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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PINTOR QUE ESCREVIA / Leticia Wierzchowski
O PINTOR QUE ESCREVIA / Leticia Wierzchowski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O céu é de um azul intenso que se vai desbotando para os lados do horizonte. O sol começa a escorregar para o oeste, e a tarde gasta-se sutilmente, desfolhando-se sobre a imensa casa branca de dois andares, arranhando o topo da casa, o pequeno telhado do sótão com sua janelinha azul. Ao longe, para o lado das vinhas, estão os trabalhadores, diminutas criaturas sob o sol dourado de setembro. Gente da região, que trabalha para Antônia Maestro desde que ela chegou nestas terras, vinda da Itália, no tempo em que a Grande Guerra estava apenas começando, vinte anos atrás. Não se vê ninguém em torno da casa, a varanda com suas cadeiras de vime suspira cheia de sonhos, engolida pelo silêncio azulado da hora da sesta. Apenas um gato amarelo, peludo e preguiçoso, está deitado no terceiro degrau da escada, perto dos canteiros de margaridas. Marelie, o gato, gosta de ficar ali, naquele degrau, e ali ficará até que o sol de primavera se canse, ou até que Amapola venha buscá-lo.
A grande casa é elegante e imponente, de linhas retas, erguida numa saliência do terreno verdejante, o campo derrama-se a sua volta como um imenso lençol salpicado de flores. A sala que dá para a varanda está quieta. Há um tom de segredo e conforto ali, um conforto de coisas caras, de pequenos adornos de prata, de livros encadernados em couro, de cristaleiras com louças antigas, porcelanas de Sèvres, cristais de Viena. Poltronas de veludo azul estão a um canto e são três; sobre uma delas, um livro aberto repousa. Há quadros nas paredes. Um Renoir ocupa a parede central, absoluto, enchendo a sala ampla com a sua exuberância. Gabrielle com jóias. As cores alegres saltam da parede, derramam sua sensualidade sobre esta hora morna. Na parede oposta, uma estante de livros de arte. Um porta-retrato com a foto de uma mulher de grande beleza, parada ao lado de um homem alto, moreno e aristocrático, solidariamente belo. Antônia Maestro e seu marido, na Itália. Antes da Segunda Guerra, antes da partida para o Brasil.
A sala desemboca num corredor amplo e fresco, repleto de quadros. Um Lino Selvatico exibe sua mulher amarela que se mira ao espelho. Pequenas obras menores dispõem-se na parede até a porta dupla que dá para a grande cozinha. A cozinha onde Ana trabalha silenciosamente, porque a hora da sesta não é de descanso para ela. Uma imensa mesa de madeira ocupa o centro da peça, e é ali que Ana sova o pão para a noite. E cantarola.

 


 


Da rua, vem o suave murmúrio dos passarinhos empoleirados nas árvores do quintal. Árvores frutíferas, das quais Ana e seu marido cuidam zelosamente. Da janela de cima, a janela do quarto de Amapola e Marco, as copas das árvores são como um tapete perfumado. Amapola gosta de gastar seu tempo debruçada sobre o quintal, no parapeito azul da janela do seu quarto. Ali ela resta por horas, perdida em pensamentos, enquanto o marido, trancado no sótão, pinta. Fica Amapola olhando o céu e adivinhando que, ao longe, invisíveis, estão os contornos da Serra, está a estrada que leva à Capital, está a estrada que leva ao porto, e está o mar, que a separa da Itália. Os jardins de Pegli, o verão em Pegli. É neles que Amapola pensa, quando não pensa em Marco. Mas não à hora da sesta. Amapola agora está deitada na imensa cama de casal. Há um mosquiteiro que desce do teto como um véu de noiva, há o corpo bem-feito de Amapola sobre a cama de lençóis alvos. Seus cabelos negros esparramados sobre o travesseiro de penas, o rosto sereno de sonhos bons, o rosto perfeito, que Marco recria em suas telas. É um quarto amplo, onde um retrato de Amapola reina, vestida de amarelo, mais moça, quase menina, um brilho estranho nos seus olhos cor de safira, uma coisa cabal em seu sorriso de deusa, uma coisa cheia de medo em suas mãos brancas de longos dedos. E há um grande armário de portas abertas. Coloridos espasmos revelam os vestidos de Amapola, a seda que cobre suas carnes, a renda que contorna seus seios rosados. E há uma estante com livros, e dois criados-mudos, um deles vazio, um toucador repleto de vidros de perfume e coisas femininas. O banheiro é pequeno e azul, uma banheira de louça branca é como um barco encalhado a um canto, o espelho de cristal reflete a roupa íntima de Amapola, atirada sobre um toucador. Há navalhas sobre a pia, uma toalha suja de tinta atirada no chão.

O quarto ao lado é de Antônia Maestro. Um quarto discreto, em madeira. Ela não dorme, mas aparta-se ali até que o sol descambe para os lados do horizonte. É ali que pensa, que planeja, que escreve suas cartas para a Europa, é ali que lê. No quarto em que dorme sozinha e onde envelheceu nesses últimos vinte anos até que sua beleza, antes gritante como a tarde lá fora, transformou-se em um sereno entardecer, um entardecer irretocavelmente belo, porém bucólico e aquarelado.

Marco Belucci é um homem bonito. Cabelos loiros, olhos verdes, tez morena clara. Sua idade está escondida no porte alto e elegante, nos ombros largos, bem-feitos, no rosto liso, de boca carnuda. No entanto há uma tristeza perene nos seus olhos assustados; esta tristeza está ali agora, lânguida e úmida como uma chuva de inverno, e talvez seja ela que lhe dê esta aparência de poeta, este ar romântico que da sua figura se exala. Ele usa uma roupa leve e branca, aqui e ali salpicada de manchas de tinta, e seus pés estão descalços. Há uma fragilidade nas suas mãos perfeitas, de dedos longos, pálidos, sujos de amarelo de cádmio.

A tela recebeu uma única pincelada, está firme em seu tripé, aguardando. Atrás dela, presas às paredes do ateliê, enfileiradas, estão as muitas obras que Marco Belucci pintou no Brasil. Entre rostos angustiados de mulheres de olhos vazados e risos de escárnio, destaca-se a figura de Amapola, muitas vezes repetida. Bela, triste, dormente, âmbar, com asas, desfalcada de boca, de mãos, de olhos, azul e carmesim; são tantas Amapolas erguidas no ar, um sem-fim delas. Marco Belucci contorna o tripé e dá alguns passos pelo sótão abarrotado de quadros e telas guardadas em canudos. Pintou cada um daqueles retratos, o horror e a paixão estão ali. Todos os medos, os segredos do seu passado, o pecado por ele cometido, o mais terrível pecado, o mais perene, está tudo naquelas telas para quem tiver os olhos de ver, os verdadeiros olhos que sabem penetrar nos signos sob o pano. Sua vida codificada em cores, traços, nuances. O seu diário, o seu tarô.

Marco vira as costas às telas; da janela estreita e comprida pode ver a tarde serena que se derrama sobre o campo. Aquele campo que ele aprendeu a amar por silencioso, um bom guardador de segredos. Pacato em seus mistérios de longas noites invernais. Tão diferente da sua Ligúria. Mas pensar na Ligúria dói demais, e Marco Belucci sabe que já não há mais tempo para tanto. O tempo, quando escasseia, não chega para amar nem para sofrer.

Marco Belucci debruça-se perigosamente sobre a janela. Quantas vezes viu aquela paisagem? Quantas vezes seus olhos abarcaram aquele pedaço de campo, a sanga ao longe, as vinhas com seu perfume, a cavalariça, a plantação? Suas retinas estão plenas daquele lugar. Plenas de Amapola; basta fechar seus olhos por um instante para vê-la, magnífica e esplendorosa na nudez das madrugadas. Tão pura, pobre Amapola, que dorme em seu quarto o sono vespertino sem angústias. Tão igual, Amapola, e tão diferente dele.

Sopra uma brisa doce e perfumada de uvas. Ela brinca nos cabelos de Marco, e ele sorri. Este é o seu último sorriso, ele sabe. Olha para baixo, para as flores que descem pela encosta, as flores que o jardineiro plantou e cuida tão zelosamente para não se defrontar com a ira de Antônia. Olha para o céu, de um azul lavado e morno, um céu que se desdobra até o infinito. Um céu de seda (de seda como a pele de Amapola). A visão de Amapola nua ocupa mais uma vez seu pensamento. Tão linda...

Marco Belucci dá um único impulso e seu corpo cai. Agora tem a cabeça limpa, a alma lavada. Agora acertou a conta dos seus pecados. A descida é rápida e deselegante. Seu corpo rola pela colina e, por fim, pára sobre o canteiro de margaridas num baque surdo. Os olhos verdes, abertos, ainda tristonhos, agora estão voltados para o nada, a cabeça num ângulo estranho, o pescoço retorcido, os cabelos loiros têm pétalas entre seus fios. As mãos delgadas e brancas estão abertas, espalmadas para o céu como dois pássaros indefesos. É triste e estranhamente bonita a figura de Marco Belucci, quarenta anos, estilhaçado por sobre o canteiro florido. Um pássaro passa voando baixo, recortado contra o céu azul. A primavera nasce por todos os poros da serra gaúcha. Deitada em sua cama, Amapola desperta assustada, o coração aos pulos dentro do peito.

 

Ana, a cozinheira, é quem sobe as escadas correndo, aparvalhadamente. Tem os olhos injetados. Nunca viu um morto assim, de pescoço quebrado como o de uma galinha que vai ser preparada para o jantar (e ela, que já matou tantas galinhas na sua vida, talvez nunca mais seja capaz de quebrar mais um daqueles pescocinhos miúdos e cacarejantes). Pára em frente ao quarto da patroa e grita:

— D. Antônia, pelo amor de Deus! Aconteceu uma tragédia.

Sabe que a patroa preza o silêncio e a discrição, mas, numa hora dessas, Ana bate com força na porta do quarto de Antônia Maestro, seu punho já está vermelho. Nos poucos segundos que a patroa demora para abrir contrariadamente a porta do seu quarto, Ana rememora mais uma vez o rosto do marido de Amapola. Tinha sido um homem tão bonito, ah, de causar suspiros. Mas sua estranheza — Ana tivera sempre um certo medo dos silêncios daquele italiano de olhos verdes — sempre lhe parecera perigosa.

— O que foi, mulher?

Os olhos cinzentos de Antônia Maestro cintilam de raiva. Ana desabafa, às avessas:

— O pintor... O senhor Belucci... Ele se jogou da janela, está caído lá embaixo. Morto, a cabeça retorcida!

Nesse instante, Amapola surge no corredor, um vestido enfiado às pressas, os olhos em pânico.

— Marco!

Amapola desce correndo as escadas. Os olhos nublados de lágrimas mal distinguem um degrau do outro; mas ela não cai, ela vence rapidamente o caminho até a rua para ver com seus próprios olhos a desgraça que lá fora a espera. Antônia Maestro segue a filha, chamando-a sem sucesso. Antônia sempre soube que um dia alguma coisa horrível assim haveria de acontecer... Marco Belucci era um homem fraco, um covarde.

Amapola desce a encosta às pressas. Cai de joelhos entre as margaridas, segurando desajeitadamente o rosto de Marco, tentando em vão dar algum ajuste ao seu pescoço contorcido. Treme, seu rosto bonito está convulsionado, pálido, os cabelos soltos colam-se à sua pele.

— Marco... Marco, amore... Por quê? Eu não amei você o suficiente, Marco?

Alguns trabalhadores reúnem-se, silenciosamente, observando, de olhos congestionados, a cena triste. O pintor suicidou-se. Nunca tinha acontecido algo assim por aquelas bandas. Mas todos recordam que o pintor era um homem estranho, retraído.

— Minha filha, venha comigo... — Antônia tenta em vão segurar a filha. — Deixe-o, vamos lá para dentro. Contenha-se, per Dio. Estão todos olhando.

Amapola fita Antônia com raiva. Há alguma culpa da mãe naquilo, mas Amapola não poderia asseverar que culpa é essa. No entanto Marco morreu. Seu amor, seu único amor... Marco Belucci, a quem ela conheceu certa tarde em Pegli, tantos anos atrás, antes ainda da guerra. Marco Belucci, que tinha o riso mais belo do mundo, os olhos de esmeralda, o corpo morno, sempre sedento dela... Marco, seu adorado, seu pintor, sua vida. Se o tempo pudesse voltar atrás, ela se abraçaria a ele, e não haveria mais silêncio, nem medos, nem segredos, nem haveria sofrimento nem nada que pudesse apartá-los um do outro, somente aquele amor que sempre os unira, aquele amor que fora, por vezes, maior do que o mundo.

— Deixe-me... — pede ela, chorando alto, a voz rouca embargada pela tristeza do irremediável daquilo tudo. Sem saber o que fazer, Amapola arranca as flores em torno do corpo do marido. Não é certo o viço daquelas margaridas, não é certo aquele sol, aquela tarde azul. — Vou ficar aqui com Marco. Quero morrer com ele.

Antônia Maestro aquiesce tristemente. Sabe que é melhor não contrariar a filha. Levanta-se do lugar onde estava ajoelhada, ajeitando o vestido com cuidado excessivo. Lança um único olhar de censura e espanta os trabalhadores que observam a cena. Depois, segue, subindo o caminho que leva à casa. A verdade é que precisa chamar o Dr. Albuquerque para ver Amapola e dar-lhe um sedativo, qualquer coisa que a acalme. Marco Belucci era um fraco, um fraco, um fraco. Maldito o dia em que o escolhera para Amapola. Maldito destino, maldita ambição. Marco Belucci havia morrido sob o seu nariz, como uma afronta.

Enquanto procura na pequena agenda de couro o telefone do médico, Antônia ouve, vindo da rua, o choro desesperado da filha. Disca o número quase com raiva, e o zumbido metálico da linha ecoa nos seus ouvidos impacientes. Agora iriam embora para a Itália. Com a morte de Marco Belucci, não havia mais motivos para que ficassem no Brasil.


Serra gaúcha

Abril de 1978

 

 


O Opala preto seguia pela estrada cercada de campo. Pequenos arbustos floridos pontilhavam o caminho. O carro já havia subido as curvas serranas, agora era aquele verde que se estendia por tudo, como um manto bem-cuidado. De quando em quando, um quero-quero cantava ao longe e seu canto se perdia no ar, reverberando até fenecer, até que outro quero-quero respondesse, como uma espécie de orquestra. O céu era de um azul lavado, porém soprava uma brisa fresca, que prenunciava uma noite fria. Era realmente um dia bonito de outono, um passeio bonito, extremamente agradável.

Com o rosto para fora da janela, aspirando o ar puro, Augusto Seara sorria. Era bom estar ali, deixar a correria de São Paulo por alguns dias. Amava São Paulo, é claro, com suas esquinas cheias de vida, sua gente agitada e nervosa, seus luminosos de néon. Mas tinha prazer em visitar o sul do Brasil, principalmente no outono, quando as temperaturas amenas e a luz oblíqua e dourada davam a tudo um ar de sonho, quase de irrealidade. E era bom estar ali naquele momento, quando se sentia frágil e solitário. São Paulo com seus milhares de habitantes fazia apenas aguçar aquele sentimento de solidão; ali naquele lugar, porém, era lúcido ser só, tudo ali era só, era pouco e era contido. Aquele campo que se estendia até perder de vista fora feito para a solidão.

Augusto Seara tinha planejado gastar uns dois, três dias, na propriedade de Amapola Maestro, catalogando os quadros; depois, na volta, ficaria em Porto Alegre por mais uma semana. Partiria de avião, enquanto as obras de arte, embaladas e catalogadas, seguiriam de caminhão para São Paulo.

— Tem certeza de que estamos no caminho certo, Zeca? Você olhou direito aquele mapa?

Zeca, seu auxiliar e braço direito, aquiesceu. Tinha consultado os mapas e, no aeroporto em Porto Alegre, informara-se direitinho. Faltavam alguns quilômetros para a propriedade Maestro.

— Chegaremos lá em meia hora, Augusto. Pode ir aproveitando a viagem.

Augusto Seara recostou-se no banco do carro. Desligara o rádio havia bastante tempo, e ele apreciava o silêncio do lugar como quem experimenta uma rara iguaria.

Dois meses antes, Amapola Maestro o procurara. Augusto Seara era um marchand conhecido em São Paulo, tinha negócios na França e na Itália, herdara galerias do seu avô. Falava fluentemente o italiano, vivera grande parte da sua infância em Milão quando o pai fora transferido para lá como adido cultural. Talvez por isso, ela o havia procurado. Amapola Maestro, a rica italiana genovesa. Augusto lembrava muito bem da manhã em que a senhora Amapola adentrara a sua sala, usando um costume claro, pérolas no pescoço, os cabelos negros presos num coque perfeito (os cabelos negros tinham algumas cãs, mas aquele resvalo do tempo dava-lhe apenas mais doçura, mais fragilidade, era como ver uma escultura deteriorada pelos anos).

Augusto Seara ficara absolutamente impressionado com aquela mulher. Deveria ter cinqüenta anos, mas talvez fosse essa uma idade imprecisa; Amapola Maestro era de uma beleza forte, levemente esmaecida pelo tempo, mas ainda audaz e angustiante. Seus olhos tinham um jeito vago de olhar, os cílios eram longos e muito negros, e davam-lhe uns encantos ímpares. No dedo anular esquerdo, usava duas grossas alianças de ouro; era viúva. (E o nome dela, ah, tão raro, nome de uma flor de cáctus. Peireskia amapola, uma planta da família das cactáceas, capaz de viver em lugares secos como os desertos. Sim, havia naquela mulher alguma coisa assim, que a capacitava para sobreviver com muito pouco, apesar da sua exuberância. Amapola Maestro era envolta numa espécie de proteção, num tênue manto que escondia a sua verdadeira substância. Daí vinha a vagueza daquele olhar azulado...)

Augusto Seara recordava-se de cada detalhe da visita de Amapola Maestro a sua galeria, pois ela encarregara-o de vender uma importante coleção de família. Um achado, uma preciosidade para qualquer admirador do mundo da arte. Com seu português falho, mas que lhe dava a elegância distinta dos estrangeiros, Amapola Maestro falara-lhe dos quadros. Eram mais de quarenta, a obra de uma vida. “São de Marco Belucci, il signore deve conhecer.” Sim, Augusto conhecia algumas poucas obras do pintor italiano que viera para o Brasil durante a Segunda Guerra. A maioria dos seus quadros estava na Itália, mas ele vira um, certa vez, na casa de um amigo diplomata, um pequeno retrato a óleo onde uma mulher nua chorava, apoiada a um muro de pedras. Nunca se esquecera daquela imagem, triste e desbotada de sofrimento, nem do rosto perfeito da mulher. “Eu não sabia que havia obras de Belucci ainda não negociadas, senhora Maestro.” Amapola Maestro sorrira, tristemente. E Augusto pensara ter visto lágrimas dentro daqueles olhos de safira, mas nada dissera então. “Sim, existem estas. São parte do espólio que ele me deixou... Marco Belucci era meu marido, signore Seara. Ele morreu há vinte anos, nunca ousei voltar à casa onde vivíamos, nem lá voltarei jamais... Porém quero vender estes quadros, quero dar-lhes um destino. É uma homenagem que faço à memória de Marco, a última homenagem.” Augusto Seara percebera a riqueza que se emanava de Amapola Maestro. Era certo que ela não tinha precisão de dinheiro, embora a venda daquelas obras pudesse arrecadar boa fortuna. “Há algum quadro que a senhora deseje para si?” Quando ele lhe fizera aquela pergunta, Amapola Maestro desviara o rosto, tristemente. “Não. Infelizmente, não se pode voltar no tempo, signore Seara. Venda todos os quadros, por favor. Eles me trariam muitas lembranças que prefiro esquecer... Não se deve ressuscitar um vulcão.” Augusto Seara anuíra, delicamente. Na sua profissão, não convinha entrar no terreno pessoal. Não havia obra de arte que deixasse de suscitar sentimentos nas pessoas envolvidas.

Haviam acertado tudo naquele único encontro. Augusto iria ao Sul, até a propriedade onde estavam as obras. Lá, os caseiros iriam recebê-lo e instalá-lo durante o tempo necessário para que ele catalogasse e organizasse o material de Marco Belucci. Depois os quadros iriam para a sua galeria em São Paulo.

 

A poeira fina levantava-se do chão em pequenas nuvens avermelhadas. Augusto viu algumas reses ao longe, pastando. Pensou na paisagem congestionada e inquieta de São Paulo. Pensou em um telefonema que não tinha dado antes de partir.

A voz do secretário arrancou-o das suas divagações em boa hora.

— Vai esfriar à noite.

— Sim, Zeca. Mas trouxemos agasalhos. Uns dias no campo lhe farão bem, meu amigo. Para apreciar a arte, é preciso apreciar o silêncio. Estar aqui é um aprendizado, você verá.

— Você quer dizer: estar aqui é uma espécie de férias — disse Zeca, rindo.

— Isso também, meu amigo. Mas é um aprendizado: você vai ver os quadros de Marco Belucci no seu hábitat natural. Aqui eles foram concebidos. Suas cores, sua alma, seus mistérios estão aqui neste lugar. A gente aprende muito sobre um pintor quando se conhece o seu estúdio. É muito diferente de ver um quadro numa galeria. É como entrar no quarto de uma mulher, caro Zeca.

— Você não tem entrado no quarto de muitas mulheres, ao que me consta.

— É verdade, meu amigo. Mas eu sei o quanto vale aquilo que é íntimo.

— Duvido que possamos encontrar traços de Marco Belucci nesta tal fazenda. Ele morreu há vinte anos, Augusto.

— Encarei isso como uma volta no tempo, Zeca.

Augusto Seara suspirou. Antegozava com um prazer quase sexual o momento de ver as obras de Marco Belucci. Sentia uma espécie de euforia que se traduzia como uma coceira na palma da sua mão direita, onde brilhava um grosso anel de ouro.

Zeca dobrou numa curva do caminho. Estavam chegando à propriedade Maestro.

 

A casa era imensa e decrépita, e ficava no alto de uma pequena colina. Parecia um velho animal esparramado ao sol, aquecendo seus ossos gastos. A pintura desbotara-se havia muito, mas percebia-se que as janelas tinham sido azuis em algum tempo mais feliz. Uma veneziana do andar superior pendurava-se pelas dobradiças como um enforcado.

Zeca guiou o carro por uma alameda cercada de arbustos. O gramado era bem aparado, asseio que contrastava com o resto da propriedade. Quem quer que cuidasse da casa dava atenção aos jardins. Aqui e lá, espalhavam-se árvores frutíferas que deixavam seus frutos caírem ao chão. Havia um cheiro de flores no ar. A varanda tinha as treliças descascadas, vasos de cerâmica empilhavam-se a um canto. Duas cadeiras de balanço já sem qualquer verniz pareciam apreciar a vista e o silêncio, como se estivessem ali desde sempre, fantasmas que o vento balançava nas noites invernais.

Zeca estacionou o carro em frente à casa.

— Realmente, Augusto, o tempo parou por aqui — disse ele.

Augusto Seara olhou ao seu redor, surpreendido. Havia uma casa como aquela no seu imaginário de menino, perdida em alguma temporada de férias da sua infância. Ergueu os olhos. No andar superior, uma pequena janela e uma clarabóia nasciam sorrateiramente do telhado de telhas gastas. A janela estava lacrada, presa por tábuas transversais. Augusto Seara considerava-se um homem sensível. A visão daquela janela pregada arrepiou-o.

— Marco Belucci suicidou-se, você sabia, Zeca?

— Não.

Acompanhando o olhar do marchand, Zeca ergueu os olhos para o pequeno sótão.

— Ele jogou-se da janela do seu ateliê. Tinha quarenta anos, então. Diziam dele que era um homem perturbado pela guerra.

Augusto Seara sentiu sua mão formigando outra vez. Quarenta telas esperavam por ele. Quarenta telas nunca vistas pelo mundo. Aquilo era uma espécie de prêmio. Sim, ele sabia que qualquer marchand daria sua alma para estar no lugar em que ele estava.

Uma mulher já idosa apareceu na porta da casa, secando as mãos num avental vermelho. Tinha cabelos grisalhos e um rosto afável. Na sua cintura larga, balançava um molho de chaves. Ela sorriu ao vê-los.

— Sejam bem-vindos, por favor. — Seus passos eram trôpegos quando se encaminhou em direção a eles. — Dona Amapola avisou da chegada dos senhores.

Augusto Seara adiantou-se em direção à varanda. Os velhos degraus rangeram com seu peso.

— Boa tarde, senhora Ana. Sou Augusto Seara, nós falamos ao telefone. Vim ver os quadros de Marco Belucci.

A mulher sorriu fracamente.

— Eu até me espantei, senhor. Desde a morte dele, nunca ninguém procurou pelo coitado, nem uma palavra, nada. Uma coisa tão triste... Nunca vou me esquecer da morte do senhor Marco. Alguns meses depois daquilo, todo mundo foi embora. A senhora Antônia e a filha, a esposa dele. — Fez um gesto abarcando tudo. — O senhor pode ver que isto aqui ficou abandonado. Até as vinhas, tudo esquecido. Mas eles nunca quiseram se desfazer da casa. Eu e meu marido ficamos aqui, cuidando de tudo como dá. — Suspirou. — Envelheci aqui e vou morrer aqui, assim Deus quer, tenho certeza.

Augusto Seara mudou o assunto:

— E os quadros?

— Estão no sótão, senhor. Era onde ele pintava. Nada foi mexido. A senhora embalou os quadros, passou um cadeado na porta e se foi. Isso já faz uns vinte anos... — Tocou no molho de chaves que balançava na sua cintura. — A chave está aqui comigo, senhor. Mas eu nunca a usei, conforme a ordem da patroa.

Zeca olhava ao redor. Augusto sugeriu que ele buscasse as malas no carro.

— Ficamos aqui uns três dias, no máximo.

A criada assentiu.

— Já preparei dois quartos. Temos conforto, não se preocupem Quando a senhora Antônia partiu, não levou quase nada. Umas pinturas, umas coisas de valor. O resto ficou tudo. — Mudou de tom: — Mas vamos entrar, por favor. Meu marido está pra cidade, volta à noitinha. Os senhores sintam-se à vontade, por favor.

 

A casa tinha um cheiro de coisas guardadas. Enquanto se encaminhava para o quarto que lhe havia sido reservado, Augusto farejava os recantos. A sala de leituras, com seus móveis desbotados, tinha as paredes nuas e marcadas. Um dia, quadros haviam estado ali, porém agora as manchas daquelas ausências eram como cicatrizes. Augusto tentou imaginar quais as obras que haviam ocupado aquelas paredes (sabia que a família de Amapola Maestro havia sido grande apreciadora da pintura italiana e francesa), mas sua mente vagou sem uma idéia que lhe parecesse razoável.

O corredor estava vazio, apenas alguns velhos retratos, que pareciam ter sido abandonados, jaziam, amarelecidos, nos seus pregos. Ali estava Amapola, uma jovem lindíssima, de longos cabelos negros, pele alva que a fotografia antiga ainda revelava. Misteriosos e assustadiços olhos azuis fitavam o observador atônito, como se também ela ficasse espantada pela sua própria e irretocável beleza. Augusto Seara reconheceu-a imediatamente.

— Era mesmo uma mulher maravilhosa — disse ele. — Como eu imaginava. Uma dessas mulheres que não existem mais hoje em dia, a não ser no cinema.

A caseira sorriu. Lembrava-se bem daquela moça com ares irreais que arrancava olhares de todos os homens da região. Lembrava também do amor que tinha pelo marido, e da tristeza que havia em seus olhos quando ela partira, viúva, depois daquela tragédia.

Entre os poucos retratos ali expostos, havia o de uma mulher alta e elegante, bela e severa. Augusto quis saber quem era.

— Esta é a senhora Antônia — indicou Ana. — Também era muito bonita. Muito séria, muito reservada. Tínhamos medo dela, é verdade.

Augusto notou, naquele rosto de mulher balzaquiana, um brilho fino e sutil, uma coisa afiada como um gume. Vinha dos olhos dela, aquele brilho. Eram olhos estáticos de fotografia, mas que mostravam o seu perigo. Olhos de um predador.

Augusto correu o olhar pelos outros retratos. Uma paisagem, provavelmente italiana, um homem elegante num jardim à beira-mar (havia nele alguma coisa de Amapola?). Um entardecer de verão, dois ou três sorrisos infantis amarelecidos pelo tempo. Porém aquele a quem procurava não estava ali.

— E Marco Belucci? — perguntou ele.

A caseira deu de ombros.

— Desculpe, senhor. Elas levaram os poucos retratos dele na época da partida. Aqui não há nenhuma fotografia do pintor.

— Na casa inteira? — indagou Zeca.

— Na casa inteira, senhor. A esposa dele levou tudo. Só ficaram os quadros, trancados lá em cima no velho sótão.

Na alma de Augusto nascia uma curiosidade cada vez maior pelo pintor italiano. Aquela casa tinha tristeza incrustada em suas paredes, tristeza era o que cimentava os tijolos que a erguiam. Não, não era somente o abandono em que tudo estava por ali que lhe trazia aquela sensação, nem vinte nem oitenta anos haveriam de varrer dali a tristeza que Augusto podia farejar pelos cantos. Uma coisa trágica gritava nas quinas da casa, vibrava como um eco, rangia nos assoalhos, balouçava-se nos lustres. Augusto recordou a janela do sótão. Marco Belucci havia se suicidado. Talvez alguma coisa dele ainda vagasse por ali, por aquela casa esquecida pelo tempo. Talvez fosse mesmo aquela morte que havia marcado o lugar. E, no entanto, ele sabia bem, Marco Belucci e Amapola haviam sido felizes ali. A mulher em seu escritório tinha dentro dos olhos alguma coisa parecida com saudade, um amor calcificado pelo tempo que lhe escurecia os olhos violáceos. Augusto Seara admoestou-se silenciosamente. Estava ficando muito sentimental, talvez fosse a idade, talvez fosse o fim do seu último relacionamento. A verdade é que a sua vida entrava agora numa espécie de outono, e ele via algo além em tudo. Talvez aquela casa fosse apenas uma velha mansão e mais nada, com seus salões abandonados pelas gentes, com suas sombras silenciosas e quedas.

Irritado consigo mesmo, Augusto pediu que Ana prosseguisse a visita pela casa, e os três seguiram pelo corredor, subindo as escadas para o andar de cima, onde ficavam os quartos. Ana indicou para Zeca um pequeno aposento com janelas cortinadas em motivos florais. Ao contrário do resto da casa, ali grassava um cheiro de produto de limpeza e de perfume. O quarto de Augusto Seara era o último do corredor. Um quarto em mogno, sereno e austero. Augusto não gostou dele ao primeiro olhar, porém, por uma questão de elegância, nada disse.

— Este foi o quarto de D. Antônia — disse a criada. — Eu o arrumei para o senhor. Há um banheiro também.

Augusto olhou ao redor, sentindo-se oprimido naquela alcova sem adornos. Havia uma estranha solenidade no quarto sisudo e quieto. Seus olhos treinados logo perceberam que uma das paredes ainda tinha as manchas de antigos quadros. Aquilo o angustiava.

— Desculpe a curiosidade, mas o que aconteceu com a senhora Antônia Maestro? Nunca mais esteve aqui?

— Não, senhor. É muito triste. Ela morreu faz um ano. Dizem que morreu louca, que falava com o pintor, o genro. Uma sobrinha minha, que seguiu com ela para a Itália e lá trabalha como criada até hoje, foi que me contou isso, numa carta. Quanto a esta casa, ficou aqui. A filha manda dinheiro para as despesas, porque não quer se desfazer da propriedade onde o marido morreu.

— Compreensível — retorquiu Augusto.

Augusto caminhou pelo quarto até a janela. Escurecia mansamente lá fora, e começava a soprar uma brisa fria. Em algum lugar daquelas terras, Marco Belucci fora enterrado. A alma dele, no entanto (ele sabia, ele tinha certeza), estava naquele sótão, estava naqueles quadros. Augusto Seara sentiu um arrepio correr por sua pele. Seria frio ou ansiedade? De repente era como se estivesse num filme de suspense. A criada fez menção de sair, e ele agradeceu o auxílio.

Quando se viu sozinho no quarto, Augusto abriu a pequena mala de roupas que trouxera e começou a guardar tudo no armário — era um metódico com estas coisas, somente com as malas desfeitas é que se sentia à vontade. Um solteirão empedernido, dizia dele Luíza, a governanta e faz-tudo que cuidava do seu apartamento de cobertura em São Paulo. Sentiu saudades de Luíza, talvez ela pudesse dar àquele quarto ares mais acolhedores. No entanto Luíza era uma romântica, àquela altura estaria já chorando de pena daquele amor trágico: um pintor suicida, uma beldade solitária, uma casa vazia para sempre. E não tiveram filhos...

Augusto abriu sua valise Gucci e remexeu numa pilha de papéis — procurações, documentos de arte, contratos. Ali estava tudo o que haveria de precisar. Mais tarde, antes de voltar a Porto Alegre, chamaria uma transportadora para pegar o material, embalando-o devidamente para a viagem de caminhão. De uma certa forma, era como se estivesse ali para fazer um favor a Marco Belucci. Tudo o que ele deixara de seu ficara escondido naquela casa por mais de vinte anos. Era quase cruel, aquele esquecimento. O trabalho de uma vida, escondido dos olhares do mundo... Uma espécie de exílio que, finalmente, com a sua ajuda, iria acabar.

 

O dia amanheceu cinzento e pesado. Havia um silêncio profundo em todas as coisas, e Augusto Seara agradeceu por ele. Vestiu-se com esmero, como sempre. A camisa de seda sob o pulôver de cashemere, as calças de lã perfeitamente vincadas, os sapatos italianos que ele dizia a Zeca serem os mais elegantes do mundo (mas Zeca tinha tanto ainda o que aprender!). Deu uma olhada no quarto onde dormira mal. Era como se alguém houvesse estado ali durante a noite, e muitas vezes ele acordara assustado e tenso, embora ansiasse por uma madrugada tão silente como aquela havia tempos. As madrugadas em São Paulo eram sempre agitadas. Devia ter sido o colchão. Não gostava de camas estranhas. Não gostava de camas onde velhas damas mortas já haviam dormido seus sonhos esquizofrênicos, mas aquilo tudo fazia parte da viagem. Aquilo tudo fazia parte do silêncio.

Augusto abriu uma gavetinha do criado-mudo ao lado da cama e tirou dali uma chave. O marido de Ana, um italiano bronco e monossilábico, havia-lhe dado a chave do estúdio na noite anterior, após o jantar (era o italiano o responsável pelo jardim bem-cuidado que tanto o impressionara em oposição à casa). Augusto guardou no bolso da calça a chave do mausoléu de Marco Belucci, sentindo-se ansioso, de repente. Depois saiu do quarto, apressado.

Encontrou Zeca tomando o café da manhã na cozinha deserta. Zeca era um jovem de vinte e três anos, magriço de carnes, com trejeitos femininos e grandes olhos azuis inocentes.

Zeca derramou um sorriso para o patrão.

— Onde está Ana? — indagou Augusto.

— Na horta — disse Zeca, alegremente. — Vou engordar aqui, este pão está delicioso. E dormi bem.

— Eu dormi mal. Mas isso não importa, nem importa se você engordar, o que só lhe faria bem, Zeca. — Mudou de tom enquanto se servia de uma xícara de chá. — Onde estão seus papéis e canetas? Quero começar logo o trabalho. — Encostou as mãos na superfície morna da xícara de porcelana. — Sinto que tem coisa boa lá em cima, caro Zeca. Coisa muito boa. Esta casa guarda um tesouro. Ou uma tragédia. Ou os dois. Há um cheiro estranho no ar que circula por aqui.

Zeca engoliu seu último naco de pão.

— A sua rinite lhe diz isso, Augusto?

— A minha rinite e a minha alma, Zeca. Uma mulher louca, uma mulher bela e um pintor suicida. Estamos muito bem, é uma bela combinação. Nem imagino o que aquelas telas podem estar guardando... Agora vamos, amigo Zeca.

Augusto largou a xícara sobre o pires. O rapaz pegou sua bolsa de trabalho e levantou-se da mesa.

— Eu trouxe um estilete. Os quadros devem ter sido embalados de algum modo, não é?

— Agora é que vamos ver, meu amigo.

Ambos seguiram para o corredor silencioso. Bem ao fundo, havia uma portinhola que dava numa escada externa. Subiram por ela, pisando nos degraus estreitos que rangiam suavemente, e chegaram numa espécie de vestíbulo. Augusto sentia seu coração bater forte. Era como entrar na cripta mortuária de um faraó.

A chave arranhou na fechadura e emperrou. Fazia muito, muito tempo que ninguém entrava naquela peça. Na soleira da porta, cresciam teias de aranha.

— Estes quadros podem estar em péssimas condições — disse Zeca.

— Não estão. Amapola Maestro sabia como embalá-los. Ela foi casada com o pintor deles por vinte anos. — Augusto forçou a chave mais uma vez. — Ela não nos mandaria até aqui à toa, Zeca. Fique tranqüilo e faça uma força para abrir essa porta. Você é mais jovem do que eu, afinal de contas.

Zeca deu um empurrão na porta, que se abriu com um rangido assustado.

Descortinou-se em frente a eles a peça ampla e suja de pó, de paredes amareladas, aqui e ali ainda tintas de velhos riscos feitos por Marco Belucci nos seus momentos de inspiração. Duas clarabóias empoeiradas deixavam entrar na peça a luz baça do dia nublado. O pó que pairava no ar tinha brilho, parecia purpurina. Havia um cheiro de mofo exalando das paredes.

— O que nos diz a sua rinite, Augusto? — perguntou Zeca, tossindo.

— Que achamos um tesouro, meu amigo.

Entraram silenciosamente no estúdio abandonado. O tempo parecia condensado entre aquelas paredes. Augusto Seara postou-se no centro da peça e olhou calmamente ao redor. A um canto, uma chaise longue coberta de pó tinha uma mola estourada que já havia rasgado o seu forro cor de palha, e saltava para fora como um osso descarnado. Velhas paletas ainda cheias de crostas coloridas estavam espalhadas pelo chão, e tubos de tinta seca amontoavam-se numa caixa de madeira envernizada. Era como se ontem alguém estivesse ali trabalhando e houvesse deixado tudo desordenado, na pândega da inspiração. No entanto havia se passado muito tempo sem que a arte nascesse entre aquelas paredes, e o pó era o sinal daqueles anos esquecidos. Quem quer que houvesse entrado ali depois da morte de Marco Belucci não ousara tocar em nada, a não ser nos seus quadros. Augusto imaginou que, se fechasse os olhos, poderia ver o pintor entrando pela porta, com suas roupas de trabalho manchadas de tinta, com seus olhos alvoroçados de inspiração, e talvez Amapola, sua musa, estivesse-lhe ao encalço, rindo, brincando, embelezando-lhe a vida. No entanto nada havia de vivo ali, tudo era pó e silêncio mofado. Como se, num átimo, aquele estúdio tivesse sido abandonado para sempre e, de santo, passasse a ser considerado profano.

Augusto Seara gostou da imagem que fez. Santo e profano, talvez estivesse roçando esses dois conceitos, mas ainda não sabia bem. Não sabia de nada, até que visse as telas de Marco Belucci. Aí então, poderia ter uma idéia daquele homem, daquele lugar estranho, daquele amor que acabara em suicídio. Augusto Seara voltou a concentrar-se no ambiente. No outro canto, uma pilha de telas em branco era agora esconderijo de insetos. Pincéis estavam espalhados pelo chão. O piso de parquê tinha algumas falhas. Uma das clarabóias estava quebrada.

— Chove por ali — indicou Zeca, mostrando o vidro esfacelado. — Será que a água estragou os quadros?

Augusto espirrou por causa da poeira. Tirou um lenço branco do bolso da calça e assoou o nariz.

— Os quadros estão lá, meu amigo — disse ele. — Siga-me.

Havia uma saleta contígua. A porta que levava a ela não estava trancada. (Amapola Maestro tinha lhe falado daquele pequeno depósito, que tinha boas condições de temperatura e que era protegido da luminosidade.) Augusto Seara adentrou a peça, completamente escura.

— Você tem uma lanterna, Zeca?

O ajudante tirou uma pequena lanterna da sacola que trazia ao ombro. Augusto acendeu-a. O foco de luz fraca e amarelada foi direcionado para as paredes. Havia muitos embrulhos sobrepostos cuidadosamente, formando dez fileiras de quadros. Estavam separados por tamanho, porém a maioria deles era grande, e havia um painel que Augusto calculou ter uns dois metros por dois.

— Minha nossa! — disse Zeca.

— Marco Belucci era um homem inspirado...

Augusto caminhou cuidadosamente até onde estavam os quadros, embalados em caixas de madeira. Uma barata passou correndo por entre seus pés e Augusto conteve a custo o seu pânico. Não era definitivamente um momento para ser estragado por um inseto repelente como aquele.

Zeca parou no meio da pequena peça.

— O que fazemos agora?

— Nos ajoelhamos e rezamos, Zeca. Isto aqui é a descoberta de uma vida.

Augusto Seara sentiu os olhos úmidos de lágrimas. Passou levemente a mão pela madeira empoeirada de uma embalagem. Havia alguma coisa escrita ali. Augusto aproximou o foco de luz da lanterna e leu, escrito numa letra apressada: Âmbar amapola. Seus dedos correram pelas letras feitas a pincel. Eram como cicatrizes. Augusto fechou os olhos. Marco Belucci tinha morrido havia vinte anos; vinte anos, tempo que aqueles quadros estavam ali, escondidos do mundo, como se fossem pecado, como se fosse milagre.

Augusto se recompôs dos seus arroubos sentimentais.

— Zeca, procure a caseira. Peça vassoura, um balde e um pano. É preciso limpar este estúdio. Não podemos abrir estes quadros no meio da sujeira. — Sorriu no escuro. — Você é bom de faxina, Zeca?

— Férias, não é? Você disse que isto aqui seria uma espécie de férias.

Zeca saiu da saleta resmungando.

 

O estúdio estava finalmente livre do pó e das teias de aranha. As nuvens haviam se desfeito no céu, e agora entrava pelas clarabóias uma luz suave e dourada. O primeiro quadro havia sido trazido por Zeca, e agora estava ali, no meio da peça, ainda escondido por seu véu de madeira, como uma noiva que aguarda no altar.

Augusto Seara leu o nome escrito na caixa de madeira: La Abazzia di San Fruttuoso. Então, encheu-se de coragem e disse:

— Pode abrir a caixa, Zeca.

 

Depois do barulho das tábuas de madeira sendo forçadas, dos pregos enferrujados rolando pelo chão, das lamúrias de Zeca (que só queria aprender a ser um marchand), foi que a tela ressuscitou do seu esquife, intacta, com seu colorido ardente e cheio de luz. Era um quadro grande, onde se via a catedral italiana do século XI, debruçada sobre o mar azul da Ligúria. Tudo ali resplaIndecia de brilho e de vida. Pelos caminhos pintados na tela, estavam as flores, sob o céu de um anil deslumbrante, sobre o mar verde e plácido com suas embarcações ao longe. E havia uma menina de vermelho que olhava o mar. Os olhos da menina não tinham pupilas.

— Este azul... — disse Augusto —, este azul é único.

— Estou emocionado.

— É para estar, Zeca, é para estar. Quantas pessoas puseram seus olhos sobre este quadro antes de nós? Provavelmente apenas Marco Belucci e a pessoa que embalou estas peças, Amapola. Isso é impressionante. — Caminhou ao redor da tela, enquanto sentia os pêlos do seu braço arrepiarem-se sob o tecido da camisa fina. — Vamos erguer o quadro, Zeca, encostá-lo à parede. Quero medi-lo e fazer algumas anotações.

Nesse momento, bateram na porta. Era Ana, avisando que o almoço seria servido.

— Estou com fome — disse Zeca. — Estou sempre com fome.

Augusto não sentia qualquer apetite. Queria ficar naquele estúdio para sempre, surpreendendo-se com as telas que renasciam do escuro de tantos anos.

— Vá à frente, Zeca. Eu vou logo. Diga que estou muito ocupado.

Quando o ajudante saiu, Augusto Seara ergueu cuidadosamente o quadro, para acomodá-lo rente à parede. Viu, num canto da obra, a assinatura trêmula e inquieta de Marco Belucci. “Era um homem atormentado, certamente. Mas que talento, que cor, que vida.” Resolveu então olhar, no avesso da tela, a data de execução da obra. Segurando o quadro pela madeira de sustentação superior, Augusto Seara deu a volta na peça, ficando então de frente para o pano liso, engomado pela tinta, onde encontraria os dados que procurava.

E foi então que seu coração começou a bater acelerado. No avesso da tela não havia apenas uma data, mas um texto inteiro, escrito em italiano numa letra ansiada e proporcional, de vogais cheias, aqui e ali angustiada, uma letra que era um animal acuado, que fugia e se escondia e tornava a aparecer, às vezes num borrão negro, às vezes bem desenhada e delineada pelo traço elegante do pincel, a transcrição de uma voz que contava coisas esquecidas no tempo, talvez jamais ouvidas, talvez jamais imaginadas.

— Meu Deus! O que é isso?

Augusto Seara tirou seus óculos do bolso e colocou-os rapidamente. Ele lia muito bem em italiano, língua na qual começara a ser alfabetizado. Com a ajuda das lentes, seus olhos puderam decifrar o que estava escrito no avesso da Abazzia di San Fruttuoso. Era um texto de Marco Belucci, uma espécie de narrativa, como a narrativa intimista de um diário.

— Um pintor que escrevia — gemeu Augusto, emocionado. — A tela era a sua página.

Pelas clarabóias entrava a luz cheia do meio-dia serrano. Augusto ergueu os olhos para o céu, um instante. Já não havia mais nuvens cinzentas, apenas um azul esmaecido e doce, diferente do azul agudo e luminoso do quadro de Belucci. Augusto Seara virou a pintura para a parede, e tendo o avesso da tela ante seus olhos, trêmulo, começou sua leitura.

 

Naquela tarde de verão, foi que eu a vi pela primeira vez. A menina de Botticelli. Seus olhos azuis eram mais azuis do que o mar que escondia o Cristo Degli Abissi, seus cabelos negros eram como o céu das noites sem lua que eu via da minha janela quando perdia o sono, desde muito pequeno as noites foram para mim o suplício das horas mortas à espera do sono. Naquela tarde, havia algo de mágico e de íntimo nela, mas eu não sabia nada então. Era apenas um menino do porto, o filho de Angélica; do mar, onde eu estava, apenas via-lhe a beleza, a graça, o porte de princesa, como o daquelas princesas das histórias que Giordano contava quando vinha estar conosco. Havia com ela uma ama, e estavam ambas debruçadas sobre um pequeno mirante. A ama, de cenho franzido, segurando a menina pela mão, talvez não apreciasse a perfeita tarde junina, também não tinha a compleição daqueles que amam as coisas marinhas e os seus cheiros. Sim, aquela criatura séria, rígida, vestida de branco, pareceu-me uma assombração ao lado da menina, que era tão doce e tão cheia de vida e de cor... Meu pai nunca me havia falado dela, e eu a descobri naquela tarde, por um descuido do destino, a menina de Botticelli, debruçada sobre o mar. Seus pés calçados, que não tocavam na areia do caminho, me enterneceram. Talvez ela nunca tivesse nadado solta nas águas, como eu fazia então. Talvez aquela ama vestida de branco acompanhasse até mesmo os seus sonhos, e sonhos são coisas tão íntimas como o banho de mar... Ah, sim, tive pena dela. De longe, com seu vestido vermelho, era como um animalzinho numa fina coleira. Quando me viu, por um descuido dos seus olhos que perseguiam gaivotas, ela sorriu. Tinha um sorriso perfeitamente triste. Morri de vergonha e espanto com aquele flagrante (eu ainda era um menino que tinha medo do outro sexo); então mergulhei no mar e saí nadando. Eu nadava muito bem naquela época, Giordano fazia questão de nadar comigo. Queríamos achar o Cristo Degli Abissi, nós dois, numa tarde de verão. Nunca achei a estátua protetora dos marinheiros que navegavam aquelas águas, mas encontrei Amapola e tudo que vivi desde então ficou marcado por esse nosso primeiro encontro... Lembro que nadei um pouco, afastando-me da costa e dos caminhos da Abazzia. Quando ergui os olhos outra vez, o rosto salgado de mar, ela já não estava mais lá, tinha partido. A ama talvez a tivesse levado embora para algum compromisso. As crianças ricas sempre têm horários rígidos, Giordano tinha me dito isso para que eu não ambicionasse a riqueza. Depois daquela primeira vez, fiquei muitos anos sem rever Amapola, embora a procurasse insistentemente pelos caminhos que levavam à Abazzia. Somente quando meu pai morreu, foi que eu a reencontrei. Mas nunca me esqueci daquela tarde em que, mergulhado nas mornas águas da Ligúria, a vi pela primeira vez... Amapola.

Marco

 

Augusto acabou de ler. Passou a mão pelos olhos úmidos. Que fresta no tempo era aquela pela qual ele acabara de adentrar, visitando uma infância tão distante e desconhecida, o primeiro amor de um menino? Que emoção se havia criado em seu espírito, pois seria capaz de ajoelhar-se, submisso, para poder continuar a ver o que havia visto! Uma tarde de verão na Ligúria, e Amapola, ainda tão menina, mas já o amor de Marco Belucci, já o seu futuro. Correu os olhos mais uma vez sobre as frases escritas na tela. Haveria uma continuação para aquilo? Haveria outros textos, ordenados ou não, em que o pintor narrava a sua vida? Em todos os seus anos de trabalho, em todas as suas viagens, Augusto Seara nunca vira nada parecido. Sentou-se no chão, segurou a cabeça entre as mãos. Havia uma emoção crescendo dentro do seu peito. E havia uma voz, morna, muito sutil e distante, que soprava nos seus ouvidos. Marco Belucci confessava para ele os segredos da sua vida. E que segredos seriam? Certamente as revelações de um homem atormentado a ponto de atirar-se da janela do seu próprio estúdio. Um homem bonito. (Sim, tinha ouvido dizer que Marco Belucci fora um homem de grande beleza.) Um homem apaixonado, cuja visão de uma menina perseguira-o para sempre. Amapola Maestro, com seu colar de voltas de pérolas. Com aqueles olhos azuis tristes e cheios de segredo. Que amores teriam eles vivido?

Uma batida na porta interrompeu-lhe os pensamentos.

— Augusto?

Era Zeca.

— Já estou indo — respondeu.

Augusto levantou-se rapidamente. Do lado de fora do estúdio, o ajudante esperava-o. Augusto olhou-o com uns olhos cheios de espanto.

— Aconteceu alguma coisa com a tela?

— Com a tela nada, Zeca. Aconteceu comigo. Porém depois conto pra você. Agora vou almoçar. — Seus olhos brilharam. — Teremos muito trabalho, meu caro Zeca. Aconteceu um milagre aqui.

Zeca aquiesceu, sem entender bem as palavras de Augusto. Disse que iria para o quarto, descansar um pouco. Augusto prometeu procurá-lo mais tarde, e desceu as escadas que levavam à cozinha. Sua alma ia cheia de espanto. Que amor era aquele que deixava suas pegadas atrás de uma tela? Sentia-se um eleito e, ao mesmo tempo, um bisbilhoteiro. Claro que estava naquela casa com o consentimento de Amapola Maestro, mas ele pensava era em Marco Belucci, o homem que pintara aquelas telas, escrevendo-lhes no verso a sua vida, numa espécie de desabafo. A que olhos, a que alma eram destinados aqueles textos?

Quando Augusto Seara chegou à copa, a mesa estava posta com louças finas e copos de cristal. Parada ao lado da mesa, Ana esperava por ele, cheia de subserviência. Augusto Seara ocupou seu lugar e ficou mexendo nos talheres de prata, ainda com o espírito atarantado por demais para que pudesse prestar atenção à sua fome ou ao cheiro bom que subia das terrinas.

 

Amapola azul.

Augusto leu o nome do quadro com os olhos ávidos. Sentiu a excitação espumar dentro dele. A expectativa do que iria encontrar escondido naquela tosca caixa de madeira encheu-o de euforia.

— Vamos abrir logo isso, Zeca!

Era uma caixa grande, 150 x 200.

— Ele gostava de grandes telas — disse Zeca, forçando a madeira com um pé-de-cabra.

— E ele tinha grandes segredos, meu amigo.

(Havia-se decidido por contar a Zeca sobre a narrativa de Marco Belucci que estava na parte de trás da Abazzia di San Fruttuoso, e deliciara-se com o espanto no rosto do rapaz ao ler para ele a carta que Belucci deixara escrita no verso da tela.)

Zeca fez um pouco de força e a madeira cedeu com um estalido seco, revelando o papel que envolvia o quadro. Em poucos segundos, com a ajuda de Augusto, Amapola azul estava encostada à parede do estúdio, recebendo, depois de tantos anos de escuridão, a claridade dourada que entrava pelas clarabóias.

 

Por que conto isso agora? Talvez porque, hoje, eu pinte apenas para ter este lenço esticado, o avesso desta tela, a esperar pelos meus segredos como um velho amigo que não faz quaisquer julgamentos, apenas ouve meus pecados com paciência, e, tendo-os escutado, cala-se para sempre. Um por um, meus quadros dão-me as costas para que eu possa desabafar aquilo que pessoa nenhuma poderia jamais conhecer... Sim, aqui estou, neste campo, neste país tão longe da minha Ligúria, daquele passado cheio de paz que outrora me cingia com seus braços langorosos. Tão longe dos meus sonhos de ser um grande pintor...Tudo isso, por paixão. Amapola foi causa e conseqüência do que sucedeu comigo. Amapola, o meu destino e o meu desatino... Mas, deixando de lado esse nome que sempre teima em escapar dos meus lábios, das cerdas do meu pincel, vou narrar tudo o que me aconteceu desde o dia em que selei meu destino, até hoje, tantos anos depois. Foi aqui no Brasil, já solitário e talvez doente (doente desse amor mais do que tudo), que adquiri o capricho de escrever no avesso das minhas telas. Porque não tenho com quem falar, e também não tenho amigos. Os meus segredos, eu não os contaria a Amapola; os ouvidos da mulher amada não foram feitos para os desabafos, mas sim para as palavras de amor. De qualquer forma, Amapola nunca poderia ouvir estas tristes confissões, sob pena de seu amor por mim transformar-se no mais cruel repúdio que uma mulher já sentiu por um homem... Porque eu não valho nada, eu sou lixo, escória, porcaria — e essa talvez seja toda a verdade que eu tenha a dizer.

No final do verão daquele ano de 1938, fugi da Itália. Para chegar até o Brasil, saí do sobrado amarelo de minha família na mais profunda das madrugadas, levando de meu apenas uma velha fotografia e algumas roupas, a maleta com as tintas e um peso dentro da minha alma. Mas já então não me sobrava escolha. Eu amava Amapola e passaria por cima de tudo para ficar com ela, até mesmo esqueceria (como esqueci) a minha mãe e meus irmãos, a minha terra e as minhas crenças. Na Itália, dormi com Amapola em sua própria cama. Antônia soube exatamente quando isso aconteceu, talvez um ardil seu para que eu não desistisse do desatino de acompanhá-las à América. Parti sem um adeus para minha família. E (não devo furtar-me de dizer isto) parti feliz porque iria viver com Amapola para sempre, num lugar tão distinto que nosso pecado perderia seus contornos, transformando-se (ah, eu quisera tanto...) apenas num amor como outro qualquer, tão digno e puro como outro qualquer, um amor que merecesse ser vivido até o seu fim, crescendo e fenecendo de si mesmo.

Antes de abandonar a minha casa, deixei sobre a mesa da cozinha o dinheiro que Antônia me tinha dado pelo retrato que ela me encomendara quando nos conhecemos, o retrato de Amapola. Angélica, minha mãe, deve ter encontrado esse dinheiro na manhã seguinte, sem uma carta, sem um adeus, apenas as notas empilhadas ordenadamente. Aquele dinheiro serviria para muitas coisas — era, então, um tempo em que uma família judia deveria estar preparada para fugir discretamente, usando todos os seus conhecimentos, toda a influência que pudesse para atravessar a fronteira. Ao encontrar a soma que lhe deixei, Angélica deve ter sabido de tudo; alguém haveria de herdar a continuação do pecado cometido por ela e por Giordano; herdei-o eu (acredito que esse tipo de tragédia amorosa não se perde com o tempo, ao contrário, segue a descendência do sujeito amoroso por muitos e muitos anos, talvez para todo o sempre). O filho bastardo largava a família e fugia com uma moça rica e proibida sem ao menos dizer adeus. Mas Angélica conhecia o suficiente da vida para não se espantar com seus cruéis caprichos, ela também havia ferido muitas pessoas por amor, e por amor vivera estigmatizada, era a outra, a pecadora, a puttana.

A guerra estourou pouco depois da minha partida. Il Duce, unido a Hitler, acabou com a paz italiana. Os judeus começaram a ser perseguidos para, logo depois, serem recolhidos aos campos de concentração, onde a maioria deles veio a morrer. Não sei o que sucedeu a minha mãe e meus irmãos, deles nunca mais tive notícias. As necessidades e os horrores que passaram nem sequer arranharam a minha existência. Eu mesmo escapei de morrer como um cão, graças ao tanto de loucuras que cometi; porém a vida dos meus familiares até hoje me pesa, junto com o meu outro pecado, o maior de todos, e muitas vezes, durante minhas madrugadas de insônia, ouço a voz de Angélica a chorar, pedindo-me ajuda, trancada em algum lugar tão horrível como o próprio inferno...

Enquanto o mundo digladiava-se e ardia, eu vivia o meu amor. Já no navio, a cama de Amapola tornou-se oficialmente também a minha (vivíamos como casados, e como casados era que Antônia nos apresentava aos outros passageiros). Durante a viagem, passei a viver os meus dias à espera das noites. Quando havia sol e os passageiros reuniam-se no tombadilho para falar da guerra iminente, da América, das futilidades que os ricos cultivam com aquele seu orgulho trôpego, eu isolava-me de todos. Tinha medo de que vissem o meu grande pecado estampado em algum sorriso, tinha medo de que ele vazasse por alguma frase, fluido e insidioso, tinha medo de que me desmascarassem e me jogassem ao mar, eu, o maior transgressor de todos. (Foi desse tempo que passei a temer as sotainas e os rabinos.) Eu inventava desculpas para Amapola a pretexto de não me misturar com os outros, pegava meus cadernos e tentava desenhar esboços: o mar, as andorinhas, duas mulheres recostadas na amurada num final de tarde avermelhado e sereno. Os traços, porém, não saíam do meu lápis como outrora; vinha sempre Amapola, seu corpo tépido, ora deitada de bruços, os seios alvos, ora em pé, em algum canto do nosso quarto, olhando-me com seus grandes olhos violáceos, com aquela eterna interrogação em suas retinas de animal raro, aquele estranhamento de preia assustada. Já então estava eu enrodilhado nas correntes da minha segunda prisão: essa ânsia de retratar Amapola sempre e sempre, uma vez após a outra, pela manhã, ainda serena, nua e suada do amor, às madrugadas, dormindo seu sono silente, andando pelo campo, sorrindo para mim, penteando seus cabelos negros, eternamente ela em todas as suas nuances. Enfeitiçados, minha alma e meus pincéis. Era durante a noite que eu vivia, como um vampiro. Longe dos passageiros, longe de Antônia, longe de tudo. Perto apenas dela, da sua carne, mergulhado no seu gosto, no mais íntimo perfume do seu corpo, enrodilhado nos seus cabelos. Eterno, então, enquanto dela. E assim dormíamos, abraçados um ao outro; Amapola, feliz, saciada; eu, beirando os precipícios do alvorecer, temendo o sol que me traria um novo dia, o tombadilho outra vez, as pessoas, suas inquisições cheias de tédio e de curiosidade, e o meu erro, que a luz do sol tornava sempre mais grave e mais pungente e mais atroz. E foi depois de muitos amores esboços medos gozos gritos, que chegamos ao Brasil, ao sul do Brasil, no porto de Rio Grande. De lá, fizemos a travessia que nos trouxe até aqui, nesta casa, neste campo coberto de videiras pelas quais eu conto o passar do tempo — a plantação, a vindima, o vinho... Antônia comprara uma grande extensão de terra e havia muitos italianos lavorando para ela já quando chegamos (alguns deles eram judeus fugidos da Europa, a esses, eu não podia encarar, porque a vergonha tolhia meus olhares). Bem no meio da propriedade de Antônia, ficava a casa, grande, ampla, que ela mandou aumentar e encher de elegâncias, e que depois foi pintada de branco, cercada de flores, forrada de tapetes caros que vieram da Itália. No alto da casa, abandonado e pobre, havia este sótão, que eu limpei e pintei sozinho, onde me escondo, onde mais ninguém pode entrar, nem ela, Amapola, nem Antônia. Aqui, o meu reduto, o meu purgatório.

Marco

 

Augusto Seara acabou sua leitura em voz alta. Parado a sua frente, Zeca tinha o rosto congestionado pela emoção. Havia uma angústia quase palpável no ar pulverizado de luz.

— O que havia entre Marco Belucci e Amapola que tornava tudo tão misterioso? — perguntou Zeca.

— Havia esse amor tão grande que chegou a levar o nosso amigo à morte. Depois desse desabafo, Zeca, chego à conclusão de que Marco Belucci não suportou amar esta mulher.

Augusto deu uns passos pelo estúdio. A luminosidade do campo inundava a sala, derramando sobre os poucos móveis velhos o seu esmalte dourado. Era como se estivessem num cenário, num lugar protegido dos anos, onde os segredos de Marco Belucci permaneciam intactos e ainda pulsantes. Um judeu fugido da Itália, como tantos outros, mas que abandonara mãe e irmãos ao jugo nazista. Um homem conturbado e cheio de remorsos, que pintava para não fenecer, e que tinha tanto talento, tanto brilho, e que tinha tanto medo. Augusto postou-se em frente ao quadro, pensativo. Aquele homem temia o quê? Que amor tão insidioso, tão cabal era o que o unia a Amapola? Não, nos tempos de hoje já não existem mais amores como este, onde a vida é medida pelo que se sente. Somente na guerra, onde se vivia e morria por sorte ou coragem, é que se podia amar assim. E o mundo era outro, não essa coisa apressada de hoje, em que medimos o tempo pela construção de um arranha-céu. Cimento e velocidade, apenas isso.

Augusto pediu ajuda a Zeca; viraram a tela novamente, escondendo a carta de Belucci. A pintura apareceu em toda a sua excelência, enchendo o ambiente de cor.

Augusto tentou dar à sua voz um tom informal. Apesar de tudo, precisava trabalhar. Cimento e velocidade, lamentavelmente.

— Escreva Zeca: Amapola azul. Óleo sobre tela, 1957. 130 x 180. Uma mulher nua e azul, talvez feita de gelo. Erótica e triste, a nossa mulher em cobalto. Seus olhos não têm pupilas, e é como se ela não pudesse ver. Pintura expressionista de uma grande intensidade cromática, que passa pelos vermelhos e vai até o branco. Já da última fase da vida do artista. Está anotando, Zeca? — O ajudante aquiesceu. — Agora ponha uma observação, por favor. — Sua voz mudou de tom. — Ponha entre parênteses, Zeca. Percebo que Marco Belucci tinha um grande apreço por esta tela. A moldura foi talhada à mão com grande cuidado e perfeição. Diferente da moldura da Abazzia di San Fruttuoso.

 

Augusto andou pelo estúdio, seus passos eram inquietos; aqui e ali parava para observar objetos esquecidos: um velho abajur de cúpula verde, uma caixa de cigarrilhas coberta de pó, um lenço sujo de tinta, a caixa de madeira dos pincéis, todos eles já duros e velhos, quase sem cerdas. Caminhou até a janela que dava para a frente da casa. Estava lacrada por fora, de modo que não se podia olhar a vista. Augusto ficou imaginando o que poderia ser visto dali, o que os olhos de Marco Belucci tinham apreciado por tantos anos, enquanto sua alma sofria, enquanto ele pintava a mulher cobalto sem pupilas, enquanto mastigava seu passado. Augusto forçou a janela.

— Algum problema, Augusto?

— Nada, Zeca. Apenas me lembre de pedir que abram isto aqui. Quero ver a vista que se descortina dessa janela. — Suspirou fundo. — Depois que você catalogar a tela, vá ao telefone que fica na sala de visitas e passe as medidas das caixas para essas telas já abertas. Assim, adiantamos o trabalho do marceneiro. Eu vou descer e caminhar um pouco antes que escureça. Estou precisando disso, meu amigo.

 

O entardecer no campo é de um silêncio dourado e tênue, volta e meia rasgado pelo grito de um quero-quero. Há uma lentidão em tudo e em todas as coisas, enquanto o sol escorrega sem pressa no céu, há um brilho oblíquo que alonga as sombras e torna o mundo mais bem-acabado. Uma tela, pensa Augusto, pisando o gramado que se estende ao redor da casa.

Augusto Seara caminha a esmo por algum tempo, depois se senta à sombra de um umbu de grande copa. Phytolaccadioica. (Antes de dedicar-se à arte, estudou botânica por algum tempo.) Gosta de estar ali, sob a folhagem densa daquele velho umbu.

— Phytolaccadioica — diz ele em voz alta. — Flores apétalas e róseas, e frutos bacáceos, roxos.

Definir a árvore é quase um alívio. Por vezes, o mundo imaterial da arte confunde-o. Assim como confundem-no aqueles desabafos que, apesar de tão vívidos, vêm de um homem morto há vinte anos. Um homem que sofreu. Não um sofrimento banal, a atualidade banaliza as pessoas. Sofre-se pela perda de um emprego, o fim do terceiro casamento, a hipoteca da casa. Antigamente, na guerra, sofria-se pela vida e pela morte. Cidades inteiras feneciam num único dia, famílias dispersavam-se para sempre, amores perdiam-se em estações de trem lotadas de fugitivos. Augusto queria estar cinqüenta anos atrás de hoje e experimentar essa turbulência cheia de surpresas. Ou gostaria de ser aquela árvore, quase eterna. Dia e noite, sol e chuva, vida e morte. A simplicidade de tudo o que é cabal. Como uma tela de Marco Belucci.

Augusto sabe muito pouco da vida de Marco Belucci para poder discernir a raiz daquela angústia tão perene que parece tê-lo perseguido por toda a existência (existência, aliás, à qual ele mesmo deu um fim quando se jogou pela janela). Imagina-o, um homem glabro, elegante, com sua amada tão bela; um homem exótico e cheio de talentos, refugiado no meio do nada, em plena Segunda Guerra Mundial. Teria sido aquele exílio o culpado pelo horror que havia em Marco Belucci? Augusto recosta-se na árvore e fecha os olhos. Aquela voz que vem de trás da tela ainda baila em seus ouvidos, uma voz morna e pausada. Seria a voz dele, do pintor, sussurrando seu amor por Amapola? Amapola, meu destino e meu desatino. Aquele quadro foi pintado já perto da morte de Belucci, em 1952. Seis anos mais tarde, envenenado, não pelas tintas (como tantos outros pintores), mas por amor e por remorso, ele jogar-se-ia da janela do seu estúdio, ao qual ele referia-se como “purgatório”. É uma espécie de quebra-cabeça. Um homem enlouqueceria por amor? Augusto Seara não sabe dizer. Seus amores são como a vida moderna, definidos, cronometrados e exatos. Têm seu fim e seu começo. E tudo sempre é feito sem sofrimento, ao menos sem sofrimento aparente. Existiram noites insones, é claro, e garrafas de vinho vazias. Mas não, ele não poderia nunca ter vivido um amor como o de Marco Belucci.

De olhos fechados, Augusto Seara pode vê-lo. Engraçado, mas sente como se ele estivesse muito perto, roçando seus cabelos com a fluidez do seu sopro. Ele é alto, a sombra longilínea de seu corpo baila na relva, enquanto caminha pela campina, os olhos vagos, de um verde cor de esmeralda. Suas mãos são brancas e magras, delicadas. Angustiadas, também, porque são elas a ceder espaço para as dores do seu coração. Augusto quase nem respira, com medo de que esse vulto suma da sua alma, desapareça com o vento que já sopra, vindo dos lados de algum rio, um vento úmido. Sim, Augusto pode ver Marco Belucci passeando pelo campo, solitário como um pássaro, talvez esperando por Amapola, talvez fugindo dela. E seus olhos têm um quebranto triste, de quem se perdeu pelo caminho.

Augusto Seara inquieta-se. Aos poucos, a figura do pintor vai se esfumaçando em suas retinas, até que vira sombra, sopro, nada. Sabe então que está sozinho outra vez, e que o viu; viu Marco Belucci em alguma tarde longínqua, ali mesmo onde ele está agora, de costas para a grande casa, tendo o campo a desdobrar-se, agora cheio de sombras, à sua frente. Então, Augusto abre os olhos. Confirma, temeroso, a sua solidão. Assim é melhor, meu Deus. Talvez eu esteja tendo um surto ou coisa assim. Como poderia tê-lo visto, como? E, no entanto, sabe que é verdade, que o pintor esteve ali.

Ouve um assovio ao longe. É Zeca que vem vindo, e parece que traz uma lanterna na mão. Porém ainda não é noite, mas o exato momento em que tudo se confunde, sombras e sólidos, formas e sussurros. O lusco-fusco. Augusto ergue-se rapidamente, sentindo a cabeça tonta. Não dirá nada daquilo a Zeca. Não dirá, por uma espécie de pacto que, sem saber, fez com Marco Belucci. Agora são amigos, confidentes. Augusto caminha devagar, o campo está silencioso, ouve-se apenas o ruído dos grilos, o estalar dos minúsculos insetos sob a grama. Apesar da luz dourada que ainda derrama seus últimos suspiros, Augusto sabe que em poucos instantes a noite estará sobre tudo. É um lugar sem meios-termos.

— Você sumiu, Augusto!

Zeca às vezes tem a fala afetada e feminil demais. Augusto irrita-se, não sente vontade dessas firulas num momento tão mágico. Com um gesto, manda que o outro se cale.

— Aproveite este momento, meu rapaz. Você provavelmente nunca viu um céu assim.

Ambos olham para cima. O céu é uma imensa aquarela de tons suaves e luminosos. Calados, eles seguem rumo à casa, onde alguém começa a acender as luzes. Já quase em frente à varanda deserta, é que Augusto diz:

— Zeca, você trouxe os meus Valium?

Zeca ri baixinho.

— Depois desse céu, você quer um Valium?

— Mais do que nunca, meu amigo, mais do que nunca.

A voz do pintor ainda está nos meus ouvidos, sussurrando o nome dela. Amapola.

 

Naquela noite, Augusto não desceu para o jantar, mas deitou-se cedo, sob o efeito do calmante. Era uma madrugada excepcionalmente fria para o outono. Sob os seus dois cobertores, Augusto sentiu-se feliz e aconchegado. Sonhou com Marco Belucci.

Acordou assustado, com o coração aos pulos. Por um instante, pareceu ver, aos pés da sua cama, o vulto do homem. Depois a visão sumiu e ficou apenas o escuro e o sopro do vento que cantava nas venezianas de madeira. Estaria ficando louco? Os quadros no estúdio abandonado, a descoberta das confidências que Marco Belucci deixara no verso das suas telas, aquilo tudo havia mexido muito com ele. Sentia-se personagem de alguma história. Aquela casa tão quieta e esquecida, onde um fantasma poderia volitar por toda a eternidade, até que o tempo consumisse enfim o seu amor inacabado...

— Estou ficando doido — gemeu Augusto, no escuro.

A cabeça pesava-lhe um pouco, efeito do Valium. Procurou o interruptor do abajur. Uma luz baça e amarelada clareou o quarto. Estava sozinho e nada havia ali de anormal. Uma madrugada silente. Um quarto antigo e morno — havia uma lareira acesa em algum lugar da casa. Um marchand de meia-idade, confuso. Um pintor morto, um amor vivo. Um mistério que eu vou desvendar...

Augusto levantou-se rapidamente, lavou o rosto, vestiu o robe grosso que havia trazido, calçou suas chinelas de pelica. No criado-mudo, encontrou a chave do estúdio de Marco Belucci, guardou-a no bolso do robe e rumou sorrateiramente para lá.

A luz do teto não funcionava. Augusto acendeu o pequeno abajur que estava a um canto. Tinha trazido a lanterna de Zeca. Arrastando as chinelas italianas, Augusto dirigiu-se para o depósito onde ficavam as telas. Escolheu uma caixa mediana (não era exatamente um homem forte). Com cuidado, carregou a caixa até o meio do estúdio, perto do abajur aceso. No canto direito da caixa, exatamente como nas outras, estava o nome da obra. Apassionata. Passou os dedos pela superfície da madeira tosca, carinhosamente. Apassionata. Mais uma Amapola, certamente.

Augusto também não sabia manusear o pé-de-cabra, e precisava ter certeza de não ferir o quadro no processo de abertura da caixa. Fez tudo com muito cuidado. Quando acabou de abrir o invólucro de madeira, sua pele transpirava sob o robe.

Ansioso, Augusto Seara pegou o quadro nas mãos. Tem mais ou menos 60 x 100. Óleo sobre tela. A tela exibia Amapola com as mãos sobre o rosto, os seios nus. Havia angústia naquele gesto pictórico. Os dedos longos cobriam seus olhos. Os seios eram jovens e frescos, de mamilos rosados. Uma suave luminosidade banhava a tela de maneira homogênea e perfeita, dilacerando cruelmente a angústia que parecia vir daquela mulher talvez desesperada de amor.

Augusto virou a tela. No avesso, estava a letra apressada de Marco Belucci. Eu sabia que estaria aí, eu tinha certeza. Aproximou mais o foco da lanterna. Sentia-se ansioso, quase temeroso. Era como se estivesse abrindo um cofre de outrem, violando uma lápide, tomando posse de um tesouro que não era seu. Porém não conseguiria dormir o resto da noite se não fosse até o estúdio. Pôs-se a ler com ansiedade, o coração aos pulos. Talvez estivesse ali o que ele procurava.

 

Eu já estava predestinado a esse sofrimento e a esse amor... Dizem que nosso destino nos espera, e que seguimos por ele como um barco que vai no rio ao sabor das suas águas. Sou um barco, portanto. Um barco sem leme nem bússola. As velas me levam ao gosto do vento. Um dia, atracarei num porto vazio e serei engolido por um tempo fantasma, mas desde o começo da viagem eu soube disso. Um dia, o fim chegará. Não há como fugir do fim. E eu vislumbro o meu fim. Porém, talvez como poucos, acreditei nas glórias da viagem, e isso me basta para enfrentar o que me espera... Hei de encalhar e não faltam muitas águas para mim, eu já vejo o porto vazio que há de me sepultar. Um dia, daqui a muito tempo, encontrarão os destroços do que fui, dirão apenas: era um barco, encalhou e pereceu. Mas a glória e o terror da viagem morrerão com os meus olhos, como um segredo, um segredo terrível e doce e mágico e cabal. Tendo meus destroços aos pés, ninguém há de se perguntar em que águas naveguei, em busca do quê singrei mares, rios e lagoas. Cogitarão, talvez, se achei tesouros, muito embora crerão por fim que nunca descobri algo que valesse. Mas eu encontrei um tesouro, e por ele estou aqui. Morto, seco, podre. No entanto alguma coisa de mim se evolou, subiu aos céus e foi feliz... Aqui me vejo, vivo e morto ao mesmo tempo. E, embora minhas mãos segurem o pincel com firmeza, espalhando o anil sobre a tela onde Amapola renasce mais uma vez, aqui de cima, do estúdio onde trabalho, posso ver, pela janela, meu corpo estirado lá embaixo, sobre o canteiro de margaridas. Não sangro, morri sem alaridos. Na morte, assim como na vida, paguei em silêncio o preço da felicidade de Amapola. E tudo o que fiz, fiz por amor. Por amor, pequei, menti, fugi. Sei que, quando esta morte me chegar, Amapola há de sofrer. A ausência é como uma tela em branco. E Amapola não sabe mais viver sem mim, sem as cores que lhe dou e com as quais a recrio diariamente em busca da magia que dos seus olhos se derrama... Talvez seja injusto que eu morra, assim sem avisos; mas eu morro por amor, e será de Amapola a minha morte, como foi a minha vida. Por amor, venho morrendo, desde aquele dia tão distante, desde a Itália... Ah, a minha Itália, minha Ligúria, onde perdi a pureza e a paz, onde o destino tomou-me dos braços pacíficos da juventude... Por amor, venho morrendo, desde aquela tarde de primavera (como era doce o cheiro das flores e como era fresco o ar que subia da praia!), quando Antônia Maestro entrou em nossa casa pela primeira e única vez, e invadiu o nosso luto com seus sorrisos fingidos e com sua estonteante pose de rainha.

Marco

 

Augusto Seara acabou de ler. O silêncio pesava sobre tudo como um manto. Ele virou a tela e pôs-se a olhar a mulher que ali se desenhava. Marco Belucci ia revelando-lhe aos poucos a história daquela paixão. Talvez na próxima tela, talvez... Construía um quebra-cabeça, e a imagem que se revelava era a de um homem desesperado de amor, mas que antevia com frieza a própria morte, que também lhe soava como um descanso. Pelo menos, por um átimo, Marco Belucci assumia certa felicidade, a felicidade de estar na cama de Amapola, noite após noite, durante todos aqueles anos. Augusto pensou na cama fria que o esperava, deserta. Suspirou. Talvez o pintor italiano apenas não soubesse ser feliz.

Pela clarabóia, entrou a luz tênue do primeiro fiapo de alvorecer. Em breve, amanheceria. Augusto guardou o quadro no pequeno depósito. Logo, iria catalogá-lo. Depois saiu do estúdio e dirigiu-se para o quarto. Precisava dormir mais um pouco, nem que para isso fosse preciso tomar outro comprimido.

 

Zeca abriu a caixa com o pé-de-cabra. A madeira sendo forçada gemia secamente.

— Como é o nome desta tela? — inquiriu Zeca.

— Retrato do vazio — respondeu Augusto.

Estava uma manhã fresca e ensolarada. Antes que ambos subissem para o estúdio, Augusto pedira a Ana que abrissem a janela lacrada com as tábuas. A mulher parecera horrorizada a princípio, pois aquela janela estivera fechada desde a morte do pintor, mas Augusto alegara falta de luminosidade para o seu trabalho. Necessitava de muita luz e também o ambiente tinha um cheiro perene de mofo. Foi acertado que a janela seria aberta à tarde, pelo marido de Ana. Augusto agora acompanhava o trabalho de Zeca, sempre alertando que ele tivesse cuidado ao manusear o pé-de-cabra.

Um último estalido anunciou a abertura da caixa. Dentro havia uma tela de 120 x 76.

— Óleo sobre tela — disse Augusto. — Da terceira fase do artista, que eu chamaria de Angústia. Como o retrato de ontem, Zeca, Retrato daquilo que é mau. Aquelas mãos de unhas longas, negras, mãos de mulher velha. Quase garras.

Ontem ele contou de Antônia Maestro, da sua falsa serenidade, do jugo que exercia sobre todos. Do seu fascínio tão perigoso. Sim, Marco chegou a pensar em matá-la, certa vez. Mas não era um assassino, longe disso. Era um artista.

Retrato do vazio mostrava uma mulher encolhida sobre um sofá. Era Amapola, certamente. As mãos sobre o ventre reto estavam espalmadas.

— Qual é a data que está na caixa, Zeca?

— 1940.

— Dezoito anos antes de morrer. As cores são escuras, a tinta foi aplicada em grandes quantidades. Olha a angústia no rosto dela, Zeca...

Ficaram ambos alguns instantes apreciando a tela sem moldura. Augusto notara que aquele quadro fora embalado às pressas, mas estava intacto, apesar de não haver sido envolto no papel craft, como os outros. Quem o embalara (de certo que seria Amapola) havia ficado muito impactado com ele.

— Vamos virá-lo, Augusto?

Augusto Seara tirou do bolso da camisa um lenço perfumado e passou-o pelo rosto. Depois disse, lentamente:

— Vire-o, por favor, meu caro Zeca.

 

A letra ansiosa, de vogais redondas, mostrou seus contornos na tela. Augusto aproximou-se do quadro e começou a ler em voz alta.

 

Você sofreu muito, Amapola, quando nosso filho se desfez, escorrendo pelas suas pernas, num jato de sangue morno e rubro. O seu primeiro, o seu único filho. Você não sabia, Amapola, que um quadro de pintura espessa precisa de seis meses para estar seco e pronto, quase o tempo de gestar uma criança. Você não sabia e eu não lhe contei para que você não sofresse por eu ter tido os meus filhos (os meus filhos com você), enquanto você perdia a única criatura que havia engendrado em sua vida. Foi uma tristeza que eu não desejei, embora o nosso filho me fosse apenas uma coisa vaga e estranha, uma excrescência do nosso amor. Eu não precisava de um filho, mais um peso na minha alma que apenas quer se ocupar de você, Amapola; mas você padeceu tanto naqueles dias, atirada na cama, sem fome ou desejo, sem sorrisos nem palavras. Entristeceu-me. Tive ânsias de dizer-lhe, como dizem os pais às crianças mimadas, está bem, tenha o seu filho, que ele nasça e cresça e seja a nossa imagem e semelhança, e que carregue os nossos pecados, todos eles, um por um, até o fim dos seus dias. Mas a verdade é que eu nada podia fazer, meu amor. Não fora eu a lhe roubar a prenda tão adorada, fora Deus ou o destino ou seja lá o que se convencionou chamar de sina, foi a vida que lhe usurpou a criança milimétrica que crescia no seu ventre. E eu nada fiz, então, Amapola. Apenas padeci ao seu lado, como um cão, dormindo à noite enroscado nas cobertas que você me oferecia, deitado no chão frio, zeloso e sutil como um cão. E como um cão esperei que você recuperasse as suas cores, o brilho dos seus olhos, o desejo que sempre sentira por mim, quando então mergulhei para dentro do seu ninho, busquei meu lugar na sua cama e no seu corpo, e fui enfim repatriado ao território das suas carnes, pernas, ventre e seios, Amapola.

Antônia odiou-me muito nesse tempo, o fel dos seus olhos escorria pelo chão. Cega pela tristeza e pela raiva de ver frustrados os seus planos, ela sequer pensou na minha pequenez. Se os meus anseios pudessem tornar-se reais, ela estaria morta já há muito tempo. Mas sou um reles pintor cheio de medos que vive escondido num sótão frio. Nada posso fazer contra ou a favor desse imenso Cérbero, o destino. Dou-lhe uns bolos, vez ou outra, mas sempre uma de suas cabeças está a rosnar para mim. Por isso, Antônia foi tola. Eu não matei o meu filho, apenas o vi morrer com certo alívio.

Um dia, Amapola, você vai me perdoar por tudo isso. Vai me perdoar por esse tudo que é maior do que você imagina, minha cara Amapola; mas então eu já não estarei mais aqui. Você terá meus desabafos, meus medos, minhas loucuras, o que eu lhe deixei no avesso destas telas onde a pintei, Amapola. Meu diário. Imensas cartas de um tarô onde o segredo da minha reles vida poderá ser desvendado. Minha Amapola, você que foi tão forte, minha flor feita para viver à míngua, você que sobreviveu ao maior dos desertos, o deserto do meu amor.

Olho minhas mãos, sujas de amarelo-âmbar. São as mãos de um louco, certamente.

Marco

 

Augusto não sabia o que dizer. Então aqueles textos eram todos para Amapola! Desde sempre, Marco Belucci imaginara que a sua morte seria anterior à dela, e escrever no verso das suas telas era a forma escolhida para lhe contar seus medos, seus horrores, seus segredos. Sim, pois aquele amor guardava um segredo perigoso. Marco Belucci não cansava de repetir isso. Um segredo hediondo, pecaminoso. E eles haviam feito um filho que não nascera. Talvez o ardor da paixão tivesse começado a fenecer ali. Augusto não tinha filhos, nem haveria de tê-los jamais; porém vira muitos casais esfarelarem-se depois de alguma tragédia semelhante. E Marco Belucci não desejava um rebento, seu amor por Amapola não comportava mais nada. Um amor egoísta, um certo tipo de amor destinado a viver para si mesmo, enclausurado na sua própria paixão.

— Ele era um homem estranho — disse Zeca, pensativo. — Abandonou a família, não queria filhos. Falou em matar a sogra... — Zeca riu. — Isso até dá para entender, segundo a crença popular, né? Mas o nosso pintor era realmente homem de um único querer, e esse querer era Amapola.

— Ele tinha os seus motivos, Zeca. Embora eu ainda não possa lhe dizer quais seriam eles. Porém vou descobri-los, eu lhe garanto. Que dia é hoje?

— Quinta-feira.

— Estamos agendados para partir quando, Zeca?

— Na sexta-feira à tardinha. Depois que a transportadora carregar as telas.

Augusto ficou pensativo, fitando o quadro à sua frente. Tinha praticamente dois dias para trabalhar. E mais de vinte telas. Todas geniais, todas aterradoras. Todas cheias de confidências impressionantes. Olhou a janela ainda lacrada, as tábuas transversais presas sem nenhum cuidado estético, como bandaids tapando um ferimento.

— Depois que abrirmos essa janela, as coisas vão clarear aqui dentro, Zeca. Eu sei disso, eu pressinto.

Zeca deu a sua risada mais feminina.

— Ora, Augusto. Você anda tomando Valium demais. — E saiu suspirando em direção ao depósito, para buscar a próxima caixa.

 

Augusto sentou-se numa ponta da chaise longue, tomando o cuidado de não sujar a sua calça de flanela. Conhecia Portofino, tinha passado férias com Ivan por lá. Ivan, quanto tempo fazia? Mais de oito anos. Mas ainda podia recordar Portofino em setembro, o sol dourado e acolhedor, a vista do alto do morro, a pequena baía recortada, pontilhada de barcos e iates de classe. Imaginou Marco Belucci, ainda jovem, andando pelo porto, nadando naquele mar de esmeralda, antes que tudo aquilo sucedesse. Marco Belucci, tão longe do mar. Aquela janela, quando fosse aberta, não teria nenhuma visão oceânica para ofertar, apenas aquele campo sem fim, as encostas da serra, um rio, talvez, e todo aquele céu que parecia pesar sobre as cabeças dos viventes.

Zeca retornou, vindo do pequeno depósito. Tinha o rosto sujo de poeira e trazia uma caixa grande consigo. Augusto correu a ajudá-lo, segurando com as duas mãos a embalagem de madeira que estava coberta de pó. Temia silenciosamente pelas calças caras que vestia.

— Vamos pôr isso ali perto da janela — disse.

Acomodaram a caixa com cuidado, e Zeca preparou-se para usar o pé-de-cabra. Augusto tirou uma cigarrilha da cigarreira de ouro que estava no seu bolso.

— Vou até o corredor, Zeca. Preciso arejar a cabeça. Volto em alguns segundos.

O ajudante fitou-o com alegria.

— Você não tinha parado de fumar, Augusto?

— Marco Belucci está mexendo comigo. Deixo de fumar amanhã outra vez. Será a vigésima, se não me engano. Tenho um mórbido prazer em incorrer nos mesmos erros, caro Zeca.

O corredor estava silencioso e ensombreado. Podia ouvir os longínquos ruídos da cozinha, onde Ana preparava o almoço. Aquela casa parecia um doente terminal prestes a morrer, era como se um tênue fio a segurasse viva, logo tudo se acabaria: o barulho das panelas, as flores no jardim, o crepitar do fogo na lareira. Augusto sabia o que mantinha aquilo tudo ainda latente: os quadros de Marco Belucci. Quando aquelas obras fossem levadas para São Paulo, a casa feneceria de vez. Era certo que Ana e o marido ainda estariam por ali, testemunhas oculares da felicidade e do horror que aquelas paredes haviam protegido, mas logo a casa já não seria mais visitada por ninguém; Ana e o esposo morreriam mais cedo ou mais tarde, Amapola não tinha herdeiros diretos, a casa se decomporia como um imenso cadáver sob o sol.

Augusto apagou o cigarro e atirou-o pela pequena janela. Voltou para o estúdio e deparou-se com a visão da imensa mulher cinzenta, a tela tomando a parede com seu peso, sua consistência, seu pesar.

— Aqui está — disse Zeca, orgulhoso. — Fantasmagoria. Ano: 1950.

Augusto Seara sorriu.

— Então temos a honra de conhecer a excelentíssima senhora Antônia Maestro. — Chegou-se bem perto da tela. — Certamente nosso pintor tinha horror a essa mulher. Há um clima de violência nessa obra. — Estendeu o braço, num gesto teatral. — Estou completamente arrepiado, meu caro.

Augusto tomou o bloco de anotações. Escreveu ali: Óleo sobre tela, 160 x 100. 1950. O fundo é cinzento e denso, a mulher como que flutua dentro do espaço da tela, como uma espécie de criatura pictórica. Um demônio, talvez. Largou bloco e caneta sobre a chaise longue.

— Me dá medo olhar essa figura, Zeca.

— Por que todos os homens detestam suas sogras?

Augusto riu.

— Deixe de idiotices, Zeca. Essa tela é impressionante. Vamos virá-la. Como as outras, deve guardar um texto escrito por Marco.

Juntos, viraram a tela com extremo cuidado. A criatura cinzenta ficou frente à parede, e a letra de Marco Belucci apareceu, miúda, em linhas perfeitamente retas, trêmula de confidências.

Augusto Seara colocou os óculos e pôs-se a ler:

 

Antônia Maestro procurou-me um mês após a morte de Giordano. Embora costumasse andar de barco e atracar em Portofino com a filha e o marido, nunca antes ela adentrara a cidade alta, onde as ruas são tão estreitas que nenhum carro pode passar, e as pedras, tão escorregadias, que somente os moradores ousam transitar por ali nos dias de chuva. Antônia Maestro bateu à porta da nossa casa quando eu estava sozinho no pequeno ateliê que ficava no fundo do quintal. Era uma mulher muito bonita, de olhos cinzentos e rosto bem talhado, com a postura das rainhas e o seu pisar cheio de excelência. Lembro que me espantei ao vê-la; não costumávamos receber os ricos, e aquela mulher esbanjava riqueza. Lembro também que seus olhos tinham um brilho de gelo quando me sorriu pela primeira vez, pedindo permissão para ingressar no universo ensombreado da nossa humilde sala de visitas. Eu estava sujo de tinta, descalço. Eu estava com os pêlos do pescoço arrepiados como os de quem vê um fantasma... Era verão, e a guerra não passava de um boato que corria pelos cafés ou que os pescadores comentavam no final do dia com a voz úmida de descrença. Sim, pela época em que Antônia Maestro me encontrou, ainda era possível ser feliz na Itália.

— Gostaria de falar com você, Marco Belucci.

A voz dela era quente e suas palavras pareciam flanar como pássaros.

Eu tinha então dezoito anos e queria viver plenamente. Recebi-a num misto de ansiedade e desconfiança — nunca a havia visto, a não ser de longe, e Giordano havia me educado para duvidar dos ricos. Parada no centro da nossa sala, Antônia focou seus olhos cinzentos em mim e disse-me que desejava um quadro meu. Apesar de qualquer jovem pintor sonhar com um mecenas ou coisa parecida (e aquela senhora poderia ser para mim uma chance de sair do anonimato), era estranho que ela sequer tivesse visto alguma pintura minha, a pequena produção estava toda nas paredes do ateliê; afora esses quadros, meu pai dava, vez ou outra, um ou dois desenhos para amigos influentes (ele havia prometido que eu estudaria em Paris ou Roma, mas as promessas de meu pai quase nunca passavam de sonhos que ele tecia sem muita responsabilidade). Porém Antônia assegurou-me que vira um quadro meu e que o achara inesquecível; ademais estava interessada no novo, no que nascia, no vigor dos meus pincéis.

— Eu lhe pagarei muito bem, Marco Belucci. Imagino que você deva estar precisando de dinheiro.

Era verdade. A morte de Giordano jogara minha mãe numa série de problemas financeiros. Mesmo assim, argumentei que não podia aceitar o trabalho. Havia aquele brilho nos olhos gélidos de Antônia Maestro, e eu ainda dava alguma atenção aos meus pressentimentos. Lembro que ela riu, um sorriso de dentes perfeitos, depois abriu a bolsa e, tirando dali um punhado de liras e um cartão de visitas feito em papel muito fino, disse:

— Não seja tolo, rapaz. Deixo aqui meu endereço em Gênova e um pequeno adiantamento. Espero-o amanhã.

Eu fiquei atônito. De quem era o retrato pelo qual me pagava? Ela respondeu-me:

— De Amapola, minha filha.

E foi então que minha vida entrou nos trilhos da sua derradeira viagem.

Quando Angélica chegou da cidade, contei-lhe o sucedido. Ela olhou-me com uns olhos cheios de angústia e pediu que eu aceitasse. Precisávamos de dinheiro, havia empenhado seu anel de brilhante para pagar algumas contas. Foi tudo o que me disse, nada comentou sobre Antônia Maestro ou os motivos que a teriam levado até a nossa casa. Então, no dia seguinte, munido de meus apetrechos, com o estômago enrolado de medo, tomei o pequeno ônibus que me levaria até Gênova e, de lá, até o endereço escrito no cartãozinho de visitas: Pegli, um elegante subúrbio à beira-mar.

Marco

 

— Queria ter estado lá — disse Zeca. — Um homem prestes a conhecer o amor da sua vida...

— O amor e a perdição, meu caro. Uma questão de causa e efeito. O nosso jovem lígure nunca mais foi o mesmo depois de Amapola.

A tela repousava silenciosamente, virada para a parede. Fantasmagoria. Augusto sentiu um arrepio. Era no quarto de Antônia Maestro que ele dormia. Aquela mulher do quadro. Aquela mulher maléfica e sem rosto, que morrera louca.

Bateram à porta do estúdio. Era Mateus, o marido de Ana.

— Com licença — disse ele. — Vim abrir a janela lacrada. E vim avisar que a patroa está servindo o almoço para os senhores.

Augusto e Zeca recolheram a tela com extremo zelo, depois desceram para a sala de jantar.

 

Eu quero confessar-lhe o que fiz.

A voz ficou soando em seus ouvidos. Sentado na cama, de pijama, Augusto Seara tentava organizar seus pensamentos. Eu quero confessar-lhe o que fiz. Acordara com aquela frase em sua alma, insistente e angustiosa. Sim, ele dormia placidamente, sonhava até, quando a voz começou a rondá-lo, chamando-o, martelando em seus ouvidos até que o sonho se dissipasse e, com ele, o sono. Agora estava ali, naquela cama fria.

Lá fora, a tarde esmaecia suavemente, sem alaridos. Zeca estivera com ele após o almoço. Não eram amantes no termo exato da palavra; Zeca ainda tinha muito que aprender, refinamento e paciência. Porém, às vezes, passavam bons momentos juntos. Como naquela tarde. Depois ele pedira que Zeca saísse, gostava de dormir sozinho na sua cama. E quanto dormira? Uma hora, talvez. Até que a voz viesse importuná-lo.

Ergueu-se e olhou, através da janela, o campo. A claridade avermelhada do entardecer se derramava sobre tudo; milimétricos fios dourados, do céu ao chão, formando uma trama de luz. Como a visão da janela do estúdio. A janela de Marco Belucci.

De repente, Augusto sentiu urgência em voltar ao ateliê de Belucci. Olhar da mesma janela que ele olhara no seu último dia. Ana contara-lhe que o pintor se matara logo após o almoço, num dia de setembro. Augusto vestiu-se apressadamente, saiu para o corredor quieto. Ao passar pela porta do quarto de Zeca, deteve-se por um instante; depois seguiu sem parar. Subindo as escadinhas que levavam ao sótão, tirou a chave do bolso da calça. Alguma coisa lhe dizia qual seria o próximo quadro a abrir.

A janela era estreita e alta, uma espécie de porta que dava para um minúsculo balcão onde mal cabia uma pessoa. Era dali que Marco Belucci via o mundo. Fora ali, naquele exíguo espaço, que a vida tornara-se tão barata para ele a ponto de que preferisse a morte. Por Amapola. Augusto olhou o sol que se escondia no horizonte. Uma bola de fogo gigantesca e perfeita. Pássaros cantavam nas árvores. São Paulo estava tão longe que era como se não existisse. Um amor ali, naquelas paragens, era coisa de uma vida inteira. Nada era pouco ou escasso ou conduzido ali, naquele campo sem fim.

— Você quer me contar o seu segredo, Marco Belucci. E eu quero ouvi-lo.

Augusto não costumava falar sozinho. Porém era como se o pintor estivesse ali com ele, entre suas telas e confidências, escrevendo suas memórias. Para que alguém as lesse, para que alguém o compreendesse e o perdoasse. Não, não estou louco. Preciso ajudar esse homem. Eu enterneço-me com ele. Nunca encontrei alguém que soubesse amar assim.

Augusto saiu da janela e foi para o depósito. Escolheu a tela. Sabia qual seria a próxima. A voz lhe tinha dito, talvez. Era um quadro grande. Sozinho, demorou quase uma hora para abrir o invólucro de madeira e, quando acabou, a camisa de casimira estava suada sob as axilas. Numa das tábuas, caídas no chão, lia-se: Amapola (óleo sobre tela). Augusto acendeu o pequeno abajur que ficava no chão, a um canto.

 

A casa de Antônia Maestro era uma grande construção branca, cercada de jardins e canteiros que costeavam o mar. Um silêncio de prata descia sobre tudo, um silêncio feito de eternidade e de calma. Era um dia de sol, perfeito para o meu trabalho. Porém várias vezes eu me detinha no caminho (havia uma estradinha que dava na varanda central da casa e era por ela que eu seguia), pensando em desistir. Tinha medo daquele lugar, mas segui em frente até a porta, onde fui recebido por uma criada de uniforme engomado, para logo depois ser levado a um caramanchão florido e silente, cheirando a rosas.

No centro do lugar, que antes eu só imaginara existir em sonhos pela sua perfeita beleza cuidadosamente calculada, esperando-me, estava Amapola. Reconheci-a imediatamente: a menina da Abazzia. Os anos que a haviam tornado mulher não lhe tinham desfeito os ares de pássaro raro e engaiolado, a mesma melancolia suave da minha ragazza de Botticelli... Ao reconhecer em Amapola a paixão fugaz da minha infância, a magnitude daquilo tudo caiu sobre mim, desabando como o mundo na minha cabeça. Aqueles olhos, aquela boca, os negros cabelos, o corpo que escorregava em suas próprias formas cheias de contornos, como um instrumento musical, uma jóia de rara urdidura, como uma flor. Amapola... E eu ali, um jovem de joelhos, fulminado pelo próprio destino, do qual eu jamais poderia me deixar escapar. Sim, pois Amapola foi, naquele momento, a visão jamais vista, a beleza suprema e quase diabólica da perfeição.

E eu a pintei, eu a pintei com minhas vísceras, meu sangue e minha alma, derramando de mim mesmo toda a emoção colorida pelas tintas. Eu a pintei em êxtase porque era como um sonho e nada jamais poderia defini-la com a exatidão merecida, nenhuma mão humana poderia tocá-la na sua verdadeira essência de criatura volátil, de modo que a sonhava então, e a tela a minha frente, cheia de rosas, lábios, vermelhos, côncavos, negros, azuis, olhos, palmas e dentes e mamilos e sussurros, foi como um delírio da minha alma e dos meus pincéis.

Durante cinco dias, retornei todas as manhãs a Pegli. Aquele talvez tenha sido o período mais mágico dessa minha reles existência. Angustiado, ardente, eufórico de saudades dela, insone de tanta paixão, eu gastei aqueles dias ansiando por revê-la a todo instante, e somente então me sentia vivo e tudo tinha brilho. Amapola reorganizou o mundo que a morte do meu pai fizera ruir, tornando-o mais tépido e doce e cheio de vida outra vez, até que, no último dia do meu trabalho, deixei tudo e precipitei-me sobre ela, cingindo-a em meus braços manchados de tinta, onde Amapola deixou-se ficar como se fosse o melhor lugar do mundo, o veludo de um estojo, as hábeis mãos de um violinista, o seu cofre, a sua cama, enfim. O tempo congelou-se naquele nosso abraço, no beijo que veio em seguida, e foi tão puro, tão bom, que passei todo o resto da minha vida tentando recuperar aquele instante primeiro, quando o nosso amor não tinha mácula nem mágoa e nem medo, somente futuro.

Marco

 

A mulher no quadro era deslumbrantemente jovem. As pinceladas sutis davam-lhe um quê de brisa, de frescor e de leveza. A mulher sonhada era Amapola.

Augusto Seara, ajoelhado em frente à tela, enquanto a noite caía para além do estúdio, ficou imaginando o jovem Marco tomado de amor, recriando a mulher que ele sabia ser a única da sua vida. Sim, havia amor naquele quadro. Até a mais ingênua das criaturas, ao fitar aquela tela, pensaria que a modelo e o pintor era amantes. Não havia qualquer dúvida disso. O pincel que delineava as formas perfeitas da mulher fazia aflorar também a sua alma... Augusto gostaria de comprar aquele quadro, guardá-lo para si, para que pudesse lembrar-se de que existira, sim, um amor verdadeiro, um amor para além dos moldes daquela vida agitada e fugaz. Um amor que era eterno, e que havia sido congelado entre as pinceladas daquela tela. Ele a colocaria no seu quarto, perto da cama. Uma peça daquelas era para a intimidade. Seria uma obra cara, uma das mais caras do acervo, sem dúvida. Mas seria dele. Marco Belucci assim desejava, ele tinha certeza. Não Amapola para uma sala de visitas repleta de socialites e hipocrisias, não Amapola para uma casa vazia, onde ela ficaria tão só, talvez reproduzida eventualmente numa daquelas revistas onde as pessoas exibiam-se e mostravam seus bens. Amapola era para um altar, para ser adorada como Marco a adorara ao retratá-la. E quando ele, Augusto, estivesse triste ou descrente do mundo, então viraria a tela e ficaria a sós com seu segredo, com as palavras de Marco Belucci, com a magia daquele amor. Sim, estava decidido: compraria a tela e a levaria para sua casa.

Augusto ergueu-se, aliviado com a própria decisão. Dispor daquela quantia talvez significasse adiar sua viagem à Europa, porém não havia outra saída. Ele precisava possuir Amapola. Olhou no relógio, eram quase oito horas. Apagou a luz do abajur e saiu apressadamente do estúdio. Precisava tomar um banho antes do jantar.

O banho longo e quente ajudou Augusto a recuperar a tranqüilidade. Estava realmente transtornado por aquilo tudo, por aquele amor esquecido, guardado naquela casa como um segredo. O pintor italiano não lhe saía do pensamento. Um homem lindo, sim, ele sabia disso. Havia uma espécie de beleza que transpunha os limites do físico, alçando-se ao intelecto. Marco Belucci tinha sido um gênio. Um gênio incompreendido que não soubera sobreviver a uma paixão avassaladora. Um gênio que pintava e escrevia lindamente... Os textos de Marco eram poéticos e fortes, tocantes. Textos que refletiam as agruras da sua alma atormentada pelo amor.

Augusto Seara escolheu um pulôver azul-escuro e calças marrons. Depois calçou os sapatos e penteou os cabelos que começavam a branquear nas têmporas. Também sua cintura agora tinha a flacidez característica dos quarentões sedentários. Ah, mas ele tinha outros prazeres que não os do espelho. Tentou imaginar o cardápio que Ana teria escolhido para o jantar. Ana era uma excelente cozinheira, e seu marido tomara o cuidado, talvez por ordem de Amapola Maestro, de providenciar bons vinhos. Sim, aquelas refeições eram prazerosas... Carnes tenras, massas caseiras de sabor fino e inesquecível, molhos de uma consistência maravilhosa, frutas mergulhadas num molho âmbar e adocicado; pensando em tantas iguarias, sentia seu estômago contorcer-se de ansiedade.

Saiu para o corredor deserto, onde brilhavam as velas de um castiçal de prata sobre uma cômoda de madeira de lei. Romântico costume. Augusto foi até a escada, prestes a descer para a sala de jantar. Lá embaixo, tudo era silêncio. Procurou o relógio, acendendo a luzinha esverdeada do visor para enxergar bem as horas. Ainda era cedo demais para ir à mesa, decerto Ana estava na cozinha acabando de temperar seus saborosos pratos. Olhou para os lados, pensando em como gastar a meia hora que lhe sobrava, mas havia apenas a casa silente, nem sinal de Zeca, o corredor estava vazio. E ele nunca tinha se aventurado até o outro extremo do corredor, onde as luzes trêmulas do castiçal não alcançavam... Sentiu-se excitado com a idéia; aquela casa tinha um quê de sobrenatural, era como se cada cômodo, cada refúgio guardasse uma parte do segredo de Marco Belucci.

Augusto seguiu pela passagem mal-iluminada até onde havia duas portas trancadas, que ele examinou com cuidado. Não, nunca tinha entrado ali, nem Ana, na primeira incursão pela casa, lhes havia mostrado aquelas duas peças. Inquietou-se. Forçou a fechadura da primeira delas com cuidado, e a porta cedeu levemente. Estava empenada. Uma porta velha de uma casa velha. Sentiu um certo receio de entrar, como uma criança que invade o espaço dos adultos. Resolveu, antes, tentar a outra fechadura. Apoiou o corpo e fez força, mas a segunda porta não se abriu. Estava realmente trancada. Voltou então à porta anterior e abriu-a com cuidado. Uma saleta cheirando a mofo descortinou-se parcamente ante seus olhos confusos. Estava escuro ali e ele não trazia consigo a lanterna de Zeca. O castiçal. Não há maldade em roubá-lo do seu lugar por alguns instantes. Correu até o móvel onde repousava o castiçal, pegou-o e voltou para a saleta. Lembrou-se então de um conto de Oscar Wilde. “O fantasma de Canterville”. Encontraria ali um velho espectro fanfarrão, que apenas queria divertir-se à sua custa? Augusto entrou na peça; a luz parca e bruxuleante do castiçal fazia sombras estranhas nas paredes. O lugar era uma espécie de despensa. Não havia nenhum velho fantasma entediado volitando por sobre as caixas e antigos utensílios esquecidos. Móveis estavam empilhados a um canto. Velhas caixas de chapéus cobertas de pó, uma cadeira sem um pé, um abajur de cúpula azul, um vestido lilás dentro de um velho saco de filó comido pelas traças, algumas fotografias, livros roídos, encadernados em couro. Augusto acomodou o castiçal num canto, sobre um banco de madeira talhada, e deixou-se remexer naquilo tudo. Era um homem curioso. Aquele vestido teria sido de Amapola? Imaginou-a, andando pela casa, uma bela mulher no seu vestido fino... Recolheu as fotografias que estavam sobre uma das caixas de chapéu. Reconheceu Antônia numa delas, Amapola estava em outra, num jardim, sorridente e belíssima, mesmo que um dos seus pés já tivesse sido comido pelos insetos e pelo tempo. Havia também fotos de Ana e seu marido, muito mais jovens, parados na frente da casa, cheios de orgulho; havia um gato deitado num degrau de escada, sonolento. E uma foto de um homem a quem ele ainda não tinha visto, mas podia pressentir quem era. Não precisou pensar duas vezes para ter certeza de que estava diante da fotografia de Marco Belucci. O coração de Augusto bateu forte dentro do peito. Um homem loiro, na casa dos trinta anos, forte, distraidamente belo. Podia reconhecer, mesmo sem nunca tê-lo visto, a curvatura dos seus ombros, o desenho da sua nuca bem-feita, os cabelos levemente crespos, os olhos tristes e aquosos... Ali estavam as mãos que haviam pintado aqueles quadros, que haviam escrito linhas e linhas de desabafos, que haviam amado Amapola e explorado Amapola em tantas noites de paixão que ele podia apenas adivinhar.

Augusto revirou a pilha de fotografias em busca de outra imagem do pintor, mas nada. Dele, apenas aquele laivo, aquele sopro, aquele olhar cheio de angústia, aquela beleza lapidada por uma espécie de desdém. Quem teria tirado aqueles retratos? Talvez Amapola, uma jovem rica e entediada com a vida campestre, tivesse aprendido a arte da fotografia e com isso distraísse suas longas tardes ociosas. Porém, entre tantas fotografias desimportantes, flashes de uma vida passada, sorrisos em varandas e felinos em seus recantos prediletos, apenas aquela única foto de Marco Belucci. Esquecida ali entre as outras, certamente. O único registro das feições daquele homem misterioso. De certo que Amapola levara consigo todos os outros retratos do marido morto, esquecera apenas aquele, talvez na pressa da partida. Augusto olhou novamente o homem que estava recostado num pilar da varanda, dolente. Um homem elegante, até mesmo displicente, mas cheio de finesse. As roupas largadas, soltas, tão inadequadas àqueles anos, lhe davam um ar de estranha modernidade.

— Então é você, Marco Belucci.

A frase escapou-lhe dos lábios e ele sorriu. Olhou o relógio, quase nove horas. Devia descer rapidamente, antes que Zeca ou até mesmo Ana viesse procurá-lo. Pensou por um instante e, num gesto furtivo, guardou a fotografia no bolso da calça. Era um retrato pequeno. E não vai fazer falta, esquecido aqui há tantos anos... Saiu da despensa e fechou a porta cuidadosamente. No caminho, devolveu o castiçal ao seu posto sobre a antiga cômoda e desceu as escadas, rumo à sala de jantar. A foto de Marco Belucci queimava em seu bolso; ele sentia-se exultante, porém.

 

Zeca sorria-lhe do outro lado da mesa. Zeca, um jovem inexperiente e alegre, como tantos outros que haviam passado pela sua vida. Amores vãos. Não como o amor de Belucci por Amapola, o grande amor. Somente alguns têm essa sorte.

— Amanhã abrimos pelo menos três quadros, Zeca. Nosso tempo está se esgotando. Afinal de contas, estamos nos estendendo demais nessa visita.

Dizia aquilo da boca para fora. Estava fascinado pela história de Marco e Amapola, pelos quadros, por aquela casa. Ana entrou nesse momento trazendo uma terrina fumegante.

— Sopa de ervilhas com bacon — disse ela sorrindo, e em seu rosto acentuaram-se as rugas.

Augusto deixou seu olhar cair para o molho de chaves que estava acomodado entre os panos da saia de Ana. Ali devia estar a chave daquela peça. O que haveria lá, afinal de contas? Alguma coisa relativa a Marco Belucci, pois tudo o que envolvia o pintor era cercado de mistério e segredo. Não poderia pedir aquela chave a Ana, pois receberia um não como resposta, mas precisava encontrar um modo de entrar naquele quarto fechado. Havia muitas chaves no chaveiro metálico, tilintando enquanto Ana se locomovia pela sala de jantar. Qual delas abria o quarto? Impossível saber. Inclinava-se a considerar a chave mais pesada, de um negror metálico antigo, a responsável pela misteriosa fechadura, uma chave digna e romântica.

Ana olhou-o sorrindo.

— O senhor não vai provar da sopa?

Augusto enrubesceu. Devia estar fitando-a havia uns bons minutos, de olho no seu quadril onde o molho de chaves, pendurado numa espécie de cinta de pano, balançava-se melodicamente. O que a caseira devia estar pensando dele?

— Me desculpe, Ana. — Levou uma colher de sopa à boca. O paladar delicado e a espessura cremosa encheram-no de prazer. — Mas está uma delícia!

Ana sorriu, satisfeita. Depois rumou para a cozinha, em busca do prato principal e dos acompanhamentos. Augusto percebeu que Zeca fitava-o com uma expressão confusa.

— Até você, meu caro Zeca? Vá comer a sua sopa!

Zeca riu.

— Desculpe, Augusto, mas por um momento, não sei, você me pareceu interessado nos apetrechos da dona Ana...

— Não seja insolente, meu amigo. Agora, vamos à sopa de ervilhas, antes que ela esfrie completamente. Antes que Ana traga o resto desta nossa lauta refeição.

 

Augusto não tinha sono. Revirando-se na cama, olhando as sombras que cresciam no quarto iluminado pelo abajur de cabeceira, sentia os minutos passarem lentamente, como as contas de um rosário que sua avó costumava carregar consigo. Poderia ir ter com Zeca, mas não. A verdade é que preferia aquele quarto que o angustiava, preferia degustar o silêncio daquela casa, traduzir, sopro a sopro, a figura de Belucci. Lembrou-se da fotografia, guardada na maleta Gucci. Levantou-se da cama para buscá-la, no fecho interno, dentro de um envelope. Vasculhou rapidamente a maleta, resgatando dali a velha fotografia. E então se deixou levar pela fisionomia de Marco. Um homem bonito e genial. Um amante chegado a extremos... Um mistério, mesmo vinte anos após sua morte violenta. Um mistério alimentado por Amapola Maestro, que não lhe falara uma palavra pessoal sobre o marido. Uma viúva muito diversa das outras, em todos os sentidos. Deixou este acervo aqui, escondido do mundo. Mas por quê?

Augusto caminhou até a janela e abriu os vidros. Veio da noite o sopro fresco e úmido de campo. Podia vislumbrar a sombra azulada das hortênsias no jardim. Hydrangea hortensia, aquelas flores eram oriundas da China, era estranho vê-las ali, na serra gaúcha, um pano de fundo para aquela noite bonita e silente. A lua iluminava tudo, com sua luz baça e meio irreal. Ficou ali algum tempo, deixando a sua mente vagar por pensamentos secretos e doidos. Como Belucci deveria ter feito tantas e tantas vezes, depois de amar Amapola. Mas em que quarto? De qual janela Marco Belucci tinha olhado o campo após o amor? Ele, Augusto, conhecia a outra janela, a que desnudara para Marco a última visão dos seus olhos, a janela do estúdio. Mas a verdade é que não tinha ainda visto aquele que fora o quarto dos dois amantes. Uma alcova talvez ainda intacta... Certamente aquela do final do corredor, a porta trancada.

Não passava da meia-noite. Augusto sabia que Ana e seu marido já deviam estar dormindo. Zeca talvez estivesse lendo, já que não tinha ali o apelo da televisão. Melhor deixar Zeca com seu livro de suspense. Iria para o estúdio. Aqueles quadros já haviam se tornado um assunto particular entre ele e Marco Belucci. Vestiu seu robe e guardou a foto do pintor no bolso grande, carinhosamente.

— Vamos juntos, meu amigo.

Gostava de falar com Marco Belucci.

Saiu para o corredor silencioso, trilhando o caminho que conhecia de cor, e que iria dar no velho sótão.

 

Eu amei você, Amapola, mais do que qualquer homem neste mundo soube amar uma mulher, porque eu a amei acima de tudo o que me era mais sagrado, e por você abandonei mãe e irmãos, e abandonei-os talvez para a morte. Deixei a Itália e deixei meus sonhos para trás, por você, Amapola, que hoje me olha com seus olhos azuis e assustados, que já não me reconhece, porque, ao abandonar tudo de meu, acabei perdendo-me a mim mesmo. Assim, o maior dos sacrifícios tornou-se o empecilho para a nossa felicidade. Hoje, sou um louco. Tenho medo da vida, tenho medo do que me espera depois da vida, onde hei de pagar meus pecados, minhas crueldades e todo esse amor que lhe tenho. Hoje, eu sei, Amapola, que você já não encontra mais em mim aquilo que eu fui, aquele pelo qual você se enamorou, em Pegli, quando éramos tão jovens... Quando eu me for, você irá perdoar-me, Amapola? Ainda serei seu, se não em carne, em pensamentos? Ainda acolherei seu sono entre meus braços, então voláteis, ou você há de buscar outro, mais real, mais lúcido, menos amante, para satisfazê-la e protegê-la? Quando eu me for, você ainda irá me amar para sempre? O que é para sempre, Amapola? Este campo infiltrou-se em minha alma, eu o respiro dia e noite, e ele mistura-se ao seu cheiro mais íntimo, ao seu gosto, aos seus cabelos. Este vento varreu-me, Amapola, deixou-me oco e triste e desbotado e doido. Morrerei em breve, Amapola, com esse campo e com você dentro de mim. Quisera eu morrer na Itália, perto do mar, perto do porto, morrer no caminho da Abazzia, onde a vi pela primeira vez... Morrer com a ingenuidade de um menino que não sabe estar morrendo. Porque morrerei para sempre, Amapola, vejo em seus olhos. Eu já comecei a fenecer. Vejo em seus olhos, Amapola, eles são azuis como este céu sobre o campo, este céu que há de lamber a minha cova eternamente, e que irá me recordar você.

Marco

 

Augusto acabou de ler, baixando o foco da lanterna por um momento e deixando-o bailar no chão de parquê. Sentia os pêlos dos seus braços arrepiados sob o robe pesado. Um homem farejando a própria morte, construindo-a como quem pinta um quadro.

Virou a pequena obra outra vez, deixando seus olhos vagarem novamente sobre a figura masculina de olhos tristes e pesados, de feições lânguidas, indefinidas e angustiantes. Um quadro com cara de adeus. Com o auxílio da lanterna, leu, no canto da obra: Auto-retrato. Aquarela sobre papel. 60 x 45. Uma pequena jóia, como uma lágrima, sofrida como uma lágrima. A moldura era primorosa, talhada em madeira muito clara. Talvez ele fosse um artesão e se dedicasse à marcenaria. Quem faria essas pequenas molduras maravilhosas, senão ele mesmo? Sim, Belucci tivera uma ligação forte com a pequena aquarela. Não seria apreço, quem teria apreço pela própria morte? E aquele quadro era o retrato de um fantasma. Um fantasma que ele viria a ser em pouco tempo, pois a obra era datada de 1956, apenas dois anos antes da morte de Marco Belucci.

Augusto depositou o pequeno quadro sobre a chaise longue. Quando o dia amanhecesse, mandaria Zeca guardá-la numa caixinha especial, com muito cuidado, para depois reuni-lo aos outros quadros já vistos e catalogados. Pensava nisso, quando ouviu o grito varando a noite quieta do casarão. Um grito agudo, horrível, cheio de medo. Saiu correndo do estúdio, tropeçando nas pregas do robe, o coração batendo descompassado dentro do peito, sob o pijama listrado de seda.

 

No meio da sala, Zeca espera por outro grito ou qualquer sinal que o faça seguir adiante, rumo à escuridão da casa. Usa um pijama de algodão colorido e está apenas de meias. Ao encontrá-lo ali, naquela situação inusitada (parece que ambos estão num filme de suspense de terceira categoria), Augusto não tem capacidade de recriminar-lhe a vestimenta.

— O que aconteceu, Zeca?

— Acho que foi dona Ana... Um grito de mulher vindo dos lados da cozinha — aponta para o breu que leva à grande cozinha ladrilhada.

Um estranho silêncio paira então sobre tudo. Augusto Seara olha o corredor que leva à cozinha e às áreas de serviço. Nada parece se mexer ali, nada respira. A vontade de Augusto é retornar ao seu quarto, saboreando a pequena aquarela que encontrou, saboreando aquelas palavras escritas a tinta. Mas é impossível. A história e o amor de Marco Belucci ficarão para mais tarde. Ouviu aquele grito horripilante. Pode ter sucedido algo sério, e eles estão ali naquela casa incrustada na serra, no meio do nada, a dezenas de quilômetros da próxima cidade.

— Vamos lá, meu caro — diz Augusto, quase contrariado. — Alguma coisa pode ter acontecido com Ana. Quem sabe o marido dela não anda para os lados da cidade e a pobre criatura está só, passando mal. Eu não vi o esposo dela hoje.

Zeca parece em dúvida. Augusto toma a dianteira, trazendo a pequena lanterna iluminada.

— Ora, deixe de tolices, meu caro Zeca. Um homem do seu tamanho com medo de escuro?

Acendem as luzes pelo caminho. Tudo parece tranqüilo e pacato como em qualquer outra noite: a cozinha com sua grande mesa, a pia comprida, limpíssima, os utensílios pendurados nos seus ganchos de metal, o cheiro acolhedor de boa comida. Seguem para o corredor que leva à despensa e lavanderia. E então ambos ouvem um choro vindo da rua.

— É no quintal, Zeca. Vamos lá.

— Você tem certeza de que devemos?

— Mais fácil que nos sucedesse algo em São Paulo, na calçada, em plena luz do dia, meu rapaz. Eu não sabia que você era tão fraco, caro Zeca. Qualquer suspiro o amedronta.

Augusto diz isso, mas sente também um certo aperto no peito, o grito horrível reverbera em seus ouvidos. Esta casa tem a capacidade de deixá-lo nervoso, às vezes. No entanto não deve ter sido nada grave, apenas um grito na noite. Quem sabe Ana não é dada a pesadelos?

Augusto abre facilmente a porta dupla que dá no quintal de lajotas rosadas. E qual não é o seu espanto ao ver Ana, de camisola branca, debruçada sobre o marido, chorando baixinho.

— Ana! — Augusto precipita-se sobre a mulher. — O que aconteceu?

Ela tem o rosto pálido, os olhos túrgidos. Seus cabelos, sempre presos no coque discreto, estão desgrenhados, e parecem, enfim, vivos. Augusto nota uma certa doçura na imagem feminina e secreta, ali exposta à noite e aos seus olhos.

— O Mateus tinha ido à cidade, seu Augusto... Chegou faz pouco, jantamos juntos... Estávamos até felizes, falando de vocês, da boa companhia nesta casa tão solitária... — Ana recomeça a chorar com desespero. — Aí, aí, seu Augusto, quando vínhamos para o nosso quartinho aqui nos fundos, ele teve um troço... Pôs a mão no coração, gemeu, ficou com a língua frouxa, sem dizer coisa com coisa, e caiu. — Debruça-se outra vez sobre o marido. — Ah, meu Mateus! Pobrezinho do meu Mateus!

Augusto Seara abaixa os olhos e detém-se no corpo do caseiro, estendido frouxamente sobre o chão de ladrilhos. Mateus tem um corte no sobrolho, fruto da queda, certamente. Não há qualquer dúvida de que está morto, talvez fulminado por um ataque cardíaco, e sua figura lívida e imóvel lhe dá pena e angústia. Augusto olha de soslaio para Zeca, que seca uma lágrima discretamente. Zeca, enfim, apesar do pijama de algodão colorido, é um bom coração.

— Me ajude aqui, Zeca. Vamos levar Ana e o Mateus para dentro. Aqui está frio.

Toma Ana gentilmente pela mão, como quem pega uma criança assustada. Ela ainda lembra-se de recolher algo do chão: um xale negro e o molho de chaves. Ana deixa-se levar para a cozinha, onde se senta na cadeira que Zeca lhe oferece e recomeça a chorar frouxamente. Augusto e Zeca vão buscar o corpo.

— Nunca imaginei, meu caro, experimentar tantas coisas — disse Augusto, quando chegam ao quintal. O frio da noite bafeja no seu rosto. Ele olha o morto, depois desvia os olhos. Por um instante, pensa em Marco Belucci, que se matou de amor. — Pobre homem.

 

Carregam o morto em silêncio para dentro da cozinha. A leveza da aquarela, o peso deste corpo sem vida. Como terá sido o cadáver de Marco Belucci? Depois de acomodarem o corpo de Mateus sobre a grande mesa da cozinha, é preciso ligar para o médico na cidade. Tomar as providências. Zeca é encarregado desses assuntos. Augusto tenta consolar a pobre viúva, que ainda chora.

— Vou lhe dar um Valium. Vai lhe fazer bem. Até amanhã nada poderá ser feito, Ana. E é preciso dormir um pouco.

Ana aquiesce tristemente. Meia hora depois, estão todos em seus leitos. Augusto não consegue conciliar o sono. Embora haja um morto sobre a mesa da cozinha, ele só consegue pensar na chave. Ana deixou seu inseparável chaveiro sobre a pia. Augusto rola na cama, os olhos ardidos. Se ele descer, se tiver a coragem de cruzar com o pobre Mateus em sua morte indefesa, se ousar separar do molho aquela chave pesada e escura, ele tem certeza de que abrirá o quarto fechado. Dentro daquela peça pode estar o segredo de Marco Belucci e de Amapola. E é uma questão de honra desvendar aquele segredo, entender um amor tão grande, tão cabal.

Sopra um vento forte lá fora e as persianas de madeira assoviam lugubremente. Érico Veríssimo poderia ter se inspirado aqui. Este vento... Chego a ouvir a cadeira de Bibiana rangendo, talvez o Capitão Rodrigo cavalgue aí fora. Outro grande amor com final triste. Talvez Marco Belucci também circule pela noite, ansioso para que eu o liberte do segredo de amor que o prende a esta casa. Está louco, talvez. Qual seria a criatura, no entanto, que não se deixaria levar pela loucura numa noite como aquela? E dizem que tudo acontece em São Paulo. Vou descer agora mesmo. Um pequeno furto, completamente perdoável. E Ana nem vai dar-se conta. Amanhã devolvo a chave. Amanhã partirão, ele e Zeca. À noitinha, está tudo combinado. Faltam ainda algumas caixas para serem abertas, a transportadora chegará na primeira hora da tarde. O enterro de Mateus vai atrasar um pouco as coisas, mas podem começar mais cedo o trabalho. De posse dessa chave, dormirei um pouco. Não muito, o suficiente para estar lúcido quando o dia raiar.

Augusto levanta-se da cama e veste seu robe mais uma vez. A lanterna trazida por Zeca tem se mostrado da maior utilidade. O facho amarelado e tênue dança um pouco, depois vai guiando-o pelo caminho às escuras. A casa inteira está mergulhada num silêncio sepulcral só quebrado pelo ruído do vento nas janelas. Mas ele sabe que vai salvar Marco Belucci. Vai quebrar aquele silêncio de pecado. Vai redimir o amor de Marco e Amapola, de algum jeito. Porque Belucci merece. Ele é um grande pintor esquecido naquele sótão. Um grande pintor... Seus pés vão pisando no chão de tábuas, aqui e ali coberto por tapetes antigos, sem fazer qualquer ruído, ele também parte da noite silenciosa.

 

O dia amanheceu radiante, apesar dos acontecimentos noturnos. Augusto Seara levantou-se muito cedo, ansioso por terminar de abrir os quadros de Belucci, ansioso pelo momento em que entrará naquela alcova trancada. Sonhou que Amapola estava lá, naquele quarto, uma jovem Amapola nua e perfeita como uma Vênus. Sonhou também com Marco Belucci morto, o rosto pálido de cera igual ao da fotografia, um filete de sangue escorrendo-lhe pela boca. Sonhou a noite toda, sonhos doidos e agitados.

Vestiu-se com esmero, escolhendo um traje escuro. Enquanto se arrumava, pensava em Ana, pobre mulher, mais sozinha do que nunca. Mal havia raiado a alvorada, quando ouvira o barulho do rabecão chegando para buscar o corpo do caseiro. Ao olhar pela janela, vira o corpo, coberto por um pano preto, ser alçado ao rabecão. Sentiu-se angustiado. A vida era muito tênue. Um sopro. E o que se levava dela? O que aquele homem, que dedicara tantos anos àquela casa, levava da vida? O que restou da vida para Marco Belucci? Terá ido com ele aquele amor tão louco e desesperado?

 

Pela primeira vez desde a chegada, Augusto encontrou a mesa vazia. Naquele dia, não haveria café da manhã. Apenas um bilhete de Ana, numa letra trêmula e insegura: “Senhor Augusto: fui ao cemitério tomar as providências para o velório e enterro. Na cozinha, há o que o senhor precisar. Volto no final da manhã, Ana.” Sentiu novamente uma grande pena daquela mulher. Foi até a cozinha, mas descobriu-se sem qualquer apetite e decidiu rumar para o estúdio e recomeçar seu trabalho.

Zeca já estava lá, fazendo uma lista dos quadros que seriam transportados. Usava um traje discreto e tinha olheiras.

— Bom dia, Zeca.

Ele ergueu os olhos da sua papelada.

— Bom dia, Augusto. Tive uma noite péssima, sonhando com o morto.

— Uma situação inusitada, realmente. — Augusto olhou em volta. Quadros por todos os lados, envoltos em papel craft. — A que horas chega o marceneiro com as caixas?

— Daqui a pouco.

Da janela por onde Marco Belucci se jogara, entrava a claridade mansa e dourada do dia. O campo era verde e tranqüilo.

— Zeca, me diga uma coisa: você ligou ontem para a funerária. Eles lhe disseram onde fica o cemitério?

— Parece que fica aqui perto. Por quê?

— Por nada, meu caro. Hoje à tarde, enquanto você supervisiona o embarque das obras, vou acompanhar Ana ao enterro do marido. Acho que devemos isso a ela. — Pigarreou. — Você acha que Marco Belucci está enterrado lá?

Zeca deu de ombros.

— Pode ser. O que teriam feito dele? Duvido que embarcassem para a Europa com o corpo.

— Certamente que não. Não se dariam ao trabalho, imagino.

Zeca não disse nada, tomou da caneta e recomeçou suas anotações. Augusto tinha os olhos perdidos na janela que descortinava o campo e a serra. A janela de Marco Belucci.

 

Havia ainda dois quadros no depósito. Zeca tirou o menor deles e começou a abrir a embalagem de madeira. Aquele era sempre um momento emocionante, como se uma criança estivesse para nascer, como se o sol estivesse prestes a raiar. O momento da revelação de uma nova tela. Augusto esfregou as mãos. Sempre aquele arrepio pelos seus braços, subindo em direção ao seu pescoço. Sempre aquela sensação de que o pintor estava entre eles, esperando para revelar seu trabalho, esperando para revelar seu segredo de amor. Lembrou-se do seu sonho: Amapola muito jovem, uma mulher deslumbrante. Qualquer homem teria se perdido por uma mulher como Amapola.

Zeca forçou a madeira, que cedeu com um leve estalido.

— Tire com cuidado a tela, Zeca.

Era um quadro de tamanho médio. Óleo sobre tela. Sem moldura. Augusto chegou-se para perto. Num canto da caixa de madeira destroçada, escrito a pincel como nas outras, lia-se: A mulher e a noite. A tela derramava-se em sombras e uma grande lua parecia derreter-se a um canto, lançando seus miasmas sobre a mulher nua postada de joelhos como se orasse.

Zeca tirou uma fita métrica do bolso e mediu a tela.

— Um metro por um e vinte, Augusto. Uma das mais belas peças dele, hein? E ficou para o final.

Augusto lembrou-se da noite anterior. A velha e boa Ana debruçada sobre o esposo morto. O vento soprando e o céu estrelado e incólume. A cena tinha uma semelhança sutil com o quadro a sua frente.

— Definitivamente, meu caro Zeca. Uma das melhores telas de Marco Belucci.

Aproximou-se e, com todo o cuidado, virou a obra. Mais uma vez, o texto esparramado, escrito com zelo num italiano fluente e elegante. Zeca ansiava.

— Leia em voz alta, por favor, Augusto.

Augusto pigarreou. Os pêlos do seu braço continuavam eriçados. Sua voz adquiriu um tom diferente, quase confessional:

 

A mulher que eu amei foi a mais bela sob o céu. Perfeitas, as curvas do seu corpo, as linhas do seu rosto; perfeito, o seu sorriso, o brilho agudo dos seus olhos de água-marinha. Nunca houve outra como ela. Talvez por isso eu me perdoe. Quem resistiria ao seu amor? Qual homem, tendo ele sangue nas veias, viraria o rosto para Amapola, conteria seus impulsos, seu desejo, seu prazer, ao ver a sua carne tépida e pálida e doce como uma fruta de estação? Sim, muitas vezes me puni, e houve um tempo em que costumava ferir-me, em que me infligia castigos, cortando os meus pés com o canivete que foi de Giordano, e houve também o tempo em que deixava a água fervente queimar minha pele, no banho, deixando minhas costas em carne viva, para odiar-me ainda mais, para demonstrar a mim mesmo o quanto eu era vil e indigno. Mas então vinha ela, Amapola, com suas mãos de lírio, espalhar cremes nas minhas costas feridas, aplicar compressas, chorar à beira do nosso leito, sem compreender o bicho que corroía minhas entranhas, esse estranho verme chamado amor. E houve um dia em que pensei: não hei de vê-la envelhecer. Não quero dizer-lhe, quando nada mais nos restar do que um par de estações já sem brilho ou cor, não quero dizer, então, do nosso imenso pecado. Não quero vê-la chorar pelo abismo que foi a nossa vida em comum, essa estranha sina, que nos fez tão felizes e também tão desgraçados. E mais: não quero vê-la gasta; não mais esse frescor e essa perfeição que me assustam, mas outra, já trêmulos os seus gestos e sem brilho a sua tez, uma mulher velha, como o são todos os velhos, com seu cheiro, não celeste como o que dela hoje se exala, um cheiro de rara flor; mas um odor acre de coisas passadas, um bafio triste e nauseabundo e infeliz. Talvez eu seja um louco; a maioria dos homens quer o tempo em toda a sua conta, mas não eu. Eu que violei todas as regras, também hei de burlar esta, a minha última. Hei de morrer no dia e na hora em que me aprouver, quando já não restar dentro de mim um sopro que não seja de medo, um suspiro que não venha arrependido, um olhar que não seja de saudade. Eu hei de morrer à hora boa, quando o sol estiver alto, no momento exato, muito calmo, como se fosse iniciar mais uma tela. E estarei atento à luminosidade e aos murmúrios do dia, e a última coisa em que ousarei pensar será nela. Amapola. Por quem eu vivi, e para quem morrerei. Para sempre.

Marco

 

Augusto fitou Zeca. Não disseram uma palavra. Augusto baixou os olhos para o chão carcomido pelo tempo e pelo descaso. Depois disse:

— Em São Paulo, fotografaremos cada um destes textos. Quero-os comigo, de algum modo.

Zeca aquiesceu. Começou a tomar as medidas para a confecção daquela caixa, uma das poucas que não viria pronta de Porto Alegre, pois ainda na noite anterior passara ao marceneiro todas as metragens dos quadros de Belucci.

O ruído de um carro subindo a estradinha que levava à casa cortou a manhã silenciosa.

— Deve ser o marceneiro — disse Zeca, acorrendo à janela.

Uma caminhonete azul, antiga, estacionava em frente à casa. Era o marceneiro. Augusto ordenou a Zeca que descesse para receber o homem e seu auxiliar.

— Depois subam, os três. Acompanhe o trabalho deles como um gavião, meu caro amigo. Não quero nenhum problema com os quadros.

— E se eu precisar de você?

Augusto tocou a chave no bolso da calça.

— Estarei por aí. Vou dar uns telefonemas, Zeca. Enquanto eles estiverem trabalhando, não saia daqui. Assim que eu acabar as minhas tarefinhas, apareço para estar com vocês.

Ambos saíram para o corredor. Augusto encostou a porta do ateliê. Era a primeira vez que não a chaveava. Sentiu uma certa angústia. O marceneiro e seu ajudante entrariam ali, quase um sacrilégio. Mas o tempo de esconder Marco Belucci havia acabado. Agora mesmo, ele iria desvendar a última fronteira. O quarto fechado. Tinha certeza de que ali encontraria algo que o ajudaria a entender o lado obscuro da alma de Marco Belucci. O lado obscuro daquele seu amor insano e cheio de mistérios que os quadros do estúdio faziam por perpetuar.

 

Augusto sabe que Ana está velando o marido na pequena capela do cemitério local. Mais tarde, também irá até lá dar-lhe os pêsames. Neste momento, no entanto, a morte do pobre Mateus parece-lhe um assunto longínquo. Ele pensa apenas na alcova do fundo do corredor, e a velha chave negra e pesada queima na palma da sua mão como se fosse brasa.

Segue pelo corredor silencioso, deixando Zeca descer, rumo à varanda, onde o marceneiro ainda o espera; depois vai adiante, o solado dos seus sapatos imprime suaves murmúrios aos seus passos. Da rua, pelas janelas cortinadas, entra apenas o assoviar dos pássaros nas árvores, e o brilho pálido do sol daquela manhã outonal. Augusto anda uns poucos passos até chegar à porta fechada. Sente-se uma espécie de gatuno, mas como é boa essa emoção. Ele sabe, por algum estranho pressentimento, que Marco Belucci aprova o seu gesto, a sua pequena transgressão. Há um segredo a ser revelado, não para o mundo (o mundo nem sempre tem a doçura necessária ao amor), mas para ele, escolhido para ouvir aquelas confidências tão misteriosas; para ele que soube juntar os cacos de um amor que, a seu tempo, foi maior do que a própria vida, e tanto que a negaceou, burlou, surpreendeu e transcendeu.

A chave entra facilmente no buraco da fechadura, mas é difícil a manobra de girá-la, de fazer relaxar o trinco há tanto tempo sem uso. Augusto força-a um pouco; então a chave completa a sua volta e a porta de madeira se abre com um único e cansado gemido.

Augusto Seara vê apenas a escuridão. Um cheiro bolorento sobe às suas narinas, e ele espirra. A rinite outra vez, impiedosa e tão sem tato... Este é um encontro de amor. Clandestino, é certo, mas um encontro de amor. Ele ri baixinho, parado no meio do quarto escuro. Às vezes pensa coisas tão tolas: como se a clandestinidade não ajudasse os amores! Alguns vivem dela a vida inteira. Os amores secretos, os que ardem no escuro, os grandes incêndios da alma... Eu quase me esqueço... A maioria das minhas paixões, meus pseudo-amores, todos clandestinos, de um modo ou outro, e todos almejando essa coisa maior, essa coisa que posso pressentir aqui, entre estes móveis antigos, estes pertences esquecidos, neste quarto trancafiado.

Tira do bolso do casaco a lanterninha e acende-a. O facho luminoso mal vence a pertinaz escuridão da peça. Augusto fecha a porta atrás de si e, focando a lanterna para o fundo do quarto, descobre o que procura: a janela. Abri-la não é fácil, as tranquetas de ferro dormem há muito tempo, esquecidas. É preciso forçá-las várias vezes, até que uma delas então cede, fazendo correr a veneziana de madeira e abrindo assim uma das folhas da janela, por onde agora penetra a luz do dia, como um farol que corta o negror dessa alcova esquecida. Sim, é um quarto perdido no tempo, e Augusto Seara espanta-se com a grande cama ancorada bem no centro da peça, ainda com a sua velha colcha de seda, agora coberta de pó. Uma cama de dossel. Como convém a um grande amor... O filó que pende da armação de madeira mais parece uma imensa teia de aranha, mas há ainda uma poesia em seu leve balouçar: esta brisa que entra pela janela e que não entrava havia tanto, esta luz que outrora iluminou dois corpos amantes. A cama revive, de algum modo, e Augusto sabe que ela já foi um palco e um ninho.

Ele anda cuidadosamente pelo amplo quarto. Uma pequena porta descortina-lhe o banheiro azul, manchado de umidade, com sua banheira de louça branca a um canto, agora suja e triste, como uma pomba morta. Quantos banhos nesta banheira? Quantos aromas e vapores e gemidos? Quase posso sentir os risos dele e de Amapola, a morneza da água, o calor dos dois corpos imersos... E este espelho já quebrado, quantas vezes não refletiu o corpo dela, perfeito como um sonho, quantas vezes?

Augusto sente a emoção chegar como um fantasma amigo que vai aos poucos tomando seu corpo, soprando-lhe palavras, fazendo umedecer de lágrimas os seus olhos. Sempre teve um grande carinho pelos quartos de banho antigos, verdadeiros ninhos secretos e deliciosos... Então, retorna outra vez à alcova. Ali reina um silêncio quase sepulcral. Ele pisa com cuidado para não acordar os mistérios que ali se escondem. Não, ele não quer despertar o amor que um dia viveu nessa peça e que talvez, ainda agora, esteja dormindo nessa cama o seu sono eterno e sobressaltado de amor pecaminoso. Estou a desvendá-los como quem monta um quebra-cabeça, como um arqueólogo talvez... Cada pequeno objeto, a caixinha de jóias sobre o criado-mudo, ali esquecida, uma bela peça em madrepérola. Amapola partiu com urgência suficiente para não levá-la consigo... E deve haver mais. Deve haver muito mais nesta alcova... Sim, ele sabe que o grande armário, no fundo do quarto, deve guardar os seus segredos. Mas, ainda assim, perde alguns instantes com outros pequenos objetos ali deixados por Amapola: uma escova de cabelos com cabo de prata, um pequeno camafeu, um velho pano de seda comido pelas traças. De Marco Belucci, o que haveria ali? Augusto não pode precisar. Talvez a caixa de madeira, vazia, a um canto, uma pequena gilete caída atrás da poltrona que fica perto da janela... E alguns livros numa estante, livros italianos, com suas velhas capas de cores amareladas. Livros que ele deve ter lido nas suas longas noites de insônia, quando não agüentava mais apenas pensar nela, na mulher amada. De resto, parece-lhe que Amapola levou tudo dele... Mas ainda há o armário, o grande armário amarelo, agora desbotado, com seus trincos de metal. Augusto dirige-se para ele, abrindo a primeira das portas para encontrar as prateleiras repletas de caixas vazias, às quais ele abre uma a uma, em busca de vestígios. Encontra apenas um pulôver de azul muito pálido, que deve ter sido de Marco.

Na porta seguinte, algumas velhas fotografias, um livro de viagem escrito numa letra feminil. Dela, certamente... Todas as reminiscências de Marco estão nas costas dos seus quadros. Mas Amapola, não, ela escrevia um diário ou um livro de viagens. Folheia-o, rapidamente. E lê, numa página: “Somente agora, já no fim desta longa travessia, é que chego a compreender-lhe os silêncios. Um homem diferente dos outros que já vi, e todos são tão emproados e ricos neste navio. De dia, a verdade é que me contento em apenas existir ao lado dele, como um vulto, não muito necessário, mas agradável talvez, até mesmo decorativo, por que não? Eu aceito esta discrição de ser coisa e não gente. Um alívio, confesso... Deve sempre haver um momento na vida de uma pessoa em que é necessário não pensar, apenas existir, como um abajur ou um marcador de livros. Durante o dia sou apenas isto: uma bela mulher, exatamente igual a um troféu ou uma jóia ou uma tela. Um adorno. E é tão bom... Apenas estar ao lado dele, a brisa marinha em meu rosto, sem pensar, sem ser. O quão doces são esses momentos... É que Marco precisa desenhar, seus olhos então existem apenas para a arte. À noite é que eles se abrem para mim. Ah, mas como vale a vida, nessas horas secretas...”

Augusto Seara suspira. Enfim, um pequeno rastro dela. Amapola Maestro, a mulher do colar de pérolas, a musa. Deveria ter dezesseis anos, não mais, quando desta viagem que ela narra, a vinda para o Brasil... Sim, e ele pode realmente ver o pintor naquelas linhas, o fugidio e envolvente Marco Belucci, com seus pincéis, seus desenhos e sua paixão.

Há pouco mais naquela porta do armário, uma caixa com velhas meias de seda, um livro de orações, antigas flores de tecido já quase despetaladas. Augusto vai então para a última porta. Há quanto tempo estaria ali, naquele quarto? Lá em cima, Zeca e o marceneiro esperam por ele. É preciso apressar-se; mas como deixar de lado cada um desses velhos tesouros de amor? A minúcia é fundamental para os amores, mesmo para os amores que já feneceram... Cada pequeno objeto destes, ah, quanta vida ainda palpita neles... Apenas vê-los e pensar que um dia fizeram parte daquele amor, quando Marco e Amapola ainda circulavam por este quarto, ainda se amavam sobre esta cama. Quando o pintor ainda vivia.

Augusto abre a última das portas do armário. Muitas gavetas ali, gavetas estreitas, quase nichos. Jóias e documentos e outras papeladas e pequenos pertences deveriam ficar ali. Ainda existem resquícios, e suas mãos ávidas começam a remexer nas gavetinhas. Zeca que me espere um pouco mais. E a pobre Ana... Decerto vem logo para casa, preparar-se para o enterro. Augusto abre as gavetas, uma a uma. As duas primeiras estão vazias. Na terceira, há um botão forrado de seda vermelha. Ele mexe o botão entre seus dedos, um botãozinho delicado e miúdo. Talvez arrancado do seu lugar numa noite de amor... Na quarta gaveta, uma velha carta de Marco Belucci. Sim, ele reconhece aquela letra esparramada e vívida, os mesmos is e os mesmos erres, a letra eme tão altiva e elegantemente torneada. Augusto lê a pequena carta: Marco Belucci escrevendo para um marchand europeu. Um texto lacônico, onde ele promete uma tela para breve. Provavelmente, uma das pouquíssimas telas de Marco que estão na Itália. Todas as outras aqui, nas minhas mãos. Augusto sente a grande responsabilidade que lhe pesa. Dobra a carta do pintor com carinho, devolvendo-a ao seu lugar tão antigo, entre o pó do tempo e velhos lápis já sem ponta. Então, volta ao seu escrutínio. Mais duas gavetas vazias, e uma outra contendo um antigo vidro de perfume francês. O cheiro de Amapola, já evaporado após tantos anos. Apenas um invólucro em vidro e metal dourado, um pequenino sarcófago do perfume que habitava a pele dela... Seu nariz inquieto e fraco nada pressente ali. A rinite roubou-lhe o olfato há muito tempo.

Acabaram-se as gavetas. Augusto Seara ajoelha-se no chão, sem se preocupar com suas calças, logo ele, um homem tão zeloso. Na parte inferior do guarda-roupa há uma série de pequenos nichos. Talvez para sapatos, caixas de chapéus, pastas de documentos. Ele não sabe bem para quê. Sandálias de salto, para os pés de uma dama elegante. Talvez as meias de seda ficassem guardadas aqui, nas suas caixinhas de papel, e quem sabe se os chapéus que já não captavam mais a atenção de Amapola dormissem nesses nichos como velhos mortos num cemitério... Augusto enfia a mão no primeiro compartimento. Tira dali uma meia de seda solitária, sem o outro pé. Furada aqui e ali, comida pelas traças. Como um fantasma traspassado pela luz que vem da rua. De um outro nicho, sai correndo uma barata, assustada com aquela presença inconveniente e perturbadora. Augusto dá um pulo. Sempre detestou as baratas, desde menino. Mas como retroceder? A mão que penetra no compartimento seguinte é decidida: se houver alguma coisa ali, ela a encontrará. E qual não é a sua alegria ao trazer para a luz o pequeno estojo de couro, amarrado com um cordão. Sim, aquela mão assustada resgatou, do seu túmulo, aquele pequeno e misterioso tesouro.

O couro negro está embaciado pelo pó. Augusto Seara limpa-o nas calças, ansiosamente. Sabe que tem consigo um pertence de Marco Belucci. É um pequeno estojo masculino, daqueles em que se guardam jóias ou relógios ou cartas. Esquecido aqui, lá no fundo do seu nicho, esquecido por vinte anos... O que haverá aqui dentro? Os dedos de Augusto começam a desatar o apertado nó quando, do corredor, vem o chamado de Zeca. Sim, é a voz do ajudante que reverbera pela casa. Uma falta de respeito somente permitida pela ausência de Ana. Mas que maldito azar! Zeca precisa de mim. Levanta-se apressadamente. Prende o estojo na cintura, encobrindo-o com a blusa, para que Zeca não o perceba. Preciso chamar-lhe a atenção. Gritando pela casa, como se fosse o dono! Sai correndo da alcova, tomando o cuidado de trancar a porta. Assim que for possível, vai devolver a chave ao seu lugar de origem: o molho que ficou sobre a mesa da cozinha à espera de Ana.

Augusto Seara sai para o corredor e dirige-se para a escadaria. Zeca vem subindo apressadamente, à sua procura. Ao vê-lo, o jovem aprendiz sorri.

— O marceneiro acabou o seu trabalho, Augusto. Precisamos que venha conferir tudo antes que chegue o caminhão da transportadora.

Augusto Seara aquiesce. Está sujo de pó, mas Zeca nada lhe pergunta.

— Então, vamos lá, meu caro Zeca. Nosso trabalho nesta casa está se encerrando... — Suspira, entre aliviado e triste. E sente, preso à sua cintura, o valioso volume. Ah, como almeja, por um instante, a solidão do quarto de mogno, onde poderá ver o seu tesouro com toda a privacidade possível.

A caminho do estúdio, Augusto recorda-se de que deixou no quarto antigo a lanterna de Zeca. Dá de ombros, alegremente. Compro-lhe outra em São Paulo. Pena que a pequenina lanterna vá macular a alma daquela alcova... Os bons arqueólogos não deixam vestígios, mas eu tenho ainda muito o que aprender. Eu tenho ainda muito o que aprender sobre tantas coisas. Principalmente sobre o amor. Sorri, e seu sorriso serenado e doce parece estranho a Zeca, que o acompanha silenciosamente.

 

Faz pouco que Ana chegou, o rosto lacrimoso e cansado. Também chegaram os homens da transportadora, que agora trabalham no pequeno estúdio, enumerando as caixas que logo irão atravessar a casa pela primeira vez, prisioneiras enfim libertas. O caminhão da transportadora está estacionado em frente à varanda, esperando a sua carga.

Augusto está em seu quarto. Vai ao enterro, precisa banhar-se, tirar o pó do corpo, vestir alguma coisa conveniente. Mas antes, ah, que ansiedade, o estojo de couro negro. Senta-se na cama com ele ao colo, desfaz o nó que o prende com todo o cuidado, como se despisse o grande amor da sua vida, suave e amorosamente. Um cheiro de mofo enche-lhe as narinas, mas Augusto não titubeia, o sorriso não lhe sai do rosto. É como se Marco Belucci estivesse ao seu lado, aguardando, um fantasma ansioso pelo desfecho daquele ato. E então, Augusto Seara abre o estojo. Dentro, um rolo de papel encorpado, repleto de palavras em italiano. Augusto desenrola a longa folha cuidadosamente, para encontrar, na sua parte interna, um desenho feito a carvão. A bela Amapola debruçada na amurada de um navio. O traço exato de Marco Belucci dando emoção àquele rosto impressionante, dando vida àquelas pupilas arregaladas por um eterno espanto (ou seria medo?).

Lá fora, vozes e ordens. Os quadros estão sendo carregados para o caminhão da transportadora. Ali dentro, aquele silêncio de oração. Augusto Seara vira lentamente o desenho, em busca do que haverá do outro lado. Olha então a face do papel onde pode ver palavras escritas na letra de Marco, palavras miúdas e apertadas, que ocupam com perícia toda a extensão da folha de papel. Um texto sob um esboço, como o esboço de uma confidência. Ele não ousou escrever isto em uma tela... Então, talvez esteja aqui o seu segredo. Seus olhos se apertam no esforço de decifrar as consoantes desenhadas, as vogais bem-feitas. Ele pega os óculos, sobre o criado-mudo. Como um título, sobre o texto, está escrito: Mulher na proa do navio.

 

Foi somente quando acabei de pintar Amapola que eu tornei a rever Antônia Maestro; ela aguardava-me em seu escritório, ainda a voz morna e volátil, ainda a beleza bem vestida e pródiga, ainda os mesmos olhos frios.

— Vejo que você apreciou a minha filha, Marco Belucci. Há um novo brilho em seu rosto.

Como um rapaz reagiria a um dito como este? Eu era muito tímido, então. Devo ter desviado os olhos dela, que se ria de mim. Mas, além daquele sarcasmo, havia uma urgência que eu podia mensurar nos seus gestos cuidadosos, enquanto ela andava pela peça repleta de quadros raros, um Rembrandt, um Botticelli, um Renoir. Alguma coisa em Antônia Maestro denotava a sua ansiedade, a mão tremia-lhe levemente, o pulso fino, envolto numa pulseira de pérolas, parecia expectante. Por fim, ela aproximou-se até que pude me ver refletido naquelas retinas cinzentas e glaciais. Tinha um segredo a contar-me. Um segredo doce e maravilhoso que poderia mudar a minha vida. Amapola amava-me. Confessara-lhe isso ainda na noite anterior, temendo jamais me ver após a feitura do seu retrato, e pedira-lhe — ah, pedira-lhe tanto! — que ela permitisse o nosso amor. Sim, a verdade era que Amapola se sabia correspondida por mim, tinha certeza do meu amor por ela.

Eu nada dizia, apenas tentava conter a apreensão e o medo que se imiscuíam em meu peito. Vontade de amar Amapola, vontade de fugir dali para sempre. Um precipício escarpado.

Antônia Maestro parecia escolher palavras, calmamente, como quem seleciona a melhor jóia para um determinado vestido de noite. Então, ela disse:

— Amapola não sabe nada da sua vida, Marco Belucci. É uma moça ingênua. Ama-o, apenas. Um amor puro, que merece a sua devoção. — Suspirou. — Eu quero ver minha filha feliz, Marco Belucci. E quero ainda mais. Eu também tenho os meus sonhos, certamente. E você pode realizá-los para mim, Marco Belucci. Em troca do meu silêncio.

Os pulsos cobertos de pérolas aquietaram-se enfim sobre a mesa de mogno onde ela apoiara o corpo para fitar-me com mais ênfase. Ela também tinha um sonho. Era um sonho antigo. E nisso éramos semelhantes.

— Vou explicar-lhe melhor, Marco Belucci. Você almeja pintar o quadro perfeito. Você gostaria, não? O quadro inenarrável, depois do qual nada poderia ser inventado ou causar emoção. Pois eu também almejo algo semelhante. Porém o meu sonho é mais complexo. O meu sonho tem carne, nervos e sangue, meu rapaz. Mas também quer roçar a Beleza... Eu desejo criar, nascida do meu sangue, a pessoa mais bela jamais vista neste mundo, Marco Belucci. A beleza apurada ao extremo, a beleza guiando o futuro da minha descendência! E, para isso, eu preciso de você... Para isso, eu permiti que Giordano vivesse a sua vidinha dupla por todos aqueles anos, que fosse e viesse como bem lhe aprazia, Marco Belucci. Porque eu o conheci em menino, e tive a certeza do belo homem que você haveria de se tornar... — Ela sorria o seu riso perturbado. — Você e Amapola formam um casal perfeito, meu rapaz. E, enfim, eu serei recompensada pela humilhação do meu casamento.

Lembro que ela se tomava de euforia, que seus olhos saltavam das órbitas. Talvez já fosse louca então. Mas eu não pensava em nada do que ela dizia, apenas na chance de possuir Amapola, a chance que aquela loucura me proporcionava. Sim, pois Antônia Maestro desejava dar-me a sua única filha, ofertava-me aquele corpo e aquela alma em troca de um neto! Via em mim o homem ideal, uma espécie de reprodutor. Mas logo eu, entre tantos, logo eu, o impossível!

— Você me oferece Amapola?

Ela deve ter sorrido ao ouvir a minha trêmula pergunta (os sorrisos dela, lindos e vagos, tinham o poder de humilhar o seu interlocutor).

Ela aquiesceu, lívida de euforia. Sim, era uma troca, um pacto, um negócio. Amapola seria minha para sempre. Mas não ali, não em Pegli, ou em Portofino, nem ao menos na Itália, onde nosso amor não poderia vingar como merecia. Iríamos embora para um lugar onde ninguém nos conhecesse, onde seríamos felizes, marido e mulher como quaisquer outros. Ela nos proporcionaria o conforto do seu dinheiro, ela nos compraria o segredo e a paz. Eu, tonto de desejo, achava tudo aquilo perfeito; não havia mais Angélica, nem meus irmãos, nem consciência — nada suplantava meu amor por Amapola —, era portanto lícito quebrar os grilhões que me prendiam à Itália e partir rumo à felicidade.

Antônia Maestro prosseguia falando.

— Tenho passagens compradas para o Brasil, Marco Belucci. Passagens datadas para breve. A guerra logo chega e, ao contrário do que todos esses italianos sentimentais pensam, Il Duce vai arruinar esta nação. Ele é idiota o bastante para colocar-nos no front. Ademais, Marco Belucci, você é judeu. A Europa não é mais um lugar seguro para a sua gente. Pense nisso.

E foi assim que eu parti. Por amor a Amapola, pelas falácias de Antônia Maestro, por esta minha índole talvez imprestável, satânica, desvirtuada. A índole de um homem que ousou quebrar todas as regras, que amou em silêncio durante uma vida inteira a única mulher que, entre todas, lhe era proibida. E nunca lhe disse nada, nem uma palavra, um suspiro que fosse... Um homem covarde, é o que sou. E meu amor, por maior que seja, nada vale perto de todas essas faltas. Um louco, como Antônia, assim me vejo. Pois que nunca, jamais, em todos esses anos, nesses milhares de dias, nos incontáveis momentos em que estive com ela, meus lábios colados na pele dela, eu fui capaz de fitar Amapola no fundo dos seus olhos e dizer-lhe: Tu és minha irmã, mulher.

Por isso, eu fugi da Itália. Por isso, enlouqueço aos poucos. Mas a loucura do amor é como o vinho, nos alegra, embriaga, entontece. Por isso, voltei sempre à mesma taça. E morrerei bebendo dela.

 

Augusto Seara acaba de ler. As telas de Marco Belucci, como num sonho, começam a passar ante seus olhos. Uma espécie de filme. E sempre Amapola, a grande estrela, a musa. A irmã. Um amor tão grande haveria de compreender tal realidade? Homem e mulher feitos do mesmo sangue, adorando-se com toda a ânsia da qual um ser humano é capaz, e aquela verdade, aquela verdade inegável, ambos filhos de Giordano. Ele, o bastardo. O pintor judeu exilado e cheio de remorsos. O grande talento assombrando pela magnificência de uma paixão proibida pelo mundo. Ela, a menina rica. Bela e sonhadora. Presa numa teia desconhecida, sem saber que dormira a vida toda no mesmo leito do seu único irmão. Augusto recorda-se tão bem de Amapola Maestro... Por isso aqueles olhos vagos, aquela tristeza latente. Por isso, tanto segredo. Com a morte de Marco, Amapola deveria ter, finalmente, descoberto o segredo que a mãe e o pintor haviam guardado dela por tantos anos. Ela, uma pecadora. E Marco Belucci morto, talvez redimido para sempre daquele horror. Mas não Amapola, que precisou conviver com o incesto cometido para o resto dos seus dias. Com o gosto do nome do amante na sua boca, eternamente. Serão saudosas as suas lembranças? Ou Marco Belucci hoje é apenas o fantasma de um pesadelo longo e irreal, de um amor perdido numa inocência que já não vive? Nunca saberei ao certo... Mas dentro dos olhos dela, eu vi, naquela tarde, havia, sim, uma chama. O amor, latente e quieto, sob as cinzas do que foi, um dia, a felicidade.

Enrola cuidadosamente a folha de papel, apreciando, mais uma vez, o desenho de Marco Belucci. Não, aquele esboço, perdido de tudo e de todos, não irá jamais chegar aos olhos dos outros. Este é um favor que ele, Augusto, deve aos dois amantes. Um favor que deve, antes ainda, ao próprio amor, que não pode ser vilipendiado ou maltratado ainda mais. Talvez, deva entregá-lo nas mãos de Amapola Maestro; mas então, como saber o que ela fará dele? Como saber o destino dessa obra tão bela, desse segredo balbuciado nesta letra furtiva e miúda, o desafogo de uma alma pesada de angústia, incasta e culpada, mas culpada de amar? Augusto suspira. Sabe, no seu íntimo, que vai guardar para si o desenho. Carvão sobre papel. Mulher na proa do navio. Há um pequeno cofre sob a sua mesa, na galeria. Lá estão guardadas algumas coisas de valor pessoal, jóias que eram da sua mãe. É para lá que vai o esboço de Marco Belucci. Quer tê-lo sob si, para sempre. Será uma espécie de guardião desse segredo. Um pequeno furto... Mas mais do que isso, uma espécie de remissão. Agora outra pessoa conhece o segredo de Marco Belucci. O seu amor proibido. O seu pecado e a sua felicidade. Agora esta casa pode ser esquecida, abandonada ou vendida. O amor bateu asas daqui, vai comigo para São Paulo.

Augusto Seara torna a guardar o desenho no seu estojo. Procura sua valise pessoal e ali acomoda o pequeno tesouro. Uma Gucci para um amor italiano. Sorri, docemente. Agora vai tomar um banho rápido. Vai ao enterro do marido de Ana. Há mais uma coisa que deseja fazer no pequeno cemitério da cidade. Precisa dar adeus a Marco Belucci.


A grama verde era macia sob a sola dos seus sapatos. A tarde agora apresentava um céu de azul pálido, onde o sol apontava preguiçosamente. Augusto Seara reparou, com certa tristeza, que havia poucas pessoas no cortejo. Ana ia à frente, usando um xale longo e negro, a cabeça levemente encurvada na sua tristeza de viúva. Ninguém chorava. Seis homens carregavam o caixão de madeira escura com algum esforço, serpenteando pelos caminhos entre as lápides. O cortejo à cova aberta na terra, uma boca escancarada e úmida. Um padre destacou-se entre as pessoas com a sua batina negra, gasta pelo uso.

— A Ti, Senhor, levanto a minha alma — a voz do padre varou a tarde sonolenta e úmida.

Augusto Seara afastou-se discretamente do pequeno amontoado de pessoas. Trazia consigo um ramo de dálias brancas e graúdas, que segurava carinhosamente. Dahlia variabilis. Elas não tinham odor, talvez por isso lhe parecessem mais apropriadas para Belucci. E brancas, como uma tela virgem.

Adiante, Augusto notou o vulto de um coveiro, que trabalhava quieto, recolhendo mato por entre os arbustos floridos. Dirigiu-se até ele, e lhe fez algumas perguntas em voz muito baixa. De onde estava, podia ouvir o sermão do padre, que falava em vida eterna e em perdão dos pecados. O coveiro indicou-lhe um caminho, à direita.

— O pintor que se jogou da janela... Conheço bem a história — disse o coveiro. — O túmulo dele fica perto do muro de pedras, lá no fundo.

Augusto agradeceu. Respirava o ar da tarde, avançando pelo caminhozinho de terra batida entre os túmulos com seus nomes e suas fotografias desbotadas. Caminhar por cemitérios era uma coisa estranha. As flores cresciam viçosas ali. Seu coração batia ansiosamente dentro do peito. Era como se estivesse para dizer adeus a um velho amigo. Sim, agora que ambos dividiam aquele segredo, era como se fossem amigos, mais do que isso, confidentes.

Augusto reconheceu o nome de Belucci na lápide malcuidada e gasta pelas intempéries. Ninguém costumava vir ali lhe render homenagens, era fácil perceber. Sobre o seu túmulo, não havia flores. Na lápide de mármore, apenas o nome escrito em letras de cobre, e a fotografia. O rosto dele, tão belo, com um ar de espanto eterno, como que assustado por estar ali, atrás daquele vidro sujo de pó, olhando a campina à sua frente, para sempre. Pobre Marco... Esquecido, na morte. Mas vibrando dentro dos olhos azuis de Amapola Maestro. (Sim, Augusto sabia que ela ainda o amava; escondida sob as jóias, o penteado sóbrio, o rosto contido, havia ainda aquela moça linda, ardente, a moça dos quadros.)

Augusto ajoelhou-se em frente à lápide.

— Meu caro amigo... — Ele estava emocionado. — Agora eu sei de tudo sobre o seu amor. E eu o compreendo. — Na pedra, estava a inscrição da morte de Marco Belucci. 18 de setembro de 1958. Con amore, per sempre, Amapola. Augusto correu os dedos pelas letras presas no mármore. — Vou levar algo de seu, meu amigo. Eu o guardarei com cuidado, para sempre. E, quanto às suas telas, elas terão o reconhecimento que merecem. Agora, você pode descansar em paz... Amapola não o esqueceu. Eu vi amor dentro dos olhos dela. — Augusto deixou as flores sobre o túmulo, depois se ergueu, calmamente. Um vento de chuva começava a soprar, vindo do campo. — Adeus, Marco Belucci. Adio, caríssimo.

Saiu andando pelo cemitério descampado. Estava sozinho. Ana e os outros decerto já se encaminhavam para a casa. Ele também teria de voltar lá, ainda uma vez, para pegar seus pertences. Ainda teria de voltar lá, por um instante que fosse. Olhar uma última vez a fachada daquela casa, a janela por onde Marco jogara-se para a morte, por amar demais.

Os sapatos de Augusto deixavam pegadas na grama. Nuvens escuras uniam-se rapidamente no céu, formando uma massa cinzenta e baixa. Alguns pingos de chuva começavam a cair, molhando sua roupa. Augusto Seara apressou o passo, correndo em direção ao carro, estacionado na entrada do cemitério. Ali dentro, um cheiro de couro novo, de coisas conhecidas, de segurança. Girou a chave na ignição e manobrou em direção à pequena estrada que levava à propriedade Maestro.

Augusto olhou para o lado, rapidamente. Acomodada no banco do carona, estava a valise Gucci e, ali dentro, seu pequeno tesouro, Mulher na proa do navio. Sentiu os olhos arderem de lágrimas contidas. Nunca mais seria o mesmo depois daqueles dias na serra gaúcha, depois do pintor italiano, depois de Amapola. Agora ele era o depositário de um segredo de amor.

Girou a direção para a direita, acompanhando a curva da estrada. A chuva tamborilava no pára-brisa do carro. Ligou o rádio, uma valsa. Em poucos minutos, estacionava em frente à grande casa branca e solitária, lânguida por causa da chuva. Zeca estava parado num canto da varanda, esperando por ele. Ana, no seu vestido preto de viúva, também estava ali.

Augusto Seara desceu do carro, correndo para escapar da chuva.

— Vamos, meu caro Zeca? Ainda temos estrada até Porto Alegre. E, agora que nosso trabalho acabou-se, não há mais desculpas para permanecermos aqui, na companhia da nossa Ana.

A caseira sorriu, tristemente. Augusto abraçou-a.

— Você fará o quê, minha amiga?

— Vou embora, cedo ou tarde. Sem Mateus, meu trabalho aqui também se acabou, senhor Augusto. — E acrescentou, com os olhos úmidos: — Adeus. Foi um prazer tê-los aqui.

Zeca correu até o carro, carregando as duas malas, que acomodou no bagageiro. Augusto deu um último olhar para a casa (no andar superior, a janela do estúdio era como um olho do outro mundo), depois acenou para Ana e também adiantou-se em direção ao Opala preto. Zeca deu a partida no carro.

A estrada sob a chuva fina tinha um ar de sonho. O carro seguia pelo caminho nebuloso, suavemente. No rádio, agora, Bach. Augusto Seara recostou-se no banco do carro, suspirando. Em seu colo, a Gucci abraçava o desenho de Belucci.

— Me bateu uma espécie de nostalgia... — disse Zeca. — Você não está triste por partir?

Augusto sorriu.

— Não, Zeca. Na verdade, estou muito feliz.

Zeca pareceu não compreender.

Augusto tocou no couro macio da sua pasta, sentindo, ali dentro, a vibração do tesouro que Marco Belucci lhe deixara (e que ele tão corajosamente trouxera consigo), a vibração das palavras guardadas naquela folha de papel desenhada a carvão. Um dia, quando estivesse velho demais para esperar pelo futuro, elegeria uma outra pessoa, dar-lhe-ia o quadro de Belucci e o desenho, contar-lhe-ia aquela história, pedir-lhe-ia que, ao seu tempo, fizesse o mesmo, escolhendo um filho ou um grande amigo para transmitir o seu legado. Assim, cumpriria a sua tarefa: transformaria aquele amor de pecado numa espécie de lenda, imune ao tempo e purificada pelos anos. E eterna, talvez.

Augusto aumentou o volume do rádio. A melodia encheu o carro com seus acordes perfeitos. Lá fora, o mundo era quase noite, úmido e silencioso.

 

 

                                                                  Leticia Wierzchowski

 

 

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