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CAPÍTULO 25
Emma bateu na porta azul às dez da manhã. Mr. Dillon manteve-se ao seu lado, protegendo-a. Até entrar na casa, Emma não arriscaria o furto da bolsa que enfiara debaixo
do braço.
Perguntou a si mesma se Mr. Dillon se teria apercebido de que ela só chegara a casa, nessa manhã, já perto das quatro da madrugada. Maitland sabia-o, porque estivera
sentado no átrio da entrada, esperando que ela aparecesse, para poder deixá-la entrar. A sua criada também o sabia. Naquele momento, a informação provavelmente já
teria sido espalhada por todos os membros da criadagem. O facto de ter chegado na carruagem do conde devia ter originado muitas conjeturas sobre o que Emma andara
a fazer.
Com alguma sorte, assumiriam que Southwaite tinha organizado um jantar festivo e que a vida social de Emma estava a melhorar consideravelmente.
Mr. Dillon recuou, quando a porta se abriu, a fim de vigiar a carruagem e o cavalo. Emma foi recebida pela mesma mulher velha. Contudo, desta vez, a sua visita era
esperada. Não se dirigiram para o estúdio, apesar de Emma conseguir ouvir as mulheres que lá trabalhavam. Em vez disso, seguiram em direção à parte de trás da casa,
até uma divisão que dava para um jardim.
Como havia sido combinado, através de correspondência recentemente trocada, Marielle Lyon aguardava a chegada de Emma na companhia do velho imigrante que consignara
os desenhos. Emma cumprimentou-os e, em seguida, abriu a bolsa.
– Como já devem ter ouvido falar, o leilão foi um grande sucesso. As pessoas afluíram principalmente pelas pinturas dos mestres antigos e pelas joias, mas obtivemos
boas licitações em todos os artigos.
O velho assentiu com a cabeça. No entanto, parecia só ter olhos para a bolsa de Emma. Sem mais cerimónias, ela retirou as notas e contou setecentas libras. Em seguida,
fez deslizar, na direção do homem, uma das folhas do catálogo.
– Os montantes atingidos por cada desenho estão anotados aqui. Foi um leilão público, por isso não o poderia enganar, mesmo que quisesse. Se preferir somar as quantias,
para ter a certeza de que lhe estou a dar o valor certo, não ficarei ofendida. Obviamente, a Fairbourne’s fica com dez por cento do preço de venda, como comissão.
O homem disse algo a Marielle, em francês. Ela abanou a cabeça, pegou na folha do catálogo e percorreu os números com o dedo.
– Ele confia em si. Contudo, eu prefiro fazer a soma.
Emma esperou até Marielle pousar o papel e fazer um gesto de assentimento com a cabeça na direção do velho. O imigrante agarrou o dinheiro, ergueu-se, fez uma vénia
e abandonou a divisão.
– Sente-se envergonhado – explicou Marielle. – A sua discrição, no que diz respeito ao nome dele...
Apontou para a linha do catálogo que descrevia os desenhos como sendo provenientes da coleção de um estimado cavalheiro.
– Ele está-lhe grato. Passará a palavra a outros imigrantes. É bem possível que você consiga obter mais bens do mesmo género.
Emma retirou mais dinheiro do interior da sua bolsa.
– E aqui estão vinte por cento para si, do que a Fairbourne’s recebeu como comissão.
Contou catorze libras. Marielle guardou as notas de imediato.
– Onde está o outro homem? Também tenho comigo parte do montante que lhe devo – disse Emma. – Refiro-me aos lucros angariados através da venda das mercadorias contidas
na carroça.
– Não sei coisa alguma sobre isso.
– Creio que sabe algo sobre o assunto. Ele frequenta esta zona, não é verdade?
Marielle encolheu os ombros.
– Talvez. Às vezes. É aqui que o tenho visto e que ele me vê, mas não frequentemente.
Emma estudou aquela jovem adorável, que dominava tão bem a despreocupação indiferente, à moda francesa. Marielle parecia estar entediada com a conversa.
– Sabe o nome dele? – pressionou Emma. – Sabe se ele mora perto daqui, ou apenas visita estas ruas?
Alguma vez o viu a entrar numa destas casas?
Fez uma pausa, mas decidiu arriscar o insulto.
– Ele costuma entrar nesta casa?
Marielle virou os seus olhos castanhos para Emma.
– Pensa que menti? Se o tivesse feito, por que razão diria agora a verdade?
– Porque pode ter adivinhado que isto envolve muito mais do que uma carroça, contendo vinho e sedas.
Marielle voltou o olhar para o jardim. Os seus lábios cerraram-se e estalou a língua.
– Tantos problemas somente por quatro xelins – murmurou ela.
– Mas talvez não sejam assim tantos por catorze libras – retorquiu Emma.
Marielle riu-se e, em seguida, abanou a cabeça.
– Não gostaria de a encontrar no mercado, a vender carne. Creio que acabaria por pagar o dobro do preço real pela minha encomenda.
O seu debate interior era visível. Finalmente, outro encolher de ombros indicou que alcançara uma decisão.
– Ele é um homem estúpido. Julgo que deve saber isso, se já se reuniu com ele. Os estúpidos são os mais perigosos.
– De que forma pode ele ser perigoso para si?
– O perigo reside na estupidez do homem, não nele próprio. Apareceu aqui... hum... há duas semanas.
Queria arrendar um quarto lá em cima. Oferecia uma boa quantia, como tinha feito com a carroça.
Demasiado boa. Compreende?
– Ele tencionava viver aqui?
Marielle revirou os olhos, aparentemente desesperada por ter de lidar com mais uma criatura estúpida; neste caso, Emma.
– O quarto não era para ele. Destinava-se a outra pessoa, que, em breve, viria para Londres. Quando realiza esse tipo de negócios, sente-se muito esperto. Faz isto
várias vezes, como se partilhássemos um segredo – respondeu, piscando um dos olhos, repetidamente, de uma maneira exagerada. – Nesses momentos, sei que, se não for
suficientemente cuidadosa, aquela criatura estúpida fará com que eu acabe na forca. Ouviu histórias sobre Marielle Lyon. Pensa que sabe o que não sabe, de todo.
– Qual foi a sua resposta à oferta?
– Disse-lhe que aqui só vivem mulheres e que não possuímos quartos para homens. Disse-lhe que devia sair e permanecer afastado. Expulsei-o.
Emma gostaria que o homem tivesse sido menos estúpido, ou que Marielle tivesse sido menos astuta.
– Para quem quereria ele o quarto?
– Não é óbvio? Alguém que precisa de se esconder e que não se atreve a tentar a sua sorte numa estalagem, nem na casa de uma mulher inglesa. Talvez seja o indivíduo
que enviou o vinho da carroça. Só sabia que aquele homem estúpido estava a envolver-me em problemas, dos quais eu não necessitava – respondeu Marielle, abanando
depois a cabeça. – Tenho sido vigiada por outros homens estúpidos. Como se fosse fazer aquilo de que eles suspeitam, em plena luz do dia! O nosso homem estúpido
não se lembrou de que, se ouvira histórias, outros também as tinham ouvido. Logo, de qualquer modo, ninguém poderia esconder-se aqui.
Emma riu-se da exasperação de Marielle.
– Pelo menos, agora ele já tem um nome. «Homem Estúpido».
– Mas existem tantos homens com esse nome. Como podemos distingui-los?
– «Homem Estúpido Gordo»? «Homem Estúpido Alto»?
Foi a vez de Marielle soltar algumas risadinhas.
– Há um homem que ocasionalmente me segue e que possui demasiada beleza para conseguir passar despercebido. Não sei se o seu nome deverá ser «Homem Estúpido Belo»
ou «Homem Muito Estúpido».
As gargalhadas de ambas ecoaram pela divisão, enquanto desfrutavam da irreverência daquela conversa. Então, Emma puxou os cordões da sua bolsa e levantou-se.
– Tinha esperança de que soubesse onde encontrá-lo. Se assim fosse, eu poderia resolver rapidamente a questão da carroça, assim como outros assuntos mais importantes.
Porém, uma vez que o avisou para permanecer afastado, vejo-me sem qualquer maneira de o contactar.
Marielle apontou para a bolsa.
– Tem dinheiro para lhe entregar, certo? Então não precisa de o contactar. Ele irá ter consigo, muito em breve. É o tipo de homem capaz de arriscar a forca por um
xelim.
No entanto, Emma pretendera marcar o encontro nos moldes que ela própria havia escolhido. Tal como Marielle, não queria ser vista na companhia daquele homem estúpido,
que poderia trazer-lhe problemas.
– Agora vou deixá-la. Talvez um dia tenha a bondade de me visitar. Podemos ficar sentadas no jardim e conversar sobre temas mais agradáveis.
A expressão de Marielle suavizou-se. Naquele momento, não parecia astuta, nem cautelosa.
– É muito gentil. Talvez aceite a sua sugestão – disse, acariciando o dinheiro que havia recebido. – Também irei procurar mais obras de arte para si.
*
Darius ainda estava a vestir-se quando o cartão lhe foi entregue, às duas da tarde. Ambury decidira fazer-lhe uma visita.
Southwaite deu ordens para que o trouxessem até ao quarto de vestir. Aceitou os últimos retoques do seu criado pessoal, enquanto aguardava que o amigo chegasse.
Quando o seu relógio de bolso já estava fixo no devido lugar e os punhos da camisa devidamente ajustados, virou a cabeça, a fim de contemplar o interior do quarto.
A divisão havia sido limpa. Todos os vestígios dos acontecimentos da noite anterior tinham desaparecido. Os aromas que Darius respirara durante o sono, assim como
o impacto que estes haviam tido na paixão vivida pelos dois... tudo fora eliminado por uma limpeza precisa, que era imposta em qualquer casa, pelos melhores criados.
Ainda bem que Emma fora embora quando o fizera, apesar da sua insistência o ter enfurecido consideravelmente. Contudo, se ela tivesse ficado até às seis da manhã,
Southwaite teria feito o possível para adiar a partida até às dez da manhã. E depois, até à uma da tarde. E, eventualmente, até a noite cair outra vez. Tentaria
reter Emma até ficar completamente saciado, o que poderia ter demorado vários dias, ou mesmo semanas.
Ambury entrou no quarto de vestir no momento em que o criado pessoal de Darius saía da divisão.
Atirou um jornal para cima do toucador e, em seguida, lançou-se para uma poltrona de costas altas, na qual Emma estivera sentada durante a refeição da noite anterior.
– Esta manhã, o conde mandou chamar-me – disse Ambury, apontando para o jornal. – Você deve-me duas horas da minha vida.
Darius ainda não vira o jornal daquela manhã. Leu a história que descrevia o leilão da Fairbourne’s.
Mencionava que vários relatos referiam que o visconde Ambury havia presenteado os convidados da festa de pré-apresentação com uma maravilhosa atuação de violino.
– Peço desculpa por tê-lo pressionado a tocar. Pelo menos, o conde não pode ameaçar cortar-lhe o rendimento, pois já lhe cede uma verba extremamente reduzida.
– Referi esse facto, sempre que tive a hipótese de o fazer, esta manhã. Gostei de lhe recordar que já jogou todos os seus trunfos – disse Ambury.
– Tendo em conta a sua situação, a compra daquelas joias é uma iniciativa bastante peculiar. Ignorou os meus esforços para o impedir de continuar a licitar. Agora,
tem nas mãos uma dívida substancial para com a casa de leilões.
Ambury fingiu estar confiante.
– Elas fascinaram-me. Sou louco por safiras.
– Por favor, diga-me que estava a licitar em nome de outra pessoa.
– Infelizmente, não. No entanto, tive uma noite boa nas mesas de jogo, durante a semana passada, que salvará a minha reputação. Apenas ficarei a dever, mais uma
vez, aos meus restantes credores, mas isso não é uma novidade, de todo.
– Se não o tivesse pressionado a atuar, você não teria visto as safiras.
– Não peça desculpa. Gosto de tocar para os outros, de vez em quando. Porém, notei que você estava ausente.
– Ouvi cada nota. Encontrava-me no exterior do salão de exposições.
Darius não tinha uma grande afinidade para com a arte musical. Apreciava razoavelmente a perícia dos maestros, mas escutava a maioria dos concertos com um envolvimento
puramente intelectual. A música de Ambury era diferente. Southwaite considerava embaraçoso o modo como esta o afetava.
– Não vim até aqui para conversarmos sobre a história do jornal, nem sobre o meu entusiasmo pelas joias – continuou Ambury. – Julguei que gostaria de saber que o
seu prisioneiro finalmente deu com a língua nos dentes, durante o dia de ontem. O Pitt contou-me a boa nova à noite.
Darius esperara receber notícias, mas os seus contactos no Ministério da Administração Interna haviam permanecido irritantemente silenciosos.
– O que o levou a começar a falar, após ter passado uma semana na prisão?
– Talvez a própria semana em cativeiro. O Pitt só mencionou que ele foi persuadido a revelar o que sabia.
– Penso que, como cavalheiros, será preferível não conhecermos os métodos utilizados para exercer essa persuasão. Por favor, diga-me que o Kendale não esteve envolvido
na tarefa.
– Não esteve, pode ficar tranquilo. Passou a tarde e parte da noite comigo, embora tenha odiado cada minuto. Apresentei-o a uma senhora que considera atraentes os
homens morenos, rudes e carrancudos.
Ela derreteu-se em sorrisos, profundamente emocionada. O Kendale ignorou-a, aumentando involuntariamente a atração. O resultado é que a senhora se apaixonou perdidamente,
mas o Kendale não consegue sequer lembrar-se do nome dela.
Darius imaginou a situação e riu-se.
– Sabemos o que o nosso prisioneiro persuadido divulgou?
– Insiste que não é um espião, mas sim um vulgar contrabandista. Supostamente, iria encontrar-se com um homem, que receberia o brandy e lhe providenciaria alojamento.
Então, juntos, iriam procurar ingleses com a mesma profissão, para forjarem uma aliança.
– Gostaria de ter estado presente quando ele foi interrogado, para poder ouvir essa história. Assim, teria uma noção melhor da sua credibilidade.
– Não acredito nela – afirmou Ambury, esticando as pernas e cruzando-as em seguida. – Existem incongruências na narrativa e não me soa verdadeira.
– Como assim?
– Qual é a probabilidade de um contrabandista, até mesmo um contrabandista francês, desconhecer o domínio do Tarrington sobre aquela área da costa? Essa ignorância
sugere que o homem não é um contrabandista, de todo, nem deixou a sua quinta há uma semana, com um plano grandioso e sem qualquer conhecimento sobre o seu novo negócio.
No entanto, ele referiu que planeara encontrar-se com alguém, após desembarcar, o que implica que é um veterano em tais procedimentos, logo... a história não faz
sentido.
Darius sentia-se inclinado a considerar seriamente a opinião de Ambury. O amigo tinha mais experiência naquele tipo de assuntos, devido às investigações discretas
que realizava para complementar o seu parco rendimento. Como resultado dessa atividade, Ambury também desenvolvera a capacidade desconcertante de se colocar no lugar
dos criminosos e ver as situações através dos olhos deles, o que alargava a esfera de possíveis teorias, quando se entregavam a especulações daquele género.
– Se você estiver certo, enviarão outro espião, quando descobrirem que este foi apanhado – analisou Darius.
– Eu diria que isso é bastante provável. É o que prevejo que aconteça.
– Gostaria de saber se ele revelou a identidade do homem com quem ficou de se encontrar.
– O Pitt não disse coisa alguma sobre esse aspeto. Se aceitarem a história, o homem permanecerá simplesmente na prisão, a definhar lentamente. Se não acreditarem
na narrativa, antevejo a aplicação de mais persuasão. Duvido que obtenham algo importante. Muito provavelmente este prisioneiro não teria como missão trazer informações,
mas sim recebê-las. Quem ia entregar-lhas, provavelmente já soube que o plano não correu como previsto. Por isso, desaparecerá por agora, se o puder fazer, mas continuará
a querer transmitir as informações para França.
Ambury enumerara as diversas possibilidades com uma precisão tranquila. Darius não gostava do facto de muitas delas revelarem lacunas nas suas iniciativas para evitar
tais ocorrências. Se não conseguiam impedir que um homem entrasse e saísse de Inglaterra com impunidade, estavam simplesmente a perder tempo.
– Vou escrever ao Tarrington e aos outros. Dir-lhes-ei para ficarem atentos a barcos inesperados, que transitem em qualquer uma das direções – disse Southwaite.
– Assim, pelo menos, descobriremos se a nossa rede possui demasiados elos fracos para ser eficaz.
Dois dias após o leilão, pelas cinco da tarde, Emma já vira números suficientes para abominar a visão de mais algarismos. Até apreciava a ideia de ser responsável
pela contabilidade das consignações e das vendas. Estava apenas cansada das filas intermináveis de cálculos. Começara, inclusivamente, a experimentar sentimentos
pouco amigáveis, quando contemplava as expressões exibidas pelos rostos dos agentes, solicitadores e mordomos, que vinham pagar as quantias em dívida.
O dinheiro chegava sob todas as formas possíveis e imagináveis. As pilhas de moedas e cheques bancários eram extraordinariamente abundantes. Em dois casos, as rendas
de propriedades tinham sido cedidas à Fairbourne’s. Uma baronesa aparecera no escritório e retirara um colar de ouro, que usava ao pescoço, ali mesmo. Emma não fora
demasiado orgulhosa para o pesar, de imediato, e aceitá-lo, em substituição de um meio de pagamento mais tradicional.
Os quadros abandonavam o edifício à medida que o dinheiro entrava. O mesmo acontecia com os restantes artigos, até mesmo, notou com alívio, as sedas. Ao riscar as
obras que tinham sido expedidas e ao verificar o dinheiro recebido, Emma reparou que restavam somente três pessoas com contas para acertar. Uma delas estava com
Emma, no escritório, quando o penúltimo registo contabilístico foi concluído.
Cassandra aguardava sentada, com uma centelha de avareza nos olhos. Emma transportou, cuidadosamente, dois montes de moedas e cheques, em direção à amiga.
– Estas são as duas mil e trezentas libras das suas joias. E esta é a comissão da coleção do conde.
Emma observou Cassandra, atentamente, procurando sinais de confusão, ou de surpresa, relativamente a este último montante. Tinha quase a certeza absoluta de que
não houvera qualquer mal-entendido sobre a comissão. Contudo, desde que Southwaite sugerira essa possibilidade, essa mera ideia atormentava-a constantemente.
– Aqui estão dez por cento do que a Fairbourne’s recebeu, tal como foi acordado – acrescentou Emma, de modo a esclarecer completamente qualquer eventual confusão.
Cassandra hesitou, durante uma fração de segundo. Embora a surpresa houvesse toldado, por esse breve instante, a expressão da jovem, não se vislumbrou nesta um choque
óbvio, pelo menos, nem quaisquer indícios de objeção, certamente. Cassandra contemplou as diversas formas de lucro.
– Será muito incómodo transportar todas estas moedas para casa. Não fazia ideia de que as transações deste género pudessem ser realizadas com outros meios de pagamento,
para além de cheques bancários.
– Se estiver disposta a esperar, podemos dar-lhe um cheque, referente ao total, já amanhã, ou no dia seguinte. Porém, muitos dos proprietários estão com bastante
pressa para receberem o dinheiro.
– Não mais do que eu – disse Cassandra, remexendo na pilha e erguendo depois um objeto redondo. – O que é isto?
– O visconde Ambury necessita de alguns dias para conseguir efetuar o pagamento. Deixou esse anel como garantia. As joias ficarão consigo. Se concordar, ele irá
visitá-la, para entregar o dinheiro e receber os artigos.
Cassandra olhou para o anel de ouro, que possuía uma pedra preciosa vermelha. Semicerrou os olhos, tentando examinar o interior da peça. Procurava inscrições.
– Parece-me uma solução problemática – murmurou.
– Se preferir, posso receber o pagamento aqui e guardar os brincos até lá – sugeriu Emma. – Southwaite também se ofereceu para avançar o valor na íntegra, se o atraso
não for aceitável. Nesse caso, Ambury reembolsará diretamente o conde, assim que tiver o dinheiro.
Cassandra ergueu o olhar.
– Essa parece-me uma solução ainda mais problemática. Ficarei com o anel, como garantia. De qualquer maneira, suspeito que vale mais do que os brincos – comentou
ela, guardando a joia na sua bolsa. – Presumo que não fornecem sacos para transportar as moedas.
– Se levar a quantia que lhe devemos sob esta forma, não só cederemos sacos como também providenciaremos uma escolta. Permita-me falar com o Obediah sobre o assunto.
Emma deixou Cassandra sozinha no escritório. Entrou depois no salão de exposições, ao mesmo tempo que outro dos seus derradeiros clientes.
– Esperava-o mais cedo – disse Emma.
– O meu atraso foi lamentável – desculpou-se Southwaite. Olhou em redor, para ver quem mais estaria no salão. – No entanto...
Puxou-a para um abraço, acompanhado por um beijo preguiçoso e sedutor.
Emma permitiu que Darius a envolvesse, durante alguns instantes, porque as carícias do conde faziam o seu coração doer e cantar de alegria, simultaneamente. Evocavam
o estado de espírito da celebração que tivera lugar na noite anterior, assim como a familiaridade que fora construída à luz das velas.
Contudo, não permaneceriam sozinhos por muito tempo e Cassandra podia sair do escritório a qualquer momento. Delicadamente, mas com firmeza, Emma afastou-se de Southwaite,
empurrando-o.
O conde aceitou a separação forçada, pelo menos provisoriamente. Inseriu a mão no interior do seu casaco e retirou um papel.
– Pelo Rafael.
Caminhou até à parede, com o intuito de admirar a pintura. Naquele momento, era o único quadro que ainda estava pendurado na superfície cinzenta. Entretanto, Emma
pegou no cheque e examinou-o.
– Não deduziu a sua parte da comissão.
– Pensei fazê-lo, mas percebi que isso poderia complicar os seus cálculos. Será preferível que trate todos os lotes da mesma maneira, para que não haja qualquer
confusão.
Emma preferia que Darius tivesse efetuado o pagamento em dinheiro, como alguns dos outros clientes, pois levaria algum tempo a conseguir levantar o cheque. A menos
que...
– Poderia alterar o cheque, de modo a que a beneficiária passasse a ser a Cassandra? Assim, ela não teria de carregar tantos sacos de moedas até casa. Será muito
mais fácil para a Fairbourne’s lidar com esse inconveniente.
– Não vejo porque não. O banco conhece a minha caligrafia, por isso deve aceitar a alteração.
Foram até ao escritório e Southwaite fez a modificação sugerida por Emma. Feliz com os cheques que reabasteceriam a sua fortuna, e ainda na posse dos brincos de
safira, Cassandra abandonou a casa de leilões.
Emma agarrou em alguns papéis, que estavam guardados no interior de uma gaveta. Em seguida, ela e o conde regressaram ao salão de exposições e à pintura.
– Quer que seja entregue em sua casa? Ou acondicionada para transporte? – inquiriu Emma.
– Não é necessário. Irei levá-la comigo. É pequena e eu trouxe a minha carruagem.
Darius contemplou a sua nova aquisição. Emma contemplou o conde. Enquanto ela o observava, um movimento nas janelas situadas mais a norte atraiu a sua atenção. O
que viu, horrorizou-a.
A última pessoa a quem tinha de pagar encontrava-se do lado de fora das janelas, gesticulando para Emma. O «Homem Estúpido» contactara-a realmente, com o fito de
obter o seu dinheiro, mas chegara no momento mais inoportuno.
Southwaite começou a afastar-se da parede. Emma via-o a deslocar-se, como se o tempo tivesse abrandado. O «Homem Estúpido» estava precisamente no meio das janelas
que iluminavam a fachada norte. Apontava numa direção e depois na outra, repetidamente, encolhendo os ombros, como se perguntasse para onde devia ir.
Em poucos segundos, o conde ia ver um sujeito peculiar, de intenções questionáveis, a fazer uma pantomima que implicava um certo grau de familiaridade com Emma.
Desesperada, Emma envolveu Southwaite num abraço e beijou-o vigorosamente. O conde pareceu ficar surpreendido, mas não se importou, de todo. Com os braços em redor
do pescoço de Darius, Emma beijou-o de uma forma agressiva, enquanto gesticulava atrás das costas do conde, tentando dizer ao «Homem Estúpido» que devia dirigir-se
para o jardim.
Os papéis que Emma segurava caíram no chão, quando ela relaxou os músculos da mão. Southwaite parecia não ter qualquer consciência da realidade que o circundava.
Os sentidos do conde estavam totalmente concentrados nos beijos cada vez mais ardentes que ambos partilhavam.
Darius moveu a boca até ao pescoço de Emma, dando-lhe uma oportunidade para observar as janelas da fachada norte. O visitante havia desaparecido. O amante de Emma
julgou que o seu suspiro profundo de alívio era outra coisa.
– Venha comigo – disse Southwaite, entre beijos, que Emma considerou mais tentadores do que teria pensado ser possível naquela situação. – Pode tratar das tarefas
que restam noutro dia.
– Não serei capaz de lhe dar a devida atenção, se deixar assuntos pendentes.
– Vou encarar isso como uma promessa de que me dará a devida atenção mais tarde.
Emma não fizera qualquer promessa. O conde sabia-o. Ficou com o coração partido por ainda não poder chegar a uma decisão. Até falar com o homem que aguardava no
jardim, Emma não tinha a liberdade de se oferecer sob quaisquer condições.
Darius aparentemente não reparou que Emma deixara a sua suposição a pairar no ar. Abraçou-a e olhou para ela. Emma não detetou qualquer ânsia por uma resposta nos
olhos do conde. Em vez disso, encontrou a perspicácia da noite anterior, como se Southwaite percebesse muito mais do que ela podia imaginar.
O conde beijou a testa de Emma.
– Tem toda a razão. Deve terminar o que lhe resta fazer. Não quero continuar a partilhá-la com os negócios da leiloeira.
Soltou-a e recuou. A sua bota aterrou sobre os papéis que Emma deixara cair. Southwaite apanhou-os.
– São os documentos do Rafael – explicou Emma.
O conde guardou-os no interior do casaco e esticou o braço, para retirar o quadro da parede.
– Se houve ocasião alguma em que uma pintura não precisou de um historial formalmente registado para garantir a sua autenticidade, estamos perante tal obra. Não
se esqueça de agradecer, da minha parte, ao cavalheiro estimado e discreto que a consignou.
Assim que Southwaite abandonou a Fairbourne’s, Emma chamou Obediah. Ele emergiu do armazém.
– Preciso que me faça mais um favor, velho amigo – pediu Emma. – Há uma grande quantidade de dinheiro no escritório. Por favor, encontre um saco e coloque a pilha
de dinheiro dentro dele. Traga-o até mim. Depois, pode ausentar-se.
Obediah não manifestou qualquer surpresa relativamente às instruções que lhe haviam sido dadas.
Voltou para o armazém, com o intuito de procurar um saco adequado.
Após Obediah ter regressado e lhe ter entregado um saco pesado, Emma dirigiu-se para o canto noroeste do salão de exposições e saiu do edifício, atravessando a porta
que dava acesso à área ajardinada.
Ao entrar no jardim, não conseguiu ver de imediato o seu visitante. Já ia a meio de um caminho, quando ele decidiu revelar a sua presença, assobiando por trás de
um enorme arbusto.
– Pensei ser melhor esconder-m’aqui – explicou, quando Emma foi ter com ele. – Não queria qu’aquele seu fidalgo desconfiasse de nós.
Emma nunca gostara do homem, por várias razões. Contudo, naquele momento, o sorriso lascivo que ele exibia provocou-lhe uma repugnância profunda.
– Não me insulte com as suas insinuações, ou contarei tudo àquele cavalheiro e o senhor sofrerá as consequências.
– Vou ficar contente, assim qu’acabar os meus negócios consigo. Pode crer. Conheço peixeiras mais amáveis.
– Então, finalizemos os nossos negócios.
Deve terminar o que lhe resta fazer. Não quero continuar a partilhá-la com os negócios da leiloeira.
– Tenciono resgatar o prémio, para que o assunto fique definitivamente resolvido.
– Conseguiu as três mil libras?
Emma pousou o saco no chão.
– Tenho aqui mil e quinhentas libras. Precisarei de recorrer ao favor.
Rezou para que este não consistisse em transacionar carregamentos de vinho, nem noutra tarefa igualmente visível.
– Ora bem, isso vai ser interessante – disse o homem, esfregando o queixo, de maneira pensativa. – Já esperavam isso, mas eu disse que, havendo alguém capaz de dar
as três mil libras, seria a senhora.
– Aparentemente, quem o contratou sabe mais sobre as finanças de uma leiloeira do que o senhor.
Agora diga-me qual é o favor, ou então diga-me onde posso ser informada sobre o que fazer. Não tente iludir-me, ou não receberá um único penny.
Ele olhou por cima do ombro e esticou-se, para conseguir ver a casa. Nenhuma daquelas precauções era um bom sinal. Emma preparou-se para uma missão que não iria
apreciar, de modo algum.
Tendo a certeza de que não seria ouvido, o homem falou de uma maneira mais clara e sóbria do que anteriormente. Falou com tanta clareza, que Emma se apercebeu de
que o «Homem Estúpido» não era tão estúpido como ela e Marielle pensavam.
– O favor seria exigido à mesma, pagasse a senhora o que pagasse, agora. Por isso, dando só as mil e quinhentas libras, até conseguiu uma pechincha. Tem d’acabar
o qu’o seu pai começou – explicou ele. – Tem de fazer o qu’ele estava a fazer, quando deu o passo em falso e caiu.
CAPÍTULO 26
Darius já se encontrava a oitocentos metros de distância da Fairbourne’s, quando, finalmente, colocou de parte o Rafael. Como era uma pintura pequena, necessitava
de ser estudada atentamente. O conde decidiu que não iria pendurá-la. Colocá-la-ia num estojo, na biblioteca, para poder ser observada de perto, tal como a observara
durante os últimos quinze minutos.
A protuberância existente no seu casaco crepitou, quando pousou o quadro sobre o banco oposto.
Southwaite recostou-se no assento e tirou do bolso o maço de documentos que Emma lhe dera.
Era um historial de proprietários muito completo. Passo a passo, a partir de meados do século XVI, até meados do presente século, as páginas descreviam o percurso
da pintura, enquanto passava pelas mãos de diversas personagens. Existiam referências a documentos e cartas, que apoiavam as entradas mais antigas. Do século XVII
em diante, surgiam referências aos inventários oficiais ingleses.
A última entrada, rabiscada na extremidade inferior da última página, requeria algum esforço para ser decifrada, porque a tinta ficara esborratada e ténue, como
se um líquido tivesse pingado sobre as letras.
Parecia mencionar que a obra havia sido leiloada pela Fairbourne’s há quinze anos.
Darius segurou o papel na proximidade da janela e tentou perceber o que lá estava escrito. O quadro fora adquirido por um conde... Não, fora adquirido por conta
própria. Aquilo significava que o leiloeiro licitara contra os seus próprios clientes, com o intuito de comprar a obra em questão.
Southwaite pousou os documentos, surpreendido com a sua descoberta. Pegou novamente no quadro e ergueu-o. Maurice Fairbourne havia sido o último proprietário da
pintura. Era ele o estimado cavalheiro cuja coleção incluíra o Rafael.
Por que razão teria Emma vendido um tesouro daqueles? Antes da coleção do conde ter sido consignada poderia ter feito algum sentido, se ela quisesse aumentar a qualidade
dos lotes do leilão, ou se necessitasse de fundos para a manutenção da residência familiar. No entanto, quando o leilão fora realizado, Emma já sabia que iria obter
uma quantia suficientemente elevada para cobrir as despesas domésticas durante vários meses e o Rafael, embora ainda fosse uma contribuição significativa, deixara
de ser essencial para o prestígio do evento.
Havia somente uma explicação que fazia sentido. Tal como Lady Cassandra e muitas outras pessoas que decidiam leiloar as suas relíquias familiares, Emma devia precisar
de dinheiro. E, para ter sacrificado aquela pintura, tratava-se certamente de um grande montante.
Darius duvidava que Emma necessitasse de dinheiro pelos motivos mais comuns. Não existia qualquer indício de que ela jogasse. Era possível que tivesse acumulado
dívidas, em modistas e chapeleiros, mas o conde não observara sinais de extravagância que o sugerissem.
Southwaite não podia ignorar que Emma havia sido extremamente reservada sobre aquela questão. Ela poderia alegar que apenas tentara manter em segredo as suas finanças
pessoais, cometendo a pequena fraude inofensiva de afirmar que o Rafael havia sido consignado por um cliente anónimo. Contudo, esta afigurava-se como uma solução
excessivamente complexa, se não houvesse uma razão subjacente mais substancial do que essa.
Agora que sabia quem era o «estimado cavalheiro», Darius não seria capaz de desfrutar plenamente da sua nova aquisição. Algo obrigara Emma a vender aquele quadro
e ele lembrar-se-ia disso sempre que o contemplasse.
Southwaite disse ao cocheiro para inverter a marcha dos cavalos, de modo a regressarem à Fairbourne’s. Devolveria a pintura a Emma. Seria um presente. Se Emma tentasse
recusar a oferta, deixaria o Rafael na leiloeira, para que ela não tivesse outra opção senão ficar com o quadro.
Não lhe perguntaria por que motivo tinha mentido. Embora quisesse sabê-lo, desesperadamente, suspeitava que a resposta não abonaria a favor da Fairbourne’s, nem
de Maurice. Provavelmente, também não favoreceria a própria Emma.
Darius ordenou ao cocheiro que parasse a carruagem, antes de terem alcançado a porta da casa de leilões. Algo atraíra a atenção dele e teria de lidar com essa visão
inesperada, de imediato.
Southwaite encostou a cabeça à janela e olhou para o exterior. Escondido no meio de vários corcéis, que se encontravam amarrados perto dali, estava um grande cavalo,
com pelagem castanha arruivada. O
seu cavaleiro alimentava-o à mão, calmamente, com pedaços de uma maçã. Usava uma faca pequena para cortar, preguiçosamente, o fruto. A presença do cavalo e do cavaleiro
naquele local, a uma dezena de portas de distância da Fairbourne’s, enfureceu Darius.
– Disse-lhe para não a seguir – vociferou Southwaite. – Disse-lhe para a deixar em paz.
O cavaleiro pousou o resto da maçã na palma da mão e colocou-a sob a boca do cavalo. Quando o fruto desapareceu, aproximou-se da carruagem, apoiou os cotovelos no
rebordo inferior da janela e espreitou para o interior do veículo.
– Não estou a segui-la. Não estou sequer a vigiá-la. Essa devia ser a sua tarefa, recorda-se?
– Então que raio está a fazer aqui, Kendale?
– Talvez pretenda encomendar um casaco novo ao alfaiate que trabalha nesta rua – respondeu, apontando para trás com o polegar, por cima do seu próprio ombro.
Com aquilo, Kendale queria dizer que se encontravam numa rua pública. Logo, ele podia estar ali, se assim o desejasse. O que era verdade. Porém, Darius duvidava
que, nos últimos meses, Kendale tivesse realmente encomendado um casaco novo. Outros assuntos tinham ocupado o seu tempo e a sua mente.
– Está a afirmar que não veio até aqui por causa da Fairbourne’s?
– Estou a afirmar que não me desloquei até cá por causa dela. No entanto, se ficou zangado por ela ser importante para si, de alguma forma, o facto de você também
estar aqui poderá revelar-se vantajoso, neste momento.
– Porquê? Ela está a ter outro encontro com a Marielle Lyon?
– Essa reunião ocorreu ontem. Se você a tivesse vigiado, como é seu dever, saberia disso – arguiu Kendale, franzindo a testa e assumindo uma expressão severa. –
Você e o Ambury provaram ser completamente inúteis.
Darius abriu a porta da carruagem e desceu para a rua.
– Isso é porque você embarcou numa missão de loucos. Seria impossível manter sob vigilância todos os habitantes de Inglaterra em redor dos quais pairam rumores e
suspeitas extremamente vagos. Não insultarei cidadãos que cumprem a lei, apenas para satisfazer a sua...
Southwaite interrompeu o seu discurso, quando, subitamente, Kendale ficou tenso. Só lhe faltava apontar na direção da presa, como um cão de caça.
Darius seguiu o olhar penetrante do amigo, que se concentrara na Fairbourne’s. Um homem caminhava ao longo da fachada lateral do edifício, transportando um saco.
O sujeito usava roupas mal ajustadas ao seu corpo e um chapéu baixo, de abas planas.
– Quem é ele? Um ladrão?
Kendale abanou a cabeça.
– Está demasiado descontraído para ser um ladrão. Ainda não sei o nome dele.
– Como é que o conhece?
– Visitou a Marielle Lyon, há duas semanas. Pelas palavras pouco amigáveis trocadas entre ambos, aquando da saída do indivíduo, deduzi que ela estava a expulsá-lo.
Como a Marielle passa a maior parte do tempo no estúdio que dirige, deixei um criado a vigiá-la, para começar a dedicar alguns dias a seguir este sujeito.
– Porquê?
– Porque ele parece-me muito suspeito, principalmente – explicou Kendale. – No entanto, quando Mademoiselle Lyon o expulsou do estúdio, repreendeu-o severamente,
em francês. Disse que ele devia ser extraordinariamente estúpido para ir ter com ela, e que ele só lhe traria mais problemas. Considerei essas declarações deveras
interessantes. Por isso, passei a segui-lo, ocasionalmente. Desloca-se bastante pela cidade.
E agora viera até àquele local.
– Imagine a minha surpresa, ao perceber que ele ia visitar Miss Fairbourne – acrescentou Kendale, com uma delicadeza exagerada. – Contudo, trata-se provavelmente
de apenas mais uma coincidência.
– Você não sabe se aquele homem a visitou, efetivamente. Ela pode não estar lá.
– Ela não saiu, após você ter abandonado o edifício, e a carruagem dela ainda se encontra parada ao fundo da rua. Ela está lá.
O homem que Kendale seguia já progredira bastante, caminhando pela rua. Kendale desfez os nós que prendiam o seu cavalo e subiu para a sela.
– Viu-me a sair da casa de leilões? – perguntou Darius.
– Sim, vi. Agora, saia da minha frente, por favor. Creio que será interessante descobrir para onde aquele saco se dirige.
Kendale manobrou o cavalo, de modo a desviar-se de Southwaite, e avançou pela rua baixo, a passo lento. Da altura que atingia, montado no animal, seria capaz de
ver a sua presa a uma distância considerável.
Darius disse ao cocheiro para seguir sozinho até à Fairbourne’s. Esticou o braço, a fim de retirar a pintura do interior da carruagem, e percorreu a pé o curto intervalo
que o separava da porta do edifício.
Tinha a intenção de não exigir qualquer esclarecimento, ao devolver o quadro. No entanto, após ter ouvido as novidades de Kendale, duvidava que fosse capaz de não
fazer algumas perguntas. Apercebera-se de que, se o amigo o tinha visto a abandonar a Fairbourne’s, meia hora atrás, isso significava que o derradeiro visitante
de Emma conduzira Kendale até àquela rua há mais de trinta minutos. Contudo, Southwaite não vira o homem no interior da leiloeira, enquanto pagava as suas dívidas.
Aquelas revelações perturbaram Darius, em vez de o enfurecerem. Aparentemente, Emma guardava mais segredos do que ele imaginara. Pior ainda, talvez os assuntos que
haviam ameaçado a tranquilidade mental de Emma, quando ambos estavam juntos, a ameaçassem também de outras formas, naquele momento.
A porta da casa de leilões estava destrancada. Southwaite observou a rua. Ainda conseguia vislumbrar Kendale, progredindo lentamente, passo a passo. A carruagem
de Emma também se encontrava visível, encostada no final da rua, esperando pela sua futura ocupante.
Darius entrou no edifício. O salão de exposições, tão recentemente repleto de pinturas e luxos, estava agora totalmente vazio. Não eram audíveis quaisquer sons indicativos
de que alguém estivesse no local.
Riggles aparentava ter-se ausentado.
Procurou Emma no escritório. Esperava encontrá-la sentada à secretária, debruçada sobre a contabilidade. Em vez disso, deparou-se apenas com alguns vestígios das
receitas do leilão. Uma pequena pilha de moedas e cheques fora deixada completamente desprotegida. Qualquer ladrão poderia facilmente entrar no escritório e levá-la
consigo. Southwaite não podia acreditar que Emma tivesse sido tão descuidada.
Pousou o Rafael contra uma parede, no salão de exposições, e saiu do edifício, através da porta que dava acesso ao jardim. Então, viu Emma, em pé, no meio do jardim,
imóvel e absorta. A expressão do seu rosto lembrou a Southwaite as preocupações passageiras que a distraíam ocasionalmente, até mesmo no rescaldo do prazer. Porém,
naquele momento, essas preocupações exerciam um domínio absoluto sobre Emma.
Subitamente, as perguntas que decidira fazer sobre o Rafael deixaram de ser importantes. Assim como as diversas coincidências que Kendale havia encontrado. Emma
parecia perdida, como se não tivesse um único amigo no mundo.
– Emma – chamou o conde, na esperança de que ela decidisse que, afinal, tinha pelo menos um.
Emma não o ouviu. Nem sequer reparou na sua presença. Continuava de pé, banhada pela luz do sol, que se tornava cada vez mais ténue. O vestido preto destacava-se
contra o fundo verde formado pelas folhas. Emma franzia a testa, exibindo uma fisionomia apreensiva e consternada. Era óbvio que algo acontecera durante a última
hora. O que quer que fosse, provocara-lhe uma aflição profunda, que excedera a capacidade de Emma para conter as suas próprias emoções.
O que contemplaria com aquele olhar sombrio? Nada que fosse alegre, isso era certo. A perspetiva de algo negativo afetava todo o corpo de Emma e a forma como ela
se abraçava, tentando aquecer-se. A angústia era visível nos olhos dela, os quais, em vez de observarem o que a rodeava, fitavam apenas os seus pensamentos. Esses
pensamentos causavam-lhe medo. Muito medo.
Darius sabia – simplesmente sabia – que o assunto que a inquietava, naquele preciso momento, era muito mais importante do que alguns lotes de mercadorias ilícitas
leiloados pela Fairbourne’s. Estava relacionado, de alguma forma, com o homem que transportava o saco.
Southwaite não a chamou de novo. Supôs que Emma não gostaria que ele a visse assim. Também suspeitava que ela não ficaria mais aliviada pelo facto de partilhar o
fardo. Afinal de contas, já o carregava sozinha há algum tempo e nunca lhe pedira conselhos nem ajuda. Emma não confiava nele, relativamente àquela questão. Talvez
não se atrevesse a fazê-lo.
Darius voltou para o salão de exposições e pendurou o Rafael na parede. Depois, abandonou a Fairbourne’s. Deu instruções ao seu cocheiro para seguir o trajeto de
Kendale, com o intuito de o intercetar.
Após ter entregado o dinheiro ao seu visitante, Emma permaneceu no jardim durante bastante tempo.
Ondas de náuseas atormentavam-na e teimavam em não parar. Arrepios desagradáveis percorriam-lhe o corpo. Porém, não sentia frio. Muito pelo contrário. O mal-estar
tinha origem no seu espírito, mas provocava diversas manifestações físicas.
Nunca voltaria a apelidar o seu visitante de «Homem Estúpido». O indivíduo demonstrara ser extremamente astuto. Se alguém tinha sido estúpido, fora ela própria.
Não relativamente a tudo. Fora suficientemente inteligente para não partilhar o seu problema com ninguém. Mesmo quando se sentira tentada, várias vezes, a contá-lo
a Southwaite, mantivera-se calada.
Graças a Deus que o fizera.
A situação de Emma complicara-se consideravelmente. Qualquer outra participação em atividades de contrabando iria parecer uma simples brincadeira de crianças, quando
tudo aquilo terminasse. Mesmo que não desse um passo em falso, mesmo que recebesse Robert nos seus braços, dentro de quinze dias, jamais ultrapassaria completamente
a vergonha que sentia por ter concordado com o que lhe haviam exigido.
Um «favor», essa era a designação que tinham usado. Dificilmente poderia ser considerado um favor.
Deveria ter dado mais importância às revelações feitas por Marielle, no dia anterior. A experiência de vida da jovem francesa afiara extremamente bem a sua perceção.
O que dissera ela? Se não for suficientemente cuidadosa, aquela criatura estúpida fará com que eu acabe na forca.
Se Darius soubesse a verdade, nunca lhe perdoaria. Caso os atos de Emma fossem descobertos, a sua relação com ela tornar-se-ia, instantaneamente, o erro mais grave
que o conde alguma vez cometera. Pior ainda, o próprio Robert poderia repudiá-la. O irmão de Emma não quereria carregar a culpa de ser o motivo das ações criminosas
dela.
Quando Robert lhe escrevera, teria ele pressentido que os seus raptores o haviam usado para chantagear o pai e que, atualmente, o utilizavam para chantagear a irmã,
envolvendo-os, de início, em atividades criminosas comprometedoras e obrigando-os, mais tarde, a praticar atos de falsidade e deslealdade?
Emma sentou-se num banco de pedra e abraçou-se, numa tentativa de parar as tremuras causadas por aquele medo, que não se desvanecia. Ouvia os seus próprios pensamentos,
assim como a sua pergunta final. A mente de Emma já tentava evitar dar um nome ao que ela iria fazer.
Falsidade e deslealdade dificilmente poderiam ser consideradas palavras passíveis de descrever, com franqueza, aquele «favor». Emma estaria a trocar a vida de Robert
por nada menos do que um ato de traição e não mentiria a si mesma acerca da verdadeira natureza das suas ações.
O crepúsculo invadiu a cidade, enquanto Emma permanecia sentada no banco. Finalmente, Mr. Dillon entrou no jardim.
– Vai querer ir para casa agora, Miss Fairbourne? O cavalo necessita de comer algo e beber um pouco de água.
Emma forçou o seu próprio corpo a erguer-se.
– Fui egoísta. Tivemos um dia longo e ficaremos todos melhor com alguma comida e água no estômago.
Mr. Dillon considerou a resposta de Emma muito espirituosa. Seguiu-a até ao interior do salão de exposições, atravessando a porta que ligava a divisão ao jardim,
e aguardou enquanto Emma se deslocava ao escritório para guardar, dentro da bolsa, o dinheiro que restara.
– Devo levar isto? – questionou o cocheiro, quando Emma regressou para junto dele. Mr. Dillon apontou para a parede.
Um quadro estava agora pendurado na superfície outrora vazia. Mesmo sob a luminosidade ténue que banhava a pintura, os seus azuis e vermelhos brilhavam devido a
uma luz intrínseca. Mais uma vez, São Jorge matava o seu dragão, enquanto uma princesa assistia ao feito heroico.
Emma olhou em redor, abarcando a totalidade do salão de exposições. Parte dela esperava ver Darius a emergir de um canto escuro. O conde devia ter devolvido o quadro,
abandonando a leiloeira logo de seguida.
Provavelmente, Southwaite decifrara o último registo do historial de proprietários, apesar dos esforços de Emma para dificultar a tarefa em questão. O conde percebera
que a pintura pertencera a Maurice Fairbourne e que Emma a vendera por conta própria.
Será que devolvera o quadro por puro sentimentalismo, para que Emma pudesse guardar uma das obras mais apreciadas da coleção do seu pai? Ou será que suspeitava para
onde iria o dinheiro obtido através da venda do quadro e pretendia distanciar-se completamente das atividades ilegais de Emma?
– Sim, traga-o, por favor, Mr. Dillon. É demasiado valioso para ficar aqui sem qualquer tipo de proteção.
Já na carruagem, Emma admirou o Rafael, durante alguns minutos, pensando que seria agradável ter um São Jorge que matasse os seus dragões. Em seguida, colocou de
lado a pintura e começou a compor a carta que teria de enviar a Southwaite, para o informar de que a ligação pessoal existente entre ambos tinha, definitivamente,
terminado.
CAPÍTULO 27
Na noite seguinte, às dez horas, Darius aproximou-se de uma casa gigantesca, localizada em Grosvenor Square. Preferiria não ter de bater àquela porta, mas não conseguia
lembrar-se de outra maneira de obter rapidamente respostas para as suas questões.
A primeira pergunta seria respondida dentro de breves instantes. Será que o receberiam?
Um criado guardou-lhe o chapéu e outro aceitou o seu cartão.
– Por favor, diga a Sua Excelência que a minha visita está relacionada com assuntos governamentais – pediu Southwaite.
Darius aguardou no átrio da entrada. A casa parecia tranquila. O silêncio não era quebrado por sons de um jantar festivo. Não se ouvia sequer o ressoar de passos
humanos. No entanto, o duque devia estar em casa, pois o cartão de Southwaite havia sido devidamente encaminhado.
Darius lutou para controlar a sua impaciência. Havia a hipótese de o deixarem ali à espera, durante bastante tempo, sem haver qualquer reação à apresentação do seu
cartão de visita. Seria uma retaliação infantil, por todas as vezes que Southwaite o ignorara, mas a sociedade permitia que os duques ficassem com o orgulho ferido
pelos motivos mais inofensivos.
Pareceu decorrer uma hora até o criado regressar. Porém, após consultar o seu relógio, Darius percebeu que tinham passado somente quinze minutos. Disseram-lhe que
Sua Excelência o receberia.
Southwaite seguiu o servente, que usava uma peruca, até às divisões públicas da residência, localizadas num dos pisos superiores.
O duque de Penthurst encontrava-se na biblioteca. Aparentemente, o anfitrião de Darius estivera a desfrutar de um serão calmo, lendo na companhia de dois dos seus
cães.
Penthurst colocou de parte o seu livro, quando a entrada de Southwaite foi anunciada. Em seguida, apontou na direção de uma cadeira, posicionada de frente para o
seu próprio assento. Esticou as pernas, cruzou as botas e deixou uma mão pendente, para administrar algumas coçadelas ao cão mais próximo.
Submeteu Darius a um escrutínio intenso, que fazia os seus olhos escuros parecerem ainda mais fechados do que o costume.
– Com que então, assuntos governamentais. Segundo me recordo, você estava nos bancos de trás e do lado errado20.
– Não disse que lhe trazia informações sobre o governo.
– Por outras palavras, deseja que o fluxo de informação se realize no sentido inverso.
– Sim, precisamente.
Penthurst pareceu considerar a ideia de Southwaite bastante divertida. Mesmo enquanto sorria, os olhos do duque eram iluminados por centelhas temperamentais.
– Por que razão lhe daria informações relativas a assuntos de Estado?
Não existia qualquer razão para que Penthurst o fizesse. Pelo menos, atualmente. Contudo, até há bem pouco tempo, o duque talvez acedesse ao pedido de Darius simplesmente
por amizade.
– As informações que procuro têm que ver com a rede de vigilância que tentámos montar ao longo da costa.
– Ah, sim, isso. Conseguiram concretizar o projeto? Era um plano muito ambicioso.
– O senhor duque é um homem extremamente ambicioso.
– Ao que me recordo, foi um esforço conjunto.
– Ainda é. Presentemente, está a funcionar em pleno. Aliás, já opera, eficazmente, há mais de um mês.
Temos obtido alguns resultados positivos.
– Presumo que se refere ao prisioneiro que trouxe consigo da costa.
– Teve conhecimento da ocorrência?
– Claro que sim. Foi por isso que veio até aqui? Sugeriria que brindássemos ao seu papel na detenção, mas o homem admitiu, de livre vontade, ser apenas um vulgar
contrabandista. Se mandasse prender um sujeito qualquer que caminhasse numa estrada, no Kent, teria uma probabilidade bastante elevada de capturar um criminoso da
mesma laia.
– Essa confissão já chegou aos meus ouvidos. Pensei que, mais tarde, ele poderia demonstrar uma maior sinceridade relativamente aos seus propósitos.
Penthurst uniu as pernas e inclinou-se para a frente, de modo a conseguir afagar a cabeça do cão. As velas colocadas sobre a mesa, onde também estava pousado o livro
do duque, despertaram o brilho da fita de seda amarela que prendia o seu antiquado rabo-de- -cavalo, ao nível da nuca.
– Por mais tarde, imagino que queira dizer após o homem ter sido torturado – especulou Penthurst, erguendo o olhar. – Podemos chamar as coisas pelos seus verdadeiros
nomes.
– Foi esse o termo que usaram, quando lhe relataram o sucedido?
– Obviamente que não. Somos um povo civilizado. Logo, nunca admitimos tais práticas – disse o duque, voltando a recostar-se na cadeira, de modo a ficar confortável.
– Oficialmente, por iniciativa própria, e após ter refletido devidamente sobre a sua situação, o prisioneiro optou, de livre e espontânea vontade, por fazer uma
confissão que o levaria à forca, como espião. A sua rede de vigilância realmente funcionou, Southwaite.
– Não é a confissão do homem que me interessa, mas sim a sua explicação, se é que forneceu alguma, de como esperava que os acontecimentos se desenrolassem, caso
tudo tivesse ocorrido conforme o planeado. Por exemplo, quando o prisioneiro alegou ser simplesmente um contrabandista, disseram-me que afirmou possuir um contacto
na costa inglesa, com o qual se encontraria, assim que desembarcasse.
– Está a presumir demasiado, ao assumir que sei mais do que o que lhe estou a transmitir.
– Estou seguro de que partilha as minhas preocupações sobre as vulnerabilidades especiais do nosso país. Se o senhor duque tomasse conhecimento de que um espião
tinha sido capturado, inquiriria as pessoas certas acerca dos pormenores da situação e acabaria, sem dúvida, por obtê-los.
Penthurst levantou-se e caminhou até uma mesa localizada atrás da sua cadeira. Ergueu um decantador de brandy, com uma expressão de oferta nos olhos. Darius assentiu
com a cabeça e, em breve, dois copos juntavam-se à conversa.
– Contaram-me que, no final, o homem já amaldiçoava a decisão de o enviarem para cá, sem mais proteção do que a fachada de ser um refugiado francês. Aparentemente,
possuíam uma forma mais segura de transportar os espiões, que se tornou inviável recentemente, talvez há alguns meses. Suponho que a sua rede pode ter sido a causa
desse contratempo.
– Ele descreveu essa forma mais segura de transportar os espiões?
– Tinham alguém na costa inglesa que vigiava as proximidades e enviava um sinal, à noite, se o caminho estivesse livre. O barco francês atracava não muito longe
do local onde os seus colaboradores intercetaram o dele. O passageiro especial era recebido por um contacto, que o conduzia até uma casa considerada segura. Assim
que fosse possível, era transferido para Londres, ou para outra localidade de interesse, onde mais uma residência segura o aguardava. Nessa altura, as informações
eram veiculadas ao espião, que, posteriormente, abandonava o país, da mesma maneira que entrara.
– Então o homem era um mensageiro. Disse quem o enviara, ou quem o deveria receber em solo inglês?
Deu algum nome das pessoas que lhe passavam informações?
Penthurst bebeu um pouco de brandy.
– Infelizmente, o sujeito não era inteiramente saudável. Possuía um coração fraco, segundo me disseram. Faleceu inesperadamente, antes de poder divulgar esses detalhes.
Southwaite fitou Penthurst, irado.
– Maldição.
Ergueu-se e afastou-se da cadeira, caminhando um pouco, numa tentativa de apaziguar a indignação que o invadia. Existiam diversos aspetos naquela história que o
preocupavam profundamente. E enfurecia-o a constatação de que as peças mais importantes haviam sido perdidas, por pura estupidez.
– Se lhe servir de algum consolo, já exprimi o meu desagrado perante o Pitt, no que diz respeito a essa situação – declarou Penthurst. – Sugeri-lhe que, havendo
por parte do governo de Inglaterra a pretensão de sujar as mãos desse modo, deveríamos, pelo menos, empregar homens capazes de extraírem todas as informações relevantes,
antes de as suas ações serem totalmente dominadas por um lado mais sombrio.
– O Pitt, provavelmente, afirmou sentir-se chocado, pelo facto de o senhor duque pensar sequer que tais coisas poderiam suceder, de todo.
– É claro que o fez. Ainda assim, a minha reclamação foi escutada.
– Bem, prefiro ir para o inferno a entregar-lhes outro suspeito.
– Planeia interrogar suspeitos por conta própria? – inquiriu o duque, ruminando sobre a ideia. – Suponho que poderia usar o Kendale. O método do Exército é fácil
de aplicar. Basta encostar uma pistola a uma têmpora e fazer as perguntas necessárias. O pobre coitado só terá de contemplar a expressão do Kendale para perceber
que o seu interrogador seria perfeitamente capaz de puxar o gatilho.
Tal como você seria. Darius quase o disse, mas engoliu as palavras a tempo, juntamente com um trago de brandy. Se Penthurst fora capaz de assassinar um amigo, conseguiria
certamente executar um espião.
O duque olhou para Southwaite, com o sorriso vago de alguém que o conhecia demasiado bem para ser facilmente enganado.
– Sim, eu seria capaz de o fazer, se necessário. Todos nós seríamos.
Colocou o copo de lado e levantou-se. Ambos os cães se ergueram também, em sincronia.
– Venha comigo. Mostrar-lhe-ei onde pendurei o Guardi.
Darius não tivera qualquer intenção de realizar uma visita social. Não estava interessado em fazer coisa alguma que contribuísse para tornar a sua missão uma simples
questão de cortesia. Ainda assim, fora recebido e conseguira obter as informações que procurava. Não tinha outra opção a não ser seguir Penthurst e os cães até ao
exterior da biblioteca.
– Aquela mulher que estava na casa de leilões. A filha de Maurice Fairbourne – ponderou Penthurst, enquanto caminhavam, em direção à galeria. – Já a possuiu?
Há seis meses, aquela questão teria sido normal e até mesmo previsível. Porém, naquela noite, sob as circunstâncias atuais, que incluíam o esfriar das relações entre
os dois aristocratas, bem como a conversa recentemente terminada, a pergunta afigurava-se deveras surpreendente.
– Por que motivo quer saber isso?
– Por curiosidade. Nada mais. Ela tem algo especial. Pensei que você poderia ter descoberto do que se trata, exatamente.
Já passava bastante da meia-noite quando Southwaite regressou a casa. Dirigiu-se, de imediato, para o seu quarto de vestir.
– Abra a porta – disse Darius, através da madeira.
O ferrolho deslocou-se. Kendale abriu a porta e desviou-se para o lado.
– Não houve qualquer curiosidade indevida da parte dos seus criados – informou. – O nosso convidado ficou tão satisfeito com o alojamento, que neste momento se encontra
a dormir profundamente.
Southwaite entrou no quarto de vestir. Ambury, que estava sentado numa cadeira, a ler um livro, olhou na sua direção. Roncos sonoros emergiam de um divã, onde o
homem do saco se deitara, completamente esticado.
Darius não estava com disposição para se comportar como um cavalheiro. Esperara ouvir de Penthurst que o espião havia divulgado todos os pormenores sobre as suas
atividades, revelando o nome e a morada das pessoas que entrariam em contacto com ele, enquanto permanecesse dentro do país. Em vez disso, aquele tolo, que roncava
no seu divã, poderia ser a única hipótese que lhe restava para conseguir essas informações.
Southwaite aproximou-se do divã, agarrou a parte da frente do casaco envergado pelo homem adormecido e sacudiu o corpo inconsciente, de modo a que o sujeito assumisse
uma posição vertical.
O indivíduo acordou de rompante, soltando um grito. Após um breve momento de confusão, endireitou-se e reposicionou o corpo, fazendo com que as suas botas pisassem
o chão. Olhou de soslaio para os seus companheiros, avaliando cada um em separado.
Darius puxou uma cadeira. Ambury colocou de parte o seu livro. Kendale pairou atrás do divã, o que fez com que o homem ficasse consideravelmente nervoso.
– Vou colocar-lhe algumas questões, mais uma vez. Mas, desta feita, você irá responder. O que foi fazer à leiloeira?
Southwaite cuspiu as palavras. No entanto, sentia-se mais encolerizado com toda aquela situação – que estava a ficar claramente fora de controlo – do que com o homem.
Rezou, silenciosamente, para que as suas suspeitas não se revelassem verdadeiras. Esperou que o sujeito dissesse algo que acalmasse a sua preocupação doentia.
A resposta do indivíduo consistiu em cerrar os lábios, com toda a força que tinha.
– Como se chama? – perguntou Kendale. – Posso descobrir o seu nome, em poucas horas, se tiver de o fazer. Contudo, poderá ser melhor para si, se me poupar todo esse
trabalho.
O homem refletiu sobre o assunto e decidiu que poderia revelar a informação solicitada, sem pôr em perigo o que, ou quem, tentava proteger.
– Hodgson.
Permanecendo em pé, atrás do divã, Kendale inclinou-se para a frente, de modo a que a sua boca ficasse muito próxima da orelha de Hodgson.
– Agora, Mr. Hodgson, irá responder às perguntas do meu amigo. Já perdemos demasiado tempo consigo. Estamos a colaborar com o governo. Se o matarmos, o seu corpo
nunca será encontrado e ninguém saberá o que lhe aconteceu.
Espantado com aquelas declarações, Hodgson voltou o pescoço, para fitar Kendale. A reação de Hodgson, ao contemplar o seu opositor, provou que Penthurst tinha razão.
Hodgson concluiu, sem sombra de dúvida, que pelo menos um dos homens presentes na divisão estava realmente disposto a matá-lo, se fosse necessário.
– Só fui à casa de leilões p’ra tratar de um pequeno negócio particular – explicou. – Não roubei coisas de lá. O dinheiro dentro do saco é meu.
– Não suspeitamos de que tenha furtado algo – assegurou Southwaite. – Por acaso saiu da cidade, durante alguns dias, recentemente? Visitou o Kent, nos últimos tempos?
As pálpebras de Hodgson desceram.
– E se tiver visitado, qual é o problema?
Ambury gemeu, com impaciência.
– Ouça-me. Sabemos o suficiente para o entregar a homens que, seguramente, conseguirão extrair-lhe o resto da informação. Eles recorrerão a métodos que farão a morte
parecer verdadeiramente misericordiosa. Se visitou o Kent, certamente utilizou uma mala-posta para efetuar o trajeto. Podemos facilmente averiguar se o fez, indagando
nas estalagens que ficam pelo caminho. Corre o risco de ir parar à forca e de sofrer martírios ainda piores, Mr. Hodgson. A sua única esperança é falar sinceramente
connosco. Se o fizer, talvez possamos utilizar a nossa influência para evitar que aconteça o pior.
Kendale lançou a Ambury um olhar repleto de desaprovação, que refletia a sua opinião sobre a última parte do discurso proferido pelo amigo. Os olhos de Hodgson arregalaram-se,
quando ouviu a palavra forca.
– Sou apenas um mensageiro. Entrego umas coisinhas, aqui e ali. É só isso!
– Por que motivo viajou até ao Kent? – perguntou Darius.
– Devia ter-m’encontrado com um homem e trazê-lo p’ra Londres. Mas ele nunc’apareceu.
– Esta não foi a primeira vez que viajou para se encontrar com alguém. Antes, já se deslocava frequentemente até à costa do Kent, com o objetivo de cumprir tarefas
semelhantes, não é verdade?
– Fui lá algumas vezes.
– Esclareça-nos acerca dos seus negócios com Maurice Fairbourne e, atualmente, com a filha dele.
– Ah, c’os diabos. Já sabem disso? – praguejou Hodgson.
A sua expressão adotou contornos indicativos de uma preocupação intensa.
– Levava mensagens ao homem. Também lh’entregava algumas mercadorias, como vinho e assim, p’ra serem vendidas nos leilões. É daí que vem o saco com as moedas – revelou,
antes de tossir e esfregar a boca com a manga do casaco. – Ele tem uma casa de campo, lá na costa. Quando m’encontrava c’os tais homens, eles às vezes ficavam nessa
casa, durante uma noite ou duas, antes de virem p’ra Londres. Eles costumavam aparecer sempre. Só o último é que nunca veio.
– Você matou Maurice Fairbourne? Empurrou-o, no trilho costeiro, para que caísse no vazio? Foi a última mensagem que lhe entregou? – perguntou Southwaite.
– Não! A queda dele só me deu chatices. ‘Tou sem casa segura, nem ajuda, na zona. O idiota é que quis passear àquela hora e acabou por cair.
Abanou a cabeça.
– Essa foi mesm’uma noite má. Olhe, já lhe disse que sou só um homem que faz uns recados. Entrego umas coisas. Até admito que pensei, às vezes, quando levava o vinho
e assim, que ‘tava a ser pago por contrabandistas. Mas, isso não é um crime de verdade. Muitas das pessoas fazem-no – argumentou, esboçando depois um sorriso. –
É possível que vossas senhorias já tenham bebido algum desse vinho, nas festas finórias que dão.
– Quem lhe dava as mensagens destinadas a Maurice Fairbourne? – interrogou Ambury. – Quem lhe transmitia as instruções relativas à entrega das mercadorias? Quem
lhe pagava o serviço?
– Às vezes, os homens com quem m’encontrava davam-m’as mensagens que devia entregar. E outras vezes... vinha mais um homem no barco, que m’obrigava a contar como
as coisas tinham corrido.
Também me dava mensagens, ou coisas escritas, p’ra entregar, ou esperava qu’eu lhe entregasse esse tipo de coisas. Esse homem não ficava à minha guarda. Acho qu’ele
voltava p’ró sítio d’onde vinha.
– Você sabia que não se tratava apenas de contrabando – insistiu Kendale, com agressividade. – Espero que tenha sido bem pago pela sua traição.
– Traição?! Só vinham mercadorias nesses barcos e eram essas qu’eu levava a Mr. Fairbourne.
– Mercadorias e espiões – rosnou Kendale.
Hodgson virou-se para Darius.
– Voss’ Senhoria, não deve decerto pensar que...
Darius ergueu uma mão, impedindo-o de terminar a frase.
– A existência de Maurice Fairbourne era conveniente para os seus deveres. Quando ele morreu, você deve ter enfrentado uma situação bastante difícil.
– Foi um problema infernal, verdade seja dita.
– Deram-lhe indicações, no sentido de usar a filha dele como substituta? É por isso que se encontrava na leiloeira?
– Substituta, c’os diabos! É da mesma família. Pensávamos qu’a filha sabia o que fazer – revelou ele, encolhendo os ombros. – Era mais fácil que foss’ela do qu’outra
pessoa qualquer. Ela aceitou fazê-lo, sem qualquer problema.
Southwaite foi dominado pela raiva. Conseguiu levantar-se e percorrer metade da distância que o separava de Hodgson, antes de Ambury lhe agarrar o braço, com força,
de modo a travá-lo. Hodgson recuou perante a ameaça, visivelmente abalado pela reação inesperada de Darius.
Southwaite conseguiu controlar-se ligeiramente. No entanto, não voltou a sentar-se. Ambury também se manteve de pé. Mr. Hodgson contemplou os três cavalheiros, que,
naquele momento, pairavam sobre ele.
O punho de Darius ainda não havia relaxado.
– Chantageou o pai e a filha, para que colaborassem consigo – resumiu Darius. – De outra forma, como conseguiria obter esse saco de dinheiro, assim como toda a ajuda
que, supostamente, eles lhe deram? O
Fairbourne não precisava das mercadorias que você lhe entregava.
– Já lh’expliquei várias vezes. Não fiz cois’alguma. Era só um mensageiro!
Começando a ficar impaciente com as respostas de Hodgson, Southwaite agarrou-o, de novo, pelo casaco.
– Que mensagem entregou você a Maurice Fairbourne, para que este aceitasse ajudá-lo?
– O filho dele! – gritou Hodgson. – Mandaram-me contar-lhe qu’o filho dele era refém e só continuaria vivo, s’ele aceitasse ajudar. A tarefa dele era fazer sinais
p’ró barco que s’aproximava da costa, s’o caminho ‘tivesse livre, e ainda alojar o convidado qu’eu trouxesse, eventualmente.
– Então contaram-lhe uma mentira. Alguma vez viu o filho de Maurice Fairbourne?
– Claro que não. Onde o podia ver? Só me disseram p’ra lhe contar isso e foi o qu’eu fiz. Também contei o mesmo à filha dele, quando percebi qu’ela não sabia do
acordo. A senhora queria pagar um resgate e acabar c’o assunto de vez. Mas queriam tanto dinheiro, qu’ela teve de aceitar ajudar.
– Maldito seja.
Darius avançou, mais uma vez, com a intenção de bater em Hodgson. Ambury puxou Southwaite, para o afastar do alvo, e advertiu-o com um olhar penetrante. Em seguida,
aproximou-se do divã e sentou-se ao lado de Mr. Hodgson.
– Você encontra-se numa situação complicada. Os meus dois amigos estão dispostos a enforcá-lo, de imediato. Lá fora, existem muitas outras pessoas que terão bastante
prazer em fazê-lo, mais tarde. A sua única esperança é ajudar-nos a encontrar alguns desses homens, com quem se reuniu na costa, e que auxiliou a entrarem em Inglaterra.
– Mas nem sei ond’eles estão agora – afirmou Hodgson, suando profusamente e parecendo desesperado. – Até ajudava a encontrá-los, se pudesse. Juro que sim.
– Isso é lamentável. Contudo... talvez saiba se está prevista outra chegada, nos próximos dias – sugeriu Ambury. – Estava previsto que se encontrasse com alguém,
na costa, em breve?
Hodgson lançou-lhe um olhar cauteloso. Espreitou, por cima do seu próprio ombro, na direção de Kendale e verificou, rapidamente, a fisionomia de Darius.
– Planeava ir outra vez até à costa, na próxima semana. É assim que funciona. S’o homem não aparece na semana em que devia chegar, tento outra vez, quinze dias mais
tarde.
Southwaite não desejava ouvir mais, mesmo que Hodgson tivesse mais para contar. Não ficaria ali parado, enquanto aquele patife descrevia o modo como Emma faria sinais,
no trilho costeiro e abriria a sua casa de campo a espiões, que procuravam um alojamento extremamente discreto.
Saiu do quarto de vestir, antes que começasse a espancar Hodgson, até o deixar coberto de sangue.
Dirigiu-se para o seu quarto, entrando na divisão e batendo com a porta. A cabeça de Darius estava a ser invadida por uma fúria tão sombria que o conde mal conseguia
contê-la.
Maldição. Devia ter percebido. Devia ter adivinhado. Só suspeitara de contrabando, com os diabos.
Havia sido um completo idiota. Emma nunca arriscaria tanto por tão pouco. Obviamente, o «tudo o resto»
estava relacionado com assuntos mais graves do que algumas carroças repletas de mercadorias importadas ilegalmente.
Emma devia ter-lhe contado o que se passava. Southwaite teria arranjado uma forma de a tirar daquela confusão. Teria mostrado a Emma como a recusa do seu pai, em
aceitar a morte de Robert, conduzira à chantagem por parte dos espiões e como ela não podia permitir que a coagissem, com a mesma mentira estúpida. Ter-lhe-ia explicado
que, ao teimarem em acreditar que Robert ainda estava vivo, ela e o pai haviam criado uma vulnerabilidade passível de ser explorada por qualquer pessoa que conhecesse
essa crença. Teria...
A mente de Darius viu Emma no jardim da Fairbourne’s, aparentando sentir-se completamente perdida, após Hodgson a ter deixado. Teria sido nessa ocasião que ela descobrira
o verdadeiro preço da libertação do irmão? Aquela memória de Southwaite, em que Emma parecia tão dividida, confusa e insuportavelmente infeliz, fazia agora muito
sentido. A imagem tocou profundamente o conde, apesar dos seus pensamentos caóticos e das suas emoções rudes.
Obviamente, Emma não lhe podia contar o que se passava. Ela não podia solicitar a ajuda de Southwaite, independentemente do que pensasse estar em jogo. Também não
tinha a certeza de que o conde a pouparia, se descobrisse o que acontecera.
Darius caminhou até alcançar uma mesa, com alguns livros pousados sobre o tampo. Retirou dela uma carta dobrada, que fora guardada na única gaveta daquela peça de
mobiliário. O estado do papel refletia a forma como Southwaite o amachucara, com o punho, quando, no dia anterior, lera pela primeira vez as palavras nele escritas.
A sua reação fora imediata e explosiva. Se tivesse existido uma lareira acesa, o conde teria atirado o papel para dentro das chamas.
Darius releu a carta de Emma. O significado da missiva encolerizou-o bastante menos do que anteriormente. Percebia agora que não se tratava de uma rejeição dura,
como originalmente pensara. Na verdade, a atitude de Emma tinha muito pouco que ver com Southwaite.
Meu Senhor, Tendo refletido consideravelmente sobre o assunto, e tendo sido extremamente honesta comigo própria, concluí que a nossa aliança é tão insensata e imprudente
como inicialmente considerei que seria. Perdoe-me por não ter tido a coragem de agir em conformidade com esta resolução, após o leilão. Só posso culpar o meu entusiasmo
infantil, perante o triunfo daquele dia, juntamente com as suas maneiras sedutoras.
Agora que a temporada está a terminar, o mesmo acontecerá aos leilões de alguma importância. A Fairbourne’s não terá quaisquer transações para realizar, durante,
pelo menos, dois meses. Assim sendo, decidi abandonar Londres. Talvez uma visita à região dos lagos me ofereça o abrigo e a solidão que ambiciono.
Quando regressar, espero que possamos conviver com o respeito mútuo desejável entre parceiros de negócios. Porém, não devemos permitir que algo mais exista entre
nós.
Emma Fairbourne No momento em que Southwaite dobrava, novamente, o papel da missiva, Ambury entrou no quarto.
Ficou parado, de pé, como se esperasse que Darius dissesse algo.
– Lamento termos descoberto que ela está tão envolvida – proferiu Ambury, por fim.
Era a simpatia de um amigo, mas era também uma forma de lhe recordar a traição de Emma.
– Ela pensa que o irmão está vivo, tal como o Maurice Fairbourne pensava – contrapôs Darius.
– Sim. Contudo, no fundo, isso não faz qualquer diferença, pois não?
Não fazia, raios. O seu medo por Emma tornara-se um carvão em brasa, dentro do seu peito.
– O Kendale quer usar o Hodgson. Deixará que ele se encontre com o tal homem, como planeado.
Assim, poderemos seguir o homem, a fim de identificar as pessoas com as quais se reúne, em Londres e noutros locais – relatou Ambury, tentando parecer cético. –
Sabe como é o Kendale... ele crê que, desse modo, conseguiremos derrubar uma rede inteira dedicada à espionagem.
Darius permaneceu calado. O plano de Kendale tinha muita lógica. Ambury sabia-o. Só havia um senão. Para que Hodgson se encontrasse com o barco e recebesse o seu
passageiro especial, teriam de permitir que Emma fizesse o sinal à embarcação e fornecesse guarida ao espião. Como tal, não estariam a usar apenas Hodgson, mas também
Miss Fairbourne. Em vez de a impedirem de participar num crime grave, deixá-la-iam desempenhar o papel que os espiões lhe haviam atribuído.
Ambury encarou Southwaite com um olhar repleto de consciência e preocupação.
– Se for contra, nós não o faremos. Penso que sei o que ela...
– Não. Tem de ser feito. Se desembarcar outro mensageiro, poderá conduzir-nos até mais cinco membros da rede. Ou talvez uma dezena.
Ambury não respondeu.
– Quando é que o jogo começa? – perguntou Darius.
– Segunda-feira, de acordo com as informações fornecidas por Hodgson. Levaremos o sujeito até à costa. Aparentemente, Kendale criou um pequeno exército privado,
constituído por elementos da criadagem dele. É a sua própria unidade de cidadãos. Eles irão ajudar-nos. Você não precisa de estar presente.
– É claro que estarei presente. Amanhã viajarei até ao Kent e farei com que a minha irmã e a minha tia regressem à cidade, de modo a podermos utilizar Crownhill
como base para as nossas operações.
Informarei os outros cavalheiros, que integram a rede de vigilância, sobre estes acontecimentos recentes.
Espero que a maioria deles se junte a nós. Assim, os seus planos poderão contar com um grande número de olhos e pistolas. Também falarei com o Tarrington, a fim
de o alertar para que não intercete o barco antes de o passageiro especial ter deixado a costa, deslocando-se em direção ao interior.
Ambury anuiu.
– Iremos diretamente para Crownhill, assim que abandonarmos Londres.
Southwaite virou-se, ficando de costas para o amigo.
– Por favor, tire aquele homem de minha casa, Ambury. Deixe o Kendale tratar do indivíduo, até realizarem a viagem.
Ambury saiu da divisão. Darius olhou para a carta, que ainda se encontrava na sua mão. A mente do conde viu novamente Emma, no jardim da casa de leilões. A recordação
da profunda angústia dela causou-lhe dor.
Emma pensava que estava a salvar o irmão. Na opinião de Southwaite, era a motivação mais nobre que se podia imaginar, para o ato mais ignóbil. De facto, se estivesse
no lugar dela, não tinha a certeza absoluta de que teria escolhido um caminho diferente.
20 Referência sarcástica à posição da personagem no Parlamento. O facto de estar nos bancos de trás (assumir uma posição discreta e pouco destacada) e do lado errado
(ser membro do partido da oposição), impossibilitava Southwaite de saber os segredos do governo. (N. do T.)
CAPÍTULO 28
Emma entrou sozinha na casa de campo. Pousou a pequena mala que transportava e abriu todas as janelas, de imediato, para arejar o espaço. Uma brisa invadiu a residência,
trazendo consigo os aromas da costa, assim como o som da carruagem alugada, que se afastava do local.
Começou a esvaziar os dois cestos de mantimentos que comprara pelo caminho. Naquela breve visita, não haveria uma Mrs. Norriston para cozinhar e também não haveria
um Mr. Dillon para alimentar, por isso Emma adquirira produtos simples. Pernil de porco, uns quantos ovos frescos, pão e, como indulgência, alguns pêssegos. Devia,
provavelmente, comer algo, uma vez que a noite estava a chegar, mas, devido à preocupação, sentia-se demasiado enjoada para ter fome.
Quando acabou de organizar e armazenar os alimentos, Emma subiu as escadas e fez o mesmo às roupas que trazia dentro da mala. Em seguida, voltou para o piso térreo,
a fim de procurar lanternas.
Encontrou uma, num dos armários da copa, e depois mais duas na cocheira. Alinhou-as sobre a mesa de trabalho da cozinha e equipou-as, usando velas que trouxera consigo.
Em seguida, acendeu uma das lanternas.
Sentou-se, com um livro, perto da luz. No entanto, não virou uma única página. Observava a chegada da escuridão, ao mesmo tempo que verificava, repetidamente, as
horas. Anotou mentalmente a hora a que os últimos vestígios da luminosidade do crepúsculo finalmente desapareciam. O passar do tempo não era assinalado pelas badaladas
de um relógio, mas sim pelos batimentos do seu coração e pelo medo que a dominava cada vez mais.
Dentro de exatamente vinte e quatro horas, iniciaria a sua missão, cujo objetivo era resgatar o seu irmão. Quando tudo aquilo tivesse terminado, conseguiria certamente
aceitar o que fizera. O prémio que estava em jogo valia, seguramente, o preço que lhe exigiam. Contudo, naquele momento, não conseguia sentir qualquer tipo de entusiasmo,
nem de expectativa, perante a possibilidade de Robert regressar a casa. Sentia apenas um temor intenso, que a tornava incapaz de fazer coisa alguma a não ser esperar.
Nessa noite, Emma dormiu bem. Tão bem, que perguntou a si mesma se já teria perdido a sua alma.
Tratou de alguns preparativos domésticos necessários para conseguir alojar o hóspede que viria em breve. Também carregou e escondeu a pistola que trouxera de Londres.
Cedo se apercebera de que, ao agir à margem da lei, não poderia esperar que as leis a protegessem.
Ao meio-dia, Emma abandonou a casa e percorreu os cerca de trezentos metros, para leste, que a separavam do ponto onde a terra mergulhava, reunindo-se com o mar.
Examinou o caminho cuidadosamente, chegando mesmo a afastar com um pontapé algumas pedras grandes, que poderiam não ser visíveis durante a noite. Encontrou o trilho,
que se estendia ao longo da costa, abrangendo vários quilómetros. Virou à direita, seguindo para sul até onde o trajeto começava a sua ascensão gradual e prolongada,
em direção a Dover.
Finalmente, Emma parou num local onde já estivera uma vez. Encontrava-se no lugar abaixo do qual o cadáver do seu pai fora descoberto. Dali, podia observar uma enorme
extensão da costa, em ambas as direções. Anteriormente não percebera que, se ela conseguia vigiar tão bem o mar a partir daquele sítio, alguém que estivesse na água
também conseguiria avistá-la facilmente.
Presentemente, a imagem das ondas revoltas não a interessava, de todo. O chão que rodeava os seus pés parecia muito mais cativante. Aquele podia ser um terreno traiçoeiro,
como o seu pai descobrira, na noite fatal. Existiam alguns pontos onde o trilho ficava extraordinariamente próximo do rebordo da falésia. Noutros locais, o tempo
desgastara e enfraquecera o próprio rebordo.
Emma sentou-se no chão e tentou combater o pânico que ameaçava dominá-la. Se o deixasse vencer, poderia cometer um erro. Poderia até fugir. Contudo, a única maneira
de conseguir controlar-se e manter a compostura era permanecer alerta, não permitindo que representações irracionais de insucesso ou de retribuição lhe invadissem
a mente.
Fechou os olhos e mobilizou todo o seu ser contra o medo que sentia. Tentou deixar que a brisa marítima a refrescasse. Porém, a aragem salgada pareceu apenas agravar
os arrepios intermináveis que sentira, pela primeira vez, no jardim da Fairbourne’s, após ter descoberto a verdadeira natureza do «favor».
Irritada com o facto de aqueles homens desconhecidos lhe terem roubado a sua própria essência, Emma ergueu-se e limpou o vestido. Foi então que avistou uma carruagem,
parada num ponto mais baixo, a oeste. Parecia somente uma mancha no seu campo de visão. Teve de semicerrar os olhos para a contemplar, devido ao fulgor do sol poente.
Quando as suas pupilas se adaptaram ligeiramente à luminosidade, Emma reparou que a silhueta escura de um homem caminhava na sua direção.
Quando a figura humana se aproximou de Emma, o brilho do sol deixou de obscurecer as suas feições.
Era Southwaite!
A culpa que Emma sentia dizia-lhe para fugir. No entanto, ela suprimiu o impulso e tentou assumir uma expressão que não parecesse desesperada.
O conde aproximou-se ainda mais. Parou, a uma distância que não excedia a sua envergadura de braços, e sorriu.
– Olá, Emma.
*
– Pensei que ia para a região dos lagos – comentou Darius, enquanto caminhavam, em direção a norte.
No sopé da elevação, a carruagem do conde também avançava, adotando o mesmo ritmo lento.
– O principal objetivo da minha carta não era informá-lo acerca dos meus planos para sair da cidade, com o intuito de repousar um pouco. Quando a escrevi, ainda
não tinha decidido qual seria ao certo o meu destino de viagem. Não senti a obrigação de lhe explicar a minha opção, após a ter tomado.
Darius apreciou o tom impertinente de Emma. Ela parecera-lhe extremamente pálida, quando lhe vislumbrara o rosto, banhado pela luz do pôr do sol. Pálida, cansada
e confusa, devido àquela aparição inesperada. Agora, já conseguira reunir algum do ânimo da Emma que ele conhecia, pelo menos o suficiente para se sentir irritada.
Southwaite fingiu não notar que a sua presença deixava Emma bastante agitada. No entanto, a inquietação dela era facilmente percetível, tanto na rigidez do seu corpo
como na expressão atormentada dos seus olhos. Também se refletia na forma como Emma evitava encarar diretamente o conde. Parecia saber que não conseguiria esconder
coisa alguma, se o fizesse.
Emma parou de andar e franziu a testa.
– Como mencionou uma informação que constava da minha carta, sei que a recebeu. Tendo em conta o conteúdo da missiva em questão, a sua insistência em passear e conversar
comigo é deveras desconcertante.
– Vejo que continua a ser uma defensora acérrima da franqueza. Sim, li a sua missiva. Porém, não dei qualquer importância ao conteúdo. Não estou habituado a ser
rejeitado com tão pouca cerimónia e sem qualquer razão.
– Sem qualquer razão? Isso é muito engraçado, Southwaite. As razões são tão óbvias que não precisam de ser enumeradas. O senhor conde sentiu a obrigação de me pedir
em casamento precisamente por causa de todas as excelentes razões que me fazem querer terminar esta relação. Agora, por favor, vá seduzir outra pessoa e deixe-me
em paz.
Com o rosto corado devido à exasperação que sentia, Emma afastou-se de Darius, marchando a passo determinado. O conde acelerou o ritmo, de modo a conseguir apanhá-la.
Emma percebeu que Southwaite caminhava, mais uma vez, a seu lado. Fechou os olhos e gemeu.
– Não posso deixá-la em paz, Emma. Sinto muito.
– Então o senhor conde é mais presunçoso do que eu pensava.
Darius deteve-a e puxou-a para os seus braços. Emma assustou-se com a brusquidão dos movimentos do conde e tentou libertar-se. Southwaite segurou-a firmemente, num
abraço apertado. A resistência de Emma desvaneceu-se, mas ela continuou a evitar encará-lo diretamente.
– Não posso fazê-lo, porque não tenciono desistir de si tão facilmente. Recuso-me a acreditar que tenha tomado a sua decisão final, relativamente a este assunto.
Não creio que esteja completamente segura da necessidade de nos separarmos.
Darius levantou o rosto de Emma, colocando um dedo sob o seu queixo delicado. A expressão daquele rosto tocou-o profundamente. Emma estava tão perturbada que as
lágrimas inundaram os olhos dela.
Southwaite beijou ambas as bochechas humedecidas. Em seguida, beijou a boca de Emma.
– Devo reiterar que possuo o direito de tentar mudar a sua opinião, Emma.
Com um braço a rodeá-la, o conde guiou-a, enquanto desciam a colina.
Deram vários passos, antes que Emma compreendesse inteiramente o que estava a acontecer.
– O que está... Espera que eu vá consigo? Não posso fazê-lo.
Tentou soltar-se do braço que a prendia. O conde manteve-se firme e fê-la avançar mais rapidamente.
– Como sempre, prometo ser extremamente discreto.
– A discrição que se dane. Exijo que me liberte.
Emma tentou enterrar os saltos na terra do caminho, mas os seus pés continuaram a deslizar, devido à força exercida por Southwaite. Bateu no braço do conde, numa
tentativa de o enfraquecer, e começou a baixar-se até ao chão, para que Darius não conseguisse obrigá-la a andar.
– Se deseja discutir o assunto em questão, poderemos conversar sobre o tema, após eu ter descansado, durante vários dias – sugeriu ela.
– Prefiro resolver o problema agora mesmo.
Southwaite ergueu-a e segurou-a nos seus braços. Em seguida, o conde caminhou até à sua carruagem, cuja porta se encontrava aberta. O cocheiro e dois criados permaneceram
totalmente imóveis, no seu devido lugar, como estátuas cegas.
Os olhos de Emma arregalaram-se. Torceu-se, estrebuchou e bateu novamente em Darius, atingindo a face do conde.
– Você não entende. Não posso ir consigo, neste momento.
Emma lançou a Southwaite um olhar repleto de choque e fúria, ao perceber que ele não iria soltá-la.
Quando alcançaram a carruagem, Emma atacou o ombro do conde, empurrando, simultaneamente, o corpo forte que a aprisionava.
– Pare imediatamente, ou será culpado de rapto!
– Muito bem! Serei então um raptor, Emma.
Emma agarrava-se ao rebordo da janela, enquanto via o mundo a passar por si, rapidamente. Cada minuto daquela viagem afastava-a mais do local onde precisava de estar,
nessa mesma noite.
A mente de Emma corria sem parar. Se não fizesse o sinal com a lanterna, a sua ação seria interpretada como um aviso de que o caminho não estava livre. Quantas vezes
poderia isso suceder, antes que surgissem outras interpretações e suspeitassem de que ela os traíra? E Robert... seria verdadeiramente horrível se, noite após noite,
o colocassem num barco, rumo a casa, apenas para o voltarem a encarcerar, porque a sua irmã não seguira as instruções que lhe haviam dado.
Emma afundou-se no assento da carruagem, sentindo-se demasiado assustada para conseguir raciocinar.
Southwaite tentou pegar na mão dela. Recebeu como resposta uma bofetada, destinada a repelir qualquer tentativa de aproximação.
Darius tentou abraçar Emma. Ela bateu-lhe, repetidamente, ao mesmo tempo que chorava lágrimas de impotência.
– Pare. Não me toque. Você não sabe... isto não passa de um jogo para si. O passatempo de um homem orgulhoso. Sou apenas uma diversão, para pessoas como o senhor
conde.
– Para mim, a menina não é uma simples diversão, de modo algum, Emma.
Southwaite recuou, deslocando-se para o assento oposto, com o intuito de se posicionar em frente a ela.
Emma não olhou para o conde. Continuou a observar o panorama exterior, através da janela, até a carruagem parar definitivamente, no final da via de acesso a Crownhill.
Assim que a auxiliaram a descer do veículo, Emma entrou na residência. Ignorou os criados e subiu a escadaria que conduzia aos pisos superiores. Procurava os aposentos
que utilizara durante a sua última estadia.
Encontrou a divisão com bastante facilidade. Entrou no quarto, bateu com a porta e encostou-se a esta, enquanto girava a chave na fechadura. Então, correu para a
janela.
O terraço, visível mais abaixo, parecia terrivelmente distante. Não existia qualquer forma de saltar para a superfície pavimentada, nem de trepar pela fachada. Emma
teria de enganar o conde, de alguma maneira, para poder fugir. Se não o fizesse naquele dia, fá-lo-ia no dia seguinte. Perguntou a si própria quanto tempo seria
necessário para percorrer, a pé, o trajeto de regresso à casa de campo do seu pai.
– Emma.
Ela permaneceu imóvel. O conde falara através da porta, mas Emma conseguira ouvi-lo claramente.
– Saia daqui, Lord Southwaite. Desta vez, não irá seduzir-me em salões de baile.
O silêncio reinou, por alguns instantes. Emma rezou para que Darius tivesse abandonado o local. Não queria insultá-lo. Gostaria que... Gostaria que o conde tivesse
simplesmente aceitado a decisão que constava na sua carta, em vez de ter concebido aquele jogo amoroso. Southwaite não sabia o quão perigoso poderia ser o atraso
que causava. Também não sabia que Emma ficara extremamente confusa devido à presença dele. Afaste-se, afaste-se, para que eu não tenha de partir o meu próprio coração,
sendo fria e cruel para si.
– Emma, eu sei.
A madeira da porta não conseguia abafar o tom quente da voz de Darius. Nem as suas inflexões. O
conde não dissera «eu sei» como se estivesse a responder aos gritos de Emma. Dissera-o como se realmente soubesse tudo o que se passava.
O coração de Emma batia vigorosamente, de tal modo que ela sentia o ritmo cardíaco acelerado dentro da sua cabeça. Percorreu metade da distância que a separava da
porta.
– O que quer dizer com isso?
– Sei por que motivo viajou até à casa de campo, completamente sozinha, sem ter sequer a companhia do seu cocheiro. Sei por que razão a encontrei no trilho costeiro,
junto ao lugar onde o seu pai caiu para a morte.
Cada palavra que saía dos lábios do conde deixava-a mais arrepiada. Então, Emma experimentou o pior tipo de medo. O terror de um fugitivo que acabara de ser apanhado.
– Sei quase tudo – continuou Southwaite. – Agora, abra a porta. Não represento qualquer perigo para si. Não existe qualquer fundamento para ter receio de mim. Não
cometeu crime algum.
Ainda não, mas não fora por falta de intenção. Se Darius não a tivesse impedido... Até mesmo naquele momento, se ela conseguisse fugir dali...
Emma não estava segura de possuir a coragem necessária para enfrentar o conde, se, de facto, ele soubesse quase tudo.
– Abra a porta, minha querida. Não posso deixá-la sozinha, tendo consciência da infelicidade que vi no seu semblante.
A visão de Emma ficou desfocada. Os seus olhos arderam. Já não conseguia manter a compostura.
Sentia-se derrotada e infeliz. Estava ciente de que iria fracassar na sua tentativa de salvar Robert. Uma dor profunda invadiu-a. Aproximou-se da porta, aos tropeções,
e rodou a chave.
Bastou contemplar Southwaite e a compaixão expressa nos seus olhos, para cair nos braços do conde, a soluçar.
– Pensei que me envolveria somente no contrabando de mercadorias. É claro que se trata de uma atividade moralmente questionável, mas é um crime bastante comum na
nossa sociedade.
Emma sussurrava, com a cabeça encostada ao ombro de Southwaite. A torrente de emoção dera-lhe alguma paz de espírito. Darius sentia pouca força no corpo feminino
que segurava ao colo. Estava sentado na beira da cama.
Emma enxugou os olhos.
– Eu sabia que você não poderia fechar os olhos a um crime, mesmo que fosse apenas uma infração vulgar. Quando descobri que a situação era muito mais grave, não
ousei contar-lhe o que se passava.
Inclusivamente, evitei voltar a vê-lo. O simples facto de você, atualmente, conhecer os meus planos, compromete a sua posição, não é verdade?
Só o futuro revelaria se Emma estava certa, ou não.
– Tem de me deixar ir embora, Southwaite. Por favor, imploro-lhe. Estas pessoas aprisionaram o meu irmão. Quando o tiver resgatado, quando o tiver visto, encontrarei
uma maneira de corrigir o mal que fiz.
Poderei... Poderei matar o homem que trouxer o Robert, se você o desejar. Mas, por amor de Deus, deixe-me cumprir as exigências dos raptores, para que o libertem.
Darius manteve-se calado, porque não sabia o que responder. No entanto, percebeu que Maurice e Emma tinham sido manipulados por indivíduos sem quaisquer escrúpulos.
Independentemente do que pagassem, ou do que fizessem, Robert Fairbourne jamais seria devolvido à família.
– Você não acredita em mim – afirmou Emma. – E também não confia em mim.
– Eu confio em si, Emma. Creio que teria a coragem de matar esse homem, se eu aceitasse que o fizesse. Também creio que tanto a Emma como o seu pai acreditavam verdadeiramente
estar a fazer o possível para salvar o Robert de um destino malfadado.
– Não é apenas uma crença. Eu sei que o meu irmão está vivo. Antes de negociar com os raptores, insisti que precisava de provas. Entregaram-me uma carta escrita
por ele.
– Emma, não penso que...
– A missiva foi escrita pelo Robert. Conheço bem a caligrafia dele. Conseguia ouvir a sua voz, a proferir as palavras, à medida que as lia.
– Eles podem ter...
– Não era uma falsificação.
Emma saiu do colo de Southwaite, empurrando-o, e ergueu-se. Olhou para o conde como se aquela falta de fé o tornasse um amigo menos fiável.
– Pensa que eu aceitaria envolver-me neste tipo de atividades por um motivo menos premente? Pensa que eu não seria capaz de reconhecer uma carta escrita por um estranho,
em nome do meu irmão?
Darius pegou na mão de Emma e convenceu-a a regressar para junto dele. Emma sentou-se ao lado do conde, novamente angustiada.
– Diga-me exatamente o que teria de fazer, para resgatar o Robert.
– Pensei que já sabia tudo.
– Quase tudo.
Emma ponderou o que deveria contar. Após os acontecimentos das últimas semanas, Southwaite conhecia-a bem. O conde praticamente conseguia ouvir os pensamentos de
Emma.
– Sou uma prisioneira? Se lhe contar tudo o que sei, o meu desabafo poderá ser considerado uma confissão? Sei que participa em operações de vigilância, realizadas
ao longo da costa. Você assumiu voluntariamente a missão de capturar pessoas como eu.
Darius ficou ligeiramente ofendido, mas tentou engolir o insulto. Disse a si próprio que Emma estava com medo. E, dadas as circunstâncias, tinha boas razões para
isso.
– Você realmente gosta de falar com franqueza, Emma. Trouxe-a até aqui e irei mantê-la aqui, debaixo de olho. Quero ter a certeza absoluta de que não fará nada que
me coloque perante uma escolha impossível, entre a minha honra e a mulher que eu amo. Terá de aceitar que não poderá completar a sua tarefa. Consegui impedi-la desta
vez e voltarei a fazê-lo, se fugir.
Emma fitou-o, com um olhar extraordinariamente penetrante. Sob aquele escrutínio intenso, Southwaite poderia facilmente esquecer os seus próprios pensamentos. O
conde perguntou a si mesmo se Emma procuraria indícios das suas motivações, ou provas de que ele a iria proteger, caso fosse necessário.
– Incumbiram-me de caminhar até ao trilho costeiro, situado na elevação, todos os dias desta semana – começou Emma a explicar. – Deverei chegar lá ao final da tarde,
mesmo antes de a noite cair, quando ainda existe luz suficiente para ser possível observar a costa e o mar.
– Mandaram-na averiguar a ausência de navios oficiais?
Emma assentiu com a cabeça.
– E também se o mar está suficientemente calmo para o desembarque ocorrer sem problemas. Na noite em que faleceu, o meu pai procurava cumprir essa tarefa – revelou
Emma piscando os olhos e afastando o pensamento infeliz. – Se não forem visíveis quaisquer navios dos serviços alfandegários, devo esperar até ao cair da noite.
Então, protegida pela escuridão, tenho de transportar as lanternas acesas e andar para trás e para diante, ao longo do trilho. Devo proceder dessa forma durante
uma hora. Após ter decorrido o período de tempo estipulado, estou incumbida de regressar a casa e aguardar.
– Aguardar o quê?
– A chegada do «Homem Estúpido». É o nome que dei ao homem que me transmitiu as instruções. É ele quem, supostamente, trará o Robert. E pode também trazer outra
pessoa. Um «convidado», que eu devo alojar na casa de campo, durante uma noite, ou duas, antes de seguir caminho. Quando me abordaram acerca da possibilidade de
dar alojamento a esse hóspede secreto, soube, com toda a certeza, que não estaria envolvida somente em contrabando – comentou Emma, limpando os olhos em seguida,
com a mão.
– Sei o que quer dizer, ao afirmar que não deseja ser colocado perante uma escolha impossível, Southwaite.
Darius rodeou-a com o braço.
– Esse «convidado» até poderá vir no barco, mas não o seu irmão. Mesmo que o Robert esteja vivo, os raptores não irão libertá-lo assim tão facilmente. Após ter cumprido
a tarefa uma vez, irão exigir-lhe que a cumpra de novo. O dia em que o seu pai caiu não foi, muito provavelmente, o primeiro em que ele percorreu aquele trilho durante
uma hora, a coberto da noite.
Emma nem concordou nem discordou com a opinião do conde. Olhou em seu redor, observando o quarto.
– Quanto tempo ficarei aqui?
– Não sei ao certo. Ficará até eu ter a certeza de que se encontra em segurança.
– Você também irá permanecer aqui?
– Apenas durante algumas partes da sua estadia. Gostaria que me desse a sua palavra, em como não tentará abandonar esta residência.
– Não posso dá-la.
– Então, terei de a sujeitar a uma vigilância apertada.
A cor das faces de Emma despertou, sob a forma de um adorável rubor.
– Estava a ser sincero, quando se referiu a mim como a mulher que ama?
– Sim, estava.
– Então, terei de garantir que nunca será colocado perante essa escolha horrível, Southwaite, o que poderá exigir alguma franqueza da minha parte, a qual não favorecerá,
de modo algum, os meus próprios interesses.
– Como assim, Emma?
– Deve ficar a saber que qualquer tentativa de fuga da minha parte irá certamente ocorrer de noite.
Gostaria de poder jurar que tal ideia jamais me passou pela cabeça, mas lamento ter de admitir o contrário.
– Então, terei de vigiá-la muito atentamente, ao longo de toda a noite.
– Penso que essa será uma atitude bastante sensata – proferiu Emma, inclinando-se em direção a Darius, até os rostos de ambos estarem separados somente por alguns
centímetros. – Agora, creio que deve beijar-me, se não sou apenas uma prisioneira, mas sim a mulher que ama. O seu beijo confortar-me
á, profundamente. Se me envolver com os seus braços, poderei deixar de me sentir impotente, sozinha e extremamente receosa.
Southwaite ficou contente por poder beijá-la e abraçá-la, independentemente das motivações de Emma para o solicitar. O seu maior medo, após ter lido a carta que
Emma lhe enviara, fora nunca mais poder fazê-lo.
Após tudo o que acontecera, aquele beijo jamais poderia ser um simples beijo, mesmo que fosse apenas um. A ligação existente entre os dois era demasiado forte. Contudo,
Emma frustrou a intenção inicial do conde, que planeara ser extremamente cuidadoso, ao lidar com ela. Respondeu ao beijo de Darius com uma feroz torrente de paixão,
que, finalmente, libertou todos os seus medos.
Emma destruiu por completo a cautela de Southwaite, com beijos febris e carícias impacientes. Puxou o lenço e a camisa do conde, até conseguir expor o peito robusto
à ação dos seus dentes e da sua língua.
A agressividade de Emma instigou uma fome insuportável, que escureceu a mente de Darius. O seu único pensamento era acariciá-la, amá-la e possuí-la, eternamente.
O conde livrou-se dos seus casacos com bastante facilidade. Desapertou o vestido de Emma e ambos se libertaram das roupas dela, enquanto permaneciam unidos, num
tumulto de abraços ávidos e beijos furiosos. Assim que as vestes interiores de Emma voaram para longe, ela deitou-se de costas em cima da cama, e puxou-o, para que
continuassem juntos.
– Agora – disse Emma, ofegante. – Todo o seu ser. Quero todo o seu ser aqui comigo, para que possa sentir algo mais, além de preocupação e medo.
Southwaite colocou-se sobre Emma, esticando os braços, de modo a conseguir observá-la. Em seguida, estendeu a mão para baixo e ajustou a posição das pernas dela,
até ficarem dobradas, com os joelhos a abraçarem o seu corpo. Acariciou a pele macia que aquela posição deixava descoberta. Emma gemeu de prazer, repetidamente.
Cada gemido trespassava o que restava da mente racional de Darius, conduzindo-o a uma libertação tempestuosa.
Emma também estendeu a mão para baixo e arrasou-o com carícias sensuais. Em seguida, guiou-o até ao interior do seu corpo, tornando claro o seu desejo. Southwaite
penetrou-a lentamente. A longa inspiração de Emma, repleta de admiração e alívio, acompanhou o gemido silencioso emitido pela alma do conde, ao experimentar uma
sensação simplesmente perfeita.
Nesse instante, Darius sentiu-se satisfeito por Emma não ter desejado que ele fosse cuidadoso, e extremamente grato pela impetuosidade da sua companheira estar à
altura da dele mesmo. Num abandono completo, Emma recusou qualquer controlo sobre si própria, rejeitando também toda a modéstia. Então, expôs o seu coração, com
uma ousadia superior à que revelara anteriormente, ao expor o seu corpo.
Southwaite possuiu-a vigorosamente e Emma incentivou-o a continuar, até que partilharam uma união rara, plena de alegria e temor, assim como de um prazer extraordinariamente
intenso, que quase levou Darius à loucura. Quando o conde atingiu o clímax, um relâmpago atravessou a sua consciência, fragmentando-a em mil pedaços. Emma foi o
único elemento do mundo real que permaneceu visível, enquanto Southwaite se perdia, momentaneamente, nas profundezas da sua própria perceção.
CAPÍTULO 29
Emma encostou-se à vedação rugosa. Observava Southwaite, que montava um jovem garanhão, no grande cercado contíguo ao edifício comprido e parcialmente revestido
a madeira, da cavalariça.
Emma admirou a beleza física e o espírito do animal, o último dos quais Darius levava à submissão, através de uma persuasão subtil. Também admirou o cavaleiro, que
parecia bastante rústico, com as botas enlameadas e em mangas de camisa.
Os últimos dois dias haviam sido eróticos. Sedutores. Repletos de amor. A paixão entorpecera o receio de Emma, mas não o obliterara por completo. Sempre que pensava
em Robert, a sua incapacidade para o ajudar entristecia-a profundamente. Existiam até momentos, como o presente, em que Emma ainda imaginava como poderia fugir dali,
a fim de seguir as instruções dos raptores, permitindo que o barco atracasse, conforme os planos previamente delineados.
Obviamente, fugir não era uma solução eficaz para o seu problema. O conde sabia exatamente para onde Emma iria e porquê. Southwaite raptara-a para a impedir de fazer
algo passível de ser interpretado como traição, independentemente das motivações subjacentes. Caso Emma se aproximasse do trilho costeiro, o conde teria de a entregar
às autoridades. Mesmo que permanecesse afastada do local, Darius poderia ter de o fazer, se alguém descobrisse os planos de Emma.
Emma decidira não pensar sobre o futuro, nem sobre a possibilidade de, em breve, ficar sob o domínio de um verdadeiro guarda prisional, em vez daquele carcereiro
apaixonado, que, além de limitar os seus movimentos, lhe oferecia proteção e abrigo.
Southwaite fez o cavalo parar e permanecer imóvel. Emma viu que o animal queria começar a galopar.
O conde disse algo ao corcel, que ela não conseguiu ouvir. As orelhas do garanhão ficaram eretas, inclinando-se, em seguida, para trás. Então, o animal desistiu
dos seus esforços tempestuosos e pareceu sorrir, quando Darius lhe administrou algumas pancadas suaves no pescoço. O conde deixou-o movimentar-se, mas somente num
passo lento. Aproximaram-se ambos de Emma.
– Regressaremos ao edifício principal, dentro de pouco tempo – disse Southwaite.
– Não me importo de estar aqui. Gosto de contemplar os cavalos. Não se vá embora por minha causa.
Darius anuiu. Depois dirigiu-se para um portão existente na vedação. Levantou a tranca e saiu do cercado. Com um sinal subtil, tão-somente, o garanhão iniciou um
galope desenfreado, atravessando os campos circundantes.
Emma sentou-se num banco de madeira, que fora encostado à parede exterior da cavalariça, e aguardou. Os seus pés balançaram um pouco, suspensos no ar, destacando-se
proeminentemente da bainha do vestido. Emma olhou para baixo e riu-se da sua própria figura. Esquecera-se completamente de quão peculiar era a sua aparência.
Usava botas de cano curto, emprestadas por uma criada, e um vestido que fora cedido por outra. Este último era demasiado curto para o corpo de Emma. O chapéu tinha
sido encontrado no quarto de Lydia.
Como era extremamente simples, misturava-se bem com os restantes elementos. Emma e Southwaite haviam soltado várias gargalhadas sonoras, quando ela vestira aquele
conjunto de artigos doados.
Emma sugerira a Southwaite que poderiam simplesmente enviar alguém à casa de campo, para ir buscar as suas próprias roupas. O conde rejeitara a sugestão, afirmando
que Emma lhe parecia perfeita tal como estava. A declaração de Darius havia sido encantadora e o beijo que ele lhe dera fora desconcertante, mas a recusa do conde
tivera uma natureza definitiva, o que indiciava que as vestes de Emma continuariam na casa de campo por um dado motivo.
Southwaite não tencionava ficar ali, na companhia de Emma, eternamente, deixando aquele idílio romântico prolongar-se durante várias semanas. Emma só permaneceria
em Crownhill até o conde ter a certeza absoluta de que ela estava a salvo. Fora o que ele próprio dissera. Emma desconfiava de que Darius aguardava o desenrolar
de determinados acontecimentos, que lhe permitiriam saber, com toda a segurança, que ela não corria qualquer perigo.
Southwaite conduziu o cavalo na direção de Emma, ensinando-o a trotar. O garanhão deixou bem claro que não apreciava a marcha apalermada. Emma ouviu as risadas de
Southwaite, quando o animal manifestou a sua revolta, executando pequenos meios passos hábeis. Então, o conde parou. A sua atenção já não se fixava no corcel, nem
em Emma.
Os campos eram atravessados por outro cavaleiro, que progredia a galope. O indivíduo misterioso estava bastante próximo da cavalariça. Emma calculou que o homem,
originalmente, se dirigira para o edifício, mas fizera um desvio ao ver Southwaite no exterior do cercado. Os dois cavaleiros reuniram-se, na imensidão dos campos,
e conversaram. Em seguida, avançaram para o local onde Emma estava sentada. O outro homem era o visconde Ambury.
Southwaite apeou-se do garanhão e instruiu os serventes da cavalariça para que preparassem o macho de pelo castanho arruivado, que já fora castrado. Ambury cumprimentou
Emma.
– Espero que a sua visita a Crownhill esteja a ser repousante, Miss Fairbourne – disse Ambury.
– Tem sido bastante repousante, obrigada. Também veio para descansar um pouco? Calculo que a temporada tenha sido muito desgastante.
Ambury sorriu, de um modo estranho, e anuiu.
– Southwaite tem-se gabado acerca de um jovem cavalo de corrida, que adquiriu recentemente. Vim ver, com os meus próprios olhos, as capacidades desse animal, que
supostamente é extraordinário.
Um dos serventes trouxe para o exterior da cavalariça o macho castrado que Darius solicitara.
– Ambury e eu percorreremos o caminho de regresso ao edifício principal a cavalo – explicou o conde.
– A carruagem transportá-la-á.
Southwaite pegou na mão de Emma, conduziu-a até ao veículo e ajudou-a a subir para o assento.
O conde assumira uma expressão sisuda e pensativa. As feições de Darius endureceram com bastante rapidez, de formas subtis e variadas. Aquela transformação repentina
parecia afetar até mesmo a forma como ele se dirigia a Emma.
Emma contemplou o local onde Ambury aguardava.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou ela.
– Nada. Explicar-lhe-ei mais tarde – respondeu Southwaite.
Depois, ergueu a mão de Emma beijando-lhe a pele suave. Ambury certificou-se de que dirigia o seu olhar para outro ponto, nesse preciso momento.
O conde subiu para a sela e afastou-se, na companhia do amigo.
– Para onde está a olhar? – perguntou Darius.
O conde e Ambury tinham abrandado, adotando um passo tranquilo, ao percorrerem a alameda que os levava até à porta principal de Crownhill. Ambury lançava, repetidamente,
na direção de Southwaite, olhares repletos de desaprovação. O conde adivinhou o porquê da censura silenciosa. Decidiu que era preferível esclarecer o assunto de
imediato.
– Você parece-me um homem com uma crítica entalada na garganta.
– Não me cabe a mim criticar o modo como lidou com esta questão, especialmente no que diz respeito a Miss Fairbourne – disse Ambury. – Deixarei essa tarefa para
o Kendale, que, devo avisá-lo, ficará extremamente alterado, quando descobrir que Emma Fairbourne está aqui, e não onde esperávamos que ela estivesse.
– Eu tratarei do Kendale.
Com os diabos, ainda não sabia como o faria. Kendale acusá-lo-ia de colocar em risco toda a missão.
O que era verdade.
– Também não irei mencionar a evidência de que Miss Fairbourne desconhece a sua intenção de continuar a interferir nos acontecimentos. Aparentemente, Emma pensa
que você deseja apenas impedi-la de realizar quaisquer atividades ilegais. Não aguardava a chegada de outros intervenientes.
– Explicar-lhe-ei tudo, em breve.
– Também não me cabe a mim salientar que as suas cartas continham diversas exigências, dirigidas à minha pessoa, cujo cumprimento foi simplesmente abominável. Visitar
Penthurst, a fim de lhe pedir que intercedesse junto do secretário de Estado para os Assuntos Internos, revelou-se particularmente desagradável.
– Ambos sabemos que o Kendale jamais teria aceitado executar esse género de tarefas.
– Então sinto-me abençoado por ter uma personalidade extremamente amável. Fico contente por você considerar a minha maneira de ser conveniente para os seus propósitos.
Darius presumira que Ambury ficaria satisfeito, ao enumerar as causas da sua irritação. No entanto, pouco tempo depois, o conde recebeu mais um olhar penetrante
do amigo.
– Essa expressão desaprovadora não o favorece, Ambury. Fica demasiado parecido com a minha tia Amelia, quando fecha a boca dessa forma, apertando os lábios com força.
– Não estou a apertar os lábios com força. Nem desaprovo as suas ações. Contudo, tenho de admitir que me deixou desconcertado. Diria mesmo atónito.
– Porquê?
– Você e Miss Fairbourne.
– Nunca critiquei os seus casos amorosos. Sei como é perigoso dizer a um homem que a sua amante não é apropriada.
– Um caso amoroso? Garanto-lhe que não estava a criticar um caso amoroso, cuja existência desconhecia por completo, até este momento. É verdade que presumi que você
lhe concedia um tratamento especial, devido a sentimentos afetuosos, mas não imaginei que havia sido alcançado o sucesso inerente a um caso amoroso.
– Talvez você pense que eu não deveria expressar a estima que tenho por Miss Fairbourne, independentemente da existência de um caso amoroso entre nós. Talvez você
queira entregá-la às bestas do Ministério da Administração Interna, devido ao papel que Emma desempenhou em todo o processo.
Estou preparado para ouvir dos lábios do Kendale que eu deveria ter deixado os acontecimentos seguirem o seu rumo, a fim de assegurar a captura da rede inteira,
mas...
– Mais uma vez, presumiu conhecer os meus pensamentos, quando não os conhece, de todo. Ainda tenho a esperança de que consigamos prender todos os membros da rede
de espionagem, apenas com um pequeno acréscimo do perigo da operação de captura. E jamais aprovaria a entrega de uma mulher a tais... personagens macabras.
Os cavalheiros pararam os seus corcéis perto da porta principal de Crownhill e apearam-se.
– Se quer saber, Southwaite, estou chocado por você ter permitido que a pobre mulher permanecesse vestida daquela maneira. Só abona a favor dela o facto de conseguir
envergar aquele vestido medonho e mal ajustado como se este fosse uma maravilha da moda, feita da melhor seda, recusando-se a sentir qualquer vergonha pela sua falta
de consideração.
Não passara pela cabeça de Darius que Emma pudesse parecer hedionda. O conde nem sequer voltara a reparar no vestido, após ambos terem rido alegremente por causa
da peça de vestuário.
– Tivemos de usar o que havia disponível.
– Devia ter providenciado algo melhor – disse Ambury, abanando a cabeça. – Pobre mulher.
Dirigiram-se, imediatamente, para a biblioteca. Kendale já se encontrava na divisão, aguardando a chegada dos amigos. Southwaite e Ambury também foram recebidos
por um pequeno arsenal. Pistolas, mosquetes e sacos de pólvora enchiam as mesas.
– Somos apenas três e vejo cinco mosquetes – comentou Southwaite, examinando as várias armas que haviam sido dispostas sobre os tampos lustrosos.
– Gosto de possuir algumas armas sobressalentes, carregadas, prontas a disparar e colocadas em posições estratégicas – explicou Kendale. – Ainda tenho umas quantas,
dentro da minha carruagem, se também quiserem tomar essa precaução.
– Safo-me muito melhor com uma simples pistola – respondeu Darius.
– Lembrar-se-á de que o nosso objetivo é capturá-los vivos, correto? – indagou Ambury a Kendale, enquanto erguia um mosquete e fazia pontaria com a mira localizada
na extremidade do cano.
– Sou a menor das suas preocupações. E, se não tivermos cuidado, quem sair daquele barco será a menor das nossas. Não gosto de ser obrigado a questionar a segurança
da minha retaguarda, quando estou a avançar num campo de batalha.
– Não tem qualquer motivo para desconfiar de que o Tarrington e os seus colaboradores irão traí-lo – afirmou Southwaite.
– E você não tem qualquer motivo para acreditar que eles não me trairão, exceto a palavra de um criminoso.
– Segundo a minha experiência, quando promete algo, o Tarrington mantém a sua palavra, com uma firmeza exasperante.
– Espero que tenha razão, pois, neste preciso momento, o sujeito está a vigiar o Hodgson, que seguramente tentará suborná-lo.
Ambury consultou o seu relógio de bolso.
– Saímos daqui a três horas. Os outros devem estar quase a chegar. Já tivemos alguma notícia de Londres? O correio já chegou?
– Ainda não.
– E se não recebermos carta alguma?
Darius pressupunha que deveriam receber, pelo menos, uma.
– Mesmo que não chegue qualquer missiva, avançaremos com o plano – disse Kendale. – O tempo está bom. O canal parece suficientemente calmo para a travessia poder
ser realizada sem percalços. Se tivermos alguma sorte, esta confusão terminará hoje à noite. Não quero ter de adiar a resolução do problema durante mais quinze dias.
Quando o período de espera se prolonga em demasia, acabam por ser cometidos erros. Miss Fairbourne poderá concluir que embarcou numa missão insensata, se fizer os
sinais, noite após noite, e ninguém aparecer.
Ambury pousou o mosquete. Em seguida, lançou a Darius um olhar pleno de significado.
– Penso que será melhor você contar-lhe.
– Contar-me o quê? – inquiriu Kendale, fitando os amigos.
– Miss Fairbourne não fará sinal algum, porque, presentemente, não se encontra na casa de campo da sua família – explicou Southwaite.
Kendale não ficou tão enfurecido como Darius esperara. Porém, aquela acalmia podia ser meramente provisória, pois Kendale ainda não sabia a história toda. É verdade
que praguejou sonoramente. Contudo, após tê-lo feito, foi dominado por um estado de espírito filosófico.
– Presumo que Miss Fairbourne não conseguiu enfrentar a ideia de fazer algo tão odioso. Isso só abona a favor da senhora, mas significa que estamos a desperdiçar
o nosso tempo aqui.
– O contributo dela não é essencial. Sabemos que um barco francês se dirige para a costa inglesa.
Faremos com que o Hodgson vá ao seu encontro, e podemos...
– Tenciona usar um vestido e subir a colina, até alcançar o trilho costeiro, de modo a desempenhar o papel de Emma Fairbourne? Lembre-se de que não sabemos se o
Hodgson era a única pessoa que deveria ir ao encontro do barco. Com os diabos, temos de ter em conta a possibilidade de alguém estar a observar tudo o que se desenrola
na costa.
– Nem o trilho nem o local do desembarque são pontos fáceis de vigiar. A colina em questão é despida e exposta. Para além disso, a estrada existente por trás dela
é bastante visível – argumentou Darius.
Kendale abanou a cabeça.
– Podemos monitorizar, durante toda a noite, a linha costeira, assim como a casa de campo dos Fairbourne, para avaliarmos o que pode ser feito. Contudo, na melhor
das hipóteses, iremos capturar outro mensageiro.
– E se a marioneta dançar como lhe ordenaram? E se eu fizer os sinais e aguardar na casa de campo, seguindo as instruções que me deram?
Southwaite virou-se, quando ouviu as perguntas de Emma. Ela encontrava-se sob a ombreira da porta, envergando o infame vestido velho. As botas curtas eram bem visíveis
por baixo da bainha deste. O
conde teve de admitir que as vestes eram ridículas. No entanto, Emma parecia deslumbrante, independentemente da indumentária.
O silêncio invadiu a biblioteca, enquanto todos observavam a recém-chegada. A surpresa de Kendale deu lugar a um olhar repleto de consciência e desagrado, que teve
como alvo Darius.
– Quando referiu que Miss Fairbourne não estava na casa de campo, não mencionou que, em vez disso, ela se encontrava aqui, na sua residência.
– Foi uma simples distração – apaziguou Ambury.
– Miss Fairbourne é minha convidada – esclareceu Southwaite.
– Raios o partam – sibilou Kendale, baixinho.
– Seria preferível que deixasse o assunto nas nossas mãos e regressasse ao seu quarto, Miss Fairbourne – disse Darius, bruscamente.
– Não creio que essa alternativa seja preferível, de todo. Segundo entendi, planearam uma intervenção, mas a minha ausência diminuirá a probabilidade de serem bem-sucedidos.
Se assim for, preciso de desempenhar o papel que me foi atribuído.
– É demasiado perigoso – retorquiu Southwaite. – Agora, por favor, deixe-nos.
Emma corou, devido ao tom autoritário do conde. Permaneceu imóvel, ignorando a ordem.
Maldição. Emma tinha de decidir ser teimosa naquele momento crítico. Darius gostaria de colocá-la por cima do seu próprio ombro e transportá-la para longe da biblioteca.
Aproximou-se da porta, esperando que Emma percebesse o quão perto ele estava de fazer precisamente isso.
– Saia, agora mesmo, Emma.
Southwaite manteve a voz baixa, para garantir alguma privacidade, mas não conteve a força de vontade subjacente às suas palavras.
– Quero fazê-lo. Necessito de o fazer.
– Não. Quero-a fora disto.
Uma expressão rebelde e amarga dominou o rosto de Emma, tornando-o tenso. Darius não ficaria surpreendido, se Miss Fairbourne começasse uma discussão ali mesmo,
à frente de Kendale e Ambury.
Em vez disso, Emma girou sobre os seus calcanhares e abandonou a divisão. O conde fechou a porta, logo após ela ter saído.
Quando Southwaite voltou para junto dos amigos, Kendale estava concentrado na paisagem exterior, que contemplava através da janela. Ambury, por sua vez, ocupava-se
com o ritual de servir um pouco de brandy.
– O que Miss Fairbourne disse é verdade, Southwaite – afirmou Ambury, por fim. – Sabe que ela tem razão.
– Não.
– Protegê-la-ei, durante todo o processo – disse Kendale. – Ao primeiro sinal de perigo, agirei prontamente. Se alguém tentar magoá-la, matá-lo-ei, de imediato.
– Você não pode ficar com ela naquele maldito trilho costeiro – disse Darius, abruptamente.
– Posso ficar suficientemente perto dela para conseguir atingir quaisquer potenciais agressores com uma bala de mosquete.
– Porém, não conseguirá auxiliá-la no interior da casa de campo. Não temos sequer uma garantia de que os criminosos deixarão o local pela manhã. Miss Fairbourne
poderia ter de passar vários dias sem qualquer proteção, na companhia de indivíduos moralmente questionáveis. Não permitirei que isso suceda.
Kendale compreendeu o perigo daquele cenário. Ele próprio jamais colocaria um elemento do sexo feminino numa posição tão vulnerável. Por essa razão, parou de insistir.
– E se escondêssemos alguém na casa de campo? Você, por exemplo. Poderia ficar no piso superior, dentro de um dos quartos – sugeriu Ambury. – Assim, embora não pudesse
mantê-la debaixo de olho, conseguiria ouvir tudo, Southwaite. Quanto à possibilidade de os criminosos permanecerem no local durante vários dias, encontraremos uma
forma de desencorajar tal ocorrência. Prevejo que a estadia dos patifes não durará sequer uma noite.
– O que você propõe dificilmente garantiria a segurança de Miss Fairbourne. Ela ficará aqui. Não discutirei mais sobre este assunto.
Kendale caminhou em direção à porta.
– Raios, para onde pensa que vai? – perguntou Darius.
– Vou sondar a opinião da senhora sobre a questão. Você não é pai dela, nem irmão dela, nem tem com ela qualquer outro tipo de parentesco. A menos que exista uma
aliança matrimonial, que eu desconheça, Emma Fairbourne não tem a obrigação de se submeter à vontade do conde de Southwaite. Do meu ponto de vista, Miss Fairbourne
possui o direito de fazer as suas próprias escolhas.
Darius ficou furioso. Seguiu Kendale, com o intuito de o deter. Mas uma mão firme, que apertava a parte superior do seu braço, impediu-o de continuar a avançar.
Southwaite virou-se para Ambury, enraivecido.
– Ia ensinar uma lição a Kendale, mas também posso ensinar-lha a si, se me der motivos suficientes para o fazer.
– Ensine-me uma lição, se quiser. Prefiro ser espancado a vê-lo esquecer-se de quem é e da razão pela qual estamos todos aqui.
A voz de Ambury era tranquilizadora. No entanto, o visconde não soltou o braço do amigo.
– Emma quase cometeu traição, Southwaite. Negar-lhe-á uma oportunidade para se redimir, perante a sua própria consciência? Não poderá existir relação alguma entre
você e ela, até essa redenção ocorrer.
Ao ouvir as declarações de Ambury, Darius sentiu vontade de lhe administrar um soco vigoroso.
Conseguia imaginar Emma a dizer a Kendale que estava disposta a ajudá-los. A cabeça do conde quase se desintegrou perante essa imagem. Southwaite desejou prender
Emma num local longínquo, onde ela estivesse a salvo. Amaldiçoou-se por a ter mantido ali, com ele, em vez de a ter enviado para os confins da Terra, de modo a protegê-la
eficazmente.
A ira de Darius cresceu, escureceu e finalmente desabou, como uma onda a rebentar na costa, no meio de uma tempestade. Contudo, em seguida, a vaga sombria recuou,
instalando-se uma acalmia relativa. O
bom senso de Southwaite começou a dar forma a pensamentos mais racionais. Com o domínio da lógica, uma determinação glacial foi tudo o que restou na mente do conde.
CAPÍTULO 30
– Está segura de que sabe o que deve fazer e dizer?
Southwaite colocou-lhe a questão mais uma vez. Emma anuiu. Tentou tranquilizá-lo, com o seu olhar e o seu toque. Porém, naquele momento, Darius não era um homem
que pudesse ser apaziguado.
– Repita tudo – pediu o conde. – Enumere as indicações que lhe demos, para eu ter a certeza absoluta de que não houve qualquer mal-entendido.
– Devo pegar nas lanternas e dirigir-me para o trilho costeiro, como foi originalmente planeado.
Independentemente do que observe na costa, devo fazer o sinal.
– Kendale estará num local próximo, a vigiá-la. Ninguém deverá abordá-la, Emma. Se vir alguém por perto, quem quer que seja...
– Sim, eu sei. Já me avisou. Ficarei bem, Darius. Sei tomar conta de mim própria. Não deixarei que me magoem.
– O resto. Conte-me o resto.
– Então, devo regressar à casa de campo, colocar uma lanterna na janela e aguardar.
– Poderá ser uma longa espera. Eles estarão no meio do mar, suficientemente perto para detetarem a luz, no cimo da falésia, mas suficientemente longe para fugirem,
caso seja necessário.
– Sim, eu sei. Já me explicou isso várias vezes, Darius. Quando o passageiro especial do barco aparecer na casa de campo, acompanhado pelo Hodgson, afirmarei ter
a certeza de que alguém me seguiu, no caminho de regresso. Farei tudo o que for possível para que eles cheguem à conclusão de que não será seguro permanecerem comigo.
Assim, serão obrigados a alterar o plano original.
– Eu estarei num dos quartos do piso superior. Se, em algum momento, se sentir ameaçada... se algum desses canalhas olhar sequer para si de uma maneira estranha,
deve...
– Gritar, para que você perceba que necessito do seu auxílio – disse Emma, erguendo depois a cabeça e beijando Southwaite. – Sentir-me-ei perfeitamente segura, sabendo
que também estará lá.
Darius deslizou um braço à volta de Emma e cingiu-a carinhosamente. A proximidade do conde foi um bálsamo para os nervos de Miss Fairbourne, que estavam mais inquietos
do que as aparências sugeriam.
Ambury e Kendale haviam sido bondosos, ao permitirem que Emma desfrutasse aqueles breves instantes a sós com Darius. Lá fora, os cascos de vários cavalos atingiam
o chão, ritmicamente, produzindo uma harmonia soturna, que Emma conseguia ouvir claramente. Aqueles cascos não pertenciam somente a duas montadas. Três homens haviam
chegado a Crownhill, enquanto o visconde Kendale conversava com Emma. Eram todos cavalheiros. Emma supôs que deveriam possuir propriedades naquela região, tendo
sido convocados por Southwaite.
– Contei a Lord Kendale tudo o que sei sobre o rapto do meu irmão – disse Emma. – Dei-lhe uma descrição do Robert. Assim, se um dos passageiros do barco afirmar
ser ele, Lord Kendale poderá avaliar a veracidade da declaração. O visconde disseme que se agruparia ao Tarrington, para intercetarem o barco, assim que o espião
deixasse a costa.
Darius permaneceu calado. Emma sabia que ele não acreditava que Robert pudesse ser libertado pelos raptores. Southwaite pensava que o irmão de Emma estava morto,
e que o «Homem Estúpido» e o seu empregador se haviam aproveitado da recusa dos Fairbourne em aceitarem a verdade.
– Que acontecerá, depois de eles abandonarem a casa de campo?
Emma havia sido informada sobre o seu papel, mas sabia muito pouco acerca do resto da operação.
Duvidava que Lord Kendale confiasse suficientemente nela para lhe contar mais pormenores.
Provavelmente tinha adivinhado que Darius a impedira, fisicamente, de se tornar uma traidora.
– A Emma ficará fora desta confusão, por fim – murmurou Southwaite.
– Quero saber o que acontecerá aos espiões.
– Serão vigiados. Temos a esperança de que o homem recém- -chegado nos conduza às pessoas que lhe deveriam fornecer informações. A recolha dessas informações é o
motivo subjacente à realização da travessia do canal. O Hodgson, o homem que você conhece e com quem já se encontrou, será capturado, quando se separar do recém-chegado.
Ele já está à espera disso. Aceitou atraiçoar a missão que lhe haviam atribuído, e a Emma, para salvar o pescoço da forca, mas não continuará em liberdade.
– Talvez o Hodgson também esteja a tentar resgatar um parente aprisionado.
– Ele fê-lo por dinheiro, Emma. A maioria dos criminosos age simplesmente por ganância.
As cortinas da carruagem estavam fechadas, mas Emma percebeu que se aproximavam da casa de campo dos Fairbourne, mesmo sem conseguir contemplar a paisagem circundante.
Darius também sentiu que estavam perto do final da viagem. O abraço do conde tornou-se mais envolvente. Southwaite beijou Emma de uma forma tão doce que o amor por
ele dilacerou o seu coração amedrontado.
– Quando tudo isto acabar, precisamos de alcançar um entendimento honesto sobre algumas questões, Miss Fairbourne.
– Espero que isso seja possível.
Emma gostaria de pensar que Darius estava a tentar seduzi-la, ou a provocá-la. Porém, o conde não falara levianamente, mas sim com um tom de voz extremamente sério.
Não acreditava que aquele entendimento honesto fosse agradável para si própria. Quando a intervenção dos cavalheiros chegasse ao fim, Darius perceberia que amar
Emma teria um custo bastante elevado, em termos de honra. Emma não esperava que a balança pendesse a seu favor, após uma ponderação cuidadosa.
O cavalo que puxava a carruagem abrandou. Em seguida, o veículo imobilizou-se, no meio da estrada.
Emma virou-se, nos braços de Darius, e beijou os lábios do conde. Durante esse beijo, expulsou o futuro da sua mente. Encheu a cabeça e o coração com memórias dos
últimos dois dias, passados na companhia de Southwaite. Recordou também a beleza que descobrira, ao partilhar momentos de paixão com um homem que amava.
Então, a porta da carruagem abriu-se e ambos foram banhados pela luz cada vez mais fraca do final da tarde. Emma e Darius caminharam em direção à casa de campo,
enquanto a carruagem e cinco cavalheiros a cavalo se afastavam do par.
Na pequena biblioteca da residência Emma aguardava a chegada dos seus convidados especiais.
Mantivera algumas velas acesas e sentara-se numa cadeira. Se permanecesse na posição em que se encontrava, seria visível através da janela, caso alguém espreitasse
para o interior da habitação.
Esperava há três horas e, até àquele momento, não houvera sinal algum de Hodgson, o «Homem Estúpido», do espião, nem de qualquer outra pessoa.
O papel que tinha desempenhado no trilho costeiro fora fácil, quando comparado com aquela espera interminável. Nem uma alma estivera à vista. Enquanto aguardava
que a noite caísse, Emma tentara determinar o sítio onde Lord Kendale se havia escondido. O visconde mantivera-se tão invisível que Emma poderia ter duvidado da
sua presença, se ele não fosse o tipo de homem do qual ninguém se atrevia a duvidar.
Emma presumiu que poderia deslocar-se pelo piso térreo. Não tinha de continuar sentada eternamente.
Contudo, Darius não emitia qualquer som, no andar superior, por isso Emma decidiu ficar na cadeira, em silêncio. Talvez o conde estivesse à janela, escutando atentamente
os ruídos provenientes do exterior, de modo a conseguir detetar a aproximação do grupo.
Southwaite subira as escadas, após uma despedida dolorosa, transportando as pistolas já carregadas. O
conde não gostava que Emma estivesse ali, de todo. Ao entrar na casa, assumira uma expressão severa, que nunca mais abandonara o seu rosto. No entanto, mesmo antes
de se separarem, quando Darius já havia galgado metade dos degraus, o conde virou-se e fitou Emma. A respiração dela tornara-se ofegante, ao contemplar a expressão
repleta de amor, preocupação e raiva, que dominara momentaneamente a fisionomia de Southwaite.
E se os homens não aparecessem? O mar estava calmo, mas existiam outras razões que poderiam levar a um adiamento do desembarque. Emma poderia ter de fazer tudo aquilo
novamente, nas noites seguintes.
Perguntou a si mesma se Darius permitiria que tal acontecesse.
A luz ambiente enfraqueceu. Emma olhou na direção da janela, onde a lanterna havia sido pousada, para averiguar se a chama da vela estaria prestes a apagar-se. Dois
olhos mexeram-se, por detrás dos vidros irregulares, assustando-a terrivelmente. O coração de Emma deu um salto e começou a bater num ritmo desenfreado. Ela teve
de fazer um esforço considerável para não fitar o teto, que a separava da divisão onde Darius se encontrava.
A porta abriu-se. Passos de botas e murmúrios aproximaram-se. Hodgson entrou na biblioteca e olhou em redor. De seguida, fez um gesto convidativo. Um homem alto
e magro, de cabelo escuro e porte militar, surgiu diante dela.
Emma aguardou alguns instantes, esperando ouvir mais um par de botas, com o coração na garganta. Só conseguiu ouvir silêncio. Os dois indivíduos tinham vindo sozinhos.
Uma desilusão profunda apoderou-se de Emma. Era como se uma onda de desânimo tivesse rebentado dentro da sua cabeça. Sentiu vontade de chorar e gritar. Que estúpida
havia sido. Fitou Hodgson, obrigando-se a engolir as palavras de fúria, perante aquela traição, que invadiam a sua mente.
– Apresento-lhe o meu amigo – disse Hodgson. – Vai precisar de um quarto, como lhe havia dito. Esta é Miss Fairbourne, Jacques.
– Joseph – corrigiu o homem, franzindo a testa, severamente. – Chamo-me Joseph.
Joseph falava um inglês incrivelmente bom. Quando saísse dali, passaria completamente despercebido, se usasse aquele sotaque britânico, que parecia tão natural.
– O quarto está pronto, como combinado – mencionou Emma. – Porém, temo que terá de o usar por sua conta e risco.
– Como assim? – indagou Joseph, rispidamente.
– Não estive sempre sozinha, enquanto fazia o sinal. Não sei se notaram, mas, a dada altura, a luz ficou parada, durante um curto período de tempo. Um homem passou
por mim e revelou algum interesse pelos meus movimentos. Foi esse o motivo da pausa. Obviamente, poderá não haver qualquer razão para se preocuparem, mas...
As emoções caóticas de Emma fizeram com que as suas palavras saíssem aos soluços. Emma esperou que os homens atribuíssem a irregularidade do seu discurso ao medo.
– Merde 21.
Hodgson parecia consternado.
– Tenho a certeza absoluta de que não existe qualquer razão para nos preocuparmos.
– Como pode estar seguro disso? – inquiriu Joseph, com brusquidão.
Os olhos de Hodgson arregalaram-se. Emma pensou que o sujeito parecia culpado, de um modo extremamente óbvio. Ouvira uma pergunta para a qual não tinha qualquer
resposta, devido à sua traição premeditada.
– Não quero que o encontrem aqui. Prometeram-me sigilo e segurança – continuou Emma.
– Não lhe prometi coisa alguma – respondeu Joseph. Foi até à janela, apagou a vela da lanterna e contemplou, de forma inquisitiva, a escuridão da noite.
Hodgson ficou nervoso e agitado. A preocupação deixou uma marca evidente na sua expressão. Virou-se, repetidamente, para Emma, com um olhar curioso, como se esperasse
ouvir dos seus lábios o motivo subjacente à alteração dos planos.
Emma alimentou a esperança de que aquela preocupação o atormentasse. Estava contente por saber que Hodgson não permaneceria em liberdade. O homem mentira-lhe e,
devido a essa mentira, ela quase fizera algo extraordinariamente terrível e desonroso. Até mesmo a simples intenção de o fazer seria considerada imperdoável por
muitas pessoas.
– Onde está o meu irmão? – perguntou Emma. – Disseme que ele viria consigo.
– Ele, hum... encaminhei-o em direção à aldeia localizada perto daqui, um pouco para o interior. Ele não sabia que a senhora estaria aqui... pensei que a senhora
poderia gostar de lhe explicar a situação pelas suas próprias palavras... e ele não viu qualquer vantagem em permanecer connosco, após o barco ter atingido as areias
de Inglaterra. Poderá visitar a povoação, amanhã de manhã. Encontrá-lo-á são e salvo.
O coração de Emma doía, tal era a sua vontade de acreditar em Hodgson. Procurou todas as desculpas para o fazer, mas, no fundo, sabia que tinha de encarar a realidade.
– Você está a mentir. O Robert não veio convosco no barco. Creio que tentou iludir-me com falsidades.
Até mesmo aquela carta era apenas uma falsificação.
Joseph olhou por cima do seu próprio ombro.
– Não era uma falsificação. O seu irmão escreveu-a. Vi-o a fazê-lo.
– Então, por que motivo não está aqui o Robert?! – gritou Emma. – Se pensa que os vou ajudar, vezes sem conta, na vã esperança de que, um dia, o meu irmão atravesse
finalmente aquela porta, está muito enganado.
Joseph fitou-a calmamente, com um semblante inexpressivo.
– Estou confiante de que o fará – disse, virando-se, em seguida, para Hodgson. – Partiremos agora mesmo.
– Agora? No meio da escuridão? Se alguém estiver a vigiar a casa, com o intuito de nos capturar, não os veremos até...
– Se não conseguirmos vê-los, eles também não nos conseguirão ver.
– Vá, se quiser. Eu tenciono ficar exatamente onde estou.
– Virá comigo. Foi pago para me acompanhar até Londres. Cumprirá a sua missão.
Hodgson suava profusamente. Emma supôs que, após ter sido surpreendido pelas mudanças inesperadas, que haviam afetado o plano originalmente delineado, o sujeito
temia agora uma mudança muito maior, que o aguardava, a coberto da escuridão noturna.
Hodgson demorou demasiado tempo a decidir. Como tal, Joseph tocou no cabo de uma faca. A arma branca estava fixada e embainhada na sua cintura. Emma susteve a respiração,
ao mesmo tempo que uma tensão ameaçadora enchia a biblioteca.
Com uma expressão nauseada, Hodgson anuiu. Lançou a Emma um olhar desconfiado, ao passar por ela. Emma contou os passos das botas, enquanto os dois criminosos percorriam
o caminho de regresso à entrada da habitação. Quando a porta se fechou, após terem saído, Emma expirou, aliviada.
Sentou-se, a fim de aguardar um pouco mais, até os seus convidados estarem consideravelmente longe.
Durante essa espera, sucumbiu finalmente ao medo, à humilhação e à tristeza. Foi dominada por soluços dolorosos. Enterrou o rosto nas mãos, numa tentativa de abafar
o som. Chorou a morte da sua esperança e aceitou que Southwaite estivera certo. Robert jamais regressaria a casa.
– Emma.
Darius chamava-a, suavemente, do cimo das escadas, meia hora após Hodgson ter abandonado a casa de campo.
Emma aproximou-se dos degraus e olhou para cima, na direção do conde.
– Apague as velas e venha para aqui. Passarão várias horas antes que alguém chegue, para nos contar como tudo acabou – sugeriu ele.
Emma extinguiu as pequenas chamas tremeluzentes. Em seguida, subiu as escadas. Southwaite puxou-a para um abraço e pressionou os seus lábios contra a testa de Emma,
enquanto a envolvia afetuosamente.
O conde rezara diversas vezes, ao longo das últimas dez horas. Naquele momento, voltou a fazê-lo.
Emma afundou-se nos braços de Darius. Aparentemente, o simples ato de permanecer de pé exigia demasiado esforço da sua parte.
– Sinto-me como se tivesse caminhado em cima de uma cerca, durante vários dias, totalmente tensa, somente para conseguir manter o equilíbrio.
– Deite-se e durma um pouco. Ultimamente, não tem repousado tanto quanto devia.
Emma resistiu à tentativa de Southwaite para a afastar das escadas. Quando fungou, o conde percebeu que ela tinha estado a chorar e ainda se encontrava bastante
perturbada.
– Tal como previu, o meu irmão não foi trazido até mim.
Emma escondeu o rosto no casaco de Darius e começou a chorar, desesperadamente.
– Estou tão envergonhada – murmurou, com uma fúria severa, entre as ondas de lágrimas.
Southwaite continuou a abraçá-la, enquanto intermináveis soluços, profundos e irados, a assolavam. O
conde afagou o ombro e o braço de Emma, esperando que aquela carícia a tranquilizasse.
– Emma, você agiu obedecendo a um sentido de dever para com a sua família. A decisão que tomou é facilmente compreensível, aos olhos de qualquer ser humano.
– Está apenas a ser gentil – disse Emma, com a voz aparentemente abafada, quebrada e tensa. – Jamais teria considerado realizar um ato tão vil, independentemente
do que tentassem usar para me coagirem.
– Fico contente por estar tão segura disso. Eu não estou. Existem, pelo menos, duas pessoas pelas quais eu poderia tomar a mesma decisão. A minha irmã e você.
Emma olhou para Darius. Parecia extremamente comovida por ter sido incluída na curta lista.
– Você poderia considerar a hipótese, mas, no final, não o faria. Recusar-se-ia a comprar entes queridos com uma traição. Nunca aceitaria ser apenas um peão, nem
confiaria na honestidade de criminosos. Em vez disso, faria algo nobre e corajoso. Organizaria uma operação de resgate ousada, como é hábito dos homens.
As mulheres, pelo contrário, não possuíam tal hábito, porque a habilidade e a força necessárias não estavam disponíveis para o belo sexo.
– Venha dormir, Emma. A aventura já terminou.
A aventura já terminara. Bem, ainda não acabara completamente. Contudo, o fim chegaria muito em breve.
Southwaite não se referira à paixão e ao amor existente entre ambos. Porém, presentemente, esses aspetos ocupavam totalmente o pensamento de Emma. Aquele abraço
carinhoso não a envolveria nos dias futuros. O consolo do calor de Darius desapareceria da sua vida. Emma nunca fora uma escolha apropriada, nem mesmo para amante.
À luz dos acontecimentos recentes, a sua inadequação tornara-se ainda mais óbvia.
Os amigos de Southwaite sabiam que Emma aceitara auxiliar Hodgson. Dentro de pouco tempo, vários membros do governo britânico também o saberiam. De que outra forma
explicariam a intervenção daquela noite? Miss Fairbourne podia ter-se redimido, no final, mas isso não eliminava a mácula pecaminosa que sujara a sua honra.
– Não tenho sono – proferiu Emma.
– Então descanse nos meus braços. A noite ainda será longa.
– Parece-me uma opção muito agradável, mas seria um desperdício gastar o tempo que nos resta somente a descansar, não concorda?
O beijo de Darius confirmou que ele a entendera suficientemente bem. Afinal de contas, o conde era um homem fogoso. Emma ficou grata por Southwaite não agir como
se, naquele momento, ela estivesse demasiado frágil para uma noite de paixão.
– Adoro a sua franqueza, Miss Fairbourne. Eu teria desempenhado o papel de cavaleiro casto, até amanhã de manhã, se tal se afigurasse necessário, mas não é isso
que o meu sangue anseia.
Emma soltou algumas risadinhas pouco ruidosas, enquanto o seu rosto permanecia enterrado no casaco de Darius. O som alegrou instantaneamente o ambiente e colocou
de parte os acontecimentos perigosos do dia, fazendo com que a sombra destes afetasse Emma apenas ligeiramente, em vez de a dominar por completo.
Emma contorceu-se, a fim de se libertar do abraço de Southwaite, e caminhou até ao seu quarto. Uma vela solitária ardia na divisão. Utilizou-a para acender outra,
que estava perto do espelho. A maneira como o vidro refletiu a chama tremeluzente, recordou-lhe um certo salão de baile, com um candelabro e um lustre magnífico.
Darius já não trazia os seus casacos vestidos, quando atravessou a ombreira da porta. O conde dedicou-se à remoção do vestido de Emma.
– Hoje, o Ambury repreendeu-me por eu a obrigar a contentar-se com este vestido velho e aquelas abomináveis botas curtas.
– Por acaso, explicou-lhe que eram as primeiras roupas que eu usava em mais de um dia, e que você tinha rasgado o meu único vestido, de uma forma extremamente rude,
durante um ataque de impaciência?
– Um ataque de paixão, não de impaciência. Creio que consigo ser uma autêntica fortaleza de paciência, quando existem motivos para tal.
Emma insistiu em dobrar e empilhar, cuidadosamente, cada uma das peças de vestuário emprestadas.
Podiam ser pobres e feias, mas não lhe pertenciam. Assim que terminou a tarefa, Southwaite puxou-a para junto de si e deitou-a sobre a cama.
Ela acomodou-se no leito. Olhou em redor, examinando o quarto.
– Se o fantasma do meu pai estiver aqui, não parece importar-se com o que planeamos fazer.
– Esse não é um pensamento que encoraje a paixão, Emma – comentou Darius, que também analisou a divisão. – Sente a presença dele aqui? Não que eu acredite em tais
disparates, é claro.
– Não, não sinto. Já senti, antes de você me raptar...
– Não se tratou de um verdadeiro rapto, Emma.
– Antes de você me raptar, na noite anterior, senti o que havia sentido durante a minha última estadia nesta casa. No entanto, hoje, quando chegámos, a sensação
desapareceu, misteriosamente.
Emma empurrou para baixo os ombros das suas vestes interiores, destapando os seios. Uniu as mãos atrás da cabeça, para que o peito se erguesse consideravelmente.
– Agora, faça o seu pior.
Darius acariciou e estimulou os seios de Emma. Uma titilação extraordinariamente deliciosa tornou os suspiros dela mais profundos. Southwaite excitou-a, usando os
dentes e a língua, de uma forma delicada, que a levava invariavelmente à loucura. O prazer sensual envolveu-a, e ela abandonou-se àquelas sensações maravilhosas.
Concentrou-se no odor do conde, assim como no seu toque e no seu calor. Emma rendeu-se totalmente à paixão, para que pudesse recordar eternamente aquele momento
glorioso.
Em breve, uma impaciência terrível começou a invadi-la, à medida que a sua agitação se intensificava.
Implorou a Darius para que a possuísse, de imediato. Queria poder sentir a totalidade do ser de Southwaite.
– Espere um pouco – disse o conde, beijando a barriga de Emma e empurrando-lhe para cima as vestes interiores. – Ainda não.
Quando Southwaite desceu para a zona inferior do corpo de Emma, ela não aguardou que o conde lhe dissesse o que fazer. Em vez disso, dobrou os joelhos, afastou as
coxas e levantou as ancas. Southwaite ajoelhou-se, agarrou as nádegas de Emma e inclinou a cabeça para baixo, levando-a até ao paraíso.
Darius acordou de manhã cedo, logo após o nascer do sol. Ficou imediatamente alerta, pois os seus instintos advertiam-no para a existência de perigo nas proximidades.
Esticou-se, de modo a alcançar a pistola. Colocara-a sobre uma mesa localizada perto da cama.
Quando os seus sentidos recuperaram completamente, ouviu o som que o despertara. No piso inferior, ecoavam passos de botas.
Darius levantou-se e vestiu-se sem fazer barulho. Em seguida, desceu as escadas. Os ruídos conduziram-no até à cozinha, que se situava na parte de trás da habitação.
A meio do percurso, baixou a arma e deixou de tentar caminhar silenciosamente. Conhecia bem as vozes que conversavam no interior da divisão.
– Não vai roubar comida, pois não? – perguntou Ambury.
– Tenho a certeza de que a senhora não se importará que eu coma um pouco de pão, quando souber o quão próximo estive de morrer de inanição. Permaneci no mar durante
metade da noite.
Ouviu-se o som de louça a chocalhar.
– Também há aqui um pernil de porco. É servido?
– Claro que não.
– Como desejar.
Southwaite entrou na cozinha no preciso instante em que Tarrington cortava uma fatia grossa da carne de porco. Sentado languidamente numa cadeira, Ambury observava
o processo, com um olhar faminto.
Darius apoderou-se da travessa que continha o pernil e afastou-a de Tarrington. Em seguida, pousou-a perto de Ambury e começou a trinchar a peça.
– Partilhe o pão, Tarrington – ordenou o conde, por cima do seu próprio ombro.
Metade de um pão voou em direção a Ambury.
– Trouxemos-lhe um cavalo – disse Tarrington, enquanto comia e olhava em redor. – Onde está a nossa anfitriã?
– Penso que ainda se encontra a dormir – respondeu Southwaite.
Mesmo ao seu lado, Ambury fez um trejeito com o maxilar inferior, mas sem que tal pudesse ser considerado um sorriso revelador por parte do visconde.
– Uma vez que está aqui, Ambury, presumo que passou os nossos amigos para as mãos das autoridades competentes.
– O Hodgson e o passageiro especial seguiram a estrada que se dirige para Londres, como era esperado, por isso decorreu tudo sem percalços. Agora estão ambos sob
a alçada do Ministério da Administração Interna. Um agente governamental aguardava no cruzamento mencionado na carta que o Penthurst lhe enviou. Se perderem o rasto
dos patifes, após todo o trabalho que tivemos para os capturar, matarei o responsável pela aselhice.
– Creio que o Penthurst terá feito uma ameaça semelhante, com o intuito de garantir que a tarefa seria cumprida de forma diligente.
Ambury recheou um grande pedaço de pão com carne de porco. De seguida, deliciou-se com o banquete improvisado.
– Você tem a noção de que os franceses só necessitarão de alguns meses para substituírem os espiões que capturámos, não tem?
– Provavelmente, tem razão. Só podemos fazer o nosso melhor – disse Darius, virando-se depois para Tarrington, que inspecionava o conteúdo dos armários da cozinha.
– Tarrington, conseguiram intercetar o barco, depois de ele abandonar a costa?
– Claro que sim. Até poderá chocá-lo, mas o navio estava a ser utilizado para transportar, não só o espião mas também mercadorias contrabandeadas.
– Tal como sucedeu com a última embarcação. É o disfarce que os franceses têm usado.
– O último barco continha apenas alguns artigos insignificantes. Este estava a realizar uma verdadeira operação de contrabando. Transportava diversos bens valiosos
– observou Tarrington, dando, em seguida, outra grande dentada no pão que segurava. – Lamento dizer que a tripulação era britânica e não francesa. Tratava-se de
uma galera, proveniente de Diehl.
– Eles têm usado galeras? – questionou Ambury. – Não admira que ainda não tivessem sido apanhados.
Com vinte e quatro homens a remarem vigorosamente, conseguiriam fugir a qualquer corveta, ou chalupa.
Quanto tempo demora a travessia do canal com uma galera?
Tarrington estudou o pão que comia e encolheu os ombros.
– Segundo ouvi dizer, se o tempo estiver soalheiro, uma galera consegue atravessar o canal em cinco horas. Não que eu perceba alguma coisa do assunto, um vez que
sou um cidadão pacífico e cumpridor da lei. Quanto à tripulação deste navio, tinham formado uma aliança amigável com comerciantes franceses de Boulogne. Acabaram
por aceitar executar estas pequenas missões, de vez em quando, para além das transações habituais. O Hodgson encaminhava os bens. Era um esquema muito eficaz.
Realmente fora um esquema eficaz, pensou Darius. Uma galera remava até França, era abastecida com vinho e outros artigos valiosos, aceitava cartas, ou passageiros
especiais, e remava de volta a Inglaterra, onde era recebida por um homem disposto a providenciar a conversão das melhores mercadorias em dinheiro, recorrendo a
uma casa de leilões, sem ter de pagar qualquer comissão sobre o preço de venda.
– Onde se encontram os bens que o barco transportava? – perguntou Southwaite.
– No mar, foi onde caíram. Uma coisa triste de se ver. Guardei a embarcação numa pequena enseada bastante agradável, caso deseje verificar o conteúdo do porão.
Darius tinha a certeza absoluta de que, se decidisse visitar o navio, não encontraria quaisquer mercadorias ilegais no seu interior.
– E a tripulação? Eram todos contrabandistas ingleses?
– A maior parte era. Porém, havia um indivíduo que parecia não pertencer ao mesmo grupo que os restantes. Tentou permanecer calado, mas, por fim, lá começou a falar.
Era uma espécie de acompanhante do passageiro especial – disse Tarrington, continuando a investigar as várias gavetas. – Sabe se ela tem algum chá aqui? Não me importaria
de beber uma chávena.
– Então o sujeito simplesmente decidiu oferecer-lhe essa informação? – indagou Ambury. – Foi muito generoso da parte dele.
– Nah! Teve de ser persuadido – esclareceu Tarrington, ainda concentrado na sua busca pelo chá.
– Com uma pistola encostada à têmpora, sem dúvida – disse Southwaite, secamente.
– Era dessa maneira que eu pretendia tratar do assunto – explicou Tarrington. – Mas Lord Kendale impediu-me de o fazer.
– Estou impressionado – disse Ambury. – Não teria previsto que o Kendale o impediria de praticar tal ato.
– Lord Kendale foi extremamente útil. Mostrou-nos como um homem que está disposto a morrer não se encontra preparado para enfrentar algo que fique aquém da morte.
Contou-nos que, no Exército, conseguiam obter as informações que desejavam mais rapidamente usando uma faca bem afiada, com a qual ameaçavam as partes privadas do
indivíduo. Com os diabos, ele tinha toda a razão. O francês gordo viu a faca lá em baixo e desatou a tagarelar – revelou Tarrington, enquanto se aproximava da mesa,
a fim de atacar novamente a perna de porco.
Ambury fechou os olhos, com resignação.
– Onde está ele agora? O gordo? – perguntou Darius.
– Com os outros, naquela gruta que eu uso. Aguardo que vossas senhorias me digam o que devo fazer com eles. Alguns dos meus rapazes estão encarregados da vigilância
do local. Contam com a ajuda preciosa de Lord Kendale.
– Portanto, temos o barco, os contrabandistas e o homem gordo, cuja função era garantir que o passageiro especial chegava à costa inglesa são e salvo, e se reunia
com o contacto. Somente as mercadorias ilegais foram perdidas.
– Certo. No fundo do mar, é onde estão.
– Ambury, penso que devíamos ter uma conversa com o homem gordo. Os contrabandistas sabem de onde partiram e o sujeito provavelmente sabe como ir desse lugar até
ao covil do grupo que coordena o envio de espiões.
Os olhos de Ambury iluminaram-se.
– Se está a pensar naquilo que eu suspeito que está, o Kendale ficará extraordinariamente feliz.
Contudo, o almirantado não irá gostar do plano.
– Eles não conseguem impedir os contrabandistas ingleses de atravessarem o canal, até França, por isso duvido que consigam impedir-nos de fazer o mesmo.
O olhar de Tarrington saltitava entre os dois cavalheiros, seguindo a conversa.
– Planeiam realizar a travessia? Não é tão fácil como parece. Os franceses também possuem uma marinha e, ultimamente, a costa francesa tem sido patrulhada por um
grande número de soldados. No mínimo, seria aconselhável levarem um exército convosco.
– Estava a pensar mais na possibilidade de o levar a si, juntamente com os seus rapazes – disse Southwaite. – Não poderei confiar nos contrabandistas traidores que
se encontram na gruta, isso é certo.
– Não, não, não! – exclamou Tarrington, agitando ambas as mãos. – Concordei com uma noite, ao largo da costa. Da nossa costa. Não com uma iniciativa temerária, nobre,
estúpida...
– Ambury, lembre-me de perguntar ao Kendale o que aconteceu aos artigos transportados pelo barco que ele e os rapazes de Tarrington intercetaram, durante a noite
passada. O Kendale poderá ter fechado os olhos, encarando as mercadorias como despojos de guerra. No entanto, nunca mentirá abertamente, se a questão lhe for colocada.
O contrabandista fitou Darius, com ressentimento. Ambury riu-se. Tarrington cruzou os braços e abanou a cabeça, resignado.
– Com os diabos, é um homem duro, Southwaite.
– Podemos vir a pagar caro por isto, Southwaite, e não me refiro ao risco óbvio para a nossa segurança pessoal – disse Ambury. – O governo não gosta que os seus
cidadãos realizem invasões militares não autorizadas.
– Se descobrirem os nossos planos, pagaremos um preço infernal, isso é certo – respondeu Darius. – Contudo, poderemos argumentar que, na verdade, não se tratava
de uma manobra militar. Era uma missão de salvamento.
Southwaite explicou-lhes o que queria dizer com aquilo e quem iriam resgatar. Se Ambury encarou a revelação com algum ceticismo, não o demonstrou. Tarrington só
quis a garantia de que os seus rapazes poderiam trazer tudo o que conseguissem transportar. Relativamente a Kendale, Darius sabia que o amigo ficaria contente por
ter um pouco de ação, independentemente do nome que atribuíssem à iniciativa.
Após Ambury e Tarrington terem partido, seguindo as ordens de Southwaite, com o intuito de tratarem dos preparativos necessários, o conde subiu as escadas. Emma
estava acordada, deitada entre os lençóis, banhada pela luz do início da manhã.
Emma parecia extremamente bela. O seu cabelo espalhara-se sobre as almofadas, sedoso e brilhante. O
seu olhar, quando se virou para Darius, continha memórias da noite anterior, assim como um calor profundo, nascido da intimidade que agora partilhavam.
Emma acreditava que o irmão ainda estava vivo. Sentia-o, dissera ela. Emma insistira que a carta que lhe tinham entregado não era uma falsificação. Estava mais certa
da sobrevivência de Robert Fairbourne do que Southwaite estava seguro da maioria dos aspetos da sua vida, exceto o seu amor por ela. Quem era Darius para questionar
o que o coração de Emma podia e não podia saber?
O conde sentou-se na cama e inclinou-se para baixo, de modo a beijar Emma. Pensou, como já se tornara seu hábito, que aquela mulher era verdadeiramente extraordinária,
em todos os sentidos. Podia ter-se rendido a ele, mas, ao fazê-lo, encantara-o totalmente.
– A minha carruagem virá recolhê-la dentro de poucas horas – explicou Southwaite. – Transportá-la-á até Londres.
– Também voltará para a cidade?
– Ainda não. Preciso de lidar com algumas pontas soltas, embora o plano tenha funcionado perfeitamente.
– Quando conseguirá regressar a Londres?
– Talvez daqui a uma semana.
Os braços de Emma envolveram o pescoço de Darius. Ela beijou-o de uma forma intensa e prolongada.
Southwaite sentiu todas as emoções que se agitavam no interior de Emma, pois, durante aquele beijo, ela expôs completamente o seu coração. No meio do amor profundo
que sentia pelo conde, existia tristeza e até mesmo algum medo.
Darius libertou-se suavemente do abraço de Emma. Juntou as mãos dela à frente dos seus lábios, a fim de poder beijá-las, com ternura. Em seguida, ergueu-se, para
ir embora.
– Não se esqueça de que a amo, Emma. Nunca duvide disso.
21 «Merda», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.)
CAPÍTULO 31
– Lord Ambury ainda não me visitou, para reclamar o anel e levar os brincos – comentou Cassandra.
– Creio que, ultimamente, Ambury tem andado bastante ocupado – esclareceu Emma. – Sabe se ele está sequer na cidade?
– Não o tenho visto. Talvez se encontre noutro local. No entanto, o objetivo de leiloar as joias era convertê-las em dinheiro e não ficar com mais joias. Por isso,
espero que o visconde resolva este assunto em breve.
Estavam ambas sentadas no jardim das traseiras da Fairbourne’s. As duas amigas tinham escolhido aquele lugar para que Emma pudesse reunir-se com Marielle, que acabara
de chegar. A francesa misteriosa encontrava-se atarefada. Tentava desatar o cordão que encerrava um pequeno saco que trouxera consigo.
– O «Homem Estúpido» também desapareceu – mencionou Marielle, enquanto os seus dedos compridos e esguios procuravam desfazer o nó. – Há dez dias que permanece invisível.
– Quem é o «Homem Estúpido»? – perguntou Cassandra.
Marielle ergueu o olhar, surpreendida. Em seguida, virou-se para Emma, lançando-lhe um pedido de desculpas silencioso, e voltou a dedicar-se ao nó.
– Era um homem que andava a incomodar Marielle – explicou Emma. Gostaria de contar à jovem imigrante que o «Homem Estúpido» nunca mais seria visto, mas a discrição
proibia que o fizesse.
– Oh. Pensei que ela se referia ao meu irmão.
Emma riu-se, soltando gargalhadas sonoras. Cassandra sorriu, orgulhosa da sua travessura. Marielle continuou debruçada sobre o nó problemático.
Emma enxugou os olhos. O ataque de riso soubera-lhe bem. Durante os últimos dez dias não estivera propriamente bem-humorada. A ausência de Southwaite deixara um
grande vazio na sua vida. Emma não previra que tal acontecesse. Porém, também não esperara que o seu coração se resignasse tão rapidamente a viver com aquele vazio
permanente.
« Não se esqueça de que a amo, Emma. Nunca duvide disso.» Emma não duvidava do amor de Darius.
Contudo, não acreditava que os sentimentos de Southwaite fossem suficientemente fortes para que ele conseguisse ignorar a opinião generalizada da sociedade. Provavelmente,
não rebentaria um escândalo público. No entanto, o facto de Emma ter planeado cometer traição já era conhecido por alguns cavalheiros pertencentes ao círculo de
amigos do conde. Em breve, outros elementos desse círculo seriam informados acerca da sua colaboração com Hodgson. Se a relação existente entre Emma e Darius continuasse,
o bom-nome do conde de Southwaite ficaria comprometido para sempre.
Uma semana, dissera ele. Tinham decorrido dez dias. Emma já aceitara que aquela espera poderia prolongar-se muito mais. A dada altura, receberia uma carta, na qual
Darius lhe explicaria tudo, com uma tristeza sincera. Emma aguardava a chegada dessa missiva, como todos os seres humanos costumam aguardar a chegada de quaisquer
más notícias, com uma preocupação doentia, quase desejando que as más novas cheguem, para que a incerteza termine.
– Ah. Bon22.
Marielle conseguira, finalmente, abrir o saco. Verteu, cuidadosamente, o conteúdo deste sobre a mesa.
– Camafeus! – exclamou Cassandra, pegando depois numa das peças. – São maravilhosos. Parecem muito antigos.
Emma ergueu um dos camafeus. O minúsculo desenho esculpido em relevo retratava Dionísio e o seu séquito. A ágata, a partir da qual a peça havia sido talhada, era
tão fina, que se apresentava translúcida.
– A gema parece-me bastante antiga, mas o encaixe é mais recente. Poderá ser uma joia da época do Renascimento.
– Foi exatamente isso que me disseram. A mulher que atualmente o possui contou-me que, em tempos, esse camafeu pertenceu ao rei. É muito valioso. A senhora está
disposta a vendê-lo, se você tiver outros artigos interessantes, dignos de o acompanhar em leilão.
Cassandra levantou os olhos, enquadrados por longas pestanas negras. Até àquele momento, estes haviam estado concentrados na peça que ela segurava. Lançou a Emma
um olhar inquisitivo.
– Já começou a fazer planos para o próximo leilão? Durante o verão, a cidade fica muito parada.
Esperava que aguardasse até ao outono.
Emma esfregou a figura em relevo com o polegar.
– Não sei se haverá outro leilão.
Southwaite sempre quisera vender a Fairbourne’s. Emma deixaria de se opor à decisão do conde. Se, por um milagre, Robert sobrevivesse e regressasse a casa, os lucros
obtidos no último leilão estariam à espera dele.
– Oh, comigo é sempre assim – disse Marielle, após soltar um suspiro profundo. – Encontro uma forma de arranjar dinheiro para comer e depois algo corre mal.
Retirou os camafeus das mãos de Emma e Cassandra.
– Talvez aquele senhor, Mr. Christie, também me dê vinte por cento.
As pálpebras de Cassandra desceram. Cruzou os braços e olhou para Emma.
– Deu-lhe vinte por cento?
Pela segunda vez, Marielle percebeu que falara demasiado. Dedicou-se a guardar os camafeus no saco, com um zelo excessivo. Quando terminou a tarefa, levantou-se,
para se despedir. No entanto, a sua atenção foi atraída por algo, que a distraiu. Permaneceu imóvel.
– Porque está ele aqui? – perguntou, num tom acusatório. – Pensei que ele tinha desaparecido da face da Terra, tal como o «Homem Estúpido».
Perplexa, Emma virou-se e olhou na direção do edifício principal da leiloeira. Lord Kendale encontrava-se perto da porta que dava acesso ao jardim. Observava-as
atentamente, sem se mexer.
Emma sentiu-se profundamente desanimada. Se Kendale estava em Londres, os tais assuntos pendentes que Southwaite tinha na costa certamente já tinham sido resolvidos.
Contudo, Darius não a visitara. Nem sequer lhe escrevera. Não a tentara contactar, de forma alguma, desde a despedida que tivera lugar na casa de campo.
A preocupação doentia intensificou-se. Emma sabia, simplesmente sabia, que em breve choraria o fim do seu primeiro e único caso amoroso.
Emma dirigiu a sua atenção para Marielle, novamente.
– Conhece-o?
– É o indivíduo que me segue. Falei consigo sobre ele. O «Homem Estúpido Belo».
– Atribuiu um nome muito cruel ao cavalheiro – repreendeu Cassandra.
– A alternativa era «Homem Muito Estúpido» – esclareceu Emma.
– Ele pensa que me assusta, com aquele olhar intenso e penetrante.
Marielle recompôs-se, assumiu a expressão mais entediada do seu repertório e encarou Kendale. A atenção de Emma saltou, repetidamente, de um para o outro, enquanto
Marielle fitava Kendale e o visconde lhe pagava na mesma moeda.
Então, o semblante de Marielle sofreu uma mudança drástica. Primeiro, uma doçura extrema moldou o seu rosto. Depois, um sorriso tímido transformou-a ainda mais.
Fascinada, Emma tentou avaliar a reação de Kendale àquela alteração inesperada.
A severidade de Kendale desapareceu. O visconde corou tão intensamente que Emma conseguiu ver claramente o seu rubor, apesar da distância que os separava. Kendale
virou-se e regressou ao interior do edifício.
Marielle deu um último puxão aos cordões do seu saco.
– Ganhei – disse ela, apontando para a parte de trás do jardim. – Existe um portão ali? Sairei dessa maneira, para que o «Homem Estúpido Belo» não me siga.
– Eu acompanho-a – declarou Cassandra. – A minha carruagem ficou em Piccadilly.
Inclinou-se, para dar um beijo a Emma.
– Estou a tentar decidir se deverei contar a Kendale que tem outro nome, muito pouco lisonjeiro. Creio que guardarei a informação, para a usar como arma, se o visconde
alguma vez me fitar com aquela carranca de desaprovação.
Enquanto as suas amigas abandonavam a Fairbourne’s, pelo portão das traseiras, Emma pensou que deveria partilhar com Cassandra que Lord Kendale também tinha momentos
de maior simpatia. Emma refletiu sobre essas ocasiões. Sentia uma gratidão profunda para com o visconde. Kendale ajudara-a numa altura difícil.
Era muito provável que Kendale tivesse vindo até à leiloeira para lhe entregar uma mensagem.
Possivelmente, vinha entregar-lhe a informação de que a aventura chegara realmente ao fim. Talvez Darius o tivesse enviado, de modo a evitar encontrar-se com Emma.
Emma levantou-se, para ir ter com Lord Kendale, a fim de o cumprimentar. Virou-se para o edifício principal. O que viu fê-la arquejar.
Um homem de cabelo castanho encontrava-se perto da porta que dava acesso ao jardim, onde Kendale estivera há alguns instantes. O indivíduo sorriu e começou a caminhar
em direção a Emma. Os seus passos tornaram-se cada vez maiores, devido à impaciência que o invadia. Completamente imóvel, em estado de choque, Emma observou-o a
aproximar-se.
– Robert!
Emma desfez o seu longo abraço e respirou fundo. Examinou o irmão, com os olhos rasos de lágrimas.
Robert pegou na mão de Emma e incentivou-a a sentar-se. Parecia extraordinariamente feliz e estava em boa forma física. Emma ficou aliviada por ele não ter passado
fome, enquanto permanecera encarcerado.
– Como... – começou a perguntar, mas a emoção roubou-lhe as palavras.
Robert segurou a mão de Emma entre as suas.
– Fui resgatado. E por dois fidalgos, ainda por cima! Traziam, pelo menos, vinte homens, todos armados. O coronel Leplage ficou tão surpreendido que não foi disparado
um único tiro.
– Quem é o coronel Leplage?
– É o homem que me aprisionou. Mora na mansão de um conde francês, não muito longe de Boulogne – disse Robert, encolhendo os ombros. – Não tenho a certeza do que
ele faz, mas várias pessoas entravam e saíam da residência. Por vezes, chegavam mesmo a ficar para jantar connosco. Eram oficiais do Exército e membros do Governo,
suspeito eu. Porém, nunca falavam das suas atividades, quando eu estava presente.
Emma enxugou os olhos com o seu lenço. Era surpreendente descobrir que Robert não só não passara fome num calabouço sombrio, como ela imaginara, mas, em vez disso,
desfrutara de refeições requintadas, com os convidados do seu carcereiro, numa sala de jantar.
Emma contemplou novamente o irmão.
– Gosto do seu cabelo. Esse corte é novo.
Robert tocou nos caracóis castanhos, agora curtos, seguindo a última moda.
– Gosta? O criado de Leplage fez-me este corte. Em França, todos os homens se livraram dos seus rabos-de-cavalo há vários anos.
– E esse casaco também é bonito. Favorece-o bastante.
Robert olhou para a peça de vestuário e sorriu.
– Gosto muito dele. Os alfaiates de Leplage são excelentes.
Emma imaginou Southwaite e os seus amigos a entrarem, de rompante, numa mansão senhorial, com as pistolas em punho, para encontrarem Robert numa sala de jantar refinada,
envergando um casaco impecavelmente confecionado e ostentando um penteado elegante.
– Fico aliviada por você não ter sofrido, Robert. E estou comovida por esses fidalgos terem arriscado a própria vida para o salvarem. Jamais conseguiremos retribuir-lhes
o favor – disse Emma, já com os olhos secos. – Talvez, antes que alguém nos interrompa, possa explicar-me como, originalmente, se tornou um convidado de Mr. Leplage.
Robert fez uma careta e corou.
– Explicar-lhe-ei tudo o que aconteceu, tal como expliquei a Lord Southwaite, mas é uma história demasiado embaraçosa para ser contada a outras pessoas.
De alguma forma, Emma já o sabia.
– Prometo ser discreta.
Robert suspirou.
– Chegaram aos meus ouvidos rumores de que existia uma propriedade, não muito longe de Boulogne, que fora abandonada por um conde, ao fugir dos revolucionários,
e que continha diversas pinturas muito valiosas. Sugeri ao nosso pai que eu poderia viajar até França, a fim de resgatar as obras. Contudo, ele recusou a minha proposta.
Chorei a notícia da morte dele, Emma, mas, por vezes, ele conseguia ser extremamente teimoso e antiquado.
– Se a objeção ao roubo é uma atitude antiquada...
– Os quadros encontravam-se espalhados pela residência, a apodrecer lentamente. Estamos em plena guerra com os franceses. Será sequer possível roubar ao país inimigo?
Bem, de qualquer modo, o pai não quis falar mais sobre o assunto. Porém, já não sou um rapaz imberbe, Emma. Assim, decidi avançar com o meu plano. Estava a organizar
o meu primeiro leilão. Os artigos consignados seriam todos angariados por mim. Contratei alguns homens, para me transportarem até à costa francesa e me auxiliarem
a trazer as pinturas, na viagem de regresso.
– Contrabandistas?
– Não fiz perguntas. Sabia apenas que possuíam uma enorme galera. Prometeram conseguir realizar toda a operação num só dia. Em troca, ofereci-lhes vinte e cinco
por cento das receitas obtidas através da venda dos quadros.
– Por acaso foram esses homens que lhe contaram o rumor acerca das pinturas abandonadas?
– Sim! Como é que adivinhou?
Emma escutara pacientemente a descrição do plano insensato de Robert. O seu irmão sempre tivera uma faceta imprudente, agora que pensava nisso. Também nunca ouvira
as lições do pai tão atentamente como ela própria. Emma não refletira sobre aquelas qualidades menos nobres, enquanto se preocupara com a sobrevivência de Robert,
durante dois anos, rezando para que ele regressasse a casa.
– O que correu mal?
Robert respirou fundo.
– Os homens traíram-me. É incrível, não é? Quando chegámos à propriedade, esta não se encontrava deserta. Assim que a nossa presença foi detetada, chamei-os, para
que me ajudassem a escapar, mas, em vez disso, eles ofereceram os seus serviços a Leplage. Desse modo, tornei-me um convidado involuntário do coronel e a galera
voltou para Inglaterra sem mim. No entanto, Leplage teve uma atitude bastante decente para comigo. Disseme que, se eu desse a minha palavra de honra em como não
tentaria fugir, poderia deslocar-me livremente pelos terrenos que circundavam a mansão.
– Pelo menos a sua situação contribuiu para que Lord Southwaite o conseguisse encontrar mais facilmente.
– Suponho que sim. Lord Southwaite chegou sob uma chuva torrencial e insistiu para que o acompanhasse de imediato. Também se recusou a trazer qualquer pintura. Oh,
sim, os quadros estavam lá e eram, de facto, obras muito valiosas. O tempo não melhorou e ficámos detidos em França, sem poder realizar a travessia do canal. Tivemos
de nos esquivar às unidades do exército que patrulhavam a costa, durante vários dias. Foi terrível.
– Mas, certamente, foi melhor do que continuar a ser um prisioneiro do coronel.
– Oh, sim. Com certeza – disse Robert, apesar de não parecer estar convencido, de todo.
Emma contemplou o edifício principal da Fairbourne’s.
– Lord Kendale trouxe-o até cá?
– Não. Lord Kendale acompanhou-nos, a cavalo. Foi Lord Southwaite quem me trouxe até aqui, na sua própria carruagem. Primeiro, tentámos encontrá-la em casa. Maitland
disse a Lord Southwaite onde você estava.
Southwaite.
– Temos de ir para dentro, para que eu possa agradecer-lhes tudo o que fizeram.
Emma começou a erguer-se, mas Robert agarrou a mão dela e pediu-lhe que se sentasse novamente.
– Necessito de lhe contar algo, antes que entre ali, Emma.
O facto de Robert ter corado, ao proferir aquelas palavras, não passou despercebido a Emma. Ela sentou-se e aguardou que o irmão revelasse o seu segredo.
– Não regressei sozinho – revelou Robert. – Enquanto estive em França, casei-me.
Nessa tarde, a Fairbourne’s foi palco de uma das suas festas mais alegres. Não existiam quadros a cobrirem as paredes, nem havia música no ar. Contudo, os convidados
puderam apreciar as últimas garrafas do vinho contrabandeado. Se alguém adivinhou a proveniência da bebida, nada foi dito acerca do assunto.
Emma tinha regressado ao salão de exposições, na companhia do seu irmão, assim que recuperara da notícia do casamento de Robert. Ao atravessarem o jardim, em direção
ao edifício principal, Robert havia finalmente expressado alguma autocrítica.
– Eu era jovem e estúpido. Um tolo à espera de ser enganado pelo primeiro patife que aparecesse, Emma. Creio que caí no engodo. Aliciaram-me com as pinturas, para
que eu planeasse navegar até França. Sei que o nosso pai foi coagido a colaborar em atividades ilegais e que, mais tarde, você também foi envolvida nas mesmas. Southwaite
contou-me tudo o que se passou, enquanto aguardávamos que as tempestades amainassem.
Naquele momento, Robert passeava pela casa de leilões. Emma observava-o atentamente. Ele apontava em várias direções e explicava alguns pormenores a uma jovem que
caminhava ao seu lado. Uma esposa.
O casamento de Robert surpreendera-a quase tanto como a visão do irmão, a aproximar-se, pelo jardim, após anos de ausência.
Southwaite deslizou para junto de Emma. Examinou igualmente o jovem casal.
– O Robert desposou-a sob a ameaça de uma espada, segundo me contou. Ela trabalhava na mansão do coronel que o mantinha aprisionado, como criada. Foram encontrados
numa situação bastante comprometedora.
– Obviamente, fiquei aliviada ao descobrir que o meu irmão não sofreu excessivamente durante o seu cativeiro prolongado. Aparentemente, Robert não foi sujeito a
qualquer tipo de privação – comentou Emma, bebendo um pouco de vinho. – Ela parece ser uma rapariga agradável. Creio que nos entenderemos bem.
O braço de Southwaite abarcou a divisão, num gesto abrangente.
– Emma, conseguiu. Preservou o negócio da família, para o seu irmão, tal como desejava.
– Consegui exatamente o que queria, não foi? Então, por que motivo me sinto um pouco triste, por ter de ceder a chefia da Fairbourne’s?
Darius fitou Emma, com humor e calor nos olhos.
– Talvez porque sabe que conseguiria gerir a empresa melhor do que o Robert alguma vez o fará. Não fique tão indignada com a minha sugestão. O seu irmão e eu tivemos
algumas conversas longas sobre arte, enquanto esperávamos que o mar acalmasse e rezávamos para que as tropas francesas não nos encontrassem antes de o tempo melhorar.
Creio que você prestou mais atenção às lições do seu pai do que o Robert.
Era provável que Southwaite tivesse razão. Porém, Emma duvidava que Robert concordasse com aquela opinião. Ainda assim, no futuro, poderia haver um lugar para ela
na Fairbourne’s. No mínimo, o irmão poderia deixá-la catalogar as peças de prata.
Emma endireitou a coluna e retomou a compostura.
– Admito que fico um pouco nostálgica. Irei recordar com carinho o leilão final «não tão final», assim como o sucesso magnífico do último leilão. No entanto, esta
empresa é o legado de Robert. Devo afastar-me e permitir que ele ocupe o seu devido lugar.
– Na verdade, Emma, o seu irmão possui apenas uma parte da Fairbourne’s. Você tem um talento excecional para ignorar completamente o facto de metade da leiloeira
me pertencer – comentou Southwaite, pousando o seu copo e fazendo o mesmo ao de Emma. – Agora, venha comigo. Este salão está demasiado cheio.
O salão não estava cheio, de todo. Contudo, Emma não ofereceu qualquer resistência, quando Darius a conduziu apressadamente através da porta que dava acesso ao jardim,
levando-a até às profundezas dos canteiros adjacentes ao muro das traseiras. Southwaite puxou-a para um abraço saudoso e beijou-a vigorosamente.
– Pareceu uma eternidade, Emma – murmurou Southwaite.
Em seguida, tornou a beijá-la.
O amor percorreu todo o corpo de Emma, tão fresco e vibrante como sempre. Fez a excitação que a agitava cintilar de alegria.
– Estou-lhe muito grata por tê-lo trazido até mim. Mas também lhe agradeço por ter regressado são e salvo. Se você não tivesse...
A ideia horrorizava-a, sempre que pensava nela. Após ter falado da sua noiva, Robert deixara escapar o grande perigo que o grupo enfrentara. Uma consciência esmagadora
do que poderia ter perdido enfraquecera o entusiasmo de Emma, até esta conseguir arrastar o irmão para o interior do edifício, a fim de poder contemplar Southwaite,
saudável e forte, com os seus próprios olhos.
– Não corremos muito perigo – disse Darius. – Deixámos Kendale liderar a operação. Ele é verdadeiramente eficaz em missões deste tipo.
Emma já agradecera a Lord Kendale e a Lord Ambury, do fundo do seu coração. Eles tinham sido auxiliados por outros cavalheiros, que não haviam acompanhado Robert
até Londres. Emma tencionava agradecer-lhes também, assim que tal fosse possível.
O conde beijou-a outra vez. E mais uma vez. As suas carícias possessivas estimulavam todas as partes do corpo de Emma.
– Southwaite – proferiu uma voz, calmamente, não muito longe dali.
Darius ergueu o olhar, mas não soltou Emma.
– O que é, Ambury?
– Estamos de saída. Mr. Fairbourne e a esposa acabaram de partir, em direção a casa. Levaram a carruagem de Miss Fairbourne.
– Encontrar-me-ei consigo amanhã, no Brooks.
Enquanto as botas de Ambury percorriam ruidosamente o caminho coberto por seixos, as implicações daquela pequena conversa apoderaram-se da mente de Emma.
Southwaite começou de novo a beijá-la, mas parou.
– O que foi, Emma? De repente, ficou muito séria.
– Estou a refletir sobre as mudanças que o regresso de Robert trará, Darius. O meu irmão não levou a minha carruagem. Levou a carruagem dele. Neste momento, dirige-se
com a esposa para a casa dele, não para a minha. Quando procurar um refúgio do bulício da cidade, viajará com a esposa até à casa de campo dele, localizada na costa.
Agora já não tenho casa, nem carruagem. Na verdade, não tenho coisa alguma.
Southwaite sorriu para Emma, enquanto ela descrevia a sua pobreza iminente. O conde não parecia estar muito preocupado com a situação de Emma, o que a fez duvidar
da amizade de Darius.
– Tudo o que disse é verdade, Emma. E também é extremamente injusto. Porém, tenho uma residência bastante agradável, aqui em Londres, e muito mais do que uma simples
casa de campo, no litoral. Para além disso, possuo diversas carruagens, uma das quais poderá ser sua.
– Está a propor que façamos um acordo, Darius?
Emma ficou profundamente comovida por Southwaite continuar a desejá-la, de alguma forma. Afinal, poderia não o perder tão cedo como previra. Eventualmente, o afastamento
ocorreria, mas esse momento ainda não chegara. No entanto, até mesmo o tipo de relação sugerido implicitamente por Darius se revelaria prejudicial para a reputação
do conde. Talvez Darius esperasse que a sua famosa discrição mantivesse Emma como um segredo bem guardado.
– Estou a propor que façamos um acordo muito especial, Emma – anunciou Darius, olhando por cima da cabeça dela, na direção do edifício principal. – Possuo metade
de uma leiloeira. Creio que preciso de alguém que cuide desse investimento, em meu nome, durante os próximos anos. Não estou disposto a deixar toda a gestão da empresa
somente nas mãos do meu sócio. Não que eu não confie nos conhecimentos do seu irmão, ou na honestidade dele, é claro.
– É claro.
Southwaite não procurava uma relação romântica. O conde não estava sequer a propor que Emma fosse sua amante. Parecia sugerir essencialmente um acordo de negócios,
embora um pouco atípico. Emma fingiu que a tristeza não lhe quebrava o coração em mil pedaços.
– Teria imenso orgulho em representá-lo na Fairbourne’s. Prometo-lhe que, no futuro, nada será feito na casa de leilões que possa desonrar o seu nome, Darius. Isso
jamais voltará a acontecer, se me permitir zelar pelos seus interesses.
Emma apercebeu-se de que Southwaite poderia duvidar das suas declarações, tendo em conta o que sucedera no passado.
– Dou-lhe a minha palavra de honra.
Darius afagou o rosto de Emma e fitou-a com um olhar penetrante.
– Não necessito de ouvir as suas promessas. Possui uma índole que fala por si mesma e, após tudo o que aconteceu entre nós, conheço-a muito bem.
Emma tentou sorrir, mas sentiu a boca a tremer.
– Também pode estar seguro da máxima discrição. Garanto-lhe que a sociedade permanecerá secreta.
Ninguém saberá que você investiu na Fairbourne’s.
Southwaite beijou-a docemente. As emoções evocadas pela sua ternura foram extremamente dolorosas.
Emma percebeu que não poderia aceitar o que as carícias de Darius aparentemente sugeriam.
Emma desfez o beijo, mas não se libertou do abraço de Southwaite. Saboreou a maneira como o conde a envolvia, durante alguns instantes, antes de começar a falar.
– Estou-lhe grata, porque a sua confiança e a sua amizade irão salvar-me de uma dependência completa do meu irmão. Contudo, não creio que possa aceitar ser uma funcionária,
com quem você poderá, ocasionalmente, partilhar momentos de paixão. Não é por falta de desejo, como penso que sabe.
Simplesmente, amo-o demasiado para conseguir suportar tal provação. Temo que um acordo desse género partiria o meu coração vezes sem conta.
Southwaite lançou a Emma um olhar estranho e inquisitivo.
– Penso que acabámos de vivenciar outro «Equívoco Escandaloso», Miss Fairbourne.
– Ai pensa?
– Sim. Não pretendo partilhar momentos ocasionais de paixão consigo.
– Oh.
– Nem estou a oferecer-lhe um posto de trabalho, na Fairbourne’s. Pelo menos, não no sentido usual.
Receio que me tenha entendido mal. Vejo que deveria ter falado mais claramente.
– Falar com clareza é, frequentemente, uma opção sensata, mesmo que não seja sempre bem recebida pelo ouvinte.
– Neste caso, rezo para que seja bem recebida, Emma. Existe somente um acordo que me fará feliz. E
esse é também o único acordo que você merece. Estou a falar de casamento, Emma, e não de algo menos significativo.
Emma ficou boquiaberta. Não esperara ouvir outro pedido de casamento. Nem no presente nem no futuro. Sobretudo após o que havia acontecido.
Desta vez, a situação era bastante diferente. Darius não tinha qualquer obrigação para com Emma. Fora ela a comprometer a reputação do conde, e não o inverso. Southwaite
deveria repudiá-la, caso se preocupasse minimamente com a preservação do seu bom-nome.
O coração de Emma latejava, repleto de uma felicidade que queria libertar-se. Contudo, Emma não ousava acreditar que tudo aquilo era real.
– Tem a certeza absoluta de que deseja casar-se comigo, Darius? Não é uma decisão sensata, de todo.
Consigo pensar em, pelo menos, quatro razões pelas quais o seu pedido de casamento é uma atitude extremamente incauta da sua parte.
– Ai consegue?
– Sim, consigo. Em primeiro lugar, o seu...
Southwaite pousou o dedo indicador sobre os lábios de Emma.
– A honestidade e a franqueza são duas das suas qualidades mais encantadoras. Porém, não preciso que me explique porque não devo casar-me consigo. Conheço bem todas
as razões pelas quais eu não deveria pedi-la em casamento. No entanto, essas razões não têm a mínima importância para mim.
– Não têm?
– Não.
– Mas não somos os únicos a saber o que fiz, Darius.
– Em breve, o mundo saberá que você nos auxiliou a capturar um mensageiro, o que contribuiu para desmantelar uma rede dedicada à espionagem. Será vista como uma
heroína, quando Ambury e eu acabarmos de descrever todos os seus feitos. Contudo, mesmo que alguém suspeite da verdade... Quando um homem pensa numa mulher, da maneira
como eu penso em si, e quando um homem ama uma mulher, da maneira como eu a amo, ele simplesmente tem de casar-se com ela. As únicas questões que restam são saber
se nutre o mesmo tipo de sentimentos por mim e se aceitará casar-se comigo. Aceita?
Southwaite fitou-a, aguardando uma resposta. Emma percebeu, com algum espanto, que o conde não estava seguro do estado de espírito dela. Darius não percebera que
Emma hesitava apenas por estar preocupada com as consequências negativas que tal casamento teria para ele.
– Aceito. É claro que aceito, se me quiser como sua esposa.
Southwaite sorriu. Possuía um sorriso maravilhoso. A alegria expressa pelo semblante do conde surpreendeu-a.
– Quero-a de todas as formas possíveis, Emma, mas especialmente dessa forma.
Darius beijou-a. A paixão do seu beijo encerrava todas as facetas do amor profundo que o fazia deseja-la incondicionalmente. Emma rendeu-se, de bom grado, ao feitiço lançado por Southwaite e recebeu com gratidão aquele grande amor, que a tornava extraordinária.
Madeline Hunter
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