o sabor da vida, a cerveja das tabernas de Londres e dos lábios das mulheres.

Respiro a plenos pulmões, e as minhas pernas não cedem.

No mar, 17 de Novembro

Por várias vezes, nestes últimos dias, abri este caderno, depois fechei-o. Por causa da vertigem que, desde Génova, me debilita, e também por causa de um certo estado febril que me impede de ordenar os pensamentos.

Tentei também abrir o livro do Centésimo Nome, dizendo a mim mesmo que ia talvez conseguir desta vez penetrar nele sem que me repelisse. Mas imediatamente os meus olhos se enevoaram. Voltei a fechá-lo, prometendo a mim mesmo não voltar a tentar lê-lo a menos que ele próprio se abrisse à minha frente!

Desde então, passeio na ponte, converso com Domenico e os seus homens, que me contam os seus mais belos sustos, e me ensinam como a uma criança os mastros, as vergas e os cordames.

Partilho todas as suas refeições, rio dos seus gracejos mesmo quando só os compreendo pela metade, e quando eles bebem finjo beber - mas não bebo. Desde que Gregório me embebedou com o vinho das suas pipas, sinto-me frágil, constantemente à beira da náusea, e parece-me que o mínimo gole me faria tombar.

Além disso, aquele vernaccia era puro elixir, enquanto o vinho daqui é uma espécie de vinagre xaroposo cortado com água do mar.

No mar, 27 de Novembro

Aproximamo-nos da costa de Quios sorrateiramente, como um caçador à espreita. As velas estão recolhidas, o mastro foi retirado da sua base e depois lentamente deitado, e os marinheiros falam mais baixo, como se além, na ilha, os pudessem ouvir.

Infelizmente, está bom tempo. Um sol de cobre ergueu-se dos lados da Ásia Menor, e o vento amainou. Só o ar frio que nos resta da noite passada nos recorda que estamos às portas do Inverno. Domenico decidiu não se mover antes da próxima noite.

Explicou-me como ia proceder. Dois homens partirão para a ilha numa chalupa, ambos gregos, mas gregos da Sicília -Yanis e Demetrios. Chegados à aldeia de Katarraktis, estabelecerão contacto com o seu fornecedor local, que já terá reunido a mercadoria em sua casa. Se tudo decorrer como previsto - o mástique já pronto e embalado, os aduaneiros «persuadidos» a fechar os olhos - e se não houver suspeita de nenhuma armadilha, os dois batedores informarão Domenico por meio de um sinal combinado: um lençol branco estendido num certo lugar elevado, ao meio-dia. Então o barco prepara-se para se aproximar da costa, mas só depois de caída a noite.

e para uma incursão breve; efectua o carregamento e o pagamento, depois afasta-se antes dos primeiros alvores da manhã. Se, por infelicidade, o lençol branco não aparecer, ficaremos no alto mar esperando o regresso dos gregos. E se, aos primeiros alvores do dia, continuarmos sem os ver, afastamo-nos rezando pelas suas almas perdidas. É assim que as coisas habitualmente se passam.

Por minha causa, o plano não deveria ser, desta vez, exactamente o mesmo. A modificação que Domenico previu...

Não, não deveria falar dela, nem sequer pensar nela, antes que as minhas esperanças sejam satisfeitas, e sem que os meus amigos tenham de sofrer com isso. Daqui até lá, limitar-me-ei a cruzar os dedos cuspindo para o mar, como faz Domenico. E murmurando, como ele, «Antepassados meus!»

28 de Novembro

Não me lembro de nenhum outro domingo em que tenha rezado com tanto fervor.

A noite, lançaram ao mar a barca de Yanis e Demetrios, que toda a equipagem seguiu com os olhos até que eles se fundiram no escuro. Mas continuámos a ouvir o chapinhar dos remos, e Domenico preocupado por haver tanto silêncio.

Um pouco mais tarde na noite, quando eu já estava deitado, houve relâmpagos, dezenas de relâmpagos seguidos que pareciam vir do norte, e que deviam ser extremamente distantes porque o ruído dos trovões não chegava até nós.

Todos os que estão a bordo passaram o dia à espera. De manhã, à espera de que se estendesse o lençol branco; depois, quando o apercebemos, à espera de que se fizesse noite para podermos aproximar-nos da costa. Partilho as suas esperas, e tenho também as minhas, que me enchem o espírito a cada minuto mas que não ouso confiar a estas páginas.

Contanto que...

29 de Novembro

Na noite passada, o nosso barco acostou por algum tempo numa enseada, perto da aldeia de Katarraktis. Domenico confirmou-me que foi precisamente neste lugar que - há perto de dez meses - carregou o saco em que eu tinha sido fechado. Nessa noite, eu ouvia toda a espécie de barulhos à minha volta, mas não via nada; enquanto esta noite distinguia formas, que iam e vinham, que se afadigavam e gesticulavam, tanto na praia como na ponte. E todos aqueles ruídos, que em Janeiro tinham sido para mim ininteligíveis, ganhavam agora sentido. A passarela que é lançada; o mástique que é trazido, verificado, carregado; o fornecedor, um certo Salih - um turco ou talvez um renegado grego - que sobe a bordo para beber um copo e receber o pagamento. Talvez eu devesse lembrar aqui que Quios é praticamente o único lugar do mundo onde se produz mástique, mas que as autoridades impõem aos camponeses que lhes forneçam toda a colheita, para ser encaminhada para os haréns do sultão. O Estado fixa o preço à sua vontade, e só paga quando lhe convém, de modo que os camponeses têm de esperar por vezes vários anos o pagamento do que lhes é devido - o que entretanto os obriga a endividarem-se. Domenico compra-lhes o mástique a duas, três e mesmo cinco vezes o preço oficial, e paga-lhes a totalidade no próprio momento da entrega. Segundo ele, contribui muito mais para a prosperidade da ilha do que o governo otomano! Será necessário acrescentar que, para as autoridades, este diabo deste calabrês é o inimigo a capturar, a enforcar ou empalar? Enquanto para os camponeses da ilha, e para todos aqueles que enriquecem com este tráfico, Domenico é uma bênção, um maná; noites como esta, são esperadas com mais impaciência do que a noite de Natal; mas igualmente com terror, porque bastaria que o contrabandista ou os seus correspondentes fossem interceptados para que a colheita se perdesse, e famílias inteiras fossem condenadas à miséria.

Toda aquela balbúrdia não durou muito tempo, duas ou três horas no máximo. E quando vi Salih abraçar Domenico e ser ajudado a atravessar a passarela, julguei que íamos aparelhar, e não pude impedir-me de perguntar a um dos marinheiros se partíamos já. Ele respondeu, lacónico, que Demetrios ainda não tinha chegado e que esperaríamos por ele.

Não tardei a ver uma lanterna na praia, e três homens que se aproximavam, caminhando um à frente do outro. O primeiro era Demetrios; o segundo, que trazia a luz, e cujo rosto era melhor iluminado, eu não o conhecia; o último era o marido de Marta.

Domenico tinha-me recomendado que ficasse invisível, e só manifestasse a minha presença quando ele me chamasse pelo meu nome. Eu obedeci de bom grado, tanto mais que ele me tinha instalado atrás de um tabique, e não perdi uma única palavra da sua conversa, que decorria numa mistura de italiano e grego.

Eu deveria dizer, como preâmbulo àquilo que vou relatar, que era evidente desde as primeiras palavras que Sayyaf sabia perfeitamente quem era Domenico, e que se dirigia a ele com respeito e temor. Como um prior de aldeia se dirigiria a um bispo de passagem. Eu não deveria sem dúvida recorrer a esta comparação de ímpio; queria apenas dizer que, no mundo da sombra, reina um sentido da hierarquia digno das mais veneráveis instituições. Quando um bandido de aldeia encontra o contrabandista mais temerário de todo o Mediterrâneo, evita comportar-se com desenvoltura. E o outro abstém-se de tratá-lo com o igual.

O tom foi dado logo à primeira réplica, quando o marido de Marta, depois de ter esperado em vão que o seu anfitrião lhe explicasse porque o havia convocado, acabou por dizer ele mesmo, numa voz que me pareceu hesitante:

- O teu homem, Demetrios, disse-me que tinhas um carregamento de tecidos, de café e de pimenta, que estavas disposto a ceder por bom preço...

Silêncio de Domenico. Suspiro. Depois,-como quem atira a um mendigo uma moeda amolgada:

- Se ele te disse, deve ser verdade!

Imediatamente a conversa caiu. E foi Sayyaf quem teve de se baixar para a apanhar.

- Demetrios disse-me que poderia pagar um terço hoje e o resto na Páscoa.

Domenico, depois de um tempo:

- Se ele te disse, deve ser verdade! O outro, obsequioso:

- Ele falou de dez sacos de café, de dois barris de pimenta, fico com eles todos. Mas quanto aos tecidos, tenho de vê-los antes de decidir.

Domenico:

- Está demasiado escuro. Verás tudo amanhã, à luz do dia! O outro:

- Não posso vir amanhã. E mesmo para vós, seria perigoso esperar.

Domenico:

- Quem te falou de esperar, ou de voltar? Tu vens connosco para o largo, e de manhã poderás verificar a mercadoria. Poderás apalpar, contar, saborear...

Porque não vejo Sayyaf, percebo mais distintamente os tremores de medo na sua voz.

- Não pedi para verificar a mercadoria. Eu confio. Queria apenas ver o tecido para saber quanto poderia vender. Mas não vale a pena, não quero atrasar-vos, deveis ter pressa de vos afastardes da costa.

Domenico:

- Já nos afastámos da costa. Sayyaf

- E como esperam desembarcar a mercadoria? Domenico:

- Pergunta-me antes como vamos poder desembarcar-te a ti!

- Sim, como?

- Pergunto-o a mim mesmo!

- Posso voltar numa pequena barca.

- Não tenho a certeza disso.

- Queres reter-me aqui contra a minha vontade?

- Oh, não! Nada disso. Mas também não podes levar uma das minhas barcas contra minha vontade. Terás de me perguntar se te quero emprestar uma.

- Queres emprestar-me uma das tuas barcas?

- Tenho de reflectir antes de te dar uma resposta.

Ouvi então os ruídos de uma breve altercação; adivinhei que Sayyaf e o seu esbirro tinham querido fugir, e que os marinheiros que os rodeavam os tinham dominado rapidamente.

O marido de Marta quase me inspirava piedade, naquele instante. Mas foi uma piedade passageira.

- Porque é que me mandaste vir? Que queres de mim? - Disse ele, com um resto de coragem.

Domenico não respondeu.

- Sou teu convidado, foste tu que me mandaste vir ao teu barco, e foi para me reter como prisioneiro. Devias ter vergonha!

Seguiram-se algumas imprecações em árabe. O calabrês continuava sem dizer nada. Depois começou a falar devagar.

- Nós não fizemos nada de mal. Não fizemos nada mais do que faz um bom pescador à linha. Lança o anzol, e quando apanha um peixe, deve decidir se fica com ele ou se o devolve ao mar. Nós lançámos o nosso anzol, e o peixe gordo mordeu.

- O peixe gordo sou eu?

- És tu o peixe gordo. Ainda não sei se te mantenho no barco, ou se de atiro ao mar. Olha, vou deixar-te escolher, que preferes tu?

Sayyaf não disse nada - com semelhante alternativa, que poderia ele dizer? Os marinheiros riam-se, mas Domenico mandou-os calar.

- Estou à espera da tua resposta! Conservo-te aqui, ou atiro-te ao mar?

- No barco - resmungou o outro.

O tom era de resignação, de capitulação. E Domenico percebeu-o, dizendo imediatamente:

- Perfeito, vamos poder discutir tranquilamente. Encontrei um genovês que me contou uma estranha história a teu respeito. Parece que tens sequestrada uma mulher na tua casa, que lhe bates, e que maltratas o seu filho.

- Embriaco! Esse mentiroso! Esse escorpião! Ele anda à volta de Marta desde que ela tinha onze anos! Já veio a minha casa, com um oficial turco, e puderam verificar que eu não a maltratava. De resto, é minha mulher, e o que acontece debaixo do meu tecto só a mim diz respeito!

Foi nesse preciso momento que Domenico me chamou.

- Signor Baldasssare!

Saí do meu esconderijo, e vi que Sayyaf e o seu esbirro estavam sentados no chão, encostados a uns cordames. Não estavam amarrados, mas uma boa dúzia de marinheiros rodeavam-nos, prontos a desancá-los se tentassem levantar-se. O marido de Marta lançou-me um olhar muito mais carregado de ameaças, pareceu-me, do que de contrição.

- Marta é minha prima, e quando eu a vi, no princípio do ano, ela disse-me que estava grávida. Se ela estiver bem e o filho também, ninguém te fará mal.

- Ela não é tua prima, e está bem.

- E o filho?

- Qual filho? Nunca tivemos nenhum filho! Tens a certeza de que é da minha mulher que estás a falar?

- Ele mente - disse eu.

Queria continuar, mas senti uma espécie de tontura que me obrigou a apoiar-me à parede mais próxima. Foi Domenico quem continuou:

- Como saber se tu não mentiste?

Sayyaf voltou-se para o seu acólito, que confirmou o que ele dissera. Então o calabrês decretou:

- Se vocês falaram verdade, os dois, amanhã estão em vossas casas, e eu não vos inquietarei mais. Mas devemos ter a certeza. Por isso proponho o seguinte. Tu, como é que te chamas?

O acólito respondeu: «Stavro!» e olhou na minha direcção. Agora, eu reconhecia-o. Só o tinha visto por breves instantes, quando fora com os janízaros à casa do marido de Marta. Era àquele homem que Sayyaf havia feito sinal para que fosse buscar a mulher, enquanto eu gritava e voltava a gritar. Desta vez, havia de comportar-me de modo diferente.

- Ouve-me bem, Stavro, disse Domenico num tom subitamente menos altivo. Tu vais buscar a prima do signor Baldassare. Logo que ela tenha confirmado as palavras do marido, eles poderão ir-se embora, um e outro. Quanto a ti, Stavro, se fizeres o que eu te digo, nem precisarás de voltar a bordo; regressas com ela à praia, amanhã à noite, nós iremos buscá-la numa barca; poderás então voltar para tua casa, e não terás mais nada a temer. Mas se, por desgraça, o diabo te metesse na cabeça a ideia de me enganar, fica sabendo que há nesta ilhas seiscentas famílias que vivem do dinheiro que eu lhes pago, e que as mais altas autoridades também me devem obrigações. Por isso, se tu te mostrares tagarela, ou se desapareces sem nos ter trazido a mulher, eu passo a palavra, e alguém te faz pagar a tua traição. Os golpes hão-de vir de onde tu não os esperas.

- Não hei-de enganar-te!

Quando voltaram a pôr a barca na água, com Stavro e três marinheiros encarregados de escoltá-lo até à costa, eu fui perguntar a Domenico se acreditava que aquele homem ia fazer o que lhe tinha pedido. Ele mostrou-se bastante confiante.

- Se ele desaparecer sem dar sinal, não poderei fazer nada contra ele. Mas acho que lhe meti medo. E creio que aquilo que lhe peço não exige dele um grande sacrifício. Por isso, é possível que ele me obedeça. Vamos ver!

Agora, estamos de novo ao largo, e parece-me que nada se mexe além na ilha. Contudo, algures, atrás de uma daquelas paredes esbranquiçadas, à sombra de uma ou outra daquelas árvores, Marta prepara-se para vir até à praia. Ter-lhe-ão dito que eu estou aqui? Ter-lhe-ão dito por que razão a convocam? Ela veste-se, maquilha-se, talvez arrume mesmo algumas coisas no seu saco. Estará inquieta, assustada, ou antes cheia de esperança? Será no marido que ela pensa, neste instante, ou em mim? E o filho, estará com ela? Tê-lo-á perdido? Ter-lho-ão tirado? Enfim, vou saber. Vou poder tratar as suas feridas. Vou poder reparar.

Começa a cair a noite, e eu continuo a escrever sem luz. O barco avança prudentemente em direcção à ilha, que no entanto continua distante.

Domenico colocou no cimo do mastro um marinheiro de Alexandria, chamado Ramadane, que tem os melhores olhos de toda a tripulação, e que está encarregado de escrutar a praia e de assinalar cada movimento suspeito. É por minha culpa que toda a gente aqui tem de correr riscos indevidos, mas nenhum deles mo faz sentir. Nem uma única vez percebi qualquer olhar de censura, nem um suspiro de irritação. Como diabo poderei eu alguma vez pagar semelhante dívida?

Aproximamo-nos ainda mais da costa, mas as luzes da ilha continuam a parecer tão frágeis como as estrelas do fundo dos céus. É claro, está fora de questão acender aqui alguma vela, qualquer lamparina. Quase não vejo a minha folha, mas continuo a escrever. Escrever, esta noite, não tem o mesmo gosto que habitualmente. Nos outros dias, escrevo para relatar, ou para me justificar, ou para aclarar o espírito como quem limpa a garganta, ou para não esquecer, ou até muito simplesmente porque jurei a mim mesmo escrever. Enquanto esta noite me agarro à bóia destas folhas. Não tenho nada a dizer-lhes, mas preciso que elas continuem ao pé de mim.

A minha pena segura-me a mão, e pouco importa se eu a molho apenas no negro da noite.

Diante de Katarraktis, 30 de Novembro de 1666

Eu não pensava que o nosso reencontro se passaria assim.

Eu no barco, de olhos franzidos, ela um vago clarão de lanterna à meia-noite numa praia.

Quando a lanterna começou a mover-se para a direita e para a esquerda como um pêndulo, Domenico ordenou a três homens que pusessem a canoa no mar. Sem luz, e com instruções de prudência. Os seus olhos deviam varrer toda a costa para se assegurarem de que não havia nenhuma armadilha. O mar estava agitado e ruidoso, sem estar encapelado. O vento era de norte, e já de Dezembro.

Nos meus lábios frios, sal e orações.

Marta.

Como estava próxima, e como ainda estava longe! A canoa demorou uma vida inteira a chegar à praia, e outra vida lá. Que faziam eles? Sobre que é que discutiam? No entanto é simples pôr uma pessoa a bordo, e voltar a partir no outro sentido! Porque é que eu não fui com eles? Não, Domenico não teria aceite. E teria razão. Não tenho nem a habilidade dos seus homens, nem a sua serenidade.

Depois a canoa regressou na nossa direcção, com a lanterna a bordo.

Domenico murmurou:

- Desgraçados! Eu disse nenhuma luz!

Como se o tivessem ouvido de tão longe, eles apagaram a chama nesse mesmo instante. Domenico suspirou ruidosamente, tocou-me no braço. «Antepassados meus!» Depois ordenou aos seus homens que se preparassem para voltar para o largo logo que a canoa e os seus ocupantes fossem recuperados.

Marta foi içada para bordo da maneira mais cavalheiresca possível - com a ajuda de uma corda grossa em cuja ponta está fixada uma tábua onde se põem os pés, espécie de escada mole com um único degrau. Quando ela estava bastante alta, fui eu que a ajudei a transpor o último obstáculo. Ela dera-me a mão como a um estranho, mas assim que se achou com os pés assentes, começou a procurar alguém com o olhar, e apesar da escuridão eu soube que era eu. Eu disse uma palavra, o seu nome, e ela voltou a agarrar-me a mão para apertá-la de uma maneira muito diferente. Era evidente que sabia que eu estava ali; ainda ignoro se foi o esbirro do seu marido que lho disse, ou os marinheiros que foram buscá-la à praia. Hei-de sabê-lo quando tiver ocasião de falar com ela. Não, para quê, teremos tantas outras coisas a dizer...

Tinha imaginado que no momento do nosso reencontro, a tomaria nos braços, para apertá-la com força, um tempo ilimitado. Mas com todos aqueles valentes marinheiros à nossa volta, com o marido retido a bordo à espera de ser julgado pelo nosso tribunal de corsários, seria deslocado manifestar uma intimidade excessiva, uma impaciência demasiado grande, e aquela pressão da sua mão na minha, furtiva na escuridão, foi entre nós o único gesto de conivência.

Depois ela sentiu-se mal. Para impedi-la de cambalear, aconselhei-a a expor o rosto aos salpicos frios, mas ela começou a tremer, e os marinheiros aconselharam-na a deitar-se ao comprido num colchão na cala, e a agasalhar-se.

Domenico queria convocá-la imediatamente, verificar com ela o que aconteceu à criança que trazia, proferir o seu julgamento e partir para o seu porto de matrícula. Mas ela parecia a ponto de entregar a alma, e ele resignou-se a deixá-la repousar até de manhã.

Assim que se deitou, ela adormeceu, tão depressa que julguei que estava desmaiada. Abanei-a um pouco, para que ela abrisse os olhos e dissesse uma palavra, depois, confuso, afastei-me.

Encostado a sacos de mástique, passei a noite a procurar o sono. Sem grande sucesso. Parece-me que só dormitei alguns instantes perto do amanhecer...

Durante esta noite interminável, e quando não estava nem completamente acordado, nem completamente adormecido, fui assaltado pelos mais atrozes pensamentos. Mal me atrevo a registá-los aqui, tanto me apavoravam. No entanto, eles nasceram da minha maior alegria...

É que me surpreendi a perguntar-me o que devia fazer de Sayyaf se viesse a saber que ele fizera mal a Marta, e mais ainda ao filho que ela trazia.

Poderia deixá-lo partir para sua casa, impune? Não deveria fazê-lo pagar a sua malvadez?

Aliás, digo ainda a mim próprio, mesmo que o marido de Marta nada tivesse a ver com a morte da criança, como poderia eu partir com ela, para vivermos juntos em Gibelet, deixando aquele homem atrás de nós, repisando todos os dias a sua vingança, e que um dia virá perseguir-nos?

Poderei eu dormir tranquilo sabendo-o vivo?

Poderei dormir tranquilo se o...

Matá-lo?

Eu, matar?

Eu, Baldassare, matar? Matar um homem, seja ele quem for?

E antes de mais, como é que se mata?

Aproximar-me de alguém, com uma faca na mão, para trespassá-lo até ao coração... Esperar que adormeça, com receio de que me olhe... Senhor, não!

Ou então, pagar a alguém para...

Que estou eu a pensar? Que estou eu a escrever? Senhor! Afastai de mim este cálice!

Parece-me neste momento que nunca mais dormirei, nem esta noite nem nenhuma das que me restam!

Domingo, 5 de Dezembro de 1666

Não quero reler as últimas páginas, com receio de ser tentado a rasgá-las. São da minha tinta, mas não me orgulho delas. Não sinto orgulho por ter pensado em sujar as mãos e a alma, e também não estou orgulhoso de ter renunciado a isso.

Registara as minhas ideias nocturnas na madrugada de terça-feira, quando Marta ainda dormia, e para enganar a minha impaciência. Depois, durante cinco dias, não escrevi mais nada. Tinha mesmo considerado, uma vez mais, interromper este diário; mas eis-me de novo com a pena na mão, talvez por fidelidade à imprudente promessa que fiz a mim mesmo no início da viagem.

Durante a semana que agora terminou, três vertigens se apoderaram de mim, uma após a outra. Primeiro a dos reencontros, depois a da extrema confusão, e agora este furor, uma tempestade da alma, que sopra em mim e me sacode e me maltrata; como se estivesse na ponte, sem nada a que me pudesse agarrar, e levantando-me apenas para voltar a cair mais pesadamente ainda.

Nem Domenico nem Marta me podem já valer. Nem nenhum ser presente ou ausente, nem nenhuma recordação. Tudo o que me

passa pelo espírito, só serve para aumentar a minha confusão. Como de resto tudo aquilo que me rodeia, tudo aquilo que vejo e tudo aquilo de que consigo recordar-me. Como este ano, este maldito ano de que restam apenas quatro semanas, mas quatro semanas que me parecem neste momento intransponíveis, um oceano sem sol nem lua nem estrelas, e apenas vagas como horizonte. Não, ainda não estou em condições de escrever!

10 de Dezembro

O nosso barco já se afastou de Quios, e o meu espírito também começa a afastar-se dela. A minha ferida não sarará tão cedo, mas ao fim de dez dias consigo enfim distrair-me por vezes daquilo que me aconteceu. Talvez eu devesse retomar a escrita...

Até agora, não consegui contar o que se passou. Mas é tempo de fazê-lo, nem que tenha de me limitar, para os momentos dolorosos, às palavras mais desprovidas de paixão, «ele disse», «ele perguntou», «ela disse», «dado que», ou «foi combinado».

Quando Marta subiu para o Charybdos, Domenico queria convocá-la durante a noite, verificar com ela o que tinha acontecido à criança que ela trazia, pronunciar a sua sentença e partir imediatamente em direcção à Itália. Como ela não se tinha de pé, ele resignou-se -já o disse - a deixá-la dormir. Toda a gente no barco teve algumas horas de repouso com excepção dos vigias, para o caso de algum navio otomano se lembrar de nos interceptar. Mas naquele mar enfurecido nós devíamos ser os únicos a navegar naquela noite.

De manhã, encontrámo-nos nos aposentos do capitão. Estavam lá também Demetrios e Yannis - cinco pessoas no total. Domenico perguntou solenemente a Marta se preferia que a interrogassem na presença do marido ou na sua ausência. Eu traduzi-lhe a pergunta no árabe falado em Gibelet, e ela respondeu prontamente, num tom quase suplicante:

- Sem o meu marido!

O gesto das suas duas mãos e a expressão do seu rosto tornavam inútil qualquer tradução. Domenico registou o facto, e continuou:

- O signor Baldassare disse-nos que quando viestes para Quios, em Janeiro passado, estáveis grávida. Mas o vosso marido pretende que nunca tivestes nenhum filho.

O olhar de Marta ficou sombrio. Ela voltou-se para mim por instantes, depois ocultou o rosto e começou a soluçar. Dei um passo para ela, mas Domenico - tomando a sério o seu papel de juiz - fez-me sinal para que voltasse ao meu lugar. E aos outros fez igualmente sinal para que nada fizessem, nem dissessem nada, e esperassem. Depois, considerando que tinha concedido à testemunha o tempo para se recompor, disse-lhe:

- Estamos à escuta.

Eu traduzi, acrescentando:

- Fala, não temas nada, ninguém pode fazer-te mal.

As minhas palavras, em vez de a tranquilizarem, pareceram abalá-la ainda mais. Os seus soluços tornaram-se mais sonoros. Por isso, Domenico intimou-me a não acrescentar nada ao que ele me pedia para traduzir. Eu prometi.

Passaram-se alguns segundos. Os soluços atenuaram-se, e o calabrês voltou a fazer a pergunta, com uma ponta de impaciência. Então Marta ergueu a cabeça e disse:

- Nunca houve nenhuma criança!

- Que queres dizer com isso?

Eu gritei. Domenico chamou-me à ordem. Novamente pedi desculpa, depois traduzi fielmente o que tinha sido dito. Então ela repetiu, com voz firme:

- Nunca houve nenhuma criança. Eu nunca estive grávida.

- Mas foste tu mesma que me disseste.

- Disse-te, porque pensava que sim. Mas estava enganada. Olhei-a longamente, longamente, sem conseguir encontrar uma

única vez o seu olhar. Gostaria de discernir qualquer coisa que parecesse verdade, compreender ao menos se ela me tinha mentido sempre, se me tinha mentido apenas sobre a criança, para me obrigar a levá-la mais depressa para casa do meliante do seu marido.

Ou se me mentia agora. Ela só ergueu os olhos duas ou três vezes, furtivamente, sem dúvida para verificar se eu continuava a fixá-la, e se acreditava nela.

Depois Domenico perguntou-lhe, num tom muito paternal:

- Dizei-nos, Marta. Desejais regressar à costa com o vosso marido, ou vir connosco?

Ao traduzir, eu disse «regressar comigo». Mas ela respondeu claramente, com um gesto da mão apontada, que queria voltar para Katarraktis.

Com aquele homem que ela detesta? Eu não compreendia. E depois, subitamente, como uma iluminação:

- Espera, Domenico, acho que compreendi o que se passa. O filho está na ilha, e ela tem medo de que lhe façam mal se disser mal do marido. Diz-lhe que se é isso que ela receia, nós obrigaremos o marido a mandar vir a criança como o obrigámos a mandá-la vir. Será ela que irá buscar a criança, e nós reteremos o marido até que ela volte. Ele nada poderá contra ela!

- Acalma-te! - Disse-me o calabrês. - Parece-me que estás a contar uma fábula a ti mesmo. Mas se tens a menor dúvida, quero que lhe repitas o que acabas de me dizer. E podes prometer-lhe da minha parte que não acontecerá nenhum mal nem a ela nem ao filho.

Lancei-me então numa longa tirada apaixonada, desesperada, patética, para suplicar a Marta que me dissesse a verdade. Ela escutou-me de olhos baixos. E quando acabei, olhou para Domenico para repetir:

- Nunca houve criança. Eu nunca estive grávida. Não posso ter filhos.

Disse-o em árabe, depois repetiu as mesmas afirmações em mau grego, voltando-se para Demetrios. Que Domenico consultou com o queixo.

O marinheiro, que até então nada dissera, pareceu embaraçado. Olhou para mim, olhou para Marta, depois novamente para mim, e por fim para o seu capitão.

- Quando fui à casa deles, não tive a impressão de que houvesse lá uma criança.

- Era a meio da noite, dormia!

- Bati à porta, e acordei toda a gente. Houve uma grande algazarra, e nenhuma criança chorou.

Eu queria retomar a palavra, mas desta vez Domenico mandou-me calar:

- Basta! Para mim, esta mulher não mente! É preciso libertá-los, a ela e ao marido.

- Ainda não, espera!

- Não, Baldassare, não esperarei. O caso está entendido. Vamos partir. Já nos atrasámos para te satisfazer, e espero que um dia penses em agradecer a todos estes homens que se arriscaram por ti.

Estas palavras feriram-me mais do que Domenico poderia imaginar. Aos olhos daquele homem, eu tinha sido um herói, e agora aparecia como um amante repelido, choramingão, fabulador. Em algumas horas, e mesmo em alguns minutos, em algumas réplicas, o respeitável e nobilíssimo signor Baldassare Embriaco tinha-se tornado um importuno, um passageiro incómodo, que se tolera como um infeliz, e a quem se manda calar.

E se fui isolar-me num canto sombrio para chorar em silêncio, foi tanto por causa disso como por causa de Marta. Que partiu logo depois do interrogatório. Suponho que Domenico apresentou desculpas ao marido, e creio que lhes ofereceu a canoa com a qual regressaram à costa. Eu não quis assistir às despedidas.

Hoje, a minha ferida já não está tão aberta, mesmo que ainda seja dolorosa. Quanto ao comportamento de Marta, ainda não o compreendi. Faço-me perguntas tão estranhas que nem ouso registá-las nestas páginas. Preciso de voltar a reflectir sobre elas isso...

11 de Dezembro

E se toda a gente me tivesse mentido?

E se esta expedição não tivesse passado de um logro, uma mistificação, destinada apenas a fazer-me renunciar a Marta?

Isto é talvez apenas um delírio, fruto da humilhação, da solidão, e de algumas noites sem sono. Mas talvez seja também a única verdade.

Gregório, desejoso de me fazer renunciar a Marta de uma vez para sempre, teria dito a Domenico que me levasse com ele, e fizesse de modo que eu nunca mais quisesse voltar a ver aquela mulher.

Não me tinham dito um dia em Esmirna que Sayyaf estava metido no contrabando, e justamente o do mástique? É pois provável que Domenico o conhecesse, embora tenha fingido que o via pela primeira vez. Foi talvez também por isso que me pediram que ficasse atrás de um tabique. Assim, eu não podia observar as suas piscadelas de olho e desmascarar a sua conivência!

E sem dúvida Marta conhecia Demetrios e Yannis, por já os ter visto em casa do seu marido. Por isso se sentiu obrigada a dizer o que disse.

Mas quando nos encontrámos juntos, sozinhos, na cala, no momento em que ela se deitou, como é possível que não tenha aproveitado para me falar em segredo?

Tudo isto é efectivamente um delírio! Por que haviam todas estas pessoas de representar a comédia? Só para me enganar e me fazer renunciar àquela mulher? Não teriam eles nada melhor a fazer das suas vidas do que arriscar a forca e a empalação para se ocuparem das minhas embrulhadas amorosas?

A minha razão deslocou-se, como outrora se deslocava o ombro do meu pobre pai, e seria preciso um choque vigoroso para a repor no lugar.

13 de Dezembro

Durante doze dias errei pelo barco como se fosse invisível, todos eles tinham ordem para me evitar. Se um ou outro marinheiro me dirigia a palavra, era num murmúrio, e verificando se ninguém o via. Eu comia sozinho, e às escondidas, como um pestilento.

A partir de hoje, voltam a falar-me. Domenico veio ter comigo, e abraçou-me como se acabasse de me acolher no seu barco. Era o sinal, e de novo aceitam conviver comigo.

Eu podia ter-me insurgido, recusar a mão estendida, deixar falar em mim o sangue fanfarrão dos Embriaci. Não o farei. Porquê mentir? Este regresso à graça alivia-me. Esta quarentena pesava-me.

Não sou daqueles que se comprazem na adversidade.

Gosto que gostem de mim.

14 de Dezembro

Segundo Domenico, eu deveria agradecer ao Altíssimo por ter ordenado as coisas à Sua maneira e não à minha. Estas palavras de um contrabandista da Calábria tornado director de consciência levaram-me a reflectir, a pesar, a comparar. E no fim de contas, não deixo de lhe reconhecer alguma razão.

- Imagina que essa mulher dizia o que tu esperavas que ela dissesse. Que o marido a maltratava, que por causa dele ela tinha perdido o filho, e que gostaria de deixá-lo. Suponho que a terias mantido ao pé de ti, para a levares para a tua terra natal.

- Seguramente!

- E o marido, que farias tu dele?

- Que fosse para o diabo!

- Compreendo. Mas que mais? Tinha-lo deixado partir para sua casa, com o risco de o ver bater um dia à tua porta para te intimar a restituir-lhe a mulher? E que terias tu dito aos seus parentes? Que ele tinha morrido?

- Achas que não pensei em tudo isso?

- Oh, não, estou persuadido de que pensaste nisso mil vezes. Mas gostaria de saber que solução tinhas encontrado.

Calou-se por alguns segundos, e eu também.

- Não quero torturar-te, Baldassare. Sou teu amigo e fiz por ti aquilo que o teu próprio pai não teria feito. Por isso vou dizer-te aquilo que tu mesmo não ousas dizer-me. Esse homem, esse porco desse marido, seria preciso matá-lo. Não, não faças essa careta, não te mostres espantado, sei que pensaste nisso, e eu também. Porque se essa mulher tivesse decidido deixá-lo, nem tu nem eu quereríamos que ele continuasse vivo para vir perseguir-nos. Eu teria dito a mim mesmo que há um homem em Quios que sonha com a vingança, e a cada passagem por esta ilha tê-lo-ia receado. E tu também, naturalmente, terias preferido sabê-lo morto.

- Sem dúvida!

- Mas terias sido capaz de matá-lo?

- Reflecti sobre isso - confessei por fim, mas sem dizer mais nada.

- Não basta reflectir sobre isso, e ainda menos desejá-lo. Todos os dias pode acontecer-te desejar a morte de alguém. Um criado desonesto, um cliente retorcido, um vizinho importuno, e mesmo o teu próprio pai. Mas aqui, não bastaria desejar. Terias sido capaz de agarrar numa faca, por exemplo, avançar para o teu rival, e espetar-lha no coração? Terias sido capaz de lhe amarrar os pés e as mãos, e depois atirá-lo pela borda fora? Pensaste nisso, e eu pensei nisso por ti. Perguntei a mim mesmo qual seria a solução ideal para ti. E encontrei-a. Matar esse homem, atirá-lo pela borda fora não teria bastado. Tu não precisavas apenas de saber que ele estava morto, precisavas também de que as pessoas do teu bairro o vissem morto. Seria necessário que fôssemos em direcção a Gibelet, mantendo esse homem vivo entre nós. Chegados a uma certa distância da costa, amarrávamos-lhe solidamente os pés com uma corda, e atirávamo-lo pela borda fora. Ali, tê-lo-íamos deixado afogar-se na água durante, digamos, uma hora, depois puxávamo-lo afogado. Então desatávamos os nós, colocávamo-lo sobre uma padiola, e vocês, essa mulher e tu, desceriam, com ar compungido, com os meus homens para transportar o cadáver para terra. Teríeis contado que ele caíra do barco nesse mesmo dia, que se tinha afogado, e eu confirmaria as vossas palavras. Depois vocês enterravam-no, e um ano mais tarde tu casarias com a viúva. Eu, era assim que teria feito. Já matei dezenas de homens, e nenhum deles voltou nunca para me perseguir no meu sono. Mas tu, diz-me, terias sido capaz de agir assim?

Confessei-lhe que teria certamente agradecido ao Céu se a nossa aventura tivesse terminado como ele acabava de imaginar. Mas que teria sido incapaz de meter as minhas mãos em semelhante crime.

- Então, considera-te feliz por essa mulher não ter pronunciado as palavras que tu esperavas!

O mundo começou no paraíso, acabará no inferno.

Por que cheguei eu tão tarde a ele?

15 de Dezembro

Volto ainda a pensar nas palavras de Domenico. Se ele estivesse no meu lugar, não duvido de que teria agido exactamente da maneira que me descreveu. Quanto a mim, nasci mercador e tenho alma de mercador, não a de um corsário nem a de um guerreiro. Nem a de um bandido - talvez fosse por isso que Marta me preferiu ao outro. Ele, como Domenico, não teria hesitado em matar para obter aquilo que queria. Nenhum escrúpulo os detém. Mas teriam eles desviado a sua rota pelo amor a uma mulher?

Ainda não a esqueci, nem sei se a esquecerei algum dia... Sim, um dia hei-de esquecê-la, e a sua traição há-de ajudar-me a isso.

Dito isto, não posso impedir-me de ter ainda uma dúvida. Traiu-me ela verdadeiramente, ou falou assim para preservar o seu filho?

Eis que volto a falar dessa criança, quando todos me dizem que ela não existe, e que nunca existiu.

E se me mentissem todos? Ela para proteger o filho, e os outros para... Ah, não! Basta! Não vou voltar ao meu delírio! Mesmo que nunca chegue a conhecer toda a verdade, preciso de voltar costas à minha vida passada, e olhar em frente, em frente.

De qualquer maneira, o ano chega ao fim...

19 de Dezembro

Acabamos de passar o estreito de Messina evitando esse abismo efervescente a que chamam Caríbdis. Domenico deu esse nome ao seu barco para esconjurar os seus temores, mas toma o cuidado de nunca se aproximar dele.

Vamos subir agora ao longo da península italiana até Génova. Onde, jura-me o calabrês, me espera uma nova vida. De que me serve inaugurar uma nova vida se o mundo está a ponto de se extinguir?

Sempre acreditei que seria em Gibelet que passaria os últimos dias do «ano da Besta», para que todos os meus estivessem juntos na mesma casa, apertados uns contra os outros, reconfortados por vozes familiares, se acontecesse aquilo que deve acontecer. Estava tão seguro de lá voltar que quase não falava disso, apenas me interrogava sobre as datas e os itinerários. Devia lá ir em Abril, directamente, em vez de seguir O Centésimo Nome até Londres? Devia, no caminho de regresso, passar por Quios? Ou por Esmirna? Mesmo Gregório, quando me fizera prometer que voltaria a sua casa, compreendera bem que eu só poderia encará-lo depois de ter posto ordem nos meus negócios em Gibelet.

E no entanto, eis-me já a caminho de Génova. Estarei lá no Natal, e será lá que me encontrarei quando acabar o ano de 1666.

17 de Dezembro

Observei o céu na noite passada, e parece-me que as estrelas são verdadeiramente cada vez menos numerosas.

Elas extinguem-se, umas a seguir às outras, e na terra os incêndios.

20 de Dezembro de 1666

A verdade, é que escondi constantemente a verdade de mim mesmo, até neste diário que deveria ser o meu confessor.

A verdade, é que ao regressar a Génova, soube que nunca mais voltaria a Gibelet. Murmurei-o algumas vezes, sem nunca ousar escrevê-lo, como se um pensamento tão monstruoso não pudesse ser consignado no papel.

Porque em Gibelet encontram-se a minha amada irmã, o meu comércio, o túmulo dos meus pais, e a minha casa natal onde já nascera o pai do meu avô. Mas lá sou estrangeiro como um judeu. Enquanto Génova, que nunca me conhecera, me reconheceu, me abraçou, me apertou contra o seu peito como o filho pródigo. Caminho pelas suas ruelas de cabeça erguida, declamo o meu nome italiano em voz alta, sorrio às mulheres e não receio os janízaros. Os Embriaci têm talvez um antepassado manchado de embriaguez, mas têm também uma torre com o seu nome. Cada família devia ter em qualquer parte da terra uma torre com o seu nome.

Esta manhã escrevi aquilo que achei dever escrever. Poderia muito bem ter escrito o contrário.

Gabo-me de estar em minha casa em Génova, só em Génova, quando vou ser aqui, até ao fim dos meus dias, o convidado de Gregório, e seu devedor. Vou deixar o meu próprio tecto para viver debaixo do seu, deixar o meu próprio negócio para me ocupar do seu.

Terei orgulho em viver assim? Depender dele e da sua generosidade quando penso dele aquilo que penso? Quando me impaciento com a sua solicitude, troço da sua devoção, e já me escapuli às escondidas da sua casa porque não suportava as suas alusões nem a cara da sua mulher? Vou receber a mão da sua filha como quem recebe a homenagem de um vassalo, como que por direito de pernada, porque uso o nome dos Embriaci e ele próprio usa apenas o seu nome. Toda a sua vida ele terá trabalhado apenas para mim, e só terá edificado o seu negócio, armado os seus navios, acrescentado a sua fortuna, fundado a sua família, apenas para mim. Terá plantado, regado, podado, tratado, para que eu venha morder o fruto. E ouso dizer-me orgulhoso de usar o nome que uso, e de me pavonear em Génova! Tendo abandonado aquilo que construí, e aquilo que os meus antepassados construíram para mim!

Talvez eu me torne em Génova o fundador de uma dinastia.

Mas terei sido o coveiro de uma outra dinastia, mais gloriosa ainda, instaurada no início das cruzadas, que desaparece comigo, extinta.

Acabarei este ano em Génova, mas se outros anos se seguirem, não sei ainda onde os passarei.

22 de Dezembro de 1666

Abrigámo-nos da ondulação numa angra a norte de Nápoles, num lugar quase deserto, ficando todos à espreita com receio dos causadores de naufrágios.

Parece que do barco avistaram um grande incêndio na costa, nos confins de Nápoles. Eu estava deitado e não vi nada.

Estou novamente enjoado. E sinto também a vertigem dissimulada do ano que acaba.

Dentro de dez dias o mundo terá dobrado resolutamente o cabo, teremos naufragado.

23 de Dezembro de 1666

Nem Marta nem Giacominetta - ao acordar esta manhã só tinha no espírito a cabeleira ruiva de Bess, o seu odor a violeta e a cerveja, e o seu olhar de mãe desprezada. Não tenho saudades de Londres, mas não posso sem tristeza pensar no seu terrível destino de Gomorra. Se detestei a suas ruas e as suas multidões, encontrei nessa cidade, na vizinhança dessa mulher, uma tribo de amigos estranhos.

Que será feito deles? Que será da sua ale house vetusta, com as suas escadas de madeira e o seu sótão? Que será feito da Torre de Londres? E da catedral de S. Paulo? E todas aquelas livrarias com os seus montes de obras? Cinzas, cinzas. E cinzas também o fiel diário que eu estava a alimentar todos os dias. Cinzas, sim, cinzas todos os livros, com excepção do de Mazandarani; que espalha a desolação à sua volta, mas que de todas as vezes sai indemne. Incêndio em Constantinopla, incêndio em Londres, naufrágio para Marmontel; e este navio agora que parece a ponto de soçobrar...

Ai de quem se aproxima do nome oculto, os seus olhos ficam ensombrados, ou ofuscados - nunca iluminados. Nas minhas preces, tenho agora vontade de dizer:

Senhor, não estejas nunca demasiado longe de mim! Mas também não estejas demasiado próximo!

Deixa-me admirar as estrelas nas abas da Tua capa! Mas não me mostres o Teu rosto!

Permite-me ouvir o som dos rios que Tu fazes correr, o vento que Tu fazes soprar nas árvores, e os risos das crianças que Tu fazes nascer! Mas, Senhor! Senhor! Não permitas que eu oiça a Tua voz!

24 de Dezembro de 1666

Domenico tinha prometido que estaríamos em Génova pelo Natal. Não estaremos. Se o mar estivesse calmo, poderíamos chegar amanhã ao fim da tarde. Mas o libeccio que sopra de sudoeste redobra de violência, obrigando-nos a refugiar-nos de novo na costa.

Libeccio... Tinha esquecido esta palavra da minha infância, que o meu pai e o meu avô evocavam com um misto de nostalgia e de pavor. Opunham-no sempre a sirocco, para dizer - se bem me lembro - que Génova se protegeu de um mas não do outro, e que isso é por causa da incúria das famílias que a dirigem hoje, que gastam fortunas para edificar os seus palácios mas são avarentos quando se trata do bem comum.

De facto, o calabrês disse-me que, ainda há vinte anos, nenhum navio queria passar o Inverno em Génova, porque o libeccio provocava ali abomináveis morticínios. Todos os anos contavam-se vinte barcos afundados, ou quarenta, e uma vez mais de cem, naus e barcas e fragatas. Principalmente em Novembro e Dezembro. Depois disso construiu-se num novo molhe, do lado poente, que abriga o porto.

«Quando lá estivermos, já não receamos nada. A bacia tornou-se um lago tranquilo.

Mas para lá chegar, só na época dos antepassados.

25 de Dezembro de 1666

Tentámos esta manhã uma saída rumo ao alto mar, mas depressa voltámos para junto da costa. O libeccio soprava cada vez mais forte, e Domenico sabia que não poderia chegar longe. Mas queria que nos abrigássemos na enseada que fica por trás da península de Portovenere, para o lado de Lerici.

Estou farto do mar, constantemente doente. E de bom grado teria continuado pela estrada até Génova, que não está a mais de uma jornada daqui. Mas, depois de tudo o que o capitão e a sua equipagem fizeram por mim, teria vergonha de abandoná-los dessa maneira. Devo partilhar a sua sorte como eles partilharam a minha, nem que tenha de vomitar as entranhas.

26 de Dezembro

A um velho marinheiro rabugento que o censurava por não cumprir a sua promessa, Domenico respondeu: «Mais vale chegar demasiado tarde a Génova, do que demasiado cedo ao inferno!»

Todos nos rimos, salvo o velho marinheiro, sem dúvida demasiado próximo do fim, e a quem a evocação do inferno já não faz rir.

Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1666

Finalmente, Génova!

No porto, Gregório estava à minha espera. Tinha colocado um homem de vigia perto do farol, para que o avisasse quando o nosso navio aparecesse.

Ao vê-lo, de longe, a agitar as mãos, lembrei-me da minha primeira chegada à minha cidade de origem, há nove meses. Vinha no mesmo barco, proveniente da mesma ilha, transportado pelo mesmo capitão. Mas então era Primavera, e o porto fervilhava de navios a serem carregados, descarregados, com aduaneiros, carregadores, viajantes, empregados, basbaques. Hoje, estávamos sozinhos. Nenhum outro barco chegava, nenhum partia, não havia ali ninguém para se despedir ou para abrir os braços ou para contemplar beatamente o vaivém. Ninguém, nem mesmo Melchione Baldi - em vão o procurei com os olhos. Apenas barcos parados, vazios, e cais também quase vazios.

Naquele deserto de pedra e de água, maltratado pelo vento frio, havia um homem de pé, alegre, corado, caloroso e no entanto inabalável. O senhor Mangiavacca vinha receber oitocentos celamins de mástique e um genro pródigo.

Continuo a troçar dele mas não já procuro fazer-lhe frente. E abençoo-o mais do que o amaldiçoo.

Giacominetta corou ao ver-me entrar em casa na companhia de seu pai. é evidente que já lhe disseram que eu regressava a Génova, que pediria a sua mão, e que ela me seria dada. Quanto à minha futura sogra, estava doente, por causa do frio, e não sai da cama há dois dias, disseram-me. Afinal, é possível que seja verdade...

Três coisas me desagradam em Giacominetta: o nome, a mãe, e uma certa semelhança no andar com Elvira, a minha primeira esposa, a tristeza da minha vida.

Mas não posso responsabilizar a boa filha de Gregório por nenhuma dessas taras.

28 de Dezembro

O meu anfitrião veio visitar-me de manhã cedo ao meu quarto, o que até agora nunca tinha feito. Pretendeu que preferia que ninguém soubesse que tínhamos esta conversa, mas parece-me que queria principalmente dar à sua diligência um carácter de

solenidade. Vinha reclamar a minha dívida de palavra como nunca me reclamará a minha dívida de dinheiro. Naturalmente, eu já o esperava, mas talvez não tão depressa. Nem desta maneira.

- Há promessas entre nós - disse ele.

- Não as esqueci.

- Eu também não as esqueci, mas não quero que te sintas constrangido - por obrigação para comigo, ou mesmo por amizade - a fazer o que não desejes. Por essa razão, desligo-te do teu juramento até ao fim deste dia. Disse nas cozinhas que tinhas chegado cansado, e que ias ficar no teu quarto até à noite. Trazem-te aqui as refeições, e tudo o que tu pedires. Passa um dia de repouso e de meditação. Quando eu voltar, dás-me a tua resposta, e eu aceito-a seja ela qual for!

Limpou uma lágrima, e saiu sem esperar a minha resposta.

Assim que ele fechou a porta, sentei-me à minha mesa para escrever esta página, na esperança de que ela me ajudaria a reflectir.

Reflectir - que palavra presunçosa! Lançados à água, esbracejamos, nadamos, flutuamos, ou afundamo-nos. Não reflectimos.

Tenho aqui, ao pé de mim, em cima da mesa, O Centésimo Nome... Devo considerar-me privilegiado por tê-lo na minha posse quando o ano fatídico chega ao fim? Estamos realmente nos últimos dias do mundo? Nos três ou quatro dias que antecedem o Juízo Final? O universo vai incendiar-se, e depois extinguir-se? As paredes desta casa vão amarrotar-se e retorcer-se como um papel na mão de um gigante? O solo sobre o qual se ergue a cidade de Génova vai fugir-nos de repente debaixo dos pés, no meio dos gritos, como um gigantesco e último terremoto? E quando esse instante chegar, poderei eu ainda agarrar este livro, abri-lo, encontrar a página certa, e ver inscrever-se de súbito à minha frente em letras cintilantes o nome supremo que não consegui ainda decifrar?

A dizer a verdade, não estou convencido de nada. Imagino todas estas coisas, receio algumas delas, mas não creio em nenhuma. Corri um ano inteiro atrás de um livro que já não desejo.

Sonhei com uma mulher que preferiu um bandido. Escrevinhei centenas de páginas e não me resta nada delas... Contudo, não sou infeliz. Estou em Génova, no quente, sou cobiçado e talvez até um pouco amado. Olho o mundo e a minha própria vida como um estranho. Não desejo nada, a não ser talvez que o tempo pare em 28 de Dezembro de 1666.

Não quero que te obriguem a fazer o que não queres. Só tens de me dizer, e farei como se fosse eu que não pudesse casar-me.

Giacominetta corou outra vez, e desviou o rosto antes de dizer:

- Se nós nos casarmos, eu não serei infeliz...

Depois fugiu pela porta, que tinha permanecido completamente aberta.

Esperava Gregório, mas foi a filha que veio há pouco. A porta abriu-se e Giacominetta entrou, trazendo-me sobre uma bandeja café e doçarias. Um pretexto para que falássemos. Não, desta vez, das árvores dos jardins, do nome das plantas e das flores. Mas daquilo que nos foi destinado. Ela está impaciente - como poderia eu reprová-la por isso? As nossas interrogações sobre o nosso futuro casamento ocupam um quarto dos meus pensamentos, enquanto para ela, que acaba de fazer catorze anos, ocupam os quatro quartos. Fingi no entanto não me aperceber disso.

- Diz-me, Giacomineta, sabes que o teu pai e eu falámos longamente de ti e do teu futuro?

Ela corou e não disse nada, sem no entanto se pretender surpreendida.

- Falámos de noivado e de casamento.

Ela continou sem nada dizer.

- Sabes que eu já fui casado, e que sou viúvo? Isto ela não o sabia. No entanto eu tinha-o dito a seu pai.

- Eu tinha dezanove anos, e deram-me para mulher a filha de um negociante instalado na ilha de Chipre...

- Como se chamava ela?

- Elvira.

- De que é que ela morreu?

- De tristeza. Ela prometia-se casar com um jovem que ela conhecia, um grego, e não me queria a mim. Ninguém me disse nada sobre isso. Se eu soubesse, talvez tivesse resistido a esse casamento. Mas ela era jovem, eu era jovem, tínhamos obedecido aos nossos pais. Ela nunca pôde ser feliz e não me fez feliz a mim. Conto-te esta história triste porque não queria que acontecesse a mesma coisa connosco. Queria que tu me dissesses o que desejas.

À tarde, enquanto espero ainda o regresso de Gregório para lhe dar a minha resposta, vejo pela janela a sua filha, que passeia no jardim, que se aproxima da estátua de Baco que eu ofereci, e que se apoia nos ombros da divindade deitada.

Quando o pai chegar, pedir-lhe-ei a sua mão como me tinha comprometido. Se o mundo sobreviver até ao dia do meu casamento, não poderei deixar de me alegrar por isso. e se o mundo morre, se Génova morre, se todos morrermos, terei liquidado essa dívida, partirei com a alma serena, e Gregório também...

Mas não desejo o fim do mundo. E não acredito nisso - alguma vez terei acreditado? Talvez. Já não sei...

29 de Dezembro

Na minha ausência chegou a carta que eu esperava. Tem a data de domingo, 12 de Setembro, mas Gregório só a recebeu na semana passada, e só ma deu esta manhã, pretendendo que se tinha esquecido. Não acredito nesse esquecimento. Sei perfeitamente porque é que ele a guardou até agora - queria ter a certeza de que nenhuma notícia de Gibelet viria retardar a minha decisão. Ao agir assim deu prova de uma prudência excessiva, porque nada na carta podia afectar a minha aliança com a sua filha nem com ele. Mas como poderia ele saber isso?

A minha irmã diz-me que os seus dois filhos estão sãos e salvos; em contrapartida, não tem qualquer notícia de Hatem, cuja família está altamente inquieta. «Esforço-me por tranquilizá-los, sem saber já o que lhes dizer», escreve-me ela, suplicando-me que lhe mande notícias se as tiver.

Censuro-me por não ter perguntado a Marta, quando a vi. Tinha-mo prometido, mas o caminho que os acontecimentos tomaram abalou-me de tal modo que nem tinha pensado nisso. Agora sinto remorso, mas de que me serve o remorso? E de que serve ele a esse infeliz Hatem?

Estou tanto mais triste com isso quanto não o esperava. Nos meus sobrinhos, não confiava. Um guiado pelos seus apetites, o outro pelas suas fantasias, pareciam-me vulneráveis e eu receava que se recusassem a voltar para Gibelet, ou que se perdessem no caminho. Enquanto o meu empregado me habituara a sair indemne de todos os maus passos, a tal ponto que eu desejava sobretudo que ele pudesse passar por Esmirna para aí recuperar Habib e Bumeh antes que voltassem a partir.

Por outro lado, a minha irmã anuncia-me que chegou um pacote de Constantinopla, por intermédio de um peregrino a caminho da Terra Santa. São as coisas que eu tivera de deixar em casa de Barinelli. Fala-me de certas coisas que aí se encontram, nomeadamente peças de vestuário, sem no entanto uma única palavra acerca do meu primeiro caderno. Talvez não o tenham encontrado. Mas também é possível que Plaisance não o tenha mencionado porque ignora a sua importância para mim.

Sobre Marta, a minha irmã também não me diz nada. É verdade que na minha carta eu apenas dissera que ela tinha feito uma parte do caminho na nossa companhia. Sem dúvida os filhos puseram-na ao corrente do nosso idílio, mas ela preferiu não falar disso, o que não me surpreende.

30 de Dezembro

Fui agradecer ao irmão Egídio, por cujos cuidados a carta de Plaisance me chegou. Ele falou-me como se estivesse assente que eu ia casar com Giacominetta, elogiou-me a piedade desta, das suas irmãs, da mãe, mas não a de Gregório, de quem apenas elogiou a bonomia e a generosidade. Não procurei defender-me nem negar, a sorte está lançada, o rubicão está passado, e já não serviria de nada glosar acerca das circunstâncias. Não escolhi realmente pôr os pés onde os pus, mas escolhemos nós verdadeiramente? Mais vale ser cúmplice do Céu do que atravessar a vida inteira na amargura e na contrariedade. Não há nenhuma vergonha em depor as armas aos pés da Providência, o combate era desigual, e a honra está salva. De qualquer modo, nunca se ganha a última batalha.

Durante a nossa conversa, que durou mais de duas horas, o irmão Egídio disse-me que, segundo uns viajantes chegados recentemente de Londres, o incêndio teria finalmente sido dominado. Teria destruído, diz-se, a maior parte da cidade, mas o número de mortos não teria sido muito elevado.

- Se Ele quisesse, o Altíssimo teria podido aniquilar esse povo descrente. Limitou-se a enviar-lhe uma advertência, para que ele renuncie aos seus erros, e volte ao redil da nossa Madre Igreja.

Para o irmão Egídio, foi a devoção secreta do rei Carlos e da rainha Catarina que persuadiu o Senhor a mostrar-se clemente, por esta vez. Mas a perfídia desse povo acabará por gastar a infinita paciência de Deus...

Enquanto ele falava, mil pensamentos me atravessaram o espírito. No tempo em que eu estava no meu esconderijo, no último andar da ale house, murmurava-se que era por causa do rei que Deus castigava Londres, por causa da sua devoção secreta ao «anticristo» de Roma, e por causa das suas cópulas...

Terá Deus sido demasiado severo com os ingleses? Terá sido demasiado clemente?

Nós atribuimos-lhe a irritação, a cólera, a impaciência, ou o contentamento, mas que sabemos nós dos seus verdadeiros sentimentos?

Se eu estivesse no Seu lugar, se pontificasse no cimo do Universo, desde sempre e para sempre, senhor do ontem e do amanhã, senhor do nascimento, da vida, da morte, parece-me que não sentiria nem impaciência nem contentamento - o que é a impaciência para aquele que dispõe da eternidade? O que é o contentamento para aquele que possui tudo?

Não O imagino encolerizado, não O imagino indignado nem escandalizado, nem jurando castigar aqueles que se afastam do papa, ou do leito conjugal.

Se eu fosse Deus, seria por Bess que teria salvo Londres. Tendo-a visto correr, inquietar-se, arriscar a vida para salvar um genovês, um desconhecido de passagem, teria acariciado com uma leve brisa os seus cabelos ruivos despenteados, limpo o seu rosto suado, teria afastado os escombros que lhe barravam o caminho, dispersado a multidão furiosa, teria apagado os fogos que cercavam a sua casa. Tê-la-ia deixado subir para o seu quarto, deitar-se e adormecer, com as pálpebras serenas...

Será possível que eu seja - eu, Baldassare, miserável pecador - mais amável do que Ele? Será possível que o meu coração de mercador seja mais generoso que o Seu, e mais rico em misericórdia?

Ao reler o que acabo de escrever, levado pela minha pena, não posso impedir-me de sentir um certo pavor. Mas este não tem razão de ser. O Deus que merece que eu me prosterne a Seus pés não pode ter nenhuma mesquinhez nem nenhuma susceptibilidade. Ele deve estar acima de tudo isso, deve ser maior. Ele é maior; maior, como os muçulmanos gostam de repetir.

Persisto pois - que o dia amanhã seja o último antes do fim do mundo, ou que seja apenas o último do ano em curso - persisto na minha bravata de Embriaco e não renego nada.

31 de Dezembro de 1666

Por todo o mundo, muitas pessoas devem pensar esta manhã que vão viver o último dia do último ano.

Aqui, nas ruas de Génova, não noto nenhum pavor, nem nenhum fervor particular.

Mas Génova nunca rezou por mais nada a não ser pela sua prosperidade e pelo bom regresso dos navios, nunca teve mais Fé do que é razoável ter - bendita seja!

Gregório decidiu dar esta tarde uma festa para agradecer ao Céu, diz ele, ter restituído a saúde à sua esposa. A qual se levantou da cama, ontem, e parece efectivamente restabelecida. Entretanto, tenho a ideia de que é outra coisa que o meu anfitrião celebra já. Noivado velado, de certo modo - velado como esta escrita.

Sem dúvida a dama Orietina já não sofre, mas quando me vê o seu rosto parece dolorido.

Continuo sem saber se ela me olha assim porque não quer saber de mim como genro, ou porque queria que eu solicitasse humildemente a mão da sua filha em vez de recebê-la, de nariz no ar, como uma homenagem que fosse devida ao meu nome. Para a festa, Gregório contratara um tocador de viola e cantor de Cremona, que nos interpretou as árias mais deliciosas - enumero de memória os nomes de alguns compositores: Monteverdi, Luigi, Rossi, Jacopo Peri, bem como um certo Mazzochi ou Marazzoli, cujo sobrinho teria casado com uma sobrinha de Gregório.

Eu não quis estragar a felicidade do meu anfitrião confessando-lhe que aquela música, mesmo a mais alegre, era para mim causa de melancolia. E que a única vez que ouvi antes um tocador de viola, foi quando, pouco depois do meu casamento, parti com os meus para a ilha de Chipre, a fim de visitar os pais de Elvira. Eu vivia já essa união indesejada como uma prova difícil, e sempre que uma ária me emocionava, a minha ferida tornava-se mais dolorosa.

No entanto, hoje, quando aquele homem de Cremona começou a tocar, quando a grande sala se encheu da sua música, senti-me imediatamente deslizar, como que por distracção, para um doce devaneio onde não havia já lugar para Elvira, nem para Orietina. Já só pensei nas mulheres que tinha amado, aquelas que me seguraram nos braços durante a minha infância - a minha mãe, e as mulheres de negro de Gibelet - e aquelas que tive nos meus braços na minha idade adulta.

Entre estas últimas, nenhuma me inspira tanta ternura como Bess. E claro, penso um pouco em Marta, mas ela causa-me hoje tanta tristeza como El vira, uma ferida que só lentamente se fechará. Enquanto a minha passagem furtiva pelo jardim de Bess será sempre, para mim, um antegosto do paraíso.

Como sou feliz por Londres não ter sido destruída!

A felicidade para mim terá sempre o gosto da cerveja condimentada, o cheiro da violeta - e mesmo o som rangente das escadas de madeira que levavam até ao meu reino do sótão, por cima da ale house.

Será conveniente pensar assim em Bess na casa do meu futuro sogro, que é também meu benfeitor? Mas os sonhos são livres de qualquer casa e de qualquer conveniência, livres de qualquer juramento, livres de qualquer gratidão.

Mais tarde, à noite, quando o homem de Cremona que tinha ceado connosco acabava de partir levando a viola, houve uma tempestade inesperada. Devia ser perto da meia-noite. Relâmpagos, trovões, chuva em rajadas - quando o céu parecia nublado mas sereno. Depois caiu um raio. O som estridente de uma rocha que alguém fez explodir. A mais nova das filhas de Gregório, que dormitava nos seus braços, acordou a chorar. O pai sossegou-a dizendo que o raio parece sempre muito mais perto do que é, e que este tinha caído lá no alto sobre o Castello, ou na bacia do porto.

Mas apenas ele tinha terminado a sua explicação, quando um outro raio caiu, ainda mais perto. Ele soou ao mesmo tempo que o relâmpago, e desta vez fomos numerosos os que gritámos.

Ainda antes que nos recompuséssemos do susto, produziu-se um fenómeno estranho. Da lareira em volta da qual estávamos reunidos, saiu de súbito, sem razão aparente, uma pequena língua de fogo, que começou a correr pelo chão. Estávamos todos assombrados, mudos, tolhidos de tremores, e Orietina, que estava sentada ao pé de mim mas até então não me tinha dirigido nem uma palavra nem um olhar, agarrou-se subitamente ao meu braço e apertou-o com tanta força que me cravou as unhas na carne.

- É o dia do Juízo! Não me mentiram! É o dia do Juízo! Que o Senhor tenha piedade de nós!

Depois atirou-se ao chão, de joelhos, e retirou do bolso um rosário, incitando-nos a fazer o mesmo. As três filhas e as criadas que ali estavam puseram-se a murmurar preces. Quanto a mim, não conseguia desviar os olhos da língua de fogo que na sua corrida atingiu uma pele de carneiro que ali estava, agarrou-se a ela e incendiou-a. Eu tremia dos pés à cabeça, confesso, e na confusão do momento disse a mim mesmo que devia correr para ir buscar ao meu quarto O Centésimo Nome.

Em algumas passadas, estava na escada, mas ouvi a voz de Gregório que gritava:

- Baldassare, onde vais? Ajuda-me!

Tinha-se levantado, agarrara numa grande bilha de água, e começara a despejar o conteúdo sobre a pele de carneiro. O fogo diminuiu um pouco sem se apagar, e então ele começou a espezinhá-lo numa dança que, noutras circunstâncias, nos teria feito rir até às lágrimas. Voltei para junto dele a correr, e pus-me a efectuar a mesma dança, esmagando a língua de fogo, abafando-a quando ela se reanimava, como se estivéssemos a dizimar uma colónia de escorpiões.

Durante esse tempo, algumas outras pessoas despertaram ainda do seu terror, primeiro uma jovem criada, depois o jardineiro, depois Giacominetta; correram a buscar diversos recipientes cheios de água, que despejaram sobre tudo o que ainda ardia, ou fumegava.

Aquela agitação durou alguns minutos, mas era por volta da meia-noite e parece-me que foi com essa farsa que acabou «o ano da Besta».

Em breve, a dama Orietina, que ficara sozinha de joelhos, levantou-se enfim e decretou que eram horas de irmos todos deitar-nos.

Ao subir para o meu quarto, peguei num candelabro, que coloquei sobre a mesa ao chegar, para escrever estas linhas.

Última superstição, vou esperar o nascer do dia para anotar a nova data.

Estamos no primeiro dia de Janeiro do ano de mil seiscentos e sessenta e sete.

O ano chamado «da Besta» terminou, mas o sol ergue-se sobre a minha cidade de Génova. No seio dela nasci há mil anos, há quarenta anos, e de novo neste dia.

Desde o alvorecer que estou alegre, e tenho vontade de olhar o sol e de lhe falar como Francisco de Assis. Deveríamos alegrar-nos sempre que ele começa a iluminar-nos, mas hoje os homens têm vergonha de falar com o sol.

Assim, ele não se apagou, nem os outros corpos celestes. Se não os vi a noite passada, foi porque o céu estava encoberto. Amanhã, ou daqui por duas noites, hei-de vê-los, e não precisarei de contá-los. Eles estão lá, o céu não se apagou, as cidades não estão destruídas, nem Génova, nem Londres, nem Moscovo, nem Nápoles. Deveremos viver ainda rente ao chão com as nossas misérias de homens. Com a peste e as vertigens, com a guerra e os naufrágios, com os nossos amores, com as nossas feridas. Nenhum cataclismo divino, nenhum dilúvio virá afogar medos e traições.

É possível que o Céu não nos tenha prometido nada. Nem o melhor nem o pior. É possível que o Céu viva apenas ao ritmo das nossas próprias promessas.

O Centésimo Nome está ao meu lado, e traz ainda de vez em quando a perturbação aos meus pensamentos. Desejei-o, encontrei-o, recuperei-o, mas quando o abri ele permaneceu fechado.

Talvez eu não o tenha merecido bastante. Talvez tivesse demasiado medo de descobrir o que ele esconde. Mas talvez também ele não tivesse nada a esconder.

De futuro, não voltarei a abri-lo. Amanhã, irei abandoná-lo discretamente na confusão de alguma biblioteca, para que um dia, daqui por muitos anos, outras mãos venham apoderar-se dele, outros olhos nele venham mergulhar, olhos que já não estejam velados.

No rasto deste livro, percorri o mundo por terra e por mar, mas ao sair do ano de 1666, se fizesse o balanço das minhas peregrinações, não fiz mais que ir de Gibelet a Génova por um desvio.

É meio-dia na torre da igreja próxima. Vou pousar a minha pena pela última vez, fechar este caderno, arrumar a escrivaninha, depois abrir de par em par esta janela para que o sol me invada com os sons de Génova. 

 

                                                                                Amin Maalouf 

 

 

                      

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