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O PIANO E A ORQUESTRA / Carlos Heitor Cony
O PIANO E A ORQUESTRA / Carlos Heitor Cony

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PIANO E A ORQUESTRA

 

                   NO PRINCÍPIO, O GRANDE FINAL

Todos sabem como ele morreu. Afora isso, nada sabem e talvez nada saibam de nada. Foi aí pelas três horas da tarde, mesma hora em que o Filho do Outro morreu, vinte séculos atrás. Francisco de Assis Rodano já anunciara que lançaria o Grande Desafio àquele mesma hora, naquele lugar e, sobretudo, naquela circunstância. Como o tempo passasse e a circunstância fosse mais ou menos banal em Rodeio - terra de tempestades - o povo começara a murmurar contra Francisco de Assis Rodano, achando que, além de não cumprir a palavra, Francisco de Assis Rodano era um cagão.

Quando Francisco de Assis Rodano desconfiou que perdia a credibilidade, e, com ela, e ao mesmo tempo, o seu ofício, não teve outro jeito. Já anunciara diversas vezes o Grande Desafio que, por um motivo ou outro, nunca se realizava. Bem verdade que, dois anos passados, ele encenara uma espécie de ensaio geral do Grande Desafio, fez tudo o que havia prometido fazer, mas a circunstância não fora propícia, não caíra tempestade em Rodeio, apenas uma chuva rala e vagabunda que mal dera para molhar os campos e enlamear os caminhos. Ao contrário das chuvas habituais, não caíra um único raio - o que fora considerado um fato assombroso, pois em Rodeio caíam raios até mesmo sem necessidade de chuva ou temporal.

Um jornal do Rio chegara a mandar uma equipe de especialistas para saber as razões científicas, morais e sobrenaturais de tantos raios ao longo da acidentada existência de Rodeio. As opiniões se dividiram em várias correntes antagônicas, desde as que creditavam o fenômeno à grande concentração de minério de ferro nas entranhas da cidade - fato jamais provado e simultaneamente jamais contestado - até a maldição lançada por um ancestral de Francisco de Assis Rodano, que ao surpreender a mulher copulando com um cavalo (uma corrente de opinião garantira que fora um jumento), exigiu dos céus um castigo condigno a tamanha iniquidade, sendo prontamente atendido com um raio que fulminou a mulher, o cavalo (ou o jumento) e o próprio ancestral de Francisco de Assis Rodano, responsável pela dinastia dos Rodano ao longo dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil.

De todas as opiniões, suposições, insinuações e convicções levantadas à época da pesquisa feita pelo jornal do Rio, sobrou a verdade resumida e aceita por todos, inclusive pelo jornal que a divulgou em manchete de oito colunas na página 5 de uma edição dominical que se esgotou rapidamente em Rodeio e vilas vizinhas: RODEIO OCUPA O MESMO SÍTIO DE SODOMA E GOMORRA!

Ninguém explicou como essa extravagância geográfica se tornou possível, nem foi preciso. Edificada ou não no mesmo lugar das antigas Sodoma e Gomorra, Rodeio continuou sendo o que era e sempre foi: uma vilazinha entre os dois maiores túneis que o engenheiro Paulo de Frontin abrira para instalar os já citados trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil no trecho que galgava a serra do Mar e se dirigia a Barra do Piraí, onde os ditos trilhos se bifurcavam, indo metade deles para São Paulo, atravessando o vale do Paraíba, e a outra metade indo para Minas Gerais, através da serra da Mantiqueira.

Rodeio era também vila famosa, entre as demais da região, pelo poder miraculoso da Bica do Dr. Sales, uma fonte de água rica em ferro, magnésio e outros sais minerais, água que gozava da fama de curar cobreiro, espinhela caída e impotência sexual. Havia também a glória e os escândalos da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini e da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, que formavam a razão econômica e social do lugar.

Contudo, sua principal característica, a mais famosa e decantada nas vilas e povoados vizinhos, era a de ser a terra dos Rodano, embora só existisse um à época dessa história. Além da qualidade suplementar de atrair raios do céu - com ou sem tempestade nos horizontes locais.

Pois juntando todos esses ingredientes, históricos ou não, deu-se o lance fundamental, o mais discutido da crônica de Rodeio desde a sua fundação: um Rodano (o próprio Francisco de Assis), depois de ter demonstrado que a Bica do Dr. Sales não era de nada, não curava cobreiro, espinhela caída e impotência sexual (na verdade, a Bica do Sr. Sales sempre fizera velada e às vezes ostensiva concorrência aos poderes do próprio Francisco de Assis Rodano), subiu ele ao morro Portugal - que não chegava a ser morro, apenas uma elevação no terreno e nunca ninguém soube nem procurou apurar por que tinha o nome de Portugal -, esperou que o temporal engrossasse e lançou o Grande Desafio, que se limitara ao formidável berro contra o céu de Rodeio, que naquele momento desabava sobre a Terra: “Ou Tu ou Eu!”.

Também nunca se chegou a um consenso sobre se o Grande Desafio se resumia nesse brado. Uma corrente de opinião garantia que Francisco de Assis Rodano teria dito: “O mundo é pequeno para nós dois!”, uma vez que Francisco de Assis Rodano acreditava que era o próprio Demônio disposto a ajustar contas milenares com o Outro.

De qualquer forma, todos estavam de acordo com o que ninguém viu mas todos tinham a certeza de ter visto: um raio caiu sobre Francisco de Assis Rodano, que estava vestido com a sua famosa capa preta, seu chapéu preto, suas formidáveis botas feitas com o couro do famigerado touro Papelão (que na realidade era um boi fugido ou roubado do Matadouro de Mendes), e, obviamente, com a sua Lança de Longinus - aquele centurião romano postado ao pé da cruz que trespassou o peito do Crucificado para ver se o Filho do Outro estava realmente morto.

A carga foi fulminante, a tal ponto que Francisco de Assis Rodano ficou reduzido, segundo alguns, a um tição enegrecido, segundo outros a um punhado de cinzas, e, segundo Corintho (com th) Fonseca, a nada mesmo, pois nada sobrou de Francisco de Assis Rodano, razão pela qual Corintho (com th) Fonseca, que acumulava a função policial com a de escrivão juramentado do Cartório da Comarca de Vassouras (da qual Rodeio era distrito) e com a de principal colaborador do semanário A Voz da Serra, não teve fundamento jurídico para dar a competente baixa do nome de Francisco de Assis Rodano no Registro Civil.

Dai que Francisco de Assis Rodano, reduzido a tição, a cinzas ou a nada, continuou oficialmente vivo, tornando-se assim o único fantasma da história humana com existência comprovada e legal.

 

                   UM AVÔ, UM NETO, UM PRIMO

Não dei muita importância ao nosso primeiro encontro. Andava eu pelos sete ou oito anos quando tomei conhecimento daquele primo distante, que de fato o era, ao menos topograficamente: morava eu no Rio, e ele em Barra do Piraí. Hoje, as duas cidades estão ligadas por ônibus de quinze em quinze minutos, funcionando a segunda como um subúrbio da primeira. Mas, naquele tempo, Barra do Piraí era exatamente onde terminava o mundo e começavam o infinito, a lua, o sol e as outras estrelas.

Francisquinho tinha o sangue dos Assis, um sangue cordial, pacífico e honesto, cujo destino era se esvair em hemoptises que matavam rotineiramente todos os membros da família. No seu caso específico, havia a agravante de ter ele, nas veias que se salientavam em seu corpo magro, o sangue dos Rodano, sangue famoso pela sífilis hereditária que espalhara pelos povoados ao longo das duas margens dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil que cortavam Barra do Piraí.

Na verdade, não existiam tantos Rodano assim. Como dizia dona Hilda Peçanha Fraga, amiga íntima de tia Zizinha, “poucos existiram - mas bastantes”.

Tudo começou pelo primeiro Rodano, pai de Francisquinho, até então único e, apesar de único, também bastante. Um dos mistérios deste mundo é justamente a presença nele, mundo, de um Rodano que fez tantas devastações naquelas adjacências, exemplar - como se disse - único e bastante, pai de Francisquinho. Pesquisas e investigações levadas a efeito em Mendes, Rodeio, Serra, Palmeiras, Mário Belo, Scheid e na própria Barra do Piraí esbarraram diante do imponderável: não havia notícia, nunca se ouvira falar em nenhum Rodano naquelas paragens.

E este belo nome que era exclusividade dos alunos de geografia em sua erudita e correta forma de Ródano, deixou muita gente inquieta quando, detido pelo único soldado da Força Pública de Rodeio, o pai de Francisquinho se declarou Rodano de nome e serventia. Afora isso, e apesar disso, continuou sendo o que sempre fora: o Choca.

Em Rodeio as coisas não poderiam durar muito, entre outros motivos, porque eram feitas especialmente para durar sempre. Meses depois da cena do registro civil de Francisquinho - que constituiu o episódio policial mais importante daquela época - autoridades e povo acharam que seria perda de tempo e dignidade continuar procurando explicações para tais nomes.

Francisquinho ficou sendo de Assis Rodano (o Assis veio por conta de minha tia, mãe dele) - e Choca voltou a ser Choca, tocador de banjo, sem emprego certo mas com sucesso certo junto às mulheres que - segundo a opinião de meu pai, mais tarde confirmada por veredicto de Joaquim Pinto Montenegro - supriam-lhe as poucas necessidades de único boêmio de Rodeio. Aliás, as suas necessidades resumiam-se nos poucos trocados que o banjo provia, dando-lhe roupa e comida, e nos encontros nas touceiras de bambu ao lado dos trilhos da Central do Brasil, onde Choca tombava suas conquistas e transmitia-lhes uma incurável dose de Treponema pallidum.

Eu não podia levar em conta esses fatos. Por isso, limitei-me a ficar sabendo que possuía um primo a mais, que viera passar uns dias em nossa casa da Boca do Mato - nome que antigamente designava a terra de ninguém entre o Méier, Engenho Novo e os inícios daquilo que seria o Grajaú, ou seja, o natural prolongamento de Vila Isabel, cujo limite extremo parecia ser o antigo Jardim Zoológico, onde o barão de Drummond criara o jogo do bicho.

Para meus outros primos que moravam em Barra do Piraí, Rodeio, Mendes e arredores, uma temporada na Boca do Mato equivalia a um banho de civilização, o mesmo que eu tomava quando atravessava o Túnel Velho e ia passar dias na casa de meus tios que moravam em Copacabana, num bangalô de altos e baixos em frente ao mar, e em cuja sala de jantar havia uns castiçais com velas vermelhas que me infundiam baita respeito e me abriam vergonhoso apetite.

Era costume, naquele tempo, haver esse intercâmbio de parentes do interior com a capital e da capital com o interior. Como a família de minha mãe era toda daqueles lados da serra do Mar, o desfile tornava-se interminável durante o ano todo, pois havia primos espalhados ao longo da Estrada de Ferro Central do Brasil, onde meu avô materno fizera exemplar carreira de telegrafista, chegando a chefe de estação, cargo no qual se aposentou com setecentos mil-réis por mês e uma inflamação na próstata que lhe provocaria a morte aos setenta e quatro anos de idade.

E foi justamente esse avô quem trouxe para nossa casa da Boca do Mato a figura magricela e suja de Francisquinho. Custei a compreender por que motivo aquele meu primo se fazia acompanhar da pessoa do avô. Para mim, que tinha dos avós uma noção utópica, aquela intimidade entre avô e neto era obscena.

O pai de minha mãe nem sequer olhava para mim e meus irmãos, trocava-nos os nomes, e, que me lembre, nunca me dirigiu a palavra. A meu irmão mais velho, certa vez, pediu que fosse ao botequim comprar um maço de cigarros, marca Veado. Naquele tempo, esse bicho não tinha significado pejorativo e nada de admirar que uma fábrica desse a um cigarro o seu nome e a sua figura.

Era uma carteirinha de listras azuis e brancas, um imponente veado espalhando seus chifres pelas duas faces da embalagem. O cigarro devia ser fortíssimo, pois meu avô tinha um cheiro de fumo e urina - aliás, ao longo da vida, constatei ser esse o cheiro específico dos velhos. Ele era alto, de olhos muito azuis, cabelos muito brancos, os bigodes fartos e amarelados pela nicotina.

Foi este avô que irrompeu uma noite em nossa casa, coberto por um velho sobretudo de cor indefinível, trazendo pela mão um garoto remelento e aflito. Eu conhecia o avô de fotografias e referências, mas ignorava compactamente o primo, de cuja existência nunca tinha ouvido falar. Pelo lado materno, só tomara conhecimento dos filhos de tia Zulmira, casada com Joaquim Pinto Montenegro, nobilíssimo caráter, também funcionário da Central do Brasil, na Divisão dos Dormentes, um viúvo que levou para seu casamento com a irmã de minha mãe quatro filhos do primeiro casamento. A presença em nossa casa daquele primo insuspeitado encheu-me de pasmo.

Do avô guardo duas lembranças. Uma delas foi logo depois de sua chegada: minha mãe saíra para fazer compras e eu ficara sozinho com o velho. Deixei-o em total liberdade dentro de casa e refugiei-me no quintal, onde Francisquinho gostava de comer terra. Haviam me prevenido para que não o deixasse sozinho, o guri sofria de vermes e lombrigas, mas como ninguém fiscalizasse a minha fiscalização, consenti que ele se entupisse na tabatinga que havia nos fundos do terreno, onde uma vala corria suas águas raras e ralas. O barro fez-lhe bem e o guri não me chateou mais, ficando quieto a tarde inteira.

Pude assim dar uma incerta dentro de casa para ver o que meu avô estaria fazendo. Eu suspeitava que os velhos gostam de passar a mão pela bunda das empregadas - e foi com essa desconfiança que entrei na ponta dos pés, pronto a surpreendê-lo numa libidinagem com a mulata que nos acompanhava havia tempos.

Encontrei outra coisa: na sala de jantar, aproveitando o sol da tarde que entrava obliquamente pela janela, com as calças do pijama arriadas, o avô catava entre os pentelhos uma coisa que me pareceu piolho. Apesar da rapidez com que olhei, reparei que ele estava com uma tesoura procurando cortar uma borracha entre as virilhas. Só então associei aquela cena à sua doença: ele urinava por uma sonda e aproveitava qualquer distração na vigilância que exerciam sobre ele para afrouxar o aparelho que lhe entupia a uretra.

Voltei para o quintal e encontrei Francisquinho empanturrado de tabatinga até os ouvidos. Ele descobrira um veio úmido e fartara-se. Foi então que pela primeira vez reparei em sua cara e em sua miséria. Estava apenas com um avental, os troços de fora. Era esquelético e tinha as pernas esfoladas. O nariz vivia permanentemente entupido por melecas ressequidas. Não sei por quê, tive vontade de espancá-lo. Mas temia que ele fosse correndo contar ao avô - que era muito mais dele do que meu.

Eu devia ter uma cara homicida e Francisquinho percebeu meus instintos. Olhou-me gravemente nos olhos, levantou-se como quem não quer nada - e correu furiosamente para dentro de casa. A sua bunda era só osso, e aquela figura fina e combalida, correndo pelo meio da tarde, fez-me sentir poderoso.

Esse poder logo se desvaneceu, dias depois, quando ocorreu a segunda lembrança que guardo do meu avô: a sua morte.

 

Antes da morte, a vida.

Sei muito pouco a respeito do avô, nem perderia tempo e espaço com ele, não fosse a sua importância na vida de Francisquinho. Na minha, foi simplesmente um avô relapso, distante, que não me amava nem detestava, simplesmente me ignorava - o que era recíproco de minha parte. Entretanto, na vida de Francisquinho desempenhou papel importante, o que não deu para fazer do neto - nem dele próprio - uma pessoa realmente importante.

Nasceu no Rio, mas cedo emigrou para o estado do Rio, onde se fixou na antiga Entre-Rios, hoje Três Rios, e, mais tarde, em Barra do Piraí. Um de seus irmãos foi vereador e, depois de alguns anos no Conselho Municipal, elegeu-se deputado federal. O avô não passou de um bom telegrafista que, já em fim de carreira, e com o irmão relatando na Câmara o orçamento do Ministério da Viação - do qual a Estrada de Ferro Central do Brasil era repartição -, conseguiu ser promovido a chefe de estação, inicialmente na própria Entre-Rios, mais tarde em Barra do Piraí, que era então o principal entroncamento ferroviário do país.

Acácio Nunes de Assis era um homem bonito e chegado às mulheres. O fato de ter morrido de complicações prostáticas e uretrais demonstra a sua intemperança e incúria: nunca se tratou devidamente, e mesmo assim atingiu a idade de setenta e quatro anos - o que era uma façanha para o seu tempo. Geralmente, um ferroviário morria antes dos cinquenta, e quem chegasse aos sessenta já podia ser considerado um ancião. Apesar de ninguém ter pressa para nada, morria-se cedo no Brasil daquele tempo.

Como neto distante e mal amado, a respeito de seu passado pouco sei a não ser aquilo que, por tradição oral, ficou guardado nos fastos familiares. E, de sua existência, a coisa mais assombrosa foram os três casamentos a que se submeteu.

Da primeira vez, mal entrado nos vinte anos, Acácio Nunes de Assis deu aquilo que chamavam de golpe do baú, ou seja, casou-se com moça fraca de peito e forte de posses. Para a concretização de um perfeito golpe do baú eram necessários os dois elementos: a doença pulmonar e o dote fornido. De que adiantava casar com uma herdeira sadia para envelhecer a seu lado? Aqueles que se atreviam a desferir o golpe tinham de tomar cautelas para não serem traídos por um contragolpe: muitas vezes, casava-se com uma jovem rica, desenganada pelos médicos. Mas depois da lua-de-mel a manceba adquiria cores, retornava à vida - e o prejuízo resultava total para o marido.

Não conheço os detalhes desse casamento, mas Acácio Nunes de Assis obrou bem quando se casou pela primeira vez. Francisca Rodrigues Utria foi a vítima escolhida, e além das vantagens de ser tísica e milionária, tinha uma outra: seus parentes moravam no Uruguai, que naquele tempo era um país tão remoto quando o planeta Saturno ou a constelação da Ursa Maior.

Em menos de cinco anos Acácio deu-lhe três filhas e esvaziou-a de bens. Jogou, comprou cavalos, vendeu ações, investiu na borracha e na briga de galos, fez o diabo e o Diabo acabou fazendo dele um pobre-diabo, que cedo enviuvou: aos trinta anos, Acácio estava pobre, com três filhas para sustentar.

A saber: Maria das Graças - minha tia Zizinha -, beata e celibatária, madrinha muito amada de Francisquinho, que morreria em odor de santidade aos sessenta anos, trinta dos quais viveria ao lado da já citada Hilda Peçanha Fraga - uma senhora valente e emancipada, a quem meu pai, em momentos de ira, chamava de virago. Julieta foi a segunda filha e viria a ser minha mãe. Zulmira, também já citada, seria mulher de Joaquim Pinto Montenegro, da Divisão dos Dormentes da Estrada de Ferro Central do Brasil, nobilíssimo caráter, a quem meu pai chamava de “um homem justo”.

Além das três meninas, Acácio teve com Francisca muitos outros filhos que não vingaram. Antigamente, para se criar quatro filhos era necessário fazer doze: dois terços morriam, no primeiro ano de vida, de catapora, sarampo, coqueluche ou de nada mesmo, apenas para cumprir as estatísticas que apontavam o Brasil como um dos países de elevada taxa de mortalidade infantil.

Francisca não suportou tantos filhos em tão pouco tempo, e como já casara tísica, entisicou mais ainda ao longo de seus partos e acabou morrendo confortada com os santos sacramentos e deixando Acácio inconsolável, viúvo e pobre.

A pobreza, ele arrastou pelo resto da vida. A viuvez foi logo abandonada: ano e meio depois casava-se com uma moça de Paraibuna, viúva recente e decente, mãe de quatro filhos menores. Com ela, Acacio teve tempo de fazer uma única filha - Tarsila -, que se casaria, anos mais tarde, com um sujeito que tinha visões e que chegou a ver santa Teresinha do Menino Jesus numas bananeiras que havia lá nos fundos de nossa casa, na Boca do Mato.

Três anos depois do nascimento de Tarsila, a morte bateu novamente à porta de Acácio de Assis levando-lhe a segunda mulher e trazendo-lhe novas dívidas. Ficou com uma cambada de crianças para sustentar: além das quatro filhas, os quatro enteados, que segundo rezam as crônicas familiares, eram esfomeados e incontentáveis.

O menos que se podia dizer deles é que eram vorazes: certa vez, numa visita que o avô fez à casa do irmão deputado, esses quatro enteados comeram um caixote abarrotado de queijo-de-minas, que o governador mineiro mandara para o meu tio-avô, a fim de suborná-lo numa questão de verbas destinadas a melhorar uma ponte inexistente sobre o rio das Almas. Era um tempo inocente em que uma canastra de queijos fazia o fulminante efeito de milhões de dólares.

O episódio serve para comprovar que, num país decente, o caso de Acácio de Assis - sozinho e com tantos filhos - mereceria atenção especial do governo, uma verba qualquer do Parlamento, mas ninguém se incomodou com a situação dele, nem mesmo o próprio. Tratou de casar-se uma terceira vez, e o fez na pessoa de dona Dondoca, uma senhora tida como pitoresca e anticlerical. Entra aqui um dos mistérios da vida, em geral, e da minha família, em particular. Como foi possível existir uma mulher em Barra do Piraí que fosse anticlerical? O fato é que dona Dondoca não gostava de padres e só consentiu em casar-se com Acácio no registro civil. Não suportava “cheiro de vela e de hóstia”.

Os Assis sempre foram tidos, havidos e louvados por sua piedade. Meu tio-avô Alberico, que se tornou vereador e deputado, começou a vida cantando em igrejas, tinha voz de tenor e sabia do latim o suficiente para cantar um Agnus Dei. Mais tarde, como deputado, arranjava verbas para associações religiosas e em sua casa, na sala de visitas, havia uma bula papal ricamente emoldurada, concedendo-lhe especiais indulgências, a ele e a seus descendentes.

Acácio não era nada, nem religioso nem ateu. Era ferroviário e bastava. Já no final da vida, na função de chefe de estação de Barra do Piraí, teve arroubos anarquistas, odiava autoridades e honrarias. Mas era prudente, fazia das suas mas tomava cautelas para que ninguém soubesse a bisca que era.

Casou-se com dona Dondoca e com ela teria três filhas: Jandira, Nair e Nina. Somadas aos enteados e filhas já existentes, a família ficou enorme, botando pelo ladrão. Não era uma família, mas uma tribo.

Dona Dondoca não fez exceção: tão logo pariu as três filhas, cumpriu a sua função e deixou Acácio mais uma vez viúvo e inconsolável. A única diferença é que ela, sendo anticlerical, não seguiu o exemplo das anteriores, que eram carolas e morreram tísicas.

Não sei qual a relação entre o fato de uma pessoa ser ao mesmo tempo clerical e tísica, mas pelo menos foi essa a explicação oficializada por ocasião do enterro dela: “Dona Dondoca não gostava de padres. Morreu de repente”.

O normal, naquele tempo, era a pessoa morrer aos poucos, agonizar durante semanas, delirar, ter visões, encharcar-se no suor da morte, dar um trabalhão a todo mundo, para só então resolver esticar as botas, depois de se esvair em muito sangue e água benta. Dona Dondoca - porque não gostava de padres - dispensou essa parafernália fúnebre. Um dia acordou, olhou o céu, botou a mão no peito e disse: “Acácio!”. E morreu.

Tamanha economia de palavras e gestos fugia às regras sabidas e suspeitadas da vida e da morte. Por isso, o seu enterro não foi concorrido nem sua morte chorada. Suas três filhas, contudo, não lhe herdaram os defeitos nem as qualidades: foram beatas e tuberculosas, morrendo, respectivamente: Jandira, aos dezessete anos; Nina aos vinte; e Nair - a macróbia - aos vinte e cinco anos.

Jandira morreu solteira e virgem. Nina morreu solteira e deflorada por Angimestro Saraiva, um paraense magro que desertou da Milícia Estadual, foi cabo de polícia e braço armado de Corintho (com th) da Fonseca, delegado, escrivão do Registro Civil e editorialista do semanário A Voz da Serra. Terminou seus dias como garçom da Confeitaria Lallet, no velho centro do Rio. Tornou-se notável, em vida, pelo medo que tinha de defuntos.

Nina e Saraiva tiveram uma filha, Teresa, que nasceu aleijada de uma perna e ficou muda aos oito anos, depois de levar um susto. Nos carnavais de antigamente, os mascarados costumavam entrar pelas casas e brincar com os moradores, que geralmente eram pessoas conhecidas dos blocos. A menina estava bebendo água, junto à moringa, quando viu diante de si a cara coberta de alvaiade de um palhaço. Fez apenas: “Ui!”. E nunca mais disse nada.

Teve fim trágico: morreu atropelada em Itaguaí, perto do quilômetro 47 da antiga Rio-São Paulo, vivendo estranha história de amor e condenável intolerância humana.

De Nair, nos anos de seu desvario, nasceram dois filhos, tidos com Choca: Francisquinho foi o primeiro e vingou, mal mas vingou. O segundo foi uma menina, Isabel, que morreu antes do primeiro ano de vida. Logo depois Nair se arrependeu de seus pecados e entisicou, tornando-se beata feroz. Morreu como Filha de Maria, cumprindo promessa que fizera por ocasião do nascimento de Francisquinho.

O futuro Francisco de Assis Rodano, além de ter vindo ao mundo em um parto clandestino, o teve também complicado pelo cordão umbilical - que ameaçou fazer justiça antes da vida, sufocando-o por antecipação. Tudo isso causou emoção e assombrada ira em Rodeio e adjacências.

A fama de prevaricadoras das três últimas filhas de Acácio Nunes de Assis causou-lhe problemas tais e tantos que ele sentiu-se obrigado a emigrar por uns tempos. Entrou com requerimento alegando que a família - a essa altura numerosa - precisava mudar de ares. Com alguma insistência, e a ajuda do irmão Alberico, conseguiu ser removido para Paquetá.

Naquele tempo, Paquetá era exatamente o que é hoje: uma pequena ilha cercada de água por todos os lados. O que faria um ferroviário numa ilha cujo tamanho era igual ao de uma chácara? O irmão deputado descobriu que ali havia uma repartição do Ministério da Viação, que então tomava conta das “águas”. A Estrada de Ferro era um departamento daquele ministério. As Águas, outro. O mesmo ministério se encarregava de fazer os trens correrem em cima dos trilhos (às vezes fora também), e a água correr pelos canos da cidade. A isso chamavam de “centralização administrativa”, que na prática se revelava uma dispersa bagunça.

Foi assim que Acácio, em 1918, desceu a serra com a família e instalou-se numa enorme mansão que pertencia ao ministério. A casa era a própria repartição, pois nela havia um empregado, chamado Noroeste, cuja função era fazer a manobra das águas duas vezes por dia: para abrir, pela noitinha, e para fechar, pela manhã. Acácio era o chefe de Noroeste e Noroeste era chefe de si mesmo. Ambos se ignoraram durante os anos que durou a temporada praiana dos Assis.

Em troca da remoção para Paquetá, Alberico pediu que Acácio arranjasse uns votos na ilha, a candidatura a deputado federal estava difícil. Acácio fez um pacto de não-agressão com Noroeste e ambos conseguiram arrancar todos os votos de Paquetá, por meio das manobras de abrir e fechar a água. Eleitores que ameaçavam votar no adversário passaram semanas sem receber uma gota de água - e foi assim que Acácio ganhou um irmão deputado federal, ao mesmo tempo que ganhava autoridade em toda a ilha.

Mas aí aconteceu a Gripe.

 

                   A GRIPE

Teve diversos nomes. Lá em casa - e em muitas casas - falava-se nela como a Gripe. Nos jornais, era a Peste, nas ruas a Espanhola. Foi considerada um dos flagelos anunciados no Apocalipse, um dos sinais de que os tempos estavam cumpridos, o mundo chegava ao fim. E, em breve, a humanidade estaria reunida no vale de Josafá, prestando contas a Deus de seus crimes e pecados.

Um camarada morreu no largo da Carioca. Atravessara a rua vendendo saúde e chegara do outro lado coberto de suor, tremendo de frio, olhos esbugalhados, agônico. Morreu antes de receber socorro.

O normal seria aparecer a polícia ou a ambulância para levar o cadáver dali e tomar as providências de praxe. Mas no dia seguinte - ou no mesmo dia -, em outros bairros e calçadas, em quase todas as ruas da cidade apareceram cadáveres assim. E ninguém os recolhia porque, dentro das casas, os corpos se empilhavam. Não havia caixões nem espaço nos cemitérios para tantos mortos. As autoridades não sabiam o que fazer, e mesmo que soubessem, nada fariam - como era também de praxe. Os cientistas, que igualmente nada sabiam, fizeram apenas o que deles se esperava: atribuíram a epidemia a um micróbio vindo da Espanha ou das Canárias (ninguém conseguia precisar, o Serviço de Saúde Pública, em comunicado à população, explicou que “os micróbios não traziam passaporte com data e local de embarque”).

No ano anterior, 1918, com o fim da Primeira Grande Guerra, a Europa se transformara num imenso cemitério e os cadáveres dos soldados apodreciam nos campos de batalha, anônimos e insepultos. De lá vieram os miasmas, os micróbios, o vírus, depois de inexplicável escala na Espanha - ou nas Canárias.

A cidade virou um necrotério, as calçadas uma imensa e desolada morgue. As carroças da Limpeza Urbana deixaram de recolher o lixo habitual e passaram a recolher os cadáveres que iam encontrando. Depois da primeira morte, as famílias perdiam a compostura e tratavam de se livrar dos mortos de qualquer maneira. Botar na soleira da porta não resolvia, eles apodreciam lá mesmo. Vestiam o defunto e o arrastavam até o ponto de bonde. Amparado por dois parentes, ninguém desconfiava - e se desconfiasse, não falava nada. Uma vez no bonde, sentavam o cadáver no banco, chamavam o condutor, pagavam a passagem dos três e no primeiro ponto saltavam, abandonando o cadáver. Com estranhos e imóveis passageiros, o bonde chegava ao fim da linha completamente lotado.

Em Paquetá, onde Acácio Nunes de Assis prosperava com sua então numerosa família, a Gripe fez as devastações que todos esperavam, inclusive o próprio Acácio. Em menos de uma semana conseguiu livrar-se dos quatro enteados que lhe couberam pelo segundo casamento. O fato não despertou suspeitas na ocasião. Depois de algum tempo, os ilhéus rosnavam contra a excelente pontaria da doença que poupara as filhas do dono das águas e caíra sem clemência em cima dos enteados.

Passada a emoção dos acontecimentos, anos mais tarde, ouvi uma explicação que me convenceu da inocência de Acácio. É um episódio complicado na vida dele e na minha: neste ponto entra a figura de meu pai na história.

Meu pai - Raul Miranda Filho - era aluno do Colégio Pedro II e promissor homem de letras, segundo atestam seus contemporâneos e o boletim do Centro Acadêmico, no qual fazia discursos sobre os problemas nacionais daquele tempo, desde catilinárias contra a saúva, que constituía o principal inimigo da pátria, até os necrológios de circunstância, quando morriam os grandes homens de nossa vida pública.

Naqueles dias, Raul Miranda Filho tinha ido a Paquetá realizar missão pioneira em seu tempo: uma pesquisa sobre A Moreninha, clássico de nossa literatura romântica, que em Paquetá tem seu principal cenário. Ele se atribuía a descoberta da Pedra da Moreninha, um pedra como outras existentes em Paquetá e onde se desenrola uma cena de amor no romance. Milhares de pessoas liam o livro e pouco se incomodavam em localizar os cenários. Foi o pai que lá chegou e, antes que outro o fizesse, subiu a uma das pedras e decidiu: “Esta é a Pedra da Moreninha!”.

Como era rapaz de formação pragmática - deixou-o de ser ao longo dos anos e dos abalos da vida -, apanhou uma tabuleta e nela escreveu os dizeres que, ainda há pouco, lá estavam: Esta é a Pedra da Moreninha. Muitos anos mais tarde, parece que no governo Carlos Lacerda, a tabuleta de madeira foi substituída por uma placa de bronze mas com os mesmos dizeres.

Foi, por sinal, a única incursão do pai no terreno da paleontologia literária ou de qualquer outro tipo de paleontologia. Depois de ter feito tão importante descoberta, decidiu voltar ao Rio a fim de comunicar aos colegas do Centro Acadêmico do Pedro II o sucesso da expedição. Foi então que a realidade da Gripe caiu sobre seus ombros e ambições literárias: quando quis embarcar soube que não havia mais barca, a cidade morria, sonolenta e calma, sob os efeitos da Espanhola. Os transportes públicos estavam paralisados.

O pai sabia que Camões nadara em pleno oceano, salvando das ondas o manuscrito de sua epopeia. Apesar do habitual impulso de imitar os grandes gestos, ele não teve coragem de se atirar ao mar e vir nadando até o cais Faroux com a descoberta histórica. Mesmo porque desconfiou que ninguém se incomodaria com a Morenhinha e sua romântica pedra à beira-mar plantada. Tratou de ficar pela ilha - no que obrou bem. Tinha um tio que morava em Paquetá, Augusto Cândido Xavier Miranda, patriarca da família, homem de posses e iras terríveis, rival de Acácio Nunes de Assis por causa das “águas”. Até o aparecimento de Acácio em Paquetá, quem mandava e desmandava na ilha era Augusto, que controlava o sistema de abastecimento daquilo que os jornais, até há pouco, chamavam de “precioso líquido” e “linfa potável”.

Dramáticos lances sacudiram a indolência de Paquetá ao tempo daquela rivalidade, quando Augusto e Acácio criaram na ilha uma situação considerada histórica, não menos sanguinária que a de outras rivalidades, como as de César e Pompeu, Aníbal e Cipião, Lúcifer e Deus. Mais tarde, ao conhecer aquela que seria a minha mãe, filha de Acácio, meu pai estenderia a rivalidade a outro sovado exemplo: os Capuleto e os Montéquio.

O fato é que Raul conheceu minha mãe - que por acaso se chamava Julieta mesmo - e iniciou uma história que acabou no meu nascimento, alguns anos depois. Sou produto de uma mistura em que entraram a descoberta da Pedra da Moreninha, a Gripe, a questão das “águas” em Paquetá, o ódio irracional de Augusto, meu tio-avô, contra Acácio, meu avô. E, de cambulhada, umas galinhas que explicam, de forma razoável, desde o sumário desaparecimento da face da terra dos enteados de Acácio até a vitória definitiva de um Miranda sobre o coração de uma Nunes de Assis.

Deu-se que o pai havia lido, não sabia onde, que a Gripe devia ser curada com superalimentação. A palavra, naquele tempo, designava caldos de galinha não só nas principais refeições, como no café da manhã, no lanche da tarde e na ceia da noite. Ele próprio tratou de esvaziar os galinheiros do tio Augusto, homem mais rico da ilha, para abastecer a casa de Acácio.

O avô desconfiou que Paquetá não devia ter tantas galinhas assim e delas fez uso controlado e sentimental. Suas filhas se entupiram de caldo de galinha, enquanto os quatro enteados ficavam com os ossos para roer, afora uma eventual moela e outros miúdos. Morreram todos, quase de uma só vez, sem sequer desconfiarem da trama de que eram vítimas.

Se Acácio ganhou com a hecatombe dos enteados, perdeu a hegemonia das águas logo em seguida. Augusto arquitetou um plano que deixou Paquetá cinco semanas sem uma gota. Somente em sua chácara, enorme, onde os coqueiros eram tantos que vinham morrer na linha do mar, havia água na ilha. Todos os ilhéus tiveram de ir bater à sua porta, mendigando um balde.

Acácio nada podia fazer, pois o velho cano que trazia água do Caju fora interceptado na altura de Brocoió. Com a peste assolando a cidade, ninguém ia se incomodar em mandar reparar a tubulação submarina que abastecia a ilha.

Como era homem orgulhoso, não se dobrou diante do vencedor. Aliviado dos enteados, começou a embrulhar suas coisas, logo depois do Carnaval pegaria as filhas e voltaria a Barra do Piraí, onde seu cargo de telegrafista nunca fora contestado.

Augusto soltou foguetes-de-vara e abriu sua chácara para um baile de máscaras, não só para festejar a vitória sobre o adversário, como também já eram chegados os tempos, não os do Apocalipse, mas os do Carnaval.

A Peste sumira, deixando um saldo de mortos que as estatísticas da época tiveram vergonha de divulgar. A Morte pairara sobre a cidade. De visita incômoda, tornara-se hóspede, e, depois, senhora das ruas e casas. O carioca suportou a peste como pôde, e como não podia muito, inventou na ocasião um de seus ditados básicos, que muito explicam a sua fisionomia física e moral: o bom cabrito não berra. Com a variante que também entrou em circulação: malandro não estrila.

Sem berrar, e muito menos estrilar, o carioca preparou-se para o Carnaval de 1919 - o mais bestial, o mais obsceno de todos os seus carnavais.

O baile de máscaras na chácara dos coqueiros, em Paquetá, foi um dos gritos desse Carnaval devastador. E nele penetrou, fantasiado de morcego, um vulto nervoso que dançou a noite toda com uma colombina sufocada em tafetás. Bilhões de anos na história da matéria haviam chegado ao ponto de onde, anos mais tarde, viria eu próprio em forma de matéria a este mundo. O morcego era o meu pai. A colombina seria minha mãe. Em certo sentido, eu poderia me considerar o encontro comemorativo da vitória da cidade (do que restou da cidade) sobre a peste, os bacilos, a morte.

 

Rodeio não tinha nenhum motivo especial para se entregar à depravação daquele Carnaval. No Rio, além da tradição de cidade carnavalesca e depravada, havia a devastação causada pela gripe. Todos sentiram a precariedade da vida, todos conheceram a morte de perto e nada de mais que a sofreguidão de aproveitar a carne estourasse com violência. Quem não tinha morrido sentia obrigação de viver - e viver, depois de tantas mortes, era fornicar.

Ninguém soube explicar por que a gripe poupara as pequenas cidades: a peste se refestelou apenas nas metrópoles - e o Rio, que já se considerava uma metrópole, teve de pagar o seu preço. Rodeio não era, nunca fora e nunca seria uma metrópole. Limitava-se ao pequeno povoado entre os túneis 11 e 12, que cresceu um pouco por ocasião do assentamento dos trilhos da Central do Brasil pelo engenheiro Paulo de Frontin, que a duras penas conseguira vencer a serra do Mar.

Os desvarios ali se limitavam às serenatas do Choca - e o seu mitológico sucesso junto às mulheres. Mesmo assim, o Carnaval de 1919 foi um acontecimento que marcou aquela cidade e outros municípios análogos. As estatísticas comprovam: nas semanas seguintes aos três dias fatais, a Delegacia de Polícia recebeu cento e dezoito denúncias de defloramentos - o que era um recorde.

Diante de tamanho descalabro, o delegado local tomou a única providência cabível: prendeu Choca como responsável pelos cento e dezoito defloramentos. Apesar de seus protestos de inocência, gramou a prisão até a Semana Santa, ou seja, quase quarenta dias e quarenta noites, durante os quais conheceu Angimestro Saraiva, que seria seu futuro concunhado.

Angimestro Saraiva era cabo da Força Pública, e depois do delegado, a maior autoridade policial existente. Não fez progressos na polícia porque tinha pavor de defuntos e terminou seus dias na Confeitaria Lallet, no Rio, onde cumpriu razoável carreira de garçom, embora encerrada tragicamente - como mais tarde será contado.

Para Choca, a prisão foi tão inexplicável quanto a libertação, fato aliás comum nos anais carcerários do mundo inteiro. Ele jurava inocência, e além de jurar, provava: durante o Carnaval, tinha tocado banjo nos bailes do Cinema do Russo, sob o patrocínio exclusivo do Clube Esportivo Recreativo Musical Rainha da Serra do Mar, não tivera tempo nem condições físicas para cometer tantos defloramentos. Durante o Carnaval procurara dormir para aguentar as noites que passava tocando. Não, não podia ser responsabilizado por tantos desatinos.

O tempo, que lhe daria sífilis, gonorreia e outros males afins, dessa vez deu-lhe razão. Da Quarta-Feira de Cinzas até a Semana Santa, ou seja, durante toda a Quaresma, os pais que haviam denunciado a violência cometida contra a virgindade de suas filhas foram lenta e inexoravelmente retirando a queixa, dada a evidência dos fatos subsequentes: cada deflorada acabava confessando o nome do sedutor e os casamentos, ao mesmo tempo que reparavam a violência, terminavam com o escândalo. Quando a última queixa foi retirada, o delegado mandou soltar Choca, que pronto tratou de se evadir de Rodeio - onde Acácio Nunes de Assis e filhas (com exceção de Julieta) haviam passado os três dias fatais. A fuga, na ocasião, foi atribuída à injustiça que sofrera, levando fama e culpa em tão nefandos crimes.

Mas Acácio Nunes de Assis, que bem o conhecia - e conhecia a vida -, ao tomar conhecimento da fuga no justo instante em que tomava o trem para voltar a Barra do Piraí, pronunciou a frase que foi repetida por todos e se tornou profética: “Ele sabe por que está fugindo!”.

O que ninguém sabia - nem o próprio Acácio - é que o motivo da fuga de Choca fosse justamente um defloramento que elevaria a cifra oficial para cento e dezenove. Seis meses depois do Carnaval, uma das filhas de Acácio, tida com sua terceira mulher, apresentou sinais de gravidez. Nair, que durante o Carnaval fora trancada a chave pelo pai, admitiu a veracidade de sua gravidez e não se fez de rogada quando lhe exigiram o nome do responsável: “Foi o Choca”.

Acácio caiu das estribeiras e quase caiu de seu posto de chefe de estação de Barra do Piraí. Precisou apelar mais uma vez para o irmão deputado, que pronto mandou enviar reforços policiais para a caçada de Choca.

Comandada por Angimestro Saraiva, que mais tarde se casaria com Nina, irmã de Nair, a patrulha passou cinco dias no meio do mato, vasculhou a região que ia de Barra do Piraí a Juparanã, sempre pelas imediações do leito da Central do Brasil; todos sabiam que Choca não podia se afastar deles: tinha paixão pelos trens e não poderia viver sem ouvir o apito das máquinas fazendo as curvas da serra do Mar. Ali nascera, ali crescera e se criara, não seria nada se o arrancassem dali.

Angimestro Saraiva e seus patrulheiros vasculharam Santana, Mendes, Rodeio, Palmeiras, Serra, Mário Belo, Scheid, e descendo sempre a serra, chegaram à periferia de Belém, que agora se chama Japeri.

Ninguém tinha visto Choca e muitos nem sequer sabiam de sua existência. O faro de Saraiva, contudo, era afilado - não fosse o medo de defuntos, teria feito brilhante carreira policial: soube em Rodeio que ia haver serenata no cemitério, para celebrar a morte de uma jovem que a tísica levara virgem para debaixo da terra.

Os rapazes nunca se atreveram a fazer-lhe uma serenata em vida, pois tinham justificado horror a seu pai, o coronel Castinheiras, que andava de revólver à cinta e rebenque à mão. Depois de morta, o próprio coronel autorizou a serenata.

Apesar de temer cemitérios, Angimestro Saraiva postou seus homens pelas cercanias, e, perto da meia-noite, ouviu-se o som do banjo de Choca atacar os acordes de “Ontem ao luar”. Saraiva ordenou o ataque e Choca foi preso com a mão na botija: estava embriagado e havia confessado a um colega de serenata que bebera demais para “esquecer uma besteira” que fizera no último Carnaval.

Foi sumariamente levado do cemitério para a Delegacia de Polícia, onde admitiu a responsabilidade pela gravidez de Nair e aceitou os rigores da lei - coisa da qual ele tinha vagas noções. Quando soube que os rigores da lei obrigavam-no a casar, aí é que a coisa esquentou e Choca entrou em transe, tentando escapar e proferindo blasfêmias contra Deus, contra a polícia e contra a sociedade em geral. Foi nesta histórica ocasião que proferiu, pela primeira e única vez na vida, o seu nome completo:

- Antônio Rodano.

O delegado ordenou ao escrevente:

- Bote aí: Antônio Rodano, vulgo Choca.

Cumpridas as formalidades legais, foi a vez de Acácio Nunes de Assis fazer justiça pelas próprias mãos: deu-lhe tantos e tamanhos cachações que Choca não resistiu aos padecimentos, caiu desacordado, a cara numa pasta de sangue.

Meses depois, nascia Francisco de Assis Rodano, filho legítimo de Antônio Rodano e Nair de Assis, predestinado a grandes destinos e a fim misterioso. Por sua vez, Acácio sentiu que já provara da vida suficientes amolações e caiu em decadência física, da qual resultou a próstata inflamada e a sua própria morte, ocorrida lá em casa, numa madrugada de agosto, e que custou a meu pai um comentário que resumia não apenas a vida do sogro, mas a própria aventura humana: “Cabeça que não regula o corpo é que paga!”.

 

Naquele tempo, levavam-se dias, semanas para morrer. Um moribundo que se prezasse e que prezasse a família, tinha por obrigação agonizar lentamente, dando um trabalhão a todos, à família em primeiro lugar, e à sociedade em geral. Havia uma espécie de acordo entre os que iam morrer e os que iam continuar vivendo. E todos procuravam cumprir o seu papel.

Meu avô não fez exceção. Tão logo suas vias urinárias se complicaram de forma irreparável, tratou de se despencar de Barra do Piraí a fim de se tornar mais pesado aos parentes. Se tivesse ficado em sua cidade, junto à sua estação, perto de seus trens, sua morte teria sido mais prática embora menos espetacular. Afinal, ele tinha um irmão deputado no Rio, uma de suas filhas morava na Boca do Mato. Foi motivo para pegar o neto predileto, o trem também predileto e chegar à nossa casa, tarde da noite, com seu surrado capote de ferroviário e a inabalável certeza de que daquela não escapava: “Vim morrer aqui”, disse Acácio a meu pai, quando todos acordamos para receber a inesperada visita.

A rudeza do avô não aliviou o constrangimento mas colocou as coisas em seu devido lugar, ou seja, colocaram-se todas as coisas fora do lugar a fim de caber dentro de casa um homem que se declarava com o pé na cova.

Desarrumaram-se camas, removeram-se móveis e o avô foi instalado no quarto de meus pais, que por sua vez se instalaram na sala de visitas que ficava ao lado. No meu quarto guardaram as poltronas e outros móveis que não combinavam com a nova e desorganizada ordem. Além do mais, o neto predileto de Acácio Nunes de Assis - que para mim não passava de uma simples coisa, abominável coisa - também ficou destinado ao meu quarto.

Dormi aquela noite com Francisquinho, em minha cama. Era hábito, então, em emergências idênticas ou análogas, botar dois e às vezes mais de três meninos no mesmo leito. Muita sacanagem prematura foi assim cometida. Havia um que sempre era mais sabido e afoito. Apesar disso, poupei Francisquinho - o futuro Francisco de Assis Rodano - de um vexame, não tive com ele nenhuma intimidade a que tinha direito, primeiro pelo fato de ser o dono da casa e da cama, segundo por ser o mais forte e mais escolado nessas coisas.

Nos dias seguintes, o pai fez o que dele se esperava: tratou de se livrar do sogro e hóspede, providenciando-lhe a internação na Ordem Terceira da Penitência, na Tijuca. O avô foi removido de ambulância e ficou no hospital apenas três dias: tomou liberdades com as freiras que lhe faziam curativos. Uma delas, ao trocar a sonda, foi surpreendida com uma brutal ereção que terminou em ejaculação - o avô não apenas recebeu alta hospitalar mas teve cassado o seu título de sócio remido da Ordem Terceira da Penitência.

A expulsão era mais ou menos esperada por todos, acho que, inclusive, pelo próprio avô. Daí que não fora providenciada a arrumação que botasse as coisas no lugar. E eu, que apressadamente julgara que ficaria livre da companhia de Francisquinho, tive de aturá-lo por muito tempo ainda, até que apareceu alguém que o levou de volta a Barra do Piraí, dias antes do desenlace da crise de uremia que mataria Acácio Nunes de Assis.

Mesmo assim, houve tempo suficiente para que eu ficasse conhecendo com intimidade aquele primo indesejado e estranho para mim. Na época, o que mais me irritava, nele, era a sua predileção pelos meus brinquedos, em especial por uma perereca de lata que dava saltos movidos por uma corda. Era um brinquedo importado, o mais precioso de minha coleção, apesar disso eu não dava muita bola para ela, preferia uma carrapeta sonora, meus soldadinhos de chumbo, um jogo de armar no qual aparecia um quadro de Botticelli.

Francisquinho apaixonou-se pela perereca. Quando eu conseguia esconder o brinquedo, ele abria um berreiro abominável, parecia estar sendo esganado, clamava pela perereca como um desesperado, minha mãe era a primeira a me convencer: “Empreste a perereca a seu primo! O choro dele incomoda o seu avô”.

Engolindo a raiva, eu ia ao esconderijo onde guardara a preciosidade e odiava minha mãe, odiava meu avô, odiava sobretudo Francisquinho. Mas o odiei muito mais no dia em que a solércia de seu caráter me foi revelada.

Uma semana antes de morrer, o avô teve um troço e todos pensaram que chegara a hora dele. Providenciaram-lhe uns tubos de oxigênio e o conforto dos sacramentos. O tio Alberico, deputado no Rio de Janeiro, era amigo do cônego Olympio de Melo, que substituía o prefeito Pedro Ernesto, preso por Getúlio Vargas. Ele não perderia a oportunidade de puxar-lhe o saco, convidando-o a ministrar a extrema-unção ao moribundo. Por sua vez, o resto da família, liderada por meu pai, nutria feroz admiração pelo padre Brito, que fora vigário em Paquetá, casara meus pais e gozava fama de santidade.

Minha mãe, quando dele se aproximava, dizia sentir cheiro de incenso. E tia Zizinha, que ficaria responsável pela criação de Francisquinho, garantia que, olhando-se bem a cabeça do padre Brito, via-se a auréola dos santos, muito tênue, mas reveladora do grau de suas virtudes.

Tinha fama de milagreiro, contavam que curara um pescador em Paquetá, homem dado a beber e a sovar a mulher. Meu pai chegava a insinuar que ele ressuscitara um morto, um rapaz que se afogara na praia dos Tamoios e cujo corpo, trazido pelas ondas, padre Brito fora encomendar. Mal padre Brito começara a rezar, o corpo começou a mexer-se, a respirar, o rapaz voltava do mundo dos mortos e seria mais tarde marinheiro nas barcas da Cantareira & Viação Fluminense, neste mundo mesmo.

Com intervalo de alguns minutos, os dois ministros de Deus vieram a nossa casa, untaram Acácio Nunes de Assis na testa, no peito, nas mãos e nos pés, pediram o perdão de seus pecados - coisa que Acácio já não podia fazer -, encomendaram-no ao Paraíso e borrifaram-no de água benta.

Em estado desesperador, Acácio ainda mantinha fiapos de lucidez. Não entendeu bem aquela cerimônia em dose dupla, na melhor das hipóteses considerou-a exagerada.

A prece quase simultânea de dois ministros de Deus em nossa casa provocou o lance por meio do qual Francisquinho revelou o tipo de homem que seria e suas disposições para com a vida em geral. Obrigaram-me a tomar a bênção aos dois - ao cônego detestado e ao padre venerado - e eu cumpri a missão servilmente, tanto me fazia um ou outro padre. A Francisquinho obrigaram a mesma coisa mas o garoto negou-se àquela submissão. Fugiu para o quintal. Fui atrás, sem saber se devia ficar solidário com ele ou se precisava repreendê-lo, primeiro com palavras, depois com alguns cascudos.

No quintal, enchendo-me de pasmo, Francisquinho deu-me o motivo de sua rebelião: “Não beijo mão de homem”.

Ora, Francisquinho era mais novo do que eu, menos escolado na vida e no mundo. Morava então em Barra do Piraí, era pobre, não tinha brinquedos. Aquela altivez, aquela declaração de liberdade, obrigaram-me a invejá-lo e a respeitá-lo. Fui habituado a beijar a mão de homens veneráveis, de pai, tios, padrinhos, padres, anciãos centenários ou quase isso que vez por outra o pai encontrava na rua e me intimava a beijar mãos encarquilhadas, de veias grossas e azuis que me davam algum nojo. Não via nada de mais, aceitava aquilo como uma das regras do mundo, como aceitava o dia e a noite, o mar e a chuva, o vento e a nuvem.

E de repente vinha aquele fedelho, comedor de tabatinga, coberto de perebas, que botava o dedo no nariz e não tinha nenhum brinquedo, vinha ele e me ensinava que não se devia beijar mão de homem, fosse o homem que fosse!

Sorte minha, levaram Francisquinho lá de casa, dois dias antes de Acácio entregar a alma e o corpo duplamente untado a Deus. Para mim foi um alívio, pois voltava a ocupar, em sua totalidade, a cama que durante meses dividira com seu corpo magro, sempre cheirando a mato, a bode. Foi esse, por sinal, o cheiro que acompanhou Francisquinho pelo resto da vida: o de bode. Anos mais tarde, no alto do morro Portugal, em Rodeio, todos concordavam que o Diabo fedia a enxofre e a bode em porções iguais.

 

Acácio morreu na madrugada de um dia de agosto. Quando acordei e passei pela sala de visitas, vi refletida no espelho de minha mãe a chama amarelada de uma vela. Aquela luz, no quarto ainda às escuras, revelava que Deus levara a alma de seu servo Acácio Nunes de Assis, telegrafista da Central do Brasil e, ao final de carreira, por empenho do irmão deputado, chefe de estação de Barra do Piraí. Deveria àquela hora estar explicando, a quem de direito, o que fizera com os quatro enteados em Paquetá, quando deles se livrara aproveitando a Gripe.

Fui para o quintal e lá decidi passar o resto do dia. Pouco a pouco, outros meninos das vizinhanças foram chegando, assanhados com o movimento que começava a se irradiar de nossa casa para a rua. Quiseram saber como era a morte, como se morria, de que se morria, por que se morria, para onde se ia depois de morto - foi o primeiro (e único) simpósio sobre tamanhos e tão transcendentais assuntos de que participei.

Saí-me como podia:

- Acho que o avô foi para o Inferno.

Quiseram detalhes.

Lembrei-me da cena em que vira o avô tentando aliviar, com uma tesoura, o tubinho de borracha que incomodava a sua uretra. Lembrei-me também de Francisquinho, que tinha intimidade maior com o avô e sempre dizia que ele gemia quando urinava.

Juntando as duas lembranças, disse o que sabia:

- Ele morreu por causa da piroca.

Todos - até eu - olhamos para as próprias pirocas. Por causa delas se podia morrer como Acácio Nunes de Assis e ir para o Inferno.

 

                 ANTECEDENTES DO GRANDE FINAL

O delegado Corintho (com th) da Fonseca acumulava a função policial com a cartorial, era o único e bastante escrivão da Comarca de Rodeio, já tivera problemas com Francisco de Assis Rodano. Dispensava esse último e complicadíssimo estorvo.

Estava redigindo o editorial de A Voz da Serra, função semanal e literária que acrescentava às suas atividades de principal habitante dos dois quilômetros de chão que separam as bocas dos túneis 11 e 12, justo entre Palmeiras e Mendes, onde antigamente, antes do leito da Estrada de Ferro Central do Brasil, era concentrado o gado magro da região para um breve período de engorda, antes do abate no terrível, no sinistro, no fedorento Matadouro de Mendes.

Onde, também, Francisco de Assis Rodano exerceria seu primeiro e extraordinário ofício, como catador de chifres que eram separados das cabeças decepadas e vendidos, aos quilos, ninguém sabia ao certo para quem ou para quê.

Naquela tarde, às três em ponto da tarde como no poema de García Lorca - com o desconto do fuso horário -, ele ouviu o estrondo do raio caindo sobre Rodeio. Nada se mexeu em sua face ou em sua pena. Cair raios era uma rotina em Rodeio, onde caíam raios até em dias de céu claro e sem nuvens.

Corintho exigia, no editorial que estava redigindo, a necessidade de se enviar, em nome dos cidadãos de Rodeio, um telegrama de protesto ao papa João XXIII pela incúria com que o bispo de Barra do Piraí estava tratando os fiéis que constituíam o fragmentado rebanho adjacente aos trilhos da Central do Brasil no trecho que ia de Santana a Mário Belo, onde se incluía Rodeio, Palmeiras, Humberto Antunes e Mendes. Só havia um padre para atender a tantas almas - e o padre em questão, além de devasso e beberrão, era inimigo de Corintho da Fonseca.

Por diversas vezes, A Voz da Serra, que tinha em Corintho da Fonseca seu principal colaborador, alertara o bispo sobre os desmandos do padre. Desesperado, Corintho decidira apelar diretamente para o papa - e estava argumentando sobre os malefícios que o padre causava em tão sacrificada comunidade. Eram tais e tantos os malefícios que até o Demônio começava a ser cultuado na região, uma vez que o Pai das Trevas, segundo a voz do povo - “mas não segundo A Voz da Serra”, deixava Corintho bem claro -, estava encarnado num cidadão local, que atendia pelo nome de Francisco de Assis Rodano, filho de um malandro histórico da região, o Choca, tocador de banjo e contumaz deflorador de donzelas.

Justo nesse instante Corintho da Fonseca ouviu o trovão e não tremeu, mesmo porque tremera um pouco antes, ao mencionar o fato de o pai de Francisco de Assis Rodano ter sido o mais bem-sucedido deflorador de donzelas nas margens ambas do leito da estrada de ferro.

Entre as donzelas defloradas por Choca, o vulgo incluía dona Vivinha, mulher de Corintho, o que era uma falsidade, Vivinha casara-se virgem, ele, Corintho, o afirmava com a autoridade de delegado policial, escrivão juramentado do Registro Civil, editorialista de A Voz da Serra e marido.

Ia continuar o editorial quando sentiu um cheiro estranho de enxofre. Rodeio não tinha cheiros, ao contrário de Mendes, que fedia à distância por causa do matadouro. Um cheiro fétido, de sangue coalhado, de couro esfolado, de tripas expostas, cheiro que se sentia nas narinas e se impregnava nas roupas tão logo os trens varavam o Túnel 12 e penetravam nos ares contaminados de Humberto Antunes, pequena parada sem plataforma, só para os trens de carga que vinham buscar a carniça produzida em Mendes, dois quilômetros adiante. Mendes sim, tinha fumos de cidade, juiz, prefeito, câmara municipal, coletoria e vigário - de quem Corintho julgava vir pestilência maior que a do matadouro.

O cheiro de enxofre não chegava a ser forte mas era novidade. Por um instante, Corintho da Fonseca pensou em Francisco de Assis Rodano, que todos diziam cheirar a enxofre mas que cheirava a bode e a azedo. Por causa de Francisco de Assis Rodano, o editorialista principal de A Voz da Serra ia incluindo no artigo uma dissertação sobre o culto ao Demônio que começava a tomar conta das almas desassistidas de Deus. O papa precisava tomar providências - clamava ele - quando o cabo Angimestro Saraiva, que tinha medo de defuntos e representava o efetivo policial de Rodeio, entrou esbaforido na sala da redação de A Voz da Serra, que era por sinal a mesma em que funcionava o cartório do Registro Civil, dependendo do que, no momento, Corintho da Fonseca estivesse fazendo.

Trêmulo, olhos esbugalhados de paraense que já enfrentara secas e cangaceiros com galhardia mas se borrava diante da possibilidade de topar com um defunto, Angimestro Saraiva comunicou a seu chefe e líder:

- O iminente acaba de acontecer!

Corintho da Fonseca ficou irritado com a interrupção, que diabo, não era todo dia que alguém, ao longo de quilômetros da serra do Mar, se dirigia ao papa gloriosamente reinante pedindo providências para Rodeio! E vinha Angimestro Saraiva com aquela frase que ele, Corintho, usara como título de seu mais famoso editorial, quando divulgou a prisão do gerente da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini por assédio sexual às operárias da seção de embalagens - iminência que nunca acontecia porque as queixas eram retiradas quando o editorialista de A Voz da Serra e o escrivão do Registro Civil se afastavam de Corintho e ele era obrigado a assumir suas funções de delegado policial.

O iminente só ameaçara acontecer uma única vez na acidentada vida de Rodeio - e não acontecera. E vinha Angimestro Saraiva, que tinha medo de defuntos, iminentes ou não, anunciar que o iminente acabara de acontecer. Mesmo assim, irritado e roubado mais uma vez em sua preciosa frase, Corintho se sentiu obrigado a perguntar:

- Aconteceu o quê?

O cabo Angimestro Saraiva disse numa espécie de vômito:

- O raio...

E mais não disse nem foi preciso. Corintho da Fonseca, tivesse th no nome ou não tivesse, entendeu tudo.

 

Rumaram os dois, Corintho da Fonseca e Angimestro Saraiva, para o morro Portugal, que já estava cheio de gente para verificar no que iria dar o Grande Desafio, prometido havia muito, havia muito adiado e finalmente concretizado. O temporal passara, cumprira sua parte no assombroso evento, despejando o raio que fulminou Francisco de Assis Rodano.

Agora, era a vez de Corintho da Fonseca cumprir a sua parte, uma vez que Angimestro Saraiva, como o temporal, também já cumprira a sua, avisando a seu superior imediato e único que o iminente acabara de acontecer.

Corintho mandou que todos se afastassem do local onde, segundo todas as probabilidades, ocorrera o terrível mas merecido fim do Lúcifer Encarnado, o rodeiense nascido em Barra do Piraí, Francisco de Assis Rodano. Aliás, nem seria preciso mandar que todos se afastassem, pois todos já estavam afastados, formando o respeitoso círculo onde, segundo alguns, o Rival do Outro fora transformado em tição. E, segundo outros, em maior número e com maiores razões, em cinza e pó.

Pois nada realmente havia naquele local, nem tição, nem cinza nem mesmo pó, o morro Portugal terminava com umas pedras e em nenhuma delas havia vestígios da vitória de Deus - mais uma! - sobre o Anjo Decaído, o próprio Lúcifer em sua mais recente encarnação.

Poucas vezes em sua vida profissional de delegado e escrivão do Registro Civil, Corintho sentiu que, também ele, que nada tinha a ver com aquilo, fora desafiado por forças superiores ao seu destino e ofício. Para compensar, em sabendo que não havia defunto à vista, Angimestro Saraiva portava-se como o dono da situação, empurrando alguns, afastando os que desejavam espiar mais de perto e pedindo, aos berros, que ninguém tocasse em nada, o que era uma inutilidade, nada havia a ser tocado.

Corintho deu várias e enigmáticas voltas em torno das pedras que encimavam o morro Portugal, não mais procurando os vestígios inexistentes mas uma inspiração para saber o que deveria fazer naquela circunstância sem ficar desmoralizado na sua dupla função de policial e escrivão do Registro Civil.

No transe, o único segmento que formava o todo que constituía Corintho da Fonseca era o editorialista de A Voz da Serra, que tinha agora um argumento a mais para solicitar providências do papa a respeito dos tumultuados dias que Rodeio vivia.

Súbito, houve um rumor no meio da turba, abriu-se um claro no círculo de rodeienses que aguardavam as providências de Corintho da Fonseca, providências que tardavam, apesar de Angimestro Saraiva de minuto a minuto anunciá-las de igual forma iminentes.

No espaço aberto dentro do círculo formado pelo povo, surgiu uma mulher desgrenhada, uivando como um animal em agonia, leitoa esfolada viva que grunhia e imprecava contra Deus, contra o Demônio, contra Corintho da Fonseca e seu assecla Angimestro Saraiva, mas principalmente contra Francisco de Assis Rodano, seu homem e marido.

Ninguém entendia o que a mulher falava, mas todos supunham que pronunciava palavras terríveis, pois terríveis eram seus esgares, que se tornaram mais terríveis quando outra mulher também surgiu, vindo da mesma direção e, aparentemente, com a mesma intenção. O que a distinguia da outra, além da postura calma, quase solene, era que trazia nas mãos duas enormes botas pretas.

Num primeiro momento, a mulher desgrenhada ficou atônita não diante da segunda mulher, mas diante das botas. Até mesmo Corintho da Fonseca perturbou-se não apenas com a presença das duas mulheres, como, principalmente, com a presença das botas. Ordenou a Angimestro Saraiva que apreendesse aquele único objeto que poderia identificar Francisco de Assis Rodano, pois dele eram as duas botas e dele as duas mulheres.

A turba aprovou a atitude de Corintho e apreciou a presteza com que Angimestro Saraiva se apoderou das botas, embora a mulher que as trouxera nada fizesse para impedir que as tomassem. Na realidade, ela trouxera o par de botas para provar que Francisco de Assis Rodano jamais se atreveria a lançar o Grande Desafio sem estar convenientemente calçado com as duas botas negras, feitas por ele mesmo do couro negro de touro Papelão (que era um boi), que ele conseguira matar em seus tempos de toureiro no Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

Corintho chamou Angimestro, foram para um canto conferenciar, volta e meia os dois examinavam as botas, famosas em Rodeio, faziam parte de Francisco de Assis Rodano, impossível que ele lançasse o Grande Desafio sem estar equipado com as botas. Era meticuloso no ritual, quando assumia a função de Lúcifer Encarnado não dispensava a liturgia que, somente ela, enchia de pasmo e terror os rodeienses e até mesmo os habitantes de Mário Belo, Palmeiras, Humberto Antunes e Mendes - principalmente Rodeio, onde se dera o famoso duelo entre Francisco de Assis Rodano, então toureiro do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, e o também famoso boi Papelão, o único, nos anais do Matadouro de Mendes, que conseguira fugir do curral onde o gado esperava a vez de ser abatido.

Enquanto Corintho da Fonseca conferenciava com Angimestro Saraiva, as duas mulheres também conferenciavam, mas em outro nível e sentido. A desgrenhada tornara-se mais desgrenhada, acusando a outra de ter se metido onde não devia - acusação antiga que todos em Rodeio conheciam, pois a primeira mulher, a desgrenhada Anna (com dois enes), jamais aceitara dividir Francisco de Assis Rodano com a outra. Que era - segundo um poema de Corintho da Fonseca - de uma beleza celestial, cabelos muito louros, tão louros que pareciam brancos, pele muito clara e fina, porcelana macia de olhar. Chamava-se Amapola - nome da canção que sua falecida mãe gostava de cantar.

Anna a odiava, mas precisava dela: não fora Amapola, e há muito que Francisco de Assis Rodano já teria cometido insanidade maior do que aquela, desafiar o Todo-Poderoso em meio de uma tempestade.

Tudo isso era mais ou menos sabido por todos, inclusive por Corintho da Fonseca e por Angimestro Saraiva. Confiavam em que, tal como de outras vezes, Amapola aquietaria Anna. Uma vez quietada a primeira mulher, as coisas poderiam ser resolvidas, ao, ao menos, esclarecidas.

Amapola tomou a outra pelo braço e retirou-a do centro dos acontecimentos, que voltaram a se concentrar em Corintho da Fonseca e Angimestro Saraiva. O cabo, em sabendo que não havia nem haveria defunto à vista, estava soberbo, zelando na guarda de um círculo imaginário onde, tudo indicava, o raio caíra. Corintho ficou um tempo em silêncio, olhando o que não vira e vendo longe.

De repente, comunicou aos rodeienses que dele esperavam providências: “Fiquem tranquilos. Escreverei uma carta ao papa!”.

 

Era mais fácil a Bica do Dr. Sales curar impotência sexual do que Francisco de Assis Rodano apresentar-se, oficialmente, sem os seus paramentos que, sozinhos, causavam pasmo nos rodeienses. O chapéu preto, de enormes abas, que nunca ninguém vira outro parecido e cuja origem era um dos mistérios mais poderosos do Rival do Outro. Tampouco se apresentaria sem a capa preta, que Francisco de Assis Rodano herdara de um espanhol que andara pelo Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco e que fora guarda de não se sabia o quê durante a Guerra Civil na Espanha. Diziam que havia matado um padre, em Segóvia.

Se o chapéu era de origem desconhecida, se a capa tivera um passado histórico nas terríveis batalhas entre republicanos e falangistas (Francisco de Assis Rodano aprendera com o espanhol a cantar “Cara al sol, con la camisa roja/que tu bordaste compañera”), se tudo podia ser em parte explicado e em parte jamais explicado, o equipamento mais notorio e mais louvado ao longo dos trilhos da Central do Brasil, principalmente entre as bocas dos túneis 11 e 12, eram as botas de Francisco de Assis Rodano.

A rigor, foi por elas que tudo começou. Pois durante muitos anos Francisco de Assis Rodano andara sempre descalço, descalço fazia duas colossais façanhas: pisava nas brasas das fogueiras de São João, mesmo sem ser meia-noite; e atravessava de ponta a ponta o arraial (a rua principal e praticamente única) de Rodeio, em cima de cacos de vidro que Casimiro Fernandes, ex-sacristão, ex-padeiro, ex-candidato a toureiro e nos últimos tempos ex-ajudante de Francisco de Assis Rodano, espalhava cuidadosamente, tendo apenas a precaução de não misturar cacos de vidros escuros com claros. Era nessa distinção entre cacos escuros e claros que residia a força e o mistério de Francisco de Assis Rodano.

A chegada de Amapola aos acontecimentos do morro Portugal, em vez de trazer um esclarecimento, trouxe mais confusão ao que já estava suficientemente confuso. Era inadmissível que Francisco de Assis Rodano cometesse sua audácia mais notável e definitiva sem estar de posse de todos os seus fetiches, entre os quais as botas eram, de longe, os mais celebrados.

Ninguém poderia aceitar que ele, desarmado, fosse convocar e provocar o poderoso adversário. Eram milhões de anos, milhões de séculos que o separavam daquela luta travada antes de o mundo existir, quando chefiou a rebelião contra o Outro. Naquela primeira batalha, ainda como Lúcifer, vivia em seu estado de anjo (o mais belo de toda a Criação). Dotado de essência incorpórea, pudera dispensar chapéu, capa e botas feitas do couro do boi Papelão. Perdera a batalha, nada pudera contra as formidáveis coortes comandadas por Miguel e Gabriel e fora precipitado na geena eterna. Pior do que o castigo, foi submeter-se à história que passou a ser escrita pelo vencedor.

Agora, enfrentando novamente o inimigo em condições adversas, com um corpo sólido que necessitaria de adjutórios mágicos para compensar a diversidade de forças, ele não poderia dispensar as botas feitas do couro de Papelão.

Confiscadas por Angimestro Saraiva no cumprimento único da única ordem que Corintho da Fonseca se sentira capaz de dar, as botas ajudaram Amapola a convencer Anna de que a história ficara mal contada. Não havia provas de que Francisco de Assis Rodano, que tantas vezes anunciara o Grande Desafio, daquela vez tivesse tomado vergonha e fosse mesmo lançar sua abominável blasfêmia contra o céu - que na verdade não estava para brincadeiras naquela tarde.

Todos tinham ouvido o formidável estrondo que ecoou por todo Rodeio e fez as vidraças da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini tremerem. Mais e melhor do que no dia em que um paiol de pólvora da Indústria de Fogos de Artifício Picolino explodiu - num acidente que Corintho da Fonseca suspeitou ter sido provocado pelo próprio dono, que começava a desistir de fabricar fogos e tentava produzir sabonetes de eucalipto, árvore que havia muitas em Rodeio, nas encostas do morro em que fora aberto o Túnel 12.

Esses acontecimentos, passados e notáveis na vida de Rodeio, não se comparam ao maior deles, que teve decisiva influência na vida e na possível morte de Francisco de Assis Rodano.

 

                   EL ASOMBRO DE DAMASCO

Ninguém soube como o circo apareceu em Rodeio. Nem mesmo Corintho da Fonseca que era tido e ele próprio se julgava a crônica viva do lugar. É certo que em Rodeio e em outras paragens ao longo dos trilhos da Central do Brasil, em todas as bibocas espalhadas pela serra do Mar, sempre apareciam circos, mambembes, em escombros, mas que dava para o uso e o gasto. Depois de usados e gastos iam para outras bandas, mas logo surgia um outro circo tão igual ao que tinha ido embora que parecia o mesmo.

Daí o espanto causado pelo Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco. A começar pelo nome. Os anteriores, que costumavam aparecer pela serra do Mar, tinham nomes menos complicados e geralmente eram na base do Grande: Grande Circo Norte-Americano, Grande Circo Ítalo-Americano, Grande Circo Australiano e houve até um Grande Circo Greco-Romano, que deu muito trabalho a Corintho da Fonseca e a Angimestro Saraiva porque promovia torneios de lutas medonhas entre os profissionais do grupo e os voluntários locais, lutas que começavam no improvisado ringue do circo e se estendiam pela cidade, pelos bares e até mesmo pelo cemitério, onde por sinal Angimestro Saraiva descumpriu a lei e envergonhou seu ofício, recusando-se a apartar uma refrega entre o Grande Karadagian - principal lutador do circo - e Cuba-Lá-de-Fora, um valente local que arrebentou as fuças e as glórias do Grande Karadagian, impondo-lhe vergonhosa surra.

Tudo era grande nos circos e tudo era grande em volta deles, até que o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco chegou a Rodeio, sem aviso prévio, sem fanfarras e sem o tradicional palhaço, geralmente acompanhado por um elefante combalido ou qualquer outro animal em escombros.

Nem por isso o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco deixou de causar assombroso impacto nos rodeienses. Não era Grande, mas Gran - em alguns volantes distribuídos pelas casas, o circo se anunciava ora como “Gran”, ora como “Grã” - o que, longe de diminuir o impacto causado, o ampliava.

Depois, não bastando ser Gran ou Grã, era “Tauromaníaco” - palavra que pegou os rodeienses desprevenidos, inclusive o próprio Corintho, que por exigir seu nome com th tinha fama de ilustrado e era compulsoriamente consultado todas as vezes que havia dúvidas sobre a ortografia ou o significado de palavras complicadas para os padrões culturais da cidade.

Dois acontecimentos providenciais ocorreram no mesmo dia e tiveram como resultado suplementar o fim do mistério causado pela palavra e pelo circo. O tal padre, que dava em cima das operárias da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini e que era o principal desafeto de Corintho, tinha se dignado vir a Rodeio para dar a extrema-unção ao sogro do gerente da dita fábrica, que estava nas últimas e que só decidiu morrer depois de convenientemente untado com os óleos sagrados.

Justo nesse mesmo dia, chegara a segunda e mais importante porção do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, constituído por uma espécie de ônibus pintado de vermelho e amarelo, alguns artistas do elenco, inclusive o que parecia dono, gerente e principal atração. Ao lado do ônibus, caminhando em seu passo breve e determinado, e fazendo o ônibus caminhar igualmente de forma breve e determinada, veio um boi, preto, que já fora forte, agora reduzido, como o resto do Gran Circo, a um escombro.

Juntos os três elementos - o padre, o circo e o boi -, foi finalmente esclarecido o significação da palavra tauromaníaco. Depois de untar o enfermo - que melhoraria logo em seguida - o padre perguntara pelas novidades de Rodeio, lugar a que pouco ia por vários motivos, desde que se espalhara sua fama de metido com as operárias da fábrica. Nesse justo momento, passava pelo arraial o ônibus vermelho e amarelo com o boi ao lado em seu passo breve e determinado.

- Bem pelo que vejo , vocês aqui em Rodeio gostam de circo... Sai um e entra outro... - comentou o padre enquanto tomava o cafezinho providenciado pela filha do ex-moribundo.

- Não sei se é mesmo um circo como os outros - disse o gerente da fábrica, que aliás se chamava Ápio, sendo o único Ápio que todos os que o conheciam tinham visto em carne, osso e importância. E acrescentou: - Tem um nome esquisito, é touro qualquer coisa... coisa de Damasco...

O padre botou os olhos em cima de uma faixa pendurada do lado de fora do ônibus vermelho e amarelo. Soletrando com dificuldade, o vento batia na faixa, embaralhando as letras mal desenhadas, conseguiu ler:

- Gran… Circo… Tau…ro…manía…co… El… A…sombro de Da…mas…co...

Juntando tudo, decifrou o nome completo e contínuo do circo que chegava. E pronto explicou que “tauromaníaco” era relativo a touro, a touradas, muito populares na Espanha, mais ou menos como o futebol no Brasil. E que Damasco era uma cidade na Síria onde Paulo de Tarso caiu do cavalo, ferido por um raio, raio que o converteria de pagão em cristão, de perseguidor em perseguido no testemunho da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quanto ao “Asombro” com um esse só, é que o nome oficial do circo estava escrito em espanhol. No idioma de Miguel de Cervantes e Inácio de Loyola não há palavras com dois esses.

A explicação do padre, apesar de erudita e completa, não convenceu nem a Ápio nem à mulher, que com a doença do pai ainda não se inteirara do circo que estava chegando. Foi então que o padre notou o boi que caminhava ao lado do ônibus vermelho e amarelo e fez um vaticínio:

- Deve ser um circo falido. Nem touro de verdade tem. Aquilo é um boi... dos piores...

A explicação erudita e o comentário jocoso correram céleres por todo Rodeio, sem aprovação nem reprovação de quem quer que fosse, até que explicação e comentário foram bater em Corintho da Fonseca, o único cidadão local capaz de aprovar ou reprovar a sabedoria e o humor do padre.

Como sempre acontecia, quando o padre estava na outra ponta da corda, Corintho da Fonseca custou a dar seu veredicto, sem o qual nada seria aprovado ou reprovado em Rodeio. Valorizou o que pôde o seu silêncio, dando a entender que a coisa não era bem assim, quer dizer, poder podia ser, mas devia-se ir com cautela, enfim, não tendo à mão nada melhor, acabou concedendo que “tauromaníaco” era relativo a touro, que o circo deveria promover se não uma tourada, ao menos um simulacro de tourada, para isso, à falta de um touro verdadeiro, que custava caro, trazia um boi, provavelmente roubado das muitas boiadas que se dirigiam ao Matadouro de Mendes para o abate final.

Foi tal o alívio dos rodeienses de ficar sabendo o que era “tauromaníaco”, que a segunda parte do nome do Gran Circo ficou sem explicação, julgada desnecessária. Era um nome afinal, um circo tinha de ter um nome qualquer, todos os que chegavam e iam embora de Rodeio tinham um nome que, feitas as contas, não importava nem influía. Esse até que, além do nome complicado, trazia um boi - se não fosse para um churrasco, deveria ser para outra coisa qualquer relativa ao circo, todos sabiam que um circo se compõe de uma lona, algumas arquibancadas de madeira, um palhaço, um ajudante de palhaço, um mágico, um chinês autêntico que faz alguma coisa pouco autêntica, uma equilibrista, um cantor de tangos e boleros, um bilheteiro, um pau para toda obra e um diretor. Qualquer acréscimo a esse elenco de atrações já devia ser considerado um luxo, um evento cultural.

 

Ao tempo da chegada do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco a Rodeio, Francisco de Assis Rodano ainda não havia assumido o definitivo ofício de Rival do Outro, Lúcifer Encarnado, Depositário da Lança de Longinus e muitos outros títulos e ofícios que nasciam uns dos outros, formando a assombrosa súmula que nada teria a temer do Asombro de Damasco que batia às portas de Rodeio.

Naqueles dias, Francisco de Assis Rodano era ainda um pobre rapaz, que se recusava a ter o destino dos demais pobres rapazes de Rodeio e do mundo em geral. Já tentara diversos misteres, ou melhor, nada tentara, sua tia e madrinha Zizinha, Maria das Graças de Assis, tentara por ele. Fora coroinha em Mendes, mais tarde baleiro no Cinema Zenith (com th, como Corintho). Depois, serviu como ajudante de estafeta no Correio, sendo demitido a bem do serviço público porque encontrara uma cobra num matagal, tivera pena dela e a levara para casa. Sua tia Zizinha aceitava tudo, achou até que o amor àquela cobra tinha alguma coisa a ver com são Francisco de Assis, protetor da natureza e dos bichos, e sob cuja proteção e exemplo colocara o sobrinho e afilhado.

Para desgraça de Francisco de Assis Rodano, que ainda era Francisquinho, os rodeienses não tiveram a mesma boa vontade. Ficavam assustados com aquela cobra enrolada no pescoço do estafeta, reclamavam, ameaçavam ir em comissão a Barra do Piraí formalizar uma queixa específica contra o serviço postal na jurisdição de Rodeio - e tudo ficaria nisso, nessa reclamação e nessa ameaça de ir a Barra do Piraí, se não houvesse o caso de Anna e Amapola.

Um caso que agora, olhado em perspectiva histórica, pode ser considerado o ponto inicial, o começo da ruptura de Francisco de Assis Rodano com o universo estabelecido, o momento em que deixou de ser Francisquinho para se tornar, gradualmente, no Lúcifer Encarnado, no Portador da Lança de Longinus, no Rival do Outro em suma, que terminaria seus dias em forma de tição ou cinza no alto do morro Portugal, alguns anos depois.

Anna e Amapola podem esperar. O Gran Circo Tauromaníaco também pode esperar, embora não tenha feito outra coisa senão esperar o sucesso que nunca teve. Quem não podia esperar era o próprio Francisco de Assis Rodano, que, demitido das funções de estafeta dos Correios e Telégrafos, tornou-se um problema para sua tia Zizinha, que aliás já tinha problema bem maior e insolúvel com a simples condição de tia e madrinha de Francisco de Assis Rodano.

E como a situação dessa vez ficara complicada, pois diziam que o sobrinho e afilhado era ruim da cabeça, o remédio foi enviar Francisco de Assis Rodano para tomar uns conselhos com sua irmã que morava no Rio, onde os outros sobrinhos dela pareciam normais e poderiam influir beneficamente no futuro daquele que um dia declararia que não tinha tinha futuro porque só tinha o passado, o passado de Rival do Outro, rebelado contra a tirania de seu Criador.

 

                   A INICIAÇÃO DE LÚCIFER

Eu não vira Francisquinho desde o tempo em que chegou lá em casa, acompanhado ou acompanhando o avô Acácio Nunes de Assis. De péssima vontade, reparti minha cama com ele durante algumas semanas, incumbiram-me da missão (que não cumpri) de impedir que ele comesse terra e, pior, obrigaram-me a emprestar o brinquedo que na época era um dos meus favoritos, a perereca importada que pulava e fazia um barulho que devia ser igual ou parecido ao das verdadeiras pererecas.

Muitos anos haviam se passado, eu já cursava a Faculdade de Filosofia e o Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva, procurei receber Francisquinho com boa vontade, não por ele, em especial, mas pelo respeito que tia Zizinha, tia dele e minha, me inspirava. Mesmo assim, era difícil admitir que ele fosse meu primo, afinal, só considerava primos os filhos de tia Zulmira e os do ramo da família do meu pai.

Recebi o primo com boa vontade. Mais moço do que eu uns cinco ou seis anos, era alto, esquelético, olhos grandes e fundos, rosto anguloso, branquelo, um tipo subnutrido muito comum no antigo estado do Rio.

Precedido de tamanha fama, era natural que eu implicasse com ele. Em atenção a tia Zizinha, considerei-o um irmão mais moço a quem deveria dar bons exemplos e, se possível, um pouco de carinho.

Nos primeiros dias em que ficou conosco, tolerei e desculpei suas extravagâncias, menos a de andar descalço. Ele foi alojado no quarto ao lado do meu. Por diversas vezes, ao chegar em casa, encontrava Francisquinho deitado na minha cama, ouvindo meus discos ou mexendo nos meus livros.

Curiosa sua mania de ouvir música. Desprezava tudo o que era popular, só ouvia clássicos, eu já começava a formar a modesta coleção que era possível comprar, discos de setenta e oito rotações, com um repertório que ia das sinfonias de Beethoven, regência de Toscanini, que mais tarde se tornaram lendárias e difíceis de encontrar no mercado, até os pianistas de minha predileção.

Francisquinho não saía de casa. Passava o dia ouvindo música ou olhando o teto. Já morávamos em apartamento, ele não tinha terra para comer, de maneira que fiquei sem saber se perdera a fome ou se não comia por falta de oportunidade. No mais, até que não era glutão, comia pouco, apesar de minha mãe, seguindo instruções da irmã Zizinha, ter providenciado mingaus de aveia americana, bifes enormes com ovos estrelados e batatas fritas, tudo o que um rapaz geralmente aprecia mas que Francisquinho apenas beliscava.

Meu pai, que era esganado e adorava carne-seca, provocava em Francisquinho uma admiração crítica. Quando o prato do pai ia ficando vazio, Francisquinho providenciava a reposição da carne-seca ou do pirão de farinha que era o acompanhamento preferido por ele. Não percebia a gozação do sobrinho, fartava-se de carne-seca e fartava Francisquinho de alguma forma: ele só se sentava à mesa quando aquele tio extravagante, que gostava de andar de cueca e adorava carne-seca, estava em casa. No jantar, embora minha mãe o chamasse diversas vezes, ele não saía do quarto, onde continuava a ouvir música ou a mexer nos meus livros.

Gostava sobretudo de uma velha Bíblia, que eu comprara num sebo da sua São José, Bíblia que tinha as ilustrações de Gustave Doré e que, de alguma forma, exerceriam alguma influência na formação de seu visual posterior, quando se decidiu pelo ofício definitivo de Lúcifer Encarnado.

Apesar de minha boa vontade, tive aborrecimentos com o primo. Certa noite, voltava de um programa que terminara tarde e encontrei, no hall do edifício, alguns moradores irritados, organizando uma comissão para ir falar com minha mãe. O motivo da irritação foi fácil de descobrir: ali mesmo, no hall, eu podia ouvir o Concerto número 5, de Beethoven, tocado no volume mais alto de minha eletrola Philips.

Acalmei os vizinhos e subi. Encontrei Francisquinho no escuro, ouvindo meus discos. O concerto que Beethoven apressadamente dedicara a Napoleão não é dos meus preferidos mas era do especial agrado do primo. Acendi a luz, desliguei a eletrola e só então reparei que Francisquinho estava nu, em ereção, embora não estivesse se masturbando.

Outro aborrecimento foi pior e público, criou-me embaraço. Naquela semana estreava um filme sobre a vida de Chopin, uma coisa fantasiosa, e que por isso mesmo fazia sucesso. Francisquinho leu os jornais e ficou sabendo da existência desse filme, A song to remember, cujo título aqui no Brasil, como sempre, foi idiota: À noite sonhamos.

Começou a me encher, pedindo-me que o levasse. Não se sentia capaz de ir sozinho a um cinema que não fosse o Cinema do Russo, onde aliás entrava de graça porque o pai dele, Choca, tocava banjo nos bailes de Carnaval que se realizavam no único salão ao alcance dos rodeienses.

Eu tinha certa vergonha de andar com Francisquinho pelas ruas do bairro, a figura dele chamava a atenção, muito magro, desnutrido e descalço. Minha mãe insistiu para que o atendesse, não me custaria nada. Uma noite, estava na praça Saens Peña, minha namorada ficara gripada e não podia sair, resolvi telefonar para casa e marcar encontro com ele, na porta do Cinema Cariosa, na época, um dos melhores do Rio.

Francisquinho se recusava a andar de bonde ou de ônibus, disse que ia a pé. Dei-lhe as indicações do trajeto e esperei. Mais cedo do que supunha ele apareceu, tinha o passo ligeiro e sábio. Mas apareceu descalço.

Eu estava interiormente preparado para esperar mais tempo, na suposição de que ele se perderia pelos caminhos de uma cidade que não conhecia bem. Mas não podia imaginar que me aparecesse descalço, os pés magros e achatados saindo das calças de gabardine verde-oliva do meu uniforme do CPOR. Como era mais alto do que eu, as calças batiam-lhe nas canelas, também magras, destacando a nudez descarnada dos pés.

Reprovei-lhe o uso de minhas calças, mas nada falei dos pés descalços. Comprei os dois ingressos e tentamos entrar. O porteiro fez cara alarmada, chamou o gerente, que para fazer alguma coisa em solidariedade ao porteiro, fez cara escandalizada. De jeito algum poderia deixar um sujeito descalço entrar num dos melhores cinemas da cidade, orgulho dos tijucanos, joia principal que ornava a coroa de glória da praça Saens Peña.

Entrei sozinho, pedindo que Francisquinho voltasse para casa e arranjasse uns sapatos em qualquer canto ou ficasse mesmo sem ver a vida, os amores, as músicas e as hemoptises de Cornel Wilde no papel de Frédéric Chopin.

Francisquinho parecia não ter se incomodado. Ouviu a espinafração em silêncio, sem ficar aborrecido, ofendido ou humilhado. Aparentemente, aceitou o conselho de voltar para casa.

Cinco minutos depois, mal começara o filme, percebi um vulto que se aproximava. Havia uma cadeira vazia ao lado e nela sentou-se Francisco de Assis Rodano, descalço e deslumbrado com os acordes iniciais da Polonaise número 1, tocada por José Iturbi, um pianista que aparecera em Hollywood naqueles anos e que se tornaria uma das obsessões de Francisquinho.

Embora desvalorizado nas grandes gravadoras da época, esse José Iturbi que fumava cachimbo e interpretava a si mesmo em filmes de série B, conseguira gravar não sei onde a trilha sonora do filme dedicado a Frédéric Chopin. Francisquinho me obrigou a uma extravagante peregrinação pelas casas de discos da cidade, até que achei um doze polegadas com a Polonaise número 1, a mais sovada da praça. Levou-o consigo.

Anos mais tarde, quando tia Zizinha morreu em odor de santidade, fui a Mendes para seu velório e enterro. Não vi Francisquinho por perto, ele que fora criado desde recém-nascido pela tia, ele que a amava acima de qualquer coisa neste mundo criado pelo Outro, seu futuro rival.

Noite funda, noite de velório, beatas em torno do caixão rezando um rosário atrás de outro, de repente um som varou a noite de Mendes, a noite do velório de Maria das Graças de Assis, vulgo Zizinha, minha tia, tia de Francisquinho. Do velho gramofone que Francisquinho ganhara de meu pai, e que era a ornamentação principal de seu quarto, saía o som arranhado de um disco tocado mil vezes: a Polonaise número 1, de Frédéric Chopin, interpretada e assassinada pelo pianista José Iturbi.

 

Além da mania de ouvir meus discos, desprezando todas as manifestações, boas ou más, da música popular (detestava sobretudo os sambas, abrindo exceção para alguns chorinhos), Francisco de Assis Rodano fuçava meus livros e os do meu pai, preferindo os que tivessem a ver com religião.

Selecionava dentro da seleção. Na Bíblia, que abria como que por acaso, cumprindo sem saber um dos conselhos dos especialistas, ele sempre mergulhava no escatológico, nos profetas maiores do Antigo Testamento, no Apocalipse de São João, nos trechos onde o fim do mundo é anunciado como próximo, nos endemoniados, coisas assim.

Sem escolaridade, mal sabendo ler e escrever, era espantosa a sua agilidade mental. Fazia elipses fulminantes e gostava de inquirir sobre assuntos que percebia mal resolvidos - que são quase todos em se tratando de religião.

Certo domingo, chegava eu do estádio do Fluminense, onde assistira a uma goleada em cima de um combinado argentino. Estava excitado com a vitória, queria comentá-la com alguém lá em casa - e todos haviam saído, menos Francisquinho, que ficara lendo no meu quarto. Mal cheguei, antes mesmo de abrir a boca, ele abriu a dele com uma pergunta inesperada:

- Afinal, esse tal de Jesus Cristo existiu mesmo?

Não havia resposta para dar, mesmo que a tivesse. Tampouco adiantaria indicar leituras como o Renan, o dr. Strauss, Salomon Reinach, nem os estudos que começavam a ser publicados sobre os manuscritos do mar Morto - que faziam furor nos círculos especializados. Fiz uma coisa abominável, pegando Francisquinho no único flanco em que o sabia vulnerável:

- Pergunte a tia Zizinha.

Ele abaixou a guarda e voltou à leitura. Afinal, se havia no universo um Deus, se tudo o que existe, existiu e existirá dependesse de uma única entidade, para Francisquinho esse onipotente ser era tia Zizinha, tia muito mais dele do que minha. E que era notável, no seio da família, em Mendes e ao longo dos trilhos da Central do Brasil pela sua piedade, tanta e tamanha que, ao morrer, o fez em odor de santidade - expressão comum nos livros beatos que descrevem a vida dos santos.

Tia Zizinha (Maria das Graças de Assis), desde a infância, era pia e dada a devoções. Chegou a ser noiva de um Victor, telegrafista da Estação de Mendes, mas logo desistiu de casar. Aguentou sozinha a pesadíssima barra de seu pai, que enviuvou cedo e partiu para dois casamentos seguidos, fazendo novas filhas mas ficando em estado de viuvez quase permanente.

Ajudou - e como! - na educação das três filhas seguintes de Acácio Nunes de Assis. E apesar de sua dedicação e exemplo, não conseguiu que elas evitassem a senda do pecado. Nina, a mais velha, engravidou de Angimestro Saraiva, o mesmo que tinha pavor de defuntos, qualidade que de alguma forma passou para a filha Teresa, aquela que aos oito anos, num Carnaval antigo, estava bebendo água da moringa quando viu dentro de casa, perto dela, um mascarado. Disse “ui!” e mais não disse pelo resto da vida.

Jandira, a mais nova, foi a única que não teve tempo para fazer aquilo que em Rodeio chamavam de “besteira”: ao contrário das irmãs, morreu virgem. E, como as irmãs, tísica.

Da irmã Nair, a do meio, Maria das Graças, que já era Zizinha para sempre, herdou Francisquinho, tido de Choca, nos rescaldos de um Carnaval e nos primórdios da tísica que a levou, como as irmãs, antes dos trinta anos. E Francisquinho não conheceu outra mãe, outro ser a quem dedicasse, a seu modo, amor e respeito.

Foi pensando em tão complicada genealogia de seres e fatos que desviei a pergunta dele sobre Jesus Cristo para quem, de fato, poderia respondê-la. De uma forma ou outra, acredito que Francisquinho desde aquela época tinha opinião formada não apenas sobre Jesus Cristo mas sobre outros e variados assuntos. No que diz respeito a Jesus Cristo, ele apenas esperou que sua tia Zizinha morresse (em odor de santidade) para assumir sua mais grave e definitiva opção, que era o partido do Demônio, e o fez de forma inicialmente confusa, tateando, até que encontrou uma brecha em si mesmo e principalmente nos outros, quando então encarnou o próprio Lúcifer, o Anjo Decaído, o Rival do Outro.

Antes, porém, ele descobriria, em seu devido tempo, a Lança de Longinus, que, juntamente com o boi Papelão, foi o fim de suas preocupações e o início de tudo.

 

Nessa época, eu já me iniciava no jornalismo, seguindo mais ou menos por acaso, e com absoluta falta de vocação e vontade, a profissão do meu pai. Uma noite, cheguei em casa com a correspondência que haviam deixado na redação. Nada de pessoal: eram prospectos, material de divulgação dos ministérios, aquilo que mais tarde seria chamado de release.

Por distração, levei a correspondência para o quarto, não a deixando na escrivaninha do pai, como o fazia habitualmente. Ora, tudo o que entrasse no meu quarto, talvez por herança havida ainda nos tempos da perereca, Francisquinho considerava de sua propriedade e direito.

Abriu as cartas, leu os folhetos sem interesse, até que subitamente ficou pálido de espanto - como o poeta que abria a janela para ouvir as estrelas. Era um pequeno folheto intitulado: A LANÇA DE LONGINUS SALVARÁ A HUMANIDADE.

É certo que, até então, Francisquinho nunca tinha ouvido falar em Longinus e em sua lança. Ficou sabendo que Longinus era o nome do soldado romano que, ao pé da cruz, no Calvário, quis se certificar de que o condenado realmente estava morto. E com sua lança trespassou o peito do crucificado, donde correu - segundo Lucas, o evangelista que era médico - sangue e água, sinal de que o Filho do Homem entregara a alma a seu Pai.

Até aí, nada de especial com a lança e com Longinus. Mas o prospecto que chegara às mãos de Francisquinho narrava a estranha e complicada trajetória dessa lança especialíssima que havia trespassado o coração de um Deus. Quem a possuísse teria poderes sobrenaturais, tão sobrenaturais que a própria natureza nada podia contra ela. Entre outras coisas ordinárias e extraordinárias, ela podia promover o optimus climaticus. O folheto não explicava satisfatoriamente o que seria esse optimus climaticus - aliás, simplesmente não explicava, dando a entender que todo mundo sabia o que era.

E além do optimus climaticus, a Lança de Longinus promovia (ou não promovia, de acordo com o estado de espírito de seu possuidor) granizos, secas, geadas malignas, eras glaciais, erosões, fracionamento de continentes, sedições civis e militares, catástrofes inimagináveis, incluindo entre essas catástrofes O Grande Chaos, bem mais terrível do que qualquer outro caos sem o h. E mais: a Lança de Longinus transformava pedras em pães “mediante a ação química e biológica dos cem sais específicos da Boa Chuva adicionada ao solo”. Do mesmo modo, poderia fazer o contrário, transformando pães em pedras.

Francisquinho nada me perguntou sobre o assunto. De certa forma, eu me constituíra não em seu oráculo (ele nunca aceitaria ninguém nessa função), mas em seu explicador mais à mão das coisas inexplicáveis que nem ele nem eu poderíamos explicar.

Para um parente de Rodeio, uma temporada no Rio, fosse em quaisquer circunstâncias, equivalia a um curso de mestrado em Harvard, um pós-doutorado em Oxford. Apesar de ser o primeiro a reconhecer que, em nada sabendo, eu sabia mais do que ele, Francisquinho nada comentou sobre o que acabara de ler. Notei apenas que ele separou o prospecto, colocou-o na pequena sacola onde guardava suas poucas roupas e coisas.

Quando, anos mais tarde, comecei a receber notícias de suas façanhas, lembrei desse folheto. Como as atividades sobrenaturais começavam a preocupar minha mãe, que depois da morte de tia Zizinha passou a considerar Francisquinho “um caso perdido”, procurei tomar informações sobre essa lança e esse Longinus. Fiquei sabendo que seu último depositário fora um sujeito em Curitiba, bancário de profissão, que a recebeu do arcanjo Miguel, em condições meio nebulosas - para não dizer que eram nebulosíssimas.

Com a Lança de Longinus, o arcanjo Miguel, o mesmo que vencera Lúcifer na batalha decisiva pelo poder no Céu e na Terra, dera ao bancário a terrível notícia de que ele, bancário na praça de Curitiba, era a nova encarnação do Cristo Salvador e que lhe competia, além de deixar os guichês miseráveis de um estabelecimento que explorava o “excremento do Demônio” (alusão de santo Agostinho ao dinheiro), partir em pregação por todas as terras e povos anunciando o verdadeiro evangelho que os padres e pastores haviam corrompido.

Não consegui apurar como esse bancário chegou ao nome de Inri Cristo. Inri era, segundo a tradição, as iniciais da inscrição que Pôncio Pilatos mandou colocar em cima da cruz, indicando a quem interessar pudesse que o crucificado ali pendente era Jesus de Nazaré, rei dos judeus - ironia de um romano cético, que perguntou ao condenado o que era a verdade e nem esperou pela resposta.

Inri ficou sendo o nome do novo Cristo. Vestiu uma túnica branca, deixou crescer a barba e ficou realmente um pouco parecido com o Cristo que nos foi legado pelos artistas da Renascença. Partiu pelo mundo afora criando encrencas com o poder temporal e espiritual das cidades, vilas e aldeias que visitava.

No Maranhão, interrompeu uma missa solene rezada pelo arcebispo local, entrou pela catedral com um chicote de couro e começou a espancar beatas, sacristãos e o próprio arcebispo, que acabou se refugiando na delegacia mais próxima, onde registrou queixa contra o novo Messias.

Preso, Inri Cristo conseguiu convencer os guardas de que o fim do mundo estava próximo e assim conseguiu fugir, desde que se comprometesse a não começar o fim do mundo justo pelo Maranhão, que na opinião dos guardas não merecia isso.

Criou muitas e terríveis confusões esse Inri Cristo, possuidor da Lança de Longinus, da qual, aparentemente, nunca se utilizou para fins particulares, pois o que levou de porrada pelas terras que palmilhou não foi mole. Daí se concluiu que, na próxima e final refrega entre o Bem e o Mal, representados por Deus e Lúcifer, a Lança de Longinus ficaria disponível até que a formidável disputa fosse terminada.

Como um tipo de luta de tamanha transcendência não termina nunca, a lança continuou dando sopa, sopa que terminou quando Francisco de Assis Rodano dela tomou conhecimento.

Evidente que essa seria apenas a metade de sua iniciação profissional como encarnação de Lúcifer. A outra metade, tão complicada como a primeira, deveu-se ao boi Papelão, que estava entrando em Rodeio, com seu passo breve e determinado, amarrado ao ônibus vermelho e amarelo do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

 

                   BIOGRAFIA E PAPEL DE PAPELÃO

As desgraças do El Asombro de Damasco, se por um lado terminaram em Rodeio com sua final desgraça, de outro tiveram cronologia extensa e complicada. A começar pelo próprio boi Papelão, que nada devia estar fazendo ali, amarrado no ônibus vermelho e amarelo, com seu passo breve e determinado.

Ao contrário da lona, do ônibus e dos artistas que constituíam as atrações principais - uma das características do Asombro de Damasco é que todas as suas atrações eram indistintamente principais -, Papelão era apenas um agregado, não pertencia à trupe, fora cooptado pelo diretor-geral, que também não era diretor-geral, pois o circo não chegava a ter uma direção, geral ou não.

Ano e meio atrás, o Asombro de Damasco atravessava uma de suas hereditárias crises financeiras. Estava armado em Paracambi, o único toureiro disponível, um colombiano que nunca fora toureiro mas se fazia passar por toureiro, fora obrigado a se evadir da noite para o dia, estava sendo procurado pela polícia como responsável pelo furto de imagens da igreja local.

Bons tempos aqueles em que o Asombro de Damasco tinha touro e toureiro! Com a fuga forçada do colombiano, o touro em atividade, um tal de Ventania, recusou-se a continuar participando das farsas montadas no picadeiro do Asombro de Damasco.

Nos tempos do colombiano, por qualquer motivo que nunca chegou a ser apurado, Ventania topava participar com boa vontade do simulacro de uma tourada, coisa que nem o colombiano, nem Ventania, nem o ex-diretor-geral nem o atual, nem ninguém em Paracambi ou vilas adjacentes jamais tinham visto ou podiam imaginar como era ou, pelo menos, deveria ser - se é que era realmente alguma coisa.

Sem colombiano para o tourear, Ventania decidiu que jamais seria toureado por alguém, fosse quem fosse, colombiano ou paracambiano, resultando de sua decisão que não adiantou o Asombro de Damasco promover um ajudante de palhaço a toureiro. Nem o antigo sacristão da Matriz Senhora das Dores de Paracambi, um tal de Casimiro Fernandes, que também fora sacristão em Rodeio, onde levou uma navalhada na cara, briga por causa de mulher, nem mesmo o valente local de maior evidência, que tinha a vantagem suplementar de ser espanhol, um tal de Arranca, que nesse tempo tentava abrir um bar na rua principal de Paracambi.

Ventania botou todos a fugir, chegou a ferir gravemente o ex-sacristão, que teve a coxa furada e parte da bunda esfolada por um de seus chifres. Como já tinha a cara lanhada por uma navalha, e antes que se desintegrasse de todo, Casimiro Fernandes tomou a decisão de emigrar definitivamente, só retornando a Rodeio mais tarde, mas em condições e circunstâncias especialíssimas.

Em face da inesperada e obstinada decisão do touro, o ex-gerente-geral do Gran Circo Tauromaníaco tomou uma resolução também obstinada: vender o touro, não só para ficar livre dele mas obter algum dinheiro para pagar a dívida contraída com o hospital que tratara a coxa perfurada e a bunda esfolada do ex-sacristão.

Vendido por uma miséria: Ventania tinha a fama de valer mais, era (ou devia ser) bom reprodutor, atributo que nos seus tempos circenses não tivera oportunidade de demonstrar, o Asombro de Damasco viu-se obrigado a ter de arranjar ao mesmo tempo um touro e um toureiro.

Bem ou mal, arranjar um touro foi mais fácil. O circo deixou Paracambi, subiu para Miguel Pereira mesmo sem touro e toureiro, foi para Vassouras e terminou em Mendes, onde funcionava o matadouro que empesteava a cidade com seu cheiro de couro, de vísceras expostas, de sangue coalhado.

Em Mendes, o diretor-geral foi destituído de suas gerais funções, a caixa da trupe descera a nível insuportável, a fome rondava até mesmo as principais atrações do circo que, sem touro e toureiro, nem eram mais principais nem atrações. No lugar do gerente-geral fora empossado, ou melhor, empossara a si mesmo novo diretor-geral, que desde tempos imemoriais era o único que sabia fazer subir e descer a lona do Asombro de Damasco - sendo essa, por sinal, e por muitos anos, sua única e bastante função.

(Mais tarde, tendo o circo perdido a lona, perdeu também o diretor-geral e ficou sem direção alguma, aliás, nada havia para dirigir, nem mesmo o ônibus, que também emigrara para a Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini.)

Foi mais ou menos nessa vexatória fase que o Asombro de Damasco adentrou Rodeio, dirigido genericamente por um colegiado que nada dirigia. E ainda com os resíduos de lona, o encardido ônibus vermelho e amarelo que a Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini devolveu porque tinha a fama de dar azar. Pairando sobre tudo e todos, um diretor-geral ad hoc, designado expressamente para dirigir a entrada e se possível a permanência do circo na cidade. E, mais ou menos no mesmo nível de importância, o boi Papelão, que ainda não fora devidamente testado desde que fora roubado do Matadouro de Mendes.

Como tudo em Rodeio e adjacências, formaram-se duas opiniões a respeito do roubo do boi. Em Mendes diziam que, uma vez em cada dez anos, um boi recebia o aviso sobrenatural para evadir-se do cercado onde, com o resto da boiada, devia esperar a hora do abate.

Sem se saber como, na véspera da terceira quinta-feira de cada mês (quinta-feira era o dia da semana dedicado ao abate), um determinado boi começava a se esfregar na cerca, e o fazia com tal obstinação que acabava abrindo a brecha por onde se evadia.

Curiosamente, apesar da brecha aberta, apenas um boi conseguia fugir, os outros nem tentavam, resignados que estavam a seguir o itinerário traçado para eles, que eram os açougues de Barra Mansa, Barra do Piraí e Vassouras.

Em Rodeio, a história foi contada de outra forma e com mais detalhes. Segundo os rodeienses, o espanhol Arranca, depois de falir na tentativa de abrir um bar na rua principal de Paracambi, e de ter sido posto em fuga pelo touro Ventania, sentiu que era hora de arranjar um destino definitivo e incorporou-se ao Asombro de Damasco, inicialmente como candidato a toureiro, mais tarde como consultor técnico de touradas, das quais pouco ou nada entendia, a não ser de como fugir de um touro.

Falido como comerciante, Arranca revelou tino comercial e artístico no circo. Convenceu os membros da trupe que, sem um touro ou alguma coisa parecida com touro, um circo que se dizia tauromaníaco, além de trair suas origens e comprometer sua credibilidade, teria poucas possibilidades de atrair e convencer o respeitável público espalhado ao longo dos trilhos da Central do Brasil.

Arranca era cabeludo, atarracado e tinha uma força descomunal. Anos antes, por ocasião de uma Feira Agropecuária em Barra do Piraí, fizera uma exibição histórica do poder de seus músculos, arrancando com as mãos nuas, sem auxílio de alavanca ou qualquer outro instrumento, os trilhos da mesma Central do Brasil, solidamente presos nos dormentes por enormes parafusos de quinze centímetros de comprimento.

Daí que seu nome (diziam que era Jesus Paredes - nome improvável para um espanhol e muito menos para um homem posto a correr pelo Ventania), a partir da façanha, dizem que presenciada, entre outros, pelo próprio prefeito de Barra do Piraí, passou a ser Arranca-Trilhos, mais tarde abreviado para o bastante Arranca que o designava e o definia.

Integrando-se ao Asombro de Damasco, Arranca dava-lhe alguma autenticidade, pois era espanhol mesmo, tendo vindo para o Brasil logo depois da Guerra Civil, onde - segundo constava - matara um padre em Segóvia.

Outra façanha importante de Arranca na vida, em geral, e no circo, em particular, foi ter ensinado a Francisco de Assis Rodano, entre outras coisas, como a arte de tourear que ele próprio não sabia, o hino “Cara ao sol”.

Quanto ao boi Papelão, Arranca estimulou a versão de que ele próprio o roubara na noite de uma quarta-feira, véspera das quintas-feiras quando o gado era abatido do Matadouro de Mendes. Seria uma forma de vingança contra o touro Ventania, que o pusera a correr e arranhara sua imagem de homem forte que arrancava os trilhos da Central do Brasil, trilhos míticos, trilhos bem-aamados que ligavam Barra do Piraí, Rodeio e Mendes ao universo.

Roubando um boi, que era anônimo, Arranca não apenas se vingava de um touro que o humilhara, mas preparava sua segunda investida na arte da tauromania que até então lhe fora indiferente. Ele, homem de força descomunal, que matara um padre em Segóvia, durante a Guerra Civil, que arrancara com as mãos nuas um trilho da Estrada de Ferro Central do Brasil, ele que conseguira roubar um boi destinado ao abate do Matadouro de Mendes, precisaria testar a sua habilidade na arte de tourear e, contraditória mas improvavelmente, demonstrar a ferocidade do boi que roubara e destinara à glória de ser a maior das principais atrações do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

Foi quando apareceu, rondando a esfarrapada lona que se recusava a obedecer às enferrujadas roldanas que eram patrimônio da trupe, a figura magra, ossuda e descalça de Francisco de Assis Rodano.

Passara uma temporada na casa de sua tia, no Rio, trazia na sacola alguns discos complicados cujas músicas não interessavam a ninguém, e um prospecto mal impresso com as aventuras de um tal Longinus. Viera a pé, da Tijuca, no Rio, até Rodeio, seguindo o mesmo itinerário dos trilhos da Central do Brasil.

Era, sem saber, um andarilho. Quando tomou conhecimento de que a história estava cheia de andarilhos do Outro, ele decidiu que seria um andarilho do Demônio. Fez um estágio nessa condição mas logo descobriu que não era um simples andarilho e sim o próprio Demônio.

Começava a tomar forma, em sua magra figura, o papel que mais tarde encarnaria, o de Rival do Outro. Mas antes de assumir papel tão transcendente, aceitaria outros papéis. E em tantos e extraordinários papéis pensou e sonhou que, ao ver um boi pastando ao lado daquilo que seria o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco em sua temporada rodeiense, teve a inspiração de chamar o boi para perto de si.

O boi obedeceu e formou, a partir daquele momento, uma dupla operacional e amistosa que daria glória a todos, ao circo, ao boi e ao futuro Rival do Outro em seu estágio preparatório de toureiro - o mais valente da serra do Mar -, tal como foi descrito, um mês depois, por Corintho da Fonseca, editorialista principal e único de A Voz da Serra. Ao chamar o boi para perto de si, Francisco de Assis Rodano deu-lhe um nome e um destino: chamou-o de Papelão.

Resumindo: a decadência do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco teve diversas causas e um único resultado. As causas foram sumariamente enumeradas. O resultado fora a ainda triunfal entrada em Rodeio. A trupe conseguira recuperar o ônibus vermelho e amarelo que a Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini recusou, ônibus no qual vinha amarrado o boi que ainda não tinha nome, até que Francisco de Assis Rodano, numa surpreendente premonição, chamou-o de Papelão e todos concordaram que, se o boi merecia ter um nome, só podia ser aquele.

O circo ainda dispunha, também, dos vestígios de uma lona que um dia fora esverdeada e havia muito adquirira uma terminal cor de burro quando foge. Os dois bens, em seu devido tempo, mais tarde abandonariam o comum destino, razão pela qual o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco julgou que, com aquela temporada em Rodeio, nada mais tinha a fazer no mundo. E acabaria, ou melhor, se dispersaria em duas metades, uma ficando com os restos da lona e fundando uma tenda espírita ambulante. A outra ficando com o ônibus vermelho e amarelo, que conservou as cores da bandeira espanhola mas foi finalmente usado para transportar os operários da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, operários que a fábrica queria eliminar de seus quadros e para isso apelava para a fama de azar que, como o boi Papelão, o seguia com desinformada obstinação.

 

                 INÍCIOS DA VIDA PÚBLICA

Ao entrar em Rodeio, o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco já estava tão ruim das pernas, de lona e de touro, que não tinha nem programação específica, nem atrações fixas e determinadas. Tirante o núcleo de abnegados que administravam o ônibus vermelho e amarelo, os fiapos da lona sobrevivente, algumas madeiras que formavam as arquibancas e o boi Papelão, que às vezes pertencia ao circo e às vezes pertencia ao Arranca, as coisas se arrumavam pelas necessidades de cada dia.

Bastava um breve intervalo na desarrumação geral para que surgisse uma espécie de ordem, bastante desordenada, mas suficiente para dar seguimento à lei maior dos circos: a bagunça tem de continuar.

Ninguém era dono de nada (afora o Papelão que não era mas parecia ser do Arranca), todos eram donos de tudo. A espinha dorsal dos espetáculos era uma pequena charanga, que já fora brilhante e agora se resumia a um clarim, a um trombone de vara (mais vara do que trombone), a um sax que alguns diziam ser tenor e outros barítono, aos restos de uma bateria, a um microfone com os respectivos amplificadores para anunciar as hipotéticas atrações, a uma húngara de idade indefinível que ficava na bilheteria vendendo os ingressos para os poucos interessados e, fechada a bilheteria, fazia um número muito apreciado de adivinhações: lia numa bola de cristal (que não era de cristal mas um globo de vidro que o ajudante de palhaço roubara de um poste de luz da estação de Humberto Antunes.)

Não fazia muito tempo, o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco tivera uma atração de enorme sucesso em Paracambi e adjacências. Um chinês que era apresentado como “autêntico”. Apesar de cearense de nascimento e formação, esse chinês autêntico não conseguia fazer mágicas que pudessem ser consideradas autênticas. Mas era veado, furiosamente veado, e tornou-se responsável pela proliferação da veadagem ao longo dos trilhos da Central do Brasil que, até então - diga-se a bem da verdade -, eram impermeáveis a esse tipo de novidade.

A grande atração, essa sim, autêntica desde a fundação, que durou enquanto durou o Asombro de Damasco, era o velho e prestigiado palhaço titular, o Gargalhada, possuidor de uma crônica ascendente e de uma carreira decadente, que se tornaria mais decadente com o advento do Homem-Montanha, cujo número extasiava até mesmo aqueles que não gostavam de circo.

Esse Homem-Montanha era um esforço de imaginação do ex-diretor-geral que aceitou Arranca na trupe e logo o promoveria a Hércules da Mantiqueira (seu número era romper umas correntes com elos presos por um mecanismo que conseguia acionar sem que os espectadores percebessem). Arranca iria acumular essa função com a de eventual toureiro.

Havia também uma atração - essa sim - que fazia sucesso à parte. Era o tenor Zuth (com th, como Corintho), que na verdade chamava-se Ênio Jampércio Caldas, rapaz alto, bonito, os cabelos ensopados de brilhantina. Dizia-se estudante de direito e parece que o fora. Vivia isolado do circo, acompanhava a trupe à distância, só aparecia na hora em que devia cantar. Era homossexual mas discreto, discrição que o acompanhava em tudo, menos na hora em que entrava no picadeiro do Asombro de Damasco e, aí sim, desmunhecava numa veadagem acumulada desde criança, quando, segundo uma lenda vigente, havia pedido à sua mãe que lhe cortasse a piroca.

Seu repertório era assombroso como o próprio Asombro de Damasco. Incluía números populares e clássicos - ambos faziam furor. Nos populares, o forte eram os boleros da época, “Perfífida”, “Nosotros”, “Frenesi”, “Bejame mucho”, “Solamente una vez”, “Una Mujer”, “Eclipse”. Nos clássicos, incluía “Granada”, “Malagueña”, “Tão longe de mim distante” (de Carlos Gomes) e, por mais que pareça incrível, “Babalu”.

Contudo, era outro o número de maior sucesso, que sempre provocava bis - em Barra do Piraí, certa vez, ele chegara a cantar cinco vezes seguidas. Desfalcado do touro Ventania e antes da adaptação do boi às exigências da programação, o circo tinha em Zuth aquilo que Corintho da Fonseca considerou, em editorial, de highlight.

Era uma canção feita para chorar os mortos (poucos) e os desaparecidos (muitos) da Revolução de 32, quando São Paulo, contrariado com os rumos da revolução anterior, a de 30, rebelou-se contra o governo central de Getúlio Vargas. O lance guerreiro, em si, ficou limitado às tomadas de posição dos beligerantes. Mais ou menos por acordo entre as partes, descarrilharam uma velha locomotiva num pequeno túnel da serra da Mantiqueira, as tropas bivacaram uma de cada lado para evitar derramamento de sangue - no Brasil os fastos revolucionários procuram não derramar sangue. Até que veio a paz e tudo ficou na mesma.

Apesar da fobia nacional ao derramamento de sangue, a Revolução de 32 provocou fatos importantes. Um deles foi a chegada de Angimestro Saraiva, inicialmente cabo da Polícia Militar do Pará, que desde a Revolução de 30, quando integrou o Exército do Norte comandado por Juarez Tavora, estava para chegar vitorioso ao Rio mas o máximo que conseguiu foi chegar a Rodeio como derrotado.

Tão derrotado que em Rodeio ficaria para sempre, casando-se com Nina, irmã de Nair, a mãe de Francisquinho. A vida conjugal de Saraiva e Nina foi marcada por dois acontecimentos: a noite em que Nina jogou uma chaleira de água fervendo em cima do marido por motivos que nunca foram devidamente explicados, e o nascimento de Teresa, a que bebendo água perto da moringa, ao ver um mascarado durante um Carnaval, fez “ui!” - e ficaria muda para o resto da vida.

O outro fato provocado pela Revolução de 30 na crônica do circo foi o sucesso lítero-musical que encerrava as apresentações de Zuth no Asombro de Damasco:

 

               Na serra da Mantiqueira,

               Sob a fronde da mangueira

               Que ela em moça viu plantar,

               Sentadinha no seu banco,

               Cheia de cabelo branco,

               Mãe Maria vai rezar...

 

               Dos amores do passado,

               Só lhe resta o filho amado

               Que lhe dá felicidade...

               Ele é todo o seu encanto

               Da alegria o doce canto

               Da longínqua mocidade...

 

               Eis, porém, que veio a guerra

               Abalando toda a serra

               O rugido do canhão,

               E a velhinha amargurada,

               Vê o filho na estrada

               Se sumir num batalhão...

 

               Uma tarde, ao sol poente,

               Ela escuta de repente,

               A voz meiga do rapaz,

               Que lhe diz tal como em vida:

             “Brevemente, mãe querida,

               Lá no céu me encontrarás!”.

 

Embora o teatro principal das operações revolucionárias e da canção fosse a serra da Mantiqueira, e não a serra do Mar, ninguém em Rodeio, Paracambi, Humberto Antunes, Mendes, Mário Belo, Scheid e Palmeiras podia ouvir de cara enxuta e coração duro a canção interpretada por Zuth. As mulheres, porque se viam como futuras Mães Marias perdendo os filhos na voragem das revoluções dos anos 30. E os homens, porque ficavam orgulhosos daquele “rugido do canhão” que abalara a serra, embora a serra fosse outra - e prudentemente mais distante.

Das duas revoluções dos inícios dos anos 30, o único fato que realmente se tornaria notável em Rodeio e adjacências seria a chegada do cabo do Pará, Angimestro Saraiva, que de seu passado nos campos de batalha adquirira o pavor de defuntos, pavor que o acompanharia até que, ele próprio, se tornou defunto, muitos e desafortunados anos mais tarde.

A programação do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco já conhecera dias e noites melhores. Tudo no mundo é provisório, mas nada que se conheça nos fastos humanos foi tão provisório quanto a função que ali exerceria O Homem Que Não Tem Medo da Morte.

Aconteceu na temporada anterior à da chegada do circo a Rodeio, ou seja, na primeira e única apresentação do Asombro de Damasco em Palmeiras, vilazinha situada pouco antes do Túnel 11, de cuja monstuosa boca surgem os primeiros caminhos e atalhos que levam a Rodeio.

O circo levantara sua esfarrapada lona, armara suas arquibancadas, deixara Papelão sem comer e beber durante dois dias para que, na hora de sua entrada em cena, apresentasse alguma ferocidade, mas não muita, o próprio Arranca providenciava para que o boi ficasse mais esperto mas não ao ponto de ameaçar um vexame para ambos, touro e toureiro. Como ninguém nunca tinha visto uma tourada, era fácil acreditar que Arranca, já conhecido como O Homem-Montanha, acumulasse o título de Hércules da Mantiqueira e, eventualmente, depois do advento de Papelão, a função de toureiro.

Falava português com sotaque. No picadeiro, quando fingia provocar a cólera de Papelão, apelava para a língua materna e falava espanhol mesmo - o que era uma atração suplementar do circo e fazia muito sucesso no público e no boi, que apesar de meio abobalhado, ficava mais abobalhado quando era incentivado pelas fatais palavras: “Ei, toro!”. E a variante que Arranca inventara por conta própria: “Ei, toro de mierda!”.

 

Em Palmeiras, estava o Asombro de Damasco preparando-se para fazer subir sua esfiapada lona quando ali se apresentou um paraibano ou quase isso, um tal de Severino Ananias, que tinha uma novidade a seu favor: um book, que se resumia num ensebado caderno com fotos e recortes de jornais atestando que Severino Ananias, vagamente paraibano, não tinha medo da morte.

Seu número era complicado: ele surgia de uma caixa forrada de veludo azul, vestido com uma pele de onça, nu da cintura para cima, e desafiava os espectadores a enfiarem um punhal na sua barriga. O punhal, que ele trazia num estojo especial, também forrado de veludo, só que vermelho, parecia fidedigno. A fim de dirimir dúvidas, ele oferecia a arma à plateia, que todos a examinassem. Só depois disso, e com o testemunho dos mais descrentes, Severino Ananias intimava que tentassem enfiar o punhal em sua barriga.

Impossível que houvesse truque ou marmelada no dramático número. Os espectadores variavam de cidade em cidade, de vila em vila, todos faziam força para furar a barriga do homem que não tinha medo da morte. Ele prendia a respiração, estufava a barriga de tal maneira que ela ficava como um tambor, impenetrável, resistia aos golpes dos voluntários, que inicialmente temiam um jorro de sangue e não faziam muito esforço para testar a barriga do desafiante.

Barriga que apresentava alguns locais esfolados em torno do umbigo, alguns com marcas superficiais de sangue, outros já em cicatrização. Depois das primeiras tentativas, todos ousavam cada vez mais. O homem que não tinha medo da morte resistia às punhaladas dando risadas ou, o que era uma extravagância à parte, cantando fanhosamente pelo nariz o “Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero mamar”.

Pois em Palmeiras, na noite de sua estreia que foi também a de sua despedida, alguma coisa não funcionou no esquema do vagamente paraibano Severino Ananias. Consta que, logo na primeira tentativa, ele ia dando um espirro na hora em que mais precisava de concentração para estufar a barriga, até que ela se transformasse num tambor inexpugnável.

Uma das punhaladas entrou pelo umbigo e do umbigo saiu um jorro vermelho que fez todo mundo ficar pálido, inclusive e principalmente o homem que não tinha medo da morte.

O espetáculo em Palmeiras terminou nesse instante, houve complicações, tiveram de remover Severino Ananias para Vassouras, a polícia não se meteu no meio, respeitando o caráter cultural de um espetáculo circense, mas Corintho da Fonseca, titular da delegacia mais próxima, a de Rodeio, espalhou para quem quisesse ouvir ou mesmo que não o quisesse que se a ocorrência pertencesse à sua jurisdição, ela, ocorrência, seria apurada, rigorosamente, doesse a quem doesse, embora reconhecesse que em Severino Ananias doesse mais.

O Asombro de Damasco ficou alguns dias em Palmeiras, na esperança de que o homem que não tem medo da morte resistisse aos padecimentos e voltasse a integrar a trupe. Mas um mensageiro vindo de Vassouras trouxe a notícia de que Severino Ananias estava mal, mal mesmo, instalara-se em seu destemido organismo que não temia a morte uma infecção generalizada, dificilmente escaparia - o jeito foi o Asombro de Damasco arriar apressadamente a lona, amarrar Papelão no encardido ônibus vermelho e amarelo e sair de Palmeiras às pressas, galgando o péssimo caminho que passa por cima do túnel 11 e chegando a Rodeio disposto a não aceitar, em hipótese alguma, a adesão de novos voluntários, em especial os que não temiam a morte.

Foi justamente em Rodeio que o Gran Circo Tauromaníaco aceitaria um novo voluntário na pessoa de Francisco de Assis Rodano, que lhe daria, além de alguns problemas, dias de aborrecimento e glória.

 

Francisco de Assis Rodano chegou a Rodeio a pé e descalço. Nunca houve um acordo sobre quantos dias o futuro Rival do Outro levou para ir da Tijuca, no Rio, ao descampado onde o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco estava armando sua lona esfiapada e suas arquibancadas combalidas. Pela linha férrea, a distância entre os dois pontos - o da saída e o da chegada - seria aproximadamente de uns oitenta quilômetros.

É possível que Francisco de Assis Rodano tenha feito o trajeto numa única arrancada, para isso tinha longas pernas, pés firmes e grandes que aderiam ao chão, fosse ele de asfalto, cimento, terra ou cascalho. Era, por vocação, e não ainda por necessidade, um andarilho. Passava dias sem comer e, segundo ele mesmo dizia, conseguia dormir em pé e andando.

É possível, também, que sua chegada a Rodeio não fosse o ponto final de sua caminhada em busca de um destino. Ele ia a qualquer canto e foi o acaso que lhe armou a cilada: na cidade em que vivera alguns anos, justo ali achou um motivo para ficar, pelo menos até que encontrasse coisa melhor.

Ao sair do Rio, pensara, inicialmente, em ir para Mendes, ver sua tia Zizinha, não podia passar muito tempo sem apertar o corpinho magro de santa e tísica daquela que o transformara no único interesse de uma vida piedosa. Ele soubera que tia Zizinha, que já comia pouco, “como um passarinho”, segundo constava em Mendes, deixara definitivamente de comer, alimentando-se apenas de rosários e saudades do sobrinho.

Ia para Mendes, mas decidiu ficar em Rodeio quando, ao beber um gole da Bica do Dr. Sales, que não curava porra nenhuma mas pelo menos matava a sede, viu que no descampado onde em menino jogara peladas armava-se um circo. Como precisavam de voluntários para a tarefa, ele se juntou a um bando de meninos que ajudavam nas cordas e estacas, obedeceu ao comando do Arranca, que dirigia as operações fazendo uso de um vocabulário bilíngue e que agradou a Francisco de Assis Rodano. Gostou principalmente da palavra arriba, que o espanhol falava a todo instante. Ele não sabia o que aquela palavra significava, motivo a mais para dela gostar mais ainda.

Levantada a lona, tapados os seus buracos com pedaços de outras lonas de outros circos, armadas as arquibancadas, esparramada uma serragem já enegrecida pelo uso e que simbolicamente assinalava o local do picadeiro, Francisco de Assis Rodano recebeu um pedaço de papel assinado pelo espanhol que lhe daria ingresso gratuito no primeiro espetáculo - que poderia ser na mesma noite, na noite seguinte ou na noite em que se juntassem todos os pedaços moventes e semoventes que formavam o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

Como só então sentisse um pouco de cansaço pela caminhada do Rio até Rodeio, e por algum esforço despendido na voluntária ajuda prestada ao circo, ele se deitou no chão, não muito longe do ônibus vermelho e amarelo. De uma touceira de capim tirou um talo esverdeado e úmido, mastigou o talo que dava à sua boca um gosto de terra e ficou olhando o céu, o grande, o infinito céu de Rodeio, que Corintho da Fonseca diversas vezes, em A Voz da Serra, garantia ser o mais belo do universo.

É possível que tenha adormecido - embora dormisse geralmente de olhos abertos. De repente, sentiu um peso no peito e só então percebeu que um boi preto havia colocado, sem motivo aparente, uma de suas patas dianteiras em cima dele. Não se espantou e muito menos se assustou com tanta e tal intimidade. De certa forma, ele, Francisco de Assis Rodano, considerava-se um bicho da terra e recebia com naturalidade a estranha demonstração de afeto ou curiosidade de um outro animal.

Arranca ia passando naquele justo instante e viu a cena: o boi Papelão com a pata pousada no peito daquele estranho que se apresentara como voluntário e voluntariamente ali permanecera, numa disponibilidade que podia ser considerada uma adesão ao destino do circo.

Com um grito que Francisco de Assis Rodano não entendeu, mas o boi sim, Arranca mandou Papelão embora e perguntou ao estranho se estava machucado. Mais uma vez Francisco de Assis Rodano não entendeu o espanhol. Machucado como? O boi não lhe fizera nada, apenas colocara uma pata em cima dele. Em seguida, Arranca perguntou se o forasteiro não tinha medo de boi, o que o forasteiro novamente estranhou. Medo de quê? De um boi? Não, não tinha medo nenhum.

Foi então que passou pela cabeça de Arranca a ideia de convidar o desconhecido para um estágio de toureiro, um noviciado tauromaníaco, e com isso ele pensava resgatar o bem mais precioso do circo, que não era um circo qualquer mas um circo tauromaníaco.

As negociações foram complicadas por muitos fatores. Primeiro, pela língua arrevesada que o espanhol falava e que deixava Francisco de Assis Rodano confuso e divertido. Segundo, que embora compreendesse o principal da proposta, Francisco de Assis Rodano não pensava exatamente em ser toureiro, coisa que nunca lhe passara pela cabeça e pela necessidade.

Estavam as coisas suficientemente confusas quando surgiu o palhaço Gargalhada, que ia para uma espécie de vagão colorido que andava a reboque do ônibus vermelho e amarelo e que, depois do ônibus, era um dos bens patrimoniais mais importantes do Asombro de Damasco.

Nesse ônibus, vivia Gargalhada e sua família, ou o que restava de sua família:

1) uma filha de vinte e um anos, Anna (com dois enes);

2) o filho de sua filha Anna, de dois anos de idade e sem pai definido;

3) um guri de cinco anos, chamado Giovani (com um ene só), que Gargalhada tivera com uma trapezista que fugira, em Paracambi, com um motorista de caminhão.

4) e Amapola, de dezessete anos, que não era nada dele, apenas uma agregada, desde o dia em que a mãe, uma mulher misteriosa que diziam ser austríaca, tomou uma dose de formicida com cerveja preta e morreu num hospital de Campo Grande.

Amapola ficou sozinha no mundo, tinha então doze anos, com seus cabelos louros, tão louros que pareciam brancos. Daí em diante foi integrada à família de Gargalhada. Ao contrário de Anna, que só pensava em homem, ela ajudava no que podia. Cozinhava, lavava e costurava. E como Gargalhada não tinha ajudante específico, volta e meia ela prendia os cabelos, colocava um enorme chapéu na cabeça, cobria o rosto com alvaiade, vestia-se de palhaço e entrava nos espetáculos, servindo de escada para o palhaço principal. Além dos cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, tinha os olhos azuis e tristes, a pele muito fina e branca, era de poucas ou nenhumas palavras, só falando o necessário e às vezes nem isso.

De tudo Francisco de Assis Rodano veio a saber, em parte por Arranca, em parte aos poucos, por ciência própria e na própria carne. Sem apresentação de credenciais ou currículo específico, recebera proposta para ser o toureiro do Asombro de Damasco. Desconfiou que ali havia um campo a ser explorado. Não lhe perguntavam nada, não exigiam testes, era chegar e ficar. Fazia o gênero dele.

Para ser padre, médico, engenheiro, até mesmo para ser motorista era necessário estudar durante anos, treinar, submeter-se a provas orais, escritas e práticas. Ali, bastou chegar e pronto. Estava mais ou menos empregado e podia até afirmar que ganhara um ofício: toureiro. O resto viria depois e, como sempre, podia-se dar um jeito.

Em princípio, não lhe era desagradável a função de toureiro, embora nunca tivesse pensado nisso. Para ele, o circo era a lona, o palhaço, o homem que andava em cima do arame com uma sombrinha e outro homem que engolia fogo. À proposta de Arranca ele não disse não, mas também não disse sim. Prometeu pensar. Tirou da moita mais próxima outro talo de capim e ficou mastigando, sentindo o gosto de mato na boca e uma progressiva atração pelo vagão de cores desbotadas onde Gargalhada acabara de entrar. Perguntou se, além de touro (que desconfiava ser o próprio Papelão), o circo também tinha palhaço.

Arranca afirmou que tinha. Por sinal, um dos maiores de todos os tempos, o Gargalhada, artista completo, de nível internacional, pois se apresentara em picadeiros e palcos do Chile e da Colômbia.

Enquanto desfiava os feitos mundiais de Gargalhada, Arranca foi armando uma estratégia de convencimento. Sentia que ali, no forasteiro que recebera a pata de Papelão como uma sagração, estava um futuro artista circense, talvez não desse para toureiro, que era uma especialidade à parte exclusiva dos circos tauromaníacos e das arenas que no Brasil eram proibidas. Mas ali podia estar uma vocação para o universo do circo, fosse em qualquer atividade, de amarrador de cachorro, de bilheteiro, de faquir - o forasteiro era magro, esquelético, ossudo, como faquir teria fulminante credibilidade.

Não podia perder aquele estranho. Sabendo o que fazia, o boi traçara um destino, indicara um eleito. Era preciso conhecer e reconhecer os sinais, e Papelão - que não era disso - dera um sinal que ele, Arranca, que já matara um padre durante a Guerra Civil, em Segóvia, e era conhecido como o Hércules da Mantiqueira, não podia desprezar nem desperdiçar.

Justo nesse instante, do vagão desbotado saiu Amapola com uma cesta na cabeça. Ia recolher as roupas que pela manhã botara para secar numa corda estendida entre duas estacas laterais do circo.

Ao ver Amapola, improvisada ajudante de palhaço desde Paracambi, uma ajudante que mal dava para o gasto, dura, solene, muito séria, com seus cabelos louros tão louros que pareciam brancos, seus olhos azuis, sua pele fina, feito porcelana, que sendo tão bonita mais atrapalhava do que ajudava, Arranca se lembrou que Gargalhada perdera o vigor de palhaço. Sendo já uma ruína, com aquela ajudante tornara-se uma lástima. Pensou: “Sim, por que não?”.

E também convidou o forasteiro para o cargo. Em menos de duas horas, Francisco de Assis Rodano, que ainda não assumira seu ofício definitivo de Rival do Outro e Lúcifer Encarnado, recebia de um desconhecido o convite para exercer dois ofícios menos transcendentais mas igualmente extraordinários: toureiro e ajudante de palhaço.

 

Francisco de Assis Rodano cuspiu o talo de capim que mastigara, olhou o vagão desbotado, nem reparou em Amapola que passou por eles. Não perguntou pelo salário, pelas condições, nem onde comeria ou o que comeria, ou se comeria. Nem onde dormiria. Disse sim, aceitava ser o ajudante do palhaço Gargalhada. Depois, quem sabe, topasse a ideia de ser toureiro, simpatizara com o boi, gostara de seu couro negro, lustroso.

Um couro que...

Francisco de Assis Rodano olhou os pés descalços, que sempre se recusaram a usar sapatos comuns. Imaginou um par de botas, de couro especial, pretas, de um preto fundo e infinito, como o do boi. Sim, sim aceitava, seria ajudante do palhaço, depois, quem sabe, adquirindo maior intimidade com as entranhas do circo, aceitaria ser toureiro.

Como quem não quer nada, perguntou a Arranca se toureiro usava botas. O espanhol disse que não, os toureiros usavam uma espécie de sapatilha, como os bailarinos. Em compensação, usavam meias cor-de-rosa, era um dos paramentos obrigatórios da arte de tourear. Os calções, as jaquetas, tudo podia ser de muitas outras cores, dourado, prateado, branco, grená, amarelo ou verde. Mas meias, sempre cor-de-rosa.

Francisco de Assis Rodano nada mais disse, achou que devia ir aos poucos, queimando etapas. Por ora, ajudaria o palhaço Gargalhada nas trapalhadas de picadeiro. Depois seria toureiro. Mas nunca, nunca mesmo, nem que o mundo desabasse em cima do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco e em cima dele, Francisco de Assis Rodano, ele usaria meias cor-de-rosa, coisa de veado. Usaria botas, botas pretas feitas sob medida. E arranjaria uma capa também preta, que descesse dos ombros até o chão. Ah, e também um chapéu preto, de abas enormes.

Evidente que o visual não combinaria com o de um ajudante de palhaço. Muito menos com o de um toureiro que deveria usar meias cor-de-rosa, meias de veado. Imaginando-se coberto de preto dos pés à cabeça, ele precisaria arranjar uma nova função que combinasse com o chapéu, a capa e as botas.

A matéria antecedia a essência. O futuro Rival do Outro ainda não tinha noção do que deveria ser e fazer na vida. Mas já tinha uma figura e um gesto.

 

                   ENQUANTO O LÁBIO TRÊMULO GARGALHA

Como todos os palhaços, tinha e tivera vários nomes até se fixar naquele Gargalhada, que no fundo era apenas uma metáfora: ele nunca dava gargalhadas, era até de rir pouco, mais para o sério - e essa seriedade era a sua expressão mais cômica.

Não nascera Gargalhada nem palhaço. Era carioca, da rua Inhangá, em Copacabana. Na pia batismal ganhou o nome de Acúrcio. O pai, Tibúrcio do Amaral, tivera um bom emprego na Prefeitura mas fora demitido a bem do serviço público. O filho (Acúrcio) não seria solução para o pai, mas pelo menos rimava com ele (Tibúrcio).

Tibúrcio abriu uma pequena papelaria na cidade, mas faliu, deu para jogar e beber, a mulher o abandonou, o filho foi estudar em colégio interno, do qual, logo que pôde, também fugiu, tal como a mãe fugira do pai.

Aos dezesseis, Acúrcio arranjou um biscate num dos teatros da praça Tiradentes. Prosperou como contrarregra e eletricista, mas se apaixonou por uma corista que cantava “Condena teus ciúmes”, música que fazia sucesso no início dos anos 30. Acurcio deixou de ser contrarregra e eletricista e, em consequência, mudou de nome: passou a ser Alceu Viana, com um ene só.

Tentou integrar o esmolambado grupo de rapazes que dançavam com as garotas. As moças faziam questão de serem chamadas de girls. Por simetria funcional e artística, os rapazes eram boys.

Alceu Viana, ex-Acúrcio do Amaral, prosperou novamente, tinha agilidade, aprendeu os passos fundamentais dos números que dançava, ganhou direito a falas e, mais tarde, com razoável voz de barítono, cantou a “Canção do aventureiro”, da ópera Il Guarani, num recital de fim de ano patrocinado por dona Darcy Vargas, mulher do então ditador Getúlio Vargas. Agradou e teve direito a um número fixo nos dois espetáculos diários do teatro, três às quintas, aos sábados, domingos e feriados.

Era bonito, tinha boa voz, compensava a falta de técnica vocal com o instinto e a imitação de Vicente Celestino, cantor que ouvia no rádio, todos os dias. O público o apreciava quando, vestido como um português da época do Descobrimento, Alceu Viana irrompia pelo palco em grandes passadas, interrompia uma dança de índias seminuas e cantava as maravilhas de sua vida aventureira:

 

               Senza tetto, senza cuna

               vita abbiamo nel gioir...

 

O repertório foi se ampliando, uma das vedetes principais se apaixonou por ele, exigiu que lhe dessem um papel nos esquetes, Alceu Viana, ex-Acúrcio do Amaral, transformou-se em Jorge Penna (agora com dois enes) e lançou-se ao estrelato. Sua relação com a vedete, dez anos mais velha do que ele, causou furor nos meios teatrais.

E a grande, a grandíssima Alda Gonçalves, dona de teatro na Cinelândia, ela própria empresária de si mesma e de sua companhia, fisgou Jorge Penna com um contrato absurdo para a época - o que o obrigou a deixar a praça Tiradentes e a vedete dez anos mais velha do que ele.

Na Companhia de Alda Gonçalves, ele teria a assistência moral, intelectual e técnica do marido de Alda, um dramaturgo cujas peças, que tinham como espinha dorsal um adultério e como solução final um suicídio, só eram encenadas porque a mulher era dona de um teatro e de uma companhia.

Jorge Penna continuou fazendo sucesso em papéis mais ou menos secundários, até que houve um problema em cena, uma situação complicadíssima que exigia de Alda um esforço sobre-humano para ter um ataque de nervos, uma crise de histeria por ter descoberto que o marido não passava de um reles adúltero.

Justo no primeiro “ai!” que soltou, soltou-se também sua dentadura, e aí foi uma série de guinchos incompreensíveis que ia estragando todo o espetáculo. Jorge Penna estava em cena, como sempre em papel secundário. Improvisou tiradas, disse besteiras para o público, tantas fez que acabou provocando em Alda Gonçalves - ela aproveitara a confusão para recuperar a dentadura - uma imensa, uma exagerada, uma obscena gargalhada.

A partir desse dia, Acúrcio do Amaral, ex-Alceu Viana com um ene só, passou a ser ex-Jorge Penna com dois enes. Na Cinelândia, na praça Tiradentes, na calçada em frente ao Teatro João Caetano, na praça Mauá, na Galeria Cruzeiro e no Café Nice, tornou-se conhecido como o Gargalhada.

 

Mudando mais uma vez de nome, mudou de estilo e especialidade. Até então, como Acúrcio do Amaral, Alceu Viana e Jorge Penna tentara, um pouco atabalhoadamente, o gênero romântico, como galã modesto e bem-intencionado. Com o novo apelido, um pouco por circunstância, outro tanto por temperamento que ele reprimira, soltou-se em papéis cômicos, inicialmente ainda como galã, depois como figurante, por fim, como simples cômico, cada vez mais grosso e instantâneo.

Ao entrar em cena já ia derrubando móveis, vasos de plantas, levando tombos e fazendo os outros levarem. A Companhia de Alda Gonçalves, apesar da simpatia que a atriz-empresária tinha por ele, aos poucos foi encontrando dificuldades em escalá-lo para as peças de seu repertório, metade do qual era da lavra do marido da própria atriz-empresária. Os dramas dele eram infinitas variações de um adultério e de um suicídio, não havia muito espaço para colocar um cômico do porte e da fúria de Gargalhada.

Houve um ano em que uma companhia rival, a de Jaime Costa, precisou de um ator jovem para fazer o segundo papel em importância numa comédia de Pagnol. O próprio Jaime Costa o abordou e fez a proposta, com uma condição: Gargalhada teria de comparecer em cena e nos créditos da peça como Gargalhada mesmo.

Acúrcio, ex-Alceu, ex-Jorge, atual Gargalhada, aceitou. Para isso teve de romper com Alda Gonçalves, que o chamou de desprezível como ator e ingrato como homem.

A temporada com Jaime Costa, no velho Teatro Glória, na Cinelândia, foi um sucesso. Bem ou mal, Gargalhada deixara a praça Tiradentes com seu estigma de revistas e chanchadas, penetrava em átrio mais nobre. Dali poderia emigrar para São Paulo, para o cinema - ele sentia que estava no ponto de atingir o estrelato autônomo e definitivo.

Mas a peça de Pagnol, depois de quase um ano em cartaz, foi substituída abruptamente por um recorrente sucesso do próprio Jaime Costa, O grande marido, em que o velho ator fazia o papel de um grandíssimo corno. Sem muitas explicações, ele rifou Gargalhada, não o quis para o papel do amante de sua mulher.

Constava que Gargalhada dividia na vida real uma das amantes do próprio Jaime Costa. E não ficava bem para um ator da sua categoria, dono de teatro, dono de companhia, ter como rival no palco o mesmo rival de cama.

Gargalhada perdeu o contrato, fez pontas circunstanciais no Serrador, teve uma oferta para voltar à praça Tiradentes, mas estava magoado com a vida e com o teatro. Era um cômico nato, espontâneo, capaz de bolações próprias, mas recusava-se a ser o eterno figurante que até então tinha sido.

Soube que um circo chegava da Argentina, com imensa lona e enorme elenco de artistas, trapezistas internacionais, domadores de feras, um homem que andava de moto no Globo da Morte, um mágico que já se apresentara no Lido, de Paris, coisa fina, pouco vista no Brasil.

O ponto fraco do grupo argentino era o palhaço, muito bom em espanhol, mas incompreensível para a plateia brasileira. Sabendo disso, Gargalhada se apresentou, num rompante que era uma violência para consigo mesmo. Não era homem de correr atrás de oportunidades. Até então, ele esperara que as coisas fossem acontecendo - e de certa forma elas foram acontecendo, até demais e acima de suas necessidades.

Foi aceito como palhaço em caráter de experiência. Depois em caráter definitivo. E foi ficando e viajando com o circo argentino. Fez São Paulo, Paraná, Bahia, Pernambuco, chegou a fazer breve temporada na Venezuela, onde a roda do destino o ceifou: no Rio, substituíra um palhaço argentino que não era bom para a plateia brasileira. E na Venezuela foi substituído porque não era bom para uma plateia que não compreendia suas piadas, seus duplos sentidos e trocadilhos.

Nesse meio tempo, ele se casara com Libertad, uma das trapezistas internacionais, e com ela tivera uma filha, Anna, com dois enes. Ao se desligar do circo argentino, Libertad acompanhou Gargalhada e a filha recém-nascida no duro regresso à calçada do João Caetano, no Rio, onde funcionava uma espécie de bolsa para músicos e artistas desempregados. Gargalhada até que sempre descolava um biscate em shows suburbanos, mas nada aparecia para a mulher, cuja especialidade exigia um circo com boa estrutura, capaz de armar um trapézio seguro. No início dos anos 30, ele arranjou um bico numa companhia que ia dar espetáculos no interior de São Paulo, teve de ir sozinho, pois o grupo era modesto e não podia contratar artistas que tivessem família. Libertad ficou na pensão da rua do Catete, com Anna, que tinha pouco mais de dez anos.

Quando Gargalhada voltou, quatro meses depois, com a perna esquerda quebrada (caíra de mau jeito num dos tombos com que fazia sua monumental entrada no picadeiro), não encontrou Libertad. Encontrou Anna, que ficara aos cuidados da dona da pensão, a qual logo lhe passou o encargo e a conta das despesas.

Gargalhada começou a beber. Nunca foi visto bebendo, ele tinha inexplicável pudor em beber diante dos outros. Porém, vivia com os olhos vermelhos, passou a evitar contatos, mas nunca se separou da filha.

Para criá-la, juntou-se a uma mulher que não amava e que, essa sim, bebia descaradamente. Cinco, seis anos depois, teve um filho com ela, Giovani, que nasceu em condições complicadas, a parteira suou para tirar a criança lá de dentro e garantiu que o menino não chegaria aos dois anos. Chegou aos cinco. E a vida profissional de Gargalhada foi decaindo, topava qualquer espetáculo, qualquer circo, aceitava qualquer cachê.

Quando Anna cresceu, o pai ensinou-lhe alguns truques, ela podia servir de ajudante dos mágicos que precisavam de uma assistente para segurar a cartola de onde saíam coelhos, as bengalas que se transformavam em flores e bandeirinhas dos países do mundo.

Anna dava conta do recado mas com má vontade. Aos dezoito anos engravidou, nunca ninguém soube de quem, nem mesmo ela. E as duas decadências, a do velho palhaço e a da jovem ajudante de mágicos, acrescidas do filho dela e do neto dele, foram dar, por gravidade da vida e do ofício, no Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, o qual, por sua vez, foi dar em Rodeio.

Foram dois movimentos sincronizados pela vida e pelo ofício. A decadência de Gargalhada levou-o ao Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco. A decadência do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco levou-o a Rodeio.

 

Apesar de tudo, seria em Rodeio que Gargalhada conheceria um dos instantes mais emocionantes, se não de sua carreira, de sua vida. Nada a ver com a sua atuação no picadeiro, mas fora dele. Um episódio que ficou na memória coletiva de Rodeio e cujos ingredientes foram: o filho Giovani, que morreu de meningite, aos cinco anos de idade; Maria das Graças de Assis, que havia se recolhido ao hospital onde faleceria, mansa como um passarinho e em odor de santidade; e a própria cama de Maria das Graças de Assis, conhecida como Zizinha, que teve triunfal entrada em Rodeio, na caçamba de um dos caminhões da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, que fez a boa ação de atender ao pedido daquela que, em vida, já era considerada o anjo tutelar dos dois túneis, o 11 e o 12, com seus mistérios e ciladas, e da própria Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, que atribuía um milagre - um acidente no gerador que explodiu e não causou vítimas - às preces de tia Zizinha.

O caminhão chegou a Rodeio com a cama montada, pois os parafusos que a armavam estavam tão enferrujados que não a puderam desmontar. Era suntuosa para os padrões locais, em estilo colonial, enorme, pertencera à primeira mulher de Acácio Nunes de Assis, pai de Zizinha e avô de Francisco de Assis Rodano.

Naquela cama haviam nascido, além de Maria das Graças, mais tarde Zizinha para todo o sempre, a segunda filha de Acácio, Julieta, casada com um jornalista do Rio, e Zulmira, casada com Joaquim Pinto Montenegro, notável morador em Rodeio e subchefe da Divisão dos Dormentes no ramal de Paracambi.

Não se sabe se, por escrúpulos conjugais, ou birra de sua segunda mulher, a cama colonial da primeira mulher não seria usada nos demais casamentos de Acácio. Dona Dondoca, a terceira da série, foi a única que explicou por quê: não dormiria numa cama onde “Acácio fizera das suas”. Repudiada e guardada uns tempos, quando Maria das Graças de Assis foi morar com Hilda Peçanha Fraga, e com a aprovação das filhas Julieta e Zulmira, a cama foi doada àquela que era venerada e invocada como “a santa de Mendes”.

Com tanta e edificante história na família, a cama teria de ser poupada da degenerescência de Acácio, que logo se casaria duas vezes, abrindo o ramo bastardo dos Assis. (Mesmo casando oficialmente com as mulheres seguintes, a família continuou considerando Acácio um devasso, um adúltero que não merecia respeito nem consideração.)

Houve muita confusão por causa da cama, até que Acácio, interessado em casar com sua segunda mulher (ele não podia suportar a viuvez), achou que em qualquer cama estaria bem, desde que com uma mulher ao lado.

Nessa mesma cama Francisco de Assis Rodano dormira os anos de sua infância, ao lado de sua tia Zizinha, pois desde cedo ficara órfão de mãe, que morreria num leito de hospital. Tendo chegado a vez de Zizinha, sabendo que não sairia viva do hospital, quis ela fazer de sua cama um legado para o sobrinho mais amado, o único que realmente a amava e que, no velório dela, quando todas as beatas de Mendes rezavam rosários, colocou na vitrola a Polonaise número 1, de Frédéric Chopin, tocada pelo pianista José Iturbi, que assassinava qualquer partitura nos musicais da Metro.

Pois essa cama, com passado tão respeitável, entrou triunfalmente pelo arraial de Rodeio na caçamba do caminhão da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini. Todos foram olhar a cama de Zizinha, a santa, cujas virtudes eram mais louvadas do que as águas da Bica do Dr. Sales, que tinham fama de, entre outras maravilhas, curar impotência sexual - de que os rodeienses, em princípio, não se queixavam.

O caminhão despejou a cama de Maria das Graças junto ao ônibus vermelho e amarelo que funcionava como escritório da companhia durante a permanência do Asombro de Damasco nas cidades que visitava. Apressado, evitando contágio, temendo os sortilégios, as maléficas emanações que diziam vir daquele ônibus vermelho e amarelo, o caminhão da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini logo se afastou, sem se preocupar em fazer a entrega em mão do destinatário.

Foi Arranca que a recebeu, simbolicamente, e simbolicamente quis anexá-la aos bens patrimoniais do circo, levando-a para a tenda que ele armava junto ao ônibus e na qual dormia.

Era demais: a cama em que repousara o corpinho frágil, o peso de passarinho de uma santa, ser degradada a esse ponto, suportando o peso assassino de um espanhol que havia matado um padre na Guerra Civil da Espanha!

Francisco de Assis Rodano viu a cama de longe e de longe a reconheceu. Levou-a para um dos cantos sob a lona principal, onde até então dormira no chão de serragem encardida. Tivera o direito de armar umas divisórias com pedaços de chita e ali era o canto dele, o ajudante do palhaço Gargalhada, futuro toureiro do boi Papelão e futuro Rival do Outro.

Nesse chão, ele já dormia com a filha de Gargalhada, que o seduzira sem muito esforço. Francisco de Assis Rodano aceitou Anna, com ela repartiria o chão de serragem e, mais tarde, a cama de sua infância, cama de seu avô Acácio Nunes de Assis, cama em que sua tia Zizinha consumira-se em orações e tosses. Arranca não apreciou que a cama fosse para debaixo da lona, afinal, aquilo era um escárnio, uma bandalheira. Trepar no chão, rolando na serragem, era uma coisa, imposição do circo, preço que os nômades pagam pela liberdade. Agora, em cima de uma cama, suntuosa, com colchão e tudo, era um abuso, um atentado ao pudor.

Francisco de Assis Rodano providenciou mais chita e aumentou a divisória daquele espaço com serragem embaixo e lona em cima, onde quase não dormia, primeiro porque não era muito de dormir, isso ele fazia em pé, até mesmo caminhando, ou em qualquer canto e por qualquer motivo. Depois, porque Anna com dois enes não o deixava em paz durante a noite.

Apesar de tudo, Francisco de Assis Rodano usaria por pouco tempo o legado que a tia Zizinha lhe deixara, a cama de seu avô Acácio Nunes de Assis.

 

Aos poucos, Francisco de Assis Rodano foi desconfiando que o circo não era seu lugar nem aquela a sua função. Fazia as obrigações, foi dos raros períodos de sua vida em que obedeceu a uma rotina mais ou menos profissional, embora a rotina do Asombro de Damasco fosse problemática como o próprio circo.

Ajudava Gargalhada nos espetáculos, jogava e levava baldes de água na cara, bancava ora o esperto ora o bobo para o palhaço principal tirar seus efeitos, mas passou a cobrar de Arranca um papel maior e melhor.

Ele se sentia capaz de tourear Papelão com mais arrojo e temeridade do que o próprio Arranca, que na realidade nada fazia e nas poucas vezes em que tentara fora vaiado porque revelava exagerado amor à própria pele, embora raramente o boi ameaçasse injuriá-la.

Dormia com Anna na cama histórica de sua tia Zizinha, ou melhor, Anna é que dormia com ele. No fim de cada noite, cansado disso ou daquilo, ele, que nunca se cansava, ia deitar na cama da tia, ficava de olhos abertos olhando a esfiapada lona do Asombro de Damasco, pensando quase sempre naquela pergunta que um dia fizera ao primo do Rio: “Afinal, esse tal de Jesus Cristo existiu mesmo?”

De repente, sentia Anna a seu lado. Durante a noite, ela deixava o filho de dois anos no vagão onde moravam o pai e o outro irmão, Giovani. Do lado de fora desse vagão, numa pequena barraca nele encostada, formando uma espécie de anexo, dormia Amapola.

Durante o dia, Francisco de Assis Rodano ajudava nas tarefas gerais, procurava tornar-se íntimo de Papelão, ensaiava com Gargalhada alguns tombos e piadas. Ali pelo meio-dia, era inevitável o chamado de Anna. Ela ia para a cama, fechava a cortina de chita e ficava gritando, pedindo que a trepasse.

Mais por pena do que por desejo ou necessidade, Francisco ia atendê-la. Olhava para Gargalhada, com quem estava ensaiando alguma palhaçada, Gargalhada olhava o chão, parecendo comprender. Francisco de Assis Rodano compreendia e ia atender ao chamado da fêmea na urgência do cio.

Contrastando com os uivos e a lubricidade da filha do palhaço, Amapola nunca falava com ninguém e ninguém se atrevia a falar com ela. Vivia no seu canto, lavando a roupa de quase todos os integrantes do circo, dormindo numa pequena esteira na pequena barraca encostada no vagão do Gargalhada.

Seu único amigo era Giovani, com ele saía para passear no morro onde a Indústria de Fogos de Artifício Picolino mantinha um pequeno lago com peixes e uma canoa. Andar naquela canoa, jogando pedacinhos de miolo de pão para os peixes, era não apenas o programa preferido de Giovani mas o único que Amapola se permitia. No resto do tempo e da vida, era a faz-tudo do circo e de suas necessidades.

Apesar de bonita, com seus cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, ninguém se atrevia a provocá-la. Tinha um jeito de olhar com seus olhos azuis que esfriava ou amedrontava os pretendentes. Menos Francisco de Assis Rodano, que não tomara conhecimento dela, pois tinha no que pensar: em ajudar Gargalhada; em se preparar para a hora em que enfrentaria Papelão, qualquer noite dessas. E, na folga dessas tarefas banais, tributo que pagava à contingência da carne, pensar naquilo que realmente o inquietava: se esse tal de Jesus Cristo existira mesmo.

Era uma pauta de preocupações acima da que desejava. Seu único projeto de vida, ainda informe, era se dedicar a um único ofício. Não sabia o que nem qual, mas suspeitava que tinha alguma coisa a ver com esse Jesus Cristo, um homem que - segundo constava - fizera milagres e se dizia Filho do Outro.

Fazer milagres não devia ser difícil - pensava Francisco de Assis Rodano. Agora, ser Filho do Outro era difícil por vários motivos: se o Outro não existisse, como poderia ter filhos? E se existisse, por que teria um filho especial se todos eram seus filhos?

Essas e outras dúvidas passavam pela cabeça dele, e enquanto ajudava o palhaço a fazer palhaçada e tomava maior intimidade com o boi Papelão, Francisco de Assis Rodano engolia o ar de Rodeio em largos sorvos, sabendo que a sua hora era inadiável e estava próxima.

 

Em novembro daquele ano, houve um surto de meningite que atacou ao mesmo tempo o filho de Gargalhada, Giovani, e o filho de Anna. O neto foi mandado a um hospital de Paracambi, onde recebeu tratamento e se salvou.

A caixa do circo estava a zero. Com a ameaça da doença, ninguém saía de casa e todos procuravam evitar ajuntamentos. Ir ao circo, apesar do pouquíssimo público que conseguia reunir, era um ajuntamento. Não houve dinheiro para mandar o filho do palhaço a um outro hospital, em Vassouras.

Giovani morreu, à noite, Gargalhada tomou uma bebedeira e deixou que Amapola cuidasse do funeral. Arranca preferiu fugir do problema, foi tratar de um assunto inadiável em Barra do Piraí, Amapola tentou uma coleta entre os integrantes da trupe, queria comprar o pequeno caixão para o seu único amigo.

Não havia funerárias em Rodeio. O cabo Angimestro Saraiva, além de temer defuntos, por extensão também temia funerárias, que lembravam defuntos. Duas ou três tentativas de forasteiros se estabelecerem no ramo foram desestimuladas por Saraiva, que concentrava furor todo especial nos desavisados que tentassem a carreira de papa-defunto em Rodeio.

Para comprar o caixão, era preciso dinheiro e ir a Mendes onde, não se sabe por quê, havia funerárias demais, cinco ao todo. E além do dinheiro e da ida a Mendes, era preciso arranjar um transporte para carregar o caixão, os trens não aceitavam caixões, tivessem ou não defunto dentro.

O jeito era alugar um caminhão ou uma carroça puxada a burro ou boi - coisa demorada e cara para as possibilidades do circo em geral e de Gargalhada em particular. O qual, para rebater as emoções, a morte daquele filho sem mãe, bebeu até ficar sem sentidos - o que não ocorrera em nenhum dos transes anteriores de sua acidentada vida.

A filha Anna, além de imprestável, estava no hospital com o filho que tivera por aí, ninguém sabia com quem e como. Amapola era pouca para o tamanho do problema. Além de não conhecer ninguém fora do circo, perdera seu único amigo no mundo. Ficara apatetada, pedira dinheiro aqui e ali, em alguns casos chegara a esquecer de explicar para que era o dinheiro pedido.

Como nada obteve, sentou-se num canto e ficou a velar o pequenino cadáver coberto com um pedaço de chita que sobrara das divisórias feitas por Francisco de Assis Rodano quando da instalação da cama de tia Zizinha. Acendeu uma vela espetada no gargalo de uma garrafa de cachaça que Gargalhada acabar de beber.

Havia dois dias que o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco não dava função. Francisco de Assis Rodano poucas vezes saiu da cama, olhando a lona do circo e pensando nos problemas que realmente o inquietavam: esse negócio de Jesus Cristo estava mal contado. Sua tia Zizinha era devota, era santa, rezava rosários o dia todo - e de que adiantara? Giovani nada fizera de bom ou de mal e estava morto. Arranca matara um padre na Espanha, o pai Choca desaparecera com seu banjo, seus primos no Rio estudavam e não tinham respostas para as perguntas que era realmente importantes sobre a vida e o mundo.

Estava Francisco de Assis Rodano pensando nesses temas que o frequentavam sempre que conseguia ficar sozinho e sem nada para fazer. Viu Amapola afastar a cortina de chita que separava sua cama das combalidas arquibancadas do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

Nada se disseram. Amapola apenas olhou para ele e ele olhou para ela. Era preciso fazer alguma coisa, Gargalhada não contava. Ela, Amapola, pouco podia fazer, Arranca se arrancara, Anna era imprestável e estava no hospital com o filho. Sobrava Francisco de Assis Rodano para o resto. E o resto era dar um jeito de enterrar o garoto Giovani, e não jogá-lo na vala mais abjeta do cemitério de Rodeio, que era uma vala mesmo, de uma água empoçada que nunca secava, resto de um pântano onde os indigentes ali enterrados eram sorvidos pela lama, diziam que aquela era uma das bocas do Inferno.

Francisco de Assis Rodano foi ao ônibus vermelho e amarelo, abriu a caixa de ferramentas que era um dos patrimônios mais valiosos do Asombro de Damasco. Apanhou o serrote, o martelo e pregos. Voltou a seu cubículo, empurrou a cama de tia Zizinha para fora. Quebrou-a com cuidado, conservando os pedaços maiores da madeira. Trabalhou com determinação.

Sentada num tamborete, Amapola via o suor escorrer do rosto e dos braços magros de Francisco de Assis Rodano, suor que brilhava à luz fraca da única vela de um velório, vela espetada no gargalo de uma garrafa de cachaça.

Giovani teria direito a ser enterrado no terreno sólido do cemitério e não seria jogado na vala onde sumiam os indigentes que ninguém em Rodeio conhecia ou que todos fingiam não conhecer. Vala que era uma das bocas do Inferno por onde desciam os condenados - porque Francisco de Assis Rodano trabalhava, e suava em seu magro rosto e em seus magros braços, iluminado pela vela única, o amigo de Amapola não desceria ao Inferno.

Ela viu Francisco de Assis Rodano quebrar a suntuosa cama que era até um escárnio para a pobreza do circo. Sabia vagamente que aquela cama era importante para ele, cama de seu avô, de sua tia que todos sabiam ser uma santa. Ouvira Anna dizer que era gostoso passar a noite naquela cama, bem melhor do que ficar nas esteiras e tamboretes que ela armava no vagão onde todos da família de Gargalhada dormiam, amontoados, suados nas noites quentes, encolhidos nas noites de frio.

A cama era, agora, um monte de pedaços de madeira, as tábuas maiores haviam sido cortadas para o caixão de Giovani. Acabada a obra, Francisco de Assis Rodano colocou-a em cima da cabeça e olhou para Amapola. Ela se levantou do canto onde estivera sentada. Sem se falarem, caminharam em direção ao vagão. Amapola ajudou-o a arrumar Giovani dentro daquelas madeiras que fora a cama de uma santa e agora seria o esquife de um órfão. Órfão que havia sido o único amigo de uma órfã: duas orfandades mal guardadas por um palhaço bêbado.

Pegou o caixão, pesava bastante com o corpinho de Giovani. Amapola adivinhou o que ele pretendia fazer, tentou ajudá-lo, ele recusou a ajuda. Ela então apanhou a vela espetada na garrafa de cachaça. Foram para o centro do picadeiro, onde Francisco de Assis Rodano colocou o caixão, o corpinho de Giovani lá dentro, pequenino, mirrado, imóvel.

Olhou em redor, achou que uma vela era pouco, sumiu por um tempo, voltou com outra vela, acesa já, dentro de uma garrafa, só que não era de cachaça, mas de cerveja Cascatinha, a preferida de Arranca.

As duas velas iluminavam, agora, mais e melhor. Faziam deles, Francisco de Assis Rodano e Amapola, duas sombras estranhas, silhuetas imensas que pareciam coladas no teto de lona escura. Amapola sentou-se ao lado do caixão. Seus cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, eram o único ponto luminoso que refletia a luz das duas velas. Francisco de Assis Rodano deitou-se ao comprido, perto dela e do corpo de Giovani. O suor secava em seu rosto magro e cansado.

A noite foi longa. As velas acabaram e tudo ficou mais escuro. Fazia um pouco de frio, Amapola percebeu que Francisco de Assis Rodano ficara encolhido, a serragem enegrecida devia estar fria e devia fazer frio, muito frio. Ela foi à sua pequena barraca e trouxe um cobertor, cobriu o corpo magro e encolhido de Francisco de Assis Rodano.

E veio a manhã.

Amapola levantou-se, beijou o corpinho de Giovani, tentou fechar o improvisado caixão, não conseguiu. Francisco de Assis Rodano a ajudou. Com algum esforço, a tampa foi colocada.

Pronto. Agora o menino podia ir para a terra e não para a vala, que era uma das bocas do Inferno. Mais uma vez dispensou a ajuda de Amapola e colocou o caixão na cabeça. O cemitério não era longe e ele não queria esperar que os outros aparecessem, somente Amapola amara aquele corpinho morto, somente ela merecia estar ali e participar do funeral de um menino triste.

Naquele instante, Francisco de Assis Rodano sentiu raiva de tudo, de Gargalhada, de Arranca, mas sobretudo daquele Outro. Mais que nunca, ele sabia que precisava fazer alguma coisa. Contra.

 

Quem fez alguma coisa, mas a favor, foi Corintho da Fonseca. Como delegado, constatou o óbito de Giovani, dando parte às autoridades sanitárias de mais um caso letal do surto de meningite no estado do Rio. Como escrivão, deu a competente baixa no Registro Civil do menor Giovanni (por conta própria escreveu Giovani com dois enes), de cinco anos de idade, filho do palhaço Gargalhada e de mãe desconhecida.

Como editorialista de A Voz da Serra, ia fazendo um artigo sobre os perigos da meningite que ceifava vidas preciosas de infantes e infantas ao longo dos trilhos da Central do Brasil. Mas não se sentia inspirado naquele momento.

Em sua cabeça ficara martelando um soneto que, em criança, no tempo do Colégio Marista de Niterói, recitara da tribuna da Academia Literária Marcelino de Champagnat - integrada pelos alunos dos últimos anos do ginásio. O autor era Antônio Tomás, padre cearense que ficou célebre pelos sonetos que fazia montado em cavalo, quando ia visitar seus paroquianos.

Como não tinha escrúpulos literários e como ninguém iria reparar em Rodeio e em toda a serra do Mar, Corintho da Fonseca não fez por menos: sugeriu a Jacob Stern, único judeu de Rodeio, dono da única tipografia que imprimia cartões de visita, formulários disso e daquilo e, sobretudo, o semanário A Voz da Serra, que tirasse uma edição especial comemorativa do evento, ou seja, da morte do filho do palhaço.

Jacob Stern já sofrera o bastante pela vida afora, como judeu e como ex-linotipista de um jornal do Assis Chateaubriand que faliu e não pagou os atrasados trabalhistas. Jacob era sindicalizado e tivera certa liderança no meio dos gráficos. Entrou na Justiça, que penhorou um linotipo das oficinas, com o dinheiro comprou uma pequena máquina manual, uma caixa de tipos e foi para Rodeio.

Ouvira dizer que ali havia uma água especial que curava impotência. Apesar de viúvo havia muito, Jacob tinha medo de ficar broxa. Foi atrás da Bica do Dr. Sales, não ficou broxa porque, segundo as boas línguas, comia regularmente dona Vivinha, mulher do redator-chefe e editorialista principal de A Voz da Serra, que publicou, em edição especial, o soneto do padre Antônio Tomás, famoso poeta repentista do Ceará, mas atribuído e assinado por Corintho da Fonseca, expressando o pesar da comunidade rodeiense pelo golpe do destino sofrido pelo Gargalhada.

Decorado por Corintho da Fonseca no Colégio Marista de Niterói e jamais esquecido, o soneto nem sofreu a correção dos fatos. Na vida real, quem morrera fora o filho do palhaço, no soneto fora a mulher. Mas como Gargalhada não tinha mais mulher, Corintho achava que dava na mesma:

 

                         O PALHAÇO

 

Soneto de nosso colaborador CORINTHO DA FONSECA, dedicado a Gargalhada, o grande artista circense que Rodeio admira e aplaude

 

         Ontem viu-se-lhe em casa a esposa morta

         E a filhinha mais nova tão doente!

         Hoje o empresário vem bater-lhe à porta,

         Que a plateia o reclama impaciente.

 

         Ao palco em breve surge... pouco importa

         O seu pesar àquela estranha gente...

         E ao som das ovações que os ares corta,

         Trejeita, e canta, e ri nervosamente.

 

         Aos aplausos da turba ele trabalha

         Para esconder no manto em que se embuça

         A cruciante angústia que o retalha.

 

         No entanto, a dor cruel mais se lhe aguça

         E enquanto o lábio trêmulo gargalha,

         Dentro do peito o coração soluça.

 

                   A HORA DA DECISÃO

Com a morte de Giovani, o filho que tivera não mais lembrava com quem, Gargalhada, que já tinha pouquíssima graça, ficou sem nenhuma. Pior: ficou inconveniente. Na semana seguinte, quando Rodeio inteiro recitava emocionado o soneto de Corintho da Fonseca dedicado à sua dor, Gargalhada interrompeu a apresentação de Zuth, que, atendendo a pedidos, cantava “Nosotros” pela terceira vez.

Para piorar, nem estaba bêbado. Entrou no picadeiro e começou a dizer insolências ao cantor, que se esmerava nos trêmulos. A princípio, pensaram que se tratava de um número improvisado, coisa ensaiada. Mas Zuth não gostou da interrupção, chamou Gargalhada de decadente, de trapo de gente e de palhaço. Por sua vez, Gargalhada chamou Zuth de veado - os dois iam se pegando, Arranca mandou que o saxofone e a bateria tocassem qualquer coisa e entrou no picadeiro para tentar disfarçar a briga.

Gargalhada e Zuth se uniram para empurrar Arranca, a confusão só não foi maior porque Francisco de Assis Rodano entrou em cena com Papelão, pela primeira vez mostrou que era capaz de fazer com o boi muito mais do que fazia Arranca, que não era mas se fazia passar por toureiro oficial do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

O incidente teve consequências. Gargalhada deveria ser aposentado mas quem acabou se aposentando foi o próprio Arranca, que descobriu jeito insuspeitado em Francisco de Assis Rodano na arte de tourear. Depois, um circo, qualquer circo, pode ficar sem toureiro, mesmo sendo circo tauromaníaco. Não pode é ficar sem palhaço, pois desde que o mundo é mundo - disse Corintho da Fonseca em editorial de A Voz da Serra -, nem todo palhaço precisa de circo, mas todo circo precisa de palhaço. (Ao rever as provas tipográficas que vieram da oficina de Jacob Stern, Corintho da Fonseca mudou a ordem da frase, achando que a ordem das parcelas não alteraria o produto, ficando assim a chave de ouro de seu artigo: “Nem todo circo precisa de palhaço mas todo palhaço precisa de circo”.)

Da crise que açoitou o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco originaram-se três consequências:

1) Gargalhada ficou sem ajudante oficial: que se virasse sozinho.

2) Arranca passaria a dar tempo integral à complicada parte administrativa do circo, embora não fosse visível essa parte administrativa. Em compensação, fez um gesto muito louvado por todos: legou sua famosa capa preta a Francisco de Assis Rodano.

3) Francisco de Assis Rodano foi promovido, de ajudante de palhaço, a toureiro.

Francisco de Assis Rodano topou a nova ordem imposta ao Asombro de Damasco, só recusou vestir-se como Arranca se vestia: uma roupa improvisada de toureiro, que caía muito mal em seu corpo atarracado. O único detalhe de um toureiro de verdade que ele nunca deixara de usar, eram as meias cor-de-rosa - e Arranca tentou negociar com o seu substituto, para maior credibilidade do espetáculo, para honrar uma tradição secular, um rito quase religioso, que ao menos usasse as meias tradiconais de uma tarde de touros.

Francisco de Assis Rodano recusou-se a usar qualquer peça que pertencesse à dinastia de toureiros do Asombro de Damasco. Aceitou apenas a capa, mas continuou a pisar a serragem do picadeiro como sempre o fizera: descalço. E fez algum sucesso, Papelão parecia gostar dele na medida em que detestara Arranca.

Com o espanhol, apesar de ser chamado de “Ei, toro! Ei, toro de mierda!”, o boi não se mexia, achando que aquele toro nada tinha a ver com ele. De forma que as apresentações de Arranca eram frouxas, sem emoções, o pessoal torcia mais pelo touro do que por ele. Com Francisco de Assis Rodano o boi decidiu colaborar, participando da cena, ameaçando botes terríveis, balançando a cabeça com fúria, esfregando as patas traseiras na serragem, como se estivesse enlouquecido e quisesse passar o toureiro nos chifres, rasgando-lhe a barriga com os dois cotocos atrofiados que tinha na testa e que só com a boa vontade do público podiam ser considerados chifres.

Mas tanto Papelão se esmerou em parecer um touro de verdade que, uma noite, por exagero dele em parecer touro, ou bobeada de Francisco de Assis Rodano, pegou-o distraído e só não lhe rasgou a barriga porque os cotocos na testa não eram de nada, deram apenas para machucar o toureiro na parte de trás, pois um dos momentos mais emocionantes da tourada era quando Francisco de Assis Rodano, depois de irritar Papelão com provocações que improvisava na hora, oferecia-lhe a bunda como sinal de definitivo desdém.

O fato, como tudo o que acontecia no Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, teve duas consequências: emocionou a plateia e fez Francisco de Assis Rodano romper o pacto de não-agressão com o boi. Jurou que mataria Papelão na próxima luta - do que muito se aproveitou Arranca para criar um clima de fim de mundo, de Armagedon particular que teria como palco a arena de Rodeio.

Veio gente de Barra do Piraí, de Vassouras, de Miguel Pereira e Paty dos Alferes assistir à justa, aquilo que Corintho da Fonseca, usando pela única vez uns tipos enormes de madeira da precária tipografia de Jacob Stern, chamou em manchete no semanário A Voz da Serra de A LUTA DO SÉCULO.

Francisco de Assis Rodano passou uma semana em recolhimento, amealhando forças para o terrível embate. Nada avisaram a Papelão, que continuou na dele, na vida mansa a que se habituara, onde o que de pior podia lhe acontecer, desde que escapara do Matadouro de Mendes, era ser chamado de “toro de mierda”.

Bem verdade que o novo toureiro do Asombro de Damasco, apesar de não pronunciar palavra, tinha um jeito de olhar feroz, ameaçador, como se o odiasse, mas não passava disso, dessa chispa terrível que no fundo devia ser apenas uma encenação mais para a plateia do que para ele, touro, na verdade, boi.

Muitas e contraditórias - como sempre - foram as versões desse embate que deveria ser mesmo final (como foi) ao menos para Papelão. Três foram as correntes principais, em torno das quais se armaram muitas variantes, nenhuma delas digna de crédito e registro. Mas as corrente básicas, que formaram o núcleo do acontecimento, foram as seguintes:

1) Linha conservadora: Francisco de Assis Rodano precisava provar que valia alguma coisa como toureiro e como gente. Até então, fora considerado um vagabundo de estrada e só não o expulsavam das cidades e vilas em respeito à sua tia Zizinha, uma santa em vida e que morreria, de tísica e desgosto, mas em evidente odor de santidade. O boi, por sua vez, já estava velho e desiludido, escapara do Matadouro de Mendes e tudo o que lhe acontecesse seria lucro. O embate final com Francisco de Assis Rodano representava, assim, o seguimento da ordem natural das coisas, do mundo e do homem. Um dia alguém venceria alguém, o mais forte teria de vencer, era a lei do universo, ganharia aquele que melhor soubesse aproveitar as oportunidades. O mundo continuaria rodando nos seus eixos, um touro (ou um boi) a mais ou a menos não alterava o rumo da história.

2) Linha revolucionária: O boi cansara de ser explorado. Antes, com o antigo toureiro, sofria apenas o insulto de ser chamado de “toro de mierda”. Era um agravo, sem dúvida, mas não atingia a essência histórica de sua condição de touro (ou boi). Quanto a Francisco de Assis Rodano, esse representava o poder, o sistema. Era um pobre coitado, como todos os áulicos e cortesãos que se vendem ao esquema montado pelas forças dominantes. Quanto ao touro, cansado de ser espoliado para produzir lucros aos tubarões, à elite corrupta que se apoderara dos bens da produção do circo, decidira sublevar-se, ameaçando uma alteração do statu quo. Contudo, não estava preparado para enfrentar sua hora histórica, faltavam-lhe condições objetivas para a sublevação, não fizera as alianças necessárias e se precipitara numa aventura romântica que serviria apenas para enriquecer a sua biografia. Francisco de Assis Rodano era o vulgar e inevitável carreirista que sabia aproveitar o clima de insatisfação generalizada que reinava dentro e fora do picadeiro, com a plateia farta de um circo sem as emoções de um touro verdadeiro e de um toureiro idem. E o circo, finalmente, atingira o grau de conscientização para proceder à autocrítica da conjuntura, desconfiando que nada mais tinha a oferecer à plateia. O confronto tornara-se inevitável.

3) Linha liberal: O touro (ou o boi) tinha suas razões. O toureiro também. O circo enfrentava dificuldades de sobrevivência, precisava fazer alguma coisa de notável, logo, também tinha suas razões. O público, que em todos os espetáculos era chamado de respeitável, também tinha motivos de sobra para não respeitar mais nada e romper com o pacto social que dava sobrevivência a um circo decadente. Mas que tinha ou pensavam que tinha um passado de glórias. Logo, o sacrifício de Papelão, longe de representar um agravo ao touro (ou ao boi) e uma truculência do toureiro, era apenas um fato que precisava ser lamentado e esquecido, eis que havia coisas mais importantes no mundo em geral e em Rodeio em particular.

Finalmente, houve a linha factual, em sua pureza intrínseca de fato. Na manhã da grande batalha, Arranca mandou que Anna desse a Papelão um purgante letal, comprado na farmácia do Galeano, o mesmo que bolara a fórmula de um xarope peitoral contra tosses e sufocações que tinha um efeito fulminante. (A fórmula misturava codeína, creosoto, rum queimado, xarope de tolu e favos de mel.) O purgante era, desde tempos imemoriais, pelo cheiro fétido e gosto repugnante, o terror, a besta negra das crianças de Rodeio, além de inspirar idêntico terror nos adultos que caíssem na asneira de perguntar ao próprio Galeano o que deveriam tomar para curar dor de barriga.

Foi uma dose cavalar do Purgante Maravilhoso Galeano de Rodeio que Anna misturou na magra ração de aveia e capim, oferecida ao boi na manhã da batalha. Quanto a Francisco de Assis Rodano, esse tomou as providências que lhe cabia. Até então, os toureiros que o antecederam não só não podiam matar o animal (uma lei federal proibia e continua proibindo touradas mortais e brigas de galos), como se limitavam a chatear o touro (ou o boi) com um pano vermelho e uma velha bengala que vinha, de toureiro em toureiro, formando um dos bens de valor afetivo do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

Rezava uma velhíssima lenda que a dita bengala pertencera a um toureiro de verdade, que numa exibição em Córdoba, muitos anos antes, tivera a coxa arrebentada por uma chifrada do Viejo Canalha, um miúra da ganadería mais famosa da Espanha e que acabara com a carreira e a vida de muitos espadas.

Com a perna avariada, o glorioso toureiro passou a apoiar-se numa bengala, a qual viera de mão em mão, de toureiro em toureiro, parar no Arranca, que matara um padre na Guerra Civil.

E finalmente, nas mãos de Francisco de Assis Rodano, que a usou poucas vezes, pois preferiu trocá-la por um cabo de guarda-chuva da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, na ponta do qual amarrou um pontiagudo facão que pediu emprestado ao açougue O Talho da Serra. Pela gentileza do empréstimo, prometeu que mandaria a carne do Papelão para a devida e posterior comercialização.

Preparados os ingredientes, enfraquecido pela dose letal do Purgante Maravilhoso Galeano de Rodeio, sem nada entender da excitação que tomava conta da plateia - o circo estava botando gente pelo ladrão -, Papelão não podia imaginar que tinha os dias pesados e contados e que logo sua carne seria dividida.

Quando chegou a hora, logo depois de Zuth ter brilhado numa quentíssima apresentação de “Granada” que mereceu bis, o boi entrou, como sempre o fazia, pelos fundos do picadeiro, ao som do saxofone, do clarim e da bateria que faziam um barulho confuso que nem mesmo em intenção poderia ser julgado um pasodoble.

Foi então que surgiu Francisco de Assis Rodano. Estava soberbo, formidando. Pela primeira vez, trocara a capa de desbotado vermelho por outra, enorme, preta, legado de Arranca, que com ela lutara na Guerra Civil da Espanha. Embora nada tivesse a ver, seria também o ponto de partida para a sua próxima função, a de Lúcifer Encarnado e Rival do Outro.

Trazia o chapéu de imensas abas, abas negras que davam a seu magro rosto uma palidez sobrenatural. Os olhos eram ferozes, enormes, coruscantes, viam além e mais. A bengala, reforçada com o facão mais poderoso de O Talho da Serra, estava colada a seu corpo, escondida pela imensa capa. Da sua figura até então conhecida e desdenhada pelos rodeienses, só tinha mesmo os pés descalços.

Era uma despedida. Daquela noite em diante, ele só se apresentaria em público com suas imensas botas pretas, feitas com o negro e inocente couro do Papelão, que ele mataria aquela noite.

Por sinal, Papelão morreu sem entender o que estava havendo. Nem desconfiou daquele facão amarrado na ponta da bengala. Como em noites anteriores, ele faria o seu papel, papel de Papelão, fingiria uma cólera que não sentia, bufaria um pouco, rasparia a serragem com as patas traseiras e daria alguns arrancos em direção a Francisco de Assis Rodano, tomando cuidado para não machucá-lo nem desmoralizá-lo.

Daí o seu espanto quando percebeu que o facão entrava em seu pescoço. Por um instante, pensou que fora um acidente. Francisco de Assis Rodano jamais faria aquilo com ele. O sangue espirrou. Papelão ouviu a plateia urrar, nunca gritara assim, o que estaria acontecendo? Procurou no olhar de Francisco de Assis Rodano uma explicação, mas o parceiro de tantas noites dava as costas para ele, recolhendo a aclamação da plateia que aplaudia o quê? Só então Papelão percebeu que já estava caído, o sangue empapando a serragem do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco. Custou a morrer, finalmente morreu como morre a carne.

Carne que não foi parar no açougue O Talho da Serra, mas repartida numa selvagem eucaristia entre a plateia, que se preparara para um embate entre as forças do Bem e do Mal representadas, respectivamente, por Francisco de Assis Rodano e por Papelão.

Enquanto Arranca, usando o mesmo facão que matara o boi, distribuía carne ao respeitável público, num festival pagão que cheirava um pouco ao Matadouro de Mendes, Francisco de Assis Rodano, que pedira o couro para si, pensava na sua vida e na sua próxima missão.

Sim, matara um touro que não era touro mas boi. Estava sendo aclamado. Enquanto Arranca distribuía a carne, ele, num canto do circo, enrolado em sua capa preta, sob o chapelão preto que fazia seu rosto ficar mais pálido e seus olhos mais corunscantes, descobria que de nada adiantava matar touros ou bois.

Precisava ir fundo, e depressa. Do negro couro de Papelão faria um par de botas, altas, até os joelhos. Assim revestido e assim reinventado, assumiria novas funções, não sabia quais nem quantas. Mas tinha um objetivo definido: depois de matar um touro que não era touro, mataria um Deus que não dera Deus. Era apenas o Outro.

 

                   DEPOIS DO BOI, A VACA

Foi então que, desinteressado do que acontecia com o primo, aos poucos fiquei sabendo de suas novas funções. Pouco a pouco ele começara a criar a fama de Lúcifer Encarnado, colocando Arranca em crise, pois o espanhol, apesar de ter matado um padre na Guerra Civil, e ter arrancado um trilho da Estrada de Ferro Central do Brasil, não passava de um Hércules da Mantiqueira, título indevido, pois Rodeio ficava na serra do Mar e não na Mantiqueira.

Teria de se separar e o fizeram. Arranca mais uma vez se arrancou com os escombros do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, agora sem touro e sem toureiro. Constava que tinha ido para Vassouras, onde a luta final entre o touro e o toureiro recebera um voto de congratulações na Câmara de Vereadores, iniciativa de um edil, Porfírio de Sousa, que era concunhado do farmacêutico Galeano de Rodeio, o do xarope peitoral maravilhoso e do purgante igualmente maravilhoso.

Francisco de Assis Rodano ficou. A seu lado ficaram duas mulheres que abandonaram Gargalhada: Anna, que dormia todas as noites com o Rival do Outro, e Amapola, que servia aos dois da mesma forma que servira a Gargalhada: em silêncio, pisando mansinho, como se não existisse, fazendo esforço para não existir.

Foi Anna quem arranjou com um português, dono de algumas casas de Rodeio, uma velha cabana no Arraial do Sapo, quase no início do caminho que leva ao morro Portugal, cabana abandonada que ninguém queria nem mesmo de graça, pois diziam que era mal-assombrada. Anna também trepava com esse português, pelo menos uma vez por semana: foi fácil a transação.

Nesse tempo, eu estava me desquitando e conheci uma família que morava na Urca, aparentada com aquela que viria a ser uma namorada mais ou menos constante e recorrente, pois a ela recorria sempre que me encontrava outra vez sozinho.

Fiquei sabendo das proezas de uma espécie de feiticeiro que morava num lugar perdido do estado do Rio, não sabiam nem o nome da cidade nem do feiticeiro.

Seria a última e definitiva encarnação de Lúcifer.

Quando recebi melhores informações, comecei a ficar preocupado. Era espantoso o que todos diziam desse Lúcifer de Barra do Piraí. Garantiam que tinha um pacto com o Demônio e só obrava pelo Mal. Apesar disso, em determinadas fases da lua ou calendário gregoriano, só para humilhar seu rival Todo-Poderoso, curava doenças incuráveis, ressuscitara um morto em Porciúncula, sabia os mistérios do futuro e explicava o passado - coisa mais difícil de ser feita do que adivinhar o futuro.

Uma noite, indo levar a namorada para casa, ela me convidou para subir. O feiticeiro de Barra do Piraí estaria lá em cima, mandado buscar de carro pela família dela, havia uma tia que sofria de ataques, diziam que era endemoniada ou coisa parecida.

Subi. O que vi me humilhou para sempre: Francisco de Assis Rodano, que em criança dormira uns tempos comigo na mesma cama, que chorava para brincar com a minha perereca, que tinha um avô comum, sem falar na tia Zizinha, santa, tia dele e minha, esse Francisco de Assis Rodano ali estava, no meio da sala, com seu chapéu preto de imensas abas, sua enorme capa preta, seu rosto pálido e seus olhos coruscantes. Como novidade: suas botas, enormes também, até o joelho, botas pretas do couro do boi Papelão, que só usava quando em desempenho do ofício de Lúcifer Encarnado e Rival do Outro.

Deu passes na endemoniada da Urca, disse palavras estranhas, cantou músicas estranhíssimas. Quando a função acabou e as luzes foram acesas, não me reconheceu no meio daquela gente que ele também não conhecia. Tampouco eu me aproximei, seria um vexame me apresentar ou ser apresentado como parente do Lúcifer Encarnado.

Soube depois que não cobrava nada. Mas seus clientes, da Urca ou de outros lugares, sempre davam um jeito de retribuir as graças do Rival do Outro, procuravam Anna, ela aceitava e às vezes sugeria presentes. A cabana no Arraial do Sapo foi melhorada e ampliada.

Mandei-lhe um recado por ninguém menos que Corintho da Fonseca, que viera à redação do jornal para me oferecer um livro de poemas de sua autoria, pedindo-me uma resenha - caso gostasse daquilo que ele, na dedicatório com que me honrou, chamava de estro.

Resolvi o problema de Corintho da Fonseca louvando-lhe o estro e ele resolveu o meu problema: dias depois de sua ida ao jornal, apareceu lá em casa o assombroso vulto de Francisco de Assis Rodano. Como Lúcifer Encarnado, como Rival do Outro e como primo, declarou-se a meu serviço.

 

                   INTROMISSÃO DO NARRADOR

Não sou dado a extravagâncias - a não ser a de continuar vivendo apesar dos argumentos em contrário que tenho para isso. Tampouco sofro de delírios, êxtases, fobias ou paranoias. Sem exagero - e sem mérito - posso me considerar um homem normal - minhas manias e vícios são medíocres, medíocres são meus sonhos, esperanças e possibilidades. Nesse particular, como em outros, sou o oposto a Francisco de Assis Rodano, que apesar dos pesares é meu primo.

Quando medito no que aconteceu - se é que realmente aconteceu -, meu primeiro pensamento não é para ele, Francisco de Assis Rodano, mas para Dante, que segundo Gustavo Doré tinha um visual mais ou menos parecido com o do primo: alto, magro, só que vestido de branco em vez de preto, e com uma coroa de louros na cabeça em vez do chapéu de profundas abas pretas.

Suspeito que Francisco de Assis Rodano, além de fuçar meus livros e se fixar na edição da Bíblia ilustrada pelo mesmo Doré, deve ter visto a edição de Dante e se inspirado na magérrima figura do altíssimo poeta para compor sua figura final: mistura de poeta e demônio, que não parecem mas podem ser a mesma coisa.

Na metade da vida, como em Dante, mais ou menos perdido na estrada, comecei minha descida ao Inferno, sem saber se um dia poderia voltar à superfície, “e quindi uscimmo a riveder le stelle”. Encontrei a vaca postada no meio do caminho. Não estava numa selva escura: cortava com o meu carro um atalho que se abria no vale que leva à antiga Fazenda dos padres onde estudei.

Eu havia me desquitado e ainda não tinha o que fazer nos fins de semana. Talvez sentisse falta de minha casa, do casamento, até mesmo de Marta - nos dias de trabalho as coisas passavam depressa. Os sábados e domingos eram compridos, eu os gastava refazendo caminhos, tentando recuperar itinerários que, de uma forma ou outra, me ajudassem a compreender o tipo de homem em que estava me tornando. Ou simplesmente para matar o tempo - o que talvez fosse o motivo verdadeiro e único.

Semanas antes, eu chegara a ir a Niterói - recurso dramático para qualquer mortal desafiar o tempo. Anos atrás tivera uma namorada em Icaraí e num recente fim de semana lá fui eu. Recusei pegar a ponte, preferi a barca, e durante três ou quatro horas me senti mais estúpido do que nunca, sentado num banco da praia, olhando o Rio de Janeiro do outro lado da baía.

Foi então que percebi o perigo que me rondava. Acho que essa ida a Niterói foi um aviso, uma premonição do que me ameaçava. Eu poderia me transformar num monstro, capaz de tudo - se não parasse com a mania de visitar o passado. Depois que se vai a Niterói, tudo é possível.

Procurei passar dois ou três fins de semana em casa, arrumando livros, discos e ideias, mas logo tive uma recaída: peguei o carro e me meti na estrada. Inicialmente pensei em ir a Friburgo, em busca de memória igual à que me levara a Niterói. Em Friburgo passara temporadas que não me interessava visitar.

Embiquei para Petrópolis, cidade onde nada tenho a fazer ou recordar. Mais adiante sim, depois de Itaipava, há o caminho para a Fazenda das Arcas - onde os padres mantinham a casa de férias e onde, durante dez anos, passara os verões e os meses de julho.

Deixei a estrada asfaltada que leva a Juiz de Fora e peguei o velho, o conhecido caminho das Arcas. Não visitava aquela região havia anos e ignorava as novidades: uma delas era a ponte que estavam construindo em cima do riacho - no qual, certa manhã, quase me afoguei, salvou-me um colega que ironicamente se chamava Cristóvão.

As obras me obrigaram a um desvio e esse desvio me obrigou a outro, até que reconheci, subitamente, o pequeno vale onde corria o rio Santo Antônio, lugar preferido para nossos piqueniques.

Já visitara a Fazenda e os caminho de Itaipava algumas vezes, mas nunca retornara àquele vale. Nunca voltara a pensar nele: duas, três vezes durante as férias, os padres marcavam um piquenique ali, havia o rio de águas boas e perfumadas pelas quaresmeiras do final de verão. Fora disso, o vale não existia nem existiria em minha lembrança, não fossem as circunstâncias daquela manhã.

Eu me orientava através do atalho, que nem sequer era atalho, mas trilha mal aberta no meio do capim rasteiro, trecho raramente trafegado por gente ou carro. Atrás do pequenino morro ficam a Fazenda e a trilha que leva não exatamente à Fazenda, mas aos campos de milho e feijão que os padres cultivavam, na parte mais plana da propriedade.

Dali em diante seria fácil chegar à capelinha que tanto me deslumbrou a adolescência e cujo sino me despertara, durante dez anos. Sino que ainda escuto dentro de mim, fragmento e resumo daquilo ficou sendo a “Fazenda”.

Foi aí e então. Preocupado em manter as rodas dianteiras do carro na estreita trilha de capim mais ralo, quase não olhava para a frente e, quando olhei, vi.

A vaca.

Era uma vaca palustre e bela - não, não era bem isso, era simplesmente uma vaca como todas as vacas costumam ou devem ser: admito que nunca me preocupo com vacas, meu arroubo pastoral nunca foi além da Fazenda de Itaipava, mais pelo sino de sua capela do que pela Fazenda em si.

Agora, diante da vaca, a primeira lembrança que me veio foi desagradável. Visitava a Índia e aluguei um carro para conhecer cidades do interior. Numa delas, esbarrei com uma vaca no caminho, enorme e escura, que lambia vagarosamente o chão da estrada. Eu fora informado de que a vaca é animal sagrado naquelas paragens. Fiquei sem saber como superar o problema e a vaca. Se buzinasse, ela podia se assustar e eu teria criado um caso. Não havia ninguém perto. Sair do carro e meter um pontapé na vaca seria perigoso, ela poderia revidar com uma chifrada. Mesmo assim, saí do carro e fiquei olhando o animal, até que ela se decidisse a ir embora.

De repente, apareceram uns mendigos de estrada, que ficaram estupefatos com a cena: uma vaca, um carro e um forasteiro. Para que não me levassem a mal, tive a péssima ideia de bajular a vaca. Aproximei-me de sua garupa, fazendo-lhe um afago. Os mendigos começaram a gritar, brandindo seus cajados (eles tinham qualquer coisa nas mãos que parecia um cajado).

Pouco a pouco surgiu mais gente, uma pequena multidão, cada vez mais encolerizada. Eu tinha razões para suspeitar de que era o objeto daquela cólera. Felizmente apareceu um guarda que me afastou da turba e me levou a uma autoridade. Depois de alguma confusão - eu falava um péssimo francês e ali ninguém falava nenhuma língua ocidental - consegui entender o motivo da indignação: eu profanara a vaca com minha suja mão de ímpio, comedor de comidas proibidas, fornicador de mulheres impuras, enfim, eu fizera o equivalente a um selvagem que chega a Jerusalém e urina nas pedras do Muro das Lamentações.

A confusão se desfez quando declarei a intenção de pagar a blasfêmia mostrando alguns dólares. Tudo se resolveu. Voltei ao local onde havia deixado o carro, a vaca tinha ido embora. Não cheguei a suspeitar dos indianos: quem sabe aquela vaca, no meio da estrada, não fosse uma cilada?

Foi nisso que pensei quando me vi, pela segunda vez na vida, impedido de avançar na própria vida por causa de uma vaca. Entre a Índia e Itaipava muitas diferenças podem ser colocadas, mas há um denominador comum: não se pode atravessar uma vaca, como se ela fosse um obstáculo inexistente.

Mesmo sabendo que não havia nenhum indiano nas imediações, evitei sair do carro para afagar a vaca. Limitei-me a buzinar, de mansinho, em pequenos toques, para não assustá-la nem irritá-la.

Ela fingiu que não ouvia, ou talvez nem ouvisse mesmo, por surdez ou outra causa qualquer. Sei vagamente que os animais percebem faixas sonoras diferenciadas, o trovão é inaudível para a aranha e o jacaré ouve o barulho de um fio de cabelo caindo na água.

Aumentei o volume e frequência das buzinadas, até que desesperei: a vaca permanecia imóvel, olhando-me com seus olhos enviesados, mas doces. Comecei a xingá-la - foi a minha perdição. Os primeiros palavrões saíram espontâneos e adequados (vaca filha da puta!), ela nem se mexia nem ameaçava tomar represália. Chamei-a de puta - uma variante do “filha da puta” inicial e que causou a mesma reação: nada.

Olhei para trás a fim de descobrir uma alternativa. Dando marcha à ré eu poderia contornar a vaca. Mas era impossível, havia um barranco que arrebentaria o porta-malas do carro.

Voltei às buzinadas e aos palavrões. Sabiamente (e eu teria razões para considerá-la sábia) ela continuou a me olhar enviesado, sem espanto ou ressentimento. Seus olhos continuavam doces.

Foi então que, na pausa entre duas buzinadas, gritei-lhe com raiva:

- Vá tomar no cu!

E aí aconteceu. Sem se mexer, com olhos enviesados e doces, ela respondeu:

- À votre service!

 

Olhei em torno. Não havia nada e ninguém, só a vaca. Deus é testemunha de minhas fraquezas, mas nunca fui dado a ouvir vozes. E eu ouvira a voz macia, voz de recepcionista em hotel cinco estrelas a quem se pergunta se alguém dá informações. “À votre service!” Antes do espanto, antes de qualquer outra coisa, pensei logo em Francisco de Assis Rodano. A inexplicável associação de ideias e circunstâncias teria alguma justificação, mas, no momento, lembro que pensei nele e não sabia por que nem para quê.

Voltando à vaca: já nem lembrava o que perguntara ou ordenara para merecer aquela resposta. Examinei novamente a periferia, para ver se descobria explicação para a voz que saíra - ou julgara ter saído - da vaca. Em dúvida, decidi não mais xingá-la, evitando qualquer diálogo com ela.

Para distrair a raiva - que se transformava numa espécie de pânico -, saí do carro para mijar no barranco que impedia a marcha à ré. O pior que podia acontecer era a vaca, vendo-me do lado de fora, avançar e me enfiar os chifres.

Abri a porta com cuidado, sem fazer ruído. Arrisquei uma perna para fora, depois outra. A vaca não se mexeu, apenas me fixava, enviesada e doce. Fui ao barranco, olhando sempre para trás, a fim de me antecipar a um ataque. Urinei em cima de umas espadas-de-são-jorge que nasciam no barranco, braviamente. A mijada seria nornal se eu não tivesse o cuidado de ocultar a própria da dita, ou seja, ocultar a mijada da vaca.

Em condições normais, tanto me faria mijar à vista do papa, do Dalai Lama, do secretário-geral das Nações Unidas ou da rainha-mãe do Império Britânico. Sabendo-me observado pela vaca, procurei esconder de seus olhos enviesados e doces aquela função natural a qualquer vaca ou homem.

Voltei ao carro depois de me certificar de que a calça estava com a braguilha fechada. O detalhe - penso hoje - foi revelador: ele marcaria minhas relações com a vaca num nível de exemplar correção. Foi a primeira coordenada, ainda em estágio inconsciente, do futuro relacionamento com ela. Pelo menos, até a entrada de Francisco de Assis Rodano, que igualmente me criaria um tipo de problema parecido.

Peguei o volante com a decisão tomada: ligaria o motor e avançaria. Não pretendia machucá-la, apenas espantá-la. Como se empurra um carro enguiçado para a frente, eu podia aproximar o para-choque dianteiro de suas patas traseiras. E se a vaca se obstinasse em permanecer ali, eu a empurraria, de leve, até que ela desanimasse de me sacanear e abrisse o caminho.

Foi o que fiz. Ou melhor: tentei fazer. Quando virei a chave do motor, ouvi o barulho seco, arranhado, metálico. Na pressa e na irritação da parada imprevista, qualquer coisa enguiçara no circuito de ignição ou do arranque.

Se já estava de péssimo humor, fiquei pior. Eu não podia permanecer ali, no meio de um vale e diante de uma vaca. Estava tão furioso que esqueci o principal. O problema não era a vaca. O importante era a frase mansa, acompanhada do olhar enviesado e doce: “À votre service!”.

Para diluir o espanto, catuquei o acelerador, puxei o afogador, contei tempo para espaçar uma nova virada no arranque. O carro não pegava. Senti o cheiro de gasolina, característico de motor afogado.

Saí novamente - e nem me dei ao trabalho de olhar a vaca, que continuava na frente do radiador. Levantei o capô - cerimonial que cumpri simbolicamente, nada entendo de motores. Com o capô aberto ou fechado daria na mesma. Se o enguiço fosse sério e não chegasse ninguém para me ajudar, eu acabaria dormindo ali e ali ficando para o resto dos meus dias, com ou sem vaca na frente.

O motor nem quente demais estava. Tudo parecia normal, cada coisa em seu lugar, parafusos, porcas, bielas, sei lá, o motor, em si, me pareceu mais completo, perfeito e bem-acabado do que a própria vaca que eu sentia agora mais próxima, olhando-me com curiosidade.

Já não me preocupava com a vaca. Queria que o motor voltasse a funcionar, depois pensaria num jeito de me livrar dela. E pensei em Francisco de Assis Rodano, ainda informemente, como se pensa nos botes salva-vidas quando se anda de navio.

Dei tapinhas no carburador procurando ver se alguma coisa acontecia. Depois soquei as peças que me pareciam mais sólidas. Tentei outra vez o arranque. Nada. Tornei ao motor, esmurrei-o com raiva. Acabava de dar forte sacudidela no filtro de ar - peça que, por ser maior, atraía especialmente a minha ira - quando ouvi a voz mansa e doce:

- Puxa o cabo do acelerador!

Na aflição que eu me achava, nem me dei direito ao espanto. O cabo do acelerador estava fora do lugar, um parafuso frouxo deslocara o fio de aço do qual dependia o funcionamento do motor. Com a ponta dos dedos, conseguir rodar o parafuso, fui ao volante, virei a chave, houve um espirro nas entranhas do carro e o motor ameaçou pegar, insisti no acelerador, pronto, estava salvo.

Ou melhor: estava condenado. Além de outras certezas que adquiri mais tarde, comecei por aceitar uma verdade temerária: a vaca entendia de mecânica. E pela primeira vez olhei o mundo com novos olhos: se uma vaca entendia de mecânica, bem que meu primo Francisco de Assis Rodano podia realmente ser o Lúcifer Encarnado, o Rival do Outro.

Talvez a vaca entendesse apenas de carburador. Ou, por extensão, de motores de explosão em quatro tempos. E nada entendesse, por exemplo, de um motor de explosão de dois tempos. Haveria, como em todo mundo, uma hierarquia nos conhecimentos daquela vaca, mas para me preocupar bastava o ponto de partida: ela entendia de alguma coisa melhor do que eu.

Lá estava ela, com o olhar enviesado e doce, um certo sarcasmo na boca enorme e papuda que parecia engolir uma saliva inexistente.

Foi neste instante que nossos olhares se cruzaram para valer - e aí foi pior: a vaca me olhou com malícia obscena. E sem que eu pedisse, sem que gritasse ou buzinasse, sem que nem mesmo acelerasse o carro, ela se desviou, abrindo-me o caminho, um peso submisso em seu pescoço, alguma tristeza em sua garupa que não era palustre e bela, mas um pouco magra, sem brilho.

Se tivesse de passar entre detonadores de duas bombas de hidrogênio, eu não teria tanta cautela: avancei de mansinho, em regime de máxima cautela, acreditando que se me desviasse um milímetro da trilha que me fora aberta, o mundo poderia ser destruído. Ou, em hipótese menos dramática, eu próprio ser aniquilado.

Já estava um metro adiante da vaca - que se postara ao lado, vendo-me passar com seus olhos enviesados e doces - quando achei que o momento exigia uma frase histórica e, tanto quanto possível, sincera. Sem ter coragem de virar o rosto em direção à vaca (seria intolerável olhar para ela), disse em tom baixo e polido, que certamente não foi ouvido por ela:

- Obrigado!

Foi fácil localizar os campos de milho e feijão que pertenciam à Fazenda das Arcas. No meu tempo, eles já existiam e os milharais chegaram a ser responsáveis pela mais deplorável imagem poética de nosso hino oficial:

 

             Oh, que vida tão feliz

           Paira nessas mil campinas

             E esses verdes milharais

             Falam-nos da messe divina...

 

Os milharais ali estavam embora menos verdes. Nem eram mais verdes, cresciam amarelecidos, lembrando as palmas de Sexta-Feira da Paixão distribuídas nas igrejas e que os devotos conservam o ano inteiro. Com o tempo vão ficando de um amarelo mumificado e triste.

Andei dois, três quilômetros no meio do milharal e logo divisei, à distância, a pequenina torre, o sino esverdeado, mudo. Toda vez que eu torno a ver aquele sino, tenho a impressão de que volto para casa: chego a algum lugar.

Agora, o sino me parecia inútil. Tinha pressa de encontrar alguém, precisava de um testemunho. Felizmente, pouco adiante encontrei uma choupana, talvez de algum agregado da fazenda. Parecia vazia. Vazia estava. Seu único ocupante não continha em sua matéria substância bastante para ser considerado um “ocupante”. Era velho, magro, ressequido como o cigarro de palha que fumava.

Estava sentado numa pedra, do lado de fora do casebre. Levei novo susto: botando uns quarenta anos em cima dele, o velho poderia ser Francisco de Assis Rodano em fase terminal na sua carreira de Lúcifer Encarnado.

Olhado em conjunto, parecia uma coisa só: a pedra, o cigarro, o casebre, o velho. Ele não se espantou com a minha aproximação - e na verdade não se espantava com nada. Permaneceu imóvel, molusco fossilizado junto de sua pedra, seu cigarro, sua choupana.

- Bom dia - cumprimentei, tentando ser amável.

Ele não respondeu. Olhou-me sem curiosidade, mas com desagrado. Evidente que a minha presença o molestava, qualquer incidente que o tirasse de suas ideias ou não-ideias era-lhe odioso.

- Bom dia - repeti. - O senhor é daqui?

Só depois percebi que a pergunta, como quase todas as perguntas, era idiota. Evidente que o homem era dali. Por isso mesmo, não estranhei quando não mereci resposta.

Queria entrar no assunto mas temia a hostilidade daquele homem que podia ter de sessenta a cento e vinto anos.

- Eu vinha sempre à fazenda... passar férias... de certa forma sou daqui também...

O velho continuou imóvel, em silêncio, sem tomar conhecimento de minha presença e de minhas perguntas. Não adiantaria perder tempo: o jeito seria entrar no assunto:

- O senhor conhece uma vaca... uma vaca que fica por ali, naquela trilha do rio?

Nada se mexeu no rosto do homem. Simplesmente ele não me dava importância. Examinei seus olhos, para verificar se a alusão à vaca o inquietava. Nada. O mesmo olhar de Francisco de Assis Rodano quando ouvia música, lá em casa, só que o primo ficava de pau duro. O velho não devia mais ser disso.

- Uma vaca meio magra... - continuei - desgarrada do rebanho... estava sozinha ali, no meio da trilha... quase a atropelei com o carro...

O homem olhava para um ponto no espaço. Não me ouvia nem sequer me via. Tanto lhe fazia que eu houvesse encontrado uma vaca ou um tesouro: nada era com ele.

- O senhor nunca viu essa vaca? Ela deve andar por aí, talvez venha até aqui... às vezes...

O velho finalmente se mexeu. Tirou o cigarro da boca e cuspiu, um cuspe grosso e redondo que parecia uma gota de vidro em estado de fusão. Tanto que, ao bater na terra, ficou a fervilhar.

Era um sinal animador. Insisti:

- Ela anda por aí... e volta e meia deve aparecer... há muito pasto dando sopa...

O velho metera o cigarro de palha na boca com a decisão do Lorde do Selo que fecha o cofre de Sua Majestade: dali não sairia nada.

Era para desanimar. Apesar disso, lancei a última cartada:

- Ela me ajudou a desenguiçar o carro... pediu que eu olhasse o carburador...

Subitamente, com raiva nos olhos, o velho tirou o cigarro da boca e gritou com a voz fina e irritada de ancião:

- É chute daquele filha da puta! Ela não entende nada de mecânica!

Como o velho não olhasse para mim, dispensei-me de disfarçar o tranco que levara.

O velho conhecia a vaca, e mais do que isso, sabia de suas habilidades! O mundo enlouquecia ou era eu que começava a ficar louco. Mesmo assim, e para obter maiores informações, defendi a vaca:

- Ela quebrou meu galho! Era o carburador mesmo!

O velho ficou vermelho, cuspiu novamente - e o fez com tamanha indignação que o cigarro de palha foi para o chão junto com o cuspe.

- Chute! Chute daquela filha da puta! Ela é metida a entender de mecânica mas não entende nada. Nem de agricultura nem de tempo.

- Tempo? - Eu dei corda para que o velho continuasse.

- Sim, tempo! Eu cheguei a acreditar nela, cismava que uma vaca devia conhecer metrologia...

- Meteorologia... corrigi, e logo me arrependi.

- Pois ela não acerta uma, diz que vai chover e faz sol, diz que vai ter sol e cai temporal! Uma vigarista! Filha da puta!

Para não irritá-lo, concordei em que a vaca era vigarista e filha da puta. Indigna de crédito. Ignorante em meteorologia e em carburadores. Apesar disso, eu tinha uma razão particular para me interessar pela vaca.

O velho me olhou incrédulo:

- Ela só diz besteira!

- Por isso mesmo - respondi, e aí foi o velho que não entendeu mais nada.

- Se quiser a vaca, que vá atrás dela! Comigo ela não se faz de besta! Se passar daquele roçado... meto um tiro nela!

O velho começou a ficar cada vez mais vermelho, como se fosse explodir. Ele odiava profundamente a vaca - e devia ter seus motivos. Nada mais poderia arrancar dele. Contudo, já me fora útil: ele sabia. Era uma prova, um testemunho de que eu não estava doido.

E foi com esse alívio besta que avancei entre os pés de milho, peguei o carro e finalmente me dirigi à Fazenda.

Onde apenas cheguei, dei meia-volta, olhei tudo sem interesse e voltei: nada daquilo me interessava agora. O sino, a capelinha branca, os dois açudes que refletem o céu e a mata do morro, onde, antigamente, os escravos eram enterrados. Eu pisava um chão estranho aos meus pés e ao meu coração.

Curiosamente, não pensava na vaca, não pensava em nada, desejava apenas voltar para o Rio, abrigar-me em casa, como o criminoso que, depois de esquartejar sua vítima, procura o canto onde possa ficar escondido, livre não apenas da polícia, mas da própria consciência.

Não sei por quê, a figura e o ofício de Francisco de Assis Rodano não mais me deixaram. Eu passara anos sem me preocupar com ele, sem pensar que tinha um primo que ameaçava matar Deus. E agora, depois da vaca e do velho, era como uma revelação que vinha do fundo de minha carne: o mundo era assombroso. O primo mataria Deus e eu falara com uma vaca. Para ser exato: uma faca falara comigo.

Voltei pela mesma estrada. Ao passar pelo vale não vi a vaca. Perguntei por ela, os operários que trabalhavam na ponte estavam almoçando, parei o carro e fui até eles. Ninguém tinha visto qualquer vaca, cavalos sim, volta e meia aparecia um pangaré raspando o capim-melado. Vaca, me asseguraram, não havia nenhuma.

Já ia me afastando quando um deles, o mais velho do grupo, me estranhou:

- O que o senhor quer com a vaca? Ela é sua?

- Não... não é minha...

- Então... por que pergunta por ela?

- Bem... - E procurei uma história que explicasse meu interesse. Notei que o homem me considerava tarado, desses que costumam levar vacas e éguas para um barranco, hábitos do homem que vive no campo, não de um homem com carro, sapatos engraxados, o tipo urbano que sou.

O operário me sondou, metade por raiva, metade por curiosidade:

- Hem? O senhor gosta, não é?... Pois...

- Pera aí - interrompi. - Eu não sou o que o senhor está pensando!

Percebi que a minha reação era cretina, parecia a donzela suburbana que é abordada na rua pelo velho que lhe mostra o maço de notas.

O operário recuou, olhou para o chão, meio envergonhado, mas voltou à carga:

- Se o senhor gosta, eu posso lhe arranjar outra vaca... Lá no curral do meu compadre tem umas que são viciadas... a Taís, por exemplo...

Insinuou a corretagem com tamanha inocência que não tive condições para bancar o ofendido. Achei divertida a proposta.

- Não, não me interessa a Taís nem qualquer outra vaca... eu preciso encontrar aquela... a que estava ali, naquela trilha lá adiante... sabe qual é?

- Mais ou menos... uma que é meio magra, com mancha amarela perto do pescoço?

- Essa mesma - quase gritei. - Sabe onde posso encontrá-la?

- Meio difícil... ela anda muito por aí, ora está nesse pasto, ora naquele, depois some, passa semanas sem aparecer... E olhe que nunca ninguém se interessou por ela... o senhor é o primeiro...

- Tem sempre um primeiro nessas coisas...

- É. Tem sempre um primeiro... mas se o senhor quiser uma vaca experiente, mansa, que se afeiçoa ao homem, é só falar com o compadre...

- Não. Muito obrigado. Muito obrigado mesmo.

Afastei-me. Sabia que o homem me observava e me observou até que entrei no carro. Não olhei para trás.

Quando, pouco depois, ia atingindo o asfalto da União-Indústria, tive vontade de voltar, ser mais claro com o operário da ponte, perguntar mais e melhor sobre a vaca, e, quase ao mesmo tempo, procurar Francisco de Assis Rodano.

“Amanhã esquecerei a vaca. Ando muito cansado, foi um delírio, basta um maluco na família - e que maluco! A semana de trabalho trará as preocupações de sempre e pronto, tudo voltará ao normal e eu nunca encontrei uma vaca. Com quarenta e dois anos nas costas, eu nunca realmente acreditei na existência das vacas. Houve aquele caso na Índia, mas lá a vaca é um ídolo, um objeto sagrado, como uma hóstia ou o rolo da Torá. Vaca por vaca, sei que elas não existem, o leite é uma farinha produzida nos laboratórios, duas colheres de pó e um copo de água - eis o leite, quem garante que existam vacas?”

Chego em casa com esse pensamento tranquilizador: não existem vacas. Guardo o carro na garagem e subo ao apartamento. Entro no quarto e olho no espelho. Compreendo - e desculpo - por que o operário me oferecera as vacas do rebanho de seu compadre. Eu tinha a cara, o cheiro e a gana de quem queria comer uma vaca. Descontado o rosto mais cheio, os olhos com menos brilho, eu não era tão diferente assim do meu primo que decidira matar Deus. E que começara sua missão matando um boi.

Não era o caso de também matar a vaca. De nada me adiantaria matá-la, não a compreenderia melhor, nem me compreenderia bastante.

 

A semana foi comprida, difícil. Para não pensar na vaca, pensei em mim mesmo, no trabalho sobretudo - e talvez nunca tenha trabalhado tanto. Pela idade, pelos anos de profissão e, quem sabe, por alguma habilidade pessoal, eu tinha alguns privilégios, muita quilometragem rodada. Isso sempre contava na hora de recusar uma tarefa ou defender um ponto de vista na esfera em que se permitem pontos de vista dentro de um jornal. Naquela semana trabalhei como um idiota.

Além do plantão a que era obrigado às terças-feiras, eu me ofereci para cumprir plantões de colegas dos quais nem era amigo. Cheguei a ajudar o arquivista que tentava iniciar o Departamento de Pesquisa.

A intempestiva dedicação ao jornal só não despertou suspeitas porque todos sabiam que eu havia me separado de minha mulher. A disponibilidade para o trabalho foi tomada como macete pessoal para não entrar em desespero.

Procurei me atordoar e atordoado vivi aquela semana. Houve uma noite em que, meio apavorado, suando frio, temendo dormir e ter pesadelos mais terríveis do que aquele que vivia, decidi procurar Francisco de Assis Rodano. Afinal era meu primo, de certa forma eu o iniciara na música, fora a mim que ele perguntara um dia, no começo de sua gestação espiritual: “Afinal, esse tal de Jesus Cristo existiu mesmo?”.

Mas na manhã seguinte desisti, atribuí a insegurança à hora do lobo que ataca os homens de minha idade, na solidão das noites, na lucidez das insônias.

Até que, no sábado, quando dei por mim já estava fazendo aquelas curvas antiquadas na serra de Petrópolis, a caminho de Itaipava. Era cedo, nem nove horas ainda, quando deixei a União-Indústria e peguei o atalho que me levaria à Fazenda.

Logo encontrei os operários que trabalhavam na ponte, a obra tinha avançado uma insignificância, parecia no mesmo ponto da semana anterior. Passei pelos operários, evitei ser identificado pelo camarada que me oferecera às vacas do compadre.

Reconheci o local do encontro. Parei o carro, olhei em torno. Nenhuma vaca à vista. Nem cheiro de vaca havia no ar - como estava num vale e havia lírios à margem do rio, um perfume forte e enjoativo me dava a sensação de estar ao mesmo tempo num casamento e num enterro.

Não tinha nada a fazer, além de encontrar a vaca. O jeito era esperar e muito esperei até que o sol apertou e desconfiei que a vaca não apareceria. Desconfiava também, e com bastantes razões, que não teria condições de atravessar mais uma semana naquele suplício.

Tirante a pergunta que fizera ao operário, logo depois de ter conversado com o velho da Fazenda, eu não havia comentado o encontro com ninguém. Verdade que cheguei a pensar em consultar um analista, um profissional que me explicasse a miséria a que havia chegado, ouvindo e dando importância a uma vaca. Sem falar no pedido de socorro que quase lancei ao primo que ameaçava matar Deus.

O mais prático, naquele instante, seria voltar à Fazenda e procurar o velho. Ele também conhecia a vaca, mais e melhor do que eu, sabia que se tratava de uma vigarista que nada entendia de mecânica ou de meteorologia.

Fui andando pela trilha de capim ralo, até os campos de milho. Lá estava a choupana, mas lá não estava o velho. Saltei do carro. A porta estava aberta, entrei e examinei o cômodo único onde o velho comia, dormia e, entre uma e outra função, vivia.

Já ia me afastando da choupana quando vi uma mulher que catava feijão entre os pés de milho. Aproximei-me e perguntei pelo velho. A mulher fez um gesto com o indicador, girando-o em um lado da cabeça.

- Ele não está? - perguntei.

Foi a vez de a mulher me perguntar se eu era maluco:

- Então o senhor é maluco também? Não sabe que ele morreu?

- Ele quem?

- O maluco.

- O velho?

- Sim. O velho maluco.

As coisas tomavam forma: o velho era maluco e havia morrido.

- Semana passada eu estive aqui e ele me pareceu em excelente forma.

- Pois morreu. Era velho, maluco e morreu.

Do jeito que ela falava, todos os malucos deviam morrer porque eram malucos e todos os que morrem acabam morrendo pelo fato de serem malucos.

- Mas por que era maluco? Ele me parecia normal.

A mulher - não era moça nem velha - olhou-me, havia pena e raiva em seu espanto.

- O senhor não sabe de nada! Então não sabe que o Aristides estava maluco há muito tempo?

Eu nem sabia que ele estava maluco nem que se chamava Aristides.

- Sinceramente, não posso acreditar que o Aristides fosse maluco e tenha morrido assim, tão de repente.

- Todo mundo morre - afirmou a mulher com autoridade. - Ainda mais um maluco como ele. Sabe a última mania dele? Ensinar um porco a ler!

- Um porco?

- Sim, um porco!

- Tem certeza que não era uma vaca?

- Uma vaca? - A mulher me olhou perplexa. - Por que o Aristides iria ensinar uma vaca a ler?

- Falei por falar, um porco ou uma vaca... dá na mesma... e o Aristides conseguiu alguma coisa?

- Conseguiu o quê? Que o porco falasse?

- Sim. O porco chegou a falar qualquer coisa?

A mulher abandonou os feijões que catava e veio me espiar mais de perto. Evidente que estava com medo de mim. Eu a assustara de algum modo. A arrogância com que me tratara transformava-se numa mistura de receio e pena. Com voz mais suave explicou:

- O Aristides sempre deu errado na vida... Não, ele não conseguiu nada com o porco... nem nada com ninguém... apenas, no caso do porco, ele levou o negócio a sério... Quer ver?

Antes que respondesse, ela me encaminhou para os fundos da choupana. Encostados num barranco, havia cinco cartazes de papelão onde estavam escritas, com feitura rude, as vogais a, e, i, o, u.

- Está vendo esses cartazes? - continuou a mulher. - O Aristides mandou desenhar essas letras, bem grandes, e obrigava o porco a ficar diante delas. Ele gritava: Aaaa-aaaa, eeeeee... iiiiiii... o porco grunhia, hum... hum... hum... Não adiantou nada, o Aristides entrou em depressão, anteontem amanheceu morto, durinho, ali no meio do quarto...

- E o porco?

- Os padres da fazenda iam dar um churrasco...

Procurei alongar a conversa. Minha única testemunha, a única que podia atestar que eu não estava ficando maluco, havia morrido. Tinha de jogar tudo naquela mulher.

- Escute, agora que nos conhecemos melhor, você já viu uma vaca por aí... uma vaca meio magra, com mancha amarela no pescoço...

Ela ficou aborrecida:

- Lá vem o senhor com essa história de vaca... Há muita vaca por aí, as da fazenda ficam no pasto de lá, depois do morro do Cruzeiro, as vacas que aparecem por aqui são do Mundéu... A gente tem ordem de espantar qualquer animal que venha comer nosso capim... Se uma vaca estranha insistir, ela acaba virando churrasco, como o porco...

- Sim... o porco. Mas deixa o porco pra lá... você nunca ouviu falar numa vaca... numa vaca... - eu tinha dificuldade de ser claro - uma vaca esquisita...

- Esquisita por quê? Nenhuma vaca é esquisita. Vaca é vaca.

Olhei em torno. Não havia ninguém. Eu não podia desperdiçar aquele fiapo de testemunho que o Aristides deixara e do qual aquela mulher - que conhecera o Aristides - era a única esperança.

- Olha, o negócio é complicado... mas o Aristides sabia... ele mesmo me contou... uma vaca... uma vaca que... uma vaca que fala...

A mulher recuou dois, três passos. Olhou-me dos pés à cabeça. Não estava assustada mas insultada:

- O senhor foi acreditar no Aristides? Não sabia que ele era maluco?

- Eu nem sabia que ele era o Aristides...

A mulher olhou-me demoradamente e decidiu que não mais perderia tempo comigo. Voltou a catar os feijões. Para ela, eu não existia. Desanimei de obter melhores informações sobre a vaca. Dali não sairia mais nada.

Voltei para o carro, voltei para o Rio. Ao entrar em casa, descobri que ficara livre da vaca. Mas encontrei, deitado no sofá, com suas imensas botas feitas do couro do Papelão, magro, olhando o teto, ouvindo a Nona sinfonia, o Rival do Outro, o Lúcifer Encarnado, o primo Francisco de Assis Rodano.

Como sempre, ele devia ter escolhido a música sem saber o que fazia. Para ele, a Nona ou a Quinta, de Beethoven ou Mahler, daria no mesmo. Em princípio, ele só ouvia sinfonias por acaso, quando o disco que botava no prato era mesmo uma sinfonia. Podendo escolher, ia diretamente para os concertos de piano e orquestra.

No início, eu pensava que o gênero não fazia o gênero dele. Aos poucos, fui percebendo que ele próprio, se não chegava a ser, tinha alguma coisa a ver com os concertos de piano e orquestra. E como não aceitasse nenhum maestro (nem mesmo aquele a quem chamava de Outro), o piano (que era ele) ia para um lado e a orquestra (que era o resto) ia para outro.

 

                   CENTRAL X LEOPOLDINA

Ele se identificara na portaria do prédio não como Lúcifer Encarnado nem como Rival do Outro, mas simplesmente como primo. O porteiro, um baiano chamado Amaro, levou um susto dos diabos quando viu o homem magro, esquelético, com aquelas botas, o chapéu de imensas abas, a capa preta que roçava o chão.

Quando entrei no apartamento, Francisco de Assis Rodano só estava de botas: a capa e o chapéu ele jogara em cima da minha mesa de trabalho.

Parecia em transe. Concentrado na música que ouvia, não deu pela minha chegada, nem estava ali. Só me percebeu quando o disco acabou - já era um dos primeiros longa-duração, eu me prometera desfazer da coleção dos setenta e oito rotações, não havia ninguém melhor para herdá-la do que Francisco de Assis Rodano.

Com o fim do disco, ele me olhou como se houvéssemos estado juntos pela manhã. E como nada falasse, achei que a iniciativa devia ser minha:

- Foi bom ter aparecido. Ando pensando muito em você.

Ele me surpreendeu com a resposta:

- Eu também.

Procurei disfarçar o espanto. Afinal, era difícil acreditar que Francisco de Assis Rodano pensassem em alguém, sobretudo em mim. Mas ele se explicou:

- Sabe... eu fiz aquela pergunta que você mandou...

Eu não lembrava de pergunta alguma. Ele percebeu.

- Aquela pergunta, se esse tal de Jesus Cristo existia mesmo. Você mandou que eu perguntasse a tia Zizinha...

- E você perguntou?

- Perguntei.

- E ela?

- Disse que, existindo ou não existindo, dava na mesma.

- E ela acreditava?

Francisco de Assis Rodano foi à vitrola, mudou o disco, voltou para o sofá no qual estivera deitado. E antes de se entregar ao silêncio com que ouvia qualquer música, falou com um tom de voz que, sem esforço de memória e sem exagero, parecia com o da vaca quando se declarou a meu serviço:

- O que é acreditar?

Antes mesmo que eu tentasse responder - se acaso tivesse uma resposta decente para a pergunta -, Francisco de Assis Rodano deitou-se, esparramou as magras pernas no sofá, as imensas botas ficavam de fora, fechou os olhos com o antebraço direito sobre o rosto, desligou-se do mundo. Eu já conhecia de outras vezes sua capacidade de fuga. Temi que ele, como de outras vezes, ficasse de pau duro. Mas se ficou ou não, a calça de brim vagabundo o escondia.

Esperei o novo disco terminar, era uma peça de Ravel para duas harpas e conjunto de câmara, não conseguia entender como Francisco de Assis Rodano podia apreciar um tipo de música tão sofisticado. Mas não era apenas isso que eu não compreendia nele. E, o que era pior, começava também a compreender cada vez menos de mim próprio.

O disco acabou e Francisco de Assis Rodano não se mexeu. Devia estar dormindo. Fui desligar a vitrola, mas ele pediu, sem tirar o antebraço do rosto:

- Bota aquela música do Napoleão...

Eu sabia que era o Concerto número 5, para piano e orquestra, de Beethoven, música preferida dele. Enquanto catava o disco na estante, dei graças a tudo aquilo: afinal, eu deixara de pensar na vaca.

Estava pessimamente informado. Quando achei o disco e ia colocá-lo no pick-up, com o rosto ainda tapado pelo antebraço ossudo, Francisco de Assis Rodano perguntou:

- Vocês aqui da cidade que sabem tudo, já viram um boi falar?

Ia respondendo que boi não, nunca tinha sabido de boi algum que falasse, mas de uma certa vaca... Para meu alívio, o primo continuou, como se eu não estivesse ali:

- Conheci um boi que falava comigo... eu o matei... por necessidade, precisava do couro dele para fazer essas botas... mas gostava dele, era meu amigo até o dia em que... bem, eu o matei, ele me ensinou coisas...

- Que coisas?

- Tudo.

- Tudo o quê?

Ele pareceu ficar irritado. Deu uma espécie de pulo no sofá, o olhar estava baço, mais para o sono do que para a lucidez:

- Se você ouvisse um boi falar, o que esperaria ouvir dele?

Pela segunda vez, em poucos minutos, eu ficava sem dar uma resposta a Francisco de Assis Rodano. Acho que ele, tampouco, esperava resposta minha. Passou a mão numa das botas de couro e falou com alguma raiva:

- Eu estou armado. Já tenho aquela lança, aquela do soldado romano, agora estou com as botas de um boi que me ensinou tudo... posso começar a minha luta... você ainda vai ver...

- Que lança é essa que você arranjou?

- Roubei de uma igreja, lá em Vassouras... estava num nicho, com o Senhor Morto... sai nas procissões da Semana Santa... as botas me guiaram até lá... foi fácil roubar... Agora só falta um sinal para começar a luta...

- Bem, se você quer um sinal, acho que tenho um que pode interessar...

Ele não era de espantos. Mas o tom sério com que eu falara o perturbou. Ele sempre achara - e com razão - que eu não entrava na complicada disputa que ele havia muito desejava manter com o mundo, e, de certa forma, com aquele a quem chamava de Outro.

- Que sinal? Vocês aqui na cidade só enxergam sinais de trânsito...

Pensei em revelar o meu segredo. Mas senti que precisava de cautela. Desconversei:

- Você vai demorar aqui?

Ele voltou a deitar-se, esparramado:

- Não sei. Uns dias... uma semana talvez...

- Bom, se você ficar até o sábado, vou apresentá-lo a um sinal que não é de trânsito...

- Por que no sábado?

Eu mesmo não sabia dizer por que falei no sábado. Afinal, o encontro com a vaca tinha sido num sábado, mas até aí não havia prova de que aos sábados poderia encontrá-la. E que, igualmente, só nos sábados ela falaria alguma coisa comigo.

Mais uma vez desconversei:

- Estarei muito ocupado durante a semana... e o sinal é longe, lá para as bandas de Itaipava...

Eu sabia que Francisco de Assis Rodano, como rodeiense nascido em Barra do Piraí, desprezava as cidades que ficavam “do outro lado” do antigo estado do Rio. Ele se orgulhava dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil, como todos os demais cidadãos de Barra Mansa, Barra do Piraí, Três Rios, Santana, Mendes, Rodeio, Palmeiras, Serra, Mário Belo, Scheid, Queimados, Belém (atual Japeri).

Itaipava pertencia a outro universo, o da antiga Leopoldina Railway, que servia a região serrana, cujo núclo principal é Petrópolis. Havia rivalidades homicidas por causa dos dois ramais ferroviários, um morador do Méier desprezava o morador da Penha porque o Méier era subúrbio da Central e a Penha da Leopoldina.

Se isso acontecia dentro dos limites da cidade do Rio de Janeiro, fora dela, a rivalidade superava o desprezo e havia casos de morte sobre a excelência dos trilhos e equipamentos da Central em relação aos da Leopoldina.

Eu próprio, sem nunca ter morado no subúrbio, tinha um baita orgulho pelo fato de que a família de minha mãe, meu avô Acácio Nunes de Assis, minhas tias Zizinha e Zulmira, a figura austera de Joaquim Pinto Montenegro, que na minha imaginação era o responsável por todos os dormentes da linha férrea que ia até São Paulo e Belo Horizonte - toda essa gente, minha gente, que incluía remotamente o próprio Francisco de Assis Rodano -, pertencia aos trilhos da Central. Não chegava a odiar o pessoal do ramal leopoldinense, mas o desprezava, a começar pelo nome: “leopoldinense”, na minha infância era um palavrão que designava uma subumanidade.

Crescera, é verdade, superara essas disputas mesquinhas e delas me esquecera - eis que chega Francisco de Assis Rodano com suas botas pretas, seu corpo esquelético, e revive esse desprezo em seu rosto macerado, em seus olhos que havia pouco estavam baços e de repente ficam coruscantes:

- Itaipava? Um sinal em Itaipava?

Entendi o que ele queria dizer. Tudo o que não estivesse ao longo dos trilhos da Central do Brasil não pertencia ao mundo que interessava, ao mundo real em que Francisco de Assis Rodano vivia e no qual disputaria o poder com o Outro. Para um rodeiense como ele, filho do Choca, sobrinho de Maria das Graças de Assis, mais conhecida como Zizinha, o ramal da Leopoldina nem merecia ódio porque não existia.

Tentei insistir no assunto:

- Sim, em Itaipava... eu já estava pensando em procurar você... foi sorte ter aparecido... tem lá um troço que... bem, é melhor que fique até o sábado, tem disco aí para você ouvir por um mês... não custa esperar pelo fim da semana... no sábado iremos lá...

Desde que soubera que o “sinal” era em Itaipava, Francisco de Assis Rodano voltou a tapar a cara com o antebraço, desligou-se, não perderia tempo com um assunto que nada tinha a ver com ele e com sua luta.

O deus que ele pretendia matar era um deus da Central do Brasil. O lado da Leopoldina talvez nem tivesse deus algum, e, se tivesse, devia ser um subdeus que não merecia uma luta inspirada pelo boi Papelão e executada pela Lança de Longinus que Francisco de Assis Rodano roubara de uma igreja em Vassouras.

 

                   AS COISAS SE COMPLICAM

Francisco de Assis Rodano não era de muitas palavras. E eu procurava evitá-las. Meu pedido para que ficasse até sábado não teve resposta. Em outras circunstâncias e com outro personagem, poderia tomar o seu silêncio como aprovação. Enquanto o sábado não chegasse, ele podia se fartar de ouvir todos os discos que quisesse, e afora a mania de ouvi-los num volume muito alto, altíssimo, não chegava a ser hóspede incômodo: quase nada comia, nada falava, dormia e meditava - principalmente isso: meditava. Ou parecia meditar, de forma tão intensa, tão concentrada que, se não era meditação, acabava sendo.

Eu sentia que Francisco de Assis Rodano estava em vésperas de tomar uma decisão fundamental para seu destino, que ele, com razão ou sem ela, considerava o próprio destino do homem.

Tirou as botas - de certa forma, em meu apartamento de Ipanema ele se sentia protegido e abria uma trégua em sua batalha com o Outro. Andava de cueca pela casa, era asseado apesar de tudo, gostava de mamão e bananas - frutas que representavam oitenta por cento de sua alimentação.

Suas preferências musicais sempre me pareceram inexplicáveis. Ele adorava os concertos para piano e orquestra, fossem de quem fossem. Tirante a música de câmara, da qual não era fanático, ouvia desde as grandes sinfonias e missas até as óperas de Mozart e as italianas. Não sabia nunca o que estava ouvindo realmente, às vezes se embaralhava na hora de mudar o disco, não raro ouvia o início do primeiro ato de Os mestres-cantores e, quando o disco acabava, sem perceber colocava o final do segundo ato de Don Giovanni - o nem estranhava a mudança de ritmo e idioma, para ele dava na mesma. Volta e meia, também, ficava de pau duro, principalmente quando ouvia Beethoven ou Chopin. Mas nunca o vi masturbar-se.

A semana foi passando e eu tinha motivos para confiar nele: ficaria até sábado e aí nós iríamos a Itaipava. Nada dissera a respeito da vaca. Deixaria que ele próprio, sozinho, constatasse e concluísse.

 

Na terça ou na quarta-feira, eu já me sentia melhor. Sabia que tinha agora uma espécie de aliado para repartir com ele o problema. Fui trabalhar, deixei o primo de cueca no sofá, olhando o teto. Nem ligara a vitrola, parecia pensar numa coisa muito importante para ele.

Estava na redação quando descobri que esquecera de comprar cigarros. Desci e fui ao botequim que funcionava do outro lado da rua e onde se lavava a roupa suja do jornal.

Era tarde já, e o botequim estava quase vazio. Pedi um maço de Carlton, estendi uma nota de cem - era a única que possuía. O rapaz do balcão torceu a cara: “O senhor não tem nota menor?”. Não, eu não tinha, o rapaz ameaçou tomar o maço de cigarros que eu começara a abrir.

Ouvi uma voz pastosa:

- Deixa que eu pago!

No balcão ao lado, diante de um chope pela metade, lá estava um repórter da casa, eu mal o conhecia, trabalhava na editoria de polícia, era bom farejador, mas desleixado, o nome... custei a lembrar, Luarlindo, Luarlindo Gonçalves ou Ribeiro, qualquer coisa assim.

- Obrigado, Luarlindo. Amanhã eu pago.

- Não tem amanhã. Fui demitido.

A situação exigia solidariedade de minha parte. Abri finalmente o maço de cigarros e quase ia pedindo um chope para mim. Evitei o chope mas me sentei no banco ao lado de Luarlindo.

- Demitido? Mas você é ótimo! Tanto tempo de casa...

- Quinze anos... sem falar no período em que eu trabalhava e não tinha carteira assinada... mais cinco anos...

- Sacanagem...

- Sacanagem das grossas... mas eles têm lá os seus motivos...

- Que motivos? Você fez alguma besteira?

- Pelo contrário. Sugeri a maior matéria da história do jornalismo mundial. - Ele bebia desde o começo da tarde e àquela altura estava razoavelmente bêbado.

- É da vida. Sempre que se dá uma boa ideia, acaba-se na rua. Também passei por isso. Fui demitido por uma besta só porque sugeri uma reportagem sobre os preços do pescado na Semana Santa...

Luarlindo me olhou interessado:

- Mas essa é quente! Sempre sai matéria sobre o preço do peixe na Semana Santa!

- Só que não era Semana Santa. Era Carnaval ou Natal, não me lembro mais. E fui demitido.

Luarlindo mostrou-se solidário com a minha antiga demissão e isso me obrigava a conhecer os detalhes da sua:

- Como foi? O Deodato cismou com você?

- Não, não foi o Deodato, ele me levou na gozação mas não chegou a me esculhambar. O bode foi com o Xavier... sabe, o chefe da geral... ele mandou que eu passasse no Departamento do Pessoal para acertar as contas... e aqui estou eu, com a melhor matéria no bolso... e demitido... no olho da rua...

Os anos da profissão me ensinaram que todo repórter demitido tem sempre no bolso a melhor matéria do mundo, e eu quis saber qual era a maior matéria do mundo no bolso do Luarlindo.

- Você não vai acreditar! - Ele me olhou de lado, com medo de passar o mapa da mina. Sabia-me influente, pelo menos mais influente do que ele, e que a matéria recusada poderia, apresentada por mim, ser aproveitada.

- Prometo que não roubarei sua matéria, garanto...

Luarlindo me encarou sério, os olhos avermelhados pelo chope.

- Jura?

- Juro.

Tomou um gole. Olhou mais uma vez para os lados, limpou os beiços e soltou:

- Descobri uma vaca...

Foi a minha vez de quase rolar do balcão:

- O quê?

- Uma vaca... eu descobri uma vaca que... você nem vai acreditar, ninguém vai acreditar... mas é verdade, uma vaca que... não ria, eu encontrei, no Lins de Vasconcelos... uma vaca...

- Uma vaca que fala?

Luarlindo pousou o chope em cima do balcão com tamanha força que o copo se partiu:

- Como sabe? Como sabe? Você acredita em mim?

Eu passava o lenço nas minhas calças, que havia apanhado os restos do chope. Evitei encarar Luarlindo. Nada deveria fazer a seu favor, ele me tomaria como testemunha e aí seríamos dois os demitidos. E eu não podia perder aquela pista que surgia inesperadamente, inesperadamente me devolvendo a vaca.

- Você tem certeza?

- Certeza? Certeza de quê? Da vaca?

- Sim.

- Absoluta. Ela fala.

- Bem, se é assim...

- Você podia me dar uma ajuda... nunca lhe pedi nada... e olhe que o pessoal respeita você.

- Não é bem assim, mas falo com o Xavier...

- Todo mundo sabe que você o indicou para a chefia da geral...

- Isso é uma calúnia! Mas não custa dar uma palavra, ver se reconsideram a demissão... isso eu posso, isso eu vou fazer, pode ficar tranquilo. O diabo é a vaca...

- Mas é verdade, eu juro, posso levar você lá!

Luarlindo estava muito bêbado para notar que minhas mãos tremiam, tremiam mais do que as dele. Fui modesto e insincero.

- Não precisa... não precisa se incomodar...

- Eu faço questão de levar você lá... é uma história tremenda, a maior história desde que o mundo é mundo...

Sondei, como se estivesse pensando em outra coisa:

- Em Lins de Vasconcelos?

- Sim, em Lins de Vasconcelos, num lugar que antigamente chamavam de Maduro...

- Maduro? Nome esquisito...

- Também achei. Havia uma fonte de água mineral no lugar, os moradores mais antigos se lembram da fonte, até hoje ainda chamam o local de Maduro...

- E como essa vaca foi parar lá?

Luarlindo estendeu a mão em cima do balcão, seus dedos procuraram o chope que não mais existia. Percebi o seu gesto e gritei para o garçom:

- Mais um chope. - E pensando melhor: - Mais dois chopes!

Luarlindo gostou da ideia: além de encontrar um aliado na reportagem, encontrara um parceiro para a sua noite de bêbado e demitido.

- Não sei. Honestamente não sei nem me preocupei em saber... eu devia ter pesquisado, afinal, a vaca não deve ter nascido lá... é de um tal de Badu... um que foi beque do América...

Os dois chopes chegaram, eu estava sem sede, mas fui com fúria ao copo. Precisava pensar rápido, sem, contudo, me comprometer com a causa.

- E você me levaria lá?

- Agora mesmo! Você está de carro?

- Estou. Mas agora é impossível...

- O Badu recebe a gente...

- Não é por causa dele. Eu preciso... eu preciso...

Ficava difícil explicar que não podia ir imediatamente ao encontro da vaca. Precisava de tempo, de uma pausa para digerir a revelação. Se saísse correndo atrás de Luarlindo, eu perderia a minha tranquilidade, que já era pouca e problemática. E com ela, a minha responsabilidade.

E havia, agora, Francisco de Assis Rodano, que àquela hora, lá em casa, olhando o teto e ouvindo música de pau duro, já aceitara de algum modo participar na minha alucinação.

Inventei na hora:

- Eu preciso encontrar uma pessoa... não dá tempo de desmarcar...

Luarlindo compreendeu.

- Entendi. Você se separou da mulher, não?

- Como é que sabe?

- O pessoal comenta... você nunca dá muita bola pra gente, mas o pessoal sabe...

- É por aí mesmo. Tenho encontro com uma mulher, não há jeito de desmarcar, fica para amanhã, falo com o Xavier sobre seu caso... a vaca... ela pode esperar...

Luarlindo abaixou a cabeça. Tomou o chope de uma só vez. Passou as costas da mão pelos beiços, limpando uma espuma que não existia.

- Confio em você. Do contrário, vou acabar no hospício... desempregado e louco... acho que não mereço...

Levantei-me. A despesa ficara maior e o homem da caixa aceitou a nota graúda, nada fiquei a dever a Luarlindo, a não ser a pista da vaca. A pista e os problemas que a vaca me traria.

Ia saindo sem anotar o endereço de Luarlindo. Foi ele quem lembrou:

- Como é que fazemos amanhã? Você me procura ou eu venho aqui?

Pedi-lhe o telefone: não tinha. Dei-lhe o meu número.

- Pode ser de manhã, lá pelas oito horas?

- Oito e meia - valorizei.

Saí sem me despedir.

Já estava na calçada quando lembrei de perguntar:

- A vaca falou alguma coisa?

Luarlindo fez cara desconsolada, como se precisasse me convencer novamente, repetindo a lição desde o princípio.

- Sim, falou... evidente que falou.

- Falou o quê?

- Coisas soltas... sem sentido... mas não precisava ter sentido, precisava?

- Falou em francês?

Foi a vez de Luarlindo me olhar espantado:

- Em francês? Mas que diabo, eu descolo uma vaca que fala e você ainda quer que ela fale francês!

Ele se sentia ultrajado, por ele e - ao que me parecia - pela vaca.

- Tá bem. Esquece. Amanhã me telefona. Tem um primo meu lá em casa, se ele atender não repara, ele é meio maluco.

Aquela noite, ao chegar em casa, um aborrecimento: Francisco de Assis Rodano tinha ido embora. Não fazia o gênero dele dar ou deixar explicações: chegava e partia quando lhe dava vontade. Perguntei ao Amaro, porteiro do prédio, se ele tinha deixado um recado. Nada.

Além do mais, esquecera de desligar a vitrola, havia um disco no pick-up, o último que ele ouvira. Fui conferir: a abertura do Egmont, que vinha logo depois do Concerto Emperor em sua preferência.

Fiquei irritado, ela dera a entender que só iria embora depois de sábado, eu o levaria a Itaipava, podia dar sorte e esbarrar com a vaca. E, com mais sorte ainda, se eu a provocasse, ela poderia falar, falar qualquer coisa. Eu nada diria a Francisco de Assis Rodano, deixaria rolar, veria o impacto, dois seres extraordinários, ele e a vaca, se encontrarem. Pois o que me irritava, naquela história extraordinária é que, não tendo eu nada de extraordinário, não merecia passar por aquilo.

Não bastando tudo isso, vinha Luarlindo com a sua vaca em Lins de Vasconcelos. Eu me sentia atordoado, sem saber se devia ir na conversa dele. Se ao menos Francisco de Assis Rodano estivesse comigo, a barra seria menos pesada. De certa forma, ele me devia alguma coisa. Ouvira meus discos, folheara minha Bíblia ilustrada por Doré.

“Sacanagem!”

Era isso: eu me sentia sacaneado. Não lhe custaria nada esperar uns dias, eu nunca lhe pedira nada. Mas logo admiti que devia ter motivos para ir embora. Era um possuído. Roubara a Lança de Longinus. Calçado com suas botas de couro ele se julgava pronto para a missão. Ficar no Rio seria perder tempo. Que eu me virasse sozinho. E partiu.

Mesmo assim, apesar de abandonado pelo primo, agora não estava sozinho de todo. Tinha o Luarlindo que, pensando bem, era uma espécie de Francisco de Assis Rodano urbano, sindicalizado - embora de nada lhe valesse o sindicato, fora demitido sem muitas explicações.

Eu perdera Francisco de Assis Rodano mas ganhara Luarlindo-não-sei-de-quê, Gonçalves ou Ribeiro, não importava. Cheguei a descobrir uma estranha relação entre a partida de um e a chegada de outro.

Havia um sentido naquilo tudo. Um sinal.

 

No dia seguinte, esperei pelo telefonema de Luarlindo. Oito horas e nada. Nove, dez horas, deu onze horas e o telefone não tocou. Meio-dia e nada.

“Não se pode confiar num bêbado!”

Com este pensamento injusto, fui tomar banho, depois saí para almoçar. Contra meus hábitos, cheguei cedo ao jornal. Passei antes pelo bar, na esperança de encontrar Luarlindo. Nem sombra.

Ao subir para a redação, decidi dar um pulo no Departamento do Pessoal, haveria uma ficha do Luarlindo, com nome, idade, filiação, endereço - eu o localizaria ainda naquele dia.

Existia a ficha, realmente. Dava Luarlindo (não era nem Ribeiro nem Gonçaves, mas Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira) como morador na rua do Lavradio.

Tomei um táxi: “Rua do Lavradio, depressa!”.

Encontrei o endereço. Era um velho sobrado, perto da esquina da avenida Mem de Sá. Embaixo funcionava uma lanchonete, sombria, sinistra, cheirando a sardinha frita e a torresmo. Na entrada lateral, uma escada dava para o segundo andar, onde havia quartos. Num deles deveria morar Luarlindo, mas não morava mais. Fazia cinco meses que fora despejado por atraso no aluguel. Ninguém sabia para onde se mudara.

Desci as escadas como um demônio - se o Demônio é mesmo o Pai da Cólera: eu perdera a única pista que possuía. Na rua, procurando o táxi que me levaria de volta ao jornal, lembrei inesperadamente de minha ex-mulher, nossa última noite, ela me procurara, eu dormiria no sofá, ela no quarto, pois foi no sofá que pela última vez transamos, um pouco a seco.

Quando tudo terminou e ela se levantou para voltar ao quarto, eu tentei retê-la. A princípio, não reagiu, deixou que a prendesse. Subitamente, largou minha mão e disse: “Esquece”.

 

                   AS COISAS SE COMPLICAM MAIS AINDA

Eu não frequentava a redação pela tarde, costumava chegar depois das seis, sete horas. Minha presença causou espanto, e mais espanto causaria meu comportamento: fui de mesa em mesa perguntar por Luarlindo. Aqueles que não gostavam dele temiam que eu estivesse promovendo a sua readmissão. O correto - para a opinião pública na redação - seria não me incomodar, como nunca me incomodara antes.

Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, se não tinha amigos íntimos e dedicados, também não tinha inimigos. Fazia parte daquela sociedade arrumada pela vida e pela profissão, arrumada ao acaso e mantida pelo acaso, até que uma cagada profissional, uma birra ou uma proteção o tirasse da vala, fazendo-o subir ou descer.

Luarlindo dera uma cagada, uma baita cagada com a história da vaca. Mas fora mais profissional do que eu: encontrou a vaca e logo desejou transformá-la em notícia. Cumpria sua função. Eu, ao invés, moitara a vaca, guardara-a para mim e para quê? Ela não me serviria para nada. Preferia cortar uma perna, arrancar a cabeça do pescoço a admitir o encontro com a vaca.

Pensei em Francisco de Assis Rodano: era como Luarlindo, encarava a realidade, uma realidade que podia ser absurda para todos mas não para ele. O ofício dele (não ter ofício algum), ele o cumpria com honestidade. Ia lutar contra o Outro - e o faria com seriedade, com grandeza. Menos transcendental, Luarlindo tentava fazer o mesmo.

Eram limpos. Eu me sentia sujo.

Lembrava a cobertura internacional que fizera havia pouco, uma conferência de chanceleres patrocinada pela Organização dos Estados Americanos. Motivo da reunião: Os Estados Unidos desejavam expulsar Cuba da comunidade pan-americana. O jornal me mandou para Punta del Este, sede da conferência.

A abertura dos trabalhos foi feita pelo chanceler do Haiti, representante do Papa Doc - então o mais sanguinário dos ditadores da América Central. Era um fenômeno: negro, alto, cabelo à escovinha, óculos ray-ban, falava um francês impecável. Seu discurso durou duas horas e foi decisivo.

Che Guevara, que chefiava a delegação cubana, pronunciou um discurso desesperado - Cuba foi expulsa. Depois do sucesso, o chanceler do Haiti tornou-se difícil, não dava entrevistas, andava cercado de uma segurança feroz, negros de dois metros de altura, com a fama e a eficiência dos tontons macoutes. Para impedir o fogo cerrado da imprensa, refugiou-se na casa de praia de um milionário local.

Eu tinha um amigo em Maldonado, bairro próximo de Punta del Este. No sábado saímos de lancha, fomos a uma praia afastada, frequentada por pouquíssima gente. Paramos para uns mergulhos. Na areia, estendido numa berrante toalha vermelha, havia um negro de sunga sumária, tomando sol. Aproximei-me. Pelos óculos ray-ban reconheci o chanceler do Haiti. Ele, que fugira da imprensa, estava ali, e eu não perderia a oportunidade. Entrei de sola:

- O senhor inaugurou a conferência pedindo a expulsão de Cuba por causa de dois mil e quinhentos mortos durante a Revolução. No seu país, Papa Doc mata por ano mais de seis mil pessoas. O senhor não acha que Papa Doc deveria ser julgado por uma corte internacional? Ou, pelo menos, como Cuba, ser expulso da comunidade americana?

O homem suspendeu o ray-ban até a metade da testa, olhou-me em silêncio, depois girou o olhar para verificar a falha de sua segurança. Eu chegara por mar - e nenhum tonton macoute me impedira.

Recolocou os óculos, esticou-se como um réptil negro e imenso sobre a toalha vermelha.

Depois de algum tempo, disse, pausadamente:

- M’sieur, votre profession est très sale.

Respondi à altura:

- La votre aussi.

 

Era isso aí: uma profissão suja, a minha. Além de incomodar a privacidade dos outros, eu passara anos sem me preocupar com Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, cruzara com ele sem cumprimentá-lo, sem ajudá-lo nas miudezas da redação. Agora, por causa de uma vaca, perguntava por ele aos colegas espantados. Sentia que, para os outros, o tardio interesse pelo demitido era no mínimo suspeito.

No final da tarde, pouco havia conseguido. Um contínuo conhecia parentes de Luarlindo que moravam em São João de Meriti. Despejado do Lavradio e despejado do jornal, talvez fosse buscar abrigo entre os seus.

- É longe? - perguntei.

- É longe e é grande. Não adianta ir a São João de Meriti e perguntar pelo Luarlindo. Precisa saber rua e endereço.

Desanimei. E verificava que a vaca tornava-se mais complexa e misteriosa. O primeiro testemunho que eu tivera dela - depois do nosso encontro - fora o velho da choupana que tentara ensinar o porco a ler: morrera logo em seguida. O segundo testemunho vinha de um bêbado que desaparecera misteriosamente - ou logicamente - no trânsito entre a rua do Lavradio e São João de Meriti.

E havia Francisco de Assis Rodano, a quem pela primeira vez apelava e que me deixava na mão. Ficava eu sozinho, com a herança da vaca - e bastava.

Bem ou mal, Luarlindo me deixara um fragmento de pista: a vaca que ele encontrara estava em Lins de Vasconcelos, uma terra de ninguém entre a Boca do Mato e Vila Isabel, Zona Norte da cidade. Embora nascido naquelas bandas, raramente voltava ali. Não me atreveria a pegar o carro e ir à procura de uma vaca tão especial num bairro que, afinal, não mais conhecia.

Luarlindo também falara num local que os mais antigos chamavam de Maduro, e num Badu que havia sido beque do América. Bem, o América fora campeão do Centenário, em 1922, antes e depois disso deve ter tido muitos beques, dois por time e de cada vez. A pista era frágil, insignificante, mas era a única de que dispunha. Se eu permanecesse na redação, aí mesmo é que não encontraria a vaca.

Tomei um táxi, perguntei ao motorista se conhecia o Lins de Vasconcelos. O sujeito nem respondeu. Abriu a porta e baixou a bandeirada. Confiando nele, lá fui pela Presidente Vargas, peguei a praça da Bandeira, o Maracanã, Vila Isabel, até ali eu me situava. Depois, começou a selva escura - e era escura mesmo, embora não fosse exatamente uma selva.

Havia muitos anos que não andava por aqueles lados, não reconhecia nada. O antigo Jardim Zoológico, onde o barão de Drummond inventou o jogo do bicho, era agora um conjunto de prédios com uma pequena área de lazer aos fundos. Na rua Barão do Bom Retiro morara uma tia, numa casa de altos e baixos, muito jardim em volta. Procurei pela casa, pelo jardim. Nada.

Logo em seguida, começava a selva oscura mesmo. Confiava no motorista, nem tinha ninguém em quem confiar.

Depois de quinze, vinte minutos de trajeto, ele me comunicou secamente:

- Aqui começa o Lins.

Olhei para os lados. Basicamente, era uma continuação de Vila Isabel. A rua principal era larga, bem iluminada, mas as transversais lembravam o subúrbio. O táxi rodou até o final da ladeira - havia uma pequena ladeira no meio do caminho - e o motorista perguntou com má vontade:

- Qual é o número?

Não havia número a dar. Debrucei-me no banco da frente, com a cabeça ao lado da dele:

- Você conhece um lugar chamado Maduro?

- Maduro? O senhor não quer ir para Madureira?

- Não. É Maduro mesmo... os moradores mais antigos devem conhecer...

O táxi parou perto de um bar. Na calçada havia um homem que parecia esperar condução.

- O senhor sabe onde é o Maduro? - perguntei pela janela do carro.

O homem olhou com desconfiança o táxi, o motorista e a mim próprio. Avaliou se, por trás da pergunta, haveria ou não a possibilidade de ser assaltado.

Sentiu medo inicialmente, depois aborrecimento:

- Não... não sou daqui... moro em Todos os Santos...

Mais adiante fiz a mesma pergunta a um grupo de rapazes que desembocaram de uma das transversais e pareciam vir de um clube. Nenhum deles conhecia o Maduro.

- Se o nome é antigo, só os moradores mais velhos devem conhecer - observou o motorista.

- Sim, é evidente... mas como encontrar um velho a essa hora dando sopa na rua?

Para contradizer a minha observação, um velho saiu de um prédio recuado da calçada e, quando viu o táxi, pensou que havia encontrado solução para seu problema:

- Ei, tá livre?

- Não. Estou ocupado. - O motorista começava a ficar impaciente.

Aproveitei e perguntei pelo Maduro. O velho custou a compreender e quando compreendeu fez cara de espantado:

- Maduro? Nunca ouvi esse nome! Por que me faz esta pergunta?

- É nome antigo... talvez o senhor conhecesse...

- Sou velho na vida mas não no bairro. Moro aqui há cinco anos, antes morava em Realengo.

O motorista concluiu por mim:

- Dá na mesma.

E arrancou. Demos voltas pelas ruas laterais, desertas e mal iluminadas, não tínhamos a quem perguntar pelo Maduro e nada do que vimos podia ser tomado como o Maduro. Voltamos à cidade.

Cheguei à redação. Ao me aproximar da minha mesa, vi de longe que havia um bilhete. Quem o escrevera fizera questão de que fosse lido por todos os que passassem por ali.

“Luarlindo ligou. Está no telefone 036-5966 até meia-noite. Diz que é assunto urgente.”

Um colega me observava:

- Ele está tentando ser readmitido? Esse cara não presta, você está perdendo tempo com ele!

O bilhete fora lido por toda a redação. Ficaram sabendo que Luarlindo se agarrava em mim, tentando uma reconsideração. Ninguém acreditaria: eu é me agarrava nele.

 

                   OU ELE OU O OUTRO

Nunca vi nada mais próximo do pânico total do que a cara do porteiro Amaro, quando cheguei em casa àquela noite. Deixei o carro na garagem e levei um susto: esgazeado, Amaro olhava para mim, aterrado, afásico. Era um mulato sólido, mais para o barrigudo, um tipo de baiano, um tanto untuoso, cheirando vagamente a azeite-de-dendê. Tudo isso entrara em pane: diante de mim estava um homem trêmulo, e, pior do que trêmulo, indignado.

Tomei a iniciativa:

- Que que houve, Amaro? Viu o Demônio?

Amaro tomou hausto. Mais tranquilo, achando que eu o compreenderia:

- Doutor... o seu primo...

Impossível que Francisco de Assis Rodano tivesse algum atrito com ele, não era disso. E, além do mais, já havia partido.

- Ele foi embora ontem... criou algum caso?

- Doutor... ele saiu ontem, pela tardinha, mas voltou agorinha mesmo... Uma coisa! Foi terrível... juro que nunca vi coisa mais terrível...

Imaginei o que acontecera e peguei o elevador. Antes, tranquilizei o porteiro:

- Não foi nada... ele é assim mesmo... um pouco esquisito...

Ao entrar no apartamento, dei razão a Amaro. Francisco de Assis Rodano havia chegado minutos antes, catava alguns discos para meter na sacola que era a sua única e bastante bagagem. Não tirara nem a roupa nem os acessórios com que viera da rua e assombrara o porteiro.

Tirante a lança, enorme, de um metal que havia muito não era polido, ele estava com seu imenso chapéu preto, de abas descomunais, suas botas pretas e sua colossal capa que lhe descia dos ombros até abaixo dos tornozelos, roçando o chão. No meio de tanta e tamanha negrura, o rosto esquelético, de natural pálido, ficara cadavérico, embora ele não vivesse momento de tensão, pelo contrário, catava discos na pilha e separava alguns, para levar.

Eu podia reclamar das duas coisas: de ter ele invadido meus domínios (apavorando o porteiro) e de estar apanhando discos sem autorização minha. Mas nada disse. No fundo, admitia e aprovava que ele se vestisse do jeito que quisesse, nada tinha com ou contra isso. Quanto aos discos, ele os catava na parte de baixo da estante, onde eu juntava os velhos setenta e oito rotações que iria dar mesmo, a ele ou a quem os desejasse.

Sabia que Francisco de Assis Rodano não tinha equipamento para os longa-duração, dispunha, segundo acredito, de uma pequena vitrola que meu pai lhe dera, havia anos. Além disso, naquela parte da estante eu guardara discos que, de alguma forma, já substituíra por gravações mais recentes.

E mesmo que reclamasse, de nada adiantaria. Desde criança, quando ele entrava em convulsões, berrando que queria a minha perereca importada, eu me habituara a não contrariá-lo. Ele continuou catando discos, não se demorava em ler os selos, parecia escolher pela cor deles, dois azuis, dois vermelhos, dois pretos, dois azuis, dois vermelhos, dois pretos, por aí.

Tampouco parecia ter dado pela minha chegada. Ia perguntar como conseguira entrar no apartamento mas não foi preciso. Em cima da minha mesa de trabalho, bem à vista, estava a chave que ele levara na véspera, eu devia ter imaginado a sua volta, não era de seus hábitos o abuso de confiança. Colocando a chave na minha mesa, ele me comunicava que agora não precisaria mais dela porque estava indo embora.

- Você deu um susto dos diabos no porteiro...

Sem interromper o que estava fazendo, explicou:

- Foi a Lança de Longinus. Não tirou os olhos dela.

Era a minha vez de olhar a tal lança, que estava encostada na mesa. Somente com alucinada boa vontade podia-se chamá-la de lança, ainda mais de Lança de Longinus. Francisco de Assis Rodano a encontrara numa igreja de Vassouras, junto a uma imagem do Senhor Morto. Mas a lança não devia pertencer ao conjunto original, dos muitos espalhados por velhas igrejas coloniais, antigos, banhados de prata, com bom ou excelente acabamento artesanal.

A lança que Francisco de Assis Rodano achara (ele não a roubara, pois tudo o que havia no mundo pertencia de alguma forma a ele) era um tubo comprido de metal ordinário, azinhavrado e arrematado por uma ponta que não combinava com a peça. Essa ponta, sim, deveria ter feito parte de uma lança verdadeira, parecia de ferro, estava enferrujada.

Apesar de estar de costas para mim, percebeu que eu examinava a lança e informou:

- Lá em Rodeio vou dar um jeito nela. Tem um ferreiro que eu curei de erisipela, a ponta precisa ser fixada no cabo... vai ficar perfeita.

Acreditei que ele faria um bom trabalho, tinha extraordinária habilidade manual, mas achei do meu direito perguntar:

- Como sabe que a lança é mesmo de Longinus?

Sem se voltar, ele respondeu:

- Sabendo. Você não entende dessas coisas.

Tive vontade de dizer que, apesar de não entender dessas coisas, eu conhecera e passara dois dias atrás de uma vaca que falava. Que tinha até um testemunho insuspeito, de um profissional categorizado como Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, um repórter de polícia, eficiente farejador. Mas nada disse, Francisco de Assis Rodano ia embora e não podia me ajudar.

Finalmente, ele parou de catar discos. Separara uns vinte, vinte e cinco, todos de doze polegadas. De uma forma incrível arrumou-os numa sacola onde trazia seus trecos, mudas de roupa de baixo, material de higiene sumário mas bastante - e só.

- Vai embora?

- Vou e não vou.

Entendi o que ele quis dizer. Assumindo a função sobrenatural de Rival do Outro, de Lúcifer Encarnado, ele estaria em toda a parte.

Apesar do impacto de sua presença, de suas botas, de seu chapéu e capa, e agora de sua lança, eu não conseguia esquecer a vaca. Precisava ligar para Luarlindo, na redação fora impossível, todos estavam ouriçados querendo saber que tipo de assunto urgente o repórter demitido desejava falar com um tipo que nunca dera bola para ele.

Por isso me julguei com direito de pedir ao Rival do Outro:

- Bem... se precisar falar com você... como é que faço?

- Falar o quê?

Francisco de Assis Rodano já se esquecera da conversa que tivéramos na véspera.

- Aquele sinal que eu queria mostrar para você...

Ele pareceu lembrar:

- Em Itaipava? Lá não pode haver sinal nenhum, o único sinal que agora está valendo é o meu. Somente eu posso dar sinal na merda deste mundo.

Colocara a sacola nas costas cobertas pela imensa capa, ficou ligeiramente corcunda, mas como era muito alto e magro, disfarçava. Empunhou a Lança de Longinus e parou na porta. Virou-se. Dei integral razão ao porteiro: Francisco de Assis Rodano estava terrível, magnífico.

Em tom alto e condescendente, como o de um padre que avisa aos fiéis que a missa acabou, ele gritou:

- Ou Eu ou o Outro!

E sumiu no corredor, roçando a imensa capa pelo chão. Esperei um pouco para ouvir o grito do Amaro, lá embaixo, diante de tão feérica aparição.

Não houve grito algum. Ou Amaro se habituara ou Francisco de Assis Rodano, usando seus poderes agora sobrenaturais (afinal, ele estava de posse da Lança de Longinus), sumira no espaço, em direção a Rodeio.

 

                   CENA DA VISITAÇÃO

- Olha aqui! O número que você me deu está errado! O erro foi seu!

Luarlindo mostrava o papel em que anotara o telefone que eu lhe dera na véspera. Realmente, havia um erro idiota, meu ou dele, pouco importava, o certo é que jamais me encontraria naquele número. Ele passara o dia tentando todas as combinações com aqueles algarismos, estava cansado, e, para variar, bêbado.

- Sacanagem! Você fez isso de propósito!

- Juro! Juro que não foi proposital! Eu devia estar com a cabeça em outro lugar ou foi você quem tomou nota errado.

- E olha que o Badu esperou pela gente...

- O Badu? Sim, o Badu...

Estávamos novamente no mesmo bar, eu ligara para Luarlindo, que aguardara o contato na casa de uns conhecidos. Em quinze minutos chegara, com a mesma roupa da véspera, parecia não ter tomado banho, só não fedia mais forte porque fedia a bêbado.

- Vamos lá? O Badu é louco por grana, se você der quinhentas pratas, ele deixa a gente ver a vaca...

- E você acha que eu daria quinhentas pratas para ver a sua vaca? Vamos com calma, estou disposto a ajudar... mas não assim, no sufoco. O Badu e a vaca podem esperar até amanhã...

Ele me olhou com desespero:

- Eu estou na pior, o jornal só vai me pagar a indenização na semana que vem, é duro ser demitido assim, com fama de louco... se fosse só de bêbado, vá lá, muita gente é demitida assim, eu mesmo já rodei metade dos jornais do Rio e de São Paulo e sempre fui demitido por bebida... mas loucura não! Isso desabona, ninguém me arranjará emprego!

- A gente vê depois. Não prometo nada mas sempre se pode quebrar o galho... o difícil é explicar essa matéria que você sugeriu...

- A vaca? Mas ela existe, está esperando por nós, o Badu...

- Deixa o Badu pra lá! Amanhã a gente vê isso. Vá descansar... Tome aqui, não é muita coisa mas dá para você se virar...

Por baixo do balcão passei-lhe a nota de quinhentos cruzeiros. Ele a agarrou com a mão treinada de quem costuma receber esse tipo de ajuda.

- E como faremos amanhã?

- Eu passo às nove horas, me espere aqui mesmo no bar... Você sabe o caminho?

Ele me olhou com cara aborrecida, evidente que sabia. E eu quase lhe disse que fora ao Lins de Vasconcelos de táxi e perguntara a meio mundo pelo Maduro.

Ia me afastando quando lembrei um detalhe:

- Olha, aconteça o que acontecer, não diga a ninguém que eu estou interessado na... na sua matéria...

- Já saquei isso desde ontem. Você não quer se comprometer, por isso me deu o telefone errado...

- Não é bem assim... talvez o erro tenha sido seu... mas ninguém precisa saber que vamos ver o Badu...

- Não é o Badu. Vamos ver a vaca, uma vaca que fala - ele me enfrentou.

- Que seja! A vaca!

Deixei Luarlindo no bar e tinha a certeza de que ele dormiria por ali mesmo. Foi com surpresa que, no dia seguinte, encontrei-o no mesmo lugar, mas limpo, barbeado, de roupa trocada. E sóbrio.

- Sabe ir ao Lins de Vasconcelos?

- Mais ou menos - respondi. - Você me orienta...

- Sabe pegar o Maracanã? De lá eu ensino o caminho.

Fomos em silêncio. Eu me sentia estúpido de estar ali, a caminho do confronto. De duas uma: ou a vaca existia ou não existia. Se não existisse, tudo voltaria ao que era antes, aquele encontro em Itaipava se perderia na memória, aos poucos me libertaria dele, como de uma alucinação, uma gripe, uma paixão.

Mas e se a vaca existisse, e fosse a mesmíssima de Itaipava? Evidente que só poderia ser a mesma, impossível que o mundo, de repente, sem mais nem menos, ficasse inundado de vacas que falavam.

E ela, me reconheceria? Para falar a verdade, eu tremia e temia. Antes, eu chegara a supor que poderia buscar auxílio, explicação ou solução com Francisco de Assis Rodano. Mas agora, depois que ele se apoderara da Lança Longinus, ficara inacessível. Teria de me virar sozinho e sozinho me sentia, apesar de estar ao lado de Luarlindo.

Quando atingimos o Maracanã, por pouco ia desanimando. Quis dar meia-volta e retornar à cidade, deixando Luarlindo em qualquer lugar.

- Pegue à direita. - Ele me mostrava o caminho com autoridade.

Eu sabia que era pela direita, na véspera fizera o mesmo roteiro de táxi, mas preferia fingir que achava tudo longe e complicado. Atravessamos o boulevard 28 de Setembro, espinha dorsal do bairro, passamos pelo antigo Jardim Zoológico, Luarlindo informou:

- Foi aqui, no velho Zoológico, que inventaram o jogo do bicho. O barão de Drummond, sabe? Ele sorteava um bicho e botava o nome num poste.

Fiz cara aborrecida:

- Já li milhões de matérias contando essa história. Mas vou lhe contar uma que você não sabe. Quando eu era criança, meu pai me trouxe para ver os bichos. Tenho até hoje uma fotografia minha, ao lado de uma macaca. Ela se chamava Sofia...

- A macaca Sofia? Pois olha, tenho uma história que você nunca leu, nem vai acreditar nela. Essa macaca Sofia foi dada como morta... e os jornais fizeram um escândalo: “Morreu a macaca Sofia!”. Era muito popular. Mas ninguém soube a verdade. Ela não morreu naquela ocasião. Simplesmente foi raptada... sequestrada por um tarado... viveu com ela, em Olaria, alguns anos, até que contraiu uma doença misteriosa e aí os dois morreram, a macaca Sofia e o tarado... chamava-se Veiga... era de Goiás...

- Porra, Luarlindo! E você nunca escreveu essa história? E vem com uma vaca que fala!

- Eu já tentei contar a história da macaca e do Veiga, mas ninguém aceita matéria dessas... dizem que é imoral, e olha que eu conheci um sobrinho do Veiga... trabalhava na Light...

A conversa foi interrompida por um berro dele:

- Aqui! Aqui! Dobre à esquerda... é aqui...

Quase fui de encontro ao ônibus que vinham em sentido contrário. E mal tive tempo de ler a tabuleta da rua: CONSELHEIRO FERRAZ. Havia uma pequena ladeira logo no início.

- Tem certeza que é aqui mesmo?

- Tenho. Por quê?

- Aqui não tem cara de ter vaca nenhuma...

Era uma rua que podia ser considerada distinta, com casas antigas e prédios novos. Com alguma boa vontade podia parecer uma rua de Laranjeiras ou da Tijuca.

Luarlindo pediu-me que andasse devagar, ele sabia onde era o Maduro, mas fora ali poucas vezes, não queria perder o rumo. Mesmo assim, perdeu. Subimos e descemos a rua Conselheiro Ferraz duas vezes - e Luarlindo boiava, é aqui, é ali - e se enganava. Ao final da terceira tentativa, desabafei:

- Você está blefando! Não sabe onde é o Maduro e vai ver que esse tal de Maduro nem existe, nem existe a vaca...

- Calma, calma, nós chegamos lá.

A rua não tinha movimento e nossas idas e vindas chamaram a atenção de um grupo de meninos que esperavam o ônibus escolar. Não adiantava pedir informações a eles: Luarlindo insistia que só os “antigos” saberiam da existência do Maduro. E os meninos, como nada tinham a fazer, e percebendo que estávamos perdidos, vaiavam o carro, vaiavam Luarlindo ou a mim. Talvez vaiassem os três juntos: merecíamos.

Paramos junto a uma velha construção abandonada, talvez o alpendre de uma fábrica desativada. Do outro lado da calçada, bem recuado, havia um prédio escondido por mangueiras. A tabuleta informava que ali funcionava um depósito de materiais do Ministério da Justiça. Aquele local, no fim da rua que em seus inícios estava integrada ao bairro, parara no tempo. O asfalto, que vinha de sua ligação com a artéria principal, já não existia naquele pedaço: o calçamento se interrompera a uns cinquenta metros atrás e ali a rua era de terra batida.

Luarlindo saiu do carro e olhou em torno, encabulado.

- É que das outras vezes eu vim por outro lado - desculpou-se.

Para acentuar a desolação do local, por ali não passava ninguém e não havia a quem pedir informações.

Saí do carro e, seguindo um velho hábito, sabendo-me em local ermo, senti vontade de urinar. Aproximei-me de um dos lados da rua, junto daquilo que parecia um alpendre abandonado. Por coincidência ali havia uma touceira de espadas-de-são-jorge. Não gosto de urinar nelas. Quando encontrara a vaca, em Itaipava, fora justamente em cima de espadas-de-são-jorge que mijara. As de Itaipava eram nanicas, selvagens. Essas agora eram opulentas, fartas.

Para mijar em condições silvestres, nada melhor do que os tinhorões, côncavos e aveludados, depois de molhados ficam brilhando como imensos rubis. Já as espadas-de-são-jorge são opacas e retilíneas - mas não era hora nem circunstância de fazer exigências.

Estava urinando, quando ouvi a voz vinda do alpendre:

- Vá mijar na casa da mãe, seu merda!

Afobei-me, sem saber se interrompia a mijada ou se continuava a mijar, sabendo-me examinado e repreendido.

- Não tolero falta de respeito, seu filho da puta!

A voz estava mais próxima. Olhei em direção ao alpendre e vi sair de lá um corcunda, meio alourado, de idade incerta e incerta linhagem. Parecia, à primeira vista, um estrangeiro, talvez um alemão ou austríaco, até que com algum sotaque.

Apanhado em flagrante, e sem justificativa para o ato que praticava, continuei mijando, o que não me impediu de desculpar-me:

- Desculpe... eu não sabia que...

- Sabendo ou não sabendo fique sabendo que aqui não se mija!

O corcunda parecia possesso, mas reparando bem, com ou sem motivo para estar possesso, ele seria possesso por natureza e gosto. Tinha a pele do rosto enrugada como o papo de um peru, os olhos azuis se avermelhavam como se cuspisse pelas pupilas. Os dentes eram esverdeados, como os de um camelo provecto - vira um assim no Cairo, junto às Pirâmides. E a sua corcunda ajudava a compor, se não a imagem, a lembrança de um camelo.

- Saia daqui, dê o fora!

Apanhado em falta, eu me resignava a ir embora. Luarlindo se aproximou:

- O senhor sabe onde é o Maduro?

O corcunda ainda não tinha reparado em Luarlindo e se assustou. Um homem urinando naquelas plantas já era um feito extraordinário, a presença de mais alguém no contexto constituía um fenômeno.

- O senhor também não pode mijar aqui! Retirem-se!

- Eu não quero mijar. Só perguntei se o senhor sabe onde é o Maduro - insistiu Luarlindo.

Só então o corcunda olhou bem para nós, reavaliando-nos.

- O Maduro?

- Sim. O Maduro.

O corcunda sentia-se injuriado:

- O Maduro é aqui! Os senhores estão me provocando!

- Não é provocação. - Eu procurava recuperar a dignidade avariada.

- O que os senhores querem com o Maduro? Está fechado. Já não existe mais. Os senhores são da polícia?

No cacoete mais antigo da profissão, Luarlindo se adiantou:

- Somos da imprensa.

Cutuquei o Luarlindo, mas já era tarde. Por hábito, nunca me identifico, a não ser em situações rigorosamente oficiais: documentos na Polícia, no Imposto de Renda, coisas assim. Luarlindo exibia sua condição a qualquer pretexto, para garantir boa acolhida, abrir portas e, eventuamente, comer de graça. Contava-se dele que, entrando na Candelária para cobrir a missa de sétimo dia de uma autoridade, fora abordado por um mendigo:

- Uma esmola, pelo amor de Deus!

Luarlindo puxou a carteirinha de repórter e comunicou baixinho:

- Imprensa!

E seguiu, sem dar esmola. No que obrou bem: ele talvez precisasse da esmola mais do que o mendigo. A prova é que estava desempregado e ali, diante de um corcunda encolerizado, tentando se desculpar de uma falta que não chegara a cometer.

- Polícia ou imprensa tanto faz, é tudo da mesma laia. Aqui não tem nada que interesse aos senhores! Fora! Fora!

Luarlindo não estava em seus melhores dias. Em parte para convencer o corcunda, em parte para crescer aos meus olhos, ele falou na vaca.

- Nós estamos procurando a vaca...

O corcunda não se abalou. Tanto lhe fazia que estivéssemos atrás de uma vaca ou do sumo pontífice, ele continuou irritado:

- Não tem vaca nem meia vaca! Fora! Fora!

Olhei para Luarlindo. Tinha motivos para duvidar de suas informações. Se a vaca dele era a mesma que eu encontrara em Itaipava, e se o corcunda soubesse de sua existência e de suas possibilidades, teria tido outra reação.

Tampouco Luarlindo ficou preocupado com a atitude do corcunda. Depois de ter falado na vaca, em ordem de importância, deveria falar no Badu...

- Eu... eu sou amigo do Badu.

Aí sim, o corcunda parou de esbravejar. Recuou um pouco, para melhor nos examinar em conjunto. Os beiços estavam cheios de saliva, prova de sua cólera e de seus maus dentes.

- O Badu? Vocês conhecem o Badu?

- Conheço. É meu amigo. Foi beque do América...

O corcunda limpou os beiços com a mão esquerda. Os olhos azuis continuavam vermelhos, a raiva dele, agora, era de admitir que estávamos ali com um propósito:

- Mas o que vocês querem com o Badu? Nos últimos trinta anos ninguém veio aqui falar com ele... nunca se ouviu dizer que alguém precisasse falar com ele. - O espanto do corcunda era veraz.

Para encurtar a conversa, pedi que nos levasse ao Badu. O corcunda mantinha uma posição ambígua, metade de raiva, metade de espanto:

- Vocês vão se arrepender...

- Deixa por nossa conta...

Nada mais tendo a acrescentar, ele limpou com a ponta da língua a saliva que ameaçava secar em seus beiços. E fez o que esperávamos: saiu da frente.

- Está lá nos fundos, depois daquela árvore.

Havia muitas árvores ali. Dispostas simetricamente, pareciam ter feito parte de um bosque planejado, uma alameda, um recanto bucólico e antigo. O mato crescera por toda parte, o alpendre despencara, as telhas caíram, a ruína só não era total porque as árvores tinham imponência. Parecia os fundos do jardim de uma casa senhorial, um palacete que dava frente para outras ruas e lados, e que o alpendre, no conjunto, era os restos da estrebaria.

A partir de determinado ponto, Luarlindo começou a se orientar melhor, conseguimos chegar ao Badu. Ele não estava “depois daquela árvore” - como nos avisara o corcunda -, mas depois de muitas e muitas árvores e trilhas no meio do capim que nascia até mesmo dentro do alpendre.

Badu era um negro, carapinha grisalha, olhos rasgados como os de um chinês. Estava sentado num degrau de tijolos esburacados, parecia que ali nascera, ali vivera e ali iria morrer. Vestia uma espécie de macacão, tão velho quanto ele, e que nele parecia ter se integrado como segunda pele. De perfil, podia parecer um desses pretos velhos que são vendidos em quadros ou cerâmica, nas lojas de candomblé. Olhando-o, dificilmente se acreditaria que fora beque, um beque do América, campeão do Centenário.

Luarlindo forçou intimidade:

- Olá, Badu, tamos aqui!

Badu olhou para ele, depois para mim. Se a cara tinha alguma expressão era a de saco cheio, agora agravada pela nossa presença.

Depois de olhar para Luarlindo, esforçando-se para reconhecê-lo, disse baixinho, em direção às árvores:

- Cabra.

Virou-se para mim. Sem me olhar, repetiu:

- Cabra. Serve também para o senhor.

Luarlindo estava sem jeito:

- Não, Badu, não é a cabra que nós queremos... é a vaca.

O negro ficou aborrecido.

- Cabra. Já disse que é cabra. Vaca só para a semana.

Foi a minha vez de ficar aborrecido: afinal, largara tudo para estar ali, num dia de trabalho, não fazia sentido continuar naquela extravagante sucessão de absurdos.

- Escuta, Luarlindo, acho que você se enganou, vamos embora...

- Espera, espera um pouco, esse cara é meio maluco... mas é com ele mesmo que vamos falar... ele é quem toma conta da vaca...

Nesse momento chegou uma velha gorda, amulatada, de lenço verde na cabeça. Na mão, uma sacola de compras, com verduras e um pacote de sabão em pó. Passou pelo corcunda sem lhe dar importância, o que foi recíproco, tampouco o corcunda se importou com ela, parecia que todos os dias, à mesma hora e pelo mesmo motivo, a velha ia até ali.

Aproximou-se, em silêncio. Badu nem olhou para ela e disse, dessa vez olhando o chão:

- Cabra.

A velha gorda nem chegou a parar, deu meia-volta e se foi. E nem havia sumido entre as árvores que ocultavam Badu - e apareceu um rapaz magro, desdentado, cabelo raspado, tipo trocador de ônibus, vestindo uma camisa sem mangas do Botafogo. Mais desinibido do que a velha gorda, cumprimentou o corcunda com efusão:

- Olá, Camelo Constipado, como vai a vida?

O Camelo Constipado não respondeu como ia a vida. Parecia uma saudação a que ele se habituara, pior, se adaptara, pois agora não mais estava encolerizado, parecendo realmente um camelo resfriado.

O rapaz não viera apenas para saudar o Camelo Constipado. Passou por ele e foi em direção ao Badu:

- Ontem não deu jacaré. Perdi o milhar e o grupo. Deu cobra.

Badu olhou fundamente o rapaz.

- Eu disse cobra! Quem mandou jogar no jacaré?

O rapaz não se zangou. Olhou para nós, desculpando a falta de Badu:

- É. Tem disso. Ontem eu ouvi jacaré e cravei tudo o que tinha. Ele agora fala na cobra... pode ser... - Voltando-se para Badu: - E hoje?

Badu estava aborrecido e custou a responder. O rapaz o animou:

- Não fique zangado, velho, foi acidente... isso acontece... eu continuo confiando em você...

- Eu disse cobra!

De seu canto, o corcunda deu um berro que ecoou como grito de guerra:

- Ele falou cobra! Se o palpite não serve vá pedir palpite à sua mãe.

- Cala a boca, seu Camelo Constipado! Não estou falando com você! Quebro-lhe a cara!

A ameaça era séria e o corcunda calou-se. O rapaz bateu no ombro de Badu com amizade:

- A vida é assim mesmo... não se pode ganhar todos os dias, seria fácil demais, perderia a graça. E hoje? O que vou levar? Vamos... não fique zangado...

Badu hesitou, olhou para nós, que assistíamos à cena interessados, e rosnou de má vontade:

- Cabra!

- O.k., velho! - disse o rapaz. E se afastou. Ao passar pelo corcunda tentou esfregar a mão em sua corcova. O corcunda se levantou, apanhou um cacete que parecia estar ali para isso mesmo, evitar provocações.

- Seu filho da puta!

- Corcunda de merda!

O rapaz se afastou, sumiu atrás das árvores, o corcunda voltou à posição anterior, como se fosse guarda de Badu. E antes que Luarlindo voltasse a insistir na vaca, outras pessoas chegaram. Algumas passavam pelo corcunda, alheias, outras o cumprimentavam, iam até Badu, nem precisavam perguntar nada, Badu repetia no mesmo tom, olhando para nós com raiva:

- Cabra!

A procissão de visitantes não dava tempo de Luarlindo expor concretamente o nosso caso. Foi o próprio Badu que, numa pausa entre duas visitas, decidiu mandar-nos embora:

- Vocês são o quê? Da polícia? Não devo nada a ninguém! Deem o fora, estão estragando o meu dia...

- Estragando como? - perguntou Luarlindo. - Nós queremos que nos mostre a vaca... estive aqui semana passada... lembra-se...

- Não quero saber da vaca... meu negócio é outro... vocês estão me atrapalhando...

Nisso apareceu uma velhinha, muito encurvada, parecia tão corcunda quanto o corcunda. Andava arrastando uma perna e se apoiava numa bengala.

- Bom dia, Serenus...

O corcunda respondeu de má vontade, mas já um pouco reconciliado com a vida:

- Bom dia, dona Conceição...

Dona Conceição passou por nós, trêmula, a bengala fazendo um risco na terra entre os capins:

- Bom dia! Bom dia!... bom dia para todos, bom dia, seu Badu!

Badu não respondeu. Simplesmente disse:

- Cabra!

- Obrigada! Obrigada, seu Badu!

Ao passar novamente por nós, decidiu explicar-se:

- Eu não jogo, nunca jogo... não tenho dinheiro nem para jogar no bicho, mas venho todos os dias saber o bicho que vai dar... O Badu é um homem de Deus... de noite vira lobisomem, de dia faz caridade, dizendo pra todo mundo o bicho que vai dar... - E ultrapassando o local onde o corcunda montava guarda: - Tudo de bom para você, Serenus...

Sumiu. Olhei para Luarlindo com raiva:

- Pelo menos ficamos sabendo que o corcunda se chama Serenus.

- Que nome, hem? - Luarlindo procurava ganhar tempo para insistir na vaca. Enquanto isso, aprendíamos coisas. O corcunda se chamava Serenus. De dia, Badu informava o bicho que ia dar, à noite se transformava em lobisomem. Era um Rio que eu não conhecia, rural e encantado.

- Você já conheceu algum Serenus? - Luarlindo cismara com o nome do corcunda. No fundo, tentava ganhar tempo.

- Não. Nenhum Serenus... peraí, há um Serenus que é personagem de um livro do... mas não vim aqui para conhecer um Serenus nem pretendo jogar no bicho, mesmo com um bom palpite...

Luarlindo sentiu-se culpado. Precisava convencer Badu a mostrar a vaca - se é que ela realmente existia.

- Nós somos jornalistas, estive aqui semana passada, quem me trouxe foi o filho do Campos, lembra? Aquele que era dono disso aqui, do Maduro... foi o pai dele que contratou você para tomar conta de tudo isso...

Badu se aborreceu e corrigiu Luarlindo:

- Não foi o Campos... antes do Campos eu já estava aqui... desde 1936... depois do campeonato, fui campeão em 35, o América tinha um time, Plácido, Carola, Tadeu, eu. Nunca mais... aí a unha do pé encravou, começou a doer, não havia chuteira que desse... eu vim para cá, foi o seu Custódio que me trouxe para tomar conta... depois sim, veio o Campos, com a água mineral... trabalhei na máquina que botava a chapinha nas garrafas, perdi um dedo... - Mostrou a mão esquerda onde faltava o mindinho. - Dei azar... a unha encravada no pé... depois o dedo na mão... fui perdendo os pedaços...

Luarlindo aproveitou a mudança no ânimo de Badu e voltou à carga:

- Isso, Badu, nós somos amigos, estamos para o que der e vier... o meu amigo é importante lá na redação, pode descolar uma grana para você... nós queríamos ver a vaca... só um pouquinho...

Outras pessoas chegaram, algumas cumprimentaram o corcunda, outras não, todas foram informadas por Badu de que naquela tarde daria cabra.

A partir de determinado momento, depois de ter contado um pouco de seu passado, Badu começou a variar os palpites. Insistiu ainda na cabra duas ou três vezes, mas à medida que confiava em nós, citava outros bichos. Para uns dizia borboleta, para outros cavalo, veado, leão e águia - eram os mais frequentes.

Eu não me admirei, mas Luarlindo admirou-se por si e por mim. Badu explicou:

- São vinte e cinco bichos, o pessoal pede um palpite, eu digo todos os bichos, do avestruz à vaca, erro muito, mas todo dia acerto, criei fama, não fiz por mal, tem gente que nem agradece, tem sempre alguém, depois que ganha, que deixa uns trocados aí com o Serenus.

Luarlindo aproveitou a deixa:

- Por falar em vaca...

- O lobisomem é lenda mesmo - Badu não tomou conhecimento da interrupção de Luarlindo -, o pessoal inventou... quem é lobisomem não sou eu, é o Serenus... eu já vi... em noite de lua cheia ele vira lobo, quer dizer, nunca vi um lobo, mas deve ser lobo, é ele mesmo, tem até um pouco da corcunda...

Eu cheguei a esquecer a vaca. Não mais estava em Lins de Vasconcelos mas em Delfos, diante de um oráculo... de um sacerdote que... não, não era isso que eu queria pensar, eu queria dar o fora, já que não acreditava mais na possibilidade de encontrar a vaca. Mesmo que houvesse a vaca do Luarlindo, não podia ser a minha... que era um sinal, apesar de Francisco de Assis Rodano repudiar qualquer sinal além e fora dos trilhos da Central do Brasil.

Ia convencer Luarlindo a ir embora quando Badu, de repente, gritou para o corcunda:

- Serenus, vá mostrar a Desdêmona para os nossos amigos...

O corcunda praguejou qualquer coisa, em alemão parece, não peguei bem o que disse nem em que língua falava. De qualquer forma, descobri que Serenus era estrangeiro e apelava para seu idioma natal toda vez que ficava puto consigo mesmo, não chegava a ser novidade. Novidade era saber que a vaca tinha nome: Desdêmona.

Badu não esperava pela reação de Serenus. Não chegou a levantar a voz, mas deu a entender que não admitia o questionamento:

- A vaca é minha e mostro para quem quero.

O corcunda resmungou mais um pouco, parecia desprestigiado, mais do que isso, insultado. Finalmente se calou. Com agressiva má vontade tomou uma trilha que se afastava do alpendre, e tanto se afastava que quase o perdemos de vista. Luarlindo correu e eu fui atrás dele, até chegarmos a um acordo e a um ritmo comum.

Passamos por uma pequenina ponte que apodrecia, olhei para baixo, não havia água, mas lixo e capim. Evidente quem muito tempo atrás, um córrego por ali passara. Logo adiante, meio encobertos por uma touceira de bambu, os restos de um pequeno castelo em miniatura, feito de cimento, rusticamente, por um artista que jamais vira um castelo. Não importava. O castelo servia de pretexto para um balcão, também em miniatura, e desse balcão pendia uma escada de corda que, milagrosamente, escapara ao tempo e ali estava, fossilizada em parte. Num dos degraus da escada, um boneco de madeira, de cores descascadas.

Luarlindo me apontou com um comentário:

- Macumba!

O corcunda ouviu. E de quieto que estava, entrou novamente a esbravejar:

- Macuma uma ova! Onde já se viu, macumba! Você não sabe o que está dizendo, isto aqui era a Fonte Romeu e Julieta, o Romeu ainda está pendurado na escada, a Julieta foi roubada... o Badu é um idiota, deixou tudo isso cair de podre! Antes, no tempo do Campos, era uma beleza!

O mau humor de Serenus não dava para pedir melhores informações sobre o local. A trinta minutos da Candelária, em pleno Rio de Janeiro, havia coisas estranhas, coisas maravilhosas, a começar por uma vaca que falava e a acabar num lobisomem que tomava conta do balcão de Verona.

Só ficava faltando Francisco de Assis Rodano com suas botas pretas, sua imensa capa, seu chapéu de enormes abas, e, agora, com sua formidável Lança de Longinus. Ou eu estava ficando maluco ou penetrava num universo novo e extraordinário, do qual não suspeitava nem ainda acreditava.

- Pronto! É logo ali! - gritou Luarlindo, reconhecendo o caminho.

Não era logo ali. Passamos por uma pequena porteira e entramos numa espécie de galinheiro cercado de arame enferrujado, e no qual havia galinhas, cachorros, gatos e, à medida que penetrávamos mais e mais, alguns lagartos, papagaios e até um pequenino mico que pulava entre os galhos das amoreiras. Da vaca, nem sinal.

Olhei para trás e, aí sim, ganhei perspectiva para saber onde estava e pisava. Evidente que o Maduro fora um parque de linhas regulares, imenso jardim com alamedas arborizadas, canteiros e até mesmo pequeninas grutas, esforçadamente construídas para as diversas fontes a que Serenus se referira. Um parque de águas do velho Rio, uma água que secara e deixara pontes e fontes inúteis, podres no espaço.

Tão distraído fiquei que esqueci os dois à minha frente. Luarlindo berrava por mim. Apressei o passo, pulei uma pequena vala e, finalmente, encostada no barranco que marcava o limite do antigo parque, lá estava: ela.

Luarlindo me olhou como se tivesse vencido uma legião de exércitos:

- Ei-la!

O corcunda aproveitou estar ali e começou a sacudir um pé de amoras, catando no chão as frutinhas que caíam e manchavam a terra com pingos de cor roxo-avermelhada. Não dava importância à Desdêmona nem a nós.

Examinei a vaca. Sim, parecia a mesma. Embora eu não entendesse do assunto, tendo das vacas uma noção genérica e superficial, sabia que era realmente ela. Não pelas patas, nem pelos chifres e atributos outros de uma vaca. Eram os olhos talvez, uma aura que pairava sobre ela e nela marcava uma atmosfera que a destacava do mundo, da vida e do resto.

Orgulhoso, Luarlindo gozou o seu triunfo e saiu-se com uma frase que, em outro contexto, seria banal. Ali, naquele momento e circunstância, adquiria a enormidade do absurdo:

- Fale com ela!

- Fale você, porra! Não tenho nada para falar com uma vaca!

Luarlindo decidiu-se. No mesmo tom com que se apresentaria a um ministro, apresentou-se e me apresentou:

- Somos da imprensa...

A vaca não se mexeu. Seus olhos não pareciam ver. Suspeitei que era a vaca errada, de tal forma continuou alheia, sem nos dar resposta e importância.

Luarlindo insistiu:

- Eu já vim aqui... o meu amigo quis vir para ter certeza...

A vaca olhava agora um ponto intermediário entre o meu ombro e o ombro de Luarlindo. Não mais parecia ser a mesma vaca de Itaipava, o sinal que eu prometera a Francisco de Assis Rodano. Mais uma vez, ele fora sábio ao recusar o sinal que eu julgava ter descoberto.

Dava por perdida a manhã. Odiei-me e odiei Luarlindo. Odiava a vaca, também. Chegara a um ponto inquietante: se a vaca falasse, eu me sentiria compensado. Minha normalidade, meu senso de equilíbrio, minha consciência, tudo o que eu era se revoltava contra uma vaca que simplesmente não falava.

Ia me afastando. Olhei com desdém para a vaca, para Luarlindo, para dentro de mim mesmo. Até que ouvi, pausadamente, vindo do bojo cheio de ervas da vaca, em excelente prosódia:

- M’sieur, votre profession est très sale...

 

Cair como cai um corpo morto - é o que eu deveria ter feito. Ela insistia em falar francês. E repetia, sei lá com que intenções, uma frase que eu já ouvira antes, em outro contexto mas com o mesmo significado. Violar a privacidade de um chanceler do Haiti ou de uma vaca - dava na mesma.

Como não caí como cai um corpo morto, nem mesmo como cai um corpo vivo, consegui disfarçar o que sentia. Luarlindo reclamou:

- Poxa! Você nem deu bola! Parece que vê vaca falando todos os dias!

Minha solidariedade com o repórter demitido não chegava ao ponto de me abrir com ele. Afinal, Luarlindo tinha um assunto, uma reportagem, e precisava vendê-la ao jornal. Só isso. Tivesse encontrado um menino com cinco pernas, um marciano perdido em Vila Isabel, uma cobra andando na vertical - sua reação seria a mesma. Só se preocuparia com o que considerava sua missão, quantas linhas lhe pediriam para escrever. Não era de sua função nem interesse entrar no mérito, no julgamento de valor de sua descoberta. Acima de tudo, era um profissional.

Meu caso era mais complicado. Tão complicado que não poderia defini-lo sem definir-me. Conhecer pessoalmente, não por informação de terceiros, uma vaca que falava, falava em francês e entendia alguma coisa de mecânica. Admitir a vaca seria admitir que eu não podia mais ser eu, com tudo aquilo que sou, ou penso ter sido. Talvez houvesse alguma coisa de podre no meu sangue, de certa forma, um sangue que também corria nas veias salientes do corpo magro de Francisco de Assis Rodano, Rival do Outro e Lúcifer Encarnado.

Sinal por sinal, a vaca podia ser um sinal. Francisco de Assis Rodano ter me abandonado, justo quando eu precisava dele, podia ser também um outro sinal, só que trocado. O que tudo isso queria me dizer?

Já com Luarlindo era diferente. Descobriu a vaca e logo procurou divulgá-la. Não foi acreditado, a não ser por mim. A partir daí, eu nada tinha a ver com ele, a não ser tentar ajudá-lo, se possível.

Nunca à custa da vaca. Não poderia invadir a redação e garantir ao pessoal que a vaca existia, que ela falava, que Luarlindo tinha razão. Por ele faria tudo, até mesmo o sustentaria do meu bolso enquanto não encontrasse novo emprego. Mas teria de suborná-lo, obrigá-lo a esquecer a vaca.

Foi o que comecei a fazer, ali mesmo, diante da vaca e de Serenus, que continuava impassível, achando estranho que alguém se admirasse de Desdêmona ter falado.

Mais tarde, eu teria perspectiva para analisar a minha reação naquela hora. Justamente porque nada preparara, achando que não havia vaca porra nenhuma, que a história de Luarlindo era cascata, conto de um idiota sem som e sem fúria, mas também nada significando - eu fora apanhado desprevenido. Por tudo isso eu me julgava disponível para qualquer atitude, inclusive não ter atitude alguma.

Segurei Luarlindo pelo braço:

- Pronto! Já vimos a vaca. Vamos dar o fora!

Ele não entendeu:

- Como? A vaca está aí... agora é só fazer as perguntas...

- Perguntar o quê?

- Ué! fazer o pingue-pongue, pergunta e resposta, o Deodato adora entrevista assim...

- Merda para o Deodato! Vamos embora, depois a gente pensa no que fazer...

- Mas a matéria... é uma bomba... ganho prêmio por causa dela, fui eu que descobri, não tem filho da puta nenhum que vai me roubar essa vaca...

- Tá certo, você é o dono da matéria, mas não é o dono da vaca... Vamos embora, depois a gente combina...

Luarlindo estava desolado, esperara tudo e muito, que eu caísse de joelhos diante de sua descoberta. Olhava-me como se eu fosse um cara que não pertencesse a este mundo. Pior: que o tivesse traído.

Serenus veio em meu auxílio.

Aparentemente, ele nem estava prestando atenção no que acontecia, catava amoras pelo chão, estava com os beiços arroxeados.

- Vão dando o fora! Já viram a vaca... agora é ir andando... Se eu fosse o Badu não deixava ninguém vir aqui... só vem gente maluca...

- Já estamos indo.

Afastei Luarlindo da vaca. Ele estava pasmo, sem entender como, diante de um fenômeno daquele, eu dava o fora.

- E o fotógrafo? Não acha que merece fotografia na primeira página?

- Depois a gente pensa nisso. Vamos avaliar a situação.

Luarlindo se resignou. Levei-o pelo braço, atravessamos a alameda de árvores, as fontes ressequidas, a ruína do balcão de Verona. Volta e meia, ele olhava para trás, mesmo depois de estarmos longe da vaca. Eu percebia que ele devia me considerar um sacana.

No fundo, eu também achava a mesma coisa.

 

                   SARAIVA, TERESA E CASIMIRO

O cabo Angimestro Saraiva guardava o Posto Policial de Rodeio, que funcionava no porão do coreto da única praça da cidade. Fazia calor, ele estava com a farda desabotoada, sem as perneiras regulamentares, um desleixo que seus superiores na certa puniriam. Mas seu único superior, na ocasião, era Corintho (com th) da Fonseca, que nos últimos tempos estava mais interessado em escrever uma peça teatral para ser publicada em A Voz da Serra, e, segundo lhe prometera o espanhol Arranca, para ser encenada no picadeiro do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco.

O assunto, segundo constava na cidade, era a história do padre de Mendes, que teria seduzido cinco moças da seção de embalagens da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini.

Estava Angimestro Saraiva em sossego, no início daquela tarde, quando viu um vulto comprido, coberto da cabeça aos pés por chapéu e capa. Pensou logo em Francisco de Assis Rodano, do qual (nem mais se lembrava disso) era tio. Afinal, ele se casara com Nina, irmã de Nair, mãe de Francisco de Assis Rodano. O fato de ter levado com uma chaleira de água fervendo - motivo pelo qual abandonou a mulher e a filha Teresa - não alterava o fato concreto e sabido em todo Rodeio.

Foi nele que Angimestro Saraiva pensou ao ver aquele vulto estranho que se dirigia ao coreto - local onde havia retretas, comícios e velórios mais solenes; estes últimos aliás não contavam com a presença dele, Saraiva, que tinha pavor de defuntos, não importava se solenes ou não.

Tinha medo, também, de Francisco de Assis Rodano. Pode-se dizer que, depois de um defunto, o que mais Angimestro temia no mundo e na vida era o sobrinho, que vinha a ser primo em primeiro grau de sua filha Teresa, aquela que nascera com uma perna torta e, num dia de Carnaval, enquanto tomava água perto da moringa, viu um mascarado entrar pela casa, disse “ui” e nada mais disse porque ficou muda para sempre.

O vulto se aproximava do coreto, devia ser Francisco de Assis Rodano, só não era mesmo porque, além da capa, do chapéu e das botas, trazia agora uma lança comprida, como se fosse um guerreiro antigo, pronto para entrar na batalha.

Devia ser um forasteiro, alguém de muito longe que se vestira como Francisco de Assis Rodano, cujas façanhas já corriam toda a serra do Mar, vinha gente de longe, de Barra Mansa, Barra do Piraí, Resende, Itatiaia, Santana, Mendes, Humberto Antunes, Palmeiras, Serra, Scheid, Mário Belo e Belém para vê-lo, consultá-lo. Diziam que já começava a vir gente de Campos, de Itaperuna, mas Angimestro Saraiva não acreditava na peregrinação desses estrangeiros que viviam no ramal da Leopoldina Railway e que nem debaixo de porrada viriam a Rodeio, uma das pedras angulares, um dos fundamentos da civilização que se formara ao longo dos trilhos da Central do Brasil.

Mas se não era Francisco de Assis Rodano, quem poderia ser? Angimestro Saraiva passava as tardes ali no porão do coreto, na praça principal de Rodeio, primeiro porque ali era o seu posto de trabalho, o porão funcionava como depósito de presos, bêbados, homens que espancavam suas mulheres ou por elas eram espancados, os rixentos que se desentendiam e saíam na porrada, ladrão até que era raro, quase ninguém roubava porque, entre outros motivos, nada havia para ser roubado. Depois, ele nada tinha a fazer a não ser ficar ali mesmo.

O vulto se aproximava, a claridade o dissolvia numa nuvem de luz. A enorme lança refletia os raios do sol da tarde, dando ao forasteiro uma dimensão feérica. Terrível, macabra, a lança parecia um dardo luminoso que feria os olhos da segunda maior autoridade de Rodeio.

Para prevenir qualquer surpresa, ele obedeceu à regra número um imposta por seu superior, Corintho da Fonseca, que era a de ficar sempre alerta. E Angimestro Saraiva, que já vivia em permanente estado de alerta, ficava duplamente alerta quando sentia que Francisco de Assis Rodano estava ou podia estar por perto.

Bem verdade que tinha motivos para isso. Não que houvesse cometido qualquer falta ou injúria a Francisco de Assis Rodano. Para ser honesto consigo próprio, Angimestro Saraiva admitia que o sobrinho nunca dera bola para ele, nem mesmo por ocasião da morte de sua filha Teresa, morte que traumatizou Mendes e colocou Rodeio em pé de guerra.

Fora pouco antes da chegada de um circo à cidade, um circo um pouco diferente dos outros que ali acampavam, tinha um nome complicado, um boi que bancava touro - diziam que o boi fora roubado do Matadouro de Mendes, o que de certa forma exaltou os ânimos, o povo de lá detestava o matadouro, que infectava o ar de Mendes. E quando o vento soprava, infectava também o ar de Umberto Antunes, a dois quilômetros de Mendes. E só não infectava Rodeio porque se detinha no morro sob o qual fora cavado o Túnel 12, o maior do Brasil e que, indistintamente, era orgulho comum de mendeenses e rodeienses.

Teresa mancava de uma perna e era muda desde aquele dia de Carnaval quando, junto da moringa em que bebia água etc. etc. Cresceu sem graça nem formosura, mas era bem-feita de corpo, apesar de a cara, muito parecida com a do pai, Angimestro Saraiva, espantar os poucos que se atreviam a dela se aproximar.

Apesar da cara, da perna aleijada e de ser muda, um dia Mendes despertou estupefata: Teresa estava grávida. Ninguém se incomodava com ela, a não ser dona Hilda Peçanha Fraga, que morava havia anos com Maria das Graças de Assis, tia de Francisco de Assis Rodano e a quem todos chamavam de Zizinha.

Hilda Peçanha Fraga tinha (ou tivera) algumas posses, herança de seu pai, que chegara a ser prefeito de Palmeiras, onde, na praça principal e única, havia um busto dele - um dos raros bustos de brasileiro em praça pública que nunca estava sujo de pombos pelo motivo bastante de em Palmeiras não haver pombos.

Sem filhos, Hilda Peçanha Fraga tivera uma vida misteriosa que ficou mais misteriosa quando foi morar com sua amiga Zizinha. Só não falavam abertamente das duas porque Zizinha era devota, sua virtude tornara-se patrimônio de Mendes, sua santidade era a segunda e última unanimidade local, uma vez que a primeira era o ódio ao matadouro, que empesteava os ares serranos da cidade.

Assim como Zizinha tornara-se madrinha e anjo da guarda de Francisco de Assis Rodano, dona Hilda adotou Teresa como razão de sua vida e objeto de seus cuidados. A gravidez da moça - ela acabara de fazer dezenove anos - desencadeou uma cólera generalizada contra o possível pai da criança - que no fundo eram todos os varões espalhados pelos trilhos da Central do Brasil ao longo de toda a serra do Mar. E como ninguém soubesse quem seria o pai, os ditos varões se detestavam entre si, um deles seria o culpado, logo, todos seriam culpados - o que aumentava a cólera de cada um para com todos e de todos para com cada um.

Hilda Peçanha Fraga, que era dada a depressões e faltas de ar, passou a ter um motivo concreto para ficar mais deprimida e sofrer de terríveis faltas de ar - que só não eram mais terríveis porque o ar de Mendes, infectado pelo cheiro de sangue e carne esfolada do Matadouro, não era lá essas coisas.

Uma noite, Zizinha e dona Hilda decidiram fazer uma Hora Santa pedindo consolo e inspiração para o caso. Teresa já estava no quinto mês, foi acordada para participar das preces que as duas rezariam até a manhã seguinte. Ajoelhadas diante do pequenino oratório - que Hilda Peçanha Fraga herdara de seu pai, prefeito bustificado em Palmeiras -, as três oraram fervorosamente, até que, ao amanhecer, Zizinha e dona Hilda cochilaram. Bastou esse breve cochilo: Teresa, que não podia rezar em voz alta porque não tinha voz nem alta nem baixa, aproveitara o cansaço das duas e fugira. Não de casa, mas de Mendes, e, por extensão, da serra do Mar.

Fora uma fuga não planejada, pois ela nada levara. Com a perna manca, dificilmente poderia tornar-se andarilha como o primo Francisco de Assis Rodano. Daí formou-se um consenso: ela fora raptada.

O estupor instalou-se em Mendes e, por natural extensão, em Rodeio. Corintho da Fonseca requisitou o único táxi de sua cidade, um velho Buick, modelo 1932. Mas sua colaboração não foi aceita porque seu segundo homem, seu substituto legal na hierarquia da delegacia, era o cabo Angimestro Saraiva, pai de Teresa, que não pisava em território de Mendes desde que Nina, sua mulher, jogara uma chaleira de água fervendo em cima dele.

De alguma forma, foram tomadas providências. Dona Hilda Peçanha Fraga todas as tardes promovia uma Hora Santa diante do oratório herdado de seu pai prefeito e bustificado, a frequência era tal e tanta que o vigário local ficou achacado, pensou em condenar aquele cisma devoto em seu rebanho, mas Hilda Peçanha Fraga ameaçou-o com uma edição extra de A Voz da Serra, que ela financiaria com suas economias (suspeitava-se em Mendes que eram muitas).

Corintho da Fonseca foi colocado de plantão, ele faria o editorial mais truculento de sua carreira, botando os podres do vigário para fora, suas incursões libidinosas na Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, sobretudo na seção de embalagens, onde constava que havia seduzido oito meninas-moças.

Apesar das preces e das complicadas providências tomadas pelo delegado de Mendes, que era suspeito de receber propinas do matadouro para fechar os olhos da lei em todos os casos estranhos que ocorriam lá dentro - diziam que se abatiam cavalos, jumentos e burros, misturando-se carnes ilegais de equinos com a carne legal dos bovinos -, o desaparecimento de Teresa (sua fuga ou seu rapto) só foi parcialmente esclarecido meses depois, quando ela já devia estar em vésperas do parto.

Fora atropelada numa estrada vicinal em Itaguaí, perto do quilômetro 47 da antiga Rio-São Paulo. O motorista jurou que ela se atirara na frente do carro. O acidente nunca foi devidamente explicado, tampouco foi explicada a presença, em sítio tão estranho, de uma rodeiense, filha de Angimestro Saraiva, sobrinha de Zizinha, protegida de Hilda Peçanha Fraga. Nunca foi dada uma razão para justificar o fato assombroso de uma cidadã da serra do Mar ir dar com sua perna manca, seu filho nas entranhas, na desolada região de Itaguaí - porta de entrada da terrível, da sangrenta, da temida Baixada Fluminense.

 

A morte de Teresa foi sentida pelo pai, o cabo Angimestro Saraiva. Ele não abandonara a filha. A família da filha é que o abandonara, proibindo a presença dele ao lado de Teresa. Em conluio com as autoridades de Mendes (Hilda Peçanha Fraga era influente), fora proibido até mesmo que Angimestro Saraiva pusesse os pés em Mendes e, por afinidade, na parada intermediária, que era Humberto Antunes.

A partir da tragédia com a filha, Angimestro Saraiva, que temia defuntos, passou a temer, logo depois deles, o primo de Teresa, o complicado, o inexplicado, o inesperado Francisco de Assis Rodano. Achava, com razão ou sem ela, que haveria um dia em que um Rodano acertaria as contas da família com ele.

Na opinião de Angimestro Saraiva, o primo de sua filha Teresa era tão complicado, tão inexplicado e tão inesperado que, quando menos esperava, viu que o vulto envolto na capa preta, com o chapéu preto e as botas pretas, era o próprio Francisco de Assis Rodano, que não aparecia na cidade desde que passara a morar na cabana do Arraial do Sapo. E vinha com novidade, a enorme lança que tornava sua figura mais sinistra e seu gesto mais ameçador.

Para agravar o pânico de Angimestro Saraiva, eis que Francisco de Assis Rodano se dirigia exatamente para o coreto, cuja parte superior só era aberta para comícios políticos, para as festividades cívicas maiores e, duas vezes por mês, aos sábados, para as retretas da Banda Recreativa Musical Rainha da Serra do Mar (uma das práticas que mais unia e distraía os rodeienses era zombar de Mendes, que possuía uma Euterpe Musical. Em Rodeio, apesar da furiosa oposição de Corintho da Fonseca, que a apreciava, a palavra euterpe era pejorativa, designava simultaneamente “burrice” e “pretensão”.).

Que desejaria Francisco de Assis Rodano, com aquela enorme lança, dirigindo-se para o coreto? Angimestro Saraiva engoliu em seco, abotoou-se e decidiu que, houvesse o que houvesse, ele tomaria a iniciativa de não fazer nada.

 

Desde que voltara do Rio de Janeiro, onde, extraordinariamente, ficara na casa de um primo mais tempo do que o habitual, Francisco de Assis Rodano trouxera duas novidades: a lança, que ele havia roubado numa igreja de Vassouras mas dizia que lhe fora entregue pessoalmente por Longinus, o centurião romano que trespassara o peito do Filho do Outro no Calvário; e um exemplar da Bíblia, não se sabia se roubada do primo ou por ele doada.

Até então, o que Francisco de Assis Rodano sabia dos relatos sagrados era de ouvido, fragmentos orais que chegavam a fazer algum sentido, ou nenhum sentido, mas sempre de forma desfavorável. Pela primeira vez sentia necessidade de ir fundo, sem intermediários, nem tias Zizinhas que não se importavam se Jesus Cristo existira ou não. O problema era acreditar - mas o que era acreditar?

Na casa do primo, volta e meia lia trechos que ele mesmo selecionava, gostava sobretudo dos profetas, os que mais ameaçavam flagelos e cataclismos. Ele preferia seguir o instinto, o apelo ao sobrenatural que sentia desde criança. E havia muito fizera sua escolha: ele seria contra. Contra como Lúcifer havia sido, na terrível batalha contra a tirania do Criador.

Só agora tomara conhecimento, organizadamente, da vida daquele a quem competia seguir o exemplo - às avessas. E achava que tudo começara com os quarenta dias e quarenta noites em que o Filho do Outro passara no deserto, onde fora tentado pessoalmente pelo Demônio, ou seja, por ele, Francisco de Assis Rodano, que era o Lúcifer Encarnado em versão mais recente.

Sendo assim, se o Filho do Outro havia passado quarenta dias e quarenta noites no deserto, preparando-se para a vida pública, competia a ele, antes de também iniciar sua vida pública (ele não podia considerar vida pública a experiência tauromaníaca no Asombro de Damasco), submeter-se a quarenta dias e quarenta noites no deserto, ficando disponível às tentações vindas tanto do Outro, como do Filho do Outro.

Depois, bem, depois seria a batalha decisiva, o fim da guerra com a vitória do melhor: o Mal.

 

De tal maneira Angimestro Saraiva ocultou-se no porão, refugiando-se nas sombras mais fundas, que Francisco de Assis Rodano nem o percebeu. E, se percebesse, daria na mesma: como a parte de cima do coreto estava fechada por uma grade circular de quase um metro de altura (grade que guardava o espaço cultural mais nobre de Rodeio e - segundo Corintho da Fonseca - de toda a serra do Mar) -, Francisco de Assis Rodano deu um pulo, com lança e tudo, e se apoderou do coreto, promovendo-o a deserto.

Nesse exato momento, ia passando pela praça o ex-sacristão e ex-aprendiz de toureiro, o mesmo Casimiro Fernandes que anos antes tivera a coxa (e parte da bunda) perfurada pelos chifres de Ventania. Depois do vexame que se somava a outros vexames, Casimiro Fernandes emigrara, de Paracambi e Juparanã até Resende e Itatiaia, sempre seguindo os trilhos da Central do Brasil. Tentara diversos ofícios, só não tivera peito para invadir o território de São Paulo, embora tivesse chegado perto e recebido uma oferta de trabalho num botequim em Cruzeiro, já do outro lado da divisa com o estado do Rio.

Ir para São Paulo equivalia a passar de armas e bagagens para os lados da Leopoldina Railway, ou era pior do que isso - coisa que um rodeiense de raízes sólidas como ele jamais faria. Voltou para o chão original, acreditando que os dois anos que haviam transcorrido apagaram as marcas, cicatrizaram as más lembranças como havia cicatrizado as suas feridas na coxa e parte da bunda.

Casimiro Fernandes chegara na véspera, pedira uma espécie de asilo provisório na Farmácia Galeano, oferecendo-se para fazer entregas quando necessário, de graça, só pelo teto de um barracão aos fundos, onde Galeano fazia experiências científicas, das quais resultaram, entre outros, o Peitoral Maravilhoso Galeano de Rodeio e o letal Purgante (também) Maravilhoso Galeano de Rodeio, terror de crianças e adultos nascidos e criados entre as bocas dos túneis 11 e 12, ou seja, Rodeio inteiro.

Casimiro Fernandes não saíra pela manhã, preferindo aguardar, sentir o ânimo dos rodeienses em relação a ele. Só se atrevera a dar uma volta lá pelo fim da tarde. Não podia recolher-se sem antes passar pelo ponto culminante da geografia urbana de Rodeio, o coreto da praça principal, em cujo porão ele próprio já ficara detido diversas vezes, por vários motivos, desde bebedeiras ocasionais até o lance definitivo de sua biografia, que lhe valera a marca de navalha que tinha na cara.

Fora em seus tempos de sacristão, ofício que desempenhara com sucesso em Paracambi e com fracasso em Rodeio. Bem ou mal, em Paracambi havia um vigário, que impedia qualquer bandalheira do sacristão. Em Rodeio, a pequenina capela junto ao cemitério nem tinha padre, o vigário de Mendes ali ia pouquíssimas vezes - e Casimiro Fernandes aproveitava.

Ele se metera com uma mulher casada, foram surpreendidos dentro da capela pelo marido, nada menos do que o Barbosinha, barbeiro imemorial de Rodeio, famoso por ter uma navalha marca Sollingen, a única que existia no território que ia de Barra do Piraí a Belém, que ele ganhara de um alemão, técnico em fabricar pólvora, contratado pela Indústria de Fogos de Artifício Picolino. A navalha marca Sollingen, do melhor aço do mundo, famosa em tão vasto território, fez um traço vertical no lado esquerdo do rosto de Casimiro Fernandes.

Anos depois, foi Ventania que lhe deixou outras cicatrizes. Ferido na cara, na coxa e na bunda, ele achava que estava pronto para uma vida respeitável, mas não sabia como.

 

Sendo Francisco de Assis Rodano o Outro, às avessas, Casimiro Fernandes decidiu que seria o seu principal evangelista até que, com o rolar do tempo e das circunstâncias, aparecessem outros. Pois passava ele pelo coreto quando viu o vulto estranho, com a enorme lança refletindo os raios do sol que começava a se esconder nas montanhas da serra do Mar. Na verdade, Francisco de Assis Rodano apenas pulou a grade circular, que nem tinha um metro de altura, e o fez com relativa facilidade, possuía longas pernas e era magro, bom andarilho, a lança poderia atrapalhar um pouco, mas de tal maneira ele se sentia possuído que pularia grade cem vezes mais alta.

Não foi assim que o fato passou a ser conhecido, primeiramente em todo Rodeio, depois em toda a serra do Mar. Casimiro Fernandes viu o lance e o descreveu de forma assombrosa - mais assombrosa que todo o passado e futuro do Asombro de Damasco, do qual ninguém mais se lembrava.

No evangelho às avessas segundo Casimiro, o Rival do Outro se aproximara do coreto, fizera um gesto formidando com a lança, foi no mesmo instante coberto por uma nuvem cinza-escura, houve um clarão dentro da nuvem, e, espantosamente, Francisco de Assis Rodano apareceu dentro do coreto, transportado pela nuvem escura que Casimiro garantiu ter cheiro de enxofre.

No fundo do porão, Angimestro Saraiva nada viu, tampouco nada queria ver. Deu um tempo. Quando sentiu que Francisco de Assis Rodano não estava mais na praça mas dentro do coreto, saiu de mansinho, aderente às paredes do próprio coreto, depois, aderente às árvores da praça, por fim, quando estava bem longe e se sentiu em segurança, disparou furiosamente em busca de Corintho da Fonseca, que na certa tomaria providências.

 

                   AS TENTAÇÕES DO OUTRO NO DESERTO

O Filho do Outro passara quarenta dias e quarenta noites no deserto, antes de iniciar atividades públicas: pregar, fazer milagres e morrer. O Demônio fez um último esforço para impedir a obra da Redenção. Em certo sentido, depois da formidável Revolta dos Anjos, no início dos tempos, quando nem o Homem havia sido criado, as tentações do Filho do Outro no Deserto foram a segunda batalha perdida pelas forças do Mal, que, pela lógica das coisas e pela tradição do mundo, deveriam ter vencido.

Francisco de Assis Rodano admitia as duas derrotas anteriores, mas também, que diabo, nem Lúcifer ainda no Paraíso, nem o Demônio no deserto da Judeia, estavam tão bem equipados como ele. Não tinham nem as botas do boi Papelão nem a invencível Lança de Longinus, que, por sinal, se embebera de sangue, sangue do Filho do Outro, no Calvário.

Daí que ele seguiria o mesmo caminho mas com sinais trocados. Antes de iniciar suas atividades como Lúcifer Encarnado e Rival do Outro, iria meditar e preparar-se para a missão. O problema era encontrar um deserto ali pelas proximidades de Rodeio, ele precisava de uma região árida, coberta de pedras e areia, açoitada por ventos aquecidos pelo sol inclemente.

Nem adiantava procurar. Como andarilho, tendo ido e vindo do Rio a Rodeio diversas vezes a pé, Francisco de Assis Rodano conhecia todos os montes e vales da serra do Mar, nada havia a que pudesse, ainda que remotamente, associar um deserto, que pudesse lembrá-lo ou sugeri-lo.

Se não tinha um deserto à disposição, como o Filho do Outro antes tivera, ele possuía uma força interior maior e melhor. Faria o deserto dentro de si e à sua volta. Bastaria ser ele mesmo como ninguém fora. Para isso, precisaria de concentração. Não seria na cabana do Arraial do Sapo, morando com duas mulheres, que poderia obter a interiorização necessária.

Anna era um endemoniada do sexo, ele nem podia ouvir em paz os discos que trouxera da casa do primo. Concentrado na música, que não chegava a compreender mas sentia, o pau dele sempre ficava duro, por nada mesmo, nunca se masturbava, não era o caso, quando a música acabava o pau descia, naturalmente, não sentia desejo nem antes, nem durante, nem depois.

Pois Anna não podia ver aquele pau em pé. Largava o que estivesse fazendo e vinha por cima. Como Francisco de Assis Rodano poderia concentrar-se, vencer as tentações que - segundo esperava - o Outro colocaria em seu caminho para enfraquecê-lo, desmoralizá-lo?

E havia Amapola. Essa não o incomodava, vivia em silêncio, pegava o serviço da casa, tomava conta do filho de Anna, lavava, cozinhava, limpava e ainda atendia as pessoas que, cada vez em maior número, vinham encomendar trabalhos complicados que somente um Lúcifer Encarnado poderia aceitar e realizar.

Anna cismava com Amapola, tinha ciúme dela não por causa de Francisco de Assis Rodano, que nunca reparara na outra como não reparava em mulher alguma, nem mesmo nela, Anna. O ciúme se justificava: Amapola, como as princesas dos contos de fada, cada dia ficava mais bonita, com seus cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, a pele mais clara, cor de porcelana, os olhos mais azuis, enfim, Amapola seria a mulher mais bonita e famosa de Rodeio e de toda a serra do Mar se assumisse sua beleza e dela procurasse tirar proveito.

Já no tempo do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, houve o caso do bilhete que andou de mão em mão, até que Corintho da Fonseca, tendo apreendido o bilhete como delegado, na etapa seguinte, como principal colaborador de A Voz da Serra, publicou-o na primeira página, sob o título: “Quem será o autor?”.

Tudo começara na noite em que Zuth, o cantor oficial do Asombro de Damasco. incluiu em seu repertório a canção homônima, “Amapola”. Zuth não era de mulher, mas sua venalidade nunca fora contestada. Recebendo algum dinheiro, era capaz de tudo. A partir dessa primeira vez, todas as noites Zuth limpava a garganta para obter um registro de voz mais aveludado e carente:

 

           Amapola,

           lindissima Amapola...

 

Seu melhor momento era na segunda parte, quando clamava o seu desespero:

 

           No seas tan ingrata

           y amame!...

 

Dias depois, a lindíssima Amapola do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco recebeu o bilhete de amor, bilhete sofrido e anônimo, com o pedido: “Não sejas tão ingrata e ama-me!”.

Amapola não sabia ler. Mostrou o bilhete a Anna. Anna mostrou-o a todo o circo. Num primeiro momento, todos os homens foram suspeitos da autoria. Até mesmo Zuth, que não era disso, e Francisco de Assis Rodano, que na ocasião preparava-se para substituir Arranca como toureiro.

Por falar em Arranca, ele foi o principal suspeito durante boa parte das pesquisas, até que Corintho da Fonseca, convocado como delegado e colaborador de A Voz da Serra para ajudar nas investigações, obteve um de seus insofismáveis triunfos ao descobrir que, sendo Arranca espanhol e sendo a letra da canção em espanhol, não haveria razão para mandar o bilhete em português.

Daí a ideia de publicar o bilhete, na primeira página de A Voz da Serra, com a pergunta que era um convite à delação: “Quem será o autor?”. A enquete só não foi adiante porque, de repente, criou-se voz geral (que era mais influente do que A Voz da Serra) segundo a qual o autor do bilhete só poderia ser o próprio Corintho da Fonseca.

Tudo isso aumentara os motivos para que Anna, mesmo sem qualquer motivo, desgostasse de Amapola. Só aceitava dividir a casa com a outra porque, afinal, não fazia nada, passava o dia olhando o mundo, namorando todo mundo e, quando percebia que Francisco de Assis Rodano ia para a cama (um colchão substituía a suntuosa cama de tia Zizinha), ela se postava adrede, esperando o pau dele subir para ir por cima.

Por conseguinte, seria impossível ao Rival do Outro e Lúcifer Encarnado obter um grau ainda que mínimo de concentração na cabana do Arraial do Sapo. A solução era procurar um equivalente do deserto em Rodeio, e, como nada havia parecido, o melhor era mesmo o coreto da praça principal, justo por ser o eixo da complicada roda que era a cidade em si.

Francisco de Assis Rodano ouvira o primo do Rio, certa vez, querendo demonstrar que o mundo e a vida eram uma sucessão de absurdos, garantir que, numa roda em movimento, o eixo, o ponto do absoluto zero da roda permanece imóvel. E falava também numa roda imunda e grossa que girava - verso de um poeta que ele não conhecia.

Rodeio era a roda que rodava. O coreto era o centro dessa roda. No centro do coreto, imóvel, Francisco de Assis Rodano seria o centro não apenas de Rodeio e da serra do Mar, mas do universo inteiro: o eixo de uma roda imunda e grossa.

 

No terceiro ou quarto dia desde que Francisco de Assis Rodano ocupara o coreto, os rodeienses ficaram sabendo, sem que tivesse havido comunicado formal do próprio Francisco de Assis Rodano, que ele ali ficaria quarenta dias e quarenta noites, sem falar com ninguém, sem ouvir, sem comer e sem dormir.

Não era uma façanha original. Anos antes, em companhia do primo do Rio, Francisco de Assis Rodano vira uma espetáculo que era muito comum naquele tempo: faquires magérrimos, com caras patibulares, turbante e barba, numa urna de vidro, com algumas cobras dentro, tentando bater recordes mundiais de jejum.

Francisco de Assis Rodano ficava fascinado com esses faquires. Em sua cabeça, que ainda se dividia entre o circo El Asombro de Damasco e a necessidade de assumir suas funções de Lúcifer Encarnado, ficara adormecido esse desejo, que um dia, segundo ele mesmo esperava, de alguma forma seria realizado.

Daí que, ao se decidir pelos quarenta dias e quarenta noites no deserto, Francisco de Assis Rodano deu-se um desafio suplementar: o de jejuar absolutamente, sem o interesse mundano do recorde, mundial ou não, apenas pelo prazer - ou pela curiosidade de ver como era.

No início, provocou geral interesse, vinha gente de todos os cantos de Rodeio e da serra do Mar, famílias inteiras trazendo seus velhos e suas crianças para admirar o Rival do Outro, o Lúcifer Encarnado, numa demonstração pública e incontrastável de seus poderes sobrenaturais.

O único cidadão de Rodeio que não apreciou a nova modalidade dos poderes sobrenaturais de Francisco de Assis Rodano foi o cabo Angimestro Saraiva, que, por sinal, era tio dele por afinidade. Ele jamais aceitaria a teoria da roda que, não se sabe como, vazou por toda a cidade. Aquilo de eixo móvel, do centro do centro do centro central do universo soava-lhe falso, uma desculpa científica para mascarar o verdadeiro intuito de Francisco de Assis Rodano, que aproveitaria um descuido dele, Angimestro Saraiva, e nele vingaria Zizinha, dona Hilda Peçanha Fraga, a mulher Nina (que lhe atirara uma chaleira de água fervendo) e a filha Teresa, muda, capenga, grávida e morta debaixo de um carro, em Itaguaí, que nem ficava na zona da Central, essa sim, centro central de todas as coisas e almas. E o terror de Angimestro Saraiva se ampliava, e se ampliava tanto que suas mãos começaram a ficar trêmulas, e trêmulo seu lábio, trêmula a sua voz.

Dois, três dias depois, ninguém mais fincou pé em volta do coreto da praça principal de Rodeio. Evidente que todos, ao passar por lá, davam uma espiada para ver se tudo corria bem, se Francisco de Assis Rodano ali permanecia sem comer, sem beber e sem dormir.

Logo surgiram versões maldosas, ele se alimentava à noite, uma de suas mulheres ia levar-lhe algum tipo de comida e bebida. Quanto ao sono, deitado a maior parte do tempo no chão de madeira do coreto, Francisco de Assis Rodano tinha sempre o braço cruzado sobre o rosto, o antebraço tapando os olhos - era essa a sua posição preferida e assim podia dormir sem que ninguém tivesse certeza se estava ou não acordado.

O que ninguém procurava saber, nem imaginar, era em que poderia pensar Francisco de Assis Rodano naquela posição e naquela estranha façanha que parecia obscura até mesmo para Corintho da Fonseca, o cidadão mais ilustre e ilustrado de Rodeio - havendo uma corrente que chegava a supor que Corintho da Fonseca era mais e melhor, ou seja, o mais ilustre e ilustrado cidadão não apenas de Rodeio mas de toda a serra do Mar.

Casimiro era dos poucos que, pelo menos duas ou três vezes ao dia, passava por ali e subia os seis degraus para verificar “se tudo estava bem” - ninguém sabendo ao certo o que poderia significar esse “bem”. Aparentemente, tudo ia bem mesmo, e Francisco de Assis Rodano deixou de ser o principal motivo de atração de Rodeio.

Valor mais alto e emoção mais veraz surgiram, logo no início da segunda semana em que Francisco de Assis Rodano ocupou o coreto da praça principal de Rodeio. Um crime de morte abalou a cidade que nunca fora abalada por acontecimento igual. Deu-se que um operário da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, que disputava com a Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini a mão-de-obra qualificada do mercado de trabalho da região, aparecera morto numa vala, dois tiros na cabeça e dois na barriga.

Era um episódio invulgar e que transcendia as funções policiais e cartoriais de Corintho da Fonseca, mais conhecido e respeitado pelas colaborações em A Voz da Serra do que pelos cargos públicos que exercia, já ninguém mais lembrava havia quanto tempo nem por mandato de quem.

Veio um outro delegado, de Niterói, com plenos poderes para apurar as responsabilidades, colocando-se Corintho da Fonseca à sua disposição. Evidente que a primeira e praticamente única ajuda de Corintho ao delegado foi apresentá-lo ao cabo Angimestro Saraiva, que simplesmente estava apavorado, com vontade de desertar, tal como, anos antes, desertara da Milícia do Pará, por ocasião da Revolução de 30.

O pavor de Angimestro Saraiva se justificava. Rodeio não possuía necrotério. Os casos de morte acidental, que eram raros, raríssimos na cidade, terminavam com o defunto passando uma ou duas noites no porão do coreto, justo no mesmo lugar que servia simultaneamente de depósito de presos e de gabinete-escritório de Angimestro Saraiva.

Era um pavor duplo. Em cima, em estranha vigília que ninguém sabia por que nem para quê, estava Francisco de Assis Rodano, com sua terrível lança e seus motivos pessoais e familiares para se vingar de Angimestro Saraiva. Embaixo, um defunto, um assassinado, com duas balas na cabeça e duas na barriga. Saraiva não o conhecia, nunca o tinha visto, diziam que era um especialista em pólvora, trabalhara numa pedreira em São Gonçalo, dinamitava pedras, arte que aprendera na marinha de guerra, quando fora operário do Depósito Geral de Pólvora do 1º Distrito Naval.

O crime não foi apurado, nem precisava, pois todos sabiam de tudo. O operário fora visto rondando, diversas vezes, a casa do dono da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, que tinha mulher jovem e bonita. E, como qualquer outro dono de fábrica ou de terra do interior, tinha meia dúzia de capangas que formavam o esquema de segurança da propriedade, incluindo nesse conceito de propriedade a fábrica, os equipamentos, a casa e a mulher.

 

Dois ou três dias depois, o defunto foi removido para Niterói. O delegado prendeu dois ou três desafetos do dono da indústria e, por sugestão de Corintho da Fonseca, deteve dois ou três desafetos do próprio Corintho. Impossível que daquele grupo de quatro ou seis desafetos não emergissem dois ou três suspeitos. E que desses dois ou três suspeitos não surgisse um culpado.

Um rabecão vindo de Barra do Piraí levou o corpo - e trouxe um grave problema funcional para Angimestro Saraiva. Enquanto duraram as diligências policiais, ele tinha um motivo para nem passar pela praça principal. Estava sempre em averiguações, nos lugares mais distantes do coreto.

Ele nem podia suportar a certeza de que, em algum lugar, houvesse um defunto. Quando morria alguém em Rodeio, Saraiva era capaz de dar uma volta enorme, passando pelos caminhos que levavam à boca do Túnel 12, subia morros e descia vales, cumpria os itinerários mais estranhos, desde que não fosse obrigado a passar nas imediações da casa onde o defunto estava sendo velado.

O crime da Indústria de Fogos de Artifício Picolino trouxera um elemento novo ao pânico que Angimestro Saraiva tinha de defuntos. Ele teria de dar expediente ali mesmo, no porão do coreto. Permaneceria o dia inteiro naquelas sombras que durante dois dias haviam velado um morto com dois tiros na cabeça e dois na barriga.

A ideia de desertar foi mais forte do que sua fidelidade a Corintho da Fonseca. E na manhã de um sábado, despindo a farda e levando uma pequena mala de papelão, tomou o caminho de terra que, passando por cima do Túnel 12, ia dar em Humberto Antunes, onde poderia embarcar num trem que o levasse a Niterói, ao Rio, à Patagônia, à puta que pariu, a qualquer lugar que ficasse bem longe do coreto e da praça principal de Rodeio.

Não chegou a andar um quilômetro. Ouviu a explosão que, segundo contava anos depois aos fregueses da Confeitaria Lallet, no Rio de Janeiro, balançou os galhos - e nem só os galhos, mas as árvores que cobriam o morro sob o qual o engenheiro Paulo de Frontin abrira o maior túnel da América do Sul.

Ele teve duas reações antagônicas. A primeira, uma deformação profissional sem dúvida, foi a de ir averiguar o que acontecera, tomar providências ao lado de Corintho da Fonseca, de quem nem se despedira. A outra foi de sair correndo, fugindo definitivamente de um lugar até então pacífico e saudável, que de repente, sobretudo depois das atividades suspeitas de Francisco de Assis Rodano, produzia um defunto com quatro balas, duas na cabeça e duas na barriga, e explosões que por sua vez produziriam dezenas, talvez centenas de defuntos.

Entre as duas opções, Angimestro Saraiva não previra uma terceira. Justo no momento em que todo o seu ser - alma, corpo, roupa, sapatos e mala de papelão - o aconselhava a andar mais depressa para fugir de tantas calamidades, o ex-sacristão Casimiro Fernandes apareceu em sentido contrário. Ele havia ido a pé até Humberto Antunes buscar umas ervas-de-santa-maria para Galeano preparar um novo e também maravilhoso diurético. Ao lado do Peitoral Maravilhoso Galeano de Rodeio e do Purgante igualmente Maravilhoso, Galeano de Rodeio tinha a certeza de ser um benfeitor se não da Humanidade inteira, ao menos da Humanidade adjacente aos trilhos da Central do Brasil, no difícil mas belo trecho que galgava a serra do Mar.

Casimiro não só ouvira a explosão como, ao contato das coisas maravilhosas que Galeano tão maravilhosamente produzia, suspeitava do que havia acontecido. De olhos esbugalhados, informou a um perplexo Angimestro Saraiva: “Aquele demônio explodiu o coreto! Voou tudo pelos ares!”.

Angimestro Saraiva, que se preparava para mudar de passo, trocando a sóbria caminhada por uma desabalada carreira, considerou que havia um outro lado da questão a ser considerado. Com o coreto indo pelos ares ele ficaria livre para sempre das duas calamidades que mais o afligiam: Francisco de Assis Rodano e o porão fatídico que por dois dias e duas noites abrigara o morto da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, um morto magnífico: com duas balas na cabeça e duas balas na barriga.

Ele nem procurou saber como pudera Casimiro Fernandes saber da explosão, ele que vinha do outro lado, com uma sacola cheia de ervas-de-santa-maria para abastecer a maravilhosa botica do Galeano de Rodeio. Acreditou nele e reconsiderou sua decisão. Afinal, não comunicara a ninguém que estava desertando, e, com a confusão que deveria estar instalada em Rodeio, ninguém teria dado por sua falta nem estranharia sua indumentária paisana e sua mala de papelão.

Voltou com Casimiro, que na exaltação de ver Rodeio em chamas, nem percebera que Angimestro Saraiva, vestido à paisana, com a mala de papelão na cabeça, estava desertando.

Foi com decepção, sobretudo para Angimestro Saraiva, que ao chegarem às proximidades da Bica do Dr. Sales, parte mais alta da cidade, viram ao longe a praça principal e o coreto no lugar de sempre.

 

                   O GRANDE SINAL

Na véspera, logo que anoiteceu, Francisco de Assis Rodano despertara de sua letargia (havia mais de uma semana não comia, não bebia e não dormia) e fizera um formidável discurso para a praça principal de Rodeio, inicialmente vazia, com seus bancos de pedra e seus minguados canteiros com flores silvestres.

Aos poucos, fora tal e tamanha a veemência do Rival do Outro e Lúcifer Encarnado, que começaram a aparecer ouvintes, poucos é verdade, mas só no começo. Logo juntou-se uma multidão. Em Rodeio nada acontecia, e qualquer coisa que acontecesse ou ameaçasse acontecer era uma hégira, um fato transcendental, como uma peste, uma fome, uma guerra.

E foram esses, justamente, os temas principais do discurso que Francisco de Assis Rodano despejou do coreto da praça principal de Rodeio: a Peste, a Fome e a Guerra.

Não houve uma só pessoa que entendesse direito o que estava acontecendo ou o que deveria acontecer. Francisco de Assis Rodano esbravejava, proclamava e, sobretudo, ameaçava calamidades terríveis.

Pelo menos uma coisa todos entenderam: em breve, em brevíssimo tempo, ocorreriam sinais igualmente terríveis que anunciariam a Batalha Final entre as Forças do Bem e do Mal, etapa decisiva da Grande Guerra entre o Outro e o Demônio, iniciada no Paraíso com a revolta comandada por Lúcifer, o mais belo dos anjos. Esse Anjo Maravilhoso perdera aquela e outras escaramuças menores porque não estava armado, ainda, com a poderosa e invencível Lança de Longinus - e Francisco de Assis Rodano brandia a enorme lança, assombrando os rodeienses com a veemência de suas palavras e de seu gesto.

Foram todos dormir, já estavam mais ou menos habituados às patranhas de Francisco de Assis Rodano, pouco tempo antes aprendiz de toureiro de um circo que nem tinha um touro de verdade. Não o desfeiteavam publicamente porque, afinal, era um sobrinho de tia Zizinha, que vivera e morrera em odor de santidade.

Depois de ter alertado a Humanidade representada pela porção de rodeienses ao redor do coreto, Francisco de Assis Rodano caiu prostrado no chão de tábuas e pareceu repousar, uma vez que nunca dormia. No meio da noite, um vulto se aproximou do coreto, trazendo, numa cestinha, um pão, um pedaço de frango, uma banana e uma garrafa.

Amapola olhou em torno para ver se estava sendo seguida. Não havia ninguém, Rodeio dormia, exausto das ameaças que Francisco de Assis Rodano anunciara aos berros na praça principal da cidade.

Subiu os seis degraus, balançou a pequena porta na grade circular do coreto, avisando a Francisco de Assis Rodano que estava ali. Ali já estivera outras noites, mas jamais fora atendida: ele recusava o alimento e a bebida, recusava-se até a falar com ela - que, por sinal, não falava também.

Dessa vez, fosse pelo cansaço do discurso, fosse pelo torpor que se instalava em seu corpo ossudo e fatigado, Francisco de Assis Rodano fez um gesto para que Amapola entrasse. Recusou os alimentos. Aceitou a água, uma água tão maravilhosa quanto os produtos saídos da maravilhosa botica do Galeano de Rodeio.

Amapola procurara o boticário, logo no segundo dia de jejum de Francisco de Assis Rodano, para saber o que deveria fazer para que ele não morresse de exaustão. Galeano garantiu que o organismo humano podia resistir dias, semanas, em alguns casos, até meses, sem alimentos sólidos. Mas água, nem Jesus Cristo, na cruz. O Filho de Deus teve sede e deram-lhe para beber uma esponja embebida de vinho e vinagre - estava em são Lucas, era só pegar uma Bíblia e conferir.

Galeano ensinou o que devia fazer. Um litro de água, uma colher de sal e três de açúcar. Obrigasse Francisco de Assis Rodano a beber pelo menos um litro por dia (ou por noite - insinuou Galeano, sabendo aonde Amapola queria chegar).

Bem verdade que uma semana se passara e ela não conseguira forçá-lo a beber, um copo que fosse. Somente agora, depois do terrível discurso que pronunciara, Francisco de Assis Rodano aceitara quebrar a promessa. Mesmo assim, encarou Amapola com desprezo, considerando-a parte da tentação do Outro. Fora o Outro que a mandara, para tentá-lo.

Mas era tarde, Francisco de Assis Rodano vencera a prova. Nem precisaria passar os quarenta dias e quarenta noites no deserto, bastaram duas semanas, ele se sentia forte o suficiente para lançar as terríveis ameaças que - sem ele saber - pouco preocuparam os rodeienses, que agora dormiam o grande sono da serra do Mar, sem desconfiar que, ao menos daquela vez, Francisco de Assis Rodano estava com a razão, ele, que abdicara da Razão para se encarnar no Absurdo.

 

No geral, os rodeienses estavam habituados a grandes estrondos. No verão, e às vezes durante o ano todo, ali caíam tempestades que começavam e acabavam com formidáveis trovoadas. Constava entre os mais antigos que caíam raios em Rodeio até mesmo sem necessidade de temporal.

De maneira que, na manhã seguinte, quando ouviram o estrondo que parecia ter nascido na rua, na casa, no quarto de cada rodeiense, todos pensaram que a natureza exagerara, não precisava tanto, todos já tinham sido advertidos por Francisco de Assis Rodano de que surgiriam grandes sinais.

Dessa vez, o estrondo fora tal e tamanho que muitos viram uma bola de fogo passar rente à janela de cada um. E como o sol brilhava lá fora, evidente que se confirmava, para as novas gerações de rodeienses, a lenda de que em Rodeio caíam raios sem necessidade de temporal específico.

Também ninguém soube quando começou a circular a notícia de que a Indústria de Fogos de Artifício Picolino tinha ido pelos ares. O fato é que, cinco minutos depois do estrondo, todos sabiam que não fora um raio, mas um paiol de pólvora que explodira, matando centenas de empregados. Meia hora depois, os rodeienses, entre aliviados e frustrados, ficaram sabendo que não morrera ninguém, a explosão fora muito cedo, os operários ainda não haviam chegado, a única vítima havia sido uma cabrita, que alguns chamavam de Solange e outros de Amália.

Solange ou Amália, a cabrita, essa sim, voou pelos ares, o que não impediu que sua carne estraçalhada fosse dividida entre os operários. E como das vezes anteriores, rosnou-se na cidade e em toda a serra do Mar que a explosão fora provocada pelo dono, interessado em desativar a fabricação de fogos para explorar os eucaliptos que cobriam o morro sob o qual fora cavado o sinistro Túnel 12.

Estavam em moda diversos produtos e subprodutos do eucalipto, sabonetes, pastas de dentes, materiais de limpeza, desinfetantes, além de remédios para tosse, catarro sufocante e não sufocante, injeções antigripais, pastilhas para garganta - garantiam que o eucalipto, mais eficaz do que a Bica do Dr. Sales, curava tudo, menos impotência sexual, embora não a agravasse.

 

O estrondo fora pela manhã, na hora em que Rodeio acordava para mais um dia - o que já era lucro: depois das ameaças proferidas por Francisco de Assis Rodano, um minuto a mais na vida de cada rodeiense poderia ser considerado uma eternidade.

Ali pelo meio-dia, quase ao mesmo tempo, todos começaram a associar o estrondo da Indústria de Fogos de Artifício Picolino ao sinal que Francisco de Assis Rodano anunciara na véspera. Pouco a pouco, como se cada um obedecesse a uma inspiração individual, dirigiram-se para a praça principal da cidade. E foi um pasmo: o coreto estava vazio, Francisco de Assis Rodano se evadira, fugindo da Terra como o profeta Elias numa carruagem de fogo, impulsionada pelo magnífico trovão que todos tinham ouvido.

E mais admirados ficaram ao ver Angimestro Saraiva, pela primeira vez em trajes paisanos (ele nem tivera tempo de trocar de roupa e vestir a farda de novo), dando ordens com a autoridade de sempre: “Circulem! Circulem!”.

 

                   O NARRADOR VOLTA À HISTÓRIA

Eu tinha direito de telefonar para Marta. Entre outras razões, porque o telefone era meu, fora meu durante anos, antes mesmo de me casar com ela. Volta e meia ela deixava recados, eu alugara o telefone de um amigo, ela ficara de providenciar a transferência de um aparelho que estava em nome do pai dela, que já havia morrido. Por um motivo ou outro nunca o fizera - precisava cumprir as formalidades da companhia, eu teria de comparecer para assinar um papel, enfim, nem ela nem eu tínhamos muito tempo e disposição para esse tipo de coisa. Eu continuei pagando um telefone que não usava e ela continuou usando um aparelho que não era mais dela.

Como motivo, não podia arranjar outro melhor. Mas sabia que, por mais verdadeiro e legítimo que fosse esse motivo, ela sempre pensaria que eu o usara como pretexto. Depois de um caso complicado como o nosso, a melhor herança que nos restou - pelo menos a mim - foi o orgulho.

Na realidade, eu teria uma dezena de pessoas para consultar, não em termos de desabafo ou confidência, mas simplesmente para ouvir uma opinião, sentir a barra. Por exemplo: como reagiria o meu irmão, se soubesse que eu estava envolvido com uma vaca que falava? Podia acrescentar: se ele soubesse que, de tempos em tempos, eu recebia Francisco de Assis Rodano em minha casa?

Havia muito o primo fora esquecido pela família. Eu próprio não o procurava, nem tinha necessidade disso, mas não podia evitar que ele aparecesse, mexesse nas minhas coisas, passasse dias comigo, e, como produto suplementar, assustasse o porteiro Amaro, que passou a me olhar desconfiado. Evitava ficar sozinho na portaria quando me via descer para buscar correspondência, dava um jeito de manter uma distância, não sei se respeitosa ou prudente, quando me entregava um embrulho, um jornal, uma encomenda.

Na emergência em que me encontrava, não haveria nada demais em procurar Marta, pensasse ela o que pensasse. Bem verdade que, sendo ela analista, com consultório em Ipanema, eu poderia argumentar com o lado profissional da conversa. Enquanto fomos casados, ela chegou a exercer a profissão. Eu nem fiz esforço em sentido contrário. Sabendo o que pensava a respeito desses assuntos, ela deve a delicadeza de passar o consultório para um colega, arranjou outro ofício e não foi por isso ou aquilo que acabamos sozinhos depois de seis anos de vida comum e gostosa.

Não sendo a ela, a quem poderia ser? Tinha um rosto e um nome: Ruth, com th. De uns tempos para cá, comecei a desconfiar que se podem dividir as pessoas de diversas maneiras e modos: pela religião, pelo time de futebol, pelas preferências musicais, literárias e até mesmo geográficas. “Adoro Roma!” ou “Detesto Roma!” é mais do que uma preferência topográfica, turística ou cultural. É todo um programa de vida, uma confissão.

Pois as pessoas podem ser divididas entre as que têm th no nome e as que não têm. Ruth, a melhor e mais constante amiga de Marta, tem th no nome. Por sua vez, Marta não tem, ela detestava uma certa Martha Dulce Galeão, que tinha th e, segundo suspeitava, tivera um caso comigo - o que era falso.

Não devia ser apenas pelo th. Afinal, Ruth era Ruth e não Rute. E era a única pessoa de que Marta realmente gostava, em quem confiava. Pois essa mesma Ruth passou a ser uma obsessão desde o dia em que voltei do Maduro, depois de ter proibido Luarlindo de me procurar outra vez. Dei-lhe dinheiro, mais do que merecia, garanti que o ajudaria sempre que pudesse, mas com uma condição: nunca mais me falasse nem lembrasse daquela vaca do Lins de Vasconcelos.

Não tinha o telefone de Ruth, mas conhecia o seu marido, industrial que volta e meia era ouvido pela editoria de economia do jornal. O cara sempre tinha boas informações, o negócio dele envolvia câmbio, era uma das fontes dos colunistas especializados.

Foi fácil arranjar o telefone dele. Mais difícil foi discar. Nunca o fizera antes e só mesmo um assunto muito sério poderia justificar a ligação. Mais uma vez, o orgulho fez minhas tripas se revoltarem, mas tive um pensamento consolador: “Depois de Francisco de Assis Rodano e, sobretudo, depois da vaca, tenho o direito de fazer o que quero e até o que não quero!”.

A voz de Ruth era a mesma, uma voz molhada, como se tivesse acabado de beber muita água. As palavras saíam úmidas, umas depois das outras, numa cadência líquida que a fazia sexy, como se ela estivesse permanentemente pedindo.

- Ruth?

- Sim. Quem fala?

Tive pudor de dar o meu nome. Talvez ela nem se lembrasse dele. Disse que era o ex-marido de Marta. No silêncio que ela fez, deve ter tido tempo para pensar na estranha identidade que eu assumia: o ex-marido de Marta. Era uma categoria, uma definição. Mais completa e demolidora do que o número da carteira de identidade, do passaporte.

De minha parte, dei tempo também para que ela descodificasse a mensagem, aquele “ex-marido de Marta”. Pelo tempo que demoraria em responder, eu poderia avaliar a surpresa dela.

Esperei mais do que imaginava. Fiquei aliviado quando ouvi, do outro lado da linha, de repente:

- Oi, que surpresa! Que bom ter telefonado! Como vai?

Eu deveria dizer que ia mal, que ia pessimamente, por um instante fiquei arrependido de não ter ligado direto para Marta.

- Bem. E você?

- Tudo.

Esse primeiro combate deu tempo para que ela pensasse no fundamental: “Que diabo quer de mim o ex-marido de Marta?”.

A meu favor, apenas a circunstância de ter tido com as amigas de minha ex-mulher, em especial com Ruth, um relacionamento distante mas cordial, eventualmente carinhoso. E antes que a conversa, mal iniciada, tivesse uma pausa constrangedora para ela ou para mim, entrei de sola no assunto:

- Olha, Ruth, você vai me desculpar, mas é uma... - pensei que exagerava mas poucas vezes estava sendo tão sincero - é uma emergência... é para um amigo... não quero amolar Marta por isso, ela ficaria embaraçada com o meu pedido... o jeito é apelar para você... eu preciso... não ria, é sério, eu preciso de um analista...

Passado o susto (ela temera uma espécie de cantada totalmente absurda pelo nosso passado), deu uma risada serena, aliviada:

- Deus existe! Mas não é possível!

- Não é para mim, é para um amigo... um colega de jornal... foi demitido... está bastante perturbado...

- Perturbado como?

- Anda fazendo coisas estranhas... tem visões...

- Bebe muito?

- Acho que não. Só o necessário.

- O que é “o necessário”?

- A barra está pesada, Ruth.

- É caso para analista mesmo?

- Honestamente, não sei. Não entendo disso. Lembro apenas que Marta dizia que há muito charlatão nessa história, muito vigarista... ela levava a sério a coisa... era competente e honesta...

- Mas por que não fala logo com ela? Pelo que sei, Marta anda meio chateada com o que houve entre vocês, mas ainda não deu para sair por aí mordendo as pessoas... está fria... vai levando...

- Bom, eu também vou levando... tanto que pela primeira vez estou me preocupando com um colega, que nem é amigo chegado, um rapaz bom, modesto, ganha pouco... merece ajuda...

- Ele pode pagar um tratamento?

- Acho que não. Para falar a verdade, ele foi demitido, está numa fossa daquelas... você pode avaliar...

- Sim, avalio... de graça a coisa fica mais difícil...

- Dá-se um jeito. Eu adianto as primeiras sessões... desde que não sejam muito caras...

- Já sei. Você quer o melhor pelo mais barato. É isso?

- Mais ou menos. Você deve saber... fez análise...

- Ainda faço. Oito anos. Se parar, desabo.

- Sei, sei, lembro de tudo, você conheceu Marta assim, fazendo análise, quando ela parou vocês ficaram emburradas... ela foi a sua primeira analista, não?

- Para ser franca, foi a primeira e a melhor. Não vem ao caso discutir a minha análise, mas a sua.

- A minha não, a de um colega...

Ela riu:

- Você sabe que entre dez pessoas que buscam a análise, quer dizer, pela primeira vez, nove dizem que é para um amigo... um conhecido...

- Sou um entre dez. Não é mesmo para mim, eu seria franco. E não esqueço que Marta fechou o consultório porque não suportava o meu...

- Você foi medonho, isso não se faz... Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, entraria areia no casamento de vocês... as coisas começam assim, de mansinho...

- Não, acho que não... nós vivemos bem, foi uma grande relação, nem ela nem eu reclamamos, sempre concordamos nisso...

- Conheço todos os truques... meu marido também despreza os analistas, sobretudo o meu analista... mas já se conformou... aceita a situação...

Senti-me imbecil com o rumo da conversa. No fundo, começava a me amaldiçoar por não ter telefonado diretamente para Marta.

- Bem, Ruth, o caso é mesmo de emergência... eu preciso ajudá-lo... ele foi demitido, não tenho condições de convencer o pessoal da redação a reverter a demissão... e eu me lembrei de você, de consultar você antes de indicar um analista para ele... afinal, você sabe o que penso desse negócio, mas sempre fiz bom juízo de você, sempre a admirei... era a única amiga de Marta que realmente eu admirava...

Não gostei de ter dito aquilo. Ruth poderia pensar que, por fim, eu entrava no assunto, antes estudara o terreno. Ele deve ter pensado a mesma coisa, mudou o tom de voz, ficou neutra, distante:

- Entendi. Fique tranquilo, vou pensar no assunto. Acho que conheço um que é muito bom, não é careiro... onde encontro você? No jornal?

- Sim, sim, mas se não se incomoda, eu telefono amanhã, ou depois de amanhã...

- Depois de amanhã. É mais seguro... talvez não dê certo na primeira tentativa... Posso consultar Marta? Ela...

- Não, pelo amor de Deus, ainda não, ela vai pensar que é mesmo para mim... que estou fraquejando...

- Orgulho de macho... sabe que isso é motivo para uma boa análise?

- Imagino. Talvez seja. Mas é para um amigo... uma coisa séria... ele anda conversando com... não estou muito por dentro da história, só sei que ele foi demitido e precisa de ajuda...

Dois dias depois, ela telefona para o jornal. Pelo jeito seco com que fala, percebo que conversou com Marta sobre o assunto.

- Tem papel e caneta? Tome nota.

Deu um nome e um endereço. Praça General Osório, centro de Ipanema. Ruth sempre estivera enturmada, carioca demais, folclórica demais para o meu gosto: isso a fazia ligeiramente desagradável.

Tomei nota do nome e endereço. Desliguei. Depois amassei a anotação, fiz uma bolinha de papel e a joguei pela janela. Não devia ter feito isso: a cidade já é suficientemente suja.

Eu mudara de ideia.

 

                   SATÃ ESTÁ ENTRE NÓS!

Foi o título do editorial que Corintho da Fonseca escreveu para A Voz da Serra no início da Quaresma daquele ano. Desesperado porque nem o bispo de Barra do Piraí nem o papa tomaram providências para o descalabro moral, teológico, social e policial de Rodeio, ele, na sua dupla função de delegado e oficial do Registro Civil, pelo menos tinha a seu favor uma terceira e consoladora função, a de principal colaborador do semanário que, segundo ele pensava, fazia a cabeça mas não fazia mais nada dos habitantes de Rodeio, os quais Corintho da Fonseca preferia chamar de almas, pois sempre se referia à população local como um “rebanho de duas mil e quinhentas almas”.

Essas duas mil e quinhentas almas, para ser exato, essas duas mil, quatrocentas e noventa e nove almas - pois a alma de Corintho da Fonseca não contava (pensando bem, deviam ser apenas duas mil, quatrocentas e noventa e oito almas, pois a alma de Angimestro Saraiva, que tinha pavor de defuntos e almas, em solidariedade a Corintho da Fonseca, também não contava) -, essas almas todas estavam devidamente entregues ao novo centro de atração da cidade, que agora se deslocara para o Arraial do Sapo, onde Francisco de Assis Rodano surgia como um enviado do Inferno para corrigir o mundo e salvar o homem da tirania do Outro.

Até então, Rodeio tivera poucos mas bastantes motivos de glória. A Bica do Dr. Sales, por exemplo, durante algum tempo prometeu uma espécie de turismo clínico, diziam que aquelas águas - não muito fartas, era um filete combalido que levava uns cinco minutos para encher um garrafão - curavam cobreiro, espinhela caída e impotência sexual, mas não curavam porra nenhuma, quem o garantia era Galeano de Rodeio, o boticário que ameaçou concorrência às águas do Dr. Sales e que tentou - sem conseguir - renome estadual com o Peitoral Maravilhoso Galeano de Rodeio e apenas provocava terror com o seu famigerado, terrível e quase letal Purgante (também) Maravilhoso Galeano de Rodeio.

Além da Bica do Dr. Sales, Rodeio tinha um parque industrial notável, em se tratando da economia decadente do estado do Rio daquela época. A Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini era um orgulho dos rodeienses, mas pagava salários tão miseráveis que aos poucos passou a ser chamada de “o polvo canadense de Rodeio”.

A expressão é sofisticada e merece explicação. Para o bem ou para o mal, Rodeio ficava a apenas oitenta quilômetros do Rio de Janeiro, então capital da República. De trem, ia-se da Estação de Dom Pedro II à Estação de Rodeio em menos de duas horas, fazendo-se paradas em Belém, Serra e Palmeiras, passando-se em regime de non stop (não era conhecido, ainda, esse jargão das viagens aéreas) em Mário Belo e Scheid, além de todos os subúrbios da Central no perímetro urbano do Rio.

Uma distância tão curta que Francisco de Assis Rodano nunca tomava trem para ir ou vir do Rio: preferia fazer o trajeto a pé, todos sabiam disso, embora nunca ninguém soubesse quanto tempo ele levava nessa viagem, garantindo alguns que cinco dias, outros três, havendo ainda aqueles que juravam que ele não gastava mais de seis ou sete horas na caminhada - era uma façanha espantosa.

A proximidade de Rodeio com a antiga sede do governo federal fazia com que alguns problemas fossem comuns. Nesse tempo, o Rio reclamava da Light, para ser completo, da Light & Power Company, a companhia canadense que explorava os serviços de luz, força, gás, telefone, bondes e ônibus. E como explorava além do desejado, era considerada “o polvo canadense”.

Rodeio não tinha telefone, nem gás, nem ônibus. A luz fraca que servia às casas vinha de uma perna da rede de Barra do Piraí. A Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini tinha gerador próprio, motivo pelo qual era obrigada a pagar salários baixos, pois o gerador aumentava o custo operacional das varetas de guarda-chuvas que fabricava.

Para todos os efeitos, a Fiorini era a entidade mais próxima para assumir o papel de polvo canadense de Rodeio, embora não tivesse nenhum canadense em seus quadros, sendo seus diretores italianos ou descendentes de italianos.

A outra joia da coroa fabril da cidade era a Indústria de Fogos de Artifício Picolino, que ficava na parte mais alta de Rodeio, e cujos fogos durante muito tempo foram os melhores do Brasil até que os acidentes, alguns naturais, outros provocados, fizeram cair a qualidade do produto e a indústria entrou em decadência. Diziam que a Picolino queria se livrar da pólvora, elemento obviamente explosivo, para explorar os eucaliptos que enchiam o morro sob o qual o engenheiro Paulo de Frontin cavara o 12, o maior túnel ferroviário do Brasil.

Mesmo sem ser um outro polvo, canadense ou não, a Picolino foi e deixou de ser motivo de orgulho para Rodeio. A carência sentimental dos rodeienses chegou a níveis insuportáveis: quiseram fazer de A Voz da Serra um paladino das grandes causas da época, que em Rodeio se limitavam a arranjar um vigário, a livrar os habitantes das explosões (voluntárias ou não) da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, e, mais recentemente, à construção de um novo cinema, pois o que havia, o nunca por demais louvado Cinema do Russo, um salão precário em cima do riacho que cortava a parte baixa do arraial, com a umidade ameaçava desabar.

Esse Cinema do Russo era importante na crônica de Rodeio. Foi ali que, no Carnaval de 1919, logo depois da Gripe, o pai de Francisco de Assis Rodano, conhecido como Choca, tocou banjo durante os três bailes sucessivos e ainda teve tempo, vagar e forças para conseguir a façanha de cometer - conforme foi dito e conservado na memória geral - quase trezentos defloramentos,

Criou-se um vácuo na alma de Rodeio. Um vazio que nada preenchia, nem mesmo o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, que em memorável temporada chegou a atrair para a cidade alguns interessados de Palmeiras, Serra, Mário Belo, Scheid, Humberto Antunes e Mendes - nunca passando, porém, destes dois extremos, fronteiras naturais de Rodeio com o restante do mundo: Mendes para cima, em direção a São Paulo; e Scheid para baixo, em direção ao Rio.

Quando Francisco de Assis Rodano desapareceu do coreto da praça principal, e com esse misterioso desaparecimento iniciou efetivamente a sua vida pública, os rodeienses não tinham certeza, mas suspeitavam que nascia um novo ciclo na história da cidade. No fundo, todos achavam que tudo ficara muito confuso, a Lança de Longinus, as botas do boi Papelão, o discurso incompreensível daquele que, afinal, era sobrinho da tia Zizinha, que morrera em odor de santidade.

Fosse o que fosse, e, principalmente, não fosse o que nunca seria, pouco importava. Embora Francisco de Assis Rodano se declarasse Rival do Outro e Lúcifer Encarnado, o povo de Rodeio confiava desconfiando dele, como desconfiava confiando nos produtos maravilhosos de Galeano de Rodeio. Assim como usavam o purgante e o peitoral da maravilhosa botica, o rodeiense levava as crianças recém-nascidas para serem abençoadas pelo Rival do Outro. Se bem não fazia, mal também não devia fazer e se fizese havia o peitoral e o purgante do Galeano, que curavam qualquer enfermidade e qualquer ameaça de enfermidade só com o cheiro - que nada tinha de maravilhoso.

E os noivos que se casavam, e os enfermos que sofriam, e os moribundos que morriam, todos, de alguma forma, procuravam o Rival do Outro, embora achando que ele exagerava um pouco.

Até que o próprio Francisco de Assis Rodano encheu-se daquela função ambígua e declarou para quem quisesse ouvi-lo do alto do morro Portugal, nas proximidades de sua casa do Arraial do Sapo: “Regojizai-vos: Satã está entre vós!”.

 

Sem ter consciência disso, Anna sofria daquilo que os entendidos chamam de furor uterino. Não era uma galinhagem vulgar, mas uma necessidade fisiológica que a fazia buscar o macho em qualquer circunstância, duas, três, cinco vezes seguidas. E, no seu furor, pouca ou nenhuma importância dava ao homem que escolhia, pois escolhia a todos, tendo como referenciais a urgência e a proximidade.

Isso posto, ela gostava realmente de Francisco de Assis Rodano e o considerava seu marido e para ele dedicava o que sobrava do furor uterino. Tinha jeito para pedir donativos, embora não o tivesse para administrá-los. Com Amapola, que vivia sob o mesmo teto, com seus cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, e que era considerada a única virgem maior de dezoito anos de Rodeio, formava uma dupla que muito ajudou na formação e na estruturação do mito de Francisco de Assis Rodano.

Corintho da Fonseca, em comentado artigo em A Voz da Serra, analisou o fenômeno sócio-econômico que se processava no Arraial do Sapo, lembrando que “todo grande homem tem atrás de si uma grande mulher: Francisco de Assis Rodano tem duas!”.

Enquanto Anna, na folga de seus desvarios, sabia cobrar os serviços espirituais do Lúcifer Encarnado, usando uma tabela para conselhos, exorcismos (um dos fortes o Rival do Outro era livrar os doentes da possessão do Outro, para isso fazia um exorcismo às avessas), trabalhos para curar enfermos ou matá-los (conforme a precisão do interessado), brigas e rixas individuais ou de famílias, demandas de heranças ou posse de terrenos e serventias, enfim, o cardápio infernal de Francisco de Assis Rodano era extenso e variado, pois até casamentos fazia e também uma espécie de batizado, quando se apoderava da alma do recém-nascido, livrando-a da hipócrita e inútil influência do Outro.

Com o dinheiro que entrava, em espécie ou em mantimentos, Anna passava a administração para Amapola, que cuidava das galinhas que chegavam, dos leitõezinhos de leite que iam para engorda, das frutas, dos ovos e do dinheiro mesmo, que pingava e pingava numa bandeja que Anna oferecia a todos os que, fatigados de esperar pela ajuda do Outro, buscam em Francisco de Assis Rodano a solução ou o alívio de suas necessidades.

No início, Anna estranhou a presença de Amapola na mesma casa, de certa forma administrando o mesmo homem. Mas logo percebeu que seu lugar não sofreria concorrência nem contestação. Bem verdade que o vulgo imaginava que Francisco de Assis Rodano passava as duas na cara, mas Anna sabia que Amapola era esquisita, nunca tivera namorado, não sentia atração pelos homens e, acima de tudo, desde os tempos em que ela e a outra moravam com Gargalhada, no reboque do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, era Amapola que cuidava de tudo. De quebra, Amapola servira de mãe para Giovani, o outro filho de Gargalhada. E agora, se não servia de mãe outra vez, era babá do filho que Anna tivera nem sabia com quem.

Por seu lado, Francisco de Assis Rodano parecia não ter consciência de que tinha duas mulheres em casa, uma delas com uma criança que ia fazer três anos. Vivia em longos, infinitos períodos de meditação, ou ouvindo discos que trouxera da casa de seu primo no Rio, músicas complicadas, de que só ele parecia gostar, embora, vez por outra, Amapola chegasse perto e ficasse ouvindo também. Se não gostava, parecia sentir a música - o que era exatamente o caso do Rival do Outro.

Anna detestava aquele repertório, mas não dava importância, ou melhor, dava muita importância àqueles momentos em que Francisco de Assis Rodano se estirava na cama - uma chippendale de segunda mão que compraram, meses depois de ter ele destruído a suntuosa cama colonial que fora de seu avô Acácio Nunes de Assis e que lhe fora legada por sua tia Zizinha.

Era a hora em que Anna podia descer do Arraial do Sapo e procurar os homens onde homens houvesse: no cimo do morro Portugal, que era o local mais ermo da cidade depois que Francisco de Assis Rodano o promoveu a sítio sagrado - ou sagrado às avessas, para ali se revelar em toda a sua pompa de Lúcifer Encarnado. Ia também para os lados da Bica do Dr. Sales, atrás de algum incauto que acreditava na eficácia daquela água, que - diziam - curava até impotência sexual.

Sem falar, também, nas incursões que fazia pelas imediações da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini, onde sempre havia um operário esfaimado que a contentava com cinco, seis posses seguidas. Anna só evitava mesmo a Indústria de Fogos de Artifício Picolino, pois temia a pólvora, as explosões. De tanto ouvir o Rival do Outro falar que “tudo será lambido pelo fogo”, ela queria distância dos paióis de pólvora que a Picolino espalhara pelos seus domínios.

Uma, duas vezes por semana, a casa saía da rotina para que Francisco de Assis Rodano atendesse o povo que o procurava. Havia dias em que os caminhos de acesso ao Arraial do Sapo ficavam congestionados de carros, gente que vinha de longe, até do Rio. O Rival do Outro dava passes, previa e evitava desgraças que estavam a caminho, e exigia de todos que invocassem o Demônio - que era ele mesmo - em caso de necessidade. Ele - Demônio - não desampararia ninguém. E todos seriam salvos do maléfico poder do Outro, que, em milênios de tirania e bajulação, só servira para estragar o mundo e perder o homem.

 

                   O OUTRO EQUILIBRA A PARTIDA

Tantas Corintho da Fonseca fez, tantas escreveu, tantas ameaçou e tantas imprecou à impiedade dos rodeienses que acreditavam em Francisco de Assis Rodano, tantos memoriais, abaixo-assinados e requerimentos enviou às autoridades civis, militares e eclesiásticas, desde o bispo de Barra do Piraí até o papa, que não era mais Pio XII mas João XXIII, que afinal foi atendido, mas em parte.

Bem verdade que a situação se agravara nos últimos tempos. Diziam que Francisco de Assis Rodano ressuscitara um morto em Porciúncula, lugar bem distante de Rodeio, mas a repercussão do milagre correu por toda a serra do Mar, assombrando a todos, menos a Angimestro Saraiva, que tinha opinião firmada sobre o assunto: não se devia mexer com essas coisas. Defunto, em sendo defunto, defunto devia ficar para sempre.

Se Francisco de Assis Rodano começasse a ressuscitar os mortos, o mundo ficaria inabitável para Angimestro Saraiva. Era urgente que alguém colocasse um fim naquela subversão da ordem natural das coisas. Daí que a chegada de frei Bruno Coccozza, da Ordem dos Frades Capuchinhos, foi saudada por todos.

Era um italiano de meia altura, de imensa careca, que usava óculos redondos de lentes verdes, o rosto muito vermelho embaixo e amarelo em cima, na calva que era total, lembrando vagamente o ônibus do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco. E, como todo capuchinho, com a barba vasta e grisalha que, olhada de perfil, dava-lhe o perfil de um bode em reflexão.

De início, pensaram que ele vinha em missão secreta do papa. O paternal coração de Sua Santidade acolhera as súplicas e os argumentos de Corintho da Fonseca e tomara providências. Depois, descobriram que o frade tinha ido a Rodeio por conta própria, para angariar fundos a fim de construir uma creche em Penedo, onde uns finlandeses começavam a construir saunas e andavam nus, uma pouca-vergonha, as crianças precisavam de um lar tradicional, com os pais vestidos, onde pudessem conservar as tradições da cultura que se fixou ao longo dos trilhos da Central do Brasil.

Finalmente, não faltaram aqueles que juravam ter visto o capuchinho bebendo cântaros de água da Bica do Dr. Sales, e aí descobriu-se que o motivo verdadeiro da vinda de frei Bruno Coccozza tinha sido, no mínimo, suspeito. Segundo crença geral, as águas da Bica do Dr. Sales curavam cobreiro, espinhela caída e impotência sexual - não exatamente nessa ordem. O capuchinho, pelas aparências, não sofria nem de cobreiro nem de espinhela caída.

Como não chegaram a um acordo sobre os reais motivos da chegada do frade, acreditou-se que ele viera fazer “averiguações teológicas e morais” - segundo registro (não assinado) de A Voz da Serra. Afinal, a fama de Francisco de Assis Rodano, mesmo descontando-se o morto de Porciúncula, era cada vez maior e incomodava as autoridades eclesiásticas, os protestantes (poucos) e até mesmo os espíritas (muitos), pois um rodeiense que se prezasse era, em princípio, católico, apostólico, romano, mas no trivial variado de cada dia topava qualquer coisa que o consolasse ou, ao menos, o distraísse.

Não havendo hotéis em Rodeio, nem casas de família dispostas a abrigar dentro de suas paredes um capuchinho italiano cujo perfil parecia com o do bode, a solução foi a Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini (cujos donos não eram mais italianos mas antes haviam sido) colocar à disposição do frade um alpendre que antes fora um anexo dos escritórios administrativos.

Perto do cemitério, na subida que começava no fim do arraial e terminava nas primeiras campas, havia uma capelinha, minúscula, havia muito desativada, que nem funcionava quando o padre de Mendes vinha dizer missa em Rodeio - evento cada vez menos frequente. O vigário preferia rezar a missa no salão de festas da fábrica, ou no Cinema do Russo - o que era considerado uma libertinagem, pois durante os três dias de Carnaval o Cinema do Russo transformava-se “numa pocilga onde os porcos e luxuriosos refocilavam”, segundo escrevia Corintho da Fonseca todos os anos na primeira página de A Voz da Serra.

Resolvida a adaptação de frei Bruno Coccozza à topografia moral, social e física de Rodeio, esperaram-se grandes acontecimentos. Aparentemente, Francisco de Assis Rodano não tomara conhecimento da chegada do capuchinho, limitou-se a chamá-lo de monsenhor Bodaico, o que era um sarcasmo - embora não fosse dado a isso, não ficava bem a ele usar o sarcasmo, o máximo a que chegava era a uma ironia sóbria, como convinha à nova encarnação de Lúcifer.

Frei Bruno Coccozza abriu um cisma espiritual em Rodeio. Fazia uns sermões complicados, complicadíssimos, que ninguém entendia, não somente porque os temas eram naturalmente complicados, mas também pela complicada língua que o frade falava, metade português, metade espanhol e o todo italiano.

Tudo ficaria numa simples ameaça aos poderes sobrenaturais de Francisco de Assis Rodano, não fosse um fato miraculoso que aconteceu com frei Bruno Coccozza. Rosnou-se que era chegado aos vinhos, assim mesmo, no plural, embora no Brasil só houvesse dois vinhos: o branco, que se chamava Único, que não era único porque havia também o tinto, que se chamava Telefone e tinha no rótulo um daqueles telefones de pé, primeira tentativa de desgrudar o aparelho da parede.

O frade foi visto andando pelo arraial, noite fechada, os rodeienses dormiam cedo. Angimestro Saraiva saíra do coreto, em cujo porão passava os dias à espera dos acontecimentos: desde que não houvesse defunto na jogada, tudo era lucro para ele.

Eis que Angimestro Saraiva, naquela noite, antes de recolher-se a seu quarto, que ficava para os lados da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, viu aquele vulto embuçado, andando de um lado para outro do arraial, trôpego, com uma garrafa na mão.

Somadas as evidências, Angimestro Saraiva concluiu que devia tratar-se de um bêbado, ele conhecia todos os bêbados de uma região que tinha como eixo o arraial de Rodeio e como circunferência quase toda a serra do Mar, de Paracambi a Barra do Piraí.

Ao se aproximar do bêbado, verificou que era um fato absolutamente novo na crônica de Rodeio: nada menos que frei Bruno Coccozza, enviado especial do papa para acabar com a maléfica influência de Francisco de Assis Rodano.

Achando que a ocorrência era superior à sua competência, correu à casa de Corintho da Fonseca, que já estava recolhido a seus aposentos na confortável casa que sua mulher, dona Vivinha, herdara de um tio milionário.

Angimestro Saraiva relatou a Corintho da Fonseca o que se passava, o frade bêbado, sozinho, andando de lá para cá no arraial. Os dois se dirigiram para a rua principal de Rodeio. No fundo, Corintho não acreditava que um frade, em delegação expressa do papa reinante, tomasse um porre na imensa e desolada noite rodeiense. Mas foi obrigado a acreditar no que viu.

Aproximaram-se do frade, que mais uma vez levava a garrafa à boca. Angimestro Saraiva colocou-se em segundo plano, deixando a seu superior hierárquico a prioridade da ação. Corintho da Fonseca considerou que aquela era uma das missões mais embaraçosas de sua carreira, mas não podia relaxar, nem descumprir seu dever.

- Monsenhor...

Corintho da Fonseca sabia que frei Bruno Coccozza não era monsenhor nem nada, somente Francisco de Assis Rodano, por sarcasmo, chamava-o daquele título honorífico, monsenhor Bodaico. A delicadeza da missão fazia Corintho pisar com cuidado.

- Monsenhor... o povo de Rodeio o respeita... considera-o um enviado de nosso soberano pontífice, por conseguinte, um enviado de Deus... Não fica bem ao monsenhor beber assim em público... pode ficar embriagado...

Frei Bruno Coccozza olhou para Corintho - ou pareceu olhar, pois apesar de ser noite fechada, ele nunca tirava da cara os óculos de lentes redondas e verdes.

- Come!... Ubriaco io?

Corintho não entendeu o italiano, mas compreendeu a estupefação do frade. Por isso, limitou-se a apontar a garrafa, que era típica do vinho Telefone, embora já estivesse sem rótulo.

Frei Bruno Coccozza ficou pasmo:

- Ma come?! Io bevo acqua... acqua della Fontana del Dottore Sales...

Corintho ficou ofendido. Achou que o frade zombava dele.

- Isso é vinho, monsenhor...

- Acqua!

- Vinho!

- Acqua!

Corintho da Fonseca perdeu a paciência, arrancou a garrafa da mão do frade e, para decidir a questão, bebeu um gole.

- É vinho, monsenhor...

Frei Bruno Coccozza não acreditou. Tirou a garrafa de Corintho da Fonseca e bebeu pelo gargalo. Bebeu, bebeu e foi arregalando os olhos. Estupefato, ajoelhou-se no chão de terra batida do arraial de Rodeio, abriu os braços em cruz e exclamou para o céu:

- Miracolo! Miracolo!

 

No dia seguinte, todo Rodeio ficou sabendo do milagre, adaptação local das bodas de Caná, quando os jarros de água foram transformados em jarros de vinho.

E como tudo o que acontecia em Rodeio de uma forma ou outra voltaria a acontecer, logo se formou a convicção de que o enviado do papa poderia desafiar Francisco de Assis Rodano em seu próprio domínio, que era o sobrenatural.

E foi nesse momento crucial da carreira do Rival de Deus que ocorreu um fato assombroso em Rodeio - cujo impacto se estendeu às cidades e vilas de toda a serra do Mar.

Casimiro Fernandes, ex-sacristão, ex-ajudante de toureiro, ex-auxiliar do boticário Galeano, havia se passado para um novo ofício: assessor do Lúcifer Encarnado. Nos dias em que Francisco de Assis Rodano atendia o público, vindo gente até do Rio para receber seus ensinamentos e encomendar seus serviços, Casimiro ajudava no atendimento das pessoas, no ordenar as entrevistas e no necessário momento de passar a bandeja para receber as doações.

Uma semana depois do milagre da transformação da água em vinho, frei Bruno Coccozza recebeu cerimoniosa visita de Casimiro Fernandes. Afinal, tratava-se de um ex-sacristão, um sujeito que ainda sabia ajudar missa em latim, que conhecia o essencial do culto, podia ser de grande valia, no fundo, no fundo, entre servir a um enviado do Inferno e a um enviado do papa, a formação moral de Casimiro Fernandes o levava a preferir o lado do Deus que o criara e de seu Filho, que o salvara.

Foi assim oferecer seus préstimos a frei Bruno Coccozza e intimá-lo a desmitificar Francisco de Assis Rodano demonstrando que este não passava de um charlatão, ou, o que Casimiro preferia, que ele, frei Bruno Coccozza, enviado do papa, tinha mais poderes do que o Lúcifer Encarnado.

O frade gostou do que ouviu e perguntou o que podia fazer para superar Francisco de Assis Rodano, que - segundo ouvira dizer - ressuscitou um morto em Porciúncula.

Casimiro Fernandes pigarreou e sugeriu que, para morto, morto e meio. O frade não compreendeu a sutileza verbal de Casimiro e quis detalhes. Casirimo garantiu que o morto de Porciúncula já era coisa do passado, e muito longínquo, afinal, ninguém em Rodeio sabia exatamente onde era Porciúncula.

Agora, ressuscitar um morto em Rodeio... um sujeito que todos conhecessem...

O frade continuou a nada entender. Casimiro Fernandes sentiu que precisava ser mais claro.

- Por que o monsenhor não ressuscita um morto?

- Cosa?

- Ressuscitar um morto... fazer um defunto levantar, andar...

Mesmo sem entender direito o português, frei Bruno Coccozza, boquiaberto, compreendeu o que Casimiro lhe pedia. Nada menos do que ressuscitar um morto! Não! Era tarefa acima de suas forças e de sua competência. Interiormente, arrependeu-se do maldito dia em que decidira desembarcar em Rodeio. Depois de tanta confusão com um louco que se dizia encarnação do Demônio, vinha agora um ex-sacristão, um homem suspeito, com a cara aberta por uma navalhada, pedir que ele ressuscitasse um morto!

Casimiro não se perturbou. Explicou que era fácil, trabalhara na Farmácia do Galeano, conhecia um remédio que botava o sujeito como morto, não havia médico em Rodeio, o sujeito caía num sono letal, cinco, seis horas depois acordava, não havia sequelas, coisa firme, garantida.

Mais uma vez, o frade custou a compreender. E quando compreendeu, ficou horrorizado. O que diria o superior da Ordem dos Capuchinhos, na Itália, ao saber que um de seus frades andava subvertendo a lei divina, ressuscitando mortos pelo Brasil? Seria excomungado, perderia as ordens e o hábito, morreria de fome pelas estradas, pedindo esmolas... Não e não!

Escorraçado pelo frade, Casimiro voltou ao Arraial do Sapo e ao serviço de Francisco de Assis Rodano. Dois ou três dias depois, Casimiro Fernandes amanheceu com febre. Ao meio-dia, estava com um febrão, começou a ter delírios. Quando a noite caiu, entrou em coma.

A notícia correu todo Rodeio. Galeano chegou a pensar em visitar o ex-ajudante, talvez fosse coisa à toa, que um bom purgante, do tipo maravilhoso que ele fabricava, poderia curar. Mas reconheceu que o mais prudente era ficar no seu canto, comprometido apenas com o natural, ou seja, a ciência. Para ele - Galeano de Rodeio - bastava ser maravilhoso e produzir coisas maravilhosas. Não se meteria com o sobrenatural.

Outro que pensou em tomar uma atitude - e acabou não tomando nenhuma - foi o enviado do papa, frei Bruno Coccozza. Ele viu claro: no Arraial do Sapo preparava-se um colossal embuste, uma terrível encenação. Casimiro Fernandes seria dado como morto, oficialmente morto. E, na hora do velório, Francisco de Assis Rodano o recuperaria do mundo dos mortos. Uma ressurreição dessa grandeza, somada à de Porciúncula - de que ouvira falar -, seria uma diabólica devastação na serra do Mar.

E como em Rodeio o iminente costumava acontecer, frei Bruno Coccozza aproveitou a noite e tomou o caminho de Mendes, disposto a nunca mais ali botar os pés.

A vitória de Francisco de Assis Rodano sobre o emissário do papa, fosse ele Pio XII ou João XXIII ou qualquer outro, foi tão esmagadora que Casimiro Fernandes nem precisou ser ressuscitado porque nem chegou a ser dado como oficialmente morto. A fuga ignominiosa do enviado papal, a retirada abrupta do emissário do Outro foi considerada prova definitiva de que os tempos haviam chegado e que Rodeio seria a Jerusalém às avessas.

Mesmo assim, duas semanas depois da fuga de frei Bruno Coccozza, o próprio Galeano começou a fazer mistério a respeito do caso, dando a entender que, realmente, Casimiro Fernandes chegara a morrer, ele constatara o óbito, mas nem teve tempo de comunicar o passamento a Corintho da Fonseca, pois logo Francisco de Assis Rodano entrou na jogada, ordenou que Casimiro Fernandes se levantasse do mundo dos mortos - e foi obedecido.

Muita gente não chegou a acreditar, mas a dúvida foi lançada. Contudo, criou-se uma dúvida dentro da dúvida. Os poderes de Francisco de Assis Rodano seriam decorrência de sua condição de Lúcifer Encarnado? Ou seriam um sofisticado disfarce de sua real santidade? Para robustecer esse desvio ideológico que começou a dividir os rodeienses, havia o inquestionável fato de Francisco de Assis Rodano ser sobrinho de tia Zizinha, que morrera em odor de santidade.

Tudo isso, finalmente, ficou meio no ar, a única autoridade que poderia dirimir os pontos obscuros da questão era Corintho da Fonseca, que preferiu se fechar, dando a entender que o silêncio era a alma do negócio. Fosse Francisco de Assis Rodano um emissário de Deus ou do Diabo, ele, Corintho da Fonseca, continuaria sendo o que era: delegado de polícia, oficial do Registro Civil, principal colaborador de A Voz da Serra e, agora, o depositário da Verdade.

Já o cabo Angimestro Saraiva passou a ter um motivo a mais para temer e odiar o seu quase-sobrinho Francisco de Assis Rodano. Se ele começasse a ressuscitar defuntos, em breve Rodeio seria um cemitério exposto, a céu aberto, com os mortos passeando pelo arraial, bebendo a miraculosa água da Bica do Dr. Sales, tomando os maravilhosos produtos de Galeano, mortos em fila, congestionando o reduzido mercado de trabalho, tudo isso depois de terem sido convocados à vida pelo Lúcifer Encarnado.

E como fora levantada a dúvida sobre a morte ou não-morte de Casimiro Fernandes, o ex-cabo da Milícia do Pará, Angimestro Saraiva, radicalizou e, por segurança pessoal, nunca mais passou perto dele, evitando-o ostensivamente.

Dentro de sua casa, no Arraial do Sapo, Francisco de Assis Rodano sentiu que, apesar da consagração, alguma coisa começava a falhar em sua estrutura. Ele sabia, melhor do que ninguém, que não fizera nada, não ressuscitara Casimiro Fernandes. Precisava, contudo, fazer um grande gesto, promover um grande e público Desafio ao Outro, para ver quem era quem e quem podia mais.

Anna não entendia o que estava se passando dentro e fora de casa, mas aproveitou os últimos acontecimentos. Comprou geladeira. Botou cortinas de crochê nas janelas da antiga cabana, que aos poucos foi ganhando condição de casa.

E Amapola, pela primeira vez, reclamou alguma coisa: pediu que Anna comprasse uma vitrola melhor para Francisco de Assis Rodano, nas horas de meditação, ouvir suas músicas.

 

                   A VACA FOI PRO BREJO

Para falar a verdade, até que me esqueci da vaca. Podia existir realmente, chamar-se Desdêmona, Ofélia, Lady Macbeth, podia falar o que quisesse, ela não mais me preocupava. Luarlindo sim: eu temia esbarrar com ele numa esquina da vida - embora não frequentasse as esquinas. Deixei de atender o telefone com receio de que fosse ele, cobrando-me uma nova ida ao Lins de Vasconcelos. No jornal, apesar de ter tentado uma conciliação que permitisse a sua volta, dei o caso como perdido e avisei aos contínuos que, se ele me procurasse, eu nunca estaria.

Ruth me telefonou três vezes, querendo notícias. Cheguei a pensar que Marta estaria a par do que acontecera - e as duas não acreditavam que eu fizera a consulta para um amigo, mas para mim mesmo.

Não podia me queixar. Depois de duas semanas, tanto a vaca, como Luarlindo, Ruth e Marta pouco se interessavam por mim, deixaram-me em paz. Fiquei com o orgulho um pouco ferido, mas preferi a paz.

Paz que era total nos dias de semana, quando me entregava com ferocidade ao trabalho. E que era relativa nos fins de semana, sobretudo no final dos domingos, fossentos em qualquer circunstância, mas duplamente fossentos quando se está sozinho. Ou, pior do que isso, abandonado.

Nunca mais procurei escapar do Rio. Fora assim que tudo começara, quando andei indo a Niterói e, achando que nada de ruim me aconteceria, fui a Itaipava e esbarrei com a vaca no meio do caminho. Começara ali a minha descida ao Inferno, sem a desculpa de ter a intenção de escrever uma comédia.

Procurava dormir a maior parte do tempo, lia muito, saía vez por outra com uma companhia circustancial. Mas reservava o fim dos domingos para uma rotina que se tornou uma cerimônia especial: ir sozinho a um parque de diversões que havia lá no Leblon, junto à praça Antero de Quental.

Era um terreno baldio cuja posse se encontrava em demanda judicial, os donos brigavam na Justiça, uns queriam construir ali um prédio de apartamentos, outros queriam fazer um grande cinema. Enquanto a solução demorava, instalou-se no local um parque de diversões, estropiado, a roda-gigante de tamanho médio, o trem-fantasma nos escombros, os carrinhos para crianças, o carrossel que algum dia fora bonito, a barraca de tiro ao alvo, outras de prendas e jogos.

Um parque vagabundo, frequentado por fuzileiros navais, domésticas do Leblon, desocupados como eu.

Quando o domingo ameaçava acabar e o parque de diversões começava a ficar vazio, eu ia para lá. Fiquei conhecido dos empregados, pagava uma quantia genérica e gastava o meu tempo andando nos brinquedos, treinava tiro ao alvo, comia maçã do amor, passava horas na roda-gigante vazia, até que apagavam as luzes e me mandavam embora.

Era um exercício de solidão que me fazia bem, dava a impressão de que eu podia ser inútil para todo mundo, mas pelo menos era útil para mim mesmo, fazia o que tinha vontade. Antes, nunca me senti tão livre.

Foi num desses finais de domingo. O parque já estava praticamente vazio e achei que chegara a minha hora. Fui direto à barraca do tiro ao alvo. As xícaras, penduradas num barbante e que eram o alvo principal, já estavam quebradas por atiradores que haviam me antecedido, O homem da barraca me conhecia o suficiente para não se sentir obrigado a providenciar novas xícaras. Atirei nas quebradas mesmo, acertei algumas, errei a maioria.

Fui depois à barraquinha de prendas, um trenzinho de corda resfolegava em trilhos desalinhados, havia estações sem ordem lógica ou geográfica, Méier, Taubaté, Sabará, Piedade, Cascadura, Pindamonhangaba, por aí. Comprei um bilhete, era o único candidato a ganhar uma garrafa de vinho do porto.

O homem perguntou que estação eu queria, disse que qualquer uma servia, ele me botou na mão um bilhete amarelo: “Piedade”. Deu corda no trenzinho, a maquininha começou a rodar, desengonçada, foi parando, parando, parando como um bichinho exausto, até que parou: “Cascadura”. Geograficamente, eu perdera por pouco.

Para compensar o amargo da derrota, me deu vontade de comer alguma coisa doce. A barraca que vendia maçã do amor já estava fechada. A única salvação era tentar o algodão-doce, lá para as bandas do trem-fantasma havia um cara com a sua carrocinha iluminada por um lampião de querosene.

Levei um susto: na claridade amarelada do lampião, talvez eu tivesse me enganado. Mas quando o homem virou-se para entregar o algodão-doce - que cheirava a querosene - tive a certeza: era Luarlindo. Ele mesmo, Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, jamais esqueceria esse nome.

Se ele não tivesse de dar o troco, não me teria reconhecido e eu teria ido embora em paz. Mas custou a encontrar uma nota de cinco, perguntou se eu não tinha dinheiro menor... e nesse momento me olhou:

- Você!

- Sim... eu... - respondi, enquanto dava a primeira mordida no algodão-doce, que, além do cheiro, também tinha gosto de querosena. Procurei ser amável: - Como é? Esse negócio rende?

- Rende... rende e a gente fica livre de sacanas...

Abaixei a cabeça. Admiti:

- Fiz o que pude, Luarlindo, mas o pessoal não queria mais saber de você... e olha, nem foi por causa da vaca...

- Já sei. O Xavier falou claro, eu bebia muito... mas a verdade é que tinha uma bomba... a melhor matéria desde que inventaram a imprensa...

- Mas você podia oferecer a matéria a outros jornais, às revistas... o Cruzeiro toparia publicar... já fotografaram discos voadores... parece que um dos repórteres já andou num deles, foi Saturno ou Marte... vai escrever uma série...

- Eu poderia tentar... mas não tenho acesso... era apenas um repórter de polícia... e bêbado ainda por cima... não tinha credibilidade... você podia me ajudar se não fosse tão sacana...

Era difícil explicar as minhas razões. Preferível passar por covarde e sacana.

- E a vaca? - perguntei, em tom neutro, como se perguntasse por uma amiga comum a quem não via fazia muito tempo.

- A vaca? A vaca foi pro brejo!...

Percebeu que eu não o compreendera:

- Ela morreu... o Badu me deu um pedaço de alcatra dela... vendi naquele pé-sujo perto da redação...

Ainda bem que eu nada consumia naquele bar, somente cigarros. Teria sido repugnante comer um bife feito com carne de Desdêmona. Mesmo assim, tive de me controlar para que Luarlindo não percebesse a minha alegria pelo fato de a vaca não mais existir. Era um departamento que eu procurava esquecer, ou para ser honesto, que preferia não tivesse existido.

Curioso que, desde que ela apareceu no meu caminho, eu pensei em muita coisa, formulei alternativas, procurei soluções, mas não imaginara o mais simples: ela poderia morrer, como eu próprio poderia morrer. Seria eu ou ela. A hipótese não me ocorreu, mas agora, sabendo que ela não mais existia, tive a impressão de que ela nunca existira.

Luarlindo sim, estava ali na minha frente, fracamente iluminado pelo lampião de querosene, já se preparando para ir embora. Ele reclamara de minha sacanagem - e eu me sentia obrigado a concordar. Afinal, eu nada perdera por causa da vaca. Ele perdera o emprego, a respeitabilidade, estava reduzido a um negócio precário. Humilhante até, se comparado aos sonhos de glória na reportagem do jornal.

- Bem, eu não podia fazer nada, o pessoal da redação jamais toparia a matéria da vaca. E sua demissão era coisa de mais dia menos dia... você andava exagerando...

- Sei, sei, mas você foi minha única esperança... você... eu levei você lá no Maduro, você ouviu... você sabe que não era cascata nem armação...

Eu não queria falar mais na vaca. Para desconversar, voltei a me interessar pelo seu novo ofício:

- Esse negócio, dá para viver?

Luarlindo não percebeu que eu fugia do assunto que para ele ainda era prioritário.

- Dar, dá. A carrocinha não é minha, é de um amigo, ele trabalha durante o dia, vai para a porta dos colégios, fatura bem. De noite, ele me aluga, pago um fixo, o que sobrar é meu...

Por mais que ele tentasse disfarçar, evidente que estava chateado, achando que chegara ao fim do poço. Senti de minha obrigação fazer alguma coisa, metade por pena, metade pelo sentimento de culpa que tinha em relação a ele. Acenei com uma esperança:

- Olha, Luarlindo, eu não posso prometer nada, mas me procure amanhã, vamos conversar, acho que posso arranjar alguma coisa para você, telefona amanhã, mas não para a redação, telefona lá para casa...

- Vai me dar o telefone errado outra vez?

- Não. Falo sério, vamos conversar, toma o telefone.

No guardanapo de papel em que ele enrolava o algodão-doce, escrevi o número lá de casa. Naquele momento, estava seriamente decidido a ajudá-lo. Não sabia como, nem se valia realmente a pena. Mas me sentia tão aliviado pela notícia que ele me dera - que a vaca não mais existia e na certa nunca existira - que cheguei a uma ideia absurda, embora fosse a ideia mais lógica que poderia ter, que havia muito deveria ter tido.

Depois da vaca, pela ordem das coisas que mais me preocupavam, vinha o caso de Francisco de Assis Rodano. Cada vez mais, eu ficava sabendo do que acontecia em Rodeio, e, pior do que isso, volta e meia ficava sabendo que um grupo do Rio mandara buscar o primo, ele dava passes, fazia serviços pesados, não era uma das muitas manifestações de Exu - personagem da umbanda e do candomblé. Ele não fazia linha direta: era o próprio Demônio, o Lúcifer Encarnado.

A situação ficou embaraçosa: houve a tarde em que, na redação, fui chamado pelo dono do jornal. A mulher dele queria um trabalho complicado, soubera do endemoniado de Rodeio, ninguém sabia que Francisco de Assis Rodano era meu primo, mas suspeitavam que eu teria acesso a esse tipo de assunto. Cinco anos antes, eu publicara uma série de matérias sobre paranormais na União Soviética - e embora a Rússia fosse distante de Rodeio, o pessoal pensava que era a mesma coisa.

Aleguei que não podia ir. Não sei o que houve, nem procurei saber. A matéria não chegou a ser feita.

 

                    PESQUISA DE CAMPO

Luarlindo foi pontual: telefonou no dia seguinte. E o que não fiz antes, quando ele me revelou a descoberta da vaca, fiz agora, dando-lhe o meu endereço. O assunto - aleguei - era muito sério para ser explicado por telefone.

Apareceu na hora marcada. Vestira terno, estava de gravata, barbeara-se, desejava causar boa impressão, como se fosse eu a empregá-lo. E, na verdade, eu pensara exatamente nisso: colocar Luarlindo a meu serviço. Ou, sendo mais exato: contratá-lo para que me fizesse um serviço pessoal, por minha conta e risco.

Não chegou a ser uma conversa difícil. Eu tinha a pretensão de conhecer, se não Luarlindo em particular, o tipo de repórter que ele era - ou fora. Um tipo que vai atrás de seu assunto, sem perder tempo com as laterais, indo fundo no poço. Há o repórter que sai esbaforido da redação para entrevistar o motorista que atropelou o cachorro, se no caminho cair um disco voador em cima do carro da reportagem, ele não toma conhecimento do acidente, segue a pé mesmo, para apurar por que, como e onde o motorista atropelou o cachorro. Não parece, mas são elementos úteis ao jornal.

Mesmo assim, eu tive de camuflar a proposta que faria a Luarlindo. Disse que estava cansado do jornalismo, desejava escrever um livro, provavelmente um estudo sobre casos estranhos que acontecem por aí, curandeiros, gente que ameaça o fim do mundo, que tem visões. Precisava de alguém que me fizesse pesquisas. Luarlindo ficou radiante:

- Foi o que pedi a Deus! Trabalhar naquilo que gosto, mas sem me enrolar com aquela burocracia, editoria disso e daquilo, copidesque, ficou muito complicado fazer reportagem... com você vai ser mais fácil...

Combinei um salário, antes mesmo de explicar a proposta. Pagaria a ele o mesmo que o jornal pagava a um repórter de sua categoria, mais as despesas de locomoção, alimentação e hospedagem. Luarlindo achou uma fábula. Se eu lhe pedisse, em troca, que cortasse uma perna, ele toparia o serviço e ainda acharia que estava no lucro.

- E o que devo fazer?

- Uma pesquisa... veja bem, Luarlindo, é um assunto sério, e preciso de elementos... você terá de ser, antes de mais nada, honesto nas informações, nada de cascata... e se for necessária alguma imaginação, isso fica por minha conta... combinado?

- Deixa comigo. Mas que pesquisa, porra, você quer que eu faça? É fora do Rio?

- Como sabe?

- Você falou em pagar hospedagem... isso envolve viagens...

- Gostei! Você vai se dar bem.. é o homem que precisava...

Luarlindo percebeu que eu demorava a abrir o jogo:

- Mas que diabo de pesquisa é essa? Você está enrolando! Tem mulher na jogada?

- Não, não tem mulher... é o seguinte... você conhece Rodeio?

- Rodeio? Não, acho que não, nunca ouvi falar...

- Você é de onde? Do Rio? De Minas?

- Sou do interior do estado do Rio... Itaperuna... perto do Espírito Santo...

- Ramal da Leopoldina... - comentei.

- Sim, da Leopoldina... alguma coisa de errado?

- Rodeio é no ramal da Central...

- Ah! - Luarlindo compreendeu metade e eu entendi outra metade. - E o que você quer em Rodeio?

- Ouvi dizer que lá tem um tipo esquisito... diz que é o Lúcifer Encarnado, Rival do Outro. Ele chama Deus de Outro, com o maiúsculo, é uma concessão... dizem que até morto já ressuscitou...

- Tem muito charlatão por aí...

- Não, ele não é um charlatão... por isso mesmo o caso dele me intriga... preciso que você faça uma investigação, mas discretamente, sem que ninguém perceba... você sabe o que deve fazer...

- Quem é o cara?

- Só sei o nome: Francisco de Assis Rodano.

Luarlindo repetiu:

- Francisco de Assis Rodano! Não parece nome de vigarista!

- Não há certeza se é vigarista. Não tenho opinião ainda, nem você deve ter... é uma regra do bom repórter...

Ele se sentiu em falta. Pediu desculpa, prometeu que seria objetivo. E como eu já estava assinando o cheque para as primeiras despesas, quis saber quando deveria começar.

- Amanhã. Pegue o trem na Central, não é longe, duas horas de viagem. Lá não tem hotel, mas há pensões, vagas em casas de família, você vai gostar.

- Já estou gostando.

Combinamos que, dali a quatro semanas, ele viria ao Rio, receberia novo salário e me transmitiria suas pesquisas. Sigilo absoluto. Bom negócio para as duas partes. Ele arranjara um emprego. E eu ia procurar saber, finalmente, quem era, como vivia e atuava Francisco de Assis Rodano.

Depois da morte da vaca, a melhor notícia que eu poderia receber seria a da morte de Francisco de Assis Rodano. E, se possível, a da morte de Luarlindo. Para não haver dúvida: a da morte de Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira.

 

Curioso, eu não pensara nisso. Foi a morte da vaca que me abriu essa hipótese. Se Francisco de Assis Rodano morresse, se Luarlindo morresse, eu ficaria livre desses fantasmas - em geral, quando um homem de minha idade e circunstância fala em fantasma, está apelando para uma metáfora, uma imagem mais ou menos poética e certamente covarde.

No meu caso, os fantasmas não eram metafóricos. E se eu me livrasse de Francisco de Assis Rodano e Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, assim como me livrara da vaca, poderia retornar ao chão normal de qualquer homem. Voltaria a ser um sujeito comum - teria direito a novamente me respeitar.

Nos últimos tempos, isso ficara difícil. A começar pelo Amaro, porteiro do meu prédio, que passara a me olhar com desconfiança, mais pavor do que desconfiança. E quando não era pavor nem desconfiança, era pânico: foi assim que me recebeu naquela noite, quando voltei para casa.

Eu estava até aliviado, a vaca morrera por conta própria e Francisco de Assis Rodano seria investigado - uma investigação amistosa, sem nenhum caráter policial ou repressivo, apenas um esclarecimento pessoal.

Bastou ver a cara de Amaro e fiquei sabendo que Francisco de Assis Rodano deveria estar lá em cima. E continuei com a certeza de encontrá-lo, embora estranhasse, ao sair do elevador, não ter ouvido o som da eletrola, que ele invariavelmente colocava no registro mais alto.

Chave não era problema. Amaro tinha uma cópia, dia sim, dia não ele a usava para fazer a limpeza. Tão logo notara que o meu primo chegava, entregou-lhe a chave com cuidado, na ponta dos dedos, com medo de se contaminar e louco para ficar livre dele.

Francisco de Assis Rodano estava deitado no sofá da sala, muito magro, os ossos à mostra, e de cueca. Nem botas, nem capa, nem Lança de Longinus. Somente o mesmo jeito de deitar, os pés ossudos para fora, o braço dobrado na altura da cabeça, o antebraço cobrindo o rosto, como se a luz - pouca luz de um único abajur, lá no canto - o incomodasse.

Como de outras visitas, sempre surpreendentes, sem avisar chegada ou saída, ele custou a perceber que eu chegara. Fui ao escritório, deixei a pasta, depois entrei no banheiro para lavar as mãos e o rosto - Francisco de Assis Rodano nem se mexia, era como se eu - o dono da casa - não tivesse chegado, ou, o que era mais evidente, não existisse.

Passei na copa, abri a geladeira, precisava supri-la, amanhã compraria frutas para ele. Ao chegar, ele bebera leite, comera um pedaço de pudim de laranja e acabara com o meu estoque de papaia. Sinal de que chegara com fome.

Alguma coisa devia estar acontecendo com ele, para o bem ou para o mal. E como eu já o conhecia relativamente bem, desconfiei que nada deveria perguntar.

Fiz para mim um sanduíche de carne assada - ele era vegetariano, não precisei perguntar se queria um igual. Abri uma lata de cerveja e fui sentar-me perto dele, na velha poltrona onde passo a maior parte do meu tempo.

Normalmente, ligaria a vitrola, é o momento em que gosto de ouvir música barroca, a mais relaxante. Respeitei o hóspede que, no momento, preferira o silêncio - e devia ter motivos para esse silêncio. Falaria quando quisesse e se quisesse. De minha parte, eu estava disposto a ouvi-lo - ou não ouvi-lo, se fosse isso o que ele desejasse.

Terminei o sanduíche, fui buscar outra lata de cerveja na geladeira. Francisco de Assis Rodano continuava imóvel, os pés descarnados para fora do sofá, o braço levantado sobre a cabeça, o rosto coberto pelo antebraço.

Peguei um livro, li umas cinco páginas.

Ouvi meu nome, pronunciado devagar, quase com as sílabas separadas, num tom cavo mas amistoso:

- O-la-vo!...

Era também uma espécie de exórdio. Um discurso que poderia ter um milhão de palavras ou nenhuma. Ele perguntou:

- É verdade que só temos sede porque tem muita água no mundo?

- Não sei. Nunca pensei nisso. Mas tem gente com sede, que morre de sede porque não encontra água...

Como sempre acontecia quando conversava comigo, ele dava um tempo, ficava metabolizando as palavras, mudava logo de direção e puxava outro assunto. Dessa vez, ele me surpreendeu:

- E se fosse ao contrário?

- Ao contrário como?

- Há muita água no mundo porque há muita sede, todo mundo tem sede, se não houvesse água, não haveria sede...

- Continuo boiando... nunca pensei nisso. Mas aonde é que você pretende chegar?

Ele deu um pulo do sofá. Era sempre assim, parecia movido a mola, dava a impressão de que só se movimentava aos arrancos, com alguma solenidade - embora estivesse de cueca.

- Se tanta gente procura o Demônio... se tanta gente precisa dele é porque o Demônio é como a sede.

- Bom, o raciocínio serve também para Deus. Se tanta gente procura Deus, invoca a Deus, confia em Deus...

- Não é a mesma coisa.

Desapontado com a minha reação, voltou para o sofá. Tapou o rosto com o braço e rosnou:

- Bota um disco. Um com piano e orquestra...

- Aquele do Napoleão?

- Não... um outro... bem comprido... sabe, eu acho que Deus é o piano, o Demônio a orquestra... preste atenção, a orquestra sempre vence, dá a palavra final...

- Na maioria dos concertos, piano e orquestra terminam ao mesmo tempo, no mesmo acorde final.

Ele pareceu pensar no que ouvira. Mas insistiu:

- É. Mas a orquestra é mais forte e mais bonita.

 

                   A HORA DO DESESPERO

Angimestro Saraiva estava mal informado. Depois de tantas ameaças, com tantos defuntos a ponto de serem iminentes e ressuscitados por Francisco de Assis Rodano, eis que tudo parecia ter voltado ao normal, entrado nos eixos, vivos entre os vivos, mortos com os mortos, cada macaco no seu galho, o mundo só valia a pena se cada um ficasse na sua.

Como cabo de polícia, segundo e último homem na hierarquia que tinha Corintho da Fonseca no topo, nunca se sentira tão tranquilo. O Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco tinha ido embora havia muito tempo e tantas fizera que nem fora substituído por outro - coisa rara na crônica de Rodeio, aonde os circos vinham uns atrás dos outros, como se houvesse uma lei a ordená-los nessa peregrinação, e eram tão iguais uns aos outros que sempre pareciam os mesmos.

Por sua vez, Francisco de Assis Rodano tomara jeito, não queria mais nada com o arraial nem com o coreto, vivia agora, exclusivamente, no Arraial do Sapo, com as duas mulheres, sem nunca sair. Ou melhor, saía uma, no máximo duas vezes por semana. Ia para o morro Portugal, bem distante do centro de Rodeio, tão distante que praticamente não era mais Rodeio embora o fosse, legal e socialmente, apesar de haver uma confusa demanda num cartório de Barra do Piraí onde a pequena elevação do terreno era disputada desde tempos imemoriais por Mendes e Vassouras.

Enquanto não se chegava a um acordo, era inconteste que o morro Portugal pertencia de direito e de fato à jurisdição policial e cartorial de Corintho da Fonseca e de seu principal e único subordinado, o cabo Angimestro Saraiva.

Com Francisco de Assis Rodano voluntariamente exilado no Arraial do Sapo, Angimestro Saraiva sentia-se seguro. Sobravam-lhe os casos miúdos, um ou outro bêbado que dizia ou fazia inconveniências em público, rixas entre marido e mulher. Sempre às terças-feiras - vivesse mil anos, Angimestro Saraiva jamais entenderia por que às terças-feiras - Rodeio era abalado por um caso de sedução, meninas que se diziam violentadas, pais querendo fazer justiça com as próprias mãos, até que Corintho, na maioria das vezes, na dupla função de delegado policial e oficial do Registro Civil, promovia as reparações de praxe. Acrescia também, a essas démarches matrimoniais, sua terceira função, a de colaborador de A Voz da Serra, fazendo o registro respectivo na coluna social, sob a contida e suficiente rubrica: “Bodas”.

Estava Angimestro uma vez mais e como sempre no porão do coreto, o dólmã desabotoado por causa do calor, sem perneiras e sapatos, os pés encostados numa cadeira, palitando os dentes - digeria uma rabada com polenta que almoçara na Pensão Soledade - quando viu, perdido no meio da praça, um forasteiro. Não havia nenhum motivo plausível para que Rodeio recebesse, naquele dia e naquela hora, um estranho.

Tão estranho que parecia perdido na - afinal - singela topografia rodeiense. Havia a estação em cima, a praça embaixo, com o coreto, a rua principal que nascia na praça e que todos chamavam de arraial, a capela desativada ao lado do cemitério, já no caminho que levava à Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini e que continuava subindo até a Indústria de Fogos de Artifício Picolino.

Do outro lado, descia-se ao Arraial do Sapo, ao morro Portugal - um dos limites da cidade - e pronto. No meio de tudo isso havia algumas ruas que iam dar ou no arraial principal ou em si mesmas, de maneira que Rodeio era uma espécie de teia de aranha: quem ficasse no centro dela, ou seja, na praça principal, justo onde o forasteiro se encontrava, via tudo num relance só, embora dificilmente compreendesse qualquer coisa.

Angimestro Saraiva gostou e não gostou do forasteiro. Se ele fosse logo embora, teria sua tarde tranquila, sem nenhum incidente, podendo ruminar em paz a rabada com polenta. Se o estranho continuasse ali, perdido no meio da praça, competia a ele tomar providências, saber de quem se tratava, assumir o papel de guia turístico, indicando onde ficava a Bica do Dr. Sales ou o Arraial do Sapo - onde morava Francisco de Assis Rodano -, as duas únicas atrações capazes de trazer um forasteiro a Rodeio.

Caso contrário, se o estranho, além de estranho, fosse também suspeito, Angimestro Saraiva seria obrigado a pedir-lhe os documentos - e aí poderia ter início aquilo que Corintho da Fonseca cobrava-lhe diariamente: uma “ocorrência”. Aliás, o sistema de poder em Rodeio podia ser medido pela palavra ocorrência. Corintho da Fonseca a adorava na mesma proporção que Angimestro Saraiva a detestava.

Dessa vez, porém, alguma coisa de anormal estava se passando. Todo e qualquer forasteiro que chegasse até aquele ponto (a praça principal), ou logo se orientaria e tomaria seu caminho, ou descobriria que havia tomado o trem errado e voltava para a estação. Não havia uma terceira via nessa questão.

De maneira que Angimestro Saraiva ficou preocupado quando percebeu que o forasteiro não optava nem por uma nem por outra alternativa. E mais preocupado ficou quando percebeu que o forasteiro, com passo determinado e rápido, se dirigia para o coreto, vale dizer, para o porão do coreto, ou, melhor ainda, para ele, Angimestro Saraiva.

Meia hora depois, Angimestro Saraiva abotoou o dólmã, calçou os sapatos, colocou as perneiras e acompanhou o forasteiro até o sobrado do arraial - o mais notável de Rodeio -, onde, cumulativamente, funcionava a Delegacia de Polícia, o cartório do Registro Civil e a redação de A Voz da Serra. Pairando sobre tudo isso, maior que as partes, havia o todo que era Corintho da Fonseca, que ali reinava, despachava, e, nas horas vagas, começava a pensar seriamente em escrever uma História da Vila de Rodeio desde os seus começos até os meados do século XX - uma obra ciclópica, em três ou cinco volumes, para a qual tinha todos os elementos necessários: as fichas policiais, os registros cartoriais e a coleção inteira, encadernada em Barra do Piraí, de A Voz da Serra.

O forasteiro apresentou-se como jornalista, repórter de um jornal do Rio, no momento em crise funcional e trabalhista. Chamava-se Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, desejava passar uns tempos em Rodeio por causa do clima, e, se fosse o caso, estaria à disposição de A Voz da Serra para matérias que interessassem à linha editorial do semanário.

Corintho da Fonseca submeteu-o a um sumaríssimo teste. Leu para ele o soneto dedicado ao palhaço Gargalhada, que estava emoldurado na parede principal da redação, onde havia também, cruzadas, duas flâmulas do Ferroviário Futebol Clube e do Atlético Clube Serra do Mar - os times principais da região, o Ferroviário agrupando os funcionários da Central do Brasil, o Atlético sendo na verdade um combinado, pois reunia os operários da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini e da Indústria de Fogos de Artifício Picolino, que, por sua vez, tinham times autônomos e rivais.

Lido o soneto por Corintho da Fonseca, o forasteiro deu a opinião: uma obra-prima, pura e simplesmente uma obra-prima. Foi admitido na hora, fornecendo seus dados biográficos e profissionais para que fosse feito o competente registro em A Voz da Serra, que ampliando seus quadros funcionais, tinha o prazer de anunciar aos rodeienses e a todos os leitores da serra do Mar que a partir do próximo número contaria com a esclarecida colaboração do notável jornalista carioca Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, uma das penas mais ilustres do país.

 

Não era boa a fase atravessada por Francisco de Assis Rodano. Desde que voltara do Rio, na última visita que fizera ao primo, alguma coisa parecia ter se quebrado dentro dele. Passava por um período de apatia, o pessoal continuava se reunindo no morro Portugal, uma, duas vezes por semana, esperando por ele e seus magníficos feitos, sua Lança de Longinus que podia provocar cataclismos e ressuscitar os mortos. Ele ia de má vontade, empurrado por Anna ou Casimiro, que agora estavam começando a gostar cada vez mais do rendoso ofício daquele que se proclamava Rival do Outro e Lúcifer Encarnado.

Ninguém percebera a mudança, somente Amapola. Cada vez mais, ela via Francisco de Assis Rodano ficar horas deitado, de cueca, como se estivesse cansado dos pesados paramentos que usava, a capa, o chapéu, as botas. Ficava o dia todo ali, na cama chippendale de segunda mão que substituíra a outra, a colonial que fora de sua tia Zizinha e que ele transformara em esquife para o filho do palhaço Gargalhada.

Puxava a cortina para escurecer o quarto, ligava a vitrola e cobria o rosto com o braço. Até pouco tempo antes, somente Anna podia entrar ali, na condição de mulher dele. Mas recentemente, com a chegada de Casimiro Fernandes, ela quase não usava o direito de dividir a cama chippendale com Francisco de Assis Rodano. Preferia dormir com o ex-sacristão, que tinha fantasias sexuais estranhas, as quais, sem entender como, Anna descobria que combinavam com ela.

Amapola cuidava da casa, como antes cuidava da carroça de Gargalhada que acompanhava o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco. Apenas, a cabana do Arraial do Sapo era bem maior e complexa do que a carroça do circo. E já nem era mais uma cabana, mas uma casa com muitos cômodos, e ela tomava conta de tudo, inclusive do filho de Anna - a quem ela não se afeiçoara, nem mesmo sabia por quê.

O dono absoluto de tudo e de todos era Francisco de Assis Rodano, mas de nada tomava conhecimento. Comia o mínimo, sempre frutas, um pouco de leite, ouvia música estranha a qualquer hora, mesmo no meio da noite, varando a madrugada. Uma, duas vezes por semana, num arranco formidável, calçava as botas, vestia a capa, botava o chapéu na cabeça e, de lança em punho, ia para o morro Portugal, onde imprecava, ameaçava e fazia milagres.

Depois dessas aparições sinistras, ele se recolhia, caía numa prostração que parecia a morte. Suava muito, murmurava palavras sem sentido, botava discos na vitrola, com o volume bem alto, e se retirava para dentro de si mesmo. Invariavelmente, ficava de pau duro, mas nunca se masturbava.

Uma tarde, depois de uma manhã agitada, em que Francisco de Assis Rodano, como Lúcifer Encarnado, cuspiu diretamente nos olhos de uma menina cega e dessa forma curou-a de uma cegueira de nascença, Amapola estranhou o comportamento dele. Como de outras vezes, ele jogou no chão a capa, o chapéu, as botas e a lança, atirando-se de cueca na cama chippendale. Como de outras vezes, botou discos na vitrola, só que abaixou o volume, que geralmente era o mais alto. E a música era diferente, suave, quase em surdina.

Amapola estranhou que Francisco de Assis Rodano voltou do morro Portugal muito pálido, os olhos lá no fundo, suando como nunca suara antes. E quando percebeu que colocara música diferente e a ouvia em volume diferente, ela desconfiou que alguma coisa acontecera ou estava acontecendo com Francisco de Assis Rodano.

A casa estava deserta, Anna e Casimiro haviam ficado no morro Portugal, recolhendo donativos, sugerindo trabalhos e preços. Amapola entrou no quarto de Francisco de Assis Rodano, onde só entrava quando ele ou Anna ali não estavam. Na semiescuridão - ele fechara totalmente o quarto - ela se aproximou da cama, aos poucos, com muito cuidado. Francisco de Assis Rodano estava prostrado, respirando com dificuldade, ora muito forte, ora tão fraco que parecia não respirar.

Ao lado da cama, ela não chegava a perceber se Francisco de Assis Rodano estava respirando ou não. Devia estar, mas tal como a música, em volume muito baixo. Mas ela sentia o peito dele arfar. E do peito, ela olhou para baixo, enfrentando pela primeira vez aquele pedaço de carne, duro, espetando o ar.

Sentou-se ao lado do corpo de Francisco de Assis Rodano. Não conseguia tirar os olhos daquilo. Era virgem, nunca se sentira atraída por homem algum, respeitara Gargalhada como pai e senhor, respeitava agora Francisco de Assis Rodano como substituto de Gargalhada, menos pai, mais senhor.

De repente, e mansamente, ela colocou a mão naquilo. Sentiu um tremor, nela e em Francisco de Assis Rodano. Somente isso. Ele continuou com o braço tapando o rosto, e afora o tremor provocado pela mão dela, continuou imóvel.

Ela nunca sentira aquilo. Não só na mão, mas em todo o corpo, na sua carne mais profunda, nos ossos, e, sobretudo, naquilo que não era carne nem osso dentro dela. Tudo vinha numa torrente de sangue que a entontecia. E mais a entonteceu quando ela percebeu que o pedaço da carne de seu senhor começou a tremer - e tremeu tanto que despejou em sua mão um líquido viscoso, morno.

Sem saber o que fazia, apenas por vontade e verdade em aceitar o que era - ela encostou o rosto ali. Um clarão explodiu dentro dela. Todo o seu corpo estremeceu.

 

                  BONS E MAUS LENÇÓIS

Eu estava esperando notícias de Luarlindo. Um mês já se passara e ele não aparecera, nem mesmo para receber novo salário. Imaginei que encontrara alguma dificuldade, mas confiava na sua capacidade de bom farejador, de sujeito que saberia se virar em qualquer situação.

Quem não soube se virar fui eu mesmo quando recebi o telefonema de Ruth, amiga de Marta, minha ex-mulher. Eu telefonara para ela dez meses antes, pedira informações que não aproveitara - e esquecera tudo, até o motivo que me fizera ligar para ela.

Custei a reconhecer quando se identicou como Ruth. Só na segunda vez, e não pelo nome, mas pelo jeito molhado com que ela falava, muito perto do fone, como se salivasse cada palavra.

- Viva, Ruth, que bom ter ligado!

- Bom por quê? Não precisa exagerar!

Sem jeito, continuei a mentir:

- Você foi bacana... aquele analista...

- Que você nunca procurou! Marta ficou furiosa, incomodou o colega, ele iria atender você em consideração a ela...

- É que... - Eu não tinha uma desculpa, nem esperara aquela cobrança.

A próprio Ruth me ajudou, tirando-me do embaraço:

- Tudo bem, não estou telefonando para reclamar. Pelo contrário, estou precisando de uma ajuda sua...

- Viva! - Sinceramente, fiquei aliviado. - Estou às ordens.

- Bem, é assunto meio chato... posso propor um encontro... um almoço, qualquer coisa assim... por telefone fica difícil...

No dia seguinte, almoçamos numa cantina do Leme. Dois anos, talvez mais, que não via Ruth, a onipresente, a inevitável, a banal melhor amiga da minha ex-mulher. Havia se separado do industrial, estava mais amadurecida, talvez deliciosa, mas eu não confiava nela.

Falou muito, evitando entrar no assunto que a levara ali. A separação dela fora civilizada, “não foi como a sua, aquela carnificina que vocês promoveram, nem sei como sobreviveram”.

Estranhei o conhecimento que ela mostrava ter do nosso caso.

- Vocês brigaram até por causa de lençóis...

- Não, Ruth, não briguei por causa de lençóis... Marta deve ter contado a versão dela... tínhamos um lençol de linho, bordado, da ilha da Madeira, com as nossas iniciais, O e M. Ela queria cortar o lençol ao meio, a metade O para mim, a metade M para ela. Eu fiz o sacrifício, que ela ficasse com o lençol inteiro e fizesse bom proveito...

- E fez. Sabe, ela casou com o Mundinho...

- Bem, a inicial do lençol era um O. Esse Mundinho deve dormir meio constrangido...

- Constrangido nada! O nome dele é Osmundo... o lençol foi feito para eles...

Como início de conversa, eu não fora brilhante. Forcei para que ela entrasse no assunto:

- Bem, você tinha um pedido... estou às ordens... não se acanhe...

- Não é caso para acanhamento, nem meu nem seu... é um pedido para... não ria... é para Marta...

- Ela vai querer mais lençóis com a minha inicial?

- Não brinca... o negócio é sério, ao menos para ela...

- Deve ser. Depois de três anos... depois de um Osmundo na vida dela, ele pede ajuda ao ex-marido...

- Vamos ao que interessa. Você tem um primo... um primo distante, um Ródano, parece...

- Ródano não. Rodano. Francisco de Assis Rodano. É primo mas não chega a ser distante, embora more longe. É filho de uma meia-irmã de minha mãe... Marta deve saber disso...

- Ela não me explicou direito. Ele é paranormal, não?

Aquela associação (Marta, Francisco de Assis Rodano, paranormal) em outro tempo me distrairia. Agora, me assustava:

- Honestamente, não entendo muito desses assuntos, nem sei o que seja um paranormal, nem para que serve. Em todo o caso, esse primo é meio esquisito... cismou que é a mais recente encarnação do Demônio, que é rival de Deus... roubou uma lança por aí... uma lança que produz o optimus climaticus, não tenho qualquer ideia do que seja isso...

De repente, descobri que não estava gostando da conversa:

- Mas que que há? Não vai me dizer que Marta quer curar a loucura do meu primo! Loucura ou seja lá o que for!

- Não! Fique tranquilo, ela não quer curar o seu primo... de certa forma, ela é que deseja ser curada...

- Mas...

A conversa tomava um rumo idiota. Fiz a proposta que me pareceu a mais honesta:

- Olha, não estou gostando desse papo, mas estou aqui para ouvir... depois farei o que puder... fale tudo de uma vez... por favor...

- Bem, não há muito o que falar. Marta me pediu que procurasse você, ela anda com uns problemas e... eu acho uma besteira, mas ela ouviu falar nesse tal Ródano ou Rodano, ele deu uns passes numa cliente dela... dez anos de análise e nada, só piorava, tentou o suicídio duas vezes, depois entrou na droga, droga pesada... foi piorando, piorando, perdeu marido, a guarda dos filhos, o emprego... a família dela chamou esse Ródano ou Rodano, ele invocou o Demônio...

Corrigi:

- Ele não invoca o Demônio! Ele é o próprio Demônio!

- Que seja! O fato é que foram buscá-lo, ele deu uns passes ou coisa que o valha, a moça ficou totalmente curada... deixou a droga, recuperou um dos filhos e está negociando com o ex-marido a guarda do outro... enfim, é outra pessoa... a família ajudou, ela vai abrir uma butique em Ipanema...

- E onde entra Marta nessa história? Ela não tem filhos para perder a guarda deles. Pelo que conheço dela, não se droga nem perdeu o emprego...

- Há outros tipos de problemas... e ela pensou no seu primo... parece que é uma figurinha difícil, você poderia ajudar...

- Nunca pedi nada a ele... nunca pensei na hipótese de um dia precisar dele...

Subitamente, lembrei a nossa conversa anterior, quando a procurei para me livrar de um problema.

- Tive uma ideia esquisita agora. Quando telefonei para você, há quase um ano, pedindo ajuda para um amigo, você achou que eu estava blefando, que não havia amigo nenhum, que era para mim mesmo. Vou ser franco e quero que você seja franca também: é mesmo para Marta ou é para você?

- Isso muda a questão? Vai ajudar ou não?

- Bem... você foi bacana quando apelei para você...

- Foi Marta que indicou!

- De qualquer forma, incomodei vocês à toa. Fiquei devendo o favor...

- Não leve a questão por esse lado...

- Mesmo assim, se é para você ou para Marta, é uma baita... surpresa!

- Você ia dizendo “desilusão”. Estou certa?

- Está.

Ela ficou em silêncio, de olhos baixos. Eu também fiquei calado, não que esperasse maiores explicações, mas pelo menos, que ela fosse mais objetiva. Como nada falasse, insisti:

- Não me lembro de Marta ter tido qualquer contato com esse primo... evidente, na minha família fala-se dele, mas sem profundidade... só pelo folclore...

- Fique sossegado, não foi por você nem pela sua família que ela se lembrou do Ródano ou Rodano. Já disse, ela tem uma amiga que... não preciso repetir...

- Ela nunca acreditou nessas coisas.

- Olha, o pedido está feito. Quando você a procurou, Marta também ficou surpreendida, conhecendo você como ela conhece, não podia acreditar que... mas, veja a diferença, Marta não fez perguntas, procurou um colega sério, o melhor que julgava para seu caso, mas sem entrar em detalhes...

Detalhes. Sim, Ruth tinha razão. Não me competia entrar em detalhes. Mesmo assim, para ser honesto, disse o que pensava:

- Está bem. Vou procurar o primo, volta e meia ele aparece, dá um susto danado no porteiro do prédio, passa dois, três dias ouvindo meus discos... depois vai embora, não avisa quando vem nem quando vai... mas vou tentar um contato com ele... avisarei a você... agora, se quer minha opinião...

- Marta não quer a sua opinião.

- Não, não é uma opinião sobre o problema dela. É minha opinião sobre Francisco de Assis Rodano. Evidente que ele não é o Demônio nem tem poderes... como foi que você disse... paranormais... É um tipo esquisito, meio louco, só isso.

- Pois é exatamente o que você chama de isso que ela quer...

- Tudo bem. Me dê uns dias, uma semana pelo menos... telefono para você quando tiver uma resposta.

Ruth abriu a bolsa, tirou caneta e um bloquinho de notas. Escreveu um número:

- Olhe, meu telefone não é mais aquele. Esse é o meu número.

Lembrava que Ruth morara com o industrial numa bela casa lá para as bandas do Alto da Boa Vista.

- Você está morando sozinha?

- Não. Estou morando com Marta.

 

                     A ENTREVISTA

Ninguém sabe como ou por que começou. Diziam que fora a própria Anna, que detestava Amapola e passara a desconfiar de alguma coisa. Evidente que Anna precisava da outra para cuidar da casa, da comida, da roupa lavada. Precisava dela, sobretudo, para tomar conta do filho. Afinal, ela se considerava a mulher e a dona de seu homem - embora tivesse outros homens, o último dos quais, e no momento o mais importante e que estava sempre mais próximo era Casimiro Fernandes, ex-sacristão, ex-aprendiz de toureiro, ex-ajudante de boticário e, atualmente, sacerdote do baixo clero daquela religião que tinha em Francisco de Assis Rodano o Deus Máximo, embora, na verdade, este fosse apenas o Lúcifer Encarnado.

Depois de Anna, pela ordem de probabilidade, vinha o próprio Casimiro Fernandes, que já exercera tantos e tão variados ofícios, era dotado de poderosas antenas que emitiam sinais cifrados que só ele entendia. Ninguém melhor do que Casimiro Fernandes para detectar um declínio, um empreendimento falido ou em vias de falir.

Desde que passara a se constituir no baixo clero a serviço do Lúcifer Encarnado, ganhou uma credibilidade que nunca tivera antes. Era o braço direito e a mão esquerda do Rival do Outro. Podia mais ou menos tudo o que o outro podia, menos segurar a Lança de Longinus e calçar as botas do boi Papelão.

Acompanhava Francisco de Assis Rodano ao morro Portugal, selecionava crentes, sugeria rituais, pouco a pouco revelou-se melhor ajudante do Lúcifer Encarnado do que sacristão e candidato a toureiro.

Seriam dele, provavelmente, os primeiros rumores de que alguma coisa acontecia com Francisco de Assis Rodano, que caíra numa rotina de ameaças de acabar com o Outro - quando, na realidade, nada acontecia e o Outro continuava poderoso, cultuado e temido.

Também ganhou notoriedade a suposição de que nem Anna, nem Casimiro Fernandes teriam detectado a crise que abalava Francisco de Assis Rodano. Foram todos os rodeienses que, uns mais, outros menos, começaram a suspeitar que Francisco de Assis Rodano era uma fraude. Sem saber que cometia uma façanha pioneira, Corintho da Fonseca chegou a pensar em promover uma pesquisa de opinião por meio de A Voz da Serra, consultando a sociedade a respeito dos rituais do morro Portugal.

Corintho da Fonseca fora dos primeiros e na certa o mais veemente dos rodeienses a protestar contra os poderes e contra a fama de Francisco de Assis Rodano. Chegara a esboçar dois ou três rascunhos de memorando a dois papas - Pio XII e João XXIII - dando conta das malignas atividades de um cidadão “nascido em Barra do Piraí mas aclimatado culturalmente em Rodeio: que se diz Rival de um tal de Outro (tudo leva a crer que esse ‘outro’ deve ser Deus) e Lúcifer Encarnado”.

A pesquisa constaria de um cupom a ser recortado da primeira página de A Voz da Serra, deveria ser preenchida mas não assinada, a fim de garantir o anonimato do votante. Com isso - garantia Corintho da Fonseca - os rodeienses poderiam se manifestar livremente, de acordo com suas consciências, “sem temer represálias do Lúcifer Encarnado e de seus asseclas”.

Para maior divulgação da pesquisa, Corintho entrou em entendimentos com Galeano de Rodeio, o boticário, que sortearia entre os votantes uma dúzia do Peitoral Maravilhoso Galeano de Rodeio e outro tanto de seu maravilhoso purgante - prenda que Corintho da Fonseca julgou melhor omitir na campanha de lançamento da sondagem à opinião pública, pois a mesmíssima opinião pública de Rodeio tinha razões hereditárias para temer o Purgante Maravilhoso Galeano, da mesma forma que temia a Lança de Longinus e demais equipamentos de Francisco de Assis Rodano.

O que ninguém suspeitou, nem mesmo o cabo Angimestro Saraiva, que apesar de nascido no Pará era o rodeiense que mais tinha interesse em acabar com a fama de Francisco de Assis Rodano e, se possível, com o próprio, foi que a ideia da pesquisa não nascera na cabeça de Corintho da Fonseca, cabeça assoberbada pelas suas múltiplas funções de delegado policial, oficial do Registro Civil, principal colaborador de A Voz da Serra, acrescidas, nos últimos tempos, da tradicional função de corno manso, uma vez que botara para dentro de sua casa um rapaz que chegara do Rio e que se dizia jornalista.

Chamava-se Luarlindo não se sabia de quê, nem mesmo se se chamava realmente Luarlindo. Enfeitiçou Corintho da Fonseca de tal maneira que sua mulher, dona Vivinha, também se enfeitiçou. Enfeitiçados, os Fonseca (Corintho e Vivinha) adotaram Luarlindo primeiramente como agregado, depois como consultor, por fim como um deus particular, pois os rodeienses já tinham um deus próprio na pessoa de Francisco de Assis Rodano - que afinal não era Deus mas Lúcifer Encarnado.

Ninguém - nem mesmo Corintho da Fonseca - sabia o que Luarlindo fora fazer em Rodeio. Como se dizia jornalista, falava com autoridade sobre “matérias”, “fontes”, “pesquisas” - absolutas novidades para Corintho da Fonseca -, passou a ser considerado o mais notável homem de imprensa do Brasil depois de José do Patrocínio e Ruy Barbosa.

Olhado em perspectiva, o declínio de Francisco de Assis Rodano ainda não existia, mas Luarlindo farejara o ar e lançara a dúvida: “Que diabo, esse Rival do Outro promete acabar com o Outro, tem uma lança que roubou em alguma igreja por aí e o tempo passa e nada acontece!”.

Aos poucos, os rodeienses acreditaram que a dúvida tinha nascido dentro deles mesmos - e foi assim que começaram as murmurações. De início, Francisco de Assis Rodano não deu importância às malediências, à voz das ruas. Continuou sendo o que era e pretendia ser. Odiava o Outro e só não tomara imediatas providências porque, afinal, depois de tantos séculos de humilhações sofridas, de histórias sempre mal contadas pelo Vencedor, mais um dia, menos um dia não importava.

Dentro dele, para si mesmo, nada mudara, nem poderia ter mudado. Deitado na cama chippendale de segunda mão, o rosto tapado, ele preferia a linguagem que mais entendia, a linguagem sem palavras, só de sensações que o transportavam a um universo sem princípio nem fim. Ouvia o terceiro movimento de uma sinfonia de Mahler, caía no prato da vitrola o Prelúdio 28 de Chopin, que era interrompido por um trecho da Messa pro papa Marcello, de Palestrina, ele nem ligava para a mixórdia, não dava bola para a mudança dos autores, para o gênero e muito menos para o título das músicas.

E se tinha alguma dúvida, olhava de relance as botas que fizera com as próprias mãos ossudas, a noite em que matara Papelão com uma estocada certeira, fechara os olhos, concentrara-se em odiar o boi - que, afinal, era uma espécie de amigo seu -, e ele jamais esqueceria da cara de Arranca, o único que já tinha visto um toureiro matar touros de verdade - naquela noite, mais do que nunca o Gran Circo mereceu o assombroso nome de El Asombro de Damasco.

E havia a Lança de Longinus. Ele estava na casa do primo, no Rio, atento aos sinais, sabendo que a vida é uma sucessão de sinais. De repente, no meio de uma correspondência neutra, que não era dirigida para ele, Francisco de Assis Rodano recebera o aviso de que havia a lança que trespassara o peito e o coração do Filho do Outro. Era um tipo de sinal que só podia ser dirigido a ele, não ao primo, que nada tinha a ver com a guerra que ele travava com o Outro.

E ele a roubara em obediência a outro sinal, tivera um sonho, o temporal que o levara a abrigar-se numa igreja. E estranhamente, como acontece nos sonhos, a igreja estava iluminada e vazia, como se esperasse a realização de um rito, uma cerimônia em que o celebrante seria ele. E no altar, pousada como um troféu de guerra, uma coroa de glória, a lança que penetrara no peito e no coração do Filho do Outro.

O sonho também fora um sinal. Obedecendo à voz que sempre ouvia dentro dele, largou tudo e tomou a estrada, foi andando pelos trilhos que tão bem conhecia, cujos dormentes eram fiscalizados por Joaquim Pinto Montenegro, o único homem decente que conhecera, marido de sua tia Zulmira, irmã de sua madrinha e tia Zizinha, a Santa, que existisse o Outro ou não, pouco importava, importante era acreditar.

E andando pelos trilhos, foi tomando ramais que não conhecia, andarilho que não comia nem dormia, em busca do encontro, e de repente, numa noite de tempestade, lá estava a igreja tal como sonhara, iluminada e vazia.

Bem verdade que aí o sonho e a realidade se separaram, a lança deveria estar em cima do altar, pousada como uma coroa. Não, não estava. Mas no nicho principal, empunhada pelo Filho do Outro, ainda coroado de espinhos, o manto de veludo roxo cobrindo o corpo coberto de chagas, lá estava ela, pedindo que fosse sua.

De certo modo, o Filho do Outro a oferecia. Durante séculos ele a empunhara, testemunha e símbolo de seu sofrimento, de sua paixão, testemunha e símbolo sobretudo de sua morte, rasgando seu coração, que explodiu em sangue e água - e tudo fora inútil, o Outro não compreendera a grandeza do sacrifício feito pelo Homem, a dor do Homem, a miséria e a morte do Homem.

Era preciso que um outro homem fizesse alguma coisa. E ele fazia uma porção de coisas que o confrontavam com o Outro, que humilhavam o Outro, que tentavam matar o Outro.

E ele fazia todas essas coisas, curava cegos, fazia aleijados andarem, embaralhava os caminhos de uns e desembaralhava o caminho de outros, tudo o que o Outro determinara ele não apenas anulava como determinava em outro sentido.

Apesar de tudo, nos últimos tempos, começara a sentir dentro de seu corpo ossudo e maltratado um apelo estranho, uma espécie de sinal novo que até então nunca havia percebido. Assim como não tinha fome nem sede nem sono, ele nunca sentira na carne a não ser o apelo de sua missão.

E a única linguagem que sua carne entendia, a única que conseguia decifrar, era a daquela música torrencial, feita não importava como ou por quem mas que o possuía e o transportava a uma condição que nada tinha de comum com o mundo da carne.

E, um dia, ainda recentemente, ele estava possuído, possuído e transportado à dimensão que não era deste mundo, quando sentiu pela primeira vez o calor em sua carne, que explodiu numa contração de tamanha dor que parecia prazer.

Durante muito tempo, aproveitando esse transporte, a dimensão carnal que a música lhe dava, Anna vinha em cima dele, roçava em sua carne, penetrava nela, como um animal penetra em outro. Ele nada percebia, Anna e a carne dela eram como a sede e o sono que ele nunca sentia.

Até que, uma tarde, sozinho em casa - somente Amapola cuidava das outras coisas -, ele sentiu o que jamais sentira antes. Um clarão que durou alguns segundos mas que revelou um espaço novo, uma dimensão que coincidia com os seus momentos de exaltação, quando atravessava fogueiras e não se queimava, quando pisava descalço em cacos de vidro, quando fazia a chama de uma vela queimar toda a sua pele.

Descobrira um atalho. Até então ele enfrentara a sua missão - destruir o Outro - pelos meios da guerra, a guerra que começara fazia séculos, na aurora do tempo, quando ainda não havia a carne e todos eram anjos em volta do Rei dos Anjos, o Criador dos Anjos, o Outro. Mas alguém se rebelara contra o universo incorpóreo, criado pelo éter, pelo nada. Justamente o mais belo de todos, o mais forte de todos, ele, Lúcifer, O Que Trazia a Luz, ele, ainda uma partícula na chama imaterial de Lúcifer, ele se rebelara.

Sim, fora derrotado, eram milhares as milícias do Outro, ainda não havia o Homem para compensar, com a miséria de sua carne, a grandeza do Outro. Agora seria diferente. Ele se armara com suas botas nascidas da pele que cobrira a carne ensanguentada de um animal. Agora se sentia pronto, depois do clarão, daquele esplendor que possuíra a sua carne. Os dias do Outro estavam contados. O Tempo era chegado.

 

Tão chegado era o Tempo que também chegou Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira. Chegou como quem não queria nada e realmente nada parecia querer. Subornou Casimiro Fernandes, prometendo-lhe publicar uma foto sua, dos tempos em que tentara ser aprendiz de toureiro e usava uma roupa complicada, meias cor-de-rosa e tudo, de acordo com as instruções do Arranca, o único que devia saber como era uma tourada e como era um toureiro de verdade.

No curto tempo em que se meteu com o Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, Casimiro só chegara a tourear uma única vez, tivera coxa e parte da bunda avariadas, nunca mais se atrevera, assim mesmo todas as tardes se vestia de toureiro, era uma promoção do circo, ficava andando pelos arredores como se fosse uma atração. Numa dessas tardes deu um pulo ao único fotógrafo de Rodeio, um corcundinha que tinha uma gigantesca máquina fotográfica, do tamanho de uma locomotiva. Casimiro encomendara meia dúzia de cópias, mandara duas para seus irmãos que viviam em Paraibuna, ficou com as restantes, inúteis, que iam amarelando dentro de seus guardados.

Mostrara uma delas a Luarlindo, que chegara a Rodeio precedido da fama de ser um dos mais atuantes jornalistas do cenário nacional. Casimiro não foi muito nessa conversa, devia ser uma das alucinações de Corintho da Fonseca, mas Luarlindo passara a colaborar regularmente em A Voz da Serra e prometera uma “social” na terceira página do semanário que se vangloriava de ser o de maior circulação na serra do Mar e no qual Jacob Stern, dono da gráfica que imprimia o jornal, com a indispensável assessoria técnica de Corintho da Fonseca, publicava a coluna mais lida em Rodeio, “Ecos e eventos”.

Em troca da “social”, Luarlindo pedira um favor a Casimiro Fernandes. Sendo ele, com Anna, o canal de acesso oficial a Francisco de Assis Rodano, deveria promover uma entrevista com o Rival do Outro, o Lúcifer Encarnado. Seria um furo internacional, pois Francisco de Assis Rodano, embora fosse conhecido em toda a serra do Mar (ramal da Central do Brasil), sendo frequentemente solicitado a atender clientes no Rio, nunca fora entrevistado.

Casimiro ficou de providenciar e providenciou mesmo. Com a ajuda de Anna, armou um esquema que pegou Francisco de Assis Rodano desprevenido. Vinha ele do morro Portugal, onde anunciara para breve o Grande Desafio, quando enfrentaria cara a cara o Outro, o Outro com todas as suas Potestades, seus raios e trovões. E ele, apenas com a Lança de Longinus.

Como sempre acontecia, Francisco de Assis Rodano saía dessas apresentações públicas em frangalhos, suando frio, alguns quilos mais magro - se isso fosse possível. Amapola esperava por ele com um jarro em que se misturava leite e bananas amassadas. Seguindo conselhos de Galeano de Rodeio, ela colocava um pouco de aveia, sal, açúcar e mel de abelha. Era uma bomba em termos de reposição de calorias - Francisco de Assis Rodano bebia metade de um jarro e caía na cama, onde ficaria por dois, três dias sem fazer nada.

Pois foi nesse momento, quando Francisco de Assis Rodano, exausto, os olhos cavados, coberto de suor, recebia de Amapola o jarro com a poção que Galeano já ameaçara industrializar. Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, saindo das sombras do quarto onde vivia o Lúcifer Encarnado, apresentou-se oficialmente:

- Luarlindo Ferreira, de A Voz da Serra!

Francisco de Assis Rodano nem ligou. Deve ter estranhado a invasão, mas imaginou que Anna e Casimiro, os dois juntos ou separados, tivessem algum interesse naquilo. E como se sentia especialmente cansado naquela tarde, foi logo declarando para a imprensa o que acabara de declarar para o povo no alto do morro Portugal:

- Os tempos estão chegados!

Era uma metáfora - embora nem Francisco de Assis Rodano nem Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira soubessem o que era e no que consistia uma metáfora.

Foi um momento tenso para Luarlindo. Afinal, desde que perdera a oportunidade de entrevistar uma vaca que falava, no Maduro, em Lins de Vasconcelos, ele se preparara interiormente para uma outra e grande oportunidade. Não, não queria voltar a vender algodão-doce em parques de diversões decadentes. Precisava se agarrar à oportunidade, dar um furo nacional, internacional se possível. Teria de obrigar Francisco de Assis Rodano a falar, a dar uma exclusiva para ele, Luarlindo. Evidente que a A Voz da Serra teria a primeira escolha, mas ele seria dono da matéria, da data e das circunstâncias do Grande Desafio, e assim se faria definitivamente na profissão e na vida.

Francisco de Assis Rodano não colaborou. Limitou-se a dizer que os tempos eram chegados, que o Grande Desafio estava próximo. Luarlindo enfatizou a necessidade de esse Grande Desafio ser promovido, havia descontentamento nas bases, o povo murmurava que não haveria desafio porra nenhuma, nem grande, nem pequeno, nem mais ou menos. Resumindo a temperatura, o clima das ruas: Francisco de Assis Rodano não passava de um cagão.

Ninguém tratara o Rival do Outro assim. Por um instante, Francisco de Assis Rodano olhou seriamente para Luarlindo, um pouco espantado e, até certo ponto, temeroso. Afinal, era um fato novo em sua carreira de Lúcifer Encarnado. Antes, todos os que dele se aproximavam ou eram adeptos ou adversários. Dividiam-se entre adoradores e detratores, o que era lógico, dentro da secular divisão de forças do mundo e da vida. E agora vinha um ser absolutamente neutro, nem dele nem do Outro, que o chamava de cagão.

Fosse como fosse, Francisco de Assis Rodano estava muito cansado, tirou o chapéu, a capa e as botas, deitou-se na cama chippendale de segunda mão - o que era forma de dar a entrevista como encerrada, uma das mais curtas e inúteis da história da imprensa mundial.

Casimiro Fernandes e Anna engabelaram Luarlindo, o Rival de Deus estava fatigado, precisava repousar, eles armariam um novo esquema e a entrevista poderia ser feita em duas ou mais etapas; Luarlindo sentiu-se sacaneado - era um de seus complexos mais recorrentes -, mesmo assim percebeu que não tinha alternativa a não ser a de ir embora. Para compensar o fracasso, Casimiro e Anna convidaram Luarlindo para tomar uma cerveja, no arraial, perto do coreto - o cartão-postal mais conhecido de Rodeio.

Na pressa de ficar livre do repórter, Francisco de Assis Rodano esquecera de botar qualquer disco na vitrola. Deitara-se, apenas de cueca, tapara o rosto com o braço e caíra para dentro dele mesmo.

Amapola sabia que ele precisava de música. Apanhou um disco, não sabia ler, mas já notara que Francisco de Assis Rodano tinha preferência pelos selos vermelhos, com o cachorrinho ouvindo o gramofone.

Colocou um deles na vitrola e esperou.

 

                   A ÚLTIMA VEZ QUE O NARRADOR VIU RODEIO

Era o terceiro telefonema de Ruth e eu não tinha mais jeito de mentir ou me desculpar. Passara um, dois meses, ela me pedira um contato com Francisco de Assis Rodano, para Marta ou para a própria Ruth, pouco importava, o fato é que eu não tinha uma resposta.

Também fazia tempo que contratara Luarlindo para ir a Rodeio, fazer investigações por conta própria, ou melhor, por minha conta. Era uma solução compósita como as colunas que têm elementos dóricos e jônicos misturados. Eu ajudara Luarlindo, livrando-o de sua carrocinha de algodão-doce, em parte me sentia responsável pelo seu ostracismo. Por covardia, eu tirara dele a oportunidade de uma grande matéria sobre Desdêmona, a vaca que falava. Eu deveria ter ajudado Luarlindo, embora com o risco de perder o emprego e a respeitabilidade por ser igual e furiosamente louco.

Além desse compromisso com Luarlindo - de certa forma devia-lhe uma reparação - havia a curiosidade de saber como Francisco de Assis Rodano vivia e funcionava em Rodeio. Somando a isso tudo o pedido de Ruth, que não me custava atender, eu tinha pelo menos três motivos para me preocupar com a falta de notícias de Rodeio. Sem falar no inexplicável fato de Luarlindo não ter pedido mais dinheiro para suas necessidades numa cidade estranha, onde não tinha conhecidos nem carrocinha de algodão-doce para sobreviver.

Quando pela terceira vez desliguei o telefone, garantindo a Ruth que iria quebrar o galho dela, percebi que só tinha um caminho: ir eu próprio a Rodeio, desencavar Luarlindo e verificar como Francisco de Assis Rodano vivia e funcionava.

Tomei a decisão, mas não tomei o trem respectivo. No meu tempo de criança, quando ia a Rodeio passar temporadas em casa do tio Joaquim Pinto Montenegro, eu sabia de cor os horários, os prefixos, até o cheiro dos trens que paravam em Rodeio.

Os dois mais populares eram o S-3 e o S-5. O primeiro saía da Estação Dom Pedro II, na praça da República, às oito horas da manhã. O outro saía às cinco e meia da tarde e era o preferido, pois fazia parte do trajeto com a luz do dia que ia morrendo quando chegávamos a Belém, atual Japeri. Ali trocavam a locomotiva para iniciar a subida da serra do Mar, uma parada de uns dez minutos, excelente para comermos sanduíches de presunto - um gosto que jamais esqueci ao longo da vida. Também enfrentávamos sorvetes de creme, em casquinhas que tinham gosto de biscoito.

Um apito comprido, lancinante, anunciava três coisas: que a noite caíra; que começaríamos a subida da serra, passando por diversos túneis de tamanhos diversos mas de cheiro único; e que o S-5 ia partir.

O Túnel 11 se aproximava. Nós apanhávamos as malas, preparando-nos para a descida, pois logo depois do 11 surgiam as primeiras luzes de Rodeio, seus atalhos de terra batida que pouco a pouco se tornavam ruas e casas. Casas brancas, com janelas coloniais, grudadas umas nas outras. E logo vinha a plataforma de cimento armado, em ligeiro aclive e em curva, obra do engenheiro Paulo de Frontin, justo no trecho mais difícil da subida dos trens pela serra do Mar.

Descíamos as escadas e víamos a casa de Joaquim Pinto Montenegro, para mim o dono de metade da Central do Brasil inteira, uma vez que trabalhava na Divisão dos Dormentes do ramal de Paracambi - por sinal, um lugar do qual sempre ouvia o tio falar mas nunca soube onde era nem para que servia.

Havia outros trens, paradores, que iam se decompondo pelos subúrbios do Rio, galgavam penosamente a serra do Mar, parando até em Scheid e Mário Belo, que eram plataformas vazias, ocas, sem estação nem cidade por trás. Eu os desdenhava, esses trens me provocavam um desprezo profundo, tão profundo que às vezes parecia ódio.

E havia os expressos, que nem paravam em Rodeio e que me humilhavam: iam diretamente para Barra do Piraí e, de lá, uns seguiam para São Paulo, outros para Belo Horizonte. De todos os expressos, o mais demolidor, o que mais me humilhava, era o Cruzeiro do Sul, trem de aço, o mais moderno do Brasil, comprado por Epitácio Pessoa para transportar o rei Alberto, da Bélgica, que viera para as festas do Centenário da Independência, em 1922, e para garantir a exploração de minas de ferro em Minas Gerais.

O Cruzeiro do Sul era mais do que um trem: era uma instituição, um símbolo de luxo, emblema de grandeza, orgulho da Estrada de Ferro Central do Brasil em geral e, em particular, de Joaquim Pinto Montenegro, que já andara nele, no dia em que, descendo de São Paulo, excepcionalmente o trem parou em Rodeio com um problema nos freios.

A partir desse histórico dia, Joaquim Pinto Montenegro, que já era um rodeiense ilustre, tornou-se um ponto de referência social e ferroviário, um Varão de Plutarco em termos de serra do Mar.

Solene, majestoso, sagrado, era o momento em que, todos deitados, no imenso e gostoso silêncio das noites de Rodeio, pontualmente às onze da noite, nunca chegando antes, nunca chegando depois, ouvíamos o Cruzeiro do Sul ainda longe, saindo do Túnel 11, vindo devagar, devagar vencendo a subida da serra, rolando seus carros de aço azulado, fazendo a estação tremer, cadenciadamente, magnificamente.

E, dentro de casa, solene, majestosa como o Trem Azul, a voz também cadenciada e majestosa de Joaquim Pinto Montenegro (a essa altura da noite, ele próprio se sentia dono de todos os dormentes da Estrada de Ferro Central do Brasil) anunciava com a autoridade dos que sabem, dos que conhecem e regulam as coisas do mundo, do sol e das estrelas, dos mares e das montanhas e, obviamente, dos trens da Central do Brasil: “É o Cruzeiro do Sul!”.

Quando a composição passava pelas plataformas desprezadas, vazias àquela hora, Rodeio inteiro tremia mansamente, tremia mansamente a casa de Joaquim Pinto Montenegro, bem embaixo da estação. Mansamente, eu tremia também.

Depois, o Cruzeiro do Sul ia se distanciando, preparando-se para fazer a grande curva sobre os arcos que eram considerados obras-primas da engenharia nacional, pois, além de curvas, eram também pontes entre duas passagens de nível.

A cadência das rodas se perdia no imenso vale cavado pelos arcos, mas logo retornava, mais longe, dominando os trilhos que se afastavam de Rodeio, guardando fôlego em sua formidável caldeira que era a maior do Brasil, suas entranhas de fogo precisavam armazenar uma pressão colossal para vencer o longo, o lúgubre, o sinistro Túnel 12, o maior da América Latina.

Assim eram os trens daquele tempo, inclusive o Cruzeiro do Sul que não dava bola para Rodeio, que o humilhava com o seu desdém - e que passava lentamente com seus vagões iluminados e ia se perdendo na noite, até ser engolido pela imensa boca do Túnel 12.

E Rodeio então sentia que vivera mais um instante de civilização e glória, podia adormecer no silêncio deixado pelo Trem Azul, silêncio magnífico, silêncio que cheirava a carvão e cheiraria a saudade.

 

Ora, com todo esse passado, com esse patrimônio ferroviário e sentimental, ir a Rodeio em busca de Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira e investigar pessoalmente ações e funções de Francisco de Assis Rodano seria uma profanação, um estupro na memória.

Tomei informações e fiquei sabendo que podia ir de carro, pegando apenas um trecho de piso precário, justo na subida da serra. Se não chovesse, tudo bem: saindo de minha casa, em Ipanema, chegaria a Rodeio em menos de duas horas.

E o carro me daria mobilidade para ir aonde necessário fosse, sabia que Francisco de Assis Rodano já morava no Arraial do Sapo, local um pouco distante do arraial do centro, a main street rodeiense, onde teria de parar e pedir informações.

Pensei em ir no sábado seguinte ao último telefonema de Ruth. Mas alguma coisa me alertou. Fora num sábado, andando de carro por onde não devia, em busca de paisagens antigas, que eu esbarrara com uma vaca. Não seria agora, que já havia metabolizado a vaca e todas as suas sequelas, que eu iria provocar o destino, dando-lhe uma sopa indesejável. Cortei o sábado, arranjei um pretexto na redação e peguei a estrada numa quinta-feira, dia em que, segundo constava, Francisco de Assis Rodano dava expediente no morro Portugal.

Foi estranha a sensação de chegar a Rodeio por outros itinerários, sentindo outros cheiros, vendo outras montanhas, passando por vales desconhecidos. Nos trens, era fácil adivinhar a chegada, bastava perceber, no final do ventre escuro do 11, a primeira claridade depois do túnel para saber que logo, logo entraríamos na luz de Rodeio, no seu ar macio que cheirava gostoso, cheiro de cozinhas a lenha fazendo o almoço. E o sol, o sol macio e doméstico, sol de Rodeio.

Fiquei decepcionado: pensando ainda estar na estrada, de repente descobri que já estava numa das ruas de Rodeio, justo a que passava por um dos arcos construídos por Paulo de Frontin, rua que, depois do arco, sempre úmido, parecendo um túnel muito alto e muito breve, dava logo na praça única, com seu coreto. E, na continuação, o arraial, a rua principal, que era única também, pois Rodeio, fosse cidade, vila ou aldeia, era formada por uma única rua que mudava de nome e serventia conforme dela se saía ou nela se entrava.

Daí em diante foi fácil me orientar. Não há muitos carros em Rodeio - parece que, além de um velho Buick que faz o serviço de táxi, só os donos da Fábrica de Guarda-Chuvas Fiorini e da Indústria de Fogos de Artifício Picolino têm automóvel. Foi fácil, também, estacionar perto do coreto. Fisicamente, pouquíssima coisa mudara na Rodeio que eu conhecera tantos anos antes.

Fechei o carro - antigamente não havia ladrões em Rodeio, e se houvesse, seriam bem-sucedidos, pois tanto Corintho da Fonseca como Angimestro Saraiva tiveram antecessores da mesma extração.

Pensei em descer a rua pela qual chegara, dobrar à esquerda, em direção às escadas que levam à estação e de lá descer até a casa onde morou Joaquim Pinto Montenegro, casa inconfundível, sóbria, em cuja fachada principal havia em relevo as iniciais EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil). Subchefe de uma Divisão dos Dormentes do ramal de Paracambi, ele tinha direito a morar numa residência oficial.

Não, não deveria misturar canais: eu ali estava para cobrar de Luarlindo a sua missão e, de quebra, visitar Francisco de Assis Rodano, coisa que nunca fizera, pois era sempre ele que me visitava, desde criança, quando chegou lá em casa acompanhado pelo meu avô Acácio Nunes de Assis.

Não iria me dispersar, fazendo caminhos que não mereciam ser misturados, que logo se afastariam das minhas ocupações e tumultuariam a minha memória.

Dos rodeienses em atividade, conhecia o mais importante de todos, Corintho da Fonseca, delegado de polícia, oficial do Registro Civil e colaborador de A Voz da Serra, cuja redação foi fácil identificar, pois se situava logo depois da praça, no começo do arraial, num sobrado que exibia com orgulho a tabuleta em cima das telhas coloniais, anúncio do jornal e expressão de sua glória: O MAIOR SEMANÁRIO DA SERRA DO MAR.

Corintho da Fonseca conhecera Joaquim Pinto Montenegro, quando iniciara a carreira de policial e amanuense do Registro Civil. Chegara a me procurar duas ou três vezes para pedir publicação de notas de seu interesse ou do interesse de Rodeio. Eu chegara a fazer curtíssima resenha de um de seus escritos - que ele colocaria, emoldurada, na parede principal de seu local de trabalho.

Iniciando a série de decepções naquele dia, Corintho da Fonseca não estava, tinha ido a Vassouras depor num julgamento de lá, do fazendeiro que matara a mulher e se homiziara por uns dias em Rodeio, até que fez a besteira de contar tudo para Angimestro Saraiva, que o denunciou prontamente, temendo que a presença de um assassino em Rodeio provocasse uma enxurrada de defuntos - e Angimestro, quanto mais o tempo passava, mais tinha medo de defuntos, acidentais ou naturais, dava na mesma.

Pelo mesmo motivo - o julgamento em Vassouras - Angimestro Saraiva também não estava. E só não perdi a viagem porque tive a sorte de encontrar Casimiro Fernandes, que voltara a trabalhar na farmácia do Galeano de Rodeio.

As notícias que ele me deu foram rápidas, incompletas, com muitos claros - tantos que não dava para formar uma impressão e, muito menos, uma opinião. Francisco de Assis Rodano afinal lançara seu Grande Desafio, no alto do morro Portugal, num dia de temporal em que o céu parecia desabar sobre Rodeio.

Com sua lança - que certamente ajudou a atrair o raio - ele proferiu a terrível ameaça (Ou Tu ou Eu) e um raio o fulminou, dele não restando mais nada. Houve muita confusão, pois alguns tinham visto Francisco de Assis Rodano pulverizado em cinza. Mas houve quem jurasse que o raio o reduzira a um tição enegrecido.

Tição ou cinza, Francisco de Assis Rodano desaparecera. Mas estava sem as botas, as famosas botas feitas com o couro do boi Papelão, boi por sinal muito manso, não era como o Ventania, esse sim, um touro de verdade, botara o próprio Casimiro Fernandes em fuga, depois de lhe rasgar parte da coxa e da bunda - e Casimiro quis me mostrar as cicatrizes, prova de que o dispensei.

Não entendi direito a história das botas. Se o raio fulminou Francisco de Assis Rodano, com botas ou sem botas, de touro, boi ou vaca, dava na mesma. Casimiro sabia-me ignorante das coisas de Rodeio - mas não tanto. Contou-me que as botas eram, depois da lança, o equipamento mais importante de Francisco de Assis Rodano. Ele só assumira a missão de Lúcifer Encarnado e Rival do Outro depois de ter feito aquelas botas - ninguém sabia exatamente por quê, mas Francisco de Assis Rodano sabia - e era o que realmente importava.

- E por que não estava com as botas?

Casimiro Fernandes fez a cara sábia de quem não apenas sabia mas se felicitava por estar me ensinando a história do mundo:

- Depois do raio, quando todos viram que Francisco de Assis Rodano se transformara em cinza ou em tição, uma das mulheres que vivia com ele apareceu com as botas.

- E isso significava o quê? Provavelmente, na pressa de aproveitar a tempestade e os raios, ele esqueceu ou não teve tempo de calçar...

- Sim, é possível, mas a verdade única e bastante é que jamais Francisco de Assis Rodano se atreveria a desafiar o seu Rival sem estar calçado com aquelas botas. Logo...

- Logo o quê?

- Logo, alguma coisa sobrenatural deve ter acontecido! Ele não estava ali, no morro Portugal. Desaparecera antes, ou, talvez, nunca tenha existido, é uma hipótese que começa a surgir e que tem adeptos de peso, como Corintho da Fonseca, Angimestro Saraiva, o próprio Galeano...

- E Luarlindo? - perguntei, para perguntar alguma coisa, pois já me desinteressava do assunto e do próprio Casimiro Fernandes, decidindo-me a voltar logo para o Rio.

Casimiro fez cara amarga. Houvera muita confusão depois do raio e do desaparecimento de Francisco de Assis Rodano. Ele, Casimiro Fernandes, até que estava numa das melhores fases da sua existência, com casa, comida, roupa lavada, prestígio e mulher. Sim, Anna, tida como mulher oficial e oficializada de Francisco de Assis Rodano, era também sua mulher. Ela desaparecera, seduzida por Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira, que a levara, com o filho de três anos, ninguém sabia para onde nem como, embora se suspeitasse que Anna guardara durante muito tempo o dinheiro que pingava na bandeja que sempre passava durante as sessões do morro Portugal.

Casimiro de nada suspeitara até que, no dia seguinte ao do desaparecimento de Francisco de Assis Rodano, a mulher e Luarlindo também desapareceram, dessa vez levando o filho - exigência de Luarlindo, que gostava de crianças.

 

Uma onda de demência varreu Rodeio.

Desapareceram maridos que estavam cheios de suas mulheres. Desapareceram mulheres que estavam cheias de seus maridos. E também desaparecera Amapola, que servia de empregada para todos os habitantes e visitantes da casa no Arraial do Sapo. O único cidadão de Rodeio que teve motivos para ficar - e agora ficar para sempre -, considerando-se vitorioso e vingado com a insânia geral, foi o cabo Angimestro Saraiva, pois o raio que fulminara Francisco de Assis Rodano no morro Portugal provocara muitos desaparecimentos, mas não provocara um único defunto.

Voltei para o carro e Casimiro me acompanhou, pensando estar sendo delicado. Quis saber depois dos eventos havidos no morro Portugal, ninguém mais se lembrava de nada, apenas ele, Casimiro Fernandes, tinha motivos para lamentar a perda de tudo. Voltara a trabalhar para Galeano de Rodeio, ajudava na fabricação do peitoral e do purgante (o futuro e maravilhoso diurético ainda estava em fase experimental), talvez eu precisasse de um ou de outro, ele me venderia alguns frascos, prometia-me um desconto.

Deixei Rodeio, seguindo em sentido contrário às ruas e os caminhos aos quais não deveria ter voltado. A vaca de Itaipava fora pior. Afinal, Itaipava não era ramal da Central mas da Leopoldina Railway.

Era um outro universo. Eu, também, me transformara num outro universo.

 

                   O PIANO E A ORQUESTRA

Não precisei inventar desculpas para dar a Ruth. Limitei-me a dizer-lhe a verdade - toda a verdade, como é exigida nos tribunais. Não sei se ela acreditou. Não me telefonou mais.

De minha parte, perdoei-me muita coisa, menos aquela infeliz ideia de ter ido a Rodeio. Depois da vaca - em muitos sentidos, a vaca fora menos traumatizante - decidi que a solidão era o que mais me convinha, entre outros motivos, porque já estava habituado a ela.

Como não sei viver no desconforto, tratei de não relaxar no trabalho, mantendo o padrão de vida em nível razoável, sem sobressaltos, sem me esbofar nem botar a língua para fora, nunca indo além do que necessito.

Ficou difícil ser o mesmo homem, o homem que eu era antes de Francisco de Assis Rodano e da vaca - vaca que havia muito não me incomodava, talvez nem tivesse existido. Luarlindo também não existira, nunca mais o vi em canto algum, nem mesmo em sua carrocinha de algodão-doce, no parque de diversões do Leblon, ali perto da praça Antero de Quental. Parque cada vez mais decadente mas que eu continuava a frequentar nas noites de domingo - dia difícil de atravessar.

Pois foi no último domingo. Pela manhã, dera uns mergulhos em Ipanema, perto de casa. Almocei num restaurante português do Leme, comi um peixe grelhado com molho de alcaparras, bebi uma garrafa de vinho branco. Dormi a tarde toda. À noite, andei pelas ruas, sem nada fazer e em nada pensar. Insensivelmente, tomei a direção do parque de diversões, que a cada semana ficava mais triste e decadente.

Já estava fechando, somente algumas barracas funcionavam, o trem-fantasma, o carrossel desbotado, com sua música fanhosa, a roda-gigante que rodava vazia, me esperando. Era nela que eu sempre terminava minhas noites de domingo. Chegara a tentar uma explicação para essa mania, essa fixação pela roda-gigante: o fato de subir e descer sem sair do lugar. Era uma vocação e um destino.

Li num livro sobre a Segunda Guerra Mundial que as rodas-gigantes eram alvo para a artilharia e aviação, deviam ser apagadas, mais do que isso, deviam ser desmontadas. Donde se podia concluir que uma roda-gigante, onde quer que esteja, apesar de imunda e grossa, é um símbolo de paz. Talvez fosse isso. Depois de ter lutado e perdido minha guerra particular, eu estava em paz.

Chegava ao parque quando ele estava fechando, dez, quinze minutos antes. Os poucos frequentadores já se retirando, os empregados cansados, querendo encerrar o serviço. O homem que toma conta da roda-gigante viu-me à distância e travou o mecanismo que a movimentava.

Como sempre, embarquei na cadeirinha número 9, uma cadeirinha pintada de vermelho e amarelo, já desbotada, que nem sei por que era a minha preferida. Tão logo a roda começou a girar, o homem foi fazer qualquer coisa no barracão que funciona como escritório do parque. Ele já percebera que eu gostava de ficar ali, girando no meio da noite, até que todas as luzes se apagassem. Viria então travar a roda e me desembarcar. Eu o pagava por fora.

Gosto de ficar rodando, rodando na roda imunda e grossa, sabendo que estou sozinho. Lá em cima vejo as luzes do bairro, os ônibus passando na avenida principal do Leblon. Depois dos edifícios mais baixos, não muito longe, vejo o mar, escuro, volta e meia o farol dos carros ilumina uma onda branca que se quebra na praia. Quando chego ao ponto mais alto, fico realmente só, no meio da noite, coberto pelas estrelas.

Quando a cadeirinha número 9 passa embaixo, quase roçando a plataforma de embarque, percebo que a cada volta o parque fica mais deserto, todos já foram embora ou estão indo. As luzes, uma a uma, estão se apagando.

Foi numa dessas descidas, quando passei rente ao chão. Vi um casal, de costas, tomando a direção da saída do parque. A mulher era jovem, bem-feita de corpo, encostara a cabeça no ombro do homem, os cabelos eram louros, tão louros que pareciam brancos. E o homem era alto, muito, mas muito magro, levava uma criança no colo. Apesar de vestidos com roupas comuns, roupas de domingo, o homem estava descalço.

Tentei observar mais e melhor, mas a roda girou e a cadeirinha número 9 foi para o alto, levando-me para cima. A música do carrossel estancou de repente. Houve um silêncio que podia ser mastigado pela boca, engolido pelos olhos, silêncio que vinha de todas as partes do mundo, dos carros, do mar, da noite.

Esperei descer uma vez mais e olhei na direção da saída. A mulher de cabelos louros, tão louros que pareciam brancos, desaparecera na noite. Na noite, também desaparecera o homem descalço.

E a roda rodou, imunda e grossa, levando-me de volta às estrelas.

 

                     PERSONAS E PERSONAGENS

                     (sem ordem alfabética e sem ordem alguma)

Antes de relacionar os personagens secundários que fizeram coro e plateia à história de Francisco de Assis Rodano, e tentar resumir o que teria acontecido ou não a eles, o narrador confessa que sempre desejou fazer um conto narrado por um idiota (ele mesmo, narrador), não necessariamente cheio de som e fúria e, aí sim - necessariamente -, significando nada.

Chegou a pensar em usar como epígrafe o sovado trecho do Macbeth, que entre outros produtos e subprodutos, deu inspiração ao melhor romance de William Faulkner.

Pensou também numa epígrafe tirada de Dante, que é nominalmente citado algumas vezes e, indiretamente, na maioria dos casos.

Seria crueldade fazer isso, jogar Shakespeare e Dante em cima do pessoal de Rodeio. Eles nada fizeram para merecer tamanha truculência. Gente simples, pacata, comprometida apenas com o ofício de viver entre as bocas dos túneis 11 e 12, eles nasceram, viveram e alguns já morreram sem dar muita bola para poetas e poemas. Nesse particular, a única literatura que consumiam, a de Corintho da Fonseca, não só os edificava como lhes bastava.

O narrador volta a narrar, agora de forma resumida e final, o destino ou a falta de destino desses personagens.

 

                     ANGIMESTRO SARAIVA

O que tinha medo de defuntos, e o teve até que ele próprio se transformou num defunto, cujo caixão mereceu a honra de ser coberto pela bandeira do Sindicato dos Garçons e Empregados em Estabelecimentos Congêneres do Distrito Federal. Foi anunciado, ao longo da narrativa, que Angimestro Saraiva acabaria sua vida como garçom na Confeitaria Lallet, no velho centro do Rio - que era então capital da República e Distrito Federal. A homenagem que o Sindicato dos Garçons e Empregados em Estabelecimentos Congêneres prestou ao ex-cabo da Milícia do Pará e ex-auxiliar da Delegacia de Polícia de Rodeio tem uma explicação. No início dos anos 60, como aliás aconteceu nos inícios, meios e fins de todas as décadas, houve um medonho temporal que inundou o Rio, alagando bairros, ruas, residências e casas comerciais. A Confeitaria Lallet foi uma das vítimas. A água chegou a meio metro de altura na copa onde Angimestro Saraiva tentava se equilibrar em cima de uma mesa, esperando que as águas escoassem. Um fio elétrico soltou-se do teto e caiu junto ao ex-cabo de Rodeio e da Milícia do Pará. Recebeu uma descarga fatal. O seu sindicato estava em campanha pelo aumento salarial da categoria, acho que Angimestro Saraiva - que temia defuntos - era o cadáver que poderia ser brandido e exposto: afinal, a causa mortis fora a incúria do empregador que não cuidara dos fios elétricos de seu estabelecimento. Angimestro Saraiva era um mártir. Muitos anos antes, numa briga com sua mulher, por causa nunca explicada, Angimestro Saraiva tinha levado com uma chaleira de água fervendo que lhe queimou ombro, peito e baixo-ventre. Na segunda tentativa do destino em queimar Angimestro, ele acabou morrendo sem ter tempo de fazer “ui!” - como fizera sua filha Teresa, quando, ao beber água da moringa, viu um mascarado dentro de casa e ficou muda para o resto da vida. Vida que acabou no quilômetro 47 da antiga Rio-São Paulo, sob um carro que a esmagou e esmagou o filho que ela trazia no ventre.

 

                   ARRANCA

O espanhol Arranca, que lutara na Guerra Civil de 35 ao lado dos republicanos e - segundo diziam - havia matado um padre em Segóvia, continuou com o Gran Circo El Asombro de Damasco enquanto foi possível, ou seja, enquanto o circo existiu. Tentou sem sucesso exibir-se numa Feira do Zebu realizada no Triângulo Mineiro, não como zebu propriamente, mas no uso de seu famoso título de Hércules da Mantiqueira. Casou-se com uma boliviana que se fazia passar por peruana - ninguém, nem mesmo Arranca, entendia por que nem para quê. Foi atropelado em São Paulo, perto da avenida São João, por um carro que estava a serviço do cônsul americano. Depois de meses no hospital, recebeu uma boa indenização do consulado, e se mandou de volta para a Espanha, levando a boliviana que desistiu de ser peruana e passou a se considerar cidadã chilena - também ninguém sabia por que nem para quê. Arranca morreu em idade provecta (noventa e seis anos), confortado pelos santos sacramentos da Igreja e da fé que ele repudiara durante a Guerra Civil. Chegou a ser membro da Opus Dei.

 

                   CASIMIRO FERNANDES

Nascido e vivido em Rodeio (foi breve seu estágio como habitante e sacristão em Paracambi), Casimiro Fernandes morreu em Rodeio mesmo, cinco ou seis anos depois dos acontecimentos narrados neste livro. Assim como Angimestro Saraiva morreu como mártir do trabalho, Casimiro Fernandes morreu como mártir da ciência. Deu-se que Galeano de Rodeio, que já se considerava um benfeitor da humanidade por ter bolado a fórmula de seu Peitoral Maravilhoso (codeína, creosoto, rum queimado, favos de mel e xarope de tolu), seguido do terrível e letal Purgante Maravilhoso, havia cismado de produzir um diurético que fosse igualmente maravilhoso. Tentou várias fórmulas. Num dos momentos capitais da história de Francisco de Assis Rodano, tomamos conhecimento de que Casimiro Fernandes teria ido a Mendes buscar ervas-de-santa-maria para Galeano. Em seguida, Casimiro Fernandes deixou o serviço do boticário e foi para o Arraial do Sapo, onde, depois de ter sido sacristão de um Deus, foi ser uma espécie de sacristão do Outro, ou seja, do próprio Francisco de Assis Rodano. Tornou-se amante de Anna, mulher oficial ou oficializada do Lúcifer Encarnado, mulher que lhe foi roubada por Luarlindo Amadeu de Sousa Ferreira que com ela fugiu para lugar incerto e não sabido. Casimiro Fernandes continuou em Rodeio, sofreu de complicações hepáticas, foi requisitado pela Justiça Eleitoral para servir de mesário no plebiscito pela volta do presidencialismo. No dia em que completou cinquenta anos, mereceu de A Voz da Serra um registro na coluna “Ecos e eventos”. Foi chamado de “o nosso Casimiro Fernandes”.

 

                   CORINTHO DA FONSECA

Mereceria aqui um registro mas o narrador ficou sem saber se ele era ou não personagem secundário da história. Optou por considerá-lo personagem de primeiro time. De maneira que fica como está - e fica muitíssimo bem.

 

                   LUARLINDO AMADEU DE SOUSA FERREIRA

Outro que mereceria a mesma dúvida. Também ele está todo na narrativa e não mereceria qualquer outra informação suplementar, não fosse um único fato. Tendo fugido com Anna, ninguém sabia para onde nem como, anos depois, Luarlindo apareceu no cenário nacional como assessor de imprensa e categorizado porta-voz de um prefeito do vale do Paraíba.

 

                   ZUTH (Ênio Jampércio Caldas)

Cantor romântico e uma das principais atrações do Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco, a partir dos anos 50 incorporou a seu repertório uma balada sertaneja que fazia muito sucesso. Gravou um compacto em 1961 com músicas que todo mundo pensava que eram de Frank Sinatra. No final da carreira, integrou o coro de uma igreja evangélica, gravando um LP sob o título O Senhor é o meu pastor.

 

                   GARGALHADA

Foi fiel ao Gran Circo Tauromaníaco El Asombro de Damasco mesmo depois de o circo não mais existir. Com a experiência dos anos de picadeiro e serragem, ele descobriu que o importante, num circo, seja tauromaníaco ou não, é a lona. Onde houver lona para cobrir um território, mínimo e esmolambado que seja, haverá circo. Assim, Gargalhada não se preocupava em saber quem mandava ou não mandava no circo, para onde ia ou não ia. Ele aprendera a fiscalizar a lona: iria para onde a lona fosse. Morreu debaixo dela, em Taubaté, quando a lona nem dava mais para cobrir um circo mas um gerador da Prefeitura que estava em reparos. Ninguém soube o que aquele homem estava fazendo ali, disputando com um gerador enguiçado o pedaço de lona esfarrapada. Teve um enfarte enquanto dormia, houve confusão para que chegassem a um acordo sobre a sua identidade. Um antigo morador de Taubaté jurou que o conhecia, fora um notável artista circence que fizera sucesso até em Buenos Aires - lugar que nunca fora pisado por Gargalhada. A polícia registrou o óbito baseada na informação desse taubateano. E Gargalhada saiu da vida e entrou na história como o Risadinha.

 

                   NARRADOR

Inicialmente, o narrador pensou em incluir-se entre os personagens principais da história, em certo sentido, no mais importante deles. Depois, pensando melhor, verificou que era secundário - menos que isso, terciário, como a economia informal produzida pelo nosso tempo. Como o idiota citado no Macbeth, ele contou a sua história com algum som e a fúria possível, mas sem significar absolutamente coisa nenhuma. No momento de colocar um fim à narrativa, ele descobriu uma personagem importantíssima, que nem aparece na história, sendo apenas citada duas ou três vezes:

MARTA (Sem th) Foi a culpada de tudo.

 

                                                                                Carlos Heitor Cony  

 

                      

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