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Series & Trilogias Literarias
ERA MAIO, E, DEPOIS DE BRILHAR um pouco no Japão, na Rússia e na Suécia, o sol nasceu em Oslo, uma capital bem pequena de um país bem pequeno que se chama Noruega. O sol começou a trabalhar imediatamente, iluminando o castelo amarelo nem grande nem pequeno, onde mora um rei que não manda a ponto de atrapalhar, e o forte de Akershus.
No forte, iluminou os velhos canhões que apontavam para o fiorde de Oslo, entrou pela janela do escritório do comandante e alcançou a primeira de muitas portas que levavam à cela de prisão mais temida da cidade, o Calabouço do Fantasma, onde só ficavam os piores e mais perigosos criminosos.
Na cela não havia ninguém, a não ser um Rattus norvegicus, um ratinho norueguês, que tomava seu banho matinal na privada. O sol subiu um pouquinho mais no céu e iluminou as crianças de uma banda escolar. Elas tinham treinado para levantar muito cedo, vestir o uniforme pinicante da banda, e agora marchavam e tocavam, quase conseguindo manter o compasso. É que faltava pouco para chegar o dia 17 de maio, o dia da Independência da Noruega, quando todos que participavam de bandas no país inteiro iam levantar muito cedo, vestir o uniforme pinicante e tocar quase conseguindo manter o compasso.
E o sol subiu mais um pouquinho e chegou ao píer de madeira à beira do fiorde de Oslo, onde um navio de Xangai, na China, tinha acabado de atracar. As tábuas do píer balançavam e rangiam enquanto um monte de pés atarefados corriam de um lado para o outro, descarregando mercadorias do navio. Alguns raios de sol passavam por entre as tábuas e desciam por um cano de esgoto que desembocava no mar, embaixo do píer.
Um único raio de sol penetrou na escuridão do cano de esgoto e fez algo cintilar. Era uma coisa branca, úmida e muito afiada. Parecia até uma dentadura. Quem fosse meio bobo mas soubesse alguma coisa sobre répteis poderia achar que estava vendo as dezoito presas existentes na boca da maior e mais temida serpente do mundo: uma sucuri. Mas ninguém pode ser tão idiota assim. Porque sucuris vivem na selva, nos rios, como o rio Amazonas no Brasil, e não nos canos de esgoto que passam por baixo da pequena cidade de Oslo. Uma sucuri no esgoto? Dezoito metros de músculos estranguladores, boca do tamanho de uma boia inflável e dentes que lembravam sorvete de casquinha virado de ponta-cabeça? Ha, ha! Já imaginou?
O sol passou a iluminar uma rua calma, chamada rua dos Canhões. Lá, os raios de sol encontraram uma casa vermelha onde o comandante do forte de Akershus tomava o café da manhã com a mulher e a filha Lise. No outro lado da rua iluminaram a casa amarela onde morava a melhor amiga de Lise. Mas essa amiga tinha acabado de se mudar para uma cidade chamada Sarpsborg. Ver a casa amarela vazia fazia Lise se sentir um pouco mais sozinha do que antes da mudança da amiga, pois na rua dos Canhões não havia outras crianças com quem pudesse brincar.
As únicas crianças na vizinhança eram Truls e Trym Grou, os gêmeos que moravam na mansão com três garagens que ficava no final da rua. Eram dois anos mais velhos que Lise. No inverno jogavam bolas de neve, duras feito pedra, na sua cabecinha ruiva. Quando ela os convidava para brincar, esfregavam neve no rosto dela, chamando-a de Pumpumlise, Fedelise ou titia comandante.
Você deve estar pensando que Lise deveria contar aos pais as malvadezas que Truls e Trym faziam. Isso porque você não conhece o pai de Truls e Trym, o senhor Grou. O senhor Grou é um sujeito gordo e carrancudo, mais gordo que o pai de Lise, e muito, muito mais carrancudo. E era pelo menos dez vezes mais rico. Por ser tão rico, o senhor Grou achava que ninguém podia reclamar de nada com ele e, principalmente, não aceitava que viessem lhe dizer como educar seus filhos!
O senhor Grou era tão rico assim porque certa vez tinha roubado a ideia de um pobre inventor. A invenção era um material muito duro, muito misterioso e secreto, usado, entre outras coisas, para fabricar portas à prova de fuga para as prisões. O senhor Grou havia usado o dinheiro ganho com a invenção para construir aquela casa enorme, com três garagens e um Hummer. Hummer é um carro grande e agressivo, construído para ser usado na guerra, que ocupava toda a largura da rua dos Canhões quando o senhor Grou vinha dirigindo por ela. Além disso, o Hummer causava muita poluição. Mas o senhor Grou nem ligava, pois adorava carros enormes e agressivos. Ele sabia que, se fosse imprudente e desse uma trombada, o carro dele era muito maior que os outros e acabaria levando a melhor.
Felizmente ia demorar para Truls e Trym voltarem a esfregar neve no rosto de Lise, pois fazia um bom tempo que o sol já tinha derretido a neve da rua dos Canhões e agora raiava sobre os jardins, todos verdes e bem cuidados. Todos menos um. Esse jardim estava coberto de mato, escuro e desgrenhado, mas não deixara de sorrir, porque tinha duas pereiras e uma casinha torta que já havia sido azul e agora estava toda destelhada. Lá morava um homem que os vizinhos da rua dos Canhões raramente viam. Lise só o tinha cumprimentado duas vezes, e ele mostrara um sorriso. De resto, parecia igual ao seu jardim: cabelo crescido, cinzento e desgrenhado.
– O que é isso? – grunhiu o comandante, quando o silêncio da manhã foi rompido por um ruído de motor. – É aquele maldito Hummer do senhor Grou?
Sua mulher esticou o pescoço e olhou pela janela da cozinha.
– Não. Parece um caminhão de mudanças.
Lise, que normalmente era uma menina bem-educada, levantou-se da mesa sem pedir permissão nem terminar de comer o que estava no prato. Saiu correndo. Era verdade. Um caminhão com o nome RÁPIDO&ADOIDADO escrito na lateral estava estacionado em frente à casa amarela vazia. E da caçamba estavam descarregando caixas de papelão.
Lise desceu a escada e foi na direção da assim chamada macieira perto da cerca para olhar melhor. Os homens de macacão carregavam móveis, lâmpadas e quadros grandes e feios. Ela viu que um dos carregadores mostrou ao outro um trompete amassado que estava em cima de uma das caixas, e que eles riram. Mas ela não viu nada daquilo que esperava ver: bonecas, bicicletas pequenas, um par de esquis curtinhos. E isso só podia significar que quem estava se mudando para lá não tinha crianças, pelo menos não meninas da sua idade. Lise soltou um suspiro.
No mesmo instante ouviu uma voz:
– Oi!
Surpresa, ela olhou ao redor mas não viu ninguém.
– Oi, você aí!
Lise levantou o olhar para a árvore que o pai chamava de macieira, mas onde ninguém nunca viu uma maçã. Agora pelo menos a árvore tinha começado a falar.
– Aí não – disse a voz. – Aqui.
Lise se pôs nas pontas dos pés e olhou para o outro lado da cerca. E lá estava um menino pequeno com cabelos ruivos. Aliás, ruivo é pouco; cor de fogo. E não era apenas pequeno, era minúsculo. Tinha um rosto pequeno, dois olhinhos azuis e um narizinho arrebitado no meio. A única coisa grande no seu rosto eram as sardas.
– Eu me chamo Bumbão – falou. – O que você me diz sobre isso?
– Sobre o quê? – perguntou Lise.
– Eu me chamar Bumbão. Não é exatamente um nome comum. Lise pensou um pouco.
– Eu não sei – respondeu.
– Ótimo – sorriu o menino. – Rima com doidão, mas não vamos falar mais sobre esse assunto. Pode ser?
Lise confirmou balançando a cabeça.
O menino enfiou o dedo indicador direito na orelha esquerda.
– E como você se chama?
– Lise – respondeu ela.
O dedo indicador de Bumbão ficou dando voltas enquanto ele a observava. Por fim tirou o dedo da orelha, olhou-o, balançou a cabeça contente e o esfregou na calça.
– Não consigo pensar em algo interessante que rime com Lise – disse. – Você tem sorte.
– Vai se mudar para a casa de Anna?
– Eu não sei quem é Anna, mas vamos nos mudar para aquele casebre amarelo ali – Bumbão apontou com o polegar.
– Anna é minha amiga – disse Lise. – Ela se mudou para Sarpsborg.
– Ih, é longe – falou Bumbão. – Especialmente quando se trata de uma amiga.
– Ah, é? – perguntou Lise. – Anna não achou que era tão longe. Disse que era só pegar a estrada para o sul para ir visitá-la.
Bumbão balançou a cabeça com uma expressão sombria.
– Para o sul está certo, mas não sei se a estrada vai tão longe. Porque Sarpsborg fica no hemisfério sul.
– O que sul? – perguntou Lise confusa.
– Hemisfério – respondeu Bumbão. – Quer dizer que fica no outro lado do globo terrestre.
– Nossa! – disse Lise desnorteada, e continuou depois de pensar um pouco: – Papai diz que no sul fica quente o ano todo, aposto que agora ela vai tomar banho de mar no inverno e no verão!
– Nada disso – retrucou Bumbão. – Sarpsborg fica tão longe que é quase no Polo Sul. Lá faz um frio de lascar. Os pinguins moram nos tetos das casas.
– Quer dizer que em Sarpsborg tem neve o ano inteiro? – perguntou Lise assustada.
Bumbão fez que sim com a cabeça e Lise se arrepiou. Ele apertou os lábios ao mesmo tempo que pressionava o ar para fora. Parecia ter soltado um pum pela boca. Lise franziu a testa e pensou em Pumpumlise.
– Está rindo de mim? – ela perguntou.
Bumbão balançou a cabeça, dessa vez negando.
– Estou praticando – disse. – Eu toco trompete. Por isso preciso praticar o tempo todo. Mesmo quando não estou com o trompete.
Lise inclinou a cabeça e o encarou. Ela não tinha mais certeza se ele estava falando a verdade ou não.
– Lise, você precisa escovar os dentes antes de ir para a escola – gritou uma voz. Era seu pai, já de uniforme de comandante azul, que se encaminhava, barriga empinada, para o portão. – O barco de Xangai com a pólvora para nossos canhões chegou hoje de manhã, por isso vou chegar tarde. Você precisa ser uma menina comportada e boazinha hoje.
– Sim, papai – disse Lise, que sempre era comportada e boazinha. E ela sabia que sempre era um dia especial quando a pólvora chegava. Já tinha viajado por meio mundo e deveria ser manuseada com grande cuidado e respeito porque seria usada para a Grande e Quase Mundialmente Famosa Salva Real no forte de Akershus no dia nacional, dia 17 de maio.
– Papai, sabia que Sarpsborg fica no... hum..., hemisfério sul?
O comandante parou e franziu a testa.
– Quem disse?
– Bumbão.
– Quem? Ela apontou.
– Bum... – começou, mas parou de repente quando descobriu que apontava para uma parte da rua dos Canhões que só tinha rua de canhões e nenhum Bumbão.
Capítulo 2.
Cabritos enjoados
QUANDO BUMBÃO OUVIU O PAI DE LISE, o comandante, dizer que ela tinha de ir à escola, lembrou-se de que ele também tinha. Onde quer que ela ficasse. E, se fosse rápido, talvez conseguisse tomar café da manhã, encontrar a mochila e, se fosse preciso, escovar os dentes e ainda conseguir ir junto com alguém que conhecesse o caminho.
Ele passou por entre as pernas dos carregadores e entrou na casa nova. E lá, numa caixa de papelão no corredor, viu seu trompete. Respirou aliviado e o agarrou. Bumbão, a irmã e a mãe haviam vindo com o primeiro caminhão de mudança na noite anterior, e sua única preocupação era que os caras da mudança pudessem esquecer de pegar a caixa com o trompete.
Colocou os lábios com cuidado no bocal.
“Um trompete deve ser beijado como uma mulher”, seu avô sempre dizia. Bumbão nunca havia beijado uma mulher em toda sua vida, pelo menos não assim, não no meio da boca. E, para dizer a verdade, ele tinha esperança de não ter de fazer uma coisa dessas. Soprou o ar para dentro do trompete, que berrou como um cabrito enjoado. Poucas pessoas já ouviram cabritos enjoados, mas o som é assim mesmo.
Ouviu baterem na parede e sabia que era a mãe, que ainda não havia levantado.
– Ainda não, Bumbão! – gritou. – São oito horas. Nós estamos dormindo.
Ela sempre dizia “nós”, mesmo que estivesse sozinha no quarto. Agora “vamos para cama” e agora “vamos fazer café”. Como se papai não tivesse ido embora, como se ela ainda o tivesse no quarto. Guardado numa caixinha que ela de vez em quando pegava quando Bumbão não estava lá. Um papai em miniatura que parecia o pai que Bumbão tinha visto nas fotos. Miniatura queria dizer que algo era muito, muito pequeno, e fazia sentido que Bumbão tivesse um pai em miniatura, já que Bumbão era o menor menino que ele mesmo tinha visto.
Ele desceu à cozinha e fez o café da manhã. Mesmo tendo se mudado no dia anterior, encontrou tudo que precisava porque já tinham se mudado tantas vezes que Bumbão sabia mais ou menos onde a mãe ia pôr as coisas. Os pratos no armário à esquerda, os talheres na gaveta de cima e o pão na gaveta de baixo.
Ia abocanhar um sanduíche de salame quando alguém o arrancou da sua mão.
– Como está o anãozinho? – perguntou Eva, e enfiou os dentes exatamente onde Bumbão havia pensado em pôr os seus. Eva era a irmã de Bumbão. Ela tinha quinze anos e, quando não estava entediada, estava zangada.
– Você sabia que o pit bull é o cão mais estúpido do mundo? – perguntou Bumbão. – É tão estúpido, que, quando pega a comida do poodle-anão, que por acaso é o cachorro mais inteligente do mundo, não entende que foi enganado. – Cale a boca – disse Eva. Mas Bumbão não calou a boca.
– Quando o poodle-anão sabe que o pit bull está farejando um sanduíche de salame e que está a caminho para roubá-lo, ele costuma passar baba de lesma-elefante no meio do sanduíche.
– Lesma-elefante? – bufou Eva com um olhar suspeito. Infelizmente para ela, era Bumbão que lia livros e por isso sabia um bocado daquilo que ela não sabia. Ela nunca tinha certeza se o que ele dizia era mera bumbão-ficção ou algo de seus livros estúpidos. Agora, por exemplo, podia ser algo daquele livro que Bumbão mais lia, um livro velho, grosso e empoeirado do avô que se chamava ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM.
– Nunca viu lesmas-elefantes? – gritou Bumbão. – É só olhar pela janela, tem um montão no gramado. Grandes e assustadoras. Quando são comprimidas entre duas capas de livro sai alguma coisa que lembra meleca verde-amarela que sai do nariz das pessoas com gripe aviária de terceiro grau. Não existe pior meleca do que a legítima meleca de terceiro grau da gripe aviária. Claro, exceto gosma de lesma-elefante.
– Se você continuar a mentir, vai acabar no inferno – disse Eva, enquanto dava uma olhada discreta no meio do sanduíche.
Bumbão pulou da cadeira.
– Por mim tudo bem, desde que tenha uma banda – disse – e que me deixem tocar trompete.
– Nunca vão deixar você tocar em banda alguma! – gritou Eva atrás dele.
– Ninguém vai querer um trompetista que é tão pequeno que nem alcança o tambor. Nenhuma banda tem uniformes tão pequenos! Bumbão calçou seus sapatos minúsculos que repousavam no corredor e saiu da casa. Na escada, pôs-se em posição de sentido, apertou bem os lábios, colocou-os no trompete e soprou uma melodia que seu avô lhe ensinara. Era um toque de alvorada para acordar os dorminhocos.
– Sentido! – gritou Bumbão ao terminar; o avô também ensinara isso. – Quero ver dois pés no chão e o olhar adiante! Todos prontos para a inspeção matinal; formem as filas e se preparem para o hino real. Sen-TIDO!
Os caras da mudança obedeceram, colocando-se imediatamente em posição de sentido, no caminho de pedregulhos, permanecendo imóveis com o sofá de carvalho para cinco pessoas da mãe de Bumbão entre eles. Por alguns segundos, o silêncio era tanto que só se ouviam o cantar de pássaros e um caminhão de lixo que subia a rua dos Canhões.
– Interessante – Bumbão ouviu uma voz risonha dizer, levemente carregando no erre. – Um novo comandante na rua.
Ele se virou. Um homem alto e magro estava encostado na cerca de madeira do vizinho. Seu cabelo branco era tão longo e desgrenhado quanto o capim no seu jardim. O casaco azul era parecido com aquele que o professor de carpintaria vestia na antiga escola de Bumbão, e ele usava algo que parecia com óculos de natação. Bumbão considerou que poderia ser tanto o Papai Noel depois de um regime quanto um professor maluco.
– Estou perturbando você? – perguntou Bumbão.
– Ao contrário – sorriu o homem de cabelos fininhos. – Eu tinha de sair para ver quem estava tocando tão bem. O som despertou lembranças antigas de uma viagem de barco num rio da França há muitos e muitos anos.
– De barco?
– Exato. – O homem fechou os olhos com um ar sonhador, na direção do sol. – Um barco que levava minha amada, minha moto, um monte de cabritos e eu. O sol se punha, começou a ventar, a água ficou agitada, e foi então que os cabritos começaram a berrar tão deliciosamente. Nunca vou esquecer aquele som.
– Oi – disse o menino. – Sou Bumbão. O que podemos dizer sobre isso?
– Não precisamos dizer nada – o homem respondeu, carregando nos erres. – A não ser que você queira dizer alguma coisa, claro.
E foi assim que Bumbão conheceu o doutor Proktor.
O doutor Proktor não era o Papai Noel. Mas era um professor quase maluco.
Capítulo 3.
O primeiro teste do pó
– SOU O DOUTOR PROKTOR – disse o professor. Os erres soaram como um cortador de grama mal lubrificado. – Sou um professor maluco. Ou, pelo menos, quase. – Ele riu às gargalhadas e começou a regar a grama sem corte com um regador verde.
Bumbão, que nunca perdia uma conversa interessante, deixou o trompete e desceu correndo as escadas até a cerca.
– E o que é que lhe dá tanta certeza de estar maluco, senhor Proktor?
– Doutor Proktor. Já ouviu falar de um professor que ao tentar inventar um pó contra alergia a pólen descobre que inventou um pó de soltar pum? Não, foi o que pensei. Bem maluco, não é?
– Depende – disse Bumbão, e pulou para cima da cerca. – O que faz esse seu pó de soltar pum? Faz as pessoas pararem de soltar pum?
O professor riu ainda mais alto.
– Se fosse tão bom, talvez tivesse quem comprasse meu pó – ele disse. Parou de repente de regar o capim e esfregou o queixo pensativo. – Boa ideia, Bumbão. Se conseguisse inventar um pó para fazer as pessoas pararem de soltar pum, as pessoas podiam tomar o pó antes de ir a jantares ou a enterros. Na verdade, têm muitas situações em que seria melhor não soltar pum. Não tinha pensado nisso. – Ele largou o regador no chão e foi correndo para sua casinha azul.
– Interessante – murmurou. – Talvez seja só inverter a fórmula.
– Espere! – chamou Bumbão. – Espere, doutor Proktor.
Ele pulou da cerca, caiu no capim alto e, quando voltou a se levantar, não viu nenhum professor, apenas a casinha azul e uma escada que levava à porta aberta do porão. Bumbão correu para a porta o mais rápido que suas perninhas curtas conseguiram levá-lo. Estava escuro lá dentro, mas podia ouvir estardalhaço e agitação. Bumbão bateu com força na porta.
– Entre! – chamou o professor do lado de dentro.
Bumbão entrou no porão mal iluminado. Numa parede vislumbrou uma moto velha e desmontada com sidecar, aquela cadeirinha lateral. Em outra prateleira, diversas figuras do Mickey e um vidro de conserva com um pó verde-claro com rótulo em maiúsculas: “Pó Verde-Claro do Doutor Proktor!” E, embaixo, com letras um pouco menores: “Uma ideia brilhante que talvez faça do mundo um lugar mais divertido.”
– Este é o pó de soltar pum? – perguntou Bumbão.
– Não, é apenas um pó que deixa as coisas fosforescentes – respondeu o doutor Proktor de algum lugar no escuro. – Uma invenção bastante malsucedida.
Então o professor surgiu da escuridão com uma lanterna acesa numa das mãos e uma máscara de mergulho na outra.
– Use como máscara protetora. Agora reverti o processo para tudo acontecer ao contrário. Feche a porta e fique atento. O mecanismo todo está conectado ao interruptor de luz.
Bumbão colocou a máscara e fechou a porta.
– Obrigado – disse o professor, e girou o interruptor. A luz acendeu e um monte de canos de ferro que se cruzavam entre barris, tanques, cartuchos vazios, funis, tubos de ensaio e recipientes de vidro começaram a chacoalhar, a ranger, a pigarrear e a tossir.
– Lembre-se de se agachar se ouvir uma explosão! – gritou o doutor Proktor mais alto do que toda aquela barulheira. O líquido dos recipientes de vidro já estava começando a borbulhar e a fumigar.
– Está bem – gritou Bumbão, e no mesmo instante houve uma explosão.
Foi um estrondo tão alto que Bumbão ficou com a sensação de que a cera do seu ouvido fora pressionada para dentro da cabeça enquanto os olhos eram pressionados para fora. A luz se apagou, e ficou completamente escuro. E totalmente silencioso. Bumbão encontrou a lanterna no chão e iluminou o professor, que estava deitado de barriga para baixo com as mãos em cima da cabeça. Bumbão tentou dizer alguma coisa, mas, quando não ouviu a própria voz, entendeu que havia ficado surdo. Colocou o dedo indicador direito na orelha esquerda e girou. Então tentou falar de novo. Agora podia ouvir algo de longe, como se tivesse uma camada de gosma de lesma-elefante cobrindo seus tímpanos.
– É a coisa mais alta que já ouvi – ele gritou.
– Eureca! – exclamou o doutor Proktor levantando-se. Limpou o casaco com a mão e arrancou os óculos, que, Bumbão percebia agora, não eram de natação, mas sim de motoqueiro. O rosto do professor estava preto de fuligem, exceto dois círculos brancos no lugar dos óculos. Então ele correu para um dos tubos de ensaio e derramou o conteúdo em um recipiente de vidro com uma peneira em cima.
– Olhe! – disse o doutor Proktor.
Bumbão avistou um pó fino e azul-claro que havia ficado na peneira. O professor enfiou uma colher de chá no pó e pôs na boca.
– Humm – disse. – O gosto não mudou. – Depois cerrou os dentes e fechou os olhos. Bumbão podia ver o rosto do professor ficar vermelho lentamente por baixo da fuligem preta.
– O que está fazendo? – perguntou Bumbão.
– Tentando soltar um pum – grunhiu o professor por entre os dentes. – E não estou conseguindo. Não é fantástico?
Ele riu enquanto fazia força em mais uma tentativa. Mas, como sabemos, é muito difícil rir e soltar pum ao mesmo tempo, por isso o doutor Proktor desistiu.
– Finalmente inventei algo que pode ser usado para alguma coisa – sorriu. – Um pó antipum.
– Posso tentar? – perguntou Bumbão, e fez um gesto com a cabeça na direção da peneira.
– Você? – O professor o encarou. Levantou uma das sobrancelhas espessas para que Bumbão entendesse que não gostara da ideia.
– Eu já testei pó antipum antes – disse Bumbão depressa.
– É mesmo? Onde?
– Em Praga.
– Ah, é? E deu certo?
– Deu sim. Mas eu soltei pum.
– Bom.
– O quê?
– Que soltou pum. Que ainda não existe nada contra soltar pum. – Ele deu a colher para Bumbão. – Fique à vontade, sirva-se.
Bumbão encheu a colher e engoliu tudo.
– Então? – perguntou o professor.
– Espere um pouco – murmurou Bumbão com a boca cheia de pó. – Que coisa mais seca!
– Experimente isso – disse o professor, e estendeu uma garrafa para Bumbão.
O garoto bebeu da garrafa e conseguiu engolir o pó.
– Nossa! Que gostoso! – falou Bumbão, procurando em vão um rótulo na garrafa. – O que é?
– Suco de pera do doutor Proktor – anunciou o professor. – E mais água e açúcar, com uma pitada de absinto, baba de lesma-elefante e gás carbônico... Tem algo de errado?
O professor olhou preocupado para Bumbão, que de repente havia começado a tossir com força.
– Não, não – respondeu Bumbão, os olhos cheios de água. – É só que eu não achava que existia algo chamado baba de lesma-elef...
Pum!
Bumbão olhou para cima assustado. O estampido não fora tão alto quanto o primeiro, que o deixara surdo por um momento, mas Bumbão sentiu algo puxar a traseira da calça, e a porta do porão se abriu.
– Ah, não! – exclamou o doutor Proktor, e escondeu o rosto nas mãos.
– O que foi? – perguntou Bumbão.
– Você soltou um pum! – gritou o professor.
– Isso foi um pum? – sussurrou Bumbão. – Se for verdade, foi o pum mais alto que já ouvi.
– É o suco de pera – afirmou o professor. – Eu devia saber que a mistura poderia ser explosiva.
Bumbão encheu a colher com mais pó, mas o doutor Proktor o deteve
– Sinto muito, mas isso não é para crianças.
– Claro que é – respondeu Bumbão. – Todas as crianças gostam de soltar pum.
– Que bobagem – disse o doutor Proktor. – Pum é fedido.
– É, mas esses puns não têm cheiro – disse Bumbão. – Dê uma cheirada.
O professor farejou fazendo barulho.
– Hum – murmurou. – Interessante, não têm cheiro.
– Você sabe para que essa invenção pode ser usada? – perguntou Bumbão.
– Não – respondeu o doutor Proktor, e era verdade. – E você?
– Sim – disse Bumbão. Cruzou os braços e olhou para o doutor Proktor. – Eu sei.
E esse foi o começo para o que viria a ser o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor.
Mas agora já são quase oito horas, e a mãe de Bumbão está na escada gritando que ele tem de se apressar porque é o primeiro dia dele na escola nova. E é justamente disso que trata o próximo capítulo.
Capítulo 4.
Um novo aluno na aula
da senhora Strobe
OS PÁSSAROS CANTARAM E O SOL BRILHOU no lado de fora da sala de aula, mas dentro da sala o silêncio era total. A senhora Strobe colocou os óculos mais perto da ponta do longo nariz e olhou para o novo aluno.
– Então você é o Bumbão? – perguntou devagar com uma voz ríspida.
– Sou, e o que podemos dizer sobre isso? – falou Bumbão.
Alguns alunos riram, mas, quando a senhora Strobe atacou com sua famosa palmada na mesa, todos ficaram quietos de novo.
– Pode fazer o favor de se endireitar, Bumbão – disse na sua voz ríspida. – Mal posso vê-lo atrás da carteira onde está sentado.
– Sinto muito, senhora Strobe – disse Bumbão. – Mas estou sentado direito. O problema é que, como a senhora pode ver, sou muito pequeno.
Os alunos na sala riram mais alto.
– Quietos! – estalou a voz da senhora Strobe. Ela empurrou os óculos ainda mais para a frente do nariz, o que podia fazer à vontade, já que ainda havia um bom pedaço de nariz para isso. – Como é novo, talvez pudesse fazer a gentileza de contar um pouco sobre você, senhor Bumbão.
Bumbão olhou em volta.
– Novo? – perguntou. – Não sou novo. Se me perguntarem, vocês é que são novos. Fora Lise, claro, ela eu conheci ontem.
Todos se viraram para Lise, que ficou com vontade de sumir.
– Além do mais, tenho dez anos – disse Bumbão. – Então, se eu fosse um par de sapatos, por exemplo, não seria novo, mas velhinho mesmo. Meu avô tinha um cachorro que foi mandado para um asilo quando tinha dez anos.
A senhora Strobe não fez nenhuma tentativa de deter as gargalhadas incrédulas; manteve apenas um olhar pensativo para Bumbão até pararem de rir.
– Basta de palhaçada, senhor Bumbão – falou, enquanto um pequeno sorriso se espalhou nos seus lábios finos. – Levando em conta seu tamanho modesto, sugiro que fique em cima da carteira enquanto fala.
Para sua surpresa, Bumbão não se fez de rogado e pulou para cima da carteira, levantando a calça pelos suspensórios.
– Eu moro na rua dos Canhões com minha irmã e minha mãe. Já moramos em toda parte da Noruega, além de alguns lugares que nem sei se ainda ficam na Noruega. Quer dizer, estavam na Noruega no período glacial, mas, quando o gelo começou a derreter, enormes pedaços se soltaram e foram levados pelo mar. Um dos maiores pedaços agora se chama América, e lá eles nem sabem que estão morando numa camada de gelo que na verdade é um pedaço da Noruega.
– Senhor Bumbão – interrompeu-o a senhora Strobe –, apenas o mais importante, obrigada.
– O mais importante – começou Bumbão – é tocar trompete numa banda escolar no desfile do dia 17 de maio. Porque tocar trompete é como beijar uma mulher na boca. Alguém pode me dizer onde posso encontrar a banda mais próxima?
Mas todos na sala estavam boquiabertos, apenas olhando para ele.
– Ah, sim, quase esqueci – avisou Bumbão. – Ontem eu estava presente quando uma das maiores invenções da atualidade foi criada. O inventor se chama doutor Proktor, e eu fui nomeado seu assistente. Batizamos a invenção de Pó...
– Basta! – gritou a senhora Strobe. – Pode se sentar, senhor Bumbão.
Durante o resto da aula a senhora Strobe contou por que comemoramos o dia 17 de maio, mas nenhuma criança na sala silenciosa prestou atenção. Só ficaram olhando para o pouco que dava para ver de Bumbão despontando por cima da carteira. Então o sino tocou para o intervalo.
No intervalo, Bumbão ficou sozinho observando as outras crianças brincarem de pega-pega e amarelinha. Ele viu Lise, que também só estava observando. Bumbão ia se aproximar dela, quando dois meninos grandes, com cabeças raspadas em forma de barril, de repente se puseram na sua frente, barrando seu caminho. Bumbão já tinha uma ideia do que o esperava. Não era a primeira vez que ele começava numa escola nova.
– Olá, baixinho – disse um deles.
– Olá, gigantes que pisam na terra com passos pesados e tapam o sol – disse Bumbão, sem levantar o olhar.
– Como é? – perguntou o menino.
– Nada, seus pit bulls – disse Bumbão.
– Você é novo – comentou o outro menino.
– E daí? – Bumbão perguntou baixinho. Mesmo que já tivesse uma certa ideia de qual seria a resposta à pergunta “E daí?”.
– Novo quer dizer que vai levar um mergulho no bebedouro – disse o outro menino.
– Por quê? – perguntou Bumbão ainda mais baixinho. Ele conhecia essa resposta também.
O menino encolheu os ombros.
– Porque... porque... – começou, antes de se lembrar do porquê. E então disseram os três, quer dizer, os dois meninos e Bumbão, em uníssono: – PORQUE SIM.
Os dois meninos deram uma olhada em volta para verificar se havia algum professor por perto. Então, o maior levantou Bumbão pelo colarinho. O outro pegou as pernas e foram em direção ao bebedouro que ficava no meio do pátio da escola. Bumbão pendia como um saco de farinha mole entre os dois, e ficou estudando uma nuvenzinha branca que parecia um rinoceronte de barriga muito cheia lá em cima, naquele céu incrivelmente azul. Ele podia ouvir a brincadeira em torno silenciar e as outras crianças se juntarem à procissão, murmurando baixinho, antecipando o que aconteceria. Viu que lutavam para fechar as outras bicas com os dedos para que sobrasse um único jato forte de água, o que fez a água jorrar dois metros para cima. Bumbão sentiu que fora levantado e também a rajada fria do jato de água. As crianças vibraram.
– Nós o batizamos... – disse o menino que segurava Bumbão pelas pernas.
– ... de Pigmeu Cabeça de Fogo – disse o outro.
– Genial, Truls – gritou o primeiro menino.
– Adivinhe só onde seria melhor apagar o Cabeça de Fogo...
Eles deram gargalhadas e Bumbão foi chacoalhado para cima e para baixo. Então o seguraram bem em cima do jato de água, que acertou Bumbão bem na cara, no nariz e na boca. Ele não pôde respirar e achou por um momento que ia se afogar, quando mãos o levantaram e o tiraram do jato de água. Olhou em torno, para todas as crianças em volta do bebedouro e para Lise, que ainda estava sozinha no outro lado do pátio.
– Mais, mais! – gritavam as crianças. Bumbão suspirou e segurou a respiração. Eles o seguravam em cima do jato outra vez.
Bumbão não apresentou nenhuma resistência e não disse uma palavra. Apenas fechou bem os olhos e a boca e tentou imaginar que estava na frente do barco a motor do avô, com a cabeça para fora e a espuma da água molhando seu rosto. Delicioso.
Quando terminaram, colocaram Bumbão no chão e foram embora. O cabelo ruivo e molhado grudou à cabeça e os sapatos esguichavam água. As outras crianças se apinhavam em volta dele, olhando-o e rindo, enquanto ele levantava a camiseta por entre os suspensórios.
– É fraquinho o bebedouro que vocês têm aqui – disse em voz alta.
Seguiu-se um silêncio absoluto. Bumbão enxugou o rosto.
– No Kurfürstendamm, em Berlim, tem um bebedouro que joga a água dez metros para cima – explicou. – Um amigo meu tentou beber nesse bebedouro. O jato de água soltou dois dentes molares, e ele engoliu o próprio aparelho ortodôntico. Vimos um italiano perder a peruca quando foi beber água.
Bumbão fez uma pausa calculada, enquanto torcia a camiseta molhada.
– Sim, e algumas pessoas disseram que não era uma peruca, mas o próprio cabelo do italiano que foi arrancado com força da sua cabeça. Eu preferi sentar em cima do jato. – Bumbão se inclinou de lado para tirar água da orelha.
– E o que aconteceu? – perguntou por fim uma das crianças.
– Bem – disse Bumbão, e levou a mão ao nariz, soprando com força, uma narina de cada vez.
– O que ele está dizendo? – perguntaram algumas das crianças que estavam mais atrás.
– Psiu! – disseram as crianças na frente.
– Lá de cima onde estava, eu podia ver até a Polônia, que fica a quase cem milhas de distância – disse Bumbão, chacoalhando o topete e esguichando água para todo lado. – Pode parecer um exagero... – Ele tirou um pente do bolso de trás e começou a se pentear. – Mas é preciso lembrar que o céu estava excepcionalmente limpo, e que é bastante plano lá embaixo na Europa.
Então, Bumbão abriu caminho por entre as crianças e foi até Lise no fundo do pátio.
– Bem – disse ela com um sorrisinho. – Como é começar na nossa escola?
– Nada mal – ele respondeu. – Por enquanto ninguém me chamou de Bumbão bundão.
– Aqueles dois eram Truls e Trym – disse Lise. – São gêmeos e moram na rua dos Canhões, infelizmente.
Bumbão encolheu os ombros.
– Truls e Trym moram em tudo que é lugar.
– Como assim? – perguntou a garota.
– Todas as ruas têm seus Truls e Tryms. Você não escapa deles, não importa para onde se mude.
Lise pensou a respeito. Será que Truls e Tryms moravam em Sarpsborg também?
– Já achou uma nova amiga? – perguntou Bumbão.
Lise fez que não com a cabeça. Ficaram em silêncio, um ao lado do outro, vendo as outras crianças brincarem, até Lise perguntar:
– É verdade mesmo aquilo que contou sobre o doutor Proktor e sua invenção?
– Claro – disse Bumbão, e mostrou um sorriso torto. – Quase tudo que conto é verdade.
No mesmo instante tocou o sino para a próxima aula.
Capítulo 5.
Bumbão tem uma ideia
NA MESMA TARDE, BUMBÃO BATEU com força à porta do porão da casa azul. Três batidas fortes. Era o sinal combinado.
O doutor Proktor abriu a porta de uma só vez e exclamou, carregando no erre: “Maravilha!”, assim que viu Bumbão. Depois ergueu uma das sobrancelhas espessas, abaixou a outra e apontou:
– Quem é esta?
– É Lise – respondeu Bumbão.
– Estou vendo – disse o professor. – Ela mora bem ali no outro lado da rua, se não estou totalmente enganado. O que quero dizer é: o que ela está fazendo aqui? Não combinamos ontem que se trata de um projeto altamente secreto?
– Não tão secreto, pelo visto – falou Lise. – Bumbão comentou sobre ele hoje na escola.
– O quê? – exclamou o professor assustado. – Bumbão! É verdade?
– É – disse Bumbão. – Um pouquinho; talvez seja.
– Você revelou... você revelou... – gritou o professor, e estrebuchou os braços, enquanto Bumbão projetou seu maxilar inferior para a frente e arregalou os olhos, de onde lágrimas pareciam estar prestes a sair. Com essa expressão, que Bumbão já havia ensaiado bastante, especialmente para situações como aquela, ele parecia um camelo bem pequenininho, e muito triste. E, como todos sabem, é quase impossível se zangar com um camelo triste.
O professor gemeu resignado e deixou os braços penderem.
– Está bem então, talvez não seja tão arriscado. Afinal de contas, você é meu assistente. Tudo bem.
– Obrigado – disse Bumbão baixinho.
– Está bem, está bem – o professor o interrompeu. – Agora pode parar de fazer essa cara de camelo. Entrem e fechem a porta.
Eles obedeceram, e o doutor Proktor correu para os tubos de ensaio e os recipientes de vidro, onde borbulhava e fumegava algo que lembrava o odor de peras cozidas.
Lise ficou perto da porta olhando tudo o que havia ao redor. No parapeito da janela tinha um vaso com uma planta de pétalas brancas. E na parede ao lado havia uma foto de uma moto com sidecar em frente ao que ela supunha ser a Torre Eiffel. Um homem jovem e sorridente, parecido com o professor, estava sentado na moto, e no sidecar estava uma moça bonita, de cabelo escuro, também sorridente.
– O que está fazendo? – perguntou Bumbão ao doutor Proktor.
– Estou aperfeiçoando o produto – respondeu o professor, mexendo em um grande tonel. – Buscando mais vigor. Uma preparação de um tipo mais explosivo, eu diria.
O professor enfiou um dedo na mistura e o levou à boca.
– Hum. Absinto demais.
– Posso provar? – perguntou Lise, e olhou por cima da beirada do tonel.
– Sinto muito – disse o professor.
– Sinto muito – repetiu Bumbão.
– Por que não? – perguntou Lise.
– Você por acaso é uma provadora autorizada de pó de soltar pum? – perguntou Bumbão.
Lise pensou.
– Não que eu saiba.
– Então sugiro que deixemos a provação para mim – disse Bumbão, levantando os suspensórios. Depois pegou uma colher e enfiou no tonel.
– Cuidado – avisou o professor. – Comece com um quarto de colher.
– Está bem – concordou Bumbão, e engoliu um quarto de colher do pó.
– Vamos começar a contagem regressiva – falou o doutor Proktor olhando para o relógio. – 7, 6, 5, 4, 3... Não, não fique atrás dele, Lise!
No mesmo instante ouviram a explosão. Lise sentiu ser golpeada por uma pressão de ar pouco antes de perder o equilíbrio, e teve de se sentar no chão frio do porão.
– Nossa! – disse Bumbão. – Tudo bem, Lise?
– Tudo bem – respondeu ela um pouco tonta, enquanto o professor a ajudava a se levantar. – Isso é o que chamo de vigor!
Bumbão deu uma gargalhada.
– Muito bom, doutor!
– Obrigado, obrigado – respondeu o professor. – Eu mesmo vou fazer o próximo teste...
O professor tomou meia colher e engoliu. No zero houve uma nova explosão, mas dessa vez Lise tomou o cuidado de ficar perto da porta.
– Nossa! – comentou o professor, levantando o vaso com a planta já sem pétalas. – Acho que vamos ter de fazer os próximos testes lá fora.
Despejaram o pó numa caixa de biscoitos e a levaram para fora.
– Me dê a colher – pediu Bumbão.
– Cuidado com a dosagem – ia dizendo o doutor Proktor, mas Bumbão já tinha engolido uma colher de chá cheia.
– Está fazendo cócegas no estômago – disse Bumbão, que guinchava e pulava de tão ansioso.
– 5, 6, 7... – contou o professor.
Quando houve a explosão, os passarinhos na pereira do professor revoaram para longe, assustados. E dessa vez não foi Lise, mas o próprio Bumbão, que caiu e desapareceu no capim alto.
– Onde está você? – chamou o doutor Proktor, procurando-o em meio ao capim. – Foi tudo bem?
Ouviram algo parecido com um cacarejo e Bumbão surgiu de um salto, o rosto vermelho de tanto rir.
– Mais! – gritou. – Mais!
– Olhe, professor! – Lise apontou. – A parte de trás da calça do Bumbão está rasgada!
Era verdade. Preocupado, o professor examinou o resultado e decidiu parar os testes daquele dia. Pediu que os dois procurassem os móveis do jardim que estavam espalhados em algum lugar no meio do capim, e sumiu para dentro da casa. Quando voltou, trouxe uma travessa com pão, manteiga, patê de fígado e suco.
Lise encontrou os móveis e, enquanto comiam, sentados nas cadeiras brancas e tortas, ficaram discutindo em que a invenção poderia ser usada. O professor pensou em tentar vender o pó aos agricultores.
– Eles podem comer meia colher de pó de soltar pum, segurar o saco de sementes na frente do... do... do local de lançamento. A pressão do ar espalharia as sementes no plantio inteiro. Poderiam economizar bastante tempo. O que vocês acham?
– O máximo! – disse Bumbão.
– Para falar a verdade – disse Lise –, não acho que as pessoas vão querer comer comida que veio de sementes que levaram pum.
– Hum – resmungou o professor, e coçou a cabeça desgrenhada. – Acho que você tem razão.
– Que tal fazer a bomba de bicicleta mais veloz do mundo? – gritou Bumbão.
– É só fazer uma mangueira, prender uma ponta no traseiro e a outra na válvula do pneu, e então... pum! Pneus de bicicletas cheios em uma fração de segundo!
– Interessante – disse o professor, e esfregou a barba. – Mas receio que o problema seja justamente o “pum”! O pneu da bicicleta também explodiria.
– Que tal usar o pó de soltar pum para secar cabelo? – sugeriu Lise.
Bumbão e o professor olharam para a menina, que explicou que poderia haver uma reunião de família, do caçula à avó, para tirar no palitinho quem comeria o pó de soltar pum depois de todos tomarem banho de manhã. Daí os outros poderiam se enfileirar atrás dessa pessoa.
– Boa ideia – disse o professor. – Mas quem vai secar o cabelo da pessoa que soltar pum?
– E imagine se a avó levar um tombo com a força do pum e quebrar o fêmur – falou Bumbão.
Eles continuaram a lançar uma sugestão atrás da outra, mas todas tinham alguma desvantagem irritante. Por fim ficaram em silêncio.
Ainda mastigavam os sanduíches quando Bumbão de repente exclamou:
– Já sei!
Lise e o doutor Proktor o olharam meio desinteressados, já que era a quarta vez em bem pouco tempo que Bumbão disse que já sabia, e ele definitivamente não sabia.
Bumbão pulou em cima da mesa.
– Podemos usar o pó para a mesma coisa que estamos usando agora.
– Mas não estamos usando para nada – retrucou o professor.
– Só estamos soltando pum à toa – disse Lise.
– Exato! – falou Bumbão. – E quem nesse mundo é que gosta de uns puns à toa acima de qualquer coisa?
– Bem – disse o professor –, crianças, imagino. E adultos meio infantis.
– Exato! E quando querem coisas que explodem?
– No réveillon?
– É – gritou Bumbão, excitado. – E... e... e...?
– No dia 17 de maio! – exclamou Lise, e pulou para cima da mesa ela também. – E 17 de maio é daqui a pouco! Não entende, professor? Não precisamos inventar mais nada, é só vender o pó como está!
Os olhos do professor ficaram redondinhos, e ele esticou o pescoço magro e enrugado, parecendo uma ave pernalta.
– Interessante – murmurou. – Muito interessante. Dia 17 de maio... crianças... coisas que estalam... isto é... isto é... – De um salto, ele também subiu na mesa. – Eureca!
E, como se tivessem combinado, os três começaram a dançar uma espécie de dança indígena em volta dos copos de suco.
Capítulo 6.
O maestro Madsen e a
banda escolar de Dølgen
MADSEN ESTAVA EM PÉ NA SALA DE GINÁSTICA com as duas mãos levantadas na sua frente. Diante dele, as vinte crianças e jovens da banda escolar de Dølgen estavam sentadas. Madsen segurava uma batuta entre o polegar direito e o indicador, e os oito dedos restantes apontavam em todas as direções. Estava de olhos fechados, e por um momento sonhou que estava longe da sala com barras na parede, assoalho gasto e esteiras de ginástica malcheirosas; encontrava-se numa sala de concerto lotada em Veneza, com lâmpadas de cristal no teto e pessoas entusiasmadas nas frisas, vestidas a caráter. Madsen reabriu os olhos.
– Prontos? – gritou, e franziu o nariz para que os óculos escuros de piloto não caíssem. Porque, ao contrário da senhora Strobe, Madsen tinha um nariz curto e largo, cheio de poros pretos.
Nenhum dos vinte rostos nas cadeiras em sua frente parecia estar pronto. Mas, como também não protestaram, Madsen fez a contagem regressiva, como para um lançamento de foguete:
– 4-3-2-1!
Então, balançou a batuta como se fosse uma varinha de condão, e a banda escolar de Dølgen começou a tocar. Não exatamente como um foguete, parecia um trem que, ofegante e arquejante, entrava em movimento. Como sempre, a percussão começou a tocar muito antes de Madsen dizer “um”. Agora tinha de esperar o resto da banda. Primeiro veio um uivo de um trombone, depois berrou uma trompa desafinada, antes de dois clarinetes tocarem quase as mesmas notas. Os dois trompetistas, os gêmeos Truls e Trym Grou, mexiam no nariz. Por fim, Petra conseguiu tirar som do seu trompete, e Per deu uma batida experimental no tambor.
– Não, não, não! – gritou Madsen desesperado, balançando a batuta em um gesto de reprovação. Mas, igualzinho a um trem, quando finalmente consegue se pôr em movimento, a banda escolar de Dølgen era difícil de parar. E, quando tentaram, soou como se uma tonelada de apetrechos de cozinha estivesse caindo no chão. Crash! Bangue! Piuuu!
Quando enfim a sala ficou quieta, e os vidros das janelas da escola de Dølgen pararam de vibrar, Madsen tirou os óculos de sol de piloto.
– Meus queridos. Vocês sabem quanto tempo falta para o dia 17 de maio?
Ninguém respondeu.
Madsen suspirou.
– Era de esperar, já que nem parecem saber que música estamos tocando. Que música é, Trym?
Trym parou de mexer no nariz e olhou para o seu irmão como quem pede ajuda.
– Então, Truls – disse Madsen. – Pode ajudar Trym?
Truls coçou as costas com o trompete e olhou para a estante de música.
– Minhas notas se molharam na chuva, não estou vendo nada.
– Bem – disse Madsen –, não é possível. É “Amamos este país”, o hino da Noruega. Meu Deus! Será que Lise é a única aqui que sabe ler uma nota? Ou pelo menos tocar uma nota limpa?
Lise se encolheu atrás do clarinete quando sentiu os outros olharem para ela. Porque sabia o que aqueles olhares diziam. Diziam que, mesmo que Madsen afirmasse que ela tocava bem, ela não deveria imaginar que havia alguém ali que quisesse ser amigo dela. Muito pelo contrário.
– Se não tocarmos melhor do que isto no dia 17 de maio, teremos de desistir da viagem da banda no verão – avisou Madsen. – Eu não quero passar vergonha na frente de dezenas de outros regentes de banda, entendido?
Madsen viu os rostos na sua frente ficarem boquiabertos. Foi claramente um choque para eles. Tinha falado tanto e com tanta empolgação sobre o grande encontro de bandas em Eidsvoll, e eles estavam loucos para ir. Mas Madsen não via outra saída a não ser cancelar a viagem. Havia deixado tudo claro desde o início. Que com ele, Nikolai Amadeus Madsen, não se brincava de charanga. Então, sem um pequeno milagre, ninguém em Eidsvoll ia ouvir sequer um tinido de triângulo da banda escolar de Dølgen. E, já que a batuta de Madsen infelizmente não era uma varinha de condão, não ia acontecer um milagre.
– Vamos retomar do começo – suspirou Madsen levantando a batuta. – Prontos?
Mas estavam longe de estar prontos. Porque todos olhavam para a porta do vestuário que ficava atrás de Madsen. Irritado, ele se virou, mas não viu ninguém. Voltou-se para a banda e ia fazer a contagem, quando seu cérebro registrou que de fato tinha visto alguma coisa na porta. Alguma coisa perto do chão. Ele se virou, tirou os óculos de sol e olhou para o menino pequenino com topete ruivo.
– O que está fazendo aqui? – perguntou Madsen bruscamente.
– Não vai primeiro querer saber quem sou? – perguntou o menino, e mostrou um velho trompete amassado. – Eu sou Bumbão. Sei tocar trompete.
– Já temos dois trompetistas – disse Madsen, e se virou para a banda de novo. – Estamos ensaiando. Já para fora.
– Mas não quer me ouvir tocar um pouco antes?
– Não!
– Só um pouco... – Bumbão levantou o trompete e formou os lábios como para um beijinho.
– Não! Não! Não! – berrou Madsen, que já estava com a cara vermelho escarlate e bateu na coxa com a batuta. – Eu sou um artista! – gritou. – Fiz os arranjos de marchas para o grande festival de desfile de bandas em Veneza. E agora estou dirigindo uma banda de escola com criancinhas chatas e surdas para notas, e não preciso ouvir mais uma criança chata e surda. Está entendido? Fooooora!
– Hum – disse Bumbão. – Parece um A. Tenho ouvido absoluto. É só testar com seu diapasão.
– Você não é surdo apenas para as notas, é surdo de verdade! – Madsen tremeu e cuspiu de excitação. – Feche aquela porta e nunca mais volte aqui! Imagine se uma banda pode ter alguém que é tão pequeno, que... que...
– Que nem tem espaço para a listra lateral do uniforme – completou Bumbão. – Tão baixinho que as medalhas iam arrastar no chão. Tão pequenininho que nem ia conseguir olhar as notas na estante. E o boné do uniforme ia cair nos seus olhos.
Bumbão sorriu inocentemente para Madsen, que agora vinha em sua direção com passos largos.
– Que nem sequer conseguiria ver por onde teria de andar – continuou Bumbão. – E, de repente, ele está na rua Aker, enquanto o resto da banda está marchando pela avenida Karl Johan.
– Exato! – disse Madsen, agarrando a porta e batendo-a na cara de Bumbão. Depois voltou com pés pesados para sua estante de notas. Antes de levantar a batuta, registrou que Truls e Trym arreganhavam os dentes.
– Então – disse Madsen. – “Amamos este país”.
Capítulo 7.
Naquela mesma noite,
num cano de esgoto, no
subterrâneo de Oslo...
HÁ BICHOS GRANDES NOS CANOS de esgoto que cruzam o subterrâneo de Oslo em todas as direções. Tão grandes que você não gostaria de encontrá-los. Mas, se você levantar uma tampa de bueiro numa rua de Oslo, e iluminar o mundo do esgoto com uma lanterna, pode ser que veja a luz cintilar nos dentes da boca de uma das bestas enormes e gosmentas, antes de ela desaparecer. Ou: antes de ela enfiar as presas no seu pescoço. Porque essas bestas são muito velozes. E não estamos falando dos inocentes Rattus norvegicus comuns, quer dizer, pequenos ratinhos noruegueses, mas verdadeiras bestas-feras. Como Átila. Átila era uma velha ratazana mongol de água, já estava com quarenta e cinco anos e pesava quinze quilos. Se quiser ler mais sobre ela, abra ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM na página 678.
Átila comia, de bom grado, um pequeno Rattus norvegicus no café da manhã se assim calhasse, e era o rei da Rede de Esgoto e Águas Pluviais de Oslo. Quer dizer, isso foi no que sempre acreditou, até agora.
O reinado de Átila começou há muitos anos, mas ele nem sempre foi um rei. Quando tinha poucos meses de idade e era um novelo de lã fofinho, de uns duzentos gramas, foi comprado numa loja de animais por uma família de Hovseter. O filho gorducho dessa família apontou para Átila e gritou que queria ter uma ratazana assim. E os pais fizeram o que o menino mandou.
Eles alimentavam Átila com bolinhos de peixe, comida que rato detesta, colocaram uma coleira de metal com seu nome gravado, e o gorduchinho atormentava o coitado do roedor aquático todo santo dia enfiando pauzinhos na sua gaiola. Todo santo dia, até aquele em que Átila havia crescido bastante, de tanto comer bolinhos de peixe, e precisava de uma nova gaiola enquanto ainda conseguia sair pela portinha da gaiola velha.
Átila esperara ansioso por esse dia. E, quando o menino enfiou a mão na gaiola para tirá-lo, ele abriu a boca o máximo que pôde e fincou os dentes na carne humana, deliciosamente branca e macia. Adeus bolinhos de peixe!
Enquanto o menino gritava e o sangue jorrava, Átila se mandou da gaiola, veloz como só uma ratazana mongol, fugiu do apartamento, desapareceu da superfície de Hovseter e entrou no esgoto. E de lá encontrou o caminho para o centro de Oslo, onde rapidinho se fez respeitar por seu comportamento bestial. Átila era temido pelos Rattus norvegicus, desde a tampa do bueiro no bairro de Majorstuen até a estação de purificação em Aker.
Mas nesta noite, enquanto Lise e Bumbão dormiam o sono dos inocentes, no mundo subterrâneo de Oslo chegou a vez de Átila sentir medo. Ele estava no canto de um cano de esgoto e tremia. Porque vislumbrara alguma coisa bem na sua frente. Dentes. Dentes ainda maiores do que os seus. Será que a lenda que ouvira todos esses anos na Rede de Esgoto e Águas Pluviais de Oslo era verdadeira? Ele sentiu seu coração de rato-d’água mongol bater forte de tanto medo, ainda mais que estava tão escuro, um breu. Pela primeira vez, Átila pensou que o esgoto cheirava muito mal, e que, na verdade, nesse exato momento, ele gostaria de estar em qualquer outro lugar que não fosse o cano de esgoto. Até mesmo em Hovseter. Então, Átila tentou se consolar. É claro que aquela lenda devia ser pura invenção. Uma sucuri? Tudo besteira. A sucuri é uma cobra da Amazônia, onde também vivem enormes ratos-d’água e bichos semelhantes, e não daqui, do mundo subterrâneo de Oslo, onde nem existem ratos-d’água. Exceto um, claro. Átila ficou pensando um pouco sobre o assunto.
Enquanto pensava, alguma coisa veio na sua direção. A coisa era enorme, no formato de uma boia inflável, com dentes afiados do tamanho de sorvetes de casquinha de ponta-cabeça, e sibilava e exalava um bafo tão ruim que fazia o resto do esgoto parecer cheirar como um campo de flores.
Era tão sinistro que Átila simplesmente fechou os olhos. Quando os reabriu, pingava sem parar à sua volta. E estava absurdamente escuro. Era como se não estivesse num cano de esgoto, mas dentro de algo ainda mais escuro. E era como se as paredes estivessem se mexendo, se encolhendo e serpenteando. Como se já estivesse dentro do estômago de... de...
Átila soltou um grito, no mínimo tão alto quanto o grito do menino gordo.
Capítulo 8.
Bumbão pratica
matemática elementar
QUANDO LISE SAIU PELO PORTÃO na manhã seguinte, Bumbão estava de mochila no outro lado da rua, chutando pedrinhas.
– O que está esperando? – perguntou Lise.
Bumbão encolheu os ombros.
– Ver se passa alguém que vai pelo mesmo caminho que eu.
– Não vai passar ninguém – respondeu Lise. – Esta rua é sem saída, e moramos no final dela.
– É mesmo – falou Bumbão.
Caminharam juntos pela rua dos Canhões.
– O doutor Proktor nos convidou para o último grande teste do pó, depois da escola – disse Bumbão. – Você vem?
– Claro – Lise exclamou. – Você está ansioso?
– Como em véspera de Natal – respondeu Bumbão.
Quando se aproximaram da rua principal, Lise parou e apontou para a casa no final da rua dos Canhões.
– É lá que moram Truls e Trym – informou. – Quando os vejo saindo de casa, costumo esperar aqui até irem embora. Se não, passo correndo. Vem...
Lise pegou Bumbão pela mão e ia correr, mas Bumbão a segurou.
– Não quero correr – disse. – E também não quero esperar.
– Mas... – começou Lise.
– Lembre que somos dois – falou Bumbão. – Somos tantos quanto Truls e Trym. Pelo menos. É matemática elementar.
Então passaram na frente da casa de Truls e Trym. Lise achou que Bumbão andou muito, mais muito devagar. Mas notou que ele também estava com um pouco de medo, porque o tempo todo ficou olhando a casa de relance. Por sorte Truls não apareceu, nem Trym, e, quando Lise olhou o relógio, entendeu que eles já deviam ter ido à escola.
– Sabe que horas são? – perguntou assustada, porque ela era uma menina bem-comportada e não costumava se atrasar.
– Não tenho relógio – disse Bumbão.
– A senhora Strobe vai ficar maluca. Corra!
– Sim, chefe – falou Bumbão.
E correram tão rápido, que chegaram à escola no mesmo tempo que você levou para ler do início deste capítulo até aqui.
Infelizmente, o resto do dia não passou tão rápido. Bumbão estava tão impaciente para chegar em casa para o Último Grande Teste do Pó que ficava na sala de aula contando os segundos, enquanto observava a boca da senhora Strobe se mexer. Ele não estava prestando atenção, até que, de repente, percebeu que a senhora Strobe apontava o dedo na sua direção, e todos os outros alunos da classe olhavam para ele. Só então Bumbão entendeu que a senhora Strobe provavelmente havia lhe feito uma pergunta.
– Dois mil, seiscentos e oitenta e um – respondeu Bumbão.
A senhora Strobe franziu a testa.
– Isso seria a resposta para a minha pergunta?
– Não necessariamente – disse Bumbão. – Mas são os segundos que já se passaram desta aula. Quer dizer, agora já foram mais quatro, então no total se passaram dois mil seiscentos e oitenta e cinco. É matemática elementar.
– Entendo – a senhora Strobe começou –, mas Bumbão...
– Desculpe, já não é a resposta correta – disse Bumbão. – A resposta correta agora é dois mil seiscentos e oitenta e nove.
– Parece-me que você está tentando fugir da pergunta que fiz – falou a senhora Strobe. – Porque você ouviu o que perguntei, não foi, Bumbão?
– Claro – disse Bumbão. – Dois mil seiscentos e noventa e dois.
– Chegue ao ponto – pediu a senhora Strobe, já com um pouco de irritação na voz.
– O ponto é – disse Bumbão – que, como há sessenta segundos num minuto, e quarenta minutos numa aula, não tenho tempo de responder a sua pergunta, já que sessenta segundos vezes quarenta e cinco são dois mil e setecentos segundos, e isso significa que o sinal vai tocar exatamente...
Ninguém ouviu o resto do que Bumbão disse, porque, no mesmo instante, o sino começou a tocar bem alto, com som estridente. A senhora Strobe tentou mostrar a Bumbão um olhar severo, mas quando ela gritou “Todos fora!” ele viu que ela não conseguia esconder um sorriso.
Depois de Lise e Bumbão ficarem juntos durante dezesseis mil e duzentos segundos na sala de aula, e dois mil e setecentos segundos no pátio, saíram correndo da escola com a mesma rapidez com que vieram.
Eles se separaram na rua dos Canhões, cada um abrindo o seu portão, subindo correndo sua escada e jogando a mochila no seu corredor. Depois, se reencontraram em frente ao portão do doutor Proktor.
– Estou sentindo um pouco de medo – disse Lise.
– Estou me sentindo um pouco feliz – falou Bumbão.
Entraram correndo pelo portão e atravessaram o capim crescido.
– Chegaram! – gritou o doutor, alegre e cheio de erres. Ele estava sentado à mesa do jardim embaixo da pereira. Na sua frente havia três colheres de sopa e uma colher de chá, um capacete de hóquei, duas joelheiras, um vidro cheio de pó, uma calça preta de couro e meio metro de pudim de caramelo. – Estão prontos para o Último Grande Teste do Pó?
– Estamos! – gritaram Lise e Bumbão em uníssono.
– Mas, primeiro, o pudim de caramelo – avisou o doutor.
Eles se sentaram em volta da mesa e cada um pegou uma colher de sopa.
– 3, 2, ... – contou o doutor Proktor.
– Já! – disse Bumbão, e se jogaram em cima do pudim de caramelo. Se Bumbão tivesse contado, não teria chegado além de trinta segundos para que o meio metro de pudim de caramelo sumisse por completo.
– Gostoso – disse Bumbão, passando a mão na barriga.
– Gostoso – falou Lise, passando a mão na barriga.
– Fiz alguns ajustes pequenos na mistura do pó – informou o doutor Proktor.
– Estou pronto – disse Bumbão, e tirou a tampa do vidro.
– Espere aí! – falou o professor. – Não quero que rasgue sua calça de novo, por isso mandei fazer esta.
Ele pegou a calça preta de couro. Era normal, só não tinha traseira. Isto é, a parte traseira era feita de algo que parecia rede de pescar.
– Para o ar passar livremente – explicou o doutor. – Adaptei a calça velha que usava na moto com uma rede de tênis que estava por aí.
– Bacana – disse Bumbão, depois de vestir a calça, vários números maior que a dele.
Lise apenas balançava a cabeça, incrédula.
– E agora isto – disse o doutor, e passou o capacete e as joelheiras de hóquei para Bumbão. – Caso perca o equilíbrio de novo.
Bumbão vestiu tudo, depois subiu na mesa em direção ao vidro de pó.
– Só uma colher de chá! – gritou o doutor Proktor.
– Tá legal! – disse Bumbão, que encheu a colher que segurava na mão e a enfiou na boca.
– Certo – falou o doutor, e olhou o relógio. – Então vamos fazer a contagem regressiva: 7, 6.
– Doutor Proktor – pediu Lise com cuidado.
– Agora não, Lise. Bumbão, desça da mesa e fique ali para não destruir nada.
– Ele não usou a colher de chá – Lise quase sussurrou.
– 2 – disse o doutor. – O que está dizendo, Lise?
– Bumbão usou a colher de sopa, a mesma que usou para comer o pudim de caramelo.
O doutor Proktor olhou para Lise com olhos grandes, assustados.
– 1 – disse.
– Colher de sopa?
Lise concordou com a cabeça.
– Ah, não – disse o doutor Proktor, e correu para Bumbão.
– E agora? – perguntou Lise.
– Matemática elementar – gritou Bumbão todo feliz. – 0.
Explodiu. E, se o estrondo antes havia sido alto, não fora nada em comparação com este. Parecia que o mundo todo explodira. E a rajada de ar? Lise sentiu as pálpebras e os lábios virarem do avesso, e foi bombardeada de terra e pedregulhos.
Quando as pálpebras voltaram ao normal, a primeira coisa que notou foi que os pássaros haviam parado de cantar. Depois descobriu o doutor Proktor, que estava sentado no meio do capim, perplexo, com as folhas da grande pereira caindo em volta dele, como se o outono tivesse chegado de surpresa. Mas não viu Bumbão. Olhou para a direita, para a esquerda e para trás. Por fim, para cima. Mas não viu Bumbão em lugar nenhum. O primeiro pássaro recomeçou a cantar baixinho. E foi então que Lise considerou talvez nunca mais rever Bumbão, e que isso seria quase tão triste quanto Anna ter se mudado para Sarpsborg.
Capítulo 9.
O pumponauta
QUANDO BUMBÃO DISSE “ZERO”, seu estômago estava coçando de um jeito delicioso, como se o pum fosse uma gargalhada borbulhante que simplesmente tivesse de sair. Decerto viu a expressão preocupada de Lise e do doutor Proktor, que vieram correndo na sua direção, mas estava tão excitado, que nem pensou que algo pudesse estar errado. E quando houve a explosão foi uma libertação tão maravilhosa que Bumbão automaticamente fechou os olhos. Os puns anteriores eram explosões curtas, mas esse era bem mais demorado, como deixar o ar sair de um balão. Bumbão soltou uma gargalhada porque teve a sensação de que levitava, como se fosse um astronauta lançado para cima, jogado no espaço. Ele sentiu o ar fluir contra o rosto e o cabelo, e os braços foram pressionados para perto do seu corpo.
Parecia bem real. E, quando Bumbão por fim abriu os olhos, descobriu que na realidade era bem real mesmo. Piscou duas vezes e então entendeu que não apenas era bem real, mas total e verdadeiramente real. Era como se estivesse sentado numa cadeira de ar que voava para cima. Sobre ele, o céu formava uma abóbada, e bem lá embaixo viu uma nuvem de poeira que parecia ser uma cópia em miniatura do jardim do doutor Proktor. O pum uivava como um bando de lobos, e entendeu que ainda subia porque a paisagem lá embaixo começou a parecer uma Legolândia, cada vez menor.
Então, o pum virou um murmúrio baixinho, a cadeira de ar sumiu debaixo dele, e por um breve segundo teve a sensação de não pesar absolutamente nada. Um corvo virou a cabeça ao passar por ele, encarando-o com olhos de corvo bem surpreso.
Ele virou e sentiu que começava a descer. De cabeça. No início devagar, depois mais rápido.
“Nossa!”, pensou Bumbão, que não via mais motivo para rir. Com ou sem capacete de hóquei, nunca vou sobreviver a isso.
A Legolândia ficava cada vez maior, e ele começou, de maneira perigosamente rápida, a reconhecer a rua dos Canhões, o lugar que tinha deixado há pouco. E com certeza nosso amigo Bumbão teria se dado muito mal se ele não fosse um cara tão arguto a ponto de ter se lembrado do que o havia lançado para o espaço. Porque, mesmo que o pum não uivasse mais como um bando de lobos, e fosse apenas um borbulhar manso, ainda estava ativo. E, quando digo borbulhar, é em comparação a um estrondo que parece anunciar a explosão do mundo, e não em comparação a um dos puns que você costuma soltar. Porque mesmo que você tenha comido maçã verde e talvez acredite que acabou de soltar o pum mais alto que alguém já soltou, seria vento fraco em relação ao mais manso borbulho causado pelo Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor.
Depois de Bumbão ter pensado tudo isso, voltou depressa à posição sentada em que estava quando voara para cima. E, quando abriu a parte de velcro da traseira da calça, apontando direto para o chão, sentiu, para seu alívio, que freava a velocidade. Mas também percebeu que o pum logo ia acabar, e ainda faltava muito para o chão. Bumbão se esforçou ao máximo, porque mesmo uma queda de oito metros é muito alta para um menino tão pequeno. E era exatamente a distância que faltava quando o pum acabou de vez.
– Bumbão! – gritou Lise.
– Bumbão! – gritou o doutor Proktor.
– Você acha que ele explodiu em mil pedaços? – perguntou Lise.
– No caso, as partes devem ser tão pequenas que nem dá para ver – respondeu o doutor Proktor, ajustando os óculos de motoqueiro e examinando o lugar no chão onde Bumbão estava quando houvera a explosão. O capim fora todo arrancado e havia um pequeno buraco.
– Nunca vamos ver Bumbão de novo – constatou Lise. – E é por minha culpa, eu devia ter visto que ele estava segurando a colher de sopa.
– Não, não, a culpa é minha – disse o doutor Proktor enquanto se endireitava. – Eu não devia ter mexido na mistura de novo.
– Bumbão! – gritou Lise.
– Bumbão! – gritou o doutor Proktor.
– Que barulheira é essa? – berrou alguém de perto da cerca da rua. – E o que você está fazendo aí, Lise? A comida está na mesa.
Era o comandante, pai de Lise. Ele parecia zangado.
O doutor Proktor se levantou.
– Meu senhor, estamos desesperados – começou, mas foi interrompido por uma voz gritando atrás da cerca da casa de Bumbão.
– Que barulheira é essa? – Era a mãe de Bumbão. Ela parecia zangada. – A comida está na mesa. Alguém viu Bumbão?
Proktor se virou para ela.
– Minha senhora, estamos desesperados. Acontece que seu filho, Bumbão, ele... ele...
O doutor Proktor foi novamente interrompido, mas desta vez por uma voz fina de menino, vinda de cima:
– Ele está sentado aqui em cima, querendo saber o que temos para o almoço.
Os quatro olharam para cima. E lá, sobre o cume do telhado da casa do doutor Proktor, estava Bumbão, de braços cruzados, capacete de hóquei, joelheiras e calça de couro sem traseira.
– Não se mexa – gritou o doutor Proktor, e correu porão adentro.
– Mas o que está fazendo aí em cima, Bumbão? – grunhiu sua mãe.
– Estou brincando de esconde-esconde, não está vendo? – respondeu ele. – O que temos para o almoço?
– Bolinhos de carne – respondeu a mãe de Bumbão.
– Gratinado de peixe – disse o pai de Lise.
– Oba! – exclamou Bumbão.
– Oba! – exclamou Lise.
– É melhor continuarem a brincadeira depois do almoço – resmungou o comandante.
– Mas não aí em cima – falou a mãe de Bumbão. – Desça já daí.
– Sim, mamãe – respondeu Bumbão.
O professor voltou correndo do porão com uma escada que encostou na parede, logo abaixo da calha. Bumbão engatinhou até a escada e desceu os degraus, sorridente e orgulhoso como um astronauta que desce da nave espacial após uma aterrissagem bem-sucedida, depois de uma expedição para algum lugar no espaço onde ninguém – ou pelo menos bem poucos – esteve antes dele.
E, em questão de três minutos, que, com uma ajudazinha de matemática elementar, podemos descobrir ser cento e oitenta segundos, Lise estava sentada à mesa, de mãos limpas, comendo gratinado de peixe, e Bumbão, com as mãos mais ou menos limpas, comendo bolinhos de carne. Nenhum dos dois jamais comera com tanta rapidez.
Quando se encontraram de novo no jardim do doutor Proktor, ele estava no banco, ruminando as ideias, fazendo anotações e cálculos numa folha de papel. Bumbão olhou os números e os rascunhos. Aquela matemática já não era tão elementar assim.
– Na mistura nova, o efeito do pó é sete vezes mais forte – disse Proktor com todos os seus erres. – Foi por isso que eu disse para você usar a colher de chá, e não a de sopa.
Bumbão encolheu os ombros.
– Mas deu tudo certo. O pum estava acabando na descida, justo quando eu estava na altura da sua casa.
– Hum – disse o professor, e olhou os números. – Mas mesmo assim não entendo por que você decolou como um foguete.
– Foi um pum muito longo – explicou Bumbão. – Era como sentar numa coluna de ar que me empurrasse para cima. E foi também essa coluna que diminuiu a velocidade na descida.
– Interessante – disse Proktor, coçando o queixo. – Por causa da nova mistura, o pó ganhou muito mais tempo de reação. Hum...
– Talvez fosse melhor voltar à mistura original – sugeriu Lise baixinho.
– Acho que tem razão, Lise – respondeu o doutor. – É perigoso demais vender essa mistura de pó para crianças. Ou para adultos.
– Já sei – disse Bumbão. – Vamos fazer dois tipos de pó. Um Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor, que vamos vender para todas as crianças para o dia 17 de maio. E uma Mistura de Foguete Muito Especial do Doutor Proktor, que não vendemos para ninguém. Que a gente só usa para fazer uns testes aqui no jardim.
Doutor Proktor não pareceu gostar muito da última parte da ideia.
– Só de vez em quando, quero dizer – disse Bumbão. – Se a gente ficar muito entediado.
Ainda assim, o doutor Proktor não pareceu gostar da ideia.
– Ou – disse Lise – podemos vendê-lo para a Nasa.
– A Nasa? – perguntaram Bumbão e o doutor Proktor ao mesmo tempo.
– A Agência Espacial Norte-americana – disse Lise, sem tropeçar em uma única sílaba. – São eles que mandam os astronautas para o espaço. Papai disse que custa mais construir uma pequena nave espacial do que o forte de Akershus inteiro. Imagine se eles ficarem sabendo que é possível mandar um astronauta para o espaço sem nave espacial.
– Hum – murmurou o doutor Proktor. – Interessante.
– E talvez possamos fazer algo com o nome do pó de foguete também – disse Lise. – Que tal o Pó de Pumponauta do Doutor Proktor?
– Legal, Lise! – gritou Bumbão. – Você é um gênio!
– Ótimo – falou o doutor Proktor. – Temos de comemorar...
E, enquanto o doutor Proktor entrou para buscar o último meio metro de pudim de caramelo, Lise sorria como o sol. Porque é sempre legal receber elogios depois de caprichar muito.
Capítulo 10.
Bumbão é enganado,
e um pouco sobre
Juliette Margarina
NO DIA SEGUINTE, COMEÇARAM A SE espalhar pelo pátio da escola boatos sobre um pó que fazia você soltar o pum mais alto já soltado antes. Sem fazer força nenhuma. E o melhor de tudo: era totalmente sem cheiro. Foi dito que o pó gerava uma explosão mais forte do que treze foguetes, três rojões e meia banana de dinamite juntos, e custava menos que uma garrafa de refrigerante. Além do mais, era totalmente seguro e nada proibido. Em suma, as crianças na escola acharam que era bom demais para ser verdade.
Mas ninguém sabia onde poderia conseguir o pó, só sabiam que Lise e Bumbão, aquele pequerrucho ruivo que acabara de entrar na escola, sabiam de tudo que eles não sabiam.
E Lise e Bumbão não queriam dizer nada.
Em todos os intervalos, as outras crianças ficavam amolando, mas Lise apenas mostrava um sorriso maroto, enquanto Bumbão dizia coisas tipo “como vai estar o tempo amanhã?”. Ou: “Acho que hoje vamos ter espaguete com molho de tomate no almoço.”
No intervalo, Truls e Trym se aproximaram de Lise e Bumbão, que estavam perto do bebedouro.
– E aí, insignificantes – disse Truls, pondo-se bem na frente deles. – O que é essa coisa de pó de soltar pum de que todos estão falando? Botem para fora.
Bumbão levantou a cabeça e lançou um olhar na direção deles, com a mão fazendo sombra nos olhos:
– Nossa! Acho que meu olho está enxergando dois exemplares de Idiotus gigantescus. Interessante.
– Como é que nos chamou? – perguntou Truls, e deu um passo para a frente. Lise automaticamente deu um passo para trás, mas Bumbão nem se mexeu.
– Idiotus gigantescus – disse sorrindo. – Um dinossauro que viveu no século XVII. Muito forte e muito grande. Eu não me sentiria ofendido se fosse vocês.
– Ah, é? – falou Truls, e fechou um olho com força ficando com a cara de um ogro caolho. – Era muito forte?
– Incrivelmente forte – disse Bumbão. – O Idiotus gigantescus tinha tantas toneladas de músculos que ficou conhecido por ter o menor cérebro da história em relação ao peso corporal.
– Epa! – gritou Trym para Truls. – O anão disse “cérebro pequeno”!
– Epa! – gritou Truls para Bumbão e agarrou o colarinho da camisa dele. – Você disse “cérebro pequeno”.
Bumbão soltou um suspiro.
– Vocês precisam prestar mais atenção. O Idiotus gigantescus tinha de fato um cérebro que era três vezes o tamanho dos cérebros de vocês juntos. Mas é de qualquer maneira um cérebro pequeno em relação a oitenta toneladas de músculos. Sacou? É matemática elementar.
Truls e Trym se entreolharam inseguros.
– Chega de papo-cabeça – disse Truls, soltando o colarinho da camisa de Bumbão. – Onde está seu pó, seu microbanana?
Bumbão olhou em volta cautelosamente.
– OK – sussurrou. – Já que são quase vizinhos, vão ficar sabendo o que ninguém mais sabe.
Truls e Trym se aproximaram para ouvir o que Bumbão estava dizendo.
– Amanhã, aqui no bebedouro – sussurrou Bumbão –, Lise e eu vamos contar para todas as crianças da escola tudo o que vocês precisam saber. Mas só vocês dois estão sabendo, tá legal? Não contem a ninguém.
– Palavra de honra! – disse Trym.
Truls olhou para Bumbão com cara de quem não estava gostando de alguma coisa, mas não conseguia saber exatamente o quê. E felizmente, antes que a ficha caísse, o sino tocou.
À tarde, Lise, Bumbão e o doutor Proktor fizeram planos e se prepararam até cair a noite. Desenharam uma placa que ficaria no portão para mostrar a todos onde seria feita a venda, montaram a mesa de venda com caixa e troco e aprontaram o pó de soltar pum. Botaram uma colher de sopa do vidro do Pó de Soltar Pum Comum do Doutor Proktor em saquinhos plásticos, e decidiram que ia custar três coroas cada. Mesmo que Lise e Bumbão dissessem que o doutor Proktor deveria ficar com o dinheiro, ele insistiu para que dividissem o lucro entre os três.
– Cuidado para não pegar pó do vidro errado e colocar Pó de Pumponauta em vez do outro – brincou o doutor Proktor.
– Não – disse Bumbão, que era responsável por colocar uma colher de chá da mistura especial do Pó de Pumponauta em três envelopes, onde só faltavam os selos, porque Lise já havia escrito neles: Para Nasa, Estados Unidos da América. Mantenha fora do alcance de crianças.
Em cima da grande pereira podiam ver as andorinhas fazendo mergulhos e voltas acrobáticos para pegarem insetos para o jantar, antes de escurecer demais.
– O que estão pensando em fazer com o dinheiro que vamos ganhar? – perguntou Lise.
– Eu vou comprar um uniforme para poder tocar na banda da escola – respondeu Bumbão.
– Eu vou de moto com sidecar para Paris – falou o doutor Proktor. – E você, Lise?
– Eu vou comprar uma passagem de avião para Sarpsborg, para visitar a Anna – respondeu ela. – Se a gente ganhar tanto para isso, quero dizer.
O doutor Proktor riu.
– Se não, pode ficar com a minha parte. A viagem a Paris pode esperar.
– Com a minha também – disse Bumbão. – Com certeza, minha mãe pode costurar um uniforme de banda escolar.
– Obrigada – disse Lise, e ficou muito feliz e com as bochechas vermelhas. Não só porque soube que teria dinheiro suficiente para visitar Anna, mas porque percebeu que o doutor Proktor e Bumbão estavam sendo tão gentis por gostarem dela. Lise gostava que os outros gostassem dela, como a maioria das pessoas. Mas notou que gostava especialmente que Bumbão e o doutor Proktor gostassem dela.
– O que vai fazer em Paris, professor? – perguntou Bumbão, enquanto enchia um saquinho com pó, muito cuidadoso, e o fechava com fita adesiva.
– Ah, é uma longa história – respondeu o doutor, mantendo o olhar distante. – Uma história bem longa.
– Tem algo a ver com a foto pendurada no porão? – perguntou Lise. – Aquela com a menina na moto em frente à Torre Eiffel?
– Tem sim, Lise.
– Conte, então.
– Ah, não há muito o que contar. Eu tinha uma namorada lá. Ela se chamava Juliette. Íamos nos casar.
– Conte – pediu Lise com empolgação. – Conte, doutor Proktor.
– É só uma história velha e chata.
Mas Lise insistia, e, por fim, o doutor Proktor se rendeu. E foi assim que ele contou:
– Quando estudava química em Paris, há muitos e muitos anos, conheci Juliette Margarina. Ela também estudava química, e, quando a gente se viu pela primeira vez, fez... eh, “pum”! Ela era uma belezinha de olhos castanhos, e eu era... bem, pelo menos eu era bem mais novo do que agora. E creio ter tido certo charme, porque Juliette e eu não demoramos muito para nos tornarmos namorados. Éramos inseparáveis, como duas partículas num átomo, carregadas de forma oposta.
– Como é?
– Desculpe. Como um ímã e uma porta de geladeira.
– Ah, claro.
– Juliette e eu decidimos nos casar depois de terminarmos os estudos. Mas havia um problema. O pai de Juliette, o barão de Margarina, era um homem rico e poderoso, que estava no conselho da universidade, e os planos que ele tinha para Juliette eram bem diferentes do que ver a filha se casar com um pobre norueguês, sem uma única gota de sangue azul nas veias. No dia em que Juliette foi ver o pai para contar que ele não podia impedi-la de se casar comigo, ela não voltou. Quando liguei para lá, disseram-me que Juliette estava doente e não podia falar com ninguém. Especialmente comigo. No dia seguinte, recebi uma carta do conselho administrativo da universidade dizendo que eu tinha sido expulso por causa de um experimento que havia dado errado. Sim, não era grande coisa, apenas uma mistura de nitroglicerina que cheguei a chacoalhar um pouco demais e que acabou explodindo... bem, causou um certo estrago. Mas esse tipo de coisa acontecia o tempo todo, e desde esse episódio já se haviam passado meses, por isso fiquei muito surpreso. Na mesma noite, fui acordado pelo telefone. Era Juliette. Ela sussurrou que me amava, e que iria esperar. E desligou depressa. Foi só dois dias depois, quando a polícia veio me buscar, que entendi quem estava por trás disso tudo. Eles me deram uma carta dizendo que eu não podia mais ficar na França, já que nem estudava nem tinha emprego lá. Então me levaram ao aeroporto e me colocaram no primeiro avião para a Noruega, dizendo que não podia voltar antes de ser rico, nobre ou famoso. E, como eu não sou muito bom com dinheiro, nem tenho sangue azul nas veias, decidi que ia ser um inventor famoso. Mas isso não é tão fácil assim, têm tantas coisas já inventadas. Por isso tenho trabalhado dia e noite para inventar algo totalmente novo, assim poderei voltar e procurar por minha Juliette.
– Ah – suspirou Lise, quando o doutor Proktor terminou de contar. – Que romântico.
– Sabe de uma coisa? – perguntou Bumbão. – O Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor vai fazer você famoso no mundo inteiro. Tenho certeza.
– Bem, vamos ver – disse o doutor.
Eles ouviram um grilo esfregar as pernas; era o primeiro grilo que ouviam no ano, e perceberam então que o verão estava chegando. Mas, por enquanto, era apenas primavera. Depois olharam para a lua, que pendia pálida e quase transparente em cima da pereira.
Capítulo 11.
A grande venda do
Pó de Soltar Pum
do Doutor Proktor
BUMBÃO ESTAVA EM CIMA DO BEBEDOURO, onde todas as crianças podiam vê-lo e ouvi-lo.
– A venda do Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor vai ser no final da rua dos Canhões, vai ter uma placa no portão!
Bumbão gritava, mas o silêncio era tamanho que ele bem podia falar com sua voz normal.
– Vamos começar às seis horas e fechar às sete! Nada de empurra-empurra, deixem os menores na frente, e nada de soltar pum antes de terem ido embora de lá. Entendido?
– Entendido – gritaram todos em coro.
– Alguma dúvida?
Bumbão olhou para o público, e viu uma mão levantada ao fundo.
– Sim?
– É perigoso? – piou uma voz fina.
– Sim – disse Bumbão, sério. – Infelizmente, tem uma coisa que é perigosa ao usar esse pó. – Os rostos na sua frente ficaram boquiabertos. – Podem morrer de tanto rir – completou Bumbão.
A multidão soltou um suspiro de alívio. O sino tocou.
– Então, a gente se vê hoje à tarde! – gritou Bumbão, e saltou do bebedouro.
Algumas crianças bateram palmas gritando “oba!”, e um murmúrio animado veio da multidão, que lentamente se dissolveu e se encaminhou para as diversas entradas.
– Você acha que virá alguém? – perguntou Lise a Bumbão, que assobiava o hino nacional.
– É melhor se perguntar se alguém não virá – falou Bumbão. – Você não viu os olhares brilhando? Pode reservar sua passagem para Sarpsborg, Lise.
– Ah, que bom – disse ela, mesmo que, no fundo, não tivesse tanta certeza. Mas Lise quase nunca tinha certeza. Ela era assim mesmo.
– É garantido – disse Bumbão, e levantou as mãos como se tocasse o trompete. Ele era assim mesmo.
Saindo da escola, Lise e Bumbão correram para casa e fizeram os últimos preparativos. Depois do almoço voltaram correndo para o jardim do doutor Proktor, onde o encontraram dormindo no banco.
Eles o deixaram dormir e foram prender a placa no portão. Estava escrito:
AQUI, E EM NENHUM OUTRO LUGAR DO MUNDO, VENDE-SE O PÓ DE SOLTAR PUM DO DOUTOR PROKTOR!
Eles destamparam as caixas de sapatos e de papelão, onde os saquinhos com o pó estavam empilhados com esmero, e os colocaram na mesa. Depois se sentaram cada um na sua cadeira atrás da mesa e passaram a esperar.
– São dez para as seis – informou Lise.
– Ansiosa? – sorriu Bumbão.
Lise afirmou balançando a cabeça.
Às cinco para as seis, Lise disse a Bumbão que eram cinco para as seis. Os pássaros cantavam na pereira. Às seis horas, Lise disse a Bumbão que eram seis horas. E, quando deram seis horas e dois minutos, Lise olhou o relógio pela nona vez desde que eram seis horas.
– Cadê eles? – perguntou, preocupada.
– Relaxe – disse Bumbão. – Temos de dar tempo para encontrarem o caminho.
Ele estava de braços cruzados e balançava os pés, contente.
– São seis e cinco – anunciou Lise.
Bumbão não respondeu.
Às seis e dez ouviram o doutor Proktor grunhir no banco. E viram que ele piscou os olhos, e que ele se levantou de um salto:
– Nossa! Dormi demais? Perdi a hora?
– Na verdade, não – disse Lise. – Ninguém veio.
– Ainda – falou Bumbão. – Ainda virão. Espere para ver.
Às seis e quinze, o doutor Proktor soltou um suspiro que mal se ouvia.
Às seis e vinte, Bumbão coçou a nuca e murmurou algo sobre crianças de hoje em dia que não sabiam chegar na hora.
Às seis e vinte e cinco, Lise encostou a testa na mesa.
– Eu já sabia – resmungou.
Às seis e meia decidiram guardar tudo.
– Então – sorriu o doutor Proktor triste, quando tamparam a última caixa –, vamos tentar de novo outro dia.
– Eles nunca virão – disse Lise com voz pastosa. Estava quase chorando.
– Não estou entendendo – falou Bumbão, balançando a cabeça.
– Sejamos corajosos – disse Proktor. – Faz anos que estou inventando coisas que ninguém quer. Não é o fim do mundo. É só não desistir. Amanhã vou inventar alguma coisa mais fantástica que o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor.
– Mas não dá para inventar algo mais fantástico do que o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor – constatou Bumbão.
– Vou me deitar – sussurrou Lise, e deu uns passos em direção ao portão com a cabeça baixa e os braços pendidos.
– Boa noite – disseram Bumbão e o doutor Proktor.
Sentaram-se no banco do jardim.
– Que chato! – disse o doutor.
– Que chato! – concluiu Bumbão.
– Talvez eu devesse trabalhar um pouco mais na máquina do tempo que comecei no ano passado – disse o doutor Proktor, enquanto olhava as andorinhas.
– Você acha que é muito difícil inventar uma máquina que faz pudim de caramelo feito de ar? – perguntou Bumbão, também olhando as andorinhas.
E estavam desse jeito quando ouviram a voz de Lise lá do portão:
– Gente... – ela disse.
– Sim? – responderam o doutor e Bumbão em coro.
– Tem alguém aqui.
– Quem é?
– Acho melhor vocês mesmos virem olhar.
Bumbão e o doutor se levantaram e foram até o portão.
– Nossa! – disse o doutor Proktor espantado. – O que podemos dizer sobre isso, Bumbão?
Mas Bumbão não disse nada, porque aconteceu uma coisa muito rara com ele; perdera a língua. Não conseguia dizer uma só palavra, porque no lado de fora do portão tinha uma fila de crianças que se estendia até onde a vista alcançava. Pelo menos até o fim da rua dos Canhões.
– Mas por que estão tão atrasados? – perguntou Bumbão à primeira criança da fila, um menino com um boné do Tottenham.
– Estamos aqui esperando já faz meia hora.
Então Bumbão finalmente recuperou a voz.
– Mas... mas por que não entraram?
– Porque está escrito na placa – disse o menino com o boné do Tottenham.
– A placa diz: AQUI, E EM NENHUM OUTRO LUGAR DO MUNDO, vende-se o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor!
– Sim? – concordou Bumbão confuso.
– E AQUI é AQUI, não é? – disse o menino. – E não LÁ dentro. – Os outros na fila atrás dele concordaram.
Então, Lise tirou uma caneta da sua bolsa, foi à placa, riscou AQUI e escreveu LÁ com letras maiúsculas.
– Vamos começar! – ela gritou, tão alto que quase a ouviram no final da fila. – Não empurrem, deixem os menores na frente, e tenham o dinheiro em mãos!
Às sete horas, quando Bumbão fechou o portão, ainda tinha fila no lado de fora, mas todo o pó havia acabado.
– Esgotado! – gritou Lise, e avisou que aqueles que não tinham conseguido comprar o Pó de Soltar Pum podiam voltar no dia seguinte, porque o doutor Proktor faria mais. E, mesmo que algumas crianças ficassem um pouco desapontadas, já começavam a esperar o próximo dia com ansiedade, porque pela rua dos Canhões já se ouviam estalidos de puns e risos daqueles que tinham conseguido comprar o pó.
– Ufa! – disse Lise, quando todos já tinham ido, e se deixou cair na cadeira do jardim.
– Ufa! – concordou Bumbão.
– Sabem do que mais? – perguntou o doutor Proktor. – Temos de comemorar. O que vocês acham de um pouco de...
– Pudim de caramelo! – gritou Lise, feliz da vida.
– Um metro e meio! – gritou Bumbão, dando saltos na cadeira.
O doutor desapareceu, e voltou logo com o pudim de caramelo mais comprido que Bumbão e Lise já haviam visto.
– Eu o fiz assim, por garantia – disse Proktor, e sorriu com um ar levado.
Enquanto as andorinhas desenhavam letras esquisitas no céu noturno em cima da pereira, o silêncio caiu sobre o jardim do doutor Proktor. Por fim, a única coisa que se ouvia era o ruído de três bocas devorando um pudim de caramelo de um metro e quarenta e três centímetros.
Capítulo 12.
Truls e Trym voam
QUANDO LISE SAIU PELO PORTÃO na manhã do dia seguinte, Bumbão já estava lá com a mochila nas costas.
– Está esperando alguém que vá pelo mesmo caminho? – perguntou Lise
– Estou – respondeu Bumbão.
Começaram a andar.
– Papai e mamãe perguntaram o que aconteceu no jardim do doutor Proktor ontem – comentou Lise.
– E você contou? – perguntou Bumbão.
– Sim, claro – respondeu Lise. – Não é segredo, é?
– Nããão – falou Bumbão. – Só não costumo arriscar contar para mamãe sobre coisas que eu acho muito divertidas. Porque ela quase sempre chega à conclusão de que é perigoso ou desaconselhável, ou algo parecido.
– Talvez ela quase sempre tenha razão – disse Lise.
– E é isso que é tão irritante – falou Bumbão chutando uma pedrinha. – E o que disseram seus pais?
– Papai disse que seria ótimo se eu ganhasse meu próprio dinheiro, assim ele não teria que fazer isso por mim.
– Ah, é? Então, ele não achou que era perigoso?
– Um pouco de pum? Nem um pouco. – Andaram mais um tanto antes de Lise acrescentar: – Mas eu não contei sobre o Pó de Pumponauta.
Bumbão concordou com a cabeça.
– Melhor assim.
– E eu tive uma ideia – disse Lise.
– Então deve ser boa – completou Bumbão.
– Por quê?
– Porque você quase sempre tem boas ideias.
– Pensei que o Pó de Soltar Pum não tem muito sabor – disse Lise.
– Não tem gosto de absolutamente nada – afirmou Bumbão.
– É divertido soltar pum – disse Lise. – Mas que tal a gente colocar um sabor para ficar gostoso de comer também?
– Foi o que eu disse – falou Bumbão. – Só boas ideias. Mas que sabor?
– É simples – disse Lise. – Qual é a coisa mais gostosa que comeu ultimamente?
– É simples – repetiu Bumbão. – Pudim de caramelo do doutor Proktor.
– Exato! E o que a gente vai fazer é juntar cinco por cento de essência de pudim de caramelo ao Pó de Soltar Pum.
– Genial! – gritou Bumbão.
– Ge-ni-al? – ouviram uma voz imitar Bumbão bem atrás deles. – Você acha que parece ge-ni-al, Trym?
– Soa como tolice e papo-furado – disse outra voz, tão próxima quanto a primeira.
Bumbão e Lise se viraram lentamente. Eles se sentiam tão animados que esqueceram de parar para ver se o caminho estava livre em frente da casa onde moravam Trym e Truls. E, agora, os dois meninos grandes estavam lá. Arreganhavam os dentes, mastigando um fósforo grande. Os maxilares subiam e desciam nas enormes cabeças em forma de barris.
– Bom dia, meninos – cumprimentou Bumbão. – Sinto muito, mas temos de nos apressar; a senhora Strobe não gosta que seus gênios cheguem atrasados à aula.
Ele tentou soar leve, e não forçado, mas Lise percebeu pela sua voz que Bumbão não se sentia muito seguro. Ele pegou Lise pela mão e ia puxá-la para ir embora, mas Trym bloqueou seu caminho.
Truls havia encostado na cerca e rolava o fósforo de um canto a outro da boca.
– Não conseguimos comprar pó ontem.
– Devem ter entrado tarde demais na fila, então – disse Bumbão, engolindo em seco. – Tentem de novo hoje à tarde.
Truls riu.
– Ouviu essa, Trym? Entrar na fila?
Trym se apressou em rir também.
– Escute aqui, seu tamanduá sardento – avisou Truls baixinho, e agarrou Bumbão pelo colarinho –, não estamos a fim de ficar em fila, nem de pagar por aquela porcaria de pó, entendeu? Queremos o pó aqui e agora. Senão... – O fósforo balançava para cima e para baixo no canto da boca, enquanto ele encarava Bumbão com um olhar penetrante.
– Senão, o quê...? – sussurrou Bumbão.
Truls parecia estar pensando.
– Senão, o quê...? – repetiu Lise, prendendo a respiração.
– Vamos, Truls – disse Trym. – Conte o que acontecerá senão...
– Cale a boca! – gritou Truls. – Deixe eu me concentrar... – Ele se concentrou. Depois seu rosto se iluminou. – Sim! Senão, vamos untar vocês com mel e amarrar os dois no topo daquela árvore ali. Daí, as gralhas podem comer vocês inteirinhos.
Truls apontou para uma árvore preta com um tronco que era tão grosso quanto quatro pais de Lise. Ou dois pais de Truls e Trym.
Todos olharam para cima.
– Oh! – disse Bumbão.
– Oh! – disse Lise.
– Oh, oh! – disse Trym.
Porque o carvalho era tão alto, que os galhos no topo pareciam roçar o lado inferior da nuvem branca que atravessava o céu.
– Nesse caso – disse Bumbão –, vamos ver se a gente pode encontrar uma solução. Se pudesse me soltar um pouco...
Truls soltou o colarinho, e Bumbão começou a procurar nos bolsos. Quando terminou a busca nos seis bolsos da calça, começou a procurar nos seis bolsos da jaqueta.
Truls ficou impaciente.
– Então? – perguntou.
– Tenho quase certeza de que tenho um saquinho aqui em algum lugar – murmurou Bumbão.
– Não temos tempo para blefes – disse Truls. – Trym, vai pegar o mel e a corda.
– Espere! – disse Bumbão desesperado.
– Vamos pegar a menina primeiro – explicou Truls, e agarrou o braço de Lise.
– Aqui – disse Bumbão, e estendeu um saquinho com um pó acinzentado. – São três coroas.
– Três coroas! – Truls segurou o punho de Bumbão, pegou o saquinho e cuspiu o fósforo meio mastigado na palma da mão do garoto. – Veja, pode ficar com isto. Volte para casa e bote fogo em você mesmo.
– Ha, ha – riu Trym. Truls olhou desconfiado para o saquinho.
– O que está escrito aqui? – perguntou. – D-o-u-t-o-r P-r-o-k...
– O Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor – disse Lise depressa.
– Cale a boca, sei ler! – gritou Truls.
– Desculpe – disse Lise magoada.
– Hum – disse Truls.
– Hum – concordou Trym.
– Você primeiro – disse Truls para Trym.
– Não, você primeiro – disse Trym para Truls.
– Podem dividir – sugeriu Bumbão.
– Cale a boca! – gritou Trym, quase tão alto e grosseiro quanto Truls.
Daí abriram o saquinho, e Truls derramou exatamente a metade do pó na palma da mão de Trym e a outra metade na própria mão. Trocaram um olhar rápido e engoliram o pó.
– Vai ter gosto melhor quando a gente acrescentar a essência de pudim de cara... começou Lise.
– Cale a boca! – gritaram Truls e Trym com a boca cheia de pó.
– Não está acontecendo nada – disse Truls depois de engolir.
– 7 – disse Bumbão.
– Que história é essa?
– 6 – disse Bumbão. – 5.
Truls se virou para Lise.
– O que é que o anão está balbuciando?
Mas Lise, ainda magoada, franziu a boca e cruzou os braços, demonstrando que ela de maneira alguma ia responder.
– 4 – disse Bumbão.
– Truls... – disse Trym. – Estou sentindo algo acontecer... faz... faz... cócegas na barriga.
Truls franziu a testa e olhou para a própria barriga.
– 3 – disse Bumbão. – 2.
– É, agora também estou sentindo – falou Truls. Um grande sorriso se espalhou no seu rosto no momento em que Bumbão disse: – 1, e adeus.
– 1? – perguntaram Truls e Trym. Mas ninguém escutou. Porque a única coisa que ouviram foi o estampido que acordou todos que ainda não estavam acordados naquela manhã na rua dos Canhões. Lise esfregou os olhos para tirar a poeira da rua que a cegava, mas mesmo assim viu apenas Bumbão.
– Cadê eles? – perguntou.
Bumbão levantou o dedo indicador para o céu.
Lise olhou incrédula para Bumbão.
– Você... você não deu...?
Bumbão afirmou com a cabeça.
– Pó de Pumponauta? Está louco, Bumbão! – Lise colocou a mão em concha sobre os olhos e mirou para o céu.
– Eram eles ou nós – disse Bumbão, olhando para cima também.
– Sumiram – falou Lise.
– Evaporaram – completou Bumbão.
– Aposto que vai demorar para que a gente os veja de novo – disse Lise.
– Talvez nunca mais – respondeu Bumbão. – Ou, espere um pouco.
Agora que tinham voltado a ouvir, podiam escutar o zunido de um pum demorado. E uma voz aterrorizada:
– Socorro! – gritou a voz. – Socorro, estamos caindo! – O longo pum e a voz pareciam vir do carvalho.
Lise e Bumbão foram até a árvore e lá, no topo da copa, podiam ver o lado de baixo das solas de dois pares de tênis. Truls e Trym estavam pendurados pelos braços no galho mais alto, e o longo pum fizera a folhagem toda tremer.
– Mamãe! – gritou Truls.
– Papai! – gritou Trym.
Bumbão começou a rir, mas Lise o pegou pelo braço.
– Temos de tirá-los de lá – disse ela. – Podem se machucar.
– Certo – disse Bumbão. – Mas primeiro vou terminar de rir.
Então ele riu. E Lise foi contagiada e não conseguiu deixar de acompanhá-lo. De forma que os vizinhos que acordaram com o estampido, e que agora já tinham escancarado as janelas, ouviram três coisas: alguém gritando “mamãe e papai”, alguém que ria e um som esvoaçante que de longe os lembrava de... Mas não podia ser?... Sim, era isso mesmo; um verdadeiro pum de maratona.
– Para se salvar, vocês têm de se apressar antes que o pum termine fazendo exatamente o que eu disser! – gritou Bumbão para Truls e Trym no topo da árvore. – Entendido?
– Tire a gente daqui! – gritou Truls.
– Vovó! – choramingou Trym. – Titia!
– Levantem as pernas para o traseiro apontar para o chão, e soltem-se! – gritou Bumbão. – Agora, já!
Truls e Trym estavam tão apavorados que fizeram exatamente tudo o que Bumbão os mandara fazer. Soltaram-se. E assim foram caindo entre os galhos, levando junto um monte de folhas e nozes, e aterrissaram com bastante força num monte, bem na frente de Lise e Bumbão.
– Então? – perguntou Bumbão, e rolou o já mastigado fósforo de um lado a outro no canto da boca. – Querem mais?
– N... n... não – disse Trym. – Acho que não.
– Bem... – disse Bumbão. – São três coroas.
– O... quê? – perguntou Trym. – Ouviu, Truls?
Mas Truls não ouviu. Estava deitado de costas na calçada com o olhar vazio no ar, piscando sem parar.
Trym enfiou a mão no bolso da calça e tirou três coroas, que Lise pegou.
– Bem, meus senhores – disse Bumbão, e colocou o fósforo no bolso de trás –, o tempo está passando e, infelizmente, Lise e eu temos de deixar vocês. Em seguida, Lise e Bumbão saíram correndo dali. Entraram pelo portão no pátio da escola justo na hora em que o sino tocou.
– Oi, Bumbão! – Era um menino de quem Bumbão vagamente se lembrava. – Que pó sensacional! Quer vir jogar futebol no Kålløkka depois da escola hoje?
– Bumbão – chamou outro. – Børre e eu vamos lá comprar mais pumpeiros à noite. Está a fim de ir para a casa de Børre e jogar videogame depois?
Uma menina se aproximou de Lise.
– Algumas amigas vêm comer pizza em casa à noite. Pode vir?
Bumbão e Lise acenaram com a cabeça para todos os lados e entraram correndo pela porta principal.
– Está ouvindo, Lise – sussurrou Bumbão. – Somos populares. Você vai ver, logo vai ter uma nova amiga.
Lise balançou a cabeça devagar, concordando.
Quando entraram na fila para a sala de aula com os outros, ela beliscou Bumbão no braço:
– Sabe, Bumbão, pensei um pouco.
– Sim? – disse Bumbão.
Lise sorriu e baixou o olhar.
Bumbão franziu a testa.
– O que foi?
Lise abriu a boca e ia falar alguma coisa. Mas então pareceu mudar de ideia e fechou a boca de novo. E, quando a abriu novamente, pareceu ter dito outra coisa que não era o que tinha pensado primeiro:
– Sim, pensei que era meio estranho você estar com um saquinho do Pó de Pumponauta. E mais estranho ainda porque estava escrito no saquinho que era pó de soltar pum comum.
Bumbão encolheu os ombros.
– Você tinha planejado tudo, não foi? – perguntou Lise. – Você encheu um dos saquinhos normais com Pó de Pumponauta quando a gente estava sentado no jardim do doutor Proktor ontem à noite. Porque você sabia que Truls e Trym iam nos parar um dia, e queria ter um saquinho para poder enganá-los.
Bumbão apenas respondeu com um sorriso.
– Foi isso mesmo? – perguntou Lise.
Mas, quando Bumbão ia responder, foram interrompidos pela voz alta da senhora Strobe:
– Bom dia, minhas queridas crianças. Sentem e fiquem bem quietinhos, por gentileza.
E foi o que fizeram. Pelo menos, quase isso.
Truls e Trym não foram para a escola naquele dia. Ficaram em casa por quatro bons motivos. Primeiro, porque aquele diabinho em miniatura podia ter tramado outros truques. Segundo, talvez as outras crianças da escola já estivessem sabendo dos acontecimentos, e iam se esquecer de ter medo de Truls e Trym; em vez disso, ririam deles. Terceiro, Truls e Trym eram apenas dois belos preguiçosos. Mas o quarto motivo, e o mais importante, era que eles precisavam de ajuda para tramar uma vingança. Porque ninguém era melhor em tramoia e vingança do que o paizão, o senhor Grou. E agora o paizão gorducho estava sentado numa poltrona gorducha na mansão gorducha, coçando os pneuzinhos gorduchos.
– Interessante – comentou. – Quer dizer que esse professor tem um pó que pode lançar uma pessoa direto para o espaço? E outro que as crianças querem pagar para ter?
– É – disse Truls.
– É – disse Trym.
– Não são inventos bobos – constatou o senhor Grou, e arreganhou os dentes de forma bastante malévola, enfiando um pauzinho para dentro da gaiola, da qual um porquinho-da-índia apavorado tentava escapar.
– Acho que tenho um plano, meninos. Um plano que vai fazer todos nós ganhar dinheiro.
– Oba! – aplaudiu Truls.
– Oba! – aplaudiu Trym.
– Roubar – disse o senhor Grou.
– Maravilha! – gritou Truls.
– Como a gente começa? – perguntou Trym.
– Começamos, naturalmente... – disse o senhor Grou, enquanto se esticou com um gemido para pegar o telefone – ... ligando para a polícia.
Capítulo 13.
Um dia perfeito?
BUMBÃO E LISE DANÇAVAM NO CAMINHO PARA CASA, voltando da escola. Era um dia perfeito. Tinha começado com Truls e Trym comendo Pó de Pumponauta que os mandara para o espaço. E continuou com todos querendo ser amigos deles. Até a senhora Strobe estava de bom humor; quando Bumbão deu uma das suas respostas fora do comum ela riu tanto que as lágrimas rolaram. Ela o afagou na cabeça e disse que era impressionante que tantas coisas estranhas coubessem lá dentro. E, à tarde, Lise, Bumbão e o doutor Proktor iam vender mais pó de soltar pum, ganhar mais amigos ainda, comer mais pudim de caramelo e depois só ficariam esperando chegar o dia 17 de maio. Não era de estranhar que dançassem. O que poderia dar errado?
Nada, pensou Bumbão.
Nada, pensou Lise.
Por isso não deram muita atenção ao fato de um carro da polícia estar estacionado na rua dos Canhões.
– A gente se vê depois do almoço – cantarolou Lise.
– Até já, já – disse Bumbão, e saltou por cima do portão baixo.
Ele subiu a escada correndo, abriu a porta e ia entrar, quando reparou numa comitiva atravessando o capim alto a caminho do portão do doutor Proktor. Eram dois homens de uniforme policial, um de bigodão e o outro bigodudo. Os dois pareciam bem determinados, e no meio deles, preso, estava o doutor Proktor, que gesticulava e parecia muito agitado.
– Parem! – gritou Bumbão, descendo da escada num pulo e correndo para a cerca de tábuas. – Parem, em nome da lei!
A comitiva parou e os dois policiais se viraram para Bumbão.
– Eu sou a lei – falou o policial de bigodão. – Não você.
– O que está acontecendo? – perguntou Bumbão. – O que vocês querem com o doutor?
– Ele infringiu a lei e a ordem – explicou o policial bigodudo. – E, para a polícia, isso é muito sério.
O doutor gemeu.
– Eles estão alegando que estou vendendo um pó perigosíssimo para as crianças na vizinhança. Como se o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor pudesse fazer mal a uma mosca!
Os dois policiais escoltaram o professor em direção à rua, rumo ao carro policial. Bumbão correu atrás deles.
– Esperem! – gritou. – Quem é que está dizendo que o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor é perigoso?
– O pai de dois meninos que foram direto para o espaço com esse pó diabólico – disse o de bigodão, abrindo uma das portas traseiras do carro para o doutor Proktor entrar. – Ele ligou e disse que era preciso prender este professor maluco. E é evidente que tem razão. Mandar meninos para o espaço daquele jeito... Cuidado com a cabeça, doutor.
– Vá para casa almoçar agora, Bumbão – falou o doutor Proktor ao baixar a cabeça para entrar no carro. – Vou esclarecer este mal-entendido assim que chegarmos à delegacia.
Mas Bumbão não desistiu.
– Seus cabeças-ocas! Não foi o doutor que deu aos meninos o pó que os mandou para o alto da árvore!
– Cabeças o quê? – perguntou o bigodudo ríspido.
– Fui eu – disse Bumbão, e se colocou firme, de pernas afastadas, na frente dos policiais.
Os dois olharam primeiro para Bumbão, entreolharam-se e então caíram na gargalhada.
– Um cara miudinho feito você? – riu o de bigodão.
– Como poderia um pequerrucho desses ter algo a ver com uma transgressão tão séria da lei? – riu o bigodudo.
– Bem – disse Bumbão, inflando-se como o papo de um sapo –, se vocês, em nome da lei, tivessem prestado atenção, os seus cérebros policiais argutos teriam ouvido que eu disse que o pó os mandou para cima de uma árvore. Vocês não disseram nada sobre árvores, de que outra maneira eu poderia saber disso?
– Hum – disse o de bigodão. Levantou o boné policial e coçou a careca lisa que estava por baixo. – Tem razão. Como sabia, então?
– Porque é como estou dizendo! – falou Bumbão com voz crepitante. – Fui eu que vendi o pó para eles. E não era daquele pó comum inofensivo que o doutor Proktor vende. Não, meus senhores...
Bumbão respirou fundo e começou uma frase bem longa:
– Eu vendi a eles o Pó de Pumponauta do Doutor Proktor, apesar de o doutor ter determinado que esse pó seria vendido somente à agência espacial norte-americana, a Nasa, pois se trata de uma mistura especial, hiperexplosiva, que só pode ser tomada em doses mínimas por pessoas que tenham pelo menos quatro anos de formação de astronauta, e, mesmo assim, usando equipamento de proteção e sob observação de pelo menos dois adultos!
Enquanto Bumbão falava, foi se enchendo de mais raiva, e já dava saltos.
– Hum – disse o bigodudo. – E quem é que fez esse... esse Pó de Pumponauta?
– Fui eu – suspirou o doutor Proktor de dentro do carro.
– Mas fui eu que fiz Truls e Trym tomarem o pó – falou Bumbão.
– Hum – disse o de bigodão. – Não vejo outra solução a não ser prender vocês dois. O que você acha?
– Acho que você está certo – disse o bigodudo.
E foi assim que o doutor Proktor e Bumbão foram presos, justo no dia que, até aquele momento, parecia ser perfeito.
Capítulo 14.
Três homens malvados
com um plano
QUANDO O PAI DE LISE CHEGOU EM CASA naquele dia, ela estava sentada embaixo da macieira sem maçãs.
– Estou tão aliviado – rosnou o comandante, enxugando o suor da testa. – Nós achávamos que o dia 17 de maio tivesse ido para o espaço. Sabe, Lise, procuramos a pólvora especial da Grande e Quase Mundialmente Famosa Salva Real durante dias. Começamos a achar que tivessem esquecido de colocar a pólvora a bordo do navio lá em Xangai. Mas descobrimos que foi a primeira coisa que carregaram, e que está bem no fundo. Vai ser descarregada amanhã. Já pensou que catástrofe sem aquela pólvora!
Só agora percebera que Lise mal prestava atenção, e que estava sentada embaixo da árvore com a cabeça enterrada entre as mãos, abatida e tristonha.
– Há algo errado, meu bem? – grunhiu.
– Aconteceu uma coisa terrível – falou Lise macambúzia. – O Bumbão e o doutor Proktor foram presos. Só porque Truls e Trym comeram um pouco de Pó de Pumponauta.
– Eu sei – disse o comandante.
– Você sabe? Como é que sabe?
– Porque a polícia pediu para colocá-los na cela mais segura de toda a Europa do norte, com exceção da Finlândia. E lá estão.
– Quer dizer... quer dizer... – começou Lise transtornada.
– Sim – disse o pai. – Eles estão no Calabouço do Fantasma.
– No Calabouço do Fantasma?! Mas Bumbão e o professor não são nem um pouco perigosos!
– Parece que a polícia não concorda com isso. O senhor Grou explicou que o professor é totalmente biruta e que vai inventar uma bomba atômica se não for colocado atrás das grades já.
– O senhor Grou? Eles acreditam nele?
– É claro que acreditam no senhor Grou – rosnou o comandante. – Foi ele que nos ajudou a inventar o material mais duro e secreto do mundo. Aquele que se usa nas portas das celas mais seguras do mundo...
– Sim, papai, já ouvi a respeito – suspirou Lise. – Mas o que vamos fazer agora?
– Agora? – Ruidosamente, o comandante tragou o ar que vinha da janela da cozinha aberta. – Comer bife à milanesa, parece. Vem.
Quando Lise entrou, o cheiro de bife à milanesa se espalhou pelo jardim, onde uma leve brisa o levou pela rua dos Canhões, para o fiorde, para o forte de Akershus, para dentro dos muros altos, passando as torres e os canhões pretos e antigos que apontavam para o mar. Os guardas do lado de fora do Calabouço do Fantasma respiraram o aroma sem se dar conta, e o que sobrou do cheiro continuou por entre as barras, indo para um corredor que levava a uma escada de pedra, que descia rumo a uma porta muito grossa e bem trancada.
Um tiquinho do cheiro de bife à milanesa infiltrou-se através do buraco da fechadura, para um recinto que mais parecia o interior de uma bala metálica. No outro lado do recinto tinha uma ponte que levava a outra porta de ferro, ainda mais grossa e mais bem trancada que a primeira. E com um buraco de fechadura tão estreito, que apenas poucas moléculas de gás do tipo das do bife à milanesa conseguiriam entrar no corredor. No corredor, a escuridão só era cortada por raios laser, que iam em todas as direções. A rede de raios laser era tão densa, que nem um minúsculo Rattus norvegicus poderia ter esperança de escapar às escondidas, sem acionar o alarme. E o alarme estava conectado à sala de segurança, onde um guarda dava plantão. E à central de polícia. E à central de comando da polícia antiterror. E à central de comando do comando da polícia e da polícia antiterror.
Como você deve ter entendido, o disparo de um alarme daqueles ocasionaria muito corre-corre e gritaria, e talvez troca de tiros, e com certeza a apreensão bem rápida do ratinho ou da aranha que tentasse algo tão estúpido como fugir do Calabouço do Fantasma. Atrás do corredor – e agora quase não sobrava mais cheiro algum – ficava a última porta. E essa era feita com o material que quase ninguém sabia existir, mas que era tão duro, inventado com tanta astúcia e tão secreto, que o autor deste livro teve de prometer ao governo norueguês não contar mais nada sobre o material nesta história.
O fato é – como você talvez já tenha percebido – que não havia jeito de fugir do Calabouço do Fantasma. E lá, atrás da última porta, encontravam-se o doutor Proktor e Bumbão. As paredes e o teto eram brancos, sem janelas e meio arredondados, o que dava uma sensação de estar sentado no interior de um ovo. Estavam sentados cada um na sua caminha, cada um no seu lado da cela de ovo, iluminada por uma única lâmpada que pendia do teto. Além disso, tinha uma mesinha entre as camas, uma privada e uma pia parafusadas na parede, e uma prateleira com um único livro: Rei Olav – O rei do povo. Bumbão o leu quatro vezes. Tinha muitas fotos, e o garoto entendeu do texto que a melhor coisa de rei Olav era seu bom humor. Mas existe um limite para o número de vezes que se pode ler um livro sobre bom humor quando se está na prisão. E não era uma prisão qualquer, mas a mais segura de toda a Europa do norte, com exceção da Finlândia.
Enquanto Bumbão lia, o doutor Proktor rabiscava e desenhava em algumas folhas de papel que trouxera no bolso, coçava a cabeça com o toco do lápis, murmurava uns versos em grego e continuava a rabiscar. Estava tão imerso nesse trabalho, que nem percebeu que Bumbão soltara vários suspiros altos para fazê-lo perceber como era enfadonho para um menino como ele ficar trancafiado por tanto tempo num lugar feito o Calabouço do Fantasma. Agora ele metia o nariz no ar e farejava:
– Está sentindo o cheiro, professor? O professor parou e farejou:
– Bobagem. Não tem cheiro de nada.
– Para nós, que temos nariz sensível, tem cheiro sim – disse Bumbão, concentrando-se. – Hum. Pode ser de pão francês? Não, mais ao leste. Bolinhos de Berlim? Mais ao sul. Bife à milanesa? Sim, tem de ser isso. Frito em margarina.
No instante em que Bumbão disse “margarina”, viu os ombros do professor parecerem desmoronar, e ficou com uma expressão triste. Bumbão pulou para a cama do professor e olhou por cima do seu ombro, na direção dos desenhos.
– Belo desenho, cores enfadonhas – comentou Bumbão. – O que é?
– Uma invenção – disse o doutor Proktor. – Uma máquina de fugir-da-prisão-mais-segura-da-Europa-do--norte. Com cálculos da probabilidade de dar certo.
– E o que dizem seus cálculos?
– Está vendo aquele número? – perguntou o professor, e apontou um número sublinhado com linha dupla.
– Sim – disse Bumbão. – É o número zero.
– O que quer dizer que a possibilidade de fuga é igual a zero. Estamos ferrados.
– Calma – disse Bumbão. – Logo, logo vão soltar a gente. Quando investigarem mais um pouco e descobrirem que Pó de Soltar Pum na verdade é uma coisa boa.
– Não – disse o professor, sombrio, e amassou as folhas de papel.
– Não? – gritou Bumbão. – Bobagem!
– Gostaria que fosse – falou o professor. Jogou então os papéis na privada, sem acertar. – Não queria dizer isso antes, mas durante o interrogatório com a polícia deixaram bem claro que estamos encrencados.
– O que disseram exatamente?
– Aquele cara baixinho que se chama Bumbão não pode cumprir pena porque é uma criança, mas ele deve contar com pelo menos um ano numa instituição para crianças com problemas comportamentais.
– Ah, isso não é nada – disse Bumbão. – Talvez enfim seja um lugar com uma banda onde eu possa tocar um pouco de trompete. O que mais disseram?
O doutor Proktor pensou, pigarreou e continuou:
– Mas você, professor, que é adulto, vai ter de cumprir pena de até doze anos atrás desses muros, ou outros muros, e nunca mais vai poder inventar nada. Está entendido?
– Ai, ai – disse Bumbão. – Isso é pior.
– Muito pior – falou o doutor Proktor. – Não aguento a ideia de doze anos, nem de muros ou de não poder inventar mais nada. Tenho de fugir.
– Hum – disse Bumbão. – Para onde?
– Para a França. Tenho de encontrar Juliette Margarina. Ela vai me ajudar a me manter escondido da polícia, vai me dar abrigo. E brie. E vinho tinto.
– Mas de que jeito?
– Com a moto, claro. Só preciso de um pouco de graxa, e a moto vai de vento em popa.
– Como vamos conseguir tirar você daqui?
– Não faço ideia... Espere! – Doutor Proktor ficou pensativo.
– Talvez eu tenha errado um cálculo... – Ele deu um pulo e pegou as folhas de papel amassadas do chão, alisou-as com a mão, correu o olhar sobre as páginas, murmurou algo e começou a rabiscar e a desenhar de novo.
Bumbão o observou, ansioso. Até o professor amassar as folhas outra vez, jogá-las por cima do ombro e bater com a testa na mesa:
– Não adianta! – soluçou, e pôs os braços por cima da cabeça. – Eu nunca faço cálculos errados!
– Hum – disse Bumbão, colocando o dedo indicador no queixo, pensativo. – Parece complicado.
– Parece impossível! – gritou o doutor Proktor. – O que vamos fazer agora?
– Agora? – perguntou Bumbão, que ouvira ruídos de chaves e farejara no ar. – Comeremos bolinhos de peixe, parece.
Depois do almoço, Lise foi para o jardim. Ela tinha de pensar. Então se sentou na grama embaixo da macieira sem maçãs e pôs a cabeça entre as mãos. Mas os únicos pensamentos que teve diziam que era impossível fugir do Calabouço do Fantasma e que, com certeza, Bumbão e o doutor Proktor estavam perdidos. Soltou um arroto de bife à milanesa e teve vontade de chorar. Então chorou um pouco, e, como sempre, chorar a deixava com muito sono, por isso, bocejou também. O sol da tarde iluminou Lise, e um pássaro num galho da macieira cantou. Mas Lise não percebeu nada disso porque já estava dormindo. E, quando acordou, não foi com o canto de passarinho, mas com vozes. As vozes vinham do outro lado da cerca. Alguém estava na rua conversando.
– Olhe a porta velha do porão ali – sussurrou uma voz de adulto que ela reconheceu. – Deve estar trancada, mas vocês dão um jeitinho, meninos.
– Claro – disse uma voz ainda mais familiar. – É só usar um pé de cabra e forçar a porta aberta.
– Vamos arrombar! – disse uma terceira voz que ela certamente sabia de quem era.
– Legal!
Lise se levantou e olhou com cuidado por cima da cerca. E lá viu as costas de três pessoas que olhavam com cuidado por cima da cerca da casa do doutor Proktor.
– É esse o espírito, meninos – sussurrou o senhor Grou. – E, quando estiverem dentro do porão do professor, peguem todo o Pó de Soltar Pum e todo o Pó de Pumponauta que acharem. Entendido?
– Sim, papai – disse Truls.
– Sim, papai – disse Trym.
– E depois, meninos, podem vender o Pó de Soltar Pum para as crianças da escola.
Eles se viraram, mas Lise foi mais rápida e se abaixou.
– E o Pó de Pumponauta, papai? – perguntou Truls.
– Ha, ha – riu o senhor Grou. – Já falei com alguém em Houston que está muito interessado numa invenção que possa mandar pessoas direto para o espaço sem precisar construir um foguete.
– Quem é, papai? – perguntou Trym.
– A organização norte-americana Nasa, seu imbecil – disse o senhor Grou. – Depois de pegarem o pó, vou direto para o escritório de patentes para tirar patente desse Pó de Pumponauta. Então vai ser tarde demais para o babaca do professor; serei eu que vou vender o pó. Vou ser milionário, meninos!
– Você já não é, papai?
– De certa forma sim. Mas, com mais alguns milhões, posso comprar mais um Hummer. E uma piscina coberta. O que acham disso?
– Sim, papai! – gritaram Truls e Trym em coro.
– Certo – disse o papai. – Então sabemos como é por aqui. Vamos arrumar um pé de cabra, gorros e atacar amanhã à noite. Ha, ha, ha.
Lise ficou quieta ouvindo o riso do senhor Grou e os passos deles se afastarem.
Depois se levantou de um salto e correu para dentro de casa.
– Papai, papai! – gritou.
– O que é, Lise? – resmungou o comandante, que estava deitado no sofá, lendo o jornal.
Rapidinho, ela contou como fora acordada e ouvira o plano da família Grou. Mas, enquanto falava, um sorriso se espalhou no rosto do comandante.
– O que foi? – gritou Lise quando terminou. – Você não está acreditando em mim?
– Você nunca mente, querida – falou o comandante, coçando o queixo. – Mas não está entendendo que você sonhou isso tudo quando estava dormindo, e que não tinha acordado? O senhor Grou com a família arrombando a casa de um professor para roubar a invenção dele? – O comandante riu tanto que seu corpo todo sacudia. – Já pensou?!
Devagar a ficha caiu para Lise: se nem o próprio pai acreditava nela, quem iria acreditar? Quem poderia ajudá-la? E a resposta estava igualmente clara para ela: ninguém. Só ela mesma.
O sol tinha acabado de se pôr e, na noite seguinte, o Pó de Soltar Pum do Doutor Proktor estaria nas mãos de três caras malvados. E só ela sabia disso.
Capítulo 15.
O Calabouço
do Fantasma
NAQUELA NOITE, BUMBÃO ACORDOU com um ruído. Ele se apoiou nos cotovelos. No escuro podia ouvir o ronco do doutor Proktor da outra cama. Mas Bumbão sabia que não tinha sido esse o ruído que o acordara. Por um momento pensou que talvez fosse o ronronar da sua barriga, já que não haviam recebido mais comida depois dos miseráveis bolinhos de peixe. Mas sabia que também não era isso. Na verdade, Bumbão tinha uma forte sensação de que ele e o doutor Proktor não estavam mais sozinhos na cela...
Ele olhou para dentro do escuro.
E só o que viu foi escuridão.
Mas, na solitária faixa de luz que entrava pelo buraco da fechadura, de repente viu alguma coisa. Um vislumbre, como de dentes brancos e bem afiados. Depois sumiu de novo.
– Alto lá! – gritou Bumbão. Jogou a coberta para o lado, pulou da cama, correu para a porta e acendeu a luz.
O ronco do doutor Proktor parou e, quando Bumbão se virou, viu o professor em pé na cama só de cueca, o rosto tão branco quanto o resto do corpo, apontando para o animal que já estava visível.
– É-é-é um... – gaguejou o professor.
– Estou vendo o que é – disse Bumbão.
– E-e-eu morro de medo d-d-de... – gaguejou de novo.
– Daquele animal ali? – perguntou Bumbão.
O professor balançou a cabeça e colou-se tremendo à parede:
– Olhe aqueles de-de-dentes de besta.
– Besta? – perguntou Bumbão, colocando-se de cócoras na frente do animal. – Esse é um Rattus norvegicus, professor. Um pequeno Rattus norvegicus amigável e sorridente. É verdade que foi mencionado numa nota de rodapé em ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM, de W. M. Poschi, mas é só porque ele espalha a peste negra e outras doenças inofensivas. O ratinho piscou para Bumbão com seus olhos castanhos de rato.
– Eu não posso evitar – disse o doutor Proktor. – Ratos me deixam trê-trêmulo. De onde veio? Como entrou aqui?
– Boa pergunta – disse Bumbão, e coçou a cabeça olhando ao redor. – Diga-me, professor, está pensando a mesma coisa que eu?
Doutor Proktor olhou para Bumbão.
– Eu-eu-eu acho que sim.
– E o que estamos pensando? o calabouço do fantasma | 135
– Estamos pensando – disse o professor e, esquecendo o medo, pulou no chão e vestiu o jaleco – que, quando é possível entrar num lugar, tem de ser possível sair do mesmo lugar.
– Exato – falou Bumbão. Esticou um dedinho que o ratinho farejou com curiosidade. – Por isso sugiro que a gente preste atenção nesse nosso amiguinho aqui, quando ele resolver voltar para casa.
Capítulo 16.
A grande fuga
FOI EVA QUE ABRIU quando Lise tocou a campainha da casa amarela na manhã seguinte. Eva olhou para a menina com olhos quase cerrados, bem malévolos, que cintilavam quase tão ardentemente quanto as duas novas espinhas que ganhara, e disse com uma voz chiada, falsa:
– Bumbão não está, Pumpumlise.
– Eu sei – disse Lise. – Ele está na prisão.
Eva esbugalhou os olhos.
– Na prisão?
– É. No Calabouço do Fantasma.
– Mamãe – gritou Eva por cima do ombro. – Bumbão está na prisão!
Elas ouviram alguém remexer em algo, deixando cair coisas, tropeçar e talvez soltar alguns palavrões.
– Vocês não se preocuparam por não o terem visto desde ontem? – perguntou Lise.
Eva encolheu os ombros.
– Não é fácil ver algo tão minúsculo, nem acho estranho se não o vejo por uns dias, sabe. Acho até legal.
– De qualquer maneira – disse Lise –, os prisioneiros no Calabouço do Fantasma só podem receber visita da família mais próxima, então queria saber se vocês poderiam dar essa carta a ele.
– Vamos ver – falou Eva, e arrancou a carta da mão de Lise. – Se der tempo.
Bumbão e o doutor Proktor estavam deitados no chão da cela, roncando e dormindo, quando foram sacudidos por um guarda real que servia como carcereiro, de uniforme preto e chapéu com um grande e cômico pompom.
– Nossa! Caímos no sono mesmo – disse Bumbão, esfregando os olhos.
– Visita para o prisioneiro número 000002 – disse o guarda de prisão bruscamente.
– Sou eu? – perguntou Bumbão sonolento. – Ou é ele?
– É você – disse o guarda. – Aquele ali é o prisioneiro número 000001.
Bumbão olhou em volta.
– Onde? Onde?
– Aquele ali – disse o guarda irritado enquanto apontava para o professor que ainda roncava baixinho.
– Não ele! – gritou Bumbão. – O rato! Um rato saiu correndo pela porta quando você entrou?
– Não que tenha visto – disse o guarda. – Vai querer a visita ou não?
Bumbão seguiu o guarda através das portas espessas, agora abertas, pelo corredor cujos raios laser por cima da porta estavam desligados, subiu a escada, passou pela porta de barras aberta e entrou na sala de visita. E, de fato, lá estava Eva numa cadeira, mascando chiclete.
– Oi – disse Bumbão, surpreso, e sorriu para sua irmã. – Que legal você querer me visitar.
– Eu não quis, fui forçada – respondeu Eva. – A mamãe me mandou. Ela não estava em forma para uma visita de prisão. Tenho uma carta para você. É daquela menina vizinha tapada.
– Lise? – perguntou Bumbão, animando-se e pegando o envelope. De cara viu que já tinha sido aberto. – E o que ela escreveu? – perguntou um tanto ácido.
– Como vou saber? – respondeu Eva com inocência.
Bumbão leu a carta em silêncio e a colocou no bolso.
– O que é Nasa? – perguntou Eva.
– Alguma novidade? – retrucou Bumbão.
Eva bufou e se levantou.
– Tenho de ir à escola. Tenha um bom dia na prisão.
Quando Bumbão estava de novo bem trancafiado atrás de grades e mais grades, e haja grades, com o professor, ele lhe estendeu a carta.
Doutor Proktor leu em voz alta.
Péssimas notícias. A família Grou vai hoje à noite arrombar o porão do professor, roubar o Pó de Pumponauta, tirar a patente dele e vender a invenção para a Nasa. Algo tem de ser feito. Lise.
– Isso é terrível! – exclamou o professor. – Eles querem me enganar, roubar a minha invenção!
– Lise tem razão – disse Bumbão. – Algo tem de ser feito. Temos de sair daqui.
– Mas como? – perguntou o professor. – O rato já se mandou.
– Não sei – falou Bumbão. – Me dê a carta. Vamos jogar na privada para ninguém descobrir que Lise está do nosso lado. Senão também vão colocá-la na prisão.
Bumbão amassou a carta, jogou no vaso e deu descarga. A privada gorgolejou alta e longamente, o pedacinho de papel sumiu e o vaso ficou chiando. Pensativo, Bumbão observou o pedacinho de papel sumir, coçando seu cabelo ruivo. E o que pensava era como a carta agora estava sendo levada pela água cano abaixo. Mais e mais para baixo. Até desembocar num cano de esgoto maior lá embaixo deles. Um cano de esgoto com certeza fedorento e onde moravam muitos...
– Sabe de uma coisa? – disse Bumbão. – Acho que sei exatamente onde o nosso amiguinho se enfiou.
– Ah, é? – disse o professor.
Bumbão apontou para dentro do vaso.
– Ele subiu nadando para cá por dentro dos canos do esgoto. E voltou pelo mesmo caminho.
– Que nojento! – constatou o professor, e apertou o nariz.
– Talvez – falou Bumbão. – Mas naquele cano de esgoto a água continua correndo. E correndo. Até chegar ao mar. Ou talvez a uma estação de purificação. E no caminho têm escadas subindo para as ruas, bueiros que levam direto às ruas de Oslo. Está entendendo o que quero dizer, professor?
Proktor, que parecia entender o que Bumbão dizia, olhou incrédulo para ele:
– Você deve estar louco!
– Louco não – riu Bumbão. – Apenas bem esperto. E muito, muito pequeno. Vamos só torcer para que eu seja pequeno o bastante.
– Você não pode! – disse o doutor Proktor. – Não vou deixar!
– Vai deixar, eu preciso e vou – disse Bumbão.
– Os guardas nos vigiam o tempo todo; eles vão descobrir que você sumiu.
– Vamos esperar até a noite – falou Bumbão. – Vamos dormir cedo e apagar a luz. E no escuro da noite...
O sol deslizava pelo céu e seus raios iluminavam uma Oslo que já se preparava para o dia 17 de maio, faltando apenas dois dias. As pessoas limpavam a casa, plantavam flores nas caias das janelas, passavam a ferro as bandeiras e os trajes nacionais, repetiam receitas de gemadas, cantarolavam o hino nacional. E, quando o sol começou a cair sobre a colina de Ullern, os homens no cais descarregavam as últimas caixas do navio de Xangai.
Os raios de luz, que penetraram por entre as tábuas do cais, refletiam nas conchas. E não apenas naquele tipo de conchas presas entre os pilares do cais. Mas em conchas que se mexiam. Conchas negras presas nas costas de algo que saía serpenteando do buraco escuro de um cano de esgoto. Conchas nas costas de algo que não tinha visto comida desde a carne dura do rato--d’água mongol de trinta e cinco anos, dois dias antes.
A criatura deslizou pela água. Ouviu ranger as tábuas do cais. Viu as solas de um par de botas. Comida. Era um homem carregando uma caixa de madeira. O monstro subiu serpenteando ligeiramente uma das pilastras do cais em direção ao sol ofuscante, levantou-se, balançou por cima do coitado e ouviu os passos no cais pararem. O monstro abriu a boca, o sol cintilou nas terríveis presas e se ouviu um grito. Isso mesmo, é esse o barulho de uma boa comida...
A criatura se preparou para um belo naco. Mas o sol da tarde estava baixo, embora ainda assim bem ofuscante, e o monstro não via luz fazia dias. Deu uma dentada às cegas. Abocanhou algo, segurou com os dentes e desapareceu rapidinho na água. E para dentro do cano de esgoto. Comida! Já sentia os sucos gástricos começarem a escorrer de glândulas do corpo inteiro, enquanto nadava para dentro do sistema de esgoto de Oslo. E então, bem lá dentro, numa faixa de luz que caía da pequena abertura de água de um bueiro da rua lá no alto, parou para se deleitar. Mas... o que era aquilo? Gosto de madeira? Cuspiu a comida. Que de comida não tinha nada. Era uma caixa de madeira. O monstro fumegou de raiva. Que azar! Maldito! Que droga!
Mas então ouviu alguma coisa. Um eco de um chiar lá dentro do sistema de esgoto. Chiar de rato? Rattus norvegicus. Comida! E zás, o monstro morto de fome sumiu na escuridão do esgoto em outra caçada. A caixa de madeira ficou lá, boiando na água do esgoto. E na faixa de luz do bueiro dava para ler o seguinte texto impresso na tampa em letras vermelhas:
CUIDADO! PÓLVORA ESPECIAL ALTAMENTE EXPLOSIVA DE XANGAI PARA A GRANDE E QUASE MUNDIALMENTE FAMOSA SALVA REAL NO FORTE DE AKERSHUS.
O sol desceu ainda mais sobre a colina de Ullern e estava em vias de desaparecer atrás dela. Os últimos raios lançavam longos dedos brancos sobre a paisagem, como se o sol desesperadamente tentasse se agarrar a algum lugar para não ir embora. Depois de mais alguns instantes, os raios chegavam até a rua dos Canhões. Mas lá o sol se desgarrou, e se foi. Era noite.
Numa das três garagens na rua dos Canhões, Truls e Trym olhavam para o senhor Grou, que tirou um pé de cabra enorme da caixa de ferramentas do Hummer preto. Ele já dera um gorro a cada um deles, daqueles que cobrem a cabeça toda, menos os olhos e a boca. Ótimo para quando faz muito frio. Ou para quando você vai arrombar uma casa, por exemplo. Porque mesmo que alguém o veja arrombando, com certeza não vai reconhecê-lo depois. A não ser que você ainda esteja usando o gorro, claro.
– Assim – demonstrou o senhor Grou, e colocou o pé de cabra no vão de uma porta. – E assim. E depois assim.
– Assim – repetiram Truls e Trym através das balaclavas. – E assim. E depois assim.
Sem parar, repetiam e treinavam para aprender a arrombar. Mas levou muito tempo, porque Truls e Trym não eram os meninos mais espertos do mundo. Aliás, não só não eram os meninos mais espertos do mundo, como também não eram os meninos mais espertos da Noruega, nem os meninos mais espertos de Oslo, e muito menos os meninos mais espertos da rua dos Canhões. Porque o menino mais esperto da rua dos Canhões estava neste instante deitado numa cama no Calabouço do Fantasma, sentindo-se nervoso. Mais nervoso do que jamais estivera. É, tão nervoso que beirava o medo. E medo era algo que Bumbão, o prisioneiro número 000002, raramente sentia.
– O que está fazendo? – ele perguntou ao doutor Proktor, que tinha tirado o jaleco de professor, virado os bolsos dele do avesso e agora escovava o forro com cuidado em cima de uma das suas folhas de papel.
– Foi o que pensei – disse o professor. – Vai estar um breu quando você chegar lá embaixo. E você não tem lanterna. Então me lembrei que nos bolsos dos meus jalecos sempre têm restinhos de diversos pós que inventei. E olha aqui o que eu encon...
Bumbão se aproximou e olhou para a folha de papel, onde havia uma camada fina de pó verde-claro.
– Eu já vi isso antes – disse Bumbão. – É o Pó Verde-Claro do Doutor Proktor. Você o guardou num vidro no seu porão. Disse que era um pó fosforescente que faz você brilhar na escuridão. E que era uma invenção que não tinha dado muito certo.
– Talvez tenha me enganado – disse o professor, e dobrou a folha no meio para deixar todo o pó na dobra. – Abra a boca!
Bumbão escancarou a boca o máximo que conseguiu, e o professor despejou o pó todo dentro do buraquinho.
– Demora um pouco até produzir efeito – explicou o professor. – Enquanto isso... – Ele sacudiu com força o conteúdo do outro bolso na folha de papel.
– Será o que eu acho que é? – perguntou Bumbão quando viu os pequenos grãos azul-claros cobrindo os cálculos do professor.
– Isso mesmo – respondeu o professor. – Pó de Pumponauta. Uma pena que tenha tão pouco.
– Mas o que vou fazer com isso?
– As saídas do sistema de esgoto são barradas com tampas de bueiros – explicou o professor. – São pesadas e estão presas. Se quiser sair, vai ter de...
– Mandar uma delas para o espaço com um pum! – gritou o menino mais esperto da rua dos Canhões.
O professor afirmou com um balanço de cabeça e despejou o Pó de Pumponauta no envelope da carta de Lise.
– Mas aqui só tem para um único pum forte, então não pode haver desperdício.
– Claro que não – disse Bumbão. Dobrou o envelope e o enfiou no bolso da calça.
O professor o olhou atentamente.
– Sua cara está verde. Está enjoado?
– Não – disse Bumbão surpreso. – Apenas um pouco... bem, nervoso.
– Ótimo, então é o pó fosforescente que está começando a funcionar. Rápido, temos de agir antes de o efeito passar.
O professor foi até a porta e colocou um dedo no interruptor. Hesitou.
– Vamos – disse Bumbão.
O professor suspirou, apagou a luz, tudo ficou escuro. Mas não totalmente escuro. Porque, na sua frente, Bumbão viu uma brilhante luz verde, só não podia ver de onde vinha. Até que baixou o olhar para si mesmo.
– Puxa! – gritou. – Sou transparente! Posso ver meu próprio esqueleto!
– E está fosforescente – disse o professor. – Você é sua lanterna. Agora vá, depressa!
Bumbão subiu na beirada da privada e pulou dentro, esguichando água para todo canto.
– Brrr – gemeu.
– Pronto? – perguntou o professor, olhando para o minúsculo e agora fosforescente menino, patinando na água.
– Pronto – respondeu Bumbão.
– Respire fundo e prenda o ar – pediu o professor.
– Lá vou eu! – disse Bumbão, apertando o nariz com os dedos.
Então o professor deu descarga. A privada gorgolejou, pigarreou e borbulhou. E, quando o som se tornou um chiado regular, e o professor olhou o vaso, Bumbão não estava mais lá.
Capítulo 17.
A vida no esgoto
BUMBÃO ESTAVA EM QUEDA LIVRE. Ele uma vez já havia tentado descer um tobogã aquático em algum parque de diversão, mas esse agora era outra coisa. Seu corpo descia como se fosse um torpedo para o centro da Terra, até que uma curva o jogou para a esquerda. Depois para a direita. E para baixo de novo. Ele se sentiu como um caubói sentado num cavalo selvagem feito de água, e não pôde evitar: teve de exclamar um “Ia-huu!”.
Os canos eram de tamanho adequado, com a quantidade adequada de água para amortecer todas as quedas e curvas. Continuou a descer e, apesar de ficar cada vez mais escuro e frio, ele se divertiu com tudo adquirindo um brilho verde ao redor nem lembrou que estava molhado ou com frio. E ele entendeu bem por que o rato tinha nadado e subido até o vaso sanitário deles: aquilo era a montanha-russa do século!
Todas as vezes que fazia uma curva, e era arremessado para uma nova queda livre, Bumbão sentia tanta cócega na barriga que queria que a viagem nunca acabasse. Mas é claro que tinha de haver um fim. E havia. Bem de repente. As paredes do cano estreito sumiram, e ele ficou deitado no ar, barriga para baixo, vendo algo preto que se aproximava a uma velocidade monstruosa. E a coisa preta o acertou. Ou melhor, Bumbão acertou a coisa preta. Ninguém nunca fora testemunha de tamanha barrigada de mergulho no sistema de esgoto de Oslo. Esguichou água marrom e papel higiênico usado para cima das paredes. E como ardeu! Bumbão tinha a sensação de estar deitado, barriga para baixo, numa frigideira.
Ele se levantou e descobriu que a água só ia até a cintura. Olhou em volta. Fora a luz verde cintilante do corpo dele, tudo estava um breu. E, quando o esguicho de esgoto passou, silêncio total. Mas, pelo amor de Deus, como fedia! O fedor era tão ruim, que o autor aconselha vocês a fazerem o mesmo que Bumbão entendeu que tinha de fazer: parar de pensar a respeito.
Em que eu estava pensando mesmo, considerou Bumbão, já que não pensava mais no fedor. Claro, tenho de encontrar um bueiro. Então, Bumbão começou a caminhar pela água da rede de esgoto à procura de uma saída.
Infelizmente não era tão fácil, como a gente gostaria de acreditar, encontrar uma tampa de bueiro numa rede de esgoto depois de o sol se pôr. Isso porque o sol não entrava mais através dos buraquinhos nas tampas dos bueiros. E, mesmo que Bumbão luzisse, a claridade não alcançava longe o bastante para ver os bueiros em cima dele. Mas ele não desistiu.
Depois de caminhar longamente, ouviu um ruído sibilante. E constatou que o ruído sibilante devia vir de uma tampa de bueiro. Porque não existem ruídos sibilantes dentro de uma rede de esgoto; quem é que ia inventar de ficar sibilando lá dentro, pensou.
Mas ele não tinha certeza, e, quando se aproximou do lugar de onde pensou ter ouvido o ruído, sentiu o coração bater mais forte. Muito mais forte...
Assim que encontrou um canto, parou quieto. Totalmente quieto. Na verdade, nunca havia ficado tão quieto em toda sua vida.
Porque ele tinha a sensação de ter visto alguma coisa.
Algo que cintilava na periferia do círculo de luz verde. Uma fileira de dentes brancos demais, afiados demais e, sobretudo, grandes demais. Não era para existir dentes tão grandes e afiados dentro da rede de esgoto de Oslo. Só deviam ser encontrados no rio Amazonas e por aquelas bandas. Ou numa foto apavorante na página 121 de ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM. Para ser mais exato, na boca da maior e mais temida serpente do mundo, a sucuri.
Fazia tempo que Bumbão havia lido o capítulo sobre a sucuri naquele livro grosso do seu avô, mas cada palavra empoeirada estava bem clara para ele agora. E Bumbão entendeu que estava encrencado. Primeiro, porque estava submerso até a cintura naquilo que, de acordo com o livro do avô, era o meio favorito da sucuri: a água. Água não muito limpa, mas água. Segundo, porque ele provavelmente era a figura mais visível no mundo do esgoto de Oslo naquele momento: um menino transparente emanando luz verde. E, terceiro, porque, mesmo que não fosse uma larva fosforescente, não tinha lugar algum para se esconder.
Por isso, permaneceu onde estava. E lá veio de novo o ruído sibilante. E lá vieram de novo os dentes brancos. E eles estavam presos na maior boca que ele já tinha visto. Em cada lado da boca, um olho malévolo de sucuri o encarava e no meio da boca vibrava uma língua de sucuri bipartida e vermelha. E Bumbão tinha de admitir que nem mesmo a apavorante foto na página 121 fazia jus à besta. Porque aquilo ali era muito, mais muito mais feio e mais sinistro. Implacavelmente, a boca se aproximava.
E, agora que Bumbão está prestes a ser engolido, você talvez espere que vá acontecer alguma coisa no último minuto, alguma coisa totalmente improvável, algo que nunca aconteceria em outros lugares, apenas nas histórias, justo no momento em que o herói está à beira de ser lançado na perdição. Mas isso não acontecerá. O que acontecerá em seguida é que Bumbão, dez anos e no momento fosforescente, será engolido por uma sucuri. E isso apenas dois dias antes do esperado dia 17 de maio.
Uma lua redonda se escondeu atrás de uma nuvem em cima da rua dos Canhões como se não tivesse coragem de olhar.
Truls e Trym estavam em frente da cerca do jardim do doutor Proktor.
– Arrombar é divertido – sussurrou Truls.
– Arrombar é divertido – sussurrou Trym.
Mas, mesmo sussurrando, soava alto demais. As nuvens passaram por cima da lua, iluminando sombras que atravessaram o jardim correndo, com plantas crescidas demais, como homens enormes com chapéu e capa.
– Talvez seja melhor eu ficar de guarda aqui, enquanto você entra para pegar o Pó de Soltar Pum – sugeriu Truls.
– Cale a boca – disse Trym, olhando para a casa de madeira na escuridão à frente. A casa, que era tão pequena à luz do dia, no escuro parecia enorme.
– Está com um pouquinho de medo? – perguntou Truls.
– Não – disse Trym. – E você?
– Nadica. Só queria saber se você estava.
– Vem – disse Trym, e trepou por cima da cerca. Quando estavam do lado de dentro, ficaram quietos, prestando atenção. Mas as únicas coisas que se ouviam eram um ou outro grilo perdido e o vento que chiava na pereira e deixava as paredes da casa chiar e ranger, como um velho que conta histórias de fantasmas esquecidos cobertos de musgo.
Passaram no meio do capim alto em direção à casa. Truls podia ouvir as batidas do seu coração. E talvez as do de Trym também. Quando chegaram à porta do porão, Trym levantou o pé de cabra.
– Espere! – sussurrou Truls. – Veja primeiro se está trancada.
– Idiota – sibilou Trym. – Você não acha que ele é burro a ponto de deixar uma fortuna de Pó de Soltar Pum num porão, sem trancar!
– Quem sabe?
– Quer apostar?
– Aposto um saquinho com Pó de Soltar Pum.
– Feito.
Truls apertou a maçaneta e puxou. E sabe do que mais? A porta estava... de fato... TRANCADA!
– Droga! – disse Truls.
– Oba! – falou Trym. Em seguida, enfiou a ponta do pé de cabra no vão da porta e se dobrou sobre a outra ponta.
Rangeu um pouco. Rangeu mais um pouco.
– Espere! – disse Truls.
– De novo não – bufou Trym.
– Mas olhe a janela. Truls olhou para a janela. E soltou o pé de cabra.
– Quebrada – falou. – Com certeza, algumas criancinhas malvadas a quebraram, atirando pedras.
– Ou alguns ladrõezinhos imprestáveis se adiantaram a nós.
Entraram pela janela e acenderam as lanternas.
Os feixes de luz das lanternas deslizaram por cima de todo tipo de aparelhos esquisitos, tubos de ensaio, tonéis, carretéis, mangueiras, recipientes de vidro e uma moto com sidecar. E pararam em dois vidros de conserva enormes.
– O pó! – sussurrou Truls.
Eles se aproximaram e iluminaram os rótulos. A escrita era daquele tipo retorcida que a senhora Strobe tentava ensiná-los, mas nem Truls nem Trym tinham pegado o jeito daquilo.
– Pó de Soltar Pum Comum do Doutor Proktor – leu Truls penosamente, em um dos rótulos.
– Pó de Pumponauta – leu Trym no outro. – Manter fora do alcance de crianças.
– He, he – riu Truls.
– Ha, ha – riu Trym. – Agora o papai vai ficar contente.
– E a gente vai ganhar uma piscina. Vamos!
Pegaram cada um seu vidro e voltaram quietos pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo.
E apenas a lua os viu de onde, assustada, apareceu por entre nuvens apressadas. E talvez uma pessoa na casa vermelha no outro lado da rua. Pelo menos, as cortinas de uma das janelas no segundo andar se mexeram um pouco.
Capítulo 18.
Uma fuga ainda maior
O SOL NASCEU SOBRE OSLO e o forte de Akershus. E lá havia uma grande confusão.
– O quê? – berrou o comandante. – A pólvora de Xangai sumiu?
– Sumiu durante o descarregamento no cais ontem à tarde, chefe – disse o aprumado, mas visivelmente nervoso, guarda.
– Sumiu? Como isso pôde acontecer?
– O estivador disse que foi engolido por uma sucuri, chefe.
O berro do comandante fez os vidros do escritório dele vibrarem:
– Está me dizendo que uma sucuri comeu a caixa de pólvora inteira?!
– Não. É o estivador que está tentando me fazer acreditar no que eu agora tento fazer o senhor acreditar, chefe.
O rosto do comandante estava tão vermelho, e a barriga tão inflada, que o guarda ficou com medo de que pudesse explodir a qualquer momento.
– Subterfúgios! O desajeitado deixou a caixa cair no mar! Sabe o que isso significa, meu caro guarda de canhões?
E o guarda de canhões sabia. Significava que, pela primeira vez em cem anos, não haveria a Salva Real. De Strømstad à Polônia, até mesmo no país distante de Madagascar, as pessoas iriam zombar da pequena nação lá do norte, iriam fazer troça deles e chamá-los de coisas que rimavam com Noruega. Loruega e foruega e esporuega, e coisas que talvez não soassem tão ruim em norueguês, mas que podiam significar coisas terrivelmente cômicas em, por exemplo, malaguês.
– O que vamos fazer agora? – perguntou o guarda de canhões.
E, como um grande balão vermelho que de repente é furado, o comandante caiu na cadeira, encostou a testa na mesa e assim ficou. Tentou dizer alguma coisa, mas os lábios vibraram contra a mesa, de forma que era impossível entender.
– O quê? – perguntou o guarda de canhões.
O comandante desencostou um pouquinho a cabeça da mesa.
– Eu disse que não sei.
Mas o sol brilhava e sorria como se nada houvesse acontecido. O que ele realmente não deveria fazer num dia como aquele. Porque, deixe-nos resumir a situação:
A pólvora do comandante sumira. Bumbão virara comida. O doutor Proktor estava na prisão. E seu pó fora roubado pela terrível família Grou.
Então, como é que Lise, aparentemente alegre e despreocupada, tocava seu clarinete com os outros na banda da Escola de Dølgen, marchava cedinho pelas ruas da cidade naquela manhã, véspera do grande dia 17 de maio? Será que já esquecera todos os problemas? Será que não era quem a gente acha que ela é; que na verdade não está nem um pouco preocupada com seus amigos? Ou será que ela sabe de alguma coisa que a gente não sabe?
Pode ser, mas sabemos de alguma coisa que ela não sabe. Sabemos que Bumbão foi engolido por uma sucuri. E a única pessoa além de nós e da sucuri que sabe disso é o próprio Bumbão.
Fui engolido por uma sucuri, pensou ele, lá de onde estava, sentado na escuridão, no interior de um corpo de cobra que se mexia e serpenteava, de cuja parte superior e lados gotejava um líquido. Bumbão ainda estava dolorido depois de ter sido espremido goela abaixo, mas esse lugar onde estava era mais espaçoso, e ele ainda estava razoavelmente inteiro. Mas, claro, era apenas uma questão de tempo. Porque sabia, tendo lido a página 129 de ANIMAIS QUE VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM, que o que gotejava eram sucos gástricos corrosivos. E que, com o tempo, eles dissolveriam seu corpo em elementos básicos. Como haviam feito com o coitado que era dono do colar metálico que ele encontrara quando chegara ali à noite.
Um pouco antes de o pó fosforescente perder o efeito, conseguira ler o nome gravado no colar. Átila. Era tudo que sobrara do coitado. O suco gástrico já começara a queimar as solas grossas de Bumbão, e o cheiro de borracha queimada ardia nas narinas. Sem dúvida, enfrentaria uma morte lenta e bastante cruel. E, não restava dúvida, a esperança de ser arremessado para fora num espirro ou soluço diminuía a cada minuto. Sem dúvida, ele tinha de inventar alguma coisa, e rápido.
Então Bumbão inventou alguma coisa.
Tirou do bolso o envelope com o Pó de Pumponauta.
A sucuri Anna Conda acordou de um salto. Tinha sonhado o mesmo sonho que sempre sonhava. Que nadava com a mãe no delicioso e quente rio Amazonas, entre piranhas, jacarés, cobras venenosas e outros bons amigos, e estava feliz feito abelha no mel. E sonhou que uma noite foi capturada numa rede, puxada para fora da água e levada a um país gelado onde acabou numa loja de animais. E um dia entrou um menino gorducho, acompanhado do pai, que xingava o dono da loja enquanto mostrava marcas de dentadas na mão do menino gorducho. Então o menino descobriu a cobra e seu rosto se iluminou. Deu uma cotovelada no pai, apontando e gritando: “Anna Conda!” E assim ela ganhou esse nome. Mesmo que Anna Conda fosse um nome de menina, e ele fosse um menino! Pelo menos era o que achava.
Ele acabou numa gaiola em Hovseter, onde foi alimentado com uns bolinhos brancos, redondos e ensebados com gosto de peixe, enquanto o menino enfiava pauzinhos em seu corpo. Isso aconteceu há mais de trinta anos, mas ainda acontecia de Anna Conda acordar desse terrível pesadelo e estar ensopada de suor nervoso, se é que uma sucuri pudesse suar de nervosismo. E respirava sempre aliviado por não estar num apartamento em Hovseter, mas num cano de esgoto deliciosamente quente sob o centro de Oslo.
Uma noite, o menino esqueceu de trancar a gaiola, e Anna Conda conseguiu sair pela janela aberta do quarto e descer pelo cano da chuva para a rua, onde, depois de muito procurar e de alguns gritos histéricos de mulheres, encontrou uma tampa de bueiro solta. A primeira noite nos canos da Rede de Esgoto e Águas Pluviais de Oslo passou enrolada num canto e morrendo de medo. Mas isso não perdurou por muito tempo. Já no dia seguinte havia começado a fazer o que as sucuris fazem: estrangular coisas, para depois comê-las. Porque ali tinha abundância de Rattus norvegicus, morcegos e ratinhos comuns. Não era igualzinho ao Amazonas, talvez, mas também não tão pior. Outro dia, até se deparou com um legítimo rato-d’água mongol.
Agora que Anna Conda já estava crescidinha, pulava a parte de matar a comida; simplesmente a engolia, dava muito menos trabalho. É verdade que lembrava de a mãe haver dito que era falta de etiqueta engolir a comida sem estrangulá-la direito primeiro, mas aqui embaixo ninguém via o que fazia. Por isso, Anna Conda simplesmente engoliu aquele pedacinho de carne fosforescente com cabelo ruivo. E agora suspeitava que talvez não tivesse sido muito esperto de sua parte. Porque o motivo de ter acordado era a sensação de que algo havia explodido dentro dele, e um enorme arroto parecia estar a caminho, querendo sair. Anna Conda suspeitava que a comida pensava em voltar pelo mesmo caminho. Por isso, a sucuri cerrou a boca, sentindo que o corpo de cobra começava a inflar. E inflar. Anna Conda segurou os maxilares com força. O corpo se tornou parecido com um enorme balão, em forma de salsicha, cada vez maior. Mas Anna Conda não desistiu; afinal de contas, comida era comida. Estava tão inchado que as escamas pretas pressionavam as paredes dentro do cano do esgoto. Os maxilares doíam. Quase não aguentava mais. E a pressão por dentro só aumentava.
Quase não aguentava mais...
Não aguentava...
Não...!!!
A boca de Anna Conda se abriu de repente, soltando um arroto. E não estamos falando de um arroto qualquer, mas um daqueles capazes de abalar as bases da região sudoeste do centro de Oslo. E exatamente como quando se para de fazer força para prender a abertura de um balão em forma de salsicha, Anna Conda saiu voando como um foguete pela rede de esgoto de Oslo! Vruum! Era como uma bola no cano de um canhão. A velocidade só aumentava, e quando, alguns nanossegundos mais tarde, foi lançado para fora do cano de esgoto embaixo do cais, percorreu um bom pedaço por cima do fiorde antes de ir para o espaço. E, igualzinho a um balão desenfreado, fazia curvas repentinas e imprevisíveis para lá e para cá, acompanhadas de um som de pum tremulento, até que todo o ar saísse, e ele aterrissasse como uma pele de leão roído por traça num pinheiro em algum lugar na terra de Nesodden.
Bumbão boiava de costas na água do esgoto, como se fosse um pedacinho de fezes marrom, olhando para cima e dando gargalhadas. Estava livre! Fora arremessado para fora da boca da sucuri como um projétil cerca de um minuto depois de ter tomado o Pó de Pumponauta. Quem diria que estar no esgoto pudesse ser tão libertador!
Mas logo em seguida Bumbão parou de rir. Porque todos os seus problemas estavam longe de ser solucionados. A sucuri logo iria encontrar o caminho de volta para o cano de esgoto, e daí seria interessante não estar presente. E de que forma ele não estaria presente?
Tinha de se mandar dali. Olhou em volta. Não viu uma única placa que indicasse uma saída. Apenas uma caixa flutuando na água na semiescuridão. Trepou em cima dela e remou mais para dentro. Ou para fora. Ele não fazia ideia de aonde aquilo ia dar. E, depois de remar a torto e a direito por vinte minutos, ainda não sabia onde estava ou onde poderia encontrar uma saída. Parou de remar. E, enquanto estava assim ouvindo o silêncio, pareceu escutar um som baixinho. Não, pareceu não, era mesmo um som. Que aumentou. Um som terrível. Um som de Dia do Juízo Final, de desastre de avião e avalancha, tudo de uma só vez, um som que fez um arrepio percorrer todo o seu sistema nervoso, que assustou até o diabo em dia de trovoada. E Bumbão sabia que esse som só podia significar uma coisa:
A Banda Escolar de Dølgen.
Remou o mais rápido que pôde em direção ao som, virou duas vezes, e agora sim: via uma faixa de luz do sol de algo que só podia ser um bueiro que dava para a superfície. Bumbão remou em direção a uma escada de ferro acoplada à parede do bueiro e olhou para cima. A escada dava para a luz lá no alto. E, lá em cima, viu mesmo o fundo de uma tampa de bueiro. Bumbão pulou da caixa de madeira e subiu a escada o mais ligeiro que pôde. Quando estava no meio do caminho, olhou para baixo e o coração deu um salto – prometeu nunca mais fazer aquilo de novo. Algumas vezes é simplesmente melhor não saber a distância até o fundo.
Quando chegou em cima e ouviu o som da Banda Escolar de Dølgen se afastar, encostou o ombro à tampa do bueiro e empurrou com toda a força. Tentou mais uma vez. E mais outra. Mas, infelizmente, o doutor Proktor estava certo; as tampas dos bueiros desta cidade não se deixavam arrastar nem um centímetro. E não restava nenhuma partícula sequer do Pó de Pumponauta que ele pudesse usar para mandar a tampa de ferro para os ares.
Bumbão gritou o mais alto que pôde:
– Socorro! Socorro!
Quase não dava mais para ouvir o som da pior música de banda do hemisfério norte, mas os gritos de Bumbão eram abafados pelos carros que já circulavam para lá e para cá na rua em cima dele.
– Socorro! Socorro! – gritou. – Tem uma sucuri morando aqui embaixo, e ela está voltando para almoçar!
Bumbão sabia que provavelmente ninguém acreditaria nisso, mas que importância tinha, já que ninguém o escutava?
Ele forçou até doerem os braços e gritou até ficar tão rouco que apenas um grunhido áspero saía de sua garganta. Resignado, desceu a escada de novo e se deitou exausto na caixa de madeira. Depois se sentou e começou a prestar atenção a ruídos sibilantes de sucuris. E, enquanto estava assim, reparou que a faixa de luz da tampa do bueiro iluminava alguns furos profundos na tampa da caixa onde estava sentado. Furos que pareciam feitos por presas grandes e bem afiadas. E em grandes letras vermelhas impressas na tampa estava escrito:
CUIDADO! PÓLVORA ESPECIAL ALTAMENTE EXPLOSIVA DE XANGAI PARA A GRANDE E QUASE MUNDIALMENTE FAMOSA SALVA REAL NO FORTE DE AKERSHUS.
Nossa!, pensou Bumbão.
Sim, sim, e daí?, pensou Bumbão.
Epa, espere aí..., pensou Bumbão.
Talvez..., pensou Bumbão.
Mexeu no bolso de trás. Lá estava. Ele o tirou. O fósforo meio mastigado que ganhou de Truls como pagamento de um saquinho de Pó de Soltar Pum. Evidentemente, estava molhado e quase todo roído, mas ainda tinha a capa vermelha de enxofre.
Segurou o fósforo na faixa de sol, sentiu o raio esquentar sua mão.
Duas perguntas apresentavam-se agora. Primeira: por quanto tempo teria de segurar um fósforo no sol até secar o suficiente para acendê-lo? E a segunda: quanto tempo uma sucuri leva para atravessar a nado o fiorde da terra de Nesodden ou aquelas bandas por lá?
Você vai ter a resposta aqui e agora: leva mais ou menos o mesmo tempo. Isto é: secar um fósforo leva exatamente uma hora e quatro minutos. Para uma sucuri atravessar o fiorde da terra de Nesodden e chegar ao fundo da rede de esgoto de Oslo leva apenas uma hora e três minutos. E, quando tinha passado uma hora e três minutos, a mão de Bumbão que segurava o fósforo na faixa de sol já começava a tremer de cansaço. E ao mesmo tempo ouviu um sibilar familiar.
Ah, não, pensou Bumbão. Achava que era suficiente ser comido uma vez por dia.
Esfregou a cabeça do fósforo com força no metal da parede do cano de esgoto, mas nada aconteceu.
O sibilar se aproximava.
Ele esfregou o fósforo mais uma vez no metal. O enxofre vermelho chiou, mas não acendeu.
Então Bumbão olhou outra vez para dentro da enorme boca cor-de-rosa da maior sucuri que ele já tinha visto. A boca aparecia dobrando a esquina, e Bumbão pensou que desta vez estava acabado, afinal de contas, há limite para o número de chances que um menino ruivo pode ter.
Ele esfregou o fósforo na parede pela última vez.
Chiou. Chiou mais um pouco. Acendeu.
Bumbão agiu com destreza. Enfiou o fósforo num dos furos da caixa de madeira, de modo que a ponta acesa do fósforo ficasse para cima. Depois mergulhou na água e nadou o mais rápido que pôde. E pela primeira vez ficou feliz de a água de esgoto ter bastante cheiro de cocô, pois não dava para ver nem cheirar nada além de água de esgoto com cocô.
E o fósforo queimou. De cima a baixo. Desde a parte de cima da caixa até a pólvora especial altamente explosiva de Xangai.
E, pela segunda vez naquele dia, as bases do centro de Oslo foram abaladas.
Na rua Sverdrup, lá em cima, uma tampa de bueiro voou para o espaço, e os transeuntes ficaram paralisados na calçada, observando o buraco na rua. A tampa foi seguida por estilhaços de madeira e esgoto. Depois nada. Por fim, um menino pequeno, ruivo e todo ensopado saiu do bueiro. Curvou-se diante do público assustado, antes de torcer as mangas da camisa. Depois se inclinou sobre o buraco, cuspiu água de esgoto e gritou:
– Come cuspe, sua minhoca!
Virou-se para os pedestres, os donos de lojas que haviam saído para a rua para ver o que se passava e os motoristas que tinham baixado os vidros.
– Eu me chamo Bumbão! – gritou o menino, e pôs as mãos na cintura. – O que podemos dizer sobre isso?
Mas as pessoas na rua Sverdrup ficaram apenas olhando boquiabertas para a figura esquisita que saíra de dentro da terra.
– Isso mesmo, foi o que pensei – disse o menino, cuspindo mais uma vez, e se mandou.
Capítulo 19.
O Escritório de Patentes
QUANDO TOCOU O SINO PARA a primeira aula, Lise ainda estava com o uniforme da banda. Todos estavam no pátio da escola, conversando sobre o acontecimento tão estranho daquela manhã, quando marchavam pelo centro de Oslo. Sobre os dois integrantes da banda que haviam desmaiado, sobre a ambulância que surgiu imediatamente e sobre o maestro Madsen, que ficara tão transtornado que pensaram que ele fosse desmaiar.
Lise abriu caminho para a sala de aula entre crianças que a amolavam e puxavam, querendo saber quando podiam comprar o Pó de Soltar Pum; dia 17 de maio já era no dia seguinte!
Ela chegou ao seu lugar no instante em que a senhora Strobe entrou na sala, puxou os óculos até a ponta do nariz e olhou para a única cadeira vazia.
– Lise, você está sabendo se o senhor Bumbão pretendia ficar doente hoje?
Lise fez que não com a cabeça.
A senhora Strobe a encarou com um olhar penetrante:
– Algum problema, Lise?
Na verdade, Lise tinha vontade de responder que não, mas ela sabia que o olhar da senhora Strobe podia atravessar o crânio de criancinhas e chegar ao cérebro, até o lugar onde estavam seus pensamentos. Por isso, Lise contou a verdade, nua e crua:
– Bumbão está na prisão.
Ouviu-se um som de espanto na sala, e a senhora Strobe levantou uma sobrancelha tão alto que ela sumiu por baixo do cabelo:
– Você podia fazer a gentileza de repetir o que disse, Lise?
– Sim, senhora Strobe. Bumbão está na prisão. Para ser mais exata, no Calabouço do Fantasma.
Então a senhora Strobe baixou as duas sobrancelhas e as encolheu de forma a parecerem um bigode na testa:
– Você costuma ser uma moça que só fala a verdade, Lise. Mas, aparentemente, passou tempo demais na companhia do senhor Bumbão.
– Mas estou dizendo a verdade! – gritou Lise.
– Tolice – bufou a senhora Strobe. – Bumbão não está em prisão nenhuma. Vamos retomar a leitura de onde paramos, na página 17.
– Na prisão! – disse Lise.
– Não! – retrucou a senhora Strobe.
– Está sim! – afirmou Lise.
– Não – disse uma voz. – Agora não está mais lá.
Todos se viraram para a porta da sala de aula. E lá estava Bumbão. Ensopado e com o cabelo um pouco queimado nas pontas, mas de resto exatamente como de costume.
– Tomou banho no bebedouro de novo, senhor Bumbão? – perguntou a senhora Strobe, irônica.
– Foi apenas uma pequena luta com uma sucuri tamanho médio no esgoto, senhora Strobe. O que resolvemos com algumas explosões.
De novo um sobressalto surpreendeu a todos na sala de aula e foi interrompido pela já conhecida palmada na mesa.
– Chega de bobagens por hoje. Vá para seu lugar, senhor Bumbão.
Bumbão obedeceu, mas, assim que se acomodou, inclinou-se para Lise.
– Recebi seu recado – sussurrou. – Sinto muito por não ter conseguido sair antes, mas tive uma estada involuntária dentro do sistema digestivo de uma sucuri. Como está a situação?
– Truls e Trym arrombaram a casa do doutor Proktor ontem à noite – sussurrou Lise. – E, pelo que pude ver, levaram os dois vidros com pó.
– Ver? Você apenas olhou?
– Foi – disse Lise. – Para verificar se tudo estava indo de acordo com o plano.
– Plano? Que plano?
– Ah, apenas um pequeno plano emergencial – disse Lise. – Não vale a pena contar.
Na mesma hora, no Escritório de Patentes de Oslo, cinco homens sérios estavam sentados atrás de uma mesa comprida. Olhavam para o senhor Grou, de pé diante deles, discursando sobre o fantástico Pó de Pumponauta que se encontrava no vidro sobre a mesa.
– Mais rápido do que carros de corrida e foguetes espaciais – falou o senhor Grou. – Combustível melhor e mais barato que um bilhão de baldes de gasolina – continuou. – Manda pessoas à Lua, a Marte e talvez até a Mercúrio.
Enquanto falava e discursava, o diretor – que era o mais sério dos homens sérios – observava o senhor Grou atentamente. Não havia algo familiar, tanto no nome como no corpo gordo, em forma de pera, do senhor Grou? Sim, ele lembrava muito um menino da vizinhança onde morava trinta anos antes. O lugar se chamava Hovseter. E esse menino sempre ganhava novos bichos de estimação assim que os velhos enlouqueciam, morriam ou fugiam. Lembrou vagamente de um rato-d’água mongol. E de uma pequena sucuri amigável do Amazonas ou arredores. Será que esse homem era o menino daqueles tempos?
Quando o senhor Grou terminou, o diretor pigarreou:
– Tudo isso parece muito bom, senhor Grou. Mas nós do Conselho de Patentes de Oslo não podemos dar patente a esse... como se chama, ahn, Pó de Pumponauta que o senhor diz ter inventado se o senhor não souber do que é feito. Por isso, como diretor do Conselho de Patentes, pergunto ao senhor pela terceira vez: de que ingredientes é feita a invenção do senhor?
O senhor Grou sorriu do modo mais insinuante possível.
– Como já disse duas vezes, simplesmente não me lembro muito bem. Foi inventado assim meio por acaso. Eu apenas juntei um pouco disso e daquilo, e misturei tudo em fogo brando. E o resultado foi esse pó que estão vendo diante de vocês.
– Hum – disse o diretor, sério.
– Hum – entoaram os outros quatro homens.
– Precisamos de provas – falou o diretor.
– Precisamos de provas – disseram os outros quatro homens.
– Que tipo de provas? – perguntou o senhor Grou, e olhou para o relógio. Os homens da Nasa haviam dito que viriam no voo das duas horas, de Houston, e ele esperava ter a patente pronta e assinada antes da reunião, às três da tarde.
– Um teste – disse o diretor.
– Exato! – disseram os outros. – Um teste de patente patenteado.
O senhor Grou olhou para eles, inseguro.
– O senhor precisa fazer uma demonstração – falou o diretor. – Uma dose bem pequena, claro. Só para verificarmos que o que o senhor alega é mais ou menos provável.
– Claro – falou o senhor Grou, visivelmente nervoso. – Claro, meus senhores conselheiros de patentes.
– O senhor pode pegar aquele ali emprestado – sugeriu um dos membros do Conselho de Patentes, apontando para um capacete pendurado num gancho na parede.
– Embora não tenha sido de muita ajuda para a última pessoa que o usou.
– Quem foi? – perguntou o senhor Grou com voz falha.
– Um indivíduo que acreditou ter inventado um novo tipo de pólvora especial para os canhões do forte de Akershus – contou o diretor sombriamente. – Mostrou-se ser por demais inflamável.
Os outros quatro homens balançaram as cabeças sombriamente, fazendo o sinal da cruz.
Então o senhor Grou colocou o capacete e, quando se aproximou da mesa e enfiou a colher no vidro de pó, teve o cuidado de pegar só um pouquinho. Depois engoliu, fechou os olhos com força e esperou. E esperou. E esperou.
Mas nada aconteceu.
Pelo menos nada que percebesse.
Mas então ouviu os cinco homens murmurarem entre si.
– Impressionante – falou o primeiro homem.
– Muito estranho – disse o outro.
– Mas não vimos isso antes? – disse o terceiro.
O senhor Grou abriu um olho com cuidado e viu o quarto homem folhear um livro grande.
– Aqui está – disse o homem, e apontou no livro. – Já foi patenteado. – O diretor pigarreou e ficou ainda mais sério: – Senhor Grou, o senhor é um vigarista que está tentando roubar a invenção do doutor Proktor.
O senhor Grou ficou boquiaberto, mas não conseguiu se deter:
– O maldito professor já tirou patente do Pó de Pumponauta?
– Pó de Pumponauta? De jeito nenhum. Estamos falando de uma invenção totalmente malsucedida chamada Pó Verde-Claro do Doutor Proktor. Olhe só para si mesmo, homem!
O senhor Grou olhou para baixo. E soltou um grito incrédulo. Porque emitia uma luz verde fosforescente e estava transparente, tal qual uma larva translúcida.
No mesmo instante, na sala de aula da senhora Strobe, Bumbão se inclinou para a carteira de Lise e sussurrou incrédulo:
– Você disse que fez o quê?
– Quebrei a janela do porão, entrei às escondidas e colei uma etiqueta nova em cima da velha no vidro em que estava o Pó Verde-Claro do Doutor Proktor.
– E na etiqueta nova escreveu...? – PÓ DE PUMPONAUTA – disse Lise, dando risadinhas. – MANTENHA FORA DO ALCANCE DAS CRIANÇAS!
Eles se abaixaram quando viram o olhar da senhora Strobe varrer a sala à procura das vozes sussurrantes.
– E então? – perguntou Bumbão num murmúrio.
– E então levei tudo que tinha do Pó de Pumponauta e do Pó de Soltar Pum na minha mochila – sussurrou Lise. – Mas coloquei um vidro com Pó de Soltar Pum comum ao lado do outro vidro. Para Truls e Trym não ficarem desconfiados.
– E onde guardou o outro pó?
– Está no fundo do meu guarda-roupa.
– E você viu Truls e Trym...?
– Sim! Eu fiquei vigiando da minha janela do quarto. Eles arrombaram a casa e saíram de lá levando os dois vidros.
– Queria saber onde estão agora. Eu não os vi no pátio da escola antes de tocar o sino.
– Eu sei onde estão! – respondeu Lise, esquecendo de sussurrar. – É que aconteceu um acidente estranho quando a banda marchava no centro de Oslo hoje. Do céu caiu...
– Lise – A senhora Strobe bateu em sua mesa. – Senhor Bumbão! De que vocês dois estão falando?
Bumbão pigarreou:
– Estamos apenas falando sobre a razão de mulheres como Lise e a senhora serem tão mais elegantes do que nós, homens, senhora Strobe – disse Bumbão. – Na minha opinião, vocês deviam comandar o mundo, extinguir todos os homens, congelar todos os sêmens fazedores de crianças e pôr fim em todos os meninos ao nascerem.
A senhora Strobe o olhou desconcertada.
– Mas foi apenas uma ideia – disse Bumbão. – E, já que sou homem, provavelmente uma ideia estúpida. Então sugiro que a gente esqueça a coisa toda. Agradeço a sua atenção, senhora Strobe. Por gentileza, continue de onde parou.
O canto do olho da senhora Strobe sofreu um espasmo, o narigão foi puxado para o lado e os cantos da boca também foram erguidos. Porém, antes de abrir a boca para dizer alguma coisa, alguém bateu à porta com força.
– Entre! – gritou ela depressa, e parecia aliviada pela interrupção.
A porta se abriu, e lá estava um homem com um par de óculos escuros de piloto sobre um nariz curto e grosso, cheio de poros pretos.
– Bom dia, senhora Strobe – disse. – Desculpe interrompê-la.
– Entre, senhor Madsen. Em que podemos ajudá-lo?
O maestro entrou na sala de aulas e pigarreou:
– Temos uma pequena crise. Ou melhor: uma grande crise. Como alguns de vocês estão sabendo, houve um acidente estranho quando a nossa banda marchava no centro de Oslo hoje de manhã. Do céu caiu algo muito pesado e muito duro e muito inesperado, que acertou dois dos nossos músicos na cabeça. Estão no hospital com traumatismo craniano. Os dois são Truls e Trym. Um murmúrio percorreu a sala de aula. E se ouviram dois quase inaudíveis “obas”. Madsen pigarreou de novo.
– E a crise agora é que os dois não vão poder tocar conosco no desfile de 17 de maio, amanhã. Em suma, procuro alguém que possa substituí-los assim, de imediato. Alguém que toque... bem... trompete.
Lise olhou para Bumbão, que olhava quietinho e boquiaberto para o senhor Madsen.
Madsen moveu os pés e parecia um pouco constrangido, mas continuou:
– E, se não fui mal informado, há alguém nessa classe que toca... bem... trompete. Um menino com... bem... um ouvido absoluto. Um menino que se chama... bem... Bumbão.
Todos se viraram para o minúsculo menino ruivo que agora estudava suas unhas com uma expressão distante e altiva.
– Bumbão? – perguntou a senhora Strobe.
– Sim, senhora Strobe?
– Não está feliz da vida, menino? Você pode tocar com Madsen na banda escolar de Dølgen no dia 17 de maio!
Bumbão fechou um olho e ficou com um olhar pensativo.
– Dia 17 de maio, 17 de maio, tem algo de familiar relacionado a esse dia... Sim, agora estou lembrado! Primeiro tenho um montão de gemada para fazer. Depois estou na lista de pelo menos duas corridas de sacos. E, depois, claro, tem a Grande Corrida de Ovo no Vale do Ovo, à qual fui convidado especialmente por ter defendido o título nos três últimos anos. E isso até na classe mais difícil, justamente aquela com ovos cozidos duros.
As crianças começaram a rir, mas uma palmada na mesa extraordinariamente forte cuidou para que todos calassem a boca. Exceto Bumbão, claro:
– Em suma – continuou –, pode ser difícil achar um tempinho para tocar trompete justo nesse dia.
Madsen fez caretas e bufou de desespero.
– A não ser... – disse Bumbão.
– Sim! – Madsen se animou. – Sim, diga!
– A não ser que me peçam de forma bem bonita, claro...
– Sim, sim, estou pedindo de forma bonita! – gritou Madsen.
– Ou, melhor ainda, que me supliquem.
– Eu suplico, suplico! – berrou Madsen.
– De joelhos? – perguntou Bumbão.
E Madsen caiu de joelhos e suplicou, enquanto os óculos da senhora Strobe escorregaram meio metro abaixo do nariz com a cena extraordinária.
– Tá legal! – disse Bumbão, e pulou em cima da carteira. – Eu toco. Mas trate de arranjar um uniforme pequeno o bastante
E então todas as crianças gritaram de alegria. E também o maestro Madsen. E, mesmo não sendo tão fácil de perceber, a senhora Strobe gritou de alegria, dentro de si.
Enquanto gritavam, Lise sussurrou algumas palavras no ouvido de Bumbão. E, quando ele colocou dois dedos na boca e assobiou tão alto que o buraco da fechadura chiou, o silêncio foi imediato.
– Agora um recado para todas as crianças – gritou Bumbão. – Hoje à tarde vamos vender Pó de Soltar Pum no jardim de Lise. Não é, Lise?
– É – respondeu a garota, enquanto subia na carteira. – Estamos baixando o preço para duas coroas porque... bem, porque é mais barato.
– Ela não é esperta? – sorriu Bumbão.
E os gritos de alegria encheram a sala outra vez. Quando logo depois o sino tocou, Lise e Bumbão foram carregados em triunfo para fora da classe.
A senhora Strobe e o maestro Madsen permaneceram na sala, assistindo e balançando a cabeça com um sorriso.
– É uma dupla e tanto – comentou Madsen.
– É mesmo – respondeu a senhora Strobe. – Mas tem uma coisa que gostaria de saber.
– Sim?
– O que foi que acertou Truls e Trym?
– Essa é a parte mais misteriosa – disse Madsen. – Foi, acredite se quiser, uma tampa de bueiro.
Capítulo 20.
A confissão
JÁ ERA NOITE, e passando esta noite seria 17 de maio, feriado nacional da Noruega, quando todas as crianças e adultos iriam desfilar até ficarem com bolhas e pés tão inchados que não seria possível arrancar os sapatos de festa recém-comprados. Gritariam “hurra” até que as vozes ficassem tão roucas que seria impossível chorar depois de comer tantas salsichas e tanto sorvete, a ponto de a barriga parecer estar cheia de arame farpado. Em suma: era a véspera do dia que todas as crianças e adultos esperavam ansiosamente chegar.
E naquela noite Truls acordou e descobriu que estava numa cama de hospital. Olhou em volta e descobriu Trym na cama ao lado, tão acordado quanto ele.
– O que aconteceu? – perguntou Truls. – Por que está com a cabeça enfaixada?
– Uma tampa de bueiro – respondeu Trym. – E você também está com a cabeça enfaixada.
– Íamos vender Pó de Soltar Pum para as crianças e ficar riquíssimos hoje! – falou Truls. – Dia 17 de maio é amanhã!
– E a gente ia tocar trompete – disse Truls, desconcertado.
No mesmo instante, a porta do quarto se abriu e uma enfermeira entrou.
– Olá, meninos – disse. – Vocês têm duas visitas.
– Papai! – gritou Truls, quase chorando de alívio.
– E mamãe! – choramingou Trym.
– Não exatamente – falou a enfermeira enquanto dava passagem.
Truls e Trym ficaram paralisados na cama. Diante deles estavam dois caras que a gente já conhece. Vestiam uniformes, cada um com um vidro debaixo do braço, vidros esses que a gente também já conhece.
– Boa noite, meninos – disse o de bigodão. – Espero que as feridas na cabeça não sejam muito graves.
– E que vocês – completou o bigodudo – logo confessem que arrombaram o porão do doutor Proktor.
– Para roubar esses vidros.
– Não fui eu – gaguejou Truls.
– E com certeza também não fui eu – choramingou Trym.
– Encontramos os vidros na garagem de vocês, depois de uma denúncia – disse o de bigodão.
– E lá encontramos também dois pares de sapatos com estilhaços de vidro na sola. Igual àqueles estilhaços daquele vidro quebrado no porão. Estão encrencados.
– Mas, se confessarem agora, talvez não sejam levados para o Calabouço do Fantasma.
– Fui eu – gaguejou Truls.
– Não, fui eu – choramingou Trym.
– E papai – disse Truls.
– Sim, com certeza papai – falou Trym. – Ele... ele... enganou a gente.
– Fomos enganados para valer – fungou Truls.
– A gente se deixa enganar facilmente – soluçou Trym. – Coitados de nós!
– Hum – disse o de bigodão. – O senhor Grou, então. Bem como pensei. Temos de mandar uma ordem de busca para ele.
– É – disse o bigodudo. – E bem depressa. Nem ele, nem aquele horrível Hummer estavam em casa.
O de bigodão pegou o celular e ligou para a delegacia:
– Divulgue que todos os carros de patrulha devem deter o Hummer com pintura preta. Procuramos um indivíduo chamado senhor Grou. Ele é muito perigoso. Repito: muito perigoso.
E assim teve início a maior caça a carros já ocorrida em Oslo. Não vamos entrar em detalhes, mas mais de cem carros policiais correram atrás do Hummer do senhor Grou, que disparou pelas ruas de Oslo e cuspiu mais CO2 que duas locomotivas juntas. Todas as vezes que a polícia barrava uma rua e pensava que o tinha encurralado, o senhor Grou acelerava, e as barreiras, os carros da polícia, os cavalos da polícia e os policiais voavam para tudo quanto é canto no centro de Oslo.
E ainda estavam nessa quando o sol nasceu e, enfim, raiou o dia 17 de maio.
Capítulo 21.
Dia 17 de maio
PELA ÚLTIMA VEZ NESTA HISTÓRIA, o sol nasceu num céu sem nuvens. Já havia brilhado por algum tempo no Japão, na Rússia e na Suécia, e agora começava a iluminar uma pequena capital num país bem pequeno chamado Noruega. Começou logo a iluminar o castelo amarelo, nem grande, nem pequeno, onde mora um rei que não manda o bastante para atrapalhar, mas que hoje está ansioso para acenar às crianças no desfile e ouvir a Grande e Quase Mundialmente Famosa Salva Real em sua homenagem. E, naturalmente, o sol iluminava o forte de Akershus, os velhos canhões que apontavam para o fiorde de Oslo e a primeira porta de muitas portas que levava para o calabouço mais temido da cidade, o Calabouço do Fantasma.
E, justo neste instante, a porta do Calabouço do Fantasma se abriu, e o doutor Proktor apareceu no aterro gramado, tendo de fechar os olhos por causa do sol forte. Atrás dele vieram dois guardas.
– Maravilha! – gritaram Bumbão e Lise, que estavam esperando por ele. Deram saltos de alegria e acenaram com bandeiras norueguesas.
– Liberdade, sol, 17 de maio e meus assistentes – riu o doutor Proktor enquanto os abraçava. – Esse dia poderia ficar melhor?
– Para alguns, sim – murmurou o comandante, que estava alguns passos atrás de Lise e Bumbão, balançando nos calcanhares.
– Mas ninguém me contou por que estou sendo libertado – disse o professor quando pôs Bumbão e Lise no chão.
– Truls e Trym confessaram tudo – falou Lise. – Que foram eles que ameaçaram Bumbão para lhe dar o Pó de Pumponauta aquele dia.
– E que você nunca vendeu Pó de Pumponauta para crianças – completou Bumbão.
– E logo a polícia vai prender o senhor Grou – disse Lise. – Só precisam terminar a corrida pela cidade primeiro.
– Minha nossa! – exclamou o professor. – Então todos os problemas foram resolvidos!
– Todos não – disse Lise, e fez um gesto de cabeça para o comandante. – Papai?
– Claro, claro – grunhiu o comandante, dando um passo para a frente. Ele parecia incomodado, e talvez por isso tenha falado mais alto e com mais firmeza na voz do que necessário: – Bem, lamentamos muito essa estada idiota na prisão, doutor Proktor. Não vai se repetir. A não ser que o senhor faça algo muito ilegal, claro. Por exemplo, colocar bananas em cano de escape. Ou hastear nenéns em poste de bandeiras. Ou...
– Vá direto ao ponto, papai – disse Lise, severa.
– Claro, claro, ao ponto – grunhiu o comandante, que já estava vermelho até o pescoço. – Como o senhor pode ver, temos alguns canhões antigos que ficam ali. E, como o senhor não pode ver, não temos pólvora especial de Xangai, que precisamos para a Grande e Quase Mundialmente Famosa Salva Real que deve ser lançada desses canhões hoje. Nos tempos modernos, jamais aconteceu de não lançarmos a Salva Real, e receamos que o mundo ria de nós. Pelo menos a Europa do norte... Exceto a Finlândia, talvez... e... e...
– Papai!
– Claro, claro. A questão é...
– A questão é – interrompeu o doutor Proktor – se eu posso ajudar vocês com a Salva Real. E a resposta, meu caro comandante e vizinho, é: SIM!
Daí ouviram-se gritos de alegria pela segunda vez em pouco tempo. Mas Lise e Bumbão não podiam ficar gritando de alegria muito tempo, porque em poucos minutos tocariam na banda da escola de Dølgen, no desfile de 17 de maio.
A banda da escola de Dølgen marchou e tocou como nunca antes. Tocaram tons afinados e nunca estiveram tão próximos de acertar o ritmo. Nicolai Amadeus Madsen ia na frente, com óculos de sol de piloto, mostrando seu sorriso mais largo, sonhando com o festival de bandas em Eidsvoll no verão.
E Lise tocava clarinete e olhava de soslaio para Bumbão, que quase tinha de fazer espacates para acompanhar o passo. Mas tocou belissimamente, os dedos correndo sobre os pistões e o olhar sobre as linhas de notas.
Chegaram à rua Sverdrup e Bumbão estava tão concentrado que não ouviu as sirenes estridentes dos carros policiais se aproximando. E não viu o grande e barulhento Hummer que dobrou a esquina, os pneus cantando, e que freou bruscamente quando viu que no caminho havia uma barreira que não podia atropelar nem tirar à força: um desfile de 17 de maio marchando em sua direção. E o som que vinha das bandas de escola causava arrepios em todo o sistema nervoso, porque era o som do Dia do Juízo Final, de desastre de avião e avalancha, tudo ao mesmo tempo.
E atrás do carro vieram cerca de cem viaturas policiais com luzes azuis piscando e sirenes ligadas.
Um homem pulou do Hummer.
Lise parou de tocar.
– Mas é o... – disse. – É o senhor Grou.
Bumbão também parou de tocar e olhou para cima.
O senhor Grou estava no meio da rua olhando ao redor, irado.
Todas as ruas estavam fechadas. A fuga parecia acabar ali.
– Ah! – gritou o senhor Grou. – Nunca vão me pegar, seus idiotas, inúteis e mentecaptos!
Então arrancou a tampa do bueiro ao seu lado e pulou para dentro do buraco.
– Nossa! – disse Lise.
Os policiais vieram correndo, olharam para o bueiro, coçaram a cabeça e discutiram.
Bumbão e Lise podiam ouvir algumas frases desconexas:
– Estou de uniforme de 17 de maio, não quero entrar no esgoto e emporcalhá-lo.
– E eu tenho asma, não posso sentir cheiro de esgoto.
– E eu estou na lista de uma Corrida de Ovo.
Empurraram a tampa do bueiro no lugar, assegurarando-se de que estava bem presa, cancelaram a caçada e fizeram um gesto para o desfile continuar.
Anna Conda estava no cano sentindo a fome bater. Das ruas lá de cima podia ouvir o barulho de bandas e o cheiro de salsichas vienenses cozidas. E de repente ouviu o barulho de algo pesado cair na água, rumo ao sistema de esgoto de Oslo. Estava com tanta fome que mal aguentava nadar em direção ao ruído. Mas, quando chegou, viu algo que lhe pareceu familiar. Comida de duas pernas levemente esverdeada. A última vez que comera algo parecido fora lançado à terra de Nesodden. Mas não era a única coisa familiar que viu. Essa comida de duas pernas tinha um quê de alguma coisa, algo que o lembrava daqueles tempos quando era uma cobrinha sucuri numa gaiola em Hovseter. Não havia certa semelhança entre esse homem gorducho, cheio de carne, parecendo uma salsicha, e aquele menino gorducho que enfiava pauzinhos no seu corpinho de cobra daqueles tempos? Era ele, sim. E agora a sucuri viu que o homem o tinha visto, e que o reconhecimento era mútuo. E que o homem abriu a boca. E que ele abriu a boca o máximo que podia. O que era bastante. Mas, claro, nada perto da abertura da boca de Anna Conda.
– Ah, que delícia! – exclamou Bumbão enquanto mastigava. Na mão segurava uma salsicha vienense com pão.
– Muito gostoso! – disse Lise, e deu uma mordida na sua salsicha.
Estavam sentados no aterro gramado do forte de Akershus, olhando os sete guardas corajosos que saltitavam de nervoso diante de uma mesa onde o doutor Proktor estava com um vidro de Pó de Soltar Pum Bem Doidão do Doutor Proktor. Os sete soldados tinham se apresentado como voluntários para a honrosa missão.
– Assistente Bumbão! – gritou o doutor Proktor, enquanto olhava para o relógio da torre da Prefeitura, que se aproximava da hora da Grande e Quase Mundialmente Famosa Salva Real. – Pode me auxiliar com a distribuição das porções?
– Claro – disse Bumbão. Engoliu o resto da salsicha, correu para a mesa, agarrou a colher de pau e meteu no vidro.
– Eu sou Bumbão – disse aos guardas. – O que podemos dizer sobre isso?
– Bobão? – disse um dos guardas.
– Babão? – perguntou outro.
– Bun... – começou a dizer o terceiro.
– Calem-se – disse Bumbão. Então olhou o relógio. – Ou melhor, abram bem a boca. E se abaixem. Rápido, temos só alguns segundos.
– É perigoso? – perguntou, nervoso, um dos guardas, logo abrindo a boca.
– É – respondeu Bumbão, e enfiou uma colher de sopa cheiíssima de pó na boca dele. – Mas tem gosto de pera. Nove... oito...
– Obrigado, assistente – disse o professor, ajustando os óculos de motoqueiro. – Caros guardas, por gentileza, posicionem-se.
Os guardas, que não estavam acostumados a ser comandados com palavras como “caros” e “por gentileza”, entreolharam-se, confusos.
– Está fazendo cócegas na barriga – disse um deles.
– Prestem atenção!! – berrou o menino ruivo. – Os traseiros na mesma direção que os canhões agora! Dobrem-se bem!
Essa era uma linguagem que os guardas entendiam e à qual obedeceram de imediato. No mesmo instante começaram a soar as doze batidas do relógio da torre da Prefeitura.
A cena era tão cômica que Lise não conteve uma gargalhada. Sete guardas inclinados para a frente com seus traseiros apontando para cima do muro do forte, para o fiorde de Oslo, enquanto o relógio da torre da Prefeitura badalava.
Mas, depois da terceira batida, nem Lise, nem o resto dos habitantes de Oslo e arredores ouviram mais o relógio. Porque as batidas e a gargalhada de Lise foram abafadas por um estampido tão alto que os tímpanos das pessoas se paralisaram e os olhos foram pressionados em grande medida para dentro das órbitas. A explosão seguinte mandou uma onda de ar pela rua Rozenkrantz até a avenida Karl Johan, que fez todas as bandeiras se abrirem. O terceiro estampido quebrou três janelas na terra de Nesodden e fez as pereiras em Ullevål Hageby florirem de puro susto. O quarto estrondo fez uma menina, que Lise conhecia em Sarpsborg, olhar para o céu azul e pensar que viria trovão. O quinto não foi tão alto, na verdade soava exatamente igual a um pum, e fez as pessoas de Oslo se olharem surpresas. Mas o sexto inclinou um navio que ia para a Dinamarca em direção ao fiorde, e fez uma migração de andorinhas a caminho da Noruega mudar de ideia e retornar à África. A onda de som chegou até o Kurfürstdamm em Berlim, onde o jato de água do bebedouro dobrou, molhando todos os turistas em volta e fazendo as crianças gargalharem de alegria.
Quando soou o sétimo e último estampido, o rei estava no castelo e aprovava, contente e balançando a cabeça, os puns. Pensou que nunca ouvira salva mais bonita. E, antes de o último eco silenciar, seu ajudante já estava telefonando para o comandante do forte de Akershus para dizer que o rei gostaria de lhe dar, e a seus canhoneiros, a Medalha de Honra ao Mérito do rei, e promovê-los a Canhoneiros de Honra, dando-lhes uma vida longa e feliz.
– Ele pode de verdade nos dar uma longa vida? – perguntou o comandante em um tom descrente.
– Ele é o rei – disse o ajudante, e desligou magoado.
O comandante voltou para o outeiro, onde sete guardas com a traseira das calças rasgadas, dois policiais com os olhos molhados de tanto rir, e Lise e Bumbão, ao lado do professor, ainda dançavam de alegria.
Capítulo 22.
O último capítulo
FOI UM 17 DE MAIO LOOOONGO, e ainda restava um pouco dele.
O sol da tarde iluminava preguiçosamente a pereira no jardim do doutor Proktor, e embaixo estavam Lise e Bumbão, cada um na sua cadeira, com as mãos sobre a barriga. Junto com o professor haviam devorado um metro e meio de pudim de caramelo, e tinham ficado tão cheios que o professor entrara para descansar um pouco.
– Você foi ótimo hoje – disse Lise.
– Não fui de todo mau – concordou Bumbão. – Mas o mérito é todo seu.
– Você acha? – sorriu Lise, e fechou os olhos diante dos raios do sol que passavam por entre a folhagem.
– Acho – disse Bumbão. – Você é a menina mais esperta que eu conheço. E, mais importante, você é a melhor...
Silenciou. Lise abriu os olhos e observou Bumbão com surpresa, pois ele estava com uma cara estranha, vermelha. Ela considerou que talvez tivesse engasgado, porque tivera de pigarrear três vezes até continuar, com uma voz meio rouca:
– Você é a melhor amiga que alguém pode ter.
– Obrigada – respondeu Lise, e sentiu o corpo inteiro ficar quente. – Porque você também é.
E daí ninguém sabia mais o que dizer, por isso não foi má ideia terem ouvido um estampido. E ouviram mesmo. Um último estampido desse 17 de maio loooongo. Os dois se viraram para o porão do doutor Proktor, porque não soara como o Pó de Soltar Pum Comum do Doutor Proktor.
– Ah, não – disse Lise assustada.
– Não, o Pó de Pumponauta... – disse Bumbão.
– Não – falou o doutor Proktor, que nesse instante apareceu na porta do porão.
Seu rosto estava preto de fuligem e óleo.
– Foi apenas o silenciador de uma motocicleta que não foi usada por doze anos. Mas que só precisou de um pouco de graxa para andar às mil maravilhas.
E então o professor saiu do porão com a moto com sidecar, atravessou o capim alto e parou diante deles. No carrinho tinha uma mala de couro gasto.
Bumbão e Lise se levantaram.
– Aonde vai? – perguntou Bumbão.
– Aonde acha que vou, assistente de Pó de Pumponauta? – perguntou o professor, mostrando um largo sorriso por baixo do capacete de hóquei e dos óculos de motoqueiro.
– Você vai para Paris – disse Lise. – Vai tentar encontrar Juliette Margarina.
– Desejem-me sorte – pediu o doutor Proktor. – Tranquem o porão e cuidem da minha casa.
– Boa sorte – disse Bumbão.
Eles foram para a frente da motocicleta e abriram o portão do jardim.
O professor girou o acelerador e o motor rosnou, contente.
– E, se passar por Sarpsborg... – disse Lise.
– Sim?
– Dê um abraço na minha segunda melhor amiga.
E os últimos raios de sol iluminaram a pereira, o cabelo ruivo de Bumbão, o sorriso de Lise e talvez uma minúscula lágrima quando a moto com sidecar do doutor Proktor desceu e desapareceu na rua dos Canhões.
Jo Nesbo
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