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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PLANETA LOUCO / Clark Darlton
O PLANETA LOUCO / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PLANETA LOUCO

 

Finalmente chegou a grande hora do pequeno Gucky — e o sargento Harnahan descobre uma coisa inacreditável.

Estamos no ano de 1.983. O conflito entre a Terceira Potência e os mercadores galácticos deslocou-se para o planeta de Goszul, um mundo que se faz de louco para expulsar de vez a frota dos mercadores...

A história da Terceira Potência em poucas palavras:

— 1.971 — O foguete Stardust chega à Lua, e Perry Rhodan descobre a nave exploradora dos arcônidas, que lá realizou um pouso de emergência.

— 1.972 — A Terceira Potência é instalada apesar da resistência conjugada das grandes potências da Terra e repele tentativas de invasão extraterrena.

— 1.975 — Primeira intervenção da Terceira Potência nos acontecimentos galácticos. Perry Rhodan se defronta com os tópsidas no setor de Vega e procura solucionar o mistério galático.

— 1.976 — Perry Rhodan chega ao planeta Peregrino a bordo da Stardust-III, e juntamente com Bell alcança a imortalidade relativa — mas perde mais de quatro anos.

— 1.980 — Perry Rhodan regressa à Terra e luta pela posse de Vênus.

— 1.981 — O ataque do Supercrânio representa a provação mais difícil que a Terceira Potência já experimentou.

— 1.982 — Os mercadores galácticos descobrem a Terra...

 

                                          

 

Os raios de sol que penetravam pelas janelas amplas da grande sala eram refletidos pela superfície da mesa comprida em torno da qual estavam sentados treze homens. Esses homens tinham várias coisas em comum, que revelavam pertencerem eles ao mesmo grupo.

Todos tinham barba espessa, que cobria metade do rosto. Sob as sobrancelhas hirsutas via-se um par de olhos em que havia uma expressão de austeridade misturada com um ligeiro abatimento, e que emitiam um brilho de orgulho disfarçado, que talvez chegasse à presunção. Ainda tinham em comum o grande nariz e os lábios estreitos que se estendiam por cima de um queixo barbudo.

As enormes cabeças assentavam sobre corpos que naquele instante pareciam encolhidos, não revelando a força que costumavam encerrar. Os punhos robustos descansados sobre a mesa pareciam ter perdido a energia que lhes era peculiar.

Eram os antigos donos do mundo que, derrotados, aguardavam o homem que os subjugara.

O patriarca Ragor, que ainda continuava a ser o governador do planeta de Goszul, estava sentado no centro do grupo de treze homens. Tal qual os outros, fugira para o interior do edifício abandonado do governo, quando o flagelo do esquecimento fez com que os nativos se rebelassem, e os comandantes das naves da frota dos saltadores fugissem em pânico, submetendo o planeta de Goszul a uma quarentena de cinqüenta anos.

Ao que tudo indicava, os saltadores, também conhecidos como mercadores galácticos, haviam perdido uma base importante.

Ragor pigarreou.

— Eles nos fazem esperar muito — observou em tom sombrio, procurando disfarçar a impaciência através de uma fingida calma exterior.

— É o direito do vencedor — disse seu vizinho, um gigante de cabelos escuros e maxilares salientes. — Não podemos sair do edifício; temos de esperar. Não nos deixam outra alternativa.

— Em compensação temos tempo para pensar — resmungou Ragor, cerrando os punhos. — Ocuparam o posto de comando de nossos robôs; isso nos deixa indefesos. Somos apenas treze e temos um mundo contra nós.

— Um mundo que dominávamos — murmurou um gigante de cabelos escuros em tom profético. — Que condições nos serão impostas pelos goszuls?

Ninguém respondeu. No corredor ouviram-se passos. A porta foi aberta e três homens entraram na sala, acompanhados por um robô de mais de dois metros de altura que, sem receber qualquer ordem nesse sentido, assumiu seu posto junto à porta.

Os recém-vindos eram muito diferentes dos treze homens que se mantinham à espera. Eram homens como eles, mas distinguiam-se pela pele vermelha. Além disso, faltava neles a barba e o aspecto grosseiro do corpo. Eram esbeltos, quase delicados, embora fossem do mesmo tamanho dos saltadores. Até então pertenciam a uma raça desprezada, a dos nativos daquele mundo, mas de uma hora para outra viram-se transformados nos senhores e pela primeira vez defrontavam-se com os antigos governantes na qualidade de vencedores. Seus rostos eram francos e simpáticos. A alegria pela liberdade recém-conquistada sobrepujava o orgulho da vitória. Os trajes simples davam mostras do estado primitivo de sua civilização, para cujo rebaixamento os antigos dominadores haviam contribuído bastante. Com o auxílio de um exército de robôs submissos os saltadores subjugaram e exploraram o planeta de Goszul, até que um dia surgiu a epidemia que atacou sete dos governantes, colocando-os fora de ação. Os doentes continuavam no hospital, com o rosto coberto de manchas coloridas e a memória apagada. O medo da contaminação fizera com que os demais governantes se reunissem. Mas no momento em que quatro naves estranhas pousaram no planeta e colocaram fora de ação o exército de robôs, não lhes restou outra alternativa senão a capitulação.

As quatro naves continuavam no grande campo de pouso espacial. Eram naves de um tipo que nunca antes havia pousado naquele mundo. Tratava-se de gigantescas esferas com oitocentos e duzentos metros de diâmetro. Foram elas que intervieram na luta.

Ragor fitou os três homens com os olhos semicerrados e não fez menção de levantar-se. Com um movimento indiferente apontou para as cadeiras livres que se encontravam do outro lado da mesa. Sabia que os goszuls eram os vencedores, mas não aceitava a idéia de que os mesmos o tivessem subjugado pessoalmente.

Estava redondamente enganado.

Os três homens continuaram de pé. O velho telepata Enzally, que se encontrava no centro do grupo, investigou os pensamentos dos governantes. Ao lado da resignação encontrou sinais de resistência e de esperança secreta. No momento não pôde constatar no que se baseava essa esperança.

Por enquanto Ralv, chefe da rebelião contra os saltadores e futuro chefe do governo do planeta unido, mantinha-se em atitude de expectativa. Deixou as primeiras palavras por conta de Enzally.

O terceiro homem do grupo não era goszul.

Tinha pele morena, e a altura de sua figura magra excedia a de Enzally e Ralv por mais de dez centímetros. Nos seus olhos não havia o brilho mortiço produzido pelos anos de medo e escravidão; bem ao contrário, os mesmos fulguravam com a consciência da força e do poder e a certeza de uma imensa superioridade mental. Os treze governantes não conheciam o uniforme simples que aquele homem trajava. Nunca o haviam visto naquele planeta.

Só havia uma explicação: aquele homem não era um nativo. Viera numa das quatro naves, pertencendo à raça que havia infligido a derrota aos saltadores.

Ragor chegou à mesma conclusão, que não o deixou muito feliz.

Sentir-se-ia ainda menos feliz se soubesse que se encontrava diante de Perry Rhodan, que tinha bons motivos para não revelar sua identidade. Nem todas as tarefas a serem cumpridas no planeta de Goszul estavam concluídas. Muito embora, ao que tudo indicava, os treze governantes não mantivessem qualquer espécie de contato com os companheiros de raça que haviam fugido para o espaço, preferiu não assumir riscos.

Fez um sinal para Enzally, que se mantinha na expectativa.

— Obrigado; preferimos ficar de pé — disse o telepata, que era o único jamais nascido naquele mundo. — Se aceitarem nossas condições, não demoraremos em chegar a um acordo. Os senhores perderam e estão indefesos. Nem mesmo os robôs lhes prestarão obediência, pois foram reprogramados. Sabem perfeitamente o que isso significa. Daqui em diante obedecerão às nossas ordens, e trabalharão para nós. O resto dos saltadores fugiu com suas naves, deixando-os desamparados. Não pretendemos matá-los, mas vamos isolá-los. Pensamos numa ilha do oceano ocidental, onde passem bastante tempo em um clima saudável. Ali poderão passar o resto dos seus dias num ambiente de paz e tranqüilidade. O regresso ao seu mundo não é possível, já que não possuem nenhuma nave.

Enzally calou-se e olhou para Ragor. Sem que os ex-governantes soubessem, seus pensamentos estavam sendo estudados até as profundezas do subconsciente. Nada ficava oculto ao telepata.

Os treze homens cochicharam entre si. Alguns deles falaram, mas a um gesto de Ragor calaram-se.

— O que será feito dos sete governantes que foram atacados pelo flagelo do esquecimento? — perguntou. — Devemos deixá-los para trás?

— Irão para a ilha com vocês.

— Querem que eles nos contaminem? — disse Ragor indignado. — Se é que a epidemia ainda não chegou à tal da ilha, isso não demorará muito.

Perry Rhodan fez um sinal para Enzally e tomou a palavra.

— Trouxemos um soro, Ragor. A epidemia foi rebaixada ao nível de uma doença inofensiva. Ainda bem que isso só aconteceu depois da fuga dos comandantes dos saltadores. Aplicaremos uma injeção em vocês, e nunca adoecerão. Os sete governantes que encontramos no hospital já sararam. Irão à ilha com vocês.

Ragor lançou um olhar atento para Rhodan.

— Vocês não são deste mundo, não é?

— Não. Meu planeta fica a mais de mil anos-luz daqui.

— Por que intervieram no conflito?

— Porque estamos interessados em que os povos oprimidos alcancem o auto governo. Ou, em outras palavras, ajudamos os goszuls a libertar-se do colonialismo.

— Será que não terão nenhum lucro com isso?

— Teremos, sim, Ragor. Mas não há de pensar que eu lhes conte tudo. O que têm de fazer é apenas responder a uma pergunta: querem submeter-se voluntariamente à decisão do novo governo deste mundo, que lhes concede o exílio?

Antes de responder, Ragor lançou um rápido olhar para os companheiros:

— Se possuíssemos uma nave, poderíamos sair do planeta de Goszul?

Rhodan confirmou com um gesto.

— Se possuíssem, sim; acontece que não possuem.

Mais uma vez Ragor hesitou; mas já era tarde.

Subitamente Enzally sorriu e, dirigindo-se a Rhodan, disse:

— Já sei onde está a nave, senhor. Podemos encerrar a palestra.

Ragor lançou um olhar de perplexidade para o telepata, que sem mais aquela revelava o mais precioso dos seus segredos. Parecia que o mundo acabara de desabar, soterrando suas esperanças. Pretendia conseguir uma pausa, e possivelmente alguns robôs de serviço. Com isso dentro de poucos dias o enorme couraçado que se encontrava no estaleiro escondido nas montanhas poderia decolar. Nesse caso executaria uma operação de retaliação e fugiria para o espaço juntamente com seus companheiros de raça.

E agora...

Enzally parou de sorrir. Com a voz fria disse:

— Obrigado, Ragor, já basta. Estou vendo que nossas intenções foram boas demais. Serão levados à ilha ainda hoje. — Dirigindo-se a Rhodan, prosseguiu: — Pretendiam apoderar-se de um couraçado dos saltadores, destruir o planeta de Goszul e voltar para o setor da Via Láctea de onde vieram. São umas criaturas adoráveis.

— A mentalidade deles não sabe conformar-se com a idéia da derrota, por isso as idéias de Ragor não podem servir de padrão para toda a raça dos saltadores. Tenho certeza de que um dia chegaremos a um acordo com eles. Não será aqui, nem será com estes governantes, mas com outros de sua raça. É preferível encerrarmos este capítulo. Ralv, cumpra sua tarefa. Enzally, vamos embora. Não temos mais nada com o que acontecerá daqui em diante. Com passos firmes Rhodan e Enzally saíram da sala.

Passaram pelo robô imóvel, cujas lentes de cristal estavam rigidamente fixadas sobre os treze saltadores aos quais já obedecera.

E agora os levaria para o exílio.

O planeta de Goszul era o segundo dos sete mundos que gravitavam em torno da estrela 221-Tatlira. Era o nome sob o qual constava nos mapas estelares dos saltadores. Distava 1.012 anos-luz da Terra, sendo desconhecido dos astrônomos do planeta.

Numa ação incruenta, o Exército de Mutantes de Perry Rhodan conseguira reconquistar aquele mundo transformado numa base dos saltadores, devolvendo-o aos seus donos. Os quatro mutantes dirigidos por John Marshall, o telepata, fizeram irromper uma epidemia artificial, que no primeiro estágio fazia surgir manchas na pele e posteriormente parecia atacar o cérebro. As pessoas atacadas pela moléstia perdiam a memória. Naturalmente havia um soro contra a doença, mas os saltadores não sabiam disso.

Dominados de pavor, puseram-se em fuga e deixaram os vinte governantes entregues ao seu destino.

Algumas semanas depois do início da epidemia, seus efeitos cessaram. As pessoas atacadas recuperaram a memória, e o cérebro passou a funcionar melhor que antes. As manchas na pele desapareceram. Mesmo as pessoas que não recebiam a injeção de soro recuperavam a saúde, embora isso demorasse algumas semanas.

Os saltadores que haviam fugido não deixariam de notar isso; Rhodan sabia disso. Mas também sabia do estado de pânico que devia apoderar-se daquela raça tão evoluída no terreno da medicina. Acreditariam que o restabelecimento não passava de um simples acaso, e por algum tempo prefeririam não pisar no planeta de Goszul.

Nesse ponto Rhodan estava enganado, mas soube disso em tempo. No momento estava tão ocupado com os problemas do presente que não tinha tempo para pensar no futuro.

Em algum lugar nas montanhas ficava o estaleiro secreto dos saltadores, onde os robôs de serviço estavam dando os últimos retoques num gigante do espaço como nunca fora construído igual. Pelo que Enzally lera nos pensamentos de Ragor, essa nave, construída segundo os projetos mais recentes dos engenheiros mais capazes dos saltadores, deixava para trás até mesmo as conquistas dos arcônidas.

Rhodan tinha que apossar-se dessa nave.

Só por isso ainda não saíra daquele mundo para retornar à Terra, onde tarefas muito importantes o aguardavam.

 

A conferência de campanha foi realizada na ampla sala de comando da Stardust. A gigantesca esfera espacial de oitocentos metros de diâmetro, cercada pelos cruzadores Terra, Solar System e Centauro, encontrava-se no campo de pouso da Terra dos Deuses, nome que os nativos davam ao continente em que os saltadores haviam instalado suas bases.

Reginald Bell estava sentado ao lado de Perry Rhodan. Seus rebeldes cabelos ruivos cortados à escovinha estavam deitados para trás, mas revelavam uma tendência irresistível de assumir a posição vertical.

Os mutantes John Marshall, Tako Kakuta, Kitai Ishibashi e Tama Yokida estavam um pouco mais afastados, sentados em dois sofás. À sua frente encontravam-se os representantes do governo do planeta de Goszul. Ralv, o chefe da rebelião contra os saltadores, já desempenhava as funções de chefe do governo do mundo recém-libertado. Ao lado dele encontrava-se, quieto e humilde como sempre, o telepata Enzally, um goszul de certa idade. Era o único mutante que o planeta havia produzido. O terceiro representante dos nativos era Geragk, um dos subchefes dos grupos de resistência que se opunham ao domínio dos saltadores e eram dirigidos por Ralv.

Ainda estavam presentes os comandantes dos três cruzadores, que com seus duzentos metros de diâmetro pareciam anões perto da Stardust, mas eram construções de uma perfeição técnica quase inconcebível. Sentado entre o major Nyssen e o major Deringhouse, o capitão MacClears nem se parecia dar conta de sua patente inferior.

— Os vinte governantes já se encontram na ilha e com isso devem estar fora de jogo — principiou Rhodan, lançando um ligeiro olhar para Ralv. — Espero que ninguém os ajude a fugir, nem procure praticar qualquer ato de vingança contra eles. Com isso o  planeta de Goszul está livre e encontra-se nas mãos de seus legítimos donos. Espero que saibam transformá-lo num belo mundo.

Ralv sentiu que essas palavras eram dirigidas a ele. Com um gesto de autoconfiança disse:

— Confie em nós. Saberemos ser gratos, restituindo a liberdade ao nosso povo. E não temos nada a opor a que instalem uma base neste planeta e negociem conosco.

— Nesse caso poderíamos despedir-nos — disse Bell com um gesto grandioso. — Apenas aquela nave enorme dos saltadores...

— Apenas? — interrompeu-o Rhodan em tom enfático. — Essa nave me preocupa bastante. Enzally vigiou os governantes e descobriu que o estaleiro fica nas montanhas, a uns cinqüenta quilômetros daqui. Cerca de trinta robôs e especialistas em robôs trabalham no mesmo. Gozam de independência total, não dependendo de nenhum organismo de controle. O estaleiro é protegido por um contingente de cem robôs de combate, que foram programados, para atacar qualquer coisa que não se pareça com um saltador. Por isso não existe a menor possibilidade de colocá-los fora de ação por meio da desativação de algum posto central. Devem ser dominados e desativados um por um. É um trabalho e tanto.

— Por que faz tanta questão de apoderar-se dessa nave dos saltadores? — perguntou Bell.

— É simples, Bell. Sabemos que é a nave mais moderna que já foi construída. Suas instalações e sua sofisticação técnica ultrapassa qualquer coisa que possamos imaginar. Para nós a civilização arcônida é o padrão que nos serve de guia, mas não se esqueça de que os arcônidas dormiram durante oito mil anos. Isso não aconteceu com os saltadores, que se separaram de seu império. Continuaram a desenvolver sua tecnologia e sob certos aspectos alcançaram uma nítida superioridade sobre os arcônidas. Tenho certeza absoluta de que essa nave representará uma surpresa para todos. Estou curioso; é só isso.

Bell sorriu.

— Será que realmente está apenas curioso?

Rhodan sorriu de volta, mas logo voltou a tornar-se sério.

— Vê-se, portanto, que precisamos dessa nave, nem que seja apenas para examiná-la. Não podemos recorrer à força, pois isso levaria os robôs a destruir a nave quando não tivessem mais nenhuma saída. Não tenho a menor dúvida de que sua programação inclui instruções nesse sentido.

— Como poderemos impedir que ajam assim?

— Devemos usar a surpresa e blefar. Ainda não sei como faremos isso. Antes de mais nada precisamos saber a quantas andamos. Gucky nos dará algumas informações. Está no estaleiro desde hoje de manhã.

As palavras de Rhodan provocaram certa surpresa, pois nenhum dos presentes sabia que o rato-castor havia recebido esse tipo de incumbência.

— Gucky? — gemeu Bell. — Gucky está no estaleiro?

Rhodan fez que sim.

— Quem melhor que nosso amiguinho para executar uma tarefa desse tipo? Primeiro, é o mutante mais perfeito que conhecemos. Além da telepatia domina a telecinésia e a teleportação. Saberá defender-se e colocar-se num lugar seguro sempre que a situação se torne crítica. Além disso, não se parece com um homem; tem o aspecto de um rato superdimensionado. É bem possível que os robôs acreditem terem diante de si um animal inofensivo e nem se interessem por ele.

— Pelo que conheço de Gucky — disse Bell — ele ficará furioso se os robôs o ignorarem.

— Acho que é muito inteligente para tomar uma atitude dessas — objetou Rhodan. — Seja como for, aguardo Gucky de um momento para outro. Sabe que estamos aqui na Stardust, aguardando as informações que ele nos trará.

Um dos oficiais que se encontrava num ponto mais afastado pigarreou.

— Pois não — disse Rhodan, convidando-o a dar sua opinião.

O major Deringhouse, que comandava o cruzador recém-construído Centauro e o número reduzido de caças capazes de desenvolver a velocidade da luz que se encontravam nos seus hangares deu um sorriso um tanto matreiro.

— Permite uma sugestão? Não vejo por que complicar as coisas. A qualquer momento posso colocar os robôs fora de ação, atacando o estaleiro com cinqüenta caças espaciais.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Isso seria um procedimento puramente militarista e pouco inteligente. Um único robô seria suficiente para detonar a carga explosiva que talvez já tenha sido preparada, mandando para os ares o estaleiro e a nave. Precisamos de um estratagema. E o senhor há de reconhecer que nesse terreno conseguimos acumular alguma experiência.

Deringhouse esteve a ponto de responder, mas o sorriso zombeteiro de Bell fez com que preferisse ficar calado. Mais uma vez aquele sujeito ruivo que se encontrava ao lado de Bell parecia saber alguma coisa que não queria contar.

— Quando Gucky deverá voltar? — perguntou John Marshall, o telepata do pequeno grupo de mutantes que já havia atuado no planeta de Goszul. Rhodan deu de ombros.

— Aguardo-o a qualquer momento, mas uma porção de acontecimentos pode retardar seu regresso. Se for necessário, Tako também terá que arriscar o salto para ver por onde anda.

O japonês Tako também era um teleportador. Bastava a força de sua vontade para que se desmaterializasse e voltasse a transformar-se em matéria no local em que escolhesse. Isso acontecia numa fração de tempo, motivo por que Tako podia vencer instantaneamente qualquer distância. Exibiu seu sorriso tranqüilo e humilde e respondeu:

— Se for necessário, poderei ir imediatamente. Quem sabe se Gucky não caiu em alguma armadilha e está precisando de auxílio?

— Vamos esperar mais trinta minutos, Tako — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Só depois disso terminará o prazo que Gucky e eu combinamos. Até lá teremos que dar-lhe uma chance.

Bell lançou um olhar pensativo para as telas apagadas dos aparelhos de controle. Ao que parecia sua mente estava ocupada com um problema e procurava a resposta. Finalmente falou, saindo por completo do tema até então tratado:

— Não sei por que tanto mistério. Bem que poderiam saber quem lhes infligiu a derrota.

— Há vários motivos para que não saibam. Como sabemos, o clã do patriarca Etztak faz muita questão de presentear-nos com seu regime colonial. Uma vez já conseguimos expulsá-lo do sistema solar. Não pense que com isso o assunto está liquidado. Um belo dia voltará, e estou interessado em adiar esse fato o mais que posso. Se acreditar que neste sistema tem diante de si outro inimigo, também muito poderoso, isso lhe dará o que pensar. Dois inimigos num espaço relativamente reduzido representam uma situação bastante crítica. Quando souber que também aqui foi a Terra que lhe estragou os planos, não contará tempo para mobilizar todo o poderio dos saltadores a fim de destruir nosso planeta.

— É verdade — respondeu Bell, captando um olhar encorajador do major Deringhouse que, segundo parecia, também gostaria de conhecer os motivos da atitude de Rhodan. — Mas será que temos motivos para temer os saltadores?

Rhodan esboçou um sorriso frio.

— A superioridade numérica nos esmagaria. Além disso, sempre acho preferível realizar negociações com um inimigo que um dia poderá conduzir a um acordo que assumir a responsabilidade por milhões de mortes. No momento não podemos concretizar nenhuma dessas alternativas, já que Etztak e seus amigos fugiram da terrível epidemia que nem existe. Levará muito tempo para descobrir que a doença não é perigosa.

— E os outros saltadores? — perguntou John Marshall. — Há muitos clãs e todos eles mantêm contato entre si, embora não possuam uma pátria propriamente dita além de suas naves. Será que não voltarão para salvar as instalações técnicas aqui existentes?

— O senhor se esquece da quarentena a que o planeta está submetido — lembrou Rhodan. — Ninguém tem permissão para pousar no planeta de Goszul. Ao menos nenhum saltador. — Seu sorriso aprofundou-se. — Além disso, não acredito que qualquer saltador teria coragem de enfrentar uma doença desconhecida apenas para resgatar alguns robôs, muito embora estes representem um elevado valor material.

— E a nave? — lembrou Bell.

Naquele momento ninguém desconfiava de que Rhodan se esquecera de muita coisa além da nave. Só saberiam disso bem mais tarde...

 

Gucky teve bastante inteligência para pousar a uma boa distância do misterioso estaleiro espacial, em meio à selva montanhosa.

Teve sorte. O salto para o desconhecido levou-o para um planalto pedregoso em que cresciam algumas árvores raquíticas, que lhe proporcionariam abrigo se aparecesse alguém. Pelos seus cálculos o estaleiro não devia ficar a mais de dois ou três quilômetros. Como tivesse preguiça de andar, pretendia vencer essa distância com alguns saltos bem calculados. Quem visse Gucky compreenderia por que não fazia muita questão de andar. Parecia um gigantesco rato com o rabo achatado de um castor.

As grandes orelhas afinavam nas pontas e geralmente se mantinham de pé. O pêlo ruivo era liso e flexível. As perninhas do animal, que tinha mais de um metro de altura, pareciam desajeitadas. Sua inteligência era muito superior à de um homem normal.

Em seu mundo frio, que girava em torno de um sol solitário, era considerado um fenômeno, pois os indivíduos de sua raça possuíam apenas o dom da telecinésia, enquanto Gucky ainda era um telepata e sabia deslocar-se por meio da teleportação.

Agachado sobre as patas traseiras, o rato-castor deixou que seus olhos penetrantes corressem para todos os lados, examinando os detalhes do terreno que oferecia pouca visibilidade. Não captou nenhum pensamento, e isso nem era possível. Um robô não pensa como um ser orgânico. Seus impulsos não podem ser captados, ao menos por um cérebro telepático.

Os raios de sol dardejavam sobre a superfície rochosa. Gucky, que apreciava o frio, começou a transpirar. Para enxergar melhor, subiu e, depois de ter atingido a altura de vinte metros, parou no ar. Ali em cima era mais fresco. O estaleiro devia ficar ao norte. Gucky não viu outra coisa senão encostas rochosas íngremes e grotas entrecortadas. Por que os saltadores haviam escolhido um local desolado como este para construir uma nave? Provavelmente se sentiam seguros por aqui.

Subitamente um relampejo atingiu seus olhos, vindo de longe. Parecia o reflexo de um raio de sol sobre uma superfície de metal polido.

Gucky forçou a vista e reconheceu um robô que a menos de mil metros de distância patrulhava lentamente o terreno. Encontrava-se exatamente na entrada de um dos numerosos vales.

Não era nenhuma coincidência!

O rato-castor fixou a direção e deixou-se descer ao solo. Concentrou-se cuidadosamente sobre uma rocha pontuda que ficava a pequena distância da entrada do vale... e saltou.

No mesmo instante rematerializou-se atrás da rocha, respirou profundamente e saiu a passos balouçantes, como se fosse um coelho gigante radicado nessa área que estivesse à procura de comida. O procedimento não tinha nada de estranhável. Era quase certo que os robôs haviam sido programados no sentido de verem seus inimigos apenas nos goszuls nativos.

O monstro metálico prosseguiu no patrulhamento da entrada do vale que media menos de cinqüenta metros de largura, sem interessar-se por Gucky, para quem o espetáculo representava uma experiência vital. Se o robô não reagisse à sua aproximação, poderia deslocar-se livremente. Era bem verdade que a idéia de não ser levado a sério não era nada agradável, mas em outra oportunidade ele se vingaria.

A menos de trinta metros do robô Gucky ficou sentado, estudando atentamente o inimigo. Os braços angulosos terminavam nos canos em espiral dos mortíferos radiadores energéticos. O rato-castor sabia perfeitamente que os mesmos o volatilizariam numa questão de segundos, se o cérebro positrônico do gigante de mais de dois metros o considerasse como inimigo. Felizmente isso não acontecia. O robô nem sabia o que era um rato-castor. Enquanto Gucky mantivesse uma atitude pacífica, nunca seria identificado como possível inimigo.

A antena encolhida do robô indicava que ele não estava em contato com qualquer central de comando, mas era dirigido por meio de comandos individuais armazenados em seu cérebro. Bastaria aproximar-se dele para desativá-lo e paralisá-lo. Mas isso não era tão simples assim, pois assim que o robô constatasse a presença de inteligência num ser que não se parecesse com um saltador, esboçaria uma reação hostil. Gucky não soube lidar com o problema. Resolveu verificar se o cérebro positrônico o registraria como ser não dotado de inteligência.

Pôs os quatro pés no chão e foi saltitando diretamente para o vigilante silencioso, que prosseguiu na sua ronda. Manteve-se preparado para um salto de teleportação, a fim de poder colocar-se em segurança assim que isso se tornasse necessário.

Se Bell visse seu amiguinho nessa situação, teria soltado uma gargalhada de escárnio. Gucky, o mutante todo-poderoso, transformado num supercoelho! Era uma idéia mais que esquisita. Felizmente Bell não estava por perto e assim não pôde deleitar-se com o espetáculo, que não despertou o menor interesse no robô.

Este simplesmente ignorou Gucky.

O rato-castor teve vontade de recorrer às suas energias telecinéticas para levantá-lo a uma altura de cinqüenta metros e fazê-lo cair ao chão, como já fizera com outros robôs. Mas tinha que ater-se à tarefa que lhe fora confiada por Rhodan. De sua parte também ignorou o robô e, passando junto dele, saltitou vale a dentro.

Assim que tinha passado pelo monstro metálico foi saltitando de costas, para não ser liquidado de surpresa. Mas a precaução revelou-se inútil. O robô achava que se tratava dum animal inofensivo que ia procurar comida no vale, ou se dirigia a alguma das raras fontes existentes naquela área desolada.

O vale logo se abriu, mas continuou seco. Apenas a vegetação mais abundante revelava a maior umidade do solo. Gucky continuou a saltitar até que uma curva o colocasse fora do alcance da visão do robô.

Sentiu-se aliviado. Pôde dedicar sua atenção ao que havia pela frente, e viu que valia a pena.

O vale abriu-se a ponto de se transformar numa bacia de mais de um quilômetro de diâmetro. As encostas rochosas íngremes formavam um obstáculo intransponível para qualquer visitante indesejado. Ninguém poderia entrar ali e, uma vez lá dentro, não conseguiria sair, a não ser que possuísse asas. Havia pavilhões baixos que abrigavam as máquinas e as usinas, mas isso Gucky só percebeu em segunda linha.

A abertura existente na encosta de mais de quinhentos metros ocupou toda sua atenção.

Tinha uma altura de mais de duzentos metros e sua largura era ao menos igual à altura. Uma luz abundante saía da escuridão da montanha, deixando perceber o envoltório metálico reluzente da nave espacial quase concluída, inteiramente oculta das vistas dos curiosos. Se as informações de Rhodan fossem corretas, o túnel que penetrava na montanha devia ter pelo menos oitocentos metros de comprimento.

Os saltadores não poderiam ter escolhido um esconderijo melhor que esse.

Uma fileira de robôs de combate bloqueava a única saída da bacia. Mantinham-se imóveis, de frente para Gucky que, agachado entre algumas moitas, fez de conta que se deleitava com o capim escasso que crescia entre as pedras, sem interessar-se pelos robôs ou pela nave.

Ao que parecia, até mesmo os cérebros positrônicos acreditavam que um vegetariano é uma criatura que não pode fazer mal a ninguém. Mais uma vez Gucky teve de notar, cheio de ressentimento, que não era levado a sério e ninguém via nele um intruso.

Mas de certo modo isso o deixava satisfeito.

Era bem verdade que não poderia recorrer à teleportação, pois os robôs interpretariam tal atividade como um sinal de inteligência e reagiriam de forma adequada. Por isso o rato-castor não teve outra alternativa senão continuar a pastar e aproximar-se lentamente da reluzente linha de defesa.

Talvez conseguisse chegar mesmo à própria nave espacial. Quanto maior o volume de informações que conseguisse levar a Rhodan, mais fácil se tornaria a ação que pretendiam lançar contra o estaleiro.

Saltitou para diante, sem sentir-se muito à vontade.

Cerca de trinta robôs bloqueavam o vale. Como se formassem em semicírculo dirigido para fora, a distância entre um e outro era de cerca de cinco metros. Era um desperdício tremendo, pois o poder defensivo de um robô é enorme. Bastava um deles para defender o vale contra um exército que pretendesse invadi-lo.

Concluía-se que os saltadores davam muita importância àquela nave.

Gucky não teve muito tempo para refletir. Enojado, enfiou o feixe de capim atrás do dente roedor, esperando poder cuspi-lo dali a pouco. Tinha que guardar as aparências. No planeta de Goszul existia um tipo de coelho, e teria que imitar o mesmo.

Gucky não pôde impedir que os pêlos da nuca se arrepiassem à vista das máquinas de guerra, agora tão próximas, que mantinham os radiadores energéticos firmemente apontados para a frente. Era bem possível que os robôs já estivessem há meses no mesmo lugar, mas era evidente que não se importavam com isso. Não tinham a menor idéia de tempo e de espaço quando incumbidos de uma tarefa de expectativa e vigilância. Dali a mil anos ainda estariam no mesmo lugar, se não recebessem qualquer ordem em contrário. Bem, para Gucky tudo isso não importava, desde que não tomassem conhecimento da sua presença. Saltitou mais alguns metros e parou junto a um suculento feixe de capim.

O robô mais próximo, que se encontrava a uns vinte metros de distância, executou um movimento preguiçoso, dirigindo suas lentes cintilantes sobre o intruso. Seus vizinhos não esboçaram qualquer reação.

Gucky teve uma sensação esquisita no estômago, o que não foi devido apenas à deglutição do capim. Reuniu toda a coragem que possuía e pôs-se a devorar maiores quantidades daquela comida repugnante, para conseguir uma semelhança ainda maior com um coelho nativo.

Quem dera que pudesse teleportar-se! Mas com isso poderia estragar os planos de Rhodan. Os robôs saberiam que o estaleiro fora descoberto por seres inteligentes. Reagiriam em conformidade com esse fato, e seria bem possível que destruíssem a nave, se não tivessem outra saída. Gucky tinha certeza de que já tinham conhecimento da fuga dos comandantes dos saltadores.

O sabor do capim era horrível.

O feixe mais próximo encontrava-se exatamente entre os dois robôs postados diante de Gucky. O rato-castor reuniu as últimas energias e foi saltitando em direção ao mesmo. Conteve a respiração, para poder se desmaterializar a qualquer momento. Mas essa medida extrema de salvação teria de ser evitada enquanto isso fosse possível.

O robô mais próximo girou lentamente em sua direção. O braço esquerdo fechou-se num ângulo e apontou exatamente na direção de Gucky, que ainda não se atreveu a respirar e continuou a saltitar em movimentos seguros, procurando atingir a moita de capim que subitamente parecia bastante apetitosa.

Eram segundos de tensão quase insuportável. Será que o robô julgaria conveniente destruir o animal aparentemente inofensivo? Se fosse assim, ele não o faria para matar o tempo, pois um robô não conhece o tédio. Nesse caso a programação incluiria uma proibição de entrar no vale que abrangia todo e qualquer ser vivo.

Mas, por que o robô postado na entrada não agira dessa forma?

O gosto não melhorara nem um pouco, mas Gucky teve a impressão de nunca ter comido nada que fosse mais saboroso. Essa impressão só durou até o momento em que o dente-roedor iniciou sua tentativa inútil de triturar o capim.

O robô dedicou um interesse visível à pastagem de Gucky. Seu braço armado manteve-se estendido, pronto para disparar, mas se tivesse a intenção de destruir o pequeno roedor, já o teria feito. Não havia nenhum fundamento lógico para a demora.

O raciocínio ágil de Gucky logo compreendeu isso. Num gesto heróico engoliu o capim sem mastigar. Seu estômago quis revoltar-se, mas isso não durou muito. Estremecendo por dentro, ignorou o robô que continuava vigilante e continuou a comer.

O cérebro positrônico do guarda metálico registrou o fato: era um ser vivo que não se parecia com um saltador, mas também não se parecia com um goszul ou qualquer outro ser inteligente. Era um animal que não possuía inteligência, pois de outra forma evitaria a vizinhança das máquinas de combate. Não pensa; logo, não é perigoso. Ainda acontece que come capim; logo, é um ser nativo deste mundo. E, como os goszuls são os únicos inimigos que os saltadores têm neste planeta...

A conclusão era evidente: o herbívoro era um ser inofensivo.

Aliviado, Gucky notou que o braço armado se abaixou e o robô voltou a dirigir seu olhar para a entrada do vale. O pior, que era a experiência para valer, havia sido vencido.

Agora não devia precipitar nada.

Guiando-se por essa regra, continuou a pastar tranqüilamente e quase chegou a estourar o estômago. Saltitou em direção ao edifício mais próximo.Sentiu um estranho calafrio nas costas, mas resistiu à tentação de olhar para trás. O que aconteceria se o robô colocasse em funcionamento outro circuito de seu mecanismo e tomasse uma decisão diferente? O rato-castor não se tranqüilizou muito com a idéia de que não sentiria sua morte repentina.

Ignorou a moita de capim mais próxima e continuou a saltar. Com um alívio indescritível dobrou pela quina do edifício alongado, colocando-se fora das vistas do robô.

Soltou um suspiro de alívio.

A entrada do estaleiro escavado na rocha ficava a uns duzentos metros do lugar em que se encontrava. Nesse trecho havia vários pavilhões e objetos empilhados ao ar livre. Eram armações metálicas, peças reluzentes do casco, pequenos andaimes e caixas enormes. Robôs de trabalho com uma programação especial predeterminada moviam-se entre os pavilhões, executando suas tarefas. Do túnel saíam ruídos dos mais diversos tipos, que não permitiam a menor dúvida de que ainda se estava trabalhando na construção da nave.

Os robôs não haviam recebido contra-ordem; por isso concluiriam o trabalho.

Ninguém sabia o que aconteceria depois.

Rhodan não podia assumir o risco de permitir que os robôs saíssem para o espaço com a nave recém-concluída, dirigindo-se para um local de encontro predeterminado.

Gucky sabia disso. Precisava descobrir quando começaria o estágio crítico.

Dez metros à esquerda abriu-se uma porta e um robô de trabalho saiu de um pavilhão. Segurava alguns desenhos, que deviam reproduzir a nave concluída. Não trazia armas como os robôs de combate, que Gucky via em todos os cantos. Mas nem por isso era menos perigoso.

Sentado sobre as patas traseiras, Gucky mastigava uma folha de capim, que parecia representar a própria imagem da bem-aventurança. Os estaleiros, os depósitos, os pavilhões e os robôs — tudo isso não o interessava nem um pouco. Para ele só existia o delicioso capim que encontrara naquele vale.

O robô devia ter chegado à mesma conclusão. Sem tomar conhecimento da presença de Gucky, deslocou-se numa série de movimentos abruptos em direção ao túnel, onde se encontrou com outros robôs, com os quais encetou uma palestra.

“Ainda bem”, pensou Gucky, cuspindo o capim com uma sensação de alívio. Pelo menos desta vez não teve de engoli-lo. Enquanto isso não tirou os olhos do trecho que ia até a entrada do túnel. Infelizmente isso fez com que não prestasse atenção ao que se passava atrás dele.Ouviu passos, mas antes que tivesse tempo de virar-se, uma ponta de bota atingiu-o pelo lado e atirou-o alguns metros para cima. Por um instante Gucky pensou ter quebrado todos os ossos do corpo, especialmente quando aterrizou no chão de rocha e ficou deitado, quase sem fôlego. Estava tão surpreso que nesse momento de perigo não conseguiu teleportar-se para um lugar seguro. Além disso, conseguiu ver quem lhe dera o pontapé.

Era um saltador.

A barba ruiva constituía indício seguro de que não se tratava de um goszul. E o corpo maciço também revelava que pertencia à classe dos mercadores que já dominaram o planeta. Usava botas pretas e calça apertada. Pela capa branca concluía-se que era um cientista. Uma cabeleira desgrenhada cobria sua cabeça.

Murmurou algumas palavras num dialeto que Gucky não entendeu e continuou a andar tranqüilamente, sem interessar-se por sua vítima. Finalmente o rato-castor teve oportunidade de usar suas capacidades telepáticas, que há poucos segundos negligenciara tanto. Se não tivesse procedido assim, teria notado a aproximação do saltador.

— Era só o que faltava, esses bichos andarem pelo vale. — Foi o que o saltador disse em sua língua desconhecida. Falando em intercosmo, acrescentou: — Terei que dar outras instruções aos robôs, senão acabamos tropeçando sobre esses comedores de capim.

Enquanto prosseguia na sua caminhada, Gucky acompanhou seus pensamentos e descobriu que o nome do saltador era Borator e que exercia as funções de diretor-técnico do projeto, sendo o único saltador que se encontrava no local.

Isso tinha suas vantagens. Agora, que passou a prestar atenção aos pensamentos do saltador, não teve a menor dificuldade em seguir e captar os pensamentos do saltador, pois não havia necessidade de classificar e interpretar um fluxo de impulsos. Em todo o vale só havia os pensamentos daquele saltador; o resto era silêncio. Tinha que procurar um esconderijo onde ninguém o perturbasse e pudesse perceber os pensamentos do saltador.

Levantou devagar. Ainda sentia dores no lado. Teve de controlar-se para não vingar-se logo do grosseirão, mas este não perderia por esperar. Aquele saltador ainda se arrependeria amargamente da sua crueldade, foi o que Gucky prometeu a si mesmo para acalmar seu gênio. Faria esse Borator subir para o ar cinqüenta metros e o deixaria pendurado lá um dia inteiro. E depois...

Suas visões de futuro e de vingança foram interrompidas por novos passos. Um robô de trabalho passou junto dele com o olhar estúpido, sem dar-lhe a menor atenção. Aí está, pensou o rato-castor amargurado. Os robôs são mais humanos que os seres inteligentes. Ao menos deixavam-no em paz.

Gucky encontrou um esconderijo seguro atrás de uma pilha de caixas. Ali não teria que temer qualquer surpresa, pois antes que pudessem encontrá-lo teriam de remover a maior parte das caixas, e ele não deixaria de perceber isso, mesmo que estivesse dormindo.

Finalmente teve tempo e tranqüilidade para cuidar do tal do Borator. Com a maior capacidade captou os pensamentos do mesmo, e assim conseguiu “ouvir” o que dizia aos robôs. Não entendia as respostas destes, pois sem um receptor especial Gucky não poderia perceber os impulsos positrônicos emitidos pelos mesmos. Assim mesmo conseguiu descobrir coisas que eram muito importantes para os planos de Rhodan.

Soube, principalmente, que dali a seis dias o gigantesco cruzador espacial guardado no túnel devia estar pronto e em condições de decolar.

Em condições de decolar?

Seria no dia 25 de maio de 1.984 do calendário terrestre. Era um lapso extremamente curto, pois havia muito que fazer. Não podia perder um minuto. Gucky não perdeu tempo. Concentrou-se para a Stardust, que se encontrava a cinqüenta quilômetros dali... e saltou.

Materializou-se bem no colo de Bell.

 

Exatamente vinte horas-luz da estrela 221-Tatlira, doze naves de duzentos metros de comprimento, construídas em formato cilíndrico, saíram do hiperespaço e retornaram ao universo normal.

Havia mais uma nave, que se mantinha um tanto afastada. Media mais cem metros que as outras, mas seu formato também lembrava o de um cilindro arredondado na extremidade. No casco abriam-se vigias redondas e iluminadas, atrás das quais se moviam sombras distorcidas, que assumiam proporções gigantescas. Seriam apenas distorcidas?...

Topthor, o comandante da frota, acomodara o peso de mais de meia tonelada de seu corpo junto aos controles de comando. Seu corpo tinha mais de metro e meio de altura, mas a circunferência do mesmo media mais de cinco metros. Em outras palavras, a largura era igual a altura. O crânio liso era o de um saltador, o que se via pela barba ruiva aparada.

As telas iluminaram-se, retratando o sistema do qual a frota se aproximava à velocidade da luz.

As mãos pesadas de Topthor descansavam sobre uma folha de plástico coberta de caracteres estranhos. Nessa folha estavam os motivos por que mais uma vez teve de imiscuir-se nos problemas alheios. Afinal, era este seu dever... e sua profissão.

É que o clã de Topthor, geralmente conhecido como o clã dos superpesados, assumira na comunidade dos mercadores galácticos o papel dos bombeiros. Não negociavam com mercadorias, mas com a guerra. Sempre que em algum lugar irrompia um incêndio, eram chamados. Além disso, forneciam naves de comboio, mediante pagamento de quantias predeterminadas pelos membros dos clãs interessados.

Nunca Topthor chegara a temer um inimigo, quanto mais fugir dele — com exceção de uma única vez. Foi quando tentou atacar um planeta chamado Terra. Nessa oportunidade suas forças foram quase totalmente destruídas pela nave esférica de Perry Rhodan.

Topthor resolvera que jamais voltaria a lutar contra Perry Rhodan. Não era covarde, mas gostava de viver.

Topthor esboçou um sorriso feroz quando se lembrou de Perry Rhodan. O terrano estava longe e nada tinha que ver com aquilo que estava planejando. No planeta de Goszul se defrontaria com outro inimigo: uma doença. Bastava precaver-se contra a infecção. O resto seria uma tarefa de rotina. Os nativos rebeldes seriam castigados, os robôs e o equipamento técnico contaminado seriam guardados nos porões hermeticamente fechados da nave, e providenciaria para que a nave superavançada fosse levada ao destino.

O planeta de Goszul estava submetido à quarentena. Só em circunstâncias muito especiais alguém poderia pousar nele. E a tarefa que lhe fora confiada representava uma circunstância desse tipo.

Topthor ainda estava sorrindo quando voltou a pegar o escrito e leu o texto lacônico:

 

“Para Topthor, comandante e patriarca do clã dos superpesados. O planeta de Goszul está sob quarentena. Há uma epidemia que produz uma amnésia total. É incurável. Resgatar o equipamento técnico. Os nativos se rebelaram e devem ser punidos. Couraçado construído em segredo, uma vez concluído, será encaminhado para as coordenadas XXM-17. Os governantes e dirigentes do estaleiro devem ser deixados para trás.

Em nome de todos os clãs — Etztak.”

 

Topthor colocou a folha de plástico sobre a mesa. A tela que se estendia acima dela mostrava com toda nitidez o sol pequeno e amarelento de Tatlira, cercado de vários pontos luminosos. Eram os planetas.

Um deles era o planeta de GoszuL.

Inclinou-se para a frente e, com um simples movimento, ligou o comunicador, que o colocaria em contato com a sala de comando das outras naves. Dali a uns trinta segundos outra tela subdividida em doze campos distintos começou a iluminar-se.

Em cada um desses campos surgiu um rosto que o fitava numa atitude de expectativa.

Todos eram saltadores superpesados. Há muitos milênios, quando os saltadores ainda viviam em planetas, não em naves, o clã dos superpesados escolhera um mundo em que a gravitação era muito elevada. Em virtude disso, no curso das gerações surgiram alterações físicas, que facilitavam a adaptação às condições reinantes no novo mundo. Foi assim que surgiu o clã dos superpesados.

Os doze saltadores cujos rostos surgiram na tela usavam barbas aparadas e tinham olhos inteligentes, mas frios e perscrutadores. Os lábios cerrados pareciam traços vermelhos. As centenas de quilos de seus corpos não eram retratadas na tela.

Topthor não pôde reprimir um ligeiro sorriso quando fitou os rostos de seus comandantes. Sabia que não temiam a morte nem o diabo, mas tinham um medo terrível de uma doença incurável. Mas, para falar com franqueza, ele mesmo também não se sentia muito bem. Mas nunca confessaria uma coisa dessas.

— O objetivo está à nossa frente — disse com sua voz retumbante, que já fizera com que muitos patriarcas aumentassem espontaneamente a oferta para a proteção aos seus comboios. — Vocês conhecem a tarefa e sabem que a mesma não é fácil. Antes de mais nada temos de ocupar o estaleiro espacial, para evitar que ele seja atacado ou mesmo destruído pelos nativos. Não sei como esses habitantes primitivos de Goszul poderiam enfrentar cem robôs de combate, mas alguém preveniu Etztak para que não os subestimasse. Só depois de cumprida essa parte poderemos cuidar do resgate do equipamento técnico e dos robôs. — Esboçou um sorriso preguiçoso. — Acho estranho que Etztak não faça muita questão do lucro material. Isso me dá o que pensar.

Um dos doze saltadores gesticulou violentamente, mostrando que apoiava as palavras de Topthor. Realmente a atitude de Etztak era suspeita e dava o que pensar. Topthor fez um sinal ao comandante.

— Pois não, Rangol. O que houve?

— Será que subestimamos os goszuls? Em nossos fichários constam como subdesenvolvidos pacíficos e sem ambições. Sua tecnologia é antiquada e muitíssimo inferior à nossa. Não compreendo por que Etztak teve que fugir...

— Esqueceu-se da epidemia? — lembrou Topthor. — Quando me lembro dela, também não me sinto muito feliz. Pode-se perder a memória.

— Assim mesmo vamos pousar lá? — perguntou outro.

— Recebemos licença especial do conselho do clã. Nossos trajes especiais nos protegerão contra a contaminação. E por enquanto deixaremos sair exclusivamente os robôs, que farão o trabalho mais pesado. Ainda teremos que providenciar para que ninguém consiga sair do sistema.

— Sempre pensei que os goszuls não possuíssem naves espaciais.— E não possuem mesmo. Mas ordens são ordens. Deve haver outras naves, além daquela que vamos buscar. Seja como for, vamos bloquear o sistema e manteremos contato entre nós. Apenas duas das nossas naves pousarão. A de Rangol e a minha.

Rangol não parecia muito satisfeito. A distinção com que fora agraciado não parecia deixá-lo muito alegre, mas manteve-se calado. Era preferível não irritar Topthor.

— Mais alguma pergunta?

Ninguém teve perguntas.

— Muito bem — disse Topthor. — Meu navegador lhes fornecerá as coordenadas que calculou. Daqui a quatro horas nos separaremos. As estações de rádio ficarão permanentemente em recepção. Fim.

A tela de doze campos apagou-se no mesmo instante em que a comunicação foi interrompida. O restante da palestra foi conduzida pelo navegador que se encontrava na sala de telegrafia.

Topthor reclinou-se na poltrona e com os olhos semicerrados contemplou o sistema solar de Tatlira, do qual se aproximava à velocidade da luz.

Com uma certa preocupação perguntou de si para si o que o aguardaria por lá.

 

Quando Gucky contou que chegara a comer capim para convencer os robôs de que era uma criatura inofensiva, Bell irrompeu numa gargalhada homérica. Não conseguiu acalmar-se e provavelmente teria morrido sufocado se tivesse tempo para isso. Acontece que não teve.

Subitamente a voz de Gucky tornou-se aguda e estridente.

— Você acha que gostei disso? Se você não parar logo de se divertir à custa da situação miserável que tive de enfrentar, você vai ver uma coisa, seu monstro ruivo. Então?

O “então” estava tão carregado de expectativa que Bell logo estacou, lembrando-se de situações semelhantes, em que levara a pior. Afinal era um homem normal, não dotado de capacidades telecinéticas. Respirando com dificuldade, parou de rir e disse com a voz ofegante:

— Não tive a intenção de ofendê-lo. E depois? Os robôs caíram nessa, acreditando que você fosse uma espécie de coelho?

Gucky confirmou com o rosto muito sério.

— Mais ou menos. De qualquer maneira consegui atravessar a fileira de guardas e entrar no estaleiro. O projeto está sendo dirigido por um certo Borator. É um saltador.

Era uma surpresa.

— Quer dizer que não teremos que lidar apenas com os robôs — disse Rhodan em tom pensativo. — Isso dificulta a solução do problema, mas não muito. Antes de mais nada teremos que reduzir esse Borator à impotência; só depois disso poderemos pensar em colocar os cento e trinta robôs fora de combate sem chamar a atenção. Acho que conseguiremos isso com o novo radiador de impulsos de reprogramação. Infelizmente a ação do aparelho é apenas individual, isto é, temos que pegar os robôs um por um e dar-lhes outra programação. Se os outros perceberem, e não há a menor dúvida de que perceberão, haverá dificuldades.

— Ainda sou de opinião que devemos lançar um ataque de surpresa com os nossos caças e destruir os robôs — interveio o major Deringhouse.

Rhodan nem sequer deu uma resposta.

E essa resposta não faria o menor sentido, pois naquele instante uma luzinha vermelha acendeu-se junto ao intercomunicador. Ouviu-se um zumbido. E a tela iluminou-se. Nela surgiu o rosto preocupado do tenente Fisher, que estava de plantão na sala de telegrafia.

Rhodan apertou um botão, estabelecendo o contato.

— O que houve, Fisher? É alguma coisa importante? Estamos em conferência e...

— É importante, sim senhor. Nossos rastreadores estruturais registraram transições nas imediações do sistema. Ao que parece, os saltadores que fugiram estão de volta.

Rhodan ficou perplexo por dois segundos, mas logo recuperou o autocontrole.

— Acho que isso não é possível. Fisher. Verifique as coordenadas exatas das transições e seu número. Avise-me assim que houver alguma novidade.

— Sim senhor.

O contato entre a sala de comando e a sala de telegrafia foi mantido. Ao que tudo indicava, Rhodan não estava disposto a perder-se em especulações vazias; por isso Gucky prosseguiu no seu relato. Evidentemente os presentes não lhe dedicavam a mesma atenção. Todos pensavam nas naves espaciais surgidas tão de repente, e que se aproximavam do planeta de Goszul.

Quem seriam? O que queriam?

O tenente Fisher não os deixou na incerteza por muito tempo.

— São treze naves. Comprimento de cerca de duzentos metros e o formato típico das unidades dos saltadores. Saíram do hiperespaço a uma distância aproximada de um dia-luz. Pela intensidade dos abalos conclui-se que executaram um salto de mais de três mil anos-luz. Aproximam-se em formação compacta e à velocidade da luz. Voltarei a entrar em contato com o senhor.

Rhodan fitou os presentes.

— Então são os saltadores! Não compreendo. Será que são os mesmos?

— Não devem ser — disse Bell em tom convicto. — O pessoal de Etztak deve estar farto da lição; não voltará. Além disso, pegaram a doença e não se lembram de nada.

— Acontece que já tiveram tempo de mandar algumas naves de guerra. Mas acredito que ainda não saibam com quem estão lidando. Gostaria de saber o que querem por aqui.

Subitamente Gucky interveio com a voz nervosa e estridente:

— Querem a nave que está para ser concluída. É claro que vem buscar a nave.

Rhodan não conseguiu disfarçar a surpresa.

— Talvez você tenha razão, Gucky. Mas você não disse que de qualquer maneira os robôs enviariam a nave para as coordenadas já fixadas? Estou pensando numa coisa. A nave seria tripulada pelos robôs? Ou será que estes ficariam para trás?

— Não sei. Não tive tempo para descobrir tudo.

— Esse detalhe seria muito interessante. Se os robôs receberam a incumbência de abandonar o planeta de Goszul no couraçado recém-construído, já saberíamos o motivo do surgimento dessa frota. Ela deve impedir que os robôs executem a tarefa.

Os saltadores não querem que a epidemia... não, não havia nenhuma lógica nisso. Se os saltadores supõem que o transmissor da moléstia também se fixa sobre o metal, terão que concluir fatalmente que a nave está contaminada. Não sei por quê, mas acho que há algum bicho escondido em tudo aquilo. Bem que gostaria de saber onde está esse bicho.

— Não gosto de bichos menos ainda que de capim — chiou Gucky em tom confiante — mas estou disposto a colaborar para a boa causa e procurar o bicho.

Rhodan sorriu.

— Isso pode ser fácil, mas também pode ser muito difícil, pois a mentalidade dos saltadores é completamente diferente da nossa. Talvez a verdade nos decepcione quando a descobrirmos. Um momento, a sala de telegrafia está chamando. O que houve, Fisher?

— Captamos sinais de telegrafia. Ainda não foram decifrados, mas se parecem com os dos saltadores. Se não estiverem transmitindo em código, poderei fornecer o texto dentro de dez minutos.

Bell encostou o indicador esquerdo ao nariz, o que era um sinal de que refletia profundamente. Rhodan lançou-lhe um olhar curioso. Gucky exibiu o dente roedor e deu um sorriso de deboche. Para o rato-castor um Bell pensante parecia uma coisa muito engraçada. Os outros mantiveram-se na expectativa.

— Então? — perguntou Rhodan.

Bell levantou os olhos.

— Lembrei-me de uma coisa — anunciou ao auditório que ouvia ansiosamente. — Se é que uma frota dos saltadores se aproxima desse planeta, e se esses saltadores não sabem que estamos aqui, devemos pensar em dar o fora. Resta saber para onde poderíamos ir. Não podemos cogitar de uma transição, pois ela trairia nossa presença. Os hangares do espaçoporto são muito pequenos. Então, o que vamos fazer? Mergulhar na terra?

Os outros ocupantes da sala olharam-se surpresos. Bell acertara em cheio. Estavam por ali, desenvolvendo seus planos, esquecidos de que, dentro de vinte horas o mais tardar, os antigos donos desse mundo estariam de volta para executar seus planos ainda desconhecidos. Os saltadores ainda estavam acreditando que tudo aquilo não passara duma epidemia que infetara os nativos. E Rhodan pretendia fazer com que continuassem nessa crença.

— Os três cruzadores cabem nos hangares subterrâneos — disse Rhodan. — Gostaria de tê-los por perto, mesmo que os saltadores resolvam pousar. Teremos meios de evitar que verifiquem o que há nos hangares. Qualquer indicação da presença da epidemia será suficiente para isso. Resta a Stardust. Para ela não existe nenhum hangar. E se fosse para o espaço, os instrumentos dos saltadores logo constatariam sua presença — por alguns segundos Rhodan concentrou-se nas suas reflexões. Subitamente olhou para Ralv. — Conhece seu planeta? — o goszul confirmou com um lento aceno de cabeça. — Muito bem. Qual é a profundidade dos seus mares?

O rosto de Ralv não parecia muito inteligente, pois não compreendia por que Rhodan estava interessado em conhecer a profundidade dos mares. Mas Bell já havia compreendido.

— Quer deitar a Stardust no oceano? — perguntou espantado. — É uma idéia simples que nunca me teria ocorrido. Ótimo. Assim poderei dedicar-me à pesquisa submarina. Sempre tive vontade de fazer isso.

— Você não terá tempo para isso — disse Rhodan.

Ralv confabulou com Enzally e Geragk.

— A trinta quilômetros da costa ocidental começa o grande fosso. Sua profundidade média é de três mil metros.

— É exatamente do que precisamos — confirmou Rhodan. — Se a Stardust estiver coberta por uma camada de água de dois quilômetros de espessura, ninguém conseguirá localizá-la. E para a tripulação é indiferente que a nave seja cercada pela água ou pelo espaço vazio.

Gucky atravessou a sala a passos balouçantes e plantou-se diante de Rhodan. O dente roedor parecia brilhar numa atitude provocadora, mas os olhos castanhos de cão pareciam exprimir a fidelidade e a ternura de sempre.

— Será que sou um rato da água? — piou em tom recriminador.

Rhodan esboçou um sorriso condescendente.

— Pela sua cauda achatada poderíamos ser levados a concluir que seu habitat é a água — disse em tom irônico. — Aliás, é de admirar que você venha de um mundo em que quase não existe água. Bem, vou tranqüilizá-lo. Ninguém disse que você mergulhará junto com a Stardust. Preciso de você na superfície.

Bell interrompeu-o.

— O que vamos fazer? Os três cruzadores serão escondidos nos hangares subterrâneos, e a Stardust ficará embaixo da água. Até aí muito bem. Mas o que acontecerá conosco?

— Conosco? — Rhodan exibiu um sorriso franco.

Parecia divertir-se a valer, o que deixou Bell ainda mais aborrecido. Também Deringhouse, Nyssen e MacClears pareciam não ver motivo para alegrar-se pelo simples fato de que, por assim dizer, teriam de bater em retirada.

Apenas Enzally, Marshall e Gucky, que eram telepatas, sorriram como que por comando.

— O que acontecerá conosco? — prosseguiu Rhodan. — É muito simples, meus caros. Nós nos faremos de loucos.

Mal os cruzadores Solar System, Terra e Centauro haviam desaparecido nos gigantescos pavilhões subterrâneos existentes embaixo do campo de pouso, o tenente Fisher veio com uma nova notícia que não deixou que o nervosismo esfriasse.

— Outra novidade. A frota se divide. Ainda estão a quinze horas-luz, mas já se dividem. Ao que parece querem bloquear todo o sistema.

Rhodan, que ouviu a notícia por meio de um pequeno aparelho embutido na pulseira, esperou alguns segundos antes de responder. Encontrava-se numa das extremidades do campo de pouso, olhando como as portas camufladas dos hangares se fechavam lentamente.

Os cruzadores haviam desaparecido da superfície do planeta, e alguns robôs reprogramados dos saltadores foram colocados nos controles. Quem quisesse abrir o hangar, teria que entender-se com eles.

— Diga ao major Deringhouse que me mande um bom piloto em um caça espacial.

Quando a Stardust estivesse no fundo do oceano, não seria possível acompanhar os movimentos da frota inimiga. No entanto, Rhodan não pretendia deixar entregues ao acaso os acontecimentos que se aproximavam. Ao que tudo indicava, sua suposição de que a frota dos saltadores iria pousar em formação compacta não se realizaria.

Dali a um minuto, uma abertura relativamente pequena abriu-se no envoltório da Stardust. Um torpedo esguio saiu por ela e pousou a poucos metros de Rhodan. A carlinga abriu-se e um rosto masculino ainda jovem contemplou Rhodan com um sorriso de expectativa.

— O sargento Harnahan apresentando-se para a missão especial.

Rhodan retribuiu o sorriso.

— As coisas não serão nada fáceis para o senhor, sargento. Mantenha contato pelo rádio com o tenente Fisher. Observe a frota dos saltadores e mantenha-nos informados sobre sua movimentação. Permaneça no espaço, evitando qualquer encontro com os saltadores. É muito importante que ninguém desconfie da sua presença. O senhor será nosso olho, Harnahan, pois nossos instrumentos de observação estarão cegos. Muitas felicidades.

— Obrigado — respondeu o sargento, fechando a carlinga. Dali a um segundo o campo antigravitacional fez com que o caça disparasse para o alto. Pouco depois Harnahan ligou os propulsores e num instante desapareceu na atmosfera azul.

Rhodan seguiu-o com os olhos e sentiu-se um pouco melhor. Os caças espaciais, pequenos e pouco numerosos, eram foguetes que desenvolviam a velocidade da luz e só podiam abrigar um piloto. Seu armamento consistia num canhão de impulsos rigidamente montado na proa e numa instalação para a criação de campos protetores. A cabine pressurizada possuía equipamento de condicionamento de ar e uma minúscula comporta de ar. As pequenas asas do aparelho de proa pontuda permitiam vôos na atmosfera, isso se o piloto não preferisse utilizar o equipamento antigravitacional, que fora acrescentado recentemente.

Alguns dos caças ainda possuíam equipamentos de observação ultra-sensíveis. Era o caso do aparelho do sargento Harnahan.

Bell aproximou-se. Viu que Rhodan olhava para cima e seguiu seu exemplo. Depois de algum tempo sacudiu a cabeça.

— Você acaba abrindo um buraco no ar de tanto olhar, meu caro. Harnahan já se encontra a muitos quilômetros de distância e não o ouvirá mais se você chamar. Acho que devemos cuidar da Stardust. Está na hora de fazê-la desaparecer.O comando da nave esférica foi confiado ao major Nyssen, que logo a levou ao lugar indicado, situado a cerca de trinta quilômetros da costa. Dentro de poucos minutos fez o monstro mergulhar nas ondas do oceano. A precária ligação pelo rádio mantida com Rhodan representava o único contato com o mundo exterior, que foi preparado febrilmente para entrar em cena.

Entraria em cena para apresentar uma comédia, que tinha um fundo muito sério.

Rhodan distribuiu os papéis.

— Gucky vai assumir a direção do comando que se encarregará do estaleiro. O teleportador Tako Kakuta e o telecineta Tama Yokida irão com ele. Levem o novo aparelho e tratem de paralisar os robôs. As novas instruções podem esperar. Eu mesmo providenciarei essa parte. Ralv e seus homens receberão instruções de Marshall, que já sabe o que deve fazer. Não sabemos quais são os planos dos saltadores. Até ignoramos se pretendem pousar. Por isso devemos estar preparados. Ficarão admirados ao notar o que pode acontecer quando a população de um planeta perde a memória — e com ela o medo.

— Será a moléstia de novo? — perguntou Kitai Ishibashi, o sugestor do Exército de Mutantes.

— Não é bem isso — disse Rhodan com um sorriso. — Seria muito complicado e levaria muito tempo. Desta vez temos de agir depressa, pois dentro de dez horas os saltadores poderão estar aqui. Marshall pedirá a Ralv e seus homens que apliquem uma tatuagem em cerca de dez mil goszuls e...

— Uma tatuagem? — disse Bell, respirando com dificuldade.

— Isso mesmo — confirmou Rhodan. — O líquido que será usado é inofensivo mas, uma vez aplicado na pele, faz com que dentro de uma hora a pele apresente lindas manchas. Até parece que a pessoa caiu numa lata de tinta. Foi mais ou menos o aspecto que tiveram os nativos quando apanharam a doença. Se as pessoas pintadas se fizerem de doidas, a impressão causada será perfeita. Kitai providenciará para que os goszuls sejam bons artistas.

O sugestor japonês sorriu.

— É a coisa mais fácil deste mundo. Os saltadores ficarão admirados ao verem do que é capaz um homem sem memória.

Podia mesmo contar sua vantagem. Como sugestor que era, podia impor sua vontade aos goszuls, ajudando-os a representar o seu papel. Se fosse necessário, os goszuls desempenhariam o papel de artistas sem saberem.

O major Deringhouse olhou pela janela do edifício de um pavimento em que se haviam instalado. O sol já se encontrava junto ao horizonte e não demoraria a desaparecer.

Os saltadores deviam chegar ao raiar do dia.

Suspirou.

— O que devo fazer?

Rhodan lançou-lhe um olhar ligeiro.

— É possível que o senhor não tenha nada a fazer. Isso depende da evolução dos acontecimentos, especialmente dos planos que os saltadores pretendem executar e o risco que estão dispostos a assumir. O senhor dispõe de cinco caças espaciais bem escondidos nas montanhas mais próximas e de cinco pilotos. Com isso o senhor não pode enfrentar as naves dos saltadores, mas sim uma expedição que os mesmos resolvam colocar no planeta. Aguarde minhas ordens; em hipótese alguma deve agir por conta própria.

Bell empertigou-se.

— E eu? O que é que eu vou fazer?

— Sinto decepcioná-lo — disse Rhodan. — Você ficará comigo, e perto de mim provavelmente não acontecerá muita coisa.

— Quer dizer que mais uma vez vou ficar no quartel-general — resmungou Bell, contrariado. — Enquanto os outros vivem aventuras e saem da batalha com a auréola de heróis, nós ficamos mofando por aqui. Vamos ficar mesmo por aqui? — de repente parecia muito preocupado. — Não venha me dizer que vamos ficar no campo de pouso. O que acontecerá se os saltadores pousarem e vierem até aqui?

— Nesse caso você terá sua aventura — disse Rhodan com um sorriso amável.

— Vamos dar o fora — disse Gucky, lançando um olhar convidativo para Tako.

Tama, o telecineta, levantou-se. Como não soubesse executar a teleportação, dependia da carona de Gucky ou de Tako.

— Tenham cuidado — recomendou Rhodan e deu a Tako uma pequena caixa metálica em forma de cubo, na qual havia vários botões e escalas. — Peguem os robôs um por um. — Fez um sinal para Gucky: — Não devem desconfiar de nada, senão darão o alarma.

— Não se preocupe. Agiremos que nem os ratos — chilreou Gucky.

Bell sorriu.

— Para você isso não deve ser nada difícil.

Gucky lançou-lhe um olhar de desprezo antes de segurar a mão de Tako e Tama. Subitamente uma parede reluzente parecia interpor-se entre eles e os outros membros do grupo, e logo desapareceram.

No mesmo instante materializaram-se nas montanhas, atrás de uma pilha de caixas.

Rhodan fez sinal para que Marshall se aproximasse.

— Inicie imediatamente o seu trabalho. Ralv está informado. Se os saltadores pousarem em outro ponto do planeta, o azar será nosso, mas dificilmente isso acontecerá. A única coisa que lhes interessa é este continente. Afinal, este espaçoporto é o único que existe no planeta de Goszul.

Marshall confirmou com um aceno de cabeça e retirou-se. Um carro que já o aguardava levou-o, juntamente com seu equipamento, à cidade portuária não muito distante, onde Ralv já o esperava com seu grupo de homens dedicados.

As únicas pessoas que ficaram para trás foram Rhodan, Bell, Deringhouse e Kitai, o sugestor, que só mais tarde seguiria Marshall.

— E agora? — perguntou Deringhouse, entediado. — Será que vamos criar raízes aqui?

— Não — respondeu Rhodan. — Só ficaremos aqui até que os saltadores pousem.

 

— Estava escurecendo quando Gucky e seus dois companheiros materializaram-se junto à pilha de caixas. Felizmente não havia ninguém por perto. Correram para trás das caixas e esconderam-se. Por enquanto estavam em segurança.

— Será que trabalham de noite? — cochichou Tama.

Aquele ambiente estranho deixava-o apavorado. Tinha a impressão de ser observado constantemente por olhos invisíveis.

— Os robôs não conhecem cansaço — esclareceu o rato-castor. — Tenho certeza de que Borator não faz nenhuma pausa. Sabe o que aconteceu no planeta de Goszul e fará o possível para colocar-se em segurança. A nave se enquadra perfeitamente em seus planos, que não são difíceis de adivinhar.

— Você acha que pretende fugir nela?

— Naturalmente. Fique quieto, ouço alguém que se aproxima — aguardou alguns segundos e cochichou: — É o saltador. Estou captando seus pensamentos. Ainda não está dormindo.

Os três transformaram-se em sombras imóveis agachadas atrás das caixas. Gucky perscrutou a escuridão.

“Mais cinco dias”, pensou Borator num misto de satisfação e impaciência. “Aí terá chegado a hora. Malditos patriarcas! Deixaram-me aqui, esperando que contraísse a doença e esquecesse que estou construindo uma nave para eles. Estão redondamente enganados. Se acreditam que entregarei isto conforme o figurino estão fazendo um cálculo errado. A doença não chegou até aqui. Logo, posso levar alguns robôs de combate e alguns especialistas. Não há perigo... ficarão admirados... que baixeza...”

Satisfeito, Gucky sorriu. Não havia motivo para preocupar-se: a suposição de que dali a cinco dias a nave fosse dirigir-se para as coordenadas preestabelecidas não tinha fundamento. Borator pretendia fazer um negócio todo seu. Talvez pretendesse mesmo usar a nave para fundar um novo clã.

Aos cochichos informou os companheiros e acrescentou:

— Borator vai para a cama. Talvez consiga descobrir mais alguma coisa. Poderíamos deixar que concluísse tranqüilamente a sua obra, mas infelizmente não temos tempo. Quando os saltadores pousarem, o estaleiro deverá estar em nosso poder. Esperem aqui. Vou sondar a situação.

Era uma expressão ensinada por Bell. Havia várias, mas esta ao menos era publicável.

Os dois japoneses não se sentiram muito à vontade ao saberem que ficariam sós naquele ambiente desconhecido. Prometeram que em hipótese alguma sairiam do lugar. Face a isso, Gucky teleportou-se tranqüilamente atrás de Borator.

O saltador estava dobrando a quina de um depósito; passando por alguns robôs que patrulhavam a área, dirigiu-se à pequena casa que lhe servia de residência, situada em local um pouco distante. Gucky julgou preferível não pôr mais uma vez à prova a indiferença dos robôs diante dos coelhos. Teleportou-se diretamente para a casa, onde aguardou o saltador na sombra de algumas moitas ressequidas.

Borator pensava ininterruptamente enquanto atravessava a área fronteira iluminada pelas lâmpadas.

Pensava numa porção de coisas, menos nos planos que pretendia executar. Despreocupado, mas dominado pela impaciência, foi caminhando, sem desconfiar de que seus pensamentos estavam sendo captados. Passou a poucos metros de Gucky, abriu a porta do bangalô e acendeu a luz. A luminosidade atingiu a moita em que Gucky estava escondido. Mas Borator só pensava numa coisa: dormir. Estava cansado.

“Ainda bem”, pensou ligeiramente, “que os robôs não sabem o que é cansaço. Quem sabe se não conseguiriam colocar a nave em condições de decolar no prazo de quatro dias.”

Gucky aguardou impaciente. Concentrando-se muito, quase chegava a enxergar através dos olhos de Borator, vendo o que este fazia: Uma refeição ligeira, um chuveiro frio e a cama.

Os pensamentos tornaram-se cada vez mais confusos até resvalarem para o irreal.

Borator estava dormindo.

Gucky não perdeu mais tempo. Preferiu não usar suas faculdades especiais. Como qualquer outra criatura, entrou pela janela aberta e desceu cautelosamente para o soalho da casa. Borator roncava, fazendo um barulho terrível, que para o rato-castor vinha a calhar. Antes de acordar o saltador tinha que tomar algumas precauções. Teve a impressão de ter ouvido um ruído no corredor.

Será que Borator arranjara um robô particular de vigilância?

A porta estava apenas encostada. Gucky esgueirou-se pela penumbra. Por uma fresta de porta a luz penetrou no corredor, refletindo-se nas costas metálicas do robô, que se mantinha imóvel.

Gucky segurou firmemente o radiador de impulsos. O novo instrumento seria posto à prova. Tomara que fosse bom. Sem mover-se, apontou diretamente para a parte traseira do crânio do monstro e comprimiu o botão. Deixou-o nessa posição exatamente cinco segundos, depois voltou a soltá-lo.

Se o negócio estivesse funcionando, o robô devia estar desativado. Não reagiria mais e, a qualquer momento, poderia ser reprogramado sem o menor problema. Não poderia intervir mais nos acontecimentos.

E quem poderia intervir senão Borator?

Antes de cuidar do saltador, Gucky precisava ter certeza de que seu tratamento fora coroado de êxito.

Segurando firmemente o aparelho, dirigiu-se para o corredor e plantou-se bem à frente do robô. Contemplou suas lentes amortecidas e procurou descobrir qualquer sinal de vida nas mesmas. Mas o cérebro positrônico não registrou sua presença. O robô não reagiu.

Muito satisfeito, Gucky resolveu cuidar de Borator.

Naquele mesmo instante notou que o saltador não estava roncando mais. Reforçou sua potência de recepção telepática a fim de captar os pensamentos de Borator. Era isso mesmo. O saltador acabara de acordar e estava desconfiado. Pretendia verificar o que estava havendo. Pelo que Gucky pôde constatar, estava armado com um radiador energético.

Era claro que o rato-castor poderia colocar-se em segurança através da teleportação, mas isso seria contrário à sua natureza e representaria um perigo, pois o saltador poderia ver nisso uma advertência e tomar medidas adequadas.

A luz acendeu-se. Borator surgiu na porta e seus olhos piscaram ao contemplar a cena que se oferecia diante dele. Seu robô estava imóvel no meio do corredor, e diante do monstro estava sentado o bicho no qual hoje dera um pontapé. O que estava segurando nas patas? Uma caixa? Desde quando um animal tem inteligência suficiente para penetrar numa casa com uma caixa nas patas?

Borator formulou tantas perguntas que se esqueceu de agir. Foi o que Gucky fez por ele.

Uma força irresistível tirou a pistola de radiações da mão do saltador e fez com que ela flutuasse em direção ao teto, onde se acomodou no canto superior, apontando o cano para Borator, que acompanhou o fenômeno com os olhos arregalados. Os fragmentos confusos de idéias que Gucky conseguiu captar revelavam que começava a duvidar da sua sanidade mental. Bem, essa impressão podia ser reforçada.

Amargurado, Gucky lembrou-se do pontapé que levara e resolveu unir o útil ao agradável. Borator nem compreendeu o que estava acontecendo quando subitamente perdeu o apoio dos pés. Depois de executar um giro de noventa graus ficou pendurado na horizontal, acima do chão, sem conseguir mover-se. Numa fascinação desesperada contemplou o brilho emitido pelo dente roedor do “coelho” e, com o que ainda lhe restava de raciocínio, refletiu se o mesmo poderia ser responsável pelas coisas incompreensíveis que estavam acontecendo.

Devia ser assim, pois o animal saltitou bem por baixo dele e pôs-se a rasgar metodicamente a coberta, transformando-a em tiras, que foram amarradas umas às outras, formando uma corda. Enquanto isso a estranha caixa metálica foi colocada no chão.

Gucky voltou para junto de Borator e começou a amarrar o mesmo segundo todas as regras da arte. Isso não representou nenhum problema para ele, pois o saltador continuava a flutuar um metro acima do chão.

Enquanto isso, o robô manteve-se imóvel, como se não tivesse nada com isso, o que de certa forma não deixava de ser verdade.

A corda foi enrolada em torno de Borator. Gucky teve a cautela de deixar livre um pedaço de corda, a fim de segurar o saltador. Depois bateu amistosamente na parte traseira do robô, enfiou a caixa embaixo de um dos braços, a pistola de radiações, que desceu lentamente, embaixo do outro, e saiu caminhando tranqüilamente.

Borator seguiu-o como um balão. Parecia seguro apenas pela corda que Gucky tinha na mão. Os fluxos de energia telecinética emitidos pelo rato-castor deixaram-no duro, mas Gucky tinha certeza de que o pavor que o saltador sentia bastava para produzir esse efeito.

Tako e Tama quase morreram de susto quando viram o pacote flutuar em sua direção. Gucky segurava-se na corda, como se receasse ser arrastado para longe. O dente roedor brilhava de contentamento.

— Este está bem guardado — chilreou satisfeito. — Tama o vigiará. Enquanto isso Tako e eu inutilizaremos os robôs.

Borator baixou ao solo onde permaneceu imóvel. Mantinha os olhos fechados.

— Desmaiou. É uma pena. Ainda terei tempo de ocupar-me com ele. Não durma, Tama.

— O nervosismo não me deixaria dormir — protestou o telecineta diante da suspeita. — Não demorem muito.

— São noventa e nove robôs. Isso não pode ser liquidado de um instante para outro.

Gucky segurou a mão de Tako... e os dois desapareceram.

Tama, que não se sentia muito bem, ficou para trás; e também o saltador, que naquele momento não sentia coisa alguma.

O primeiro robô de combate não representou nenhum problema. Estava postado junto do maior dos depósitos e formava o início de uma fileira bastante espalhada. Gucky e Tako conseguiram aproximar-se a poucos metros sem serem vistos. Ainda bem que as lentes do robô estavam dirigidas para a saída do vale, pois ninguém pensava que pudesse haver um inimigo no interior do mesmo.

Rhodan os avisara de que o alcance do aparelho ainda era limitado; sua eficiência só era garantida num raio de trinta metros. Mas havia uma vantagem. A atuação de cada robô era independente da dos outros, mas orientavam-se pelos atos dos demais. Se um deles deixasse Gucky passar sem problemas, o guarda mais próximo concluiria que Gucky não representava nenhum perigo. Face a isso sua vigilância seria reduzida.

Foi nesse fato que Gucky baseou seus planos.

— Fique aqui — cochichou para Tako quando estavam parados na sombra do depósito. — Daqui você vê tudo. Se houver algo de imprevisto, teleporte para junto de Tama. Providencie para que o saltador seja levado para junto de Rhodan. Depois traga Tama. Ninguém deverá preocupar-se comigo. Saberei cuidar de mim.

Tama segurou-o pela mão.

— Não vejo o que poderia acontecer. Afinal, tenho o radiador. Com ele posso inutilizar qualquer...

— Você não vai fazer nada disso — interrompeu-o Gucky. — Se usarmos o radiador, até o mais estúpido dos robôs saberá o que está acontecendo. Se nos limitarmos a teleportar na semi-escuridão, desaparecendo sem mais aquela, talvez pensem que somos fantasmas. De qualquer maneira, não saberão o que fazer. Tenha paciência! Conseguiremos.

Os arcos voltaicos esparsos lançavam uma luz débil sobre o terreno cheio de obstáculos. Era claro que as armaduras reluzentes dos robôs eram mais fácil de ser percebida que o pêlo ruivo de Gucky, que. até parecia uma camuflagem especialmente feita para a oportunidade.

Como já se disse, o primeiro robô não representou nenhum problema.

Com um ligeiro feixe de radiações, Gucky transformou-o numa estátua inútil. Ficou parado aguardando novos impulsos, que não surgiram.

A mesma coisa aconteceu com o segundo robô, com o terceiro e com os demais que estavam espalhados pela área do estaleiro, esperando que acontecesse alguma coisa. Quando aconteceu, não o perceberam mais.

Em menos de trinta minutos Gucky colocou fora de ação cinqüenta robôs de combate. Era a metade. Além de mais cinqüenta robôs de combate havia os trinta trabalhadores que, segundo supunha com toda razão, estariam no interior do estaleiro, trabalhando a toda potência na conclusão da nave.

— Vamos cuidar da fila de guardas postados na entrada do vale. Infelizmente a distância entre um e outro é de apenas cinco metros. Mas descobri um jeito de pô-los a dormir.

Colocaram-se em posição e o rato-castor iniciou seu trabalho. Vindo de trás, aproximou-se da fila de guardas, cuidando para não ser visto. Isso não era muito difícil, pois no local a escuridão era muito maior que no estaleiro.

Até a metade da fileira tudo correu bem. Mas no momento em que Gucky estava aplicando seu tratamento ao robô número 15, o número 16 virou-se pesadamente e dirigiu o raio do holofote embutido na testa para a fonte do ruído que devia ter “ouvido”.

De um instante para outro Gucky viu-se banhado em luz.

Numa fração de segundo o robô constatou que era o mesmo animal que vira durante o dia e que, portanto, devia ser inofensivo. Acontecia que segurava uma caixinha brilhante entre as patas, e a lente de cristal da mesma estava apontada de forma bastante suspeita para o robô vizinho.

O animal devia ser dotado de inteligência; logo, era um inimigo.

A reação do robô foi instantânea, mas o raio energético fulminante só atingiu o chão ressequido e o capim crestado pelo sol.

Gucky materializou junto a Tako, que estava duro de pavor.

— Tivemos azar — cochichou para o japonês. — Tomara que não dêem o alarma.

Os primeiros quinze robôs da fila não se interessaram pelo que estava acontecendo. Mantiveram-se imóveis e apáticos, enquanto os demais ligaram os holofotes e puseram-se a examinar o terreno. Não encontraram nada, mas isso não os tranqüilizou. De qualquer maneira, nenhum deles fez menção de sair do lugar.

— Não posso aparecer mais por ali — murmurou Gucky, decepcionado, mas logo assobiou baixinho. — Tako, afinal sou um telecineta — era uma afirmativa chocante, e Tako reagiu de forma adequada.

— Todo mundo sabe disso. E daí?

— Ainda não compreendeu? Posso fazer o nosso instrumento, o tal do radiador de impulso, sair por aí sozinho. Os robôs são estúpidos; limitam sua busca ao solo. Acontece que esta caixa sabe voar. Usarei o controle remoto para narcotizá-los. Como é que não me lembrei disso antes!

— A necessidade estimula a criatividade — comentou Tako.

Admirado, viu como Gucky lidava com a situação.

O próprio Gucky não fez nada. Agachado na sombra do depósito, mantinha os olhos fitos na caixinha brilhante, que subitamente perdeu o peso e, deslocando-se alguns metros acima do solo, foi-se aproximando da fileira de guardas.

Repentinamente o número 16 suspendeu as buscas e ficou reduzido à imobilidade. O vizinho logo o imitou. Não demorou cinco minutos para que toda a fileira de robôs de combate estivesse transformada num grupo de inofensivas estátuas metálicas que já não possuíam vida própria. Numa tranqüilidade estóica aguardariam o momento em que alguém lhes concedesse uma nova programação e uma nova vida.

Nem que demorasse mil anos.

Gucky trouxe o aparelho de volta. Pediu a Tako que não saísse do lugar e no mesmo instante desapareceu. Dali a um minuto, quando voltou, a entrada do vale também estava livre de guardas.

— Ainda faltam dezenove que estão no estaleiro. Não teremos dificuldade em liquidá-los. Por enquanto não mexeremos nos robôs especializados. Queremos que terminem a construção da nave. Vamos embora! É o último round!

Já era meia-noite quando Gucky conseguiu terminar o trabalho. Noventa e nove robôs haviam sido reduzidos à inatividade. Apesar de todos os esforços não conseguiu encontrar o último deles. Em algum ponto da área ainda havia uma dessas perigosas máquinas. Mas o tempo era muito precioso para que se pudessem gastar algumas horas na busca.

Os robôs de trabalho não se deixaram perturbar pelos acontecimentos. Sem preocupar-se com nada, executavam suas tarefas, esforçando-se para manter-se dentro do prazo fixado por Borator, o diretor do projeto.

Não seria Gucky que iria impedi-los.Tama suspirou aliviado quando Tako e Gucky voltaram. Durante uma hora tivera que ouvir o falatório de Borator, que despertara do desmaio. No princípio o saltador proferiu ameaças absurdas, passando depois a formular ofertas tentadoras em troca da libertação. Tama preferiu não responder, para evitar que o saltador descobrisse sua identidade. Que Borator quebrasse a cabeça para descobrir quem pusera as mãos nele.

Quando o saltador viu Gucky, calou-se abruptamente. Provavelmente sua consciência o acusava por causa do pontapé.

— Podemos dar o fora — disse o rato-castor, ocultando a preocupação causada pelo robô que ainda se mantinha em algum lugar, aguardando a oportunidade de lutar por seus chefes. — O resto ficará por conta de Rhodan. Tako, você vai cuidar de Tama. Ainda bem que não tivemos necessidade de lançar mão dele. Eu me incumbirei de Borator. Já conhecemos as coordenadas do salto: A sala de conferências de Rhodan no espaçoporto.

Fizeram os preparativos.

De um instante para outro o lugar em que se encontravam ficou vazio. Só a grama pisada dava testemunho dos seres corpóreos que ali estiveram há pouco e agora pareciam dissolvidos no ar.

 

Ralv e Enzally não tiveram a menor dificuldade em reunir no mesmo dia mais de cinco mil goszuls.

Todos eles se declararam dispostos a desempenhar o papel que lhes fora destinado. Os preparativos não consumiram muito tempo. Depois disso os nativos “infeccionados” foram colocados em veículos especiais e levados ao espaçoporto, onde foram alojados nos extensos edifícios da administração a fim de prepararem-se para a entrada em cena.

Nesse meio tempo chegaram Gucky, os dois japoneses e o prisioneiro. Com isso os planos de Rhodan modificaram-se um pouco. Mandou que John Marshall, Enzally e duzentos elementos “contaminados” fossem até o vale em que ficava o estaleiro. Ali aguardariam até que os saltadores chegassem — se é que chegariam. O sugestor Kitai submetera-os a tratamento, incutindo em sua mente o que deviam fazer. Os telepatas John Marshall e Enzally cuidariam para que tudo desse certo.

Faltavam seis horas para a chegada dos saltadores.

O sargento Harnahan ainda não dera nenhuma notícia. Foi o que o tenente Fisher transmitiu da Stardust, quando Rhodan entrou em contato com ele. De resto tudo estava em ordem, e era muito interessante observar a vida nas profundezas do mar. Havia alguns animais muito interessantes, para os quais a pressão da água...

Rhodan não estava interessado nas formas de vida existentes nas camadas mais profundas do mar e mandou que Fisher avisasse assim que chegasse alguma mensagem de Harnahan. E interrompeu o contato.

Onde estaria Harnahan?

 

Numa aceleração tremenda, totalmente compensada pelos campos energéticos, o pequeno caça avançou pelo espaço. O planeta de Goszul mergulhou com uma velocidade inacreditável no negrume cósmico. Poderia se dizer que caía no abismo. Em torno dele as inúmeras estrelas brilhavam, enquanto as galáxias distantes, cuja luz levara milhões de anos para chegar ali, emitiam uma fraca luminosidade.

Mais uma vez Harn, que era o nome pelo qual os conhecidos chamavam Harnahan, experimentou a sensação excitante da solidão absoluta em meio ao espaço. Nem por isso deixou de examinar todos os detalhes que observava ao seu redor e de absorvê-los em sua mente. Aliás, sua missão era exatamente esta.

O planeta Goszul transformou-se numa estrela reluzente, iluminada em cheio por seu sol. Harn modificou ligeiramente sua rota para colocar-se na sombra do planeta. Se surgisse alguma emergência isso não adiantaria muito, mas sempre concorria para tranqüilizá-lo.

Os saltadores deviam encontrar-se a várias horas-luz de distância. Seria inútil ligar os instrumentos naquela hora. Devia procurar uma posição favorável, que lhe permitisse uma boa observação. Também era importante que não pudesse ser descoberto com muita facilidade.

Tirou do bolso o mapa especial que Rhodan lhe havia dado. O mesmo continha uma representação esquemática do sistema no momento em que se encontravam.

Logo teve a atenção despertada para o quarto planeta. Devia possuir ao menos cinqüenta luas pequenas, que circulavam em torno dele nas órbitas mais variadas.

À primeira vista, Harn achou que esse sistema de pequenas proporções não era nada simpático.

Voltou a corrigir a rota e, desenvolvendo uma velocidade próxima à da luz, correu velozmente em direção ao novo objetivo.

Dali a menos de uma hora teve que desacelerar a nave, para não colidir com uma das pequenas luas. O sistema podia ser comparado com uma mistura de anéis de Saturno com o círculo de asteróides. Os fragmentos de um antigo planeta gêmeo, ou de uma lua maior, circulavam a esmo em torno do quarto planeta. Não formavam um círculo ordenado como os fragmentos da antiga lua de Saturno, mas também não descreviam órbitas em torno do sol como o círculo de asteróides. Mantinham-se junto ao astro de que provinham.

Não era fácil orientar-se naquele setor do espaço.

Pelos seus cálculos a frota dos saltadores devia encontrar-se a dez horas-luz. Havia tempo de sobra para dar uma olhada por ali, procurando um bom esconderijo.

Muitos dos fragmentos tinham menos de um quilômetro de diâmetro, enquanto outros chegavam a cinqüenta quilômetros. Manobrando cautelosamente, conduziu o pequeno foguete em meio à confusão dos fragmentos que se deslocavam lentamente, gozando em cheio a satisfação de ser o único ser vivo naquela desolação.

Já retirara as placas protetoras de metal, de modo que a carlinga deixava livre a visão. Realizava um vôo puramente visual, sem instrumentos. A pequena nave reagia prontamente à menor pressão dos dedos. A cabine era apertada, mas o excelente equipamento de condicionamento de ar fazia com que a permanência nela se tornasse suportável.

Harn tomou um tablete energético das reações de emergência e bebeu um gole de água. O suprimento de oxigênio e de alimentos bastava para três meses, o que evidentemente era uma simples precaução. Mas também proporcionava uma tranqüilidade que não era de desprezar.

Uma lua relativamente grande aproximou-se de lado. Sua superfície irregular e entrecortada mostrava extensas cadeias de montanhas e vales profundos, nos quais nunca penetrava a luz do sol distante nem os reflexos débeis do planeta. Pelos cálculos de Harn, seu diâmetro devia ser de cerca de oitenta quilômetros; seu tamanho correspondia ao de um respeitável asteróide.

Se mais tarde alguém perguntasse a Harnahan por que escolhera justamente essa lua como ponto de observação, receberia as respostas mais contraditórias. Ora diria que foi por causa da conformação favorável da superfície, que oferecia ótimos esconderijos, e de outras vezes afirmaria de pés juntos que um sentimento inexplicável literalmente o havia arrastado para baixo. De qualquer maneira, a escolha de Harnahan não poderia ter sido mais feliz.

O sargento deu duas voltas em torno da lua antes de descobrir uma cadeia de montanhas apropriadas aos seus propósitos.

Lentamente e com a maior cautela foi dirigindo o caça para a superfície e pousou no cume achatado de uma montanha relativamente elevada, que excedia as outras por algumas centenas de metros. Era um platô que permitia a visão para todos os lados e, em virtude da acentuada curvatura da superfície daquela lua, deixava livre um setor de mais de setenta por cento do céu. E não era tudo.

No centro do pequeno platô havia uma depressão. Seu tamanho era exatamente o necessário para abrigar o caça espacial. Se Harn se desse ao trabalho de colocar cuidadosamente algumas rochas sobre o aparelho, ninguém descobriria o foguete, mesmo que passasse a vinte metros de altura.

Harn examinou cuidadosamente o terreno antes que manobrasse a nave para a depressão, mediante o campo gravitacional ativado a uma potência mínima. Uma vez lá, atingiu a posição de repouso. A carlinga mal e mal sobressaía da abertura pouco profunda.

O gravímetro indicava 0,01g. Era muito pouco. Harn teria que agir com cautela para não executar um movimento precipitado, que faria com que ultrapassasse a velocidade de fuga, passando a circular em torno da lua como se fosse um satélite dela.

Olhou para o relógio. Estava na hora de instalar-se com um certo conforto.

Com um movimento rápido, fechou o capacete de seu traje pressurizado. Com algum esforço, enfiou-se no pequeno compartimento do solo da cabina, que servia de comporta de ar. Não levou nenhuma arma. Para quê. Por ali não podia haver ninguém que pudesse ameaçá-lo. Além disso, precisava conservar as mãos livres, pois não seria nada fácil empilhar a massa ainda respeitável das rochas, leves como uma penugem, em torno da carlinga e por cima do corpo da nave.

Não era a primeira vez que Harn se encontrava no espaço, e nem mesmo a gravitação reduzida da lua o impressionava. Mas desta vez as coisas eram diferentes. Mal saiu de baixo do foguete e levantou-se, o cume da montanha começou a afundar diante dele como se o tivesse afastado com um pontapé. Subiu quase cinqüenta metros e deu uma cambalhota lenta. O céu girou em torno dele e por um instante terrível perdeu o senso de orientação e acreditou estar caindo nas profundezas do Universo. Com alguns movimentos bem calculados reduziu seu movimento de rotação. A superfície da lua voltou a situar-se bem embaixo dele e aproximou-se lentamente. Estava caindo.

A menos de duzentos metros do foguete pousou suavemente na encosta da montanha. Segurou-se instintivamente numa rocha. Dali a pouco riu. Foi um riso alegre e despreocupado. O riso de um menino que conseguiu pregar uma peça a alguém.

Visando o cume da montanha, empurrou-se cautelosamente. A uns três metros do solo subiu encosta acima como um projétil e logo se viu sobre o platô. Aterrizou junto ao foguete.

Não tinha mais a menor dúvida de que conseguiria deslocar-se ordenadamente sobre a superfície do planeta. Era apenas uma questão de hábito e adaptação.

Havia rochas em quantidade. Harn pegou-as uma por uma e colocou-as sobre o foguete, de tal forma que só a cúpula sobressaía acima delas. Era praticamente impossível que a mesma fosse descoberta por alguém que se encontrasse no espaço. Por outro lado, Harn tinha uma oportunidade única de inspecionar todo o sistema, pois o lento movimento de rotação da lua possibilitava a visão para todos os lados. E não haveria a menor dificuldade em decolar numa questão de segundos, pois os blocos de pedra não representavam nenhum acréscimo de carga para os potentes propulsores da nave. Deslizariam de cima dela e cairiam na lua.

Harn olhou para o relógio. Ainda dispunha pelo menos de cinco horas antes que chegasse o momento crítico. Talvez fosse conveniente entrar em contato com a Stardust para informar Fisher sobre o ponto em que resolvera instalar-se. Mas não havia pressa.

Não seria preferível aproveitar a chance única de ver um mundo estranho e desabitado, onde andar devia ser um prazer enorme?

Por um instante pensou em pegar a pistola de radiações que se encontrava na nave. O recuo da mesma lhe permitiria corrigir a velocidade e a direção dos saltos. Mas desistiu do seu intento. Mesmo que se enganasse nos seus cálculos, nada lhe poderia acontecer. A gravitação era tão reduzida que nem mesmo a queda mais profunda poderia produzir qualquer ferimento.

Lançou mais um olhar para o foguete bem camuflado e, com um ligeiro impulso, disparou obliquamente para o céu negro, formando um astro independente, praticamente libertado de qualquer gravitação que o prendesse a um outro mundo. Calculara o salto de maneira a atravessar o vale que separava a montanha dos cumes mais próximos, um pouco mais baixos. Bem embaixo passaram rochas íngremes e grotas entrecortadas. Não seria nada agradável pousar ali, mas um único impulso bastaria para colocá-lo em segurança.

O ligeiro temor revelou-se infundado. O vôo fora tão bem calculado que pousou são e salvo no cume da montanha mais próxima.

Aqui o panorama não era muito diferente daquele que se descortinava da primeira montanha. Deu mais dois saltos, o último dos quais fez com que ele avançasse mais de trezentos metros em linha reta, e chegou à planície. Durante dez minutos contentou-se em subir simplesmente na vertical e, criando coragem, empurrava-se cada vez com mais força.

Pelos seus cálculos alcançou uma altura recorde de cento e cinqüenta metros antes que começasse a descer lentamente. Depois procurou quebrar o recorde mundial em salto a distância, o que não foi nada difícil. Numa parábola esticada atingiu a marca dos quinhentos metros, o que não era de desprezar. Quando contasse a façanha aos colegas, estes se roeriam de inveja ou o chamariam de mentiroso.

As tentativas levaram-no para junto de uma cadeira de montanhas que chamava a atenção pela encosta lisa, que se apresentava como uma parede. Devia ter uns dois quilômetros de altura. Depois de um exame cuidadoso, Harn constatou algumas saliências na encosta, motivo por que decidiu que, para coroar sua aventura, venceria este obstáculo e, uma vez atingidos os píncaros da encosta, realizaria um longo vôo.

A coisa não foi tão simples como ele imaginara. Depois do impulso subiu quase na vertical, mas não conseguiu aproximar-se do paredão o suficiente para encontrar um apoio. Quando a força do impulso cessou, foi descendo com a encosta quase ao alcance da mão. A experiência nos ensina muita coisa. A segunda tentativa fez com que ele pousasse sobre uma estreita faixa de rocha que sobressaía do paredão cem metros acima da planície. Se estivesse nessa situação numa montanha da Terra, Harn se agacharia e esperaria que os guardas montanheses viessem resgatá-lo. Mas aqui as coisas eram diferentes. Olhou para a terrível profundeza e não sentiu a menor tontura.

Acima dele o paredão não era tão liso como acreditara. Dali a cinqüenta metros havia uma saliência. Fixou-a e saltou. Seus dedos agarraram-se a rocha nua e sem o menor esforço conseguiram levantar o corpo.

Outro salto.

Em menos de trinta minutos chegou ao cume. O panorama ultrapassou todas as perspectivas. Não havia nenhuma atmosfera que pudesse turvar os horizontes. As pontas das montanhas que afundavam atrás da curvatura pareciam tão próximas que se tinha a impressão de poder alcançá-las num único salto. Dois quilômetros abaixo de Harn estendia-se a grande planície. Se desejasse, poderia realizar um velho sonho da juventude, saltando para lá. Quantas vezes não desejara isso quando, depois de escalar uma montanha à custa de muito esforço e suor, via os vales e os lagos estenderem-se lá embaixo. Agora poderia fazê-lo, se quisesse. Do outro lado da planície viu uma montanha. Ficava longe para quem quisesse andar. Mas Harn voaria.

Harn sentiu-se tomado por uma espécie de embriaguez. Com um grito de alegria empurrou-se vigorosamente e deslizou a pequena distância dos cumes, que eram pouco acidentados. Mas não eram muito largos. Do outro lado a encosta não era tão íngreme, mas em compensação estava entrecortada de rochas e grotas.

Subitamente as montanhas terminaram num paredão.

Harn aproximou-se cautelosamente e olhou para baixo. Tinha a impressão de que a bacia que se estendia abaixo dele ficava em nível mais baixo que a planície da qual viera, mas talvez fosse uma simples impressão causada pelas encostas quase verticais que cercavam a depressão quase por completo.

Harn ficou uns dez minutos junto ao precipício, desfrutando a vista que na Terra lhe daria ao menos um calafrio. Finalmente resolveu realizar o velho sonho.

Abriu os braços e tomou ligeiro impulso. Empurrou-se na beira do abismo e como um passarinho foi planando para o nada.

Começou a cair aos poucos. Bem atrás dele o paredão foi deslizando para cima, enquanto ele mesmo ia descendo numa queda sempre mais vertical, em direção ao fundo da bacia, que se aproximava lentamente.

Demorou muito, muito mesmo até que os pés tocassem o chão. Fizeram-no com uma elegância que teria impressionado qualquer observador. Harn já adquirira alguma experiência em assumir qualquer posição que desejasse durante a queda muito lenta.

Estava quase no meio da bacia, um pouco mais próximo à cadeia de montanhas. O chão era liso e plano. À direita via-se um setor da grande planície, através da qual acabara de saltar.

Mas a montanha que se encontrava diante dele era mais interessante. Era uma bola de formato regular e de pouca altura. O topo era arredondado, lembrando a proa de uma nave espacial. De resto a montanha era lisa, sem apresentar saliência. Chegava a dar a impressão de ter sido trabalhada artificialmente; é claro que essa idéia não passava de rematada tolice. Ninguém poderia viver aqui, e ninguém se daria ao trabalho de modificar o formato de uma montanha.

Depois de um exame mais atento, viu alguma coisa regular no pé da elevação piramidal. Ficava bem no centro. Era quadrado, como se fosse uma porta.

Seria uma porta que conduzia para o interior da rocha? Harn chamou a si mesmo de idiota e efetuou o primeiro salto, contendo a força do impulso. Percorreu menos de trinta metros antes de pousar no solo.

A porta continuava no mesmo lugar!

Na verdade, não era nenhuma porta. Parecia antes uma chapa de metal incrustada no paredão.

Mais um salto. Aquela porta maluca ainda se encontrava a cem metros. Harn respirou profundamente, lembrou-se vagamente de que seu suprimento de oxigênio dava para mais três horas, e saltou pela última vez.

Pousou bem na frente da chapa de metal.

Diante da chapa, três degraus penetravam montanha adentro. Terminavam diante da porta.

Na soleira da porta havia uma esfera que brilhava em todas as cores do arco-íris.

— Seja bem-vindo, Harnahan — disse alguma coisa no cérebro de Harn. — Esperei muito por você.

 

Topthor não manteve contato pelo rádio com as onze naves de sua frota, pois não quis assumir qualquer risco. O alcance das ondas audiovisuais era bastante limitado, de maneira que não havia perigo de que alguém pudesse ouvi-los.

— Falta meia hora — disse Topthor, cumprimentando o rosto de Rangol que surgiu na tela. — Ali reduziremos a velocidade. Voaremos diretamente para o espaçoporto do planeta Goszul e pousaremos lá. O que vamos fazer depois depende das circunstâncias.

— Por que não cuidamos em primeiro lugar do estaleiro? Afinal, temos as coordenadas.

— A nave ainda não está pronta e não vai fugir. A direção do projeto está a cargo de um certo Borator. Dizem que é um elemento de confiança. Bem, nas circunstâncias atuais isso não quer dizer muita coisa.

Surgiu uma pausa prolongada, durante a qual cada um dos interlocutores estava mergulhado em seus pensamentos, que diferiam bastante. A união só surgiria no momento em que o perigo se tornasse agudo.

O planeta Goszul cresceu, enquanto a velocidade das duas naves diminuía rapidamente. Enquanto isso, conforme sabia Topthor, as onze naves restantes circulavam em torno do sistema, cuidando para que ninguém saísse dele... ou penetrasse nele.

Poucos minutos depois, a linha costeira do continente que os nativos chamavam de Terra dos Deuses saiu da sombra do planeta, penetrando na zona iluminada pelos raios refulgentes do sol. Um novo dia estava começando lá embaixo.

Topthor fez um sinal para Rangol.

— Estamos chegando em boa hora. Não faço a menor idéia do que os nativos poderão ter feito com o planeta sem dono, mas será preferível agirmos com cautela. Se a epidemia se alastrou ainda mais teremos que lidar com gente louca, talvez com rebeldes. Mas seja como for, teremos que desincumbir-nos de nossa tarefa.

— Será que não podemos ser contaminados?

— Em hipótese alguma. Antes de mais nada vamos desembarcar robôs, que serão trancados nos compartimentos especiais juntamente com o material que for resgatado. Depois serão expostos ao vácuo. Acho que nem mesmo a mais resistente das bactérias sobreviverá a isso.

— É uma boa idéia — disse Rangol. — Não posso imaginar um desinfetante mais eficiente que o espaço cósmico.

— Dificilmente haverá — confirmou Topthor. — Atenção, daqui a pouco vamos pousar. Pelo que vejo o espaçoporto parece estar vazio. Não há ninguém por ali.

As duas naves baixaram lentamente sobre o campo de pouso abandonado e finalmente tocaram o solo. Topthor teve a impressão de que toda vida se extinguira no planeta de Goszul. A grande área vazia estendeu-se diante de seus olhos, que a examinavam atentamente. Também nos edifícios que margeavam o campo de pouso não parecia haver o menor resquício de vida. Ao leste, o sol surgiu por cima das colinas, mergulhando as últimas sombras numa luz ofuscante. O colosso superpesado, acomodado junto aos controles da Top I, afastou as preocupações com um simples gesto.

— Faremos sair cinqüenta robôs de trabalho e igual número de robôs de combate — disse, dirigindo-se a Rangol. Ligou o intercomunicador para entrar em contato com os postos de comando da nave. — Talvez os goszuls se tenham recolhido às montanhas. É estranho que não haja nenhum robô de vigilância.

Os oficiais de plantão responderam ao chamado. Sem tirar os olhos dos edifícios distantes, Topthor ordenou:

— Vamos colocar em terra cinqüenta robôs de trabalho e igual número de máquinas de combate destinadas à proteção dos mesmos. Utilizem a escotilha de carga que já foi preparada. Rangol, assuma o telecomando dos trabalhadores, Eu cuidarei do contingente de proteção.

Dali a dez minutos cem robôs pesados atravessaram a passos retumbantes as rampas e pisaram na superfície do planeta contaminado, no qual não parecia existir mais nenhuma vida. Agruparam-se em duas unidades e puseram-se em marcha. Seus destinos eram os edifícios da administração e os postos de controle dos robôs estacionados no planeta.

Como um enorme toco, Topthor estava sentado na poltrona disforme, acompanhando a ação. Através do aparelho de tele direção assumiu o controle direto dos robôs de combate. Não queria que uma eventual decisão ficasse a cargo dos cérebros positrônicos.

Por enquanto não aconteceu nada. A surpresa de Rhodan ainda se faria esperar.

Quando o exército teleguiado havia percorrido aproximadamente metade do caminho, alguma coisa começou a mover-se entre as árvores raquíticas plantadas diante dos edifícios. Topthor logo percebeu. Eram goszuls, os nativos desse mundo. Reconheceu-os pelo catálogo ao qual recorrera para informar-se sobre o mundo em que teria de ser executada a tarefa.

Uma tela amplificadora permitiu-lhe ver ainda mais.

Verdadeiras massas de gente saíram das portas bem abertas e corriam em direção aos robôs, como se quisessem derrubá-los.

Por dois segundos Topthor ficou perplexo, mas depois viu alguma coisa que fez um calafrio passar por suas costas largas. Nos rostos dos goszuls viam-se os sinais inconfundíveis da terrível epidemia. Manchas vermelhas e azuis espalhavam-se pelas bochechas, pela testa e pelo pescoço. Alguns dos nativos estavam sem camisa. Seus peitos pareciam caixas de tintas.

As mãos de Topthor tremeram quando verificou o tele controle dos robôs de combate. Era um caráter sem escrúpulos, que não recuava diante de nada, mas a idéia de usar robôs contra um bando de selvagens desarmados causava-lhe repugnância. Além disso, as leis de seu clã não permitiam tal procedimento.

Mas acabou assustando-se.

Formando uma frente ampla, os robôs de combate que os saltadores haviam deixado no planeta avançaram atrás dos goszuls. Seus radiadores energéticos encontravam-se em posição horizontal, prontos para disparar. No primeiro instante tinha-se a impressão de que tangiam diante de si os goszuls, que naquele instante alcançaram a formação de combate de Topthor, e passaram por elas, correndo em direção às duas naves pousadas. Dentro de mais alguns minutos alcançaram-nas e começaram a dançar em torno delas com uma terrível gritaria.

Topthor sentiu-se abalado. Então era isso que acontecia com seres dotados de alguma inteligência que perdem a memória. Não sabiam mais o que vinha a ser uma nave espacial, ignoravam o perigo que a mesma podia representar. Parecia um bando de cegos que corria para a desgraça.

A mão esquerda, que já se encontrava sobre os botões dos radiadores da nave, recuou com um ligeiro tremor. Não. Topthor não atiraria contra um grupo de seres indefesos. Estava disposto a enfrentar qualquer inimigo de igual para igual e, sempre que pudesse, o destruiria, mas atacar seres indefesos, doentes... isso não!

Rhodan suspirou aliviado no seu esconderijo. Fosse quem fosse esse Topthor, naquele instante fizera com que o juízo a seu respeito fosse favorável. Era um inimigo, e Rhodan tinha contas a ajustar com ele, mas não era nenhum monstro que se compraz em derramar o sangue de seres inocentes.

Topthor não sabia que acabara de salvar sua vida.

Voltou a dedicar sua atenção aos robôs e perguntou de si para si o que teria acontecido com as unidades deixadas no planeta.

Será que a moléstia os afetara? Até parecia que era assim, pois não havia explicação para seu estranho comportamento. Topthor não poderia saber que todos os robôs existentes no planeta de Goszul haviam sido reprogramados, a fim de transformar-se em servos fiéis de Perry Rhodan.

Aliás, nem sabia quem era seu inimigo. Supunha que Rhodan se encontrasse na Terra, um planeta situado a 1.012 anos-luz, e um belo dia pretendia ajustar contas com ele. Pelo que pensava, aqui só estava enfrentando o flagelo do esquecimento. Acontece que os próprios robôs passaram a atacá-lo.

E o fizeram com uma precisão espantosa.

A primeira salva energética foi tão surpreendente que Topthor não reagiu com a necessária rapidez. Antes que pudesse ordenar ao grupo de cinqüenta robôs que ativasse os campos protetores energéticos, metade do mesmo já se derretera sob o fogo contínuo dos atacantes. Obedecendo ao seu comando, os que restavam defenderam-se desesperadamente, mas nada puderam fazer face à superioridade do inimigo. Um campo energético atrás do outro sucumbiu sob os disparos dos radiadores, e com eles os respectivos robôs.

Dentro de cinco minutos a companhia foi destruída. Nada aconteceu aos robôs de trabalho.

Havia nisso uma contradição que deu o que pensar a Topthor.

Se é que as unidades de robôs contaminadas do planeta de Goszul haviam perdido o juízo positrônico, se não sabiam mais o que estavam fazendo, como se explicava que destruíam apenas os robôs de combate? Por que não atacavam os trabalhadores? Ainda deviam possuir uma memória.

Ou estariam sendo dirigidos por alguém?

Mas por quem...?

Topthor percebeu que pela primeira vez em sua longa vida algo como o medo começou a apossar-se dele. Era um medo terrível e indefinido, para o qual não encontrava explicação.

Transmitiu aos robôs de trabalho o comando de retornar à nave.

Os cinqüenta colossos obedeceram. Fizeram meia-volta e puseram-se em marcha de volta para a nave. Mas não foram longe. Os robôs de combate foram mais rápidos. Bloquearam sua retirada e com seus corpos robustos empurraram-nos para a periferia do campo de pouso.

Topthor teve que assistir inerme ao aprisionamento dos seus trabalhadores. Nunca esqueceria o espetáculo.

Os olhos muito arregalados de Rangol contemplaram-no da tela. A cor morena de sua pele cedera lugar a um cinza-sujo. A ponta da barba tremia.

— O que é isso, Topthor? Como podia acontecer...?

— Não sei! — respondeu Topthor laconicamente e fitou os goszuls, que continuavam no seu berreiro, dançando em torno das naves e sacudindo os braços, como se estivessem cumprimentando um grupo de deuses vindo do céu. — Não sei mesmo. Os robôs também devem ter enlouquecido. Como estarão as coisas no estaleiro?

— Será que vale a pena resgatar máquinas loucas? — perguntou Rangol.

Topthor não respondeu. Por algum tempo continuou a contemplar a multidão maluca que se comprimia entre as naves, lançou um olhar para os edifícios, onde os últimos robôs estavam desaparecendo entre as árvores, e ligou o telecomunicador.

— Preparar ambas as naves para a decolagem. Devemos salvar pelo menos o cruzador que se encontra nas montanhas. Em hipótese alguma deve cair em mãos estranhas. Oportunamente serão informados sobre as respectivas coordenadas. Decolaremos dentro de trinta segundos com o antígravo, para que os nativos não sejam machucados.

Tão silenciosamente como tinham vindo, as duas naves voltaram a subir.

Lá embaixo, no campo de pouso, os cinco mil goszuls berravam que nem uns malucos e agitavam os braços. Parecia um bando de loucos, mas naquele instante os homens de Ralv não estavam representando.

Estavam satisfeitos de verdade.

A repentina retirada deixou Rhodan surpreso.

— Será que a força de elite dos saltadores foge tão depressa? — disse admirado, procurando compreender o procedimento do inimigo. — Devem ter um medo terrível da doença, principalmente porque acreditam que a mesma também ataca os robôs.

— Seria uma tolice rematada afirmar que um cérebro positrônico... — principiou Bell em tom professoral, mas logo se calou. Olhou para Rhodan com uma expressão não muito inteligente. — Não venha me dizer que você pensa que os saltadores acreditam numa coisa dessas.

— Parece que sim, não acha?

Bell mergulhou em reflexões. Enquanto isso Rhodan pôs-se a mexer no seu minúsculo aparelho de rádio.

— Alô, Marshall. Conte a qualquer momento com o aparecimento dos saltadores. Provavelmente serão apenas duas naves. Pelo que deduzimos das mensagens que conseguimos captar, trata-se de nosso velho amigo Topthor e de um certo Rangol. Estão poupando os nativos, mas provavelmente usarão todos os recursos contra os robôs para apoderar-se da nave. Para eles vale mais que todos os robôs do planeta de Goszul.

— Estamos preparados — respondeu o telepata. — Os robôs de combate aqui estacionados foram reprogramados de acordo com suas indicações. Agora são nossos. Também Borator, que neste meio tempo chegou aqui, desempenha seu papel com toda arte.

— Que papel que nada — respondeu Rhodan. — Kitai influenciou o saltador, fazendo dele um excelente aliado. Borator acredita que age por sua livre e espontânea vontade. Topthor ficará admirado quando se encontrar com ele. Mais uma coisa, Marshall. Todo mundo tem que fazer de conta que está trabalhando sob as ordens dos saltadores. Perderam a memória, mas estão concluindo a construção da nave. A falta de lógica dos acontecimentos acabará por confundir Topthor.

— Tomara.

— Não tenha a menor dúvida — asseverou Rhodan e desligou. Refletiu por um instante e chamou a Stardust.

— Alô, Fisher. Tudo em ordem? Como vão seus animais submarinos?

— Ficam nadando em torno das escotilhas, fazendo como se quisessem entrar. Infelizmente não temos permissão para dar um passeio no fundo do mar, mas...

— A proibição continua de pé. Já há alguma notícia de Harnahan?

— Por enquanto não deu sinal de vida.

— Não compreendo. Será que a camada de água é muito espessa e as ondas, intencionalmente expedidas a baixa potência, não podem penetrar nela? Deve haver alguma explicação para o silêncio de nosso caça espacial.

— Harnahan é um homem de confiança e...

— Avise-me assim que der alguma notícia — interrompeu Rhodan e suspendeu o contato.

O dispositivo automático ligaria seu aparelho assim que Fisher chamasse.

Rhodan dirigiu-se ao major Deringhouse.

— Que tipo de pessoa é o sargento Harnahan, Deringhouse?

O major arregalou os olhos.

— O que quer dizer com isso?

— Bem, pode-se confiar nele? É um homem frio e objetivo, um sonhador, um espírito teórico, um realista? De que forma agiria se dependesse exclusivamente de si mesmo?

Deringhouse estreitou os olhos.

— Não sei como responder à sua pergunta. Só sei dizer que o sargento Harnahan é um excelente piloto e um homem de confiança. Por que iria adotar no espaço uma atitude diferente daquela que costuma ter quando se encontra conosco?

— Perguntei por perguntar, major. Esqueça.

Deringhouse sabia perfeitamente que Rhodan não fazia perguntas inúteis. De repente também achou que não era nenhum absurdo estabelecer uma ligação entre o caráter do piloto e a notícia há tanto tempo esperada. As idéias mais loucas podiam vir à mente de um homem que se encontrasse a sós num minúsculo foguete perdido na imensidão do espaço.

— É possível que Harnahan seja um espírito romântico — disse, rompendo o silêncio.

Rhodan mal levantou os olhos ao dar um aceno quase imperceptível da cabeça.

— Era o que eu imaginava. Bem, veremos como Harnahan explicará seu silêncio prolongado.

Bell preferiu guardar sua opinião para si.

 

No primeiro instante, Harn pensou que acabara de perder o juízo e estava vendo e ouvindo alucinações.

Quanto ao ouvido, era bem mais fácil acreditar numa ilusão dos sentidos. Com a vista a coisa era diferente. A esfera reluzente continuou no mesmo lugar. Permaneceu diante dos pés de Harnahan, imóvel e como que em expectativa. Tinha aproximadamente o dobro do tamanho de uma bola de futebol.

Parecia ser de metal, mas se alguém contasse a Harn que era de gesso, estaria inclinado a acreditar nisso. De repente teve a impressão de que alguma coisa estava acontecendo ao seu cérebro. Sentiu que não era nada de mal, e não havia nenhum tom de ameaça naquela pesquisa que procurou misturar o consciente e o subconsciente. Subitamente voltou a soar a voz silenciosa, que já acreditara ter ouvido:

— Não, Harnahan, seu estado é perfeitamente normal. O que você vê e sente é pura realidade. Comecei a sentir seus pensamentos quando você se aproximava deste mundo. Não quis assustá-lo; por isso resolvi esperar que você me descobrisse.

Harn teve a impressão de que a esfera estava modificando os reflexos coloridos de sua superfície polida. Aos poucos foi se tornando preta como o espaço cósmico. As estrelas distantes refletiam-se nela como nas águas profundas de um lago. Ao fitá-la com mais atenção, Harn percebeu que as estrelas aumentavam de tamanho e se aproximavam.

— Não se espante, Harnahan, mas sou capaz de oferecer a imagem ótica dos meus pensamentos. O que deseja ver? A nave em que veio? O planeta do qual decolou? Ah, não é seu mundo, pelo que vejo.

Harn viu que as estrelas se deslocavam na superfície negra e, perplexo, contemplou a cúpula reluzente de seu caça. Parecia que se encontrava vinte metros acima do cume da montanha.

— Que coisa incrível! — exclamou. — Como é possível? Que técnica é capaz...?

— A natureza encerra tesouros muito mais ricos que a tecnologia.

A frase gravou-se em seu cérebro com a força do fogo. O ser estranho devia tê-la formulado em pensamento. Aos poucos Harn começou a compreender que a esfera que tinha diante de si não era uma obra-prima da tecnologia de alguma raça desconhecida. Era um membro da raça.

A esfera vivia.

— É claro que vivo, Harnahan, mas estou só. Não existe outro ser da minha raça, a não ser que o acaso o tenha criado, como fez comigo. Todo início de vida tem sua origem no acaso divino, Harnahan. Pela sua escala de tempo tenho cerca de cinco milhões de anos.

“Enlouqueci; não há dúvida!”, pensou Harnahan desesperado. Mas a esfera continuava no mesmo lugar. Deitada aos seus pés, voltou a exibir na superfície fortemente abaulada a profusão das estrelas. E a esfera também pensava, e pensava de tal forma que ele entendia. Era inteligente e possuía capacidades telepáticas. Bastava pensar para que ela o compreendesse.

— Sim, compreendo e sei qual é o motivo da sua presença. São os mercadores galácticos. Ajudarei você e Perry Rhodan.

Harn ficou estupefato.

— O que sabe a respeito de Rhodan? — perguntou em voz alta no interior de seu capacete. De repente teve a idéia louca de que a pequena esfera que via diante de si poderia ser uma nave espacial em miniatura, na qual se abrigassem inteligências incrivelmente pequenas.

— Sei quase tudo a respeito de Rhodan. Mas não se preocupe. Comigo qualquer saber está em boas mãos. Mais uma coisa: sou capaz de viver em qualquer lugar, mesmo no vácuo. Minha forma esférica é a mais favorável das formas. A ausência de pressão e a pressão elevada são por ela compensadas com a maior facilidade.

Naquele mundo sem atmosfera Harnahan defrontou-se com o maior dos milagres jamais visto por um olho humano. Acima dele fulgurava a luz das estrelas, trazendo à sua consciência a solidão infinita em que se encontrava. Estava só e teria que lidar com o impossível.

— Sua raça é muito poderosa, Harnahan, mas mesmo a mais poderosa das raças tem suas fraquezas. Até eu. Há sete séculos estou nesta lua e armazeno energias para prosseguir na minha viagem pelo Universo. A radiação das estrelas é fraca. Basta para manter-me vivo e guardar uma parcela insignificante. Terei que aguardar mais um milênio para prosseguir na minha viagem.

— Não compreendo, aliás, já não estou compreendendo mais nada — gemeu Harn, amargurado pela incapacidade de compreender o incompreensível. — Quem... o que é você?

Uma súbita alegria tomou conta do cérebro de Harnahan. Teve a impressão de que a esfera estava rindo. Mas respondeu a pergunta.

— Você está aqui para esperar as naves dos saltadores, que pretendem atacar um mundo indefeso. Os terranos querem ajudar os seres indefesos. Estou disposto a não lhes negar meu apoio, desde que receba um pagamento adequado.

— Um pagamento? — disse Harn quase sem fôlego.

— Isso mesmo. Um pagamento em energia. Vocês têm bastante. Eu os ajudo na luta contra os saltadores, e em compensação vocês me dão energia. Ao menos o suficiente para que possa chegar mais perto do sol. Uma vez lá, poderei cuidar de mim.

“Rhodan!”, pensou Harn. “Não posso fazer nenhuma concessão. Se ele recusar. Mas que motivos teria para recusar?”

— Eu os ajudarei — interrompeu-o a esfera.

— Como?

— Isso depende da situação. O mínimo que posso fazer é comunicar a posição das naves a qualquer instante. Naturalmente terei que limitar-me às mensagens óticas. Minhas reservas de energia não são suficientes para uma intervenção pessoal. Vá buscar sua nave!

— Minha nave? Para quê? Está camuflada, para que os saltadores não a descubram.

— Você pode entrar em contato com Rhodan sem recorrer à nave?

Harn sacudiu a cabeça.

— O que acontecerá se eu for descoberto por uma nave dos saltadores?

— Minhas reservas energéticas bastam para lidar com uma situação desse tipo — prometeu o ser estranho. — Vá buscar sua nave.

Harn olhou para o relógio. Já era tarde. Seu passeio sobre os morros e os vales havia consumido muito tempo. E agora a longa conversa com... com quem mesmo? Suspirou.

— Não estarei de volta antes de uma hora, e ali poderemos esperar a qualquer momento que alguém descubra esta lua por acaso e comece a inspecionar a mesma.

— Pois então esse alguém se arrependerá por acaso — foi a resposta. — Vá logo, senão ficará mesmo tarde. Depois responderei a todas as perguntas formuladas por você.

Por mais alguns segundos Harnahan, mergulhado em pensamentos, fitou a esfera que emitia um brilho negro. Depois virou-se sem dizer uma palavra e com um forte impulso afastou-se do solo.

Com três saltos transportou-se à planície.

 

Foi Gucky em pessoa que levou de volta ao vale do estaleiro o saltador Borator, que antes fora submetido a rigoroso interrogatório telepático e ao tratamento do sugestor Kitai. Borator recebera suas diretivas. Algumas manchas coloridas no rosto indicavam que a epidemia do esquecimento já estendia seus tentáculos em direção ao seu cérebro.

Ao menos era o que Topthor e seus companheiros deviam acreditar.

Procurou John Marshall e transmitiu-lhe as últimas instruções de Perry Rhodan. O pequeno entrevero no espaçoporto provara que os saltadores temiam a epidemia mais do que se ousara esperar. Além de tudo estavam acreditando que a epidemia do esquecimento atacava não apenas os cérebros humanos, mas também os positrônicos.

Era principalmente esse fato que devia ter representado um choque terrível para Topthor. Gucky fez questão de salientar esse ponto.

— Devemos evitar o derramamento de sangue — disse, contemplando o vale, que continuava bloqueado por uma fileira de robôs de combate. Por enquanto a tarefa dos duzentos goszuls consistia em ajudar os robôs de trabalho na construção da nave, a fim de reduzir o prazo de conclusão. Fizeram o papel de nativos contaminados, que ainda não tinham enlouquecido. — Basta meter um susto tremendo nesse Topthor. Rhodan acredita que nesse caso não voltará a aparecer tão depressa.

— Dificilmente poderemos evitar o derramamento de sangue se ele resolver pousar aqui — objetou Marshall. Conhecia a mentalidade inescrupulosa dos saltadores, e acreditava que numa força de choque especial como a dos superpesados a falta de escrúpulos seria ainda maior. — Será que não poderemos defender-nos? Combinamos que Topthor e seus homens seriam rechaçados com todos os meios de que dispomos. Será que os planos foram modificados?

Gucky sorriu e acenou com a cabeça. O dente roedor ficou à vista, brilhando no seu esplendor solitário. Esse dente também era responsável pelo ligeiro chiado com que Gucky pronunciava as palavras, embora dominasse perfeitamente várias línguas.

— Sim, houve algumas modificações. Topthor foi mais decente do que prevíamos. Não mandou atirar contra os goszuls indefesos. Nosso chefe lhe dá um elevado crédito por isso. Por isso nossa divisa é mais do que antes a seguinte: apenas vamos fazer blefe com Topthor. Temos que nos cuidar para que não obtenha qualquer indicação sobre nossa identidade. De qualquer maneira não posso aparecer diante desse sujeito, pois é bem possível que Etztak lhe tenha contado alguma coisa a meu respeito. Afinal, vocês são gente bastante...

Sobre a mesa havia uma caixinha, e de repente ela começou a zumbir.

Marshall lançou um olhar de excusas para Gucky e acionou a tecla de recepção. Uma voz na qual o rato-castor identificou a de Borator, o homem que se encontrava sob domínio hipnótico, disse em tom exaltado:

— Ataque por um robô de combate... junto à saída do vale. Quatro goszuls foram mortos. Os outros conseguiram fugir.

Por um segundo Marshall ficou estarrecido. Depois venceu o susto.

— Um robô de combate? Não é possível! Todos os robôs foram reprogramados e jamais atacarão um goszul. Quais foram as providências que tomou?

Borator estava convencido de ser o verdadeiro diretor do projeto. Por ordem de vários clãs estava construindo a primeira nave de uma nova série. Dentro de quatro dias, ou talvez três, concluiria o trabalho e entregaria a obra.

— Dei ordem às forças de bloqueio que destruam o robô descontrolado assim que ele apareça. Como se explica essa falha da positrônica infalível?

— Não tenho a menor idéia, Borator. Verificarei pessoalmente o que houve. Cuide do seu trabalho.

Gucky respirou profundamente.

— A positrônica infalível... Pois é justamente isso. Os robôs são infalíveis. É totalmente impossível que um robô reprogramado por nós se descontrole e passe a atacar nossos homens. Logo, trata-se de um robô que ainda não foi reprogramado. É aquele que não encontrei quando estive aqui pela primeira vez. Ainda bem que não demorou em dar sinal de sua presença. Logo estarei de volta, John...

— Um instante! — de um salto Marshall pôs-se de pé, mas o lugar à sua frente estava vazio. Gucky acabara de teleportar-se para outro lugar.

John Marshall começou a adivinhar onde ficaria esse lugar.

Colocou o radiador de impulsos portátil no cinto do macacão e saiu correndo. Passando pela primeira fileira de guardas, entrou no vale e fez votos de não chegar tarde. Procurou em vão estabelecer contato telepático com Gucky. O rato-castor devia estar tão ocupado que não tinha tempo para concentrar-se em mensagens telepáticas.

 

Quando se materializou mais ou menos no ponto em que o vale descrevia uma curva, Gucky viu um grupo de uma dezena de goszuls que corria em sua direção. Gesticulavam com os braços e soltavam gritos de pavor.

Gucky esforçou-se em vão para descobrir o que deixara os nativos tão desatinados. Não viu nenhum robô descontrolado.

Antes que os goszuls chegassem ao lugar em que se encontrava, deu um salto de algumas centenas de metros e se materializou atrás deles. O guarda que informara Borator sobre a ocorrência devia encontrar-se na saída do vale. Era o primeiro robô que Gucky desativara naquele dia.

Mas por enquanto o rato-castor encontrou uma coisa diferente.

Os cadáveres de quatro goszuls apontavam-lhe o caminho.

Era por aqui que devia estar escondido o robô não reprogramado, e que por isso mesmo continuava a agir obstinadamente segundo as ordens dos saltadores. Só assim se explicava que escapara à operação geral de limpeza.

A ausência de um mecanismo de tele direção fizera com que agisse independentemente. No seu esconderijo pôde observar que o vale e o estaleiro foram ocupados pelos goszuls e por alguns desconhecidos. Também testemunhara a reprogramação de seus colegas.

A rigor devia atacar o estaleiro e o contingente de robôs transformados em inimigos, mas até mesmo uma máquina pensante tem um certo instinto de autoconservação, desde que seu construtor o julgue conveniente.

RK-176 sabia que não teria a menor chance contra os noventa e nove colegas. Talvez conseguisse destruir dez ou vinte deles num ataque de surpresa, mas depois disso havia uma certeza absoluta de que sucumbiria sob a superioridade. Era necessário que levasse para o mundo exterior a notícia do que estava acontecendo por aqui. Os governantes precisavam conhecer os fatos que se passavam no vale. Na saída do vale havia um único guarda. Se conseguisse eliminar o mesmo, o caminho para a cidade estaria livre.

Pôs-se a caminho e foi ter diretamente com os vinte goszuls. Os nativos haviam passado naquele instante pelo guarda postado na entrada do vale, que já conheciam. Já não estranhavam os robôs. RK-176 agiu com uma rapidez enorme e com uma irreflexão fora do comum quando abriu fogo contra os nativos inocentes e matou quatro deles. Só teve consciência de seu erro quando o resto do grupo fugiu aos gritos.

Era tarde para voltar atrás.

O guarda robotizado da entrada do vale testemunhara o fato.

RK-176 deixou os goszuls em paz e dirigiu-se para a passagem estreita entre as rochas, onde a figura solitária do guarda surgia nitidamente na sombra de algumas moitas. Dali a pouco a caça ao mesmo teria início.

Se tivesse condições para isso, teria dado um sorriso amargo. Mas era um robô e não sabia sorrir. Em compensação a consciência não lhe doía.

Sabia muito bem o que devia fazer.

Seus braços de combate estavam na horizontal, em posição de tiro. Manteve os olhos rígidos fitos no novo inimigo e marchou em direção ao guarda.

O receptor embutido em seu corpo permitiu a RK-176 constatar que seu aparecimento já não era nenhum segredo.

Gucky chegou com alguns minutos de atraso.

Encontrou os destroços derretidos de um robô e junto aos mesmos traços de moitas e capim queimado. Até mesmo na rocha lisa notavam-se os vestígios dos disparos energéticos. Mas do robô revoltado não se via nada. Devia ter uma vantagem considerável.

Gucky lançou um olhar de lástima para o montão de destroços e teleportou para o cume da montanha, rochas que se elevavam quinhentos metros acima da planície. Dali se enxergava quase até o mar, se o tempo estivesse bem limpo.

Hoje não estava. Mas a visibilidade bastava.

A uns quatro ou cinco quilômetros dali movia-se um pontinho negro, que vez ou outra, quando refletia os raios solares, emitia um brilho prateado. Deslocava-se rápida e firmemente na direção sudoeste.

Era ele!

Gucky sorriu cheio de expectativa. Seu instinto lúdico triunfou sobre as boas maneiras. Finalmente tinha uma oportunidade de dar uma demonstração de sua arte. Era uma pena que não havia nenhum espectador.

Bem, isso poderia ser mudado...

RK-176 marchava numa velocidade considerável, mas evidentemente sua velocidade não bastava para escapar de um teleportador do tipo de Gucky. Nem desconfiava de que estava sendo perseguido e acreditava que sua tentativa de fuga fora bem sucedida.

Seu cérebro positrônico ainda procurava por uma explicação lógica dos acontecimentos que se desenrolaram no estaleiro. Não a encontrou.

Gucky materializou dez metros atrás do robô e concentrou-se inteiramente na sua capacidade telecinética. Os fluxos invisíveis de seu espírito atingiram o monstro metálico e imobilizaram-no.

RK-176 parou imediatamente. Parecia que de um instante para outro estava condenado à imobilidade por uma falha de seu mecanismo. Mas o caso não era este. Pelo contrário: o dispositivo positrônico passou a desenvolver uma atividade febril, mas não encontrava resposta às perguntas que formulava.

— Você matou quatro pessoas — disse Gucky em intercosmo, cuidando para que o robô não pudesse executar nenhum movimento. — Por isso será transformado em sucata. Tem alguma coisa a dizer antes disso?

RK-176 respondeu com a voz metálica:

— Agi de acordo com as ordens que recebi. Nenhum goszul pode permanecer nas proximidades do estaleiro. Quem é você?

— Acredito que você gostaria de saber. Bem, eu lhe permito uma meia-volta. Mas se quiser atirar contra mim, avise antes. Pois nesse caso o assunto será liquidado logo.

Era claro que o robô tentaria matá-lo. Gucky tinha certeza absoluta disso. O robô não poderia agir de outra forma.

E ele o fez assim que viu o rato-castor.

As duas descargas energéticas passaram longe de Gucky.

— Você acaba de proferir sua própria sentença de morte — chiou Gucky, fitando as lentes do monstro. — Agora você vai aprender a voar...

RK-176 não estava regulado para o vôo. Seu cérebro registrou o fato inexplicável de que a gravidade do planeta diminuiu de uma hora para outra e que aparentemente ele mesmo já não pesava nada. E não era só isso: ficara mais leve que o ar.

RK-176 subiu como um balão.

Gucky teleportou-se de volta para a entrada do vale e a partir dali dirigiu sua vítima com muita habilidade e alegria. O que aumentava o efeito do espetáculo era o fato de que RK-176 disparava ininterruptamente os dois canhões de radiações, procurando conseguir um impacto casual.

Marshall apareceu correndo na curva da entrada do vale e viu que seu esforço seria recompensado. O espetáculo que presenciou bem que valia uma corrida.

A menos de trinta metros Gucky escava sentado numa moita de capim, lembrando um aeromodelista que, com a alegria do construtor, faz seu artefato teleguiado descrever curvas no céu. No fundo, Gucky não era outra coisa.

O robô subiu a mais de quinhentos metros e parou. Não passava de uma mancha pequenina que se destacava contra o céu e sem parar espelia raios energéticos refulgentes. Ainda bem que Gucky segurava sua vítima de tal maneira que se tinha a impressão de que o robô pretendia derrubar alguma estrela invisível.

Subitamente o ponto começou a cair e aumentou rapidamente. Gucky virou-se e deu um sorriso amável para Marshall.

— Daqui a pouco você vai ouvir um estouro — profetizou. — Esse negócio vai explodir. Nunca experimentei de uma altura dessas.

— Por que vai destruí-lo? — perguntou John, que sabia perfeitamente que o rato-castor notara sua vinda por via telepática e por isso não estava surpreso. — Qualquer robô pode ser reprogramado...

— Este não — disse Gucky, sacudindo a cabeça e acompanhando a queda cada vez mais rápida do monstro metálico, que continuava a disparar loucamente. — Seria muito complicado. Você tem a mania de estragar qualquer alegria que eu tenha...

— Mas...

John calou-se. Também ficou fascinado pelo espetáculo. E sabia que Gucky não era tão fácil de convencer. Devia ter uma raiva tremenda daquele robô que descia numa velocidade enorme e atingiu o solo a quinhentos metros do lugar em que se encontravam.

No primeiro instante teve-se a impressão de que nada aconteceria. O peso de RK-176 fez com que o mesmo penetrasse profundamente no solo rochoso. O fenômeno foi reforçado pelo fato de que os radiadores energéticos que continuavam a disparar haviam derretido a rocha, motivo por que o robô caiu praticamente numa poça de lava incandescente.

Subitamente sentiram-se ofuscados por um raio. Por alguns segundos uma nuvem branca em forma de cogumelo cobriu o lugar, até que ela se dissipasse com o vento.

Gucky suspirou fortemente.

— Foi uma bela derrubada!

Indignado, John Marshall aproximou se e colocou a mão sobre o ombro do rato-castor. Para isso teve que abaixar-se.

— Nunca pensei que você se alegrasse tanto com a destruição.

— Às vezes gosto.

De repente Gucky olhou para o céu azul e estreitou os suaves olhos castanhos. Sem mudar de tom, prosseguiu:

— Segure minha mão. Vou saltar para o estaleiro. É preferível que venha comigo.

John sabia que Gucky não teria nenhuma dificuldade em levá-lo consigo. Mas antes que isso acontecesse, também olhou para o céu.

 

A pouca altura a nave cilíndrica dos saltadores, que tinha mais de duzentos metros de comprimento, passou por cima das montanhas que até então a haviam ocultado.

Topthor fez um sinal para Rangol.

— Descerei sozinho. No vale não há bastante espaço, por isso pousarei no platô. A comissão de investigação descerá para o vale numa nave auxiliar. O senhor ficará de prontidão numa altitude de dez quilômetros. Mantenha-se em contato com o posto de rádio.

— Pretende sair da nave, Topthor?

— Acompanharei minha gente. Observe os acontecimentos. Mas não ataque nem ponha em risco minha pessoa e a dos meus homens. Ao menor sinal de contaminação nossos planos serão modificados.

Os comandos dos superpesados foram transmitidos pelo intercomunicador às diversas seções da nave, que desceu lentamente e em posição horizontal sobre o platô, separado do estaleiro por uma encosta íngreme de quinhentos metros.

Mal a nave pousou, suas escotilhas abriram-se. Um robô de combate massudo saiu e, sustentado pelo campo antigravitacional, flutuou cinqüenta centímetros acima do chão rochoso. Homens que envergavam trajes protetores saíram apressadamente da grande nave e entraram numa nave muito menor. Os enormes vultos quadráticos dos superpesados pareciam medonhos e ameaçadores. Assemelhavam se a tocos gigantescos, mas seus movimentos eram de uma tremenda rapidez e agilidade.

As escotilhas da nave-mãe fecharam-se. Preparado para a luta, mantinha-se na expectativa para entrar em ação assim que Topthor o ordenasse. O rádio embutido no capacete manteve-o em contato permanente com o comandante substituto.

Foi o último a entrar na cabina apertada da nave de guerra.

Sem provocar o menor ruído subiu dois metros, deslocou-se em direção ao abismo e foi descendo lentamente. Topthor não se preocupava com o que fazia o piloto ou os vinte superpesados que o acompanhavam, todos armados até os dentes. Só se interessou pela tela.

Então era lá embaixo que ficava o estaleiro em que estava sendo construída aquela nave misteriosa que, segundo diziam seus construtores, iria conquistar o Universo. Topthor não fazia a menor idéia sobre as vantagens do artefato cuja construção estava sendo concluída, mas começou a desconfiar de que as ligeiras indicações que ouvira vez por outra não eram conversa fiada.

Desceram lentamente.

Topthor reconheceu perfeitamente a primeira fileira de guardas robotizados, que luzia frente para a saída do vale. Era tal qual Etztak lhe contara. Ao que parecia, tudo estava em ordem. Não havia nenhuma epidemia, nenhum autômato rebelde, nenhum goszul que enlouquecera...

Topthor lembrou-se de que no estaleiro não trabalhava nenhum nativo. Borator comandava apenas robôs. Pelo menos até hoje. Ninguém sabia se amanhã ainda seria assim.

Topthor ainda acreditava estar manipulando todos os fios, sem desconfiar de que não passava de uma marionete presa a um fio puxado por outra pessoa.

Por Perry Rhodan.

Sentados no seu esconderijo, John Marshall, Kitai, o sugestor e Gucky acompanhavam com um interesse enorme o pouso dos superpesados.

O trabalho no estaleiro prosseguiu como se nada tivesse acontecido. Borator estava sentado no seu escritório, transmitindo instruções. A decolagem experimental estava prevista para depois de amanhã. Os robôs trabalhavam a toda velocidade. Ainda bem que contavam com o apoio dos goszuls. Lá fora a sombra de uma nave de guerra dos saltadores foi descendo para o vale. Mal tocou o solo, os vultos enormes dos superpesados saíram das escotilhas. Suas mãos enormes seguravam os radiadores de impulsos, prontos para disparar. Os trajes espaciais estavam fechados, mas o aparelho de comunicação externo permitia comunicação direta.

Borator levantou a cabeça, fez de conta que já os esperava e levantou-se. Estava sendo dirigido pela vontade de Kitai quando saiu do escritório e se aproximou dos superpesados. Não demonstrou a menor surpresa.

— Então, Topthor, vocês vieram para levar a nave? Foi Etztak que os mandou?

Quando viu o rosto salpicado do técnico, Topthor foi baixando o radiador. Seu traje protetor o resguardaria da contaminação; não tinha a menor dúvida. Mas nem por isso livrou-se da sensação desagradável de se ver diante de um inimigo desconhecido e imprevisível.

— O senhor pegou a doença, Borator? — perguntou, recuando cinqüenta centímetros. Pelo canto do olho viu um grupo de goszuls acompanhado de alguns robôs sair do estaleiro escavado na rocha e, sem demonstrar o menor interesse pelos superpesados, dirigir-se para o pavilhão mais próximo. — O que é que esses nativos estão fazendo por aqui? Também estão contaminados?

Borator confirmou com um simples aceno de cabeça, como se apenas se tratasse de uma indisposição passageira.

— Estamos todos contaminados, mas ainda não perdemos a memória. A deterioração do cérebro demora algumas semanas. Até lá a nave estará pronta. Quanto aos goszuls, não tive outra alternativa senão recorrer a eles. Os robôs não dariam conta do trabalho até que... bem, até que eu perca a memória. — Borator apontou para um robô de guerra que se encontrava nas proximidades. — Não sou só eu, Topthor. Os robôs também estão perdendo a memória. Depois que isso acontecer, não poderemos contar mais com eles.

Topthor recuou mais um passo. Lançou um olhar de advertência aos homens que tinham vindo com ele.

— Quando é que a nave deverá ficar pronta, Borator?

— Dentro de uma semana aproximadamente. Vocês poderão levá-la.

— E quando... quero dizer, quanto tempo demorará até que o senhor perca a memória?

— Talvez seja amanhã. Não sei. Seria conveniente que vocês se preparassem para prosseguir nos trabalhos.

— Prosseguir nos trabalhos? Quer que sejamos contaminados?

— Isso já aconteceu — disse Borator em tom indiferente.

O superpesado empalideceu atrás do visor de seu capacete.

— Estamos usando trajes protetores!

Borator esboçou um sorriso frio.

— Também passei a usar quando houve o primeiro caso aqui no vale. Veja se adiantou alguma coisa. O caso é que vocês deverão sacrificar seu bem-estar pessoal e fazer tudo para salvar esta nave. Em hipótese alguma ela deve cair em mãos estranhas.

— Um bacilo nunca pode atravessar um traje protetor — disse Topthor, voltando ao tema que mais o interessava. — E antes de voltarmos ao interior de nossa grande nave, seremos expostos ao vácuo. Não há bacilo que resista a isso.

— Vocês poderão expor seus trajes ao vácuo, mas não seus corpos — respondeu Borator em tom indiferente. — Não se iludam. Vocês estão perdidos da mesma forma que eu e todos os robôs e goszuls deste mundo. A única coisa que podem fazer é levar a nave ao espaço e conduzi-la ao ponto de transição com as escotilhas abertas. Depois terão que deixá-la entregue a sua própria sorte. Os saltadores saberão encontrá-la. É possível que, quando isso acontecer, a nave já não esteja contaminada. Quanto a vocês, Topthor, é bem possível que daqui a uma semana nem se lembrem de seu nome...

— Borator! — a voz de Topthor saiu com uma potência digna de sua estatura. — Não vim para ouvir essas tolices. Neste vale todo mundo está trabalhando. Ainda não vi nenhum louco.

— Já temos alguns — respondeu Borator em tom tranqüilo e apontou o queixo cabeludo para a direita, onde um robô de combate estava saindo de trás de um dos depósitos. — Vocês não acreditarão, mas a coisa se manifesta em primeiro lugar nos cérebros positrônicos. Ali está... olhem e escutem...

Contrariado, Topthor olhou na direção do pesado robô, que se aproximava lentamente, passando a poucos metros deles. O monstro metálico não se interessou pelos superpesados que acabavam de pousar. Nem chegou a olhá-los.

Enquanto passava por eles, cantarolava baixinho. Era uma melodia monótona e despretensiosa. Em compensação as palavras eram proferidas em intercosmo e podiam ser facilmente entendidas:

 

Quem sou eu...?

... Não passo da busca e do martírio,

Da sede e da saudade

Dever e angústia sem saída

Mas no fim tudo serão saudades e sede

Num lago azul, quero despejar-me...

 

A boca de Topthor abriu-se. Até parecia que a barba estava pesando demais, puxando o queixo para baixo. Começou a tremer como vara verde. Com grande dificuldade conseguiu murmurar:

— O que... é isso...?

— É uma poesia — esclareceu Borator. — Foi o próprio RK-064 que a compôs. A melodia também é dele.

Os vinte superpesados que se encontravam atrás de Topthor recuaram passo a passo até atingir a escotilha da nave de guerra. Ao menor sinal desapareceriam com a velocidade de um relâmpago. Acontece que Topthor estava chocado, mas não derrotado. Seus dedos crisparam-se em torno da arma.

— Por que não destroem RK-064?

John Marshall sorriu no seu esconderijo, quando transmitiu a pergunta de Topthor a Kitai. Kitai sugeriu a resposta a Borator, que foi quase instantânea.

— Por que iria destruí-lo? Se o fizesse, teria que destruir todos os preciosos robôs que estão por aqui. O fim chegará de uma forma ou de outra, e enquanto não nos atacarem não vejo motivo para destruí-los. Aliás, o robô de trabalho RA-007 está compondo um drama.

Gucky quase escorregou para baixo da mesa de tanto que riu ao ouvir esta resposta. Esbaforido, chiou:

— Vocês não conseguirão expulsar Topthor com uma tolice desse calibre. Não seria preferível que eu o transformasse numa nave espacial? Minhas energias bastam para transportá-lo à lua mais próxima. Quando estiver lá, seu pessoal poderá buscá-lo.

— Não se atreva! — cochichou John, furioso. — Topthor é um realista e um espírito frio. Logo suspeitaria de que se defrontava com um golpe telecinético e, portanto, com Perry Rhodan. Para ele um robô poeta é muito pior, pois não o compreende. Continue, Kitai. Acho que daqui a pouco Topthor estará nas devidas condições.

Evidentemente a cultura dos saltadores conhecia o drama, mas até então Topthor não se ocupara com essas coisas, que não trazem nenhum lucro. Perplexo, contemplou o rosto manchado de seu interlocutor e subitamente sentiu um medo terrível. Tremeu por todo o corpo e mal pôde sustentar-se sobre as pernas maciças.

— Quais são os efeitos da doença sobre o homem?

Antes que Borator tivesse tempo de responder, um goszul saiu de trás de um prédio. Até parecia que vinha de encomenda. Aproximou-se do grupo dos superpesados, que em condições normais lhe teria metido tamanho susto que teria desmaiado assim que visse aqueles monstros. Mas naquela hora nem parecia estranhar a presença.

— Veja — conseguiu murmurar Borator antes que o goszul se interpusesse entre ele e Topthor. Era um nativo de cabelos escuros. Trazia o peito nu, coberto de manchas azuis e vermelhas. Também o rosto estava todo colorido. A doença já devia ter consumido seu cérebro, pois nem percebeu o perigo que os superpesados representavam.

Tirou o radiador de impulsos das mãos trêmulas de Topthor e, com um sorriso nos lábios, pôs-se a brincar com o mesmo. Antes que alguém pudesse impedi-lo, o raio energético verde-pálido subiu obliquamente e gaseificou um pedaço do paredão de rocha.

Espantado, o goszul sacudiu a cabeça e devolveu a arma a Topthor, antes que este tivesse tempo de realizar sua intenção de pôr-se em segurança com um salto para trás.

Foi isso que mais o assustou.

Rindo para si mesmo, o nativo continuou na sua caminhada, passando entre as fileiras indecisas dos superpesados sem mostrar o menor sinal de medo.

Borator acenou a cabeça para Topthor.

— Você viu, Topthor. Quem pega a doença esquece tudo. Não sabe mais que existe o perigo. Confia no pior inimigo, e assim fica à mercê do mesmo. Se a raça dos saltadores perder a memória e não souber mais quem são seus inimigos, estará perdida.

As mãos debilitadas de Topthor seguraram a arma.

— A gente também se esquece dos seus inimigos?

— Até esquecemos nosso nome — confirmou Borator. De repente prosseguiu num tom muito objetivo: — Permite que lhe mostre a nave? Dentro de uma semana terão que levá-la ao espaço. Tomara que não adoeçam antes disso. Decerto dispõem de gente que possa substituí-los se for necessário. O último grupo que restar colocará a nave no rumo.

Topthor perguntou:

— O que acontecerá conosco?

Borator fez um gesto indefinido

— Isso depende de vocês, Topthor. Dentro de uma semana o mais tardar seu espírito estará morto, mesmo que o corpo continue vivo. O que importa? O importante é que nossa tarefa seja cumprida, e que a nave seja entregue aos clãs...

— Não aceitei a tarefa de pegar uma doença e me arruinar — exclamou Topthor. Seu corpo tremia. — Esses patifes me mandaram para a perdição e esperam que com isso poderão economizar minha recompensa. É claro! Eu me esquecerei que tenho alguma coisa a cobrar. Mas não contaram com Topthor quando fizeram suas contas. Eles mesmos que venham buscar a nave. Transmita-lhes o recado, Borator, se é que até lá ainda se lembrará dele — dirigiu-se a seus homens. — Vamos para a nave! Desistimos da execução da tarefa. — Voltando a dirigir-se a Borator, perguntou: — Acredita que estamos contaminados?

O rosto do técnico parecia desolado.

— Receio que isso seja um fato consumado, Topthor.

O superpesado berrou uma praga e seguiu seus homens para o interior da cabina relativamente pequena da nave grosseira. A escotilha fechou-se. Dali a alguns segundos a nave subiu na vertical e logo desapareceu acima do paredão.

Gucky saiu de baixo da mesa.

— E daí? — chilreou decepcionado. — Foi só isso? Nenhum fogo de artifício? Nenhuma demonstração telecinética? Nada?

John suspirou aliviado e bateu no ombro de Kitai.

— Foi um serviço bem feito, meu caro. Borator foi um excelente ator. É pena que ele não saiba disso.

— Então? — perguntou Gucky, subindo à mesa. — Eu lhe fiz uma pergunta, John.

O telepata acariciou o pêlo espesso do rato-castor.

— Fique satisfeito porque conseguimos liquidar o assunto por essa forma. Muitas vezes os meios pacíficos produzem um efeito mais duradouro que um lindo fogo de artifício com muita morte e destruição. Só os vivos não esquecem.

Gucky procurou absorver a idéia.

Enquanto isso a sombra gigantesca da nave cilíndrica desprendeu-se do platô e, acelerando loucamente, disparou para o céu azul.

Topthor convocou as doze naves restantes.

Só onze responderam.

 

Quando Harnahan decolou com sua pequena nave, pensou que estivesse sonhando. Estaria doente, sofrendo os sintomas tantas vezes relatados da febre espacial? Era possível que a embriaguez da solidão o tivesse atingido, e que sua experiência não passasse de um sonho inspirado no desejo, que se formara no seu subconsciente.

Mas não; ali estava a voz misteriosa. A quilômetros de distância penetrava em seu cérebro.

— Deixe as dúvidas para depois, Harnahan. Agora você não tem tempo para isso. Uma nave dos saltadores dirige-se para esta lua. Se não quiser morrer, apresse-se. Pouse no meu vale.

Harn apressou-se. Dali a menos de um minuto desceu para o vale em que havia encontrado a esfera. Continuava no mesmo lugar, mas a imagem de sua superfície estava alterada.

— Fique na nave, Harnahan. Você verá tudo. Não tenha medo. Nada lhe acontecerá. Já os saltadores...

A esfera encontrava-se a dez metros de Harn. Viu perfeitamente o que se passava em sua superfície. Viu uma nave com o formato cilíndrico dos veículos espaciais dos saltadores. Percebeu que passava junto à superfície de uma lua — seria a sua? — como se estivesse procurando alguma coisa. Teve a impressão de que a esfera estava maior e continuava a inchar. Também parecia emitir um brilho mais saciado.

Saciado...?

A suspeita tremenda que Harn passou a conceber naquele instante ainda se confirmaria. No momento não teve tempo para refletir sobre problemas desse tipo: Tirou os olhos da esfera e fitou a planície.

A nave dos saltadores vinha diretamente para o lugar em que Harn se encontrava. Levantou ligeiramente a popa para ultrapassar a barreira das montanhas. Ao mesmo tempo acelerou repentinamente. A qualquer momento teria que surgir do outro lado da cumeeira.

E surgiu.

Ansioso, Harn aguardou o desenrolar dos acontecimentos. Se o comandante não estivesse dormindo, já devia ter visto o pequeno caça espacial. Num movimento automático Harn colocou a mão sobre o acelerador manual. Num golpe poderia fazer o foguete disparar para o alto...

A nave dos saltadores continuou na mesma rota inclinada em direção ao céu estrelado. Harn teve a impressão de que a velocidade estava sendo reduzida aos poucos.

— Ultrapassou a velocidade de fuga da lua e não descerá mais abaixo da mesma. Faço votos de que os outros saltadores a encontrem, senão seus ocupantes estão perdidos.

Perplexo, Harn fitou a enorme nave que diminuía rapidamente até desaparecer atrás das rochas íngremes. Seus olhos treinados perceberam que não dispunha de propulsão, sendo mantida em movimento apenas pela força da sua massa. Assim que saísse do campo de gravitação da lua, viajaria em queda pela imensidão do espaço, até que penetrasse no campo de gravitação de uma lua maior, de um planeta ou mesmo de um sol.

— Você destruiu os propulsores? — perguntou, olhando para a esfera, cujo diâmetro já chegava a meio metro. — Os homens que se encontram nessa nave estão perdidos.

— Não destruí os propulsores — foi a resposta formulada em pensamento. — Apenas subtraí toda a energia de que dispõe a nave. Só deixei intactas as baterias de emergência, para que possam dispor da eletricidade necessária para o condicionamento de ar. De resto a nave não dispõe de nenhuma energia. Não tem propulsão, nem armas, nem hipertransmissores, coisa alguma. Se quisesse poderia subtrair sua energia. Acontece que estou interessado no tal do Perry Rhodan. Quando sair do sistema, enviar-lhe-ei uma mensagem. Um dia aguardo sua visita. Tanto faz que seja em dez anos ou em cinqüenta. Não tenho pressa. O que não quero é esperar mil anos. Aliás, a esta altura talvez seriam apenas oitocentos.

Harn ligou o minicomunicador, cuja ajustagem hipersincronizadas permitia a comunicação instantânea até uma distância de duas semanas-luz. Enquanto o aparelho realizava a regulagem automática, disse:

— Informarei Rhodan sobre nosso encontro. Por enquanto permita que o informe sobre a minha posição.

— Informe-o sobre sua posição, mas é bom que saiba que a guerra no segundo planeta do sistema já está decidida. Os saltadores estão fugindo. Não têm mais o menor interesse em cumprir sua tarefa. Você pode voltar. De qualquer maneira, logo receberá ordens para isso.

O tenente Fisher respondeu de bordo da Stardust:

— Ora essa, Harnahan! Por que não deu notícias? Pode voltar. Não precisamos mais de indicações de posição. Os saltadores deram o fora. Onde o senhor se meteu?

— Numa das luas do quarto planeta. Posso falar com Rhodan?

— Infelizmente não é possível. Eu lhe direi que dentro em breve o senhor estará de volta. Apresse-se.

— Mas...

— Não tenho mais tempo, sargento. A Stardust está emergindo. Chame mais tarde. Fim.

O alto-falante emudeceu. Harn desligou e abriu a comporta de ar. Dali a dois minutos encontrava-se diante da esfera. Fitou a superfície negra e viu uma porção de naves cilíndricas que entravam em formação. Eram onze naves, que se agrupavam em círculos em torno de outra, maior. À esquerda do grupo via-se um planeta.

— É o último planeta do sistema — esclareceram os impulsos mentais. — Eles se reúnem para sair daqui o mais depressa possível. Mas captaram o pedido de socorro da nave desaparecida e vão procurá-la.

Harn inclinou-se como se quisesse tocar a esfera, mas não teve coragem.

— Que ser é você? — exclamou. — O que sabe fazer?

— Eu sou eu, Harn. É a única coisa que posso dizer. Quer ver o que sei fazer? Olhe, que eu lhe mostro...

Na superfície da esfera surgiu um mar agitado... um torvelinho... e subitamente Harn viu a Stardust emergir das profundezas e deslizar lentamente sobre as cabeças brancas das ondas. A nave logo chegou à costa e pousou no espaçoporto. Os três cruzadores já haviam saído dos hangares subterrâneos. Em todos os lados viam-se os tripulantes reunidos com os nativos, que ainda traziam as manchas coloridas no rosto, mas de resto pareciam absolutamente normais.

— Você é um receptor de televisão vivo — cochichou Harn emocionado e acrescentou: — Qual é o seu alcance?

A esfera não respondeu, mas o quadro de sua superfície alterou-se.

Harn viu que abandonava o sistema. Era ao menos o que parecia.revelar a imagem. Com uma velocidade milhões de vezes superior à da luz disparou para o infinito até que, perplexo, contemplou o giro da galáxia. Devia ter percorrido dezenas de milhares de anos-luz...

Retornou em velocidade vertiginosa e viu-se de novo na superfície da lua. Sabia que não saíra do lugar, mas...

— Enxergo qualquer ponto da galáxia e posso transmitir a visão a outros. Infelizmente só posso comunicar-me a uma distância de duzentos anos-luz. Às vezes consigo chegar mais longe. Como vê, minha capacidade é limitada.

Subitamente Harn teve a impressão de que estava fazendo um frio terrível no seu traje aquecido. Começou a compreender o poder desse ser esférico, que parecia ser feito de energia compacta e se alimentava com a luz das estrelas. E com a energia dos conversores das naves espaciais. E compreendeu que nunca se defrontara com um ser mais benevolente.

— Volte para junto de seus amigos, Harnahan. Informe Rhodan a meu respeito, mas mantenha silêncio diante dos outros. Devo descansar e poupar minhas forças, pois as estrelas estão muito distantes. Passe bem, Harnahan. Ainda nos encontraremos.

Harn lançou mais um olhar para a esfera. Depois virou-se abruptamente e voltou ao foguete. Passou pela comporta e fechou a escotilha.

Quando ligou o campo antigravitacional e começou a subir, seu olhar pousou sobre o brilho negro da esfera deitada diante da porta metálica que conduzia para o interior da montanha. Sacudiu a cabeça. Um dia descobririam tudo que havia atrás dessa porta... se é que realmente era uma porta.

Quando o vale mergulhou no espaço e o céu estrelado o acolheu, voltou a ficar a sós em sua cabina apertada.

 

O gigante saiu lentamente de sua prisão subterrânea. Os campos antigravitacionais mantinham-no suspenso alguns metros acima do solo. De ambos os lados os goszuls e os robôs cuidavam para que a superfície reluzente não entrasse em contato com a rocha. Borator corria nervosamente de um lado para outro. Falava com as mãos, com os pés e às vezes com a boca, pois essa nave era a coroação de sua vida, embora não compreendesse tudo que os técnicos haviam executado através dos robôs especializados. Com Rhodan aconteceu a mesma coisa. Sabia que só o estudo meticuloso das plantas que Borator lhe entregara permitiria uma idéia sobre os segredos encerrados naquela nave, segredos que teriam que ser desvendados.

Uma coisa era certa: a propulsão funcionava segundo os princípios arcônidas e as modificações introduzidas na mesma eram insignificantes. Por isso não seria difícil pilotar a nave recém-construída. As experiências teriam que ficar para depois, quando houvesse mais tempo. Rhodan tinha pressa de sair do planeta de Goszul.

Um único homem encontrava-se no interior do gigantesco cilindro, cujo comprimento — eram nada menos que 780 metros — penetrou no vale.

Era Reginald Bell.

Apesar de uma resistência feroz, Rhodan o nomeara comandante do cruzador recém-conquistado. Bell poderia gostar de tudo, menos brincar com forças desconhecidas. Mas quando salientaram que era a única pessoa à qual a nave poderia ser confiada, acabou concordando.

O diâmetro da nave era de duzentos metros. Faltava montar parte das instalações internas, mas Rhodan até chegava a alegrar-se com isso. Não sabia quem poderia acomodar-se nas poltronas dos superpesados. Lá em Terrânia os engenheiros e os técnicos cuidariam desses detalhes. Bell desligou os campos antigravitacionais e respirou aliviado quando o ligeiro solavanco lhe revelou que voltara a ter chão firme sob os pés. Saiu da sala de comando e dali a poucos minutos estava junto à escotilha de saída, pela qual se poderia fazer passar um elefante. Estava radiante.

— Borator, você acaba de construir um belo navio. Meus parabéns!

— Está satisfeito, senhor? — disse o saltador muito feliz. Continuava submetido à influência de Kitai e acreditava firmemente que era dono das suas decisões. Dali a poucos dias ficaria muito admirado quando numa ilha solitária vinte saltadores investissem contra ele com uma série de perguntas. Tal qual eles, não encontraria nenhuma resposta.

— É uma bela nave — confirmou Rhodan, que se mantinha mais afastado, conversando com Ralv. — Nós a levaremos.

— Vocês voltarão? — perguntou Ralv, que já fora promovido ao posto de chefe de governo do mundo libertado. — Vocês prometeram...

— Instalaremos um entreposto comercial neste planeta — tranqüilizou-o Rhodan. — Meus encarregados chegarão dentro de poucas semanas. O equipamento de guerra dos saltadores bastará para protegê-los. Com ele poderão rechaçar qualquer inimigo que procure escravizar seu mundo. Acho que pelos próximos cinqüenta anos dos saltadores não os incomodarão. É quanto dura a quarentena.

Bell aproximou-se.

— Está bem, vou pilotar isso — disse com um sorriso. — Quando decolaremos?

— Dentro de três horas. Eu lhe recomendaria que levasse “isso” ao espaçoporto. Aproveite a oportunidade para fazer um pequeno vôo experimental. Gucky irá com você, para que possa trazê-lo de volta, se for necessário. Afinal, você não é nenhum teleportador.

— Gucky! — resmungou Bell, contrariado. — Sempre tem que ser o Gucky. Bem, que venha comigo, a não ser que esteja com medo.

O rato-castor já se encontrava na escotilha tamanho elefante.

— Eu, medo? — gritou a voz estridente por cima da figura assustada de Bell. — Nunca tive medo. O único medo que posso ter é de que você possa criar juízo, seu Bell das cerdas.

Pelo rosto de Bell tinha-se a impressão de que ele estava prestes a chorar. Sua voz quase chegava a ser suplicante quando se dirigiu a Rhodan:

— O que vou fazer com ele, Perry?

— Leve-o até a Terra. Vocês voarão juntos. Talvez assim tenham oportunidade de adaptar-se um ao outro. Dizem que uma viagem a sós pelo Universo é muito saudável para esse tipo de problema...

Bell afastou-se a passos pesados. Seus cabelos ruivos, que no curso da aventura estavam encostados à cabeça, encontravam-se em posição quase vertical.

Sem olhar para trás, desapareceu no interior da nave em companhia de Gucky. A escotilha fechou-se com um ruído surdo.

John Marshall, que se encontrava por ali, aproximou-se.

— Hum! — resmungou. — Não sei se isso vai dar certo. Afinal, Gucky também é telepata.

Rhodan sorriu seguro de si.

— Vez por outra lembrará Bell desse fato — disse em tom irônico enquanto contemplava a pesada nave que, leve como uma pluma, levantou-se do solo e subiu na vertical. Quando chegou à beira do platô, acelerou vertiginosamente e disparou para o céu azul. Dentro de poucos segundos desapareceu.

Borator seguiu-a com um olhar pensativo.

A frota de Rhodan cruzou a órbita do quarto planeta e, deslocando-se à velocidade da luz, aproximou-se do ponto de transição previamente calculado. Os cruzadores Terra e Centauro flanqueavam a Stardust, enquanto o Solar System e a mais recente aquisição de Bell, o cruzador apresado dos saltadores seguiam-na a uma distância de 0,00001 segundos-luz.

Além de Rhodan só havia uma pessoa na sala de comando da Stardust. Era Harnahan.

À esquerda deles o quarto planeta passou rapidamente. As numerosas luas do mesmo eram minúsculos pontos de luz, e ninguém saberia dizer em qual delas Harnahan pousara.

Rhodan não deixou perceber a menor dúvida quando perguntou:

— Essa esfera, qual é mesmo seu alcance telepático?

— Duzentos anos-luz, é o que ela diz.

— É estranho — disse Rhodan de si para si. — Sempre se acreditava que a telepatia não conhece limitações no que diz respeito ao seu alcance. Ao que parece, nem sempre é assim. Também Marshall não pode estabelecer contato daqui para a Terra. De qualquer maneira, duzentos anos-luz...

Subitamente sentiu. Parecia uma mão suave que se colocava sobre sua cabeça e exercia uma pressão delicada. Uma coisa estranha surgiu em sua mente, expelindo suas próprias idéias. Com ligeiro olhar certificou-se de que o piloto do caça estava passando pela mesma experiência.O estranho ser esférico estava estabelecendo contato.

— Já está acreditando, Perry Rhodan? Ele lhe disse que estou esperando você? Não, antes de mais nada, volte à Terra; é mais importante. Mas não se esqueça de mim, Perry Rhodan, mesmo que seja imortal. Eu o espero. Se necessário, esperarei por uma pequena eternidade.

— Quem é você? — perguntou Rhodan.

Harnahan “sentiu” o sorriso alegre, tal qual Rhodan.

— Vocês humanos são uma raça curiosa, e a curiosidade é a mola propulsora de seu progresso civilizatório. Acredito que será a curiosidade que um dia o levará para junto de mim. Até lá. Passe bem, Perry Rhodan. Muito obrigado.

Rhodan ficou perplexo.

— Obrigado? Por quê?

Mais uma vez sentiu a risada mental.

— Pela energia que consegui tirar de sua nave. Não tirei demais. Não será suficiente para um vôo mais longo. Acredito que ainda me ouvirá melhor. Muitas felicidades para você... e para o planeta Terra.

O quarto planeta ficou para trás, e com ele as luas do mesmo.

— Como poderei chamá-lo? — perguntou Rhodan.

Não houve resposta. A estranha inteligência manteve-se em silêncio. Rhodan voltou a tentar, mas o contato não surgiu. Olhou para Harnahan.

— Quero sua opinião, sargento. Quero sua opinião com toda a sinceridade. Que ser é este? Vive realmente? É apenas energia, ou será também espírito? Afinal, o senhor o viu? Poderá representar um perigo?

Harnahan olhou para a amplidão semeada de estrelas. Um traço suave brincou em torno de seus lábios estreitos. Havia um brilho úmido em seus olhos, quando sacudiu lentamente a cabeça.

— Não posso dar resposta a nenhuma das suas perguntas. Apenas tenho resposta para uma delas. A última. Jamais este ser representará um perigo para nós. Sim, eu o vi; e também o senti. Mas não senti nada de mal e não tive medo. Não, este ser esférico não representa nenhum perigo para nós. Pelo contrário.

Perry Rhodan também olhou a profusão de estrelas. Lá adiante a algumas horas-luz de distância, ficava o ponto de transição Num golpe o cosmos morreria e desapareceria, para ressurgir poucos segundos depois, a mais de mil anos-luz daquele ponto.

Virou-se e fitou o rosto de Harnahan.

— Muito bem — disse em tom suave e com uma vibração estranha na voz habituada a comandar. — Sinto a mesma coisa que o senhor. Se o ser esférico não representa nenhum perigo, talvez possa nos ajudar um dia. E precisaremos de auxílio, quando...

Calou-se.

Mas Harnahan, que afinal era apenas um humano, ficou curioso.

— Quando precisaremos de auxílio?

Rhodan respondeu com um sorriso condescendente:

— Receio que precisemos quando os saltadores perceberem que não perderam a memória. E isso poderá acontecer dentro de algumas semanas — o sorriso desapareceu tão depressa como surgira. — Vamos cuidar de Bell. Dentro de algumas horas...

O rosto de Bell surgiu na tela.

— O que houve, Perry?

— Uma transição experimental de três mil anos-luz. Está preparado?

Bell confirmou com um gesto de resignação. O dente roedor sorridente de Gucky surgiu atrás dele.

— Está bem. Mas tenho certeza de que tudo funciona perfeitamente e...

— Está pronto? — interrompeu-o Rhodan.

— Pronto — Bell olhou por cima do ombro. — Gostaria de saber quem não está sempre pronto na situação em que me encontro. Ai!

Bell começou a subir e desapareceu da tela. Gucky ocupou seu lugar. Parecia o rato Jerry ampliado. O dente roedor brilhava de alegria.

— É sempre ele que começa — disse Gucky em tom ingênuo. — Quer que o teleporte para o inferno?

Rhodan exibiu um rosto severo, mas em sua voz notava-se um riso contido.

— Não faça isso, Gucky. Ainda precisaremos de Bell por algum tempo. Além disso, o diabo não gostaria nem um pouco da concorrência que iria receber. Nunca ouviu falar em concorrência desleal?

— Não — respondeu o rato-castor, sacudindo as longas orelhas. — Nunca ouvi falar. O que é isso?

— É o ato praticado por um telecineta que deixa um homem normal morrer de fome junto ao teto — trovejou a voz de Bell de algum lugar. — Desça-me imediatamente, senão vou... vou... está bem, Gucky, não vou fazer coisa alguma. Vamos fazer as pazes?

As pernas de Bell surgiram na tela, e dali a pouco estava novamente acomodado em sua poltrona diante do painel da nave que já pertencera aos saltadores. De boa vontade, Gucky cedeu-lhe o lugar.

— Que tal uma transição experimental? — perguntou Rhodan.

Bell estava radiante.

— Terei o maior prazer, cavalheiro. Não há nada que eu gostaria mais de fazer. Quanto tempo deverei esperar?

Em algum lugar, a três mil anos-luz de distância, um rato-castor chiou admirado e sacudiu a cabeça.

Rhodan acenou com a cabeça como alguém que compreende tudo.

— Está bem. Vamos embora!

O sargento Harnahan olhou para a tela de popa e procurou um planeta que mergulhava no espaço. Era um planeta que possuía numerosas luas de pequenas dimensões. Em seus olhos brilhava o anseio eterno pelo conhecimento.

Afinal, era mesmo um espírito romântico e sonhador...

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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