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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PIRATA / Anne e Serge Golon
O PIRATA / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No grande mapa da Europa em que Luís XIV traça seus planos de conquista, a larga mancha azul do mar Mediterrâneo é identificada com as quatro palavras prestigiosas: "Maré nostrum - Mater nostra". A antiga denominação ainda voga em meados do século XVII entre os geógrafos para designar o berço das civilizações: "Nosso mar - Nossa mãe".

Os imperialismos dependem do domínio dos mares. No Mediterrâneo da época, contudo, não há vencedores no eterno confronto entre a Cruz dos cristãos e o Crescente do islamismo. Apesar da atuação dos valorosos Cavaleiros de Malta, que empurraram o poderio marítimo muçulmano para além da ilha de Creta, o litoral francês vive sob permanente ameaça dos piratas argelinos e berberes, cuja ousadia não tem limites. Não só capturam os navios mercantes, como impunemente sequestram habitantes cujas moradias não estejam bem armadas e fortificadas - na época chegam a acumular mais de 50.000 cristãos cativos. O escravo é a única moeda boa de troca e especulação.

Nesse imenso caldeirão da História, onde se misturam uma profusão de raças, paixões e interesses contrários, Angélica, indomável, vai buscar seu amor. Um herói desaparecido numa rota onde as miragens se entrecruzam...

"Você deve ser belíssima nos braços de um homem por quem esteja apaixonada" suspira o Terror dos Mares. "Queria ser esse homem!"

A chama da esperança voltara a arder no coração de Angélica.

Depois de ter acreditado que o grande amor de sua vida,o Conde Joffrey de Peyrac, estava morto, adquirira uma inabalável certeza de que tornaria a encontrá-lo.

Dez anos haviam se passado desde o macabro espetáculo do marido na fogueira em praça pública. Parecia a Angélica que vivera várias vidas desde aquela época. Alternara-se entre a mais baixa miséria e o auge da riqueza e da glória. Casara-se de novo, com um nobre de sangue. Reinara sobre o coração do Grande Rei. E agora tudo aquilo se extinguia como um sonho.

Uma coisa era certa: a doce Marquesa dos Anjos jamais voltaria a Versalhes. Em busca de seu amor, ela largaria tudo e partiria em direção ao homem de seu destino.

Que riscos esperavam essa mulher enlouquecida pelo desejo no misterioso e turbulento mar Mediterrâneo, caldeirão infernal de raças, crenças e interesses contrários, onde se digladiavam os piratas, aventureiros, mercadores de escravos? Onde a mulher, moeda de especulação e troca, só podia escolher entre o suplício dos renegados e a servidão nos haréns. Lá, onde brilhava seu amor como uma estrela na escuridão...

Eufórica e agitada, Angélica voltara da audiência em Versalhes levando para casa os relatórios que o rei lhe fornecera sobre a prisco e a fuga de seu grande amor, o Conde Joffrey de Peyrac, desde que fora salvo da fogueira. Ao passa, pelos jardins do palácio nem notara as reverências dos transeuntes, que se inclinavam, saudando a Sra. du Plessis-Bellière, a nova favorita. Apesar de Luís XIV insistir em que Joffrey não sobrevivera, em seu íntimo pulsava uma certeza: em algum lugar do mundo, em um ponto desconhecido, ele vivia, ele a esperava. Não importava que o rei, apaixonado e ciumento, a proibisse de deixar a cidade - ela o encontraria!

 

 

 

 

A PARTIDA

CAPITULO I

A Recusa de Desgrez

A carruagem do tenente-adjunto de polícia, Sr. Desgrez, cruzou o portão de sua residência particular e voltou-se lentamente, oscilando sobre as grandes lajes da,Rue de la Commanderie, no Fau-bourg Saint-Germain. Era uma equipagem sem luxo mas opulenta, madeira escura lavrada, suficientes galões de ouro nas cortinas das portinholas, frequentemente cerradas, dois cavalos malhados, um cocheiro, um criado, enfim, a equipagem clássica de um magistrado de boa reputação, mais rico do que quer parecer, e a quem a vizinhança censurava apenas o fato de não ser casado. Um belo homem como ele, frequentando a me-lhor sociedade, devia ter a seu lado uma dessas filhas de grandes burgueses, discretas, capazes, virtuosas, que mães rabugentas e pais tirânicos fabricavam nas sombras daquelas mesmas residências do Faubourg Saint-Germain. Mas o amável e cáustico Sr. Desgrez não parecia ter pressa, e inúmeras mulheres vistosas" e personagens suspeitas misturavam-se à soleira de sua porta com os visitantes mais empertigados dentre os grandes nomes do reino.

A carruagem rangeu um pouco ao vadear o riacho formado no meio da rua, e os cavalos esfalfaram-se enquanto o cocheiro os reconduzia ao longo da rua. Os inúmeros passantes que ainda se entretinham na penumbra sufocante desse, anoitecer de verão esmagaram-se docilmente contra o muro."

Nesse momento, uma mulher de máscara e que parecia aguardar a carruagem aproximou-se dela e, aproveitando-se do fato de

que esta se voltava lentamente, inclinou-se sobre a portinhola escancarada por causa do calor.

-        Mestre Desgrez - disse ela, bem-humorada -, permitiria que me sentasse a seu lado e lhe pedisse alguns instantes de conversa em particular?

O policial, mergulhado numa profunda meditação sobre o resultado de uma investigação recente, teve um sobressalto e imediatamente seu rosto assumiu a expressão da maior cólera. Não precisava pedir à desconhecida que tirasse a máscara para reconhecer Angélica.

— Você? - resmungou, furioso. - Será que por acaso não entende francês? Já não lhe disse que não queria mais vê-la?

— Sim, eu sei, mas é por uma coisa importante, importantíssima, e apenas você pode ajudar-me, Desgrez. Hesitei, pensei, mas acabei sempre com a mesma conclusão: apenas você pode ajudar-me.

— Eu lhe disse que não queria mais vê-la! - repetiu Desgrez de dentes cerrados, com uma violência que lhe era pouco habitual.

Cínico e duro, ele sempre controlava seus primeiros impulsos. Ali, porém, subitamente já não era senhor de si.

Angélica não esperava essa explosão. Sabia que ele começaria por rechaçá-la, pois com sua atitude ela quebrava uma quase-promessa de não importuná-lo mais. No entanto, refletindo, dissera a si mesma que o que ficara sabendo do rei era excepcional o suficiente para que ela conseguisse lidar com o coração de um policial obstinado, ainda que apaixonado. Precisava demais dele. Ainda assim, não se surpreendera quando, ao se apresentar em sua casa, foi duas vezes informada de que o senhor tenente-adjunto não estava e que havia pouca probabilidade de estar em casa na próxima vez em que ela viesse. Então ela ficara à espreita do instante propício para lhe falar diretamente, convencida de que ele acabaria por escutá-la, acabaria cedendo.

— E muito importante, Desgrez - suplicou ela a meia voz -, meu marido está vivo...

— Eu lhe disse que não queria mais vê-la - repetiu Desgrez pela terceira vez -, você tem amigos suficientes para ajudá-la e a seu marido, vivo ou morto. E agora solte essa portinhola, os cavalos vão agitar-se.

— Não, não soltarei - disse Angélica, indignada -, seus cavalos hão de arrastar-me pelo chão, mas você terá que escutar-me.

-        Solte essa portinhola!

A voz de Desgrez soou má e cortante. Pegou a bengala a seu lado e desferiu um golpe violento com o pomo lavrado sobre os dedos crispados de Angélica. A jovem soltou um grito e desprendeu-se. Num instante a carruagem ganhou velocidade. Angélica caíra meio de joelhos. Um aguadeiro que acompanhara a cena disse, zombeteiro, ao vê-la sacudir o pó da saia:

-        Não será esta noite, minha bela, seja razoável. O que é que você quer, não é sempre que se pode pescar o peixão. E dizem que esse aí é sensível às belas garotas, e nossa!, é preciso reconhecer que você tinha as suas chances. Escolheu o momento errado, foi isso. Quer uma caneca de água para se' recompor? O tempo está para tempestade, a goela, seca. Minha água é pura e limpa. Seis soldos por uma caneca.

Angélica afastou-se sem responder. Estava profundamente magoada pela atitude inqualificável de Desgrez, sua decepção se transformava em tristeza. O-egoísmo dos homens ultrapassa tudo o que se pode imaginar, peíisou consigo. Muito bem, esse desejava preservar-se dos tormentos do amor lançando-a no mais absoluto esquecimento, mas não poderia ter feito um pequeno esforço, mais uma vez, num momento em que ela se encontrava tão desamparada, sem saber para quem se voltar, por que solução se resolver? Apenas Desgrez podia ajudá-la. Conhecera-a na época do processo de Peyrac e estivera intimamente envolvido no caso. Era policial e sua maneira particular de pensar saberia separar a realidade das quimeras, levantar hipóteses, descobrir o ponto de partida de uma investigação e, quem sabe, talvez também ele tivesse algum conhecimento pessoal sobre a história extraordinária. Sabia tantas coisas secretas e escondidas! Conservava-as bem classificadas no limbo da memória ou depositadas, sob a forma de papéis e relatórios, em cofres e caixinhas. E depois, sem confessá-lo, ela precisava de Desgrez para escapar ao peso terrível de seu segredo. Não mais sentir-se só com suas esperanças insensatas, suas alegrias trémulas que a glacial rajada do vento da dúvida fustigava como a uma chama vacilante. Falar com ele do passado, do futuro, esse abismo desconhecido onde agora a aguardava a felicidade: "Você bem sabe que há algo à tua espera lá no fundo de sua vida... Não vá renunciar a isso..."

Fora justamente Desgrez quem lho dissera um dia. E agora, maldosamente, acabava de renegá-la. Ela teve um gesto de aflição e impotência. Andava depressa, pois tomara emprestado a Janine as saias curtas e a manta de verão, a fim de se misturar com facilidade à multidão e não se fazer notar enquanto aguardava Desgrez diante da residência dele. Esperara três horas. E para que resultado! A noite caía, e os pedestres se tornavam raros. Ao passar pelo Pont Neuf, Angélica voltou-se. Teve um sobressalto desagradável. Os dois homens que notava há alguns dias nos arredores de sua casa a seguiam. Coincidência, talvez? Mas ela não via por que aquele basbaque de cara vermelha, que se eternizava boquiaberto pelos lados do Beautreillis, deveria estar passeando necessariamente hoje no Pont Neuf e no Faubourg Saint-Germain àquela hora da noite.

"Um admirador, sem dúvida. Mas é irritante. Se ele continuar com isso mais três dias, encarrego Malbrant Golpe de Espada de preveni-lo discretamente para ir tentar a sorte em outro lugar..."

Ao lado do Palácio da Justiça, encontrou uma cadeirinha de aluguel e um carregador de archote. Mandou parar no Quai des Cé-lestins, onde estava a apenas dois passos da portinha de seu pomar de laranjeiras. Quando entrou, atravessou a estufa, onde se acentuava o perfume dos frutos ainda verdes pendurados em quantidade nos galhos dos arbustos delicados em vasos de prata. Passou perto do poço medieval, das quimeras de pedras, subiu furtivamente a escada.

Em seu apartamento, uma luz ardia perto de sua secretária de ébano e nácar. Foi sentar-se ali, com um suspiro de fadiga. Com um gesto seco, desembaraçou-se dos escarpins. Os pés descalços queimavam. Ela perdera o hábito de caminhar pelas ruelas de calçamento desigual, e com o calor o couro grosseiro dos sapatos de criada a ferira.

"Sou menos resistente que antigamente. Mas se tenho que viajar em condições difíceis..."

A ideia da partida a atormentava. Via-se nas estradas, descalça, pobre peregrina do amor à procura da felicidade perdida. Partir!... Mas para onde? Então inclinou-se mais longamente sobre os documentos fornecidos pelo rei. Aquelas folhas, sujas pelo tempo, marcadas de sinetes e assinaturas, eram a única realidade palpável da inacreditável revelação. Quando a impressão de haver sonhado a dominava, relia-as. E ficava sabendo que o Sr. Arnaud de Calistère, tenente dos mosqueteiros do rei, fora incumbido pelo próprio rei de uma missão sobre a qual jurara guardar o maior segredo. Nomeara os seis companheiros escolhidos para ajudá-lo, todos mosqueteiros dos regimentos de Sua Majestade, conhecidos por sua dedicação ao rei e por um caráter taciturno. Para obter-lhes o silêncio não seria preciso cortar-lhes alíngua, como em tempos antigos. Outra folha cuidadosamente redigida pelo Sr. de Calistère relacionava a lista de despesas ocasionadas pela missão:

20 libras pelo aluguel da Taberna da Vinha Azul na manhã da execução;

30 libras pelo segredo que se exigiu ao patrão da taberna, Mestre Gilberto;

10 libras pela compra de um cadáver no necrotério, destinado a ser queimado em lugar do condenado;

20 libras pelo sílêncio exigido aos dois rapazes que entregaram o corpo;      

50 libras para o carrasco e pelo segredo que lhe foi exigido;

10 libras pela barcaça de feno, com coberta retangular, alugada a fim de transportar o prisioneiro do porto de St. Landry para fora de Paris;

10 libras pelo segredo exigido aos barqueiros;

5 libras pelos cães alugados para procurar o prisioneiro após sua evasão (aqui o coração de Angélica se punha a bater loucamente);

10 libras pelo silêncio exigido aos camponeses que alugaram os cães e ajudaram a dragar o rio.

Total: 165 libras.

Angélica deixava de lado os números do minucioso Arnaud de Calistère e inclinava-se sobre o relatório que ele redigira com uma pena ansiosa: "... por volta da meia-noite, à jusante de Nanterre, a barcaça que nos transportava com o prisioneiro deteve-se e encostou-se à ribanceira. Cada um de nós repousou um pouco; deixei uma sentinela perto do prisioneiro. Este, desde o momento em que o recebemos das mãos do carrasco, não dera sinal de vida. Tivemos que carregá-lo pelo subterrâneo que levava da adega da Vinha Azul até o porto. Desde então ele jazia sob o palheiro, mal respirando..."

Ela imaginava o grande corpo torturado, já envolto no camisão dos condenados como numa mortalha.

"Antes de sacrificar ao sono, informei-me de suas necessidades. Ele não pareceu ouvir-me."

Na verdade, o Sr. de Calistère, enquanto se enrolava em sua capa para "sacrificar ao sono", esperava, no dia seguinte, encontrar o prisioneiro mais morto do que vivo. Ora, não o encontrou de modo algum!

E Angélica rebentou de rir. Joffrey de Peyrac vencido, moribundo, morto, era uma imagem que sempre lhe parecera falsa, incongruente. Não conseguia "vê-lo" assim. Via-o antes como ele devia ter permanecido até o final, seu espírito à espreita, velando em seu corpo esgotado, todo o seu instinto retesado para recusar a morte, decidido a jogar a partida sem fraqueza até o último instante. Um milagre de vontade. Mas, tal como ela o conhecera, ele era bem capaz disso e de mais ainda. De manhã, só se encontrara no feno a marca de seu corpo. A mísera sentinela teve que confessar que, velando um moribundo, não se sentira obrigada a uma vigilância extrema e, a fadiga ajudando, também sacrificara à deusa do sono.

"O desaparecimento do prisioneiro nem por isso é menos inexplicável. Como foi que esse homem, que não tinha forças para abrir os olhos, pôde deslizar para fora do barco sem nos atrair a atenção? E o que aconteceu com ele depois? Se conseguiu arrastar-se até a margem, em seu estado, seminu, era impossível que fosse muito longe sem ser reconhecido."

Logo deram início às buscas e, alertando os camponeses, pedíram-lhes o auxílio dos cães, que rondaram muito tempo pela margem. Concluiu-se que o prisioneiro, depois de conseguir com esforço sobre-humano escorregar para fora da barcaça, fora levado pela correnteza. Fraco demais para lutar, afogara-se.

No entanto, como mais tarde um camponês viera queixar-se de que sua canoa, devidamente amarrada, fora-lhe roubada naquela noite, o tenente dos mosqueteiros não quis negligenciar esse novo indício. A canoa foi encontrada perto de Porcheville. Vasculharam a região. Interrogaram a gente da área, perguntando se não tinham visto um homem magro, manco, a vagar. Algumas respostas afirmativas levaram os mosqueteiros até um pequeno convento escondido entre choupos, onde o abade admitiu que três dias antes havia abrigado um desses leprosos errantes como ainda havia pelos campos: um pobre-diabo coberto de feridas e que ocultava o rosto, certamente hediondo demais, por trás de um pano imundo. O homem era alto? Manco? Sim... talvez. As lembranças dos monges eram vagas. Exprimia-se de maneira refinada, em termos poucos habituais para um vagabundo? Não. O homem era mudo. De vez em quando soltava gritos roucos, como fazem os leprosos. O abade lhe falara da obrigação que tinha de conduzi-lo ao leprosário próximo. O homem não se recusara. Subiu na cale: ça do irmão leigo, mas encontrara meio de escapar. Como atravessavam um bosque, perdeu-se-lhe a pista. Reencontraram-na perto de Saint-Denis, nos arredores de Paris. Erà o mesmo leproso ou outro? O fato é que, graças ao cuidados de Arnaud de Calistère, senhor de poderes extraordinários conferidos pelo rei, toda a polícia de Paris fora alertada. Durante as três semanas que se seguiram ao desaparecimento do prisioneiro do qual estava encarregado o tenente, as portas de-Pafis não deixaram nenhuma caleça penetrar na cidade sem revistá-lá de alto a baixo, nem entrar pedestre ou cavaleiro sem lhe medir as duas pernas e examinar-lhe cada traço do rosto.

O processo que Angélica folheava estava cheio de relatórios redigidos pela pena aplicada de um sargento qualquer da ronda, assinalando que "nesse dia, ele havia apreendido um ancião coxo, mas que era atarracado, e que não era-bonito, mas tampouco desfigurado... ou um senhor mascarado, mas que estava mascarado para ir ver uma senhora e tinha as pernas do mesmo tamanho", etc.

O vagabundo leproso não foi reconhecido. No entanto, foi notado em Paris. Tinha-se medo dele. Parecia-se com o diabo. Seu rosto devia ser particularmente medonho, pois ele levava sempre um pano ou mesmo uma espécie de cogula. Um policial que o deteve uma noite não teve coragem de levantar essa cogula, e o ser desaparecera antes que o policial pudesse chamar os soldados da ronda.

Aí se detinham as divagações a propósito do vagabundo leproso, tanto mais que, mais ou menos na mesma época, encontrou-se em Gassicourt, entre os caniços à jusante de Mantes, o corpo de um homem afogado há quase um mês. O cadáver se encontrava em avançado estado de putrefação. Só se pôde determinar que se tratava de um homem muito alto.

O Tenente de Calistère, soltando um suspiro de alívio, observava numa epístola ao rei que sempre previra essa conclusão como a única possível. O foragido não fizera jus à clemência do rei, que o arrancara às chamas in extremis. Deus o punira atirando-o à água gelada do rio. Estava tudo bem!

-        Não! Não! - protestou Angélica.

Recusava-se, com horror, a aceitar o triste epílogo. Atinha-se às poucas linhas que o bailio de Gassicourt, que redigira o auto relativo à descoberta do corpo, acrescentara: "Alguns farrapos de um capote preto ainda estavam presos aos ombros".

Ao fugir da barcaça, o prisioneiro vestia apenas a camisa branca. Mas o texto de Arnaud de Calistère sublinhava: "A descrição desse afogado corresponde exatamente à de nosso prisioneiro..."

-        E a camisa branca? - exclamou Angélica, em voz alta.

Defendia sua inesgotável esperança contra as sombras da dúvida. Um medo insinuava-se-lhe. Os mosqueteiros teriam talvez vestido o supliciado com um capote preto antes de arrastá-lo pelo subterrâneo para o barco que devia levá-lo para fora de Paris?

-        E se eu pudesse encontrar esse Arnaud de Calistère ou um de seus cúmplices e interrogá-lo? - perguntou-se ela.

Procurou lembrar-se. Jamais ouvira pronunciar esse nome à sua volta enquanto estivera na corte. Mas seria relativamente fácil descobrir que fim levara um antigo tenente dos mosqueteiros do rei. Mal se haviam passado dez anos desde esses acontecimentos. Dez anos! Parecia muito pouco e, ao mesmo tempo, parecia-lhe que vivera várias vidas desde aquela época. Alternara-se entre a mais baixa miséria e o auge da riqueza. Casara-se de novo. Reinara sobre o coração do rei. Tudo isso se extinguia como um sonho.

Uma carta da Sra. de Sévigné abria-se sobre a mesinha rebaixada de sua secretária, perto de papéis esparsos:

"Em breve serão duas semanas, caríssima, que ninguém a vê em Versalhes. Fazem perguntas. Não se sabe o que pensar. O rei anda sombrio... O que acontece?"

Ela deu de ombros.

Com certeza deixara Versalhes. Jamais voltaria para lá. Era inelutável. Os fantoches continuariam a ronda sem ela. Esquecia-lhes a existência. Tudo se concentrava nessa visão longínqua de um pesado lanchão contra uma ribanceira gelada, durante uma noite de inverno.

A partir daí ela recomeçava a viver. E esquecia seu corpo que outros haviam possuído, seu rosto novo, esse rosto de uma perfeição consumada, cuja aparição fazia tremer o rei, e as marcas da vida que um destino brutal imprimira nela. Encontrava-se miraculosamente purificada, com a ingenuidade arisca de seus vinte anos, mulher inteiramente nova, adoravelmente terna e voltando-se pa ra ELE...       

-Há um homem perguntando pela senhora!

A cabeça de cabelos brancos de Malbránt Golpe de Espada inscreveu-se curiosamente sobre a tapeçaria à frente dela.

-        Há um homem perguntando pela senhora! - repetiu a voz.

Ela teve um sobressalto, vacilou um pouco. Percebeu que devia ter adormecido por alguns instantes, muito ereta sobre o tamborete, as mãos ao redor dos joelhos. O escudeiro, ao abrir a portinhola dissimulada na tapeçaria, a despertara. Ela passou a mão pela testa. 

— Hein! O quê? Sim... Um homem? Que homem?... Que horas são?

— Três horas da manhã.

— E você diz que um homem está perguntando por mim?

— Sim, senhora.

— O porteiro o deixou entrar a uma hora destas?

— Quer dizer, o porteiro não pôde fazer nada. O homem não entrou pela porta, mas pela janela. Às vezes deixo minha lucarna aberta e como esse cavalheiro veio pelas calhas...

— Você está zombando de mim, Malbránt! Se é um ladrão, espero que o tenha dominado.

— Quer dizer... Não, foi o cavalheiro quem me dominou primeiro. Depois me afirmou que a senhora o aguardava e me deixei convencer. Certamente é um de seus amigos, senhora; ele me deu detalhes a seu respeito que provam...

Angélica franziu o cenho. Outra história de loucos! Pensou no homem que parecia segui-la há uma semana.

— Como é ele? Baixo, gordo, vermelho?

— Não, por Deus! Para mim tem mais o ar de um belo sujeito. Quanto a dizer como é ele, é mais difícil formar uma opinião. Está de máscara, o chapéu enfiado até os olhos e a capa, até o nariz. Mas se quer minha opinião, senhora, é gente de bem.

- Que se introduz à noite na casa das pessoas pelos telhados? Está bem. Vá buscá-lo, Malbrant, mas mantenha-se pronto a dar o alarma.

Ela esperou, curiosa apesar de tudo, e mesmo da soleira não teve dificuldade em reconhecer a silhueta que entrava.

CAPITULO II

Revelações do policial sobre Joffrey de Peyrac - O cofrinho na capela

— Você!

— Pois é - respondeu a voz de Desgrez. Angélica fez sinal'ao escudeiro.

— Pode deixar-nos.

Desgrez tirou o chapéu, a máscara e a capa.

-        Ufa! - exclamou.

Aproximou-se dela, tomou-lhe a mão que ela não estendera e beijou-lhe levemente a. ponta dos dedos.

— Isto para me desculpar de minha brutalidade de há pouco. Espero não tê-la machucado muito.

— Quase me quebrou as falanges com a bengala! Malvado! Confesso que não compreendo em absoluto o seu comportamento, Sr. Desgrez.

— O seu tampouco é mais compreensível, ou agradável - disse o magistrado, solícito.

Puxou uma cadeira e sentou-se escanchado. Não estava usando a peruca austera nem os trajes impecáveis. Vestindo o capote gasto que às vezes ainda usava para expedições secretas, com os cabelos em desalinho, reconhecia-se-lhe a silhueta de policial das escórias. Quanto a ela, via-se nas roupas de Janiné, com os pés descalços cruzados diante dele.

— Era realmente necessário que viesse ver-me a esta hora da madrugada? - perguntou.

— Sim, era preciso.

— Refletiu em sua maldade inqualificável e não pôde esperar amanhecer para vir reparar seus erros?

— Não, não se trata disso de modo algum. Mas como você me repetiu com toda a ênfase que queria ver-me com urgência, melhor não esperar amanhecer.

Fez um gesto fatalista.

— Como não quer entender que estou farto de você, que não quero mais ouvir falar dessa sua abençoada pessoinha... era preciso que eu viesse!

— E muito importante, Desgrez.

— Naturalmente, é importante. Você é conhecida. Nenhuma possibilidade de incomodar a polícia por uma brincadeira. Com você é sempre sério: está a ponto de ser assassinada ou de se suicidar, ou resolveu cobrir a família real de vilezas, abalar o reino, enfrentar o papa, que sei eu?

— Mas, Desgrez, nunca exagerei.

— E exatamente o que a censuro. Não poderá representar um pouco, como toda mulherzinha que se preza? Drama, sim! Mas não drama autêntico! Enquanto com você, tem-se que correr, rogando ao céu para não se chegar tarde demais. Enfim, estou aqui... e em tempo, parece.

— Desgrez, será possível? Quer ajudar-me mais uma vez?

— Veremos - disse ele, sombrio. - Primeiro, fale.

— Por que entrou pela janela?

— Realmente não entendeu? Ainda não percebeu que é seguida pela polícia há uma semana?

— Seguida pela polícia? Eu?

— Sim. Saiba que se deve escrever o relatório mais preciso acerca das idas e vindas da Sra. du Plessis-Bellière. Não há um canto de Paris a que vá sem ser seguida por doiá ou três anjos da guarda. Não lhe sai uma carta das mãos que não lhe seja subtraída e lida com o maior cuidado antes de ser enviada ao destinatário. Em cada porta da cidade colocou-se uma rede fechada de policiais, apenas em sua intenção. Por qualquer direção que tentasse sair, não faria cem metros sem ser alcançada. Saiba que um funcionário de altíssima posição responde pessoalmente pela sua presença na capital.

— Quem?

— O próprio tenente-adjunto do Sr. de La Reynie, um certo Desgrez. Já ouviu falar, não? Angélica estava aterrada.

— Quer dizer que você está incumbido de me vigiar e de me impedir de deixar a cidade?.

— Exatamente. Veja que, em tais condições, era-me difícil recebê-la abertamente. Não ia raptá-la na minha própria carruagem, sob os olhos daqueles que lhe coloquei no encalço.

— E quem o incumbiu dessa missão ignóbil?

— O rei.

— O rei? E por quê?

— Sua Majestade não me confiou o motivo, mas você deve ter uma ideiazinha a respeito, não? Sei apenas uma coisa: o rei não quer que você deixe Paris e, em consequência, tomei minhas providências. A parte isso, o que posso fazer por você? Que espera de seu servidor?

Angélica apertou nervosamente as mãos contra os joelhos. Então o rei desconfiava^lela! Não.admitia que ela lhe desobedecesse. Conservá-la-ia à força junto de si. Até que... Até que ela se tornasse razoável. Mas isso não aconteceria nunca]"

Desgrez olhava-a e pensava que, com aquela roupa simples e pés descalços que ela cruzava com um gesto friorento, a expressão inquieta nos olhos cercados de olheiras, procurando uma saída, ela parecia um pássaro prisioneiro, dominado pela paixão selvagem do vôo. A gaiola dourada a seu redor, móveis preciosos e tapeçarias suntuosas, não parecia feita para aquela mulher despojada. Havia abandonado seus artifícios mundanos, e naquele ambiente que, no entanto, ela própria compusera com gosto e paixão, parecia insólita, estrangeira. De repente ela se tornara de novo a pastora descalça, cercada de solidão e tão longínqua, que o coração de Desgrez se contraiu. Veio-lhe à mente uma ideia que ele expulsou com um movimento de cabeça: "Ela nunca foi criada para nós. E um erro!"

— O que há? Que deseja de seu servidor? - repetiu, em voz alta. O olhar de Angélica se inundou de uma luz enternecida.

— Gostaria de fato de ajudar-me? - repetiu.

-        Sim, contanto que não abuse de olhares ternos e que mantenha distância. Permaneça onde está - intimou, ao ver que ela esboçava um movimento em sua direção. - Comporte-se. Isto já não é um encontro de prazer. Não o transforme em tortura, mulher diabólica e insuportável.

Desgrez tirou o cachimbo do bolso do colete e, pegando a tabaqueira, começou a enchê-lo com um gesto metódico.

-        Pois bem, minha criança, desabafe!

Ela gostou de seu ar distante de confessor. Tudo lhe pareceu fácil.

-        Meu marido está vivo.

Ele não pestanejou.

-        Qual? Você teve dois, creio eu, ambos bem mortos, ao que me parece. Um foi queimado, o outro perdeu a cabeça na guerra. Haveria um terceiro na liça?

Angélica meneou a cabeça.

-        Não faça como se não entendesse de quem se trata, Desgrez. Meu marido está vivo, não foi queimado na Place de Greve, conforme os juízes o haviam condenado. O rei agraciou-o no último instante e preparou-lhe a fuga. Foi o próprio rei quem me confessou isso. Meu marido, o Conde de Peyrac, salvo da fogueira, mas sempre considerado perigoso para a segurança do reino, deveria ser conduzido em segredo para uma prisão fora de Paris. Mas evadiu-se... Veja, eis os papéis que atestam essa revelação inacreditável.

Suavemente, o policial pousou o talo de acender sobre o fornilho do cachimbo. Puxou algumas baforadas e, sem pressa, enrolou cuidadosamente a isca, antes de afastar com uma mão indiferente o arquivo que ela lhe estendia.

— Inútil! Eu os conheço.

— Conhece? - repetiu Angélica, com estupor. - Já teve estes papéis entre as mãos?

— Sim.

— Quando?

— Já faz alguns anos. Sim... uma pequena curiosidade minha. Eu acabava de comprar meu cargo de oficial de polícia. Antes disso tinha sabido fazer-me esquecer. Ninguém lembrava mais daquele advogado remeloso que estupidamente resolvera defender um feiticeiro condenado por antecipação. O caso estava encerrado, mas às vezes evocavam-no à minha frente... Diziam coisas. Procurei. Bisbilhotei. Quando se é policial, tem-se os pensamentos um pouco por toda parte. Acabei descobrindo isso. E li.

— E nunca me disse nada - murmurou ela num fôlego só.

— Não!

Fitou-a, os olhos semicerrados atrás de um fiozinho de fumaça azul, e ela recomeçou a odiá-lo, a detestar-lhe o ar de gato matreiro a ruminar segredos. Não era verdade em absoluto que ele a amava. Ele não tinha fraqueza alguma. Seria sempre mais forte do que ela.

— Lembra-se, minha cara - disse ele, finalmente -, daquela noite em que você se despediu de mim em sua chocolataria? Você acabava de me informar que ia desposar o Marquês du Pléssis-Bellière. E num desses estranhos momentos de aproximação de que as mulheres possuem o segredo, disse-me: "Não é curioso, Desgrez, que eu não consiga destruir em mim a esperança de revê-lo um dia? Certas pessoas disseram que... que não foi a ele que queimaram na Place de Greve".

— Era nesse momento que você deveria ter-me dito! -- gritou ela.

— Para quê? - disse ele, com dureza. - Lembre-se! Você estava prestes a colher osírufos de esforços sobre-humanos. Não havia poupado nada para isso, nem trabalho, nem coragem, nem as mais baixas manobras de chantagem, nem mesmo sua honra. Tinha jogado tudo na balança de suas ambições. Estava prestes a triunfar. E se eu tivesse falado, você teria destruído tudo... por uma quimera?

Ela mal o escutava.

-        Você devia ter falado - repetiu."- Pense no pecado hediondo que me deixou cometer ao casar com outro homem enquanto meu marido ainda vivia!

Desgrez ergueu os ombros.

— Vivia? Era maior a probabilidade de que fosse ele o afogado de Gassicourt. Morto queimado ou morto afogado, que diferença lhe fazia?

— Não, não, é impossível! - exclamou ela, levantando-se com agitação.

— Que teria feito você se eu tivesse falado? - insistiu Desgrez duramente. - Teria destruído tudo, conforme está destruindo tudo neste momento. Teria lançado ao vento todos os seus trunfos, todas as suas chances, seu destino e o de seus filhos. Teria partido como uma louca à procura de uma sombra, de um fantasma, como está prestes a fazer. Confesse, portanto - disse ele, ameaçador - que é isso que você tem em mente: partir... partir à procura de um marido desaparecido há dez ou onze anos! Levantou-se e plantou-se diante dela.

-        Onde? Como? E por quê?

Ela teve um sobressalto ante a última palavra.

-        Por quê?

O policial fixou-a com aquele seu olhar que a trespassava até a alma.

— Era o mestre de Toulouse - disse ele. - O mestre de Toulouse nâo existe mais. Reinava sobre um palácio. Não existe mais palácio. Era o senhor mais rico do reino. Suas riquezas foram-lhe confiscadas. Era um sábio conhecido no mundo inteiro. Doravante é desconhecido, e onde poderia exercer sua ciência? O que resta daquilo que você amava nele?

— Desgrez, você não pode compreender nada do amor que um homem como ele pode inspirar.

— Decerto, creio compreender que ele sabia rodear-se de seduções bastante irresistíveis para um coração feminino. Mas, uma vez essas seduções desaparecidas...?

— Desgrez, não me faça crer que você carece a tal ponto de experiência. Não conhece nada sobre a maneira de amar das mulheres.

— Conheço um pouco a sua.

Colocou-lhe as mãos nos ombros e fê-la voltar-se para que se visse no alto espelho oval, emoldurado em madeira dourada.

-        Há dez anos de vida sobre você, sobre sua pele, em seus olhos, sobre sua alma, sobre seu corpo. E de que vida! Todos esses amantes a quem se deu...

Ela safou-se dele, ruborizada. Mas não o encarou com menos insolência.

-        Sim, eu sei. Mas isso não tem nada a ver com o amor que sinto por ele... que sentirei sempre. Cá entre nós, meu caro Sr Desgrez, que pensaria de uma mulher que recebeu certos dotes da natureza e que, sozinha, abandonada de todos, no último grau de miséria, não os utilizasse um pouco para sair de apuros? Diria que é uma imbecil, e teria razão. Vou parecer-lhe cínica, mas ainda hoje, caso necessário, eu não hesitaria em usar do poder que tenho sobre os homens para atingir meus fins. Os homens, todos os homens que vieram depois dele, o que representaram para mim? Nada.

Ela o encarava com maldade.

__ Nada, ouça. E mesmo hoje sinto por eles todos algo que se assemelha ao ódio. Por eles todos. Desgrez olhava as unhas com ar pensativo.

-        Não estou tão convencido de seu cinismo - disse. Soltou um suspiro profundo. - Lembro-me de um poetinha ensebado... E no que concerne ao belo Marquês Filipe dirPlessis, não teria havido de sua parte... algo de bastante doce, bastante vivo?

Ela sacudiu a pesada cabeleira com um gesto veemente.

-        Ah! Desgrez, você não pode compreender. Era preciso que eu me iludisse, que tentasse viver... Uma mulher precisa tanto amar e ser amada... Mas a lembrança dele esteve sempre comigo como um remorso lancinante. - Olhou a própria mão. - Ele me pôs uma aliança de ouro no dedo, na catedral de Toulouse. Talvez seja a única coisa que resta entre nós agora, mas não é um elo que

tem sua força? Sou sua mulher, e ele é meu marido. Serei sempre sua, e ele será sempre meu, E é por isso que vou procurá-lo... A terra é grande, mas sejsle vive em algum lugar desta terra, hei de encontrá-lo, ainda que deva caminhar a vida inteira... Até cem anos!

A voz estrangulou-se-lhe porque ela se viu toda envelhecida e arruinada de esperança sobre uma estrada ardente. Desgrez aproximou-se e tomou-a nos braços.

-        Ora, ora! - fez ele. - Fui outra vez muito feroz com você, minha pequena, mas pode-se dizer que. me devolveu o tratamento à altura.

Apertou-a até fazê-la gritar, depois se afastou e se pôs a fumar novamente, com ar absorto.

-        Bom! - declarou ao cabo de um instante - como você está determinada a cometer loucuras, a destruir sua existência, a perder sua fortuna e talvez a vida, e como ninguém conseguirá detê-la, que pensa fazer?

-        Eu não sei - exclamou Angélica.

Refletiu.

— Pensei - disse - que talvez fosse preciso tentar encontrar esse Calistere, ex-tenente dos mosqueteiros. Apenas ele, se tiver alguma memória, poderá ajudar-nos a eliminar a dúvida que paira sobre o afogado de Gassicourt.

— Já se fez - disse Desgrez, lacónico. - Encontrei esse oficial, levei-o na conversa e soube encontrar os argumentos necessários para refrescar-lhe a memória. Acabou admitindo que o caso do afogado de Gassicourt veio a calhar para ajudá-lo a encerrar uma investigação que o colocava em maus lençóis. Mas que o afogado tinha apenas uma semelhança muito vaga com o prisioneiro foragido.

— Oh, sim! - exclamou Angélica, ofegando de esperança. - Então a boa pista seria a do vagabundo leproso?

— Quem sabe!

— Seria preciso ir a Pontoise e interrogar os monges daquela pequena abadia onde o viram.

— Já se fez.

— Como?

— Quer dizer, hum... aproveitei uma investigação que me obrigou a pisar aquela região, para ir puxar a sineta do pequeno convento.

— Oh, Desgrez, você é um homem maravilhoso...

— Fique em seu lugar - disse ele, aborrecido. - Dessas visitas, não obtive luzes fulgurantes, não. O abade não soube me dizer muito mais do que dissera aos mosqueteiros quando estes o interrogaram. Mas um irmão leigo, o enfermeiro da comunidade, que fui encontrar entre suas plantas medicinais, lembrou-se de um detalhe. Tomado de piedade pelo pobre-diabo, quis colocar um bálsamo sobre suas feridas e foi até o celeiro onde o vagabundo, esgotado, parecia dormir um sono próximo da morte. "Não era um leproso", disse-me o irmão leigo. "Levantei o pano que ele usava sobre o rosto. Não estava carcomido, somente marcado de cicatrizes profundas."

— Então era ele, não era?, era ele! Mas por que estava em Pontoise? Queria retornar a Paris? Que loucura!

— O género de loucura que um homem como ele seria capaz de cometer por uma mulher como você.

— Mas perde-se a pista dele nas portas da cidade. Angélica folheou os papéis febrilmente.

— No entanto, dizem que foi visto em Paris.

-        Parece-me impossível! Ele não pôde entrar. Saiba que, nas três semanas que se seguiram à fuga, deram-se as ordens mais estritas para vigiar todas as saídas. Depois a descoberta do afogado de Gassicourt e as declarações de Arnaud de Calistère puseram termo às inquietações. Encerrou-se o inquérito. Por desencargo de consciência, ainda vasculhei os arquivos. Nunca mais se observou nada que se assemelhasse a esse caso.

Um pesado silêncio ganhou corpo entre eles.

— É tudo o que você sabe, Desgrez?

O policial deu alguns passos pela sala antes de responder:

— Não! - Mordiscou o bocal do cachimbo, o olhar fixo. - Saber! --- resmungou entre dentes.

— O que é? Fale!

-        Pois bem! Aqui está: faz uns... três anos... ou pouco mais, recebi uma visita. Era um padre, um rapaz de olhos como chumbo derretido num rosto de vela, desses que têm apenas o ar que respiram, mas que enfiam na cabeça que vão salvar o mundo. Havia-se informado: era eu aquele mesmo Desgrez que em 1661 fora nomeado advogado no processo do Conde de Peyrac? Procurara-me em vão entre meus colegas do Palácio de Justiça e tivera muita dificuldade para me encontrar usando a roupa velha de um soturno beleguim. Depois detestar bem certo de que eu era o ex-advogado Desgrez, identificou-se. Era o Padre António, da ordem criada pelo Sr. Vicente. Fora capelão das prisões e, como tal, assistira o Conde de Peyrac na fogueira.

Angélica reviu bruscamente a silhueta do padrezinho sentado diante da lareira do carrasco, como um grilo transido.

— Depois de muitos circunlóquios, 'perguntou-me se eu sabia o que acontecera com a mulher do Conde de Peyrac. Disse-lhe que sim, mas que gostaria de saber quem é que se interessava por ela, uma mulher cujo nome fora esquecido por todos. Ele perturbou-se muito. Era ele mesmo, disse-me. Pensava com frequência naquela infeliz abandonada, rezara muito por ela e desejava que a vida finalmente lhe tivesse sido clemente. Não sei por que havia algo em suas palavras que soava falso. Na minha profissão, quase por nuance percebem-se as reticências. Mas disse-lhe o que sabia.

— Que lhe disse, Desgrez?

— A verdade: que você havia saído muito bem de seus apuros, que havia casado com o Marques du Plessis-Bellière e que naquela altura era uma das mulheres mais invejadas da corte de França. Coisa curiosa é que, longe de alegrá-lo, as notícias pareceram aterrorizá-lo. Talvez temesse que sua alma estivesse perdida, pois fi-lo entender que você estava a caminho de suplantar a Sra. de Montespan. Angélica gritou com desespero:

— Oh, por que lhe disse isso? Você é um monstro!

— Não era a pura verdade? Seu segundo marido estava vivíssimo e o favor em que você se encontrava era tão ofuscante, que dominava a crónica mundana. O que acontecera com seus filhos?, perguntou-me ele ainda. Disse-lhe que passavam bem de saúde e estavam igualmente muito bem na corte, na casa de Monseigneur, o delfim. Depois, no momento em que ele se retirava, disse-lhe à queima-roupa: "O senhor deve realmente ter guardado uma lembrança notável daquela execução. Não é frequente ocorrer jogui-nho de troca-troca desse tipo". Ele teve um sobressalto: "Que quer dizer?" "Que o condenado se safou no último instante, enquanto o senhor abençoou um cadáver anónimo. Ao perceber a substituição, deve ter ficado bastante perturbado." "Confesso que só percebi na hora..." Então me aproximei até tocar-lhe a ponta do nariz: "E quando foi que percebeu, abade?" perguntei. Ele ficou tão branco quanto seu peitilho. "Não entendo nada de suas alusões", disse ele para se recompor. "Sim, o senhor compreende. Sabe, assim como eu, que o Conde de Peyrac não morreu na fogueira. No entanto, não há muita gente a par desse fato. Não lhe pagaram para que se calasse. O senhor não fazia parte da trama. Mas o senhor sabe. Quem o informou?" Ele continuou a se fazer de ignorante. E foi embora.

— E você o deixou ir? Mas não devia, Desgrez! Era preciso fazê-lo falar, ameaçá-lo, sentá-lo no cavalete, obrigá-lo a dizer quem o informara, quem o enviara. Quem? Quem?

— Que diferença teria feito? - disse Desgrez. - Você era a Sra. du Plessis-Bellière, não?

Angélica levou as mãos à cabeça. Desgrez não lhe teria contado o incidente se o considerasse sem importância. Desgrez pensava como ela. Por trás da atitude insólita do capelão das prisões, era da presença do primeiro marido de Angélica que ele suspeitava. De onde enviara o mensageiro? Como se pusera em contato com ele?

— É preciso encontrar a pista desse padre - disse ela. - E bem fácil. Lembro que ele pertencia à ordem dos...

— Você daria um excelente policial - disse ele. - Vou poupar-lhe o trabalho mais uma vez. Esse padre chama-se António. Já não está em Paris. Faz vários anos que é capelão dos forçados em Marselha.

A fisionomia de Angélica iluminou-se. Finalmente sabia para onde ir. Começaria indo a Marselha, para ver esse Padre António.

Encontrá-lo-ia sem dificuldade. O eclesiástico acabaria por confiar-lhe o nome da personagem misteriosa que o enviara a Desgrez para se informar do destino da Sra. de"Peyrae. Saberia, talvez, onde se encontrava esse desconhecido?'Ela pensava, os olhos brilhantes, e mordiscava o lábio inferior.

Desgrez a mantinha sob um olhar terno e irónico.

— Contanto que você pudesse sair de Paris - disse ele, respondendo aos pensamentos dela, que se liam tão abertamente em seu rosto animado.

— Desgrez, você não vai impedir-me.

— Minha cara criança, estou encarregado de impedi-la. Você ignora que quando aceito uma tarefa sou como um cão que se pendura ao capote de um malfeitor? Estou pronto a fornecer-lhe todos os detalhes que possam interessar-lhe, mas quanto a deixá-la à solta pelos campos, não conte comigo.

Angélica voltou-se com vivacidade para o policial. Seu olhar se invadiu de uma súplica ardente:

-        Desgrez! Meu amigo Desgrez!

A expressão do jovem" magistrado permaneceu implacável.

— Sou responsável por você perante o rei. Não são compromissos que eu trate com leviandade, creia-me.

— E você se diz meu amigo!

— Na medida em que não tenha que infringir as ordens de Sua Majestade.

A decepção assolou Angélica como lava ardente. Odiava Desgrez, como sempre o odiara. Sabia-o tenaz e minucioso em seu trabalho, e que ergueria à frente dela um muro inexpugnável. Sabujo, acabava sempre por apanhar a presa. Carcereiro, saberia guardá-la. Não se escapava dele.

— Como pôde aceitar essa missão revoltante, sabendo que era eu o alvo? Jamais o perdoarei.

— Confesso que fiquei bastante contente de impedi-la de cometer uma tolice.

— Não se intrometa em minha vida! - gritou ela, fora de si.

— Por você e pela gente de sua espécie, tenho a mais profunda aversão. Vomito-lhes em cima, de vocês todos, mal-intencionados, e escrevinhadores, caricatos, lacaios abjetos do amo que lhes atira um osso para roer!

Desgrez se descontraiu e desatou a rir. Era sob os traços da Marquesa dos Anjos que ele mais a amava, essa parte secreta de sua vida, oculta sob o luxo e a consideração, mas que reaparecia em suas cóleras.

-        Escute, minha criança...

Tomou-a pelo queixo e forçou-a a olhá-lo no rosto.

-        Eu teria podido recusar esta missão, ainda que o rei ma tenha confiado devido à minha reputação. Ele não ignorava que para retê-la, caso você tivesse enfiado na cabeça que haveria de fugir, não seria exagero mobilizar os melhores policiais de Paris. Eu poderia ter recusado, mas ele me falou de você com ansiedade, inquietação, de homem para homem... E eu mesmo, conforme já lhe disse, estava decidido a pôr em prática tudo para impedi-la de destruir mais uma vez sua existência.

Seus traços se suavizaram, e uma profunda ternura transtornou-lhe o olhar enquanto contemplava o rostinho fechado, retido à força entre suas mãos.

-        Louca! Louca querida - murmurou. - Não queira mal a seu amigo Desgrez. Quero poupá-la de lançar-se numa aventura desastrosa, perigosa... Você corre o risco de perder tudo, de não ganhar nada. E a cólera do rei será terrível. Não se pode desafiá-lo para além de certo ponto. Escute, pequena Angélica... pobre pequena Angélica...

Jamais ele lhe falara com tanta gentileza, como a uma criança que é preciso defender a todo custo contra si mesma, e ela sentia vontade de apoiar o rosto contra o ombro dele e chorar baixinho.

-        Prometa-me - disse ele -, prometa-me que ficará tranquila e, de minha parte, prometo-lhe fazer todo o possível para ajudá-la em suas buscas... Mas prometa!

Ela meneou a cabeça. Tinha vontade de ceder, mas desconfiava do rei, desconfiava de Desgrez. Tentariam sempre aprisioná-la, retê-la. Gostariam que ela esquecesse, que aquiescesse. E desconfiava de si mesma também, de certa covardia, de certa lassidão que um dia a fizesse dizer: para quê? O rei voltaria a lhe implorar. Ela estava só, inteiramente só e desarmada em face de forças unidas para impedi-la de alcançar seu amor.

_, Prometa - insistiu Desgrez. Novamente ela fez um sinal negativo.

- Cabeça de mula! - exclamou ele, soltando-a com um suspi-ro _ Então, doravante, que ve&ça o mais forte de nós. Muito bem, entendido. Boa sorte, Marquesa dos. Anjos.

Angélica tentou dormir um pouco, apesar da aurora que esbranquiçava as vidraças. Não conseguiu adormecer de todo e permaneceu numa espécie de estágio intermediário, o corpo entorpecido mas o espírito trabalhando ativamente. Tentava acompanhar a misteriosa odisseia do vagabundo leproso, imaginando a personalidade de seu marido por trás daquele ser solitário e repugnante que fora visto a coxear pelas estradas da lie de France, subindo na di-reção de Paris. Apenas este último detalhe deveria ter bastado para condenar todas as ilusões"; Como é que um prisioneiro foragido, de identificação precisie sabèndo-se perseguido, teria tido a audácia de retornar a Paris,' esse vespeiro? Joffrey de Peyrac não teria sido demente o suficiente para cometer essa loucura. Ou melhor, sim! dizia-se Angélica refletindo, combinava com ele. Tentava adivinhar-lhe o pensamento. Teria retornado a Paris para procurá-la? Mas que ousadia! Em Paris, a grande cidade que o condenara, ele não encontraria mais nem amigo nem residência... Sua casa no bairro de Saint-Paul estava lacrada, a bela Mansão do Beautreillis que ele mandara construir em honra de Angélica. Lembrava-se das viagens frequentes que ele fizera então, do Languedoc até a capital, para inspecionar pessoalmente as obras. Joffrey de Peyrac, proscrito, teria concebido o projeto de vir buscar o ouro e as jóias que dissimulara em esconderijos que apenas ele conhecia? Quanto mais ela refletia, mais evidente lhe parecia isso. Joffrey de Peyrac era bem capaz de arriscar o pior para recuperar a posse de algumas riquezas. Com ouro e prata, poderia salvar-se, enquanto nu e miserável estava condenado a vagar sem refúgio. Os camponeses lhe atirariam pedras, um dia ou outro o entregariam. Ao passo que com um único punhado de ouro ele ganharia a liberdade! E sabia onde encontrar esse ouro. Em sua Mansão do Beautreillis, de que conhecia os menores recantos.

Angélica acreditava ouvi-lo, seguia-lhe o raciocínio, reconhecia-lhe a argumentação familiar, um pouco desdenhosa. "O ouro pode tudo", dizia ele. Esse princípio fora posto em xeque pela ambição de um jovem rei, mais forte do que a cupidez. Mas a regra continuava valendo. Com um pouco de ouro, o infeliz deixava de estar desarmado. Retornara a Paris. Estivera aqui: agora tinha certeza disso. Era plausível. Na época, o rei ainda não se havia apropriado de tudo. Ainda não tinha oferecido o palácio ao Príncipe de Conde. A residência estava deserta, casa maldita, com sinetes de cera atravessados na porta, guardada por um único porteiro aterrorizado e um velho criado basco, que não soubera para onde ir.

O coração de Angélica pôs-se a bater com irregularidade. De repente estava no caminho certo. "Eu o vi... Sim, eu o vi, o conde maldito, na galeria de baixo... Eu o vi. Foi numa noite pouco depois da fogueira. Ouvi um ruído na galeria e reconheci seus passos..." O velho criado basco falava assim, apoiado à boca do poço medieval no fundo do jardim, uma tarde em que ela o encontrara, logo depois de retormar a posse da Mansão do Beautreillis. "Quem não lhe reconheceria os passos? O passo do Grande Coxo do Lan-guedoc! Acendi minha lanterna e quando cheguei à esquina da galeria, vi-o. Apoiava-se à porta da capela e voltou-se na minha díreção... Reconheci-o, como um cão reconhece o amo, mas não lhe vi o rosto. Estava de máscara. De repente, enfiou-se no muro e não o vi mais..."

Angélica fugira aterrorizada, recusando-se a ouvir as divagações do pobre velho quase inocente, que acreditava ter visto um fantasma...

Ergueu-se sobre o leito e puxou a sineta com violência. Janine apareceu. Era uma jovem ruiva e afetada, que substituíra Teresa. Torceu o nariz com ar presunçoso e surpreso ao odor de tabaco que Desgrez deixara no apartamento e perguntou o que desejava a senhora marquesa.

-        Vá procurar imediatamente aquele velho criado... como se chama? Ah, sim , Pascalou. "Avô Pascalou."

A criada ergueu as sobrancelhas descoradas, com espanto.

-        Sabe quem é, vamos - insistiu Angélica -, um bem velho, que tira baldes de água do poço e carrega as achas para o fogo...

Janine assumiu a expressão resignada de quem não entende mas que vai informar-se. Voltou alguns instantes depois, para anunciar que o Avô Pascalou morrera há dois anos.

-        Morreu? - repetiu Angélica, horrorizada. - Morreu! Oh, meu Deus! Isso é terrível!

Para Janine a ama se mostrava por demais transtornada, de repente, por um acontecimento que, dois anos antes, lhe passara despercebido. Angélica reteve-a para vestir-se e deixou-se vestir, maquinalmente. Então o pobre homem morrera, levando seu segredo. Ela se encontrava na corte naquela época e sequer estivera presente para segurar a mão do fiel servidor em sua última hora. Pagava caro por haver faltado a esse dever. As palavras ouvidas outrora permaneciam gravadas em sua memória em letras de fogo. "Ele se apoiava à porta da capela..."

Desceu, seguiu pela galeria de arcos graciosos, coloridos pelos vitrais, e abriu a porta da capeja. Tratava-se antes de um oratório, com dois genuflexórios em couro de Córdova, um pequeno altar de mármore verde, dominado por um magnífico quadro de um pintor espanhol. Reinava por ali um odor de círios e incenso. Angélica sabia que o Abade de Lesdiguières, quando se encontrava em Paris, celebrava ali a sua missa. Ajoelhou-se.

-        Oh, meu Deus! - exclamou em voz alta -, cometi muitos erros, meu Deus, mas suplico-lhe, suplico-lhe...

Não sabia dizer outra coisa.

Ele estivera naquele local uma noite. Como penetrara na casa? Como entrara em Paris? Que viera procurar no oratório?

Os olhos de Angélica correram pelo pequeno santuário. Todos os objetos que se encontravam lá datavam da época do Conde de Peyrac. O Príncipe de Conde não tocara em nada. Com exceção do Abade de Lesdiguières e um pequeno lacaio, que lhe servia de coroinha e fazia a limpeza, pouca gente ali entrava.

Se havia um esconderijo naquele oratório, o segredo poderia ter-se conservado com toda a facilidade. Angélica levantou-se e começou a procurar minuciosamente. Explorou o mármore do altar-mor, introduzindo a unha em cada fissura, na esperança de acio-nar um mecanismo secreto. Estudou cada movimento dos baixos-relevos. Bateu com paciência nos ladrilhos de esmalte do lajedo, depois na madeira que revestia as paredes. Sua paciência foi recompensada. Pelo fim da manhã, pareceu-lhe que um ponto na parede atrás do altar devolvia um som oco. Então acendeu um círio, aproximou a chama. Habilmente dissimulada no desenho de uma moldura, distinguiu os vestígios de uma fechadura. Era ali!

Febrilmente ela se esforçou por encontrar o segredo que a abria, mas teve que desistir. Então, com o auxílio de uma faca e uma chave, tomados de entre os adornos de seu cinto, conseguiu fazer a preciosa madeira estalar. Introduziu a mão e encontrou um trinco, que soltou. A portinha do esconderijo abriu-se, rangendo. No interior, numa concavidade, percebeu uma caixinha. Não houve necessidade alguma de abri-la. Já lhe tinham forçado a fechadura. Estava vazia...

Angélica apertou contra o coração o pequeno cofre empoeirado.

- Ele veio! Pegou o ouro e as jóias que sabia estarem aqui. Deus o conduziu! Deus o preservou.

Mas e depois?

Rico da pequena fortuna que encontrara com o risco da própria vida em sua casa condenada, que fim levara o Conde de Peyrac?

CAPITULO III

As loucuras de Florimond

Quando quis ir a Saint-Cloud para buscar Florimond, Angélica compreendeu que as advertências de Desgrez não tinham sido gracejos. Ao subir na carruagem", desdenhou a presença do "admirador" cujo rosto se avermelhava sob suas janelas há três dias. Não se preocupou com os dois cavalheiros que, surgidos de uma taberna próxima, lançaram-se em seu encalço pelas "ruas. Mas mal atravessara a Porte Saint-Honoré, um grupo de homens da ronda, armados, cercou-lhe o carro, enquanto um jovem oficial lhe pedia com toda a polidez que retornasse a Paris.

- Ordem do rei, senhora!

Ela protestou. Ele precisou apresentar-lhe a carta rubricada pelo tenente de polícia, Sr. de La Reynie, que recomendava não deixar a Sra. du Plessis-Bellière sair da cidade.

"E quando se pensa que foi Desgrez o encarregado de aplicar esta sanção!", disse ela consigo. "Ele poderia ter-me ajudado, mas agora não o fará! Dar-me-á todas as informações possíveis sobre o antigo processo de meu marido, todos os conselhos, mas também colocará em prática tudo para obedecer às ordens do rei."

Cerrou dentes e punhos depois de ordenar ao cocheiro que desse meia volta com os cavalos. A coerção exasperava seu instinto combativo. Joffrey de Peyrac, estropiado e caçado, conseguira outrora entrar em Paris. Pois ela havia de conseguir sair, e hoje!

Enviou um mensageiro a Saint-Cloud. Pouco depois Florimond chegou, ladeado de seu preceptor. Este disse que, segundo as instruções da Sra. du Plessis, ele começara as negociações para vender o cargo de Florimond. O Sr. de Loane comprava-o em nome do sobrinho. Oferecia bom preço.

— Veremos isso - disse Angélica. Não queria afastar-se e atrair a cólera do rei, sem tomar todas as precauções quanto-aos filhos.

— Por que devo vender meu cargo? - perguntou Florimond. - A senhora encontrou-me um emprego melhor? Vou retornar a Versalhes? Eu estava bem em Saint-Cloud, Monsieur havia notado minha dedicação.

Soltando gritos de alegria, Carlos Henrique veio correndo. Adorava o irmão mais velho, e este lhe retribuía à altura. Cada vez que vinha a Paris, tomava conta do pequeno, colocava-o a cavalo sobre os ombros, punha-lhe a espada na mão. E sempre se extasiava com a beleza de Carlos Henrique.

— Mamãe, não é a criança mais linda do mundo? Merecia ser o delfim, em lugar do verdadeiro, que é tão bronco.

— Não fale assim, Florimond - recomendou o Abade de Les-diguières.

Angélica desviou os olhos do quadro que seus dois filhos formavam. Carlos Henrique, louro, rosado e roliço, erguendo os olhos azulíssimos para os doze anos do moreno Florimond. Tinha um leve sentimento de remorso e impotência quando seu olhar recaía sobre a cabeça encaracolada do filho de Filipe. Por que se casara? Joffrey de Peyrac enviara um mensageiro para buscá-la e fora informado de que ela se casara de novo. Era uma situação terrível e sem saída. Deus não deveria deixar que coisas assim acontecessem!

Ocultou cuidadosamente seus preparativos de viagem. Enviaria Carlos Henrique com Bárbara e os criados para o Plessis, no Poi-tou. O rei não ousaria, nem em sua cólera, fazer mal ao filho e aos bens do marechal. Para Florimond, tinha outros projetos, mais secretos.

"O rei há de querer-me tão mal?", dizia-se ela, para se tranquilizar. "Sim, porque o terei desobedecido. Mas haverá de censurar-me por muito tempo uma simples viagem a Marselha? Eu volta-rei...

A fim de dissipar suspeitas e dar provas aparentes de docilidade, fez vir seu irmão Gontran. Finalmente encontrava tempo para mandar pintar o retrato dos filhos. Enquanto se inclinava sobre contas fastidiosas, para deixar todos os negócios em ordem, ouvia Flo-rimond inventar mil tolices para aquietar o caçula.

— Anjinho de sorriso de querubim. Você é gracioso. Glutãozi-nho gordo como um cónego. Você é gracioso - recitava ele, parodiando as litanias dos santos. E a voz do Abade de Lesdiguières:

— Florimond, não deveria zombar dessas coisas. Há em você um quê de espírito libertino que me preocupa.

Florimond, indiferente, cantarolava:

-        Carneirinho frisado que pasta confeitos. Você é gracioso. Pequeno fogo-fátuo, cheio de malícia. Você é gracioso...

Carlos Henrique ria às gargalhadas. Gontran resmungava, como de hábito, e em sua tela surgiam as cabeças morena e loura dos filhos de Angélica. Florimond de Peyrac, Carlos Henrique du Plessis-Bellière, em quem ela reconhecia o reflexo dos dois homens a quem amara.

Florimond, ligeiro como uma borboleta, tinha suas opiniões. Uma noite foi ao encontro de. Angélica, diante do fogo.

— Minha mãe - perguntou, à queima-roupa -, o que acontece? A senhora não é então a amante do rei, que este parece manter em penitência em Paris?

— Florimond! - exclamou Angélica, chocada -, no que é que está se metendo?

Florimond conhecia o ímpeto da mãe e tomava cuidado para não se lhe opor frontalmente. Sentou-se a seus pés sobre um pequeno tamborete e alçou para ela seu olhar sombrio e brilhante, cuja sedução conhecia bem.

-        A senhora não é a amante do rei? - repetiu com um sorriso suave.

Angélica perguntou-se se ia encerrar a conversa com uma bofetada bem aplicada, mas conteve-se a tempo. Florimond não pensava por mal. Interrogava-se da mesma maneira que toda a corte, desde o primeiro gentil-homem até o último dos pajens, sobre a questão do duelo que contrapunha a Sra. de Montespan à Sra, du Plessis-Bellière. E como esta última era sua mãe, ele se interessava particularmente, pois os boatos do favor real haviam-no colocado em vantagem perante os companheiros. Os cortesãos em bro-t0! ja adestrados e intrigantes, procuravam cair-lhe nas boas graças.

Meu pai diz que sua mãe pode tudo sobre o espírito do rei", observara-lhe o jovem D'Aumale. "Você tem sorte! Sua carreira está feita. Mas não esqueça os amigos. Sempre lhe fui cortês, não é verdade?"

Florimond dava-se ares, brincava de eminência parda. Já havia prometido o cargo de grande almirante a Bernardo de Chateau-roux e o de ministro da Guerra a Filipe d'Aumale. E eis que agora sua mãe o retirava bruscamente da casa de Monsieur, falava em vender-lhe o cargo de pajem e vivia reclusa em Paris, longe de Versalhes.

-        A senhora desagradou ao rei? Por quê?

Angélica pousou a mão na testa lisa do rapazinho, afastando os cachos negros, que tornavam a cair. Sentia a mesma emoção mesclada de melancolia que experimentara no dia em que Cantor pedira para partir para a guerra, o espanto de perceber, como todas as mães, que os filhos se tornaram seres pensantes, cada um à sua maneira.

Respondeu suavemente à pergunta de Florimond.

-        Sim, desagradei ao rei, e ele me quer mal.

O menino franziu o cenho, imitando as expressões desoladas e preocupadas que observara no rosto de cortesãos em desgraça.

— Que catástrofe! Que será de nós? Aposto que foi novamente aquela p... da Montespan que fez das suas. A sujeitinha!

— Florimond, que linguagem é essa?

Florimond deu de ombros. Era a linguagem das antecâmaras reais. De súbito pareceu resignar-se, enfrentando a situação com a filosofia de alguém que já viu construírem-se e ruir muitos castelos frágeis de cartas.

— Dizem que a senhora partirá em viagem.

— Quem diz isso?

— Dizem.

— Que aborrecido! Não gostaria de que meus projetos fossem conhecidos.

— Prometo-lhe que não falarei deles a ninguém, mas gostaria de saber o que vai fazer de mim, agora que está tudo às avessas. Vai levar-me com a senhora?

Ela pensara nisso e desistira. A aventura era cheia de riscos. Ela sequer sabia como poderia deixar Paris. E em Marselha, que informações obteria do Padre António e em direção a que outra pista essas informações a conduziriam? Uma criança, ainda que esperta como Florimond, poderia ser-lhe um empecilho.

-        Meu menino, seja razoável. O que tenho a propor-lhe não é muito divertido. Mas, considerando que você é ignorante como um asno, chegou o momento de estudar a sério. Vou confiar-lhe a seu tio jesuíta, que aceita recebê-lo num dos colégios que a Companhia possui no Poitou. O Abade de Lesdiguières o acompanhará até lá e será seu guia e amparo durante minha ausência.

Ela fora procurar o Padre Raymond de Sancé e lhe pedira que se ocupasse de Florimond, que o protegesse quando necessário.

Conforme esperava, Florimond fez beiço. Ficou por longo tempo pensativo, o cenho franzido. Angélica passou-lhe um braço em torno dos ombros, para ajudá-lo a digerir a má notícia. Preparava-se para enaltecer-lhe as alegrias do estudo e da camaradagem, quando ele ergueu a cabeça para declarar secamente:

— Pois bem! Se -isso é tudo o que me espera, vejo que não tenho escolha senão ir ao encontro de Cantor.

— Meu Deus, Florimond - exclamou Angélica, transtornada -, não fale assim, suplico-lhe. Não está com vontade de morrer, não é?

— Oh, não! - disse a criança, muito serena.

— Então por que está dizendo coisas tão terríveis: que quer ir ao encontro de Cantor? .

— Porque tenho vontade de revê-lo. Começo a sentir saudades dele e prefiro ir passear no mar a entoar latim com os jesuítas.

— Mas... Cantor morreu, Florimond. Florimond abanou a cabeça com segurança.

— Não, ele foi ao encontro de meu pai.

Angélica sentiu-se empalidecer e pareceu-lhe que perdia os sentidos.

-        O que é... o que é que você está dizendo?

Florimond olhou-a bem de frente.

-        Sim, meu pai!... o outro... Sabia?... O que quiseram queimar na Place de Greve.

Angélica ficou sem palavras. Jamais lhe- falara disso. Eles não frequentavam os filhos de Hortênsia, e esta, a evocar o escândalo horrível, havia de preferir que lhe cortassem a língua. Ela velara com um ciumento cuidado para preservá-los de todas as indiscrições, perguntando-se com ansiedade o que lhes responderia no dia em que soubessem do nome e da condição de seu pai verdadeiro. Mas eles nunca lhe fizeram pergunta alguma, e apenas hoje ela se dava conta de como o comportamento deles fora incomum. Não fizeram perguntas, porque sabiam.

-        Quem lhe falou disso?

Com um trejeito dubitativo, Florimond, querendo explorar o efeito de suas palavras, voltou-se para o fogo e pegou as pinças de cobre para remexer as achas que haviam desabado. Como era ingénua aquela mãe! E adorável! Durante anos Florimond a considerara bastante severa. Tinha-lhe medo, e Cantor chorava, porque ela sempre desaparecia no momento em que se esperava que finalmente viesse para rir com eles. Mas já fazia algum tempo que descobrira as fragilidades dela. Vira-a tremer no dia em que Du-chesne tentara matá-lo. Percebera a angústia que ela dissimulava por trás do sorriso, e porque fora alvo de comentários venenosos, trocados às vezes por conta da "futura favorita", sentira nascer em si um sentimento novo que o amadurecia: um dia seria grande e a protegeria.

De súbito, teve um gesto galante. Ergueu na direção dela as duas mãos estendidas e o sorriso luminoso.

-        Minha mãe!... - murmurou.

Ela cerrou contra o peito a cabeça cacheada. Não havia menino mais belo e encantador sobre a face da terra. Já possuía toda a sedução do Conde de Peyrac.

— Sabia que você se parece muito com seu pai?

— Sim, sei. O velho Pascalou já me havia dito.

— O velho Pascalou? Ah, foi assim que você ficou sabendo?

— Sim e não - disse Florimond, muito importante. - O velho Pascalou era nosso amigo. Tocava pífaro e um tamborim de guizos, e nos contava histórias. Sempre dizia que eu era parecido com o gentil-homem maldito que construiu a Mansão do Beautreillis. Conhecera-o criança e dizia que eu me parecia exatamente com ele, exceto pela maçã do rosto, que lhe fora cortada por um sabre. Então pedíamos que nos contasse aquela vida maravilhosa. Era um homem que sabia tudo, até fabricar ouro com poeira. Cantava de tal maneira, que os que o ouviam não conseguiam mover-se do lugar. Bateu em duelo todos os seus inimigos. No fim, invejosos maldosos conseguiram aprisioná-lo e queimaram-no na Place de Greve. Mas Pascalou dizia que ele era tão forte, que conseguira escapar, pois ele, Pascalou, o vira quando ele voltou aqui a casa, quando todo mundo o imaginava queimado. E Pascalou dizia que morreria feliz pensando que aquele grande homem que fora seu amo ainda estava vivo.

_ E isso é verdade, meu querido. Ele está vivo, bem vivo.

__ Mas durante muito tempo ainda ficamos sem saber que esse homem era nosso pai. Perguntamos-lhe o nome a Pascalou. Ele não queria dizer. Por fim nos disse em grande segredo: Conde de Peyrac. Lembro que naquele dia estávamos sozinhos com ele na copa. Mas Bárbara passou por ali. Ouviu o que conversávamos e ficou branca, vermelha, verde, e disse a Pascalou que nunca falasse daquelas coisas medonhas. Queria que a maldição do pai recaísse sobre os filhos infelizes? Que a mãe já tivera bastante dificuldade para arrancá-los a seu triste destino... Falou, falou e não entendíamos nada, e o velho Pascalou também não. Até que disse: "Quer dizer, boa mulher, que estas duas crianças são filhos dele?" Bárbara ficou de boca aberta como um peixe, depois não parava de balbuciar incoerências. Foi gozado! Mas foi bem tola de supor que escaparia assim. Não paramos mais de fazer-lhe perguntas: "Quem era nosso pai, Bárbara? Era ele; o Conde de Peyrac?" Um dia, tivemos uma ideia, Cantor e eu. Amarramo-la a uma cadeira diante do fogo e fizemo-la entender que, se não nos contasse a verdade e o que sabia sobre nosso verdadeiro pai, nós lhe queimaríamos a sola dos pés, como fazem os bandidos das grandes estradas...

Angélica soltou um grito de horror. Era possível! Aqueles meninos, aqueles pequenos que se teriam dado ao bom Deus sem confissão! Florimond desatou a rir, regozijando-se com a recordação:

— Quando ela começou a se queimar um pouco, disse tudo, mas fez-nos jurar que jamais lhe falaríamos a respeito. E guardamos segredo. Mas ficamos felizes e orgulhosos de que ele fosse nosso pai e que tivesse escapado aos malvados... Então Cantor enfiou na cabeça de se fazer ao mar para procurá-lo.

— Por que no mar?

-        Porque é muito longe - disse ele, com um gesto vago.

Adivinhava-se que para ele o mar era uma entidade da qual não tinha uma ideia muito precisa, mas que se abria sobre paraísos verdes onde todos os sonhos se realizavam, e Angélica o compreendia.

-        Cantor tinha composto uma canção - continuou Florimond.

- Já não me lembro bem da letra, mas era muito bonita. Era a história de nosso pai. Ele dizia: "Cantarei esta canção por toda parte, e haverá muita gente que o reconhecerá e que me dirá onde ele está..."

A garganta de Angélica contraiu-se e seus olhos umedeceram-se. Imaginava os dois a tramar a impossível odisseia do pequeno trovador em busca do homem da lenda.

-        Eu não estava de acordo - disse Florimond. - Não tinha vontade de partir, porque meu emprego em Versalhes me agradava. Não é correndo os mares que se faz avançar a própria carreira, não é? Cantor partiu. Ele sempre consegue o que quer. Bárbara dizia: "Esse aí, quando quer uma coisa, é pior que a mãe..." Mamãe, a senhora acredita que ele encontrou meu pai?...

Angélica acariciou-lhe os cabelos sem responder. Não tinha coragem de lembrar-lhe uma vez mais que Cantor morrera, pagando com a vida, como os cavaleiros do Santo Graal, a busca de uma quimera. Pobre cavaleirozinho! Pobre trovadorzinho! Seu rosto fechado de lábios cerrados aparecia-lhe flutuando atrás das transparências de esmeralda do mar insondável. A água era tão profunda quanto seu olhar carregado de sonhos.

-        ...à força de cantar - murmurou Florimond, que continuava sua ideia.

Ela havia ignorado o que aqueles olhos cândidos ocultavam. O mundo infantil, onde se misturam estranhamente a loucura e a sabedoria, já não lhe era acessível.

"Todas as crianças têm loucuras na cabeça", pensou. "A infelicidade é que as minhas as fazem!"

No entanto, ela não chegara ao final. A noite ainda lhe reservava outras surpresas.

CAPÍTULO IV

O subterrâneo

Após permanecer em silêncio por um longo momento, Flori-mond levantou a cabeça. Seu rosto mutável refletiu de súbito uma expressão de constrangimento e tristeza.

-        Mamãe - disse ele -, foi o rei que condenou meu pai? Pensei muito, e isso me atormentou, pois o rei é justo...

Ele sofria por ver destruído um ídolo. Ela, para tranquilizá-lo, disse:

— Foram os invejosos que causaram a perdição de seu pai, e foi o rei quem o agraciou.

— Oh, fico muito contente - exclamou Florimond. - Pois amo o rei, mas amo mais ainda a meu pai. Quando voltará ele? Se o rei o agraciou, ele não poderia retomar sua posição?

Angélica suspirou, o coração pesado.

-        É uma história bem obscura e bem difícil de desenredar, meu pobre garotinho. Até recentemente eu mesma acreditava que seu pai estivesse morto, e agora há momentos em que tenho a impressão de sonhar. Ele não morreu, escapou, esteve aqui para procurar ouro... É incontestável. Ao mesmo tempo, é impossível. As portas de Paris estavam guardadas, postaram-se sentinelas nos arredores da residência. Por onde teria ele podido entrar?

Viu que Florimond a olhou balançando a cabeça com um sorriso de superioridade, e como ela já se preparava para uma revelação daquele garoto surpreendente, exclamou:

— Será que você sabe?!

— Sim.

Inclinando-se para ela, cochichou:

— Pelo subterrâneo do poço!

— Que quer dizer?

Misterioso, Florimond ergueu-se e tomou-a pela, mão.

-        Vem!

Passando pelo corredor, pegou uma lamparina que ardia perto da entrada, depois conduziu a mãe pelos jardins. A lua quase cheia iluminava suficientemente as alamedas traçadas entre os buxos aparados, até o fundo, perto do grande muro, recanto medieval onde Angélica quis que se preservasse a mata e a desordem poética. Uma coluna partida ao meio, um brasão de armas florido contra um banco e o velho poço com domo de ferro forjado lembravam o antigo esplendor do século XV, quando aquele bairro do Marais formava um único e imenso palácio com inúmeros pátios, residência dos reis e príncipes da França.

— Foi Pascalou quem nos mostrou o segredo - explicou Florimond. - Ele dizia que meu pai havia supervisionado pessoalmente a recuperação do velho subterrâneo quando mandou construir a mansão. Pagou bem caro a três operários para que guardassem o segredo. Pascalou foi um deles. Então mostrou-nos tudo, já que éramos filhos dele. Olhe.

— Não vejo nada - disse Angélica, inclinando-se sobre o buraco negro.

Florimond pôs a lamparina dentro do grande balde de madeira guarnecido de cobre que pendia de uma corrente, e desceu-o suavemente. A luz iluminou as paredes luzidias de umidade.

A meio caminho, o rapazinho parou a corrente.

— Ali! Quando a gente se inclina, percebe na parede uma portinha de madeira. É lá. Quando o balde pára exatamente em frente, ela se abre e penetra-se no subterrâneo. E muito profundo. Passa sob o porão das casas vizinhas. Atravessa as muralhas do lado da Bastilha, e antigamente chegava até o Faubourg Saint-Antoine, onde se ligava a antigas catacumbas e ao antigo leito do Sena. Mas como se construiu em cima, meu pai mandou prolongá-lo até a floresta de Vincennes. Sai-se numa capelinha em ruínas. E pronto. Meu pai teve muita prudência, não?

— Como saber se esse subterrâneo continua praticável? - murmurou Angélica.

— Oh, continua! O velho Pascalou manteve-o com cuidado. A lingueta da fechadura da porta está sempre oleada. Abre-se com menor pressão, e o mecanismo de alçapão que dá na capela de Vincennes também funciona muito bem. O velho Pascalou dizia que era preciso conservar tudo em bom estado para quando o amo retornasse. Mas ele ainda não retornou, e às vezes, na capela de Vincennes, nós três o esperávamos, o velho Pascalou, Cantor e eu. Escutávamos. Esperávamos ouvir-lhe os passos. Os passos do Grande Coxo do Languedoc.

Angélica olhou o filho com agudeza.

_ Florimond, não me vá fazer acreditar que você e Cantor desceram neste poço?

-        Claro! Claro! - disse Florimond, com negligência. - E mais de uma vez, pode acreditar.

Trouxe o balde de volta e de repente caiu na gargalhada.

— Bárbara nos esperava aqui dizendo o terço, aterrorizada como uma galinha que tivesse chocado patos.

— Aquela louca estava a par! .

— Era preciso que" ela nos ajudasse a subir o balde!

— E indigno! Ela os deixou cometer tais imprudências, e sem me dizer nada...

— Ora! Ela tinha medo de que lhe queimássemos os pés de novo.

-        Florimond, você percebeu que merece um par de bofetadas?

Florimond não disse "sim, nem não. Ocupou-se em arrumar o balde e pousou a lamparina sobre a boca do poço, que se tornara escuro e misterioso outra vez. Angélica passou a mão pelo rosto, tentando colocar os pensamentos em ordem.

— O que não compreendo... - disse. Pensou mais um pouco.

— Sim. Como pôde ele sair sozinho do poço, sem ajuda?

— Não é difícil. Há pequenos grampos de ferro cravados nas paredes para essa finalidade. Mas Pascalou não queria que os utilizássemos, porque éramos pequenos demais, enquanto ele começava a ficar um tanto velho. Quando sentiu que ia morrer, mandou chamar-me. Eu estava em Versalhes. Pulamos num cavalo, o abade e eu. Mamãe, é triste ver morrer um bom servidor. Segurei-lhe a mão até o fim.

— Você fez bem, meu Florimond.

— E ele me disse: '"É preciso vigiar o poço para quando o amo retornar". Prometi-lhe. Cada vez que venho a Paris, desço e verifico se todo o mecanismo está em boas condições.

— Você faz isso... sozinho?

— Sim. Fartei-me de Bárbara. Sou grande o bastante agora para me desvencilhar sozinho.

— Você desce pelos grampos de ferro?

— Exatamente. E muito simples, digo-lhe. Uma pequena ginástica.

— E o abade nunca se opôs às suas loucuras?

— O abade não está a par. Ele dorme. Acho que jamais desconfiou de coisa alguma.

— Ah, meus filhos são bem guardados! - disse Angélica, amarga. - Então é à noite que você se entrega a essas fantasias perigosas? E... nunca teve medo, Florimond, quando se via sozinho, assim à noite, no subterrâneo?

O rapazinho balançou a cabeça. Se tivesse tido medo alguma vez, não confessaria.

-        Meu pai ocupava-se de minas, disseram-me. Talvez seja por isso que gosto de estar sob a terra.

Olhou-a de soslaio, lisonjeado pela admiração que ela não conseguia dissimular, e ao luar que marcava de sombras o rosto infantil, Angélica reconheceu a curva do lábio zombeteiro, a centelha de um olhar negro e aquela expressão um pouco diabólica do último dos senhores de Toulouse, que gostava tanto de escandalizar, assustar e deixar boquiabertos de estupor os burgueses timoratos.

-        Se a senhora quiser, minha mãe, eu a conduzo.

CAPÍTULO V

Marselha

A galera real entrou lentamente no porto de Marselha. A enseada, espelho azul-, refletiu-lhe como um incêndio as bandeiras de seda carmesim, girando ao vento suas borlas de ouro, suas flâmulas brasonadas, levanido no tope dos mastros a insígnia do almirante e o estandarte da marinha, vermelho também e bordado de flores-de-lis de ouro.

Logo houve no cais um movimento geral de curiosidade. As peixeiras e as floristas apanharam seus cestos de figos e de mimosas, de melões ou de cravos, de rascassosvou de moluscos e, trocando comentários sonoros, dirigiram-se para a ponta onde o belo navio devia acostar. Mulheres elegantes que passeavam seguidas de seus cãezinhos, pescadores de boina vermelha ocupados em remendar suas redes, aproximaram-se por sua vez. Dois carregadores turcos, de calça bufante verde e vermelha, o torso acaju reluzindo de suor, deixaram cair os enormes fardos de peixe seco que transportavam, sentaram-se sobre eles e puxaram da cintura um longo cachimbo, que acenderam. A chegada da galera permitiria que dessem algumas tragadas, pois o trabalho de formigueiro do grande porto diminuía. Os capitães vigiavam o carregamento de um navio, barrigudos comerciantes, correndo daqui para ali seguidos de seus escrivães e caixeiros, decidiam pousar as balanças e respirar um pouco. Ia-se à galera, como ao espetáculo, menos para admirar-Ine a graça alada deslizando sobre a água da baíae seus oficiais engalonados, do que para ver passar a malta de forçados - espetáculo horrível que fazia as mulheres persignarem-se, embora jamais se cansassem dele.

Angélica levantou-se da carreta do canhão onde esperava sentada há muitas horas. Flipot a seguiu, levando o saco. Misturaram-se à multidão.

Ao longe, perto da Tour Saint-Jean, a galera parecia hesitar, como um grande pássaro rutilante, e a luz lançava faíscas ao ouro de suas esculturas.

Finalmente deslizou na direção do cais, a grandes golpes de seus vinte e quatro remos, brancos e floreados de arabescos. Terminou de virar de bordo, voltando para o largo um longo esporão afilado de ébano, com uma sereia gigante de madeira dourada na extremidade; apresentava agora à multidão do cais sua popa ornamentada, guarnecida de brasões e esculturas de madeira dourada, encimada de um baldaquino de brocado vermelho e ouro. Era uma vasta tenda quadrada que também chamavam tabernáculo e onde se reunia o corpo de oficiais.

Um pouco antes de encostar, os remos levantaram-se e permaneceram imóveis. Ouviram-se os apitos dos comitres, o ribombar de um gongo que cessava o impulso dos remos, depois, dominando tudo, as injúrias do capitão aos marinheiros que enrolavam as velas.

Um grupo de oficiais em uniforme de gala apareceu no abrigo da proa, perto da escada de madeira dourada. Um deles inclinou-se para a frente, tirou a chapéu de grandes plumas e se pôs a fazer sinais na direção de Angélica. Ela voltou-se e, para grande alívio seu, viu um grupo de jovens senhoras e de elegantes que acabavam de apear de uma carruagem. Eram para elas os sinais. Uma das jovens, uma morena de rosto atraente, se bem que um pouco constelado demais de moscas, exclamou maravilhada:

- Oh, esse delicioso Vivonne! Nem por ser almirante e mais poderoso em Marselha do que Sua Majestade, o rei, torna-se menos amável. E que simplicidade! Avistou-nos e digna-se a dirigir-nos seus cumprimentos.

Ao reconhecer o Duque de Vivonne, Angélica recuara precipitadamente para o meio da multidão. O irmão da Sra. de Montespan colocou o salto vermelho de seu sapato sobre o lajeado viscoso e foi direto para a jovem morena, de braços estendidos.

__ Encantado de encontrá-la no porto, bela Ariadne. E a você, Cassandra. Mas não é o caro Calistro que percebo ali? Que alegria!

Num rebuliço mundano, que os basbaques contemplavam bo-nuiabertos, o almirante e seus amigos trocaram reverências. O Duque de Vivonne saía-se muito bem no papel de quase vice-rei. Sua tez trigueira ia bem com seus olhos azuis e com sua abundante cabeleira loura. Alto, carregava sem dificuldade uma ligeira corpulência, sabendo valer-se dela para impor a própria presença como ator consumado. Zombeteiro, divertido, de espírito vivo, havia nele muito de sua brilhante irmã, a amante do rei.

-        Foi por acaso que pude arribar hoje - explicou. - Na verdade, devo zarpar dentro de dois dias para Cândia. Mas as avarias causadas por uma tempestade e a má saúde da tripulação obrigaram-me a fazer vela na direção de Marselha. Como os vejo, convido-os a todos. Temos dois dias para nos regalar.

Um ruído seco,, semelhante a um tiro de pistola, provocou um sobressalto no grupo: Um dos comitres da galera, estalando o chicote, convidava a multidão a afastar-se.

-        Afastemo-nos, minhas belas - disse o Sr. de Vivonne, pousando uma mão hipócrita, enluvada de pele branca, sobre os ombros das jovens. - Os forçados vão descer. Autorizei cinquenta a irem até seu acampamento na enseada do Rochedo para enterrar um deles que cometeu a tolice de expirar no momento em que entrávamos no porto. Aliás, foi o que nos atrasou. Meu imediato propunha, e eu concordava, que se lançasse o corpo ao mar, como é costume quando a galera está ao largo. Mas o capelão opôs-se. Disse que não teria tempo de recitar as preces e as cerimónias usuais, que não se podia tratar um cristão como a um cão morto, numa palavra: que queria enterrá-lo. Cedi, porque estávamos perto do porto e também porque, à força do hábito, aprendi que esse padrezinho lazarista acaba sempre levando a melhor. Quando tem

uma ideia na cabeça, nada o dobra, nem persuasão, nem força. Venham, pois. Quero levá-las imediatamente ao sorveteiro Scevola, saborear sorvetes de pistache e tomar um café turco.

Afastaram-se enquanto o beleguim, ao pé da passarela, continuava a estalar o chicote. Parecia um daqueles gladiadores que, à entrada das jaulas abertas, apressavam a saída das feras para a areia das arenas.

Por trás do abrigo dourado da proa, subiam ruídos terríveis, arrastar de correntes e vozes roucas.

Houve um murmúrio quando os primeiros forçados apareceram no topo da passarela, erguendo as silhuetas avermelhadas, pesadas de longas correntes. Carregavam-nas sobre o ombro ou no braço, para que seu peso em terra não lhes dificultasse a marcha precária. Um atrás do outro, atravessaram a prancha que fora lançada do navio ao cais. Estavam acorrentados quatro a quatro. Trapos sujos, amarrados ao tornozelo onde se prendia a cadeia das correntes, tentavam proteger as carnes, mas era frequente esses trapos estarem manchados de sangue.

Homens e mulheres persignaram-se à passagem deles.

Iam descalços, coçando-se dos piolhos, de olhos baixos. Suas roupas, uma camisa e uma calça de lã vermelha amarradas com um cinto grosso, originalmente branco, estavam çncharcados de água do mar e desprendiam um mau cheiro insuportável. A maioria tinha barba. Uma boina de lã vermelha, enfiada até as sobrancelhas, cobria-lhes a cabeleira hirsuta. Alguns usavam uma boina verde: eram os "perpétuos".

Os primeiros passaram indiferentes. Outros ofereceram o espe-táculo que se aguardava. De olho aceso, interpelaram as mulheres com grosserias, esboçaram gestos obscenos. Um "perpétuo" investiu contra um plácido burguês, que, a seus olhos, só cometera o erro de não estar em seu lugar.

- Isto o diverte, hein? Imbecil, barrica de vinho!

Um comitre se precipitou com o chicote levantado e a corda fustigou a pele baça, já marcada de equimoses e chagas. Mulheres soltaram gritos compadecidos.

Enquanto isso, apareceu um novo grupo, no qual cada um trazia a boina na mão. Os lábios dos forçados moviam-se, e reconheceu-se o sussurro das orações. Um silêncio solene tombou sobre a multidão. Dois forçados desceram, carregando um corpo envolto num grosso pano de vela. Atrás deles vinha o capelão, cuja sotaina negra sobressaía dentre aquele amontoado de andrajos vermelhos.

Angélica o olhou avidamente. Não teve certeza de reconhecê-lo. Fazia dez anos que não o via, e o encontro ocorrera em circunstâncias que lhe perturbavam as lembranças.

A tropa miserável já se distanciava, arrastando as correntes sobre as lajes. Angélica puxou Flipot pela manga:

__ Vá seguir aquele padre, o Reverendo Padre António. É esse o nome dele. Quando puder abordá-lo, você lhe dirá... Escuta bem. Você lhe dirá: "A Sra. de Peyrac está aqui e deseja encontrá-lo no Albergue da Corne d'Or".

CAPITULO VI

O Padre António viu o Conde de Peyrac - A polícia procura Angélica

-Entre, meu padre -, disse Angélica.

O eclesiástico hesitava à soleira do quarto onde se encontrava aquela grande dama, em trajes de uma custosa simplicidade. Estava visivelmente embaraçado pelos sapatos grosseiros e pela sotaina esverdeada, cujas mangas estreitas descobriam-lhe os pulsos avermelhados e gretados pelo sal marinho.

-        Perdoe-me por recebê-lo assim em meu quarto - explicou a jovem. - Estou aqui em segredo e não gostaria de ser reconhecida.

O padre fez sinal de que compreendia e de que esses detalhes lhe eram indiferentes. Aceitou sentar-se a um escabelo. Agora ela o reconhecia, conforme o vira sentado, uma noite, diante da lareira do carrasco de Paris, com os ombros um pouco arqueados, o ar de grilo transido e aquele brilho brusco nos olhos de carvão quando erguia as pálpebras.

Ela sentou-se numa poltrona diante dele.

-        Lembra-se de mim? - perguntou.

Um sorriso fugidio repuxou os lábios severos do Padre António.

-        Lembro-me.

Ele examinou-a com atenção, comparando a mulher que tinha à sua frente com a figura desvairada, deformada, quase louca, que vira errar num crepúsculo de inverno junto aos restos de uma fogueira, cujas últimas brasas o vento avivava.

-        A senhora esperava um filho então - disse ele com doçura.- Que aconteceu com ele?

-        Foi um menino - disse ela. - Nasceu naquela mesma noite. Nasceu... e já morreu. Aos nove anos.

Tocada pela lembrança do pequeno Cantor, ela voltou os olhos para a janela. "O Mediterrâneo o tomou", pensou.

Caía a noite. Gritos, cantos., chamados subiam das ruelas, onde turcos, espanhóis, gregos, árabes, napolitanos, negros e ingleses ganhavam vida, enquanto os lupanares e tabernas abriam.

Não longe dali uma guitarra tocou uns acordes e uma voz de homem elevou-se, quente e vibrante. Mas, apesar dos rumores todos, o mar continuava presente, e ao pé da cidade ouvia-se-lhe o zunido como de um enxame.

O Padre António olhava, meditava.

Aquela mulher, em sua beleza resplandecente, quase não tinha parentesco com a jovem criatura desesperada de quem guardara a lembrança. Sentia-se que era segura de si, precavida e, em certa medida, temível. Mais uma vez ele se espantava com a marca da vida sobre os seres. Não a teria reconhecido e teria encontrado dificuldade em admitir-lhe a identidade, não fosse a expressão dolorosa que ela tivera ao falar da criança.

Ela voltou o olhar em sua direção, e o pequeno capelão cruzou as mãos sobre os joelhos, como para se preparar para a luta. De repente tinha receio de falar. Ela o forçaria a dizer tudo, e isso o cobriria de uma grande responsabilidade.

-        Meu padre - disse Angélica - ,'eu nunca soube, e hoje gostaria de saber, quais foram as últimas palavras de meu marido sobre a fogueira... Sobre a fogueira - insistiu. - No último momento. Quando já estava atado ao poste. Que disse ele?

O padre ergueu as sobrancelhas.

— Eis um desejo bem tardio, senhora - protestou. - Perdoe à minha memória o não se lembrar em absoluto. Os anos se passaram, e desde então, infelizmente, assisti muitos outros condenados. Acredite. Sou incapaz de informar-lhe com precisão.

— Pois bem, eu posso. Ele não disse nada. Não disse nada porque já estava morto. Foi um morto que ataram ao poste. Outro morto. E meu marido, vivo, era arrastado por um subterrâneo, enquanto aos olhos da multidão o fogo cumpria a sentença de que ele fora injustamente atingido. O rei confessou-me tudo.

Ela percebia da parte do padre um gesto de surpresa, um protesto. Mas ele permaneceu impassível.

— O senhor o sabia, não é? - disse ela num fôlego. - Sempre soube?

— Não, sempre não. A substituição efetuou-se com tanta habilidade, que no momento não tive a menor suspeita... Haviam-lhe colocado uma cogula sobre a cabeça. Foi mais tarde...

-        Mais tarde... Onde? Quando? Por quem o soube?

Inclinava-se, ofegante, os olhos ardentes.

-        O senhor o viu, não foi - arquejou -, o senhor o viu... depois da fogueira?

-        Sim, sim, eu o vi. Escute-me.

E fez seu relato assombroso.

Foi em Paris, naquele mês de fevereiro de 1661 que terminava. Era a mesma noite gelada em que o monge Bécher morrera "sob a perseguição dos demónios", gritando: "Perdão, Peyrac!..."

O Padre António orava na capela. Um irmão leigo veio dizer-lhe que um pobre insistia em vê-lo. Um pobre que escorregara para a mão do irmão leigo uma moeda de ouro. E o irmão não ousara colocá-lo na rua. O Padre António dirigiu-se ao parlató-rio. O pobre estava lá, apoiado a uma muleta grosseira, e à luz da lâmpada de óleo sua sombra desengonçada, quase disforme, projetava-se nas paredes caiadas. Estava vestido de maneira conveniente. Usava uma máscara de aço negro. Tirou a máscara, e o Padre António caiu de joelhos, rogando ao céu que o livrasse de visões horríveis, pois tinha à sua frente um fantasma, o fantasma do feiticeiro que vira arder na Place de Greve.

O fantasma sorria, zombeteiro. Tentou falar, mas de sua boca saíam apenas sons roucos e ininteligíveis. De repente, desapareceu. O Padre António levou algum tempo para perceber que o infeliz simplesmente perdera os sentidos e jazia a seus pés, sobre as lajes. Então, movido pela caridade, acalmou o próprio medo e inclinou-se sobre o espectro. Estava bem vivo, ainda que quase agonizante. Não tinha mais forças. O corpo era de uma magreza esquelética. Mas seu saco de dinheiro continha uma surpreendente fortuna em luíses de ouro e em jóias.

Durante longos dias o espectro permaneceu entre a vida e a morte. Compartilhando o segredo com o superior da comunidade, o Padre António cuidou dele.

-        Ele chegara ao último grau do esgotamento. Não se podia imaginar que aquele corpo torturado pelo carrasco pudesse suportar tanto esforço. Esquartejada pelo cavalete, uma de suas pernas, a enferma, apresentava ferimentos horríveis sob o joelho e no quadril. Ele tinha as chagas abertas há quase um mês, caminhando sem esmorecer. Uma vontade assim faz honra à espécie humana, senhora!

Ao humilde capelão das prisões,, o Conde de Peyrac, outrora tão poderoso, dizia: "Doravante você é meu único amigo!"

Fora no pequeno padre que pensara quando, reunindo as últimas forças para retornar à Mansão do Beautreillis, sentira-se morrer de fraqueza. Vir de tão longe para morrer a um passo do êxito! Deixara a residência por uma porta escondida no jardim, da qual tinha a chave. Arrastara-se por Paris até a casa dos lazaristas, onde sabia que encontraria o Padre António.

Agora era preciso preparar-lhe a fuga. O conde não podia permanecer na França. Na época, o Padre António estava prestes a partir para Marselha,- -acompanhando um grupo de forçados. Em Marselha se encontrava seu novo posto de caridade.

Joffrey de Peyrac teve uma kléia genial: unir-se à leva de forçados para descer até Marselha. No grupo, encontrou seu mouro, Kuassi-Ba. E nas próprias roupas o Padre António escondeu o ouro e as jóias. Devolveu-lhe tudo ao chegarem. Pouco depois o Conde de Peyrac e o mouro desapareciam numa fuga espetacular, num barco de pesca.

— E nunca mais o viu?

— Nunca mais.

— Ignora absolutamente o que aconteceu com o Conde de Peyrac depois da fuga?

— Ignoro.

Ela continuava a interrogá-lo com os olhos. Quase com timidez, arriscou:

— O senhor não foi a Paris há alguns anos informar-se de meu destino? Quem o enviou?

— Vejo que está a par de minha visita ao advogado Desgrez.

— Ele próprio me informou.

Ela esperava, atenta aos lábios dele. Como ele se calasse, ela insistiu:

-        Quem o enviou?

O capelão soltou um suspiro.

-        Na verdade, nunca o soube. Foi há alguns anos, eu estava em Marselha, onde me ocupava em particular do lazareto dos forçados. Recebi a visita de um mercador árabe como os muitos que vão e vêm com frequência por este grande porto. Fez-me saber, com grande sigilo, que "desejavam" saber o que acontecera com a Condessa de Peyrac. Pediam-me que me dirigisse à capital do rei da França. Um advogado chamado Desgrez talvez pudesse me informar, assim como algumas outras pessoas, cujos nomes me foram fornecidos. Em troca de meus serviços, recebi uma bolsa contendo uma soma considerável. Aceitei, pensando nos meus pobres forçados, mas foi em vão que insisti com o mensageiro em obter informações mais detalhadas sobre quem o enviava. Mostrou-me apenas um anel de ouro engastado de um topázio, que reconheci como uma das jóias do Conde de Peyrac. Fui a Paris cumprir minha missão.

"Fiquei sabendo que a Sra. de Peyrac se tornara a esposa de um marechal, o Marquês du Plessis-Bellière. Era riquíssima e estava bem na corte, assim como seus filhos."

-        Certamente o senhor ficou horrorizado ao saber da notícia. Eu estava casada com outro, enquanto meu primeiro marido ainda vivia! Talvez sua consciência eclesiástica se tranquilize ao saber que o marechal foi morto no cerco de Dôle, e que doravante me considero duas vezes viúva.

O Padre António não se escandalizou com a amargura dela. Teve até um leve sorriso, para dizer que conhecera situações bem estranhas, mas que era preciso constatar que a providência conduzia Angélica por caminhos muito tortuosos. Lamentava-a profundamente.

-        Voltei, então, a Marselha, e quando o mercador apareceu de novo, comuniquei-lhe as informações que obtivera. Desde então, não ouvi mais nada a respeito. E tudo o que sei, senhora, realmente tudo.

No coração de Angélica os sentimentos se combatiam: remorsos, arrependimentos, desolação. "Ele quis saber o que acontecera comigo."

-        Esse árabe - disse ela -, o que o senhor sabe dele? De onde vinha? Lembra-se de seu nome?

O cenho do capelão franziu-se com o esforço.

-        Há alguns instantes tento em vão lembrar-me de todos os detalhes a respeito dele. Chamava-se Mohamed Raki, mas não era um mercador da Arábia. Notei-o pelas suas roupas. Os mercadores árabes do mar Vermelho tendem a vestir-se como os turcos. Os da Barbaria usam amplos mantos de lã, chamados albornozes. Aquele era do reino de Argel ou do reino do Marrocos. Mas não sei mais nada, e isto é pouco. Lembro-me, porém, de haver conversado com ele acerca de um de seus tios,"cujo nome me volta agora muito exato: Ali Mektub. Foi "por causa de um escravo berbere que conheci nas galés e que esse tio, riquíssimo, comprou. Ali Mektub tinha um comércio muito próspero de pérolas, esponjas e objetos de toda ordem. Residia em Cândia e deve continuar lá. Talvez ele pudesse dar informações sobre ó sobrinho Mohamed Raki.

-        Em Cândia? - murmurou Angélica, sonhadora.

Angélica e Flipot foram para o lado do porto, na esperança de encontrar um barco que pudesse levá-los numa longa viagem rumo às ilhas do Mediterrâneo. Foi durante esse passeio que Angélica se imobilizou de súbito e esfregou os olhos, acreditando sonhar. A alguns passos, percebeu um velhinho vestido de preto, ainda mais preto sob o faiscante céu azul. Mantinha-se imóvel à beira do cais, numa atitude de profundo devaneio, indiferente aos passantes que roçavam nele e ao mistral que alvoroçava suavemente sua barbicha branca. Com seu solidéu luzidio, o grosso lornhão de tartaruga, o colarinho pregueado fora de moda, o guarda-chuva de tela encerada e um garrafão de vidro num cesto de vime, colocado com todo o cuidado a seus pés, era sem dúvida alguma Mestre Savary, o boticário parisiense da Rue du Bourg-Tibourg.

-        Mestre Savary! - exclamou ela.

Ele teve um sobressalto tão violento, que por pouco não caiu na água. Ao reconhecer Angélica, as lentes de seu lornhão brilharam de satisfação.

— Ah, você aqui, pequena curiosa! Bem que desconfiava que a encontraria aqui.

— È mesmo? Mas estou aqui pelo maior dos acasos.

— Hum! Hum! O acaso, para as pessoas aventureiras, conduz a todas aos mesmos lugares. Conhece algum canto da terra onde a gente se sinta mais disposto a embarcar rumo a conquistas estranhas? Você, que é ambiciosa, devia vir a Marselha. Estava escrito em sua testa. Sente esse odor inebriante que reina sobre esta margem, o odor mesmo das viagens felizes? Abriu os braços, num gesto exaltado.

-        As especiarias! Ah, as especiarias! Você as sente? Essas sereias sutis que fizeram correr os navegadores mais intrépidos...

Em tom categórico, enumerou-as nos dedos:

-        ...o gengibre, a canela, o açafrão, a páprica, o cravo, o coentro, o cardamomo, e a princesa de todas: a pimenta! A pimenta -repetiu com êxtase.

Angélica deixou-o sonhar com essa realeza ardente, pois Flipot voltava ladeado por um grandalhão vigoroso com a boina vermelha dos marinheiros.

-        É você, então, quem oferece uma fortuna para ir a Cândia -exclamou ele, erguendo os braços aos céus. - Infeliz! Eu a acre

ditava no mínimo uma velha louca, sem mais a perder do que os próprios ossos. Não tem pois um marido que lhe ponha um pouco de chumbo no cérebro? Ou será que é pervertida para querer terminar os próprios dias no harém do Grão-Turco?

— Eu disse que queria ir a Cândia e não a Constantinopla.

— Mas Cândia é dos turcos, minha pequena. Está cheia de eunucos, negros e brancos, que vão ao mercado de carne fresca para o patrão. Será por felicidade que chegará lá sem ser raptada a caminho!

— Mas você vai a Cândia?

— Vou, vou - resmungou o marselhês -, vou, sim, mas não disse que chegarei lá.

— Ouvindo-o, crer-se-ia que os berberes estão postados já à saída do porto.

— Mas estão, minha bela! Ainda na semana passada avistou-se uma galera turca que espreitava perto das ilhas de Hyères. Nossa frota não é forte o suficiente para atemorizá-los.

"É certo e seguro que não levaria muito tempo para que você fosse capturada e que todos os mercadores de escravos do Mediterrâneo, negros, brancos ou morenos, cristãos, turcos ou berberes duelassem para revendê-la a preço de ouro a algum velho paxá asmático. Olhe! Gostaria de ser acariciada por aquilo?", perguntou ele designando com veemência um gordo mercador turco e sua comitiva que desciam para o porto.

Com curiosidade, Angélica seguiu com os olhos o cortejo cujo espetáculo, familiar aos marselheses, para ela era novíssimo. Os enormes turbantes de musselina verde ou laranja, grandes como abóboras, que oscilavam sobre os rostos escuros dos turcos, suas vestes de cetim furta-cor, suas chinelas enfeitadas de pérolas e com a ponta virada para cima, os guarda-sóis que dois negrinhos seguravam acima dos amos - tudo aquilo- mais parecia fazer parte de uma amável comédia do que de uma perigosa invasão.

— Não parecem maus - disse Angélica, para arreliar o marse-lhês -, e estão muito bem-vestidos.

— Bah, nem tudo o que reluz é ouro! Aqui eles sabem que afinal de contas estamos em nossa terra, e os mercadores que desembarcam em Marselha para fazer negócios não são fuinhas de corveta e sabem dar-se ares hipócritas. Mas depois do castelo de If, só há pirataria e mais pirataria. Não, senhora, não vale olhar-me com esses olhos. Não participarei dessa aventura. A Boa Mãe me censuraria...

— E a mim me leva? - perguntou Savary.

— Também vai a (Sandia?

— A Cândia e mais longe. Para dizer-lhe tudo, vou à Pérsia. Mas é um segredo que não deve ser divulgado.

— Quanto me oferece pela travessia?

— Na verdade, não sou rico. Proponho-lhe trinta libras. Mas, senhor de um segredo que vale todo o ouro do mundo...

— Está bem, está bem! Já entendi.-

Melchior Pannassave franziu as espessas sobrancelhas negras.

— Sinto muito, mas não posso fazer nada por você, nem por você, minha bela. Você, avozinho, porque não tem sequer com que chegar a Nice...

— Trinta libras! - exclamou o velho, indignado.

— Com todos os riscos a enfrentar, é uma miséria... E você, minha cara, porque atrairia os berberes à volta de meu barco como a carne podre, com todo o respeito, atrai os rascassos para a rede, sem lhe faltar com a polidez.

Erguendo a boina com um gesto majestoso, Melchior Pannassave retornou a seu veleiro, La Joliette, que. aguardava no cais.

-        São todos iguais esses marselhesesl - exclamou Savary, encolerizado. - Ávidos e mercenários como os arménios. Não há um que fizesse sofrer um pouco a própria bolsa pelo triunfo da ciência!

— Foi em vão que me dirigi a diversos capitães de navios pequenos - constatou Angélica. - Todos falam imediatamente de harém e de escravidão. E de se crer que só se sai ao mar para acabar nas mãos do Grão-Turco.

— Ou nas do bei de Túnis, ou do dei de Argel, ou do sultão do Marrocos - completou, obsequioso, Savary. - Pois bem, é exatamente assim que as coisas terminam com frequência. Mas quem não corre riscos não pode viajar!

A jovem suspirou. Desde a manhã, a mesma surpresa zombeteira, o mesmo alçar de ombros e as mesmas recusas a seu pedido. Uma mulher sozinha! Ir a Cândia? Loucura! Seria preciso ser escoltado pela própria frota real.

Savary conhecia dificuldades semelhantes, mas pela falta de dinheiro.

-        Unamo-nos - disse-lhe Angélica. - Encontre-me um barco e pago-lhe a passagem junto com a minha.

Deu-lhe o endereço do albergue onde estava hospedada e, enquanto o ancião se afastava, sentou-se alguns instantes para descansar sobre o cano de um canhão novo.

Aquelas peças de artilharia, inúmeras sobre o porto e certamente esquecidas ali por algum fornecedor da marinha, mais pareciam destinadas a servir de bancos aos passantes do que a disparar contra as galeras berberes. As comadres da Canebiere tricotavam ali sentadas, aguardando o regresso dos pescadores, e os mercadores expunham sobre os canhões suas mercadorias.

Angélica estava com dor nos pés. Também sentia que tomara sol demais na cabeça. Olhou com inveja as mulheres que ocultavam sob o abrigo de uma vasta capelina de palha bordada belos rostos gregos de olhos bovinos e lábios gulosos e desdenhosos. Com ares de imperatriz, ofereciam aos passantes cravos ou moluscos, cobrindo de ternura e de uma cálida afeição aos que lhes respondiam ao chamado e desejando o pior destino aos que não se detinham diante de suas tendas.

— Compre-me esta merluza - insistiu uma delas, dirigindo-se a Angélica -, é a última do cesto. Brilha como um belo escudo!

— Eu não saberia o que fazer dela.

— Você a comeria! O que é que se faz com uma merluza?

— Estou longe de casa e não tenho nada para levá-la.

— Coloque-a no estômago. Não a estorvará.

— Comê-la crua?

— Mande-a grelhar no braseiro dos capuchinhos. Aqui está um ramo de timo para lhe colocar no ventre enquanto assa.

— Não tenho prato.

— Pegue um calhau da praia.

— Nem garfo.

— Como você é complicada, minha pobre! Para que lhe servem esses belos dedos?         Í

Para livrar-se da mulher, Angélica acabou comprando o peixe. Segurando-o pela ponta do rabo, Flipot dirigiu-se até o ângulo do cais, onde três capuchinhos tinham uma espécie de cozinha ao ar livre. De um panelão, tiravam sopa de peixe, que distribuíam aos pobres, e vendiam por alguns soldos aos marinheiros o direito de cozinharem as refeições em dois braseiros. O odor dos grelhados e da bouillabaisse era tentador, e Angélica reconheceu que estava com fome. As preocupações tinham a tendência a diminuir quando a gente se permitia-participar da vida do porto de Marselha. Era a hora em que osyitadinos, e mesmo os burgueses mais rançosos, desciam à beira do mar, para saborear aquela atmosfera única no mundo.

Não longe de Angélica, uma senhora toda ataviada desceu de uma cadeirinha, seguida de um rapazinho que logo lançou olhares de inveja aos moleques que davam cabriolas sobre fardos de algodão.

— Posso pular com eles, minha mãe? - suplicou ele.

— Não, nem pense, Anastácio - protestou a senhora, indignada. - São moleques de rua.

-        Que sorte a deles - disse o menino, amuado.

Angélica o observou com indulgência. Pensou em Florimond e Cantor. Também ela havia chocado patos.

Não foi sem dificuldade que conseguira convencer Florimond a não acompanhá-la. Só o conseguira persuadindo-o de que sua ausência mal duraria três semanas, talvez duas, com sorte. Seria o tempo de ir de diligência até Lyon, descer o Ródano de barco, encontrar o capelão dos forçados e retornar. Angélica talvez tivesse a possibilidade de voltar a Paris e a sua casa sem que sua ausência fosse suspeitada pela polícia do rei. "A melhor peça que ja lhe preguei, Sr. Desgrez", dizia-se ela. Reviveu com o coração acelerado sua fuga romanesca. Florimond não mentira. O subterrâneo era bem transitável. As abóbadas medievais, restauradas por uma mão habituada às galerias das minas, ainda resistiriam muito tempo às devastações da umidade. Florimond guiara a mãe até a capelinha abandonada no bosque de Vincennes, que estava em ruínas. A Sra. du Plessis-Bellière prometeu a si mesma que, ao retornar, mandaria restaurá-la. Assim como o velho Pascalou, também ela agora pensava que tudo deveria estar em perfeitas condições para o regresso do amo. Mas por que não teria ele voltado, depois de tantos anos?

Não foi sem emoção que beijou o filho, no momento em que a aurora despontava na floresta. Como ele era corajoso e como ela se orgulhava de que ele soubesse guardar um segredo! Dissera-lhe isso antes de deixá-lo. Observou o alçapão fechar-se lentamente sobre a cabeça cacheada. Antes de fechá-lo de todo; Florimond deu-lhe uma piscadela de cumplicidade. Para ele, era tudo um jogo que o entusiasmava e enchia de importância.

Depois, seguida de Flipot, que carregava a sacola, Angélica rumou a pé para a aldeia mais próxima, onde alugou uma carriola que a levou até Nogent. Ali, tomou a diligência.

Atingira seu objetivo: Marselha. Agora esboçava-se uma segunda etapa: Cândia. A conversa com o capelão sugerira uma pista nova, mas tão difícil, frágil...

Em suma, o elo seguinte da cadeia era um ourives árabe, cujo sobrinho fora o último homem a ver Joffrey de Peyrac vivo. Encontrar o ourives em Cândia já constituía problema; e será que ele a ajudaria a achar o sobrinho? Mas Angélica dizia a si mesma que Cândia era um presságio feliz. Fora dessa ilha no Mediterrâneo que ela solicitara e comprara o cargo de cônsul da França. No entanto, não sabia em que medida poderia utilizar o título, já que no momento ela cometia uma grave falta com relação ao rei. Por essa razão, e muitas outras, parecia-lhe que devia deixar Marselha o mais rápido possível e, principalmente, evitar as pessoas de sua casta.

Flipot não voltava. Precisaria de todo aquele tempo para grelhar um peixe? Procurou com os olhos o jovem criado e avistou-o em conversa com um homem de sobrecasaca marrom, que dava a impressão de fazer-lhe perguntas. Flipot parecia embaraçado. Trazendo estendido na mão o peixe grelhado e fumegante, pulava de um pé para o outro e sua mímica explicava sem disfarces que ele se queimava cruelmente. Mas o homem não parecia ter pressa de deixá-lo ir-se. Finalmente, após um meneio de cabeça dubitativo, afastou-se e perdeu-se na multidão. Angélica viu-o sair em disparada, exatamente na direção oposta àquela em _gue ela se encontrava. Um pouco mais tarde reapareceu, esgueirando-se com todo tipo de astúcia, como para evitá-la íao mesmo tempo em que lhe atraía a atenção. Angélica levantou-se e foi-lhe ao encontro numa ruela sombria, onde ele se dissimulava por trás do contraforte de um pórtico.

— Que significa tudo isso? Quem era aquele homem que falava com você há pouco?

— Não tenho ideia. No começo, não desconfiei... Eis seu peixe, senhora marquesa. Não restou muito dele, deixei-o cair duas ou três vezes, de tão agitado que fiquei.

— Que lhe perguntou?

— Quem eu era, de onde vinha, para quem trabalhava. A isso eu disse que não sabia. E ele: "Vamos, vamos, não vá dizer-me que não sabe o nome de sua patroa?" Só pela maneira dele de contradizer compreendi com quem estava lidando: com a polícia. Eu repeti: "Bem, não sei..." Ele parou de se fazer amável: "Por acaso não seria a Marquesa duPlessis-Bellière? Em que albergue está hospedada?" Que queria quê eu respondesse?

— Que respondeu?

— Dei um nome qualquer, ao acaso, o nome de um albergue, o Cheval Blanc, que fica do outro lado da cidade.

— Vem, depressa.

Precipitando-se pelas ruas inclinadas, Angélica tentava compreender. A polícia se interessava por ela? Por quê? Devia crer que sua fuga fora imediatamente descoberta por Desgrez e que este lhe colocara os esbirros no encalço? De repente, achou que entendeu. O Sr. de Vivonne a percebera ha multidão no outro dia, ao descer da galera. Na hora não conseguira dar nome àquele rosto de mulher que não lhe era desconhecido, depois, aalembrar-se, encarregara seus lacaios de encontrá-la. Por curiosidade? Por amabilidade? Por espírito de cortesania para com o rei? De todo modo, ela não fazia questão de vê-lo. Mas o interesse de Vivonne não era inquietante. Ele com frequência permanecia longo tempo em campanha, longe da corte, para acompanhar todas as nuanças das intrigas, e para ele ela ainda devia ser a Sra. du Plessis-Bellière, futura amante real. Tranqiiilizou-se. Sem dúvida era isso... A menos que aquele homem tivesse sido enviado pelo capelão dos forçados, o único que a sabia em Marselha. Talvez tivesse alguma informação acerca de Ali Mektub ou de Mohammed Raki? Mas ele teria enviado aquele amigo ao Albergue da Corne d'Or, pois sabia onde ela estava hospedada...

Chegou ao albergue banhada em suor e com o coração batendo desordenadamente.

-        Colocar-se num estado desses! Não é razoável - exclamou a proprietária. - Ah, essas senhoras de Paris! Não sabem o que é correr. Venha por aqui. Preparei-lhe um guisado de berinjela e tomate, com aquela pitadinha certa de pimentão e alho, que está de dar água na boca.

A bolsa bem recheada de Angélica lhe inspirava pela jovem solitária sentimentos quase maternais e uma consideração cheia de cumplicidade. Ela não se enganara com a pobreza de sua equipagem. Imediatamente percebera que se tratava de uma grande dama, habituada a ser servida por uma tropa de lacaios, mas que não desejava fazer-se notar. Ah, a gente sabe o que é o amor!....

-        Venha por aqui - disse ela. - Um lugar bem tranquilo junto à janela. Ficará sozinha a essa mesinha, e meus clientes só terão o direito de espiá-la de longe... Que lhe dou para beber? Um vinhozinho rose do Var?

As formas sadias de Dona Corina estouravam numa blusa de cetineta vermelha, saia verde-maçã e avental preto bordado. Os cabelos negros como tinta, frisados e oleados sob a touca chata, misturavam-se a dois longos brincos de coral a cada lado de seu rosto redondo, cuja tez permanecia miraculosamente alva e pura. Pousou diante de Angélica uma taça de estanho e um cântaro de barro envernizado, impregnado de frescor.

Angélica ergueu os olhos e notou Flipot, que da soleira da pequena sala lhe fazia sinais veementes. Aproveitou que Dona Corina voltou as costas para dar um pulo até a ama e sussurrar:

-        Ele está vindo! O malvado! O trombudo! O pior de todos!

Ela lançou um olhar pela janela. Subindo a ruazinha com um passo tranquilo, apertado numa sobrecasaca de seda ameixa, uma bengala de castão de prata entre as mãos cruzadas às costas, com ar de quem passeia, Mestre Francisco Desgrez se dirigia para o albergue.

CAPÍTULO VII

Fuga por Marselha -- O Duque de Vivonne capitula

O primeiro reflexo de Angélica foi o de afastar a cadeira, vencer de um salto os dois degraus que a separavam do salão e, atravessando-o como um raio, arremessar-se na direção da escada de madeira que levava aos andares superiores.

-        Siga-me - disse a Flipot.

A marselhesa ergueu os braços para o céu.

— Senhora, o que está acontecendo? E seu guisado?

— Venha - intimou Angélica - venha depressa comigo até meu quarto. Preciso falar com você.

A expressão de seu rosto e sua voz eram tão imperiosas, que a hospedeira se precipitou, renunciando a pedir outras explicações imediatamente.

Angélica atraiu-a para seu quarto. Segurava-a pelo pulso e, sem dar-se conta, cravava-lhe as unhas nas carnes macias.

— Escute! Há um homem que vai entrar no albergue num instante. Veste uma sobrecasaca violeta e carrega uma bengala com castão de prata.

— Talvez seja o mesmo que lhe enviou uma mensagem esta manhã.

— Que quer dizer?

Dona Corina mergulhou a mão na blusa para tirar dali uma missiva em pergaminho grosso.

-        Foi um garoto que trouxe isto, pouco antes de a senhora chegar.

Angélica arrancou-lhe o bilhete e desdobrou-o. Era um recado do Padre António. Dizia que recebera a visita do ex-advogado Desgrez, que tivera a honra de conhecer em Paris em 1666. Não acreditara que devesse ocultar dele a presença da Sra. du Plessis-Bellière em Marselha, nem seu endereço. No entanto, colocava-a a par.

A jovem amassou o recado, doravante inútil.

-        O bilhete não tem mais interesse para mim. Escute bem, Dona Corina. Se o homem em questão Lhe falar de mim, a senhora não me conhece, nunca me viu. Assim que ele tenha partido, venha me avisar. Tome isto.

Recheou-lhe a mão com três moedas de ouro. Impressionada demais para encontrar outras respostas, Dona Corina piscou o olho com ar de cumplicidade e saiu com precauções de conspirador.

Angélica se pôs a andar de um lado para outro, febrilmente, mordendo os dedos. Flipot a olhava, inquieto.

-        Arrume minhas coisas - disse-lhe ela -, feche minha sacola. Fique preparado.

Desgrez fora rápido.ívías ela não ia deixar-se apanhar, nem conduzir ao rei, acorrentada como uma escrava. Diante de si, tinha apenas o mar.

A noite caía, e, assim como na véspera, guitarras e vozes provençais começayam a cantar o amor no interior de fendas negras que as ruelas abriam por entre as casas dispostas em degraus até o porto.

Angélica escaparia de Desgrez e ao rei. O mar a levaria. Acabou por se imobilizar no canto da janela, atenta aos ruídos do albergue.

Bateram levemente na porta.

-        Nem acendeu a lâmpada - cochichou a gorda, esgueirando-se para dentro do quarto. Bateu o isqueiro, acendeu a luz. - Ele continua lá, não desiste. Oh, é um homem muito polido, mas tem uma maneira de olhar! Mas eu não me deixo impressionar, ora! "Como se eu não soubesse quem tenho em minha casa", disse-lhe eu. "Uma senhora como descreveu, eu a teria notado se estivesse em minha casa! Olhos verdes, cabelos assim e assado, e não sei que mais. Se lhe digo que nem lhe vi a ponta do nariz..." Ele acabou acreditando, ou fingindo acreditar. Pediu para cear. O que pareceu intrigá-lo foi a saleta onde eu lhe havia posto a mesa. Foi rondar por ali. Parecia que procurava alguma coisa com o nariz comprido.

"Meu perfume", pensou Angélica.

Desgrez reconhecera-lhe o perfume, aquela mistura de verbene e alecrim, preparado especialmente para seu uso por um grande perfumista do Faubourg Saint-Honoré. Aquele perfume campestre, que ia tão bem com seu encanto de bela planta, Desgrez o respirara sobre a pele dela mesma, sobre aquele corpo que ela lhe permitira beijar e estreitar. Ah, maldita seja a vida que nos entrega a indivíduos de tal espécie!

-        E ainda por cima, um olho do diabo - prosseguiu a comadre. - De repente notou as moedas de ouro que a senhora me tinha dado e que eu ainda segurava na mão. "Oh, oh! Tendes clientes bem generosos!" Não posso dizer que me tenha sentido à vontade. Esse homem é seu marido, senhora?

-        Não - protestou Angélica, com um sobressalto.

A marselhesa balançou a cabeça várias vezes.

-        Entendo - fez ela. Depois, aguçou o ouvido. - Quem vem vindo? Não é o passo de nenhum cliente meu. Conheço-os a todos. - Entreabriu a porta e fechou-a precipitadamente. - Ele está no corredor... Abre as portas dos quartos. - De mãos na cintura, indignou-se: - Que topete! Vou mostrar a esse beleguim com quem está lidando! - Mas mudou de ideia. - Melhor não, pode azedar tudo. Eu conheço essa gente da polícia. Podemos começar

enfrentando-os, mas sempre chega a hora em que a gente se põe a choramingar no lenço, soltando suspiros.

Angélica havia agarrado sua sacola.

-        Dona Corina, preciso sair daqui... Preciso... Não fiz nada de mau.

Estendia-lhe de novo uma bolsa cheia de ouro.

-        Venha por aqui - cochichou a hospedeira.

Levou-a até a pequena sacada e deslocou uma das grades laterais.

-        Pule! Pule! Sim, sobre o telhado do vizinho. Não olhe para baixo. Isso. Agora, à esquerda, encontrará uma escada. Quando estiver no fundo do pátio, bata na porta. Dirá a Mário, o Siciliano, que sou eu quem a envia e que ele a leve a Santi, o Corso. Não, não é muito longe. Até a casa de Juanito, depois ao bairro levantino... Vou ocupar-me desse curioso para dar-lhe tempo.

E acrescentou alguns votos em provençal, persignou-se e retornou ao quarto.

Uma fuga que parecia uma partida de esconde-esconde. Angélica e Flipot, sem tempo para recobrar fôlego, cruzaram portas que davam para o céu, mergulharam em poços que revelaram pertencer a jardins, atravessaram casas onde famílias ceavam abençoadamente sem levantar os olhos do prato à passagem deles, desceram escadas, saíram de um aqueduto romano para contornar um templo grego, afastaram do caminho centenas de camisas rosa ou azuis que secavam atravessadas nas ruas, escorregaram sobre cascas de melancias e detritos de peixe, ouviram chamados de longe, foram ensurdecidos por gritos, canções, convites em todas as línguas de Babel, até pararem ofegantes, sob a salvaguarda de um espanhol, à entrada do bairro levantino. Estavam longe, dizia ele, muito longe de tudo o que pudesse se assemelhar ao Albergue da Corne d'Or. A senhora queria ir mais longe ainda? O espanhol e Santi, o Corso, olhavam-na com curiosidade-

Ela enxugou a testa com o lenço. O clarão vermelho esfumado de um crepúsculo que tardava em extinguir-se lutava, no ocidente, com as luzes da cidade. Uma música de ritmo estranho e mo-nótonoescapava das portas fechadas e das gelosias de madeira que ocultavam os cafés. Ali os carregadores, os mercadores árabes ou turcos reencontravam divãs macios, o narguilé e a beberagem negra que se toma às margens do Bósforo em pequenas xícaras de prata. Um perfume desconhecido misturava-se a um denso ranço de fritura e alho.

-        Quero ir ao almirantado - disse Angélica -, à casa do Sr. de Vivonne. Podem levar-me até lá?

Os dois guias abanaram a cabeleira de ébano e os brincos de ouro que lhes enfeitavam a orelha direita. O bairro do almirantado certamente lhes parecia mais perigoso do que o labirinto fedorento aonde tinham conduzido Angélica. No entanto, como ela fora generosa com eles, dar-lhe-iam fartas explicações sobre o caminho a seguir.      

-        Entendeu? - perguntou ela a Flipot.

O rapaz negou, meneando a cabeça. Estava transido de medo. Não conhecia as regras daquela mattèrie multicolorida que reinava em Marselha e que ele adivinhava pronta a sacar da faca. Se sua ama fosse atacada, como faria para defendê-la?

-        Não tema nada - disse ela.

A velha cidade fócia não lhe parecia hostil. Desgrez ali não podia ser senhor como o era no coração de Paris.

A noite tombara de vez, mas a transparência do céu noturno projetava sobre a cidade uma luminosidade azulada, e às vezes adivinhava-se a aparição de um vestígio antigo, uma coluna quebrada, um arco romano, ruínas por entre as quais crianças seminuas brincavam em silêncio como gatos.

O elegante palacete, muito iluminado, apareceu finalmente ao fim de uma rua. Fiacres e carruagens não paravam de chegar, e pelas janelas abertas ouviam-se os acordes de alaúdes e violinos.

Angélica deteve-se, hesitante. Alisou as pregas do vestido, perguntando-se se estaria apresentável. Um homem robusto destacou-se de um grupo.

Encaminhou-se bem na direção dela, como se a aguardasse. Ela o via contra a luz e não podia distinguir-lhe a fisionomia. Chegando perto dela, olhou-a com atenção e tirou o chapéu.

-        Sra. du Plessis-Bellière, não? Sim, sem dúvida alguma. Permita que me apresente. Carroulet, magistrado em Marselha. Sou um grande amigo do Sr. de La Reynie, que me escreveu a seu respeito, desejando facilitar-lhe a estada em nossa cidade...

Angélica fitou-o com olhar impávido. Ele tinha um rosto bonachão, de bom pai de família, com uma grande verruga no canto do nariz. Sua voz era unto só.

-        Também estive com o tenente-adjunto dele, o Sr. Desgrez, que chegou aqui ontem de manhã. Pensando que a senhora talvez tivesse a intenção de cumprimentar o Sr. Duque de Vivonne, que ele sabe ser um de seus amigos, incumbiu-me de aguardar-lhe à entrada do palacete, para que nenhum mal-entendido lamentável...

Subitamente, não era mais o medo, mas a raiva que habitava o coração de Angélica. Assim, Desgrez lhe lançava ao encalço todos os policiais da cidade, inclusive o Sr. Carroulet, tenente da polícia de Marselha, muito conhecido pelo pulso enérgico sob a aparência de amabilidade.

Disse bruscamente:

-        Não entendo nada do que está dizendo, senhor.

__ Hum! - fez ele, indulgente. - Vejamos, senhora, sua descrição é bastante precisa...

Uma carruagem avançou sobre eles. O chefe de polícia marselhesa recuou para o muro. Angélica, ao contrário, atirou-se literalmente sob as patas dos cavalos e, aproveitando-se do fato de que o cocheiro reteve a parelha, enfiou-se por entre os grupos que penetravam na residência do Duque de Vivonne. Criados de pé, segurando tochas, iluminavam as escadarias, que levavam ao vestíbulo. Ela subiu com passo seguro, misturada a outros convidados.

Flipot seguiu-a, com a sacola na mão. Angélica deslizou para a penumbra da grande escadaria, com a discrição de uma senhora que acaba de sentir que a liga soltou.

-        Fuja para onde puder - sussurrou ao criadinho. - Dissimule-se nas cocheiras, não interessa onde, mas não se faça notar. Encontro-o amanhã de manhã no porto, para a partida da esquadra real. Tente informar-se sobre a hora e o local da partida. Se não estiver lá, irei sem-você. Tome algum dinheiro.

Saiu do esconderijo e-com o mesmo passo seguro subiu uma das escadas de mármore que levavam aos andares superiores. Estavam desertos, pois os criados se comprimiam nos salões e nos pátios, no térreo.

Mal chegara Angélica ao primeiro patamar, percebeu o policial de quem se livrara há pouco. Sua curiosidade foi mais forte do que o pânico e, inclinada sobre o balaústre, espiou-o, certa de que ele não podia vê-la, pois estava no escuro. O Sr. Carroulet não parecia contente. Abordou um criado, a quem fez inúmeras perguntas. O homem balançou a cabeça, negativamente, e afastou-se. Pouco depois apareceu o Duque de Vivonne, rindo ainda de algum gracejo. O tenente da polícia o saudou com constrangimento. O almirante da frota real era uma personalidade considerável. Contava com a benevolência do rei, e ninguém ignorava que sua irmã era a amante titular do rei. Como, ainda por cima, se tratava de um rapaz muito suscetível, abordá-lo não era fácil.

-        O que é que está me contando? - exclamou Vivonne com sua voz estentórea. - A Sra. du Plessis-Bellière... entre meus convidados? Vá procurá-la na cama do rei... á dar crédito aos últimos boatos que me chegam de Versalhes...

O Sr. Carroulet teve que insistir, explicar. Vivonne impacien-tou-se:

-        Sua história é inverossímil! Ela estava aqui, você diz, depois não estava mais. Você está tendo alucinações, é isso. Tendo visões. Necessita de um purgante.

O policial preferiu retirar-se, de orelhas murchas.

Atrás dele, Vivonne deu de ombros. Um de' seus amigos aproximou-se e perguntou sobre o incidente, pois Angélica ouviu o jovem almirante responder num tom aborrecido:

— Essa personagem grosseira sugeria que recebo em meus salões a bela Angélica, a última paixão do rei.

— A Sra. du Plessis-Bellière?

— Ela mesma! Deus me proteja de ter sob meu teto essa puta intrigante! Minha irmã enlouquece com todas as humilhações que a outra a faz suportar. Escreve-me cartas desesperadas. Se a sereia de olhos verdes alcançar sua meta, Atenaís poderá entregar os pontos e os Mortemart passarão um mau bocado.

— Estaria em Marselha essa beldade cuja reputação nos faz sonhar? Sempre ardi de curiosidade por conhecê-la.

— Arderá em vão. É uma coquete, cruel a ponto de matar. Sabem disso os seus admiradores, que em vão lhe seguem os passos. Ela não é dessas que se dispersam em brincadeiras ociosas quando tem um objetivo em mente. E o objetivo é o rei... Uma intrigante, digo-lhe... Na última carta, minha irmã dizia...

A conversa perdeu-se, pois os dois homens se afastavam e retornaram aos salões.

"Meu caro, você há de me pagar por isso", pensou Angélica, indignada com os comentários de Vivonne a seu respeito.

Enfiou-se pelo corredor às escuras e, tateando as paredes, encontrou uma porta, cuja maçaneta girou com precaução. O quarto estava deserto, iluminado apenas pelas luzes que penetravam pela janela aberta. Angélica, exausta, deixou-se cair sobre um gordo divã oriental, recoberto de tapetes e almofadas. Houve um ruído de gongo, pois ela chutara uma espécie de bandeja de cobre, colocada no chão. Ela escutou, ansiosa, até que finalmente encontrou um candelabro para esclarecer a situação. O apartamento - uma saleta, um dormitório e um gabinete de toalete contíguo - devia ser o do Duque de Vivonne. Apartamento de um marinheiro que, em terra, perdeu a conta de suas aventuras galantes. Não foi preciso muito para que Angélica percebesse entre a desordem de óculos de alcance, mapas, mapas-múndi e uniformes, um guarda-roupa contendo uma impressionante coleção de vestidos e de robes vaporosos.

Angélica escolheu um, de musselina da China branca e bordada. Lavou-se numa bacia onde se havia preparado para o amo e sua amante uma água perfumada com lavanda da Provença. Escovou os cabelos empoeirados. Suspirando de alívio, envolveu-se no traje macio. Descalça sobre os espessos tapetes turcos, voltou à saleta. Sentia-se cambalear de fadiga. Escutou ainda um instante os ruídos em surdina do palacete, depois largou-se sobre o divã. Que importavam o futuro e todos os policiais do mundo! Ela ia dormir.

-        Oh!

O grito agudo despertou Angélica. Ergueu-se no divã, uma mão sobre os olhos, ofuscada pela luz.

-        Oh!

A jovem morena, com o rosto constelado de moscas, estava à sua cabeceira, a imagem viva do estupor e da indignação. Bruscamente, voltou-se e esbofeteou alguém com toda a força.

-        Patife! Era essa; então, a surpresa que me reservava. Felicitações! Foi uma surpresa notável. Não tenho intenção alguma de esquecer uma afronta tão pungente. Jamais o verei novamente em minha vida!

Num grande frufru de vestidos e de bater de leque, ela cruzou a porta, desapareceu. O Duque de Vivonne, com a mão no rosto, olhava ora a porta, ora Angélica, ora o criado que segurava dois candelabros.

Foi este quem se recompôs primeiro. Pousou os candelabros sobre o consolo, inclinou-se diante do amo e, para qualquer eventualidade, diante de Angélica. Depois esquivou-se, fechando a porta suavemente atrás de si.

-        Senhor de Vivonne... sinto muito - murmurou Angélica, esboçando um sorriso contrito.

Ao som de sua voz, ele pareceu compreender finalmente que tinha pela frente uma criatura de carne e osso e não um fantasma.

-        Então era verdade... o que me contou aquele estúpido há pouco... você estava em Marselha... Estava"sõb meu teto... Como podia eu suspeitar? Por que não se apresentou?

-        Eu não queria ser reconhecida. Por várias vezes quase fui presa.

O jovem passou a mão pela testa. Dirigiu-se a uma pequena escrivaninha de ébano, de onde retirou uma garrafa de aguardente e um copo.

— Então a Sra. du Plessis-Bellière tem toda a polícia do reino em seu encalço! Assassinou alguém?

— Não! Pior! Recusei-me a dormir com o rei.

As sobrancelhas do cortesão ergueram-se de espanto.

— Por quê?

— Por amizade a sua cara irmã, a Sra. de Montespan.

De garrafa na mão, Vivonne olhou-a, confuso. Depois seu rosto se descontraiu e ele rebentou de rir. Serviu-se de um copo e veio sentar-se ao lado dela.

— Acho que você está zombando de mim.

— Um pouco... Mas não tanto quanto você pensa.

Ela continuava a dirigir-lhe um meio sorriso tímido. Suas pálpebras, ainda pesadas de sono, batiam lentamente sobre seu olhar verde, e por um instante Angélica fechou os olhos, deixando os cílios projetarem sua sombra sobre a face lisa.

-        Eu estava tão cansada! - suspirou ela. - Caminhei horas inteiras por esta cidade, perdi-me. Aqui, encontrei-me como que num refúgio. Perdoe-me. Confesso que fui muito indiscreta. Banhei-me em seu banheiro e peguei este penhoar no seu guarda-roupa.

Mostrou a musselina drapejada em torno de seu corpo nu. Aos reflexos mais rosados adivinhava-se a linha das coxas e das ancas sob a alvura vaporosa. Vivonne olhou o penhoar e desviou os olhos. Engoliu de uma vez o copo de aguardente.

— Uma história extremamente séria! - resmungou. - O rei a procura e vão acusar-me de ser seu cúmplice.

— Sr. de Vivonne - protestou Angélica, agastando-se -, seria você um tolo? Eu o acreditava mais preocupado com a fortuna de sua irmã... da qual depende um pouco a sua. Desejaria de fato ver-me cair nos braços do rei e Atenaís em desgraça?

— Não, claro - balbuciou o pobre Vivonne, subjugado pela situação digna de Corneille -, mas também não gostaria de desagradar a Sua Majestade... você é livre de recusar seus favores... Mas por que está em Marselha... e na minha casa?

Docemente ela pousou a mão sobre a dele.

— Porque gostaria de ir a Cândia.

— Hein?

Ele deu um pulo e levantou-se como se um mosquito o houvesse picado.

— Você parte amanhã, não é? - insistiu Angélica. - Leve-me.

— Isto se torna cada vez mais grave! Creio que você perdeu a razão. A Cândia! Realmente! Pelo menos você sabe onde fica Cândia?

— E você? Pelo menos sabe que .sou cônsul de Cândia? Tenho negócios muito importantes lá, e o momento me pareceu oportuno para ir inspecioná-los, deixando à impaciência do rei o tempo de se acalmar. Não é uma ideia excelente?

— É pura inconsciência! Cândia!...

Ergueu os olhos ao céu, desistindo de fazê-la avaliar a própria loucura.

— Sim, sim, eu sei - disse Angélica -, o harém do Grão-Turco, os berberes, os piratas, etc. Mas, precisamente, com você, eu não temeria nada. Escoltada pela esquadra real francesa, o que poderia acontecer-me?       "

— Cara senhora -declarou Vivonne, solene -, sempre tive por sua pessoa um respeito infinito...

-        Em excesso, talvez - insinuou ela, com um sorriso sedutor.

A interrupção desconcertou o jovem almirante que, antes de reen

contrar o fio de seu discurso, pôs-se a tartamudear.

— Que importa!... Hum!... Seja como for, sempre a considerei uma mulher prudente, com a cabeça sobre os ombros; e para meu grande pesar, percebo que você quase não tem mais cérebro do que essas jovens criaturas que falam antes de agir e agem antes de pensar.

— Como a bela morena que nos deixou há pouco. Eu gostaria de me explicar com a sua encantadora amante. Furiosa, ela vai espalhar a notícia de que estou aqui.

— Ela ignora seu nome.

— Em breve terá feito a minha descrição e os indesejáveis me reconhecerão. Leve-me a Cândia.

O Duque de Vivonne sentiu a garganta seca. Os olhos de Angélica davam-lhe vertigem. Sua visão se toldava ligeiramente. Foi até a escrivaninha para se servir de um segundo copo.

-        Nunca! - disse enfim, respondendo à última súplica. - Sou um homem sensato, prudente... Fazendo-me cúmplice de sua loucura, o que se saberá mais cedo ou mais tarde, incorrerei na cólera do rei.

— E no reconhecimento de sua irmã?

— Minha desgraça é certa.

— Você subestima o poder de Atenaís, meu curo. No entanto, você a conhece melhor do que eu. Ela continua sendo a única perante o rei, que tem por ela... uma queda muito pronunciada. Soube seduzi-lo por meio de mil e um hábitos dos quais ele ainda não se desapegou de forma alguma. Não a acredita forte e hábil o bastante para retomar a vantagem e reparar astutamente o que, reconheço, pude destruir um pouco nos últimos tempos?

Vivonne, o cenho franzido, tentava refletir.

-        É! - disse ele.

E deve ter visto passar a visão da deslumbrante Mortemart, ouvido o eco de seu riso mordaz e de sua voz inimitável, pois tranqiiilizou-se.

— E - repetiu. - Pode-se contar com ela. Meneou a cabeça várias vezes.

— Mas você - disse -, você, minha cara... Observava-a de soslaio. A cada um dos olhares ansiosos que ele

lhe lançava, Angélica o via tomar consciência de sua presença, na casa dele, àquela hora, uma mulher que fora um dos adornos" de Versalhes, cobiçada pelo rei. Ele lhe detalhava a perfeição com uma espécie de espanto, como se a visse pela primeira vez. Era verdade. Sua pele era única, mais dourada do que a da maioria das louras, seus olhos eram verdes e de um verde claro perto do negro intenso da pupila. Em Versalhes ele a vira como um ídolo em seus trajes de corte, que fazia empalidecer de raiva a Montespan.

Naquele robe de pregas suaves, ela era terrivelmente mulher, e viva. Pela primeira vez na vida pensou no rei, dizendo-se: "Pobre homem! Se é verdade que ela se recusou a ele..."

Angélica deixava o silêncio ganhar peso entre eles. Era bem divertido manter um Mortemart em suspense. Uma vitória de que bem poucos podiam gabar-se. O espírito e o caráter explosivo da família nunca pareciam falhar-lhes. Era-se obrigado a odiá-los... ou a adorá-los, inclusive a mais velha, a Abadessa de Fontevrault, de uma beleza de madona entre seus escapulários e véus sombrios, que fascinava o rei e encantava os cortesãos, sem que por isso deixasse de ser uma alma de fogo, lendo em latim todos os Padres da Igreja e levando seu convento e suas freiras subjugadas pelos caminhos da mais elevada virtude. Vivonne era, à imagem de suas irmãs, ricas das melhores qualidades e dos piores defeitos, extravagante e desenvolto, beirando ora a malandrice, ora a extrema gentileza, ora a loucura, ora. o génio... Ele acabava por impor-se, e assim como uma espécie de amizade -,2 do raio e a do ímã - atraíra Angélica para Atenaís, ela sempre concedera ao Duque de Vivonne uma preferência divertida. Entre os outros gentis-homens ligados aos passos do amo e vivendo de seus subsídios, Vivonne lhe parecia de um metal mais nobre.

Ela o observava, sorrindo sempre com seu sorriso secreto que o desconcertava, e disse a si mesma que no fundo gostava daqueles Mortemart terrivelmente ávidos e loucos e belos. Ergueu lentamente um braço para repousar a cabeça lançada para trás, e endereçou ao jovem um olhar zombeteiro.

-        E eu? - repetiu ela.

-!- Sim, você! É urfia mulher estranha! Não reconheceu que lutou para afastar minha irmã? E agora, desaparece, deseja mesmo conceder-lhe a vitória... Que meta tem em mente? Que vantagem pode extrair dessa comédia?

— Nenhuma. Aborrecimentos, pelo contrário.

— Então?

— Não tenho o direito, como todas as mulheres, de ter meus caprichos?

— Claro! Mas escolha suas vítimas. Com o rei, isso pode levá-la longe.

Angélica amuou-se.

— Que você quer? É culpa minha se não tenho gosto algum por esses homens fechados demais, de humor suscetível, que pouco sabem rir e que trazem para a intimidade uma falta de refinamento próxima da grosseria?

— De quem você está falando?

— Do rei.

-        Pois você se permite julgá-lo de uma maneira que...

Vivonne estava muito chocado.

-• Meu caro, quando se trata de alcova, conceda-nos o direito de julgar como mulher e não como súdita.

— Felizmente todas aquelas senhoras não raciocinam como você.

— Elas são livres de suportar e de se entediar. Nesta questão, perdoo tudo, menos isso. Títulos, favores, honras não me parecem ter peso suficiente para compensar esse género de servidão e de opressão. Deixo de bom grado uma coisa e outra a Atenais.

— Você é.... terrível!

— Que quer você, não é minha culpa se sempre preferi os rapazes sorridentes, cheios de ardor... como você, por exemplo. Esses gentis-homens galantes que têm tempo de se ocupar das mulheres. Longe de mim essas pessoas apressadas que arremetem cegamente para o alvo. Gosto daqueles que sabem colher as flores do caminho.

O Duque de Vivonne desviou os olhos e resmungou, entre dentes:

— Já entendi. Você tem um amante que a,espera em Cândia, um pequeno alferes de belos bigodes, que não sabe fazer outra coisa senão acariciar garotas.

— Engana-se redondamente. Nunca estive em Cândia e ninguém me espera lá.

— Então por que quer ir para essa ilha de piratas?

— Já lhe disse. Tenho negócios lá. E a ideia me pareceu excelente para que o rei me esqueça.

— Ele não a esquecerá! Acredita que é dessas mulheres que se esquecem facilmente? - perguntou Vivonne, cuja garganta pareceu contrair-se estranhamente.

— Ele me esquecerá, eu lhe digo. Longe dos olhos, longe do coração. Não são assim vocês, os homens? Ele reencontrará com prazer a sua Montespan, seu festim sólido e inesgotável, e se felicitará de sempre encontrar com ela... mesa posta. Não é um homem complicado, nem sentimental.

O Duque de Vivonne não pôde impedir-se uma gargalhada.

— Como são malvadas entre vocês, as mulheres!

— Acredite-me, o rei lhe será grato, caso venha a conhecer seu papel, por tê-lo ajudado a se desembaraçar de uma paixão sem saída. Também não precisará se comportar como um tirano, mandando-me atirar no fundo de um calabouço. Quando eu voltar, o tempo terá passado. Ele mesmo rirá de sua cólera, e Atenais saberá valorizar o serviço prestado por você ao afastar a indesejável.

— E se o rei não a esquecer?

— Pois bem! Será tempo de ponderar... Eu talvez tenha refleti-do, reconhecido meu erro. A constância do rei me tocará. Cair-lhe-ei nos braços, tornar-me-ei sua favorita e... também não o esquecerei. Veja que, ao me conceder seu auxílio, você garante o futuro e pode ganhar de ambos os lados, senhor cortesão.

Às últimas palavras, ela dera uma entonação um pouco desdenhosa, que fustigou o gentil-homem. Ele ficou vermelho até a raiz dos cabelos e protestou com altivez.

— Pensa que sou um covarde, um criado?

— Nunca pensei isso.

— A questão não é essa - retomou o jovem almirante, em tom severo. - Está esquecendo um pouco facilmente, senhora, que sou chefe de esquadra, e que a missão para a qual a frota real zarpa amanhã é uma missão militar, portanto, perigosa. Estou encarregado de policiar, em nome do rei da França, essa casa onde todos mandam e ninguém se entende, que é o Mediterrâneo. Minhas ordens são intransigentes: nenhum passageiro, menos ainda passageira.

— Sr. de Vivonne...

— Não - trovejou ele. - Saiba que sou senhor a bordo e que sei com o que estou lidando.-Um cruzeiro pelo Mediterrâneo não é um passeio pelo grande canal. Conheço a importância do papel do qual estou incumbido e continuo convencido de que em meu lugar o próprio rei falaria e agiria como o faço.

— Acredita nisso? Eu, ao contrário, estou convencida de que o rei não desdenharia o que lhe ofereço.

Ela falara com gravidade. Vivonne mudou de cor novamente, e suas têmporas latejafam com violência. Fixou-a com um olhar esgazeado, interrogativo. Durante um minuto interminável pareceu-lhe que toda a vida se refugiara na lenta e suave palpitação daqueles seios de mulher à beira do decote de renda.

A surpresa o paralisava. A Sra. du Plessis-Bellière passava por altiva, difícil de sensibilizar, e ela mesma se reconhecia caprichosa. Cortesão na alma, não lhe ocorrera que se pudesse oferecer a ele o que se recusava ao rei.

De repente sentiu os lábios secos, esvaziou de um trago o copo e colocou-o com cuidado sobre a escrivaninha, como se receasse deixá-lo escapar.

— Entendamo-nos bem... - disse ele.

— Mas... eu acho que nos entendemos muito bem - murmurou Angélica.

Ela o fitava nos olhos, com um leve amuo.

Fascinado, ele deu alguns passos e caiu de joelhos perto do divã.

Seus braços se lançaram ao redor da fina cintura. Com um gesto de homenagem e paixão, inclinou a cabeça e colou os lábios à carne acetinada do decote, no alto dos seios, e ali ficou, recurvado sobre aquele mistério de sombras de onde se exalava um perfume inebriante, o perfume de Angélica.

Ela não recuara, tivera apenas um movimento imperceptível do busto, enquanto suas belas pálpebras lhe velavam um instante o brilho do olhar.

Depois ele sentiu que ela se soerguia, oferecendo-se à carícia. Uma loucura o invadiu, uma fome daquela carne ambarina, vigorosa, resistente, mas de uma textura de porcelana frágil. Seus lábios a percorriam avidamente. Ele ergueu-se, estreitando-a, procurando o liso arredondado do ombro, o pescoço, cuja tepidez o fez perder as forças.

O braço de Angélica veio na direção dele, aprisionando a cabeça masculina contra ela, enquanto pousava suavemente a mão sobre o rosto dele e o forçava a encará-la.

Os olhos de esmeralda, sombreados de um reflexo glauco, chocaram-se com os olhos azuis e duros dos Mortemart, vencidos por uma vez. Num átimo, Vivonne ainda teve tempo de pensar que nunca vira criatura parecida, nunca sentira um prazer tão fulminante.

— Levar-me-á a Cândia? - perguntou ela.

— Creio... creio que não poderia fazer outra coisa - respondeu ele, com voz rouca.

CAPITULO VIII

Ganhei, Sr. Desgrez!

A esse amante de passagem, Angélica soube dispensar toda a sua ciência. Jurara a si mesma dar-se a ele, e o gentil-homem, folgazão entediado, não era daqueles a quem uma entrega passiva teria contentado.

Ora terna, sorridente, ora um pouco inquieta-, um pouco arisca, ela se abandonava, depois, diante de uma exigência nova, esquivava-se, e ele tinha que suplicar baixinho, convencê-la, morrendo de impaciência.

— E prudente? - dizia ela.

— Por que seríamos prudentes?

— Não sei... Mal nos conhecíamos... ontem.

— É mentira. Sempre a admirei, adorei, em silêncio.

— Quanto a mim, confesso que o achava apenas divertido. Esta noite é como se o visse pela primeira vez. Você é muito mais... perturbador do que eu imaginava. Dá-me um pouco de medo.

— Medo?

— Esses Mortemart cruéis! Falam tantas coisas sobre eles!

— Tolices!... esqueça suas desconfianças... Querida!...

— Não, senhor duque, oh, deixe-me respirar, por favor. Escute. Tenho por princípio que há coisas que não se podem fazer senão com um amante de longuíssima data.

— Você é adorável! Hei de me encarregar de fazê-la renegar seus princípios... Não me considera capaz disso?

-        Talvez... Já não sei.

Sussurravam apaixonadamente, na penumbra onde tremulavam os últimos lampejos de uma vela, e Angélica se deixava envolver no jogo terrível e doce e se punha a tremer sem fingimento entre os braços sólidos que a dobravam e subjugavam. A sombra que os envolveu, após um último sobressalto da chama, pareceu levá-la em seu rastro, cúmplice. E ela se deixou deslizar, cega e consentindo, para o abismo da volúpia, sempre surpreendente e novo para ela. O esquecimento de tudo:a fez sincera em seus suspiros, em seu combate feliz e arrojado, tornou-a comovente nas juras e queixumes que o prazer lhe arrancava.

Ele adormeceu abraçado a ela. Mas apesar da lassidão e da lânguida vertigem que a arrastava como em água profunda, ela recusou o sono. A aurora não estava longe, e ela queria estar desperta quando ele abrisse os olhos. Desconfiava das promessas dos homens quando o desejo deles estava saciado.

Ficou de olhos abertos, fixos na tela azul da noite que se esgueirava pela janela aberta e de onde vinha o surdo ronco do mar, arrastando-se sobre uma praia de cascalho. Maquinalmente sua mão acariciava o corpo musculoso do homem adormecido, reencontrando antigas ternuras inacabadas com que sonhara outrora junto de Filipe.

O dia se anunciou por uma claridade cinza matizada de malva, como o pescoço de uma rola, que suavemente passou a branco, depois a verde-claro com delicadezas de nácar. Bateram levemente na porta.

-        Senhor almirante, está na hora - disse o criado.

Vivonne ergueu-se com a prontidão do homem de guerra habituado aos alertas.

— É você, Giuseppe?

— Sim, senhor. Devo entrar para ajudá-lo a se vestir?

— Não, arranjo-me sozinho. Diga apenas ao meu turco que me prepare o café.

Dirigiu um sorriso cúmplice a Angélica, enquanto acrescentava para o criado:

-        Diga-lhe que ponha duas xícaras e doces.

O criado afastou-se.

Angélica respondeu ao sorriso de Vivonne. Pousou a mão sobre a face do amante.

-        Como você é belo! - disse.

Aquela intimidade encheu o gentil-homem de uma exaltação próxima ao delírio. Ela a recusara ao rei!

Pegou-lhe a mão fina no ar, beijou-a.

— Você também é bela. E como se eu estivesse sonhando!

À meia-luz, envolta em seus longos cabelos, ela parecia quase infantil.

-        Você me levará a Cândia? - murmurou ela.

Ele teve um sobressalto.

— Claro! Você me acredita tão patife para não cumprir minhas promessas, quando você cumpriu as suas de modo tão maravilhoso? Mas é preciso andar depressa, pois devemos zarpar na próxima hora. Você tem bagagem? Onde devo mandar buscá-la?         ' "

— Um criadinho deve me esperar perto do molhe com a minha sacola. No momento, vou me servir naquele guarda-roupa bem sortido de tudo o que pode agradar a uma mulher. São os vestidos de sua mulher?

— Não - disse Vivonne, que se anuviou. - Minha mulher e eu vivemos separados e não nos vimos mais desde que aquela víbora tentou envenenar-rhe no ano passado, a fim de me substituir pelo amante.

— E verdade. Falou-se disso na corte. Riu sem caridade.

— Pobre querido! Que desventura!

— Fiquei doente como Um animal.

-        Mas não restaram vestígios - disse ela, gentil, acariciando-lhe o rosto para alegrá-lo. - Os vestidos pertencem então às suas amantes, tão variadas quanto numerosas, a se dar crédito aos boatos. Eu estaria errada de queixar-me. Vou procurar o que preciso.

Riu de novo. Os embates do amor tinham deixado em seu corpo uma fragrância apimentada, e quando ela passou diante dele, ele instintivamente estendeu os braços a fim de segurá-la e puxá-la contra o peito.

Mas ela se soltou, rindo.

— Não, monseigneur. Estamos com pressa. Tiraremos a forra mais tarde.

— Ai! - fez ele, com uma careta -, não sei se você se dá conta do desconforto de uma galera.

— Bah! Encontraremos a ocasião de nos abraçar aqui e ali. Não há escalas no Mediterrâneo? Ilhas com angras de água azul e praias de areia macia?

Ele soltou suspiros profundos.

-        Cale-se. Você me faz perder a cabeça'.

Assobiando com negligência, enfiou as meias de seda, a calça de cetim azul e foi até a porta do banheiro. Ela havia vertido a água de um pichei de cobre na bacia de mármore e se aspergia, procedendo rapidamente às suas abluções.

-        Permita-me pelo menos olhá-la - implorou ele.

Ela lançou-lhe um olhar indulgente por sobre o ombro molhado.

— Como você é jovem!

— Não muito mais do que você, imagino. Eu até acreditaria que a precedo de uns três ou quatro anos. Se minhas recordações são exatas, quando a vi pela primeira vez foi... sim, tenho certeza, foi na entrada do rei em Paris. Você tinha o frescor ácido e assustado de seus vinte anos... Eu tinha vinte e quatro anos e me considerava um rapaz experiente. Começo a entender que não sei nada.

— Mas eu envelheci mais depressa - disse Angélica frivolamente. - Sou muito velha... Tenho cem anos!

O turco com cara de pão doce sob o turbante verde trouxe uma bandeja de cobre onde fumegavam duas xícaras minúsculas, cheias de utna beberagem negra. Angélica reconheceu a mistura, que tomara com o embaixador persa, o Bei Bakhtiari, e cujo perfume impregnava o bairro levantino de Marselha. Mal umedeceu os lábios no líquido, sentiu-se repelida pelo sabor acre. Vivonne fez-se servir de várias xícaras consecutivas, depois perguntou se estavam prontos para partir.

Angélica se sentiu novamente tomada de pânico. E se os policiais rondassem à sua procura, na cidade ainda adormecida...

Por sorte, o palacete do almirante da frota dava diretamente sobre os prédios do arsenal. Atravessando-se os pátios, ganhava-se acesso ao molhe de embarque.

As galeras esperavam mais longe, na baía. Um escaler branco e dourado atravessava o porto, vindo em direção ao molhe. Angélica o via avançar, desfalecendo de impaciência. As pedras do calçamento de Marselha lhe queimavam os pés. A qualquer minuto Desgrez podia surgir, tornando vãs suas astúcias e destruindo-lhe as esperanças. Ela olhava à vplta o quebra-mar, os pontões, as bacias, o porto e, acima, a cidade, envolta numa bruma leve e que ganhava, com suas casas enfileiradas até a igreja da colina, ares de relicário dourado, imenso e lavrado.

Vivonne entretinha-se com oficiais, enquanto os criados jogavam as bagagens no escaler que acabava de acostar.

-        Quem vem lá?

Angélica voltou-se. Duas silhuetas emergiam timidamente de entre as caixas dos entrepostos e avançavam para o grupo. A jovem soltou um suspiro dealívió ao reconhecer Flipot e Savary.

— Eis a minha comitiva - apresentou ela. - Meu médico e meu criado.

— Que embarquem. A senhora também.

Mas ainda for preciso esperar enquanto o escaler dançava contra o molhe. Tinha-se que ir buscar as cartas marítimas que era preciso levar e que haviam sido esquecidas.

O porto despertava. Marinheiros puxando redes desciam as escadas para tomar seus botes. Outros deixavam os barcos ancorados para irem aquecer a refeição no fogo dos irmãos capuchinhos, que instalavam seu braseiro.

Uma prostituta turca ou grega se pôs a dançar entre seus véus, erguendo bem alto as mãos onde brilhavam castanholas de cobre. Não era nem a hora nem o lugar de chamar os homens ao prazer... Talvez dançasse para o dia que nascia, após sua noite sórdida nos antros do bairro levantino. E era estranho aquele tilintar tímido e monótono das castanholas sobre o cais quase deserto.

Os remos do escaler se ergueram gotejando, depois mergulharam, enquanto com esforço os marinheiros erguiam a embarcação por entre detritos de toda espécie que boiavam à superfície da baía. Bem depressa ela ganhou águas mais límpidas, agitadas por vagalhões, e a Tour Saint-Jean projetou ali seu reflexo, avivado pelo primeiro brilho do sol.

Angélica lançou um último olhar para trás. Marselha se encolhia ao longe. Mas ela acreditou ver a silhueta de um homem avançar sobre o molhe. Estava muito distante para que pudesse distinguir-lhe os traços. No entanto, teve a certeza íntima de que era Desgrez. Tarde demais!

"Ganhei, Sr. Desgrez", pensou ela, triunfante.

CÂNDIA

CAPITULO IX

A bordo da galera capitânia

Angélica olhava pensativamente a franja de ouro das tapeçarias mergulhar através das ondas e brincar com a esteira do navio. As seis galeras seguiam í bom vento. Seus longos fusos soltos, de curvas graciosas e flancos magnificamente decorados, saltavam sobre as ondas azuis. As figuras de madeira dourada de seus esporões fendiam alegremente as vagas, enquanto na popa esculpida viam-se tritões soprando em suas conchas, cupidos coroados de rosas, sereias com seios de Vénus surgindo gotejantes, relampejando um olhar de mil fogos antes de mergulharem de novo.

Nos mastros, as bandeiras, as auriflamas e as fitas estalavam com alacridade.

As cortinas do baldaquino estavam levantadas na parte traseira, e o ar trazia da costa próxima as fragrâncias de mirtos e mimosas.

O Duque de Vivonne decorara à oriental, com tapetes, divãs baixos, almofadas, a tenda suntuosa, também chamada de tabernáculo, que servia de "sala comum" aos oficiais. Angélica encontrava ali certo conforto e preferia permanecer na tenda a ficar na cabina estreita, úmida e sombria, situada sob a entrecoberta. Aqui o ruído da ressaca contra o casco do navio e as pesadas tapeçarias abafavam o gongo obcecante dos comitres e as ordens roucas dos vigias. Era possível crer-se num salão.

A alguns passos dela, o segundo-oficial, Sr. de Millerand, inspe-cionava a costa com o auxílio de um óculo de alcance. Era um homem muito jovem, quase imberbe ainda, alto e bem-feito de corpo. Fora educado na marinha real pelo avô almirante e, recém-saído das escolas, respeitoso dos princípios, não aprovava a presença de uma senhora a bordo. Taciturno, não descerrava os lábios, passava com ar altivo e evitava unir-se ao círculo de oficiais que a certas horas se juntavam em torno de Angélica. Menos severos, os outros membros do estado-maior do almirante regozijavam-se de uma presença que pelo menos daria algum sabor à travessia.

A costa à vista desenrolava um pregueado de rochedos púrpura contra um fundo de montanhas cobertas de uma vegetação verde-escura, feita de moitas baixas, pequenas plantas secas e perfumadas. Apesar da beleza das cores, o lugar parecia selvagem. Nenhum telhado, nenhuma barca nas enseadas azuis, escavadas, tão encantadoras e acolhedoras, em seus escrínios de falésias cor de melancia. Somente, de longe em longe, uma cidadezinha solidamente rodeada de muralhas.

O Duque de Vivonne apareceu, sorridente, seguido de seu negrinho, que carregava uma caixinha de confeitos.

— E então, minha cara? - perguntou, beijando a mão da jovem e sentando-se junto dela. - Deseja algumas guloseimas orientais? Millerand, nada a assinalar?

— Nada, monseigneur, senão que a costa está deserta. Os pescadores deixam suas aldeias isoladas, diante da audácia dos berberes que vêm até aqui capturar escravos. Os ribeirinhos preferem refugiar-se nas cidades.

— Acabamos de passar por Antibes, parece-me. Com um pouco de sorte, esta noite poderemos pedir a hospitalidade de meu bom amigo, o Príncipe de Mónaco.

— Sim, monseigneur, contanto que outro de nossos bons amigos, refiro-me ao Rescator. não venha perturbar nosso cruzeiro...

— Percebeu alguma coisa? - perguntou Vivonne, levantando-se precipitadamente e tomando-lhe a luneta das mãos.

— Não, tranqúilize-se. Mas conhecendo-o como o conhecemos, é exatamente isso o que me surpreende.

O imediato do Almirante de Vivonne, o Sr. de la Brossardière, e dois outros oficiais, os condes de Saint-Ronan e de Lageneste, penetravam por sua vez no baldaquino, seguidos por Mestre Sa-vary. O criado turco apareceu e, auxiliado por um jovem escravo, começou a preparar o café, enquanto os senhores se sentavam sobre almofadas.

— Aprecia o café, senhora? - perguntou a Angélica o Sr. de la Brossardière.

— Não sei. No entanto, devo habituar-me.

— Uma vez que se adquira o hábito, não se pode passar sem ele.

— O café é bom para impedir que os humores se elevem do estômago para a cabeça - disse Savary, muito douto. - Os maometanos gostam dessa bebida não tanto por suas recomendáveis qualidades, quanto por causa defuma tradição segundo a qual ela foi inventada pelo arcanjo Gabriel para reparar as forças de Maomé, o Bravo. E o próprio Profeta gabava-sé de que, toda vez que a bebia, sentia imediatamente um vigor capaz de fazê-lo desmontar quarenta homens e contentar mais de quarenta mulheres.

— Tomemos café, pois - exclamou alegremente Vivonne, lançando um olhar na direção de Angélica.

Aqueles homens jovens e cheios de força a contemplavam sem ocultar a própria admiração. Ela estava realmente magnífica num vestido violeta-claro,vque destacava o mate de sua pele avivada pelo ar do mar e a louriTce de seusxabelos. Ela sorriu, recebendo com graça aquelas homenagens masculinas que os olhos deles não conseguiam dissimular.

-        Lembro-me de já ter tomado café com o Bei Bakhtiari, o embaixador persa - disse ela.

O jovem escravo dispôs mesinhas adamascadas com franjas douradas. O turco serviu o café em finas xícaras de porcelana, enquanto o negrinho passava duas caixinhas, uma contendo pedaços de açúcar, a outra, sementes de cardamomo.

— Sirva-se de açúcar - recomendou La Brossardière.

— Misture um pouco de cardamomo ralado - aconselhou Saint-Ronan.

— Beba muito lentamente, mas não espere que a beberagem esfrie.

— Deve-se tomar o café fervendo.

Cada um sorveu sua xícara a pequenos goles. Angélica fez tudo o que lhe aconselharam e concluiu que, se o café em si não era bom, o perfume em compensação era" delicioso.

-        Este cruzeiro anuncia-se sob auspícios encantadores - constatou La Brossardière, satisfeito; - temos a sorte de ter a bordo uma das rainhas de Versalhes e, por outro lado, eu soube que o Rescator estava a caminho para visitar seu cúmplice, Moulay Ismael, o rei do Marrocos. Com ele ausente, o Mediterrâneo voltará a ser pacífico.

— Mas quem é afinal esse Rescator que parece assombrar seus pensamentos? - perguntou Angélica.

— Um desses bandidos sem fé nem lei que estamos incumbidos de perseguir e, oportunamente, de capturar - disse Vivonne, sombrio.

— É um pirata turco, então?

— Pirata, certamente. Turco, não seiiAlguns acreditam que seja um irmão do sultão do Marrocos, mas outros dizem que é francês, pois fala muitíssimo bem a nossa língua. De minha parte, acreditaria antes tratar-se de um espanhol. Difícil saber em que acreditar no que se refere a esse homem, pois está sempre mascarado. Isso é frequente entre os renegados, que costumam se mutilar de propósito para não serem reconhecidos.

"Por outro lado, dizem também que é mudo. Ter-lhe-iam arrancado a língua e rasgado as narinas. Os amantes da crónica mediterrânea não se entendem. Os que o crêem mouro, e mouro andaluz, dizem que é uma das vítimas da Inquisição espanhola, mas os que o crêem espanhol acusam os mouros. Em todo caso> não deve ser bonito, pois ninguém se pode gabar de tê-lo visto sem máscara."

— O que não o impede de ter certo sucesso com as senhoras - disse La Brossardière, rindo. - Parece que seu harém compreende algumas beldades sem preço, que ele disputou no mercado com •o próprio sultão de Constantinopla. Há pouco tempo, o chefe dos eunucos brancos do sultão, vocês sabem, aquele belo caucasiano, o Bei Camyl, não se consolava de ter precisado ceder aos lanços do Rescator uma circassiana de olhos azuis, uma jóia!

— Dá-nos água na boca - disse Vivonne. - Mas será que essa é uma história a contar diante de uma senhora?

— Não estou escutando nada - disse Angélica. - Prossiga, rogo-lhe, com sua pequena crónica do Mediterrâneo, senhor.

La Brossardière disse que obtivera os detalhes de um cavaleiro de Malta, o Bailio Alfredo di Vacouzo, da Itália, encontrado em Marselha. O cavaleiro retornava a Cândia, para onde ele próprio levara escravos, e guardava uma recordação épica daquele leilão em que o Rescator jogara um a um sacos de escudos aos pés da circassiana, a tal ponto que no final ela os tinha até os joelhos.

-        Certamente que ele tem dinheiro! - exclamou Vivonne, com uma dessas cóleras bruscas que o avermelhavam até a raiz da peruca. - Não é por nada que tem a alcunha de Rescator. Não sabe o que quer dizer, senhora? 

Angélica meneou a cabeça.

-        Em espanhol designa os traficantes de dinheiro ilícito, os fabricantes de moeda falsa. Antigamente existiam um pouco por toda parte, pequenos artesões, que não eram perigosos nem incómodos. Agora só resta um: o Rescator.

Pôs-se a ruminar com ar sombrio. O jovem Tenente de Millerand, que por natureza era sentimental e tímido, arriscou-se com atraso na conversa:

— O senhor dizia que o nariz cortado não impedia o Rescator de agradar às mulheres; mas também esses piratas usam apenas escravas compradas, às vezes tomadas à força, portanto parece-me que não é pelo número de suas mulheres que se pode julgar-lhe a sedução. Tomo como exemplo o renegado de. Argel, Mezzo Morte, aquele porco gordo, o maior mercador de escravos do Mediterrâneo. Quem o tenha visto uma vez não pode supor que uma única mulher se tenha entregado a ele por amor, nem mesmo por simples gosto.  -

— Tenente, o que diz parece lógico - admitiu La Brossardière -, mas engana-se, e na verdade em dois pontos. Primeiro, Mezzo Morte, embora seja o maior traficante de escravos do Mediterrâneo, não tem mulheres em seu harém, pois prefere... rapazinhos. Dizem que cultiva mais de cinquenta em seu palácio de Argel. E por outro lado é bem verdade que o Rescator tem a reputação de ser muito amado pelas mulheres. Compra muitas, mas só conserva consigo as que queiram permanecer com ele.

— O que faz das outras?

— Liberta-as. É a mania dele. Liberta todos os escravos, homens ou mulheres, quando tem a oportunidade; Ignoro se isso é exato, mas em todo caso faz parte de sua lenda.

— Sua lenda - resmungou Vivonne, com um desgosto mesclado de amargura. - Pois é bem verdadeira essa lenda! Ele liberta os escravos, eu mesmo sou testemunha disso.

— Talvez faça isso para remir-se por ser um renegado? - sugeriu Angélica.

— Talvez. Mas é principalmente para causar confusão. É para... para encher o s... de todo mundo! - Vivonne corou. - Para divertir-se, sim, para divertir-se. Lembra-se, Gramont, você que fazia parte de minha esquadra na batalha do cabo Passero, daquelas duas galeras que ele capturou? Sabe o que fez dos quatrocentos forçados da equipagem? Tirou-lhes os ferros e desembarcou-os com toda a simplicidade no litoral de Veneza. Imagine como os venezianos nos ficaram gratos pelo presente. Críou-se um incidente diplomático, e Sua Majestade me observou, não sem ironia, que quando eu deixasse capturar minhas galeras, que ao menos escolhesse por sequestrador um mercador de escravos como os outros.

— Acho suas histórias apaixonantes - disse Angélica. - O Mediterrâneo está cheio de personagens pitorescas.

— Deus a proteja de encontrá-las muito de perto! Os aventureiros ou renegados, mercadores de escravos ou traficantes, que se aliam aos infiéis para desafiar o poder dos Cavaleiros de Malta ou do rei da França, merecem todos a fogueira. Ainda ouvirá falar do Marquês d'Escrainville, francês esse, do dinamarquês Eric Jan-sen, de Mezzo Morte, já citado, o almirante de Argel, dos irmãos Salvador, espanhóis, e de outros de menor envergadura. O Mediterrâneo está infestado deles. Mas basta de discorrer sobre essa escória. Faz menos calor e a hora me parece propícia para fazê-la visitar a galera. Vou ver se está tudo no lugar.

Enquanto o almirante se afastava, os oficiais por sua vez se despediram da passageira e retornaram a seus postos.

Foi então que Angélica notou Flipot. O pequeno criado devia ter subido às carreiras os poucos degraus do passadiço. Estava estranhamente sem fôlego, lívido, e fitava a ama de olhos arregalados, como que esgazeados.

-        O que foi? - gritou-lhe ela.

— Lá - gaguejou ele. - Eu vi... Ela foi até ele e o sacudiu.

— O quê? Viu o quê? A quem?

Estava tão certa de ter avistado Desgrez no cais no momento da partida, que imaginou que fosse vê-lo surgir de repente, como um demónio.

-        Mas fala!

__ Vi... vi... os forçados. Ah, senhora marquesa!... Causou-me uma impressão... não posso, não posso dizer-lhe... lá, lá embaixo, os forçados...

Soluçou e, escapando-se, correu até a amurada, para vomitar.

Angélica tranquilizou-se. O pobre coitado não estava habituado com o jogo da embarcação. A vista dos forçados e o odor da prisão deviam ter-lhe precipitado ó mal-estar. Angélica pediu ao turco que lhe servisse uma xícara de café.

— Fique aí - disse ela ao garoto. - O ar lhe fará bem.

— Ah, bom Deus, ver aquilo! - repetia ele. - Virou-me o estômago...

Tinha um ar desesperado e lamentável..

-        Ele se acostumará - disse o Duque de Vivonne, que voltava. - Em três dias ele enfrentará tempestades. Senhora, venha visitar esta galera na qual teve a imprudência de embarcar.

CAPÍTULO X

A aparição nas galés

A grade dourada do "tabernáculo" e suas cortinas de brocado carmesin separavam o paraíso do inferno.

Assim que Angélica saiu para o castelo de popa, o vento lançou-lhe ao rosto o odor nauseabundo da prisão. Abaixo dela, a massa vermelha dos forçados curvava-se e reerguia-se, num movimento lento e monótono, num balanço regular, perpétuo, de dar vertigem.

O Duque de Vivonne estendeu a mão à sua convidada para ajudá-la a descer alguns degraus, depois, precedendo-a, avançou sobre a coxia.

Era uma longa prancha de madeira, que atravessava quase todo o comprimento do navio. De cada lado se abriam fossos fétidos, onde se alinhavam os bancos dos forçados. Ali já não havia cores vivas nem dourados. Havia apenas a madeira grosseira das banquetas onde os forçados estavam acorrentados de quatro em quatro.

O jovem almirante avançou a passos lentos, arqueando a barriga da perna, que tinha muito bonita numa meia vermelha com bordados de ouro, pousando com cuidado seu fino calçado de salto recoberto de couro encarnado sobre o chão viscoso. Seu traje era azul e muito bordado, com grandes abas vermelhas e um espesso cinto branco com franjas, os folhos e os punhos de rendas preciosas, o chapéu, tão rico em plumas, que, sob o vento, dava a impressão de um ninho de pássaros prestes a alçar vôo. Ele se detinha, inspecionava minuciosamente. Parou perto do "fogão", o local onde se cozinhava para os forçados, instalado no meio da galera, a bombordo. Suspensos acima de uma pequena fornalha, dois grandes caldeirões fumegavam, contendo a magra sopa de raízes e o guisado de favas negras, a comida habitual dos condenados.

Vivonne provou a sopa, achou-a horrível, e deu-se ao trabalho de explicar a Angélica que introduzira melhorias pessoais no fogão.

- O antigo sistema pesava cento e cinquenta quintais. Era instável, e quando o mar se punha muito violento não era raro que os forçados mais próximos fossern,escaldã*dos. Mandei diminuir o peso e abaixar tudo isso.

Angélica aprovou com um sinal de cabeça. O odor nauseabundo do local, somado ao cheiro pouco apetitoso da sopa, começava a levar a melhor sobre o seu bem-estar físico. Mas Vivonne, muito feliz com a presença dela e orgulhoso de seu barco, não a poupou de nada. Ela teve que admirar a beleza e a solidez dos dois botes de salvamento, o falucho, de bom tamanho, e o caíque, menor, e aprovar a disposição feliz dos pequenos canhões morteiros sobre os alcatrates.

Os soldados da marinha, para se entreter durante a travessia, tinham apenas aqueles, alcatrates estreitos acima da massa de presos, ao lado dos canhões. Quase não havia espaço, e era preciso passar o dia inteiro agachado ou sentado, sem se mover muito, para não comprometer o equilíbrio do pesado navio. Aqueles homens não tinham outra distração a não ser injuriar os forçados em seus buracos ou interpelar os vigias e comitres. Era duro manter a disciplina.

Vivonne explicou ainda que a prisão se dividia em três setores, dirigidos cada um por um comitre. Em geral, dois setores remavam enquanto o último descansava. Os remadores eram recrutados entre os prisioneiros julgados pelo direito comum e entre os prisioneiros estrangeiros.

-        É preciso ser muito forte, e o fato de ser assassino ou ladrão não lhes confere por profissão os bíceps necessários. Os condenados que nos enviam das prisões morrem como moscas. É por isso que também há turcos e mouros.

Angélica examinou um fosso onde havia pessoas com longas barbas louras, das quais a maioria tinha um-crucifixo de madeira no pescoço.

-        Aqueles quase não parecem turcos, e não é um crescente que tem sobre o peito.

— São turcos pelo acaso das conquistas. São russos, que compramos aos turcos. São excelentes remadores.

— E aqueles, de barba negra e nariz enorme?

— São georgianos, do Cáucaso, comprados aos Cavaleiros de Malta. E aqui estão os turcos autênticos. São voluntários. Nós os contratamos por causa de sua força excepcional, como chefes de remo. Mantêm a disciplina durante a voga.

Angélica via dobrarem-se as espinhas sob os uniformes vermelhos. Depois os homens se lançavam para trás, erguendo os rostos pálidos ou barbudos, de boca aberta com o esforço. E mais ainda do que o odor denso e irrespirável, feito de suor e imundícies, ela percebia o olhar de lobo dos condenados, devorando aquela mulher que passava acima deles como uma aparição ao sol.

Seus trajes cor de primavera faiscavam, e a brisa movia as plumas de seu grande chapéu. Um golpe de vento mais violento ergueu-lhe a saia e a pesada bainha bordada foi atingir em pleno rosto um forçado que se encontrava à beira da coxia. Ele teve um brusco movimento de cabeça e agarrou o tecido com os dentes.

Angélica gritou de horror, puxando a saia. Os forçados rebentaram num riso selvagem.

Um vigia se precipitou, o chicote alto, e desferiu uma saraivada de golpes na cabeça do miserável. Mas ele não soltava a presa. Sob seu gorro verde de "perpétuo", uma guedelhada hirsuta escondia a meio o brilho de um olhar negro que devorava Angélica, ao mesmo tempo astuto, feroz, de um apelo tão intenso, que ela se sentiu fascinada. Um choque a sacudiu inteira, fê-la empalidecer. O sangue desapareceu-lhe do rosto. Aquele olhar de lobo ávido e zombeteiro não lhe era desconhecido.

Dois outros guardas haviam saltado no fosso; agarraram o homem, espancaram-lhe o rosto a golpes de cacete, quebraram-lhe os dentes e finalmente o atiraram novamente sobre o banco, coberto de sangue.

-        Desculpe, monseigneurl Desculpe, senhora! - repetiu o comitre responsável pelo setor. - Este é o pior de todos, um cabeça de motim. Nunca se sabe o que nos prepara.

O Duque de Vivonne estava louco de cólera.

-        Amarre-o ao gurupés durante uma hora. Alguns mergulhos na água salgada o acalmarão.

Passou um braço pela cintura da jovem.

_ Venha, querida. Lamento muito.

__ Não foi nada - disse ela, recompondo-se. - Ele me deu medo. Já passou. Afastaram-se. Um chamado rouco irrompeu do fosso:

-        Marquesa dos Anjos!

-        Que disse ele? - perguntou Viyonne.

Angélica voltara-se, lívida.

Ao rés da coxia, duas mãos carregadas de correntes deslizavam como garras em direçao a seus passos. E naquele rosto intumescido, medonho, que se erguia, de súbito ela não via mais que os olhos negros, ressuscitando do fundo do passado.

"Nicolau!"

O Almirante de Vivonne amparou-a até o abrigo da tenda na popa.

— Eu devia ter desconfiado desses cães. Claro, o homem não é belo de se contemplar da"coxia de uma galera. Não é um espetá-culo para senhoras. No entanto, em geral, minhas amigas mostram-se bastante ávidas por vê-lo. Não a havia imaginado tão sensível.

— Não foi nada - repetiu debilmente Angélica.

Tinha vontade de vomitar. Como Flipot há pouco, quando com um misto de horror e medo o antigo mion do Pátio dos Milagres reconhecera Nicolau Calembredaine, o ilustre bandido do Pont-Neuf, que se imaginava morto desde à malograda investida à feira Saint-Germain e que há quase dez anos expiava seus crimes nas galés do rei.

- Querida, minha querida, que foi? Você parece triste.

O Duque de Vivonne se aproximara dela, aproveitando-se do fato de encontrá-la só, em pé na popa, olhando o crepúsculo que se estendia sobre o mar. Estava tão distante, que ele se sentia intimidado.

Ela se voltou para ele, crispando as mãos sobre os sólidos ombros.

-        Beije-me - murmurou.

Necessitava do contato de um homem sadio e vigoroso para expulsar as visões de miséria, de abjeção, que há horas lhe perseguiam os pensamentos. O chamado obcecante do gongo dos comitres, ritmando a voga, caía-lhe sobre o coração como gotas pesadas, despertando nela o eco de um desespero, de uma fatalidade irremissíveis.

-        Beije-me.

Ele tomou-lhe os lábios e ela se entregou com paixão à procura do beijo dele. Ela queria desaparecer, esquecer. Ele a beijava sem cessar, fustigado por aquele ímpeto que lhe fazia ferver o sangue. Sua mão deslizou da cintura para os seios e ele estremeceu ao roçar-lhes a perfeição, de que ainda não se saciara. Ela colou-se a ele.

- Não... escute, querida - disse ele, soltando-se um pouco ofegante. - Esta noite, não, é impossível. Devemos todos permanecer alerta... O mar é perigoso.

Ela não insistiu e deixou deslizar a testa contra a dragona dourada, que lhe arranhou a pele. Essa pequena dor lhe fez bem.

— Perigoso? - perguntou. - Vai haver uma tempestade?

— Não... Mas os piratas rondam. Enquanto não tivermos ultrapassado Malta, devemos desconfiar.

Ele apertou-a de novo, com mais força. .'- Não sei o que me acontece - disse -, você me... você me arrebata. E tão mutável, tão cheia de mistério e de surpresas! Há pouco brilhava, éramos todos como carneiros dóceis sob o poder de seus olhos e de seus sorrisos. Agora sinto-a frágil, como esmagada sob um perigo que a ameaça e contra o qual eu gostaria de defendê-la. E um sentimento que nunca tive, sabe... Exceto por crianças. As mulheres são tão malévolas!

Ele afastou-se suavemente e distanciou-se dela para se debruçar à amurada. Às vezes a espuma das ondas voava até ele e molhava-lhe os lábios queimados pelos lábios de Angélica. Ele ainda os sentia, irradiando sua doçura nele. De novo tinha fome de prová-los, de senti-los entreabrir-se como a contragosto e violentados, para lhe entregar o choque de seus dentes lisos, apertados sobre um riso, barreira erguida à sua impaciência. Defesa que tornava mais voluptuosa a derrota de seu belo rosto, enfim alterado pela emoção, pálpebras fechadas, respondendo à incitação.

Uma mulher que beijava assim! Uma mulher que sabia rir e chorar do fundo do coração, sem comédia. Não lhe desagradava que fosse sensível, vulnerável. No entanto, não conseguia esquecer que ela fizera curvar-se a indomável. Atenaís, com armas sorrateiras e cruéis de rivais que se batem até a morte, sem mercê.

Não compreendia mais. Perdia a cabeça. Quis sondá-la e disse suavemente:

-        Sei por que você está triste. Desde que a encontrei temo pelo instante em que você tocará no assunto. É porque pensa em seu filho, não é, a criança que me confiou e que desapareceu afogada durante um combate?

Angélica deixou tombar o rosto -entre as mãos.

— Sim, é isso - disse, numa vez abafada. - A vista deste mar azul, tão azul, que levou meu filho, me atormenta.

— É ainda àquele maldito Rescator que devemos o desastre. Dobrávamos o cabo Passero quando ele caiu sobre nós, tal qual uma águia marinha. Ninguém o viu aproximar-se, e aliás ele só utilizava velas baixas, o que lhe permitiu ficar longo tempo despercebido por causa dos vagalhões, que naquele dia estavam muito altos. Quando se deu pela aproximação dele, era tarde demais: uma única descarga de doze canhões nos afundou duas galeras e o Rescator já enviava seus jaiíízaros para a abordagem de La Flamande. Era nesse navio que se encontravam as pessoas de minha casa, entre as quais o pequeno Cantor... Talvez tenha sido tomado de pânico, sobreexcitado pelos gritos dos forçados que se debatiam acorrentados, ou péla vista dos mouros armados de cimitarras. O escudeiro João Gallet ouviu-o gritar: "Meu pai! Meu pai!" Um dos soldados de bordo íomou-o nos^braços para arrastá-lo...

— E depois?

— A galera partiu-se em dois. Afundou a uma velocidade prodigiosa. Os próprios mouros que haviam subido a bordo foram lançados ao mar. Os piratas os resgataram e fizemos o mesmo com os nossos, que ainda se agarravam às traves. Mas quase todas as pessoas de minha casa pereceram: meu capelão, os cantores de minha capela, meus quatro despenseiros... e aquela bela criança com voz de rouxinol.

Um raio de luar deslizou por entre as tapeçarias e iluminou Angélica, e ele viu que seu rosto cintilava de lágrimas. Apaixonado, disse a si mesmo que gostava de vê-la chorar assim, ela, tão poderosa sobre o coração dos homens. Qual era o seu mistério? Lembrava-se vagamente de um escândalo, já longínquo, de uma história de um feiticeiro que fora queimado na Place de Greve.

- Quem era o pai dele? Aquele a quem seu filho chamava? --perguntou, bruscamente.

— Um homem desaparecido há muito tempo.

— Morto?

— Sem dúvida.

— Estranhas essas premonições da última hora. Até uma criança entende que vai morrer.

Soltou um profundo suspiro.

-        Eu gostava bastante daquele pequeno pajem... Você não me quer muito mal, por causa dele?

Angélica fez um gesto fatalista.

-        Por que o quereria mal, Sr. de Vivonne? Não foi sua culpa. A culpa foi da guerra, da vida... Tão cruel e tão louca!

CAPITULO XI

A agitação entre os forçados - Os piratas rondam

Antes de deixar La Spézia, onde a esquadra francesa fora muito festejada por um parente do Duque de Savóia, Angélica teve a impressão de que havia-um recrudescimento das precauções. O extraordinário Almirante de Vivonne sabia, quando necessário, mostrar-se um chefe marítimo previdente e minucioso. E enquanto a segunda galera de sua frota já zarpava, ele a observava do tabernáculo de La Royale.

-        Brossardière, fnande-a retornar imediatamente!

-- Mas, moriseigneur, isso causará a pior das impressões nesses italianos que observam, nossa bela manobra.

-        Não me interessa o que pensam esses comedores de macarrão. O que vejo, e que você não parece notar, é que La Dauphine está carregada demais a bombordo e que, além disso, a carga está colocada alto demais. Aposto que o porão está vazio, e bastará um nada para a galera virar...

O imediato explicou que era por causa do víveres carregados na ponte. Se os colocassem no porão, logo mofariam, principalmente a farinha.

-        Prefiro que a farinha embolore, mas que a galera não vire, como nos aconteceu há pouco tempo no próprio porto de Marselha.

La Brossardière mandou executar as ordens de seu chefe. Outra galera, Fleur de Lys, largava.

— Brossardière, mande picar a voga da mézanie.

— Impossível, almirante: o senhor bem sabe que são os mouros que aprisionamos naquele pequeno navio que transportava prata camuflada.

— Outra vez esses cúmplices do Rescator a nos criar problemas! E cabeças-duras, ainda por cima. Ordene que o comitre deles lhes administre uma dupla ração de chicote e que os ponha a pão bolorento e a água estagnada.

— Eles já estão sendo tratados assim, monseigneur, e o cirurgião até diz que o senhor deveria ter desembarcado alguns, que estão enfraquecidos demais.

— O cirurgião que se ocupe de seus assuntos. Jamais desembarcarei os homens do Rescator, e você sabe muito bem por quê.

Brossardière aprovou. Em terra, moribundos ou não, os homens do Rescator desapareciam como por magia. Aparentemente gozavam de cumplicidades, sem dúvida porque seu grão-mestre pagava um prémio especial a quem conseguisse libertar-lhe os homens, que eram todos marinheiros escolhidos, mas que no cativeiro demonstravam uma resistência passiva que ultrapassava a dos demais.

— E agora, para o alto-mar! - confirmou Vivonne, quando as seis galeras se distanciaram do porto.

— Ah, finalmente! - exclamou Angélica. - Navegamos há quase dez dias, e eu já estava acreditando que as galeras só podiam costear.

-        Içar a vela do mastro principal - ordenou o almirante.

A ordem foi transmitida de galera a galera.

Os marinheiros manipularam os cordames e as polias, as vergas que sustentavam as velas enroladas foram içadas, e estas se desdobraram, enfunando-se sob a brisa.

Era a primeira vez que Angélica se via ao largo. Atrás, a costa toscana já se apagara, e por todos os lados via-se apenas mar e mar.

Foi só por volta do meio-dia que o cabo dos marinheiros gritou:

-        Terra à vista!

-        E a ilha de Gorgonzola - explicou a Angélica o Duque de Vivonne. - Vamos ver se não abriga piratas.

A frota francesa dispôs-se em semicírculo, fechando-se para rodear a pequena ilha rochosa e árida, eriçada de promontórios que se recortavam sob um céu azul-escuro.

Mas com exceção de três barcos de pesca genoveses e dois tosca-nos, que lançavam redes em conjunto para a caça ao atum, não se encontraram vestígios de piratas. A ilha era quase nua. Algumas cabras mastigavam magros arbustos. Vivonne quis comprá-las, o chefe dos pescadores recusou, pois, disse ele, eram a sua única reserva de leite e queijo.

-        Diga-lhe - ordenou Vivonne a um de seus suboficiais que falava italiano - que pelo menos nos tragam água doce.

__ Dizem que não há! __ Então peguem as cabras:

Os soldados se lançaram aos pulos sobreTos rochedos e abateram os animais a tiros de pistola. Vivonne mandou vir o chefe dos pescadores, que recusou dinheiro. Tomado de uma suspeita, Vivonne fez esvaziarem-lhe os bolsos, e moedas de ouro e prata rolaram sobre a ponte. Fora de si, Vivonne mandou jogar o homem ao mar, que voltou a nado até seu barco.

-        Que eles digam quem lhes deu todo esse dinheiro e lhes desembarcaremos alguns queijos e frascos de vinhos, em troca de cabras. Não somos ladrões. Traduza isso.

Os rostos dos pescadores não manifestaram surpresa nem contrariedade. A Angélica pareciam madeira velha esculpida e enegrecida de fumo, tão rfiisteriosos quanto a Virgem Negra que vira no pequeno santuário"de Notre-Dame de la Garde, em Marselha.

— Aposto como esses pretensos pescadores só vão à pesca do atum para manter as aparências e que só estão aqui para assinalar nossa passagem ao inimigo, que tirará conclusões sobre a marcha de nossa esquadra.

— No entanto, têm um ar bastante inofensivo...

— Eu os conheço, eu os conheço - repetia Vivonne, dirigindo sinais de ameaça aos pescadores impassíveis -, são informantes a serviço de todos os bandidos das redondezas. Essas moedas de prata e de ouro estão assinadas pelo Rescator.

— Você vê inimigos por toda parte - disse Angélica.

— E meu ofício de caça-corsários.

La Brossardière aproximou-se, mostrando o pôr-do-sol. Não foi para que o admirassem, mas porque o céu púrpura, onde deslizavam longas nuvens roxas franjadas de dourado, não lhe parecia muito "católico".

— Em dois dias corremos o risco de ter um forte vento sul. Costeemos, é mais prudente. 

— Nunca! - exclamou Vivonne.

A costa pertencia ao Duque da Toscana, que, sempre jurando sua boa amizade pela França, abrigava em Livorno tanto ingleses quanto holandeses, comerciantes ou em guerra, mas principalmente berberes. Era em Livorno que ficava o mais importante mercado de escravos, depois do de Cândia. Se se fosse por ali, seria preciso fazer uma grande demonstração naval ou "fechar os olhos". E Sua Majestade preferia manter boas relações com os toscanos. Havia, então, que se contentar com o simples policiamento das ilhas.

-        Seguiremos o vento sul, e a Sra. du Plessis poderá constatar que uma galera pode navegar não apenas em alto-mar, como também à noite e mesmo à vela.

De fato, à noite, o vento caiu completamente, e a navegação prosseguiu a remo. Os quartos da vigília foram-reforçados, por precaução. Mas um único setor de forçados continuou trabalhando, sob a luz dos candeeiros que projetavam a sombra desmesurada dos vigias, indo e vindo sobre a coxia. Os outros forçados, de quatro em quatro, se deitavam sobre uma prancha ao pé de cada banco. Dormiam ali, atolados no lixo e na infinidade de insetos asquerosos, com o sono pesado das bestas exaustas.

Na outra extremidade da galera, Angélica tentava esquecer quem sofria a poucos passos dela. Não retornara à coxia. Não deixaria Nicolau saber que o reconhecera. O forçado pertencia a uma página amarga demais de sua vida, cujo horror havia apagado até as recordações de infância que antigamente os uniram. Ela rasgara aquela página e não deixaria que o acaso a fizesse ressuscitar. Mas as horas lentíssimas da travessia a torturavam, e ela tinha pressa de chegar a Cândia.

A noite estava azul e como que fosforescente pelo movimento das ondas e o reflexo das lanternas das outras galeras, que seguiam suavemente. Cada batida dos remos provocava um jorro luminoso. Na popa dos navios acendera-se a lanterna de bordo, um enorme monumento de madeira dourada e vidro de Veneza, do tamanho de um homem e onde ardiam por noite doze libras de velas.

Ela ouviu o Tenente de Millerand fazer seu relatório ao almirante. Os soldados queixavam-se de passar a noite a bordo. Sentados o dia todo, espremidos uns contra os outros, ainda teriam que passar a noite na incomoda posição.

-        De que se queixam? Não estão acorrentados, e esta noite têm direito a guisado de cabra. Guerra é guerra. Quando eu era coronel da cavalaria do rei, às vezes dormia sobre o cavalo e sem comer. Eles precisam apenas habituar-se a dormir assim. É tudo uma questão de hábito.

Angélica começou a arrumar almofadas sobre um dos divãs para deitar-se. O negrinho veio ajudá-la. Era inútil reclamar os serviços de Flipot, que se contorcia de náusea.

O Duque de Vivonne ia e vinha, seguido da pequena sombra do negrinho que carregava a caixa de confeitos. A gulodice dos Mortemart era proverbial, e era a'um abuso de doces orientais que o jovem devia o seu ligeiro excesso de peso.

Trincando nozes açucaradas e massas de lukum, doce oriental, à base de amêndoas, ele meditava sobre as. eventualidades de seu cruzeiro. Recomendara aos oficiais que descansassem um pouco e eles dormiam sobre colchões, mas ele próprio não se decidia a imitá-los. Parecia preocupado e, apesar da noite alta, mandou chamar o mestre artilheiro.

Um homem de cabelos grisalhando apareceu à luz da lanterna de bordo.     

-        Mestre artilheiro, suas peças estão preparadas para ação?

- Executei suas ordens, monseigneur, as peças foram examinadas e oleadas, e mandei subir cartuchos, balas e metralha.

-        Muito bem. Retorne a seu posto. Brossardière, meu amigo...

O imediato, arrancado ao sono, recolocou a peruca, alisou os punhos e quase imediatamente estava ao lado do superior.

-        Senhor?

-        Encarregue-se de que o Cavaleiro de Cléans, comandante da barca de passagem, entenda bem que deve manter-se ao centro de nossa pequena frota e não numa das extremidades, pois leva toda a nossa reserva de pólvora e de balas, e é preciso que ele possa abastecer-nos, caso tenhamos que sustentar um tiroteio de longa duração. Mande vir também o chefe dos mosqueteiros.

Quando este se apresentou:

— Distribua mosquetes, balas e pólvora. Vele principalmente pelos morteiros de bordo. Não se esqueça de que, com apenas três canhões na proa, são os morteiros e os mosquetes que representam a única defesa verdadeira de bordo,' em caso de surpresa.

— Está tudo pronto, monseigneur. A última passada em revista serviu para indicar bem o lugar de cada combatente.

Entrementes, Mestre Savary surgiu do escuro e anunciou que o salitre em seu estojo de medicamentos estava úmido, o que prenunciava uma mudança de tempo nas vinte e quatro horas seguintes.

— Não necessito de seu salitre para estar a par disso - resmungou Vivonne. - Se o tempo piorar, não será imediatamente, e daqui até lá talvez alguma coisa tenha mudado na superfície do mar.

— -Devo compreender que receia um ataque?

— Mestre boticário, saiba que um oficial das galeras de Sua Majestade não receia nada. Diga, se quiser, que prevejo um ataque, e retorna a seus frascos.

— É que eu gostaria de perguntar-lhe, Monseigneur, se posso colocar minha preciosa garrafa que contém minha múmia mineral em segurança na câmara do Conselho, para o caso de alguma bala perdida quebrar...

— Sim, sim, faça o que lhe parecer melhor.

O Duque de Vivonne veio sentar-se perto de Angélica.

-       Estou num estado de agitação - disse ele -, sinto que vai acontecer alguma coisa. Sempre fui assim. Na infância, nas noites de tempestade, meus dedos atraíam os objetos. Que poderia fazer para acalmar-me?

Mandou procurar um de seus pajens, que veio com um alaúde e uma guitarra.

-        Vamos cantar um pouco à noite estrelada e ao amor das damas.

O irmão de Atenaís de Mortemart possuía uma bela voz, um pouco alta, mas de bom timbre. Tinha fôlego e cantava à maravilha canções italianas. O tempo passou de modo agradável, e a grande ampulheta que marcava as horas já tinha sido virada duas vezes, quando sobre uma última nota que se extinguia, um som vasto, semelhante a um vendaval vindo do horizonte, inflou-se bruscamente, depois morreu, para retomar um tom mais baixo, prolongar-se em nuances profundas, que rolavam, subiam e desciam. Angélica sentiu um arrepio correr-lhe a espinha.

-        Escute - murmurou o Conde de Saint-Ronan -, os forçados cantam!

Cantavam de boca fechada, num coro de quatro vozes, que ia longe sobre o mar. Tinha ressonâncias de concha marinha. Durou muito tempo, era interminável, reiniciava sem cessar, semelhante às vagas de um desespero insondável. Depois uma voz ainda jovem de bom timbre, elevou-se em solo, cantando o refrão do lamento:

- "Eu me lembro, minha mãe dizia,

Não seja como um selvagem,

Não faça sempre o que lhe -agrada.

Ela me dizia que fosse- prudente."

Não matei, não roubei,

Mas não acreditei em minha mãe,

E lembro que ela me amava

Enquanto remo nas galeras..."

O canto morreu.

No silêncio que tombou, o ruído da ressaca contra o casco pareceu amplificar-se.

Um marinheiro anunciou:

— Fogo incerto a cinco léguas, primeiro quarto de círculo a estibordo!

— Dispositivo de alerta e de combate! Apaguem as lanternas de bordo e deixem apenas os fogos de segurança. Quatro corpos de guarda de prontidão!

Vivonne pegou da luneta e permaneceu por longo tempo silencioso; depois mandou Brossardière olhar, e este opinou:

— Aproximamo-nos do cabo Corso. Na minha opinião, trata-se de um barco pescando atum a rede e tentando reunir o cardume no centro de uma flotilha de pesqueiros. Lançamo-nos a ele para verificar?

— Não. A Córsega pertence a Génova, e de resto as costas corsas nunca, ou quase nunca, abrigam berberes. Os habitantes são tão particularistas, que não admitem que ninguém incursione por seus ancoradouros; evitar essa ilha é palavra de ordem geral entre navegadores, piratas ou corsários. Prossigamos com os planos que fixamos à partida, com a visita à ilha de Caprera, que é do Duque da Toscana e que, em compensação, com frequência oferece refúgio a piratas turcos.

— Quando devemos chegar lá?

— Ao amanhecer, se o tempo não mudar antes disso. Não ouviu alguma coisa?

Aguçaram os ouvidos. De uma galera longínqua, elevou-se um ulular prolongado, que parou de repente. Vivonne praguejou.

-        Os cães desses mouros que uivam para a lua!

La Brossardière, que era um velho navegador do Levante e conhecia os costumes árabes, disse:

— Eles urram de alegria. E o grito de vitória deles.

— De alegria? De vitória? Decididamente, os forçados estão bastante agitados esta noite.

Do posto de vigia da proa, desceu um ajudante.

-        Monseigneur, a sentinela-chefe acaba de subir o cesto do mastro principal... Pede-lhe que observe com sua luneta o lugar onde parece que fazem sinais...

De novo Vivonne assestou a luneta, e La Brossardière pegou o binóculo.

— Na minha opinião a sentinela tem razão - disse ele. - Fazem sinais do alto das montanhas Rigliano, do cabo Corso, sem dúvida para chamar a flotilha de pesca embaixo.

— Sim, sem dúvida - disse o almirante, incerto.

Um novo ulular cadenciado retiniu, partindo da mesma galera, que devia ser a La Dauphine.

Savary, que reaparecia, aproximou-se de Angélica e confiou-lhe um segredo.

-        Minha múmia encontra-se em segurança. Protegi-a com palhas e redes. Espero que resista. Notou que os mouros de La Dauphine manifestam uma súbita alegria? Os sinais de fogos na costa os preveniram.

Vivonne, que ouvira as últimas palavras, agarrou o velho pelo colarinho de seu peitilho à Luís XIII.

— Preveniram de quê?

— Não posso dizer, Monseigneur, ignoro o código desses sinais.

— O que é que o faz pensar que eram dirigidos aos mouros?

— São foguetes turcos, monseigneur. Notou os clarões azuis e vermelhos? Estou a par, monseigneur, porque fui pirotécnico do grão-mestre da artilharia, em Constantinopla; empregava-me para fabricar esses foguetes com pólvora e sais metálicos que queimam dando cores diferentes. O segredo vem da China, mas todo o Islã os utiliza. Foi por isso que pensei que só podia tratar-se de turcos árabes, que enviavam sinais a turcos ou árabes, e como não vej0 outros no horizonte senão os que se encontram em suas galeras...

_- Leva sua lógica longe demais, Mestre Savary - disse o duque com humor.

Um caíque iluminado por diias lanternas aproximava-se, e La Brossardière gritou-lhes que apagassem aqueles fogos de posição. Uma voz gritou no escuro:

— Monseigneur, temos problemas a bordo de la Dauphine. Os mouros da mézanie agitam-se vendo os fogos da montanha.

— São os mouros que pegamos naquele falucho que transportava prata clandestiaa?

— Sim, monseigneur.

— Eu devia ter desconfiado - observou o almirante, entre dentes.

— Um deles não pára de erguer-se sobre o banco, gritando encarnações.    

— O que diz ele?

— Não sei, monseigneur, ignoro o árabe.

— Eu sei - disse Sávary - e ouvi. Ele gritava: "Nossa libertação está próxima!" Foi a esses gritos do muezim que os outros responderam com os urros de alegria.

— Agarrem.esse cabeça de motim e executem-no!

— Na forca, monseigneur}

— Não. Não há tempo, e pendurá-lo na verga do mastro principal poderia excitar os outros fanáticos. Um tiro na nuca, e o cadáver ao mar.

O caíque afastou-se. Um pouco mais tarde ouviram-se duas detonações secas.

Angélica fechou a capa sobre o corpo. Sentia frio. A brisa se levantava subitamente. O almirante vigiava outra vez a costa, mas tudo ficara escuro.

-        Içar as velas e colocar na voga os três setores da prisão. Com sorte, estaremos diante da ilha de Caprera de manhã. Ali nos reabasteceremos de cabras, que existem em abundância na ilha, e também de água doce e laranjas.

Angélica imaginou que tivesse permanecido desperta, mas devia ter mergulhado num curto sono, pois de repente teve consciência de que amanhecia.

Na aurora, com transparências de nácar, erguia-se uma ilha. Contra um céu de ouro-claro e pervinca, era apenas uma massa de um azul espesso e turvo, refletindo-se no espelho quase imóvel do mar.

Angélica viu-se sozinha na tenda do tabernáculo. Alisou o vestido, ajeitou o cabelo e saiu para respirar o ar matinal. O estado-maior encontrava-se na proa. A jovem hesitava em atravessar a coxia, quando o Tenente de Millerand a percebeu e, muito amavelmente, veio buscá-la para escoltá-la.

O Duque de Vivonne, de excelente humor, estendeu-lhe a luneta.

-        Veja, senhora, como aquela ilha é acolhedora! Observe que nem há franja de espuma da ressaca ao pé daquelas rochas vulcânicas. Isso significa que nos aproximaremos na mais absoluta calma. Nenhuma dificuldade para acostar.

Angélica levou algum tempo para se habituar à luneta, depois soltou gritos de admiração, ao descobrir a enseada, nas profundezas arroxeadas, onde gaivotas faziam piruetas.

-        O que é aquela luz redonda e brilhante à esquerda? - perguntou.

Os oficiais se entreolharam. Mestre Savary disse placidamente:

— Outro foguete de sinalização. Somos aguardados...

— Preparar para combate! - urrou Vivonne no seu alto-falante. - Artilheiros, a seus postos! Forçaremos a passagem. Somos uma frota inteira, que diabo!

Apesar do vento, ouviu-se o ulular da galera La Dauphine, bem próximo da galera capitânia.

-        Calem essa escória!

Mas uma voz muito aguda dominava os outros ruídos, entoando notas que perfuravam os tímpanos:

- "La illa, ha - illa la Mohamedu, rassu lu-la Ali vali ula".

Por fim a calma se refez.

O Duque de Vivonne continuava a dar ordens.

-        Dar sinal de reunião. Nós nos agruparemos segundo a importância e a maneabilidade das embarcações. E preciso que a barca de passagem tente manter-se no centro, pois transporta nossas reservas de artilharia. Eu também ficarei no centro, não longe dela, para acompanhar os acontecimentos. La Dauphine e La Fortune na vanguarda. La Luronne na ala esquerda. As outras três na retaguarda, em semicírculo.

-        Estandarte sobre o rochedo - gritou a sentinela.

Vivonne mirou a luneta.

— Tem duas bandeiras. Uma branca, mas erguida a meio-pau. Portanto, é uma declaração de guerra, à maneira dos cristãos. Mas a outra bandeira é vermelha com,borda branca, e seu emblema... É curioso, parece que distingo os-íinzéis de prata do emblema do Marrocos. É... é inaudito!

— Compreendo o que quer dizer, monseigneur. Os berberes não costumam exibir seus pavilhões de antemão, e os mouros nunca utilizaram uma bandeira branca, que apenas os cristãos usam como sinal de guerra.

— Não compreendo nada - disse Vivonne, pensativo. - Pergunto-me com que espécie de inimigo lidamos.

Apesar do mar encapelado,,as galeras se aproximavam em fila, o velame reduzido, e íomeçavam a se agrupar em ordem de batalha, apontando para o rochedo que marcava a entrada da enseada.

Nesse momento, apareceram dois faluchos turcos. Eram antes barcos a vela, que tinham, porém, a vantagem de receber o vento de popa.

O almirante passou a luneta ao imediato, que, depois de olhar, ofereceu-a a Angélica. Mas esta já se servira do velho e longuíssimo binóculo salpicado de azinhavre que Mestre Savary havia retirado da bagagem.

-        Só vejo negros nesses barcos, e alguns mosquetes malévolos - disse ela.

-        É uma provocação e uma insolência!

Vivonne decidiu-se:

-        Encarregue La Luronne, a mais leve, de persegui-los e afundá-los. Esses imbecis nem têm artilharia!

La Luronne, avisada por sinais, lançou-se à caça dos dois faluchos. Pouco depois o canhão soou e seu estrondo ecoou na costa.

Angélica passou rapidamente o binóculo a Savary para tapar as orelhas com as duas mãos.       

Os dois faluchos não foram atingidos e corriam em alto-mar.

La Fleur de Lys e La Concorde, que os mantinham em sua linha de tiro, excitadas pela presa fácil, tomaram a iniciativa de mudar de curso, a fim de se aproximarem do alvo. O canhão soou de novo várias vezes.

-        Atingido!

A vela triangular de um dos faluchos deitara-se sobre as ondas. Em alguns segundos, o casco e a tripulação foram submergidos e desapareceram. Na crista das ondas apareceram algumas cabeças negras de sobreviventes. O outro falucho quis manobrar para chegar a eles, mas um tiro preciso de La Fleur de Lys e de La Concorde o desestimulou. Teve que fugir de novo.

-        Bravo! - exclamou o almirante! - Que as três galeras retomem posição rumo à entrada!

Os navios, bastante afastados, iniciaram a manobra, não sem dificuldade por causa do mar agitado. Seguiu-se certa confusão no dispositivo de batalha previsto.

Foi então que a sentinela berrou de seu posto:

-        Xaveco de guerra a estibordo. Avança sobre nós!...

CAPÍTULO XII

O combate naval contra o Rescator

À entrada da enseada, acabava de aparecer um navio de velas enfunadas. A grande velocidade, atravessou o estreito de rochedos.

-        Virar de bordo, dé face para o inimigo! - trovejou Vivonne.

- Tiro de três bocasrsob o meu comando. Fogo!

O grande canhão central recuou na coxia, com o choque. O odor de pólvora irritou as narinas de Angélica, atordoada pela deflagração. Através da fumaça, ouvia as ordens a suceder-se, claras, precisas.

— Morteiros de estibordo em posição.

— O xaveco nos ultrapassa.

— Tiro de todos os mosquetes e preparar para virar, em seguida para se recolocar no ângulo de tiro. Fogo!

A salva crepitou, rolando sobre os ecos ainda não extintos do canhão.

Mas o xaveco, que evitara as balas, ainda se encontrava a muita distância para ser atingido pelos mosquetes.

Savary olhava pelo seu binóculo, com a satisfação de um naturalista que examina uma mosca à lupa.

— Belíssimo vaso, madeira de teca do Sião. O valor dessa madeira é incalculável. É preciso cinco anos, depois de lhe haver circuncidado a casca, para retirar-lhe a seiva em pé, e depois sete anos para secá-la ao abrigo, antes de serrá-la. Bandeira branca no mastro principal e pavilhão do rei do Marrocos na popa, e uma marca especial, vermelha com um escudo de prata no centro.

— A marca de Monseigneur Rescator - disse Vivonne, amargo. - Poder-se-ia ter apostado.

O coração de Angélica deu um pulo. Tinha, então, à sua frente, aquele terrível Rescator, que causara a perda de seu filho e que os valorosos oficiais de Sua Majestade pareciam temer com justa razão. Vivonne e Brossardière trocaram impressões, seguindo atentamente as evoluções do inimigo.

-        Ele tem um navio novo, esse endiabrado Rescator. Uma linha esplêndida. Muito baixo sobre a água, mal alcança a mira de nossos canhões. Foi por isso que erramos há pouco, quando o tínhamos de frente. Vinte e dois canhões no total. Arre!

Pelas portinholas nos flancos do xaveco, viam-se faiscar as goelas redondas dos canhões, e as fumaças suspeitas que escapavam provavam que os artilheiros estavam a postos, prontos a acender as mechas à primeira ordem.

Bandeiras de sinalização cobnram-lhe os ovéns: "Rendam-se ou os afundamos".

-        Que insolente! Acha que a frota do rei da França se deixa intimidar assim? Ele está longe demais para nos pôr a pique. La Concorde se aproxima e logo o terá em sua linha de tiro. Içai a bandeira branca de guerra na proa e as flores-de-lis na popa!

Logo se viu o adversário modificar a rota. Pôs-se a descrever um arco, a fim de evitar as proas armadas de canhões, apontadas para terra e para leste. Safou-se muito depressa, todo o velame desfraldado. Soaram vários tiros de canhão. La Fleur de Lys e La Concorde, que haviam perseguido os faluchos-isca, voltavam e tentavam acertar o atacante.

-        Erraram! - constatou Vivonne, despeitado.

Serviu-se de alguns pistácios açucarados da caixa de confeitos.

-        Agora, adivinhemos. Ele virá em nossa direção e tentará afundar-nos. Preparar para virar, para nos apresentarmos de frente.

A galera fez uma evolução.

Durante alguns instantes, um pesado silêncio pareceu impor-se, e não se ouviu mais do que a batida ritmada dos gongos dos comi-tres, como as batidas surdas de um coração angustiado.

Depois, ao longe, a fragata corsária pôs-se em marcha, vindo na direção deles, exatamente como previra o almirante francês.

Passou como uma águia marinha e, levada pelo próprio impulso, viu-se bem à frente de toda a frota. Deteve-se subitamente e mudou de velame.

__ Excelente manobrista, esse pirata maldito! - resmungou La Brossardière. - Pena que seja um inimigo.

__ O momento me parece mal escolhido para admirar-lhe a habilidade, Sr. de La Brossardière - pbservgu secamente Vivonne. _ Artilheiros, recarregaram as armas?

— Sim, monseigneur.

— Então, toda a salva, a meu comando! Estamos de frente e ele nos apresenta o flanco. É este o momento.

Mas foi a salva dos doze canhões de estibordo do navio corsário que estrondejou.

Um gêiser pareceu irromper do mar, dissimulando o adversário por trás de uma cortina de espuma. Detritos de toda ordem ergueram-se aos ares e^uma explosão ensurdecedora repercutiu progressivamente. Depois um vagalhão rebentou sobre a prisão de La Royale, enquanto ^vários remos a bombordo quebravam-se como palitos de fósforo.

Encharcada, Angélica se viu agarrada à amurada da galera que se reerguia lentamente.

O Duque de Vivonne, que fora lançado ao chão, já estava de pé.

-Nenhum dano - disse. - Não nos acertou. Minha luneta, Brossardière! Agora acho que...

Parou e ficou boquiaberto, o rosto marcado por uma expressão de susto e incredulidade.

No local onde se encontrava há pouco a barca de passagem, não se via mais do que uma espécie de grande turbilhão levando consigo restos de pranchas e remos quebrados. O barco, com seus cem forçados, sua tripulação, e principalmente suas quatrocentas toneladas de balas, cartuchos e metralha, fora a pique.

-Toda a nossa reserva de munição! - exclamou Vivonne, atónito. - O bandido! Deixamo-nos lograr. Não era a nós que visava, mas à barca de passagem. Ao correrem atrás dos faluchos, as outras galeras a deixaram desprotegida."Mas nós o afundaremos...

Nós também o afundaremos. A partida ainda não está encerrada.

O jovem almirante arrancou o chapéu encharcado, a peruca ensopada de água, e atirou-os ao chão com violência.

-Que La Dauphine avance em primeira linha. Ela ainda não atirou, e sua reserva de munição está intacta.

O inimigo espiava de longe, manobrando sem sair do lugar, apresentando-se ora de frente, para oferecer um alvo menor, ora de bombordo, para que suas armas carregadas permanecessem prontas para atirar.

Bem rapidamente, La Dauphine se posicionou. Angélica notou que era naquele barco que se encontravam os presos cúmplices do Rescator, os que tinham cantado em árabe e cujo líder fora executado na noite anterior, e pensou consigo que não era muito prudente utilizar prisioneiros num combate de manobras difíceis.

Mal terminou sua reflexão, viu os longos remos dos forçados da mézanie erguer-se fora de tempo, depois embaraçar-se entre si. La Dauphine, que acabava de virar, vacilou, hesitou, tremeu como um pássaro ferido, e de repente tombou e soçobrou parcialmente sobre o flanco esquerdo. Ouviram-se clamores e estalos sinistros, dominados pelos gritos superagudos dos mouros.

-        Que cada galera desça seu falucho e seu caíque para levar socorro!

A manobra foi lentíssima. Angélica voltou-se, tapando os olhos com as mãos. Não podia mais suportar o espetáculo da galera virando lentamente. A maioria dos marinheiros e a totalidade dos presos estavam condenados a morrer sob o casco, esmagados ou afogados. Soldados lançados ao mar se debatiam, paralisados pelo seu pesado equipamento, sabres e pistolas, e pediam socorro.

Quando a jovem se decidiu a olhar novamente, viu desfraldar-se muito alto no céu dez velas brancas, que batiam ao vento. O xaveco estava agora no máximo duzentos metros da galera capitânia. Podia-se ver brilhar, como verniz, a madeira de seu casco bojudo, que singrava suavemente, e distinguiam-se os vultos morenos dos berberes, envoltos em grandes capas brancas com cintos de cor viva. Armados de mosquetes, guarneciam a amurada de proa a popa.

Na proa, rodeados de uma guarda de janízaros de turbante verde e sabres curvos, erguiam-se dois homens. Imóveis, observavam com atenção pelas suas lunetas a galera La Royale.

Angélica acreditou de início, apesar dos trajes europeus, que também fossem mouros, pois os rostos lhe pareceram escuros, mas percebeu-lhes as mãos brancas e compreendeu que estavam mascarados.

__ Veja - disse junto dela Vivonne, com uma voz surda -, o niais alto, vestido de negro com uma capa branca, é ele, o Rescator. O outro é seu imediato, chamado, ou melhor, apelidado de Capitão Jasão. Um aventureiro sujo, mas um bom marinheiro. Desconfio que seja francês.

Angélica estendeu uma mão trçmula para o binóculo de Savary.

Às lentes embaciadas do instrumento, os dois homens lhe pareceram mais nitidamente diferentes, tão diferentes quanto Sancho Pança e Dom Quixote, mas sua aparência não se prestava a sorrisos.

O Capitão Jasão era um homem baixo e gordo, vestido como militar, com uma casaca de bandas, afivelada por um grosso cinturão. O sabre enorme batia-lhe nas botas. Tudo nele contrastava com a silhueta longa e magra do pirata chamado Rescator, com um traje negro de corte espanhol, um pouco antigo. Usava botas muito justas com pequenas abas sublinhadas de borlas de ouro. Um lenço vermelholamarrado à corsário envolyia-lhe a cabeça, assim como um grande chapéu preto, de plumas também vermelhas.

No entanto, pela sua ampla capa de lã branca com bordados de ouro, que flutuava ao vento, via-se que era devoto do Islã.

Com um arrepio, Angélica pensou que ele se assemelhava a Mefistófeles. De sua presença emanava uma espécie de fascínio.

Fora assim, imóvel," impassível, que ele vira afundar nas ondas a galera onde uma criança erguia os braços chamando pelo pai?

-        Mas o que se espera para afundá-lo?! - exclamou ela, roída pela tensão.

Esquecia o espetáculo de horror à sua volta, com La Dauphine ainda tombada. A força de heroísmo, os marinheiros conseguiam mantê-la sobre o flanco, mas era evidente que nenhuma manobra poderia reerguê-la, apesar das bombas em ação.

Um caíque desceu pelo flanco do xaveco. Tocou as ondas, e o imediato do Rescator tomou lugar a bordo dele.

-        Pediram para parlamentar - disse Vivonne, surpreso.

Pouco depois o homem subiu a bordo e, apresentando-se diante dos oficiais, inclinou-se profundamente,"à oriental.

— Saúdo-o, senhor almirante - disse ele, num corretíssimo francês.

— Não saúdo renegados - respondeu Vivonne.

Um estranho sorriso abriu-se sob a máscara negra, e o homem se persignou.

— Sou cristão como o senhor, e meu amo, Monseigneur Resca-tor, também o é.

— Cristãos não devem dirigir tripulações de infiéis!

— Nossas tripulações são compostas de árabes, turcos e brancos. Exatamente como as sua.s, senhor - disse o outro, lançando um olhar à prisão. - A única diferença é que as nossas não estão acorrentadas.

— Basta de discursos, que propõe?

— Deixe-nos libertar e retomar nossos mouros, que estão prisioneiros nessa galera, La Dauphine, e nos retiraremos sem prosseguir combate.

Vivonne deu uma olhada na galera em perigo.

— Seus mouros estão condenados a perecer com aquela galera condenada.

— Não. Propomo-lhes reerguê-la.

— E impossível!

— Nós podemos. Nosso xaveco é mais rápido do que... do que esses patachos que são suas galeras - completou ele, com uma nuan-ce de desprezo na voz. - Mas decida-se depressa, pois o tempo urge, e em alguns instantes será tarde demais para agir.

Um combate se deflagrou na alma de Vivonne. Sabia que não poderia fazer nada em tempo por La Dauphine. Aceitar era salvar o magnífico barco e várias centenas de homens, mas capitular diante de um inimigo numericamente inferior. Enquanto responsável pela esquadra real, não tinha escolha.

— Aceito - disse, de dentes cerrados.

— Agradeço-lhe, senhor almirante. Eu o saúdo.

— Traidor!

-        Meu nome é Jasão - disse o homem com ironia.

Afastou-se em direção à escada. O Duque de Vivonne cuspiu-lhe sobre os passos.

-        Um francês, pois é francês, ninguém pode duvidar disso pela sua linguagem! Miserável! Como pôde chegar a renegar a esse ponto os seus?

O corsário voltou-se. Um clarão brilhou por trás da máscara.

-        Os meus me renegaram primeiro - disse.

Seu braço apontou duramente para a prisão:

— Remei nas galés do rei outrora, senhor, anos e anos. Todos helos anos de minha juventude. E não tinha feito nada de mau!

__ Naturalmente!

O bote afastou-se. O Duque de Vivonne, de punhos cerrados, não se continha mais. Ouvir ordens de um forçado evadido, ser insultado por um ex-forçado! "E o Rescator, que nos espia de longe, escarnecendo. Ele se diverte... ah, como se^diverte!"

_- Monseigneur, confia na palavra- de um ímpio? - perguntou um dos tenentes, tremendo de indignação.

__ O certo é que não lhe peço a opinião, jovem imbecil. As vezes um pirata tem mais palavra do que um príncipe. O que pensa, Brossardière?

— E uma troca inesperada, monseigneur, e bem ao estilo desse sinistro farsante. Eu não diria tanto se estivéssemos lidando como o almirante de Argel, Mezzo Morte, ou com capitães berberes, em geral bastante velhacos.

— Içar os galhardetes de parada e anunciar o armistício!

O xaveco avançou. Desfilou a poucas centenas de metros, sem receio de expor todo o flanco a estibordo, mas com os doze canhões assestados. .

-        Ele vai rápido demais, não vai conseguir, é uma armadilha!

- disse o Tenente de Saint-Ronan, agitado.

A fragata inimiga de repente inverteu o velame, o que a freou e a colocou em movimento em ângulo reto, bem atrás de La Dau-phine, em apuros; faluchos e caíques das galeras, finalmente na água, começavam a recolher os náufragos.

Uma grande animação reinava a bordo da fragata do Rescator. Respondendo às ordens, os mouros fixaram uma corda ao pé do mastro central, depois trouxeram um guindaste.

Em La Royale, os oficiais sustinham o fôlego, os soldados e os marinheiros permaneciam imóveis, como que petrificados.

O Rescator saíra de sua imobilidade desdenhosa. Viram-no falar longamente com seu imediato, descrevendo com gestos a manobra a seguir. Depois, a um sinal, um janízaro avançou e o desembaraçou de sua capa e chapéu. Outro estendeu-lhe a extremidade 'da corda enrolada várias vezes. Ele tomou o rolo sobre um ombro. De um salto flexível, knçou-se sobre o alcatrate de proa do xaveco, e com toda a naturalidade avançou alguns passoj ao longo do gurupés.

Enquanto isso o imediato se dirigia pelo alto-falante ao capitão de La Dauphine.

— Ele recomenda a Tourneuve que desça a âncora na proa, a fim de evitar que o navio rodopie quando o xaveco começar a pu-xar. Aconselha levar todo o peso possível para estibordo, depois retornar rapidamente para bombordo, assim que a galera começar a se reerguer, a fim de não balançar do outro lado...

— Acredita que esse demónio negro tenha a intenção de atirar o cabo como um laço, à maneira índia, para engatar o flanco direito de La Dauphine?

— É o que me parece.

— E impossível! Essa corda deve ter um peso enorme. Seria preciso a força de um Hércules para...

— Olhe!

A longa silhueta se distendera bruscamente sobre o azul do céu. O cabo silvou, e seu nó corrediço, ao cair, agarrou-se a uma protuberância no meio de La Dauphine, a estibordo.

Levado pelo próprio impulso, o mascarado perdeu o equilíbrio. Escorregou do gurupés, mas susteve-se com os dois braços e, com uma agilidade de macaco, pôs-se a cavalo sobre o mastro, aprumou-se. Verificou a firmeza do cabo. Depois, em pé, com o mesmo passo negligente, voltou ao xaveco.

Irromperam gritos de vitória a bordo do xaveco. Em sinal de alegria, os mouros atiravam os mosquetes para o ar.

La Brossardière soltou um fundo suspiro.

— Um bufão do Pont Neuf não teria feito melhor.

— Admire! Admire, meu caro - escarneceu Vivonne, amargo. - Você tem aí papa-fina para a sua pequena crónica do Mediterrâneo. A lenda de Monseigneur Rescator não está em vias de carecer de alimento.

Enquanto isso, o xaveco orientava suas velas de maneira a recuar suavemente. Marinheiros negros e turcos correram sobre a ponte e colocaram no lugar seis grandes remos, para sustentar o esforço do arranco do vento.

O cabo se distendeu. Todos os homens que se encontravam ainda na galera sinistrada passaram para estibordo, fazendo peso sobre a amurada do lado onde estava presa a amarra.

O flanco submerso surgiu bruscamente das ondas, com um grande ruído de sucção. A um grito de Tourneuve, toda a tripulação precipitou para a direita, para estabelecer o equilíbrio.

Reerguida, La Dauphine girou violentamente de bordo a bordo, depois acalmou-se, estabilizou-se. Elevou-se"uma última ordem, como um grito de redenção:

_ Às bombas, todo mundo a despejar água!

Então ergueram-se aclamações das outras galeras.

Pouco depois o caíque do navio corsário desceu novamente para se dirigir a La Dauphine.

-        Eles levam consigo uma forja portátil e todo um material de ferreiro. Vão tirar os ferros dos prisioneiros.

A operação durou bastante tempo. Viram-se, enfim, aparecer os forçados árabes libertados, que foram seguidos de uma dezena de turcos escolhidos efttreos rnais vigorosos.

O Duque de Vivonfle voltou-se sobre a coberta:

-        Traidores, piratas", cães infiéis! - berrou ele no alto-falante.

- Não respeitam seus compromissos. Só tinham falado de libertar os mouros. Não têm o direito de tomar esses turcos!

O Capitão Jasão respondeu:

— Tomamo-os como preço de sangue pelo mouro que mandaram executar.

— Monseigneur, controle-se, é preciso fazer-se uma sangria - propôs La Brossardière. - Vou mandar chamar o cirurgião.

— O cirurgião tem outras coisas a fazer que me sangrar - respondeu o jovem almirante, melancólico. - Que se contem os mortos e os feridos.

Ao longe, com todas as velas enfunadas, o xaveco do pirata se perdia.

CAPÍTULO XIII

A revolta dos forçados - Angélica nas mãos deles - O fim de Nicolau Calembredaine

O Duque de Vivonne desceu para o bote e ergueu a cabeça, sorrindo.

-        Até breve, caríssima. Encòntro-a dentro de alguns dias em Malta. Reze para que minhas armas triunfem.

Inclinada sobre a amurada, Angélica se esforçou por sorrir. Soltou o cinto de seda azul com franja dourada e lançou ao jovem.

— Como penhor de vitória, para a sua espada!

— Obrigado! - gritou Vivonne, enquanto o caíque se distanciava.

Beijou a faixa e amarrou-a ao copo da espada. Depois fez mais um alegre sinal de adeus.

Angélica disse a si mesma que era tolice sentir-se deprimida com a separação. Vivonne decidira perseguir o Rescator e tentar encurralá-lo nos arredores de Malta, onde as galeras dos cavaleiros de São João de Jerusalém poderiam prestar-lhe assistência. A galera capitânia, La Royale, era pesada demais e de difícil manejo para uma caça do género. Ele passou para La Luronne, deixando seu navio e Angélica sob a guarda de La Brossardière e alguns soldados. La Royale devia seguir mais lentamente e em pequenas etapas rumo a La Valette, assim como La Dauphine, que precisava reparar avarias.

As galeras de combate se alinharam, depois desapareceram, logo encobertas pela cortina cerrada de um aguaceiro que avançava rapidamente de sudoeste.

Angélica refugiou-se no tabernáculo, enquanto a chuva se abatia sobre La Royale, vivamente balançada.

_ Depois dos piratas, é o mar que nos vai causar aborrecimen-roS - disse La Brossardière.

__ É uma tempestade?

__ Ainda não, mas não vai demorar.

A chuva parou. Mas o céu permaneceu cinzento, e o mar, muito agitado. A atmosfera era sufocante, apesar do vento úmido que soprava de maneira irregular.

A conversa do bravo Savary e do Tenente de Millerand, que se degelava um pouco, agora que Vivonne - do qual era furiosamente ciumento - se afastara, não evitavam que Angélica morresse de tédio.

-        Que vim fazer nesta galera? - disse ela a Savary.

E sorriu tristemente, pensando em Versalhes, em Molière e nas truanices dele.     

Ao cair da noite, o Sr."de La Brossardière aconselhou-a a fechar-se na cabina, sob a entíêcoberta. Ela não teve coragem e disse que só desceria se a situação na popa se tornasse insustentável.

Os violentos sobressaltos que faziam a galera arfar e ranger acabaram por embalá-la, e apesar do vento que se levantara e das marradas dos vagalhões contra o casco, ela caiu num sono profundo.

Despertou como de um pesadelo. A escuridão era de breu.

Permaneceu um momento soerguida sobre o leito, com a impressão de que alguma coisa de anormal acontecia. A galera continuava a jogar violentamente, mas o vento parecia ter-se acalmado.

De repente, ela entendeu o que a despertara. Fora o silêncio. Os gongos dos comitres se haviam calado. Reinava a bordo o silêncio mais completo. Dir-se-ia que a galera, desertada, não era mais do que um destroço, vagando ao sabor das ondas.

O pânico invadiu a jovem.

-        Sr. de La Brossardière! - chamou.

Nenhuma resposta.

Ela se levantou e, mantendo-se em pé rorn grande dificuldade, deu três passos hesitantes. Tropeçou numa coisa mole, e quase caiu. Angélica inclinou-se. Sua mão encontrou os bordados de um uniforme. Agarrou o ombro do homem estendido no chão e o sacudiu violentamente:

-        Sr. de La Brossardière, acorde!

Ele permaneceu numa estranha apatia. Febril, a mão de Angéljl ca tateou, procurando o rosto.

O contato com algo gelado lançou-a para trás, aterrorizada. I

Ergueu-se para ir buscar sua sacola, que tinha sempre ao alcance da mão, perto do leito. Encontrou sua pequena lanterna de via.; gem e bateu o isqueiro para acendê-la. Um sopro de vento diabólico apagou-a três vezes. Finalíhente conseguiu descer o vidro avermelhado sobre a chama e passear a claridade a seu redor.

O Sr. de La Brossardière estava estendido no chão, recurvado sobre o lado do corpo. Seus olhos já estavam vidrados e um medonho ferimento sanguinolento rachava-lhe a testa.

Angélica passou por cima dele e se aproximou da soleira. Ali, novamente, esbarrou num corpo, caído de atravessado. Um soldado, também ele morto a pancadas. Com todo o cuidado ela ergueu a cortina e olhou. Na obscuridade, distinguiu clarões que vinham da prisão. Silhuetas moviam-se sobre a coxia, mas já não eram as dos vigias com os longos chicotes. Viu formas vermelhas ir e vir, enquanto lhe chegavam aos ouvidos interjeições de vozes roucas.

Angélica deixou a cortina cair e recuou até o fundo da tenda, indiferente aos respingos que por um instante a salpicaram quando uma onda mais forte atingiu a popa.

O pânico a invadia. Compreendia agora por que os gongos se haviam calado.

O deslizar de um pé descalço sobre a prancha a fez erguer-se, à espreita. E Nicolau apareceu na entrada, em seu uniforme vermelho de forçado. Sob os cabelos hirsutos, com uma barba suja no rosto, ele tinha o mesmo olhar e o mesmo sorriso terrível que outrora a haviam assustado, quando ele a espiava por trás dos vidros da taberna. Quando falou, suas palavras, incoerentes e delirantes, prolongaram o pesadelo.

-        Marquesa dos Anjos... minha beldade... meu sonho... Você me vê! Por você, quebrei as correntes... Um golpe no comitre... Um golpe no vigia. Ah, ah! Voou pancada para todo lado... Fazia muito tempo que preparávamos isso... Mas foi você que desencadeou tudo... Vê-la, aqui... Viva! Como a vi gravada no céu, durante dez anos de galés... E você estava com o outro, hein!... Você o beijava, o acariciava... Eu a conheço!... Levou sua vida enquanto eu levava a minha... Foi você quem ganhou... Mas não sempre.

A roda gira. Ela a trouxe de volta...

Avançava, estendendo para ela os punhos_pnde uma'marca em carne viva mostrava o vestígio das cadeias que há longos meses ele vinha pacientemente limando. Nicolau Calembredaine tentara duas evasões durante seus anos de galés. A terceira teria êxito. Ele e seus cúmplices haviam matado toda a tripulação, os soldados, os oficiais. Eram os senhores da galera.

-        Não diz nada... Tem medo?... No entanto, tive-a nos braços e você não tinha medo de muita coisa naquele tempo!

Um relâmpago rasgou o céu lá fora, e o estrondo do trovão ecoou na noite.

-        Não me reconhece? - insistia o forçado. - Não é possível... Tenho certeza de que -me reconheceu já no outro dia.

Ela sentiu o cheiro de-sal e suor dos andrajos dele e gritou, subitamente transtornada:

— Não me toque! Não me toque!

— Ah, você me reconheceu. Diga-me quem sou.

— É Calembredaine, o bandido.

— Não, sou Nicolau, seu amo da Tour de Nesle...

Uma onda súbita lavoua tenda, afogou-os a ambos, e Angélica foi obrigada a se agarrar à amurada para não ser arrastada pelo refluxo.

Fora, um estalo sinistro respondeu ao estrondo enlouquecedor do trovão.

Um jovem forçado apareceu à soleira, assustado.

-        Caíde, o mastro principal se partiu. O que é que se deve fazer?

Nicolau sacudiu a roupa encharcada, blasfemando.

— Bando de palermas! - rosnou -, se não sabem o que se deve fazer, por que me pediram que sangrasse todos os marinheiros? disseram que sabiam manobrar no mar.

— Mas já não há velas.

— Grande coisa! Rema-se! Vamos recolocá-los ao trabalho, os que ainda estão acorrentados aos bancos. Você vai bater os gongos e eu me encarrego de fazê-los avançar, todos esses hereges e esses pardos!

Saiu, e pouco depois a cadência monótona dos gongos reiniciou-se, dominando os uivos da tempestade. A galera, que durante um momento interminável parecera enlouquecida, inclinando-se para o lado onde jazia o mastro tombado, recuperou o equilíbrio quando com algumas machadadas Nicolau cortou a madeira que retinha o mastro, arrastado para fora por um vagalhão. As bombas entraram em ação, e os remos lutaram para reerguer a proa.

Agora que o pesadelo se definira, Angélica reencontrara seu sangue-frio. Já lhe acontecera na vida de morrer de medo, mas quando a tensão ultrapassava as medidas, eram a raiva e o espírito de luta que assumiam o comando nela.

Seu vestido encharcado colava-se-lhe às pernas e a paralisava. Movendo-se com dificuldade, chegou até a sacola, abriu-a, tirou roupas e, aproveitando-se de uma calma momentânea e depois de várias tentativas, conseguiu tirar o vestido e a roupa de baixo molhados. Prevendo que sua aventura poderia ser movimentada, ela trouxera, para qualquer eventualidade, um traje masculino de tecido cinza, que enfiou como pôde. Com as pernas torneadas pelos calções, a cintura apertada na roupa abotoada até a gola branca, ela sentiu-se mais à vontade para enfrentar os naufrágios... e os forçados. Enfiou botas, amarrou vigorosamente os cabelos e os prendeu sob um chapéu de feltro cinza. Teve ainda a presença de espírito de reabrir a sacola, pegar todo o ouro que lhe restava, bem como suas letras de câmbio, e prender tudo na cintura. Tudo isso se fez em meio a um desgastante balanço da nave; intermitentemente o soalho era varrido pelas ondas, e o corpo do infeliz La Brossardière deslizava de um lado para outro, arrastado num lúgubre movimento de águas.

-        Angélica! - berrou Nicolau, reaparecendo.

Ele percebera aquela silhueta de rapaz e não compreendera nada.

— Ah, é você! - disse com alívio. - Imaginei que você tivesse caído de bordo, quando não a vi mais com seu vestido.

— Cair de bordo. Não vai demorar muito para isso acontecer se esta dança continuar.

As tapeçarias se rasgaram, e o vento precipitava-se uivando.

-        A coisa vai mal - resmungou o homem -, acho que vamos direto rumo à costa.

Um velho forçado de barba branca e cego de um olho o acompanhara.

— Daqui se vê bem - disse ele, inclinando-se na popa na noite demente -, ali... Lá, veja as luzes que se movem... Há um porto, digo-lhe... Temos que nos refugiar ali.

— Você está louco! Cair novamente nas mãos dos beleguins!

— É um pequeno porto de pescadores. Ficarão com medo de nós e se manterão tranquilos. Só ficaremos lá até que o mar se acalme... Se não tentarmos penetrar lá, vamos nos arrebentar contra os rochedos como gravetos.

— Não estou de acordo.

— O que é que propõe, então, caíde?

— Que nos aguentemos no mar até o tempo se acalmar.

— É você quem está louco, caíde! Esta velha banheira não resistirá.

— Vamos submeteria ideia a votação. Venha - disse ele, agarrando Angélica pelo braço. - Vai abrigar-se na entrecoberta. Aqui você será levada péla água. Não quero que os peixes a comam. Você é para mim...

Nas trevas, mais se adivinhava do que se via a desordem da galera desmantelada. A prisão estava cheia de água até a metade. Sob os chicotes dos companheiros da véspera, os forçados estrangeiros - russos, mouros e turcos - remavam selvagemente, às vezes soltando gritos desesperados e aterrorizantes.

Onde estava Mestre Savary? Onde estava Flipot?

Nicolau colocou-se de novo ao lado de Angélica.

-Todos eles querem chegar ao porto que se vê ao longe -gritou-lhe ele. - Eu, não. Com alguns outros, vamos descer o falucho e sumir. Venha, Marquesa.

Ela tentou escapar-lhe, entrevendo a salvação naquele refúgio da galera revoltada ao abrigo de um porto. Mas ele a agarrou, ergueu-a nos braços e levou-a para o falucho.

A embarcação dançava sobre as cristas das vagas como uma casca de noz, quando o dia se abriu. Logo o céu ficou muito claro. As nuvens haviam desaparecido. Mas o mar continuava violento e verde, empurrando com furor para o litoral aqueles homens frágeis que durante horas ousaram afrontar-lhe a cólera.

-        Que Deus nos valha e cada um por si! - gritou Nicolau, quando as falésias vermelhas se ergueram próximas e ameaçadoras.

Os forçados pularam na água.

— Sabe nadar? - perguntou Nicolau a Angélica.

— Não.

— Venha assim mesmo.

Lançou-se à água com ela, esforçando-se por manter-lhe a cabeça acima das ondas.

Ela engoliu um grande jato de água salgada, sufocou. Uma onda arrancou-a de Nicolau e levou-a para a margem numa velocidade de cavalo foragido. Ela sentiu o choque duro dos rochedos e se agarrou com uma força sobre-humana. O mar a deixou, recuando torrencialmente. Angélica arrastou-se um pouco mais para cima. O galope louco a atingiu de novo; a água submergiu-a em sua mortalha fria, deixou-a, atingiu-a outra vez. Mas a cada intervalo ela se arrastava um pouco mais. Por fim sentiu o peso do corpo, que se içava tão pesado como se se tivesse transformado em chumbo, sobre a areia de uma praia. Mais! Mais um pouco!... Angélica encontrou um ninho de areia e ervas secas, enroscou-se ali e desmaiou.

O primeiro pensamento de Angélica foi pueril. Abriu os olhos, viu o céu azul e duro, e pensou com temor que, durante toda aquela noite terrível, nem por um instante lhe ocorrera recomendar a alma a Deus.

O esquecimento a aterrorizou, como se descobrisse em si um mal escondido. Mortificada, não ousava reparar o erro agradecendo à Providência por conceder-lhe novamente a vida naquela manhã. Ergueu-se com dificuldade, um pouco nauseada devido a toda a água salgada que engolira durante o naufrágio, e sobressaltou-se. A Providência merecia que lhe agradecesse? A alguns passos, ela acabava de perceber os forçados, reunidos em torno de uma fogueira na praia.

O sol estava alto no céu, e o calor incandescente secara-lhe no corpo a roupa encharcada, secara-lhe até os cabelos. Mas estes estavam cheios de areia, e a pele queimada do rosto lhe ardia.

Tinha as mãos arranhadas.

Pouco a pouco os sentidos lhe voltaram, a audição depois da visão. Ouviu as vozes ásperas dos forçados. Eram dez. Dois deles cozinhavam alguma coisa ao fogo, mas os outros estavam de pé, num círculo, e o tom era de discussão.

-        Não, assim não dá, caíde - gritou um sujeito alto, louro e desengonçado; - nós o seguimos em tudo o que disse que fizéssemos. Respeitamos a lei com você. Agora você tem que respeitá-la conosco.       .        „.

Nicolau estava de costas, e Angélica não lhe ouviu a resposta. Mas os forçados protestaram, Veementes.

— Você é que diz que ela já lhe pertencia antes!

— Não nos convencerá... É uma grande dama, o que é que teria feito com um miserável de sua espécie?

— Está tentando nos enganar, caíde. Não está certo.

— E mesmo que seja verdade o que ele conta, não adianta. A lei de Paris é uma, a das galeras é outra.

Um velho, franzino, desdentado e calvo como um ovo, disse, levantando o dedo; -

— Você conhece o ditado do Mediterrâneo: "A presa é do alcatraz, o butim do pirata, e a mulher é de todos".

— De todos, de todos! - vociferaram os demais, aproximando-se, ameaçadores, do chefe.

Angélica alçou os olhos verdes para o cume da falésia. Era preciso tentar ganhar o matagal e talvez esconder-se entre os arbustos ou os pequenos bosques de sobreiros que coroavam a margem. Certamente a região era desabitada. Mas haveria pescadores que lhe ofereceriam proteção.

Levantou-se com precaução, colocou-se de joelhos. Se eles resolvessem lutar, seria tempo ganho.

Mas a querela pareceu acalmar-se. Uma voz disse:

-        Está bem assim, então, quanto a isso não se pode dizer nada.

Você é o chefe, tem o direito de se servir primeiro... Mas deixe para os outros...

Uma gargalhada grosseira saudou as palavras. Angélica viu Nicolau vir a grandes passadas em sua direção. Esboçou um movimento de fuga, que ele não notou. Conxtrês pernadas, alcançou-a e agarrou-a pelo pulso. Seus olhos luziam selvagemente, seus lábios^ se arreganhavam sobre dentes enegrecidos pelo tabaco. Estava tao absorto em seu furor, que não percebeu o recuo dela e, quase -orrendo, arrastou-a pelo rústico caminho de cabras que subia para a falésia. Os risos e os chistes obscenos dos forçados que haviam ficado na praia os perseguiam.

— Aproveite seu tempo, caíde, mas não nos esqueça... Para nós também, está ficando urgente!

— Pois sim - rosnou Nicolau -, pois sim que eu a deixaria... Ela é minha!... Minha!...

Atirou-se entre os calhaus e as plantinhas secas do matagal, arrastando-a, enquanto o vento os atingia com violência e batia os cabelos de Angélica sobre seu rosto, como um estandarte, uma cegante mecha de seda.

-        Pare! - gritou ela.

O forçado continuou correndo.

-        Pare, não aguento mais!

Ele a ouviu finalmente, estacou e olhou à volta, como se acabasse de despertar.

Haviam seguido pela beira da falésia e agora tinham o mar a seus pés, de um azul quase negro, contra o céu de um azul diferente, onde as gaivotas traçavam arabescos brancos.

O ar vivo e odorífero atingiu-os e sufocou-os.

O forçado evadido pareceu de súbito dar-se conta daquela imensidão.

-        Tudo isso - murmurou -, tudo isso para mim...

Soltou a mão de Angélica para abrir os braços e respirar a plenos pulmões, estufando o peito e os ombros que o trabalho nos remos tornara ainda mais largos. Sob a roupa vermelha, seus músculos desenharam-se nodosos e duros.

Angélica deu um salto para o lado e se pôs em fuga. Ele rugiu:

-        Volte! - e lançou-se à caça.

Ao alcançá-la, ela o enfrentou, de garras distendidas como uma gata encolerizada.

-        Não se aproxime... não me toque...

O brilho de seus olhos era tão fulgurante, que ele se imobilizou.

— O que foi que lhe deu? - resmungou ele. - Não quer que eu a abrace? Depois de tanto tempo? Não quer que eu a acaricie?...

— Não.

As sobrancelhas do homem se franziram. Dir-se-ia que as palavras penetravam-lhe no espírito com dificuldade e que ele tentava entender. Quis agarrá-la de novo, mas ela esquivou-se. Ele soltou um grunhido desapontado.

— O que foi que lhe deu? Não pode fazer-me isso, Angélica! Faz dez anos que não sei o que é mulher. Não pude tocar em nenhuma, mal pude ver uma mulher... E você veio, está aqui, você... Quebro tudo para ir ao seu encontro, para arrancá-la ao outro... E não terei o direito de tocá:la?

— Não.     

Os olhos negros do forçado vacilaram como sob uma brusca alucinação de loucura. Saltou sobre eia, conseguiu apanhá-la, mas Angélica o arranhou com tamanha ferocidade, que ele tornou a largá-la, olhando como idiota os sulcos sangrentos que inchavam na superfície de seu braço.

— O que foi que lhe deu? - repetiu ele. - Não me reconhece, minha bela? Não se lembra, então? Você dormia a meu lado na Tour de Nesle... Eu a tomava nos braços, fazia amor, tanto quanto queria, tanto quanto você queria... Não foi em sonho! Isso existiu... Diga: não é- verdade que éramos da mesma região, que eu só queria a você, desde sempre... que você me quis na sua noite de núpcias... E verdade tudo isso, não é? Foi a você que sempre amei... Então não se lembra?... Nicolau, seu amigo Nicolau... que lhe colhia morangos...

— Não, não! - gritou ela, fugindo desesperada. - Nicolau morreu há muito tempo. Você, você é Calembredaine, o bandido. A você eu detesto!

— Mas eu te amo! - urrou ele.

Dispararam na corrida, ele perseguindo-a através dos sarçais, dos arbustos espinhosos que os espetavam ao passarem. Angélica tropeçou num toco, caiu. Nicolau pulou-lhe em cima. Mas ela já se erguera. Ele teve que segurá-la com força, enquanto ela se debatia, martelando-lhe o rosto com os punhos.

-        Mas eu te amo - repetia ele, desvairado. - Sempre a quis, nunca me cansei de você... Anos e anos a morrer de desejo naquele banco... Repetia sempre, sempre, voltava a tomá-la nos braços em sonhos... E agora não posso mais esperar...

Tentou tirar-lhe a roupa, mas o traje masculino que Angélica usava não lhe facilitava a tarefa. Ela continuou a defender-se com uma força sobre-humana. Ainda assim, ele conseguiu rasgar-lhe a gola e desnudar-lhe o peito.

-        Deixe-me possuí-la - suplicava ele. - Tente compreender...Tenho fome... Estou morrendo... Estou morrendo de fome por você...

E foi uma luta insana e terrível, entre os tufos de zimbros e mirtos e as violentas lufadas de vento...

Bruscamente o forçado foi como que arrancado ao solo e proje-tado no chão a alguns passos.

Um homem acabava de surgir dos espinheiros. O uniforme azul rasgado deixava ver-lhe os ombros e o peito marcados de contusões, tinha o rosto inchado e manchado de sangue seco, mas Angélica reconheceu o jovem Tenente de Millerand.

Nicolau, que se levantava, também o reconheceu.

— Oh, senhor oficial! - fez ele, zombeteiro -, então ainda não estava bom para ser comido pelos peixes quando o atiraram ao mar? Pena que eu mesmo não me tenha encarregado da tarefa. Não estaria aqui a nos en...

— Miserável! - rosnou o jovem. - Vai pagar pelos seus crimes.

Nicolau pulou-lhe em cima, mas um punho vigoroso o mandou de volta ao chão. O forçado rugiu de cólera e atacou outra vez. Durante minutos inteiros os golpes ressoaram, cerrados e mortíferos. Os dois homens tinham mais ou menos o mesmo tamanho e a mesma força. Em várias ocasiões o oficial do rei também mordeu o pó. Por vezes Angélica achou que ele não se levantaria de novo. Inclinado sobre ele, Nicolau o martelava selvagemente. Mas com um movimento ágil, o tenente voltou-se e atingiu com o pé o estômago do adversário. Um segundo depois, estava em pé. Outro murro, no ventre, fez Nicolau empalidecer sob a barba. Dobrado em dois, ele fraquejava.

-        Verme! - grunhiu. - Você se alimentava, comia verdelhas, enquanto eu me encharcava com a sopa de favas das galeras...

Implacável, o Tenente de Millerand atingiu-o no rosto. Nicolau recuou mais. Então os golpes se sucederam numa saraivada.

Nicolau continuava recuando, titubeando, em direção à borda da falésia.

-        Não! - gritou Angélica.

De repente Nicolau perdeu o pé. Pendeu para trás, contra o azul do céu.

O grito agudo de Angélica acompanhou-lhe a queda através da luz ofuscante, até o choque contra os rochedos púrpura da margem.

O Tenente de Millerand enxugou a testa.

— Fez-se justiça - disse.

— Ele está morto - gritou Angélica -, oh, desta vez morreu mesmo! Oh, Nicolau! Oh, desta vez você não voltará mais...

— Sim, está morto - repetiu o oficial. - O mar já o leva.

Atordoado pelo combate que acabava de travar, ele não compreendia aqueles gritos e aquele sofrimento que a fez cair de joelhos, na beira da falésia, torcendo, ás mãos.

-        Não olhe, senhora, é inútil.;Ele morreu. Não tema mais nada. Mas venha, e cale-se, por favor. É preciso não chamar a atenção dos outros bandidos.

Ajudou-a a levantar-se e, a passos de sonâmbulo, os dois se afastaram do trágico lugar.

CAPITULO XIV

Os saqueadores de destroços

Após uma longa marcha seguindo a costa deserta, avistaram enfim o torreão negro de um castelo, construído sobre um promontório.

- Deus seja louvado! - murmurou o Tenente de Millerand. - Pediremos hospitalidade ao senhor desse feudo.

O jovem oficial não aguentava mais. Tinha atrás de si uma noite extenuante, que passara a nadar em água gelada durante horas mortais, lutando para não adormecer, lutando contra a cãibra, o desânimo. Ao amanhecer finalmente percebera o litoral e ali desfalecera. Ao voltar a si, procurara alguns moluscos para matar a fome. Depois tentara ganhar o interior, para procurar socorro.

Foi então que ouviu gritos de mulher e acorreu ao local onde Angélica lutava com Nicolau.

Dominado pela cólera à vista do criminoso, o cabeça de motim que custara a vida de seus camaradas, o Sr. de Millerand reencontrara vigor suficiente para vingar-se. Mas levara alguns golpes violentos durante a luta e se sentia esgotado.

O estado de Angélica não era muito melhor. A sede consumia a ambos.

A vista do castelo tranqúilizou-os, e apressaram o passo. A região selvagem e desabitada já parecia animar-se. Distinguiram numa praia ao longe silhuetas humanas, e numa curva do carreiro apareceu um bando de cabras, pastando pacificamente a erva baixa.

O Tenente de Millerand olhou-as. De repente franziu o cenho e puxou Angélica para trás de um rochedo, fazendo-lhe sinal para que se deitasse no chão.

— O que foi?

— Não sei... Mas essas cabras me pareceram suspeitas.

— O que é que há com elas?

— Eu não me surpreenderia se em certas* noites de tempestade fossem levadas para passear à heira-mar com uma lanterna ao pescoço.

— Que quer dizer?

Ele colocou um dedo sobre os lábios, arrastou-se até a borda da falésia e, depois de observar um instante, fez sinal a Angélica para que se aproximasse.

-        Não me enganei - cochichou. - Olhe.

Abaixo deles abria-se uma grande enseada, dominada pela massa escura do castelo. Os destroços de um navio naufragado flutuavam entre os rochedos, emergindo àquela hora. Mastros, remos, velas, pedaços de amurada dourada, barricas rolando na ressaca, pranchas, entrechocavam-se, batidos pélas ondas, e por toda parte, entre o fluxo e o refluxo das águas, viam-se corpos boiando. Outros cadáveres, lançados sobre os rochedos, refletiam na água tranquila das poças seu infame uniforme vermelho. Na praia, por entre os pios agudos e os turbilhões de aves marinhas, homens e mulheres iam e vinham, armados de fisgas, para puxar tudo o que boiava. Outros, nos rochedos, devolviam os afogados ao mar.

Outros ainda, em pequenos barcos, faziam-se ao mar, rumando até a volumosa carcaça do barco estripado, empalado à entrada da enseada sobre rochas pontiagudas.

— São provocadores de naufrágios, saqueadores de destroços - murmurou o oficial. - Penduram lanternas ao pescoço de suas cabras à noite. Os navios em apuros acreditam ver brilhar as luzes de um porto, seguem na direção das luzes e se arrebentam contra os rochedos do estreito.

— Os forçados, naquela noite, perceberam luzes e quiseram manobrar para se refugiar aqui.

— Custou-lhes caro. Mas o que dirá"ò"S'f.'de Vivonne ao saber da perda de sua galera capitânia? Pobre Royale!

— O que faremos?

A aparição silenciosa, atrás deles, de uma dezena de homens de pele crestada, dispensou o tenente de responder.

Os causadores de naufrágios ataram-lhes as mãos às costas e os conduziram até o Signor Paolo di Visconti, que, de seu torreão de pedra vulcânica, reinava sobre a região.

Era um genovês de corpo atlético, uma musculatura que parecia prestes a romper-lhe o gibão de cetim, e cujo sorriso fascinante e olhar feroz traíam uma mentalidade de salteador. Aliás, era exatamente o que era, sobre o seu rochedo solitário, entre seu punhado de vassalos corsos, selvagens é ariscos.

Regozijou-se em altos brados ao ver os dois prisioneiros que lhe traziam. O butim de uma velha galera e alguns miseráveis forçados lhe parecera magro.

-        Um oficial de Sua Majestade, o rei da França! - exclamou. - Penso que tem uma família que o ama muito, signor, uma família que tem muito dinheiro? Dio mio! Che bello ragazzo! Meu Deus! Que belo rapaz! - exclamou, passando pelo queixo de Angélica uma mão tão carregada de anéis quanto ensebada.

O Tenente de Millerand apresentou, rígido:

— A Sra. du Plessis-Bellière.

— Uma mulher! Madona! Ma guarda che carina! Che bella ragaz-za! Minha Nossa Senhora! Mas olhem que bonita! Que bela moça! Gosto muito dos jovens, mas uma mulher, é mais raro!

Por ele o Tenente de Millerand ficou sabendo que a tempestade os arrastara para a costa da Córsega, ilha selvagem e abandonada, na ocasião sob a jurisdição dos genoveses.

Em consideração aos títulos deles, o italiano convidou-os para jantar. Sua hospitalidade oferecia uma curiosa mistura de luxo e de rusticidade. As toalhas de renda que cobriam as mesas eram verdadeiras maravilhas, mas não havia garfos e mal havia algumas colheres de estanho, para servir. Foi preciso comer com os dedos, num prato de prata assinado por um célebre ourives de Veneza.

O Duque de Visconti mandou servir aos náufragos desfalecen-tes um leitão grelhado, deitado num leito de castanhas e funcho. Depois os criados trouxeram uma grande panela dé estanho, cheia de uma sopa dourada de açafrão onde revolviam massas e queijo cozido.

Apesar de suas apreensões, Angélica comeu com avidez. Cobiçando-a com olhos incendiários, o genovês servia-lhe copiosamente, numa taça de prata dourada tão adornada quando um cálice de missa, um vinho negro e licoroso, que não tardou em colocar-lhe as faces em fogo.

Saciada a fome, Angélica lançava olhares de pânico ao Tenente de Millerand. Ele entendeu e veio-lhe em socorro.

-        A Sra. du Plessis está muito cansada. Será que não poderia

repousar um pouco num lugar tranquilo?

— Cansada? La signora é sua caríssima, signor?

O rapaz corou até a raiz do cabelo.

— Não.

-        Ah, fico muito satisfeito! Respiro - exclamou o genovês, abrindo uma mão em leque sobre o coração. - Não gostaria de fazê-lo sofrer... Ma... está tudo bem.

Voltou-se para Angélica.

-        Cansada, signora? Entendo. Não sou um bruto!... Vou conduzi-la ao seu... ma, em francês creio que se diz: apartamento.

No alto da torre, um cómodo atravessado por correntes de ar oferecia um leito de.-lençóis furados e cobertas de brocado. Ao redor havia espelhos de Veneza, relógios de pêndulo franceses, armas turcas. Para Angélica, aquilo parecia a câmara de receptação dos ladrões da Tour de Nesle.

A criadinhacorsa insistiu para que ela tomasse um banho e vestisse um vestido muito, bonito, retirado de um baú onde estava disposto junto com muitos outros, sem dúvida saqueados das malas de viajantes ousadas demais.

Angélica não resistiu e mergulhou na tina de água quente, onde distendeu os membros extenuados, machucados pelo sal e pelo sol. Mas apressou-se em vestir a própria roupa, embora amarrotada, suja e rasgada. Certificou-se de que o cinto, sempre recheado de ouro, continuava no lugar. Aqueles trajes de homem e aquele ouro conferiam-lhe certa segurança.

A cama pareceu-lhe jogar em todas as direções, no balanço de uma tempestade que lhe atormentava os nervos fatigados. O rostos de Nicolau, dos forçados, do Signor Paolo dançavam em roda, fazendo-lhe caretas. Acabou mergulhando num sono desagradável.

Foi despertada por batidas nas espessas folhas de ferro que serviam de porta. Uma voz chamava- baixinho:

-        Ama! Ama!... Sou eu. Senhora marquesa, abra!

Ela apertou as têmporas com as duas mãos. Um vento glacial sibilava pelo aposento.

— Sou eu, Flipot!

— Ah, você está aí - disse ela.

Levantou-se, titubeante, foi puxar os ferrolhos e descobriu no vão da porta seu pequeno criado, iluminado por uma lamparina a óleo.

-        Como está, senhora marquesa? - perguntou ele, com um sorriso de orelha a orelha.

— Mas... - fez ela - mas como... A memória lhe voltava aos poucos.

— Mas, Flipot - exclamou, maravilhada -, de onde você saiu?

— Da frota, como a senhora, marquesa. Angélica o agarrou pelos ombros e o beijou.

— Meu pequeno, estou tão contente! Acreditava-o morto pelos forçados ou desaparecido no naufrágio.

— Não. Na galera, Calembredaine me reconheceu. "Esse é um dos nossos", disse ele. Pedi-lhe que poupasse o velho boticário, que não lhes podia fazer mal. Trancaram-nos numa despensa. Depois o Sr. Savary conseguiu quebrar a fechadura. Era de noite, a tempestade caía à toda. Os homens berravam na prisão do navio. Os que não estavam acorrentados agarravam-se aonde podiam. Quando entendemos que não estava a bordo, o Sr. Savary e eu demos um jeito de descer o caíque. Cá entre nós, esse velho é um excelente marinheiro! Mas isso não nos impediu de sermos pescados pelos selvagens do Sr. Paolo. Em todo caso, estávamos salvos, e eles nos deram de comer. Ficamos muito alegres quando soubemos que a senhora tinha escapado.

— De fato, estarmos vivos é algo de excepcional, mas a situação não é menos aborrecida, meu pobre Flipot. Caímos nas mãos de salteadores.

— Foi por isso que vim procurá-la. Há um barco que vai zarpar... Sim, um mercador que o Sr. Paolo deteve e que vai tentar escapar. Ele pode nos esperar por mais uma hora, mas é preciso que sejamos rápidos.

Angélica não precisou refletir muito para tomar uma decisão. Tudo o que possuía trazia consigo.

Deu uma olhada à volta, imaginou que um dos punhais que via lhe poderia ser útil e enfiou-o na manga.

__ Poderemos sair do castelo? - cochichou.

_ Vamos tentar. As pessoas beberam para festejar o naufrágio da galera. Encontraram uns barris a bordo. Estão bêbadas como porcos!

— E o Signor Paolo?  '

— Não vi. Talvez também esteja cochilando em algum canto. A jovem pensou no Tenente de Millerand. Mas Flipot informou

que o oficial fora trancafiado numa sólida masmorra. Era preciso abandoná-lo a seu triste destino.

Desceram um atrás do outro as intermináveis escadas em caracol onde o vento soprava as chamas das lâmpadas e fazia vacilar a das tochas fincadas em elos de ferro.

Na última sala, o genovês andava de um lado para outro, ligeiramente vacilante. Notou-os e seu sorriso foi de mau agouro.

-        Oh, signora! Cbecosa c'e?O que há? Vinha fazer-me companhia? Ma como fico feliz!

Angélica ainda tinha alguns degraus a descer. Com uma olhada rápida, avaliou a situação.

Acima do Signor Paolo di Visconti havia um quadrado de ripas grosseiras, sustentando quatro grossas velas de sebo. Aquele lustre rudimentar pendia da abóbada por uma corda que, passando por uma polia, vinha prender-se a um gancho de ferro, na parede da escada.

Puxar da faca e cortar a corda ao alcance de sua mão não exigiu mais de três segundos de Angélica.

Jamais ficou sabendo se o genovês recebeu o lustre na cabeça, pois as velas se apagaram antes de ele chegar ao chão.

Ouviram-lhe o rugido a dominar o ruído da queda e compreenderam que, se não estava morto, estava no mínimo em má situação.

Aproveitando-se da desordem e da confusão, Angélica e Flipot conseguiram encontrar a porta. Atravessaram o pátio sem dificuldades. O edifício estava parcialmente em ruínas. Os dois fugitivos ainda se imaginavam dentro das muralhas, quando Flipot reconheceu o caminho que levava ao local do encontro.

No céu noturno, nuvens rápidas vendavam e desvendavam a lua redonda.

-        É por aqui - disse Flipot.

Ouvia-se o mar pulverizar maldosamente a areia de uma pequena praia. Deslizaram por entre os espinheiros e alcançaram a pequena angra onde silhuetas aguardavam junto de uma barca.

— É você, a que ia se fazer comer pelos peixes ao largo da Córsega ou da Sardenha? - perguntou uma voz com sotaque marselhês.

— Sim, sou eu - respondeu Angélica. - Tome isto como recompensa.

— Veremos isso mais tarde. Embarquem.

A alguns passos, como um djim das sombras, Mestre Savary soltava imprecações à noite e ao vento.

— Sua avidez lhe causará a ruína, moleque insaciável, polvo gigante, sanguessuga imundo, aspirando à fortuna alheia. Ofereci-lhe tudo o que tinha e você se recusou a levar-me!

— Pago por esse senhor - disse Angélica.

-        Haverá gente demais a bordo - resmungou o patrão.

Mas foi instalar-se ao leme e fez que não viu o velho, que subia a bordo com sua sacola, seu farnel e seu garrafão de vidro.

A lua, desde a Antiguidade fiel aos contrabandistas e aos fugitivos naquelas paragens, velara-se há muito tempo. O barco teve tempo de ultrapassar os rochedos, onde se postavam as sentinelas do genovês, sem o risco de ser visto.

Quando a luz prateada reapareceu, a chama que ardia no alto do torreão dos bandidos já estava distante.

O provençal soltou um profundo suspiro.

-        Pronto! - exclamou. - Agora podemos cantar. Tome o leme, Mutcho.

De um baú puxou uma guitarra, cujas cordas dedilhou com sabedoria. E logo sua voz profunda se elevava na noite mediterrânea.

CAPÍTULO XV

Melchior Pannassave e sua Joliette

-Então é você a dama de Marselha que desejava visitar o harém do Grão-Turco? P.òis bem, pode dizer que é perseverante! Acabou viajando comigoÊ

A luz do alvorecer, Angélica, não sem surpresa, reconheceu no patrão do barco La Joliette aquele marselhes que não fazia muito a prevenira com tanta veemência contra os riscos das viagens. Chamava-se Melchior Pannassave. Era homem de uns quarenta anos, alegre e tostado de sol sob o boné vermelho e branco à napolitana. Usava uma calça preta, presa à cintura por uma vasta faixa de várias voltas.

Mastigou longamente o cachimbo com um sorriso malicioso, antes de concluir, voltando-se para seu marinheiro:

-        Pode dizer, hein, que o que a mulher quer, nem o próprio bom Deus pode contrariar.

O marujo, um velhinho desdentado, seco como um sarmento e que parecia ter de taciturno o que o patrão tinha de tagarela, aprovou com uma cusparada.

A tripulação se completava com um garoto grego, chamado Mutcho.

— Pois bem, aí o tem, você está a bordo de meu barco - concluiu o patrão; - não é muito grande, principalmente com a minha carga. Não tinha previsto uma senhora entre meus passageiros.

— Poderia tentar tratar-me como a um rapaz, por favor? Será que não passo mesmo por um cavalheiro?

— Talvez, no final das contas... acho que sim. Mas aqui, estamos entre nós. Não há necessidade de comédia.

— E para que você se habitue a ser mais natural comigo, na eventualidade de sermos abordados por infiéis.

— Minha pobre garota, com todo o respeito, você está tendo ilusões. Com essa gente, quer seja um rapaz ou uma garota, desde que tenha uma bela carinha, está bem arranjada. Pergunte a Mez-zo Morte, o almirante da frota argelina. Ah, ah, ah!

Riu às gargalhadas, dando umas olhadas de cumplicidade a seu imperturbável marujo. Angélica deu de ombros.

— No fundo é ridícula essa obsessão que as pessoas parecem ter prazer em nutrir acerca do encontro fatal com os berberes ou com o Grão-Turco.

— Não são obsessões, senhora, perdão... senhor, eu, que lhe falo, já fui pego dez vezes. Cinco vezes fui trocado quase imediatamente, mas as outras somaram treze anos de cativeiro. Fizeram-me plantar parreiras na costa do Bósforo e depois fabricar pão branco para o harém de já não sei que paxá que tinha uma casa de campo perto de Constantinopla. Imaginaria a mim, padeiro? Que sofrimento, arre!... E principalmente para lhes fabricar aquelas bolachas imundas, chatas como lenços, que se atiram no forno como panquecas. Peguei o jeito, havia que ver! Mas o que mais me desagradava era estar sempre rodeado de eunucos de sabre em punho, que vigiavam se eu não ia cobiçar as pequenas atrás das grades do harém...

— Meu amigo - disse Savary -, você não pode pretender haver sofrido no cativeiro se não esteve, como eu, em mãos dos marroquinos. São os mais ferozes dentre os muçulmanos. Não brincam com sua religião e odeiam os cristãos na mesma medida. Suas cidades interioranas são proibidas aos brancos e mesmo aos turcos, a quem consideram brandos demais quanto à religião. Enviaram-me para uma cidade no deserto chamada Tombuctu, para as minas de sal. Quando viram que eu não me decidia a morrer, levaram-me para outra cidade, Marrocco, para trabalhar na mesquita El Muassine e na da sultana Vahidê.

— Oh! Eu bem me dizia que, para ser avarento como você e viajar apenas com uma garrafa de zurrapa como bagagem, não merecia muito mais do que amassar terra com bosta de asno para fazer das sórdidas mesquitas ímpias deles castelos de lama!

__ Meu amigo, você me insulta. Nunca viu as mesquitas de Es Sabat, em Meknes, de Karauine e Bab Guissa, em Fez, e principalmente o palácio real, maior dó que Versalhes.

-        Castelos de lama, digo-lhe eu, mal cobertos com um pouco de gesso. Fale-me ao contrário de „Santa Sofia ou do Castelo das Sete Torres, em Constantinopla. Aquilo eram construções autênticas! Só que eram construções cristãs, do tempo em que Constantinopla se chamava Bizâncio.

Mestre Savary, trémulo de indignação, limpou e recolocou várias vezes os óculos.

— Em todo caso, esses castelos de lama marroquinos valiam bem as bolachas turcas, que você cozinhava para o seu paxá de Istambul. Quanto ao meu garrafão de zurrapa, como você diz, se soubesse o que contém^ falaria dele com mais respeito.

— Ora, se me oferecer um trago, eu talvez me decida e lhe peça desculpas, vovô.         "

Savary levantou-se, solene. Com precauções de ama-nutriz, tirou a tampa de cortiça lacrada com cera vermelha e levou o frasco ao nariz de Melchior Pannassave.

— Bah! - fez o marselhês. - Isso nem é vinho, então? E uma droga?

— Pura múmia mineral, extraída do rochedo sagrado do rei da Pérsia.

— Ouvi mercadores árabes falarem dessa imundície preciosa, mas não gosto muito de ter essa mistura a bordo de meu barco.

O marselhês olhava de esguelha o garrafão, com ar desconfiado, ainda que mesclado de certa consideração. O sábio, satisfeito com o efeito obtido, tirou dos bolsos um bastão de cera vermelha e uma vareta.

— Vou lacrá-lo de novo, mas vou colocar-me contra o vento, pois a própria essência da múmia pode inflamar-se. Dei-me conta disso durante diversas experiências.

— Você quer queimar-nos vivos! - gritOu"Panassave. - Boa Mãe de Nossa Senhora da Guarda, aqui está como sou recompensado por ter tido piedade de um pobre velho que me parecia inofensivo. Olhe que não sei o que me impede de atirar essa garrafa desgraçada ao mar!

vio. Parecia-lhe que olhos luzidios a espreitavam através da pranchas desconjuntadas da cabina. Mas a roupa a envolvia como um sudário gelado, e ela despiu-se. Com desagrado, vestiu um vestido branco mais ou menos de seu tamanho, fora de moda e de limpeza duvidosa, dentro do qual, pensou, devia ter o ar de um espantalho. Atirou sobre os ombros um xale espanhol e sentiu-se melhor. Aninhou-se na cama e ficou por longo tempo imóvel, a ruminar pensamentos morosos. Seus cabelos pegajosos cheiravam a água salgada, como a madeira úmida da cabina. O odor lhe dava náuseas. Sentiu-se sozinha no meio do mar, perdida e abandonada, tal qual um náufrago sobre uma balsa. Com as próprias mãos rompera todas as amarras que a retinham à sua brilhante existência de outrora, mas não havia ninguém para estender-lhe a mão e fazê-la atingir a outra margem... Onde atar de novo o fio partido? Supondo-se que aquele cavalheiro-pirata estivesse disposto a levá-la a Cândia, o que faria lá, sem dinheiro? Tinha apenas uma referência a que se apegar: um mercador árabe, Ali Mektub... Depois se lembrou de que devia haver lá um francês exercendo suas funções de cônsul. Poderia dirigir-se a ele. Tentou lembrar o nome: Rocher? Pocher? Pacha?... Não, não era isso.

Gritos e soluços de mulher, bem próximos, arrancaram-na de seu torpor. Delgados raios vermelhos filtravam-se pelas pranchas, e quando ela puxou a porta, recebeu em pleno rosto o reflexo púrpura do crepúsculo. O sol, qual bola de fogo, afundava no mar. Angélica pôs a mão acima dos olhos. A alguns passos dela, dois homens da tripulação agarravam uma menina, quase uma criança, que se debatia. Um deles segurava os braços, enquanto o outro a acariciava febrilmente, zombando.

O sangue de Angélica subiu-lhe à cabeça.

-        Soltem essa menina! - gritou.

Como não parecessem ouvi-la, avançou sobre os homens e arrancou a boina de lã do que segurava a menina.

Privado do barrete, que para um marinheiro faz parte dele assim como sua cabeleira hirsuta, o homem largou-a e estendeu as mãos.

— Oh, minha boina! - gritou.

— Eis o que faço com ela, devasso! - retrucou Angélica, atirando-a à água.

 

Fez um gesto ameaçador em direção ao precioso garrafão. Sa-vary cobriu-o com o próprio corpo, e o capitão afastou-se, escarnecendo.

Angélica ria.

— Então conseguiu salvar sua múmia, Sr. Savary? Você é maravilhoso.

— Acreditou que eu estava enfrentando o meu primeiro naufrágio? - disse o velho, esforçando-se por aparentar desenvoltura, embora estivesse muito lisonjeado.

O tempo estava magnífico de novo. No céu, algumas nuvens grossas muito iluminadas corriam impelidas por um vento seco e sonoro, que frisava de branco a crista das ondas.

— Uma sorte que a tempestade se tenha acalmado assim que nos afastamos do litoral - continuou o marselhês, enchendo o cachimbo. - Agora, até a Sicília, tudo o que temos pela frente é o grande azul.

— E os berberes - soltou Mestre Savary à socapa.

— O que não entendo - disse Angélica - é que, com todas as aventuras que tiveram, uns e outros, ainda tenham a coragem de retomar o mar. Por que navegar? O que é que os arrasta, pergunto-me?

— Ah, mas... até se diria que você começa a pegar "o faro". Bom sinal! Por que navego? Tenho meu comércio, senhora. Navego de um porto a outro com um pouco de mercadorias. No momento, o que pode ver ali são pacotinhos de folha de estanho, contendo salva e borragem. Vou trocá-los no Levante por chá do Sião. Tisana contra tisana, não é?

— O chá não é da família dos mirtos, nem dos funchos - ensinou Savary. - É a folha de um arbusto que se parece com o loureiro-rosa e cuja decocção purifica o cérebro, clareia os olhos e é eficaz contra os ventos que temos no corpo.

— Quanto a mim - disse o marselhês, trocista -, prefiro o café turco. Vendo meu chá aos cavaleiros de Malta, que o comerciam com os povos da Barbaria, os argelinos, os tunisianos e os marroquinos. Todos bebedores de chá, ao que parece. Também trarei uma pequena carga de coral e, bem escondidas no meu cinto, algumas belas pérolas do oceano Indico. E pronto!

O patrão marselhês espreguiçou-se, depois estendeu-se sobre um dos bancos ao sol.

Angélica, na proa, brigava com o cabelo. Resolveu ficar de frente para o vento, deixando flutuar o macio tosão de ouro queimado que se contorcia, puxando-lhe ligeiramente a cabeça para trás e obrigando-a a erguer o rosto e entregá-lo à ardente carícia do sol.

Melchior Pannassave observava-a,. de olhos semicerrados.

— Ah! Por que navego? - continuou sorrindo. - Porque no' fundo não há nada de melhor para um filho de Marselha do que vogar sobre uma casca de noz entre o mar azul e o céu azul. E quando ainda por cima se tem sob os olhos uma bela garota que deixa flutuar os cabelos ao vento, então... a gente se diz que...

— Vela latina a estibordo - anunciou q velho marujo, descerrando os dentes.

— Cale-se, tagarela, você perturba meu devaneio.

— É uma fusta árabe.

— Erga o pavilhão da Ordem de Malta.

O grumete foi*desfraldar na popa um estandarte vermelho atravessado de uma cruz branca.

Não sem ansiedade", os ocupantes do-pequeno veleiro observaram as reações da fusta.

-        Afastam-se - disse Pannassave, voltando ao repouso com satisfação. - Contra tudo o que é moreno e carrega a crescente no Mediterrâneo,'não há melhor antídoto do que o pavilhão dos bons monges da Ordem de São João de Jerusalém. Evidentemente, eles não estão mais em Jerusalém, nem em Chipre, nem mesmo em Rodes, mas ainda estão em Malta. Faz séculos que os muçulmanos não têm pior inimigo. Espanhóis, franceses, genoveses, até os venezianos são inimigos de passagem. Mas a Ordem de São João é o Inimigo, o monge guerreiro. Sempre pronta, com a cruz branca ao peito, a cortar em dois um sarraceno. É por isso que eu, Melchior Pannassave, que sei observar as coisas, não hesitei em gastar cem libras para obter a franquia do pavilhão deles. Vejam que foi uma despesa que compensa. Tenho ainda um pavilhão francês, um emblema do Duque da Toscana, outro trapo meio vago, que com sorte poderia evitar-me os espanhóis, e também um salvo-conduto para os marroquinos. Esse papel é um tesouro. Não são muitos os que o possuem. Guardo-o como reserva. Veja, senhora, que, berberes ou não, estamos preparados.

CAPITULO XVI

Um "mau encontro"

No pequeno veleiro provençal, não havia cabina nem posto de tripulação.

Mutcho, o grumete, prendeu duas redes e desenrolou uma tela impermeabilizada com óleo de linho para proteger um pouco Angélica dos respingos salgados da noite. O vento cedeu, parou, mas quase em seguida reiniciou, mudando de direção. Na escuridão, que se tornara quase total, os marinheiros puseram-se a manobrar as velas.

— Não acendem as lanternas? - perguntou a jovem.

— Para sermos notados?

— Por quem?

— Como saber? - disse o provençal, com um largo gesto, em direção ao horizonte misterioso.

Angélica escutou o murmúrio profundo do mar. Pouco depois a lua se levantou, abrindo um caminho de prata até eles.

-        Ah! Acho que se vai poder cantar - disse Melchior Pannassave, retomando a guitarra com satisfação.

Angélica ouvia as notas vibrantes de uma cançoneta napolitana dilatar-se no silêncio do mar. Uma ideia lhe veio à cabeça. No Mediterrâneo, canta-se. Os forçados esquecem suas penas, os marinheiros esquecem os perigos que os espreitam. As vozes ricas e cheias sempre foram o apanágio das raças meridionais.

"E ele, a quem chamavam de Voz de Ouro do reino", pensou ela, "não poderia cantar sem que sua reputação atravessasse terras e mares..."

Animada de súbita esperança, Angélica aproveitou um momento em que Pannassave retomava fôlego para lhe perguntar se não ouvira falar, no Mediterrâneo, de um cantor cuja voz era particularmente bela e tocante. Os marselhês refletiu e desfiou-lhe os nomes de todos os que, das margens do Bósforo à costa da Espanha, passando pela da Córsega e da Itália, eram célebres pelo talento de tenor, mas nenhum correspondeu à descrição do antigo trovador do Languedoc.

Decepcionada, Angélica foi dormir.

Quando acordou, o sol já ia alto. O mar estava bonito. O barco seguia em velocidade média. O patrão parecia cochilar ao leme. O velho marinheiro descansava mascando tabaco. Angélica viu a silhueta encurvada de Flipot e o pequeno grumete, igualmente adormecido, a camisa vermelha aberta sobre o peito moreno. De Savary, nem sinal. Assi-m como não havia vestígio de seu caro garrafão de múmia. ',.'...

Angélica se precipitou e sacudiu o patrão semidesperto.

— Que fez de Mestre Savary? Desembarcou-o à força durante a noite?

— Se você continuar a se agitar assim, senhorita, é melhor que eu também a desembarque.

— Oh, você cometeu essa covardia!"... Porque ele não tinha dinheiro? Mas eu disse que pagaria por ele!

— Oh, oh! Calma! Você é uma verdadeira tarasca, caramba! Imagina então que um barco pode entrar num porto de noite, como que numa nuvem, e sair, tudo isso sem ruídos, sem agitação, sem visitas do almirantado, da polícia da quarentena, quando o navio não é pirata? Seria preciso que se tivesse o sono bem pesado para não perceber nada.

— Mas então onde está ele? - exclamou Angélica, desolada. - Caiu no mar?

— De fato, é estranho - admitiu de repente o marselhês, dando uma olhada à volta.

O mar estava azul e cintilava a perder de vista.

-        Estou aqui - disse um voz cavernosa, que poderia ter sido a do deus das águas.

E apareceu uma cara de carvoeiro, erguendo um alçapão do porão. O velho sábio conseguiu sair do buraco e começou a esfregar a testa suja com uma mão, enquanto examinava um objeto negro que segurava na outra. O marselhês caiu na gargalhada.

— Não se canse, avô, o pinio não sai. E pior que noz-de-galha.

— Estranha matéria - disse o sábio. - Dir-se-ia que é minério de chumbo.

Um solavanco o fez perder o equilíbrio e o objeto que segurava caiu com um ruído pesado e compacto. Melchior Pannassave ficou furioso de repente.

— Não pode prestar um pouco de atenção? Se tivesse caído no mar, eu teria que pagar mil libras de multa.

— O minério de chumbo tornou-se bem caro em suas paragens - disse pensativo o boticário.

O outro pareceu arrepender-se do que dissera e acalmou-se.

— Falei assim, por acaso. Não há nada de mau em transportar chumbo, mas eu preferiria que você fizesse como se não tivesse visto nada. E o que é que estava bisbilhotando no meu porão?

— Queria escorar de maneira mais sólida a minha garrafa, para que não corresse o risco de rolar ou de levar um pontapé, nas idas e vindas sobre a coberta. Você tem um pouco de água doce para eu me lavar, meu amigo?

— Ainda que a tivesse de sobra, não lhe daria para isso. Não existe água nem sabão que remova isso. E preciso limão ou vinagre bem forte, e não tenho nem um nem outro a bordo. Terá que esperar que aportemos.

— Estranha matéria! - repetiu o sábio, que foi sentar-se num canto, resignado a conservar o rosto de carvoeiro.

Angélica instalou-se sobre uma vela dobrada, no fundo do barco, um pouco ao abrigo do vento. Mastigou sem convicção a fatia de peixe seco acompanhado de biscoitos e pimentão doce que Pannassave distribuiu aos passageiros. Fitava o pedaço de pinio, e velhas lembranças emergiam-lhe da memória. Savary, por mais sábio que fosse, parecia ignorar que o pinio não era chumbo bruto, mas prata em pó e escoriácea, recém-saída da amalgamação, e sobre a qual se queimavam vapores de enxofre a fim de torná-la mais negra e de aspecto mais terroso. Era essa camuflagem que utilizava outrora o Conde de Peyrac, para passar a prata de sua mina em Argentiere para a Espanha e a Inglaterra, e ela ouvira dizer que muitos contrabandistas do Mediterrâneo agiam da mesma forma.

Quando, ao meio-dia, Melchior Pannassave resolveu desfrutar sua pequena sesta sobre seu banco favorito, Angélica foi sentar-se ao lado dele.

__ Sr. Pannassave? - chamou a meia voz.

_ Sim, minha bela senhora:

-        Um perguntinha. È para o Resçator que você faz esses transportes de prata?        

O marselhês estava desdobrando com cuidado um grande lenço a fim de cobrir o rosto e proteger-se do ardor do sol. Ergueu-se bruscamente. Sua expressão jovial desaparecera.

— Não compreendo bem o que me diz, 'senhorinha - disse secamente. - É perigoso falar levianamente, você sabe. Resçator é um pirata cristão aliado dos turcos e idos berberes, ou seja, um homem perigoso. Nunca o vi e não quero vê-lo. E o que transporto no meu porão é chumbo.

— Na região de onde venho,,os mineiros chamam a isso de matte. Você o chama áepinib. Mas é a mesma coisa: prata bruta disfarçada, eu sei. As mulas de meu pai transpòrtavam-na outrora até a beira do oceano, onde se embarcavam feias placas negras sem a estampilha do rei. Nãõ posso estar enganada. Escute, Sr. Pannassave, conto-lhe tudo.

E contou-lhe que procurava um homem a quem amava e que em outros tempos se dedicara a essas atividades de mineração.

— Pensa que ele ainda poderia trabalhar com isso?

— Sim.

Não teria ele, ocupando-se desse comércio, ouvido falar de um homem sábio, coxo, de rosto desfigurado?

Melchior Pannassave fazia "não" com a cabeça. Depois perguntou:

— Como se chama ele?

— Não sei. Deve ter sido obrigado a trocar de nome.

— Ah, e sem nome! - concluiu o marselhês. - Ah!, pode-se dizer que o amor é realmente cego e não vê onde fere.

Mergulhou numa profunda meditação. Seu rosto se tranquilizara, mas ele continuava desconfiado.

-        Escute, minha garota - começou ele, finalmente -, não quero discutir seus gostos nem perguntar-lhe por que você faz tanta questão desse namorado, quando o mundo está cheio de belos rapazes bem-formados, de rosto bem-feito, o nariz no devido lugar no meio da cara, e que levam com orgulho o nome que o bom Deus e os pais lhe deram no dia do batismo... Não, não me compete fazer-lhe um sermão. Você já não é uma menina, sabe o que quer. Mas não deve ter ilusões. O transporte de pinio sempre se fez no Mediterrâneo e sempre se fará. Não se esperou que seu namorado cambaio viesse ocupar-se disso. Quer que lhe diga? Meu pai já transportava pinio. Era um rescator, como se dizia.

"Oh, pequeno, nada de grande como o outro. Esse é um tubarão. Pelo que se diz, veio da América do Sul, onde o rei da Espanha o mandara buscar o ouro e a prata dos tesouros incas. É provável que depois tenha querido agir sozinho e instalar negócio próprio. Aqui no Mediterrâneo, assim que ele apareceu, comeu todos os pequenos traficantes. Foi preciso trabalhar para ele ou falir.

"Assumiu o monopólio, como se diz. Não que a gente se queixe... Os negócios agora vão melhor no Mediterrâneo! As trocas são mais fáceis, a gente respira! Antes era preciso lamuriar muito para encontrar um pouco de prata no mercado. Circulava a conta-gotas. Era de dar nos nervos. Quando um mercador queria fazer um grande negócio de sedas ou outros artigos com o Oriente, era frequente não ter outro recurso senão obter prata junto aos banqueiros, a taxas de usura. Os turcos não queriam ser pagos com histórias, é claro. E operações desse género desequilibravam as cotações. Agora a prata aflui em massa. De onde vem? Isso não se precisa saber. O principal é que está aí.

"Naturalmente, nem todo mundo ficou contente. Aqueles que antes guardavam a prata para si e só a soltavam pelo quíntuplo do valor: os reinos, os pequenos Estados... O rei da Espanha, para começar, que achava que as riquezas do Novo Mundo lhe pertenciam, e outros, menores, mas tão gulosos quanto o Duque da Toscana, o doge de Veneza, os cavaleiros de Malta. São obrigados a se alinhar com as cotações normais."

-        Em suma, seu patrão é um salvador!

O rosto do marselhês anuviou-se:

— Ele não é meu patrão. Não quero saber de nada com esse pirata danado.

— Mas se você transporta a prata, e é ele quem detém o monopólio...

— Escute, minha pequena, vou dar-lhe um conselho. Por aqui, nunca se deve entrar em detalhes. Ninguém aqui tenta ver de perto. Não se precisa saber de onde parte a corda que se segura, nem saber aonde chega. Pego uma carga em Cádiz ou outro lugar, mais frequentemente na Espanha. Devo transportá-la para as colónias do Levante, nem sempre para o mesmo local. Entrego minha mercadoria, pagam-me seja em sacos de moedas, seja com uma letra de câmbio, que posso apresentar em qualquer parte do Mediterrâneo - Messina, Génova, até em Argel, se~me der na telha fazer um passeio até lá. Depois disso, assunto encerrado. E agora, Melchior, volta para a Canebière!

Com estas últimas palavras, o marselhês desdobrou o lenço, para indicar claramente que dissera tudo o que tinha a dizer.

"Não se deve procurar saber aonde leva a corda que se segura..." Angélica meneou a cabeça. Não obedeceria à lei daqueles lugares onde se misturavam uma profusão de paixões, de interesses contrários, donde a necessidade do benfazejo esquecimento, da memória curta. O fio estendido que ela agarrara, não o soltaria até atingir-lhe a extremidade. .

Mas, por um instante, esse mesmo fio pareceu desaparecer-lhe por entre os dedos, tornar-se irreal, fundir-se no azul do céu. Ao movimento indolente do mar, ao ardor do sol, a realidade tornava-se lenda, sonho inacessível. Compreendia-se como os mitos da Antiguidade tinham nascido naquelas costas.

"Não estou eu mesma perseguindo um mito... a lenda de um herói desaparecido, que não tem mais lugar no mundo dos vivos... Tento adivinhar o caminho que ele pode ter seguido por essa rota 'onde não se entra em detalhes', mas as miragens se entrecruzam."

-        Acabou de me contar coisas muito interessantes, Sr. Pannassave - disse ela em voz alta -, agradeço-lhe.

O marselhês teve um gesto nobre antes de se esticar sobre o banco.

-        Estudei um pouco - disse, condescendente.

A noite, o pico nevado de uma montanha cintilou no horizonte.

-        O Vesúvio - disse Savary.

O grumete, que subira ao cordame do mastro, assinalou vela à vista. Esperaram que a nave se aproximasse. Era um bergantim, vaso de guerra de belo porte.

— Que pavilhão?

— Francês - gritou Mutcho, sem alegria.

— Sobe o pavilhão da Ordem de Malta - ordenou Pannassave. o rosto tenso.

— Por que não hasteamos nossa bandeira com a flor-de-lis, já que são compatriotas? - perguntou Angélica.

— Porque desconfio dos compatriotas que viajam em navios de guerra espanhóis.

O galeão parecia querer cortar a rota de La Joliette. Ergueram-se auriflamas ao longo da driça. Melchior Pannassave sufocou uma blasfémia.

-        Quando eu dizia! Exigem fazer uma visita a bordo. Isso não é regular: estão em águas napolitanas, e a França não está em guerra com a Ordem de Malta. Certamente é um flibusteiro qualquer, como há tantos, e que desonra nosso pavilhão. Esperemos mais um pouco.

O galeão manobrava para aproximar-se de La Joliette. Reduziu as velas. Depois Angélica viu com surpresa o pavilhão francês descer e em seu lugar aparecer uma bandeira desconhecida.

— Bandeira do Grão-Duque da Toscana - disse Savary. - Significa que o navio é tripulado por franceses, mas que compraram o direito de vender suas presas em Livorno, Palermo e Nápoles.

— Eles ainda não nos pegaram, minhas crianças - disse o mar-selhês a meia voz. - Preparem-se para a festa, se eles insistirem.

Sobre o tombadilho, um gentil-homem de casaca vermelha e chapéu emplumado observava-os de luneta. Quando baixou o instrumento, Angélica descobriu que estava mascarado.

-        Isso é mau - resmungou Pannassave -, os que se mascaram para uma abordagem nunca são muito católicos.

Perto do gentil-homem, um indivíduo com cara de facínora, que devia ser o imediato, estendeu-lhe o alto-falante.

— Sua carga? - gritou em italiano o abordador.

— Chumbo vindo da Espanha para a Ordem de Malta - respondeu Pannassave na mesma língua.

— Só isso? - exclamou em francês uma voz impaciente e cheia de insolência.

-        E tisana - completou o marselhês, igualmente em francês.

Uma homérica explosão de riso sacudiu a tripulação do galeão, que, debruçada à amurada, seguia o interrogatório. Pannassave deu uma piscada.

-        Boa ideia essa da tisana! Vai dissuadi-los!

Mas depois de deliberar com o imediato, o gentil-homem retomou o alto-falánte:

,- Desçam as velas e preparem sua declaração de carga. Vamos verificar suas afirmações.

O marselhês tornou-se violáceo.

-        Quem ele pensa que é, esse pirata de.água doce? Que pode fazer lei entre gente honesta? Vou preparar-lhe a declaração que ele quer!

Um caíque desceu pelo flanco do bergantim. Marinheiros armados de mosquetes tomaram lugar no bote, sob o comando do imediato de má catadura, que tinha um olho oculto sob um tapa-olho, o que lhe rematava o aspecto pouco atraente.

-        Mutcho, reduza o velame - disse o capitão. - Scaiano, fique pronto para agarrar a ginga quando eu lhe disser. Avô, você que é mais matreiro do que parece, aproxime-se de mim sem precipitações: devem rios.estar observando. Fique de costas para eles. Bem. Aqui está a chave do baú de pólvora. Tire também algumas balas, quando eu virair e estivermos invisíveis. O canhão já está carregado, mas talvez precisemos de reserva. Não retire ainda o toldo que cobre o canhão. Talvez não o tenham visto...

O velame pendia, inerte. Lajoliette se pôs à deriva, sob o vento. Em sua direção, o bote dos flibusteiros vinha a fortes remadas, desaparecendo no oco das ondas, para reaparecer cada vez mais próximo.

Melchior Pannassave ainda gritou em seu alto-falante:

-        Recuso o direito de visita!

Risos irónicos vieram-lhe em resposta.

-        A distância está boa agora - murmurou o marselhês. - Tome o leme, avô.

Já fizera saltar a capa de camuflagem de seu pequeno canhão. Apanhou uma mecha, que partiu com uma dentada, acendeu-a e introduziu-a na culatra do canhão.

-        Por Deus! A pique, crianças!

A detonação ribombou, e o tranco que o veleiro levou lançou ao chão seus ocupantes.         '         ;

- Falhou! Sacramento! - praguejou Pannassave.

Na espessa nuvem que o rodeava, ele tentava às apalpadelas mtroduzir-lhe uma segunda carga..

O tiro errara de algumas braças o atacante e apenas o borrifara.

Depois de um momento de pasmo, os flibusteiros se viram sãos e salvos. Rebentaram em imprecações e começaram a carregar os mosquetes.

La Joliette continuava à deriva e apresentava urna proa fácil a um inimigo muito superior.

-        A ginga, Scaiano, a ginga! E você, avô, tente conduzir em ziguezague!

Uma salva de mosquetes crivou a água ao redor. O marselhês soltou um grunhido e agarrou o braço direito.

— Oh, você está ferido! - exclamou Angélica, acorrendo.

— Porcos! Vão me pagar por isso. Avô, pode ocupar-se do canhão?

— Fui pirotécnico de Soliman Paxá.

— Otimo. Então feche a culatra e prepare a mecha. Pegue o timão, Mutcho.

A chalupa não estava a mais de cinquenta braças, e desta vez se apresentava de frente. Alvo ruim. O mar estava agitado, e um vento irregular fazia subir e descer o veleiro e seu atacante.

-        Renda-se, imbecil! - gritou o homem do tapa-olho preto.

Melchior Pannassave, sempre segurando o braço, voltou-se para os companheiros, que fizeram um sinal negativo.

Então gritou:

-        Nunca ouviu um patrão provençal dizer merda, você e seu capitão pirata?

E ergueu um dedo para Savary, ordenando em voz baixa:

-        Fogo!

Uma segunda detonação sacudiu o casco. Quando a fumaça se dissipou, viram-se boiar remos e destroços, aos quais os homens se agarravam.

-        Bravo! - murmurou o marselhês. - Agora, a todo o velame e tentemos fugir.

Mas um choque surdo fez estremecer La Joliette. Angélica teve a impressão de que a amurada à qual se apoiava derretia como manteiga, enquanto um chão mole e gelado fugia a seus pés. A água salgada encheu-lhe a boca.

CAPITULO XVII

Angélica nas mãos do Marquês d'Êscrainville, terror do Mediterrâneo

O capitão do navio Corsário tinha tirado a máscara. Descobriu um rosto ainda jovem,-cujo bronzeado contrastava de maneira favorável com o cinza de; seu olhar e sua cabeleira loura. Mas tinha marcas que lhe davam uma expressão amarga e sardónica. As bolsas acentuadas sob os olhos revelavam o desgaste de um temperamento que se entregara a todos os excessos. Suas têmporas prateavam.

Aproximou-se, com um muxoxo desdenhoso.

-        Em toda a minha carreira, jamais" vi uma carga tão deplorá vel. Com exceção desse espertalhão marselhês, muito bem-feito de corpo, mas que encontrou um jeito de levar uma bala no ombro, há apenas dois garotos esqueléticos e dois velhos mirrados, um dos quais, não se sabe por quê, maquilou-se de negro.

Agarrou a barbicha de Savary e puxou-a maldosamente.

-        Esperava ganhar com a mudança, bode velho? Negro ou não, eu não daria vinte cequins pela sua cabeça!

O imediato, indivíduo baixote, moreno, gorducho como um pote de tabaco, apontou o velho com um dedo trémulo:

rói ele... foi ele... que... pôs... a pique... nosso bote. Batia o queixo na roupa encharcada. Haviam-no tirado da água, 'ssim como a três outros sobreviventes, mas cinco membros da ripulação do bergantim VHermh morreram por culpa daquele Pequeno veleiro de aparência inofensiva.

— É mesmo? Foi ele? - repetiu o pirata, perfurando com um frio olho de serpente o velho recurvado; mas o aspecto do ancião era tão lamentável, que ele duvidou da afirmação do imediato. Sacudiu os ombros e se desviou do grupo bem pouco cintilante que formavam Savary, Flipot, o grumete e o velho Scaiano, em suas roupas que escorriam de água salgada. Lançou um olhar ao vigoroso marselhês estendido sobre a coberta, o rosto crispado de dor.

-        Esses provençais palermas, vá a gente fiar-se neles... Parecem farsistas, inofensivos, e quando se decidem, não têm medo de enfrentar uma frota inteira. Imbecil! Que foi que ganhou fazendo-se de mata-mouros? Aí está agora, caído de lado, e seu veleiro danificado por uma bala. Se não fosse um belo casco, eu o deixaria ir ao fundo. Mas uma vez reparado, eu talvez ganhe alguma coisa com ele. Agora ocupemo-nos do jovem senhor que me pareceu a única mercadoria apreciável nesta maldita casca de noz.

Dirigiu-se a passos negligentes para Angélica, que mandara postar-se à distância. Também ela tiritava na roupa molhada, pois o sol baixava e o vento tornava-se frio. Seus cabelos pesados de água pendiam-lhe sobre os ombros.

O capitão examinou-a com a mesma atenção fria que dedicara aos outros náufragos.

Sob o exame, a jovem se sentiu desconfortável. Tinha consciência de que o pano da roupa se lhe colava ao corpo, traindo-lhe as formas. As sobrancelhas descoradas do pirata se aproximaram, é seu olhar não foi mais do que uma fenda cruel, enquanto um sorriso malévolo lhe entreabria os lábios.

-        Pois bem, rapaz - disse -, gostamos de viajar?

Sacou bruscamente do sabre e apoiou-lhe a ponta sobre o peito de Angélica, na gola da camisa que ela maquinalmente tentava fechar. Ela sentiu a picada do aço sobre a pele, mas não vacilou.

-        Corajoso?

Apertou um pouco. Os nervos de Angélica doíam a ponto de estalar. De repente, a lâmina escorregou pelo vão da blusa e com um movimento seco atirou o pano para o lado, descobrindo um seio branco.

-        Ora, uma mulher!

Os marinheiros que testemunhavam a cena rebentaram em risos e berros grosseiros. Angélica puxou rapidamente sobre o peito descoberto a roupa rasgada. Seus olhos flamejavam.

O corsário continuou a sorrir.

-        Uma mulher! Decididamente, este é um dia de comédia em Hermes. Um ancião que se disfarça de negro, uma mulher que se disfarça de homem, um marselhês que se disfarça de herói, e até o nosso bravo imediato, Coriano, que se disfarça de tritão.

Os risos estouraram de novo, e redobraram diante da expressão aborrecida de Coriano, o homem do tapa-olho. Angélica esperou que o tumulto, se acalmasse.

-        Um gatuno que se disfarça de gèntil-homem francês! - lançou.

Ele recebeu a estocada sem parar de rir.

-        Ora, ora! As surpresas continuam. Uma mulher que dá a réplica... O artigo é tão raro nas escalas do Levante! Talvez o dia não tenha sido tão mau para mim, senhores. De onde é, minha bela? Da Provença, como seus companheiros?

Como Angélica não respondesse, ele se aproximou, colocou a mão na cintura dela e, sem se importar com o seu movimento de recuo, apoderou-se do punhal e do cinto. Sopesou o cinto com um sorriso entendido, abriu-o e deslizou as moedas de ouro uma a uma na mão. Alguns homens avançaram, os olhos brilhando. Com um olhar o capitão os fez recuar.

Remexeu ainda.no cinto, tirou a letra de câmbio protegida por um estojo de tela encerada. Depois de ler, pareceu perplexo...

— Sra. du Plessis-Bellière... Depois, decidindo-se:

— Apresento-me. Marquês d'Escrainville.

A maneira como a saudou provava que recebera certa educação. Seus títulos de nobreza deviam ser autênticos. Ela esperou, devido à sua condição social, receber dele algumas considerações.

-        Sou viúva de um marechal da França - disse - e me dirigia

a Cândia, onde meu marido tinha interesses.

Ele teve um sorriso frio, que não lhe chegava aos olhos.

-        Também me chamam de Terror do Mediterrâneo - disse.

Após refletir um pouco, mandou conduzi-la para uma cabina que devia reservar a passageiros de categoria, principalmente a passageiras.

Ali, novamente, na desordem de um velho baú de couro tacheado, Angél ica encontrou trajes femininos europeus e turcos, véus, bijuterias, alguns sapatos e babuchas.

Hesitou em se despir. Não se sentia em segurança naquele navio. Parecia-lhe que olhos luzidios a espreitavam através da pranchas desconjuntadas da cabina. Mas a roupa a envolvia como um sudário gelado, e ela despiu-se. Com desagrado, vestiu um vestido branco mais ou menos de seu tamanho, fora de moda e de limpeza duvidosa, dentro do qual, pensou, devia ter o ar de um espantalho. Atirou sobre os ombros um xale espanhol e sentiu-se melhor. Aninhou-se na cama e ficou por longo tempo imóvel, a ruminar pensamentos morosos. Seus cabelos pegajosos cheiravam a água salgada, como a madeira úmida da cabina. O odor lhe dava náuseas. Sentiu-se sozinha no meio do mar, perdida e abandonada, tal qual um náufrago sobre uma balsa. Com as próprias mãos rompera todas as amarras que a retinham à sua brilhante existência de outrora, mas não havia ninguém para estender-lhe a mão e fazê-la atingir a outra margem... Onde atar de novo o fio partido? Supondo-se que aquele cavalheiro-pirata estivesse disposto a levá-la a Cândia, o que faria lá, sem dinheiro? Tinha apenas uma referência a que se apegar: um mercador árabe, Ali Mektub... Depois se lembrou de que devia haver lá um francês exercendo suas funções de cônsul. Poderia dirigir-se a ele. Tentou lembrar o nome: Rocher? Pocher? Pacha?... Não, não era isso.

Gritos e soluços de mulher, bem próximos, arrancaram-na de seu torpor. Delgados raios vermelhos filtravam-se pelas pranchas, e quando ela puxou a porta, recebeu em pleno rosto o reflexo púrpura do crepúsculo. O sol, qual bola de fogo, afundava no mar. Angélica pôs a mão acima dos olhos. A alguns passos dela, dois homens da tripulação agarravam uma menina, quase uma criança, que se debatia. Um deles segurava os braços, enquanto o outro a acariciava febrilmente, zombando.

O sangue de Angélica subiu-lhe à cabeça.

-        Soltem essa menina! - gritou.

Como não parecessem ouvi-la, avançou sobre os homens e arrancou a boina de lã do que segurava a menina.

Privado do barrete, que para um marinheiro faz parte dele assim como sua cabeleira hirsuta, o homem largou-a e estendeu as mãos.

— Oh, minha boina! - gritou.

— Eis o que faço com ela, devasso! - retrucou Angélica, atirando-a à água.

A menina se soltara prontamente. Tensa, observava a cena, com estupor, de alguma distância... Os dois homens não estavam menos surpresos. Depois de estupidamente contemplarem a boina flutuando sobre as ondas, voltaram a fitar Angélica, mas trocaram cotoveladas de advertência.

-        Cuidado - resmungou um deles. - E- a dona que resgatamos há pouco, a dona dos escudos de ouro. Vá que o nosso marquês esteja de olho nela...   

Afastaram-se sem insistir. Angélica voltou-se para a jovem. Era mais velha do que imaginara de início. Pelo rosto pálido, com grandes olhos negros sob cabelos escuros, abundantes e cacheados, devia ter uns vinte anos. Mas o corpo frágil no vestido branco era o de uma adolescente.

-        Como se chama? - perguntou Angélica, sem muita esperança de ser compreendida.

Para sua surpresa, a outra respondeu:

-        Ellis.

Depois se ajoelhou é, tomando a mão. da defensora, beijou-a.

-        O que faz neste navio? - perguntou Angélica.

Mas a jovem de repente deu um salto de gato assustado e fugiu para a escuridão,- que agora recaía sobre a embarcação.

Angélica virou,-se. O Marquês d'Escrainville a observava da escada do tombadilho, "e ela compreendeu que ele estava ali há tempo e que assistira à cena toda.

O marquês deixou o posto de observação e veio em sua direção. De perto ela viu-lhe o olhar, que faiscava de ódio.

— Estou vendo - disse. - A senhora marquesa ainda se acredita entre seus criados. Dá ordens, faz-se de grande dama. Vou informar-lhe que está num navio de flibusteiros, minha cara!

— É mesmo? Imagina que eu ainda não tinha notado? - escarneceu ela.

Os olhos do marquês pareceram aço fundindo-se.

-        Espirituosa, agora! Você se imagina nos salões de Versalhes? Com homens que sorvem as preciosas palavras que se digna proferir?... Homens que se arrastam a seus pés?-.. Que lhe suplicam? Que choram?... E você, você ri, zomba deles? Diz: "Ah, minha cara! Se soubesse como é aborrecido, ele me adora"... E depois finge, usa de manhas, prepara sorrisos sedutores... Calcula friamente, manobra seus fantoches!... Uma carícia para este, um olhar para aquele... E este que já não me é útil, rejeito-o... Ele se desespera! Que importa... Quer morrer?... Ah, que divertido!... Ah, ah!... Ah, esses risos de coquete que me arranham os ouvidos! Eu os farei calar!

Ergueu a mão como se fosse bater-lhe. Exaltara-se à medida que falava, tremendo de uma raiva que lhe trazia espuma aos lábios.

Angélica o encarava, estupefata.

-        Baixe os olhos - disse ele -, baixe os olhos, insolente... Você não é mais rainha aqui. Finalmente vai aprender a obedecer o seu amo... Acabou-se o tempo das troças e dos caprichos. Hei de domá-la!

E como ela continuasse a olhá-lo placidamente, esbofeteou-a com uma violência inaudita. Angélica soltou um grito:

-        Oh! Você não tem o direito!

Ele zombou.

-        Tenho todos os direitos aqui... Todos os direitos sobre todas as rameiras de sua espécie que precisam aprender a baixar a crista... Você não vai demorar a aprender. Não passará desta noite, minha bela. Vai saber de uma vez por todas o que é e quem sou eu.

Agarrou-a pelos cabelos e atirou-a na cabina. Bateu a porta e girou a chave na fechadura.

Pouco depois, um estalido de ferragem anunciou uma visita. Angélica se ergueu, pronta para tudo.

Mas era apenas o imediato, Coriano, com uma lanterna na mão e acompanhado de um negrinho que trazia uma bandeja. Pendurou a lanterna na lucarna, mandou colocar a bandeja no chão, depois passeou longamente o seu único olho sobre a prisioneira. Por fim, apontando com o dedo gorducho e carregado de anéis, intimou:

-        Coma!

Quando ele se retirou, Angélica não pôde resistir ao odor agradável que se elevava da bandeja. Havia bolinhos de camarão, uma sopa de moluscos e laranjas. Uma garrafa de vinho acompanhava a refeição. Angélica devorou tudo. Estava quase sem forças, moída de fadiga e de emoções.

No momento em que ouviu do lado de fora o passo lento do Marquês d'Escrainville, que se aproximava, achou que ia gritar.

O pirata girou a chave na fechadura e entrou. Sua altura o obrigava a inclinar-se um pouco, sob o teto baixo. A claridade avermelhada da lanterna o iluminava de baixo para cima, e ele seria belo com suas têmporas grisalhas, o rosto bronzeado e os olhos claros, não fosse aquele ricto que lhe deformava a boca.

-        Então - perguntou, dando uma olhada na bandeja vazia -, a senhora marquesa fartou-se com seu mingau?

Ela não se dignou de responder, olhando em outra direção. Ele pousou-lhe a mão sobre o ombro nu. Ela esquivou-se e refugiou-se num canto estreito no fundo ;do aposento. Procurava uma arma com os olhos e não via nenhuma. Ele a espreitava como um gato cruel.

-        Não, não me escapará... Não esta noite. É nesta noite que faremos as contas, e você me pagará.

-        Mas não lhe fiz nada - protestou Angélica.

Ele riu.

-        Se não foi você, foram suas irmãs... Vá! Você fez o bastante a outros para merecer.ser cem vezes punida. Diga, quantos foram os que se arrastaram a seus pés? Diga, quantos?

Tomada de pânico diante do clarão de loucura que dançava na olhar dele, ela procurava uma saída com os olhos.

-        Começou a sentir medo, hein? Gosto mais assim... Já não é orgulhosa? Logo~ há de me suplicar. Sei fazer as coisas.

Desafivelou o boldrié e o atirou sobre a cama, junto com o sabre. Fez o mesmo com o cinto e, comum cínico despudor, começou a abrir a roupa.

Ela agarrou o que lhe estava ao alcance da mão, um pequeno escabelo, para atirar contra ele. O marquês esquivou-se do projé-til e, escarnecendo, avançou para a jovem e agarrou-a. Ao inclinar o rosto para o dela, levou uma mordida na face.

-        Loba! - gritou ele.

Invadido por uma cólera irracional, esmurrou-a e tentou jogá-la no chão.

E foi uma luta silenciosa e selvagem, na estreita despensa cujas paredes de madeira ressoavam sob os embates furiosos dos dois corpos enlaçados.

Angélica sentiu que perdia as forças depressa. Caiu. D'Escrain-ville, ofegante, manteve-a colada ao chão com todo o seu peso. Observava os últimos sobressaltos de cólera de sua vítima. Ela não Podia mais, e sentia toda a força deixar-lhe os membros; tinha apenas a vontade de virar a cabeça da direita para a esquerda para fugir daquela máscara escarnecedora inclinada sobre ela.

-        Calma, minha bela... Calma. Isso, assim, agora está boazinha...

Deixe-me olhá-la de mais perto.

Rasgou-lhe a blusa do vestido e com um grunhido de prazer pousou nela os lábios ávidos. Repugnada, ela se torcia para escapar-lhe outra vez, mas ele a apertou com mais força, abriu-lhe as pernas, pouco a pouco dominando aquele corpo revoltado. No momento em que ia possuí-la, ela teve um último sobressalto. Ele praguejou e investiu selvagemente, enquanto ela urrava de dor. Durante minutos intermináveis ela teve que suportar-lhe o furor cego que a devastava, aceitar que ele se saciasse sobre ela, com arquejos de animal na pocilga.

Quando ele se ergueu, ela ardia de vergonha.

Ele a levantou, deu-lhe uma olhada no rosto lívido, repeliu-a, e ela voltou a cair pesadamente a seus pés.

-        E assim que gosto das mulheres - disse ele -, só lhe falta chorar.

Recompôs-se em seu traje vermelho, afivelou o cinto.

Angélica apoiava-se numa mão, enquanto com a outra tentava cobrir o corpo com os farrapos do vestido. Os cabelos louros pendiam-lhe como um véu diante do rosto, descobrindo-lhe á nuca abaixada.

D'Escrainville deu-lhe um ultimo pontapé.

-        Chora. Mas chora mesmo!

Ela só chorou depois de ele se haver distanciado. Aí um fluxo de lágrimas ardentes inundou-lhe o rosto. Penosamente, ergueu-se e sentou na beirada do leito. O rigor dos riscos que suportara nos últimos dias, aqueles combates perpétuos com machos no cio começavam a minar-lhe a coragem e a resistência.

As palavras do velho forçado na praia giravam-lhe na cabeça, como um carrossel infernal: "A presa é do alcatraz, o butim do pirata, a mulher é de todos".

Foi sacudida por soluços violentos e permaneceu assim até que, no meio da madrugada, leves batidas na porta vieram arrancá-la a seu desespero.

— Quem está aí?

— Sou eu, Savary.

CAPÍTULO XVIIL

Como se doma uma escrava

— Permitiria que eu entrasse? - cochichou o ancião, passando pelo vão da porta o rosto enegrecido de pinio.

— Naturalmente --respondeu Angélica, tentando se cobrir. - Foi uma sorte que aquele animal não me tenha trancado à chave.

— Hum! - fez Savary, dando uma olhada na eloquente desordem da cabine.

Sentou-se na beirada da cama, de olhos pudicamente baixos.

— Que infelicidade, senhora! Devo confessar que desde que me encontro neste navio não me sinto muito orgulhoso de pertencer ao género masculino. Peço-lhe perdão por ele.

— A culpa não é sua, Mestre Savary.

Com uma mão enérgica, Angélica enxugou as faces molhadas, e ergueu a cabeça.

— A culpa é minha. Fui bastante prevenida. Agora que se serviu do vinho, há de tomá-lo... E no final das contas, não estou morta. Você tampouco, e isso é o essencial... Como vai o pobre Pannassave?

— Mal. Delira de febre.

— E você? Não corre o risco de alguma punição grave, vindo visitar-me assim?

— O chicote, o bastão ou ser atado pejos polegares às vergas baixas, dependendo dos humores de nosso distinto marquês.

Angélica sentiu um arrepio.

— Esse homem é horrível, Savary! Nota-se que é capaz de tudo.

— É um fumante de haxixe - disse o velho boticário, preocupado. - Percebi imediatamente pelo olhar dele, às vezes alucinado. Essa planta da Arábia provoca em quem a utiliza verdadeiras crises de loucura. Nossa situação é crítica...

Esfregou as mãos brancas e magras. De coração oprimido, Angélica pensou que aquele velhinho frágil em andrajos, de ralos cabelos brancos a lhe emoldurar o cadavérico rosto azul e verde, era tudo o que lhe restava como apoio.

Em voz baixa, Mestre Savary começou a dizer-lhe que não perdesse a coragem. Dentro de poucos dias poderiam fugir.

— Fugir! Oh, acreditar que seja possível, Mestre Savary? Mas como...

— Psiu! De fato não se trata de empresa fácil, mas desta vez seremos ajudados pelo fato de que Pannassave pertence aos homens do Rescator. Aliás, você tinha suspeitado disso. Pannassave é um dos inúmeros navegantes, pescadores e comerciantes que o auxiliam em seu tráfico. Ora, Pannassave explicou-me bem. Na confraria, o mais humilde transportador de pinio, seja muçulmano, seja cristão, tem a garantia de jamais apodrecer nos porões dos mercadores de escravos. Para salvar seus homens, o Rescator tem cúmplices em toda parte. É por isso que há muitos trabalhando para ele.

Savary inclinou-se, sua voz tornou-se um sopro.

— Aqui mesmo, neste navio, há cúmplices. Um dos salvo-condutos misteriosos que o marselhê-s guardava no envelope encerado, entre um pavilhão dos Cavaleiros de Malta e uma bandeira do Duque d? Toscana, lhe servirá de sinal de reconhecimento para obter o auxílio das sentinelas que o guardam.

— Acredita realmente que as sentinelas desse medonho D'Escrainville se farão de cúmplices? Estariam arriscando a morte...

— ... ou a fortuna! Parece que, na confraria dos traficantes de prata, os cúmplices de uma evasão recebem somas fabulosas. Assim decidiu o patrão oculto, esse Rescator que já tivemos a perigosa honra de encontrar. Ignora-se se esse Rescator é da Barbaria, turco ou espanhol, se é cristão ou renegado ou simplesmente de origem muçulmana, mas uma coisa é certa: não tem ligação alguma com os comerciantes corsários do Mediterrâneo, brancos ou negros, todos mercadores de escravos. Tira sua riqueza fabulosa do ilícito comércio de prata. Isso enfurece os outros, que não entendem esse mistério de um pirata que pode ter êxito nos negócios sem se consagrar ao tráfico de carne humana. Tem contra si tanto os venezianos, os genoveses e os Cavaleiros de Malta, quanto os argelinos de Mezzo Morte ou os turcos mercadores de Beirute. Mas é poderoso, pois todos os que trabalham para ele se dão bem. Pannassave, por exemplo, que conseguiu salvar uma parte de sua carga, vai receber o suficiente para comprar um barco no mínimo tão belo quanto o Lajoliette. Mas é-preciso aguardar que o nosso pobre marselhês se recupere do ferimento para tentar a aventura.      

— Contanto que não seja muito tempo! Oh, Mestre Savary, como agradecê-lo por não me abandonar, agora que já não posso ser-lhe útil de maneira alguma?

— Poderia eu esquecer, senhora, como se dedicou, com que gentileza, para me obter a múmia mineral que o embaixador persa levou de presente a nosso Rei Luís XIV? Você fez muito pela causa da ciência, que é minha única razão de viver. Mas mais ainda do que pelo serviço prestado, é por sua deferência pela ciência, senhora, que lhe agradeço. Uma mulher que tem tal respeito pela ciência e pelos obscuros trabalhos dos sábios não merece desaparecer no labirinto de um harém para servir de brinquedo a muçulmanos lascivos. Farei tudo o que puder para poupá-la desse destino.

— Quer dizer que é esse o destino que me reservaria o Marquês d'Escrainville?   

— Eu não ficaria surpreso se fosse.

— Não é possível! É um aventureiro imundo, certamente, mas é francês como nós, e sua família é de antiga nobreza. Um projeto tão monstruoso não pode passar-lhe pela cabeça.

— É um homem que sempre viveu nas colónias do Levante, senhora. Veste-se como um gentil-homem francês. Mas sua alma, se é que a tem, é oriental. Dificilmente se escapa a isso - disse Savary, com um sorrisinho. - No Oriente respira-se o desprezo a mulher junto com o odor de café. D'Escrainville vai tentar vendê-la ou conservá-la para si.

— Confesso que nenhuma dessas perspectivas me inspira.

— Ê inútil que se inquiete. Até chegarmos a Messina, o mais próximo mercado de escravos, espero que Pannassave esteja curado e que possamos levar avante nossos planos.

Graças à visita de seu velho amigo, Angélica enfrentou o dia seguinte com coragem renovada. Ao despertar, teve a surpresa de encontrar sobre o baú seu traje cinza lavado, seco e até passado, e num canto, suas botas bem engraxadas. Vestiu-se esforçando-se por pensar em Savary e suas promessas e esquecer a cena terrível da véspera. Quis convencer-se de que não fora grave, e que aparentar um abatimento excessivo a faria cair definitivamente sob o jugo do corsário que gostava de infligir tormentos. O melhor seria encarar as coisas com uma indiferença aparente. Como o sol começava a aquecer-lhe a cabine, ela se insinuou por sobre a coberta, feliz por encontrar o local deserto... Prometera a si mesma que ficaria bem tranquila e tentaria não se fazer notar. Mas desta vez foram lancinantes gritos de crianças que a arrancaram a seu devaneio.

Há coisas que uma mulher que é mãe não pode suportar sem que nela desperte um instinto de defesa, primitivo e cego. São os gritos de chamado ou de terror de uma criança em perigo. Aquela vozinha delirante de medo que perfurava o ar quente acima dela, Angélica sentiu arrepiarem-se-lhe as costas.

Deu alguns passos, ainda hesitando. Pareceu-lhe que aos soluços aterrorizados misturavam-se risos de homem feroz. Subitamente, ela se atirou e galgou a escada do tombadilho, de onde vinha o tumulto.

Estacou sem compreender de imediato o espetáculo que tinha diante dos olhos.

Um marujo, junto da amurada, mantinha suspensa no vazio uma criança de três a quatro anos, que berrava. Bastaria que o homem soltasse a gola da pequena camisa para que a criaturinha fosse engolida pelo mar, oito toesas abaixo.

O Marquês d'Escrainville, com um sorriso nos lábios, olhava rodeado de alguns homens da tripulação, que, assim como ele, pareciam divertir-se fantasticamente.

A alguns passos, um mulher de olhos esgazeados, segura por dois outros marinheiros, debatia-se em silêncio. D'Escrainville se dirigia a ela numa língua que Angélica desconhecia, certamente grego.

A mulher pôs-se a arrastar-se de joelhos na direção dele. Chegando aos pés do corsário, baixou a cabeça, depois teve uma súbita hesitação.

O marquês deu uma ordem. O homem soltou o menininho e o agarrou com a outra mão, enquanto a criança berrava:

— Mamãe!

A mulher foi sacudida por calafrios atrozes. Inclinou-se de novo e tocou com a língua as botas do pirata.

Os homens gritaram grosseiramente de alegria. O marinheiro atirou a criança no chão como um gatinho qualquer, e enquanto a mãe a agarrava selvagemente, D'Escrainville ria desenfreadamente.

-        Meu maior prazer! Uma fêmea" que me lambe as botas. Ah, ah!...

Tudo o que havia em Angélica de orgulho, de consciência de sua dignidade de mulher revoltou-se. Ela atravessou a passarela, foi na direção do Marquês d'Escrainville e,esbofeteou-o com todas as forças.

-        Hein! - fez ele, levando a mão ao rosto.

Olhou incrédulo a silhueta surgida subitamente de um jovem pajem de olhos faiscantes.

-        Você é a criatura mais abjeta, mais vil, mais repugnante que jamais conheci - disse ela, de dentes cerrados.

O sangue subiu ao rosto do corsário. Ergueu o chicote de cabo curto do qual quase não se separava e fustigou a insolente. Angélica se protegeu com os dois braços. Levantou a cabeça de novo e cuspiu em D'Escrainville. Ele recebeu a cusparada em pleno rosto.

Os homens calaram-se. Não ousavam mover-se, ao mesmo tempo aterrorizados e embaraçados pela humilhação do chefe.

Ser tratado assim por uma escrava, diante da própria tripulação!

Lentamente, o Marquês d'Escrainville puxou o lenço e enxugou o rosto. Estava lívido, e os vestígios dos dedos de Angélica e da dentada da véspera destacavam-se em vermelho.

-        Ah, a senhora marquesa levanta a cabeça! - disse ele numa voz surda e como que sufocada pela raiva. - O tratamentozinho de ontem à noite não bastou para acalmar-lhe os humores belicosos? Felizmente tenho de reserva outros meios.

Voltando-se para seus homens, rugiu:

-        O que esperam para agarrá-la? Joguem-na no porão!

Angél ica, solidamente segura, foi arrastada pelas escadas de madeira que mergulhavam nas profundezas do navio.

O Marquês d'Escrainville seguiu-a. Depois de percorrerem um corredor escuro, detiveram-se diante de uma porta.

-Abra! - disse o chefe ao marujo que vigiava nas trevas, junto a um mirrado toco de vela.

O homem pegou o molho de chaves e girou vários ferrolhos.

O baixo porão, onde reinava uma turva claridade vinda de uma única vigia, era atravessado pelos suportes do mastro principal. Esse pilar central servia de base a inúmeros aros de onde saíam correntes. A volta, sobre tabiques, homens deitados ergueram-se vagamente.

— Tire-lhes os ferros - disse o marquês ao carcereiro.

— De todos?

— Sim.

— Eles são perigosos, o senhor sabe.

— Isso não me desagrada!... Faça o que lhe digo. E depois que se alinhem à minha frente.

O carcereiro foi girar as chaves na fechadura que mantinha um aro de ferro no tornozelo de cada prisioneiro. Os homens soergueram-se, sorrateiros. As caras hirsutas, as testas baixas sob a boina de lã ou o lenço amarrado dos flibusteiros não tinham nada de tranquilizador. Entre eles havia franceses, italianos, árabes e também um negro enorme, com o peito tatuado de sinais berberes.

O Marquês d'Escrainville examinou-os longamente, depois abriu os lábios num sorriso cruel. Voltou-se para Angélica.

-        Ao que parece um único homem não basta para domá-la! Mas vários, quem sabe? Olhe-os bem. Não são bonitinhos? São os mais fortes do meu navio. De tempos em tempos sou obrigado a colocá-los a ferros para lembrar-lhes a disciplina. A maioria dos que estão aqui não teve direito às delícias de uma escala há vários meses. Não tenho a menor dúvida de que sua visita os deixará encantados.

Empurrou-a bruscamente na direção deles e na penumbra pútrida da masmorra a lourice de Angélica causou o efeito de uma aparição.

— Madonal -- rosnou um dos prisioneiros.

— É para vocês!

— Uma mulher?

— Sim. Façam dela o que lhes parecer melhor.

Puxou a porta atrás de si, e Angélica ouviu o girar das chaves nas fechaduras.

Os homens a contemplavam, imóveis e como em alerta.

-        Não é uma mulher?

-        E, sim.

Bruscamente duas mãos enormes aprisionaram a jovem. O negro lhe viera por trás a passos de lobo e agarrara-a pelos seios. Ela gritou, debatendo-se, horrorizada por aquelas duas garras negras. O riso cavernoso do negro rebentou como uma fanfarra. Os outros se achegaram com um pulo ágil.

-        É uma mulher mesmo. Não há dúvida.

Sob o toque obsceno, Angélica se contorceu, atirou o pé para a frente. Sua bota atingiu um rosto que ria. Um homem praguejou levando a mão ao nariz.

Agora ela sentia por toda parte mãos que a imobilizavam. Abriram-lhe os braços em cruz, amarraranvlhe cordões à volta dos pulsos. Um trapo sujo foi-lhe enfiado na boca, como mordaça.

Depois o turbilhão brutal cessou como que por encanto, enquanto vigorosas chicotadas estalavam como cargas de mosquete pelo porão.

Angélica, um pouco despenteada e amarrotada, mas ilesa, viu-se diante do imediato, Coriano, o caolho, que rodopiava o chicote e fazia recuar os brutamontes.

-        Ponha-os a ferros de novo e apresse-se! - urrou ele, despachando o carcereiro com um pontapé.

Como os prisioneiros não pareciam dispostos a ceder e resmungassem, o imediato sacou de sua longa pistola e atirou no grupo. Um homem caiu, uivando.

O Marquês d'Escrainville apareceu na soleira.

-        No que é que você se mete, Coriano? Fui eu quem mandou tirar-lhes os ferros.

O imediato fez meia volta com uma vivacidade inesperada pára a sua compleição.

-        Está louco, não? - rugiu. - Deu esta mulher a eles?

-        Sou o único juiz das punições que inflijo aos escravos indóceis.

Coriano parecia um javali negro, prestes a atacar.

-        Está louco, não? - repetiu. - Uma mulher que vale ouro a estes montes de esterco, a estes porcos, a estes rebotalhos da humanidade! Não lhe basta que os Cavaleiros-de Malta nos tenham capturado nossos segundo bergantim aolargo de Túnis... Não lhe

basta que tenhamos perdido toda a carga, perto de seis mil piastras de munição e mercadoria? Não lhe basta saber que a tripulação há seis meses não recebe sua parte do butim? Que trabalhamos como animais com as ninharias das ilhas e das costas da Africa? Não?...Ainda é preciso que deixe escapar a sorte que fez cair essa mulher em nossa rede... Uma mulher assim! Loura, branca, olhos como a água do mar, bem-feita, nem muito alta, nem muito baixa... Nem muito verde, nem muito madura... exatamente como deve ser... Que teve patifes suficientes para lhe ensinarem a fazer amor sem lhe tirar o viço... Não sabe que as "virgens" baixaram no mercado? Que é justamente isto o que procuram em Constantinopla... Isto, que deu como pasto a esses selvagens!... Não lhes viu as caras? Não? Há mouros aí no meio... Desacorrentados, seria preciso lançar-lhes uma granada em cima para que soltassem a presa!... Lembre-se do estado da italianinha que ofereceu "ao porão" no ano passado?... Só restou jogá-la pela amurada! Coriano parou para respirar um pouco.

-        Acredite, patrão - continuou, mais calmo -, no batistan de Cândia vão brigar por ela. Pode-se dar três voltas ao mundo sem nunca topar com uma mulher como esta.

Pôs-se a contar nos dedos:

— Primo: é francesa. O artigo é procurado mas é raro. Secundo: foi educada, o que se percebe pelas maneiras dela. Tertio: tem ca-ráter, o que varia um pouco das palermas orientais. Quarto: é loura...

— Você já disse isso - interrompeu D'Escrainville com humor.

— E fomos nós! Nós que lhe pusemos as mãos em cima. Quando se tem uma sorte dessa, não se faz uma... Eu lhe digo que se pode ganhar dez mil piastras com ela, talvez doze. O suficiente para comprar um casco!

O pirata fez muxoxo. Refletia. Por fim, girou nos calcanhares e afastou-se.

Coriano retirou Angélica do antro repugnante. Subiu com ela e instalou-a na cabina, vigiando-a ciumentamente.

Ela ainda tremia.

— Quero agradecer-lhe, senhor - disse.

— De nada - grunhiu o caolho, esquivo -, não foi por você, foi pelos meus escudos. Não gosto que desperdicem mercadoria.

CAPITULO XIX

A justiça entre os piratas

-Senhora! Bela senhora! Quer beber?

A voz suave insistia: Angélica soergueu-se sobre um cotovelo. A cabeça doía-lhe, tinha a testa como que de chumbo.

-        Beba! Está com sede.

A jovem avançou os lábios para a taça que lhe estendiam. A água fresca fez-lhe bem. Sim, ela estava com sede, com muita sede.

O rosto miúdo com grandes olhos negros parecia dançar-lhe à frente.

— Você fala francês?"

— Foi o patrão que me ensinou.

— De onde você é?

— Sou grega.

— Por que está neste navio?

— Porque sou escrava. Faz doze luas que o patrão me comprou. Mas agora cansou-se de mim... Deixa seus homens me atormentarem... No outro dia, sem você...

— Onde estamos?

— Ao largo da Sicília. Vi o clarão do vulcão à noite. Fumega, o maldito.

-        A Sicília... - repetiu Angélica maquinalmente.

Estendeu a mão e acariciou a cabeleira cacheada. A presença quase fraternal daquela mulher lhe fazia bem.

-        Fique um pouco comigo.

A grega lançou olhares assustados à volta.

— Não me atrevo a ficar muito tempo... mas voltarei. Eu a servirei, porque foi boa para mim... Quer beber mais?

— Sim, quero. Ajude-me a tirar a roupa. Está me queimando a pele... Foi você quem ontem a secou e passou?

— Sim.

Com gestos muito delicados, Ellis ajudou Angélica a tirar as botas, o casaco, os calções e a camisa. Via as olheiras plúmbeas que marcavam os olhos da cativa francesa e fitava-a, assustada.

Angélica enrolou-se no lençol e caiu pesadamente na cama.

-        Eu estava com muito calor - disse. - Assim está melhor.

Não ouviu a escrava retirar-se furtivamente. A marcha rápida do navio a arrastava em seu balanço ritmado. Acima dela vibrava às vezes o estalejar seco das velas enfunadas.

O navio corria, e Angélica se dizia que seguia rumo a seu destino. Sempre sonhara com isso, desde o dia em que seu irmão Josse-lino lhe gritara: "Parto para o mar..."

O navio a levava para seu amor... Mas seu amor recuava no horizonte... "Joffrey de Peyrac ainda se lembrará de mim, ainda me quererá?", perguntou a si mesma, numa súbita lucidez. "Reneguei-lhe o nome, ele me terá renegado a lembrança..."

"As cinzas do vulcão caem de todos os lados. Recobrem os caminhos onde ninguém mais passa há muito tempo... Não lhe encontrarei os vestígios... Vou morrer sob suas cinzas", pensou Angélica. "Estou sufocando, sinto tanto calor, elas me queimam o corpo todo, mas agora sei que ninguém virá me socorrer..."

A porta entreabriu-se sobre o halo de uma lanterna que rompeu a escuridão da cabina. A luz esfumaçada, o rosto cor de argila esmaltada do Marquês d'Escrainville inclinava-se sobre ela.

-        E então, bela fúria, meditou? Tomou a decisão de ser dócil?

Ela estava deitada de bruços, a cabeça entre os braços. Parecia uma estátua de mármore, com o brilho de seus belos ombros pálidos na penumbra e de sua cabeleira espalhada. Mas sua imobilidade não era a do sono.

Ele franziu o cenho, pousou rapidamente a lanterna sobre a mesinha e se inclinou para èrguê-la. O corpo de Angélica entregou-se-lhe sem hesitações. Sua cabeça pendeu contra o ombro do pirata.

A coberta escorregou, revelando a beleza de seu torso, de uma brancura dourada, modelada de sombras suaves.

Aquela carne queimava. O pirata teve um sobressalto. Ergueu- lhe o rosto para examiná-la. A cabeça de Angélica caiu para trás, como que levada pelo peso da pesada cabeleira. Palavras precipitadas escapavam-lhe dos lábios que se estiravam num sorriso misterioso.

-        Meu amor! Meu amor!

Entre as pálpebras semicerradas, -o olha? se esquivava, inerte.

Os olhos do Marquês d'Escrainville passaram daquela fisionomia transtornada por uma intensa expressão de dor e ternura para aquele corpo nu, pesado e macio contra ele.

Recompôs-se e com todo o cuidado estendeu-a na cama e cobriu-a.

Do lado de fora, teve a impressão de ver uma silhueta que fugia sub-repticiamente. Chamou:

-        Ellis!

Ela voltou até ele, segurando o véu abaixo dos enormes olhos escuros. Ele fez um gesto na direção da cabina:

-Essa mulher está doente. Cuide dela.

Angélica imaginou-se num pesadelo. Estava sozinha no escuro, num navio que singrava na noite rumo a um destino desconhecido. Ela ouvia o sussurro do vento no cordame, os estalidos das velas e o choque surdo das ondas contra a madeira do casco. Uma rajada passou sobre ela. A porta da cabina batia, aberta para a coberta. Via-se pouco daquela noite sem lua, mas uma luz débil filtrava-se por sob um painel, e até ela subiam a intervalos cantos em surdina, estranhos, suaves e talvez religiosos.

Angélica ergueu-se. Sentia-se fraca. Teve que fazer um esforço prodigioso para atingir a porta e apoiou-se ao batente, puxando maquinalmente sobre o corpo úmido as pontas de um longo xale que a envolvia.

A um raro raio de lua que saía detrás de uma nuvem, ela viu a extensão da coberta à sua frente, como uma estrada prateada, e se pôs a caminhar, feliz de sentir sob os pés descalços as pranchas ainda mornas.

Duas sombras passaram diante dela, e a curva de um sabre mourisco e do cano de um mosquete cintilaram.

"Guardas", disse ela consigo.

Tentava entender, mas seus pensamentos fugiam como areia por entre os dedos. A lua desapareceu. Ficou tudo escuro, e ela se sentiu vacilar no nada. Mas continuava lá. Uma lanterna balançava perto das sentinelas. Ergueu-se um painel. A claridade avermelhada vinda do interior aumentou, revelando o porão escancarado, pobremente iluminado de candeeiros, e rostos brancos e morenos amontoados, que se alçavam para a abertura. Um fétido odor de hot is aglomerados escapava dali.

"No i^átio dos Milagres o cheiro era o mesmo", pensou Angélica, "e também na prisão das galeras. São os escravos. Os pobres escravos..."

Continuou seu caminho e passou perto das sentinelas, que levaram um susto e depois se inclinaram uma para a outra, cochichando amedrontadas. Teriam imaginado ver uma alma errante?

Uma forma branca vinha ao encontro de Angélica. Um braço rodeou-lhe os ombros.

-        Onde você estava? Procurei-a por toda parte. Oh, como me deixou com medo! Venha deitar. Não fique aqui, a lua lhe fará mal. Venha, minha amiga. Venha, minha irmã!

Agora o navio estava ancorado. Angélica percebeu isso pelo balanço ligeiro e sofreado. Ergueu-se, apoiou o dorso cansado contra o madeirame. O sol entrava como uma bala pela abertura. Fora o calor quase incandescente que despertara a jovem. Ela mudou de lugar, à procura de sombra. Ruídos violentos e confusos haviam substituído o silêncio da noite. Acima dela ouviam-se correrias de pés nus. Gritos e apitos dominavam uma agitação de formigueiro em desordem.

-        Onde estou?

Passou as duas mãos sobre o rosto para tentar apagar o véu que lhe embaralhava o pensamento. Os dedos pareceram-lhe diáfanos, transparentes. Não os reconhecia. Os cabelos, sobre os ombros, estavam soltos, sedosos e até impregnados de um leve perfume. Dir-se-ia que mãos cuidadosas os haviam longamente escovado.

Procurou com os olhos sua roupa e a viu, bem dobrada e limpa, sobre o baú.

-        Foi Ellis que fez isso. Ellis, aquela escrava gentil que me chama de irmã.

Começou a vestir-se, surpresa de sentir o gibão folgado na cintura. Não encontrando as botas, calçou babuchas. Depois procurou durante um longo tempo pelo cinto.

-        Ah, é verdade. O pirata o tomou.

Pouco a pouco a memória lhe voltava. Levantou-se. As pernas continuavam trémulas. Ainda assim, apoiando-se aos tabiques, conseguiu sair. A coberta estava deserta. O barulho vinha da proa. Ela deu mais alguns passos. O ar fresco a fez vacilar e ela quase caiu. Então soltou um débil grito deêxtase. Havia uma ilha ali, projetando contra um céu dourado o perfil puro e branco de um pequeno templo antigo. O monumento erguia-se solitário no cume de uma montanha baixa, meio verde, meio cinzenta, ao mesmo tempo rochosa e luxuriante, que o ostentava como um diadema coroado de uma pérola. A brancura do templo tremia no ar límpido, saturado de luz. Parecia um navio irreal, prestes a se lançar rumo à serenidade dos campos elísios. Em toda a volta, inúmeras colunas, erguidas como lírios entre ervas daninhas, desenhavam a lembrança de outros templos, outros altares desaparecidos. Ruínas!...

O olhar de Angélica desceu a encosta da montanha e encontrou, na margem, uma aldeia de rústicas casas quadradas, agrupadas em torno de um campanário em estilo oriental. Homens e mulheres vestidos de preto, reunidos na praia, olhavam na direção do bergantim fundeado na baía. Era lá que acontecia o espetáculo.

Uma porta bateu bem perto de Angélica, e um homem saiu bruscamente. Passou junto dela sem a ver. Ela reconheceu a casaca vermelha, um pouco desbotada, com bordados esfiapados, e principalmente o rosto, marcado por pequenas rugas e que no momento acusava uma expressão de cólera louca. "O Marquês d'Es-crainville." Ela o vira inclinado sobre ela enquanto se debatia contra uma terrível sensação de sufocamento. Aquele rosto repuxado numa careta lembrava-lhe as horas de luta extenuante. Recuou, dissimulando-se o melhor que pôde.

Uma exclamação a seu lado provocou-lhe um sobressalto.

-        Oh, é verdade então que você está curada! - disse Ellis. - Foi por isso que levantou esta noite... Sente-se melhor?

-        Quase bem, sim. Mas o que é essa confusão?

A jovem grega anuviou-se.

— Um escravo fugiu esta noite, aquele velhinho que era seu amigo.

— Savary! - exclamou Angélica, enquanto sentia uma sensação de vazio.

-        Sim. E o patrão está furioso, porque lhe dava muita importância, por causa da ciência dele.

Angélica quis correr para a proa, de onde vinha o rumor. Ellis a reteve.

— Não se mostre... O patrão está enlouquecido!

— Mas eu tenho que saber!

Resignada, Ellis deixou-a ir. Juntas, aproximaram-se o máximo possível e observaram a cena, escondendo-se por trás de rolos de cordas.

Toda a tripulação estava reunida na proa, ao pé do tombadilho, assim como uma multidão disparatada que deviam ser os escravos entrevistos no fundo do porão. Havia mulheres e crianças, homens na força da idade, jovens e até anciãos, toda uma variedade de tipos brancos, pardos, morenos e negros, usando os mais diversos trajes, desde as sólidas vestes bordadas em cores berrantes dos camponeses ribeirinhos do Adriático até os albornozes árabes e os véus escuros das mulheres gregas.

D'Escrainville lançou-lhes um olhar alucinado, depois injuriou Coriano, que subia a escada do tombadilho com seu passo pesado e filosófico.

-        Aí está no que dá a fraqueza! - berrou ele. - Deixei-me lisonjear por aquele maldito corvo velho de boticário. Sabe o que ele fez? Fugiu. O segundo escravo que escapa de meu navio em menos de um mês. Antes isso nunca me havia acontecido. A mim, que sou o Terror do Mediterrâneo!

"Não foi por nada que recebi esse apelido. E me deixo enrolar por um miserável inseto, com o qual não pude nem lucrar cinquenta piastras em Livorno e que me enredou com seus discursos até me arrastar a estas ilhas infelizes sob o pretexto de que aqui eu encontraria a fortuna com não sei que produto miraculoso que se cava com pá. E dizer que acreditei nele, asno velho que sou! Deveria ter-me lembrado de que o recolhi junto com aquele maldito provençal que conseguiu fugir em seu veleiro. Um casco de nogueira que eu tivera o cuidado de consertar para obter um bom preço. Nunca zombaram de mim dessa maneira! E hoje, o botica-no!

-        Ele teve cúmplices, pode crer. Seja entre as sentinelas, seja entre a tripulação ou os escravos.

— É o que vou descobrir. Coriano, todo mundo está aí?

— Sim, senhor.

— Então, vamor rir um pouco. Ah, ah! Não se zomba por muito tempo do Marquês d'Escrainville. E se um dia eu encontro esse maldito boticário, esmago-o como a um percevejo. Mas eu deveria ter lembrado que foi esse velho demónio quem nos afundou um caíque. Bom. Venham todos!

Estavam todos ali, ninguém se moveu. Em silêncio, olhavam com inquietação para o tombadilho.

-        Esta noite, um caíque de bordo foi desamarrado e fugiu, levando um escravo. Quais foram as sentinelas que fizeram os turnos da noite? Houve seis. Que esse seis se apresentem.

Denunciem-se. Sua vida será poupada. Ou os culpados, se se denunciarem, serão punidos apenas com a expulsão de minha tripulação e o desembarque nesta ilha. Denunciem-se, antes que eu termine de traduzir para o italiano, o grego e o turco.

Repetiu o discurso nas três línguas. O Capitão Mateus encarregou-se do árabe.    ;

A declaração foi recebida em silêncio absoluto, cortado por algumas garrulices de bebés rapidamente chamados à ordem pelas mães atemorizadas. Um dos vigias se apresentou finalmente e gritou alguma coisa.

D'Escrainville e Coriano consultaram-se com o olhar.

-        Não sabem de nada. É clássico. "Pois bem, senhores, já que insistem, terão a punição habitual. As sentinelas vão tirar a sorte. O que a sorte designar como culpado será enforcado. Para começar, você aí, e você também, avancem!

Os dois homens indicados saíram de seus lugares e subiram ao tombadilho.

Um era um belo negro, o outro, um tipo mediterrâneo, corso ou sardo talvez, de cabelos claros junto à pele bronzeada.

Nenhum dos dois tremia. Entre os flibusteiros, era frequente deixar que a sorte designasse aquele que devia pagar por todos. Ninguém se esquivava à prática.

-        Aqui está uma concha do julgamento de Deus - disse D'Escrainville. - Cara é o dorso para cima. Coroa é a abertura. Cara é a morte. Você, Mustafá. Comece.

Os lábios do negro moveram-se.

-        Inch Allah!

Pegou a concha e lançou-a para o alto.

— Coroa.

— Você, Santario.

O sardo persignou-se e atirou a concha.

-        Cara!

Uma indizível expressão de alívio apareceu no rosto do negro. O sardo baixou a cabeça. D'Escrainville escarneceu:

-        A sorte o designou, Santario. Mas você talvez não seja culpado. Se tivesse falado, teria sido poupado. Agora é tarde demais! Ás vergas!

Dois marujos avançaram e pegaram o homem.

-        Esperem - disse o pirata -, não vamos deixá-lo partir sozinho lá para cima. Vejamos os escravos agora. Não viram nada da fuga, não ouviram nada e naturalmente nenhum falará. Mas também pagarão, e a sorte designará um deles para isso. Como o julgamento precedente se pronunciou contra um cristão, desta vez escolheremos apenas entre os muçulmanos.

Mal terminara a tradução e ergueu-se um brado de indignação das fileiras de cativos mouros e turcos. Um homem idoso, com um fino rosto de árabe e barba tingida de ruivo, protestou violentamente. Coriano traduziu:

-        Ele diz que a justiça de Deus deve escolher ela mesma entre fiéis e infiéis.

D'Escrainville zombou:

-        Ora, ora, crianças, o cativeiro não elimina as suas querelas de crentes. Pois bem, que esse velho muezim jogue a concha. Se der cara, ele mesmo escolherá a vítima entre seus correligionários.

O ancião voltou-se para o levante, prosternou-se três vezes, e pronunciou algumas palavras.

-        Diz ele que, se Deus escolher um maometano para pagar, ele próprio aceitará a morte, pois é mula, ou seja, padre de Argel.

-        De acordo! Basta de momices. Jogue a concha, velho macaco!

O religioso atirou a concha.

-        Coroa - gritou D'Escrainville, rebentando num riso histérico. - Velho farsante! Tem sorte de se safar. Agora, que os cristãos forneçam um padre para espichar a língua. E então, enviem seu abençoador. O quê? Não há padre? Não há padre?... Não há padre? - berrou D'Escrainville com seu riso de demente. - Então vamos nos divertir. Vamos tirar a sorte entre o mais velho e o mais jovem dos escravos cristãos. Ninguém com menos de dez anos, evidentemente. Não sou o Minotauro.

Fez-se um silêncio mortal, depois ecoaram os lamentos de mulheres e de mães que tentavam proteger com o corpo garotos de uns doze anos que se agarravam a elas.

-        Depressa! - berrou D'Escrainville. - Num navio, a justiça deve ser rápida. Saiam da fileira ou eu...

Nesse momento, uma surda & violenta detonação que parecia vir do interior do navio ribombou, cortando a palavra ao possesso. Houve um instante de estupor, depois ouviu-se um grito:

-        Incêndio!

Uma fumaça branca começava a subir da popa do L 'Hermes, escapando lentamente pelas aberturas de ventilação, tapadas com grades de madeira.

O pânico agitou os escravos, logo chamados à ordem pelos chicotes dos guardas.

D'Escrainville e seu estado-maior precipitaram-se para a popa.

-        Onde está o prjmeiro-mestre da coberta? - berrou ele.

Um grupo de marujos atemorizados e hesitantes avançou.

-        Quatro homens para levantar o painel e quatro homens para descer e ver- o que está acontecendo! Isso vem do anexo dos víveres, ao lado das cozinhas.

Mas ninguém se'moveu uma polegada sequer. Os espectadores pareciam petrificados por algo de insólito.

-        É o fogo do Diabo, senhor - balbuciou um dos marinheiros. - Olhe essa fumaça, não é natural, cristã...

De fato, as nuvens que escapavam pela escotilha pairavam pesadamente sobre o solo, às vezes de uma brancura guache densa para de repente se dissiparem como uma bruma semelhante à que se eleva do fundo de um lugar úmido. D'Escrainville avançou como se quisesse segurar a fumaça na mão e levou-a ao nariz.

-        O cheiro é estranho.

Ele dominou-se, arrancou a pistola do cinto de Coriano e vociferou:

-        Acerto-lhes nas nádegas se não descerem imediatamente, conforme ordenei!

De repente, a grade do painel pareceu soerguer-se por entre os vapores. As testemunhas gritaram, e o próprio D'Escrainville recuou um passo.

— Uma aparição!

— Um ressuscitado!

De uma nuvem particularmente densa, surgiu uma forma envolta num pano branco molhado, de onde saiu uma voz abafada:

— Rogo-lhe, Sr. D'Escrainville, não se dê ao trabalho pessoalmente, não foi absolutamente nada...

— O que... o que significa isso? - gaguejou o pirata, desconcertado. - Alquimista infeliz! Não contente de nos fazer correr desde a manha, põe fogo em meu navio?

A figura pareceu desprender-se de seu casulo. Num instante surgiram a cabeça e a barbicha de Savary, depois ele espirrou, tossiu, cobriu-se de novo com sua mortalha e, dirigindo vários sinais tranquilizadores à multidão, sumiu por trás do painel, que se fechou sobre a aparição.

Angélica e todos os presentes acreditaram ter assistido a um sortilégio. Mas logo Savary se mostrava, subindo desta vez pela escada que comunicava com a segunda coberta. Parecia calmo e de excelente humor, ainda que coberto de fuligem e com a roupa amarrotada, suja e rasgada, impregnada de um cheiro adocicado e repugnante. Explicou gravemente que não havia incêndio algum, mas que os vapores e a explosão tinham simplesmente sido causados por "uma experiência que permitia as maiores esperanças para a ciência da navegação marítima em particular".

O chefe dos piratas o mediu com os olhos, furioso:

— Então você não fugiu?

— Eu? Fugir? Por quê? Estou muito bem em seu navio, senhor marquês.

— Mas então... o caíque? Quem o soltou?

O rosto avermelhado de um jovem marinheiro de nariz pontudo surgiu à amurada. Subiu a escada de corda pelo flanco do navio e parou, surpreso diante da reunião.

-        O caíque, patrão?... Fui eu quem o pegou para ir buscar vinho na ilha esta manhã.

D'Escrainville acalmou-se, enquanto Coriano se permitia rir.

— Oh, patrão! Desde a história daquele maldito marselhês, o senhor vê fugas por toda parte. Fui eu mesmo quem disse a Pier-rik que fosse fazer a provisão de vinho hoje de manhã.

— Imbecil!

Vexado, o pirata deu de ombros e voltou-se.

Foi então que viu Angélica.

Seu rosto convulsionado descontraiu-se. Pareceu esforçar-se por moderar-se e aparentar quase amabilidade.

-        Ah, eis a nossa bela marquesa! Está curada, então? Como se sente?

Ela continuava apoiada à parede, olhando-o com um misto de horror e incompreensão. Finalmente murmurou:

— Perdoe-me, senhor, mas nãò consigo entender o que me aconteceu. Estive tão doente assim?

— Mais de um mês - respondeu o pirata com um muxoxo.

— Um mês? Oh, meu Deus! Onde estou agora?

Com um gesto, o marquês apresentou á ilha coroada de ruínas.

-        Diante do Quio, cara senhora, em algum lugar no meio das Cíclades, arquipélago da Grécia.

CAPÍTULO XX

O despertar entre as Cidades

Angélica lembrava-se de ter adormecido ao largo da Sicília e eis que despertava um mês depois, no fim do mundo, entre aquelas ilhas gregas abandonadas pelos deuses e nas mãos de um pirata mercador de escravos.

Novamente refugiada no abrigo de sua estreita cabina, tentou em vão lembrar-se do que ocorrera.

Agachada a seus pés, Ellis lhe contou como Savary e ela haviam lutado dia e noite para arrancá-la à febre maligna que a consumia. Às vezes o Marquês d'Escrainville aparecia. Olhava, impassível, a forma inconsciente que se debatia sobre o leito estreito. Depois, de dentes apertados, dizia-lhes que os esfolaria vivos se deixassem "morrer uma partida daquelas".

— Cuidei bem de você sabe, minha amiga... Quando você começou a sofrer menos da cabeça, escovei-lhe os cabelos com pós aromáticos. Estão muito bonitos agora. Em breve você estará bela de novo.

— Dê-me um espelho - pediu Angélica, inquieta.

Contemplou-se com uma careta: tinha as faces fundas e brancas, os olhos enormes. Pensou que talvez o pirata desistisse de vendê-la.

— Não se envergonha de estar vestida assim como homem? - perguntou Ellis.

— Não. Acho preferível.

— Que pena! Você deve ficar linda com esses vestidos das francesas de que se fala tanto.

Para agradar-lhe, Angélica descreveu-lhe algumas das toaletes que usara em Versalhes. Encantada, Ellis ria e batia palmas. Fitando-lhe o rosto jovem com meigos olhos escuros, Angélica se perguntava como uma criatura que vivera um ano na intimidade de um Marquês d'Escrainville podia ter conservado tanta alegria espontânea.

Disse-lhe isso. A jovem grega desviou o olhar.

— Oh, sabe... onde eu estava antes;... era pior. Ele não é tão mau. Deu-me presentes... Ensinou-me a ler, sim. Ensinou-me francês e italiano... Eu gostava quando ele me apertava contra si e me acariciava... Mas ele se cansou. Agora não me ama mais.

— A quem ama?

Uma nuvem de rancor passou pela testa da escrava.

-        Ao cachimbo de haxixe.

Suspirou, resignada.

-        Ele fuma porque pensa sempre em alguma coisa que não pode atingir.

Coriano, o caolho, apareceu com um sorriso que se pretendia amável, descobrindo-lhe os poucos tocos de dentes negros que restavam. Disse que a jovem senhora devia colocar-se sobre a coberta. O ar estava fresco e faria muito bem à sua saúde.

Ellis colocou sobre ós ombros de Angélica um véu leve e instalou-a sobre um rolo de cordas» perto do portaló, de frente para a ilha. Um vento delicioso soprava, e elas passaram um longo tempo a olhar as cores irisadas do céu e do mar.

Pouco depois o Marquês d'Escrainville apareceu por sua vez. Teve a diplomacia de não dirigir a palavra à prisioneira, contentando-se com fazer-lhe uma profunda reverência. Depois parou perto do portaló aberto para a escada de corda, a fim de verificar o embarque da "mercadoria".

Na ilha reinava uma grande agitação. Às vezes se ouvia um grito lancinante, seguido de vários outros que se calavam bruscamente.

O caíque abordou UHermh. A "mercadoria" subiu a bordo, representada por um rapaz de dezessete a. vinte anos e um menino de uns dez anos, ambos de uma beleza de estátua, com uma tez de pêssego maduro sob longas cabeleiras negras e encaracoladas. Traziam sobre o ombro uma capa de pele de carneiro, a capa dos pastores, de quem tinham o ar de inocência. O menino ainda segurava a flauta de caniço com quatro notas que usava para chamar as cabras. Voltou os olhos para sua ilha e se pôs a gritar, estendendo os braços. Um marujo o arrastou. Em seguida vinha uma mulher. Fora ela que há instantes soltara gritos lancinantes. Agora parecia semidesfalecida. Um marinheiro a içou para bordo, e ela ficou largada sobre a coberta, a cabeça inclinada, os longos cabelos escuros espalhados sobre o soalho viscoso do navio. As mulheres que vieram em seguida tropeçavam nela. Em seguida subiram homens e inúmeros velhos. O último, um mercador, fez içar cestos cheios de uvas negras e apresentou-as a D'Escrainville. Este pegou um cacho e foi oferecê-lo a Angélica. A jovem recusou, sem vontade.

-        Está errada - disse o pirata -, isto lhe devolveria as cores ao rosto. São famosas as uvas da encantadora Quio, e seu amigo Savary pretende que é preciso comê-las para evitar o escorbuto. Ora, onde se enfiou novamente, aquele velho macaco?

Um marinheiro respondeu às gargalhadas.

-        Está na ilha, senhor, penteando bodes.

O Marquês d'Escrainville riu a bandeiras despregadas.

-        Penteando bodes? Ah, ah, ah! Nunca ouvi uma história tão engraçada. E foi bem ele quem conseguiu me convencer de que eu ganharia uma fortuna penteando todos os bodes das ilhas gregas. Ah, ah, ah!

De repente teve ufn acesso de cólera:

— Mas que ele não imagine que vou deixar-me levar como uma criança. Onde está ele? Que o encontrem! Não tenho intenção de dormir aqui.

— Lá está ele! - gritou uma voz.

Entre as silhuetas negras na praia, viu-se correr uma espécie de negrinho apressado. Pegou na última hora o bote que partia.

O pequeno boticário subiu pela escada de corda com a agilidade de um macaco, sem interromper seus discursos. Dirigia-se a D'Es-crainville:

-        A escala lhe renderá mais que uma satisfação, senhor, uma verdadeira fortuna! Recolhi mais de cem onças de ládano, e não esqueça que o famoso "bálsamo negro" que se extrai do ládano é vendido a várias dezenas de libras a onça. Com os perfumes que

obterá, colocará no bolso todas as cortes da Europa.

Para fundamentar as palavras, Savary, que punha o pé na coberta, enfiou a mão no gibão... e a mão saiu por um furo, fazendo escapar o cachimbo do velho sábio. Ele quis segurá-lo, mas involuntariamente o lançou ao mar.

A mímica desencadeou a hilaridade dos flibusteiros. A roupa puída do ancião estava toda lambuzada de uma espécie de goma. Tinha-a até nos cabelos brancos, que lhe escapavam do solidéu preto. Sua tez estava cadavérica e marcada da maneira mais estranha de traços azuis e verdes, mas os olhos-continuavam brilhando de vitalidade. Das mãos de um grumete que o seguia, Savary pegou uma pequena bacia, cujo conteúdo colocou sob o nariz de D'Escrainville.

— Olhe isto. Ládano autêntico, matéria preciosa entre todas as demais e que se equipara muitíssimo bem ao almíscar das índias, tão difícil de obter... Senhora, saúdo-lhe, finalmente está curada... Contemple esta maravilha. É ládano, como eu disse, uma substância gomo-resinosa que exsuda espontaneamente na forma de gotas das folhas de certos arbustos do género Cistus ladaniferus. Colhe-se penteando-se a" barba dos bodes e das cabras que comem as folhas desses arbustos. A substância graxa que vê aqui será fundida e purificada. Dará ládano líquido ou bálsamo negro, que encerrarei em ampolas finíssimas.

— E você me garante que farei dinheiro com essa imundície? - perguntou D^Escrainville, desconfiado.

— Garanto-lhe integralmente. É exatamente este produto que entra na composição dos melhores perfumes, para fixá-los. Os artesãos perfumistas da França e da Itália pagam a preço de ouro aos que conseguem fornecer-lhes em quantidade suficiente. E garanto-lhe uma coleta abundante, particularmente em Santorini...

— Não irei a Santorini, velho corvo! - gritou o marquês-pirata, novamente encolerizado. - Ainda o levo a Delos e a Míconos, mas depois tenho que seguir para Cândia. Quer que eu perca o grande mercado da temporada?

. - O que é isso comparado com a fortuna que...

-        Chega, não me esquente as orelhas! Junte seus utensílios e suma! Fará com que eu me arrependa de não. havê-lo vendido em Livorno, como seus companheiros.

Mestre Savary, com a humildade solícita que sabia muito bem afetar, pegou a bacia, dois grandes pentes de madeira, um pedaço de pena, e, curvando-se, fez menção de retirar-se.

— Sabe - cochichou ao passar perto de Angélica -, "consegui salvá-la.

— O quê?

— Minha múmia mineral. Lajoliette não afundou, embora estivesse em mau estado. Esse marquês gatuno mandou-a içar para bordo. Um dia consegui entrar nela e recuperar minha garrafa.

— E agora La Joliette está longe - observou Angélica, amarga.

— Infelizmente o pobre Pannassave não pôde aguardar sua cura para fazer-se ao mar. Havia o risco de que lhe divulgassem o plano ou de que o vendessem como escravo antes de poder realizá-lo. Já em Livorno o marquês liquidou um lote inteiro, do qual fez parte o seu pequeno criado.

— Meu pobre Flipot! Vendido!

— Sim, e tive um trabalho enorme para convencer nosso amo a me conservar a bordo.

— Ah, ainda está aí, bufão do diabo! - gritou D'Escrainville voltando, com um gesto de ameaça.

O sábio desapareceu como um rato por uma escotilha. Mas quando Angélica retornou à sua cabina, ele reapareceu.

— Queria falar-lhe, senhora. Minha pequena - disse a Ellis -, encarregue-se de vigiar para não corrermos o risco de sermos perturbados.

— Então permaneceu em escravidão por minha causa, Mestre Savary? - perguntou Angélica, emocionada.

— Podia eu abandoná-la? - disse o velho com simplicidade. - Você esteve muito doente e ainda não tem boa cara, mas tudo se arranjará.

— Você não adoeceu? Está com o rosto marcado de manchas azuis.

— Não, épinio, o chumbo de Pannassave. E difícil tirá-lo. Tentei limão, álcool... Acho que sairá junto com a minha pele - concluiu alegremente o sábio -, mas isso não tem importância. O importante... é escaparmos às mãos desses piratas perigosos - soltou ele, com um olhar à volta. - Mas tenho uma ideia. Psiu!

— Acredita que o Marquês d'Escrainville seguirá para Cândia?

— Com certeza, pois tem a intenção de apresentá-la no batistan.

— O que é o batistan!

O caravançará onde se realizam as vendas de escravos valiosos. Os outros são expostos nos bazares e em praça pública. O batistan de Cândia é o mais importante do Mediterrâneo. Angélica arrepiou-se.

— Não se inquiete - continuou Savary -, pois tenho outra ideia. Para realizá-la, tive que convencer esse coriáceo flibusteiro a trazer-nos para o arquipélago sob o pretexto de enriquecê-lo com produtos raros destinados à perfumaria.

— Por quê? - perguntou Angélica.

— Porque precisamos de cúmplices.

— E espera encontrá-los nas ilhas gregas.

— Quem sabe? - disse Savary, misterioso. - Senhora, serei altamente indiscreto, mas como estamos juntos na mesma situação terrível, não quererá mal a seu velho amigo se ele lhe fizer algumas perguntas? Por que encetou sozinha uma viagem cheia de riscos? Eu corria atrás da minha múmia, e você?

Angélica suspirou. Após um instante de hesitação, confiou-se ao velho sábio.       

Como, depois de haver acreditado durante anos que seu marido, o Conde de Peyrác, estava morto, condenado, ela adquirira a certeza de que ele escapara ao suplício. Como, de uma busca a outra, tivera que partir para Cândia, onde subsistia um débil indício de reencontrar a pista do desaparecido.

Savary meneava a- barbicha, em silêncio.

— Acha que sou louca" e inconsciente por me haver lançado à aventura dessa maneira? - disse Angélica.

— Certamente, é. Mas desculpo-lhe. Também eu sou um velho louco. Largo tudo e parto em direção aos perigos sem pensar neles. Sigo meu sonho no rastro de minha múmia, assim como você arremete para as piores tolices, porque lá, você não sabe onde, brilha seu amor como uma estrela na escuridão do deserto. Seremos nós loucos? Não creio. Para além da razão, há um instinto que nos guia e nos faz fremir. Assim faz a vareta de aveleira acima da nascente oculta. Ouviu falar do fogo grego? - perguntou ele, mudando subitamente de assunto. - No tempo de Bizâncio uma seita de sábios o possuía. De onde o extraía? Segundo minhas pesquisas nos locais, seriam os adoradores do fogo" de Zoroastro, na região de Persépolis, situada na fronteira da Pérsia com a índia. Era esse segredo que dava a invencibilidade a Bizâncio, enquanto os sábios bizantinos souberam conservar a fórmula do fogo inextinguível.

Infelizmente a fórmula perdeu-se por volta do ano 1203, com a invasão de Bizâncio pelos cruzados. Pois bem! Estou certo de que o segredo se encontra na múmia mineral. Ela arde sem apagar-se e, tratada de certa maneira, desprende uma essência volátil extremamente inflamável e quase explosiva. Fiz a experiência esta manhã com uma quantidade ínfima. Sim, senhora, redescobri o segredo do fogo grego!

Em sua exaltação, erguera a voz. Ela lembrou-lhe a necessidade de prudência. Não deviam esquecer-se de que não passavam de dois pobres escravos, em poder de um verdugo sem indulgência.

— Não tema nada - afirmou Savary. - Se lhe falo de minhas descobertas, não é porque recaio em minhas manias, mas porque também elas nos auxiliarão a reconquistar a liberdade. Tenho minha ideia e garanto-lhe que será bem sucedida, se conseguirmos chegar à ilha de Santorini.

— Por que Santorini?

-        Eu lhe direi quando chegar o momento.

Savary eclipsou-se.

Com o cair da noite, o navio encheu-se de novos ruídos.

Ouviram-se gritos de mulheres, misturados a vozes de homens, praguejando; um ruído de pancadas, de correrias desesperadas de pés nus pelos labirintos do navio, prantos, depois longos gritos espasmódicos, meio abafados pelas vozes graves de homens e suas grandes gargalhadas.

— Q que está acontecendo agora? - perguntou Angélica à companheira.

— Os homens domam as novas cativas.

— O que fazem com elas?

A jovem grega desviou os olhos.

-        Mas isso é horrível! - protestou Angélica. - É insuportável! E preciso fazer alguma coisa.

Ali perto, o gemido suplicante de uma mulher violentada alçou-se com um soluço. Ellis reteve Angélica:

— Não vá! E sempre assim. É o direito deles.

— O direito deles!

Ellis explicou com sua voz suave que os piratas tinham o direito de compartilhar do butim. "Recebiam" em espécie e em cequins, após a venda. Além disso, se as mulheres muito bonitas eram reservadas a fins voluptuosos, um grande número delas eram vendidas principalmente como escravas, ou seja, como criadas bestas de carga, ligadas à incontável criadagem dos caravançarás. O preço delas aumentava se se conseguia colocá-las no mercado grávidas de uma criança, futuro escravo. Os homens do Marquês d'Escrainville dedicavam-se, pois, a valorizar a "mercadoria".

Angélica tapou as orelhas, e berrou que não suportava mais aqueles selvagens, que queria ir embora. Quando o imediato, Coria-no, apareceu seguido de dois negrinhos que carregavam uma bandeja repleta de vitualhas, ela o cobriu de insultos é recusou-se a comer.

— Mas você tem que comer! - exclamou o caolho, trágico. - Não é mais que pele e ossos. É uma catástrofe!

— Que parem de atormentar essas mulheres! Faça cessar essa orgia!

Deu um pontapé na bandeja e virou as vasilhas no chão.

-        Faça cessar esses gritos!

Coriano disparou com à rapidez que lhe permitiam as pernas curtas. Ouviu-se D'Escrainville vociferar:

-        Ah, você estava contente porque ela tinha caráter! Está satisfeito, espero! Se a minha tripulação já não pode fornicar no seu próprio navio!...

Ela o viu aproximar-se a grandes passadas, maligno.

— Parece que seTecusa a comer?

— Se imagina que as suas saturnais- me abrem o apetite!

Emagrecida e eriçada èm seu gibão folgado demais, Angélica parecia um adolescente teimoso. Um meio sorriso arreganhou os lábios do pirata.

-        Muito bem! Já dei ordens. Mas, de sua parte, tenha um pouco de boa vontade. A Sra. du Plessis-Bellière me concederia a honra de vir cear comigo no tombadilho?

CAPÍTULO XXI

A lenda do Rescator

As almofadas estavam dispostas em torno de uma mesa baixa. Tinham trazido terrinas redondas de prata, cheias de um leite ácido e grosso que cobria bolinhas de carne envoltas em perfumadas folhas de parreira. Molhos de cebola, pimentão, páprica e açafrão em pequenos pires deixavam manchas verdes, vermelhas e amarelas na mesa.

-        Prove o dolma - disse Coriano, servindo uma concha cheia

  1. prato de Angélica; - se não gostar servimo-lhe peixe.

O chefe pirata vigiava o imediato com um ar de troça.

-        Vai-lhe bem o papel de babá. Não há dúvida, você nasceu para isso!

Coriano aborreceu-se.

-        E preciso que alguém se dê ao trabalho de reparar os estragos - berrou. - Já é alguma coisa que não tenha morrido. Se agora se puser a definhar, estaremos bem arranjados.

Desta vez foi o marquês quem se irritou.

-        O que é que gostaria que eu fizesse ainda? - urrou. - Deixo-a dar-se ares, convido-a a jantar com salamaleques, caminha-se nas pontas dos pés. Meus homens têm que se comportar como meninos de coral; na cama às oito horas da noite...

Angélica caiu na risada.

Os dois flibusteiros pararam de falar para a olharem boquiabertos.

-        Ela ri!

A fisionomia hirsuta de Coriano iluminou-se.

— Madona! Se ela pudesse rir assim no mercado, ganharíamos mais duas mil piastras.

— Imbecil! - disse D'Escrainville, com desprezo. - Você conhece muitas que riem no mercado? E esta, acredite-me, não é do tipo. Já nos poderemos dar por satisfeitos se ela ficar quieta. Por que está rindo, minha bela querida?

— Não posso chorar sempre -.respondeu ela.

Ela cedeu à descontração do anoitecer azul, agora sereno. A ilhota parecia afastar-se como um navio de sonho, por trás de uma ligeira névoa, com seu templo, de reflexos prateados, lá no alto sob os raios da lua que subia. O Marquês d'Escrainville acompanhou-lhe o olhar e disse:

— Outrora Apolo tinha seis templos. Nessa ilha, todos os dias se dançava à beleza.

— Agora você faz que lá reine o terror.

— Não se enterneça. E preciso que esses gregos degenerados sirvam para alguma coisa.

— É útil arrancar-crianças às mães?

— Estavam destinadas a morrer de fome nessas ilhas áridas.

— E aqueles infelizes anciãos sem forças que vi subir a bordo?

— Oh, esses são diferentes. Pego-os para prestar-lhes um favor.

— E mesmo? - disse ela, irónica.

— Pois sim. Imagine que na ilha de Quio uma tradição exige que aos sessenta anos os habitantes se envenenem ou se exilem. Não gostam de velhos lá.

Ele deu-lhe uma olhada, sorrindo sardónico.

-        Ainda tem muitas coisas para aprender sobre o Mediterrâneo, bela senhora.

Um escravo aproximou-se e veio colocar ao lado dele um cachimbo de água turco. Ele começou a fumar, a cabeça atirada para trás.

-        Olhe o céu estrelado. Amanhã, ao amanhecer, zarparemos para Kyouros. Lá, deitado sob os loureiros-rosa, há um deus Marte adormecido. Os habitantes da ilha ainda não o pulverizaram para fazer cal. Sempre que posso vou lá contemplá-lo. Gosta das estátuas?

-        Sim. Em Versalhes o rei semeou seus jardins de estátuas...

O templo agora emergia da noite, suspenso em pleno céu.

Angélica disse a meia voz:

— Os deuses morreram.

— Mas não as deusas.

O Marquês d'Escrainville observava-a de olhos semicerrados.

-        Esses traje não lhe cai mal, no final das contas. Causa surpresas agradáveis e permite adivinhar o que oculta.

Angélica fingiu não ter ouvido. Começara a comer, pois já podia enganar o estômago, e o sabor do mast, o leite ácido, não lhe desagradou.

— Estamos longe de Cândia? - perguntou.

— Não muito. Já estaríamos lá se esse demónio de boticário não me tivesse enredado com suas histórias e não me houvesse arrastado de ilha em ilha, perdendo tempo. Quando não está perto, tenho vontade de esmagá-lo como a um percevejo, mas quando se aproxima e me vem com conversas para me convencer de que me traz a fortuna, deixo-me levar como uma criança. Ah, que importância tem isso! Um dos benefícios do Oriente é a gente poder deixar o tempo escoar sem pressa.

Soltou uma longa baforada.

— Tem pressa de chegar a Cândia?

— Tenho pressa de saber o destino que me está reservado. Parece que você vendeu em Livorno o pequeno criado que me acompanhava?

— Sim, e até fiz um bom negócio. Não esperava tanto, mas tive a sorte de topar com um senhor italiano que procurava um preceptor para ensinar francês ao filho. Isso me permitiu aumentar os preços.

— Flipot, professor de francês! - exclamou Angélica, e novamente se pôs a rir.

Teve dificuldade em se controlar. Mas conseguiu perguntar ao mercador de escravos se ele se lembrava do nome do senhor italiano a quem vendera Flipot, para que pudesse comprar de volta o seu pobre servidor.

Foi a vez de o Marquês d'Escrainville rebentar na gargalhada.

-        Comprá-lo de volta? Espera, então, recuperar a liberdade? Saiba, minha cara, que não se escapa de um harém!

A jovem olhou-o longamente, tentando encontrar algum vestígio de humanidade naquele rosto iluminado pela lanterna de bordo que acabavam de acender.

-        Quer realmente fazer isso?

— E por que, então, imagina que conservo a bordo rameira de sua espécie?

— Escute - disse ela, animada por súbita esperança -, se é dinheiro que quer, posso pagar-lhe meu resgate. Sou muito rica na França.

Ele meneou a cabeça.

— Não. Não quero me envolver com os franceses. São matreiros demais. Para receber o dinheiro, eu teria que ir a Marselha. É perigoso... E leva tempo demais. Não posso esperar. Tenho que comprar um navio... Você teria dinheiro bastante para isso?

— Talvez.

Mas Angélica lembrou-se do mau estado em que se encontravam seus negócios quando partira. Tivera que hipotecar o navio e a carga futura, para sustentar as despesas na corte. Além disso, sua situação na França, já que atraíra a cólera do rei, também não era das mais precárias?

Mordeu os lábiosVcom desespero.

-        Pode ver - disse ele - que estás completamente em minhas mãos. Sou seu amo e farei de você o que quiser.

A viagem prosseguiu. A cada dia o pirata, amaldiçoando Savary, lançava âncora diante de uma daquelas ilhas secas e repletas de estátuas brancas. O sol árido produzia apenas parreiras e ruínas sun-tuosas. Os habitantes fabricavam um vinho cálido e quebravam a marretadas os mármores antigos para reduzi-los a pó, queimá-los e fazer cal com que branquear as casas. Mas ninguém se alimenta de vinho e de deuses soberbos.

Com a fome à espreita, vendiam seu vinho, sacos de cal, as mulheres e os filhos aos raríssimos navios de passagem. O policial turco que a administração de Constantinopla mandava arrastar o sabre por entre aquelas ilhas deserdadas fechava os olhos ao tráfico do pirata cristão. D'Escrainville convidava-o a bordo. Tomavam café juntos no tombadilho, fumavam narguile, e o turco, depois de receber alguns cequins, presidia ele mesmo à instalação de seus administrados no porão de escravos.'"

Passaram por Kythnos, Siras, Míconos e Delos.

Apesar das promessas de Savary, a apreensão consumia Angélica, e às vezes Ellis não sabia como arrancá-la a seu abatimento.

-        Que pena - exclamou Ellis um dia - que o Rescator tenha ido visitar o rei do Marrocos! Ele a teria comprado.

Angélica estremeceu.

— Não vejo a vantagem de passar das mãos de um pirata para as de outro.

— Seria melhor para você do que ser trancada num serralho... Àquelas que um dia os eunucos introduziram no serralho, as portas só são reabertas pela morte. Nem a velhice lhes devolve a liberdade. Prefiro os piratas - disse Ellis. - E esse de que lhe falo não é, com as mulheres, um amo como os demais. Escute, minha irmã, vou contar-lhe a história de Lúcia, a italiana, que os berberes capturaram na costa da Toscana. Contaram-me quando eu estava na prisão em Argel... uma mulher que conheceu Lúcia depois de o Rescator reconduzi-la a seu país. Na casa dele, em sua ilha fortificada, ela recebia refeições maravilhosas, doces todos os dias e muito amor.

Angélica não pôde deixar de rir ante a ingenuidade da garota.

— Não gosto de doces, nem de amor... Pelo menos nessas condições.

— Mas Lúcia gostava. Nunca comera o suficiente na sua pobre Toscana. E como era bela como uma deusa, cedo aprendera o prazer. Então vivia contente com doces e amor.

— O que você quer? Não sou Lúcia e não tenho esses gostos de odalisca.

Ellis pareceu desapontada. Mas continuou, com uma súbita inspiração:

-        Ouça mais, minha irmã... Em Cândia houve Maria, a arménia. No batistan, estava deitada no chão. Foi preciso que Erivan, o mestre das vendas, a agarrasse pelos cabelos para que lhe vissem o rosto. E embora fosse bela como a noite, ninguém quis comprá-la, devido àquela languidez. O Rescator comprou-a. Levou-a para seu palácio de Milo, fora da cidade. Encheu-a de presentes. Mas nada a curava. Então o Rescator partiu e quando retornou trouxe consigo duas criancinhas, os filhos de Maria, a arménia, que tinham sido vendidos a um etíope.

A jovem grega ergueu-se de repente, fazendo com seus membros graciosos a mímica da cena que descrevia.

-        Quando as viu, Maria gritou como um animal. Agarrou-as contra o peito o dia inteiro e ninguém pôde se aproximar. Mas quando veio a noite, quando as crianças adormeceram, ela levantou-se, perfumou o corpo, pôs as jóias que o Rescator lhe dera. Subiu ao terraço e começou a dançar diante dele para despertar-lhe o desejo... Oh, você entende, minha irmã... entende quem é esse homem?

Com os braços erguidos em ânfora, ela girava sobre a ponta dos pés descalços, dançando como fizera Maria, a arménia, como deviam dançar outrora as vestais; sòb os alvos pórticos das ilhas.

Depois veio se agachar de novo aos pés de Angélica.

— Entende o que quero explicar-lhe?

— Não.

A escrava riu, sonhadora:

— A cada mulher ele fala a linguagem dela. É um mago.

— Um mago! - exclamou o Marquês d'Escrainville, amargo. - É isso o que ela conta, a puta! Não é preciso muita coisa para virar a cabeça de passarinho delas. Um extravagante, sim é isso o que é esse maldito Rescator!

— Também você'o trata de extravagante. Por quê?

— Porque ele é o único, o único pirata, entende, que não comercia escravos e que, no entanto, é o mais rico, por meio de um extraordinário mercado de prata que desorganiza tudo e nos arruina a todos.

"Mago? Bah! Sempre acha um jeito de aparecer onde não é esperado. Ninguém sabe onde fica sua base. Esteve muito tempo em Djidjelli, pertinho de Argel. Depois foi visto erri Rodes. Em seguida em Tripoli. Acho que agora está em Chipre. É um homem terrível, porque ninguém lhe entende os motivos. Deve ser um pouco louco. Isso acontece no nosso ofício".

-        É verdade que às vezes ele liberta cargas de escravos de que se apodera?

D'Escrainville rangeu os dentes e deu de ombros.

-        Um louco! Como é rico, diverte-se em desorganizar os mercados e arruinar os outros. Os comerciantes e os banqueiros das grandes cidades lhe fazem mesuras, sob o pretexto de que ele regularizou a cotação da prata. Torna-se 5 patrão em toda parte. Mas isso não vai durar. Apesar da sua guarda de xerifes, um dia encontrará alguém que o envie para junto dos ancestrais, esse imbecil de nariz cortado, essa máscara de carnaval, esse mago de feira... O Mago do Mediterrâneo... Ah, ah, ah! Eu sou o Terror do Mediterrâneo... Veremos! Odeio-o, assim como o odeiam todos os piratas mercadores de escravos: Mezzo Morte, Simon Dansat, Fabrice Oligliero, os irmãos Salvador, Pedro Garmantaz, o Espanhol, e até os Cavaleiros de Malta, e todos, todos... Como foi que caiu nas boas graças de Mulai Ismael, o rei do Marrocos? E um mistério! O temível sultão emprestou-lhe o pavilhão e os mouros de sua guarda. Mas chega de falar desse indivíduo. Quer quebabs? Estendeu-lhe o prato que continha pasta de carne amassada com o grão ácido do tamarindo e assada em gordura de carneiro.

 

CAPÍTULO XX

Sob o olhar de Eros

Toda noite o Marquês d'Escrainville a convidava a subir ao tombadilho e a compartilhar sua refeição. Mostrava-se tão cortês quanto podia, sem dúvida admoestado por Coriano. Por vezes sua natureza vinha à tona, ele dizia-lhe coisas maldosas. Em outros momentos reencontrava a antiga educação e sabia reter a atenção da jovem com a conversa. Ela descobriu que ele era muito instruído, que conhecia todas as línguas orientais e sabia ler os clássicos gregos no original. Tudo isso compunha uma estranha personagem.

Ao lado dos sádicos caprichos que o levavam a atormentar seus escravos, tinha por outros atenções quase paternais. Com frequência mandava subir para junto deles dez negrinhos gentis que comprara em Tripoli.

As crianças ajoelhavam-se, discretas, sobre os pés descalços e ficavam ali comportadinhas, os olhos de esmalte branco brilhando na noite.

— Não são bonitos? - dizia D'Escrainville, chocando-os com um olhar enternecido. - Sabia que esses selvagenzinhos do Sudão valem cada um o próprio peso em ouro?

— É mesmo?

— São eunucos.

— Oh, coitados!

— Por quê?

— Não é horrível essa mutilação?

— Ora! Os feiticeiros deles são-hábeis o bastante para fazê-la a toque de caixa. Depois molha-se a ferida com óleo fervente e enterram-se as crianças até a cintura na areia ardente do deserto, até a cicatrização. O método é bom, pois os chefes tribais que nos enviam os meninos para a costa afirmam que não morrem mais de dois em cada cem.

-        Coitados! repetiu a jovem.

O pirata deu de ombros.

-        Acredite, você desperdiça sua piedade. Esses filhotes de canibais poderiam esperar destino mais feliz? Vêm de regiões terríveis, onde aquele que escapa ao dente do leão não evita a zagaia do inimigo, que o devora vivo. Nas tribos, nutrem-se de raízes e de ratos. Agora comem à farta. Quando eu os vender, eles representarão um objeto de luxo para seus proprietários. Enquanto forem jovens, não terão outra coisa a fazer senão brincar e jogar xadrez nas escadas de um palácio com os filhos do sultão ou acompanhá-los à caça ao falcão. Adultos, terão um papel de primeiro plano. Esquece-se de que alguns eunucos, na história, foram coroados imperadores de Bizâncio? Conheço inúmeros que na verdade reinam sobre o espírito do amo cego pelos próprios prazeres. Você ouvirá falar do chefe dos eunucos negros do sultão dos sultões, do chefe dos eunucos brancos, de seu irmão Solimã, chamado Bei Chamil, ou ainda de Osmã Ferradji, o grão-eunuco de Mulai Ismael, rei do Marrocos. Um gigante que mede quase duas toesas. Um grande homem em todos os sentidos, feroz, felino, genial. Foi ele quem colocou Mulai Ismael no trono, ajudando-o a assassinar as várias dezenas de pretendentes que lhe barravam o caminho.

Parou e, dominado por uma ideia malévola, pôs-se a rir.

-        Sim, sim! Acho que você não tardará a medir o poder dos eunucos no Oriente, bela cativa.

Angélica apoiou-se à coluna canelada, sobre a qual cintilava a luz das Cidades.

Esfregou entre os dedos um ramo de basilicão. Há pouco, ao atravessar a aldeia, o sacerdote ortodoxo, com o barrete de véus negros, fora-lhe ao encontro e lhe estendera o ramo aromático, orno sinal de acolhida e paz. O pobre ancião, na sua ignorância, tentava preservar suas ovelhas da férula dos piratas. Tentara fazer-se compreender por aquele jovem corsário louro que desembarcou na praia em companhia dos marinheiros com cara de facínora. Talvez o jovem tivesse piedade daqueles miseráveis.

D'Escrainville não tardou a agarrá-lo pela barba e a atirá-lo no hão, insultando-o em grego e cobrindo-o de pontapés.

-        ímpio! - gritou Angélica.

O sacerdote voltou para ela as mãos descarnadas lançando uma torrente de palavras. O marquês rebentou de rir.

__ Ele acha que você é meu filho e Jhe pede pelo amor que tenho por você que interceda para que lhe poupemos as duas filhas. Ah, ah, ah! É a coisa mais engraçada que já ouvi!

-        E se eu lhe pedisse?

Por sobre o ancião, ele lançou-lhe um longo olhar indefinível.

-        Afaste-se - disse. - Você não tem nada a ver com o que fazemos aqui.

Ela se afastara, desviando-se do espetáculo lamentável de que já fora testemunha tantas vezes.

Desde que sarara, Coriano exigia que descesse em cada escala. O ar fresco lhe faria bem. Como se ar fresco lhe faltasse sobre a coberta de um navio! "Mas Coriano era intransigente. Ela precisava fazer exercício. . '-

Na primeira vez pousara um pé tímido sobre a praia, surpresa de encontrar um solo duro e estável. Distanciou-se da aldeia, deixando os flibusteiros disputar o violento mercado. Encontrou então um momento de Solidão à sombra de um templo, entre níveos restos de estátuas tombadas.

O ramo de basilicão exalava o próprio odor daquela terra consumida. Não havia árvores. Tudo era pobreza e desolação e, no entanto, esplendor eterno. Faltava água, mas não a seiva poética graças à qual a lenda e a fábula se haviam enraizado para sempre.

Das montanhas vinham os gritos agudos dos pastores, enquanto Savary, armado de seus pentes de madeira, enfiava-se alegremente pelos campos, para pentear as cabras e os bodes. A noite ele levaria sua provisão de ládano. A noite as carpideiras estariam na praia a arranhar o rosto, a cobrir de cinza os cabelos grisalhos...

Angélica fechou os olhos. O perfume da planta a fazia sonhar, e o sol devolvia-lhe o gosto de viver...

A alguns passos o Marquês d'Escrainville a examinava. Ela estava apoiada àquela coluna branca, numa pose graciosa e jovem, o Penil inclinado sob a abundância de seus cabelos louros, os lábios Pousados sobre o ramo verde, as pálpebras sonhadoramente baixas, e ele disse consigo que gostava do encanto ambíguo que lhe conferia o traje de rapaz que ela insistia em usar. De vestido, ela se teria assemelhado em demasia à "outra". Ele a acabaria matando. Ela seria mulher demais, sereia demais, desarmada demais. Sem afetação, no velho casaco de cavaleiro cuja gola se abria sobre seu pescoço flexível, Angélica tinha um encanto equívoco, de acordo com o sutil langor daqueles lugares onde outrora os efebos vinham amar-se.

Angélica sentiu a pressão de um olhar, alçou os olhos e teve um movimento de recuo.

Ele fez um gesto imperioso.

-        Venha.

Ela avançou sem pressa, tocando com a ponta das babuchas os pedregulhos do caminho. Sob a fivela de prata que, no joelho, lhe apertava os calções, suas pernas nuas estavam roliças e morenas.

Coriano estava certo em seus conselhos. A cativa recuperara as formas e a calorosa morenice da tez.

D'Escrainville segurava-a pelo braço e, inclinando-se sobre ela, disse com uma espécie de cumplicidade trocista:

-        Regozije-se, meu filho! Sabe as filhas do sacerdote?... Foram deixadas na sua imundície...

Ela o olhou para saber se ele falava a sério. Os olhos cinzentos do pirata estavam bem perto dos seus. Dançava ali uma chama inusitada.

Disse sem vontade:

-        Fico feliz com isso.

Ele não alegou tê-lo feito por ela. Puxou-a para perto de si e a fez subir pela costa escarpada que dava para o mar. Angélica sentiu a mão dele, que lhe queimava a pele através do tecido da roupa, e o tremor que o agitava.

— Não me olhe como se fosse comê-la - disse ele. - Você me toma pelo Minotauro?

— Não, mas por quem é.

— Ou seja?

— O Terror do Mediterrâneo.

Ele pareceu bem satisfeito e aumentou a pressão sobre o braço dela. Haviam chegado quase ao cume da ilha e, num círculo de azul, L'Hermes na enseada parecia um belo brinquedo sobre a transparência furta-cor do fundo do mar.

-        Agora, feche os olhos - disse D'Escrainville.

Angélica estremeceu. A que jogo cruel ia ele entregar-se? Ele teve um ricto diante do ansioso olhar dela.

-        Feche os olhos, animal indócil.

Para certificar-se, ele colocou-lhe a mão sobre as pálpebras e levou-a mais longe, segurando-a contra o corpo. Ela sentiu a mão sobre o rosto como uma carícia.

— Olhe.

— Oh!

Os passos que acabavam de dar os levaram á uma esplanada onde se erguiam as ruínas de um templo.

Três degraus com cintilações de sal levavam a um átrio cujas lajes brilhavam, bordejadas de plantinhas baixas.

E era ali, entre a invasão de framboesas selvagens de bagas amarelas e rosadas, que começava a maravilha. Duas longas fileiras de estátuas intactas, cada uma sobre seu pedestal, num vôo imaculado. Uma dança imóvel-e modelada pela luz contra o azul incandescente do céu.

— O que é? - murmurou Angélica.

— As deusas.

A passos lentos ele a conduziu ao centro da aléia, por entre aqueles sorrisos de mármore, braços delicados estendidos para eles, aquela reunião melancólica e divina, esquecida sobre a montanha, com o perfume das framboesas como único-incenso e o sopro do mar como única oferenda. Perdida em sua admiração, Angélica não se dava conta de que ele continuava a estreitá-la contra si.

Ao final da aléia, sobre o altar, havia uma criança, um pequeno deus triunfante, estendendo o arco, um adorável pequerrucho de neve e ouro, batido pelos ventos.

— Eros!

— Como é belo! - exclamou Angélica. - E o deus do amor, não é?

— Ele alguma vez a atingiu com sua flecha?

O pirata se afastara dela. Com a ponta do chicote, batia nas botas com um gesto nervoso. Angélica sentiu o encanto dissipar-se.

Não respondeu e, à procura de um pouco de sombra, foi ápoiar-se ao pedestal de uma Afrodite esguia.

-        Você deve ser lindíssima quando está apaixonada - disse ele, apos um longo momento de silêncio.

Ele fez uma careta de irritação. Passeou o olhar pelas deusas, fitou Angélica novamente, mas ela não soube ler-lhe a expressão atormentada. Aonde queria ele chegar?

-        Você imagina que se impôs a mim com seus ares de grande dama e que é por isso que não vou domá-la um pouco à noite, como merece? - disse, mal-humorado. - Você é pretensiosa o suficiente para pensar isso, mas desiluda-se, não é por isso. Não há escrava que se tenha imposto ao Terror do Mediterrâneo. Mas cansei-me de gritos de ódio e de arranhões. De vez em quando isso pode tornar a aventura picante, mas a longo prazo cansa. Você não poderia tentar ser gentil comigo?

Ela lançou-lhe um olhar frio, que ele não viu porque se pusera a andar de um lado para outro. Suas botas ressoavam sobre as lajes de mármore, dominando com sua batida regular a estridência inexorável das cigarras.

-        Você deve ser belíssima quando está apaixonada - continuou ele com uma voz surda. - Com aquele rosto que tinha uma noite, caída entre meus braços, os olhos fechados, a boca entreaberta que dizia: "Meu amor!"

E respondendo à assustada expressão dela:

-        Você não pode se lembrar. Estava doente, delirava. Mas eu não consigo esquecer. Aquele rosto me persegue. Você deve ser belíssima nos braços de um homem por quem esteja apaixonada.

Ele parou de andar e ergueu na direção do pequeno deus Eros os olhos claros atravessados por uma expressão patética.

-        Gostaria de ser esse homem - disse. - Gostaria de que me amasse!...

Angélica esperava tudo, menos uma prece semelhante.

-        Amá-lo? A vocêl - gritou.

E a coisa pareceu-lhe tão absurda, que ela caiu na risada. Ele não sabia que era um ser abjeto, coberto de crimes, um verdugo sem alma nem coração? E queria ser amado!

A gargalhada aumentou, vibrou no silêncio do local deserto. O eco a devolvia, aguda e zombeteira, e o vento foi lento em levá-lo.

-        Amá-lo? A vocêl

O Marquês d'Escrainville ficara branco como o mármore. Encaminhou-se para Angélica e esbofeteou-a duas vezes. A boca da jovem encheu-se de um gosto salgado de sangue. Ele bateu outra vez, e ela caiu-lhe aos pés. Havia sangue a escorrer-lhe do canto dos lábios.

-        Essa gargalhada! - urrou ele.

Abria a boca como se tivesse dificuldade em recobrar o fôlego.

-        Puta!... Como ousou! Você é pior que a outra! Pior que todas as outras! Eu a venderei! Vendê-la-ei ajam paxá pervertido, a um mercador de bazar, a um mouro, a um bruto que a destruirá... Mas você não terá para outros seu rosto de apaixonada... Proíbo-a... E agora vá-se! Vá-se! Não estou com vontade de aguentar Coriano e meus homens... vá-se, antes que eu a mate!

Dois dias depois os navios lançaram âncora diante de Santorini. O Marquês d'Escrainville saiu de sua cabina, onde há dois dias jazia prostrado em meio à fumaça de haxixe.

-        Você acabou me trazendo para onde queria, inseto do diabo - gritou com ódio a Savary. - Gostaria de saber o que é que poderá encontrar de resplandecente neste rochedo, neste cascalho. Por mais que olhe, não vejo mais cabras do que em outros lugares, talvez veja até menos. Cuidado, velha raposa! Que não me tenha ludibriado! -

Mestre Savary- afirmou que a coleta de ládano ultrapassaria o que se podia esperar, mas o pirata continuou desafiador.

-        Pergunto-me onde é que os seus bodes encontram o meio de se lambuzarem'com a sua mistura. Não se vê uma árvore, um arbusto.

Era verdade. Santorini, antiga Terá, não se assemelhava às outras ilhas. Era um prodígio natural, uma falésia a pique de trezentas toesas que apresentava numa taça colorida, como um sorvete napolitano, todos os segredos da terra materna. No meio das rochas marrons, das cinzas negras, das terras vermelhas superpostas, corriam as veias brancas da pedra-pomes, revelando que aquela ilha estranha era apenas a parede da cratera de um vulcão, cujo centro era ocupado pela enseada. Do outro lado, a ilha de Thera-sia representava a outra margem da cratera. Do outro lado, a ilha continuava em atividade. Os habitantes queixavam-se dos sismos frequentes que sacudiam seus casebres de adobe e cal e faziam bruscamente surgir do mar ilhotas de lava que o abalo seguinte engolia de novo.

Para além das casinhas abobadadas do porto, um caminho de degraus levava ao topo ocupado por um moinho de vento com pás vermelhas e verdes e por ruínas.

Em seu passeio, Angélica sentou-se à sombra do ginásio dos efe-bos, diante de jovens dançarinos imóveis. Perto dela, por entre os seixos, jazia um braço quebrado com uma mão de dedos delgados. Acuela coisa graciosa, braço de rapazinho ou de adolescente, era pesada, tinha o peso dos séculos. Angélica tentou erguê-lo, desistiu e descansou à sombra de um atirador de discos. Ainda se ressentia dos golpes que levara na antevéspera. Estava cheia de tristeza. Perguntou a si mesma se não poderia tentar fugir, enfiando-se pelo interior da ilha, mas a aridez da paisagem a desencorajou.

Pouco depois ouviu um ruído de chocalhos e pelo carreiro apareceu Mestre Savary, acompanhado das cabras inevitáveis e de um grego, com quem conversava amigavelmente. O rosto do sábio resplandecia.

-        Apresento-lhe Vassos Micolés, senhora - disse. - O que pensa deste belo rapaz?

Com polidez, Angélica dissimulou a surpresa. Por vezes admirara a beleza dos gregos, alguns dos quais conservavam a graça e o vigor daqueles mesmos efebos que dançavam a seu redor. Mas o qualificativo não convinha ao rapaz, que na verdade lhe parecia particularmente mirrado. Tinha mesmo, no rosto esperto emoldurado por uma barba castanha mas rala, e no torso magro, um pouco arqueado, algo que o assemelhava a quem o apresentava. Os olhos de Angélica foram de um para o outro.

— Pois sim - disse Savary, encantado -, você adivinhou: é meu filho.

— Seu filho, Mestre Savary! Tem filhos, então?

— Um pouco por toda parte no Levante - disse o ancião, com um gesto largo. - Ah, ah! O que queria, eu era mais jovem e mais fogoso do que hoje, quando desembarquei pela primeira vez na ilha de Santorini, há trinta anos. Era apenas um francesinho como todos os franceses: pobre mas galante.

Explicou que, passando por ali quinze anos depois, constatara com satisfação que aquele filho das Cidades se tornava um excelente aprendiz de pescador. Fora durante aquela última viagem que ele confiara à família Micolés - que considerava o viajante francês com tanta veneração quanta dispensaria ao próprio Ulisses - um barril inteiro de múmia mineral, trazida da Pérsia com risco de vida.

- Imagine, senhora, o que significa isso! Um barril inteiro! Agora estamos salvos!

Angélica não via muito bem por que nem como o franzino filho do boticariozinho parisiense lhes poderia ser dè grande recurso contra duas tripulações de corsários. Mas Sãvary estava confiante. Encontrara cúmplices. Vassos e os tios iriam ao encontro deles em Cândia com o barril de múmia.

E então muita coisa aconteceria no reino dos escravos!

CAPÍTULO XXIII

Chegada a Cândia - Na masmorra

Já fazia algumas horas que L"Herrnès balouçava suavemente diante do porto de Cândia. A claridade se adensara. Todo um colorido berrante evocava o Oriente. E a brisa da terra trazia um bafio de óleo quente e laranja morna.

Um sol muito vermelho sangrava a beira do cais, por entre ruelas. A poeira pintava de rosa toda a cidade e as fortificações venezianas, ainda feridas de fresco dos últimos combates de Creta, outrora ilha cristã, doravante possessão muçulmana. Os senhores do momento manifestavam sua presença plantando os grossos círios brancos de seus minaretes entre os campanários e as cúpulas das igrejas gregas ou venezianas.

Logo ao chegar, D'Escrainville tomara o caíque e partira para terra.

Do convés, Angélica olhava a cidade a que finalmente chegara, o objetivo de suas loucas peregrinações.

Da antiga Creta, local favorito do Minotauro e do temível labirinto, restava Cândia, cidade devoradora e explosiva, moderno labirinto onde vinham perder-se e confundir-se todas as raças, pois, situada a distância igual da costa da Ásia, da africana e da europeia, era o nó górdio de todos os povos.

Mas quase não se viam turcos. Bastara às fragatas corsárias mostrar o pavilhão do Duque da Toscana - verde e branco - para que do alto de um forte fizessem um grande sinal com a bandeira otomana, vermelha com uma lua crescente, e a isso se limitaram todas as formalidades de visita.

Umas vinte galeras e navios de guerra e várias centenas de barcos ou veleiros oscilavam ancorados na enseada ou ao longo do cais.

Angélica notou uma galeota muito vistosa, com dez canhões reluzentes, recém-lavados.

-        Não é uma galera francesa? - perguntou, cheia de esperança.

Savary, sentado junto dela com o guarda-chuva entre os joelhos, deu uma olhada distraída.

-        E uma galera de Malta. Olhe a pavilhão vermelho com a cruz branca. A frota de Malta é uma dás mais belas do Mediterrâneo.

Os Cavaleiros de Cristo são riquíssimos. Mas ò que poderia esperar dos franceses em Cândia, você, que é uma cativa?

E explicou que Cândia, fosse grega, franca, veneziana ou turca, continuava sendo o que sempre fora ao longo dos séculos: o refúgio dos piratas cristãos, assim como Alexandrette era o dos piratas otomanos e Argel, o dos berberes.

Com o risco de pagar pedágio ao governador turco, os corsários que ostentavam a bandeira da Toscana, de Nápoles, de Malta, da Sicília, de Portugal, e que frequentemente abrigavam sob seus pavilhões os espécimes menos recomendáveis de toda a cristandade, voltavam irresistivelmente a Cândia, para ali fazerem o seu comércio.

Angélica examinou as mercadorias empilhadas nos cais e nas barcaças. Certamente que havia tecidos, peixes, barricas de óleo e pilhas de mamões e melões. Mas a quantidade e a variedade dos produtos não tinham nada de comparável com as que se viam amontoadas num porto comercial e não pareciam corresponder ao impressionante número de navios.

— A maioria são navios de guerra - observou ela. - O que fazem aqui?

— E nós, o que fazemos aqui? - disse Savary, de olhos cintilantes. - Preste atenção na maioria deles. Os porões estão fechados, enquanto via de regra um navio comercial que transporte mercadoria honesta deva abri-los ao chegar a um porto: Veja os piquetes de sentinelas reforçadas nos conveses. O que guardam? A mais preciosa das mercadorias.

Angélica não pôde conter um arrepio.

-        Escravos? São todos comerciantes de escravos?

Savary não respondeu, pois um caíque miserável acabava de abrir caminho até L'Hermès. Um europeu com um chapéu de plumas murchas e trajes duvidosos erguia-se na popa, segurando uma bandeira minúscula, do tamanho de um lenço: flores-de-lis douradas sobre um fundo prateado.

-        Um francês! - gritou Angélica, que apesar das sarcásticas advertências do sábio persistia em procurar aliados entre seus compatriotas.

O passageiro do bote ouviu-a e após um momento de reflexão dirigiu-lhe um esboço de cumprimento com o chapéu.

-        D'Escrainville está a bordo? - gritou ele.

Como ninguém se desse ao trabalho de responder, ele subiu pela escada que pendia para fora. Dois ou três marujos que montavam guarda negligentemente não manifestaram solicitude nem contrariedade com aquela visita intempestiva, e continuaram a jogar cartas e a mascar sementes de girassol.

— Pergunto se seu chefe está aqui - insistiu o recém-chegado, postando-se diante de um deles.

— Talvez o encontre no porto - disse o outro, sem se levantar.

— Não deixou um pacote para mim?

— Não sou o fiel do armazém de bordo - soltou o marinheiro, cuspindo uma casca de semente e voltando ao jogo.

Contrariado, o homem esfregou o queixo mal barbeado. Ellis saiu de uma cabina. Dirigiu-lhe um grande sorriso e depois se achegou a Angélica e sussurrou:

— É o Sr. Rochat, cônsul da França. Não quer falar com ele? Ele poderia ajudá-la... Vou trazer-lhe vinho francês.

— Oh, agora me lembro! - disse Angélica. - O Sr. Rochat! É exatamente o nome do administrador de meu cargo em Cândia! Talvez possa fazer algo por mim.

Mas o Sr. Rochat, depois de concluir que o rapaz que via na popa era uma mulher vestida de cavaleiro, aproximava-se.

— Vejo que esse velho colega D'Escrainville continua a ter sorte. Permita que me apresente, bela viajante. Rochat, cônsul do rei da França em Cândia.

— E eu - respondeu Angélica -, Marquesa du Plessis-Bellière, titular do cargo de cônsul do rei da França em Cândia.

A fisionomia do Sr. Rochat refletiu uma grande calma, depois estupor, incredulidade, até apreensão e desconfiança.

-        Não ouviu falar de mim quando comprei o cargo? - perguntou Angélica suavemente.

— Certamente, mas permita-me ficar surpreso, senhora. Supondo que seja realmente a Marquesa du Plessis-Bellière, que desígnio a encorajou a extraviar-se até aqui? Gostaria de ter provas do que diz.

— Será obrigado a contentar-se com a minha palavra, senhor. Seu "colega", o Marquês d'Escrainville, roubou-me meus papéis, inclusive os do meu cargo, quando nos capturou no mar...

— Entendo! - disse o pouco reluzente diplomata, lançando um olhar mais insolente à dupla que ela formava com o velho Savary. - São, em suma... convidados forçados do meu bom amigo D'Es-crainville?

— Sim, e Mestre Savary, a meu lado, é meu intendente e conselheiro.

Savary entrou imediatamente na pele de sua personagem.

-        Não desperdicemos um tempo precioso - decretou. - Senhor, propomos-lhe um pequeno negócio que em breve poderá render-lhe cem libras.

Rochat resmungou que não via muito bem como é que cativos...

-        Estes cativos têm condições de fornecer-lhe cem libras dentro de três dias se lhes conceder algum auxílio à distância.

O representante pareceu entregar-se a um debate de consciência. Arrumou o -peitilho de renda amarrotada.

Ellis reapareceu, trazendo uma bandeja com uma moringa e vários copos que colocou à frente deles, e, como boa criada, saiu discretamente. Sua atitude para com Angélica pareceu convencer Rochat de que ele não estava lidando com uma escrava comum, mas com uma dama de alta linhagem. Após algumas frases com que trocaram os nomes de conhecidos comuns, a convicção do funcionário foi total, o que o lançou num abismo de perplexidade.

-        Estou desolado, senhora. Cair nas mãos de D'Escrainville foi o que poderia acontecer-lhe de pior. Detesta todas as mulheres,

e não é fácil fazê-lo soltar a presa quando resolve vingar-se. Pessoalmente, nada posso fazer. Os mercadores de escravos têm direitos de cidadão aqui e, como diz o provérbio, "o butim pertence ao pirata". Quanto a mim, não possuo nenhum poder financeiro nem administrativo. Não conte comigo j)ara entravar os planos do Marquês d'Escrainville, nem para correr o risco de perder as poucas e minguadas vantagens de meu cargo de cônsul interino.

Depois, sempre a ajeitar a roupa em desalinho e a olhar a ponta dos sapatos surrados, pôs-se a justificar o próprio comportamento numa voz abafada e inflamada. Era o filho mais novo da família dos condes de Rochat, mas sem fortuna, e aos oito anos o enviaram para uma "colónia" do Levante como "Criança de Línguas". Era uma instituição para meninos pobres, que lhes permitia aprender a língua e os costumes do país, a fim de mais tarde se tornarem intérpretes de consulado. Fora educado, então, no bairro francês reservado de Constantinopla, acompanhando às vezes as aulas da escola corânica e participando das brincadeiras dos filhos dos paxás. Fora ali que conhecera D'Escrainville, também "Criança de Línguas". Concluíram juntos os estudos, e o jovem D'Escrainville iniciara uma brilhante carreira de funcionário colonial, até o dia em que se apaixonou por uma belíssima embaixatriz do rei em Constantinopla. Esta tinha um amante endividado. Para pagar as dívidas sem chamar a atenção do embaixador, a co-quete se dirigiu ao jovem D'Escrainville, pedindo-lhe que falsificasse números. Fascinado, ele obedeceu.

Naturalmente foi ele quem pagou quando a fraude se tornou flagrante demais. A beldade negou tudo e até encontrou alguns detalhezinhos suplementares para arruiná-lo.

Era uma história banal. D'Escrainville perdera a cabeça. Vendeu o cargo e comprou um pequeno barco para lançar-se à pirataria por conta própria. Na verdade, escolhera melhor caminho do que seu contemporâneo. Rochat se esmerara em ascender nos escalões da carreira diplomática, mas perdera-se na confusão de cargos e postos que os cortesãos, em Versalhes, vendiam e revendiam uns aos outros. Tudo o que sabia era que tinha direito a custas de representante no valor de dois e meio por cento do valor das mercadorias francesas que transitavam por Cândia. Mas que fazia quatro anos que nem a Câmara de Comércio de Marselha, nem o Ministro Colbert providenciavam o pagamento dos atrasados, que deviam ter ido parar no bolso do novo ou da nova beneficiária do cargo.

- Não está distorcendo de propósito a situação em seu favor? - perguntou Angélica. - Acusar o rei e o ministro é grave! Responsabilizá-los é injusto. Por que não foi a Versalhes com todo o seu arquivo?

- Não dispunha de meios. Ainda tenho sorte de viver sem criar confusões com os turcos. Se acredita que exagero, saiba que um funcionário em posição superior à minha e mais bem-aparentado, nosso embaixador na Turquia, o Marquês de La Haye, está preso em Constantinopla por dívidas, simplesmente porque há anos não é pago pelo ministro. Veja, então, que preciso me arranjar sozinho. Tenho mulher e filhos, que diabo! Com um suspiro, concluiu:

— Em todo caso, posso tentar ser-lhes útil, contanto que isso não me jogue contra o marquês. Que posso fazer por vocês?

— Duas coisas - declarou Savary..- Primeiro: encontrar nessa cidade que conhece bem um mercador árabe chamado Ali Mektub e que tem um sobrinho de nome Mohamed Raki. E pedir a ele, para fazer uma ação bem agradável ao Profeta, que venha ao cais de Cândia na hora em que os dois navios do pirata francês descarregarem, pois sem dúvida venderão em leilão uma partida de escravos.

— Posso muito bem fazer isso - aquiesceu Rochat, aliviado. - Acho que até sei onde mora esse mercador.

Mas a segunda parte do programa revelou-se mais difícil. Tratava-se de entregar imediatamente a Savary os poucos cequins que a bolsa do representante-do rei continha. Ele acabou consentindo, não sem caretas. -

-        Já que me promete que os meus quarenta cequins me renderão cem libras.., E meu negócio de venda de esponjas em Marselha, como vai? D'Esçrainville me prometeu também trazer-me uma barrica de Banyuls. Onde está ela?

Angélica e Savary não estavam a par.

— Tanto pior! Não tenho tempo de esperar o dono da casa. Quando o virem, digam-lhe que seu amigo esteve aqui e que reclama o reembolso de suas esponjas e seu tonel de Banyuls prometido... Ou melhor, não, não lhe digam nada. É melhor que ele não saiba que conversamos. Nunca se sabe...

— No Oriente, a mão direita deve sempre ignorar o que faz a mão esquerda - disse Savary, sentencioso.

— Sim... É importante sobretudo que ele não desconfie de que lhes emprestei dinheiro, a vocês, que são cativos... Que amolação! Pergunto-me se minha generosidade ainda não me vai cair na cabeça. E minha situação já é bastante complicada e difícil. Enfim...

Foi embora, esquecendo de esvaziar o copo, tanto o perturbavam as reminiscências e as imprudências às quais se entregava.

Quando, ao anoitecer, os escravos foram desembarcados no porto, um árabe envolto em sua djellaba esperava perto do ancoradouro. Angélica acabava de pisar em terra, vigiada pelo caolho Coriano. Savary dera um jeito de segui-los bem de perto. De repente recheou a mão de Coriano com um punhado de cequins.

— Onde arrumou esse dinheiro, velho crápula? - resmungou o flibusteiro.

— Se você o soubesse, não ficaria mais rico com isso, assim como não o enriqueceria prevenir seu patrão - sussurrou o boticário. - Deixe-me conversar cinco minutos com o árabe que se vê ali e lhe darei soma igual.

— Para que vá preparar sua fuga com ele?

— E que importância teria isso? Você acha que a parte que vai receber sobre a venda da minha velha carcaça igualará sequer os trinta cequins que lhe dou?

Coriano sopesou as moedas de cobre na mão, avaliou um instante a exatidão do raciocínio, depois voltou-se e dedicou toda a atenção à repartição dos lotes de sua mercadoria: os velhos e os doentes num canto, os homens de boa compleição no outro, as mulheres jovens e belas separadas etc.

Savary correra até o árabe. Voltou pouco depois e cochichou para Angélica:

— É mesmo o Ali Mektub de que lhe falaram, e ele tem de fato um sobrinho chamado Mohamed Raki, mas o sobrinho vive em Argel. Ainda assim, o tio se lembra de que o sobrinho esteve em Marselha procurando por um homem branco a quem servira durante muito tempo no Sudão, onde esse homem, um sábio, fabricava ouro.

— E como era esse homem? Ele sabe descrevê-lo?

— Não se excite. Eu não podia pedir-lhe mil detalhes logo de entrada. Mas devo revê-lo com mais tempo, esta noite ou amanhã.

— Como vai fazer?

— É assunto meu. Tenha confiança.

Coriano os separou. Angélica foi levada sob uma boa escolta para o bairro francês da cidade. A noite caía, e das cafeterias abertas sobre a rua erguia-se o som de tamborins e flautas.

A casa onde entraram parecia uma pequena fortaleza. Ali D'Escrainville estava em seu feudo, em meio a uma decoração semi-européia onde belos móveis e retratos em molduras douradas misturavam-se com divãs orientais e o inevitável cachimbo de água. O odor de haxixe impregnava o ambiente.

Ele convidou-a a tomar café, coisa que não acontecia desde a ilha das deusas.

— Pois bem, minha bela, cá estamos, no porto! Dentro de alguns dias, todos os amantes de belas moças, dispostos a pagar o preço para possuir um objeto raro, poderão admirar-lhe as formas em detalhes. E lhes daremos tèmpo„para isso, acredite-me!

— Você é uma pessoa grosseira --- disse Angélica, com desdém. - Mas não creio que terá a audácia de vender-me... e de vender-me nua!

O pirata deu uma gargalhada.

-        Penso que, quando mais eu mostrar, maiores serão minhas chances de alcançar minhas doze mil piastras.

Angélica deu um pulo, os olhos faiscando.

-        Não, isso não acontecerá. Jamais aceitarei essa vergonha. Não sou uma escrava. Sou uma grande dama de França. Jamais, jamais aceitarei. Experimente tratar-me dessa maneira... Farei com que se arrependa cem vezes por haver sequer pensando nisso.

-        Insolente! - rugiu ele, agarrando o chicote.

Novamente o imediato se interpôs.

-        Deixe-a, patrão. Vai estragá-la. Não vale a pena meter-se nesse estado. Uma pequena temporada no calabouço há de abaixar-lhe a crista.

O Marquês d'Escrainville estava incapaz de ouvir a voz da razão, mas o imediato deu-lhe um empurrão sem cerimonia, e o possesso desabou sobre um divã, largando o chicote, que caiu por terra. Coriano segurou o braço de Angélica. Ela soltou-se, dizendo que era perfeitamente capaz de andar sozinha. Jamais sentira simpatia alguma por aquele indivíduo de braços peludos, tatuados de azul como um selvagem. Ele tinha exatamente a aparência daquilo que era: um flibusteiro de baixo nível, com o tapa-olho preto e o lenço de um vermelho desbotado sobre o cabelo oleoso que lhe caía em caracóis pelas faces mal barbeadas. Ele deu de ombros e tomou-lhe a dianteira pelo labirinto daquela velha casa, meio fortaleza, meio caravançará. Depois de fazê-la descer uma escada de pedra, ele parou diante de uma grande porta reforçada com ferragens medievais, puxou um molho de chaves e girou as fechaduras rangentes.

-        Entre!

A jovem hesitou na soleira do antro escuro onde ele a introduzira. Ele a empurrou, fazendo troça, e fechou a porta.

Angélica encontrava-se agora numa cela muito escura, iluminada apenas por uma pequena lucarna gradeada por duas enormes barras de ferro em cruz. Até palha faltava naquela prisão, cujo mobiliário se resumia a três grossas correntes com braceletes, fixadas na parede. Pelo menos o brutamontes não a havia acorrentado.

- Têm medo de "me estragar".

Os ombros ardiam-lhe no local que o chicote atingira. Ela se deixou cair no chão de terra batida. Ao menos poderia refletir, senão no conforto, pelo menos na calma. A serenidade que sentia lá no fundo vinha da recente notícia que lhe sussurrara Savary a respeito do mercador árabe Ali Mektub. Este tinha um sobrinho chamado Mohamed Roki que lhe falara de um homem branco que procurava ouro no Sudão e para quem, outrora, fizera uma viagem a Marselha. Angélica repetia cada palavra para em cada uma encontrar esperança. Não podia ter-se enganado. Estivera certa, apesar de todas as vicissitudes, em tentar chegar a Cândia, pois o fio estendido não se rompera, e a esperança continuava a brilhar no final da estrada. Mas era preciso não ter ilusões. Longo tempo se passaria até que algo de exato se delineasse em sua busca. Quando e onde poderia ir ao encontro do sobrinho de Ali Mekavtub? Não sabia sequer como recobrar a liberdade e se não lhe estaria reservado o destino mais terrível de prisioneira num harém.

No entanto, Angélica devia ter adormecido profundamente, pois ao despertar encontrou a seu lado uma bandeja de cobre sobre a qual havia café turco desprendendo um aroma que lhe pareceu tentador, pistacios cobertos de açúcar e biscoitos no mel. Aquilo traía uma mão feminina, e Angélica compreendeu a quem o devia ao descobrir um longo rolo vegetal, que era a esteira da pequena liberta Ellis.

Terminava a refeição quando vozes ecoaram no corredor subterrâneo, passos aproximaram-se, o ferrolho e a chave rangeram, e o carcereiro caolho introduziu brutalmente duas outras mulheres, uma das quais velada. Ambas soltaram gritos estridentes, dirigindo-lhe veementes protestos em turco. O carcereiro insultou-as copiosamente na mesma língua e depois de fechar a porta novamente foi embora praguejando.

As duas agacharam-se num canto da cela, olhando assustadas na direção de Angélica, até que perceberam que se tratava de uma mulher e se puseram a rir como loucas.

Já habituada à penumbra, Angélica viu que a mulher velada usava uma calça bufante, um saroual de seda preta e um casaco de veludo. Seus opulentos cabelos negros, escurecidos ainda mais pela tintura de hena verde, estavam penteados sob um chapeuzinho de veludo vermelho de onde saía uma gaze que lhe dissimulava o rosto. Ao notar que estava na presença de "uma mulher, tirou a gaze e mostrou longos cílios azuis bordejando olhos de gazela. Não fosse o nariz um tanto proeminente^demais, seria belíssima. No pescoço tinha uma corrente de ouro de onde retirou uma cruz de ouro, que beijou, depois do que se persignou com um largo gesto da direita para a esquerda. Observando o efeito do gesto sobre Angélica, foi sentar-se junto dela e, para grande surpresa da jovem, pôs-se a falar um francês suave e hesitante, mas perfeitamente correio. Era arménia, de Tbilissi, no Cáucaso, e de religião ortodoxa, mas aprendera francês com um jesuíta que também ensinara seus irmãos. Apresentou a-companheira, loura, como natural de Mos-cóvia, capturada pelos turcos diante de Kiev.

Angélica perguntou4hes como haviam caído nas mãos do Marquês d'Escrainville. Elas o conheciam há pouco, pois tinham sido recentemente desembarcadas, procedentes de Beirute, na Síria, onde fizeram uma longa e dolorosa escala, depois de haverem passado por Erzurum e Constantinopla. Ambas se consideravam muito felizes por estarem em Cândia, pois sabiam que desta vez não seriam tratadas como gado e expostas nuas no bazar público: seriam leiloadas entre quatro paredes, como "mercadorias de valor".

Angélica ouvia e olhava desconcertada. Aquela Srta. Tchemith-kian fora arrastada durante meses e exposta nua pelos bazares do Levante e ninguém lhe arrancara os pesados braceletes de ouro que lhe cobriam os pulsos e também os tornozelos, nem o pesado cinto feito de cequins de ouro que dava duas ou três voltas na cintura dela? Ela carregava várias libras de ouro consigo. De quanto se precisava, então, para se resgatar naquele país? .

A arménia caiu na risada. Dependia! Segundo ela, não era tanto uma questão de dinheiro, mas sim de ganhar um amante protetor que tivesse prestígio e autoridade. Estava certa de que encontraria um ali com mais facilidade, aproximando-se daquele país que ainda ontem era dos cristãos e que continuava a ser o porto de ligação dos corsários europeus e porto de descanso para as frotas comerciais do Ocidente. Ela vira sacerdotes ortodoxos na rua, que lhe deram muita esperança.

A eslava mantinha mais distância ou então era menos tagarela. O destino que lhe estava reservado parecia-lhe indiferente, mas instalou-se com autoridade sobre a esteira de Angélica e logo ocupou a maior parte, para adormecer em seguida.

— Essa aí não é concorrente perigosa - disse a arménia com uma piscadela de cumplicidade. - É bonita, mas logo se nota que lhe falta alguma coisa para seduzir. Em compensação, espero que sua presença não me faça perder a oportunidade de encontrar um bom amo.

— Nunca pensou em/fugir? - perguntou Angélica.

— Fugir? Para onde? O caminho de volta ao Cáucaso é muito longo. Atravessa todo o imenso império turco. Cândia, que era cristã, não acaba de ser conquistada por eles? E minha pátria não existe mais no Cáucaso: os turcos estão lá! Massacraram meu pai e meus irmãos mais velhos, e meus irmãos mais novos foram castrados à minha vista para serem vendidos como eunucos brancos ao paxá de Kars. Não, para mim o melhor é encontrar um amo tão poderoso quanto possível.

Depois indagou de Angélica. Vinha do mercado de escravos de Malta? Sua voz expressava muita consideração.

— É grande honra, então, estar entre os escravos capturados pelos religiosos da Ordem de Malta? - perguntou Angélica com ironia.

— São os maiores senhores cristãos do Levante - disse a outra, revirando os olhos sombreados -, até os turcos têm medo deles e lhes testemunham consideração, pois os cavaleiros comerciam por toda parte e são imensamente ricos. Sabia que o batistan de Cândia lhes pertence? E me disseram que uma de suas galeras está atracada em Cândia e que o mestre dos escravos da ordem estará presente ao leilão em que seremos vendidas. Mas sou uma tola: você é francesa e também deve haver mercados de escravos na França. Dizem que a França é muito poderosa. Conte-me. É tão grande quanto Malta?

Angélica protestou. Não, não havia mercado de escravos na França. E a França era dez mil vezes maior do que Malta. A arménia deu uma gargalhada insolente. Por que a francesa inventava mentiras mais inverossímeis que os contos árabes? Todo mundo sabia que não havia nação cristã maior do que Malta. Angélica desistiu de convencê-la. Disse que a perspectiva de ser vendida no batistan dos nobres cavaleiros não a consolava pela perda de sua liberdade, e que esperava conseguir escapar. A arménia meneou a cabeça. Não acreditava que se pudesse escapar das garras de um mercador de escravos tão importante quanto o "pirata francês". Estava há quase um ano nas mãos dos turcos e jamais ouvira falar de uma fuga bem-sucedida de mulher.

Os casos mais "bem-sucedidos" eram os de fugitivas atormentadas e mordidas pelos cães e pelos gatos.

— Gatos?

— Certas tribos muçulmanas ensinam os gatos a guardar as prisioneiras. E o gato é mais feroz e mais ágil do que o cão.

-        Pensei que fossem os eunucos que guardassem as mulheres.

Angélica foi informada de que os eunucos serviam para vigiar as mulheres que conseguiam alçar-se até o harém. Mas as prisioneiras capturadas iram confiadas à vigilância de gatos e porcos, aos quais às vezes se atiravam as rebeldes para serem devoradas vivas. Os imundos animais começavam por arrancar-lhe os olhos e comer-lhes os seios.

Angélica estremeceu. Não temia a morte, mas aquela!...

Mas o apetite de arménia não diminuiu por causa das histórias que contou, e em .pouco tempo as gulodices açucaradas trazidas por Ellis foram consumidas a três, pois a eslava, que acordava, comeu sozinha a maior parte. As prisioneiras começaram a sentir sede. Apesar dos chamados particularmente sonoros da arménia, ninguém lhes trouxe nada para beber. Com o frescor da noite, a sede acalmou-se e elas dormiram mais ou menos bem. Mas a sede redobrou de manhã, e ninguém respondeu a seus chamados.

Pelo estreito respiradouro penetravam bafos de calor até o fundo porão onde se encontravam. E as prisioneiras estavam com fome e sede. A claridade de fora tornou-se vermelha, depois arroxeada, e extinguiu-se. A noite caiu outra vez, mais atormentada do que a precedente. Angélica tinha dor nas costas. A chicotada do pirata penetrara-lhe a carne, e o sangue colara-se-lhe à roupa.

De manhã foram despertadas por um aroma delicioso que vinha de bem perto.

-        É chachlic caucasiano - disse a arménia, de narinas palpitando. - Carneiro recheado de toucinho e assado no espeto.

Ouviram o agradável entrechocar-se de pratos de metal no corredor.

-        Coloque isso aqui - disse a voz de D'Escrainville.

O ferrolho abriu-se ao mesmo tempo em que um jato de luz se projetou para o interior.

-        Um pequeno jejum e uma companhia bem informada da situação deram-lhe bons conselhos, minha bela? Está decidida a se comportar como uma escrava razoável? Baixe a cabeça e diga "Sim, meu amo, farei tudo o que quiser..."

O pirata cheirava a vinho e a droga. Estava mal barbeado. Diante do silêncio de Angélica, praguejou e disse que sua paciência chegara ao limite.

-        Não posso participar dos leilões sem ter domado esta rameira! Ela me levará à falência! Repita comigo, cabeça de mula: "Sim, meu amo..."

Angélica contraiu os dentes. O escravagista cuspiu de ódio. Mais uma vez ergueu o chicote e mais uma vez o caolho se interpôs. Recobrando a razão, o pirata fez um esforço para conter-se.

-       Se não lhe arranco a pele do rosto, é simplesmente para não diminuir os preços...

Dirigiu-se aos marujos que seguravam os pratos:

-        Levem as outras prisioneiras para a cela vizinha, para que comam e bebam, mas não essa mula.

Para grande espanto de Angélica, a arménia e a companheira, a gulosa moscovita, recusaram um privilégio de que a terceira não compartilharia. A solidariedade entre cativos era uma regra.

O verdugo mandou todas as mulheres para o diabo, vociferando que aquela espécie não devia existir, e com grande estardalhaço mandou levar os pratos de volta.

CAPITULO XXIV

A provação dos gatos - Angélica desmorona

O dia passou. A noite e a fome voltaram a abater-se sobre o pequeno grupo.

Aquela noite Angélica não pôde dormir. Seria preciso mais um dia de sofrimento pa£a vê-lo transformar-se em breve naquele leilão onde o trio devia ser a grande atração? Savary prometera arrancá-la a seu triste destino. Mas as chances de um pobre velho sem dinheiro, ele próprio cativo, auxiliado por alguns gregos ignorantes, eram bem pequenas naquele temível vespeiro, onde as mais altas personalidades da pirataria dispunham de todas as comodidades necessárias para levar a bom termo o lucrativo e secular comércio de escravos.

Pelo meio da madrugada, ela teve a impressão de ver brilhar na lucarna dois olhos luminosos.

-        Um gato! - berrou Angélica, assombrada pelas histórias da arménia.

Mas era apenas uma lâmpada a óleo com duas mechas. A luz incerta foi tapada, e Angélica ouviu chamar baixinho:

-        Signora Angélica, aqui... Ellis.

Vacilando, aproximou-se da janela para receber entre as mãos uma coisa fria e viscosa, que ela deixou cair horrorizada, antes de perceber que eram três belos cachos de uvas.

-        O velho médico manda dizer... quê', hão importa o que aconteça, é preciso não perder a esperança. Ele virá aqui ao amanhecer, quando a senhora ouvir o primeiro canto do muezim da Grande Mesquita.

— Obrigada, Ellis! Como você é bondosa!... O que é esse barulho? Um vulcão subterrâneo?

— Não! E a tempestade. O mar está muito agitado esta noite. Ouve-se o ruído porque a casa do amo fica junto ao mar.

Ellis sumiu como uma sombra. Angélica pôs-se a devorar as uvas, mas parou, censurando-se por não oferecê-las às outras. Quis despertá-las. Como não conseguiu, separou a parte delas e engoliu a sua rapidamente. Depois a noite lhe pareceu interminável. Um pouco saciada, desejava dormir, mas impedia-se disso, esperando Savary. Por volta do amanhecer, os rugidos do mar enfurecido se acalmaram. Angélica se encostara à muralha, bem junto à lucarna; acabou pegando no sono.

-        Sra. du Plessis, escreva esta carta!

Angélica teve um sobressalto. Logo percebeu o velho boticário, que tentava introduzir por entre as barras uma folha de papel, um chifre de tinta e uma pluma.

-        Mas não vejo nada. Não tenho escrivaninha...

' - Não tem importância. Apoie-se na parede ou no chão. Angélica apoiou o papel numa pedra rugosa. Savary segurava o chifre de tinta.

— Uma carta... uma carta para quem? - perguntou Angélica, despertando completamente.

— Para seu marido.

— Para meu marido?

— Sim... Estive novamente com Ali Mektub, e ele está disposto a partir para Argel a fim de procurar o sobrinho e interrogá-lo. Talvez o sobrinho o leve diretamente à residência de seu marido. Seria bom, então, que pudesse entregar-lhe uma carta sua, com a sua letra, para dar crédito à missão.

A mão de Angélica tremia sobre o papel amarrotado. Escrever ao marido! Ele deixava de ser um fantasma para tornar-se um ser vivo. A ideia de que as mãos dele tocariam aquela carta, seus olhos a leriam, parecia-lhe insensata. Alguma vez acreditara, perguntou-se ela, na ressurreição dele?

-        Que devo dizer, Mestre Savary? Não sei... Escrever o quê?

-        Qualquer coisa, contanto que ele reconheça sua letra.

Rasurando o papel, em sua emoção, Angélica escreveu: "Lembre-se de mim, que fui sua mulher. Sempre o amei - Angélica".

— Devo comunicar-lhe a minha terrível situação, dizer-lhe onde me encontro?

— Ali Mektub o explicará verbalmente.

— Acredita realmente que ele possa encontrá-lo?

— Fará tudo o que puder para isso.

— Como conseguiu convencê-lo a partir-por nós? Nós, que somos pobres escravos privados de tudo, sem dinheiro...

— Nem sempre os muçulmanos obedecem apenas ao apelo do lucro - disse Savary. - Obedecem, antes, a duas ou três grandes ideias de sua crença, e quando se decidem, nem vale a pena tentar retê-los. O mercador Ali Mektub considerou sua história e a de seu esposo um sinal de Alá. Sobre seu marido e sobre sua pessoa, Deus tem desígnios imperiosos. Sua busca é uma obra santa, e de sua parte Mektub acha que deve partir, senão Alá o punirá. Vai realizar a viagem tão devotamente como se se dirigisse a Meca, às próprias custas, e foi ele quem me adiantou as cem libras prometidas ao Sr. Rochát em troca de seus serviços. E eu sabia que ele faria isso.

— Talvez seja de fato um sinal de que o céu tem piedade de mim. Mas essa viagem será longa... Enquanto espero, o que será de mim? Sabia que falam em vender-me dentro de dois dias?

— Sei - disse Savary, preocupado -, mas não se desespere. Talvez eu tenha tempo de preparar umprojeto de evasão. Ainda assim, se você pudesse ganhar alguns dias antes de ser levada a leilão, nossas chances aumentariam.

— Refleti e informei-me com minhas companheiras. Parece que às vezes há prisioneiras que se mutilam ou se desfiguram para escapar à venda. Não tenho essa coragem, mas pensei que se cortasse o cabelo bem rente meus carcereiros ficariam bastante embaraçados. Colocam grandes esperanças por eu ser loira, coisa que atrairá os orientais. Sem cabelos, eu alcançaria um preço menor. Não ousariam me pôr à venda e teriam que esperar que o cabelo crescesse. Ganharíamos tempo.

— A ideia não é má. Mas temo por sua causa pela fúria daquele miserável.

— Não receie por mim. Começo a me habituar. Precisaria apenas de uma tesoura.

— Vou tentar trazê-la. Não sei se poderei vir pessoalmente, pois estou sendo vigiado, mas encontrarei alguém que o faça. Coragem e inch Allah!

Raiou a terceira manhã daquele cativeiro. Angélica se preparava para uma intensificação dos maus-tratos por parte de seu amo escravagista. Sentia uma ligeira febre, a cabeça vazia, as pernas fracas.

Quando ouviu passos no corredor que levava à sua cela, estremeceu dolorosamente.

Coriano apareceu, fê-la sair, e sem uma palavra conduziu-a até o salão, onde o Marquês d'Escrainville andava de um lado para outro, com uma expressão de raiva concentrada.

Ao vê-la surgir, ele lançou-lhe um olhar malévolo e depois tirou das abas da roupa uma longa tesoura.

-        Eis o que encontraram com um garoto grego que tentava se insinuar até o respiradouro da masmorra. Era para você, não era? O que pretendia fazer com isto?

Angélica não respondeu e desviou os olhos, desdenhosa. Sua astúcia fracassara.

-        Ela certamente estava com alguma ideia na cabeça - disse Coriano. - Você sabe o que elas são capazes de imaginar às vezes para escapar à venda! Lembre-se da siciliana que tomou ácido voluntariamente. E daquela outra que se atirou do alto das muralhas. Uma grande perda.

-Não me fale de infelicidades! - exclamou o pirata.

Recomeçou a andar de um lado para outro. Depois foi até Angélica e agarrou-a pelos cabelos para encará-la.

-        Decidiu que não seria vendida, hein? Que faria qualquer coisa para escapar. Vai gritar? Berrar? Debater-se? Será preciso que dez a segurem para lhe arrancar o véu?

Soltou-a e reiniciou o vaivém.

— Já estou vendo a cena. Um belo escândalo! Os Cavaleiros de Malta, proprietários do batistan, não gostam disso, nem os apreciadores de moças dóceis.

— Não se poderia drogá-la?

— Você bem sabe que isso não agrada. Elas ficam com um ar embrutecido, amorfo. Sem nada de encorajador. Mas eu preciso das minhas doze mil piastras!

Parou diante de Angélica.

-        Se você for dócil, tenho certeza de que as obterei... Mas você não será dócil, e até o último instante haverá de nos preparar alguma estocada. Estou dizendo-lhe, Coriano! Eu até pagaria para que me livrassem dessa rameira! O caolho soltou uma espécie de grunhido ultrajado:

— É preciso domá-la.

— Como? Tentou-se de tudo!

— Não.

O único olho do imediato iluminou-se.

-        Ela ainda não foi dar uma Voltinha até a cela nas muralhas. Isso a fará entender o que é que a espera, caso prejudique nossa venda.

Um hediondo sorriso abria-se sobre a boca desdentada. D'Escrainville respondeu ao sorriso com um ar de quem tinha entendido.

-        Boa ideia, Coriano. Ainda se pode tentar.

Aproximou-se da cativa.

-        Quer saber que tipo de morte lhe reservo, caso me prejudi que a venda? Quer saber que tipo de morte reservo para você, caso não alcance doze -mil piastras? Caso faça algo para desagradar aos compradores?

Segurando-a pelos cabelos, inclinava sobre ela o rosto convulsionado, soprando-lhe na face o hálito adocicado de drogado.

-        Pois você morrerá, não espere piedade de mim! Por menos de doze mil piastras, retiro-a do leilão e você morrerá. Quer saber como?

A porta da nova cela fechou-se sobre Angélica. Como as outras, era úmida e escura, mas não apresentava nada de estranho. Ela permaneceu em pé por longo tempo, depois acabou sentando-se num tabique a um canto. Não quisera mostrar ao Marquês d'Escrain-ville o medo que a devorava, mas sentia um medo terrível! No momento em que ele fechara a porta da cela, ela estava prestes a lançar-se aos pés do pirata, a suplicar, a prometer tudo o que ele quisesse... Uma suprema aguilhoada de orgulho a contivera.

-        Que medo, meu Deus! - exclamou em voz alta. - Que medo!

Depois de tantos dias de tortura, seus nervos começavam a ceder.

O lugar era como uma tumba. Angélica levou as mãos ao rosto e esperou.

Teve a impressão de ouvir um choque surdo, como se alguma coisa tivesse caído perto dela, depois o silêncio se fez novamente.

Mas já não estava só na cela. Uma presença indefinível rondava, um olhar pesava sobre ela. Muito lentamente ela afastou os dedos dos olhos e susteve um grito de horror. No centro da cela, um gato enorme a mirava.

Os olhos fosforescentes tremulavam na penumbra. Angélica permaneceu imóvel. Não seria capaz de fazer um único movimento.

Depois outro gato apareceu entre as barras do respiradouro e pulou para dentro. Seguiu-se um terceiro. Um quarto. O quinto. Angélica estava agora rodeada de presenças felinas e rasteiras. Nas sombras da cela Angélica via apenas os olhos faiscantes à espreita. Um se aproximou e arqueou-se, preparando-se para saltar. Ela teve a impressão de que o animal lhe mirava os olhos. Com um pontapé, tentou afastá-lo. A fera respondeu com um miado enfurecido, que as outras repetiram em coro, numa espécie de concerto diabólico.

Angélica se pusera de pé. Queria chegar à porta. Sentiu um peso nos ombros, garras que se enterravam em sua carne, outras que se agarravam à sua roupa.

Com os braços sobre os olhos, começou a gritar como uma demente:

-        Não... isso não... isso não... Socorro! Socorro!

A porta abriu-se e Coriano entrou, soltando chicotadas, pontapés e imprecações. Teve dificuldade em dispersar os horríveis gatos esfomeados. Arrastou para fora Angélica, ofegante e fora de si, gritando, consumida de terror.

D'Escrainville a contemplou assim abatida, finalmente dobrada. Não passava de uma mulher subjugada. Os nervos frágeis haviam cedido à tortura. Sua fraqueza de mulher levara a melhor sobre a sua vontade feroz. Não era mais do que uma mulher como as outras.

Um ricto deformou a boca do pirata. Era a sua mais bela vitória... a mais amarga. De repente teve vontade de gritar de dor e cerrou os dentes.

— Entendeu? - disse. - Você será dócil?

— Sim, sim.

— Vai deixar-se apresentar, despir?

— Sim, sim... Tudo... Tudo o que quiser... mas não os gatos. Os dois bandidos se olharam.

— Acho que está ganho, patrão - disse Coriano.

Inclinou-se sobre Angélica, derreada e sacudida por lancinantes soluços e mostrou-lhe o ombro dilacerado.

-        Entrei assim que ela começou a chamar, mas eles tiveram tem

po de lhe dar uma boa cutilada. O hammantchi do batistan e Erivan, o comissário avaliador, vão nos cobrir de insultos.

O Marquês d'Escrainville enxugou a testa, lavada de suor.

— Com ela, foi o menor dos estragos. Ainda bem que não se deixou furar os olhos!        

— É bem verdade! Dura como esta, eu nunca tinha encontrado, Madona!. Pelo tempo que eu viver, sob todos os céus da terra em que eu labutar, hei de falar da francesa de olhos verdes.

CAPÍTULO XXV

Pelas ruas de Cândia - Savary conspira

A partir daquela cena horrível, Angélica viveu numa espécie de abatimento resignado, sem tentar organizar os pensamentos, nem rebelar-se.

Suas duas companheiras trocaram um olhar de entendimento ao verem a francesa, há pouco tâo insolente, permanecer por longas horas prostrada. O pirata conhecia os meios de domar as mais rebeldes. Era um homem de grande experiência. Inspirava-lhes consideração e como que certo orgulho por lhe terem caído nas mãos.

Na manhã seguinte, um dos guardas mouros de UHermes entrou na cela seguido de dois negros muito gordos. A primeira vista, Angélica tomou-os de fato por homens, pois vestiam-se como homens, usavam enormes turbantes turcos e tinham um sabre à cintura. Mas ao examiná-los de mais perto, viu que eram mulheres de certa idade, pois sob o bolero de veludo bordado percebeu-lhes os seios caídos, e os rostos, com inúmeras covinhas, eram imberbes. A mais velha plantou-se diante de Angélica e disse numa voz de falsete:

-        Hammam!

A francesa interrogou com os olhos a arménia.

— Hammam? Isso não é "banho" em persa?

— Choch yakchi. Sim, muito bem - aprovou a velha, em turco, com um grande sorriso. E acrescentou, em russo, apontando o indicador tingido de laranja para a moscovita: - Bania. Banho. - Depois apontou a si mesma e disse: - Hammamtchi!

__ É o banhista-chefe - exclamou a Sra. Tchemichkian, muito excitada.

Explicou que eram dois eunucos que vinham buscá-las para levá-las ao banho turco, depilá-las, vigiá-las e vesti-las. A eslava pareceu despertar e pôs-se a tagarelar muito rápido e com muita vivacidade com as hediondas personagens. Ela e axompanheira pareciam encantadas.

-        Dizem que poderemos escolher as roupas mais caras no bazar e as jóias também. Mas antes é preciso que você aceite um véu.

O eunuco pretende que é indecente para você estar vestida como homem e sente vergonha por sua causa.

Fizeram-nas subir para a casa, onde uma refeição as aguardava - filhoses e carne com sucos de limão e laranja. Os eunucos as vigiavam. Angélica teve um sobressalto quando a mão de unhas alaranjadas do velho eunuco pousou-lhe no ombro e afastou-lhe o cabelo para examinar suas costas. Nesse meio tempo, apareceu o Marquês d'Escrainyille.

O eunuco dirigiu-lhe palavras veementes em turco. A arménia cochichou:

-        Está perguntando se ele não é louco de haver batido numa mulher tão bela antes da venda. Não garante que possa apagar essa marca para-hoje à noite.

D'Escrainville respondeu grosseiramente às censuras, na mesma língua. O eunuco fez um muxôxo de matrona ofendida e calou-se.

Os olhos do corsário estavam congestionados, sua boca, amarga. Seu olhar esquivava-se e não pousou em Angélica. Ao cabo de um instante, foi embora fazendo soar as botas.

Criados trouxeram as roupas de sair para as mulheres. Angélica teve que enfiar pela cabeça um amplo chador negro, aberto à altura dos olhos por um veuzinho branco.

Vários asnos ajaezados esperavam do lado de fora, seguros por garotos em andrajos. A arménia comentou que o fato de irem montadas em asnos mostrava o elevado valor comercial que tinham. Depois, ela e a amiga eslava puseram-se.a discutir em turco diante do velho eunuco, e Angélica, que não podia compreender, manteve-se à distância.

O velho eunuco revelou-se um homem muito afável e tagarela. Começou por comprar pedaços de uma tremeluzente gelatina vermelha e verde, que ofereceu às mulheres, explicando que era rahat-lukum de framboesa e hortelã, mas que não se devia comer demais antes do banho. Quando Angélica, achando insípido e desagradável aquele doce à base de algas, quis oferecê-lo ao menino que conduzia seu asno, o negro arrancou-lhe o doce da mão e aplicou um golpe de courbache, um chicote de tendão de boi, nas pernas do garoto.

Depois daqueles dias de confinamento, o ar lhe fazia bem. A tempestade se afastara. O mar, que por vezes se percebia ao finai de uma ruela, conservava uma coloração violeta salpicada de branco, mas o céu estava azul e limpo, o calor, menos sufocante. O pequeno cortejo avançou muito lentamente pela confusão das ruas já invadidas por multidões, apesar da hora matinal. Assim como no porto, todas as raças do Mediterrâneo se acotovelavam pelas passagens estreitas, abertas entre duas paredes de casas gregas ou entre os balcões protuberantes dos palacetes venezianos. Gregos das montanhas, camponeses dos arredores, reconhecíveis pelos saiotes brancos e os joelhos nus, passavam ombro a ombro com mercadores árabes em djellabas marrons ou bordadas. Os turcos, bastante raros, distinguiam-se pelos turbantes imensos, globos de musselina branca ou cetim cintilante presos por pedras preciosas, pelos saruals bufantes e pelos cintos de voltas incontáveis. Malteses azeitonados seguiam ao lado de sardos e italianos, em trajes típicos. Eram, na maioria, pequenos mercadores vindos em barcos, acompanhando o litoral. O fato de terem escapado aos corsários permitia-lhes acostar em Cândia como homens livres, tratando de igual para igual a liquidação de sua carga, conforme teria feito Melchior Pannassave, se a sorte lhe tivesse sorrido. Notavam-se muitos trajes europeus e chapéus emplumados, botas de abas e sapatos de salto alto. Trajes mais ou menos ruços, peitilhos mais ou menos amarrotados de funcionários coloniais esquecidos naquela ilha longínqua, veludos e plumas de avestruz, couro fino, de um banqueiro vindo da Itália ou de um comerciante próspero.

A cada cem passos encontrava-se um padre ortodoxo, barbudo e de preto, carregando ao peito uma imensa cruz de madeira trabalhada, de prata ou de ouro.

A cada um a arménia pedia a bênção, que o religioso concedia distraidamente, traçando no ar um sinal-da-cruz.

No quarteirão dos alfaiates, o eunuco-chefe entrou em inúmeras casas, comprou rolos de tecido de todas as cores e jóias. Depois propôs que retornassem ao porto.

A pequena caravana retomou a marcha, atravessando uma enfiada de tendas, umas abertas ao céu azul e ardente, outras abobadadas e escuras, como a tenda dos caldeireiros, onde cinquenta gravadores trabalhavam o cobre, num ruídp ensurdecedor. A multidão tornava-se cada vez mais densa. Mercadores ambulantes introduziam-se por entre ela, sem comprometer o equilíbrio da imensa bandeja de madeira que sustentavam metade sobre o turbante, metade sobre um tamborete de madeira assentado ao ombro. Nessas bandejas encontrava-se de tudo: frutos, nozes, gulodices e até canecos de prata com café, entre duas xicarazinhas e o inevitável copo de água, caro aos orientais.

Crianças de todas as cores, nuas ou Vestidas de alguns farrapos tingidos, brigavam com os cães às patas dos asnos. Crianças e cães eram magros. Em compensação, os gatos, igualmente variegados, eram gordíssimos. A/igélica olhava horrorizada aqueles animais peludos e traiçoeiros^ agachados no alpendre de cada loja, em cada cornija, à sombra de cada pilar e de todos os balcões. Numa pracinha, um homem com uma grande boina vermelha, com espetos de carnecrua aos ombros, estava cercado de uma multidão de gatos miando. Era o mercador de fígados de carneiro, encarregado pela cidade de distribuir guloseimas ao animal favorito da civilização otomana.

Depois a fila de burricos chegou a um cais pavimentado de grandes pedras negras e coberto de pedaços de frutos: tâmaras, melões, mamões, laranjas, cidras, figos. Apareceu uma floresta de mastros e velames de navios.

No convés de uma galeota com bandeira de Túnis, uma espécie de ogro cabeludo e barbudo, de calções besuntados de alcatrão e altas botas de couro vermelho, rugia como o deus dos mares.

Os eunucos detiveram os asnos, para apreciar o espetáculo, e trocaram comentários com as cativas. Gentilmente, Tchemichkian traduziu para Angélica. Disse-lhe que aquele era o renegado dinamarquês Eric Jansen, há vinte anos entre.os berberes, a quem ensinara a construir barcos redondos à maneira do Ocidente.

Naquela noite, a caminho da Albânia, ele fora arrastado pelo furacão e só evitara o naufrágio de seu navio, carregado demais, lançando ao mar uma parte de sua carga - mais ou menos uma centena de escravos. O velho viking trovejava, a barba loura ao vento sob o turbante vermelho, supervisionando a venda de outro contingente de escravos "danificados" pela noite atroz passada nos porões de um navio quase naufragado. Homens feridos, mulheres e crianças semimortos de terror, o dinamarquês os liquidava a baixo preço nos cais de Cândia, conservando apenas as peças mais interessantes de suas últimas incursões. Todos aqueles dissabores comerciais o tinham posto de mau humor, e as chicotadas dos guarda-forçados, excitados pelos rugidos do leão, estalavam secamente.

A lamentável tropa fora alçada sobre pilhas de mastros ou tonéis, a fim de ser bem vista pelo público. Árabes de albornoz branco, da tripulação do berbere, ofereciam o artigo, esganiçando-se. Os eventuais compradores tinham o direito de tocar, de apalpar, de desvendar as mulheres. Estas erguiam-se na extremidade do cais, tremulas e nuas, expostas a todos os olhares. Algumas tentavam cobrir-se com os cabelos, mas com um golpe seco os guardas impediam esses gestos de pudor. Não passavam de gado cujo preço se regateava. Faziam-nas abrir a boca, para mostrar se não lhes faltavam dentes demais.

Diante do espetáculo, Angélica teve um arrepio de vergonha.

"Não é possível", disse consigo, "eu não... isso não." E procurou à sua volta um socorro improvável. Percebeu um velho vendedor de laranjas que a fitava pela abertura de sua vasta djellaba. Fez um pequeno sinal para Angélica e perdeu-se na multidão.

Um comerciante negro estava arrancando uma mulher estupidificada e de olhar enlouquecido a três crianças nuas e aos berros.

-        Foi assim quando tomaram meus irmãos à minha mãe - disse a arménia com tristeza.

Ela ouviu os comentários e continuou:

-        A mulher está sendo comprada para um harém egípcio no fundo do deserto. O mercador não pode se sobrecarregar com crianças tão novas, que morreriam no caminho.

Angélica não respondia nada. Estava dominada por uma espécie de indiferença.

-        Vão comprá-las por algumas piastras - continuou a arménia -, ou então ficarão errando por Cândia, com os cães e os gatos. Maldito! Maldito seja o dia em que nasceram!

A jovem oriental meneou longamente a cabeça.

— Nosso destino é feliz. Pelo menos fome não passaremos.

Depois, alegremente, pediu para ir admirar as duas galeras de Malta, cujos pavilhões vermelhos com uma cruz branca batiam ao vento.

A venda, ali, estava prestes a concluir-se. "Serventes de armas" __ soldados da Ordem de Malta -, de alaharda na mão, mantinham a calma em torno dos cativos que os novos proprietários levavam. De botas e capacetes, aqueles militares se distinguiam dos mercenários habituais pela casula preta que tinha, ao peito, uma erande cruz branca de oito pontas.

A jovem arménia ortodoxa ficou em êxtase diante dos representantes da maior frota da cristandade.

O eunuco teve que se zangar para arrancá-la à sua admiração. Certo, não queria recusar às cativas, que no dia seguinte partiriam para haréns longínquos, assistir uma última vez ao tomascha, o es-petáculo das ruas, tão caro ao coração de todo oriental, que não se deve recusá-lo nem ao condenado à morte. Mas agora era preciso apressarem-se. A hora da venda aproximava-se.

-        Hammam!Hammam! - repetia ele, instigando sua caravana.

Foi diante dos banhos turcos que Angélica reviu o mendigo com os cestos de laranja. Ele tropeçou bem entre as patas do asno que ela montava, cela reconheceu Savary.

— Esta noite - cochichou ele -, quando sair do batistan, fique preparada. Um foguete azul será o sinal. Meu filho Vassos a guiará. Mas se ele não conseguir chegar até você, faça todo o possível para atingir a Torre dos Cruzados, no porto.

— É impossível. Como poderia escapar a meus guardas?

— Creio que nessa altura os seus guardas, sejam quem forem, terão outra coisa a fazer além de vigiá-la - casquinou Savary, com um brilho diabólico por trás das lentes de seus óculos. - Fique preparada!

 

CAPÍTULO XXVI

O batistan - A intervenção dos Cavaleiros de Malta

O sol se punha quando palanquins de cortinas fechadas, carregados por escravos, levaram as três mulheres ao batistan de Cândia.

Situado no alto, apresentava do exterior a aparência de uma grande construção quadrada, em estilo bizantino, que se abria por grandes grades ornamentadas. A multidão era densa nos arredores, e as cativas, sempre sob a vigilância dos eunucos, tiveram que caminhar até a entrada, onde um grande grupo se reunia diante de uma espécie de quadro-negro feito de uma laje de mármore não polido. Um homem de tez amarelo-esverdeada e nariz proeminente, vestido com uma longa sobrecasaca presa com um broche, mas sem turbante, escrevia com cuidado em duas línguas, italiano e turco. Angélica conhecia italiano o suficiente para decifrar as inscrições, que diziam mais ou menos isto:

Gregos cismáticos

50 escudos ouro

Russos muito fortes

100 escudos

Mouros e turcos

75 escudos

Franceses a granel, na troca

30 escudos

 

 

Cotação das trocas:

 

1 francês

3 mouros em Marselha

1 inglês

6 mouros em Tana

1 espanhol

7 mouros em Agadir

1 holandês

10 mouros em Livorno ou Gênova

 

 

Um empurrão de seus guardas fez Angélica avançar, e o pequeno grupo penetrou num vasto pátio-jardim, lajeado de ladrilhos de uma preciosa faiança azul, muito antiga, que se alternavam com ajuntamentos de roseiras, loureiros-rosa e laranjeiras. No centro murmurava uma fonte, obra de arte veneziana. Os ruídos da cidade morriam no interior das espessas "muraljias daquele caravança-rá, onde as idas e vindas, sem serem menos azafamadas, revestiam-se da dignidade mais solene do alto comércio. Pois, ali, não se estava nos bazares. A volta do jardim, colunas cinzeladas e cobertas de antigas pinturas bizantinas com delicadezas de iluminuras sustentavam um longo peristilo coberto, sobre o qual se abriam as portas das salas internas, onde se realizavam as vendas.

Depois de atravessar todo o comprimento do jardim, o hammamtchi deixou suas ovelhas diante do peristilo para ir informar-se da sala que lhes estava destinada.

Angélica sufocava sob os inúmeros véus com que a tinham vestido. A impressão de-pesadelo acentuava-se. Levada pela engrenagem, via-se naquela noite na soleira daqueles mercados de carne humana, onde homens de todas as raças e olhos concupiscentes iam disputá-la. Ela tirou o véu que lhe cobria ò rosto para respirar um pouco. O jovem eunuco fez sinal com veemência para que se cobrisse outra vez. Ela não prestou atenção.

Acompanhava comum olhar melancólico e assustado a chegada dos compradores turcos, árabes ou"europeus, que atravessavam os jardins e penetravam sob as colunas, cumprimentando-se cortesmente.

De repente ela notou Rochat, o cônsul interino, que atravessava as grades. Tinha uma barba de uma semana, como de hábito, e trazia uma pilha de papéis.

Num átimo Angélica se atirou e atravessou o jardim correndo.

- Sr. Rochat - disse, abordando-o sem fôlego -, escute-me, depressa. Seu ignóbil amigo D'Escrainville decidiu vender-me. Tenho fortuna na França, e lembre-se de que não o enganei com as cem libras que lhe prometi. Sei que não pode intervir pessoalmente, mas poderia convencer compradores cristãos a se interessarem pelo meu destino, os Cavaleiros de Malta, por exemplo, que são tão poderosos aqui? Tremo de medo de ser comprada por um muçulmano e ser levada para um harém. .Faça os cavaleiros compreender que estou pronta a pagar qualquer resgate se eles conseguirem me arrematar no leilão e arrancar-me às garras desses infiéis. Não poderiam ter piedade de uma cristã?

O representante francês, de início, pareceu muito aborrecido e prestes a safar-se, mas à medida que ela falava, tranqúilizou-se.

— Mas é uma excelente ideia - disse, coçando a nuca -, é absolutamente viável. O comissário dos escravos da Ordem de Malta, Dom José de Almada, da língua de Castela, está presente esta noite, assim como uma altíssima personalidade da Ordem, o Bailio Carlos de La Marche, da língua de Auvergne, um de nossos compatriotas. Vou esforçar-me por interessá-los por seu caso. Aliás, não vejo o que poderia fazê-los negar.

— Não haveria surpresa de ver religiosos comprando uma mulher?

Rochat ergueu os olhos para o céu.

-        Minha pobre criança, bem se vê que não é daqui. Faz muito tempo que a Ordem compra e vende mulheres, da mesma forma que os outros escravos. Ninguém se espanta. Estamos no Oriente e não esquecemos que esses bons cavaleiros fazem voto de celibato, não de castidade. De toda maneira, não são as ninharias que lhes interessam, mas o resgate. A Religião necessita de dinheiro para manter o vigor de sua frota guerreira. Ora, posso afiançar seus títulos, sua linhagem e sua fortuna. Além do mais, os cavaleiros ficam sempre felizes em serem bem vistos pelo rei da França, e ouvi dizer que a senhora estava bem na corte, junto de Sua Majestade, Luís XIV. Tudo isso os convencerá a prestar-lhe assistência.

-- Oh, obrigada, Sr. Rochat! E meu salvador!

Ela esquecia que ele era fraco, remelento e mal barbeado... Ele ia fazer algo por ela. Apertou-lhe as mãos com efusão. Emocionado e desajeitado, ele disse:

-        Não me agradeça... Fico muito feliz de poder ser-lhe útil... Atormentava-me por sua causa, mas não podia fazer nada, não é? Enfim, agora, tenha confiança.

O jovem eunuco que os alcançara soltava gritos de águia. Acabou agarrando Angélica pelo braço, para interromper aquela escandalosa conversa em separado.

Rochat afastou-se rapidamente.

Furiosa de sentir mãos negras sobre seu braço, Angélica voltou-se e esbofeteou as faces flácidas do eunuco. Este sacou o sabre e ficou indeciso, não sabendo como se servir de sua arma contra uma mercadoria preciosa que lhe fora recomendada com muita insistência. Era um eunuco jovem, vindo de um pequeno serralho de província, onde não tivera sob sua guarda senão mulheres doces e indolentes. Ainda não lhe haviam ensinado a lidar com estrangeiras recalcitrantes. Seus grossos lábios fizeram um bico, como se ele fosse chorar.

Ao saber do incidente, o hammamtchi ergueu os braços aos céus. Sua preocupação agora era apenas uma: livrar-se de suas responsabilidades. Para felicidade sua, o Marquês d'Escrainville chegava. Os dois eunucos fizeram-lhe um minucioso relato de suas dificuldades.

O pirata lançou um olhar de ódio à mulher velada na qual mal reconhecia o jovem cavaleiro da viagem. Sob a caída de musseli-nas e sedas, toda a feminilidade de Angélica se valorizava. A Antiguidade, que envolviaías mulheres em panos ao invés de apertá-las em espartilhos, sabia ijue a queda de um tecido pode revelar um corpo desabrochado e desejável.

D'Escrainville rilhou os dentes. Sua mão apertou o braço de Angélica até fazê-la empalidecer de dor.

-        Não se lembra, puta? O que lhe prometi se não se comportasse? Esta noite mesmo estará entre as mãos dos eunucos ou será entregue aos gatos... Aos gatos...

Uma careta horrivelmente cruel deformava-lhe os traços. Angélica pensou que ele parecia o Demónio.

Ele se recompôs porque um convidado subia a aléia, um banqueiro veneziano, barrigudo, coberto de plumas, rendas e dourados.

— Sr. Marquês d'Escrainville - exclamou o recém-chegado com um sotaque carregado -, estou feliz por revê-lo. Como está passando?

— Mal - respondeu o gentil-homem pirata, enxugando a testa suada. - Estou com uma enxaqueca. Minha cabeça está estourando. Terei enxaqueca enquanto não conseguir vender a moça que pode ver aqui.       _ - ~

— Bela?

— Julgue por si mesmo.

Com um gesto de casamenteiro, tirou o véu de Angélica. O outro assobiou de admiração.

— Fiu!... Que sorte, Sr. d'Escrainville. Esta mulher há de render-lhe ouro.

— E o que espero. Não a venderei por menos de doze mil piastras.

O rosto de bochechas tremulas do banqueiro assumiu uma expressão de desapontamento. Devia pensar que a bela cativa estava bem acima de seus meios.

— Doze mil piastras... Ela vale, mas você é voraz!

— Há quem não hesitará em chegar a esse preço. Espero o príncipe circassiano Riom Mirza, um amigo do Grão-Sultão, encarregado por ele de encontrar-lhe a pérola rara, e também o Bei Chamil, o grão-eunuco do Paxá Solimão Aga, que, para os prazeres de seu amo, não olha os preços...

O veneziano soltou um profundo suspiro.

-        É difícil para nós lutar com as prodigiosas fortunas desses orientais. Mas assistirei à venda. Ou me engano ou teremos um espetáculo de primeira categoria. Boa sorte, caro amigo!

A sala das vendas assemelhava-se a um imenso salão. Tapetes preciosos cobriam o chão, e divãs baixos estavam dispostos face a face ao longo das paredes. O fundo do aposento era ocupado por um estrado ao qual se subia por alguns degraus. No teto, preciosos lustres de Veneza refletiam em seus milhares de pingentes as luzes que os criados malteses acabavam de acender.

A sala já estava quase cheia. A multidão não cessava de aumentar. Criados turcos com longos bigodes e um pontudo barrete na cabeça, de lamé dourado ou prateado, serviam pequenas xícaras de café e pratos de confeitos em mesas baixas de cobre ou prata. Outros colocavam perto dos que o desejavam o inevitável cachimbo de água, cujo grugulejo discreto misturava-se ao ruído das conversas.

Os trajes orientais predominavam. No entanto, uma dezena de corsários brancos mesclavam-se em seus calções aos cafetãs bordados. Alguns, como o Marquês d'Escrainville, deram-se ao trabalho de vestir um gibão ou um traje não muito roto, de pôr um chapéu de plumas ainda viçosas, mas todos conservavam o belicoso adereço de suas inúmeras pistolas ou sabres de abordagem. Cachimbos holandeses, com um fornilho pequeno e longa piteira, faziam concorrência, sob os bigodes, a seu irmão oriental, o narguilé.

O renegado dinamarquês Eric Jansen entrou, escoltado por três guarda-costas tunisianos, e foi sentar-se, altivo e barbudo, perto do velho mercador sudanês. Esse negro, em trajes berberes africanos, era um alta personalidade, representando os traficantes do Nilo encarregados de abastecer os haréns da Arábia e da Etiópia, e os de todos os sultões e régulos do interior da Africa. Seus cabelos brancos e crespos, sob um barrete bordada de pérolas, contrastava com sua pele negra, um pouco amarelada nas maçãs do rosto e nas narinas.     

As três mulheres veladas e guiadas pelos eunucos atravessaram todo o comprimento da sala. Fizeram-nas subir os degraus do estrado, depois empurraram-nas para o fundo, onde uma cortina as dissimulava um pouco e onde havia almofadas para sentar.

O arménio que há pouco escrevia as cotações da bolsa dos escravos na entrada do batistan aproximou-se delas em companhia do Marquês d'Escrainville.

Era Erivan, o comissário avaliador, mestre-de-cerimônias. Usava uma longa túnica-rnarrorn, uma barba assíria de cachos bem penteados, uma cabeleira igualmente encaracolada e perfumada, e sentia-se que ele devia opor à febre das vendas, às lágrimas dos escravos e às reivindicações dos proprietários o mesmo sorriso un-tuoso e cheio de amenidade.

Saudou Angélica em francês com muita deferência, perguntou em turco à eslava e à arménia se não queriam que lhes trouxessem café e sorvetes, confeitos e guloseimas," a fim de passarem o tempo.

Depois encetou uma viva discussão com o Marquês d'Escrainville.

— Por que ocultar-lhe os cabelos? - protestava o marquês. - Verá, é uma verdadeira capa de ouro.

— Deixe-me fazer - disse Erivan, de olhos semicerrados. - É preciso reservar as surpresas.

Duas criadinhas foram chamadas com um estalar de palmas. Seguindo as indicações de Erivan, trançaram o cabelo de Angélica e o ergueram até a nuca num pesado coque sustentado por grampos de pérolas. Depois envolveram-na de novo em seus véus.

Indiferente, Angélica deixou que o fizessem. Toda a sua atenção se concentrava em espreitar a chegada .de um daqueles cavaleiros de Malta, cujo auxílio Rochat lhe prometera. Pela fenda da cortina, tentava em vão distinguir entre os cafetãs e as casacas a sobrecasaca preta com a cruz branca dos gentis-homens da Ordem. Um suor frio porejava em suas têmporas, quando pensava que Rochat não encontraria os argumentos necessários para convencer aqueles prudentes comerciantes a lhe darem crédito.

A venda começou. Apresentou-se um mouro, especialista em navegação, e logo se fez um silêncio de avaliação diante daquela estátua de bronze cujo corpo fora cuidadosamente oleado a fim de destacar os músculos nodosos e as formas hercúleas.

Depois a atenção se desviou um instante para a entrada de dois cavaleiros de Malta. Envoltos em sua ampla capa preta com a cruz de prata, atravessaram a sala, inclinando-se diante dos notáveis de Constantinopla, avançaram até o estrado e disseram algumas palavras a Erivan. Este apontou o canto das cativas.

Angélica ergueu-se, cheia de esperança.

Os dois cavaleiros inclinaram-se diante dela, com a mão no punho da espada. Um era espanhol, o outro francês, ambos aparentados às maiores famílias da Europa, pois era preciso atestar no mínimo oito quartos de nobreza para obter o título de cavaleiro da maior ordem da cristandade. A severidade de seu traje não eliminava certo luxo. Sob os mantos, usavam uma curta casula preta, igualmente marcada com uma cruz branca e que lhes cobria o gibão.

Mas seus punhos e gravatas eram de renda de Veneza, as meias de seda frisadas por um fio de prata, e também os sapatos tinham fivelas de prata.

-        É a senhora a nobre francesa de quem o Sr. Rochat acaba de nos falar? - perguntou o mais velho, que usava uma peruca branca ao melhor gosto de Versalhes.

Apresentou-se:

-        Sou o Bailio de La Marche, da língua de Auvergne, e este é Dom José de Almada, da língua de Castela, comissário dos escravos para a Ordem de Malta. É nessa condição que ele pode interessar-se por sua pessoa. Parece que foi capturada pelo Marquês d'Escrainville, aquele abutre malcheiroso, enquanto se dirigia a Cândia, incumbida de uma missão pelo rei da França.

Angélica abençoou em pensamento o pobre Rochat por haver apresentado as coisas daquela maneira. Mostrava-lhe a rota a seguir.

Ela apressou-se a falar do rei como pessoa habituada à corte, citou suas relações mais importantes, desde o Sr. Colbert até a Sra. de Montespan, falou do Duque de Vivonne, que colocara a sua posição a galera capitânia e a escolta da esquadra real. Depois fltou como o cruzeiro fora desorganizado pelo ataque do ResCator...

__ Ah, o RescatorL. - exclamaram os cavaleiros, erguendo olhais de mártir para o céu.

Como em seguida tentara levar avante sua jnissão num pequeno veleiro, que não tardara a cair nas mãos de outro pirata, o Marquês d'Escrainville.

__ Aí estão os efeitos lamentáveis da desordem que reina no Mediterrâneo desde que os infiéis dali expulsaram" a disciplina cristã __ disse o Bailio de La Marche.

Os dois tinham escutado meneando a cabeça, logo convencidos da sinceridade de Angélica. As personalidades que citava, os detalhes que fornecia sobre sua posição na corte da França não podiam dar margem a dúvida alguma.

— É uma história deplorável - admitiu o espanhol, lúgubre. - Devemos ao rei da França, e à senhora, tentar livrá-la desse apuro. Infelizmente já não somps os senhores de Cândia! Mas, na qualidade de proprietários do batistan, os turcos nos devem alguma consideração. Faremos nossos lances. Sou comissáriodos escravos da Ordem, e tenho, portanto, algumas disponibilidades para negócios de minha escolha que apresentem boas garantias.

— D'Escrainville é exigente - observou o Bailio de La Marche -, quer no mínimo doze mil piastras."

— Posso prometer-lhes o dobro pelo meu resgate - disse Angélica com vivacidade. - Venderei minhas terras se for preciso, venderei meus cargos, mas serão reembolsados, prometo. A Religião não terá o que lamentar por me haver salvado de um destino horrível. Pensem que, se eu for levada para um serralho na Turquia, ninguém, nem o rei da França poderá fazer coisa alguma por mim.

— Infelizmente é verdade! Mas tenha confiança. Vamos intervir da melhor maneira que pudermos.

Mas Dom José parecia preocupado.

-        Devemos esperar lances elevados. Riom-Mirza, o amigo do Grão-Senhor, está anunciado para chegar. O sultão o incumbiu de procurar uma escrava branca de beleza excepcional. Parece que ele já visitou os mercados de Palermo e até de Argel sem obter satisfação. Preparava-se para retornar o mais rápido possível assim que ouviu falar da francesa capturada pelo Marquês d'EscraiJ ville. Não há dúvida de que ele não cederá se descobrir que a sra du Plessis representa o ideal que ele busca em vão para satisfazer seu augusto amigo.

-        Também se fala, como possíveis concorrentes, do Bei Chamil e do rico ourives árabe, Naker-Ali.

Os dois cavaleiros afastaram-se alguns passos para discutir a meia voz, falando muito e depressa, depois reaproximaram-se.

-        Iremos até dezoito mil piastras - disse Dom José. - É uma margem enorme e certamente nossos concorrentes mais tenazes se desencorajarão. Conte conosco, senhora.

Um pouco aliviada, Angélica agradeceu-lhes com uma voz abafada e viu afastar-se, de coração apertado, as duas silhuetas envoltas em suas capas pretas com a cruz branca. Teriam sido tào generosos se soubessem que a grande dama que desejavam salvar incorrera no desfavor do rei?

Mas era preciso enfrentar o perigo mais premente. Escravagista por escravagista, ela preferia estar do lado da Cruz a estar do lado do Crescente.

CAPÍTULO XXVII

A extraordinária venda em leilão - Angélica vendida por trinta e cinco mil piastras

Durante o colóquio dós dois cavaleiros com a cativa, os lances haviam prosseguido.

O mouro fora leiloado a um corsário italiano, Fabrício Oliglie-ro, para sua tripulação.

Ia a leilão agora um gigante eslavo de cabelo louro, com um musculatura magnífica. Para manter as aparências, Dom José de Almada e o dinamarquês de Túnis o disputaram. Quando o escravo russo se viu vendido ao renegado, caiu de joelhos, suplicando. Seria então condenado, gritava ele, a vogar a vida inteira em galeras berberes! Jamais reveria as planícies cinzentas, varridas pelo vento de seu país natal. Malteses, criados encarregados de garantir o policiamento do batistan sob as ordens dos cavaleiros, foram agarrá-lo para colocá-lo sob a guarda de seu novo proprietário.

Depois fizeram subir ao estrado um grupo de crianças brancas. A arménia cravou os dedos no ombro de Angélica.

— Olhe, contra a coluna, é meu irmão Arminak.

— Dir-se-ia uma garotinha. Está maquilado até os olhos.

— É eunuco, já lhe contei, e você bem sabe que os rapazes se maquilam entre nós. Não esperava vê-lo aqui, mas tanto melhor. Isso prova que o consideraram digno de um lance elevado. Tomara que quem o compre seja muito rico. Ele é esperto, e você verá 9ue dentro de vinte anos será o dono da fortuna do idiota do amo, que fará dele seu confidente e vizir.

O velho sudanês apontou o dedo avermelhado de hena para o adolescente e lançou uma cifra gutural. O governador turco de Cândia aumentou o valor. Um religioso de sotaina preta com a insígnia da cruz branca foi sentar-se perto dos dois cavaleiros. Era o capelão da Ordem de Malta. Foi pegar o comissário avaliador pelo cafetã e cochichou-lhe algumas palavras. O outro hesitou, interrogou com o olhar o governador turco, que com um gesto de aprovação consentiu. Então os adolescentes se puseram a cantar. O capelão, que era italiano, ouviu cada um separadamente e separou cinco do grupo, um dos quais era o irmão da companheira de Angélica.

-        Mil piastras pelo lote - disse ele.

Uma personalidade de pele branca, sem dúvida um circassiano, com turbante bordado na cabeça, ergueu-se e gritou:

-        Mil e quinhentas piastras.

A arménia cochichou:

-        Que felicidade! E o Bei Chamil, o chefe dos eunucos brancos de Solimã Aga. Se meu irmão conseguir entrar para esse famoso serralho, sua fortuna está feita.

-        Duas mil piastras - lançou o capelão da Ordem de Malta.

Foi a ele que se cedeu o lote. Tchemichkian chorou, enxugando com a ponta do véu as lágrimas que lhe queimavam os olhos enegrecidos com khôl.

-        Que pena! De que serve que meu pobre Arminak seja esperto? Jamais conseguirá ludibriar a vigilância desses religiosos que não se deixam amolecer pelos prazeres e que só pensam em empilhar ouro para sustentar suas armas. E tenho certeza de que o padre o comprou simplesmente por causa de sua voz de castrado, para fazê-lo cantar numa igreja católica. Que desonra! Talvez até o levem para Roma, para cantar diante do papa!

Ela cuspiu sobre a última palavra, encolerizada.

Sobre o estrado o leilão prosseguiu. Sobraram apenas dois meninos fraquinhos que ninguém queria e que o velho sudanês aceitou por um preço irrisório,,à força de protestos, dizendo que perdia com isso sua reputação de gosto e de comerciante avisado.

Um alarido ergueu-se na sala. O enviado pessoal do sultão de todos os crentes fazia sua entrada. O príncipe circassiano, com sua boina de astracã, usava um uniforme de seda preta e, no peito, uma multidão de pequenos chifres de pólvora para fuzil em ouro cinzelado, pendurados por cordonetes de seda vermelha, que lhe compunham um bordado de guerreiro. O punho e o sabre eram cravejados de rubis. Ele avançou seguido de sua guarda, cumprimentou distraído o governador turco, depois estacou diante do grão-eunuco Bei Chamil e iniciou com ele uma acalorada discussão.

-        Eles brigam - sussurrou a arménia. ---O príncipe diz que não admitirá que o eunuco de Solimã adquira a bela cativa, pois ela se destina ao sultão dos sultões. Espero que a bela cativa seja eu.

Ela ergueu o busto e requebrou os quadris.

Angélica, apesar de se chamar à razão, por pouco não rebentou em soluços. Aqueles homens vindos para disputá-la já preceituavam seu destino. Foi tomada por uma vertigem. Foi com dificuldade que ouviu o prosseguimento das operações, a venda dos jovens eunucos negros de D'Escrainville, depois a da russa e enfim a da pobre Tchemichkian. Jamais soube se a jovem caucasiana vira realizar-se seus desejos de ser escolhida para um harém principesco ou se caiu nas mãos. do velho agente sudanês, ou, mais tristemente ainda, nas de uni corsário,-que a venderia novamente mais tarde, depois de usá-la bastante.

Erivan, com o permanente sorriso entre os cachos bem oleados, inclinou-se diante dela.

-        Acompanhe-me, bela senhora.

O Marquês d'Escfainville ergueu-se e segurou Angélica pelo ombro.

-        Lembre-se - disse ele. - Os gatos...

Foi o pensamento da morte horrível que a ameaçava e a esperança de escapar pela intervenção dos Cavaleiros de Malta que permitiram a Angélica enfrentar as centenas de olhares ardentes que acolheram sua aparição.

Fez-se um silêncio inquieto. Há três dias a reputação da francesa fazia Cândia arder de curiosidade.

Inclinados para a frente, os espectadores interrogavam-se sobre o mistério daquela criatura velada, finalmente apresentada à sua cobiça.

Erivan dirigiu um sinal ao jovem eunuco desserviço, que se aproximou e retirou o véu que cobria o rosto da cativa.

Angélica teve um sobressalto. Seus olhos cintilaram. Sob a luz cambiante dos lustres, via aqueles rostos tensos, aqueles olhares fixos e atentos de machos à espreita, e o pensamento de que em breve iriam oferecê-la nua à concupiscência deles a fez enrijecer numa revolta que a empalideceu enquanto um longo arrepio a percorria.

Aquele frémito selvagem, o olhar altivo e quase imperiosa, cor do mar, pareceram eletrizar a sala, até então bastante indolente. Um súbito movimento de interesse e paixão ondulou as cabeças. Erivan lançou um número:

-        Cinco mil piastras.

Em seu canto, o pirata D'Escrainville levou um susto. Era o dobro do preço combinado como lance inicial.

Maldito Erivan! Desde o primeiro instante sentira nascer no público o abrupto impulso da cobiça que justifica todas as loucuras. Os homens iam entregar-se às paixões gémeas do jogo e do desejo.

— Cinco mil piastras.

— Sete mil - gritou o príncipe circassiano.

O chefe dos eunucos brancos murmurou uma cifra. Fogoso e resolvido a arrematar a cativa, Riom Mirza gritou:

-        Dez mil piastras.

Pairou um silêncio quase religioso.

Angélica olhou na direção dos Cavaleiros de Malta, que ainda não haviam aberto a btíca. Dom José, com um sorriso no canto dos lábios severos, inclinou-se.

— Príncipe - disse -, o último imã do Grào-Senhor pregava a mais alta economia. Rendo homenagem à fortuna do sultão, mas dez mil piastras não é o preço de toda a tripulação de uma galera?

— O sultão dos sultões pode sacrificar uma de suas inúmeras galeras, se tal for sua augusta fantasia - replicou secamente o caucasiano. E lançou um olhar de triunfo ao eunuco Bei Chamil, cujo rosto de mulher gorda e suave refletia a maior tristeza. O grão-eunuco de Solimã Aga ficaria muito orgulhoso de levar aquela escrava preciosa e insólita a seu ilustre amo, mas como ele próprio geria a fortuna de seu senhor, conhecia melhor que ninguém suas possibilidades e já se censurava por havê-las ultrapassado.

O silêncio prolongava-se. De repente Angélica sentiu as mãos ágeis do jovem eunuco em seus ombros, que com habilidade lhe desenrolava o tecido que lhe cobria o peito. Ficou nua até a cintura, pálida sob a luz ambarina das velas. Uma fina perspiraçao de angústia gotejava a superfície de sua pele, dando-lhe reflexos de nácar.

Ela recuou um passo, mas o eunuco já retirara os grampos que lhe seguravam a cabeleira, e seus cabelos caíram numa cascata dourada sobre os ombros. Angélica teve o gesto instintivo de toda mulher que percebe que o coque se desfaz, ergueu os braços para reter a massa sedosa-de seus cachos, e nesse movimento descobriu os seios firmes e perfeitos e ofereceu a imagem secreta e cheia de graça de uma mulher fazendo a toalete.

Um murmúrio percorreu a assistência. Um corsário italiano praguejou longamente. Uma vaga de irritação e paixão moveu as massas aglomeradas de cafetãs, trajes, uniformes e ouropéis gloriosos.

O eunuco Bei Chamil decidiu que o amo lhe perdoaria dificuldades financeiras por um tesouro como aquele, e lançou:

-        Onze mil piastras.

O velho mercador sudanês ergueu-se e recitou uma longa frase em tom de melopeia. Erivan traduziu:

-        Onze mil e quinhentas para um pobre ancião que joga toda a sua fortuna na aquisição dessa turquesa, cujos favores os xeques da Arábia, os rases da Etiópia, os reis do Sudão e mesmo da longínqua Kampar africana disputarão.

Fez-se nova pausa.

Angélica olhava aterrorizada o velho negro de terras longínquas, que, pela sua audácia de comerciante, ia desencorajar os dois poderosos compradores.

O cavaleiro de Malta baixou as altas pálpebras amareladas.

-        Doze mil piastras - disse ele.

-, Treze mil - gritou Riom Mirza. Mais uma vez o espanhol ironizou:

— Acredita que o sultão dos sultões lhe ficará grato por arruiná-lo? A desordem de suas finanças não é segredo para ninguém.

— Não falo pelo sultão - respondeu o príncipe circassiano -, mas por mim. Eu quero essa mulher.

Seus olhos negros não se desviavam de Angélica.

-        Num caso ou noutro, não corre o risco de serdes decapitado? - insistiu o comissário dos escravos de Malta.

Como única resposta, o príncipe repetiu com impaciência:

— Treze mil piastras. Dom José suspirou.

— Quinze mil.

Houve murmúrios. O Bei Chamil calava-se, entregue à ansiedade da incerteza. Deixar-se-ia arrastar a desequilibrar seu orçamento por longos meses ou ceder à vaidade de colocar no serralho de Solimã Aga aquela pérola rara?

-        Dezesseis mil - gritou Riom Mirza.

Mas ele começava a fraquejar, pois ergueu a boina de astracã para enxugar a testa.

-       Quem dá mais? - gritou o comissário avaliador, e repetiu o grito em várias línguas.

Pairou um silêncio opressivo. Os corsários europeus não tinham aberto a boca. Perceberam desde o início que os lances subiam imediatamente muito acima do que permitiam suas ambições. Esperto D'Escrainville! Acertara a sorte grande com aquela garota, teria a possibilidade de não apenas pagar todas as dívidas, como também de comprar um segundo navio com toda a tripulação.

-        Quem dá mais? - repetiu Erivan com um gesto na direção de Dom José.

— Dezesseis mil e quinhentas - disse ele, secamente. O príncipe insistiu:

— Dezessete mil.

Os números partiam como balas. O som das vozes e das palavras, em francês, italiano ou grego, entrechocava-se na cabeça de Angélica. Ela não conseguia acompanhar. Tinha medo. Via crispar-se a figura morena de Dom José e anuviar-se o Bailio de La Marche. Ela tremia, tentando puxar a cabeleira por sobre o corpo. Quando terminaria aquele suplício?

Um árabe alto, envolto em seu albornoz branco, levantou-se no fundo da sala e com um passo macio de pantera, dobrando-se em inúmeras saudações, aproximou-se do estrado.

Angélica ouviu Erivan dizer-lhe o nome: Naker-Ali. Sob seu turbante listrado de vermelho e branco, seus olhos abriam-se escuros como a noite, num rosto amarelo-esverdeado, de nariz aquilino e barba negra e brilhante.

Agachou-se, sem desviar o olhar da jovem, e pegou de um grande bolso, no peito, objetos que em seguida exibiu na palma da mão. Eram as mais belas das pedras preciosas trazidas de sua última viagem às índias: duas safiras, um rubi grande como uma avelã, uma esmeralda, um berilo azul, opalas, turquesas. Com a outra mão Naker-Ali pegou sua leve balança de ourives ambulante, feita de um espinho de porco-espinho como travessão e uma bandeja de cobre. Colocou ali as pedras uma a uma. Erivan, debruçado sobre ele, fazia com os dedos e os lábios cálculos tão rápidos quanto complicados. Finalmente anunciou, triunfante:

-        Vinte mil piastras!

Angélica olhou em pânico Dom José. A cifra limite que o cavaleiro de Malta se fixara fora ultrapassada. O Bailio de La Marche suplicou, quase em voz alta:

-        Irmão, mais um esforço!

O Príncipe Riom Mirza rilhou literalmente os dentes. Ele renunciava. Mas não ia deixar aquela francesa soberba a um vulgar mercador do mar Vermelho, personagem rica mas comum, cujo harém de lojista em alguma casa de madeira em Cândia ou Alexandria devia feder a óleo rançoso e a gafanhotos grelhados.

Chamou à parte Dom José, apostrofando-o, exigindo que ele se pronunciasse sem demora, ou o mataria com as próprias mãos. O cavaleiro de Malta, com os olhos no teto, tinha o ar de um mártir de retábulo espanhol,Deixou acalmar-se o tumulto, depois lançou:

-        Vinte e uma mil piastras!

O governador turco de Cândia, os olhos repuxados de malícia, tirou a extremidade de seu narguilé de entre a barba branca e disse suavemente:

-        Vinte e uma mil e quinhentas!

O olhar de Dom José parecia uma adaga envenenada. Sabia muito bem que o turco não podia assumir tal-compromisso e que só estava querendo suplantar o estado soberano de Malta, a primeira nação cristã. Sentiu-se tentado a parar o pregão e a deixar o velho paxá chistoso às voltas com as vinte e uma mil e quinhentas piastras a pagar e sua belíssima escrava a honrar. Mas a expressão patética de Angélica o comoveu, embora se proibisse de agir por sentimento.

Erivan, que também sabia que o último lance não passara de uma brincadeira do governador, arrastou habilmente o pregão, o tempo de deixar o espanhol lamentar e jurar a si mesmo que não diria mais nada. Depois, voltado para o comissário dos escravos da Ordem de Malta, propôs:

— Arracho} Quem dá mais?

— Vinte e duas mil - cortou Dom"José de Almada.

Desta vez o silêncio foi longuíssimo, hesitante. Mas Erivan não gastara todos os trunfos. Sabia por experiência que-a paixão dos homens é bem mais forte do que sua dureza comercial.

Dom José de Almada, que se batia pelo "negócio", não poderia trazer aos lances a constância de um homem dominado pelo desejo de posse.

O árabe Naker-Ali, ajoelhado ao pé do estrado, erguia para a branca cativa um olhar alucinado. Seus lábios finos tremiam; levava a mão ao bolso e parava, detido por uma suprema hesitação.

O eunuco aproximou-se e puxou a presilha que prendia a cintura do último véu. O tecido leve caiu aos pés de Angélica.

Ela percebeu a violenta perturbação que abalava os homens e os inclinava na direção da forma branca aparecida, tão bela quanto aquelas estátuas gregas que se encontravam sob os loureiros-rosa nas ilhas.

Mas aquela estátua estava viva. Tremia, e os arrepios de seu belo corpo torturado eram notados por todos, símbolos de volúpia, promessa de emoção e entrega para aquele que soubesse seduzi-la.

Cada um sonhou com uma conquista difícil e uma vitória espe-tacular.

Cada um sonhou em ser o amo que a faria desfalecer de prazer.

Depois de uma sensação de frio mortal, Angélica sentiu-se invadir por um ardor intenso.

E para não ter que suportar mais aqueles olhares devoradores, escondeu o rosto no braço dobrado. Estava arrasada por um sentimento de vergonha e desespero, que a tornava surda e cega a tudo o que ocorria à sua volta.

Não viu Naker-Ali expor na palma da mão aberta um diamante branco muito grande e de uma limpidez admirável, que colocou na balança.

-        Vinte e três mil piastras - gritou Erivan.

Dom José desviou a cabeça.

-        Arracho? Arracho? - murmurou Erivan, e estendeu a mão para a sineta que indicaria o fim da venda.

O príncipe circassiano soltou um rugido e cravou as unhas no próprio rosto, em sinal de desespero. Um lento sorriso subiu ao rosto do árabe.

Então o Bei Chamil, o grão-eunuco branco, levantou-se. Os últimos lances tinham-lhe dado tempo para formular as diversas combinações financeiras com as quais restabeleceria a abalada fortuna de seu amo e compensaria aquela vultosa brecha.

Frio, impassível, disse altivo:

-        Vinte e cinco mil piastras.

A luz apagou-se no rosto de Naker-Ali. Reuniu suas pedras preciosas, colocou-as de volta no peito, e erguendo-se, afastou-se lentamente, enfiou-se na escuridão e saiu da sala.

Voltado para o Bei Chamil, Erivan levantou lentamente a sineta.

E sua mão ficou suspensa, como que paralisada, e não se moveu mais.

O silêncio tornou-se pesado e estranho, interminável... Prolongava-se indefinidamente, total, e tão insólito, que Angélica tomou consciência e instintivamente ergueu a cabeça. E teve um choque. Violento como uma bofetada. Uma dessas terríveis bofetadas que fazem vacilar a razão e gritar até o delírio.

Porque ao pé do estrado, aonde chegara tranquilamente, depois de haver atravessado sem pressa o salão por entre fileiras de olhares estupefatos, havia uma personagem imensa e sombria. Negro da cabeça aos pés, negro com as luvas de couro com crispins ta-cheados de prata, negro pela máscara do mesmo couro que lhe cobria o rosto inteirolaté os lábios, rosto emoldurado com uma barba escura e que dava àquela súbita aparição o ar de um pesadelo.

Atrás dele, Angélica reconheceu a silhueta rechonchuda dò Capitão Jasão.

Com toda a suavidade, Erivan baixou o braço que segurava a sineta. Não a fizera soar. Inclinou-se até o chão e sussurrou numa voz untuosa: -

— Esta mulher está à venda. Interessa-lhe, Sr. Rescator?

— Em que ponto estão os lances?

A voz que saía de sob a máscara era baixa e rouca.

— Vinte e cinco mil piastras - disse Erivan.

— Trinta e cinco mil!

O arménio ficou boquiaberto.

Foi o Capitão Jasão quem, voltando-se para o público, repetiu numa voz estentórea:

-        Trinta e cinco mil piastras para meu amo, o Sr. Rescator. Quem dá mais?

O Bei Chamil desabou sobre as almofadas e ficou prostrado, sem dizer palavra.

Angélica ouviu o agudo tilintar da sineta. Aquela forma tenebrosa, que ela fixava com um olhar esgazeado, pareceu-lhe crescer ainda mais, aproximar-se, e ela sentiu-se envolver pela pesada capa de veludo negro que o Rescator passara de suas costas para as dela. As dobras da veste caíram-lhe até os pés. Com um gesto furioso, ela a apertou contra o corpo. Jamais, jamais em sua vida esqueceria a vergonha que tivera de suportar.

Mãos desconhecidas continuavam a ampará-la solidamente, mãos possessivas, cuja força a mantinha em pé. Ela percebeu então que suas pernas cediam e que sem aquele socorro teria caído de joelhos.

A voz surda e rouca dizia:

-        Que bela noitada para você, Erivan! Uma francesa... E de que qualidade! Quem é o proprietário?

O Marquês d'Escrainville avançou titubeando como um bêbado. Seus olhos flamejavam em seu rosto de argila. Estendeu um dedo trémulo na direção de Angélica.

-        Uma rameira! - exclamou com uma voz hesitante e sombria. - A pior rameira que a terra já produziu. Tome cuidado, mago maldito, ela lhe devorará o coração!

Coriano, o caolho, veio num pulo das coxias, de onde acompanhara a venda por trás de uma cortina. Interpôs-se, descobrindo a boca desdentada no mais obsequioso dos sorrisos.

— Não o escute, monseigneur, é a alegria que o faz perder a cabeça. Esta dama é encantadora... Muita encantadora. Absolutamente dócil e terna.

— Mentiroso! - lançou o Rescator.

Levou a mão à bolsa de tela de couro que lhe pendia do cinto e tirou um saco de escudos que atirou a Coriano, cujos olhos se arregalaram desmesuradamente.

— Mas, monseigneur - gaguejou o flibusteiro -, terei minha parte do butim.

— Mas tome isto por conta.

— Por quê?

— Porque quero todo mundo contente esta noite.

— Bravo!Bravíssimo! - berrou Coriano, atirando a boina para o alto. - Viva o Sr. Rescator!

Este ergueu a mão:

-        A festa começa.

O Capitão Jasão transmitiu o convite que o maior traficante de prata do Mediterrâneo fazia à nobre plateia. Mandariam vir dançarinas, vinho, café, músicos e carneiro assado. Bois inteiros seriam enviados para as tripulações de todos os navios corsários atracados no porto, assim como trinta barricas de vinho de Es-mirna e de Malvasia, a serem abertas em todas as encruzilhadas da cidade..Os criados passariam com cestas de biscoitos e espetos de carne pelas ruas, e do alto dos telhados se atiraria uma chuva de moedinhas.

Cândia aquela noite se rejubilaria-em honra da francesa. Assim queria o Sr. Rescator.

— Viva! - gritou alguém.

— Pah! Pah! Pah! - lançaram os turcos, voltando a se acomodar nos divãs da sala que se preparavam para deixar. Todos, corsários ou príncipes, se sentaram de novo, prontos para as novas diversões. Apenas os dois cavaleiros de Malta se dirigiam para a porta. O Rescator os chamou pessoalmente:

— Caballeros! Caballeros! Não querem unir-se a nós?

Dom José fulminou-o com o olhar e, muito digno, em companhia do Bailio de La Marche, retirou-se.

CAPÍTULO XXVIII

O novo amo - O incêndio de Cândia

Foi só então que Angélica entendeu que fora vendida. Vendida a um pirata que por ela pagara o preço de um navio e sua tripulação! Simplesmente passara das mãos de um amo para as de outro, um destino que doravante daria continuidade a sua existência de mulher bela em demasia, sempre cobiçada. Um grito agudo escapou-lhe dos lábios, em que ela exalou afinal toda a sua angústia, todo o horror daquilo que suportara, toda a sua revolta de mulher caída na armadilha.

-        Não... Vendida não! Vendida não!...

Atirou-se contra o círculo móvel é matizado que se fechava, infernal, à sua volta. Lutou por um instante contra os janízaros do Rescator, que a retiveram solidamente e depois a lançaram sem delicadeza aos pés de seu amo. Petrificada, ela repetia:

— Não, vendida não...

— As senhoras da França têm o hábito de fugir assim tão pouco vestidas? Espere ao menos estar vestida, senhora.

A voz surda e irónica do Rescator descia na direção dela.

-        Tenho alguns vestidos a lhe presentear. Veja se lhe convêm. Escolha o que lhe agradar.

O olhar carregado de incompreensão de Angélica subiu por aquela silhueta negra que a dominava até a máscara temível e fixa onde o único sinal de vida era o brilho de um olhar zombeteiro. Ele se pôs a rir.

-        Levante-se - disse, estendendo-lhe a mão.

E quando ela obedeceu, ele afastou-lhe os cabelos que caíam em desordem sobre o rosto e acariciou-lhe a face como a uma criança insensata.

-        Vendida?... Não. Esta noite você é minha convidada, é tudo. Agora, escolha sua toalete.

Apontou-lhe três negrinhos de turbante vermelho que, assim como nos contos de fadas, apresentavam cada um, um vestido sun-tuoso: um áefaille rosa, outro dê brocado branco e o terceiro de cetim verde-azulado, enfeitado com passamanarias de nácar indiano que cintilavam sob as luzes.

-        Você hesita?... Que dama não hesitaria... Mas como a festa nos espera, vou permitir-me aconselhá-la. Minha escolha é este - disse ele, apontando o vestido nacarado: - Na verdade, escolhi-o para você, pois tinha ouvido dizer que a francesa tinha olhos cordo ma Você parecerá uma sereia com ele. É quase um símbolo...

A bela marquesa salva das águas!...

E como ela continuasse calada:

-        Entendo b quê a desconcerta. Como é que no fundo desta longínqua Cândia pbdem-se obter toaletes na última moda de Versalhes? Não pense nisso. Tenho outros truques no bolso. Não ou viu dizer que sou mágico?

A ruga irónica da boca dele, oculta pela curta barba sarracena, fascinava-a. Às vezes um sorriso iluminava aquele rosto tenebroso. Sua voz rouca e lenta causava em Angélica um mal-estar próximo do medo. Quando ele se dirigia-a ela, um frémito percorria-lhe a espinha. Sentia-se absolutamente entorpecida.

Só reagiu quando os dois pequenos escravos que a ajudavam a vestir-se atrapalharam-se com as fitas, as presilhas e os peitilhos do vestido europeu. Irritada com o desajeitamento deles, fixou ela mesma com um gesto rápido os alfinetes e amarrou os laços. Seus gestos não escaparam ao Rescator, que novamente soltou uma risada abafada que o fez tossir.

-        Quem dirá da força e do poder dos gestos inúmeras vezes repetidos - disse ele, ao recobrar o fôlego. - Mesmo a um pé da tumba você não aceitaria estar mal vestida, não é? Ah, essas francesas! Agora, vejamos os adornos. .

Inclinou-se sobre um cofre que um pajem lhe estendia e retirou um magnífico colar de três voltas de lápis-lazúli.

Colocou-o, ele mesmo, ao pescoço dela. Quando lhe ergueu os cabelos para fechar o colar, ela sentiu que os dedos dele se demoraram na marca deixada em suas costas pelo gato medonho. Mas o novo proprietário de Angélica não disse palavra.

Ajudou-a a pôr os brincos.

Atrás das fileiras de janízaros que montavam guarda, o alarido só aumentava. Os músicos acabavam de chegar, assim como as dançarinas. E apareciam novas bandejas com pilhas de frutos e confeitos.

-        Você é gulosa? - perguntou o Rescator. - Quer klabu, esse doce de nozes?... Conhece o nuga persa?

E, diante do silêncio dela:

-        Eu sei o que você quer... No momento, os doces e todos os prazeres deste mundo não a tentam. Tem apenas vontade de chorar.

Os lábios de Angélica tremeram, e um nó subiu-lhe à garganta.

-        Não - disse ele -, aqui não. Quando você estiver em minha casa, poderá chorar tanto quanto quiser, mas não aqui, diante destes infiéis. Você não é uma escrava. E neta de cruzado, que diabo! Olhe-me.

Duas pupilas de fogo apoderaram-se do olhar dela, obrigando-a a erguer a cabeça.

-        Assim está melhor... Olhe-se no espelho... Você é rainha esta noite... A rainha do Mediterrâneo. Dê-me a mão.

Foi assim, num vestido principesco e com a mão sobre a do Rescator, que Angélica desceu os degraus do estrado infamante. A sua passagem, espinhas se dobraram.

O Rescator tomou lugar ao lado do paxá que representava o poder do Grão-Sultão, e fez Angélica sentar-se à sua direita. Entre as nuvens que escapavam dos defumadores, as dançarinas estiravam longos véus vaporosos, ao som de tamborins e de nân, pequenas guitarras de três cordas, de som claro e saltitante.

-        Tomemos café de Cândia - propôs o Rescator, estendendo-lhe uma das minúsculas xícaras de porcelana da bandeja colocada à sua frente sobre uma mesa baixa. - Não há nada de melhor para dissipar os humores melancólicos e fortificar os corações dolentes. Aspire este aroma delicado, senhora.

Ela pegou a xícara que ele lhe estendia e bebeu aos golinhos.

Tinha aprendido a gostar de café a bodo de LHermes e era com prazer que voltava a provar aquele sabor ardente.

Os olhos do temível pirata a espreitavam através das fendas da máscara. Não era uma máscara comum, daquelas que se colocam sobre a ponta do nariz e mal chegam às maçãs do rosto. Descia quase até os lábios, como um elmo. A forma do nariz era inteiramente modelada, com dois orifícios no lugar das narinas. Angélica não pôde deixar de pensar no rosto hediondo que aquela máscara ocultava. Como uma mulher podia aceitar aquele rosto de couro inclinando-se sobre ela, sabendo que'a máscara escondia mutilações horríveis... Um estremecimento a sacudiu.

-        Sim? - disse o pirata, como se ele próprio tivesse sentido o arrepio. - Fale-me um pouco sobre o sentimento que lhe inspiro...

-        Eu imaginava que também lhe houvessem cortado a língua.

O Rescator inclinou-se para trás, rindo muito.

-        Finalmente ouço o som de sua voz - disse. - E o que ouço? Que não me considera suficientemente-coberto de desgraças. Ah, meus inimigos jamais deixarão de tornar mais negro o retrato! Ficariam felicíssimos se eu fosse maneta, perneta, melhor ainda. E morto, se possível! De -minha parte, basta-me ser coberto de cicatrizes como um velho-carvalho que durante cem anos tivesse enfrentado o raio e o furacão. Mas, graças a Deus, ainda tenho língua suficiente para falar às senhoras. Confesso que para mim seria um penoso sacrifício não poder empregar pelo menos os recursos da linguagem a fim de seduzir essas deliciosas criaturas, os adornos da Criação.

Inclinado para ela, conversava como se ambos estivessem sozinhos, e ela sentia sobre si o clarão atento daqueles olhos de fogo.

— Fale mais, senhora. Tem uma voz encantadora... Reconheço que não é o meu caso. Minha voz rompeu-se num dia em que eu lançava um apelo a alguém muito distante. Eu chamava, e minha voz partiu-se...

— A quem chamava? - perguntou ela, confusa.

Ele apontou com o dedo o teto enevoado de incenso.

-        Alá!... Alá em seu paraíso... Fica longe. Minha voz partiu-se. Mas levou consigo... Alá me ouviu e me concedeu o que eu lhe pedia: a vida.

Ela achou que ele zombava e se sentiu ligeiramente mortificada. O café a reanimava. Com a ponta dos dedos, consentiu em beliscar um biscoito.

-        Em minha casa - observou ele -, hei de oferecer-lhe os pratos do mundo inteiro. De todos os países por onde passei, trouxe um homem especializado na arte de sua gente. Assim, posso satisfazer a todos os desejos de meus hóspedes.

-        Em sua casa... há gatos?

Apesar de seus esforços, a voz tremeu nas últimas palavras. O pirata pareceu espantado, depois entendeu e lançou um olhar mortal na direção do Marquês d'Escrainville.

-        Não, em minha casa não há gatos. Não há nada que possa assustá-la ou desagradá-la. Há rosas... lâmpadas... janelas abertas para o mar. Vamos, abandone esse ar transido que não combina em absoluto com sua pessoa. É preciso que meu bom amigo D'Escrainville tenha tido um pulso de ferro para fazer de você uma mulher de olhos mortiços, pronta a lamber as botas do amo!

Angélica teve um sobressalto, atingida, empertigou-se, e lançou-lhe um olhar fulminante. Ele riu de novo, tossiu outra vez e finalmente disse:

— Isso! Exatamente o que eu esperava. Você voltou a ser a soberba marquesa, grande dama da França, arrogante, fascinante.

— Será que algum dia poderei voltar a sê-lo? - murmurou ela. - Não creio que o Mediterrâneo devolva com facilidade suas presas.

— É verdade que o Mediterrâneo despoja os seres de seus falsos disfarces. Quebra os fantoches, mas devolve como ouro puro às margens aqueles que tiveram a força de enfrentá-lo e de olhar de frente suas miragens.

Como pudera ele entender que ela pensava menos num retorno à França do que na impossibilidade moral de se rever, sob os lambris de Versalhes, como aquela mulher triunfante que há poucos meses se impunha a todos?... Isso lhe parecia tão distante, tão irreal, e como que sem viço perto da magia oriental.

E foi ela quem de repente procurou os olhos enigmáticos do pirata, para encontrar ali uma resposta. E interrogava-se sobre o poder daquele homem, que com algumas palavras parecia haver-se apoderado de sua alma. Fazia dias que ela vivia alquebrada, acuada, humilhada. Subitamente, o Rescator a alçara para fora do abismo. Ele a abalara, desafiara, fascinara, e, como uma planta que recupera o viço, ela abandonara a atitude de humildade. Mantinha-se ereta. Seus olhos recuperavam a faísca de vida pensativa e serena.

-        Criatura orgulhosa - disse ele com suavidade -, é assim que a amo.

Ela o encarou como quem ora, como quem olha um deus para pedir-lhe a vida. E sequer sabia que seus olhos tinham aquela expressão ávida que se dirige àqueles de quem se espera tudo.

E à medida que o olhar do Rescator lhe passava sua força, o coração aflito de Angélica se acalmava. O ambiente de cabeças com turbante, rostos moqueados de flibusteiros sob lenços de seda, apagava-se assim como se apagava o ruído jks vozes e da música.

Ela estava sozinha, num círculo encantado, ao lado daquele homem que lhe dedicava toda a atenção. Percebia os eflúvios do perfume oriental de que os trajes do pirata estavam impregnados, um odor balsâmico que lhe lembrava o aroma das ilhas e que se mesclava ao do couro precioso de sua máscara, ao do tabaco de seu longo cachimbo, ao do café fumegando sempre nas xícaras.

Um súbito langor, uma fadiga imensa abateram-se sobre ela. Soltou um grande suspiro e fechou os olhos.

-        Você está cansada - disse ele. - Em minha casa, no meu palácio fora da cidade; poderá dormir. Faz muito tempo que não dorme. Deitará no terraço, sob as estrelas... Meu médico árabe lhe dará uma tisana de eryas calmantes e você dormirá... o tempo que quiser. Ouvindo o sopro do mar... e os cantos da harpa de meu pajem músico. Esses projetos lhe agradam? Que pensa?

-        Penso - murmurou ela - que você não é um amo exigente.

Um brilho de alegria passou pelos olhos do corsário.

-        Quem sabe me torne um dia? Sua beleza não é dessas que se podem desdenhar por muito tempo... Mas não será sem o seu consentimento, prometo-lhe... Esta noite só lhe pedirei uma coisa, sem preço para mim... um sorriso de seus lábios... Quero ter certeza de que não está mais triste nem aterrorizada... Sorria para mim.

Os lábios de Angélica entreabriram-se. Seus olhos enchiam-se de luz...

De repente ouviu-se um rugido inumano que dominou os ruídos, e o Marquês d'Escrainville, como um fantasma vermelho por entre os vapores cada vez mais densos, avançou cambaleando. Gesticulava com o sabre desembainhado na mão, e ninguém ousava aproximar-se dele.

-        Você é que a terá - vociferou. - É a você que ela mostrará o rosto de amante, maldito mago do Mediterrâneo... Não a mim... Eu sou apenas o Terror... Estão ouvindo, vocês todos? O Terror... Não o Mago!... Mas isso não vai acontecer. Eu o matarei...

E lançou o sabre para a frente. Com um pontapé o Rescator atirou-lhe nas pernas a bandeja e o samovar, e, enquanto o possesso oscilava, ele se pôs de pé num pulo e sacou do sabre por sua vez. As duas armas se cruzaram. D'Escrainville batia-se com o furor da demência. Os dois piratas recuaram por entre a desordem de almofadas e pratos, até o estrado onde o marquês, acuado, teve que subir, enquanto as dançarinas saíam correndo aos gritos.

O combate era de morte. Silhueta vermelha contra silhueta negra, cada um dos contendores tinha um profundo conhecimento de sua arma: o sabre de abordagem. Os criados malteses não ousavam intervir para restaurar a ordem no batistan, por cujo policiamento eram responsáveis. O Rescator mandara distribuir vinte cequins de prata pura para cada um e uma bola de tabaco da América... Assim, foi num silêncio religioso que a assistência inteira aguardou o resultado do combate.

Finalmente o sabre do Rescator perfurou o punho do rival furioso, que largou a arma. D'Escrainville soluçava, com uma espuma branca no canto da boca. Erivan, com muita coragem, precipitou-se para segurá-lo e arrastá-lo até Coriano.

-        Que pena! - exclamou simplesmente o Rescator, embainhan

do a arma.

Sem a intervenção do pequeno arménio, o cadáver do Marquês d'Escrainville certamente teria sido oferecido, ali mesmo, em holocausto por todas as vítimas que ele vendera.

O Rescator ergueu as duas mãos.

-        A festa terminou! - gritou.

Inclinou-se à direita e à esquerda, cumprimentando em turco, italiano, espanhol.

Numa algazarra de reunião mundana, os assistentes deixaram a sala.

O Rescator voltou para junto de Angélica. Mais uma vez inclinou-se profundamente, varrendo o chão com a pluma negra de seu chapéu.

-        Acompanhar-me-á, senhora?

Naquele momento ela o teria seguido até o fim do mundo.

Não reconheceu o jardim, que há pouco atravessara consumida de angústia.

Mais uma vez o pirata lhe colocou sobre os ombros a sua rica capa.

-A noite está fresca... como está perfumada!

Diante do batistan, na praça, um boi inteiro assava sobre um enorme braseiro cujos clarões iluminavam os rostos satisfeitos de marinheiros e do populacho, convidados ao festim. Das ruelas de Cândia subiam os cantos dos flibusteiros, fazendo honra ao vinho de Esmirna.

A vista do Rescator, rebentaram os vivas.

Um longo foguete azul apareceu de trás de um telhado e caiu como um pára-sol de luz.

"Ora, um fogo de artifício..."

Em que momento os rostos mudaram de expressão? O horror substituiu a alegria nas faces risonhas?

O Rescator foi o primeiro a farejar alguma coisa de insólito. Afastou-se de Angélica e correu para as muralhas que dominavam a cidade.

No mesmo instante as deflagrações sacudiram a noite, e ouviram-se vidros e lustres voar no interior do batistan. Um halo vermelho iluminou o céu.

Uma claridade movediça, que vinha da parte baixa da cidade, dançou nos rostos negros e petrificados dos janízaros, e também eles correram para as muralhas.

Os sinos tinham começado a repicar. Um grito longamente repetido em todas as lírrguas predominava sobre todos os ruídos:

-Incêndio!...

De repente Angélica foi derrubada pelo avanço da multidão que queria ver. Teve que arrastar-se pelo calçamento até o vão de uma porta. De súbito uma mão agarrou a sua.

-Venha! Venha!

Ela viu o rosto malicioso de Vassos Micolés e lembrou-se das palavras de Savary: "Quando você sair do batistan. O foguete azul dará o sinal..."

Ela lhe pedira que a arrancasse a seu comprador e lhe devolvesse a liberdade, e ele cumprira a promessa.

E ela permanecia petrificada, enregelada até o coração, incapaz de fazer um movimento, enquanto o gréguinho insistia, angustiado:

-Venha! Venha!

Finalmente ela se moveu e o seguiu. Correram pelas ruelas, levados pela corrente irresistível da multidão que descia para o porto.

Por toda parte reinava uma agitação indescritível. Esmagavam-se crianças e até gatos, que, eriçados, miavam e pulavam de cornijas para balcões, como djins com garras a recortar um perfil em negro contra os clarões do fogo. Outro grito saía de todas as bocas:

-        Os navios!

Quando Angélica, guiada por Vassos Micolés, chegou à beira do mar, perto da Torre dos Cruzados, entendeu.

No porto, o bergantim do Marquês d' Escrainville, L'Hermès, ardia como uma tocha. Já não se via dele mais do que o fantasma de sua carcaça em brasas.

Ativados pelo vento, detritos em chamas caíam em chuva sobre os navios atracados. A galera do renegado dinamarquês já ardia. Outros incêndios começavam, e, naquela iluminação dantesca, Angélica reconheceu o xaveco do Rescator. O fogo queimava a proa, que os guardas a bordo tentavam debelar em vão, já começando a recuar, sufocados pelo calor.

— Savary!

— Eu a esperava - disse Savary, jubilante. - Não olhe na dire-ção certa, senhora, olhe para lá!

A sombra da Porta dos Cruzados, que a sentinela abandonara para correr ao fogo, Savary mostrou-lhe um barco que terminava de preparar a vela para a partida. A obscuridade o dissimulava quase inteiramente, e apenas súbitos reflexos vermelhos do incêndio revelavam rostos um pouco assustados de escravos fugitivos que se amontoavam no barco e de marinheiros gregos que procediam à manobra. Era o barco de Vassos Micolés e de seus tios.

— Venha, depressa!

— Mas esse fogo, Savary, esse fogo é...

— É o fogo grego - explodiu o velho sábio, pulando de alegria. - Acendi o fogo inextinguível. Ah, ah! Podem tentar apagá-lo... É o segredo antigo... O segredo de Bizâncio, e eu o redescobri!

Dançava como um gnomo surgido do inferno. Vassos Micolés veio buscar o augusto pai para embarcá-lo. Uma mulher no cais aproximou-se de Angélica.

— É o papel que estava em seu cinto e que ele tomou. Adeus, minha irmã, minha amiga. Que os santos da Igreja a protejam!

— Ellis! Você não vem?

A jovem grega voltou o rosto para o porto. Os mastros de L'Herrnès, semelhantes a translúcidas colunas de ouro, desabavam numa girândola de fagulhas.

O Marquês d'Escrainville chegava como um louco. Olhava o espetáculo com olhos alucinados.

-        Não, fico com ele - gritou Ellis.

E saiu correndo rumo à fornalha."

Angélica subiu no barco, que séafastou silenciosamente da margem. Os pescadores tentavam manter-se na zona escura do promontório, mas o clarão do incêndio aumentava cada vez mais e às vezes os atingia.

Em pé na popa, Savary olhava o porto iluminado, onde a população se agitava como um formigueiro.

-        Enchi os dois navios de estopa em diversos lugares, na espessura do casco - explicava ele. - Durante toda a viagem pelas ilhas, desci todos os dias aos .porões e preparei tudo. Depois, esta noite, reguei com a minha múmia transformada em essência, essa matéria que a torna mil vezes mais incendiária, a proa dos dois navios, por fora e por dentro. Como os fogueteiros me haviam pedido que os ajudasse em sua tarefa, foi uma brincadeira atirar sobre a coberta dos dois navios, no lugar certo, foguetes de minha fabricação. O fogo pegou como um furacão...

A seu lado, Angélica crispou-se de repente. Empertigou-se, incapaz de pronunciar uma palavra, os olhos dilatados. Savary calou-se. Procurou com a mão a velha luneta no cinto e levou-a aos olhos.

-        O que ele está fazendo? Está louco esse homem!

Acabavam de perceber, no tombadilho enfumaçado de L'Aigledes Mers, a sombra do Rescator. Os marinheiros mouros haviam cortado as amarras, e o xaveco, onde o fogo aumentava, ia à deriva na água do porto, afastando-se do braseiro, mas já atingido. A chama elevou-se mais forte e violenta. O gurupés veio abaixo. Depois houve uma explosão surda.

— O paiol de pólvora - murmurou Angélica.

— Não.

Savary esmagava-lhe os pés com seus pecados sapatos. Vassos Mi-colés tentava em vão convencer o augusto pai a tranqúilizar-se.

-        Aquela nuvem branca à flor da água - gritou o sábio -, o que é? O que é?

Uma fumaça amarela e pesada subia do centro do xaveco em chamas e "escorria" até o mar, depois, em poucos instantes, recobriu o navio todo, exceto o mastro mais alto. O clarão do fogo apagou-se e simultaneamente a escuridão caiu sobre o xaveco, envolto em seu casulo de vapor.

O porto, ainda iluminado pelos incêndios, distanciava-se. Os gregos imprimiam força aos remos. Logo ergueram a vela latina. O barco dos fugitivos disparou sobre as ondas negras.

Savary deixou cair a luneta.

-        O que aconteceu? Dir-se-ia que aquele homem conseguiu apagar o fogo a bordo de seu navio por meios mágicos.

Seu espírito já trabalhava sobre o mistério. O filho aproveitou para instalá-lo respeitosamente no fundo do barco. Angélica, por outras razões, compartilhava da mesma impressão de irrealidade.

Cândia distanciava-se. Durante muito e muito tempo seu reflexo vermelho dançou sobre as ondas.

Angélica percebeu que conservara sobre os ombros a capa do Rescator.

Então, uma dor insana subiu-lhe à garganta e, cobrindo o rosto com as mãos, ela soltou um longo gemido.

A mulher que estava a seu lado tocou-lhe o braço.

— O que foi? Não está feliz por haver recuperado a liberdade? Falava em grego, mas Angélica entendeu.

— Não sei - disse, com um soluço -, não sei. Oh, não sei mais! E depois disso caiu a tempestade.

CAPÍTULO XXIX

Malta

Durante dois dias a tempestade castigou o barco dos fugitivos. Foi só ao alvorec.er do segundo dia que a violência das ondas se acalmou. O barco resistia. O mastro e o timão quebrados não eram mais que um destroço".. Por milagre, todos os passageiros continuavam a bordo. Nenhuma criança fora arrancada aos braços da mãe, nenhum marujo fora levado do convés, onde todos lutavam por manter o esquife flutuando. Mas eles não passavam agora de náufragos, encharcados, trémulos de frio, esperando socorro dos céus e ignorando asparagens onde se encontravam. O mar parecia abandonado de todos. Finalmente,"ao cair da noite, uma galera de Malta os viu e recolheu.

Angélica apoiou-se ao balcão de mármore. A luz vermelha do sol que se punha mergulhava em seu quarto e refletia-se no lajeado preto e branco. Perto dela, sobre uma pequena mesa redonda, havia um cesto transbordando de belas uvas que o Cavaleiro de Rochebrune mandara enviar-lhe. O amável cavalheiro conservava em Malta os modos corteses que, já na corte, o tornavam apreciado. Ficara muito feliz, na qualidade de chefe da língua da França da Ordem de Malta, em oferecer à Sra. du Plessis-Beílière a hospitalidade de seu albergue. O modesto título de "albergue" designava cada um dos esplêndidos palácios que cada uma das línguas construíra para seu pessoal. Eram oito, simbolizados pelos oito braços da cruz, insígnia dos cavaleiros.

Aslín guas eram a da Provença, Auvergne, França, Itália, Aragão, Castela, Alemanha e Inglatera. Esta última fora suprimida depois da Reforma. Seu palácio servia de entreposto comercial.

Angélica pegou um bago de moscatel, que sugou, sonhadora. Ficara contente de chegar a Malta. Depois daquele bazar desordenado e sensual que era o Oriente, achara decente a atmosfera de espartilho de aço do grande feudo da cristandade. Suntuosidade e austeridade pareciam ser as duas paradoxais palavras de ordem dos monges cristãos.

No interior do albergue da França, vasto e suntuoso caravança-rá, ornado de esculturas, atravessado de logias e vestíbulos com espelhos de Veneza, ela encontrara todo o conforto de um apartamento francês. Havia tapeçarias nas paredes, um leito de colunas coberto de um baldaquino de brocado, e num cómodo contíguo uma instalação de água digna de Versalhes. Esses apartamentos superiores eram reservados aos hóspedes de luxo. Mas embaixo, celas simples, com leitos de pranchas acolhiam cavaleiros, capelães ou irmãos leigos, e às vezes, ao passar, Angélica via os franceses tomando em grupos de quatro, na mesma escudela de madeira, um caldo monástico.

Ao ingressar na Ordem de Malta, os filhos mais novos das grandes famílias não pronunciavam levianamente os três votos: obediência, pobreza pessoal e celibato. Encontravam na guerra sem trégua aos infiéis a satisfação de seus apetites belicosos, um ideal religioso junto com a glória de pertencer a uma ordem temida e temível. A riqueza da ordem, solidamente estabelecida, permitia-lhe manter o esforço guerreiro aos quais os cavaleiros se dedicavam. Sua frota era uma das mais belas das nações europeias. As galeras de Malta, sempre prestes a oferecer e aceitar combate, singravam o Mediterrâneo num perpétuo cruzeiro e faziam o comércio do Islã sofrer a sorte que este reservava aos cristãos.

Mais particularmente, depois de suas últimas aventuras, Angélica se sensibilizara com a cortesia de maneiras que reinava em Malta.

Nesse sentido, a disciplina era severa nas comendadorias, e se, durante expedições perigosas ou vitórias espetaculares, acontecia de os cavaleiros se deixar dominar momentaneamente pelos encantos de um bela escrava lasciva, em Malta, bastião da Religião, reinava a maior decência.

Não havia mulheres livres, exceto as maltesas, camponesas da jlha envoltas em seus véus negros, e as escravas representavam apenas um valor comercial. Poucas convidadas de passagem, acompanhando o amante, mais raramente o marido, durante uma campanha, a bordo de uma frota espanhola, inglesa ou francesa.

O caso de Angélica era menos frequente. Grande dama, merecendo as considerações de sua linhagem, nem por isso deixara de ser recolhida com um punhado de escravos fugitivos. Ela compreendera muito bem que devia à;Ordem de Malta o reconhecimento de seus serviços em metal sonante.

Combinou-se com o administrador do Tesouro da Ordem que ela escreveria a seu intendente, Mestre Molines, pedindo-lhe que enviasse ao prior do Templo, em Paris, determinada soma pelo seu resgate de náufraga.

Mas ficara indignada, ao perguntar sobre o que se fizera de "seus" gregos, de descobri-los relegados entre os escravos, num dos armazéns da ilha. Os pobres pescadores de Santorini tinham sido contados como mercadoria tomada aos infiéis.

Num salão, onde, em leitos de palha, homens, mulheres e crianças de todas as cores esperavam para serem revendidos com o mesmo olhar resignado e passivo que ela vira em Cândiano porto ou nos porões do navio de D'Escrainville, Angélica conseguiu encontrar Savary, Vassos Micolés e seus tios, mulheres e filhos, que haviam integrado a expedição, e aqueles escravos fugidos que eles haviam recebido a bordo. Estavam"todos reunidos num canto, mordiscando azeitonas, pacientemente.

Angélica não escondeu do administrador do Tesouro, Sr. de Sarmont, que a acompanhava, o que pensava da desumanidade dos pretensos soldados de Cristo. O religioso ficou muito chocado.

— O que está querendo dizer, senhora?

— Que vocês são mercadores de escravos tão vis quanto os outros.

— Isso é forte!

— E isso? - perguntou ela, mostrando o amontoado de gregos, turcos, búlgaros, mouros, negros e russos que devaneavam sob as arcadas ornamentadas do vasto depósito. - Acredita que haja muita diferença entre a sua prisão de forçados e" as de Cândia ou Argel? Pode referir-se sempre à grandeza de sua missão. Não passa de pirataria!

O administrador empertigou-se.

— Está enganada, senhora - disse secamente. - Não fazemos incursões, capturamos.

— Não vejo diferença alguma.

— Quero dizer que não vamos piratear ao longo das costas da Itália, Tripolitânia, mesmo da Espanha e da Provença para nos abastecer "como os outros piratas". Os escravos que nos caem nas mãos provêm das galeras inimigas contra as quais nos batemos. Ficamos com mouros, turcos e negros para as nossas galés, mas também a cada vez libertamos milhares de escravos cristãos que, sem nós, estariam destinados a remar até a morte para o Infiel. Sabia que Túnis, Argel e o reino do Marrocos totalizam entre si mais de cinquenta mil cristãos cativos, e que é impossível dizer quantos estão em poder dos turcos?

— Ouvi dizer que sua Ordem, entre Chipre, Livorno, Cândia e Malta, possui mais de trinta e cinco mil!

— E possível, mas não os fazemos trabalhar para nós, não nos utilizamos deles para nossos prazeres pessoais. Utilizamo-los apenas para trocas ou para obter o dinheiro necessário a manter nossa frota. Não sabe que no Mediterrâneo os escravos representam a única moeda boa de troca e especulação? Para obter a libertação de um cristão, precisamos dar três ou quatro muçulmanos. .

— Mas esses pobres gregos, cristãos cismáticos e ainda por cima recolhidos como náufragos, por que colocá-los entre os escravos?

— O que poderíamos fazer com eles? Nós os alimentamos, vestimos, abrigamos. Seria preciso que também fretássemos uma expedição para gentilmente reconduzi-los um a um a suas ilhas gregas, sob jurisdição turca? Se nossas galeras devessem servir para repatriar por caridade todos os escravos errantes do Mediterrâneo, nossa frota não seria suficiente. E com que pagaríamos a manutenção de nossos vasos e nossas tripulações?

Angélica teve que reconhecer que o raciocínio tinha fundamento. Pediu que Savary, seu médico, fosse alojado decentemente no albergue da França, e quanto aos outros propôs a comprá-los e a pagar-lhes a viagem de volta, quando um navio de Malta fosse patrulhar o Oriente Médio.

Agora, esperava. Era preciso dar tempo ao tempo para que aquelas transações financeiras se concretizassem. Mas tinha consigo algumas inquietações secretas. Sua carta não correria o risco de ser interceptada? E se o rei, em sua cólera, lhe tivesse confiscado os bens?

De todo modo, não estava impaciente por deixar Malta. No interior daquele último bastião dos cruzados, estava protegida. Abaixo e à volta dela, a cidade de La Valette, de mármore patinado pelo desgaste salino dos nevoeiros, erguia-se como um relicário de ouro sobre o horizonte púrpura do céu;é mar^Era um prodigioso amontoado de campanários, domos, palácios engastados na rocha e obras de defesa carregadas de canhões. Descia até o magnífico porto de defesa natural, cujas bacias se ramificavam em ilhas e ilhas eriçadas de fortins, tais quais os múltiplos tentáculos de um polvo gigante.    

"Uma cidade construída por cavalheiros, pára cavalheiros", segundo as palavras do Sr. de La Valette, um dos grão-mestres da Ordem, que iniciara a construção no século XVI, quando os últimos cavaleiros de Rodes, rechaçados pelos turcos, se haviam refugiado com relíquias e galeras naquele rochedo entre a Sicília e Túnis.

Auxiliados pelos malteses, povo rebelde e de caráter áspero, fizeram da pequena ilha'-uma fortaleza inexpugnável.

Em vão o sultão de Constantinopla, cinco anos antes, tentara atacá-la. Tivera que bater em retirada com sua frota dizimada não só pelas balas e o assalto das galeras da Religião, mas também pela astúcia dos mergulhadores de elite, que em Malta formavam uma curiosa falange de homens rãs, de pulmões treinados para resistir por longo tempo sob a água e que, à noite, nadavam até o centro da frota otomana para explodir os navios e iniciar incêndios.

Sim, Angélica podia sentir-se em segurança. O Conde de Roche-brune lhe informara que os efetivos da defesa de Malta compreendiam dois regimentos de setecentos homens, mercenários ou malteses, quatrocentos vasos de guerra, trezentas galeras, mil e duzentos atiradores de elite, cem artilheiros, mil e duzentos marinheiros que serviam aos artilheiros, um número igual de atiradores da milícia, e uns trezentos homens que compunham as novas milícias.

Para a Ordem de Malta a guerra era um estado permanente desde os tempos longínquos em que os Hospitaleiros de São João de Jerusalém tinham começado a patrulhar as cotas da Palestina para socorrer os cristãos em apuros. Ordem de enfermeiros, fundada para acolher os peregrinos da Terra Santa, não demoraram muito para trocar a bacia de água quente que lhes servia para lavar os pés dos viajantes pela cota de malhas e a pesada espada. Um quarto voto fora acrescentado a suas obrigações: o de defender o Santo Sepulcro e o sínal-da-cruz até a última gota de seu sangue, e combater o Infiel em toda parte onde o encontrassem.

Agora a confraria dos monges guerreiros, expulsa de Jerusalém para a Fortaleza de Margate, da ilha de Chipre para a ilha de Rodes, dep jis para Malta, tornara-se pela força das circunstâncias aquele Estacio soberano e militar que dava prosseguimento sem trégua à sua luta contra os filhos de Maomé.

As galeras que, naquela noite, entravam lentamente no porto, com a auriflama vermelha de cruz branca desfraldada, talvez tivessem atacado algumas horas antes um pirata berbere. Traziam prisioneiros mouros que remariam nas galeras cristãs, cristãos libertados que a Ordem de Malta encaminhava para as respectivas famílias, depois de discutir o preço de seus serviços.

Fora por uma dessas galeras de guerra que Angélica e os companheiros naufragados foram recolhidos. Avistado o pequeno barco sem mastro, os infelizes gregos foram içados a bordo, envoltos em cobertas, alimentados, aquecidos com um copo de vinho de Asti. Pouco depois, sentindo-se recomposta, Angélica se apresentara ao comandante, um cavaleiro alemão de uns cinquenta anos, o Barão Wolf de Nesselhood, um germano imenso e louro, de têmporas brancas que iam muito bem com seu rosto bronzeado, marcado por três rugas descoradas. A reputação dele como marinheiro e homem de guerra era considerável. Os berberes o temiam, consideravam-no seu pior adversário, e dizia-se que Mezzo Morte, o almirante de Argel, jurara, caso o capturasse, fazê-lo esquartejar por quatro galeras. Seu imediato era um francês de uns trinta anos, o Cavaleiro de Roguier, rapaz de rosto franco, em quem Angélica pareceu ter causado uma profunda impressão.

Declinados seus títulos e qualidades, ela fizera aos dois cavaleiros o relato de suas atribulações.

Recebida em La Valette como hóspede de categoria pelo Conde de Rochebrune, compatriota e velho amigo de Versalhes, soubera que o Duque de Vivonne a procurava. A esquadra francesa passara duas semanas em La Valette, onde cavaleiros e cavalheiros franceses puderam conversar à vontade sobre os malfeitos dos piratas.

O comunicado do naufrágio de La Royale na costa da Sardenha mergulhara Vivonne num estado medonho. Como almirante do rei, sentiu-se profundamente atingido. Na qualidade de apaixonado - pois desta vez, temia ele, estava apaixonado - de Angélica, não se consolava ao pensar no fim horrível daquela bela mulher. Depois do filho, a mãe. Acusava a si próprio de ter-lhes trazido azar, ambos afogados em condições quase análogas, falava de sinais adversos inscritos no céu, de destinos malditos... Não se compreendia nada de seu delírio até o dia enfque lhe chegou uma mensagem do Tenente de Millerand, prisioneiro do Barão Paolo de Visconti. O tenente pedia que enviassem rapidamente à Córsega a bela soma de mil piastras reclamada pelo malfeitor genovês em troca de sua libertação. Confirmava o fim de La Royale, atraída para os recifes, mas dava notícias da Marquesa du Plessis, sã e salva. Mas a intrépida viajante conseguira escapar a seu carcereiro e, aparentemente, devia vogar na djreção de Cândia, a bordo de um pequeno cúter provençal.

Felicíssimo, o Duque de Vivonne esqueceu seus dissabores. Assim que suas galeras foram querenadas nas bacias de La Valette, ele zarpara para Cândia, sonhando em ali encontrar a bela marquesa, a qual, alguns dias depois, pisava rio cais de La Valette, apertando sobre o vestido sujo e queimado de água do mar a capa negra do Rescator.

Estranho jogo de esconde-esconde! Angélica teve um vago sorriso desiludido: Vivonne, os forçados, a fantasmagórica aparição de um Nicolau-forçado e sua morte, tudo isso já aparecia.distante. Ela vivera de fato aquilo? A vida passava rápido. Lembranças mais terríveis e mais próximas ainda lhe marcavam a carne. Uma.semana depois de sua chegada a Malta, encontrara, no acaso de um passeio, Dom José de Almada, recentemente desembarcado, assim como o companheiro, o Bailio de La Marche.

Angélica, duas vezes náufraga, três vezes fugitiva, já não estava para corar diante de um homem que a vira exposta, no mais exíguo dos trajes, aos lances do batistan, e o entediado comissário dos escravos ultrapassara de há muito o estágio da timidez mal situada. Falaram-se com um mútuo prazer por se reverem, como velhos amigos que têm mil coisas a perguntar e a contar um ao outro.       

O autero espanhol descontraiu um pouco sua rigidez com a alegria muito sincera que sentiu ao encontrá-la, viva e livre dos piratas.

- Espero, senhora, que não nos queira muito mal por termos sido obrigados a abandoná-la diante das loucas pretensões dos arrematantes. Nunca, em nenhuma ocasião, uma venda atingiu valores semelhantes... Uma loucura. Fui tão longe quanto era possível. Angélica disse que tinha consciência dos esforços que ambos haviam feito para salvá-la e que, conseguindo escapar a seu triste destino, ela lhes seria eternamente grata pela intervenção.

-Deus a proteja de voltar a cair nas mãos do Rescator! - suspirou o Bailio de La Marche. - Ele com certeza lhe deve a mais pungente desventura de sua carreira: deixar fugir, na noite mesma da compra, com ou sem incêndio, uma escrava comprada pela soma absurda de trinta e cinco mil piastras... A senhora lhe pregou uma boa peça. Mas tenha cuidado!

Contaram-lhe o que acontecera depois em Cândia, durante aquela noite dantesca.

O incêndio se alastrara às velhas casas de madeira do bairro turco, que arderam como tochas. No porto, muitos navios foram consumidos ou seriamente danificados. O Marquês d'Escrainville caíra como que tomado de um ataque epilético, enquanto L'Hermès desaparecia sob seus olhos, entre chiados e jatos de vapor.

Em compensação, o Rescator salvara seu xaveco. Graças a um processo misterioso, conseguira dominar o fogo a bordo.

Dali em diante Savary passou todo o tempo no Albergue de Auvergne ou no de Castela para tentar arrancar aos cavaleiros os mínimos detalhes sobre o caso: como, com que, em quanto tempo o Rescator conseguira dominar o fogo? Dom José ignorava. O bailio ouvira falar de um líquido árabe que, em contato com o fogo, se transformava em gás. Ninguém ignorava que os árabes eram muito versados numa ciência chamada química. Depois de salvar seu navio, o pirata da prata auxiliara a extinguir outros incêndios. Nem por isso os danos foram menos consideráveis, pois o fogo se espalhara com uma rapidez fulminante.

-        Ah, ah! Duvido - casquinou Savary, um clarão brilhando por trás dos óculos. - O fogo grego!...

Acabou atraindo as suspeitas de seus interlocutores.

-        O senhor teria sido um dos miseráveis, escravos certamente, que provocaram a terrível catástrofe? Perdemos uma de nossas galeras!

Prudentemente, Savary retirou-se.

Foi confiar a Angélica sua perplexidade. Que rumo devia seguir agora? Devia retornar a Paris para redigir uma tese sobre os estuas e experiências sensacionais da múmia e comunicá-la à Academia de Ciências? Ou lançar-se à procura do Rescator para arrancar-lhe ° segredo sobre a misteriosa substância ignífuga? Ou retomar o curso de uma viagem tão aleatória quanto arriscada pa-ra ir abastecer-se de novas provisões de múmia nas fontes persas? jvja verdade, desde que não tinha mais seu precioso frasco para transportar e preservar, Savary sentia-se um pouco como uma alma penada.

E ela, a Sra. du Plessis-Bellière, que direção pretendia tomar? Ela não sabia.

Uma voz lhe murmurava: "Já basta. Volte ao redil. Implore a clemência do rei. E depois..."

Ela se inclinava nesse sentido. E, apesar "de si mesma, seu olhar errante sobre o mar procurava uma esperança suprema.

O sol desapareceu no horizonte. As galeras desenhadas em escuro contra uma tremeluzente superfície dourada pareciam grandes aves noturnas com as asas abaixadas de seus vinte e quatro remos. Os forçados, mouros ou turcos, voltavam para os entrepostos, onde eramacorrentados para passar a noite, enquanto os mergulhadores, com o corpo coberto de óleo, iam examinar sob a água as cadeias e as redes estendidas que fechavam a entrada do porto.

Os sinos das múltiplas igrejas se puseram a tocar o ângelus. Havia mais de cem igrejas, de todas as dimensões e estilos, construídas como obra piedosa, aos domingos, pelas mãos de uma população ferozmente religiosa. Quando todos os sinos dobravam, era como um trovão ribombando, e três vezes por dia Malta se transformava num monstro sonoro, mugindo as glórias da Virgem Maria por entre as batidas de asas marinhas enlouquecidas.

Angélica fechou a janela e retirou-se precipitadamente. Não se teria ouvido uma palavra berrada a dois passos. Ela sentou-se na beirada da cama e esperou o fim do estrondo.

A capa do Rescator estava ali, atravessada "sobre a coberta de brocado.

Ela não conservara o vestido com bordados de nácar indiano que a tempestade massacrara. Mas não quisera separar-se da capa de veludo pesado que na noite de Cândia o pirata lhe lançara sobre os ombros. Não era uma espécie de troféu? De súbito, Angelica deixou-se deslizar, estendeu-se no leito e escondeu o rosto nasl dobras da veste.

Nem o vento do mar nem os furiosos nevoeiros, haviam conse. guido eliminar o perfume penetrante. Bastava que ela o respirasse para fazer surgir na memória uma silhueta imperiosa. Ouvia-lhç a voz rouca e baixa e revivia aquela hora estranha em Cândia, por entre a irrealidade da fumaça de incenso e tabaco, os aromáticos odores do café e os gemidos das pequenas harpas de três cordas.

Por entre as fendas de uma máscara de couro, dois olhos ardentes a espreitavam...

Apertando contra si o tecido amarrotado, ela gemeu e rolou a cabeça de um lado para outro, perseguida por um remorso ao qual ela não queria dar o nome.

Os sinos acalmavam-se, espaçavam-se. Um bordão ainda respondia ao canto apressado de um carrilhão.

Através das últimas notas sonoras, Angélica percebeu finalmente as batidas repetidas à sua porta e que o ruído ensurdecedor a impedira de ouvir.

-        Entre! - gritou ela, erguendo-se.

À soleira da porta apareceu um pajem de casula negra.

-        Senhora, perdoe se interrompo seu repouso - disse, elevando a voz para cobrir os últimos zunidos dos sinos -, mas lá embaixo há um árabe que pergunta pela senhora. Diz que se chama Mohammed Raki e que vem da parte de seu marido.

CAPITULO XXX

O criado de Joffrey de Peyrac

A partir do momento em que essas surpreendentes palavras foram pronunciadas, Angélica agiu como um autómato. Sem dizer palavra, levantou-se, atravessou o cómodo, deslizou como um fantasma pela escada de mármore e passou pelo vestíbulo. No peristilo de colunas venezianas, um homem aguardava.

Tinha a tez clara dos povos berberes que deram à Barbaria o nome. Um turbante estreito de pano branco em torno da testa prendia-lhe sobre a cabeça um alto barrete vermelho.

Sua roupa assemelhava-se .muito à de um camponês medieval francês: calções, chinelas pontudas e uma espécie de blusa com capuz com as mangas abertas na altura do cotovelo para deixar passar o antebraço. Uma barba rala e incolor cobria-lhe o queixo.

Inclinou-se profundamente enquanto ela o olhava de mãos entrelaçadas, os olhos dilatados.

— Você se chama Mohammed Raki?

— Para servi-la, senhora.

— Fala francês?

— Aprendi com um senhor francês a quem servi por longo tempo.

— O Conde Joffrey de Peyrac?

Um sorriso repuxou os lábios do árabe. "Disse que jamais conhecera homem algum com o nome estranho que ela acabava de Pronunciar.

-        Mas então?...

Mohammed Raki fez um gesto apaziguador. O senhor francès a quem servira se chamava Jeffa-al-Khaldun.

-        Foi esse o nome que lhe deram no Islã. Sempre soube que ele era francês e de alta linhagem. Confesso que ignorava seu título, que ele jamais confiou a ninguém. E quando ele me enviou a Marselha, há quatro anos, para procurar um padre lazarista e confiar-lhe a missão de procurar uma Sra. de Peyrac, tomei todo o cuidado de esquecer esse nome, para agradar àquele que para mim foi mais um amigo do que um amo.

Angélica respirou fundo e notou que suas pernas fraquejavam. Fez sinal ao árabe para que a seguisse e rumou para o salão, onde se deixou cair num dos inúmeros divãs que o guarneciam. O homem acocorou-se à sua frente, numa atitude humilde.

-        Fale-me dele - disse Angélica debilmente. .

Mohammed Raki fechou os olhos e começou, numa voz monótona e pausada, como se recitasse uma lição:

-        É um homem alto, magro, que parece espanhol. Tem o rosto todo marcado de gloriosas cicatrizes e às vezes seu aspecto assusta. Na face esquerda os ferimentos formam um sinal em ponta, assim.

O dedo de unha avermelhada do árabe traçou um V sobre a face.

-        E na têmpora, outra linha que atravessa o olho. Alá impediu que ele ficasse cego porque estava prometido a úm grande destino. O cabelo é preto: abundante e escuro como a juba de um leão da Núbia. Os olhos são negros e lhe atravessam a alma como os de uma ave de rapina. E ágil e forte. Professa grande habilidade no manejo do sabre e ao domar os mais fogosos corcéis, mas maior ainda é a ciência de seu espírito, que causou a admiração dos doutores da escola de Fez, a tão célebre e secreta cidade das medersas muçulmanas.

Um pouco de calor recomeçava a circular nas veias de Angélica.

-        Meu marido seria um renegado? - perguntou assustada, ao mesmo tempo em que pensava que isso lhe era indiferente.

Mas era um pensamento ímpio e sacrílego. Mohammed Raki meneou negativamente a cabeça.

-        Não é frequente - disse - que um cristão possa se deslocar impunemente no reino do Marrocos sem ter aderido à nossa lei. Mas Jeffa-al-Khaldun foi a Fez e ao Marrocos não como escravo, mas como amigo do veneradíssimo Marabu Abd-el-Mecchrat, com quem se correspondia há muitos anos acerca de trabalhos de alqirnia, pela qual ambos são violentamente apaixonados. Abd-el-fyíecchrat tomou esse cristão sob a sua proteção e proibiu que se tocasse num único cabelo dele. Foram juntos ao Sudão para fazer ouro, e foi nessa ocasião que comecei a servir a esse grande francês. Esses dois sábios dos segredos da natureza trabalhavam para um dos filhos do rei de Tafilalet.

O homem interrompeu-se, o cenho franzido, como se tentasse lembrar-se de um detalhe importante.

-        Havia um negro fiel que o seguia por toda parte e que atendia por Kuassi-Ba.

Angélica escondeu o rosto nas mãos. Mais ainda que a descrição muito precisa que o árabe lhe fizera da fisionomia de seu marido, o nome do bom criado mouro, Kuassi-Ba, rasgava o véu e a colocava diante da ofuscante realidade. A pista seguida às apalpadelas e no sofrimento desembocava em plena luz, o porto fora atingido, a ressurreição se efêtuara, è o que não passava de um sonho insensato materializava, ganhava forma.humana, uma forma que logo seria possível abraçar.

-        Onde está ele? - suplicou ela. - Quando virá? Por que não o acompanhou?

O árabe teve um sorriso indulgente ante a impaciência dela. Logo faria dois anos que ele deixara o serviço de Jeffa-al-Khaldun. Ele, Mohammed Raki, casara naquela época e estabelecera um pequeno negócio em Argel. Mas tinha notícias frequentes do antigo patrão, que viajara muito, depois se fixara em Bône, cidade na costa da Africa onde continuava a dedicar-se a inúmeros trabalhos científicos.

— Tenho então que ir a Bône - disse Angélica, febril.

— Certamente, senhora. A menos que um triste acaso tenha afastado o amo para uma viagem breve, a senhora o encontrará sem dificuldade, pois qualquer um saberá indicar-lhe onde mora ele. E célebre em toda a Barbaria.

Por pouco Angélica não se pôs de joelhos para agradecer a Deus. Um martelar regular de alabarda sobre as4ajes a fez erguer os olhos. Era Savary que se introduzia, batendo nos mosaicos com a extremidade de seu enorme estojo de tela oleada.

Ao vê-lo, Mohammed Raki levantou-se e inclinou-se, dizendo de como estava alegre por conhecer o honorável ancião de quem seu tio lhe falara.

-        Meu marido está vivo! - disse Angélica, numa voz entrecortada de soluços. - Ele me afirma isso. Meu marido está em Bône, onde poderei encontrá-lo.

O velho boticário examinava o homem com um ar sagaz, por sobre os óculos.

-        Ora, ora! - exclamou. - Eu ignorava que o sobrinho de Ali Mektub fosse berbere.

Mohammed Raki pareceu surpreso e encantado com a observação. Na verdade, sua mãe, irmã de Ali Mektub, era árabe e seu pai berbere das montanhas de Cabília. Ele herdara todos os traços do pai.

-        Ora, ora! - repetiu Savary. - É um caso bem raro. Geralmente há poucos casamentos entre as duas raças, que se odeiam: o árabe conquistador, vindo da Arábia, e o berbere, de origem européia, vencido por ele.

O outro sorriu outra vez. O honorável ancião conhecia bem o Islã.

— E por que foi que seu tio não o acompanhou?

— Estávamos a caminho de Cândia quando, por um navio que cruzamos, fomos informados de que a francesa fugira e se encon trava em Malta. Meu tio continuou para Cândia, com pressa de retomar seu negócio, enquanto eu subia a bordo do navio para retornar.

Por entre os longos cílios espessos, lançou a Savary um olhar entre triunfante e irónico.

-        As notícias voam no Mediterrâneo, messire. Voam tão rápido quanto os pombos-correio.

Lentamente, das dobras da djellaba, tirou um estojo de couro, de onde pegou, dobrada, a folha que Angélica escrevera com uma | pluma trémula na prisão de Cândia: "Lembre-se de mim que fui sua esposa. Sempre o amei - Angélica".

— Esta não é a missiva que entregou a meu tio Ali Mektub? Savary ajustou os óculos para olhar mais perto.

— E, de fato. Mas por que não foi entregue ao destinatário?

O rosto de Mohammed Raki crispou-se numa expressão pesarosa e foi numa voz chorosa e monótona que se queixou das dúvidas que Savary parecia manifestar a seu respeito: o honorável ancião ignorava que Bône era uni enclave espanhol em mãos dos cristãos, os mais fanáticos católicos, e que dois pobres mouros, filhos de Maomé, não podiam penetrar ali sem colocar a vida em risco?

-        Mas você veio a Malta - observou Savary.

Com toda a paciência o outro explicou que, primeiro, Malta não ;era a Espanha, e que, depois, aproveitara a oportunidade única de se infiltrar na comitiva do Rás Ahmet Sidi, que se encontrava em Malta para negociar o resgate do Príncipe Lai Lum, irmão do rei de Aden, recentemente capturado pela Religião.

-        Nossa galera entrou há uma hora no porto, ostentando a bandeira de resgate, e assim que me vi em terra apressei-me a procurar a senhora francesa. Enquanto as negociações a respeito de LaiLum não estiverem concluídas, não corro nenhum risco da parte dos cristãos.

Savary aprovou. Era visível que se tranquilizava.

-        Não é meu dever mostrar-me desconfiado? - perguntou a Angélica, como que paraVdesculpár-se de suas reticências.

Ocorreu-lhe uma ideia, e- ele apontou o indicador para o berbere.

-        E quem me prova que você é Mohammed Raki, sobrinho de meu amigo Ali Mektub, e servidor do senhor francês procurado?

O homem crispou-se de novo, e seus olhos semicerraram-se numa expressão de cólera. Mas controlou-se.

-        Meu patrão gostava de mim - disse numa voz surda. - Deu-me um presente.

Do mesmo estojo de marroquim, puxou uma jóia de prata com uma pedra preciosa. Angélica a reconheceu na hora: o topázio!

Não era uma jóia de grande valor, mas Joffrey de Peyrac tinha-Ihe muita estima, pois estava há séculos em sua família. E gostava de dizer que o topázio era sua pedra de sorte, ao mesmo tempo cor de ouro e de chama. Ela o vira usá-la ao pescoço, pendurada a uma corrente de prata sobre um gibão de veludo. Mais tarde mandara mostrar a jóia ao Padre António, em Marselha, como sinal de identificação.

Tomou-a das mãos do mouro e, com paixão, de olhos fechados, pousou os lábios na jóia. O velho Savary a observava em silêncio.

— O que pretende fazer? - perguntou finalmente.

— Tentar partir para Bône, custe o que custar.

CAPÍTULO XXXI

A bênção do grão-mestre da ordem

Não foi fácil convencer os cavaleiros de Malta a colocar a jovem marquesa francesa a bordo de uma de suas galeras para levá-la até Bône. Ela abordou o Conde de Rochebrune, o Bailio de La Marche, o Cavaleiro de Roguier e até Dom José de Almada: todos tentaram dissuadi-la de tal loucura.

Uma cristã, diziam eles, não poderia aportar na Barbaria sem correr os maiores riscos.

A Barbaria compreendia todo o norte da Africa, ou seja, os reinos de Tripolitânia, Túnis, Argel e Marrocos. Fanáticos e piratas, de uma civilização menos refinada que os turcos, cujo protetora-do suportavam com impaciência, os berberes representavam os mais ferozes adversários dos Cavaleiros de Malta.

A mulher ali era uma escrava submetida às mais baixas tarefas, ou uma odalisca, encerrada num harém. Apenas as judias andavam de rosto descoberto e com liberdade, mas tomavam todo o cuidado para não ultrapassar o limite do mellak, o bairro reservado.

- Mas vou a Bône - insistiu ela -, o enclave católico.

Pior ainda. Nesses enclaves da costa africana, aos quais os espanhóis se agarravam como carrapatos para irritar o leão berbere, havia de tudo, mas sobretudo miséria. O que ela, grande dama da França, ia fazer entre aquela quadrilha de pequenos comerciantes, medíocres e excessivamente apegados ao lucro, guardados por urna guarnição de andaluzes, tão sombrios e ferozes quanto os mouros, que, por trás das muralhas, lhes atiravam flechas e balas? 0 que poderia ela procurar num dos locais mais deserdados da terra, sem alma, sem coração, sem rosto? Desejava cair outra vez nos incontáveis perigos aos quais, pela graça de Deus, escapara?

Angélica acabou dirigindo-se ao próprio grão-mestre da Ordem, o Príncipe Nicolau Cotoner, francês de origem inglesa, de alta linhagem e, segundo a fórmula que precedia suas atas públicas, "Irmlão pela graça de Nosso Senhor da Casa Hospitaleira da Ordem mlilitar de São João de Jerusalém, guardião do Santo Sepulcro e íumilde mestre dos pobres". Em Roma, quando o sumo pontífi-reunia o capítulo, esse príncipe ocupava o primeiro lugar à direita do papa. Também tinha o privilégio de, com seus cavaleiros, íontar a guarda do conclave, e, quando o papa era introduzido, embaixador de Malta o precedia completamente armado e portando o grande estandarte vermelho com a cruz branca das galeras da Religião.

Angélica ficou impressionada com o belo ancião de peruca branca

olhar cheio de autoridade. Falou-lhe com toda a franqueza, fazendo-lhe o relato de seu amor dramático e romanesco. Como, depois de haver chorado dez anos a morte de um esposo bem-amado, ela estava a ponto de revê-lo, tendo finalmente sabido de onde ele vivia. Seria pedir demais à bondade de Sua Alteza Eminentíssima que a autorizasse a embarcar numa das galeras que partiam na direção da costa da Barbaria, e que essa galera fizesse uma escala em Bône para desembarcá-la? O grão-mestre ouviu-a com atenção. De tempos em tempos, levantava-se, aproximava-se da janela e, levando ao olho uma luneta, acompanhava a evolução dos navios na enseada.

Sobre o traje à francesa, usava a estola da Ordem de Malta, onde estavam inscritos em bordados de ouro os mistérios da Paixão.

Permaneceu longo tempo em silêncio, depois suspirou. Muitas coisas daquele relato lhe pareciam inverossímeis, sobretudo que um grão-senhor cristão, conforme ela descrevia o marido, tivesse encontrado refúgio naquele covil miserável de Bône.

— Está dizendo que antes ele percorreu impunemente os países berberes?

— Foi o que me disseram.

— Então é um renegado que vive à moda do Islã, com um harém de cinquenta mulheres. Unir-se a ele acarretará as maiores dificuldades para sua vida e para sua alma.

Angélica sentiu o coração contrair-se de angústia, mas permaneceu calma.

-        Não sei se ele é pobre ou renegado - disse. - Sei apenas uma coisa: que ele é meu marido perante Deus, e quero "encontrá-lo.

O rosto severo do grão-mestre da Ordem suavizou-se.

-        Feliz do homem que lhe inspirou tal amor!

Mas ainda hesitava.

-        Ah, minha criança! Sua juventude e sua beleza me inquietam. O que não lhe pode acontecer nesse Mediterrâneo, outrora o grande lago interior cristão, hoje entregue ao Islã! Que tristeza para nós, Cavaleiros de Jerusalém, quando medimos o recuo de nossas armas! Jamais, jamais combateremos com rigor suficiente os infiéis. Não são apenas os lugares santos que temos que reconquistar, mas Constantinopla, a antiga Bizâncio, onde reinava a grande Igreja, onde o primeiro cristianismo se difundiu sob as cúpulas de Santa Sofia, agora uma mesquita.

Ficou sombrio, mergulhado em suas visões místicas. Bruscamente, Angélica disse:

-        Sei por que não quer deixar-me partir. É porque ainda não recebeu o preço de meu resgate.

Uma expressão divertida iluminou o rosto do velho prelado.

-        Confesso que ficaria bem contente com esse pretexto para evitar que cometa uma loucura. Mas, justamente, acabo de saber pelo intermediário de nosso banqueiro em Livorno que a soma combinada com a senhora foi enviada por seu intendente ao nosso grão-prior de Paris.

Seus olhos brilharam, cáusticos.

-        Muito bem, senhora. Admito que um ser humano que ganhou sua liberdade pode empregá-la para destruir-se como bem lhe aprouver. A galera comandada pelo Barão de Nesselhood deve zarpar dentro de uma semana para um cruzeiro ao largo da Barbaria. Autorizo-a a embarcar.

E como o rosto de Angélica se iluminasse de alegria, ele se recusou a enternecer-se. Franzindo as brancas sobrancelhas e apontando para ela um dedo onde brilhava a ametista de prelado, gritou-lhe:

-Lembre-se do que lhe advirto. Os berberes são fanáticos cruéis, lúbricos, intratáveis. Os próprios paxás turcos os receiam, pois esses piratas chegam ao ponto de recriminar-lhes a tibiez religiosa. Se seu marido mantém amizade com eles é porque se tornou como eles. Melhor seria para sua salvação que permanecesse do lado da Cruz, senhora.

Depois, vendo que ela não cedia, acrescentou com uma voz mais suave:

- Ajoelhe-se, minha criança, e deixe-me abençoá-la.

CAPÍTULO XXXII

Na galera de Malta - A armadilha da ilha de Cam

A galera distanciou-se, deixando atrás de si Malta com suas muralhas cor de âmbar. O carrilhão dos sinos perdeu-se, substituído pelo arquejo das ondas e pelo choque surdo que vinha dos bancos dos remadores.        '

O Cavaleiro-Barão de Nesselhood martelava a ponte com seu passo seguro de general do mar.

No setor abaixo, dois mercadores franceses, comerciantes de coral, conversavam com um solene banqueiro holandês e um jovem estudante espanhol que ia ao encontro do pai, oficial da guarnição de Bône e que com Angélica e Savary representavam os raros passageiros civis da galera.

Naturalmente a conversa girava em torno das chances que tinham de escapar ou não aos berberes durante a viagem curta que a audácia dos piratas, cada dia maior, tornava muito perigosa.

Os dois traficantes de coral, velhos carreteiros da Africa, divertiam-se em mostrar-se pessimistas, a fim de perturbar os companheiros que recebiam o batismo de uma travessia mediterrânea.

— Quando se parte para o mar, tem-se uma chance em duas de acabar em pêlo na praça do grande mercado de Argel.

— Em pêlo? - perguntou o banqueiro holandês, cujo francês carecia de nuances.

— Vestido de Adão, senhor. É assim que nos venderão se formos capturados. Vão examinar-lhe os dentes, apalpar-lhe os bíceps, vão fazê-lo correr um pouco para terem uma ideia do que vale.

O ventrudo banqueiro não se via de maneira alguma naquele papel.

— Oh, isso não poderia acontecer! Os Cavaleiros de Malta são invencíveis, e dizem que o que nos leva, o Barão de Nesselhood, um alemão, é um homem cuja reputação apenas basta para espantar os corsários mais atrevidos.

— Hum, hum! Nunca se sabe. É que os corsários estão ficando cada vez mais atrevidos. Ainda no mês passado parece que duas galeras argelinas se postaram não longe do Castelo de If, diante de Marselha, e capturaram um barco no qual se encontravam uns cinquenta habitantes da cidade, dentre os quais várias senhoras de posição, que iam em peregrinação a Saint-Baume.

— É de se imaginar a peregrinação que elas vão fazer entre os berberes - disse o compadre do que falava, dando uma olhada galhofeira na direção de Angélica.

Mestre Savary, geralmente tão prolixo, não participava da conversa. Contava seus ossos. Não os seus, propriamente, mas os que tirava com todo o cuidado de um grande saco colocado a seu lado. Seu embarque ocasionara outro incidente tragicômico. O sino de bordo já tocava a toda, anunciando a partida, quando ele apareceu carregando um saco enorme.

O Barão de Nesselhood avançou, severo. Nada de excesso de peso na galera, que já estava sobrecarregada.

-        Excesso de peso? Veja, senhor cavaleiro!

Tal qual um bufão de feira, Mestre Savary deu algumas voltas com o saco seguro apenas entre o polegar e o indicador.

— Isto não pesa mais que duas libras.

— O que leva aí dentro? - surpreendeu-se o barão.

— Um elefante.

Depois de gozar da pilhéria, confirmou a declaração. Tratava-se, disse, de um "proboscídeo fóssil", ou elefante anão, fenómeno raríssimo que datava da génese do mundo, cuja existência parecia tão problemática quanto a do licorne.

-        Foi uma obra de Xenofonte, Os equívocos, que serviu de ponto de partida para minha ousada teoria. Compreendi ao lê-la que, se o proboscídeo tivesse existido, seria encontrado no subsolo das ilhas de Malta e Gozo, outrora ligadas à Europa e à Grécia. Esta descoberta certamente me dará acesso à Academia das Ciências, se eu viver para isso!

A galera da cristandade era mais espaçosa do que a galera real francesa. Sob o estrado do tabernáculo, havia uma cabina onde os passageiros podiam repousar em banquetas rústicas.

Angélica estava doente de impaciência e, por que não confessá-lo, também de apreensão. Pois nada se assemelhava a seu sonho. Se não tivesse visto o topázio, teria duvidado até do mensageiro que o levara. Achava-lhe o olhar falso. Fora em vão que tentara obter outros detalhes dele. O árabe abrira as mãos, com um estranho sorriso de surpresa:

-        Eu disse tudo!

As profecias violentas de Desgrez voltavam-lhe à memória. Qual seria a recepção de Joffrey de Peyrac depois de tantos anos? Anos que haviam passado sobre ambos e que os haviam marcado na carne e no coração. Cada um conhecera outras lutas, outras buscas... outros amores... Difícil prever!...

Entre os cabelos louros, tinha agora uma mecha de cabelos brancos. Mas estava em plena juventude, mais bela ainda do que quando se casara, quando seus traços não tinham adquirido toda a personalidade, suas formas não tinham atingido o pleno desabrochar e seu caminhar não adquirira aquela majestade que às vezes a tornava intimidante. A transformação ocorrera longe do olhar de Joffrey de Peyrac e de sua influência. Fora a mão do destino brutal que a modelara em sua solidão.

E ele? Carregado de humilhações e infelicidades incontáveis, despojado de tudo, arrancado a seu mundo, a seus trabalhos, a suas raízes, o que teria podido preservar de seu antigo "eu", daquele a quem ela amava?

-        Tenho medo!... - murmurou ela.

Tinha medo de que o instante maravilhoso se estragasse para sempre, se perdesse, fosse sórdido. Desgrez a advertira. Mas a ideia da perda de um Joffrey de Peyrac nunca lhe passara pela cabeça.

A dúvida que a invadiu quase a pôs de joelhos. Como uma criança, repetia que queria ver a "ele", seu amor, "seu" amante do Palácio da Gaia Ciência, e não o "outro", aquele homem desconhecido em solo desconhecido. Queria ouvir-lhe a voz maravilhosa. Mas Mohammed Raki não falara daquela voz célebre. Pode-se cantar na Barbaria? Sob o sol cruel? Entre aqueles homens de pele escura que cortam cabeças assim como se poda um tufo de ervas? O único canto que pode alçar-se é o dos muezins no topo dos minaretes. Qualquer outra expressão de alegria é sacrilégio.

Oh! No que se tornara ele?...

Tentou desesperadamente ressuscitar na própria lembrança o passado, esforçou-se por encontrar sob as arcadas do Gaia Ciência a presença do conde languedociano. Mas a imagem fugia-lhe.

Então, quis dormir. O sono dissiparia os véus terrestres que lhe ocultavam seu amor.

Sentia-se cansada...

Uma voz cochichou-lhe: "Você está cansada... Na minha casa poderá dormir... Há rosas... lâmpadas... janelas abertas para o mar..."

Acordou com um grito agudo. Savary inclinava-se sobre ela e a sacudia.

-        Sra. du Plessis,;tem que acordar. Vai amotinar a galera toda!        

Angélica soergueu-se sobre o leito e apoiou-se contra o tabique. Era noite. Já não se ouvia o "han" dos remadores, pois a galera navegava a pequeno velame e os longos remos de vinte toesas estavam alinhados sobre a coxia. Naquele silêncio inabitual, o passo do Cavaleiro-Barão de Nesselhood martelava o soalho acima deles.

A escassez da luz da grande lanterna de bordo provava a preocupação de não chamar a atenção dos piratas certamente emboscados naquele estrangulamento do Mediterrâneo entre a ilha de Malta e a costa da Sicília, a bombordo, e dos berberes de Túnis, a estibordo.

Angélica soltou um profundo suspiro.

— Um mago me persegue em sonhos... - murmurou.

— Se fosse apenas em sonhos... - disse Savary.

Ela teve um sobressalto e tentou discernir-lhe a expressão na obscuridade.

— Que quer dizer? O que pensa, Mestre Savary?

— Penso que um pirata tão audacioso quanto o Rescator não a deixará escapar sem tentar recuperar o que lhe pertence.

— Não pertenço a ele - protestou Angélica, revoltada.

— Pagou por você o preço de um navio.

— Doravante meu marido me protegerá - disse ela, com uma voz incerta.

Savary ficou em silêncio. O ronco do banqueiro holandês aumentou e diminuiu.

— Mestre Savary - sussurrou Angélica -, acredita que... que poderia ser uma armadilha?... Percebi de imediato que você desconfiava de Mohammed Raki. Mas ele não forneceu provas incontestáveis de sua missão?

— Forneceu.

— Certamente esteve com o tio, Ali Mektub, pois tinha minha carta em seu poder. E acerca de meu marido, deu-me detalhes que apenas eu podia conhecer e de que eu mal me lembrava, mas que logo me vieram à memória... Portanto, ele esteve perto de meu marido. A menos que... Oh, Savary, acredita que eu possa estar sendo vítima de um feitiço, de imagens projetadas à distância e que me fariam ver, como uma miragem, aquilo que mais desejo no mundo a fim de me atrair para uma armadilha? Oh, Savary, estou com medo...

— Esses fenómenos podem acontecer - disse o velho boticário -, mas não creio que seja o caso. Há outra coisa. Uma armadilha, talvez - resmungou ele -, mas magia, não. Esse Mohammed Raki nos oculta a verdade. Esperemos até o final. Veremos.

Mexeu longamente uma colherinha numa taça de estanho.

— Tome este medicamento. Repousará melhor.

— Ainda é múmia?

— Você bem sabe que não tenho mais múmia - disse Savary com tristeza. - Utilizei-a toda para provocar o incêndio em Cândia.

— Savary, por que você insiste em acompanhar-me nesta viagem que não aprova?

— Podia abandoná-la? - disse o ancião, como se refletisse sobre uma árdua questão científica. - Não, não creio de modo algum. Portanto, irei a Argel.

— A Bône.

— É a mesma coisa.

— Os cristãos correm menos riscos em Bône do que em Argel.

—      Quem sabe? - disse Savary meneando a cabeça como um adivinho que vê para além das aparências.

Um novo dia de viagem para oeste prosseguiu mais lentamente, pois o vento cessara e só se avançava a poder de remos.

A galera de Malta cruzou vários navios, dentre-os quais um grande comboio de comerciantes holandeses, que conseguiam avançar, apesar de tudo, graças ao abundante velame. Iam escoltados por duas belonaves com cinquenta a sessenta canhões cada uma. Era o método adotado pelas nações ocidentais - ingleses, neerlandeses e outros - para comerciar no Mediterrâneo. ,

Penetravam à força, em verdadeiras frotas guardadas e defendidas, que desencorajavam a audácia dos corsários.

Por volta do meio-dia o vento tornou-se mais favorável, e as duas velas foram içadas. Muito longe, à frente, distinguia-se o perfil de uma ilha montanhosa. O Cavaleiro de Roguier chamou a atenção de Angélica:

-        É Pantelaria, que pertence ao Duque- da Toscana.

Poderiam fazer uma escala ali, mas um vaso de guerra não devia deixar transpirar nada acerca de seus planos, a fim de evitar as emboscadas do inimigo infiel. Era melhor evitar todo contato, mesmo com amigos, antes de chegarem ao objetivo previsto: Bône. O vento enfunava as velas.

-        Se continuar bem assim, poderemos estar em Bône depois de amanhã - disse o jovem cavaleiro.

Doravante apenas a extensão do mar azul, levemente encapelado, desdobrava-se à frente do navio de Malta.

Ao entardecer, ocorreu um incidente. Descobriu-se que uma mão criminosa furara o reservatório de água doce de bordo. Entre os auxiliares do cozinheiro, um jovem espanhol interrogado um pouco rudemente sacara de uma faca e ameaçara o comitre que o interpelava. Ora, era proibido a todo tripulante portar uma faca, exce-to no caso daqueles que necessitavam do instrumento para suas tarefas. Segundo o costume de todas as marinhas do mundo, o grumete teve que receber a bárbara punição reservada a quem infringisse esse ponto do regulamento: ter a mão pregada ao grande mastro por aquela mesma faca, objeto do litígio, e ali permanecer por um número de horas que variava conforme a gravidade de sua conduta.

O Cavaleiro de Roguier foi prevenir Angélica do contratempo.

-        E um incidente estúpido, mas que vai atrasar-nos, pois agora temos que tentar chegar a Pantelaria para nos abastecermos de água. Isto também prova que no Mediterrâneo é preciso desconfiar sempre e não conceder generosidades facilmente. A juventude do rapaz poupara-o dos remos. Deixamos que andasse livremente. E hoje, para nos agradecer, enterra uma verruma no reservatório de água doce.

-        Por que cometeu esse ato? - perguntou Angélica, angustiada.

O cavaleiro fez um gesto de dúvida e não respondeu. A galera havia mudado de rumo bruscamente. Não ia mais para oés-noroeste, mas para sudoeste, o que era visível pela posição do sol poente.

Os passageiros receberam uma ração de vinho fino, de que havia reservas, mas a tripulação e os escravos resmungaram, pois não se podia cozinhar a bordo.

O dia, quentíssimo, morreu.

Angélica não pôde dormir. Pela meia-noite, subiu ao convés para respirar um pouco de ar fresco. A noite estava opaca, pois a iluminação já fraca da noite anterior fora completamente suprimida. Apenas a luz difusa de estrelas longínquas clareava o barco, que seguia a velas reduzidas e com o auxílio de um único setor de forçados, enquanto os outros dois setores descansavam. Ouvia-se a respiração dos forçados dormindo no fundo de suas fossas mal-cheirosas, mas não se via nada. Angélica deu alguns passos na di-reção da coxia. Pensava que os dois cavaleiros estavam na proa e quis falar com eles. Um ruído a deteve.

Uma voz abafada e ofegante de delírio falava entre dentes, em árabe, um queixume onde a palavra "Alá" se repetia com frequência. A voz calava e recomeçava. Ela adivinhou, mais do que viu, a silhueta do pequeno renegado, pregado ao grande mastro por uma faca cravada em sua mão. Devia estar sofrendo terrivelmente, e também de sede. Ela não tinha mais vinho, mas havia guardado um pedaço de mamão, que foi buscar. Quando quis aproximar-se do grande mastro, um escudeiro interpôs-se.

-        Deixe-me - disse ela. - Vocês são marinheiros e homens de guerra. Não julgo seus atos. Mas sou mulher e tenho um filho quase da idade dele.

O homem inclinou-se. Quase às apalpadelas, ela conseguiu introduzir pedaços de mamão entre os lábios ardentes do jovem espanhol. Ele tinha os cabelos encaracolados como os de Florimond. Sua mão martirizada se crispava como garra, estriada de sangue seco.

"Vou pedir ao Barão de Nesselhood que suspenda a punição, I já é demais!", disse Angélica consigo, o coração comprimido.

De repente o campo de visão foi iluminado por um clarão avermelhado que mudou várias vezes de matiz, até terminar numa explosão multicor.

-        Um foguete!      

O jovem mouro também o notara.

-        Allah mobarecb! - exclamou ele em árabe. - Alá é grande!

Uma confusão geral sacudiu o torpor do navio. Os irmãos escudeiros e os marinheiros iam e vinham, interpelando-se. Algumas lanternas furta-fogo balançaram seu olho redondo.

Angélica despertou Savary. A cena lhe lembrava demais aquela que precedera o combate com o xaveco do Rescator.

-        Savary, acredita que vamos encontrar outra vez aquele pirata?

-Senhora, dirige-se.a mim como se eu. fosse um estrategista militar que tivesse, além disso, o poder mágico de estar ao mesmo tempo numa galera de Malta e numa de seu adversário. Um foguete turco não é sinal apenas do Rescator, seu proprietário. Também pode indicar que se prepara uma cilada argelina, tunisiana ou marroquina..

— Dir-se-ia que foi lançado do próprio navio.

— Portanto, há um traidor a bordo*

Sem despertar os outros passageiros, subiram. A galera parecia navegar em ziguezague, sem dúvida para tentar desorientar o ini-I migo que podia esconder-se na escuridão.

Angélica ouviu a voz do Cavaleiro de Roguier, que voltava da proa com o cavaleiro alemão.

— Irmão, chegou a hora de colocarmos as cotas escarlates?

— Ainda não, meu irmão.

— Mandou procurar o traidor que lançou o foguete de bordo? - perguntou-lhes ela.

— Sim, mas sem resultado. De qualquer maneira, é preciso adiar a justiça para mais tarde. Olhe aquilo!

Ao longe, diante da proa, via-se uma "linha de luzes. "Uma costa ou uma ilha", pensou ela.

Mas a costa parecia vacilar e ondular. As luzes piscavam e se aproximavam enfileiradas, depois em semicírculo.

-        Frota de emboscada à nossa frente. Alerta! - gritou numa voz trovejante o Cavaleiro de Nesselhood.

Cada um ocupou seu posto e começaram a erguer a arambade, uma paliçada com seis pés de altura, destinada a atacar os navios mais altos.

Angélica contara trinta luzes sobre a água.

-        Os berberes! - exclamou a meia voz.

O Cavaleiro de Roguier, que passava, ouviu-a.

-        Sim, mas tranqúilize-se, é apenas uma flotilha de barcos pequenos, que certamente não ousarão;atacar-nos se não possuírem um reforço de unidades marítimas. Mas não há dúvida de que se trata de uma cilada. Teria sido preparada em nossa intenção? O lançamento do foguete parece indicar isso... De toda maneira, não vamos desperdiçar nossa munição em escaramuças, quando é fácil escapar-lhes. Ouviu que nosso chefe não acha que tenha chegado o momento de vestirmos nossa libré de combate: a cota de malha vermelha dos Cavaleiros de Malta. Só devemos vesti-la no momento do combate, para que nossos homens não nos percam de vista durante a batalha. O Barão de Nesselhood é um leão da guerra, mas precisa de no mínimo três galeras à sua frente para que considere a caça suficientemente importante para arriscar seus homens e seu navio.

Apesar das garantias do jovem de que aqueles barcos muçulmanos não eram força contra eles, Angélica notava que as embarcações avançavam sobre a pesada galera, muito carregada. Esta enfunou todo o velame, colocou os três setores de forçados aos remos, mudou de posição e arremeteu para a abertura ainda bem grande do cerco inimigo.

Logo as luzes da flotilha se distanciaram e sumiram. Pouco depois desenhou-se à frente a massa sombria de uma ilha montanhosa bastante próxima. A luz de uma lanterna, os dois cavaleiros consultaram sua carta de bordo.

-        E a ilha de Cam - disse o barão alemão. - A passagem pela angra é muito estreita, mas tentaremos passar, com a ajuda de Deus. Isso nos permitirá reabastecer-nos de água doce ao abrigo das galeras de Bizerta ou de Túnis, que sem dúvida não vão demorar a unir-se à flotilha que encontramos. Não será a população de alguns pescadores miseráveis que nos impedirá de nos instalarmos. Aqui não há nenhum forte, não há sequer um fuzil.

Notando Angélica imóvel e silenciosa a alguns passos, o Cavaleiro de Nesselhood acrescentou num tom ríspido:

- Não acredite, senhora, que os Cavaleiros de Malta tenham o hábito de fugir ao combate. Mas estou empenhado em levá-la a Bône, conforme nosso grão-mestre me pediu que fizesse. Reencontraremos nossos adversários na volta.

Ela agradeceu, com um nó na garganta.

A vela foi solta, e o cavaleiro alemão instalou-se na popa, para tomar o leme ao timoneiro e servir de piloto.

A sombra, negra como tinta, das falésias que pendiam sobre o mar ocultou a claridade difusa da noite. Angélica sentia-se opri-I mida e, apesar da fuga bem-sucedida e, depois, da descoberta da 1 passagem de água miraculosamente situada em sua rota graças ao conhecimento de navegação do monge almirante, invadida de pressentimentos. Bem sabia que no Mediterrâneo nunca se chegava direto ao objetivo, mas agora o menor atraso lhe infligia uma tortura, e parecia-lhe que seus nervos não resistiriam. Preocupada com as observações de Savaíy, imaginava o pior. Seus olhos perscrutavam os rochedos negros, esperando ver explodir a qualquer momento outro foguete traidor. Mas nada disso aconteceu: a claridade do céu noturno reapareceu, e a galera viu-se em águas calmas, onde as estrelas se refletiam. Ao fundo da angra, delineavam-se uma prainha com alguns casebres de taipa e uma fieira de palmeiras e oliveiras revelando a nascente de água.

O céu começou a clarear. Angélica continuava no convés. "Não terei mais coragem de dormir até chegar a Bône", pensou.

Por excesso de prudência, a galera permanecia à entrada da en-; seada, esperando o dia para avançar. O Barão de Nesselhood ins-pecionava os arredores e, à medida que a bruma matinal descobria outro canto da paisagem, seus olhos azuis se fixavam, vasculhando arbustos e falésias. Com o rosto levantado e circunspecto, ele parecia um maciço cão de guarda, desconfiado até a medula e que não quer deixar nada ao acaso. Sua imobilidade fascinava Angélica. Será que se moveria finalmente, falaria, pronunciaria com seus lábios estreitos e apertados a palavra tranquilizadora? Suas narinas moviam-se. Positivamente, ele farejava. Angélica convenceu-se depois de que, antes de ver, ele reconhecera o odor. A boca do cavaleiro avançou num muxoxo, enquanto seus olhos se estreitavam até não passarem de uma fenda aguda.

Voltou-se para Henrique de Roguier, e ambos entraram bruscamente no tabernáculo. Saíram dali vestidos com a cota de malha vermelha.

-        O que está acontecendo? - gritou Angélica.

Os olhos claros do alemão eram de aço em fusão. Sacou da espada, e de seus lábios irrompeu o grito secular da Ordem:

-        Os sarracenos! Meus irmãos! As armas!

No mesmo instante uma chuva de metralha caindo das alturas varreu a proa, decepando o esporão, que ficou suspenso, partido ao meio.

O dia amanhecera. Agora percebia-se entre os arbustos o faiscar de seis baterias apontadas para a galera. Em meio ao estrondo dos canhoneios, o cavaleiro deu ordem de mudar de posição e tentar sair da entrada da enseada e chegar ao largo.

No fundo daquela angra, a galera estaria destinada à transformar-se em ossário, em peneira sob os tiros das baterias muçulmanas, e a soçobrar sem poder sequer defender-se.

Enquanto a manobra se efetuava penosamente, os escudeiros levavam para o convés pequenas bombardas móveis e as posicionavam.

Os outros militares, armados de mosquetes, revidavam da melhor maneira que podiam, mas não tinham nada para protegê-los, e a metralha os ceifava. O tombadilho já estava coberto de mortos e feridos. Gritos subiam das galés, onde um bando inteiro fora dizimado por duas saraivadas de balas.

Mas uma bombarda maltesa mirou longamente uma das baterias. O tiro partiu. Um negro voou do alto da falésia e caiu na água. Um artilheiro das bombardas conseguiu acertar os dois homens postados e outra bateria no fundo da angra.

-        Só restam quatro! - urrou o Cavaleiro de Roguier. - Vamos desarmá-los. Quando não tiverem mais com que atirar, recuperaremos a vantagem.

Mas os rochedos circundantes se encheram de uma boa nuvem de cabeças escuras envoltas em turbantes brancos ou cobertas de toucas vermelhas. O eco devolvia-lhes os berros terríveis.

-        Brebrê, mena perros! Rendam-se, cães!

E a entrada da angra foi obstruída pela chegada dos barcos, os pequenos faluchos cuja barreira, à noite, impelira a galera de Malta para a cilada preparada.

Desde os primeiros disparos de canhão, Savary puxara Angélica para o abrigo da cabina, mas ela quis permanecer junto à porta e acompanhar, alucinada, o combate desordenado e desigual.

Os muçulmanos eram cinco ou seis vezes mais numerosos, e a superioridade da artilharia de Malta, com exceção de alguns tiros felizes, não servia para nada, pois as vinte e quatro peças, fixadas à armadura da galera, eram feitas apenas para atirar ao nível do I mar, não para cima. Os mosquetes de bordo realizavam em vão prodígios de precisão, atingindo de preferência os rases ou chefes muçulmanos, reconhecíveis pelos capacetes pontudos, esperando ' assim desorganizar a ofensiva. Os piratas multiplicavam-se, na histeria da conquista, atiravam-se à água, em massas negras, para che-I gar à galera sem esperar pelo auxílio dos pontões. Vários barcos já tinham conseguido introduzir-se na baía e também soltavam um i verdadeiro enxame de nadadores que transportavam sobre o turbante tochas de resina acesas. Os atiradores de elite de Malta "alvejaram-nos e fizeram uma caril nificina: a água tornou-se vermelha. Mas quantos desapareciam, tantos surgiam. E logo, apesar de mosquete e bombardas, a galera se viu rodeada de uma confusão de barcos, flutuando ou emborcados, mas dos quais, inexorável, a maré humana subia, berrando, brandindo tochas, punhais, sabres e mosquetes. A galera de Malta parecia uma grande gaivota ferida, atacada por uma multidão de formigas. Os mouros" abordavam-na, urrando:

— Va Allahl Allah!

-        Viva a verdadeira fé! - respondeu o Cavaleiro de Nesselhood, transpassando com a espada o primeiro árabe seminu que pôs os pés no convés.

Mas chegavam outros, sempre mais. Os dois cavaleiros, cercados de alguns escudeiros, recuaram, batendo-se, até o grande mastro, onde pendia como massa informe o jovem mouro supliciado.

Por toda a parte lutava-se corpo a corpo. Nenhum dos atacantes parecia sequer pensar em pilhagem, mas apenas na fúria de degolar o maior número possível dos que encontrasse pela frente.

Horrorizada, Angélica viu um dos mercadores de coral às voltas com dois jovens mouros. Entrelaçados, tentavam morder e estrangular. Dir-se-ia uma briga de cães enraivecidos.

Apenas o entrincheiramento junto ao grande mastro apresentava um exemplo de ordem: os dois cavaleiros batiam-se como leões.

À frente deles havia duas brechas, dois semicírculos vazios limitados por uma muralha colorida de cadáveres empilhados. Era preciso remover corpos para chegar até eles, e os mais ousados começavam a recuar diante daquela acirrada resistência, quando o tiro de um franco-atirador, que da popa tivera tempo de ajustar a mira, atingiu o Cavaleiro de Nesselhood, que desabou. Roguier fez um gesto em sua direção. Um golpe de cimitarra cortou-lhe os dedos.

O mercador de coral, que escapará aos dois possessos, desceu a escada da cabina, empurrou Angélica para dentro, onde se encontravam seu companheiro Savary, o banqueiro holandês e o filho do oficial espanhol.

-        Desta vez, acabou - disse ele. - Os cavaleiros tombaram. Vamos ser capturados. É o momento de atirar ao mar nossos papéis e de pôr outra roupa, para enganar nossos novos senhores acerca de nossa posição social. Você principalmente, rapaz - disse ele, dirigindo-se ao espanhol. - Rogue à Virgem para que não desconfiem que é filho de um oficial da guarnição de Bône, senão vão conservá-lo como refém, e ao primeiro mouro abatido sob as muralhas espanholas, enviarão sua cabeça a seu pai, junto com aquilo em que estou pensando.

E todos aqueles senhores, sem se preocupar com a presença de uma senhora, tiraram rapidamente a roupa, enrolaram-na com seus papéis, jogaram tudo ao mar pela vigia, e vestiram trapos disformes, tirados de um baú.

— Não há nenhum vestido lá dentro - disse um dos mercadores, aterrorizado. - Senhora, esses saqueadores logo verão pelo seu traje que é gente da alta laia. Deus sabe a fortuna que pedirão pelo seu resgate!

— Eu não preciso de nada - disse Savary, que, muito calmo, esperava com o guarda-chuva, depois de haver atado com cuidado os cordões do seu saco de ossos paleontológicos. - "Eles" sempre começam por querer me jogar ao mar, tão miserável lhes parece a presa.

— Que devo fazer de meu relógio, meu ouro, meus escudos? - perguntou o banqueiro holandês, muito pouco à vontade nos farrapos destinados a enganar os raptores acerca de seu valor comercial.

-        Faça como nós. Engula tudo o que puder - disse um dos mercadores.

Seu companheiro já engolia, não sem caretas e soluços, o conteúdo da bolsa, pistola após pistola. Seguindo o exemplo, o estudante espanhol engoliu os anéis. Atarantado, o razoável banqueiro neerlandês contemplava aquela epidemia de, "crisofagia".

— Prefiro jogá-los ao mar!

— Está errado. Se os jogar ao mar, nunca mais os recuperará. Ao passo que, se os engolir, poderá recuperá-los.

— Como?

A resposta ficou em suspenso, pois no topo da escada apareceu um negro enorme, o rosto de carvão animado por duas bolas de marfim que se moviam tão medonhamente quanto a cimitarra larga e curva. O banqueiro foi pego com o ouro na mão, o que o fez perder de imediato o benefício do disfarce.

CAPÍTULO XXXIII

Nas mãos dos berberes

Um silêncio cortado apenas pelos gemidos dos feridos sucedera aos clamores.

Os passageiros cativos foram empurrados para o tombadilho.

Pelo estreito, quatro galeras muito baixas, carregadas de canhões, com auriflamas verdes e pavilhões vermelhos com a cabeça branca de Argel, penetravam na enseada. A popa da primeira galera erguia-se o rás-bachi, chefe da pequena frota. Usava o capacete pontudo, semelhante aos dos sarracenos que combateram os cruzados. Envolto numa djellaba, de fina lã branca bordada, subiu a bordo da galera maltesa escoltado por seus oficiais: o reis-al-assa, seu imediato; o khopa, o escrivão, o vaoh-todji, mestre de artilharia encarregado de verificar as avarias da presa maltesa, e o rás-contador, chefe das presas, que fez uma careta, pois a linda galera lhe pareceu danificada demais pelos fanáticos imbecis da emboscada. Fez observações amargas a esse respeito, depois deu ordem para que começasse metodicamente a recensear as riquezas capturadas.

Os forçados que eram da província de Argel foram libertados. Os outros foram transportados para as galeras argelinas. A tripulação maltesa foi posta a ferros. Angélica viu passar, coberto de sangue, Henrique de Roguier, com os punhos algemados, depois o Cavaleiro de Nesselhood, transportado por três colossos, mas também acorrentado, apesar dos terríveis ferimentos de onde o sangue gotejava sem cessar.

Um pelotão de yoldacks, ou janízaros, desembarcava para tomar o lugarda tripulação.

Os novos cativos foram levados perante o rás, que se chamava Ali Hadji. Ele não se deixou enganar pela triste aparência do grupo: examinou com cuidado as mãos de cada um, para ver se a aparência condizia com as profissões que foram declaradas. Com certeza as mãos do banqueiro não eram as do alfaiate que ele pretendia ser. E de resto o relógio de ouro cravejado de pequenos diamantes, que o estado-maior berbere passou reverentemente de mão em mão, já prometia muito sobre as possibilidades de resgate. Ninguém se aborreceu muito com a enérgica recusa dele em revelar o nome e endereço, bem como a nacionalidade. Isso viria quando se utilizassem os meios necessários. Os mercadores confessaram com um ar de maior sinceridade que eram "oficiais da fortuna", o que em geral subentendia que não possuíam nada.

A vista de Savary desencadeou muxoxos de decepção e a maior hilaridade. Apalparam-lhe as costelas, examinaram-lhe a trama gasta da roupa. O conteúdo do saco que ele apertava contra o peito provocou pasmo, mesclado de certo receio supersticioso. Depois um trocista comentou que o saco e seu proprietário poderiam ser reservados para os cães magros de Argel. Puseram-no de lado, para não dizer no refugo.

A atenção dos piratas recaiu sobre Angélica. Os olhos escuros dos oficiais argelinos examinaram-na com uma curiosidade que não era despida de deferência e mesmo de admiração. Trocaram algumas palavras breves entre si e o Rás Ali Hadji fez-lhe sinal que avançasse.

A captura pelos berberes era uma eventualidade tão comum para os que se arriscavam a viajar, que Angélica já se preparara. Havia traçado seus planos, e sua decisão estava tomada. Não fingiria. E utilizaria sua fortuna e sua condição de esposa à procura do marido para tentar, custasse o que custasse, recuperar a liberdade. Os argelinos não eram saqueadores desordenados, atacando, queimando e violando, apenas pela paixão da guerra e seus prazeres. Sua "indústria" de pirataria era organizada segundo leis bastante rígidas. O butim devia ser dividido e, do menor pedaço de vela até o capitão do vaso capturado, tudo era catalogado para ser convertido em metal sonante. No que concernia às mulheres, sobretudo as brancas europeias, presas mais raras e de alto valor, a cupidez geralmente levava a melhor sobre a lubricidade.

Angélica disse o nome, aquele nome que ocultava há longos anos.

Era a mulher de um grão-senhor francês, Joffrey de Peyrac, que a esperava em Bône e que certamente se responsabilizaria por seu resgate. Enviara-lhe um mensageiro, um de seus correligionários, Mohammed Raki, que devia encontrar-se entre os prisioneiros e testemunharia por ela.

O intérprete traduziu, e o rás permaneceu impassível. Mandou que trouxessem os muçulmanos capturados. Angélica receou que Mohammed Raki tivesse sido ferido ou morto durante a batalha, mas viu-o e apontou-o, depois do que, deu-se ordem para embarcá-lo separadamente. Em seguida foi a vez dos cativos cristãos. Subiram a bordo de uma das galeras berberes e foram amontoados na popa, onde já estavam alinhados de qualquer jeito os feridos da tripulação de Malta.

Os dois cavaleiros estavam sentados com as costas apoiadas à amurada, desfigurados pelo sangue coagulado de seus ferimentos. O sol, agora no zénite, atormentava-os cruelmente.

Angélica chamou o negro que os guardava e imperiosamente fez sinal de que morria de sede. O outro transmitiu o pedido da cativa, e o Rás Ali Hadji logo mandou trazer uma caneca de água. Sem se preocupar com as reações que seu gesto provocaria, Angélica foi ajoelhar-se junto ao Barão de Nesselhood, deu-lhe de beber e depois lavou-lhe suavemente o rosto retalhado a golpes de cimitarra, enquanto o Cavaleiro de Roguier se dessedentava por sua vez.

O rás não se interpôs. O escravo cristão que trouxera a caneca inclinou-se e disse a meia voz:

— Se isso pode ajudar-lhes, senhores cavaleiros, eu lhes direi que me chamo João Dillois e que sou francês de Martigues, há dez anos escravo em Argel. Confiam em mim. Eu lhes direi que Mezzo Morte, o almirante de Argel, sabia que iam a Bône e preparou a cilada onde caíram.

— Ele não podia saber - disse o gentil-homem alemão, movendo penosamente o lábio fendido.

-        Ele sabia, messire cavaleiro. Vocês foram traídos pelos seus.

Um golpe com o lado da cimifarra nos ombros o fez calar-se e ele se retirou com a caneca.

-        Fomos traídos. Lembre-se disso, irmão, quando revir Malta - murmurou o Cavaleiro de Nesselhood. Seus olhos azuis ergueram-se para o azul-escuro do céu. - Eu não reverei Malta.

— Não fale assim, irmão - protestou Henrique de Roguier. - Outros cavaleiros além de nós já vogaram nas galeras do Infiel e foram libertados em seguida, enquanto seus algozes acabaram nas galés. São os acasos de nossos combates.

— Tenho contas a prestar a Mezzo Morte. Ele jurou mandar-me esquartejar por quatro galeras.

Uma expressão de horror passou pelo rosto do jovem cavaleiro. A mão acorrentada do Barão de Nésselhood pousou sobre a dele.

-        Lembre-se também, meu irmão, daquilo a que se comprometeu ao pronunciar seu voto sob a bandeira de Malta. Não é honroso para um cavaleiro morrer numa guarnição provincial, pacífico refúgio de guerreiros fatigados. Morrer de espada na mão, sobre o convés de um navio, é melhor. Mas a verdadeira morte dos cavaleiros é o martírio!...

Abandonando a enseada ensanguentada, a pequena frota franqueara o estreito e ganhara mar alto. As galeras argelinas, verdadeiros animais de corrida, talhadas para disparar pelo oco verde das ondas como a raposa por um valezinho, eram baixas, estreitas, e um vez instalado a bordo ninguém devia mexer-se, para não lhes perturbar o equilíbrio nem comprometer-lhe a velocidade. Apenas os comitres, negros ou mouros, corriam pela coxia, descendo o chicote sobre as costas dos forçados cristãos.

Forçados e guardas tinham trocado a eor da pele, mas era novamente o mar e a aventura.

O Rás Ali Hadji em diversas ocasiões olhou na direção de Angélica. Ela adivinhava que ele falava a seu respeito com o khedja, o escrivão, mas não podia compreender o que diziam. O velho Savary conseguira insinuar-se até junto dela.

— Não sei se Mohammed Raki sustentará minhas declarações - disse-lhe ela. - E meu marido, que vai pensar de tudo isso? Poderá pagar meu resgate? Virá em meu socorro? Ia ao encontro dele e percebo que ignoro tudo a seu respeito. Se viveu muito tempo na Barbaria, poderá melhor do que ninguém entender-se com nossos captores. Tenho razão de me apresentar assim?

— Você não errou. A situação já estava bastante complicada para que não tivesse escrúpulo de complicá-la ainda mais. Se cair entre juristas do Islã, pelo menos terá a vantagem de não correr o risco dos "últimos ultrajes". O Corão proíbe aos seus adeptos adquirir uma mulher cujo marido ainda viva, pois o pecado de adultério é vigorosamente censurado. Por outro lado, ouvi o que o rás dizia quando você lhe foi apresentada: "E ela?", "Sim, é ela", "Então nossa missão está cumprida. Mezzo Morte e Osman Ferradjí ficarão contentes".

- O que significa isso, Savary?

O ancião fez um gesto de quem não sabia.

Apesar do vento, do sol ardente, Angélica, exausta pela posição incomoda, sentada no chão da galera, tentava proteger o rosto contra os raios pungentes. Devia ser um pesadelo aquela captura tão perto do porto. Era injusta demais! Que seu marido, o ressuscitado que ela tanto chorara, estivesse a distância tão pequena e que um destino maligno a desviasse dele outra vez, parecia-lhe aquelas buscas vãs e desgastantes que os fantasmas do sono criam.

De noite as galeras argelinas passaram ao largo de Bône. Angélica, que não estava dormindo e contava as estrelas, adivinhou isso. Seu espírito debateu-se outra vez. Era tolo e terrível demais perdê-lo por tão pouco!

Depois, a esperança renasceu. Afinal de contas, nada estava perdido, apenas adiado. Em Argel, o almirante dos berberes era um renegado de origem italiana, aquele Mezzo Morte de grande reputação. Ela poderia explicar-se com ele, e o marido acorreria para libertá-la, pois ela não duvidava de que ele se tornara influente, senão rico. Adormeceu e imaginou ouvir-lhe o caminhar manso sobre as lajes de um longo vestíbulo deserto. Mas as passadas desiguais não se aproximavam dela. Por mais que ela apurasse o ouvido, ele se afastava, afastava-se sempre, até perder-se entre os ruídos do mar.

Dividida entre a razão e o pesadelo, Angélica não atinava mais com o sentido de suas buscas. A ansiada solução para o enigma do desaparecimento do Conde Joffreyde Peyrac parecia cada vez mais inatingível. Teria a infatigável Marquesa dos Anjos motivo para desanimar?

O amor decuplicava-lhe as forças. Não fora por esse sonho que desdenhara a corte do Rei-Sol, o Grande Rei da França, o mais poderoso soberano do Ocidente? Não fora por essa miragem que vencera a cupidez do cruel e sanguinário Terror do Mediterrâneo? Não fora, enfim, pela esperança inquebrantável que enfrentara com altivez a concupiscência das mais altas personalidades da pirataria no mercado de escravos de Argel? Fora por esse amor que suportara toda a angústia, todo o horror, toda a revolta de mulher bela e cobiçada, caída na armadilha.

Em Angélica, Cativa no Harém uma nova Marquesa dos Anjos viverá surpreendentes aventuras em busca de seu amor. Nas areias do deserto, entre muçulmanos de estranhos costumes e cativos torturados, ela irá se deparar com a armadilha da volúpia...

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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