Biblio VT
Estou só no cume da montanha ao amanhecer, na névoa leitosa vejo os corpos dos meus amigos a meus pés, alguns rebolaram pelas ladeiras como vermelhos bonecos desmembrados, outros são pálidas estátuas surpreendidas pela eternidade da morte. Sombras silenciosas trepam até mim. Silêncio... Espero. Aproximam-se. Disparo contra essas silhuetas escuras em pijamas negros, fantasmas sem rosto, sinto recuar a metralhadora, a tensão queima-me as mãos, cruzam o ar as linhas incandescentes dos fogachos, mas não há um único ruído. Os assaltantes tornaram-se transparentes, as balas passam através deles sem os deter, continuam avançando implacáveis. Rodeiam-me... silêncio...
O meu próprio grito desperta-me e continuo gritando, gritando.
Iam pelos caminhos do Oeste sem pressa e sem rumo obrigatório, mudando a rota de acordo com o capricho de um instante, ao sinal premonitório de um bando de pássaros, à tentação de um nome desconhecido. Os Reeves interrompiam a sua errática peregrinação onde o cansaço os surpreendesse ou encontrassem alguém disposto a comprar a sua intocável mercadoria. Vendiam esperança. Percorreram assim o deserto numa e noutra direcção, cruzaram as montanhas e uma madrugada viram nascer o dia numa praia do Pacífico. Quarenta e tantos anos mais tarde, durante uma longa confissão em que passou revista à sua existência e fez as contas dos seus erros e acertos, Gregory Reeves descreveu-me a sua recordação mais antiga: um menino de quatro anos, ele próprio, urinando sobre uma colina ao entardecer, o horizonte tinto de vermelho e âmbar pelos últimos raios de sol, nas suas costas os picos dos cerros, mais abaixo, numa extensa planície, onde a sua vista se perde. O liquido quente escorre como algo essencial do seu corpo e do seu espirito, cada gota, ao fundir-se na terra, marca o território com o seu nome. Demora o prazer, joga com o esguicho, traçando um círculo cor de topázio sobre o pó, percebe a paz intacta da tarde, comove-o a imensidão do mundo com um sentimento de euforia, porque ele faz parte daquela paisagem límpida e cheia de maravilhas, uma incomensurável geografia para explorar. A pouca distancia aguarda-o a sua família Está tudo bem, pela primeira vez tem consciência da felicidade: é um momento que jamais esquecerá. Ao longo da sua vida Gregory Reeves sentiu em várias ocasiões esse deslumbramento perante as surpresas do mundo, essa sensação de pertencer a um lugar esplêndido onde tudo é possível e cada coisa, desde o mais sublime até ao mais horrendo, tem uma razão de ser, nada sucede por acaso, nada é inútil, como apregoava aos gritos seu pai, ardendo de fervor messiânico, com uma serpente enroscada nos pés. E cada vez que teve essa chispa de compreensão recordava aquele pôr do sol na colina. A sua meninice foi uma época demasiado longa de confusão e penumbras, excepto os anos a viajar com a família. O pai, Charles Reeves, guiava a pequena tribo com severidade e regras claras, todos juntos, cada um cumprindo com os seus deveres, prémio e castigo, causa e efeito, disciplina baseada numa escala de valores imutável. O pai vigiava como o olho de Deus. As viagens determinavam a sorte dos Reeves sem lhes alterar a estabilidade, porque as rotinas e as normas eram precisas. Foi esse o único período em que Gregory se sentiu seguro. A raiva começou mais tarde, quando desapareceu o pai e a realidade começou a deteriorar-se de maneira irreparável.
O soldado iniciou a marcha de manhã, de mochila às costas, e a meio da tarde já estava arrependido de não ter tomado o autocarro. Partiu a assobiar de contente, mas com o passar das horas doíam-lhe os rins e a canção enrolava-se-lhe com palavrões. Eram as suas primeiras férias depois de um ano de serviço no Pacifico e regressava à sua aldeia com uma cicatriz no ventre, restos de um ataque de malária e tão pobre como sempre tinha sido. Levava a camisa pendurada num ramo para improvisar sombra, suava e a sua pele tinha o brilho de um espelho escuro. Pensava aproveitar cada instante dessas duas semanas de liberdade, passar as noites a jogar bilhar com os amigos e a dançar com as miúdas que tinham respondido às suas cartas, dormir de perna aberta, despertar com o cheiro do café acabado de coar e as panquecas da mãe, único prato apetitoso da sua cozinha, o resto sabia a borracha queimada, mas a quem poderia importar a habilidade culinária da mulher mais formosa em cem milhas à volta, uma lenda viva com grandes ossos de escultura e olhos amarelos de leopardo? Há muito que não passava uma alma por aquelas solidões, quando sentiu atrás de si os estertores de um motor, viu ao longe a silhueta imprecisa de um camião tremelicando como uma forte miragem na reverberação da luz. Esperou que se aproximasse para pedir-lhe uma boleia, mas ao tê-lo mais perto mudou de ideias, assustado por aquela inusitada aparição, uma carripana pintada com cores insolentes, carregada até ao cimo como uma montanha de tralha, coroada por uma gaiola com frangos, um cão preso a uma corda e sobre o tejadilho um altifalante e um cartaz onde se lia em grandes letras O Plano Infinito. Afastou-se para a deixar passar, viu-a parar poucos metros mais adiante e pela portinhola assomou uma mulher de cabelo cor de tomate que lhe fez sinais para o levar. Não sabia se havia de alegrar-se, aproximou-se cauteloso, calculando que seria impossível entrar na cabina, onde viajavam apertados três adultos e duas crianças e seria preciso perícia de acrobata para trepar para a traseira. Abriu-se a porta e o condutor saltou para a estrada.
- Charles Reeves - apresentou-se cortês, mas com inequívoca autoridade.
- Benedict... senhor... King Benedict - respondeu o jovem espe-cando-se-lhe à frente.
- Vamos um pouco apertados como vê, mas onde cabem cinco cabem seis.
O resto dos passageiros também desceu, a mulher de melenas vermelhas afastou-se em direcção a uns arbustos, seguida por uma rapariguinha de uns seis anos que para ganhar tempo ia baixando as cuecas, enquanto o menino mais pequeno deitava a língua de fora ao desconhecido, meio escondido por detrás da outra viajante. Charles Reeves desatou uma escada da retaguarda do camião, subiu sobre a carga com agilidade e soltou o cão, que de um saltou temerário largou a correr pelos arredores, farejando os matos.
- Os meninos gostam de viajar atrás, mas é perigoso, não podem ir sozinhos. Olga e você tomarão conta deles. Vamos pôr Oliver à frente para não o incomodar, é ainda um cachorro, mas já tem manhas de animal velho - decidiu Charles Reeves, fazendo-lhe sinal para subir.
O soldado atirou a mochila para cima do monte de objectos e trepou, esticou os braços para receber o menino mais pequeno, que Reeves tinha levantado sobre a cabeça, um puto fraco, de orelhas saídas e um sorriso irresistível que lhe enchia a cara de dentes. Quando regressaram a mulher e a menina subiram também para trás, os outros dois entraram na cabina e pouco depois o camião pôs-se em marcha.
- Chamo-me Olga e estes são Judy e Gregory - apresentou-se a de cabelo impossível, sacudindo a saia enquanto distribuía maçãs e bolachas. - Não se sente sobre essa caixa, ai vai a jibóia, e não pode tapar-lhe os buracos de ventilação - acrescentou.
O pequeno Gregory parou de tirar a língua de fora logo que deu conta de que o viajante vinha da guerra, então uma expressão reverente substituiu as caretas brincalhonas e começou a interrogá-lo sobre aviões de combate, até ficar vencido pela modorra. O soldado tentou conversar com a ruiva, mas ela respondia com monossílabos e não se atreveu a insistir. Pôs-se a cantarolar canções da sua aldeia, olhando de soslaio a caixa misteriosa, até que os outros adormeceram sobre a pilha de fardos, então pôde observá-los à vontade. Os meninos tinham cabelo quase branco e os olhos tão claros que de perfil pareciam cegos, em contrapartida a mulher tinha a cor azeitonada de algumas raças mediterrânicas. Tinha os primeiros botões de blusa abertos, gotas de suor molhavam-lhe o decote e desciam como um lento fio pelo rego dos seios. Tinha levantado um braço para apoiar a cabeça sobre um caixote, revelando velos escuros nas axilas e uma mancha húmida no tecido. Desviou os olhos, receando ser surpreendido e que ela interpretasse mal a sua curiosidade, até então aquelas pessoas tinham sido amáveis, pensou, mas nunca se pode estar seguro com os brancos. Deduziu que os miúdos eram do outro casal, ainda que a julgar pelas idades aparentes dos Reeves também pudessem ser seus netos. Passou revista à carga e chegou à conclusão de que aquela gente não estava a mudar de casa, como tinha suposto a principio, mas que viajavam na sua vivenda permanente. Notou que levavam um tambor com vários galões de água e outros com combustível e perguntou a si mesmo como é que conseguiam gasolina, racionada pela guerra desde há um bom tempo. Tudo estava disposto numa ordem meticulosa, de fateixas e ganchos penduravam utensílios e ferramentas, compartimentos exactos conti-nham as maletas, nada ficava solto, cada embrulho estava marcado e havia várias caixas com livros. O calor e as sacudidelas da viagem depressa o esgotaram e adormeceu recostado na gaiola dos frangos. Despertou a meio da tarde, ao sentir que paravam. O corpo do rapaz sobre as suas pernas não pesava quase nada, mas a imobilidade tinha-lhe entorpecido os músculos e sentia a garganta seca. Por alguns instantes não soube onde estava, meteu a mão no bolso das calças à procura do cantil de uísque e bebeu um longo golo para aclarar o espírito. A mulher e os meninos estavam cobertos de pó e o suor marcava-lhes linhas pelas bochechas e pelo pescoço. Charles Reeves tinha-se desviado do caminho e encontravam-se debaixo de um grupo de árvores, única sombra naquela desolação, acampariam ali para o motor arrefecer, mas no dia seguinte podia levá-lo a casa, explicou ao soldado, que então estava mais tranquilo, aquela estranha família começava a inspirar-lhe simpatia. Reeves e Olga baixaram alguns embrulhos do camião e armaram as estafadas tendas de campanha, enquanto a outra mulher, que se apresentou como Nora Reeves, preparava a comida num fogareiro a petróleo com a ajuda da sua filha Judy, e o rapaz procurava paus para uma fogueira, com o cão atrás dos seus sapatos.
- Vamos caçar lebres, papá? - suplicou puxando as calças do pai.
- Hoje não há tempo para isso, Greg - respondeu Charles Reeves tirando um frango da gaiola e rebentando-lhe a nuca com um esticão firme no pescoço.
- Não se consegue carne. Guardamos os frangos para ocasiões especiais... - explicou Nora, como se pedisse desculpas.
- Hoje é um dia especial, mamã? - perguntou Judy.
- Sim, filha, o senhor King Benedict é nosso convidado.
Ao entardecer o acampamento estava pronto, a ave fervia numa panela e cada qual cumpria a sua tarefa, à luz dos candeeiros de carbureto e ao calor do fogo: Nora e os rapazes faziam trabalhos escolares, Charles Reeves folheava uma bem manuseada cópia do National Geographic e Olga fabricava colares com contas de cores.
- São para a boa sorte - disse ao hóspede.
- E também para a invisibilidade - disse a menina.
- Como?
- Se você começa a tornar-se invisível põe um colar destes e todos podem vê-lo - esclareceu Judy.
- Não faça caso, são coisas de criança - riu Nora Reeves.
- É verdade, mamã!
- Não contradigas a tua mãe - cortou Charles Reeves secamente.
As mulheres puseram a mesa, um tabuão coberto com uma toalha, pratos de loiça, copos de vidro e guardanapos impecáveis. Aquele esquema pareceu ao soldado pouco prático para um acampamento, na sua própria casa comiam em loiça de latão, mas absteve-se de fazer comentários. Tirou da bolsa uma conserva de carne e passou-a timidamente ao anfitrião, não queria dar a entender ser ele a pagar a ceia, mas também não podia aproveitar a hospitalidade sem contribuir com alguma coisa. Charles Reeves colocou-a no centro da mesa, junto dos feijões, do arroz e da travessa com o frango. Deram as mãos e o pai abençoou a terra que os acolhia e o dom dos alimentos. Não havia bebidas alcoólicas à vista e o hóspede não se atreveu a tirar o seu frasco de uísque pensando que talvez os Reeves fossem abstémios por motivos religiosos. Chamou-lhe a atenção o facto de na sua breve oração o pai não nomear Deus. Notou que comiam com delicadeza, pegando nos talheres com a ponta dos dedos, mas sem haver nada de pretensioso nos seus modos. Depois da ceia levaram a loiça para uma celha com água para a lavar no dia seguinte, taparam a cozinha e deram as sobras dos pratos a Oliver. Era então já noite cerrada, a densa escuridão vencia as luzes dos candeeiros e a família instalou-se à volta do fogo que iluminava o centro do acampamento. Nora Reeves pegou num livro e leu em voz alta uma enredada história de egípcios que pelos vistos as crianças já conheciam, porque Gregory a interrompeu.
- Não quero que AÍda morra fechada na sepultura, mamã.
- É só uma ópera, filho.
- Não quero que morra!
- Desta vez não morrerá, Greg - determinou Olga.
- Como sabes?
- Vi na minha bola.
- Tens a certeza?
- Absolutamente.
Nora Reeves ficou a olhar o livro com certo ar de consternação, como se mudar o final fosse para ela um inconveniente insuportável.
- Que bola é essa? - perguntou o soldado.
- A bola de cristal onde Olga vê tudo o que ninguém mais pode ver - explicou Judy em tom de quem fala a um atrasado mental.
- Nem tudo, só algumas coisas - esclareceu Olga.
- Pode ver o meu futuro? - pediu Benedict com tal ansiedade que até Charles Reeves levantou os olhos da revista.
- Que quer dizer?
- Viverei até ao fim da guerra? Voltarei inteiro?
Olga foi até ao camião e pouco depois regressou com uma esfera de vidro e um desbotado pano de veludo bordado, que estendeu na mesa. O homem sentiu um calafrio supersticioso e perguntou para dentro de si se não tinha caído por acaso numa seita maldita, como aquelas que raptam crianças para lhes arrancar o coração em missas satânicas, sobretudo meninos negros, como asseguravam as comadres na sua aldeia. Judy e Gregory aproximaram-se curiosos, mas Nora e Charles Reeves voltaram às suas leituras. Olga fez sinal ao soldado para se sentar na sua frente, rodeou a bola com os seus dedos de unhas mal pintadas, espreitou, à espera, por um bom pedaço de tempo, depois pegou nas mãos do cliente e examinou com grande atenção as palmas claras cruzadas de linhas escuras.
- Você viverá duas vezes - disse por fim.
- Como duas vezes?
- Isso não sei. Só posso dizer-lhe que viverá duas vezes ou duas vidas.
- Ou seja, não morrerei na guerra.
- Se morrer de certeza que ressuscita. - disse Judy.
- Morrerei ou não?
- Suponho que não - disse Olga.
- Obrigado senhora, muito obrigado... - iluminou-se-lhe a cara como se ela lhe tivesse entregado um certificado irrevogável de permanência no mundo.
- Bom, já são horas de dormir, amanhã sairemos bem cedo - interrompeu Charles Reeves.
Olga ajudou as crianças a vestir os pijamas e logo se retirou com elas para a tenda mais pequena, seguidas por Oliver. Pouco tempo depois, Nora Reeves assomou de gatas na portinhola para dar uma última olhadela aos filhos antes de ir para a cama. Estendido perto do lume, King Benedict escutou as suas vozes.
- Mamã, este homem faz-me medo. - sussurrou Judy.
- Porquê, filha?
- Porque é negro como um sapato.
- Não é o primeiro que vês, Judy, já sabes que há gente de muitas cores e é bom que assim seja. Nós os brancos somos o menor número.
- Eu vejo mais brancos do que negros, mamã.
- Este é apenas um pedaço do mundo, Judy. Em África há mais negros do que brancos. Na China têm a pele amarela. Se nós vivêssemos ao sul da fronteira seríamos uns bichos raros, na rua a gente ficaria atónita ao ver o teu cabelo branco.
- De qualquer modo, este homem assusta-me.
- A pele não importa nada. Repara-lhe nos olhos. Parece um homem bom.
- Tem os mesmos olhos que Oliver - acrescentou Greg com um bocejo.
Até ao fim da Segunda Guerra Mundial a vida era dura. Os homens ainda partiam para a frente com certo entusiasmo aventureiro, mas para as mulheres a propaganda patriótica não lhes aliviava a solidão, para elas a Europa era um pesadelo remoto, estavam fartas de trabalhar para manter a casa, de criar sozinhas os filhos e fartas do racionamento. Não se via prosperidade e ainda deambulavam pelas estradas alguns camponeses em busca de novas terras, o lixo branco, como lhes chamavam para os diferenciar de outros tão pobres como eles, mas muito mais humilhados: os negros, os índios e os braceros mexicanos. Ainda que os únicos bens terrenos dos Reeves fossem o camião e a sua carga, gozavam de melhor situação, pareciam menos toscos e desesperados, tinham as mãos livres de calos e a pele, embora curtida pela intempérie, não era uma sola seca, como a dos trabalhadores da terra. Ao cruzar as fronteiras estatais os polícias tratavam-nos sem altivez, porque sabiam distinguir os subtis níveis da pobreza e naqueles viajantes não detectavam ponta de humildade. Não os obrigavam a descarregar o camião e a abrir os seus fardos, como aos camponeses expulsos das suas propriedades pelas tempestades de pó, as secas ou as máquinas do progresso, nem os provocavam com insultos à procura de pretexto para os violentar, como aos latinos, aos negros e poucos índios sobreviventes dos massacres e do álcool, limitavam-se a perguntar-lhes para onde se dirigiam. Charles Reeves, um indivíduo de rosto ascético e olhar ardente que se impunha pela presença, respondia que era artista e levava os seus quadros para vender numa cidade próxima. Não mencionava a sua outra mercadoria para não criar confusão e ver-se obrigado a dar largas explicações. Tinha nascido na Austrália e depois de dar voltas por meio mundo em barcos de contrabandistas e traficantes, desembarcou numa noite em São Francisco. De aqui já não saio, decidiu, mas a sua natureza errante impedia-o de permanecer quieto num lugar determinado, e mal se esgotaram as surpresas empreendeu a marcha pelo resto do país. O pai, um ladrão de cavalos que cumprira a pena deportado em Sydney, cultivou nele a paixão por tais animais e pelos espaços abertos, traz-se o ar livre no sangue, dizia. Enamorado das vastas paisagens da lenda heróica da conquista do Oeste, pintava terras imensas, índios e vaqueiros. A família vivia da sua pequena indústria de quadros e das adivinhações de Olga.
Charles Reeves, Doutor em Ciências Divinas, como ele próprio se apresentava, tinha descoberto o significado da vida numa revelação mística. Contava que se encontrava sozinho no deserto, como Jesus de Nazaré, quando um Mestre se materializou em forma de víbora e lhe mordeu uma canela, vejam a cicatriz. Agonizou durante dois dias e quando sentiu o gelo da morte subir-lhe do ventre ao coração a sua inteligência expandiu-se subitamente e aos seus olhos febris apareceu o mapa perfeito do universo com as suas leis e segredos. Ao despertar estava curado do veneno e a sua mente tinha entrado num plano superior do qual não pensava descer. Durante aquele radiante delírio o Mestre ordenou-lhe que divulgasse a Unica Verdade do Plano Infinito e ele fê-lo com disciplina e dedicação, apesar dos graves inconvenientes que essa missão representava, como dizia sempre aos seus ouvintes. Tantas vezes repetiu a história que acabou por acreditar nela e não se recordava que adquirira a cicatriz numa queda de bicicleta. Os seus sermões e livros davam muito pouco dinheiro, apenas o suficiente para alugar o local das reuniões e publicar as suas obras em pequenas edições vulgares. O predicador não contaminava o seu trabalho espiritual com grosseiros propósitos comerciais, como era o caso de tantos charlatães que nessa época percorriam o pais aterrorizando as pessoas com a ira de Deus para as esmifrar das suas magras poupanças. Nem usava o infame recurso de amedrontar a audiência até criar um clube de histeria, incitando os participantes a expulsar o Maligno por meio de espumas pela boca e espojadelas, principalmente porque negava a existência de Satanás e porque esses escândalos o repugnavam. Cobrava um dólar por entrar nas suas prédicas e outros dois para sair, porque na porta montavam guarda Nora e Olga com uma pilha de livros e ninguém ousava passar por diante sem adquirir um exemplar. Três dólares não era soma exagerada, considerando os benefícios recebidos pelos ouvintes, que partiam reconfortados na certeza de que as suas desgraças faziam parte de um desígnio divino, tal como as suas almas eram partículas da energia universal, não estavam desamparados, nem o cosmos era um espaço negro onde prevalecia o caos, existia um Grande Espirito Unificador que dava sentido à existência. Para preparar os seus sermões, Reeves deitava mão às pontas de informação ao seu alcance, à sua experiência e certeira intuição, e também às leituras de sua mulher e às suas próprias pesquisas na Bíblia e no Reader.s Digest.
Durante a Grande Depressão ganhou a vida a pintar murais nos escritórios dos correios, conheceu assim quase todo o país, desde as terras húmidas e quentes onde ainda se escutavam ecos do pranto dos escravos, até às montanhas de gelo e aos altos bosques, mas voltava sempre ao Oeste. Tinha prometido à mulher que a sua peregrinação terminaria em São Francisco, onde chegariam num luminoso dia de Verão em futuro hipotético, ali descarregariam o camião pela última vez e se instalariam para sempre. Embora o trabalho dos murais para os correios tivesse acabado fazia muito, ainda conseguia de vez em quando pintar um letreiro comercial para uma tenda ou um quadro alegórico para uma paróquia, nesse caso os viajantes detinham-se por algum tempo no mesmo sítio, e as crianças tinham oportunidades de fazer amigos. Fanfarronavam ante as outras crianças enredando-se em tantos exageros e mentiras que eles mesmos acabavam a tremer ante a visão pavorosa de ursos e coiotes que os assaltavam de noite, índios que os perseguiam para lhes arrancar o couro cabeludo e bandoleiros que o pai combatia a tiro de espingarda. Das brochas e pincéis de Charles Reeves saíam com assombrosa facilidade desde uma loira opulenta com uma garrafa de cerveja na mão até um tremebundo Moisés agarrado às Tábuas da Lei, mas esses trabalhos importantes não eram frequentes, em geral só conseguia vender modestas telas feitas a meias com Olga. Preferia pintar a natureza que o apaixonava, vermelhas catedrais de rocha viva, secas planícies do deserto e costas abruptas, mas ninguém comprovava o que podia olhar com os seus próprios olhos e lhe recordava as asperezas da sua sorte. Para quê pendurar na parede o mesmo que se via pela janela? O cliente seleccionava na National Geographic a paisagem mais próxima das suas fantasias ou aquela cujo colorido jogasse com os estafados móveis da sua sala. Outros quatro dólares davam direito a um índio ou a um vaqueiro, e o resultado era um pele-vermelha emplumado nos gélidos cumes do Tibete, ou um par de vaqueiros com chapéus de aba larga e botas de tacão batendo-se em duelo sobre as areias nacaradas de uma praia polinésia. Olga não demorava muito a copiar a paisagem da revista, Reeves fazia a figura humana de memória em poucos minutos e os clientes pagavam em dinheiro e partiam com o óleo ainda fresco.
Gregory Reeves tinha jurado que Olga sempre estivera com eles. Muito mais tarde perguntou qual era o seu papel na família, mas ninguém pôde responder porque entretanto seu pai morrera e não se falava no assunto. Nora e Olga conheceram-se no barco de refugiados que as trouxe de Odessa através do Atlântico até à América do Norte, perderam-se de vista por muitos anos e a casualidade reuniu-as quando Nora já estava casada e a outra tinha consolidado a sua vocação de curandeira. Entre elas falavam russo. Eram completamente diferentes, tão introvertida e tímida a primeira como exuberante a segunda. Nora, de ossos largos e movimentos lentos, tinha rosto de gato e penteava os longos cabelos pálidos num carrapito, não usava maquilhagem nem adornos, parecia sempre acabada de lavar. Nessas viagens cheias de poeira em que escasseava a água para tomar banho e se tornava impossível engomar um vestido, ela resolvia as coisas de maneira a apresentar-se tão limpa como a toalha branca engomada da sua mesa. O seu caracter reservado acentuou-se com os anos, pouco a pouco desprendeu-se da terra, elevando-se a uma dimensão que ninguém pode alcançar. Olga, alguns anos mais nova, era uma morena de boa figura, baixa de estatura, de volumes redondos, cintura estreita e pernas curtas, mas bem feitas e provocantes. Uma mata de cabelo selvagem pintado com henna caía-lhe sobre os ombros como uma extravagante peruca em diversos tons de vermelhão, pendurava em cima de si tantas lantejoulas que parecia um ídolo coberto de quinquilharia, aspecto que a ajudava nas tarefas adivinhatórias, a bola de vidro e as cartas de Tarot saiam como extensões naturais das suas mãos com anéis em todos os dedos. Não tinha a menor curiosidade intelectual, só lia os crimes da imprensa amarela e uma ou outra novela romântica, nem tão-pouco cultivava a clarividência com algum estudo sistematizado, porque a considerava um talento visceral. Ou se tem ou não se tem, é inútil adquiri-la nos livros, dizia ela. Não sabia nada de magia, astrologia, cabala e outros temas próprios do seu oficio, conhecia apenas os números dos signos do Zodíaco, mas na hora de usar a sua bola de maga ou os seus naipes marcados ficava um portento. Ela era, não uma ciência oculta, mas arte de fantasia, composta na sua maior parte de intuição e astúcia. Estava genuinamente convencida dos seus poderes sobrenaturais, tinha apostado a cabeça a favor das suas profecias e se lhe faltavam tinha sempre à flor dos lábios uma desculpa razoável, em geral tratava-se de uma má interpretação das suas palavras. Cobrava um dólar adiantado para adivinhar o sexo das crianças no ventre da mãe. Deitava a mulher no chão, com a cabeça virada para o norte, punha-lhe uma moeda no umbigo e balançava sobre a sua barriga um pedaço de chumbo atado a um fio de pesca. Se esse improvisado pêndulo se movesse na direcção das agulhas do relógio nasceria um menino, se ao contrário, uma menina. Aplicava o mesmo sistema com vacas e éguas prenhas, apontando às ancas do animal. Dava o seu veredicto, escrevia-o num papel e guardava-o como prova contundente. Certa vez regressaram a um casario onde tinham estado meses antes e correu uma mulher, acompanhada por uma procissão de curiosos maldispostos, a reclamar o seu dólar.
- Você deu-me a certeza de que eu ia ter um filho e olhe o que me saiu, outra miúda. Já tenho três!
- Não pode ser, tem a certeza de que lhe disse que seria um rapaz?
- Claro, ia-me lá esquecer do que você me disse, paguei-lhe para isso!
- Entendeu mal - respondeu Olga categórica.
Encarrapitou-se no camião, procurou algum tempo no seu baú e tirou um pedaço de papel que mostrou aos presentes, onde havia uma única palavra escrita: menina. Um fundo suspiro de admiração percorreu os visitantes, incluindo a mãe, que coçou a cabeça, confundida. Olga não teve que devolver o dólar e ainda por cima fortaleceu a sua reputação de adivinha. Não lhe chegou a tarde e parte da noite para atender a fila de clientes dispostos a ver a sua sorte. De entre os amuletos e frasquinhos que oferecia, o mais solicitado era a sua «água magnetizada», líquido milagroso engarrafado em toscos frascos de vidro verde. Explicava ela que se tratava apenas de água comum, mas dotada de poderes curativos porque estava impregnada de fluidos psíquicos. Realizava esta operação em noite de lua cheia, e segundo tinham constatado Judy e Gregory, consistia simplesmente em encher os frascos, tapá-los com uma rolha e pôr-lhes as etiquetas, mas ela assegurava que ao fazê-lo carregava a água de força positiva, e assim devia ser, porque as garrafas vendiam-se como pão quente e os utentes nunca se queixaram dos resultados. Conforme se empregasse, prestava diversos serviços: bebendo-a lavava os rins, esfregando-a aliviava dores de artrites e no cabelo melhorava a concentração mental, não tinha era efeito em dramas passionais, como ciúmes, adultério ou celibato involuntário, neste ponto a feiticeira era muito clara e dizia-o logo aos compradores. Era tão escrupulosa nas suas receitas como em assuntos de dinheiro, dizia que não existia bom remédio gratuito, no entanto não cobrava por ajudar num parto, gostava de trazer crianças a este mundo, nada podia comparar-se ao instante em que aparecia a cabeça do recém-nascido na sangrenta abertura da sua mãe. Oferecia os seus serviços de parteira nas quintas afastadas e nos sectores mais pobres das aldeias, em especial nos bairros dos negros, onde a ideia de dar à luz num hospital era ainda uma novidade. Enquanto esperava junto à futura mãe, cosia fraldas e tricotava botinhas para o menino e só nessas raras ocasiões se tornava doce o seu rosto pintado de feiticeira. Mudava o tom da voz para animar a paciente durante as horas mais difíceis e para cantar a primeira canção de embalar à criança que tinha trazido ao mundo. Poucos dias depois, quando mãe e filho tinham aprendido a conhecer-se mutuamente, reunia-se com os Reeves, que acampavam perto. Ao despedir-se anotava num caderno o nome do menino, a lista era extensa e a todos chamava seus afilhados. Os nascimentos trazem boa sorte, era a sua brusca explicação por não se cobrar dos seus serviços. Tinha uma relação de irmã com Nora e de tia rabugenta com Judy e Gregory a quem considerava sobrinhos. A Charles Reeves tratava-o como a um sócio, com uma mescla de petulância e bom humor, nunca se tocavam, pareciam nem sequer olhar-se, mas actuavam em equipa, não só nos negócios dos quadros como em tudo o que faziam juntos. Dispunham ambos do dinheiro e dos recursos da família, consultavam os mapas e decidiam os caminhos, saiam para caçar, perdendo-se horas pelo bosque dentro. Respeitavam-se e riam-se das mesmas coisas, ela era independente, aventureira e de carácter tão decidido como o do predicador, era fabricada com o mesmo aço, por isso não a impressionavam nem o carisma nem o talento artístico daquele homem. O vigor masculino de Charles Reeves seria mais tarde também a característica do seu filho Gregory, o único que em alguns momentos a subjugava.
Nora, a mulher de Charles Reeves, era um desses seres predestinados ao silêncio. Os pais, judeus russos, deram-lhe a melhor educação que puderam pagar, graduou-se em professora e embora tivesse deixado a sua profissão ao casar-se, mantinha-se em forma estudando história, geografia e matemáticas para as ensinar aos seus filhos, porque se tornava impossível mandá-los à escola com a vida de boémios que levavam. Durante as viagens lia revistas e livros esotéricos, mas sem a presunção de analisar essas leituras, limitava-se a entregar a informação ao Doutor em Ciências Divinas para ele as utilizar. Não tinha a menor dúvida de que o marido era dotado de poderes psíquicos para ver o oculto e descobrir a verdade onde o resto das pessoas apenas encontravam sombras. Tinham-se conhecido quando já nenhum deles era muito jovem, e a sua educação teve sempre um tom educado e maduro. Nora estava incapacitada para a vida prática, a sua mente perdia-se em sonhos de outro mundo, mais preocupada com as possibilidades do espírito do que com as vicissitudes quotidianas. Amava a música e os momentos mais esplêndidos da sua anódina existência foram umas quantas operas a que assistiu na sua juventude. Guardava cada pormenor desses espectáculos, podia fechar os olhos e escutar as vozes magistrais, comover-se com as trágicas paixões das personagens e apreciar o colorido e as texturas do cenário e do guarda-roupa. Lia partituras imaginando cada cena como parte da sua própria vida, os primeiros contos que seus filhos escutaram foram os amores malditos e as mortes inevitáveis da lírica universal. Refugiava-se nesse ambiente exagerado e romântico quando as vulgaridades da realidade a fatigavam. Pelo seu lado, Charles Reeves, que tinha percorrido todos os mares e tinha ganho a subsistência em diversos ofícios, tinha em seu poder mais aventuras do que as que chegava a contar, vários amores fracassados atrás das costas e alguns filhos semeados por aqui e por ali, de quem nada sabia. Ao vê-lo arengar a um grupo de atónitos fregueses? Nora prendeu-se a ele. Estava resignada com a sua sorte de solteirona, como tantas outras mulheres da sua geração a quem o azar não lhes pôs um noivo pela frente e não tiveram a coragem de sair para o procurar, mas esse enamorar-se repentinamente em idade tardia deu-lhe valor para vencer a sua natural modéstia O pregador tinha alugado uma sala perto da escola onde ela ensinava e distribuía propaganda para a sua charla quando ela lhe deitou o primeiro olhar. Impressionaram-na o seu rosto nobre e a sua atitude decidida e por curiosidade foi escutá-lo, prevendo um charlatão como tantos que passavam por ali sem deixar mais rasto que uns papéis descoloridos colados nos muros, mas teve uma surpresa. De pé ante o seu auditório, em frente de uma laranja pendurada do tecto por um fio, Reeves explicava a posição do homem no Universo e no Plano Infinito. Não ameaçava com castigos nem propunha salvação eterna, limitava-se a oferecer soluções práticas para melhorar a convivência, aquietar a angústia e preservar os recursos do planeta. Todas as criaturas podem e devem viver em harmonia, assegurava, e para o provar destapava o caixote da jibóia e enrolava-a no corpo, como uma mangueira de bombeiro, perante o assombro dos seus ouvintes que nunca tinham visto uma cobra tão comprida nem tão gorda. Nessa noite Charles Reeves pôs em palavras os sentimentos confusos que fatigavam Nora e que ela não sabia expressar. Tinha descoberto os ensinamentos de Bahá Ullah e adoptado a religião Bahai. Esses conceitos orientais de amorosa tolerância, de unidade entre os homens, de busca da verdade e de retrocesso dos prejuízos esbarravam contra a sua rígida formação judia e contra a estreiteza provinciana do seu meio, mas ao ouvir Reeves tudo lhe pareceu fácil, não tinha necessidade de aquecer o cérebro com aquelas contradições fundamentais, posto que aquele homem conhecia as respostas e podia servir-lhe de guia. Deslumbrada pela eloquência do discurso, não deu atenção às vacuidades do conteúdo. Sentiu-se tão comovida que conseguiu vencer a sua timidez e aproximar-se dele quando o viu sozinho, com a intenção de lhe perguntar se estava inteirado da fé Bahai e no caso de não estar oferecer-lhe a obra de Shogi Effendi. O Doutor em Ciências Divinas conhecia o efeito excitante dos seus sermões sobre algumas mulheres e não vacilava em fazer uso de tal vantagem, no entanto, a professora atraiu-o de maneira diferente, havia algo límpido nela, uma qualidade transparente que não era apenas inocência, mas autêntica rectidão, um rasgo luminoso, frio e incontaminado, como o gelo. Não só desejou tomá-la nos seus braços, ainda que fosse esse o primeiro impulso ao ver o seu estranho rosto triangular e a pele coberta de sardas, mas também penetrar na matéria cristalina daquela desconhecida e incendiar as brasas adormecidas do seu espírito. Propôs-lhe continuar a viagem com ele, e ela aceitou de imediato com a sensação de ter sido agarrada pela mão, de uma vez para sempre. Nesse momento, quando imaginou a possibilidade de lhe entregar a sua alma, começou o processo de abandono que marcaria o seu destino. Partiu sem se despedir de ninguém, com uma bolsa de livros por única bagagem. Meses depois, quando descobriu que estava grávida, casaram. Se porventura existia na verdade um fogo potencial sob a sua fleumática aparência, só seu marido o soube. Gregory viveu intrigado pela mesma curiosidade que atraiu Charles Reeves àquela sala alugada numa aldeia pobre do Medioeste, tentou mil vezes deitar abaixo os muros que isolavam sua mãe e tocar nos seus sentimentos, mas como nunca o conseguiu decidiu que no seu interior não havia nada, estava vazia e era incapaz de amar alguém com certeza, de resto manifestava uma imprecisa simpatia pela humanidade em geral.
Nora acostumou-se a depender do marido transformando-se numa criatura passiva que cumpria as suas funções por reflexo enquanto a sua alma se evadia dos assuntos materiais. Era tão forte a personalidade daquele homem, que para lhe dar espaço ela própria se foi apagando do mundo, tornando-se uma sombra. Participava nas rotinas da convivência, mas dava pouco à energia do pequeno grupo, só intervinha nos estudos das crianças e nos assuntos de higiene e boa saúde. Chegou ao país num barco de emigrantes e durante os primeiros anos, até a família conseguir vencer a má sorte, alimentou-se pouco e mal, essa época de miséria deixou-lhe para sempre o aguilhão da fome na memória, tinha a mania dos alimentos nutritivos e das pílulas de vitaminas. Aos filhos comentava alguns aspectos da sua fé Bahai no mesmo tom que empregava para lhes ensinar a ler ou para nomear as estrelas sem a menor vontade de os convencer, apenas se apaixonava ao falar de música, únicas ocasiões em que acentuava a voz e o rubor lhe tingia as faces. Mais tarde aceitou criar os meninos na Igreja Católica, como era usual no bairro hispânico onde lhes coube viver, porque compreendeu a necessidade de que Judy e Gregory se integrassem no meio. Tinham de suportar demasiadas diferenças de raça e de costumes e mortificarem-se além disso com crenças desconhecidas, como a sua fé Bahai. Por outro lado, considerava as religiões basicamente iguais, apenas a preocupavam valores morais, de qualquer maneira. Deus encontrava-se acima da compreensão humana, bastava saber que o Céu e o Inferno eram símbolos da relação da alma com Deus: a proximidade do Criador leva à bondade e ao gozo aprazível, a lonjura produz maldade e sofrimento. Em contraste com a sua tolerância religiosa, não cedia uma vírgula nos princípios de decência e cortesia, lavava a boca aos filhos com sabão quando proferiam palavrões e deixava-os sem comer se usavam mal o garfo, mas os outros castigos corriam por conta do padre, ela limitava-se a acusá-los. Um dia surpreendeu Gregory a roubar um lápis numa tenda e disse-o ao marido, que obrigou o menino a devolvê-lo e a pedir desculpas e lhe queimou depois a palma da mão com a chama de um fósforo, perante o olhar impassível de Nora. Gregory andou uma semana com uma chaga viva, depressa esqueceu o motivo do castigo e quem o tinha infligido, a única coisa que guardou na sua mente foi a raiva contra a mãe. Muitas décadas depois, quando se reconciliou com a imagem dela, pôde agradecer-lhe silenciosamente os três bons capitais que ela lhe deixou: amor pela música, tolerância e o sentido da honra.
Faz um calor implacável, a paisagem está seca, não chove desde o começo dos tempos e o mundo parece coberto de um fino talco arroxeado. Uma luz inclemente distorce o contorno das coisas, o horizonte perde-se na poeirada. É uma dessas aldeias sem nome, igual a tantas outras, uma rua comprida, um café, uma solitária bomba de gasolina, uma esquadra de policia, as mesmas míseras lojas e casas de madeira, uma escola em cujo telhado treme uma bandeira desbotada pelo sol. Pó e mais pó. Os meus pais foram ao armazém comprar as provisões da semana, Olga ficou a tomar conta de Judy e de mim. Ninguém anda pela rua, as persianas estão fechadas, a gente espera que refresque para voltar à vida. A minha irmã e Olga dormitavam num banco à entrada da tenda, aturdidas pelo calor, as moscas acossam-nas mas já não se defendem e deixam que lhes andem pela cara. No ar flutua um aroma inesperado de açúcar queimado. Grandes lagartixas azuis e verdes estão ao sol imóveis, mas quando quero apanhá-las fogem a refugiar-se debaixo das casas. Estou descalço e sinto a terra quente na planta dos pés. Brinco com Oliver, atiro-lhe uma gasta bola de trapo, ele traz-ma, atiro-a de novo e assim me afasto do lugar, dobro uma esquina e encontro-me numa ruela estreita, em parte sombreada pelos rústicos passeios das casas. Vejo dois homens, um é roliço e tem a pele de um rosado forte, o outro tem o cabelo amarelo, vestem fatos de trabalho, estão a suar, têm as camisas e os cabelos empapados. O gordo mantém agarrada uma rapariguinha negra, não deve ter mais de dez ou doze anos, com uma mão tapa-lhe a boca e com o outro braço imobiliza-a no ar, ela esperneia um pouco e logo fica quieta, tem os olhos avermelhados pelo esforço de respirar através da mão que a asfixia. O outro está de costas para mim, e mexe nas calças. Ambos estão muito sérios, concentrados, tensos, ofegantes. Silêncio, apenas oiço esses sopros de outra pessoa e o bater do meu próprio coração. Oliver desapareceu, as casas também, só ficaram eles suspensos no pó, movendo-se como em câmara lenta, e eu, paralisado. O de cabelo amarelo cospe duas vezes na mão e aproxima-se, abre as pernas da menina, dois palitos delgados e escuros que pendem inertes, agora não a posso ver, apertada entre os corpos maciços dos violadores. Quero escapar, estou aterrorizado, mas também desejo olhar, sei que está a suceder algo fundamental e proibido, sou participante de um violento segredo. Se tiver forças, faço por chamar o meu pai, abro a boca e a voz não me sai, engulo fogo, um alarido enche-me por dentro e afoga-me. Devo fazer qualquer coisa, tudo está nas minhas mãos, a decisão justa salvar-nos-á aos dois, à rapariga negra e a mim que estou a morrer, mas nada me ocorre e nem um gesto posso fazer, tornei-me de pedra. Nesse instante oiço ao longe o meu nome, Greg, Greg, e aparece Olga na ruela. Há uma longa pausa, um minuto eterno no qual nada sucede, tudo está quieto. Então o ar vibra com o longo grito, o grito rouco e terrível de Olga e a seguir o ladrar de Oliver e a voz de minha irmã como um chiar de ratazana, e por fim consigo respirar e começo a gritar também desesperado. Surpreendidos, os homens soltam a miúda, que toca o chão e larga a correr como um coelho espavorido. Observam-nos, o do cabelo amarelo tem qualquer coisa arroxeada na mão, qualquer coisa que não parece fazer parte do seu próprio corpo e que mete dentro da calças, por último dão meia volta e afastam-se, não estão perturbados, riem-se e fazem gestos obscenos, olha, não queres um bocadinho tu também, puta maluca, gritam a Olga, vem cá que nós metemos-to. Na rua cai a cueca da rapariga. Olga agarra-nos pela mão, a Judy e a mim, chama o cão e caminhamos depressa, não, corremos até ao camião. A aldeia despertou e as pessoas olham-nos.
O Doutor em Ciências Divinas estava resignado a difundir as suas ideias entre camponeses incultos e trabalhadores pobres que nem sempre eram capazes de seguir o fio do seu complicado discurso, no entanto não lhe faltavam seguidores. Muito poucos assistiam às suas prédicas por fé, a maioria ia por simples curiosidade, por aqueles lados as diversões eram poucas, e a chegada do Plano infinito não passava despercebida. Depois de armar o acampamento saía a procurar um local. Costumava consegui-lo grátis, se contava com alguns conhecidos, caso contrário tinha de alugar uma sala ou adaptar uma adega ou um celeiro. Como não tinha dinheiro, entregava como garantia um colar de pérolas com fecho de diamantes de Nora, única herança de sua mãe, com o compromisso de pagar no fim de cada função. Entretanto, a mulher engomava o peitilho e o colarinho da camisa do marido, passava a ferro o seu fato preto, reluzente pelo muito uso, puxava o lustro aos sapatos, escovava a cartola e preparava os livros, enquanto Olga e as crianças saíam para distribuir, casa a casa, uns folhetos impressos convidando para o «Curso Que Mudará a Sua Vida, Charles Reeves, Doutor em Ciências Divinas, Ajudá-lo-á a Alcançar a Sorte e Obter Prosperidade».
Olga dava banho às crianças e vestia-lhes roupas de domingo e Nora punha o seu vestido azul com gola de renda, severo e fora de moda, mas ainda decente. A guerra tinha mudado o aspecto das mulheres, usavam-se saias travadas pelo joelho, casacos com chumaços nos ombros, sapatos de cunha de cortiça, penteados elaborados, chapéus enfeitados com plumas e véus. Com o seu vestido de freira, Nora parecia uma cândida avozinha dos começos do século. Olga também não seguia a moda, mas no seu caso ninguém podia acusá-la de dissimulação, parecia antes um papagaio. Além disso, naquelas aldeias ignoravam-se requintes desse tipo, a existência decorria trabalhando de sol a sol, os prazeres consistiam nuns quantos tragos de álcool, ainda clandestino em alguns estados, rodeos, cinema, um baile de vez em quando e seguir pela rádio os pormenores da guerra e do beisebol, por isso qualquer novidade atraía os curiosos. Charles Reeves tinha de competir com os Revivals que apregoavam o novo despertar do cristianismo, o regresso aos princípios fundamentais dos doze apóstolos e a escrita exacta da Bíblia, evangelistas que percorriam o país com as suas tendas, orquestras, fogo-de-artifício, gigantescas cruzes iluminadas, coros de irmãos e irmãs ataviados como anjos e buzinas para apregoar aos quatro ventos o nome do Nazareno, exortando os pecadores a arrependerem-se porque Jesus estava a caminho de látego na mão para açoitar os fariseus do templo, e chamando para combater as doutrinas de Satanás, como a teoria da evolução, invento maléfico de Darwin. Sacrilégio! O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e não dos macacos! Compra uma rifa por Jesus! Aleluia, Aleluia!, berravam os altifalantes. Nas tendas aglomeravam-se os fregueses em busca da redenção e circo, todos a cantar, muitos bailando de vez em quando, algum contorcido nos estertores do êxtase, enquanto os baldes da colecta se enchiam até acima com as dádivas daqueles que adquiriam bilhetes para o céu. Charles Reeves não oferecia nada tão grandiloquente, mas eram grandes o seu carisma, o seu poder de convicção e o fogo do seu discurso. Impossível ignorá-lo. Por vezes, alguém avançava até ao palco pedindo que o libertasse da dor ou de remorsos insuportáveis, então Reeves, sem nenhum espavento de asceta, com simplicidade mas também com grande autoridade, punha as mãos à volta da cabeça do penitente e concentrava-se para o aliviar. Muitos acreditavam ver chispas nas palmas das suas mãos e os beneficiados pelo tratamento asseguravam ter sido sacudidos por uma descarga eléctrica no cérebro. à maioria do público bastava escutá-lo uma vez para aderir ao curso, comprar os seus livros e converter-se em adepto.
- A Criação rege-se mediante o Plano Infinito. Nada sucede por acaso. Nós os seres humanos somos parte fundamental desse plano porque estamos colocados na escala da evolução entre os Mestres e o resto das criaturas, somos intermediários. Devemos conhecer o nosso lugar no cosmos – começava Charles Reeves galvanizando o auditório com voz profunda, vestido da cabeça aos pés com o seu negro atavio, solene em frente da laranja pendurada do tecto e com a jibóia aos pés como um grosso rolo de corda marinheira. O animal era totalmente abúlico e salvo alguma provocação directa permanecia sempre imóvel.
- Prestem muita atenção, para compreenderem os princípios do Plano Infinito, mas se não o entenderem pouco importa, basta que cumpram os meus mandamentos. O Universo inteiro pertence à Suprema Inteligência, que o criou e é tão imensa e perfeita que o ser humano jamais poderá conhecê-la. Por debaixo dela estão os Logi, delegados da luz e encarregados de levar partículas da Suprema Inteligência a todas as galáxias. Os Logi comunicam com os Mestres Funcionários através dos quais fazem chegar as mensagens e as normas do Plano Infinito aos homens. O ser humano compõe-se de Corpo Físico, Corpo Mental e Alma. O mais importante é a Alma, que não pertence à atmosfera terrestre, mas que opera à distância, não está dentro de nós, mas domina a nossa vida.
Neste ponto, quando os ouvintes, algo aturdidos pela sua retórica, começavam a trocar olhares de temor ou de brincadeira, Reeves galvanizava a audiência de novo apontando a laranja para explicar o aspecto da Alma flutuando no éter, como um confuso octoplasma que só alguns especializados ocultistas podiam ver. Para o provar, convidava várias pessoas do público a olhar fixamente a laranja e a descrever o seu aspecto. Invariavelmente, descreviam uma esfera amarela, ou seja, uma laranja vulgar, ele, em contrapartida, via a Alma. Em seguida, apresentava os Logi que se encontravam na sala em estado gasoso e portanto invisíveis, e explicava que eles mantinham em marcha a maquinaria precisa do Universo. Em cada época e em cada região, os Logi elegiam Mestres Funcionários para comunicar com os homens e divulgar os propósitos da Suprema Inteligência. Ele, Charles Reeves, Doutor em Ciências Divinas, era um deles. A sua missão consistia em ensinar as pautas aos simples mortais, e uma vez cumprida essa etapa passaria a formar parte do privilegiado contingente dos Logi. Dizia que todo o acto e pensamento humano é importante, porque pesa no equilíbrio perfeito do Universo, por isso cada pessoa é responsável por cumprir os mandamentos do Plano Infinito à letra. Depois enumerava as regras da sabedoria mínima, mediante as quais se evitavam erros garrafais, capazes de fazer ruir o projecto da Suprema Inteligência. Os que não captavam tudo isto numa só palestra, podiam seguir o curso de seis sessões, aprenderiam as normas da boa vida, incluindo dieta, exercícios físicos e mentais, sonhos dirigidos e diversos sistemas para recarregar as baterias energéticas do Corpo Físico e do Corpo Mental, assim se assegurariam o destino decoroso e a paz da Alma depois da morte.
Charles Reeves era um avançado para a sua época. Vinte anos mais tarde várias das suas ideias seriam divulgadas por diversos pensadores de uma ponta à outra da Califórnia, a última fronteira, onde chegam os aventureiros, os desesperados, os inconformistas, os fugitivos da justiça, os génios desconhecidos, os pecadores impenitentes, os loucos sem remédio, e onde proliferam ainda as fórmulas possíveis para evitar a angústia de viver. No entanto, não se pode culpar Charles Reeves de ter iniciado esses extravagantes movimentos. Há qualquer coisa nesse território que alvoroça os espíritos. Ou talvez porque aqueles que chegaram para povoar aquela região fossem com tal ideia em busca de fortuna ou de esquecimento fácil, que lhes ficou a alma para trás e ainda andam à procura dela. Inúmeros charlatães tiraram benefício oferecendo fórmulas mágicas para chegar a esse vazio doloroso que deixa o espírito ausente. Quando Reeves pregava, muitos já tinham descoberto, ali, a maneira de enriquecer vendendo intangíveis benefícios para a saúde do corpo e consolos para a alma, mas ele não era desses, tinha como honra a sua austeridade e decoro, assim ganhou o respeito dos seus seguidores. Olga, por seu lado, vislumbrou a possibilidade de utilizar os Logi e os Mestres Funcionários em algo mais rentável, talvez em adquirir um lugar e formar uma igreja própria, mas nem Charles nem Nora compartilharam alguma vez essa ideia ambiciosa, para eles a divulgação da sua verdade era só uma pesada e inevitável carga moral e em nenhum caso um negócio de bufarinheiros.
Nora Reeves podia assinalar o dia exacto em que perdeu a fé na bondade humana e começaram as suas silenciosas dúvidas sobre o significado da existência. Era uma dessas pessoas capazes de recordar datas insignificantes, foi por isso que, com maior razão, se lhe gravaram as das bombas de proporções cataclísmicas que puseram ponto final à guerra com o Japão. Nos anos seguintes vestiu-se de luto nesse aniversário precisamente quando o resto do país se virava em celebração. Esgotou-se o seu interesse até por pessoas mais próximas, é certo que o instinto maternal nunca foi a sua principal característica, mas a partir desse momento pareceu desprender-se por completo dos filhos. Também se afastou do marido sem a menor discussão, com tanta discrição que não se lhe pôde censurar fosse o que fosse. Isolou-se num claustro secreto onde tudo fez para permanecer intocada até ao fim dos seus dias, quarenta e tantos anos mais tarde morreu convertida em princesa dos Urales sem ter participado jamais da vida. Naquele dia festejava-se a derrota final do inimigo de olhos oblíquos e pele amarela, tal como meses antes se tinha celebrado a dos alemães. Era o fim de uma longa contenda, os japoneses tinham sido vencidos pela arma mais contundente da História, que matou em poucos minutos cento e trinta mil seres humanos e condenou outros tantos a uma lenta agonia. A notícia do ocorrido produziu um silêncio de horror no mundo, mas os vencedores afogaram as visões de cadáveres chamuscados e cidades pulverizadas numa algazarra de bandeiras, desfiles e bandas de música, antecipando o regresso dos combatentes.
- Lembra-se daquele soldado negro que recolhemos no camião? Viverá ainda? Voltará também ele a sua casa? - perguntou Gregory à mãe antes de ir ver os fogos-de-artifício.
Nora não respondeu. Estavam numa cidade de passagem e, enquanto a família bailava com a multidão, ela ficou sozinha na cabina do camião. Nos últimos meses as notícias provenientes da Europa tinham-lhe minado o sistema e a devastação atómica acabou por a afundar na incerteza. Pela rádio não se falava de outra coisa, os jornais e o cinema mostravam imagens dantescas dos campos de concentração. Seguia passo a passo o relato minucioso das atrocidades cometidas e dos sofrimentos acumulados, pensando que na Europa os comboios não paravam, levando implacavelmente a sua carga aos fornos crematórios, e também calcinados morriam milhares no Japão em nome de outra ideologia. Nunca devia ter trazido filhos a este mundo, murmurava assustada. Quando Charles Reeves chegou eufórico com a notícia da bomba, ela considerou obsceno alegrar-se por semelhante massacre, também o marido parecia ter perdido o juízo, como os outros.
- Nada voltará a ser como dantes, Charles. A humanidade cometeu algo mais grave que o pecado original. Isto é o fim do mundo - comentou descomposta, mas sem alterar o seu velho hábito de boas maneiras.
- Não digas tontices. Temos que aplaudir os progressos da ciência. Do mal o menos, as bombas não estão em mãos inimigas mas nas nossas. Agora ninguém se atreverá a fazer-nos frente.
- Voltarão a usá-las e acabarão com a vida na terra!
- Terminou a guerra e evitaram-se males piores. Muitos mais teriam sido os mortos se não lançássemos as bombas.
- Mas morreram centenas de milhares, Charles.
- Esses não contam, eram todos japoneses - riu-se o marido.
Pela primeira vez Nora duvidou da qualidade da sua alma e perguntou a si mesma se ele era realmente um Mestre, como dizia. Já noite avançada, a sua família regressou. Gregory vinha a dormir nos braços do pai e Judy trazia um globo pintado com estrelas e riscas.
- Finalmente acabou a guerra. Agora teremos manteiga, carne e gasolina - anunciou Olga radiante, agitando os restos de uma bandeira de papel.
Embora se passasse quase um ano entre a depressão da sua mãe e a agonia do seu pai, Gregory recordaria ambos os acontecimentos como um só, na sua memória ambos os factos estariam sempre relacionados, foi o começo do malefício que acabou com a época feliz da sua meninice. Pouco depois, quando Nora parecia recuperada e já não falava dos campos de concentração e das bombas, adoeceu Charles Reeves. Desde o princípio os sintomas foram alarmantes, mas contava com a sua força física e não quis aceitar a traição do corpo. Sentia-se jovem, ainda capaz de mudar uma roda do camião em poucos minutos ou passar várias horas sobre uma escada pintando um mural sem cãibras nas costas. Quando a boca se lhe encheu de sangue atribuiu-o a uma espinha de peixe que provavelmente se lhe tinha cravado na garganta e a segunda vez que a coisa aconteceu não disse nada a ninguém, comprou um frasco de leite de magnésia e começou a tomá-lo quando sentia o estômago em chamas. Depressa deixou de comer e subsistiu com pão remolhado em leite, sopas aguadas e papas de bebé, perdeu peso, os olhos encheram-se-lhe de névoa, não podia ver com clareza o caminho e Olga teve que pegar no volante. A mulher adivinhava quando o enfermo não podia mais com os saltos da viagem, então parava e acampavam. As horas tornavam-se muito longas, os meninos entretinham-se correndo pelos arredores, porque a mãe tinha guardado os cadernos, já não lhes dava aulas. Nora nunca tinha posto o caso de Charles ser mortal, não conseguia compreender por que razão se apagava a sua energia, que era também a sua. Por muitos anos o marido tinha controlado todos os aspectos da sua existência e da dos seus filhos, os regulamentos minuciosos do Plano Infinito, que administrava como queria, não deixavam espaço para dúvidas. A seu lado certamente não tinham liberdade, mas tão-pouco os assediavam inquietações ou temores. Não há razão para alarmes, dizia, na verdade Charles nunca teve muito cabelo, e essas rugas profundas não são novas, marcou-lhas o sol desde há muito tempo, está mais magro, é certo, mas recuperará em poucos dias mal comece a comer como dantes, o mais certo é isto ser uma indigestão, não é verdade que hoje está muito melhor?, perguntava a ninguém em particular. Olga observava sem fazer comentários. Não tentou curar Reeves com tisanas e cataplasmas, limitava-se a pôr-lhe panos húmidos na testa para lhe baixar a febre. à medida que o doente piorava, o medo entrou inexorável na família, pela primeira vez sentiam-se à deriva e perceberam o tamanho da sua pobreza e da sua vulnerabilidade. Nora encolheu-se como um animal acossado incapaz de pensar nalguma solução, buscava consolo na sua fé Bahai e deixou Olga encarregar-se dos problemas. Ela não se atrevia a tocar nesse velho sofredor, era um desconhecido, impossível reconhecer o homem que a tinha seduzido com a sua vitalidade. Desmoronaram-se a admiração e a dependência, as bases do seu amor, e como não conseguiu construir outras, o seu respeito transformou-se em repugnância. Mal encontrou uma boa desculpa instalou-se na tenda das crianças. Olga foi dormir com Charles Reeves para o assistir durante a noite, segundo disse. Gregory e Judy acostumaram-se a vê-la quase nua na cama do pai, mas Nora ignorou a situação, disposta a fingir indefinidamente que nada tinha mudado.
Por algum tempo suspendeu-se a divulgação do Plano Infinito, porque o Doutor em Ciências Divinas carecia de animo para dar esperança a outros, se ele mesmo começava a perder a sua e a perguntar em segredo se o espírito é realmente transcendente ou basta uma dor de ventre para o fazer em fanicos. Nem podia dedicar-se a pintar. As viagens continuaram com grandes penúrias e sem propósito determinado, como se buscassem algo que estava sempre noutro lado. Olga ocupou com naturalidade o lugar do pai e os outros não perguntaram se essa era a melhor solução, decidia a rota, guiava o camião, punha ao ombro os fardos mais pesados, reparava o motor quando havia raia, caçava lebres e pássaros e com a mesma autoridade dava ordens a Nora ou dava um par de nalgadas aos meninos quando se revoltavam. Evitava as grandes cidades pela concorrência impiedosa e o zelo da polícia, a não ser que pudesse acampar em zonas industriais ou perto dos molhes, onde encontrava sempre clientes. Deixava os Reeves instalados nas tendas, pegava nos seus embrulhos de nigromante e partia para vender as suas artes. Para viajar usava toscas calças de operário, camisa e gorro, mas para exercer o seu ofício de clarividente tirava do baú que chiava ao abrir uma saia de flores, blusa decotada, ruidosos colares e botas amarelas. Maquilhava-se às pinceladas, sem o menor cuidado: as bochechas de palhaço, a boca vermelha, as pálpebras azuis, o efeito dessa máscara, esses vestidos e o incêndio do seu cabelo era atemorizante e poucos se atreviam a repeli-la por medo que com um truque ela os transformasse em estátuas de sal. Abriam a porta, encontravam-se em frente dessa grotesca aparição com uma bola de vidro na mão e o espanto deixava-os boquiabertos, vacilação que ela aproveitava para introduzir-se na casa. Era muito simpática se tinha necessidade de o ser, regressava frequentemente ao acampamento com um pedaço de pastel ou carne, presente dos clientes satisfeitos não só pelo futuro prometido nos naipes mágicos, mas sobretudo pela chispa de bom humor que ela acendia no aborrecimento perene das suas vidas. Nesse período de tantas incertezas a maga afinou o talento, apressada pelas circunstancias desenvolveu forças desconhecidas e cresceu até se tornar esse mulherão formidável que tanta influência teria na juventude de Gregory. Ao entrar numa vivenda bastava-lhe cheirar o ar por uns segundos para se impregnar do clima, sentir as presenças invisíveis, captar os vestígios da desgraça, adivinhar os sonhos, ouvir os sussurros dos mortos e compreender as necessidades dos vivos. Depressa aprendeu que as histórias se repetem com muito poucas mudanças, as pessoas parecem-se muito, todos sentem ódio, amor, cobiça, sofrimento, alegria e temor da mesma maneira. Negros, brancos, amarelos, todos iguais por debaixo da pele, como dizia Nora Reeves, a bola de cristal não distinguia raças, só dores. Todos queriam escutar a mesma boa sorte, não porque a julgassem possível, mas porque imaginá-la servia de consolo. Olga descobriu também que só há duas espécies de enfermidades. As mortais e as que se curam sozinhas em seu devido tempo. Deitava a mão aos seus frascos de pílulas de açúcar pintadas de cores diversas, à sua bolsa de ervas e à sua caixa de amuletos para vender saúde aos irrecuperáveis, convencida de que, se o paciente punha a mente a trabalhar para se curar, o mais provável era que isso acontecesse. As pessoas confiavam mais nela que nos gélidos cirurgiões dos hospitais. As suas únicas intervenções importantes eram quase todas ilegais: abortos, extracções de molares, sutura de feridas, mas tinha bom olho e boa mão, de modo que nunca se meteu num sarilho a sério. Bastava-lhe uma olhadela para perceber os sinais da morte e em tal caso não receitava, em parte por escrúpulo, em parte para não prejudicar a sua própria reputação de curandeira. A sua prática em assuntos de saúde não serviu para ajudar Charles Reeves, porque estava demasiado próxima, e se viu sintomas fatídicos não quis admiti-los.
Por orgulho ou por temor, o pregador negou-se a consultar um médico disposto a vencer o sofrimento à força de obstinação, mas um dia desmaiou e desde então o pouco do marido que lhe restava passou para as mãos de Olga. Estavam a leste de Los Angeles, onde se concentrava a população latina, e ela tomou a decisão de levá-lo a um hospital. Nessa época a atmosfera da cidade já estava carregada de certa cor mexicana, apesar da obsessão unicamente americana de viver em perfeita saúde, beleza e felicidade. Centenas de milhares de imigrantes marcavam o ambiente com o seu desprezo pela dor e pela morte, pela sua pobreza, fatalismo e desconfiança, pelas suas paixões violentas, e também pela música, comidas picantes e cores atrevidas. Os hispanos estavam relegados para um ghetto, mas por todo o lado se sentia a sua influência, não pertenciam àquele país e na aparência não desejavam pertencer, mas em segredo aspiravam a que os seus filhos se integrassem nele. Aprendiam inglês a meias e transformavam-no num spanglish de raízes tão firmes que com o tempo acabou aceite como língua chicana. Arreigados à sua tradição católica e ao culto das almas, a um bolorento sentimento patriótico e ao machismo, não se deixavam assimilar, permaneciam relegados por uma ou duas gerações para os serviços mais humildes. Os americanos consideravam-nos gente malévola, imprevisível, perigosa, e muitos afirmavam que como diabos que eram não era possível segurá-los na fronteira, para que serve a maldita polícia, caralho, mas empregavam-nos como mão-de-obra barata, ainda que constantemente vigiados. Os imigrantes assumiam o seu papel de marginais com uma dose de soberba: dobrados sim, mas partidos nunca, irmão. Olga tinha frequentado aquele bairro em várias oportunidades e ali sentia-se à vontade, falava em espanhol com desfaçatez e quase não se notava que metade do seu vocabulário se compunha de palavras inventadas. Pensou que ali podia ganhar a vida com a sua arte.
Chegaram no camião até à porta do hospital e enquanto Nora e Olga ajudavam a baixar o doente, os meninos, aterrados, enfrentavam os olhares curiosos dos que assomavam para observar aquela estranha carripana com símbolos esotéricos pintados, em todas as cores, na carroçaria.
- Que é isto? - perguntou alguém.
- O Plano Infinito, não está a ver? - respondeu Judy apontando o letreiro na parte superior do pára-brisas.
Ninguém fez mais perguntas. Charles Reeves ficou internado no hospital, onde poucos dias depois lhe tiraram metade do estômago e lhe suturaram os buracos que tinha na outra metade. Entretanto, Nora e Olga acomodaram-se temporariamente com as crianças, o cão, a jibóia e os embrulhos no pátio de Pedro Morales, um mexicano generoso que tinha feito anos atrás o curso completo das doutrinas de Charles Reeves e ostentava na parede da sua casa um diploma acreditando-o como alma superior. O homem era maciço que nem um tijolo, com firmes traços de mestiço e uma máscara orgulhosa que se transformava numa experiência bondosa quando estava de bom humor. No seu sorriso brilhavam vários dentes de ouro que tinha posto por elegância depois de mandar arrancar os sãos. Não permitiu que a família do seu professor ficasse à deriva - as mulheres não podem estar sem protecção, há muitos bandidos por estes lados, disse ele - mas não havia espaço em sua casa para tantos hóspedes, porque tinha seis filhos, uma sogra desengonçada e alguns parentes próximos debaixo do seu tecto. Ajudou a armar as tendas e a instalar o fogão de petróleo dos Reeves no seu pátio e preparou-se para os socorrer sem ofender a sua dignidade. Tratava Nora por dona com grande deferência, mas a Olga, que considerava mais próxima da sua própria condição, chamava apenas senorita. Inmaculada Morales, sua mulher, permanecia impermeável aos costumes estrangeiros e, ao contrário de muitas das suas compatriotas nessa terra estranha, que andavam maquilhadas, equilibrando-se em saltos de agulha e com caracóis queimados pelas permanentes e pela água oxigenada, ela mantinha-se fiel à sua tradição indígena. Era pequena, delgada e forte, com um rosto plácido e sem rugas, penteava o cabelo numa trança que lhe caía pelas costas até mais abaixo da cintura, usava aventais simples e alpergatas, excepto nas festas religiosas quando fazia vista com um vestido negro e as suas argolas de ouro. Inmaculada representava o pilar da casa e a alma da família Morales. Quando o pátio se encheu de visitas não se perturbou, aumentou simplesmente a comida com truques generosos deitando mais água nos feijões, como dizia, e todas as tardes convidava os Reeves para cear, oiça lá, comadre, venha com os rapazes, para eles provarem estes burritos (Burrito - bolo de feijão e carne picada, picante. (N.T.), para que não se perca o pimentão, olhem que há muito, bendito seja Deus, oferecia ela, tímida. Um pouco envergonhados, os seus hóspedes sentavam-se na hospitaleira mesa dos Morales.
Muitos meses custaram a Judy e Gregory compreender as regras da vida sedentária. Viram-se rodeados por uma calorosa tribo de putos morenos que falavam um inglês feito à pressa, e não tardaram em ensinar-lhes a sua língua, começando por bêbado, a palavra mais sonora e útil do seu vocabulário, ainda que não fosse prudente dizê-la diante de Inmaculada. Com os Morales aprenderam a orientar-se no labirinto das ruas, a regatear, a distinguir com um simples olhar os rapazes inimigos, esconder-se e escapar. Com eles iam brincar para o cemitério e observar de longe as prostitutas e, de perto, as vítimas de acidentes fatais. Juan José, da mesma idade de Gregory, tinha um olfacto infalível para a desgraça, sabia sempre onde se davam os choques de automóveis, os atropelamentos, as brigas à navalhada e as mortes. Ele encarregou-se de averiguar em poucos minutos o sítio exacto onde um marido a quem a mulher abandonou para ir atrás de um caixeiro viajante se suicidou pondo-se em frente do comboio, porque não pôde aguentar a vergonha de ser chamado cornudo. Alguém ainda o viu fumando calmamente de pé, entre as duas linhas, e gritou-lhe que se afastasse porque vinha lá a máquina, mas ele não se mexeu. O boato chegou aos ouvidos de Juan José antes de a tragédia acontecer. Os meninos Morales e os Reeves foram os primeiros a aparecer no local da morte e, uma vez superado o espanto inicial, ajudaram a recolher os pedaços, até que a polícia os arrancou dali. Juan José guardou um dedo como recordação mas quando começou a ver o defunto por todo o lado achou que devia desfazer-se do troféu. No entanto, era tarde de mais para o devolver aos parentes porque os fragmentos do suicida tinham sido sepultados fazia dias.
O rapaz, aterrorizado pela alma penada, não soube que fazer com o dedo, atirá-lo para o lixo ou dá-lo à jibóia dos Reeves não lhe pareceu uma forma respeitosa de reparar o mal. Gregory consultou Olga em segredo e ela sugeriu a solução perfeita: deixá-lo discretamente sobre o altar da igreja, lugar consagrado onde nenhuma alma em perfeito juízo podia sentir-se ofendida. Ali o encontrou o padre Larraguibel, a quem todos chamavam simplesmente Padre pela dificuldade em pronunciar o seu apelido, um cura basco de alma atormentada, mas de grande sentido prático, que o atirou para a retrete sem comentários. Bastantes problemas tinha já com os numerosos paroquianos, quanto mais perder tempo procurando a origem de um dedo solitário.
Os irmãos Reeves foram à escola pela primeira vez na vida. Eram os únicos louros de olhos azuis numa população de imigrantes latinos onde a regra de sobrevivência era falar espanhol e corre rápido. Os alunos tinham a proibição de falar a língua nativa, tratava-se de aprender inglês para se integrarem depressa. Quando a algum saía uma palavra castiça ao alcance do ouvido da professora, recebia um par de palmadas no traseiro. Se a Cristo lhe bastou o inglês para escrever a Bíblia, não se necessita de outro idioma no mundo, era a explicação para medida tão drástica. Por desafio os meninos falavam castelhano em todas as ocasiões possíveis e quem não o fazia era qualificado de beija-cu, o pior epíteto do reportório escolar. Judy e Gregory não tardaram a perceber o ódio racial e recearam ser feitos em papas por qualquer descuido. No primeiro dia de aulas Gregory estava tão assustado que não lhe saía a voz nem sequer para dizer o nome.
- Temos dois novos alunos - sorriu a mestra, encantada por contar com um par de miúdos brancos entre tantos morenos. - Quero que os tratem bem, ajudem-nos a estudar e a conhecer as regras desta instituição. Como se chamam, queridos?
Gregory ficou mudo, agarrado ao vestido da irmã. Por fim Judy tirou-o de apuros.
- Eu sou Judy Reeves e este é o tonto do meu irmão - disse. Toda a classe, incluindo a professora, desatou a rir. Gregory sentiu qualquer coisa quente e pegajosa nos calções.
- Está bem, vão sentar-se - ordenou-lhes.
Dois minutos mais tarde Judy começou a apertar o nariz e a olhar o irmão com expressão pouco amável. Gregory cravou os olhos no chão, tentou imaginar que não estava ali, que ia no camião pelos caminhos, ao ar livre, que o seu pai nunca tinha adoecido, e que aquela escola maldita não existia, era só um pesadelo. Depressa o resto dos meninos percebeu o cheiro e armou-se grande algazarra.
- Vamos a ver... quem foi? - perguntou a professora com aquele sorriso falso que parecia ter colado nos dentes. - Não há nada para ter vergonha, é um acidente, pode acontecer a qualquer um... quem foi?
- Eu não me caguei e o meu irmão também não, juro! - gritou Judy desafiadora. Um coro de gracejos e gargalhadas acolheu a declaração.
A mestra aproximou-se de Gregory e soprou-lhe aos ouvidos que saísse da sala, mas ele agarrou-se à carteira com as duas mãos, de cabeça metida entre os ombros e pálpebras apertadas, vermelho de vergonha. A mulher quis puxar-lhe por um braço, primeiro sem violência e depois aos puxões, mas o menino estava colado ao assento com a força do desespero.
- Vai-te embora, puta! - gritou Judy à professora no seu recente espanhol. - Esta escola é uma merda! - acrescentou em inglês.
A mulher ficou pasmada de surpresa e a classe emudeceu.
- Puta, puta, puta! Vamo-nos embora Greg -. E os dois irmãos saíram da sala de mão dada, ela com o queixo levantado e ele com o seu colado ao peito.
Judy levou Gregory a uma estação de gasolina, escondeu-o entre os tambores de óleo e lá se arranjou para lhe lavar os calções com uma mangueira sem que ninguém os visse. Regressaram a casa em silêncio.
- Que vos aconteceu? - perguntou Nora Reeves estranhando vê-los tão cedo de volta.
- A mestra disse que tínhamos que voltar. Somos muito mais inteligentes que os outros alunos. Aqueles ranhosos nem sequer falam como a gente, mamã. Não sabem inglês!
- Que história é essa? - interrompeu Olga. - E por que é que Gregory tem a roupa toda ensopada?
De modo que no dia seguinte tiveram que regressar à escola, arrastados por um braço por Olga, que os acompanhou até à sala, os obrigou a pedir desculpas à professora pelos insultos proferidos e de caminho advertiu os demais meninos para que tivessem muito cuidado em molestar os Reeves. Antes de sair enfrentou a compacta massa de putos morenos, fazendo-lhes o gesto de maldizer: ambos os punhos cerrados e o indicador e o mínimo apontando como cornos. O seu aspecto estranho, o seu sotaque russo e aquele gesto tiverem o poder de aplacar as feras, pelo menos por algum tempo.
Uma semana depois Gregory fez sete anos. Não o festejaram, na verdade ninguém se lembrou, porque a atenção da família estava posta no pai. Olga, a única que ia diariamente ao hospital, trouxe a notícia de que Charles Reeves estava finalmente fora de perigo e tinha sido mudado para uma sala comum onde podiam visitá-lo. Nora e Inmaculada Morales lavaram os meninos até os porem a brilhar, vestiram-lhes as melhores roupas, pentearam com brilhantina os rapazes e com fitas no cabelo as meninas. Em procissão, partiram para o hospital com modestos ramos de margaridas do jardim da casa e uma travessa com pedaços de frango e feijões fritos com queijo, preparados por Inmaculada. A sala era tão grande como um hangar, com camas idênticas de ambos os lados e um enorme corredor ao centro que percorreram em pontas dos pés até ao lugar onde se encontrava o enfermo. O nome de Charles Reeves escrito num cartão aos pés da cama permitiu-lhes identificá-lo, de outro modo não o teriam reconhecido. Estava transformado num estranho, tinha envelhecido mil anos, tinha a pele cor de cera, os olhos afundados nas órbitas e cheirava a amêndoas. Os meninos, apertados cotovelo com cotovelo, ficaram com as flores na mão, sem saber onde pô-las, Inmaculada Morales, ruborizada, cobriu a travessa dos pedaços de frango com o xaile, e Nora Reeves começou a tremer. Gregory pressentiu que algo irreparável tinha sucedido na sua vida.
- Está muito melhor, depressa poderá comer - disse Olga enfiando a agulha de soro na veia do doente.
Gregory recuou até ao corredor, desceu as escadas aos saltos e largou a correr até à rua. à porta do hospital acocorou-se com a cabeça nos joelhos, abraçando as pernas, como um novelo, repetindo, puta, puta, como uma litania.
À chegada, os imigrantes mexicanos caíam em casas de amigos ou parentes onde se amontoavam frequentemente várias famílias. As leis da hospitalidade eram invioláveis, e a ninguém se negava tecto e comida nos primeiros dias, mas depois cada um tinha que desenrascar-se sozinho. Vinham de todas as aldeias do sul da fronteira em busca de trabalho, sem outros haveres que a roupa do corpo, um saco às costas e as melhores intenções de ir para a frente naquela Terra Prometida, onde lhes tinham dito que o dinheiro crescia nas árvores e qualquer um que fosse esperto podia transformar-se em empresário, com um Cadillac próprio e uma loira pendurada no braço. Não lhes tinham contado, todavia, que por cada afortunado ficavam cinquenta pelo caminho, e outros cinquenta regressavam vencidos, que não seriam eles os beneficiados, estavam destinados a abrir caminho aos filhos e netos nascidos naquela terra hostil. Não suspeitavam das penúrias do desterro, de como abusariam deles os patrões e como seriam perseguidos pelas autoridades, quanto esforço custaria reunir a família, trazer as crianças e os velhos, da dor de dizer adeus aos amigos e deixar para trás os seus mortos. Nem os avisaram de que depressa perderiam as suas tradições e de que o desgaste da memória os deixaria sem recordações, nem que seriam os mais humilhados entre os humildes. Mas se o tivessem sabido, talvez mesmo assim tivessem empreendido a viagem ao Norte. Inmaculada e Pedro Morales chamavam-se a si mesmos «arameiros molhados», combinação de «arame» e de «lombo molhado», como se chamava aos imigrantes ilegais, e contavam, mortos de riso, como tinham atravessado a fronteira muitas vezes, algumas atravessando a nado o rio Grande e outras cortando os arames da cerca. Tinham ido de férias à sua terra mais que uma vez, entrando e saindo com filhos de todas as idades e até com a avó, que arrastaram desde a aldeia quando enviuvou e o cérebro se lhe destrambelhou. Ao cabo de vários anos conseguiram legalizar os seus papéis e os seus filhos eram cidadãos americanos. Não faltava um posto na sua mesa para os recém-libertados e os meninos cresceram a ouvir histórias de pobres diabos que cruzavam a fronteira escondidos como fardos no fundo duplo de um camião, saltavam de comboios em marcha, ou arrastavam-se por debaixo da terra por velhos canos de esgoto, sempre com o terror de serem surpreendidos pela polícia, a temida «Migra», e recambiados para o seu país agrilhoados, depois de ser m registados como criminosos, também de fome e sede outros asfixiavam-se em compartimentos secretos dos carros de coyotes, cujo negócio consistia em transportar os desesperados do México até uma aldeia do outro lado. Na época em que Pedro Morales fez a primeira viagem existia ainda entre os latinos o sentimento de recuperar um território que sempre tinha sido seu. Para eles, violar a fronteira não constituía um delito mas uma aventura de justiça. Pedro Morales tinha então vinte anos, acabara o serviço militar e como não desejava seguir os passos do pai e do avô, míseros camponeses de uma fazenda de Zacatecas, preferiu iniciar a marcha até ao Norte. Chegou assim a Tijuana, onde esperava conseguir um contrato como bracero para trabalhar no campo, porque os agricultores americanos necessitavam de mão-de-obra barata, mas viu-se sem dinheiro, não pôde esperar que se cumprissem as formalidades ou subornar os funcionários e polícias, nem gostou daquela aldeia de passagem, onde segundo ele os homens não tinham honra e as mulheres respeito. Estava cansado de ir de cá para lá à procura de trabalho e não quis pedir ajuda nem aceitar caridade. Por fim, decidiu atravessar a cerca para o gado que limitava a fronteira, cortando os arames com um alicate, e largou a andar em linha recta em direcção ao sol, seguindo as indicações de um amigo com mais experiência. Assim chegou à Califórnia. Nos primeiros meses passou mal, não lhe foi fácil ganhar a vida como lhe tinham dito. Foi de granja em granja colhendo fruta, feijão ou algodão, dormindo nos caminhos, nas estações de comboio, nos cemitérios de carros velhos, alimentando-se de pão e cerveja, partilhando penúrias com milhares de homens na mesma situação. Os patrões pagavam menos do que se oferecia, e à primeira reclamação pediam a intervenção da polícia, sempre atrás dos ilegais. Pedro não podia estabelecer-se em nenhum sítio por muito tempo, a «Migra» andava a pisar-lhe os pés, mas finalmente tirou o sombrero e as huaraches, adoptou o blujin e a cachucha (Gorro, boné. (N.T.), e aprendeu a algaraviar umas quantas frases em inglês. Mal se instalou na nova terra regressou à aldeia em busca da noiva de infância. Inmaculada esperava-o com o vestido de boda bem engomado.
- Os gringos são todos uns chanfrados, põem pêssegos na carne e marmelada nos ovos estrelados, levam os cães ao cabeleireiro, não acreditam na Virgem Maria, os homens lavam os pratos em casa e as mulheres lavam os automóveis na rua, de sutiã e calções rotos, vê-se-lhes tudo, mas se não nos metermos com eles, pode viver-se à grande - informou Pedro à sua prometida.
Casaram-se com as cerimónias e festas habituais, dormiram a primeira noite de esposos na cama dos pais da rapariga, emprestada para a ocasião, e no dia seguinte tomaram o autocarro rumo ao Norte. Pedro levava algum dinheiro e já estava habituado a atravessar a fronteira, estava em melhores condições que da primeira vez, mas também ia assustado, não desejava expor a mulher a nenhum perigo. Contavam-se histórias arrepiantes de roubos e matanças de bandidos, corrupção da polícia mexicana e maus tratos da americana, histórias capazes de atemorizar o mais macho. Inmaculada, por seu lado, caminhava feliz um passo atrás do marido com o embrulho dos seus pertences equilibrado na cabeça, protegida da má sorte pelo escapulário da Virgem de Guadalupe, uma oração nos lábios e os olhos bem abertos para ver o mundo que se estendia à sua volta como um magnífico cofre repleto de surpresas. Nunca tinha saído da sua aldeia e não suspeitava que os caminhos pudessem ser intermináveis, mas nada conseguiu desanimá-la, nem humilhações, nem fadigas, nem as armadilhas da nostalgia, e quando finalmente se viu instalada com o seu homem num mísero quarto de pensão do outro lado da fronteira, julgou ter atravessado as portas do céu. Um ano mais tarde nasceu o primeiro menino, Pedro conseguiu um posto numa fábrica de pneus em Los Angeles e frequentou um curso nocturno de mecânica. Para ajudar o marido, Inmaculada empregou-se em seguida à procura numa fábrica de roupa e depois em serviços domésticos, até que uma gravidez a seguir à outra e as crianças a obrigaram a ficar em casa. Os Morales eram gente ordenada e sem vícios, esticavam o dinheiro e aprenderam a utilizar os benefícios daquele país onde eles seriam sempre estrangeiros, mas no qual os filhos teriam um lugar. Estavam sempre dispostos a abrir a porta para amparar os outros, a sua casa tornou-se um corrupio de gente. Hoje por ti, amanhã por mim, umas vezes toca-nos dar, outras receber, é a lei natural da vida, dizia Inmaculada. Comprovaram que a generosidade tem efeito multiplicador, não lhes faltou a boa sorte nem o trabalho, os filhos saíram sãos e as amizades agradecidas, com o tempo superaram as pobrezas do começo. Cinco anos depois de chegar à cidade, Pedro instalou a sua própria oficina de automóveis. Na época em que os Reeves foram viver no seu pátio eram a família mais digna do bairro, Inmaculada tinha-se transformado em mãe universal e Pedro era consultado como homem justo pela comunidade. Naquele ambiente, onde a ninguém passava pela cabeça chamar a polícia ou a justiça para resolver os seus conflitos, ele actuava como árbitro nos mal-entendidos e juiz nas desavenças.
Olga tinha razão, pelo menos em parte. Um mês depois da operação, Charles Reeves saiu do hospital pelos seus próprios pés, mas a sua ideia de voltar a deambular pelos caminhos tornava-se absurda porque era evidente que a convalescença seria muito longa. O médico receitou tranquilidade, dieta e controlo permanente, nem pensar em vida nómada por um bom tempo, talvez anos. O dinheiro das poupanças tinha terminado há muito e a família devia uma soma respeitável aos Morales. Pedro não quis ouvir falar desse assunto porque tinha para com o seu Mestre uma dívida espiritual impossível de pagar. Charles Reeves não era homem capaz de aceitar caridade, nem sequer de um bom amigo e discípulo, nem podiam continuar acampados no pátio de uma casa alheia e, apesar das súplicas das crianças, que viam afastar-se para sempre a possibilidade de abandonar a opressão da escola, o camião foi vendido depois de lhe tirarem o letreiro e o altifalante. Com o dinheiro arrecadado e outro tanto conseguido em empréstimos, os Reeves puderam comprar uma cabana em ruínas no limite do bairro mexicano.
Os Morales mobilizaram os seus parentes para ajudar a reconstruir a choça. Esse foi um fim-de-semana inesquecível para Gregory Reeves, a música e a comida latinas ficariam na sua mente para sempre unidas com a ideia de amizade. No sábado de madrugada apareceu no lugar uma caravana de diversos veículos, desde uma camioneta manejada por um homenzarrão de sorriso contagioso, irmão de Inmaculada, até uma coluna de bicicletas onde se transportaram primos, sobrinhos e amigos, todos com ferramentas e materiais de construção. As mulheres instalaram bancas no terreno e, de mangas arregaçadas, cozinharam para aquela multidão. Voavam as cabeças decapitadas dos frangos, empilhavam-se os pedaços de porco e vitela, ferviam as maçarocas, os feijões e as papas, assavam-se as tortilhas, bailavam as facas picando, partindo e pelando, reluziam ao sol as travessas com fruta e aguardavam na sombra as de tomate com cebola, salsa brava e salada de abacate. Das panelas escapavam aromas de guisados suculentos, de garrafas e cabaças distribuíam a tequilha e a cerveja, e das guitarras saíam as canções da terra generosa do outro lado da fronteira. Os meninos corriam com os cães por entre as mesas; as meninas, muito compostas, ajudavam no serviço; um primo atrasado mental de flácido rosto asiático lavava os pratos; a avó maluca, sentada debaixo de uma árvore, contribuía no coro de rancheras com a sua vez de pintassilgo; Olga distribuía comida pelos homens e mantinha os garotos à distância. Durante todo o fim-de-semana, até alta noite, trabalharam alegremente sob as ordens de Charles Reeves e Pedro Morales, serrando, pregando e soldando. Foi uma festa de suor e canto e na segunda-feira de manhãzinha via-se a casa com as paredes bem escoradas, as janelas nos seus gonzos, as chapas de zinco no tecto e um piso de tábuas novas. Os mexicanos desarmaram as mesas da comezaina, recolheram as ferramentas, as guitarras e os filhos, subiram para os carros e desapareceram por onde tinham chegado, discreta-mente, para que ninguém lhes dissesse obrigado.
Quando os Reeves entraram no seu novo lar, Gregory perguntou se aquela casa não se desarmava, incrédulo da firmeza das paredes. Para os meninos aquelas duas divisões pareciam um palacete, antes nunca tinham tido um tecto sólido sobre as suas cabeças, só a lona de uma tenda ou o céu. Nora instalou o seu fogão de petróleo, pôs no seu quarto a velha máquina de escrever e na sala, no lugar de honra, a sua grafonola de manivela para ouvir ópera e música clássica, e em seguida dispôs-se a iniciar uma nova etapa.
Olga, sem muitas explicações, decidiu separar-se deles. A princípio ficou no pátio dos Morales com o pretexto de que a casa dos Reeves estava muito longe e até ali não chegaria a sua clientela, e pouco depois conseguiu um quarto alugado na parte de cima de uma garagem, no outro extremo do bairro, onde pendurou um letreiro oferecendo os seus serviços de adivinha, parteira e curandeira. O boato do seu talento correu rapidamente e confirmou a sua reputação quando fez desapa-recer para sempre a barba e os bigodes da dona do armazém. Naquele lugar, onde nem os homens tinham muito pêlo na cara, a armazenista era alvo das graças mais cruéis, até que Olga interveio libertando-a com uma poção da sua invenção, a mesma que receitava para curar a sarna. Quando por fim a barbuda pôde fazer brilhar as bochechas em plena luz do dia, as más-línguas disseram que pelo menos os pêlos davam-lhe um ar interessante, ao passo que sem eles era apenas uma senhora com cara de pirata. Correu a voz de que, assim como a curandeira curava com as suas orações e unguentos, também podia fazer mal com as suas bruxarias e as pessoas tiveram-lhe respeito. Judy e Gregory iam vê-la muitas vezes e ela aparecia de vez em quando para almoçar aos domingos com os Reeves, mas as suas visitas espaçaram-se e por fim acabaram de todo. Pouco a pouco o seu nome deixou de mencionar-se na família, porque ao fazê-lo o ar carregava-se de tensões. Judy, distraída com tantas novidades, não a encontrava, mas Gregory não perdeu o contacto com ela.
Charles Reeves voltou a ganhar a vida a pintar. A partir de uma fotografia podia fazer uma imagem bastante fiel no caso dos homens e muito melhorada no caso das senhoras, a quem apagava os sinais da idade, atenuava-lhes a herança indígena ou africana, aclarava-lhes a pele e o cabelo e vestia-as de gala. Mal se sentiu com forças suficientes regressou também às suas prédicas e a escrever os seus livros, que ele mesmo imprimia. Apesar dos obstáculos económicos da empresa, o Plano Infinito continuou o seu curso aos tropeções mas com tenacidade. O público compunha-se principalmente de operários e suas famílias, muitos dos quais mal entendiam o inglês, mas o pregador aprendeu algumas palavras-chave em espanhol e quando lhe falhava o vocabu-lário recorria a uma ardósia onde desenhava as suas ideias. No começo assistiam só amigos e parentes dos Morales, mais interessados em ver a jibóia de perto do que nos aspectos filosóficos da conferência, mas logo se soube que o Doutor em Ciências Divinas era muito eloquente e podia traçar a grande velocidade «umas caricaturas um bocado grosseiras mas, vejam bem, há que ver como ele as faz, assim mesmo, sem olhar sequer», e os Morales não tiveram necessidade de pressionar ninguém para encher a sala. Ao conhecer as precárias condições em que viviam os seus vizinhos, Reeves passou semanas na biblioteca a estudar as leis, pôde assim oferecer aos seus ouvintes, além do apoio espiritual, conselhos para navegar nas águas desconhecidas do sistema. Graças a ele os imigrantes souberam que apesar de serem ilegais gozavam de alguns direitos de cidadania, podiam ir ao hospital, enterrar os seus mortos no cemitério do condado - embora preferissem, sempre, mandá-los para a sua aldeia de origem - e um sem-número de outras vanta-gens que desconheciam até então. Naquele bairro o Plano Infinito competia com os ouropéis do cerimonial católico, os bombos e os pratos do Exército de Salvação, a estranha poligamia dos mórmones e os ritos das sete igrejas protestantes da vizinhança, incluindo os baptistas que se metiam vestidos no rio, os adventistas que ofereciam torta de limão aos domingos e os do Pentecostes que andavam com as mãos levan-tadas para receber o Espírito Santo. Como não era necessário renunciar à própria religião, porque no curso de Charles Reeves acomodavam-se todas as doutrinas, o padre Larraguibel da Igreja de Lourdes e os pastores das outras crenças não puderam objectar, embora uma vez estivessem todos de acordo e cada um do alto do seu púlpito acusasse o pregador de ser um charlatão sem fundamento.
Desde o primeiro encontro, quando o camião dos Reeves desembarcou a sua carga no pátio dos Morales, Gregory e Cármen, a filha mais nova da família, fizeram-se íntimos amigos. Bastou-lhes um olhar para estabelecer a cumplicidade que havia de durar toda a sua vida. A menina era mais nova um ano, mas nos aspectos práticos muito mais esperta, caberia a ela revelar ao outro as chaves e os truques de sobrevivência no bairro. Gregory era alto, delgado, muito loiro, e ela pequena, rechonchuda, cor de açúcar dourado. O rapaz tinha adquirido conhecimentos pouco usuais, podia brilhar contando argumentos de ópera, descrevendo paisagens da National Geographic ou recitando versos de Byron; sabia caçar um pato, estripar um peixe e calcular num instante quanto percorre um camião em quarenta e cinco minutos se viajar a trinta milhas por hora, tudo de pouca utilidade na sua nova situação. Sabia meter uma jibóia num saco, mas não podia ir à esquina comprar pão, não tinha convivido com outras crianças nem tinha entrado numa sala de aula, não suspeitava fosse o que fosse da maldade dos meninos nem das tremendas barreiras raciais, porque Nora tinha-lhe ensinado que as pessoas são boas - o contrário é um vício da natureza - e todos são iguais. Até ir para a escola Gregory acreditou nisso. A cor da sua pele e a sua absoluta falta de malícia irritavam os outros, que lhe caíam em cima quando podiam, em geral na casa de banho, e o deixavam meio aturdido de pancada. Nem sempre inocente, provocava muitas vezes os confrontos. Com Juan José e Cármen Morales inventavam brincadeiras pesadas como tirar com uma seringa o recheio de menta a uns bombons de chocolate e substituí-lo pelo molho mais picante da cozinha de Inmaculada e oferecê-lo ao grupo de Martinez como quem fuma um cachimbo de paz, para sermos amigos, okay? Depois tinham que se esconder durante uma semana. Todos os dias, mal tocava a sineta da saída, Gregory corria como um raio até casa, perseguido por uma cambada de garotos dispostos a liquidá-lo. Tinha pernas tão velozes que costumava parar a meio da corrida para insultar os seus inimigos. Quando a família acampava no pátio dos Morales não passava susto algum, porque a casa ficava perto, Juan José acompanhava-o e ninguém podia alcançá-lo numa distância curta, mas quando se mudaram para a nova propriedade a distância era dez vezes maior e as possibilidades de chegar à meta a tempo reduziam-se de forma alarmante. Mudava o percurso, ia por diversos atalhos e conhecia esconderijos onde podia esperar agachado até que se fartassem de o procurar. Uma vez enfiou-se pelo centro paroquial porque na aula de religião o padre contou que desde a Idade Média existia a tradição de asilo dentro das igrejas, mas a pandilha de Martinez perseguiu-o no interior do edifício e, depois de uma escandalosa corrida saltando bancos, agarraram-no em frente do altar e trataram de lhe dar um enxurro de pontapés ante o olhar impávido dos santos de cara baixa sob as coroas de latão dourado. Aos gritos acudiu o enérgico padre, que se encarregou de tirar os inimigos de cima de Gregory puxando-os pelos cabelos.
- Deus não me salvou! - gritava o menino mais furioso que dorido, apontando o Cristo ensanguentado que presidia no altar.
- Como não? Eu não cheguei para te ajudar, mal-agradecido? - rugiu o pároco.
- Demasiado tarde! Olhe como me puseram! - gemia mostrando as suas nódoas negras.
- Deus não tem tempo para merdices. Põe-te de pé e limpa o nariz - ordenou-lhe o padre.
- Você disse que aqui qualquer um está seguro...
- Claro, sempre que o inimigo saiba que se trata de um lugar sagrado, mas estes mendigos não sabem o sacrilégio que cometeram.
- A sua igreja de merda não serve para nada!
- Cuidado com o que dizes, olha que te faço voar os dentes, rapaz descarado! - ameaçou-o o padre com a mão no ar.
- Sacrilégio! Sacrilégio! - fez-lhe recordar Reeves e isso teve a virtude de aplacar o fervor do sangue basco nas veias do sacerdote, que respirou fundo para despejar a ira e tratou de falar num tom mais de acordo com as suas santas investiduras.
- Escuta, meu filho, tens que aprender a defender-te. Ajuda-te, que Deus te ajudará, como diz o ditado.
E a partir desse dia o bom homem, que na sua juventude tinha sido um camponês brigão, fechava-se com Gregory no pátio da sacristia para lhe ensinar boxe sem as mínimas contemplações pelas regras de cavalheirismo. A sua primeira lição consistiu em três primeiros princípios inapeláveis: a única coisa importante é ganhar, o que dá primeiro dá duas vezes e dá-lhe directo aos tomates, meu filho, e que Deus nos perdoe. De qualquer modo, o miúdo decidiu que o templo era menos seguro que o firme regaço de Inmaculada Morales, fortaleceu a confiança nos seus punhos na mesma medida em que a sua fé oscilava na intervenção divina. Desde então, se estava em apuros corria a casa de amigos, saltava a cerca do pátio e metia-se na cozinha, onde aguardava que Judy acudisse para o salvar. Com a irmã podia caminhar a salvo porque era a menina mais bonita da escola, todos os rapazes estavam enamorados dela e nenhum teria cometido a estupidez de fazer uma brincadeira de mau-gosto a Gregory na sua presença. Cármen e Juan José Morales tentavam fazer a reconciliação entre o seu novo amigo e o resto da miudagem, mas nem sempre o conseguiam porque Gregory era estranho, não só pela cor, mas porque era orgulhoso, casmurro e velhaco. Tinha a cabeça cheia de contos de índios, de animais selvagens, protagonistas de operas e de teorias de almas em forma de laranjas flutuantes, e Logi e Mestres Funcionários, dos quais nem o padre nem os professores queriam ouvir pormenores. Além disso, perdia o controlo com a menor provocação e atirava-se para a frente, com os olhos fechados e os punhos prontos, lutava às cegas e perdia quase sempre, era o mais espancado da escola. Riam-se dele, do seu cão - um rafeiro de pernas curtas e focinho pouco amável - e até do aspecto da sua mãe, que se vestia à antiga e distribuía folhetos da religião Bahai ou do Plano Infinito. Mas as piores piadas centravam-se no seu temperamento sentimental. O resto dos rapazes tinha interiorizado as lições machistas do seu meio: os homens devem ser impiedosos, valentes, dominantes, solitários, rápidos com as armas e superiores às mulheres em todo o sentido. As regras básicas, aprendidas pelos meninos no berço, dizem que os homens não confiam nunca em ninguém e não choram por motivo algum. Mas Gregory escutava a professora falar das focas do Canadá mortas à paulada pelos caçadores de peles ou o padre referir-se aos leprosos de Calcutá e, com os olhos rasos de lágrimas, decidia imediatamente ir para o Norte defender os pobres animais ou para o longínquo Oriente como missionário. Em contrapartida, atordoavam-no à pancada sem lhe arrancar lágrimas, por orgulho preferia que o triturassem a pedir clemência, só por isso os outros rapazes não o consideravam um maricas acabado. Apesar de tudo, era um rapaz alegre, capaz de tirar música de qualquer instrumento, com a memória infalível para as anedotas, o favorito das raparigas no recreio.
Em troca das suas lições de boxe o padre exigiu-lhe ajuda nas missas de domingo. Quando Gregory falou disso em casa dos Morales teve de suportar um arraial de piadas de Juan José e dos seus irmãos, até que Inmaculada os interrompeu para anunciar que, por brincar, o seu filho Juan José também seria menino de coro e com muita honra, que Deus fosse bendito. Os dois amigos passavam horas a arreganhar os dentes na igreja espalhando incenso, tocando sininhos e recitando latinices, perante o olhar atento do sacerdote, que mesmo nos momentos álgidos os vigiava com o seu famoso terceiro olho, aquele que a gente dizia que tinha na nuca para ver os pecados dos outros. O homem gostava que um dos seus ajudantes fosse moreno e o outro loiro, considerava que essa integração racial agradaria sem dúvida ao Criador. Antes da missa os meninos preparavam o altar e depois punham a sacristia em ordem, ao ir embora recebiam um pão de anis de presente, mas o verdadeiro prémio eram uns quantos sorvos clandestinos no vinho cerimonial, um licor velho, doce e forte como o xerez. Uma manhã foi tal o entusiasmo que sem se conterem despacharam a garrafa e ficaram sem vinho para a última missa. Gregory teve a inspiração de subtrair uns centavos da colecta e saiu disparado para comprar coca-cola. Chocalharam-na para lhe tirar o gás e em seguida encheram a galheta. Durante o ofício estavam que nem uns palhaços e nem sequer os olhares assassinos do sacerdote conseguiram impedir cochichos, gargalhadas, tropeções e badaladas fora de tempo. Quando o padre levantou o cálice para consagrar a coca-cola, os rapazes sentaram-se nos degraus do altar porque não se tinham em pé de tanto riso. Minutos mais tarde o sacerdote bebeu o líquido com reverência, absorto nas palavras litúrgicas e ao primeiro sorvo deu conta de que o diabo tinha metido a mão no cálice, a não ser que pela primeira vez a consagração tivesse produzido uma mudança verificável nas moléculas do vinho, ideia que o seu sentido prático imediatamente pôs de parte. Tinha um longo treino das vicissitudes da vida e continuou a missa impávido, sem um gesto que revelasse o ocorrido. Terminou o ritual sem pressa, saiu dignamente seguido pelos seus meninos de coro aos tropeções, e uma vez na sacristia tirou uma das suas pesadas sandálias de couro para lhes dar uma monumental sova.
Esse foi o primeiro de muitos anos difíceis para Gregory Reeves, foi um tempo de insegurança e medos em que muitas coisas mudaram, mas também de travessuras, amizade, surpresas e descobertas.
Mal a família se organizou nos novos trabalhos e o meu pai se sentiu mais forte, iniciaram-se os arranjos da cabana. Com a ajuda dos Morales e dos seus amigos já não se viam ruínas, mas ainda faltavam algumas comodidades essenciais. O meu pai instalou um primitivo sistema de luz eléctrica, construiu uma casinhota para a retrete e ele e eu limpámos o terreno das pedras e ervas para a minha mãe plantar a horta dos vegetais e flores que sempre tinha desejado. Construiu também uma pequena casota no próprio bordo do barranco onde terminava a propriedade, para guardar as suas ferramentas e a equipagem de viagem porque não perdia a ilusão de voltar um dia às suas travessias com outro camião. Depois mandou-me fazer um buraco, afirmava que, segundo um filósofo grego, todo o homem antes de morrer deve procriar um filho, escrever um livro, construir uma casa e plantar uma árvore e ele já tinha cumprido com os três primeiros requisitos. Cavei onde me indicou sem nenhum entusiasmo, não desejava contribuir para a sua morte, mas não me atrevi a negar-me nem a deixar o trabalho a meio. Numa ocasião, quando eu viajava no plano astral, fui conduzido a uma casa muito grande, como uma fábrica, explicava Charles Reeves aos seus ouvintes. Vi lá muitas máquinas interessantes, algumas não estavam terminadas e outras eram absurdas, os princípios mecânicos estavam equivocados e nunca funcionaram bem. Perguntei a um Logi a quem pertenciam. Estas são as tuas obras incompletas, explicou-me ele. Lembrei-me de que na minha juventude ambicionara tornar-me inventor. Aquelas máquinas grotescas eram produtos daquele tempo e desde então estavam armazenadas ali esperando que eu dispusesse delas. Os pensamentos tomam forma, quanto mais definida for a ideia mais concreta será a forma. Não se devem deixar ideias nem projectos inacabados, devem ser destruídos, porque senão desperdiça-se energia que seria melhor empregue noutro assunto. Há que pensar de maneira construtiva, mas cuidadosa. Eu tinha ouvido este conto inúmeras vezes, causava-me uma obsessão por completar tudo e dar a cada objecto e a cada pensamento um lugar preciso, porque a julgar pelo que vai à minha volta, o mundo era uma pura desordem.
Meu pai saiu cedo e regressou com Pedro Morales na camioneta carregada com um salgueiro de bom tamanho. Os dois juntos arrastaram-no com grande dificuldade e plantaram-no no buraco. Durante vários dias observei a árvore e meu pai, esperando que em qualquer instante a primeira secasse ou o segundo caísse fulminado, mas como nada disso aconteceu, achei que os antigos filósofos eram uns vadios folgazões. O medo de ficar órfão vinha-me à mente com frequência. Em sonhos Charles Reeves aparecia-me como um esqueleto desengonçado, com roupagens escuras, com uma grossa serpente enrolada aos pés, e acordado recordava-o reduzido a uma pelanga, tal como o vi no hospital. A ideia da morte aterroriza-me. Desde que nos instalámos na cidade perseguia-me um pressentimento de perigo, as normas conhecidas caíram-me, até as palavras perderam os seus significados habituais etive que aprender novos códigos, outros gestos, uma língua estranha de erres e jotas sonoros. Os caminhos sem fim e as vastas paisagens foram substituídos por um amontoado de ruelas ruidosas, sujas, mal-cheirosas mas também fascinantes, onde as aventuras aconteciam a cada passo. Era impossível resistir à atracção das ruas, nelas decorria a existência, eram cenários de lutas, amores e negócios. Eu embelezava-me com a música latina e o costume de contar histórias. As pessoas falavam das suas vidas em tom de lenda. Creio que aprendi espanhol só para não perder uma palavra daqueles contos. O meu lugar preferido era a cozinha de Inmaculada Morales, entre os perfumes das panelas e os da família. Não me cansava desse circo eterno, mas também sentia a secreta necessidade de recuperar o silêncio da natureza na qual me tinham criado, procurava árvores, caminhava horas para subir a um pequena colina onde por alguns minutos tornava a sentir o prazer de existir na minha própria pele. No resto do tempo o meu corpo era um estorvo, tinha que o proteger permanentemente, o meu cabelo claro pesava-me como chumbo, a cor da minha pele e dos meus olhos, o meu esqueleto de pássaro. Disse Inmaculada Moralesque eu era um menino alegre, cheio de força e energia, com um tremendo gosto pela vida, mas não me recordo que fosse assim, no ghetto experimentei o desgosto de ser diferente, não me integrava, desejava ser como os outros, diluir-me na multidão, tornar-me invisível e mover-se assim, tranquilo, pelas ruas ou brincar no pátio da escola, livre dos bandos de rapazes morenos que descarregavam em mim as agressões que eles próprios recebiam dos brancos mal assomavam os narizes fora do bairro.
Quando o meu pai saiu do hospital recomeçamos na aparência uma vida normal, mas o equilíbrio da família estava destruído. Também pesava no ambiente a ausência de Olga, faltava o seu baú de tesouros, o seu riso descarado, os seus contos, a sua infatigável diligência, a casa sem ela era como uma mesa coxa. Os meus pais cobriram o assunto de silêncio e não me atrevi a pedir explicações. A minha mãe ficava por momentos mais silenciosa e afastada, enquanto meu pai, que sempre teve bom domínio sobre o seu caracter, se tornou raivoso, imprevisível, violento. É culpa da operação, a química do seu corpo está alterada, por isso a sua aura escureceu, mas logo ficará bem, justificava a minha mãe na linguagem do Plano Infinito, mas sem a menor convicção no tom de voz. Nunca me senti bem com ela, aquele ser descolorido e amável era muito diferente das mães dos outros meninos. As decisões, os consentimentos e os castigos vinham sempre do meu pai, o consolo e o riso de Olga, as confidências eram com Judy, à minha mãe só me uniam os livros e cadernos escolares, a música e o gosto de observar as constelações do céu. Nunca me tocava, acostumei-me à sua distância física, ao seu temperamento reservado.
Um dia quando perdi Judy, experimentei o pânico da solidão absoluta, que só consegui superar muitas décadas mais tarde. Quando um amor inesperado acabou com essa espécie de maldição. Judy tinha sido uma menina aberta e simpática, que me protegia, me dirigia, me levava agarrado às saias. Durante a noite eu deslizava para dentro da sua cama e ela contava-me contos ou inventava-me sonhos com instruções precisas de como sonhá-los. As formas de minha irmã adormecida, o seu calor e o ritmo da sua respiração acompanharam a primeira parte da minha infância, encolhido a seu lado esquecia o medo, junto dela nada me podia causar mal. Uma noite de Abril, quando Judy ia fazer nove anos e eu tinha sete, esperei que tudo estivesse em silêncio e saí do meu saco de dormir para me meter no seu, como sempre fazia, mas encontrei uma resistência feroz. Tapada até ao queixo e com as mãos bem apertadas segurando o saco, disse que não me queria, que nunca mais me deixaria dormir com ela, que se tinham acabado os contos, os sonhos inventados e tudo o resto e que eu estava muito grande para aquelas tontices.
- Que se passa Judy? - supliquei-lhe espantado, não tanto pelas suas palavras mas pelo rancor da sua voz.
- Vai para o caraças e não voltes a tocar-me nos dias da tua vida! - e desatou a chorar com a cara voltada para a parede.
Sentei-me a seu lado no chão sem saber o que dizer, muito mais triste pelo seu choro do que pela recusa. Um bom tempo depois levantei-me em pontas dos pés e abri a porta a Oliver, a partir desse dia dormi abraçado ao meu cão. Nos meses seguintes tive a sensação de que existia um mistério em minha casa do qual eu estava excluído, um segredo entre o meu pai e a minha irmã, ou talvez entre eles e a minha mãe, ou entre todos e Olga. Pressenti que era melhor ignorar a verdade e não tratei de averiguá-la. O ambiente estava tão carregado que procurava ausentar-me de casa o mais possível, visitando Olga ou os Morales, dava largas caminhadas pelos campos à volta, afastava-me várias milhas e regressava ao anoitecer, escondia-me na pequena casota, entre ferramentas e caixotes, e chorava durante horas sem saber porquê. Ninguém me fez perguntas.
A imagem do meu pai começou a apagar-se e foi substituída pela e um desconhecido, um homem injusto e raivoso, que enquanto acariciava Judy me batia ao menor pretexto e me empurrava de ao pé de si, vai brincar lá para fora, os rapazes devem fazer-se fortes na rua, grunhia ele. Nenhuma semelhança havia entre o puro e carismático pregador de outrora e aquele velho asqueroso que passava o dia num cadeirão ouvindo a rádio, meio vestido e sem se barbear. Por essa altura já não pintava e nem se dedicava ao Plano Infinito. A situação em casa piorou a olhos vistos e novamente Inmaculada Morales se tornou presente com as suas picantes mexerufadas, o sorriso generoso, e o seu bom olho para captar as necessidades dos outros. Olga dava-me dinheiro com instruções de o pôr dissimuladamente na carteira da minha mãe. Esta inusitada forma de entradas manteve-se por muitos anos, sem que o meu pai fizesse alguma vez o menor comentário, como se não percebesse aquela multiplicação misteriosa de notas.
Olga tinha o talento de marcar o que está à sua volta com um sinal extravagante. Era um pássaro migratório e aventureiro, mas onde poisava, mesmo que fosse por algumas horas, conseguia criar a ilusão de um ninho permanente. Possuía poucos bens, mas sabia distribuí-los à sua volta de tal modo que se o espaço fosse pequeno guardavam-se num baú e se fosse maior inchavam-se para o encher. Debaixo de uma tenda, em qualquer recanto do caminho, numa choça ou na cadeia, onde foi parar mais tarde, ela era rainha no seu palácio. Quando se separou dos Reeves conseguiu um quarto alugado por um preço módico, uma pocilga sórdida com a patina melancólica do resto do bairro, mas conseguiu arranjá-lo com cores próprias, transformando-o em pouco tempo em ponto de referência para os que solicitavam uma direcção: dois quarteirões para diante, vire à esquerda e onde vir uma casa pintalgada vire à esquerda, e já está. A escada de acesso e as duas janelas foram decoradas com o seu estilo, penduricalhos de conchas e cristais chamavam os transeuntes com a sua chocalhada de sinos, luzes multicores evocavam um Natal ininterrupto e o seu nome em letras cursivas coroava aquele estranho pagode. Os donos da propriedade cansaram-se de exigir um pouco de discrição e por fim resignaram-se àquela tralha no edifício. Em pouco tempo ninguém nas redondezas ignorava onde vivia Olga. Portas adentro, a vivenda apresentava um aspecto igualmente extravagante, com uma cortina separou o quarto em duas partes, uma para atender a clientela e outra onde pôs a cama e a sua roupa pendurada em pregos na parede. Aproveitando os seus dotes artísticos e a caixa de tintas a óleo dos tempos da sua empresa com Charles Reeves, cobriu as paredes de signos do Zodíaco e palavras em alfabeto cirílico, que produziam grande impressão nos visitantes. Comprou uma mobília em segunda mão e com um passe de imaginação transformou-a em divãs orientais; em estantes alinhavam-se estatuetas de santos e magos, potes com as suas poções, velas e amuletos; do tecto pendiam molhos de ervas secas e tornava-se difícil transitar entre as mesas anãs onde guardava perfumadores com incenso de duvidosa qualidade comprado nas lojas dos paquistaneses. Esta fragrância adocicada lutava eternamente com a das plantas e poções medicinais, essências para o amor e círios para oração. Cobriu os candeeiros com xailes de franjas, estendeu no chão uma pele de zebra cheia de traça e perto da varanda reinava, bojudo, um grande Buda de gesso dourado. Naquela gruta conseguia cozinhar, viver e exercer o seu ofício, tudo num espaço mínimo que por artes da fantasia se acomodava às suas necessidades e caprichos. Concluída a decoração da casa começou a correr o boato de que havia mulheres capazes de desviar o curso das desgraças e ver no escuro da alma, ela era uma delas. Sentou-se logo à espera, mas não por muito tempo porque as pessoas já estavam ao corrente da cura da armazenista barbuda e assim os clientes apinharam-se para contratar os seus serviços.
Gregory visitava Olga frequentemente. No fim das aulas escapava-se, perseguido pelo varapau de Martinez, um rapaz um pouco mais velho que ainda estava no segundo ano, não tinha aprendido a ler e a quem o inglês não entrava no cérebro, mas que já tinha o corpo e a actividade de um rufia. Oliver aguardava a ladrar junto ao quiosque dos jornais numa trabalheira enorme para deter os inimigos e dar vantagens ao dono, para o seguir depois que nem uma flecha até ao seu destino final. Para despistar Martinez o menino costumava desviar-se de casa de Olga. As suas visitas à adivinha eram uma festa. Em certa ocasião deslizou para debaixo da cama sem que ela o visse e do seu esconderijo presenciou uma das suas extraordinárias consultas. O dono do bar Os Três Amigos, mulherengo e vaidoso, com bigodinho de actor de cinema e uma cinta elástica para segurar a barriga, apresentou-se à feiticeira, perturbado, em busca de alívio para um mal secreto. Ela recebeu-o envolta numa túnica de astróloga no quarto apenas iluminado por lâmpadas vermelhas e perfumado de incenso. O homem sentou-se em frente da mesa redonda onde ela atendia os seus clientes e contou, com preâmbulos titubeantes e pedindo a maior discrição, que sofria de um ardor constante na genitália.
- Vamos ver, mostre-me lá isso - ordenou Olga e procedeu a exa-miná-lo longamente com uma lanterna de bolso e uma lupa, enquanto Gregory mordia as mãos para não rebentar a rir, debaixo da cama.
- Tomei os remédios que me receitaram no hospital, mas nada. Há quatro meses que estou a morrer, minha senhora.
- Há doenças no corpo e doenças de alma - diagnosticou a maga voltando para o seu trono à cabeceira da mesa. - Esta é uma doença de alma, por isso não se cura com remédios normais. Por onde pecas, pagas.
- Ah?
- Você tem dado mau uso ao seu órgão, às vezes as faltas pagam- se com pestes e outras com comichões morais - explicou Olga, que estava a par de todos os mexericos do bairro, conhecia a má fama do cliente e na semana anterior tinha vendido pós para a fidelidade à desconsolada esposa do taberneiro. - Posso ajudá-lo, mas aviso-o de que cada consulta vai custar-lhe cinco dólares e que não vai ser muito agradável. À primeira vista posso calcular que precisará de cinco sessões pelo menos.
- Se com isso vou melhorar...
- Tem que pagar-me quinze dólares para começar. Assim ficamos com a certeza de que não se arrepende pelo caminho, olhe que uma vez começada a oração tem de chegar ao fim, caso contrário seca-se-lhe o membro e fica-lhe pendurado como uma ameixa seca, está a perceber-me?
- Como não, minha senhora, a senhora manda - concordou aterrorizado o galã.
- Deite tudo para baixo, pode ficar em camisa - ordenou ela antes de desaparecer por detrás do biombo para preparar os elementos necessários para a cura.
Pôs o homem de pé no meio do quarto, rodeou-o com um círculo de velas acesas, deitou-lhe uns pós brancos na cabeça, ao mesmo tempo que recitava uma lengalenga em língua desconhecida, em seguida untou a zona afectada com qualquer coisa que Gregory não pôde ver, mas que sem dúvida era muito eficaz, porque em poucos segundos o infeliz dava saltos de macaco e gritava a plenos pulmões.
- Não saia do círculo. - disse Olga enquanto esperava calmamente que lhe passasse as picadelas.
- Ai que porra, mãezinha! Isto é pior do que molho de piripiri... - gemeu o paciente quando recuperou a respiração.
- Se não dói, não cura - disse ela, conhecedora dos benefícios do castigo para tirar a culpa, lavar a consciência e aliviar as doenças nervosas. - Agora vou pôr-lhe uma coisa fresquinha - e pintou-o, às pinceladas, com tintura azul de mitilene, depois atou-o com uma ligadura e ordenou-lhe que regressasse uma semana depois sem tirar a ligadura por nenhum motivo e que pusesse tintura todas as manhãs.
- Mas como é que eu vou... bom, a senhora percebe-me, com este laço aqui...
- Terá de portar-se como um santo, nem mais. Isto aconteceu por andar que nem um beija-flor, porque não se contenta com a sua esposa? Essa pobre mulher já ganhou o céu, você não a merece - e com esta última recomendação de boa conduta mandou-o embora.
Gregory apostou um dólar com Juan José e com Cármen Morales em como o dono do bar tinha um pirilau azul decorado com uma fita de aniversário. Os rapazes passaram uma manhã no telhado de Os Três Amigos espiando o banho por um buraco até comprovarem com os seus próprios olhos o fenómeno. Pouco depois, todo o bairro sabia a história e desde então o taberneiro teve de aguentar a alcunha de Pila-de-Lírio, que havia de o acompanhar até à tumba.
Como Olga nem sempre lhe abria a porta porque acontecia estar ocupada com algum cliente, Gregory sentava-se na escada a fazer o inventário dos novos adornos da fachada, maravilhado com o talento da mulher em renovar-se todos os dias. Algumas vezes ela espreitava, apenas coberta por uma bata, com o cabelo revolto como um emaranhado de algas vermelhas, e dava-lhe bolachas ou uma moeda, hoje não posso ver-te Gregory, tenho trabalho, nem amanhã, dizia-lhe com um beijo rápido na face. O miúdo partia frustrado, mas compreendia que ela tinha deveres inadiáveis. Os clientes eram de muitos tipos: desesperados à procura de melhorar a sorte, mulheres prenhas dispostas a utilizar qualquer recurso para derrotar a natureza, doentes desiludidos da medicina tradicional, amantes despeitados e ansiosos de vingança, solitários atormentados pelo silêncio e gente vulgar que apenas queria uma mensagem, um fetiche, uma leitura da palma da mão ou chá de flores orientais para a dor de cabeça. Para cada um Olga dispunha de uma dose de magia e ilusão, sem se deter a considerar a legitimidade dos seus métodos, porque naquele bairro ninguém entendia nem dava importância às leis dos gringos.
A adivinha não teve filhos próprios e adoptou no seu coração os de harles Reeves. Não se ofendeu com os desaires de Judy, porque sabia que mal a menina necessitasse dela estaria de novo a seu lado, e agradeceu em silêncio a fidelidade de Gregory, a quem recompensava com mimos e presentes. Por ele sabia da vida dos Reeves. Muitas vezes o miúdo perguntou-lhe por que não visitava a casa, mas só obteve respostas vagas. Numa daquelas ocasiões em que a adivinha não pôde recebê-lo, julgou ouvir a voz do pai através da porta e o coração quase lhe rebentou no peito: viu-se de pé à beira de um abismo sem fundo, quase a destapar uma caixa de horrores. Disparou a correr, sem querer averiguar o que temia, mas a sua curiosidade pôde mais e a meio do caminho voltou para se esconder na rua à espera que saísse o cliente de Olga. Caiu a noite sem que a porta se abrisse e por fim regressou a casa. Ao chegar encontrou Charles Reeves lendo o jornal no seu cadeirão de vime.
Quanto viveu meu pai na realidade? Quando começou a morrer? Nos últimos meses já não era ele, o seu corpo tinha mudado tanto que era difícil reconhecê-lo, o seu espírito também já não estava ali. Um sopro maléfico animava aquele velho que continuava a chamar-se Charles Reeves, mas que não era meu pai. Por isso não tenho más recordações. Judy, por seu lado, está cheia de ódio. Já temos falado disto e não coincidimos nos factos nem nas personagens, como se cada um fosse protagonista de um conto diferente. Vivíamos juntos na mesma casa ao mesmo tempo, no entanto a sua memória não registou o mesmo que a minha. A minha irmã não compreende por que razão continuo agarrado à imagem de um pai sábio e a uma época ditosa acampando ao ar livre debaixo da cúpula profunda de um céu cheio de estrelas ou a caçar patos agachado entre juncos ao amanhecer. Jura que as coisas nunca foram assim, que sempre houve violência na nossa família, que Charles Reeves foi um charlatão de pouca monta, um vendedor de mentiras, um degenerado que morreu de puro vício e que não nos deixou nada de bom. Acusa-me de ter bloqueado o passado, diz-me que prefiro ignorar os seus vícios, deve ser verdade porque não sabia que foi alcoólico e cheio de maldade, como ela pretende. Não te recordas como ele te açoitava por qualquer coisa, com um cinturão de couro?, repete-me Judy. Sim, mas não lhe guardo rancor por isso, naqueles tempos batiam a todos os rapazes, fazia parte da educação. Tratava melhor Judy, não era costume bater tanto nas meninas, parece. Além disso eu era muito irrequieto e teimoso; minha mãe nunca pôde dobrar-me, por isso tentou desfazer-se de mim mais de uma vez. Pouco antes de morrer, num desses raros encontros em que pudemos falar sem nos ferirmos, assegurou-me que não o fez por falta de carinho, sempre me quis muito, disse ela, mas não podia sustentar dois meninos e naturalmente preferiu ficar com a minha irmã, que era mais dócil, ao contrário de mim que não era capaz de me controlar. às vezes sonho com o pátio do orfanato. Judy era muito melhor que eu, disso não há dúvida, uma miúda mansa e simpática, estava sempre disposta a obedecer e tinha aquela coqueteria natural das meninas bonitas. Foi assim até aos treze ou catorze anos, depois transformou-se.
Primeiro foi o cheiro a amêndoas. Voltou disfarçadamente, quase imperceptível a princípio, uma brisa ténue que passava sem deixar rastos, tão leve que se me tornava impossível determinar se o tinha sentido na realidade ou se era só a recordação da visita ao hospital quando operaram meu pai. Depois foi o ruído. A mudança mais notável foi esse ruído. Antes, nos tempos das viagens no camião, o silêncio fazia parte da vida, cada som tinha o seu espaço próprio. Na estrada só se escutava o motor do veículo e às vezes a voz da minha mãe a ler; ao acampar ouvíamos o crepitar da lenha na fogueira, o colherão na panela, as lições escolares, diálogos breves, o riso da minha mãe a brincar com Olga, o ladrar de Oliver. De noite o silêncio era tão posado que o piar de uma coruja ou o uivar de um coiote parecia coisa assombrada. Na opinião de meu pai, tal como cada coisa tem o seu lugar, cada som têm o seu momento. Indignava-se quando alguém o interrompia na conversa; nos seus sermões tinha que se reter o ar, porque até uma tosse involuntária provocava o seu olhar de gelo. No fim tudo se desordenou na mente de Charles Reeves. Nas suas peregrinações astrais deve ter encontrado não só aquele hangar cheio de artefactos inutilizados e inventos de demente, mas também quartos atafulhados de cheiros, sabores, gestos e palavras sem sentido, outros cheiros a rebentar de intenções disparatadas e um onde os ruídos da ruína ecoavam como o repicar de uma monstruosa sineta de ferro. Não me refiro aos sons do bairro: o tráfego na rua, os gritos das pessoas, as máquinas dos operários a construir o posto de gasolina, mas sim a essa confusão que marcou os seus últimos meses. A rádio, que antes só se ligava para escutar notícias da guerra e música clássica, atroava agora dia e noite com toda a espécie de mensagens inúteis, jogos de futebol e canções vulgares. Por cima de todo esse estrépito o meu pai reclamava aos gritos por insignificâncias, dava ordens contraditórias, chamava-nos constantemente, lia em voz alta os seus próprios sermões ou passagens da Bíblia, tossia, cuspia sem parar e assoava o nariz com uma barulheira injustificada, martelava pregos nas paredes e brincava com as suas ferramentas como se estivesse a arranjar algum defeito, mas na realidade esses frenéticos afazeres não tinham um fim preciso. Até a dormir era ruidoso. Aquele homem antes tão puro nos seus modos e nos seus hábitos, adormecia logo à mesa, com a boca cheia de comida, sacudido por um ressonar profundo, ofegando e murmurando, perdido no labirinto sabe-se lá de que luxuriosos desvarios. Basta, Charles, despertava-o minha mãe irritada quando o surpreendia a mexer no sexo em sonhos; é a febre, meninos, acrescentava para nos tranquilizar. Meu pai delirava, não havia dúvida, a febre atacava-o sem nenhum perigo em qualquer momento do dia, mas durante a noite não tinha descanso, acordava ensopado de transpiração. Minha mãe lavava os lençóis todas as manhãs, não só por causa do suor da agonia, mas também pelas manchas de sangue e pus dos furúnculos. Nas suas pernas cresciam abcessos purulentos, que ele tratava com arnica e compressas de água quente. Desde que começou a sua doença minha mãe não dormiu mais na sua cama, passava a noite recostada num cadeirão coberta por um xaile.
Até ao fim, quando o meu pobre pai já não podia levantar-se, Judy recusava-se a entrar no quarto, não queria vê-lo, e nenhuma ameaça ou recompensa conseguiam aproximá-la do enfermo, então eu pude aproxi-mar-me pouco a pouco, primeiro a observá-lo da ombreira da porta e depois sentando-me na beira da cama. Ele estava extenuado, a pele esverdeada colada aos ossos, os olhos afundados nas órbitas, só o rumor asmático da sua respiração indicava que ainda vivia. Tocava na sua mão, ele abria as pálpebras e o seu olhar não me reconhecia. Por momentos a febre baixava-lhe e parecia ressuscitar de uma longa morte, bebia um pouco de chá, pedia que ligassem a rádio, levantava-se e dava alguns passos vacilantes. Uma manhã saiu meio nu para o pátio para ver o salgueiro e mostrou-me os ramos novos, está a crescer, vai viver para me chorar, disse ele.
Nesse dia, ao regressar da escola, Judy e eu vimos de longe a ambulância na ruela da nossa casa. Corri, mas a minha irmã sentou-se no passeio, abraçada ao saco dos livros. Já se tinham juntado alguns curiosos no pátio, Inmaculada Morales estava à porta a auxiliar os enfermeiros a passar uma maca através do umbral demasiado estreito. Entrei em casa, agarrei-me ao vestido de minha mãe, mas ela afastou-me rudemente, como se tivesse náuseas. Nesse momento senti uma baforada intensa de cheiro a amêndoas, e um ancião esquálido apareceu de pé, muito erguido, à porta do quarto. Tinha só uma camiseta, ia descalço com o pouco cabelo que lhe restava na cabeça todo revolto, os olhos flamejantes pela loucura da febre, e um fio de saliva a escorrer-lhe dos cantos da boca. Com a mão esquerda apoiava-se na parede e com a direita masturbava-se.
- Basta, Charles, deixa isso! - ordenou-lhe minha mãe. - Basta, por favor, basta! - suplicou ocultando a cara entre as mãos.
Inmaculada Morales abraçou minha mãe enquanto os enfermeiros agarravam o meu pai, o tiravam da porta e o deitavam na maca, tapado com um lençol e atado com correias. Atirava maldições e terríveis palavrões, uma linguagem que até então eu nunca tinha ouvido. Acompanhei-o na ambulância, mas minha mãe não me deixou ir com eles, o veículo afastou-se apitando por entre uma nuvem de pó. Inmaculada Morales fechou a porta da casa, pegou-me na mão, chamou Oliver com um assobio e começou a andar. Pelo caminho encontramos Judy, que continuava imóvel no mesmo sítio, sorrindo de maneira estranha.
- Vamos, meninos, comprei para vocês algodões de açúcar - disse Inmaculada Morales, aguentando as lágrimas.
Foi essa a última vez que vi meu pai com vida, horas depois morreu no hospital, derrotado por imparáveis hemorragias internas. Nessa noite dormi com Judy em casa dos amigos mexicanos. Pedro Morales esteve ausente, acompanhava minha mãe nos tramites da morte. Antes de nos sentarmos para jantar, Inmaculada chamou-nos à parte, à minha irmã e a mim, e explicou-nos o melhor que pôde que já não nos devíamos preocupar, o Corpo Físico do nosso pai tinha deixado de sofrer e o seu Corpo Mental tinha voado para o plano astral, onde certamente se tinha reunido com os Logi e os Mestres Funcionários, aos quais pertencia.
- Quer dizer, foi para o céu com os anjos - acrescentou suavemente muito mais à vontade com o termo da sua fé católica do que com os do Plano Infinito.
Judy e eu ficámos com os meninos Morales, que dormiam dois ou três em cada cama, todos no mesmo quarto. Inmaculada deixou entrar Oliver, estava mal acostumado e se ficava fora armava uma barulheira de latidos. Eu começava a cabecear, esgotado por emoções contradi-tórias, quando ouvi no escuro a voz de Cármen sussurrando que se lhe tinha feito um vazio por dentro e senti o seu corpo pequeno e morno deslizar a meu lado. Abre a boca e fecha os olhos, disse-me ela, e senti que me punha um dedo nos lábios, um dedo untado com algo viscoso e doce, que chupei como um caramelo. Era leite condensado. Levantei-me um pouco e meti também o dedo na lata para lhe dar a ela. Assim estivemos a lamber-nos e a chupar-nos, enjoados de açúcar, com a cara e as mãos pegajosas, eu abraçado a ela, com Oliver aos pés, acompanhado pela respiração e pelo calor dos outros meninos e pelo ronco da avó taralhouca atada com uma grande corda à cintura de Inmaculada Morales, no quarto contíguo.
A morte do pai abalou a família, em pouco tempo perdeu-se o rumo e cada um teve que navegar sozinho. Para Nora a viuvez foi uma traição, considerou-se abandonada num meio bárbaro, com dois filhos e sem recursos, mas ao mesmo tempo sentiu um inconfessável alívio, porque nos últimos tempos o companheiro não era o mesmo homem que tinha amado e a convivência com ele tinha-se tornado um martírio. No entanto, pouco depois do funeral, começou a esquecer a sua decrepi-tude final e a acariciar recordações anteriores, imaginava que estavam unidos por um fio invisível, como aquele do qual pendurava a laranja do Plano Infinito; essa imagem devolveu-lhe a segurança de antigamente, quando o marido reinava sobre o destino da família com a sua firmeza de Mestre. Nora rendeu-se à languidez do seu temperamento, acentuou-se a letargia iniciada pelo horror da guerra, um estrago da vontade que cresceu às escondidas e se manifestou em toda a sua magnitude ao enviuvar. Nunca falava do defunto no passado, aludia à sua ausência em termos vagos, como se tivesse partido para uma prolongada viagem astral, e mais tarde, quando começou a comunicar com os seus sonhos, referia-se ao assunto com o tom de quem comenta uma conversa telefónica. Os filhos, envergonhados, não queriam ouvir falar desses delírios, receando que a levassem à loucura. Ficou sozinha. Era estrangeira naquele meio, só arranhava um pouco espanhol e achava-se muito diferente das outras mulheres. A amizade com Olga tinha acabado, com os seus filhos mal se relacionava, não criou intimidade com Inmaculada Morales ou com alguma outra pessoa no bairro, era amável, mas as pessoas evitavam-na porque parecia estranha, ninguém queria ouvir os seus desvarios de óperas ou falar do Plano Infinito. o costume da dependência estava tão arreigado nela que ao perder Charles Reeves ficou como que atordoada. Fez algumas tentativas para ganhar o sustento com a dactilografia e a costura, mas nada conseguiu, porque ninguém necessitava desses serviços no bairro e a perspectiva de se aventurar no centro da cidade para procurar trabalho aterro-rizava-a. Não se inquietou demasiado para manter os filhos porque não os considerava completamente seus, tinha a teoria de que as crianças pertencem à espécie em geral e a ninguém em particular. Sentou-se à porta a olhar o salgueiro, imóvel durante horas, com uma expressão ausente e amável no seu formoso rosto eslavo, que já começava a ficar sem cores. Nos anos seguintes desapareceram-lhe as sardas, as suas feições perderam o desenho e toda ela pareceu apagar-se um pouco. Na velhice chegou a ser tão ténue que era difícil recordá-la e como ninguém teve a ideia de tirar fotografias, depois da sua morte Gregory chegou a recear que talvez a mãe nunca tivesse existido. Pedro Morales tentou convencer Nora de que se ocupasse com qualquer coisa, recortou anúncios de diversos empregos e acompanhou-a nas primeiras entre-vistas, até que se convenceu das suas incapacidades para enfrentar os problemas reais. Três meses mais tarde, quando a situação se tornou insustentável, levou-a aos escritórios da Beneficência Social para lhe conseguir ajuda como indigente, dando graças por Charles Reeves não estar vivo para presenciar tal humilhação. O cheque da caridade pública, suficiente apenas para cobrir os gastos mínimos, foi a única receita segura da família durante muitos anos, o resto vinha do trabalho dos filhos, das notas que Olga mandava pôr na carteira de Nora e também da ajuda discreta dos Morales. Surgiu um comprador para a jibóia e o animal acabou exposto ao olhar dos curiosos num teatro de má reputação, junto das coristas de roupas reduzidas, um ventríloquo obsceno e diversos números artísticos de pouca monta que divertiam os espectadores embrutecidos. Ali sobreviveu alguns anos, alimentada com ratos e esquilos vivos e com desperdícios que atiravam para a jaula só para a verem abrir as fauces de animal aborrecido, cresceu e engordou até adquirir aspecto terrífico, ainda que não se alterasse a mansidão do seu carácter.
Os putos Reeves sobreviveram sozinhos, cada um no seu estilo. Judy empregou-se numa padaria onde trabalhava quatro horas diárias depois da escola e de noite saía para cuidar de meninos ou limpar escritórios. Era muito boa estudante, aprendeu a imitar qualquer tipo de caligrafia e por uma soma razoável fazia trabalhos de outros alunos. Manteve esse negócio clandestino sem ser surpreendida, enquanto continuava a portar-se como uma rapariga exemplar, sempre sorridente e dócil, sem jamais revelar os demónios da sua alma, até que os primeiros sintomas da puberdade lhe transtornaram o carácter. Quando lhe brotaram duas firmes cerejas nos seios, a cintura se lhe marcou e as suas feições de bebé se lhe afinaram, tudo mudou para ela. Naquele bairro, de gente morena e bem mais baixa, a sua cor de ouro e as suas proporções de Valquíria chamavam de tal maneira a atenção que lhe era impossível passar despercebida. Sempre tinha sido bonita, mas quando passou a parte da infância e os homens de todas as idades e condições começaram a assediá-la, aquela menina doce transformou-se num animal raivoso. Sentia os olhares do desejo como uma violação, chegava a casa muitas vezes a gritar maldições, atirando com as portas, às vezes a chorar de impotência porque na rua lhe assobiavam ou lhe faziam gestos descarados. Desenvolveu uma linguagem de carroceiro para responder aos piropos e se alguém tentava tocar nela defendia-se com um grande alfinete de chapéu que levava sempre à mão como uma adaga e que não tinha o menor escrúpulo de cravar no seu admirador, na parte mais vulnerável. Na escola arremetia contra os rapazes por causa dos seus olhares maliciosos e contra as companheiras por ranco-res de raça e pelos ciúmes que inevitavelmente provocava. Gregory viu por várias vezes a irmã nessas estranhas rixas de raparigas, rebolando-se, arranhando-se, puxando os cabelos, insultando-se, tão diferentes das lutas dos homens, em geral breves, silenciosas e contundentes. As mulheres procuravam humilhar a inimiga, os homens pareciam dispos-tos a matá-lo ou a morrer. Judy não precisava de ajuda para se defen-der, com a prática fez-se uma verdadeira lutadora. Enquanto outras jovens da sua idade ensaiavam as primeiras maquilhagens, praticavam beijos franceses e contavam o tempo que lhes faltava para porem saltos altos, ela cortava o cabelo como um presidiário, vestia-se com roupa de homem e devorava com ânsia as sobras de massa e de doce da padaria. A cara encheu-se-lhe de borbulhas e quando entrou na escola secun-dária tinha aumentado tanto de peso que nada havia da delicada boneca de porcelana que fora na infância, parecia um leão-marinho, como ela própria dizia, procurando denegrir-se.
Aos sete anos Gregory foi para a rua. Não estava unido à mãe por sentimentalismo, mas apenas por algumas tarefas compartilhadas e por uma tradição de honra tirada de contos edificantes sobre filhos abnegados que recebem recompensa e de ingratos que vão parar ao forno de uma bruxa. Tinha pena, estava certo de que, sem Judy e ele, Nora morreria de inanição sentada no cadeirão de vime contemplando o vazio. Nenhum dos dois meninos considerava a indolência da mãe como um vício, mas apenas uma doença do espírito, talvez o seu Corpo Mental tivesse partido em busca do pai e se tivesse perdido no labirinto de algum plano cósmico, ou tivesse ficado para trás num desses vastos espaços repletos de máquinas extravagantes e almas perdidas. A intimidade com Judy tinha desaparecido, e quando Gregory se cansou de procurar caminhos de encontro com ela, substituiu a irmã por Cármen Morales, com quem partilhava o carinho brusco, as lutas e a lealdade de bons compinchas. Era travesso e inquieto, na escola portava-se pessimamente e metade do tempo passava a cumprir castigos diversos, desde ficar parado com orelhas de burro de cara para o canto da sala, até suportar as palmadas no traseiro dadas pelo director. Em casa actuava como pensionista, chegava a adormecer o mais tarde possível, preferia ir para casa dos Morales ou visitar Olga. O resto da sua vida decorria na selva do bairro, que chegou a conhecer até aos seus últimos segredos. Chamavam-lhe o gringo e, apesar dos rancores da raça, muitos gostavam dele porque era alegre e prestável. Contava com vários amigos: o cozinheiro da tasca, que tinha sempre algum prato saboroso para lhe oferecer, a dona do armazém onde lia revistas de historietas sem pagar, o arrumador do cinema, que de vez em quando o introduzia pela porta traseira e o deixava ver o filme. Até Pila-de-Lírio, que nunca suspeitou da sua intervenção na alcunha, costumava oferecer-lhe uma gasosa de vez em quando no bar Os Três Amigos. Fazendo por aprender espanhol perdeu boa parte do inglês e acabou falando mal os dois idiomas. Durante algum tempo andou gago, e a directora chamou Nora Reeves para lhe recomendar que pusesse o filho na escola para atrasados das freiras do bairro, mas interveio a sua professora Miss June, que se comprometeu a ajudá-lo nos trabalhos. Os estudos interessavam-lhe pouco, o seu mundo eram as ruas, ali aprendia muito mais. O bairro era uma cidadela dentro da cidade, um ghetto tosco e pobre, nascido por impulso espontâneo à volta da zona industrial, onde os imigrantes ilegais se podiam empregar sem que ninguém lhes fizesse perguntas. O ar estava infectado pelo cheiro da fábrica de pneus, nos dias da semana havia mais o fumo do tráfego e das cozinhas e formava-se uma nuvem espessa que flutuava sobre as casas como um manto visível. às sextas e sábados tornava-se perigoso aventurar-se ao fim da tarde, quando abundavam os bêbados e os drogados prontos a fazer estalar batalhas mortais. De noite ouviam-se discussões de casais, gritos de mulheres, choros de meninos, rixas de homens, às vezes tiros e sirenas da polícia. De dia as ruas ferviam de actividade, enquanto às esquinas se juntavam homens sem trabalho, ociosos, bebendo, molestando as mulheres, jogando dados, à espera que as horas passassem com um fatalismo de cinco séculos às costas. As lojas exibiam os mesmos produtos baratos de qualquer aldeia mexica-na, os restaurantes serviam pratos típicos e nos bares tequilha e cerveja, no salão de baile tocava-se música latina e nas celebrações não faltavam as bandas de mariachis com os seus enormes chapéus e rajes de luces cantando a honra e o despeito. Gregory, que os conhecia a todos e não perdia nenhuma festa, entrava na comitiva dos músicos como a mascote do grupo, acompanhava-os no canto e gritava o inevitável aiaiai das rancheras como um especialista, provocando entusiasmo no público que nunca tinha visto um gringo com tais aptidões. Saudava meio-mundo pelo seu nome e graças à expressão de anjinho ganhou a confiança de muita gente. Sentia-se melhor que em sua casa no labirinto das ruelas e passagens, nos lugares baldios e nos edifícios abandonados, onde brincava com os irmãos Morales e meia dúzia de outros meninos da sua idade, evitando sempre o encontro com as pandilhas maiores. Tal como acontecia com os jovens negros, orientais ou brancos pobres noutros pontos da cidade, para os hispanos o bairro era mais importante do que a família, era o seu território inviolável. Cada bando identificava-se pela sua linguagem de sinais, pelas suas cores, pelos seus graffiti nas paredes. De longe todos pareciam iguais, rapazes esfarrapados, incapazes de articular um pensamento; de perto eram diferentes, cada um com os seus rituais e a sua intrincada linguagem de gestos. Para Gregory a aprendizagem dos códigos foi assunto de primeira necessidade, podia distinguir os membros dos diferentes bandos pelo tipo de jaquetas ou de gorras, pelos sinais das mãos com os quais enviavam mensagens ou se provocavam para guerrear, bastava-lhe ver a cor de uma letra solitária na parede para saber quem a tinha traçado e o que significava. O graffiti marcava os limites e qualquer um que se aventurasse em zona alheia por ignorância ou por atrevimento pagava-o bem caro, por isso tinha de dar grandes voltas em cada uma das suas saídas. O único bando de rapazes da escola primária era o de Martinez, que se treinava para pertencer um dia aos Carniceiros, a mais temível pandilha do bairro. Os seus membros identificavam-se pela cor arroxeada e a letra C, a sua bebida era tequilha com refresco de uva, pela cor, e como saudação a mão direita tapando a boca e o nariz. Na guerra eterna contra outros grupos e com a polícia, tinha como único propósito dar um sentido de identidade aos jovens, a maioria dos quais tinha abandonado a escola, carecia de trabalho e vivia na rua ou em cama-ratas. Os membros da pandilha estavam registados por múltiplas entradas na prisão por ladroeira, tráfico de marijuana, bebedeiras, assaltos e roubos de carros. Alguns andavam armados com pistolas artesanais fabricadas com um pedaço de tubo, coronha de madeira e um detonador, mas em geral usavam facas, correntes, navalhas e garrotes, o que não impedia que em cada batalha de rua a ambulância levasse dois ou três em estado grave. Os bandos representavam a maior ameaça para Gregory, nunca poderia incorporar-se em nenhum, aquilo também era uma questão de raça, e enfrentá-los constituía uma acto de loucura. Não se tratava de adquirir fama de valente, mas de sobreviver, também não podia passar por cobarde, porque irritar-se-iam com ele. Bastaram algumas pauladas para lhe fazer compreender que os heróis solitários só triunfam nas fitas de cinema, que tinha de aprender a negociar com astúcia, não dar nas vistas, conhecer o inimigo para tirar vantagem das suas fraquezas e evitar lutas, porque, tal como dizia o pragmático padre Larraguibel, Deus ajuda os bons quando são mais que os maus.
A casa dos Morales transformou-se no verdadeiro lar para Gregory, onde chegava na qualidade de filho em qualquer momento. Na confusão dos rapazes era mais um e a própria Inmaculada perguntava distraída como lhe tinha saído um menino louro. Naquela tribo ninguém se queixava de solidão ou de aborrecimento, tudo se partilhava, desde as angústias existenciais até ao único banho, o transcendente discutia-se aos gritos, mas os assuntos importantes mantinham-se em estrito segredo familiar de acordo com um código de honra milenar. A autoridade do pai não se punha em causa, eu é que visto calças, rugia Pedro Morales todas as vezes que alguém lhe mexia o tapete debaixo dos pés, mas no fundo Inmaculada era o verdadeiro chefe da família. Ninguém se dirigia directamente ao pai, preferiam passar pela burocracia materna. Ela não contradizia o marido em frente de testemunhas, mas tudo fazia para se sair com a sua. A primeira vez que o filho mais velho apareceu vestido de pachuco, Pedro Morales deu-lhe uma carga de cinturada e pô-lo fora de casa. O rapaz estava farto de trabalhar o dobro de qualquer americano por metade do salário e vadiava grande parte do dia com os seus compinchas por casas de jogo e bares de má fama, sem mais dinheiro nos bolsos que o ganho em apostas e o que a sua mãe lhe passava às escondidas. Para evitar discussões com a mulher, Pedro Morales fez vista grossa enquanto pôde, mas quando o filho se apresentou à sua frente enfeitado como um rufião e com uma lágrima tatuada numa das faces, deu-lhe um arraial de pancada. Nessa noite, quando os outros estavam já na cama, ouviu-se durante horas o murmúrio da voz de Inmaculada tentando abrandar a resistência do marido. No dia seguinte Pedro saiu para procurar o filho, encontrou-o parado numa esquina dizendo piropos às mulheres que passavam, agarrou-o pelo pescoço e levou-o para a garagem, tirou-lhe aos puxões o seu ostensivo pachuco, vestiu-lhe umas calças sujas de óleo e obrigou-o a trabalhar de sol a sol durante vários anos, até fazer dele o melhor mecânico dos arredores e deixá-lo instalado por sua conta com oficina própria. Quando Pedro Morales cumpriu meio século, com o filho casado, três meninos e uma casa própria nos subúrbios, fez tirar a lágrima da cara como presente de aniversário para o pai, a cicatriz foi a única recordação que ficou da sua época de rebeldia. Inmaculada passava a vida atendendo como uma escrava os homens da família, em menina teve que o fazer com o pai e os irmãos e mais tarde fê-lo com o marido e os filhos. Levantava-se ao nascer do sol para cozinhar um pequeno-almoço contundente para Pedro, que tinha que abrir a oficina muito cedo, nunca serviu à sua mesa tortilhas feitas por outra pessoa, a sua dignidade ter-se-ia desacreditado. O resto do dia passava-o em mil tarefas ingratas, incluindo a preparação de três refeições completas e diferentes; convencida de que os homens neces-sitam de se alimentar com pratos enormes e sempre variados. Nunca se lembrou de pedir ajuda aos filhos, quatro bem fornecidos homen-zarrões, para raspar os soalhos, sacudir os colchões ou lavar a rude roupa da oficina, endurecida de óleo de motor, que esfregava à mão. As duas meninas, pelo contrário, exigia-lhes que servissem os varões, porque considerava isso sua obrigação. Deus quis que nascêssemos mulheres, sorte malvada, estamos destinadas ao trabalho e à dor, dizia em tom pragmático, sem ponta de autocompaixão.
Já nesses anos Cármen Morales era um bálsamo para as asperezas da existência de Gregory Reeves e uma luz nos seus momentos de atordoamento, tal como o seria sempre no futuro. A menina parecia uma doninha inquieta, infatigável e hábil, com um tremendo sentido prático que lhe permitia evadir as severas tradições familiares sem enfrentar o pai, que tinha ideias muito claras sobre a posição das mulheres: caladas e em casa, e não vacilava em dar uma surra a qualquer sublevado incluindo as suas duas filhas. Cármen era a sua preferida, mas não ambicionava para ela um destino diferente do das meninas submissas da sua aldeia em Zacatecas, pelo contrário, trabalhava sem respirar para educar os seus quatro filhos varões, em quem tinha posto esperanças desproporcionadas, desejava vê-los elevados muito acima dos seus humildes avós e de si mesmo. Com uma tenacidade inesgotável, à força de sermões, castigos e bom exemplo, manteve a família unida e conseguiu salvar os rapazes do álcool e da delinquência, obrigá-los a terminar o secundário e encaminhá-los em diversos ofícios. Com excepção de Juan José, que morreu no Vietname, todos tiveram certo êxito. No fim dos seus dias, Pedro Morales, rodeado de netos que não falavam uma palavra de castelhano, felicitava-se pela sua descendência, orgulhoso de ser o tronco dessa tribo, ainda que gracejasse dizendo que nenhum tivesse chegado a milionário ou se tivesse tornado famoso. Cármen esteve quase a consegui-lo, mas a ela nunca ele reconheceu mérito em público, isso teria sido uma capitu-lação dos seus princípios de macho. Mandou as duas meninas à escola porque era obrigatório e não se podia deixá-las metidas na ignorância, não esperava que tomassem os estudos a sério, mas que aprendessem ofícios domésticos, ajudassem a mãe e guardassem a virgindade até ao dia do casamento, única meta para uma jovem decente.
- Eu não penso casar-me, quero trabalhar num circo com feras amestradas e um trapézio bem alto para balançar a cabeça e mostrar as cuecas a toda a gente - sussurrava secretamente Cármen a Gregory.
- As minhas filhas serão boas mães e esposas ou então vão para o convento - dizia Pedro Morales todas as vezes que alguém vinha com a história de uma rapariga solteira que ficara grávida antes de acabar o secundário.
- Que encontrem um bom marido, Santo António bendito! - gritava Inmaculada Morales, pondo a imagem do santo de pernas para o ar para o obrigar a escutar as suas modestas súplicas. Para ela era evidente que nenhuma das suas filhas tinha vocação para freira e não queria imaginar a tragédia de as ver comportar-se como essas perdidas que andavam na rabaldaria sem se casar e deixavam um desperdício de preservativos no cemitério.
Mas tudo isso foi muito depois. Nos tempos da escola primária, quando Cármen e Gregory selaram o seu pacto de irmãos, ainda não se punham essas questões e ninguém esgrimiu argumentos de virtude para impedir que brincassem sem vigilância.
Tanto se acostumaram a vê-los juntos que depois, quando os amigos estavam em plena puberdade, os Morales confiavam em Gregory mais do que nos seus próprios filhos para acompanhar Cármen. Quando a rapariga pedia para ir a uma festa a primeira pergunta era se ele ia também, caso em que os pais se sentiam seguros. Acolheram-no sem reservas desde o primeiro dia e nos anos futuros fizeram ouvidos de mercador aos murmúrios inevitáveis das vizinhas, convencidos, contra toda a lógica e experiência, da pureza de sentimentos dos rapazes. Treze anos mais tarde, quando Gregory deixou para sempre aquela cidade, a única nostalgia que nunca o abandonou foi a do lar dos Morales.
Na caixa de graxa de Gregory, havia pomada negra, castanha, amarela e vermelha-escura, mas faltavam cera neutra para o couro cinzento ou azul também em moda, e tinta para tapar as esfoladelas. Tinha intenção de juntar dinheiro para completar os materiais de trabalho, mas faltava-lhe a determinação mal aparecia um novo filme. O cinema era a sua paixão secreta, no escuro ele era mais um no montão dos miúdos ruidosos, não perdia sessão da sala do bairro, onde passavam fitas mexicanas, e ao sábado ia com Juan José e Cármen ao centro da cidade ver as séries americanas. O espectáculo terminava com o protagonista atado de pés e mãos num barracão cheio de dinamite ao qual o vilão tinha acendido um rastilho, no momento culminante o ecrã ficava negro e uma voz convidava a ver a continuação no próximo sábado. às vezes Gregory sentia-se tão infeliz que desejava morrer, mas adiava o suicídio até à semana seguinte, era impossível abandonar este mundo sem saber como diabo o seu herói escapava da armadilha. E salvava-se sempre, na verdade era assombroso que pudesse arrastar-se entre as chamas e sair ileso, com o chapéu largo na cabeça e a roupa limpa. O filme transportava Gregory a outra dimensão, por umas duas horas transformava-se no Zorro ou no Cavaleiro Solitário, cumpriam-se todos os seus sonhos, por arte de magia o bom recuperava-se da mazela e das feridas, soltava-se das amarras e dos cepos, triunfava sobre os seus inimigos pelos seus próprios méritos e ficava com a rapariga, os dois a beijarem-se em primeiro plano enquanto nas suas costas brilhava o sol ou a lua e uma orquestra de cordas e sopro fazia ouvir música languida. Não tinha que preocupar-se, o cinema não era como o seu bairro, nas fitas só havia surpresas agradáveis, o mau era sempre vencido pelo bom e pagava os seus crimes com a morte ou com a prisão. As vezes arrependia-se e depois de uma inevitável humilhação reconhecia os seus erros, afastava-se escoltado por uma música de fuga, em geral trombeta e timbales. Gregory sentia que a vida era formosa e a América a terra dos livres e o lar dos bravos, tudo era questão de manter o coração puro, amar a Deus e a sua mãe, ser eternamente fiel a uma só noiva, respeitar as leis, defender os desvalidos e desprezar o dinheiro, porque os heróis nunca esperam recompensa. As suas incertezas esfumavam-se nesse formidável universo a preto e branco. Saía do teatro reconciliado com a vida, cheio de amáveis intenções que lhe duravam um ou dois minutos, o impacte da rua devolvia-lhe o sentido da realidade.
Olga encarregou-se de o informar que os filmes se faziam em Hollywood, a pouca distância da sua própria casa, e que tudo era uma monumental mentira, a única coisa certa eram os bailes e cantos das comédias musicais, o resto eram truques da câmara, mas o miúdo não permitiu que essa revelação o perturbasse.
Trabalhava longe da sua casa, numa zona de escritórios e bares e pequenas casas comerciais. O seu raio de acção eram cinco quarteirões que percorria em ambas as direcções oferecendo os seus modestos serviços, de olhos no chão, observando os sapatos das pessoas, tão gastos e disformes como os dos seus vizinhos latinos. Ali também não usavam calçado novo, excepto alguns pandilheiros e traficantes com mocassinas de verniz, botas com brochas de prata ou calçado de duas cores, muito difíceis de puxar o lustro. Adivinhava a cara das pessoas pela maneira de caminhar e pelos sapatos: os hispanos usavam-nos vermelhos com tacão, os negros e os mulatos preferiam-nos amarelos pontiagudos, os chineses tinham pés pequenos, os brancos tinham-nos com pontas levantadas e tacões gastos. Engraxar era para ele fácil, o mais árduo era conseguir clientes dispostos a pagar dez cêntimos numa tarde, o equivalente a um cigarro de marijuana. As poucas vezes que fumou erva pensou que não valia a pena engraxar tantas horas para financiar aquela porcaria que lhe deixava o estômago às voltas e a cabeça ressoando como um tambor, mas em público fingia que isso o elevava ao céu, como asseguravam os outros, para não passar por tonto. Para os mexicanos, que a tinham visto crescer como matagal nos campos do seu país, era apenas pasto, mas para os gringos fumá-la era sinal de virilidade. Por imitação e para impressionar as loiras, os rapazes do bairro usavam-na à farta. Dado o seu escasso êxito com a marijuana e para armar, Gregory habituou-se a acender um cigarro colado nos lábios, copiando os vilões do cinema. Tinha tanta prática que podia conversar e mastigar pastilha elástica sem perder o cigarro. Quando necessitava fazer de macho em frente dos amigos sacava um cachimbo de fabrico caseiro e enchia-o de uma mistura da sua invenção: restos de cigarros apanhados na rua, alguma serradura e aspirina moída, que segundo o boato popular fazia voar tanto como qualquer droga conhecida. Aos sábados trabalhava todo o dia e em geral ganhava um pouco mais de um dólar, que entregava quase inteiro a sua mãe deixando só dez cêntimos para o cinema e às vezes outros cinco para a caixa dos missionários da China. Se juntava cinco dólares, o padre entregava-lhe um certificado de adopção de uma menina chinesa, mas o melhor era reunir dez, o que lhe dava o direito a um menino. Que o Senhor te abençoe, dizia o padre quando Gregory chegava com os seus cinco cêntimos para a caixa das esmolas, e numa ocasião Deus não só o benzeu como também o premiou com uma carteira com quinze dólares que pôs no cemitério para ele encontrar. Esse era o lugar preferido dos casais clandestinos ao anoitecer, ali se escondiam para se divertirem à vontade, espiados pelos putos do bairro que não perdiam o espectáculo tumultuoso daquelas agitações de amor. Ai, que medo, andam por aqui almas penadas, choramingavam as mulheres, confundindo os risos sufocados dos «mirones» com sussurros de almas, mas nem por isso deixavam que lhes levantassem os vestidos para rebolar por entre lápidas e cruzes. O nosso cemitério é o melhor da cidade, muito mais bonito que o dos milionários e actrizes de Hollywood, que só tem erva e árvores, parece um campo de golfe e não um campo santo, onde é que se viu que os defuntos não tenham nem uma estátua para os acompanhar, opinava Inmaculada Morales, ainda que na realidade só os ricos pudessem pagar os mausoléus e os anjos de pedra, os imigrantes, esses, apenas conseguiam pagar uma lápida com uma simples inscrição. Em Novembro, para a celebração do Dia de Finados, os mexicanos visitavam os parentes falecidos que não tinham podido trasladar para as suas aldeias, levando-lhes música, flores de papel e doces. Desde a madrugada ouviam-se as rancheras, as guitarras e os brindes, e ao anoitecer estavam todos grossos, incluindo as almas do purgatório daqueles que bebiam tequilha na terra. Os meninos Reeves iam ao campo, santo com Olga, que lhes comprava caveiras e esqueletos de açúcar para comer sobre a campa do pai. Nora ficava em casa, dizia que não gostava dessas festas pagas, bom pretexto para farra e vício, mas Gregory suspeitava que a verdadeira razão era o seu desejo de evitar o encontro com Olga. Ou talvez negasse que o marido estivesse enterrado, para ela Charles Reeves encontrava-se noutro lugar ocupado pelo Plano Infinito. A carteira com os quinze dólares estava escondida debaixo de uns arbustos. Gregory andava à procura de aranhas nos buracos, nessa altura ainda o atraíam mais as maravilhosas armadilhas para caçar insectos tecidas pelas aranhas e as suas bolsas com uma centena de minúsculas crias, do que as torpes sacudidelas e os incompreensíveis gemidos dos casais. Também apa-nhava umas bolas de borracha branca que por ali ficavam e que ao soprá-las tomavam a forma de grandes salsichas. Viu a carteira ao inclinar-se sobre um buraco e sentiu um estampido no coração e nas fontes, nunca tinha encontrado nada de valor e não soube se se tratava de uma dádiva celestial ou de uma tentação do diabo. Deitou um olhar à volta para se assegurar de que estava só, apanhou-a apressadamente e correu a esconder-se por detrás de um jazigo para revistar o seu tesouro. Abriu-a com as mãos a tremer e tirou três flamejantes notas de cinco dólares, mais dinheiro do que tinha visto em toda a sua vida. Pensou no padre Larraguibel, que lhe diria que o Senhor os colocara ali para o pôr à prova e comprovar se ficava com o achado ou o depositava na caixa das Missões para adoptar de uma só vez dois meninos. Não havia ninguém tão rico na escola que pudesse pagar por um chinês de cada sexo, isso faria dele uma celebridade; no entanto, decidiu que uma bicicleta era muito mais prático do que duas remotas crianças orientais que, de qualquer modo, jamais conheceria. Tinha deitado o olho à bicicleta havia meses, um vizinho de Olga tinha-lha oferecido por vinte dólares, um preço exorbitante, mas esperava que, mal visse as notas, se tentaria. Era uma máquina primitiva e em estado calamitoso, mas ainda em condições de rodar. Pertencia a um índio aviltado por uma vida de tráficos inconfessáveis, a quem Gregory temia porque com diversos pretextos levava-o a uma garagem onde tentava meter-lhe a mão dentro das calças, por isso pediu a Olga que o acompanhasse.
- Não mostres a massa, não abras a boca e deixa-me fazer o trabalho - disse-lhe ela. Regateou tão bem que por doze dólares e um amuleto contra o mau-olhado obteve a bicicleta. - Os três que sobraram dá-os à tua mãe, ouviste? - ordenou-lhe ao despedir-se.
Partiu pedalando entusiasmado pelo meio da rua e não viu um camião de refrigerantes que vinha em sentido contrário. Esbarrou nele de frente. O impacte não o esmigalhou por milagre, mas da bicicleta ficaram apenas uns pedaços de ferro torcido e os estilhaços das rodas. O motorista do camião desceu dizendo maldições, agarrou-o pela cabeça, pô-lo de pé, sacudiu-o como se fosse um espanador, e em seguida mandou-o embora com um dólar de consolação.
- Agradece por não te mandar prender por andares na rua de boca aberta, puto do caraças! - disse o homem mais assustado que a sua vítima.
- Nunca vi ninguém mais tonto do que tu, devias cobrar-lhe dois dólares pelo menos - censurou Judy ao saber.
- Isso aconteceu por seres desobediente, já te disse mil vezes que não te metas no cemitério, dinheiro mal ganho não tem bom fim - diagnosticou Nora Reeves enquanto lhe deitava uísque nas esfoladelas dos joelhos e dos cotovelos.
- Jesus seja louvado, pelo menos estás com vida - e Inmaculada Morales abraçou-o.
Conseguir dinheiro tornou-se uma obsessão para Gregory. Estava disposto a fazer qualquer trabalho, inclusivamente pilar os grãos de milho para fazer tortilhas, um enfadonho processo que lhe esfolava as mãos e cujo cheiro o deixava com náuseas por várias horas. De noite metia-se por um buraco da cerca da escola, trepava ao telhado do quiosque das guloseimas, levantava uma chapa de zinco e deslizava para dentro para roubar gelados, pegava em dois ou três e levava outro a Cármen. Estas excursões nocturnas produziam nele uma mescla de exaltação e culpa, as rígidas normas de honestidade impostas pela mãe martelavam-lhe a cabeça, sentia-se perverso, não tanto por a desafiar, mas porque a dona do quiosque era uma velha bonacheirona que o distinguia entre os demais meninos e estava sempre disposta a oferecer-lhe um doce. Uma noite a mulher voltou para procurar qualquer coisa, abriu a porta, acendeu a luz antes que ele conseguisse fugir e surpre-endeu-o com a evidência do delito na mão. Ficou paralisado, enquanto ela choramingava, como podes fazer-me isto, a mim que fui tão boa contigo! Gregory desatou a chorar, pedindo-lhe perdão e jurando pagar tudo o que lhe tinha roubado. Como? Então não é a primeira vez? E o outro teve de confessar que lhe devia mais de seis dólares em gelados. A partir desse dia só se aproximava para acabar com a sua dívida que pagou pouco a pouco. Embora a mulher lhe perdoasse, não voltou a sentir-se bem na sua presença. Foi menos afortunado na tenda das sobras do Exército, onde roubava despojos de guerra que não lhe serviam para nada. Na cave das ferramentas juntava os seus tesouros dentro de um saco: cantis, botões, bivaques e até um par de enormes botas que levou escondidas na sacola da escola, sem suspeitar que o dono da tenda o tinha debaixo de olho. Uma tarde surripiou uma lanterna, meteu-a debaixo da camisa e ia a passar a porta quando chegou o carro da polícia. Foi impossível escapar, levaram-no à esquadra e meteram-no numa cela, donde pôde ver a feroz pancadaria que descarregaram num rapaz moreno. Esperou a sua vez, aterrorizado, no entanto trataram-no bem, limitaram-se a registar os seus dedos, a dar-lhe uma repreensão e obrigá-lo a devolver o que escondia em sua casa. Foram buscar Nora Reeves, apesar de ele implorar que não o fizessem porque lhe partiriam o coração.
Ela apresentou-se com o seu vestido azul de gola de renda, como uma aparição saída de um retrato antigo, assinou o livro, ouviu os autos em silêncio e do mesmo modo saiu seguida pelo filho. Agradece por seres branco, Greg, se fosses da cor dos meus filhos ter-te-iam dado duro, disse-lhe Inmaculada Morales quando soube. Nora estava tão envergonhada que emudeceu por várias semanas e quando lhe falou foi para lhe dizer que se lavasse e vestisse o seu único fato, o do funeral do pai, que já lhe ficava bem apertado, porque iam a uma reunião importante. Levou-o ao orfanato das freiras para pedir à madre superiora que o aceitasse, porque se sentia incapaz de fazer andar para a frente aquele filho de má índole. De pé, atrás da mãe, com os olhos cravados nos sapatos, murmurando não vou chorar, não vou chorar, enquanto as lágrimas lhe caíam em caudais, Gregory jurou que se o deixassem ali treparia à torre da igreja e se atiraria de cabeça. Não foi necessário, porque as freiras o recusaram, havia demasiadas crianças órfãs a quem recolher e ele tinha família, vivia em casa própria e recebia ajuda da Beneficência Social, não tinha qualificações para o orfanato. Quatro dias depois a mãe pôs as suas coisas numa bolsa e levou-o de autocarro para fora da cidade, para casa de uns rancheiros dispostos a adoptá-lo. Despediu-se do filho com um beijo triste na testa, assegurando-lhe que lhe escreveria, e foi-se embora sem olhar para trás. Nessa noite Gregory sentou-se a jantar com a sua nova família, sem dizer palavra e sem levantar os olhos, pensando que ninguém daria de comer a Oliver, que nunca mais veria Cármen Morales e que tinha deixado o seu canivete na cave.
- O nosso único filho morreu há onze anos - disse o fazendeiro. - Nós somos gente de Deus, gente de trabalho. Aqui não terás tempo para te divertires, há a escola, a igreja e ajudar-me no campo, isso é tudo. Mas a comida é boa e se te portares bem receberás bom tratamento.
- Amanhã faço-te um pudim de leite - disse a mulher. - Deves estar cansado, com certeza queres deitar-te. Vou mostrar-te o quarto, era do nosso filho, não mudámos nada desde que ele partiu.
Pela primeira vez Gregory dispunha de um quarto seu e uma cama, até então tinha usado um saco de dormir. Era um quarto pequeno com uma janela aberta para o horizonte de campos cultivados, mobilado com o indispensável. Nas paredes viam-se fotografias de veteranos jogadores de beisebol e de antigos aviões de guerra, muito diferentes dos que apareciam nos modernos documentários de cinema. Passou revista sem atrever-se a tocar fosse no que fosse, lembrando-se do pai, da jibóia, dos colares para a invisibilidade de Olga e da cozinha de Inmaculada, de Cármen Morales e do enjoativo sabor do leite conden-sado, enquanto lhe crescia dentro do peito uma terrível bola de gelo. Sentado na cama, com a bolsa dos seus modestos haveres sobre os joelhos, esperou que a casa estivesse adormecida, saiu logo silenciosa-mente, fechando a porta com cuidado. Os cães ladraram, mas ignorou-os. Começou a andar em direcção à cidade, pelo mesmo caminho que tinha feito de autocarro e que reteve na memória como um mapa. Caminhou toda a noite e de manhãzinha chegou à porta de sua casa extenuado. Oliver recebeu-o com ruidosa alegria e Nora Reeves apareceu no umbral, pegou no atado de roupa do filho e estendeu a outra mão para lhe fazer uma carícia, mas o gesto ficou no ar.
- Trata de crescer depressa - foi tudo o que disse.
Naquela tarde Gregory teve a ideia de tourear o comboio.
Corro pela colina acima, seguido de Oliver, procurando as árvores, ofegante, os ramos arranham-me as pernas, caio e esfolo os joelhos, merda, grito merda e deixo que o cão me lamba o sangue, quase não vejo onde ponho os pés, mas continuo a correr até ao meu refúgio verde, onde me escondo sempre. Não preciso ver as marcas nos troncos para encontrar o meu caminho, já estive tantas vezes aqui que posso chegar de olhos fechados, conheço os eucaliptos um a um, todas as silveiras de amoras selvagens, todos os penhascos. Levanto um ramo e aparece a entrada, um estreito túnel debaixo de um arbusto espinhoso, deve ter sido uma toca de raposas, mesmo à medida do meu corpo; se me arrasto de cotovelos, deslizando com cuidado e calculando bem a curva, com a cara entre os braços, posso passar sem me ferir. Lá fora Oliver espera que o chame, está habituado. Choveu durante a semana e o solo está mole, faz frio, mas tenho febre por todo o corpo desde há horas, desde a manhã no quarto das vassouras na escola, um fogo que nunca terminará, estou certo disso. Qualquer coisa me agarra por detrás e solto um grito, são só os espinhos dos arbustos no meu casaco. Foi assim que Martinez me apanhou, pelas costas, ainda sinto a ponta da faca no pescoço, mas parece que já não me sai sangue, se te moves mato-te, sacana de gringo filho da puta, e não pude defender-me, a única coisa que fiz foi chorar e amaldiçoá-lo enquanto ele me fazia aquilo. Agora corre a contar a Miss June que vais ver, corto a cara à tua irmã e já sabes o que te faço a ti, disse-me depois, enquanto apertava as calças. Foi-se embora a rir. Se os outros sabem estou fodido, chamam-me maricas para o resto da minha vida. Ninguém pode saber, nunca! E se Martinez vai contar? Quero matá-lo! Tenho as mãos, a roupa e a cara manchadas de barro, a minha mãe ficará furiosa, mais vale arranjar uma desculpa: fui atropelado por um automóvel ou fui agarrado de novo pelo bando, mas então recordo-me que não será necessário inventar nenhuma mentira porque vou morrer e quando encontrarem o meu corpo não lhe importará a imundície, assim espero, estará desesperada, não pensará mais nas minhas maldades, só no meu lado bom, que lavo os pratos e que lhe dou quase tudo o que ganho a engraxar sapatos, e por fim vai ver que sou um bom filho e lamentará não ter sido mais carinhosa para comigo, ter querido oferecer-me às freiras e aos fazendeiros e não me ter feito ovos ao pequeno-almoço, nem uma única vez, e não é que isso seja tão difícil, dona Inmaculada fá-los de olhos fechados, até um atrasado mental pode fritar dois ovos, arrepender-se-á, mas será tarde de mais porque eu estarei já morto. Haverá uma cerimónia na escola, render-me-ão homenagem como a Zarate, que se afogou no mar, dirão que eu era o melhor companheiro e tinha um grande futuro, porão os alunos em fila e ir. 0 obrigá-los a passar em frente do meu caixão para me beijar a testa, os mais pequenos começarão a chorar e as meninas com certeza desmaiarão, as mulheres não aguentam ver sangue, todas guincharão menos Cármen, que abraçará o meu cadáver sem asco. Oxalá que, no funeral, Miss June não se lembre de ler a carta que lhe escrevi, porra, para que fiz eu isso, nunca mais a poderei olhar na cara, é tão bonita, parece uma fada ou uma actriz de cinema, se ela soubesse as coisas que me passam pela ideia na aula, ela lá adiante, explicando as contas no quadro, e eu na minha carteira olhando-a como um cretino, com a cabeça nas nuvens, quem pode pensar em números com ela! Penso, por exemplo, que me dizia vou-te ajudar nos trabalhos, Greg, porque as tuas notas são um desastre, então eu ficava depois das aulas, os outros iam embora e estávamos sozinhos no edifício, sem que eu lhe dissesse nada ficava louca, deitava-se no chão e eu fazia-lhe chichi entre as suas pernas. Nunca, em todos os dias da minha vida, vou confessar ao padre estas porcarias que me vêm à cabeça, sou um degenerado, um imundo: Ora vê lá, escrever aquela carta a Miss June! É preciso ser bem parvo. Bom, pelo menos não terei que suportar a vergonha de voltar a vê-la, estarei completamente morto quando ela a ler. E Cármen, pobre Cármen... a única coisa que me dá pena é não poder tornar a vê-la. Se soubesse o que Martinez me fez acompanhar-me-ia para morrer aqui comigo, mas não posso contar a ninguém, muito menos a ela.
Isto é o mais terrível que me sucedeu em toda a vida, é a maior maldade que o desgraçado do Martinez me fez, pior que na Primeira Comunhão, quando me obrigou a comer um pedaço de pão antes de comungar, para que ao engolir a hóstia um raio me partisse e fosse direitinho de cabeça para o inferno; mas não me sucedeu nada, não senti nenhuma coisa porque o pecado não foi meu, mas dele, e quem vai ferver nos caldeirões de Satanás será ele e não eu, por me introduzir no pecado, o que é mais grave que o próprio pecado como nos explicou o padre Larraguibel quando nos contou o de Adão e de Eva. Dessa vez tive que escrever quinhentas vezes não devo blasfemar, porque disse ao padre que o pecado era de Deus, porque ele tinha posto a maçã no Jardim do Éden sabendo que Adão a ia comer de qualquer modo, e se isso não era induzir ao pecado, que era então? Pior foi quando Martinez me despiu no ginásio e me escondeu a roupa, se não chegasse a senhora da limpeza e me ajudasse teria passado a noite no banheiro e no outro dia toda a escola me teria visto em pelota. Pior que quando anunciou aos gritos que me tinha visto na casa de banho brincando aos médicos com Ernestina Pereda. Odeio-o, odeio-o do fundo da minha alma, oxalá morra, não de doença, mas de alguém que o mate, mas primeiro que lhe corte a pila, para que o cabrão do Martinez mas pague todas, odeio-o, odeio-o.
Já estou no meu esconderijo, assobio a Oliver e oiço-o a arrastar-se pelo túnel, abraço-o e fico quieto, ele ofegante com a língua de fora, olha-me com os olhos de mel e compreende, é o único que conhece os meus segredos. Oliver é um cão bastante feio, Judy detesta-o, é uma mistura de várias raças e saiu com uma cauda gorda e larga como um taco de beisebol. Além disso é manhoso, rói a roupa, rebola-se na caca dos outros cães e depois deita-se nas camas, gosta de lutas e às vezes chega todo mordido, mas é quente e quando não se mete em porcarias até cheira bem. Meto o nariz no seu pescoço, por cima tem o pêlo duro e curto, junto à pele encontro pêlo suave, como algodão, e ali gosto de o cheirar, não há nada melhor que o cheiro a cão. O sol pôs-se e está cheio de sombras, faz frio, é uma dessas raras tardes invernais, e apesar de eu estar a arder posso sentir que se me gelam as orelhas e as mãos, uma sensação limpa. Decido não cortar o pescoço com o meu canivete como tinha planeado, vou morrer é de frio, vou-me gelar a pouco e pouco durante a noite e de manhã estarei rígido, uma morte lenta mas mais tranquila do que o comboio, acobardo-me e no último instante dou o salto e salvo-me por um cabelo. Não sei quantas vezes já o tentei e não me decido a morrer assim, deve doer muito, e além disso repugna-me espalhar as tripas, não quero que me recolham com uma pá, nem que algum engraçado guarde os meus dedos de recordação. Empurro Oliver, para que ele não me abrigue, senão não congelo nunca, escavo um pouco o chão para me acomodar e estendo-me de costas. Permaneço imóvel, com esta dor aqui - maldito Martinez, maricas desgraçado - e a cabeça cheia de pensamentos, de visões, de palavras, mas depois de algum tempo param-me as lágrimas e começo a respirar como sempre e então sinto a terra branda e fresca acolhendo-me como o abraço de dona Inmaculada, afundo-me, abandono-me e penso no planeta, redondo, flutuando sem gravidade no abismo negro do cosmos, girando, girando, e também nas estrelas da Via Láctea e em como será o fim do mundo, quando tudo explode e saem as partículas disparadas como os fogos-de-artifício do 4 de Julho e sinto que sou parte da terra, sou feito do mesmo material, quando morrer vou desin-tegrar-me, tornar-me-ei puras migalhas de um bolo desfeito, farei parte do solo e crescerão árvores no meu corpo. Se penso que não estou só no Universo, que nem sequer sou algo de especial, devo ser apenas um pedaço de barro, talvez não tenha uma alma própria, de repente existe uma só alma grande para todos os seres vivos, incluindo Oliver, e não há céu, inferno nem purgatório, devem ser palermices do padre, que por ser velho tem a mente baralhada, e os Logi e os Mestres do meu pai também não existem e a única pessoa que anda mais ou menos perto da verdade é a minha mãe com a sua religião Bahai, embora ela se enrede com umas merdas que são boas é para a Pérsia, como é que as íamos usar aqui? A ideia de ser uma partícula agrada-me, ser um grão de areia cósmica. Miss June diz que a cauda errante dos cometas é formada por poeira estelar, milhares de pedrinhas que reflectem a luz. Invade-me uma calma profunda, esqueço-me de Martinez, do medo, da dor e do quarto das vassouras, estou em paz, elevo-me e vou voando com os olhos abertos até ao vazio sideral, vou voando, voando com Oliver.
Desde pequena Cármen Morales teve a mesma habilidade manual que a caracterizou o resto da vida, qualquer objecto entre os seus dedos perdia a forma original e transformava-se. Podia fabricar colares com macarrão da sopa, soldados com tubos de papel higiénico, brinquedos com carrinhos de linhas e caixas de fósforos. Um dia, brincando com maçãs, descobriu que podia mantê-las todas no ar sem nenhuma dificuldade, fazia malabarismos com cinco ovos e disso passou naturalmente a objectos mais exóticos.
- A engraxar sapatos sua-se muito e ganha-se pouco, Greg. Aprende uma habilidade e trabalhamos juntos. Preciso de um sócio - ofereceu ela ao amigo.
Depois de inumeráveis ovos rebentados tornou-se evidente a falta de jeito de Gregory. Não conseguiu dominar nenhum truque interes-sante, a não ser mover as orelhas e comer moscas vivas, mas tocava a harmónica com bom ouvido. Oliver mostrou-se mais talentoso, ensina-ram-lhe a caminhar em duas patas com um chapéu no focinho e tirar papéis de uma caixa. A princípio comia-os, mas depois aprendeu a passá-los com delicadeza ao cliente. Cármen e Gregory prepararam cuidadosamente os pormenores do espectáculo e partiram para o mais longe possível para escapar aos olhares dos seus amigos e vizinhos, pois sabiam que se o assunto chegava aos ouvidos de Pedro ou de Inmaculada Morales ninguém os salvaria de uma boa sova, como a que levaram quando tiveram a ideia de andar a pedir esmola pelo bairro. A miúda fez uma saia com lenços multicores e um barrete com penas de galinha e conseguiu emprestadas as botas amarelas de Olga. Gregory surripiou o chapéu alto e o laço que o pai usava nas suas prédicas e que Nora guardava como relíquias. Pediram a ajuda de Olga, para a redacção dos papéis da sorte, assegurando-lhe de que se tratava de um jogo para a festa de fim de curso; ela atirou-lhes um dos seus olhares mais penetrantes, mas não pediu explicações. Começou a ditar-lhes uma enfiada de profecias no estilo das tabuinhas chinesas da fortuna. Completaram a sua equipagem com ovos, velas e cinco facas de cozinha escondidas numa bolsa, porque não podiam sair com tal carregamento de suas casas sem levantar suspeitas. A Oliver deram um banho de mangueira e ataram-lhe uma fita ao pescoço com a intenção de lhe atenuar um pouco o aspecto de fera. Instalaram-se numa esquina bem afastada do bairro, vestiram a sua roupa de jogral e começaram o acto. Logo se juntou uma pequena multidão à volta dos dois meninos e do cão. Cármen, com a sua diminuta figura, os seus trapos esquisitos e a sua incrível habilidade para atirar ao ar velas acesas e facas afiadas, era uma atracção irresistível, enquanto Gregory se perdia nas canções da sua harmónica. Numa pausa da malabarista o rapaz abandonou a música e convidou os presentes a experimentar a sorte. Por uma módica quantia o cão escolhia um papelinho dobrado e passava-o ao cliente, um pouco babado é certo, mas perfeitamente legível. Em duas ou três horas os miúdos juntaram tanto dinheiro como um operário num dia completo de trabalho em qualquer das fábricas dos arredores. Quando começou a anoitecer tiraram os disfarces, guardaram os objectos, distribuíram os utensílios e regressaram a suas casas depois de jurar que nem sob tortura revelariam o assunto. Cármen enterrou a sua receita dentro de uma caixa no pátio e Gregory entregava a sua dali a pouco em casa, para evitar perguntas incómodas, guardando uma parte para o cinema.
- Se aqui ganhamos tanto, imagina tu quanto podemos fazer na Praça Pershing. Ficaríamos milionários. Vai ali muita gente para ouvir os loucos e também há os ricos que entram e saem do hotel - disse Cármen.
Tamanho atrevimento não tinha passado pela cabeça de Gregory, para quem existia uma fronteira invisível que as pessoas da sua condição não passavam; do outro lado do mundo era diferente, os homens caminhavam depressa porque tinham trabalho e projectos urgentes, as mulheres passeavam de luvas, as lojas eram luxuosas e os automóveis reluzentes. Tinha estado ali umas duas vezes, acompanhando a mãe a distribuir papéis, mas não lhe tinha ocorrido aventurar-se sozinho. Cármen revelou-lhe num instante as possibilidades do mercado: há três anos que engraxava sapatos por dez cêntimos entre os mais pobres dos pobres, sem pensar que poucos quarteirões à frente podia cobrar o triplo e conseguir mais clientela. Mas logo em seguida pôs de parte a ideia, assustado.
- Estás louca!
- Porque és tão palerma, Gregory? Aposto que não conheces o hotel.
- É claro.
- É como um palácio, com desenhos no tecto e nas portas, cortinas com borlas e uns candeeiros que nem te conto, parecem barcos cheios de luzes. Os pés afundam-se nas alcatifas, como na praia, e toda a gente se veste com elegância e servem chá com bolos.
- Tomaste chá no hotel?
- Bom, não exactamente, mas vi as bandejas. Tem de se andar sem olhar para ninguém, como se a mamã tivesse à nossa espera numa mesa, percebes?
- E se te caçam?
- Nunca se confessa nada, por princípio. Se alguém te diz alguma coisa, fazes de menino rico, levantas o nariz e respondes com uma grosseria. Um dia vou-te levar lá. Em todo o caso, é o melhor lugar que há por aí para trabalhar.
- Não podemos ir com Oliver no eléctrico - disse baixinho Gregory.
- Vamos a pé - disse ela.
A partir desse dia foram à Praça Pershing todas as vezes que Cármen Morales conseguia fugir à vigilância materna. Atraíam mais público que os oradores encavalitados nos seus caixotes falando com paixão inútil de coisas que não importavam a ninguém. Sem as provas de malabarismo o espectáculo carecia de novidade, de modo que, se a sua amiga não podia acompanhá-lo, Gregory voltava à sua rotina de engraxar, embora o fizesse agora nas ruas da zona comercial. Os meninos estavam unidos pela necessidade matua e pelo segredo partilhado além de muitas outras cumplicidades.
Aos dezasseis anos Gregory estava na secundária com Juan José Morales, Cármen estava um ano mais atrás, Martinez tinha abando-nado a escola e fazia parte do bando Os Carniceiros. Reeves não se aproximava dele e enquanto pudesse evitá-lo sentia-se a salvo. Por essa altura tinha-se atenuado a rebeldia que antes o mantinha em perma-nente movimento, mas martirizavam-no outras angústias silenciosas.
Na secundária havia uma maioria de alunos brancos, já não se sentia apontado com o dedo nem devia disparar correndo mal tocava a campainha, para iludir os seus inimigos. A educação obrigatória nem sempre se cumpria entre os pobres e menos ainda entre os latinos que, mal acabada a primária, tinham de ganhar a vida num emprego. O pai tinha dado a Gregory a ambição de estudar, que ele nunca pôde satisfazer porque desde os treze anos percorria os campos da Austrália tosquiando ovelhas. A mãe também lhe alimentava a ideia de ter uma profissão para não partir a espinha em ofícios mais humildes, faz as contas, filho, um terço das horas da tua vida gastam-se a dormir, um terço a andar de um lado para o outro e fazendo coisas, e o terço mais interessante vai-se a trabalhar, por isso é melhor fazê-lo em qualquer coisa de que tu gostes, dizia. A única ocasião em que falou em deixar a escola para procurar trabalho, Olga procurou a sorte nas cartas e saiu-lhe a carta da Lei.
- Nem penses. Serás bandido ou polícia e em ambos os casos é melhor ter estudos - determinou.
- Não quero ser nenhuma das duas coisas.
- Esta carta diz claramente que vais estar metido com a Lei.
- Não diz se vou ser rico?
- Às vezes rico e às vezes pobre.
- Mas chegarei a ser alguém importante, na verdade?
- Na vida não se chega a nenhum lado, Gregory. Vive-se, nada mais.
Com Cármen Morales aprendeu a bailar os ritmos americanos e chegaram os dois a ser tão especialistas em passos ornamentais que as pessoas faziam roda para os aplaudir nas suas exibições de jitter bug e rock.n.roll. Ela voava com as pernas no ar e, quando estava quase a estatelar-se de cabeça, ele dava-lhe uma volta impossível por cima dos ombros, passava-a por entre as pernas arrastando-a pelo chão e de um esticão deixava-a de pé sã e salva, tudo isto sem perder nem o ritmo nem os dentes. Gregory poupou durante meses para comprar um casaco de couro preto, e começou a cultivar um caracol sobre os olhos, mas como nem o excesso de brilhantina conseguia evitar o triste aspecto da franja do seu cabelo, optou por um penteado curto, para trás, mais cómodo mas menos adequado à imagem de rebelde que fazia tremer de temor e de gosto as raparigas. Cármen não se parecia nada com as protagonistas dos filmes para adolescentes, loiras, virtuosas e um pouco tontas, por quem suspiravam os rapazes e que as morenas e rechonchudas meninas mexicanas que descoloravam o cabelo com água oxigenada tentavam imitar. Ela era pólvora pura. Aos fins-de-semana, os dois amigos enfeitavam-se com as suas melhores roupas, ele sempre com o seu casaco de couro preto mesmo que fizesse um calor do inferno, ela com as calças justas que escondia numa bolsa e vestia numa casa de banho pública, porque se o pai as visse arrancava-lhas do corpo, e partiam para os salões onde já os conheciam e não pagavam a entrada, porque eram a melhor atracção da noite. Dançavam incansavelmente sem consumir um refresco sequer porque não podiam pagá-lo. Cármen tinha-se tornado uma intrépida jovem de melena negra e rosto simpático com sobrancelhas e lábios grossos; tinha riso fácil e curvas firmes, com os seios demasiados grandes para a sua estatura e idade, protuberâncias que detestava como se fossem uma deformação, mas Gregory observava-os a crescer, imaginando que de dia para dia estavam mais cheios. Ao dançar bamboleava-se sozinho para ver aqueles peitos de cortesã desafiar as leis da gravidade e da decência, mas ao comprovar que não era o único e admirá-los, sentia uma raiva surda. A sua amiga não o atraía com um desejo concreto, só pensar nisso tê-lo-ia horrorizado como se fosse pecado de incesto. Considerava-a tão sua irmã como Judy, no entanto por vezes as suas boas intenções oscilavam sob a traição das hormonas, que o mantinham em perma-nente estado de emergência. O padre Larraguibel encarregou-se de lhe encher a cabeça de apocalípticas conjunturas a respeito das consequên-cias de pensar com malícia nas mulheres e de tocar no seu corpo. Ameaçava os lascivos com raios fulminantes, garantia que cresciam pêlos na palma das mãos, apareciam borbulhas purulentas, o pénis ficava gangrenado e por fim o culpado morria no meio de sofrimentos atrozes, ia direitinho para o inferno, no caso de morrer sem confissão. O rapaz duvidava do raio divino e dos pêlos na palma das mãos, mas tinha a certeza de que os outros males eram a sério, tinha-os visto em seu pai, lembrava-se como ele se enchera de pústulas e como morrera a masturbar-se. Nem pensar sequer em procurar consolo entre as meninas da escola ou do bairro que para ele estavam fora dos limites alcançáveis, nem recorrer a prostitutas, que lhe pareciam quase tão temíveis como Martinez. Andava desesperado de amor, incendiado por um calor brutal e incompreensível, assustado pelo tambor do seu coração, pelo mel pegajoso no saco de dormir, pelos sonhos turbulentos e pelas surpresas do seu corpo, os ossos esticavam-se-lhe, apareciam músculos, cresciam-lhe pelo e o sangue cozia-se-lhe numa quentura pertinaz. Bastava um estímulo insignificante para rebentar um súbito prazer, que o deixava consternado e meio desvanecido. O roçar de uma mulher na rua, a visão de uma perna feminina, uma cena de filme, uma frase num livro, até o tremer do assento no eléctrico, tudo o excitava. Além de estudar tinha de trabalhar, no entanto o cansaço não anulava o desejo insondável de se afundar num pântano, de se perder no pecado, de sofrer outra vez esse gozo e essa morte sempre demasiado breves. Os desportos e o baile ajudavam-no a libertar energia, mas era preciso qualquer coisa mais drástica para acalmar o bulício dos seus instintos. Tal como na infância se apaixonara como um demente por Miss June, na adolescência tinha uns súbitos arrebatamentos passio-nais por raparigas inacessíveis, quase sempre mais velhas, de quem não se atrevia a aproximar-se e que se conformava em olhar à distancia. Um ano mais tarde atingiu de um esticão o seu tamanho e peso defini-tivos mas aos dezasseis era ainda um adolescente magro, com os joelhos e orelhas demasiado grandes, um pouco patético, embora se pudesse adivinhar a sua boa cepa.
- Se consegues não ser bandido ou polícia, serás actor de cinema e as mulheres vão adorar-te - prometia-lhe Olga para o consolar quando o via sofrer no cilício da sua própria pele.
Foi ela quem o tirou finalmente dos incandescentes suplícios da castidade. Desde que Martinez o fechou no quarto das vassouras da escola primária, assaltavam-no dúvidas inconfessáveis a respeito da sua virilidade. Não tinha voltado a explorar Ernestina Pereda nem nenhuma outra rapariga com o pretexto de brincar aos médicos, e os conhecimentos sobre esse lado misterioso da existência eram vagos e contraditórios. As migalhas de informação obtidas à socapa na biblioteca só contribuíam para o desconcertar mais ainda, porque iam contra a experiência da rua, as chufas dos irmãos Morales e outros amigos, as prédicas do padre, as revelações do cinema e os sobres! altos da sua fantasia. Fechou-se na solidão, negando com teimosa determi-nação as perturbações do seu coração e o desassossego do corpo fazendo por imitar os castos cavaleiros da Távola Redonda ou os heróis do Far-West, mas a cada instante o ímpeto da sua natureza atraiçoava-o. Aquela dor surda e a confusão sem nome dobravam-no por um tempo eterno, até que já não pode continuar a suportar aquele martírio e se Olga não acode em seu socorro teria acabado meio louco. A mulher viu-o nascer, tinha estado presente em todos os momentos importantes da sua infância, conhecia-o como se fosse um filho, nada que dissesse respeito ao rapaz escapava aos seus olhos e o que não deduzia por simples sentido comum adivinhava pelo seu talento de nigromante, o que, vistas bem as coisas, consistia no conhecimento da alma dos outros, bom olho para observar e desfaçatez para improvisar conselhos e profecias. Neste caso não se requeriam dotes de clarividência para ver o estado de desamparo de Gregory. Naquele tempo Olga estava nos quarenta, as redondezas da sua juventude tinham-se transformado em gordura e os transtornos da sua vocação de cigana tinham-lhe enrugado a pele, mas mantinha a sua graça e o seu estilo, a folhagem das suas crinas ruivas, o roçar das suas saias e o riso veemente. Ainda vivia no mesmo sítio, mas já não ocupava apenas um quarto, tinha comprado a propriedade para a transformar em seu templo particular, onde dispunha de um quarto para os remédios, a água magnetizada e toda a espécie de ervas, outro para as massagens terapêuticas e abortos e uma sala de bom tamanho para as sessões de espiritismo, magia e adivinhação. Recebia sempre Gregory na divisão por cima da garagem. Naquele dia encontrou-o triste e voltou a comovê-la a rude compaixão que nos últimos tempos eram o seu sentimento primordial por ele.
- Por quem estás apaixonado agora?
- Quero ir-me embora deste lugar de merda - disse Gregory com a cabeça entre as mãos, derrotado por aquele inimigo no baixo-ventre.
- Para onde pensas ir?
- Para qualquer lado, para o caralho, não me importa. Aqui não acontece nada, não se pode respirar, estou a afogar-me.
- Não é o bairro, és tu. Estás a afogar-te na tua própria pele.
A adivinha tirou do armário uma garrafa de uísque, despejou um bom jorro no copo e outro para ela, esperou que ele o bebesse e serviu-lhe mais. O rapaz não estava habituado ao licor forte, fazia calor, as janelas estavam fechadas e o aroma do incenso, ervas medicinais e patchuli pesava no ar. Aspirou o cheiro de Olga com um estremeci-mento. Num instante de inspiração caritativa, a mulheraça aproximou-se por detrás e envolveu-o com os seus braços, os seus seios já tristes espalmaram-se contra as costas dele, os seus dedos cobertos de anéis desabotoaram-lhe às cegas a camisa, enquanto ele se fazia de pedra, paralisado pela surpresa e pelo medo, mas então ela começou a beijá-lo no pescoço, a meter-lhe a língua nas orelhas, a sussurrar-lhe palavras em russo, a explorá-lo com as suas mãos experientes, a tocá-lo onde ninguém o havia tocado alguma vez, até que ele se abandonou com um soluço, precipitando-se por uma ladeira sem fundo, sacudido de pavor e de antecipado prazer, e sem saber o que fazia nem por que o fazia voltou-se para ela, desesperado, rasgando-lhe a roupa com a pressa, assaltando-a como um animal com cio, rebolando com ela pelo chão, pateando para se libertar das calças, abrindo caminho por entre as saias, penetrando-a num impulso de desolação e abatendo-se a seguir com um grito, quando se esvaziava às golfadas, como se uma artéria lhe tivesse rebentado nas entranhas. Olga deixou-o descansar um pouco sobre o seu peito, arranhando-lhe as costas como muitas vezes tinha feito quando ele era menino e, mal calculou que começavam os remorsos, levantou-se e foi fechar as cortinas. Depois começou a tirar lentamente a blusa rasgada e a saia enrugada.
- Agora vou ensinar-te o que nós gostamos, as mulheres - disse-lhe com um sorriso novo. - A primeira coisa é não ter pressa, meu filho...
- Tenho que saber uma coisa, Olga, jura-me que me vais dizer a verdade.
- Que queres saber?
- Meu pai e tu... quero dizer, vocês...
- Isso não é da tua conta, não tem nada a ver contigo.
- Tenho que saber... vocês eram amantes, não é verdade?
- Não, Gregory. Digo-te só uma vez: não, não éramos amantes. Não me voltes a tocar no assunto, porque se o fazes nunca mais te verei, estás a compreender?
Gregory tinha tanta necessidade de acreditar nisso que não fez mais perguntas. A partir dessa tarde o mundo mudou de cor para ele, visitava Olga quase todos os dias e, como um aluno aplicado, aprendeu o que ela achou por bem revelar-lhe, remexeu nos seus esconderijos, atreveu-se a dizer em murmúrios todas as obscenidades possíveis e descobriu maravilhado que não estava completamente sozinho no Universo e que já não tinha vontade de morrer. Assim como limpara a alma, também o seu corpo se desenvolvia, em poucas semanas deixou de parecer um garoto, no seu rosto passou-se a ver a expressão de um homem satisfeito. Quando Olga deu conta que ele, de apenas agrade-cido, estava também apaixonado, abanou-o furiosa, obrigando-o a olhá-la toda nua e a fazer um inventário meticuloso da sua gordura, dos seus cabelos brancos e das suas rugas, da sua fadiga de tantos anos a lutar contra o destino, e ameaçou-o solenemente de o pôr a andar se continuasse com ideias torcidas. Fez-lhe ver com clareza os limites da sua relação e acrescentou que se desse com uma pedra no peito, porque tinha uma sorte brutal, não encontraria outra mulher que lhe oferecesse sexo grátis e seguro, lhe passasse as camisas a ferro, lhe metesse dinheiro nos bolsos e não lhe exigisse nada em troca, que ainda era um fedelho e que quando deixasse de o ser ela estaria uma velha, que se concentrasse estudar, para ver se conseguia sair do buraco onde tinha crescido e se tornasse alguém, que vivia na terra das oportunidades e se não as aproveitasse era um imbecil sem remédio.
As suas notas melhoraram, fez novos amigos, começou a colaborar no jornal da escola e logo se viu a escrever artigos inflamados e a enca-beçar reuniões de alunos por diversas causas, algumas burocráticas, como o horário dos desportos, e outras de princípios, como a discrimi-nação contra os negros e latinos. Herdaste-o do teu pai, suspirava Nora um pouco preocupada, porque não queria vê-lo pregador. Apaziguado por Olga, pôde tomar o gosto pela leitura, aproveitava todos os momentos livres para ir à biblioteca municipal, onde fez amizade com Cyrus, um velho ascensorista. O homem movia os comandos com uma mão e com a outra segurava um livro tão absorto que o ascensor funcionava como uma máquina desengonçada. Só levantava os olhos quando chegava Gregory, então por alguns segundos iluminava-se a sua anémica cara de profeta e um sorriso leve mudava-lhe o ricto insociável da sua boca, mas dominava o gesto imediatamente e saudava-o com um grunhido, para deixar bem claro que apenas os unia uma certa afinidade intelectual. O rapaz aparecia em geral a meio da tarde, depois da escola, e ficava só uma meia hora, porque tinha que trabalhar. O ancião esperava-o desde cedo e à medida que a hora se aproximava dava por si a olhar para o relógio, sempre à defesa para dominar afectos desnecessários, mas se ele faltasse era como se não tivesse nascido o sol. Tornaram-se bons amigos. Reeves gostava de passar os sábados na sua companhia, visitava-o no sórdido quarto da pensão onde vivia, outras vezes saíam de passeio até ao cinema, e ao cair da tarde despedia-se para ir com Cármen aos salÕes de baile. Tempos depois Cyrus marcou-lhe um encontro num parque com o pretexto de discutir filosofia e compartilhar uma merenda. Esperava-o com uma cesta onde espreitava um pão e o gargalo de uma garrafa, levou-o pelo braço a um sítio isolado onde ninguém pudesse ouvi-los e ali disse-lhe em sussurros que estava disposto a revelar-lhe um segredo de vida e de morte. Depois de o fazer jurar que jamais o atraiçoaria, confessou-lhe solenemente a sua filiação no Partido Comunista. O rapaz não tinha bem claro o significado de tal confidência, apesar de estarem em plena época de caça às bruxas desencadeada contra as ideias liberais, mas imaginou que devia ser algo contagioso e de tão má reputação como as doenças venéreas. Fez algumas perguntas que só contribuíram para obscurecer mais o panorama. A mãe deu-lhe uma resposta vaga sobre a Rússia e o massacre de certa família real num palácio de Inverno, tudo tão distante que lhe foi impossível fazer a relação com o seu lugar e o seu tempo. Quando o disse em casa dos Morales, Inmaculada persignou-se espantada, Pedro proibiu-o de dizer grosserias em sua casa e preveniu-o contra o desatino de meter-se em assuntos que não eram da sua incumbência. A política é um vicio, a gente honesta e trabalhadora não precisa dela para nada, determinou o padre Larraguibel, cuja inclinação para o tremebundo aumentava com os anos, acusou os comunistas de serem o Anti-Cristo em pessoa e inimigos naturais dos Estados Unidos, assegurou que falar a um deles constituía uma traição automática à cultura cristã e à pátria, já que tudo o que se dissesse era remetido imediatamente a Moscovo para fins diabólicos. Cuidado, podes ver-te em maus lençóis com a autoridade e acabar na cadeira eléctrica, que de resto bem merecias, por parvoíces, os vermelhos são ateus, bolcheviques e gente má, não têm nada que fazer neste país, que vão para a Rússia se é isso de que eles gostam, concluiu com um murro sobre a mesa que fez saltar a chávena de café com brande. Gregory compreendeu que Cyrus lhe tinha dado a maior prova de amizade ao contar-lhe o seu segredo e em troca dispôs-se a não o enganar no caminho intelectual recém-empreendido. O homem cultivou nele a paixão por certos autores e, sempre que Gregory fazia uma pergunta, mandava-o procurar a informação por si, assim aprendeu a usar enciclopédias, dicionários e outros recursos de biblioteca. Se tudo o resto faltar, vê os jornais antigos, aconselhou-o. Ante os seus olhos abriu-se um vasto horizonte, pela primeira vez pareceu-lhe possível sair do bairro, não estava condenado a permanecer ali enterrado o resto dos seus dias, o mundo era enorme, despertou-se-lhe a curiosidade e o desejo de viver as aventuras que antes lhe bastava ver no cinema. Quando estava livre da escola e do trabalho permanecia horas com o mestre, subindo e descendo no elevador, até que o enjoo o vencia e sala a cambalear para respirar ar puro.
À noite jantava com os Morales e de passagem ajudava Cármen nos seus trabalhos, porque era péssima aluna, depois ia a casa de Olga e chegava a sua casa quando Judy e a sua mãe estavam a dormir. às vezes, durante os fins-de-semana, procurava a companhia de Nora para comentar as suas leituras, mas a sua relação esfriava-se dia a dia e neo tornaram a ter as conversas dos tempos do camião boémio, quando ela lhe contava argumentos de ópera e lhe decifrava os mistérios do firmamento nas noites estreladas. Com a sua irmã tinha muito pouco em comum e só por muito distraído é que não percebia a sua firme hostilidade. Nesses anos a cabana tinha-se voltado a deteriorar, as madeiras apodreciam e chovia pelo telhado, mas o terreno tinha-se valorizado com o avanço da cidade naquela direcção. Pedro Morales sugeriu vender a propriedade e que os Reeves se instalassem num apartamento pequeno, onde os gastos fossem menores e a manutenção mais fácil, mas Nora temia que o marido se perdesse na mudança.
- Os mortos necessitam de um lugar fixo, não podem estar a mudar de um lado para outro. Também as casas necessitam de uma morte e de um nascimento. Um dia nascerão aqui os meus netos - dizia ela.
A não ser Olga, com quem partilhava a prodigiosa intimidade dos amantes impudicos, Cármen Morales era a pessoa mais próxima de Gregory. Uma vez que Olga lhe tranquilizara os instintos, pôde contemplar as proeminências da sua amiga sem ficar incomodado. Desejava para ela um destino menos sórdido que o das mulheres do seu bairro, maltratadas pelos maridos, abatidas pelos filhos e sem solenidade, acreditava que com um pouco de ajuda poderia terminar a escola e aprender um ofício. Fez por iniciá-la na leitura, mas ela aborrecia-se na biblioteca, detestava os estudos e não demonstrava o menor interesse pelas notícias dos jornais.
- Se leio mais de meia página dói-me a cabeça, é melhor leres tu e depois contas-me... - desculpava-se quando a punha entre um livro e a parede.
- É porque tem as mamas grandes. Quanto mais seios menos cérebro, é uma lei da natureza, por isso essas desgraçadas mulheres são como são - explicou Cyrus a Gregory.
- Esse velho é um cretino! - gritou Cármen quando soube, e a partir daquele dia usava sutiãs com enchimento só por simples espírito de desafio, com resultados tão espectaculares que ninguém na vizinhança deixou de comentar como a mais nova dos Morales se estava a desenvolver tão bem.
Não só os seus seios chamavam a atenção, como tinha deixado para trás o seu aspecto de ratinho diligente e estava a tornar-se numa rapariga explosiva à volta da qual cirandavam os pretendentes, mas sem se atrever a passar a delicada fronteira da honra, porque do outro lado estavam Pedro Morales e os seus quatro filhos, todos ma-ciços, determinados e zelosos! Na aparência não era diferente de outras raparigas da sua idade, gostava das festas, escrevia pensamentos românticos e versos copiados de um diário, enamorava-se dos actores de cinema e flirtava com todo o rapaz que estivesse ao seu alcance, sempre que conseguisse iludir a vigilância da sua família e de Gregory, que tinha o papel de cavaleiro andante. No entanto, ao contrário de outras jovens, tinha uma imaginação turbulenta que mais tarde a salvaria de uma existência banal.
Uma quinta-feira, à saída da escola, Gregory e Cármen encontraram-se na rua em frente de Martinez e mais três dos seus pandilheiros. A enxurrada de jovens que saía do edifício parou um instante e logo se desviou para os evitar, não fossem considerar isso uma provocação, mas Martinez tinha visto a rapariga no sábado anterior num salão de baile e estava à espera dela com a soberba de quem se sabe mais forte. Ela estacou e o mesmo fizeram os outros alunos à sua volta, que perceberam a ameaça no ar e ficaram incapazes de reagir. Martinez tinha crescido muito para a sua idade, era um gigante insolente com bigodinho de gato, algumas tatuagens à vista, vestido de pachuco, o cabelo cheio de brilhantina em duas poupas levantadas, calças com pregos na cintura, sapatos com brochas de metal na ponta, jaleca de couro e camisa bordada.
- Anda, belezinha, dá-me cá um beijo... - deu dois passos e agarrou Cármen pelo queixo.
Com um safanão ela afastou-o e os olhos do outro ficaram do tamanho de dois raios. Gregory agarrou a amiga pelo braço e quis tirá-la daquela situação cobarde, mas o bando bloqueava a passagem e não havia a quem recorrer, na rua tinha-se aberto um terrível vazio, os outros rapazes recuaram até distância prudente num amplo semicírculo e no centro só ficaram eles e os agressores.
- A ti conheço eu, filho duma puta - gracejou Martinez, empurrando ligeiramente Gregory, e acrescentou para os seus capangas: - Este é o merdas do gringo maricas de que vos falei.
Sem largar Cármen, Gregory voltou a tentar uma manobra para escapar mas Martinez avançou ameaçador e, então, compreendeu que tinha chegado o momento tão temido, já não era possível evitar aquela ameaça que sempre receara. Respirou fundo, fazendo por controlar o seu terror, obrigando-se a pensar, imaginando que se encontrava sozinho, porque nenhum dos seus camaradas acudiria em sua defesa, e que os outros eram quatro e certamente tinham facas ou boxes. O ódio chegou-lhe como uma onda quente desde o fundo do ventre até à garganta, as recordações vieram em tropel, aturdindo-o, e por instantes perdeu a visão e o entendimento e mergulhou num lodaçal escuro. A voz de Cármen fez com que voltasse à rua.
- Não me toques, cabrão - e defendia-se das mãos de Martinez enquanto os outros se riam.
Gregory empurrou Cármen para um lado e enfrentou o inimigo, as caras a poucos centímetros, os punhos prontos, os olhos cheios de rancor, tremendo.
- Que é que queres, gringo de merda...? Tens vontade de que eu te enrabe de novo ou preferes brincar comigo? - cochichou Martinez com a voz lenta e suave, como se falasse de amor.
- Vai chatear a tua mãe! Com quatro capangas contra um só e desarmado, é bem fácil! - respondeu Gregory.
- Pois está bem, com o caraças, isto será só entre os dois - disse Martinez aos seus.
- Não quero uma luta de putos. O que eu quero é um duelo de morte - disse Gregory de dentes cerrados. - Que porra vem a ser essa?
- O que acabas de ouvir, desgraçado! - e Gregory levantou a voz para que todos na rua o pudessem ouvir. - Dentro de três dias, por detrás da fábrica de pneus, às sete da tarde.
Martinez deu uma olhadela à volta, sem compreender muito bem do que se tratava, e os pandilheiros encolheram os ombros, ainda a rir-se, enquanto o círculo de curiosos se fechava um pouco, porque ninguém queria perder palavra do que estava a suceder.
- Faca, garrote, correntes ou pistola? - perguntou Martinez incrédulo.
- O comboio - respondeu Gregory.
- E que é que há com essa porra do comboio?
- Vamos a ver quem tem mais tomates - e Gregory pegou em Cármen pela mão e afastou-se pela rua, virando-lhe as costas com o fingido desprezo de um toureiro pela besta que ainda não derrotou, caminhando depressa, para que ninguém ouvisse o bater do seu coração.
Havia vários anos que eu corria contra o comboio, primeiro com a intenção de matar-me e depois apenas para tomar gosto pela vida. Passava rugindo quatro vezes por dia como um dragão em estampido, alterando o vento e o silêncio. Eu esperava-o sempre no mesmo lugar, um terreno baldio e plano, onde algumas vezes se acumulavam sucata e lixo e, noutras, quando o limpavam, iam os meninos jogar à bola. Primeiro chegava-me o apito longínquo e o rumor das máquinas, depois via-o aparecer, uma formidável cobra de ferro e ruído. O meu desafio era calcular o momento exacto para atravessar a linha em frente da locomotiva, aguardar até ao último momento, tê-lo quase em cima, correr então como um desesperado e alcançar o outro lado com um salto. A vida dependia do mínimo erro, uma leve vacilação, um tropeção no carril, a destreza das minhas pernas e o meu sangue-frio. Eu podia distinguir os diferentes comboios pelo estrépito das máquinas, sabia que o primeiro da manhã era mais lento e o das sete e quinze mais veloz. Sentia-me bastante seguro, mas, como já o toureava há um bom tempo, fui ensaiar com cada um que passou nos dias seguintes, acompanhado por Cármen e Juan José, para avaliar os resultados. A primeira vez que me viram fazer aquilo deixaram cair o cronómetro das mãos, Cármen desatou a gritar sem controlo, por sorte só a ouvi depois da máquina passar, porque certamente teria titubeado e agora não estaria a contar esta história. Descobrimos o melhor lugar para a corrida, onde os carris se viam com clareza, tirámos as pedras e marcamos a distância com um risco no chão, encurtando-a de cada vez, até que não foi possível reduzi-la mais, o comboio roçava-me as costas. à tarde, era mais difícil porque a essa hora estava quase escuro e as luzes da locomotiva encandeavam-me. Suponho que Martinez também se exercitou noutro lado, onde ninguém o visse, o seu orgulho desmesurado ficou a salvo, diante dos seus compinchas não podia mostrar a menor preocupação pelo duelo, tinha que aparentar desprezo absoluto pelo perigo, como puro macho que era. Eu contava com isso para tirar vantagem, porque durante os meus anos na selva do bairro aprendi a aceitar com humildade o medo, aquele fogo no estômago que por vezes me atormentava durante vários dias seguidos.
No domingo combinado já tinha corrido o boato na escola e às seis e meia havia uma fila de automóveis, motos e bicicletas estacionados no baldio e uns cinquenta companheiros meus, sentados no c hão perto das linhas, esperavam o começo do espectáculo. A fábrica de pneus estava fechada, mas no ar ainda flutuava o cheiro nauseabundo da borracha quente. Havia um ambiente de festa, alguns tinham levado merenda, uns quantos uísque e genebra disfarçados em garrafas de refresco, vários carregavam máquinas fotográficas. Cármen evitou a algazarra, manteve-se afastada, rezando. Tinha-me pedido para não ofazer, é preferível passar por cobarde do que perder a vida num suspiro, além disso Martinez não te faz nada, este duelo é uma aberração, umpecado, Deus vai-nos castigar a todos, suplicou-me. Expliquei-lhe que aquilo nada tinha a ver com o incidente na rua, que ela não era a causadora mas apenas o pretexto, tratava-se de dívidas muito antigas impossíveis de contar, coisas de homens. Pendurou-me ao pescoço um pequeno rectângulo de trapo bordado.
- É o escapulário da Virgem de Guadalupe que a minha mãe trazia posto quando veio de Zacatecas. É muito milagroso... às sete em ponto apareceram quatro automóveis desconjuntados, pintalgados com a cor arroxeada de Os Carniceiros, transportando a pandilha, que acudiu a apoiar Martinez. Passaram entre nós fazendo a saudação da mão enclavinhada sobre a cara e mexendo no sexo, em gesto de provocação. Imaginei que se as coisas não resultassem bem se armaria ali um tremendo sarilho e o meu grupo de amigos, ainda que mais numeroso, não era em nenhum caso um adversário temível para eles, habituados a dar guerra e a andar armados. Tive de olhar duas vezes para distinguir Martinez, porque todos pareciam iguais, os mesmos penteados com brilhantina, jaquetas, adornos e bamboleios provocantes ao caminhar. Ele não tinha renunciado à sua roupa de rufia, nem sequer aos sapatos de tacão alto, eu pelo contrário vestia de maneira cómoda - nesse tempo só podia comprar roupa em segunda mão no bazar da igreja - e tinha calçado sapatilhas de ginástica. Avaliei as minhas vantagens: eu era mais rápido e leve, mas aquilo era um desafio à morte e no último instante contava mais o atrevimento que a destreza. Na escola primária ele era bom atleta, pelo contrário, eu sempre fui medíocre nos desportos, mas fiz por não pensar nisso.
- Às sete e quinze em ponto passa o expresso. Corremos ao mesmo tempo separados por três passos largos para que não possas empurrar-me, cabrão, eu mais perto do comboio, dou-te esse presentinho se quiseres - gritei para todos ouvirem.
- Não preciso de vantagem, merda de gringo borboleta.
- Escolhe então: corres mais perto do comboio ou partes mais atrás.
- Saio mais atrás.
Com um pau marquei dois riscos no chão, enquanto os pandilheiros e alguns dos meus companheiros, encabeçados por Juan José Morales, atravessavam a linha para controlar o duelo do outro lado.
- Tão perto? Tens medo, maricas? - gracejou Martinez desdenhoso.
Tinha imaginado a sua reacção, apaguei os riscos com o pé e tracei-os de novo mais atrás. Juan José Morales e o pandilheiro mediram os passos de separação e nesse momento ouvimos o apito do comboio. Todos os espectadores se adiantaram, a pandilha à esquerda, num bloco compacto, os meus companheiros à direita. Cármen deu-me um último olhar animador, mas vi que estava aflita. Colocámo-nos nas marcas, toquei o escapulário disfarçadamente e fechei a mente por completo a tudo o que me rodeava, concentrando-me em mim próprio e naquela massa de ferro que se precipitava, contando os segundos, o corpo tenso, atento ao estrépito que crescia, eu só frente ao comboio, como tantas vezes antes tinha estado. Três, dois, um, agora! e, sem ter consciência do que fazia senti um bramido selvagem nas entranhas, as pernas saíram disparadas por impulso autónomo, uma descarga eléctrica percorreu-me de alto a baixo, os músculos estalaram pelo esforço e o pavor cegou-me como um véu de sangue. O clamor do comboio e o meu próprio alarido meteram-se-me por debaixo da pele, invadindo-me por inteiro, tornei-me eu próprio um só e terrível rugido. Vislumbrei as luzes imensas que vinham para cima de mim, ardeu-me a pele com o calor dos motores e do ar partido em dois por aquela gigantesca flecha, as chispas das rodas metálicas contra os carris atingiram-me a cara. Houve um instante que durou um milénio, uma fracção de tempo congelada para sempre, e fiquei suspenso num abismo incomensurável, flutuando diante da locomotiva, um pássaro petrificado em pleno voo, cada partícula esticada no último salto para a frente, a mente presa na certeza da morte.
Não sei o que aconteceu depois. Só me recordo que despertei rebolando do outro lado dos carris, com náuseas, extenuado, aspirando a plenos pulmões o cheiro de metal quente, aturdido pelo fragor furioso da enorme besta que passava e continuava a passar, compridíssima, interminável, e quando por fim acabou por se afastar senti um silêncio anormal, um vazio absoluto, e fui completamente envolvido pela escuridão. Um século depois Cármen e Juan José agarraram-me nos braços para me porem de pé.
- Levanta-te Gregory, vamo-nos embora daqui antes que chegue a polícia...
E então tive uma chispa de lucidez e consegui ver na penumbra da tarde como os rapazes escapavam correndo até à estrada, como saíam disparados os carros avermelhados dos pandilheiros, como não ficava vivalma no lugar a não ser Cármen, Juan José e eu, salpicado de sangue, e os bocados de Martinez espalhados por todo o lado.
Saltei do comboio com a antecipação de quem abre um caderno em branco, a minha vida começava de novo. Tinha ouvido tanto daquela cidade profana, subversiva e visionária, onde conviviam os lunáticos com os Prémios Nobel, que me pareceu sentir o ar carregado de energia, rajadas de um vento contagioso tirando de cima de mim vinte anos de rotinas, fadiga e asfixia. Já não dava mais, Cyrus tinha razão, estava-se-me a apodrecer a alma. Vi uma fileira de luzes amarelas na névoa lunar, um cais um pouco arruinado, sombras de viajantes silenciosos carregando malas e embrulhos, ouvi o ladrar de um cão. Havia uma impalpável humidade fria e um estranho cheiro, uma mistura de ferros de locomotiva e vapor de café. Era uma estação tristonha como muitas, mas isso não desfez o meu entusiasmo, pus o casaco de lona às costas e parti dando saltos de contente, gritando a plenos pulmões que aquela era a primeira noite de todos os outros dias estupendos da minha vida. Ninguém se voltou para me olhar, como se aquele arrebatamento de súbita demência fosse o mais normal, e assim era na verdade, como comprovei na manhã seguinte mal saí do albergue de jovens e pus os pés na rua para começar a aventura de me inscrever na realidade, conseguir um emprego e encontrar um lugar onde viver. Era outro planeta. A mim, que tinha crescido numa espécie de ghetto, a atmosfera cosmopolita e libertária de Berkeley embriagou-me. Num muro estava escrito a pinceladas de tinta verde: tudo se tolera menos a íntolerância. Os anos que passei ali foram intensos e esplêndidos, ainda hoje quando vou lá de visita, coisa que faço amiúde, sinto que pertenço àquela cidade. Quando cheguei no começo da década de sessenta, não era nem a sombra do circo indescritível que veio a ser na época em que fui para o outro lado da baía, mas já era extravagante, berço de movimentos radicais e atrevidas formas de rebelião. Coube-me assistir à transfor-mação de borboleta em casulo e ao insecto de grandes asas multicores que alvoroçou toda uma geração. Dos quatro pontos cardeais chegavam jovens atrás de ideias novas que ainda não tinham nome, mas que se percebiam no ar como pulsações de um tambor em surdina. Era a Meca dos peregrinos sem Deus, o outro extremo do continente, para onde se ia fugindo das velhas desilusões ou em busca de alguma utopia, a própria essência da Califórnia, alma deste vasto território iluminado e sem memória, uma Torre de Babel de brancos, asiáticos, negros, alguns latinos, meninos, velhos jovens, e sobretudo jovens: Não confies em ninguém com mais de trinta. Estava na moda ser pobre, ou pelo menos aparentar sê-lo, e continuou a ser assim nas décadas futuras, quando o país inteiro se abandonou à em embriaguez da cobiça e do êxito. Os seus habitantes pareceram-me algo andrajosos, com frequência o mendigo da esquina tinha aspecto menos lamentável que o transeunte generoso que Ihe dava uma esmola. Eu observava com curiosidade de provinciano. No meu bairro de Los Angeles não havia um único hippie, os machos mexicanos tê-lo-iam destroçado e ainda que tivesse visto alguns na praia, no centro ou na televisão, nada era comparável a esse espectáculo. À volta da universidade os herdeiros dos beatniks tinham tomado conta das ruas com as suas melenas, barbas e patilhas, flores, colares, túnicas da Índia, blue jeans pintalgados e sandálias de frade. O cheiro da marijuana misturava-se com o do tráfego, do incenso, do café e das especiarias das cozinhas orientais. Na universidade ainda se usava o cabelo curto e a roupa convencional, mas creio que já se vislumbravam as mudanças que dois ou três anos mais tarde acabariam com essa prudente monotonia. Nos jardins os estudantes tiravam os sapatos e as camisas para apanhar sol, antecipando a época próxima em que homens e mulheres se poriam nus por completo festejando a revolução do amor comunitário. Jovens para sempre, dizia o graffiti num muro, e a todas as horas o impiedoso carrilhão do Campanilo nos recordava a passagem inexorável do tempo.
Coubera-me ver de perto vários rostos do racismo, sou dos poucos brancos que o sofri na própria carne. Quando a filha mais velha dos Morales se lamentou pelas suas maçãs do rosto indígenas e a sua cor de canela, o pai pegou-lhe por um braço, arrastou-a até ao espelho e disse-lhe para se olhar bem olhada e que agradecesse à Santíssima Virgem de Guadalupe por não ser uma porca negra. Nessa ocasião pensei que de muito pouco tinha servido a don Pedro Morales o diploma do Plano Infinito pendurado na parede, certificando a superioridade da sua alma, no fundo tinha os mesmos preconceitos que os outros latinos que detestavam negros e asiáticos. Na universidade, nesse tempo não entravam hispanos, todos eram brancos excepto alguns poucos, descendentes dos imigrantes chineses. Nem havia negros nas salas de aula, apenas uns quantos nas equipas desportivas. Viam-se muito poucos nos escritórios, lojas e restaurantes, pelo contrário enchiam cadeias e hospitais. é certo que havia segregação, mas os negros não tinham a condição de estrangeiros, tão humilhante para os meus amigos latinos, ao menos eles caminhavam sobre o seu próprio solo e muitos começavam a fazê-lo com grandes passadas ruidosas.
Percorri as repartições tentando localizar-me no labirinto do campus, calculando quanto dinheiro necessitava para sobreviver e como conseguir um emprego. Mandavam-me de um guichet para outro em tramites circulares que faziam bicha, a burocracia deu cabo de mim, ninguém tinha ideia de nada, como recém-chegados éramos considerados uma praga inevitável que procuravam sacudir. Não compreendi bem se nos tratavam como lixo para fortalecermos o ânimo ou se era eu que andava perdido, cheguei a suspeitar que me discriminavam pelo meu acento chicano. De vez em quando, um ou outro estudante de boa vontade, sobrevivente de outros obstáculos, soprava-me alguma informação para me guiar na direcção correcta, sem essa ajuda teria passado um mês às voltas como um parvo. Nos dormitórios não havia vagas e não me interessavam as fraternidades, são antros conservadores e classistas onde um tipo como eu não tem cabidela. Os rapazes com quem topei várias vezes durante as morosas diligências desses dias disse-me que tinha conseguido um quarto de aluguer e que estava disposto a compartilhá-lo comigo. Chamava-se Timothy Duane e, segundo soube depois, era considerado pelas raparigas como o homem mais belo da universidade. Quando Cármen o conheceu, muitos anos mais tarde, disse que parecia uma estátua grega. De grego não tem nada, é um irlandês de olhos claros e cabelo negro igual a tantos outros. Contou-me que o seu avô fugira de Dublin nos começos do século perseguido pela justiça inglesa, chegou a Nova Iorque com uma mão adiante e outra atrás e em poucos anos dedicado a negócios obscuros fez boa fortuna. Na velhice tornou-se um benfeitor das artes, e ninguém se lembrou dos seus começos um pouco turvos, ao morrer deixou à descendência um montão de dinheiro e um bom nome. Timothy cresceu em internatos católicos para meninos ricos, onde aprendeu alguns desportos, onde lhe cultivaram um pesado sentido de culpa que, de todas as maneiras, estou certo que trazia já do berço. No fundo da alma desejava ser actor, mas o seu pai considerava que só havia duas profissões respeitáveis, médico ou advogado, tudo o resto eram fanfarronadas para palhaços, e com maior razão tudo o que se relacionasse com o teatro, que aos seus olhos era coisa de homossexuais e pervertidos. Reduzia para metade os seus impostos com a fundação das artes inventada pelo avô Duane, mas isso não lhe desenvolveu simpatia pelos artistas. Manteve-se autoritário e de boa saúde durante quase um século, privando a humanidade da figura perfeita do seu filho no ecrã ou sobre um palco. Tim tornou-se um médico que detesta a sua profissão e assegura que se dedicou à patologia porque pelo menos aos mortos não tem necessidade de lhes ouvir as queixas nem de os consolar. Ao renunciar aos seus sonhos histriónicos e ao trocar os palcos pelas geladas salas de dissecação, tornou-se um solitário atormentado por demónios tenazes. Persegui-ram-no muitas mulheres, mas todos os seus amores fracassaram pelo caminho deixando-lhe uma suspeita de pesadelo e desconfiança, até que muito mais tarde, quando já tinha perdido o riso, a esperança e boa parte do seu garbo, apareceu alguém que o salvou de si próprio. Mas estou a adiantar-me, isso aconteceu muito depois. Na época em que o conheci enganava o seu pai com a promessa de estudar leis ou medi-cina, enquanto às escondidas se dedicava ao teatro, a sua verdadeira paixão. Tinha chegado à cidade nessa semana e ainda estava na fase de exploração mas, ao contrário de mim, tinha experiência no mundo da educação para brancos, tinha a retaguarda de um pai rico e uma figura que lhe abria as portas. Pelo seu ar parecia o dono da universidade. Aqui estuda-se pouco, mas aprende-se muito, abre os olhos e fecha a boca, aconselhou-me. Eu ainda andava muito ingénuo. O seu quarto foi a mansarda de uma casa velha, uma só peça com tectos de catedral e duas clarabóias por onde se vislumbrava a torre do Campanilo. Tim mostrou-me que também se podiam ver outras coisas, trepando a uma cadeira vimos a casa de banho de um dormitório, onde todas as manhãs desfilavam raparigas em roupa interior a caminho do duche. Ao descobrir pouco depois que as observávamos, algumas passeavam nuas. No quarto havia muito poucos móveis, apenas duas camas, uma mesa grande e uma estante para livros. Pusemos um pedaço de tubo de canalização entre duas vigas para pendurar a roupa, o resto foi parar a uma caixa de cartão, no chão. O resto da casa estava ocupada por duas mulheres encantadoras, Joan e Susan, que com o tempo se tornaram minhas boas amigas. Tinham uma cozinha ampla onde preparavam as receitas de um livro que pensavam escrever, o aroma dos seus guisados faziam-me crescer água na boca, graças a elas aprendi a cozinhar. Pouco depois seriam famosas, não tanto pelo seu talento culinário ou pelo livro que nunca chegou a publicar-se, mas porque lançaram a moda de queimar o sutiã em manifestações públicas. Esse gesto, produto de um arrebatamento de inspiração quando lhes negaram a entrada num bar só para homens e captado casualmente pela máquina fotográfica de um turista japonês, saiu no noticiário da televisão, foi imitado por outras mulheres e depressa se tornou a contra-senha das feministas do mundo. A casa era ideal, estava a um passo da univer-sidade e era muito cómoda. Além disso eu gostava do seu ar senhorial, comparada com os outros sítios onde tinha vivido parecia um palácio. Anos depois albergaria uma das mais célebres comunidades hippies da cidade, vinte e tantas pessoas em amável promiscuidade debaixo do mesmo tecto, e o jardim transformava-se numa descuidada plantação de marijuana, mas por essa altura eu já tinha mudado para outro sítio.
Tim obrigou-me a desfazer-me das minhas camisas, disse que parecia um pássaro tropical com essa moda do Sul da Califórnia, em Berkeley ninguém se vestia assim, não podia sair em manifestações nesse preparo. Explicou-me que se não protestávamos não éramos ninguém e não conseguíamos mulheres. Eu tinha visto os letreiros e cartazes anunciando diversas causas: fomes, ditaduras e revoluções em pontos do planeta impossíveis de localizar num mapa, direitos das minorias, das mulheres, as florestas e as espécies em perigo, paz e fraternidade. Não se podia avançar um quarteirão sem pôr a assinatura num manifesto nem tomar um café sem dar vinte e cinco cêntimos para uma colecta, para algum fim tão altruísta como distante. O tempo de estudo era mínimo comparado com o dedicado a reclamar pelos males dos outros, denunciar o governo, os militares, a política exterior, os abusos raciais, os crimes ecológicos e as eternas injustiças. Essa preocupação obsessiva pelos assuntos do mundo, mesmo os mais disparatados, foi uma revelação. Cyrus tinha-me semeado para anos perguntas na mente, mas até então pareciam-me material de livros e de exercícios intelectuais sem aplicação prática na existência diária, coisas que apenas podia discutir com ele porque o resto dos mortais ficava impermeável a tais temas. Agora partilhava essas inquietações com os amigos, sentíamo-nos parte de uma complexa rede onde cada acção se repercutia com imprevisíveis consequências no destino futuro da huma-nidade. Segundo os meus companheiros dos cafés havia uma revolução em marcha que ninguém podia deter, as nossas teorias e costumes seriam em breve universalmente imitadas, tínhamos a responsabilidade histórica de estar ao lado dos bons, e os bons eram supostamente os extremistas. Nada devia ficar de pé, era necessário fazer tábua rasa para a nova sociedade. Ouvi pela primeira vez a palavra política sussur-rada no ascensor da biblioteca e sabia que ser chamado liberal ou radical era um insulto apenas menos ofensivo que comunista. Agora estava na única cidade dos Estados Unidos onde isto era ao contrário, ali a única coisa pior que ser conservador era ser neutral ou diferente. Uma semana mais tarde encontrava-me instalado no canto com o meu amigo Duane, assistia regularmente às aulas e tinha conseguido dois trabalhos para manter-me a boiar. O estudo não me pesava, aquela universidade ainda não se tornara no terrível filtro de cérebros que veio a ser depois, pareceu-me a escola secundária, mas mais desordenada. Era obrigatório assistir a cursos militares durante três anos. Divertia-me tanto nos exercícios e nos acampamentos de Verão e gostava tanto do uniforme, que fiz quatro anos e obtive o grau de oficial. Ao inscrever-me fizeram-me assinar um juramento de que não era comunista. Enquanto punha a assinatura no documento senti o olhar irónico de Cyrus na minha nuca tão vivamente que me virei para o saudar.
O capataz da fábrica de latas sonhava todas as noites com Judy Reeves e acordado a visão dessa mulher perseguia-o sem tréguas. Não era um daqueles homens obcecados pelas gordas, nem sequer tinha notado que ela o fosse. Aos seus olhos era perfeita, não lhe faltava nem lhe sobrava nada, e se alguém lhe tivesse dito que tinha praticamente o dobro do seu peso normal ter-se-ia surpreendido deveras. Não se fixava no tamanho dos seus defeitos, mas na qualidade das suas virtudes, amava os seus seios redondos e o seu traseiro bem generoso, gostava que fossem grandes, assim havia mais para apanhar com as mãos. Deslumbrava-o a pele de bebé, as mãos estragadas pela costura e pelos trabalhos caseiros, mas de forma nobre, o sorriso radioso que tinha visto algumas vezes e o seu cabelo fino e tão loiro como fios de prata. Procurava oportunidades para aproximar-se apesar da arrogância com que ela o ignorava uma vez e outra vez. De banho tomado, com camisa limpa e perfumado com água-de-colónia para dissipar o odor ácido da fábrica, ficava todas as tardes na paragem do autocarro à espera que a sua amada regressasse do trabalho, estendia-lhe a mão para a ajudar a descer do veículo e não se aborrecia quando ela preferia descer aos trambolhÕes em vez de se apoiar nele. Caminhava ao seu lado falando-lhe em tom quotidiano, como se fossem amigos íntimos, sem se desanimar pelo teimoso silêncio de Judy, contava-lhe pormenores do seu dia, notícias de pessoas desconhecidas para ela e resultados do beisebol. Acompanhava-a até à porta de casa, convidava-a para jantar - certo da sua negativa silenciosa - e despedia-se com a promessa de a ver no dia seguinte no mesmo sítio. Este paciente assédio manteve-se sem variações durante dois meses.
- Quem é aquele homem, que vem contigo todos os dias? - perguntou por fim Nora Reeves.
- Ninguém, mamã.
- Como se chama?
- Não lhe perguntei, nem me interessa.
No dia seguinte Nora aguardou espreitando pela janela e antes que Judy fechasse a porta no nariz do gigante ruivo, saiu ao seu encontro e convidou-o a beber uma cerveja, apesar do olhar assassino da filha. Sentado na minúscula sala numa cadeira demasiado frágil para o seu enorme corpanzil, o pretendente permaneceu calado apertando as mãos para fazer estalar os nós dos dedos enquanto Nora o observava atenta do cadeirão de verga. Judy tinha desaparecido no quarto e através das delgadas paredes ouviam-se as suas furiosas resmungadelas.
- Permita-me agradecer-lhe as suas finas atenções para com a minha filha. - disse Nora Reeves.
- Ah! - respondeu o homem, incapaz de discorrer uma resposta mais elaborada, porque não estava acostumado àquela linguagem rebuscada.
- Você parece boa pessoa.
- Ah!...
- É?
- Quê?
- Se por acaso você é boa pessoa.
- Não sei, minha senhora.
- Como se chama?
- Jim Morgan.
- Eu chamo-me Nora e o meu marido Charles Reeves, Mestre Funcionário e Doutor em Ciências Divinas, certamente você ouviu falar dele, é muito conhecido...
Judy, que escutava a conversa do outro quarto, não aguentou mais e entrou como um tufão na sala, enfrentando o tímido admirador com as mãos na cintura.
- Que diabo quer de mim! Por que não me deixa em paz?
- Não posso... acho que estou apaixonado, na verdade sinto-o... - balbuciou o desditoso galã, com a cara tão incendiada como o cabelo.
- Está bem, se a única maneira de me livrar deste pesadelo é ir para a cama consigo, vamos lá de uma vez por todas!
Nora Reeves deu uma exclamação de espanto e levantou-se com tal sobressalto que o cadeirão se voltou, a sua filha nunca tinha usado tal vocabulário na sua presença. Morgan também se pôs de pé, despediu-se de Nora com um gesto, enfiou a boina e saiu.
- Vejo que me enganei contigo. O que quero é casamento - disse-lhe secamente da porta.
No outro dia, ao descer do autocarro, Judy não encontrou ninguém disposto a estender-lhe a mão para a ajudar. Suspirou aliviada e pôs-se a andar com o seu lento bamboleio de fragata observando o que se pas-sava na rua, as pessoas nas suas pressas, os gatos esgravatando nas lixeiras, os meninos morenos correndo em brincadeiras de vaqueiros e bandidos. O caminho tornou-se-lhe longo e quando chegou a casa a alegria tinha-se-lhe dissipado, no seu lugar sentia um áspero despeito. Naquela noite não pôde dormir, torcia-se entre os lençóis como uma baleia varada na maré baixa, desesperada. Levantou-se ao nascer do sol, comeu duas bananas, uma chávena de chocolate, três ovos estre-lados com toucinho e oito tostas barradas com manteiga e marmelada. A mãe foi dar com ela à porta com bigodes de chocolate e gema de ovo e dois fios de lágrimas a cair-lhe pela face.
- Ontem à noite o teu pai veio de novo. Manda dizer que enterres fígados de frangos ao pé do salgueiro.
- Não me fales dele, mamã.
- é por causa das formigas. Ele disse que assim elas sairão da casa.
Naquele dia Judy não foi trabalhar, em vez disso foi visitar Olga. A adivinha olhou-a dos pés à cabeça, avaliando as gorduras, as pernas inchadas, a respiração ofegante, o horrível vestido feito à pressa com um tecido ordinário, a tremenda desolação nos olhos absolutamente azuis da rapariga e não teve necessidade da bola de cristal para improvisar um conselho.
- Que é que gostavas mais de ter, Judy?
- Filhos - respondeu ela sem vacilar.
- Então precisas de um homem. E já que estás para aí virada, é melhor que seja um marido.
A jovem dirigiu-se à pastelaria da esquina e devorou três pastéis de mil folhas e dois copos de sidra, dali foi ao cabeleireiro, onde nunca mais tinha posto os pés, e nas três horas seguintes uma mexicana gorducha e simpática fez-lhe uma permanente, pintou-lhe as unhas das mãos e dos pés de um rosa fulminante e depilou-lhe as pernas, enquanto ela comia um quilo de bombons com paciente determinação. Depois tomou o autocarro no centro com a intenção de comprar um vestido na única loja para gordas que havia no estado da Califórnia. Conseguiu uma saia azul-celeste e uma blusa com flores que lhe disfar-çavam um pouco o volume e lhe faziam ressaltar a frescura infantil da pele e dos olhos. Assim ataviada, às cinco da tarde pôs-se de braços cruzados e tremenda expressão à porta da fábrica onde trabalhava o seu apaixonado. Soou a sirena, viu sair o tropel de operários latinos e vinte minutos mais tarde apareceu o capataz de barba por fazer, suado e com uma camisa cheia de óleo. Ao vê-la parou boquiaberto.
- Como disseste que te chamavas? - perguntou-lhe Judy com um vozeirão pouco amável para ocultar a vergonha.
- Jim. Jim Morgan... Estás muito bonita.
- Ainda queres casar comigo?
- Claro que sim!
O padre Larraguibel celebrou a cerimónia na paróquia de Lourdes, apesar de Judy ser bahai como a sua mãe e Jim pertencer à Igreja dos Santos Apóstolos, mas os seus amigos eram católicos e naquele bairro o único casamento válido era com os rituais do Vaticano. Gregory viajou especialmente para levar a irmã pelo braço até ao altar. Pedro Morales financiou a festa enquanto Inmaculada, as filhas e amigas passaram dois dias a cozinhar pratos mexicanos e a fazer bolos para a boda. O noivo encarregou-se do licor e da música, fizeram uma farra no meio da rua com o melhor grupo de mariachis e mais de cem convidados que bailaram toda a noite os ritmos latinos. Nora Reeves fez para a filha um primoroso vestido de noiva com tantos véus de organdi que de longe parecia um veleiro de piratas e de perto o berço de um príncipe herdeiro.
Jim Morgan tinha algumas poupanças, pôde instalar a mulher numa casa pequena, mas cómoda, e comprar-lhe uma mobília de quarto nova com uma cama de medidas especiais capaz de os ter a ambos e de resistir aos encontrões de rinoceronte com que se amaram de boa vontade na primeira semana. Na sexta-feira seguinte, o marido não veio dormir. A esposa esperou-o até domingo, quando apareceu tão embriagado que não podia recordar onde tinha estado nem com quem. Judy pegou numa garrafa de leite e partiu-lha na cabeça. A outro mais débil o golpe talvez o tivesse matado, mas a Jim Morgan apenas lhe partiu a cabeça e, longe de o esmagar, pô-lo num frenético estado de excitação. Limpou o sangue dos olhos com a manga, atirou-se para cima de Judy e, apesar dos seus furiosos pontapés, naquela noite geraram o primeiro filho, um magnífico menino que posava cinco quilos ao nascer. Judy Reeves, iluminada por uma felicidade que nunca imaginara possível, pô-lo ao peito, determinada a dar àquela criança o amor que ela nunca tivera. Tinha descoberto a sua vocação de mãe.
Para Cármen Morales a partida de Gregory foi uma ofensa pessoal. No fundo do seu coração soube sempre que não pertencia ao bairro e que mais tarde ou mais cedo tomaria outros rumos, mas supunha que quando chegasse o momento partiriam juntos, talvez para viver aven-turas com um circo ambulante, como tantas vezes tinham planeado. Não podia imaginar a sua existência sem ele. Desde que se conhecia tinha-o visto quase diariamente, nada de grande ou pequeno lhe tinha sucedido sem o compartilhar com o amigo. Ele tinha-lhe revelado os mistérios da infância, que o Pai Natal não existia e os bebés não nasciam em couves nem eram trazidos de Paris pela cegonha; foi o primeiro a inteirar-se da novidade quando ela descobriu aos onze anos uma mancha vermelha nas cuecas. Estava mais perto dele do que da sua própria mãe ou dos irmãos, tinham crescido juntos, contavam um ao outro inclusivamente aquelas coisas proibidas pelo pudor segundo o qual a tinham educado. Como Gregory, também ela se apaixonava a cada passo com paixões fulminantes e de curta duração mas, ao contrário dele, estava manietada pelas tradições patriarcais da sua família e do seu ambiente. A sua natureza apaixonada esbarrava contra o duplo código moral que tornava as mulheres prisioneiras e em troca dava licença de caça aos homens. Tinha de cuidar da sua reputação porque qualquer sombra podia desencadear uma tragédia, o pai e os irmãos vigiavam-na de muito perto, dispostos a defender a honra da casa, enquanto ao mesmo tempo tentavam fazer com outras mulheres o que jamais lhes permitiam às do seu sangue. Cármen tinha um espírito indómito, mas nesse tempo ainda estava enredada nas teias de aranha do que vão dizer depois. Temia sobretudo o pai, depois o explosivo cura Larraguibel e Deus, por esta ordem, finalmente as más-línguas, capazes de destroçar-lhe o futuro. Como tantas outras raparigas da sua geração, foi criada com o axioma de que o casamento e a maternidade eram o mais perfeito destino - casaram-se, tiveram muitos filhos e foram muito felizes - mas à sua volta não havia um só exemplo de felicidade doméstica, nem sequer os seus pais, que permaneciam juntos porque não podiam imaginar outra alternativa, mas estavam longe de imitar os pares românticos do cinema. Nunca os tinha visto fazer uma carícia e corria que Pedro Morales tinha um filho de outra mulher. Não, não era isso que desejava para si mesma. Continuava a sonhar, como na meninice, com uma vida diferente e aventureira, mas não tinha a coragem de romper com o seu ambiente e sair dali. Sabia que nas suas costas correriam muitas graças, quem julgam que é a mais nova dos Morales?, não tem um trabalho fixo, anda sozinha de noite, pinta demasiado os olhos, aquilo que leva no tornozelo não é uma pulseira?, sai demasiado com Gregory Reeves, no fim de contas não são parentes, os Morales deviam ocupar-se mais da sua filha, já está em idade de casar, mas não lhe será fácil conseguir marido com esses modos de gringa desenvolta. No entanto, não tinham faltado a Cármen candidatos ao casamento. A primeira proposta recebeu-a ao acabar de fazer quinze anos e aos dezanove já tinha tido cinco pretendentes desesperados por casar, por todos eles se tinha apaixonado com uma paixão quimérica e de todos se tinha enjoado ao fim de poucas semanas, mal começavam as inevitáveis rotinas. Quando Reeves morreu tinha o seu primeiro noivo americano, Tom Clayton, todos os outros tinham sido latinos da vizinhança. Tratava-se de um jornalista irónico e enérgico que a deslumbrou com o seu conhecimento do mundo e as suas estupendas teorias sobre o amor livre e a igualdade entre os sexos, temas que ela nunca se atreveria a sugerir em sua casa, mas que tinha discutido longamente com Gregory.
- Puro palavreado, o que quer é ir para a cama contigo e depois sair a correr - determinou o seu amigo.
- És o elo perdido, mais atrasado que o meu pai!
- Falou-te em casar?
- O casamento mata o amor.
- E quem não o mata, Cármen, por Deus!
- Não me interessa entrar na igreja vestida de branco, Greg. Eu sou diferente.
- Diz-me de uma vez, já te deitaste com ele...
- Não, ainda não - e depois de uma pausa cheia de suspiros. - Que se sente? Conta-me o que se sente...
- É como uma descarga eléctrica, nada mais. A verdade é que o sexo está sobrevalorizado, muitas ilusões e no fim fica-se sempre meio frustrado.
- Mentiroso. Se fosse assim não andarias a estafar-te atrás de todas as mulheres.
- É precisamente aí que está a armadilha, Cármen. Todos pensam que com outra será melhor.
Gregory foi-se embora em Setembro e em Janeiro do ano seguinte Tom Clayton partiu para Washington com a intenção de se incorporar na equipa da imprensa do presidente mais carismático do século, cuja política de grandes ideias o fascinava. Desejava apalpar o poder e participar nos sobressaltos da História, sentia que no Oeste não havia futuro para um jornalista ambicioso, estava demasiado longe do coração do império como disse a Cármen. Deixou-a lavada em lágrimas, porque nessa altura estava apaixonada pela primeira vez, comparados com o sentimento que então a sacudia, todos os outros tinham sido namoricos insignificantes. Por telefone e em breves notas salpicadas de horrores gramaticais, contou a Gregory todos os pormenores do seu romântico suplício, censurando-o não só por a ter deixado sozinha em tal momento, mas também por lhe ter mentido a propósito da corrente eléctrica, porque sabendo como era o assunto na realidade, não teria demorado tanto tempo a fazê-lo parte da sua vida.
- É pena que estejas tão longe, Greg. Não tenho com quem desabafar.
- Aqui as pessoas são mais modernas, todos dormem com todos e depois falam disso.
- Se os meus pais sabem matam-me.
Os Morales souberam-no três meses mais tarde, quando chegou a polícia para os interrogar. Tom Clayton não respondeu às cartas de Cármen nem deu sinais de vida até que várias semanas mais tarde ela conseguiu apanhá-lo por telefone a uma hora avançada da madrugada, para lhe dizer, com a voz quebrada de terror, que estava grávida. O homem foi amável, mas categórico: esse não era problema seu, queria dedicar-se ao jornalismo político, e tinha que pensar na sua carreira, não era caso de regressar nesse momento e por outro lado nunca tinha mencionado a palavra matrimónio, era partidário das relações espontâ-neas e supunha que ela partilhava as suas ideias, não tinham discutido isso tantas vezes? Em todo o caso não queria prejudicá-la, assumia a sua responsabilidade, no dia seguinte poria um cheque no correio para se resolver da maneira habitual esse pequeno inconveniente. Cármen abandonou a central de telefones e caminhou como uma sonâmbula até uma cafetaria, onde se deixou cair numa cadeira, totalmente descom-posta. Ali esteve com os olhos cravados na chávena até que lhe anun-ciaram a hora de fechar o local. Mais tarde, estendida sobre a cama com uma dor surda nas fontes, decidiu que o mais importante era guardar segredo ou arruinaria a sua vida irremissivelmente. Nos dias seguintes esteve várias vezes quase a marcar o número de Gregory, mas nem a ele desejava confiar a sua desgraça. Essa era a sua hora da verdade e quis enfrentá-la sozinha, uma coisa era desafiar o mundo com vagas fanfarronices feministas e outra muito distinta ser mãe solteira naquele meio. Concluiu que a sua família não voltaria a dirigir-lhe a palavra, que a expulsariam de casa, do seu clã e até do bairro, os pais e irmãos morreriam de vergonha, ficaria a seu cargo uma criança, mantê-la e criá-la, trabalhar em qualquer ofício para sobreviver, as mulheres iam repudiá-la e os homens tratá-la-iam como a uma prosti-tuta. Pensou que o menino carregaria também o peso insuportável do anátema. Não tinha estofo para tão grande batalha, nem tão-pouco o tinha para tomar uma resolução. Debateu-se nessa incerteza um tempo interminável, dissimulando as náuseas que a vergavam de manhã e a sonolência que a deitava abaixo à tarde, iludindo a família e comuni-cando o mínimo com Gregory, até que um dia não conseguiu abotoar a saia e compreendeu a urgência de actuar o mais depressa possível. Telefonou outra vez para Tom Clayton, mas disseram-lhe que estava em viagem e não sabiam quando ia regressar. Então foi à igreja de Lourdes, pedindo que o padre basco não aparecesse, ajoelhou-se em frente do altar, como tantas vezes tinha feito na sua vida, e pela primeira vez dirigiu-se à Virgem para falar de mulher para mulher. Havia anos que cultivava caladas dúvidas sobre a religião, a missa de domingo tinha-se tornado só um ritual social para ela, mas naquele instante de temor teve necessidade de se reencontrar com os consolos da sua fé. A estátua de Nossa Senhora com as roupagens de seda e a auréola de pérolas não lhe ofereceu ajuda, o rosto de gesso olhava o vazio com os seus olhos de vidro pintado. Cármen explicou-lhe as suas razões para cometer o pecado que estava a planear, pediu-lhe benevolência e a bênção e foi dali directamente a casa de Olga.
- Não devias ter esperado tanto - disse a maga depois de a apalpar com as suas mãos experientes. - Nas primeiras semanas não há problemas, mas agora...
- Agora também. Tens que o fazer.
- É muito arriscado.
- Não importa. Por favor ajuda-me... - e largou a chorar desespe-rada nos braços da adivinha.
Olga tinha visto crescer Cármen, os Morales eram como da sua própria família, e tinha vivido naquele bairro o suficiente para saber o que esperava a rapariga logo que começasse a notar-se-lhe a barriga. Disse-lhe para aparecer na noite seguinte, preparou os instrumentos e as ervas medicinais e deu brilho ao seu Buda, porque naquela ocasião as duas iam necessitar de muita sorte. Cármen disse em casa que iria com uma amiga à praia por alguns dias e mudou-se para casa de Olga. Nada havia do alegre desenfado da jovem, o medo à dor imediatamente anulava os outros temores, não podia pensar nos riscos nem nas consequências possíveis, a única coisa que queria era dormir profundamente e despertar livre daquele pesadelo. Mas apesar das mezinhas de Olga e a metade da garrafa de uísque que bebeu a seco não perdeu o sentido do presente e nenhum sono piedoso a ajudou no transe, teve que suportá-lo atada pelos pulsos e tornozelos à mesa da cozinha, com um trapo metido na boca para que os seus gemidos não se ouvissem na rua, até que não aguentou mais e lhe fez sinais de que preferia qualquer coisa menos aquele martírio, mas a curandeira respondeu-lhe que já era tarde para se arrepender, tinham que chegar ao fim daquela tarefa brutal. Depois Cármen ficou encolhida como uma criança, com uma botija de gelo no ventre, chorando copiosamente, até que o cansaço a venceu, os calmantes e o álcool lhe fizeram efeito e pôde dormir. Trinta horas depois, quando ainda não despertara e parecia perdida em delírios do outro mundo, enquanto um fio de sangue, ténue mas constante, manchava os lençóis, Olga soube que pela primeira vez lhe tinha falhado a sua estrela da boa sorte. Tentou baixar-lhe a febre e parar a hemorragia com todos os recursos do seu engenhoso reportório, mas a rapariga piorava de minuto a minuto, era evidente que a vida lhe estava a fugir. Olga ficou aflita, podia morrer debaixo do seu tecto e nesse caso ela estava perdida, por outro lado, não podia pô-la na rua nem avisar a família. Enquanto lhe segurava a cabeça para a obrigar a beber água, pareceu-lhe que murmurava o nome de Gregory, compreendeu que era o único a quem podia pedir ajuda. Quando lhe telefonou já ele dormia. Vem agora mesmo, disse-lhe, e pelo tom da sua voz adivinhou a urgência da mensagem, não fez perguntas, apanhou o primeiro avião da manhã e poucas horas depois tinha a sua amiga nos braços e levava-a num táxi ao hospital mais próximo, lamentando que naquelas horríveis semanas não tivesse confiado nele, porque me puseste de lado, eu devia acompanhar-te, eu disse-te, Cármen, Tom Clayton é um desalmado filho da puta, mas nem todos são iguais, nem todos se metem na cama e se vão embora, como diz teu pai, juro-te que há melhor que Clayton, porque não me deixaste ajudar-te antes, talvez o bebé tivesse vivido, não devias fazer isto sozinha, para que somos amigos, para que somos irmãos senão para nos ajudarmos, que porra de vida, Cármen, não me vás morrer, por favor não morras.
Enquanto os cirurgiões operavam, a polícia, avisada pelo hospital das condições em que chegou a doente, tentava arrancar informações a Gregory Reeves.
- Façamos um acordo - ofereceu o oficial exasperado depois de três horas de interrogatório inútil. - Dizes-me quem lhe fez o aborto e deixo-te ir embora imediatamente, nem sequer ficas com ficha. Não há mais perguntas, nada, ficas totalmente livre.
- Não sei quem o fez, já disse cem vezes. Nem seque vivo aqui, tomei o avião da manhã, veja a minha passagem. A minha amiga telefonou-me e trouxe-a ao hospital, é tudo o que sei.
- És o pai da criança?
- Não. Não via Cármen Morales há mais de oito meses.
- Onde a foste buscar?
- Esperava-me no aeroporto.
- Isso é impossível, não podia caminhar. Diz-me onde a foste buscar e deixo-te ir. De contrário vais preso por cúmplice e por encobridor.
- Isso terá de ser provado.
E voltava a repetir-se uma vez mais o ciclo de perguntas, respostas, ameaças e evasivas. Por último, os polícias soltaram-no e foram a casa dos Morales interrogar a família. Foi assim que Pedro e Inmaculada souberam do sucedido e embora suspeitassem de Olga não o disseram, em parte porque adivinharam a boa intenção de ajudar a sua filha e em parte porque no bairro mexicano a denúncia era um crime inconcebível.
- Deus castigou-a, assim não tenho que castigá-la eu - disse Pedro Morales com vez rouca quando soube do grave estado em que a filha se encontrava.
Gregory Reeves ficou junto da amiga até passar o perigo. Dormiu sentado numa cadeira a seu lado durante três noites, despertando de vez em quando para vigiar a respiração da doente. No quarto dia, de madrugada, Cármen acordou com fome.
- Tenho fome - disse.
- Graças a Deus! - sorriu ele tirando da bolsa uma lata de leite condensado. Beberam o líquido doce e pegajoso em sorvos lentos, de mão dada, como tantas vezes tinham feito em meninos.
Entretanto Olga pegava na sua mala e ia para Porto Rico, o mais longe que podia, dizendo no bairro que partia para jogar nos casinos de Las Vegas porque lhe tinha aparecido o espírito de um índio para lhe segredar ao ouvido uma combinação de cartas. Pedro Morales pôs uma fita negra no braço, disse na rua que lhe tinha morrido um parente, fez saber em casa que a sua filha nunca tinha existido e proibiu que se mencionasse o seu nome. Inmaculada prometeu à Virgem rezar um terço todos os dias até ao fim da vida para perdoar a Cármen o pecado cometido, pegou no dinheiro que tinha escondido debaixo de uma tábua do soalho e foi vê-la sem o marido saber. Encontrou-a sentada numa cadeira olhando pela janela o muro de tijolos do edifício da frente, vestida com a túnica de grosseiro tecido verde do hospital. Viu-a tão infeliz que guardou as reprimendas e as lágrimas e apenas a abraçou. Cármen escondeu a cara no peito da mãe e deixou-se embalar por longo tempo, aspirando aquele odor de roupa limpa e cozinhados que a tinha acompanhado na infância.
- Aqui tens as minhas poupanças, filha. é melhor ires embora por algum tempo, até que o coração do teu pai se abrande por sentir a tua falta. Escreve-me, não para casa, mas para a de Nora Reeves, é a pessoa mais discreta que conheço. Cuida muito de ti e que Deus te ajude...
- Deus esqueceu-se de que eu existo, mamã.
- Não digas isso nem a brincar - atalhou Inmaculada. - Passe o que se passar Deus ama-te e eu também, minha filha. Estaremos os dois sempre a teu lado, percebeste?
- Sim, mamã.
Gregory Reeves viu Samantha Ernst pela primeira vez num campo de ténis onde jogava enquanto ele podava os arbustos à volta do parque. Um dos seus empregos era o serviço de sala de jantar num pavilhão feminino que havia em frente de sua casa. Duas cozinheiras preparavam os alimentos e Gregory dirigia uma equipa de cinco estudantes para servir à mesa e lavar os pratos, posição muito invejada porque lhe dava livre acesso ao edifício das estudantes. Nas horas livres trabalhava como jardineiro. Além de cortar a sebe e arrancar ervas, nada sabia de plantas quando começou mas tinha um bom mestre, um romeno chamado Balcescu, de aspecto bárbaro e coração brando, que rapava a cabeça e dava lustro ao crânio com um pano de feltro, arranhava uma vertiginosa misturada de idiomas e amava as plantas tanto como a si mesmo. No seu país fora guarda de fronteira, mas mal surgiu ocasião fugiu aproveitando o seu conhecimento do terreno e depois de muito deambular entrou nos Estados Unidos a pé pelo Canadá, sem dinheiro, sem papéis e só com duas palavras em inglês: dinheiro e liberdade. Convencido que disso se encarregaria a América, fez poucos esforços para alargar o seu vocabulário fazendo-se entender por mímica. Com ele Gregory aprendeu a lutar contra as lagartas, moscas brancas, caracóis, formigas e outros bichos inimigos da vegetação, a fertilizar, fazer enxertos e transplantações. Mais do que um trabalho, essas horas ao ar livre eram um divertido passatempo, sobretudo porque tinha que decifrar as instruções do seu chefe mediante um permanente exercício de intuição. Nesse dia em que podava a cerca fixou os olhos numa das jogadoras de ténis, ficou a observá-la um bom bocado, não tanto pelo aspecto da rapariga, que em repouso não lhe chamara a atenção, mas pela sua posição de atleta. Tinha músculos tensos, pernas velozes, um rosto largo e ossos nobres, o cabelo curto e aquele bronzeado um pouco terroso de quem estivera sempre ao sol. Gregory sentiu-se atraído pela sua agilidade de animal sadio, esperou que terminasse a partida e ficou na saída à espera dela. Não sabia o que lhe havia de dizer e quando ela passou a seu lado com a raqueta ao ombro e a pele a brilhar de suor, ainda não lhe ocorria nenhuma frase especial, ficou mudo. Seguiu-a a certa distância e viu-a entrar num ostensivo carro desportivo. Nessa noite contou isso a Timothy Duane, num tom de estudada indiferença.
- Não és tão cretino que te vás apaixonar, Greg.
- Claro que não. Gosto dela, nada mais.
- Não vive no lar?
- Nunca a vi lá.
- Pouca sorte. De alguma vez te teria servido a chave...
- Não parece estudante, tem um descapotável vermelho.
- Deve ser a mulher de algum magnata...
- Não acredito que seja casada.
- Então é puta.
- Onde é que viste putas a jogar ténis, Tim? Trabalham de noite e dormem de dia. Não sei como falar com uma rapariga destas... é muito diferente das do meu meio.
- Não lhe fales. Joga ténis com ela.
- Nunca peguei numa raqueta.
- Não posso acreditar! Que fizeste tu em toda a tua vida?
- Trabalhar.
- Que diabo sabes tu fazer, Greg?
- Dançar.
- Então convida-a para dançar.
- Não me atrevo.
- Queres que eu lhe fale?
- Nem te aproximes! - exclamou Gregory, pouco disposto a com-petir com o amigo aos olhos fosse de quem fosse e muito menos aos olhos daquela mulher.
No dia seguinte esteve um bom bocado a espiá-la enquanto fingia ocupar-se com os arbustos, quando ela passou a seu lado fez um gesto para a deter, mas de novo a timidez o venceu. A cena repetiu-se até que, por fim, Balcescu viu que as plantas tinham sido podadas até à raiz e decidiu intervir antes que o resto do parque sofresse igual sorte. O romeno entrou no campo, interrompeu a partida com um chorrilho de palavras em língua da Transilvânia e como a aterrorizada rapariga não obedecesse aos seus gestos peremptórios apontando para o seu admirador, que observava atónito do outro lado da rede, agarrou-a por um braço e arrastou-a murmurando qualquer coisa a respeito de dinheiro e de liberdade, para ainda maior confusão da jogadora. E foi assim que Gregory Reeves se encontrou cara a cara com Samantha Ernst, que para escapar de Balcescu se agarrou a ele, e terminaram a beber café com o beneplácito do pitoresco mestre jardineiro. Sentaram-se numa desengonçada mesa da cafetaria mais frequentada da cidade, um canto em perpétua decadência, apinhado de gente, onde várias gerações de estudantes tinham escrito milhares de poemas e discutido todas as teorias possíveis e outros casais como eles tinham iniciado o cauteloso processo de se conhecer. Gregory tentou deslumbrá-la com o seu reportório de temas literários, mas perante o seu ar distraído logo abandonou essa táctica optando por descobrir a pouco e pouco um terreno comum. A jovem também não se entusiasmou com os direitos civis ou com a revolução cubana, parecia não ter opinião sobre nada, mas Gregory confundiu a sua atitude passiva com a profundidade do espírito e não largou a presa.
Fora do campo desportivo Samantha Ernst não oferecia muito interesse, mas de qualquer modo bastante mais que as jovens da escola secundária ou do bairro latino. Queria dedicar-se à arqueologia, gostava da ideia de explorar lugares exóticos em busca de civilizações milenárias ao ar livre e de calções, mas quando pesou as exigências da profissão renunciou aos seus propósitos. Não tinha estofo para a meticulosa classificação de ossos raiados e pedaços de cântaros que não servem para nada. Começou então um tempo de indecisão que abarcaria diversos aspectos da sua existência. Tinha crescido na formosa casa com duas piscinas de um produtor de filmes de Hollywood, o pai casou-se quatro vezes e vivia rodeado de ninfas recém-saídas da casca a quem prometia um estrelato fulminante em troca de pequenos favores pessoais. A mãe, uma aristocrata da Virgínia com orgulho de rainha e bons modos de preceptora, suportou estoicamente os devaneios do marido com o consolo de um arsenal de drogas e vários títulos de crédito, até que um dia se olhou ao espelho e não distinguiu a própria imagem, apagada pelo desgaste da solidão. Encontraram-na a flutuar em espuma rosada na banheira de mármore onde cortara as veias. Samantha, que então tinha dezasseis anos, conseguiu passar despercebida no tumulto de meios-irmãos, ex-esposas, noivas de momento, criados, amizades e cães de raça da mansão paterna. Continuou a nadar e a jogar ténis com a mesma tenacidade de sempre, sem nostalgias inúteis e sem julgar sua mãe.
Tinha pouco a ver com ela, não tivera com ela nenhuma intimidade e talvez a tivesse esquecido de todo a não ser pelos pesadelos da espuma rosada. Chegou a Berkeley, como tantos outros, atraída pela sua reputação libertária, estava farta das boas maneiras burguesas impostas pela mãe e das festas de efebos e donzelas do seu pai. O seu automóvel chamava a atenção no meio dos bate-latas amolgados dos outros estudantes e a sua casa era um refúgio boémio fechado no meio das árvores e gigantescos fetos com uma vista soberba da baía, cujo aluguer era pago pelo pai. Gregory ficou deslumbrado pelo requinte da jovem, não conhecia ninguém capaz de comer com seis talheres e distinguir a autenticidade de um xaile de caxemira ou de um tapete persa à primeira vista, excepto Timothy Duane, mas ele gozava com tudo, especialmente dos xailes de caxemira e dos tapetes persas. A primeira vez que a convidou para dançar ela apareceu radiante com um vestido amarelo bem decotado e com colar de pérolas. Sentindo-se ridículo no fato emprestado por Duane, compreendeu que a tinha de levar a um sítio muito mais caro do que tinha pensado. Samantha dançava mal, seguia a música com atenção e contava os passos, dois, um, dois, um, rígida como uma vassoura nos braços do companheiro, bebia sumo de frutas, falava pouco e tinha um ar tão distante e frio que Gregory a imaginou carregada de mistério. Pôs a sua teimosia ao serviço desse amor e convenceu-se de que os gostos comuns ou a paixão não eram requisitos indispensáveis para formar uma família. E essa era exactamente a sua intenção, ainda que não se atrevesse a admiti-lo no seu íntimo e muito menos a pô-lo em palavras. Toda a sua vida tinha desejado pertencer a um verdadeiro lar, como o dos Morales, e tão apaixonado estava por aquele sonho doméstico, que decidiu realizá-lo com a primeira mulher ao seu alcance sem investigar se ela tinha ou não o mesmo plano.
Reeves graduou-se com mérito em Literatura, o seu bom amigo Cyrus deve tê-lo-ia celebrado no outro mundo, e entrou na Escola de Leis em São Francisco. A ideia de ser advogado surgiu-lhe para contradizer Timothy Duane que considerava que o mais parecido com um advogado é um corsário, por isso logo se sentiu seduzido. Mal tomou a decisão telefonou a Olga para lhe dizer que ela se enganara na ideia acerca dele, não seria bandido nem polícia, se o pudesse evitar. A feiticeira, que tinha regressado de Porto Rico há bastante tempo com novos conhecimentos adivinhatórios e medicinais, respondeu-lhe que tinha acertado metade, como sempre, porque ia trabalhar com a lei e além disso os advogados não eram outra coisa senão ladrões com licença. Uma das razões de Reeves para continuar os estudos foi evitar o serviço militar enquanto pudesse. A guerra do Vietname, que antes parecia um conflito minúsculo e longínquo, tinha tomado um aspecto alarmante e já não era divertido exibir o uniforme de oficial da reserva nem exercitar-se em jogos bélicos durante os fins-de-semana. Um adiamento de três ou quatro anos, enquanto recebia o diploma, podia salvá-lo de ir para a frente.
- Não encontro explicação para a feroz resistência desses anÕes orientais. Como é que não perceberam que somos o poder militar mais esmagador da História? Estamos a ganhar com certeza. As suas baixas são tantas, segundo os cálculos oficiais, que não ficam inimigos vivos, os que disparam do outro lado são fantasmas - gozava Timothy Duane.
Aquilo que para Duane era um sarcasmo, para muitos outros constituía uma verdade, estavam convencidos de que bastaria um último esforço e esses seres ilusórios seriam vencidos para sempre ou eliminados da face do planeta. Assim o asseguravam os generais pela televisão, enquanto nas suas costas as câmaras mostravam as filas de bolsas com corpos de soldados americanos esperando nas pistas de aterragem. Hinos, bandeiras e desfiles nas cidades da pátria. Fragor, pó e confusão no Sudoeste Asiático. Calado registo do nome dos mortos, nenhuma lista dos mutilados no corpo e na alma. Nos protestos de rua os jovens pacifistas queimavam bandeiras e convocatórias de recrutamento. Traidores, maricas vermelhos, se não gostam da América vão-se embora, não os queremos, gritavam-lhes os seus adversários. A polícia sufocava as revoltas à cacetada e por vezes a tiro. Paz e amor, irmãos, cantarolavam entretanto os hippies oferecendo flores aos que lhes apontavam espingardas, dançando em roda de mãos dadas, com os olhos perdidos num paraíso de marijuana, sorrindo sempre com a chocante felicidade que ninguém lhes podia perdoar. Gregory vacilava. Atraía-o a aventura da guerra, mas sentia uma desconfiança instintiva contra o entusiasmo bélico. Dementes, todos dementes, suspirava Timothy Duane, livre do serviço militar à custa de uma dúzia de duvidosos atestados médicos, que provavam uma infância de doenças.
Depois de um longo período de amizade, a paixão inicial de Gregory por Samantha tornou-se amor, a sua desconfiança dissipou-se e a relação acomodou-se nos hábitos e ritos dos noivos eternos. Partilha-vam o cinema e as excursões ao ar livre, concertos e teatros, sentavam-se juntos a estudar debaixo das árvores, outras vezes encontravam-se à saída das aulas em São Francisco e passeavam como turistas de mão dada pelo bairro chinês. Os planos de Reeves eram tão burgueses que não se atrevia nem a comentá-los com Samantha, construiriam uma casa com jardim de rosas e enquanto ele ganhava o pão como advogado ela cozinharia e criaria os meninos, tudo correcto e decente. A recordação do seu lar no camião ambulante, quando o pai estava bom, perdurava na sua memória como o único tempo feliz da sua vida. Imaginava que, se pudesse reproduzir essa pequena tribo, se tornaria a sentir seguro e tranquilo, sonhava sentar-se à cabeceira de uma grande mesa com os seus filhos e amigos, como tantas vezes tinha visto em casa dos Morales. Pensava neles frequentemente, porque apesar das pobrezas e limitações do meio onde tiveram que viver eram o melhor exemplo ao seu alcance. Naqueles tempos de comunidades hippies e comida rápida a sua secreta ilusão de patriarca era suspeita e mais valia não a mencionar em voz alta. A realidade mudava em ritmo aterrador, todos os dias havia menos espaço para mesas familiares, o mundo rodava velozmente, as coisas andavam de pernas para o ar, a vida tinha-se tornado uma verdadeira luta e nem sequer o cinema, único terreno seguro de outros tempos, oferecia o menor consolo. Os vaqueiros, os índios, os apaixonados castos e os bravos soldados nos seus solenes uniformes apareciam na televisão em filmes antigos interrompidos de dez em dez minutos por anúncios comerciais de desodorizantes e cerveja, mas no santuário das salas de cinema, onde antes se refugiava em busca de uma efémera tranquilidade, havia agora muitas probabilidades de receber um golpe baixo. John Wayne, o herói duro, valente e solitário, a quem tentava imitar sem nenhum êxito, tinha retrocedido perante o avanço dos filmes de vanguarda. Preso na sua cadeira de espectador suportava guerreiros japoneses fazendo o harakiri no ecrã grande, lésbicas suecas em acção e extraterrestres sádicos apoderando-se do planeta. Nem com os melodramas podia descontrair-se porque já não terminavam com beijos mas sim em depressão e suicídio.
Nas férias separavam-se durante semanas, Samantha ia visitar o pai e ele distribuía o seu tempo entre os obrigatórios acampamentos militares e o trabalho da política difundindo junto de outros estudantes os postulados dos direitos civis. Impossível haver duas realidades mais diferentes: os rudes treinos militares onde brancos e pretos eram aparentemente iguais sob as ordens do sargento, e as arriscadas missões pelos estados do Sul, onde trabalhava com as comunidades negras praticamente em segredo para evitar os grupos de rufias brancos dispostos a impedir qualquer ideia de justiça racial. Por essa altura os Panteras Negras com as suas boinas, a sua malévola retórica e as suas marchas marciais causavam espanto e fascínio. Negros de arrogante negritude, negros vestidos de negro com óculos escuros e expressão provocante, ocupavam todo o passeio ao caminhar, de braços dados com as mulheres, negras atrevidas marchando com os seios erguidos apontando para a frente, já não cediam a passagem aos brancos, já não olhavam para o chão nem baixavam a voz. Os tímidos e humilhados de outrora agora desafiavam. No fim do Verão os noivos reencontravam-se sem urgência, mas com sincera alegria como dois bons camaradas. Discutiam raras vezes, não falavam de temas conflituosos, mas também não se mostravam chateados, o silêncio era-lhos cómodo. Gregory não pedia opiniões a Samantha nem lhe contava as suas actividades, porque ela parecia não o escutar, o esforço de comunicar as suas ideias incomodava-a. Nada a entusiasmava, a não ser o desporto e algumas novidades trazidas do Oriente, como danças migratórias dos derviches e técnicas de meditação transcendental. Nesse aspecto tinha muito por onde escolher, porque a cidade oferecia uma infinidade de cursilhos maratónicos para aquelas que desejavam adquirir a laboriosa sabedoria dos grandes místicos da Índia num cómodo fim-de-semana.
Reeves tinha-se criado entre Logi e Mestres Funcionários, tinha visto a sua mãe desprender-se da realidade e fugir por caminhos espiri-tuais, e conhecia as bruxarias de Olga, não raro ridicularizava essas disciplinas. Samantha lamentava a sua escassa sensibilidade, mas não se ofendia nem tentava mudá-la, o trabalho teria sido esgotante. A sua energia era muito limitada, talvez fosse simplesmente negligente como os seus gatos, mas naquele sitio e naquele tempo era fácil confundir o seu temperamento abúlico com a paz budista tão em voga. Faltava-lhe brio inclusivamente para o amor, mas Gregory insistia em chamar timidez à frieza, e punha a sua perseverante imaginação ao serviço daquele insípio noivado, inventando virtudes onde não as havia. Apredeu a usar uma raqueta de ténis para acompanhar a noiva na sua única paixão, mesmo detestando aquele jogo porque nunca conseguia ganhar-lhe e como se tratava de uma competição entre apenas dois adversários não tinha maneira de dividir a derrota entre outros membros da mesma equipa. Ela, pelo contrário, não fez por aprender nenhuma das coisas que o atraíam, a ele. Na única ocasião em que ouviram uma ópera, ela dormiu no segundo acto e sempre que saiam para dançar acabavam de mau humor porque ela era incapaz de descontrair-se ou de vibrar com a música. O mesmo quando faziam amor, abraçavam-se em ritmos diferentes e ficava-lhes uma sensação de vazio, mas nenhum dos dois viu nesses desencontros um aviso para o futuro, deitaram as culpas para o receio da gravidez. Ela recusava todos os contraceptivos, uns por serem pouco estéticos ou incómodos e outros porque não estava disposta a interferir no delicado equilíbrio das suas hormonas. Cuidava do corpo de maneira obsessiva, fazia ginástica durante horas, bebia litros de água por dia e tomava banhos de sol toda nua. Enquanto Gregory aprendia a cozinhar com as suas amigas Joan e Susan e lia o Kamasutra e quantos manuais eróticos calam nas suas mãos, ela mordiscava vegetais crus e defendia a castidade como medida higiénica para o organismo e disciplina da alma.
Reeves perdeu o encantamento inicial pela universidade na exacta medida em que perdeu o acento chicano. Ao licenciar-se concluiu, como tantos outros, que tinha obtido mais conhecimentos na rua do que nas aulas. A educação universitária fazia por adaptar os estudantes a uma existência produtiva e dócil, projecto que esbarrava contra a recente rebelião dos jovens. Os professores não davam por esse terramoto, enfrascados nas suas pequenas rivalidades e na sua burocracia não percebiam a gravidade do que estava a ocorrer. Durante esse tempo Gregory não teve mestres dignos de ser recordados, nenhum como Cyrus que o obrigava a rever as ideias e a aventurar-se na exploração intelectual, apesar de muitos serem celebridades científicas ou huma-nistas. As horas gastava-as em investigações inúteis, memorizando dados e escrevendo dissertações que ninguém revia. As suas român-ticas ideias sobre a vida de estudante foram varridas por uma rotina sem sentido. Não queria abandonar aquela cidade extravagante, apesar de, por razões práticas, ter sido preferível viver em São Francisco. A República Popular de Berkeley tinha-se-lhe metido debaixo da pele, gostava de se perder naquelas ruas onde pululavam swamis em túnicas de algodão, mulheres com ares de espíritos renascentistas, sábios sem objectivo na terra, revolucionários sem revoluções, músicos de rua, pregadores, loucos, vendedores de bagatelas, artesãos, polícias e criminosos. O estilo da Índia predominava entre os jovens, que dese-javam afastar-se o mais possível dos seus pais burgueses. Vendia-se de tudo quanto havia pelas ruas e praças: drogas, camisas, discos, livros usados, adornos de pacotilha. O tráfego era um tumulto de autocarros cobertos de graffíti, bicicletas, antigos Cadillacs verde-limão e rosa-melancia, e carros decrépitos de uma empresa de taxis baratos para a gente normal e gratuitos para a gente especial, como vagabundos e manifestantes de algum protesto.
Para ganhar a vida, depois das aulas, Gregory cuidava de meninos que recolhia na escola e entretinha durante algumas horas da tarde, até que os pais regressassem a casa. A princípio só contava com cinco crianças, mas logo aumentou o número e pôde deixar o emprego de moço no pavilhão das raparigas e de jardineiro com Balcescu, comprou um pequeno autocarro e contratou dois ajudantes. Ganhava mais dinheiro que qualquer dos seus companheiros e visto de fora o trabalho era simpático, mas na prática resultava esgotante, os meninos pareciam de areia, todos iguais à distância, escorregadios quando tentava impor-lhes limites e pegajosos quando os queria tirar de cima dele, mas teve carinho por eles, e nos fins-de-semana sentia-lhes a falta. Um dos miúdos tinha talento para desaparecer, fazia tantos esforços para passar despercebido que por isso mesmo seria o único a não se fazer esquecer nos anos vindouros. Uma tarde perdeu-se. Antes de partir, Gregory contava sempre os miúdos, mas daquela vez estava atrasado e não o fez. O percurso habitual levou-o a casa do miúdo e ao chegar deu conta, aterrado, de que não estava no autocarro. Deu a volta e regressou ao parque, onde chegou quando já escurecia. Correu chamando-o a plenos pulmões, enquanto dentro do veículo os outros choramingavam cansados, e por último voou até um telefone para pedir socorro. Quinze minutos mais tarde tinha um destacamento de polícia com lanternas e cães, vários voluntários, uma ambulância que esperava no caso de ser precisa, dois jornalistas, um fotógrafo e uns cinquenta vizinhos e curiosos observando por detrás dos cordões.
- Tem que avisar os pais - decidiu o oficial.
- Meu Deus! Como lhes vou dizer?
- Vamos, eu acompanho-o. Estas coisas acontecem, eu já vi de tudo. Depois aparecem os cadáveres, é melhor não os descrever, alguns violados... torturados... Nunca faltam pervertidos. Eu mandava-os a todos para a cadeira eléctrica.
Reeves sentiu fraquejar-lhe os joelhos, sentia náuseas. Ao chegar, abriu-se a porta e apareceu o malandro perdido com a cara lambuzada de manteiga de amendoim. Tinha-se chateado e preferiu ir para casa ver televisão, disse ele. A mãe ainda não tinha chegado do trabalho e não suspeitava que davam o seu filho por desaparecido. Desde esse dia, Gregory amarrou uma corda na cintura do seu cliente fugitivo, tal como fazia Inmaculada Morales com a mãe louca, isso evitou novos problemas e desanimou qualquer assomo de independência nos outros meninos. Excelente ideia, que importa se depois têm de pagar a um psiquiatra para que lhes tire o complexo de cão fraldisqueiro, comentou Cármen a quem ele contou por telefone.
Joan e Susan mudaram-se para uma antiga mansão bastante deteriorada, mas ainda firme nos seus pilares, onde inauguraram um restaurante vegetariano e macrobiótico que com os anos seria o melhor da cidade. No seu lugar instalou-se na casa uma colónia de hippies que começou a crescer e a multiplicar-se em ritmo veloz. Primeiro, foram dois casais com os filhos, mas depressa a tribo aumentou, as portas permaneciam abertas para os que quisessem chegar àquele oásis de drogas, artesanato modesto, ioga, música oriental, amor livre e panela comum. Timothy Duane não aguentou a desordem e a imundície e alugou um apartamento em São Francisco, onde estudava medicina. Ofereceu-o para ser compartilhado, mas Reeves não se decidiu a deixar a mansarda, apesar de também estudar na cidade e estar farto dos hippies. Incomodava-o encontrar estranhos no seu quarto, detestava a música monótona dos tamborins, apitos e flautas, e ficava em cólera quando desapareciam os seus objectos pessoais. Paz e amor, irmão, sorriam-lhe com mansidão os chamados Filhos das Flores quando descia que nem uma fera a reclamar pelas camisas. Regressava quase sempre com o rabo entre as pernas ao último rincão privado do seu quarto, sem os botins e sentindo-se que nem um apodrecido capitalista. Berkeley tinha-se tornado o centro de drogas e rebelião, todos os dias apareciam novos nómadas em busca do paraíso, chegavam em motos ruidosas, calhambeques desconjuntados e autocarros adaptados como vivendas provisórias, acampavam nos parques públicos, copulavam docemente nas ruas, alimentavam-se de ar, música e ervas. O cheiro da marijuana anulava os outros aromas. Eram duas revoluções em marcha, uma a dos hippies que tentavam mudar as leis do universo com orações em sânscrito, flores e beijos, e, outra, a dos iconoclastas que pretendiam mudar as leis do país com protestos, gritos e pedras. A segunda tinha mais a ver com o caracter de Gregory, mas não lhe sobrava tempo para essas actividades e esgotou-se-lhe o entusiasmo pelas revoltas de rua quando compreendeu que se tinha tornado um modo de vida, uma espécie de passatempo sofrido. Deixou de se sentir culpado quando ficava a estudar em vez de provocar a polícia, considerava mais útil o seu silencioso trabalho, casa a casa, entre os negros do Sul durante os Verões. Quando não havia manifestações de apoio aos direitos civis, havia-as contra a guerra do Vietname, raramente passava um dia sem alguma discussão pública. A polícia usava tácticas e equipas de combate para manter o simulacro da ordem. Organizou-se uma contra-ofensiva destinada a preservar os valores dos Pais da
Pátria, entre os horrorizados com a promiscuidade, a revolta e o desprezo pela propriedade privada. Levantou-se um coro de vozes em defesa do sagrado american way of life. Estão a demolir os fundamentos da civilização cristã ocidental! Este país vai acabar transformado em Sodoma comunista e psicadélica, é o que esses desgraçados querem! Os negros e os hippies mandarão o sistema para o caralho!, dizia Timothy Duane em tom de chacota a seu pai e a outros senhores do clube. Não eram os únicos a meter todos os dissidentes no mesmo saco, nessa simplificação costumava cair também a imprensa, embora bastasse apenas uma olhadela superficial para ver as enormes diferenças. Os direitos civis fortaleciam-se na mesma medida em que os hippies, embarcados numa viagem prodigiosa com cogumelos alucinogéneos, erva, sexo e rock, pouca conta davam das suas próprias debilidades e da força dos seus inimigos, acreditavam que a humanidade tinha entrado numa etapa superior e nada tornaria a ser como dantes. Não devemos subestimar a estupidez humana, uns quantos chanfrados beijam-se e tatuam pombas no peito, mas asseguro-te que deles não vai ficar nem rasto, a História vai devorá-los, dizia Duane. Nas prolongadas conversas nocturnas com os amigos, ele punha sempre a nota céptica, convencido de que a mediocridade derrotaria finalmente os grandes ideais e que por isso não valia a pena entusiasmar-se com a Era do Aquário nem com nenhuma outra. Sustentava que era uma perda de tempo gastar os Verões inscrevendo os negros nos registos eleitorais, porque não se dariam ao trabalho de votar ou fá-lo-iam pelos republicanos, no entanto, cada vez que se tratava de juntar fundos para as campanhas dos direitos civis fazia por arrancar um cheque de três zeros a sua mãe. Defendia o feminismo como uma magnífica intenção porque o libertava de pagar a parte da mulher num encontro e de caminho podia levá-la de graça para a cama, mas na vida real não aproveitava essas vantagens. Tinha uma atitude cínica que chocava e divertia Gregory.
Liberdade e dinheiro, dinheiro e liberdade, profetizava enigmatica-mente Balcescu, que então tinha adquirido um vocabulário um pouco mais extenso em inglês, tinha deixado crescer uma trança de mandarim no seu crânio rapado, vestia como um camponês feudal russo e ensinava no parque a sua própria filosofia a um grupo de seguidores. Duane atribuía o êxito do mestre jardineiro ao facto de ninguém entender de que raio estava a falar e a sua extraordinária perícia para cultivar marijuana em banheiras e cogumelos mágicos em floreiras dentro dos armários. O romeno tinha na sua garagem uma pequena fábrica de ácido lisérgico, negócio florescente que em pouco tempo o tornou homem rico. Embora Gregory não trabalhasse com ele havia anos, tinham mantido uma boa amizade baseada no amor pelas rosas e pelos prazeres da comida. Balcescu tinha um instinto natural para inventar pratos à base de alho que nomeava de maneira impronunciável e fazia passar como típicos do seu país. Também lhe ensinou a cultivar rosas em barris com rodas, para as poder levar consigo em caso de mudar de casa ou emigrar.
- Não penso emigrar! - ria-se Gregory.
- Nunca se sabe. Falta liberdade, falta dinheiro, que fazer? Emigrar! - suspirava o outro com patética expressão de nostalgia.
Samantha Ernst estudava literatura nos tempos livres, depois de fazer a sua ginástica e desportos. Nunca trabalhara e nunca o iria fazer. Naquele ano o pai arruinara-se com um filme de milionário sobre o Império Bizantino que foi um fiasco monumental e destruiu em pouco tempo o seu próprio império. Como todos os seus meios-irmãos e madrastas, que até então tinham disfrutado da generosidade do produtor de cinema, Samantha teve de se arranjar sozinha, embora não chegasse a passar necessidades porque Gregory Reeves estava ali. Tinham combinado o casamento para quando ele terminasse os estudos e conseguisse um trabalho seguro, mas a ruína do magnata precipitou as coisas e tiveram que adiar a boda por dois ou três anos. Casaram-se numa cerimónia tão privada que pareceu secreta, com Timothy Duane e o instrutor de ténis como únicas testemunhas, e logo deram a notícia por telefone aos parentes e amigos. Nora e Judy Reeves viam Gregory uma vez por ano no Dia de Acção Graças, sentiam-se muito longe dele, e não ficaram surpreendidas por não serem convidadas para a cerimónia, mas os Morales ofenderam-se profundamente e deixaram de falar por algum tempo ao «filho gringo», como lhe chamavam, até que o nascimento de Margaret lhes abrandou o coração e acabaram por lhe perdoar.
Gregory mudou-se para a casa de Samantha com os seus haveres, incluindo os barris de rosas, disposto a cumprir o seu sonho de uma família feliz. A vida de casados não foi tão idílica como tinha imaginado, na realidade o matrimónio não resolveu nenhum dos problemas do noivado, só acrescentou outros, mas não se deixou ir abaixo, supôs que as coisas melhorariam quando fosse advogado, tivesse um trabalho normal e menos pressões. A sua empresa para cuidar de meninos dava o suficiente para oferecer uma existência cómoda à mulher, mas não gozava nada desse bem-estar. O seu horário tinha-se tornado numa verdadeira carreira de obstáculos. Levantava-se ao amanhecer para fazer as suas tarefas, gastava uma hora até chegar às aulas e outra para regressar, trabalhava à tarde. Levava os meninos a museus, parques e espectáculos e, enquanto os vigiava com um olho, com o outro estudava. Uma vez por semana ia à lavandaria automática e ao mercado, muitas noites ganhava alguns dólares ajudando Joan e Susan no restaurante. Ao fim do dia aparecia em casa extenuado, preparava um pedaço de carne grelhada, comia sozinho e continuava a estudar. A carne crua e o cheiro do assado repugnavam a Samantha, que preferia não estar presente à hora do jantar. Nem os horários coincidiam, ela dormia até ao meio-dia e começava as suas actividades à tarde, e tinha sempre alguma coisa para fazer à noite: tambores africanos, oga, danças do Camboja. Enquanto o marido voava cumprindo uma infinidade de obrigações, ela parecia sempre abatida, como se a mera existência fosse uma prova titânica para a sua natureza evasiva. Com a convivência não aumentou o interesse pelas brincadeiras do amor e na cama continuou tão indiferente como dantes, com a agravante de que agora tinham mais oportunidades de estar juntos e menos pretextos para a frieza. Gregory tentou praticar os conselhos dos seus manuais, apesar de se sentir bastante ridículo no exercício de danças eróticas que Samantha não apreciava nada. Face aos escassos resultados dos seus esforços, supôs que as mulheres não sentiam grande entusiasmo por esse assunto, salvo Ernestina Pereda, que era uma feliz excepção. Igno-rou as incontáveis publicações que provavam o contrário e enquanto o mundo ocidental descobria a torrencial líbido feminina, ele dispôs-se a substituir a paixão pela paciência, ainda que não renunciasse de todo à ideia de levar Samantha, a pouco e pouco, até aos jardins pecaminosos da luxúria, como dizia Timothy Duane, com a sua atormentada consciência católica, ou à pura e simples diligência sexual.
Quando Samantha descobriu que estava grávida desmoralizou-se por completo. Sentiu o corpo bronzeado e sem um grama de gordura tornado asqueroso recipiente onde crescia um ávido sapo, impossível de reconhecer como algo de seu. Nas primeiras semanas esgotou-se a fazer os mais violentos exercícios do seu reportório com a inconsciente esperança de se libertar daquela perniciosa servidão, mas depressa foi vencida pela fadiga acabando estendida na cama a olhar o tecto, desesperada e furiosa com Gregory, que parecia encantado com a ideia de um descendente e que respondia às suas queixas com consolos sentimentais, o menos apropriado nessas circunstâ-cias, como lhe disse tantas vezes. é culpa tua, só culpa tua, censurava-o ela, eu não quero filhos, pelo menos por agora, tu é que falas todo o tempo em formar uma família, olha que raio de ideias te vêm à cabeça, e de tanto falar em semelhante estupidez resultou mesmo, maldito sejas tu. Não podia compreender esse golpe de má sorte, julgava-se estéril, porque em tantos anos sem tomar precauções não tinha tido sobressaltos. Se eu não o desejo, nunca vai acontecer, insistia ela como uma menina mimada incapaz de tolerar uma imposição desagradável.
Davam-lhe ataques de náuseas, mais por repugnância de si mesma e recusa da criança do que pelo seu estado. O marido comprou um livro sobre comida naturista e pediu a Joan e Susan que lhe fizessem pratos saudáveis, esforço inútil, porque ela apenas tolerava um bocado de aipo ou de maçã. Três meses depois, quando notou mudanças na cintura e nos seios, abandonou-se à sua sorte com uma espécie de raiva urgente. O seu fastio tornou-se voracidade e, contra todos os seus princípios vegetarianos, devorava metodicamente gordas costeletas de porco e salsichões que Gregory preparava à tarde e ela mordiscava frios ao longo do dia. Uma noite, jantavam com um grupo de amigos num restaurante espanhol, descobriu a especialidade do dia, dobrada à madrilena, um guisado de tripas com a consistência de toalha turca ensopada em molho de tomate. Tantas vezes pediu o mesmo prato, a qualquer hora, que o cozinheiro se entusiasmou com ela e lhe oferecia caixas de plástico a transbordar com o seu indigesto guisado. Engor-dou, a pele cobriu-se-lhe de manchas e acabou por se sentir deprimida de todo, enferma e culpada, envenenada por alimentos putrefactos e cadáveres de animais, mas que não podia deixar de devorar, como um castigo. Dormia demasiado e no resto do tempo via televisão estendida na cama com os seus gatos. Reeves, alérgico ao pêlo desses animais, mudou-se para outro quarto sem perder o bom humor nem a paciência, já lhe vai passar, são desejos de grávida, e sorria. Samantha detestava os trabalhos domésticos, e se antes, pelos menos, se mantinha uma certa decência na casa, naqueles meses a sua relativa organização transformara-se num caos. Gregory procurava pôr algo em ordem mas, por mais que limpasse, o cheiro dos gatos fechados e da dobrada à madrilena impregnava o ambiente.
Naquele ano nasceu a moda dos partos naturais aquáticos, uma original combinação de exercícios respiratórios, bálsamos, meditação oriental e água comum, a correr. Era necessário treinar-se com tempo para dar à luz dentro de uma banheira, segurada pelo pai da criança e acompanhada pelos amigos e quem quisesse participar, para o recém-nascido entrar no mundo sem o trauma de abandonar o ambiente líquido, morno e silencioso do ventre materno e aterrar subitamente no terror de um pavilhão de obstetrícia, debaixo de implacáveis focos e rodeado de instrumentos cirúrgicos. A ideia não era má, mas na prática resultava um pouco complicada. Samantha tinha-se negado a tocar no tema do parto, fiel à sua teoria de que se não desejava uma coisa isso jamais sucederia, mas ao sétimo mês não teve outro remédio senão enfrentar a realidade, porque dentro de um prazo fixo o bebé ia nascer e ela teria uma intervenção inevitável no acontecimento. Parir numa banheira de água morna, à meia luz, com duas matronas beatíficas, pareceu-lhe menos temível que fazê-lo sobre uma mesa de hospital nas mãos de um homem com avental e cara embuçada para ninguém o reconhecer, no entanto, não estava de acordo em fazer daquilo uma reunião social, apesar da promessa das parteiras naturalistas de que não teria que se ocupar com nada, o custo do parto incluía as bebidas, a marijuana, a música e as fotografias. Se nós casámos em privado, não penso parir em público e tão-pouco quero que me retratem com as pernas abertas, decidiu Samantha, pondo fim ao dilema. Levantou-se finalmente da cama, começou a ir com o marido às aulas, onde viu outras mulheres no mesmo estado que ela, e descobriu que a maternidade não era necessariamente uma desgraça. Surpreendida, notou que as outras exibiam as barrigas com orgulho, até pareciam contentes. Isso teve um efeito terapêutico, recuperou em parte o respeito pelo seu corpo, resolveu cuidar de si, não renunciou à dobrada à madrilena, mas juntou também verduras e frutas à dieta, dava longas caminhadas e friccionava a pele com óleo de amêndoas, loção de sálvia e hortelã-pimenta, comprou roupa para a criança e por algumas semanas reapareceu-lhe a sua antiga personalidade. Os extensos preparativos para o parto incluíram a instalação de uma imensa tina de madeira na sala, que em princípio podiam alugar, mas convenceram-nos da vantagem de a comprar. Depois do parto podiam usá-la para outros fins, disseram-lhes, já que também começavam a estar na moda os banhos comunitários entre amigos, todos nus, mergulhados em água quente. O artefacto acabou por ser inútil porque, cinco semanas antes da data prevista, Samantha deu à luz urna filha a quem chamaram Margaret como a avó materna morta na espuma rosada. Gregory chegou à tarde a casa e encontrou a mulher sentada no charco das suas águas amnióticas, tão descontrolada que não lhe tinha passado pela cabeça pedir ajuda, nem sequer recordava a respiração de foca aprendida nos cursos do parto aquático. Fê-la subir para o autocarro que usava para o seu trabalho e disparou para o hospital, onde tiveram que fazer uma cesariana para salvar a menina. Margaret não entrou no mundo em tina de madeira, embalada por cânticos suaves e nuvens de incenso, como estava previsto, iniciou a vida dentro de uma incubadora, como um patético peixe solitário num aquário. Dois dias mais tarde, quando a mãe dava os primeiros passos pelo corredor do hospital, o pai lembrou-se de telefonar às parteiras espirituais, aos parentes e aos amigos para lhes dar a notícia. Lamentou não ter Cármen a seu lado, a única pessoa com quem teria desejado compartilhar as aflições daqueles momentos.
Para Samantha Ernst o vento do desastre começou a soprar no próprio dia do nascimento, quando a sua aristocrática mãe a pôs nas mãos de uma enfermeira, afastando-se dela para sempre e se tornou um furacão que a pôs fora da realidade, no momento de dar à luz uma filha. Muito mais tarde confessaria ao seu psicanalista, com a maior sinceridade, que aquela criança minúscula respirando com dificuldade dentro de uma caixa de vidro só lhe inspirava aversão. Secretamente agradeceu não ter leite para a amamentar e talvez, no mais fundo do seu coração, desejasse mesmo que ela desaparecesse para não se ver obrigada a trazê-la nos braços. O que aprendeu nos cursos não serviu para nada, era-lhe impossível considerar Margaret uma menina mais entre os milhares delas, nascidas no planeta, no mesmo dia e à mesma hora, nunca pôde aceitá-la. Nem se resignou com a ideia de que estava unida àquele verme por iniludíveis responsabilidades. Olhou-se no espelho e viu uma grande costura a atravessar-lhe o ventre, que antes era liso e bronzeado, agora feito um odre frouxo, cheio de estrias, e chorou desconsolada pela beleza perdida. O marido tentou aproximar-se para a ajudar, mas de todas as vezes foi afastado com virulência demente. Vai-se acostumar, é muito recente, está descontrolada, pensava Gregory, mas ao cabo de três semanas, quando deram alta à menina no hospital e a mãe ainda não deixava de se examinar ao espelho e lamentar-se, teve de pedir auxílio a sua mãe. Talvez a mãe tivesse sido a pessoa mais indicada naquele transe, mas Samantha não suportava a sogra, nunca pôde apreciar qualquer das suas virtudes, considerava-a uma velha extravagante capaz de tirar uma tartaruga da sua casca. Também pensou em Olga, que tanto prazer tinha nos nascimentos e nos bebés, mas compreendeu que se a sua mulher não tolerava Nora, menos ainda Olga.
- Preciso de ti, Judy. Samantha está deprimida e doente e eu não sei nada de recém-nascidos, por favor vem! - pediu Gregory por telefone.
- Vou pedir autorização no trabalho na sexta-feira e passarei o fim-de-semana com vocês, não posso fazer mais do que isso - respondeu ela.
Farta das farras de Jim Morgan, o gigante arruivado com quem teve filhos, Judy divorciara-se e voltara a viver com a mãe na mesma barraca de sempre. Nora cuidava dos netos, um dos quais ainda de colo, enquanto Judy mantinha a família. Jim Morgan amava a sua mulher e amá-la-ia até ao fim dos seus dias, apesar de ela se ter tornado uma harpia que o perseguia pela casa aos gritos, se punha à porta da fábrica a insultá-lo diante dos seus operários e corria os bares à procura dele para armar escândalo. Quando correu com ele definitiva-mente de casa e pôs um processo de divórcio, o homem sentiu que a vida se lhe tinha terminado, e abandonou-se a uma borracheira sem memória da qual despertou entre grades. Não podia explicar como a desgraça acontecera, nem sequer recordava o homem que matara. Algumas testemunhas disseram que foi um acidente e que Morgan nunca tinha tido a intenção de o liquidar, dera-lhe um golpe insignifi-cante e o infeliz foi para o outro mundo, mas as circunstâncias não beneficiavam o acusado. A vítima estava mais que sóbria e era um alfenim peso-pluma que quando começou a discussão se encontrava à esquina com uma sineta na mão a pedir esmola para o Exército de Salvação. Do calabouço, Jim Morgan não pôde ajudar nos gastos dos filhos e Judy alegrou-se que assim fosse, convencida de que quanto menos contacto tivessem os filhos com um pai criminoso melhor seria para eles, mas como não ganhava para manter o lar, sozinha, voltou para casa de sua mãe.
Gregory foi buscar a irmã ao aeroporto e espantou-se ao ver como ela tinha engordado. Não conseguiu disfarçar a sua impressão e ela notou-o.
- Não me digas nada, já sei o que estás a pensar.
- Põe-te a dieta, Judy!
- Dizer é o mais fácil, a prova é que já o fiz muitas vezes. Já baixei um, dois quilos no total.
A mulher subiu com dificuldade para o autocarro de Gregory e partiram à procura de Margaret no hospital. Entregaram-lhes um pequeno embrulho coberto por um xaile, tão levezinho que o abriram para verificar o conteúdo. Entre a lã descobriram uma minúscula criança dormindo placidamente. Judy aproximou a cara da sobrinha e começou a beijá-la e a cheirá-la como uma cadela faria ao seu cachorro, transfigurada por uma ternura que Gregory não lhe via há dezenas de anos, mas que não tinha esquecido. Durante todo o caminho lhe foi falando acariciando-a, enquanto o irmão a observava de soslaio, surpre-endido ao ver que Judy se transformava, as camadas de gordura que a deformavam desapareceram revelando a radiante beleza oculta no seu interior. Ao chegar a casa encontraram os gatos metidos no berço e Samantha no quarto, de cabeça para baixo, procurando alívio para a aflição emocional com acrobacias de faquir. Gregory começou a sacudir o pêlo dos animais para instalar o bebé, enquanto Judy, cansada da viagem e pelas horas em pé, deu um empurrão à cunhada tirando-a do nirvana e devolvendo-a à posição de cabeça para cima e aos afãs da realidade.
- Vem cá que eu explico-te como se prepara um biberão e como se mudam as fraldas - ordenou-lhe.
- Terás de explicar isso a Gregory, eu não sirvo para essas coisas - balbuciou Samantha recuando.
- Mais vale que ele não se aproxime da menina, não vá sair-se com as mesmas porras do meu pai - grunhiu Judy de muito mau humor.
- De que é que estás a falar? - perguntou Gregory com a recém-nascida nos braços.
- Sabes muito bem do que estou a falar. Não sou atrasada mental, julgas que não me dei conta de que andas sempre rodeado de crianças?
- É o meu trabalho!
- Claro, é o teu trabalho. De todos os trabalhos possíveis tinhas logo que escolher esse. Por alguma coisa é. Aposto que cuidas das menininhas, não é? Os homens são todos uns pervertidos.
Gregory pôs Margaret sobre a cama, agarrou a irmã por um braço e arrastou-a para a cozinha, fechando a porta atrás de si.
- Agora vais-me explicar que caralho estás a dizer!
- Tens uma surpreendente capacidade de te fazeres de parvo, Gregory. Não posso acreditar que não saibas...
- Não!
E então Judy derramou o veneno que tinha suportado em silêncio desde aquela noite em que não permitira que eu dormisse com ela, fazia mais de vinte anos, o pesado segredo guardado zelosamente com a sus-peita de que não era na verdade um enigma e todos sabiam, o recôndito tema dos seus maus sonhos e rancores, a vergonha inconfessável que agora se atrevia a expor só para proteger a sobrinha, a pobre inocente, como ela disse, para evitar que se repita o mesmo pecado de incesto na família, porque essas coisas estão no sangue, são maldições genéticas, e a única herança de Charles Reeves, esse crápula que em má hora nos trouxe ao mundo, é a maldade suja da sua luxúria, e se necessitas de mais pormenores posso contar-tos, porque nada esqueci, tenho tudo gravado a fogo na memória, se queres conto-te como ele me levava para a despensa com diferentes pretextos e me fazia abri-lhe braguilha e mo punha nas mãos e me dizia que aquilo era o meu boneco, o meu caramelo, que lhe fizesse assim e assim, mais forte, até que...
- Basta! - gritou Gregory com as mãos nos ouvidos.
Todas as segundas-feiras de manhã Gregory Reeves telefonava a Cármen Morales, costume que manteve até ao dia de hoje. Depois do aborto que quase lhe custara a vida, a amiga despedira-se da mãe e desaparecera sem deixar rasto. Em casa dos Morales o seu nome foi apagado mas ninguém a esqueceu, sobretudo o pai, que sonhava com ela em silêncio, mas que, por orgulho, jamais admitiu que estava a morrer de pena pela filha ausente. A jovem não voltou a comunicar com a família, mas dois meses mais tarde Gregory recebeu um postal com um número e uma pequena flor desenhada, a inconfundível assinatura de Cármen. Foi o único que teve notícias suas em todo esse tempo, por ele sabia Inmaculada Morales os passos da sua filha. Nas breves conversas das segundas-feiras os dois amigos punham em dia as suas vidas e planos. As vozes chegavam-lhes desfiguradas por interferências e pela própria ansiedade das comunicações de longa distância, custava-lhes reconhecerem-se nessas frases interrompidas e para ambos come-çava a apagar-se a cara do outro, eram dois cegos com as mãos estendidas na escuridão. Cármen tinha-se instalado num quarto de má reputação nos subúrbios da cidade do México e trabalhava numa oficina de joalharia. Perdia tantas horas em autocarro de um extremo a outro daquela imensa cidade desesperada, que não lhe ficava tempo para outras actividades. Não tinha amigos nem amores. A desilusão provocada por Tom Clayton destruíra a sua ingénua tendência para se apaixonar à primeira vista e, por outro lado, naquele meio era muito difícil encontrar um companheiro que entendesse e aceitasse o seu carácter independente. O machismo do pai e dos irmãos era suave com-parado com aquele que agora suportava, e por prudência conformou-se com a solidão, como se fosse um mal menor. A desafortunada intervenção de Olga e a operação posterior privaram-na da capacidade de ter filhos, isso tornou-a mais livre mas também mais triste. Vivia na tácita fronteira onde termina a cidade oficial e começa o mundo inadmissível dos marginais. O edifício era um corredor estreito com duas filas de quartos dos lados, duas torneiras, um lavatório ao centro e casas de banho comuns ao fundo, sempre tão sujas que fazia por as evitar. Aquele lugar era mais violento que o ghetto onde se tinha criado, as pessoas tinham que lutar pelo seu pequeno espaço, havia rancores a mais, e escasseavam esperanças, estava num país de pesadelo ignorado pelos turistas, um labirinto terrível à volta da formosa cidade fundada pelos astecas, um enorme conglomerado de vivendas miseráveis e ruas sem pavimento e sem luz, cheias de lixo, que se estendia até uma periferia sem limites. Deambulava por entre índios humilhados e mestiços indigentes, meninos nus e cães famintos, mulheres vergadas pelo peso dos filhos e pelo trabalho, homens ociosos e resignados com a má sorte, com as mãos nos punhos dos punhais prontos para defender a dignidade e a honradez eternamente ameaçadas. Já não contava com a protecção da família e bem depressa compreendeu que ali uma mulher jovem e sozinha era como um coelho rodeado de cães perdi-gueiros. à noite não saía, dormia com uma tranca na porta, outra na janela e uma faca de magarefe debaixo da almofada. Quando ia lavar a roupa encontrava outras mulheres que a olhavam com desconfiança porque era diferente. Chamavam-lhe a gringa apesar de ela lhes ter explicado mil vezes que a sua família era de Zacatecas. Com os homens não falava. às vezes comprava caramelos e sentava-se na ruela à espera que os miúdos se aproximassem, eram estes os seus poucos momentos alegres. Na oficina da joalharia trabalhavam alguns índios de mãos mágicas, que raramente lhe dirigiam a palavra, mas que lhe ensinaram o segredo da sua arte. Para ela as horas passavam sem as sentir, absorta no laborioso processo de moldar a cera, esvaziar os metais, talhar, polir, engastar as pedras e montar cada uma das minúsculas peças. à noite, no quarto, desenhava brincos, anéis e pulseiras, a princípio fazia-os de lata com pedaços de vidro para praticar e depois, quando pôde poupar alguma coisa, em prata com pedras semipreciosas. Nos momentos livres vendia-as de porta em porta, procurando que os seus patrões não viessem a saber dessa modesta habilidade.
O nascimento da filha afundou Samantha numa discreta mas feroz depressão, não teve arrebatamentos escandalosos nem grandes mudan-ças aparentes na conduta, mas não voltou a ser a mesma. Continuou a levantar-se ao meio-dia, a ver televisão e a tomar sol como uma lagar-tixa, sem opor resistência à realidade nem tão-pouco participando nela. Comia muito pouco, estava sempre sonolenta e só ressuscitava no campo de ténis enquanto Margaret vegetava num carro à sombra, tão abandonada que aos oito meses ainda não era capaz de sentar-se, apenas sorria. A mãe só lhe tocava para lhe mudar as fraldas e pôr-lhe o biberão na boca. à noite, Gregory dava-lhe banho, e às vezes embalava-a um pouco procurando fazê-lo sempre na presença de Samantha. Gostava muito da menina e quando a tinha nos braços sentia uma dolorosa ternura, um desejo esmagador de a proteger, mas não era capaz de a mimar como desejava. A confissão da sua irmã erguia uma muralha entre ele e a filha. Nem se sentia à vontade com os miúdos de quem cuidava no seu trabalho e dava consigo a examinar-se em busca de qualquer pormenor revelador de uma suposta índole silenciosa herdada do pai. Ao comparar Margaret com outras crianças da sua idade achava-a atrasada no seu desenvolvimento, sem dúvida alguma coisa andava mal, mas não quis partilhar as dúvidas com a mulher para não a assustar e afastá-la ainda mais do bebé. Fazia-lhe provas para ver se ouvia bem, talvez fosse surda, por isso parecia tão quieta, mas quando batia palmas perto do berço ela sobressaltava-se.
Pensou que Samantha não tinha dado por isso, mas um dia ela pergun-tou-lhe como é que se sabe quando uma criança é atrasada e então puderam falar pela primeira vez dos seus temores. Depois de examinar Margaret por dentro e por fora, no hospital diagnosticaram que estava sã, que necessitava simplesmente de estímulo, era como um animal dentro de uma jaula, privado de sentidos. Os pais frequentaram então um curso de estimulação precoce onde aprenderam a acariciar a filha, a falar-lhe a cantarolar, mostrar-lhe a pouco e pouco o mundo à sua volta e outras destrezas elementares que qualquer miserável oran-gotango sabe ao nascer e que eles tiveram de aprender num manual de instruções. Os resultados foram evidentes em poucas semanas, quando a menina começou arrastar-se pelo chão e um ano mais tarde pronun-ciou as suas duas primeiras palavras, que não foram papá nem mamã, mas gato e ténis.
Gregory estudava para os exames finais, horas, dias, meses, metido nos livros e agradecendo ao céu a sua boa memória, a única coisa que funcionava bem enquanto o resto à sua volta parecia deteriorar-se irremediavelmente num rápido processo de decomposição. A guerra do Vietname, longe de terminar como tinha calculado, tomava proporções de catástrofe. Juntamente com o alívio de ser finalmente advogado havia o inevitável pesadelo de ir para a frente, porque tinha um compromisso com as Forças Armadas e não podia continuar a adiar o serviço. A sua família era o principal motivo de angústia, a sua relação com Samantha andava aos tombos e uma separação acabaria sem dúvida por rompê-la, além disso tinha medo de deixar Margaret, que crescia cheia de carências. A filha vivia de maneira tão calada e misteriosa que Samantha se esquecia dela por vezes e quando Gregory chegava à noite descobria que não tinha comido desde o pequeno-almoço. Não brincava com as outras crianças, entretinha-se horas vendo telenovelas, nunca tinha apetite, lavava-se de forma obsessiva, suja, suja, dizia a cada momento, arrastando um banquinho até ao lavatório para ensaboar as mãos longamente. Urinava-se na cama e chorava desesperadamente quando acordava com os lençóis molhados. Era muito bonita e continuaria a sê-lo, apesar das agressões que cometeria contra o seu corpo, tinha a graça nobre da avó da Virgínia e o exótico rosto eslavo de Nora Reeves, tal como se vê numa fotografia tirada no barco de refugiados que a trouxe de Odessa. Enquanto Margaret vivia na sombra dos móveis e escondida pelos cantos, os pais, demasiado ocupados nos seus próprios assuntos e enganados pela sua aparência de boa menina, não foram capazes de ver os demónios que cresciam na sua alma.
Viviam-se tempos de grandes alterações e de contínuas surpresas. A novidade do amor livre, depois de tantos séculos de o manterem em cativeiro, correu com rapidez e o que começou como outra fantasia dos hippies tornou-se no jogo predilecto dos burgueses. Assombrado, Gregory viu como as mesmas pessoas, que pouco tempo antes defendiam as ideias mais puritanas, praticavam agora a libertinagem em pequenas orgias de índole doméstica. Quando era solteiro era quase impossível conseguir uma rapariga disposta a fazer amor sem uma promessa de casamento, o prazer sem culpa e sem medo era impensável antes das pílulas anticonceptivas. Tinha a impressão de ter passado os primeiros dez anos da sua juventude dedicado a conseguir mulheres, todo o empenho e a imaginação iam nessa esgotante caçada, e geralmente em vão. Mas depressa as coisas deram a volta e em questão de dois ou três anos a castidade deixou de ser uma virtude para se tornar um defeito do qual cada um se tinha de curar antes que os vizinhos soubessem. Foi uma viragem tão brusca que Gregory, enfrascado nos seus problemas, não teve tempo de se adaptar às mudanças dramáticas, a revolução chegou tarde. Apesar do seu fracasso com Samantha, não lhe passou pela cabeça a ideia de aproveitar as insinuações de algumas audaciosas companheiras de estudo ou mães de meninos de quem cuidava.
Um sábado de Primavera, os Reeves foram convidados para jantar em casa de uns amigos. Já não era costume sentar-se à mesa, a comida esperava na cozinha e cada comensal servia-se em pratos de cartão e acomodava-se o melhor que podia equilibrando um copo cheio, um prato atulhado de salada, um pão, um guardanapo e às vezes até um cigarro. Bebia-se demasiado e fumava-se marijuana. Gregory tinha tido um dia pesado, sentia-se cansado e perguntava se não estaria melhor em sua casa do que ocupado em despedaçar um frango sobre os joelhos sem o deixar cair em cima de si. Depois da sobremesa iniciou-se uma manobra colectiva, as pessoas tiraram a roupa para se meterem numa grande banheira de água quente instalada no jardim à luz da lua. A moda dos partos aquáticos passou sem grandes consequências, mas a muitas famílias ficou-lhes a recordação de uma tina monumental. Os Reeves ainda tinham a sua na sala e servia de parque para Margaret e depósito onde ia parar o que apanhavam do chão e se destinava ao esquecimento. Os outros mais atrevidos transformaram os artefactos em centro de atracção, até que a indústria nacional pôs no mercado grandes piscinas para tal fim. Gregory não se sentiu tentado de sair recém-comido para a friagem do pátio, mas pareceu-lhe de mau gosto ficar vestido quando os outros estavam em pêlo, não fossem eles pensar que tinha algo de que se envergonhar. Tirou a roupa, observando Samantha de soslaio, e estranhando a naturalidade com que a sua mulher se exibia. Não tinha pudores, sentia-se orgulhoso do seu corpo e frequentemente andava nu em sua casa, mas aquela exposição pública pô-lo um pouco nervoso, pelo contrário, os outros participantes da reunião pareciam tão à vontade como qualquer aborígene do Amazonas. As mulheres procuravam manter-se dentro de água mas os homens aproveitavam qualquer pretexto para se exibir, os mais arrogantes ofereciam o espectáculo da sua nudez enquanto serviam bebidas, acendiam cigarros ou mudavam os discos, alguns punham-se até de cócoras no bordo da banheira a poucos centímetros da cara de uma esposa alheia. Gregory compreendeu que não era a primeira vez que os amigos se encontravam nessa situação e sentiu-se atraiçoado, como se todos compartilhassem um segredo do qual tinha sido propositada-mente excluído. Suspeitou que Samantha tinha já estado antes em festas parecidas e não tinha considerado necessário contar-lho. Procurou não olhar as mulheres, mas os seus olhos iam para os seios perfeitos da mãe da dona da casa, uma matrona de quase sessenta anos, em quem não se tinha fixado, até que apareceram a flutuar na água aqueles atributos inesperados numa pessoa da sua idade. No seu inquieto destino Reeves teria de passear por tantas geografias femininas que ser-lhe-ia impossível recordá-las a todas, mas nunca esqueceria os seios daquela avó. Entretanto Samantha, de pálpebras fechadas e cabeça atirada para trás, mais relaxada e satisfeita do que alguma vez o marido tinha visto, cantarolava com o maior dos à-vontades, com um copo de vinho branco numa mão e a outra perdida debaixo de água, parecia que demasiado perto das pernas de Timothy Duane. No caminho de regresso a casa, ele tentou falar do assunto, mas ela adormeceu no automóvel. No dia seguinte, em frente de uma chávena de café fumegante na cozinha iluminada pelo sol, a festa nudista parecia um sonho longínquo e nenhum dos dois a mencionou. A partir dessa noite Samantha aproveitava todas as oportuni-dades para experimentar novas sensações em grupo e, em contrapartida, na privacidade do leito matrimonial continuava fria como dantes. Porquê privar-se? Não há outra coisa a fazer do que somar experiências à vida, de cada encontro pode sair-se enriquecido e tem-se por isso mais para oferecer ao seu par, o amor chega para muitos, o prazer é um poço inesgotável de que se pode beber até à saciedade, asseguravam os profetas do casamento aberto. Gregory suspeitava que havia alguma tramóia nesses raciocínios, mas não se atrevia a manifestar as suas dúvidas com medo de parecer um troglodita. Sentia-se como um foras-teiro naquele meio, a promiscuidade não acabava por convencê-lo e, ao ver a aceitação entusiástica de todos os seus amigos, imaginou que lhe pesava o seu passado do bairro e por isso não conseguia adaptar-se. Não queria admitir quanto o incomodava que outros homens mexessem em Samantha com o pretexto de lhe fazer massagens desintoxi-cantes, activar os seus pontos nevrálgicos ou estimular o crescimento espiritual mediante a comunhão dos corpos. Ela confundiu-o, ele acreditava que ela ocultava aspectos da sua personalidade e mantinha uma existência secreta, nunca mostrava o seu verdadeiro rosto mas sim uma sucessão de máscaras. Parecia-lhe perverso acariciar outra mulher em frente da sua, mas também não queria ficar para trás. Todas as semanas os sexólogos da moda descobriam novas zonas erógenas e pelos vistos havia que explorá-las a todas para não passar por ignorante, na sua mesa-de-cabeceira empilhavam-se manuais, à espera de vez para serem estudados. Em certa ocasião atreveu-se a objectar um método de encontro com o Eu e despertar da Consciência por meio da mastur-bação colectiva e Samantha acusou-o de ser um bárbaro, uma alma incipiente e primitiva.
- Não sei que tem a ver a qualidade da minha alma com o facto perfeitamente natural de eu não gostar de ver os dedos de outros homens entre as tuas pernas!
- Típico de uma cultura subdesenvolvida e provinciana - disse ela sorvendo impassível o seu sumo de aipo.
- Como? - perguntou ele desconcertado.
- És como esses latinos entre os quais te criaste. Nunca devias ter saído desse bairro.
Gregory pensou em Pedro e Inmaculada Morales e tentou imaginá-los em pelota numa banheira de água quente com os vizinhos, estimulando mutuamente o Eu e a Consciência. Só de pensar nisso ficou sem raiva e desatou a rir às gargalhadas. Na segunda-feira seguinte comentou o assunto por telefone a Cármen e a dois mil quilómetros de distância o riso incontrolável da amiga; nenhum desses modernismos tinha chegado ao ghetto de Los Angeles e muito menos ao México, onde ela vivia.
- Loucos, são todos loucos - disse Cármen. - Nem morta eu me mostro em pêlo em frente de maridos de outras. Não saberia onde pôr os olhos, Greg. Por outro lado, se alguns homens já me dão apalpÕes vestida, imagina como seria se eu me despisse.
- Como és índia, mulher! Aqui ninguém olharia para ti.
- Então para que fazem isso?
Não me sentia bem em nenhum lado, o bairro onde cresci pertencia ao passado e não tinha conseguido lançar raízes noutro lado. Da minha família pouco restava, a minha mulher e a minha filha estavam tão distantes de mim como antes o tinham estado minha mãe e Judy. Também os amigos me faziam falta, Cármen estava noutro planeta, não contava muito com Timothy porque se chateava com Samantha e julgo que até nos evitava; até o próprio Balcescu, tão parecido com uma caricatura que era quase impermeável a qualquer mudança, tinha dado uma reviravolta para se tornar a imagem de um santo. Vivia rodeado de acólitos que veneravam o ar que ele exalava e, de tanto se olhar reflectido no espelho desses olhos adoradores, o extravagante romeno acabou por se tomar a sério. Com a perda do sentido de humor, desapareceu também o seu interesse para inventar pratos exóticos ou cultivar rosas, de maneira que não ficou entre nós muito de comum. Joan e Susan conservaram o seu encanto e o delicioso odor de ervas, perfumes que lhes impregnavam a pele, mas tinham-se tornado inacessíveis, viviam dedicadas às lutas feministas e à química culinária das suas receitas vegetarianas, eram especialistas em disfarçar o tofu para lhe dar sabor a empada de rim. Na Faculdade de Direito não fiz novas amizades, nós os estudantes competíamos num meio feroz, cada um absorvido nos seus projectos e ambições, estudá-vamos sem descanso. Não me ficava vontade para reuniões e até as inquietações políticas e intelectuais tinham passado para último plano. Teria sido difícil explicar a Cyrus que, por ali, o único problema da esquerda é que ninguém queria ser de direita. à tarde, ao regressar a minha casa, sentia um cansaço visceral, pelo caminho imaginava a possibilidade de fazer um desvio e perder-me no horizonte, como fazia meu pai quando percorríamos o país sem rumo nem meta. O caos da casa dava-me nervos, e não é que eu seja fanático da ordem, nem sou mais ou menos. Suponho que estava esgotado pelos estudos e pelo trabalho, de certeza não me portava como um bom marido e Samantha, por seu lado, contribuía muito pouco. Por vezes, parecíamos mais adversários do que aliados. Nessas circunstâncias ficamos cegos e não vislumbramos a saída do túnel onde estamos metidos, parece que estaremos sempre na máquina de picar carne, que não há saída. Quando tiveres o teu diploma tudo será diferente, consolava-me Cármen à distância, mas eu sabia que essa neo era a única causa do meu mal-estar. Via fielmente uma série televisiva sobre um astuto advogado que punha em jogo a sua reputação e às vezes a vida para salvar da cadeia um inocente ou castigar um culpado. Não perdia um capítulo com a esperança de que a personagem me devolvesse o entusiasmo pelas leis e me redimisse do imenso tédio que essa profissão me provocava. Ainda não começara a exercê-la já estava desiludido. O futuro apresentava-se muito diferente da aventura imaginada na minha juventude, o último esforço para terminar o curso aborrecia-me tanto que comecei a dizer que ia abandonar o estudo e dedicar-me a outra coisa. O aborrecimento é raiva sem entusiasmo, assegurou-me Timothy Duane. Segundo ele eu estava farto do mundo e de mim próprio, e não era para menos, o meu destino nunca foi um leito de rosas. Aconse-lhava-me que me libertasse de complicações, a começar pelo casamento com Samantha, que lhe parecia um erro evidente. Eu negava-me a admitir isso, mas chegou um momento em que, pelo menos nesse aspecto, tive que lhe dar razão. Fui a uma festa como tantas outras a que íamos nessa época, numa casa como todas as outras, móveis desconjuntados, tapeçarias indígenas cobrindo as manchas do sofá, cartazes de Ho Chi Min e do Che Guevara junto às mantas bordadas da índia, os mesmos casais amigos, os homens sem peúgas e as mulheres sem sutiã, a comida fria e pedaços de queijo cada vez mais rançosos à medida que passavam horas, muita bebida, cigarrilhas e marijuana de tão má qualidade que o fumo espantava os mosquitos. E também as mesmas conversas intermináveis sobre os últimos seminários do grito primário, em que cada um gritava até enrouquecer para libertar a agressão, ou do regresso ao útero, onde os participantes sem roupa se punham em posição fetal e chupavam o dedo. Nunca percebi essas terapias nem me prestei para as experimentar, irritava-me falar desse tema, estava cansado de ouvir as múltiplas mudanças transcendentais nas vidas de cada um dos meus conhecidos. Instalei-me no terraço a beber sozinho. Admito que cada dia bebia mais. Tinha desistido dos licores fortes porque me faziam alergias e começava a afogar-me com as mucosas inflamadas e uma terrível opressão no peito. Depressa descobri que o vinho me fazia os mesmos sintomas, mas podia consumir mais quantidade antes de me sentir realmente enfermo. Horas antes tinha tido uma discussão aos berros com Samantha e começava a suspeitar que o nosso casamento rolava para o abismo. Entrava eu na garagem com o automóvel, quando vi chegar um vizinho com Margaret pela mão, a minha filha tinha pouco mais de dois anos. Julgo que é sua, encontrei-a a andar sozinha a umas duas milhas daqui, para chegar tão longe deve ter caminhado desde manhã, disse o homem sem esconder a sua censura e o desprezo. Abracei a menina espantado. Sentia as fontes latejar e quase não podia falar quando enfrentei minha mulher para lhe perguntar onde estava quando Margaret saiu de casa, como é que não tinha dado pela sua ausência em tantas horas. Respondeu-me com as mãos na cintura, tão furiosa como eu, alegando que o vizinho era um desgraçado, e a odiava porque os gatos tinham comido o seu canário, que não tinha explicações a dar-me, no fim de contas ela também não me perguntava onde eu tinha estado todo o dia, Margaret era muito independente para a sua idade e não estava disposta a vigiá-la como um carcereiro nem a mantê-la amarrada com uma corda, como eu fazia com os miúdos que tinha à minha guarda, e continuou até que não aguentei mais e saí da sala batendo com a porta. Depois tomei um duche frio para tirar da imaginação diversas fatalidades que poderiam ter acontecido a Margaret nessas duas malditas milhas, mas não foi suficiente porque na festa continuei irritado com Samantha. Fui para o terraço com um copo de vinho e deixei-me cair numa cadeira, de mau humor, um pouco tonto e farto da música monótona de Katmandu que vinha da sala. Avaliei o tempo perdido naquela fastidiosa reunião, dentro de uma semana tinha de fazer exames finais e cada minuto de estudo era precioso. Nessa altura chegou Timothy Duane que, ao ver-me, puxou outra cadeira para se sentar a meu lado. Tínhamos poucas oportunidades de estarmos sozinhos. Notei que tinha perdido peso nos últimos anos, as suas rugas tinham-se marcado a cinzel, já não tinha aquele ar de inocência que apesar das suas fanfarronices era um dos seus encantos quando nos conhecemos. Tirou do bolso um tubo de vidro, deitou cocaína nas costas da mão e aspirou ruidosamente, depois ofereceu-me, mas eu não quis usá-la, mata-me, a única vez que a provei senti que me cravavam um punhal gelado entre os olhos, a dor de cabeça durou-me três dias e do paraíso prometido nem me lembro. Tim disse-me que entrássemos porque estavam a organizar um jogo, mas eu não tinha o menor interesse em ver de novo todos em pelota. - Isto é diferente. Vamos trocar de esposas - insistiu.
- Tu não tens nenhuma, que eu saiba.
- Trouxe uma amiga.
- Tem cara de puta, a tua amiga.
- E é - riu-se ele, arrastando-me para a sala.
Os homens tinham-se reunido à volta da mesa da sala de jantar, perguntei pelas mulheres e disseram-me que esperavam nos automóveis. Pareciam nervosos, davam-se palmadas nas costas, diziam graças de duplo sentido e celebravam-nas com grandes risadas. Explicaram as normas: proibido voltar atrás, nada de arrepender-se nem de tentar mudanças. Apagaram a luz, puseram as suas chaves numa bandeja, alguém as misturou e cada participante pegou numa ao acaso. Apesar das névoas do álcool e da confusão, que me impediu precipitar-me para a bandeja como os outros, quando acenderam a luz vi claramente o meu porta-chaves nas mãos de um dentista um pouco narigudo e pedante, considerado uma pequena celebridade porque tirava dentes molares com agulhas chinesas cravadas nos pés como única anestesia. Peguei nas últimas chaves, desejando agarrar o dentista pela roupa e rebentar-lhe a cara com um daqueles murros certeiros que o padre Larraguibel me tinha ensinado no pátio da igreja de Lourdes, mas detive-me com medo de ser ridículo. Os outros saíram em direcção aos carros entre gargalhadas e graças, e eu fui para a cozinha pôr a cabeça debaixo de um jorro de água fria para sacudir o atordoamento. Servi os restos de café de um termo e sentei-me num banco a evocar os tempos em que a vida era mais simples, e todos conheciam as regras. Pouco depois encontrou-me no mesmo sítio a companheira que me tinha cabido em sorte, uma loira sardenta e simpática, mãe de três filhos e professora de Matemática na escola primária, a última pessoa com quem me podia acontecer praticar o adultério. Estou à tua espera há um bom bocado, disse-me com um sorriso tímido. Expliquei-lhe que não me sentia bem, mas julgou que a recusava porque não me agradava, pareceu encolher-se no umbral da porta como uma menina apanhada em falta. Sorri-lhe o melhor que pude e aproximou-se, pegou-me na mão, ajudou a pôr-me de pé e levou-me ao automóvel com um misto de delicado pudor e firmeza que me desarmou. Guiou até casa. Encontrámos os filhos a dormir, em frente da televisão, e levámo-los ao colo para as suas camas. A minha amiga vestiu-lhes os pijamas, beijou-os na testa, ajeitou-lhes os cobertores e ficou ao pé deles até tornarem a adormecer. Depois fomos para o quarto, onde a fotografia do marido vestido com a toga da licenciatura presidia sobre a cómoda. Ela disse que ia vestir qualquer coisa mais cómoda e desapareceu na casa de banho, enquanto eu abria a camisa sentindo-me um imbecil por não poder tirar Samantha e o dentista da mente e perguntando a mim mesmo por que diabo não era capaz de participar nesses jogos com o à-vontade dos outros, porque me dava tanta raiva. A loira voltou sem maquilhagem, a pentear-se, vestida com um roupão acolchoado cor de gelado de morango, perfeito para uma mãe que madruga para preparar o pequeno-almoço da família, mas muito pouco adequado às circunstâncias. Não havia nenhuma coqueteria nos seus gestos, como se fôssemos um velho casal nos últimos preparos antes de irmos para a cama depois de um dia de trabalho. Sentou-se nos meus joelhos e começou a desabotoar-me a camisa. Tinha um sorriso acolhedor, o nariz arrebitado e um fresco aroma a sabonete e pasta dentífrica, mas não me provocava nenhuma excitação. Pedi-lhe que me perdoasse, que tinha bebido muito e que a alergia me incomodava.
- A verdade é que não sei para que vim. Não gosto destes jogos, não gosto mesmo nada e julgo que Samantha também não - confessei-lhe por último.
- Que dizes tu? - e largou a rir divertida. - A tua mulher deita-se com vários amigos teus e dizem que também com algumas amigas tuas, porque não te divertes um pouco, tu também?
Aqueles não foram bons tempos para mim. A minha vida foi uma soma de tropeções, mas agora, aos cinquenta anos, quando olho para trás e peso os esforços e as desgraças, creio que esse período foi o pior porque algo fundamental se me torceu na alma e não voltei a ser o mesmo. Suponho que tarde ou cedo se perde a candura. Talvez seja melhor assim, porque não se pode andar pelo mundo como um ingénuo, em carne-viva e sem defesas. Cresci andando à pancada na rua. Devia ter endurecido muito tempo antes mas não foi assim. Agora, quando já dei volta à dor várias vezes e posso ler o meu destino como um mapa cheio de erros, quando não tenho nenhuma pena de mim próprio e sou capaz de rever a minha existência sem sentimentalismos, porque encontrei alguma paz, só lamento a perda da inocência. Ligo menos ao idealismo da juventude, a época em que ainda para mim existia uma nítida linha divisória entre o bem e o mal e julgava que era possível actuar de acordo com princípios inamovíveis. Não era uma posição prática nem realista, já sei, mas tinha uma pura paixão nessa intransigência que ainda me comove quando a encontro noutros. Não posso dizer em que momento comecei a mudar e me tornei no homem duro que sou agora. Seria difícil atribuir tudo à guerra, mas na verdade a deterioração começou antes. Ou poderia antes dizer que o ofício de advogado requer uma boa dose de cinismo, não conheço nenhum que se livre disso, mas também essa resposta é incompleta. Cármen diz que não me preocupe, que por muito cinismo que se tenha nunca será o suficiente para viver neste mundo e que além disso essas dúvidas são pura tolice da minha parte, que apesar das aparências continuo o mesmo animalzinho rude e combativo mas de coração manso, que ela adoptou como irmão há muito tempo, mas eu conheço-me bem e sei como sou por dentro.
Colegas, mulheres, amigas e clientes atraiçoaram-me, mas nenhuma traição me doeu tanto como a de Samantha porque não o esperava. A partir de então desconfio sempre, já não me surpreendo quando alguém me falha. Naquela noite não voltei a casa. Tirei o roupão de gelado de morango à professora de Matemática e rebolámos na cama matrimonial. Não deve guardar de mim uma boa recordação, certamen-te esperava um amante imaginativo e experiente e só encontrou alguém disposto a sair do impasse o mais depressa possível. Vesti-me logo e fui caminhando até ao apartamento de Joan e Susan, onde cheguei às três da manhã extenuado e com mostras evidentes de ter bebido. Toquei à campainha durante vários minutos, até que elas apareceram em camisa de dormir e descalças. Receberam-me sem fazer perguntas, como se estivessem habituadas a receber visitas a essa hora. Enquanto uma preparava uma chávena de camomila, a outra improvisou uma cama no sofá da sala. Devem ter deitado qualquer coisa na camomila, porque despertei doze horas mais tarde com o sol na cara e o cão das minhas amigas deitado aos pés. Creio que nessas horas de sono terminou a minha juventude.
Quando me levantei tinha na mente e no coração as resoluções que guiariam a minha vida nos anos futuros, ainda que o ignorasse nesse momento. Agora, que posso ver o passado com certa perspectiva, dou conta de que nesse instante comecei a ser a pessoa que fui por muito tempo, homem arrogante, frívolo e ciumento que sempre detestei e de quem me custou tanto desprender-me.
Fiquei com as minhas amigas cinco dias sem comunicar com Samantha. Revezaram-se para me acompanhar e ouvir com paciência o contar mil vezes repetido das minhas nostalgias, desesperanças e queixas. Na sexta-feira apresentei-me aos exames finais sem angústia, porque não tinha ilusão, o título de advogado não me interessava, na verdade sentia uma funda indiferença pelo futuro. Dois meses mais tarde avisaram-me do outro lado do mundo que obtivera o diploma à primeira tentativa, o que raras vezes acontece nesta torcida profissão. Do exame fui directamente para a repartição de recrutamento das Forças Armadas. Tive que treinar durante dezasseis semanas, mas a guerra estava no seu apogeu e tinha-se reduzido o curso para doze. Nalguns aspectos esses três meses foram piores que a própria guerra, mas saí dali com noventa quilos de músculo, a resistência de um camelo completamente embrutecido, pronto para destroçar a minha própria sombra, se mo tivessem ordenado. Dois dias antes de embarcar o computador seleccionou-me para o Instituto de Idiomas em Monterrey. Suponho que o facto de ter sido criado no bairro mexicano e estar acostumado ao russo de minha mãe e ao italiano das suas óperas, tudo isso me treinou o ouvido. Estive quase dois meses num paraíso de costas abruptas com focas apanhando sol sobre as rochas, casas vitorianas e entardeceres de bilhetes postais, estudando vietnamita a tempo inteiro com professores que se revezavam hora a hora e com a ameaça de que se não aprendia depressa seria julgado por traição à pátria. No fim do curso arranhava aquele idioma melhor que a maioria dos meus companheiros. Parti para o Vietname acarinhando a secreta fantasia de morrer para não ter que enfrentar os trabalhos e os pesadelos da existência. Mas morrer é muito mais difícil que continuar vivendo.
Gente. A guerra é gente. A primeira palavra que me vem à cabeça quando penso nela é gente: nós, os nossos amigos, os meus irmãos, todos unidos na mesma fraternidade desesperada. Os meus companheiros. E os outros, esses homens e mulheres pequenos, de rostos indecifráveis, a quem tenho que odiar, mas que não posso, porque nas últimas semanas aprendi a conhecê-los. Aqui tudo é branco ou negro, não há meias-tintas nem ambiguidades, acabou-se a manipulação, a hipocrisia, o engano. Vida ou morte, matas ou morres. Nós somos os bons e eles são os maus, sem essa certeza estamos fodidos e de certa forma esse desvario é refrescante, é uma das virtudes da guerra. A este buraco chega de tudo, negros fugindo à miséria, camponeses pobres que ainda acreditam no sonho americano, alguns latinos febris por uma raiva de séculos, aspirantes a heróis, psicopatas, e outros como eu, que andam a fugir de fracassos ou de culpas, mas no combate somos iguais, não importa o passado, uma bala é a grande experiência democrática. Temos que provar todos os dias que somos homens, somos guerreiros, resistir, suportar a dor e a incomodidade, não se queixar nunca, matar, apertar os dentes e não pensar, não tentes perceber, obedece, para isso nos domaram como a cavalos, nos treinaram à força de pontapés, insultos e humilhações. Não somos indivíduos, neste trágico teatro de violência, somos máquinas ao serviço da porra da pátria. Cada um faz o que pode para sobreviver, senti-me bem quando matei porque pelo menos dessa vez fiquei vivo. Aceito a demência e não tento explicá-la, simplesmente agarro a minha arma e disparo. Não pensar, para não nos confundirmos e vacilar, se o fazes morres, é a lei inequívoca da guerra. O inimigo não tem cara, não é humano, é um animal, um monstro, um demónio, se pudesse acreditar nisso no fundo do coração era mais simples, mas Cyrus ensinou-me a questionar tudo, obrigou-me a chamar as coisas pelo seu nome: matar, assassinos. Vim para sacudir a indiferença, e para me submergir em qualquer coisa apaixonante, vim, com uma atitude cínica, disposto a coleccionar experiências temerárias para dar sentido à minha vida. Vim por culpa de Hemingway, em busca da honradez, do mito do macho, de uma definição de masculinidade, orgulhoso dos músculos e da resistência adquirida nos treinos, disposto a provar a minha força, porque estava farto de ser atraiçoado pelos meus sentimentos. Um rito de iniciação tardio. Aos vinte e oito anos ninguém vem para esta perdição. Os primeiros quatro meses foram um jogo fatídico, uma aposta constante contra mim próprio, observava-me a certa distância e julgava-me com ironia, o passado perseguia-me e procurava extremos do risco, da dor, do cansaço, do embrutecimento, e então, quando alcançava o limite, não o podia suportar. As drogas ajudam. Mas logo, um dia despertei sentido-me vivo, essencialmente vivo, mais vivo do que alguma vez tinha estado, apaixonado por esta fogueira que é a existência. Compreendi que sou muito mortal, uma casca de ovo, uma insignificância que num instante se faz pó e não fica nem a recordação. Quando chegam os novos contingentes vou olhar os homens, examino-os com cuidado, desenvolvi um sexto sentido para ler os sinais, sei quais vão morrer e quais talvez não. Os mais valentões e atrevidos morrerão primeiro porque se julgam invencíveis, esses são mortos pela soberba. Os mais assustados morrerão também porque se paralisam ou se transformam, disparam às cegas e podem atingir um companheiro, não é conveniente estar perto deles, trazem azar, não os quero no meu pelotão. Os melhores mantêm-se tranquilos, não correm riscos inúteis, não fazem por ganhar ou chamar a atenção, têm uma tremenda vontade de viver. Gosto dos latinos, são calados e foscos por fora, mas como dinamite por dentro, explosivos, mortíferos, a morte não os assusta. Não só são bravos, como bons camaradas.
Trago montes de pílulas de anfetaminas, todas misturadas, um aperto no estômago, o gosto amargo na boca, falo tão rápido que não sei o que digo, depressa não posso falar, masco pastilha elástica para não morder a língua, depois enfrasco-me em álcool e soníferos para poder dormir um pouco. Sonho com rios de sangue, mares de gasolina em chamas, feridas abertas, lábios de mulher, vulvas, pilhas de mortos, cabeças decapitadas, crianças ardendo no napalm, essas repugnantes fotografias que os soldados coleccionam, tudo é vermelho, só vermelho. Aprendi a dormir aos bocadinhos, cinco ou dez minutos sempre que posso, estendido em qualquer lado, embrulhado no meu poncho de plástico, sempre com os sentidos alerta. Desenvolveu-se-me o ouvido, posso ouvir as patas de um insecto arrastando-se pela terra, e afinou-se-me o olfacto, posso cheirar os guerrilheiros a vários metros de distância, comem salada de peixe e quando estão assustados transpiram e o odor espalha-se. A que cheiramos nós? A loção de barbear, suponho, porque a bebemos como se fosse uísque, tem quarenta por cento de álcool. Quando consigo dormir umas duas horas sem pesadelos fico como novo, mas nem sempre se pode. Se não estou de guarda ou em alguma missão, passo a noite no acampamento tiritando debaixo de um toldo ensopado de chuva, uma tenda fétida de urinas, botas, humidade, restos de rações apodrecidas, suor, ouvindo as corridas rápidas das ratazanas e os ruídos dos homens, com mosquitos até na boca. às vezes acordo a chamar que nem um imbecil, como se riria de mim Juan José, quantas vezes me levou ele a um canto do pátio da escola para que os outros não me vissem chorar, cala-te, gringo maricas, os homens não choram, sacudia-me furioso, e como as ameaças longe de resolver o problema o pioravam, optava por suplicar que me calasse por favor, pelo que mais queres, mano, antes que nos agarrem a pontapés, aos dois como duas mulherzitas. Para começar a funcionar tomo aspirinas com café, frio, claro, fumo a primeira erva do dia e antes de partir engulo as anfetaminas. Faz falta uma comida quente, um duche, uma cerveja gelada, estou farto destas rações que nos lançam do ar em pacotes azuis e amarelos, feijões com carne de porco e salada de fruta. Aqui volto a ser como um menino, é uma estranha sensação, não há responsabilidades consigo mesmo, não há interrogações, é obedecer apenas, embora na verdade me custe bastante, sirvo para dar ordens, mas não para obedecer às cegas, nunca serei um bom militar. é fácil passar despercebido, apagar-se como uma sombra. A menos que se cometa uma estupidez descomunal, os dias correm um depois do outro com o único objectivo de sobreviver, esta tremenda maquinaria invencível encarrega-se de tudo, os de cima tomam as decisões e supõe-se que o sabem fazer, não tenho preocupações, posso desaparecer nas fileiras, sou igual aos restantes, sou um número sem cara, sem passado e sem futuro. é como tornarmo-nos loucos, flutua-se num limbo de tempo eterno e de espaços torcidos, ninguém pode pedir-me contas de nada, basta cumprir o meu trabalho e no resto posso fazer o que me der na real gana. Nada mais perigoso do que nos sentirmos superiores, ficas só como um umbigo, preveniu-me Juan Josè através do fumo da marijuana empapado em ópio, nesse dia na praia. Certamente, a única coisa que te salva é a obstinada fraternidade dos soldados. Sinto uma pena furiosa, vontade de chorar pela dor acumulada, a própria e a alheia, de pegar numa metralhadora e sair para matar, não aguento as ganas de gritar até rebentar o universo inteiro, tenho um bramido que não acaba atravessado na garganta. Estás louco, mano, na guerra não há piedade. Encontrámo-nos na praia, alguns dias de licença, foi um milagre que entre meio milhão de combatentes estivéssemos no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Abraçámo-nos sem poder acreditar em tamanha casualidade, que sorte fantástica vermo-nos aqui, mano, e batíamos nas costas um do outro e ríamos, felizes, esquecendo por um momento onde estávamos e para quê. Tratámos de pôr o passado em dia, tarefa impossível porque não nos víamos há dez anos, desde que ele entrou nas Forças Armadas e andava a pavonear-se no seu uniforme, enquanto eu me tinha tornado operário a um dólar por hora. Cada um partiu para a sua, ele para o seu destino de soldado e eu para trabalhar como lombo molhado por um ano, até que Cyrus me obrigou a sair do bairro. Não posso seguir na merda da garagem do meu pai, irmão, disse-me Juan Josè nessa altura, o meu velho é um negreiro, a vida militar é o melhor que posso fazer, sirvo nessa porra até aos trinta e oito ou quarenta anos, depois reformo-me com uma boa pensão e o mundo é meu, mano, que outra coisa posso fazer com a minha cor de pele e esta cara de índio? E além disso as mulheres ficam encantadas com os uniformes. Ríamos como loucos na praia. Lembras-te quando roubávamos cigarros ao Pila-de-Lirio e o vinho de missa ao padre Larraguibel? E das lutas com bosta de cavalo? E quando tosquiámos Oliver e lhe pusemos mercurocromo e o levámos à escola com a história de que tinha peste bubónica? Que merda vem a ser a peste bubónica, mano?, com este carinho brusco e dissimulado, esta rudeza salpicada de palavrÕes e de boas intenções com que nos tratávamos desde meninos. Contou-me que se tinha apaixonado por uma rapariga vietnamita e ao mostrar-me a fotografia que guardava num envelope de plástico na sua carteira pôs-se sério e mudou de voz. Era um desses instantâneos de má qualidade, com demasiada exposição, onde o rosto da mulher parecia uma lua pálida emoldurada pela sombra da cabeleira. Chamaram-me a atenção os olhos, mas o resto pareceu-me igual a tantas outras caras asiáticas que vira naqueles meses.
- Chama-se Thui - disse-me.
- É um nome de duende.
- Significa água.
Eu tinha ouvido rumores ao meu amigo, os soldados falam, correm boatos em sussurros. Confirmou-me o que circulava secretamente: uma missão difícil, o oficial comandante do pelotão era novo, viram-se rodeados, começou o fogo, caíram cinco e o oficial ordenou a retirada sem levar os feridos. Olha que cabrão aquele, mano, como é que os íamos deixar ali, imagina que eras tu, eu não te abandonaria nas mãos do inimigo, isso foi o que tentei explicar-lhe, mas o filho de uma puta estava histérico, mano, sacou da pistola e ameaçou-me, gritava e mexia os braços sem parar. Eu não esperei que se acalmasse, não havia tempo, disparei-lhe à queima-roupa. Caiu sem dar por isso. Batíamos em retirada carregando os nossos, como deve ser, mano. Salvámo-los a todos menos a um, que não tinha salvação, tinham-lhe rebentado as tripas. Pobre diabo, agarrava os intestinos com as mãos e olhava-me desesperado, não me deixes vivo, Buena Estrella não me deixes, suplicou... E tive que dar-lhe um tiro na fonte, que Deus me perdoe, maldita porra esta, mano.
Os corpos deviam ser metidos em bolsas com o seu nome numa etiqueta, mas nem sempre se cumprem as formalidades, falta tempo ou faltam bolsas, pegam-lhes pelos pulsos e tornozelos e atiram-nos para dentro dos helicópteros, ou amarram-nos como pacotes, envoltos nos seus ponchos, cobertos de moscas; em poucas horas os cadáveres estão inchados, disformes, comidos pelas larvas, fervendo no caldo da decomposição. Os helicópteros são pássaros de fazer vento, aterram num tornado levantando o pó, os detritos e o barro imundo trinta metros à sua volta. Quando os mortos estiverem muita horas esperando ao calor ou à chuva, saem pedaços de carne no remoinho e se estás perto podes levar com eles na cara. Na montanha neguei-me a fazer subir os corpos. Ajudei os feridos, mas depois tornei-me de pedra, e ninguém se atreveu a dar-me ordens, parece que eu estava mais para lá da vida e da morte, fora de mim. Crise nervosa, caso psicótico, não me recordo o nome que lhe deram. Lavam os helicópteros com mangueiras, mas o cheiro não desaparece. Nem o eco dos gritos, os mortos jamais vão de todo. Não estou a chorar, é a maldita alergia ou o fumo, vá-se lá saber, ando sempre com os olhos irritados, vive-se a respirar esta porcaria. Dou sempre graças por não ser um dos que viaja em bolsas de plástico, ou pior ainda, uns dos outros, os que levam o peito aberto como um fruto rebentado, cotos vermelhos, onde tinham os braços ou as pernas, mas que ainda vivem e talvez continuem a viver por muitos anos, perseguidos sempre por más recordações. Obrigado por estar ainda vivo, obrigado meu Deus, gritava em inglês, lá na montanha, anjo da guarda, doce companhia, não me desampares de noite nem de dia, acrescentava em espanhol, mas ninguém me ouvia, nem eu próprio me podia ouvir por entre o fogo da batalha e os gritos dos feridos, puta-mãe-de-Deus, tira-me daqui, gritava com o escapulário da Virgem de Guadalupe ao pescoço, um trapito negro endurecido pelo sangue seco de Juan Josè. Deu-mo um capelão algumas semanas depois de matarem o meu irmão. Coube a ele fechar-lhe os olhos, disse-me que já tinha a cor cinzenta dos fantasmas quando tirou o escapulário e lhe pediu que mo entregasse para me dar sorte, a ver se eu saía dali com vida. Quais foram as suas últimas palavras?, foi a única coisa que me ocorreu perguntar ao capelão. Agarre-me, padre, que vou cair, agarre-me porque lá em baixo está muito escuro, foi a última coisa que disseste, mano, e eu não estava lá para te ouvir nem para te agarrar com firmeza e arrancar-te à morte, merda! Maldita merda! De que te serviu o escapulário, mano? Aqui todos perdem a fé, mas tornamo-nos supersticiosos e começamos a ver sinais fatídicos em todo o lado: as terças-feiras são azarentas, até há precisamente sete dias não se passava nada, a calma antes da tormenta, caem sempre três aviões e hoje já caíram dois... Viverás até velho, Greg, terás tempo de cometer muitos erros, de te arrependeres de alguns e de sofrer como um condenado, não será uma vida fácil, mas garanto-te que será longa, assim está escrito nas linhas da tua mão e nas cartas do Tarot, jurou-me Olga, mas pode tê-lo inventado, ela não sabe nada, é uma charlatã pior que meu pai, pior que todos os adivinhos e vendedores de amuletos deste país condenado. Disse o mesmo a Juan Josè e ele acreditou, que parvo foste, mano. Estava seguro de uma boa sorte, por isso não tinha cuidado, a sua confiança era tão contagiosa que dois tipos do seu pelotão faziam o possível por não sair do seu lado, convencidos de que junto dele estavam a salvo.
Agora nenhum dos três pode ir reclamar a Olga seja o que for.
A selva está cheia de rumores, de guinchos de animais, de patas, de roçares, de murmúrios, o bosque pelo contrário é silencioso, um silêncio opaco. Suponho que no ar tudo é purificado pelo fogo, límpido, mas cá em baixo é o inferno. Com o tempo todos se habituam: a pior perversão, o mais obsceno da guerra, é que, a todos, tudo isso parece normal. A princípio estive paralisado, depois eufórico, mas sempre com a consciência adormecida. Agora, na aldeia, voltei a pensar. Na batalha não há que pensar, cada um transforma-se em máquina de destruição e morte. Ninguém quer tipos educados, críticos, com consciência, apenas servem os machos a rebentar de testosterona, os negros analfabetos, os bandidos latinos, os criminosos que arrancam das prisões para os trazerem para aqui, tipos como eu são um fardo. Depois de cada missão, os músculos latejam-me, não posso controlar as mãos, tenho os dentes cerrados e um tique na cara, como um sorriso demente, muitos têm-no também, depois passa, dizem eles. Nestes meses acostumei-me a ter os ossos empapados, os pés em carne-viva dentro das botas, os dedos enclavinhados na arma, a sensação constante de estar rodeado de sombras, de esperar o tiro de misericórdia que virá a qualquer instante de qualquer lado, contando os passos que faltam para alcançar aquele arbusto, os minutos para chegar ao rio, a hora para cumprir este turno, os dias para completar o meu tempo e regressar a casa.
Contando os segundos de vida e fazendo as contas, com muita sorte a próxima rajada de metralhadora matará o meu companheiro e não a mim. E pergunto-me que merda faço eu aqui, sem querer admitir, nem no mais profundo e estranho fascínio da violência, esta vertigem da guerra. Naquela madrugada na montanha quando começou a nascer o dia, vimos que restávamos vivos apenas nove, os mortos e os feridos não se podiam contar. Tínhamos lutado toda a noite. Com a primeira luz da manhã chegaram os bombardeiros, metralharam as encostas, obrigando os guerrilheiros a retirar-se, depois aterraram os helicópteros. O ruído dos motores foi música para mim, as batidas do coração da minha mãe antes de eu nascer, tiquetaque, vida. Oremos, disse o capelão metodista e os outros cantavam Aleluia enquanto eu canto ó Susana; confessa-te, meu filho, diz-me o capelão católico e eu digo que se vá confessar à puta que o pariu, mas logo me arrependo, não me vá cair um raio em cima, como dizia o padre Larraguibel, e me apanhe em pecado mortal. Não temas, Deus está contigo. No sermão de domingo leram a história de Job. Vergado pelas desgraças com que o Senhor o pÕe à prova, Job diz: «O que temo, isso chega-me, o que me atemoriza, isso agarra-me; não tenho descanso; a turbação apoderou-se de mim.» Não penses em coisas feias, mano, porque acontecem, não se deve chamar a má morte com o pensamento, aconselhava-me Juan Josè Morales, sempre a rir. Buena Estrella. Chamavam a Juan Josè Buena Estrella Morales.
E o fumo, claro. Tenho o espírito em brama. Fumo de tabaco, de erva, de haxixe e de quanta porcaria fumo, neblina de amanheceres frios na montanha e do vapor quente dos vales ao meio-dia, poluição de motores e pó, fumarada fétida de napalm, de fósforo, dos incontáveis explosivos e do incêndio, sem princípio nem fim, que está a transformar este país num deserto cruzado de negras cicatrizes. Toda a espécie de fumo, de todas as cores. De cima devem parecer nuvens e às vezes são-no, aqui em baixo é parte do medo. Não podemos parar nem um instante, ninguém pode, se nos movermos temos a sensação de estar a enganar a morte, corremos como ratazanas envenenadas. O inimigo, pelo contrário, está quieto, não desperdiça angústias, espera calado, tem várias gerações de treino para a dor, é impossível decifrar a expressão imutável daquelas caras. Estes cabrões não sentem nada, são como sapos de laboratório, disse-me um marine que se especializara em arrancar confissões. Nós mobilizamo-nos enlouquecidos para viver e no caminho encontramo-nos de cara com a morte. Eles arrastam-se silenciosos nos seus túneis, mimetizam-se com a folhagem, desaparecem num instante, têm olhos para ver de noite. Nunca estamos a salvo. Faz as contas, disse-me Juan Josè Morales, quantos homens vieram para esta merda e quantas são as baixas? A percentagem é insignificante, mano, vamos sair daqui inteiros, não te preocupes. Suponho que tinha razão e a maioria de nós viverá para o contar, mas aqui só pensamos nos mortos e nessas histórias atrozes dos sobrevi-ventes. Sim, muitos saem ilesos na aparência, mas ninguém volta a ser o que era antes, ficamos marcados para sempre, mas quem é que se importa com isso, de qualquer das maneiras somos lixo, esta guerra é de negros e brancos pobres, rapazes do campo, dos povos pequenos, dos bairros mais miseráveis, os senhorzinhos não estão nas primeiras filas, os seus pais trataram de fazer as coisas para os manter em casa ou os tios coronéis mandam-nos para terrenos seguros. A minha mãe acha que a mais grave perversidade é o racismo, Cyrus dizia que é a injustiça das classes, os dois têm razão, suponho, nem na hora de irmos para a guerra somos iguais. Não se aceitam mexicanos nem cães, punham por escrito até há bem pouco tempo em alguns restaurantes; só para brancos, estava escrito nos sanitários públicos; aqui, pelo contrário, os de cor são bem-vindos, muito bem-vindos, mas por detrás da aparente camaradagem arde o rancor da raça, brancos com brancos, negros com negros, latinos com latinos, asiáticos com asiáticos, cada qual com a sua linguagem, a sua música, os seus ritos, as suas superstições. Nos acampamentos os bairros têm fronteiras invioláveis, eu não me atreveria a entrar no dos negros sem ser convidado, o mesmo que no ghetto onde me criei, nada mudou. Cada um tem o seu conto, mas eu não quero ouvi-lo, nem quero amigos, não posso dar-me ao luxo de ter o carinho de alguém e depois vê-lo morrer, como Juan Josè ou esse pobre rapaz do Kansas lá na montanha, só quero cumprir com o meu trabalho, fazer o meu tempo e sair com vida. Rezo para ter uma ferida grave, e ser devolvido para casa, mas não muito grave para não ficar inválido. Que pelo menos me atinjam nos tomates, dizia em cada voo um piloto de helicóptero, um alegre mulato de Alabama que regressou à sua aldeia carregado de medalhas numa cadeira de rodas. Isso nunca me acontecerá, isso das medalhas, dizia eu, e deram-me uma porque fiquei louco, sou um herói de guerra, tenho uma trampa de uma estrela de prata, não era minha intenção fazer mais do que o meu dever, sempre disse que é preferível viver como um cobarde do que morrer como um tonto, mas por uma dessas ironias ridículas agora sou um grande herói. Primeira lição do bairro: não há mérito algum no heroismo, apenas na sobrevivência. Ai, Juan Josè, como é que tu não sabias isso, se tu mesmo mo ensinaste quando éramos dois putos enfezados? E agora como é que vou explicar isso aos teus pais e aos teus irmãos, como diabo posso olhar a cara da tua mãe e para Cármen, como é que lhes vou dizer a verdade, terei de lhes mentir, irmão, e continuarei a mentir-lhes sempre porque não tenho cara para lhos dizer que te pulverizaram metade do corpo e que essas condecorações ganhas à força de coragem, que certamente já entregaram à tua mãe para as pendurar na parede da sala, sso apenas estrelas de latão pintado e que na hora de morrer a gritar nada significam.
Conheço a violência, é uma fera destrambelhada, é inútil discutir com ela, temos é que a enganar. Invejo os pilotos, lá em cima desapareces com mais elegância, cais como uma pedra ou explodes num milhão de fragmentos, sem tempo sequer para rezar como Martinez quando o comboio o colheu, pachuco cabrão, já nem sequer o odeio, ao contrário, aqui em baixo com a infantaria podes ser despachado de mil maneiras, espetado nos paus afiados de uma armadilha, decapitado por uma catanada, rebentado por uma granada ou uma mina, cortado ao meio por uma rajada de metralhadora, transformado num archote, e isso sem falar em todas as mortes engenhosas no caso de cair prisioneiro. Cavar um buraco na terra e esconder-me ali até que isto acabe, refugiar-me numa cova, como fazia Oliver quando era cachorro. Porque não me coube um trabalho de escriturário?, há muitos gajos que passam a guerra debaixo de um ventilador; se tivesse sido mais esperto não estaria aqui, teria feito o serviço quando saí da escola secundária, por exemplo, em vez de partir os ossos como o mais raso dos soldados, nesse tempo ainda não se falava de guerra. E agora para aqui estou que nem um cretino, numa idade em que ninguém vem para este inferno, sinto-me como um avô destes meninos fodidos em farda camuflada. Não me interessa acabar com os ossos carcomidos debaixo de uma cruz no cemitério militar, mais um entre tantos iguais, prefiro morrer de velho nos braços de Cármen. Olha lá, há muito tempo que não pensava em Cármen, por que disse eu Cármen e não Samantha? Por que me veio este fulgor à mente? Na sua última carta falou-me de outro pretendente, chinês ou japonês parece que foi o que disse, não diz o nome, quem será desta vez? Tem verdadeiro talento para escolher o que menos convém, deve ser um come-flores andrajoso e guedelhudo, também os há na Europa aos montÕes. Na última fotografia que me mandou, apareceu de pé em frente da Catedral de Barcelona vestida de bailarina flamenca ou qualquer coisa deste estilo, não sou nenhum puritano, mas lembrei-me de Pedro Morales e escrevi-lhe dizendo que já não tem idade para aquelas criancices, que tirasse aqueles trapos e pusesse um sutiã, enfim, que me importa a mim, a vida é dela, que se foda, por ser tonta. Cármen... gostaria muito de ouvir a tua voz, Cármen.
Receio ter ficado chanfrado por completo, ter perdido a noção do bem e do mal, da decência. Acostumei-me tanto à infâmia que não posso imaginar a realidade sem ela. Faço por recordar como se divertem os amigos, como se faz um pequeno-almoço familiar, como se fala a uma mulher num primeiro encontro, mas tudo isso se esfumou e creio que não voltará mais. O passado é um torvelinho de rajadas que tudo apagam, os concursos de baile com Cármen, a minha mãe no seu cadeirão de vime ouvindo ópera, o duelo com Martinez, que me tornou um grande herói da escola, caralho, temos que ver as tontices que fazemos nessa idade, nenhuma rapariga me resistia e quando comprei o Buick pediam-me para ir comigo, eu era mais pobre que um rato de sacristia, mas consegui aquele bate-latas a cair aos bocados, ao volante, sentia-me como um xeque e no assento de trás cometi não sei quantos desvarios pecaminosos. Não passávamos das apalpadelas, claro, eu atacava e a miúda defendia-se sem entusiasmo, não devia colaborar com a sua própria sedução mesmo que morresse de vontade, umas quenturas que mais pareciam luta de gatos e nos deixavam a ambos extenuados, acabar fora, não fosse eu engravidá-la, se te deitas com ela tens que casar, és um cavalheiro ou não? Só Ernestina Pereda o fazia com todos, bendita Ernestina Pereda, Deus te guarde santa Ernestina, gostavas de reinar, mas depois choravas e tinha que jurar-te que guardaria segredo, um segredo que todos conhecíamos e aproveitávamo-nos do teu ardor e da tua generosidade, se não tivesse sido por ti o meu sangue teria ficado envenenado de tantas obsessões. Aqui as mulheres são como meninas impúberes, pequeninas, uns montezinhos de ossos, não têm mamas nem pêlos em parte alguma, e estão sempre tristes, suscitam mais compaixão que vontade de ir com elas para a cama, a única coisa abundante é o cabelo comprido, aquelas melenas lisas e escuras com fulgores azuis. Fi-lo com uma rapariga num quarto cheio de gente, a família comia num canto e um menino chorava dentro de uma caixa de abastecimentos, do Exército, nós na cama, separados do resto da família por uma cortina coçada, ela diria uma enfiada de obscenidades em inglês aprendida de memória, deve haver um manual para porcarias. O Alto Comando pensa em todos os pormenores, se há manuais para o uso das latrinas, por que não fazer outro para treinar prostitutas, mal por mal trata-se de bons rapazes, o coração da pátria, não é? Cala-te, desgraçada, pedi-lhe mas não me compreendeu e não teve vontade de calar-se e a sua família falava do outro lado da cortina e o bebé continuava a chorar. Recordei logo qualquer coisa que vi aos cinco anos numa aldeia empoeirada do Sul, os homens violando uma negrita, dois gigantes esmagando uma infeliz criança tão fraca e tão pequena como a que estava comigo, e senti-me como um deles, enorme e satânico, e a vontade foi-se-me, desinchei por completo, não sei por que me lembrei nesse momento de qualquer coisa ocorrida há mais de vinte anos do outro lado do planeta. Leo Galupi, esse velhaco encantador, levou-me a ver a Avó, uma das curiosidades daqui, uma mulher imemorial, cruzada de rugas que se arrasta debaixo das mesas do bar oferecendo os seus serviços, é uma mestra, dizem, depois de passar pelas suas mandíbulas de chimpanzé, um gajo pÕe-se exigente; dão-lhe dez dólares e não é preciso fazer nada, ela encarrega-se de tudo, depois até te limpa e te sobe o fecho das calças, vai consolando os fregueses, por turnos, atarefada debaixo da mesa, enquanto os outros continuam a beber e a jogar às cartas, e a contar anedotas ordinárias. Eu não consegui, venceu-me a repugnância ou a pena. A Avó tem o cabelo quase branco, uma velha nada vulnerável, com bíceps de Charles Atlas e uns quantos dentes afiados como um serrote, em qualquer momento fará o que todos receamos, arranca a picha a algum com uma valente dentada, esse risco faz parte do jogo, cada cliente teme que precisamente quando lhe chegar a vez a velha se decida e zás!
Aqui na aldeia voltei a sentir-me como um homem. Convidam-me à vez, um dia em cada casa, cozinham para mim e a família instala-se à minha volta para me ver comer, todos sorridentes, orgulhosos de me alimentar ainda que a comida não chegue para eles. E eu aprendi a aceitar o que me oferecem e a agradecê-lo sem exageros; para não os ofender. Nada mais difícil do que receber com simplicidade, já não me recordava, desde os tempos em casa dos Morales não me tinham voltado a dar sem esperar fosse o que fosse em troca, para mim foi uma lição de carinho e humildade, é impossível passar pela vida sem ficar a dever nada a ninguém. às vezes um dos homens pega-me na mão, como a uma noiva, e também aprendi a não tirar a minha. A princípio envergonhava-me, os homens não se tocam, os homens não choram, os homens não se comovem, os homens, os homens... Há quanto tempo ninguém me tocava por pura simpatia, por amizade? Não devo abrandar-me, abrir-me, confiar; se te descuidas morres. Não pensar, o mais importante é não nos pormos a cismar. Se imaginamos a morte, ela sucede, é como uma premonição, mas não posso deixar de o fazer, tenho a cabeça cheia de visões de morte, de palavras de morte. Quero pensar na vida...
Em fins de Fevereiro a companhia encontrava-se em cima de uma montanha com ordens de defender o lugar a todo o custo. Na investigação posterior não ficou clara a razão pela qual os homens tinham que resistir como o fizeram, mas a burocracia e o tempo encarregaram-se de cobrir o assunto com um manto de esquecimento. Vamos morrer aqui todos, disse a Gregory Reeves, a tremer, um rapaz do Kansas. Não era o seu baptismo de fogo, há meses que estava na frente. Mas teve o pressentimento certeiro do final e pensou que mal tivera tempo de tomar o gosto pela vida, tinha acabado de fazer vinte anos não havia uma semana. Não vais morrer, não fales isso, abanou-o Reeves. Os soldados aguardaram, cavando trincheiras e amontoando sacos de terra e pedras para fazer uma barricada, não tanto com a esperança de se protegerem, mas para disfarçar o medo e manterem-se ocupados, de qualquer modo a espera eternizou-se, tensos, angustiados, empunhando as armas, esgotados pelo frio depois do pôr-do-sol e pelo calor durante o dia. O ataque foi de noite e desde o primeiro momento souberam que estavam perante um inimigo dez vezes mais numeroso e que não havia meio de escapar. Poucas horas depois o acampamento era um enclave desesperado onde um punhado de homens ainda se mantinha a disparar, rodeados pelos corpos de mais cem companheiros tombados pelas ladeiras. No fulgor alaranjado de uma explosão, Gregory Reeves conseguiu ver o soldado do Kansas que voava pelo ar até ao outro lado da barricada e sem saber o que fazia nem porquê saltou por cima dos sacos e arrastou-se até ele num inferno de fogo cruzado, de estalidos fulgurantes, de fumarada irrespirável. Conseguiu segurá-lo pelos braços chamando-o pelo seu nome, não te preocupes, estou aqui, não se passou nada, e sentiu as mãos agarradas à roupa e a sua voz quebrada pelos estertores da agonia, e o cheiro do medo, do sangue e da carne rebentada, e em outra explosão de outro estrondo viu-lhe a morte nos olhos e na cor da pele e conseguiu ver também que lhe faltavam as pernas, por baixo era um charco negro. Não se passa nada, vou levar-te para o outro lado, daqui a pouco virão os helicópteros e logo estaremos a beber cerveja e a celebrar, coragem. Não me deixes só, por favor não me deixes só, e Reeves sentiu que as trevas envolviam os dois e quis salvá-lo do desespero, mas ele fugiu-lhe das mãos como areia, desfez-se, fez-se em fumo, e quando ficou com o peso da cabeça do homem no seu peito e as mãos o soltaram e o último espasmo de sangue quente lhe banhou o pescoço, soube que algo se lhe tinha rebentado por dentro num turbilhão de fragmentos, um espelho pulverizado. Com cuidado colocou o companheiro no chão e depois atirou a sua arma para longe. Então o som terrível de um imenso sino repicou dentro dele e um alarido metálico saiu-lhe das entranhas e sacudiu a noite e por um instante venceu o fragor dos explosivos, congelou o tempo e deteve a marcha do mundo. E continuou a gritar até que não lhe ficou mais ar nem mais grito. Por fim dissipou-se o eco do sino, mas o tempo continuou alterado e, a partir desse instante até ao amanhecer, tudo sucedeu numa única imagem imóvel e imutável, uma fotografia a branco, negro e vermelho na qual os aconteci-mentos da noite ficaram registados para sempre. Ele não está nesse mural sangrento. Busca-se entre os cadáveres e os feridos, entre os sacos de terra e nos sulcos das trincheiras, mas não se encontra. Desapareceu da sua própria memória. Um dos homens salvos contou depois que o viu atirar fora a arma e gritar de pé, com os braços levantados, como se pedisse a próxima rajada de balas, e quando esvaziou esse longo bramido dos pulmões voltou-se para ele, que estava a dois metros de distância sangrando sem dor, carregou-o atravessado nos ombros e caminhou assim, sem se importar com o fogo que zumbia à sua volta, em linha recta até ao cume, onde quatro mãos se estenderam para receber o ferido. Gregory Reeves voltou atrás em busca de outro companheiro caído e depois mais outro e durante o resto dessa noite aziaga transportou-os debaixo da metralha cerrada, com a certeza de que enquanto estivesse a fazê-lo nada poderia acontecer-lhe, era invulnerável. Na sua vida nunca tinha tido antes e nunca voltaria a ter essa sensação de poder absoluto.
Ao amanhecer chegou ajuda. Os helicópteros levaram primeiro os feridos, depois os nove sobreviventes e por fim descarregaram as bolsas de plástico para meter os mortos. Dos homens que salvaram, oito estavam extenuados de tensão e terror, tremendo tanto, dentro das roupas ensopadas, que não podiam segurar o frasco na mão para beber um gole de uísque, mas quando, horas mais tarde, os depositaram na praia para se recuperarem do horror em três dias de diversão e repouso, já podiam falar do que acontecera contando pormenores. Imundos e excitados até à demência, todos juntos, de braço dado, uma família de bandoleiros desesperados, atiraram-se como animais às cervejas geladas e aos hamburgers quentes que não viam há meses, e quando alguém lhes quis explicar as normas armaram uma discussão que por pouco não degenerou noutra matança. Quando chegou a polícia militar e lhes viram as caras e souberam o que tinham passado, tiraram-lhes as armas e deixaram-nos soltos, a ver se um pouco de água salgada e areia os devolvia ao mundo dos vivos. O nosso sobrevivente, Gregory Reeves, foi o último a subir para o helicóptero, depois de ajudar os outros. Permaneceu rígido no banco, com os olhos fixos em frente, sulcos de profunda fadiga marcados na cara, sem uma beliscadura e coberto de sangue que não era o seu. Tinha os nervos em fanicos. Não puderam mandá-lo para a praia, deram-lhe uma injecção e acordou dois dias mais tarde num hospital de campanha, atado à cama para não se ferir no tumulto dos pesadelos. Disseram-lhe que salvara a vida de onze companheiros e que pelos seus actos de extremo valor lhe tinham dado uma das mais altas condecorações. De acordo com os supersticiosos códigos da guerra, os nove sobreviventes intactos do massacre tinham livrado o corpo da morte, mas já estavam marcados. Juntos não tinham a menor possibilidade de escapar uma segunda vez, mas separados talvez pudessem continuar a enganar o destino. Mandaram-nos para diferentes companhias, com o tácito acordo de que não se poriam em contacto por muito tempo. Por outro lado, ninguém desejava isso, à euforia de terem sido salvos seguiu-se o terror de não poderem explicar por que razão tinham sido os únicos afortunados entre mais de cem homens. Dois dos feridos recuperaram em poucas semanas e Gregory Reeves passou por eles em duas ou três ocasiões. Não lhe dirigiram a palavra, fingiram não o reconhecer porque a dívida era demasiado grande, não podiam pagá-la e isso criava neles um sentimento de vergonha.
Tinham passado vários meses desde que Reeves pusera os pés no Vietname, quando por fim os superiores se lembraram de que falava a língua nativa e o Serviço de Inteligência o mandara para uma aldeia das montanhas, em ligação com as guerrilhas aliadas. A sua missão especial era ensinar inglês na escola, mas nenhum lugarejo tinha a menor dúvida sobre a verdadeira natureza do seu trabalho, de maneira que nem ele se deu ao trabalho de fingir. No primeiro dia de aulas apareceu com a metralhadora numa das mãos e a maleta com livros na outra, atravessou a sala sem olhar para os lados, pôs o porta-documentos sobre a mesa e virou-se para os seus alunos. Vinte homens de diferentes idades, dobrados em profunda reverência, saudaram-no. Não se inclinavam perante ele, mas perante mestre, pelo respeito ancestral desse povo face ao conhecimento. Sentiu uma onda de sangue na cara, em nenhum momento de guerra tinha sentido tanta responsabilidade como então. Lentamente tirou a arma do ombro e caminhou até à parede, para a pendurar de um prego, e regressou ao estrado, inclinou-se para saudar os alunos, agradecendo em silêncio os seus doze anos de escola e sete de universidade. O curso, de inglês, que no começo era só um ecrã para recolher informação, transformou-se desde o primeiro dia num dever premente para ele, a única maneira de retribuir aos aldeÕes, com alguma coisa, o muito que deles recebia.
Vivia numa casa modesta, mas fresca e cómoda, que tinha pertencido a um funcionário do governo francês, uma das poucas num raio de muitas milhas, que dispunha de uma latrina ao fundo do pátio. As corridas dos gatos e dos ratos no forro do tecto acabaram por lhe serem familiares de tal maneira que, quando se calavam à noite, ele despertava desesperado. Dispunha de muito tempo livre para preparar as aulas, na verdade tinha muito pouco que fazer, a missão militar era uma anedota, a guerrilha aliada acabou por ser uma sombra indefinida. Os contactos esporádicos eram surrealistas e as suas informações acabaram por ser exercícios de adivinhação. Comunicava diariamente por rádio com o seu batalhão, mas raras vezes podia oferecer novidades. Estava em plena zona de combate, embora a guerra desse a impressão de ser um conto em qualquer outra parte. Caminhava por entre as casas com os telhados de palha, pisando o barro e os excrementos de porco, saudando as pessoas pelo seu nome, ajudando os camponeses a mover os pesados arados de madeira puxados por búfalos para preparar as plantações de arroz, as mulheres que iam com o seu rancho de filhos buscar água em grandes cântaros, os meninos a lançar papagaios ao ar e a fazer bolas de trapo. à noite vibravam as canções das mães para embalar os filhos e as vozes dos homens no seu idioma de trinados e murmúrios. Esses sons marcavam o ritmo das horas, eram a música da aldeia. Também voltou a ouvir a sua própria música pela primeira vez numa eternidade, instalava-se com a sua cassette de concertos e durante algumas horas imaginava que a guerra era apenas um sonho mau. Parecia-lhe ter nascido entre aquela gente tolerante e doce, capaz no entanto de empunhar uma arma e dar a pele para defender a sua terra. Em pouco tempo falava o idioma com fluidez, ainda que com um acento áspero que provocava alegres risadas, mas nunca na sala de aula. Aqueles que o tratavam com familiaridade quando o convidavam para comer, saudavam-no com vénias na escola. Jogava às cartas com um grupo de homens à noite e a norma era dizer obscenidades em verdadeiros duelos verbais de humor sarcástico, nos quais perdia sempre, porque no tempo em que demorava a traduzir a piada já os outros estavam noutra coisa. Tinha que ser cuidadoso no trato, havia um limite incerto entre as piadas habituais e um protocolo inviolável imposto pelo respeito e pelas boas maneiras. Na aparência comportavam-se como iguais, mas havia um complexo e subtil sistema de hierarquias, cada um velava pela sua honra com orgulhosa determinação. Eram hospitaleiros e amigáveis, assim como as portas das casas estavam sempre abertas para Reeves, do mesmo modo chegavam visitantes à sua sem aviso prévio e ficavam horas e horas em conversa amena. A habilidade para contar histórias constituía o rasgo mais apreciado, havia entre eles um ancião narrador capaz de arrastar o auditório para o céu ou para o inferno, de comover os homens mais corajosos com os seus contos sentimentais, as suas complicadas histórias de donzelas em perigo e de filhos em desgraça. Quando se calava todos ficavam em silêncio por longo tempo e em seguida o mesmo velho dava a primeira risada gozando com os seus ouvintes, enganados como meninos pela magia das suas palavras. Reeves sentia-se rodeado de amigos, mais de uma vasta família. Depressa deixou de se ver como um gigante branco, esqueceu as diferenças de tamanho, cultura, raça, língua e propósitos e abandonou-se ao prazer de ser como todos. Uma noite surpreendeu-se a olhar a abóbada negra do céu e a sorrir ante a evidência de que ali, naquela remota vilória asiática, era o único lugar onde se tinha sentido aceite como parte de uma comunidade em quase trinta anos de vida.
Escreveu a Timothy Duane pedindo-lhe uma lista de materiais para as suas aulas porque os seus textos eram infantis e antiquados, e pôs-se em contacto com uma escola secundária em São Francisco para que os seus estudantes trocassem cartas com os rapazes americanos. Os alunos contaram a sua vida em duas páginas escritas no seu laborioso inglês e semanas mais tarde receberam uma bolsa com as respostas dos Estados Unidos. Nessa tarde houve uma festa para celebrar o acontecimento. Entre outras coisas, Timothy Duane mandou uma máscara para ilustrar a tradição anual do Halloween, de borracha, com cara de gorila, cabelos verdes, dentadura de tubarão e orelhas em ponta que se moviam como gelatina. Reeves pô-la, cobriu o corpo com um lençol e saiu aos saltos pela rua com uma tocha acesa em cada mão, sem imaginar o terrífico efeito da brincadeira. Armou-se um alvoroço comparável ao provocado por um ataque aéreo, mulheres e crianças fugiram para a selva em ensurdecedora gritaria e os homens conseguiram vencer o espanto e organizaram-se para atacar o monstro à paulada. O gorila teve de correr para salvar a vida, enrodilhado. no lençol, enquanto procurava arrancar o disfarce aos puxões. Conseguiu identificar-se mesmo a tempo, mas não antes de receber umas quantas pedradas. A máscara tornou-se o troféu mais apreciado pelas pessoas, os curiosos faziam fila para admirá-la de perto e tocá-la com um dedo hesitante. Reeves pensou dá-la como prémio ao melhor aluno do seu curso, mas ante semelhante estímulo muitos tiraram a nota máxima, de modo que optou por entregar aquele tesouro à comunidade. O rosto de King Kong terminou na Câmara Municipal, junto de uma bandeira ensanguentada, um estojo de primeiros-socorros, um rádio emissor e outras relíquias. Em retribuição ofereceram ao professor de inglês um pequeno dragão de madeira, símbolo da prosperidade e boa sorte, que comparado com o monstro de borracha parecia um querubim.
A ilusória tranquilidade desses meses na aldeola terminou para Reeves antes da data prevista. Os primeiros sintomas foram semelhantes aos de uma disenteria, pôs as culpas na água contaminada e nas comidas estranhas, e limitou-se a pedir um medicamento pela rádio. Enviaram-lhe uma caixa com vários frascos e uma folha impressa com instruções. Começou a ferver a água, recusou os convites sem ser ofensivo e tomou os remédios metodicamente. Durante alguns dias sentiu-se melhor, mas logo o mal-estar voltou com maior força. Pensou que era a ressaca do mal anterior e não se preocupou, disposto a matar o vírus com indiferença, não era coisa de choramingar como uma velha, os homens não se queixam, mano, mas piorava a olhos vistos, perdeu peso, não podia com os ossos, custava-lhe um esforço descomunal levantar-se da cama e fixar a vista nas letras para preparar as aulas ou rever os trabalhos dos alunos. Ficava com o giz na mão, sem força para mexer o braço, olhando a superfície negra do quadro com ar entontecido, sem saber o que significavam as patas de galinha escritas por ele nem mesmo que raio era aquele calor que o consumia por dentro. Is this pencil red? No, this pencil is blue, e não conseguia recordar de qual lápis se tratava nem a quem podia importar a ponta de um corno que fosse vermelho ou azul. Em menos de dois meses perdeu dezoito quilos e quando alguém comentou que estava a reduzir-se de tamanho e a pôr-se da cor de uma cabaça, respondeu, com um sorriso débil, que um bom espião devia mimetizar-se no ambiente. Naquela altura já ninguém na aldeia fazia mistério das suas mensagens em código e ele mesmo permitia piadas a respeito disso. As pessoas consideravam a sua presença como uma inevitável consequência da guerra, não se tratava de nada pessoal, se não fosse Reeves seria outro, não havia outra alternativa. Dos inúmeros estrangeiros que por ali tinham passado, amigos ou inimigos, aquele era o único com quem se sentiam bem, por isso tinham carinho por ele. às vezes aparecia um miúdo a dizer-lhe ao ouvido que se aproximava uma noite de tormenta e seria conveniente manter as luzes apagadas, fechar bem as portas e não sair fosse pelo que fosse. De uma maneira geral o clima não parecia ter-se alterado, Reeves olhava a ferradura lívida da lua por uma fresta da janela, ouvia os gritos dos pássaros nocturnos e fazia ouvidos surdos a outros tráfegos nas ruelas da aldeia. Não dava informações sobre esses episódios, os seus superiores não compreenderiam que para sobreviver as pessoas não poderiam fazer outra coisa que dobrar-se face aos mais fortes, de um e de outro lado. Uma única palavra sua sobre essas estranhas noites de silenciosas diligências e uma expedição punitiva acabaria com os seus amigos e deixaria a povoação reduzida a um montão de choças calcinadas, tragédia que de modo algum mudaria os planos dos guerrilheiros. A falta de notícias pareceu suspeita no batalhão, por isso foram buscá-lo para lhe fazer algumas perguntas pessoalmente. A caminho da base desmaiou no jeep e ao chegar tiveram que o fazer descer entre dois homens e arrastá-lo até uma cadeira à sombra. Deram-lhe um garrafão de água que ele bebeu inteiro sem respirar, a seguir vomitou. Os exames de sangue mostraram os males habituais e o médico, receando infecção contagiosa, mandou-o de avião directamente para um hospital de Hawai.
A experiência do hospital foi decisiva para Gregory Reeves, porque teve ocasião de pensar no futuro, luxo que até então desconhecera. Poucas vezes tinha disposto de tanto tempo sem actividade, via-se numa bolha flutuando no vazio, as horas eram para ele eternas. Nos meses de batalha tinham-se-lhe afinado os sentidos e agora no relativo silêncio da sua cama de enfermo sobressaltava-se quando um termómetro caía na bandeja metálica ou uma porta se fechava. O cheiro da comida incomodava-o, o dos medicamentos enjoava-o, e o de um ferido fazia-lhe vómitos. O roçar dos lençóis era um suplício para a sua pele, a comida sabia-lhe a areia na boca. Alimentaram-no com soros durante vários dias e depressa a paciência de uma enfermeira, que lhe dava papinhas de recém-nascido, devolveu-lhe o apetite. Nos primeiros dias concentrou-se em si mesmo, os cinco sentidos postos ao serviço de se curar, dependendo dos altos e baixos dos seus males e reacções do seu organismo, mas quando se sentiu melhor pôde olhar à sua volta. Ao desintoxicar-se das drogas com que tinha funcionado desde o começo do serviço, despejou-se-lhe a neblina do espírito e com uma impiedosa lucidez permitiu que se visse a si mesmo. Estendido de costas, com os olhos cravados no ventilador do tecto, pensava que lhe coubera nascer entre os mais baixos e que até esse momento a sua vida tinha sido só trabalho e carências. Conseguiu sair do arrabalde onde se criara e tornara-se advogado, mais do que qualquer dos seus companheiros de infância tinha-o conseguido, mas não se livrou do estigma da pobreza. O seu casamento não o aliviou dessa sensação, os melindres e a abulia da mulher, que antes lhe produziam curiosidade, agora incomodavam-no. Timothy Duane dizia que o mundo se dividia em abelhas-rainhas destinadas ao prazer e em obreiras cuja missão era manter as primeiras. Gente como Samantha e Timothy tinham recebido tudo antes de nascer, eram seres sem preocupações, havia sempre alguém disposto a pagar as suas contas, se a herança não bastasse. Malditos sejam, murmurava ao comparar-se a eles. Juro que partirei a mão à sorte, repetia ele, procurando não pensar que o azar o poderia conduzir ao cemitério. Não, isso não pode acontecer, faltam-me menos de dois meses, nunca me vão mandar outra vez para a frente, tranquilizava-se ele. Sentia simpatia pelos outros doentes, perdedores, como ele, mas incomodavam-no os seus gemidos, os seus lentos passos arrastando as sapatilhas sobre o linóleo, as suas mesquinhices e misérias. Ouvia aquelas mínimas conversas e queixas pensando que eles eram desprezíveis, apenas um número nas listas administrativas, nada importante, bem podiam desaparecer amanhã que não ficaria nem rasto da sua passagem pelo mundo.
E eu? Alguém se recordaria de mim? Ninguém, não tenho mulher nem filhos que me chorem, nem a minha mãe. E Cármen? Ainda estará a sofrer pelo irmão, adorava Juan Josè, o único que se manteve em contacto, quando os demais a tinham repudiado. Cuidado outra vez, agora estou a ficar sentimental. A verdade é que não me importa a ponta de um caralho ser recordado, o que quero é ser rico, ter poder. O meu pai tinha-o no mundo dos marginais em que se movia, era capaz de hipnotizar uma sala cheia e deixar as pessoas convencidas de que era o representante da Suprema Inteligência, fez-nos crer a todos que conhecia os planos e regulamentos do Universo, mas morreu igualmente amarrado a uma cama deitando espuma pela boca e pus por vinte crateras na pele, louco por não saber como sair daquilo. Sei o que estás a murmurar, Cyrus, que apenas conta o poder moral.
Tu eras um bom exemplo disso, mas passaste anos fechado num ascensor sem ar nem luz, lendo às escondidas, suponho que a tua alma ainda anda a esgravatar nos livros. De que te serviu ser tão bom homem? Deste-me muito, não posso negá-lo, mas tu não tinhas nada, vivias miserável e sozinho. Pedro Morales é outro homem justo. Quando eu era um puto julgava que ele era poderoso, tinha medo do seu vozeirão de patriarca e do seu rosto de pedra, de índio com dentes de ouro, pobre Pedro Morales, incapaz de matar uma mosca, outra vítima desta puta de sociedade, dizem que desde a partida de Cármen está acabado, envelheceu, e agora soma-se-lhe a morte de Juan Josè. Eu terei o verdadeiro poder do dinheiro e do prestígio, esse que nunca vi no meu bairro, ninguém me olhará de cima nem me levantará a voz. A tua alma aflita deve estar a revoltar-se contra o meu cinismo, Cyrus, mas tenta compreender, o mundo é dos fortes e já estou farto de andar na fila dos débeis. Basta! Primeiro que tudo tenho que curar-me, não posso levantar os braços para me pentear, custa-me respirar e sinto o cérebro quase a ferver e isso nada tem a ver com esta doença condenada, vem de antes, as alergias estão a consumir-me. Não tomarei mais drogas, estão a matar-me, quando muito, um pouco de marijuana para suportar o dia, mas nada de pastilhas nem injectar-me com porcarias, tenho que regressar ao mundo dos sãos. Não serei mais um veterano em cadeira de rodas, alcoólico, drogado e vencido como esses. Já há muitos. Serei rico, com caralho!
Os pensamentos atropelavam-se no seu espírito, fechava os olhos e via uma espiral de imagens a girar, a girar, abria-os e na superfície cinzenta do tecto projectavam-se as suas recordações. Custava-lhe muito dormir, de noite ficava acordado na escuridão, lutando para fazer passar o ar pelos pulmões.
Identificaram a infecção, administraram-lhe antibióticos e três semanas depois estava de pé. Tinha recuperado peso mas nunca mais teria a força de antigamente, acabando por compreender que a musculatura nada tinha a ver com a masculinidade. Atenuaram-se-lhe os efeitos da alergia, passou-lhe a dor de cabeça, já não respirava aos soluços nem tinha os olhos injectados de sangue, mas ainda se sentia débil e ao menor esforço enevoava-se-lhe a vista. Incrédulo, um dia ouviu o médico dar-lhe alta, e recebeu ordens para regressar à frente. Nem imaginou que voltaria a empunhar uma arma, esperava acabar as suas semanas de serviço que lhe faltavam nalguma missão burocrática ou voltar à aldeia. Levaram-no a Saigão com dois dias de licença e ordens determinantes de aproveitar essas quarenta e oito horas para conseguir pôr-se em pé. Aproveitou essas horas para procurar Thui, a noiva de Juan Josè Morales. Através de meia dúzia de investigações do seu amigo Leo Galupi, para quem o mundo não tinha segredos, conseguiu localizá-la por telefone e marcaram encontro num modesto restaurante. Gregory esperava-a angustiado, não sabia como suavizar o golpe para lhe dar a notícia do que acontecera. Thui disse-lhe que se vestiria de azul com um colar de contas brancas, para ele a reconhecer. Reeves viu-a entrar no local e antes de se aproximar ficou uns segundos para a examinar à distancia e dominar as batidas precipitadas do seu coração. A mulher não era bonita, tinha a pele sem brilho, como se estivesse doente, o nariz espalmado e as pernas curtas, a única coisa notável eram os olhos muito separados e oblíquos, duas perfeitas amêndoas negras. Estendeu-lhe uma mão pequena, que desapareceu na dele, e saudou-o com um murmúrio sem o olhar na cara. Sentaram-se a uma mesa com toalha de plástico, ela esperava impassível com as mãos na saia e olhos baixos, enquanto ele examinava o menu com uma dedicação absurda, perguntando-se por que diabo lhe tinha telefonado, agora estava metido num sarilho e a única coisa que desejava era escapar dali. O empregado trouxe-lhes cervejas e um prato com um picado difícil de identificar, mas sem dúvida mortífero para um convalescente de infecção intestinal. O silêncio tornou-se incómodo, Gregory apalpava o escapulário da Virgem de Guadalupe debaixo da camisa. Por fim, Thui levantou os olhos e olhou-o sem qualquer expressão.
- Já sei - disse-lhe no seu inglês arrevesado.
- Quê? - e de imediato lamentou ter-lhe perguntado.
- O que aconteceu a Juan Josè. Já sei.
- Sinto muito. Não sei que dizer-lhe, não tenho jeito para estas coisas... sei que vocês gostavam muito um do outro. Eu também sentia muito carinho por ele - balbuciou Gregory e a tristeza cortou-lhe o discurso e sentiu a alma cheia de lágrimas impossíveis de verter, enquanto batia na mesa com o punho.
- Que posso fazer por si? - quis saber ela.
- Sou eu quem deve perguntar isso. Foi precisamente por isso que lhe telefonei. Desculpe-me, devo parecer-lhe um intruso... Juan Josè falou-lhe de mim?
- Falou-me da sua família e do seu país. Vocês eram irmãos, não eram?
- Digamos que sim. Ele também me falou de si, Thui, disse-me que estava apaixonado pela primeira vez na vida, que você era uma pessoa muito doce e que quando terminasse a guerra se casaria e a levaria para a América.
- Sim.
- Necessita de alguma coisa? Juan Josè gostaria que eu...
- De nada, muito obrigada.
- Dinheiro?
- Não.
Ficaram sem mais que dizer um ao outro, longo tempo, por fim ela disse que tinha que regressar ao seu trabalho e levantou-se. A sua cabeça era mais alta apenas uns centímetros que a de Gregory, que ainda estava sentado. Pôs-lhe a sua mão de menina no ombro e sorriu, um sorriso ténue e algo travesso que acentuava o seu ar de duende.
- Não se preocupe, Juan Josè deixou-me o que necessito - disse.
Medo. Terror. Estou-me asfixiando de medo, qualquer coisa que não senti nos meses anteriores, isto é novo. Antes estava programado para esta merda, sabia o que fazer, o corpo não me falhava, estava sempre alerta, tenso, um verdadeiro soldado. Agora sou um pobre diabo doente, crispado pela impotência, um saco de trapos. Muitos morrem nos últimos dias de serviço porque se relaxam ou se assustam. Tenho medo de morrer num minuto, sem tempo de me despedir da luz, e outro medo pior, o de morrer lentamente. Medo do sangue, do meu próprio sangue jorrando num manancial de dor, de sobreviver mutilado, de tornar-me louro, da sífilis e de outras postes que nos contagiam, de cair prisioneiro e acabar torturado dentro de uma jaula de macacos, de que a selva me engula, de adormecer e sonhar, de me acostumar a matar, da violência, das drogas, das putas, da obediência estúpida, dos gritos, e que depois - se há um depois - não possa andar pela rua como uma pessoa normal e acabar violando velhinhas nos parques ou a apontar uma espingarda aos meninos no pátio de uma escola. Valente é aquele que se mantém sereno perante o perigo, sublinhaste-mo no livro, Cyrus, dizias-me que não fosse pusilânime, que o homem nobre não desfalece e que vence o temor, mas isso é diferente, esses não são perigos ilusórios, não são sombras nem monstros da minha imaginação, é o fogo do fim do mundo, Cyrus.
E raiva. Devia sentir ódio, mas apesar dos treinos, da propaganda e do que vejo e me contam, não posso sentir o ódio necessário; culpa da minha mãe, talvez, que me encheu a cabeça de prédicas Bahai, ou culpa dos meus amigos na aldeia, que me ensinaram a ver as semelhanças e a esquecer as diferenças. Nada de ódio, mas sim muita raiva, uma ira tenaz contra todos, contra o inimigo, esses cabrÕes que se movem debaixo da terra como toupeiras e se multiplicam à mesma velocidade com que os exterminamos, iguais, na aparência, aos homens e mulheres que me convidam a comer em suas casas na aldeia. Raiva contra cada um dos corruptos sacanas que se tornam ricos com esta guerra, contra os políticos e os generais, seus mapas e seus computadores, o seu café quente, os seus erros mortíferos e a sua infinita soberba; contra os burocratas e suas listas de baixas, números em longas colunas, bolsas de plástico em intermináveis fileiras; contra os que ficam em casa e queimam as suas cadernetas de recrutamento, e também contra os que agitam bandeiras e nos aplaudem quando aparecemos no ecrã do televisor e que também não sabem por que razão nos estamos todos a matar. Carne para canhão ou heróicos defensores da liberdade, é assim que nos chamam os filhos da puta, ninguém pode pronunciar os nomes dos lugares onde nós caímos, mas todos dão opiniões, todos têm as suas ideias a respeito disso. Ideias! É o que menos falta faz aqui, malditas ideias. E raiva contra estas cataratas de água, esta chuva que ensopa e apodrece tudo, este clima de outro planeta onde congelamos e fervemos alternadamente, contra este país arrasado e a sua selva desafiadora. Estamos a ganhar, com certeza, assim me diz sempre Leo Galupi, o rei do mercado negro, que cumpriu os seus dois anos e depois regressou para ficar e não pensa ir-se embora nunca, porque esta merda encanta-o e além disso está a ficar milionário vendendo a nós marfim de contrabando e aos outros as nossas peúgas e desodorizantes. Em todas as escaramuças saímos vencedores, segundo Galupi, não sei por que temos então esta sensação de derrota. O bem triunfa sempre, como no cinema, e nós somos os bons, ou não? Controlamos o céu e o mar, podemos reduzir este país a cinzas e deixar no mapa apenas uma única cratera, um imenso crematório onde nada poderá crescer durante um milhão de anos, é tudo questão de carregar no famoso botão, mais fácil que em Hiroxima, ainda se lembra, mamã, ou já se esqueceu? Não tornou a mencioná-lo já faz anos, velha, de que fala agora com o fantasma do meu pai? Essas bombas passaram de moda, temos outras que matam mais e melhor, que lhe parece, hem? Mas as guerras não se ganham no ar nem na água, ganham-se sobre a terra, palmo a palmo, homem a homem. Extrema brutalidade. Porque não lançamos um ataque nuclear a ver se podemos voltar a casa de uma vez por todas, dizem os marines à segunda cerveja. Não quero estar nos arredores quando o fizermos. Não devo pensar nos amigos desaparecidos, os rebentados, os casarios em chamas, as massas de refugiados, os monges a arder em gasolina; nem em Juan Josè Morales e no pobre rapaz do Kansas, nem recordar-me da minha filha cada vez que vejo uma destas crianças cheias de cicatrizes, cegas, queimadas. Na única coisa em que devo pensar é sair daqui com vida, só isso. Não posso olhar ninguém nos olhos, estamos marcados pela morte, espantam-me os olhos vazios destes rapazes de dezoito anos, todos com um abismo negro no olhar.
Rodeiam-nos, conhecem as nossas mínimas intenções, escutam os nossos sussurros, cheiram-nos, seguem-nos, vigiam-nos, esperam. Eles não têm alternativa: ganhar ou morrer, não perguntam que merda fazem eles aqui, nasceram neste solo desde há milhares de anos e lutam desde há pelo menos cem. O puto que nos vende fruta, a mulher sem orelhas que nos guia aos bordéis, o velho que queima o lixo, todos são inimigos. Ou talvez nenhum deles o seja. Durante três meses na aldeia voltei a ser um homem, não um guerreiro, um homem, mas agora sou outra vez um animal espantado. E se fosse um pesadelo? Um pesadelo... Despertei depois num deserto limpo, pela mão de meu pai, olhando o entardecer. Aqui os céus são formidáveis, a única coisa que a guerra ainda não destruiu. Os amanheceres são longos e o céu move-se lentamente, laranja, púrpura, amarelo, o sol é um disco enorme de ouro puro.
Nunca pensei que me enviassem de volta para este inferno, falta-me só um mês, exactamente vinte e cinco dias. Não quero morrer, seria um final estúpido, não é possível ter sobrevivido aos pontapés dos pandilheiros do bairro, às corridas contra um comboio em marcha, ao massacre da montanha e treze meses debaixo de fogo para terminar, sem pena nem glória, numa bolsa, exterminado no último momento, como um idiota. Não pode ser. Talvez Olga tenha razão, talvez eu seja diferente dos outros, e por isso saí são e salvo da montanha, sou invencível e imortal. Isso pensa toda a gente, se não fosse assim não podíamos continuar a lutar, também Juan Josè se sentiu imortal. Sorte, Karma, destino... Cuidado com essas palavras, estou a empregá-las demasiado, não existe nada disso, são patranhas da minha mãe e de Olga para ludibriar os ignorantes. Cada um faz o destino à força de golpes e trabalhos, eu farei com a minha existência o que me der na real gana... se sair vivo e puder voltar para casa. E não é isso sorte porventura? O regresso não depende de mim, nada que eu faça ou deixe de fazer pode assegurar-me que não perderei as pernas ou os braços ou a vida nestes vinte cinco dias.
Inmaculada Morales, compreendeu que o marido estava mal antes do primeiro ataque, conhecia-o bem e notou as mudanças que ele não percebia. Pedro gozava de esplêndida saúde, como único medicamento de confiança usava essência de eucalipto para esfregar a espalda dorida pelo excesso de trabalho e a única vez que lhe fizeram uma anestesia foi para lhe mudar os dentes sãos por outros de ouro. Não se conhecia a sua idade exacta, tinha encomendado o seu certificado de nascimento a um falsificador em Tijuana quando chegou o momento de legalizar os seus papéis de imigração e escolheu a data ao acaso.
A sua mulher dava-lhe mais ou menos cinquenta e cinco para a época em que Cármen foi para casa. Depois disso Pedro Morales não voltou a ser o mesmo, tornou-se um homem taciturno, de expressão hierática, com quem a convivência era difícil. Os filhos jamais puseram em questão a sua autoridade, não lhes teria ocorrido desafiá-lo ou pedir-lhe explicações. Tempos depois, quando os mais velhos se casaram e lhe deram netos, suavizou-se um pouco o seu caracter, ao ver os meninos a balbuciar meias palavras e a arrastar-se como baratas a seus pés, sorria como nos bons tempos. Inmaculada nunca pôde falar-lhe de Cármen. Tentou-o uma vez e ele esteve a ponto de lhe bater, olha o que me obrigas a fazer, mulher!, rugiu ele ao ver-se de braço no ar. Ao contrário de tantos outros homens do bairro, considerava uma cobardia bater na sua companheira, com as filhas era muito diferente, dizia ele, porque tinha de as educar. Apesar da sua antiquada severidade, Inmaculada adivinhava quanta falta lhe fazia Cármen e veio-lhe à ideia uma maneira de o manter informado. Iniciou com Gregory Reeves uma correspondência esporádica, na qual o único tema era a rapariga ausente. Ela enviava-lhe bilhetes postais com flores e pombas para lhe dar notícias da família, e o seu filho gringo respondia comentando a sua última conversa telefónica com Cármen. Soube assim dos pormenores da vida da sua filha, da sua estada no México, da sua viagem na Europa, dos seus amores, do seu trabalho. Deixava os bilhetes esquecidos onde o pai os podia ler sem pôr à prova o seu orgulho ofendido. Nesses anos os costumes mudaram drasticamente e o tropeção de Cármen passou a ser o pão nosso de cada dia, custava muito continuar a recriminá-la como se fosse um produto de Satanás. As gravidezes fora do casamento eram o tema preferido de filmes, séries de televisão e novelas, na vida real as actrizes famosas tinham filhos sem que se soubesse a identidade do pai, as feministas apregoavam o direito ao aborto e os hippies copulavam em parques públicos à vista de quem os quisesse observar, de maneira que nem se luer o severo padre Larraguibel entendia a intransigência de Pedro Morales.
Nessa quarta-feira aziaga, dois jovens oficiais apresentaram-se em casa da família Morales, dois rapazes assustados que tentavam ocultar a sua mágoa por detrás da absurda rigidez de soldados e da formalidade de um discurso tantas vezes repetido. Traziam a notícia da morte de Juan Josè. Haveria um serviço religioso se a família estivesse de acordo, o corpo seria sepultado dentro de uma semana no cemitério militar, disseram eles, e entregaram aos pais as condecorações ganhas pelo filho em acções heróicas, para além do simples dever. Nessa noite Pedro Morales sofreu o terceiro ataque. Sentiu uma repentina debilidade nos ossos, como se o corpo se lhe tivesse ficado em cera mole e caiu exangue aos pés da mulher que não conseguiu levantá-lo para o estender na cama nem se atreveu a deixá-lo sozinho para pedir ajuda. Quando Inmaculada viu que não respirava despejou-lhe água fria na cara, mas o remédio não teve efeito algum, então lembrou-se de um programa de televisão e começou a fazer-lhe respiração boca a boca e a bater-lhe no peito com os punhos. Um minuto depois o marido despertou molhado como um pato e mal lhe passou o enjoo bebeu dois copos de tequilha e devorou meia torta de maçã. Negou-se a ir ao hospital, certo de que eram apenas nervos, o mal-estar passaria se dormisse, disse ele, e assim foi. No dia seguinte levantou-se cedo como de costume, abriu a oficina e, depois de dar ordens aos mecânicos, saiu para comprar um fato preto para o funeral do filho. Do desmaio não lhe ficou mais do que uma forte dor nas costelas que a mulher lhe havia amachucado com murros. Face à impossibilidade de o levar ao médico, Inmaculada decidiu consultar Olga, com quem se tinha reconciliado depois do trágico acidente de Cármen, porque compreendera que a curandeira só a tinha querido ajudar. Conhecia a sua longa experiência, não se teria arriscado a praticar um aborto tardio se não se tratasse da rapariga, a quem queria como a uma sobrinha. As coisas tinham saído mal mas pensava que não fora culpa sua mas vontade de Deus. Olga já sabia da morte de Juan Josè e preparava-se, como todo o bairro, para assistir à missa do padre Larraguibel. As duas mulheres abraçaram-se longamente e sentaram-se depois a beber café, comentando os desmaios de Pedro Morales.
- Já não é o mesmo que era. Está a emagrecer. Bebe litros de limonada, já deve ter buracos na barriga de tanto limão. Não tem forças nem para me ralhar. Como vou eu dizer-lhe que já não vai à oficina há muito dias?
- Mais alguma coisa?
- Chora enquanto dorme.
- Don Pedro é muito macho, por isso não pode chorar acordado. Tem o coração cheio de lágrimas pela morte do filho, é natural que lhe saiam a dormir.
- Isto começou antes de Juan Josè, que Deus o tenha no Seu Santo Seio.
- Das duas uma: ou o sangue se lhe decompôs ou o que ele tem é cansaço.
- Eu julgo que está muito doente. Foi assim com a minha mãe, lembra-se dela?
Olga lembrava-se bem dela, fora notícia quando apareceu na televisão ao fazer cem anos. A avó taralhouca, que normalmente era uma pessoa alegre, despertou uma manhã banhada em pranto e não houve maneira de a consolar, ia morrer e dava-lhe pena ir embora sozinha, agradava-lhe a companhia da família. Pensava que ainda se encontrava na sua aldeia de Zacatecas, nunca percebera que tinha vivido trinta anos nos Estados Unidos, que os netos eram chicanos e que mais para lá do limite do seu bairro se falava inglês. Passou a ferro o melhor vestido porque pretendia ser enterrada com decência, e fez-se conduzir ao campo-santo para localizar a tumba dos antepassados. Os rapazes Morales tinham encomendado à pressa uma lápide com os nomes dos pais da senhora e colocaram-na estrategicamente para que ela a pudesse ver com os seus próprios olhos. Como os mortos se reproduzem! Foi o seu único comentário ao ver o tamanho do cemitério do condado. Nas semanas seguintes continuou a chorar a sua própria partida antecipada-mente, até se consumir como uma vela e ficar sem luz.
- Vou dar-lhe xarope da Magdalena, é muito bom nestes casos. Se don Pedro não melhora temos que o levar a um médico - recomendou Olga. - Desculpe a intromissão, senhora, mas fazer amor é saudável para o corpo e para o espírito. Eu recomendo que seja carinhosa com ele.
Inmaculada ficou ruborizada. Isso era um assunto que jamais poderia discutir com alguém.
- No seu lugar eu telefonaria a Cármen a dizer-lhe que voltasse. Já passou muito tempo e o pai precisa dela. É altura de fazer as pazes.
- O meu marido não me ia perdoar, dona Olga.
- Don Pedro acaba de perder um filho, não lhe parece que seria um bom consolo ressuscitar a menina que ele considera morta? Cármen foi sempre a sua favorita.
Inmaculada levou o xarope da Magdalena para não pecar por mal-agradecida. Não tinha demasiada fé nas beberagens da adivinha, mas confiava cegamente no seu bom critério como conselheira. Quando chegou a casa atirou o frasco para o lixo e procurou na caixa de lata onde guardava os postais de Gregory Reeves, até que encontrou a última direcção da filha.
Cármen Morales viveu quatro anos na cidade do México. Os dois primeiros foram de tanta solidão e penúrias que tomou gosto pela leitura, o que nunca imaginara ser possível. A princípio Gregory mandava-lhe novelas em inglês, mas logo se matriculou numa biblioteca pública e começou a ler em espanhol. Ali conheceu um antropólogo vinte anos mais velho, que a iniciou no estudo de outras culturas e no respeito da sua herança indígena. Tão fascinado estava ele pelo decote da rapariga como ela com os conhecimentos do seu novo amigo. No começo, Cármen ficou horrorizada com o passado de violência e sangue daquele continente, não encontrava nada admirável em sacerdotes cobertos de sangue seco ocupados a arrancar o coração das vítimas dos seus sacrifícios, mas o antropólogo fez-lhe ver o significado daqueles rituais, contou-lhe antigas lendas, ensinou-lhe a decifrar hieróglifos, levou-a a museus e mostrou-lhe tantos livros de arte, mantos de penas, tapeçarias, baixos-relevos e esculturas, que ela acabou apreciando essa estética feroz. O seu maior interesse eram os desenhos a cores dos tecidos, pinturas, cerâmicas e ornamentos, entretinha-se durante horas a interpretá-los num caderno para os aplicar nas suas jóias. De tanto andar por ali a observar múmias e aterrori-zadoras estátuas astecas, o antropólogo e a sua aluna tornaram-se amantes. Ele pediu-lhe que vivessem juntos para partilhar amores e despesas, ela deixou o quartito pestilento onde tinha sobrevivido até então e mudou-se para o apartamento do seu namorado em pleno centro da cidade. A poluição do ar era alarmante, por vezes os pássaros caíam mortos do céu, mas ao menos dispunha de um banho de água quente e uma divisão assoalhada onde instalou a sua oficina de joalharia. Julgou ter encontrado a felicidade e imaginou que poderia adquirir sabedoria por contacto físico, estava ávida de aprender, vivia em pleno estado de admiração e surpresa face ao seu amante, cada migalha de conhecimento que ele atirava caía em terreno fértil. A troco das magníficas lições do antropólogo, estava disposta a servi-lo, lavar a roupa, limpar a casa, preparar a comida e até a cortar-lhe as unhas e a melena, entregando-lhe tudo o que ganhava vendendo os seus adornos de prata aos turistas. O homem não só sabia de índios fantasmagóricos e cemitérios de cântaros roídos pela traça, como também era especialista em filmes, livros, restaurantes; decidia a maneira de ela se vestir, falar, fazer amor e até de pensar. A submissão durou para a jovem muito mais do que se esperava numa pessoa do seu temperamento, durante quase dois anos obedeceu-lhe com reverência, suportou não só que tivesse outras mulheres e a informasse, com profusão, de pormenores escabrosos «porque entre nós não deve haver segredos», mas também que a esbofeteasse quando à tarde bebia um copo a mais. Depois de cada cena de violência, o seu erudito companheiro chegava a casa com flores e atirava-se a chorar para o seu regaço suplicando compreensão - o demónio tinha-se apoderado dele - e jurara que nunca mais tornava a fazer aquilo. Cármen perdoava, mas não esquecia, e entretanto absorvia informação como uma esponja. Tinha vergonha de admitir aquelas aldrabices, sentia-se humilhada, e às vezes julgava merecê-las, talvez isso fosse normal, o pai não lhe tinha batido tantas vezes? Finalmente, um dia, atreveu-se a contar tudo a Gregory Reeves numa das suas conversas secretas por telefone às segundas-feiras, o amigo deu um grito para o céu, chamou-lhe estúpida, alertou-a com umas estatísticas da sua invenção e convenceu-a de que o homem não mudaria nunca, bem pelo contrário, o abuso iria aumentar até alcançar quem sabe que extremos. Dez dias depois, Cármen recebeu de Gregory um cheque para uma passagem e uma carta a oferecer-lhe ajuda rogando-lhe que regressasse aos Estados Unidos. O presente chegou no dia seguinte a uma escaramuça em que com um safanão o antropólogo lhe vazou em cima a panela com sopa quente. Fora um acidente, reconheceram ambos, mas ela passou dois dias a deitar leite e azeite no peito. Mal pôde enfiar a blusa foi à agência de viagens com intenção de voar para casa, mas enquanto esperava dando uma vista de olhos nuns folhetos turísticos recordou a fúria do pai e decidiu que não tinha força para o enfrentar. Num arranque de fantasia virou a bússola e comprou uma passagem para Amsterdão. Partiu sem dizer nada a ninguém, nem sequer se despediu do seu amante, tinha a intenção de lhe deixar uma carta, mas no trabalho de fazer a mala esqueceu-se disso. No bolso levava as suas ferramentas e materiais de trabalho e duas latas de leite condensado para aliviar os dissabores do caminho.
A Europa deslumbrou-a. Percorreu-a com uma mochila às costas, ganhando a vida sem grande dificuldade, ensinava inglês, vendia as suas jóias quando as podia fabricar e, se a fome ameaçava, podia recorrer sempre a Gregory para pedir ajuda. Não deixou ficar catedral, castelo nem museu por visitar, até que, saturada, prometeu não voltar a pôr os pés naqueles templos do turismo, era preferível caminhar pelas ruas desfrutando a vida. Num Verão entrou em Barcelona e ao descer do comboio foi rodeada por um grupo de ciganas ruidosas que insistiam em ler-lhe a sorte e vender-lhe amuletos. Observou-as assombrada e decidiu que era esse o estilo que mais lhe convinha, não só para o seu ofício de joalheira, mas também para se vestir. Mais tarde descobriu a influência mourisca do Sul de Espanha e as cores do Norte de áfrica, que adoptou numa mistura feliz. Instalou-se numa pensão do bairro gótico sem um raio de luz natural e uma barulheira de canalizações gemendo sem descanso, mas o seu quarto era amplo, tinha altos tectos, traves de madeira e dispunha de uma enorme mesa de trabalho. Em poucos dias já tinha feito saias de folhos que faziam lembrar os vestidos de Olga nos anos de juventude e os seus disfarces dos tempos do malabarismo na Praça Pershing. Não tiraria esse tipo de trapos nunca mais, nos anos que se seguiram refinou-os até à perfeição, pelo prazer de os usar, sem saber que futuramente a fariam célebre e rica.
Depois de viajar desde Oslo até Atenas com a bagagem às costas e quase sem dinheiro, considerou que era tempo de acabar com vagabundagens, tinha chegado a hora de assentar cabeça. Estava convencida de que a única ocupação adequada para ela era a joalharia, mas nesse campo havia uma concorrência impiedosa, para se evidenciar não bastavam desenhos originais, antes de mais nada tinha de descobrir os segredos do ofício. Barcelona era o local ideal para isso. Inscreveu-se em diversos cursos onde aprendeu técnicas milenárias e a pouco e pouco nasceu o seu estilo único, combinação do sólido artesanato antigo e uma atrevida marca cigana com toques de ¦frica, América Latina e também alguma coisa da +ndia, tão em voga naquela década. Foi sempre a aluna mais original do curso, as suas criações vendiam-se tão depressa que não dava cumprimento aos pedidos. Tudo marchava melhor do que ela esperava até que lhe passou pela frente um jovem japonês, um pouco mais novo que ela, também joalheiro. Cármen tinha conseguido colocar as suas jóias em lojas de prestígio, em contrapartida ele oferecia as suas com pouco êxito nas ramblas, diferença que o humilhava. Para o consolar, ela voltou a vender na rua com o pretexto de se encontrar ali a alma da cidade. Instalaram-se junto da pensão crepuscular de Cármen. Rapidamente as diferenças culturais pesaram mais que a atracção mútua, mas era tanta a necessidade de companhia que ela ignorou os sintomas. O japonês não renunciou aos seus costumes ancestrais, passava sempre à frente e esperava ser servido. Remolhava-se durante horas na banheira quente e depois enchia-a com água, já fria. O mesmo com a comida, a cama, as ferramentas e os materiais de trabalho, na rua caminhava à frente e ela tinha que o seguir dois passos atrás. Se fazia sol, o jovem saía para vender e Cármen ficava a trabalhar no quarto escuro, mas se amanhecia com chuva, era ela quem tinha que passar o dia ao ar livre, porque o seu amante sofria de oportunas dores reumáticas relacionadas com a temperatura ambiental. A princípio, tais raridades pareceram-lhe graciosas, coisas de orientais, disse ela com bom humor, mas depois de as suportar por algum tempo acabou-se-lhe a paciência e começaram os desacordos. O homem nunca perdia a sua compostura e às recriminações opunha um longo silêncio glacial, mas ela não se queixava porque ao menos aquele abstinha-se de lhe dar bofetÕes ou de a regar com sopa a ferver. No fim cedia para não ficar sozinha e porque o seu companheiro a fascinava, atraíam-na o seu longo cabelo negro, o seu corpo pequeno, todo músculo, o seu sotaque estranho e a precisão dos seus movimentos. Aproxi-mava-se tímida, ronronava-lhe um pouco e em geral conseguia abrandá-lo, reconciliavam-se na cama, onde ele era um especialista. Por inércia teriam permanecido juntos, mas chegou entretanto um telegrama de Inmaculada anunciando a doença de Pedro Morales, pedindo à filha que por amor de Deus voltasse, porque era a única pessoa capaz de salvar o pai, que se consumia de tristeza. Então soube quanto amava aquele velho teimoso, quanto desejava encostar a cara no regaço acolhedor da mãe e voltou a ser, mesmo que por um instante, a menina mimada de antes. Pensando que a viagem fosse só por umas duas semanas, partiu levando a roupa indispensável que meteu apressadamente numa bolsa. O japonês acompanhou-a ao aeroporto, desejou-lhe boa sorte e despediu-se com uma leve inclinação, nunca lhe tocou em público.
De tanto ver a cara da morte aprendi o valor da existência. A única coisa que temos é a vida e nenhuma é mais valiosa que outra. A de Juan Josè Morales não vale mais do que a dos homens que matei, no entanto os mortos não me pesam, andam sempre comigo, são meus camaradas. Ou matas ou morres, tão simples como isso, não é para mim uma questão moral, as dúvidas e confusões são de outra índole. Sou um dos afortunados que saiu ileso da guerra.
Quando regressei, fui do aeroporto para um motel, não telefonei a ninguém. São Francisco estava coberto de nuvens e soprava um vento de Inverno, como sempre sucede no Verão, e decidi esperar pelo nascer do sol para telefonar a Samantha, não sei porquê pensei que o clima podia tornar mais amável o nosso encontro, a verdade é que nos tínhamos separado dispostos ao divórcio, nunca nos escrevemos, e no dia em que lhe telefonei de Hawai foi evidente que não tínhamos mais nada a dizer um ao outro. Sentia-me cansado, sem ânimo para discussões e críticas, muito menos para contar a ela ou a alguém as minhas experiências de guerra. Queria ver Margaret, é claro, mas talvez a minha filha não me reconhecesse, naquela idade os meninos esquecem-se em poucos dias, e ela não me via desde há meses. Deixei as minhas coisas no quarto e saí à procura de uma cafetaria, fazia-me falta um bom café de São Francisco, é o melhor café do mundo. Caminhei por aquele delírio urbano onde raramente se vê o mar, linhas rectas que sobem e descem, traçadas segundo um desenho geométrico indiferente à topografia das onze colinas, procurei os meus cantos conhecidos, mas tudo estava desfigurado pela neblina. Pareceu-me um lugar estrangeiro, não identifiquei os edifícios e comecei às voltas desorientado naquela cidade de contradições e fragrâncias, depravada como todos os portos, e travessa como uma rapariga de pés ligeiros. Não encontro explicação para a marca de elegancia de São Francisco, mal por mal foi fundada por uma cambada de aventureiros, com a febre do ouro fácil, prostitutas e bandoleiros. Um chinês roçou-me no braço e saltei como se lacrau me tivesse picado, com os punhos apertados, procurando a arma que não tinha comigo. O homem sorriu-me, tenha um bom dia, disse-me ao afastar-se, e fiquei paralisado, sentindo os olhares dos outros, ainda que na verdade ninguém estivesse a olhar para mim, enquanto passa-vam os eléctricos com os seus toques de campainha, estudantes, secretárias, os turistas que não podiam faltar, trabalhadores latinos, comerciantes asiáticos, hippies, prostitutas negras com pecucas platinadas, homossexuais de mão dada, todos os actores de um filme, iluminados por uma luz artificial, enquanto eu ficava do lado de cá do ecrã, sem perceber nada, totalmente à margem, a mil anos de distancia. Andei pelo bairro italiano, por Chinatown, pelas ruas dos marinheiros onde vendem licor, drogas e pornografia - ovelhas insufláveis era a última novidade - juntamente com medalhas de São Cristóvão para nos protegermos dos azares da navegação. Voltei ao hotel, tomei vários soníferos e não dei por mim até vinte horas depois quando fui despertado por um sol radiante que entrava pela janela.
Peguei no telefone para falar com Samantha, mas não me lembrei do número da minha própria casa e depois decidi esperar um pouco, dar-me um ou dois dias de solidão para compor um pouco o corpo e a alma, tinha necessidade de me lavar por dentro e por fora de tantos pecados e recordações atrozes. Sentia-me contaminado, sujo, morto de fadiga. Nem telefonei aos Morales, teria de ter ido directamente a Los Angeles e faltava-me forças, ainda não podia falar de Juan Josè, olhar nos olhos Inmaculada e Pedro e assegurar-lhes que o seu filho tinha morrido pela pátria, como um herói, confessado e sem dor, quase sem dar conta disso, quando na verdade morrera aos gritos e só enterraram metade do seu corpo. Não podia dizer-lhes que as suas últimas palavras não foram uma mensagem para eles, apertou a mão ao capelão e disse-lhe segura-me, padre, que estou a cair para muito fundo. Nada é como nos filmes, nem sequer a morte, morremos pura e simplesmente mas aterrorizados num charco de sangue e merda. No cinema ninguém morre de verdade. No Vietname imaginava que depois as pessoas acendessem as luzes da sala e saíssem para a rua, sem pressa, para tomar um café e que eu teria esquecido tudo. Agora, quando já aprendi a viver com os estragos da boa memória, já não brinco à vida como um conto, aceito-a com toda a dor que ela traz. De minha irmã tinha-me afastado muito, desde que nasceu Margaret deixámos de nos ver, não quis telefonar-lhe nem a minha mãe, de que poderíamos falar? Opunha-se à guerra, considerava mais decente desertar que matar, toda a forma de violência é vergonhosa e perversa, lembra-te de Ghandi, dizia-me ela, não podemos apoiar uma cultura das armas, estamos neste mundo para celebrar a vida e promover a compaixão e a justiça. Pobre velha, desprendida da realidade, vagueava pelos ambientes do Plano Infinito atrás do meu pai, meia tonta da cabeça, mas com uma lucidez inquestionável nas suas divagações. Parti para o Vietname, sem me despedir porque não a quis ferir, para ela tratava-se de um assunto de princípios, nada tinha a ver com a minha segurança pessoal. Suponho que gostava de mim à sua maneira, mas sempre houvera um abismo entre nós. Que me teria aconselhado meu pai? Jamais me teria dito que fosse para a prisão ou para o exílio, ter-me-ia convidado para caçar e no silêncio do amanhecer a limpar os pratos ter-me-ia dado uma palmada no ombro, e nós teríamos compreendido sem necessidade de palavras, como às vezes nos entendemos entre homens.
Passei os três primeiros dias fechado no motel em frente do televisor com várias caixas de cerveja e garrafas de uísques, depois fui para a praia com um saco-cama e passei duas semanas a admirar o mar, fumando erva e conversando com o fantasma de Juan Josè. A água estava fria, mas nadava na mesma até sentir o sangue congelado nas veias e o cérebro entumecido, sem recordações, em branco. O mar lá em baixo é morno, sobre a areia formigam soldados, três dias de jogos, cerveja e rock para compensar meses de luta. Durante duas semanas não disse uma frase completa a ninguém, apenas grunhidos para pedir uma pizza ou um hamburger, creio que no fundo o que queria era regressar ao Vietname porque pelo menos na frente tinha camaradas e alguma coisa para fazer, aqui estava sem amigos, sozinho, não pertencia a nenhum sítio. Na vida civil ninguém falava o idioma da guerra, não existia um vocabulário para contar as experiências do campo de batalha, mas a havê-lo, de qualquer modo não havia quem quisesse ouvir a minha história, ninguém se interessa por más notícias. Apenas entre ex-combatentes me podia sentir em confiança e falar daquelas coisas que jamais diria a um civil, eles entenderiam porque um tipo se fecha ao afecto e tem medo de aproximar-se, sabem que é muito mais fácil a coragem física do que a emocional, porque também perderam amigos tão queridos como irmãos e disseram guardar no futuro essa dor insuportável, é melhor não amar ninguém com muita intensidade. Sem me dar conta comecei a rodar por esse abismo onde tantos se perdem, a ver o lado encantador da violência, e a pensar que nunca me sucederia nada tão apaixonante, que talvez o resto da minha existência fosse um deserto cinzento.
Julgo ter descoberto o segredo que explica a permanência da guerra. Joan e Susan acham que é um invento dos machos velhos para eliminar os jovens porque os odeiam, os temem, não desejam partilhar nada com eles, mulheres, poder, ou dinheiro, sabem que mais cedo ou mais tarde os espoliarão, por isso mandam-nos para a morte, mesmo os próprios filhos. Para os velhos há uma razão lógica, mas por que será que ela é feita pelos jovens? Como é que em tantos milénios não se revoltaram contra os massacres rituais? Tenho uma resposta. Há algo mais que o instinto primordial de combate e a vertigem do sangue: o prazer. Descobri-o na montanha. Não me atrevo a pronunciar essa palavra em voz alta, isso trazia-me má sorte, mas repito-a em silêncio, prazer, prazer. O mais intenso que se pode experimentar, muito mais do que o sexo, a sede saciada, o primeiro amor correspondido ou a revelação divina, dizem os que sabem do assunto.
Naquela noite na montanha estive a uma fracção de segundo da morte. A bala passou roçando-me a cara, e atingiu na frente o soldado que estava atrás de mim. O pânico paralisou-me por instantes, fiquei surpreendido no fascínio pelo meu próprio espanto, houve logo um descargo de consciência, comecei a disparar freneticamente, gritando e amaldiçoando, incapaz de me deter, de raciocinar, enquanto zumbiam as balas, ardiam os fogachos e explodia o mundo num fragor de cataclismo, envolveu-me o calor, o fumo e o tremendo vazio do oxigénio chupado por cada labareda, não recordo quanto tempo durou tudo isso nem o que fiz nem por que o fiz, apenas me lembro do milagre de me encontrar vivo, a descarga de adrenalina e a dor em todo o corpo, uma dor sensual, um prazer atroz, distinto dos outros prazeres conhecidos, muito mais formidável que o mais longo orgasmo, um prazer que me invadiu por completo, transformando-me o sangue em caramelo e os ossos em areia, afundando-me por fim num vazio negro.
Estava há quase duas semanas no motel da praia quando acordei uma noite aos gritos. No pesadelo encontrava-me sozinho na montanha ao amanhecer, via os corpos a meus pés e a sombra dos guerrilheiros trepando até mim na neblina. Aproximavam-se. Tudo era muito lento e silencioso, uma película muda. Disparava a minha arma, sentia-a recuar, doíam-me as mãos, via chispas de lume, mas não havia um único ruído. As balas atravessavam o inimigo sem o deter, os guerrilheiros eram transparentes, como desenhos sobre um vidro, avançavam inexoráveis, rodeavam-me. Abri a boca para gritar, mas o horror tinha-me invadido por dentro e não saía a minha voz mas pedaços de galo. Não consegui voltar a mim, entupido pelo ruído do meu próprio coração. Levantei-me, peguei na jaqueta e saí para andar pela praia. Está bem, basta de lamentações, disse às gaivotas quando amanheceu.
Cármen Morales não se atreveu a chegar directamente onde vivia a família porque não sabia como seria recebida pelo pai, a quem não via há uns sete anos. No aeroporto tomou um táxi para casa dos Reeves. Ao passar pelas ruas do seu bairro surpreendeu-se com as transformações: via-se que estava menos pobre, mais limpo, organizado e muito mais pequeno do que o recordava. Para lá das mudanças reais, pesava na sua mente a comparação com os imensos bairros marginais do México. Sorriu ao pensar que aquele conjunto de ruas tinha sido o seu universo por muitos anos, e que fugira dali como uma exilada, chorando pela família e o torrão perdidos. Agora sentia-se forasteira. O motorista olhava-a com curiosidade pelo espelho retrovisor e não pôde resistir à tentação de perguntar-lhe de onde era. Nunca tinha visto ninguém como aquela mulher de saias multicores e pulseiras ruidosas, não se parecia nada com aquelas hippies sonâmbulas embrulhadas em trapos semelhantes, esta tinha a atitude determinada de uma pessoa de negócios.
- Sou cigana - disse Cármen com o maior orgulho.
- Donde é isso?
- Nós os ciganos não temos pátria, somos de todo o lado.
- Fala muito bem inglês - notou o homem.
Custou-lhe localizar a cabana dos Reeves. Naqueles anos tinha crescido um matagal que engolia a horta, o salgueiro tapava a fachada da casa. Pôs-se a andar pelo carreiro através do pátio. Reconheceu o lugar onde estava enterrado Oliver, seguindo as instruções de Gregory que desejava que os restos do seu companheiro de infância descansassem em casa familiar em vez de ir parar ao lixo como os de qualquer cão sem história. Sentada na entrada, na mesma cadeira de vime desmantelada onde sempre a tinha visto, encontrou Nora Reeves. Era já uma anciã gasta, com um carrapito de merengue e um avental tão desbotado como o resto da sua pessoa. Tinha reduzido de tamanho e ostentava uma expressão doce e um pouco idiota, como se a sua alma não estivesse realmente ali. Levantou-se vacilante e saudou Cármen com gentileza sem a reconhecer.
- Sou eu, dona Nora, sou Cármen, a filha de Pedro e Inmaculada Morales...
A mulher demorou quase um minuto a localizar a recém-chegada no mapa confuso da sua memória, ficou a olhá-la de boca aberta, sem poder relacionar a imagem da rapariga de tranças pretas que brincava com o seu filho com aquela aparição vinda do harém de um xeque. Por último, estendeu-lhe as mãos e abraçou-a a tremer Sentaram-se a beber chá quente em copos de vidro, e puseram-se em dia sobre as notícias do passado. Pouco tempo depois entraram em alvoroço os filhos de Judy que vinham da escola, quatro miúdos de idades indefinidas, dois ruivos e dois de aspecto latino. Nora explicou que os primeiros eram de Judy e os outros viviam com ela, ainda que fossem filhos anteriores do seu segundo marido. A avó serviu-lhes o leite e pão com marmelada.
- Vivem todos aqui? - perguntou Cármen surpreendida.
- Não. Cuido deles depois da escola até a mãe vir buscá-los à noite.
Aí pelas sete apareceu Judy, que também não reconheceu a sua amiga. Cármen recordava-a enorme, mas não imaginara que pudesse continuar a aumentar de peso, até adquirir semelhantes dimensões, que a mulher não cabia em nenhuma das cadeiras disponíveis, deixou-se cair com dificuldade nos degraus da porta, dando a impressão de que seria necessária uma grua para a mover. No entanto estava radiante.
- Isto não é só gordura, estou grávida outra vez - disse orgulhosa.
Tanto os seus próprios filhos como os outros correram para trepar na amável humanidade da mãe que os recebeu a sorrir e os acomodou entre os seus pneus com uma destreza nascida da prática e do carinho, ao mesmo tempo que distribuía filhós polvilhadas metendo de passagem umas quantas na boca. Ao vê-la a brincar com os filhos, Cármen compreendeu que a maternidade era o estado natural da sua amiga e não pôde evitar uma pontinha de inveja.
- Depois do jantar acompanho-te a casa, mas antes vamos telefonar a dona Inmaculada, para que prepare o animo do teu pai. Não tens uma roupa mais normal? Lembra-te de que o velho não aceita extravagâncias nas mulheres. É assim a moda na Europa? - perguntou Judy sem qualquer ironia.
Pedro Morales esperava a filha com o seu fato do funeral, mas enfeitado com uma gravata vermelha e na lapela um cravo do seu pátio. Inmaculada tinha-lhe dado a notícia com a maior cautela, prevendo uma reacção violenta, e ficou surpreendida quando o marido sorriu como se lhe tivessem tirado vinte anos de cima.
- Escova-me a roupa, mulher - foi a única coisa que atinou dizer enquanto assoava o nariz a um lenço para esconder a emoção.
- A menina deve ter mudado muito, com a ajuda de Deus... - advertiu Inmaculada.
- Não te preocupes, velha. Mesmo que venha com o cabelo pintado de azul vou reconhecê-la. No entanto, não estava preparado para a mulher que entrou em casa meia hora depois, e, tal como acontecera com Nora e Judy, tardou alguns segundos a fechar a boca. Julgou que Cármen tinha crescido, mas logo notou as sandálias de salto alto e um montão de cabelo crespo e revolto sobre a cabeça que lhe juntavam um palmo à estatura. Tinha posto tantos adornos que parecia um ídolo, tinha os olhos pintados com riscos negros e estava disfarçada de qualquer coisa que lhe recordou um cartaz turístico de Marrocos colado na parede do bar Os Três Amigos. De qualquer modo, pareceu-lhe que a filha estava muito bela. Abraçaram-se longamente e choraram juntos por Juan Josè e por aqueles sete anos de ausência. Depois ela acocorou-se a seu lado para lhe contar algumas das suas aventuras, omitindo o necessário para não o escandalizar. Entretanto, Inmaculada trabalhava afanosamente na cozinha, repetindo obrigada, Deus bendito, e Judy, agarrada ao telefone, telefonava aos irmãos Morales e aos amigos para lhes dizer que Cármen havia regressado transformada numa zíngara extravagante e guedelhuda, mas que no fundo continuava a ser a mesma; que trouxessem cervejas e guitarras porque Inmaculada estava a fazer petiscos para celebrar.
A presença da filha devolveu o bom humor a Pedro Morales. Ante a insistência de Cármen e do resto da família, aceitou finalmente ir a um médico, que diagnosticou diabetes avançada. Nenhum dos meus antepassados teve nada semelhante, isto é uma novidade americana, não penso picar-me todos os dias como um pestilento, esse doutor não sabe o que diz, nos laboratórios mudam as amostras e cometem erros garrafais, resmungava o doente ofendido, mas uma vez mais Inmaculada se impôs, obrigou-o a seguir uma dieta e encarregou-se de lhe administrar remédios a horas certas. Prefiro discutir contigo todos os dias a ficar viúva, amansar outro marido dá muito trabalho, concluiu. A ele não Ihe tinha passado pela cabeça que pudesse ser substituído no coração aparentemente incondicional da mulher e a surpresa tirou-Ihe a vontade de continuar a discutir. Nunca admitiu a doença, mais resignou-se ao tratamento «para agradar a esta louca», como costumava dizer.
Depressa o bairro pareceu bem pequeno a Cármen Morales, ao fim de algumas semanas a viver com os pais, consumia-se de asfixia. Durante a sua ausência tinha idealizado o passado, nos momentos de maior solidão tinha saudades da ternura da mãe, da protecção do pai e da companhia dos seus, mas tinha esquecido a estreiteza do lugar onde nascera. Naqueles anos ela tinha mudado, o pó de meio mundo acumulava-se nos seus sapatos. Passeava pela casa como um leopardo enjaulado enchendo o espaço e a paz com o remoinho das suas saias, o ruído das pulseiras e a sua impaciência. Na rua as pessoas voltavam a cabeça para a olhar e os meninos aproximavam-se para lhe tocar. Era impossível ignorar as censuras e os cochichos nas suas costas, olha como se veste a mais nova dos Morales, naquela cabeça há séculos que não entra um pente, de certeza se tornou hippie ou puta, diziam. Também não havia trabalho para ela, não estava disposta a empregar-se numa fábrica como Judy Reeves e no bairro não havia mercado para as suas jóias, as mulheres usavam ouro pintado e diamantes falsos, nenhuma poria os seus brincos de aborígene. Supôs que não seria difícil colocá-los em algumas lojas no centro da cidade, onde iam comprar as actrizes, as damas sofisticadas e os turistas, mas fechada em casa dos pais não tinha estímulo para a criatividade, secavam-se-lhe as ideias e a vontade de trabalhar. Dava voltas pelos quartos farta das figuras de porcelana, das flores de seda, dos retratos da família, das cadeiras de veludo cor de rubi cobertas com fundos de plástico, símbolos da nova elegancia dos Morales. Esses adornos, orgulho da sua mãe, provocavam-lhe pesadelos, preferia mil vezes a vivenda da infância, onde crescera com os irmãos na maior das modéstias. Não suportava os programas de rádio e televisão que atroavam de dia e de noite com as novelas de romance e tragédias e os anúncios, aos gritos, de diferentes marcas de sabonete, vendas de automóveis e jogos de sorte. O pior era aquela vocação generalizada para as intrigas, todos viviam dependentes dos outros, não se movia um pêlo na vizinhança sem se provocar comentários. Sentia-se como um marciano em visita e consolava-se com os pratos da mãe, que se tinha adaptado à estrita dieta do marido sem perder nada do sabor das suas receitas e passava horas entre os seus tachos, envolta no perfume delicioso de molhos e especiarias. Cármen aborrecia-se, à parte de jogar às damas com o pai, ajudava nas tarefas domésticas e atendia os parentes ao domingo, quando a família se reunia para almoçar, não havia outras distracções. Pensou regressar a Espanha, mas também não pertencia àquela terra e, por outro lado, à distancia não sentia a mesma atracção pelo seu amante. Tinha-lhe escrito e telefonado, mas as suas respostas eram gélidas. Longe dos seus músculos cor de avelã e da sua melena negra, recordava com um estremecimento o banho frio e demais humilhações e sentia um profundo tédio pela ideia de voltar para o seu lado. Foi Olga quem lhe recomendou para explorar Berkeley, porque com um pouco de sorte Gregory Reeves regressaria num futuro próximo e poderia ajudá-la, era o sítio perfeito para uma pessoa tão original como ela, a julgar pelas notícias da imprensa, que todas as semanas comentavam um novo escândalo nos jardins da universidade. Cármen esteve de acordo em que não perderia nada em experimentar. Telefonou ao amante para lhe pedir as suas economias e as suas ferramentas de joalharia, ele comprometeu-se a fazê-lo quando tivesse tempo, mas passaram várias semanas e outras cinco chamadas sem notícia do envio, então ela compreendeu quanto ocupado ele estava e não insistiu mais. Decidiu lançar-se à aventura com o mínimo de recursos, como tantas outras vezes tinha feito, mas quando Pedro Morales soube dos seus planos, longe de se lhe opor, passou-lhe um cheque e pagou-lhe a passagem. Estava feliz por haver recuperado a filha, mas não era cego perante as suas necessidades e tinha pena de a ver bater contra as paredes como um pássaro de asas quebradas.
Em Berkeley, Cármen Morales floresceu como se a cidade tivesse nascido para lhe servir de marco. Na multidão da rua as suas coisas não chamavam a atenção de ninguém e o conteúdo da sua blusa não provocava assobios descarados como acontecia no bairro latino. Encontrou ali desafios semelhan-tes aos que a fascinavam na Europa e uma liberdade até então desconhecida. Também a natureza de água e montes parecia feita à sua medida. Pensou que tomando as devidas precauções poderia subsistir alguns meses com o presente do pai, mas decidiu procurar emprego porque planeava fabricar jóias e necessitava de ferramentas e materiais. Gregory Reeves ter-lhe-ia, sem dúvida, oferecido um sofá em sua casa, para ela se instalar por algum tempo, mas nem sonhar com a mesma generosidade da parte de Samantha. Não conhecia a mulher do amigo, apesar de tudo, adivinhou que a receberia sem entusiasmo, e muito menos agora que estava em processo de divórcio. Marcou um encontro por telefone para conhecer a pequena Margaret, de quem tinha várias fotografias enviadas por Gregory, mas, quando chegou, Samantha não estava, quem lhe abriu a porta foi uma menina tão delicada e frágil que custava imaginar que fosse filha de Gregory Reeves e da sua atlética mãe. Comparou-a com os seus sobrinhos da mesma idade e pareceu-lhe uma criança estranha, a miniatura perfeita de uma mulher bela e triste. Margaret fê-la entrar, dizendo-lhe com afectada pronúncia que a mamã estava a jogar ténis e que voltaria logo. Por uns momentos interessou-se vagamente pelas pulseiras de Cármen, mas logo se sentou em completo silêncio, de pernas cruzadas e mãos sobre a saia. Foi inútil tentar arrancar-lhe uma palavra, acabaram as duas sentadas frente a frente sem se olhar, como estranhas numa sala de espera. Por fim entrou Samantha com a raqueta numa mão e um cacete de pão francês na outra, e tal como Cármen tinha previsto, recebeu-a com frieza. Observaram-se sem disfarces, cada uma tinha da outra uma imagem pelas descrições de Gregory e ambas se sentiram aliviadas pelas suas fantasias serem diferentes da realidade. Cármen esperava uma mulher mais bonita, não aquela espécie de rapaz vigoroso com a pele endurecida pelo sol, como será ela dentro de alguns anos, as gringas envelhecem mal, disse para si mesma. Por seu lado, Samantha alegrou-se por ver que a outra se vestia com aqueles trapos soltos que lhe pareceram horrorosos, certamente escondia vários quilos entre as costelas, via-se mesmo que não tinha feito exercício em toda a sua vida e que bem depressa seria uma matrona roliça, as latinas envelhecem mal, pensou com satisfação. As duas souberam num instante que jamais poderiam ser amigas e a visita foi muito rápida. Ao sair, Cármen sentiu-se satisfeita por o seu melhor amigo estar a tratar do divórcio daquela campeã de ténis e Samantha perguntou a si mesma se Gregory, ao regressar, no caso de o fazer, se tornaria amante daquela gaja gordona, ideia que certamente tinha vivido no coração de ambos por muitos anos. Que o aproveite, murmurou, sem saber por que razão esta perspectiva a irritava.
Cármen não podia pagar por muito tempo o quarto do motel onde tinha chegado, decidiu procurar trabalho e um lugar onde viver. Sentou-se numa cafetaria perto da universidade para dar uma vista de olhos num jornal e, entre inúmeros anúncios de mensagens esotéricas, aromaterapias, cristais milagrosos, triângulos de cobre para melhorar a cor da aura e outras novidades que teriam encantado Olga, descobriu ofertas de diversos empregos. Telefonou para vários até que de um restaurante lhe marcaram encontro para o dia seguinte, tinha de apresentar-se com o seu cartão de seguro social e uma carta de recomendação, duas coisas que não possuía. A primeira não foi difícil, averiguou simplesmente onde tinha de se inscrever, preencheu um formulário e deram-lhe um número, mas a segunda não sabia como consegui-la. Pensou que Gregory Reeves a teria feito sem vacilar, era uma pena que estivesse tão longe, mas esse inconveniente não era um obstáculo insuperável. Descobriu uma lojeca onde alugavam máquinas de escrever e redigiu uma carta afirmando a sua competência no negócio de cuidar de meninos, a sua honradez e o bom trato com o público. A redacção ficou um pouco floreada, mas olhos que não vêem, coração que não sente, como diria a sua mãe. Gregory não podia inteirar-se dos pormenores. Conhecia de memória a assinatura do amigo, não tinha sido em vão que se tinham correspondido durante anos. No dia seguinte apresentou-se no emprego, que era uma casa antiga decorada com plantas e tranças de alhos. Foi recebida por uma mulher de cabelo embranquecido e rosto jovial vestida de calças com grandes bolsos e sandálias de frade franciscano.
- Interessante - disse quando leu a carta de recomendação.
- Muito interessante... Então você conhece Gregory Reeves?
- Trabalhei para ele - disse Cármen ruborizada.
- Que eu saiba está no Vietname há mais de um ano, como explica que esta carta tenha a data de ontem?
Era Joan, uma das amigas de Gregory e aquele era o restaurante macrobiótico onde tantas vezes ia comer hamburgers vegetarianos e procurar consolo. Com os joelhos a tremer e um fio de voz, Cármen admitiu o seu engano e em poucas frases contou a sua relação com Reeves.
- Está bem, vê-se que és uma pessoa de recursos - Joan sorriu. - Gregory é como um filho meu, embora eu não tenha idade para ser sua mãe, que não te enganem as minhas cãs. No sofá da minha sala dormiu a última noite antes de partir para a guerra. Que estupidez tão grande que ele cometeu! Susan e eu cansámo-nos de lhe dizer que não o fizesse, mas foi inútil. Espero que volte com a mesma pressa com que foi, seria desgraça se algo se passasse, sempre me pareceu um luxo de homem. Se és sua amiga também serás nossa amiga. Podes começar hoje mesmo. PÕe um avental e um lenço na cabeça para que não metas os teus cabelos nos pratos dos clientes e anda à cozinha para Susan te explicar o trabalho.
Pouco depois Cármen Morales não só servia às mesas, como também ajudava na cozinha porque tinha boa mão para os condimentos e descobria novas combinações para variar o menu. Fez-se tão amiga de Joan e Susan, que lhe alugaram o canto da casa, um quarto amplo repleto de ferro velho, que uma vez esvaziado e limpo se tornou um refúgio ideal. Tinha duas janelas olhando para a baía com soberba perspectiva e uma clarabóia no tecto para seguir o curso das estrelas. De dia Cármen gozava da luz natural e de noite alumiava-se com dois grandes candeeiros victorianos descobertos no mercado das pulgas. Trabalhava durante a tarde e parte da noite no restaurante, mas de manhã dispunha de tempo livre. Comprou ferramentas e materiais e nos momentos de lazer voltava ao seu ofício de joalheira, comprovando com alívio que não tinha perdido a inspiração nem o desejo de trabalhar. Os primeiros brincos foram para as suas patroas a quem teve de furar as orelhas para que os pudessem usar, ficaram ambas um pouco doridas, mas só os tiravam para dormir, convencidas de que faziam ressaltar a sua personalidade, feministas sem deixar de ser femininas, e riram-se. Consideravam Cármen a melhor colaboradora que tinham tido, mas aconselharam-na a não perder o seu talento atendendo mesas e mexendo panelas, tinha que dedicar-se por completo à joalharia.
- É a única coisa que te convém. Cada pessoa nasce com uma só graça e a felicidade consiste em descobri-la a tempo - diziam-lhe quando se sentavam a beber chá de manga e a contar as suas vidas.
- Não se preocupem, sou feliz - respondia Cármen com plena convicção. Tinha a certeza no coração de que as penúrias pertenciam ao passado e agora começava a melhor parte da sua existência.
De volta ao mundo dos vivos, Gregory Reeves juntou recordações da guerra - fotos, cartas, cassettes com música, roupa e a sua medalha de herói -, regou-as com gasolina e largou-lhes fogo. Só guardou o pequeno dragão de madeira pintada, recordação dos seus amigos da aldeia, e o escapulário de Juan Josè. Tinha intenção de o devolver a Inmaculada Morales logo que descobrisse a forma de lhe tirar o sangue seco. Tinha jurado não se comportar como tantos outros veteranos enganchados para sempre à nostalgia do único tempo grandioso das suas vidas, inválidos de espírito, incapazes de se adaptar a uma existência banal nem de libertar-se dos múltiplos traumas da guerra. Evitava as notícias da imprensa, os protestos na rua, os amigos de então que tinham regressado e se juntavam para reviver as aventuras e a camaradagem do Vietname. Nem queria saber dos outros, dos que estavam em cadeiras de rodas e meio loucos, nem dos suicidas. Nos primeiros dias agradecia cada pormenor quotidiano, um hamburger com papas fritas, a água quente do duche, a cama com lençóis, a comodidade da sua roupa de civil, as conversas das pessoas na rua, o silêncio e a intimidade do seu quarto, mas compreendeu depressa que isso também tinha os seus perigos. Não, não devia celebrar nada, nem sequer o facto de ter o corpo inteiro. O passado ficava para trás, se pudesse apagar a memória, pura e simplesmente. De dia conseguia esquecer tudo quase por completo, mas à noite sofria de pesadelos e despertava banhado em suor, com o ruído das armas a explodir-lhe por dentro e visões em vermelho assaltando-o sem tréguas. Sonhava com um menino perdido num parque e esse menino era ele, mas sonhava sobretudo com a montanha, donde disparava sobre sombras transparentes. Estendia a mão à procura de pílulas ou de erva, tacteava a mesa, acendia a luz meio a dormir, sem saber onde se encontrava. Tinha uísque na cozinha, assim tinha tempo de pensar antes de beber um gole. Imaginava pequenos obstáculos para se ajudar: nada de álcool antes de me vestir ou comer qualquer coisa, não beberei se for dia ímpar, ou se ainda não tiver nascido o sol, primeiro farei vinte flexões de peito e ouvirei um concerto completo. Assim retardava a decisão de abrir o móvel onde guardava a garrafa e em geral conseguia controlar-se mas não se decidia a eliminar o licor, tinha sempre um pouco à mão para uma emergência. Quando por fim telefonou a Samantha escondeu-lhe que há mais de duas semanas estava apenas a vinte milhas de casa, fez-lhe crer que acabava de regressar, e pediu-lhe que fosse ter com ele ao aeroporto, onde a esperou de banho tomado, barbeado e sóbrio, em roupa de civil. Ficou surpreendido ao ver quanto Margaret tinha crescido e como se tinha posto bonita, parecia uma daquelas princesas desenhadas à pena nos contos antigos, com olhos de azul-mar, cabelos loiros e crespos e um estranho rosto triangular de feições muito finas. Também notou como pouco a mulher tinha mudado, tinha inclusiva-mente as mesmas calças brancas da última vez que a vira. Margaret estendeu-lhe uma mão lânguida sem sorrir e negou-se a dar-lhe um beijo. Tinha gestos de coquette copiados das actrizes de telenovela e caminhava bamboleando o seu minúsculo traseiro. Gregory sentiu-se incomodado com ela, não conseguia vê-la como a menina que na realidade era mas como uma indecente paródia de mulher fatal e envergonhou-se dele próprio, talvez Judy tivesse razão, depois de tudo, e a índole perversa do seu pai estivesse latente no seu sangue como uma maldição hereditária. Samantha deu-lhe as boas-vindas bem mornas, alegrava-se por o ver em tão boa forma, estava mais magro mas mais forte, o bronzeado ficava-lhe bem, disse ela, evidentemente a guerra não tinha sido assim tão traumatizante para ele, pelo contrário ela é que não estava bem de todo, lamentava ter que o dizer, a situação económica era péssima, tinham-se-lhe acabado as economias e tornava-se impossível sobreviver com o vencimento de soldado, não se queixava, é claro, compreendia as circunstâncias, mas não estava acostumada a passar penúrias, nem Margaret. Não, não podia continuar a guardar meninos, era um trabalho muito pesado e aborrecido, além disso tinha que cuidar da sua filha, ou não? Ao subir para o automóvel disse-lhe suavemente que lhe tinha reservado um quarto no hotel, mas não havia inconveniente em guardar as suas coisas na garagem até que se instalasse melhor. Se Gregory tinha alimentado algumas ilusões sobre uma possível reconciliação, aquelas poucas frases foram suficientes para perceber uma vez mais o abismo que os separava. Samantha não tinha perdido a sua habitual cortesia, tinha um controlo admirável sobre as suas emoções e era capaz de manter uma conversa por tempo indefinido sem nada dizer. Não lhe fez perguntas, não desejava saber de situações desagradáveis, mediante um esforço descomunal teria conseguido permanecer num mundo de fantasia, onde não havia lugar para a dor ou a fealdade. fiel a si mesma, pretendia ignorar a guerra, o divórcio, o rompimento com a sua família e tudo aquilo que pudesse alterar o seu horário de ténis. Gregory pensou com certo alívio que a mulher era uma página em branco e não tinha remorsos de começar outra vida sem ela. No resto do caminho tentou comunicar com Margaret, mas a filha não estava disposta a dar-lhe a mínima facilidade. Sentada no assento traseiro mordia as unhas pintadas de vermelho, brincava com um caracol do cabelo e olhava-se no espelho retrovisor, respondendo com monossílabos se a mãe lhe falava, mas ficando tenazmente calada se ele o fazia.
Alugou uma casa do outro lado da baía, cujo principal atractivo era um cais praticamente em ruínas. Pensava comprar um bote no futuro, mais por bravata do que por gosto de navegar, cada vez que saía no barco de Timothy Duane acabava convencido de que tanto trabalho apenas se justificava para salvar a vida a um náufrago, mas nunca como passatempo. Com o mesmo critério adquiriu um Porsche, esperava provocar a admiração dos homens e chamar a atenção das mulheres. Os carros são símbolos fálicos, não sei por que razão o teu é pequeno, estreito, baixo, todo a abanar, gracejou Cármen quando soube. Teve pelo menos o bom critério de não comprar móveis antes de conseguir um emprego seguro e conformou-se com uma cama do tamanho de um ringue de boxe, uma mesa de múltiplos usos e um par de cadeiras. Já instalado partiu para Los Angeles, onde não ia desde que levara Margaret para a apresentar à família Morales, vários anos antes.
Nora Reeves recebeu-o com naturalidade, como se o tivesse visto no dia anterior, ofereceu-lhe uma xícara de café e contou-lhe as novidades do bairro e do seu pai, que continuava a comunicar com ela todas as semanas para a manter informada sobre a marcha do Plano Infinito. Não se referiu à guerra e pela primeira vez Gregory comparou as semelhanças entre Samantha e sua mãe, a mesma frieza, indolência e cortesia, idêntica determinação para ignorar a realidade, embora para sua mãe esta última ter sido mais difícil porque lhe tinha cabido uma existência muito mais dura. No caso de Nora Reeves não bastava a indiferença, era necessária uma vontade muito firme para que os problemas não a atingissem. Encontrou Judy na cama com um recém-nascido nos braços e outras crianças brincando à sua roda. Coberta por um lençol disfarçava a gordura, parecia uma opulenta madona renascentista. Ocupada nos trabalhos da criança, não atinou perguntar-lhe como estava, dando por assente que se ele se encontrava aparentemente inteiro na frente dos seus olhos não havia a menor novidade. O segundo marido da irmã era dono de um táxi, viúvo, pai de dois miúdos mais velhos e do bebé. Era um latino nascido no país, um desses chicanos que falam mal o espanhol, mas que têm a inconfundível marca indígena dos seus antepassados, pequeno, magro, com um grande bigode caído, de guerreiro mongol. Comparado com o antecessor, o gigantesco Jim Morgan, parecia um pobre diabo desnutrido. Gregory não soube se este homem amava Judy mais do que a temia, imaginou uma discussão entre os dois e não pôde evitar um sorriso, a irmã seria capaz de partir o crânio ao marido com uma só mão, tal como partia os ovos ao pequeno-almoço. Como farão eles amor, perguntou-se Gregory fascinado.
Os Morales fizeram-lhe a recepção que ninguém lhe tinha feito até ao momento, abraçaram-no por longos minutos, a chorar. Gregory esteve tentado a pensar que se lamentavam porque era ele e não seu filho Juan Josè quem regressava ileso, mas a expressão de absoluta felicidade dos seus velhos amigos tirou-lhe essas mesquinhas dúvidas do coração. Retiraram a capa de plástico de uma das cadeiras e sentaram-no ali para o interrogar sobre pormenores da guerra. Tinha a intenção de não falar do assunto, mas surpreendeu-se ao contar-lhes o que quiseram saber. Compreendeu que isso fazia parte do luto, entre os três estavam a enterrar finalmente Juan Josè. Inmaculada esqueceu-se de acender as luzes e oferecer-lhe comida, ninguém se mexeu até alta noite, quando Pedro foi à cozinha buscar cervejas. A sós com Inmaculada, Gregory tirou o escapulário do pescoço e entregou-lho. Tinha desistido da ideia de o lavar porque receou que no processo ele se desintegrasse, mas não teve necessidade de explicar a origem das manchas escuras. Ela recebeu-o sem o olhar e pô-lo, ocultando-o debaixo da blusa.
- Seria pecado atirá-lo para o lixo, porque foi benzido por um bispo, mas se não pôde proteger o meu filho é porque não serve para nada - suspirou.
E então puderam falar dos últimos momentos de Juan Josè. Os pais sentados lado a lado no horrendo sofá cor de rubi, e de mãos dadas pela primeira vez em frente de alguém, ouviram a tremer o que Gregory Reeves tinha jurado não lhes dizer, mas não foi capaz de calar-se. Falou-lhes na reputação de afortunado e valente de Juan Josè, de como o encontrou por milagre na praia e quanto teria dado para ser ele e mais ninguém a estar a seu lado para o segurar nos seus braços quando estava a cair, padre, agarre-me que estou a cair para muito fundo.
- Teve tempo de fazer as pazes com Deus? - quis saber a mãe.
- Estava com o capelão.
- Sofreu muito? - perguntou Pedro Morales.
- Isso não sei, foi tudo muito rápido...
- Tinha medo? Estava desesperado? Gritava?
- Não, disseram-me que estava tranquilo.
- Pelo menos tu estás de volta, louvado seja Deus - disse Inmaculada, e por um momento Gregory sentiu-se perdoado de toda a culpa, redimido da angústia, a salvo das suas piores recordações, e uma onda de agradecimento sacudiu-o de alto a baixo. Nessa noite os Morales não permitiram que ele se alojasse num hotel, obrigaram-no a ficar com eles e prepararam a cama de solteiro de Juan Josè. Na gaveta da mesa-de-cabeceira encontrou um caderno escolar com poemas escritos a lápis pelo seu amigo. Eram versos de amor.
Antes de tomar o avião de volta visitou Olga. Os anos tinham caído sobre ela, nada restava do antigo aspecto de papagaio, estava feita uma bruxa descabelada, mas não tinha diminuído a sua energia de curandeira e vidente. Nessa altura da sua existência já estava plenamente convencida da estupidez humana, confiava mais nos seus bruxedos do que nas ervas medicinais porque diziam mais à insondável credulidade alheia. Tudo está na mente, a imaginação faz milagres, achava ela. A sua vivenda também mostrava o desgaste do tempo, parecia um bazar de santeiro atafulhada de empoeirados artigos de magia, com mais desordem e menos colorido que antigamente. Do tecto ainda estavam pendurados ramos secos, cascas e raízes, tinham-se multiplicado as prateleiras com frascos e caixas, o antigo aroma a incenso das tendas dos paquistaneses tinha desaparecido, tragado por perfumes mais poderosos. Muitos potes ainda conservavam nomes sugestivos: Não-me-esqueças, Negócio - seguro, Conquistador - irresistível, Vingança - assolapada, Prazer - violento, Tira-lho-todo. Com o seu olho treinado para descobrir o invisível Olga notou logo as mudanças em Gregory, o cerco à sua volta impossível de atravessar, o olhar duro, o riso estridente e sem alegria, a voz mais seca e aquela expressão nova na boca que não teria importância em lábios finos, mas que nos seus parecia brincalhona. Irradiava uma força de animal raivoso, mas debaixo da couraça ela distinguiu os pedaços de uma alma destroçada. Sentiu que não era o momento de lhe oferecer a sua vasta prática de conselheira porque ele estava hermético, por isso preferiu falar-lhe de si mesma.
- Tenho muitos inimigos, Gregory - confessou. - Quero fazer o bem, mas pagam-me com invejas e rancores. Agora dizem por aí que tenho trato com o diabo.
- É fatal para o negócio, imagino eu...
- Não acredites, enquanto existir gente assustada e magoada este ofício nunca está de baixa - respondeu Olga com uma careta de picardia. - E a propósito, posso fazer alguma coisa por ti?
- Não creio, Olga. O que eu tenho não se cura com orações.
Os Morales deram a Reeves a direcção de Cármen. Julgava-a ainda na Europa e custou-lhe a imaginar que vivessem à distância de uma ponte. Os seus telefonemas das segundas-feiras tinham-se interrompido e a correspon-dência sofria enormes atrasos no Vietname, o último contacto tinha sido um postal de Barcelona para lhe contar de um amante japonês. Pareceu-lhe uma coincidência estranha que a sua amiga se tivesse instalado em casa de Joan e Susan, a realidade às vezes torna-se tão improvável como as absurdas novelas de televisão que Inmaculada seguia fielmente.
Ao longo do seu destino aventureiro, sobretudo quando se sentia perseguido pela solidão depois de se enredar com uma nova mulher e descobrir que também não era ela quem procurava, Gregory Reeves perguntou-se muitas vezes por que ele e Cármen não tinham sido amantes. Quando se atreveu a falar-lhe disso, ela respondeu que nesse tempo ele estava fechado para a única espécie de amor que podiam partilhar, protegia-se com uma capa de cinismo de que não se servia no fim de contas, já que a menor brisa o deixava outra vez desvalido face aos elementos, mas isso era suficiente para lhe isolar a alma.
- Nesse tempo estavas virado para o dinheiro e sexo, era uma espécie de obsessão. Deitemos as culpas à guerra, se tu quiseres, ainda que eu pense que havia outras causas, também arrastavas contigo muita coisa de infância - disse Cármen muitos anos mais tarde, quando ambos tinham percorrido os próprios labirintos e puderam encontrar uma saída. - O estranho é que bastava raspar um pouco a superfície para se ver que por detrás das tuas defesas pedias ajuda. Mas eu não estava na lista para uma boa relação, não tinha amadurecido e não podia dar-te o amor imenso de que necessitavas.
Depois da sua visita aos Morales, Gregory adiou com renovados pretextos o encontro com a sua amiga. A ideia de a ver intimidava-o, receava que os dois tivessem mudado e não se reconhecessem, ou pior ainda, que não gostassem um do outro. Por fim foi impossível inventar novas desculpas e duas semanas mais tarde foi visitá-la. Preferiu surpreendê-la e apareceu no restaurante sem aviso prévio, mas ali soube que ela tinha deixado o trabalho havia poucos dias. Joan e Susan receberam-no exultantes, revistaram-no dos pés à cabeça para comprovar que estava inteiro, atafulharam-no de lasanha vegetariana e pastéis de pistácio e mel e por último indicaram-lhe a rua onde podia encontrar Cármen. Notou a transformação na aparência das duas mulheres, tinham brincos visíveis à distância, tinham cortado o cabelo e Joan tinha posto rouge, a julgar pelo rubor injustificado das suas faces. Explicaram-lhe entre risos que não podiam continuar a usar tranças de pele-vermelha ou carrapitos de avozinha, as argolas de Tamar exigiam qualquer coisa de coqueteria, não havia nenhum mal nisso, segundo tinham descoberto um pouco tardiamente, é certo, mas pensavam recuperar o tempo perdido. Pode ser-se feminista com estes penduricalhos nas orelhas e com alguma maquilhagem, não te assustes, homem, não renunciámos a nenhum dos nossos postulados, asseguraram-lhe. Gregory quis saber quem era Tamar e logo lhe explicaram que Cármen tinha mudado o nome porque agora dedicava o tempo completo ao fabrico de jóias, queria impor um estilo e um nome, e o seu parecia-lhe pouco exótico. Ia todos os dias para a rua dos hippies oferecer a sua mercadoria numa bandeja com pés. Os postos tiravam-se à sorte numa lotaria diária, sistema que evitava as discussões dos anos anteriores quando os vendedores ambulantes defendiam à pancada o pequeno território da sua preferência. Para conseguir boa localização tinha que madrugar, mas ela era muito disciplinada, disseram Joan e Susan, assim encontrá-la-ia na primeira esquina, o sítio mais solicitado porque ficava perto da universidade, onde podiam usar os lavabos.
Ladeavam a rua, em ambos os passeios, comerciantes e modestos artesãos que ganhavam o pão com as vendas do dia e sobreviviam de ilusões metafísicas, ingenuidades políticas e drogas. Entre eles pululavam uns quantos dementes, atraídos quem sabe por que misterioso íman. O governo tinha cortado no orçamento para os serviços médicos, deixando sem recursos os já empobrecidos hospitais psiquiátricos, que se viam na obrigação de soltar os doentes. Os enfermos lá se arranjavam, através da caridade alheia, no Verão, e depressa eram recolhidos no Inverno para evitar a vergonha dos cadá-veres hirtos na via pública. A polícia ignorava esses pobres loucos, a menos que fossem agressivos, os vizinhos conheciam-nos, tinham-lhes perdido o medo e não viam inconvenientes em alimentá-los quando começavam a desfalecer de fome. Muitas vezes não se distinguiam dos hippies drogados, mas alguns eram inconfundíveis e famosos, como um bailarino vestido com malha translúcida e capa flamejante de arcanjo caído, que flutuava silencioso em pontas de pés sobressaltando os transeuntes distraídos. Entre os mais célebres estava um infeliz visionário que lia a sorte em cartas de sua invenção e andava sempre a gemer pelos horrores do mundo. Desesperado perante tanta maldade e cobiça, um dia não pôde mais e arrancou os olhos com uma colher no meio da via pública. Levou-o uma ambulância e pouco depois estava de regresso, calado e sorridente porque já não via a cruel realidade. Alguém fez buracos nas suas cartas para que pudesse diferenciá-las e continuou a adivinhar a sorte dos transeuntes, agora com maior êxito porque se tinha tornado uma lenda. Foi entre eles que Gregory procurou a amiga. Abriu passagem no tumulto e no trânsito da rua, sem a ver, estava-se no Natal e uma multidão buliçosa ocupava os passeios nos afãs das últimas compras. Quando por fim deu com ela, tardou alguns segundos a ligar aquela imagem à que guardava entre as suas recordações. Estava sentada num banquinho por detrás de uma mesa portátil onde se expunham as suas obras, em refulgentes fileiras, o cabelo caía-lhe em desordem pelos ombros, tinha um xaile de odalisca bordado de arabescos, os braços cobertos de pulseiras e um estranho vestido escuro de algodão atado como uma túnica à cintura por uma cadeia de moedas de prata e cobre. Atendia um casal de turistas que certamente tinham feito a viagem desde a sua granja no Medioeste para ver de perto os espantos de Berkeley que tinham visto na televisão. Não deu pela presença de Gregory e ele manteve-se à distância, observando-a escondido pelo tráfego das pessoas. Nesses minutos recordou quantas coisas tinha partilhado com ela, os quentes sonhos da adolescência, as ilusões que ela lhe tinha provocado, e julgou amá-la desde a época remota em que dormiram na mesma cama, no dia da morte do seu pai. Pareceu-lhe muito mudada, tinha segurança e postura nos seus modos, os seus traços latinos tinham-se acentuado: os olhos mais negros, os gestos mais largos, o riso mais atrevido. As viagens tinham agudizado a intuição da sua amiga e tinham-na tornado mais astuta, daí a mudança de nome e de estilo. Por essa altura usava-se a palavra «étnico» para designar o proveniente de sítios que ninguém podia localizar no mapa e ela aproveitou-a, porque adivinhou que naquele meio ninguém exibiria com orgulho as jóias de uma humilde chicana. Na sua mesa havia um letreiro anunciando «Tamar, jóias étnicas». Do lugar onde se encontrava, Gregory escutou a sua conversa com os clientes, dizia-lhes que era cigana e eles vacilavam, receando que os enganasse na transacção. Falava com um ligeiro sotaque que não tinha antes. Gregory sabia-a incapaz de o fingir por afectação, mas bem o podia ter adoptado por travessura, tal como se inventava um passado misterioso, mais por amor à brincadeira do que por vocação de embusteira. Se alguém lhe tivesse recordado que era filha repudiada de um casal de imigrantes ilegais de Zacatecas, ela mesmo se teria surpreendido. Nas cartas ela contava-lhe a extravagante autobiografia que ia escrevendo em capítulos, como um folhetim de televisão, e ele advertiu-a em mais de uma ocasião que tivesse cuidado, porque de tanto repetir essas mentiras acabaria por acreditar nelas. Agora, ao vê-la a poucos metros de distância, compreendia que Cármen se tinha transformado na protagonista da sua própria novela e que Tamar vestia melhor a roupa da pitoresca vendedora de missangas. Nesse instante ela levantou os olhos e ao vê-lo escapou-lhe um grito.
Abraçaram-se longamente como dois meninos perdidos, finalmente ambos buscaram a boca do outro e beijaram-se trémulos com a paixão que tinham cultivado em anos de fantasias secretas. Cármen guardou tudo à pressa, dobrou a mesa e partiram os dois empurrando um carrinho de supermercado onde iam as caixas com jóias, olhando-se com avidez, à procura de um lugar onde pudessem fazer amor. A urgência era tal que não se deram tempo de falar de nada, necessitavam de tocar-se, explorar-se e comprovar que o outro era tal como o tinham imaginado. Ela não quis partilhar Gregory com Joan e Susan, receou que, se fossem para sua casa, o encontro seria inevitável e por muito discretas que as duas mulheres fossem seria bem difícil evitar a sua companhia, ele pensou o mesmo e sem a consultar levou-a a um motel modesto sem outra vantagem do que a proximidade. Ali despiram-se atropeladamente e rebolaram sobre a cama tontos de ansiedade, esfomeados. O primeiro abraço foi intenso e violento, investiram sem preâmbulos num tumulto de arquejos e lençóis, agrediram-se sem se dar tréguas, e depois caíram derrotados por uma modorra profunda durante uns minutos. Cármen despertou primeiro e levantou-se para observar o homem com quem tinha crescido e que no entanto agora lhe parecia um estranho. Tinha sonhado infinitas vezes com ele e agora tinha-o nu ao alcance da boca. A guerra tinha-o talhado a martelada, estava mais magro e musculado, os tendÕes saltavam como cordas debaixo da pele e numa perna tinha as veias marcadas e azuis, restos do acidente dos seus tempos de carregador. Mesmo a dormir estava tenso. Beijou-o com melancolia, tinha imaginado um encontro muito diferente, não essa espécie de mútua violação, aquela batalha descarnada, não tinham feito amor, mas qualquer coisa que a deixou com sabor a pecado. Pareceu-lhe que ele não estava inteiramente ali, o seu espírito estava ausente, não a tinha abraçado a ela mas sabe-se lá a que fantasma do seu passado ou dos seus pesadelos, faltou ternura, cumplicidade, bom humor, não o ouviu murmurar o seu nome nem olhá-la nos olhos. Ela também não tinha estado no seu melhor dia, mas não soube em que falar, Gregory marcou o ritmo e tudo sucedeu tão desesperadamente que ela perdeu-se numa selva escura e agora emergia quente, húmida, um pouco dolorida e triste. Os fracassos no amor não tinham destruído a sua capacidade de ternura. Aberta para o receber, esbarrou com a insuspeitada resistência deste amigo a quem tinha esperado desde a meninice, mas atribuiu-o às privações da guerra e não perdeu a esperança de encontrar uma fresta por onde entrar na sua alma. Inclinou-se para o beijar outra vez e ele despertou sobressaltado, à defesa, mas ao reconhecê-la sorriu e pela primeira vez pareceu descontraído. Tomou-a pelos ombros e puxou-a para si.
- És solitário e lutador, como um vaqueiro de filme, Greg.
- Nunca montei um cavalo em toda a minha vida, Cármen.
Não sabia quão acertado era o diagnóstico da amiga nem quão profético. A solidão e a luta determinaram o seu destino. Voltaram-lhe em tropel as recordações que procurava manter à distância, e sentiu uma profunda amargura, impossível de compartilhar com alguém, nem sequer com ela naquele momento de intimidade. Tinha crescido como o matagal do pátio da sua casa, sem água nem jardineiro, entre os desvarios metafísicos do pai, os silêncios inalteráveis da mãe, o rancor tenaz da irmã e a violência do bairro, suportando agressões pela cor da sua pele e pelas privações da sua família, dividido sempre entre as solicitações de um coração sentimental e aquela febre combativa, aquela energia selvagem que lhe punha a arder o sangue e o fazia perder a cabeça. Uma parte vergava-o ante a compaixão e outra impelia-o para o desenfreamento. Vivia apanhado na perene indecisão dessas forças opostas que o partiam em duas metades irreconciliáveis, uma garra que o rasgava por dentro separando-o dos outros. Sentia-se condenado à solidão. Aceita tudo de uma vez e deixa de pensar nisso, Gregory, nascemos, vivemos e morremos sozinhos, tinha-lhe assegurado Cyrus, a vida é confusão e sofrimento, mas sobretudo é solidão. Há explicações filosóficas, mas, se preferes o conto do Jardim do éden, considera que esse é o castigo da raça humana por ter mordido o fruto do conhecimento. Essa ideia provocava em Reeves um fogo de rebeldia, não tinha renunciado à ilusão da sua infância, quando esperava que a sua angústia de estar vivo desaparecesse por encanto. Naqueles anos, quando se escondia na despensa de sua casa tomado por um medo irracional, imaginava que um dia despertaria liberto para sempre daquela dor surda no centro do seu corpo, tudo era questão de ajustar-se aos princípios e regras da decência. No entanto, não tinha sido assim. Passou pelos ritos de iniciação e as sucessivas etapas do caminho para a virilidade, formou-se sozinho, com calado sofrimento à força de golpes e pancada, fiel ao mito nacional do indivíduo independente, orgulhoso e livre. Considerava-se um bom cidadão disposto a pagar os seus impostos e a defender a sua pátria, mas em qualquer sítio havia uma armadilha insidiosa e em vez da suposta recompensa continuava preso num pantano. Não foi suficiente cumprir e cumprir, a vida era uma noiva insaciável, exigia sempre mais esforço e mais coragem. No Vietname aprendeu que para sobreviver era necessário violar muitas regras, o mundo não era dos tímidos mas dos audazes, na vida real safava-se melhor o vilão que o herói. Não havia uma resolução moral na guerra, também não havia vencedores, todos faziam parte da mesma derrota descomunal, e agora na vida civil parecia-lhe que também era assim, mas estava decidido a escapar a essa maldição. Treparei aos poleiros superiores deste galinheiro, ainda que tenha que passar por cima da minha própria mãe, dizia para si frequente-mente, quando se barbeava ao espelho da casa de banho, para ver se à força de o repetir conseguia superar a sensação de abatimento com que despertava todas as manhãs. Não estava disposto a falar dessas coisas com ninguém, nem sequer com Cármen. Sentiu na boca o roçar do cabelo dela, aspirou o seu odor de sereia brava e abandonou-se de novo às solicitações do desejo. Viu o seu corpo flexível na penumbra das cortinas, ouviu o seu riso e os seus gemidos, sentiu o estremecer dos seus mamilos nas palmas das suas mãos e por um instante, demasiado breve, julgou-se redimido do seu anátema de solitário, mas, em seguida, os latidos acelerados do seu ventre e o tambor caótico do seu coração terminaram com essa quimera e afundou-se mais e mais no abismo absoluto do prazer, o último e mais profundo isolamento.
Vestiram-se muito depois, quando a necessidade de respirar ar fresco e comer qualquer coisa mais do que pizza fria e cerveja morna, único serviço do hotel, lhes devolveu o sentido da realidade. Tiveram muito tempo para se acariciar com mais calma e pôr em dia o passado, de terminar as conversas iniciadas por telefone durante anos, de relembrar Juan Josè, de contar as ilusões destruídas, os amores fracassados, os projectos por concluir, as aventuras e dores acumuladas. Nessas horas, Cármen comprovou que em Gregory não só tinha mudado o corpo, mas também a alma, mas supôs que com o tempo as suas más recordações se iriam apagando e tornaria a ser o mesmo de antes, o bom amigo sentimental e divertido com quem ganhava concursos de rock.n.roll, o confidente, o irmão. Não, irmão já nunca mais, disse para si com pesar. Quando se lhes esgotou a curiosidade de se explorarem, enfiaram a roupa e saíram para a rua, deixando o carrinho da bijutaria no quarto. Sentados em frente de fumegantes jarros de café e tostas estaladiças, olharam-se à luz avermelhada da tarde e sentiram-se incomodados. Não sabiam o que era aquela sombra instalada entre os dois, mas nenhum pôde ignorar o seu pernicioso efeito. Tinham satisfeito os apetites do desejo, mas não houvera verdadeiro encontro, não se fundiram num só espírito nem lhes surgiu um amor capaz de lhes transtornar a vida, como tinham imaginado. Uma vez vestidos e apaziguados, compreenderam como eram divergentes os seus caminhos, estavam de acordo em muito pouco, os seus interesses eram diferentes, não partilhavam planos nem valores. Quando Gregory expôs as ambições de se tornar advogado com êxito e fazer dinheiro, ela pensou que ele estava a brincar, aquela voracidade não se coadunava em nada com ele, onde tinham ficado as ideias, os livros inspirados e os discursos de Cyrus com que tantas vezes ele a aborrecera na adolescência e dos quais ela gozara para o chatear, mas que com o tempo tinha feito seus. Durante anos tinha-se julgado mais frívola e tinha-o considerado como seu guia, agora sentia-se traída. Por seu lado, Gregory não tinha paciência para ouvir as opiniões de Cármen sobre nenhum tema importante, desde a guerra até aos hippies, pareciam-lhe disparates de uma rapariga mimada e boémia que nunca tinha passado verdadeiras necessidades. O facto de se sentir plenamente realizada, vendendo objectos na rua e de pensar passar o resto da sua existência como uma vagabunda, empurrando o seu carrinho e vivendo do ar, lado a lado com dementes e fracassados, era prova suficiente da sua imaturidade.
- Tornaste-te num capitalista - acusou-o Cármen, horrorizada.
- E porque não? Tu não tens a menor ideia do que é um capitalista! - replicou Gregory e ela não pôde explicar o que sentia atravessado no peito, enredando-se em divagações que soaram como coisas de adolescente.
Tinham pago o quarto do hotel para outra noite, mas depois de terminar em silêncio a terceira chávena de café, cada qual isolado nos seus pensamentos, e de passear um pouco olhando o espectáculo da rua ao anoitecer, ela disse que tinha de recolher as suas coisas no hotel e voltar para casa por ter muito trabalho pendente. Isso evitou a Reeves o mau bocado de inventar uma desculpa. Separaram-se com um beijo rápido nos lábios e a promessa vaga de se visitarem muito em breve. Não voltaram a comunicar-se até quase dois anos mais tarde, quando Cármen Morales lhe telefonou para lhe pedir ajuda, tinha que ir buscar um menino ao outro lado do mundo.
Timothy Duane convidou Gregory Reeves para um jantar em casa dos pais e sem querer deu-lhe o empurrão que ele necessitava para se levantar. Duane tinha recebido o amigo com o aperto de mão do costume como se acabasse de voltar de férias curtas, e só o brilho dos seus olhos revelou a emoção que sentia ao vê-lo, mas como todos os outros, recusou-se a saber pormenores da guerra. Gregory tinha a impressão de ter cometido algo vergonhoso, regressar do Vietname era o equivalente a sair da cadeia depois de uma longa condenação, as pessoas fingiam que nada tinha sucedido, tratavam-no com exagerada cortesia ou ignoravam-no por completo, não havia lugar para os combatentes fora do campo de batalha. O jantar em casa dos Duane foi aborrecido e formal. Abriu-lhe a porta uma negra velha e formosa de uniforme flamejante, que o conduziu à sala. Maravilhado, verificou que não havia um centímetro quadrado de parede ou de chão sem adornos, a profusão de quadros, tapetes, esculturas, móveis, alcatifas e plantas não deixava um espaço de serenidade para descansar a vista. Havia mesas com embutidos de madrepérola e filigranas de ouro, cadeiras de ébano com almofadÕes de seda, gaiolas de prata para pássaros embalsamados e uma colecção de porcelana e cristais digna de museu. Timothy veio ao seu encontro.
- Que luxo! - escapou a Reeves à maneira de saudação.
- Ela é o único luxo desta casa. Apresento-te Bel Benedict - respondeu o amigo apontando a criada que na verdade parecia uma escultura africana.
Gregory conheceu por fim o pai do amigo de quem mal tinha ouvido falar ao filho, um patriarca encolarinhado e seco incapaz de dizer duas frases sem deixar vincada a sua autoridade. Aquela noite podia ter sido abominável para Gregory se não fossem as orquídeas que salvaram a reunião e lhe abriram as portas da sua carreira de advogado. O seu amigo Balcescu tinha-o iniciado no vício sem retorno da botânica, que começou com uma paixão por rosas e que, com os anos, se estendeu a outras espécies. Naquele palacete atulhado de objectos preciosos o que lhe chamou a atenção foram as orquídeas da mãe de Timothy. Havia-as de mil formas, plantadas em floreiras, caindo dos tectos, em cascas de árvores e crescendo como uma selva num jardim interior onde a senhora tinha reproduzido um clima amazónico. Enquanto os outros tomavam café, Gregory escapuliu-se para o jardim a admirá-las. Encontrou ali um ancião de sobrancelhas diabólicas e rosto firme, igualmente entusiasmado com as flores. Comentaram as plantas, ambos surpreendidos pelos conhecimentos um do outro. O homem, veio a saber, era um dos advogados mais famosos do país, um polvo cujos tentáculos abraçavam todo o Oeste, e que ao saber que procurava trabalho deu-lhe o seu cartão e convidou-o para conversar com ele. Uma semana mais tarde contratou-o para a sua firma.
Gregory Reeves era mais um entre sessenta profissionais, todos igualmente ambiciosos, mas nem todos tão determinados, às ordens dos três fundadores que se tinham feito milionários com a desgraça alheia. Os escritórios ocupavam três pisos de uma torre em pleno centro, de onde se via a baía emoldurada por aço e vidro. As janelas não se podiam abrir, respirava-se ar de máquinas e um sistema de luzes dissimuladas nos tectos criava a ilusão de um eterno dia polar. O número de janelas de cada escritório determinava a importância do seu ocupante, a princípio não teve nenhuma, quando saiu sete anos mais tarde podia gabar-se de ter duas em esquina, por onde apenas vislumbrava o edifício da frente e um pedaço insignificante do céu, mas que representavam a sua ascensão na firma e na escala social. Também tinha várias floreiras com plantas e um nobre sofá de couro inglês, capaz de suportar muito maltrato sem perder a sua estóica dignidade. Por este móvel desfilaram várias colegas e um número indeterminado de secretárias, amigas e clientes que tornaram mais ligeiros os aborrecidos casos de heranças, seguros e impostos que lhe coube resolver. A dada altura o chefe visitou-o com o pretexto de trocar informações sobre uma rara variedade de fetos, e depois convidou-o para almoçar duas ou três vezes. Ao observá-lo à distância tinha detectado a agressividade e a energia do seu novo empregado, por isso lhe mandou casos mais interessantes para pôr as suas garras à prova. Excelente, Reeves, siga por este caminho e mais cedo do que espera talvez seja meu sócio, felicitava-o de vez em quando. Gregory suspeitava que ele dizia o mesmo a outros empregados, mas em vinte e cinco anos muito poucos tinham alcançado tal posição na firma. Não tinha esperanças vãs de uma subida importante, sabia que o exploravam, trabalhava entre dez e quinze horas por dia, mas considerava isso parte do estágio para voar sozinho um dia e não se queixava. A lei era uma teia de aranha de burocracias e a habilidade consistia em ser a aranha e não a mosca, o sistema judicial tinha-se tornado uma soma de regulamentos tão enredados que já não serviam para o que haviam sido criados e, longe de aplicar a justiça, complicavam-na até à demência. O seu propósito não estava em procurar a verdade, castigar os culpados ou recompensar as vítimas, como lhe tinham ensinado na universidade, mas em ganhar a causa por qualquer meio ao seu alcance. Para ter êxito tinha que conhecer até os mais absurdos resquícios legais e usá-los em seu proveito. Ocultar documentos, confundir testemunhas e falsear dados eram práticas correntes, o desafio residia em fazê-lo com eficiência e discrição. O garrote da lei não devia cair nunca sobre clientes capazes de pagar aos astutos advogados da firma. A sua vida tomou um rumo que teria espantado sua mãe e Cyrus, perdeu boa parte da ilusão no seu trabalho, considerava-o só uma escada para trepar. Nem a tinha em outros aspectos da sua existência, muito menos no amor ou na família. O divórcio de Samantha terminou sem agressões desnecessárias, com acordo celebrado por ambos num restaurante italiano, entre dois copos de vinho chianti. Não tinham nada de valioso para repartir, Gregory aceitou pagar-lhe uma pensão e custear os gastos de Margaret. Ao despedir-se perguntou-lhe se podia levar os barris com as roseiras, que de tanto abandono se tinham tornado paus secos, mas sentia o dever de os ressuscitar. Ela não viu inconveniente e ofereceu-lhe também a tina de madeira do falhado parto aquático, onde talvez pudesse cultivar uma selva doméstica. Ao princípio, Gregory fazia viagens semanais para ver a filha, mas depressa as visitas se espaçaram, a menina aguardava-o com uma lista de coisas para ele lhe comprar e uma vez satisfeitos os seus caprichos ignorava-o e parecia incomodada com a sua presença. Não comunicou com Judy ou com a mãe por largo tempo; nem telefonou a Cármen, justificava-se dizendo que estava muito ocupado com o seu trabalho.
As relações sociais constituíam parte fundamental do êxito da carreira, as amizades servem para abrir as portas, disseram-lhe os seus colegas no escritório. Devia estar no lugar preciso no momento oportuno e com a gente adequada. Os juizes partilhavam o clube com os advogados que encontravam depois nos tribunais, entre amigos entendiam-se. Os desportos não eram o seu forte, mas obrigou-se a jogar golfe porque lhe dava a oportunidade de fazer contactos. Tal como tinha planeado, adquiriu um bote com a ideia de se vestir de branco e navegar acompanhado por colegas invejosos e mulheres invejáveis, mas nunca entendeu os caprichos do vento nem os segredos das velas, cada passeio na baía resultava num desastre e a embarcação morreu abandonada no molhe, com ninhos de gaivotas nos mastros e coberta por uma cabeleira de algas apodrecidas. Gregory passara uma infância de pobreza e uma juventude de escassez, mas tinha-se alimentado de filmes que lhe deixaram o gosto pela grande vida. No cinema do seu bairro vira homens em smoking, mulheres vestidas de lamé e mesas de quatro candelabros servidas por criados de uniforme. Ainda que tudo aquilo pertencesse a um passado hipotético de Hollywood e não tivesse aplicação prática na realidade, fascinava-o na mesma. Talvez por isso se tivesse enamorado de Samantha, era fácil imaginá-la no papel de uma ruiva gélida e distinta do cinema. Encomendava os seus fatos a um alfaiate chinês, o mais caro da cidade, o mesmo que vestia o velho das orquídeas e outros magnates, comprava camisas de seda e usava correntes de ouro com as suas iniciais. O alfaiate acabou por ser um bom conselheiro e impediu-o de usar sapatos de duas cores, gravatas de folhos, calças aos quadrados e outras tentações, até que a pouco e pouco Reeves afinou o gosto em matéria de vestuário. Com a decoração de sua casa também teve uma eficiente professora. A princípio comprou a crédito todos os ornamentos que chamavam a sua atenção, quanto maior e mais elaborado melhor, tentando reproduzir em pequena escala a casa dos pais de Timothy Duane, porque pensava que assim viviam os ricos, mas por muito que se endividasse não conseguia financiar semelhantes extravagâncias. Começou a coleccionar móveis antigos em segunda mão, candeeiros com pingentes, jarrÕes e até um par de abissínios em bronze, em tamanho natural, com turbante e babuchas. A sua casa ia a caminho de se tornar um bazar de quinquilharias turcas, quando se cruzou no seu destino uma jovem decoradora que o salvou das consequências do mau-gosto. Conheceu-a numa festa e nessa mesma noite iniciaram uma apaixonada e fugaz relação muito importante para Gregory, porque nunca esqueceu as lições dessa mulher. Ensinou-lhe que a ostentação é inimiga da elegancia, ideia totalmente contrária aos preceitos do bairro latino e que a ele nunca tinha ocorrido, e começou a eliminar, sem olhar para trás, quase todo o conteúdo da casa, incluindo os abissínios, que vendeu por um preço exorbitante ao hotel Saint Francis, onde se podem ver hoje à entrada do bar. Só deixou a cama imperial, os barris de rosas e a tina dos partos transformada em viveiro de plantas. Nas cinco semanas de relação partilhada, ela transformou a casa dando-lhe um ambiente simples e funcional, mandou pintar as paredes de branco e alcatifar o chão em cor de areia, e em seguida acompanhou Gregory para comprar uns quantos móveis modernos. Foi enfática nas suas instruções: pouco mas bom, cores neutras, mínimo de adornos e, em face da dúvida, abstém-te. Graças aos seus conselhos a casa adquiriu austeridade de convento e assim se manteve até o seu dono se casar, vários anos mais tarde.
Reeves não falava nunca da sua experiência no Vietname, em parte porque ninguém o queria ouvir, mas sobretudo porque pensava que o silêncio o curaria finalmente das suas recordações. Tinha partido disposto a defender os interesses da pátria, com a imagem dos heróis na mente, e tinha voltado vencido, sem compreender para quê os seus morriam aos milhares e matavam sem remorsos em terra alheia. Por essa altura a guerra, que ao começo contava com o apoio eufórico da opinião pública, tinha-se tornado um pesadelo nacional, as manifestações dos pacifistas tinham-se alargado, desafiando o governo. Ninguém compreendia que fosse possível mandar viajantes para o espaço e não se encontrasse maneira de acabar com aquele conflito sem fim. No regresso, os soldados enfrentavam uma hostilidade mais feroz que a dos inimigos, em vez do respeito e da admiração prometidos, quando eram recrutados. Eram apontados como assassinos, os seus padecimentos não interessavam a ninguém. Muitos que suportaram, sem vergar, os rigores da batalha, quebraram-se ao voltar, quando verificaram que não havia lugar para eles.
- Este é um país de triunfadores, Greg. A única coisa que ninguém perdoa é o fracasso - disse Timothy Duane. - Não é a moral ou a justiça desta guerra o que pomos em causa, ninguém quer saber dos seus mortos quanto mais dos dos outros, o que nos fode é que não ganhamos e vamos sair dali com o rabo entre as pernas.
- Aqui só muito poucos sabem o que é realmente a guerra, Tim. Nunca fomos invadidos pelo inimigo nem bombardeados, levámos um século a lutar, mas desde a guerra civil que não se ouve um tiro no nosso território. As pessoas não fazem ideia do que é uma cidade debaixo de fogo. Mudariam de critério se os seus filhos morressem rebentados por uma explosão, se as suas casas fossem reduzidas a cinza e não tivessem que comer - respondeu Reeves na única oportunidade em que falou do tema com o seu amigo.
Não gastou energias em lamentos gratuitos e, com a mesma determinação que teve para sair vivo do Vietname, propôs-se superar os obstáculos semeados no seu caminho. Não se afastou nem um cabelo da decisão de ir para a frente, tomada na cama de um hospital de Hawai, e tão bem a conseguiu que ao acabar a guerra, uns anos mais tarde, estava transformado no paradigma do homem de êxito e manejava a sua existência com a mesma atrevida perícia de malabarista com que Cármen mantinha cinco facas de carniceiro no ar. Por essa altura tinha conseguido quase tudo o que ambicionara, dispunha de mais dinheiro, mulheres e prestígio do que alguma vez sonhara, mas não estava tranquilo. Ninguém soube da angústia que pesava nos seus ombros como um saco de pedras porque tinha ares de jactância e desembaraço de um trapaceiro, excepto Cármen, a quem nunca a pôde esconder, mas nem ela o pôde ajudar.
- O que se passa contigo é que estás na arena de uma praça de touros, mas não tens instinto de matador - dizia-lhe ela.
Que procurava eu nas mulheres? Ainda não sei. Não se tratava de encontrar a outra metade da minha alma para me sentir completo nem nada que se pareça. Naquele tempo não estava amadurecido para essa possibilidade, andava atrás de qualquer coisa inteiramente terrena. Exigia às minhas companheiras algo que eu mesmo não sabia nomear e quando não o obtinha ficava triste. A qualquer mais esperto, o divórcio, a guerra e a idade ter-lhe-iam curado as intenções românticas, mas não foi esse o meu caso. Por um lado, fazia por levar quase todas as mulheres para a cama por puro desejo sexual, e por outro enfurecia-me quando não respondiam às minhas secretas solicitações sentimentais. Confusão, pura confusão. Durante várias décadas senti-me frustrado, depois de cada cópula assaltava-me uma melancolia raivosa, um desejo de me afastar depressa. Inclusivamente com Cármen foi assim, com razão ela não quis ver-me por alguns anos, deve ter-me detestado. As mulheres são aranhas devoradoras, se não te livrares delas nunca poderás ser tu mesmo, viverás sozinho só para as satisfazer, advertia-me Timothy Duane, que se juntava todas as semanas com um grupo de homens para falar da masculinidade ameaçada pelo ataque do feminismo. Nunca o levei a sério, o meu amigo não é bom exemplo neste assunto. Na juventude eu não tinha aspecto nem conhecimentos para perseguir raparigas com algum método, fiz isso com o estouvamento de um cachorro e os resultados foram um desastre. Fui fiel a Samantha até àquela noite em que me coube tirar o roupão de gelado de morango a uma professora de matemática que não desejava, mas não estou orgulhoso dessa lealdade que ela não retribuiu, pelo contrário, portei-me como um tonto, além de cornudo. Quando me encontrei de novo solteiro dispus-me a aproveitar as vantagens da revolução nos costumes, tinham desaparecido as antigas estratégias de conquista, ninguém tinha medo do diabo, das más-línguas ou de uma gravidez inoportuna, de modo que pus à prova a cama de minha casa, as de incontáveis hotéis e até as britânicas molas do sofá do meu escritório. O meu chefe avisou-me secamente de que perderia o posto de imediato se recebesse queixas das empregadas. Não lhe liguei nenhuma, mas tive sorte porque ninguém reclamou ou então os boatos não chegaram aos seus ouvidos. Com Timothy Duane reservamos certas noites fixas na semana para ir para a farra, trocávamos informações e fazíamos listas de candidatas. Para ele era um desporto, para mim era um delírio. O meu amigo era bom moço, galante e rico, mas eu dançava melhor, podia tocar de ouvido vários instrumentos e sabia cozinhar, essas parvoíces que chamam a atenção de algumas mulheres. Juntos, julgávamo-nos irresistíveis, mas suponho que o éramos apenas porque nos interessava a quantidade e não a qualidade, saíamos com qualquer uma que nos aceitasse o convite, não posso dizer que fôssemos selectivos. Ambos nos apaixonámos no mesmo dia por uma filipina descontraída e cobiçosa a quem intoxicámos com atenções, numa corrida veloz a ver quem ganhava o seu coração, mas ela estava muito mais adiantada e disse-nos sem preâmbulos o que pensava fazer com os dois. Aquele acordo salomónico fracassou à primeira tentativa, não pudemos suportar a concorrência. A partir de então repartíamos as raparigas de modo tão prosaico, que se elas o tivessem suspeitado nunca nos teriam aceite. Tinha vários nomes na minha agenda, e telefonava-lhes regularmente, nenhuma era fixa e a nenhuma fazia promessas, a combinação era cómoda para mim mas não me bastava, mal me passava pela frente outra mais ou menos interessante atirava-me atrás dela com a mesma urgência com que logo a deixava. Suponho que me impelia a ilusão de encontrar um dia a companheira ideal que justificasse a busca, tal como bebia vinho, apesar de ele aumentar as minhas energias, esperando dar com a garrafa perfeita, ou como fazia turismo no Verão, correndo de uma cidade para outra numa esgotante perseguição do lugar maravilhoso onde estaria totalmente a meu gosto. Procurando, procurando sempre, mas procurando fora de mim próprio.
Nessa etapa da minha vida a sexualidade equivalia à violência da guerra, era uma forma maligna de estabelecer contacto, que no fim de contas me deixava um terrível vazio. Então eu não sabia que em cada encontro aprendia alguma coisa, que não caminhava em círculos como um cego, mas numa lenta espiral ascendente. Estava amadurecendo num esforço colossal, tal como Olga me vaticinou. és um animal muito forte e teimoso, não terás uma vida fácil, vais ter que aguentar muita pancada, previa ela. Ela foi a minha primeira professora naquilo que teria que determinar uma boa parte do meu caracter. Aos dezasseis anos não me fez só praticar aventuras eróticas, a sua lição mais importante foi sobre os fundamentos de um verdadeiro casal. Ensinou-me que no amor os dois se abrem, se aceitam, se rendem. Tive sorte, poucos homens têm ocasião de aprender isso na juventude, mas não soube compreendê-lo, e depressa o esqueci. O amor é a música e o sexo é apenas o instrumento, dizia-me Olga, mas tardei mais de metade da minha vida até encontrar o meu centro e por isso custou-me tanto a aprender a tocar a música. Persegui o amor com tenacidade onde não o podia encontrar, e em inúmeras ocasiões em que o tive em frente dos olhos fui incapaz de o ver. As minhas relações foram raivosas e fugazes, não podia render-me a uma mulher nem aceitá-la. Assim o percebeu Cármen na única ocasião em que partilhámos a cama, mas ela própria não tinha vivido ainda uma relação plena, era tão ignorante como eu, nenhum de nós podia conduzir o outro pelos caminhos do amor. Nem ela tinha experimentado a intimidade absoluta, todos os seus companheiros a tinham ofendido ou abandonado, não confiava em ninguém e quando quis fazê-lo comigo também a defraudei. Estou convencido de que tentou, de boa fé, receber-me na sua alma tanto como no seu corpo, Cármen é carinho puro, instinto e compaixão, a ternura não lhe custa nada, mas eu não estava pronto e depois, quando quis aproximar-me, era muito tarde. Inútil chorar sobre o leite derramado, como diz dona Inmaculada, a vida traz-nos muitas surpresas e, à luz das coisas que me ocorreram agora, talvez fosse melhor assim. Nesse tempo, as mulheres, como a roupa ou o automóvel, eram símbolos de poder, substituíam-se sem deixar marcas, como pirilampos de um longo e inútil delírio. Se alguma das minhas amigas chorou em segredo ante a impossibilidade de me atrair até uma relação profunda, não a trago na memória, tal como não tenho o registo das companheiras casuais. Não desejo evocar os rostos das amantes do tempo do desenfreamento, mas se quisesse fazê-lo creio que só encontraria páginas em branco.
Os Morales receberam a carta que mudaria o rumo de Cármen e leram-lha por telefone: Menina Cármen, entrego-lhe o meu filho porque o seu irmão Juan Josè queria que ele crescesse nos Estados Unidos. O menino chama-se Dai Morales, tem um ano e nove meses, é muito saudável. Seria um bom filho para si e um bom neto para os seus veneráveis avós. Por favor, venha buscá-lo depressa. Estou doente e não viverei muito mais tempo. Saúda-a com respeito, Thui Nguyen.
- Sabias que Juan Josè tinha uma mulher lá por aquelas bandas, tão longe? - perguntou Pedro Morales com a voz embargada pelo esforço para se manter sereno, enquanto Inmaculada torcia um lenço na cozinha, vacilando entre a sorte de saber que tinha outro neto e as dúvidas semeadas pelo marido de que a coisa cheirava a fraude.
- Sim, também eu sabia isso do filho - mentiu Cármen, a quem bastaram quinze segundos para adoptar a criança no seu coração.
- Não temos provas de que Juan Josè seja o pai.
- O meu irmão disse-mo por telefone.
- A mulher pode tê-lo enganado. Não seria a primeira vez que apanham um soldado na armadilha com essa história. Sabe-se sempre quem é a mãe, mas não se pode saber quem é o pai.
- Então, também não pode ter a certeza de que eu seja sua filha, papá.
- Não me faltes ao respeito. E se o sabias porque não nos avisaste?
- Não queria preocupar-vos. Pensei que nunca conheceríamos o menino. Irei buscar o pequeno Dai.
- Não será fácil, Cármen. Neste caso não o podemos passar pela fronteira escondido numa pilha de alfaces, como fizeram alguns amigos mexicanos com os seus filhos.
- Vou trazê-lo, papá, podes ter a certeza.
Pegou no telegrama e falou com Gregory Reeves com quem não comunicava desde há muito e contou-lhe a notícia sem preâmbulos, tão comovida e entusiasmada com a ideia de se tornar mãe adoptiva, que se esqueceu por completo de manifestar qualquer sinal de compaixão pela mulher moribunda ou perguntar ao seu amigo como é que ia ao fim de tanto tempo sem se falarem. Seis horas mais tarde ele anunciou-lhe a visita para a pôr a par dos pormenores, entretanto tinha feito algumas investigações e Pedro Morales tinha razão, era bastante complicado o menino entrar no país. Encontraram-se no restaurante de Joan e Susan agora tão conhecido que aparecia em guias de turismo. A comida não tinha variado, mas em vez de réstias de alhos na parede, afixavam-se cartazes feministas, retratos assinados das ideólogas do movimento, caricaturas do tema e num canto de honra o célebre sutiã enfiado num cabo de vassoura que as donas do local tinham usado como símbolo vários anos antes. As duas mulheres tinham prosperado com o bom andamento das suas finanças e mantinham intacta a sua quente maneira de ser. Joan tinha amores com o guru mais solicitado da cidade, o romeno Balcescu que já não pregava no parque mas na sua própria academia, e Susan tinha herdado de seu pai um pedaço de terra onde cultivavam verduras biológicas e criavam frangos felizes, que em vez de crescer quatro em cada gaiola alimentados com produtos químicos, circulavam em plena liberdade bicando grãos autênticos até ao momento de serem depenados para as panelas do restaurante. No mesmo lugar Balcescu plantava marijuana hidropónica, que se vendia como pão quente, sobretudo no Natal. Sentados à melhor mesa do restaurante, junto da janela aberta para o jardim selvagem, Cármen reiterou ao seu amigo que adoptaria o seu sobrinho mesmo que tivesse que passar o resto da sua vida plantando arroz no Sudoeste Asiático. Nunca poderei ter um filho meu, mas este menino é como se o fosse porque tem o meu sangue, além disso tenho o dever espiritual de tomar conta do filho de Juan Josè e nenhum serviço de imigração do mundo me poderá impedir, disse ela. Gregory explicou-lhe com paciência que o visto não era o único problema, os trâmites passavam por uma agência de adopção que examinaria a sua vida para comprovar se era uma mãe adequada e se podia oferecer um lar estável ao rapazinho.
- Far-te-ão perguntas incómodas. Não aprovarão que passes o dia na rua entre hippies, drogados, dementes e mendigos, que não tenhas um vencimento fixo, seguro de saúde, previdência social e horários normais. Onde vives agora?
- Bom, de momento durmo no meu automóvel no pátio de um amigo. Comprei um Cadillac amarelo, de 49, uma verdadeira relíquia, tens que o ver.
- Perfeito, isso vai encantar a agência de adopção!
- É uma situação temporária, Greg. Estou à procura de um apartamento.
- Precisas de dinheiro?
- Não, as vendas correm-me muito bem, ganho mais que ninguém em toda a rua e gasto pouco. Tenho algumas economias no banco.
- E então porque é que vives como uma pedinte? Francamente duvido que te dêem o miúdo, Cármen.
- Podes chamar-me Tamar? é agora o meu nome.
- Farei isso, mas custa-me, para mim serás sempre Cármen. Também te vão perguntar se tens marido, preferem os casais.
- Sabias que lá tratam como cães os filhos de americanos com mulheres vietnamitas? Não gostam do nosso sangue. Dai estará muito melhor comigo do que num orfanato.
- Sim, mas não é a mim que deves convencer. Terás de preencher formulários, responder a perguntas e provar que se trata na verdade do teu sobrinho. Aviso-te que isso vai demorar meses, talvez anos.
- Não podemos esperar tanto, por alguma razão te chamei, Gregory. Tu conheces a lei.
- Mas não posso fazer milagres.
- Não te peço milagres mas algumas aldrabices inofensivas para uma boa causa.
Traçaram um plano. Cármen destinaria parte das suas economias para se instalar num apartamento num bairro decente, procuraria deixar as vendas de rua, daria aulas aos seus amigos e conhecidos para responder às capciosas investigações das autoridades. Perguntou a Gregory se ele se casaria com ela na hipótese de um marido ser requisito indispensável, mas ele disse-lhe, divertido, que as leis não eram tão cruéis e que com um pouco de sorte não seria necessário ir tão longe. Ofereceu em troca ajudá-la com dinheiro porque a aventura seria dispendiosa.
- Disse-te que tenho algumas economias. Mas obrigada de qualquer modo.
- Guarda-as para manter o rapaz, se é que o consegues trazer. Eu pagarei as passagens e dou-te alguma coisa para a viagem.
- Estás assim tão rico?
- O que tenho são dívidas, mas sempre posso conseguir outro empréstimo, não te preocupes.
Três meses mais tarde, depois de fatigantes trâmites em repartições públicas e consulados, Gregory acompanhou a sua amiga ao aeroporto. Para despistar suspeitas burocráticas, Cármen tinha tirado os seus disfarces, vestia uma saia e um casaco sem graça, e levava o cabelo apanhado, o único sinal de um fogo não extinto de todo era a pesada maquilhagem de khol nos olhos, a que não pôde renunciar. Parecia mais baixa, bastante mais gorda e quase feia. Os seios livres, que com as blusas de cigana resultavam atraentes, debaixo do casaco escuro pareciam uma prateleira. Gregory teve de aceitar que a exótica personagem que ela tinha criado superava amplamente a versão original, prometeu não voltar a sugerir mudanças ao seu estilo. Não te assustes, mal tenha o meu menino comigo volto a ser eu mesma, disse Cármen corando. Olhava-se ao espelho e não conseguia encontrar-se. Na sua mala ia o pequeno dragão de madeira que Gregory lhe tinha dado de presente no último momento, para te dar sorte, porque vais precisar dela, disse-lhe. Também levava uma série de documentos, fruto da inspiração e da audácia, fotografias e cartas do irmão Juan Josè, que pensava utilizar sem contemplações pelas regras da honestidade. Reeves tinha-se posto em contacto com Leo Galupi, certo de que o seu bom amigo conhecia todo o mundo e não existiam obstáculos capazes de o deter. Assegurou a Cármen que podia confiar nesse simpático italiano de Chicago, apesar dos boatos que o davam como rufião. Dizia-se que tinha feito uma fortuna no mercado negro, e que por isso não regressava aos Estados Unidos. A verdade era outra, o homem tinha concluído o serviço militar havia algum tempo e não ficou no Vietname pelo dinheiro fácil, mas pelo gosto da desordem e da incerteza, tinha nascido para uma vida de sobressaltos e ali estava no seu ambiente. Não tinha dinheiro, era um bandido vencido pelo seu próprio coração generoso. Em anos de negócios à margem da lei tinha ganho muito dinheiro, mas tinha-o gasto sustentando parentes longínquos, ajudando amigos na desgraça e abrindo a bolsa quando via alguém em necessidade. Se a guerra lhe dava a oportunidade de fazer dinheiro em negócios escuros, por outro lado obrigava-o a gastá-lo em inúmeros actos de beneficência. Vivia numa cave onde se acumulavam caixas com as suas mercadorias, produtos americanos para vender aos vietnamitas e raridades orientais que oferecia aos seus compatriotas, desde barbatanas de tubarão para curar a impotência até grandes tranças de donzelas para fabricar perucas, pós chineses para sonhos felizes e estatuetas de deuses antigos em ouro e marfim. Num canto tinha instalado um fogão a gás, onde costumava preparar suculentas receitas sicilianas para consolo da sua nostalgia e para alimentar meia dúzia de meninos mendigos que sobreviviam graças a ele. Fiel ao que prometera a Gregory Reeves, estava no aeroporto à espera de Cármen com um desmaiado ramo de flores. Custou localizá-la, porque esperava um torvelinho de saias, colares e pulseiras, em contrapartida, viu-se em frente de uma senhora anódina cansada pela longa travessia e derretida pelo calor. Ela também não o reconheceu porque Gregory tinha-o descrito como um inconfundível mafioso, pelo contrário pareceu-lhe ter à sua frente um trovador saído de uma pintura, mas como ele tinha um cartão com o nome Tamar identificaram-se na multidão. Não te preocupes com nada, querida, a partir de agora encarrego-me de ti e de todos os teus problemas, disse-lhe beijando-a em ambas as faces. Cumpriu a sua palavra. Caber-lhe-ia jurar em falso, no notário, que Thui Nguyen não tinha família, imitar a letra de Juan Josè Morales em cartas inventadas onde falava na gravidez da sua noiva, fazer trucagens em fotografias onde ambos apareciam de braço dado em diversos lugares, falsificar certificados e selos, suplicar a funcionários incorruptíveis e subornar os subornáveis, trâmites que efectuava com a naturalidade de quem sempre chafurdou nessas águas. Era um homem de bom porte, alegre e bem vestido, com fortes traços mediterrânicos e uma brilhante melena negra que atava atrás em pequeno rabicho. Cármen pediu-lhe que a acompanhasse na visita a Thui Nguyen pela primeira vez, porque de tanto preparar-se para o encontro tinha perdido o seu habitual à-vontade e só de pensar ver o menino fraquejavam-lhe os joelhos. A mulher vivia num quarto alugado, num casarão que antes da guerra devia ter pertencido a uma família de comerciantes endinheirados, mas que agora estava dividida em quartos para uns vinte inquilinos. Havia tal confusão de gente nos seus trabalhos, crianças a correr, rádios e televisores acesos, que lhes custou descobrir o quarto que procuravam. Abriu-lhes a porta uma mulherzinha minúscula, uma sombra lívida com um lenço na cabeça e um vestido de cor indefinida. Bastou uma olhadela para saber que Thui Nguyen não tinha mentido, estava muito doente. Certamente sempre fora baixa, mas parecia ter diminuído subitamente, como se o esqueleto lhe tivesse mirrado sem dar tempo à pele para se acomodar ao novo tamanho, era impossível calcular-lhe a idade porque tinha uma expressão milenária num corpo de adolescente. Saudou-os com grande reserva, pediu desculpa pela incomodidade do seu quarto e convidou-os a sentar-se na cama; em seguida ofereceu-lhes chá e sem esperar resposta pôs água a ferver num fogareiro instalado na única cadeira disponível. Num canto via-se um altar doméstico com uma fotografia de Juan Josè Morales e oferendas de flores, fruta e incenso. Vou buscar Dai, disse, e afastou-se com passos lentos. Cármen Morales sentia pancadas de remo no peito e tremia apesar da humidade quente que escorria pelas paredes alimentando uma flora esverdeada nos cantos. Leo Galupi pressentiu que aquele era o momento mais intenso na vida daquela mulher e teve vontade de a segurar nos braços, mas não se atreveu.
Dai Morales entrou pela mão da mãe. Era um rapazinho magro e moreno, bastante alto para os seus dois anos, com o cabelo eriçado como uma escova e uma cara muito séria onde os olhos amendoados e sem pálpebras visíveis eram o único traço oriental. Parecia igual à fotografia que Inmaculada e Pedro Morales tinham do seu filho Juan Josè na mesma idade, só que não sorria. Cármen pôs-se em pé, mas faltou-lhe o ânimo e caiu sentada na cama. Achou, com certeza doentia, que aquela criança era a que tinha ido pela pia da cozinha de Olga dez anos antes, o menino que lhe estava destinado desde o começo dos tempos. Por um instante perdeu a noção do presente e perguntou a si mesma, com angústia, que estava a fazer o seu filho naquele mísero quarto. Thui disse algo que soou como um trinado e o pequeno avançou timidamente a apertar a mão de Leo Galupi. Thui corrigiu-o com outro som de pássaro e ele voltou-se para Cármen esboçando uma saudação semelhante, mas olharam-se nos olhos e os dois ficaram a observar-se por uns segundos eternos, como que a reconhecer-se depois de uma longa separação. Por fim ela estendeu os braços, levantou-o e pô-lo a cavalo nos joelhos. Era leve como um gato. Dai ficou quieto, em silêncio, olhando-a com expressão solene.
- A partir de agora ela é a tua mamã - disse em inglês Thui Nguyen e logo o repetiu na sua língua para que o filho entendesse.
Cármen Morales passou onze semanas cumprindo formalidades de adopção do sobrinho e à espera do visto para o levar do país. Podia fazê-lo em menos tempo, mas nunca descobriu isso. Leo Galupi, que a princípio se multiplicou para ajudá-la a resolver obstáculos aparentemente inultrapassáveis, à última hora fez tudo para complicar os papéis e atrasar os trâmites finais, enredando-a num emaranhado de desculpas e dilações que nem ele próprio podia explicar. A cidade acabou por ser muito mais cara do que o imaginado e em menos de um mês Cármen ficou sem dinheiro. Gregory Reeves mandou-lhe uma transferência bancária que se esfumou em subornos e despesas de hotel e quando se dispunha a recorrer à sua conta de poupança, Galupi adiantou-se para a ajudar. Tinha iniciado um novo negócio de dentes de elefante, disse ele, e estavam a sobrar-lhe notas nos bolsos, ela não tinha o menor direito de recusar a sua ajuda, uma vez que o fazia por Juan Josè Morales, seu amigo do peito, a quem tinha querido tanto e de quem não tinha podido despedir-se. Ela suspeitou que na realidade Galupi nem sequer tinha ouvido falar do seu irmão antes de Gregory lhe pedir o favor de a ajudar, mas não lhe convinha averiguar. Não quis que pagasse a conta do hotel, mas aceitou ir viver para sua casa para reduzir as despesas. Mudou-se com a sua mala e uma bolsa de contas e pedras, que tinha ido comprando nos seus momentos livres, incluindo uns pequenos fósseis de insectos neolíticos com os quais pensava fabricar alfinetes. Não imaginou que aquele homem, a quem tinha visto guiar um carro de magnate e gastar às mãos-cheias, se alojava naquela espécie de armazém de estação de caminho-de-ferro, um labirinto de caixotes e estantes metálicas onde se acumulava tudo o que se podia imaginar. Numa rápida vista de olhos viu uma cama de campanha, pilhas de livros, caixas com discos e cassettes, um formidável equipamento de música e um televisor portátil com um cabide de roupa a fazer de antena. Galupi mostrou-lhe a cozinha e outras divisões da sua casa e apresentou-lhe as crianças que àquela hora apareciam para comer, avisando-a que não Ihes desse dinheiro e não deixasse a sua carteira ao alcance das suas mãos vorazes. No meio daquela desordem de acampamento, o banho foi uma surpresa, um quarto impecável de madeira com banheira, grandes espelhos e toalhas turcas vermelhas. Isto é o mais valioso que passou pelas minhas mãos, não sabes como é difícil conseguir boas toalhas, sorriu o anfitrião acariciando-as com orgulho. Por fim levou Cármen ao extremo da sua casa, onde tinha arranjado um amplo canto com caixas montadas umas sobre as outras e a fazer de porta um impressionante biombo Coromandel. No interior Cármen viu uma cama larga coberta com um mosquiteiro branco, delicados móveis de laca negra pintados à mão com motivos de garças e flores de cerejeira, tapetes de seda, tecidos bordados a cobrir as paredes e pequenos candeeiros de papel de arroz que difundiam uma luz difusa. Leo Galupi tinha criado para ela o quarto de uma imperatriz chinesa. Aquele seria o seu refúgio durante várias semanas, ali não chegava o bulício da rua nem o fragor da guerra. às vezes perguntava a si mesma o que continham aqueles embrulhos misteriosos que a rodeavam, imaginava objectos preciosos, cada um com a sua história, e sentia o ar cheio do espírito das coisas. Naquele lugar viveu com comodidade e em boa companhia mas consumida pela angústia da espera.
- Paciência, paciência - aconselhava-lhe Leo Galupi quando a via frenética. - Pensa que se Dai fosse teu tê-lo-ias esperado nove meses. Nove semanas não é nada.
Nas longas horas de ócio em que não visitava Thui e o menino, Cármen vagueava pelos mercados comprando materiais para as suas jóias e desenhava novos motivos inspirados naquela exótica viagem. Parecia-lhe absurdo que no meio de um conflito bélico de tais proporções ela pudesse percorrer bazares como uma turista. Apesar de grande parte das tropas americanas já se ter retirado, o conflito continuava no apogeu. Tinha imaginado que a cidade era um imenso acampamento militar onde teria de procurar o sobrinho arrastando-se por entre soldados e trincheiras, mas pelo contrário passeava por ruelas estreitas regateando no meio de uma misturada multidão aparentemente alheia à guerra. Se falasse com as pessoas teria uma visão diferente, disse Galupi, mas como ela só podia comunicar em inglês, estava isolada do povo. Sem querer acabou por ignorar a realidade e embrenhou-se nos dois únicos assuntos que lhe interessavam, o pequeno Dai e o seu trabalho. A sua mente parecia ter-se alargado a outras dimensões, a ásia entrou dentro dela, invadiu-a, seduziu-a. Pensou que lhe faltava muito mundo para conhecer e se desejava verdadeiro êxito naquele ofício e alguma segurança para o futuro, como se tinha proposto desde que aceitou encarregar-se de Dai, teria de viajar todos os anos a lugares distantes e exóticos em busca de materiais raros e ideias novas.
- Mandar-te-ei bolinhas de cera, tenho contactos para todo o lado, posso conseguir qualquer coisa - ofereceu Galupi, que não entendia a natureza do ofício de Cármen, mas era capaz de adivinhar as suas possibilidades comerciais.
- Tenho de escolhê-las eu própria. Cada pedra, cada concha, cada pedacinho de madeira ou metal sugere-me algo diferente.
- Aqui ninguém usaria o que estás desenhando. Nunca vi uma mulher elegante com pedaços de osso e penas nas orelhas.
- Lá lutam por isso. As mulheres preferem passar fome para comprar um par de argolas como estas. Quanto mais caro as vendo, mais gostam.
- Pelo menos o que tu fazes é legal - riu Galupi.
A ela os dias pareciam-lhe muito longos, o calor e a humidade esgotavam-na. Usava os seus respeitáveis vestidos de matrona só para as coisas imprescindíveis mas no resto do tempo cobria-se com simples túnicas de algodão e sandálias de camponesa compradas no mercado. Passava muitas horas sozinha lendo ou desenhando, acompanhada pelo rumor das grandes ventoinhas do armazém. à noite chegava Galupi com sacos de provisões, tomava um duche, vestia calções, punha um disco e começava a cozinhar. Apareciam logo diversos comensais, quase todos meninos, que pulavam enchendo o barracão com a sua voz ligeira e os seus risos, e quando acabavam de comer iam-se embora sem se despedirem. +s vezes Galupi convidava amigos americanos, soldados ou correspondentes de imprensa, que ficavam até muito tarde bebendo e fumando marijuana. Todos aceitaram a presença de Cármen sem fazer perguntas, como se ela sempre tivesse feito parte da vida de Galupi. Algumas vezes convidava-a para jantar fora e quando estava livre guiava-a pela cidade, queria mostrar-lhe diversos aspectos, desde exóticos sectores populares da verdadeira vida, até às zonas residenciais de europeus e americanos onde se vivia com ar condicionado e água engarrafada. Vamos comprar para ti uma roupa de rainha, temos um jantar na embaixada, disse-lhe um dia, levou-a ao centro comercial mais elegante e ali a deixou com um maço de notas na mão. Ela sentiu-se perdida, durante anos tinha feito a sua roupa e não suspeitava que um vestido pudesse ser tão caro. Quando o seu novo amigo passou para a ir buscar três horas mais tarde, encontrou-a sentada à porta da loja com os sapatos na mão, amaldiçoando a sua frustração.
- Que se passa?
- Tudo é horrível e muito caro. Agora as mulheres são planas. Estes melÕes não entram em nenhum vestido - grunhiu apontando os seios.
- Alegro-me por isso - riu Galupi e acompanhou-a ao bairro hindu onde conseguiram um magnífico sari de seda cor de melancia, bordado a ouro, no qual Cármen se envolveu com a maior leveza, sentindo-se muito mais em paz consigo mesma que dentro dos apertados vestidos franceses para mulheres esquálidas.
Nessa noite, ao entrar no salão da embaixada, distinguiu entre a multidão o homem em quem pensava muitas vezes e que nunca acreditara voltar a ver. Conversando com um copo de uísque na mão, vestido de smoking e com o cabelo grisalho, mas com o mesmo rosto de antes, estava Tom Clayton. O jornalista tinha interrompido temporariamente os seus artigos políticos para se mudar para o Vietname e escrever um livro. Passava mais tempo em festas e em clubes do que na frente, fiel ao seu acesso a sítios onde nenhum correspondente era bem-vindo e conhecia gente adequada no alto comando militar, no corpo diplomático, no governo e no mundo social da cidade, por isso mesmo ficou atraído pelo sortilégio daquela mulher que nunca tinha visto. Pela cor azeitonada da pele, a pesada maquilhagem dos olhos e o sari deslumbrante, supôs que vinha da índia. Notou que ela também o observava e procurou oportunidade de se aproximar dela. Cármen apertou-lhe a mão e apresentou-se com o nome que sempre usava, Tamar. Tinha planeado muitas vezes a sua reacção se voltasse a ver aquele primeiro amante, tão definitivo na sua existência, e a única coisa que jamais pensara foi que não lhe ocorresse nada para lhe dizer. Os anos tinham apagado o seu rancor, descobriu surpreendida que não sentia mais do que indiferença por aquele homem arrogante a quem não conseguia recordar nu. Ouviu-o falar com Galupi enquanto a examinava de soslaio, evidentemente impressionado, e espantou-se por o ter desejado tanto. Não se perguntou, como muitas vezes o fizera nas suas solidÕes, como teria sido o menino de ambos, porque já não podia imaginar outro filho seu que não fosse Dai. Suspirou, com uma mescla de alívio, ao verificar que ele não a tinha reconhecido e de profundo fastídio pelo tempo perdido em penas de amor.
- Não a tinha visto antes, donde vem você? - perguntou Tom Clayton virado para ela.
- Venho do passado - respondeu Cármen e virou-lhe as costas para ir à janela olhar a cidade, que brilhava a seus pés como se a guerra fosse noutro lado.
De regresso ao armazém, Cármen e Leo Galupi sentaram-se debaixo da ventoinha a comentar a festa sem acender os candeeiro!, na penumbra das luzes da rua. Ofereceu-lhe uma bebida e ela perguntou-lhe se porventura tinha uma lata de leite condensado. Com a ponta da faca abriu-lhe dois orifícios e sentou-se no chão sobre uns almofadÕes a chupar o doce, consolo de tantos momentos críticos na sua existência.
Por fim, ele atreveu-se a perguntar-lhe por Clayton, porque tinha notado algo estranho na sua atitude durante o encontro de ambos, disse-lhe ele. Então Cármen contou-lhe tudo sem omitir nenhum pormenor, era a primeira vez que falava da sua experiência na cozinha de Olga, da dor e do medo, do delírio no hospital e o largo purgatório expiando uma culpa que não era apenas sua, mas que ele se negara a partilhar. Uma coisa levou a outra e acabou por lhe revelar a vida inteira. Amanheceu e continuava falando numa espécie de catarse, tinha rebentado o dique dos segredos e dos choros solitários e descobriu o gosto de abrir a alma a um confidente discreto. Com o último sorvo de leite condensado estendeu-se bocejando morta de fadiga, e depois inclinou-se sobre o seu novo amigo e roçou-lhe a testa com um beijo leve. Galupi agarrou-a pelos pulsos e puxou-a a si, mas Cármen afastou a cara e o gesto perdeu-se no ar.
- Não posso - disse ela.
- Porque não?
- Porque já não estou sozinha, agora tenho um filho.
Nessa noite Cármen Morales acordou ao nascer do sol e julgou ver Leo Galupi de pé junto do biombo Coromandel observando-a, mas ainda não aclarara de todo e talvez a visão fosse parte do seu sonho. Estava sumida no mesmo pesadelo que a tinha perseguido durante anos, mas nessa ocasião Tom Clayton não estava ali e o menino que lhe estendia os braços não tinha a cabeça coberta por um saco de papel, desta vez distinguia-o claramente, tinha o rosto de Dai.
Acomodaram-se à convivência num tranquilo bem-estar, como um velho matrimónio de anos. Cármen habituou-se pouco a pouco à maternidade, levava o menino a passeios cada vez mais prolongados, aprendeu umas quantas palavras de vietnamita e ensinou-lhe outras em inglês, descobriu os seus gostos, os seus temores, as histórias da sua família. Thui levou-a a uma excursão de dois dias ao campo a visitar os seus parentes para se despedirem de Dai. Eles tinham insistido em tomar o miúdo a seu cargo, horrorizados com a ideia de mandar um dos seus para o outro lado do mar, mas Thui tinha a consciência de que ali o seu filho seria sempre um bastardo de sangue misturado, um cidadão de segunda, pobre e sem esperanças de se afirmar. O desafio de se adaptar na América não seria fácil, mas ao menos, ali, Dai teria melhores oportunidades que a lavrar o pedaço de terra do clã familiar. Leo Galupi insistiu em acompanhá-los porque os tempos não estavam para duas mulheres e um menino andarem sem protecção. Cármen verificou uma vez mais qualquer coisa que sabia desde a infância e para a qual Joan e Susan lhe tinham chamado a atenção tantas vezes, que homens e mulheres existem no mesmo sítio e ao mesmo tempo, mas em dimensões diferentes. Ela vivia olhando para trás, por cima do ombro, guardando-se de perigos reais e imaginários, sempre à defesa, trabalhando o dobro de qualquer homem para obter metade do benefício. O que para eles era assunto banal que não merecia um segundo pensamento, para ela era um risco e requeria cálculos e estratégias. Algo tão simples como um passeio ao campo numa mulher podia considerar-se uma provocação, uma chamada para o desastre. Comentou isso com Galupi, que se surpreendeu por não ter pensado nunca nessas diferenças. Os parentes de Dai eram camponeses pobres e desconfiados que receberam os estrangeiros com ódio no olhar, apesar das longas explicações de Thui Nguyen.
A doente definhava muito depressa, como se tivesse mantido o cancro na fronteira até conhecer Cármen, mas ao verificar que o menino ficava em boas mãos tinha-se dado por vencida. Despedia-se silenciosamente. Antes da sua morte foi-se afastando suavemente para que Dai começasse a esquecê-la, como se a mãe nunca tivesse existido, assim a separação seria mais leve. Explicou isso a Cármen com delicadeza e ela não se atreveu a contradizê-la. Frequentemente Thui pedia-lhe que ficasse com Dai durante a noite, não estou bem de todo e sozinha sinto-me mais tranquila, dizia, mas quando eles partiam voltava a cara para esconder as lágrimas e quando o filho regressava iluminavam-se-lhe os olhos. Mal podia caminhar, a dor estava sempre presente, mas não se queixava. Desistiu dos medicamentos do hospital, que a deixavam exausta e com náuseas sem a aliviar, e consultava um velho acupuncturista. Cármen acompanhou-a várias vezes a essas estranhas sessões num quartinho escuro a cheirar a canela onde o homem tratava os seus doentes. Thui, recostada numa esteira estreita com as agulhas cravadas em várias partes do seu corpo depauperado, fechava os olhos e dormitava. No regresso Cármen ajudava-a a deitar-se, preparava-lhe um cachimbo de ópio, e quando a via afundada no aniquilamento da droga ia com o menino comer gelados. Para o fim, a enferma não podia levantar-se e Dai mudou-se de todo para o armazém, onde partilhava a grande cama chinesa com a sua nova mãe. O italiano contratou uma mulher para cuidar da moribunda e levava-a no seu carro ao acupuncturista para o tratamento diário. Com crescente impaciência, Thui Nguyen perguntava pelo andamento dos papéis, desejava assegurar-se que Dai chegaria são e salvo à terra de seu pai e cada atraso trazia-lhe um novo tormento.
Um domingo, levaram o pequeno para se despedir da mãe. Finalmente tinham-se resolvido as últimas dificuldades, aparecia registado como filho legitimo de Cármen Morales, tinha um passaporte com visto apropriado e no dia seguinte iniciaria a viagem para a América, onde plantaria outras raízes. Deixaram Thui sozinha com o miúdo alguns minutos. Dai sentou-se sobre a cama com o pressentimento de que aquele era um momento definitivo e assim devia ter sido, porque muitos anos mais tarde, quando já era um prodígio em matemáticas e sala entrevistado em revistas científicas, contou-me que a única recordação autêntica da sua infância no Vietname era uma mulher lívida de olhos ardentes que o beijava na cara e lhe entregava um embrulho amarelo. Mostrou-me esse objecto, um antigo álbum de fotografias atado com uma fita de seda. Cármen e Galupi esperaram do outro lado da porta até que a doente os chamou. Encontraram-na recostada na almofada, calma e sorridente. Beijou o menino pela última vez e fez sinais a Galupi para que o levasse. Cármen sentou-se a seu lado e pegou-lhe na mão, enquanto lágrimas ardentes lhe caíam pelas faces.
- Obrigada Thui, dás-me o que mais desejei em toda a minha vida. Não te preocupes, serei tão boa mãe para Dai como tu, juro-te.
- Faz-se o que se pode - disse ela suavemente.
Pouco mais tarde, enquanto a família Morales celebrava com uma festa a chegada de Dai à América, Leo Galupi acompanhava os restos de Thui Nguyen num simples rito funerário. Aquelas onze semanas tinham mudado os destinos de várias pessoas, incluindo o daquele fura-vidas de Chicago, que desde havia dias sentia uma dor surda no meio do peito, onde antes guardava um espírito inconsequente e fanfarrão.
Daí foi um vendaval de renovação na vida de Cármen Morales, que esqueceu os desaires amorosos do passado, as penúrias económicas, as solidÕes e as incertezas. O futuro apareceu ante os seus olhos claro e limpo, como se estivesse a vê-lo num ecrã, dedicar-se-ia àquele menino, ajudando-o a crescer pela mão para lhe evitar tropeções, protegido de todos os sofrimentos possíveis, inclusive da nostalgia e da tristeza.
- Suponho que a primeira coisa a fazer é baptizar este chinesinho para que seja um dos nossos e não fique mouro - opinou o padre Larraguibel nas festas de boas-vindas, abraçando o menino com a ternura que sempre estivera escondida no seu corpanzil de camponês basco, e que na juventude não se atrevia a expressar. Cármen, no entanto, fez tudo para adiar o assunto, não desejava atormentar Dai com tantas mudanças e, por outro lado, o budismo parecia-lhe uma disciplina respeitável e talvez mais leve que a fé cristã.
A nova mãe cumpriu as cerimónias indispensáveis, apresentou o seu filho a cada um dos parentes e amigos do bairro e começou a ensinar-lhe com paciência os nomes impronunciáveis dos seus novos avós e da multidão de primos, mas Dai parecia espantado e não pronunciava uma palavra, limitando-se a observar com os seus olhos negros, sem largar a mão de Cármen. Também o levou à prisão para ver Olga, acusada de praticar magia negra, para ver se a mulher tinha alguma ideia para o fazer comer, porque desde que saíra do seu país ele alimentava-se só de sumos de frutos, tinha emagrecido e estava a pontos de se desvanecer como um suspiro. Cármen e Inmaculada estavam preocupadas, tinham consultado um médico, que depois de minuciosos exames o declarou de boa saúde e lhe receitou vitaminas. A avó esmerou-se em preparar pratos mexicanos com sabor asiático, insistiu em fazer-lhe beber o mesmo tónico de fígado de bacalhau com o qual torturara os seus seis filhos na infância, mas nada disso deu resultado.
- Faz-lhe falta a mãe - disse Olga mal o viu através da rede da sala de visitas.
- Ontem avisaram-me que a mãe morreu.
- Explica ao miúdo que ela está a seu lado, embora ele não a possa ver.
- é muito pequenino, não entenderia isso, nesta idade não captam ideias abstractas. Além disso não quero meter-lhe superstições na cabeça.
- Ai, menina, não sabes nada de nada! - suspirou a curandeira. - Os mortos andam de mãos dadas com os vivos.
Olga habituou-se ao cárcere com a mesma facilidade com que antes se instalava em cada paragem do camião transumante, como se fosse ficar ali para sempre. A reclusão não afectara em nada o seu bom ânimo, era apenas um inconveniente menor, a única coisa que lhe deu raiva foi que as acusações eram falsas, nunca se tinha interessado pela magia negra porque não representava um bom negócio, ganhava muito mais ajudando os seus clientes do que a amaldiçoar os seus inimigos. Não temia pela sua reputação, pelo contrário, com certeza essa injustiça aumentaria a sua fama, mas estava preocupada com os seus gatos, que tinha confiado a uma vizinha. Gregory Reeves assegurou-lhe que nenhum jurado acreditaria nos efeitos maléficos de umas supostas práticas de bruxaria, mas devia evitar a todo o custo que viesse à luz a verdadeira natureza do seu comércio, se isso acontecesse a lei seria implacável. Resignou-se a cumprir discretamente a sua sentença sem armar muito alvoroço, mas a moderação não era a sua principal virtude e em menos de uma semana tinha transformado a sua cela numa extensão do seu extravagante consultório caseiro. Não lhe faltavam clientes. As outras reclusas pagavam-lhe pelos seus conselhos de esperança, massagens terapêuticas, hipnotismo, tranquilizantes, poderosos talismãs e artes de adivinha, e depressa até os guardas a consultavam. Conseguiu a pouco e pouco ter as suas ervas medicinais, os seus frascos de água magnetizada, as cartas do Tarot e o Buda de gesso dourado. Da sua cela, transformada em bazar, praticava os seus eficazes encantamentos e estendia os tentáculos subtis do seu poder. Não só se tornou a pessoa mais respeitada da prisão, como também a que mais visitas recebia, todo o bairro mexicano desfilava para a ver.
Receando que Dai se consumisse de inanição, Cármen decidiu experimentar o conselho de Olga e esforçou-se por dizer ao menino, numa mescla de inglês, vietnamita e mímica, que a sua mãe tinha subido a outro plano onde o corpo já não lhe era útil, agora tinha a forma de uma pequena fada translúcida que voava sempre sobre a sua cabeça para o proteger. Copiou a ideia do padre Larraguibel que descrevia assim os anjos. Segundo ele, cada pessoa levava um demónio à esquerda e um anjo à sua direita, e o segundo media exactamente trinta e três centímetros, o número de anos da vida terrestre de Cristo, andava nu e era totalmente falso que tivesse asas, voava a propulsão por jacto, sistema de navegação divina menos elegante mas muito mais lógico que as asas de pássaro descritas nos textos sagrados. O bom homem tinha-se tornado um pouco excêntrico com a idade, mas também se lhe tinha agudizado a visão do seu terceiro olho, existiam provas irrefutáveis de que era capaz de ver no escuro, assim como percebia o que se passava nas suas costas, por isso mesmo ninguém cochichava na missa. Com inquestionável autoridade moral descrevia os demónios e os anjos dando pormenores precisos e ninguém, nem Inmaculada Morales que era muito conservadora em matéria religiosa, se atrevia a pôr em dúvida as suas palavras. Para suprir as limitações da linguagem, Cármen fez um desenho onde Dai aparecia em primeiro plano e que, ao rodá-lo, fazia voar uma figura pequena com hélice na cabeça e fumarada na cauda, que tinha precisamente os inconfundíveis olhos de amêndoas negras de Thui Nguyen. O miúdo observou-o um bom bocado, depois dobrou-o cuidadosamente e guardou-o no álbum de fotografias falsificadas por Leo Galupi, junto a retratos dos seus pais de braço dado em lugares onde nunca tinham estado. A seguir comeu o seu primeiro hamburger americano.
Ao cabo de uma intensa semana familiar, Cármen regressou com o seu filho a Berkeley, onde tinha organizado a sua nova vida. Antes de ir à procura de Dai tinha alugado um apartamento e preparado um quarto com móveis brancos e uma profusão de brinquedos. A casa só tinha dois quartos, um para o filho e outro que servia de oficina e dormitório. Já não se instalava a vender as suas jóias em qualquer esquina, agora colocava-as em várias lojas, mas a tentação das vendas na rua era inevitável. Aos fins-de-semana partia no seu automóvel até outras povoações onde montava a banca nas feiras de artesanato. Tinha-o feito durante anos sem pensar na incomodidade das viagens, de trabalhar dezoito horas sem descanso, alimentar-se de amendoim e chocolate, dormir no veículo e não dispor de banho, mas a presença do menino obrigou-a a fazer alguns ajustes. Vendeu o Cadillac amarelo a cair aos bocados, e comprou um furgão sólido e amplo, onde podia estender dois sacos-cama à noite, quando não havia um quarto disponível. Iam os dois lado a lado, como dois sócios, Dai ajudava-a a levar parte das coisas e a armar a mesa, depois sentava-se a atender os clientes ou a brincar sozinho, quando se enfadava punha-se a correr a feira e se estava cansado deitava-se a dormir no chão aos pés da mãe. Como eram sempre os mesmos artesãos que se encontravam em diversas localidades, já todos conheciam o filho de Tamar, em parte alguma estava tão seguro como naquelas feiras onde pululavam ladrÕes, ébrios e drogados. No resto da semana Cármen trabalhava em casa sempre acompanhada pelo pequeno. Arranjava tempo para lhe ensinar inglês, mostrar-lhe o mundo em livros emprestados na biblioteca, passeá-lo pela cidade, levá-lo a piscinas e parques públicos. Quando se sentisse mais seguro na sua nova pátria então pensava mandá-lo para um infantário a fim de conviver com outras crianças da sua idade, mas por agora a ideia de se separar dele, mesmo que fosse por algumas horas, atormentava-a, vazou em Dai a ternura contida em muitos anos a lamentar em segredo a sua esterilidade. Não sabia como criar um menino e não tinha paciência para estudar isso em manuais, nem isso a preocupava. Estabeleceram ambos um veículo indestrutível baseado na total aceitação mútua e no bom humor. O rapazinho habitou-se a partilhar o seu espaço em tão esplêndidos termos que podia armar um castelo com cubos de plástico na mesma mesa em que ela montava umas delicadas argolas de ouro com minúsculas contas de cerâmica pré-colombiana. à meia-noite, Dai passava para a cama de Cármen e acordavam abraçados. Depois do primeiro ano começou a sorrir timidamente mas, nas raras oportunidades em que se separaram, voltava a sua antiga expressão ausente. Ela falava-lhe todo o tempo, sem se angustiar, porque ele não articulava palavra, como queres que fale o pobrezinho se ainda não sabe inglês e esqueceu o seu idioma, está no limbo dos surdos-mudos, mas quando tiver alguma coisa para dizer di-la-á, explicava-lhe Gregory, às segundas-feiras, por telefone. Tinha razão. Aos quatro anos, quando já poucas esperanças restavam em que ele se expressasse, Cármen cedeu às pressões de todos e levou-o, a resmungar, a um especialista, que depois de o examinar atentamente, por longo tempo sem obter dele nem o menor som articulado, verificou o que ela já sabia, que o seu filho não era surdo. Cármen pegou em Dai pela mão e levou-o até ao parque. Sentada num banco junto de um lago de patos explicou-lhe que se ela tinha que pagar a um médico para o fazer falar iam para o diabo as férias daquele ano, porque não conseguia orçamento para tanto.
- Entre tu e eu não necessitamos palavras, Dai, mas para funcionar no mundo tens que comunicar, os desenhitos não bastam. Tens que falar um pouco para termos férias, senão estamos os dois bem lixados...
- Não gostei daquele doutor, mamã, cheira a molho de soja - respondeu o menino em perfeito inglês. Nunca seria muito falador, mas o assunto da sua mudez ficou resolvido.
O tempo livre passou a ser o seu maior luxo, Cármen deixou de ver os amigos e recusava convites dos mesmos pretendentes que pouco tempo antes a entusiasmavam. Até então, o amor tinha-lhe produzido mais sofrimento que boas recordações, segundo Gregory escolhia péssimos candidatos, como se apenas pudesse apaixonar-se por aqueles que a maltratavam, ela estava convencida de que o seu período de má sorte tinha passado, mas de qualquer modo decidiu ter cuidado consigo. Durante anos Inmaculada Morales fez promessas a Santo António de Pádua, a ver se o patrono das solteironas se encarregava de procurar um marido para aquela filha extravagante que já tinha passado dos trinta e ainda não dava sinais de assentar cabeça. Encontrar companheiro adequado tinha sido uma calada obsessão de Cármen no passado, quando lhe faltava homem os seus sonhos povoavam-se de fantasmas luxuriosos, necessitava de um abraço apertado, quente proximidade, mãos viris na sua cintura, uma voz rouca sussurrando-lhe; mas já não se tratava apenas de procurar um companheiro mas também um pai capaz para Dai. Pensou nos homens que tinha tido e pela primeira vez deu conta da raiva que sentia contra eles. Perguntava a si mesma se alguma vez se teria deixado bater diante do miúdo ou se se teria resignado a dar-lhe banho em água fria usada por outro, e afastava-se da sua submissão. Revia os amantes recentes e nenhum passava no seu severo exame, sem dúvida estavam melhor sozinhos, concluiu. A maternidade tranquilizou-lhe o espírito, e para as inquietações do corpo decidiu seguir o exemplo de Gregory e conformar-se com amores de ocasião. Perguntava-se também por que lhe faltara coragem para ter um bebé dez anos antes, por que se deixara vencer pelo medo e pelo peso de inúteis tradições, não era assim tão difícil ser mãe solteira, apesar de tudo, concluiu. As novas responsabilidades mantinham a sua energia em ebulição, aumentou a sua vontade de trabalhar e das suas mãos saiam desenhos trazidos de regiões remotas, tomavam vida com as tenazes, maçaricos e alicates. Acordava subitamente de madrugada com a visão precisa de um desenho, por alguns minutos ficava na cama envolta no cheiro e calor do seu menino, depois levantava-se, vestia o roupão de seda bordada, presente de Leo Galupi, fervia água para preparar chá de manga, acendia os candeeiros victorianos sobre a mesa e pegava nas ferramentas com alegre determinação. De vez em quando dava uma olhadela ao filho adormecido e sorria contente. A minha vida está completa, nunca fui tão feliz, pensava.
Cuidado com o que pedes, olha que o céu pode dar-to, era um dos ditos de Inmaculada Morales e no caso de Gregory Reeves cumpria-se como uma brincadeira fatal. Nos anos seguintes realizou os planos que se tinha proposto com tanto afinco, no entanto, por dentro fervia no caldo de uma impaciência esmagadora. Não podia parar nem um momento, enquanto estava ocupado conseguia ignorar os apuros da alma, mas se lhe sobravam uns minutos e estava quieto e em silêncio, sentia uma fogueira consumindo-o por dentro, tão poderosa, que estava certo de não ser apenas sua, tinha-a alimentado o seu desaforado pai e antes dele o seu avô, ladrão de cavalos, e ainda antes, quem sabe, quantos bisavós marcados pelo mesmo estigma da inquietação. Cabia-lhe cozinhar-se no rescaldo de mil gerações. O impulso levava-o para a frente, tornou-se a imagem do triunfador precisamente quando o desprendimento bucólico e a inocência eterna dos hippies tinham sido esmagados pelas engrenagens da implacável maquinaria do sistema. Ninguém podia censurar-lhe a sua ambição porque no país já se gerava a época de cobiça desenfreada que haveria de chegar muito em breve. A derrota da guerra tinha deixado no ar um sentimento de vergonha, um desejo colectivo de reivindicar por outros meios. Não se falava do tema, teriam de passar mais de dez anos para que a história e a arte se atrevessem a exorcizar os demónios saídos do desastre. Cármen viu decair lentamente a rua onde antes ganhavam a vida os seus melhores amigos, despediu-se de muitos artesãos expulsos pela pressão dos comerciantes de produtos ordinários de Taiwan, e viu desaparecer um a um os lunáticos inocentes, que morreram de inanição ou foram pelos caminhos quando as pessoas se esqueceram de os alimentar. Chegaram outros loucos muito mais desesperados, os veteranos da guerra que sucumbiram ao horror das recordações. A rebeldia da rua de antigamente seguiu-se a peste do conformismo, contagiando até os estudantes da universidade. Aumentou o números dos miseráveis e dos bandidos, por todos os lados se viam mendigos, bêbados, prostitutas, traficantes de droga, ladrões. O mundo está a decompor-se a olhos vistos, lamentava-se Cármen. Gregory Reeves, que de qualquer modo nunca participara nas ilusões ingénuas dos que anunciavam a Era do Aquário, um tempo de suposta irmandade e paz, respondia com o exemplo do pêndulo, que vai e vem numa e noutra direcção. A mudança não o afectava porque estava lançado numa corrida cega, adiantando-se à explosão do materialismo que marcaria a década de oitenta. Fazia alarde dos seus êxitos, enquanto os seus colegas perguntavam como conseguia ele os melhores casos, e onde ia buscar recursos para andar de festa em festa, passar uma semana a dar voltas pelo Mediterrâneo e vestir-se com camisas de seda. Nada sabiam eles dos exorbitantes empréstimos dos bancos nem das manobras atrevidas dos seus cartões de crédito. Reeves preferia não pensar que mais dia menos dia tinha de pagar as contas, quando se acabavam os fundos solicitava outro crédito ao seu banqueiro com o argumento de que em bancarrota ou na prisão é que não podia de modo algum cumprir as suas obrigações, e que o dinheiro atrai dinheiro como um íman. Não se angustiava pelo futuro, estava muito ocupado a lavrar o presente. Dizia que não tinha escrúpulos e nunca se tinha sentido tão forte nem tão livre, que por isso não compreendia aquele impulso de fuga, que não lhe dava descanso. Estava outra vez solteiro e sem outra cruz às costas do que a do próprio coração. Da filha separava-o meia hora de caminho, no entanto via-a apenas duas vezes por ano, quando a ia buscar no seu carro de galã para a levar a passear com a pretensão de lhe dar em quatro horas o que não lhe tinha dado em seis meses. Depois de cada visita devolvia-a com um carregamento de presentes, mais apropriados para uma mulher coquette do que para uma colegial impúbere e doente pela atracção dos gelados e bolos. Tinha sido inútil convencer Margaret que lhe chamasse papa, ela decidiu que Gregory apenas dizia melhor com aquele homem quase desconhecido que passava pela sua vida duas vezes por ano como um desaforado Pai Natal. Também não usava a palavra mamã. A professora da escola chamou Samantha para lhe perguntar se porventura era verdade que Margaret tinha sido adoptada depois de os seus verdadeiros pais terem sido horrivelmente assassinados por um bando de meliantes. Recomendou um psicólogo infantil mas a mãe só pôde levá-la à primeira consulta porque a hora da terapia interferia com a sua aula de ioga. Não preciso que ninguém me diga quem são vocês, sei-o perfeitamente, mas diverte-me confundir a professora, que é muito estúpida, explicou Margaret com a tranquila compostura que a caracterizava. Os pais concluíram que a rapariga era um prodígio de imaginação e sentido de humor. Nem ficavam alarmados por ela urinar todas as noites como um bebé, enquanto insistia em vestir-se de mulher, pintava as unhas e os lábios, não brincava como as outras crianças e fazia por agradar com ares de cortesã. A não ser o inconveniente de lhe pôr fraldas à noite, na idade em que começava a receber as suas primeiras aulas de educação sexual, não dava dores de cabeça, desenvolvia-se como um ser misterioso e incorpóreo cuja principal virtude era passar despercebida. Era tão fácil esquecer a sua existência que em mais de uma ocasião o pai disse, a gracejar, que à menina se venderiam muito bem os colares de Olga para a invisibilidade.
Nos sete anos em que Gregory Reeves esteve no seu primeiro trabalho adquiriu as ferramentas e os vícios da sua profissão. O chefe distinguia-o entre os restantes advogados da firma e encarregou-se de lhe revelar pessoalmente os truques fundamentais. Era uma daquelas pessoas meticulosas e obsessivas que necessitam de controlar até o menor pormenor, um homem insuportável, mas um esplêndido advogado, nada escapava aos seus escrutínios, tinha olfacto de cão perdigueiro para dar com a chave de cada problema legal e eloquência irresistível para convencer os jurados. Ensinou-lhe a estudar os casos minuciosamente, procurar os meandros insignificantes e planear a sua estratégia como um general.
- Isto é um jogo de xadrez, ganha quem antecipa mais jogadas. é necessário a agressividade de uma fera, mas também se tem que manter a cabeça fria. Se você perde a calma está frito, aprenda a controlar o seu caracter ou nunca será dos melhores, Reeves - repetia-lhe. - Você tem boa têmpera, mas na luta costuma bater com os olhos fechados.
- O mesmo me dizia o padre Larraguibel no pátio da igreja de Lourdes.
- Quem?
- O meu professor de boxe.
Reeves era tenaz, incansável, difícil de vergar, impossível de quebrar e feroz nos embates, mas as suas próprias paixões davam-lhe a volta. O velho gostava da sua energia, ele próprio a tinha tido, de sobra, na juventude e ainda lhe restava uma boa reserva, por isso mesmo sabia apreciá-la nos outros. Também apreciava a sua ambição porque essa era a alavanca para o mover, bastava pôr-lhe uma cenoura na frente do nariz para o fazer correr como um coelho. Se em algum momento deu conta das manobras do outro para se apoderar dos seus conhecimentos e utilizá-lo como trampolim para subir na firma, não o deve ter estranhado. O mesmo tinha feito ele nos seus começos, com a diferença de que não tivera um chefe astuto capaz de o parar a tempo. Considerava-se bom conhecedor do caracter alheio, estava seguro de poder manter Reeves agarrado e explorá-lo em seu benefício por tempo indefinido, era como domar cavalos: devia dar-lhe corda, deixá-lo correr, cansá-lo e, mal lhe subissem os calores à cabeça, dar-lhe um esticão e obrigá-lo a morder o freio, para ele reconhecer a superioridade do amo. Não era a primeira vez que o fazia e sempre lhe tinha dado bom resultado. Em raras ocasiões de fraqueza sentia a tentação de apoiar-se no braço daquele jovem advogado tão parecido consigo mesmo, era o filho que gostaria de ter tido. Formou um pequeno império e agora, perto dos oitenta anos, perguntava a si próprio quem é que herdaria aquilo. Restavam-lhe poucos prazeres ao alcance da mão, o corpo já não respondia aos impulsos da imaginação, não podia saborear uma comida refinada, sem pagar as consequências com dores de barriga, e de mulheres nem falar, era um tema demasiado doloroso. Observava Reeves com uma mistura de inveja e compreensão paternal, mas não era um velhote sentimental nem estava disposto a entregar a menor ponta do poder. Tinha muita honra em ter nascido com o coração seco, como dizia a quem apelava à sua benevolência para lhe pedir um favor. O longo hábito do egoísmo e a invencível couraça da sua mesquinhez eram mais fortes que qualquer assomo de simpatia. Era o mestre perfeito para a trabalhosa aprendizagem da cobiça.
Timothy Duane não perdoou ao pai que o tivesse trazido ao mundo e que não tivesse morrido cedo e continuasse a arruinar-lhe os seus desejos de viver com a boa saúde e o mau-gosto. Para o desafiar cometeu um cúmulo de barbaridades, tomando sempre a precaução de fazer com que o velho soubesse, e assim se passaram cinquenta anos num ódio rancoroso que lhe custou a paz e o bem-estar. às vezes o espírito de contradição salvou-o, como quando decidiu desertar do serviço militar só porque o pai apoiava a guerra, não tanto por patriotismo mas porque tinha interesses económicos nas fábricas de armamento, mas em geral a rebeldia dava-lhe a volta e batia-lhe na cara. Decidiu não se casar nem ter filhos, mesmo nas poucas ocasiões em que esteve enamorado, para destruir no outro a ambição de formar uma dinastia. Com ele morria o apelido familiar que tanto detestava, excepto por um ramo dos Duane na Irlanda, do qual ninguém queria falar por lhes recordar a sua modesta origem. Culto e refinado, com a elegancia dos que nasceram entre lençóis bordados, tinha uma inclinação apaixonada para as artes e uma simpatia que lhe fazia ganhar amigos facilmente, mas tudo fazia para ocultar essas virtudes em frente do pai, comportava-se como um rústico apenas para o provocar. Se o patriarca Duane organizava um jantar com a nata da sociedade ele aparecia sem ser convidado de braço dado com uma mulherzinha e disposto a violar umas quantas regras da urbanidade. Enquanto o pai rugia por entre dentes, que não desejava tornar a vê-lo na vida, a mãe protegia-o disfarçadamente, mesmo à custa de ter de enfrentar o marido. Consulta um psiquiatra para que te ajude a curar as falhas de caracter, meu filho, recomendava muitas vezes, mas Timothy respondia que sem falhas não teria caracter. Entretanto levava uma existência miserável, não por falta de meios mas por vontade de atormentar o pai. Tinha um apartamento no bairro mais caro da cidade, um andar antigo decorado com móveis modernos e espelhos estratégicos e uma renda para o resto da sua vida, último presente do avô. Como nada lhe tinha faltado, não dava a menor importância ao dinheiro e estava-se nas tintas para as múltiplas fundações inventadas pela família, não só para fugir aos impostos mas também para o despojar de qualquer herança possível. Os seus demónios perseguiam-no sem descanso, empurrando-o para vícios que lhe repugnavam, mas aos quais cedia para ferir o pai, embora pelo caminho estivesse a dar cabo de si. Passava o dia no seu laboratório de patologia, enojado com a fragilidade humana e os infinitos recursos da dor e da decomposição, mas também maravilhado pelas possibilidades da ciência. Nunca o admitia, mas ali era o único sítio onde encontrava certa paz. Perdia-se na meticulosa investigação de uma célula doente e quando saía das chapas fotográficas, dos tubos de ensaio e dos raios laser, em geral muito pela noite fora, doíam-lhe os músculos do pescoço e das costas, mas sentia-se contente. Essa sensação durava até chegar à rua, ligava o motor do automóvel e compreendia que não tinha para onde ir, ninguém o esperava em parte alguma, então afundava-se outra vez no ódio por si mesmo. Visitava os piores bares, onde perdia até o nome, entrava em lutas com marinheiros e acabava na sala de emergência de um hospital, provocava os homossexuais nos balneários e escapava por um cabelo da violência que desencadeava, pegava em prostitutas para comprar um prazer abjecto temperado pelo perigo de uma infecção mortal. Rodava por uma rampa abrupta com uma mescla de pavor e de gozo, amaldiçoando Deus e chamando a morte. Depois de algumas semanas de aviltamento caía numa crise de culpa e ficava a tremer face ao abismo aberto a seus pés. Jurava a si próprio não voltar a provar uma gota de álcool, recolhia-se como um anacoreta em casa para ler os seus autores favoritos e para ouvir jazz até de madrugada, fazia análises ao sangue à procura das evidências de uma peste, que no fundo talvez desejasse como castigo dos seus pecados. Começava um período de tranquilidade, assistia a concertos e peças de teatro, visitava a sua mãe com a atitude de um filho bom, e voltava a frequentar as noivas pacientes que o aguardavam sem perder a esperança de o mudarem. Partia para as montanhas em longas excursões para ouvir a voz de Deus, chamando-O no vento. A única pessoa que via nas boas e más ocasiões era Gregory Reeves, que o safava de diversos sarilhos e o ajudava a pôr-se novamente de pé. Duane não fazia mistério da sua existência delapidada, pelo contrário, tinha gozo em exagerar as suas vilezas para cultivar a sua fama de alma extraviada, mas tinha um lado cuidadosamente oculto de que muito poucos suspeitavam. Enquanto fazia mofa, com cinismo desafiador, de qualquer propósito nobre, contribuía para várias causas idealistas, tendo sempre o cuidado de o seu nome se manter em estrito segredo. Destinava parte das suas receitas a ajudar os necessitados que flutuavam na sua órbita e a sustentar obras em países remotos, desde crianças famélicas a presos políticos. Contrariamente ao que se esperava, quando escolheu esse campo da medicina, o seu trabalho entre cadáveres desenvolveu a sua compaixão pelos vivos, toda a humanidade sofredora lhe interessava, mas não tinha reservas emocionais para se comover por animais em vias de extinção, bosques destruídos ou águas contaminadas. De tudo isso dizia piadas ferozes, como disparatava sobre raças, religiões e mulheres, em parte porque ser chefe de tais causas estava na moda e o seu maior deleite consistia em escandalizar o próximo. Punha-o fora de si a falta de virtude dos que se horrorizavam por um golfinho apanhado numa rede para atuns enquanto passavam indiferentes junto aos mendigos abandonados nas ruas fingindo não os ver. O mundo é uma boa merda, era a sua frase mais usada.
- O que tu necessitas é duma mulher doce por fora, mas de aço por dentro, que te agarre pelo pescoço e te salve de ti mesmo. Vou apresentar-te Cármen Morales - disse-lhe Gregory Reeves quando por fim compreendeu que a sua amiga estava fora do seu alcance e se resignou a querê-la apenas como irmã.
- É demasiado tarde, Greg. Eu só sirvo para as putas - respondeu Timothy Duane, desta vez sem sarcasmo.
Shanon apareceu na vida de Reeves como um sopro de ar fresco. Levava dois anos de esforço trepando encosta acima e apesar dos êxitos alcançados sentia que não tinha saído do mesmo sítio, como se corre nos pesadelos. Com artifícios de mago, baralhava no ar as dúvidas, viagens estonteantes, festas descomunais, um horário de louco e o seu rosário de mulheres, com a impressão diariamente renovada de que à menor distracção tudo cairia por terra com o estrépito de um terramoto. Tinha entre mãos mais casos legais do que podia manejar, mais dívidas do que podia pagar e mais amantes do que podia satisfazer. Ajudava-o a boa memória para recordar cada fio solto dessa meada, a boa sorte para não resvalar num descuido e a boa saúde para não morrer de esgotamento como uma besta de tiro, ultrapassado o limite da sua resistência. Shanon chegou uma segunda-feira de manhã vestida de branco nupcial, cheirando a flores, com o mais encantador dos sorrisos que se tinha visto no edifício de cristal e aço da firma. Tinha vinte e dois anos, mas com os seus modos de menina e a sua arrebatadora simpatia parecia mais nova. Aquele era o seu primeiro trabalho de recepcionista, antes tinha sido balconista em várias lojas, empregada de pensões e cantora amadora, mas, tal como disse com a sua encantadora voz de adolescente mimada, não havia futuro nessas ocupações. Gregory, deslumbrado pela sua radiante alegria e curioso pela variedade de ofícios desempenhados por alguém tão jovem, perguntou-lhe que vantagens via em atender o telefone por detrás de um balcão de mármore e ela respondeu enigmática que pelo menos ali conhecia gente como deve ser. Reeves incluiu-a logo no seu caderno de direcções e em menos de uma semana tinha-a convidado para dançar. Ela aceitou com a tranquila confiança de uma leca em repouso, gosto de homens mais velhos, acrescentou sorridente, e ele não soube bem o que ela quis dizer, porque estava acostumado às raparigas jovens e não lhe pareceu significativa a diferença de idades. Depressa enfrentaria o abismo de idade que os separava, mas já era tarde para fazer marcha-atrás. Shanon era uma rapariga moderna. Fugindo de um pai violento e de uma mãe que tapava com maquilhagem as nódoas negras causadas pela pancada do marido, partiu a pé da aldeia perdida na Geórgia, onde nascera. Ao fim de uns quilómetros recolheu-a um camionista que viu nela uma visão fantástica na fita interminável do caminho e, depois de muitas aventuras, chegou a São Francisco. A sua mistura de ingenuidade e descontracção enfeitiçava as pessoas e permitia-lhe flutuar acima das sórdidas realidades do mundo, na sua frente as portas abriam-se por si e os obstáculos esfumavam-se, o convite dos seus olhos vegetais desarmava as mulheres e seduzia os homens. Dava a impressão de não ter consciência alguma do seu poder, ia pela vida fora com a leveza de um espírito celeste, eternamente surpreendida por tudo lhe sair bem. A sua natureza inconsequente impelia-a de uma coisa para a outra com disposição jovial, sem pensar fosse o que fosse das dificuldades e dores dos mortais, não se inquietava com o presente e muito menos o fazia pelo futuro. Através de um permanente exercício de ouvido superou as sórdidas cenas da infância, as penúrias e as pobrezas da adolescência, as traições dos amantes que se tinham saciado e logo a deixaram e o facto incontestável de que não possuía nada. Incapaz de guardar alguma coisa de um dia para o outro, sobrevivia com breves empregos apenas suficientes para a subsistência, mas não se considerava pobre porque quando desejava qualquer coisa não tinha mais a fazer do que pedi-la, havia sempre vários pretendentes bêbados dispostos a satisfazer os seus caprichos. Não utilizava os homens por malícia ou por perversão, mas porque simplesmente não lhe ocorria que servissem para outra coisa. Desconhecia a angústia do amor ou de qualquer outro sentimento profundo, entusiasmava-se fugazmente com cada namorado enquanto durava o ímpeto inicial, mas logo se cansava e partia, sem piedade por quem deixava para trás. Condenou vários amantes ao martírio do ciúme e do despeito sem dar conta disso, porque ela própria era impermeável a esse tipo de sofrimento, se a abandonavam mudava de rumo sem lamentar-se, o mundo continha uma reserva inesgotável de homens disponíveis. Desculpa, já sabes que sou como uma alcachofra, uma folhinha para este, outra para aquele, mas o coração é teu, disse a Gregory Reeves, sem o enganar, dois anos depois de o conhecer, enquanto lhe entrapava os dedos feridos por um murro que ele dera na cara de uma das suas conquistas. Desde o primeiro encontro tornou-se evidente quem era o mais forte. Reeves foi vencido no seu próprio terreno, de nada lhe serviram a experiência acumulada nem a sua jactância de tenório. Sucumbiu de imediato, mas não só pelos encantos físicos da nova recepcionista, no seu passado houvera várias tão belas como ela, mas pelo seu sorriso sempre pronto e a sua aparente candura. Naquela noite perguntou a si próprio com verdadeira inquietação como podia salvar, dela própria, aquela esplêndida criatura, imaginou-a exposta a toda a espécie de perigos e dissabores e assumiu a responsabilidade de a proteger.
- Por alguma razão o destino a pÕe na minha frente - comentou ele a Cármen. - De acordo com o Plano Infinito de meu pai, nada sucede por acaso. Esta rapariga precisa de mim.
Cármen não pôde preveni-lo porque tinha as antenas da intuição voltadas para o lado de Dai e naqueles dias estava ocupada cosendo um trajo de Rei Mago para a festa de Natal da escola. Enquanto segurava o telefone entre o ombro e a orelha, cosia plumas num turbante cor de esmeralda, perante os olhos atentos do filho.
- Oxalá esta não seja vegetariana - comentou distraída.
Não era. A jovem celebrava os suculentos assados do seu novo amante com entusiasmo contagioso e apetite insaciável, parecia na verdade um milagre poder devorar tais quantidades de comida e manter a silhueta. Bebia também como um marinheiro. Ao segundo copo os olhos brilhavam-lhe de febre e aquela menina angélica transformava-se numa rebaldeira. Nessa altura Reeves não sabia ainda qual das duas personalidades era mais atraente: se a cândida recepcionista que aparecia às segundas-feiras de blusa engomada atrás do balcão de mármore, ou a bacante nua e turbulenta do domingo. Era uma mulher fascinante e ele não se cansava de a explorar como um geógrafo nem de a conhecer no sentido bíblico. Viam-se todos os dias no trabalho, onde fingiam uma indiferença suspeita, dada a reputação de mulherengo de um e a orgânica coqueteria da outra. Várias noites por semana enroscavam-se em incansáveis encontros, que confundiram com amor, e às vezes, no escritório, escapavam-se para algum quarto fechado e, com riscos de serem surpreendidos, fornicavam em pé, a um canto, com urgência de adolescentes. Reeves apaixonou-se como nunca lhe sucedera antes e talvez também ela, embora no seu caso não se pudesse falar muito. Para ele começou uma época semelhante à da sua juventude, quando o estalido vulcânico das suas hormonas o obrigava a perseguir quantas raparigas lhe passavam pela frente, só que agora toda a carga da sua paixão estava dirigida para um único objectivo. Não podia tirar Shanon do pensamento, levantava-se constantemente da secretária para a olhar de longe atormentado pelos ciúmes de todos os homens em geral e dos seus companheiros de trabalho em particular, incluindo o velho das orquídeas que também parava em frente da jovem recepcionista, tentando talvez conquistá-la como mais um troféu, mas travado pelo seu sentido do ridículo e a plena consciência das limitações da sua idade. Ninguém passava em frente da entrada sem sofrer uma chicotada do refulgente sorriso de Shanon. Se uma tarde ela não estava disponível para sair, Gregory Reeves imaginava-a inevitavelmente nos braços de outro e só a suspeita o enlouquecia. Cobriu-a de presentes absurdos com a intenção de a impressionar, sem perceber que ela não apreciava caixas russas pintadas à mão, árvores miniatura ou pérolas para as orelhas e preferia sem dúvida calças de couro para passear de motocicleta com os amigos da sua idade. Fez por iniciá-la nos seus interesses, por essa necessidade que os apaixonados têm de partilhar tudo. A primeira vez que a levou à ópera ela ficou deslumbrada com os vestidos elegantes da concorrência e quando se levantou a cortina julgou que se tratava de um espectáculo humorístico. Aguardou até ao terceiro acto, mas ao ver uma dama gorda vestida de gueixa cravar uma faca na barriga enquanto o seu filho agitava uma bandeira do Japão numa mão e uma dos Estados Unidos na outra, as suas gargalhadas interromperam a orquestra e tiveram que abandonar a sala.
Em Agosto levou-a a Itália. Ela não cumprira ainda o seu primeiro ano de trabalho e não tinha direito a férias, mas não houve inconveniente, porque tinha apresentado a sua demissão no escritório de advogados. Tinham-lhe oferecido um emprego como modelo de fotografias publicitárias. Gregory passou a viagem sofrendo de antemão, detestava a ideia de a ver exposta aos olhares alheios nas páginas de uma revista, mas não se atreveu a discutir o assunto por receio de parecer um cavernícola. Nem o comentou com Cármen porque a sua amiga tê-lo-ia desfeito com piadas. Caminhando por um carreiro de flores na margem do lago de Como, sem ver o espelho diáfano da água nem as vivendas alaranjadas empoleiradas nos cerros, porque só tinha olhos para o corpo prodigioso da sua companheira, pensou uma solução para a reter a seu lado, e propôs-lhe que vivessem juntos, assim não teria de trabalhar e podia entrar na universidade para tirar um curso, ela era pessoa inteligente e criativa, não havia nada que ela gostasse de estudar? Não havia de momento, respondeu Shanon com o riso solto de vários copos de vinho, mas ia pensar nisso. Nessa noite Reeves pegou no telefone para contar a novidade a Cármen no outro lado do oceano, mas não a encontrou. A sua amiga tinha partido com Dai em viagem ao Extremo Oriente.
Bel Benedict não conhecia a sua idade exacta nem queria averiguá-la. Os anos tinham oxidado um pouco os seus ossos e escurecido a sua pele de açúcar queimado até um tom mais próximo do chocolate, mas não tinha alterado o brilho de topázio dos seus olhos rasgados nem apaziguado de todo os desejos do seu ventre. Em algumas noites sonhava com o calor do único homem que amara na sua vida e despertava húmida de gozo. Devo ser a única velha em cio da história, que Jesus me perdoe, pensava sem ponta de vergonha, mas sim com secreto orgulho. Vergonha sentia ela quando se olhava ao espelho e via que o seu corpo de poldra escura era um montão de pelancas tristes, se o marido a pudesse ver viraria a cara espantado, pensava. Nunca pensou que, no caso de estar vivo, os anos também tinham passado para ele, e já não seria o homenzarrão flexível e alegre que a seduzira aos quinze anos. Mas Bel não podia dar-se ao luxo de ficar na cama recordando o passado nem em frente do espelho lamentando o seu desgaste, levantava-se todas as manhãs ao nascer do sol, para ir para o seu emprego, menos aos domingos quando ia à igreja e ao mercado. No último ano não lhe sobrava um momento porque quando terminava o seu trabalho voava para casa para cuidar do seu filho. Tinha voltado a chamar-lhe Baby, como nos tempos em que o levava agarrado aos seios e lhe cantava canções de embalar. Não me chames assim, mamã, os meus amigos vão fazer chacota de mim, dizia-lhe ele, mas na verdade já não tinha amigos, tinha-os perdido todos, como perdera o emprego, a mulher, os filhos e a memória. Pobre Baby, suspirava Bel Benedict, mas não o compadecia, pelo contrário, invejava-o um pouco; não pensava viver muito mais e enquanto ela vivesse ele estaria seguro. Passo a passo, um dia de cada vez, era a sua filosofia, de nada valia angustiar-se por um amanhã hipotético. O seu avô, um escravo do Mississipi, tinha-lhe dito que temos um passado pela frente, é a única coisa real, do passado podemos tirar ensinamentos e experiências para a vida; o presente é uma ilusão, porque em menos de um instante já faz parte do passado; e o futuro é um buraco escuro que não se vê e talvez nem sequer esteja lá, porque a morte pode-nos chegar agora mesmo. Trabalhou como criada dos pais de Timothy durante tantos anos que era difícil recordar aquela casa sem ela. Quando a contrataram era ainda um mulherão lendário, uma dessas negras quebradas na cintura que se movem como se nadassem debaixo de água.
- Casa-te comigo - dizia-lhe Timothy na cozinha, quando ela o regalava com panquecas, a sua única proeza culinária. - és tão bonita que deverias ser estrela de cinema em vez de criada da minha mãe.
- Os únicos negros do cinema são pintados de negro - ria-se ela.
Era muito jovem quando lhe apareceu pelo caminho um vagabundo de riso estrondoso à procura de uma sombra onde se sentar a descansar. Apaixonaram-se imediatamente com uma paixão tórrida capaz de transtornar o clima e alterar as normas do tempo e assim geraram King Benedict, que haveria de viver duas vidas, tal como Olga adivinhara a única vez em que esteve com ele, quando o camião do Plano Infinito o apanhou no caminho poeirento, nos tempos da Segunda Guerra Mundial. Poucos dias depois de dar à luz, Bel tinha esquecido os nove meses a carregar com o peso do filho debaixo do coração e as angústias do parto e já perseguia de novo o marido pelos cantos da granja. Fizeram amor encharcados de sangue menstrual junto das vacas do estábulo, dos pássaros dos milheirais e dos escorpiões do celeiro. Quando o pequeno King começou a dar os primeiros passos vacilantes, o pai, cansado de amores e receoso de perder a alma e a virilidade entre as pernas daquela incansável huri, fugiu levando de recordação uma mecha do cabelo de Bel que lhe cortou enquanto dormia. Na turbulência de tanta cópula desenfreada tinha fechado os ouvidos às pressões do pastor da Igreja Baptista, para que contraíssem o sagrado vínculo, ante os olhos do Senhor, como ele dizia. Para Bel uma assinatura no livro da paróquia não fazia diferença nenhuma, ela considerava-se casada. Durante o resto da sua existência usou o apelido do amante e aos muitos homens que repousaram no seu regaço no meio século seguinte disse-lhes que o marido andava temporariamente de viagem. De tanto o repetir acabou por acreditar, por isso lhe dava raiva ver-se nua ao espelho, se não te apressas em regressar, encontrarás um odre esvaziado, dizia ela recordando o ausente. Nessa manhã de Janeiro a cidade acordou varrida por um vento inclemente que vinha do mar. Bel Benedict pôs o seu vestido cor de turquesa, chapéu, sapatos e luvas do mesmo tom, o seu traje de domingo e de todas as festas. Tinha notado que a rainha Isabel mostrava sempre esses conjuntos de uma só cor e não descansou até adquirir algo semelhante. Timothy Duane aguardava-a no seu automóvel, em frente do modesto edifício onde ela vivia.
- Não és imortal, Bel. Que vai ser do teu filho quando já não estiveres cá? - tinha-lhe dito Timothy.
- King não será o primeiro miúdo de catorze anos a desenvencilhar-se sozinho.
- Não tem catorze, tem cinquenta e três.
- Para os efeitos práticos tem catorze.
- Bom, é a isso precisamente que me refiro. Será sempre um adolescente.
- Talvez não, pode ser que amadureça...
- Com algum dinheiro tudo será mais fácil para vocês, não sejas teimosa, mulher.
- Já te disse, Tim. Não há nada a fazer. O advogado da companhia de seguros foi muito claro connosco, não temos nenhum direito. Por bondade eram capazes de nos dar dez mil dólares, mas não será para já, há muitos trâmites a cumprir.
- Não entendo destas coisas mas tenho um amigo que nos pode aconselhar.
Gregory Reeves recebeu-os no matagal de floreiras do seu escritório. Bel fez uma entrada triunfal vestida de rainha, sentou-se no usado sofá de couro e começou a contar o estranho caso do seu filho, King Benedict. Reeves escutava-a com atenção enquanto vasculhava a sua memória inexorável à procura da origem desse nome, que respirava como um eco longínquo do passado. Era impossível esquecer um nome tão sonoro, perguntava a si próprio onde o tinha já ouvido. King era um bom cristão, disse a mulher, mas Deus não lhe tinha dado uma vida fácil. Foram sempre pobres e durante os primeiros tempos iam de um sítio para o outro à procura de trabalho, despedindo-se dos seus novos amigos e mudando de escola. King criou-se com a dúvida de que a mãe podia desaparecer atrás de um pretendente, deixando-o sozinho num quarto de passagem, numa aldeia sem nome. Foi um rapaz melancólico e tímido, a quem dois anos de guerra no Pacifico Sul não acabaram com a insegurança. Ao regressar casou, teve dois filhos e ganhava o sustento como operário de construção. Nos últimos anos o seu casamento dava trambolhões, a sua mulher ameaçava deixá-lo, os filhos consideravam-no um pobre diabo. Bel notava-o muito tenso e triste e receava que começasse a beber de novo, como tinha acontecido noutras crises, as coisas iam mal e acabaram por se perder com o acidente. King Benedict encontrava-se à altura de um segundo andar, quando se partiu um andaime e caiu por ali abaixo, estatelando-se no chão. O golpe atordoou-o por alguns segundos, mas conseguiu pôr-se de pé, aparentemente só tinha leves contusões, mas de qualquer modo levaram-no ao hospital, onde depois de um exame de rotina o deixaram ir embora. Mal lhe passou a dor de cabeça e começou a falar, viu-se que não se recordava onde estava nem reconhecia os seus, julgara que voltava à adolescência. A mãe descobriu logo que a memória só ia até aos catorze anos, dali para a frente só havia um abismo de fundo de mar. Viraram-no por dentro e por fora, meteram-lhe sondas por todos os orifícios, puseram-lhe electricidade no cérebro, interrogaram-no durante semanas, hipnotizaram-no e fotografaram-lhe a alma, sem descobrir uma razão lógica para tão dramático esquecimento. Os recursos dos médicos não detectaram dano orgânico. Começou a comportar-se como um rapaz manipulador, inventando mentiras torpes para lisonjear os filhos a quem tratava como companheiros de brincadeiras e iludir a vigilância da mulher a quem confundia com a sua mãe. Não conseguia reconhecer Bel Benedict, recordava-a como uma mulher jovem e muito bela, mas de qualquer modo nos meses seguintes agarrou-se a essa anciã desconhecida como a um salva-vidas, ela era a única coisa segura num mundo cheio de confusões. Parentes e amigos negaram a sua amnésia, talvez se tratasse de uma brincadeira histérica, disseram eles, e depressa se cansaram de indagar nos resquícios da sua mente em busca de um sinal de reconhecimento. Nem a companhia de seguros acreditou, foi acusado de inventar essa patranha para receber uma pensão e passar o resto da vida mantido como um indivíduo quando na verdade tinha dado um golpe de nada, era um vigarista. Todas as vezes que a sua mulher saía, King sentia-se abandonado e quando ela começou a trazer o amante para dormir em casa, Bel Benedict considerou que tinha chegado o momento de intervir e levou o filho para viver com ela. Naqueles meses tinha-o observado cuidadosamente sem detectar nenhuma recordação posterior aos catorze anos. King tinha-se tranquilizado pouco a pouco, era um bom companheiro, a mãe estava contente de o ter consigo, a única coisa rara no seu comportamento eram vozes e visões que dizia ter, mas os dois acostumaram-se à presença desses impalpáveis fantasmas da imaginação, a que os médicos não davam a menor importância, Timothy Duane tinha os relatórios do hospital e as cartas dos advogados da companhia de seguros, Reeves examinou-os de uma olhadela superficial, sentindo em todo o corpo o ardor da luta que conhecia tão bem, essa antecipação frenética do guerreiro, o melhor da sua profissão, gostava dos casos complicados, dos seus desafios difíceis, das escaramuças.
- Se decide ir para tribunal deve fazê-lo já, porque só tem um ano de prazo desde o acidente.
- Mas então não me vão dar os dez mil dólares!
- Este caso pode valer muito mais, senhora Benedict. Possivelmente ofereceram-lhe isso para ganhar tempo e para a senhora perder o direito de os pedir.
A mulher aceitou aterrada, dez mil dólares era mais do que tinha poupado em toda uma vida de esforço, mas aquele homem inspirou-lhe confiança e Timothy Duane tinha razão, tinha de proteger o seu filho de um futuro muito incerto. Naquela tarde Reeves levou o caso ao seu chefe, tão entusiasmado que as palavras lhe saíam atropeladas para lhe falar dessa negra formosa e do seu filho de idade madura transtornado por um tombo na adolescência, imagine se ganhamos, mudaremos a vida a esta pobre gente, mas viu umas sobrancelhas diabólicas levantadas até ao nascimento do cabelo e um olhar irónico. Não perca tempo com parvoíces, Gregory, disse-lhe ele, não vale a pena meter-se nessa trapalhada. Explicou-lhe que as possibilidades de ganhar eram remotas, eram precisos anos de investigação, dezenas de especialistas, muitas horas de trabalho e o resultado podia ser nulo, sem uma lesão cerebral que justificasse a perda de memória nenhum juiz acreditava nessa amnésia. Reeves sentiu uma onda de frustração, estava farto de obedecer às decisões dos outros, todos os dias se sentia mais inquieto e defraudado com o seu trabalho, não via a hora de se tornar independente. Agarrou-se a essa negativa para atirar ao velho das orquídeas o discurso de despedida que tantas vezes ensaiara sozinho. Nessa noite ao regressar a casa encontrou Shanon estendida no chão da sala a ver televisão, beijou-a com um misto de orgulho e de ansiedade.
- Despedi-me do emprego. De agora em diante voarei sozinho.
- Temos que celebrar - exclamou ela. - Já que estamos nisso, façamos uma saúde pelo bebé.
- Qual bebé?
- O que estamos esperando - sorriu Shanon, servindo-lhe um copo da garrafa que tinha ao lado.
Ao divorciar-se do seu segundo marido, Judy Reeves ficou com os filhos, inclusivamente com os que o homem tinha da primeira mulher. Com o tempo o matrimónio tornou-se um pesadelo de rancores e lutas, em que o marido perdia sempre. Quando chegou o momento de separar-se definitivamente, nem sequer se pôs a possibilidade de o pai levar os filhos, o afecto entre Judy e aquelas crianças morenas era tão sólido e efusivo que ninguém recordava que não fossem suas. A mulher só conseguiu ficar solteira alguns meses. Um sábado quente levou a sua família à praia e ali conheceu um gordo veterinário do Norte da Califórnia, que fazia turismo numa caravana acompanhado pelos seus três filhos e uma cadela. A bicha tinha sido atropelada, ficara com os quartos traseiros paralisados, mas em vez de a despachar para melhor vida como indicava a experiência profissional, o seu dono improvisou um arreio para a mobilizar com a ajuda das crianças, que se revezavam para a segurar pelas patas de trás enquanto ela corria com as da frente. O espectáculo da inválida, revolvendo-se nas ondas com latidos de gozo, atraiu os filhos de Judy. Assim se conheceram. Ela rebentava as costuras de um fato de banho às riscas e sorvia um gelado atrás de outro sem pausa alguma. O veterinário ficou a contemplá-la, com uma mistura de horror e fascínio perante tanta gordura nua, mas em pouco tempo de conversa fizeram-se amigos, esqueceu o seu aspecto e ao pôr do sol convidou-a para comer. As duas famílias acabaram o dia a devorar pizzas e hamburgers.
O homem regressou com os seus ao vale de Napa, onde vivia, e Judy ficou a chamá-lo com o pensamento. Desde os tempos de Jim Morgan, o seu primeiro marido, não encontrava um homem capaz de lhe fazer frente tanto na cama como numa boa peleja. Jim Morgan saiu da prisão por boa conduta e, apesar de ela estar casada com o baixinho de bigodes, telefonou-lhe para lhe dizer que não tinha passado um dia só da sua condenação sem a recordar com carinho. Mas ela já ia por outros caminhos. Além disso, Morgan tinha-se convertido a uma seita de cristãos fundamentalistas, cujo fanatismo era incompreensível para ela, que tinha recebido a herança tolerante da fé Bahai da sua mãe, por isso não o quis ver quando voltou a ficar sozinha. As mensagens mentais de Judy cruzaram montanhas e extensos vinhedos e pouco depois o veterinário voltou para a visitar. Passaram uma semana em lua-de-mel com todos os filhos e Nora, a avó, que nessa altura dependia completamente de Judy. A cabana que Charles Reeves tinha comprado, trinta anos antes, tinha voltado à sua precária condição original. As térmitas, o pó e o correr do tempo tinham feito o seu lento trabalho nas paredes de madeira, sem que Nora fizesse alguma coisa para salvar a casa do desastre. Uma tarde Judy e o seu terceiro marido apareceram de visita e encontraram a velha sentada no cadeirão de vime debaixo do salgueiro, porque o alpendre se tinha desmoronado, os pilares tinham apodrecido.
- Bom, a senhora vem viver connosco - disse o genro.
- Obrigado, meu filho, mas não é possível. Imagine-se a confusão do Doutor em Ciências Divinas, se não me encontra aqui às quintas-feiras.
- Que diz a tua mãe?
- Julga que o fantasma do meu pai vem visitá-la às quintas-feiras por isso nunca quis deixar a casa - explicou Judy.
- Não há problema, minha senhora. Deixamos um papel ao seu marido com a nova direcção - resolveu o homem.
A ninguém tinha ocorrido solução tão simples. Nora levantou-se, escreveu a mensagem com a sua perfeita caligrafia de professora, pegou no seu colar de pérolas salvo de tantas pobrezas, uma caixa com velhas fotografias e um par de quadros pintados pelo marido e foi tranquilamente sentar-se no automóvel da filha. Judy pôs o cadeirão na bagagem porque a mãe podia precisar dele, fechou a casa com um cadeado e partiram sem olhar para trás. Charles Reeves deve ter encontrado a mensagem tal como encontrou as outras sempre que a viúva mudara de domicílio, porque não faltou nem uma só quinta-feira ao encontro póstumo nem Nora perdeu de vista o fio laranja que a unia ao outro mundo. No ano em que Gregory se casou com Shanon, a sua irmã vivia com o veterinário, com a sua mãe e um montão de miúdos de diversas idades, cores e apelidos, esperava a oitava criança e confessava estar apaixonada. A sua existência não era fácil, metade da casa estava destinada à clínica dos animais, tinha que suportar o desfile constante de bichos doentes, o ar cheirava a creolina, as crianças lutavam como feras e Nora Reeves tinha-se sumido no misericordioso mundo da imaginação, e na idade em que outras anciãs tricotavam botinhas para os bisnetos, ela tinha voltado à juventude. No entanto, Judy considerava-se feliz pela primeira vez, tinha por fim um bom companheiro, e não necessitava trabalhar fora do lar. O marido preparava parrilhadas monumentais para alimentar a tribo e comprava bolachas de chocolate por atacado. Apesar da gravidez, da boa mesa e do enorme apetite, Judy começou a emagrecer lentamente e em poucos meses depois de dar à luz tinha o seu peso de rapariga. Foi ao casamento do irmão com um vestido de véus claros e um delicado chapéu de palha, pelo braço do seu terceiro marido, com sete filhos em roupa domingueira e outro nos braços, a mãe vestida de menina do colégio e uma cadela paralítica segura por correias, mas com a expressão de riso dos animais felizes.
- Saúda a tua tia Judy e a tua avó Nora - disse Gregory a Margaret, que então tinha onze anos e continuava a ser muito pequena de estatura, mas que actuava como uma mulher adulta. A miúda não tinha ouvido falar daquela mulherona obesa nem daquela velhota distraída com um laço na cabeça e pensou que aquele circo era uma espécie de piada. Não apreciava o sentido de humor do pai.
O noivo quis dar um ar latino à sua boda, contratou um grupo de mariachis do bairro da Missão e a comida foi obra de Rosemary, uma das suas antigas amantes, uma bela mulher que não lhe guardava rancor pelo seu matrimónio porque nunca o quis para marido. Tinha escrito vários livros de cozinha e ganhava a vida a preparar banquetes, com a sua equipa de empregadas servia com a mesma facilidade uma festa mexicana, um almoço para executivos japoneses ou um jantar francês. Shanon, rendida à recepção e ataviada com um inocente vestido de organdi branco, exercitou-se em paso-dobles, boleros e corridos, até que os copos lhe subiram à cabeça e teve de retirar-se. No resto da noite Gregory Reeves e Timothy Duane dançaram com Cármen, como nos velhos tempos do jitter-bug e do rock.n.roll enquanto Dai observava com expressão atónita aquele novo aspecto da personalidade de sua mãe.
- Este menino é igual a Juan José - notou Gregory.
- Não, é igual a mim - respondeu Cármen.
Tinha regressado da sua viagem à Tailândia, Bali e índia com um carregamento de materiais e a cabeça cheia de ideias novas. Não dava vazão aos pedidos do comércio, tinha alugado um local para a sua oficina e contratado dois refugiados vietnamitas que teimou em ajudar. Nas horas em que Dai ia à escola, dispunha de tranquilidade e silêncio para desenhar as jóias que logo os seus operários reproduziam. Contou a Gregory que pensava abrir a sua própria loja mal conseguisse poupar o suficiente para ir para a frente.
- Isso não funciona assim. Tens mentalidade de camponesa. Tens que pedir um empréstimo, os negócios fazem-se a crédito, Cármen.
- Quantas vezes já te pedi para me chamares Tamar?
- Vou apresentar-te ao meu banqueiro.
- Não quero acabar como tu, Gregory. Nem em cem anos poderás pagar tudo o que deves.
Era verdade. O banqueiro amigo teve que fazer-lhe outro empréstimo para montar o seu escritório, mas não se queixava porque naquele ano os juros dispararam a níveis nunca vistos no país, tinha que aproveitar clientes como Gregory Reeves porque não ficavam muitos outros capazes de os pagar. A sorte não podia durar demasiado, os especialistas previam que a incerteza económica custaria a eleição ao presidente, um bom homem a quem acusavam de ser débil e demasiado liberal, dois pecados imperdoáveis naquele lugar e naquele tempo.
Instalou o escritório por cima de um restaurante chinês e mandou gravar nos vidros o seu nome e o seu título com grandes letras douradas, como tinha visto nas películas de detectives: Gregory Reeves, advogado. Aquele letreiro simbolizava o seu triunfo. Nota-se a tua baixa classe, homem, nunca vi nada mais vulgar, comentou Timothy Duane, mas Cármen gostou da ideia e decidiu copiá-la para a sua loja, com uma caligrafia de arabescos. Era um piso amplo em pleno centro de São Francisco com um ascensor directo e uma saída de emergência, que haveria de ser útil em mais de uma ocasião. No mesmo dia em que Reeves entrou no edifício o dono do restaurante, oriundo de Hong Kong, subiu para apresentar as suas saudações acompanhado pelo filho, um jovem míope, pequeno e de modos suaves, geólogo de profissão mas sem a menor afinidade com os minerais e as pedras, porque na realidade só amava os números. Chamava-se Mike Tong e tinha chegado muito jovem ao país, quando o pai mudou a família completa para aquela nova pátria. Perguntou se o senhor advogado necessitava de um guarda-livros para lhe fazer os livros e Gregory explicou-lhe que de momento só tinha um cliente, de maneira que não podia pagar-lhe o ordenado, mas que poderia empregá-lo algumas horas por semana. Não suspeitava que Mike Tong se tornaria o seu mais fiel guardião e o salvaria do desespero e da bancarrota. Por essa altura o contingente de trabalhadores latinos tinha aumentado muito. Dentro de trinta anos, nós os brancos seremos a minoria neste país, previa Timothy Duane. Reeves quis aproveitar a experiência do bairro onde se criara e o seu domínio do espanhol para procurar clientela entre eles, porque noutros campos a concorrência era grande, três quartas partes do total dos advogados do mundo trabalhavam nos Estados Unidos. Havia um por cada trezentas e setenta pessoas. A razão mais importante, no entanto, foi o ter-se apaixonado pela ideia de ajudar os mais humildes, podia compreender melhor que ninguém as angústias dos imigrantes latinos, ele também tinha sido um lombo molhado. Necessitava de uma secretária capaz de trabalhar em ambos os idiomas e Cármen pô-lo em contacto com Tina Faibich, que cumpria esses requisitos. A candidata apareceu no escritório antes de chegarem os móveis, só estava o sofá de couro inglês, cúmplice de tantas conquistas e dezenas de floreiras com plantas, arquivos e o expediente que jaziam, de qualquer maneira, pelo chão. A mulher teve de abrir passagem na desordem e sentar-se sobre um caixote de livros. Gregory encontrou-se na frente de uma senhora plácida e doce, que se expressava em perfeito espanhol, e o olhava com uma indecifrável expressão nos seus olhos amáveis de vitela. Sentiu-se à vontade com ela, irradiava uma serenidade que ele não tinha. Olhou-a apenas, não viu as suas recomendações nem fez demasiadas perguntas, confiava no seu instinto. Ao despedir-se ela tirou os óculos e sorriu-lhe, não me reconhece?, perguntou-lhe com timidez. Gregory levantou os olhos e observou-a mais demoradamente, era Ernestina Pereda, o esquilo travesso das brincadeiras eróticas na casa de banho da escola, a loba quente da adolescência que o salvara do suplício do desejo quando ele se estava afogando no caldo quente das suas hormonas, a dos coitos precipitados e dos prantos de arrependimento, Santa Ernestina, agora convertida em matrona tranquila. Depois de muitos amantes de um dia, tinha casado, já madura, com um empregado da companhia de telefones, não tinha filhos e não precisava deles, o marido bastava-lhe, disse ela, e mostrou-lhe uma fotografia do Sr. Faibich, um homem tão comum e corrente que seria impossível recordar o seu rosto um minuto depois de o ter visto. Gregory Reeves ficou com a foto na mão e a vista cravada no chão, sem saber o que dizer.
- Sou boa secretária - murmurou ela corando.
- Esta situação pode tornar-se incómoda para os dois, Ernestina.
- Não terá razão para se queixar de mim, Sr. Reeves.
- Chama-me Gregory.
- Não. É melhor começarmos de novo. O passado já não conta - e começou a contar-lhe como mudara a vida logo que conheceu o marido, um homem bonacheirão só em aparência, porque em privado era dinamite pura, um amante insaciável e fiel que conseguira tranquilizar o seu ventre apaixonado. Do passado tormentoso apenas ficara uma imagem difusa, em parte porque não tinha interesse algum pelo que antes tinha acontecido, bastava-lhe a felicidade de agora.
- No entanto a você nunca o esqueci, porque foi o único que nunca me prometeu o que não estivesse decidido a cumprir - disse ela.
- Amanhã, espero-a às oito, Tina - sorriu Gregory apertando-lhe a mão.
Linda brincadeira me fizeste, disse a Cármen por telefone e ela, que conhecia os sigilosos e culpados encontros do seu amigo com Ernestina Pereda, assegurou-lhe que não se tratava de uma brincadeira, pensava com toda a honestidade que ela era a secretária ideal para ele. Não se enganou, Tina Faibich e Mike Tong seriam os únicos pilares firmes do frágil edifício do escritório de Gregory Reeves. Também foi ideia de Cármen atrair clientes latinos com publicidade no canal espanhol à hora das telenovelas, lembrava-se da mãe hipnotizada em frente do ecrã, mais inquieta pelos destinos daqueles seres de ficção do que pelos da sua própria família. Nenhum dos dois calculara o impacte do anúncio. Em cada interrupção do melodrama aparecia Gregory Reeves com o seu fato bem cortado e os seus olhos azuis, a imagem de um respeitável profissional anglo-saxão, mas quando abria a boca para oferecer os seus serviços fazia-o em sonoro espanhol do bairro, com os termos e o inconfundível acento arrastado dos hispanos que o observavam do outro lado do ecrã. Pode confiar-se nele, diziam os potenciais clientes, é dos nossos, só que de outra cor. Depressa era conhecido pelos moços dos restaurantes, pelos motoristas de táxis, pelos operários da construção civil, e todos os trabalhadores de pele queimada que se cruzavam com ele. King Benedict era o seu único caso quando começou, um mês depois tinha tantos que pensou procurar um sócio.
- Subalternos sim, sócios nunca - comentou-lhe Mike Tong, que passava todo o dia no escritório, apesar de estar apenas contratado por duas horas por semana.
Dois anos depois trabalhavam na firma seis advogados, uma recepcionista e três secretárias, Reeves atendia casos de toda a Califórnia, mobilizava-se mais de avião do que por terra firme, ganhando montes de dinheiro e gastando muito mais do que entrava. Então Mike Tong passava a maior parte da vida metido na desordem da sua espelunca, entre arquivos, papéis, livros de contabilidade, documentos bancários e a fotocopiadora, além da máquina de café, vassouras, provisão de papel higiénico e copos de deitar fora, que fiscalizava com diligência de formiga. Os outros gozavam com a mesquinhez do chinês, diziam que à noite regressava em segredo para tirar do lixo os copos de cartão, para os lavar e pô-los de novo na caixa para serem usados no dia seguinte, mas Mike Tong não fazia o menor caso dessas piadas, estava muito ocupado fazendo as contas no seu ábaco.
As rotinas da vida e os deveres da monogamia fatigaram Shanon desde o começo, tinha a sufocante sensação de se arrastar por um deserto de dunas intermináveis deixando pedaços de juventude a cada passo. O riso de cascavel que era o seu principal atractivo baixou de tom e tornou-se mais notório o seu carácter indolente. Aborrecia-se sem consolação alguma, ligada a um marido por ilusão de segurança, ideia sugerida por sua mãe, que também lhe insinuou que a melhor maneira de apanhar Gregory Reeves era uma gravidez oportuna. Desejava casar-se, claro, não por razÕes mesquinhas mas porque sentia carinho por aquele homem. A seu lado sentia-se protegida pela primeira vez. Fico contente, minha filha, porque Reeves será rico muito em breve, a menos que o seja já, como ouvi dizer por aí, respondeu a senhora. Shanon não fez cálculos, não mostrava interesse específico pelo dinheiro, apesar dos conselhos da família de que apanhasse um peixe gordo que lhe desse a categoria de rainha digna da sua beleza. Por outro lado, a ideia de ganhar a vida, cumprir um horário e conformar-se com um ordenado era-lhe insuportável, tinha tentado fazê-lo, mas estava provado que não resistia a isso. Um marido próspero resolveria os seus problemas, mas não pensara no preço que isso acarretaria. Agora estava prisioneira dentro de casa e presa à criança que crescia no seu ventre. Nas primeiras semanas distraiu-se apanhando sol no cais junto do bote fantasma, mas logo convenceu Gregory a mudar de casa e, no afã de procurar a mansão dos seus sonhos, os meses passaram. Não encontrou o que procurava, nem teve animo para decorar a sua com algum esmero, comprou apressadamente móveis e adornos por um catálogo e quando chegaram empilhou-os de qualquer maneira. Deambulava pelos quartos atafulhados e entretinha-se falando ao telefone com os seus amigos, por brincadeira telefonava aos seus antigos amantes fora de horas e sussurrava-lhes obscenidades, excitando-os até à demência. Necessitava exercitar a sua coqueteria, de outro modo azedava-se-lhe o ânimo, tal como quando lhe faltava licor. Por puro fastídio foi aumentando os copos e acabou por beber tanto como o seu pai. Nos primeiros meses antes de lhe inchar a barriga, ia para o escritório do marido e fumava de perna levantada sobre a secretária de alguns dos jovens advogados, só pelo prazer de os ver perturbados. Possivelmente não teria notado a presença de Mike Tong se não fosse por ele ser impermeável ao seu encanto, tratava-a com a distância cortês reservada a uma avó longínqua, situação que lhe provocava um rancor surdo, agravado pelo facto de o contabilista chinês lhe restringir o uso dos cartÕes de crédito e pôr freio ao seu chefe quando entrava em gastos desproporcionados para a satisfazer. Nem gostava de Timothy Duane, convidou-o em certa ocasião para almoçar com o pretexto de combinar uma festa de aniversário para o seu marido, mas ele apareceu acompanhado por uma turista austríaca com quem andava nessa semana e não deu sinais de perceber quanto Shanon era mais bela e disponível. Cuida da tua mulher, advertiu Duane no dia seguinte ao amigo. Gregory chegou a casa disposto a exigir explicações mas não pôde falar com ela porque a encontrou aturdida no chão da cozinha e quando a quis levantar ela vomitou-lhe em cima. é da gravidez, disse, mas ela cheirava a álcool. Ajudou-a a deitar-se e mais tarde, quando a viu a dormir entre os lençóis cor-de-rosa, pensou que era muito jovem, um pouco ingénua e que talvez Duane, guiado pelo seu cinismo, tenha interpretado mal um convite inocente. No entanto, não pôde continuar a enganar-se por muito tempo, nos meses seguintes viu os sintomas do descalabro, tal como sucedera antes com Samantha, mas calculou que tinha muito mais em comum com Shanon do que com a sua primeira mulher e agarrou-se a essa ideia para não se deprimir. Pelo menos partilhavam o gosto pela boa comida e pelos gozos desmedidos na cama. Como ele, Shanon era irrequieta e aventureira, tinha prazer nas viagens, nas compras e nas festas. Vocês vão acabar mal, avisou Cármen, mas ele não via as coisas desse modo. Talvez essas semelhanças tivessem podido tecer os fundamentos de uma verdadeira relação de esposos, mas a paixão dos seus primeiros encontros depressa se esfriou e ao mexer no rescaldo da antiga fogueira não encontraram amor. Gregory continuava deslumbrado pela juventude, a alegria e a beleza de Shanon, mas estava muito ocupado no seu trabalho e não dedicava tempo à sua família. Entretanto ela consumia-se de impaciência com a atitude de uma adolescente mimada. Nenhum deles pôs muito interesse em manter a flutuar o barco no qual navegavam, por isso foi estranho que, quando finalmente ele foi ao fundo, guardassem tanto rancor um ao outro.
O entusiasmo de Gregory por Shanon esfumou-se com rapidez, mas isso não se notou porque durante os meses da gravidez sentiu por ela uma ternura protectora, uma mescla de compaixão e êxtase. Esteve a seu lado quando deu à luz, segurando-a, secando-lhe a transpiração, falando-lhe para a acalmar, enquanto os médicos se atarefavam debaixo das lâmpadas implacáveis da sala de parto. O cheiro a sangue trouxe-lhe a recordação da guerra e tornou a ver o rapaz do Kansas, como tantas vezes o vira em sonhos, a suplicar-lhe que não o deixasse sozinho. Shanon agarrou-se a ele enquanto fazia força para expulsar a criança das suas entranhas e nesses momentos Gregory julgou que a amava. Gostava de crianças e estava entusiasmado com a ideia de ser pai novamente, desta vez seria diferente, prometeu a si próprio, o bebé não seria para ele um estranho, como Margaret. Quis ser o primeiro a iniciá-lo no mundo e estendeu as mãos para o receber mal assomou a cabeça. Levantou-o para o mostrar à mãe e não conseguiu dizer nada, porque a emoção secou-lhe a voz. Depois recordaria esse instante como o único de felicidade completa junto daquela mulher, mas essa chispa de felicidade desapareceu em poucos dias, ela não servia para os cuidados da maternidade, assim como para o papel de esposa ou de dona de casa, e mal pôde enfiar os seus blue jeans de solteira, bem justos, tratou de escapar à armadilha do matrimónio. O seu primeiro amante foi o médico que a assistiu no parto e depressa houve outros mais, enquanto o marido, absorto no trabalho, não tinha olhos para ver as evidências. Shanon transformava-se com cada novo amor segundo os pedidos de cada homem do momento, um dia aparecia com uma permanente e nova roupa interior de renda preta, mas duas semanas mais tarde os cintos de ligas franceses ficavam esquecidos no fundo de uma gaveta porque tinha posto os olhos num vizinho escritor, então Gregory encontrava-a embrulhada num dos seus xailes, sem maquilhagem e com novos óculos de tartaruga, a ler Jung. Entretanto David, o bebé, crescia num parque, tão inquieto, chorão e manhoso que nem a mãe podia fazer-lhe companhia.
Um dia Tina contou envergonhada ao seu chefe que tinha visto um dos advogados da firma a beijar Shanon no parque de estacionamento, desculpe que me meta nisto, Sr. Reeves, mas é minha obrigação dizer-lho, concluiu com a voz a tremer. O mundo para Gregory tingiu-se de vermelho, pegou no acusado pelas bandas do casaco e esmurrou-o, o homem conseguiu entrar no ascensor para escapar, mas ele correu pela escada de serviço e apanhou-o na rua com tal escândalo que interveio a polícia e acabaram todos na esquadra, incluindo Mike Tong, que voltava do correio e conseguiu ser a testemunha do final da altercação, quando o galã estava estendido com o nariz ensanguentado. Nessa noite Shanon atirou as culpas do sucedido para uns copos a mais e tentou convencer o marido de que essas travessuras não tinham importância alguma, só o amava a ele. Gregory quis saber que diabo fazia ela naquele estacionamento e ela jurou que se tratava de um encontro casual e um beijo de amiga.
- Vê-se a tua idade, Gregory, estás muito fora de moda - concluiu.
- Parece é que nasci para corno! - rugiu Reeves saindo e batendo a porta com estrondo.
Dormiu num motel até que Shanon conseguiu localizá-lo e lhe suplicou que voltasse, jurando amor e assegurando-lhe que a seu lado se sentia segura e protegida, sozinha estava perdida, disse a soluçar. Secretamente Gregory estava à espera dela. Tinha passado a noite acordado, atormentado pelo ciúme, imaginando represálias inúteis e soluções impossíveis. Fingiu uma raiva que na verdade não sentia, só pelo prazer de a humilhar, mas voltou para seu lado tal como o faria todas as vezes nos meses que se seguiram.
Margaret desapareceu de casa de sua mãe aos treze anos. Samantha esperou dois dias antes de me telefonar porque pensou que ela não tinha para onde ir, e que depressa estaria de volta, certamente tratava-se de uma escapadela sem importância, todos os miúdos nesta idade fazem estas loucuras, não é nada do outro mundo, já sabes que Margaret não dá problemas, é muito boa, disse-me ela. A sua capacidade para ignorar a realidade é como a da minha mãe, nunca deixou de me espantar. Avisei imediatamente a polícia, que organizou uma operação em força para a encontrar, pusemos avisos em todas as cidades da baía, chamámo-la pela rádio e pela televisão. Quando fui à escola soube que não a viam há meses, tinham-se cansado de mandar notificações à mãe e de deixar recados por telefone. A minha filha era péssima estudante, não tinha amizades, não fazia desporto e faltava demasiado às aulas, até que por fim deixou de as frequentar. Interroguei os seus companheiros, mas pouco sabiam dela ou não quiseram dizer-me, pareceu-me que não simpatizavam com ela, uma rapariga descreveu-a como agressiva e grosseira, dois adjectivos impossíveis de associar a Margaret, que sempre se comportava como uma dama antiga num salão de chá. Depois falei com os vizinhos e assim soube que a tinham visto sair a altas horas da noite, por vezes vinha-a buscar um tipo numa matocicleta, mas regressava quase sempre em diferentes automóveis. Samantha disse que certamente se tratava de graças mal-intencionadas, ela não tinha notado nada de anormal. Como ia ela notar a ausência da filha, se nem sequer notava a sua presença, digo eu. Na fotografia que apareceu na televisão Margaret estava muito bonita e inocente, mas lembrei-me dos seus gestos provocantes e vieram-me à cabeça horríveis possibilidades. O mundo está cheio de pervertidos, disse-me uma vez um oficial da polícia quando uma das crianças que eu guardava se perdeu no parque. Foram dias de suplício correndo as esquadras da polícia, hospitais, jornais.
- Ela é um caso para São Judas Tadeu, patrono das causas perdidas - disse-me Timothy Duane muito sério quando fui ao seu laboratório à procura de uma mão amiga. - Tens de ir à Igreja dos Dominicanos, pôr vinte dólares na caixinha do santo e oferecer-lhe uma vela.
- Estás demente, Tim.
- Sim, mas essa não é a questão. A única coisa que me deixaram os doze anos de colégio de padres foi o sentido de culpa e a fé incondicional em São Judas. Nada perdes em experimentar.
- O Dr. Duane tem razão, não se perde nada em experimentar. Eu acompanho-o - ofereceu-se suavemente a minha secretária, quando soube, e foi assim que me encontrei de joelhos numa igreja acendendo velas, como não fazia desde os meus tempos de menino de coro do padre Larraguibel, acompanhado pela inefável Ernestina Pereda.
Nessa noite alguém telefonou dizendo que num bar tinham visto uma pessoa parecida, só que bastante mais velha. Fomos lá com dois polícias e encontramos Margaret disfarçada de mulher, com unhas postiças, saltos altos, calças justas e uma máscara de maquilhagem deformando a sua cara de bebé. Ao ver-me, desatou a correr e quando lhe demos caça abraçou-me chorando e chamou-me papá pela primeira vez desde que eu me lembro. O exame médico revelou que tinha marcas de agulhas nos braços e uma infecção venérea. Quando quis falar com ela no quarto da clínica particular onde a internámos, afastou-me com um chorrilho de palavrÕes que cuspia com vez de homem, vários dos quais eu nunca ouvira nem sequer no bairro onde me criei ou nos meus tempos de soldado. Tinha arrancado a sonda do braço, com o seu bâton tinha escrito horrendas obscenidades nas paredes do quarto, tinha estraçalhado a almofada e atirado para o chão o que encontrara ao seu alcance. Foram precisas três pessoas para a agarrar enquanto lhe davam um tranquilizante. Na manhã seguinte fui com Samantha vê-la e encontrámo-la serena e rodeada de flores, caixas de chocolates e animais de pelúcia que lhe tinham mandado os empregados do meu escritório. Da endemoninhada do dia anterior não havia nem rasto. Ao perguntar-lhe por que tinha cometido semelhante barbaridade, desatou a chorar com aparente arrependimento, não sabia o que se passava, disse ela, nunca o tinha feito antes, era culpa de más amizades, mas não nos devíamos preocupar, tinha a noção do perigo e não veria mais essa gentalha, as picas tinham sido só uma experiência.
- Estou bem. A única coisa de que necessito é um leitor de cassettes para ouvir música - disse-nos.
- Que espécie de música queres? - perguntou a mãe aconchegando-lhe as almofadas.
- Um amigo trouxe-me as minhas canções preferidas - respondeu letárgica. - E agora deixem-me dormir, estou um pouco cansada.
Ao despedir-nos, pediu que lhe levássemos cigarros, sem filtro por favor. Achei estranho que fumasse, mas logo recordei que na sua idade eu tinha fabricado um cachimbo e, de qualquer modo, comparado com os seus outros problemas, um pouco de nicotina pareceu-me que era o menos. Considerei pouco oportuno discutir sobre os perigos do fumo nos pulmões, quando podia morrer de uma overdose de heroína. Quando regressei para a ver, à tarde, já não estava lá. Conseguiu despistar a enfermeira de turno, vestiu a mesma roupa de prostituta com que chegara e fugiu. Ao limpar o quarto descobriram uma seringa descartável debaixo do colchão junto à cassette de música rock e aos restos do bâton. Tinha perdido Margaret - desde então via-a na prisão ou numa cama de hospital - mas não o sabia ainda, demorei nove anos a dizer-lhe adeus, nove anos de esperança defraudada, de buscas inúteis, de falsos arrependimentos, de incontestáveis aldrabices, traições, vulgaridades, suspeitas e humilhações, até que por fim aceitei no fundo do meu coração ser impossível ajudá-la.
A primeira loja Tamar surgiu numa rua do centro de Berkeley, entre uma livraria e um salão de beleza, vinte e cinco metros quadrados com uma montra pequena e uma porta estreita, que teria passado despercebida entre as outras lojas da vizinhança se Cármen não decidisse aplicar os mesmos princípios decorativos da casa de Olga, mas ao contrário. A vivenda da curandeira tinha tantos adornos como um pagode de opereta e por isso destacava-se na arquitectura cinzenta e pobretanas do bairro latino. O local de Cármen estava rodeado de lojas vistosas, de restaurantes chineses, com os seus dragÕes furibundos, e mexicanos com os seus cactos de gesso, bazares da +ndia, vendas para turistas e a florescente indústria de pornografia com letreiros de néon mostrando casais nus em posições inverosímeis. Com semelhante concorrência tornava-se difícil atrair clientela, mas ela pintou tudo de branco, pôs um toldo da mesma cor na porta e lâmpadas potentes para acentuar o aspecto de laboratório da sua loja. Dispôs as jóias sobre simples bandejas de areia e transparentes pedaços de quartzo, onde o elaborado desenho e os ricos materiais brilhavam esplêndidos. Num canto pendurou algumas saias ciganas, como as que ela própria usava há anos, únicas notas quentes naquela brancura de neve. No ar flutuava um aroma ténue de especiarias e os sons monótonos de uma violeta oriental.
- Em breve terei cintos, carteiras e xailes - explicou Cármen a Gregory quando lhe mostrou, ufana, o seu novo negócio na festa de inauguração. - Haverá pouca variedade mas poderei combinar todas as peças, de maneira que com uma visita à minha loja a clientela possa sair vestida dos pés à cabeça.
- Não encontrarás muito entusiasmo por esses disfarces - riu-se Gregory, convencido de que era preciso estar muito mal da cabeça para usar as criações da amiga, mas, minutos mais tarde, teve de engolir as palavras quando Shanon pediu que lhe comprasse vários brincos «étnicos» que a ele pareceram injustificadamente caros, e viu a sua amiga Joan, pelo braço de Balcescu, exibindo uma dessas extravagantes saias zíngaras de folhos multicores. As mulheres são um verdadeiro mistério, murmurou.
Cármen Morales levava o seu negócio com prudência de hortelão. Fazia as suas contas todas as semanas, separando uma parte para manter a fábrica a funcionar, outra para impostos, qualquer coisa para sobreviver sem luxo e aumentar a sua conta de poupança. Contava com os seus fiéis vietnamitas para reproduzir os desenhos e umas comadres mexicanas do bairro que, de acordo com instruções precisas, cosiam a roupa nas suas casas e a enviavam por correio. Ela mesma escolhia todos os materiais e uma vez por ano, durante o Verão, ia fazer compras à ásia ou ao Norte de áfrica em azarentas viagens que teriam aterrado outra mulher menos confiante, mas ela ia protegida dos riscos porque era incapaz de imaginar a maldade alheia. Só poderia ausentar-se durante as férias escolares de Dai que se acostumou a esses safaris de comboio, de jipe, de burro ou a pé por aldeias remotas nas florestas da Tailândia, acampamentos de pastores nómadas nas montanhas do Atlas ou bairros de miséria nas populosas cidades da índia. O seu corpo delgado e moreno resistia sem queixas a toda a espécie de comidas, água contaminada, picadas de mosquitos, fadigas e calor de inferno, tinha a força de um faquir para tudo o que fosse mais difícil. Era um menino tranquilo que aprendeu as quatro operações aritméticas jogando com as contas para colares e antes dos dez anos tinha descoberto várias leis matemáticas que tentavam explicar em vão à mãe e à professora. Mais tarde, quando verificaram o seu extraordinário talento para os números e os professores da universidade o examinaram, viu-se que eram princípios de trigonometria. Tinha um pequeno tabuleiro metálico de xadrez com peças com íman e na trepidação dos comboios, meio esmagado pela multidão de passageiros, gaiolas com animais, malas de cartão desconjuntadas e canastras com comestíveis, Dai jogava, impassível, xadrez contra si mesmo, sem fazer batota. Nem sempre dormiam em hotéis ou em cabanas de gente amiga, às vezes viajavam em pequenas caravanas ou levavam um guia e tinham de acampar numa nesga de espaço.
Numa esteira no chão ou numa rede pendurada debaixo de um mosquiteiro, rodeado pelo grasnar ameaçador de passaros nocturnos e pelo rumor de patas sigilosas, sumido no inquietante odor dos resíduos vegetais e magnólias, Dai sentia-se totalmente seguro junto do corpo morno da mãe, julgava-a invulnerável. Com ela passou por muitas aventuras, e nas poucas vezes em que a viu assustada sentiu também a alfinetada do medo, mas então recordava a sua mãe, a dos olhos de amêndoas negras que voava a propulsão por jacto sobre a sua cabeça protegendo-o de todos os males. Num bazar de Marrocos, andando por entre a matizada multidão, o menino largou a mão de Cármen para admirar umas facas curvas com punhos de couro lavrado. O dono da tenda, um homenzarrão de cara patibular envolto em trapos, agarrou-o pelo pescoço, levantou-o no ar e deu-lhe um bofetão, mas antes de conseguir repetir o gesto caiu-lhe em cima uma fera brava, toda garras, grunhindo e dando dentadas de cadela assanhada. Dai viu sua mãe rebolar com o árabe pelo chão numa confusão de saias rasgadas, cestos virados, mercadoria espalhada e risos de outros homens do mercado. Cármen levou um murro na cara e durante alguns instantes ficou atordoada, mas a violência do seu desespero reanimou-a e antes que alguém o pudesse prever empunhava uma das facas curvas, desembainhada. Nesse momento surgiu a polícia, desarmaram-na e salvaram o comerciante de uma punhalada certa, enquanto os homens reunidos em círculo acompanhavam a pancadaria e acusavam a estrangeira com gritos e insultos. Cármen e Dai acabaram na esquadra por detrás das grades, rodeados de meliantes que não se atreveram a molestá-los porque viam a morte nos olhos daquela mulher. O cônsul americano acudiu a resgatá-la e mais tarde, ao despedir se, aconselhou-os a não voltar a pôr os pés naquele país. Vemo-nos para o ano, respondeu Cármen e não pôde sorrir, porque tinha a cara inchada e um golpe profundo no lábio. Dessas explorações voltavam com caixas cheias de contas variadas, troços de coral, vidro ou metais antigos, pedras semipreciosas, minúsculas esculturas em osso, conchas perfeitas, garras e dentes de animais desconhecidos, folhas e escaravelhos petrificados desde a idade glaciar. Também traziam tecidos bordados e couros lavrados que serviam para juntar pormenores a um cinturão ou a um bolso, fitas desbotadas pelo tempo para as saias, botÕes ou fivelas que descobriam em cantos esquecidos. Nessa altura Cármen já não trabalhava em casa. Na oficina tinha os seus tesouros em caixas de plástico transparente organizadas por materiais e cores, fechava-se lá durante horas a fabricar cada modelo, pondo e tirando contas, lavrando metais, cortando e polindo num paciente exercício de imaginação. Iniciou a moda dos motivos astrológicos de luas e estrelas, o uso de cristais para a boa sorte, as jóias de inspiração africana, as argolas diferentes para cada lado e o brinco único enroscado na orelha com uma cascata de pedras e peças de prata, que mais tarde seriam copiados até à saturação. Os anos deram-lhe segurança e afinaram um pouco o rosto, mas não atenuaram a sua alegre disposição nem diminuíram o seu gosto pela aventura. Manobrava o negócio como uma especialista, mas divertia-se tanto ao fazê-lo que não o considerava um trabalho. Era incapaz de levar as coisas a sério. Não via a diferença entre a sua próspera empresa e os tempos em que fabricava artefactos em casa dos pais para vender no bairro latino ou se vestia com lenços de cores para fazer malabarismos na Praça Pershing. Tudo fazia parte do mesmo passatempo ininterrupto da existência, e o facto de aumentarem os zeros nas suas contas bancárias não mudava em nada a índole brincalhona da sua maneira de ser. Era a primeira a ficar surpreendida com o seu êxito, custava-lhe acreditar que houvesse gente disposta a pagar tanto por aqueles adornos inventados num rasgo de inspiração só para se divertir. As dificuldades da vida e os enganos do êxito também não alteraram a sua natureza amável, continuava a ser aberta, confiante e generosa. As viagens ensinaram-lhe as infinitas misérias e dores que a humanidade suporta e ao comparar-se com outros sentia-se muito afortunada. Para ela não existia conflito entre o bom olho para o comércio e a compaixão, desde o princípio fez por dar trabalho nas melhores condições possíveis aos mais espezinhados da escala social, e depois, quando a sua fábrica cresceu, contratava tantos latinos pobres, refugiados asiáticos e centro-americanos, inválidos e até dois atrasados mentais que encarregou das plantas e dos jardins, de tal modo que Gregory chamava ao negócio da sua amiga «o hospício de Tamar». Gastava tempo e dinheiro em fatigantes cursos e aulas de inglês para os seus operários, que de uma maneira geral acabavam de chegar ao país escapando de inconfessáveis penúrias. A sua espontânea caridade originou uma visionária medida empresarial, tal como o foi o refeitório gratuito, os recreios obrigatórios, a música ambiental, as cadeiras cómodas, as classes de ginástica e relaxamento para os músculos presos pelo minucioso esforço de montar as jóias, e tantas outras inovações, porque o pessoal respondia com felicidade e eficiência assombrosas.
Nas suas viagens, Cármen aprendeu que o mundo não é branco e nunca o seria, por isso mesmo ostentava com orgulho a sua pele tostada e os seus traços latinos. A sua figura arrogante enganava os outros, dava a impressão de ser mais alta e mais jovem e apresentava-se com tanta desenvoltura, envolta nos seus vestidos ciganos e acompanhada pelo tilintar das suas pulseiras, que ninguém se dava ao trabalho de pormenorizar a sua escassa estatura, seios pesados e corpo de guitarra, ou as suas primeiras cãs e rugas. No recreio da escola Dai ganhou um concurso entre os seus companheiros por ter a mãe mais bela.
- Nunca te vais casar, mamã? - perguntou-lhe o menino.
- Sim, quando tu cresceres vou-me casar contigo.
- Quando eu crescer tu estarás muito velha - explicou-lhe Dai, para quem os números eram verdades irrefutáveis.
- Então terei de procurar um marido tão decrépito como eu - riu Cármen e numa chispa de memória viu o rosto de Leo Galupi, tal como o tinha recordado frequentemente nesses anos e tal como o vira pela primeira vez meio oculto por um ramos de flores murchas, esperando-a no aeroporto de Saigão. Perguntou a si própria se porventura ele a recordaria também e decidiu que um dia teria de o averiguar, porque Dai crescia rapidamente e talvez em breve não precisasse dela. Por outro lado estava cansada de amantes esporádicos, escolhia homens mais novos porque necessitava harmonia e beleza à sua volta, mas começava a pesar-lhe o vazio sentimental.
Enquanto o seu amigo Gregory vivia à rica acumulando dívidas e dores de cabeça, ela vivia como uma operária, mas ganhava dinheiro e lisonjas. Depressa o nome de Tamar tinha passado a ser o símbolo de estilo original e de qualidade impecável. Sem querer, encontrou-se a dirigir desfiles de moda e a dar conferências como uma especialista, sem perder de vista que tudo aquilo era uma brincadeira. Um dia vão descobrir que não sei nada de nada, ando a intrujar o mundo com pura jactância, comentava com Gregory, quando saía em revistas femininas e de arte ou em publicações de economia como exemplo de empresa em rápido desenvolvimento. Poucos anos mais tarde, quando havia sucursais Tamar em várias capitais, quase duzentas pessoas a trabalhar sob as suas ordens, sem contar os vendedores que percorriam vários continentes oferecendo a mercadoria nas lojas mais luxuosas, e quando o departamento de contabilidade ocupava todo um andar da fábrica, ela ainda viajava de mula pela selva ou em camelo pelo deserto, comprando os seus materiais e vivia modestamente com o seu filho, não por mesquinhez mas porque não sabia que a existência pode ser mais cómoda.
King Benedict desejava acima de tudo no mundo um comboio eléctrico para armar na sala da casa da sua mãe. Já tinha fabricado a estação, uma aldeia com casinhas de madeira, árvores de cartão e uma natureza com montes e túneis em miniatura que se estendia de parede a parede impedindo a passagem no quarto. Só esperava o comboio porque Bel lhe tinha prometido que essa seria a primeira compra quando recebessem o dinheiro do tribunal. Sentia-se como um inválido e aferrava-se àquela mulher de pescoço alto e olhos amarelos, que dizia ser mãe e representava a única bússola numa tempestade de incertezas. Desde o acidente a sua memória era só neblina, quarenta anos apagados no momento em que a sua cabeça bateu no chão. Lembrava-se da mãe jovem e formosa, como é que ela se transformou nesta velha gasta pelo trabalho e pelos anos? Quem é Bel realmente? Oxalá que me comprem o comboio... Compreendia que já não estava para jogos infantis, mas na verdade não lhe interessavam para nada os assuntos que obcecavam os homens. Passava horas aparvalhado em frente do televisor, esse prodigioso invento antes desconhecido para ele, e quando via beijos apaixonados no ecrã sentia uma cega ansiedade, algo palpitante nas entranhas que por sorte não durava muito. O catálogo dos comboios eléctricos atraía-o muito mais que as revistas de mulheres nuas que lhe oferecia o vendedor de jornais no quiosque da esquina. às vezes via-se a si próprio à distância, como se estivesse no cinema contemplando o seu próprio rosto num guião implacável. Não reconhecia o seu corpo. A mãe tinha-lhe explicado o acidente e a amnésia, não era tonto, sabia que não tinha catorze anos. Olhava-se longamente ao espelho sem reconhecer aquele avô que o saudava do outro lado, fazia um inventário das mudanças e perguntava em que momento tinham ocorrido, como se acumulara tanto desgaste. Ignorava como perdera o cabelo, ganhara peso e lhe tinham aparecido rugas, onde tinham ido parar alguns dos seus dentes, por que lhe doíam os ossos quando atirava uma bola, se lhe acabava o fôlego quando tentava subir as escadas a correr e não podia ler sem óculos. Não recordava ter comprado aquelas lentes. Agora estava sentado em frente de uma mesa grande num escritório cheio de plantas e livros entre dois homens que o perseguiam com perguntas, algumas impossíveis de responder, enquanto uma secretária escrevia palavra por palavra numa máquina. Quem era o presidente no ano em que você se casou? A mãe obrigava-o a ir diariamente à biblioteca ler os jornais antigos para se inteirar do acontecido no mundo durante esses quarenta anos que se lhe tinham varrido da mente. Os dados abstractos eram para ele mais compreensíveis que os artefactos do uso diário, como um forno microndas e outras coisas fascinantes e misteriosas. King sabia os nomes dos presidentes, os mais notáveis resultados do beisebol, as viagens à Lua, as guerras, os assassinatos de John Kennedy e Martin Luther King, mas não fazia a menor ideia de onde estava na altura desses acontecimentos e podia jurar que nunca se tinha casado. A mãe passava as tardes contando-lhe coisas da sua própria vida a ver se de tanto as repetir conseguia dissipar as brumas do esquecimento, mas esses exercícios obrigados de memória eram um interminável e aborrecido calvário. Custava-lhe acreditar que o seu destino tivesse sido tão insignificante, que nada importante tivesse feito, nada tivesse realizado dos seus planos juvenis. Sentia angústia pelo tempo desperdiçado nesse colar de rotinas minúsculas, por isso mesmo agradecia aquela segunda oportunidade neste mundo. O seu futuro não era um buraco negro nas costas, como dizia a mãe, mas um caderno em branco em frente dos seus olhos. Podia enchê-lo com o que sempre ambicionara, percorrer uma vez mais os anos já vividos. Correria aventuras, encontraria tesouros, cometeria actos heróicos, iria a ¦frica à procura das suas raízes, nunca se casaria nem envelheceria. Se pelo menos pudesse recordar os erros e os acertos... Sempre quisera um comboio eléctrico, não era um capricho de momento mas o seu mais antigo desejo, o sonho da sua infância. Quando o disse a Reeves, o homem sorriu-se com os seus olhos claros e confessou-lhe que essa era também a sua máxima aspiração, mas nunca o tivera. Mentira, se pode pagar este escritório com letras de ouro nas janelas, também pode comprar um comboio e até dois se lhe der na gana, tinha concluído King Benedict, mas não se atreveu a dizê-lo, não podia passar por grosseiro. Por que razão a mãe escolhera um advogado branco? Não lhe tinha ela dito muitas vezes que por princípio devia desconfiar sempre dos brancos? Agora o outro homem punha-lhe filas de fotografias sobre a mesa e tinha de as reconhecer, mas nenhuma daquelas pessoas lhe era familiar, excepto a bela mulher sentada no peitoril de uma janela com meia cara iluminada e a outra na sombra, sua mãe sem dúvida, ainda que muito diferente da anciã de agora. Depois experimentaram-no com fotos de revistas para ele identificar cidades e paisagens quase todas desconhecidas para ele. E isto? Que eram esta plantação de algodão e esta camioneta? Não conseguia recordar, mas tinha a certeza de ter estado num sítio parecido. Onde é, mamã? Mas antes que pudesse modular as palavras começou a sentir picadas nas têmporas e num instante a dor deu-lhe a volta. Levantou as mãos para proteger a cabeça e tentou escapar, mas caiu de joelhos no chão.
- Sente-se mal, Sr. Benedict? Sr. Benedict... - e a voz chegou-lhe de longe. Depois sentiu na testa a mão de sua mãe e virou-se para se abraçar à sua cintura e esconder-se no seu peito, cansado pelas surdas marteladas retumbando dentro do seu cérebro e a onda de náusea que lhe enchia a boca de saliva e o fazia tremer.
Gregory Reeves demorou um ano a aceitar que não havia razão para continuar a lutar por um matrimónio que nunca se devia ter realizado, e outro tanto para tomar a decisão de separar-se porque não queria deixar David e lhe custava a admitir um segundo fracasso.
- O problema não é Shanon, tu é que és - diagnosticou Cármen. - Nenhuma mulher pode resolver os teus problemas, Greg. Ainda não sabes o que queres. Se não consegues gostar de ti próprio, como é que vais gostar de alguém?
- Fala-me a voz da experiência? - disse ele gracejando.
- Eu, ao menos, não me casei duas vezes!
- Isto vai custar uma fortuna - lamentou-se Mike Tong quando soube que o seu chefe pensava divorciar-se outra vez.
Reeves foi viver algum tempo com Timothy Duane. Depois de uma briga escandalosa em que se insultaram aos gritos e em que Shanon lhe atirou uma garrafa à cabeça, meteu a roupa em duas malas e partiu jurando que dessa vez não regressaria. Chegou ao apartamento do seu amigo quando este se encontrava a meio de um jantar com outros médicos e suas mulheres. Entrou na sala de jantar e com um gesto dramático deixou cair a bagagem no chão.
- Isto é tudo o que resta de Gregory Reeves - disse taciturno.
- A sopa é de cogumelos - respondeu Timothy sem se alterar.
Mais tarde, a sós, ofereceu-lhe o quarto dos hóspedes e comentou que em boa hora se tinha separado daquela velhaca.
- Estou a precisar de um companheiro para a farra - acrescentou.
- Não é o caso, tenho má sorte com as mulheres.
- Não digas palermices, Greg. Vivemos no paraíso. Não só as mulheres são bonitas aqui, como não temos concorrência. Tu e eu devemos ser os últimos heterossexuais solteiros em São Francisco.
- Até agora, essa estatística não me serviu de muito...
Shanon ficou com o menino e pouco depois instalou-se numa casa, sobre uma colina com vista para a baía. Gregory regressava à sua, agora sem móveis, mas ainda com os barris das rosas. Não se preocupou em substituir o que perdera porque na destruição dos últimos tempos foi interiorizando a sua indignação de marido atraiçoado e os quartos vazios pareceram-lhe coisa adequada ao seu estado de espírito. Quando o ressentimento contra a sua mulher se transformou em desejo de vingança, quis procurar amantes para consolo como antes tinha feito, mas descobriu que, longe de o aliviar, essa solução complicava-lhe o horário e aumentava-lhe a ira. Meteu-se a fundo no trabalho, sem tempo nem boa disposição para trabalhos domésticos, limitou-se a manter vivas as plantas.
Por seu lado, Shanon não estava muito melhor, o camião da mudança descarregou os caixotes na sala da sua nova casa e ali ficaram espalhados, só conseguiu ter forças para arrumar as camas e alguns utensílios incapaz de lidar com David. O menino tornou-se uma tarefa sobre-humana, precisa mais de um domador de feras do que de uma ama, tinha nascido com o organismo acelerado e vivia como um selvagem. Despediram-no dos infantários onde tentaram deixá-lo algumas horas por dia, a sua conduta era tão bárbara que punha a mãe em estado de alerta permanente porque qualquer descuido podia terminar numa catástrofe. Aprendeu bem cedo a chamar a atenção retendo a respiração e aperfeiçoou esse recurso até conseguir fazer espuma pela boca, revirava os olhos e caía em convulsões sempre que lhe contradiziam um capricho. Negava-se a usar a escova de dentes, um pente ou uma colher, comia no chão lambendo os alimentos, não podiam deixá-lo com outras crianças porque mordia, nem entre adultos porque dava um guincho de partir vidros, capaz de moer os nervos ao mais corajoso. Shanon deu-se por vencida mal a criança começou a gatinhar, o que coincidiu com as piores discussões com o marido, e procurou alívio na genebra. Enquanto o seu pai se atordoava no trabalho e nas viagens, que o mantinham sempre ausente, e a sua mãe o fazia no licor e na frivolidade, ambos ocupados numa guerra de inimigos irreconciliáveis, o pequeno David acumulava a raiva surda das crianças abandonadas. O divórcio evitou pelo menos a iniquidade dessas diárias batalhas campais que deixavam a família extenuada, incluindo a empregada mexicana que ia todos os dias limpar a casa e cuidar do menino, mas que, por fim, preferiu a incerteza da rua àquele manicómio. A sua partida foi mais trágica para Shanon do que tinha sido a do marido. A partir dessa altura julgou-se desamparada e não voltou a tentar um sinal de controlo, deixou que o lar e a sua vida se enchessem de pó e desordem, que à sua volta se acumulassem roupa e pratos sujos, contas por pagar, máquinas avariadas e deveres que procurava ignorar. No mesmo estado de confusão começou a sua vida de mulher divorciada, não voltou a dedicar-se ao papel de mãe nem de dona de casa, renunciou a toda a pretensão de decência doméstica, vencida à partida, mas ficou-lhe ânimo para se salvar do naufrágio e escapar, primeiro por pequenos momentos roubados e depois por horas até que, por último, se foi embora de todo.
Reeves ficou na sua casa vazia, com o barco a apodrecer no cais e as roseiras morrendo nos barris. Não era uma solução prática para um homem sozinho, como todos lhe fizeram ver, mas num apartamento sentia-se prisioneiro, necessitava de amplos espaços onde pudesse esticar o corpo e deixar a alma à solta. Trabalhava dezasseis horas por dia, dormia menos de cinco por noite e bebia uma garrafa de vinho a cada refeição. Pelo menos não fumas, não te vais consumir com cancro do pulmão, consolou-o Timothy Duane. O escritório parecia uma fábrica de fazer dinheiro, mas na realidade mantinha-se em equilíbrio precário enquanto o contabilista chinês fazia milagres para pagar as contas mais urgentes. Foi em vão que Mike Tong tentou explicar ao seu chefe os princípios básicos da contabilidade, e que examinasse as sangrentas colunas de livros e visse como faziam piruetas de olhos vendados numa corda bamba. Não te preocupes, homem, havemos de nos safar, isto não é como na China, aqui sai-se sempre para a frente, esta terra é dos atrevidos, não dos prudentes, tranquilizava-o Reeves. Olhava à sua volta e via que não era o único a tomar essa posição, a nação inteira sucumbia no atordoamento do esbanjamento, lançada numa bacanal de gastos e numa estrepitosa propaganda patriótica, dirigida para recuperar o orgulho humilhado pela derrota da guerra. Marchava ao tambor da sua época, mas para o fazer tinha que calar as vozes de Cyrus com a sua melena de sábio e as suas enciclopédias clandestinas, de seu pai com a jibóia mansa, dos soldados afogados em sangue e espanto e de tantos outros espíritos inquietos. Nunca se viu tanto egoísmo, corrupção e arrogância desde o Império Romano, dizia Timothy Duane. Quando Cármen o preveniu contra as armadilhas da cobiça, ele recordou-lhe que a primeira lição de esperteza tinha-lhe dado ela na infância, ao tirá-lo do ghetto e obrigá-lo a fazer dinheiro no bairro dos burgueses. Graças a ti atravessei a rua e descobri as vantagens de estar do outro lado; é muito melhor ser rico, mas se o não puder ser, pelo menos vou viver como se o fosse, disse ele. Ela não conseguia conciliar essas piadas do amigo com outros aspectos da sua vida, que revelava sem lho propor nas longas conversas das segundas-feiras, como a sua tendência cada vez mais acentuada de defender sozinho os mais pobres, nunca as empresas ou as companhias de seguros, onde havia lucros substanciais sem tantos riscos.
- Não tens razão, Greg. Falas em fazer dinheiro, mas pelo teu escritório só passam os pobres.
- Os latinos foram-no sempre, sabes isso tão bem como eu.
- É isso que quero dizer. Com esse tipo de clientes ninguém enriquece. Mas agrada-me que continues a ser o tonto sentimental de sempre, por isso gosto de ti. Tomas sempre os outros a teu cargo, não sei como te chegam as forças.
Esse rasgo do seu carácter não se notava tanto quando era apenas uma porca mais na complicada engrenagem de um escritório de outrem, mas tornou-se evidente ao fazer-se patrso de si próprio. Era incapaz de fechar a porta a quem pedisse ajuda tanto no escritório como na sua vida privada. Rodeava-se de gente em desgraça e mal conseguia cumprir com todos, Ernestina Pereda fazia milagres para esticar as horas do seu calendário. Frequentemente os clientes acabavam seus amigos, em mais de uma ocasião teve a viver em sua casa alguém que ficara sem tecto. Um olhar agradecido parecia-lhe recompensa suficiente, mas muitas vezes apanhava decepções graves. Não tinha bom olho para detectar a tempo os sem-vergonha e quando queria libertar-se deles era já tarde, porque se viravam a ele como escorpiões, acusando-o de todas as espécies de vícios. Cuidado, não nos ponham um processo por mau uso da profissão, avisava Mike Tong ao ver que o seu chefe confiava demasiado nos clientes, entre os quais havia meliantes que sobreviviam abusando do sistema legal e tinham uma história de processos nas costas, trabalhavam uns meses, conseguiam fazer-se despedir e a seguir instauravam um processo por terem perdido o emprego, outros provocavam feridas para receber o seguro. Reeves também se enganava ao contratar os seus empregados, a maioria tinha problemas com o álcool, outro era jogador e apostava não apenas o seu mas tudo o que podia sacar do escritório, e havia um que padecia de depressão crónica e que encontraram mais que uma vez com as veias abertas no banho. Demorou muitos anos a perceber que a sua atitude atraía os neuróticos. As secretárias não davam vazão com tanto sobressalto, poucas ficaram mais do que dois meses. Mike Tong e Tina Faibich eram as únicas pessoas normais naquele circo de alucinados. Aos olhos de Cármen o facto de o seu amigo ainda não se ter afundado era prova irrefutável da sua força, mas Timothy Duane chamava a esse milagre pura e simplesmente boa sorte.
Entrou no seu escritório pela porta de serviço, como fazia frequentemente, para evitar os clientes da sala de espera. A sua secretária era uma montanha de papéis, no chão empilhavam-se também documentos e livros de consulta, sobre o sofá havia um colete e várias caixas com sininhos e besouros de cristal. A desordem crescia à sua volta ameaçando devorá-lo. Enquanto tirava o impermeável, passou revista às plantas, preocupado com o aspecto fúnebre dos fetos. Não chegou a tocar à campainha, Tina esperava-o com a agenda do dia.
- Temos de fazer qualquer coisa com este aquecimento, está a matar-me as plantas.
- Hoje tem uma escritura às onze e lembre-se de que à tarde tem de ir aos tribunais. Posso arrumar um pouco aqui? Isto parece uma lixeira, se não se importa que eu diga isso, Sr. Reeves.
- Está bem, mas não me mexa no arquivo de Benedict, já estou a trabalhar nele. Escreva outra vez para o Clube de Natal para não me mandarem mais coisas. Pode trazer-me uma aspirina se faz favor?
- Creio que precisa de duas. A sua irmã Judy telefonou várias vezes, é urgente - disse Tina e saiu.
Reeves pegou no telefone e ligou para a irmã, que lhe comunicou em poucas palavras que Shanon tinha passado muito cedo para deixar David em sua casa antes de viajar com rumo desconhecido.
- Vem buscar o teu filho quanto antes porque não penso tomar conta deste monstro, já me chegam os meus filhos e a minha mãe. Sabes que agora usa fraldas?
- David?
- A minha mãe. Vejo que também não sabes nada do teu próprio filho.
- Temos que a internar numa residência geriátrica, Judy.
- Claro que essa é a solução mais fácil, abandoná-la como se fosse um sapato gasto, é o que tu farias, sem dúvida, mas eu não. Ela cuidou de mim quando eu era pequenina, ajudou-me a criar os meus filhos e tem estado a meu lado em todas as necessidades. Como te vem à ideia que a vou pôr num asilo? Para ti não é mais do que uma velha inútil, mas eu gosto dela e espero que morra nos meus braços e não abandonada como um cão. Tens uma hora para recolher o teu filho.
- Não posso, Judy, tenho três clientes à espera.
- Então vou entregá-lo à polícia. Neste bocadinho em que está em minha casa já meteu o gato no secador da roupa e cortou o cabelo à avó - disse Judy procurando dominar o timbre histérico da voz.
- Shanon não disse quando regressava?
- Não. Disse que tem direito de fazer a sua vida, ou qualquer coisa assim. Cheirava a álcool e estava muito nervosa, quase desesperada, não a culpo, aquela pobre mulher não tem nenhum controlo sobre a sua vida, como poderia tê-lo sobre o seu filho?
- E que vamos fazer agora?
- Não sei o que vais fazer. Devias ter pensado nisso há muito, não sei para que largas filhos no mundo se não tens intenção de os criar. Já tens uma filha drogada, não é suficiente? Ou queres que David siga o exemplo da irmã? Se não podes estar aqui exactamente dentro de uma hora, vai à polícia, onde encontrarás o teu miúdo - e desligou o telefone.
Reeves chamou Tina para lhe pedir que cancelasse as entrevistas do dia. Ela apanhou-o à porta a vestir o jaquetão, de chapéu-de-chuva na mão, certa de que naquele momento o seu chefe ia precisar dele.
- Que pensa de uma mulher que abandona o seu filho de quatro anos, Tina? - perguntou Reeves à secretária a meio do caminho.
- O mesmo que penso de um pai que abandona os três - respondeu ela num tom que nunca usava e assim acabou a conversa, no resto da viagem foram calados, ouvindo um concerto na rádio e procurando afastar as turbulências da imaginação. Podiam esperar tudo de David.
Judy aguardava à porta com a bagagem do sobrinho, enquanto o menino, vestido de soldado, corria pelo jardim atirando pedras à cadela inválida. Tina abriu o seu gigantesco guarda-chuva e fê-lo girar como uma roda de carrossel, isso teve o poder de fazer parar David. O pai avançou com a intenção de o agarrar, mas o miúdo atirou-lhe uma pedra e saiu disparado para a rua. Não chegou lá. Numa manobra de ilusionista, Tina fechou o guarda-chuva, enganchou-lhe uma perna com o punho, atirou-o de boca ao chão, em seguida agarrou-o pela roupa, levantou-o no ar e meteu-o à força no automóvel, tudo isso sem perder o seu habitual sorriso. Viu-se grega para o manter imóvel todo o caminho, de volta para a cidade. Nessa tarde Gregory apresentou-se no tribunal com mais vontade de lutar que habitualmente, enquanto a sua invencível secretária o aguardava cá fora, controlando David com histórias, papas fritas e um ou outro beliscão.
Assim começou a convivência de Gregory com o filho. Não estava preparado para aquela emergência e não tinha tempo no seu trabalho para uma criança, muito menos para uma tão chata como a sua. Era tanta a insegurança de David que não podia estar sozinho um só momento, de noite metia-se na cama do pai para dormir agarrado à sua mão. Nos primeiros dias Gregory teve de o levar consigo para todo o lado, porque não tinha idade para ficar sozinho e não conseguiu ninguém disposto a tomar conta dele, nem sequer Judy, apesar da sua inclinação natural para os meninos e a bonita soma que lhe ofereceu. Se em poucos minutos pelou a cabeça à minha mãe, numa hora corta-lha, foi a resposta de Judy ao seu pedido. A casa e o carro de Reeves encheram-se de brinquedos, comida rançosa, pastilhas elásticas mascadas, pilhas de roupa suja. à falta de outra solução, levou-o para o escritório, onde a princípio os seus empregados fizeram por achar graça à criança mas logo se deram por vencidos, reconhecendo honestamente que a odiavam. David corria por cima das secretárias, mastigava clips e depois cuspia-os sobre os documentos, desligava os computadores, inundava as casas de banho, arrancava os fios dos telefones e tanto viajou no elevador que a máquina parou. Por sugestão da sua secretária, Gregory contratou uma imigrante ilegal, salvadorenha, para cuidar dele, mas a mulher só aguentou quatro dias. Foi a primeira de uma longa lista de amas que passaram pela casa sem deixar recordações. Para o diabo com os traumas, eu dava-lhe era uma boa surra, recomendou Cármen pelo telefone, embora ela nunca tivesse tido oportunidade de o fazer com Dai. O pai preferiu consultar um psiquiatra infantil, que aconselhou uma escola especial para crianças com problemas de conduta, receitou pastilhas para o acalmar e tratamento imediato porque, segundo explicou, as feridas emocionais dos primeiros anos de vida deixam cicatrizes para sempre.
- E de passagem sugiro que o senhor faça a terapia também, porque necessita dela mais do que David. Se não resolve os seus problemas não poderá ajudar o seu filho - acrescentou, mas Reeves pôs essa ideia de parte sem um segundo pensamento. Tinha-se criado num meio onde essa possibilidade não se punha e naquele tempo ainda acreditava que os homens devem resolver as coisas sozinhos.
Aquele foi um ano difícil para Gregory Reeves. é o pior do teu destino, já não tens que preocupar-te porque o futuro será muito mais fácil, assegurou-lhe Olga mais tarde, quando tentou convencê-lo do poder dos cristais para combater a má sorte. Juntaram-se-lhe várias desgraças e o frágil equilíbrio da sua realidade desmoronou-se. Uma manhã, Mike Tong apresentou-se aflito para lhe dizer que devia ao banco uma soma impossível de pagar e os juros estavam a estrangular a firma, e que além disso não tinha terminado com os gastos do seu divórcio. As mulheres com quem ele saía foram desaparecendo uma a uma à medida que tinham ocasião de conhecer David, nenhuma teve força de carácter para partilhar o amante com aquela indómita criança. Não era a primeira vez que as circunstâncias o perseguiam, mas agora somava-se cuidar do filho. Madrugava para conseguir pôr a casa em ordem, preparar o pequeno-almoço, ouvir as notícias, programar a comida e vestir o menino, deixava-o na escola logo que os comprimidos calmantes faziam efeito e rodava para a cidade. Esses quarenta minutos de viagem eram o único momento de paz durante todo o dia, ao passar entre as soberbas torres da ponte de Golden Gate, com altos campanários chineses de laca vermelha, com a baía de um lado, um espelho escuro cruzado por veleiros de recreio e botes de pesca, e a silhueta elegante de São Francisco na frente, lembrava-se do pai. O lugar mais formoso do mundo, chamava-lhe ele. Ouvia música, tentando manter a mente em branco, mas quase nunca era possível, porque a lista de assuntos pendentes tornava-se interminável. Tina marcava as entrevistas para as primeiras horas, assim podia ir buscar David às quatro, levava os documentos para casa com intenção de os estudar à tarde, não lhe chegava o tempo, nunca imaginara que uma criança ocupasse tanto espaço, fizesse tanto barulho e necessitasse de tanta atenção. Pela primeira vez teve pena de Shanon e até chegou a compreender que tivesse desaparecido. Além disso o miúdo coleccionava mascotes e a ele cabia-lhe lavar o tanque dos peixes, alimentar os ratos, limpar a gaiola das caturras e passear o cão, um pastor amarelo a que puseram o nome de Oliver em recordação do primeiro amigo de Gregory.
- Pareces tonto. Em primeiro lugar não devias ter comprado este jardim zoológico - disse-lhe Cármen.
- Podias ter-me avisado antes, agora não há nada a fazer.
- Claro que há, oferece o cão, solta os pássaros, os ratos e atira os peixes para a baía. Todos ganharão com isso.
Os papéis acumulavam-se sobre os caixotes que lhe serviam de mesa-de-cabeceira. Teve de renunciar às viagens e entregar os casos de outras cidades aos seus empregados, que nem sempre estavam sóbrios ou sãos e cometiam erros bem custosos. Acabaram os almoços de negócios, as partidas de golfe, a ópera, as escapadas para dançar com mulheres da sua lista e as farras com Timothy Duane, nem sequer podia ir ao cinema para não deixar o menino sozinho. Nem pôde recorrer aos vídeos porque David só gostava de filmes de monstros e de extrema violência, quanto mais sangrentos mais ele gostava deles. Enjoado com tantos mortos, torturados, zombies, homens-lobos e pérfidos extraterrestres, Gregory tentou iniciá-lo em comédias musicais e desenhos animados, mas aborreciam-se ambos da mesma maneira. Era impossível convidar amigos para sua casa, David não suportava ninguém, considerava todos os que se aproximavam do pai como uma ameaça e tinha tremendas birras de ciúmes que invariavelmente precipitavam a fuga das visitas. às vezes, se tinha uma festa ou um encontro com uma conquista interessante, conseguia que alguém vigiasse o miúdo por umas horas, mas ao regressar encontrava sempre a casa varrida por um furacão e a vigilante desolada à beira de um ataque de nervos. A única pessoa com suficiente paciência e resistência foi King Benedict, que se mostrou bem dotado para o papel de ama e que também gozava com os jogos de vídeo e filmes de horror, mas vivia demasiado longe e por outro lado era tão desvalido como a criança. Ao deixá-los sozinhos, Gregory partia preocupado e regressava angustiado imaginando as inúmeras desgraças que podiam ocorrer na sua ausência. Os fins-de-semana dedicava-os por completo ao filho, a limpar a casa, ir ao mercado, reparar os destroços, mudar a palha dos ratos e lavar o tanque dos peixes que costumavam aparecer de manhã a flutuar, exangues, porque David atirava à água tudo o que lhe vinha à mão. Até quando dormia era perseguido pelas dívidas por pagar, os impostos atrasados e a possibilidade de ver-se num sarilho sem saída porque não confiava nos seus advogados e ele próprio tinha descuidado alguns clientes. Para cúmulo teve de suprimir o seguro profissional por falta de fundos, com o espanto de Mike Tong, que profetizava toda a espécie de catástrofes financeiras e sustentava que trabalhar naquele campo sem a protecção de um seguro era uma atitude suicida. A Reeves não chegava o dinheiro, as forças nem as horas, estava muito cansado, tinha saudades de um pouco de solidão e silêncio, necessitava pelo menos de uma semana de férias em qualquer praia, mas tornava-se impossível viajar com David. Oferece-o a um laboratório, precisam sempre de meninos para fazer experiências, sugeriu-lhe Timothy Duane, que também não aparecia lá em casa por terror de enfrentar o miúdo. Gregory sentia a cabeça cheia de ruído, como nos piores tempos de guerra, o descalabro crescia imparável à sua volta, começou a beber demasiado e as suas alergias não lhe davam tréguas, afundava-se como se tivesse os pulmões cheios de algodão. O álcool deva-lhe uma euforia breve e logo o mergulhava numa grande tristeza, no dia seguinte acordava com a pele avermelhada, um zumbido nos ouvidos e os olhos inchados. Pela primeira vez na vida sentiu que lhe falhava o corpo, até então tinha gracejado do fanatismo californiano por se manter em forma, pensava que a saúde é como a cor da pele, algo irrevogável que se traz ao nascer e do qual nem vale a pena falar. Nunca se tinha preocupado com o colesterol, o açúcar refinado ou as gorduras saturadas, permanecia indiferente aos alimentos orgânicos e às fibras, igualmente ao óleo bronzeador e à corrida, a menos que tivesse de chegar depressa a qualquer lado. Estava convencido de que não teria tempo para sofrer doenças, não morreria de velho, mas de um acidente repentino.
Pela primeira vez diminuiu o seu interesse pelas mulheres, isso dava-lhe uma certa angústia, mas ao mesmo tempo sentia-se aliviado, por um lado temia perder a virilidade e por outro pensava que sem obsessão a sua vida teria sido mais leve. Os encontros tornaram-se menos frequentes, reduziram-se a encontros apressados ao meio-dia porque à tarde tinha que estar com David. A sexualidade, como a fome ou o sono, era para ele um apetite que devia satisfazer de imediato, não era homem de grandes preâmbulos, o seu desejo tinha uma condição desesperada.
- Estou a ficar rabugento. Deve ser da idade - comentou ele a Cármen.
- Já não é sem tempo. Não compreendo como um homem tão selectivo com a roupa, a música e os livros, que tem prazer num bom restaurante, compra o melhor vinho, viaja em primeira e se aloja em hotéis de luxo, possa andar com essas pindéricas.
- Não exageres, algumas não são nada más - respondeu ele, mas no fundo dava razão à sua amiga, tinha muito que aprender nesse campo. O único prazer no qual se recreava com apuro, com a intenção de o fazer durar, era a música. Durante a noite, quando não podia dormir e a impaciência o impedia de ler, deitava-se na cama a olhar o escuro acompanhado por um concerto.
Em fins de Março morreu Nora Reeves, de uma pneumonia. Ou talvez tivesse indo morrendo, a pouco e pouco, desde havia mais de quarenta anos e ninguém tivesse dado conta. Nos últimos anos a sua mente divagava por enredados caminhos espirituais e para não perder o rumo andava sempre com a invisível laranja do Plano Infinito na mão. Judy pedia-lhe que a deixasse em casa quando saíam, não fossem as pessoas pensar que a sua mãe levava a mão estendida para pedir esmola. Nora julgava ter dezassete anos e viver num palácio branco onde a visitava o seu noivo, Charles Reeves, que aparecia à hora do chá com chapéu de vaqueiro, uma serpente mansa e uma bolsa de ferramentas para consertar as imperfeições do mundo. A agonia começou com febre intermitente e quando a anciã entrou em estado crepuscular, Judy e o marido mudaram-na para o hospital. Permaneceu ali umas duas semanas, tão débil que parecia volatilizar-se aos poucos, mas Gregory tinha a certeza de que a mãe não agonizava. Ofereceu-lhe uma aparelhagem de som, para ela escutar os seus discos de ópera, notou que movia levemente os pés debaixo dos lençóis ao ritmo das notas e qualquer coisa como um sorriso infantil passava-lhe pela boca, prova concludente de que não pensava ir-se embora.
- Se ainda se comove com a música é porque não está a morrer.
- Não tenhas ilusões, Greg. Não come, não fala, quase não respira - dizia Judy.
- Fá-lo só para nos chatear. Verás que amanhã estará bem - respondia ele, aferrado à recordação da sua mãe quando jovem.
Mas, uma madrugada, telefonaram-lhe do hospital e viu nascer o dia com a irmã junto duma maca onde jazia o corpo leve de uma mulher sem idade. A mãe ia para os oitenta anos, mas tinha-se desprendido da existência havia muito, abandonando-se a uma loucura benigna que a ajudou a evadir-se por completo das dores da existência, ainda que sem afectar os seus modos educados nem a delicadeza do seu espírito. à medida que avançava a decrepitude do seu corpo, Nora Reeves retrocedia para outro tempo e para outro lugar, até perder a conta do esquecimento. No fim dos seus dias julgava ser uma princesa dos Urales e deambulava cantando árias pelas alvas habitações de um lugar encantado. Desde havia muito tempo só reconhecia Judy, a quem confundia com a sua avó, falava-lhe em russo. Regressou a uma juventude imaginária, onde não existiam deveres nem sofrimentos, mas apenas tranquilas diversões de música e livros. Lia pelo prazer de comprovar as infinitas variações de vinte e quatro signos impressos sobre papel, mas não recordava as frases nem tinha a noção dos temas, folheava com o mesmo interesse uma novela clássica ou o manual de instruções de um electrodoméstico. Com os anos tinha mirrado até ao tamanho de uma boneca transparente, mas com os cosméticos milagrosos das suas fantasias, ou talvez simplesmente com a inocência da morte, recuperou a frescura perdida em tão longa vida e ao morrer estava como Gregory a recordava quando menino e ela lhe apontava as constelações no firmamento. As semanas de febre, o prolongado jejum e o cabelo cortado à tesourada pelo neto, que não voltou a crescer-lhe, não conseguiram destruir essa ilusão de beleza. Foi-se-lhe a alma com a doce timidez que lhe era própria, de mão dada com a filha. Enterraram-na sem cerimónias nem lágrimas num dia de chuva. Judy meteu num saco o pouco que restou: dois vestidos muito usados, uma caixa de lata com alguns documentos que provavam a sua passagem por este mundo, dois quadros pintados por Charles Reeves e o seu colar de pérolas amareladas pelo uso. Gregory levou só duas fotografias.
Nessa noite, depois de dar banho a David e lutar com ele para que se deitasse, Gregory alimentou os bichos domésticos, m~ teu a roupa suja na máquina de lavar, apanhou os brinquedos espalhados por todo o lado e atirou-os para um armário, levou o lixo para a garagem, limpou as estantes dos livros que o menino tinha usado para fabricar uma fortaleza e por fim ficou sozinho no quarto com a sua pasta cheia de documentos que tinha de rever para o dia seguinte. Pôs uma sinfonia de Mahler, encheu um copo de vinho branco e sentou-se na cama, único móvel do quarto. Já era meia noite e necessitava pelo menos de duas horas de trabalho para desemaranhar o caso que tinha entre mãos, mas não se achava com forças para o fazer. De dois tragos bebeu o copo, encheu outro e depois mais outro até despejar a garrafa. Pôs a água a correr para o banho, tirou a roupa e olhou-se ao espelho, o pescoço grosso, as costas largas, as pernas firmes. Tão acostumado estava a que o seu corpo lhe respondesse como máquina exacta, que não podia imaginar-se enfermo. As únicas oportunidades em que caíra na cama, em toda a vida, foram quando lhe rebentaram as veias da perna e naquele hospital de Hawai, mas eram episódios quase esquecidos. Ignorava teimosamente as campainhas de alarme chamando-o à ordem, as alergias, a dor de cabeça, a fadiga, a insónia. Passou as mãos pelo cabelo e comprovou que não só estava a ficar branco, como também lhe caía. Recordou King Benedict, que pintava o crânio com graxa preta de sapatos para disfarçar a calvície que o desconcertava, porque ainda se julgava em plena juventude. Observou a sua imagem procurando a marca da sua mãe e encontrou-a nas mãos de dedos compridos e nos pés finos, o resto pertencia à sólida herança de seu pai. Margaret tinha as feições da avó, um rosto de gato com pómulos altos, olhar angelical, suavidade nos gestos. Que seria feito dela? A última vez que a vira tinha sido na prisão. Sentia-se um pouco enjoado, não via bem. Meteu-se na banheira e deixou-se invadir pelo bem-estar da água quente, fazendo por relaxar os membros presos pela tensão, sem pensar em nada, mas os acontecimentos do dia acudiram à sua mente em tropel, os trâmites da morte no hospital, o rápido serviço religioso, o solitário funeral onde a única nota de cor tinham sido os grandes ramos de cravos vermelhos que comprou para calar a consciência de não se ter ocupado da mãe em tantos anos. Recordou a chuva, o silêncio obstinado e sem lágrimas de Judy, a sua própria incomodidade, como se a morte fosse uma indiscrição, a única falta de cortesia e boas maneiras de Nora Reeves. Durante a viagem ao cemitério ia pensando no trabalho acumulado no escritório, que devia tratar do caso de King Benedict ou decidir ir a juízo com risco de perder tudo, tinha perseguido como um cão obstinado cada pista, por insignificante que ela parecesse, mas não tinha nada concreto a que agarrar-se. Sentia especial carinho pelo seu cliente, era como um bom menino no invólucro anacrónico de um cinquentão, mas sobretudo admirava Bel Benedict, aquela mulher estupenda que merecia sacudir a pobreza de cima de si. Por ela devia antecipar as manobras dos outros advogados e derrotá-los no seu próprio terreno, não ganha quem tem razão, mas quem luta melhor, tinha sido a primeira lição do velho das orquídeas. Odiou-se por se distrair com essas considerações naquele momento, quando o cadáver da mãe ainda estava quente. Recordou os últimos anos de Nora Reeves, reduzida à condição de uma menina atrasada de quem Judy cuidava com uma solicitude brusca e impaciente, como a uma criança mais na sua tribo de oito filhos. Ao menos a irmã estava com ela, ele pelo contrário encontrava sempre desculpas para a não ver, limitava-se a pagar as contas quando era necessário e fazer-lhe uma breve visita duas vezes por ano. Angustiava-o que ela não o reconhecesse, que a sua mente não registasse a existência de um filho chamado Gregory, sentia-se castigado pela amnésia senil da mãe, como se o esquecimento fosse apenas outro pretexto para o apagar definitivamente do seu coração. Suspeitou sempre de que ela não gostava dele e que, quando tentara libertar-se dele pondo-o no orfanato ou em casa dos fazendeiros, não agira por miséria mas por indiferença. A água estava demasiado quente, tinha a pele a arder e estalavam-lhe as fontes, pensou que não lhe cairia mal outro copo, saiu da banheira embrulhado na toalha, foi à cozinha à procura de uma garrafa e de passagem apagou o aquecimento, porque estava a ficar sufocado. Espreitou para o quarto de David e verificou que dormia tranquilo atravessado na porta da sua tenda de índio. Encheu outro copo de vinho branco e tornou a sentar-se na cama, o disco tinha terminado e pôde ouvir o silêncio, raro luxo desde que vivia com o filho. A mãe acudiu de novo como uma recordação persistente, a sua voz a sussurrar-lhe, tentando dizer qualquer coisa, e deu conta de que não a conhecia, era uma estranha. Na sua infância tinha-a adorado, mas depois afastou-se e em muitos momentos julgou odiá-la, sobretudo nos anos mais difíceis, quando se sentou no seu cadeirão de vime, resignada com a pobreza e a impotência, enquanto ele procurava a vida na rua. Não pôde vê-la assim, pelo contrário viu-a jovem, com o vestido de gola de renda e o cabelo apanhado num carrapito, de pé, à saída de uma aldeia poeirenta, e viu-se também a si mesmo, um rapazinho magro, de feições precisas, olhos azuis e boca grande, nas suas costas dois homens violavam uma rapariga negra, ela gritava e eles riam-se, mas a miúda soltava-se daquele terrível abraço e aparecia junto de Nora Reeves, que lhe oferecia um folheto do Plano Infinito. Depois viu-a caminhando a grandes passadas por uma estrada solitária, ela adiante e ele tentando alcançá-la, mas quanto mais corria, maior era a distância e a figura que perseguia tornava-se mais pequena e mais apagada no horizonte, o asfalto estava a arder e brando, os pés colavam-se-lhe, nunca teria forças para vencer a fadiga, não podia avançar, caía, arrastava-se de joelhos, o calor não o deixava respirar. Sentiu uma tremenda compaixão por esse menino, por si mesmo. Mãe, chamou-a primeiro com o pensamento e depois com um grito desgarrado, e então as imagens imprecisas concentraram-se, as linhas difusas perfilaram-se como firmes traços de uma caneta e Nora Reeves apareceu de corpo inteiro, real e presente e estendeu-lhe as mãos sorrindo. Quis-se pôr em pé para a abraçar como nunca o fizera, mas não conseguiu mover-se e ficou no mesmo sítio repetindo mamã, enquanto o quarto se enchia de uma luz incandescente e a pouco e pouco chegavam outros visitantes: Cyrus, Juan José Morales de mão dada com Thui Nguyen, o rapaz do Kansas que morrera em seus braços e outros lívidos soldados, Martinez sem sinais da antiga insolência, mas ainda com o seu traje de pachuro, e muitos mais que foram entrando silenciosos e encheram o quarto. Gregory Reeves sentiu-se banhado pelo sorriso de Nora, que tanto necessitara em menino e procurara em vão quando adulto. Permaneceu imóvel no silêncio tranquilo de um tempo parado nos relógios, até que lentamente desapareceu o séquito dos mortos. A última a ir-se embora foi a sua mãe que recuou flutuando e diluindo-se na parede, deixando-lhe a certeza de um carinho que não soube expressar em vida, mas que sempre lhe tinha dado.
Quando todos partiram e ficou sozinho, algo estalou na sua alma, uma dor terrível cravada no peito e espalhando-se daí em ondas pelo resto do corpo, queimando-o, abrindo-o, partindo-lhe os ossos e arrancando-lhe a pele, perdeu a capacidade de se conter, já não era ele mesmo mas esse intolerável sofrimento, essa atormentada alforreca alastrando pelo quarto e enchendo o espaço, uma única ferida sangrando. Tentou levantar-se outra vez, mas não pôde mexer os braços, dobrou-se e caiu de joelhos sem poder respirar, fulminado por uma lança que o atravessava de lado a lado. Durante vários minutos ficou estendido no chão, à procura de ar, com batidas de tambor nas têmporas. Uma parte lúcida da sua mente registou o que ocorreria e soube que devia pedir ajuda, ou morreria ali mesmo, mas não conseguiu aproximar-se do telefone nem lhe saiu a voz para gritar, encolheu-se como um recém-nascido, a tremer tentando recordar o que sabia sobre ataques de coração. Perguntou-se quanto tardaria a sucumbir e a ideia aterrorizou-o por momentos, mas logo imaginou a paz de não existir, de não continuar a rebolar pelo pó, lutando com as sombras, de não se arrastar por um caminho atrás dessa mulher que se afastava e, tal como fazia na infância quando se escondia com o seu cão no covil das raposas, abandonou-se à tentação de não ser. Muito lentamente a dor passou através de si levando parte do seu tremendo cansaço. Teve a impressão de ter vivido antes aquele momento. Voltou a respirar, apalpando o peito para comprovar que algo latejava ali dentro, não, não lhe tinha rebentado ainda o coração. Desatou a chorar como não fazia desde a guerra, um lamento visceral que vinha do passado mais distante, de antes do seu nascimento talvez, uma encosta alimentada pelas lágrimas reprimidas nos últimos anos, uma torrente imparável. Chorou pelo abandono da infância, pelas lutas e derrotas que tentava em vão transformar em vitórias, as dívidas por pagar e as traições suportadas ao longo da sua existência, a ausência da mãe e a compreensão tardia do seu carinho. Viu Margaret rodando por um abismo e quis agarrá-la, mas fugiu-lhe das mãos. Murmurou o nome de David, tão vulnerável e ferido, perguntando a si próprio por que razão os seus filhos estavam marcados por esse estigma do pesadelo, porquê a vida era tão difícil para ele, se porventura lhes tinha transmitido, nos genes, uma maldição ou se eles teriam de pagar as culpas dele. Chorou pela soma dos seus erros e por esse amor perfeito com o qual sonhava e julgava impossível de alcançar, pelo seu pai morto fazia tantos séculos e pela sua irmã Judy, presa às piores recordações, por Olga no seu ofício de enganar, inventando o futuro nas suas cartas marcadas, e os seus clientes, não os mendigos nem os abusadores, mas as vítimas como King Benedict e tantos infelizes, negros, latinos, ilegais, pobres, marginais e humilhados que chegavam para pedir ajuda nessa Corte dos Milagres em que se tinha convertido o seu escritório, e continuou soluçando, agora, pelas recordações da guerra, dos companheiros em sacos de plástico, Juan José Morales, as raparigas de doze anos que se vendem aos soldados, a centena de mortos na montanha. E quando compreendeu que na verdade só estava a chorar por si próprio, abriu os olhos e viu-se por fim em frente à besta e teve que olhar-lhe a cara e assim soube que aquele animal espreitando nas suas costas, aquele sopro que tinha sentido na nuca desde sempre, era o seu próprio terror obstinado da solidão, que o afligia desde a meninice, quando se fechava na despensa a tremer. A angústia envolveu-o no seu fatídico abraço, entrou-lhe pela boca, pelos ouvidos, pelos olhos, por todo o lado, e ocupou-o por inteiro enquanto murmurava quero viver, quero viver...
Nesse momento tocou uma campainha, sacudindo-o do transe. Demorou uma eternidade a reconhecer o som, a dar-se conta de onde se encontrava e ver-se caído no chão, nu, encharcado de urina, de vómitos e de pranto, bêbado, aterrorizado. O telefone tocava como um aviso urgente vindo de outra dimensão, até que por fim pôde arrastar-se e pegar no auscultador.
- Greg? Sou Tamar. Hoje não me ligaste, é segunda-feira...
- Vem, Cármen, por favor vem, balbuciou.
Meia hora depois ela estava a seu lado, depois de fazer a viagem desde Berkeley a velocidade proibida. Abriu-lhe a porta embrulhado numa toalha, descomposto, e abraçou-se à sua amiga tentando-lhe explicar apressadamente onde lhe doía, aqui no peito, na cabeça, nas costas, em todo o lado. Cármen vestiu-lhe um roupão, pegou em David meio a dormir, meteu os dois no automóvel e voou até ao hospital mais próximo, onde em poucos minutos tinham Gregory Reeves numa maca, ligado a uma sonda e com uma máscara de oxigénio.
- Vai morrer o meu papá? - perguntou David.
- Sim, se não dormires - respondeu Cármen, feroz.
Ficou na sala de espera junto ao menino adormecido até à manhã seguinte, quando o cardiologista a avisou de que não havia perigo, não se tratava de uma falha de coração, mas de um ataque de ansiedade, o paciente podia ir embora, mas devia ir ao seu médico fazer uma série de exames e seria bom consultar um psiquiatra, porque andava perdido em desvarios de louco. De regresso, Cármen ajudou Gregory a tomar um duche e a deitar-se, preparou café, vestiu David, deu-lhe o pequeno-almoço e levou-o à escola. Depois telefonou a Tina Faibich para lhe explicar que o chefe não estava em condições de trabalhar naquele dia, voltou para junto do amigo e sentou-se na cama ao seu lado. Gregory estava extenuado e atordoado pelos tranquilizantes, mas já podia respirar sem angústia e até sentia um pouco de fome.
- Que se passou? - quis saber Cármen.
- Morreu a minha mãe.
- Por que não me avisaste?
- Foi tudo muito rápido, não quis incomodar ninguém, além disso não podias fazer nada - e começou a contar-lhe o sucedido sem ordem nem razão, um rio de frases inacabadas, de mão dada a essa mulher que era mais que sua irmã, era o seu mais antigo e leal amor, sua amiga, sua camarada, parte íntima de si mesmo, tão próxima e tão diferente dele, Cármen morena e essencial, Cármen valente e sábia, com quinhentos anos de tradição indígena e castelhana no sangue e um sólido senso comum anglo-saxão que lhe tinham servido para andar com passos firmes pelo mundo.
- Lembras-te de quando éramos miúdos e eu corria diante do comboio? Curei-me dessa ideia fixa da morte e passei muitos anos sem me lembrar dela, mas agora voltaram-me as mesmas ideias e tenho medo. Estou apanhado, nunca acabarei de pagar aos bancos, a minha filha está perdida nas drogas, durante os próximos quinze anos terei de tratar de David. A minha vida é um desastre, sou um fracasso.
- O fracasso e o êxito não existem, Greg, são invenções dos gringos. Vive-se, nada mais, o melhor possível, um poucochinho cada dia, é como uma viagem sem meta, o que conta é o caminho. é hora de parar, porquê tanta agitação? A minha avó dizia que não devíamos ser escravos da pressa.
- A tua avó estava louca, Cármen.
- Nem sempre, às vezes era a mais lúcida da casa.
- Estou afundado e sozinho como um cão.
-Tens de tocar no fundo, então dás uma pezada e sobes à superfície de novo. As crises são boas, são a única forma de crescer e mudar.
- Sou isto que vês, nada mais. Fiz tudo mal, começando pelos meus filhos. Sou como a Torre de Pisa, Cármen, tenho o eixo torcido e por isso tudo me sai desviado.
- Quem te disse que a vida era fácil? Há sempre dor e esforço. Olha para ti, Greg, pareces um esfregão... Deixa de lamentar-te e levanta-te de uma vez. Sempre fizeste por viver fugindo, mas não se pode correr sempre, num dado momento há que parar e enfrentar-se a si próprio. Por muito que corras estás sempre dentro da mesma pele.
Pela mente de Gregory passou o seu pai nómada, deslocando-se, atravessando fronteiras, tentando alcançar o horizonte, chegar ao fim do arco-íris e encontrar mais além algo que aqui lhe negavam. O país oferece grandes espaços abertos para escapar, enterrar o passado, deixar tudo e partir de novo, quantas vezes seja necessário, sem carregar culpas nem nostalgias, pode-se sempre cortar as raízes e voltar a começar, o amanhã é uma folha em branco. Era assim a sua própria história, nunca quieto, um eterno transeunte, mas o resultado desse viver tinha sido a solidão.
- Já to disse antes, Cármen, estou a ficar velho.
- Acontece com todos. Eu gosto das minhas rugas.
Olhou-a de perto, pela primeira vez atentamente, notou que já não era rapariga e alegrou-se por ela não fazer nada para disfarçar as linhas da cara, marcas do seu percurso, nem os cabelos brancos que iluminavam a cabeleira negra. O peso dos seios inclinavam-lhe os ombros e, fiel ao seu estilo, exibia uma ampla saia, sandálias, argolas e pulseiras, tudo isso era Cármen, Tamar. Imaginou que nua deveria parecer um gato molhado, mas de qualquer maneira pareceu-lhe bonita, muito mais do que na infância, quando era uma menina gorducha e travessa com arames nos dentes, ou na adolescência, a rapariga mais atraente da escola, ou já mulher, quando atingiu a sua forma definitiva e andava com um japonês no bairro gótico de Barcelona. Sorriu-lhe e ela retribuiu o sorriso, olharam-se com imensa simpatia, com a cumplicidade partilhada desde meninos. Gregory tomou-a pelos ombros e beijou-a levemente nos lábios.
- Gosto de ti - murmurou, consciente que soava banal, mas era uma verdade absoluta. - Acreditas que daríamos um casal?
- Não.
- Queres fazer amor comigo?
- Parece-me que não. Devo ter um problema de personalidade - riu ela. - Descansa e trata de dormir. Mike Tong irá buscar David à escola e virá ficar contigo uns dias. Eu voltarei à noite, tenho uma surpresa para ti.
Daisy era uma surpresa, noventa quilos de negra, linda e alegre, puro chocolate reluzente, originária da República Dominicana, que atravessou metade do México a pé e depois passou a fronteira com outros dezoito refugiados no duplo fundo de um camião carregado de melÕes, disposta a ganhar o sustento no Norte. Daisy iria mudar a vida de Gregory e David. Tomou a seu cargo o menino sem queixas nem delicadezas, com a mesma estóica atitude com que tinha sobrevivido às misérias do seu passado. Não falava uma palavra de inglês e o seu patrão teve de servir de intérprete. O método de Daisy para criar meninos deu bons resultados em David, embora também seja certo que o mérito não fosse só seu, o rapaz estava nas mãos de uma dispendiosa equipa de professores, médicos e psicólogos. Ela não acreditava em nenhum desses modernismos, nem sequer aprendeu a pronunciar a palavra hiperactivo em espanhol. Estava convencida de que a causa de tanta confusão era mais simples: o manhoso estava possuído pelo demónio, coisa bastante comum, como afirmava, ela conhecia pessoalmente muitas pessoas que tinham tido igual sorte, mas isso curava-se mais facilmente que uma vulgar constipação, qualquer bom cristão podia fazê-lo. Desde o primeiro dia dedicou-se a expulsar os íncubos do corpo de David mediante uma combinação de vodu, orações aos santos da sua devoção, saborosos pratos de comida do Caribe, muito carinho e algumas sonoras bofetadas que lhe dava às escondidas do pai sem que o atingido se atrevesse a denunciá-la, a perspectiva de viver sem Daisy era-lhe intolerável. Com louvável paciência a mulher encarregou-se de o domesticar, se o via eriçado que nem um porco-espinho a ponto de trepar às paredes, envolvia-o nos seus grandes braços morenos, acomodava-o entre os seus seios de mãe e coçava-lhe a cabeça, cantando-lhe na sua língua cheia de sol até o acalmar. A tranquilizadora presença de Daisy, com o seu aroma de ananás e açúcar, o riso sempre pronto, o espanhol sem consoantes e as suas intermináveis histórias de santos e bruxas que David não compreendia, mas cujo ritmo o arrulhava para dormir, deram por fim segurança ao menino. Graças a essa ajuda nos assuntos fundamentais da existência quotidiana, Gregory Reeves pôde iniciar a lenta e dolorosa viagem até ao interior de si mesmo.
Todas as noites, durante um ano, Gregory Reeves julgou que morria. Quando o filho estava a dormir a casa ficava em repouso, ele ficava sozinho, sentindo o fim aproximar-se. Fechava a porta do quarto à chave, para David não o surpreender se acordasse, não queria assustá-lo e abandonava-se ao sofrimento sem opor resistência. Era tudo muito diferente da vaga angústia de antes, à qual estava mais ou menos acostumado. Durante o dia funcionava com normalidade, sentia-se forte e activo, tomava decisões, trabalhava no escritório e em casa ocupava-se do filho, e por instantes tinha a fantasia de que tudo estava a andar bem, mas mal se encontrava sozinho na noite caía-lhe em cima um medo irracional. Via-se prisioneiro num quarto acolchoado por todos os lados, uma cela para loucos onde era inútil gritar ou bater nas paredes, não havia eco, vibração nem resposta, apenas um fatigante vazio. Não conhecia o nome para esse pesadelo composto de incerteza, inquietação, culpa, sensação de abandono e profunda solidão, de maneira que acabou por chamá-lo apenas a besta. Tinha tentado enganá-la por mais de quarenta anos, mas finalmente compreendeu que ela nunca o deixaria em paz, a menos que a derrotasse numa luta corpo a corpo. Apertar os dentes e resistir, como aquela noite na montanha, parecia-lhe a única estratégia possível contra esse inimigo implacável, que o atormentava com uma opressão de tenazes no peito, um bater de martelos nas fontes, um ardor de madeira a arder-lhe no estômago, uma urgência por largar a correr até ao horizonte e perder-se para sempre, onde ninguém nem nada pudesse alcançá-lo, muito menos as suas próprias recordações. Algumas vezes, o romper do dia surpreendia-o encolhido como um animal perseguido, outras dormia depois de várias horas de luta surda e desesperada, suando no tumulto dos sonhos que não podia recordar. Em duas ou três ocasiões tornou a rebentar-lhe uma granada dentro do peito deixando-o sem ar mas já conhecia os sintomas e limitava-se a esperar que desaparecessem, fazendo por manter à distância o desespero para não morrer de verdade. Tinha passado a vida a enganar-se com truques de magia mas chegara a hora de sofrer sem atenuantes com a esperança de passar a porta e um dia ressuscitar são. Isso dava-lhe forças para ir para a frente: o túnel tinha saída, era tudo questão de resistir à marcha forçada da viagem, até chegar ao outro lado.
Pôs de parte o alívio do álcool porque teve o pressentimento de que qualquer recurso de consolo retardaria a cura de burro que tinha imposto a si mesmo. Quando chegava ao limite das suas forças invocava a visão da mãe, tal como lhe apareceu depois da morte, com os braços estendidos e um sorriso de boas-vindas, que o acalmava, embora soubesse, no fundo, que se agarrava a uma ilusão, essa mãe afectuosa era uma criação da sua mente. Nem procurava mulheres, ainda que não permanecesse totalmente celibatário, de vez em quando aparecia-lhe alguma disposta a tomar a iniciativa e pelo menos durante umas horas podia relaxar-se, mas não voltou a cair na ratoeira das fantasias românticas, tinha compreendido que não se poderia agarrar a ninguém, tinha que se salvar sozinho. Rosemary, a sua antiga amante, autora de livros de cozinha, costumava convidá-lo para provar as suas novidades culinárias e em algumas ocasiões acariciava-o mais por bondade do que por desejo, e acabavam amando-se sem paixão, mas com sincera boa vontade. Mike Tong, ainda agarrado a um ábaco inverosímil, apesar do espantoso equipamento de computadores do escritório, se não tinha conseguido explicar ao seu chefe todos os mistérios dos seus grandes livros gatafunhados em tinta vermelha, pelo menos tinha lançado as primeiras sementes de prudência financeira. Tem que pôr ordem nas suas contas ou iremos todos à merda, pedia-lhe o contabilista chinês com o seu inalterável sorriso e uma reverência cortês, esfregando as mãos com nervoso. Por carinho ao chefe e desconhecimento do inglês tinha acabado por usar o mesmo vocabulário de Reeves. Tong tinha razão, não só tinha que pôr ordem nas contas, como no resto da sua vida, porque parecia estar a ir a pique. O seu barco metia água por tantos lados que os dedos não chegavam para tapar os buracos do naufrágio. Comprovou o valor da amizade de Timothy Duane e Cármen Morales, que aguentavam durante horas os seus teimosos silêncios e não deixavam passar uma semana sem lhe telefonar ou fazer por vê-lo apesar de a sua companhia resultar pouco divertida. Estás insuportável, não posso levar-te a nenhum lado, que se passa contigo?, ficaste muito aborrecido, queixava-se Timothy Duane, mas também ele começava a ficar cansado com a desordem. Tinha abusado muito da sua robusta constituição irlandesa, o seu corpo já não resistia às bacanais que antes preenchiam os seus fins-de-semana de pecados e remorsos. Visto que Reeves não falava dos seus problemas, em parte porque nem ele mesmo sabia que diabo se passava, Duane teve a ideia salvadora de o levar à força ao consultório da doutora Ming O’Brien, depois de fazê-lo jurar que não tentaria seduzi-la. Conheceu-a numa conferência sobre múmias, a que assistiu para ver se existia alguma relação entre os embalsamadores do Egipto Antigo e a patologia moderna, e ela para ver que classe de maluco podia interessar-se por semelhante tema. Encontraram-se durante um intervalo na bicha para o café. Ela olhou de soslaio a maltratada estátua do Pártenon que acendia um cachimbo a três passos do letreiro que proibia fumar e Duane fixou-a pensando que aquela criatura pequena, de cabelo negro e olhos sagazes, devia ter sangue chinês nas veias. Com efeito, os seus pais eram de Taiwan. Aos catorze anos embarcaram-na rumo à América, para casa de uns compatriotas que conheciam vagamente, com um visto de turista e instruções precisas de estudar, ir para a frente e nunca se queixar, porque qualquer coisa que lhe sucedesse sempre seria preferível ao destino de uma mulher na sua terra natal. Um ano depois de chegar, a rapariga tinha-se adaptado tão bem ao temperamento americano que lhe passou pela cabeça escrever uma carta a um deputado enumerando as vantagens da América e pedindo-lhe, a propósito, um visto de residente. Por uma dessas absurdas coincidências, o político coleccionava porcelanas Ming, de imediato o nome da rapariga lhe chamou a atenção e num arranque de simpatia mandou tratar dos seus papéis. O apelido O’Brien vinha de um marido da juventude, com quem Ming conviveu dez meses antes de o abandonar jurando que não voltaria a casar-se nos dias da sua vida. Um segundo olhar revelou a Duane a discreta beleza da doutora e, quando deixaram de falar em múmias e começaram a explorar outros temas, descobriu que pela primeira vez, em muitos anos, uma mulher o fascinava. Não ficaram até ao final da conferência, partiram juntos para um restaurante do cais e depois da primeira garrafa de vinho Timothy Duane deu consigo a recitar-lhe um monólogo de Brecht. A doutora falava pouco e observava muito. Quando quis levá-la ao seu apartamento, Ming negou-se amavelmente e continuou a fazê-lo nos meses sucessivos, situação que manteve viva por muito tempo a curiosidade do pretendente. Para a época em que, por fim, começaram a viver juntos, Timothy Duane já estava vencido.
- Nunca vi uma mulher com tanta graça, parece uma figura de marfim, e além disso é culta, nunca me canso de a ouvir... Julgo que ela gosta de mim, não percebo por que me resiste.
- Pensei que só o pudesses fazer com putas.
- Com ela seria diferente, tenho a certeza.
- Como é que eu o aguento, Greg? Com paciência chinesa... Além disso gosto dos neuróticos e Tim é o pior da minha carreira - explicaria, anos mais tarde, Ming O’Brien a Reeves com uma careta travessa, enquanto ralava queijo na cozinha do apartamento que partilhava com Duane. Mas isso foi muito mais tarde.
Depois de muitas hesitações consegui superar a ideia de que os homens não falam das suas debilidades nem dos seus problemas, preconceito arreigado em mim desde os tempos do bairro latino, uma das marcas fundamentais da virilidade. Vi-me instalado num escritório onde tudo parecia harmónico, quadros, cores e uma única rosa, perfeita, num copo de cristal. Suponho que tudo isso convidava ao repouso e às confidências, mas sentia-me muito incomodado e em pouco tempo tinha a camisa ensopada, enquanto perguntava a mim próprio por que diabo tinha seguido o conselho de Timothy. Sempre me pareceu uma estupidez pagar a um profissional que se faz cobrar à hora, especialmente quando não se podem medir os resultados. As circunstâncias obrigaram-me a fazê-lo com David, que não funciona sem esse tipo de ajuda, mas não pensei que me pudesse tocar a mim. Por outro lado, a minha primeira impressão de Ming O’Brien foi de que pertencia a outra constelação, nada tínhamos em comum, deixei-me enganar pela sua cara de boneca e tirei conclusões que hoje me envergonham. Julguei-a incapaz de imaginar sequer os vendavais do meu destino, que podia ela saber da sobrevivência num bairro pobre, da minha desventurada filha Margaret, dos incontestáveis problemas de David, ligado perpetuamente a um cabo de alta voltagem, das minhas dívidas, das minhas ex-esposas e do rosário de amantes de passagem, da luta com os clientes e advogados da firma, uma cambada de abusadores, da dor no peito, a insónia e o medo de morrer em cada noite. Muito menos saberia eu da guerra. Durante anos tinha evitado os grupos de terapia de ex-combatentes, cansava-me partilhar a maldição das recordações e o terror do futuro, não me parecia necessário falar deste aspecto do meu passado, se nunca o fiz entre homens, menos o faria agora com esta imperturbável senhora.
- Conte-me algum sonho de que se lembre - pediu-me Ming O’Brien.
Foda-se, o que me faltava era um Freud de saias, pensei eu, mas depois de uma pausa demasiado longa calculei quanto me custava cada minuto de silêncio e à falta de qualquer coisa mais interessante ocorreu-me mencionar-lhe o da montanha. Reconheço que comecei num tom irónico, sentado de pernas levantadas, observando-a com um olho treinado em olhar mulheres, já vi muitas e naquela época ainda lhes dava notas numa escala de um a dez, a doutora não está mal, achei que merecia mais ou menos um sete. No entanto, à medida que contava o pesadelo, foi-se apoderando de mim a mesma terrível angústia que sentia ao sonhá-lo, vi os meus inimigos vestidos de negro avançando para mim, centenas deles, silenciosos, ameaçadores, transparentes, os meus companheiros caídos como pinceladas vermelhas no cinzento opressivo da paisagem, os velozes fogachos das balas atravessando os assaltantes sem os fazer parar, e julgo que começou a correr-me o suor pela cara, tremiam-me as mãos de tanto empunhar a arma, chorava pelo esforço de apontar na espessa neblina e cambaleava procurando o ar que se me estava a transformar em areia. As mãos de Ming O’Brien sacudindo-me pelos ombros devolveram-me o sentido da realidade e encontrei-me numa sala aprazível em frente de uma mulher de traços orientais que me trespassava a alma com um olhar inteligente e firme.
- Olhe o inimigo, Gregory. Olhe-o na cara e diga-me como ele é.
Fiz por obedecer, mas não distinguia nada na bruma, apenas sombras. Ela insistiu e então, pouco a pouco, as figuras tornaram-se mais precisas e pude ver o que estava mais próximo e compreendi, atordoado, que me estava a olhar num espelho.
- Deus meu... um deles parece-se comigo!
- E os outros? Olhe os outros, como são?
- Também se parecem comigo... são todos iguais... têm todos a minha cara!
Passou bastante tempo, tive oportunidade de secar a transpiração e recuperar algo da compostura. A doutora cravou em mim os seus olhos negros, dois abismos profundos por onde se perderam os meus, aterrorizados.
- Viu o rosto do seu inimigo, agora pode identificá-lo, já sabe quem é e onde está. Esse pesadelo nunca voltará a atormentá-lo porque agora a sua luta será consciente - disse-me com tal autoridade que não tive a menor dúvida de que seria mesmo assim.
Pouco depois, saí do consultório sentindo-me um pouco ridículo porque não controlava a fraqueza nas pernas e não pude despedir-me dela, não me saía a voz. Regressei um mês mais tarde, quando tive a certeza de que o pesadelo não se tinha repetido e aceitei por fim que necessitava de ajuda. Ela estava à minha espera.
- Não conheço remédios mágicos. Estarei a seu lado para o ajudar a remover os obstáculos mais pesados, mas o trabalho tem que o fazer você sozinho. é um caminho muito longo, pode durar vários anos, muitos começam-no, mas muito poucos chegam ao fim, porque é doloroso. Não há soluções rápidas nem permanentes, apenas se poderá fazer mudanças com esforço e paciência.
Nos cinco anos seguintes Ming O’Brien cumpriu o prometido, esteve lá todas as terças-feiras, serena e sábia entre as suas ténues gravuras e as suas flores frescas, disposta a ouvir-me. Cada vez que tentava escapulir-me por alguma via lateral, ela obrigava-me a parar e a rever o mapa. Quando dava com uma barreira intransponível! mostrava-me a forma de a desmontar, peça por peça, até a superar. Com a mesma técnica ensinou-me a lutar contra os meus antigos demónios, um de cada vez. Acompanhou-me, passo a passo, na viagem até ao passado, tão atrás que eu pude recordar o terror de nascer e aceitar a solidão a que estava destinado desde o momento em que a tesoura de Olga me separou de minha mãe. Ajudou-me a ultrapassar as múltiplas formas de abandono sofridas, desde a morte prematura de meu pai, única fortaleza dos meus primeiros anos, e o escapismo irreparável da minha pobre mãe, esmagada muito cedo pela realidade e perdida em caminhos improváveis onde não pude segui-la, até às traições recentes de Samantha, Shanon e de muitas outras pessoas. Apontou os meus erros, um guião muitas vezes repetido ao longo da minha vida, e advertiu-me de que devia estar sempre alerta, porque as coisas reaparecem quando menos se espera. Com ela pude por fim nomear a dor, compreendê-la e manejá-la, sabendo que estaria sempre presente duma ou de outra forma, porque faz parte da existência, e quando essa ideia criou raízes a minha angústia diminuiu de maneira milagrosa. Desapareceu o terror mortal de cada noite, pude estar sozinho sem tremer de medo. Em devido tempo descobri quanto gosto de chegar a minha casa, brincar com o meu filho, cozinhar para os dois e, de noite, quando tudo fica calmo, ler e ouvir música. Pela primeira vez pude permanecer em silêncio e apreciar o privilégio da solidão. Ming O’Brien agarrou-me para levantar os joelhos do chão, para fazer o inventário das minhas debilidades e limitações, sentir a minha força e aprender a desprender-me das pedras que levava num saco às costas. Não é tudo culpa sua, disse-me uma vez, e desatei a rir porque já Cármen me tinha dito antes a mesma frase, parece que tenho tendência para me sentir culpado... Não era eu quem dava drogas a Margaret, era ela quem as tomava por decisão própria, e seria inútil suplicar-lhe, insultá-la, pagar as fianças da prisão, encerrá-la num hospital psiquiátrico ou persegui-la com a polícia, como tinha feito em tantas ocasiões, a minha filha tinha escolhido esse purgatório e estava para além dos meus trabalhos e do meu carinho. Devia ajudar David a crescer, disse Ming O’Brien, mas sem lhe dedicar a minha experiência completa nem suportar os seus caprichos para compensar o amor que não soube dar a Margaret, porque estava a fazer dele um monstro. Vimos juntos, linha a linha, o meu torpe livrinho de telefones e verifiquei envergonhado que quase todas as amantes da minha larga trajectória eram do mesmo corte e estilo, dependentes e incapazes de retribuir afecto. Também vi claramente que com as mulheres diferentes, como Cármen ou Rosemary, nunca pude estabelecer uma relação sã porque não sabia render-me nem aceitar a entrega completa de uma companheira a sério, nada sabia da comunhão no amor. Olga tinha-me ensinado que o sexo é o instrumento e o amor é a música, mas não aprendi a lição a tempo, vim a sabê-lo quando vou a caminho de meio século, mas suponho que mais vale tarde do que nunca. Descobri que não sentia rancor contra a minha mãe como julgava, e pude recordá-la com a boa vontade que não soubemos expressar, nenhum dos dois, quando ela estava viva. Já não me importou inventar uma Nora Reeves de acordo com as minhas necessidades, de qualquer modo cada um arruma o passado e a memória está composta de muitas fantasias. Lembrei-me que o seu espírito invencível me acompanhava como faz o anjo a propulsão por jacto de Thui Nguyen com o seu filho Dai e isso deu-me uma certa segurança. Deixei de culpar Samantha e Shanon pelos nossos fracassos, fosse como fosse, eu escolhi-as como companheiras, o problema residia principalmente em mim e nascia nas camadas profundas da minha personalidade, onde estava a semente do abandono mais antigo. Uma a uma, examinei todas as minhas relações incluindo filhos, amigos e empregados, e numa dessas terças-feiras tive a súbita revelação de que em toda a minha vida me tinha rodeado de pessoas débeis com a calada esperança de que a troco de cuidar delas obteria o carinho ou pelo menos o agradecimento, mas o resultado tinha sido desastroso, quanto mais eu dava mais rancor recebia. Apenas os fortes me apreciavam, como Cármen, Timothy, Mike, Tina.
- Ninguém agradece ser transformado em inválido - explicou-me Ming O’Brien -, você não pode tomar outros a seu cargo para sempre, chega a um momento em que se cansa e, quando os deixa cair, sentem-se atraiçoados e naturalmente detestam-no. Passou-se assim com as suas esposas, alguns amigos, vários clientes, quase todos os seus empregados, e vai a caminho de suceder o mesmo com David.
As primeiras mudanças foram as mais difíceis, porque mal começaram a estremecer os alicerces do edifício torcido que era a minha vida, o equilíbrio perdeu-se e tudo ruiu.
Tina Faibich atendeu o telefonema na terça-feira à tarde, o seu chefe estava em reunião com dois advogados da companhia de seguros sobre o caso de King Benedict e não podia interrompê-lo, mas havia urgência na voz do desconhecido, que não se atreveu a esperar. Foi uma decisão acertada, porque salvou a vida a Margaret, pelo menos por algum tempo. Venha depressa, disse o homem, deu a direcção de um motel em Richmond e desligou o telefone sem se identificar. King Benedict folheava uma revista de historietas na sala de espera quando viu sair Gregory Reeves e enquanto este esperava o ascensor conseguiu perguntar-lhe onde ia tão apressado.
- Por esses lados você não pode andar sozinho e muito menos num automóvel como o seu - disse-lhe ele e sem esperar resposta acompanhou-o. Quarenta e cinco minutos mais tarde estacionaram em frente de uma fileira de quartos perdidos numa ruela cheia de lixo. à medida que se internavam pelos bairros mais pobres da cidade, tornou-se evidente que Benedict tinha razão, não havia um único branco à vista. Nos umbrais das portas, em frente dos bares e nas esquinas, agrupavam-se jovens ociosos que ameaçavam com gestos obscenos e gritavam impropérios à sua passagem. Algumas ruas não tinham nome e Reeves começou a dar voltas, perdido, sem se atrever a baixar o vidro do carro para perguntar a direcção, com medo que lhe cuspissem ou lhe atirassem uma pedrada, mas King Benedict não tinha o mesmo problema. Fê-lo parar, desceu tranquilamente, interrogou duas ou três pessoas e regressou saudando o grupo de rapagÕes que já tinha rodeado o carro fazendo troça e dando pontapés nos guarda-lamas. Foi assim que deram com Margaret. Bateram à porta do quarto número nove de um motel bem sujo e abriu-lhes um negro forte, com a cabeça rapada e cinco alfinetes atravessados na orelha, a última pessoa que Reeves gostaria de ver com a sua filha, mas não teve tempo de o examinar muito, porque o homem pegou-lhe no braço com uma mão de tenaz e guiou-o até à cama onde estava a rapariga.
- Julgo que está a morrer - disse ele.
Era um cliente casual, o primeiro do dia, que por alguns dólares obteve um bocado com aquela rapariga desgrenhada que todos conheciam no bairro e deixavam em paz apesar da sua raça, porque de qualquer modo já estava muito para lá das agressões habituais, tinha passado para o outro lado da aflição. Mas quando lhe arrancara o vestido com um rápido puxão e a levantou para a estender no colchão, ficou com uma marioneta desarticulada nas mãos, um pobre esqueleto a arder de febre. Sacudiu-a um pouco com a ideia de lhe abanar a modorra das drogas, e ela deixou cair a cabeça para trás sem forças para a segurar no pescoço, tinha os olhos semicerrados e um fio de saliva amarela corria-lhe da boca. Merda, resmungou o homem, e o seu primeiro impulso foi deixá-la ali estendida e sair disparado antes que alguém o visse e pudesse acusá-lo de a ter morto, mas, quando a largou sobre a cama, pareceu-lhe tão patética que não pôde evitar a compaixão e, num rasgo de generosidade dentro da violência da sua própria vida, inclinou-se sobre ela chamando-a, deu-lhe água a beber, apalpou-a por todos os lados à procura de alguma ferida e verificou que tinha o corpo em chamas. A rapariga vivia há pouco tempo naquele quarto bolorento, no chão espalhavam-se garrafas vazias, filtros de cigarros, seringas, restos de uma pizza já seca e quanta imundície é possível imaginar. Sobre a mesa, entre cosméticos abertos, havia uma bolsa de plástico, esvaziou-a sem saber o que procurava, encontrou uma chave, cigarros, uma dose de heroína, uma carteira com três dólares e um cartão com o nome de um advogado. Não lhe passou pela cabeça chamar a polícia, mas pensou que por alguma razão ela tinha aquele cartão, e correu ao telefone público da esquina para chamar Reeves, sem suspeitar que falava com o pai daquela miserável prostituta agonizante sobre uma cama sem lençóis. Dada a voz de alarme foi ao bar tomar uma cerveja, disposto a esquecer o assunto e raspar-se dali se aparecesse a polícia, mas num lugar recôndito da sua alma sentiu que a rapariga o chamava e pensou que ninguém gosta de morrer sozinho, nada perderia em acompanhá-la uns minutos mais e de passagem meter nos bolsos os dólares e a droga, que de qualquer maneira ela já não necessitava. Regressou ao quarto número nove com outra cerveja e um copo de cartão com gelo, e na urgência de lhe dar de beber, passar-lhe o gelo pela testa e ensopar uma combinação para lhe refrescar o corpo com água fria, esqueceu-se de esvaziar a carteira e passou o tempo que Reeves demorou a chegar ao motel.
- Bom, agora vou-me embora - disse desconcertado ao ver aquele homem branco de fato cinzento e gravata, que parecia uma brincadeira num lugar daqueles, mas ficou à porta por curiosidade.
- Que se passou? Onde é que há um telefone? Quem é você? - perguntou Reeves enquanto tirava o casaco para cobrir a sua filha nua.
- Eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer a conheço. E você quem é?
- Sou o pai. Obrigado por me telefonar - e embargou-se-lhe a voz.
- Merda... foda-se, que merda... deixe-me ajudá-lo.
O negro levantou Margaret como se fosse um recém-nascido e levou-a para o automóvel, onde esperava King Benedict para impedir que o delapidassem. Reeves partiu a toda a velocidade para o hospital livrando-se do tráfego através de uma neblina de lágrimas, enquanto a filha mal respirava dobrada sobre os joelhos de King Benedict, que lhe cantarolava uma daquelas antigas canções de escravos com que a mãe o adormecia quando era menino. Entrou na sala de emergência com a rapariga nos braços. Duas horas mais tarde permitiram vê-la por uns minutos na zona dos cuidados intensivos onde jazia crucificada sobre uma maca, com várias sondas e um respirador ligado ao corpo. O médico de serviço deu a primeira informação: uma infecção generalizada que lhe tinha afectado o coração. O prognóstico era muito pessimista, disse ele, talvez pudesse salvar-se com doses maciças de antibióticos e uma mudança radical de vida. Os exames posteriores revelaram que o organismo de Margaret correspondia ao de uma velha, os seus órgãos internos estavam destruídos pelas drogas, as veias traumatizadas pelas picadelas, os dentes soltos, a pele em escamas, e caía-lhe o cabelo às mechas. Pingava sangue por causas dos incontáveis abortos e doenças venéreas. Apesar de tantas atribulações, a menina prostrada com os olhos fechados na penumbra do quarto parecia um anjo a dormir, sem marcas aparentes de opróbrio, com a inocência intacta. A ilusão não durou muito, depressa o pai verificou quão abjecto era o abismo onde tinha caído. Procuraram manter afastado o seu sofrimento mas a alma ia-se-lhe em espasmos de angústia. Administraram-lhe metadona e deram-lhe nicotina em pastilhas de mascar, mas também tiveram que a amarrar para que não bebesse o álcool para desinfectar feridas nem roubasse os barbitúricos. Entretanto Gregory Reeves não conseguia comunicar com Samantha, que andava na índia atrás dos passos de um santão. Desesperado, telefonou a Ming O’Brien solicitando ajuda, embora na verdade tivesse perdido toda a esperança de arrancar Margaret das garras do seu maldito destino. Mal a enferma superou a crise de morte dos primeiros dias, a doutora O’Brien ia visitá-la com regularidade, fechando-se com ela horas a fio. à tarde Gregory chegava ao hospital e encontrava a filha destruída pela lástima de si própria, com expressão de louca e um tremor incontrolável nas mãos. Sentava-se a seu lado, desejando acariciá-la, mas sem se atrever a tocá-la, e permanecia em silêncio ouvindo uma enfiada de censuras e execráveis confissões. Assim soube do tenebroso martírio que a sua filha tinha suportado. Quis averiguar como tinha ido parar àquele gólgota, que raiva impenetrável e que solidão de trevas lhe tinham transtornado a existência daquele modo, mas ela própria não sabia. De vez em quando dizia-lhe a soluçar gosto de ti, papa, mas um instante depois virava-se contra ele bramindo um ódio visceral e culpando-o de toda a sua desolação.
- Olha para mim, maldito filho da puta, olha para mim - e com um repelão afastava os lençóis e abria as pernas mostrando-lhe o sexo, chorando e rindo com a ferocidade de uma louca.- Queres saber como ganho a vida enquanto tu viajas pela Europa e compras jóias às tuas amantes e a minha mãe medita na posição de lótus? Queres saber o que me fazem os bêbados, os mendigos, os paneleiros, os sifilíticos? Mas não tenho que te dizer nada porque tu és especialista em putas, tu pagas-nos para te fazermos as porcarias que nenhuma mulher te faria de borla...
Ming O’Brien tentou confrontar Margaret com a sua própria realidade, para que ela aceitasse a evidência de que não podia salvar-se sozinha, necessitava de tratamento a longo prazo, mas era como um jogo de enganos em espelhos deformadores. A rapariga fingia escutá-la e confessava-se enjoada da sua vida de desaforos, mas mal pôde dar os primeiros passos deslizava até ao telefone do corredor para pedir aos seus contactos que lhe levassem heroína ao hospital. Noutras ocasiões abatia-se por completo, horrorizada de si mesma, começava a contar pormenores da sua longa degradação e logo submergia num lodaçal de remorsos. O pai ofereceu-se para lhe pagar um programa de reabilitação numa clínica privada e por fim a jovem aceitou, aparentemente resignada. Ming passou a manhã mexendo cordelinhos para que a admitissem e Gregory foi comprar passagens para a levar no dia seguinte para o Sul da Califórnia. Naquela noite roubou a roupa a uma enfermeira e escapou sem deixar rasto.
- A infecção não está curada, apenas desapareceram os sintomas mais alarmantes. Se os antibióticos forem interrompidos, morrerá com certeza - disse o médico em tom neutro. Estava acostumado a toda a espécie de emergências e os drogados não lhe inspiravam nenhuma simpatia.
- Não a procure, Gregory. Tem que aceitar, de uma vez por todas, que nada mais pode fazer pela sua filha. Tem que deixá-la ir, ela é dona da sua vida - aconselhou Ming O’Brien ao desconsolado pai.
Entretanto aproximava-se a data para o julgamento de King Benedict. A companhia de seguros mantinha-se firme ao negar uma indemnização pelo acidente argumentando que a suposta amnésia era uma farsa. Haviam-no submetido a humilhantes exames médicos e psiquiátricos para provar que não existia nenhum dano físico que se pudesse atribuir à queda, interrogaram-no durante semanas sobre quanto acontecimento insignificante tivesse ocorrido entre os tempos da sua adolescência e o ano em curso, teve de identificar antigas equipas de futebol, perguntaram-lhe que se dançava em 1941 e em que dia rebentara a guerra na Europa. Também puseram detectives a espiá-lo durante meses com a esperança de o apanhar em falso. De boa fé, Benedict fazia por responder aos intermináveis questionários, porque não queria ser considerado um ignorante, mas à parte alguns factos que reteve das suas leituras diárias na biblioteca, o resto estava oculto na sossegada névoa dos factos por viver. Nada sabemos do futuro, talvez nem sequer exista, ante os nossos olhos só temos o passado, tinha-lhe dito a sua mãe muitas vezes, mas no seu caso não podia deitar mão ao seu, era uma sombra escorregadia onde se perdiam quarenta anos da sua passagem pelo mundo. Para Gregory Reeves, que tinha vivido atormentado por uma memória pesada, a tragédia do seu cliente resultava fascinante. Ele também o interrogava, não para o apanhar em mentiras, mas para saber como se sente um homem quando tem oportunidade de apagar a vida e fazê-la de novo. Conhecia King havia quatro anos e nesse período ouviu as suas fantasias de rapaz e as suas ambições de grandeza, enquanto o via ir, passo a passo, pelo mesmo caminho já feito, como um sonâmbulo preso num sonho que ia e vinha.
King não fez grandes mudanças, como se pisasse sobre as suas próprias marcas, foi à escola nocturna para estudar a secundária, obteve as mesmas más notas da sua época de rapaz e por fim deixou-a a meio do caminho; dois anos mais tarde, pela data em que a sua mente devia atingir os dezassete anos, apresentou-se em várias repartições de recrutamento das Forças Armadas a suplicar que o admitissem, mas em todas foi recusado. Tinha visto muitos filmes de guerra e, apanhado pelas fanfarronices militares, acabou por comprar um uniforme de soldado que usava para se consolar.
- Dentro de uns dois anos casará com uma fulana semelhante à sua primeira mulher e terá dois filhos, como os meus condenados netos - comentou Bel Benedict amargamente.
- Custa-me acreditar que alguém tropece duas vezes na mesma pedra - respondeu Gregory Reeves que tinha iniciado uma viagem silenciosa até ao seu passado e perguntava, amiúde, que teria sucedido se tivesse feito isto em vez daquilo.
- Não se pode viver duas vezes nem dois destinos diferentes. A vida não tem borracha para apagar - disse ela.
- Se nós pudermos, senhora Benedict, eu estou a tentá-lo. Pode-se mudar o rumo e emendar o apagador.
- O vivido não tem concerto. Pode melhorar-se o que vem pela frente, mas o passado é irreversível.
- Quer dizer que é impossível desfazer os erros cometidos? Não há esperança para a minha filha Margaret, por exemplo, que ainda não tem vinte anos?
- Esperança sim, mas os vinte anos perdidos jamais os poderá recuperar.
- É uma ideia aterradora... Significa que cada passo faz parte da nossa história, carregamos para sempre com todos os nossos desejos, pensamentos e acções. Por outras palavras, somos o nosso passado. O meu pai pregava sobre as consequências de cada acto e a responsabilidade que nos cabe na ordem espiritual do Universo, dizia que tudo o que fazemos volta a nós sempre, mais cedo ou mais tarde pagamos pelo mal e beneficiamos com o bem.
- Esse homem sabia muito.
- Estava desaparafusado e morreu demente. As suas teorias eram um emaranhado de confusões, eu nunca as entendi.
- Mas os seus valores eram claros, segundo parece.
- Ao pregar não dava o exemplo. A minha irmã dizia que era alcoólico e pervertido, que tinha a obsessão de controlar tudo o que nos arruinou a vida, pelo menos a dela. Mas era um homem forte, eu sentia-me bem a seu lado e tenho boas recordações dele.
- Segundo parece ensinou-o a caminhar direito.
- Tentou fazê-lo, mas morreu demasiado cedo. O meu caminho tem sido muito torto.
Comentando isto com a doutora Ming O’Brien, acabou por lhe contar a vida do seu cliente e a sua, e ela, que em geral ouvia atentamente e raras vezes abria a boca para dar opiniões, desta vez interrompeu-o para lhe perguntar pormenores. King Benedict tinha estado submetido a muita pressão? Como tinha sido a sua infância? Era uma pessoa tranquila e equilibrada ou, pelo contrário, era instável? E finalmente revelou-lhe que esse tipo de amnésia era raro, mas havia alguns casos registados. Tirou um livro da sua estante e passou-lho para a mão.
- Dê uma olhadela nisto. é provável que na adolescência o seu cliente tivesse sofrido um choque emocional muito forte ou um golpe semelhante ao que recebeu no acidente. Quando a experiência se repetiu, o impacte do passado foi insuportável e bloqueou-lhe a memória.
- Aparentemente não há nada disso.
- Deve haver algo muito doloroso ou ameaçador que não quer recordar. Pergunte à mãe.
Gregory Reeves passou a noite de vela lendo e à hora do pequeno-almoço tinha uma ideia clara do que Ming O’Brien sugerira. Lembrou-se daquela vez em que King Benedict desmaiara no seu escritório ao pedir que identificasse fotografias de revistas e da estranha reacção de Bel. Ela esperava lá fora durante a declaração e ao ouvir o barulho correu à biblioteca, viu-o no chão e inclinou-se para o socorrer, mas nesse momento descobriu a revista aberta sobre a mesa e com um gesto impulsivo tapou a boca de King com a mão. Depois não permitiu que continuasse o interrogatório, levou-o num táxi e a partir desse dia insistiu em estar presente em todas as entrevistas. Reeves atribuiu-o à preocupação pela saúde do filho mas agora tinha dúvidas. Excitado com esse resquício por onde se via um pouco de luz, foi directamente a casa dos pais de Timothy Duane para falar com a mulher. Bel estava na cozinha a limpar os talheres de prata quando o mordomo anunciou a visita, mas não chegou a sair para o receber, porque o advogado entrou na cozinha. Temos que falar, disse-lhe ele, agarrando-a por um braço sem lhe dar tempo de tirar o avental nem de lavar as mãos. A sós com ela no seu escritório, explicou-lhe que logo se jogaria duma só cartada o futuro do seu filho, a vitória dependia dos seus argumentos para convencer o juiz de que King não estava a fingir. Até ontem isso parecia-lhe quase impossível, mas com a sua ajuda hoje poderia torcer a direcção do caso. Repetiu a teoria de Ming O’Brien e pediu-lhe que lhe contasse o que acontecera a King Benedict na juventude.
- Como quer que me lembre de coisas que se passaram há tanto tempo?
- Tenho a certeza de que não precisa de fazer um esforço para o recordar, porque nem por um minuto o esqueceu, senhora Benedict - respondeu ele, abrindo o arquivo e pondo em frente dos seus olhos a revista que provocara o ataque do seu filho. - Que significa este rancho?
- Nada.
- King e você estiveram num lugar assim?
- Estivemos em muitos lugares, deslocávamo-nos todo o tempo à procura de trabalho. Várias vezes apanhámos algodão em sítios como este.
- Quando King tinha catorze anos?
- Talvez, não me recordo.
- Por favor, não torne as coisas mais difíceis para mim, porque não temos muito tempo. Quero ajudá-la, jogamos na mesma equipa, minha senhora, não sou seu inimigo.
Bel Benedict guardou silêncio observando a fotografia com expressão de teimosa dignidade, enquanto Gregory Reeves a olhava admirado pensando que na sua juventude ela devia ter sido uma beldade e que, se tivesse nascido noutra época ou noutra circunstância, talvez se tivesse casado com um magnate poderoso que levaria de braço dado aquela pantera negra sem que ninguém se atrevesse a objectar a sua raça.
- Bom, senhor Reeves, estamos num beco sem saída - disse ela por último com um suspiro. - Se calo a boca, como fiz durante quarenta anos, o meu Baby será um velho desvalido e pobre. Se digo o que se passou vou presa e o meu filho ficará sozinho.
- Pode haver mais do que duas alternativas. Se me consulta como advogado, tudo o que disser é confidencial, não sairá destas quatro paredes, asseguro-lhe.
- Quer dizer que você não pode denunciar-me?
- Não.
- Então nomeio-o meu advogado, porque vou necessitar de um de qualquer maneira - decidiu depois de longa pausa. - Foi em legítima defesa como se diz, mas quem irá acreditar em mim? Eu era uma pobre negra, de passagem na zona mais racista do Texas, andava com o meu filho de um lado para o outro ganhando a vida no que pudesse encontrar, só tinha uma mala com roupa e dois braços para trabalhar. Nesse tempo sobravam-me dores de cabeça. Sem querer via-me sempre em sarilhos, atraía a desgraça como o papel gomado atrai as moscas. Nunca ficava muito tempo em nenhuma parte, sucedia sempre qualquer coisa e tínhamos de partir outra vez. Surpreendeu-me que o dono do rancho me desse emprego, os outros braceros eram homens, e quase todos latinos, gente de passagem, mas era época de apanhar o algodão, supus que necessitasse de trabalhadores. Não podia alojar-me nos dormitórios comuns, pôs-nos, ao Baby e a mim, numa cabana imunda, no limite da propriedade, bastante longe, onde de manhã nos recolhia num camião e nos levava de volta ao fim do dia. Era um bom trabalho, aguentei o que pude, acredite. Não sou pessoa impertinente, mas tenho as minhas prioridades muito claras, a primeira coisa foi sempre dar de comer a meu filho, que me importava deitar-me com um homem? Dez ou vinte minutos e já está, em seguida esquece-se. Mas ele era daqueles que não podem fazê-lo como toda a gente, gostava da coisa à pancada e se não me via a sangrar não podia fazê-lo. Quem o diria, parecia tão boa pessoa, os trabalhadores respeitavam-no, pagava o que era justo, ia ao domingo à igreja, um modelo de patrão. Aguentei uma ou duas vezes que me chicoteasse e me chamasse negra porca e muitas coisas mais, não foi o único, eu estava mais ou menos acostumada, haverá alguma mulher a quem não tivessem dito isso? Nesse domingo Baby tinha ido jogar beisebol e o homem chegou na sua camioneta à cabana, eu estava sozinha e vi-lhe na cara o que ele procurava, além disso tresandava a álcool! Não sei muito bem como as coisas se passaram, senhor Reeves, ele tinha tirado o cinturão e estava a dar-me com força e julgo que eu gritava, nisto chegou Baby, meteu-se no meio e o tipo atirou-o para longe com um murraço. Bateu com a nuca contra a ponta da mesa. Vi o meu rapaz atordoado no chão e não pensei duas vezes, peguei no taco de beisebol e dei-lhe na cabeça. Foi um só golpe, com toda a alma, e matei-o. Quando Baby abriu os olhos lavei-lhe a ferida, tinha um corte profundo, mas não podia levá-lo a um hospital, onde nos teriam feito perguntas, estanquei-lhe o sangue com água fria e uns trapos. Pus o corpo do patrão na camioneta, cobri-o com sacos, e depois escondi-a longe de casa. Esperei a noite e levei a camioneta até umas vinte milhas de distância, fora da propriedade, e atirei-a por um barranco. Ninguém soube. Caminhei mais de cinco horas de volta à cabana. Lembro-me de que o resto da noite dormi com a consciência limpa e no dia seguinte estava à porta à espera que me recolhessem para o trabalho como se nada se tivesse passado. Com o meu filho jamais falei disso. A polícia encontrou o corpo e julgou que o patrão tinha bebido mais que a sua conta e se voltara com a camioneta. Interrogaram os braceros, mas, se algum viu alguma coisa, não me denunciou e o caso não passou dali. Pouco depois parti com Baby e nunca mais pusemos os pés no Texas. Imagine-se o que é a vida, senhor Reeves, quarenta anos mais tarde vem este fantasma foder-me a vida.
- Pesou-lhe na consciência? - perguntou Reeves pensando nos mortos que ele mesmo carregava.
- Nunca, graças a Deus. Aquele homem procurou o seu fim.
- A minha amiga Cármen, que é uma fonte inesgotável de sentido comum, disse-me uma ocasião que não há necessidade de confessar o que ninguém pergunta...
- Mas sairá no julgamento, senhor Reeves?
- King ainda tem a cicatriz na cabeça?
- Sim, ficou-lhe muito feia porque não levou pontos.
- Demonstraremos que aos catorze anos partiu a cabeça ao cair contra uma mesa, e com sorte não teremos necessidade de mencionar o resto da história. Se conseguir um especialista que relacione o primeiro golpe com o acidente de construção talvez possamos resolver o caso sem ir a juízo, senhora Benedict.
Na audiência de reconciliação, Ming O’Brien provou que o quadro de King Benedict correspondia a uma amnésia psicogénica e, dada a falta de progressos, provavelmente nunca se recuperaria. Explicou que os antecedentes coincidiam com as causas habituais desse transtorno, King teve uma infância e juventude atormentadas, sofreu um golpe grave durante a adolescência, antes do acidente esteve submetido a fortes pressões e era de temperamento depressivo. Ao cair do andaime sofreu um trauma semelhante ao anterior e a sua mente dera um salto para trás e refugiou-se no esquecimento, como defesa contra os pesadelos que o atormentavam. Os advogados defensores fizeram o possível por desfazer o diagnóstico, mas esbarraram contra a firmeza da doutora, que mostrou meio metro de volumes com referências a casos familiares. Por outro lado, os agentes contratados para o observar apenas obtiveram fotografias do suspeito entretido com um comboio eléctrico, lendo contos de aventuras e brincando à guerra disfarçado de soldado. A juíza, uma matrona de carácter tão forte como o de Ming O’Brien, chamou os réus de parte e fê-los ver que lhes convinha pagar sem mais problemas, porque se iam a julgamento perderiam muito mais. De acordo com a minha larga experiência, disse, os membros de qualquer júri seriam benévolos com este pobre homem e a sua abnegada mãe, tal como eu o seria se fosse um deles. Depois de dois dias de pega e larga os advogados cederam. Gregory Reeves celebrou o triunfo convidando Bel, King e o seu filho David para ver a Disneylândia, onde se perderam num mundo fantástico de animais que falam, luzes que destroem a noite e máquinas que desafiam as leis da física e os mistérios do tempo. No regresso ajudou Bel a comprar uma casa modesta no campo e colocou o resto do dinheiro do seguro numa conta para que King e ela tivessem uma pensão para o resto dos seus dias.
Quando Dai descuidou o seu computador, começou a usar loção de barbear e a examinar-se no espelho com ar desolado, Cármen Morales convidou-o a comer fora para falar com ele, seguindo o costume de marcar encontros de noivos para tratar de assuntos importantes. A vida tinha-se-lhe complicado e com os anos perdera-se em parte a carinhosa intimidade que os unira ao princípio, embora continuassem a ser os melhores amigos. Dai era um adolescente de aspecto latino, parecido com o pai, mas mais intenão e sombrio. Nada herdou do espírito aventureiro de Juan José nem da explosiva personalidade de Cármen, era um rapaz introvertido e um pouco solene, demasiado sério para a sua idade. Aos quatro ou cinco anos demonstrou um talento pouco habitual para as matemáticas e desde então foi tratado como um prodígio por todos menos pela sua mãe adoptiva. As professoras apresentaram-no em diversos programas de televisão e concursos onde aparecia resolvendo de cabeça complicadas equações. Ganhou assim vários prémios, inclusivamente uma motocicleta quando não tinha idade para a conduzir. O seu temperamento orgulhoso estava a ficar arrogante, mas Cármen manteve-o à distância, pondo-o a trabalhar na sua fábrica durante as férias, para aprender desde pequeno quanto custa ganhar a vida e ter contacto com os trabalhadores. Também lhe cultivou a sua curiosidade e abriu-lhe a mente a outras culturas. Aos quinze anos Dai tinha estado no Oriente, em áfrica e em vários países da América do Sul, falava alguma coisa de espanhol e vietnamita, tinha na ponta dos dedos a contabilidade do negócio de sua mãe, dispunha de uma conta-poupança e várias universidades já lhe tinham oferecido bolsas, para estudar no futuro. Enquanto o país inteiro discutia a crise de valores entre os jovens e o desastre do sistema educativo, que tinha criado uma geração de ignorantes e frouxos, Dai estudava com consciência, trabalhava e nos seus tempos livres explorava a biblioteca e jogava com o seu computador. Tinha no seu quarto um pequeno altar com a fotografia de sua mãe e seu pai, montada por Leo Galupi, junto a uma cruz de madeira, um pequeno Buda de loiça e um recorte de uma revista com a imagem da Terra vista de uma nave espacial. Não era sociável, preferia estar só e, até então, Cármen foi a sua única e grande companheira. Aquele rapaz amável, satisfeito com a sua vida e cómodo na sua pele de lobo solitário, mudou de repente nos finais da Primavera. Passava horas a brunir-se, começou a vestir-se, a falar, a mover-se como os cantores de rock, saía fora de horas e fazia esforços gigantescos para ser aceite pelos rapazes cuja companhia antes desprezava. Renegou a sua paixão pelas matemáticas porque desejava ser um do montão e isso separava-o dos seus companheiros. Quando a mãe o viu sofrer empastando o cabelo com laca para domar as suas mechas negras, a pôr pasta dentífrica nas borbulhas e a passear em frente do telefone, soube que o tempo da idílica cumplicidade com o seu filho estava a acabar e teve uma crise de ciúmes que não se atreveu a confessar, nem sequer a Gregory Reeves nas conversas das segundas-feiras. Nessa altura tinha lojas Tamar espalhadas pelo mundo e contava com uma eficiente equipa de empregados para conduzir o seu negócio, enquanto ela se limitava a desenhar linhas novas e a promover a imagem da companhia. Comprou uma casa de madeira no meio de grandes árvores nas colinas de Berkeley, onde vivia com o seu filho e a mãe. Pedro Morales tinha morrido havia alguns anos. Quando pressentiu o fim negou-se a ir ao hospital e não quis que lhe prolongassem a vida com recursos artificiais, pensou que as despesas com os médicos arruinariam a família e a sua mulher ficaria na rua. Trabalhou uma vida inteira para levar para a frente a sua pequena tribo e não desejava prejudicá-los nos seus últimos momentos. Estava muito orgulhoso dos seus, sobretudo de Cármen e do seu neto Dai, em quem via a reencarnação do seu filho Juan José. Foi para o outro mundo sem deixar fios soltos, com a sensação de ter cumprido sem apressar o destino. Inmaculada ajudou o marido no último transe e depois consolou os aflitos filhos, noras e netos. Ao desaparecer o patriarca, não se desmembrou a família, porque ela manteve bem atados os laços do afecto e da ajuda mútua. Depois do enterro decidiu ficar com Cármen por algum tempo e em poucas semanas repartiu os seus haveres e vendeu a casa. Durante anos tinha-se empenhado a juntar aqueles móveis e adornos, testemunhos da sua prosperidade, mas ao perder o marido nada de material tinha significado para ela. Passa-se metade da vida a juntar coisas e a segunda a desfazer-se delas, dizia ela. Apenas conservou a cama que tinha partilhado com Pedro Morales durante meio século, porque nela desejava morrer um dia. A mulher tinha mudado pouco, parecia congelada numa idade indefinida, a força da sua raça indígena parecia protegê-la do desgaste do corpo e das falhas da memória, nunca tinha estado tão lúcida, era uma velha firme e diligente, imune ao cansaço, à debilidade ou à má saúde. Encarregou-se dos assuntos domésticos de Cármen com fervor militante, tinha criado seis filhos na estreiteza de um bairro pobre e aquela casa cheia de comodidades não representava nenhum desafio para ela. Custou muito impedi-la de partir as costas lavando roupa ou batendo ovos, era partidária de manter as mãos sempre ocupadas, o ócio produz doenças, dizia ela para se justificar quando a encontravam empoleirada numa escada a lavar janelas ou de gatas pondo armadilhas para os mapaches (Mapache - mamífero carnívoro da América do Norte. (N.T.)), que tinham formado uma colónia nos alicerces da casa.
Continuava a cozinhar manjares mexicanos que só Dai e ela saboreavam porque Cármen estava a dieta, levantava-se ao amanhecer para regar a sua horta de verduras e ervas aromáticas, limpar, cozinhar e lavar, e era a última a ir deitar-se, depois de telefonar a cada um dos seus filhos, em diferentes cidades do país, não era mulher para renunciar ao rasto dos seus descendentes. Tinha o hábito da servidão muito arreigado, não podia modificá-lo na velhice, mas era a primeira a brincar com os seus trabalhos domésticos. Anos antes aplaudira secretamente Cármen quando regressou das suas viagens feita numa «gringa liberta», como resmungava Pedro Morales. O facto de a sua filha ganhar a vida melhor que os seus irmãos dava-lhe um íntimo prazer, compensava a sua própria vida sempre a baixar a cabeça em frente dos homens. Cármen obrigou a mãe a usar máquinas modernas, comprava as tortilhas em embalagens de plástico, e abriu-lhe uma conta no banco, que ela tratava com o mesmo respeito que dedicava a um livro de missa. Inmaculada foi a primeira a adivinhar que Dai tinha entrado na fase do amor não correspondido e disse-o à filha.
- Conta-me tudo - disse Cármen ao rapaz, no restaurante.
Daí tratou de esquivar-se, mas atraiçoaram-no o ar de desamparo e o rubor, era de pele morena e o afogueamento dava-lhe um certo tom de beringela. A mãe não lhe deu escapatória e à sobremesa não teve outro remédio que confessar, comendo o bolo de chocolate e dando voltas na cadeira, que não podia dormir, nem estudar, nem pensar, nem viver, passava as horas junto do telefone à espera de uma chamada que nunca chegava, que vou fazer, mamã, com certeza ela despreza-me porque não sou branco nem jogo futebol, para que nasci eu, para que me foste buscar ao Vietname e me criaste tão fora dos outros, não conheço os nomes dos grupos de rock e sou o único estúpido que chama asiáticos aos orientais e afro-americanos aos negros, que se preocupa com os buracos na camada de ozono, com os mendigos na rua e com a guerra contra a Nicarágua, o único politicamente correcto da minha maldita escola, ninguém se importa a ponta de um caralho com isso, mamã, a vida é uma merda, e se Karen não me telefona hoje juro-te que monto na motocicleta e atiro-me pelo barranco abaixo porque não posso viver sem ela. Cármen interrompeu-lhe o discurso com uma bofetada na cara, que ressoou como um bater de porta na esotérica paz do restaurante vegetariano. Nunca lhe tinha batido. Dai levou a mão à face, tão surpreendido que os lamentos se lhe congelaram nos lábios.
- Não voltes a falar em matar-te, ouviste?
- É uma maneira de dizer, mamã!
- Não quero ouvir isso nem a brincar. Vais viver a tua vida inteira, ainda que isso te doa. E agora diz-me quem é essa desgraçada que se dá ao luxo de desprezar o meu filho.
Tratava-se de uma companheira de turma que por sua vez estava enamorada, como todas as outras raparigas da escola, do capitão da equipa de futebol, com quem Dai nem em sonhos podia competir. No dia seguinte Cármen acompanhou o seu filho para procurar uma saída, encontrou uma loira deslavada, com cara de bebé, meio escondida por detrás de um balão de pastilha elástica. Suspirou aliviada, certa de que Dai se refaria do mal de amor e encontraria rapidamente alguém mais interessante, mas se não fosse assim, nada se poderia fazer, era impossível poupar-lhe experiências ou sofrimentos como fizera quando era pequeno. Depois compreendeu que a sua sensação de alívio tinha uma causa mais profunda que a insignificante personalidade de Karen e a certeza de que Dai não sofreria por ela eternamente, começava a intuir as vantagens de o seu filho voar sozinho. Pela primeira vez, nos treze anos em que estavam juntos, podia pensar em si mesma como um ser separado e individual, até então Dai era o seu prolongamento e ela era o dele, siameses pegados pelo coração, como diria Inmaculada. Nessa tarde a mãe encontrou-a sentada na cozinha em frente de uma chávena de chá de manga, olhando as sombras escuras das árvores na última luz do dia.
- Parece-te que estou a ficar velha, mamã?
- Mais velha do que no ano passado, mas menos do que no ano que vem, graças a Deus - respondeu Inmaculada.
- Sabes que já podia ser avó? A vida passa a voar.
- Na tua idade passa depressa, filha, julga-se que se vive para sempre. Na minha idade os dias são sal e água, nem dou conta de como passo as horas.
- Julgas que ainda alguém se pode apaixonar por mim?
- Pergunta antes se podes, ainda, apaixonar-te tu. A felicidade que se vive vem do amor que se dá.
- Não duvido que eu possa apaixonar-me.
- Fico contente, porque depressa morrerei e Dai sai do teu lado, isso é normal. Não deves ficar sozinha. Canso-me de te dizer que te cases.
- Com quem mamã?
- Com Gregory, esse rapaz é melhor que todos os noivos que te conheci, o que não é dizer muito, é claro. Temos de reconhecer o mau olho que tens para os homens!
- Gregory é meu irmão, casarmos seria pecado de incesto.
- É pena. Então procura um da tua idade, não percebo por que andas com tipos mais novos que tu.
- Não é má ideia, velha... - respondeu Cármen com um sorriso atrevido que inquietou um pouco a mãe.
Três semanas mais tarde disse em casa que partia para Roma à procura de um amigo. Através de um investigador privado localizou Leo Galupi na vasta extensão do Universo, tarefa que resultou bastante fácil porque o seu nome estava em letras destacadas na lista dos telefones de Chicago. Ao acabar a guerra regressara ao ponto de partida tão pobre como tinha ido, tinha perdido o dinheiro ganho nos seus estranhos negócios, mas voltou rico em experiência. Os anos a traficar na ásia tinham-lhe refinado o gosto, sabia muito de arte e tinha bons contactos, formou assim a empresa dos seus sonhos. Abriu uma galeria com objectos orientais e foi tal o seu êxito que em dez anos tinha uma sucursal em Nova Iorque e outra em Roma, onde vivia boa parte do ano. O investigador informou Cármen de que Galupi continuava solteiro e mostrou-lhe uma série de fotografias tiradas com teleobjectiva onde ele aparecia vestido de branco caminhando pela rua, subindo para um automóvel e comendo um gelado nos degraus da Praça de Espanha no mesmo sítio onde ela se tinha tantas vezes sentado quando ia àquela cidade visitar as lojas Tamar. Ao vê-lo, o seu coração deu um salto. Naqueles anos tinha esquecido os seus traços, na verdade não tinha pensado muito nele, mas essas imagens um pouco desfocadas provocaram-lhe uma onda de nostalgia, descobriu que a sua recordação permanecia a salvo num compartimento secreto da sua memória. é melhor pôr-me em acção, tenho muito que fazer, concluiu. Foram dias nervosos, preparando a viagem, muito diferentes dos outros, em certo sentido tratava-se de uma missão de vida ou de morte, como disse à mãe quando esta a surpreendeu com o conteúdo dos seus armários no chão, a provar vestidos num furacão de impaciente coqueteria. Uma vez resolvidos os assuntos da fábrica e da casa, fez um exame médico, pintou os cabelos brancos e comprou roupa interior de seda. Observou-se com impiedosa atenção no espelho grande da casa de banho, contou as rugas e arrependeu-se de não ter feito nunca ginástica e das empanturradelas de leite condensado com que enganara a dieta ao longo dos anos. Beliscou braços e pernas e verificou que já não eram firmes, fez por encolher a barriga, mas ali havia uma prega rebelde, examinou as mãos arruinadas pelo trabalho com os metais, e os seios que lhe tinham pesado sempre como uma carga alheia. Não tinha o mesmo corpo da época em que Leo Galupi a conhecera, mas achou que o inventário dos seus encantos não estava mal, pelo menos não havia marcas de varizes nem rugas de gravidez, sem recordar que não era a mãe de Dai e nunca tinha parido. Com os pormenores sob controlo foi almoçar com Gregory Reeves, com quem não quis falar desde logo dos seus planos porque receou que a julgasse demente. Timidamente a princípio e entusiasmada depois, falou-lhe do que averiguara sobre Leo Galupi e mostrou-lhe as fotografias. Teve uma surpresa: o seu amigo recebeu com naturalidade o súbito impulso de empreender uma peregrinação à Europa para propor casamento a um homem que não via há mais de dez anos e com quem nunca tinha falado de amor. Pareceu-lhe tão congruente com o carácter de Cármen, que perguntou por que não o fizera antes.
- Estava muito ocupada com Dai, mas o meu filho já está grande e precisa menos de mim.
- Podes ter uma decepção.
- Vou estudá-lo com cuidado antes de tomar uma resolução. Isso não me preocupa... mas talvez ele não goste de mim, Greg, estou muito mais velha.
- Olha as fotografias, mulher. Os anos também passaram para ele - disse Reeves pondo-lhas à frente, e então ela viu pela primeira vez que Leo Galupi tinha menos cabelo e mais peso. Começou a rir contente e decidiu que em vez de lhe escrever ou de lhe telefonar para anunciar a sua visita, como tinha pensado, iria simplesmente vê-lo para destruir as armadilhas da imaginação e saber, de imediato, se o seu extravagante projecto tinha algum fundamento.
Cármen Morales apareceu três dias mais tarde na galeria de arte em Roma, onde chegou directamente do aeroporto, enquanto as malas aguardavam no táxi. Ia a rezar para o encontrar e pelo menos dessa vez as suas orações deram o resultado esperado. Quando entrou no local, Leo Galupi, vestido com calças e camisa de linho enrugado e sem meias, discutia os pormenores do próximo catálogo com um jovem de roupa tão desengomada como a sua. Entre tapetes da índia, marfins chineses, madeiras talhadas do Nepal, porcelanas e bronzes do Japão e um nunca-acabar de objectos exóticos, Cármen parecia fazer parte da exposição, com o seu torvelinho de roupas ciganas e o ténue brilho das suas jóias de prata envelhecida. Ao vê-la, deixou cair o catálogo das mãos e ficou a contemplá-la como a uma aparição muitas vezes sonhada. Ela pensou que, tal como receava, aquele noivo improvável não a tinha reconhecido.
- Sou Tamar... lembras-te de mim? - e avançou vacilante.
- Como é que não vou lembrar-me! - e pegou na sua mão e sacudiu-a por alguns segundos, até que dando conta do absurdo daquele recebimento estreitou-se nos seus braços.
- Vim perguntar-te se te queres casar comigo - atirou-lhe Cármen murmurando meio afogada, porque não era assim que tinha planeado, e enquanto o dizia estava a amaldiçoar-se por deitar tudo a perder na primeira frase.
- Não sei - foi a única coisa que ocorreu a Galupi quando pôde falar, e ficaram olhando-se maravilhados, enquanto o jovem do catálogo desaparecia sem fazer ruído.
- Estás apaixonado por alguém - balbuciou ela, sentindo-se cada vez mais idiota, mas incapaz de se lembrar da estratégia programada até aos mínimos pormenores.
- Neste momento parece-me que não.
- És homossexual?
- Não.
- Queres tomar um café? Estou um pouco cansada, a viagem foi longa...
Leo Galupi levou-a até à rua, onde o sol radiante do Verão, o bulício das pessoas e o trânsito devolveram aos dois o sentido do presente. Dentro da galeria tornavam ao tempo de Saigão, estavam de volta ao quarto da imperatriz chinesa que ele tinha preparado para ela e onde tantas vezes a espreitara de noite pelas ranhuras do biombo para a ver dormir. Quando então se despediram, Galupi sentiu a mordedura da solidão pela primeira vez na sua vida de trota-mundos, mas não quis admiti-la e curou-a com teimosa indiferença, submergindo na urgência dos negócios e das suas viagens. Com o tempo desapareceu a tentação de lhe escrever e depois acostumou-se ao sentimento doce e triste que ela lhe provocava. A sua recordação servia-lhe de protecção contra o aguilhão de outros amores, uma espécie de seguro contra os enredos românticos. Quando muito jovem, tinha decidido não se prender a nada nem a ninguém, não era homem de família nem de grandes compromissos, considerava-se um solitário, incapaz de suportar o tédio da rotina ou as exigências da vida de casal. Em várias ocasiões escapou de uma relação demasiado intensa explicando à noiva despeitada que não podia amá-la porque no seu destino só cabia amor por uma mulher chamada Tamar. Essa limitação, muitas vezes repetida, acabou por se tornar numa espécie de certeza trágica para ele. Não examinou em profundidade os seus sentimentos porque gostava da sua liberdade e Tamar era apenas um fantasma útil ao qual recorria se necessitava desfazer-se de um compromisso incómodo. E agora, justamente quando já se sentia a salvo dos sobressalto do coração, aparecia ela a cobrar as mentiras que durante anos tinha dito a outras mulheres. Custava acreditar que tivesse entrado na sua loja meia hora antes a pedir-lhe subitamente que se casassem. Agora tinha-a a seu lado e não se atrevia a olhar para ela, enquanto sentia os seus olhos examinando-o sem disfarçar.
- Desculpa-me, Leo, não pretendo encurralar-te, não foi assim que pensei fazer.
- Como foi então?
- Pensava seduzir-te, comprei uma camisa de dormir de renda preta.
- Não é necessário teres tanto trabalho - riu Galupi. - Vou levar-te a minha casa para tomares um banho e dormires um bom bocado, deves estar moída. Depois falamos.
- Perfeito, isso dá-te tempo para pensar - suspirou Cármen sem intenção de ironia.
Galupi vivia numa antiga villa dividida em vários apartamentos. O seu tinha uma só janela para a rua, o resto olhava para um pequeno jardim, antigo, onde cantarolava a água de uma fonte e onde cresciam trepadeiras à volta de estátuas mutiladas e cobertas pela patina verde do tempo. Muito mais tarde, sentados no terraço, saboreando um copo de vinho branco, enquanto admiravam o jardim iluminado por uma lua resplandecente e aspiravam o perfume discreto dos jasmins silvestres, despiram a sua alma. Os dois tinham tido incontáveis paixonetas e tropeções, tinham dado muitas voltas e praticado quase todos os jogos do engano que fazem perder os apaixonados. Foi refrescante falar de si mesmos e dos seus sentimentos sem segundas intenções nem tácticas, com uma honestidade brutal. Contaram as suas vidas em traços largos, disseram o que desejavam para o futuro e verificaram que a antiga alquimia que antes os tinha atraído ainda estava ali, bastava só um pouco de boa vontade para a reanimar.
- Até há duas semanas não tinha pensado em casar-me, Leo.
- E porque é que pensaste em mim?
- Porque não consegui esquecer-te, gosto de ti e julgo que, há um montão de anos, tu gostavas também um pouco de mim. De todos os homens que conheci há apenas dois que quero ter ao lado quando estou triste.
- Quem é o outro?
- Gregory Reeves, mas ele não está preparado para o amor e não tenho tempo para esperar por isso.
- De que espécie de amor falas?
- Amor total, nada de meias-tintas. Procuro um companheiro que goste muito de mim, me seja fiel, não minta, respeite o meu trabalho e me faça rir. é pedir muito, já sei, mas eu ofereço mais ou menos o mesmo e além disso estou disposta a viver onde tu quiseres, desde que aceites o meu filho e a minha mãe e eu possa viajar com frequência. Sou saudável, sustento-me a mim própria e nunca me deprimo.
- Isso parece um contrato.
- E é. Tens filhos?
- Não, que eu saiba, mas tenho uma mãe italiana. Isso será um problema, nunca aprova as mulheres que lhe apresento.
- Não sei cozinhar e sou muito simples na cama, mas em minha casa dizem que é agradável viver comigo, principalmente porque me vêem pouco, passo muitas horas fechada na minha oficina. Não molesto muito...
- Ao contrário eu não sou nada fácil.
- Poderás fazer um esforço, ao menos?
Beijaram-se pela primeira vez, ao princípio em tentativa, depois com curiosidade e logo com a paixão acumulada em muitos anos de enganar com encontros banais a necessidade de um amor. Leo Galupi levou aquela noiva imponderável para o seu quarto, uma divisão alta, adornada com ninfas pintadas no gesso do tecto, uma cama grande e almofadÕes de tecido antigo. Ela sentia a cabeça às voltas, um pouco atordoada, e não soube se estava enjoada pela longa viagem se pelos copos de vinho, não quis averiguar, abandonou-se a essa languidez, sem forças para impressionar Leo Galupi com a sua camisa de renda preta nem com destrezas aprendidas com amantes anteriores. Atraiu-a o seu cheiro a homem são, um cheiro limpo, sem ponta de fragrâncias artificiais, um pouco seco, como o do pão ou da madeira, meteu o nariz no ângulo do seu pescoço com o ombro, aspirando-o como um cão perdigueiro atrás de um rasto, os aromas persistiam na sua memória mais que qualquer outra recordação e nesse momento voltou-lhe a imagem de uma noite de Saigão, quando estavam tão perto que sentiu a marca do seu odor sem saber que ia permanecer com ela todos aqueles anos. Começou a desabotoar-lhe a camisa, mas os botÕes não passavam nas casas demasiado estreitas, então pediu-lhe, impaciente, que a tirasse.
Uma música de cordas chegava-lhe de muito longe, trazendo a milenária sensualidade da +ndia àquela casa romana, banhada pela lua e pela vaga fragrância dos jasmins do jardim. Durante anos tinha feito amor com rapazes vigorosos e agora acariciava umas costas um pouco encurvadas e passava os dedos por uma testa ampla e por cabelos finos. Sentiu uma ternura complacente por aquele homem já maduro e por um momento tentou imaginar quantos caminhos e mulheres ele teria percorrido, mas imediatamente sucumbiu ao prazer de o abraçar sem pensar em nada. Sentiu-lhe as mãos a tirar-lhe a blusa, a ampla saia, as sandálias e ficarem vacilantes nas suas pulseiras. Nunca se despojava delas, eram a sua última couraça, mas considerou que tinha chegado o momento de se desnudar completamente, sentou-se na cama para as tirar uma a uma. Caíram sobre o tapete sem ruído. Leo Galupi percorreu-a com beijos exploradores e mãos sábias, lambeu-lhe os mamilos ainda firmes, o caracol da orelha e o interior das coxas onde a pele palpitava ao menor contacto, enquanto para ela o ar ia ficando mais denso, ofegando pelo esforço em respirar, uma quente urgência apoderava-se do seu ventre, fazia-lhe ondular os quadris e saía-lhe em gemidos, até que não pôde aguentar mais, voltou-o e montou-o como uma animada amazona para se espetar nele, imobilizando-o entre as suas pernas na desordem dos almofadÕes. A impaciência ou a fadiga faziam-na desajeitada, mexia-se como uma cobra procurando-o, mas escorregava na humidade do prazer e do suor do Verão, por último começou a rir e deixou-se cair, esmagando-o com a dádiva dos seios, envolvendo-o na desordem do seu cabelo revolto e dando-lhe instruções em espanhol que ele não compreendia. Picaram assim abraçados, rindo, beijando-se e murmurando tontices num rumor de idiomas misturados, até que o desejo foi mais forte, e numa dessas reviravoltas de cachorros, Leo Galupi abriu caminho sem pressa, firmemente, detendo-se em cada estação do caminho para a esperar e conduzir até aos últimos jardins, onde a deixou actuar sozinha até ela sentir que se afundava por um abismo de sombras e uma explosão feliz lhe sacudia todo o corpo. Depois foi a vez dele, enquanto ela o acariciava agradecida por aquele orgasmo absoluto e sem esforço. Finalmente adormeceram num novelo de pernas e braços. Nos dias que se seguiram descobriram que se divertiam juntos, ambos dormiam para o mesmo lado, nenhum deles fumava, gostavam dos mesmos livros, filmes e comidas, votavam no mesmo partido, detestavam desporto e viajavam regularmente a lugares exóticos.
- Não sei se sirvo para marido, Tamar - desculpou-se Leo Galupi, uma tarde numa trattoria da Via Venetto. - Necessito mover-me em liberdade, sou um vagabundo.
- Isso é o que eu gosto em ti, eu também o sou. Mas estamos numa idade em que não nos faria mal um pouco de tranquilidade.
- A ideia faz-me medo.
- O amor nasce com o tempo... Não tens que responder-me já, podemos esperar até amanhã - riu ela.
- Não é nada pessoal, se alguma vez decidir casar-me, só o farei contigo, prometo.
- Isso já é qualquer coisa.
- Não é melhor sermos amantes?
- Não é o mesmo. Já não tenho idade para experiências. Quero um compromisso a longo prazo, dormir de noite abraçada a um companheiro permanente. Julgas que teria atravessado meio mundo para te propor sermos amantes? Será agradável envelhecer de mão dada, vais ver - respondeu Cármen, categórica.
- Que horror! - exclamou Galupi, francamente pálido.
A oportunidade de me sentar uma vez por semana no consultório de Ming O’Brien para falar de mim e meditar sobre as minhas acções era uma experiência que eu desconhecia. A princípio custou um pouco descontrair-me, mas ela ganhou a minha confiança e a pouco e pouco fomos abrindo os compartimentos selados do meu passado. Pela primeira vez, falei daquele dia no quarto das vassouras, quando Martinez me violou, e a partir dessa confissão pude explorar os recantos mais secretos da minha vida. O segundo ano foi o pior, saía de cada sessão congestionado pelo choro, Ming não mentiu quando me disse que era um processo doloroso, por várias vezes estive a ponto de me dar por vencido. Por sorte que não o fiz. Ao passar em revista o meu destino durante esses cinco anos, compreendi o guião da minha vida e dei os passos necessários para o mudar, com o tempo aprendi a vigiar os meus impulsos e a deter-me em seco quando estava a ponto de repetir os velhos erros. A minha vida familiar continuava a ser um pesadelo e não havia muito que pudesse fazer por melhorá-la, Margaret estava fora do meu alcance, mas concentrei-me para dar certa estrutura a David. Até então tinha usado o sistema da balança automática, como o chamou Ming, o meu filho sempre que saía com a sua era só questão de dar e voltar a dar à alavanca da máquina, certo de que em algum momento receberia um prémio. Pedia-me algo, eu dizia que não, ele começava a massacrar-me sem descanso até me rebentar os nervos, ganhava-me pelo cansaço e eu cedia. Pôr-lhe limites não foi fácil porque eu próprio não os tivera em miúdo, criei-me à rédea solta na rua e pensei que as pessoas se formam sozinhas, que a experiência ensina, mas no meu caso recebi disciplina e valores quando o meu pai estava vivo, dizem que os primeiros cinco ou seis anos são muito importantes na formação, além disso tinha que me desenrascar sozinho, sempre tive que trabalhar. Os meus filhos, pelo contrário, cresceram como selvagens, sem cuidados e sem verdadeiro amor, mas nunca lhes faltou nada de ordem material. Tentei compensar com dinheiro a dedicação que não lhes soube dar. Má ideia.
Uma das decisões mais importantes foi aligeirar algumas cargas que eu trazia às costas e reorganizar o meu escritório. Era impossível modificar a natureza dos meus empregados, mas podia substituí-los, não era meu papel curá-los dos seus vícios, pagar pelas suas faltas ou resolver os seus problemas. Por que razão eu me rodeava invariavelmente de alcoólicos? Por que se colava a mim gente neurótica ou débil? Tive de rever esse aspecto da minha personalidade e pôr-me à defesa. O escritório custava mais do que produzia, só eu ficava com a maior parte das receitas, no entanto andava sempre de carteira vazia e tinham-me cancelado quase todos os cartÕes de crédito. O meu bom amigo Mike Tong levava anos de sufoco tentando acertar as contas e Tina avisou-me até à saciedade que os outros advogados não só descuidavam os clientes mas que às vezes resolviam casos privadamente, sem deixar registo na minha contabilidade, e que também me carregavam com os seus gastos pessoais, telefonemas, contas de restaurantes, viagens e até presentes para as suas amantes. Não lhe liguei, andava demasiado ocupado chafurdando no meu próprio caos. Pensava que nada podia afundar-me, que encontraria sempre a forma de resolver os problemas, tinha vencido outros obstáculos e não seria derrotado por contas por pagar e roubos mesquinhos, mas por fim a carga tornou-se insuportável. Durante um bom tempo, debati-me com dívidas e culpas até que Mike Tong com a precisão do seu ábaco e Ming O’Brien com a sua perseverança, me ajudaram a despedir um a um os zangÕes e fechar as sucursais de outras cidades. Conservei Tina, Mike e uma advogada jovem, inteligente e leal. Aluguei também parte do andar a dois profissionais para aliviar o orçamento e assim reduzi as despesas ao mínimo. Comprovei então que o trabalho em pequena escala me resultava mais rentável e mais divertido, tinha as rédeas na mão e podia dedicar-me aos desafios da minha profissão em vez de delapidar energia a pôr em ordem uma série esmagadora de ofensas insignificantes. Além disso tinha maior contacto com os meus clientes, do que mais gosto no meu trabalho. Nessa época eu também me transformara, tal como fiz com o escritório, desprendi-me de muitas coisas supérfluas e de aspectos que me prejudicavam, renunciei aos arrogantes charutos espanhóis, na realidade deixei completamente de fumar e não tornei a provar uma gota de álcool, única forma de acabar com as minhas alergias. O caderno com a lista de amantes ficou perdido nalguma gaveta e não voltei a encontrá-lo. à falta de fundos, não tive outro remédio senão reduzir o meu nível de vida, as farras passaram à história porque estava muito ocupado com David e o meu trabalho, além disso Timothy Duane já não me levava ao pecado. Isso não significa que começasse a viver como um anacoreta, nem pouco mais ou menos, suponho que sempre serei fiel à minha natureza de bon vivant.
- Muito bem, se não volta a casar-se, em três anos teremos pago as suas dívidas - disse-me feliz Mike Tong, na primeira vez em que as receitas superaram os gastos.
Naquele ano vendi uma casa que tinha na praia e acabei de acertar contas com Shanon, que mal recebeu o último cheque partiu sem planos fixos, disposta a começar uma nova vida 0 mais longe possível. Vi-a afastando-se até se esfumar numa auto-estrada, tal como tinha chegado, só que agora não ia a pé, mas num automóvel de luxo. Meses mais tarde vi a sua fotografia numa revista anunciando cosméticos com um sorriso de maçã, tive de olhá-la duas vezes para a reconhecer, parecia muito melhor do que eu recordava. Recortei-a e trouxe-a para David, que a colou na parede do seu quarto. Tinha uma imagem difusa da sua mãe, uma criatura formosa e alegre que aparecia de vez em quando para cobri-lo de beijos e levá-lo ao cinema, uma vez melodiosa ao telefone, e agora um rosto sedutor em anúncios de publicidade. Tinha fabricado com a minha ajuda um cofre de madeira para lhe oferecer no seu aniversário, dedicava-lhe desenhos da escola e mandava-lhos pelo correio, Shanon era a fada etérea das fábulas, uma princesa em blue jeans que passava de vez em quando como uma brisa feliz e logo partia. Para efeitos práticos, no entanto, não contava muito, a sua mãe era Daisy, que o penteava com água benta para lhe exorcizar os demónios e estava a seu lado quando abria os olhos de manhã e quando os fechava à noite.
- Quero ver a minha mamã - disse-me um dia.
- Foi para muito longe e não vai regressar por agora. Sente a tua falta mas por causa do seu trabalho vive noutra cidade. Agora é um modelo muito famoso.
- Para onde foi?
- Não sei, mas vai-te escrever logo, tenho a certeza.
- Não gosta de mim, por isso se foi embora.
- Gosta muito de ti, mas a vida é muito complicada, David. Não a vais ver por algum tempo, é tudo.
- Eu julgo que a minha mãe morreu e tu estás a enganar-me.
- Dou-te a minha palavra de honra que é verdade. Não viste a sua fotografia na revista?
- Jura-me.
- Juro-te.
- Jura-me também que nunca voltarás a casar.
- Não posso fazer isso, meu filho. Já te disse que a vida é muito complicada.
Nos dias seguintes esteve retraído e silencioso, ficava horas à janela a olhar o mar, o que era invulgar nele, que andava sempre num torvelinho de actividade e ruído, mas logo se distraiu com o alvoroço de preparar as férias. Prometi-lhe que iríamos acampar nas montanhas, levaríamos Oliver e compraria uma espingarda para caçar patos. Shanon continuou a ser para o filho o que sempre tinha sido, uma doce miragem.
A acusação por mau exercício da profissão caiu-me em cima em finais desse mesmo ano e pareceu-me tão descabida que não me inquietou absolutamente nada. Tratava-se de um dos meus antigos clientes, alguém a quem a minha firma representara havia vários anos. Era alcoólico. Tudo começou quando viajava num autocarro interestatal para Oregão, tinha bebido demasiados copos e a meio do caminho estava a delirar com monstros que o perseguiam. Na bebedeira sacou de uma faca e atacou outros passageiros, feriu dois e não matou um terceiro por milagre, a lâmina atravessou-lhe o pescoço a milímetros da jugular. Com a ajuda de alguns valentes, o motorista desarmou o atacante, obrigou-o a descer do veículo e voou logo para o hospital mais próximo, onde desembarcou as vítimas encharcadas em sangue. A polícia não pôde apanhar o acusado, que se tinha escondido, mas quatro dias mais tarde um camião recolheu-o na estrada. Era Inverno, tinham-se-lhe gelado os pés, tiveram que lhos amputar. Ao sair da prisão, onde cumpriu pena, procurou quem o representasse num processo contra a companhia de autocarros, por terem-no abandonado em terreno descampado. A minha firma tomou conta do caso, nesse tempo recebíamos qualquer pessoa que nos batesse à porta. Três passageiros esfaqueados é uma boa razão para ter feito descer aquele desalmado do meu autocarro, é pena que se gelasse quando se escondeu da polícia, bem mereceu o que se passou, disse o motorista na sua declaração. Apesar desses antecedentes, pudemos tomar o caso por uma soma respeitável, porque ao réu saía mais barato pagar uma indemnização do que ir a julgamento. Logo que o homem gastou o dinheiro dirigiu-se a outro advogado, que cheirou no ar a possibilidade de dar a sua estocada acusando-me de má prática. Eu não tinha seguro, se perdia estava frito, mas nunca imaginei que tal sucedesse, nenhum juiz do mundo daria fosse o que fosse ao criminoso. Mike Tong não estava de acordo, disse que se o julgamento fosse contra o motorista do autocarro o júri seria implacável, qualquer um que se ponha no papel dos passageiros e das vítimas votaria contra o acusado, mas agora tratava-se de mim.
- De um lado veriam um pobre inválido com muletas e do outro um advogado com gravata de seda. Teremos o júri contra, Sr. Reeves, as pessoas detestam os advogados. Além disso há que contratar um defensor, onde é que vamos arranjar dinheiro para isso - suspirou o meu contabilista, e pela primeira vez pôs de lado o protocolo com o qual sempre me tratava, pegou-me no braço, meteu-me no seu canto e confrontou-me com a inquestionável realidade dos seus livros.
Mike Tong tinha razão. Três meses depois o júri decidiu que o motorista não devia expulsar o homem do veículo e que a minha firma tinha desatendido o cliente privilegiando a firma de autocarros em vez de levar o caso a julgamento. Esse veredicto, que produziu certo espanto no mundo da lei, foi a minha condenação definitiva. Durante anos tinha feito equilíbrio à beira de um precipício, mas agora caía no abismo. A menos que eu encontrasse o tesouro de Francis Drake enterrado no meu pátio não tinha a menor esperança de pagar aquela soma, mas depressa a gravidade do ocorrido não deixava espaço para brincadeiras, em questão de horas tinha que tomar medidas drásticas. Chamei Tina e Mike, agradeci-lhes a sua longa fidelidade e expliquei-lhes que tinha de me declarar em falência e fechar o escritório, mas prometi-lhes que, se no futuro conseguisse começar de novo, haveria sempre trabalho para eles. Tina começou a chorar inconsolável, mas Mike não deixou transparecer a menor emoção no seu impassível rosto asiático. Pode contar connosco, foi tudo o que disse e fechou-se no seu gabinete a pôr os livros em ordem.
Durante as eternas semanas de julgamento estive junto do meu defensor lutando ferozmente em cada pormenor, foi um tempo de muita tensão, mas quando tudo terminou aceitei o veredicto com um sangue-frio de que não me sabia capaz. Tive a sensação de ter passado antes por situações semelhantes, encontrava-me de novo apanhado num beco, como algumas vezes estive no bairro latino. Recordei as correrias desesperadas, perseguido pela pandilha de Martinez com a certeza de que se me alcançassem me matariam, no entanto ainda estava vivo. Também saí ileso de incontáveis combates no Vietname onde outros deixaram a pele e sobrevivi naquela noite na montanha quando os dados tinham sido lançados contra mim. As repreensões na escola e as duras lições da guerra ensinaram-me a defender-me e a resistir, sabia que não devia perturbar-me nem perder o sentido das proporções, comparado com as batalhas do passado o acontecido era apenas um tropeção, a minha vida continuava. Passou-me pela mente mudar de rumo, a profissão de advogado tem demasiados aspectos obscuros, questionei a validez de estar sempre com a espada na mão, consumindo-me numa agressividade sem sentido. Ainda me faço essa pergunta de vez em quando, mas não encontro resposta, suponho que me é difícil imaginar uma existência sem luta.
No domingo já estava resignado a fechar o escritório. Entre outras probabilidades considerei a hipótese de partir para um país latino-americano, tenho laços muito fortes com essa parte do mundo e gosto de falar espanhol, pensei ir para uma aldeia pequena onde a vida fosse mais simples, onde pudesse fazer alguma coisa pelas pessoas, e fazer parte da comunidade, como fiz na aldeia do Vietname; mas depois pareceu-me uma espécie de fuga. Cármen e Ming têm razão, por muito que se corra está-se sempre dentro da mesma pele. Também pensei instalar-me no campo. A semana de férias que passamos acampando com David, entregues a caçar patos e a pescar, sem mais companhia que o cão, foi muito importante para mim e revelou-me um aspecto desconhecido do meu caracter. Na solidão da paisagem recuperei o silêncio da infância, o silêncio da alma em paz com a natureza, que perdi quando meu pai adoeceu e tivemos de nos instalar na cidade. No resto da minha vida estive marcado pelo ruído, e de tal maneira me tinha acostumado a um ressoar incessante no cérebro que cheguei a esquecer o bem-estar do verdadeiro silêncio. A experiência de dormir sobre a terra, sem mais luz que as estrelas, voltou a dar-me a única época realmente feliz, as viagens com a minha família no camião. Regressou essa primeira imagem de felicidade, eu mesmo aos quatro anos urinando na colina sob a abóbada alaranjada de um céu soberbo, ao entardecer. Para medir a vastidão sem fim do espaço reconquistado gritei o meu nome junto do lago e o eco das montanhas devolveu-mo purificado. Nesses dias o ar livre também fez um bem enorme a David, o seu organismo pareceu entrar numa marcha mais normal, não tivemos uma única discussão, regressou à escola de boa vontade e depois passou mais de dois meses sem birras. Estaríamos muito melhor se abandonássemos este meio, onde as pressões costumam ser insuportáveis, mas a verdade é que não me vejo ainda feito agricultor ou guarda florestal, para quê enganar-me, talvez um dia... ou nunca. Gosto das pessoas, necessito sentir-me útil para os outros, não acredito que aguentasse muito tempo recolhido como um ermitão. Sabes que nesse lugar selvagem soube de ti? Cármen tinha-me oferecido a tua segunda novela e li-a durante essas férias, sem imaginar que chegaria a conhecer-te e que te faria esta longa confissão. Como poderia suspeitar, então, que iríamos juntos ao bairro latino onde me criei? Em mais de quatro décadas não me tinha passado pela cabeça regressar, se tu não insistes, nunca teria visto de novo a cabana, em ruínas mas ainda de pé; ou o salgueiro, ainda vigoroso, apesar do abandono e da lixeira que cresceu à sua volta. Se não me levas lá, não teria recuperado o desmantelado letreiro do Plano Infinito, que me esperava com a pintura descascada e a madeira meio apodrecida mas com a sua eloquência intacta. Olha quanto andei para chegar aqui e verificar que não há plano infinito, apenas a luta pela vida, disse-te eu. Talvez cada um de nós tenha o seu plano dentro de si, mas é um mapa confuso, que custa decifrar, por isso damos tantas voltas e por vezes nos perdemos, respondeste.
Dei por perdidos o automóvel e a casa, únicos bens terrenos que me pertenciam, o resto eram dívidas, que depois veria como enfrentar. Em última instância isso seria problema dos auditores e advogados, que na segunda-feira se lançariam como piranhas sobre os meus despojos. A ideia enraivecia-me, mas não me assustava. Ganhei o pão desde os sete anos em toda a espécie de ofícios, estou convencido de que nunca me faltará que fazer. Preocupam-me os meus empregados, isso sim. Eles são a minha verdadeira família, mas supus que Mike e Tina encontrariam outro trabalho sem dificuldade e que certamente Cármen levaria Daisy consigo, porque dona Inmaculada já não está em idade de tratar da casa sozinha. Ao anoitecer visitei Timothy e Ming para lhes contar o que se tinha passado. Seis meses antes tinha terminado a minha terapia e agora Ming e eu éramos excelentes amigos, não só pela longa relação cultivada no seu consultório, mas porque vivia com Tim, que se tinha transformado noutra pessoa desde que ela entrara no seu destino para estabelecer a ordem com recursos de sabedoria. Ming foi um bálsamo admirável para o meu atormentado amigo. Nesses cinco anos de penosa exploração, dei a volta completa ao perímetro de tudo o que vivera até então e, quando cheguei ao fim e toquei de novo o ponto de partida, ela deu por concluída a sua ajuda. Disse que a partir desse momento começava a parte mais importante da minha cura e devia fazê-la sozinho, que eu era como um inválido a quem ensinaram a caminhar e que só a prática laboriosa de cada passo pode dar equilíbrio e firmeza. Com muita paciência da sua parte e esforço da minha, conseguimos despejar a confusão vulcânica em que decorreu a primeira metade do meu destino. Pela sua mão entrei no quarto das máquinas desconjuntadas e dos artefactos inacabados, do qual tanto falava meu pai, e arrumei a pouco e pouco, eliminei o lixo, colei pedaços, compus imperfeições e acabei o que estava por concluir. Ainda ficava muito por limpar, mas isso podia fazê-lo sozinho. Sabia que a minha viagem por este mundo seria sempre um tapete surrealista cheio de fios soltos, mas pelo menos consegui ver o desenho.
- Desta vez foderam-me a sério. Acabou-se-me o crédito dos bancos e não posso pagar as minhas dívidas. Não tenho outro remédio senão declarar-me em falência - comentei aos meus amigos.
- Os aspectos essenciais estão a salvo desta crise, Greg, só há perdas materiais, o resto está intacto - respondeu Ming, e tinha razão, como sempre.
- Suponho que tenho de começar de novo - murmurei com uma estranha sensação de euforia.
A vida é uma soma de ironias. Quando vi desintegrar-se a minha família e eliminei uma boa parte das minhas relações, a solidão deixou de me atormentar. Depois, ao desmoronar-se o castelo de cartas do meu escritório e ao ficar arruinado, experimentei pela primeira vez verdadeira segurança. E justamente agora, quando deixei de procurar uma companheira, apareceste tu e obrigaste-me a plantar as roseiras em terra firme. Verifiquei que no fundo o dinheiro nunca me interessou tanto como eu quis acreditar; os cobiçosos propósitos feitos no hospital de Hawai não passavam de um equívoco e, muito dentro de mim, suspeitei disso, sempre. Os triunfos aparentes não me enganaram, a verdade é que me perseguia sempre uma vaga sensação de fracasso. No entanto, demorei uma eternidade até aceitar que quanto mais acumulava mais vulnerável eu era porque vivo num meio onde se amachuca a mensagem contrária. Requer-se uma tremenda lucidez, como a de Cármen, para não cair nessa armadilha. Eu não a tinha, foi necessário afundar-me até tocar no fundo para a adquirir. No momento da queda, quando não me restava nada, descobri que não me sentia abatido, mas livre. Compreendi que o mais importante não tinha sido sobreviver ou ter êxito, como imaginava antes, mas a busca da minha alma deixada para trás nos areais da infância. Ao encontrá-la soube que esse poder, pelo qual desperdicei tão desesperados esforços, sempre esteve dentro de mim. Reconciliei-me comigo mesmo, aceitei-me com um pouco de benevolência e então tive o meu primeiro assomo de paz. Creio que esse foi o instante precioso em que tomei consciência de quem sou na realidade e senti-me por fim controlando o mou destino.
Na segunda-feira cheguei ao escritório disposto a ocupar-me dos últimos pormenores e encontrei um ramo de rosas vermelhas sobre a secretária e os sorrisos cúmplices de Tina Faibich e Mike Tong, que me aguardavam desde bem cedo.
- Não temos o tesouro de Francis Drake, mas consegui crédito - disse o meu contabilista, amachucando a gravata, como faz sempre quando está nervoso.
- Que estás a dizer, homem?
- Tomei a liberdade de telefonar à sua amiga Cármen Morales, para Roma. Vai dar-nos uma boa quantia. Também tenho um tio banqueiro, que está disposto a fazer-nos um empréstimo. Com isso podemos negociar. E se nós declararmos falência os outros não cobrarão nada, convém-lhes dar-nos facilidades e ser pacientes.
- Não posso oferecer nenhuma garantia.
- Entre chineses basta a palavra de honra. Cármen disse que você a financiou desde que tinham seis anos, que não faz mais do que estender-lhe a mão.
- Mais dívidas, Mike?
- Já estamos acostumados, uma risca mais no tigre que importância faz?
- Quer dizer que continuamos a luta - sorri com a certeza de que desta vez seria nos meus próprios termos.
O resto já conheces, porque o vivemos juntos. Na noite em que nos conhecemos pediste-me que te contasse a minha vida. é longa, avisei-te eu. Não importa, tenho muito tempo, disseste tu, sem saber o sarilho em que te metias com este plano infinito.
Isabel Allende
O melhor da literatura para todos os gostos e idades