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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O POÇO DAS SOMBRAS / Juliet Marillier
O POÇO DAS SOMBRAS / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O Inverno estava a chegar. Faolan via os sinais na paisagem enquanto viajava para sul em direção a um lugar chamado Montanha Nublosa, vindo da província de Ulaid. De manhã, a erva estava quebradiça devido ao gelo e nos montes pairava um lençol de bruma que cobria os celeiros, os estábulos, as casas e as vacarias. Nos campos apenas se via restolho por entre o qual os corvos abriam calmamente caminho, trocando ocasionais comentários ásperos. O céu estava uniformemente cinzento. Durante muito tempo ausente da sua terra, esquecera a chuva; como caía todos os dias sem falhar, gentilmente insistente, entrando nas capas, nos chapéus e nas botas, de modo que um viajante nunca estava seco.
Faolan chegou a Montanha Nublosa no meio de uma chuva fina persistente. A minúscula aldeia amontoava-se sob a súbita encosta do monte, as cabanas de pedra de um só andar disseminavam-se por entre algumas sorveiras-bravas sem folhas. Um bando de gansos abrigava-se no telheiro de um anexo contíguo a uma habitação quadrada com o fumo a sair pelo telhado de colmo e um cão cinzento escanzelado a tentar esconder-se à entrada. A chuva transformou-se num dilúvio; Faolan decidiu que eram horas de pôr de lado o secretismo e dirigiu-se para ela. O cão rosnou um aviso à sua aproximação e um homem afastou a serapilheira que servia de porta, espreitando. A rosnadela tornou-se mais insistente; o homem deu um pontapé no animal e este se aninhou na semi-obscuridade.
— Que te traz aqui? — O tom era ríspido e defensivo.
— Abrigo da chuva, nada mais.
— Não és destas bandas, pois não? — resmungou o homem quando Faolan entrou. — Não está um dia lá muito bom para viajar.

 


 


No interior estava uma pequena multidão em redor de uma lareira fumarenta, com canecas de cerveja na mão. A chuva era uma desculpa, talvez, para uma breve pausa no trabalho da forja ou do campo. Um círculo de olhos desconfiados recebeu Faolan quando este se dirigiu para o fogo com a capa a pingar para o chão de terra batida. Era difícil perceber se entrara numa habitação ou numa espécie de taberna; a atmosfera não era nada jovial.

— Para onde vais? — perguntou o homem que o tinha recebido à porta.

— Depende — respondeu Faolan, sentando-se num banco. — Como se chama este lugar?

— De que lugar andas à procura?

Tinha de ser cauteloso, podia haver um parente de Deord entre aqueles homens de olhar cauteloso e não queria dar a má notícia em público.

— Ando à procura de um homem chamado Deord — disse ele.

— Um tipo grande, de ombros largos; do outro lado da água, em território Caitt. Disseram-me que ele tem parentes numa região chamada Montanha Nublosa.

Resmungos e murmúrios. Uma caneca de cerveja deslizou pelo tampo da mesa em direção a Faolan, que a recebeu agradecido. A jornada fora longa.

— Que tens tu a ver com Deord? — perguntou um homem alto e magro de mãos calosas.

— Eu? — perguntou Faolan, mantendo um tom de voz calmo.

— Que queres dizer?

— Fazes-me lembrar não sei quem — disse o primeiro homem.

— Não estou a ver com quem.

— Estive fora. Anos. Deord e eu partilhamos o mesmo passado; fomos hóspedes de um certo lugar de encarceramento. Talvez saibais do que estou a falar. Há um nome associado a ele, um nome que as pessoas destes lados conhecem bem.

Outro silêncio, mas diferente. A caneca de cerveja juntou-se um pedaço de pão e uma malga de sopa aguada. A mulher que lhe trouxera as duas coisas ficou a vê-lo comer.

— Tu e Deord, hã? — exclamou o primeiro homem. — Há mais de sete anos que ele não está cá. Vários tipos das redondezas gostariam de saber notícias dele. Pelos tomates de Dagda, o tipo era um lutador e tanto. Parecia um varrano premiado e era tão leve como um dançarino. Quando o viste pela última vez? Como é que disseste que te chamavas?

Faolan ainda pensou em mentir, mas decidiu que tornaria as coisas mais difíceis, mais tarde.

— Faolan. E vós?

Os homens apresentaram-se. O primeiro, Brennan. O homem alto, Conor. A mulher, Oonagh, mulher de Brennan. E os outros: Donal, Ultan e Aidan. Um deles atirou outro tronco para a lareira e o jarro da cerveja andou novamente em volta.

— Eu vi Deord o Verão passado — disse Faolan. — Encontramo-nos em Priteni. — Foi retalhado e morreu nos meus braços. Honrou um voto e foi morto por causa dele. — Bom homem. Se ele tinha parentes por estes lados, gostaria de falar com eles.

Brennan olhou para a mulher. Conor trocou olhares com Ultan. A atmosfera ficou subitamente mais pesada.

Aidan, um rapaz de mais ou menos dezesseis anos, tossiu para clarear a voz e disse:

— Estiveste mesmo em Pedra-que-Quebra? — perguntou ele num sussurro. — E saíste de lá, tal como ele?

— Silêncio, rapaz — disse Brennan. — Se tivesses o juízo todo, sabias que os homens não gostam de falar dessas coisas. — Virando-se para Faolan, o homem continuou: — Sabias que Deord regressou? Esteve cá desde a lavra até à colheita; não conseguiu agüentar mais. O tempo passado em Pedra-que-Quebra marca um homem. Só os mais fortes resistem e só os mais fortes entre os mais fortes saem de lá e voltam a ser o que eram. Ele veio para casa e foi-se embora outra vez. Para onde é que ele foi? Que anda ele a fazer?

A dormir sem sonhar, sepultado na floresta.

— Prefiro dar primeiro a notícia à família, se é que ela existe — disse Faolan. — Ele falou numa irmã.

— Tens a marca de Pedra-que-Quebra? — perguntou alguém à pressa. — Mostra-nos.

Faolan supôs que tinha de provar que não estava a mentir e obedeceu virando a cabeça e levantando os cabelos para mostrar a pequena tatuagem em forma de estrela por trás da orelha direita.

— Igual à de Deord — disse o homem chamado Ultan. — Mas tu pareces-me mais um captor do que um cativo. Mencionaste um nome que está ligado a Pedra-que-Quebra e a tua cara lembra-me esse nome, um nome influente.

— É como um cesto de ovos ou um cabaz de marisco — disse Faolan, suavemente. — Ambos trazem bons e maus. Todas as famílias têm ambos. Eu era... sou amigo de Deord. Os homens que escapam de Fenda da Pedra-que-Quebra ficam ligados para toda a vida. E então, a irmã dele? Tanto quanto sei, ela casou com um homem daqui, certo? — perguntou ele, levando a caneca à boca. — Esta cerveja é mesmo boa, Brennan.

Este sorriu cuidadosamente.

— Sou eu que a faço. A irmã de Deord chama-se Anda. Eles vivem no outro lado do monte, em cabana própria. Não os vemos muito. O homem dela, Dalach, é ferrador; segue as feiras de cavalos. É capaz de não estar. Mas és capaz de encontrar lá alguém. Mas está a chover. Por que não vais lá amanhã de manhã? Arranjamos-te aqui uma cama para passar a noite.

— Obrigado — disse Faolan, de pé atrás por a menção a Pedra-que-Quebra ter levantado suspeitas —, mas é melhor ir andando.

— A oferta mantém-se — disse Brennan, olhando de relance para a mulher. — Se quiseres uma cama, tem-na aqui. Ainda é longe. Aidan vai contigo até à cerca e aponta-te o caminho.

Aidan sorriu e foi buscar um saco de serapilheira para tapar a cabeça e os ombros.

— Tens uma faca? — perguntou Donal como quem não quer a coisa, quando Faolan já se dirigia para a porta.

— Por que perguntas? — Faolan virou-se e Donal olhou para as próprias mãos.

— O que ele quer dizer, é se és capaz de te defender? — O tom de Brennan era hesitante.

— Penso que sou capaz de me arranjar — disse Faolan, que para além de tradutor e espião de dois reis de Fortriu tinha sido assassino. — O tal ferrador é um tipo difícil? — Não era totalmente um tiro ao acaso; estava habituado a ler rostos e vozes e a ouvir palavras por dizer.

— É bom que vás prevenido — disse Brennan.

A chuva continuava a cair. Chegados à cerca, o rapaz apontou-lhe o caminho, um carreiro cheio de lama quase invisível sob o persistente dilúvio e a luz cada vez menor. Faolan passou por cima da vedação e seguiu-o com as botas a chapinhar, com um pressentimento estranho de que estava a ser seguido. As silhuetas escuras do gado viam-se aqui e ali na obscuridade, mas não se ouvia nada salvo a chuva e o som dos seus próprios passos. No entanto, olhou e voltou a olhar para trás. Nada; estava a ser tolo, não podia levar a peito os avisos daqueles homens. Nenhum vagabundo digno de tal nome escolheria um dia como aquele para se esconder na beira do caminho à cata de presas fáceis. Nenhum viajante sensato andava à chuva num dia como aquele. Devia ter aceitado a oferta e passar a noite na aldeia. Porém, as notícias que trazia eram más e tinha a obrigação, em nome de Deord, de dá-las à família em primeiro lugar. Só esperava encontrá-la; o caminho de regresso seria longo e molhado.

A cabana era muito pobre, uma construção de um só andar feita de lama e palha, com a água a escorrer do telhado de colmo e a formar uma poça em redor das paredes. Aqui e ali, a estrutura estava a desagregar-se; aquele Dalach podia ser um bom ferrador, mas não era habilidoso em relação à casa. Alguém tentara plantar uma horta; um muro baixo de pedra rodeava um pequeno pedaço de terra, no qual cresciam algumas couves e uma fila de estacas esperava as ervilhas e os feijões. Faolan pensou ver os espigões cinzento-esverdeados da alfazema a vergarem-se sob a chuva.

Ao aproximar-se da entrada, o viajante teve novamente a sensação de uma presença atrás de si. Como não era homem dado a medos supersticiosos, virou-se calmamente e levou a mão à faca quando viu a silhueta acinzentada do cão, movendo-se sorrateiramente com as orelhas encostadas ao pêlo molhado, à espera de um pontapé. O animal tinha-o seguido desde a aldeia.

— Se tivesse uma côdea, dava-a — murmurou Faolan, metendo a faca na bainha e suspirando — mas estou sem provisões. Fizeste o caminho em vão. — Havia uma luz difusa no interior da pequena cabana; estava alguém em casa. As notícias que trazia não eram nada boas, eram tão difíceis de ouvir como de dizer. Bem, o melhor era despachar-se.

Faolan levantou uma mão para bater à ombreira da porta; apenas um pedaço de feltro sujo tapava a entrada. Um instante mais tarde, as pontas de uma forquilha estavam a vinte centímetros dos seus olhos.

— Desaparece, ou meto-te isto na cabeça! — rosnou alguém, sacudindo a ferramenta.

Faolan, novamente com a faca na mão, calculou a posição dos braços e dos ombros da mulher e replicou:

— Sou amigo. Não quero fazer mal.

— Pois, amigo! Conheço o truque. Desaparece daqui ou atiço-te os cães.

Faolan não olhou para trás. O cachorro que o seguira desde a aldeia mantinha-se silencioso; se havia cães na vizinhança, não parecia.

— Tu és a Anda? — perguntou ele. — Estou à procura de uma mulher com esse nome. Sou amigo do irmão dela. Venho de longe para falar com ela.

Silêncio. O cão aproximou-se da porta e parou ao lado de Faolan, pronto para entrar. A forquilha hesitou.

— É verdade. Não quero fazer mal a ninguém. O meu nome é Faolan.

— Nunca ouvi falar de ti. Ele nunca falou em ninguém com esse nome. — A cortina de feltro mexeu-se uns centímetros e Faolan viu-se a olhar para um rosto zangado, assustado e muito mais novo do que estava à espera. Uns olhos verdes brilhavam, desafiadores, contrastando com uma pele pálida e suja. Faolan reconsiderou o que tinha imaginado. A rapariga que tinha na sua frente era pouco mais do que uma criança.

— A tua mãe está em casa?

— Ah!

— É uma pergunta razoável dadas as circunstâncias. Está a chover muito e nós estamos a ficar ensopados. Achas que podes pôr isso de lado?

— Estamos a ficar ensopados? Tu e mais quem? — A forquilha aproximou-se de novo dos seus olhos. Quem a manejava, rapariga ou rapaz, era excepcionalmente forte.

— Eu e o cão. Apresentava-o, mas não sei o nome dele.

A cortina abriu-se mais. Os olhos verdes baixaram-se e o cão olhou para cima com a cauda tinhosa a abanar. A cortina afastou-se na base, ajudada por um pé e o cão entrou. Faolan fez menção de segui-lo, mas a rapariga — o viajante vira os longos cabelos sujos atados com uma fita — disse:

— Tu não. És um mentiroso. Deord foi-se embora e nunca mais voltou. Ia mandar-te por quê?

Porque estava a morrer e não se podia despedir.

— O que tenho a dizer diz respeito à sua família mais chegada — disse Faolan com voz neutra. — Quando é que Anda volta?

— Daqui a pouco. A qualquer momento.

— Nesse caso, posso esperar aí dentro?

— Não. Dá um passo só e eu chamo os meus irmãos com um assobio. Eles são capazes de fazer com que te arrependas de ter nascido. Vai para casa. Volta para de onde vieste.

— Trago notícias. Ela vai querer ouvi-las.

— Vai-te embora e leva as tuas malditas notícias contigo. Se ele não volta, não precisava de pensar em mandar os amigos com mensagens.

Apesar de todos os seus esforços, Faolan não conseguia localizar aquela rapariga nas conversas que tivera com Deord. Filha da irmã? Por outro lado, não falava como uma criada. Algo lhe refreou a língua; havia algo nos seus olhos apesar das palavras furiosas, uma certa ansiedade.

— Eu não te magôo — disse ele — dou-te a minha palavra.

— É melhor dares-me as tuas armas — disse asperamente a rapariga.

— Antes ou depois de me atiçares os cães e os teus irmãos? — perguntou ele, arrependendo-se imediatamente. As feições miúdas da rapariga cerraram-se. Os seus olhos eram demasiado desconfiados para a sua idade, era como se estivesse habituada a ser traída. Faolan não era capaz de lhe adivinhar a idade, mas não devia ter mais de treze ou catorze anos. A imagem de Áine apareceu-lhe na frente e ele afastou-a.

— Não te atrevas a fazer troça de mim! — sibilou a rapariga. — Eu sei usar isto e uso se for preciso. É bom que acredites. E agora vá embora. Eu digo-lhe que estiveste cá. Quando ela voltar. A tia Anda. — Em seguida, vendo uma mudança no rosto dele: — O que é?

Deuses, que não tenha que lhe dizer agora, sozinha, à noite.

— Desculpa — disse Faolan — mas isso quer dizer que és filha de Deord? — Antes que ela tivesse tempo de responder, ele percebeu que devia ser; a posição, a maneira como agarrava na arma, o porte da cabeça, orgulhoso apesar da sujidade e do medo. Deord nunca lhe falara em mulher nenhuma nem em filhos, apenas na irmã. Deuses, aquela rapariga devia ser uma criança quando o pai fora para Pedra-que-Quebra. Devia ter cinco ou seis anos, talvez, quando ele voltara a casa e ficara apenas uma estação. — A tua mãe ainda é viva?

— Não tens nada com isso, mas sim, aquele maldito patife é meu pai e não, já não é viva. Ele despedaçou-lhe o coração e ela enforcou-se num daqueles carvalhos, além. Quando voltares para junto dele, seja onde for, diz-lhe.

— Lamento — disse Faolan, atrapalhado. — Não está mais ninguém em casa senão tu?

— Se pensas que vou responder a isso, então és mais estúpido do que eu pensava. Podes voltar para a aldeia, que não te deixo entrar. — Quando ele já se virava, ela atirou-lhe: — Que notícias são essas, afinal de contas? — Faolan ouviu-lha novamente na voz, a ansiedade que ela escondia com dificuldade. O seu coração apertou-se. Pensava que, das suas três missões, aquela seria a mais fácil. Naquele momento, daria tudo para não ter de lhe responder. — Vá, diz — disse ela. — Diz! Ele não vem para casa, pois não?

Volta para casa de Brennan, disse Faolan a si próprio. Espera por amanhã. Apanha a irmã sozinha e diz-lhe a ela primeiro, não a este trêmulo monte de provocações e carências. Não podes dizer-lhe a ela, aqui, agora.

— Diz-me a verdade — exigiu ela e foi como se ele estivesse a olhar para o rosto de Deord a morrer, para a força dos solitários olhos do guerreiro.

— Não posso dizê-la aqui — disse-lhe Faolan. — Tens de estar dentro de casa, sentada. Toma, pega lá a minha faca. Fica com ela, se precisas de uma arma, mas afasta a forquilha. Se te ajuda alguma coisa, o cão confia em mim. Os cães são bons juízes de caráter. É teu?

A rapariga empalideceu; não era nada estúpida. Encostando a forquilha à parede, entrou em casa recuando com a faca apontada ao coração de Faolan.

— Senta-te e não te mexas. E agora diz lá.

— Devias sentar-te. Como te chamas?

— Eile. E fico de pé. E diz o que tens a dizer. Ele não vem, pois não? É fácil de adivinhar. Está ferido? Não posso fazer grande coisa quanto a isso porque ele nunca se deu ao trabalho de me dizer onde estava... — A jovem parou e olhou para Faolan. — Diz. Por favor — disse ela, sentando-se abruptamente. O cão sentou-se a seu lado. Não era fácil dizer qual dos dois espécimes era mais patético; ambos estavam desgrenhados e esfomeados. A lareira rudimentar estava quase apagada e o cesto da lenha praticamente vazio. Não havia sinais de comida ou bebida, apenas uns panelos de barro vazios numa prateleira e um balde de água.

Tossindo para clarear a voz, Faolan disse:

— Lamento, mas as notícias são más. Esperava dá-las primeiro à tua tia.

A rapariga esperou, completamente imóvel.

— Deord, o teu pai, lamento mas está morto, Eile. — Nem um tremor nas feições, nem uma contração dos lábios finos. — Morreu no princípio do Outono, no norte de Priteni. Houve uma... batalha. Eu cheguei demasiado tarde para salvá-lo; morreu dos ferimentos. Enterrei-o na floresta. Eile, ele era bom homem, corajoso. — Nenhumas palavras seriam capazes de traduzir a bravura transcendente de Deord, ou a sua serenidade.

Eile baixou um pouco a cabeça e não disse nada. Uma mão tocou no cão, acariciando-lhe o pescoço. As unhas estavam roídas até ao sabugo e as mãos estavam esfoladas e gretadas.

— Ele pediu-me, na hora da morte, que viesse dar-vos a notícia. Ele teve um fim heróico, Eile, deu a vida para que eu e mais dois amigos escapássemos de uma certa morte. Não espero que acredites quando digo que lamento. Não me conheces e não sabes o que aconteceu. Mas lamento; lamento a morte de um homem tão bom. Ele amava-te. Tenho a certeza. — Aquela parte era mentira.

— Isso não é verdade — murmurou Eile. — Se nos amasse, teria ficado conosco, não se teria ido... embora.

— Não sei o que te contaram sobre o seu passado. Talvez ele tivesse razões para fazê-lo.

Abruptamente, a raiva regressou aos olhos da rapariga.

— Se era para se ir embora outra vez, mais valia não ter vindo — disse ela. — É uma crueldade deixar as pessoas pensar que vai correr tudo bem e depois ir-se embora outra vez. Depois, a mãe também se foi embora. Não interessa. Não tens nada a ver com o assunto. Já deste a notícia, podes ir-te embora.

No exterior a chuva continuava a cair. Faolan viu três sítios diferentes por onde a chuva entrava pelo telhado.

Apercebendo-se, Eile pousou a faca em cima da mesa, levantou-se e colocou-lhes automaticamente baldes por baixo.

— Nunca aprendi a consertar o telhado — disse ela, pouco firme.

— O teu tio não faz essa espécie de coisas? A rapariga fez ouvir um som de troça.

— Tio? Ah, referes-te a Dalach? — disse ela com antipatia. — Ele tem outros interesses. Não ouviste o que te disse? Vai-te embora.

— Se é o que queres. Gostaria de falar com a tua tia; dizer-lhe o que sei. Talvez amanhã de manhã — disse Faolan, levantando-se. — Não devias ficar sozinha em casa durante a noite.

— Por que não? — A sua expressão era sem vida, resignada. — Eles passam a vida a ir-se embora. Estou habituada. Prefiro assim. Exceto quando aparecem estranhos a bater à porta. Mas eu sei lidar com eles.

— Sim, tenho a certeza que sim — replicou ele, pensando na forquilha. — Penso que Deord não se sentiria feliz se soubesse em que circunstâncias vives. Estou certo que se pode fazer qualquer coisa... — Faolan não tinha pensado no assunto, supunha que a irmã de Deord vivia confortavelmente, que só tinha de lhe dar a notícia e continuar o seu caminho, mas o que via era deplorável. Havia algo de errado, qualquer coisa para além da pobreza. Brennan e os outros aldeãos tinham-lhe parecido boas almas. Por que razão aquela rapariga estava reduzida a pele e osso, parecendo manter-se de pé apenas devido à sua fúria desesperada? As circunstâncias da morte de Deord significavam que quaisquer poupanças que o homem tivesse eram inacessíveis. Porém, Faolan era um homem rico, os longos anos ao serviço de vários reis tinham sido produtivos. As oportunidades para gastar a prata ganha tinham sido poucas. Não tinha mulher nem filhos e nunca mais vira os seus pais e as suas irmãs.

— O que é? — Eile estava a olhar para ele. — Que se passa?

— Nada. Eile. Tenho a certeza que Deord teria suprido às tuas necessidades. Posso discutir o assunto com a tua tia...

— Ah! Por mais que discutas, continuará tudo na mesma. Era como falar com um muro de pedra.

— Algumas moedas de prata pagam um telhado de colmo novo, ou até alguém que reconstrua por completo a cabana — disse Faolan, calculando se teria trazido consigo fundos suficientes. — Podem comprar-te roupas quentes e combustível. Posso fazer com que sejas alimentada como deve ser.

— Cá me arranjo. Não estou a morrer à fome, pois não? Eu sei tratar de mim. Não precisamos de ninguém. — Faolan nunca vira um olhar tão gelado na sua vida. A mão de Eile acariciou as orelhas do cão. Apesar do queixo agressivo e das palavras de desafio, estava, provavelmente, à espera que ele saísse para chorar à vontade.

— Lamento ter-te dado uma notícia tão triste — disse ele, simplesmente. — Posso ajudar-te, se me deixares. Deord e eu passamos algum tempo na Fenda da Pedra-que-Quebra como prisioneiros. Os homens que escapam daquele lugar de cativeiro ficam ligados uns aos outros para toda a vida. Não somos muitos. Deord levava estes laços muito a sério. Como tal, considero-me na obrigação de ajudar esta família.

— Não nos podes ajudar — disse Eile, prontamente. — A prata não nos serve para nada. Eu trato do assunto. Não deites o teu dinheiro fora. Estou a dizer a verdade.

— Que idade tens, Eile?

— Que idade tens tu? — retorquiu ela rapidamente.

— Muitos. Perdi-lhes a conta.

— Aposto que não. Deixa-me adivinhar. Sessenta e três? Deuses, a estadia nas terras dos Caitt devia ter deixado marcas.

— Nem tantos. Ainda nem sequer tenho trinta. E tu?

— Que estás a perguntar? Se ainda sou uma criança? A resposta é não. Desde os doze anos que sou velha. E já lá vão quatro anos. Não penses que é um convite. A não ser que queiras uma faca espetada na barriga.

Faolan raramente se surpreendia, mas as palavras da rapariga espantaram-no e ficou sem resposta.

— Se lhes tivesses perguntado, em casa de Brennan, eles ter-te-iam dito: A. rapariga está lá em cima sozinha e não presta para nada. Não passa de uma pequena puta imunda. Disseram-no tantas vezes que passaram a acreditar, mas não se atrevem a vir cá acima e a tentar seja o que for: quando ele está em casa eles evitam-nos e quanto não está eu sei como mantê-los à distância.

— Acredita — disse Faolan, cansado — não precisas de temer esse tipo de atenções da minha parte. É a última coisa que me passa pela cabeça. Tenho mais duas missões depois desta e tiram-me todas as outras preocupações da cabeça. Além disso... — continuou ele, imaginando Ana num lago da montanha, pisando as poças de água com o Sol a dourar-lhe os cabelos, levantando os olhos, deslumbrada, mas não para ele, antes para a silhueta alta e de olhos claros de Drustan.

— Além disso o quê? — perguntou Eile, acocorando-se para colocar o último cepo na lareira.

— Digamos que tenho azar ao amor. — Faolan não queria contar aquela história.

— Amor? — exclamou ela, levantando as sobrancelhas. — Penso que não era isso que Brennan e os outros tinham em mente.

Ele sorriu.

— Também pus isso de lado. Torna a vida muito menos complicada.

— Sim. Bem, és homem. — A sua voz ficou abafada quando estendeu um braço para atiçar o fogo. — Quando as coisas se tornam difíceis, basta-te pôr uma trouxa às costas e desaparecer. Foi o que ele fez, o meu pai. Uma mulher não pode fazer isso. Nem que tenha dinheiro. Ficaria sem ele antes mesmo de chegar à aldeia seguinte, ou alguém a obrigaria a regressar... — A sua voz desvaneceu-se um pouco. Faolan viu-a respirar fundo e endireitar os ombros. — A sério, quero que te vás embora — disse ela. — Eu sei que está a chover, mas quero ficar sozinha. Oh, bolas! — O atiçador, encostado à parede, tinha caído sonoramente ao chão. Um instante mais tarde ouviu-se uma voz débil, vinda de uma outra divisão.

— Eile?

— Maldição! Acordei-a! — disse ela num murmúrio feroz. — Vai-te embora, sim?

— Tens a certeza? Quem é?

— Vai. É assim tão difícil de perceber? — Uma pequena silhueta saía da tal divisão a esfregar os olhos. — Agora, Faolan. Antes que ela tenha tempo de se assustar. Pronto, Saraid, está tudo bem. Tiveste um sonho mau?

Faolan saiu. O cão não o seguiu. Enquanto seguia desconfortavelmente pelo caminho de regresso à aldeia, a pequenina, cuja idade não era capaz de adivinhar já que não estava habituado a lidar com crianças, não lhe saía da cabeça, vestida com uma camisa-de-noite muito remendada, longos cabelos castanhos desgrenhados pelo sono mas saudáveis e limpos, olhos grandes e escuros. Pequena, certamente, e tão magra como a outra, mas amada. Faolan ouvira a mudança na voz de Eile, como se ela se tivesse tornado noutra rapariga na presença da pequenina. Que idade tinha Derelei, o filho de Bridei? Um ou dois anos? Aquela criança era maior, talvez um ano mais velha, ou coisa parecida. Deixarem Eile sozinha naquela cabana isolada, quase abandonada, já era mau, mas deixá-la com uma criança pequena, era inaceitável. Não havia qualquer vestígio de comida em toda a casa.

Faolan suspirou e apertou mais a capa em redor dos ombros. Estava a envolver-se demasiado. Era uma questão de pobreza. A pobreza existia e as pessoas faziam o que podiam para sobreviver. Em comparação, a sua juventude fora privilegiada: comida na mesa, uma família dedicada, uma casa onde os sorrisos eram moeda corrente e onde a conversa fluía livremente. Até ao dia em que ele próprio a destruíra. Havia pessoas pobres em Encruzilhada do Rabequista; havia pessoas pobres na aldeia perto da fortaleza de Bridei, na Colina Branca, mas ajudavam-se umas às outras. A comida era partilhada, os homens cortavam a lenha dos vizinhos em troca de umas nozes ou de um pouco de marisco. A sua mãe levara remédios aos doentes e ele próprio tocara em festivais muito antes de as suas mãos se terem virado para o assassinato. A sua música era livre, partilhada por ricos e pobres.

Portanto, era apenas uma questão de pobreza. Porém, Eile era filha de Deord e estava decidido a ajudá-la. A rapariga troçara da sua prata e ele não compreendera porque era evidente que ela precisava de dinheiro. Fosse como fosse, não tinha mais nada para oferecer. Regressaria na manhã seguinte e daria uma soma à tia a qual, provavelmente, se mostraria menos hostil. Exigiria que uma parte fosse gasta no bem-estar da rapariga; talvez ela pudesse aprender um ofício qualquer para atingir uma posição que lhe permitisse sair daquelas paredes em desagregação, talvez como costureira. Faolan sorriu, recordando a maneira como ela, com as suas pequenas mãos, pegara na forquilha. Era evidente que aprendera com alguém, algures. Talvez, durante a sua curta estadia, Deord tivesse começado a ensinar a filha a defender-se.

Bem, o dia seguinte seria um novo dia. Trataria do assunto e seguiria em frente. Tinha embarcado em Dalriada com três missões. Na poesia épica da sua terra, a maior parte da qual decorara durante o seu treino como bardo, as coisas tendiam a ser sempre três: três bênçãos, três maldições, três ditos sábios. A primeira missão, para o Rei de Fortriu, consistia em localizar um certo clérigo influente, conhecido como Colmcille, descobrir o que ele andava a fazer e apresentar um relatório a Bridei. A segunda estava a tentar cumpri-la: dar a notícia da morte de Deord à sua família. A terceira...

A terceira missão levá-lo-ia a casa, Encruzilhada do Rabequista, para enfrentar o impensável. Tinham-se passado muitos anos desde que saíra do seu local de nascimento com a harpa debaixo do braço e uma trouxa às costas para nunca mais regressar. Partira com o sangue do irmão nas mãos, o irmão amado que matara para salvar as vidas dos seus pais, dos seus avós e das suas três irmãs. Três... Dáire, viúva aos vinte anos, envelhecida antes de tempo; Líobhan, catorze anos, extremamente orgulhosa; Áine, a mais nova, que o ato assassino de Faolan não conseguira salvar, afinal de contas. Ainda se lembrava dos seus olhos, escuros e aterrorizados, enquanto os homens de mão de Echen Uí Néill a arrastavam. Evidentemente, deviam estar mais velhas; Líobhan devia ser uma mulher feita. Nunca conseguira imaginá-las para além daquela noite. Naquele momento, todo o seu ser ansiava pelo regresso a casa. Quando era jovem, agia de modo a proteger a família e só demasiado tarde descobrira que, apesar de terem sobrevivido, tinha-as destruído.

Teria sido preferível fazer a viagem no Verão, mas Bridei era astuto, sabia que Faolan não conseguiria regressar são e salvo a Fortriu antes da Primavera. No entanto, deixara-o partir, o que significava passar o Inverno inteiro em Erin. Um Inverno para três missões; parecera-lhe tempo suficiente. Ver a família de Deord em Montanha Nublosa; investigar Colmcille, no norte; confrontar-se com o seu próprio passado. A primeira provara ser estranha, até então, mas alguns incentivos tornariam mais suave o caminho de Eile. A segunda exigir-lhe-ia destrezas que possuía em abundância já que trabalhara como espião e tradutor para dois reis de Fortriu e fizera-o com habilidade. A terceira era uma questão à parte. Uma vida inteira não seria suficiente para reunir a coragem suficiente para a enfrentar: descobrir o que acontecera à sua família desde que partira; olhar-lhes nos olhos e tentar perceber se o reconheciam. Deixá-la-ia para o fim. Se a sorte ditasse que não tinha tempo, mais uma vez, antes de a Primavera abrir o caminho marítimo para Fortriu, paciência. Porém, tinha prometido a Ana! E depois? Ela ia casar com outro homem, o perfeito Drustan. Os seus caminhos tinham-se separado para sempre. Ainda bem, porque ela desnudara-lhe o coração e ao vê-lo nu e cru, despedaçara-o. A culpa era sua; Ana era uma mulher de respeito e de virtude e tudo o que quisera fora ajudá-lo. Quando regressasse a Fortriu já ela não estaria lá. Quem saberia se ele se teria confrontado com os seus demônios ou se não conseguira arranjar a coragem necessária? Até então fora cuidadoso, dormira em celeiros, vedações e resistira à tentação. Quanto mais se aproximava da sua aldeia natal, mais provável seria as pessoas conhecerem-no, se não a sua identidade, pelo menos os laços de família. Nunca pedira para nascer um Uí Néill, era mais uma maldição do que uma bênção. Em Fortriu fizera os possíveis por ser discreto, o gênero de homem para quem as pessoas raramente olhavam. Ali, na sua terra, as suas feições eram identificativas. Infelizmente, a missão de que Deord o encarregara levara-o até às proximidades de Encruzilhada do Rabequista; mais estranho ainda, Deord, um homem de sangue Priteni, tinha parentes entre os celtas de Laigin. Esperava encontrar apenas uma irmã; o moribundo só a mencionara a ela e nem sequer lhe dera um nome, apenas o distrito e o fato de ela se ter casado com um celta. Não falara de uma filha nem de uma mulher. Faolan estremeceu ao ver novamente o desespero nos olhos da rapariga. A missão tornara-se mais difícil do que lhe parecera a princípio. Não interessava; tinha prata e servir-se-ia dela para tornar as coisas mais confortáveis para Eile. Depois, seguiria em frente para norte, quase de certeza para norte.


(Do Relato do irmão Suibne)

Começo este relato na casa de oração de Kerrykell onde estamos hospedados até o irmão Colm decidir continuar. Quando ele partir, eu também parto porque ele é um grande homem de fé e de virtude, um homem de grande força mental e temente a Deus e eu não posso fazer outra coisa senão segui-lo.

Sinto que se preparam grandes coisas e tenho grande vontade de as escrever. Os tempos são de mudança; tempos que influenciarão não só os homens e as mulheres simples que desempenham um papel na história da jornada do irmão Colm, mas também as gerações que se seguirão. Daí a minha história, apenas para meu próprio registro. Não é minha intenção dá-la a ler a outros. Como escriba, estou mais qualificado para a cópia de manuscritos, porque é uma ocupação mais segura, do que para a composição de documentos eruditos ou didáticos. A minha mente depara-se demasiadas vezes com o desafio.

Os tempos são difíceis para o irmão Colm, um filho dos Uí Néill, a família guerreira que tanta influência tem no norte da nossa terra. Colm nunca foi um chefe guerreiro ou secular, mas o sangue dos Uí Néill corre-lhe nas veias e ele não consegue fugir-lhe. Não basta ter posto de lado as ambições mundanas para servir humildemente a Sagrada Cruz. A sua educação vê-se no seu porte orgulhoso, no seu olhar penetrante e na sua voz autoritária. Também se vê na sua impaciência com os tolos apesar dos seus esforços para a moderar.

Há uma história associada a este bom sacerdote, uma história sombria que explica a sua necessidade urgente de abandonar as nossas costas. Alguns dizem que o que o move é um fogo que sente no peito, a ânsia de espalhar a fé nas terras dos Priteni. A história, porém, sugere outra coisa.

Houve uma grande batalha no norte da nossa terra. Cul Drebene, assim se chamava o local. O norte contra o sul, quer dizer, os Uí Néill do norte contra os do sul, porque não descendem os chefes de guerra e os reis inferiores daquelas partes de Erin da mesma estirpe? 0 próprio Rei Supremo é um deles. O sangue que os une não os impede de se guerrearem mutuamente e Cul Drebene era um exemplo das suas lutas territoriais.

A batalha foi travada numa planície no princípio do Outono. Na ocasião eu estava longe, no outro lado do mar, no reino de Circinn. Ainda não tinha encontrado este homem de Deus que influenciaria profundamente a minha vida. Era um monge missionário, um porta-bandeira, não um exilado. As pessoas daquela terra tinham um vago conhecimento da palavra de Deus e a minha missão era fortalecer as suas raízes, alimentar a pequena chama que ardia nos seus corações. Conheci dois reis nas terras dos Priteni; um era uma grande águia e o outro era um tentilhão, mas isso é outra história. Conheci um Rei com fé no olhar e força no coração, mas que não era cristão. Bridei de Fortriu era um quebra-cabeças e um enigma. Ainda o é.

Para Colm, portanto, e para o campo de Cul Drebene numa manhã de Outono chuvosa e úmida. Os exércitos estavam formados, prontos para o combate. 0 comandante das forças do sul era o próprio Rei. O exército do norte era chefiado pelos parentes chegados de Colm. Assim que os comandantes ordenaram aos seus guerreiros que avançassem, desceu sobre o campo de batalha uma bruma espessa, impedindo que cada homem enxergasse para além do seu próprio braço.

Os cavalos relinchavam, confusos; os homens praguejavam; os chefes de guerra resmungavam acusações. Os do sul eram os causadores, os seus druidas eram conhecidos por serem capazes de provocar o tempo mais bizarro em tempos de dificuldade. Não, os causadores eram os cristãos do norte, através do poder da oração. Os guerreiros colidiram uns contra os outros sem saber se acometiam contra o inimigo ou os seus próprios camaradas. Os comandantes gritavam: Recuar! Retirar!, mas a cortina de vapor abafava-lhes as vozes. A batalha transformou-se num caos de sangue e de gritos.

Fionn de Tirconnell enviou um mensageiro ao seu primo Colm, o qual estava então alojado numa casa de oração a uma pedra de distância do campo de batalha. Em resposta, a sagrada congregação viu o devoto monge cair de joelhos numa oração prolongada. Quando o mensageiro de Fionn regressou a Cu Drebene, com o cavalo esgotado, cheio de espuma, a bruma levantara. O seu manto mudara de posição, permitindo a vantagem dos do norte. O exército fechou os flancos, comprimindo as forças do sul. Caíram muitos homens. O grande Rei estava entre os feridos. A guerra não respeita famílias nem laços de sangue.

Se o santo homem Colm provocou a derrota do grande Rei de Erin e a debandada das suas forças, ou se tudo não passou de uma afortunada coincidência, não cabe a um humilde clérigo expressá-lo por palavras, quanto mais através da escrita. Basta dizer que houve quem achasse que Colm foi o responsável. Mais tarde, o santo homem foi chamado perante um sínodo, perante o qual se defendeu fluente e vigorosamente. Porém, não foi suficiente. Os bispos foram claros; Colm deixava de ser bem-vindo na sua terra. Não era exatamente uma excomunhão, mas era evidente que, se quisesse ficar em Erin, Colm não poderia pregar a palavra de Deus nem viver à imagem de Nosso Senhor. A nódoa das disputas dos seus parentes e o sangue aparentemente derramado por ele ter pedido a intervenção divina pairariam sempre sobre a sua cabeça. O campo de batalha de Cul Drebene estaria sempre entre ele e as suas aspirações a uma vida santa e piedosa.

Foi durante aquela época de incerteza que conheci o homem e a minha vida se transformou. Vi nele uma força extraterrena, uma fé mais do que santa, uma voz e uma presença que se impunha à razão e ao espírito de cada homem. Eu pensava que era devoto, mas ele acordou em mim uma alegria pela palavra de Deus com que eu nunca sonhara. O meu tempo na corte de Circinn tinha terminado e eu perspectivava uma longa e pacífica estadia na minha terra, exercitando as minhas capacidades como escriba e homem de cultura, evitando as atividades que se tinham tornado parte da minha existência no meio de conspiradores e intriguistas. Desejava permanecer com Colm, juntar-me ao pequeno bando de irmãos que partilhavam a sua visão do futuro.

Então já ele ansiava por abandonar as nossas costas sem olhar para trás. Do Rei de Dalriada, Gabhran, obtivera a promessa de um abrigo: uma ilha conhecida pelo nome de Ioua, nas costas ocidentais da província celta de Fortriu, na qual poderia instalar-se com os seus leais seguidores e fundar um centro monástico. Seria uma nova terra: um novo começo, onde a vida poderia ser de simplicidade e obediência, livre do manto escuro do passado. Na sua frente vislumbrava-se um reino onde a luz de Nosso Senhor ainda mal começara a brilhar: Fortriu, terra dos Vriteni.

Por necessidade, vi-me novamente afastado de casa, dessa vez para servir de tradutor e conselheiro espiritual na corte do Rei Gabhran. Colm aprovou a missão, dizendo que só beneficiaria a nossa causa poder aconselhar o Rei e obrigá-lo a não esquecer a sua promessa. Assim, viajei para o território celta de Dalriada, a oeste das terras dos Priteni. Assim que cheguei, a maré mudou. Fortriu decidiu atacar Dalriada. A táctica de Bridei foi brilhante; até um homem de conhecimentos militares limitados, como eu, era capaz de ver o seu instinto. O avanço teve lugar muito mais cedo do que todos esperavam e foi em grande escala, com uma enorme variedade de forças separadas, convergindo por terra e mar sobre os nossos compatriotas, quase aniquilando o exército de Gabhran. Ninguém acreditava que Bridei de Fortriu conseguiria fazê-lo sem o apoio de Circinn, a parte sul do nosso país, mas conseguiu. Vara mim não foi grande surpresa, sabia desde o princípio que Bridei tinha algo de excepcional. Se tal qualidade pode ser exercida noutras atividades que não a guerra, continua por provar, mas acredito que pode. Se tal fé apaixonada deriva dos antigos deuses dos Vriteni, à sombra de cujas leis Bridei cresceu, alimentado desde a infância pelo seu mentor, Broichan, fica por saber. A montanha a escalar é muito alta.

Portanto, os celtas perderam Dalriada, pelo menos temporariamente, apesar de a nossa presença continuar; as pessoas não moram numa terra durante três gerações para serem expulsas quando o conquistador é um homem sábio e jovem como o Rei dos Vriteni. Gabhran está prisioneiro na sua própria fortaleza de Dunadd e os seus territórios passaram para as mãos dos chefes de guerra dos Vriteni, os quais respondem perante o Rei Bridei. Porém, tais comunidades, tais postos avançados e aldeias estão cheios de gente nova, de sangue celta e Vriteni. E apesar de Bridei ter banido a fé cristã em Dalriada, os seguidores de Cristo continuam a exercer em grutas isoladas, em ilhas varridas pelo vento, em forjas, em celeiros ou nos conveses dos pequenos barcos que navegam nas águas agitadas ocidentais em busca de bacalhau; enquanto rodopiam e oscilam, as mulheres rezam a Maria, Mãe de Deus. A chama do Senhor tremula; a chegada do homem a quem chamam Colmcille transformá-la-á num grande braseiro.

Continuamos à espera. Gabhran prometeu-nos um santuário, mas já não lhe compete concedê-lo. Uma vez Bridei disse-me que eu estou em toda a parte. Não é possível, evidentemente, mas as capacidades que Deus me concedeu levaram-me, certamente, a viajar com freqüência. Estava presente quando Bridei se tornou Rei de Fortriu; estava presente quando Gabhran deixou de ser Rei de Dalriada e Bridei pronunciou a sentença de expulsão, comutada para um período de encarceramento devido ao estado de saúde do Rei. No campo de batalha, com os celtas afogados no seu próprio sangue, falei de Colm e da sua missão; falei de um sítio chamado Ioua, Ilha do Teixo, e de uma promessa. Bridei ouviu-me e compreendeu. Penso que receberemos a visita de um seu mensageiro.

Entretanto, esperamos. O Inverno está a chegar, mas na Primavera Deus enviar-nos-á um vento e uma maré favoráveis. Colm não desistirá da promessa do santuário, apesar de aquele que no-lo prometeu já não ter o poder de no-lo conceder. Embarcaremos para as costas dos Priteni, apesar de tudo. Se for preciso, Colm pedirá a Bridei que nos conceda a terra. Ao fazê-lo, nadará contra uma poderosa corrente porque a conquista de Dalriada mostrou que Bridei de Fortriu é um chefe de imenso poder e eu sei que ele é devotado à antiga fé do seu povo. Acredito que o encontro entre estes dois homens será extraordinário.

Suibne, monge de Derry

 


Chovia em Monte Branco. Os dias estavam mais curtos, o crepúsculo descia mais cedo sobre as grandes muralhas e os ordenados edifícios de pedra da fortaleza do Rei Bridei. Os jardins estavam alagados. A água gorgolejava pelos regos abaixo e na base das muralhas o riacho corria, transbordando, pelas encostas revestidas de pinheiros.

Derelei passara a tarde com Broichan, fazendo barcos com galhos e folhas e velejando-os no tanque. Observando-os de longe, Tuala reparara que cada um deles, criança e druida, mantinha uma área seca à sua volta apesar do dilúvio. Também reparara no modo como os pequenos barcos se moviam, perseguindo-se, mantendo uma rota permanente sem precisarem de vento ou remos, num jogo de manobras que tinha muito mais a ver com magia do que com a sorte ou as capacidades físicas. Esperava que Broichan se lembrasse de quão novo o seu filho era e que, apesar dos seus talentos excepcionais, se cansava com facilidade. Quanto ao druida, a sua saúde melhorara desde a sua estadia entre os curandeiros de Banmerren, mas Tuala sabia que ele não era infalível. Também ele precisava de economizar as forças.

Naquele momento, Derelei estava dentro de casa, a jantar na companhia da sua ama. Naquele dia fora acrescentada uma nova palavra, barco, ao seu vocabulário.

Era tempo, decidira Tuala, de abordar um assunto delicado com o druida do Rei. Tinha-o evitado até então, sem coragem para se confrontar com o homem que sempre temera, desde a infância, época em que ele exercera a sua vontade considerável, assegurando-se de que ela e o seu filho adotivo não formassem laços demasiado fortes. Como filha dos Boa Gente, Tuala era uma mulher inverossímil para o Rei de Fortriu. Se Broichan tivesse levado a sua avante, Bridei teria casado com uma rapariga mais adequada, alguém como Ana, por exemplo, das Ilhas Pequenas. Tuala e Bridei tinham ganho a batalha e com o tempo Broichan quase se tornara seu amigo. O druida salvara a vida de Derelei quando a febre quase o levara. Tuala ajudara-o na batalha contra a longa doença e concordara em deixá-lo assumir o cargo de tutor do seu dotado filho. Naquele momento, à espera de um segundo filho e com Bridei ausente em Abertornie, era tempo de confrontar Broichan com um acontecimento do seu passado. Tuala não esperava que fosse do agrado do druida.

Tuala sempre lutara em silêncio com o mistério da sua identidade e nunca se teria aberto se não tivesse observado os talentos precoces do seu filho. Tinha visto Broichan a observar Derelei; tinha visto o amor nos olhos do druida. Se aquilo em que acreditava fosse verdade, ambos o deviam saber — Broichan naquele momento e o seu filho quando fosse mais velho. Havia algumas verdades dolorosas, pensou Tuala, cuja importância era tal que tinham de ser expostas à luz.

Enquanto se encaminhava para os aposentos privados do druida, Tuala tentava manter-se calma, mas sentia as palmas das mãos úmidas e o seu coração batia com força perante a perspectiva de levantar um tal assunto com o seu velho adversário. E se estivesse errada? No fim de contas não passava de uma conjectura baseada na sua própria interpretação de uma visão na bola de cristal. Uma das suas primeiras lições em Banmerren, a escola de mulheres sábias, fora sobre como tais imagens podiam ser ilusórias e mal interpretadas. Os deuses usavam-nas para troçar e provocar e a vidente ficava sem saber exatamente se o seu conselho era bom ou mau.

Tuala só raramente usava a sua capacidade; havia pessoas que agarrariam a mínima oportunidade para apontar a estranheza das suas origens, procurando assim enfraquecer a dignidade do seu marido. Durante algum tempo não a usara de todo e voltara a ela após uma visão da sua própria pessoa a ajudar a salvar a vida de Bridei no tempo da grande batalha por Dalriada. Então, apercebera-se de que o risco valia a pena. Naquele dia, tencionava usá-la de novo.

Tuala bateu à porta. Broichan abriu-a, não mostrando qualquer surpresa ao ver quem era.

— Preciso de falar contigo em particular — disse Tuala. — Se não te importas.

— Claro, Tuala. Entra.

Tuala pensou que lhe tinha interrompido as orações ao ver duas velas a arder uma prateleira e diante delas um delgado colchão, no chão de pedra, uma pequena concessão à sua doença. A câmara estava arrumada. Nas prateleiras acumulavam-se os atavios do seu ofício; em cima de uma mesa de carvalho estava um jarro de água e uma única caneca. Das traves pendiam tranças de alhos e ramos de ervas curativas. O seu espelho de cristal não estava à vista.

— Senta-te, por favor. Queres discutir os progressos de Derelei? O seu bem-estar?

— Hoje não. Sei que ele está a ir bem, apesar de se cansar muito. Tenho um assunto difícil a discutir contigo, Broichan. És capaz de ter uma idéia do que é; ouvi Fola referir-se indiretamente a ele uma vez ou duas.

Broichan, alto, vestido de escuro, esperou. Os seus cabelos eram mais cinzentos do que negros e caíam-lhe sobre os ombros em pequenas tranças. A luz das velas, o disco lunar, um círculo de osso que ele usava preso por um cordão em redor do pescoço em homenagem à Aquela que Brilha, brilhava suavemente. Os seus olhos encovados não denunciavam a menor emoção.

— Seria mais fácil para mim mostrá-lo na água de uma vasilha — disse-lhe Tuala. — Sinto uma certa relutância em dizê-lo por palavras, tenho medo de te ofender.

— Se assim o desejas. — A sua voz era forçada. Tuala desconfiava que ele sabia o que ela lhe ia dizer. — Pensas que és capaz de chamar o que precisas e revelá-lo de forma a que ambos compreendamos? É uma tarefa prodigiosamente difícil, Tuala.

Para mim não é.

— Se Aquela que Brilha desejar que vejamos o mesmo, vê-lo-emos. Tens uma vasilha?

O druida foi buscar uma vasilha sem mais comentários, descobriu-a, pegou num jarro e encheu-a de água.

— Preferes isto ao espelho — disse ele. Não era uma pergunta.

Tuala acenou com a cabeça, silenciosa. A água já a chamava, demasiado poderosa para lhe poder resistir. Broichan, na sua frente, estendeu os braços para lhe pegar nas mãos. Os dois olharam-se mutuamente por cima da tigela. Tuala sentia-lhe as mãos, fortes e nodosas, a descansarem nas suas enquanto ele olhava para a água. Broichan era perito na arte da profecia, assim como em todos os outros ramos da magia; sabia, sem precisar de o dizer que, para que Tuala pudesse controlar a visão, tinha de submeter a sua formidável vontade à dela. De fato, apesar dos seus longos anos de treino e disciplina, era ela, a filha dos Boa Gente, que tinha a maior facilidade naquele ramo da arte. Talvez não fosse de admirar o fato de algumas pessoas desconfiarem dela.

A água enrugou-se, tremeluziu e imobilizou-se. A visão apareceu: a mesma que Tuala vira uma vez. Então, nem Broichan nem Fola, a mulher sábia, que a tinham assistido, a tinham discernido. Naquele momento, ela sentiu que não era o caso. As mãos de Broichan apertaram as suas por um momento e depois descontraíram-se quando ele obrigou o seu corpo a obedecer à sua vontade.

Na água, um Broichan mais novo, vestido de branco, caminhava pela floresta na Primavera. Uma outra figura seguia-o, uma mulher franzina, encantadora, cujos olhos visionários e pele leitosa a marcavam como uma dos Boa Gente, o grupo diferente do povo do Outro Mundo que morava nos bosques do Grande Vale e para lá dele. A mulher era da espécie de Tuala, aparentada com os dois seres que se lhe tinham mostrado na infância, interferido na sua vida e na de Bridei, prometendo que lhe revelariam a sua verdadeira identidade, mas calando sempre a revelação. A única coisa que ela sabia era que fora abandonada, enjeitada. Se tinha pais, nunca a tinham reclamado nos dezenove anos que levava desde que a tinham deixado à porta de Broichan.

Na água, o druida vestido de branco olhou em volta; sentira que não estava só. Ouviu-se uma voz, apesar de a câmara estar silenciosa. Vem, meu filho. Vem e venera-me. E quando o Broichan mais novo, subitamente muito quieto no caminho iluminado pelo Sol e sarapintado de verde e dourado da floresta, a voz repetiu: Vem, crente fiel. Exijo-o.

Tuala não tinha dúvidas de que era a deusa a falar. A mulher visionária era apenas uma mensageira. Talvez, apenas naquele dia, fosse um avatar: a encarnação da Aquela que Brilha, cuja presença nunca se via à luz do dia. O druida vestido de branco viu a mulher. O seu rosto empalideceu e a sua expressão retesou-se. Por mais obediente que fosse, era evidente que aquilo lhe estava a custar. A mulher sorriu; estava a divertir-se. Os seus lábios eram cheios e rosados, e a sua figura esbelta era bem proporcionada e sedutora por baixo do tecido fino da túnica flutuante. A mulher estendeu uma mão na direção do druida.

Vai, meu filho. Novamente a voz, não a da encantadora criatura, antes uma voz profunda, forte, que fez estremecer todas as árvores. Estou a chamar-te para o meu serviço. Hesitas?

O druida pegou na mão que lhe era oferecida. Tuala sentia a sua relutância e ao mesmo tempo o pulsar do desejo físico do seu corpo. Era costume os da sua espécie exercerem uma vigília solitária de três dias para comemorar o festival da Harmonia, ocasião em que o dia e a noite eram iguais e a Primavera despertava até no norte. Se a Aquela que Brilha exigia de um crente, em tal ocasião, uma devoção expressa pelo corpo em vez de pela mente, como podia um crente não obedecer? Mesmo que tal ato fosse libertino, aberrante e não o pudesse controlar, tinha de o desempenhar porque no coração do ato espiritual estava o amor do deus e da deusa, Guardião da Chama e Aquela que Brilha, e a exigência de uma total obediência à sua vontade. Na verdade, ele tinha de exercitar a mente e o corpo para o desempenhar num espírito de boa-fé porque praticar um ritual com relutância era ofender gravemente a deusa.

A mulher aproximou-se. A sua mão livre desceu para tocar na frente da túnica branca, entre as pernas do druida; ele era tímido, mas ela não. Encurralada como estava na visão, Tuala tomou consciência do aqui e agora, na esperança de que a deusa lançasse um véu para o que viria a seguir. Tuala chamara a visão para ilustrar a Broichan a sua teoria, não para o embaraçar ou envergonhar.

A água redemoinhou; a imagem fragmentou-se e mostrou breves vislumbres, fragmentos: aqui uma mão branca numa coxa, nas costas ou no peito; ali uma boca sensual de lábios semiabertos com a língua a molhá-los, saboreando e provocando; acolá umas nádegas musculosas apertando-se e afastando-se; longos dedos afagando, brincando, claramente experientes. Estavam ambos num pequeno bosque, em cima da túnica branca do druida, aberta em cima de uma concavidade cheia de erva. O vestido da mulher estava pendurado no ramo de um salgueiro, o seu tecido transparente tão insubstancial como uma teia de aranha. Os seus corpos moviam-se, a princípio lentamente, com um prazer sensual em cada momento da sua confluência e depois mais rapidamente à medida que a necessidade os dominava, até os seus corações partilharem o mesmo batimento desesperado. Era a mais velha dança de todas, bela, poderosa, que acabou rapidamente, deixando a mulher da floresta e o druida deitados em cima do linho manchado pela erva com os corpos encharcados em suor, os peitos arfando à medida que os corações abrandavam o ritmo e a respiração acalmava. Uma nuvem escureceu o Sol e uma sombra passou pelo pequeno bosque. A visão dissipou-se e desapareceu.

Broichan afastou as mãos das de Tuala. Houve um silêncio quando os dois regressaram lentamente à câmara indistinta. Um vidente experimentado permitia uma tal visão e livrava-se dela gradualmente. Apressar o processo levava à vertigem, à náusea e à angústia. Tuala pestanejou, mexendo os dedos e esticando os braços. Broichan estendeu um braço para o pano preto numa prateleira ao lado da bola de cristal e tapou a água. A sua voz era tensa e decididamente fria quando disse:

— Não imagino porque quiseste ver estas imagens na minha companhia — disse ele. — Foi indecoroso, de mau gosto. Pensava que éramos amigos, Tuala. Pensava que confiávamos um no outro. O julgamento que fiz de ti, há muito tempo, estava errado. Acreditava que eras perigosa para mim, para Bridei, para todos aqueles que tocavas. Isto faz-me suspeitar que tinha razão.

Para Tuala, as palavras do druida foram como que uma pancada. Por um momento não conseguiu dizer nada. Então, lembrou-se que era a Rainha de Fortriu e que, como mãe de Derelei e mulher de Bridei, tinha ascendência sobre o druida do Rei, quer ele gostasse, quer não, mas o pensamento não a ajudou; sentia-se espantada por o seu coração sofrer tanto com o seu repúdio.

— Vai-te embora, por favor — disse Broichan, dirigindo-se para a porta e abrindo-a.

— Se é o que queres, muito bem. Porém, vou fazer-te primeiro uma pergunta.

O druida esperou, de olhos frios e distantes.

— Suponho que tais acontecimentos não ocorrem com freqüência. Provavelmente, um homem experimenta-os apenas uma vez na vida e, como tal, deve ter uma excelente recordação deles. Devo dizer-te que quando vi isto, a visão foi muito mais curta; não esperava... não a convoquei para te envergonhar, Broichan. A deusa mostrou mais do que eu pensava.

— Por favor, vai-te embora, Tuala.

— Foi na Primavera, não foi, no festival da Harmonia? Foi na Primavera em que eu vim para Pitnochie? Foi no Inverno a seguir que mãos desconhecidas me deixaram à tua porta como bebê recém-nascido?

— Não vou discutir isso. — A sua voz era dura como o ferro. — Não vou responder a perguntas nenhumas.

— Não precisas de responder — disse Tuala, passando por ele. — Tudo o que peço é que penses no assunto. A idéia deve ter-te ocorrido. Ou a possibilidade de eu ser tua filha é tão dolorosa que fechaste a tua mente à chave e deitaste a chave fora?

O druida fechou-lhe a porta na cara. Tuala ficou no lado de fora a tentar normalizar a respiração, retendo as lágrimas, abrandando o bater doloroso do seu coração. Conhecia Broichan havia muito tempo. Uma parte do seu ser antecipara a sua rejeição, a recusa em reconhecer qualquer erro. No entanto, a onda de tristeza que a varria era tão profunda que a paralisou por longos momentos em frente da porta do druida. O seu pai. O seu próprio pai. Como teria sido maravilhoso se ele tivesse reconhecido, nem que fosse minimamente, o laço que os unia. Tuala apercebeu-se de que, no seu coração, esperara mais: um abraço, palavras de afeto, talvez até um pedido de desculpas circunspecto. Que tola. Mesmo que estivesse preparado para reconhecer a possibilidade de laços de sangue, a expressão mais próxima de um sentimento por parte de Broichan seria apenas um sorriso gelado ou um aceno de cabeça. Só com Bridei, seu filho adotivo, estivera perto de revelar o que lhe ia no coração. E com Derelei porque, no fim de contas, era filho de Bridei.

Desejara perguntar-lhe, Não significa nada para ti a probabilidade de Derelei ser do teu sangue? De o mago criança cujos talentos raros alimentas com toda a tua habilidade ser teu neto? Não anseias reconhecê-lo? Como podia dizer tais coisas quando ela própria estava no seu caminho? A idéia de ela própria como filha era-lhe aberrante. Vira-lho nos olhos ofendidos, sentira-lho no tom desgostoso da voz. Broichan nunca lhe diria a verdade, nunca a aceitaria. Para além da profunda desconfiança que sentia por ela, que existia desde o momento em que lhe pusera os olhos em cima, reconhecê-la como filha seria admitir ter recusado o seu próprio parentesco durante os anos da sua infância. Broichan dera-lhe comida e abrigo. Ao mesmo tempo, não fizera segredo da hostilidade que sentia por ela. Admitir a verdade seria reconhecer o grande erro da sua vida: um insulto imperdoável à Aquela que Brilha. E a existência de um druida não é a dedicação total ao serviço da deusa? Limpando as lágrimas com as mãos, Tuala afastou-se. O seu próprio pai não a queria, mas continuava a ser Rainha de Fortriu e tinha muito que fazer.


CAPÍTULO DOIS

 

Pouco depois da alvorada, Eile ouviu-os chegar e o sentimento familiar apertou-lhe o peito. Saraid estava acordada, sentada na enxerga com a boneca de trapos nos braços, sussurrando-lhe palavras doces. O medo deu asas a Eile apesar de estar um frio de rachar no minúsculo anexo onde ambas dormiam. Eile estava completamente vestida, a única maneira de se manter quente durante a noite, mas obrigava sempre Saraid a vestir a camisa-de-noite e dava-lhe o segundo cobertor para a compensar. A jovem encorajava a pequenina a lavar a cara todos os dias, a sentar-se como devia ser e a comer com maneiras. Se Saraid não aprendesse a comportar-se como uma senhora, ficaria condenada a uma vida igual à sua, a uma existência de miséria e escravidão. Alguém tinha de fazer com que Saraid escapasse antes de ficar demasiado velha e só ela o podia fazer.

— Veste-te, Saraid. Consegues sozinha? Eles chegaram e eu preciso de acender a lareira.

Saraid acenou com a cabeça, solene e silenciosamente, enquanto Eile punha o pequeno vestido, o xaile, o avental, as meias e as botas em cima da cama, ao lado da criança e penteava os seus próprios cabelos para trás, atando-os com um pequeno cordel. A jovem meteu os pés nas botas gastas, um velho par pertencente à tia Anda e dirigiu-se para a divisão principal aos trambolhões. Acender a lareira; luz; água quente. Depressa. O fato de estar um frio capaz de gelar a cauda de um porco e de ela ter passado a maior parte da noite a chorar não interessava. Se as coisas não estivessem prontas, Dalach ficaria zangado.

As suas mãos estavam dormentes por causa do frio. Não havia lenha para além de alguns gravetos que serviam apenas para acender o lume. O cão saíra do quarto logo a seguir a ela e estava naquele momento junto das cinzas a olhar para ela. O animal só ficava dentro de casa quando Dalach e Anda estavam fora. Em tais noites era melhor. O cão contribuía para aumentar o calor da cama.

A pilha da lenha; devia estar ensopada depois do dilúvio da noite anterior. Maldição. Não havia maneira de evitar a sova. Já os ouvia a entrar no pátio. Dalach já trazia a voz alterada. A de Anda mal se ouvia.

Eile afastou a cortina da porta.

— Vai — disse ela, e o cão obedeceu. O animal era mais obediente do que aquele homem, Faolan. Provavelmente nunca mais voltaria. Os homens eram assim: cheios de promessas falsas. Tal como o pai.

Eile fechou os olhos por um momento, sentindo as lágrimas por trás das pálpebras, consciente de que não poderia deixá-las correr, pelo menos naquele momento em que Dalach estava a entrar e as veria; ansiara tanto pelo dia em que o seu pai regressaria novamente a casa, grande, calmo e forte e a tomaria nos braços como na última vez depois de ter regressado do tal sítio, Pedra-que-Quebra; sonhara que lhe diria a verdade ao ouvido e que ele as levaria, a ela e a Saraid, para um lugar seguro onde as protegeria e onde a criança cresceria feliz, bem alimentada e sem medo; onde ela própria não teria de suportar as constantes garras do medo nem o terror de que, um dia, deixaria de ser capaz de manter Saraid sã e salva. Pai, pai, por que não regressaste a casa?

Eile saiu de casa e viu que alguém tinha tirado alguns troncos da pilha saturada de água e que os tinha colocado ao lado da porta, onde o beirai do telhado de colmo formava um espaço seco. A lenha continuava úmida, mas talvez conseguisse pegar-lhe fogo. Uma amabilidade. A jovem perguntou a si própria o que quereria Faolan em troca e se ele a ouvira chorar depois de pensar que ele se tinha ido embora. Eile encheu o cesto, levou-o para dentro e estava a acocorar-se para reacender as brasas da noite anterior quando Dalach entrou com Anda, uma mera sombra, nos seus calcanhares.

— O quê? O lume não está aceso? Mexe-te, preguiçosa escanzelada. Venho de longe e estou gelado até aos ossos. Onde está o meu pequeno-almoço?

Provavelmente esperava que ela o arranjasse do nada.

— Não nos deixaste grande coisa e já desapareceu tudo menos uma mão-cheia de aveia. — E por favor, por favor, deixa-a para Saraid. Ela precisa.

Eile tremia. Sempre que ele estava em casa era como andar sobre brasas, era um permanente jogo de adivinhas. A jovem sentia raiva, mas não a podia mostrar por causa da criança. Se não fosse Saraid, já teria magoado seriamente o homem e arcado com as conseqüências.

— Devias ter feito melhor — disse Anda, pousando a trouxa e levando as mãos aos rins, com ar cansado, mas sem qualquer simpatia na voz. Eile achava que quem deixava que certas coisas acontecessem sem fazer nada era tão culpado como quem as fazia. — Devias tê-la feito durar.

Eile pensou nas vezes que não comera para que Saraid pudesse ser devidamente alimentada, mas não disse nada.

— És uma desmazelada e uma mandriona — disse ele, aproximando-se dela. Dalach era um homem grande, alto e largo. Forte como um touro; Eile sabia bem quão forte ele era. A jovem sentiu-lhe os dedos nos cabelos, depois uma dor penetrante quando ele a levantou e mordeu o lábio para não gritar. Não lhe daria a satisfação. — Ainda bem que és boa numa coisa — continuou ele — ou estarias na rua por tua conta. — Tão abruptamente como a tinha levantado, Dalach largou-a e Eile caiu junto da lareira. — Supostamente isso devia ser uma lareira acesa? Despacha-te, miserável. Estou todo molhado. — Em seguida, virando-se para a mulher: — Vais ter de ir à aldeia. Vê o que consegues arranjar. Toma — disse ele, tirando uma mão-cheia de moedas de cobre da bolsa e estendendo-as a Anda. — Não tenhas pressa.

Os seus olhos viraram-se para Eile. A jovem sentiu-lhe o olhar enquanto espevitava as brasas e lhes juntava os últimos gravetos. Arde, por favor arde.

— Eu posso ir, se quiseres — disse ela com o coração a bater loucamente. — Posso levar Saraid comigo. A chuva parou. A tia deve estar cansada.

— Quem te pediu a opinião? — rosnou Dalach. — Vai lá, Anda, estou com fome.

— Esteve cá um homem ontem. — Eile só tencionava dizer-lhes mais tarde, mas as palavras saíram-lhe da boca sem pensar. Não queria ficar sozinha com Dalach, especialmente com Saraid acordada. A criança, uma pequena sombra, estava no quarto, de olhos muito abertos. — Trouxe notícias do pai.

Instantaneamente, os dois viraram-se para ela.

— Um homem? — perguntou Dalach, carrancudo. — Que homem?

— Que notícias? — A voz de Anda era hesitante.

Eile depositou um ramo maior no fogo e ele sibilou quando as chamas começaram a lambê-lo.

— Más notícias. Ele não volta. Morreu há pouco tempo num sítio qualquer no outro lado da água. O homem disse que foi uma morte heróica.

Anda deixou-se cair num banco sem dizer uma palavra.

— Portanto, não vem buscar-te — disse Dalach pesadamente, deixando-se cair noutro banco com os olhos fixos em Eile. — Nós é que temos de te alimentar, a ti e à fedelha. — Os seus olhos viraram-se para Saraid e a pequenina escondeu-se por trás da ombreira da porta com o dedo na boca.

— A fedelha, como lhe chamas, é tua filha. — Não era boa idéia desafiá-lo, mas Eile não conseguiu ficar calada.

— É mais uma boca para alimentar. Um homem não se pode dar ao luxo de ter família em casa se ela não consegue pagar o que come.

— Ela tem três anos — disse Eile, enquanto a lenha começava a estalar, desafiando-o.

— E está a crescer — replicou Dalach, rasgando os lábios num sorriso sem humor. — Falta pouco para lhe dar uso.

Eile percebeu naquele momento que era tempo de agir. O pai tinha morrido; não valia a pena continuar a ter esperança e a sonhar. Tinha de fazer qualquer coisa. Antes de Saraid nascer tinha fugido.

Dalach fora atrás dela e arrastara-a para casa pelos cabelos. Teria de fazer com que ele não a seguisse mais.

— Onde está o tal homem? — perguntou Anda, muito pálida. — Ele trouxe alguma coisa para nós?

— Não sejas mais estúpida do que já és — disse Dalach com voz áspera. — Alguma vez Deord se mostrou generoso para conosco? Era um inútil. Deve ter morrido sem um tostão. Meteu-se numa zaragata qualquer numa taberna, aposto, e deu com um tipo maior do que ele.

— O homem chama-se Faolan e disse que vinha cá hoje falar contigo. E falou em prata. E não foi numa zaragata de bêbedos. O meu pai morreu em combate, sacrificou-se para que outros vivessem. E era capaz de ganhar a vida — disse Eile, engolindo as lágrimas. — Antes nós tínhamos uma boa casa e comida na mesa. Se calhar pensas que não me lembro, mas lembro. Éramos felizes...

O punho de Dalach disparou e atingiu-a no queixo. Os dentes da rapariga estalaram; a dor percorreu-lhe o pescoço. Eile calou-se. Era verdade; nem cem murros fariam a diferença. Era pequena, da idade de Saraid, mas lembrava-se, A casa no monte; o jardim com vegetais, flores, alfazema, rosmaninho e uma espécie qualquer de lírios junto da parede. Um gato; lembrava-se do gato às riscas que caçava ratos e os colocava aos pés da mãe como se fossem presentes sem preço. A mãe a rir-se; a mãe a fiar e a cantar. O pai nem sempre estava presente porque viajava muito, mas regressava sempre e quando regressava toda a casa se iluminava com a sua presença. O pai a contar histórias quando ela ia para a cama, histórias sobre sítios estranhos que ele tinha visitado e sobre as pessoas estranhas que viviam neles. O pai com aquele olhar, um olhar que a fazia sentir-se segura. Na época não viviam com Anda e Dalach. Na época Eile achava que a sua vida seria sempre cheia de coisas boas.

— O que é isso? Lágrimas? — troçou Dalach, e ela esfregou as faces sem saber se estava a chorar por causa do murro ou por causa do passado que nunca mais voltaria. Enquanto estivera ajoelhada, a sonhar, Anda saíra da cabana. Agora estava sozinha com a pessoa que mais odiava no mundo.

— Trata do lume e vai-te lavar — disse Dalach. — Parece que andaste a esfregar-te na estrumeira. Quando estiveres limpa, vai para o quarto.

— Saraid está lá.

— A fedelha pode assistir. Já é tempo de aprender umas coisas. Despacha-te, Eile, andei na estrada dez dias e estou cheio de tesão. Pensas que o graveto seco com que me casei é capaz de me satisfazer? É como foder com um espantalho.

Por mais tempo que demorasse a lavar-se, ele acabaria por se impacientar e arrancar-lhe-ia o pano das mãos, ou daria um pontapé no balde de água fria. Dalach não se lavava; estava-se nas tintas para o fato de Eile não lhe suportar o cheiro a ranço e a suor, acumulados por dias e noites na estrada. O Inverno era a época pior. Sem nada que fazer, passava os dias a beber e a atormentá-la.

A jovem esfregou o rosto e as mãos, levantou a saia e lavou-se entre as pernas. A seu lado, Saraid continuava silenciosa. A pequenina tinha mergulhado o seu próprio pano no balde e tinha lavado o rosto, esfregado a parte de trás das orelhas, o pescoço, as mãos e tinha-as limpo ao avental. Não a quero aqui conosco. Nunca, nunca.

— Saraid? Pega no meu xale e vai lá para fora. Senta-te no degrau até eu te chamar. Não saias de lá. A tia Anda está a chegar com o pequeno-almoço. Fica à espreita a ver quando ela chega. Eu sei que está frio.

A pequenina anuiu e saiu, tão obediente como um cão. Eile não tinha a certeza se Saraid percebia, mas desconfiava que sim e decidiu que não hesitaria. Só mais uma vez, deixá-lo-ia molestá-la só mais uma vez e depois...

Enquanto ele rosnava e a penetrava, ausente num transe qualquer, Eile fechava a mente e pensava no passado: antes de Saraid, antes de Dalach, antes de ter encontrado a mãe enforcada numa árvore. Antes da véspera do seu décimo segundo aniversário, ocasião em que o marido da sua tia fora ter com ela na escuridão e a trespassara, roubando-lhe a inocência. Naquele momento, enquanto ele se satisfazia nela com uma urgência nascida dos muitos dias ausente, Eile pensava na época do regresso do pai de Fenda da Pedra-que-Quebra, tinha ela oito anos; talvez fosse demasiado nova para perceber como a prisão o tinha mudado. Deord passara o tempo calado, mas também era verdade que sempre fora um homem calado, e não lhe contara histórias. Quando lhe pedira, ele dissera que só se lembrava das tristes. Assim, ela contara-lhe as que recordava e inventara outras. Por vezes, ele chorava e ela trepava-lhe para os joelhos, abraçava-o e encostava o rosto às faces molhadas dele. Sim, estava diferente, mas continuava a ser o pai. Quando ele partira novamente, Eile vira a esperança a desaparecer gradualmente do rosto da sua mãe e rezara para que ele voltasse. Depois da morte da mãe e depois de Dalach, as preces tinham-se tornado num desespero de saudade e naquele momento nem sequer valiam a pena. Tudo o que tinha era aquele momento, o rosto vermelho e deformado de Dalach com a sua masculinidade sempre pronta dentro dela e a faca de Faolan na mão, por baixo do cobertor. Eile apertou-a com força e respirou fundo.

A jovem ouviu vozes no exterior: a da sua tia e, em resposta, a de um homem. Faolan. Afinal de contas, voltara. Devia ter encontrado Anda no caminho, obrigando-a a regressar de mãos vazias. Eile meteu a faca por baixo do velho saco que lhe servia de almofada e Dalach, não querendo perder a oportunidade que a breve ausência da mulher lhe proporcionara, trespassou-a com força e ejaculou com um grunhido, antes de sair da enxerga puxando as calças para cima à pressa.

— Compõe-te, porca — sibilou ele, saindo.

Eile não saiu imediatamente. Era evidente que o amigo do seu pai sentiria nela o odor de Dalach, era evidente que lhe ouviria o bater do coração porque estivera quase, a um cabelo de distância, de enterrar a faca que ele tinha deixado para trás no seu atormentador, dando a Dalach o sabor da sua própria receita. A primeira vez doera-lhe terrivelmente, mas depois doera-lhe sempre. A jovem habituara-se e aprendera que era mais suportável se respirasse devagar e o deixasse à vontade. Se lutasse, ele tornava-se mais rude e mais tarde batia-lhe. Dalach não precisava de desculpas para se servir dos punhos; tanto ela como Anda tinham nódoas suficientes para o provar. Mas Saraid não — por enquanto. Saraid estava sempre tão calada, era sempre tão obediente... aprendera a tornar-se invisível.

Eile endireitou a roupa e tapou a enxerga com o cobertor, certificando-se de que a faca estava escondida. Em seguida esperou até a respiração normalizar. Na sala, os três conversavam:

— Trouxe algumas provisões. — A voz de Faolan. — Espero que não se importem. Vou-me embora assim que sair daqui e ainda não tomei o pequeno-almoço. Um pouco de pão fresco, um pouco de queijo e algumas ameixas secas. A pequena é capaz de gostar. Gosto de partilhar.

— Eile! — A voz dele, gritando como se ela fosse uma criada, com uma indiferença depois de a ter possuído momentos antes. Para ele mal existia, senão como receptáculo para a sua luxúria. — Chega aqui e serve o nosso hóspede! Precisamos de pratos limpos e a lareira está a fazer fumo.

A jovem obedeceu; esperaria por outra ocasião, por outra oportunidade. Nada mais certo, desde que Faolan não lhe pedisse a faca de volta. No dia seguinte, ou no outro. As criadas também recebiam salário; cobraria o seu com sangue.

Faolan cortou o pão e o queijo, mas não com a sua própria faca, antes com uma toda romba que Eile lhe passou para a mão. Sob o seu olhar penetrante, a jovem tomou consciência das frieiras nas mãos, das unhas roídas, dos cabelos sujos e do vestido remendado. Saraid entrara e agarrara-se às saias de Eile com os olhos na comida. Faolan não sabia que aquilo era um festim. Nenhuma delas via nada daquilo havia muito tempo.

— Posso dar-lhe um pouco? — perguntou Eile a Faolan.

Sem dizer nada, ele cortou uma fatia de queijo, colocou-a num pedaço de pão e ofereceu-o à criança. Saraid fora ensinada a sentar-se direita e a comer lentamente. Eile nunca se esquecia de lhe dizer. Porém, sem conseguir resistir a tanta abundância, a pequenina arrancou o pão e o queijo das mãos de Faolan e fugiu para o quarto, apertando a comida contra o peito.

— Peço desculpa — disse Eile. — Ela tem fome.

— A tua tia disse-me que lhe deste a notícia — disse Faolan, vendo-a servir Dalach, pondo-lhe uma porção generosa no prato e servindo-o a ele próprio a seguir. O pão cheirava às coisas boas do

Verão todas juntas. A sua boca encheu-se de água. Eile cortou uma fatia de queijo para Anda e depois outra para si própria. A casca era tão vermelha como a das maçãs azedas e o queijo em si tão dourado como o Sol. A jovem dividiu o que restava do pão entre a tia e ela própria, olhando de lado para Dalach. Se Faolan não estivesse presente, sabia que Dalach lhe teria negado uma porção tão generosa, mas na circunstância o homem limitou-se a apertar os lábios. Eile levou à boca o queijo abençoado, salgado, maravilhoso. Em seguida, sem que ninguém visse, meteu o resto na algibeira do avental. Saraid era pequenina, não comia muito. Aquilo dava para duas refeições.

— Não comes? — perguntou-lhe Faolan.

— Não tenho muita fome, mas obrigada por te lembrares.

— Chega de amabilidades — disse Dalach, limpando a boca. — Falemos de Deord! Que destinou ele para a filha aqui presente? Sabias que a sustentamos de boa vontade desde há sete ou oito anos? Não podemos mantê-la para sempre. O dever vai só até certo ponto. Os tempos estão difíceis, como deves saber. Ou talvez não saibas — concluiu ele, olhando para Faolan de alto a baixo. — O que é que fazes?

— Dalach... — sibilou Anda, debilmente. A mulher vivia aterrorizada com a língua afiada do marido e com a dureza dos seus punhos e raramente protestava.

— Várias coisas — disse Faolan, franzindo o sobrolho. — Estou a ver a vossa situação aqui e estou preocupado. É difícil arranjar trabalho?

— Que estás para aí a dizer? Pensas que não sou capaz de sustentar a minha família? — perguntou Dalach, ameaçador, cerrando os grandes punhos. Por alguma razão as pessoas da aldeia só raramente apareciam por ali.

— Eu não te conheço — disse Faolan com ar franco — mas conhecia Deord e sei que ele gostaria que Eile tivesse uma vida boa, não passasse fome e pudesse fazer alguma coisa por si própria.

— Se ele queria isso, por que não ficou e tomou conta dela e da mãe? — A voz de Anda tremia. — Elas precisavam dele.

— Tens de compreender — disse Faolan — que Deord passou por muito em Fenda da Pedra-que-Quebra. Aquele sítio destrói os mais fortes dos homens. Poucos saem de lá e nenhum deles sai como entrou.

— Como é que sabes? — perguntou Dalach em tom desafiador. — Um homem como tu, de falas-mansas, como um bardo, bem-vestido! Aposto que nunca tiveste um dia difícil na vida.

Ocorreu a Eile que Dalach faria melhor se fingisse alguma educação para convencer Faolan de que queria continuar a sustentá-la a ela e a Saraid para sempre. Se queria que o amigo de Deord demonstrasse mais generosidade para além daquele pequeno-almoço, a melhor maneira de o conseguir não era antagonizá-lo.

— Sei por que também estive em Pedra-que-Quebra — disse Faolan. — Antes de Deord. Um homem sai de lá incapaz de fazer companhia a uma mulher ou a uma filha, incapaz de viver como os outros homens; deixa de se poder controlar; perde a fé nos deuses e na humanidade. Se a mulher lhe fala inesperadamente, quando a sua mente está concentrada em qualquer outra coisa, ele é capaz de a agarrar pelo pescoço e responder-lhe torto. Se a filha lhe salta para a cama de manhã, ele é capaz de atirar com ela de pantanas antes de perceber o que está a acontecer. Não admira que Deord não tenha ficado. O drama é que um homem assim continua a ansiar pela sua vida anterior, ser como antes, mas não é possível.

— Tu pareces-me normal — disse Eile. De fato, Faolan, absolutamente normal, era a espécie de homem que mal se podia descrever mais tarde porque não tinha praticamente nada de notável. De estatura mediana, seco, porte atlético, cabelos escuros de tamanho médio, barba pequena, lábios finos e expressão decidida, usava roupas simples mas boas. Os olhos, eram, talvez, a única coisa de notável; circunspectos, a jovem vira neles uma ou duas vezes uma expressão complexa: ao olhar para Saraid e ao tentar ajudá-la na noite anterior. Era evidente que havia coisas que ele não queria que mais ninguém soubesse. Talvez se relacionassem com Pedra-que-Quebra, coisas que faziam com que um homem virasse as costas à família.

— Cá me arranjo — disse ele. — O tempo que passei naquele sítio foi muito mais curto do que o do teu pai. Talvez te interesse saber que depois de ter saído de lá pela última vez, Deord passou sete anos a guardar um prisioneiro num local chamado Briar Wood, nas terras dos Caitt, a norte do reino de Fortriu, no outro lado da água. O cativo era um homem de qualidades excepcionais que tinha sido erradamente encarcerado. Como guarda, Deord era humano, paciente e amável, assim como extraordinariamente forte de corpo e de mente. No fim, a sua ajuda foi fundamental para que o prisioneiro escapasse, Sempre o achei um homem forte, de confiança e bom. Lamento muito a morte da tua mãe, Eile, e lamento que o teu pai não tenha podido regressar. Devo dizer-te que ele morreu honrosamente. A sua morte foi um exemplo de coragem.

— A coragem nunca pôs pão em cima da mesa — disse Dalach. — O homem não deixou nada?

Faolan parecia imune à sua rudeza.

— As circunstâncias eram tais que não tive acesso ao que ele pode ter posto de lado — disse ele. — Como seu amigo, é meu desejo ajudar Eile. Vou-te deixar alguma prata — acrescentou ele, virando-se para Anda. — Dar-lhe-ás o uso que achares melhor, mas acho que Eile tem uma palavra a dizer no assunto. Chega para melhorar a casa e para passar o Inverno confortavelmente. Aconselho-te a que ponhas metade de lado para o futuro dela. Existe uma comunidade de mulheres cristãs a ocidente daqui, não muito longe. Pelo menos, havia. Talvez elas a aceitem e lhe possam ensinar um ofício.

Se ao menos fosse possível, pensou Eile. A jovem estava preparada para acreditar no deus que elas quisessem, desde que pudesse escapar dali, mas não sem Saraid. Não poderia, nunca, deixar Saraid para trás. Além do mais, Dalach tiraria o dinheiro a Anda assim que o doador virasse as costas e desapareceria todo no álcool e no jogo. Não valia a pena falar a Faolan na possibilidade. O homem levaria o dinheiro consigo e ela levaria a maior sova da sua vida. Dalach não queria saber de nenhuma delas, só queria saber da próxima bebida, da próxima rixa, da próxima vez em que se meteria na cama com ela. A raiva e o ressentimento tinham-lhe afogado quaisquer sentimentos que ele pudesse ter tido. A jovem nunca percebera por que razão Anda continuava com ele.

Esta aspirou o ar por entre os dentes ao sentir o peso da pequena bolsa que Faolan lhe depositou nas mãos.

— É muita generosidade da tua parte — disse Dalach. — Muita generosidade. — As suas mãos contorciam-se. Eile percebeu que ele estava a fazer um esforço enorme para não agarrar no dinheiro. — Vamos gastá-la bem, podes ter a certeza.

Faolan olhou para ele perscrutadoramente:

— Espero que sim — disse ele. — A vossa situação preocupa-me. Ficaria mais feliz se soubesse que Eile ia para o pé das freiras. Na verdade, se for esse o teu desejo, estou na disposição de a escoltar eu próprio. Tenho assuntos a tratar a oeste e a norte; posso ir primeiro para oeste, tanto me faz.

— Não — disse Eile, rapidamente. — Neste momento, não. Não penses que estou a ser ingrata. Neste momento não posso ir.

— A rapariga representa dois braços extra — disse suavemente Dalach. — Precisamos dela aqui. Ela tem deveres muito particulares. Além do mais, não fica bem uma rapariga nova viajar com um homem, ainda por cima estranho. — Se aquilo era inconsistente com o que dissera antes, não pareceu reparar.

— Bem — disse Anda um momento depois —, sempre te vais embora, então? Para oeste, foi o que disseste? Vais para onde?

— Não conheces.

— Tem cuidado se fores por Três Carvalhos — disse Dalach. — Acabamos de vir de lá. Caiu uma ponte. Por causa da chuva. Só consegues ir até ao cruzamento.

— Bem — disse Faolan, descontraído —, cá me arranjo. Para lá do rio as terras são dos Uí Néill, não são?

— Devias saber.

— Estive bastante tempo fora.

— Para lá do rio é território de Ruaridh Uí Néill — disse Dalach, olhando desconfiado para Faolan. — Tu tens ares daquela família, surpreende-me ser obrigado a dizer-te. Ruaridh tem muitos interesses em Tirconell. Por estas bandas é a mulher que zela pelo território. Parece que ele está disposto a entregar-lho por causa do filho dela.

— Mulher? Que mulher? Pensei que as terras eram dos Uí Néill.

— Eile ouviu uma mudança estranha no tom de voz de Faolan, mas não percebeu exatamente qual.

— Por onde tens andado? Echen morreu há quatro anos. A viúva dele é que controla tudo. Ela é dura, governa com mão-de-ferro, como qualquer homem. Mas mais vale ela do que aquele patife. Ela é justa. Não que seja trabalho para uma mulher. Ela tem-se agüentado mais do que se esperava. O cunhado entregou-lhe tudo.

Faolan suspirou. Eile viu-o descontrair os ombros, tentando controlar-se.

— Portanto, Echen morreu — limitou-se ele a dizer.

— Foi um grande alívio — murmurou Anda. — Sabemos histórias daquele homem capazes de gelar o sangue.

— Vou andando — disse Faolan, levantando-se. — Quando chegar ao cruzamento, decido em que direção ir. Eile, pensa no que sugeri. Seja qual for a tua fé, lembra-te que as freiras tratam-te bem, especialmente se a tua tia lhes fizer uma doação. A vida delas não é luxuosa, mas é ordenada e serena.

Eile anuiu; não conseguia encontrar as palavras certas. Estivera tão perto e afinal... Era demasiado cruel. Leva-me contigo. As palavras pairaram-lhe na boca, mas não saíram.

— Tens tudo? — Dalach estava a ser afável porque era evidente que o seu hóspede ia deixar a bolsa de prata.

— Penso que sim. Ah sim, tinha uma faca pequena... não me lembro onde a deixei... — Faolan não olhou diretamente para Eile, limitou-se a olhar-lhe por cima do ombro com as sobrancelhas levantadas. A jovem encolheu os ombros. — Talvez esteja no fundo do saco, ou talvez a tenha deixado em casa de Brennan. Talvez passe por aqui a caminho de casa para ver como vai Eile e se mudou de idéias. Por agora, despeço-me. Gostaria que as notícias fossem melhores, mas Deord era bom homem.

— Estás sempre a dizer isso — disse Dalach com a boca torcida.

— A mim nunca me pareceu.

— Algumas pessoas vêem apenas o que querem ver. Adeus, Eile. Ele ficaria orgulhoso de ti.

As lágrimas jorraram. A jovem limpou-as com uma mão furiosa. Deord orgulhoso da filha puta? Dos cabelos sujos, das roupas rotas e das coisas que era obrigada a fazer para sobreviver? Não acreditava.

— Adeus — gaguejou ela, olhando para o chão. leva-me contigo para longe daqui, para um sítio qualquer, leva-me para que eu não tenha de o fazer.

Saraid tinha-se aproximado da mãe e tinha-lhe agarrado numa dobra do avental. Os seus olhos estavam fixos no homem que lhe tinha trazido o festim.

— Diz adeus, Esquilo — murmurou Eile. A criança, porém, enterrou o rosto no tecido áspero e não disse nada.

Bridei estava em Abertornie para tratar do bem-estar da família de Ged, um brilhante chefe-de-guerra que fora um dos mais corajosos apoiadores do jovem Rei e que caíra na grande batalha do Outono, no momento mesmo em que Dalriada era reconquistado pelos Priteni. Ged deixara uma viúva jovem, um filho de dez anos de idade e três filhas ainda muito pequenas. Bridei falou com todos, assegurando-lhes que o seu marido e o seu pai morrera como um herói e entregando-lhes algumas últimas mensagens.

Enquanto o Rei estava ocupado, o seu conselheiro-chefe, Aniel, que o acompanhara, investigava discretamente o estado dos campos e das casas e juntamente com o monarca arranjou as coisas de maneira a que Loura pudesse olhar pelo domínio enquanto Aled não atingia a maioridade. Bridei convidou o rapaz para passar algum tempo na corte no Verão seguinte. O rapaz agradeceu-lhe sobriamente e disse que iria se pudesse, mas que pensava estar então bastante ocupado.

Em seguida, Bridei e Aniel foram até às fortalezas costeiras de Caer Pridne porque tinha sido convocado um conselho, não uma reunião aberta do gênero de Monte Branco, antes uma assembléia pequena, particular, privada.

Era quase demasiado tarde, devido ao estado adiantado da estação, para viajar até tão longe. As primeiras neves já tinham caído. O Rei e o seu conselheiro-chefe tinham por companhia uma escolta de cinco guerreiros, um dos quais era o guarda pessoal de Bridei, Garth e outro homem de Aniel, Eldrist. A ausência prolongada de

Faolan sobrecarregara o primeiro, que era então o único dos experientes guarda-costas de Bridei. O treino era longo e rigoroso. Em Monte Branco, Garth tinha um homem novo, Dovran, que estava a começar a provar o seu valor. Bridei acreditava que Faolan não regressaria antes do Verão seguinte.

— Precisas, pelo menos, de três homens — protestara Garth. — Quatro seria melhor. Que é feito de Cinioch?

— Faolan vai regressar, não consegue resistir ao salário fraco e às noites sem dormir — dissera-lhe Bridei. — Cinioch pertence a Pitnochie. Quero que ele e Uven vão para casa e que esqueçam a guerra por algum tempo. — A estação tinha sido sangrenta e mortífera, tinham-se perdido muitos camaradas, entre eles Breth. A vitória fora grande, um grande triunfo. Os Celtas tinham sido rechaçados e as terras a ocidente reclamadas para os Priteni. O coração de Bridei ansiava por um pouco de paz. O seu povo precisava dela. Precisavam todos de tempo para cultivar a terra e preparar as colheitas, criar os filhos e celebrar o seu amor pelos deuses. Chegava de guerra; as fronteiras tinham de ser conservadas e as comunidades consolidadas. A gadanha tinha de substituir a lança, o remo o chuço, a enxó ou a sovela o punhal. Os homens que tinham arriscado tudo pelo seu Rei, pela sua terra e pela sua fé precisavam de tempo para recomeçar as suas vidas.

A maciça fortaleza costeira de Caer Pridne, na costa nordeste, fora em tempos a sede dos reis de Fortriu. Na época era o quartel-general das forças de Bridei, comandadas por Carnach de Thorn Bend. Naquela noite estava calma. Estava-se no Inverno. O exército maciço convocado para o ataque a Dalriada fora dissolvido e os seus homens despachados para os seus territórios natais enquanto as estradas ainda estavam transitáveis, restando apenas uma força composta por guerreiros profissionais que estavam ali aquartelados todo o ano, prontos para o que desse e viesse. No interior das muralhas da fortaleza viviam várias famílias, uma verdadeira comunidade. Caer Pridne fornecia guardas para Monte Branco, uma força que rodava todas as estações para manter os homens sempre prontos.

Os chefes-de-guerra de confiança de Bridei, Carnach e Talorgen, tinham chegado recentemente de Dalriada. Ambos os chefes tinham permanecido lá após o fim da guerra para fiscalizar a partida dos chefes celtas para a sua terra natal. O Rei de Dalriada, Gabhran, adoecera gravemente pouco depois da grande batalha e fora-lhe dada autorização para continuar na sua fortaleza de Dunadd juntamente com os membros da sua casa, guardados por uma força de guerreiros de Priteni.

Bridei já tinha recebido notícias dos seus chefes-de-guerra porque os dois chefes tinham visitado o Rei em Monte Branco no regresso, aclamados por todos. Porém, nem todas as notícias podem ser dadas abertamente. Naquela noite, na pequena câmara que Bridei escolhera para o seu conselho, o ruivo Carnach e o mais velho Talorgen sentaram-se à grande mesa de carvalho com Bridei e Aniel, na companhia de uma pequena mulher de cabelos brancos e túnica cinzenta: a sacerdotisa mais velha de Fortriu, Fola, cujo estabelecimento de Banmerren ficava do outro lado da baía. A exceção de Garth, os guardas pessoais do Rei estavam no lado de fora da porta aferrolhada. Nos nichos esculpidos na parede de pedra ardiam lamparinas de óleo. Tudo estava calmo e sossegado.

— Obrigado por terdes vindo, meus amigos — disse Bridei. — Lamento a necessidade de segredo. Tenho notícias que exigem o vosso conselho. Assim que mo derdes, decidiremos em conjunto o que fazer e quando.

— Bridei — interrompeu-o Fola, fixando o Rei com os seus penetrantes olhos escuros — por que razão não está Broichan presente? Não pôde viajar por estar doente? Da última vez que o vi, pareceu-me de boa saúde. — A sacerdotisa era uma velha amiga e não suportava cerimônias.

— Não pude estar presente este ano em Caer Pridne por ocasião do equinócio — disse Bridei, escolhendo cuidadosamente as palavras; a explicação ia custar-lhe. — Não conduzi o meu ritual habitual no poço. Esta noite, depois de sairmos daqui, ficarei de vigia até de manhã. Se Broichan me tivesse acompanhado, teria insistido em ficar comigo. Ele teria suportado viagem do Monte Branco até aqui, mas a vigília teria sido demais para a sua resistência.

Seguiu-se um breve silêncio.

— Há mais qualquer coisa, não há? — perguntou Fola, levantando as sobrancelhas.

— Broichan ainda não sabe estas notícias — disse Bridei, vendo passar um olhar de surpresa pelo semblante sereno da mulher sábia. — Ouvi-las-á da minha boca assim que eu regressar a Monte Branco. Primeiro quero a vossa opinião, o vosso conselho.

— O assunto deste conselho é secreto até o Rei decidir em contrário — disse Aniel, tamborilando com os dedos no tampo da mesa.

— Isso é evidente — disse Talorgen de Fonte do Corvo, um homem de meia-idade, bem-parecido, de rosto aberto. — De que notícias se trata?

— O Rei de Circinn morreu — disse Bridei calmamente, provocando um sobressalto de choque em redor da mesa. A notícia era bombástica; Circinn, o reino a sul dos Priteni, tornara-se cristão no reinado de Drust, o Javali, enquanto Fortriu continuara fiel aos velhos deuses. Seguir-se-ia uma eleição para determinar qual dos pretendentes de sangue real se tornaria rei. — Não soubemos a notícia por meio de um mensageiro. Pouco antes de Aniel e eu deixarmos Monte Branco, fomos informados por um dos nossos espiões. Acreditamos que Circinn não convocará eleições antes do fim do Inverno, que já se instalou; devem lembrar-se do que aconteceu na última vez. Por outro lado, podem tentar fazê-lo pela calada; colocam no trono o homem deles e confrontam-nos na Primavera com a decisão já tomada.

— Exatamente — disse Aniel. — Eles podem muito bem deixar passar o fato de os chefes-de-guerra de Fortriu terem direito a voto. Conheceis Bargoit e os seus colegas conselheiros; estão sempre prontos a ultrapassar os procedimentos corretos se tal lhes convier.

Carnach assobiou baixinho:

— Drust, o Javali está morto, hem? Pergunto a mim próprio qual dos fuinhas dele lhe meteu qualquer coisa no guisado!

— Devíamos rezar pela sua morte — disse Fola, olhando desaprovadoramente para o chefe-de-guerra ruivo. — Podíamos não ter grande opinião do homem, mas isso não nos deve impedir de fazer o que é justo.

— Ele havia de querer rezas cristãs — disse Aniel, torcendo os lábios. — És capaz, Fola?

— Drust pode ter sido batizado de acordo com a fé cristã — replicou a mulher sábia —, mas não tenho dúvidas de que a divindade que ele chamou no último momento foi a Mãe Ossuda. Não há mal nenhum em desejar a um homem uma boa viagem. Suponho que Drust não era mau homem, era apenas fraco. Demasiado fraco para ser rei. Como epitáfio é triste.

— Um dilema — disse Aniel. — Quem será o mais forte pretendente para os chefes-de-guerra de Circinn? Terão alguns candidatos?

— Nenhuns, certamente, que possam ombrear com Bridei depois da espantosa derrota que ele infligiu aos Celtas — disse Carnach, asperamente. — Precisamos de ter a certeza de que a eleição é justa, como a nossa por morte de Drust, o Touro. Se Bridei pôde ser eleito Rei de Fortriu com os votos dos representantes de todos os reinos dos Priteni, o mesmo processo deve ser aplicado ao reino de Circinn. E a oportunidade de que temos estado à espera: o sonho de Broichan. Dentro de uma estação podemos ter Fortriu e Circinn unidos à sombra do mesmo chefe. Tens de te candidatar, Bridei, podes fazê-lo. — As suas feições estavam coradas de entusiasmo e os seus olhos brilhavam. Carnach era um homem generoso e ele próprio fora candidato ao trono de Fortriu quase seis anos antes, mas afastara-se para apoiar a pretensão de Bridei.

— Tenho a certeza que Broichan é da mesma opinião — disse Bridei. — Mas a coisa não é simples. Temos a questão da fé; a vontade do povo de Circinn e dos chefes-de-guerra que os representam. Passa-se tudo aqui mesmo ao lado, no lado de lá da fronteira, mas quer nos agrade, quer não, Circinn é agora um reino cristão.

— Além do mais — disse Talorgen, franzindo o sobrolho — temos de pensar no oeste. Conquistamos Dalriada, mas um território novo precisa de ser cuidadosamente governado. Não tenho dúvidas de que os Celtas regressarão daqui a três, cinco, dez anos, o tempo de que necessitarem para se reagrupar. Vamos ter permanentemente dissidentes na região porque há de haver muitos que querem o velho estatuto de volta. Fizemos os possíveis por eliminar possíveis desordeiros, mas a presença celta continua forte. Não podemos simplesmente aparecer e ocupar um lugar e esperar que os residentes continuem com as suas vidas como se nada tivesse acontecido. Odeio dizê-lo, mas a ocasião pode não ser a melhor para Bridei juntar a liderança de Circinn à de Fortriu. A pressão seria demasiada. Todos nós a sofreríamos.

— Quantas vezes aparece uma eleição como esta? — perguntou Carnach. — E se aparece um homem novo, ainda mais novo do que Bridei? Esta pode ser a única oportunidade de uma vida inteira, Talorgen. Pode ser uma loucura deixá-la passar!

— Fola — disse Bridei, calmamente —, qual é a tua opinião?

— Consultas-me quando ainda nem sequer deste a notícia a Broichan, o teu mentor?

Bridei esperava aquela observação da mulher sábia. Deixar Broichan de fora de uma decisão tão importante como aquela não tinha precedentes; o monarca perguntou a si próprio se teria agido corretamente.

— Conhece-o. Sabes por quê. Sabes que é por causa da paixão que ele tem por ver Fortriu e Circinn reunidos na velha fé. Não duvides, nem nenhum de vós, de que eu partilho o mesmo sonho. Se me tivésseis perguntado nos primeiros dias do meu reinado se eu procuraria acrescentar Circinn ao meu reino à primeira oportunidade, imagino que teria dito que sim sem a menor dúvida. Se me perguntardes hoje, digo-vos que o que eu quero para Fortriu agora é a paz. Vivemos tempos de reconstrução, de reflexão.

— Está muita coisa em jogo aqui — disse Fola. — Sei que mandaste Faolan para o coração das terras dos chefes dos Uí Néill. Sei que uma parte da sua missão é conseguir informações sobre os clérigos cristãos que procuram instalar-se nas ilhas ocidentais. Interpreto-o como uma indicação de que não estás decidido a dizer-lhes que não, pelo menos enquanto o teu espião não regressar, o que pode acontecer apenas lá para a Primavera. Também sei que a tua atenção continuava virada para ocidente. Uma vitória estrondosa no campo de batalha não significa necessariamente a continuação da paz. Os Uí Néill serão sempre uma ameaça e tu fazes bem em mantê-la sempre presente na tua mente. Circinn também sabe quais são as tuas prioridades. O que sinto é que na Primavera o reino do sul já terá escolhido o seu rei sem se dar ao trabalho de incluir Fortriu no processo. Todos nós nos lembramos de Bargoit. Oficialmente, o homem é apenas um conselheiro, mas dirige os negócios de Circinn há anos. Ele há de andar à procura de um pretendente fraco para o poder manipular. Drust tinha irmãos, não tinha?

— Dois — disse Aniel, franzindo levemente o sobrolho. — Garnet e Keltran. Ambos muito parecidos com ele, mas bastante mais novos. Bargoit não vai ter grande dificuldade para os dobrar à sua vontade. Não sei dizer se foram ambos batizados, mas sei que continua a haver clérigos na corte de Circinn, apesar de Bridei me ter dito que o nosso velho amigo, o irmão Suibne, está para oeste neste momento.

— Embarcou antes do fim da estação na companhia dos chefes-de-guerra de Gabhran — disse Talorgen. — Viu-os partir pessoalmente. Para um homem de aparência tão inofensiva, o tal monge tem que se lhe diga.

Bridei sorriu, recordando com alguma ternura o clérigo cristão com o qual debatera assuntos de fé. Suibne era um homem que parecia estar em toda a parte.

— Foram as suas palavras que mandaram Faolan em busca do tal Colm, o monge que precisa de uma nova residência para lá das costas da sua terra natal — disse o Rei. — Posso não ter as mesmas convicções religiosas de Suibne, mas reconheço que ele é astuto e inteligente. Tomei as suas palavras como uma espécie de aviso. Agirei de acordo com o que Faolan me disser quando regressar. Fola, não respondeste à minha pergunta.

— Não posso responder. — A expressão da mulher sábia era severa. — Só te posso aconselhar a procurar a sabedoria dos deuses. Tenciono fazê-lo assim que sair daqui. Se receber alguma mensagem, serás o primeiro a tomar conhecimento dela. Bridei, eu vi as conseqüências ruinosas da guerra. Compreendo a tua relutância em colocares sobre os ombros mais este manto com as feridas ainda tão frescas na tua terra. Porém, muitos há que não têm o mesmo raciocínio. — disse ela, olhando de relance para Carnach. — Porque parece que no rasto desta grande vitória tens boas hipóteses de conseguir um voto vencedor. No entanto, Talorgen tem razão. Dalriada vai precisar da tua atenção. Não compreendo esta missão de Faolan, nem nunca compreendi. Nem compreendo que tenciones permitir que os clérigos cristãos consigam uma base de operações nas ilhas, arriscando-te a que Fortriu fique encurralado, com o tempo, entre dois fortes baluartes da nova fé. Broichan ficaria espantado.

— Pelas palavras de Suibne — disse Bridei —, este Colm é um exilado da sua própria terra; foi considerado desleal pelos chefes poderosos por ter interferido num conflito armado. O que ele quer é um santuário onde ele e os seus seguidores possam viver em paz. Lembro-me de como Drust, o Javali expulsou os druidas e as mulheres sábias das suas casas de oração em todo o Circinn. Se mostrar a mesma falta de respeito pelos que procuram apenas o amor dos seus deuses em paz, sejam eles quais forem, então não sou melhor do que ele.

— Hum! — disse Fola, céptica, perscrutando-o intensamente com os seus olhos escuros.

— Além do mais, o próprio Suibne disse que há eremitas cristãos nas Ilhas Pequenas e que não só são tolerados, como são bem-vindos pelo meu rei vassalo apesar da fidelidade do povo aos velhos deuses. Suibne salientou a contradição. Se recuso a Colm o seu refúgio, então, logicamente, tenho de expulsar a presença cristã nas ilhas do norte.

— Não subestimo os argumentos espirituais. — O ruivo Carnach tinha os punhos cerrados em cima da mesa. A agitação não era habitual nele porque era um comandante frio e experimentado. — Porém, não deves deixar passar uma oportunidade como esta, meu senhor Rei. A coroa de Circinn... Pela masculinidade de Guardião da Chama, prefiro candidatar-me eu próprio a ver um irmão de Drust assumir o poder no sul com Bargoit a sussurrar-lhe ao ouvido. Não percebo como recusais pensar no assunto. Que espécie de conselho é este? Pelos deuses, se Ged estivesse aqui, juntamente com todos aqueles que caíram ao serviço de Fortriu no Outono, sei o que diria. Tu és o nosso Rei, Bridei, o nosso chefe e a nossa inspiração. Chegou a tua vez. É tempo de fazer com que os dois reinos se transformem num. Tens grandes chefes-de-guerra, conselheiros sábios, pessoas capazes de dar a vida por ti. Podes muito bem segurar Dalriada e governar Circinn, tão bem como governas Fortriu. Consegues fazê-lo, Bridei. Tem fé. Agarra esta possibilidade! O fato de ela aparecer agora, logo depois de termos vencido uma guerra, só pode significar que o Guardião da Chama quer que não a largues.

Bridei olhou para as feições coradas do seu parente, nas quais havia um misto de ardor e frustração. Carnach era um dos seus mais leais e mais verdadeiros chefes-de-guerra, uma fonte de força imensa em tempo de guerra e um conselheiro astuto em tempo de paz, para além de ser um homem influente. Era essencial conservar a sua lealdade, para já não falar da sua amizade. O Rei sentiu, não pela primeira vez, a ausência de Faolan. Quem mais lhe daria uma opinião verdadeiramente honesta numa questão tão difícil como aquela?

— A tua fé em mim e no futuro emociona-me, Carnach — disse ele. — Acredita-me, eu não subestimo a capacidade dos chefes de Fortriu, nem o seu povo, quando se trata de um desafio. Ainda não tomei uma decisão em relação a esta questão. Vou seguir o conselho de Fola e procurar a sabedoria dos deuses. Sei o que os meus chefes-de-guerra diriam. A maior parte concorda contigo. Aproveita a vantagem, dir-me-iam. Também sei o que Broichan quereria.

— Não percebo por que razão não lhe deste a notícia — disse Fola. Não era exatamente uma censura. Nem a mulher sábia, que o conhecia desde criança, esquecia que estava na presença do Rei.

— Pensa um pouco — disse-lhe Bridei — e compreenderás por que não o fiz. Se decidir não me apresentar a esta eleição, ele achará que é uma traição, tanto estratégica como pessoal. Convoquei este conselho para saber se me candidato ou não ao reino de Circinn. Quero ter a certeza do vosso apoio antes de dar a notícia da morte de Drust a mais alguém, incluindo Broichan.

Seguiram-se uns momentos de silêncio. O alcance da ausência de Broichan era profundo. Como pai adotivo de Bridei e druida, tanto do velho Rei como do novo, Broichan fora fundamental para que o jovem se tornasse no rei perfeito de Fortriu: um rei que permanecesse profundamente fiel aos antigos deuses do norte, um rei dedicado à reunificação das terras dos Priteni à sombra da traição das mesmas divindades: o Guardião da Chama, Aquela que Brilha, a Mãe Ossuda e a bela Todas-as-Flores. E um outro deus, o qual Bridei honraria naquela noite, durante a sua vigília. Broichan agigantava-se nas suas mentes, uma figura poderosa que, ao longo dos anos, convocava sempre o seu próprio conselho secreto, no qual tinham estado presentes três dos presentes durante a juventude de Bridei. Nas suas memórias, o druida do Rei só uma vez se enganara.

— Decidas o que decidires, tens o meu apoio, Bridei — disse Talorgen. — Não me agrada o pensamento de entrar em conflito com Broichan, mas tenho confiança na tua decisão. As duas hipóteses têm vantagens e desvantagens. Os argumentos de Carnach são consistentes e ouvi-los-emos, sem dúvida, mais do que uma vez assim que a notícia da morte de Drust se espalhar. É provável que os teus chefes-de-guerra o apóiem.

— O meu apoio já está concedido — disse Aniel. — Se me põe em conflito com os meus colegas conselheiros e com o druida do Rei, paciência. Não será a primeira vez. Na seqüência da guerra, é provável que alguns homens ainda sintam o sangue quente e se sintam impelidos a escolher impulsivamente e a agir impensadamente. No que me diz respeito, uma questão de importância vital, como esta, deve ser cuidadosamente pensada e foi o que fiz. O meu voto vai para Bridei.

O Rei virou-se para Fola.

— Não olhes para mim — disse a mulher sábia. — Sabes que não tomo decisões à pressa. Vou consultar os deuses e tu farás o mesmo. Encontremo-nos novamente amanhã, para ver se vemos bem o caminho. Não nos tornemos inimigos uns dos outros. Carnach, compreendo o que te impele. Eu própria o sinto nos ossos e sei que Broichan pensa o mesmo. Só espero que não lhe destrocemos o coração.

— Broichan tem coração? — perguntou Aniel, levantando as sobrancelhas. — Intelecto, ambição e fé, sim. Porém, recordo-te a última vez em que ele quase nos falhou, a questão de Tuala, na qual a crueldade foi quase a sua perdição, para além dos nossos planos tão longamente pensados?

— Não discutamos isso agora — disse Bridei. — Carnach, pensas no assunto esta noite? Achas que poderás dizer mais qualquer coisa amanhã?

— Não vou mudar de idéias. Desculpa-me, mas seguir o rumo que estás a considerar será um erro monumental. Estou à espera de acordar a qualquer momento deste pesadelo, Bridei. Não acredito que está a acontecer.

— Tu és meu parente e o meu principal chefe-de-guerra — disse Bridei, calmamente. — Posso não seguir os teus conselhos em tudo mas, acredita-me, tomá-los-ei sempre em consideração. Não quero que esta questão nos divida, Carnach. Estou consciente de que, em grande parte, te devo o reino de Fortriu. O nosso país não se pode dar ao luxo de ter os seus chefes divididos.

Carnach não respondeu e levantou-se, pronto para sair. A sua expressão era ameaçadora.

— Muito bem — disse o Rei. — Vou começar a minha vigília. Vejo-vos a todos amanhã. Temos de tomar rapidamente uma decisão. Circinn vai agir durante o Inverno, de uma maneira ou de outra. Se quero contestar a eleição, tenho de despachar imediatamente um mensageiro para a corte do sul. Esperemos que os deuses nos dêem uma resposta.

Os outros saíram, excetuando o Rei, Fola e Garth, que continuava de guarda à porta.

— Tenho uma pergunta — disse a mulher sábia. O seu olhar era sagazmente calculista. — A tua relutância em envolver Broichan tem a ver com o seu estado de saúde precário? Estás a tentar evitar preocupá-lo, enviando-o assim para um declínio terminal?

Bridei suspirou.

— Tenho pensado no assunto, de fato. Ele regressou bastante melhor do tempo que passou contigo, mas continua fraco e sujeito a acessos de dor. Evidentemente, sendo o homem que é, ele não admite qualquer fraqueza.

— A notícia da morte de Drust tem de ser tornada pública dentro em breve. Então, Broichan vai perguntar-te o que tencionas fazer e tu vais ter de lhe dizer.

— Anunciaremos a morte de Drust, o Javali assim que regressarmos ao Monte Branco. Eu vou falar com Broichan, Fola. Se não concordarmos, paciência. É claro que ele vai ficar furioso se eu decidir deixar ir o reino do sul.

— Penso que furioso fica aquém da realidade.

— Acredita, até o Rei de Fortriu teme a confrontação. Tenciono apelar ao seu sentido lógico. Ele sempre aceitou melhor as más notícias se apresentadas coerentemente, apoiadas por bons argumentos. Sobreviverei a quem Circinn eleger. Sei-o no meu coração.

— Isso é um argumento de fé, não de lógica.

— Tenciono usar ambos.

— Tens outra ferramenta, se ela concordar — disse Fola. — Como sabes, a tua mulher é capaz de prever o futuro. Pede-lhe que veja o teu. Pede-lhe que investigue o futuro do teu reino. Vê se descobres se, daqui a dez, vinte, cinqüenta anos, Fortriu é um reino cristão. Essa é a visão que Broichan mais teme. Se deixas Circinn como está e se ao mesmo tempo convidas aqueles clérigos celtas para se instalarem nas ilhas ocidentais, podes estar a abrir a porta aos nossos piores receios, Bridei. Estás preparado para assumir a responsabilidade?

— Eu sou o Rei. Tudo é responsabilidade minha e neste momento o meu coração diz-me que precisamos de paz acima de tudo.

Fola, uma mulher pequena cuja cabeça dava pelo peito de Bridei, acenou com a cabeça e levantou-se. Os seus longos cabelos prateados brilharam à luz das lâmpadas.

— Muito bem, Bridei. Vou para as minhas preces e tu vai para as tuas. Vejo tempos sombrios, difíceis. É pena Faolan não nos trazer notícias antes da Primavera.

— É provável que no-las traga mais tarde do que isso. Para além da missão que lhe confiei, ele também tem assuntos pessoais a tratar.

— Ah sim?

— Assuntos de família dos quais não quis falar.

— O homem tem família? Espantas-me, Bridei. Sempre pensei que ele tinha nascido num canto escuro qualquer, já crescido e armado.

Bridei sorriu.

— Ele esforça-se por dar essa impressão, mas por baixo é humano. Cada vez me apercebo mais. Boa noite, Fola. Agradeço-te o teu conselho sensato.

— Agradece-me amanhã, depois de termos decidido todos. Boa noite, Bridei.

Em redor do Poço das Sombras corriam rajadas de vento gelado. No carreiro ardia um archote, no alto dos degraus íngremes que iam dar ao subterrâneo por baixo do monte de Caer Pridne. Garth mantinha-se de guarda para que ninguém perturbasse Bridei. A meio dos degraus estava deitado o cão branco, Ban, o leal companheiro do Rei de sempre, desde Pitnochie, ocasião em que o pequeno animal emergira de uma visão para a realidade. Ban não descera até ao poço. O local era demasiado sombrio, habitado por memórias inquietas e espíritos magoados; era o santuário do Deus sem Nome, uma divindade especial para os homens que fora sempre, ao longo dos anos, cenário de um teste cruel à sua lealdade. O velho ritual, no qual morria todos os anos uma jovem sacerdotisa, não era observado desde que Bridei, seis anos antes, ascendera ao trono de Fortriu. O Rei proibira a sua prática e como sabiam que ele era inabalável na sua devoção aos velhos deuses, os membros da sua corte e o seu povo tinham apoiado a decisão, se bem que com algumas manifestações de intranqüilidade. Em vez do sacrifício, o Rei e o seu druida levavam a cabo uma longa vigília de obediência na noite da Porta de Entrada.

Bridei faltara ao ritual na passagem da estação e fazia naquela noite a vigília para o compensar. O Rei ajoelhou junto da água negra com os braços abertos numa pose de meditação, habituado que estava às cerimônias druídicas já que fora educado e treinado por Broichan desde os quatro anos de idade. Bridei acalmou o ritmo da respiração e do coração e obrigou o corpo a ignorar o frio penetrante da câmara subterrânea. Afastar as recordações da mente, porém, era mais difícil; não conseguia visitar aquele local sem se lembrar do seu primeiro sacrifício durante o qual, para ajudar o velho Rei Drust, demasiado doente para desempenhar o seu papel no ritual, afogara uma rapariga.

Durante anos usara todos os argumentos, todos os fragmentos de tradição e história para se tentar justificar; sabia que o deus sombrio o tinha exigido; compreendia que, agindo daquele modo, ganhava o respeito de todos os homens presentes e, como resultado, o seu apoio quando se apresentasse como pretendente ao trono. Era um dilema; tais pensamentos tornavam-no desleal aos deuses e fora treinado desde a infância a acreditar que a lealdade era fundamental para a sua existência como homem. Bridei temia o deus O Que Não Tem Nome acima de todos os outros; receava que a temida retribuição aparecesse do nada e pensava saber como seria. Para o punir, o deus atingi-lo-ia através de Tuala, de Derelei e do filho que estava para nascer, roubando-me talvez a vida antes de ele ver o primeiro nascer do Sol. Sempre que se passava mais um dia, enviava uma prece de gratidão aos deuses que sentia mais favoráveis: o Guardião da Chama, guardião dos bravos e dos ilustres; e a Aquela que Brilha, que sempre o abençoara, a ele e a Tuala.

Bridei esperava que estivessem todos a escutá-lo naquela noite e que o ajudassem na decisão que ele sabia estar certa. O monarca também sabia que, para muitas pessoas do seu povo, a sua escolha parecer-lhes-ia um sinal de fraqueza, pouco de acordo com a sua reputação de chefe corajoso que reconquistara miraculosamente as terras perdidas de Dalriada seis anos apenas depois de ter iniciado o seu reinado. Sem o apoio do seu druida, sem a ajuda dos chefes-de-guerra influentes como Carnach, dificilmente convenceria o seu povo da necessidade de deixar passar aquela oportunidade e passaria a estar, aos seus olhos, a desobedecer temerariamente à vontade dos deuses.

Naquela noite não consideraria uma tal possibilidade. O Poço das Sombras era um local de obediência abjeta onde os homens poderosos se curvavam perante o deus que representava a parte mais sombria de cada um, um canto fechado e aferrolhado do espírito que albergava a vontade de destruir. Os homens mais nobres e mais justos sentiam as trevas quando ajoelhavam junto do poço, era um teste ao mais destemido dos corações.

Bridei fechou os olhos e começou a pronunciar as palavras rituais:

Respiro para as trevas...

Ana, princesa das Ilhas Pequenas, estava tranqüilamente sentada no tronco de uma árvore na floresta acima da casa do druida, em Pitnochie, à espera do seu noivo, mas não estava só: num ramo vizinho estava empoleirada uma gralha, vigilante, ao mesmo tempo que um trinca-nozes escarlate investigava o leito de folhas a seus pés. No outro lado da clareira montava guarda um grande cão cinzento. O seu tamanho formidável e o seu olhar perscrutador bastavam para deter o mais ousado dos atacantes. Preocupado com a segurança de Ana, Drustan tinha adquirido Nuvem a um agricultor do Vale e o cão caíra rapidamente escravo do encanto sedutor do seu novo proprietário, tal como as aves. Não, pensou Ana, escravo não era a palavra exata. Os animais de Drustan eram-lhe tão chegados que pareciam uma extensão da sua pessoa, sabiam instintivamente o que ele queria e o que lhes podia dar. Acontecia o mesmo, de certo modo, com ela. Havia uma certa inevitabilidade no seu amor por ele; todo o seu ser se agarrara a ele assim que o vira.

Drustan continuava a não querer mostrar as suas capacidades in-vulgares a outros, apesar de estar já há algum tempo com Ana em casa de Broichan e de saber que os rendeiros do druida eram de inteira confiança. Por tal razão o cão em vez de um homem de armas. A liberdade era uma coisa nova para Drustan, que passara os últimos sete anos fechado. Os poucos dias fora da prisão tinham sido um presente do seu generoso carcereiro, Deord. Agora podia sair à vontade e exercitar as suas capacidades especiais sem medo de ser punido, mas continuava a não querer partilhar com ninguém, exceto com Ana, o que era capaz de fazer. No Outono mandara uma mensagem ao Rei Bridei, no calor da batalha, o que queria dizer que em Pitnochie já toda a gente sabia a verdade sobre ele porque os seus dois carcereiros estavam presentes no campo de batalha quando Drustan interviera para salvar a vida do Rei. Felizmente, as pessoas da casa de Broichan eram discretas e continuaram com as suas vidas. Os longos anos na casa do druida tinham-nas tornado adaptáveis.

Ana suspirou e o pequeno som fez com que o trinca-nozes lhe subisse para a mão, leve como uma pena. O pequeno pássaro agitou as penas, alisando-as. A gralha saltou no ramo, virando a cabeça para um lado. Nuvem ganiu.

— Daqui a pouco ele está aqui — murmurou Ana. — Suponho que é um pouco aborrecido para vós esperar aqui comigo, mas ele não gosta que eu esteja completamente sozinha na floresta. — A jovem sorriu para si própria; provavelmente, nenhum deles entendia o que ela estava a dizer, entendiam apenas a mente de Drustan. Este conseguia ver-lhes através dos olhos e dava-lhes instruções que eles seguiam à risca. Ana observara-os durante a viagem que fizera no Verão anterior. Os pássaros tinham-na protegido e tinham-na ajudado a encontrar o caminho.

Os seus pensamentos foram para Faolan, companheiro e amigo da tal viagem, que partira para uma nova missão. Ana partira-lhe o coração ao apaixonar-se por Drustan e só se apercebera quando ele a forçara a explicar-se durante a fuga desesperada através das terras selvagens dos Caitt. A jovem tinha muitas saudades dele e sabia que Drustan também tinha. O seu lugar nas suas vidas era único. Não havia palavras que o descrevessem.

A jovem pôs de parte o se ao menos; amava Drustan, eram os dois felizes e tinha notícias que o tornariam ainda mais feliz. Faolan, porém, era um remorso constante. A partida do Monte Branco parecera destroçado, desesperado, como se não se pudesse fazer nada. Ana rezou para que o seu regresso a casa o ajudasse a encontrar um caminho, mas o seu coração estava cheio de dúvidas. A jovem conhecia a história sombria do seu passado, sabia o que ele poderia encontrar.

— O problema — murmurou ela para os pássaros — é que fui eu que o obriguei a partir. Se as coisas correrem mal, serei eu a responsável. Espero que esteja bem. Não suporto que se sinta infeliz.

Se o trinca-nozes ou a gralha pensaram alguma coisa do assunto, não pareceu porque a sua atenção virou-se para um restolhar de penas e uma perturbação do ar. Uma ave maior entrou na clareira, aterrando no cepo de uma árvore e dobrando perfeitamente as suas asas acastanhadas. Ana prendeu a respiração; nunca se habituara àquela maravilha por mais que vivesse e deixou-se ficar calmamente sentada à espera do momento da mudança. No espaço de um segundo o falcão transformou-se num homem alto de olhos brilhantes e cabelos encaracolados castanhos, como as luzidias penas da ave. Drustan atravessou a clareira e sentou-se ao lado dela com as longas pernas estendidas na sua frente. Nuvem aproximou-se com a cabeça baixa e a cauda a abanar cuidadosamente, dedicado mas indeciso. Ana estendeu um braço para pegar na mão do noivo, que tremia violentamente. A jovem não disse nada, limitou-se a esperar e, uns momentos depois, os tremores abrandaram e pararam. Drustan debruçou-se para a beijar numa face, levantou-se e começou a espreguiçar-se, tentando ultrapassar a exaustão e a confusão geralmente associadas ao regresso à forma humana. As cores regressaram-lhe normalmente ao rosto.

— Tudo bem? — perguntou Ana, tranqüilamente.

— Daqui a pouco. Desculpa se estive ausente muito tempo.

— Não faz mal. É bom ter algum tempo para pensar e Nuvem tomou perfeitamente conta de mim. Tenho a certeza que conseguiria afastar qualquer intruso.

— Estavas a pensar em quê? Vem, já posso andar. Vamos para casa.

— Em Faolan — disse Ana, sobriamente. — Estava a perguntar a mim própria onde ele andará e o que anda a fazer. A sentir-me culpada por mandá-lo para casa, apesar de saber que ele precisava de ir para resolver muitas coisas pendentes.

Os dedos de Drustan afastaram-lhe gentilmente uma madeixa dos olhos.

— Não devias atormentar-te com isso, Ana. Ele foi-se embora. Eu também tenho saudades dele, mas a decisão foi dele. Ele é que preferiu ir-se embora porque o magoa ver-nos juntos. Faolan sentia-se desolado, sim, e confuso, mas é um homem e bastante competente, mais do que a maioria. A sua viagem não será em vão.

— Suponho que tens razão. — Ana aceitou a mão que Drustan lhe oferecia ao atravessarem uma cerca que dividia o bosque de uma pastagem. — Mas não estava a pensar apenas nele.

— Ah não? — Drustan passou elegantemente a cerca com um salto, persuadindo um cauteloso Nuvem a fazer o mesmo.

— Sim, tenho uma coisa interessante para te dizer, meu amor — disse Ana, parando de andar e pegando-lhe nas duas mãos. — O meu período está atrasado dez dias. Não é nada habitual. Penso que vamos ter um filho.

Os olhos de Drustan brilharam de esperança e surpresa, refletindo na perfeição o que lhe ia no coração. Um momento mais tarde um sorriso animava-lhe o rosto, recordando a Ana as razões porque o amava tanto. A jovem pôs Faolan de lado. Não podia fazer nada pelo seu amigo, salvo desejar-lhe forças para continuar.


CAPÍTULO TRÊS

 

A chuva acompanhou Faolan até ao cruzamento onde teria de escolher uma direção, mas Deord introduziu-se nos seus pensamentos, forte e sereno como carcereiro de um prisioneiro solitário e privilegiado; decidido, depois de Pedra-que-Quebra, a manter aquele cativo erradamente aprisionado a salvo do seu próprio irmão e de si próprio; lutando, no fim, uma batalha heróica e morrendo para que Faolan, Ana e o notável Drustan pudessem fugir. De certa maneira tinham vingado a sua morte. O irmão cruel fora executado às escondidas na floresta. A sua morte nunca seria tornada pública e ficara a dever um pouco a cada um deles: ao próprio Faolan, a Drustan e a Ana. Ana, que Faolan amava, Ana, que casaria com Drustan assim que o braço direito do Rei Bridei regressasse a Fortriu.

Faolan continuou a caminhar penosamente com o capuz puxado para os olhos e as botas ensopadas. O dilúvio continuava. Toma uma decisão, disse ele a si próprio. Oeste ou norte? Encruzilhada do Rabequista ou Colmcille? A sua mente, porém não parava de pensar em Deord e na sua filha. Havia algo de errado. Não era apenas a sujidade e a pobreza, o olhar derrotado de Anda e a trêmula provocação de Eile. Havia algo mais, uma sensação de maldade que o impedia de seguir em frente mesmo depois de lhes ter pago generosamente e de lhes dizer com a maior das franquezas o que pensava do estado lamentável de Eile. As suas prioridades eram evidentes: primeiro a sua própria filha, a pequenina silenciosa, bem alimentada e limpa, em comparação com a jovem esfomeada de cabelos desgrenhados e unhas sujas e roídas.

Faolan não conseguia deixar de pensar nos seus olhos assustados e nas suas palavras corajosas, no seu amor evidente pelo pai, apesar de escarnecer do seu último abandono cruel. Maldição! Dera-lhes a prata, provavelmente mais do que devia porque assim que ele saísse esbanjá-la-iam, não gastando uma única moeda no bem-estar de Eile. Tinham-no tornado claro e tinham ficado satisfeitos ao vê-lo pelas costas. Não podia fazer nada.

Devias ter-te esforçado mais, disse Faolan a Deord mentalmente. Devias ter regressado mais uma vez a casa antes de a tua mulher ter desistido. Tu eras forte. Se alguém era capaz eras tu. É claro que não estava a ser justo. Ele, Faolan, era o último homem a poder censurar outro por não conseguir encarar os seus demônios. Não fugira da sua aldeia para nunca mais voltar? Naquele momento estava apenas a alguns dias de distância de Encruzilhada do Rabequista e a arranjar todo o tipo de desculpas para não percorrer os quilômetros que faltavam. Iria até à costa norte para tentar encontrar o irmão Colm, primeiro, em vez de atravessar um ou dois vales e um rio ou dois para visitar a terra onde tinha nascido; o local onde, na juventude, matara o seu amado irmão mais velho e lançara uma maldição que nunca poderia ser levantada sobre a própria família. Dubhán, Dubhán... Faolan sentia, até naquele momento, o sangue escarlate a escorrer-lhe pelos dedos. Depois de tantos anos, continuava a sentir a faca nas mãos.

Perdido nas brumas do passado, Faolan continuou, praticamente inconsciente do que o rodeava. Ao anoitecer abrigou-se num alpendre arruinado onde a palha estava úmida e a desfazer-se. Como a chuva continuasse a cair, não podia fazer uma fogueira. Além do mais, tinha cedido a maior parte das suas provisões, ficando apenas com um pedaço de pão seco e um bolo de cevada duro que mastigou distraidamente, olhando para o abrigo rudimentar e pensando no rio que teria de atravessar e na ponte que tinha caído. Depois da última Primavera, Faolan tinha boas razões para ter cuidado com as passagens a vau. Se virasse para norte no cruzamento, não precisaria de o fazer, mais uma razão para não ir para casa.

O seu sono foi irregular. Faolan estava habituado a condições rudes, podia continuar com poucas provisões e pouco descanso. Aquela noite, porém, era diferente. A sua mente andava à roda. A desgraçada Eile naquele casebre; Encruzilhada do Rabequista e tantas perguntas sem resposta. O seu aparecimento só provocaria mais dor à sua família. Podia ter acontecido muita coisa durante a sua ausência. Podiam estar todos mortos. Podiam ter abandonado a aldeia, incapazes de continuar a viver num sítio onde tanta coisa de mal tinha acontecido. Além do mais, os seus pais tinham-no banido, tinham-no posto fora de casa depois do que ele tinha feito. O que Echen o obrigara a fazer para salvar os restantes. Não, não era verdade. Echen não o obrigara a fazer fosse o que fosse. Dera-lhe a escolher. Um homem tem sempre por onde escolher. Vai por aqui ou vai por ali. Para norte ou para oeste. Mata o teu irmão ou vê a tua família morrer, e ele com ela. Echen nunca pensara que o jovem bardo seria capaz de o fazer; ficara tão espantado como os restantes quando o rapaz enterrara a faca na garganta do irmão. O chefe-de-guerra Uí Néill pensara que Faolan não teria coragem de o fazer.

Então, Echen quebrara a sua promessa; levara Áine, ainda criança, para seu próprio prazer e dos seus homens, naquela noite. A pequenina não poderia, nunca, ter sobrevivido. Faolan também carregava a sua morte nos ombros. O seu pai tinha-o proibido de ir atrás dela para a tentar socorrer. Faolan podia ter ficado a odiá-lo, se o seu coração não estivesse já entorpecido. Talvez não fosse de estranhar o fato de ter conseguido, mais tarde, sobreviver a Fenda da Pedra-que-Quebra. Depois daquela noite, quaisquer outras crueldades eram insignificantes. E parecia que Echen tinha morrido. A possibilidade de vingança esboroara-se. Para quê, então, regressar?

Pelos deuses, era intolerável. Faolan agitou-se na palha úmida, tentando acomodar o joelho dolorido. A sua perna nunca mais fora a mesma desde o ferimento, no Outono, quando lutara com uma matilha de lobos em território Caitt. A longa jornada de regresso ao Monte Branco fora o toque a finados para o membro ferido, o que o irritava. Faolan queria ser ele próprio outra vez, rapidamente, forte, sempre pronto, sem pensar no passado, concentrado apenas na missão de Bridei e como levá-la a cabo. A culpa era de Ana, conseguira arrancar-lhe a história de Encruzilhada do Rabequista, uma história que nunca contara a ninguém; amolecera-lhe o coração endurecido e acordara-o para uma dor, um amor e uma esperança impossível. Maldita; nunca quisera aquilo. Fora sempre muito mais fácil fazer de conta; ser um homem sem passado, desprovido de sentimentos. Não fora Ana e nunca teria consentido em regressar a Encruzilhada do Rabequista. O homem que era antes teria entregado a bolsa de prata à família de Deord e ter-se-ia esquecido imediatamente dela.

Mas não. A sua mente via a imagem da irmã arrastada pelos guerreiros de Echen e a de Eile com os seus grandes olhos e a forquilha nas mãos. O cão; a criança; a mãe pendurada de uma árvore; e Eile a dizer que era adulta desde os doze anos. Havia ali algo de errado naquilo tudo, muito errado mesmo.

A manhã chegou e a chuva amainou. Talvez fosse apenas até ao priorado e perguntasse às irmãs se estavam dispostas a receber uma órfã caso um presente generoso permitisse melhorar os encantos da sua casa de oração. O fato de ele próprio não ser um homem de fé não faria diferença se o suborno fosse suficientemente grande. Evidentemente, o caminho levá-lo-ia mais para oeste do que queria. Quando mais perto estivesse de Encruzilhada do Rabequista, mais probabilidades tinha de alguém o encontrar e somar dois mais dois. Assim que a notícia se espalhasse, teria de ir até à aldeia para ver o seu pai, se ainda lá vivesse, ou se ainda estivesse vivo. A perspectiva de o encarar de novo gelava-lhe o coração e o estômago apertava-lhe. Ele, espião e assassino de dois reis de Fortriu, sentia-se tão aterrorizado como uma criança em frente de um animal selvagem. Na verdade, não sabia se seria capaz.

Na tarde do dia seguinte chegou ao cruzamento. Ainda restavam algumas horas de luz; podia ir para oeste, até ao rio, dar-lhe uma olhadela e decidir se iria até ao priorado ou se seguiria para norte, para longe da província de Laigin. Fazer um desvio para falar com as irmãs por causa de Eile não o obrigava a fazer o caminho até casa.

Faolan ajeitou a trouxa e escolheu o caminho que seguia para oeste. Quanto mais andava, mas a paisagem lhe parecia familiar. Como aprendiz de bardo, nos primeiros dias, viajara muito, tocando em feiras e casamentos, nas praças das aldeias e nos salões dos chefes-de-guerra. Conhecia aquele monte em forma de cone, aquele bosque de ulmeiros, aquela barreira de faias com uma confusão de ovelhas à sua sombra, abrigadas contra o vento. Era apenas uma questão de tempo até alguém o reconhecer.

O rio corria, tormentoso. A ponte pedestre perdera algumas pranchas no centro, onde a corrente era mais turbulenta. O espaço era, talvez, de dois passos largos; qualquer homem em boas condições físicas, que gostasse de correr alguns riscos, era capaz de passar, mas qualquer outro, mais cuidadoso, sabia que era uma demonstração de imprudência. No outro lado estavam dois homens, um deles com uma corda na mão.

Faolan avançou até ao último pilar, onde as pranchas acabavam, formando uma borda recortada.

— Precisais de ajuda? — gritou ele.

— Não conseguimos as pranchas senão amanhã — gritou um deles. — Vamos lançar uma corda, por agora, se conseguirmos. Manter o conjunto ligado até podermos fazer um trabalho como deve ser.

Podia, portanto, tornar-se útil já que a presença de um homem no outro lado para agarrar e prender a corda era essencial para o processo. A conselho de Faolan, os dois homens utilizaram duas cordas, atando-as ao corrimão e ao pilar para que, se um homem quisesse atravessar, pusesse um pé ao longo da inferior e se agarrasse à superior. Os nós pareciam seguros, mas Faolan não confiava nas pranchas velhas.

— Vais atravessar para o lado de cá? — perguntou-lhe um dos homens por cima das águas turbulentas, semicerrando os olhos.

— Não tenho pressa. Vou esperar até que arranjeis algumas tábuas. Há algum abrigo por perto?

— Tenta a velha cabana do barqueiro mais acima, por baixo dos salgueiros. Pelo menos é seca. Como te chamas e para onde vais?

Faolan fez de conta que não tinha ouvido.

— Obrigado. Dou-vos uma ajuda com as tábuas amanhã — disse ele.

— Hei! — gritou o segundo homem. — Por acaso não és da família do juiz de Encruzilhada da Rabequista? Conor Uí Néill? Fazes-me lembrar um homem que viveu por estes lados há muitos anos.

Faolan virou a cabeça para que eles não lhe vissem a expressão.

— Nunca ouvi falar — disse ele, esforçando-se por manter um tom casual. — Vou procurar a tal cabana — concluiu ele, afastando-se rapidamente antes que os dois homens lhe fizessem mais perguntas.

Antes de chegar à cabana do barqueiro, uma súbita fadiga, conjugada com o que o homem da porta lhe dissera fortuitamente, começou a apoderar-se dele. A perna voltara a doer-lhe e tinha a mente invadida por uma mistura desconfortável de alívio profundo e recordações indesejáveis. Tinha tempo de regressar ao cruzamento e dirigir-se para norte. Como na sua profissão não se podia dar ao luxo de cometer erros, calculara tudo cuidadosamente. Podia chegar a Derry antes do escurecer, ultrapassando assim Encruzilhada do Rabequista e a família de Deord. Não teria nunca de dizer a ninguém que o juiz, Conor Uí Néill, era seu pai e que a história mais negra daqueles lados era a sua. Podia partir, tranqüilizado pela notícia de que o seu pai ainda era vivo, sem ter de o enfrentar e ver a desolação nas suas feições. Subitamente, porém, o cruzamento parecia-lhe longínquo e a perspectiva de dormir numa cabana, onde provavelmente havia uma lareira para se poder secar, soou-lhe notavelmente atraente. Além do mais prometera ajudar na ponte. Faolan virou-se para montante, para os salgueiros.

As árvores tinham as raízes na água e ele gostou de ver que a pequena construção de pedra e telhado de colmo escuro estava construída mais acima, acima de uma provável cheia. Não estava ninguém em casa. O local parecia desabitado porque não havia uma única peça de mobília. O interior estava seco e havia alguma lenha junto da lareira, o suficiente para durar até ao dia seguinte. Uma busca no alpendre perturbou uma colônia de ratazanas. Faolan encontrou uma pilha de sacos, um balde e uma panela enegrecida.

Depois das duas noites anteriores, era um luxo. Faolan acendeu a lareira e aqueceu água. Como ainda lhe restava metade do bolo de aveia, meteu-o na água para fazer uma espécie de sopa e bebeu a mistura sentado junto do fogo, olhando pela janela na direção da ponte até o crepúsculo se espalhar pelos campos. O rio marulhava-lhe aos ouvidos, mas pelo menos veria quem se aproximasse por aquele lado. O som da água enervava-o, fazia-o recordar um sítio chamado Vau Partida, onde quase se afogara. Ana salvara-o. Ana... Faolan viu-a de pé à janela com o Sol a iluminar-lhe as feições, a dourar-lhe os cabelos e o corpo através do gracioso vestido bordado... o vestido de casamento... Graças aos seus esforços, Ana não casara com aquela besta do Alpin, mas ia casar-se com Drustan, um homem a todos os títulos certo e merecedor.

Faolan bebericou um pouco da mistura, tentando afastar Ana do pensamento. Ana era uma princesa e ele era um guarda-costas, um espião, um assassino. Nunca poderia casar com ela. A sua mente aceitava-o perfeitamente. Porém, era uma pena o seu coração não fazer o mesmo.

Assim que julgou que era demasiado tarde para que qualquer passante visse a luz da lareira e decidisse incomodá-lo com uma coisa qualquer, Faolan estendeu-se para dormir. O assassino transportava consigo uma boa quantidade de prata escondida aqui e ali e apesar de ser muito bem capaz de se defender, não queria atrair as atenções, magoando ou matando alguém suficientemente louco para tentar roubá-lo. Faolan pousou a cabeça na trouxa e agarrou na faca; a arma que dera a Eile era apenas uma de muitas. Os sacos pouco ajudavam ao desconforto do chão de terra, mas o fogo aliviou-lhe o cansaço.

Não percebeu bem o que o acordou: ou o luar, infiltrando-se depois de a chuva ter parado, o grito áspero de uma ave noturna ou a necessidade desenvolvida ao longo dos anos de estar sempre um passo à frente dos problemas. Faolan levantou-se em silêncio com a faca em riste, dirigiu-se para a janela e espreitou para a obscuridade para lá dos salgueiros. Nada se mexia; tudo o que ouvia era o marulhar permanente do rio. No entanto continuava inquieto. Algo... algo estava errado. O assassino voltou a perscrutar a escuridão na direção da ponte e dessa vez pensou ter visto um movimento, uma silhueta escura na erva. Provavelmente uma ovelha ou uma cabeça de gado a vaguear pela margem. Ainda bem que tinha conseguido aquele abrigo. Se se aventurasse a sair ainda acabaria por dar de caras com o touro premiado de um agricultor qualquer. Era melhor deitar-se, por todas as razões e mais uma.

Outra vez, um movimento leve, demasiado rápido para ser feito por uma cabeça de gado. E uma silhueta junto da ponte. Faolan sentiu um arrepio na espinha. Não tinha nada a ver com o assunto; não tinha qualquer razão para interferir. O bom senso dizia-lhe para não fazer nada, mas o instinto disse-lhe para meter a faca no cinto, calçar as botas, vestir a capa e encaminhar-se para a ponte ao longo da margem.

Podia ver até onde a barcaça costumava ir. Havia um molhe arruinado, quase todo submerso, e um par de cordas puídas. Faolan agradeceu o luar. Um passo em falso e seria levado pelo rio antes de ter tempo de prender a respiração. Já tinha passado pelos salgueiros com as raízes metidas na água, como ninfas de cabelos longos molhados. Na sua frente via a silhueta sombria da ponte danificada a erguer-se das águas as quais, à luz do luar, pareciam um caldeirão a ferver.

Um som súbito: um latido alto, rouco, um aviso histérico. Um momento mais tarde Faolan via de novo a silhueta, encapuzada e transportando aparentemente às costas uma trouxa, a pisar cuidadosamente as pranchas da ponte, passo a passo. Estava alguém a tentar atravessar para o outro lado.

— Alto! — gritou ele. — Alto! A ponte caiu! — Mas a silhueta continuou a avançar com uma mão ligeiramente apoiada no corrimão e com a outra aberta, procurando equilibrar-se. Era evidente que o homem acabaria por ver que as pranchas tinham desaparecido e que só havia duas cordas que permitiam uma travessia perigosa à luz do dia, quanto mais à noite. — Alto! — Gritou Faolan, desatando a correr, consciente de que não estava a ser ouvido. O barulho do rio abafava-lhe a voz. O assassino correu com o coração na boca. Ao aproximar-se da ponte, a silhueta chegara ao ponto onde Faolan atara a corda e parou, agarrando-se ao corrimão com as duas mãos. Graças a tudo o que era sagrado, o homem tinha visto a falha a tempo e era evidente que recuaria. Faolan pensou que iria partilhar o abrigo e o calor da lareira.

O cão latiu outra vez e o assassino, finalmente, viu-o, uma coisa cinzenta escanzelada com os olhos postos na figura hesitante junto das cordas. Faolan praguejou. Quando o animal virou os olhos inquietos para ele, o assassino viu a figura na ponte a pôr as duas mãos na corda superior e estender um pé para a inferior, oscilando violentamente. O homem — ou a mulher — queria atravessar.

Faolan lançou-se pela ponte fora, rezando a uma qualquer divindade que estivesse à escuta. Que eu consiga chegar lá a tempo, que ela se agüente, que esta ponte miserável não se desmorone sob os meus pés... O assassino chegou à falha lascada e conseguiu não olhar para baixo. Eile estava um pouco mais longe, agarrada às cordas, demasiado longe para a poder puxar. O seu coração gelou. Puxá-las. A rapariga levava a pequenina, Saraid, de cavalinho, segura com um pano.

Depressa, mas não demasiado e não demasiado alto. Se a assustasse, cairia. Se pousasse um pé na corda, o resultado seria provavelmente o mesmo.

— Eile — disse ele, erguendo a voz um pouco para que ela o pudesse ouvir por cima do barulho da água — estou aqui. Faolan, lembras-te? Volta para trás. Tenho um abrigo e uma lareira para ti. Traz Saraid contigo. Se queres atravessar, eu levo-te amanhã.

A rapariga imobilizou-se. Faolan não fazia idéia do que ela faria a seguir: obedecer-lhe e recuar — oxalá — tentar continuar ou largar a corda e deixar-se cair. Tanto ela como a criança morreriam; o rio levá-las-ia antes de ele conseguir chegar à margem.

— Eile? Só estás afastada alguns passos. Recua um pouco e eu agarro-te. Não é seguro atravessares a ponte de noite. — Era uma maneira de pôr a questão; pranchas podres, pilares suspeitos e só o luar para guiá-la. A rapariga era completamente maluca.

Eile, oscilando um pouco na corda inferior e agarrada à superior com ambas as mãos, exclamou:

— Tenho medo. — A voz era a de criança.

Não olhes para baixo, ordenou Faolan a si próprio. Lembra-te, isto não é Vau Partida.

— Eu vou ter contigo — gritou ele. — A corda vai mexer-se quando eu lhe puser o pé em cima. Agarra-te bem. Pronta? Cá vou.

Deord, pensou ele, nunca pensei que seria tão difícil pagar a tua generosidade. Gostaria muito que tivesses ensinado à tua filha um pouco de bom senso. Faolan posou um pé na corda e Eile procurou não perder o equilíbrio quando a corda acusou o peso. Estendendo a mão na direção dela, o assassino conseguiu colocar-se por baixo da rapariga com os pés ao lado dos dela e com as mãos agarradas à corda, fazendo de escudo ao seu corpo e ao da criança que ela transportava às costas. Deuses, se fosse uma rapariga no meio daquilo tudo, estaria a gritar de medo. Saraid não emitia um som; à luz do luar ele viu-lhe o rosto pequeno e pálido e os olhos grandes. Eile ofegava. O seu corpo magro estava rígido de terror. Faolan não conseguia perceber como, ou porquê, ela começara a atravessar o espaço sem pranchas. O rio corria por baixo dos seus pés, zangado.

— Agora — disse Faolan, tentando manter um tom calmo — vamos recuar juntos, passo-a-passo. Quatro devem bastar. Pensa na lareira; pensa que vais ficar quente e seca. Pronta? Um... dois...

Assim que se viu em cima das pranchas, Eile afastou-se dele e desatou a correr para a margem.

— Cuidado — disse-lhe Faolan, correndo atrás dela — Ainda podes cair. Espera por mim.

O cão desatou a saltar e a brincar freneticamente quando Eile saiu da ponte. A rapariga estendeu uma mão para se apoiar no pilar mais próximo. Faolan sabia como ela se sentia; ouvia-a a respirar, asperamente e aos solavancos, como se fosse chorar a qualquer momento. O assassino não sabia o que estava por trás daquilo, mas era uma fuga louca, ainda por cima com a pequena prima a reboque. A tia dela devia estar aterrorizada. Em que estava Eile a pensar?

— Já estamos bem — disse ela, tentando um tom agressivo. Faolan, porém, viu que ela tremia e só desejava que a pequenina emitisse um som qualquer. O seu silêncio enervava-o.

— Quanto a mim não posso dizer o mesmo — disse ele. — Vamos. As perguntas ficam para mais tarde. Não tenho comida, mas como te disse tenho uma lareira. Segue-me. Consegues? — acrescentou ele, olhando para a criança, um peso substancial, certamente, para uma rapariga tão pequena como Eile.

— Conseguimos perfeitamente! — replicou a rapariga, instantaneamente.

Faolan, evitando fazer mais qualquer comentário, só esperava que ela não desaparecesse antes de descobrir o que ela estava a preparar. Mudara de idéias em relação ao priorado, supunha, e decidira segui-lo. Mas porquê a criança? Saraid pertencia a Montanha Nublosa e aos pais. O assassino sentiu-se desanimar. Ia ter de levar as duas a casa na manhã seguinte, ou mandar Eile para junto das freiras e devolver a pequenina à mãe e ao pai. Obrigado, Deord. Suponho que já percebeste que tenho pouco talento para ama.

No interior da cabana, Faolan baixou-se para avivar o fogo e deitar-lhe mais lenha. Quando se levantou, viu que Eile não se tinha mexido; estava imóvel com os braços em volta do corpo e com a criança ainda de cavalinho.

— Eu ajudo-te — disse ele, aproximando-se para desatar o pano que segurava Saraid.

— Não lhe toques! — rosnou ela. Subitamente, a ponta de uma faca estava diante do seu rosto. A rapariga era rápida.

Faolan recuou um passo, ergueu as mãos com as palmas abertas e olhou para ela. A faca era a que tinha deixado em casa dela. A lâmina brilhou à luz da vermelha, encarniçada. A mão de Eile, agarrada ao punho, tremia. Umas lágrimas silenciosas começaram-lhe a cair pelas faces sujas da jornada, deixando rastos. Nas suas costas uma voz fininha, muito educada, disse:

— Para baixo, por favor?

— Eu não a magôo, nem a ti — disse ele, calmamente. — Deixa-me desatá-la. Estão ambas geladas e cansadas. Sentem-vos à lareira, descansem e recuperem.

Faolan estendeu os braços lentamente para desatar o nó e Eile deixou-o, baixando a arma e continuando a tremer enquanto ele libertava Saraid. A criança, rígida, atirou-se para cima dos sacos e enroscou-se neles como um animal selvagem, apertando contra o peito uma boneca de trapos toda deformada, pouco mais do que um pequeno saco de pano com dois olhos escuros de lã.

— Dá-me a faca, Eile — disse ele. — Já não precisas dela. Eu era amigo do teu pai. Eu protejo-te.

Eile levantou uma mão para limpar as lágrimas com ar zangado e com a outra estendeu-lhe a faca.

— Que aconteceu, Eile? — perguntou ele. — Que... — Faolan calou-se abruptamente. A rapariga tinha desatado a capa e tinha-a deixado cair no chão. Por baixo, desde o pescoço até aos joelhos, a frente do vestido estava toda manchada de escuro.

— Temos de fugir — murmurou ela, olhando de relance para a criança. — Temos de fugir para longe antes que eles nos descubram.

— Estás ferida! Que aconteceu?

— Estou bem. — O queixo levantou-se; os olhos desafiaram-no a ter pena dela. Por trás dela o cão, que estivera até então à entrada com a cauda entre as pernas, avançou furtivamente até à lareira e como não ouvisse qualquer reprimenda, instalou-se ao lado de Saraid. — Mais tarde — acrescentou Eile, mostrando com o olhar que não daria mais explicações na presença da pequenina. — Ela tem fome. Não tens mesmo nada que se coma? — A rapariga, com grande força de vontade, tinha as lágrimas controladas.

Faolan não conseguia tirar os olhos do vestido puído. Era sangue, era evidente que sim, mas não era dela. Quem colorira aquele trapo primeiro de carmesim e depois de castanho, devia estar morto.

— Absolutamente nada — disse ele distraidamente, perguntando a si próprio se iria acordar daquele sonho improvável. — Dei quase tudo o que tinha e comi o restante há pouco. Não estava à espera de hóspedes.

Eile acocorou-se por trás de Saraid, estendeu a mão para um pequeno saco preso ao cinto da pequenina e tirou um minúsculo pedaço de pão e uma fatia de queijo ainda mais minúscula. O que era suposto ser um pequeno-almoço, durara dois dias inteiros e Faolan desconfiava que Eile pouco tinha comido. Os olhos indistintos de Saraid iluminaram-se. A pequenina agarrou com uma mão na boneca e com a outra na comida.

— Come devagar, Esquilo — disse-lhe Eile. — Não tenhas pressa.

— E tu? — perguntou Faolan, vasculhando o seu próprio saco.

— Eu não tenho fome.

— Quando tempo pensas que agüentas, a dar tudo o que tens? Pensas que consegues viver do nada? Estás pele e osso.

— Por acaso és meu pai? Já disse que estou bem. Por que nos impediste de continuar? Não podemos ficar aqui.

— Sabes — disse ele, encontrando o que procurava — Deord era um homem de inteligência considerável; gostava de arriscar, certamente, mas era um homem prático. Surpreende-me ver a filha dele a agir de maneira tão irrefletida. Espanta-me o fato de teres trazido a criança contigo. Provavelmente ainda não te apercebeste que estiveste quase a morrer afogada, tu e Saraid.

— Teríamos conseguido.

— Disparate. Estavas petrificada de terror. Não penses que me enganas. Nem um homem teria atravessado aquela ponte de noite. Toma — disse ele, estendendo-lhe a roupa que tinha tirado do saco. Estava a tornar-se um hábito dar as suas camisas e as suas calças a mulheres em dificuldades. A imagem de Ana apareceu-lhe na mente, vestida com o que ele tencionava usar como emissário do Rei a Alpin dos Caitt. O traje masculino tornara a sua princesa mais mulher do que nunca.

— O que é isto? — perguntou Eile, desconfiada.

— Vás para onde fores, e espero que me faças o favor de mo dizer em seu devido tempo, não podes usar esse vestido. Veste isto, enrola as calças ou faz o que for preciso para que te sirvam. E aconselho-te a atirares o que estás a usar para o fogo.

Eile abriu na sua frente a camisa de linho e as calças de lã de boa qualidade.

— Isto é bom de mais — disse ela em tom monótono. — Não posso usar isto. — As roupas agitaram-se nas suas mãos. — E se queimo as minhas roupas, não te posso devolver estas.

— Eile — disse Faolan, quase a perder a paciência — limita-te a vesti-las, está bem? Eu viro as costas, se quiseres. Ou vou lá para fora, mas por favor despacha-te. Está frio.

Saraid tinha terminado a sua miserável refeição e estava a encostar-se ao cão com os olhos quase a fecharem-se. Eile pegou na capa que deixara cair no chão e tapou a criança com ela. A ternura do gesto apanhou Faolan de surpresa; aquela rapariga era uma contradição permanente.

— Vai lá, então — disse-lhe ela com voz cortante.

Faolan saiu, fechou a porta e pôs-se a ouvir o rio e a olhar para o céu noturno onde as estrelas apareciam aqui e ali por entre as nuvens irrequietas. A luz aparecia em baixo, no horizonte, e indistinta. Em nome de todos os deuses, que estava a acontecer ali? Faolan tinha esperança de que Eile tivesse estado a matar galinhas e se tivesse esquecido de pôr um avental, mas sentia que não era verdade. Algo mais tenebroso ensombrava aqueles olhos verdes e mantinha o frágil corpo tão tenso como a corda de um arco; tinha tropeçado em algo que não queria, para o qual não tinha espaço. No entanto, tratava-se da filha de Deord, o que o tornava responsável, acontecesse o que acontecesse. Maldição. Devia ter ido primeiro a Derry para tratar da missão de Bridei. Uma rapariga, uma criança, um cão... Estava a tornar-se ridículo.

Atrás de si a porta abriu-se, rangendo.

— Entra, se quiseres — disse Eile.

A jovem parecia afogada nas suas roupas, parecia um rapaz a experimentar o traje de um irmão mais velho, excetuando os cabelos compridos atados no pescoço e caindo-lhe pelas costas abaixo. Faolan lembrou-se de como Ana era exigente com a limpeza; de quantas vezes ela penteara os seus caracóis dourados na longa jornada através do território Caitt. Aquela rapariga parecia que não se lavava havia meses. E tinha começado outra vez a chorar silenciosamente, apesar de o seu porte, os braços em redor do tronco, os maxilares cerrados e os olhos no chão lhe dizerem quão ela odiava revelar tanta fraqueza na sua frente.

Saraid estava a dormir, com o cão a servir-lhe de almofada. As suas faces estavam rosadas; a lareira estava a aquecê-las, às duas.

Com uma paciência que pensava não ter, Faolan não disse nada e pôs a panela ao lume. Não tinha nada para lhe oferecer para além de uma ou duas das suas ervas medicinais com as quais se podia fazer um chá, o que sempre era melhor do que beber água quente, e cujo efeito soporífero não lhe faria qualquer mal. Faolan tirou-as do saco e deitou uma mão-cheia na panela. O cheiro era bom. O assassino pensou que, no fim de contas, já não era mau, aquecia o coração.

Eile lutava contra as lágrimas, agitando-se e fungando. Finalmente perdeu o controlo e desatou a soluçar. Faolan olhou para ela sem mudar de expressão e esperou até que ela decidisse falar. Parecia que a rapariga precisava que o pai ou a mãe a abraçassem e lhe dissessem que estava tudo bem. Faolan sentiu que, se lhe tocasse, ela fuzilá-lo-ia com os olhos e não lhe agradeceria.

Eile chorou, acocorada à lareira, com a cabeça nas mãos. Os seus ombros subiam e desciam. Faolan fez o chá, deitou uma porção na sua marmita de viagem e colocou-a na pedra da lareira, ao lado dela.

— Bebe, Eile, aquece-te. É provável que te faça sono, mas não te faz mal.

— Sono? — perguntou ela entre dois soluços. — Não posso dormir, temos de continuar...

— Chhh — disse ele. — Se queres mesmo partir assim que amanhecer, eu acordo-te, mas esta noite não vais a lado nenhum. A criança precisa de descansar.

— Como é que eu sei que não é um truque? Pode estar envenenado.

— Sabes porque eu era amigo de Deord. Se quiseres, também bebo.

— Nesse caso não acordas a tempo.

— Podes crer que acordo. Só de pensar que tenho de me preocupar convosco, fico com o sono leve. — Faolan pegou na caneca, bebeu e estendeu-lha. As perguntas pairavam-lhe nos lábios.

— Preocupar? — perguntou ela tremulamente, bebericando cuidadosamente. — Que quer isso dizer? Por quanto tempo?

— Pelo menos até estares algures sã e salva, talvez no priorado que mencionei. Depois levo a criança a casa.

— Não! — A caneca abanou e algumas gotas da bebida caíram na lareira, assobiando. — Saraid fica comigo! Não vai a lado nenhum! — Eile começou a levantar-se.

— Senta-te, Eile. Sê razoável. Seja lá o que for que aconteceu, a tua tia e o teu tio devem estar extremamente preocupados. Devem querer a filha em casa.

A jovem olhou para ele com os olhos raiados de vermelho subitamente hostis. A luz das chamas fez cintilar-lhe as lágrimas nas faces.

— És estúpido, ou quê? — perguntou ela.

Faolan esperou, ouvindo a lenha a estalar e a respiração suave da pequenina, recordando a si próprio que a rapariga era muito nova; que estava em estado de choque e exausta.

— Saraid não é minha prima — disse Eile em tom monótono. — É minha filha. É minha e posso levá-la para onde quiser. E não vou para o priorado. Pelo menos por agora.

Faolan olhou para ela, atônito, e perguntou a si próprio se teria estado meio a dormir em Montanha Nublosa, para não perceber o que era óbvio.

— Quantos anos é que disseste que tinhas? — perguntou ele, arrependendo-se imediatamente.

— Até uma criança consegue fazer as contas. — O seu tom era duro. — Faltavam poucos meses para fazer treze anos quando a tive. Saraid é minha, Faolan, e ninguém ma tira. Já te disse que tenho de a levar para longe antes que eles nos encontrem.

— Eles? O teu tio e a tua tia?

Eile sorriu, a expressão mais alarmante que ele alguma vez tinha visto. Naquele momento Faolan não conseguiu acreditar que ela tivesse apenas dezesseis anos.

— Ele não — disse ela. — Ele nunca mais, mas a tia Anda sim. Ela já deve ter ido aos gritos à aldeia a acusar-me, pondo-os a todos atrás de mim. Não posso lutar contra uma multidão. Resta-me fugir. Fugir para tão longe que eles não me consigam encontrar. — Os seus dentes batiam uns nos outros. A sua voz tornara-se monótona e os seus olhos olhavam para ele, mas não o viam.

Faolan sentou-se no chão e rodeou os joelhos com as mãos.

— Não te vou obrigar a falar — disse ele, calmamente — mas penso que devias. Só te posso ajudar se souber o que aconteceu, Eile.

— Ela não volta para junto deles e eu não vou para as freiras. Elas não a vão querer e, seja como for, é demasiado perto. A história vai-se espalhar e eles a tiram-me.

— Eile — disse Faolan — olha para mim. Anda lá, olha para mim e escuta-me por um momento. Tu és mãe, já és crescida e és capaz de tomar as tuas próprias decisões, mas isso não quer dizer que não possas pedir ajuda se precisares. Eu sou bom a pôr pessoas em segurança, é uma das coisas que faço para ganhar a vida e muitas vezes trabalho fora da lei; da lei dos homens e da lei dos deuses. Disse-te que te protegia. Disse-te que olharia por ti e por Saraid. Os laços que me ligavam ao teu pai obrigam-me a tal.

— Conversa fiada — disse ela, limpando o nariz à manga da camisa de linho.

— Dou-te a minha palavra. Apesar do que aconteceu, e eu não sei o que foi, prometo. Juro. — Que não me arrependa amanhã.

A rapariga olhou para ele por um momento e depois suspirou.

— Matei-o — disse ela. — Dalach. Enfiei-lhe a faca no coração. Tinha dito a Saraid que se preparasse e que esperasse por fim no lado de fora da casa. Matei-o e fugi com ela.

— Mataste o teu tio — disse ele, tentando manter um tom neutro.

— Aquele miserável não merecia ser tio de ninguém. Não voltará a usar os truques dele comigo ou com outra rapariga qualquer. Foi a última vez que se divertiu, o porco. E não vai contar mais mentiras. De qualquer maneira não serve de nada; Anda é tão má como ele. Toda a gente em Montanha Nublosa acreditava no que eles diziam de mim. Todos.

— O quê? O que é que eles diziam? — A mente de Faolan trabalhava a toda a velocidade: um homem a sangrar até à morte, uma fuga que atrairia a culpa para cima da rapariga, a tia a soar o alarme... No fim de contas, Eile tinha razão; teria sido melhor se tivesse atravessado a ponte naquela noite. O fato de transportar a criança às costas tinha-a atrasado. Possivelmente teriam uma multidão à porta no dia seguinte, exigindo que a assassina fosse levada à justiça.

— Que eu sou uma prostituta imunda e que abro as pernas a quem me der uma côdea de pão ou uma caneca de cerveja — disse ela, amargamente. — Que não presto desde o princípio. Que ela é filha de um bêbedo qualquer que eu convidei na beira da estrada quando tinha doze anos. Toda a gente acredita. Por que não? Os punhos e as botas de Dalach são um grande encorajamento para que concordem com ele.

— Eram — disse Faolan. — Eile?

— O que é? — A pergunta era defensiva. O seu coração chorou por ela.

— Saraid, tu disseste que Dalach espalhou boatos a propósito do pai dela; que convenceu as pessoas da aldeia que tu eras...

— Uma puta?

— Eile, estás a dizer que ela é filha de Dalach? Que ele...? — Faolan não conseguiu dizer a palavra.

— És de raciocínio rápido, não és? Um presente nos meus treze anos. Dalach é grande. Das primeiras vezes ainda tentei lutar com ele, mas ele gostava.

Faolan desviou o olhar.

— Não sabes o que há de dizer, pois não? Se calhar estás a pensar o mesmo daquela gente da aldeia. Oh, ela devia andar a pedi-las. Basta que um homem seja forte e saiba fazer ameaças. A minha mãe morreu e ele passou a fazer o que lhe apetecia. Antes de eu ter Saraid, estava sempre a fugir, mas nunca ia longe. Ele ia atrás de mim e encontrava-me. Mas desta vez não.

— A tua tia — disse Faolan. — Por que não lhe disseste? Ela podia ter feito qualquer coisa para te proteger...

— Ela sabia. — A voz de Eile era um sussurro. — Ela soube sempre e nunca fez nada para o evitar. Ele obrigava-a a fazer o que ele queria e também lhe batia. Com o tempo passou a odiar-me porque ele... — Eile suspirou. — Porque ele me preferia a mim. Dalach dizia coisas. Comparações. Aquilo tinha de parar. Eu tinha de acabar com aquilo antes que alguém magoasse Saraid. Ela é tão pequena. Assim que a tive, deixei de tentar fugir. Ele disse-me que lhe fazia mal se eu não fizesse o que ele queria. Assim que ela tivesse idade, fazia-lhe o mesmo. Quando me deixaste a faca, percebi que tinha chegado a ocasião.

Faolan podia ter dito muitas coisas; que ela devia ter-lhe dito tudo na primeira vez; que devia ter procurado ajuda, talvez das mulheres da aldeia; que uma faca não é a melhor resposta, mesmo quando se quer atacar um homem mau.

— Tiveste o luxo da vingança — acabou ele por dizer. — Eu não o tive. Descobri em Montanha Nublosa que o homem que mais mal fez à minha família morreu há quatro anos. O homem cujo nome estava na faca que te deixei. Tu, pelo menos, tiveste a satisfação de aplicar o castigo. Sentiste-te melhor?

— Não — murmurou ela. — Estou contente por ele ter morrido. Estou feliz por ele não poder fazer mal a Saraid ou a qualquer outra pessoa. Mas não me sinto bem. Sinto-me... suja. Assustada. Só. — Faolan viu-a levantar outra vez o queixo, chamando a si toda a sua força de vontade e viu que era parecida com o pai. Por baixo da aparência pouco atraente, viu que ela era imensamente forte e inteiramente altruísta. — Mas não faz mal — continuou ela. — Estou habituada a estar só. Vão-se sempre todos embora e tu também há de ir. Nós cá nos arranjamos.

— Como é que tencionavas fazer passar o cão pela ponte? — perguntou Faolan como que por acaso.

A rapariga olhou para ele. Por um momento, os seus olhos pareceram os de uma criança, redondos e assustados. Então, encolheu os ombros e desviou o olhar.

— Cala-te — resmungou ela — Já te disse, eu cá me arranjo. Durante alguns momentos ele não disse nada, tentando raciocinar e idealizar uma estratégia que fosse possível e aceitável para a jovem porque uma coisa era certa: não tentaria fazer nada que fosse contra a sua vontade porque ela desaparecia no instante seguinte. A sua maneira era tão forte como o guerreiro indomável que fora o seu pai. Eile matara um homem e se tivesse razão em relação à tia, haveria uma perseguição e esta exigiria justiça. O assunto não seria esquecido.

— Ela amava-o — disse Eile, como se lhe estivesse a ler os pensamentos. — É engraçado, não é? Depois de tudo o que ele lhe fez, a ela, a mim, depois de tanta coisa, ela ainda o queria. As pessoas são muito estranhas. Ou talvez seja normal, ela e ele. Se calhar eu é que sou estranha.

— Talvez — disse Faolan. — Bebe o resto, Eile.

— Não quero dormir.

— Precisas de descansar. Eu vou pensar num plano. Sou bom a idealizar planos. E acordo-te, prometo-te. De manhã vão aparecer uns homens para arranjar a ponte. Se não conseguirmos atravessar aqui, arranjamos outro ponto.

— Eu não vou para o priorado. — A agressividade voltara. — Já te disse. Não vou.

— Já ouvi — replicou Faolan, respirando fundo. — Tenho outro sítio para onde irmos. É seguro. O meu pai é juiz.

— O quê?

— Não é daqueles que obrigam as raparigas a responder a perguntas estranhas. É daqueles que aplica a verdadeira justiça. Os meus pais vivem em Encruzilhada do Rabequista. Não é muito longe para Saraid se formos devagar. Penso que te dão abrigo. Se não, continuamos — disse ele, não lhe dizendo que só soubera naquele dia que o seu pai ainda vivia e que ainda era um homem de leis e não lhe explicando que, para ele, regressar a casa era como mergulhar num poço escuro.

— Nós? — A voz da rapariga era um murmúrio.

— Eu disse-te que tomava conta de vós e fá-lo-ei até vos saber sãs e salvas. Fico convosco até não precisarem mais de mim — respondeu ele à espera de uma reprimenda áspera, uma recusa furiosa qualquer ou uma seca declaração de descrédito. Eile, porém, não disse nada; acenou com a cabeça, cansada e deitou-se por trás de Saraid, protegendo-a com o braço.

Faolan esperou até elas terem adormecido e tapou-as com a sua capa.

Eile abriu os olhos.

— O que é que ele fez? — murmurou ela. — O tal homem que tez mal à tua família?

— Não é história que se conte na hora de adormeceres — disse ele rapidamente. Não é uma história que eu queira contar.

— Nem a minha.

— A minha é antiga. Digamos que estive fora muito tempo e que não sei se a minha família ficará contente por me ver. Tal como tu, saí de casa com sangue nas mãos. — Chega... mais não?

— Mas então... — perguntou ela, apoiando-se nos cotovelos, com voz tensa.

— O meu pai pode não me receber, mas é um homem de princípios. Isso não mudou. Ficarás segura em casa dele.

Eile não parecia nada convencida.

— Dorme — disse Faolan. — Tal como te prometi, acordo-te. Acredita, tudo te parecerá melhor amanhã de manhã, depois de uma boa noite de sono.

Broichan tinha-se ido embora. Entre o crepúsculo de um dia e a alvorada do seguinte, o druida do Rei tinha feito as malas, tinha atirado com uma capa para cima dos ombros e saíra a cavalo de Monte Branco sem uma palavra. O segundo conselheiro de Bridei, Tharan, alertado para a partida madrugadora, correra aos estábulos para expressar a sua preocupação e para questionar a sensatez de uma viagem solitária tão próximo do solstício do Inverno, mas as palavras tinham-lhe morrido nos lábios ao ver o olhar duro do druida, que não queria saber se o abraço gelado da Mãe Ossuda caíra sobre a terra, prolongando as noites e enchendo os dias de ventos cortantes e de frio de gelar os ossos. Broichan não queria saber do gelo, da neve, de longa e cansativa viagem pelo Vale abaixo até Pitnochie, que era a sua casa. Broichan não queria saber se havia lá outros a viver desde que se mudara para a corte seis anos antes, quando o seu filho adotivo se tornara Rei de Fortriu. Ao encontrar o olhar do druida, Tharan percebeu que tais argumentos seriam como palha face ao vento, se dissipariam sem proveito. O segundo conselheiro conhecia o druida avia muito tempo.

Depois da partida de Broichan, Tharan andou inquietamente de um lado para o outro até serem horas de poder perturbar o repouso da Rainha e apresentou-se à porta dos aposentos reais. O novo guarda-costas, Dovran, estivera de serviço toda a noite, mas os seus olhos perscrutadores e mãos capazes, agarrando decididamente na sua lança, não sugeriam qualquer cansaço. Garth escolhera-o cuidadosamente e treinara-o bem.

Tharan foi admitido e esperou na antecâmara. Mal tivera tempo para beber uns goles de cerveja quando uma criada o levou perante Tuala, totalmente vestida e perfeitamente acordada, mas com os grandes olhos cansados. A Rainha era uma pessoa pálida, mas naquela manhã a brancura das suas faces eram sinal de um medo terrível; que notícias levariam o conselheiro do seu marido aos seus aposentos tão cedo?

Tharan apressou-se a tranquilizá-la:

— Minha senhora, peço desculpa pela intrusão. Não há razão para alarme. Trata-se de Broichan...

Tuala ouviu-o em silêncio. Quando ele acabou, ela disse:

— Obrigada por me teres vindo dizer tão depressa, Tharan. Achas que ele foi para casa? Para Pitnochie?

— É o mais provável.

— Ele não se pode ter esquecido de que alugou a casa a Ana e a Drustan durante o Inverno — disse Tuala, pensando em voz alta. — Pitnochie não é suficientemente grande para albergar Broichan e outras pessoas, excetuando o pessoal. Pelo menos durante tanto tempo. É complicado. Eu sei que Ana não quer impor a Drustan um regresso à corte; seria difícil para ele. Pergunto a mim própria se Broichan tenciona ficar lá.

— Para onde há de ir ele com este tempo inclemente? — perguntou Tharan. — Ele não está bem e já não é jovem.

— Mais valia ter ido ter com Fola, a Banmerren, se nos queria evitar. — Tuala continuava a pensar em voz alta e Tharan não percebia o que ela estava a dizer. — Não acredito — continuou ela. — Ir-se embora assim, sem se despedir de Derelei; abandonar tão abruptamente o trabalho que estava a fazer; não estar aqui quando do regresso de Bridei... — Subitamente, Tuala pareceu aperceber-se de que não estava só e o conselheiro sentiu que ela engoliu algumas palavras. — É estranho, Tharan. Penso que devíamos mandar alguém atrás dele; alguém discreto, que o possa vigiar à distância. Um trabalho ideal para Faolan. Sinto-me surpreendida com o número de vezes que já desejei que o braço direito do meu marido estivesse aqui. Há certas missões que só a ele podem ser confiadas. Descobre um homem, alguém com a capacidade de ser detectado.

— Não é tarefa fácil espiar um druida — comentou Tharan.

— Não precisamos que ele seja espiado, queremos que ele seja protegido. Diz-me quando escolheres alguém, Tharan. Temos de agir rapidamente. Tenho a certeza que compreendes porquê.

— Sim, minha senhora. — Nem a Rainha nem o conselheiro do seu marido disseram uma palavra sobre Circinn e a sua realeza, se bem que cada um deles tivesse sido avisado da morte de Drust, o Javali, antes de Bridei e Aniel terem partido de Monte Branco. Havia diversos níveis de secretismo e de confiança: níveis no interior de outros níveis. Tal é a natureza de uma corte real. Cada um deles entendia a necessidade de silêncio, especialmente naquele momento, depois da partida de Broichan, o qual era o único, do séquito mais chegado de Bridei, que ainda não estava a par da bombástica notícia.

Depois de Tharan ter saído, Tuala foi até ao jardim onde pairava sobre os canteiros de ervas e vegetais de Inverno, tapados com palha, uma fria bruma matinal. Estava tudo envolto num manto branco. A jovem Rainha não via os pinheiros na encosta do monte para lá das muralhas da fortaleza, nem o carreiro que serpenteava em redor da colina e que apontava para uma série de direções: para sudoeste, descendo em direção ao Grande Vale e a Pitnochie, para leste até Banmerren e Caer Pridne, para norte até Abertornie e para as terras selvagens dos Caitt. A viagem que Ana fizera até lá dera-lhe um amante que em breve seria seu marido: Drustan, o belo e enigmático chefe-de-guerra com a capacidade sobrenatural de mudar de forma, ora homem ora pássaro. Estavam ambos em Pitnochie a passar o Inverno, a inclemente estação que tornava a viagem até às terras de Drustan praticamente impossível. Na Primavera iriam para norte para tentar reclamar o que o irmão de Drustan lhe roubara com base numa mentira. Até lá, tinham-se retirado para a casa isolada de Broichan para recuperar da provação por que tinham passado no Outono. Nenhum deles estava à espera do regresso a casa do druida.

Tuala caminhou ao longo da muralha, imersa em pensamentos. Broichan não era estúpido, não queria, certamente, meter-se entre os dois amantes que gozavam a privacidade do seu domínio. Não, ele não tencionava ficar. A Rainha achava que sabia para onde ele ia: para a floresta, onde Bridei não o encontraria. Sozinho? Tuala esperava que não; Broichan ainda estava fisicamente fraco, ainda não tinha recuperado da sua longa doença. Para os druidas da floresta, nos nemetons1? Talvez. Talvez, depois da sua própria revelação, ele quisesse tempo para refletir, para rezar, para reavaliar a sua posição. Pelo menos teria abrigo, comida e companhia.

Tuala suspirou; estava a tentar encontrar algum sentido na partida do druida, mas não conseguia. Broichan comportara-se como uma criança mimada. A má notícia que lhe dera tinha-o, de fato, feito bater o pé e fugir. O homem não estava a tentar compreender o fato de que tinha uma filha e um neto, continuava a negar a hipótese.

A parte mais difícil de compreender era ele ter decidido deixar Derelei. Talvez não percebesse que a criança podia sentir-se ferida pela ausência súbita daquele que amava, em quem confiava, com quem contava. Tuala não sabia como explicar a situação ao filho que ainda mal falava, apesar das suas habilidades mágicas! Broichan foi-se embora era angustiantemente inadequado depois de o druida ter passado todas as tardes algumas horas com ele, guiando-lhe os primeiros passos na jornada de descoberta das suas capacidades espantosas.

Que fazer, já que Broichan se tinha ido embora? Parar o treino? Ensinar ela própria o filho era arriscado porque, como mulher do Rei, tentara arduamente esconder a sua diferença! Não sabia. Talvez a Aquela que Brilha tivesse alguma resposta.

Quanto à questão de Circinn e de mais uma suposta eleição para o seu trono, Tuala queria evitá-la, apesar de ser importante, um desafio à liderança de Bridei. Se a ocasião para a sua revelação negara a Bridei a oportunidade de discutir a sua decisão com o seu pai adotivo, cometera um erro grave. Era vital que o Rei pusesse a questão a Broichan assim que ele e Aniel regressassem de Caer Pridne. Se Bridei decidisse como ela pensava, seria um golpe duro para o druida: não só o seu filho adotivo deixaria fugir a oportunidade por que ambos ansiavam havia tanto tempo, como Broichan teria de enfrentar o fato de que, de todos os conselheiros do Rei, ele fora o último a saber da morte de Drust e das suas monumentais implicações. Para Broichan seria uma traição.

Quanto aos seus próprios sentimentos, tinha de os pôr de parte. Broichan era seu pai; estava cada vez mais certa. Se não fosse verdade, ele tê-lo-ia dito, teria arranjado outra explicação para a visão que a deusa lhes mostrara. Porém, fechara-se, como se a verdade fosse demasiado repelente de contemplar, quanto mais de aceitar. Doía. Desejava havia tanto tempo, praticamente toda a sua vida, saber quem era, quem eram o seu pai e a sua mãe e por que razão fora deixada à porta do druida para que Bridei a encontrasse. Porém, sentia que preferia não ter pai nenhum a ter um que até renegava a idéia de qualquer parentesco. O amor de Broichan por Derelei via-se no rosto sempre que ele estava com a criança; notava-se na gentileza das suas mãos e na suavidade da sua voz, na paciência que tinha com um estudante tão pequeno. O druida devia odiá-la para virar as costas a Derelei e recusar os laços de sangue; devia recear ainda a sua influência sobre Bridei, influência exercida por ele desde o início.

O bebê que trazia no ventre deu-lhe um pontapé, esticando os membros, testando a sua força. Filha, pensou Tuala. Na Primavera o druida vai ter dois netos. Se ele não regressasse, ficaria com duas crianças para ensinar e a necessidade de continuar a esconder as suas capacidades para bem de Bridei. Volta para casa, homem teimoso, resmungou ela para si própria. O meu filho precisa de ti. Estava frio e o druida era mais vulnerável do que algum dia admitiria.

Um conselho seria bem-vindo, mas não havia ninguém para dá-lo. Bridei só regressaria dentro de alguns dias. Fola estava em Banmerren. Mais ninguém conhecia o segredo de Broichan; não podia falar com ninguém. Podia encher a tigela de água e procurar uma resposta, mas não tinha a certeza de que seria a que queria.


CAPÍTULO QUATRO

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Estamos a construir um barco. Um agricultor emprestou-nos o celeiro e não nos fez perguntas, apesar de olhar para nós com ar estranho enquanto trabalhamos, pensando, sem dúvida, que é uma atividade estranha para o Inverno. O irmão Colm, ansioso por partir, vê no nosso trabalho e no suor que nos cobre as testas uma maneira de atrair a nossa comunidade para a sua visão. Na fronteira dos seus sonhos, uma vida pode ser totalmente vivida na contemplação do amor de Deus, rezando a cada momento, e também pode ser vivida longe dos seus incômodos familiares. Eu não diria tanto. Se o que escrevo fosse para outros ouvidos que não os meus, escolheria uma linguagem mais circunspecta, mas não critico o homem. A sua situação é difícil; uma alma menor quebraria com o esforço. O amor de Deus fortalece-lhe os músculos; o sopro de Deus passa-lhe pelos pulmões e enche-lhe a voz de um fervor que nos arrasta a todos apesar de nos faltar habilidade na arte da carpintaria, da curtição, da calafetagem, do fabrico de cabos e dos cem outros ofícios necessários para construir uma embarcação capaz de agüentar o mar.

Espero que agüente. O meu estômago aperta-se quando contemplo a passagem agitada entre as duas terras chamadas Dalriada, uma a minha terra e a outra o reino de Fortriu: as vagas; a ondulação, a espuma infindável que nos ensopa. O meu coração vacila ao imaginar tão depressa mais uma viagem. Deus está a pôr-me à prova. Não temo os homens poderosos, as experiências novas ou os desatas do espírito. Na verdade, recordo com saudade a minha conduta nas cortes de Circinn e de Fortriu e as minhas experiências durante os últimos dias da minha estadia na corte celta de Dalriada. O meu gosto por tal trabalho é maior, talvez do que devia ser para um homem do clero. Assim, Deus, na Sua infinita sabedoria, não coloca diante de mim o obstáculo de aplacar um rude chefe-de-guerra ou um diálogo estranho tara traduzir para uma língua estrangeira; confronta-me com um barco de madeira, doze clérigos como companheiros e uma extensão de mar tenebroso. Louvo a Sua perspicácia e agradeço-Lhe de todo o meu coração não termos de partir antes da Primavera.

Sinto algum alívio por, desta vez a embarcação estar a ser construída com madeira sólida e não com peles de boi estendidas por cima de uma armação de vime. Quem me dera, mesmo assim, ser filho de um pescador e não de um erudito porque então acharia a ondulação do mar suave e não revoltante: o embalar do grande berço do mundo.

Doem-me as mãos; estão cheias de bolhas e não conseguem agarrar na pena com firmeza. Que o trabalho acabe em breve. Que Deus conceda obediência ao meu espírito e força ao meu corpo.

Aparecem aqui, de vez em quando, alguns jovens, procurando abrigo temporário junto de nós. Tivemos dois nos últimos sete dias. Um era inteligente, apaixonado e bem-falante. Eu teria ficado com ele porque lia e escrevia bem já que tais talentos são raros. 0 jovem, na sua ansiedade, deixava que as suas palavras saíssem com demasiada liberdade e mencionou Cul Drebene — um milagre, disse ele. Colm foi severo, disse-lhe que crescesse mais um pouco e que regressasse dentro de alguns anos. Então, se o barco não se afundar, já nós estaremos em Fortriu.

O segundo era calado, desajeitado e de olhar firme, disse que se chamava Éibhear e que era filho de um marinheiro. Ficamos com ele.

Suibne, monge de Derry

 

Eile acordou de um pesadelo no qual procurava a faca e não conseguia encontrá-la; um sonho no qual Dalach se ria e erguia os punhos e o pequeno rosto de Saraid se encolhia de terror. Uma luz fria entrava pela janela sem proteção da cabana do barqueiro. Já era dia e a jovem sentia-se gelada. Saraid. Onde estava Saraid?

Eile pôs-se em pé de um salto, olhando desenfreadamente em volta. A lareira estava apagada. Não só a pequenina não estava à vista, como o cão e o homem tinham também desaparecido. O saco de Faolan, porém, estava junto da lareira e a sua própria trouxa estava ao lado dos sacos sobre os quais dormira, para além da capa que a tapara. Não admirava que tivesse dormido tanto.

O seu coração batia com toda a força. O homem levara Saraid. Para onde? Que fizera ele? Eile correu para a porta e abriu-a. Depois de tudo o que acontecera, como pudera deixar-se dormir? Como pudera deixar a pequenina sem proteção? Era verdade o que Anda dissera. Nunca seria uma boa mãe, não lhe estava no espírito.

Eile deu dois passos no lado de fora da cabana e parou. Saraid estava sentada num velho banco com as pernas a dar a dar, a olhar na direção da ponte. O cão estava a seu lado, mastigando uma coisa qualquer que tinha encontrado. Por cima da sua cabeça algumas gaivotas, aos gritos, voavam em direção a leste. O som constante do rio quase lhes abafava as vozes. A pequenina virou a cabeça ao ouvir a mãe e levou um dedo aos lábios.

Eile baixou-se ao lado do banco e perguntou ao ouvido da filha:

— Para onde foi o homem? Faolan? Onde está ele? — Não podiam perder mais tempo. Tinham de atravessar o rio antes que os que as perseguiam as alcançassem.

— Chhh — disse Saraid, tapando a boca da mãe.

— Ele disse-te...

— Chhh.

Um momento mais tarde, Eile viu Faolan no carreiro junto dos salgueiros com um saco na cabeça para manter a cabeça seca. Claro, tinha-lhe dado a capa.

— Para dentro — disse ele ao aproximar-se da porta, e elas obedeceram. Faolan parecia calmo, mas o estômago de Eile revoltava-se, ansioso por partir. Tinham de pegar nas coisas e atravessar o rio rapidamente.

— O que é? — sibilou ela assim que entraram na cabana. — O que é?

— Temos companhia — disse ele. Faolan parecia um homem habituado a convencer os outros de que estava tudo bem quando, de fato, o céu estava prestes a cair. — Sete ou oito, todos mais ou menos armados e, lamento dizer-te, a falar de uma morte violenta e da necessidade de a autora se justificar. Respira fundo, Eile, e mantém-te calma. Nós vamos sair disto.

Eile aspirou o ar, consciente do olhar de Saraid.

— Estou calma — disse ela. — E melhor continuares sem nós. Não vale a pena meteres-te também em sarilhos.

Faolan fez uma careta que ela não compreendeu.

— Tenho uma sugestão melhor — disse ele. — Mentimos. Eles não me viram. Esperamos até que venham consertar a ponte e depois mentimos. Eu, pelo menos. Tu não dizes nada. Não vi Brennan nem nenhum dos homens da tua aldeia. Direi que estás comigo.

O homem era mais estúpido do que ela pensara.

— Eles andam à nossa procura. Uma rapariga e uma criança. Quem vai acreditar em ti? Além do mais, eles vêm aqui e encontram-nos antes que a ponte esteja pronta. É uma idéia estúpida.

Faolan olhou para ela sem parecer preocupado ou zangado.

— Achas que devo lutar com todos ao mesmo tempo? Eu disse sete ou oito. Talvez não tenhas ouvido.

— O meu pai era capaz. — Eile lembrava-se de o ver a treinar, parecia o herói de uma história, um herói que nunca poderia ser derrotado. O homem que o matara devia ser notável.

O olhar de Faolan tornara-se estranho, estava a ver algo que ela não via. A sua boca transformara-se numa linha estreita.

— Nós vamo-nos embora. — Eile pegou na trouxa e estendeu o braço para pegar na mão de Saraid. — Subimos o rio. Não precisas de lutar com ninguém. Eu consigo.

— Eles apanham-te, Eile. E isso que queres para a tua filha, uma perseguição, um fim violento? Talvez a prisão no meio de estranhos? Disseste que não querias que a levassem. Foi por essa razão que disseste que não ias para o priorado. Se foges agora perdes tudo antes do meio-dia.

A jovem odiou-o por dizer a verdade.

— Ninguém vai acreditar em ti — disse ela. — Que tencionas dizer? Que sou a tua irmã mais nova? Tua filha?

— Nenhuma das coisas. As pessoas vão reconhecer-me assim que atravessarmos o rio. Elas sabem que tenho... que tinha três irmãs em Encruzilhada do Rabequista. Estive ausente muito tempo, o suficiente para ter arranjado uma mulher e uma filha.

Eile não disse nada. A idéia provocou-lhe um vômito. A necessidade de a repudiar lutava com a probabilidade de as fazer atravessar a ponte.

— Desde que não penses em nada — disse ela.

— Já te disse, desisti disso para bem da minha paz de espírito. Eile, estou a ouvir alguém a gritar. Penso que tinhas razão, estão a aproximar-se. Quero que me prometas uma coisa.

— Eu não faço promessas.

— Escuta o que te digo. Quando o plano é meu, as regras também são minhas. Quando o plano for teu, as regras também serão tuas. De acordo?

— E depois?

— Não digas nada e não lhes atires com nada. Toma conta de Saraid, mantém-na calada e faz o que te digo.

— Ah!

— Só até passarmos a ponte e não nos ouvirem. Tens de ser uma mulher silenciosa e submissa.

Eile olhou para ele. As vozes aproximavam-se da cabana. Não tinha escolha. A rapariga sentiu os braços de Saraid em volta da perna, apertando, e inclinou-se para a tranqüilizar.

— Está tudo bem, Esquilo. Ninguém nos vai fazer mal. Está calada, encosta Lamento ao peito e fica junto de mim. Faolan toma conta de nós. Vamos atravessar o rio e vamos encontrar uma casa nova. Uma casa bonita.

— Lamento? — murmurou Faolan.

— É o nome da boneca. Era assim que ela dizia o seu próprio nome. E agora silêncio! — sibilou ela quando o cão começou a ladrar.

Era evidente que Faolan não era o tipo de homem que esperava que os sarilhos fossem ao seu encontro. O assassino pegou no saco, abriu a porta, saiu e o cão seguiu-o com os pêlos do pescoço eriçados, rosnando para o grupo que se aproximava. Saraid agarrou-se ainda com mais força à coxa de Eile. A pequenina tremia. Não tenho medo, disse a rapariga a si própria. Ela não tem mais ninguém. Não posso ter medo. Mentalmente, Eile recordou a faca e os dedos cheios de sangue e o corpo de Dalach mole e pesado em cima do seu, de tal modo que lhe parecia que nunca conseguiria sair de baixo dele. A jovem pensava que assim que o tivesse matado, as coisas más desaparecer-lhe-iam dos sonhos, mas não, estavam ainda mais presentes, até quando estava totalmente acordada.

—... abrigados durante a noite — dizia Faolan. — Não é seguro para a minha mulher... à espera de um filho, enjoada o tempo todo... Sabeis como é...

— Importas-te de calar o teu cão? Nem a mim próprio me consigo ouvir — disse um deles.

Faolan deu uma ordem seca ao cão e como este continuasse a calar, olhou por cima do ombro:

— É da minha mulher — resmungou ele. — Não me obedece. Querida...?

Eile chamou o cão, acalmou-o e agarrou-o pela corda que lhe servia de trela. A rapariga aproveitou a oportunidade para percorrer rapidamente o grupo com os olhos. Um ou dois eram-lhe familiares, do mercado de Montanha Nublosa. Eile baixou os olhos. Era mais fácil ser submissa. Tinha de agir como a tia Anda.

— Andamos à procura de uma rapariga — disse um dos homens. — Uma rapariga com uma criança. Viste-as?

— As únicas que vi são as minhas — disse Faolan. — Vamos para Encruzilhada do Rabequista; estamos só à espera que eles consertem a ponte.

— Podes ter de esperar muito.

— Só se os homens que vi ontem forem mentirosos — disse ele. — Supostamente eu vou ajudá-los esta manhã assim que trouxerem o material. Depois, seguimos viagem. Lamento, mas não posso ajudar-vos.

— Diz à tua mulher que saia cá para fora para a podermos ver como deve ser. — Uma voz nova, mais autoritária. — E a criança. Andamos à procura de uma fugitiva. Não podemos aceitar a tua palavra de que não está aqui.

— Procurai, se quiserdes. Quanto à minha mulher, sente-se mal, como já vos disse. E não aceito ordens a respeito da minha família.

Eile saiu da cabana com Saraid pela mão e colocou-se ao lado de Faolan, consciente de que ia ser reconhecida. Se o seu rosto não a denunciasse, o mesmo não aconteceria com as mãos trêmulas.

— Como se chama a tua mulher? — perguntou o homem com voz cortante e olhos semicerrados.

— Aoife — disse Faolan sem hesitar.

— E a criança?

— Chamamos-lhe quase sempre Esquilo. Estou a ver alguém na ponte. Prometi ajudar, como já vos disse. Procuraremos essa tal fugitiva no caminho. Ela é perigosa?

Eile mordeu o lábio. Faolan continuava a assustá-la com os nomes estúpidos e as perguntas imprudentes. Os pés pediam-lhe para fugir e sentia a mesma inquietação no pequeno corpo de Saraid. Um soluço de pânico, reprimido a custo, subiu-lhe à boca.

— Desculpai-nos — disse Faolan. — A minha mulher não se sente bem, como vos disse... É melhor irmos, a não ser que queirais o pequeno-almoço dela nas botas.

Pelos vistos também era brincalhão. Deuses, sentia-se tão enjoada que era capaz de imitar na perfeição uma mulher grávida, apesar de não ter nada no estômago.

— Tens a certeza que ela é tua mulher? — perguntou o chefe do grupo, que entretanto fizera sinal aos seus homens para fazerem uma busca na cabana enquanto ele próprio se aproximava de Eile e lhe perscrutava o rosto. — Tem a idade da que procuramos e a criança também. Três anos, cabelos escuros... De onde és? Que fazes por aqui? Por que é que ela usa roupa de homem?

As perguntas pareciam facas. Eile tossiu.

Faolan recuou um passo. O seu braço rodeou-lhe os ombros e ela sentiu-o respirar fundo.

— Sou filho do juiz de Encruzilhada do Rabequista, Conor Úi Néill — disse ele. — O que sobreviveu.

Seguiu-se uma coisa estranha. A expressão do rosto do homem transformou-se perante os seus olhos, uma expressão de horror, de fascínio.

— Estive ausente muito tempo — acrescentou calmamente Faolan. — Não tinha mulher nem filhos quando abandonei estas paragens. Fui viver para muito longe. As pessoas que se lembram de mim dir-te-ão que sou bardo e que os bardos viajam. Achei que eram horas de apresentar Aoife e a minha filha à família. E agora vamos seguir viagem, se não te importas.

O homem deu um passo para o lado e deixou-os passar. Eile tinha quase a certeza de que, pelo menos, um dos homens a tinha reconhecido. Tinha ido várias vezes ao mercado, apesar de Dalach mandar quase sempre Anda, já que tinha as suas razões para que ela ficasse em casa. Além do mais, Anda recusava-se a olhar por Saraid, a não ser que fosse absolutamente necessário. A rapariga é dela, ela que a ature, dizia ela, e Eile não confiava na tia porque esta não era amável com a pequenina. Anda tinha ciúmes. Uma tolice, como se as atenções de Dalach fossem algo de desejável.

Bem, tinha acabado tudo, pelo menos em parte e parecia, incrível, que Faolan os tinha livrado de sarilhos. Eile agarrou com força na mão de Saraid, pôs os olhos no chão e acompanhou o passo do assassino. Não podia fazer outra coisa, ele continuava a rodear-lhe os ombros com o braço, deixando-a nervosa e com medo. Apetecia-lhe libertar-se, afastar o braço e ser ela própria novamente. Ele que não pensasse em se meter na pele de Dalach com a sua conversa de mulher e filha. Mas ele não ia desistir. Os homens não desistiam, se queriam uma mulher, tomavam-na, não podiam passar sem elas. Faolan era tão mentiroso como os outros: como Deord, que provavelmente nunca tencionara regressar.

— Tudo bem? — murmurou Faolan quando chegaram aos salgueiros e os homens nas suas costas desataram todos a falar ao mesmo tempo, tornando-se impossível compreendê-los.

— Hum.

— Continua a andar. Posso levar Saraid ao colo, se quiseres.

— Não. Precisas das mãos livres. Ela pode andar.

— Tu é que sabes. Mantém-te calada até chegarmos à ponte. Vamos ter de esperar até eles colocarem as pranchas. A criança não pode passar pelas cordas e eu também não.

Saíram do abrigo das árvores. Via-se perfeitamente o rio turbulento e a falta da madeira na ponte. No outro lado estava a reunir-se um grupo de homens e o material já tinha chegado numa carroça: pranchas, corda, ferramentas. Enquanto Faolan e Eile se aproximavam ao longo da margem do rio, apareceu por trás dos trabalhadores um grupo de cavaleiros, cerca de dez, com túnicas e calças azuis e pretas. As suas roupas pareciam de qualidade. As camisas eram de linho branco e as botas estavam engraxadas. Aqui e ali uma corrente de prata, um chapéu com uma pena ou o punho de bronze de uma espada mostravam o seu estatuto de membros de uma grande casa. Deviam estar à espera de passar, o que explicava, talvez, o fato de os trabalhadores terem aparecido tão cedo.

A espera foi longa. Faolan procurou um sítio para Eile e Saraid se sentarem e ela quase lhe disse que não precisava de ajuda para uma coisa tão simples, mas calou-se. Sentaram-se. Faolan compeliu dois dos seus perseguidores a ajudarem na ponte. Era de certo modo astucioso pegar nas pranchas enquanto os homens no outro lado lhas estendiam e alinhá-las e atá-las depois com cordas. Eile viu o amigo do seu pai a esticar os braços por cima da água turbulenta e perguntou a si própria o que faria se ele caísse e se afogasse. Provavelmente denunciar-se-ia assim que dissesse qualquer coisa; só ele era capaz de transformar uma mentira numa verdade. Além do mais tinha um ar autoritário. Talvez desatasse a gritar e chorar, como Anda, e a levassem ao tal juiz, o tal Úi Néill. O nome não lhe era desconhecido e parecia que toda a gente o conhecia. Eram gente da alta, proprietários de terras, chefes-de-guerra e reis. Eile imaginava as suas expressões se ela e Saraid aparecessem à sua porta. Diria o quê? «Sou a mulher do seu filho?» Era uma anedota. Fosse como fosse, não podia gritar nem chorar, mesmo que Faolan se afogasse diante dos seus olhos. Não o faria a Saraid, que já parecia um pequeno fantasma, silenciosa e assustada.

Os restantes homens conversavam. Duas conversações; ouvia fragmentos das duas, sentada e embrulhada na capa com Saraid encostada a si e o cão a seus pés. Uma delas era sobre a sua pessoa:

— Tenho a certeza que é ela.

— Mas ele disse...

— Repara bem nele: rico, bem-nascido, fala como se isto aqui fosse dele, ao passo que ela é só ossos, um monte de lixo. Mulher? Não me parece.

Eile tentou fazer-se ainda menor, incapaz de atrair as atenções e rezou. Fazei com que consigamos fugir. Por favor, por favor. A jovem lutou contra a necessidade de se pôr de pé num salto, agarrar em Saraid e fugir. O plano dele, as regras dele. Provavelmente tinha sido estúpida em confiar nele.

A segunda conversação era sobre Faolan e fê-la pensar:

— Sabes o que ele fez, não sabes?

— Nem quero pensar. Aposto que o pai dele nunca pensou que ele regressasse a casa.

— Não sei como é que o tipo consegue viver consigo próprio.

— Parece-me um tipo normal.

— Achas?

— Por onde terá andado estes anos todos?

Apesar das dificuldades, a ponte ficou operacional a meio da manhã e os homens da outra margem convidaram Faolan a ser o primeiro a atravessar visto que ele tinha ajudado apesar de não ter qualquer obrigação. O grupo montado prendera os cavalos e esperava a uma certa distância enquanto os trabalhos não terminavam. Naquele momento aproximavam-se e Eile viu uma figura encapuzada no meio deles que parecia dar ordens.

Finalmente puderam atravessar. Eile pôs Saraid nos ombros e prendeu-a com o pano. Faolan aproximou-se delas com as mãos a sangrar e com a túnica toda suja.

— Pronta? — perguntou ele, como se aquilo acontecesse todos os dias e os três fossem uma família a caminho do mercado ou de visita a um familiar. Normalmente era o que as famílias normais faziam. Talvez tivesse feito o mesmo com o pai e a mãe, quando era pequena. Quem lhe dera poder lembrar-se.

A corda ficou como corrimão, mas as pranchas permitiam que os pés assentassem, apesar de a passagem ser estreita. Em baixo, o rio batia turbulentamente, espumoso, contra os suportes da ponte. Faolan pisou as pranchas e virou-se para ela, estendendo um braço.

— Uma mão na minha e a outra na corda — disse ele. — Um passo de cada vez.

— Fecha os olhos, Esquilo — disse Eile, erguendo a voz por cima do barulho da água. — Conta até dez o mais devagar que puderes. Quando acabares já estamos no outro lado. — Cerrando os dentes, a jovem deu o primeiro passo.

— Sabes — observou Faolan, andando de costas — nunca encontrei uma criança tão bem comportada como essa. Fizeste um excelente trabalho. No sítio de onde venho há vários miúdos e eles passam o tempo aos gritos. Acho que esse Esquilo aí ficaria espantado... — disse ele, continuando sempre a falar, guiando-a sem olhar uma vez sequer para os pés e antes de terminar já estavam na outra margem. Eile não pensara uma única vez que podia cair.

A jovem saiu da ponte e ouviu-o dizer calmamente:

— Bom trabalho.

Um momento mais tarde ouviu-se uma voz cortante:

— É esse o homem! — E antes que Faolan tivesse tempo de se virar, dois dos homens vestidos de azul e preto tinham-lhe prendido os braços atrás das costas e afastavam-no dela.

Faolan lutou bastante bem quanto a Eile; aos dois primeiros homens juntaram-se mais dois e depois mais um outro antes de o conseguirem amarrar, de o amordaçarem e de o atravessarem num dos cavalos de carga. O nariz de um dos homens sangrava e um outro gemia com uma mão na cabeça. Um terceiro estava por terra agarrado ao joelho. Saraid começara a chorar. Eile sentia-o. A criança chorava em silêncio, uma habilidade que aprendera com a mãe.

O meu plano, as minhas regras. O plano fora por água abaixo e as regras tinham de ser quebradas.

— Deixai-o! — gritou Eile. — Ele não fez nada! — Porém, o barulho era tanto com os de azul e preto a praguejarem, os cavalos espalhados e o som do rio, que ninguém a ouvia. Estava na terra de uma pessoa qualquer, o assunto não lhe dizia respeito e parecia que, finalmente, era invisível, justamente quando não o queria ser. — Ninguém ouve o que eu digo? Tu! Escuta! Ele está inocente, não fez nada!

Alguém levantou uma mão e seguiu-se uma imobilidade súbita. As vozes calaram-se e os animais acalmaram-se. Um cavalo aproximou-se de Eile, um animal grande, com arreios de prata. O cavaleiro encapuzado olhou para baixo:

— E quem és tu? — A voz era de mulher, áspera, impaciente, a mesma que estivera a dar ordens.

Eile respirou fundo e olhou para cima. A mulher estava muito direita, orgulhosa e a jovem imaginou que devia ser uma grande Rainha. Os seus cabelos estavam totalmente cobertos por um véu e um lenço de um azul profundo, como o céu ao entardecer, extremamente fino e transparente. Roupa de gente rica. Os olhos eram azuis e esverdeados e duros como ferro, por baixo das elegantes sobrancelhas. A mulher não parecia zangada; parecia que estava com pressa e que não tinha tempo para ouvir.

— Por favor — disse Eile, tentando manter a voz firme, ao mesmo tempo que o coração lhe batia com toda a força no peito. — Ele não fez nada de mal, não passa de um viajante. Por favor, deixa-o em paz.

— Que tens a ver com o assunto, rapariga? — O tom era duro. — Conal, trata desta pessoa, sim? — A mulher começou a virar o cavalo.

— Por favor! Se és tu que mandas, manda-os libertarem-no! Não é justo...

A cabeça orgulhosa virou-se um pouco.

— És-lhe alguma coisa? — perguntou a mulher.

Sou mulher dele. Não, não. O plano de Faolan era para a outra margem do rio.

— Sou amiga dele — disse ela, perguntando a si própria o que a fizera ficar e falar, quando podia muito bem ter fugido no meio de tanto caos. — Para onde o levas? — Eile via o rosto de Faolan virado ao contrário em cima de um cavalo, via-lhe os olhos furiosos e os movimentos convulsivos para tentar libertar-se. Então, um homem com uma moca atingiu-o na cabeça e os seus olhos fecharam-se. — Parai de o magoar! — gritou Eile.

Uma mão fechou-lhe a boca e um grande braço abraçou-a pela cintura. A jovem sentiu Saraid retesar-se de medo. Eile serviu-se dos dentes e a mão libertou-lhe a boca, mas um momento mais tarde sentiu uma dor aguda na orelha quando o homem lhe deu um soco. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, lágrimas de dor e de ultraje, lágrimas de puro terror. Não tinha uma forquilha nem uma faca, nada senão as mãos nuas.

— Devagar, Conal — disse a mulher velada. — Temos aqui uma criança. — A sua voz não tinha qualquer traço de suavidade, era a voz de uma pessoa a salvaguardar uma nova posse, até o seu valor estar corretamente calculado. — Para onde vais, rapariga?

— Encruzilhada do Rabequista.

— Ah sim? A que propósito? Não tens nada com isso.

— De visita à família, minha senhora. — Dividida entre o medo e a fúria, o título saíra-lhe sem querer.

— E que família é essa?

Uma mentira? Ou a verdade, a verdade que, por uma razão estranha qualquer, lhes possibilitara a fuga aos primeiros perseguidores?

— A família dele, minha senhora. A família do juiz da aldeia. O meu amigo é filho dele.

A mulher olhou para ela. O ar pareceu gelar.

— E o teu nome é...?

Eile fez uma cortesia, odiando-se a si própria.

— Aoife, minha senhora.

— Estou a ver, Aoife. Como a fada da balada. Muito pouco apropriado. — Os olhos azuis frios mediram Eile de cima abaixo e a jovem viu-se refletida neles, desde os cabelos corridos às unhas roídas, desde as faces sujas às botas gastas, desde as roupas de homem demasiado largas às pequenas mãos da criança agarradas a ela.

Eile endireitou os ombros.

— O meu pai e a minha mãe achavam-me bonita, quando eu era criança — ouviu-se ela própria a dizer. — Nem todos podemos escolher o que vimos a ser. — Errado, completamente errado. Eile pediu desculpa silenciosamente a Faolan. Silenciosa e submissa, dissera ele. Com aqueles olhos perspicazes não conseguia.

— Esta rapariga não tem o mínimo interesse para nós — disse a mulher. — Deixai-a. Vamo-nos.

— Não! — Estavam a ignorá-la, a afastar-se, um dos homens levando à arreata o cavalo com Faolan atravessado em cima da sela. — Não! Não podeis levá-lo! — Não estava certo. Tinha de os fazer compreender.

— Minha senhora! — disse um homem atrás de si.

— O que é agora? — perguntou a mulher, parando mais uma vez o cavalo.

— Tive uma conversa com os tipos da outra margem. Esta rapariga... esta rapariga é suspeita de ter esfaqueado ilegitimamente um homem até à morte. O tio dela, ainda não há dois dias. Eles querem levá-la para Montanha Nublosa para a julgar.

— Então devolve-a a eles e continuemos. Não tenho tempo para isso.

— Só que — disse o homem — a história que a rapariga lhes contou, e o tipo — continuou ele, apontando para Faolan — é que ela é mulher dele e a criança é filha de ambos. Não fora assim e eles tinham-na levado imediatamente. Pensei que gostarias de saber, minha senhora.

— Está tudo bem, Esquilo — murmurou Eile. — Não chores, está tudo bem. — Prometera-lhe uma casa nova, bonita, se atravessasse o rio. Mentira à sua própria filha.

— És mulher dele? — As palavras eram gélidas. Eile não percebia se a mulher estava zangada, divertida ou se estava a jogar um jogo estranho para além da compreensão das outras pessoas.

— Viajamos juntos, os três. Por favor, não o prendas. Precisamos dele. — Que aquela orgulhosa criatura pensasse o que quisesse.

— Eles foram muito insistentes — disse o homem vestido de azul e preto — querem ser eles próprios a tratar do assunto. Levo-a de volta, minha senhora?

Não, por favor. Deixa-o ir e deixa-nos ir. Para muito longe. Nunca mais te incomodamos.

— Mudei de idéia, Seamus. Estes viajantes estão nas minhas terras e sob uma jurisdição diferente. Diz àqueles homens que nós tratamos do assunto com os devidos preceitos da lei. Diz-lhes que vão para casa. Conal! Arranja um cavalo para a rapariga. Se ela não se calar, amordaça-a. Já estamos atrasados. Vamos para casa.

— Minha senhora, a criança... e o cão...

— Por piedade, Conal, precisas de uma ordem de cada vez? Põe a rapariga e a criança no outro cavalo de carga e esquece o cão. Se ele quiser seguir-nos, que o faça.

Um dos homens tentou ajudar Eile a subir para o cavalo, mas ela rosnou-lhe quando ele pôs as mãos em Saraid. A jovem desatou o pano, colocou a trêmula criança na sela na garupa do cavalo e deixou que o homem pusesse as mãos em concha para poder subir também. Eile estava tão tensa como a corda de um arco. Não ia dizer que nunca tinha andado a cavalo. Tinha de continuar. Tinha de olhar por Faolan, já que não havia mais ninguém para o fazer.

A mulher aproximou-se do assassino e desceu do cavalo. Eile viu-a pegar nos cabelos de Faolan e levantar-lhe a cabeça para lhe olhar para o rosto pálido e inconsciente. O seu olhar era estranho. Por um momento, a jovem pensou que a elegante dama lhe ia cuspir, que o ia esbofetear ou gritar uma praga. Os dedos cheios de anéis, porém, largaram abruptamente os cabelos negros, a mulher virou-se e subiu para o seu cavalo.

— Para Backthorn Rise — gritou ela. A voz era de comando. O grupo seguiu-a e afastou-se da ponte. Com Saraid a balançar na sua frente e cerrando os dentes, Eile acompanhou-os.

O Grande Vale era no coração da Mãe Ossuda. Estava-se quase no solstício do Inverno e os pinheiros estendiam-se, escuros, sob um céu carregado. As águas do Lago da Serpente, taciturnas e perigosas, eram entrecruzadas por correntes contrárias. Abaixo da superfície, presenças invisíveis escondiam-se naquela estação estéril.

Serei uma andorinha, pensou Broichan, voando para climas mais quentes nas asas da tempestade. O druida continuou, arrependido da decisão de se testar a si próprio ao deixar o cavalo numa herdade local e continuar a pé até Pitnochie. As suas sandálias enterravam-se nos terrenos pantanosos saturados e a sua túnica pingava. Serei um veado, mais rápido do que a luz do Sol, abrigando-me à sombra dos vidoeiros. A margem do lago estava marcada por uma série de recortes abruptos. A água agitava-se em várias pequenas baías, recortadas na encosta densamente arborizada. Tinha havido queda de rochas, de terra. A serpente engolira grandes pedaços do mundo. Aqui e ali o carreiro desaparecia por completo. Broichan procurou novos caminhos, subindo até sentir uma dor feroz nas coxas. Serei um salmão, pensou ele, e nadarei ao longo desta grande água com poderosas chicotadas; as minhas escamas refletirão o brilho prateado de Aquela que Brilha como uma melodia de notas resplandecentes. Serei uma abelha, uma serpente, uma borboleta...

Quando a noite caiu, procurou uma cavidade num antigo carvalho seu conhecido e abrigou-se nele, embrulhado na sua capa. Os druidas têm muitas técnicas para abrandar o funcionamento do corpo para poderem suportar as privações e Broichan ainda as dominava, apesar de o poder de viajar sob outra forma que não a de homem o ter deixado enquanto lutava contra a longa doença pelo controlo do seu corpo. As mudanças surpreendentes e as formas animais não passavam de recordações vividas, um nível da arte da magia que nunca mais estaria ao seu alcance. Doíam-lhe as pernas e as costas, as juntas estavam rígidas por causa do frio úmido da estação. Não era assim tão velho em anos, mas naquela noite sentia-se gasto.

Começou a chover. Aquela que Brilha estava tapada pelas nuvens; a noite estava escura. Broichan começou a respirar sempre com o mesmo ritmo; o ritmo do coração abrandou, o sangue começou a correr-lhe mais lentamente nas veias e o corpo imobilizou-se dentro da capa. Era um sussurro na noite; um par de olhos escuros na escuridão do Inverno. Broichan rezou sem emitir um som. Procuro a sabedoria. Preciso de um caminho. Que devo fazer?

E pareceu-lhe, após um tempo infinito, que a resposta estava nas águas que batiam na margem e no suspiro do vento nos pinheiros: Reconhece as tuas fraquejas. Aprende a aceitar. Abre o teu coração ao amor.

Porém, quando perguntou: E verdade? Ela é minha filha?, a voz não lhe respondeu. A única resposta foi o bater lento do seu coração.

As notícias eram preocupantes. Pouco depois do regresso de Bridei a Monte Branco, Carnach mandara-lhe um mensageiro a dizer que ia passar o Inverno aos seus domínios em Thorn Bend e que ainda não sabia quando regressaria a Caer Pridne e aos seus deveres como chefe de guerra do Rei. Como as forças na fortaleza do norte já estavam muito reduzidas, deixara as coisas nas mãos dos seus ajudantes. A sua mensagem não era preocupante pelo que dizia, antes pelo que não dizia. Carnach mostrara o seu desapontamento com a decisão de Bridei quando se tinham encontrado em Caer Pridne. Como resultado, estava a retirar o seu apoio.

Pelo que Bridei e os seus conselheiros pensavam, Carnach não falara a sério ao dizer que contestaria ele próprio o trono de Circinn, se bem que estivesse qualificado por laços de sangue já que a sua mãe fora uma mulher de sangue real. Porém, era evidente que, ao decidir deixar passar a oportunidade, Bridei perdera um aliado poderoso e um amigo. As terras de Carnach situavam-se estrategicamente na fronteira, entre Fortriu e Circinn. Seis anos antes, a sua decisão de apoiar Bridei na sua pretensão ao trono de Fortriu fora perigosa; como aliado, Carnach era inestimável. Como inimigo, seria formidável. Era essencial reconquistar a sua confiança.

Quanto a Broichan, Bridei perguntou a si próprio se teria julgado mal o seu pai adotivo. Tinha saudades dele; temia por ele ao ar livre, molhado e cheio de frio, sozinho e com uma saúde precária. Por outro lado, o druida era dono de uma disciplina de ferro, uma força que Bridei conhecia perfeitamente.

Fora um choque descobrir que o druida não estava em Monte Branco e saber que perdera a oportunidade de lhe dar a notícia da sua decisão antes de a anunciar à corte, o que o enchera de dúvidas. No fundo tinha sido uma traição. Naquele momento, na véspera da assembléia, na qual teria de anunciar a morte de Drust e as suas próprias intenções, o que o Rei mais queria era o conselho sábio do seu pai adotivo.

Bridei aprendera muito cedo que para conseguir que um homem como Broichan aceitasse notícias indesejadas, era fundamental apresentá-las de uma determinada maneira, com argumentos lógicos. Se o seu pai adotivo estivesse a seu lado, explicar-lhe-ia as suas razões: o desejo de paz, a necessidade de sarar as feridas do seu país após tanto tempo de guerra, a urgência de construir alianças e fortalecer as fronteiras. Apesar de ser sua convicção de que os deuses queriam ver Fortriu e Circinn reunidos na antiga fé, não queria avançar naquele momento.

Bridei, sentado sozinho na pequena câmara do conselho, ponderava naquelas coisas e no fato de a liderança em tempo de paz frágil ser mais desafiadora do que em tempo de guerra. Os conflitos juntavam as pessoas desde que elas acreditassem na causa. Só quando o perigo passava é que começavam a fazer perguntas. Quando não estavam unidas contra um inimigo comum, inventavam as suas próprias disputas e desavenças. O Rei teria recebido bem as observações do seu pai adotivo sobre o assunto e também gostaria de o debater com Faolan.

Bridei suspirou. Quanto mais tempo o seu braço direito se demorava, mais parecia necessitar dele. Faolan podia ter ido à procura de Broichan, podia ter ido atrás de Carnach para avaliar os riscos naquele quadrante. Acima de tudo, podia ter servido em Monte Branco como protetor e porta-voz do Rei. Faolan era a antítese de Broichan, mas tinha uma sabedoria especial que lhe permitia ultrapassar as irrelevâncias com a mesma facilidade com que uma faca corta manteiga mole. Ninguém conhecia o seu passado porque ele nunca falava dele. Não, não era exatamente verdade. Parecia que, ao longo da árdua jornada pelo norte no Outono anterior, se abrira a Ana e a Drustan, mas nenhum destes trairia a sua confiança e assim é que devia ser. Fosse qual fosse a sua história, tornara-o mais forte. Quando regressasse a Fortriu, na Primavera, teria recuperado do seu desgosto de amor, o qual conhecera desenvolvimentos surpreendentes, e estaria pronto a reassumir mais uma vez os seus deveres em Monte Branco. Entretanto, a única pessoa capaz de ouvir as confidências do Rei e de o ajudar no seu dilema era Tuala.

Como que em resposta aos seus pensamentos, a mulher de Bridei bateu gentilmente à porta e entrou. Apesar de se conhecerem desde que ele era criança e ela um bebê, o coração do Rei sobressaltava-se sempre que a via. Naquela noite, Tuala usava uma túnica em tons de violeta, larga para acomodar a criança que lhe crescia no ventre, por cima de uma saia de lã cinzenta, e uns macios chinelos de pele de cabrito. Os seus cabelos negros formavam uma trança pelas costas abaixo, mas alguns tufos rodeavam-lhe o rosto, formando um halo suave, e a fita estava meio desatada. Os seus olhos, quando ele atravessou a sala para a abraçar, estavam perturbados.

— Oh, Bridei — disse ela —, lá estás tu sentado outra vez às escuras, preocupado. Lamento tanto. Se eu soubesse que Broichan ia reagir daquela maneira, só o teria confrontado depois de a crise ter passado, quero dizer, Drust e a eleição...

— Chhh — disse Bridei, tapando-lhe a boca com os dedos e debruçando-se para a beijar. Apesar de a gravidez da Rainha estar avançada, a sua barriga era pequena. Tuala sempre fora uma rapariga franzina e o bebê parecia sair à mãe em estatura, tal como Derelei. — Não peças desculpa. Quem teria previsto que Broichan tomaria uma decisão tão drástica? Ele não é conhecido por ser impetuoso. Tenho estado sentado às escuras, como disseste, a planear exatamente a maneira de lhe explicar a minha decisão quando ele regressar. — O Rei afastou-se e acendeu uma lâmpada com a única vela que tirou da mesa atrás de si. — Pergunto a mim próprio se o futuro dos reinos Priteni perderá importância aos olhos de Broichan perante a possibilidade de ele poder ser o pai da Rainha de Fortriu. Ainda tenho dificuldade em compreender como a hipótese nunca lhe passou pela cabeça.

O brilho da lâmpada espalhou-se pela pequena câmara, fazendo brilhar os grandes olhos de Tuala, como os de uma coruja.

— Espero que ele esteja bem — disse ela, simplesmente. — Está tanto frio.

O casal real calou-se, recordando um Inverno durante o qual os esforços determinados de Broichan para afastar Tuala da vida do seu filho adotivo a tinham levado à sua jornada desesperada pelo Vale fora, através da neve. Se o druida era realmente o seu pai, tinha muito que explicar.

— Sabes... — começou Tuala, parando logo a seguir. Bridei esperou.

A jovem Rainha torceu as mãos e continuou, franzindo ligeiramente a testa:

— Lembras-te quando fugi de Banmerren com aqueles dois? Tuala referia-se ao rapaz e à rapariga dos Boa Gente, guias do

Outro Mundo que a tinham ajudado na fuga e quase a tinham convencido a abandonar o mundo dos humanos para sempre. Bridei nunca recordava aquela noite de terror, prodígios e morte sem um arrepio.

— Hum — disse ele.

— Lembras-te do que te disse, que me atirei da muralha porque pensava que era uma coruja? Devo ter mudado, como Drustan, mas só por um momento. Devo ter voado, mas não por causa de um feitiço ou de um encantamento. Eu não tinha consciência de que estava a fazer magia. Fi-lo sem pensar. Bridei, acho que sou capaz de o fazer outra vez, se quiser. Aquilo ou outra coisa parecida.

Bridei não sabia exatamente onde ela queria chegar, apenas que se sentia profundamente ansiosa, andando de um lado para o outro, excitada, coisa que não era habitual. Tuala sempre fora o seu centro de gravidade, a sua âncora e o seu repouso.

— Imagino que sim — disse ele. — E percebo por que razão nunca mais o tentaste.

— Pensei... suponho que tenho pensado em Derelei e no que acontecerá sem a presença de Broichan. O nosso filho é demasiado pequeno para compreender o significado da palavra nunca. Ele vê Broichan todas as tardes, senta-se e espera, com mais paciência do que é natural numa criança da sua idade, e quando ele não aparece, enrosca-se e mete o dedo na boca, como um bebê.

— Ele ainda é um bebê. Não disseste que ele é demasiado novo para um estudo tão intensivo? Talvez isto permita que Derelei possa passar mais tempo a ser criança antes de se tornar um mago, um druida ou o que quer que o espera no futuro.

— Eu deixo-o correr com Ban, dar pontapés numa bola e brincar com os filhos de Garth — disse Tuala com um tom de voz que não era habitual. — Ele gosta. Há pouco tempo ter-te-ia dito que é o suficiente para qualquer criança da sua idade. Porém, Broichan tinha razão: Derelei é precoce. Não tem culpa do que herdou de mim, de ti, do próprio Broichan. Ele gosta da sua tutela e gosta de aprender a arte. Anseia por ela. Já tem saudades das lições. Seria tudo muito mais fácil se soubéssemos quanto tempo Broichan vai estar ausente. Bridei sorriu.

— Pelo que aconteceu, suponho que ele não planeou nada. Tudo o que sei é que, se ele não quer ser encontrado, vai ser preciso uma pessoa muito especial para o descobrir. Duvido que os homens de Tharan sejam capazes.

— Concordo — disse Tuala. — Mas eu acho que sou.

— O qu...? — Bridei calou-se. Tuala não era dada a declarações tolas ou ridículas, saía a Broichan. — Isso deixa-me muito preocupado — disse ele. — Se estás a dizer o que penso, os riscos são tantos que nem me atrevo a enumerá-los. Broichan foi precipitado, não merece esse tipo de resposta, Tuala. Além disso, estás à espera de um filho.

— Estás a falar deste? — perguntou ela, pousando uma mão branca na barriga. — A gravidez não impede uma raposa, um veado ou um texugo de atravessar a floresta, Bridei, seja qual for a estação. Quanto a merecer ou não, se ele é meu pai, tenho a obrigação de velar pela sua segurança. Ficaste tão pálido como um queijo fresco, meu querido. Não fiques preocupado, não tenciono agir já, estou apenas a pensar em voz alta. Talvez recebamos uma mensagem em breve a dizer que ele chegou a Pitnochie e que não há razão para termos medo. Pensei no assunto por causa de Derelei, e acho que vou ter de continuar o trabalho de Broichan. Ele já sabe alguns truques, já tem algumas capacidades que podem vir a ser perigosas se o deixarmos desenvolver-se sem ajuda.

Bridei anuiu. Estava à espera daquilo, mas não do resto.

— Destaca alguns guarda-costas — disse ele. — Fala com Aniel. Ele é de confiança e pensa muito bem de ti. Wid também pode ser útil. Sinto que tens a boa vontade de todos, na corte. Os que vão e vêm, porém, não são de tanta confiança e nós estamos a entrar em tempos difíceis graças à morte de Drust.

— Eu tenho cuidado — disse Tuala. — Não faria nada que te prejudicasse, Bridei. Espero que saibas — concluiu ela, subitamente próxima das lágrimas.

— Não era isso que eu queria dizer... Tuala, por favor não chores. É claro que não era isso que eu queria dizer — disse ele, abraçando-a, consciente de quão franzina ela era apesar da criança no ventre. — Se falei em guarda-costas foi porque temo por ti, não por mim, minha querida. Não quero que sofras por nada deste mundo. Sabes o que algumas pessoas pensam, aproveitarão a menor coisa fora do vulgar na vida pessoal do Rei para o desacreditar. Devido à minha decisão de não me candidatar ao trono duplo, vamos estar debaixo de vigilância constante.

— Coisa fora do vulgar. Penso que nunca me tinham chamado isso antes — disse Tuala, sorrindo por entre as lágrimas.

— Eu não queria dizer...

— Estou a brincar, Bridei. Estes últimos dias choro por tudo e por nada. Acho que é por causa do bebê. Espero que esta fraqueza passe assim que ele nascer. E não te preocupes com a outra sugestão. Se decidir tentar uma transformação mágica, aviso-te primeiro, para que saibas que a barata na tua almofada pode ser a tua mulher.

— Desde que possas mudar outra vez... — disse Bridei frivolamente, guardando para si próprio o terror que sentira perante a possibilidade de ela tentar tal coisa.

Uma dor regular, desagradável. Um cavalo a galope, cada um dos passos uma nova facada no pescoço, uma nova sacudidela na cabeça pendurada. Estava atravessado numa sela, com a cabeça para baixo. Atravessaram um rio a vau e ficou com os olhos todos molhados. Tudo o que via era o flanco do cavalo e uma correia de couro com uma fivela. Deuses, aquilo doía.

Eile. Onde estava Eile? Ninguém falava. A cavalgada era rápida e tinha um propósito definido. Provavelmente, visto que estivera inconsciente, os homens da ponte já a deviam ter levado, juntamente com a criança, para Montanha Nublosa, para a castigarem. Maldição! Em nome de todos os poderes, que dera à gente de Echen para o prender naquele momento? Pelo menos supunha que era gente de Echen, apesar de se dizer que o chefe-de-guerra tinha morrido quatro anos antes. Reconheceria as cores azul e preta em qualquer sítio. Via-as em sonhos desde a última noite em casa do seu pai, durante a qual o seu sono inquieto fora precedido por outra pancada na cabeça.

O chefe-de-guerra de Blackthorn Rise podia ter morrido, mas os métodos dos seus homens não tinham mudado. Certamente que a velha rixa tinha desaparecido depois de tudo o que tinha acontecido? Certamente que não havia ninguém, pelo menos na sua família, que quisesse que ela continuasse? Só ele, e a sua discórdia fora com Echen, não com os seus familiares. Era demasiado tarde para se pensar em vingança.

Eile. Saraid. Tinha de se livrar daquilo e ir à procura delas. Apesar de toda a bravata, a rapariga estava assustada e com razão. Mais tarde ou mais cedo seria confrontada com o que fizera e aos olhos da justiça formal não tinha defesa. Provavelmente, Saraid seria entregue à tia e não seria bem-vinda. Quanto a Eile, não sabia bem qual seria a pena, mas as possibilidades eram várias e nenhuma delas agradável. Não podia permitir que acontecesse tal coisa à filha de Deord. A rapariga era frágil, era só pele e osso. Tinha de a pôr... Não, tinha de as pôr em segurança.

O cavalo estava a subir uma encosta. A cabeça de Faolan era sacudida para baixo e para cima, fazendo-o bater involuntariamente com os dentes na língua. O assassino sentiu o gosto do sangue e conseguiu ver os outros cavaleiros de relance: botas pretas, camisas azuis c o brilho da prata dos arreios. Um monte com vidoeiros e uma torre. Faolan pensou reconhecer o local. Um cão. Também o reconheceu. Um animal persistente. Os seus flancos subiam e desciam e a cauda estava em baixo, mas corria sempre. Talvez ela estivesse no grupo. Porquê? Por que razão a tinham trazido?

O carreiro lamacento transformou-se em gravilha e depois em pedra. Tinham chegado a um lado qualquer. O cavalo parou. Umas mãos rudes desataram Faolan e deixaram-no cair no chão como um saco de cebolas. O cão lambeu-lhe o rosto. Mesmo por cima da mordaça Faolan procurou Eile, mas viu apenas um círculo de rostos masculinos.

— Levem-no e fechem-no — disse a voz de uma mulher. — Não lhe desatem as mãos e os pés senão quanto estiver bem seguro. Esse homem tem fama de conseguir fugir. Toca a andar. Mexam-se.

Um homem corpulento, que cheirava a alho, pegou nele como quem pega num saco, levou-o para um edifício de pedra, deixou-o cair num monte de palha e só então lhe tirou a mordaça e lhe desatou as mãos e os pés, ao mesmo tempo que dois outros lhe encostavam ao peito as pontas das suas lanças.

— Depois daquela cavalgada — disse o assassino — podeis acreditar que não tenho forças para rastejar, sequer, até à porta, quanto mais fugir. — Louvados fossem os Deuses, seria aquilo o prelúdio de outra estadia em Fenda da Pedra-que-Quebra? A sua pele arrepiou-se só de pensar na possibilidade. Deord, meu amigo, que me fizeste? — Não me ides dizer que o meu informador se enganou e que Echen Uí Néill afinal de contas não morreu?

— Cala a boca, sim? — resmungou o matulão. — Aqui quem dá ordens é a Viúva e não te compete questioná-las. E agora não tentes nenhuma estupidez ou voltamos a atar-te as mãos e os pés antes que consigas, sequer, pestanejar. Toma. — Um outro homem, talvez um criado, aparecera com um cobertor e o corpulento homem atirou-o para a palha onde Faolan, meio acocorado meio deitado, esfregava os membros para restabelecer a circulação. Não valia a pena tentar resistir. Só faria com que o espetassem com as lanças. O cobertor parecia ser um sinal positivo.

— Obrigado — murmurou ele, puxando-o para si. — Estava uma rapariga comigo. E uma criança. Vós...

Porém, a uma palavra do chefe, os guardas já tinha saído da cela.

— Nada de brincadeiras — disse-lhe o matulão da porta. — Está um homem armado no lado de fora da porta e mais lá fora.

— Nem sequer me passou pela cabeça. — Em seguida, quando o tipo já se afastava: — Suponho que não me podeis dizer por que razão estou aqui? Que pensa essa tal Viúva que eu fiz?

— Não faço idéia. Nós só fazemos o que nos mandam, mas parece que a ofendeste, de certo modo, mas ela diz-te quando achar por bem.

— Por que será que não fico descansado? — murmurou Faolan, envolvendo-se no cobertor.

O matulão cruzou os braços, encostado à ombreira da porta.

— Ela é dura — disse ele. — Tão dura como qualquer homem, mas se tiveres a consciência tranqüila não tens nada a temer. — A porta gradeada fechou-se, Faolan ouviu o clangue do ferrolho e depois o som dos passos a afastarem-se.

As perguntas misturavam-se no cérebro. Estava habituado. Ajudaria saber o que a mulher lhe queria. Quem era? A Viúva; a palavra fora dita como se fosse um título. Faolan supunha que era a Viúva de Echen, se bem que não se lembrasse de ele ter uma mulher. Alguém lhe dissera, na outra margem do rio, que ela geria as terras em nome do filho; que o irmão de Echen, que era o herdeiro, não estava interessado. Portanto, ela tinha poder — mais uma vez o marido? O assassino deu consigo a tremer e esforçou-se por parar. Tinham-se passado anos desde que o seu irmão conduzira uma revolta contra a chefia cruel de Echen e pagara, não só com a própria vida, mas também com a própria família.

Aquela Viúva saberia quem ele era? Um dos tipos presentes na ponte, na noite anterior, parecia conhecê-lo. O seu regresso teria sido o suficiente para dar origem a uma mensagem para aquela dama, precipitando o seu aparecimento na margem do rio naquela manhã? Certamente que não. Ela devia conhecer a história, claro; toda a gente por aquelas bandas a conhecia, devia fazer parte das lendas locais. Porém, ninguém o confrontara com ela na sua presença; não tivera tempo de declinar o seu nome antes de o porem fora de combate. Talvez não passasse tudo de um erro de identidade.

Havia outra possibilidade. A dama era uma Uí Néill, pelo menos por casamento, familiar do Rei e de Gabhran, o monarca deposto da Dalriada celta. E ele estava ali como espião, estava ao serviço do inimigo: Bridei de Fortriu, o homem que conseguira uma vitória espantosa sobre a força rica em príncipes Uí Néill. Faolan achava que ela não sabia que ele era especialista em missões sob disfarce. Tinham-lhe levado o saco mas, felizmente, não lhe tinham pedido para se despir. Como tal, não sabiam que tinha consigo uma certa quantidade de prata e algumas armas escondidas.

Faolan examinou pormenorizadamente a cela. A última vez que estivera preso, na fortaleza de Alpin, em Briar Wood, um pássaro fora-lhe buscar a chave. Tal coisa não ia acontecer ali, nem sequer uma fuga mais vulgar porque a única janela tinha grades, a porta era forte e como não podia começar um túnel por baixo das paredes de pedra, não podia fazer grande coisa. Pela sua mente passou uma imagem de Eile e da criança de regresso à cena da tal morte violenta, cativas. Da tal morte violenta e justificada. Repugnava-lhe pensar naquilo, naquele homem miserável em cima dela a roubar-lhe a infância, fazendo dela uma espécie de escrava, servindo-se do seu amor e medo pela peque-nina para a obrigar a ceder... A tia não era melhor: demasiado fraca para fazer o que devia. Eile limitara-se a sobreviver, supunha ele, porque era uma digna filha do seu pai. Forte, indomavelmente forte, apesar de fraca fisicamente. Faolan esperava que ela estivesse sã e salva, esperava que ela não fizesse nenhuma tolice, como tentar lutar ou enfurecer as pessoas erradas. Em Encruzilhada do Rabequista, muitos anos antes, tinham-lhe roubado a possibilidade de salvar a irmã, mas ali podia salvar Eile, a ela e à filha, e consegui-lo-ia, custasse o que custasse. Eram sobreviventes, os dois. Ajudá-la-ia. O assassino deitou-se na palha, tapou-se com o cobertor e Semicerrou os olhos. Acontecesse o que acontecesse, estaria pronto.

— Não! — protestou Eile, gritando, apesar de todos os seus esforços para se controlar. — Ela está assustada! Não a leveis, por favor...

— Ela não pode ficar aqui no estado em que está e tu também não. — Quem falava era uma mulher grande metida num vestido caseiro simples e com um avental de linho brando em redor da cintura. — Consigo ver-te os piolhos no cabelo. Ninguém põe a cabeça nas minhas almofadas nesse estado.

— Deixa-me ir com ela...

— Em nome de Brighid, rapariga, pára com essa choradeira, sim? É só um banho. Enquanto a rapariga trata da pequenina, eu fico de olho em ti. Dir-se-ia que nenhuma de vós viu alguma vez água quente. Cala essa boca e vem comigo. A pequena não está a chorar, pois não?

Porta-se melhor do que tu. E se ela não está nervosa, por que havias de estar tu?

Saraid estava nos braços de uma jovem criada de rosto doce, a caminho de uma parte qualquer daquela casa enorme. E estava silenciosa, sim, porque aprendera a necessidade depois de três anos na cabana de Dalach. Eüe hesitou por um momento, libertou-se dos braços da mulher gorda e lançou-se pela câmara fora para arrancar a filha dos braços da outra antes que desaparecesse para sempre.

— Não! — disse ela. Não fora exatamente um grito. — Se é preciso tomarmos banho, que seja... mas juntas.

As duas criadas pareciam perplexas, mas algo no rosto de Eile as impediu de protestar.

— Está bem, anda lá então — disse a mais velha. — Aoife, não é? Nome engraçado para uma rapariga como tu. E como é que se chama a tua irmã?

A mulher olhou estranhamente para ela.

— Ah sim? É uma boneca, não é? Tão calada. Ela sabe falar?

— Tem três anos, é evidente que sabe falar — disse Eile, rangendo os dentes. — Está assustada, mais nada. Onde é o banho?

A mulher conduziu-a até uma câmara que parecia ser uma copa ou um quarto de banho, se bem que maior do que a casa toda de Dalach e Anda e tinha uma lareira que estava acesa. Tinha também baldes, escovas, toalhas, cordas esticadas para secar coisas e prateleiras com panelas, frascos e tachos. No centro da divisão, de pavimento de pedra, estava uma grande bacia de onde subiam nuvens de vapor.

— O meu nome é Maeve — disse a mulher grande. — Sou a governanta. Tira a roupa. A criança também. Depois, mete-te ali dentro. Vamos ter muito trabalho, Orlagh. Vê se arranjas óleo de rosmaninho para o cabelo. E pede a uma das criadas que procure roupas para ambas. Que é isso que estás a usar, rapariga? Calças de homem? — concluiu ela, torcendo o nariz.

— Não tens nada com isso — resmungou Eile, olhando para a tina fumegante. Não se lembrava da última vez que tomara banho de água quente. Fora, de certeza, antes de ter ido viver com eles. Anda só permitia água fria, exceto para Dalach, mas ele raramente se lavava.

Saraid tinha uma mão fechada encostada à boca e a boneca na outra.

— Esquilo — murmurou Eile, acocorando-se ao lado da pequenina. — Vamos tirar a roupa e tomar banho. Estas senhoras simpáticas vão ajudar-nos. Põe a ‘Lamento ali; eu levo-a. Vês, ela pode ficar em cima da arca a olhar para nós. Agora eu vou tirar esta camisa e tu fazes o mesmo com a tua...

Eile fazia os possíveis para que nem a filha nem aquela mulher inquietantemente competente percebessem que estava com medo. Ninguém dissera quem era o seu captor ou o que lhes ia acontecer. Aquela gente sabia o que ela tinha feito; o homem na ponte dissera-lhes. Podiam muito bem tirar-lhe Saraid a qualquer momento. Podiam prendê-la, deitar fora a chave e nunca mais veria a filha. Não fazia idéia. Desde que tinham chegado ali que ninguém lhe dizia nada, limitavam-se a dar-lhe ordens como: Por aqui! Dá-me o saco! Senta-te!

— Sabe... — começou ela, tremendo enquanto tirava a camisa de Faolan pela cabeça. — Isso mesmo, Esquilo... sabe onde está o homem que veio conosco? O que vinha atravessado na sela? Ele é nosso amigo.

— Não sei. — Maeve esperava de braços cruzados, batendo com o pé no chão. — Depressa, tira lá isso, não tenho o dia todo. Orlagh! Onde está o óleo?

Orlagh, porém, não se mexia, olhava espantada enquanto Eile despia as calças e a roupa de baixo esfarrapada. Por um momento, a jovem não percebeu porquê; já bastava ter de estar nua numa casa estranha com uma mulher a olhar estupidamente para ela. Então, percebeu que era por causa das nódoas negras. Estava tão habituada a elas, cinzentas e amarelas as mais antigas e azuis e púrpura as mais novas, que nunca pensara quantas tinha. Talvez as mulheres como aquela governanta bem alimentada e a sua assistente curiosa não tivessem homens com poderes absolutos sobre elas, homens que lhes batessem com toda a naturalidade. Anda também tinha nódoas negras. O fato de estar do lado de Dalach não servia de desculpa. Eile tentou tapar-se com as mãos, sentindo-se subitamente envergonhada e ao mesmo tempo curiosamente orgulhosa.

— Deixa lá, rapariga — disse calmamente a governanta. — Orlagh, disse-te para ires buscar o óleo.

Eile pegou em Saraid pela mão e aproximou-se da tina. A pequenina tentou recuar e soluçou.

— Não está tão quente como parece — disse Eile, metendo cuidadosamente uma mão na água. — Vês? Está boa. Vá, Esquilo: um, dois, três.

Um pouco mais tarde, sentada na água quente e sentindo o conforto a espalhar-se pelo corpo cansado, Eile perguntou a si própria se estaria a sonhar. Talvez acordasse e visse que estava de regresso à cabana de Dalach a fazer tudo de novo, só que sem a faca... A jovem regressou subitamente à realidade. A mulher, Maeve, estava a deitar-lhe água pela cabeça abaixo e a esfregar-lhe os cabelos vigorosamente.

— Trata da criança — ordenou ela. — A cabeça toda, percebes? E preciso que fiquem as duas sem um único piolho antes de porem os pés no resto da casa. Vamo-nos fartar de as pentear. Louvada seja Brighid, rapariga, quem é que tem cuidado de vós? Isto é criminoso.

— Nós — respondeu Eile, abespinhada com a crítica. — Ela está bem, não está? Que mal tem meia dúzia de piolhos? — perguntou ela, vendo Orlagh trocar com Maeve um olhar que não percebeu.

Os dedos da governanta continuaram a esfregar dolorosamente a cabeça de Eile; um aroma doce a ervas encheu o ar. Saraid estava metida na água até ao pescoço, sentada entre as pernas da mãe e submetia-se silenciosamente à lavagem do cabelo, mas Eile sentia-lhe a ansiedade no pequeno corpo, o mesmo desejo de fuga que ela própria sentia apesar da delícia de se sentir novamente quente. A jovem estava nua, molhada e entre duas estranhas, não sabia o que viria a seguir e tinha montes de perguntas que não se atrevia a fazer. O que é que aquela senhora me vai fazer? Vão castigar-me, não vão? Vão prender-me e vão magoar-me? Por favor, por favor, não levem Saraid...

— Para onde vamos depois disto? — perguntou ela. A pergunta parecia razoavelmente segura.

— Só me disseram para te lavar, vestir e alimentar, mais nada. — Maeve estava a enxaguar o óleo, com uma mão a impedir que a água lhe fosse para os olhos. — Podes dormir esta noite num canto qualquer, numa enxerga, se ela não te chamar até lá. Parece-me que não vos fazia nada mal uma boa noite de sono.

— Chamar-me? — perguntou Eile, fazendo um esforço para que a voz lhe saísse forte da boca.

— É normal, não te parece? A lei anda atrás de ti e nestas paragens a Viúva é a lei. Ela ouve-te e depois decide o que fazer. Não me olhes assim, rapariga. Ela não tem razão para não ser justa contigo. Pega, serve-te desta concha para enxaguar o cabelo da pequena, para depois a limparmos. Ela não pode ficar com isto, está cheio de piolhos.

A governanta pegou na boneca de trapos com dois dedos e dirigiu-se para a lareira.

Saraid gritou. O som trespassou Eile como uma faca, fazendo-a saltar do banho e entornando água pelo chão.

— Não! Ela precisa dela!

Maeve, pálida, estendeu-lhe a boneca e Eile arrancou-lha da mão.

— Chhh, Saraid, chhh, tenho aqui a Lamento, ela está salva. Levanta-te, deixa que a senhora te seque e eu depois a dou. Ela está bem, Saraid. Pronto, pronto.

Depois de se limpar, deram-lhe roupa para se vestir, não tão boa como a de Faolan, mas de boa qualidade, quase sem remendos. Saraid ficou com um pequeno vestido, umas meias e um xale de lã, no qual ela meteu a boneca. Eile ficou com uma camisa e uma saia, um traje mais formal. Havia muito tempo que não se sentia tão quente e a pele formigava-lhe devido à água quente e às esfregadelas. Também se sentia cansada e apetecia-lhe deitar-se imediatamente apesar de ser dia.

Foram levadas para outra câmara e enquanto Orlagh penteava meticulosamente os longos cabelos de Eile com alguns resmungos pelo meio, esta penteava os de Saraid, uma tarefa mais fácil visto que a criança estava habituada a escovar diariamente os caracóis escuros. A jovem pensou em como as suas tentativas para manter um certo nível em Montanha Monte Nublosa tinham sido inúteis. Era evidente que aquelas duas mulheres, ambas criadas, achavam-nas umas desgraçadas, umas inaptas e umas imundas e era-lhe difícil esconder a vergonha; tentara manter Saraid agradável à vista e fizera o melhor que pudera.

— Para onde estás a olhar? — perguntou ela com voz cortante, interceptando o olhar da governanta quando esta regressava com um tabuleiro nas mãos. — Não somos nenhuns animais selvagens!

— É verdade o que dizem? — A voz de Orlagh era hesitante. — Que mataste alguém?

— Orlagh! — O tom de Maeve era de aviso. Eile afastou-se do pente a tremer.

— Se pensas que vou responder a isso, és estúpida. Eu penteio-me, obrigada. Não preciso que tratem de mim. Se essa tal dama acha que não prestamos para estar na sua bela casa, talvez nos possas deixar sair pela porta das traseiras. Nunca mais nos põem a vista em cima. Não pedimos que nos dessem banho.

— Orlagh, já não preciso de ti — disse Maeve, pousando o tabuleiro, ao mesmo tempo que a criada se retirava perante o olhar gelado da governanta. — Talvez ainda não tenhas percebido, rapariga. Vem, senta-te aqui à lareira, come qualquer coisa enquanto eu tento explicar-te. Tenho a certeza que a pequenina é capaz de querer uma malga de sopa e um pedaço de pão. Anda lá. — A governanta parecia que estava a chamar um animal selvagem para fora da toca.

Eile lembrou-se de uma coisa.

— O nosso cão, o cão que vinha conosco. Onde está?

— Cão? Não sei. Suponho que deve estar algures no pátio, se não fugiu.

— Importas-te de saber? — A sopa cheirava maravilhosamente, tão bem como o pequeno-almoço que Faolan lhes levara dois longos dias antes. — Podes comer, Esquilo. Senta-te direita e não enchas a boca.

— O cão é a menor das tuas preocupações, rapariga. Disseram-me que és acusada de uma morte ilegal. Primeiro vais ter de te explicar à dama e depois, dependendo do que ela decidir, podes ter de comparecer perante um brithem, um homem de leis.

— Eu sei o que é um brithem, não sou nenhuma ignorante.

— Come, rapariga, pareces esfomeada.

Eile partiu o pão em quatro bocados, colocou um no prato e procurou umas algibeiras no seu novo traje; os três bocados restantes durariam um dia ou dois a Saraid. A jovem levantou os olhos e encontrou os de Maeve.

— Não precisas de fazer isso — disse a governanta. — Nós aqui alimentamos as pessoas como deve ser. Mais logo tens o jantar. Isto é só por agora. A tua irmã tem maneiras. Eu própria não a teria educado melhor.

As lágrimas subiram aos olhos de Eile e ela fungou, tentando não as deixar cair. Por que razão aquela estranha havia de ser simpática se não quisesse qualquer coisa?

— Eu respondo às perguntas dessa tal dama — disse ela — mas só se deixar que Saraid... Esquilo fique comigo. Ela não tem mais ninguém Não quero que se assuste.

— Há crianças nesta casa; brinquedos, amas. Não é preciso ela...

— Ninguém a leva. — Eile, que mal começara a comer, pousou a colher cheia de grãos e vegetais deliciosos. — Eu não vou a lado nenhum nem faço nada sem ela. E quero saber onde está Faolan. Eles fizeram-lhe mal e eu não gostei nada.

Na boca de Maeve pairava qualquer coisa parecida com um sorriso.

— Não te rias de mim! — exclamou Eile, perdendo o controlo já de si precário.

— Come a sopa, minha filha. Entretanto, dou-te um conselho. É melhor moderares o teu temperamento com a Viúva. Ela admira a força e ainda mais quando está devidamente controlada. Talvez a aches intimidante, mas não fazes mal, e só te ajuda, se fores cortês e honesta. Anda lá, come isso, faz-te bem. A tua irmã já acabou e tem metade do teu tamanho.

— Ela não é minha irmã, é minha filha — murmurou Eile. Se era suposto ser honesta, podia começar mesmo ali.

— Que Brighid nos salve — disse Maeve, suavemente. — Pobre criança. Escuta. Eu vou ficar aqui até que comas isso e o pão até ao fim. Depois vou meter-vos às duas na cama. A senhora só vos vai querer ver mais tarde; temos tempo.

As pálpebras de Saraid estavam a fechar-se. Em frente da lareira, os seus cabelos, à medida que secavam, transformavam-se em caracóis reluzentes.

— E tentas saber de Faolan? Por favor?

— Veremos. Anda lá, ou tenho de te meter a colher na boca como se fosses um bebê?

Pouco depois, Eile era conduzida a um quarto que lhe pareceu enorme, com filas de enxergas e arcas para arrumações. Em cima de uma mesa encostada à parede estava um jarro e uma tigela e a janela cunha persianas pintadas de azul.

— É aqui que Orlagh e as outras criadas dormem — disse a governanta. — Ficas com esta cama. A pequenina fica naquela a seguir. Ninguém vos incomoda durante um bocado. Tu estás exausta e ela já está meio a dormir. Dê-me, que eu aconchego-a...

— Eu deito-a — disse Eile, apertando a criança contra o peito. — Ela está habituada comigo. Tens a certeza...? — A jovem não conseguia dizer o que temia: a chegada súbita de uns estranhos menos amáveis que a levassem ao murro e ao pontapé para longe de Saraid. Não lhe parecia seguro dormir; não sem ter Faolan a vigiar-lhe o sono.

— Eu chamo-te a tempo e horas, não te preocupes. Entretanto, dorme tranqüila que eu não deixo que ninguém te perturbe.

Depois de Maeve ter saído, Eile meteu Saraid numa das camas e sentou-se junto dela, cantando-lhe baixinho enquanto ela adormecia abraçada à boneca embrulhada no xale. A jovem lembrava-se de a ter feito a partir de um dos velhos vestidos da sua mãe e de como Anda ficara zangada por causa do desperdício do material. Eile pensava lembrar-se de também ter tido uma boneca, muito tempo antes, na casa da encosta. Cabelos de lã, suficientemente grandes para poderem ser penteados; pequenos sapatos feitos de restos de pele; olhos verdes como os seus. Talvez fosse apenas imaginação. Lamento era bem pobre, pedaços de pano enfiados em tecido grosseiro e cada vez menos humana à medida que o tempo ia passando. Para Saraid, porém, era a boneca mais linda do mundo.

Talvez se pudesse deitar um pouco. Podia ficar acordada e descansar na mesma. Doíam-lhe as costas da cavalgada e tinha a cabeça a andar à roda. Eile deitou-se ao lado da filha. O cobertor era quente; ali tratavam bem as criadas. A almofada era macia, parecia de penas. Não admirava que a mulher não quisesse que ela pusesse nela a cabeça toda suja. A jovem reparou com indiferença que os seus cabelos, à medida que iam secando, iam adquirindo uma cor diferente da habitual, castanha-escura; parecia ter muitos tons ruivos, desde os da pele de uma raposa aos das folhas dos vidoeiros no Outono. Em novo, o seu pai tinha cabelos ruivos e quando regressara daquele sítio, Fenda da Pedra-que-Quebra, como estivessem brancos, ele rapara a cabeça. Os da sua mãe eram castanhos-claros, como os de Saraid.

— Pai — murmurou ela — tenho medo, mas vou fazer os possíveis. Mãe, fica descansada, eu olho por ela, prometo. — E adormeceu.


CAPÍTULO CINCO

 

— Tens a certeza de que queres levar a criança contigo? A senhora está à espera que lhe contes a história toda. Não queres que a criança ouça, pois não?

Estavam no lado de fora de uma grande porta de carvalho com um pesado ferrolho e dois guardas. Maeve tinha o sobrolho franzido e tinha as mãos nas ancas. Eile, com os nervos em franja apesar do longo sono, agarrava com força na mão de Saraid.

— Ela pode ficar sentada a um canto, onde me possa ver mas não ouvir. Ela porta-se bem.

Maeve suspirou.

— Vou perguntar à senhora se pode ser. Estás pronta?

Nunca estaria pronta para aquilo, pensou Eile, tensa como a corda de um arco.

— Hum — conseguiu ela dizer.

— A propósito, o cão ainda está cá. Está sempre à porta da cozinha a incomodar toda a gente.

— E Faolan?

— Não sei nada sobre ele. Podes perguntar à senhora, mas não já. Mais tarde, depois de responderes às perguntas dela. Lembra-te do que te disse.

— Eu não sou nenhuma criança — disse Eile, respirando fundo. Se não tivesse cuidado ainda acabava por chorar, ou fugir, ou fazer qualquer coisa errada. — A minha mãe ensinou-me boas maneiras. — Era verdade, apesar de não precisar delas em casa de Dalach, onde as ameaças e as fanfarronadas eram moeda corrente.

Entraram. Aquela casa estava cheia de salas enormes e aquela era a maior que Eile vira até então. As paredes tinham tapeçarias com homens a cavalo a caçar veados e lobos. A lareira era larga, tinha uma pedra esverdeada e estava acesa; era evidente que aquela gente não precisava de poupar lenha. Um pequeno cão correu para elas aos latidos. Saraid escondeu-se atrás da saia de Eile, mas quando o animal se aproximou e os cumprimentos se transformaram em abanares de cauda e fungadelas, a criança estendeu uma mão para lhe tocar na cabeça.

No extremo da grande sala estava uma mulher sentada numa cadeira alta. A luz que entrava pela janela brilhava-lhe no rosto branco oval, decidido, em contraste com as tapeçarias escuras penduradas na parede atrás de si. A mulher estava guardada por dois homens armados, um de cada lado, e mantinha-se imóvel e completamente silenciosa enquanto Maeve se aproximava com Eile e Saraid pelo chão de pedra. O cão caracoleava em redor das duas e só parou quando elas chegaram em frente daquela espécie de trono.

Maeve esboçou uma vênia. Eile imitou-a, tentando assumir a atitude de respeito devida a uma pessoa de alto nascimento e falhando por completo. O medo e o ressentimento davam-lhe a volta ao estômago. Aquela gente tinha-a tratado bem, mas tinham feito mal a Faolan e tinham-no levado sabia-se lá para onde. E agora aquela dama olhava para ela e para Saraid como se ambas fossem duas ratazanas que ela tivesse encontrado na cozinha ou duas baratas debaixo do colchão.

— Minha senhora — disse Maeve, como que desculpando-se — esta é a tal Aoife. A criança é filha dela e também veio porque a mãe não me deixou tirar-lha.

Um par de olhos frios perfurou Eile e passou brevemente por Saraid, que se tinha baixado para acariciar o cão. A Viúva era nova. Eile achou que devia ter menos de trinta anos apesar de o véu que lhe cobria a cabeça e o pescoço e que lhe escondia os cabelos, dificultar a avaliação. As suas feições eram bem proporcionadas e miúdas, a boca era dura e as sobrancelhas bem desenhadas. Os olhos não denunciavam a menor emoção, exceto que a sua dona sabia que controlava a situação. Era evidente que considerava tal coisa um direito seu. Não te zangues, avisou-se a si própria Eile, mas era demasiado tarde.

— Leva a criança para junto da lareira — ordenou a Viúva a Maeve. — Mantém-na ocupada. Aproxima-te, rapariga. Assim está melhor. Sabes por que razão estás aqui?

Eile fixou desafiadoramente os olhos da mulher. Uma maneira de arranjar coragem era não mostrar medo. Dizer o quê? Como? Eles sabiam quem ela era e era evidente que acreditavam no que os homens da ponte lhes tinham dito, não num... — que lhe tinham eles chamado? — monte de lixo. Por outro lado, talvez Faolan já lhes tivesse contado uma mentira e se o contradissesse metê-los-ia, a ele e a ela, em mais sarilhos.

— Não, minha senhora. Estávamos a caminho de Encruzilhada do Rabequista quando a tua gente atacou o meu amigo e o fez prisioneiro. Que lhe fizeste? Onde está ele?

O olhar da dama tornou-se calculista e os seus lábios cerraram-se. Eile olhou por cima do ombro. Junto da lareira, Saraid estava sentada r.o chão a brincar com o cão, enquanto a governanta estava sentada num banco perto dela.

— Maeve! — disse a Viúva em voz alta. — Pedi-te que explicasses a situação a esta jovem.

— Eu expliquei, minha senhora.

Os olhos escuros viraram-se para Eile, avaliando-a.

— Gostas de correr riscos? — perguntou a Viúva.

— Não, minha senhora. Assumo-os quando é preciso.

— Devias ter tento na língua. Sabes quem eu sou?

— És proprietária de terras, Viúva de um grande chefe-de-guerra. Tens uma grande casa, homens de armas e criados. Tens poder. E tudo o que sei. Poder sobre pessoas como eu e como ele.

Seguiu-se um breve silêncio. Então, a dama disse:

— Que estás a dizer exatamente? Que admiras o poder? E o que desejas para ti própria?

Não tinha tempo para avaliar a pergunta, para calcular qual seria i melhor resposta.

— Não poder sobre as pessoas, para lhes meter medo, para subjugá-las. Só o suficiente para poder protegê-la como deve ser — disse Eile, olhando para a lareira. — A minha filha.

— Quem disseste que eras? — A pergunta saíra suavemente, calculista.

— Não disse, minha senhora. O meu nome é Aoife.

— Maeve disse-me que alguém abusou de ti, Aoife. Ela diz que o teu corpo está cheio de nódoas negras, para não falar do fato de estares quase subnutrida. Por outro lado, a tua filha, apesar de magra, está bem tratada. Tens a certeza que estás a dizer a verdade? Ela é mesmo tua filha? Não será antes filha de uma mulher cruel e tu roubaste-a por razões que só tu conheces? Isto não bate certo, Aoife. Eu sei que Maeve te disse de que és acusada. A não ser que sejas estúpida, e eu já vi que não, deves perceber que o assunto é sério. Dizer mentiras não te ajuda em nada. Se foste maltratada, deves dizer-me. Se mataste um homem, deves confessar. Conta o que sabes e que seja verdade! Com mentiras não atinges o poder. Por esse andar ainda perdes a tua filha. Não percas as forças que te restam a lutar contra mim, rapariga. Usa-as para defender a tua causa.

— Neste momento não estou num tribunal — disse Eile, levantando o queixo. — Dá-me uma razão para confiar em ti. — A jovem ouviu o arquejo de horror de Maeve. Saraid falava baixinho com o cão.

A Viúva suspirou e encostou-se.

— Suponho que a vida não te tem dado razões para confiar em seja quem for — disse ela em tom monótono. — Porém, de ti quero apenas a verdade, não que confies em mim. Normalmente, as pessoas não exigem que eu dê provas da minha boa vontade. Neste momento sou o chefe-de-guerra desta região em nome do meu falecido marido e posso decidir o teu futuro. Serás tratada com justiça se fores honesta, Aoife. Eu sei que é difícil acreditar, mas é verdade, pelo menos nas minhas terras. Se te comportares como um gato selvagem fechado numa jaula, sempre a rosnar e a morder, dificilmente te ajudaremos.

— Faolan ajudou-nos e o resultado está à vista: foi espancado. Ainda dizes que devo confiar em ti? Diz-me que ele está bem e eu respondo às tuas perguntas. — Eile estava a gostar do seu tom de voz, soava arrojado e desafiador; a dama nem imaginava como se senda por dentro.

— Maeve — disse a Viúva — leva a criança daqui.

— Não! — Não podiam fazer aquilo, não era justo, tinha de os impedir. — Deixem-na em paz! — Enquanto ela falava, um dos guardas colocou-se a seu lado com a lança atravessada para lhe impedir o caminho. Por trás da barreira, a jovem viu Maeve levar Saraid pela mão em direção à porta. A criança olhou para trás com a ansiedade nos grandes olhos, mas em silêncio. O cão seguia-a. — Não podem levá-la. — Deuses, estava a acontecer o que mais temia. Saraid ia desaparecer, nunca mais a veria.

— Achas que não? — perguntou a Viúva. — É tão fácil como contar até três. Não sejas assim, rapariga, nós aqui tratamos bem as crianças. Na verdade, penso que a tua filha, se é realmente tua filha, está melhor em Blackthorn Rise a crescer entre crianças da minha casa, onde com o tempo até pode aprender qualquer coisa que lhe dê uma casa e um modo de vida, do que a vaguear por aí com a mãe, quase sempre metida em sarilhos.

Eile fez menção de correr para a porta, mas antes de ter dado, sequer, três passos, o guarda deixou cair a lança e agarrou-a pelos braços, detendo-a. A jovem tentou lutar, dando pontapés, mas ele nem parecia senti-los e a Viúva observava-a em silêncio, impassível.

— Não é justo! — gritou ela. — Ela só tem três anos! Não compreende! Que vos fizemos nós?

Era evidente que os seus esforços não iam mudar nada. O segundo guarda colocara-se em frente da porta e Eile não via qualquer outra saída. Saraid tinha desaparecido.

A Viúva continuava à espera. Eile engoliu um soluço e disse:

— Diz ao teu guarda que me largue, preciso de assoar o nariz. Depois já podes fazer as tuas malditas perguntas. Espero que não lhe façam mal, senão...

— Chega! — exclamou a Viúva. — Nada de ameaças. Seamus, larga-a e vai buscar um banco; a rapariga precisa de se sentar. E água. Compõe-te, Aoife. Ou será Eile?

Eile limpou o nariz à manga da camisa emprestada e endireitou as costas.

— O que é que já sabes? — perguntou ela.

— Quero que me digas tudo. Quem é o pai da criança? Eile hesitou. De onde tinha vindo aquela pergunta?

— Não te vou dizer isso. Vou-te contar o que aconteceu. O resto não interessa. Saraid é minha e o pai dela morreu.

— Estou a ver. E os teus pais? Onde estão? Como se chamam?

— Achas que estaria aqui se eles ainda fossem vivos?

— Os nomes deles!

— Deord. Saraid. A minha filha tem o nome da minha mãe, mas ela nunca chegou a saber que eu tinha uma filha. — Nada de lágrimas. Tinha de fazer tudo bem, recuperar Saraid e depois, à primeira oportunidade, fugiriam daquele maldito lugar. Como se atrevia aquela mulher a fazer um joguete de uma criança?

— O que fazia o teu pai, Eile?

— Era marinheiro. Viajante. — Uma aproximação, apenas: as aventuras épicas, as histórias maravilhosas. A concha de um homem de regresso a casa depois de passar por Pedra-que-Quebra. Não envolvia o amor, a esperança, o estilhaçar do seu sonho frágil de que, um dia, tudo seria melhor.

— Senta-te — disse a Viúva quando o guarda colocou um banco ao lado de Eile. — E agora conta-me sucintamente o que aconteceu nestes últimos dias.

Eile respirou fundo.

— Dei uma facada no coração do marido da minha tia — disse ela. — Ele estava a... fazer-me mal. Quando soube que o meu pai nunca mais regressaria a casa, tive de o fazer. Por ela, Saraid. Depois, fugimos. Se queres que te diga que tenho pena, não posso; se queres a verdade, não.

A Viúva, serena, anuiu.

— Quando é que soubeste que o teu pai nunca mais regressaria a casa?

— Sempre pensei que ele havia de regressar, um dia, mas não, morreu. — Eile fez uma pausa para poder controlar melhor a voz. —

Não tenho mais nada para dizer. Quero Saraid aqui, ao pé de mim. Ela não está habituada a pessoas estranhas.

— O homem que estava contigo, esse tal Faolan. Ele disse que és mulher dele e que a criança é dele. E mentira?

— Ele estava a tentar proteger-nos, para podermos fugir.

— Por que razão mentiu por uma rapariga que acabara de assassinar um familiar? Conhecia-lo?

— Era amigo do meu pai. Pelo menos foi o que ele disse. Só o conheci há dois dias. — Eile teve um pressentimento curioso: a Viúva não estava interessada nela ou em Saraid. A jovem estava cada vez mais convencida de que o que ela queria era saber coisas sobre Faolan. Havia ali algo de errado, Eile viu-o nos olhos da Viúva quando ela pronunciou o seu nome. Faolan estava em perigo.

— Responde à pergunta! — disse secamente a Viúva. — Por que mentiu ele? Qual foi a promessa que lhe fizeste em troca?

Eile olhou para ela, estupefata.

— Promessa? Não sei o que queres dizer.

— Não te armes em ingênua, rapariga. O homem era um estranho, podia ser um bandido ou outra coisa qualquer. Tu não tens dinheiro nem recursos, tens apenas uma coisa que todos os homens querem e é evidente que não tens relutância em oferecê-la. Por que outra razão havia esse tal Faolan de se agarrar a ti?

Eile sentiu-se corar e depois empalidecer. Não interessava o fato de estar habituada a que os insultos fossem o seu pão-nosso de cada dia; não os tornava menos dolorosos.

— Pensa o que quiseres — disse ela, incapaz de disfarçar.

— Eu penso que tu foste maltratada e que tens muita sorte por estar em Blackthorn Rise, onde podes conseguir abrigo para ti e para a tua filha. Se te tivesse entregado àqueles homens de Montanha Nublosa, terias sido tratada de outra maneira, podes ter a certeza. Que idade tens, Eile?

— Dezesseis. E antes que perguntes, a minha filha tem três e não, não a tive por ser libertina, mas porque fui violada. Se tivesse tido uma faca e um pouco mais de coragem, teria poupado a mim própria quatro anos de nódoas negras e outras coisas piores. E se tivesse de matá-lo outra vez, não hesitaria.

— E Faolan?

— Já te disse. Faolan era amigo do meu pai e não me pediu nada. Levou-nos alguma comida e deu-me a faca dele.

— E foi o melhor presente que alguma vez recebeste — disse a Viúva com um pequeno e estranho sorriso.

Eile não respondeu. Que jogo estranho, pensou ela.

— Preciso de saber mais coisas — disse a Viúva. — Mais pormenores, mais coisas do teu passado. Mas não neste momento. Vai ter com a tua filha. Ela deve estar na cozinha com uma data de gente à roda dela. É uma miúda amorosa. É preciso muito para acordar os instintos maternais de Maeve. Vai, vai.

— Eu... eu preciso de saber o que é feito de Faolan. Onde está ele? Por que deixaste que lhe batessem e o atassem? Ele não teve nada a ver com o que eu fiz, é apenas um viajante.

— Não disseste que foi com a faca dele que deste o golpe fatal?

— Ele não sabia que eu me ia servir dela para isso. Quero vê-lo.

— Não está aqui, Eile. Para quem se diz amigo, mal pôde esperar por te ver pelas costas. Os homens como ele não têm tempo para mulheres e crianças. O teu Faolan foi-se embora hoje, enquanto dormias.

Parecia que Eile tinha levado um soco. Não podia ser verdade.

— Mas... — gaguejou a jovem — tu prendeste-o, os teus homens atacaram-no. Por que o deixaste ir?

— Cometi um erro. Ele não era o homem que eu queria. Dissemos-lhe que te íamos acordar, mas ele disse que não, que preferia continuar sozinho.

Eile, em estado de choque, não respondeu; imaginara destinos terríveis para Faolan, mas aquele não. O velho padrão familiar, não.

— Não acredito — disse ela baixinho, desamparada, irritada com a sua própria fraqueza.

— Os homens são assim — disse a Viúva. — Fazem as malas e põem-se a andar. Esquece-o, não vale as tuas lágrimas.

— Que lágrimas? — exclamou Eile, passando uma mão furiosa pelas faces. Ouvir a sua própria teoria sobre os homens dos lábios daquela mulher só piorava as coisas. Que tolice, acreditar que aquele homem podia ser diferente.

— Podes ir — disse a Viúva, levantando-se. A mulher não era muito alta. — Vai procurar a tua filha e fica tranqüila. Aqui estás em segurança. Nós damos-te abrigo e defendemos-te. Ficarias surpreendida com o que se pode conseguir apenas com uma palavra ou duas no ouvido certo.

Levou muitos dias a chegar a Pitnochie, mais do que devia. Broichan apanhou com chuva, granizo e neve; as suas sandálias atravessaram regatos e mergulharam na lama, escorregaram em pedras molhadas e derraparam em gravilha. A capa não era apropriada para se proteger do tempo, mas o druida não estava disposto a gastar energias com passes de magia só para se manter seco. Em Monte Branco fizera tais coisas apenas porque estava a ensinar Derelei. Ali, na floresta, não tinha nenhum aprendiz minúsculo a seu lado, partilhando uma jornada maravilhosa de descoberta. Derelei ficara para trás e Broichan sabia que deixara com ele um pedaço do seu coração. A ferida doía-lhe mais do que os membros doridos ou a barriga vazia.

O druida rezava todas as noites. Disseste que eu devia abrir o meu coração ao amor. Foi o que eu fiz há muito tempo. Vara mim, Bridei é como se fosse meu filho e Derelei também. O significado das tuas palavras é obscuro para mim. Apesar de a última parte não ser inteiramente verdadeira, Broichan recusava-se a acreditar nela.

Por vezes pressentia respostas às suas perguntas, mas a maior parte das vezes os deuses mantinham-se silenciosos, o que ele compreendia. Era próprio dos druidas procurarem as suas próprias respostas; um bom professor fazia apenas as perguntas e providenciava os meios para que as respostas pudessem ser encontradas. Durante muito tempo, quase durante toda a sua vida, Broichan estudara o saber druídico, a arte da magia, as estrelas, os elementos, o padrão das estações É os mistérios dos reinos animal e vegetal. Como druida do Rei também estivera envolvido em assuntos políticos; fora controlador político, mediador militar, estrategista e juiz; preparara, ao longo de quinze anos, Bridei para o trono de Fortriu. Bridei: o Rei perfeito. Broichan vira tornar-se realidade a primeira parte do seu sonho. Tivera razão acerca de Bridei. O seu pequeno e solene pupilo transformara-se no melhor chefe de homens que o reino podia desejar.

Infelizmente, também tivera razão acerca de Tuala; percebera logo no primeiro momento que ela lhe traria preocupações. Tuala fora o elemento imprevisível, o único fator que quase lhe destruíra os planos; tentara afastá-la da sua posição influente, mas ela já tinha exercido os seus encantos do Outro Mundo sobre o seu filho adotivo, mas já era tarde. Bridei recusara-se a desistir dela e usara-a como condição para se sentar no trono.

Fora uma derrota amarga, apesar da alegria que sentira por ver o seu protegido coroado e vitorioso sobre Dalriada cinco anos depois, durante os quais as suas relações com a mulher de Bridei tinham mudado. O druida já aceitava que ela amava o marido e que só queria o seu bem. As suas intenções eram boas. Broichan reconhecia que ela amava o filho, tanto quanto o próprio Broichan; tinham trocado os dois gestos de boa vontade. Havia respeito entre ambos, respeito e compreensão. Ou antes, houvera. Tuala partilhara com ele a sua visão e ele fora atingido novamente pela dúvida. Porquê? Por que interferira? Que queria ela dele?

Finalmente, Broichan atingiu o lugar onde, olhando para baixo, na orla da floresta, via o grande vale de Pitnochie, os vidoeiros de ramos nus, as silhuetas escuras dos carvalhos e, meio escondida por eles, a grande casa de pedra com o fumo a sair preguiçosamente das chaminés. A chuva cessara e o dia estava límpido e frio. O druida deixou-se ficar um bocado a olhar e subitamente nada mais restava no seu corpo senão o desejo de se sentir quente e seco e na sua cabeça uma palavra apenas: Cheguei. Finalmente estou em casa.

Via pessoas, a sua gente: Fidich e os filhos a conduzirem as ovelhas para o redil ajudados pelos cães, atentos, tensos; Brenna a pendurar roupa numa corda entre dois arbustos; uma criança agachando-se para afagar um gato. Broichan imaginava mais gente dentro de casa: Mara, azeda e competente como sempre, Ferat a mexer em panelas na cozinha. Havia uma nova cabana a tomar forma ao lado daquela onde viviam Fidich e Brenna com os filhos. Devia ser a de Cinioch. Cinioch, um homem de meia-idade que nunca fora outra coisa se não guerreiro, que pedira autorização para casar e que virara as costas à guerra, abraçando o trabalho do campo. Pitnochie tivera muitas baixas no conflito do Outono anterior. O amigo mais chegado de Cinioch fora uma delas. Era bom os sobreviventes poderem regressar a casa; era o que Bridei queria para todos: algum tempo de paz.

Broichan vira-se, surpreendentemente, de acordo com tal sentimento, mas escondera-o das pessoas, evidentemente; era essencial que se mostrasse forte em todas as ocasiões. A sua posição como druida do Rei fazia dele um pivô nos negócios de Fortriu, apesar de Bridei ser homem para tomar as suas próprias decisões. As pessoas queriam que Broichan aproveitasse a vantagem adquirida; esperavam que ele aconselhasse o Rei a empurrar as fronteiras para sul ou a desafiar abertamente Circinn na questão dos missionários cristãos que pregavam a nova fé naqueles territórios. Porém, algo mudara no druida enquanto o seu filho adotivo estava na guerra. Broichan sabia, quando vira Bridei a regressar a casa são e salvo com as bandeiras ao vento, que o jovem Rei precisava de tempo, que Fortriu precisava de tempo antes de os seus filhos serem de novo enviados para a matança. As baixas tinham sido muitas. A vitória não alterava tal fato e Bridei, apesar do seu estatuto quase divino, era de carne e osso, precisava de tempo para pôr o reino em ordem e para construir alianças; precisava de tempo para ver crescer os filhos. Ainda havia territórios por conquistar, barreiras a transpor. Mas ainda era cedo. A conquista de Dalriada bastava, por enquanto.

Se os seus motivos eram egoístas, pensou Broichan, se o seu amor pessoal por Bridei pesava tanto na balança como o desejo de ver o Rei de Fortriu cumprir o seu destino, paciência. A paz era essencial para os Priteni. A sua própria gente, em Pitnochie, perdera dois filhos e um outro fora gravemente ferido. Os deuses deviam estar satisfeitos. Mais mortes prematuras, não.

Por um momento, o druida perguntou a si mesmo se estaria a ficar velho porque se lembrava de uma época, não muito antes, em que a sua ambição de ver as terras dos Priteni unidas na antiga fé era tão forte que não teria permitido qualquer atraso; teria forçado Bridei a avançar, a expandir as suas fronteiras e a castigar os que chegavam com novos deuses e novos costumes. Bridei era capaz; o ataque a Dalriada no Outono anterior provara-o. Aquele Rei era um visionário e um homem de poder. Era inevitável, com o tempo. Algo mudara em Broichan. O druida estava preparado para esperar, podia ser paciente, tal como as árvores e as pedras, consciente de que tudo acontece no seu devido tempo.

Agarrando firmemente no seu cajado, Broichan começou a descer a encosta, satisfeito por ver que Uven, que deixara encarregado da segurança, colocara guardas onde os campos se encontravam com a floresta. Assim que se aproximasse mais um pouco, alguém o veria, gritar-lhe-ia, ele levantaria uma mão numa saudação e pouco depois chegaria a casa, onde a sua gente cuidaria dele.

Evidentemente, Ana e Drustan estavam em Pitnochie, o que era um pouco estranho, mas não fazia mal. Mara arranjaria lugar para todos. E teria oportunidade de falar, finalmente, com Drustan, cujos dons pouco vulgares o interessavam. A capacidade de mudar de forma do chefe-de-guerra Caitt estava para além do druida mais entendido. Estariam ocupados até... até...

Broichan parou, chocado. A paisagem estava a mudar diante dos seus olhos, como se estivesse a cair sobre ela um véu. A coluna de fumo dissipou-se e desapareceu. As figuras minúsculas dos homens e das mulheres, o cão, as ovelhas e os cavalos tremeluziram como velas a apagarem-se. A neve envolveu subitamente a casa e o estábulo, à altura do ombro de um homem. As portas deste, que antes estavam abertas para receber o rebanho de ovelhas privilegiadas de Fidich, estavam naquele momento fechadas e aferrolhadas. Mais estranho ainda, onde os vidoeiros nus e os carvalhos formavam uma rede protetora em redor da casa de pedra e telhado de colmo de Broichan, havia naquele momento uma cortina de arbustos espinhosos, uma barreira ameaçadora para qualquer viajante que se atrevesse a aproximar-se. As sombras pairavam sobre o vale. Nada se mexia.

O druida sentiu-se desarmado, como uma criança a quem tivessem tirado o brinquedo que tinha nas mãos. Era mais do que desagradável, não conseguia controlar-se, como era próprio de um druida do Rei. Porquê?, perguntou ele subitamente a si próprio, mas já sabia a resposta. Estava a ver outro dia, muito tempo antes: o dia em que Tuala, na véspera do seu décimo quarto aniversário, chegara àquele mesmo local após uma jornada desesperadamente solitária através da neve, em busca de abrigo; o dia em que ele, figura de autoridade, responsável pela sua educação, lhe lançara um feitiço para a impedir de chegar a casa. Naquele dia Pitnochie estava aberta, as suas lareiras estavam acesas e a sua gente preparava-se para a festa do solstício do Inverno; podia ter-lhe oferecido abrigo; podia tê-la recebido. Broichan, porém, temendo a sua influência sobre o filho adotivo num momento crítico da eleição, servira-se da sua arte para esconder a casa; colocara trancas nas portas e cobrira as paredes de neve; servira-se de um encantamento para esconder a sua gente e fazer parecer que o local estava vazio de vida e Tuala fora-se embora e fizera a sua solitária jornada até ao Vale dos Que Caíram. Naquela noite a jovem quase morrera e não fora Broichan quem a salvara. O druida não dissera a ninguém o que fizera. E se Tuala tivera razão na interpretação que fizera da visão...

Ótimo, disse a voz dentro dele. Broichan reconheceu a sua natureza e não se virou. Este é o primeiro passo.

Ansiava por chegar a casa. As saudades agarravam-se-lhe ao coração e enfraqueciam-lhe as pernas. Não podia ceder. Não pediria mercê. Anda, disse a voz melodiosa e profunda. Broichan achou que era de mulher, mas não uma mulher terrena. Sabes o que tens afazer.

Sabia. Era evidente. Tinha de terminar a jornada de Tuala; ir ao vale solitário e procurar a resposta na lagoa dos videntes, o Espelho Negro; procurar o perdão das deusas, mas se a Aquela que Brilha não lhe pudesse perdoar o insulto feito à filha do solstício, se não quisesse esquecer a sua recusa em reconhecer a sua própria filha, ficaria sem saber o que fazer.

Broichan virou as costas ao vale e começou a subir ao abrigo da floresta. Com ele movia-se uma figura encapuzada, de contornos pouco nítidos. Caminha, dizia a voz, e a cada passo que dás, lembra-te. Lembra-te do teu orgulho, lembra-te da tua ambição, lembra-te da tua crueldade.

— Tudo o que fiz — disse Broichan — foi por amor da Aquela que Brilha e do Guardião da Chama. Fui sempre obediente. Toda a minha vida segui o caminho dos deuses e sempre respeitei as suas leis.

Procura no teu coração, murmurou a voz. Examina o passado. Vira o olhar perspicaz da erudição para os teus próprios atos. Aplica a ti próprio o que pregas: o saber não ocupa lugar. Sim, até no reconhecimento de que falhaste em relação à tua própria filha. Como podes tu professar a obediência à vontade dos deuses quando és incapaz de reconhecer o seu dom mais precioso?

Tinham dado a Faolan dois guardas, um durante o dia e outro durante a noite. O assassino não os via muito; levavam-lhe comida e água, levavam-lhe o balde e devolviam-lho lavado. Nenhum deles dizia uma única palavra. Nenhum deles lhe dizia quanto tempo teria de esperar ou o que o esperava exatamente. O maior, o do primeiro dia, nunca mais o vira. Faolan lamentava porque lhe parecera que havia qualquer coisa nele, uma centelha de sentimentos. Aqueles dois eram perfeitamente estúpidos.

Faolan escondeu a prata antes que alguém decidisse levar-lhe as roupas; escondeu o laço de arame, o pequeno punhal, a bola de ferro com pregos e o frasco de veneno. As outras coisas, incluindo a espada, a faca e os objetos de uso pessoal, tinham-lhas tirado. Não tinha mensagens escritas, nada que o identificasse como espião Priteni, um traidor ao seu povo. As mensagens de Bridei para Colmcille, o clérigo influente, tinha-as na cabeça.

Estava equipado para tentar a fuga, mas achava que ainda era cedo. A única maneira seria anular um dos guardas, dominar o segundo que, segundo lhe tinham dito, patrulhava o corredor e depois lutar com quaisquer forças que estivessem entre ele e a muralha exterior da fortaleza da Viúva. Ao entrar, vira que o sítio estava bem fortificado e que era dirigido com solidez. Echen sempre o mantivera assim, e parecia que a sua mulher lhe seguira o exemplo. Pelas suas estimativas, as suas hipóteses de fuga eram iguais à possibilidade de morrer momentos depois de sair da sua cela.

Além do mais, tinha de pensar em Eile; estava decidido a sobreviver o suficiente para encontrá-la, acontecesse o que acontecesse, estivesse ela onde estivesse. Já tinha quebrado a promessa que lhe fizera. Não podia voltar a fazê-lo. Era estranho, pensou Faolan, que entretanto andava de um lado para o outro durante horas, desde o nascer do dia até ao crepúsculo e riscava na parede de pedra a passagem de mais um dia, mas a promessa parecia-lhe extremamente importante. O Outono anterior mudara-o. Deord, ao morrer nos seus braços, colocara-lhe um fardo nos ombros e o seu próprio voto adquirira uma força especial: Olharei por ti até que esteias em segurança. Viçarei contigo até já não precisares mais de mim. Eile não acreditara, claro; o seu passado não a tinha preparado para confiar nele. Tinha de a encontrar para lhe provar que as suas palavras não tinham sido vãs. Só esperava que não fosse demasiado tarde.

A cada dia que nascia, esperava que o chamassem e a cada dia que morria renovava a esperança. Só os dois guardas com o pão, a carne e as sopas aguadas é que o visitavam. E os sons da casa que entravam pela janela. Os riscos na parede transformaram-se numa árvore, num bosque, numa floresta de troncos sem folhas. Trinta, quarenta, quarenta e cinco. Por todos os deuses, que estava a acontecer? Aquela T luva queria enlouquecê-lo, não pela tortura ou pelos maus tratos, mas através do tédio e da frustração? Cinqüenta, pensou. Ao qüinquagésimo dia entraria em ação, se ela não o chamasse. Se protelasse muito, o Inverno chegaria ao fim e a missão de Bridei não seria levada a cabo a tempo e a horas. O tal Colm poderia agir e ninguém poderia avisar o Rei de Fortriu. Qüinquagésimo, portanto. Servir-se-ia do arame e arriscaria com os guardas.

Ana nunca pensara que se sentiria tão enjoada; tinha planeado não dizer a ninguém senão a Drustan até a gravidez ser óbvia devido ao tamanho da barriga, mas os vômitos constantes e a exaustão que se lhes seguia fizeram com que a governanta, Mara, e a mulher do camponês, Brenna, começassem a auxiliá-la com tônicos e chás de ervas assim que a lua mudou.

— Isso não dura muito tempo, minha senhora — disse-lhe Brenna, tranquilizando-a, limpando-lhe a testa com um pano. — Quando a tua barriga começar a crescer, os enjôos param. Quando estive para ter o meu mais novo, foi a mesma coisa.

Drustan estava preocupado com a viagem para norte, na Primavera, e com os riscos que Ana e a criança correriam. Nenhum deles sugeriu que ela ficasse; não suportavam separar-se, nem sequer por um dia. Porém, Drustan não podia esperar para lá da Primavera. Na sua ausência, alguns chefes-de-guerra sem escrúpulos podiam tentar apoderar-se dos territórios sem liderança depois da morte do seu irmão no Outono anterior. Bridei enviara um mensageiro por ele, reclamando Briar Wood e declarando a sua intenção de endireitar as coisas. Um outro mensageiro fora enviado ao Vale dos Sonhos com a notícia de que, assim que os assuntos do seu irmão estivessem resolvidos, Drustan regressaria a casa. Porém, um Inverno inteiro era muito tempo, podia acontecer qualquer coisa. Assim que pudesse, tinha de partir.

— Podíamos ir pelo outro lado — sugeriu Ana um dia, quando estavam os dois sentados à lareira do grande salão de Broichan, com um tabuleiro de jogo em cima de uma pequena mesa entre os dois. — Pelos lagos, de barco, e depois pelo desfiladeiro ao lado das Cinco Irmãs. Dizem que é muito mais fácil.

— Continua a ser longe e muito cansativo — disse Drustan, movendo um pequeno druida de osso no tabuleiro, evitando mencionar que, se fosse sozinho, também poderia escolher aquele trajeto e chegar no espaço de um dia ou dois. — Tu não podes andar a cavalo. Não podemos arriscar a vida do nosso filho, Ana.

Ela imaginou um tempo em que ele e o filho, ou filha, pairariam juntos no céu, uma coisa ao mesmo tempo maravilhosa e aterradora porque uma ave enfrentava perigos que um homem nem sequer imaginava. Se os seus filhos recebessem o mesmo dom de Drustan, passaria uma grande parte da sua vida paralisada de medo, mas não disse nada ao marido.

— O bebê só nasce no Outono — disse ela. — Na Primavera posso perfeitamente montar a cavalo, se formos com cuidado. Devíamos pedir a Broichan que nos casasse. As pessoas daqui estão à espera disso, agora que a criança está a chegar.

— Pergunto a mim próprio se ele virá a Pitnochie celebrar o ritual.

Ana olhou para ele. A jovem conhecia a sua relutância em se deslocar à corte. Drustan não se sentia confortável no meio de muita gente e períodos longos entre quatro paredes deixavam-no inquieto e turbulento, uma coisa que, provavelmente, nunca mudaria, mas quando chegassem ao Vale dos Sonhos, pelo menos estaria novamente em casa, são e salvo. Naquele lugar remoto, os seus filhos poderiam exercitar à vontade as capacidades que a Aquela que Brilha lhes quisesse conceder.

— Podemos perguntar — disse Ana.

Os acontecimentos, porém, sobrepuseram-se aos seus planos. Um dia ou dois mais tarde chegou um cavaleiro de Monte Branco, um dos homens de armas da corte de Bridei. O seu propósito era simples: descobrir se o druida do Rei estava em Pitnochie porque Broichan desaparecera da corte subitamente e sem qualquer explicação. Drustan e Ana ofereceram ao homem uma boa refeição e uma cama para passar a noite. No dia seguinte o cavaleiro regressou para dizer ao Rei que Broichan não tinha regressado à casa que tinha à sombra dos carvalhos.

Devia haver algo de errado com ela, pensou Eile. Sonhara durante tanto tempo, em casa de Dalach, com um sítio onde Saraid pudesse ter calor, onde fosse bem alimentada e onde se sentisse segura, um sino onde deixaria de ter medo. Tal visão e tal esperança tinha-lhe dado forças para continuar. Naquele momento estavam em Blackthorn Ri-se, tinham camas a sério, roupas quentes e duas refeições por dia e ela tinha trabalho para preencher os dias, um trabalho fácil comparado com o que fazia em casa de Anda. Não havia dúvida de que estavam seguras visto que havia guardas a patrulhar constantemente as muralhas e de cada lado dos portões, carrancudos. Devia sentir-se feliz, mas o descontentamento e a inquietação não a abandonavam. Pairava qualquer coisa no ar que lhe tirava o sono.

Eile reconhecia, numa mistura de sentimentos, que o seu sonho de calor e segurança sempre incluíra uma casinha acolhedora numa encosta, com uma horta cheia de ervas e vegetais; não tinha nada a ver com uma grande casa cheia de criados. O local da sua visão era só seu; dela e de Saraid. Era novamente a casa da sua infância, com uma pequena lareira, um gato às riscas e o aroma saboroso do pão a cozer, onde o Sol brilhava sempre, onde só respondia perante si própria.

Maeve era amável, claro; não ralhava com as pessoas, a não ser que elas merecessem e como Eile fazia prontamente o seu trabalho, raramente incorria no descontentamento da governanta. Com as outras criadas, porém, era diferente. A notícia do que ela fizera espalhara-se pela casa e a sua atitude para com ela era desconfiada e desdenhosa. Talvez pensassem que era capaz de espetar uma faca em quem não gostasse. Eile preferia lavar roupa, por exemplo, ou outro trabalho que não envolvesse qualquer coisa afiada. Uma faca na sua mão seria o suficiente para recordar tudo de novo. Se pensasse demasiado no que fizera e nos anos anteriores, acabaria acocorada a um canto, sem uso para ninguém.

Sentia-se bem naquela casa, pelo menos até certo ponto. Porém, o sentimento de qualquer coisa errada inquietava-a. A súbita deserção de Faolan não era normal. Talvez os homens o fizessem quando as coisas não lhes agradavam, mas tudo, até então, sugeria que Faolan era diferente. O homem arriscara-se ao ajudá-las, a ela e a Saraid. E se fosse ele a precisar de ajuda naquele momento? Além do mais, Eile estava preocupada com Saraid. A pequenina acocorava-se junto dela a vê-la trabalhar, ou andava pelo pátio como uma pequena sombra, com o cão cinzento sempre a segui-la. Ocasionalmente, o terrier da Viúva aparecia com uma bola na boca e Saraid atirava a bola para ele ir buscar e por vezes os filhos da Viúva, dois rapazes robustos de oito e nove anos, também apareciam e Saraid escapulia-se silenciosamente, fingindo que era invisível.

A filha de uma criada não brincava com os filhos de um chefe-de-guerra, toda a gente sabia. Além do mais, os dois rapazes eram intimidantes com as suas maneiras decididas. Grandes para a idade, tinham um ar privilegiado, como se fossem proprietários do local e de todos os que nele moravam e trabalhavam. Eile ouvira-os dar ordens a Maeve, a Orlagh e às outras, e quase lhes dissera umas palavras afiadas. A Viúva podia ser rica e poderosa, mas era evidente que não sabia educar crianças. O mais velho, Fionn, viria, provavelmente, a ser como o pai. Como se chamava ele? Echen? O marido da Viúva fizera qualquer coisa terrível à família de Faolan, fora um homem cruel. Aquele rapaz tinha a mesma espécie de desrespeito pelas pessoas. Eile tentava manter-se afastada dele.

A jovem contava os dias desde que tinha chegado. Fazia uns riscos numa pedra, junto da corda da roupa, com um anel de ferro que encontrara. Era muito tempo. A festa do solstício do Inverno já tinha passado, testemunhara-a com espanto: tanta comida, tanto hidromel e tanta cerveja, tanta gente a comportar-se como Dalach quando ele bebia, como se todas as regras do mundo tivessem desaparecido. Naquela noite, Eile ficara com o anel ferrugento debaixo da almofada, à falta de uma arma melhor e evitara ficar onde um homem a pudesse encurralar. Algumas das criadas não tinham dormido nas suas enxergas e a maior parte das pessoas da casa passaram o dia seguinte a bocejar. Eile embrulhara a melhor parte do seu jantar festivo num pano e guardara-a na caixa que lhe tinham dado para guardar os seus magros pertences; era-lhe difícil desabituar-se dos velhos hábitos, nunca se habituaria ao desperdício.

O solstício de Inverno passara e os riscos na pedra eram quase cinqüenta. A jovem obrigou Saraid a contá-los e depois a juntar a quantidade equivalente de pequenas pedras. Enquanto pendurava a roupa molhada na corda, receosa de que a chuva começasse a cair antes da hora do jantar, tentava ajudá-la com uma cantilena:

— Dez pedras brancas, dez pretas, dez cinzentas e dez castanhas. Depois mais seis, Saraid, da cor que quiseres. Quantas são?

Saraid estava com dificuldades para selecionar as pedras; Lamento estava encostada ao pau que segurava a corda.

— Conta pelos dedos. Dez, vinte...

— Trinta, quarenta e mais seis — disse Saraid, mostrando uma pedra branca. — Uma lua pequena. — A pequenina começou a colocá-las em fila com a língua entre os dentes.

Eile tinha dores nas costas. Os lençóis eram pesados e a estaca que impedia que as pontas arrastassem pelo chão tinha de ser ajustada para que a corda ficasse mais alta. A jovem rangeu os dentes e agarrou nela com as duas mãos.

Splach! Um pedaço de lama aterrou no centro de um lençol lavado de fresco, manteve-se agarrado por um momento e caiu, deixando uma mancha escura. Eile arquejou, indignada e largou a estaca. A corda descaiu e as pontas dos lençóis arrastaram pelo chão lamacento.

Enquanto ela praguejava, um outro pedaço de lama voou pelo ar e aterrou na face de Saraid, com força suficiente para fazer sentar a criança acocorada. A pequena ficou imóvel por um momento, levou as mãos ao rosto, depois pôs-se de pé e virou-se para a mãe sempre em silêncio, mas Eile reparou-lhe no olhar e de repente os lençóis deixaram de ser a sua principal preocupação.

Ao longo dos anos aprendera a ser rápida. Um mergulho nos arbustos bastou para sair de lá com Fionn por um braço e o seu irmão mais novo, Fergus, pelo outro.

— Deixa-me! — guinchou o rebento de Blackthorn Rise, suficientemente alto para fazer aproximar um exército de pessoas a correr. — Como te atreves a tocar-me, prostituta imunda? A minha mãe manda chicotear-te! Larga-me imediatamente!

Eile não o largou.

— Eu não fiz nada! — gritou Fergus. — Ele é que fez tudo! Não é justo!

Saraid retirara-se para a segurança dos arbustos ao ver os dois rapazes aos pontapés e a gritar.

— Se fizerdes isto outra vez, nem sabeis no que vos meteis! — A voz de Eile sobrepôs-se às dos dois rapazes. — E agora arranjai qualquer coisa melhor para fazer. Não vos quero a espreitar quem trabalha nem a assustar crianças!

— Tira as tuas mãos porcas de cima de mim! — gritou Fionn, batendo-lhe no braço com a mão livre. — És uma prostituta e uma assassina e ela é uma idiota! Nem sequer é capaz de falar como deve ser. — O rapaz olhava para Saraid com uma expressão feroz no rosto.

Fergus chorava. Eile largou-o e ele desatou a correr. A jovem agarrou em Fionn pelos ombros com os braços estendidos.

— Talvez aches engraçado chamar nomes às pessoas — disse ela. — Vou dizer-te uma coisa. Não me interessa o que a tua mãe é, nem me interessa que penses que és um senhor em miniatura. Se voltas a pôr uma mão na minha filha eu dou-te uma tareia. Percebes?

O rapaz cuspiu-lhe no rosto. Eile sentiu a saliva a escorrer-lhe pela face e esbofeteou-o com força, deixando-lhe um vergão no rosto.

As pessoas deviam estar a chegar; se o indignado Fergus não os trouxesse, trá-los-ia o barulho.

— Só te aviso uma vez — sibilou ela. — Podes ter a certeza. — Em seguida largou-o. Mais corajoso do que o irmão, ou mais seguro do terreno que pisava, ele ficou a olhar para ela com as mãos nas ancas.

Um grito. Não de uma pessoa a investigar o sururu: uma voz vinda de algures para lá do relvado onde a roupa era posta a corar, para lá da horta e da área das lavagens, para os lados dos alojamentos dos homens. Alguém gritara o seu nome. A jovem susteve a respiração, tentando detectar o som de passos vindos da outra direção, acompanhados pelos soluços dramáticos de Fergus. Se o homem voltasse a chamar, não o ouviria. Teria imaginado? Pensava que não e sentiu um baque no coração. Juraria que a voz era de Faolan. Talvez a casa que as recebera tão bem, o refúgio seguro, tivesse sido construído com base numa mentira.

Um novo grito entrou-lhe pelos ouvidos e ela virou-se. O rapaz aproximara-se da corda da roupa e estava debruçado, com os cabelos de lamento numa mão e os seus pés rudimentares por baixo da bota. A sua mão livre tinha uma faca. Fionn estava a decapitar a boneca. Ao ouvir o grito de Saraid, Fionn sorriu. Quando Eile chegou junto dele já a pequena cabeça tinha caído na lama. O calcanhar da bota do rapaz fez o resto.

Saraid, porém, conseguiu chegar junto dele antes da mãe, estendeu os braços e agarrou-se às pernas de Fionn. Este tentou livrar-se dela com um pontapé, mas ela aguentou-se e serviu-se dos dentes. Enquanto duas criadas e um guarda se aproximavam com o choroso Fergus entre elas, Fionn emitia um grito de dor e caía de joelhos agarrado a uma coxa. Saraid pegou na cabeça da boneca e, soluçando desesperadamente, enterrou o rosto enlameado no avental da mãe.

— Ela mordeu-me! — O dedo de Fionn apontava acusadoramente para Saraid. — A selvagem mordeu-me! A prostituta deu-me uma bofetada! Vai dizer à minha mãe! Elas têm de ser castigadas! Cala-te, Fergus, deixa de ser bebê!

— Ele atirou com lama à minha filha e destruiu-lhe a boneca! E cuspiu-me. Não quero saber de quem ele é filho. Ele é que merece castigo... — Ninguém, porém, lhe prestava atenção. Fionn, sempre a falar, afastava-se à frente do guarda, muito decidido nos seus nove anos de idade.

— És louca — disse uma das criadas, olhando para Eile de lado. — Não te podes meter com o senhor Fionn, a não ser que queiras levar uma boa tareia. A mãe está convencida que o Sol só brilha para ele.

— É melhor levar esses lençóis outra vez para a celha — disse a outra. — És capaz de os conseguir lavar outra vez antes que ela ouça a história e te mande chamar. E vê se vigias a tua filha. Com que então ela morde, hem? Selvagenzinha. Não percebo por que razão a senhora vos recebeu.

A primeira murmurou qualquer coisa e as duas riram-se. Em seguida foram-se embora. Eile ajoelhou ao pé da filha:

— Saraid?

A criança tremia por causa dos soluços e não queria afastar o rosto do avental.

— Saraid, escuta. Está tudo bem. Eu não deixo que te façam mal outra vez.

As palavras saíram por entre os soluços e o tom era de angústia:

— Lamento morreu.

O coração de Eile desfez-se.

— Não morreu, não — disse ela, abraçando-a. — Eu limpo-a e coso-lhe a cabeça ao pescoço outra vez. Não vai ficar exatamente igual, vai ficar com... honrosos ferimentos. Saraid, não podes morder nas pessoas. Machuca-as.

A jovem perguntou a si própria o que diria se a pequenina dissesse que ela tinha batido em Fionn e que bater nas pessoas também doía. Saraid, porém, pousou a cabeça no seu ombro, apertou a boneca degolada e cheia de lama contra o peito e não disse nada.

Algum tempo depois, Eile viu-se perante a Viúva na grande sala com Maeve a seu lado, silenciosa. Saraid chorara tanto que adormecera e a jovem, relutantemente, deixara-a no quarto.

— Um dia, o meu filho será chefe-de-guerra — dizia a Viúva. — O que ele possa ou não ter feito ou dito é irrelevante. Tu bateste-lhe e a tua filha enterrou-lhe os dentes na perna. Eu vi as marcas que ela lhe fez. Tais atos de violência contra a sua pessoa não podem ser tolerados.

Eile, que contara honestamente o que acontecera, ficou espantada com a resposta da dama. Esperava melhor. O que fizera naquele dia parecia-lhe, sob o seu ponto de vista, inteiramente justificado.

— Minha senhora — protestou ela — o seu filho insultou-me, arruinou o meu trabalho de uma manhã inteira, destruiu uma coisa que Saraid amava...

— Chega. — Não havia a menor compaixão nos olhos da Viúva. — Já falamos uma vez de poder, rapariga. A mim, parece-me que tu o desejas, mas não compreendes a sua natureza. Poder é privilégio, é tomar as decisões certas. Eu aprendi cedo a lição; era muito mais nova do que tu. Diz-me, não te preocupa o fato de a tua filha estar a adquirir maus hábitos com a mãe? Uma dentada hoje, uma faca no coração amanhã?

Eile sentiu-se ultrajada. O fato de haver alguma verdade nas suas palavras não diminuía a sua perniciosidade.

— Ela retaliou, defendeu o que lhe pertencia. É natural.

— O que lhe pertencia? Ah, estás a referir-te à boneca. — A dama emitiu uma risada desconsolada. — A tua filha fica melhor sem ela. Um trapo velho, segundo me disse o meu filho.

Eile cerrou os punhos

— Diga-me uma coisa — disse ela — não a preocupa a possibilidade de o seu filho ficar igual ao pai quando crescer?

Maeve susteve a respiração. A Viúva pôs-se de pé. As suas feições continuavam tão dominadas como antes, mas algo perigoso lhe aparecera nos olhos.

— Pensei que talvez fosse possível conseguir alguma coisa de ti, Eile — disse ela num tom sinistramente calmo. — Dei-te abrigo por seres parecida comigo. As tuas condições eram miseráveis e o teu ato de violência, se bem que reprovável, pode ser visto como legítima defesa ou até como vingança justa pelo mal que o teu tio te fez.

Mas hoje desapontaste-me. Se calhar pensas que eu permito que um ataque ao futuro chefe-de-guerra de Blackthorn Rise passe sem ser castigado. O meu poder, aqui, é absoluto e é assim por causa dos passos que dou para manter a disciplina na minha casa e nas minhas terras. Maeve, quero esta rapariga açoitada. Bastam dez chicotadas. E três para a criança. De manhã quero saber o que aconteceu.

— Não! — Eile atirou-se para a frente sem saber exatamente o que ia fazer, desesperada, mas as mãos fortes de Maeve impediram-na. Ao mesmo tempo, a Viúva saía da sala muito direita no seu elegante vestido preto.

— Não! — gritou Eile outra vez. — Saraid não, não podes... — A dama, porém, já tinha desaparecido e com ela os guardas. — Larga-me Maeve, larga-me! — A jovem lutava, dava pontapés, retorcia-se.

— Chhh! — A voz de Maeve era quase inaudível. — Chhh, rapariga. Pára de lutar e escuta-me, sim? Não temos muito tempo.

O coração de Eile batia com toda a força, as palmas das suas mãos estavam suadas e tinha a pele arrepiada de terror. Chicoteada. Saraid. Não podiam fazer aquilo, não podiam. Preferia morrer a deixar que lhe tocassem na filha.

— Eile! Escuta!

A jovem registrou a expressão do rosto de Maeve através da onda de terror que a assaltara, sentiu abrandar a pressão nos pulsos e sentiu um braço em redor dos ombros.

— Arranja a tua trouxa durante o jantar — murmurou-lhe a governanta ao ouvido. — Que ninguém te veja. Leva a tua filha para o meu quarto. Entretanto, faz-te zangada, cheia de medo para que toda a gente pense que eu vou até ao fim com isto.

— Não... não lhe vais fazer mal? Maeve cerrou os dentes.

— Já disciplinei uma criada ou duas. A senhora está a pôr-me à prova, a pôr à prova a minha lealdade, mas desta vez enganou-se. Aquele patife do Fionn...

— Mas ela vai saber. Toda a gente. Vais meter-te em sarilhos.

— Vais ter de te ir embora, rapariga. Tens razão, ela vai saber e se tu ficares aqui ela arranja outra pessoa qualquer para te chicotear.

Assim que estiveres no lado de lá das muralhas com Saraid, ficas por tua conta. Eu arranjo maneira de fugires e dou-te algumas moedas e alguma comida, mas mais nada. E agora vai — disse ela. Eile agradeceu-lhe com um murmúrio. — Trata de ser convincente. Depois do jantar mostro-te o caminho de saída. Ainda bem que a Lua está cheia. Terás de estar longe quando amanhecer. Ela vai mandar homens atrás de ti, não esquece com facilidade.

— Maeve?

— Sim?

— Faolan. Sabes, o homem que estava comigo. Pensei tê-lo ouvido hoje. Será possível ele estar ainda preso, ao fim deste tempo todo?

— Eile, dou-te um conselho: os sarilhos em que estás metida já te chegam; não piores as coisas. A história entre ele e ela é triste e as pessoas que sabem o que lhes convém afastam-se dela. E agora vai, antes que nos ouçam.

Na mesma noite, Eile estava no lado de dentro de uma porta discreta aberta na muralha de pedra, com uma trouxa às costas. Saraid, metida numa capa quente, agarrava num pequeno saco que Maeve lhe dera para ela guardar as duas partes de Lamento porque não houvera tempo para a coser. O cão cinzento já tinha saído e farejava os arbustos da vizinhança. Uma bruma pairava no ar, escondendo-lhes a fuga.

— És boa rapariga — disse Maeve, sobriamente. — Se eu tivesse uma filha, não me importava que fosse como tu. Tem cuidado. Aqueles tipos de Montanha Nublosa vão-se pôr outra vez à tua procura assim que ela lhes disser que fugiste.

— Mas...

— Ela não chegou a chamar o juiz — disse Maeve. — Nunca te levantou um processo formal, o que quer dizer que, à face da lei, assim que ficares sem a sua proteção, continuarás a ter de responder pelo assassínio. Trata de pôr a maior distância possível entre ti e Blackthorn Rise.

Eile anuiu, consciente de que, se a Viúva tivesse mentido sobre Faolan, fugir não era a opção ideal, pelo menos enquanto não soubesse se ele estava bem, mas não o podia explicar a Maeve.

— Obrigada — disse ela. — Se fosses minha mãe, dir-te-ia para saíres daqui e procurares outro emprego.

Maeve suspirou.

— Estou com ela há muito tempo — disse a governanta. — Antes de ela casar com Echen. Ela tem razões para ser como é. Não posso deixá-la agora. Todas as pessoas precisam de amor, Eile, até aquelas que parecem não o querer. Toca a andar. Adeus, pequena — disse ela, debruçando-se para beijar a face de Saraid e Eile pensou ver o brilho de umas lágrimas nos olhos da governanta. Em seguida, a porta rangeu nas suas costas e ficaram novamente as duas sozinhas.

Eile baixou-se e murmurou:

— É uma aventura, Esquilo. Na escuridão, só com a Lua para nos iluminar o caminho. Temos de ser tão silenciosas como dois ratos. É melhor dares-me a mão; a caminhada pode ser longa. Vamos para Encruzilhada do Rabequista.


CAPÍTULO SEIS

 

No qüinquagésimo dia, de manhã, um dos guardas, o grande, deixou sair Faolan com os tornozelos presos por grilhetas, de modo que o assassino só podia andar como um ancião. Ainda bem que o tinham ido buscar, já que ainda não tinha posto em prática o seu plano de fuga, cujo passo inicial teria sido tirar a sua faca menor do esconderijo que arranjara na cela.

— Onde vamos? — perguntou ele, apercebendo-se da aspereza da sua voz, tão perra como uma arma demasiado tempo ociosa.

— A senhora mandou chamar-te.

— Estou a ver. — Faolan tentava acompanhar o passo do homem; fizera os possíveis por se manter em forma durante os longos dias vazios, mas a cela não era espaçosa e as grilhetas não ajudavam. Ocorreu ao assassino que só alguém que conhecesse bem a sua vida depois de ter deixado a sua terra, acharia necessário refreá-lo daquela maneira. Nos velhos tempos, ali mesmo, em Laigin, era jovem e inofensivo, um bardo em fase de aprendizagem, um segundo filho que só pegara numa arma no dia em que fora forçado a cortar a garganta do irmão. Quando Echen o metera em Fenda da Pedra-que-Quebra, não o fizera por causa de uma rixa, de uma intriga ou de uma perfídia, apenas por simples provocação. Faolan recusara trabalhar para um homem que desprezava e ganhara três meses naquele buraco do inferno. Só depois de sair de casa é que o jovem bardo começara a servir-se dos punhos, de várias armas e de um certo talento para a duplicidade para ganhar a vida.

Deixara de haver música na noite em que Echen fora a Encruzilhada do Rabequista. Faolan só voltara a tocar numa harpa no Verão seguinte, quando as circunstâncias o tinham obrigado a desempenhar o papel de um músico. O assassino não conseguia imaginar como chegara a Blackthorn Rise a notícia de que o viajante visto na ponte era espião de Fortriu. Era evidente que, se as pessoas o tivessem reconhecido, não teria sido por tal, antes pela história sombria da sua família, a qual devia ter fornecido anos de assunto aos contadores de história locais, levando as pessoas a mencionar o nome de Encruzilhada do Rabequista num tom especial e não pôr lá os pés se o pudessem evitar. Echen transformara a aldeia num pesadelo.

Os dois homens pararam no lado de fora da formidável porta de carvalho.

— O que é que ela quer? — aventurou Faolan. — O que é que eu fiz?

— Não me perguntes a mim — disse o guarda, olhando para ele com uma certa simpatia. — A Viúva tem as suas próprias regras e muitas vezes estão para além da compreensão de pessoas como tu ou eu — acrescentou ele, batendo na porta e abrindo-a. — Entra.

A Viúva estava sentada com pompa e circunstância na sua grande cadeira, em cima de um dossel. A mulher era pequena, mas a cadeira dava-lhe uma aura de autoridade. Faolan teve de percorrer a espaçosa câmara com passos miúdos por entre guardas armados, semicerrando os olhos por causa das lâmpadas brilhantes existentes em frente da plataforma elevada. O assassino sentia-se encandeado; a sua cela fora sempre um local sombrio, mesmo durante os raros dias de sol do Inverno. Depois de tanto tempo confinado, o grande espaço e a luz eram perturbadores. Faolan compôs o rosto ao chegar junto da plataforma.

A sua visão era perturbada pelas lâmpadas e a Viúva estava sentada por trás delas, permitindo-lhe apenas discernir a forma oval do seu rosto pálido e as pregas escuras do seu véu. Faolan imobilizou-se e esperou. Ela que falasse primeiro. Ela que lhe dissesse o que tencionava fazer e por que razão ouvira Eile gritar no pátio. Ela que lhe explicasse o que sabia sobre a sua pessoa e só depois decidiria o que dizer em troca.

— Faolan — disse a dama. Ele acenou com a cabeça.

— Achas que o tempo de espera foi demasiado longo?

Parecia nova — nova e fria. Faolan Semicerrou os olhos e discerniu um par de olhos azul-acinzentados sem qualquer emoção no rosto pálido.

— Não sei, minha senhora. Enquanto não souber de que sou acusado, não posso dizer se o castigo foi apropriado — disse ele no mesmo tom frio, mas a voz denunciou-o; não conseguia disfarçar a aspereza da voz.

— Foi? — perguntou ela em tom leve. — Ainda não acabei contigo, Faolan. O que passaste foi apenas um cheirinho. Sou capaz de pôr a tua paciência muito mais à prova e se assim decidir, faço-o. Pergunto a mim própria o que será melhor? Uma estação inteira? Um ano? Talvez dois. Talvez então te mostres menos otimista nos teus comentários.

Faolan esforçou-se por não desviar o olhar.

— Quando entro num jogo — disse ele — prefiro saber antecipadamente as regras. É muito mais justo. Sou acusado de quê? E que fizeste a Aoife, a minha companheira?

— Companheira. Que palavra tão gentil. Pensei que tinhas dito que era tua mulher.

— Ouvi-a gritar há alguns dias. Pareceu-me perturbada. Também ouvi um grito de criança. Se és a mulher conhecida localmente como Viúva, é tua responsabilidade fazer com que as pessoas que abrigas sejam tratadas com justiça.

— É a segunda vez que empregas a palavra justiça. Pensava que tu, mais do que ninguém, sabia, por experiência, que a vida raramente é justa. A vida é cheia de iniqüidades, de crueldades, de dor e de abandono. Tudo isto abunda nas pessoas que viram as costas quando, em vez disso, deviam estender as mãos para ajudar. A justiça só existe nas mentes daqueles que viveram apenas ao abrigo de um refúgio qualquer onde as pessoas se agarram à noção de um ideal. A justiça não existe. O que importa é a sobrevivência e o poder. Espanta-me que não saibas.

Um sentimento curioso começou a apoderar-se de Faolan; uma sensação de familiaridade, como se já tivesse encontrado aquela mulher arrogante, mas em circunstâncias diferentes. O assassino respirou fundo e pestanejou, tentando focar o olhar.

— Eu conheço-te? — perguntou ele. — Parece que sabes tudo de mim, se bem que menos do que imaginas.

— Conheço-te por dentro e por fora — disse a Viúva em voz baixa e fria. — Conheço-te melhor do que tu a ti próprio. Eu sou a voz que nunca se cala, a que ouves em sonhos. Eu sou o pesadelo que nunca acaba. Ou talvez não. Talvez te tenhas esquecido. Talvez tenhas atirado tudo para trás das costas e tenhas iniciado uma nova vida, na qual o teu passado pôde ser reconstruído, tornando-se mais agradável, mais saboroso.

— Não faço idéia do que estás a dizer — disse ele, tremendo e cerrando os punhos para obrigar o corpo a parar. — Diz-me onde está a rapariga e a criança. Elas estavam sob a minha proteção. Estou preocupado com o seu bem-estar.

— Responde à pergunta. Por que razão lhe deste o nome de Aoife?

— É o nome dela.

— Não me mintas! Eu sei que ela se chama Eile e sei o que fez. Por que o nome?

— Foi o primeiro que me veio à cabeça. — disse ele com ligeireza.

— Para ela? — Faolan viu a Viúva a erguer as sobrancelhas numa expressão de troça. Os olhos já estavam a funcionar melhor e Faolan pôde ver o nariz pequeno e direito, a boca circunspecta, o delicado contorno do rosto. As maxilas tensas, implacáveis. A mulher era-lhe familiar, as suas feições importunavam-no, lembravam-lhe qualquer coisa. — Para aquela coisa ordinária de cabelos desgrenhados e corpo nojento, conspurcado? — continuou a dama. — Deste-lhe o nome de uma grande beleza das daoine sidhe? Que espécie de homem faria uma coisa dessas?

— Um homem que já foi bardo — disse Faolan. — Eile tem uma beleza muito própria, tal como o pai; uma espécie rara.

— A sério? Bem, foi-se embora. Perguntaste-me qualquer coisa sobre algum barulho no pátio. A tua beleza rara atacou o meu filho, uma criança de nove anos e a filha dela mordeu-lhe uma perna. Ordenei que a açoitassem. Preferiram fugir a ficar aqui sob a minha proteção. Para além de ser violenta, a rapariga é estúpida.

— Quando? Para onde foi?

— Ah, uma centelha de sentimentos, finalmente. Não sei, Faolan. Sinto-me desapontada por te teres tornado na espécie de homem que se liga a raparigas vulneráveis sem razão. Por que estás tão preocupado? Sentes que a tua nova aquisição te escapou? Que se passa? Não gostas de dormir sozinho? Não olhes para mim com esse nariz espetado. Disseste que a rapariga era tua mulher. Não é preciso ter grande imaginação para perceber que esperavas qualquer coisa em troca da tua proteção.

Com esforço, Faolan engoliu a indignação.

— Fui a Montanha Nublosa para dar uma notícia a Eile. O pai dela morreu no Outono. Não tive nada a ver com o que aconteceu em casa dela depois de a ter deixado. A única coisa que desejo é garantir-lhe a segurança e que não lhe falte nada. Prometi-o a Deord.

— Oh, a estas horas já deve estar em Montanha Nublosa — disse a Viúva como que por acaso. — Ela tem de responder pelo crime que cometeu. Já não a posso proteger; bateu no meu filho.

— Afinal o que se passa? Por que estás a fazer isto? Sabes quem sou, isso é evidente. Tencionas continuar com a questão que o teu marido tinha com a minha família, passado este tempo todo? Vais prosseguir a sua estúpida demanda até estarmos todos senis? Por que me tens prisioneiro? E como te atreves a açoitar Eile e expô-la àquela ralé de Montanha da Nuvem? Ela pouco mais é do que uma criança e foi muito maltratada pelo miserável do tio. Imagino como se deve sentir neste momento...

Subitamente, Faolan calou-se. A Viúva tinha-se levantado e avançara até à borda da plataforma. A luz das lâmpadas brilhou-lhe no rosto e o coração de Faolan deixou de bater. O pesadelo continuava.

— Seamus, Conal — disse ela — quero interrogar este prisioneiro em privado. Atai-lhe as mãos e deixai-nos. Esperai lá fora.

— Minha senhora — disseram os guardas, obedecendo. O maior aproximou-se com uma corda e atou as mãos de Faolan atrás das costas. Por breves momentos, o assassino ainda pensou em lutar, mas abandonou a idéia. Precisava era de respostas, não de uma tareia e de um regresso à sua cela solitária. Só os deuses sabiam quanto tempo aquela louca o deixaria lá numa próxima vez!

— Muito bem, Faolan — disse a Viúva, descendo do dossel e colocando-se na sua frente, olhando para cima para lhe poder fixar os olhos. Ele susteve a respiração e o seu coração acelerou.

— Perguntaste-me o que penso dos sentimentos de Eile — disse ela. — Sei exatamente como ela se sente. Abandonada, desiludida, traída. A infeliz cometeu o erro de confiar em ti, baseada, suponho, na tua história de seres amigo do pai dela. Ela esperava socorro, imaginou que estarias presente quando ela precisasse de ti. Eu disse-lhe que era uma tolice; disse-lhe que era hábito dos homens fazerem com que as mulheres confiassem neles e que depois desapareciam quando as responsabilidades apareciam, mas devia ter sido mais explícita porque a rapariga não é educada. Eile, devia ter-lhe dito, se estás à espera que ele venha em tua ajuda, bem podes esperar para sempre; a cada dia que passar, derramarás uma lágrima a menos e o teu coração ficará um pouco mais forte e passados dez anos descobrirás que não tens mais lágrimas, descobrirás que o teu coração endureceu, descobrirás que não precisas de esperar mais porque já não te interessas. Eu sei que é verdade, Eile, sei porque fizeram-me o mesmo a mim: o meu pai e o meu irmão. Era o que lhe devia ter dito.

Tinham-se passado dez anos. Não podia ser Dáire, que já devia ter trinta anos e não podia ser Líobhan, que tinha uns grandes olhos castanhos. Com o coração a vacilar e com a cabeça a andar à roda, Faolan tentou manter a mesma expressão, mas falhou. As feições miúdas da Viúva comprimiram-se devido ao esforço e os seus olhos semicerraram-se.

— Por que regressaste? — perguntou-lhe ela. — À espera este tempo todo, apareces agora e o único presente que me trazes é o teu desprezo. Se não consegues fingir alívio por eu estar, no fim de contas, viva e bem de saúde, podias, pelo menos, esconder a tua aversão.

As luzes dançavam-lhe diante dos olhos e mal conseguia engolir.

— Casaste com ele — murmurou Faolan incapaz de escolher as palavras devido ao horror. — Echen. O homem que destruiu a nossa família. Casaste com ele. Depois de te levar, ele...

— Já percebi que ainda não foste a casa — disse ela, começando a andar de um lado para o outro com os braços cruzados no peito e com a cabeça baixa. Quanto mais olhava para ela, mais Faolan a reconhecia: as mãos delicadas, o desenho da testa, a maneira como mantinha a cabeça. Aíne, a sua irmã mais nova, raptada por Echen e pelos seus homens naquela noite terrível. Aíne, que o seu pai achara perdida para sempre. — Que sabes da história? — perguntou-lhe ela.

Uma torrente de palavras tentou sair, mas ele engoliu-as. Eu queria ir atrás de ti, mas o pai obrigou-me a fugir de Laigin; ordenou-me que nunca mais voltasse. Se eu soubesse... só tinha dezessete anos... Não valia a pena dizê-lo; era demasiado tarde, dez anos demasiado tarde. A sua querida irmã, a sua doce e adorada Aíne, transformara-se numa autocrata dura e cruel. Envergonhado, Faolan reconheceu que lhe tinha sido mais fácil aceitar a sua morte do que aquela reviravolta hedionda; entre todos tinham-na transformado num outro Echen.

— Não sei história nenhuma — replicou ele com voz rouca — nunca mais voltei a casa. Os familiares do teu marido atiraram-me para Fenda da Pedra-que-Quebra, mas eu fugi e nunca mais voltei a casa. Só regressei para dar uma notícia a Eile, mas ia levá-la para Encruzilhada do Rabequista. Que...? — Por trás da palavra estava um mundo desconhecido de possibilidades: o pai e a mãe, as outras duas irmãs, o avô, os que tinham sobrevivido àquela noite. Se tinham ficado com feridas tão profundas como as suas, cicatrizes tão feias como as de Aíne, não estava interessado em saber.

— Os teus olhos são tão frios, Faolan — disse Aíne. — O teu rosto é tão cruel. Achas que devia ter feito o que Eile fez? Apunhalar o meu assaltante no coração? Sentir-te-ias melhor com o sangue que te mancha as mãos, talvez, se eu o tivesse partilhado contigo, mesmo que me tivesse levado a uma morte rápida? Não precisas de o dizer, é evidente que preferias que eu tivesse morrido.

— Eu...

— Não quero ouvir a tua resposta. Sabes, não vi o que fizeste naquela noite. Echen contou-me mais tarde. Ele respeitava-te por isso; admirava-te por teres cumprido a ordem dele, apesar de saber que te estava a destruir. Nunca cheguei a ver o nosso irmão com a garganta cortada; só te via a ti e ao pai a olhar para ele, imóveis, enquanto eu era arrastada por estranhos. Ninguém foi atrás de mim. Ninguém disse uma palavra. Deixaste-me ir, simplesmente, tu e o pai.

Não era possível comentar aquelas palavras. Não valia a pena dizer-lhe que estava enganada, apesar de saber que gritara de indignação; lembrava-se de ter desatado a correr atrás dela e de a pancada na cabeça o ter feito perder a consciência. Áine tinha as suas próprias recordações e face a elas o seu coração tremia como o cereal face aos golpes da debulhadora.

— A única pessoa a mostrar alguma compaixão naquela noite foi aquele que tu consideravas teu arqui-inimigo. Echen teve pena de mim. Echen gostava de mim. Conservei a minha virgindade e a minha vida e ele, em vez de me usar e partilhar, deixou-me ir. Eu não sabia para onde ia e porquê. Uma escolta levou-me para casa da mãe de Echen, em Tirconnell. Fiquei lá dois anos a aprender a ser esposa de um chefe-de-guerra dos Úi Néill. Ela era severa, castigava-me se eu me enganava. Nunca imaginei que me sentiria tão só. Durante dois anos pedi todas as noites aos deuses que fizessem com que tu me encontrasses; sonhava todas as noites com o dia em que tu e o pai me viriam socorrer, mas nenhum de vós apareceu.

— Pensava que tinhas morrido. Fui-me embora.

— Passei a depender das visitas de Echen, mais freqüentes à medida que eu ia crescendo. Ele levava-me presentes: um cavalo, um anel de ouro, um cachorro. Ele era amável comigo. Até cheguei a gostar da mãe dele, assim que ela começou a ficar menos rígida. No dia do meu décimo quarto aniversário, Echen casou comigo e fomos para Blackthorn Rise. Dei-lhe um filho um ano depois e outro passado outro ano. Não precisei de o esfaquear nem me senti compelida a deitar-lhe veneno na bebida. Echen sempre me tratou bem e eu aprendi a ajudá-lo; aprendi a lidar com as pessoas, a lidar com o poder. Agora, estou só, ele morreu, e eu pago-lhe o favor criando os nossos filhos e governando as suas terras até eles terem idade suficiente para assumir o controlo do que é deles por direito. Vejo, pela repugnância estampada no teu rosto, que a história te dá vômitos. A tua cabeça continua cheia de ideais, noções de justiça, altruísmo e compaixão, coisas que o pai te instilou. Esse mundo não existe, Faolan, é uma ilusão. No mundo verdadeiro a chave da sobrevivência está no poder. Eu sobrevivi, fiz algo da minha existência. Consegui sair do pesadelo que Dubhán criou para nós e atingi a riqueza, tenho uma família, posição. Não devias desprezar-me, devias aprender comigo. Que espécie de vida é que tens?

Por um momento, Faolan não lhe conseguiu responder. Algures, no mais profundo do seu ser, continuava a haver amor: amor pela sua antiga Aíne, a que existia na sua memória, a sua irmã mais nova, uma rapariga inocente de faces rosadas e doces. Naquele momento, face àquele olhar dilacerante, não conseguia encontrá-la.

— Vou andando — disse ele, simplesmente. — Umas vezes bem, outras vezes mal. Depois de sair de Pedra-que-Quebra, tornei-me senhor de mim mesmo. Não quero riquezas nem poder, apenas liberdade, liberdade de escolher o bem ou o mal.

O sorriso de Aíne era amargo.

— Perdeste aqui, em Blackthorn Rise, a tua liberdade e também perdeste a filha do teu amigo. Falhaste como protetor dela. Nunca foste uma pessoa muito prática, pois não, Faolan? Nasceste bardo, bardo morrerás. Dar um nome bonito a uma rapariga não basta para a proteger.

Portanto, Aíne não sabia qual era o seu ofício, a não ser que estivesse a brincar com ele.

— A verdadeira liberdade não está no fato de estarmos fora de quatro paredes, está no coração e no espírito — disse ele. Faolan sentia-se paralisado, magoado, como se tivesse levado uma tareia. — Disseste que quem criou o nosso pesadelo foi Dubhán, deitas as culpas para cima dele. A única coisa que Dubhán fez foi falar pelos oprimidos, pelos que não têm poder. Dubhán era a voz dos que têm medo de abrir a boca. A sua resistência às práticas cruéis do teu marido era um grito de liberdade, uma canção de desafio. Dubhán não morreu por Echen me ter dito que lhe cortasse a garganta, Áine. Eu matei-o porque o nosso irmão me pediu. Ele deu a vida para salvar a família. Só uma vez, depois daquela noite, vi um ato de coragem semelhante. Eu limitei-me a obedecer a Dubhán. Acredito que Echen tenha sido amável contigo, se um homem como ele era capaz de ser amável, e ainda bem para ti. Porém, não percebo como consegues conciliar o fato de seres mulher dele com as crueldades que ele perpetrou naquela noite e antes. Echen era mau, lançou as trevas sobre a nossa família e sobre a comunidade de Encruzilhada do Rabequista. Não compreendo que vivas como vives, sabendo que digo a verdade. — Uma parte do seu ser tentava dizer o que ele sentia: Estou tão contente por estares viva. Estou tão contente por te ver, tive tantas saudades tuas. Porém, quando olhava para ela só via Echen Uí Néill.

— Pelos vistos — disse Áine com uma voz tão límpida como uma pedra de gelo — os cinqüenta dias de solitária não foram suficientes. Fui boa de mais. Talvez, no fim de contas, não tenha conseguido esquecer por completo o que o nosso pai nos ensinou em crianças. Seamus! — disse ela, erguendo a voz.

— Por favor — disse Faolan — deixa-me ir embora. Deixa-me ir à procura de Eile e da criança. Fiz uma promessa. Nunca mais me verás. Deixa-me ir.

— Essa tua urgência confunde-me — disse Áine no momento em que o corpulento guarda entrava na câmara. — Essa Eile não é do teu sangue, Não passa de uma miserável nascida para ser pobre e que, além disso, tem um problema de agressão. Eile assassinou um homem e fugiu de um castigo justo. No entanto, estás em pulgas por ir atrás dela. Porquê, Faolan? Por que razão fazes isso por ela quando não o fizeste pela tua própria irmã?

— Não te posso responder.

— Não podes ou não queres? Tens vergonha? Ou é demasiado complicado para ti?

— Sinto-me... confuso. Tudo que te posso dizer é que o homem que tens na tua frente não é o mesmo que vivia em casa do juiz de Encruzilhada do Rabequista e que cortou a garganta do irmão com uma faca. Se aquela noite te mudou, Áine, também me mudou a mim.

Tenho passado todos os momentos destes dez anos a tentar compreender.

— Enquanto não compreenderes o que senti, o terror, a falta de esperança, o sentimento de solidão, não compreenderás o significado daquela noite. Felizmente posso ajudar-te. Tenciono manter-te aqui até que vejas a luz. Não mereces menos. Fecha-o outra vez — ordenou ela a Seamus. — Não lhe desates as mãos. Ele não é de confiança.

— Espera! — disse Faolan. — Diz-me como estão a mãe, o pai, Dáire e Líobhan! Bem?

— Ah! Ah! — O som foi uma explosão de troça. — Agora é que perguntas. Mas ainda bem que o fazes porque a última coisa que eles queriam é que regressasses a Encruzilhada do Rabequista. O teu nome não é mencionado naquela casa. É como se nunca tivesses existido, depois daquela noite. Tudo o que te dizia respeito, foi varrido. É proibido pensar, sequer, em ti. O que fizeste provocou a destruição da tua família. A mãe morreu há muito tempo, nunca chegou a recuperar. O pai é uma concha de si mesmo, praticamente incapaz de juntar dois pensamentos. Dáire fugiu para as irmãs cristãs, nunca chegou a saber o que é ter marido e filhos, vive no silêncio e na tristeza. Líobhan vive cheia de amargura, obrigada a ficar em casa para tratar de um pai incapaz. O avô morreu pouco depois. Como sabes, nunca foi forte. Eis o que fizeste. Estás arrependido de ter perguntado? Se estavas à espera de perdão, Faolan, és louco. Certos atos não têm perdão.

Faolan não conseguiu responder-lhe. O guarda, Seamus, olhava para o chão.

— Adeus — disse Áine. — Tenciono ser generosa e dar-te muito tempo para pensar. Talvez possas compor algumas canções enquanto estás sob a minha custódia. Oh, e não te preocupes com Eile. Aquela rapariga é uma sobrevivente. E como eu. Não precisa de ti.

A voz de Faolan regressou.

— Estás enganada — disse ele, ao mesmo tempo que Seamus o levava para fora da sala por um braço, revendo a figura frágil de Eile com as costas muito direitas e os olhos aterrorizados na ponte frágil sobre as águas revoltas, revendo a ternura na boca suave, a gentileza das suas mãos ao tapar a filha com a capa. — Não é nada como tu.

Derelei sentara-se na borda do tanque. A ama estava preocupada, temendo que ele apanhasse uma constipação ou que caísse e se afogasse. Tuala, à distância, sabia que o filho não estava à procura de peixes ou a sonhar com barcos à vela. A água estava a chamá-lo, o pequeno olhava e ao vê-lo ela sentiu a mesma compulsão.

A jovem Rainha sabia que o dom da vidência seria tão forte nele como fora nela e esperara que não se manifestasse demasiado cedo, antes de Derelei ser capaz de falar fluentemente porque o fenômeno podia ser assustador, mesmo no caso de um adulto, capaz de compreender a sua natureza. Para uma criança de dois anos podia ser esmagador.

Não valia a pena desejar o regresso de Broichan, fizera aquilo bastantes vezes e ele não dava sinais de vida, em carne e osso ou através das visões. Ninguém sabia onde ele estava; ninguém sabia para onde tinha ido. Ninguém o tinha visto em Pitnochie, em Banmerren ou em qualquer outro sítio que o mensageiro de Tharan visitara na sua busca. Talvez tivesse ido para junto dos druidas da floresta, que só se deixavam encontrar se quisessem. Tuala esperava que sim porque nos seus refúgios remotos havia comida, abrigo do frio e das tempestades e pessoas que o tratariam se ele caísse doente. Também havia orientação, coisa que, provavelmente, ele necessitava mais do que nunca.

Tuala e Bridei tinham pensado em pedir a Drustan que o procurasse sob a forma de falcão, mas tinham desistido da idéia. Não era justo para Drustan. As suas faculdades eram tais que se via constantemente a servir de mensageiro, pisteiro ou espião. No outro, correndo riscos pessoais, voara até ao Grande Vale para salvar Bridei de um assassino. Não lhe podiam pedir outra vez. Ele e Ana tinham todo o direito de gozar a estadia em Pitnochie.

— Broichan é capaz de estar perfeitamente bem — dissera Bridei. — Provavelmente está farto da corte. Temos de lhe dar tempo.

— Ele foi sempre um professor tão assíduo, pelo menos contigo — replicara Tuala, recordando os longos períodos que tivera de esperar pelo fim das lições para poder estar com Bridei. — Nem parece dele deixar assim Derelei, a meio de tudo. É como se ele fosse a remar um barco em direção a uma ilha e se atirasse ao mar a meio do caminho, deixando o passageiro em dificuldades.

— Suponho que lhe bastaria pegar nos remos — dissera Bridei com um sorriso.

Tuala despediu a ama e sentou-se com o filho no jardim. Estava tudo calmo. A sombra dos arbustos de rosmaninho, Ban, que mais parecia um cão malhado em vez de branco, revolvia o solo lamacento. Garth vigiava discretamente, perto da entrada. O velho sábio, Wid, estava sentado no outro extremo do jardim com um xale em redor dos ombros, gozando o raro sol de Inverno. Tuala pedira-lhe que tossisse alto se alguém se aproximasse, mas a Rainha achava que os deixariam em paz. Aniel prometera que ninguém os perturbaria.

Começar como? Como ensinar uma criança que combinava uma espantosa capacidade natural para a magia com o vocabulário limitado e as emoções voláteis dos seus dois anos de idade? Sob a tutela de Broichan, Derelei começara a manipular o tempo e a levar a cabo pequenas transformações, a brincar com a luz e as sombras. Tinha de o ensinar a ter cuidado, a disfarçar, a limitar as suas faculdades ilimitadas. Derelei tinha de aprender a ver o inconcebível e a ser corajoso. A tarefa era monumental. Tuala não estava certa dos seus talentos na arte. A sua verdadeira especialidade era a visão. O melhor era começar devagar e prosseguir gradualmente.

O tanque não, porém; era perigoso para os dois. Tuala não se podia dar a luxo de ser atraída por uma visão com a criança a seu lado. Podia perder consciência da sua presença e colocá-la em perigo.

— Derelei? — disse-lhe ela, calmamente. — Agarra na minha mão. Muito bem. Olha para o Ban; adora fuçar, não adora? Já alguma vez fizeste de conta que eras um cão?

O trabalho foi duro. Aquelas transformações não eram como as que Drustan efetuava com facilidade física aparente, eram um passo menor, a fusão mental da pessoa com a do animal ou da coisa em desenvolvimento, adquirindo consciência dos seus movimentos, dos seus pensamentos, dos seus sentimentos, mas apenas mental.

Durante a tarde, por uma ou duas vezes, Tuala sentiu a mente do filho a tentar ultrapassá-la, como se quisesse fazer mais do que lhe era permitido. A jovem mãe sentiu que ele queria ser um cão a perseguir pardais pelo relvado fora, a beber no tanque, a rolar na lama, mas evitava mudar de forma. Se eram as suas faculdades que o impediam de dar aquele último passo, ou se a criança estava simplesmente a obedecer à mãe, não sabia. Tentaram um besouro para além do cão. Derelei queria o pássaro, mas Tuala abanou a cabeça.

— Ainda não. Essa é muito perigosa. Quando fores mais velho. Derelei queixou-se com um grito incaracterístico e deitou-se na erva úmida, esfregando os olhos.

— Já chega por hoje — disse firmemente Tuala. — Vamos levar Ban para a cozinha. Talvez haja bolo.

O pequeno afastou-se dela, protestando, exausto. A lição teria de ser mais curta na próxima vez. Derelei estava novamente na borda do tanque, com a cabeça quase metida na água. Tuala aproximou-se para o levar para dentro de casa, mas a gravidez tornava-a mais lenta do que habitualmente e quando chegou junto do tanque já ele estava de barriga para baixo a olhar para a superfície imóvel com uma intensidade familiar.

— Bawt — disse ele. — Vê Bawta.

Tuala não pôde deixar de olhar de relance para a água e viu uma visão a formar-se. As imagens apareciam-lhe, mesmo quando não queria.

— Sabes muito bem que Broichan se foi embora, Derelei — disse ela, ajoelhando-se junto do filho.

— Bawta ali — disse o pequeno, categórico.

Tuala olhou. Viam-se árvores e sombras: não um reflexo do jardim onde estavam com os seus carreiros pavimentados, as suas ameixeiras sem folhas e os seus lilases, antes um local florestado e escuro, com pinheiros e cheio de caminhos entrecruzados. Uma espessa camada de folhas podres cobria o chão e o musgo crescia nos troncos das árvores. Nas curvas dos ramos dos carvalhos despidos rebentavam pequenos fetos e outras plantas e Tuala viu movimentos entre elas, talvez pequenos pássaros, talvez algo mais estranho. A luz que entrava pela espessa copa das árvores, filtrada, era branca e fria.

Não lhe largues a mão, disse ela a si própria. Não o largues. Era essencial pensá-lo porque em breve estaria inconsciente do sítio e do tempo. Não era preciso muito para que a criança se afogasse. Podia acontecer a qualquer momento, em silêncio.

— Bawt — repetiu Derelei, e lá estava o druida, uma figura escura à sombra das árvores, de olhos escuros, exalando vapor pelas narinas. Broichan não abriu a boca, mas Tuala ouviu as suas palavras. Uma estação de penitência. Protege-o.

As perguntas tremiam-lhe nos lábios: Onde estás? Estás bem? Consegues ver-nos? Mas a orla da visão começava a desaparecer e ela percebeu que não tinha tempo para lhe perguntar. Apenas um momento; apenas um instante... Não tinha tempo para pensar. A jovem Rainha levou os dedos aos lábios e depois estendeu a mão na direcção da imagem na água. Tuala pensou ver a boca de Broichan a torcer-se um pouco, transformando a sua costumeira severidade num sorriso de troça. Em seguida, a floresta transformou-se novamente na água imóvel do tanque e a visão desapareceu.

Derelei ficou imóvel por um momento e depois começou a chorar de angústia, de exaustão e de desapontamento. Com o filho nos braços, Tuala derramou também uma lágrima ou duas. Não se podia consolar uma criança dizendo-lhe: Pelo menos está vivo, ou Ele volta na Primavera. O seu amado mentor, o seu avô, aparecera-lhe por um instante antes de desaparecer, deixando-o novamente sozinho.

— Pronto, pronto — murmurou Tuala. — Pronto, Derelei, já passou.

— Foi-se embora — soluçou ele.

— Ele está vivo e bem de saúde — disse Tuala, falando mais para si própria do que para o filho, momentaneamente inconsolável. — Broichan mostrou-se, é melhor do que nada. Derelei, sabes o que vamos fazer? Vamos dar um banho a Ban antes do jantar. Lavar au-au?

Através das lágrimas, apareceu uma centelha de interesse nos olhos de Derelei. O pequeno estendeu os braços para o tanque para molhar as mãos com um olhar inquiridor, tentando ultrapassar a angústia. Graças aos deuses, as crianças distraíam-se com facilidade.

— No tanque não — disse firmemente Tuala. — Na cozinha, numa tina. Com montes de bolhas. Eu seguro-o enquanto tu o esfregas.

— Estou demasiado cansada para continuar a carregar-te — disse Eile a Saraid. — Eu sei que está escuro, mas falta pouco. Olha, luzes lá em baixo. Deve ser uma aldeia.

Saraid deu três passos, tropeçou e sentou-se no carreiro lamacento. Estava tão escuro que Eile quase só adivinhava a filha.

— Pronto, está bem. Mas não com o pano. Agarra-te aos meus ombros e põe as pernas em redor da minha cintura — disse Eile, rangendo os dentes, deixando que a criança lhe subisse para as costas e levantando-se lentamente. Doíam-lhe os joelhos; estava tão cansada que até lhe custava respirar. Que aquilo seja Encruzilhada do Rabequista, pensou ela. Que os encontre; que eles não nos mandem embora assim que olharem para nós. A jovem fez um esforço quase sobre-humano para continuar. O cão seguiu-a com a cauda entre as pernas.

A aldeia era maior do que Montanha Nublosa. As casas aglomeravam-se em redor de uma praça cheia de erva. Aqui e ali viam-se lanternas, iluminando paredes brancas e alguns jardins. Ao longo do carreiro caminhava um homem. Eile perguntou-lhe nervosamente:

— Onde é a casa do juiz?

— A casa de Conor? Por ali abaixo, passas a ponte e sobes a margem. Estás a ver aquela casa grande, junto do muro? É a casa dele. Mas é tarde para andares a bater às portas. Estás metida nalgum problema? — O homem olhava para ela com curiosidade.

— Não, está tudo bem. Obrigada — disse Eile, virando-lhe as costas e afastando-se rapidamente. Se não respondesse a perguntas, não se atrasaria. Que me abram a porta. Que me ouçam.

A casa do juiz estava rodeada por um substancial muro de pedra, no qual havia um pesado portão de ferro. No meio das pedras crescia extravagantemente uma trepadeira, ramificando-se aqui e ali num padrão muito próprio. No Verão toda a casa devia estar sob um manto verde. No lado de dentro do portão via-se uma lanterna acesa e havia luzes no interior da casa. O portão estava fechado. A jovem abanou-o, relutante em gritar e um cão começou a ladrar, algures, fazendo rosnar o cão cinzento. Era evidente que aquele homem de leis não gostava de intrusos.

O cão de guarda continuava a ladrar, mas não aparecia ninguém. Eile contemplou uma terceira noite ao relento, debaixo de uma meda de feno ou por trás de uma pocilga e levantou a voz:

— Está alguém em casa? O da casa! — Silêncio. O cão calara-se. — O da casa! Posso entrar?

A jovem viu uma mulher a descer o carreiro com uma lanterna na mão. A seu lado caminhava um grande cão de caça. O cão cinzento aproximou-se do portão com os pêlos eriçados, rosnando baixinho.

— Cala-te — disse Eile.

Dois belos olhos castanhos examinaram-nas por entre as grades do portão. A mulher era nova e não era muito alta. Eile sentiu um arrepio na espinha. Até à luz mortiça da lanterna se via que era extremamente parecida com a Viúva. Havia ali algo de errado. Supostamente, aquela gente era da família de Faolan. Supostamente eram amigos.

— Quem és? — perguntou a mulher. — Que queres?

— O meu nome é Eile e esta é minha filha. Preciso de falar com o juiz. É urgente. Ele está?

— Receio que não. Foi a outra aldeia resolver um caso. Podes voltar amanhã?

Deuses, mais uma noite ao relento. Eile, com um movimento brusco, ajeitou Saraid, que estava a escorregar.

— Venho de Blackthorn Rise — disse ela, irritada por a voz lhe soar insegura.

Os olhos castanhos abriram-se mais um pouco.

— Com a criança às costas? Não vem mais ninguém contigo? Eile abanou a cabeça.

— Só o cão. Ele não faz mal.

— Blackthorn Rise. A casa de Aíne?

— Quem?

— A minha irmã. Ela é mais conhecido pelo nome de Viúva.

— Tua irmã? Mas... — Havia ali algo de errado. — Se calhar cometi um erro. O homem que procuro é pai de Faolan.

Os olhos abriram-se mais ainda e o rosto empalideceu. Parecia que a mulher ia desmaiar a qualquer momento.

— Conheces o meu irmão? — perguntou ela, quase sem fôlego.

— Viste-o? — A lanterna abanou-lhe na mão.

— Se te referes a Faolan, trago notícias dele. Mas, espera aí. Estás a dizer que a Viúva também é irmã de Faolan? Isso é impossível. Ela nunca... quer dizer, ela... — Em que espécie de teia tinha caído?

— Quero descer, por favor — disse Saraid com um bocejo.

A mulher abriu rapidamente o portão, servindo-se de uma chave do molho que tinha à cintura. O cão manteve-se sempre a seu lado, vigilante e obediente, até Eile, Saraid e o cão cinzento entrarem e o portão ser novamente fechado.

— O meu nome é Líobhan — disse a mulher. — Pareces exausta. Vem para dentro. Vou já chamar os outros. Tens mesmo notícias de Faolan? Ele ainda é vivo?

— Vivo? — perguntou Eile, espantada. A jovem esperava sinceramente que sim. — Tanto quanto sei, está, mas pode estar metido em sarilhos. Preciso mesmo de falar com o juiz...

— Conta-nos agora. — A voz de Líobhan, aveludada e quente, tremia de emoção. — Por favor. Não sabemos nada do meu irmão desde que ele saiu de Encruzilhada do Rabequista, há dez anos. Nunca mais tivemos notícias. Isto é... é incrível. Tu disseste há alguns dias... que ele está perto? Que vem para casa, finalmente?

Líobhan conduziu Eile, sem esperar pela resposta, através de uma passagem coberta e de uma porta até uma sala quente com uma grande mesa e uma grande lareira de pedra, onde chamou:

— Donnan! Avô! Está aqui uma rapariga que esteve com Faolan!

— Ao mesmo tempo, fazia sinal a Eile para se sentar num banco junto do fogo amortecido, ajudando ao mesmo tempo Saraid a tirar a capa e enchendo uma chaleira de água; de um recanto junto da lareira emergiu um gato malhado, espreguiçando-se. O cão cinzento meteu-se debaixo do banco.

— Estás gelada — disse Líobhan. — Vou atiçar o lume e arranjar-te alguma coisa de comer. A tua história pode esperar até o meu marido chegar. Ele estava mesmo a acabar uma coisa qualquer...

Cautelosamente, Eile olhou em volta; nunca tinha estado numa sala tão acolhedora como aquela. A luz da lareira era completada por várias lâmpadas colocadas nos cantos, a mobília era de madeira cor de mel e as paredes tinham tapetes bordados com cores vivas. Eile reparou que Saraid estava a olhar para as cenas representadas; um bardo a tocar harpa e pessoas a dançar de mãos dadas; pessoas com forquilhas a carregar um carro de feno; uma criança a alimentar um punhado de galinhas com um cão por perto, vigilante. Do teto pendiam tranças de cebolas e alhos e em cima de uma mesa junto da parede havia pilhas de pratos e tigelas de barro, como se a casa estivesse habituada a receber hóspedes inesperados. Num jarro estava uma coleção de galhos de Inverno e alguma folhagem, encantadoramente arranjados. Em frente da lareira estava estendido um tapete às riscas vermelhas, amarelas douradas e castanhas. O gato deitara-se no centro dele e a luz da lareira dava ao pêlo um brilho aveludado.

Líobhan andava de um lado para o outro e em breve havia em cima da mesa bem esfregada um cesto de pão, um prato de fruta de conserva, queijo, cebolas e uma faca.

— Precisas de ajuda? — perguntou Eile, sentindo-se desconfortável. Aquela dama não devia estar a servi-la.

— Deixa-te estar sentada e aquece-te. Se não me mexer, desato a chorar, ou encho-te de perguntas antes de os outros chegarem. Não acredito que vamos saber notícias de Faolan, finalmente. Passou tanto tempo. Ah, aí vem o meu marido.

Um homem atarracado na casa dos vinte, limpando as mãos a um avental sujo, entrou na sala.

— Donnan, esta rapariga diz que esteve com Faolan e que tem notícias para nós.

O homem cumprimentou Eile com um aceno de cabeça e sentou-se à lareira. O gato saltou-lhe imediatamente para os joelhos. A atenção de Saraid estava toda virada para o animal. Eile sentia que ela ansiava por se levantar e tocar-lhe, mas a timidez impedia-a e a pequenina não saiu de ao pé da mãe, silenciosa e com os grandes olhos muito abertos.

— O nome dela é Remendo — disse Donnan à criança. — Queres fazer-lhe festas? Ela não morde.

Saraid, porém, abanou a cabeça e enterrou o rosto no braço da mãe.

Líobhan tinha deitado uma espécie qualquer de bebida num jarro e estava a acabar de enchê-lo com água quente.

— Isto vai aquecer-te, Eile — disse ela. — Uma invenção minha: groselhas e maçãs azedas.

— A minha mulher é uma cozinheira afamada — observou Donnan com um sorriso.

— Obrigada — disse Eile, aceitando uma caneca. Aquilo era irresistível. Quanto mais amáveis eram, quanto mais ansiavam por notícias, mais difícil seria dizer-lhes a verdade. — É melhor dizer-vos primeiro a verdade... Preciso de ter a certeza de que continuo a ser bem recebida em vossa casa depois de saberdes quem sou...

Na sala entrou um ancião de cabelos brancos e a seguir a ele um rapaz de seis ou sete anos com uma capa por cima de um roupão.

— Phadraig — disse Líobhan, franzindo o sobrolho — que estás a fazer levantado?

— Tu gritaste, mãe — disse o pequeno, aproximando-se da lareira e olhando primeiro para a trêmula Saraid e depois para Eile, que olhou para ele diretamente. — E eu não estava a dormir. O bisavô estava a contar-me uma história. Essa gata é nossa — continuou ele, virando-se para Saraid. — Vai ter gatinhos daqui a pouco. Estás a ver a barriga dela? Eu vou ficar com um. Vou chamar-lhe Cú Chulainn porque é o nome de um grande guerreiro e o meu gato também vai ser um grande guerreiro, vai apanhar os ratos todos da oficina do meu pai. Se puseres a mão na barriga da Remendo, és capaz de sentir os filhos dela a mexerem-se. Queres experimentar? Aqui. — E lá estava Saraid, sem qualquer dificuldade, a apalpar a barriga da gata, colocando a sua mão ao lado da de Phadraig, ligeiramente maior. Eile viu um sorriso de felicidade total a iluminar as feições pálidas da filha. Parecia quase um milagre; não podia deixar fugir as lágrimas.

— E agora conta-nos, Eile. — Líobhan sentara-se ao lado da sua hóspede com uma caneca da condimentada bebida na mão.

— Deixa comer a miúda, Líobhan — disse brandamente o ancião.

— Desculpa. Deves estar esfomeada, Eile. Phadraig, Saraid ainda não jantou. Podes pôr alguma coisa num prato para ela? Sim, também podes comer. Estás a crescer tão depressa que não me parece que um segundo jantar te faça mal.

— Primeiro tenho de dizer... precisais de saber... — disse Eile, olhando de relance para as duas crianças. O rapaz estava a pôr pão, queijo e fruta num pequeno prato. Saraid, por sua vez, estava junto dos joelhos de Donnan, acariciando o pêlo suave da gata.

— Phadraig — disse Líobhan — por que é que tu e Saraid não vão para a mesa do canto? Acho que o cão também precisa de comer. Talvez haja um osso algures. Saraid ajuda-te a procurar.

Não acreditava no que estava a acontecer, pensou Eile. Numa casa cheia de estranhos, Saraid conseguira afastar-se três passos da mãe.

— Um cão? Onde? — perguntou Phadraig, espreitando por baixo do banco. — Ah, já estou a vê-lo. Como é que ele se chama? Aposto que está com fome. Anda; anda. — Sempre a falar, com o prato na mão, o rapaz levou atrás de si o cão com a cauda entre as pernas e a criança tímida e saiu por uma pequena porta. A pequena nem sequer olhou para trás.

Eile sentiu um sorriso trêmulo nos lábios.

— Geralmente ela desconfia de estranhos.

— Phadraig tem um jeito especial — disse Líobhan, muito prática. — Que tens para nos dizer, Eile?

A jovem engoliu em seco, nervosa. Não lhe parecia bem vomitar ali a verdade nua e crua, para aquela gente tão pacífica, tão delicada, que não parecia pertencer ao mesmo mundo de Dalach e de Anda, um mundo de pragas e ameaças, pancada, nódoas negras e resistência silenciosa. E se Líobhan, depois de a ouvir, as pusesse na rua, obrigando-as a passar mais uma noite ao relento? Normalmente, as pessoas sofriam duros castigos por menos do que ela fizera.

— Matei uma pessoa. — Pronto, estava dito. — Um homem que estava sempre a fazer-me mal. Tive medo por causa da minha filha. Aconteceu há algum tempo; há mais de cinqüenta dias, pelas minhas contas. A dama de Blackthorn Rise deu-me abrigo. Ela disse que tratava de tudo, mas não tratou. Limitou-se a manter-me lá. Ainda tenho de responder pela morte dele, ainda não fui castigada. Mas não quero perder Saraid. Fugi de Montanha Nublosa e depois fugi de Blackthorn Rise.

A mulher de olhos castanhos, o homem calmo e o ancião solene olharam uns para os outros, avaliando o que acabavam de ouvir. A lenha crepitava na lareira e a gata espreguiçava-se, voluptuosa, nos joelhos de Donnan.

— Vieste a Encruzilhada do Rabequista para pedir ao meu pai para tratar desse assunto? — perguntou Líobhan.

— Não, não foi por isso, mas suponho que lhe vou pedir, já que estou aqui. Não quero ir para a prisão. Saraid não tem mais ninguém. Eu nunca fiz mal a ninguém. Só a ele. Bem, não é exatamente verdade. Em Blacthorn Rise havia um miúdo terrível chamado Fionn que foi cruel para Saraid e eu dei-lhe uma bofetada. Foi por isso que fugi de lá. Mas nunca mais faço mal a ninguém.

— Faolan — disse o ancião. — Que tens para nos dizer acerca de Faolan? — As suas mãos nodosas estavam entrelaçadas uma na outra com força.

— Faolan ajudou-me. — O mais rapidamente que pôde, Eile contou a história. Os seus três ouvintes escutaram-na em silêncio, imóveis, bebendo cada palavra. — Portanto — disse ela no fim — pensei que ele se tinha ido embora por causa do que a Viúva me disse, mas tenho a certeza absoluta que o ouvi chamar-me. Se ele é irmão dela, por que lhe fez aquilo? Por que me mentiu? Para as grandes damas como ela, eu não sou nada. Eu e Saraid não passamos do pó que ela pisa. — Subitamente, Eile lembrou-se de onde e com quem estava. — Peço desculpa — acrescentou ela. — Ela é da vossa família. Não quero ofender-vos, mas ela não se portou bem comigo e mentiu-me; brincou conosco; disse que estávamos seguras com ela, mas mentiu. Ela não tratou de nada com a lei e mandou chicotear a minha filha. Saraid é tão pequenina!

Líobhan suspirou.

— Deuses — disse ela, como se estivesse a falar consigo própria — ele regressou, finalmente, e encontrou isto.

Donnan estendeu um braço e pegou-lhe na mão.

— Faolan regressou — disse ele. — Fica-te por aí. Nós resolvemos o assunto. O teu pai e eu vamos lá. Vamos ter de confrontar abertamente Aíne.

— Jovem — disse o avô. — Faolan tem sorte por ter uma amiga como tu. Foi preciso coragem e força para chegares até aqui. A maioria teria aproveitado a oportunidade e teria fugido da região. O meu genro, o juiz, é um homem justo e sábio. Ele trata do teu caso. Não tenhas medo.

Sem palavras, subitamente tímida, a jovem acenou com a cabeça.

— Estou certa que tudo isto deve parecer-te muito estranho, Eile — disse Líobhan. — Faolan contou-te alguma coisa do seu passado? Sabes o que nos aconteceu antes de ele sair de casa?

— Pouca coisa. Ele disse-me que a família dele tinha sido enganada e que era demasiado tarde para vinganças porque o homem causador de tudo já tinha morrido. Também ouvi alguns homens a falar do assunto na ponte que atravessamos. Eles disseram que Faolan tinha feito uma coisa terrível.

Donnan trocou um olhar com o ancião.

— Eles devem ter ido ter com Aíne — disse ele. — Por isso é que ela sabia e por que razão estava lá no dia seguinte para o levar. Aíne deve ter-lhes pago, senão já teríamos sabido que ele estava de regresso a casa.

— Provavelmente perguntas a ti própria — disse Líobhan — por que razão não estamos especialmente chocados por teres morto um homem. Evidentemente, nós pertencemos à família de um juiz e tal fato conta, mas o que aconteceu naquela noite, há muitos anos, mudou-nos a todos. Pagamos caro e ainda hoje estamos a recuperar. Faolan foi forçado a matar o seu irmão mais velho, Dubhán, perante a família toda. Ou o matava a ele, ou morríamos todos. Dubhán pediu-lhe para o fazer e ele obedeceu, mas não sem que antes os homens do criminoso matassem a nossa avó.

O ancião baixou a cabeça.

— Nós fomos poupados — continuou Líobhan — mas os homens que nos invadiram a casa não partiram de mãos vazias, levaram-nos a nossa irmã mais nova, Aíne. Na época ela tinha doze anos. Enquanto falavam do que lhe iam fazer naquela noite, riam-se. O meu pai acreditava que ela não podia ser salva, tinha a certeza de que estaria morta muito antes de poder ser socorrida. Na verdade, achava que se um de nós tentasse salvá-la, também morreria. O autor de tudo chamava-se Echen e era um chefe-de-guerra poderoso. Resistir-lhe, como Dubhán tinha feito, era um convite a um fim violento. Aconteceu tudo nesta mesma sala.

Horrorizada, Eile olhou para o chão de pedra, imaginando o sangue, imaginando o jovem Faolan com uma faca na mão.

— Durante muito tempo não conseguimos entrar aqui — disse o avô. — A minha filha, mulher de Conor, só viveu uma estação depois daquela noite, nunca recuperou do que testemunhou. Os rigores do Inverno a seguir levaram-na com a mesma facilidade com que a brisa levanta do chão uma semente de dente-de-leão. A irmã mais velha de Líobhan, Dáire, foi para o priorado de Quedas de Inverno, não muito longe daqui; encontrou alívio na fé cristã e está contente com a sua vida de reclusão. Antes daquela noite tinha perdido o marido e um filho por nascer, fruto também da crueldade de Echen. Dubhán só procurou vingar-se.

— Dois anos depois ainda não tínhamos recuperado do golpe — disse Líobhan. — Então, Donnan começou a fazer-me a corte e foi como se um raio de sol tivesse perfurado um manto de nuvens espessas. Há muito que ele se dava conosco; o meu irmão, o que morreu, era amigo dele. Donnan tinha feito parte da resistência que despoletou tudo. Decidimos que a vitória de Echen sobre nós não seria total, como seria se o deixássemos destruir-nos. Decidimos que era tempo de começarmos a viver de novo. Transformamos esta sala no local mais quente e mais confortável da casa. Dissemos as nossas orações aqui, acendemos lâmpadas, cantamos e contamos histórias. Partilhamos refeições, convidamos pessoas a visitar-nos.

— E Áine? — perguntou Eile, achando que nunca ouvira uma história tão estranha como aquela.

— Foi um choque — disse Donnan, suavemente. — Fizemos os possíveis por não dar nas vistas naqueles dois anos. Vivemos segundo as regras de Echen e o pai de Líobhan não exerceu a profissão, temendo o antagonismo do seu inimigo se pronunciasse uma sentença contrária aos interesses de um dos seus favoritos. Depois daquela noite, nos dois anos seguintes, acreditamos sempre que Áine estava morta. As tentativas feitas para saber o que acontecera foram infrutíferas.

Então, ouvimos dizer que ela, afinal, estava viva e bem na vida; que estivera em Tirconnell e que era mulher de Echen.

— Não podia ser um final feliz — disse Líobhan — pelo menos com aquele homem como marido, mas nós queríamos vê-la, assegurar-nos de que não fora maltratada e de que não fora obrigada a casar. Ela recusou-se a ver-nos. Nem sequer agora, que Echen morreu, ela quer reatar relações conosco e não gostou quando o nosso pai retomou as funções como juiz depois da morte de Echen. Depois daquela noite, ele continuou a dar conselhos legais, mas não oficialmente. As pessoas não diziam nada. Como a comunidade legal precisava de um homem de leis qualificado, a minha filha não podia levantar objeções quando ele assumiu de novo as suas funções. Ocasionalmente encontramo-nos, os nossos caminhos cruzam-se, é inevitável, mas ela evita-nos, se puder. Aíne despreza-nos. Aquela noite mudou-a mais do que a todos nós, salvo a nossa mãe, talvez, que nunca recuperou da perda dos filhos naquela noite. A mente de Aíne foi de certo modo alterada. Ela tem poder e até pode ser um chefe-de-guerra competente em substituição do marido, mas é errática e perigosa.

— Ela culpa Faolan pelo que lhe aconteceu — disse o avô. — Acima de tudo ele por ser homem, novo e por achar que ele a devia ter salvo. Se ele está prisioneiro dela, corre perigo. A que horas esperas o regresso de Conor, Líobhan?

— Cedo — disse esta, no momento em que a porta de trás se abria e as duas crianças entravam, seguidas pelo cão cinzento com um osso na boca. — Ele disse que estaria de volta a horas de tomar o pequeno-almoço.

— Temos de esperar pela decisão dele, claro — disse o ancião. — Mas acho que é o que ele vai decidir fazer. Temos de ir a Blackthorn Rise amanhã e confrontar Aíne com o que sabemos.

— Ir onde? — perguntou Phadraig. — Também posso ir? — Um olhar da mãe silenciou-o. Saraid subira para os joelhos de Eile.

— E se ela disser que eu me enganei? Que Faolan não está lá? — perguntou-lhes a jovem. — Se o que dizeis é verdade, ela não vai libertá-lo, pois não? — concluiu ela, sentindo um arrepio na espinha ao pensar em Fenda da Pedra-que-Quebra e no que a prisão fizera ao seu pai.

— Conor sabe falar — disse Donnan, não parecendo totalmente confiante.

— Temos de esperar até amanhã de manhã — disse Líobhan. — Ela nunca nos deixou entrar lá desde que está à cabeça daquela casa e é possível que amanhã não seja exceção. Como juiz, o meu pai tem grande autoridade na região e é muito respeitado. Porém, Blackthorn Rise tem as suas próprias leis. Nós não somos bem-vindos em casa de Aíne e talvez nunca venhamos a ser. Ela não percebe a ironia: o marido cujos filhos ela decidiu criar e cujas terras ela decidiu gerir, é o mesmo que enlutou a nossa família. Penso que nunca compreenderá.

— Quem é que não compreende? — perguntou Phadraig.

— A tua tia Aíne, a que não vem cá a casa — disse-lhe a mãe. — Que tens nesse saco, Saraid?

Saraid enterrou a cabeça no ombro de Eile.

— É uma boneca — disse Phadraig. — Ela mostrou-me. Está estragada. Um rapaz cortou-lhe a cabeça. Chama-se Lamento. Eu disse-lhe que a arrumava, mãe.

— Estou certa que sim — disse Líobhan com um sorriso estranho. — Amanhã, está bem, Saraid? Talvez Lamento goste de uma fita em redor do pescoço, ou um pequeno folho. Podes ajudar-me a coser-lhe um.

— Eu faço... — Eile ouviu o tom combativo da sua própria voz e apressou-se a acrescentar: — Mas obrigado pela oferta. Se me emprestasses agulha e linha... Nós estamos habituadas a cuidar de nós, Saraid e eu. Eu sei coser.

— Claro que sabes. Hora de ir para a cama, Phadraig e penso que Eile e Saraid também precisam de dormir. Vamos lá ver se somos capazes de lhes arranjar um canto.

A manhã trouxe o juiz, um homem de cara rapada e cabelos grisalhos com os lábios finos e os olhos circunspectos de Faolan. Assim que ele entrou, tornou-se evidente que a decisão partiria dele. Apesar dos seus modos reservados, era um homem, pensou Eile, habituado a comandar.

Durante o pequeno-almoço, os restantes membros da família contaram-lhe a história do crime cometido por Eile e da captura de Faolan. Conor escondia bem os seus sentimentos; quanto mais olhava para ele, mais Eile o achava parecido com Faolan, fazendo-a pensar no seu pai e nela própria.

Saraid, que dormira bem, estava sentada ao lado de Phadraig e Líobhan, com um olhar para Eile, cumprimentou-a pelas suas boas maneiras. Depois de receberem autorização para abandonar a mesa, as duas crianças dirigiram-se para o pátio com o cão cinzento aos saltos atrás deles.

— Ela não está nada assustada — disse Eile, espantada. — O teu filho é bom rapaz. Penso que ela percebeu instantaneamente.

— As crianças sabem em quem podem confiar — disse o avô. — Conor, tenho algumas reservas em relação a este plano. Acho que não devemos inflamar a situação. Já pensaste em pedir a um druida ou a um clérigo cristão para ir conosco?

— Áine não vai aceitar — disse o juiz. — Ela tem uma reputação a defender. Uma coisa é fechar o irmão com o conhecimento único da sua própria casa, outra é toda a gente saber. Nós podemos servir-nos desse conhecimento para entrar. Se ela não tiver motivos legais para o manter prisioneiro, infringe a lei. A nossa dificuldade vai ser conseguir que ela o admita. Faolan não nos pode ajudar em nada, nunca foi um lutador.

— Não pode ajudar? — Eile estava espantada. — Ele pareceu-me muito capaz — continuou ela, calando-se quando o juiz virou os olhos severos para ela. A jovem não tinha medo de Líobhan, de Donnan ou do ancião, mas dele tinha. Conor não parecia homem capaz de oferecer comida a uma pessoa faminta, ou de mentir para salvar a mesma pessoa.

— Conta-nos — disse ele.

— Ele viajou de muito longe para me dar a notícia da morte do meu pai e falou à minha tia e ao marido dela como uma pessoa habituada a dar ordens. Deu-lhes prata, mas não se limitou a entregá-la, disse-lhes que tinham de a usar para meu bem, para o meu futuro, mas não serviu de nada — disse ela, fazendo uma careta, recordando como Dalach tirara rapidamente o saco à mulher assim que o visitante se fora embora. — E Faolan lutou com os homens da Viúva quando eles lhe puseram as mãos em cima. Foram precisos cinco para o dominar. Ele só parou de lutar quando eles lhe bateram na cabeça. — Eile mordeu o lábio. — Lamento — acrescentou ela.

— Tens a certeza de que estás a falar de Faolan? — perguntou o juiz e dessa vez Eile reparou no tom diferente da sua voz: a voz de um homem cuja autodisciplina de ferro já não dominava por completo o turbilhão de emoções. — Não podemos antagonizar ainda mais Ame com falsas acusações de detenção ilegal.

— É o teu filho — disse Eile, pousando-lhe uma mão na sua e tirando-a imediatamente a seguir. Conor era alguém e ela era um monte de lixo que tinha esfaqueado o próprio tio. Conor administrava a lei e ela era uma herética. Tinha-se esquecido naquela casa singela. — Ele falou em ti, disse que eras sábio e justo; disse-me que o ajudarias e que eu não devia ter medo. — A jovem olhou em volta. — Faolan disse que as pessoas desta casa eram boas e eu estou a ver que é verdade.

Ninguém disse nada durante alguns momentos.

— Tenho uma idéia — disse-lhes ela, perguntando a si própria onde tinha arranjado a coragem e a garra de sugerir deixar Saraid por um dia ou pelos dias que fossem necessários para ir a Blackthorn Rise e voltar em cima de um cavalo. Uma estranha convicção apoderara-se dela a propósito do plano delineado: a certeza de que era o que o seu pai teria desejado que ela fizesse. Ser ousada e engenhosa; ajudar o seu amigo; deixar para depois as suas próprias necessidades. — Eu explico.

O grupo de cavaleiros, três homens e uma rapariga, chegou aos portões de Blackthorn Rise ao princípio da tarde. Chovia de novo; os viajantes tinham um ar sujo. Desafiado pelos guardas, o mais novo dos homens, que lhes pareceu levemente familiar, avançou. Nenhum deles, porém, se lembrava de onde o conhecia. Os outros escondiam os rostos por baixo dos capuzes das capas, por causa da chuva. Quanto à rapariga, conheciam-na bem.

— Estamos aqui para falar com a Viúva — disse o mais novo dos homens. — Vimos devolver esta rapariga, que fugiu desta casa. Sabemos que enfrenta acusações muito graves em Montanha Nublosa.

— E que tens tu com isso? Diz-nos o teu nome.

— Donnan. Sou arreeiro a oeste daqui. Apanhei a rapariga na estrada. Ouvi dizer que oferecem uma recompensa por ela. Duas moedas de prata, foi o que ouvi dizer.

— É a primeira vez que ouço dizer tal coisa — disse um dos guardas, virando-se para um dos camaradas. — Que achas?

— Pode ser verdade. Seamus é capaz de saber. Tu aí! Entrega a rapariga e espera até nós sabermos qualquer coisa. Duas moedas de prata parece-me muito por uma coisa tão magricela. E onde está a criança? Ela tinha uma criança com ela.

— Levaram-na. — A voz da rapariga tremia de pavor e havia lágrimas no seu rosto. De certo modo era um erro tê-la deixado fazer a viagem; toda a gente sabia que seria chicoteada, mas tal castigo não era nada comparado com o que apanharia por assassínio.

— Pergunta à Viúva se nos pode receber — disse Donnan. — Se ela prometeu prata, é por no-la dá.

— A dama foi dar um passeio a cavalo. Tereis de esperar.

— Não vamos ficar aqui a tarde toda à espera — disse Donnan. — Está a chover. Se não nos deixardes entrar, vamos a Montanha Nublosa e entregamos a rapariga diretamente à família dela. Quando a tua senhora voltar, explicas-lhe o que aconteceu. Sei que lá eles também me dão uma recompensa; disseram que querem castigá-la.

— Terás sorte se a gente daquela aldeia conseguir juntar duas moedas de cobre, quanto mais de prata.

— Veremos — disse Donnan, dando a volta ao seu cavalo. — Vamos, estamos aqui a perder tempo.

— Um momento! — gritou o guarda. — Ela pode querer a rapariga. Vou perguntar ao meu superior. Esperai aqui.

O chefe dos guardas, Seamus, estava a fazer uma coisa que guardava para quando era pouco provável a Viúva aparecer: a tratar do bem-estar do seu prisioneiro. Como, provavelmente, o irmão da Viúva ia ficar preso durante um período indefinido, sentia-se obrigado a dar os passos que fossem necessários para impedir que o indivíduo enlouquecesse por completo. Ele e Maeve tinham conversado sobre a situação e tinham perguntado a si próprios se, finalmente, não seria melhor fazerem as malas e despedir-se, já que as coisas em Blackthorn Rise estavam a atingir o ponto de ruptura. Não lhes seria difícil arranjar trabalho noutra casa qualquer. Porém, a lealdade e a piedade eram coisas estranhas. Estavam ambos com Aíne havia muito tempo e nenhum deles estava preparado para dar tal passo. Provavelmente, a Viúva acabaria por descobrir que tinham quebrado as regras e expulsá-los-ia. Maeve tinha ajudado a vagabunda ruiva e a filha a fugir e ele estava a ajudar Faolan. O chefe dos guardas deixara os seus subalternos tratar dele até a Viúva o chamar, finalmente. Toda a gente esperava que ela o libertasse. Cinqüenta dias era muito tempo para um homem sozinho numa cela.

Depois do que ouvira naquela noite e da ordem que recebera para fechar novamente Faolan, Seamus assumira-se como responsável pelo prisioneiro e não estava a seguir as novas regras, segundo as quais as grilhetas deviam continuar e só uma refeição seria servida, em silêncio. Era uma estupidez. À parte a luta inicial, o prisioneiro era um modelo de bom comportamento, educado e razoável. As grilhetas foram-lhe tiradas, apesar de continuarem à mão caso a Viúva decidisse visitá-lo. Faolan comia à mesma hora dos guardas e enquanto comia, ou quando se punha a olhar para o prato, o que acontecia com freqüência, Seamus aparecia à porta da cela e falava com ele, desejando que ele retribuísse. O prisioneiro parecia que era um homem interessante, viajado. A história de Pedra-que-Quebra era verdadeira, evidentemente. Seamus vira-lhe a tatuagem. Porém, depois de Aíne ter falado com ele, o homem remetera-se ao silêncio. Durante a maior parte do dia sentava-se no chão com as mãos em volta dos joelhos e a cabeça baixa. Seamus esperava que a Viúva o libertasse em breve. Aquilo estava errado.

Tinha ele acabado de fechar outra vez a porta quando Enda apareceu a correr, dizendo atabalhoadamente que a rapariga de Montanha Nublosa estava ao portão com três homens. Seamus obrigou-o a acalmar, percebeu que era uma rapariga, três homens e que havia uma recompensa. O chefe dos guardas pensou no que poderia acontecer e tentou lembrar-se de onde ouvira falar de um arreeiro chamado Donnan. Subitamente fez-se luz; tinha algo a ver com os velhos tempos, os tempos de Echen, algo que todos tinham tentado esquecer. — Deixa-os entrar — disse ele.

Até então seguira um padrão, uma variação do que inventara em Pedra-que-Quebra para manter a mente e o corpo ativos. Fazer flexões, alongamentos, andar, saltar, inventar planos de fuga, contar histórias a si próprio, fazer contas de cabeça. Durante cinqüenta dias fora possível mantê-lo e conseguira comer e dormir quase normalmente. Durante cinqüenta dias conseguira acreditar que quando saísse daquela cela iria em socorro de Eile e que veria finalmente a sua família, feliz ou infelizmente; convencera-se de que talvez tivesse tempo para pôr tudo em pratos limpos antes da missão seguinte, de que, pelo menos, tentaria.

Então, porém, vira Ame e a esperança desvanecera-se como um pedaço de solo fértil varrido por uma tempestade violenta. Os prejuízos que causara eram irreversíveis. Cada rubrica do catálogo desapaixonado da sua irmã fora mais um golpe no seu coração. A sua mãe, o seu pai, Dáire, Líobhan. A própria Aíne, tão cruelmente mudada. Aíne, que ele não conseguia esquecer, apesar do mal que lhe tinha feito. Dubhán, o irmão que o bardo tanto tinha adorado. O avô, que sempre fora tão forte, tão eterno. A avó, apunhalada até à morte na sua frente. Como fora possível iludir-se, pensar que, de certo modo, podia ir a Encruzilhada do Rabequista e fazer as pazes com eles? Era como esperar que a morte se levantasse e começasse a dançar: um disparate.

Faolan viu-se a si próprio para lá do remorso, da dor, sozinho num lugar vazio, onde até as lágrimas eram irrelevantes. A sua existência não tinha significado. Para quê o exercício, a comida, o jogo da sobrevivência? A missão de Bridei, a visita a Colmcille, já não interessava. Bridei era uma figura distante, alguém que quisera ser seu amigo, um homem bom. Bridei encontraria outro espião.

Uma parte de Faolan dizia-lhe que continuasse a tentar, que não desesperasse. No fim de contas tinha sobrevivido a Pedra-que-Quebra.

Acabar tudo naquele momento era fazer troça dos homens que tinham saído de lá, tão poucos como os dias secos do Outono. O prisioneiro tocou na estrela que tinha tatuada por trás da orelha. Um sobrevivente. Se o era, não o merecia. Mais valia Echen ter acabado com ele naquela noite. Pelo menos não teria tomado conhecimento dos danos que tinha causado.

Ana: uma razão para continuar, uma razão para não desistir. Faolan pensou lembrar-se, vagamente, de lhe ter feito uma promessa. Era-lhe difícil imaginar-lhe o rosto; tudo o que via era uma neblina dourada e dois penetrantes olhos cinzentos. Como não gostava do seu olhar, Faolan pô-los de lado, tirou a camisa e começou a rasgá-la, servindo-se dos dentes. Em seguida calculou a altura a que estavam as grades da janela. Necessitaria de toda a sua força de vontade porque não estavam muito afastadas do chão, mas era capaz. Porém, teria de esperar. Mais tarde, depois de Seamus lhe trazer o jantar. Tinha de ter a certeza de que não seria interrompido.

Não precisou de muito tempo para atar e torcer os bocados da camisa, conseguindo uma espécie de corda. Uma voz murmurava-lhe na cabeça, uma voz que não conseguia silenciar: a voz de Deord. Faolan via os ombros largos e a cabeça calva do guerreiro na sua cela, de pernas afastadas na penumbra. Maldito lugar. Não me abandones, dizia Deord. Faolan pestanejou e o fantasma desapareceu, mas a voz continuou: Cumpre a tua promessa. Vive a vida que eu te consegui. Vive-a por nós, pelos que não puderam continuar.

Faolan atou a corda em redor das grades e testou-lhe a força, pendurando-se nela. Parecia firme. Talvez, no fim de contas, o fizesse naquele mesmo momento. Se esperasse, talvez acabasse por desistir. Talvez escutasse e se deixasse convencer. Seamus demoraria algum tempo até regressar. Não levava muito tempo a morrer, se estivesse mesmo decidido.

Faolan fez um nó corredio e pôs a corda ao pescoço. Era melhor não pensar. Era melhor continuar...

— Faolan! — A voz vinha do exterior, tão estridente como o grito de uma gaivota. Era Eile. — Faolan, onde estás? O teu pai está aqui! Vimos buscar-te.

Deuses. O prisioneiro levou as mãos ao pescoço, encheu os pulmões e gritou:

— Aqui, Eile. Estou aqui!

— Aguenta-te... — A voz da rapariga calou-se subitamente. Faolan pensou ouvir outras vozes, apesar de não conseguir distinguir as palavras. Seamus, talvez, e mais alguns homens.

O seu corpo começou a tremer convulsivamente. Lenta, cuidadosamente, como um homem habituado a exercer um controlo total sobre os seus pensamentos e ações, Faolan afrouxou o aperto, desfez o nó corredio, desapertou a suposta corda da grade da janela e, deixando-se cair no chão, começou a desfazê-la. Nas suas mãos, o instrumento de morte transformou-se num monte de trapos e o prisioneiro serviu-se deles para enxugar as lágrimas.


CAPÍTULO SETE

 

— Preciso de te pôr uma questão, Eile — disse Conor com uma expressão séria no rosto.

— O que é? — perguntou a jovem, consciente de que tinha a ver com a lei, os crimes e o respectivo castigo. O dia anterior, ocasião em que tinham libertado Faolan, não fora próprio para tratar de tais assuntos. Eile vira Faolan ajoelhar no salão de Áine com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo quando o seu pai lhe colocara a mão na cabeça, abençoando-o. A jovem ouvira a raiva na voz da Viúva ao ordenar-lhes que saíssem de sua casa; vira Líobhan abraçar o irmão, dando-lhe as boas-vindas como se ele fosse um filho pródigo, e o efeito secundário das perguntas excitadas de Phadraig. A outra irmã, a que se tornara freira, aparecera e estavam todos reunidos na sala que fora um lugar de morte e que passara a ser um paraíso de amor e local de reuniões familiares. Todos menos Eile e o juiz. Conor chamara-a à sala menor, onde uma mesa estava cheia de material de escrita e as paredes cheias de prateleiras com pergaminhos. A jovem achara-a um sítio mágico, cheio de possibilidades. Devia ser maravilhoso saber ler e escrever, interpretar mapas de lugares exóticos, assentar histórias no papel, ter nas mãos a palavra dos antepassados...

— Diz — disse ela.

— A lei é clara no que diz respeito ao assassínio — disse Conor. Havia compaixão nos seus olhos cinzentos. Eile estremeceu, perguntando a si própria se ele lhe iria dizer que não tinha outra hipótese senão entregá-la aos habitantes de Montanha Nublosa. — Discuti o teu caso com Faolan, a noite passada — continuou o juiz. — Ficamos a falar até tarde. A maior parte das pessoas concordará que houve muitas circunstâncias atenuantes, mas infelizmente a lei não as considera. Tu não agiste em legítima defesa, planeaste o ato, executaste-o e fugiste. Os parentes do morto têm o direito de te prender e manter-te sob custódia indefinidamente e como tu não tens recursos, é possível que te imponham uma pena ainda mais grave. Eile esperou.

— A pena de morte — disse Conor. — Não é provável, mas é necessário que tomes consciência da possibilidade. Faolan disse-me que quererias ouvir a verdade.

Eile acenou com a cabeça com um sentimento de distância, como se o mundo se tivesse retirado e ela estivesse sozinha num espaço pequeno, onde ninguém a podia ver.

— Saraid — murmurou ela. — Que vai acontecer a Saraid?

— Não é preciso irmos tão longe — disse o juiz. — Diz-me, tens mais alguns parentes para além da tua tia? A tua mãe tinha irmãos?

Eile abanou a cabeça.

— A minha mãe nunca me falou da família.

— Tens a certeza? Pergunto-te porque existe uma coisa chamada éraic, uma multa a pagar por um assassínio. Eile, precisas de um parente rico. Pelo que Faolan me disse, penso que a tua tia aceitaria o éraic, em vez de te ver encarcerada ou executada. Tu ainda és nova e tens a tua filha para criar. As circunstâncias do teu ato foram tais que é evidente que não constituis um perigo para a comunidade.

O coração de Eile batia com toda a força; a bruma que sentia na cabeça estava a desvanecer-se.

— E quanto é esse éraic? — perguntou ela. Esperança, tinha de se agarrar à esperança.

Conor nomeou uma soma e Eile, incapaz de imaginar uma tal quantia, abriu a boca de espanto.

— Para um homem de posição não é uma grande soma — disse o juiz. — Daria segurança à tua tia durante muitos anos, permitir-lhe-ia restabelecer-se. Acredito que ela é capaz de aceitar.

— Eu não tenho dinheiro nem parentes — disse Eile. — Saraid e eu não temos mais ninguém.

O juiz anuiu.

— Tenho mais uma coisa para te dizer — disse ele — mas antes devo esclarecer que assim que uma pessoa pagã a êraic de um assassino, este fica em dívida para com o pagante e deve ficar ao seu serviço até conseguir pagar a soma em questão. Evidentemente, se é a família a pagar a éraic, é relativamente simples, mas se a pessoa a pagar não for da família, seja qual for a razão, passa a controlar a pessoa devedora e os seus pertences até a dívida ficar paga. Preciso de ter a certeza de que percebes o que estou a dizer, Eile.

— Porquê? — perguntou ela sem qualquer expressão no rosto, ao mesmo tempo que a sala começava de novo a recuar, deixando-a sozinha numa pequena ilha, afastada do resto do mundo. Havia sombras à sua volta. Porém, não choraria. — Não tenho ninguém que pague por mim. Esse dinheiro todo chega para comprar um... um castelo. A lei é injusta, diz que os ricos podem ir em liberdade e que os pobres não. Eu...

— O que é, Eile?

— O que... o que é que eles me vão fazer? Quer dizer, como é que me vão executar? O que é que eles...?

As mãos de Conor agarraram as dela por cima da mesa.

— Eile — disse ele. — Faolan disse que pagaria a êraic por ti.

— O quê? — Não podia ser verdade.

— Faolan tem dinheiro suficiente e pagã se tu concordares. Ele não tem a certeza. Se te sentes preparada para aceitar a oferta, ele fala contigo sobre o seu significado.

— Faolan tem assim tanto dinheiro? — Eile começou a tremer. — Onde? Como?

— Pergunta-lhe. Ele levou o dinheiro para Blackthorn Rise e saiu com ele. O meu filho aprendeu algumas habilidades surpreendentes depois de sair de casa.

— Não me agrada a idéia de ser uma espécie de escrava.

— Ele disse que a tua resposta seria essa, mas tens, pelo menos, de pensar na oferta. Na verdade, tens de tomar rapidamente uma decisão.

— Tomar uma decisão? — Eile olhou para o juiz. — Sei que, por vezes, sou um pouco teimosa, mas não sou estúpida ao ponto de preferir a morte à prisão só porque não quero ficar a dever nada a ninguém. Tenho de pensar na minha filha. É evidente que aceito, mas preciso primeiro de falar com Faolan. É preciso que fique claro... — A jovem parou. Não podia impor regras. Assim que ele pagasse aquela soma fabulosa, passaria a ser seu proprietário.

— Muito bem — disse Conor, sorrindo e Eile achou que o seu sorriso era tanto de tristeza como de satisfação. — Vou buscá-lo.

— Não os interrompas agora. — A família tinha tanto para pôr em dia! Chorar os mortos, celebrar os vivos, trocar notícias velhas de dez anos. Eile não tinha nada a ver com o assunto e não se queria envolver. A sua cabeça continuava a andar à roda. Ao mesmo tempo, a jovem sentia que lhe tinha saído dos ombros um grande peso. Saraid estava salva. Quanto a si própria, talvez nunca chegasse a ter a casinha dos seus sonhos. De qualquer maneira, o desejo era egoísta, não o merecia. Se tivesse de trabalhar como uma escrava para pagar a Faolan, fá-lo-ia.

A jovem levantou-se para ir à procura de Saraid. Naquele dia o tempo estava seco e os dois cães, o cinzento e o de Líobhan, estavam a apanhar sol a um canto do pátio, ao mesmo tempo que Phadraig e Saraid estavam sentados num banco a olhar para qualquer coisa. Assim que ela pôs o pé na rua, a pequena foi ter com ela e agarrou-lhe numa mão.

— Arranja Lamento agora — ordenou ela. — Fita. Folho, Roupas novas.

— A minha mãe tem tudo pronto — disse Phadraig, apontando para o banco. — Ela fez o vestido; é de um velho que ela tem. Nós estivemos a vê-la. Mas ela não arranja a Lamento, disse que tu é que ias fazê-lo.

— Arranja Lamento agora — disse Saraid.

Estava tudo em cima do banco: agulha, linha, a fita e o folho prometidos, roupa quase a condizer e um minúsculo vestido cor-de-rosa perfeitamente acabado para Lamento usar assim que as duas partes do corpo estivessem novamente juntas. Seria quase como vestir a um espantalho o vestido de uma Rainha.

— Nós a lavamos — disse Phadraig. — A minha mãe secou-a à lareira, mas ainda está um pouco suja.

— Feridas honrosas — disse Eile, sorrindo. — Phadraig, passa-me a agulha e tu, Saraid, põe a cabeça no sítio. Vamos começar.

— Sê corajosa, Lamento — murmurou Saraid. — Não vai doer muito.

A delicada operação decorreu num silêncio quase completo, interrompida apenas pela chegada dos cães para investigar. Phadraig pô-los a perseguir uma bola e Eile meteu o minúsculo vestido pela cabeça de Lamento, apertou-lho no pescoço e colocou a boneca nos braços ansiosos de Saraid.

— Podes ir mostrá-la à mãe de Phadraig — sugeriu ela.

Saraid hesitou; o orgulho e a timidez travavam uma pequena batalha nos seus olhos.

— Phadraig acompanha-te — disse Eile, vendo Faolan aproximar-se através do pátio, vestido de lavado com umas calças cinzentas de lã, uma camisa azul um pouco grande de mais e uma túnica por cima. A grande barba escura adquirida no cativeiro tinha desaparecido e a jovem reparou na palidez doentia e no olhar sombrio dos seus olhos. Afinal de contas, pensou ela, o regresso a casa não era só abraços, sorrisos e um final feliz. Ainda por cima ia ficar pobre por causa de uma promessa que fizera ao seu pai. Provavelmente estava a amaldiçoar o dia em que conhecera Deord.

— Entrega o cesto de costura à tua mãe, Phadraig. Foi muito amável da parte dela emprestar-me.

O pequeno apalpou a costura em redor do pescoço de Lamento.

— Está ótimo — disse ele. — Anda, Saraid.

Faolan sentou-se no banco ao lado de Eile e esticou as pernas.

— O meu pai disse-me que te explicou a questão da multa e que concordaste em me deixares pagá-la — disse ele sem a fixar.

— Não podia deixar de concordar. — O constrangimento entre os dois era evidente; era a primeira vez que conversavam desde que tinham ido para Blackthorn Rise. Durante o tempo que tinham estado afastados, Eile passara a pensar nele como um amigo, quase como um membro de uma hipotética família. Naquele momento, porém, sentia-se desconfortavelmente consciente de que ele era quase um estranho. — O teu pai disse que se a multa não fosse pagã, Anda podia pedir a minha morte e eu tenho de pensar em Saraid. Faolan anuiu.

— Quer dizer — continuou ela, hesitantemente —, eu não quero que ela cresça como uma espécie de escrava, mas pelo menos tenho-a ao pé de mim. Mais ninguém quer saber dela. Suponho que esta solução é a ideal para ela. Não sei exatamente o que significa, apenas que não vou ficar fechada e que não vou morrer antes de ela crescer.

Faolan sorriu. Tal como o do seu pai, o seu sorriso era triste.

— Desculpa — disse ela. — Esqueci-me de te agradecer. Tu Salvaste-me a vida. Não percebo como és capaz de dar tanto dinheiro por mim. O fato de seres amigo do meu pai não te obriga a empobrecer por minha causa. Eu não sou nada, não mereço.

— E Saraid também não? — perguntou ele, olhando finalmente para ela. Eile não fazia idéia do que ele estava a pensar.

— Para mim, é evidente que sim, é a coisa mais valiosa do mundo, era capaz de morrer por ela, mas sou sua mãe. Tu nem sequer és meu parente.

Faolan olhou para as mãos.

— Eile — disse ele — eu não faço tenção de te manter como escrava. Só a idéia faz-me sentir arrepios. Vou apenas pagar a éraic. Não compreendes realmente por que o faço?

A jovem abanou a cabeça.

— Compreendo que acredites que deves qualquer coisa ao meu pai, mas isto é... demasiado.

— Estás a pedir-me que retire a oferta? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas, e por um momento Eile pensou ver o antigo Faolan.

— Que achas? — replicou ela.

— Acho que és demasiado inteligente para isso. Eile, o teu pai morreu para me salvar a vida. Juntamente com os laços naturais entre os homens que estiveram em Pedra-que-Quebra, é o suficiente para me obrigar a fazer isto por ti. De fato, porém, não é a única razão para a minha oferta. Parece que já te esqueceste de ontem. O teu grito salvou-me a vida, para não falar do plano que arquitetaste para entrar em Blackthorn Rise. Devo-te muito, Eile e sinto-me feliz por ter esta oportunidade de te retribuir. A jovem sentia-se confusa.

— Salvei-te a vida? Eu? Queres dizer que a tua irmã ia matar-te?

— Não sei quais eram ou quais são os planos de Aíne. Os seus desígnios são incompreensíveis para as pessoas normais.

— Normais? Ninguém na tua família é normal. — Eile pensou em Líobhan, encantadora, generosa e no seu marido calado e forte; no simpático e inquisitivo Phadraig; no ilustre Conor e no ancião solene. E no próprio Faolan, o homem que tentara ajudar uma fugitiva com as mãos cheias de sangue, da qual a maior parte dos homens teria fugido. — Se alguém salvou a tua vida foi o teu pai. Ele é que conseguiu que saíssemos de lá. — A jovem lembrar-se-ia para sempre daquele dia: o seu medo no lado de fora das portas da fortaleza de Aíne, enquanto esperavam, sem saber se os guardas da Viúva não se apoderariam dela e não a fechariam numa cela para enfrentar a acusação de assassínio. Seamus deixara-os entrar no pátio, acrescentando que esperassem pelo regresso da senhora de Blackthorn Rise. Sem lhes explicar porquê, o chefe dos guardas dissera-lhes que estava a quebrar as regras ao deixá-los entrar.

O instinto de Eile, porém, dissera-lhe que não esperasse. Estavam dentro da fortaleza, sim, mas por quanto tempo? Assim, gritara e quando a voz de Faolan lhe respondera, os olhos do seu pai tinham-se enchido de lágrimas e o chefe dos guardas parecera ficar, de certo modo, aliviado. A jovem perguntara a Seamus, quebrando a única regra imposta por Conor, a de que só ele falaria:

— Por que razão continua ele aqui? Ele está preso, não está?

— Pergunta à dama — respondera Seamus, mas acenando com a cabeça.

Áine ficara furiosa. Eile tremeu ao recordar o gelo nos seus olhos azuis, o ódio nas suas feições delicadas. Conor era um homem de leis e lidara na perfeição com a questão. Após a primeira reação, as lágrimas tinham desaparecido, substituídas por palavras pensadas, lógicas, e se sentia tristeza por a filha se ter transformado no que via, escondia-a na perfeição. Os seus argumentos eram simples; sabia que Faolan estava prisioneiro; todos o tinham ouvido chamar. Se Áine não lho entregasse, Conor espalharia pela província de Laigin e pelas outras o que ela fizera, faria chegar o caso aos ouvidos do seu poderoso cunhado, o ausente chefe-de-guerra de Blackthorn Rise. Ruaridh Uí Néill não permitiria que a Viúva de Echen continuasse a governar as suas terras se soubesse que ela encarcerara o próprio irmão sem qualquer acusação. Ruaridh, dissera Conor, ao contrário de Echen, não era um tirano.

Talvez tivesse sido fanfarronice da parte do juiz. Eile nunca o saberia, mas quando Áine ameaçara vingar-se, Conor lembrara-lhe que havia testemunhas e falara de um registro escrito da história de Eile escondido algures, caso alguma coisa lhes acontecesse. Finalmente, a Viúva mandara libertar o cativo, um homem de rosto pálido e olhos raiados de sangue. Ignorando a ordem cortante de Aíne, «não lhe toques», o juiz dera três passos em frente, abraçara o filho e as suas palavras tinham despedaçado o coração de Eile: Meu filho. Meu filho.

A jovem recordou o sorriso que iluminara o rosto de Faolan, o sorriso de um homem regressado das portas do inferno, um sorriso dirigido ao pai e ao avô, mas o assassino tocara-lhe no ombro à saída do salão de Áine e dissera-lhe «Obrigado», e o sorriso fora só para ela.

— O teu pai estava tão calmo — disse-lhe ela. — Por dentro todo agitado, mas por fora um modelo de controlo. Quem me dera ser assim.

— O meu pai não sabe a história toda — disse Faolan, evitando-lhe mais uma vez o olhar, olhando para as próprias botas. A sua voz baixara de tom.

— Qual história?

— Como te disse, Áine manteve-me preso durante cinqüenta dias, só depois é que me mandou buscar. Eu estou habituado ao cativeiro, sei os truques todos para me manter são e servi-me deles. Então, porém, ela mandou-me buscar e... e eu descobri, não só quem ela era, como me odeia pelo que fiz. Ela não consegue perdoar-me por não a ter socorrido naquela noite.

— Eu compreendo essa parte. Mas o que é que não conseguiste dizer ao teu pai?

— Antes de me mandar outra vez para a cela, Áine contou-me um chorrilho de mentiras, mentiras terríveis, pintou-me um quadro cruel, mais cruel do que a verdade. Eu via há dez anos a minha família em pensamentos, Eile, imaginava-a de uma certa maneira e quando regressei à minha cela passei a acreditar que a tinha destruído, de uma maneira ou de outra: que a minha mãe tinha morrido, a única verdade, que as minhas irmãs se tinham tornado amargas e infelizes, que o meu avô estava mortalmente doente e que o meu pai...

Eile pegou-lhe na mão.

— Podes contar-me tudo — disse ela, sentindo-se subitamente muito mais velha.

— Ela disse que a mente dele tinha ficado destruída, que já não conseguia pensar. Para mim foi a pior notícia de todas. Tu viste-o. Ele sempre foi o nosso rochedo, o nosso abrigo, sempre nos tranqüilizou, sempre nos disse que devíamos ser corajosos, justos, e que devíamos seguir o nosso caminho com as costas bem direitas. Ao longo destes dez anos, Eile, apesar de todo o meu desespero, sempre, sempre me recusei a escolher a saída mais fácil, um fim rápido, misericordioso, apesar de no meu ofício conhecer cem maneiras de o fazer. Sempre fui suficientemente forte para continuar, mas depois das revelações dela, depois de ver no que Áine se tinha transformado e de me sentir incapaz de lhe perdoar, o desespero apoderou-se por completo de mim. Nada fazia sentido; não valia a pena continuar. Nunca te Sentiste assim?

— Não — respondeu ela. — Tinha Saraid, não podia desistir. Seja como for, sempre acreditei que o meu pai acabaria por regressar e que nos levaria, um dia, de casa da minha tia. Quando me disseste que ele não ia voltar, fiz o que tinha a fazer. Sabia que era a única saída. Lamento que, no fim, tenhas sido tu a salvar-nos. Preferia ter sido eu a fazê-lo. Estás a dizer que quando gritei o teu nome no pátio ias matar-te?

Faolan acenou com a cabeça.

— Já tinha a cabeça metida no nó. A tua voz foi a coisa mais doce que ouvi na minha vida, Eile. As tuas palavras disseram-me que tinha futuro. Nem todo o dinheiro do mundo pode pagar tal coisa.

Ficaram os dois em silêncio durante uns momentos. Líobhan apareceu à porta da cozinha, olhou para eles e voltou para dentro.

— Qual é o significado, então? — perguntou Eile, franzindo uma prega da saia com os dedos. — Esta coisa da éraic? Que tencionas fazer?

— É difícil. Saraid parece uma criança diferente; até eu vejo que é assim. Líobhan gostaria que ficásseis as duas. O problema é Áine. Ela não nos vai perdoar. Nós os dois representamos um perigo para a casa dela. Eu posso comprar-te a liberdade, mas não te posso comprar a segurança em relação a ela. Ela sabe que foste tu que vieste aqui dizer ao meu pai que eu estava lá e que o levaste em meu socorro. Quanto a mim, a minha irmã nunca deixará de me tentar apanhar novamente enquanto eu estiver ao seu alcance.

— Oh. — A casa era encantadora, cheia de gente amável, calor e amizade. Pela primeira vez na sua vida, Eile sentia que podia respirar. — Portanto, temos de nos ir embora. Quando? — Não conseguiria dizer novamente a Saraid: Vamo-nos embora, Esquilo. Mais uma aventura.

— Em breve. Lamento.

— Para ti é pior. A tua família está aqui e acabas de a encontrar.

— Eu já tencionava não ficar muito tempo. Na verdade só vim por tua causa. Já tinha decidido ignorar Encruzilhada do Rabequista por me ser muito difícil.

Eile anuiu.

— E sentes-te feliz por teres vindo? Apesar do que aconteceu com a tua irmã? Apesar de teres de desistir do teu dinheiro?

Faolan sorriu.

— Suponho que viste a resposta no meu rosto. Mais uma razão para estar em dívida para contigo. E não desisto do meu dinheiro todo. Ainda fico com o suficiente.

— Disseste que não tencionavas ficar. Mas esta é a tua casa. Não devias deixar que Áine te obrigue a partir. Não está certo.

— Tenho de ir ao norte em missão antes da Primavera. Depois tenho de regressar a Dunadd e a outros sítios. Tenho de ganhar a vida, para não falar da tua e da de Saraid.

A jovem olhou para ele.

— Não é seguro para ti ficares tão perto de Blackthorn Rise — disse ele. — Áine é muito poderosa. Não és só tu que ficas em perigo. Se ficarmos, a minha família também fica. Eu quero que eles voltem a ter as tréguas que tinham com a minha irmã. É o melhor.

— Estou a ver. Portanto, sempre queres uma escrava?

— Honestamente, seria muito mais fácil para mim continuar sozinho. Estou acostumado. Por outro lado, a presença de uma família pode ajudar-me a passar relativamente despercebido, o que é vantajoso.

— Uma família. — A voz de Eile tornou-se áspera. — Estás a dizer uma mulher e uma filha outra vez? Não gosto nada e tu sabes porquê.

— Recuso-me a identificar-te como escrava, Eile. Não está no meu feitio. Já te expliquei; sabes muito bem que podes confiar em mim. E se achas errado eu dormir no chão e dar a cama à minha escrava, podemos trocar dia sim dia não. As nossas vidas têm sido duras. O que é preciso entre nós é honestidade. Juro que não te toco e de ti só espero bom senso e discrição. Em troca, ofereço-te proteção. Sei que não te serviu de grande coisa até agora, mas quer acredites, quer não, sou especialista no ofício e posso prová-lo. Tu queres segurança para Saraid. Eu dou-lha.

Eile não disse nada. Apesar de ter a certeza de que ele cumpriria a promessa, a idéia repugnava-a; não conseguia tirar Dalach da cabeça, pesado, malcheiroso, penetrando-a, sorrindo maldosamente.

— No norte tenho de visitar uma comunidade de monges cristãos — disse-lhe Faolan — e não quero dar uma impressão errada ao chegar com uma mulher jovem à qual não posso chamar mulher ou irmã.

A questão óbvia, pensou Eile, era por que razão, se ele não queria uma escrava, não a levava, a ela e a Saraid, até um sítio qualquer longe dali e as deixava simplesmente por sua conta, mas não lhe perguntou. Faolan podia não achar importante que ela pagasse a dívida, mas ela discordava.

— Disseste Dunadd? — perguntou-lhe ela. — Isso não é do outro lado do mar?

— É — disse ele. — Que pensas dos barcos?

Não teria, pensou ela, que mentir a Saraid. Ia ser mesmo uma aventura.

— Não sei — disse ela, recordando as histórias de viagens épicas e reinos estranhos de Deord. — Mas acho que sou capaz de gostar.

Alguns dias depois partiram de Encruzilhada do Rabequista de manhã cedo, com os cavalos a exalarem vapor de água pelas narinas e Saraid e Eile muito pálidas e silenciosas, envoltas nas roupas quentes que Líobhan lhes dera. Faolan levava reprimidas uma série de mágoas: não podia permitir que elas ficassem onde poderiam ser felizes; tinha de se despedir da família pouco depois de a ter reencontrado; não conseguira perdoar à pobre Aíne, deixando os restantes membros da família à mercê do seu desejo de vingança. Porém, os seus outros fantasmas estavam em repouso. As suas feridas tinham sarado quase por completo. O perdão da família fora um remédio poderoso, mas não podia esquecer que, sem Eile, não o teria recebido.

O olhar de Conor era ao mesmo tempo severo e terno.

— Vai com a minha bênção — disse ele, pousando as mãos nos ombros do filho. — Boa viagem — concluiu o juiz, beijando-lhe a fronte. Em seguida olhou para Eile, que estava a despedir-se de Donnan e do ancião: — É uma ótima rapariga — disse ele. — Ou será, assim que aprender que o mundo não está todo contra ela.

Faolan engoliu as lágrimas; derramara algumas desde que chegara a casa, ao longo dos poucos dias e noites durante os quais todos tinham feito os possíveis por compensar os dez anos perdidos. Não lhe era possível, naquele momento, deixar de recordar a outra partida, na manhã seguinte à morte de Dubhán: o rosto gasto da sua mãe ao dar-lhe um pequeno farnel para a viagem; o desespero do seu pai; o fato de as suas irmãs não terem saído de casa para se despedirem dele. Faolan olhou para Conor e viu a mesma recordação, as mesmas lágrimas por derramar.

— Faolan — disse o juiz, muito sério — não te esqueças nunca de que és meu filho e que te amo. Foi sempre assim, mesmo nos momentos mais sombrios. Vás para onde fores, e eu penso que é para longe, levas a tua família contigo. Fecha-nos no teu coração e regressa para junto de nós, um dia.

Faolan não conseguiu controlar uma lágrima e abraçou o pai, dizendo qualquer coisa que lhe pareceu uma promessa. Em seguida beijou Líobhan, que sorria a custo.

— Há de voltar, Faolan — disse ela, apertando-o contra o peito. — Eu sei. Há de voltar um dia.

Faolan despediu-se depois do avô, de Donnan, de Phadraig, que estava invulgarmente calmo, agradeceu ao segundo por lhes providenciar os cavalos que os levariam rapidamente para lá da fronteira de Laigin. O assassino não dissera a ninguém, nem sequer ao seu próprio pai, para onde iam. Era mais seguro.

Chegara a hora. Faolan ajudou Eile a subir para o seu cavalo. O seu pai tinha razão; a jovem estava a transformar-se numa ótima rapariga, não só na honestidade, mas também na força, que Faolan já testemunhara, mas também noutras coisas. Uma boa alimentação e uma sensação temporária de segurança tinham começado a transformar a esfomeada de Montanha Nublosa numa esbelta e saudável jovem de cabelos da cor das folhas dos carvalhos no Outono, longos e lustrosos. Os olhos verdes brilhavam, se bem que ainda um pouco alerta e a pele tinha uma cor mais bonita. Naquela manhã, Eile estava muito calada. Faolan sabia que ela teria gostado de ficar.

— Saraid para cima do cavalo? — perguntou uma voz infantil. — Por favor?

O assassino colocou-a à frente da mãe.

— Tudo bem? — perguntou ele a Eile. — Limita-te a seguir-me; vamos devagar.

— Hum, hum.

— Olha por ele, Eile — disse Líobhan.

— Bem — disse Faolan — acho que são horas. — A sua voz era menos firme do que era sua intenção. O assassino olhou uma última vez para a família, prestes a desistir. Se o seu pai lhe pedisse naquele momento para ficar, sabia que lhe seria difícil dizer não. Assim, subiu para o cavalo e deu-lhe a volta para que ninguém pudesse ver o que lhe ia na alma.

— Vamos, Eile — disse ele, afastando-se em direção a norte.

Em Monte Branco, o festival da Dança das Donzelas, que comemorava os primeiros dias de Primavera, decorreu como uma mera cerimônia. Uma tempestade violenta cobrira a região com um pesado manto branco de neve. Tudo o que não estava ao abrigo das casas e dos jardins murados era submetido a uma dura prova. O gado que não estava na segurança dos estábulos, estava à mercê do último assalto da Mãe Ossuda à estação e os cordeiros morriam às dúzias.

Na casa do Rei a atmosfera era tensa; havia um sentimento triplo de expectativa. O bebê de Tuala nasceria com a mudança da lua. Não se sabia nada de Broichan desde a sua partida precipitada, uns meses antes. Dizia-se que, se ele tencionasse regressar, fá-lo-ia assim que o tempo melhorasse e a Todas-as-Flores aquecesse mais uma vez o ar da Primavera em todo o Grande Vale. Se o druida não regressasse a Monte Branco assim que as primeiras flores desabrochassem junto das árvores em botão da floresta, então nunca mais o faria. Alguns acreditavam que ele tinha enlouquecido, como acontecia algumas vezes com os druidas, e que tinha morrido no frio sombrio dos bosques invernosos. Tuala só partilhara a sua visão com o marido e Aniel. Na sua opinião, o que se seguiria era da responsabilidade única de Broichan e a sua família — ela e Bridei — só tinha de ter paciência.

O terceiro sentimento de expectativa tinha a ver com Carnach e o crescente ruído surdo de inquietação que os espiões de Bridei tinham ouvido em diversas tabernas e lugares de reunião de homens poderosos. O próprio Carnach não enviara quaisquer mensageiros. Bridei sabia que o seu parente passara o Inverno na sua casa de Blackthorn Rise, no sudeste. Os seus espiões tinham-lhe dito que Carnach não reclamara o trono de Circinn; dizia-se que ia para um dos irmãos de Drust, o Javali, como Aniel antecipara. Porém, Carnach estava demasiado calmo; pelo menos já devia ter informado o Rei sobre as suas intenções em relação à guarnição de Caer Pridne para a Primavera e o Verão e à defesa das fronteiras de Fortriu. Se continuasse a não dar notícias, Bridei teria de procurar outro chefe-de-guerra, o que seria o mesmo que esbofetear o seu influente parente e o Rei não queria ser forçado a tal.

Entretanto, o tempo restringia os movimentos, dentro e fora da fortaleza do Rei e as crianças que viviam nela, privadas das suas habituais atividades ao ar livre, enlouqueciam toda a gente. Tuala encurtara as lições de Derelei porque se sentia cada vez mais cansada; a sua gravidez estava a chegar ao fim. Tinham aprendido muito, os dois, mas a jovem Rainha tinha consciência do insistente esforço, até aos limites, que impusera ao filho, a necessidade urgente de aprofundar sempre mais. O pequeno queria cruzar algumas fronteiras, mas ela recusava-se a permitir-lho. Sem o seu controlo, Derelei podia provocar estragos. Era esgotante. Assim que o bebê nascesse, Tuala não sabia se teria a energia suficiente, ou a vontade, de continuar.

Assim, quando um dia o ar lhe pareceu mais quente e o vento um pouco menos fustigante, a Rainha mandou um mensageiro a Fola, em Banmerren, pedindo a presença da mulher sábia logo que possível. A razão oficial era a chegada iminente do segundo filho do Rei. Banmerren podia fornecer parteiras visto que era uma função normal das sacerdotisas d’Aquela que Brilha. Fola conhecia Broichan melhor do que qualquer pessoa viva e compreenderia que Tuala precisava de conselhos, mas também de uma parteira.

Ainda estava demasiado frio para que as crianças pudessem ir para a rua. Os três rapazes — os gêmeos de Garth, Galen e Gilder, juntamente com Derelei — corriam por Monte Branco à velocidade máxima, subiam e desciam escadas, indo de encontro a quem se atravessasse no seu caminho e irrompendo às gargalhadas à menor provocação. As amas arrancavam os cabelos. A mulher de Garth, Elda, que também estava à espera de outro filho, ralhava de vez em quando com os filhos, após o que ficava tudo mais calmo durante algum tempo, mas a algazarra recomeçava de novo pouco depois. Derelei andava com os joelhos esfolados, nódoas negras nos braços e nas pernas e um brilho selvagem nos olhos, mas Tuala não lhe dava grande importância. Sempre que podia, a Rainha levava-o ao jardim para brincar com Ban, ou a ver os homens a treinar no salão. A inquietação do pequeno, porém, ultrapassava a inatividade forçada do Inverno. Tuala perguntava a si própria se Broichan tivera razão ao mencionar pela primeira vez os talentos especiais da criança. Talvez Derelei devesse ir para junto dos druidas da floresta profunda. Eles poderiam ensinar-lhe o significado da palavra disciplina, longe de dis-trações. O seu coração vacilou perante a perspectiva.

A ajuda para aquele problema imediato apareceu de uma forma pouco provável. O chefe-de-guerra de Fonte do Corvo, Talorgen, era ao mesmo tempo um velho amigo e um apoiador de confiança de Bridei e chegara recentemente a Monte Branco com os seus dois filhos. Uma manhã, Bedo e Uric foram ver Tuala aos seus aposentos privados. Os rapazes curiosos que ela conhecera quando eles tinham sete ou oito anos e ela própria treze, tinham-se transformado em dois jovens esgalgados de cabelos ruivos e sorrisos desarmantes, iguais aos de Talorgen.

— Bedo, Uric! Que prazer ver-vos! Devia dizer «Como crescestes», mas suponho que estais cansados de ouvir tais palavras. A vossa madrasta também veio?

— Veio. Brethana não queria, mas o pai disse que ela acabaria por gostar da corte assim que se habituasse. — Bedo, o mais velho, entrou no quarto e, a um aceno de Tuala, sentou-se à lareira. O irmão encostou-se à pedra da chaminé com uma indiferença estudada.

— Estou ansiosa por conhecê-la, assim que ela recuperar da viagem — disse Tuala. — É bom ver o vosso pai tão feliz. — Talorgen casara-se de novo, recentemente. A história da sua primeira mulher não era contada em público. Dreseida fora posta de lado pelo marido e banida de Fortriu por estar metida numa conspiração para instalar o seu filho mais velho no trono em lugar de Bridei. Gartnait morrera durante os acontecimentos sombrios que se tinham seguido. Bridei sobrevivera e tornara-se Rei devido, principalmente, à intervenção corajosa de Ferada, amiga íntima de Tuala e filha de Talorgen. — Conto também com a vossa irmã na corte, em breve — disse Tuala. — Convidei-a para me fazer companhia assim que o bebê nascer.

— Ferada detesta bebês — disse Bedo com uma careta. — Mas fazes bem em afastá-la do seu novo projeto. Toda a gente fala dele, a

primeira escola secular para mulheres de Fortriu. Só a minha irmã, para fazer uma coisa que mais ninguém quer. Ela tem saudades de mandar em mim e em Uric, sabes? É por isso que vai com o projeto para a frente.

Naquele momento ouviram-se vozes de criança no lado de fora da porta e sons de passos a correr, acompanhados por risadas histéricas.

— Derelei! — O tom de Tuala era invulgarmente áspero. A Rainha sentia-se enjoada e desconfortável naquele dia e não ajudava nada o fato de estar sempre preocupada com a possibilidade de o seu filho estar sempre a importunar alguém ou a magoar-se.

— É minha! — gritou um dos gêmeos.

— Não, é minha!

— Não é! Dá-me!

Um gemido: Derelei. O pequeno ainda dominava poucas palavras, o que dificultava a sua relação com os gêmeos, um ano mais velhos, maiores e mais fluentes.

Um grito. Tuala pôs-se em pé de um salto e correu para a porta porque o som lhe parecera de pavor extremo. A Rainha saiu para o corredor com Uric e Bedo nos seus calcanhares.

Derelei estava encostado à parede com os braços estendidos. No lado oposto, encostado à outra parede estava Gilder, sobrenaturalmente imóvel e muito corado. O pequeno não conseguia mexer-se e os seus olhos estavam esbugalhados de terror. Os gritos partiam de Galen, um pouco afastado, com uma bola de couro forrada de palha nas mãos pequenas. Ban ladrava cada vez mais alto, hirto.

— Derelei, não! — gritou Tuala com o coração aos pulos.

O pequeno mexeu as mãos, transformando-as em dois punhos frouxos. Gilder descontraiu-se e caiu nas lajes de pedra, soltando um soluço de medo. Tuala avançou para ele.

— Cão — disse calmamente Derelei e no instante seguinte Gilder desaparecia e havia dois cães no corredor. Era como se Ban tivesse adquirido subitamente um gêmeo, eram iguais. Os dois animais começaram a andar à roda um do outro, encrespados, ladrando. Galen, sensatamente, afastara-se, sempre agarrado à bola.

Uric emitiu um longo e lento assobio.

— Co’a breca — disse Bedo, espantado.

— Derelei! — quase gritou Tuala. — Traz Gilder de volta! Já! Talvez tivesse sido áspera de mais. Derelei olhou para ela. A sua boca enrugou-se e os seus olhos ficaram rasos de água. De repente era novamente uma criança de dois anos de idade. Tuala não costumava repreendê-lo; era sempre tão bom.

— Imediatamente, Derelei. Cão não. O rapaz.

— Bola — disse o pequeno tremulamente, olhando para o outro gêmeo, o qual apertava o objeto disputado contra o peito.

Seria fácil tirar-lhe a bola e dá-la ao filho. Quanto menos Bedo e Uric vissem, melhor. Porém, não o podia permitir; Derelei tinha de aprender que não podia usar a magia para conseguir o que queria.

— Não — disse ela. — Não levas a bola. Derelei, traz Gilder de volta.

Derelei passou por ela e entrou no quarto, onde se meteu debaixo da mesa. Uric debruçou-se para separar os dois cães, os quais ladravam um ao outro, preparando-se para uma luta séria. Bedo tinha pegado no assustado Galen e tinha-o afastado do conflito.

Aproximava-se alguém; Tuala ouvia vozes, provavelmente a de Elda à procura dos gêmeos.

— Ban! — ordenou rispidamente ela. — Senta-te!

Após um momento de hesitação, um dos cães obedeceu e deitou-se, rosnando sempre. Uric agarrou no outro pelo pescoço, gemendo perante os dentes aguçados que quase lhe arrancaram um dente.

Não havia outra solução. Tuala apontou para o pequeno cão, fechou os olhos e pronunciou algumas palavras. Seguiu-se um momento de silêncio e depois um guincho ensurdecedor. No momento em que Elda e uma ama contornavam a esquina do corredor, Uric acocorava-se ao lado de um Gilder histérico, segurando-o firmemente pelos braços.

— Já passou — disse ele. — Não tens nada. Sê um homem.

— Que se passa? Que andaram eles a fazer desta vez? — Elda parecia tão exausta quanto Tuala.

— Apenas uma briga por causa de uma bola — disse calmamente Bedo. — Acho que está tudo resolvido.

— A culpa foi de Derelei — disse Tuala à mãe dos gêmeos. — Eu vou falar com ele. É melhor levares os gêmeos por agora, Elda. Eles ficaram perturbados. — A Rainha esperava que quaisquer histórias sobre o assunto fossem encaradas como produto de duas imaginações muito férteis.

Depois de Gilder e Galen, um a soluçar e o outro a fungar, terem desaparecido, Tuala olhou para os filhos de Talorgen e estes olharam para ela.

— Não vos vou mentir — disse ela. — Ter-me-ia sentido muito mais feliz se não tivésseis visto o que vistes. Todos nós sabemos que Derelei tem sido treinado por Broichan, mas não sabíamos que ele era capaz disto.

— Lembras-te de quando éramos pequenos — disse Bedo — e disseste que me ias transformar num tritão? — Um momento depois o rapaz acrescentou: — Minha senhora.

— Não fiz nada disso — disse Tuala com ar severo. — Tu perguntaste-me se eu era capaz e eu disse que tentava se tu quisesses. E ficaste com a cara verde, lembro-me muito bem.

Uric riu-se.

— Mas podias tê-lo feito, não podias? Tal como fizeste agora com o cão. Ainda bem que Bedo não pediu para ser um monstro, um feiticeiro ou outra coisa qualquer. E se não conseguisses desfazer o feitiço?

— Ou não quisesse — comentou Tuala, sinistramente. — Mas agora tendes de fazer uma coisa.

— Não dizer a ninguém? — perguntou Bedo, sorrindo.

— Ficar-vos-ia muito grata se guardásseis o assunto para vós. Este gênero de coisas não acontece muitas vezes por aqui. O que aqueles pequenos precisam é de diversão. Têm de estar ocupados, de modo a não se meterem em sarilhos.

Seguiu-se um breve silêncio.

— Não olhes para nós — disse Uric.

— Não sei. — Havia um brilho nos olhos de Bedo. — Isto aqui é bastante aborrecido quando está mau tempo. Pergunto a mim próprio se aqueles carrinhos ainda aqui estão; aqueles que trouxemos de Fonte do Corvo há dois anos, lembras-te? Deve ser uma maravilha vê-los a rolar pela encosta da porta principal abaixo. Que achas? E podíamos ensinar-lhes foge-à-bola — disse ele, virando-se para Tuala. — Os carrinhos têm rodas de ferro. Pedimos ao ferreiro que no-las fizesse. São bons para fazer corridas.

— Desde que ninguém se magoe — replicou firmemente Tuala. — Não quero ossos partidos nem ferimentos graves. E não quero que as pessoas que estão a trabalhar sejam incomodadas. Ferada tinha sempre muitas histórias sobre vós os dois e eu ouvi-as todas.

— Não somos assim tão maus — disse Bedo com um sorriso torcido. Tuala achou que, apesar de toda a descontração de Uric, o seu irmão é que teria as raparigas todas atrás de si dentro de um ano ou dois.

— E quero saber imediatamente se houver quaisquer... problemas.

— Sim, minha senhora.

Os dois rapazes tinham, realmente, mudado muito desde que eram educados pela irmã mais velha, pensou Tuala ao vê-los afastarem-se. Ferada fizera deles dois excelentes jovens; tinha varrido as sombras que tinham caído sobre a família quando da subida ao trono de Bridei. A sua amiga estaria em Monte Branco por ocasião do nascimento do bebê real; não se podia esquecer de lhe dar os parabéns pelo trabalho bem feito.

Naquele momento, porém, tinha de resolver o problema de Derelei, enroscado por baixo da mesa, silencioso. Tuala entrou no quarto, fechou silenciosamente a porta atrás de si e sentou-se no chão com alguma dificuldade devido ao tamanho da barriga.

— Derelei? — disse ela em voz baixa. — Já não estou zangada. Gilder já está bom. Sai daí, por favor.

Nenhuma resposta. A Rainha sentia a tensão que emanava do filho, mesmo à distância dos seus braços estendidos.

— Derelei, tu não podes usar a magia quando estás zangado; magoas as pessoas. Gilder ficou assustado, não gostou de ser cão. — Deuses, se ao menos ele fosse um pouco mais velho, mais capaz de falar e compreender. — Sai daí, meu amor. A mãe não está zangada.

Ban meteu-se debaixo da mesa e começou a lamber o rosto do pequeno. Era impossível ele continuar imóvel depois de tantas atenções tão vigorosas. Derelei endireitou-se, choramingando, e saiu de baixo da mesa. Como não tinha colo para ele se sentar, Tuala apertou-o contra si.

— Quem te ensinou aquilo? — perguntou-lhe ela. — Transformar um rapaz num cão? Nós nunca tentamos isso e tenho a certeza de que Broichan também não. — Em seguida, após um curto silêncio: — Derelei?

— Cão. — O seu tom era de revolta.

— Cão não. Não podes assustar os teus amigos. A mãe diz não. Silêncio.

— E Broichan também diz não. — Ou diria, tinha a certeza, se estivesse ali. O pequeno drama daquele dia revelara possibilidades que a enchiam de medo. Manter os poderes do seu filho sob controlo podia consumir-lhe todas as horas do dia, todas as energias. Era impossível. Estava à espera de outro bebê e Bridei também precisava dela.

A tranqüilidade foi interrompida por um pequeno som desolado. Derelei estava a chorar.

— Bawta — murmurou ele. Ban encostou o nariz à perna da criança. Era evidente que o animal lhe tinha perdoado a afronta anterior.

— Eu sei, querido — disse Tuala. — Eu também tenho saudades dele. — Não diria Ele vai voltar. Aquela criança não podia ser pacificada com mentiras ou meias verdades. — Se te portares bem e não fizeres outra vez asneiras, os rapazes grandes brincam amanhã contigo e com os gêmeos. Eles têm um carrinho onde tu podes andar. Com rodas. Anda muito depressa. — Não pensaria em braços ou pernas quebrados nem em cabeças partidas. As crianças tinham de brincar. Até as crianças com capacidades mágicas aterradoras.

— Vvww — disse Derelei pouco entusiasmado, movendo as mãos no ar como uma ave. Tuala pensou ver umas rodas, faíscas e árvores e arbustos a passar rapidamente por si. A Rainha pestanejou e a imagem desapareceu.

— Exatamente — disse ela. — Mas tens de te portar bem. Nada de cão. Nada de magia, a não ser que a mãe esteja ao pé de ti. Prometes?

O pequeno emitiu um pequeno som, não uma palavra, mas talvez uma indicação de que concordava. Teria de bastar, por enquanto. Mais tarde ou mais cedo, pensou Tuala, o seu filho lançaria um feitiço que ela não teria o poder ou o conhecimento de desfazer. A jovem mãe desejava que ele atingisse aquele grau quando dominasse melhor as palavras, nunca antes de compreender os perigos que a sua habilidade comportava. Quanto ao episódio daquele dia, ficara maravilhada. Broichan ensinara-o bem e ela também contribuíra no mesmo espírito. Porém, o que ele fizera naquela tarde, a transformação complexa conseguida sem esforço aparente, não aprendera com nenhum deles.

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Deus seja louvado, acostamos às terras dos Priteni esta manhã com o nosso barco intacto, com a nossa tripulação intocada pela tempestade, pela serpente do mar ou pelas correntes caprichosas, com os nossos corações ainda cheios de zelo pela nova vida que nos espera nesta terra distante. Nem todos somos marinheiros. Parece que as minhas tripas foram agredidas a soco, torcidas e penduradas a secar e é uma bênção ter mais uma vez terra firme por baixo dos pés. Aportamos perto de Dunadd graças à boa navegação de Colm, à perícia do nosso jovem noviço Eibhear e à colaboração dos nossos passageiros inesperados. O viajante, Faolan, que eu já conhecia da corte de Fortriu — nunca esqueço um rosto por mais banal que seja —provou que é bom a remar e a velejar; não foi uma surpresa visto que já o sabia possuidor de muitos talentos. A sua pequena mulher, tão silenciosa e complacente, foi uma revelação. Os meus irmãos não gostaram nada de a ter como passageira, especialmente acompanhada de uma criança; as histórias de barcos afundados e viagens atingidas pela infelicidade devido à presença de uma mulher a bordo são mais do que muitas. Uma vez a caminho, com a maior parte de nós debruçados da amurada, enjoados, tornou-se evidente que a mulher era uma mais-valia. Colm, criado no seio de marinheiros, não foi afetado; Eibhear tem água salgada nas veias. Faolan ajudou-os, tal como a rapariga, Eile, que fez a sua parte de boa vontade e aparentemente com regozijo. Na verdade, via-se no seu rosto um sorriso de prazer puro face aos movimentos agitados da nossa embarcação perante as vagas incessantes daquele estreito infame. Quanto à criança, mantinha-se sempre sentada, abraçando uma boneca e olhando para o mar monstruoso com uma serenidade perfeita. Quando vimos uns grandes animais cinzentos a saltarem da água ela, não dando quaisquer sinais de medo, sorriu e apontou.

Perfazem os três uma família pequena e estranha. Faolan não parece o tipo de homem que viaja com a mulher e a filha; tem ar de solitário, circunspecto e profundo. Colm rendeu-se ao ouvi-lo falar da corte de Fortriu. Fiamos algumas perguntas enquanto esperávamos pela Primavera: parece que as raízes ancestrais deste homem são semelhantes às de Colm, mas a sua vida não seguiu sempre o mesmo caminho. Faolan lá tem as suas ratões para fixar residência longe das costas de Erin. Os três, Faolan, a mulher e a criança, ficaram alojados numa herdade perto da nossa casa de orações durante uma boa parte do Inverno e ele declarou-nos que precisava de regressar a Monte Branco assim que o tempo o permitisse. Daí a oferta da passagem. Era do interesse de Colm ajudá-lo a ele, à mulher e à criança.

Mas não o cão. O trio de viajantes tinha um cão, uma coisa escanzelada que apareceu no nosso pátio e que se dirigiu imediatamente para a porta do refeitório, onde ficou à espera com olhos esperançosos. O animal não podia seguir conosco no barco. Apequena chorou ao saber; estava muito ligada ao pobre animal. Durante o tempo que estiveram alojados na herdade, arranjou-se uma solução. Nós tínhamos um irmão idoso e venerado naquela casa, o irmão Seosabh, cuja mente começara bondosamente a vaguear e que passava os dias à lareira ou num canto qualquer, ao sol, murmurando para si próprio e cumprimentando com um aceno de cabeça quem quer que se sentasse a seu lado e falasse um pouco, se bem que ninguém soubesse se as palavras tinham para ele algum sentido. O cão afeiçoou-se a Seosabh e Seosabh ao cão; pareciam compreender-se mutuamente. A uma hora qualquer do dia, o cão era visto a abandonar a herdade e era depois encontrado a dormir aos pés do ancião ou sentado a seu lado enquanto o bom do irmão lhe fazia festas nas orelhas e lhe murmurava palavras de afeto. Quando levávamos a Seosabh a sua malga de caldo, o cão também comia visto que nós não conseguíamos endurecer os nossos corações perante o olhar reprovador que ele nos lançava por nos termos esquecido da sua ração.

Seosabh, evidentemente, não fazia parte dos voluntários da expedição de Colm. Havia trinta irmãos na casa de oração de Kerrykeel, mas só vinte se ofereceram ou foram escolhidos para a missão a Fortriu. Outros virão mais tarde, depois de termos construído uma casa e uma igreja e de termos tudo o que necessita-

mos para sobreviver na nossa ilha. Nós somos a ponta da lança; o archote que ilumina o caminho. Quando lançamos o nosso barco à água e partimos, a criança despediu-se do cão com lágrimas, mas quando a mãe lhe disse que o animal tinha encontrado um lar e o ancião lhe tocou gentilmente nas mãos como se ela fosse a coisa mais preciosa deste mundo de Deus, a pequenina sentiu-se mais confortada.

Assim, aportamos em Fortriu e seguimos a pé até à fortaleza de Dunadd, agora nas mãos dos Priteni, apesar de o deposto Rei de Dalriada ainda residir nela. Como Gabhran está muito doente, foi decidido que seria muito arriscado mandá-lo para casa de barco. Se os homens de Bridei o tivessem matado na grande batalha de Dovarben, teria sido aceitável, mas deixá-lo morrer durante uma viagem forçada para o exílio não teria ficado bem ao Rei dos Priteni, que tem a reputação de ser justo, para além de ser um grande estrategista. Gabhran renunciou ao reino de Dalriada e a sua casa é governada por um chefe-de-guerra Priteni. No entanto, em Dunadd quase só se ouve falar gaélico e os costumes são quase todos celtas. O reino não mudou muito desde a minha última visita.

Despedimo-nos de Faolan e da sua pequena família esta manhã. Ele disse que a sua mulher não desejava passar muito tempo numa fortaleza tão grande como aquela, ainda por cima tendo pertencido à corte gaélica de Dalriada. Eile, devido às suas origens, não tinha tempo nem paciência para os salões dos ricos e dos poderosos. De fato, Faolan tinha assuntos urgentes a tratar nas partes mais longínquas do Grande Vale. Não era preciso ele dizer-me tal coisa, ou a Colm. Faolan leva consigo uma mensagem para a corte de Bridei, Rei de Fortriu, a qual pede ao poderoso monarca para receber uma delegação de monges cristãos. O nome de Ioua será mencionado; Ilha do Teixo, o lugar que o Rei celta prometeu a Colm para seu santuário, longe das negociatas políticas dos seus conterrâneos. Ioua já não pertence a Gabhran. Se queremos ficar, Bridei é que tem de aprovar a nossa instalação no local.

Provavelmente, se eu não pertencesse ao pequeno rebanho de Colm, Faolan não se teria identificado. A sua missão deve ter sido como espião, não como negociador. Porém, eu conhecia-o e ele não conseguiu esconder de mim a natureza da sua demanda, o que acredito que foi bom. As coisas deverão andar mais depressa como resultado, o que agradará a Colm, que não gosta desta espécie de corte onde estamos hospedados e que se irrita por não ver erguerem-se rapidamente as fundações da nossa casa em Ioua. Há homens armados por toda a parte. Alguns pertencem a Gabhran e outros a um chefe-de-guerra chamado Umbrig, o qual controla aparentemente a fortaleza e os seus habitantes em nome de Bridei, apesar de residir longe e de se dizer que raramente aparece. Os guardas são enormes e de aparência feroz. Não espero que se juntem a nós nas nossas orações matinais. Por outro lado, basta Colm abrir a boca para que todos o escutem. A luz da nossa poderosa fé, talvez até estes autênticos ursos sejam capazes de escutar a palavra de Deus.

Suibne, monge de Derry


CAPÍTULO OITO

 

Faolan tratava da fogueira, lutando contra uma umidade que provavelmente se transformaria em chuva. Dormiriam novamente ao relento naquela noite. Havia poucos sítios em Dalriada onde ele estava disposto a pedir asilo. A presença gaélica continuava forte naquele território reconquistado por Bridei e o rosto de Faolan era conhecido em várias localidades influentes. Depois de Alpin de Briar Wood o ter desmascarado como espião, um homem que se servira da sua linhagem para entrar nas cortes gaélicas e que usara os laços de amizade com Bridei para entrar em Fortriu, não lhe parecia seguro aparecer a descoberto, por assim dizer. Pelo menos enquanto não tivesse necessidade. Faolan pedira desculpa a Eile, surpreendendo-se a si próprio. A herdade em Kerrykeel, onde tinham passado a maior parte do Inverno tinha-lhes providenciado um alojamento confortável, calor, segurança e privacidade; nenhum deles precisara de dormir no chão porque havia três camas de prateleira no quarto que tinham alugado. Parecia-lhe errado esperar que ela e a filha dormissem no chão apenas com uma cortina de fetos como proteção contra o vento. Não que ela se queixasse; Eile nunca tinha uma palavra de crítica o que, de certo modo, piorava as coisas.

— Faolan? — perguntou ela.

— Hum?

— Disseste que aquela gente fala uma língua diferente? Naquele sítio para onde vamos, Colina Branca?

— Hum. — O fogo estava a pegar. Faolan soprou as chamas que começavam a lamber a lenha.

— Eles vão pensar que eu sou estúpida — disse Eile.

— Não vão, não. Trata-se da corte de um rei. As pessoas estão habituadas a toda a espécie de gente. Algumas pessoas falam um pouco de gaélico.

A jovem calou-se e as suas mãos pararam de escarnar o peixe que ele tinha pescado pouco antes. Saraid estava deitada junto dela, levantando a boneca nas mãos para que ela a visse.

— Tu vais conseguir, Eile.

— Devia ter-te pedido que me ensinasses a língua durante o Inverno, quando estávamos naquela herdade. Ensinas-me algumas palavras durante a viagem, as suficientes para eu não fazer figura de estúpida? Vai levar algum tempo até chegarmos lá, não vai?

Faolan não respondeu. De fato, atrasado pela mulher e a criança, levaria um pouco mais de tempo. O tal homem, Colm, ardia de zelo missionário, fazendo soar os sinos alto e bom som. Precisavam de chegar rapidamente a Monte Branco para aconselhar Bridei a preparar-se para receber os visitantes. Segundo os seus cálculos, aquele clérigo cristão não ia esperar sentado calmamente em Dunadd e esperar pelo convite do Rei. O homem queria a ilha, e rapidamente; acreditava que aquele deus tinha ordenado, de certo modo, que Ioua fosse o santuário dos seus seguidores. Se o homem não subisse o Vale e não batesse à porta de Bridei antes do solstício de Verão, Faolan ficaria muito surpreendido.

— Faolan — disse Eile num tom diferente — podes deixar-nos para trás, sabes? Se precisas mesmo de chegar rapidamente, diz-nos qual é o caminho e nós seguimos-te. — A jovem afastou uma madeixa de cabelos do rosto, deixando umas escamas brilhantes no seu lugar. — Nós ficamos bem.

As coisas tinham mudado entre eles durante o Inverno de companheirismo forçado. Eile começara a dar mostras de uma confiança prudente, ao passo que ele começava a acostumar-se à presença dela e de Saraid e ao desenvolvimento de algumas capacidades que não possuía antes, como aliviar o cansaço da pequenina e suavizar-lhe os pequenos medos.

— Dá cá que eu faço isso — disse ele, estendendo as mãos para a faca e o peixe.

— Não é preciso, sou perfeitamente capaz! — A faca cintilou, brutalmente eficaz.

Evidentemente, por vezes ainda fazia as coisas mal; Eile detestava que ele a achasse incompetente.

— Eu sei. Eile, é muito longe, muitos dias de viagem. Os caminhos são difíceis, mesmo no Verão. E tens de pensar em Saraid. Eu sei que és auto-suficiente, mas por outro lado penso que demonstrei que posso ser útil a pescar e a apanhar coelhos em armadilhas. Não precisas de fazer tais coisas e podes olhar melhor por ela. Além disso, se nos separarmos, quem te vai ensinar a língua dos Priteni?

Desconfiada, ela olhou para ele.

— Isso é uma piada, não é?

— O peixe está pronto? Estou a ficar com fome e a fogueira parece ter pegado. Passe-me.

Eile entregou-lhe.

— Eu sei olhar por mim — resmungou ela.

— Talvez. E talvez eu esteja com pressa, mas não te preocupes. Não vos quero à mercê de um vagabundo qualquer que possais encontrar no caminho.

— Mas haverá alguém que se interesse por mim? — perguntou ela, cruzando os braços e encolhendo os ombros. — Só o maluco do Dalach. Ficamos perfeitamente bem sem ti.

Faolan olhou para ela, apercebendo-se da palidez da sua pele, do brilho dos seus cabelos ruivos, da figura que começava a mudar com a boa comida e a menor ansiedade.

— Não olhes para mim assim! — disse ela, abrindo-lhe os olhos.

— Assim como? Como se fosses uma mulher?

As faces de Eile coraram.

— Eu não sou uma mulher, sou um pedaço de lixo.

Seguiu-se um curto silêncio.

— Peda-lis — repetiu Saraid, tentando repetir as palavras da mãe. Faolan equilibrou o peixe espetado num pau em cima da fogueira.

— Quem é que disse isso? — perguntou ele uns momentos depois.

— Um homem qualquer. É verdade. Depois do que Dalach me fez não sou melhor do que uma prostituta que se vende por uma moeda de cobre ou um biscoito. Não sou nada. Sou invisível. Podemos passar por qualquer sítio, eu e ela. Não precisas de te preocupar conosco.

— Sabes — disse ele, sentando-se nos calcanhares — para uma rapariga tão sensata, às vezes és muito burra. Estás sozinha no mundo com uma filha que muito amas e que proteges ferozmente e desperdiças a minha proteção, como se eu não valesse nada. Esta viagem está cheia de perigos. Talvez deva dizer que na corte sou guarda-costas pessoal do Rei. Como tal, sou uma espécie de especialista no assunto. Até agora aceitaste a minha ajuda. Por que é que a partir de agora passa a ser diferente?

Eile olhou para o chão. Os seus cabelos caíram-lhe para a frente, emoldurando-lhe o rosto.

— Não é isso — disse ela. — Eu agradeço a tua ajuda, mas é que sonhava que seria o meu pai a fazê-lo: que regressaria e olharia por nós. É diferente, não posso habituar-me porque sei que não vai durar para sempre. Além do mais ele tê-lo-ia feito de livre vontade. Tu estás a fazê-lo porque achas que deves e eu sei que tens de chegar rapidamente a Monte Branco. Já passamos o mar e Saraid e eu estamos a atrasar-te. Prefiro seguir sozinha a servir-te de fardo.

Faolan olhou para as duas por cima da fogueira: Eile sentada de pernas cruzadas com o seu vestido emprestado por Líobhan, com os cabelos refletindo as chamas da fogueira e os olhos verdes proibindo-lhe que tivesse pena dela e Saraid com a boneca disforme nos braços.

— Tu não és nenhum fardo — disse ele. — Eile, quero que me prometas uma coisa.

Os olhos da jovem adquiriram a expressão cautelosa do animal que pressente o perigo.

— O quê? — perguntou ela.

— Quero que me prometas que daqui para a frente não te chamas a ti próprio pedaço de lixo, prostituta ou outra coisa qualquer. Se a tua filha ouve isso muitas vezes, acaba por acreditar que é verdade e que ela também é. Não quero ouvir isso outra vez.

As feições da jovem cerraram-se.

— Agora também me dizes como devo educar a minha filha? Penso que não tens esse direito!

Faolan respirou fundo, lembrando a si próprio que ela era ainda muito nova.

— Se eu quisesse ser cruel — disse ele, virando o peixe por cima das chamas — responderia que a quantia que paguei dá-me o direito de te dizer o que me apetecer.

— Portanto, sou o quê? — respondeu ela rapidamente, como se lhe desse uma bofetada. — Tua escrava ou tua amiga?

— Eu não faria uma sugestão destas senão a uma amiga — disse Faolan. — Para Saraid és a melhor pessoa do mundo, boa, corajosa, bela. Suponho que todos nós pensamos o mesmo das nossas mães quando somos pequenos. Ela não tem muita coisa, Eile. Não a deixes perder o que tem.

Faolan esperava outra censura, outro desafio, mas ela manteve-se calada e quando levantou os olhos do peixe viu que ela estava a chorar. Saraid encostou-se a ela, choramingando também por simpatia.

— Nunca mais me recomponho — murmurou ela. — Por vezes esqueço-me, como na herdade. Por vezes sentia que estava em casa. No barco foi a mesma coisa. Gostei. Fazia-me sentir uma pessoa diferente. Depois regressa tudo. Ele sujou-me de tal maneira que nunca mais fico limpa.

— A morte de Dalach — disse Faolan. — Esse tempo já passou. Nunca conseguirás esquecer algumas coisas, por mais que tentes, mas podes atirá-las para trás das costas. Podes dizer: sim, foi mau, tão mau que quase me fez desistir. Porém, não desisti. Sou forte, estou viva. E depois podes continuar e fazer qualquer coisa da tua vida. Não é fácil, mas é possível para uma pessoa como tu.

— Foi o que tu fizeste? — perguntou ela, limpando as lágrimas com uma mão. — Depois de o teu irmão morrer?

Faolan pensou durante alguns momentos.

— Não exatamente. Primeiro tentei bloquear tudo e durante dez anos pensei que tinha conseguido. Tinha uma vida, desempenhava determinadas tarefas, tinha certas capacidades. Ganhava o meu dinheiro.

Durante esse tempo todo nunca contei a ninguém a história de Encruzilhada do Rabequista. Até ao Outono passado. Até ter conhecido o teu pai.

— Contaste-lhe?

— Não exatamente. Contei a... outra pessoa. Uma pessoa que me desafiou a confrontar-me com o passado. Portanto, como vês, só segui os meus próprios conselhos durante pouco tempo. Para ti posso ser um velho, mas no que diz respeito a começar a vida de novo não estou muito longe de ti.

— Feeler — disse Saraid. — Lamento tem fome.

— Está quase pronto, Saraid. — Que Eile não lhe fizesse perguntas sobre Ana. Não ali e naquele momento, sentados em frente de uma pequena fogueira na escuridão; não naquele momento, quando a mais doce e amarga das recordações estava tão viva.

— Deord aconselhou-me — disse ele. — Desafiou-me a viver a minha vida; instigou-me a não desperdiçar a oportunidade que a sua coragem me tinha conseguido. Ainda hoje não sei exatamente o significado das suas palavras. Pensava que bastava sobreviver; pensava que era o melhor que podia fazer. — Faolan pousou o peixe assado numa pedra lisa e dividiu-o com a ajuda da sua faca. — Cuidado, Saraid — disse ele. — Está quente.

Ao longo daquela imitação de refeição, Faolan ensinou a Eile as palavras peixe, obrigado e faca na língua dos Priteni. Saraid também quis aprender e ele ensinou-a a dizer boneca, comer e boa noite. Quando a criança já estava a dormir, enrolada no cobertor de lã de Encruzilhada do Rabequista e com a capa de Faolan por cima, o assassino e Eile sentaram-se em frente da fogueira enquanto a Lua nascia e as estrelas emergiam na abóbada celeste. Estava muito frio; para lá do círculo de luz o mundo noturno agitava-se e restolhava.

— Aqui é tudo grande — disse Eile, embrulhando-se na capa. — Montanhas grandes, árvores grandes, lagos que levam um dia inteiro a atravessar. Faz-me pensar que vou encontrar gigantes.

Faolan perguntou a si próprio se deveria mencionar os Boa Gente e decidiu que não.

— As pessoas de Monte Branco são perfeitamente normais — disse ele. — Não há razão para teres medo.

— Eu não disse que tinha medo!

— Erro meu.

— Mesmo assim, reis e rainhas... Não estou acostumada a gente assim. A tua irmã Aíne bastou. Parecia que não era capaz de abrir a boca sem dizer uma asneira.

Ele não respondeu.

— Faolan?

— Hum?

— Faço o quê quando chegar lá? Passo a ser uma criada? Esfrego o chão? Sirvo à mesa?

Faolan sentiu relutância em confessar que não tinha pensado no assunto.

— Não será nada disso — disse ele. — Como guarda-costas do Rei, suponho que sou uma espécie de criado. Tenho um emprego e ele paga-me, mas também sou... — Não ia dizer sou amigo dele. Fazê-lo seria reconhecer uma quase impossibilidade. — Bridei confia em mim — disse ele. — Lido de perto com ele.

— Não respondeste à minha pergunta.

— Depende do que queres para ti própria e para Saraid. Educação; aprender um ofício, talvez. Um lugar para assentares. Eu já pensei nalgumas possibilidades. — Tinha pensado na possibilidade de Drustan e Ana as receberem. Eile era filha de Deord, no fim de contas, e este fora o único amigo de Drustan durante os sete anos de encarceramento. Se ainda estivessem na corte, não se importariam de ajudar, certamente. Em parte preferia que não estivessem. Porém, se estivessem, o problema ficaria resolvido. — Eu tenho alguns amigos que são capazes de te receber em sua casa. Também existe uma escola de raparigas não muito longe de Monte Branco. Podes ir para lá, se quiseres. A terceira possibilidade é Tuala, a Rainha, arranjar-te uma posição na corte.

— E tu? Vais fazer o quê?

Faolan não lhe disse que não era importante. Quer quisesse, quer não, a bolsa de dinheiro tornava tudo relevante.

— Por vezes estou na corte, mas é mais freqüente não estar. Os meus deveres fazem-me viajar freqüentemente.

— Queres dizer que guardas o Rei?

— Sou um dos seus três guardas pessoais, mas também faço outras coisas.

— Que coisas? — Eile fixou-o. A luz das chamas refletia-se nos seus olhos verdes.

— Coisas que não discuto com ninguém.

— Ah. Suponho que esses deveres extra não incluem seres um bardo. Líobhan disse-me que já foste um bardo. É um pouco difícil de acreditar.

Faolan sentiu a boca a torcer-se num sorriso.

— Não me vais ouvir cantar em Monte Branco. Hoje em dia os meus talentos estão virados para outras coisas.

— Hum. Suponho que não ganhaste aquele dinheiro todo a cantar, a não ser que fosses realmente bom. — Em seguida, após um curto silêncio: — Lembras-te de ter dito uma vez que tinhas azar ao amor? Quem era a mulher? Como era ela?

— É uma velha história. Não me apetece falar dela.

— Foi a ela que contaste a tua história? Foi ela que te fez regressar a Encruzilhada do Rabequista?

— Não tens nada com isso, Eile. É melhor dormirmos; se não chover podemos partir cedo, amanhã de manhã.

— A tua voz fica diferente quando falas dela — disse a jovem calmamente, afastando-se para se deitar ao lado de Saraid. — Como se ainda te doesse. Ela era bonita?

Faolan instalou-se a um dos lados da fogueira. Eile era demasiado esperta. As suas perguntas eram como pequenas facas. Era melhor responder-lhe a algumas coisas se queria impedir que ela fosse mais longe.

— Como a princesa de uma canção — disse ele. — De fato, ela é uma princesa, é prima do Rei das Ilhas Pequenas, foi refém na corte de Fortriu durante vários anos. Não é tão mau como parece; ela estava lá para assegurar a lealdade do seu primo ao Rei Bridei, que é seu suserano. Ana era tratada mais como uma hóspede de honra do que como uma prisioneira. No último Verão escoltei-a quando ela fez uma viagem para casar com um chefe-de-guerra dos Caitt, mas as coisas complicaram-se. Agora está comprometida com outro homem, do qual gosta muito. E pronto, fim da história.

— Não me parece que seja — disse suavemente Eile. — Tu continuas zangado e magoado, percebo muito bem. Continuas a amá-la. Tu e ela... alguma vez...?

— Isso não é pergunta que uma rapariga faça a um homem que tem quase idade para ser seu pai.

— Só perguntei porque... bem, eu...

Algo no seu tom de voz, reticente, delicado, fê-lo perguntar:

— Que se passa, Eile? O que é?

— É que não compreendo como... — As palavras saíam-lhe à pressa dos lábios. — É que... bem, é tão vil, tão brutal, tão doloroso o que as mulheres e os homens fazem juntos, que não compreendo como é possível existir o que eles chamam de... amor. É evidente que assim que mentem uns aos outros destroem todos os sentimentos. Não pode ser de outra maneira. No entanto, lembro-me do meu pai e da minha mãe... Eram sempre tão amigos um do outro, mesmo depois de Pedra Quebrada-a-que-Quebra, quando ele regressou muito mudado... Talvez esteja a tentar refazer o passado, a tentar transformá-lo no que eu teria desejado. Desculpa, não te devia ter perguntado. Foi um erro da minha parte. Esquece o que eu disse.

Deuses, como podia responder àquilo? Percebia alguma coisa do assunto com a sua história distorcida, que o seguia como uma sombra infeliz?

Por uns momentos, a confusão e o embaraço paralisaram-lhe a língua. Então, olhando para as feições tensas e magoadas da jovem, Faolan encontrou as palavras certas.

— O que aconteceu entre ti e Dalach não foi normal, apesar de haver muitos homens como ele, que se satisfazem quando lhes apetece, sem respeito pelos sentimentos da mulher. É por isso que não quero que viajes sozinha, és uma verdadeira presa para quem não tem escrúpulos. Porém, não é sempre assim. Há muitas pessoas como a tua mãe e o teu pai, Eile. Pessoas como a minha irmã e o marido dela. Um dia serás cortejada por um rapaz e tu descobri-lo-ás por ti própria. Pode ser uma coisa... maravilhosa, uma coisa que as pessoas têm prazer em fazer. — Parecia-lhe totalmente errado dar-lhe conselhos sobre o assunto, mas não havia mais ninguém presente.

— Não acredito — disse ela. — Como é possível uma mulher gostar? Suponho que, se gostasse do homem, ainda conseguiria suportar, mas mais nada. É repulsivo. Faz-me sentir suja.

— Estou a dizer a verdade, Eile.

— És homem, não podes compreender.

O tom de voz da rapariga era desolado, fê-lo sentir-se velho e cansado.

— Boa noite, Eile — disse ele, acomodando-se o melhor possível no chão duro. Não estava à espera de conseguir dormir, mas bastante tempo depois o sono apareceu, finalmente, com um emaranhado de sonhos perturbadores.

Com a melhoria do tempo, Monte Branco começou a encher-se de visitantes. Bridei convocara uma grande reunião para agradecer e recompensar os chefes-de-guerra que tinham desempenhado um papel importante na vitória do Outono anterior. Tal reconhecimento formal era necessário para manter o equilíbrio e a unidade no seio do reino de Fortriu. Era preciso compor canções, dar presentes, cada um de acordo com o estatuto social de quem os recebia, fazer donativos, conceder títulos. Os dois conselheiros de Bridei andavam ocupados. Aniel tratava dos presentes, enquanto Tharan e a sua mulher, Dorica, preparavam as coisas para a chegada dos convidados.

Entretanto, o Rei pensava no que fazer se Carnach não aparecesse. Ter o seu chefe-de-guerra principal e parente próximo virado contra si seria doloroso e perigoso; abriria possibilidades impensáveis para o futuro. Carnack era popular, tinha sucesso, era influente, tinha sangue real. Se Bridei tivesse, por qualquer motivo, que abandonar o trono de Fortriu, ninguém tinha dúvidas quanto ao seu sucessor.

Começaram a chegar chefes-de-guerra de todos os cantos de Fortriu, com as respectivas mulheres e por vezes com os respectivos filhos. Morleo, Wredech, Uerb e Fokel, todos eles estavam em Monte Branco quando os botões começaram a abrir nas faias.

Uma tarde chegou um mensageiro de Caer Pridne. Ao vê-lo, Garth foi avisar o Rei, que estava reunido com Aniel e Tharan.

— Louvados sejam os deuses — disse Tharan. — Notícias de Carnach, finalmente.

Quando o homem, finalmente, entrou para entregar a mensagem, foi para anunciar a chegada iminente, não do chefe-de-guerra de Thorn Bend, mas de um outro chefe ainda mais poderoso: Keother, das Ilhas Pequenas, Rei vassalo de Bridei e primo de Ana. Keother aportara a Caer Pridne naquela manhã e seguiria a cavalo para Monte Branco um dia ou dois depois, quando as mulheres que o acompanhavam tivessem recuperado dos rigores da viagem por mar.

— Mulheres? — perguntou Aniel com os olhos cinzentos a brilhar. — Que mulheres?

— Várias, meu senhor. Não me deram os seus nomes. Algumas são criadas e uma é a senhora Breda, prima de Keother.

— Estou a ver — disse Bridei, pensando nas questões que a notícia levantava, quanto mais não fosse o fato de o familiar de Ana não saber que ela tinha passado o Inverno em Pitnochie com Drustan e que os dois ainda não se tinham casado. — Obrigado por nos teres dado tais notícias tão rapidamente. Tens comida e bebida na cozinha e uma cama para passar a noite nos alojamentos dos homens.

Despedido o mensageiro, os três homens trocaram olhares que diziam mais do que mil palavras.

— Por que razão traz Keother a tal rapariga? — murmurou Aniel. — Ela é irmã de Ana, suponho. É como se nos quisesse pedir que a tomemos como refém, especialmente depois de não nos ter enviado, sequer, um único guerreiro para o nosso empreendimento contra os Celtas.

— Keother não é parvo nenhum — disse Tharan. — Anda a preparar alguma. Qual será o motivo dele? Estará a tentar acalmar-te, Bridei?

— Estaremos em melhor posição para o descobrir quando estivermos face-a-face com ele — disse o Rei. — Vamos recebê-lo com as formalidades apropriadas e dar-lhe os melhores alojamentos. Tuala vai ter de mudar Talorgen e Brethana. E temos a questão de Ana.

— Hum — disse Aniel. — Pergunto a mim próprio se a jovem não virá simplesmente na esperança de assistir ao casamento da irmã. É melhor mandarmos um mensageiro a Pitnochie.

— Também acho — disse Bridei. — Com Keother à porta, é melhor celebrarmos o casamento. Suponho que Drustan e Ana não porão quaisquer objeções. A situação atual não pode continuar indefinidamente, ou ainda damos razão ao primo dela para se queixar. O fato de o casamento formal ter sido protelado enquanto Drustan e Ana vivem em todos os aspectos como marido e mulher é... original. Com ou sem visita inesperada, têm de casar antes de irem para Briar Wood.

— Vamos precisar de um druida — disse Tharan. — Achas que Broichan regressa a tempo, Bridei? — O seu tom era delicado; o assunto era difícil. Na corte abundavam as teorias a propósito das razões do desaparecimento do druida do Rei. Algumas eram tolas e outras tendenciosas, ou grosseiras. Quanto mais tempo Broichan estava ausente, mais imaginativos eram os boatos.

— Temos de arranjar outro. Há um em Abertornie, um mago solitário que dá pelo nome de Amnost. Ele não se deve importar de fazer a viagem se lhe fornecermos guarda-costas. — Bridei não mencionara Broichan. No entanto, a ausência do seu pai adotivo era preocupante. Tuala acreditava que Broichan regressaria quando achasse conveniente e Bridei achava que a ocasião não podia ser melhor e que se o seu pai adotivo não regressasse naquele momento, talvez os boatos que diziam que ele tinha morrido sozinho na floresta, um boato que Bridei pedia todos os dias que fosse infundado, fossem, de fato, verdadeiros. O Inverno fora muito duro.

— Muito bem — disse Aniel. — Uma mensagem escrita para a senhora Ana, suponho. Diz-me o que queres que diga nela, Bridei, que eu escrevo-a e mando-a ainda hoje por um homem de confiança. E uma verbal para Loura, em Abertornie, pedindo-lhe que traga o tal Amnost quando ela e as crianças vierem para a corte. — O reconhecimento devido a Ged de Abertornie, que caíra na grande batalha por Dalriada, passara para a sua mulher e o seu filho. Ainda havia tempo para lhes mandar uma mensagem antes de eles saírem de casa.

— E eu vou dizer a Tuala para esperar mais visitantes — disse Bridei.

A ocasião não era a ideal. Ocupado como andava com os preparativos para a reunião, o Rei tinha consciência do cansaço da mulher e do fato de a ausência de Broichan lhe ter aumentado o fardo na fase final da sua gravidez: lidar com as capacidades nascentes de Derelei. Bridei sentia uma dor constante e incômoda na barriga e sabia que era por estar preocupado com Tuala. O Rei temia os rigores do parto, as línguas venenosas dos visitantes, o peso de a sua mulher ser a dona da casa real numa ocasião tão importante. O seu olhar preocupava-o mais do que queria dar a perceber. Bridei via que Tuala andava cansada, ansiosa, talvez até se sentisse culpada. O fato de o último sentimento não ter fundamento não fazia qualquer diferença. Broichan era um homem adulto. A decisão de abandonar a corte fora unicamente sua, mas não impedira Tuala de acreditar que a culpa era dela, por ter confrontado o druida com a sua indesejada visão de parentesco.

Que ela esteja hem, pediu Bridei aos deuses enquanto se encaminhava para os seus aposentos com o seu guarda Dovran à distância de um braço, atrás de si. Que ela ultrapasse isto sã e salva. Que a criança nasça bem e que seja saudável. E tudo o que peço. O Rei sabia, no seu coração, que o poder do deus sombrio pendia sobre ele; a sua desobediência no passado e o castigo que lhe seria exigido em qualquer ocasião como compensação. Agora não, pensou ele. E se tiver que vir, que não sejam eles. Que não seja a minha querida família.

Esperava encontrar Tuala a descansar, mas a Rainha estava na pequena câmara de recepção com duas mulheres mais velhas: a mulher de Tharan, Dorica, e Rhian, viúva do Rei anterior, Drust, o Javali. Dorica levantou-se quando o Rei entrou e Rhian inclinou a cabeça.

— Bridei — disse Tuala com um sorriso débil. — Temos estado a fazer planos, a mudar gente e a assegurar que está tudo no seu lugar com o afluxo de tantos convidados. Sinto que não vou poder ajudar durante muito mais tempo.

— Que estás a dizer? Começaram as dores? — perguntou o Rei, alarmado.

— Ainda não, mas penso que vão começar daqui a um dia ou dois. Elda previu que vai ser amanhã à noite. Espero que Fola chegue a tempo.

— Minha senhora — disse Dorica — esquece as provisões, os quartos e as diversões das pessoas e concentra-te mais um pouco em ti própria. Temos tudo controlado e estão a chegar mais mãos da aldeia para nos ajudar. Não precisas de te preocupar.

— É evidente que não. — A Rainha Rhian levantou-se, uma figura digna, roliça. — Eu própria fiz isto mais vezes do que imaginas, Tuala.

— Tenho de te dizer que o Rei das Ilhas Pequenas está a caminho — disse Bridei — e traz a irmã de Ana com ele. Estão em Caer Pridne. É como se fosse celebrar-se um casamento. — O Rei viu a tentativa de Tuala para sorrir e sentou-se a seu lado, segurando-lhe na mão. Dorica e Rhian despediram-se e deixaram os aposentos reais. Dovran, que ficaria de guarda no lado de fora, fechou a porta.

— Desculpa, Bridei — disse Tuala, tocando na face do marido.

— Eu quero ajudar. Os tempos são tão difíceis para ti. Mas sinto-me tão cansada, e tão preocupada com Derelei. Graças aos deuses, Bedo e Uric transformaram-se numa espécie de amas deles, se assim se pode chamar. Devemos muito àqueles rapazes. Os menores chegam tão cansados ao fim do dia que adormecem mal acabam de jantar. Derelei anda demasiado cansado para se lembrar, sequer, de tentar outra coisa mais perigosa do que correr, trepar e descer encostas inclinadas nos carrinhos que eles lhes arranjaram. Porém, como o tempo está a melhorar, os filhos de Talorgen vão querer regressar a atividades mais adultas, como caçar e treinar técnicas de combate, suponho.

— Derelei vai precisar de ser vigiado com tanta gente aqui — disse Bridei. — Não vou expressar o desejo de que Broichan regresse, apesar de saber que precisamos dele. Devíamos falar com Fola sobre as nossas preocupações, quando ela chegar.

Tuala anuiu com um ar muito sério.

— Tremo só de pensar em mandar o nosso filho embora — disse ela. — Ele é tão pequeno. No entanto, sei que é um perigo para todos nós enquanto não tiver idade suficiente para compreender a necessidade de refrear o seu dom. Se ele foi capaz de transformar o amigo num cão por causa de uma bola, que estragos fará numa sala cheia de gente poderosa se algo não lhe agradar?

— Pior — disse Bridei — que uso farão dele os sem escrúpulos, caso testemunhem o poder ao seu dispor?

— Tenho tentado mostrar-lhe como refreá-lo — disse Tuala, sentindo-se extremamente infeliz. — A minha falta de treino torna as coisas mais difíceis, como a necessidade de manter o que estamos a fazer relativamente encoberto. Ainda mal me consegui aperceber das minhas próprias capacidades. Não admira que não consiga impor disciplina a Derelei.

— Com a vinda de Fola e de Ferada — disse Bridei — terás conselhos sábios e ajuda prática. Deixa as coisas da casa com Dorica. Ela e a Rainha Rhian dão conta do que for necessário. Tu tens de descansar, preparar-te para o nascimento da criança. Disseste amanhã? Achas que a previsão está correta?

— Elda nunca se enganou antes — disse Tuala. — De certo modo, lamento. Teria gostado de ter um papel mais ativo nos planos para o casamento de Ana.

Bridei sorriu.

— Se esta visita de Keother significa que Ana e Drustan se vão casar e que vão para longe de Monte Branco antes de Faolan regressar, só pode ser bom. Dei-lhe a entender que eles se iriam embora antes do seu regresso.

— Pobre Faolan. Seria demasiado triste se ele regressasse a Monte Branco a tempo de ver a sua amada a casar com outro homem. Ele não estava em si quando eles regressaram do norte. Nunca pensei vê-lo tão desanimado.

— Não estou à espera que regresse tão cedo — disse Bridei. — As missões que levava eram várias e complexas e o seu regresso depende do tempo e da possibilidade de passagem. Quanto à sua devoção a Ana, vi como ele mudou e penso no que o que o aguardaria se encontrasse no regresso mais mudanças ainda. Havia ali um segredo qualquer, algo que só Drustan e Ana sabiam.

— Achas que ele também não regressa? — A voz de Tuala era baixa. A Rainha pousara a cabeça no ombro de Bridei, agarrara-lhe no braço e ele recordou-se do modo como ela o abraçava quando eram pequenos e contavam um ao outro histórias quando iam para a cama.

— Ele também? — perguntou ele. — Pensei que tinhas uma fé inabalável no regresso de Broichan, um dia, de que ele subiria pelo monte acima com a capa a esvoaçar ao vento, pronto para pegar nas ferramentas do seu ofício, como se nunca tivesse estado ausente.

— E tenho — disse ela, simplesmente. — O que não sei é quanto tempo vai demorar. Por vezes vejo-o em visões, sempre nos bosques e sempre sozinho, apesar de sentir algumas vozes a falarem por ele. Vejo nos seus olhos o desejo de regressar para junto da família e o reconhecimento de que, enquanto os deuses não lhe derem autorização, ele não vem. Quanto a Faolan, não apareceu nas minhas visões, mas sinto que precisamos tanto dele como de Broichan. Vivemos tempos arriscados e ninguém lida com a proteção do Rei como Faolan.

— Tenho Garth, Dovran e muitos outros a olhar por mim — disse ele.

— Mesmo assim, os perigos são muitos. Bridei, e a tal rapariga, a irmã de Ana? Quais são os teus planos em relação a ela? Ela deve ter dezesseis ou dezessete anos, não?

— Vou ter de ficar com ela. Lamento, sei que não gostas, mas não tenho outra hipótese. O comportamento do primo dela tem sido tal que seria louco se não fizesse dela uma refém. Na verdade, acho que Keother se antecipou e que decidiu trazer a rapariga antes que eu lha exigisse. Não vejo que possa ter outra razão para vir.

— Talvez para ver como está Ana — disse Tuala. Bridei ouviu o tom de desaprovação na sua voz e sentiu-se ferido. — Ele recebeu a tua mensagem sobre o noivado dela com Drustan, suponho, e vem cá para o reconhecer. Ana não vê a família há anos. Como podemos assistir à reunião e anunciar a notícia de que a irmã de Ana vai substituí-la como refém? É como esbofetear o teu amigo, Bridei. Eu compreendo a necessidade de guarda-costas e sei que os reféns são necessários, mas isto é um presente de casamento cruel.

O Rei manteve-se silencioso durante alguns momentos. Em seguida, disse:

— Achas que eu sou cruel?

— Não, meu querido. A decisão é que é cruel. Se houver outra maneira, estou certa que a vais encontrar. Pelo menos, espera até nos encontrarmos com Keother e a rapariga e tomares conhecimento das suas razões para terem feito a viagem. Deves isso a Ana. No fim de contas, a tua primeira escolha para marido dela provou estar errada. Ainda bem que ela não se casou com Alpin, para teu bem como Rei de Fortriu, e regressou a casa com o irmão dele.

— Muito bem, vou adiar a minha decisão, até falar com Keother. Quanto a Ana e Drustan, segue hoje uma mensagem para Pitnochie. Ana não é estúpida, Tuala. Vai saber o que vem aí.

— Mesmo assim — disse ela — é melhor adiarmos a decisão até não termos outra hipótese. Quem sabe quantos viajantes vão subir o Vale esta Primavera? O meu espelho mostrou-me muitas imagens: uma luz brilhante, uma vela enfunada, uma criança com uma boneca de trapos, todos a chegar do ocidente. Vi a grande serpente, também, a erguer a cabeça no lago para os ver passar, maravilhada. A nossa filha — concluiu ela, passando a mão pela barriga inchada — vai ver coisas estranhas antes de o Verão terminar.

— Bem-vindo, Keother. — Bridei estava no alto dos degraus, em frente à porta principal de Monte Branco, no momento em que o Rei das Ilhas Pequenas entrou no pátio com o seu séquito. Keother era um homem alto, com cabelos claros espessos e uns ombros impressionantes. O monarca trouxera um grande número de criados. Bridei perguntou a si próprio quantos barcos teriam sido necessários para transportar tanta gente desde as ilhas até às costas de Fortriu.

O seu olhar virou-se para as mulheres. Não tinha dúvidas quanto à irmã de Ana. Breda tinha as mesmas feições sem mácula e os cabelos dourados ondulados, se bem que tivesse uma expressão ligeiramente diferente. A jovem olhou para ele com olhos frios e cumprimentou-o com um ligeiro aceno de cabeça formal.

— Senhora Breda — disse Bridei — sê bem-vinda. Deves estar cansada da viagem, sem dúvida. Entra, por favor. Lamento, mas a minha mulher não pode estar presente para te receber. A chegada do nosso segundo filho está iminente.

As pessoas esticaram os pescoços para verem melhor o grupo das Ilhas Pequenas a desmontar e a entrar, rodeado pelos seus próprios guardas e pelos dignitários da casa de Bridei. Todos sabiam o risco que aquele Rei vassalo estava a correr ao apresentar-se na corte do monarca de Fortriu com a sua jovem prima. As relações entre o suserano e o Rei das ilhas era estranhas havia muito tempo, apesar de o tempo de Ana como refém ter mantido Keother em cheque durante os primeiros anos de reinado de Bridei. A jovem, porém, ia casar-se com um chefe-de-guerra dos Caitt, uma tribo que apesar de ter o mesmo sangue e de falar a mesma língua, tal fato nunca fora uma lei em si. Com Ana fora da imagem, Keother parecia estar a entrar numa armadilha.

Os viajantes tinham chegado a tempo do jantar e, antecipando o acontecimento, o repasto foi especial: empadas de carneiro e de alho-porro bravo, peixe cozido e pudim de nozes e especiarias. Keother ficou sentado à direita de Bridei e Breda ficou à sua esquerda.

— Tudo bem, meu senhor? — murmurou Garth, inclinando-se para Bridei.

— Hum — disse o Rei. — Não te esqueças que estou à espera de notícias.

— A criada de Dorica tem instruções para nos informar imediatamente. Ainda é cedo.

— Desculpa-me — disse o Rei de Fortriu, virando-se para o seu convidado. — Estou um pouco apreensivo. Estamos à espera de mais um membro da família antes de amanhã. Senhora Breda, talvez gostes de saber que mandei dizer à tua irmã que estás aqui de visita. Ana e o noivo chegam dentro de alguns dias, suponho.

Breda virou-se para ele com um sorriso frio. A sua beleza tinha algo de inquietante, era quase demasiado perfeita. Ou talvez fosse ao mesmo tempo um sentimento de familiaridade e desconhecimento. A jovem era muito parecida com a irmã.

— Oh, Ana — disse ela. — Não a vejo há tanto tempo que mal me lembro dela.

— Ela fala muito bem de ti — disse Bridei. — Tenho a certeza que vai gostar muito de te ver outra vez. E ao teu primo, claro — disse ele, virando-se para Keother. — Ela vai ter o prazer de vos apresentar a Drustan. Ides gostar dele; é um ótimo homem. — Deixaria que Ana explicasse as qualidades invulgares do noivo à família.

— Um chefe-de-guerra dos Caitt — observou o Rei das Ilhas Pequenas, levantando os olhos do peixe. — E não é o homem que escolheste originalmente para a minha prima, ao que parece.

— O irmão dele. É uma longa história. Contar-ta-ei na devida altura. Quando a Primavera estiver mais avançada, Drustan e Ana regressarão às suas terras do norte, que são extensas. Provavelmente casarão aqui mesmo, em Monte Branco, num futuro próximo. A minha mulher e eu gostamos muito de te ter aqui para a alegre ocasião.

— Aposto que sim — resmungou alguém numa mesa mais abaixo, levando Garth a agarrar na lança com força e a franzir as sobrancelhas na direção do comentário. Era impossível saber quem tinha falado.

— Tempo suficiente para, entretanto, discutir tais assuntos quando estiverdes todos recuperados da viagem — disse Aniel suavemente, sentado à direita de Keother. — Esperamos que possas ficar algum tempo.

Breda olhou para ele com as sobrancelhas levantadas.

— Imagino que vou ficar aqui algum tempo — disse ela. — Suponho que mais do que a minha irmã.

Keother lançou-lhe um olhar de aviso e ela calou-se. Seguiu-se uma pausa embaraçosa.

— Gostas de caçar? — perguntou Tharan ao convidado real. — Podemos levar-te já que nas tuas ilhas as oportunidades devem ser poucas por haver pouca floresta. Quando a estação estiver mais adiantada haverá muita caça no Vale. Tenho a certeza que Talorgen gostará de ir contigo.

— E pescar, também — sugeriu Morleo, o chefe-de-guerra de barba escura. — As trutas de alguns dos nossos lagos mais isolados são de grande tamanho e invulgarmente astutas; são um excelente desafio.

— Obrigado — disse Keother com alguma cautela nos seus olhos azuis. Bridei via que ele pesava cada discurso e cada comentário. — Gostaria muito de participar, tal como os meus homens, mas a minha prima não gosta muito de tais desportos. Tendes de arranjar uma ocupação mais gentil para Breda.

— Geralmente há várias mulheres à mesa do Rei — explicou Aniel —, mas esta noite estão a ajudar a Rainha no parto. Se gostas de música, minha senhora, ou de artes femininas, como o tear, encontrarás muitas amigas em Monte Branco.

A Rainha Rhian, que estava sentada um pouco mais longe, debruçou-se para a frente e sorriu a Breda.

— Senhora Breda é muito instruída, disseram-me que aproveitou bem o tempo que passou em Banmerren e que partilha o meu interesse pelos trabalhos manuais. Os bordados de Ana são excelentes.

Bridei recordou Ana quando da sua viagem ao norte: esbelta, morena, com os cabelos curtos, já não uma dama sensível da corte, antes uma viajante experimentada. Na companhia de Faolan e de Drustan, a refém real testemunhara assassínios, combatera com lobos e salvara a vida de um homem, arriscando a sua.

— Verás que a tua irmã mudou muito — disse ele.

— É claro — acrescentou Tharan — que também podemos oferecer educação superior às que têm valor. Banmerren dá-lhes instrução, não só às futuras sacerdotisas de Aquela que Brilha, como também às jovens de elevado nascimento. Ferada, filha do nosso chefe-de-guerra Talorgen, instituiu recentemente um novo ramo daquele respeitado estabelecimento. Não te aborrecerás, senhora Breda. Na verdade, Ferada e a mulher sábia mais velha, Fola, chegaram esta manhã a Monte Branco. Neste momento estão com a Rainha, tal como a minha mulher. Dorica apresentar-te-á amanhã a toda a gente.

— Obrigada. — O tom de Breda era de pouco entusiasmo. Fosse o que fosse que precisava para se divertir, pensou Bridei, ainda não fora mencionado. Talvez estivesse a ser injusto. A rapariga ainda era muito nova e a viagem fora longa. Talvez estivesse apenas cansada.

Uma das exigências como monarca era ser capaz de conduzir uma conversa com visitantes poderosos, avaliar as diferenças de tom, cada mudança no olhar, cada movimento das mãos, mesmo quando a sua mente estava virada para outros assuntos. Bridei desejava ardentemente ir para junto da porta de Tuala, ser informado dos progressos do trabalho de parto, ser capaz de a tranqüilizar com a sua voz, apesar de os mistérios do nascimento lhe negarem a entrada no quarto da sua mulher. O estatuto real não era suficiente para lhe permitir presenciar um acontecimento tão do domínio das mulheres. O Rei estava preocupado; Tuala não tivera um parto fácil com Derelei porque era delicada e apesar de o bebê ser pequeno, o trabalho de parto fora longo. Elda dissera que, por vezes, o segundo era mais rápido e ele esperava que sim.

Assim que conseguisse libertar-se do jantar e entregar os visitantes reais aos cuidados dos seus conselheiros, iria orar, faria um pedido formal aos deuses, não o clamor desesperado que lhe parecia sair do coração em tais ocasiões, antes uma prece razoável, cortês, para que a Rainha de Fortriu e o seu bebê fossem poupados ao toque do Corvo Negro. Uma prece pensada, digna, majestosa. Não se podia dar ao luxo de ceder, naquela noite, às emoções. Além do mais, não havia ninguém em Monte Branco a quem revelar tal fraqueza. Broichan desaparecera e Faolan, que testemunhara mais do que uma das suas dúvidas temporárias, estava longe. Quanto a Tuala, se lhe fosse permitido vê-la antes da criança nascer, apresentar-se-ia perante ela com o rosto sem quaisquer sinais de inquietação; a sua voz não poderia trair qualquer terror. No entanto, a Rainha saberia o que lhe ia no pensamento, conhecia-o melhor do que ninguém.

— Estava à espera de ver o teu primo Carnach em Monte Branco — dizia Keother. — Estive com ele várias vezes e fiquei impressionado com a sua franqueza. Estás à espera dele, meu senhor Rei? — O Rei das Ilhas Pequenas não conseguia esconder o fato de saber que a pergunta era deselegante.

— Espero sinceramente que os compromissos de Carnach no sul não o impeçam de comparecer — disse Bridei, escolhendo as palavras com cuidado. — Tenciono manifestar o meu reconhecimento a todos os chefes-de-guerra que contribuíram para a nossa vitória no último Outono. O papel de Carnach foi preponderante. Se puder, não deixará de vir.

— Após tanto tempo de conflito — disse Aniel — os nossos chefes-de-guerra têm deveres urgentes nas suas terras.

— Mesmo assim — disse o Rei das Ilhas Pequenas, percorrendo o salão com os seus olhos azuis — vejo que muitos deles já cá estão.

— É verdade — disse suavemente Tharan. — Mas ainda faltam muitos dias. Agora, que a estação está mais clemente, viajar torna-se mais fácil para os que estão mais longe. Umbrig, por exemplo. Talvez não saibas, mas o nosso aliado Caitt ficou em Dalriada com a custódia do Rei celta que foi capturado e como chefe-de-guerra da região sudoeste. É uma distância muito grande, mas estamos a contar com ele. Para além de Carnach, claro.

A chegada de Derelei ao mundo fora longa e difícil. A sua irmã estava com mais pressa. Com um círculo de mãos capazes em volta do corpo da sua mãe, Anfreda chegou com tanta pressa que a parteira, Sudha, quase a deixou cair. A criança não se queixou. Na verdade estava tão calada que Sudha meteu-lhe um dedo na boca e pô-la de cabeça para baixo para ter a certeza de que estava a respirar.

— É tão branca que parece um fantasma — resmungou a parteira, virando a cabeça para que Tuala não a ouvisse. — Depressa, passa-me o cobertor.

Fola, que conhecia a Rainha de Fortriu havia muito tempo, manteve-se imperturbável.

— Não é causa para alarme, Sudha — disse ela, estendendo os braços para embrulhar a criança num fino cobertor de lã. — Tuala, tens uma filha perfeitamente saudável. Pega nela agora, para depois eu a levar para que Bridei a conheça e para que Sudha trate de ti. — Os olhos da mulher sábia perscrutaram os da mãe quando lhe colocou o bebê nos braços. No interior do cobertor, o rosto de Anfreda era um perfeito círculo de marfim. Os seus grandes olhos estavam abertos e eram tão claros que mal se podia dizer que eram azuis. A boca era um autêntico botão de rosa e a pequena cabeça estava coberta de cabelos escuros. Anfreda não tinha qualquer das características habituais dos recém-nascidos: rugas, pele manchada, deformidades temporárias do crânio após a passagem apertada pelo corpo da mãe. A criança era minúscula, pálida, perfeita. Bastava um olhar para se perceber que era descendente dos Boa Gente.

Tuala sorriu, derramou uma lágrima ou duas, beijou a filha e devolveu-a à mulher sábia.

— Leva-a a Bridei — disse ela. — Eu sei que ele está lá fora, preocupado.

Fola saiu com o precioso fardo para a antecâmara, que parecia estar cheia de homens, mas que, de fato, só tinha quatro. Os companheiros de Bridei na espera ansiosa do Rei eram Garth, o seu guarda-costas, Talorgen, o chefe-de-guerra e Aniel, que escondeu um bocejo quando Fola entrou. Fora um dia longo para todos.

— A tua filha, meu senhor Rei — disse a mulher sábia, colocando o bebê nos braços de Bridei. — Tuala está bem cansada, claro, mas bem-disposta. Não houve complicações. — Fola olhou em volta enquanto o Rei embalava a filha, murmurando-lhe.

— Quem era? — perguntou ela, olhando para Talorgen. — Estava mais alguém aqui?

— Não, minha senhora. — Garth estava à porta, desempenhando naquela noite o duplo papel de guarda e companheiro do Rei. — Não que não houvesse mais alguns a querer partilhar a espera do Rei, mas Bridei disse que lhe bastava a presença de nós os três.

— É estranho — disse Fola. — Tenho a certeza que vi alguém. Pelo canto do olho... Bem, talvez esteja a ficar velha. — A mulher sábia não lhes disse que a figura que vira estava vestida de folhas e que tinha uma coroa de hera.

— Nunca serás velha, Fola — disse Aniel. — Estarás sempre um passo à frente de todos nós. Parabéns, Bridei! Aí tens a rapariga que Tuala queria.

— Suponho que lhe vais dar o nome da tua mãe? — perguntou-lhe Talorgen, debruçando-se para ver a criança mais de perto.

— Sim, Anfreda — disse Bridei, pegando na minúscula rapariga como se estivesse a pegar num cesto de ovos e ele fosse um rapaz a fazer os possíveis por não os partir. O Rei sorria.

— É evidente que ela sai à mãe — disse secamente Fola. — Se eu achava Derelei feio, retiro o que disse. Comparado com esta amostra de rapariga, o teu filho é um autêntico guerreiro de Fortriu em miniatura, Bridei. Aposto que a pequena Anfreda é a imagem de Tuala quando a tua mulher nasceu.

Bridei, que em criança encontrara Tuala à porta da casa de Broichan quando ela tinha o mesmo tamanho daquele bebê, acenou com a cabeça, concordando.

— É tão pequena — disse ele. — Tinha-me esquecido que são muito pequenos. Quando posso ver Tuala?

— Daqui a pouco — disse a mulher sábia. — Deixa-me levar-lhe primeiro a filha; está mais quente lá dentro. Ainda há algumas coisas por fazer, mas não demoram muito. Depois, suponho que ides todos querer dormir um pouco. A esta hora só as martas e as corujas é que resistem.

— Ficarias surpreendida — disse Aniel, levando uma mão à boca para esconder um bocejo. — Metade da casa continua acordada, à espera de notícias. Eu digo-lhes e depois sigo o teu conselho, Fola. Estou certo que Tharan espera que eu me levante cedo e bem-disposto para o ajudar a entreter os convidados. Espero estar, pelo menos, meio acordado. Por favor, apresenta os meus cumprimentos a Tuala. As notícias são maravilhosas.

Quando ele saiu, Talorgen seguiu-o. Os dois homens caminharam em silêncio ao longo do corredor e saíram para um canto isolado do jardim onde ainda ardia um archote para iluminar o caminho para quem fosse suficientemente louco para vaguear fora de portas a meio da noite. Após alguns momentos, Fola emergiu para se juntar a eles com uma capa com capuz por cima da sua túnica cinzenta.

— Bridei está com a mulher e a filha — disse ela, olhando em volta para os carreiros pavimentados e para os canteiros plantados com alfazema e rosmaninho. — As mãos capazes de ajudar são muitas. Tenho uma sugestão antes de vos transmitir as notícias que trago.

— Aposto que sei o que vais dizer — disse Talorgen. Os três conheciam-se bem, tinham todos pertencido ao conselho secreto de Bridei, o conselho que trabalhava desde a infância do Rei para que ele, um dia, subisse ao trono de Fortriu. — Que informemos a casa do nascimento da filha do Rei. Que lhes digamos qual é o seu nome: Anfreda, um belo nome Priteni, uma demonstração do amor de Bridei pela sua mãe e lembrar às pessoas a sua linhagem impecável. Que os aconselhemos a que, como tanto a mãe como o bebê passaram por tempos difíceis, mais ninguém, senão as pessoas do séquito e os amigos fechados, a visite nos próximos dias. A proibição não se prolonga até que certos convidados se vão embora de Monte Branco; mantê-la durante tanto tempo pode provocar mais dúvidas do que a amostragem deste bebê extremamente invulgar. No entanto, mantê-la-ei longe da vista até sabermos qual é a idéia de Keother.

— Não apenas Keother e a rapariga — disse Aniel. — Outras pessoas também. Há aqui muitas pessoas que não sabem que Tuala está bem, pessoas que estão prontas a fazer o que for preciso para desferir um golpe em Bridei. Pergunto a mim próprio se mãe e filha não estarão melhor em Banmerren durante algum tempo, Fola! Não para já, claro, mas quando puderem viajar.

— Bridei nunca concordará. — Fola olhava em volta, pelo jardim, como se houvesse presenças invisíveis por ali. — Tu viste os olhos dele; devoção total à primeira vista. É a família dele que o torna forte. Vou falar com ele e com Tuala, mas não esta noite. Deixá-los gozar em paz o presente de Aquela que Brilha. Amanhã sugiro uns guardas.

— Pede a ajuda de Ferada enquanto ela está na corte — disse Talorgen com um sorriso torcido. — Ela vai demorar-se uns tempos por aqui. Sei que as colegas dela são capazes de continuar sem ela em Banmerren. Tenho a certeza que a minha filha é capaz de afastar qualquer visitante indesejado.

Fola sorriu.

— Eu sei, Talorgen. Não te esqueças que ela e eu trabalhamos juntas. A propósito, é verdade que o pedreiro real é esperado em breve na corte?

Aniel pareceu ficar surpreendido.

— Garvan? Imagino que sim. Temos trabalho para ele no Verão. Por que perguntas?

— Por nenhuma razão em especial. — Fola estava a olhar outra vez para os cantos do jardim.

Talorgen seguiu-lhe o olhar.

— O que é? — perguntou o chefe-de-guerra.

— Nada. Continuo a pensar que vi alguém, mas pode ter sido apenas uma sombra. É tarde. Olha, a Aquela que Brilha está a espreitar por entre as nuvens, reconhecendo a sua nova filha. As orações correram bem. Espero que a deusa me perdoe se as minhas foram algo breves. Informa as pessoas, mas tem cuidado. Tenho a certeza que Broichan concordaria.

— Ah, Broichan — disse Aniel, calmamente. — Que bom seria se o nosso amigo druida regressasse amanhã mesmo a Monte Branco, pronto a dar-nos conselhos sábios. Por vezes aterrorizava-me e muitas vezes até me irritava, mas reconheço que precisamos urgentemente dos seus conselhos.

— Não subestimes Bridei e Tuala — disse a mulher sábia. — Podem ser ambos novos, mas são bons companheiros e os deuses sempre lhes sorriram. Quanto à criança, alegra-te por ser uma rapariga. As minhas irmãs de Banmmerren ficarão muito felizes por poderem oferecer-lhe um lar e uma vocação quando ela for um pouco mais velha. As suas atitudes provocaram algumas mudanças desde o tempo de Tuala como estudante.

— Talvez tenhas razão — disse Talorgen. — Talvez não haja razão para nos preocuparmos. A casa real há muito que apóia Tuala, apesar das suas diferenças; ela provou ser mais do que capaz como Rainha. Quanto aos nossos visitantes, ficam cá durante uma, duas ou três mudanças de lua. É pouco tempo. Que pode correr mal numa única estação?

Como é normal em tais pontos de mudança da existência humana — nascimento, morte e casamento — nem Tuala nem Bridei dormiram na noite da chegada da sua filha, apesar de estarem extremamente cansados. Depois de se assegurar que a sua mulher estava bem e bem-disposta, Bridei deixou que Garth o levasse já que o afluxo de mulheres aos aposentos reais o obrigaram a procurar refúgio noutro lado. O Rei de Fortriu estava alojado nos aposentos do seu druida com o seu guarda no lado de fora da porta e antes de pousar a cabeça na estreita almofada de Broichan, Bridei ajoelhou em frente do austero santuário do druida, com duas velas e uma pedra branca numa prateleira, agradeceu profundamente à deusa e empenhou-se novamente na sua obediência.

Tuala estava deitada com a pequena Anfreda a seu lado. A Rainha recusara deixar que Sudha pusesse a criança no berço. A parteira e uma das criadas dormiam em duas enxergas, no chão do quarto. Dorica e as outras assistentes há muito que se tinham ido deitar. As velas ardiam e a lareira arderia até de madrugada. Derelei, aninhado na sua cama no quarto ao lado, dormira o tempo todo com uma ama a vigiá-lo. Quando acordasse teria uma surpresa. Tuala preparara-o o melhor possível, explicando-lhe o tamanho cada vez maior da sua barriga e falando-lhe do nascimento dos cachorros, dos potros e dos bebês humanos, mas não sabia ao certo se o filho tinha compreendido. Além do mais, nada preparava uma criança para o momento em que deixava de ser o único tesouro dos seus pais e passava a ser um de dois.

Fora descansar para os alojamentos das mulheres. A mulher sábia dava poucas concessões à sua idade, mas naquela noite parecera cansada, assim que tudo acabara. Ferada lavara as mãos, comentou a desordem em que tudo tinha acontecido e como se sentia feliz por ter decidido abster-se das delícias de um marido e de prováveis filhos, abraçando rapidamente a amiga e saindo dos aposentos familiares.

— E agora — murmurou Tuala para a semiescuridão do quarto — podeis dizer-me por que razão estais aqui; por que escolhestes esta noite para regressar.

As presenças sombrias a que ela se dirigira transformaram-se em figuras mais discerníveis: uma mulher com uma nuvem de cabelos grisalhos, vestida com uma túnica fuliginosa, desigual; um homem de pele castanha com uma coroa de hera. Não eram como ela os recordava. Os Boa Gente não envelheciam como as pessoas. No entanto, aqueles dois tinham alterado as suas manifestações exteriores para refletir a passagem dos anos desde que tinham aparecido pela última vez a Tuala. A jovem Rainha não os via desde a noite em que eles a tinham levado à floresta acima de Pitnochie, insistindo para que ela saltasse da Cicatriz da Águia e que voasse para outro mundo ou que morresse de encontro às rochas mais abaixo. Nunca mais tinham aparecido, apesar de os ter chamado. No entanto, naquele momento, estavam inesperadamente de regresso.

— Dizei-me — murmurou ela, consciente das mulheres adormecidas no outro lado do quarto e do seu filho no quarto ao lado. — E não espereis que vos deixe pegar em Anfreda. Sabeis que não sou tola a esse ponto.

Teia sentou-se aos pés da cama com a túnica a esvoaçar à sua volta como teias de aranha sob a ação de uma brisa.

— Pensas que éramos capazes de levá-la e dar-te uma cebola em troca? — perguntou ela com uma voz que soava como o tilintar de campainhas misteriosas. — Nós nunca faríamos mal à criança, Tuala. Ela é uma das nossas.

— Importais-vos de responder a umas perguntas?

— Só podemos dizer depois de as fazeres? — O homem dos Boa Gente, ao qual Tuala sempre chamara Madressilva, sentou no chão em frente da lareira, com as pernas cruzadas. A luz das chamas faziam-lhe brilhar as faces, fazendo-as parecer duas castanhas.

— Broichan é meu pai? — Aquela era apenas a primeira de muitas perguntas que se agitavam na cabeça de Tuala. Consciente da natureza caprichosa de tais visitantes e reconhecendo a sua própria fraqueza naquela noite especial, tentava fazer primeiro as mais importantes.

— Se precisas de resposta para essa — disse Teia, atirando para trás os seus brilhantes cabelos — é porque és menos inteligente ou menos decidida do que devias.

— Suponho que isso é um sim. — Tuala mudou de posição na cama; doía-lhe o corpo todo. A bebida soporífera que Sudha preparara continuava intocada ao lado da cama. Não embruteceria os sentidos enquanto aqueles dois estivessem ali. O seu braço apertou-se em redor de Anfreda. A criança exalou o que lhe pareceu ser um suspiro. — Portanto, pergunto-te: onde está o meu pai? O que é que ele tem e quando regressa?

Os dois visitantes viraram para ela os seus grandes e desapaixonados olhos.

— Está na floresta — disse Teia — e regressará quando estiver pronto.

— Pronto para quê?

— Para o desafio que o espera. A arte tornou-o mais forte do que é normal nos humanos, mas a massa humana de que é feito tornou-o mais fraco do que deve ser um grande mago.

— Esteve doente — disse Tuala. — Mas está melhor, está a recuperar as forças e não vejo como um Inverno na floresta o pode ajudar. Ele já não é novo e lá fora está muito frio.

— Os druidas estão acostumados ao sofrimento e as privações — disse Madres silva. — Fortalece-os de corpo e mente. Sem esta estação de penitência, conhecimento e reconhecimento, o teu pai seria incapaz de ir ao encontro do maior dos seus desafios.

— Diz-me — disse Tuala — o que é que Broichan tem de fazer? Eles olharam para ela com um vago sorriso nos lábios de formato agradável, mas não muito humanos.

— Que deve fazer um druida? — perguntou Teia. — Qual é o seu propósito?

— Amar os deuses — disse Tuala. — Obedecer. Ser a sua voz para os que não conseguem abrir os ouvidos do espírito. No caso do druida do Rei, mais ainda. Broichan tem de servir Fortriu com toda a sua fé e energia. Tem de amar e honrar os deuses e o Rei. Não é preciso perguntares-me. Sei-o desde os meus cinco anos. Diz-me qual é esse grande desafio que vai trazer Broichan de regresso à corte, finalmente. Vamos precisar dele em breve. O meu filho...

O sorriso de Madressilva alargou-se. Os seus olhos escuros pareceram aquecer um pouco, apesar de parecer apenas o reflexo da luz das velas.

— Nós ensinamos o teu filho. — O seu tom de voz era suave, quase terno, provocando um arrepio na espinha de Tuala. — Derelei não precisa de nenhum druida, pode muito bem aprender sem Broichan, é tão pequeno e inteligente!

— Se pensas que servir-se de truques perigosos para transformar outras crianças é um sinal de inteligência, então talvez me tenha enganado ao acreditar que tínheis os melhores interesses do Rei e de Fortriu nos vossos corações — disse a Rainha. — Exijo que deixeis imediatamente em paz o meu filho. Derelei não precisa de vós, precisa de Broichan.

— Mas tu não te importas de o ensinar — disse astutamente Teia. — Em que é que as tuas visões, as tuas transformações e a leitura do pensamento são tão diferentes das nossas, Tuala? Tu possuis os mesmos talentos do teu filho. Tu não o ensinas à moda de Broichan: de maneira estruturada, com precauções, não o restringes com regras. Tu partilhas com Derelei a alegria da liberdade que esta arte permite; danças com ele através das portas que ela abre. E agora — a mulher apontou um dedo na direção dos cabelos escuros e frisados de Anfreda e Tuala protegeu rapidamente a criança com uma mão — tens também esta. Dois para ensinar, dois para proteger. Quanto pode fazer uma mulher, Rainha de Fortriu ou não? Broichan está ocupado; tu estás cansada e queres ajudar o teu marido nestes tempos difíceis. Nós somos capazes de manter Derelei ocupado e feliz. Podemos fazer com que ele continue a desenvolver os seus poderes. Tudo o que queremos é ajudar-te, Tuala. Ajudar a nossa irmã...

— Irmã? Talvez a próxima pergunta possa ser quem é a minha mãe? — Antes parecera-lhe importante; naquele momento quase não tinha importância.

— Um de nós — disse Madressilva. — Qual, não interessa. Uma filha da Aquela que Brilha, uma filha escolhida.

Tuala acenou com a cabeça.

— Escolhida para ocupar o lugar da deusa numa espécie de ritual, sim, vi-o na água da malga. Portanto, a união entre a minha mãe e Broichan foi planeada pela própria deusa. Para quê?

— Para que tu nascesses e os teus filhos depois de ti. Tu tens um papel a desempenhar no esquema das coisas, Tuala e já percorres o caminho. Sem ti a seu lado, Bridei seria esmagado pelo peso do seu reinado.

— Qual vai ser o futuro dos meus filhos? Eles não podem escolher?

— Estás a dizer que a tua própria escolha não foi livre, Tuala?

— Não posso responder a isso — disse a Rainha. — Não sei quanto foi escolha minha e quanto foi escolha da deusa. Eu tentei seguir os caminhos que acredito que ela traçou para mim, mas assusta-me a possibilidade de Derelei e Anfreda, pequenos como são, poderem fazer já parte de um grande plano. Eles precisam de tempo para crescer e brincar, sem medo. Precisam de tempo para ser crianças.

Teia passou a mão de dedos longos pelo ar, parecendo deixar atrás de si uma nuvem de estrelas minúsculas.

— Uma criança com as capacidades que o teu filho tem — disse ela — nunca pode ser como as outras. Terás sempre medo do que ele poderá fazer e do que os outros lhe poderão fazer. Será isso, talvez, que te forçará, no fim, a utilizar todos os teus poderes. A proteção que colocaste esta noite em redor da tua filha, para nos impedir de lhe tocar, é a mais forte que eu já encontrei. Tu serves-te dela e colocas outra em redor do teu filho, mas ficas aí a falar conosco como se os teus poderes não tivessem qualquer falha. Nós sabemos que és dotada, um legado da tua mãe. Nós estamos conscientes da força e da autodisciplina que herdaste do teu pai. Tu serviste-te desse potencial uma vez ou duas, como esta noite e nós perguntamos a nós próprios por que não o usas para ajudar o teu marido: para afastar os inimigos, para destruir os atacantes, para obrigar os opositores à submissão. Seria tão fácil.

— A nova fé está cada vez mais próxima de Fortriu — disse Madressilva, estendido no chão em frente da lareira, com a cabeça apoiada numa mão. — Nos territórios vizinhos enfraqueceu a deusa; afastou as mulheres sábias e pôs os druidas em fuga. Não é preciso muito para pôr os humanos a fugir. Por medo, fome ou ignorância, viram as costas a tudo o que é antigo e bom. O teu marido enfrentará em breve um grande teste à sua dignidade real, um teste profundo à sua obediência e vai precisar de Broichan porque aquele que o vai defrontar é igual a ele em força e em fé. Bridei vai precisar de ti, Tuala.

— Eu estou aqui — disse ela algo perplexa. — Decidi ficar a seu lado e ajudá-lo a ser forte. Não tenciono quebrar o voto que fiz. Estou cansada, preciso de dormir.

— Estás enganada em relação a nós. — Teia começava a desvanecer-se, sinal de que estava prestes a partir. Tuala perguntou a si própria se só os veria novamente dali a seis anos. Tinha tantas perguntas para lhes fazer... mas estava cansada... Teia tinha razão; manter o feitiço de proteção sobre as duas crianças era cansativo, mas só o levantaria quando tivesse a certeza de que os seus visitantes se tinham ido embora. Fortriu estava cheio de histórias de crianças trocadas por pequenas figuras feitas de galhos, carvão ou vegetais que eram deixadas aconchegadas nas camas para os pais as encontrarem no dia seguinte.

— Vais precisar de todas as tuas capacidades — disse Madressilva. — A ameaça é real e poderosa. Só através da obediência total e da coragem mais altruísta é que pode ser contrariada.

— Coragem altruísta? — Tuala olhou para ele. — De todas as qualidades que podias recomendar, essa é a menos provável. Duvido que a tua espécie saiba o que o conceito significa. — Os dois Boa Gente começavam a desaparecer rapidamente. — Vou pensar no que disseste — acrescentou a Rainha, precipitadamente. — Farei o que puder, mas deixai os meus filhos em paz, pelo menos por agora.

Não obteve resposta. Os Boa Gente transformaram-se em débeis contornos que cintilaram no momento em que uma súbita rajada de vento desceu pela chaminé, incandescendo momentaneamente as brasas.

— Aquilo foi um sim ou um não? — murmurou Tuala para a filha. — Aqueles dois fartaram-se de dizer asneiras. Antigamente sentia-me mais inclinada para acreditar neles. O problema é que temos de ouvir porque geralmente, no meio daquilo tudo, eles dão-nos bons conselhos. A questão imediata é o teu irmão. Preocupo-me mais tarde com testes de obediência e de coragem altruísta. Anfreda, só queria que os rapazes de dois anos fossem um pouco mais sábios...


CAPÍTULO NOVE

 

— Feeler? — A voz de Saraid estava áspera. — Dói-me a cabeça. Eile estava no lado de fora a preparar o coelho que Faolan tinha apanhado para o jantar. A criança estava no interior da cabana abandonada que tinham transformado numa casa temporária quando se tornou evidente que Saraid estava com febre e não podia continuar. Com a melhoria do tempo as noites tinham-se tornado muito frias, com uma bruma espessa que cobria as encostas cheias de árvores até muito depois do nascer do Sol. Tinham chegado ao rio que separava o Lago Maiden do grande Lago da Serpente, o qual se estendia para norte, até Monte Branco.

— Bebe um pouco disto, Esquilo — disse Faolan, segurando na criança com os braços para que ela pudesse sentar-se e beber um pouco do chá de ervas que ele tinha fervido. No interior da cabana havia uma pequena lareira que estava sempre acesa, para além da fogueira que servia para cozinhar no lado de fora. Por vezes, Saraid estava muito quente e por vezes muito fria. Faolan encostou-lhe a mão à fronte ao ver-lhe o rubor das faces. Quente... demasiado quente. No entanto, a pequenina tremia por baixo do cobertor, como se estivesse gelada.

Talvez fosse melhor voltar para trás e levá-la para Fonte do Corvo. Era provável que Bridei tivesse convidado Talorgen e a mulher para irem à corte porque ia presidir a uma cerimônia de agradecimento e reconhecimento. Porém, devia haver gente em casa, mulheres que deviam saber tratar uma criança doente. Talvez até houvesse uma curandeira. Os seus conhecimentos de ervas eram limitados, conhecia apenas algumas, as suficientes para manter um homem de pé quando havia um trabalho que tinha de ser feito e para conseguir dormir na cama mais dura. As suas infusões davam apenas a Saraid um pouco de descanso. Faolan não gostava da farfalheira que ouvia. No lado de fora, Eile tossiu.

Saraid tinha fechado os olhos. Faolan pegou na caneca e saiu.

Já viajavam juntos havia muito tempo. Faolan nunca pensara que se acostumaria à presença constante de outras pessoas, especialmente uma mulher e uma criança vulneráveis e, no caso de Eile, algo voláteis. De fato, porém, naquele momento estava mais preocupado com a farfalheira de Saraid e o aspecto exausto do rosto de Eile do que com a pressa que tinha de chegar a Monte Branco. À velocidade a que iam, Colmcille passaria por eles. Não tinha importância. Eile e Saraid eram tudo uma para a outra e ele prometera protegê-las. Cumpriria a promessa.

Faolan afivelou uma máscara de tranqüilidade no rosto e saiu. Eile estava acocorada junto da fogueira a virar o coelho num espeto rudimentar. A pausa forçada de vários dias naquela cabana solitária levara-os a alguns melhoramentos domésticos: para além do espeto, tinham arranjado alguns fetos para pôr nas camas e tinham remendado o telhado para evitar a entrada da chuva. Não era um luxo, mas era mais confortável do que passar as noites ao relento.

— Estás outra vez a coxear — disse Eile, sentando-se nos calcanhares. — O frio faz-te doer o joelho, não faz? Aproxima-te do calor. Ela está a dormir?

— Não exatamente. Dei-lhe mais um pouco de chá. Vou precisar de mais ervas: endívias bravas, tanásias e talvez umas folhas de azevinho. As que tenho estão quase no fim — disse ele, esfregando o joelho e gemendo. Eile descobrira rapidamente aquela fraqueza; não valia a pena fingir que não o atrasava. O joelho doía-lhe à noite e estava rígido de manhã. Quando ele lhe dissera que arranjara o ferimento numa luta com lobos, ela recusara-se a acreditar.

— Eu vou — disse a jovem, tossindo de novo. — Onde estão? Onde é que as há? Muito longe?

— Não, eu vou. Quero que fiques aqui e te mantenhas quente. Eile, uns amigos do Rei vivem não muito longe daqui. Fica a meio dia de viagem pelo caminho que percorremos à vinda e depois viramos para leste. Há lá camas quentes, mulheres que podem ajudar.

— É mesmo o que queres fazer? — O olhar de Eile era cauteloso.

— É uma possibilidade. Uma vez lá, Saraid pode recuperar mais depressa. Mas vai apanhar frio até chegar lá. Se ficarmos aqui e esperarmos, ficará na cama e estará sempre quente.

Eile anuiu.

— Estás a dizer-me para decidir?

— Estou a dizer-te para pensares. Decidiremos os dois.

— Podes ir lá e trazer ajuda — disse ela, olhando para ele de esguelha.

Faolan ficou espantado com a força da sua própria reação ao que sabia ser, até certo ponto, uma sugestão perfeitamente razoável.

— De modo nenhum — disse ele. — Não vos vou deixar sozinhas. — A sua mente reviu, uma após outra, as desgraças que lhes podiam cair em cima durante a sua ausência, cada uma delas pior do que a outra. Era impensável.

— Passamos por tempos muito difíceis, Faolan — disse calmamente Eile. — Acho que podemos perfeitamente ficar um dia sozinhas. Temos comida, abrigo e calor.

— Não vou e não se fala mais nisso.

— Ah. — A jovem deu uma pequena pancada no coelho para ver se já estava bom. — Bem, de qualquer maneira é demasiado tarde para irmos hoje. Esperamos e decidimos amanhã. Talvez ela melhore.

Faolan ouviu-lhe o medo na voz apesar das tentativas para se manter calma e competente. O assassino achava que a criança não morreria. Saraid era saudável, se bem que delicada; estava mais preocupado com a tosse de Eile, mas que sabia ele? Dizia-se que Monte Branco, no último Verão, fora varrida por uma doença que levara várias crianças, que pareciam carneiros recém-nascidos levados por uma vaga de frio. As amenidades da corte e as atenções de nada menos do que o druida do Rei não as tinham impedido. Saraid era tão pequena e tão vulnerável como uma violeta nova e Eile era frágil. A sua vontade feroz não conseguia disfarçar a palidez translúcida da sua pele e os olhos pareciam grandes demais para o seu rosto apesar da dieta melhorada dos últimos tempos.

Faolan pousou-lhe uma mão no ombro e, sentindo-a estremecer, retirou-a.

— Eu não sou nenhum especialista — disse ele. — Neste momento preferia que as duas estivessem quentes e secas aqui mesmo, onde posso vigiar-vos. É melhor ficarmos por aqui até estardes boas outra vez. Esta noite quero que também tomes o chá de ervas.

Eile fez uma careta.

— Sabe a urina de porco — disse ela, lembrando-lhe que tinha apenas dezesseis anos.

— E sabe ainda pior, sem dúvida, mas faz-te bem. E agora vou buscar as ervas. Se conseguir encontrar algumas cebolas silvestres para acompanhar com o coelho, trago-as. Não vou para longe, Eile. Mantém-te alerta e grita se precisares de mim.

O sorriso da jovem foi-lhe difícil de entender. Faolan deduziu que era bom sinal ela conseguir sorrir, pelo menos, mas depois Eile começou outra vez a tossir e ele afastou-se rio acima, esperando que ela não lhe tivesse visto o alarme nos olhos antes de lhe virar as costas.

Tinha apanhado o que necessitava quando ouviu o grito de Eile. Faolan desatou a correr. O solo estava lamacento, cheio de rochas musgosas e vegetação emaranhada. Um dos pés escorregou, fazendo-o quase cair contra o tronco de uma árvore. Faolan recuperou o equilíbrio, sentindo uma dor lancinante no joelho e continuou a correr com a faca com que cortara as ervas na mão. Eile não voltara a gritar. Faolan chegou à clareira onde estava a pequena cabana e viu homens e cavalos. Eile estava à porta. A faca que tinha na mão estava firme, virada para os três homens na sua frente. Os seus olhos estavam muito abertos, em estado de choque.

— Dai mais um passo e enfio-vos isto na barriga — sibilava ela em gaélico.

Faolan levantou o braço, pronto para lançar a faca, levantou a voz e disse em língua Priteni:

— Ponde-lhe uma mão em cima e morreis. Virai-vos e pousais as vossas armas.

Os homens viraram-se, Faolan viu que nenhum deles tinha armas na mão e também viu que lhe pareciam familiares. A sua pose não mudou, nem o seu tom de voz.

— Afastai-vos dela — disse ele.

— Faolan! — exclamou um dos homens, um indivíduo de ombros quadrados e cabelo curto. — Pousa isso, sim? Nós não queremos fazer mal, só estamos a tentar trocar algumas das nossas provisões por um pouco de calor. A rapariga é que começou a apontar-nos a faca.

Faolan baixou a mão.

— Ela não compreende a língua — disse ele, aproximando-se a coxear da cabana e colocando-se entre Eile e os viajantes. — E vós os três não sois uma visão muito tranqüilizadora. — Estavam na presença de homens da casa de Broichan: Cinioch, alto, Uven, robusto e um mais novo, de cujo nome não se lembrava. Não eram nenhuma ameaça, pelo menos para ele, mas era natural que Eile se tivesse assustado com os seus ares ameaçadores e as suas tatuagens guerreiras, para não falar dos arcos, facas e espadas. Faolan recordou-se que, apesar de serem guardas de uma propriedade, todos eles tinham servido no exército de Bridei no Outono anterior.

— Não há motivo para alarme — disse ele a Eile na língua que ela conhecia. — Conheço estes homens; são amigos e talvez nos possam ajudar. Desculpa se levei muito tempo a chegar aqui. — Não lhe perguntaria se tivera medo, apesar de lhe ver o terror nos olhos.

— Tens a perna ferida — disse ela com a voz a tremer.

— Não é nada. Eile, vou deixá-los partilhar a fogueira conosco. Talvez tenham notícias.

A jovem acenou com a cabeça, tensa.

— Mas diz-lhe que não tentem nada.

— Eu disse-lhes que os matava se tentassem.

Eile lançou-lhe um olhar estranho e em seguida desapareceu no interior da cabana. Faolan embainhou a arma.

— Quem é a rapariga? — perguntou Cinioch.

Até àquele momento apresentava-a sempre, quando necessário, como sua mulher e Saraid como sua filha, mas estava demasiado perto de Monte Branco para que tal fosse apropriado, mas também não a queria apresentar como filha de um amigo. Juntamente com a dor no joelho, fazia-o sentir-se velho.

— Uma amiga — disse ele, simplesmente. — Da minha terra. Ela e a filha vão para a corte sob a minha proteção. Tratai-a com respeito.

— Como Cinioch já disse, ela é que quis lutar, não fomos nós. Tens ali uma criança, também? — As sobrancelhas de Uven estavam levantadas.

— Precisavam de ajuda e eu fui o único que me ofereci. E agora chega. Partilhai a nossa fogueira, se quiserdes. Eile e a pequena estão doentes: têm febre e estão cheias de tosse. Acampamos aqui até elas melhorarem. Desaparelhai os cavalos e dai-me notícias. Se tendes comida para partilhar, é bem-recebida.

Estavam os três de regresso a Pitnochie pelo lago; tinham ido a Fonte do Corvo levar umas mensagens e tentar saber notícias de Broichan. Ao longo da refeição de peixe apanhado por Cinioch, coelho e papas de aveia, Faolan ouviu mais do que esperava e ficou preocupado. Eile preferira comer na cabana com Saraid. A desconfiança estava escrita nas suas feições.

O assassino escutou atentamente e escolheu as perguntas com cuidado. Os sinos tocavam a rebate. O Rei de Circinn tinha morrido. Bridei decidira não contestar o reino das terras do sul. Broichan não estava na corte, tinha ido para um lado qualquer sem dizer quando regressaria. Não era apenas estranho, era perturbador. Quando os cristãos aparecessem no Vale, e Faolan pensava que não demorariam muito, o Rei de Fortriu precisaria do seu druida.

— Ouvimos outra coisa estranha — disse Cinioch. — Uma coisa que podes querer passar a Monte Branco, apesar de ser apenas um boato. Um tipo de passagem por Fonte do Corvo ouviu dizê-lo a outro que tinha passado perto de Thorn Bend; tinha andado para cima e para baixo ao longo da fronteira de Circinn. Sabias que Carnach foi passar o Inverno a casa?

— Não sabia, mas não estou surpreendido — disse Faolan.

— Diz-se — continuou Cinioch — que ele tem andado a falar de rebelião, que não gostou da decisão do Rei a propósito da eleição e que anda a pedir a todos os chefes-de-guerra da sua região que se oponham a Bridei. Carnach não se candidata ao trono de Circinn, apesar de poder, já que é de sangue real. O que Carnach quer é Fortriu. Ele acha que Bridei enfraqueceu. Diz-se que há mais quem concorde com ele.

Faolan sentiu um arrepio na espinha.

— Quem mais? — perguntou ele calmamente.

— O tipo não disse. Nós o desafiamos a provar o que estava a dizer e ele calou-se, mas deu a entender que era gente bem colocada. Não faço idéia do que ele quis dizer, mas não gostei do que ouvi. Teria informado imediatamente Broichan se ele estivesse em casa. Mesmo que não passe de uma história maldosa, acho que o Rei deve ser informado.

— Eu digo-lhe — disse Faolan com a mente a trabalhar a toda a velocidade. Enquanto viajava a passo por causa de Eile e Saraid, parecia que os desastres se aproximavam de Bridei. Se estivesse sozinho, já podia estar em Monte Branco. — A Primavera já chegou há algum tempo. Carnach não devia estar em Caer Pridne, onde o Rei o pode interrogar? Quem é que comanda os guerreiros de Fortriu?

— Por mim pode voltar quando quiser. — Cinioch chupou gulosamente um osso do coelho. — Estou fora. Vou-me casar dentro em pouco. Quero assentar para ajudar a minha prima e o marido dela a olhar pela herdade de Pitnochie. Não quero saber se não vir mais nenhum celta na minha vida. — Seguiu-se uma pausa. — Excetuando os presentes, claro — acrescentou ele, olhando para Faolan e para a cabana. No interior, Saraid tossiu e Eile falou-lhe em voz baixa.

Ninguém falou durante alguns momentos. A reputação de Faolan não permitia que os homens de armas de Pitnochie tivessem conversas inúteis com ele, ou lhe fizessem perguntas óbvias como «Tencionas partir quando?» ou «Podemos ajudar?» A maioria tinha medo dele; tinham sempre muito cuidado na sua presença. A súbita aquisição improvável de uma mulher e de uma criança não lhes diminuía as precauções.

— Cinioch — perguntou-lhe Faolan uns momentos depois — se Broichan não está em Pitnochie, quem é que está? — A casa de Broichan era a paragem seguinte mais lógica na viagem pelo Vale acima; o caminho não era difícil, a casa era amiga, capaz de providenciar tudo o que Eile e a criança necessitassem e era habitada por gente que sabia o que era a discrição. Além do mais era tranqüila e isolada, menos assustadora para Eile do que a grande fortaleza de Fonte do Corvo. Porém...

— A dama das Ilhas Pequenas continua lá — disse Uven. — Ela e o noivo. Estão lá desde o começo do Inverno. Boa gente: calmos, educados, sem grandes ares. Até Mara gosta deles. Mas vão-se embora em breve.

Faolan fez um esforço para respirar devagar.

— Vão-se embora?

— Para o norte, para as terras de Drustan — disse Cinioch. — Estavam à espera que Broichan os casasse, mas parece que vão casar a Monte Branco, com outro druida a conduzir a cerimônia. A notícia chegou antes de partirmos os três para Fonte do Corvo. Se calhar até já partiram. Queres ir conosco? — perguntou ele, olhando em volta, aparentemente para os cavalos.

— Nós vamos a pé — disse Faolan. — Eile não é grande amazona. Esperava atravessar o Lago da Serpente de barco, se houvesse algum, mas neste momento elas estão demasiado doentes, temos de ficar aqui mais algum tempo.

— E tu estás com pressa — aventurou Cinioch.

— Bem podes dizê-lo.

— Queres que levemos a rapariga e a criança para Fonte do Corvo enquanto tu continuas? Podemos emprestar-te um cavalo e substituí-lo por outro no estábulo de Talorgen. Não temos assim tanta pressa. Um dia não nos faz grande diferença.

— Não. — A palavra saiu-lhe a custo. Bridei precisava daquela informação; podia ser vital. O seu trabalho era aquele, a sua missão era aquela. Se levasse uma daquelas robustas montadas estaria em Monte Branco no espaço de um dia ou dois. — Eile ficaria assustada, não conhece a língua e a criança está demasiado doente para ir até Fonte do Corvo. Espero até elas estarem melhor.

— Como queiras — replicou Uven, lançando-lhe um olhar penetrante.

— Podes ajudar-me se avisares a casa de Pitnochie que estamos a chegar. Passamos lá uma noite, pelo menos. Se Eile e Saraid não puderem continuar, deixo-as nas mãos de Mara. Tens aveia suficiente? Podes deixar-nos alguma? Seria bem-vinda. A criança precisa de comer bem.

— Podes ficar com toda — disse Cinioch. — E também podes ficar com o pão. Não estamos muito longe e sempre podemos caçar.

Faolan apercebeu-se de um olhar confuso nos rostos dos três homens; o encontro seria, provavelmente, causa de muita especulação quando continuassem viagem. Eles que pensassem o que quisessem. Naquele momento tinha coisas mais importantes pela frente. Quando os homens de Pitnochie se instalaram junto da fogueira embrulhados nas suas capas, o assassino levantou-se e entrou na cabana.

Saraid estava a dormir, profundamente aconchegada nos cobertores. Eile estava sentada de pernas cruzadas no chão, à lareira, a olhar para o fogo e mal tinha tocado no jantar. O olhar no seu rosto preocupou-o; nem sequer a doença da filha lhe toldara tanto os olhos.

Faolan acocorou-se ao lado dela, tirou as ervas frescas do saco e estendeu a mão para a pequena caneca de água.

— Que vou fazer? — Parecia que tinha estado a chorar. — Não percebo o que as pessoas dizem; as palavras que me ensinaste não servem para nada. Como é que vou continuar? Aqueles homens, pensei que nos vinham matar ou para... para me fazerem o mesmo que Dalach...

— Eu não deixo que isso aconteça, Eile, prometo-te.

— O que é que eles te estavam a dizer? Era importante, não era? Tens de te ir embora. Tens de ir à frente.

Uma lágrima correu-lhe pela face abaixo, refletindo as chamas. Sem pensar, Faolan pousou a faca e as ervas, estendeu o braço e apertou-lhe uma mão.

— Nós ficamos aqui até Saraid estar melhor — disse ele. — Não me vou embora sem ti.

Eile não tinha tirado a mão. Era a primeira vez e parecia um pequeno milagre. Ele descobriu que estava a suster a respiração.

— Mas queres. — O tom dela era monótono.

— Tomei uma decisão. Aqueles homens ofereceram-se para te levar para Fonte do Corvo enquanto eu continuo. Tens razão, tenho mensagens urgentes para entregar, mensagens que só eu posso transmitir. Mas declinei a oferta. Eles vão deixar-nos algumas provisões c continuam amanhã de manhã. Não te vou mentir: uma parte de mim quer chegar a Monte Branco o mais depressa possível. É importante. Porém, uma outra parte sabe que tenho de esperar. Fiz uma promessa

— Eu disse-te que podíamos continuar sem ti.

— Nesse caso, por que estás a chorar? — perguntou ele em voz baixa.

A resposta foi instantânea.

— Ah isso é que não estou! — Um momento mais tarde, Eile pousava-lhe a cabeça no ombro e desatava a soluçar silenciosamente O coração dele batia com toda a força. Aquilo era totalmente inesperado. Faolan não sabia o que fazer. Aquela mulher não podia ser consolada com um abraço; fora extremamente clara: a proximidade repugnava-a. No entanto, o instinto levou-o a rodear-lhe desajeitadamente os ombros com um braço e a encostar-lhe ligeiramente a face a cabeça. Eile chorava e ele abraçava-a com o coração a bater-lhe com força numa espécie de aviso, mas sem saber que tipo de aviso era. Não tinha uma mulher nos braços desde que se despedira de Ana. Ana... Deuses, Pitnochie não ficava longe, era um pouco mais acima, e ela continuava lá. Ansiava por vê-la, mas ao mesmo tempo desejava nunca mais voltar a vê-la.

— Pronto — murmurou ele. — Pronto. Podes confiar em mim. acredita. Não deixarei que te aconteça nada, a ti ou a Saraid.

— Tenho medo, Faolan. — Apesar do tom infantil, o tom era de mulher. O medo que o assassino ouviu nele era um medo de adulto, o terror de mais uma mudança, mais uma perda, mais uma traição. — Estou cansada, triste e tenho medo do que vem a seguir. E estou zangada. Zangada comigo mesma por ser tão fraca. Devia sentir-me feliz, grata. Podia estar neste momento na cabana de Dalach e Saraid também. Podia estar neste momento a enfrentar a pena de morte. Desculpa. Fizeste tanto por nós. Não sei o que se passa comigo. — Eile pareceu reparar, finalmente, que ele tinha os braços em redor dos seus ombros e afastou-se, puxando os cabelos para trás e esfregando as faces.

— Estás cansada, doente e tens de olhar por Saraid. Não sejas tão dura contigo própria.

— Tu também estás cansado e dói-te o joelho, mas continuas.

— Se pensas que nunca sofri de desespero, tens uma memória muito fraca — disse ele. — Eile, quero que comas o que tens nesse prato.

— Sinto-me mal. Não quero.

— Tens de comer. Só as passas, então. E bebe um pouco disto quando estiver pronto. — Um momento depois, Faolan acrescentou: — Por favor.

A jovem soluçou e engoliu em seco.

— Se queres. Pergunto a mim própria se vou ser sempre assim.

— Come, Eile. Assim como?

— Sempre a lembrar-me. Sempre que as coisas correm mal sinto-me como se estivesse outra vez na cabana de Dalach, sinto um nó no estômago por causa do medo e tenho de fazer o que é preciso, quando o que quero é ser outra vez uma criança e ter a minha mãe e o meu pai ao pé de mim para melhorarem as coisas.

— Não sei. Penso que é como já te disse: as recordações continuam, mas desvanecem-se para que tu as consigas suportar. Voltar atrás ajudou-me. Pensava que não, mas Ana fez bem em me obrigar a ir. Ver a minha família feliz e contente... curou-me as feridas apesar de a minha mãe já ter morrido, apesar de Áine já não ser a mesma. Porém, o que fiz ao meu irmão não desapareceu. Continuo a sonhar com sangue. Quem me dera poder mudar o passado. — Faolan apercebeu-se de que não era aquilo que tencionava dizer. — Tu ainda és nova — disse ele. — Isso melhora.

— Acho que nunca mais confio em ninguém — murmurou Eile. A jovem comera uma colher de papas de aveia e pousara o prato. A infusão começou a espalhar um aroma pungente pela atmosfera.

Faolan pensou em como ela o tinha deixado tocar-lhe e não disse nada.

— Fala-me de Ana — disse ela de repente, sem mais nem menos Não era o momento de recusar uma confidência, de cerrar os lábios.

— Já te contei tudo sobre ela.

— Conta-me mais.

— Como já te disse, recebi a missão de a escoltar, a Primavera passada, até às terras dos Caitt, para casar com um chefe-de-guerra local. Ela não o conhecia. Tratava-se de uma aliança estratégica. Caíram sobre nós vários desastres, conhecemos Deord, tivemos problema, ele salvou-nos e morreu. O homem com quem Ana vai casar agora é irmão do chefe-de-guerra que Bridei queria para ela. O nome dele é Drustan.

— Não é lá grande história — disse Eile, perscrutando-o de perto com os seus olhos verdes.

— A história toda levaria toda a noite. Houve lobos: isso é verdade. Houve também o espetáculo do emissário do Rei a fazer o papel de bardo.

— Mas tu eras bardo.

— Há anos que não toco nem canto. Mas convenci-os em Briar Wood. Ana ficou espantada. Não volto a fazê-lo. Dói de mais.

— Cantar dói? Ele anuiu.

— Fica perto de mais do coração. Agita as coisas. Começou tudo a correr mal no dia em que cantei o pedaço de uma canção... Ia a atravessar um rio a vau e levava Ana no meu cavalo. O que me deu foi pior do que o feitiço de uma fada. Foi indesejado, destrutivo, inconveniente e fora de propósito visto que ela ia fazer um casamento estratégico e o meu dever era levá-la lá sã e salva. Além do mais eu era o homem menos indicado para uma princesa.

— Porquê? A tua gente é bem-nascida, não é? Príncipes e chefes-de-guerra dos Uí Néill? As princesas Priteni não casam com homens assim?

Conseguira distraí-la. Faolan disse a si próprio que era bom e continuou:

— Não quando o seu ofício inclui os papéis de assassino e de espião e não quando são celtas.

— Oh.

— Guarda para ti própria. É melhor pensares em mim apenas como um guarda-costas. Também sou isso.

— Um assassino. A sério? Portanto, nem sequer te teria conseguido arranhar esse teu bonito rosto com a forquilha?

— Ainda bem que nem sequer tentaste. Não vais comer isso, pois não? Toma, bebe ao menos o chá. Não tenciono sair daqui enquanto não acabares.

— Faolan?

— Sim?

— Ainda não é demasiado tarde, sabes? Essa tal Ana ainda não se casou, pois não? Por que não fazes qualquer coisa? As coisas não mudam se não formos suficientemente corajosos para as mudar.

A sugestão provocou-lhe uma sensação gelada de desejo e medo.

— É uma idéia muito má — disse ele — por mais razões do que pensas. Para começar, ninguém em Monte Branco sabe a que família pertenço. Ana sabe, mas não diz. Nem sequer o Rei sabe que o chefe dos seus guarda-costas é parente de Gabhran de Dalriada. Além disso, Ana ama Drustan. Se ela casasse comigo, toda a gente ficaria infeliz.

— Mesmo tu?

— Eu quero que ela se case com o tal chefe-de-guerra e que se vá embora. Agüento bem desde que não tenha de os ver juntos. Eu sei que não sou homem para ela, Eile. Sempre soube.

Eile deixou-se ficar sentada em silêncio com a caneca nas mãos.

— Seja como for — disse Faolan — eu não te digo com quem deves casar-te. Que te deu para fazeres uma sugestão dessas? — O assassino tentou manter um tom leve, inconseqüente, mas não teve grande sucesso.

— Tu fizeste — disse Eile, calmamente. — Um belo jovem da minha idade que me fará um dia a corte, que me fará esquecer Dalach e o fato de eu me assustar e sentir repulsa quando um homem me toca. Tinhas tudo planejado.

Após um momento ele disse:

— Desculpa. Não quis que parecesse assim tão... fácil. Eu sei que te sentes muito magoada e tais feridas levam muito tempo a sarar.

O que eu queria dizer era que admiro muito a tua força de vontade, a tua coragem e que tenho a certeza de que és capaz: de te curares, de seres feliz, de viver. Vejo tudo isso em ti.

— Vês? — A voz mudara de novo, era levemente esperançosa. Faolan acenou com a cabeça, fixando-a.

— Tu és uma digna filha do teu pai. Se Ana e Drustan ainda estiverem em Pitnochie quando lá chegarmos, podem contar-te mais coisas sobre ele. Sobre a sua bravura e a sua bondade. O teu pai foi I único companheiro de Drustan durante sete anos.

A boca de Eile retorceu-se.

— Os anos que eu esperei que ele regressasse.

— Lamento. Lamento que o único a regressar tenha sido eu.

Saraid mexeu-se, ofegante e disse qualquer coisa. Eile aconchegou-lhe as roupas enroladas umas nas outras que lhe serviam de almofada, murmurando-lhe palavras doces.

— Parece um pouco mais fresca.

— Ótimo. Consegues fazê-la beber qualquer coisa?

— Na verdade ela está a sonhar.

— Também devias dormir. Bebeste o chá todo?

— A maior parte — disse ela, regressando para junto da lareira e deixando-se cair no chão de pernas cruzadas e de costas direitas. — Quero perguntar-te uma coisa.

— O quê?

— Lembras-te do que disseste sobre um belo rapaz da minha idade? O que disseste sobre os homens e as mulheres? Entre eles não tem necessariamente de ser o que foi com Dalach?

— Hum? — Faolan sentiu-se pouco à vontade com o novo rumo da conversa, especialmente com três homens no lado de fora da cabana junto da fogueira. No entanto nenhum deles sabia gaélico, provavelmente. A cumplicidade entre os dois crescera ao longo da viagem, havia uma familiaridade nascida dos longos dias de caminho e das noites praticamente sempre ao relento. Tinha a ver com o que tinham partilhado em Laigin.

— Se eu te pedisse... se te pedisse que me mostrasses, que me provasses que estavas a dizer a verdade, mostravas?

Faolan abriu a boca.

— O quê? — disse ele antes de ter tempo de pensar e sem conseguir dominar a expressão do rosto. O olhar de Eile mudou e os seus lábios cerraram-se. — Estás a dizer o que eu penso que estás a dizer?

— O assassino tentava encontrar palavras, consciente de que devia dizer qualquer coisa antes que ela tomasse o seu silêncio por outra coisa qualquer. — Que eu te faça uma demonstração para te provar que nem todos os homens são como Dalach?

— Mais do que isso. — A jovem estava muito séria; a sua voz tremia apesar dos seus esforços evidentes para a controlar. — Preciso que me demonstres que ele não me arruinou o futuro; que me ensines a... a sentir prazer e não dor, alegria e não medo. Se alguém consegue fazer isso és tu.

— Eu? Um guarda-costas cheio de cicatrizes com um joelho deficiente? Um homem com fama de não ter sentimentos? Deves estar maluca.

— Acontece — disse ela, cuidadosamente — que tu és a única pessoa em quem eu confio mais ou menos. Penso que me podes ajudar a não ter medo. Talvez. Quer dizer... — Eile virava e revirava a caneca nas mãos — E se o tal belo rapaz aparecer e me fizer a corte e quando chegarmos a vias de fato o toque das mãos dele me repugnar?

— Não acredito que estamos a ter esta conversa — disse Faolan.

— Sugeres que... que...

— Se odeias assim tanto a idéia, esquece. — A voz de Eile era tensa. A jovem não conseguia olhar para Faolan. — Uma pessoa como tu e... uma pessoa como eu, claro, seria aceitável. Devo ser muito estúpida para pensar que aceitarias a idéia — disse ela, baixando os ombros e olhando para a lareira.

Faolan sentiu que o que ficara por dizer enchia a pequena cabana com uma tristeza que era quase palpável; conseguira magoá-la. Por mais que tentasse, não sabia que dizer.

— Sou demasiado velho — disse ele. — Velho suficiente para ser teu pai. Bem, talvez não, mas de qualquer maneira, demasiado velho. E... Eile, queres uma resposta honesta?

— Não sei — replicou ela — Suponho que depende.

Faolan escolheu cuidadosamente as palavras. A confusão de sentimentos que ela acordara nele exigia-o.

— Penso que acabei por te conhecer razoavelmente ao longo da nossa viagem. Neste momento estás doente e desanimada, preocupada com Saraid e não sabes o que vais fazer numa terra cuja língua não conheces. Tenho a certeza de que não estás preparada para uma... experiência... como a que sugeriste. Dá algum tempo a ti própria.

Eile olhou para ele.

— Queres dizer que eu própria não sei se estou pronta ou não? Deuses, era como atravessar uma torrente por cima de pedras escorregadias. Um erro e morreriam os dois afogados.

— De uma coisa tenho a certeza; não sou o homem certo. Tu estás a pedir-me porque não tens mais nenhum termo de comparação. E mais seguro se me vires como um amigo do teu pai, alguém que te está a ajudar a chegar a um lugar seguro, onde possas começar de novo a tua vida. Seja como for, já te disse que desisti dessa atividade particular.

— Queres dizer que não és capaz?

— Eile! — Faolan baixou o tom de voz, lembrando-se dos viajantes junto da fogueira. — Não, claro que não.

— Portanto, eu é que sou o empecilho. O pedaço de lixo. Aposto que o fazias com Ana se ela to pedisse.

— Ana é uma senhora. Nunca lhe passaria pela cabeça fazer-me um tal pedido. — As palavras saíram-lhe antes de as conseguir deter. Faolan viu-a vacilar. — Eile, não era isso que eu queria dizer.

— Não mintas. Está escrito no teu rosto. Ela é uma senhora e eu sou uma prostituta. Não finjas. A idéia repugna-te.

— Eile, isto é uma loucura.

— Pois, para além de ser prostituta, sou maluca. Esquece que te pedi, Faolan. Eu arranjo outro tipo para praticar. Suponho que acabo por descobrir se tentar com uns poucos.

Subitamente, Faolan ficou zangado e engoliu a outra emoção que estava a sentir na boca do estômago, como se tivesse acabado de levar um pontapé.

— Se não soubesse que odeias que te toquem — disse ele — dava-te um bom abanão.

— Porquê? — A sua voz era áspera de tanta fúria e tanta ofensa.

— Por causa dessa... dessa ameaça.

— Ameaça? Que estás para aí a dizer? Faolan respirou fundo.

— Está bem — disse ele, tentando pensar como um pai, calma e capazmente. — Primeiro, pensei que tinhas prometido não voltar a usar esses termos contigo própria: prostituta, lixo. Se queres que eu cumpra as minhas promessas, tens de fazer o mesmo.

— Esqueci-me. — Eile estava sentada como uma anciã, encolhida, sem qualquer desafio na voz.

— Não te voltes a esquecer. A cabeça da jovem baixou.

— E quero outra promessa — disse Faolan.

— Que promessa?

— Que não peças a mais ninguém o que acabas de me pedir a mim.

Eile ficou silenciosa, aparentemente pensando profundamente. Em seguida, disse:

— Achas que tens o direito de me impedir?

— Já que perguntas, tenho a éraic, entre outras coisas. Outro silêncio.

— Como é que eu vou descobrir se ninguém me mostrar? — acabou ela por perguntar. — Tu disseste que ias ajudar-me a recomeçar uma nova vida. Isso faz parte.

— Não é... não é apropriado, Eile. A tua introdução a tais atividades foi cruel e brutal. Compreendo que talvez... que talvez não tenhas consciência...

— Já disseste que não sou uma senhora. Diz-me qualquer coisa que eu não saiba.

— A promessa que quero que me faças é que esperes. Que dês tempo ao tempo, mais nada.

— Quanto tempo? Queres dizer até o tal belo rapaz aparecer?

— Espera e fala comigo de novo antes de fazeres qualquer coisa. E promete-me que... não convidas ninguém entretanto. Arriscas-te a ter um grande dissabor.

— Tu achas que eu sou estúpida, não achas? Por que é que pensas que te pedi a ti e não a um daqueles tipos lá fora? Por que sei que não me magoas, percebes?

No silêncio que se seguiu, Faolan pensou que o bater do seu coração era tão alto que enchia o espaço entre os dois; suficientemente violento para afogar qualquer pensamento racional.

— Desculpa — disse ele. — Falhei no teste. Se queres saber o que senti quando me pediste... senti-me honrado por me confiares uma coisa tão importante. E aterrorizado.

— Porquê? — A voz dela era um sussurro.

— Porque podia fazer tudo mal. Porque podia não te dar aquilo de que necessitas. É muito cedo, Eile.

— Não pensaste que eu ia lá fora oferecer-me a qualquer homem que passasse, pois não? Pensas assim tão mal de mim?

— Pensei que Dalach pode ter deformado a tua capacidade de julgamento. Não seria muito surpreendente. No fim de contas, tu disseste-me que acreditavas que os homens eram todos como ele.

Eile olhou para as próprias mãos.

— Penso que não és — disse ela. — Mas se não me queres... Faolan voltou a respirar fundo.

— Eu não disse isso.

— Um homem como Dalach teria agarrado a oportunidade na primeira noite que passamos fora de Encruzilhada do Rabequista — disse ela sem emoção.

— Eu responsabilizei-me por ti, Eile. Mais tarde compreenderá; por que razão disse que não.

A jovem levantou a cabeça. Os olhos verdes encontraram os dele. penetrantes, perplexos.

— Sentes-te honrado? — perguntou ela. — É isso?

— Isso e uma confusão de outras coisas — disse Faolan. — E agora vou-me deitar na minha cama e vamos os dois esquecer que isto aconteceu.

— Ah! — disse Eile calmamente, levantando-se e aproximando-se do seu lugar habitual ao lado de Saraid. — E como é que vamos fazer isso?

— Concentrarmo-nos noutra coisa qualquer.

— Podias cantar — sugeriu ela.

— Supostamente isso é uma brincadeira?

— Só metade. Gostava de ouvir a tua voz. Saraid adora canções de embalar.

— Ensino-te algumas palavras na língua Priteni.

— Está bem.

Faolan ouviu o restolhar dos fetos quando ela se instalou ao lado da criança adormecida, mexendo-se por baixo do cobertor. Eile tossiu e abafou o som com uma mão.

— Que queres aprender? — perguntou-lhe Faolan.

— Bondade — disse ela. — Esperança. Faolan traduziu.

— Força — disse Eile. — Amor.

Faolan clareou a garganta e disse-lhe as palavras.

— É melhor ensinar-te coisas práticas como: Em que direção fica a aldeia? Ou: Dás-me mais um pouco de pão? — disse ele para um silêncio tão profundo e tão escuro como a floresta no lado de fora da cabana.

— Eu quero estas palavras agora porque são... são... não sei... uma coisa poderosa que me protege... Um espécie de dom especial.

— Um talismã — disse Faolan.

— Hum, hum. Bondade, esperança, força, amor. É como se fosse magia. Magia para nos proteger.

— Desejo-te todas essas coisas, Eile.

— E eu a ti.

— Eu não confio em talismãs; não acredito em deuses ou em magia. — Por breves momentos o assassino pensou em Drustan, o homem que vira transformar-se num animal com asas, garras e uma capacidade para voar de tirar a respiração. — Descobri que é mais fácil confiar em mim mesmo.

— É... é pena. — A voz de Eile era um pouco distante, como se, contra todas as probabilidades, já estivesse a adormecer. — É tão triste. Pelo menos, eu tenho Saraid. Se estivesse sozinha, não sei como conseguiria continuar.

Faolan ficou acordado durante muito tempo à lareira, embrenhado nos seus pensamentos, tentando moldá-los; dividiu o futuro imediato numa série de tarefas prioritárias. Garantir a segurança de Eile e de Saraid. Levá-las sãs e salvas até Pitnochie. Pedir a Ana e a Drustan para assumirem a responsabilidade por elas. Depois daquela noite era melhor Eile ficar com outra gente; com uma família, não com ele, naquele estranho puxa-empurra. A jovem esperava dele o que ele não lhe podia dar. Se ficasse com ele, acabaria por ficar desapontada, de uma maneira ou de outra, deixá-la-ia ficar mal, tal como o pai. Ficaria melhor com Drustan e Ana. Seria bem recebida. No fim de contas era filha de Deord.

A tarefa seguinte era Monte Branco e Bridei. Um aviso duplo: Colmcille e Carnach. Entregar-lhe-ia as mensagens e depois pedir-lhe-ia que o mandasse atrás dos conspiradores. Nenhum homem da corte era capaz de efetuar aquela espécie de vigilância disfarçada como ele. Além do mais, a missão levá-lo-ia para longe. Quando regressasse, ter-se-iam ido todos embora: Ana, Drustan, Eile...

És um grande covarde, disse-lhe uma voz interior.

— Cala-te — resmungou ele.

Na enxerga, Saraid dormia. Eile fazia o mesmo com os longos cabelos espalhados pela almofada como um rio de chamas escuras. Junto da fogueira, os homens de Pitnochie mantinham-se silenciosos, enrolados nos seus cobertores. Ninguém o ouvia; apenas as sombras.

Não foi preciso muito para que Breda das Ilhas Pequenas marcasse a sua posição na corte de Monte Branco. A jovem princesa movia-se entre os chefes-de-guerra, os guerreiros, os conselheiros e o pessoal da casa como uma pálida borboleta exótica no meio de um rebanho de animais inferiores; bordava, tocava, acariciava um gato ou admirava uma flor aparentemente inconsciente do impacto da sua presença. Os homens não conseguiam tirar os olhos dela; atraía o olhar de todos, desde Wit, o velho sábio, aos filhos de doze anos dos chefes-de-guerra de visita. Os comentários daquele eram retorcidos: «Problemas, vejo-os em cada cabelo da cabeça daquela criatura.» Os admiradores mais novos andavam maravilhados e confusos. Alguns homens mais velhos e influentes fizeram algumas perguntas a Keother no sentido de saberem se a sua jovem prima já teria tido algumas ofertas de casamento e alguns indivíduos mais corajosos decidiram conquistar a sua amizade.

Uric e Bedo não pensavam em mais nada desde que tinham posto os olhos naquela visão bem proporcionada de cabelos dourados; tinham decidido que a sua autoproclamada tarefa de entreter rapazes pequenos não se coadunava com as suas hipóteses junto de Breda. Durante vários dias, portanto, deixaram de ter tempo para brincar com Derelei, Gilder e Galen e passaram a deambular pelo grande salão escutando música de harpa entediante e tentando dar o ar de que estavam ali por gosto. Nenhum deles conseguiu mais do que uma breve palavra antes de os olhos de Breda passarem por eles e fixarem-se em alguém mais interessante. Finalmente, o pai disse-lhes para pararem de sonhar e para arranjarem uma ocupação útil, ou recambiava-os para Fonte do Corvo. Talorgen andava irritado e os seus filhos associavam o seu estado de espírito ao fato de ele ter passado a ocupar uns aposentos menos espaçosos para dar lugar aos visitantes reais.

Finalmente, Bedo conseguiu chegar à fala com uma das criadas de Breda. No momento em que o séquito da princesa passava pelo pátio, Ban, o cão do Rei, ia a passar e a rapariga de cabelos escuros parou para o acariciar.

— Gostas de cães? — Bedo estava perto dela e agarrou a oportunidade.

A jovem anuiu.

— Tenho um em casa, um terrier. Tenho muitas saudades dele.

— Em Fonte do Corvo temos principalmente cães de caça. Este é o cão do Rei Bridei, Ban. É muito manso. Ah, a propósito, o meu nome é Bedo e sou filho de Talorgen.

— Cella. O meu pai é um dos conselheiros do Rei Keother. Eu sei quem és. Tu e o teu irmão apresentastes-vos no outro dia à senhora Breda. Ou tentastes.

Bedo fez uma careta. O jovem tinha o sorriso contagioso do pai e a rapariga retribuiu-o.

— Uric e eu gostaríamos muito de entreter a tua dama, se soubéssemos o que a diverte — disse ele. — Andar a cavalo, talvez, ou jogos?

O olhar de Cella era calculista.

— Ouvi a senhora Breda dizer que gostava de ver o bebê real — disse ela. — Parece que é difícil. Bem sei que ainda só passaram alguns dias.

Bedo pensou rapidamente.

— O meu pai é amigo íntimo do Rei Bridei — disse ele. — Uric e eu estamos muitas vezes com o pequeno Derelei; temo-lo ajudado a ocupar o tempo com uma coisa ou outra. Daqui a pouco sou capaz de me encontrar com ele no jardim. Talvez pudéssemos...?

Ferada, a filha de Talorgen, uma jovem alta de cabelos lisos arruivados, conhecida pela sua limpeza impecável, modos excelentes e situação como educadora das filhas de famílias nobres de Fortriu, o que lhe conferia um elevadíssimo grau de autoridade, fizera até então o papel de cão de guarda da Rainha. Com ela de guarda à porta, os visitantes eram escolhidos a dedo.

Até então, Anfreda mostrara-se um bebê fácil, plácido e calmo, que se alimentava bem e que dormia profundamente. Quando visitara a irmã pela primeira vez, Derelei ficara algum tempo em frente do berço, examinando-a solenemente e chegara a tocar-lhe nos cabelos escuros, no nariz arrebitado e na boca rosada. Em seguida o pequeno agitara a mão por cima do berço e fizera aparecer momentaneamente um bando de pássaros minúsculos. Tuala, que o observava, vira os olhos de Ferada abrirem-se desmesuradamente, mas não lhe ouvira qualquer comentário.

— Bebê bonito — dissera Derelei, inclinando-se para beijar a irmã e saindo depois do quarto em busca de outros divertimentos.

A ama levara Derelei para o jardim. Ferada estava sentada nos aposentos reais com Tuala, enquanto o bebê dormia. A mulher sábia retirara-se para um pequeno bosque logo abaixo da muralha para rezar e, segundo Ferada, para se libertar um pouco da natureza opressiva da vida familiar.

— Em Banmerren é tudo muito mais calmo — disse Ferada à amiga. — Até na parte a meu cargo, que como sabes está cheia de raparigas cheias de saudades de casa, sempre a quererem falar umas com as outras, há um grande sentido de paz e ordem. Com bebês e crianças, temos de estar sempre presentes, alimentá-los, mudá-los ou cuidar das suas angústias barulhentas.

— Tu e eu, claro — disse Tuala com um sorriso — temos sempre quem faça essas coisas por nós. Eu tenho um grupo de pessoal que está sempre pronto a tomar conta dos meus filhos, mas faço mais do que é próprio de uma Rainha, segundo algumas pessoas. Acontece que não confio totalmente nas pessoas, particularmente com estas duas crianças especiais. Porém, desconfio que se Derelei e Anfreda fossem normais, seria o mesmo.

Ferada olhou para a amiga com um sorriso nos lábios.

— Sabes, parece que ainda tens dezesseis anos — disse ela. — É extraordinário ver-te mãe de dois filhos. Admiro-te por fazeres a maior parte do trabalho pesado, quando não precisas. Para mim, tratar de bebês é um trabalho esgotante. Prefiro escrever ou fazer contas.

— Eu faço porque quero — disse Tuala. — Eles crescem num instante. Além disso, tenho ajuda. Os teus irmãos, por exemplo. E Broichan, claro, quando está cá.

— A mim pareces-me esgotada. — O tom de Ferada era firme. — Penso que devias aceitar mais ajuda. Eu posso ficar mais um tempo; o meu trabalho está em mãos capazes.

— E Garvan deve estar a chegar — acrescentou Tuala com um sorriso. A amizade de Ferada pelo pedreiro real não era do conhecimento público; crescera inesperadamente quando de umas obras de alvenaria em Banmerren e Tuala sabia que qualquer referência a ela provocava negativas firmes da parte de Ferada. Seria interessante ver como ela e o amante resolveriam o problema no ambiente de Monte Branco.

— Não te preocupes, Tuala, seremos discretos. — Os lábios de Ferada torceram-se num sorriso trocista. — Não quero ofender-te, a Bridei, ao meu pai ou à minha madrasta. Além disso, é da máxima importância, devido ao meu papel de educadora das filhas dos bem-nascidos, ser vista como um modelo de comportamento.

— Só vista? — perguntou Tuala.

Ferada, geralmente uma mulher confiante, teve alguma dificuldade em olhar para a amiga.

— Nós somos crescidos — disse ela. — O que fazemos é conosco. O que as pessoas não sabem não as pode ofender. Acredite que é assim. — Após uma pausa longa, durante a qual Tuala a fixou com os seus grandes e penetrantes olhos, Ferada concluiu: — Esta; coisas acontecem, Tuala. Eu não estava à espera nem o queria; é deselegante e inconveniente, mas aconteceu. Eu gosto dele, gosto mesmo muito dele. Garvan é tão... tão forte e profundo. E calmo. Parece um rio largo. — Abruptamente, a jovem calou-se.

— Sentes-te feliz assim? — perguntou-lhe Tuala. — Só estás com ele de vez em quando, quando o trabalho dele lho permite? O vosso amor é secreto!

— Não pode ser de outra maneira, Tuala. — Havia emoção no tom de voz de Ferada. — Como artesão de baixo nascimento, Garvan seria considerado inconveniente para mim. Eu até sou capaz de convencer o meu pai, com tempo, mas não vejo necessidade de formalizar a nossa relação com um casamento. Tenciono ficar em Banmerren e transformar o meu projeto num sucesso. Há ainda tanto por fazer! A natureza do ofício de Garvan exige que ele viaje muito e que passe a maior parte do ano fora de casa. Além disso, o objetivo principal do casamento é a descendência. Eu nunca quis filhos, nem quero. Frisei-o a Garvan e ele compreende.

O olhar de Tuala era profundo.

— Ferada — disse ela — Perguntaste a Garvan o que ele quer?

Um toque na porta evitou que Ferada respondesse: uma das criadas, talvez, com um cesto, ou Fola de regresso, não querendo entrar sem bater.

— Pensa no assunto — disse Tuala enquanto a amiga ia abrir a porta.

— Ver bebê! — O primeiro a entrar foi Derelei, que se dirigiu com passos pequenos e seguros para o berço da irmã. — Bedo e Uric ver!

Os irmãos de Ferada estavam na soleira, Bedo mostrando um sorriso apologético e Uric encostado à ombreira como se, aos catorze anos, fosse demasiado homem para se interessar por bebês, mas disposto a aturá-los caso fossem divertidos.

— Que estais a fazer aqui? — Ferada não escondeu o seu descontentamento. — É muito cedo para visitas, Sabeis muito bem.

— Eu não me importo, Ferada. — Tuala sorriu aos dois rapazes. — Uric e Bedo podem dar uma olhadela, já que Derelei lhes quer mostrar a irmã nova. Devagar, ela está a dormir!

Ferada afastou-se e os rapazes entraram. Um momento mais tarde tornou-se evidente que não tinham vindo sozinhos. Na soleira apareceu uma visão de cabelos dourados, olhos grandes e vestido verde-mar. Tuala viu Ferada abrir a boca para dizer «visitas não» e engolir as palavras. Não se podia arriscar a ofender aquela visitante particular. Breda estava na posição delicada de potencial refém política e contava os mexericos todos ao seu influente primo Keother. Ferada, calada, não conseguiu esconder a irritação das feições. Os seus olhos penetrantes foram primeiro para Bedo o qual, aos quinze anos, tinha obrigação de saber mais, e depois para o seu insolente irmão.

Tuala levantou-se.

— Deves ser a irmã da Ana — disse ela. — Que surpresa. És muito parecida com ela. — A observação era e não era verdadeira. Ana fora amiga íntima de Tuala e de Ferada, partilhara a mesma educação e passara cinco anos na corte de Bridei. Aquela rapariga, pensou a Rainha, era fisicamente semelhante: bem proporcionada mas mais baixa, tinha a mesma cabeleira de tirar a respiração e a mesma beleza. Os olhos, porém, eram diferentes. Em vez de cinzentos, serenos, eram azuis e pareciam desafiar a Rainha a questionar a sua presença. E também outra coisa: uma diferença subtil que Tuala não conseguia distinguir. A jovem estava a olhar fixamente para ela.

— Lamento não ter estado no salão para te dar as boas-vindas — continuou ela, apressadamente. — Anfreda só tem alguns dias de idade. Só daqui a algum tempo é que eu posso aparecer novamente em público. Na verdade não recebemos visitas para além da mulher sábia que nos assiste e da Rainha-mãe, a senhora Rhian. Conheces Ferada, filha de Talorgen? Ferada é minha amiga íntima e aqui em Monte Branco ajuda-me um pouco.

Breda fez à Rainha uma profunda e elegante vênia que mais pareceu um gesto de troça, virou-se depois para Ferada e cumprimentou-a com um ligeiro aceno de cabeça. Talvez não soubesse que Ferada também tinha o sangue real dos Priteni.

— Gostaria de ver o bebê — disse ela.

— Bebê — repetiu Derelei, espreitando em bicos dos pés para o interior do berço onde Anfreda dormia envolta em finos cobertores dela.

Tuala evitou o olhar de Ferada. Era precisamente aquilo que andavam a tentar evitar. Bem, Breda estava ali e não havia nada a fazer senão fingir que a situação não tinha nada de anormal.

— Podes olhar para ela, claro — disse a Rainha. — Ela ainda é muito nova e precisa de descansar, tal como eu. A visita tem de ser breve.

Bedo estava acocorado ao lado de Derelei. Valia a pena ver o sorriso do jovem, um sorriso espontâneo de prazer por estar a ver uma coisa tão pequena e tão perfeita. Anfreda, apesar de estar a dormir, agarrara num dos dedos do irmão. Derelei estava perfeitamente imóvel, como se a pequenina pudesse partir-se se ele se mexesse. Junto da porta, Ferada falava com Uric em voz baixa. Tuala sabia que ela estava a dar-lhe uma repreensão, aliás bem merecida.

Breda aproximou-se do berço e ficou alguns momentos a olhar para a figura infantil. Tuala viu passar uma série de expressões pelas feições encantadoras e descontentes, nenhuma das quais lhe pareceu tranqüilizadora. Era evidente que Breda estava a pensar. Tuala sentia uma necessidade urgente de dizer qualquer coisa conciliadora e apologética, como por exemplo: Eu sei que ela parece um pouco invulgar, mas é perfeitamente normal, mas não disse nada. Não ia pedir desculpa pela filha que era, por muitos padrões, praticamente perfeita. Breda era apenas uma rapariga, provavelmente ainda não tinha, sequer, dezessete anos. O seu interesse era, porventura, superficial e de modo nenhum perigoso. O que Bridei lhe dissera sobre aquela princesa era que parecia muito nova para a idade e que era menos delicada do que a irmã.

Era uma tolice ter medo do que ela pudesse fazer. No entanto, enquanto ela olhava para Anfreda, Tuala viu-lhe algo perturbador nos olhos e sentiu um arrepio na espinha.

— Posso pegar nela? — Sem esperar pela resposta, Breda estendeu os braços para o berço, como se fosse pegar no bebê adormecido. Tuala aproximou-se rapidamente dela para a impedir, mas mais alguém fora mais rápido.

— Oh! — exclamou Breda, estremecendo e afastando-se antes que os seus dedos tocassem na criança. — Que foi isto? Doeu! — Subitamente pálida, a princesa olhou para as próprias mãos, as quais tremiam violentamente.

Derelei dera um passo atrás e não estava a olhar para a mãe. Tuala fez um gesto subtil e o feitiço de proteção que o seu pequeno filho lançara sobre a irmã desfez-se.

— Foste mordida, Breda? — perguntou ela, tentando manter-se calma. — Desculpa. Nós temos tido problemas com insetos, agora que o tempo aqueceu. Ferada, importas-te de ir com Breda à ervanária para ver se Elda tem alguma loção? Uma mistura de absinto e alfazema costuma ser eficaz.

Ferada estava junto da porta, dizendo firmemente com os olhos aos visitantes que estava na hora de saírem. Compreendendo perfeitamente, Uric e Bedo saíram.

— Esperai. — O tom de Breda era frio. — Não foi nenhum mosquito nem nenhuma mosca, tenho a certeza. Foi mais uma espécie de... uma espécie de... parede. Como se a criança estivesse rodeada por uma barreira sólida mas invisível. E era qualquer coisa viva. Levei um choque nas mãos. É muito estranho. Não percebo como aconteceu uma coisa destas. Ou quem o pode ter feito. — A jovem princesa olhou para a Rainha e depois para Ferada.

— Que estranho — disse Tuala, suavemente. — Suponho, quando estamos um pouco cansadas, ou nos sentimos sozinhas, que imaginamos toda a espécie de coisas. Breda, o bebê está a acordar; fizemos demasiado barulho. Penso que é melhor ires com Ferada. Quando Anfreda for um pouco mais velha, mostro-a para que todos a possam admirar. Se ainda estiveres em Monte Branco, é evidente que podes vê-la.

— Percebo. — Breda percebeu que estava a ser posta na rua.

— Vem — disse Ferada. — Elda percebe muito de ervas; vou mostrar-te a ervanária dela. Provavelmente está cheia de miúdos, mas tu gostas de crianças, não gostas? Tuala, levamos Derelei conosco?

— Derelei fica aqui mais um pouco. Por favor, procura Garth e pede-lhe que me venha ver imediatamente. Obrigada, Ferada.

Quando ficou sozinha com os filhos, Tuala chamou Derelei e sentou-o nos joelhos. Anfreda mal se mexia. Ainda faltava muito para lhe dar de mamar. Tuala falou calmamente ao pequeno apesar de ter ficado alarmada com o que ele tinha feito.

— Derelei? Já passou. A senhora foi-se embora e Anfreda está sã e salva.

— Não magoar bebê. — O pequeno parecia ter consciência de que fizera qualquer coisa necessária e errada ao mesmo tempo.

Era impossível explicar-lhe. A situação era demasiado complexa para a sua capacidade de compreensão. No entanto, instintivamente, Derelei fizera o necessário para proteger a irmã. De certo modo, sem saber exatamente o que estava a fazer, usara a sua arte no momento exato. Talvez Breda só quisesse pegar um pouco no bebê, como todas as raparigas. Mesmo assim, naquele momento, Tuala também sentira o perigo.

— Derelei — disse ela — nada de feitiços quando estiverem outras pessoas aqui. Nada de magia, compreendes? — Como a cabeça do petiz baixasse e os seus lábios se franzissem, a Rainha acrescentou: — És um menino bonito, Derelei. Muito bonito. Ajudaste Anfreda, mas a partir de agora, deixa que a mãe faz. Podes usar a tua magia com a mãe, ou com Broichan, mas mais nada. Compreendes, Derelei?

Ele só tinha dois anos.

— Não magoar bebê — repetiu ele, olhando para o berço.

— Na próxima vez espera pela mãe. Os grandes olhos viraram-se para ela.

— Bawta para casa? — perguntou ele, esperançoso. Abruptamente, Tuala sentiu os olhos rasos de água.

— Espero que sim, Derelei. Espero que Broichan volte para casa um dia. — A Rainha imaginava o druida de regresso à corte, mudado pelo Inverno na floresta, mas sempre dedicado ao seu filho e pronto para continuar a sua educação sem a qual, como ela percebia cada vez melhor a cada dia que passava, as capacidades espantosas de Derelei poderiam deixar de ser um dom e uma bênção para passarem a ser um perigo e um fardo. — Tens saudades das tuas aulas.

— Bawta para casa. — Era impossível saber se aquilo era uma declaração de presciência ou apenas de esperança.

Tuala acarinhou-o um pouco e depois deu de mamar a Anfreda enquanto Derelei brincava no chão com o pequeno cavalo de pedra que Garvan lhe fizera. Mais tarde, Ferada regressou com Garth, o guarda-costas de Bridei, e Tuala arquitetou com ele um plano para que, mesmo quando a criadagem estivesse ausente, ninguém, salvo os previamente nomeados, pudesse aproximar-se, sequer, da porta. A Rainha tinha alguma relutância em fazer aquilo visto que, pelo menos, dois dos melhores homens de Bridei eram afastados de outros deveres num momento em que o afluxo de convidados poderosos obrigava que todos os guardas estivessem constantemente ocupados. No entanto, Tuala sabia que Bridei concordaria. Se ela e Derelei tinham sentido o perigo, então a ameaça era real. Infelizmente os guardas, por melhores que fossem, não podiam combater toda a espécie de perigos.


CAPÍTULO DEZ

 

— Lá está a casa — disse Faolan, apontando para um emaranhado impenetrável de carvalhos escuros.

— Não vejo casa nenhuma. — Eile estava cansada e maldisposta. A jovem mentira quanto ao fato de estar completamente recuperada e naquele momento estava a pagar o respectivo preço. Assim que Saraid recomeçara a correr e a comer com entusiasmo, declarara-se pronta a viajar. Não ia atrasar ainda mais Faolan, impedindo-o de entregar as suas preciosas mensagens em Monte Branco; custara-lhe uma fortuna e embaraçara-o com a sua proposta. Faolan não a queria; era evidente à medida que se aproximavam da corte do Rei Bridei, que ele tinha coisas importantes para fazer, uma vida da qual ela não podia fazer parte. Sabia perfeitamente que não podia esperar nada dele. Mas então, por que doía tanto? Estava sozinha desde que a mãe morrera; sempre fizera as coisas por si própria; sempre fora auto-suficiente; não precisava de ninguém, nem sequer de Faolan. Tinha de se animar. Não se podia dar ao luxo de estar triste, tinha de pensar em Saraid.

— Ali, no meio dos carvalhos.

— Não vejo.

— Gato! — exclamou Saraid, torcendo-se para descer das costas de Faolan. — Gatinho!

O felino às riscas desapareceu com um floreado da sua espessa cauda.

— Para baixo, por favor? — pediu a pequena.

Faolan pousou-a no chão. Tinham chegado a Pitnochie numa barcaça que transportava troncos. Como não encontrassem ninguém no molhe, tinham-se posto a caminho da casa de Broichan.

— Não te afastes! — disse Eile à filha. — Se o gato quiser ser encontrado, aparece. Provavelmente é meio selvagem.

Faolan pousou uma mão no ombro de Eile e apontou de novo, por entre os ramos.

— Bridei costumava dizer que Broichan, o druida proprietário de Pitnochie, tinha lançado um feitiço sobre as árvores para que elas se mexessem de modo a esconder a casa — disse-lhe ele, enquanto Saraid espreitava por baixo dos fetos à procura do gato.

Eile olhou para ele com olhos cépticos.

— Para que havia ele de fazer isso?

— Para proteger Bridei enquanto ele crescia. Havia muita gente que não queria que ele fosse Rei. Fortriu também tem a sua quota de conspiradores e intriguistas. Nisso não é muito diferente da nossa terra. — O seu sorriso era cruel. Faolan não parecia sentir-se feliz por estar de regresso, mas aquela tal mulher, Ana, que ele amava e que não queria ver, estava provavelmente naquela casa.

— Se neste momento Bridei é Rei, por que razão continuam as árvores a esconder a casa? Vejo fumo a subir, mas não vejo nenhuma casa.

— Broichan tem os seus próprios inimigos. Aqueles homens disseram que ele desapareceu. E mais uma coisa que eu tenho de investigar.

— Pergunto a mim própria como é que esse tal Rei se desenvencilha sem ti.

Faolan olhou para ela de olhos semicerrados.

— Isso é uma piada, não é?

— Não sei. Não o conheço.

— Bridei é um homem extremamente competente, virtuoso e inteligente. Porém, um Rei não se pode autoproteger. Não pode ficar invisível. Não pode transformar-se num homem qualquer. Tem outros homens para olhar por ele. Eu suponho que, se não estivesse aqui, estaria outro no meu lugar.

— Pareces com dúvidas. — Eile lia cada vez melhor as expressões do assassino, apesar de ele estar sempre na defensiva. — Parece-me que não acreditas que mais alguém seja capaz de fazê-lo.

Seguiu-se um pequeno silêncio, pontuado apenas pelos «Aqui, gatinho» de Saraid e um restolhar ocasional dos arbustos, indicando que a sua presa era, pelo menos, meio domesticada.

— Vamos — disse Faolan. — É melhor despacharmo-nos. Tu e Saraid precisam de descansar. Estão à nossa espera.

Enquanto Faolan falava, uma figura apareceu na sua frente, avançando por entre as árvores: um homem alto de cabelos ruivos, olhos invulgarmente claros, vestido com uma túnica castanho-avermelhada e umas calças de boa qualidade metidas numas botas de couro. A seu lado caminhava um enorme cão cinzento. Saraid retirou para trás das saias da mãe; a própria Eile sentiu um nó familiar no estômago. Homens estranhos eram sinal de ameaça e homens estranhos que se vestiam como senhores e falavam uma língua que ela não compreendia eram ainda mais alarmantes. Aquele, sorridente, fazia-a sentir-se suja e patética. A jovem endireitou os ombros e levantou o queixo.

— Faolan! — disse o ruivo, aproximando-se e rodeando os ombros do assassino com os braços como se fossem grandes amigos, ou irmãos. Faolan cumprimentou-o mais sobriamente, mas devolveu o abraço e disse qualquer coisa na língua Priteni. Eile ouviu a palavra Drustan e depois Ana. Talvez estivesse a perguntar onde estava Ana e se estava bem.

O outro deu-lhe uma resposta breve, sombria e Eile viu mudar as feições de Faolan, nas quais apareceu um olhar de profunda preocupação. Em seguida o assassino lembrou-se que estava acompanhado, pegou-lhe na mão e ela deixou-o; sentia-se muito só e a sua mão era tranqüilizadora. Faolan disse qualquer coisa parecida com Eile, Deord e Saraid.

Os olhos de Drustan, um homem muito estranho, ficaram ainda mais brilhantes quando olhou para ela. Eile viu uma espécie de saber selvagem nuns olhos que pareciam duas estrelas, uma coisa totalmente em desacordo com as suas roupas nobres e a sua voz suave. Então, o homem disse em gaélico:

— Bem-vinda, Eile — e estendeu-lhe uma mão.

Sem o poder evitar, a jovem recuou. Os dedos de Faolan apertaram os seus.

— Este é Drustan — disse-lhe ele.

— Ele fala gaélico — murmurou Eile, recompondo-se logo a seguir. Tinha de ser educada para poder falar apropriadamente. Aquele homem era amigo de Faolan e era uma pessoa importante.

— O meu nome é Eile — disse ela. — Filha de Deord. Faolan disse-me que conheceste o meu pai.

— Ele e eu fomos companheiros numa prisão durante muito tempo — disse Drustan sem tirar os olhos dela, parecendo maravilhado. — Por favor, vamos para casa. Ana não tem estado bem. Acabo de o dizer a Faolan, mas está ansiosa por te conhecer. Devemos os três as nossas vidas a Deord.

Eile acenou com a cabeça, sentindo um súbito nó na garganta.

— A língua — disse ela — foi ele que te ensinou? O meu pai? Drustan sorriu.

— Ele gostava de me manter ocupado; arranjava sempre maneira.

— Vamos, Saraid, já falta pouco. — Eile ajoelhou para abraçar a filha que, subitamente, ficara muito quieta. Mais um lugar novo, mais estranhos altos.

— Parece que há gatos lá em casa — disse Faolan, acocorando-se ao lado de Saraid. — Aposto que Lamento vai gostar de vê-los. E costumava haver um homem que fazia uns pastéis muito bons. Queres que te leve de cavalinho?

Enquanto subiam pelo carreiro acima e os carvalhos pareciam afastar-se para lhes dar passagem, Eile apanhou uma expressão de admiração no rosto de Drustan ao reparar que ele estava a olhar para Faolan. Havia uma alegria imensa nos seus olhos. A jovem não sabia por que razão os atos de Faolan inspiravam aquilo. Saraid assustara-se e ele tranquilizara-a. Saraid estava cansada e ele pusera-a às costas. Faolan fizera apenas o que devia ter feito. Fazia-o desde Encruzilhada do Rabequista, ou mesmo antes. Seria assim tão surpreendente?

A casa manifestou-se pouco a pouco: um telhado de colmo com pequenos pássaros de palha aqui e ali na parte de cima, paredes de pedra, janelas pequenas com as persianas abertas para deixar entrar o sol de Primavera e uma grande porta, aberta, reforçada a ferro. No interior viam-se pessoas. Um pouco mais longe algumas ovelhas baliam, um cão ladrava e vozes gritavam. Por trás da casa a encosta era arborizada, um manto espesso de carvalhos, freixos e sorveiras-bravas. Quando estavam a chegar à porta, Eile viu um par de pássaros, verdadeiros, descer do telhado e aterrarem nos ombros de Drustan: no direito um corvo e no esquerdo uma coisa estranha, pequena, com penas vermelhas e um bico estranho. Nem Drustan nem Faolan mostraram qualquer surpresa com a sua chegada. Saraid sorriu, estendeu o braço na direção dos animais e retirou-o quando Drustan olhou para ela.

— Eile e a filha fizeram uma longa viagem e viram mudar muitas coisas durante o Inverno — disse Faolan a Drustan, falando em gaélico para que ela compreendesse. — Elas não estão habituadas a estar no meio de muita gente nem de estar em casa de um druida. Posso falar de Ana a Eile?

— Claro — disse sobriamente Drustan. — É melhor ela saber já.

— O quê? — perguntou a jovem, sem saber ao certo se queria saber o que tornara os dois homens pálidos e os fizera cerrar os lábios.

— Ana perdeu um bebê — disse Faolan. — Foi logo no princípio, só teria nascido no Outono. Drustan diz que ela está a recuperar, mas que está muito desgostosa, tal como ele.

— Lamento — disse Eile, olhando para Drustan. — Ela não se importa que as pessoas falem, ou o assunto é muito perturbador? — Era tão triste. Tão terrivelmente triste. Desde o primeiro momento que quisera Saraid; mesmo perante Dalach e a incerteza do futuro, amara a sua filha desde o momento em que a sentira no ventre. Pensara que não gostaria muito de Ana, a Ana perfeita, a princesa de Faolan, mas aquilo mudava tudo. Subitamente, Ana era real.

— A criança morreu antes, sequer, de sabermos se era rapaz ou rapariga — disse Drustan. — Mesmo assim, a amamos. Falar destas coisas ajuda-nos. É melhor sermos abertos. Se nos fecharmos na dor, ela consome-nos. Entrai, por favor. Preparamos alojamentos para vós. O nosso cozinheiro, Ferat, tem tudo preparado, comida e bebida. Sabíamos que vinha a caminho, claro; os homens de Broichan trouxeram a notícia. A grande surpresa foi descobrir que a companheira de Faolan era filha de Deord. Não sabia... — Drustan parou um momento demasiado tarde.

— Ele nunca te disse que tinha uma filha? — Eile parou nos degraus, junto da porta, ao ouvir uma nota dorida, tensa, na sua própria voz. — Ele nunca falou em mim? Nem sequer uma vez?

— Eile — disse Faolan — é uma história longa e complicada; é melhor não a contarmos ao pé de Saraid. Não te sintas magoada. Falamos mais tarde.

— Eu não me sinto magoada. Aprendi a não esperar nada. Desse modo não fico desapontada. Ele foi-se embora, esqueceu-nos. História simples.

— Isso é impossível — disse Drustan. — Ele não se pode ter esquecido de ti, Eile. Ele não falou em ti, ou na tua mãe, pelas suas próprias razões. Por vezes um homem precisa de guardar para si os que mais ama, ou enlouquece. Mas isso fica para mais tarde. Por agora vamos comer. Depois descansareis um pouco e em seguida vamos ter com Ana para tu a conheceres. Conversamos depois, temos muito tempo.

Pitnochie não era como a casa do juiz de Encruzilhada do Rabequista, era mais escura, mais tranqüila, mais sombria. As pessoas receberam-nos bem. A governanta, uma mulher grande, severa, mostrou a Eile um pequeno quarto para ela e para Saraid. O cozinheiro levou-lhes sopa, pão e prometeu uns pastéis em forma de gato para a pequena. Drustan traduziu tudo na sua voz suave, educada. O cão olhava para todos, calmamente alerto. Eile, porém, sentia-se gelada, como se houvesse um muro entre ela e os restantes. Ali não tinha Líobhan, sempre com sorrisos e palavras quentes, que a aceitara instantaneamente como igual sem necessidade de perguntas. Ali não tinha Phadraig para seduzir Saraid com a sua bondade. Saraid estava cansada e assustada. A pequena sentou-se entre Faolan e Eile num banco, pôs-se a chupar o dedo e não tocou na comida apesar de não comer nada desde manhã cedo. Eile via perfeitamente o olhar perdido no seu rosto.

Drustan fazia os possíveis, era evidente; traduzia para gaélico o que as pessoas diziam, mas estava preocupado e não era o único. Eile nunca vira uma máscara tão tensa nas feições de Faolan. A jovem deduziu que o assassino contava os momentos que lhe faltavam para ver Ana. E Drustan estava preocupado com a mulher.

A determinado momento, durante a refeição, Faolan fez uma pergunta a Drustan na língua Priteni e os dois iniciaram um diálogo rápido do qual Eile só percebeu algumas palavras ocasionais da lista que Faolan lhe ensinara: Rei, perigo, percurso a cavalo. E nomes: Bridei, Broichan, Carnach, Colm. A jovem olhou para a sua malga vazia, perguntando a si própria se conseguiria algum dia aprender suficientemente bem a língua. Sem ela sentia-se totalmente excluída.

— Eile — disse Faolan, parando a meio — desculpa. Drustan e eu precisamos de trocar informações rapidamente: política. Por mais fluente que ele seja em gaélico, seria difícil com este tipo de conversação. Tenho estado a tentar descobrir o que ele sabe sobre os negócios na corte, o que se passa para lá dela e a dizer-lhe que fizemos a travessia com os missionários cristãos que vão a caminho de Dunadd. Se falar de ti, fá-lo-ei em gaélico, prometo. Drustan diz que vai ver se Ana está acordada e perguntar-lhe se nos pode receber.

— Obrigada. Saraid também pode ir? Penso que ela está preocupada. Demasiadas mudanças. — As palavras dele tinham-na tranqüilizado até certo ponto. Eile pensou, não pela primeira vez, na espécie de homem que Faolan era e como ele parecia ser capaz de lhe ler o estado de espírito. Melhor do que ela queria, por vezes.

— Saraid é neta de Deord — disse Faolan. — Ana vai querer conhecer ambas.

Foram chamados logo a seguir. Ana estava deitada; a perda devia ter sido muito recente. Quando estava bem, pensou Eile, devia ser encantadora, como a dama de uma heróica história antiga: cabelos cor de trigo esplêndidos, grandes olhos cinzentos, pele pálida, perfeita. Naquele momento tinha sombras por baixo dos olhos muito sérios e era evidente que estivera a derramar lágrimas amargas. Eile roubou um olhar a Faolan. O assassino deixara cair a máscara. Havia uma expressão nova no seu rosto, uma expressão de amor, desejo e dor. Ao vê-la, a jovem sentiu uma sensação curiosa no peito; não sabia ao certo o que era mais forte: se o desejo de que as coisas melhorassem para ele, se o reconhecimento de que, estranhamente, partilhava a sua infelicidade.

— Faolan! — A voz de Ana era baixa e quente. A jovem continuou na língua Priteni, fazendo-lhe sinal para que ele se sentasse a seu lado na beira da cama e apertou a mão do assassino nas suas; os laços entre os dois eram evidentes. Seria demasiado esperar que Ana também falasse gaélico.

Durante uns momentos, pareceu a todos que os dois estavam sozinhos no quarto. As suas vozes, baixas, íntimas, diziam tudo a Eile, sem necessidade de quaisquer palavras. Drustan, que não parecia nada perturbado, sentou-se um pouco afastado, descontraído, tranqüilo.

— São velhos amigos — murmurou ele para Eile. — Passaram juntos por tempos muito difíceis. Gostamos muito de Faolan. — Em seguida, virando-se para a criança, disse: — Saraid? Já viste o que eu tenho neste saco?

Saraid recuou, desconfiada.

— Já viste — continuou ele — como este jogo tem homens e mulheres pequeninos, animais, árvores e outras coisas? Andam neste tabuleiro com quadrados.

Saraid abriu muito os olhos quando ele começou a abrir o tabuleiro de jogo, mas não se mexeu.

— Vou pô-los em cima desta mesa pequena — disse Drustan. — Podes pegar neles, se quiseres; pertenciam a um ancião que vivia aqui. Também são muito velhos, velhos e preciosos. Só os visitantes especiais como tu é que podem brincar com eles.

— Drustan! — chamou Ana da cama, dizendo a seguir qualquer coisa com a palavra Eile no meio.

— Ana só conhece algumas palavras de gaélico — disse Drustan. — Eu traduzo, ou Faolan. Ana dá-te as boas-vindas a Pitnochie, a ti e à tua filha. Disse-lhe que Saraid gosta de gatos e ela disse que encontras muitos no celeiro. Os filhos do quinteiro mostram-te onde estão.

— Obrigada. Saraid é muito tímida; tem visto muitas mudanças. E nós não falamos a língua. Eu estou a tentar aprender. Faolan tem-me ensinado.

Ana sorriu quando o marido traduziu.

— Por favor, diz a Ana que lamento muito que ela tenha perdido o bebê. É uma coisa muito triste. Ela vai ter mais, tenho a certeza, mas não compensa o que perdeu demasiado cedo.

Drustan traduziu. Faolan olhava para Eile com curiosidade, como se as suas palavras o surpreendessem. Ana agradeceu com um aceno de cabeça e os seus olhos eram quentes.

— Bridei pediu que Ana e eu fôssemos a Monte Branco — disse Drustan. — Na ocasião ele não sabia da doença de Ana e nós não tencionamos torná-la pública. Vamos dizer aos nossos amigos e, claro, as pessoas de Pitnochie já sabem. Não é preciso mais ninguém saber.

Faolan traduziu para Ana e voltou a traduzir a sua resposta.

— Ana diz que está muito melhor e que está pronta para partir para a corte dentro de uma semana, mais ou menos. É melhor ela não ir a cavalo. Por barco a viagem é curta. Ela sugere que tu e Saraid viajem com ela e Drustan. Será muito mais confortável do que ir a cavalo.

Mais mudanças, pensou Eile. Talvez o resto da sua vida fosse sempre assim. Talvez nunca viesse a ter um lar. Um lar: que significava a palavra, no fim de contas? A cabana cheia de sol das suas recordações desaparecera para sempre; a casa na encosta com o jardim e o gato às riscas era um sonho, um disparate invocado devido à solidão e a uma esperança desesperada. Um lar era uma casa como a de Líobhan, um lugar cheio de calor e amor, o ninho de uma família. Provavelmente, aquela casa de Pitnochie era igual para os que viviam mesmo nela. Eile perguntou a si própria se ela e Saraid pertenceriam realmente, um dia, a um sítio qualquer.

— Está planeada uma grande celebração para Monte Branco, em breve, na qual será reconhecida a contribuição dos chefes-de-guerra de Bridei para a vitória do Outono passado sobre os Celtas — disse Drustan. — O Rei não a pode evitar, se bem que os rumores sobre Carnach e uma provável rebelião, para não falar da ausência estranha de Broichan, o façam lamentar ter de fazer discursos, dar presentes e ter de entreter um grande número de convidados. O que acabas de nos dizer sobre a chegada do bando de cristãos de Colm só aumenta as complicações. A situação está muito volátil.

— Perturbadora, sim — disse Faolan de modo ausente. Eile achou que ele estava a pensar rapidamente.

— Ana e eu queríamos que Broichan nos casasse no princípio da Primavera. Tínhamos planeado partir para o norte logo a seguir — disse Drustan — mas Broichan desapareceu e a Primavera está quase a acabar. Bridei sugere que o nosso casamento faça parte das festividades. Soubemos que a irmã de Ana está na corte com Keother, Rei das Ilhas Pequenas. Ana não vê Breda desde pequena. Partimos assim que ela puder viajar em segurança. Quanto à viagem para o norte, terá de ser adiada. Ana não pode ir enquanto não estiver totalmente recuperada.

— Eu estou bem — protestou Ana quando a tradução foi feita. — Temos de ir, Drustan. Quanto mais protelarmos, mas difíceis estarão as coisas em Briar Wood. Além disso estou morta por ver Breda. Ela só tinha sete anos quando eu saí de casa. Deve estar uma bela rapariga.

— Sabes — disse Drustan, virando-se para Eile — nós deixamos as terras do meu irmão em circunstâncias complicadas. Há lá gente que acha que eu sou maluco e perigoso. Agora que o meu irmão morreu, tenho de reclamar aquelas terras e provar que sou capaz de as governar.

Eile pensou que Drustan era a espécie de pessoa que devia ser instantaneamente reconhecida como mais do que competente, mas não podia dizê-lo em voz alta; era evidente que um homem como ele não queria saber da opinião de uma rapariga como ela.

— Faolan? — tentou ela. — Vais ter de seguir imediatamente, não vais? Vais ter de ir a cavalo porque o barco já deve ter partido. Não podes esperar sete dias.

Faolan sorriu; parecia triste e terrivelmente cansado.

— Sim, parto assim que for possível. Drustan e Ana são meus amigos, Eile; ficas bem com eles. Estes sete dias em Pitnochie vão dar-te a possibilidade, a ti e a Saraid, de descansar como deve ser. — Parecia que estava a tentar convencer-se a si próprio, como se não estivesse à espera que acreditassem nele.

— Claro — disse a jovem. Queixo para cima, costas direitas; não o deixaria perceber que tinha o estômago às voltas só de pensar que ia ficar ali, onde só o majestoso Drustan sabia a língua que ela compreendia. Não lhe diria que desejava ardentemente que ficasse. Não esperes nada, lembrou ela a si própria. Torna a vida muito mais fácil. — Nós ficamos bem, não ficamos, Saraid?

Saraid, com a boneca debaixo do braço, estudava as peças do jogo que Drustan deixara em cima da pequena mesa. Até então não se atrevera a tocar-lhes. A pequenina olhou para Eile e disse na sua voz fininha, uma resposta automática a uma pergunta cujas implicações não compreendera por completo:

— Sim.

— Podemos procurar gatos, comer boas coisas e animar a Ana.

— Hum — disse Saraid com os olhos cheios de dúvidas.

Um dia, pensou Eile, um dia poderei dizer-lhe: listamos mesmo em casa, e será verdade. Um dia poderei dizer-lhe: Esta é a nossa casa, este é o nosso gato e este é o jardim onde vamos plantar rosmaninho, alfazema e coisas boas para comer. Isto não pode continuar assim para sempre. Não deixo.

— Não ficas nada bem. — Faolan estava a escrutinar-lhe o rosto. — Estás preocupada. Falamos mais tarde.

— Não sejas estúpido. Tens de ir. Eu compreendo. Não é preciso falar de coisa nenhuma. — A jovem tentava parecer serena.

— De qualquer maneira só parto amanhã de manhã. Se tu e Saraid pudessem acompanhar-me, levava-vos.

Ah sim’?

— Esquece, Faolan — disse Eile. — Faz o que tens a fazer. Se te tivesses dado ao trabalho de me conhecer melhor, saberias que eu sei olhar por mim. E por ela.

— Mais tarde.

Drustan assistira à troca de palavras com a mesma expressão de surpresa que lhe vira antes, na floresta; traduzi-las-ia mais tarde à mulher, sem dúvida. Não, mulher não; parecia que aquela gente bem-nascida não estava casada quando fizera um filho destinado a perecer antes de nascer. Aliás, a irregularidade da situação não parecia perturbá-los, eram muito abertos. Tinha de perguntar a Faolan porquê e por que razão os seus amigos continuavam a olhar para ele como se as suas palavras e atos fossem espantosos. Tinha de perguntar... Não, não perguntaria nada. No dia seguinte Faolan ia-se embora. Provavelmente estaria longe numa missão qualquer quando ela chegasse a Monte Branco. Era ótimo para ele, Drustan e Ana poderem escoltá-la o resto da viagem, aliviava o assassino e espião do Rei de uma responsabilidade embaraçosa. Quanto a si própria, tinha de se habituar a olhar outra vez por si própria.

— Mudaste — disse suavemente Ana, fixando os olhos escuros do amigo, sentado na beira da sua cama. Drustan convencera Eile e a criança a aventurarem-se num passeio com Nuvem, à procura de gatos. — Aconteceu qualquer coisa naquela viagem e eu acho que foi pelo melhor — Ana não fez qualquer comentário ao fato de ele não ter regressado sozinho; não lhe perguntou se tinha visto a família ou fosse o que fosse. Se ele lhe quisesse dizer, diria. Em relação ao que havia entre os dois, era melhor não dizer nada, a não ser que ele aflorasse o tema. Já tinha sido infligida dor a mais.

— Hum — murmurou Faolan. — Fiz o que me pediste: fui a casa e enfrentei tudo. Não te vou contar a história toda, mas recebi o perdão do meu pai. Subestimei a força da minha família, Ana. Houve perdas dolorosas e o problema não está inteiramente resolvido, mas estão todos bem, melhor do que eu imaginava.

— Sentiste-te tentado a ficar? A deixar Fortriu para trás? Faolan abanou a cabeça.

— Eu tinha uma missão. Além do mais, Eile e eu estávamos metidos em sarilhos. Tivemos de continuar.

O seu tom de voz proibia mais perguntas sobre o assunto.

— Ela parece mesmo filha de Deord — disse Ana, sorrindo. — Por baixo daquele exterior frágil, vejo qualquer coisa... audácia. Quem me dera falar gaélico como deve ser. Gostava tanto de ter uma conversa a sério com ela. Se ela ficar cá algum tempo, Drustan pode ajudá-la na língua Priteni. Ela vai precisar, aconteça o que acontecer. E ele podia fazê-lo como uma diversão; este tempo inclemente restringe-lhe os vôos.

Faolan observou-a por uns momentos com uma expressão zombeteira.

— Tu aceitaste, não aceitaste? — perguntou ele. — A diferença, a estranheza, duvido que penses, até, em como tal coisa o marca. Drustan é um homem de sorte.

Ana sentiu o rubor subir-lhe às faces.

— Eu sei que ele se sente vulnerável na presença de homens poderosos, ou preconceituosos — disse ela. — É por isso que esperávamos evitar a corte. Mas temos de ir; quero ver a minha irmã e podemos perfeitamente casar enquanto estivermos lá. A longo prazo, penso que vamos para Vale dos Sonhos. É mais seguro lá e o sítio é bom para crianças. — Ana não conseguiu evitar que a voz lhe quebrasse. Parecera-lhe tão real a imagem de Drustan a caminhar pela floresta com uma criança em chamas nos braços, dela própria a cantar as velhas canções das ilhas para embalar um bebê minúsculo. Assim que soubera que estava à espera de um filho, começara a fazer roupas de bebê, pequenos vestidos macios com pássaros bordados. Só no dia anterior os pusera de lado, no fundo de uma arca de carvalho.

— Lamento tanto — disse Faolan com voz tensa. — Tanto, Ana. Desejo que tu e Drustan sejam felizes. Acredita. Espero que Eile tenha razão, que possas ter outro filho.

— Acredito, querido amigo. Faolan? — Ana hesitou, pensando se arriscaria pôr em palavras o mais delicado dos assuntos.

— O que é?

— Isto está a ser diferente. Tu e eu, a conversar. Não está a ser tão difícil como em Monte Branco, antes de te ires embora.

A voz dele transformou-se quase num murmúrio.

— Se me estás a perguntar se os meus sentimentos por ti mudaram, não te posso dizer que já não te amo. Porém, neste momento a natureza do meu amor é diferente. Não posso explicar exatamente porquê. Aconteceu muita coisa durante o Inverno, coisas que me podiam ter despedaçado o coração. Estive a um passo de acabar tudo, Ana. Digo-o na condição de não dizeres a ninguém, nem sequer a Drustan. Quando um homem se deixa cair como eu no desespero e sobrevive, o único caminho é para cima. No Outono passado disse-te que me sentia feliz por ti, por teres encontrado o amor com Drustan. Na ocasião, creio que foram só palavras. Neste momento sinto-o no meu coração, digo-o consciente de que posso continuar em frente, em busca do meu próprio caminho e de que continuo a ser teu amigo e amigo de Drustan. Passamos por muita coisa juntos. Isso não mudará nunca.

— Eile sabe? — perguntou Ana. — Que quase te mataste?

Os lábios de Faolan abriram-se num sorriso doce, uma expressão que ela não acreditava poder ver um dia.

— Oh sim — disse ele. — Podes ter a certeza que sim.

Mais tarde, após um jantar caloroso durante o qual nem Eile nem Saraid comeram muito e depois de a pequena ter dito que queria dormir, inconsolável e incapaz de explicar precisamente porquê, Faolan bateu à porta da jovem.

Não acordes, pensou Eile, pensando na criança. As horas anteriores tinham sido angustiantes e tudo o que queria era meter-se debaixo dos cobertores e deixar sair as lágrimas que se tinham acumulado enquanto tentava consolar, sem sucesso, a mágoa da filha.

— Sou eu — disse a voz de Faolan. — Saraid está a dormir? Preciso de falar contigo.

Eile abriu uma frincha da porta.

— Acabou agora de adormecer; estava nervosa; não parava de chorar. Vou ficar aqui para o caso de ela acordar.

— Está bem, falamos aí dentro, se me deixares entrar.

— Não me parece.

O assassino olhou diretamente para ela.

— Se não me engano, disseste não há muito tempo que confiavas mais ou menos em mim — disse ele. — Ou falamos aí dentro ou aqui no corredor, onde está frio e onde nos podem ouvir.

— Não é necessária conversa nenhuma. Tu vais e nós ficamos. Mais nada. Boa noite.

A jovem fez menção de fechar a porta e Faolan enfiou subitamente o pé na frincha.

— Sabes perfeitamente que não é isso. Por favor, Eile. Deixa-me entrar por um momento apenas. Não pensas, certamente que eu...?

— De fato, não. Vi o olhar no teu rosto quando fiz aquela sugestão mal pensada.

— Por favor. Não demoro muito.

— Se a acordas, sou capaz de te bater. Ela estava tão nervosa que eu quase chorei com ela. — Eile abriu a porta e foi sentar-se na cama com a mão em cima do corpo da criança. Faolan encostou-se à parede de pedra. Eile reparou que ele deixara a porta ligeiramente aberta.

— É para proteger a tua reputação? — perguntou ela com um; careta.

— Não — disse Faolan. — É para evitar que te sintas encurralada. A jovem não replicou. Então, abruptamente, as palavras saíram-lhe sem que as pudesse deter.

— Isto seria tudo mais fácil se tu não fosses tão bom para nós — disse ela.

— Bom? Eu? Estás a pensar no homem errado.

— Tu compreendes as coisas sem que tas digam. Estava a começar a habituar-me. — E não me posso dar ao luxo de fazê-lo porque mais tarde ou mais cedo tu vais-te embora para sempre.

— São só sete dias. — A voz de Faolan soava um pouco estranha. — E eu tenho de ir, Eile. Pensei que compreendias.

— E compreendo — disse ela, sentindo a angústia a apoderar-se novamente dela. — Tu tens de ganhar a vida e o teu ofício é esse O tempo todo. Uma missão a seguir à outra. Tens sempre de ir a um sítio qualquer, estás sempre a fazer qualquer coisa importante.

— Que estás a dizer? Achas que eu estou a fugir? — perguntou ele um momento depois.

O coração da jovem deu um salto; estivera a pensar apenas em s; própria e em Saraid. Eile olhou para ele, apercebendo-se da dor que ia na alma do assassino e recordou a si própria que Ana estava naquela casa. Ana, que lhe era tão querida, Ana, que deixara de ser sua.

— Não — disse ela. — Talvez o tenhas feito no passado, mas regressaste a Encruzilhada do Rabequista, não regressaste?

— Se tivesse dependido apenas de mim, teria ido para o norte. Só parei de fugir, só fui ver a minha família por tua causa. Tua e de Saraid.

— Grande ajuda que nós fomos. Foste preso por nossa causa e ficaste sem dinheiro e agora estamos a atrasar-te quando tens coisas importantes a tratar. É melhor seguires o teu caminho, ou eu ainda começo a sentir-me mesmo mal.

Faolan não disse nada, mas o seu olhar tornou-se mais quente.

— Pareces cansado — disse Eile, olhando para ele com atenção.

— Não preciso de dormir muito. — Os seus olhos tornaram-se outra vez mais tristes.

— Disparate. Estás exausto. Vai descansar um pouco. Faolan estava preocupado, estava a pensar em qualquer coisa.

— Lamento muito o que aconteceu a Ana — acrescentou Eile, tentando adivinhar. — Ela parece ser tão simpática. Deves estar preocupado com ele.

— Hum — disse ele, algo ausente. — Tenciono partir de madrugada. Dizes a Saraid que eu disse adeus e que estarei em Monte Branco quando chegares lá? Ou vou só depois de ela acordar?

Eile desviou o olhar para que ele não lhe visse as lágrimas.

— Eu digo-lhe — disse ela. — Espero que ela durma até tarde para compensar. Importas-te de ir agora, por favor?

Seguiu-se um silêncio. Então, ele disse:

— Não te esqueças de falar com Drustan a propósito do teu pai. Ele tem muita coisa para te dizer. E melhor não guardares para quando estiveres em Monte Branco. Ele não se sente à vontade lá. Tal como tu, não gosta de multidões.

— Está bem.

— Não te preocupes com a língua, Eile. Deord falava perfeitamente as duas línguas. Tu também há de falar, com o tempo. Lamento se te sentes infeliz. Na viagem para cá, naquele barco ordinário com a sua tripulação heterogênea de monges, pensei que te estavas a divertir. Vi no teu rosto um olhar que nunca tinha visto antes: confiante e feliz. Quem me dera...

— Faolan, por favor vai-te embora. Quero dormir.

Uma pausa.

— Boa noite, Eile. Até daqui a sete dias — disse ele em voz baixa.

— O meu pai era marinheiro — sentiu-se ela obrigada a dizer. — Talvez eu seja como ele. A única diferença é que eu acho que as viagens devem acabar todas em casa. É difícil quando não sabemos onde a nossa casa é.

— Não és a única. Dorme bem. Não te esqueças de dizer a Saraid...

— Eu digo-lhe. Boa noite, Faolan. Boa viagem.

Eile ouviu a porta a fechar-se suavemente. Faolan não queria acordar a criança e ela sentiu que, afinal de contas, não ia chorar. A jovem cobriu o corpo da filha com um braço, fechou os olhos e imaginou a casa na encosta. Viu o gato às riscas e os canteiros com as ervas e as flores ao sol. Alguém cantava e Saraid ria. Era sempre Verão naquela casa.

Em Monte Branco, os homens eram todos demasiado velhos ou demasiado novos, demasiado despretensiosos ou demasiado enfadonhos. O tédio estava a enlouquecer Breda. Keother não trouxera consigo nenhum dos seus acompanhantes preferidos. Era como se o seu primo tivesse deixado deliberadamente nas Ilhas Pequenas o mais do-nairoso dos palafreneiros de Breda, o seu guarda-costas mais musculoso, o seu músico mais espirituoso. Que queria ele que ela fizesse? Que passasse o tempo a coser e a praticar boas maneiras à mesa? Imaginaria ele que havia satisfação em fazer tais coisas?

Talvez, pensou a princesa das Ilhas Pequenas com o queixo apoiado nas mãos no alto da muralha de Monte Branco, olhando para norte, aquela visita havia tanto prometida fosse, de fato, um castigo. Talvez, quando o conselheiro intrometido de Keother a apanhara no estábulo com Evard, a fazer mais qualquer coisa para além de tratar dos cavalos, lhe tivesse ido dizer qualquer coisa. O Rei não lhe dissera nada e o conselheiro também não. No entanto, Evard não fizera a viagem até Monte Branco apesar de ser o palafreneiro-chefe. Parecia que o seu primo lhe escolhera apenas homens velhos ou feios.

Deuses, se as coisas continuassem daquela maneira, tornar-se-iam em breve intoleráveis. Não havia absolutamente nada para fazer. As criadas andavam maldispostas, estavam sempre a discutir umas com as outras e ela não tinha com quem falar. Se aquela era a vida excitante que Keother lhe prometera na corte de Fortriu, bem podia limpar as mãos à parede. Aquela gente não sabia divertir-se.

Breda percorreu o caminho de ronda, levantando as saias para evitar os detritos varridos pelos ventos ferozes de Fortriu e tendo o cuidado de mostrar os tornozelos. Os guardas de sentinela mantinham os olhos fixos na encosta por baixo da muralha. Alguém lhes dissera qualquer coisa. A jovem culpava a Rainha, aquela mulher esquisita de pele pálida e olhos estranhos. Na verdade não era uma mulher, era outra coisa qualquer. Quanto às crianças, eram francamente inquietantes. Havia uma estranheza misteriosa no rapaz que a fazia sentir-se insegura e o bebê parecia uma coisa que devia ter sido afogada à nascença; algo que saíra mal e que não devia viver. Breda não percebia como as pessoas toleravam tanta excentricidade. Numa herdade, se um cordeiro, um cabrito ou um vitelo nasciam com uma deformidade, eram abatidos. Era a única coisa prática a fazer. Na verdade era um ato de misericórdia, eliminava complicações futuras. O bebê real podia ser bonito de uma maneira bizarra, como a mãe, mas era... errado.

Breda suspirou. Se não acontecesse nada de interessante em breve, teria de arranjar qualquer coisa. Tinha o casamento de Ana, claro, mas era difícil excitar-se com tal coisa. A princesa lembrava-se vagamente da irmã; costumavam fazer coisas juntas: passear na praia, cantar, bordar. A tia que as educara nunca castigava Ana. Ana era a menina bonita. As palmas das mãos de Breda tinham ficado marcadas devido às vergastadas, mas as de Ana tinham ficado suaves e brancas. Os castigos da tia eram imaginativos: queimava-lhe os brinquedos favoritos e fechava-a no depósito da lenha, onde andavam uns grandes escaravelhos pelos cantos; dava-lhe tareias, queimava-a, tirava-lhe coisas bonitas, como as fitas e os sapatos de que ela tanto gostava; bania-lhe as companheiras de brincadeiras. Ana comportava-se bem, conseguia sempre evitar a crueldade da tia. Então, com a idade de dez anos, fora para Fortriu e nunca mais regressara. Era como se Ana nunca tivesse deixado de bordar e tocar. O tipo com quem ela ia casar devia ser mais um chefe-de-guerra de meia-idade, como tantos outros naquela corte. Onde estavam os guerreiros? Onde estavam os que arriscavam a vida? Bastava-lhe um que fosse um homem a sério, que lho pudesse provar!

O guarda do Rei, o mais novo, Dovran, era um belo espécime: ombros largos, pernas compridas, abundantes cabelos castanhos. Até então mal conseguira que ele olhasse para ela, mas estava a tratar do assunto. O outro, Garth, era casado e tinha filhos. Em si não era um obstáculo, mas era demasiado velho; devia andar pelos quarenta. E aqueles dois rapazes, com a sua ânsia de agradar, eram demasiado novos. Eram bons como novidade, para um encontro rápido, provavelmente demasiado rápido. Bedo era o mais velho. O fato de já ter pensado seriamente nele mostrava como as coisas estavam a ficar desesperadas. Mas Bedo desapontara-a. Desde o pequeno episódio do bebê, deixara de a perseguir. De fato, encontrara-o várias vezes a conversar, muito sorridente, com Cella, a sua acompanhante. Cella! Com ela ali, como era possível alguém olhar para Cella? Cella não era ninguém, era uma simplória, chata, ordinária. Cella não devia namoriscar com o filho de um chefe-de-guerra, um rapaz cuja mãe fora uma princesa. Era completamente impróprio. A rapariga tinha de ser castigada, mas não da maneira habitual; era preciso uma coisa mais divertida. Seria engraçado decidir exatamente o quê.

Breda sorriu. A vida na corte não precisava de ser tão aborrecida. O que era preciso era iniciativa e um toque de imaginação. E coisas. Essas havia-as por toda a parte. Havia de pensar numa coisa qualquer.

Sete dias sem Faolan tinham-lhe parecido muito tempo, mas passaram rapidamente. Drustan e Ana contaram-lhe a história do seu pai, bem longa, bem mais do que ela esperava. Passaram os três muitas horas a conversar, primeiro no quarto de Ana e depois à lareira, na sala, onde foram deixados em paz pelos criados de Broichan, gente cortês, discreta, bem-educada.

Eile ansiava por se tornar útil. Não lhe parecia apropriado ficar horas sentada com um chefe-de-guerra e uma dama que Faolan dissera ser uma princesa. Devia ajudar Mara a lavar lençóis ou a esfregar potes na cozinha. Não havia necessidade de uma língua comum para tais tarefas e uma vez até apanhara a governanta a olhar para ela, como que a sugerir que fizesse qualquer coisa em vez de passar o tempo sentada. Porém, Drustan e Ana tinham tornado claro, sem precisarem de o dizer, que ela era sua convidada, uma amiga, e que devia passar o tempo de acordo com tal estatuto. No entanto parecia-lhe estranho, errado.

À medida que os dias passavam, os três, com Saraid, davam pequenos passeios pela herdade e pelos bosques para que Ana recuperasse as forças. Drustan amparava-a e contava ao mesmo tempo a sua história à jovem.

Os filhos do quinteiro eram todos muito mais velhos do que Saraid e Brenna, a sua mulher, era uma boa alma, mas estavam sempre rodos muito ocupados e Saraid andava confusa com tanta atividade. Quando o tempo estava mau, a pequena brincava cuidadosamente com as peças de jogo que Drustan lhe emprestara. Ferat, o cozinheiro, levou-a uma ou duas vezes até à cozinha para fazer coelhos, gatos ou homenzinhos de massa de pão, coisas que ele parecia fazer com freqüência. A pequena fez amizade com o grande cão, o qual parecia gostar de crianças.

No exterior, Ana e Drustan acertavam o passo pelo da criança e falavam-lhe calmamente. A pequena caminhava ao lado de Eile, fazendo ocasionais Correrias para investigar cogumelos, ouriços-cacheiros ou pedras com padrões interessantes. Enquanto Nuvem, o cão, se mantinha sempre perto de Ana, os dois pássaros de Drustan seguiam Saraid e Eile sentia que, de certo modo, os dois animais protegiam a sua filha.

À medida que os dias passavam, Eile tomava conhecimento da força de Deord, do seu heroísmo, descobria que o seu pai, meio destruído pelo tempo passado na prisão, se transformara num carcereiro humano e compassivo e começava a imaginá-lo de maneira diferente porque o que Drustan lhe dizia não sugeria um homem que preferira esquecer a família. Deord não era um homem cuja experiência difícil lhe tivesse apagado do coração a capacidade de amar.

— Pergunto a mim mesma por que razão ele nunca falou de nós — disse ela a Drustan. — Ele amava-nos. Lembro-me perfeitamente e isso não desaparece assim. Mesmo depois de Pedra-que-Quebra, quando veio para casa muito triste, chamava-me pequena chama, luz brilhante, por causa do meu cabelo ruivo. Pelo menos era o que eu pensava. Talvez significasse mais qualquer coisa. Ele amava a minha mãe, era carinhoso com ela, mesmo então; costumava acordar a chorar, tinha pesadelos terríveis. Lembro-me de me esconder por baixo dos cobertores e ouvi-lo na mesma. Também ouvia a minha mãe a cantar-lhe para ele voltar a adormecer, como se estivesse a embalar um bebê. — Eile limpou as lágrimas que lhe corriam pelas faces. — Gostava tanto que ele tivesse ficado. Mas tu terias ficado com outro guarda e não terias sido salvo.

Drustan acenou solenemente com a cabeça.

— Sem Deord, teria enlouquecido. Não sei se Faolan te disse, mas... tenho uma razão especial para não conseguir tolerar a prisão. Eu tenho a capacidade de mudar de forma, de me transformar num pássaro. Os pássaros, de certo modo, fazem parte de mim — disse ele, apontando para o corvo e para a outra ave, um trinca-nozes, segundo ele dissera, à procura de comida no solo, perto de Saraid, a qual mostrava uns escaravelhos a Lamento. Ao mesmo tempo é uma dádiva e uma maldição. Foi através desta estranheza que o meu irmão me acusou de um crime que não cometi e me colocou o rótulo de louco. Ana e eu vamos ter de nos confrontar com essa sombra quando regressarmos ao norte.

— Tu és a pessoa menos louca que alguma vez conheci — disse Eile. — A parte Faolan, quer dizer.

Ana sorriu quando o noivo lhe traduziu as palavras da jovem. A jovem princesa falava ternamente dele. A luz do Sol, filtrada pela copa das árvores, tocava-lhe nos cabelos dourados, dando-lhe um brilho quase mágico. A sua voz era baixa e gentil e os seus olhos cinzentos eram de uma calma profunda. Eile desejava poder falar com ela diretamente, sem a necessidade de um tradutor. Ana era de sangue real e assustadoramente bela, mas havia uma realidade, havia nela uma autenticidade e uma honestidade que sugeriam que poderiam ser amigas. Já compreendia por que razão Faolan a amava; quem não amaria?

— Ana diz que não pareces surpreendida com o que eu te disse. Algumas pessoas acham este meu dom perturbador — disse Drustan.

— Pelo fato de conseguires mudar de forma? Eu acho que é maravilhoso. Que me dera poder voar. Nem consigo imaginar uma liberdade assim.

Ana disse qualquer coisa e o tom da sua voz alertou Eile para uma mudança na conversa, para além de a ter ouvido mencionar o seu nome.

— O que é? — perguntou ela com voz cortante.

— Ana diz que chegou a altura de fazer uma proposta, Eile, e eu concordo. Perguntamos a nós próprios se já pensaste no teu futuro.

— Que pergunta é essa? Eu tenho uma filha de três anos. É evidente que já pensei no futuro.

— E qual é o caminho que vês para ti e para Saraid depois de Monte Branco?

— Depois... — Eile sentiu um arrepio, o frio familiar da mudança. — Não sei. Teria de falar com Faolan.

Drustan e Ana trocaram um olhar.

— O que é? — perguntou a jovem, consciente de qualquer coisa, algo de que não ia gostar.

— Eile — disse Drustan — se quisesses ir conosco, Ana e eu gostaríamos muito de te levar. Tu és filha de Deord e nós temos o maior respeito por ele. Tu e Saraid podiam viver permanentemente conosco em Vale dos Sonhos, um local remoto e muito belo, na costa oeste. É um lugar ótimo para uma criança crescer. Calmo, seguro, cheio de gente boa. O meu irmão alterou-o um pouco com os seus barcos e os seus guerreiros, mas eu vou devolver-lhe a paz que já teve. Ana e eu decidimos fazer a viagem pelos lagos e subir a costa até Vale dos Sonhos. Primeiro instalamo-nos e só depois é que tomarei posse dos territórios que eram do meu irmão. Gostaríamos que fosses conosco. Ana gostaria da tua companhia e eu Sentir-me-ia muito honrado por poder pagar a dívida que tenho para com o teu pai.

— Oh. — Eile não estava à espera daquilo, mesmo depois de Faolan se ter referido uma ou duas vezes a uma coisa do gênero. — É muita amabilidade da vossa parte. Nem sequer me conheceis. — Os sentimentos atropelavam-se, confusos. Algum tempo antes não passaria de um sonho maravilhoso tornado realidade: segurança, fim das mudanças arbitrárias, gente amigável, fim da luta desesperada para manter a filha alimentada, quente e segura. Um futuro: um futuro . sério. A jovem sabia que aquela gente era boa; eram amigos de Faolan, não eram? Todos os argumentos sensatos apontavam para o sim. No entanto havia uma parte de si que dizia, instantaneamente e sem qualquer lógica, não e não podia pô-la de parte. — Obrigada — disse ela. — A vossa generosidade é... irresistível, mas não posso.

Drustan e Ana não disseram nada. Era óbvio que esta compreendera, não precisara de tradução. Os dois noivos pareciam tristes, mas não surpreendidos.

— Peço desculpa — disse Eile. — Nem sequer sei dizer porque. Sei perfeitamente que seria bom para Saraid, mas sei que não posso. Falaste em pagar uma dívida. Eu também tenho uma e se me for embora nunca mais a posso pagar. — A jovem sabia que Faolan não estava à espera do dinheiro e recentemente mal pensara na éraic, mas ir-se embora e deixá-lo para trás parecia-lhe profundamente errado.

— Talvez queiras tempo para pensar — sugeriu Drustan. — Nós vamos ficar algum tempo em Monte Branco para que Ana possa desfrutar da companhia da irmã.

— E para o casamento — disse Eile, pensando no que Faolan iria sofrer.

— Isso também, apesar de eu acreditar que vamos desapontar algumas pessoas. Nós tencionamos fazer uma cerimônia pequena e privada. Bridei e Tuala vão compreender. Ana e eu não gostamos de grandes celebrações — replicou ele, traduzindo a seguir uma achega de Ana: — Nós ultrapassamos a necessidade de certos acontecimentos. Além do mais, aos nossos olhos e aos dos deuses, sabemos que já somos marido e mulher.

Eile anuiu, pensando em como os dois eram invulgares e em como era uma pena não os poder conhecer melhor.

— Não preciso de pensar — disse ela, esperando que eles não a achassem ingrata. — Não posso ir.

— Estávamos à espera que dissesses isso — disse Drustan, traduzindo as palavras de Ana, sorridente. Então, esta disse-lhe algo e o seu sorriso desvaneceu-se. Parecia haver uma disputa entre os dois. Eile ouviu Ana pronunciar o nome de Faolan.

— Diz-me uma coisa — disse ela. — E Faolan? Ele falou da possibilidade de Saraid e eu ficarmos com alguns amigos dele. Talvez fosse a Fia quem ele se estava a referir.

Estavam os dois a olhar para ela. Eile não sabia ao certo o significado das suas expressões. Estavam com pena dela? Não queriam preocupá-la? Não sabiam o que lhe dizer ao certo? Sentindo um nó no estômago, a jovem olhou para Saraid para ter a certeza de que ela não os estava a ouvir e disse:

— Diz-me o que ele disse, seja o que for.

— É melhor falarmos em casa — disse Drustan. — Ana e eu precisamos de discutir o assunto primeiro.

— Agora, Drustan — disse Ana em gaélico.

— Muito bem. Eile, Faolan pediu-nos que assumíssemos o papel de teus guardiães. Ele queria que te levássemos para o norte conosco, obrigou-nos quase a prometer-lhe que o faríamos. Ele está muito preocupado com o teu bem-estar.

Por momentos, Eile não conseguiu responder. A jovem disse a si própria que a proposta era perfeitamente razoável; que era muito melhor do que estava à espera e olhou para o chão, desejando agir como Ana faria em circunstâncias semelhantes: como uma dama.

— Obrigada por me dizerdes a verdade — disse ela. A voz saiu-lhe tensa e ferida. — Portanto, dissestes que sim. Uma obrigação para com o meu pai. Faolan fez a sua parte e passou-te a responsabilidade.

— A nossa oferta é genuína, damos-te as boas-vindas a nossa casa, a ti e à tua filha — disse Drustan. — É evidente que nunca conseguiremos pagar totalmente a dívida que temos para com Deord. Porém, assim que te conhecemos e assim que conhecemos as circunstâncias em que estás, decidimos fazer-te a oferta na mesma, quer Faolan nos tivesse pedido, quer não. Nós tínhamos o teu pai em grande consideração. Gostamos de ti e respeitamos-te.

Ana disse algumas palavras, fixando os olhos sérios em Eile. Não havia pena no seu olhar, antes avaliação e Eile gostou mais dele do que do anterior.

— Ana diz que tu supões que nós dissemos que sim a Faolan. De fato não lhe demos nenhuma resposta. Ana disse-lhe que a decisão era inteiramente tua. Se decidisses não ir conosco, respeitaríamos a tua escolha e continuamos a ter a mesma opinião.

— Oh — respondeu Eile, pensando no assunto. Faolan não era homem a quem se dessem ordens. Talvez Ana fosse a exceção.

— Depois de ele partir, Ana e eu discutimos isto durante algum tempo. Ana diz que devemos dizer-te que acreditamos ambos que tomaste a decisão certa.

Ana batia com o pé no chão, frustrada, fazendo gestos, incapaz de encontrar as palavras que queria.

— Ela diz que é aborrecido não poder falar contigo de mulher para mulher, em privado. Eu acredito que ela quer dizer-te qualquer coisa sem que eu esteja a ouvir. Receio que tal tenha de esperar. Não há aqui mais ninguém fluente em gaélico.

Começaram a andar de regresso a casa. Eile sentia-se estranha, como se estivesse a cair e tivesse sido salva por qualquer coisa inesperada; como se tivessem pegado nela e a tivessem posto de novo no caminho, mas um caminho diferente, de certo modo, um caminho que não sabia onde ia dar, mas no qual se sentia melhor.

— Disseste que tornaste conhecimento das minhas circunstâncias — disse ela. — O que é que ele te disse? — Que ele não lhes tivesse falado de Dalach. Ou da éraic. Ou, traiçoeiramente, do pedido que lhe fizera e que ele recusara, dizendo-se muito honrado. Era evidente que decidira livrar-se dela por causa da última hipótese.

— Faolan não falou em pormenores — disse Drustan. — É evidente que eras muito nova quando tiveste a tua filha. Faolan disse-nos que tu e ele tiveram de deixar Erin devido a uma ameaça à tua segurança, disse-nos que a tua mãe morreu, que tinhas passado por um mau bocado e que o tinhas enfrentado com bravura, como seria de esperar de uma filha de Deord. Não nos disse mais nada. Ele acredita que tu e Saraid estarão melhor com uma família, com alguém que te possa oferecer estabilidade. Suponho que ele te disse qual era a sua profissão?

Os lábios de Eile torceram-se.

— Oficialmente é guarda-costas do Rei. Não oficialmente algo mais, mas não quero falar de um assunto que me parece muito sensível, como o do belo rapaz de que ele passa a vida a falar, que eu vou conhecer um dia.

Drustan olhou para ela com um sorriso. Ana tinha-se debruçado para admirar umas flores e Saraid contava-lhe as pétalas.

— Olha, Lamento — dizia a criança — estrelas pequeninas.

— Drustan — disse Eile — por que é que achas que é a escolha certa? Eu nem sequer sei o que vai acontecer em Monte Branco. Não sei falar a língua. Não posso fazer grande coisa, senão olhar por Saraid e fazer o trabalho de uma criada. Para quê darem-se a tanto trabalho só para isso? Quero dizer, ele fez uma promessa, mas havia maneiras mais fáceis de a cumprir.

Drustan traduziu para Ana e a sua resposta foi uma pergunta:

— Importas-te de nos dizer que promessa foi?

— Que ficaria comigo até eu já não precisar mais dele — respondeu a jovem sem conseguir afastar a mágoa da voz. Era evidente que, para Faolan, a promessa não fora a mesma.

Ana disse mais algumas palavras.

— Ela diz — disse Drustan — que é uma pena não poderes perguntar a Faolan se ele acha que precisa de ti. Ser amiga daquele homem é como vigiar uma pessoa perdida num labirinto. As curvas são muitas e complexas. Faolan está rodeado de esquinas sombrias, becos sem saída, truques e armadilhas. Alguns deles são feitos por ele próprio. Se queres ser amigo dele, tens de ficar a seu lado, mesmo quando ele te ordena que o deixes em paz. Não é um caminho fácil, é mais simples despedires-te dele e seguires a tua vida.

Fazia um certo sentido, se bem que algo estranho.

— Ele disse-nos — acrescentou Drustan — que tu não és uma rapariga que escolha o caminho mais fácil.

Tinham testado o druida para além da dor. Tinham-no mantido acordado dia e noite. Os seus olhos viam uma coisa familiar e parecia-lhe estranha. Broichan esquecia-se dos nomes das coisas e os objetos não faziam sentido. O som era efêmero e insignificante, ou imediato e aterrador. O chamamento de um animal da floresta era uma convocação para a morte e o gotejar de um regato o eco do fluir do intelecto, da consciência, de si próprio. O druida era uma pedra a rolar perante a inevitabilidade do rio; era uma pena nas asas do vento; era um ramo de sorveira-brava à espera da chama devoradora. Finalmente, quando os ossos e os tendões já não podiam mais de tão esticados e massacrados, quando os olhos e os ouvidos já não distinguiam as formas e os sons como antes, conscientes apenas de uma continuidade permanente, quando a sua mente emergiu de uma tempestade de Inverno, limpa e nua, continuava a ser um charco parado: um receptáculo para a vontade d’Aquela que Brilha. Estou pronto, disse o druida.

Bridei e Faolan estavam na muralha de Monte Branco com Garth de sentinela a uma distância secreta. O Sol estava a pôr-se sobre o Grande Vale, debruando de rosa e carmesim uma confusão de nuvens. A importância de Faolan no círculo do Rei era tal que Bridei se desculpara perante Keother e outros para se reunir imediata e confidencialmente com o seu guarda-costas recém-chegado.

Os dois homens cumprimentaram-se apenas com um aceno de cabeça. Bridei sabia que não devia abraçar Faolan, apesar de considerá-lo um amigo íntimo. Ambos desejaram um ao outro votos de saúde, o monarca informou-o da chegada recente de Anfreda, Faolan deu-lhe os parabéns e passaram de imediato aos negócios.

As notícias eram preocupantes de ambos os lados. Colmcille já estava nas costas de Dalriada e na opinião de Faolan seguiria em breve para Monte Branco. Carnach conspirava, aparentemente, ou pelo menos tencionava desafiar o Rei. Broichan estava ausente, Keother e a prima estavam na corte. Um malabarista acharia tantas bolas um desafio.

Enquanto Faolan falava, Bridei perguntava a si próprio que perguntas lhe poderia fazer sobre a viagem. Teria ele visto a família? Resolvera o que tinha a revolver? A expressão de Faolan era uma máscara perfeita; os seus olhos escuros não denunciavam nada. Por mais que tivesse acontecido, o seu autocontrole parecia intacto.

— Temos de escolher as nossas prioridades — disse Bridei. — Tu e eu. Vou pedir a Aniel que convoque uma reunião para amanhã. Fola está cá, o que é bom dada a ausência contínua de Broichan. Vamos pôr-lhes o assunto à consideração. Faolan, o meu instinto aponta para uma determinada direção. Quero saber se concordas.

— Antes de dar a minha opinião, diz-me qual é a situação em relação a Broichan. Se os cristãos decidem fazer-te uma visita enquanto esses outros assuntos continuam por resolver, vais precisar do teu druida para lidar com Colm e ele parece que desapareceu sem dizer para onde ia.

— Não sabemos nada dele. Parece que desapareceu de Fortriu por completo. Se não fossem as visões de Tuala, teríamos acreditado que está morto. Ela acredita que ele vai voltar.

— É bom que se apresse — observou secamente Faolan.

— Os instintos de Tuala são bons. Ele há de chegar a tempo, a não ser que os cristãos tenham poderes sobrenaturais de transporte.

— Colm sabe navegar, mas não posso dizer o mesmo dos restantes. Bridei cruzou os braços, encostando-se à muralha.

— Se estivesses no meu lugar, que farias primeiro? — perguntou ele calmamente. — Diz o que te apetecer.

Pela primeira vez, Faolan pareceu hesitar.

— O que é? — perguntou Bridei.

— Nada. Acho que temos pouco tempo, mas talvez tenhamos o suficiente para que o teu druida regresse a Monte Branco antes de Colmcille decidir subir o Vale. Com Keother podemos nós; está aqui, mesmo debaixo dos nossos narizes, o que o deve manter livre de sarilhos. A rapariga, provavelmente, não é importante. Keother sabe que ela pode ser a próxima refém, sabe que esperamos da sua parte o melhor dos comportamentos. Esperemos que se sinta envergonhado por ser o único chefe que não contribuiu para a guerra do Outono passado. Não canceles a tua festa de vitória, ou ofendes os teus chefes-de-guerra e desapontas as suas famílias. Seria um sinal de indecisão. Como não te candidataste à coroa de Circinn, seria visto como uma fraqueza.

— Continua. — Abençoados fossem os deuses por Faolan, pensou Bridei. Não havia ninguém tão astuto ou tão preparado para aconselhar o seu Rei com toda a honestidade. O Rei apercebeu-se novamente de que tivera muitas saudades dele.

— Para mim, a maior ameaça é Carnach — disse Faolan — a que exige ação imediata. Quando ouvi falar pela primeira vez da rebelião, custou-me a acreditar. Carnach, um traidor? Carnach, que conhecemos e respeitamos? Se a decisão está tomada, custou-lhe muito; ele ama Fortriu e eu juraria que a sua lealdade é inabalável, mas dizes-me que também tens ouvido rumores de muitos quadrantes. É preciso descobrir a verdade. Não com uma força de guerreiros, ou com um emissário oficial como Tharan, ou Aniel. Alguém que possa passar despercebido.

As feições do guarda-costas estavam descontraídas, calmas. No entanto havia nele uma tensão que Bridei quase sentia. O silêncio prolongou-se.

— Passa-se alguma coisa?

— Alguma coisa como? Queres dizer para além das questões que acabamos de discutir? — perguntou Faolan, erguendo as sobrancelhas.

Bridei falou cuidadosamente, escolhendo cada palavra. Negociar uma conversa sobre questões pessoais com Faolan exigia uma habilidade que muitas vezes não tinha.

— Reparei que não ofereceste imediatamente os teus serviços. Ambos sabemos que isto exige a tua perícia. Reconheço que acabas de regressar de uma longa ausência, mas o fato de largares uma missão e pegares logo noutra nunca te inibiu.

Faolan não respondeu; olhava para o horizonte como se não tivesse ouvido as palavras do Rei.

— Talvez não saibas — continuou Bridei — que o casamento de Ana e Drustan vai realizar-se em breve, imediatamente antes da festa da vitória. A ausência de Broichan protelou-o. Imagino, pela tua atitude no Outono passado, que não queres estar em Monte Branco na ocasião.

— Já sabia do casamento. Estive com eles em Pitnochie. — A expressão do assassino proibia mais perguntas. — É claro que vou. Queres que parta quando?

— Quero-te aqui amanhã para a reunião — disse Bridei. — Vai ser pequena. Só os homens e as mulheres em quem confio incondicionalmente. Vais precisar de um par de noites para descansar antes de partires. Um dos homens que me trouxe notícias ainda cá está; pode ser que queiras ouvir a história dele.

— Não preciso de descansar. Vou assim que quiseres que vá.

— Muito bem. Agradeço a tua lealdade, Faolan. E a tua honestidade, não tenhas dúvida.

Faolan acenou com a cabeça.

— Tuala gostaria de te ver. — Bridei fez sinal a Garth que iam entrar. — Penso que é importante ouvires o que ela tem a dizer sobre Broichan. A questão do meu druida é significativa, se bem que menos urgente.

— Se quiseres. — A voz de Faolan era tensa.

— Para ser honesto — disse o Rei, escondendo a sua preocupação porque era evidente que havia algo errado, apercebendo-se no entanto que o seu amigo não queria falar — mal posso esperar para te mostrar a minha filha, apesar de saber que não te interessas por crianças. Anfreda é a imagem da minha mulher quando era bebê. — Por um momento, os dois homens foram apenas amigos, nem um era Rei Priteni nem outro guarda celta. — Tu exiges muito a ti próprio — acrescentou Bridei. — Por vezes de mais.

— Faz parte do ofício. Para não me esquecer.

O monarca começou a descer os degraus que iam dar ao jardim. Já quase no fundo, ouviu a voz de Faolan atrás de si, num tom bastante diferente.

— Bridei...?

Este virou-se. Faolan estava na sombra, no alto da escada. O assassino mal se tinha mexido.

— O que é, Faolan? — Havia ali qualquer coisa, um constrangimento, uma reserva.

Garth mantinha-se atrás do assassino, uma presença vigilante, sempre de lança na mão.

Faolan abanou a cabeça, não numa expressão de negação, antes como se estivesse a limpar a cabeça de pensamentos indesejados.

— Nada — disse ele, descendo os degraus. — Não é nada.


CAPÍTULO ONZE

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Visitamos a ilha. Mais uma viagem; mais um teste de fé e força moral. Ioua é um lugar de calma profunda apesar dos ventos e das marés. Enquanto caminhava pela sua costa descorada, senti a minha alma livre de pecados e o meu coração de todos os fardos. Colm disse: Esta é a ilha de um novo começo e os nossos espíritos souberam que era verdade. Deus quer-nos aqui; este é o Seu lugar.

O pescador que nos trouxe — não trouxemos o nosso barco porque alguns dos nossos irmãos não queriam meter-se de novo ao mar tão cedo — deixou-nos vaguear à vontade; seguia-nos com olhos que pareciam o mar, profundos e vigilantes. Quando chegou a hora de voltar, levou-nos à ilha maior ao largo de Ioua e depois de regresso a Dunadd.

O irmão Colm anda maldisposto. A sua irritação quanto à necessidade de ficar nesta corte esquisita com o seu Rei doente e os seus guardas desconfiados não se lhe compara; fez-me novamente perguntas sobre Bridei e o seu druida; questionou-me sobre a fé dos Priteni, as suas divindades e os seus rituais. Já tinha falado muitas vezes com ele sobre estes assuntos, mas não me fiz rogado. Desta vez falei-lhe do Poço das Sombras e da cerimônia que exigia o sacrifício de uma vida humana a um deus que continua a não ter nome. Colm ouviu-me em silêncio e não me fez perguntas. Deduzi que viriam mais tarde.

Descobri por que razão tinha tanta relutância em divulgar a verdade final sobre o povo de Fortriu. Talvez tenha reconhecido que, após um determinado ponto da narrativa, até o mais perspicaz e equilibrado dos ouvintes deixaria de ouvir as minhas palavras. E demasiado chocante: reminiscências de uma existência primitiva baseada no medo. Penso que Colm não me ouviu dizer que Bridei proibira a prática, ou que este Rei só participou nela uma vez Provavelmente foi por tal razão que nunca a divulguei. O Rei de Fortriu é um homem bom, um homem de princípios. Contar esta história é um pouco desacreditá-lo. Preferia que ele e Colm se encontrassem sem quaisquer preconceitos ou ilusões.

Alma arrogante! Acabo de ler as minhas palavras e estremeço de mortificação. Quem sou eu para exigir que as vidas de um Rei e de um monge sigam um padrão que me agrade? Quem é este humilde escriba, servo de Deus?

Depois de refletir, peguei novamente na pena. Como cada um dos meus irmãos, sou, na verdade, filho amado de Deus e Seu servo. Ele iluminará o meu caminho, o de Colm e o de cada um de nós. Pergunto a mim próprio quem iluminará o de Bridei?

Temos neste momento Ioua defronte dos nossos olhos, os que fizeram a viagem até aqui. Colm enviou Sean, que foi criado numa herdade, e Tomas, que era carpinteiro, à ilha maior para tomar conhecimento com as pessoas de lá. Quando chegar o momento, tratarão de adquirir materiais de construção e gado. Vamos precisar de uma casa, uma pequena igreja, locais de armazenamento, um estábulo e uma vacaria... O meu coração encolhe-se ao contemplar uma viagem por mar com

A ilha não é nossa — por enquanto. Trata-se de um presente de Bridei. Antes de começarmos a nossa nova vida naquelas pacíficas praias solitárias, terá de haver uma reunião. Bridei proibiu a prática da nossa fé nestas paragens. O Rei baniu muitas almas para a nossa terra, no outro lado do mar. Não há razão para supor que cederá favoravelmente ao pedido de Colm.

lembro-me do druida, Broichan, um homem com a autoridade estampada em cada canto do seu ser, uma figura temida por todos, mesmo pelos seus. Broichan não é apenas o conselheiro espiritual de Bridei, é também o seu pai adotivo; dizem que é perito em magia. Colm fez-me perguntas sobre o assunto. Disse: Esse homem, portanto, faz truques, demonstrações de poder? Demonstrações do maravilhoso e do sobrenatural? Não sei qual é a intenção de Colm. A sua força está na voz e no olhar, vem-lhe de Deus. Broichan deve ver em Colm um adversário, uma ameaça ao seu próprio domínio, aparecerá na mesa do conselho com os olhos e os ouvidos bem fechados. Quanto a Colm, lamento ter tido a honestidade de lhe contar o ritual de Porta de Entrada com todos os seus cruéis pormenores.

Deus exige de mim verdade, abertura e ê o que eu tenho dado. Talvez no fim, estes dois homens poderosos, cada um deles firmemente agarrado às suas próprias crenças, demonstre ser uma força de poder igual. Como pode cada um deles, portanto, prevalecer?

Penso que este diário deve, mais tarde ou mais cedo, ser queimado, rasgado e atirado às cabras, ou cortado às tiras e atirado ao mar a oeste de Ioua. Por vezes, os meus devaneios até a mim me perturbam. Tenho uma teoria sobre o Porta de Entrada. Não acredito no Deus sem Nome de Bridei. No poço acredito, representa o nosso passado. As suas sombras são os nossos crimes e os dos nossos antepassados desde tempos imemoriais. Para um homem que não conhece a palavra de Deus, o fardo dos seus pecados, das suas omissões, dos seus erros e dos seus enganos torna-se, com o tempo, intolerável. O coração de um homem pode quebrar-se sob o seu peso. Por tal razão o sacrifício. A divindade das trevas aceita-o e o fardo é aliviado enquanto a roda dá mais uma volta. Penso que há alguma verdade nele, uma espécie de verdade sem vida. Mesmo sem o poço, o deus e o ritual, um homem pode tornar-se escravo do seu passado. Os seus emaranhamentos podem transformar-se numa rede que o prende e não consegue libertar-se, arrasta-a consigo toda a sua vida. E como andar de grilhetas e vendado. Quando formos a Monte Branco e o olhar nos olhos de Colm me disser que tal está para acontecer, discuti-lo-ei com Bridei. Se ele quiser.

Chega. Arrisco-me a ultrapassar-me mais uma vez a mim mesmo. Creio que vou pedir a Colm um pequeno Scriptorium na ilha; basta uma pequena cabana. Ali terei paz e tranqüilidade. Copiarei as partes das escrituras que mais amo ou, melhor ainda, as que fatiem adormecer os pensamentos mais arriscados e as filosofias mais perigosas. Por outro lado, sempre acreditei que a fé de um homem fortalece quando é posta à prova.

Suibne, monge de Derry

 


Eile estava à espera no jardim. Saraid baixou-se para olhar para o tanque e depois aproximou-se das alfazemas para mostrar a Lamento as folhas cinzento-esverdeadas penugentas e as espigas das flores perfumadas. O lugar era bom, abrigado pelas muralhas e aquecido pelo sol da tarde. Tinham chegado a Monte Branco pouco antes. No pátio tinham sido recebidos pelos Priteni, gente que parecia conhecer bem

Ana, gente cujos olhares seguiam Eile e Saraid sem grande curiosidade. Só quanto ela abriu a boca é que perceberam que era gaélica. Eile lembrou a si própria que tinha havido uma guerra pouco antes e que os inimigos eram celtas. A jovem não previra que tal seria uma dificuldade. Nas fantasias acerca de Monte Branco, Faolan estava sempre ao alcance da mão. Faolan era celta e era o guarda de confiança do Rei. Pelo menos fora o que ele lhe dissera. Até então, porém, não vira sinais dele.

No extremo do jardim, Drustan conversava com um homem de ombros largos com uma espada e duas facas à cintura. Ana fora ver a Rainha, aparentemente uma velha amiga. Os amigos íntimos eram os únicos que a podiam visitar desde o nascimento da sua filha. Eile perguntou a si própria como se sentiria Ana. Triste, claro; mas também, talvez, consolada já que as duas mulheres eram amigas. Uma criança era uma certeza de que, apesar de tudo, a vida continua. Com o tempo, Ana e Drustan teriam, certamente, outro filho.

— Abelha — observou Saraid, apontando. — Bzz.

— Hum. — Eile sentia-se satisfeita por Ana as ter deixado ali à espera, não numa sala qualquer da fortaleza que enxameava de gente com aspecto alarmantemente imponente. Mais tarde ou mais cedo diria qualquer coisa errada, ofenderia alguém ou meter-se-ia em sarilhos como em Blackthorn Rise. Onde estava Faolan? Ocupado, supunha. Ocupado com os seus deveres misteriosos, conspirando, planeando. Pensara que ele estaria ali para as receber. Evidentemente, era irrealista, mas tivera esperança.

O tempo passou. Drustan e o outro homem continuavam no mesmo sítio a conversar, longe dos seus ouvidos. Que diria Ana à Rainha sobre a sua pessoa? Mencioná-la-ia, sequer? E a rapariga que Faolan apanhou na estrada; não sabe o que fazer dela... Não, aquilo não; Ana era boa, queria que Eile ficasse em Monte Branco. Em momentos como aquele, o pensamento de se oferecer para criada de Ana e seguir para norte com eles era forte. Provavelmente fora estúpida em recusar.

— Olha, uma dama — disse Saraid, apontando para um banco meio escondido num dos lados do carreiro das ervas, junto da muralha. — E um gato.

Lá estava ele, de pedra, pequeno, num nicho, com uma expressão presunçosa no focinho e uma pata erguida, lambendo-se. Eile olhou novamente. Lá estava, de fato, uma dama, uma dama a sério, tão parecida com Ana que só podia ser a irmã havia muito perdida, a princesa das Ilhas Pequenas que se iam encontrar, finalmente, naquela visita à corte. Se a rapariga reparara em Eile e em Saraid, não aparentava. A jovem estava de pé junto do banco, tão imóvel como um predador preparado para cair sobre a sua presa. Os seus prescrutantes olhos azuis estavam virados para a alta figura de cabelos ruivos de Drustan. A expressão do seu rosto espantou Eile. A jovem parecia esfomeada.

— Tem dono — disse a jovem sem conseguir evitar.

A rapariga de cabelos louros sobressaltou-se. Era evidente que não sabia que estava acompanhada. Breda disse qualquer coisa em tom desafiante, ofendida.

— Só falo gaélico. — Eile memorizara aquela declaração na língua Priteni; trabalhara arduamente em Pitnochie sob a tutela de Drustan, subitamente desesperada por se manter a flutuar assim que chegasse àquele local cheio de gente a falar uma língua estranha.

— A sério? Quem és tu? — O gaélico da jovem era quase fluente. Os seus olhos viajaram da cabeça ruiva escura de Eile para os caracóis trigueiros de Drustan. — Irmã dele? — perguntou ela, olhando para Eile, a qual olhava solenemente para ela. — Não suponho que és uma ama. Ou uma escrava? Vejo agora que és gaélica. Algo nos teus olhos.

Eile engoliu a irritação; já tinha engolido insultos piores. Além do mais, se pensasse na éraic, era uma espécie de escrava.

— Sou... — Podia dizer o quê? Que era amiga de Ana? Ana não se teria importado, mas dizê-lo sem a sua autorização era presunção. Que era uma viajante? Era verdade, mas ali, sob o olhar perscrutante daquela rapariga, era insuficiente. — Sou amiga de Faolan — disse ela. — Vim com Ana e Drustan. Penso que deves ser a irmã de Ana. És muito parecida com ela. — Gostou do tom confiante.

— Faolan? — A rapariga levantou as sobrancelhas. — Quem é?

— É o guarda-costas do Rei. Um celta, como eu.

— Guarda-costas? Pensei que Bridei só tinha dois, aquele além, Garth, e o simpático, Dovran. Nunca vi esse. Esse Faolan é novo?

— Penso que sim — disse Eile, sentindo um arrepio na espinha. — Suponho que já o deves ter visto. Ele é... — As palavras faltaram-lhe. A imagem de Faolan que tinha na cabeça era perfeita, correcta em cada pormenor: a sua força, a sua bondade, a sua coragem. A sua reserva, a sua prudência. Tais coisas eram a essência de um homem, mas não era o que aquela rapariga queria. — Tem cabelos escuros — continuou ela. — De estatura mediana, um ar ameaçador. Mais ou menos da idade de Drustan, mas parece mais velho. Já cá deve estar há alguns dias, mas isto parece ser um sítio muito movimentado, por isso...

— Talvez não o tenha visto — disse a rapariga, alegremente. — Quem é essa coisinha pequenina? De Ana não é, suponho, já que a minha irmã, aparentemente, ainda não se casou. Parece que viveu o Inverno todo com o noivo. Estranho. Ela foi sempre tão empertigada e tão digna, mesmo em criança. — Breda olhou novamente para os dois homens com os olhos semicerrados. — Espera aí. É aquele? A minha enfadonha irmã vai casar com aquele espécimen esplêndido?

Eile ficou admirada com os modos da rapariga. Não era habitual, certamente, na corte. Talvez fosse a oportunidade de poder falar em gaélico, uma língua que poucos compreendiam, que fazia com que aquela jovem falasse de modo tão alarmante.

— Esta é a minha filha, Saraid — disse Eile. — E sim, o homem de cabelos ruivos é Drustan. Viemos juntos. O meu nome é Eile.

— E o meu é Breda. — A rapariga olhou de Saraid para ela. — Vejo que a minha irmã não é a única a escarnecer das convenções. Andaste muito ocupada, não andaste? Que idade tens exatamente?

Parecia que ninguém ensinava boas maneiras às princesas.

— Mais ou menos a tua, suponho, minha senhora. Breda sorriu.

— Não são precisas formalidades. Só estamos aqui as duas, no fim de contas. Nenhuma das outras raparigas fala gaélico. Pode ser engraçado. Uma língua secreta.

Eile perguntou a si própria se aquela rapariga seria mais nova do que parecia.

— Como aprendeste a falar tão bem? Ana só sabe algumas palavras.

— Temos muitos cristãos nas ilhas, conterrâneos teus. Eles contam histórias e tentam converter-nos. Também temos escravos, nem todos miseráveis e ignorantes, mas aprendi quase tudo com o meu bardo celta. — Um pequeno sorriso estranho. — Ele tem muito talento; dedos mágicos. Ensinou-me muitas coisas. Isto aqui é muito aborrecido, temos de preencher o tempo de qualquer maneira.

— Estou a ver. — Diferente, na verdade, apesar da língua comum. Eile pensou na casa de Dalach e nos trabalhos pesados e violentos que começavam com o nascer do Sol e que só terminavam para lá da exaustão.

— Estás a avaliar-me, vejo-o nos teus olhos — disse Breda, subitamente severa.

Eile engoliu uma negativa automática. Não diria mentiras apenas para ser educada.

Ouviu-se uma gargalhada, fazendo com que os dois homens se virassem na direcção da princesa.

— Havias de ver! — disse a irmã de Ana. — Que expressão! Oh. — O tom da jovem mudou abruptamente e os seus olhos toldaram-se. — Garth já reparou que estamos aqui. Repara, vem dizer-nos para sairmos do jardim privado da Rainha. Que irritante. É uma regra estúpida e obrigar uma pessoa do meu estatuto a obedecer-lhe é ofensivo. Há aqui tanta coisa que não está certa. É preciso fazer alguma coisa.

O grande e bem armado Garth aproximou-se com Drustan um ou dois passos atrás com os seus pássaros nos ombros. O guarda-costas disse algumas palavras breves e firmes. Ninguém traduziu para que Eile percebesse. Breda riu-se de Garth, sorriu retorcidamente a Drustan, pestanejou e desapareceu. Eile pegou em Saraid pela mão, tencionando segui-la. Se aquele jardim era proibido para uma princesa, Ana tinha certamente errado ao sugerir-lhe que esperasse nele.

Garth voltou a falar, estendendo uma mão. Eile recuou antes que ele lhe tocasse.

— Tu não, Eile — disse Drustan. — Tu e eu podemos ficar aqui até a Rainha estar pronta. Aquela era a irmã de Ana? Que pergunta estúpida; a semelhança é evidente.

— Drustan?

— Sim, Eile?

— Importas-te de perguntar a esse homem... Ele é um dos guardas do Rei, não é?... Podes perguntar-lhe... Não, deixa.

— Já perguntei — disse Drustan, muito sério. — Faolan não está em Monte Branco e Garth não me pode dizer para onde foi. A única coisa que me disse é que partiu há cinco ou seis dias.

— Oh. — Mais uma promessa não cumprida. Graças aos deuses, decidira não passar a mensagem de Faolan a Saraid. Não permitiria que a filha se agarrasse a esperanças vãs e a desapontamentos contínuos. Se não exigisse muito, doeria menos.

Tinha perguntas na ponta da língua que não podia fazer. Não tinha nada a ver com a vida de Faolan. Nunca lhe parecera tão claro. Ele não devia ter deixado nenhuma mensagem, pensava, certamente, que a tinha afastado definitivamente, que Ana e Drustan a levariam com eles.

— Suponho que ninguém sabe quando volta? — tentou ela.

Na parede mais afastada do jardim murado abriu-se uma porta e por ela entrou uma elegante mulher de cabelos castanhos-avermelha-dos, de uns vinte e três anos de idade, que falou asperamente. Garth retirou para o seu anterior posto e a mulher apontou a saída a Eile e a Saraid.

— Esta dama é Ferada, amiga da Rainha — disse Drustan. — A Rainha quer conhecer-vos. Eu espero por ti aqui. O único homem admitido nos aposentos de Tuala, para além do filho, é o Rei Bridei. A regra aplica-se até que o bebê tenha idade suficiente para sair.

— Mas...

— Tuala sabe falar um pouco de gaélico — disse Drustan. — Não fiques assim, Eile. Tu és capaz. Usa as palavras que aprendeste — concluiu ele, afastando-se na direcção dos degraus que subiam na direcção do caminho de ronda. Eile viu-o subi-los com três longos passos, como se não tivesse peso, com os cabelos a esvoaçar como uma labareda. A jovem lembrou-se da sua singularidade, do seu talento maravilhoso. O corvo e o trinca-nozes saltaram-lhe dos ombros enquanto ele subia, abriram as asas e voltaram a pousar em cima dele no alto da muralha.

— Vem — disse Farada em gaélico, e Eile seguiu-a.

A jovem esperava alguém grandioso, alguém como a intimidante Áine, mas mais alta, mais velha e ricamente vestida. A Rainha Tuala não era como imaginara, era baixa e pálida, com cabelos escuros, bonitos, soltos e olhos enormes. Não parecia mais velha do que a própria Eile e o seu sorriso era quente, se bem que prudente. À parte a amiga, Ferada, que tinha um olhar severo, a única pessoa presente era Ana e um rapaz minúsculo, menor do que Saraid. E um bebê. O rapaz estava ao lado de um berço, mas quando viu entrar as duas foi ter imediatamente com Saraid e estendeu a mão para lhe agarrar no xaile. Saraid serviu-se de Lamento para lhe bater na mão e ele largou-a. Não pareceu um começo auspicioso.

— Eu só falo gaélico, minha senhora — disse Eile, fazendo uma cortesia e lembrando-se da última vez que Saraid atacara o filho de um nobre. — Peço desculpa; a minha filha assusta-se. Vimos as duas tantas mudanças... — A jovem calou-se quando Saraid largou a saia da mãe e seguiu o rapaz até ao berço. O rapaz disse qualquer coisa parecida com Fayda e os dois espreitaram para o berço. As feições da pequena iluminaram-se subitamente com um sorriso brilhante.

— Bebê — disse ela, estendendo um dedo.

— Vem, senta-te ao pé de mim — disse a Rainha, acentuando o sotaque para se fazer entender melhor.. — Espero que Ferada e eu consigamos falar o suficiente para que nos possas entender. Fizeste uma longa viagem, Eile.

A jovem anuiu sem afastar os olhos das crianças.

— Geralmente ela porta-se bem — disse ela.

— E o meu filho também. Por vezes esquece-se, mas geralmente não. Ele está muito orgulhoso da irmã e é muito protector. Parece gostar muito da tua filha Saraid. É assim que ela se chama?

Ana devia ter-lhe dito. A jovem anuiu, perguntando a si própria quanto lhe teria contado a noiva de Drustan e por que razão a Rainha de Fortriu se interessaria tanto por uma vagabunda e pelo seu pecadilho. Não, prometera a Faolan não dizer aquele gênero de coisas.

— Vi a tua irmã Breda — disse ela a Ana, lembrando-se e pensando que lhe devia dizer. — Agora mesmo, lá fora. — Não diria que Breda fora expulsa do jardim, ou que não mostrara grande interesse em ver a irmã. Também não comentaria os seus modos.

Tuala falou a Ana na outra língua. A mulher de cabelos louros pôs-se em pé de um salto com os olhos muito brilhantes e saiu, pedindo desculpa.

— Hum — comentou Ferada depois de Ana sair. — Reunião interessante. Pergunto a mim própria o que pensarão uma da outra. — O seu gaélico soava extremamente fluente.

— Não falemos disso agora. — A voz de Tuala era suave. Eile lembrou-se, porém, que ela era Rainha. — Eile, Ana disse-me que és amiga de Faolan.

— Viajamos juntos. Ele ajudou-nos, a mim e a Saraid. — Em seguida, após uma pausa durante a qual tentou e não conseguiu impedir que as palavras saíssem, acrescentou: — Sabes quando ele volta, minha senhora?

— Receio que não. Faolan não trabalha para mim, trabalha para o meu marido. Bridei fala gaélico muito bem e eu sei que ele vai querer falar contigo. Também sei que a natureza do trabalho de Faolan é tal que nem o Rei te vai poder dizer para onde foi ou quando regressa.

Eile acenou com a cabeça. O Rei queria falar com ela? Era impossível. Mesmo que quisesse, ficaria com tanto medo de dizer qualquer coisa errada que faria chichi pelas pernas abaixo sempre que ele lhe fizesse uma pergunta.

— Podemos arranjar-te alojamentos aqui em Monte Branco — disse Tuala. — Por agora vou pedir a Dorica, o encarregado, que te ponha ao lado de Ana e de Drustan.

— Obrigada.

As duas crianças tinham-se sentado no tapete, em frente da lareira e pareciam estar a conversar, se bem que não se percebesse em que língua. Saraid tinha Lamento sentada nos seus joelhos e o rapaz segurava num pequeno cavalo de pedra, uma espécie de brinquedo real, pensou Eile, com pormenores perfeitos. A jovem ficou espantada quando o animal mexeu um casco em miniatura e sacudiu a minúscula cabeça aristocrática. Devia estar mais cansada do que pensava.

— Faolan falou-te muito da corte? — O tom da Rainha era gentil.

— Só que havia aqui pessoas boas, minha senhora, e que estaríamos em segurança. Ele disse que eu talvez arranjasse uma ocupação. Ou que talvez pudesse ir para uma escola, mas eu não vou para lado nenhum sem a minha filha. Além disso, não sei se me ajustaria. Deve ser tudo bordados muito bonitos e muito canto.

— Suponho que sim — disse Ferada, solenemente.

— Eile — disse Tuala — que achas que Faolan quereria para ti? A jovem sentiu-se corar.

— Penso que ele queria que eu ficasse com a senhora Ana. Penso que pouco mais para além disso. De fato, eu só sei fazer trabalho doméstico: esfregar soalhos, lavar roupa, cozinhar. Também gosto de jardinagem. Oh, e de cuidar de crianças. Sou bastante boa nisso. — Eile olhou para Sarid e para o companheiro. A pequenina pegara cuidadosamente no cavalo e examinava-o de perto. O rapaz embalava Lamento, escrutinando-lhe os olhos de lã e o pescoço remendado. O espanto de Eile devia ver-se no rosto. Nem sequer Phadraig tivera autorização para pegar naquele pequeno tesouro.

— Derelei consegue ser muito... persuasivo — disse Tuala, sorrindo. — Eile, Ana acredita que Faolan não quereria que te déssemos um emprego como criada e não é o que te vamos oferecer.

— Oh. — Iam mandá-la outra vez embora? Antes de ter oportunidade, sequer, de se despedir?

— Se és amiga dele, e isso é surpreendente por diversas razões, deves ser tratada de acordo. Quero que tu e a tua filha se sintam aqui em casa. Que se sintam seguras. Quero que fiques em Monte Branco enquanto quiseres.

Os olhos encheram-se de lágrimas. Eile lembrou-se de Blackthom Rise e de Áine. Tinha de aprender a ter cuidado; as boas-vindas não queriam dizer, necessariamente, um futuro feliz.

— Obrigada, minha senhora. Eu quero trabalhar. Quero ganhar a minha vida e a de Saraid. Seria errado pensar de outro modo — disse ela, pensando na êraic, a soma fenomenal que levaria uma vida para pagar.

— Vou falar com o meu marido. Tu e Saraid precisam de tempo para descansar e recuperar. Há várias crianças da idade da tua filha na corte. Todos rapazes e muito barulhentos. A tua filha parece-me muito bem-comportada.

— Tinha de ser. — Às vezes todas com Dalach e Saraid sentada no lado de fora da cabana, imóvel como um rato, à espera. Eile estremeceu ao recordar.

— Talvez ela sirva de exemplo — disse Tuala. Os seus olhos estavam nas duas crianças, as quais murmuravam de cabeças juntas. Derelei ajudava Lamento a fazer uma festa ao cavalo de pedra.

— Tens de aprender algumas regras. — Ferada dissera até então pouca coisa. Naquele momento a sua voz era como um salpico de água fria. — Regras que tiveram de ser estabelecidas para segurança da Rainha e da sua filha. Só um punhado de pessoas é que é admitida nestes aposentos e em parte do jardim vizinho e há dois guardas de serviço permanente para as fazer observar. A corte está neste momento cheia de gente. As regras serão menos severas quando os visitantes se forem embora. Consultamos Faolan durante a sua breve estadia e ele concordou.

— Oh. — Aquilo explicava o que a rapariga Breda dissera a propósito de lhe terem pedido para sair do jardim. Era estranho a proibição aplicar-se à princesa. No fim de contas era irmã de Ana. — Suponho que é melhor irmo-nos embora, então. É o que estás a dizer? Saraid, vem comigo.

— Eile... — começou Tuala, mas Ferada interrompeu-a com um franzir de sobrancelhas.

— Deves estar cansada. Vou chamar alguém para te mostrar...

— Não é preciso — disse a jovem, ouvindo o som tenso da sua própria voz. — Drustan disse que esperava por mim. Eu não entro no jardim, não te preocupes. Estamos habituadas a não nos metermos no caminho das pessoas. — Em seguida, como as duas damas olhassem para ela, concluiu: — Minha senhora.

— Não era isso que Ferada queria dizer, Eile — disse calmamente a Rainha. — Tu és amiga de Faolan. Estou certa de que com o tempo também serás nossa amiga. — Os seus olhos viraram-se para as crianças. Saraid regressara para junto da saia da mãe e Derelei parecia desanimado. — Creio que o meu filho já gostava que fosse o caso. Mas tens razão, são horas de ires. Precisas de te instalar. Ana disse-me que estás um pouco preocupada com a tua falta de capacidade para entender a língua Priteni. Nós temos um velho sábio que gostaria muito de ajudar. Como tutor é muito menos aterrador do que aqui a nossa querida Ferada e obtém resultados maravilhosos. O seu nome é Wid e é capaz de tudo para se manter ocupado. Vou falar com ele.

— Obrigada, minha senhora. Antes de me ir embora posso ver o bebê? O nome dela é Fayda?

A jovem percebeu que Ferada ia dizer que não e a própria Tuala pareceu hesitante, mas Derelei ouviu o nome e pôs-se em pé de um salto.

— Ver Fayda — disse ele, estendendo uma mão para conduzir Eile até ao berço. Eile percebeu perfeitamente.

— Anfreda — disse Tuala. — Tem o nome da mãe de Bridei, que casou com o Rei de Gwynedd. Derelei aprendeu rapidamente o nome. Ele já tem dois anos, mas não fala muito.

— Aprenderá com o tempo, tenho a certeza — disse Eile. — As crianças são todas diferentes umas das outras. Oh, é amorosa! Tão parecida contigo! — A jovem apreciou a pele translúcida, as longas pestanas, os cabelos cor de carvão. Abruptamente, a criança abriu os olhos grandes, profundos e olhou para Eile, estranhamente consciente. — Tão bonita. E tão...

— Invulgar? — perguntou Tuala. — A minha mãe era de outra raça. Faolan não te disse?

Eile abanou a cabeça, afastando-se do berço. Se estavam suficientemente preocupadas com a segurança para manterem as pessoas afastadas do jardim, era evidente que também não queriam uma estranha como ela perto do bebê.

— Falávamos principalmente de como a nossa vida era antes. E do meu pai, que ele conheceu. E das coisas do dia-a-dia: arranjar comida, manter o fogo aceso, cuidar de Saraid. — Estavam as duas a olhar outra vez para ela de um modo estranho, como se ela fosse uma curiosidade. Eile sentiu-se nervosa. — Quando falou de ti e do Rei Bridei, disse que éreis gente boa e sábia. Nunca falamos de nascimentos ou educação.

— Não devia ter importância — disse Ferada. — Mas aqui em Fortriu tem. Para mim, para Tuala, para Bridei, para Ana, são coisas importantes. Alguns de nós acharam que não e como resultado as nossas vidas complicaram-se.

— Não compreendo.

— A minha mãe era... — disse Tuala. — Diz-me, no teu país tendes uma raça de pessoas que pertence... que vive num reino fora do mundo humano? Que vive nas profundezas da floresta, em poços, em grutas, em lugares para lá do que é visível? A minha mãe era dessa raça. Aqui, em Fortriu, chamamos-lhe Boa Gente, se bem que o termo não se aplique a todos.

Eile sentiu que Tuala estava um pouco receosa da sua resposta. A jovem estava espantada por a Rainha de Fortriu poder ter medo dela, uma mera... Não, não pensaria tal coisa de si própria.

— Chamamos-lhes Pessoas Encantadas — disse ela, algo hesitante. — Nunca percebi bem se eram reais ou se não passavam de uma história. Este país é muito estranho. — Na verdade era surpreendente. Se um homem podia estar a falar com outro e se no momento seguinte se transformava num pássaro, ou se as pessoas aceitavam uma mulher que era meio humana como Rainha, então talvez houvesse ali um lugar para ela. — O teu pai deve ser um homem importante para teres chegado tão alto. Desculpa, foi falta de educação da minha parte...

— Podes crer que é. — O sorriso de Tuala era um pouco estranho, como se ela se sentisse triste e feliz ao mesmo tempo. — E, por favor, não peças desculpa. Tenho a certeza que compreendes a importância do que discutimos aqui hoje. Só te falei disto porque Ana me assegurou que ela e Faolan confiam totalmente em ti. Ana é muito minha amiga e eu confio no seu julgamento e Faolan nunca se engana em relação a uma pessoa.

Eile não conseguiu impedir que a voz lhe tremesse.

— Obrigada, minha senhora. Não trairei a tua confiança.

— Fayda tem fome — disse Derelei, e era verdade. Ferada apressou a saída das visitantes com uma expressão severa.

— Adeus, Derry — disse Saraid, acenando.

Derelei quase desatou a chorar. A sua mãe, porém, disse-lhe qualquer coisa e ele animou-se.

— Disse-lhe que pode brincar amanhã com Saraid, se concordares — disse a Rainha. — E agora ide e descansai. Gostei muito de vos conhecer e fiquei muito surpreendida. Nunca tínhamos conhecido quaisquer amigos de Faolan. Ele sempre nos disse que não tinha nenhum.

— Que achaste? — perguntou a Rainha de Fortriu à amiga um pouco mais tarde enquanto dava de mamar a Anfreda. Derelei tinha saído com a ama.

— Que confias demais — disse Ferada. — Não conheces a rapariga, pode ser uma pessoa qualquer.

— Confio em Ana. Ela diz que Eile é uma digna filha do pai e que ele era corajoso e nobre a um grau sobre-humano. Não se sacrificou ele por Ana, Drustan e Faolan? Esta rapariga parece-me genuína. Gosto da honestidade dela. É madura para a idade.

— Usa esse argumento e chegas à conclusão de que Breda é boa, sensata e honesta só porque é irmã de Ana.

— Tenho Derelei. Ele pôs-se instantaneamente em guarda com ela, mas permitiu que esta rapariga se aproximasse para admirar o bebê. Pegou-lhe na mão.

— Tuala — disse Ferada — o teu filho pode ser um rapaz notável, mas só tem dois anos. A sua atitude deveu-se, provavelmente, à filha de Eile. Suponho que não pensou que havia perigo. A pequenina é uma criança adorável.

— É, não é? — observou a Rainha, olhando sabiamente para a amiga.

— Eu não disse que queria uma — retorquiu Ferada, erguendo uma mão para ajeitar a cabeleira imaculada. A dama passara a vestir-se com mais simplicidade, levava a sério o seu novo papel de diretora de uma escola inovadora para jovens filhas de famílias nobres. No entanto nunca abandonara a sua elegância e garbo naturais.

Tuala suspirou.

— Pobre Ana — disse ela. — Esperava que as circunstâncias se tivessem alterado. Conceber uma criança e perdê-la tão cedo... deve ter sido devastador. Ela nunca escondeu que desejava um marido e filhos e imagino que a chegada de Faolan com esta rapariga e a filha naquele momento doloroso não deve ter ajudado muito, mas é generosa e gostou da coragem e do expediente de Eile.

— Pode ser que sim. — O tom de Ferada era seco, mas os seus olhos tinham um brilho de simpatia. — Concordo que os tempos são de tristeza para Ana e espero que ela e o seu invulgar homem tenham mais sorte no futuro. Porém, no que respeita a esta rapariga, não concordo contigo, Tuala. Nestes tempos perigosos não te podes afastar das regras que impuseste. Eile é uma perfeita estranha.

— Não estavas aqui quando Ana e Faolan regressaram no Outono passado. Ele estava destroçado pelo que tinha acontecido na viagem, e não estou a falar apenas da sua perna mutilada. Ele sentia-se algo... perdido, despojado. Ana e Drustan gostam muito dele. E Bridei também. Ana quer que a rapariga fique aqui, pelo menos até Faolan regressar. Ela acredita que é importante. Eu não conheço o passado de Eile e Ana também não. Aparentemente subiu a pulso, como ele. Ana acha que ela passou por tempos difíceis. Quero confiar em Eile, Ferada. O meu instinto diz-me que posso.

— Concedo-lhe um ponto. Ela nem pestanejou quando lhe falaste das tuas origens. A rapariga não se surpreende facilmente apesar de ser tão nova.

— Não sabemos que idade tem.

— Não lhe dou mais de dezessete anos, mais ou menos a idade de Breda. Não estou a ver Breda a educar uma criança e não estou a vê-la a sorrir para bebês e a partilhar os seus brinquedos.

Tuala sorriu.

— Ela deu uma sapatada na mão de Derelei.

— Isso foi o que eu gostei mais — disse Ferada. — Um homem deve aprender a pedir autorização antes de tocar numa mulher.

— Por falar nisso — disse Tuala — os teus irmãos estão a crescer muito depressa e não me estou a referir apenas à sua vontade de ajudar a entreter os menores. A Rainha Thian disse-me que Bedo está muito interessado numa das acompanhantes de Breda, uma rapariga chamada Cella. Encantadora, disse Rhian, e com bom caráter. O comportamento de ambos tem sido perfeitamente discreto, claro: pequenas conversas no Salão Grande, olhares quando pensam que não está ninguém a olhar, sorrisos em especial. Eu tenho tendência para ver Bedo e Uric como duas crianças, mas é evidente que já são dois jovens.

— Hum. — Os lábios finos de Ferada torceram-se num sorriso. — Esforcei-me para que crescessem bem. Sim, tenho de concordar que são ambos bons rapazes, apesar das dores de cabeça que me provocaram. É claro que não vai dar em nada, Bedo e essa tal rapariga. Ele ainda é muito novo. Tuala, ainda a propósito de Eile. Promete-me uma coisa.

— O quê?

— Fala com Bridei antes de decidires fazer dela uma amiga. Ela é gaélica, no fim de contas, e as pessoas vão achar esquisito. Supostamente não deves atrair as atenções neste momento. Vê se Bridei concorda com essa teoria de Ana. Apesar de duro, fechado e individual, Faolan tem muita gente a olhar pelo seu bem-estar. Pensava que um homem como ele era mais capaz de olhar pela sua vida.

— Ouviste Eile — disse Tuala, mudando o bebê para o outro seio. — Ela viajou com ele desde a terra dela até aqui. Falaram do passado. Olharam ambos por uma criança de três anos. Estamos a falar de Faolan.

— Talvez por isso mesmo a rapariga esteja a mentir.

— És tão cínica, Ferada. Ana falou com Faolan, lembra-te. Ele queria que olhássemos por Eile.

— Se ele gosta dela, por que se foi embora quando ela chegou?

— Porque não podia fazer outra coisa. — Tuala tornou-se subitamente muito solene. — A sua reserva não prestou a si próprio nem a Eile um bom serviço. É evidente que vou falar com Bridei. Nós falamos sempre de tudo. Tu e Garvan não?

Drustan ajudou Eile e Saraid a instalarem-se e depois foi à procura da noiva, mandando o corvo à frente e, quando ele regressou, tudo o que precisou foi segui-lo através do jardim até um pequeno pátio superior protegido por uma parede coberta de hera onde havia uma mesa redonda de pedra e uma vista por cima da muralha para os montes e o mar distante. Ana estava imóvel com unia mão em cima da mesa e a outra encostada à boca. Apesar da distância, Drustan percebeu que ela estava a chorar.

Um longo salto fê-lo dar os passos restantes.

— Que se passa? Que aconteceu? — perguntou ele, abraçando-a e beijando-lhe os cabelos.

— Nada — disse ela, limpando os olhos. — Desculpa se te preocupei.

— Não me pareces bem, minha querida. Conta-me. Que te pôs assim triste?

— Estive com a minha irmã, Breda. Sabes como desejava este momento, como ansiava por vê-la crescida. — A sua voz tremia.

Drustan beijou-lhe a testa, mas não disse nada.

— Ela... Quando a vi, abracei-a e apertei-a com força. Senti-a inteiriçar-se, como se achasse o meu gesto repulsivo. Foi estranho. Estranho e terrível. Pensei que talvez estivesse com medo, deve saber que pode ser a próxima refém. Depois, pensei que ainda é muito nova. Tudo isto deve ser muito estranho para ela, encontrar-se comigo depois de tanto tempo; talvez não saiba o que dizer. Tentei falar com ela, para começar a dizer-lhe como lamento os anos perdidos, as saudades que tive dela, como me preocupei com ela. Ela olhou através de mim, Drustan. Não pareceu interessada em nada do que eu disse. Breda foi... friamente cortês. Como se eu fosse uma estranha, uma estranha muito enfadonha.

— Lamento — murmurou Drustan. — Tu não mereces isso, ainda por cima depois daquilo por que acabas de passar. Talvez ela precise de tempo.

— Talvez. — Ana parecia duvidosa. — Espero que seja só isso. Ela foi.... não sei dizer exatamente o que foi, mas deixou-me pouco à vontade. E... pode parecer uma tolice, mas foi rude, como se nunca tivesse aprendido a conviver com pessoas. Porém, está na corte do meu primo há algum tempo. Deve saber certas coisas. É como se não se importasse. Não lhe disse nada sobre o bebê. — As lágrimas começaram de novo a cair, despedaçando o coração de Drustan. A sua tristeza fê-lo sentir-se impotente.

— Vem — disse ele. — Queres entrar? Estamos alojados no teu velho quarto, tanto quanto sei; bem confortável, com alguns bordados nas paredes. Não foi difícil adivinhar quem os fez. Eile e Saraid estão na porta ao lado. Se não quiseres falar mais com Breda, não tens de o fazer.

— É claro que quero — disse Ana, enquanto desciam os degraus — mas não sei como.

Apercebendo-se de que lhe tinha sido oferecida uma oportunidade em Monte Branco, Eile decidiu engolir as dúvidas e as desconfianças e tirar partido da situação. O velho sábio, Wid, era ao mesmo tempo severo e amável; passava muito do seu tempo sentado numa posição estratégica, no ponto onde o jardim privado da Rainha se encontrava com o jardim principal com os seus canteiros de vegetais e ervas, os seus tanques, as suas pequenas estátuas e a miríade de locais para se poder passear e descansar ou, no caso dos cães e das crianças, correr e perseguir coisas. Ao observar as movimentações dos guardas, o fato de tanto Garth como Dovran tenderem a estar ali de serviço com um pequeno grupo de homens que se revezava, Eile deduziu que Wid, com a sua barba branca e o seu feroz nariz de falcão, era um membro não oficial da equipa. O seu papel era alertar os outros com um pequeno acesso de tosse ou um movimento caso notasse algo de anormal.

Wid era bom professor. Eile passava uma parte das manhãs com ele e em menos de um mês já sabia o suficiente da língua para se arriscar com outras pessoas, a começar, por sugestão do seu professor, pelos guarda-costas do Rei, freqüentemente presentes no outro lado do jardim. A princípio foi-lhe difícil vencer a timidez. Garth era um homem grande, a espécie de homem de quem fugia instintivamente, mas tinha um sorriso simpático e a jovem vira que ele era gentil para com as crianças. Dovran era austero e solene, levava os seus deveres muito a sério. Eile pensava que ele não se dignaria a falar com ela. Porém, os seus esforços obtiveram respostas amigáveis dos dois homens e conseguiu breves conversas diárias com eles sempre que estavam de serviço, as quais se limitavam normalmente a observações sobre o tempo ou a perguntas sobre a saúde da família, mas à medida que os dias foram passando, tornou-se cada vez mais aventureira. Quando eles compreendiam e respondiam, mantendo um discurso simples para que ela os pudesse seguir, Eile sentia-se reconhecida e Wid expressava a sua satisfação forçando-a ainda mais.

Saraid aprendia ainda mais depressa. Enquanto Eile estudava, ela brincava com Derelei, o qual se prendera à recém-chegada, excluindo todos os outros. Talvez brincar não fosse a palavra exata. Os dois pequenos eram geralmente encontrados sentados tranqüilamente num canto, acompanhados de Lamento, a examinar um objeto qualquer de interesse mútuo — uma pena, uma folha, uma pedra com um padrão diferente — e a murmurar numa língua situada algures entre o gaélico e o priteni. A amizade entre os dois permitiu que Eile tivesse rapidamente acesso à parte privada do jardim. Para sua surpresa, a jovem recebeu algumas vezes a missão de os vigiar, se bem que não sozinha; havia sempre um guarda presente na vizinhança. Saraid passara a ser uma visitante freqüente dos aposentos da Rainha; Tuala dizia que ela era excepcionalmente boa para Derelei. Eile não conseguia acreditar que, antes da sua chegada, o filho do Rei passava aparentemente os dias a correr atrás dos energéticos gêmeos de Garth, enlouquecendo a casa com a sua exuberância. Ela própria teve uma questão com os gêmeos. Numa tarde chuvosa ofereceu-se para olhar pelas quatro crianças enquanto Elda descansava. A mulher de Garth estava à espera de um bebê para dali a menos de duas luas e os dois rapazes esgotavam-na. Eile pegou em algumas bolas e levou o seu pequeno grupo para um pátio coberto, longe do vento. Depois de marcar umas balizas com um pedaço de giz, começaram todos a tentar marcar golos. O homem-de-armas, cuja missão era montar guarda nas proximidades, foi aliciado a tentar, mas ria-se tanto que falhou o alvo por uma mão de diferença. A sessão tornou-se barulhenta, competitiva e caótica; os gêmeos tornaram-se corados, tentando ultrapassar-se um ao outro, Derelei retirou-se para um canto, onde ficou a observar e Saraid, para surpresa da sua mãe, jogou um pouco, observou outro tanto e depois fez de árbitro.

— Gilder, pousa a bola. É a vez dele.

— É a minha vez!

— Já disse que não. É a vez de Galen — disse ela com as mãos nas ancas, um comandante em miniatura, e Gilder, com os olhos muito abertos, devolveu a bola.

— Agora é a vez de Derry. Anda, Derry.

Derelei levantou-se, obediente à voz da sua nova companheira e atirou as bolas através das lajes, fazendo-as passar por entre as marcas de giz. Para que o resultado fosse perfeito, uma delas teve de mudar abruptamente de direção enquanto rolava. Saraid olhou para ele. Derelei teve a graça de parecer um pouco espantado.

— Essa não valeu — declarou Saraid. — Tenta outra vez.

E assim continuou o jogo, ordenada e civilizadamente, até que a mãe dos gêmeos, refrescada com o descanso, apareceu para os levar, convidando Saraid para jogar com eles sempre que quisesse. Elda falou lentamente e acompanhou as palavras com gestos e Eile ficou deliciada ao descobrir que compreendia e que tinha palavras suficientes para aceitar e agradecer.

— Saraid brincar Derry — disse Derelei, franzindo as feições infantis.

— Tu também — disse-lhe Elda, rapidamente. — E tu também és bem-vinda, claro — acrescentou ela, sorrindo para Eile. — Posso mostrar-te a ervanária, se quiseres.

Havia muita coisa que interessava Eile: as ervas e poções de Elda, a música maravilhosa que se tocava no grande salão após o jantar e as histórias que Tuala contava às crianças e que lhe lembravam as do seu pai, muitos anos antes. A jovem lembrou-se que, quando era criança, devia ter ouvido a língua priteni em casa porque o seu pai e Anda eram originários das terras Caitt, os reinos do norte de onde Drustan vinha, e ambos deviam falar a sua língua nativa de vez em quando. A jovem perguntou a si própria que uso teria Anda dado à soma fabulosa que Faolan pagara pela sua liberdade e se teria capacidade para a gastar com sensatez, ou se teria caído vítima de outro homem como Dalach, um homem que via as mulheres como objetos de posse que eram explorados e postos de lado. Eile reconheceu, para sua surpresa, que sentia alguma pena da tia, que esperava que Anda lhe tivesse perdoado e começou a pensar que talvez, um dia, lhe pudesse também perdoar.

Tinham-lhes arranjado um pequeno quarto ao lado do de Ana e Drustan; tinha uma cama confortável, uma pequena mesa, uma arca, na qual as suas coisas ocupavam apenas um canto e uma janela que dava para o jardim. As persianas podiam ser fechadas para evitar o vento frio e abertas para deixar entrar o sol. A cama tinha um cobertor esverdeado e um tapete verde de feltro no chão. Não era a casa da encosta, mas remediava bem. Eile ordenou a si própria que não gostasse muito para não começar a aceitá-lo como um dado adquirido. Se o fizesse, ser-lhe-ia inevitavelmente tirado.

Ana e Drustan ir-se-iam embora em breve. A jovem sentia-lhes a inquietação, o desejo profundo da viagem em conjunto e ocorreu-lhe que, como deixaria de estar sob a sua proteção, a sua posição em Monte Branco poderia mudar. Ana tratava-a como uma amiga, deixando-a perplexa e a atitude de Drustan parecia a de um irmão mais velho, compreensivo e educador. A sua fluência em gaélico fazia-o recipiente de certas confidências que ela não podia expressar diretamente a Ana. Iria ter muitas saudades deles; sentia que, devido a eles, não mergulhara na sua posição natural na hierarquia da corte, a última, esfregando soalhos, lavando roupa e tomando as refeições na cozinha, não no grande salão com os reis e as princesas. Sem o patronato de Drustan e Ana, teria caído muito abaixo do nível médio em que viviam as pessoas como Garth e Elda, entre os servos e os chefes. Os chefes também tinham dois níveis: havia os conselheiros e os chefes-de-guerra, os druidas e as mulheres sábias e, acima deles, os de sangue real. Evidentemente, em Monte Branco havia lugares onde tal ordem se baralhava. Tuala tratava Elda como uma amiga e os filhos de ambas brincavam uns com os outros como iguais. Eile suspeitava que Faolan era uma peça que não se encaixava no quebra-cabeças e achava que era por tal razão que se tornara inesperadamente amiga das pessoas do topo, podendo vaguear pelos jardins e aprender com o seu velho professor.

Conhecera o Rei. Bridei mandara-a chamar pouco depois da sua chegada e ela comparecera, intimidada. O monarca não era um homem formidável fisicamente, como Garth e não era espantosamente bonito, como Drustan. No entanto era, inegavelmente, um rei. Eile sentiu a sua autoridade inata no momento em que o viu, uma figura direita de ombros largos movendo-se por entre o seu séquito, distribuindo um sorriso grave aqui e uma palavra de consideração ali. Quando foi chamada à sua presença, depois de ter levado algum tempo para dominar os nervos, encontrou-o na companhia de Tuala e achou-o cortês, direto e perceptivo. O monarca falou-lhe como a um igual e ela gostou. Eile pressentiu que ele lhe queria fazer perguntas sobre Faolan, as quais não estava preparado para fazer. A jovem contou-lhe a mesma história que contara a Tuala — um relato breve, exato e sem quaisquer pormenores.

No fim do encontro, depois de lhe explicar a natureza do trabalho de Faolan e a sua necessidade freqüente de viajar ao mínimo pretexto, Bridei disse uma coisa que ela mal percebeu por ter a mente em Saraid, a qual estava sob os cuidados de Ana e, provavelmente, inquieta.

—... estranhamente relutante em partir. Foi a primeira vez que o vi hesitar — dizia Bridei.

— Desculpa? — exclamou Eile, apercebendo-se que estivera ausente. — Importas-te de repetir, meu senhor?

— Faolan sabe quando uma missão exige as suas capacidades especiais. Esta era uma delas. Ele sempre se prontificou a partir rapidamente. Sempre foi o meu melhor homem. Desta vez, porém, foi diferente. Senti uma certa reserva nele, percebi que me queria dizer qualquer coisa, mas que lhe faltavam as palavras. Suponho que sabes como ele é.

Eile percebeu que estava a sorrir: era ridículo, o Rei ia achar que era uma pateta. A jovem agradeceu ao Rei, despediu-se e regressou ao seu pequeno quarto com as palavras guardadas no coração, um presente inesperado e maravilhoso. Talvez, no fim de contas, Faolan não a tivesse posto de lado; talvez não se tivesse esquecido que as crianças esperam que as promessas sejam cumpridas. Eile sabia como ele era e o Rei dissera-lhe que ele gostaria de estar ali, que gostaria de lhe ter deixado uma mensagem; que tentara dizê-lo por palavras, talvez, e que falhara, consciente de que o seu dever era para com o Rei: um homem bom, merecedor da maior lealdade. O que aquilo queria dizer, não sabia. A única coisa que sabia era que sentia o coração mais quente.

O Rei de Fortriu nunca gostara de caçar, apesar de a arte fazer parte da educação de todos os nobres priteni, juntamente com o combate sem armas, a equitação, a habilidade para conduzir um debate lógico e a introdução à música e à poesia. Tendo sido educado por um druida, Bridei recebera um treino mais intensivo, no qual o conhecimento da tradição era profundo, o amor pelos antigos deuses da sua terra ainda mais profundo e a consciência de que a vida do Vale e do reino em geral era como uma grande rede, intrincadamente entrelaçada e perfeitamente equilibrada. A humanidade, os animais e as pessoas para lá da margem do tempo desempenhavam todos um papel vital. Matar um veado para comer era uma coisa; os deuses aceitavam a necessidade de sangue desde que o caçador fizesse a matança com o espírito adequado, com gratidão e respeito. Caçar e matar por desporto era outra questão e Bridei evitava-o sempre que possível.

Havia ocasiões em que era necessário ranger os dentes e fazer o que era preciso; até então tinha-se esquecido de Keother. O Rei das Ilhas Pequenas era um homem importante e tanto podia ser um aliado como um inimigo poderoso. Bridei só podia deixar o seu entretenimento nas mãos de Aniel e Tharan desde que a sua constante ocupação com outros assuntos não fosse interpretada como um insulto. Quanto a Breda, fora-lhe dito que era uma rapariga difícil, irrequieta e complicada. Apesar de Dorica e as outras mulheres da corte não lhe dizerem, tomara consciência de que a sua jovem hóspede estava a mexer com os nervos de toda a gente. O fato de ver a irmã ao cabo de tantos anos não a tranqüilizara. Tuala dissera-lhe que Ana, por seu lado, parecia triste com o encontro e que não se desviara do seu desejo de casar e partir de Monte Branco assim que possível.

A viúva de Ged, Loura, e o seu filho, tinham chegado de Abertornie, trazendo consigo o druida local, um homem tímido chamado Amnost. De outras terras distantes chegaram outros convidados, entre eles Umbrig, chefe-de-guerra dos Caitt, tão grande e barbudo como sempre. Mas não Carnach. Ninguém sabia nada dele e de Faolan, que tinha partido vinte dias antes, também não. O festival da Harmonia passara havia muito e o Verão estava quase a chegar. Não podiam esperar mais. Bridei marcou o casamento de Ana e Drustan para a lua cheia, dois dias depois; a festa da vitória comemorar-se-ia na noite seguinte. Em seguida partiu para a caça com os seus visitantes reais.

Foi uma expedição a cavalo, com falcões e cães, apropriada às terras onduladas entre Monte Branco e a fortaleza real de Caer Pridne. Como a estação ainda ia no princípio, as presas eram pequenas: coelhos, lebres, uma raposa ou duas e, mais perto do mar, grandes bandos de pássaros dos pântanos. O grupo era grande porque a maior parte dos guerreiros tinha agarrado a oportunidade de possibilitar umas boas corridas aos seus cavalos e de escapar à prisão da corte por algumas horas. Ao vê-los a cavalgar, rindo e brincando, Bridei lembrou-se do Outono anterior e do campo de Dovarben onde tantos homens bons tinham caído à sombra do seu estandarte. O Rei viu entre os rostos saudáveis e sorridentes dos seus chefes-de-guerra um fantasmagórico entrelaçado de cavaleiros, os homens leais que perdera na demanda de recuperar Dalriada: Breth, seu guarda e amigo; Ged, flamante e sempre animado, que lhe dissera palavras de dor e alegria na hora da morte; os homens de Pitnochie que conhecia desde os quatro anos de idade. E outros: os Priteni tinham sacrificado gerações de homens para reconquistar as suas terras e o seu orgulho. Não vou pensar, disse Bridei a si próprio. Não vou fazer a mim próprio a pergunta. Porém, estava-lhe sempre na cabeça, sempre. Vaguei um preço monstruoso pela minha vitória. Valeu a pena? Se os que caíram pudessem falar, talvez os ouvisse dizer: Desististe da coroa de Circinn; deitaste fora a vantagem que te conseguimos.

Havia poucas mulheres no grupo. Breda levara consigo três das suas acompanhantes e algumas das mulheres acompanhavam os seus maridos, mas a maioria ficara para trás. Ana e Drustan tinham razões para não querer ver animais a ser perseguidos e chacinados e não tinham sido convidados. Drustan tinha sido apenas avisado da caçada para que, juntamente com os seus pássaros, não se colocasse inadvertidamente em perigo.

Os filhos de Talorgen faziam parte do grupo; tinham-se transformado em dois belos jovens. Bridei não conseguia olhar para eles sem se lembrar de Gartnait, o seu irmão mais velho, que fora seu amigo íntimo. Muitos anos antes, Gartnait enredara-se na conspiração da sua própria mãe para matar Bridei e pagara a sua traição com a vida. O passado estava cheio de sombras, recordações sombrias que enlutavam os dias mais luminosos, as ocasiões mais alegres. Os homens bons tornavam-se maus e os amigos leais eram recompensados com a morte. A dúvida ameaçava paralisar a mão que devia governar. Se não tivesse notícias de Carnach dentro de pouco tempo, teria de nomear outro homem para o seu lugar. Se Faolan trouxesse notícias de uma sublevação, teria de agir rapidamente contra um homem que fora seu apoiador leal desde o primeiro dia do seu reinado. Estava errado. O instinto dizia-lhe para esperar. Porém, não podia; estavam todos ali, na corte e assim que Faolan regressasse, teria de tomar uma decisão. No fim de contas era o Rei; tinha de governar.

A caçada estava a correr bem. Um bom e saudável bando de falcões era outra parte essencial das caçadas de uma corte real. Os convidados recebiam uma ave e os chefes-de-guerra locais levavam as suas. O falcão de Keother apanhou uma lebre gorda e o de Talorgen uma raposa. Mais alguns tiveram sucesso. Aled, o filho de Ged, apanhou um pombo com o açor que trouxera de casa. Bridei largou o seu, não querendo chamar a atenção por se recusar a participar, mas a ave não apanhou nada. Os deuses não queriam que o Rei apanhasse uma peça de caça naquele dia e ele agradeceu-lhes.

Breda não caçava. A jovem montava bem, mantinha-se muito direita e a sua silhueta era favorecida pela túnica simples e pela saia azul-escura. Os seus abundantes cabelos louros estavam presos na nuca numa espécie de rede de contas. A jovem viu uma das suas acompanhantes a largar um pequeno esmerilhão que apanhou uma galinhola ainda menor e viu o filho mais velho de Talorgen, Bedo, a felicitar a jovem, desmontando para a ajudar a libertar a presa e a pôr novamente o capuz na ave super-excitada. A jovem também olhou para Uric, o qual olhava para ela por baixo das pálpebras e olhou várias vezes para Bridei, mas o Rei desconfiou que não era para ele, um homem casado, com filhos e de aspecto medíocre, sim para Dovran, que ele trouxera como guarda pessoal, deixando Garth com Tuala e o bebê. Dovran era novo e bem constituído, tendia a atrair os olhares das damas como nenhum outro. A disciplina que Garth lhe incutira levavam-no a fingir que não via os olhares da princesa. Tanto ela como Keother tinham os seus próprios guardas. Bridei tratara do assunto. O único dever de Dovran era velar pela segurança do Rei. Não continuaria com o emprego se não fosse bom.

Aconteceu sem ninguém perceber como. A ave da jovem dama, que estava a alguma distância da sua montada, estava a provocar alguns incômodos, abrindo as asas e tentando bicar-lhe a luva. Os dois filhos de Talorgen estavam a ajudá-la a colocar o capuz no esmerilhão. Os outros caçadores estavam em cima das suas montadas com os falcões imóveis nas respectivas luvas, conversando uns com os outros. Estava na hora de regressar a casa e a um bom jantar. O céu estava salpicado de nuvens douradas pelo Sol poente; as vozes dos gansos, perturbados pelos falcões, pairavam através dos pântanos, inquietas.

— Meu senhor Rei — disse Keother, colocando o seu cavalo ao lado do do Rei — que pensas de...

Breda gritou, um som súbito, perturbador, de medo total. O seu cavalo levantou-se nas patas traseiras, deixando-a precariamente com os pés fora dos estribos e as mãos agarradas às rédeas. Os cascos dianteiros do animal desceram no meio da multidão e depois desatou a correr.

Não havia tempo para pensar. Bridei olhou para Dovran e os dois homens lançaram-se atrás da égua em pânico e da sua amazona desesperada. O terreno era ondulado, cheio de buracos inesperados e de grandes pedras. Se Breda caísse ou fosse atirada ao chão, podia partir o pescoço ou esmagar o crânio. A rapariga passara um joelho por cima da sela, mas a maior parte do seu peso continuava suspenso das mãos agarradas às rédeas; não duraria muito. Os gritos atrás dos dois homens desvaneceram-se rapidamente; só se ouvia o som dos cascos, os grasnidos das aves e o barulho distante do mar.

— Socorro! — gritava Breda, e a égua entrou novamente em pânico, virando abruptamente para os pântanos. Bridei conhecia bem o local. Perto havia um lodaçal; o pântano que abrandaria a fuga engoliria, provavelmente, cavalo e amazona.

Bridei esporeou Snowfire e Dovran fez o mesmo à sua montada, mantendo-se ao lado do Rei. Os dois cavalos tinham visto muitas batalhas, formavam um todo com os seus respectivos cavaleiros. Muitos anos antes, um homem chamado Donal ensinara a Bridei certos truques de equitação e este passara-os aos seus guardas. A égua agitou a cabeça quando os dois cavaleiros apareceram a seu lado; a espuma da saliva voava. Os cabelos de Breda tinham-se escapado da rede e flutuavam ao vento como um estandarte dourado. Assim que os dois homens se aproximaram, cada um deles disse qualquer coisa à sua montada e deslizou na sela, inclinando-se na direção da égua e da amazona. Dovran esticou-se para agarrar na brida do animal e Bridei agarrou na parte mais fácil do corpo de Breda: os cabelos.

— Ai! — gritou ela. Bridei aproximou Snowfire ainda mais, ao mesmo tempo que Dovran começava a abrandar o passo do seu cavalo, refreando também a égua aterrorizada. O Rei inclinou-se ainda mais entre Snowfire e a égua, evitando que Breda, arquejando, caísse. A fuga desesperada transformou-se em galope, depois em galope brando, depois num passo incerto e exausto e finalmente parou.

O que faltara em dignidade e conforto à operação de socorro sobrara em eficiência. Bridei saltou para o chão e ajudou a jovem a desmontar, ao mesmo tempo que Dovran falava com a égua e procurava quaisquer danos físicos no corpo do animal. A fuga levara-os para longe. O resto do grupo via-se ao longe, um conjunto de pequenas figuras móveis. Ninguém os seguira, o que era estranho. Bridei sentiu um mau prenúncio. A rapariga tremia, mas não estava ferida, salvo alguns arranhões. Dovran declarou que a égua estava sã e salva, apesar de toda arranhada pelos arbustos por onde passara na sua fuga louca. Algo, porém, estava errado.

— Leva a senhora Breda contigo — disse Bridei ao seu guarda. — Eu levo a égua.

Dovran obedeceu, colocando as mãos em concha para ajudar Breda a subir para a sela.

— É melhor montares outra vez — disse o Rei à jovem. — Ajuda-te a recuperar a confiança. — Bridei mantinha um tom áspero, mas observava a princesa de perto. Apesar de sem fôlego, Breda estava notavelmente calma depois da sua aventura. Quando Dovran subiu para a sela, colocando-se atrás dela, a princesa virou a cabeça para olhar para ele, encantada e sentindo o rubor a subir-lhe às faces. Dovran manteve o olhar fixo na distância.

— Muito bem — disse Bridei com uma mão nas rédeas da égua e a outra no pescoço de Snowfire. — Devagar; este animal apanhou um grande susto.

Enquanto atravessavam o campo irregular, as pequenas figuras aumentaram de tamanho e as suas atividades tornaram-se mais claras.

— Guardião da Chama nos ajude — murmurou Dovran — que aconteceu?

Bridei, porém, não disse uma palavra ao ver os pormenores cruéis, uns a seguir aos outros: homens improvisando uma padiola, gente em volta de alguém sentado no chão, um homem ajoelhado com as mãos no rosto. Keother dava ordens e a gente de Bridei apressava-se a obedecer. Ao chegar junto do grupo onde os criados seguravam vários cavalos e vários cães pisoteados, o Rei viu uma capa estendida na erva e por baixo dela uma forma imóvel. Um pé saía debaixo da cobertura, um pé pequeno, calçado com uma bota de montar de senhora. O homem que chorava pertencia ao grupo de Keother.

— Não, não, não... — começou Breda a dizer.

— Acalma-te, minha senhora, acalma-te — disse-lhe Dovran deselegantemente. A princesa das Ilhas Pequenas, porém, deslizou do cavalo e aproximou-se aos tropeções da figura deitada ao comprido e afastou a cobertura cinzenta de lã. O sol da tarde incidiu sobre as feições pálidas e sobre os olhos parados da sua acompanhante de cabelos escuros cujo pai, conselheiro de Keother, era o que estava de joelhos junto do seu rosto da cor da cera, de mãos no rosto. Havia uma mancha carmesim na têmpora esquerda e nos cabelos da jovem.

Sem dizer nada, Breda tapou o corpo da sua acompanhante com a capa e afastou-se.

— Está morta — disse ela com voz monótona. Bridei atribuiu a sua expressão vazia ao choque. — Cella está morta.

O Rei desmontou. Parecia evidente que na sua descida desenfreada, os cascos da égua de Breda, antes de se pôr em fuga, tinham-na atingido na cabeça.

— Keother — disse ele, chamando a si todo o seu sangue-frio — foi um fim triste para o nosso dia desportivo. Não consigo expressar-te toda a minha tristeza. A tua prima escapou ilesa, mas esta jovem...

— Atingido pelos cascos do animal. — Era a voz de Talorgen. Bridei avistou-o a alguma distância, ajoelhado ao lado do seu filho Bedo. O rapaz, branco como a cal e de maxilares cerrados, tinha um olhar furioso. O seu pai atava-lhe rudimentarmente o braço ao peito, sem qualquer dúvida partido entre o pulso e o cotovelo. Uric, igualmente pálido estava ao lado de ambos com a ave da rapariga morta, encapuzada e imóvel, empoleirada na luva.

— Ela... — dizia Bedo, sibilando de dor quando Talorgen lhe ajeitou o braço. — Ela gritou...

— Silêncio — disse-lhe o pai. — Mais tarde. Bridei, como vês, o meu filho também ficou ferido. Uric foi atirado ao chão, mas não sofreu nada. Temos homens a fazer padiolas para levar a pobre rapariga e aqui o Bedo.

— Eu posso andar — disse o rapaz com voz cortante. O seu tom de voz tinha tanto de fúria como de dor.

— Lamento — disse novamente Bridei. Tudo aquilo era muito triste. Os deuses, afinal de contas, tinham decidido que o dia seria cruel. — Bedo, ouve o teu pai. Quanto mais depressa fores a um endireita, mais hipóteses tens de ficar com o braço bom para poderes pegar outra vez na espada e no arco. Keother? Temos de dizer uma prece pela jovem. Em seguida vamos levá-la o mais gentilmente possível para Monte Branco. — O Rei ajoelhou junto do pai da jovem. — Os meus respeitos, amigo, e as minhas desculpas por isto ter acontecido durante a tua visita a Fortriu e nas minhas terras. Não tenho palavras para expressar a minha tristeza. Vem, juntemo-nos numa oração e sigamos depois tristemente para casa.

Mais tarde, quanto todos já tinham regressado à corte e o corpo de Cella já estava lavado e envolto em panos para o funeral, Bridei foi para o pequeno pátio superior com a sua mesa de pedra redonda e pôs-se a olhar para a Lua, tentando ordenar os pensamentos. O Rei falara à família e às pessoas da casa reunidas em assembléia, dizendo-lhes que era seu desejo e de Keother, assim como do pai de Cella, que o seu funeral fosse levado imediatamente a cabo ali mesmo, em Monte Branco, já que a sua mãe não teria tempo de viajar desde as Ilhas Pequenas para se despedir da filha. Quando a notícia da morte de Cella chegasse a casa, a jovem já estaria morta iria para duas luas e as flores de Verão já lhe cresceriam na campa. Se tivesse ficado em casa, talvez estivesse naquele momento a brincar com o seu cão, a ver a Lua a nascer ou a dedilhar a sua harpa. Apesar das lágrimas, o pai mencionara o seu excepcional talento para a música.

Bridei anunciara que a festa da vitória se realizaria, como planejado, já que muita gente tinha viajado de longe para estar presente. As celebrações, porém, seriam tingidas pela tristeza. Aquela nova tragédia lembraria às pessoas quantos se tinham perdido na guerra do Outono anterior. A vitória andava de mãos dadas com a tristeza.

Excetuando a presença pouco exigente de Ban, o seu cão, e a figura sólida de Garth de guarda a poucos metros de distância, o Rei estava sozinho. Em breve iria ter com Tuala e falaria do assunto com ela, apenas os dois, procurando conforto na calma e no equilíbrio que ela conseguia na maioria das situações difíceis; encontraria alívio nas figuras doces dos seus filhos adormecidos para os quais a vida, até então, fora misericordiosamente livre de quaisquer complicações cruéis.

A morte daquele dia fora um acontecimento muito triste; era fácil meter-se na pele daquele homem, o homem cuja filha a Mãe Ossuda tinha levado num instante, quase arbitrariamente. Se fosse Derelei ou Anfreda, Bridei não sabia se seria capaz de tanta dignidade e constrangimento, pensou que gritaria, que censuraria os deuses, que se prostraria por terra. Em tais circunstâncias, Bridei sabia que o pai se sobreporia ao Rei.

Ban ganiu e Bridei baixou-se para lhe fazer uma festa.

— Está tudo bem, velho amigo.

— Quem está aí? — gritou a voz austera de Garth. — Identifica-te!

— Talorgen. Estou só. — A voz do chefe-de-guerra de Fonte do Corvo parecia desesperadamente cansada.

— Tudo bem, Garth — disse Bridei. — Sobe, Talorgen, estou aqui ao pé da mesa. Como vai o teu filho?

— O endireita está prudentemente otimista — disse Talorgen, atravessando o pequeno pátio e juntando-se ao Rei. A luz do luar transformava as suas belas feições numa máscara severa; não havia sinais do sorriso pronto que as pessoas conheciam tão bem. — Só um osso fraturado. Bedo pode vir a recuperar a força total do braço desde que siga os conselhos do endireita, o que inclui descanso total durante duas luas e o braço sempre ligado. Bridei...

— Desembucha — disse Bridei. Eram velhos amigos. Bridei passara muitos anos da sua vida em casa daquele alto chefe-de-guerra. Em Fonte do Corvo aprendera coisas que não teria aprendido em casa do druida, em Pitnochie. — Passa-se algo, não passa? Sinto-o.

— Estamos todos transtornados. — Talorgen encostou-se à muralha de braços cruzados. — Foi um grande azar.

Bridei não respondeu, limitou-se a esperar.

— O meu filho — disse o chefe-de-guerra, baixando a voz — com o braço enfaixado, a descansar com um chá de ervas à cabeceira e um médico da corte a vigiá-lo para que não mexa, sequer, um dedo... Bedo está a fazer umas acusações muito estranhas, Bridei e eu fiquei muito perturbado com isto tudo. Evidentemente, esta questão de Carnach também não ajuda nada. Precisamos de notícias de Faolan, quando não do próprio chefe-de-guerra. Se a rebelião está em ebulição, temos de estar preparados.

Bridei fez um desenho na pedra da mesa com um dedo. A luz do luar projetou-lhe a sombra da mão na muralha, qual mão de gigante.

— Que disse exatamente o teu filho? — perguntou ele, calmamente.

— Parece que acredita que o que aconteceu não foi inteiramente acidental — murmurou Talorgen. — Que houve qualquer coisa de esquisito no modo como o cavalo de Breda se levantou nos quartos

traseiros, sem razão aparente, o que é especialmente doloroso porque ele e a rapariga que morreu, a tal Cella, se tinham tornado amigos. Eu sei o que é passar de rapaz a homem. Os sentimentos de Bedo estão uma confusão. A morte súbita de uma rapariga da sua idade deve estar a fazê-lo questionar os deuses, se não mesmo o dia-a-dia das nossas vidas. Apesar de tudo ele é um rapaz estável, calmo e de confiança. Maturo para a idade. Não estou a dizer que ficou desfeito; não exatamente, agüenta com uma grande força de vontade. Uric parece ter as mesmas suspeitas: alguém provocou aquilo, alguém que queria ferir a rapariga. A mim parece-me pouco provável. A rapariga não passava de uma acompanhante, apesar de o pai estar bem relacionado. Mesmo assim...

— Diz o que tens a dizer, Talorgen. Ninguém nos pode ouvir para além de Garth, que é a discrição em pessoa. A propósito, onde está o teu guarda? Não devias ter vindo sozinho.

— Deixei-o com os rapazes, de guarda à porta deles. Talvez esteja a ficar velho, Bridei, esta noite sinto um medo irracional — disse o chefe-de-guerra, enrolando-se na capa.

— Deixa-me fazer-te uma pergunta.

— A vontade.

— O que é que fez com que a égua de Breda se tivesse levantado? Um pássaro? Alguém gritou? O cavalo é dos nossos, escolhido para a nossa convidada real devido ao seu temperamento pacífico. A Rainha Rhian costumava montá-la quando ia à caça.

Talorgen continuou silencioso.

— Os teus filhos estavam a ajudar Cella a acalmar a ave. O esmerilhão pode ter feito um movimento súbito. Apesar de tudo, os rapazes têm razão ao achar que uma coisa tão pequena não é suficiente para pôr em pânico uma égua tão pacífica.

— Talvez Breda seja uma amazona menos experiente do que muitas raparigas bem-nascidas da sua idade. — Talorgen não parecia convencido das suas próprias palavras.

— Ela agarrou-se bem quando o animal se levantou, apesar de não ter sido capaz de o impedir de fugir — disse Bridei.

— É verdade. A tua perseguição foi um ato de grande habilidade e coragem, Bridei. No horror do que se seguiu, ninguém se lembrou de o mencionar.

— Não foi nada. Limitamo-nos a fazer o que as circunstâncias exigiam. Dou graças aos deuses pelos truques que Donal me ensinou. Sem eles, Breda estaria agora com uma perna partida na melhor das hipóteses, ou afogada num mangue com a égua, na pior. Talorgen, de certo modo compreendo a preocupação do teu filho, mas não acho que tenha fundamento. Não estou a ver um ataque à rapariga que morreu. Se a intenção era magoar a jovem prima de Keother, não vejo qual possa ser a razão.

— Eu vejo várias — disse secamente Talorgen. — Para criar instabilidade, criar um atrito entre ti e Keother, com o qual as relações cordiais são essenciais. Para recordar a Keother que a morte pode atacar facilmente a meio de uma atividade de lazer, num dia de sol.

— Tornar o Rei das Ilhas Pequenas complacente, queres tu dizer?

— É uma teoria.

— Talorgen — disse Bridei — se a razão para este ato fosse essa, então o perpetrante mais provável teria sido eu. Ou um dos meus agentes. Eu sou o único suserano de Keother. Com Breda como minha convidada e como potencial refém para assegurar o bom comportamento do primo, não preciso de matar uma rapariga para marcar a minha posição.

— Ninguém no seu juízo perfeito suspeitaria de ti, Bridei.

— Dizes tu, que me conheces.

— Tens também de pensar na hipótese de Keother poder ter arranjado alianças novas. — Talorgen olhou em volta e baixou ainda mais o tom de voz. — Esta questão de Carnach, por exemplo. Se é verdade que ele está a revoltar-se contra ti, os dois podiam muito bem atacar-te pelo norte e pelo sul. Keother também pode ter-se aliado aos chefes-de-guerra Caitt. Nós sabemos muito pouco das lealdades dessa gente do norte, a um salto das ilhas de Keother.

— Meu amigo — disse Bridei — eu sei que estás preocupado com o teu filho. Um ferimento como o dele é um caso sério para um jovem cujo futuro está na guerra. Eu acredito que o que disseste há pouco é a chave disto tudo; os sentimentos de Bedo pela rapariga que morreu e a confusão e a angústia que ele sentiu por ter visto a morte tão de perto. Os teus filhos sofreram muito quando eram novos. A morte do irmão mais velho, ainda por cima admirado, deve ter deixado feridas profundas. Espero que não te ofendas por estar a falar do assunto; pode muito bem ter influenciado o modo como Uric e Bedo estão a lidar com isto. Tenho alguma relutância em pensar numa hipotética teoria da conspiração e mais ainda em discutir o caso com Keother; pode vir a ser extremamente embaraçoso. No entanto, suponho que Breda pode ser interrogada. Quando ela recuperar do choque, talvez se lembre do que pode ter alarmado a égua. Mas não o podemos fazer agora; disseram-me que ela está deitada. Vou ter uma palavra com Keother amanhã de manhã. Talvez seja melhor ser ele a interrogá-la. Ele portou-se bem, hoje. As coisas têm sido difíceis para ele; o pai da rapariga está muito perturbado. Temos de lhes dar algum tempo.

— Espero que tenhas razão — disse Talorgen, calmamente. — Talvez eu esteja apenas a sofrer de ansiedade paternal. Angustia-me ver o meu filho magoado. São bons rapazes, os dois.

— Eu sei. Diz ao teu filho que o aconselho a obedecer ao endireita. Ele que dê descanso ao braço. Sinto-me inclinado a acreditar que isto não foi mais do que pareceu: um acidente de conseqüências trágicas. Mas também podes dizer a Bedo que tomarei em consideração as histórias das pessoas sobre o que aconteceu, para ver se a sua teoria tem fundamento. Que os deuses nos ajudem; temos um funeral, um casamento e uma festa no espaço de apenas alguns dias. Rezo para que não nos mandem mais catástrofes até tudo isto acabar. Quanto a Carnach, vou procurar mais uma vez a sabedoria dos deuses. Talvez consiga persuadir Fola a lançar um augúrio. — Havia outro caminho, um caminho mais poderoso, mas não o mencionaria, nem sequer a Talorgen, amigo íntimo e conselheiro de confiança. Tuala podia procurar notícias de Carnach na água. Se Bridei lhe pedisse, fá-lo-ia em privado e tentariam encontrar a resposta em segredo. — Se isso falhar — disse ele — suponho que temos de esperar por Faolan.


CAPÍTULO DOZE

 

Com as mãos em concha em redor de uma caneca de cerveja, Faolan estava sentado a um canto sombrio de uma taberna em Thorn Bridge, observando e escutando. A sua missão levara-o para sudeste, perto de Thorn Bend, terra de nascimento de Carnach e mais perto ainda da fronteira de Circinn.

O assassino conhecia o homem que geria aquele estabelecimento; muitos anos antes apercebera-se da vantagem de se aliar a ele. Sempre que passava por ali, deixava sempre um pequeno pagamento em prata.

Ali não havia nenhuma aldeia, apenas a ponte e a estalagem, com uma herdade ou duas na vizinhança. A região era agradável, o terreno era ondulado e havia muitas árvores; as ovelhas que pastavam nos campos estavam gordas e saudáveis. Através do vale corria o Rio Thorn, um largo curso de água que dividia os dois principais reinos dos Priteni, Fortriu e Circinn.

Na ponte encontravam-se três caminhos. Um ia para sul, para Thorn Bend, um para norte e oeste em direção a Caer Pridne e o terceiro para leste em direção a Circinn antes de se juntar a uma estrada que ia dar à corte de Drust, o Javali. Pelo menos tinha sido dele. Agora havia um Rei novo naquele reino: Garnet, irmão de Drust. Faolan soubera-o pelos viajantes que passavam por ali e que faziam uma pausa para comer, beber qualquer coisa e dar descanso aos pés ou aos cavalos. A estalagem de Thorn Bend era ideal para conseguir informações. Faolan estava hospedado nela havia vários dias.

Por vezes dava uma ajuda ao estalajadeiro para pagar a cama nos estábulos — os pagamentos em prata eram mais para que o homem se mantivesse calado do que para pagar a comida e o alojamento — e por vezes limitava-se a ficar sentado; cortara o cabelo à escovinha, não se barbeava desde que saíra de Monte Branco e usava roupas de trabalhador. Podia ser um homem qualquer. Quando tinha de falar, usava um sotaque neutro baseado no de Garth, uma voz que o identificava como homem de Fortriu, sem nada de especial que indicasse a sua terra natal ou estatuto familiar. Até então ninguém lhe perguntara qual era a sua profissão. Os olhos das pessoas tendiam a passar por ele sem o ver, era praticamente invisível.

Havia pequenos bandos armados nas estradas, aqui e ali. Pelos que não eram muito calados, pelos camponeses e pelos comerciantes, Faolan soubera que Garnet era o atual Rei de Circinn e que Carnach passara por ali algum tempo antes a caminho da corte do novo Rei. Fazê-lo tão abertamente era incaracterístico porque o chefe-de-guerra de Fortriu era um homem subtil. Havia algo que não batia certo.

Faolan olhou para a cerveja intocada, observando os padrões que se formavam ao virar a caneca nas mãos. Precisava de mais. Mais um dia, ficaria mais um dia e se não ocorresse nada de conclusivo, teria de cruzar a fronteira e ir a Circinn. Os rumores falavam de uma possibilidade sombria. Tinha de ter a certeza que tinha fundamento antes de a passar a Bridei.

Faolan estremeceu, afastando a caneca de cerveja. Uma rebelião: talvez outra guerra. Se acontecesse, não seria como da última vez, ocasião em que o Rei o mandara escoltar Ana para que não tivesse de lutar. A viagem revelara-se tão sombria e perigosa que ele e Ana tinham emergido dela como duas pessoas diferentes. E depois Bridei mandara-o para casa, outra viagem que se revelara uma aventura estranha, aterradora, cheia de surpresas. O assassino deu consigo a sorrir. Eile e a sua forquilha; Eile na ponte em ruínas, em risco de cair. O sorriso apagou-se. Eile cheia de sangue. Saraid cheia de febre, respirando com dificuldade. Eile perguntando-lhe... Não, não ia pensar naquilo; atormentara-lhe os sonhos durante noites de mais. Quando regressasse a Monte Branco já ela se teria ido embora. Nada mais certo depois daquela missão que o levara tão a sul e cujas informações demoravam tanto a aparecer. Eile já não estaria lá e Ana também não. Era o melhor para toda a gente. Se houvesse guerra outra vez, dessa vez entre Fortriu e Circinn, não havia razão para que ele não se colocasse ao lado do seu patrono para o proteger. Lutaria ao lado dos melhores. Se fosse, Garth poderia ficar para trás e sobreviver. Garth tinha mulher e filhos. Ninguém precisava dele; podia ser o guerreiro perfeito, sem razão para temer a morte.

Por um momento, Faolan imaginou a possibilidade: morrer heroicamente como Deord, rodeado de inimigos mortos. Então, algo o fez levantar os olhos e viu o pai de Eile sentado na sua frente, à mesa da estalagem, com os braços musculosos cruzados e os olhos serenos fixos em Faolan, interrogativos. Esqueceste-te?, murmurou o guerreiro fantasmagórico. Estás em dívida para comigo. Sabes qual é o pagamento. Vive a tua vida, vive-a por todos aqueles que nunca saíram de Pedra-que-Quebra. E, à medida que a figura se desvanecia, ouviu um grito de Eile: Faolan! Vimos buscar-te! As lágrimas picaram-lhe os olhos. Se houvera alguma vez um herói escondido algures dentro de si, tinha desaparecido. Não tinha vontade nenhuma de ir para a guerra.

— Até agora fiz muito pouco, amigo — murmurou ele para a imagem de Deord a desvanecer-se. — Quebrei uma promessa. Duas promessas. — Dissera a Eile que estaria à espera quando ela e Saraid chegassem a Monte Branco. Deixara-a mais uma vez sozinha. Que lhe dissera em Erin? Desde que precises de mim, estarei sempre presente.

Mas estavam em segurança com Ana e Drustan. Eile devia sentir-se feliz, com mais hipóteses de fazer qualquer coisa da sua vida. Não podia fazer nada; trabalhava para Bridei; a sua vida era aquela, uma missão após outra, uma vida de viagens, de risco, de morte súbita e acasos perigosos. Era o que fazia, era a única coisa que sabia fazer e sabia que era bom no seu ofício. Bridei precisava dele, não o podia deixar ficar mal.

Faolan deixou-se ficar sentado mais um pouco a olhar sem ver para a sala da estalagem na penumbra, vazia à exceção dele próprio e do proprietário, o qual varria o chão. O assassino tentou evitar que a mente lhe andasse à roda. Naquele momento, a única coisa que interessava era a missão de Bridei. Fizera a sua escolha em Pitnochie, quando falara com Ana e Drustan e voltara a escolher quando não conseguira deixar uma mensagem a Eile em Monte Branco. Uma coisa tão simples. Parti em missão. Lamento se não pude estar presente, tal como prometi. E talvez: Espero que sejas feliz em Vale dos Sonhos. Tinha tudo na cabeça. Mas dizê-lo a quem? Faolan, assassino e espião do Rei, um homem tão secreto que as pessoas pensavam que não tinha sentimentos, viajando com uma jovem e uma criança? Deixar mensagens a quem? Imaginava as sobrancelhas levantadas, os sorrisos cúmplices, as conjecturas. Nem a Bridei conseguiria transmiti-las; Bridei, que tentara convencê-lo que não era um profissional assim tão duro, tão impenetrável. Para continuar, para fazer o que o seu ofício lhe exigia, tinha de ser duro e impenetrável. Para fazer o que tinha de fazer, havia de pôr de lado qualquer noção de vida diferente. Sentimentos suaves tornavam um homem vulnerável, enfraqueciam-no, podia ser explorado. Um homem cujo ofício se baseava em conspirações, subterfúgios, fraudes e morte súbita tinha de andar sempre sozinho. Tentar outra coisa era pôr os que amava em perigo. Se não soubesse que era assim teria ficado em Encruzilhada do Rabequista, onde Eile podia ter sido feliz.

O sorriso voltou-lhe ao lembrar-se dela sentada à mesa com os cabelos ruivos lavados de fresco, brilhando à luz do Sol que entrava pela grande janela. Faolan imaginou-a com o vestido azul que Líobhan lhe dera. A cor viva fazia-lhe sobressair a palidez. «Come devagar, Saraid», ouviu-a ele dizer, e viu a criança com os olhos muito grandes, muito solene, partindo o pão em pedaços pequenos.

Faolan levantou-se e dirigiu-se para a porta da rua, incapaz de estar quieto. A lógica não entrava naquele argumento. A lógica não lhe preenchia o vazio que sentia; não explicava os sonhos.

Quando se passou mais uma noite sem notícias frescas, Faolan abandonou Thorn Bridge e dirigiu-se para Circinn, mas não pela estrada, pelo campo, por vezes a pé e por vezes à boléia numa carroça qualquer, sempre para sul. As notícias que conseguira estavam cheias de contradições. O assassino esperava não ter de se infiltrar na própria corte. Se assim tivesse de ser, a missão demoraria mais tempo e tinha de pensar nos cristãos que eram esperados em Monte Branco antes do solstício de Verão e no druida do Rei, que continuava ausente da corte. Faolan queria a questão da rebelião resolvida antes daquele desafio novo. Se Carnach planeava uma revolta, que a declarasse. Se tinha uma aliança com Circinn, que a anunciasse para que todos ficassem a saber. Se ia haver guerra outra vez, que os conspiradores, pelo menos, tivessem a decência de permitir que Fortriu respirasse fundo antes de receber o primeiro golpe.

O assassino pôs Eile e Saraid de lado, num canto da mente, mas descobriu que não conseguia bani-las por completo, tinham o hábito de reaparecer de vez em quando através de uma imagem pequena e intensa ou de algumas palavras apenas. Faolan deixava passar tais momentos e tentava não pensar demasiado neles. A noite era pior; sonhava. Muitas vezes acordava com o corpo quente e duro, cheio de desejo, e mergulhava nas águas frias de um regato ou desatava a fazer qualquer coisa furiosamente para se acalmar. Em tempos, a imagem de Ana também o atormentara daquela maneira; a sua princesa de cabelos dourados entrava-lhe regularmente nos sonhos, tão encantadora e intocável como uma fada das histórias antigas. Para seu espanto, a situação mudara quando a vira em Pitnochie, triste com a perda do bebê mas profundamente contente com a escolha que fizera. O que fora uma paixão que ameaçara possuir-lhe a própria alma tornara-se, sem que se desse conta, num sentimento mais calmo e menos perigoso: um laço de profunda amizade para a vida inteira.

Os sonhos persistiam, sensuais e torturantes. Ana, porém, já não entrava neles. Naquela viagem, a mulher que se deitava a seu lado à noite era mais nova, mais esguia, tinha cabelos cor de fogo, pele pálida e sardas. O seu toque era docemente hesitante e o seu corpo era uma maravilha pronta a ser explorada, flexível, fresco, generoso. Por vezes fazia as coisas como devia ser, satisfazia-a e ouvia-a gemer de satisfação, sentia-a mexer-se por cima ou por baixo de si, suspirando, via-a sorrir deliciada, surpreendida. Por vezes, porém, fazia tudo mal e mandava-a de volta para o pesadelo de Dalach, para a dor, para a impotência. Acordar de tais sonhos era um tumulto de sentimento de culpa e de tristeza, temperado por um alívio profundo. Dava graças aos deuses por ter recusado a sua oferta.

Uma vez no interior das fronteiras de Circinn, Faolan decidiu enfrentar a tarefa que tinha pela frente com mais cuidado. Não se podia dar ao luxo de ser preso, tinha de regressar a Monte Branco assim que tivesse o que procurava. Durante mais dois dias continuou a viajar, parando aqui e ali para saber a direção, falando com os camponeses que lhe davam boléia, visitando uma casa de monges cristãos onde lhe ofereceram pão, vinho de pastinaga e o aconselharam a ter cuidado porque as estradas não eram seguras. O assassino perguntou-lhes porquê e o monge murmurou que se falava de grupos de homens armados, de emboscadas e desassossego. Sentindo que não devia fazer mais perguntas, Faolan despediu-se e continuou o seu caminho.

Nunca dormira muito. A natureza do seu ofício obrigava-o a passar muitas noites à escuta na escuridão. Normalmente dormitava, mas só quando estava tudo perfeitamente calmo. Recentemente, porém, os sonhos aliciavam-no, afastando-o de uma disciplina imposta havia muito tempo. A noite mergulhava num poço de sono do qual não emergia senão perto da madrugada. Os sonhos enredavam-no; por vezes eram mais reais do que a vida diária, durante a qual percorria caminhos, se escondia, procurava informações. Quando o sonho era bom, chegava a acordar e voltava a mergulhar num mundo secreto e suave. Um homem em missão secreta não se podia dar ao luxo de sentir tal prazer. Tais deslizes podiam conduzir a um verdadeiro desastre.

Foi o que lhe aconteceu uma manhã, quando já estava bem no interior de Circinn. Estava abrigado numa meda de feno, envolto na sua capa. Um muro de pedra mantinha o vento afastado. Ela estava nos seus braços, mas não suspirava nem se agitava de paixão, dormia encostada a ele; passara-lhe o braço por cima do peito e pousara-lhe a cabeça no ombro. Faolan cobriu-a com a capa e a sua mão acariciou-lhe os longos cabelos sedosos. Estava quase a amanhecer. Parecia-lhe um milagre ela estar ali encostada a ele, sentindo-lhe o bafo na pele, o calor do corpo, como uma bênção, o sono profundo dizendo-lhe que, contra todas as probabilidades, conquistara-lhe por completo a confiança... O assassino ouviu uma voz fininha mesmo ao lado da cama. Levanta-te, Feeler. Lamento tem fome.

Faolan abriu os olhos. Mesmo em frente do seu rosto estava a ponta de uma lança e por trás dela um homem armado.

— Não compreendes uma simples ordem? — perguntou o homem da lança. — Levanta-te! Vamos, queremos ver-te. E quero as mãos bem abertas. Mexe-te!

O assassino levantou-se. Não era apenas um homem, eram pelo menos sete ou oito. Não tinha tempo para pegar nas armas; a pequena faca estava no cinto, mas os assaltantes eram demasiados. Não ajudaria ninguém se se deixasse matar. Enquanto o arrastavam, atando-lhe as mãos atrás das costas, Faolan reparou que não estava perante uma turba de bandidos de estrada, antes um grupo disciplinado que tinha por missão aprisioná-lo.

— Quem sois? Que é que eu fiz? — perguntou ele, mas foi imediatamente silenciado com uma mordaça. A situação não estava nada boa. Não interessava. Conseguiria as informações de uma maneira ou de outra e depois fugiria. Ainda tinha a faca.

— Revistai-o — disse alguém. — Depressa. Estamos muito perto da estrada.

Tiraram-lhe a faca e o saco das provisões. As outras armas e o dinheiro tinham ficado escondidos na palha. O grupo conduziu-o ao longo da orla de um campo, fê-lo passar por um portão e meteu-o na escuridão de um bosque sombrio.

Só havia um pensamento na mente do druida: Para casa. O seu significado, porém, era vago: uma casa rodeada de carvalhos, um silencioso quarto de paredes de pedra, objetos dispostos ordenadamente... Broichan desatou a correr, consciente da natureza instável do chão da floresta por baixo dos pés descalços, da sua respiração forte e fácil, do seu corpo explodindo de alegria, livre. Vou para casa. As árvores formavam uma tapeçaria maravilhosa que se alterava à sua passagem: faias brilhantes, bétulas prateadas, pinheiros escuros, fetos suaves e azevinho eriçado na base dos troncos. Os seus pés pisavam folhas caídas, esmagavam agulhas de pinheiro, libertando um aroma pungente, deslizavam sobre cascalho e chapinhavam pelos riachos conhecedores de cada seixo, cada pedra cheia de musgo, cada pincelada de sol ou de sombra. Do alto do seu trono, no céu, o Guardião da Chama sorria-lhe.

Abrandou o passo ao aproximar-se da orla da grande floresta. As recordações começaram a aparecer, infiltrando-se nos grandes espaços brilhantes que a jornada de Inverno lhe abrira na mente. Regressavam uma a uma: uma criança, o seu aluno, o seu querido aluno... caracóis castanhos, olhos azuis, um rapaz minúsculo e solene que falava como um sábio... o seu filho... não, seu filho não, mas mais querido do que um filho. Bridei. Mas Bridei já era um homem, um Rei. No entanto continuava a ver uma criança... uma criança diferente, um rapaz com um talento excepcional, uma promessa prodigiosa, uma criança sobrenatural, preciosa... do seu próprio sangue...

— Derelei — murmurou o druida com uma voz áspera e estranha depois de uma estação inteira de silêncio. Assim que deu um nome à imagem, começaram a aparecer outras: Bridei já homem, forte e solene e Tuala... Tuala, a filha que tanto prejudicara, que tinha de aprender a conhecer com amor, confiança e coração aberto. Sentia que era capaz; sentia que podia tentar.

Broichan parou numa clareira orlada de salgueiros e amieiros: um lugar pertencente à Aquela que Brilha. O regato cujo curso seguira desaguava numa lagoa redonda e profunda, ladeada por pedras cheias de musgo. Os peixes, pequenos, escondiam-se rapidamente por baixo das plantas aquáticas e acima da superfície as libelulinhas voavam em ziguezague com as suas asas transparentes, de uma graça maravilhosa.

O druida ajoelhou-se em cima das pedras, junto da lagoa. Estava em casa. A palavra tinha um mundo de significados. Talvez afinal, a palavra casa não fosse um lugar, antes um estado de espírito. Talvez significasse perdão, aceitação, pertença. Seria aquela simples mensagem a soma de todo aquele Inverno de aprendizagem ?

Broichan olhou para a água. Para um homem experiente na arte da adivinhação, da premonição e da profecia, era um acto instintivo. Se Aquela que Brilha tinha uma mensagem final para ele antes do fim daquela jornada, revelar-lha-ia ali naquele local tranqüilo, no seu último local de descanso antes de sair da floresta e regressar ao mundo do homem.

Um rosto olhou para ele. A princípio ele pensou estar perante uma visão, uma imagem para lá da morte porque estava a ver o seu velho amigo Uist, um druida solitário da floresta que sempre fora considerado meio louco; os cabelos estavam desgrenhados e as longas madeixas tinham folhagem, gravetos e musgo agarrados; os olhos eram loucos, viam e não viam; a silhueta estava suja e, por baixo, completamente nua. O druida ergueu uma mão e o louco na superfície da lagoa fez o mesmo num cumprimento irônico.

Broichan voltou a olhar e tentou analisar o que estava a ver. Os cabelos desgrenhados eram de todos os tons entre o branco e o preto. Não estava a olhar para Uist, estava a olhar para um homem mais novo. Os olhos eram tão escuros como duas obsidianas polidas e não tinham a claridade pálida dos do velho sábio. O corpo... Não queria olhar outra vez, reconhecer a sua própria nudez pálida, enrugada, descarnada. Mas eu sinto-me novo, pensou ele. Sinto-me bem. Sinto-me mais vivo do que nunca. Quero correr, gritar, cantar, fazer maravilhas. Porém, uma voz interior respondeu-lhe: Também ele. Era verdade. Uist tivera a visão de um homem novo e a sabedoria de um ancião, até no momento de partir para o outro mundo.

O druida levou uma mão às costelas, sentindo a protuberância dos ossos e a falta de carne devido aos tempos de privação; tocou nos cotovelos e nos joelhos; tocou no pescoço e no queixo, olhou outra vez para a água e tentou ver a imagem como uma criança, uma mulher ou um pastor com o seu rebanho na orla da floresta, levantando os olhos para ver uma figura a caminhar à sombra dos carvalhos.

— É esta a soma do meu saber? — murmurou ele. — No espaço de uma estação transformei-me numa sombra de mim mesmo? — A figura na água olhou para ele com os olhos brilhantes de loucura, os cabelos como um ninho de ratos, o corpo exposto em toda a sua magreza e miséria. O druida afastou-se da lagoa e recuou para a sombra, ao abrigo das árvores. — Que estás a dizer-me? — perguntou ele à Aquela que Brilha, sentando-se numa rocha coberta de musgo para refletir nas respostas que lhe começavam a aparecer nos pensamentos.

Broichan recordou a si próprio que as aparências exteriores não representavam necessariamente a verdade, que muitas vezes o significado das coisas estava profundamente escondido. Talvez a jornada devesse ser mais lenta. Talvez devesse andar e não correr.

— Renasci — murmurou ele sem saber ao certo se as palavras eram suas ou se pertenciam a outra voz. — Um bebê. Tenho de aprender tudo de novo: a andar, a falar, a ouvir. — O druida viu-se em Pitnochie muitos anos antes com um rapaz pequeno e solene a seu lado, ensinando-lhe uma lição. Pisa cuidadosamente o caminho, dizia o homem mais novo. Que os teus pés façam parte da terra que calcam. Entra nos pensamentos da coruja, da lontra, do escaravelho, do salmão. Fala com o coração. Ocorreu-lhe que tinha perdido o contacto com a sabedoria simples que inculcara em Bridei. Havia outra criança para ensinar, uma criança perigosamente capaz que precisava ainda mais dele do que o inexperiente Rei. Continuaria, portanto, mas lentamente. Daria cada passo com o amor de Aquela que Brilha no coração e os sentidos alerta para a grande lição do Inverno, uma lição que era como um farol, uma lição que se chamava amor.

— Eu quero... diz uma coisa, Eile — disse Ana no seu gaélico hesitante. O casamento seria no dia seguinte. Apesar da morte trágica da dama-de-companhia de Breda, ficara decidido que a cerimônia não seria adiada. Eile estava a ajudar a noiva nos retoques finais do vestido, uma túnica simples e uma saia de lã cor de creme com pequenos pássaros bordados em redor da bainha. — O casamento... eu quero que tu... comigo... não irmã... Parece mal, mas quero assim. Tu... no ritual... por Faolan. Nós... muito amigos...

Eile não respondeu; não havia resposta possível. Provavelmente tinha percebido mal, se bem que, se Ana tinha dito mesmo que não queria que Breda fosse à cerimônia, pensava saber qual era a razão. Por vezes o comportamento da princesa das Ilhas Pequenas era decididamente estranho e nunca se sabia que insulto proferiria a seguir. A jovem fidalga procurara Eile em diversas ocasiões depois do seu primeiro encontro, como se quisesse fazer dela uma amiga especial, mas esta não conseguira simpatizar com ela. Por vezes, Breda conseguia ser divertida de um modo irritante, mas para além da idade as duas raparigas não tinham mais nada em comum. No entanto, Ana era boa pessoa, sensata e gentil. Talvez tivesse percebido mal as suas palavras.

Saraid instalara-se em cima da cama, rodeada dos artigos da caixa de costura de Ana e encostava os tecidos todos à figura quase informe de Lamento para ver se lhe ficavam bem. A boneca continuava a usar o vestido cor-de-rosa que a irmã de Faolan lhe fizera.

— Roupa nova? — perguntou a criança cheia de esperança.

— Só uma — respondeu-lhe Ana. — Escolhe tu, Eile e cose-lha.

— Não é preciso. Ela não devia pedir... Ana pousou uma mão no ombro da jovem.

— Eu quero — disse ela. — Ela é tão pequena... como saber? Um presente. Despedida. Uma pena... muitas saudades... Pena não poder ir conosco. — Em seguida, ao ver a expressão de Eile, acrescentou: — Tu ficas aqui. Faolan precisa... tu esperas... Tu aqui quando ele regressar.

Eile perguntou novamente a si própria se teria percebido bem.

— Esperar não é bom — disse ela cuidadosamente na sua nova língua. — A minha mãe... ela parar de esperar. Eu não... ser minha mãe... — As palavras começaram a sair-lhe em gaélico. — O meu pai nunca mais voltou para casa. Fartamo-nos de esperar, mas ele não veio. — A jovem tentou impedir que as lágrimas lhe corressem pelas faces abaixo. Talvez só conseguisse contar aquela história sem chorar quando fosse velha.

Ana acocorou-se a seu lado e abraçou-a. Era bom, mas as lágrimas corriam mais depressa. Consciente dos grandes olhos de Saraid e do seu queixo trêmulo, Eile respirou fundo e tentou acalmar-se.

— Perdoar — disse Ana. — Tu dever perdoar ele. O teu pai. Bom homem. Ele tentou. E... Faolan não é Deord.

— Eu sei — replicou Eile, levantando-se e começando a ajudar Ana com a roupa do casamento. — Vou dar aqui um ponto ou dois para ficar pronto. Breda vai usar o quê?

Ana fez uma careta.

— Não sei. Ela não está... interessada. Quem me dera...

— Azul. — Saraid tinha escolhido o tecido para a boneca; suave, quente, da cor do céu numa manhã de Verão. — Fazer agora. — E um instante depois: — Por favor.

— Mais tarde — disse Eile. — Dobra-o como eu te mostrei. Talvez consigamos arranjar uma faixa entrançada para a bainha, para ficar parecido com a saia da Ana. — A jovem começou a arrumar as roupas do casamento quando Ana voltou a vestir a roupa de todos os dias e pensou em Breda. Breda costumava esperar por ela no jardim. Breda não estava autorizada a visitar a Rainha apesar de ser de sangue real e Tuala não ser. Apesar do bando de acompanhantes e do seu lugar à mesa do Rei, Breda parecia sentir-se só. — Talvez a tua irmã tenha saudades de casa.

— Eu... refém... oito anos — disse Ana, suavemente. — Breda... talvez a próxima.

— Sim, Drustan explicou-me. — Era estranho que Ana, uma hóspede tão adulada, tão amiga de Tuala, só tivesse aparecido na corte como garantia da complacência do primo face ao regime de Bridei. A jovem sentiu uma onda de simpatia por Breda, apesar de ela ser uma rapariga estranha. Talvez não houvesse grande diferença entre uma escrava, comprada com uma éraic, e uma refém de uma potência política. Cada uma delas sacrificava a sua liberdade; cada uma delas ficava sem o poder de determinar o seu próprio futuro. No entanto, das duas, Eile sabia que tivera mais sorte. Talvez a éraic fizesse dela uma espécie de escrava. Aos olhos de algumas pessoas, talvez fosse sempre uma. Porém, não se sentia inquieta nem descontente, como Breda. Havia naquela fortaleza tantas coisas boas: calor, segurança, amizade, conhecimentos... Era como começar qualquer coisa nova e agradável. Tinha de ter cuidado. Não se podia esquecer que as coisas podiam mudar com facilidade.

— Vem, Saraid — disse ela, estendendo uma mão. — Podes dizer-me a espécie de vestido que Lamento quer, que eu começo-o logo.

— Vestido de noiva — disse Saraid. — Azul. Traçada. Bonito, como Ana.

— Entrançada — corrigiu-a Eile, fazendo uma careta.

Ana sorriu e estendeu-lhe uma fita bordada com borboletas douradas e minúsculas contas cor de âmbar.

— Oh, não posso... — protestou Eile.

— Só um bocado, Lamento tem de estar bonita... Faolan diz heróica... Como tu e Saraid.

Após a tragédia da caçada, Eile fizera os possíveis por se afastar do caminho de toda a gente. A jovem conhecera Cella ao de leve porque as acompanhantes de Breda achavam Saraid tão querida como uma boneca e paravam muitas vezes para a acariciar, não sem um olhar ou dois de curiosidade na direção de Eile. A própria Breda tinha duas faces no que dizia respeito a Eile. Quando acompanhada pelas suas aias, ignorava-a por completo, mas quando estavam as duas sozinhas, agarrava a oportunidade para descarregar boatos atrás de boatos sobre pessoas da corte, especialmente os homens. Breda era realmente uma jovem muito estranha.

Cella, pelo contrário, fora uma das raparigas mais amistosas. Não conseguia imaginá-la morta: tão nova, mais nova do que ela. Quanto ao filho de Talorgen, se queria rivalizar com o pai como guerreiro chefe-de-guerra, ia precisar de toda a sorte que os deuses lhe quisessem conceder, agora que tinha o braço partido.

Na manhã do casamento, Ana e Drustan bateram cedo à porta de Eile. A jovem acabara de se vestir e estava de joelhos a apertar o vestido de Saraid.

— Breda mandou-nos uma mensagem a dizer que não se sente bem e que não vai participar no ritual — disse Drustan. — Não vamos protelá-lo mais, já esperamos o suficiente.

A jovem sabia que ele odiava a corte, que ansiava por poder assumir a sua outra forma, voar sobre a floresta e ver tudo com os seus olhos de pássaro. A inquietação que tinha vindo a aumentar visivelmente, estava a atingir o limite e tornar-se-ia em breve intolerável. Eile pensou no lugar subterrâneo e sombrio que ele lhe descrevera, o lugar onde o próprio irmão o aprisionara durante sete anos. Deord ficara com ele durante os sete anos, mantivera-o ativo, afastara-lhe o desespero, arriscara tudo para lhe permitir os breves vôos para a liberdade. Drustan estava na corte de Monte Branco ia para uma lua e dissera-lhe que não se transformaria enquanto ali estivesse já que a corte estava cheia de convidados que poderiam vê-lo e não compreender. Porém, teria de mudar de forma rapidamente; a necessidade era premente.

Ocorreu a Eile que Ana também teria uma vida de espera, mas escolhera de livre vontade e sentia-se feliz. Talvez o amor fosse a causa. Aqueles dois eram bem-aventurados; bem-aventurados por se terem encontrado.

— Queremos que assumas o papel de Breda, Eile — disse Drustan. — Seria uma honra para nós se aceitasses.

Eile sentiu-se corar.

— Mas... — começou ela.

— Bridei e Tuala aprovaram. Só tens de dizer duas frases e tens muito tempo para as decorar. Wid ajuda-te. O druida sabe que a língua é nova para ti. Gostaríamos muito.

— Por favor, Eile — disse Ana, falando o seu limitado gaélico. — Tuala empresta vestido. Mesmo tamanho.

Assim, ao crepúsculo, Eile viu-se metida num vestido da Rainha cor de violeta debruado a cinzento e com uma grinalda de flores na cabeça, no meio de uma cerimônia de casamento no pátio superior. Os archotes ardiam em redor do espaço lajeado com a sua mesa central. Eile não imaginara daquela maneira o casamento de uma princesa, mas achou-o perfeito. Por causa de Faolan tentou não se esquecer de nada. Ele podia ter dito que não queria estar presente, mas ela sabia que ele gostaria que lho descrevesse, se tivesse hipótese. Ana era a sua amada e ia perdê-la. No entanto, os seus sentimentos continuavam a ser os mesmos.

A espera estava um pequeno círculo de pessoas. O local e a hora não tinham sido anunciados publicamente e Dovran e o valente Garth estavam de guarda no alto dos degraus que iam dar ao pátio inferior, assegurando-se de que não haveria convidados indesejados. Ana parecia uma visão com o seu vestido cor de creme e os cabelos soltos sobre os ombros. Drustan usava uma túnica castanho-avermelhada, calças por cima de uma camisa branca e tinha a sua selvagem crina atada na nuca, mas algumas madeixas escapavam-lhe para a testa, fazendo lembrar verdadeiras chamas. O corvo estava empoleirado num ombro e o trinca-nozes noutro. Os olhos de ambos brilhavam, mas os de Drustan brilhavam mais, fixos em Ana com tanto amor e ternura que Eile começou a pensar que talvez algumas coisas que Faolan lhe dissera sobre os homens e as mulheres fossem verdade, afinal de contas. Havia uma confiança doce entre os dois e uma paixão tímida que se notava em cada toque, em cada olhar. A jovem não conseguia imaginar Drustan a tratar a sua mulher com crueldade, ou a exigir que ela suportasse qualquer coisa que temesse ou da qual não gostasse. Não era possível da parte de um homem tão gentil, tão cortês, tão generoso. Ana estivera grávida de Drustan. Queria aquilo dizer que era possível dormir com um homem e, se ele fosse a pessoa certa, ter prazer? Seria realmente verdade?

Se tivesse tido tempo, muito tempo, talvez tivesse aprendido palavras suficientes para fazer a Ana aquela pergunta na língua priteni. Mas Ana ia-se embora. Ela e Drustan não iam ficar para a festa da vitória. No dia seguinte já não os veria. Para sempre era muito tempo. Provavelmente regressariam a Monte Branco dois ou três anos mais tarde, talvez já com filhos. Pelo que a sua vida fora até então, Eile pensava que já não estaria ali para recebê-los.

O druida, Amnost, disse calmamente, com reverência, as palavras rituais. Eile não percebeu a maior parte, mas Wid explicara-lhe, enquanto lhe ensinava as respostas, que o casamento era jurado sobre os quatro poderes: a terra, a água, o fogo e o ar e que a Aquela que Brilha, a deusa mais adorada pelos Priteni, abençoava marido e mulher. Ana respondeu suavemente, com o coração nas mãos. Drustan respondeu com ardor, com a voz a tremer.

Bridei e Tuala assistiram de mãos dadas, mais como um casal de jovens amantes do que como monarca e consorte. Keother, o primo de Ana, estava presente, um Rei de pleno direito, uma figura silenciosa, imponente. Alta, severa, Ferada estava no extremo oposto do círculo. Eile soubera que ela era a diretora da escola para raparigas que ela recusara na sua primeira conversa. Uma erudita. Uma mulher que desafiara as convenções e que escolhera o seu próprio caminho. Ao lado de Ferada estava um homem muito grande e muito simples cujo papel Eile desconhecia. Os dois não se tocavam, mal olhavam um para o outro. No entanto havia algo entre eles, algo poderoso. Como se estivesse consciente dos pensamentos de Eile, Ferada olhou para ela e as suas sobrancelhas bem desenhadas ergueram-se.

A assistir o druida no ritual estava uma mulher sábia, uma sacerdotisa. Fola, tal era o seu nome, uma personagem de cabelos brancos e de tamanho diminuto, com olhos penetrantes e um grande nariz, passou ao druida a comida ritual: pão, mel, ervas e água; disse a oração à Aquela que Brilha com uma expressão calma, mostrando claramente, através do olhar, o afeto que sentia pela noiva e que aprovava o noivo. Eile sentiu-se percorrida por uma vaga de ansiedade. Que estava ela a fazer entre aquela gente tão inteligente, reis e rainhas, druidas e sacerdotisas? Se eles soubessem o que ela tinha feito, se soubessem os caminhos sombrios e sangrentos que percorrera...

Seguiu-se um silêncio estranho. Todos os olhares convergiram para ela. Um pouco atrás de Ana, Eile apercebeu-se de que tinha de dizer qualquer coisa. Por um momento, as palavras que praticara vezes sem conta durante o dia fugiram-lhe por completo da mente, deixando apenas um espaço cheio de terror e vergonha. A jovem olhou para o chão e os seus olhos caíram na bainha bordada da saia de Ana. Bonito. Como o de Ana. Na sua cabeça alguém disse: Heróico, como tu. As palavras regressaram-lhe. Eile levantou a cabeça e respirou fundo, insegura.

— Inicia o teu novo caminho com amor e coragem — disse ela na língua priteni, avançando para acender uma vela do candeeiro colocado em cima da mesa de pedra, colocando-a na mão de Ana e repetindo o gesto para Drustan. — Honrai os deuses e sede verdadeiros um para com o outro. — Ao recuar, Eile viu o sorriso de Tuala e o aceno de aprovação de Bridei. Ferada conseguira abrir os lábios num pequeno sorriso e a mulher de cabelos ruivos metera a mão no braço do homem pesadão que estava a seu lado. Este cobriu-a com a sua, fazendo-a desaparecer e as faces pálidas de Ferada tornaram-se cor-de-rosa.

As explicações anteriores de Wid tinham permitido a Eile compreender o significado geral das palavras que concluíam a cerimônia. Fola invocou a bênção de Aquela que Brilha e pediu a sua luz para iluminar o caminho do novo casal. Enquanto a mulher sábia falava, a Lua apareceu por cima dos pinheiros, cheia e perfeita num céu cada vez mais violeta.

Então, o druida pediu ao Guardião da Chama que enchesse as vidas de Drustan e de Ana de coragem e que os abençoasse com a dádiva dos filhos. Eile viu passar uma tristeza fugaz pelas feições perfeitas de Ana e viu uma sombra nos olhos de Drustan. Tinha de dizer mais umas palavras.

— Que a abençoada Todas-as-Flores encha a vossa casa de alegria e que vos livre, a vós e aos vossos, da tempestade — disse ela com voz firme. Eile pegou numa mão-cheia de pétalas e lançou-as sobre a mesa de pedra. Era uma pena Saraid já estar a dormir sob o olhar vigilante de Elda; teria gostado daquela parte. A cerimônia tinha acabado.

Podia dizer a Faolan que Ana estava muito bonita; que o luar lhe tinha tocado no rosto, tornando-o puro. Podia dizer-lhe que o amor de Drustan por ela se ouvia em cada palavra que ele dizia; que ele tocara na sua mulher como se ela fosse ao mesmo tempo sua amante, sua melhor amiga e sua deusa. Talvez Faolan não quisesse ouvir aquela parte, dir-lha-ia na mesma. Ele amava Ana mais do que tudo no mundo. Amava-a tanto que a deixara ir, apesar de ter ficado com o coração destroçado. Faolan gostaria de saber que Drustan reconhecia o valor do seu ato generoso, gostaria de ter a certeza que Drustan a faria feliz.

Despediram-se todos uns dos outros. Não haveria festa nem comemoração do casamento. Na manhã seguinte o druida presidiria ao funeral da jovem que morrera, Drustan e Ana partiriam para o lago, regressando a casa, Vale dos Sonhos, pelo caminho mais fácil e na noite seguinte Bridei teria a sua festa da vitória. Devia ser difícil ser Rei, pensou Eile. Com uma filha nova e um filho de apenas dois anos, mal tinha tempo para respirar e vê-los crescer; mal tinha tempo para resolver uma questão antes de lhe aparecer outra pela frente. Diziam que ele tinha sido muito corajoso quando o cavalo de Breda tomara o freio nos dentes. Talvez um Rei tivesse de ser capaz de fazer tudo. Era uma pena tal possibilidade significar que Bridei não tinha tempo para ser marido e pai, pensou Eile. A jovem nunca tinha pensado antes que os reis e as rainhas era pessoas normais, como ela.

Eram horas de ir. As outras pessoas conversavam umas com as outras. O Rei Keogher dava os parabéns a Ana, o druida e Fola estavam imersos num intenso debate e Drustan conversava com Bridei. Eile despediu-se com um murmúrio e começou a descer os degraus. Quando atravessava o pátio inferior, descobriu que a sombra de Dovran, o guarda-costas do Rei, estava a tapá-la. O guerreiro disse qualquer coisa, que ela interpretou como uma oferta para a escoltar até ao quarto.

— Não, obrigada — disse ela, sentindo-se desconfortável com a sua presença a seu lado, de noite. — Vou bem sozinha. — Então, como ele continuasse a caminhar atrás dela, ela tentou encontrar as palavras corretas na língua dele:

— Não, obrigada — conseguiu ela dizer.

Dovran continuou a andar. Quando ela levantou os olhos, o seu belo rosto — nariz comprido, direito, olhos cinzentos, queixo firme — tinha uma expressão algo estranha. O guerreiro disse mais qualquer coisa e a jovem ouviu o nome de Bridei. Talvez o Rei lhe tivesse ordenado que fizesse aquilo, se bem que não imaginasse para que precisava ela de um guarda pessoal para a ajudar a encontrar o seu caminho. Eile continuou a andar e Dovran seguiu-a. Quando chegaram aos degraus, ele ofereceu-lhe a mão para a ajudar a descer. Que estupidez. Ele pensava que ela ia fazer o quê? Tropeçar na saia e cair? Como uma recusa seria um sinal de má educação, a jovem aceitou a mão, mas ao senti-la o seu corpo retesou-se de medo. Eile esperava que ele não se apercebesse do pânico que lhe fazia bater o coração com toda a força, do suor que lhe corria pela espinha abaixo. Na base dos degraus ela retirou a mão, fazendo um esforço para não puxar.

Chegaram os dois à porta do quarto que ela partilhava com Saraid. Elda estava lá dentro, vigiando a criança. Os gêmeos estavam ao cuidado de uma criada.

— Obrigada — murmurou Eile, fazendo um esforço para se manter calma. — Boa noite.

— Boa noite. — Dovran não era homem dado a sorrisos. Naquele momento estava ainda mais sério do que de costume e tinha o olhar fixo na parede por cima da sua cabeça. O guerreiro disse mais qualquer coisa, girou nos calcanhares e desapareceu sem mais uma palavra. Eile deixou-se ficar à entrada do seu quarto por um momento, juntando as palavras e perguntando a si própria se a sua interpretação estaria certa. Ele não tinha dito Estás linda esta noite, pois não? Talvez fosse um prolongamento das suas conversas de ocasião, uma espécie de Está uma noite muito bonita. Porém, pensava que não. Dovran parecera-lhe embaraçado, tímido mas determinado.

Saraid estava a dormir com Lamento. O vestido de noiva azul da boneca estava meio feito em cima da pequena mesa. Eile agradeceu a Elda, que bocejou entretanto, conduziu-a à porta, despiu-se, meteu-se na cama e apagou a vela. Não conseguia parar de tremer. A sua cabeça estava cheia de imagens que não pareciam estar ligadas mas que, de um modo horrível e inevitável, se conciliavam perfeitamente: Drustan e Ana de olhos nos olhos e rostos radiantes de felicidade; Bridei e Tuala de mãos dadas como duas crianças inseparáveis; Ferada corando quando o homem grande lhe agarrou na mão. Dalach. A jovem tentou obrigá-lo a sair da mente, mas ele ficou. Estava sempre presente. E Dovran: um belo rapaz, com bom ar, solteiro, com uma boa posição na corte. Dovran, cujo toque da mão lhe gelara o sangue nas veias.

Eile percebeu que estava a chorar. Devido a uma longa prática, para não acordar Saraid, continuou em silêncio. Aquele lugar era tão bom. Era um paraíso. Mas... Mas... Olhar para Drustan e Ana era como olhar por uma janela para qualquer coisa resplandecente e preciosa, algo que nunca teria. Drustan e Ana pareciam-lhe puros e inocentes e o seu amor era verdadeiro e generoso, uma coisa maravilhosa, abençoada pelos deuses.

As lágrimas caíam-lhe pelas faces abaixo como um rio quente. Nunca terás aquilo, disse ela a si própria. Nunca. Por mais que queiras, ele fez com que nunca o tenhas. Saraid agitou-se, emitindo um pequeno som, e Eile ordenou a si própria que estivesse quieta e silenciosa, apesar de sentir o nariz tapado pelas lágrimas e de ter os olhos inchados.

A jovem sabia que devia sentir-se feliz, grata, espantada com a sorte que lhe permitia estar naquela casa de gente boa e generosa. A sorte que lhe permitira usar o vestido de uma Rainha e fazer parte do casamento de uma princesa. A sorte incrível que lhe permitira ver Saraid transformada numa criança diferente, cheia de confiança, não apenas para fazer amigos novos, mas também para se encarregar deles... E estava grata, sabia que tinha percorrido um longo caminho desde Montanha Nublosa. Mas as lágrimas continuavam a correr. O seu coração estava apertado de tristeza. Não estava certo, continuava a não estar certo. Eile tentou encher a cabeça com a imagem da casa da encosta, o gato, o jardim, os cheiros, mas não conseguiu. Sentia-se gelada, o seu corpo sentia o toque dos dedos de Dovran, fazendo-a recordar Dalach. Eile enroscou-se e puxou o cobertor verde até ao queixo. Na escuridão, os seus lábios formaram as palavras em silêncio: Onde estás?


CAPÍTULO TREZE

 

Interrogatório, pancada, abandonado, à morte. Execução sumária. Uma combinação de tudo. Enquanto os seus captores o empurravam na direção das árvores, da escuridão, Faolan considerava as suas possibilidades e como lidaria com cada uma delas. Não o tinham vendado. O assassino examinou-lhes as roupas, as armas, a maneira como caminhavam e deduziu que eram homens-de-armas de um chefe-de-guerra ou guerreiros da corte de Circinn. Uma força organizada. Não pertenciam a Carnach, a não ser que as suas tropas tivessem posto de lado as suas cores porque aqueles homens usavam um traje anônimo, castanho, cinzento, nada que atraísse as atenções. Se eram homens do novo Rei, não ostentavam qualquer sinal particular. Drust, o Javali, usava o seu emblema sobre um fundo vermelho. Seria de supor que o seu irmão usaria o mesmo. A mordaça impossibilitava-lhe qualquer pergunta, porém, e Faolan limitou-se a tentar fixar o caminho que seguiam, as voltas e mais voltas que davam com facilidade apesar da densa sombra provocada pelos velhos carvalhos. Fosse para onde fosse que o estivessem a levar, o caminho era-lhes tão familiar que o percorriam sem precisarem de pensar.

Pararam na base de um muro de pedra natural, mais alto do que um homem. As árvores continuavam perto, mas havia ali mais luz que iluminava o musgo, os fetos minúsculos, os fungos e as trepadeiras que ocupavam cada fenda da rocha.

— Por aqui — disse alguém, puxando Faolan pela manga.

Havia uma abertura estreita na rocha, escondida pela vegetação, difícil de localizar a não ser que um homem soubesse o que estava a procurar. O grupo entrou por ela em fila, com Faolan sentindo-se desajeitado com as mãos atadas atrás das costas. A fenda abriu para um espaço abrigado, ladeado por grandes pedras e atapetado de erva. O assassino viu alguns cavalos peados e alguns homens a empacotar coisas, preparando-se aparentemente para partir. Afastados da cena, dois homens conversavam. Quando o mais alto, ruivo, se virou para olhar na sua direção, Faolan fez de conta que não o reconheceu. Os olhos de Carnach pousaram pensativamente nele. Então o outro também virou a cabeça e as mãos do assassino cerraram-se atrás das costas. O homem de olhos escuros e feições cruéis ao lado de Carnach era Bargoit, conselheiro-chefe da corte de Circinn.

Faolan era bom no que fazia e manteve-se calmo enquanto um dos seus captores se aproximava de Carnach e lhe apresentava o que ele supôs ser um relatório rápido. Em seguida conduziram-no à presença do chefe-de-guerra de Fortriu e do conselheiro cara de fuinha de Circinn. A mordaça foi-lhe tirada. Os homens restantes viraram a atenção para o que estavam a fazer anteriormente.

Inicialmente, o silêncio era a melhor solução. A coisa estava feia, parecia uma conspiração. Carnach, portanto, teria de escolher o interrogatório e a execução sumária. Por outro lado, parecia que o chefe-de-guerra decidira não o reconhecer. Faolan manteve a respiração firme. Espera. Não fales. Prepara-te para o que eles te atirarem, seja o que for.

— Diz o teu nome e o que fazes por estas bandas! — disse Carnach em voz alta. — E depressa. Sabemos de um homem que anda a fazer perguntas. Demasiadas perguntas. Se és tu, é melhor que as faças agora e nos digas quem te mandou.

Faolan pensou rapidamente. Um jogo: um jogo perigoso com Bargoit a assistir. Tinha de ser tão inteligente como Carnach e esperar que ele soubesse as regras todas.

— O meu nome é Donal — disse ele, apontando para um tom de voz de confusão inocente. — Sou trabalhador rural, meu senhor e ando à procura de trabalho. As coisas não vão nada bem em casa. O meu sogro pôs-me na rua. Sabes como é.

Carnach olhou pensativamente para ele.

— E onde é a tua casa? — perguntou ele.

— Numa aldeia chamada Encruzilhada do Rabequista, meu senhor. Do outro lado de Pitnochie, em Fortriu, a oeste. — Faolan achava que Bargoit não o tinha reconhecido, não o devia ver desde que Bridei fora eleito Rei, seis anos antes e Faolan era perito na arte de se disfarçar. Além do mais, a sua aparência mudara. Eile não dissera que ele parecia ter pelo menos trinta e cinco anos?

— Como é que se chama esse teu sogro? — perguntou-lhe Bargoit, rápido como uma serpente. — Se és trabalhador rural, onde estão as tuas ferramentas?

— Garth — disse Faolan. — Cometi o erro de me meter com uma certa dama. A minha mulher não gostou e o pai dela tem a mão pesada. Ela perdoa-me. Perdoa-me sempre. E não trouxe ferramentas. É muito longe para andar com uma forquilha às costas.

Carnach deu um passo em frente e atingiu-o no queixo com um murro.

— Cuidado com a língua — disse ele. — Não nos faças perder tempo com essa treta de mulheres e namoricos. És estúpido ou quê?

Faolan não disse nada. Qual seria a verdade? Um erro e Carnach teria de o matar. Se acertasse talvez não precisasse, no fim de contas, de encontrar uma maneira de fugir a um grupo de homens armados num espaço confinado sem sequer uma faca para se defender.

— Uma forquilha? — Os desconfiados olhos de Bargoit semicerraram-se ainda mais. A serpente parecia prestes a atacar. — Desde quando é que se empilha palha na Primavera?

— De fato — disse Faolan, olhando para o chão — ele ficou-me com as coisas. O meu sogro. Fechou-as. Só me deixou com uma...

— Sim, sim — disse Bargoit, irritado. — Por que vieste até tão longe? Pitnochie fica a meio caminho do Vale. Deve haver trabalho mais perto de tua casa?

Faolan fixou um olhar estúpido e não tentou responder. Carnach e o conselheiro trocaram um olhar.

— Como é que disseste que te chamavas? Donal? Donal, vou fazer-te uma pergunta — disse Carnach, torcendo ligeiramente os lábios, dando a impressão de que achava o infeliz trabalhador rural divertido e cansativo ao mesmo tempo. — Por que é que esse tal teu sogro te há de perdoar, hã? Na verdade, por que há de a tua mulher perdoar-te se passas a vida a traí-la? Talvez seja melhor procurares pastagens novas. Circinn tem boas terras. Oportunidades não faltam para um tipo como tu.

Bargoit estava a ficar aborrecido. O seu olhar virara-se para os homens-de-armas. O conselheiro fez um gesto para um deles, indicando que um determinado cavalo devia ser selado.

— Perdoa-me porque, apesar de tudo ele confia em mim, meu senhor — disse Faolan. — E a minha mulher perdoa-me porque eu tenho talento para certas coisas. Para que havia ela de arranjar um tipo para o meu lugar se eu a satisfaço? — O assassino fixou os olhos de Carnach, mas manteve o tom de voz leve. Os homens que estavam por perto riram-se.

— O conselho que te dou, portanto — disse Carnach, calmamente — é que desandes para casa sem demora. Tens de estar lá por ocasião do solstício de Verão. Atira-te ao trabalho e mostra à tua mulher e ao pai dela que ainda tens alguma lealdade em ti. És um tolo e, desconfio, um fanfarrão. Não piores as coisas desperdiçando a boa vontade da tua família. Se te perdoam, tens mais sorte do que mereces. — Carnach virou-se para Bargoit. — Este tipo é atrasado mental, não conta.

— Hum? — Bargoit não estava a prestar atenção. Virando-se mais uma vez para Faolan, fixou-o com os seus olhos penetrantes. — Se é atrasado mental, merece uma surra. Tu e tu! — disse ele, virando-se para dois dos homens que tinham trazido Faolan. — Levai-o para o sítio onde o encontrastes. Dai-lhe uma lição, mas não demoreis muito. Encontramo-nos onde a estrada vira para norte.

Portanto, sempre ia levar uma tareia e ia ser deixado como morto, pensou Faolan enquanto percorria o mesmo caminho no sentido contrário através da floresta. Não ia poder lutar com eles apesar de serem só dois. Se tentasse, perceberiam instantaneamente que ele não era nenhum trabalhador rural. Tentar escapar apresentava a mesma dificuldade. Não se importava de levar uma tareia; ia contra todos os seus instintos. Não replicar era uma das coisas mais difíceis de dominar.

Atiraram-no para cima da palha junto do muro com as mãos atadas atrás das costas. Felizmente estavam com pressa. Mais infeliz foi a sua decisão de se servirem das botas. Ainda estava consciente quando eles se foram embora; ainda capaz, vagamente, de reconhecer que o episódio daquela manhã representava boas notícias para Bridei. A perna, a que estava defeituosa desde a luta que tivera no Outono anterior com os lobos, doía-lhe terrivelmente, tanto que mal conseguia respirar. Faolan enroscou-se na palha, sentindo o Sol a subir no céu e o dia a aquecer, reparou que estava cheio de sangue e resvalou para a inconsciência.

Breda não estava suficientemente recuperada para comparecer ao ritual funerário da sua acompanhante, uma pequena cerimônia privada. Só as pessoas mais próximas da rapariga estavam presentes: o seu pai, evidentemente, Keother e as jovens que tinham sido suas colegas. Bridei e Tuala também estavam presentes. O período oficial de reclusão no seguimento do nascimento de Anfreda ainda não tinha terminado, mas a Rainha de Fortriu dera a saber que sentia grande tristeza por aquela perda e que desejava dar força moral ao pai da jovem, oferecendo-lhe a sua simpatia em pessoa.

Eile sabia porque lhe tinham pedido para ficar com Derelei e Anfreda enquanto Tuala estava no ritual. Dovran estava de guarda e uma das amas também estava presente, mas Tuala dissera que Derelei não se meteria em sarilhos se Eile e Saraid estivessem junto dele. O dia estava quente e o jardim cheirava bem. Os canteiros de alfazema e rosmaninho estavam cheios de abelhas e borboletas. Eile ocupou o tempo a arrancar algumas ervas daninhas dos canteiros. Saraid e Derelei estavam deitados de bruços lado-a-lado a olhar para o tanque. A ama estava sentada na soleira da porta dos aposentos da Rainha com Anfreda a seu lado, deitada num cesto tapado com um tecido fino para manter os insetos afastados.

Era bom pedirem-lhe para ajudar, era bom confiarem-lhe as crianças reais depois de tão pouco tempo em Monte Branco. A tristeza continuava presente, escondida, mas subia à superfície sempre que via passar Dovran, por vezes com os olhos fixos no horizonte, por vezes lançando alguns olhares e um sorriso na sua direção. Pelo menos não o tinha ofendido. A culpa não era dele se não suportava que lhe tocassem.

Sentia-se triste por Cella, também, se bem que, provavelmente, fosse demasiado tarde para tal. Acontecesse o que acontecesse quando uma pessoa morria, já tinha acontecido à acompanhante de Breda. Ou estava noutro reino qualquer, ou o seu espírito renascera como um novo bebê, humano ou animal, ou estava a começar a longa e gradual desagregação, transformando-se em pó e a chama interior que lhe fizera brilhar os olhos, corar a pele, que a fizera correr, dançar e montar desaparecera, apagada com a mesma facilidade com que se soprava uma vela.

Eile arrancou uma raiz de endívia selvagem que nascera entre os arbustos de alfazema e meteu-a no seu cesto. Arrancar ervas daninhas era uma ocupação singular. O que era uma erva daninha, afinal, senão uma planta normal que decidira crescer num sítio que alguém escolhera para outra coisa qualquer? A endívia, segundo Elda lhe dissera quando lhe estava a revelar os segredos da ervanária, era uma planta medicinal. Na verdade sentia uma espécie de vergonha por estar a arrancá-la. Ao criar ali raízes, mostrara força e espírito de iniciativa. Mostrara que era uma sobrevivente. Eile olhou de novo para Saraid. A pequenina estava apoiada nos cotovelos a olhar para Derelei, o qual estava perfeitamente imóvel com o olhar fixo na água. Nós somos como ervas daninhas, ela e eu, pensou. Duas pequenas ervas magricelas espetando as nossas cabeças num canteiro cheio de belas flores. A idéia fê-la sorrir.

Um acesso de tosse discreta a uma pequena distância. A jovem endireitou-se. Dovran, a alguns passos. Eile pôs-se de pé com o coração a bater-lhe loucamente no peito.

— Bom dia — disse o guarda-costas.

— Bom dia. — Era melhor pensar naquilo como uma oportunidade excelente para praticar a sua nova língua. Não havia razão para ter medo; absolutamente nenhuma.

— Está tudo bem?

— Ahhh... sim. Tu?

O guerreiro sorriu. Era possível ver como, para algumas mulheres, ele era encantador, simpático e bonito com os seus longos cabelos castanhos e os seus dentes perfeitos.

— Tenho uma mensagem para ti — disse ele lentamente para que ela pudesse compreender. — A senhora Breda quer ver-te. Ela mandou uma criada.

— A senhora Breda? — Esquisito. A princesa não fora ao funeral por não se sentir bem. Eile procurou as palavras para dizer Tens a certeza?, ou Não pode ser.

— Ela pergunta se podes ir aos aposentos dela agora. Eu disse à criada que tu estás a olhar por Derelei. Ela quer ver-te assim que estiveres livre.

— Está bem. Obrigada.

Dovran sorriu, arrastando um pouco os pés. O seu embaraço era incongruente devido à sua estatura impressionante, à sua couraça e às armas, espada, facas, arco — que transportava às costas.

— Vais... — começou ele, parando para clarear a garganta. — Vais à festa logo à noite, Eile?

Era a primeira vez que ele se lhe dirigia pelo nome. Por um momento ela ficou demasiado surpreendida para responder. Finalmente, disse:

— Talvez... estar com crianças outra vez. Rei e Rainha... devem ir festa.

Dovran acenou com a cabeça, o que podia dizer qualquer coisa e recomeçou a sua marcha em redor do jardim. Ao vê-lo afastar-se, a jovem pensou em Faolan, que lhe pedira que não fizesse a sua proposta a mais nenhum homem sem falar com ele primeiro. Bem, ele não estava ali, pois não? Não dava sinais de querer regressar. Se nunca mais regressasse, faria o quê? Era evidente que Dovran estava interessado e era evidente que era um homem aceitável. Era precisamente a espécie de jovem a quem, provavelmente, podia perguntar já que revelava uma amabilidade reticente que sugeria que não devia ser um amante egoísta. Eile sorriu. Nunca lhe perguntaria — nem dali a cem anos. Um toque da sua mão fora suficiente para lhe dizer quão impossível era.

A jovem estremeceu e apertou o xale em redor dos ombros. Drustan e Ana tinham-se ido embora. Tinham partido cedo, não fazendo segredo do seu desejo de se afastarem. Fora difícil despedir-se deles. Conhecia-os havia pouco tempo, mas tinham-se tornado dois bons amigos. Antes de partirem, Ana pedira-lhe num gaélico hesitante que dissesse a Faolan que esperava que ele fosse feliz. Drustan pedira-lhe que não se esquecesse que era filha do seu pai, que Deord se sentiria orgulhoso dela e acrescentara que ambos esperavam vê-la a ela e a Faolan em Vale dos Sonhos, um dia. Que Saraid gostaria do jardim e dos dois pequenos lagos existentes ao lado da casa, Taça do Céu e Taça de Orvalho. Eile não encontrara palavras para lhes agradecer a amabilidade.

— Temos de ir — dissera Drustan. — Diz-lhe...

Ana dissera qualquer coisa na língua priteni, demasiado difícil para que Eile conseguisse perceber.

Drustan olhara fixamente para ela. A jovem nunca mais se esqueceria da intensidade do seu olhar, o olhar de um animal selvagem.

— Chegará a hora em que ele terá de parar de fugir — dissera ele. — Todo o ser vivo precisa de abrigo, todo o homem deseja um lar.

— Mas — dissera Eile — e se ele não conseguir encontrá-lo? E se ele não souber como é?

— Tem de ter paciência. Persistência. Olhar apurado e um coração forte. Reconhecê-lo-á depressa.

Eile não lhe respondera. Na sua mente, porém, estava a resposta. E se eu não conseguir? As muralhas seguras de Monte Branco, o quarto confortável, a mão da amizade estendida até por reis e rainhas era sinônimo de abrigo, claro. Mas não era um lar. Não era a sua pequena casa, não via Saraid com o gato às riscas no colo, não se via a si própria a cozinhar com as suas próprias panelas e a tratar dos vegetais no seu próprio quintal. Não era... Não estava tudo. Exiges de mais, disse ela a si própria. Naquela manhã, porém, acenara com a cabeça a Drustan, engolindo as lágrimas, e acenara quando os dois tinham atravessado os portões da fortaleza do Rei com a sua modesta escolta a caminho do Vale.

— Eile?

A voz da filha quebrou-lhe o devaneio e ela aproximou-se do tanque. Saraid estava sentada com Lamento ao colo enquanto Derelei continuava imóvel. Os seus olhos continuavam fixos na superfície imóvel da água.

— Derry está triste — disse a pequenina.

Talvez estivesse, mas mais alarmante para Eile era a sua imobilidade anormal, inquietante numa criança tão pequena. Por um momento, ela perguntou a si própria se o rapaz não estaria numa espécie de paroxismo e estendeu uma mão para lhe tocar, mas algo a impediu. Derelei estava perfeitamente equilibrado, com as energias inteiramente concentradas no que estava a ver e os seus ouvidos estavam surdos para o mundo onde estavam ela, a filha, a ama, o bebê e as abelhas que zumbiam pelo jardim. O pequeno estava por trás de uma parede invisível, tinha um pé num outro mundo.

— Ele está bem, Saraid — disse ela, calmamente. — Só temos de vigiá-lo e esperar. — Eile esperava ter percebido a situação. Tuala deixara-a encarregue, mas o comportamento do rapaz era muito estranho. No entanto, Derelei e Anfreda não eram como as outras crianças. Com eles era de contar com o inesperado.

Eile sentou-se nas lajes do chão a dois passos de Derelei, Saraid sentou-se junto dela e esperaram. Saraid começou a cantar suavemente para Lamento, uma pequena canção de embalar que Eile aprendera algures muitos anos antes e que cantara noite após noite naquela cabana miserável de Montanha Nublosa, tentando adormecer a sua perturbada filha:

Vaca no campo, ovelha no redil

O Sol está a pôr-se, vermelho e dourado

Bebê no berço, pássaro no ninho

A Lua está a nascer, hora de dormir

— Que canção tão bonita, Saraid — disse Eile. — Lamento já está a dormir?

Saraid abanou solenemente a cabeça.

— lamento está triste. Está a chorar — disse a criança, apertando a boneca contra o ombro e dando-lhe pequenas palmadas nas costas.

— E por que é que ela está triste?

— Lamento quer que Feeler volte.

Foi como se tivesse levado um murro no estômago. Pensava que Saraid o tinha esquecido; pensava que os amigos novos e aquele paraíso seguro a tinham feito esquecer a longa e dura viagem através do país. Tolice. As recordações continuavam bem frescas na sua própria cabeça, sonhava com elas todas as noites. Por que havia de ser diferente com Saraid só porque era pequena? Eile perguntou a si própria quais seriam as recordações da sua filha.

Apetecia-lhe dizer Faolan volta daqui a pouco, mas seria dar-lhe falsas esperanças. Saraid não podia suportar o que ela suportara, anos infindáveis à espera de um ente querido que acabou por nunca voltar. Era demasiado cruel.

— Faolan está em viagem — disse ela à pequenina.

— Feeler perdido? — perguntou Saraid.

— Não sei. Não sei onde está.

— Feeler volta daqui a pouco, Lamento — murmurou a criança à boneca, embalando-a. — Vaca no campo, ovelha no redil...

— É capaz — sentiu-se Eile obrigada a corrigi-la.

Derelei mexeu-se, finalmente, pestanejou, esticou-se e levantou-se com uma expressão tão estranha nos grandes olhos azul-claros que Eile sentiu um arrepio na espinha. Por um momento o rapaz pareceu Outro. O pequeno esfregou os olhos, um momento mais tarde o queixo oscilou-lhe, os lábios tremeram-lhe e começou a chorar.

— Derry está triste — disse Saraid, apertando Lamento contra o peito.

Os soluços inspiravam dó. Eile pegou na criança ao colo e apertou-a, sentindo o coração a bater com toda a força. Qual seria a causa daquela tristeza súbita, repentina?

— Pronto, Derelei — disse ela, impotente. — Estamos aqui, está tudo bem. — Parecia-lhe a espécie de choro que se seguia aos pesadelos: parte confusão, parte terror. Uns momentos depois a jovem detectou umas palavras no pranto do pequeno, apesar de ele dizer poucas palavras para a idade. Derelei dizia qualquer coisa que soava como borda, ou borda perdida, mas não fazia idéia do seu significado.

— Eile canta — sugeriu Saraid. — Canção do cão. — A sua vozinha tremia, a pequena parecia à beira das lágrimas por uma questão de simpatia.

Parecia uma idéia razoável. A canção do cão ajudara-as a sair de algumas situações complicadas.

O cão arranjou um osso; o cão arranjou um osso; O cão vai comê-lo e correr para casa.

Saraid pousou Lamento e levantou-se, pronta para brincar. Derelei continuava a soluçar nos braços de Eile.

— Pronta? — perguntou Eile. — O cão arranjou um... stamp! O cão arranjou um... stamp! O cão vai comê-lo e correr para... stamp! Muito bem, Saraid. Derelei e eu vamos juntar-nos a ti. — A jovem levantou-se com o rapaz nos braços. Os soluços tinham diminuído um pouco. — O cão arranjou um... stamp, clap. — Conseguir aquilo com Derelei nos braços exigia alguma agilidade. — O cão arranjou um... stamp, clap!

Algum tempo depois, quando o número exigido de saltos já ia em cinco, Eile reparou que tinha audiência: a ama, com Anfreda nos braços, acordada e, mais embaraçoso, Dovran, ao fundo do jardim com um grande sorriso no rosto. Paciência, pelo menos o pior da tristeza de Derelei tinha passado. O pequeno agitou-se, pedindo para ser posto no chão e ficou a olhar enquanto Eile e Saraid terminavam a canção do cão com uma enérgica seqüência de stamps, claps, voltas, tremuras, saltos e vênias.

— Lamento já está melhor — disse Saraid, sem qualquer falta de fôlego. — Derry melhor também?

Derelei não disse nada. Um soluço esquecido agitou-o, mas os seus olhos já não olhavam para o tal mundo. Eile baixou-se para lhe limpar o nariz com um lenço. Era difícil saber como confortá-lo; as palavras simples, os abraços e os beijos que usava para a filha pareciam ajudar, mas a jovem sentia um abismo naquela criança, uma coisa qualquer que estava para além de tudo o que experimentara até então. Não havia maneira de saber o que ele tinha visto.

Tuala regressou triste e cansada do funeral e Eile sentiu alguma relutância em lhe contar o que acontecera. No entanto não se esquivou, colocando-se no seu lugar e reconhecendo que ela quereria saber. A Rainha recebeu a notícia com serenidade.

— Sim — disse ela — ele vê coisas que as pessoas normais não vêem. A água é um chamariz muito forte e ele é demasiado novo para saber que não deve olhar. Tudo o que podemos fazer é evitar que ele caia e esperar que ele regresse a si próprio. Fizeste bem, Eile. Devia ter-te avisado.

— Ele disse várias vezes uma coisa. Penso que era borda. Borda perdida. Não percebi bem.

Tuala tirara os sapatos e sentara-se num banco para dar de mamar ao bebê.

— Broichan — disse ela. — Ele fala muitas vezes do seu... tutor e amigo, o druida do Rei. Broichan deixou a corte ante do Inverno e ninguém sabe para onde foi. Derelei tem saudades dele. Borda perdida... Broichan perdido.

— Pareceu-me mais do que uma mera tristeza. Derelei estava perturbado. O que é que ele vê? Um outro lugar? Coisas que estão para acontecer?

Tuala tirou Anfreda dos braços da ama e levou-a ao peito.

— Não te posso dizer — disse ela. — É diferente para todos os videntes, mas sim, penso que Derelei vê Broichan. Ele quer que o seu professor regresse. Se as visões são casuais ou se o meu filho consegue ver o que mais deseja, só ele é que pode dizer. Ou poderia se soubesse as palavras certas.

Eile sentiu um arrepio a percorrê-la, como se estivesse no Inverno.

— Ele é tão pequeno — disse ela. — Tão novo para ter tanto poder. Estaria tão assustada, se fosse mãe dele... Desculpa, minha senhora, não devia ter dito isto.

— Não faz mal, Eile. Aprecio a tua franqueza. O meu filho assusta-me, por vezes, mas não ao ponto de pensar que pessoas sem escrúpulos possam descobrir o seu raro talento e procurarem explorá-lo. Derelei terá muito a dar a Fortriu quando for homem, se for protegido até aprender a dominar o seu poder.

— Muito a dar como Rei, queres dizer? Tuala sorriu.

— O meu filho nunca será Rei de Fortriu, Eile. Para os Priteni, a sucessão ao trono é pelo lado feminino da família. Os reis são escolhidos entre os filhos dessas mulheres. A mãe de Bridei era prima do último Rei, Drust, o Touro. Os filhos de Ana poderão sê-lo, assim como os de Breda. E também os da minha querida amiga Ferada, cuja mãe era parente de Drust. Evidentemente, Ferada jura que nunca casará nem terá filhos, mas eu não me convenço.

— Ela estava com um homem no casamento, ontem — aventurou-se Eile. — Pareciam ambos... muito próximos um do outro. Pelo menos foi o que me pareceu.

— Sim. Garvan, o pedreiro real. Um par improvável, podes dizer. São amigos, mais nada. Pelo menos é o que Ferada diz. Ela é uma mulher muito determinada e está a recuperar o tempo perdido; tem uma escola, um sonho antigo, onde tenciona formar raparigas que tenham consciência própria e que não tenham medo de falar. Tarefa difícil. Tem de remar contra a maré porque muitos dos nossos homens acham o projeto dela estranho, até ameaçador. Admiro-a muito.

Eile não respondeu. Uma mulher que tinha a força suficiente para fazer tais coisas contra a opinião dos poderosos era uma figura de respeito.

— Todos nós temos as nossas forças, Eile — disse Tuala. — E agora vai. Queres deixar Saraid conosco um pouco? Derelei precisa de uma companheira compreensiva, hoje.

Eile dirigiu-se para a parte de Monte Branco onde Breda e o seu primo, o Rei das Ilhas Pequenas, estavam hospedados com o seu séquito, no outro lado das cozinhas e do grande salão. A jovem seguiu ao longo de uma passagem larga com o tecto em arco, passou por uma porta e entrou numa câmara com tapeçarias nas paredes onde várias acompanhantes de Breda se aqueciam junto de uma pequena lareira, conversando em voz baixa. Todas se calaram quando Eile entrou. Por um momento, a jovem desejou não ter deixado Saraid com Derelei. Se a sua filha estivesse ali com ela, aquelas raparigas teriam

sorrido e ter-lhe-iam dado as boas-vindas, pelo menos. Por outro lado, talvez tivessem acabado de regressar do funeral de Cella. Talvez a tristeza lhes tivesse gelado os sorrisos e lhes tivessem roubado as palavras amáveis.

Eile odiava aquele gênero de coisas. Uma parte do seu ser sabia que era gaélica, escrava e que não tinha nada que estar com aquela gente. Os seus olhos diziam-lhe que estavam tão acima dela que nem sequer a desprezavam. Uma outra parte dizia-lhe Sou filha do meu pai, sou forte, sou uma sobrevivente. Sou muito melhor do que uma mão-cheia de raparigas esnobes!

— A senhora Breda pediu para me ver? — perguntou ela com voz firme, servindo-se das palavras que preparara. — Lamento a morte de Cella. Foi uma coisa muito triste.

Uma das raparigas disse qualquer coisa tão rapidamente que Eile não conseguiu segui-la. As outras juntaram-se. A jovem deixou-se ficar com as mãos atrás das costas, tentando parecer calma e esperou que a troca de palavras, completada com apartes murmurados, terminasse. Então, repetiu para o silêncio geral:

— A senhora Breda pediu para me ver?

— Eile! — disse uma voz familiar, vinda de um quarto interior.

— Entra — disse alguém indelicadamente. Quando nenhuma delas se levantou para a acompanhar, Eile espetou o queixo e atravessou a câmara sozinha, parando para bater à porta aberta que dava para o quarto onde, parecia, Breda estava alojada.

— Chegaste, finalmente! Por que demoraste tanto? Entra e fecha essa maldita porta. As raparigas põem-me doida com tantos gemidos. — O fluxo de gaélico era música para os ouvidos de Eile. Depois da partida de Drustan, poucos havia em Monte Branco que fossem capazes de falar fluentemente a sua língua. Não podia ir ter com o Rei ou a Rainha quando precisava de falar com alguém e Wid insistia que falasse priteni quando estava na sua companhia. Eile obedeceu à ordem de Breda.

A rapariga de cabelos dourados estava na cama, como Eile esperava, sentada com uma pequena montanha de almofadas nas costas, um jarro e uma taça em cima de uma pequena mesa, ao lado. O quarto era grande, maior do que o que Ana e Drustan tinham partilhado e fora o quarto da própria Ana enquanto estivera na corte. A atmosfera era íntima, o Sol entrava apenas por uma trincha da janela e havia várias velas acesas em prateleiras, juntamente com uma lamparina que lançava uma luz suave sobre as tapeçarias com cenas de pessoas a apanhar bagas, a caçar e a velejar num pequeno barco. Eile sorriu, recordando a agitada viagem por mar na companhia dos monges. Soubera-lhe tão bem descobrir que podia ajudar; saber que fazia parte de uma equipa. Atracara a Dalriada com honrosas borbulhas nas mãos e uma dor nas costas que era quase bem-vinda. Ainda sentia os cabos nas mãos, ainda via o sorriso de Faolan ao observá-la, um sorriso raro, soalheiro e o olhar maravilhado de Saraid ao ver o mar à sua volta.

— Senta-te — disse-lhe Breda, batendo na colcha e Eile sentou-se.

— Sentes-te melhor? — perguntou ela, polidamente. De fato, Breda tinha um ar saudável. Se estava desgostosa com a morte de Cella, escondia-o muito bem. Os seus olhos brilhavam, mas as suas mãos estavam inquietas, amarfanhava os lençóis e torcia os anéis que tinha nos dedos esbeltos.

— Lamento tanto o que aconteceu à tua acompanhante — acrescentou Eile. — Que coisa tão chocante.

— Eu própria quase morri — disse Breda. — Aquele maldito cavalo que me deram quase me matou. Nunca apanhei um susto tão grande na minha vida.

— Contaram-me a história — disse Eile. — O Rei Bridei salvou-te. Ele deve ser um cavaleiro muito bom e também muito corajoso. Ainda bem que não te magoaste. Aquele rapaz, Bedo, partiu o braço.

— Dovran é que fez quase tudo — disse Breda com um sorriso retorcido. — Ele é tão forte. Pegou em mim como se eu não pesasse nada. — As suas faces estavam rosadas. — Evidentemente, os guarda-costas do Rei são guerreiros escolhidos a dedo. São todos muito bem constituídos. Mas Dovran é... Senti-lhe a virilidade, Eile. Ele é especial. Pôs-me a pensar...

Eile absteve-se de qualquer comentário.

— Bem — suspirou Breda — foi uma aventura, suponho. Mas passava bem sem as nódoas negras. Bridei mandou-me montar outra vez. Achei que foi falta de consideração da parte dele.

Não lhe competia, pensou Eile, sugerir à princesa das Ilhas Pequenas que seria mais apropriado expressar tristeza pela morte da acompanhante ou preocupação pelo ferimento de um jovem da casa. Breda parecia muitas vezes uma criança de nove ou dez anos, que acreditava que o mundo girava à sua volta.

— Suponho que Bridei não teria dito para montar se não fosse seguro — disse Eile. — Ele parece ser uma pessoa muito sensata. Pergunto a mim própria por que razão o cavalo tomou o freio nos dentes. Alguma coisa o assustou?

Breda encolheu os ombros.

— Não sei. Toda a gente parece pensar que eu tenho resposta para tudo. Já várias pessoas estiveram aqui para me obrigar a contar tudo uma e outra vez. Provavelmente foi o estúpido esmerilhão de Cella, quando se pôs a agitar as asas. Ela nunca conseguiu controlar o animal como deve ser. Mais vale torcer-lhe o pescoço. Eile, tenho uma coisa para te perguntar. Penso que és capaz de adivinhar o que é. — Os grandes olhos azuis fixaram-se nos de Eile e as sobrancelhas bem feitas formaram um arco perfeito por cima deles.

— Não consigo imaginar o que seja.

— A sério? Desiludes-me. Pensei que eras uma rapariga inteligente. Bem, estou a ver que tenho de te explicar tudo. Eu sei que passaste por tempos difíceis, tão nova, com uma filha e tão longe de casa...

Durante um momento horrível, Eile perguntou a si própria se Ana e Drustan teriam revelado alguma coisa da sua história àquela jovem estranha. Ela própria não falara das suas origens a ninguém em Monte Branco, ou como conhecera Faolan, ou a razão obscura pela qual o chefe dos guarda-costas do Rei era mais ou menos seu dono. Depois, porém, o bom senso prevaleceu. Nem Ana nem Drustan sabiam de nada; Faolan dissera-lhes que ela passara um mau bocado, mais nada.

— Por isso pensei que alguém te devia dar uma oportunidade — continuou Breda. — Uma hipótese de fazeres qualquer coisa melhor de ti própria.

Eile esperou. Breda parecia estar à espera que ela adivinhasse, mas a jovem não tinha a certeza se queria. Não preciso de ser melhor. Estou muito bem assim. Porém, se ofendesse aquela jovem voluntariosa arriscava-se a que tudo passasse a correr mal.

— Não consegues adivinhar? Eile, como Cella morreu, eu preciso de outra dama-de-companhia, não preciso? Sempre tive cinco. Tu és ideal para o lugar. Não é trabalho de criada, percebes? É qualquer coisa entre acompanhante pessoal, confidente e amiga. Tu és nova, és apresentável sem ser demasiado... E falas gaélico. Posso falar contigo sobre coisas que as outras não compreendem. Acho que é um ponto forte a teu favor. E gosto de ti. Não tens medo de falar. Odeio aquelas garotinhas afetadas, são umas chatas. — Breda parou e olhou para Eile, expectante. Não era possível recusar simplesmente.

— Esqueces-te — disse Eile, mantendo um tom respeitoso — que tenho Saraid e que tenho de olhar por ela.

— A criança? Isso não é problema. Há montes de criadas aqui que gostam da pequenina. Ela é uma verdadeira boneca. Qualquer uma pode olhar por ela. E quando formos para casa há lá outras tantas, ou mais.

— Quando formos para casa? — O estômago de Eile deu um salto.

— Para as Ilhas Pequenas, claro. Parece que, afinal de contas, não vou ficar aqui. Detesto isto. Pensa, Eile, uma vida nova. As ilhas estão cheias de robustos pescadores. — O sorriso de Breda era quase rapace. — No espaço de uma estação estás casada, podes escrever o que estou a dizer. Tenho um talento especial para arranjar casamentos. Um pai novo para a pequena... como é que ela se chama?

— Saraid. Obrigada, senhora Breda, sinto-me muito... honrada, mas não posso aceitar a tua oferta.

Uma pausa. A expressão dos olhos azuis mudou.

— O quê? — Havia uma irritação no tom de Breda.

— Não quero ofender-te, mas acontece que não entrego os cuidados de Saraid a mais ninguém. Pelo menos o tempo todo. Ela é minha filha. Tenho de ter a certeza de que é educada como deve ser. Com bondade. Com honestidade. Com amor. Para que aprenda a viver bem.

— Não és a única pessoa capaz de fazer isso. — O tom de Breda era seco. — A maioria das crianças bem-nascidas cresce sem ver muito as mães. A minha morreu quando eu tinha dois anos. Depois, Ana foi-se embora. Nunca tive ninguém.

Eile juraria que vira lágrimas nos olhos de Breda. A jovem mordeu um comentário do gênero: E olha no que deste.

— Isso é muito triste. Eu também perdi a minha muito cedo. E por isso que quero estar presente para Saraid.

— Mas ainda és tão nova! — exclamou Breda. — Não queres gozar a vida antes de teres rugas, barriga e de ninguém olhar para ti? Aposto que o único homem com quem te deitaste foi esse teu Faolan. Ele é um menino do papá, não é? Devo sublinhar que não me parece que ele tenha pressa de regressar. Diria até que não se rala. Não podes perder os bons anos que te restam com canções de embalar e narizes sujos. Aceita, Eile. Vai ser divertido!

— Acontece — disse Eile, sentindo-se subitamente como se estivesse a nadar através de qualquer coisa espessa, gênero banha de carneiro — que eu não olho por Saraid por obrigação. Faço-o porque a amo, porque quero. E não me posso ir embora para tão longe, para o outro lado do mar e isso tudo.

— Porquê?

Não havia resposta para aquilo, não tinha nenhuma preparada. Não podia dizer que em Fortriu estava em casa e a única família que tinha era Saraid. Não podia dizer que tinha uma posição a sério em Monte Branco depois de Drustan e Ana se terem ido embora. O melhor que podia esperar era tornar-se parte da equipa de amas e acompanhantes que ajudavam a Rainha Tuala e que olhavam pelos pequenos príncipes. Por mais bondosos e amáveis que o Rei e a Rainha de Fortriu fossem para os trabalhadores de Monte Branco, não passava de um emprego de criada.

— Não sei explicar — disse ela. — Só sei que temos de ficar aqui, Saraid e eu. Pelo menos por agora.

— Estou a ver. — Subitamente havia algo de assustador nos olhos de Breda e Eile sentiu um arrepio na espinha.

— Lamento — disse ela, desejando estar noutro sítio qualquer. — Lamento muito. Sei que a tua oferta é muito generosa. A tua irmã também foi muito amável comigo, é uma mulher encantadora.

— Ah sim, Ana. — O tom era de troça. — Bem, Eile, suponho que tens de ir, deves ter coisas importantes para fazer. Pegar em crianças e limpar-lhes os rabos.

Eile conseguiu sorrir.

— Não é trabalho duro — disse ela, levantando-se e alisando a colcha. — É divertido e dá para rir. Abraços, beijos e bons bocados. Mudarás de idéias quando tiveres os teus próprios filhos. — Não conseguia imaginar aquela rapariga como mãe. Breda era mais uma criança obstinada.

— Adeus, Eile. — As palavras soaram-lhe friamente distantes. — Obrigada por me teres vindo ver. Agora quero descansar. — Breda deixou-se cair em cima das almofadas e fechou os olhos.

Por um momento, Eile sentiu verdadeiramente pena dela. A rapariga perdera a mãe cedo e depois a irmã. Talvez não tivesse tido ninguém que a ensinasse, que se assegurasse de que crescia convenientemente. Eile prometeu silenciosamente a si própria que nunca, nunca deixaria que acontecesse o mesmo a Saraid.

— Adeus, Breda — disse ela. — Tenta compreender, não posso dizer sim. Espero que possamos continuar a ser amigas.

Os grandes olhos azuis de Breda abriram-se de repente, fazendo Eile dar um salto e a sua boca abriu-se num pequeno sorriso.

— Mas é claro — disse ela. — É evidente que sim.

A criança estava a chamá-lo. Havia qualquer coisa na sua voz, como se as lágrimas não estivessem longe, uma prece nos seus olhos claros, estranhos. O druida viu o rosto familiar em todas as poças da floresta, ouviu as palavras no canto de um tordo, no gorjeio de uma carriça. Volta para casa.

Broichan continuou para nordeste, mantendo-se no interior da floresta de dia e entrando em campo aberto de noite, como um ladrão. Na verdade tinha-se transformado num ao roubar uma peça de vestuário de uma corda de secar junto de uma cabana, uma camisa muito remendada, disforme, que o tapava até às coxas. Perto de um ferreiro encontrou uma faca enferrujada em cima de um banco. No dia seguinte, à sombra dos pinheiros, cortou os caracóis emaranhados, deixando os cabelos do tamanho do seu dedo mindinho. O resultado, no reflexo de um ribeiro sob um pálido céu de princípio de Verão, foi tudo menos tranqüilizador. Se a lâmina fora mais afiada, teria barbeado a cabeça por completo. Como estava parecia mais uma pessoa maléfica do que um vidente louco. Não poderia continuar a viajar abertamente; se fosse visto e reconhecido, oferecer-lhe-iam cavalos e mandariam mensageiros a Monte Branco, os quais trariam consigo cavaleiros para o escoltarem de volta. Aquela jornada não era apenas do corpo, era um teste à mente e à vontade; tinha de ser percorrida com passo certo. Cada passo tinha a sua própria lição. Cada pôr do Sol, cada nascer da Lua era uma dádiva dos antigos, uma mensagem a ser guardada e acarinhada.

Enquanto descansava naquela noite numa cama de fetos enquanto os pássaros piavam e gritavam por cima da sua cabeça, as palavras regressaram-lhe, palavras que lhe eram muito queridas. Existe saber em tudo. Quantas vezes as repetira a Bridei após uma lição frustrante? Quantas ve-zes as repetira a si próprio quando... As imagens encheram o espaço preparado para elas: ele próprio doente depois de um inimigo lhe ter envenenado a comida, tentando continuar para cumprir o seu dever; Bridei desafiando-o, Bridei obrigando-o a escolher entre aceitar publicamente Tuala ou perder o Rei perfeito a cuja preparação ele dedicara quinze anos da sua vida. Naquele dia aprendeu que Bridei era senhor de si próprio.

Porém, pensou ele enquanto as estrelas começavam a aparecer por cima da sua cabeça, uma, três, sete, tantas quantas as campainhas azuis numa clareira da floresta na Primavera, não fora a única coisa que aprendera naquele dia em Pitnochie, quando o seu filho adotivo saíra da floresta, meio afogado, com Tuala nos braços. Aprendera outra coisa, uma coisa que mais ninguém sabia. A rapariga que Bridei o obrigara a aceitar como preço do seu reinado era sua filha.

Naquela noite não dormiu, deixou-se ficar a observar o céu à medida que as recordações regressavam uma a uma e lhe repovoavam a mente. A medida que apareciam, prestava-lhes a devida atenção: a confiança de Bridei, em criança, substituída por umas tréguas cautelosas entre ambos; Bridei dizendo-lhe, como conseqüência, que ouviria o seu druida, mas que, como homem e como Rei, tomaria as suas próprias decisões. Tuala fria e exausta após a sua fuga desesperada de Banmerren a meio do Inverno, sozinha. A maneira como a impedira de entrar em sua casa. Tuala mais recentemente, prudente na sua presença, delicada na apresentação da verdade intragável. Tuala confiando relutantemente nele, de um modo que Bridei já não conseguia. Fola, a sua velha amiga... Fola, que adivinhara a verdade, talvez muito antes de todos... Gostaria de estar com a mulher sábia. Gostaria de lhe falar do Inverno e daquilo por que passara. Teria gostado de ouvir a sua voz amarga, os seus comentários cortantes e sábios.

Quando o céu começou a clarear e os primeiros pássaros começaram a anunciar que era dia de novo, levantou-se, esfregou os olhos e procurou algumas raízes comestíveis, alguns fungos e algumas folhas para se manter vivo durante mais algum tempo. Perdera uma noite de marcha. Tinha de passar o dia escondido. Havia uma pequena aldeia nas redondezas e não se podia arriscar a ser visto. Recomeçaria a sua jornada ao anoitecer.

— É claro que não olhas mais pelas crianças hoje! — exclamou Tuala. — Fizeste mais do que te competia e deves ir à festa. Vai haver música e baile.

Eile fez uma careta.

— Nunca dancei a sério, apenas coisas simples com Saraid, por brincadeira. Tens a certeza? — A imagem do grande salão, cheio de gente importante, apareceu-lhe subitamente, esmagadora. Recentemente tomava as refeições na área de jantar das crianças com Saraid. Além do mais não tinha nada que vestir. Tinha devolvido a Tuala a roupa que ela lhe emprestara para o casamento e a que tinha não era adequada para uma festa dada pelo Rei.

— Elda prefere não ir — disse Tuala. — Ela cansa-se com facilidade. O bebê está para breve e Garth está de serviço. Ela diz que Saraid pode dormir nos aposentos dela com os gêmeos. Isto se não te importares, Eile. Derelei e Anfreda têm amas. E eu arranjei-te um vestido. Deve ficar-te bem: Não é simples demais nem demasiado vistoso. Reparei que não gostas de atrair as atenções.

— É muita amabilidade da tua parte, minha senhora...

— Não tens nada que agradecer, Eile. Faolan é amigo do meu marido, não é só um guarda-costas. Vejo-te da mesma maneira. Toma, leva isto para o teu quarto e experimenta-o. Se te ficar bem e se gostares, podes ficar com ele. A não ser que não queiras mesmo ir...

— Vou sim, minha senhora, obrigada. — Eile pegou no vestido dobrado, verde-escuro, bordado no decote e nos punhos com fio dourado. Perante tanta generosidade, para não falar de projetos futuros, não podia dizer que não.

— Tencionava pôr-te ao lado de Elda, à mesa — disse Tuala. — Eu sei o que é não ter ninguém com quem falar. Vou pedir a Dorica que te sente ao lado de Ferada. Ela não se importa de não ficar na mesa do Rei, apesar de ter direito. E de Wit. Ele pode traduzir o que não perceberes. Ele disse-me que tu prometes, que aprendes depressa.

Eile sentiu-se corar de prazer.

— Ele é bom professor. Muito severo, mas torna as lições divertidas. O tempo passa depressa.

— Eu sei — disse Tuala, sorrindo. — Ele ensinou Bridei e também me ensinou a mim, há tanto tempo que por vezes me parece que foi noutra vida. Aproveita. Homens como Wid são raros.

— Estou-te tão grata, minha senhora. Não é preciso fazeres isto tudo por mim...

— Chhh. Ainda bem que temos a oportunidade. Só lamento que Faolan não esteja aqui para te ver com o meu vestido verde. Sempre gostei muito dele.

Eile sentiu-se na obrigação de corrigir a Rainha.

— Entre ele e eu não é assim. Mesmo que estivesse aqui não repararia em mim. — Então, incapaz de conter as palavras, acrescentou: — Houve alguma mensagem para mim? Sabes quando ele volta?

— Nada por enquanto. Espero que regresse em breve. Bridei tem de tomar uma decisão relacionada com o chefe-de-guerra. Tem de a anunciar esta noite. Ajudaria muito se ele tivesse notícias de Faolan antes, mas parece que não vai ser possível. — Em seguida, com um olhar perscrutador, Tuala acrescentou: — Não te aflijas demasiado, Eile. Faolan tem o hábito de conseguir escapar com sucesso das situações mais complicadas. Este atraso significa simplesmente que a missão se tornou mais complexa, ou que o levou até mais longe do que pensava!

Eile pensou em Blackthorn Rise e em Faolan com um nó corredio no pescoço. Daquilo não tinha ele escapado. Não fora ela, ele estaria morto e a sua família com o peso de mais uma tragédia.

— Obrigada pelo vestido. Vou tentar não o sujar — disse ela, dirigindo-se para o seu quarto.

A grande sala do Salão Branco tinha três grandes mesas com bancos de ambos os lados. Havia uma menor numa plataforma elevada, num dos extremos, para o Rei, a Rainha e outras pessoas de estatuto elevado. Havia muitas lâmpadas penduradas em suportes nas paredes de pedra e aqui e ali algumas tapeçarias ricamente coloridas suavizavam a atmosfera algo severa. Apesar de não saber os nomes da maior parte dos presentes, Eile tinha Ferada à sua esquerda e Wid à sua direita, os quais lhe apontavam quem era quem e lhe explicavam como a festa se ia desenrolar, primeiro com o banquete e depois com um discurso de Bridei reconhecendo as contribuições dos seus chefes-de-guerra na campanha do Outono anterior contra os Celtas. Em seguida seriam apresentados os presentes, seguidos da música e do baile que Tuala mencionara.

Garvan, o pedreiro real, estava sentado em frente de Wid. Eile perguntou a si própria se o fato de ele e Ferada trocarem palavras e olhares sem que os considerassem um casal teria sido por acaso ou de propósito. A amizade entre os dois intrigava-a. A jovem pensou nas três raparigas, Tuala, Ana e Ferada, todas oriundas do estabelecimento de Fola, em Banmerren, e no fato de todas elas terem desprezado as convenções, quebrado as regras e seguido o seu próprio caminho ao tornarem-se mulheres. Tuala, uma estranha, filha dos Boa Gente, casara com Bridei e tornara-se Rainha de Fortriu. Ana escolhera um homem de qualidades invulgares para pai dos seus filhos e viajara para longe de casa. Ana ligada também a Faolan, coisa que Eile continuava a não compreender totalmente. Ferada era a mais impressionante das três: uma mulher determinada a deixar a sua marca. Garvan tornava o quadro ainda mais interessante. Um pedreiro não era considerado adequado para Ferada, uma mulher de boas famílias. No entanto, olhavam um para o outro com olhares ternos, de amantes; olhavam um para o outro com uma expressão que era uma lição em si. Eile sentiu inveja.

— Que a Aquela que Brilha nos proteja — murmurou Ferada. — Olha quem acaba de chegar. — Os seus olhos tinham-se virado para a mesa do Rei. Breda acabava de aparecer com os cabelos dourados formando uma elaborada coroa de tranças, a sua esbelta figura metida num vestido de um brilhante azul-claro, a cor dos seus olhos. A jovem estava pálida, o que lhe dava um ar interessante e precisou de se apoiar nas costas de uma cadeira com uma mão antes de se sentar ao lado de Keother. Até este pareceu ficar surpreendido.

— Demasiado doente para o casamento da irmã — murmurou Ferada. — Demasiado chocada para o funeral da amiga. Mas bem de saúde para isto. Pergunto a mim própria se ela se vai levantar para dançar.

Não foi a única surpresa. Havia um espaço vazio ao lado de Garvan. Eile não sabia quem não tinha comparecido ao banquete, mas quando apareceu o primeiro prato, peixe cozido com alho e cebola, Dovran apareceu, não de couraça, mas de túnica e calças de lã vermelha-escura e com os cabelos atados atrás com um cordão. O guerreiro sentou-se no lugar vago, mesmo em frente de Eile e ofereceu-lhe um sorriso tímido.

— Deram-te folga? — perguntou Garvan. De fato, o pedreiro real era um homem de feições vulgares, tinha um rosto quadrado, maxilares rudes e umas mãos enormes. Era pouca sorte estar sentado ao lado do homem mais bonito do banquete.

Dovran anuiu.

— Ordens do Rei. Garth ficou por mim. Estou morto que Faolan regresse; uma noite de folga é raro. — Depois, após uma pausa, acrescentou: — O verde fica-te bem, Eile. — As palavras saíram-lhe de modo estranho; era evidente que tivera de arranjar coragem para as dizer.

— Obrigada — disse Eile entre dentes, evitando-lhe o olhar. — Minha senhora, quem é aquele homem grande cheio de tatuagens? Parece que usa peles de gato.

— Um chefe-de-guerra Caitt — disse Ferada em gaélico. — Umbrig. Lutou do nosso lado na guerra. Vive em Dalriada. Sabes onde é?

— Passamos por lá, Faolan e eu.

— Claro. Umbrig conquistou lá uma fortaleza gaélica e vigia o antigo Rei do território, que está sob custódia em Dunadd. Os Caitt são guerreiros ferozes. Drustan é uma exceção notável.

— Quem é aquela gente com fatos tão coloridos? — Eile vira uma mulher, um rapaz e vários homens na mesa ao lado, todos com fatos às riscas e aos quadrados.

— Fala na tua nova língua — ordenou-lhe Wid a seu lado. — Se te faltarem as palavras, nós ajudamos-te. Um pouco de peixe? Estou a detectar alho em abundância; é melhor servirmo-nos.

— Aquela gente é a mulher e o filho de um chefe-de-guerra que morreu na guerra, Ged de Abertornie — disse Ferada. — Também vieram com eles alguns homens da sua casa. O povo de Ged é intensamente leal. A sua morte só fortaleceu esse sentimento. Ele era muito amigo de Bridei. Houve muitas mortes, muitas perdas. Esta noite não é só de festa.

— Para ti — aventurou-se Dovran, olhando para Eile — isto deve ser difícil, confuso.

Eile olhou para ele, confusa. Então, apercebendo-se, tentou encontrar as palavras na língua priteni.

— Eu sou celta, sim... Mas em casa não sabia nada desta guerra... disto tudo... — disse ela, sentindo-se obrigada a sorrir porque o comentário do jovem guerreiro mostrara uma sensibilidade que a surpreendera. — Tu combateres na guerra? — perguntou-lhe ela.

— Combati, mas não como guarda do Rei. Fui escolhido depois. Ele só levou um guarda-costas a Dalriada e esse homem morreu em combate.

Silenciosamente, Eile agradeceu aos deuses por Faolan ter ficado de fora. Em seguida, porém, arrependeu-se porque o seu pensamento diminuía o valor do homem que morrera. A guerra era uma coisa estúpida, um desperdício terrível. Por cada herói a ser honrado e recompensado naquela noite, cinqüenta, provavelmente, não tinham regressado a casa.

Não era possível comer muito apesar de os pratos se sucederam uns aos outros; carne de vaca, sopa, pés de porco, gelatina de legumes, pudins e fruta de conserva.

— Tens o apetite de um passarinho, Eile — disse Wid, que aproveitava tudo o que sobrava.

A jovem sorriu, mas não comentou; era difícil explicar quando se passava anos e anos a dieta de quase nada; não precisava de um festim para se satisfazer. O seu corpo já tinha respondido a uma alimentação melhor. O espelho não lhe mostrava uma rapariga magricela, mostrava-lhe uma mulher esbelta, bem constituída. O período, que não vira durante anos após o nascimento de Saraid, regressara regularmente: um incômodo necessário porque mostrava que os ritmos físicos tinham sobrevivido aos tempos de privação. Ou de degradação. Com Dovran na sua frente, admirando-a, faria o possível para não pensar no assunto

Quando o banquete terminou e a multidão reunida se começou a descontrair com taças de cerveja ou de hidromel na mão e uma grande variedade de doces na sua frente, o Rei Bridei pôs-se de pé, flanqueado pelos seus principais conselheiros. Tharan, alto e escuro e Aniel, grisalho e de olhar cansado.

— Meus amigos e convidados ilustres — começou o Rei — esta é uma noite de luz e de trevas; de alegre comemoração e de profunda tristeza...

Eile não percebeu muito, apesar de Wid e Ferada lhe murmurarem fragmentos de tradução. Aqui e ali, a jovem deixou que a sua mente flutuasse enquanto a voz de Bridei, quente, confiante, por vezes quase íntima, como se estivesse a falar a cada indivíduo e não a uma multidão, mantinha a sua audiência sob domínio total. A jovem observou os rostos, vendo neles a mistura de alegria e tristeza que o Rei mencionara, o reconhecimento de que a vitória e a morte andavam de mãos dadas. Após algum tempo conseguiu distinguir os rostos que se sentiam menos fascinados pelos indiscutíveis dotes oratórios do Rei. Keother, Rei das Ilhas Pequenas, sentado à cabeceira da mesa: indiferente, desconfiado, circunspecto. Breda: aborrecida e mal-disposta. Entre os chefes-de-guerra sentados em silêncio, de olhos ardentes com a esperança e a lealdade que as palavras de Bridei invocavam, um ou dois apresentavam olhares cépticos, irritados ou duvidosos.

— Quem é aquele? — murmurou ela. — E aquele? — Ferada disse-lhe os nomes com um olhar conhecedor.

— Ele ainda não os tem todos na mão — murmurou a filha de Talorgen. — Mas ainda não disse tudo. Eles estão à espera do resto.

Primeiro, porém, foram chamados os chefes-de-guerra para receber do Rei em pessoa os agradecimentos da pátria e o respectivo presente. Aniel tinha um cofre nas mãos e Tharan estava ao lado de uma pequena mesa onde estavam expostas coisas maiores. A um de cada vez, foram conferidos artigos de joalharia, trajes e armas. Eile gostou de ver o rapaz vivamente vestido, com a mãe a seu lado, subir à plataforma para receber os agradecimentos em nome do seu pai. O pequeno tinha, talvez, dez anos de idade. Bridei beijou-o formalmente nas duas faces e falou-lhe de homem para homem. O presente foi um par de enormes cães de caça: dois formidáveis animais hirsutos cheios de nobreza. O rapaz, sentindo-se muito importante, agradeceu ao Rei com algumas palavras corteses, baixando a cabeça. Só quando ele se virou é que Eile o viu olhar para a mãe e sorrir, perfeitamente deliciado.

O maciço guerreiro Caitt, com a sua capa de muitas peles, recebeu um pesado bracelete de prata. Muitos outros subiram à plataforma, todos foram saudados e a todos Bridei falou como a um velho e querido amigo. Eile olhou para Tuala, sentada na mesa elevada, na sua primeira aparição na corte desde o nascimento da sua filha. A Rainha estava de cinzento-escuro. Os seus caracóis escuros esvoaçantes estavam em parte escondidos por um pequeno véu de gaze transparente. Os seus grandes olhos estavam fixos no seu marido enquanto ele pronunciava o seu grande discurso e fazia os seus agradecimentos pessoais, oferecendo a cada homem o respeito devido pela sua coragem e sacrifício. Eile sentiu que Tuala estava a viver cada momento com

Bridei, que estava, de certo modo, a emprestar-lhe a sua força para que ele pudesse continuar e pensou novamente em Faolan mergulhado no desespero, em Faolan prestes a render-se às trevas e em como o seu grito o tinha salvo.

Os presentes tinham sido entregues. As pessoas começaram de novo a agitar-se. Os jarros e as taças tilintaram e as conversas começaram em redor das mesas.

— Silêncio para o Rei! — gritou alguém com voz forte.

Bridei disse qualquer coisa sobre música e dança que Eile só conseguiu traduzir em parte. Wid inclinou-se para ela e murmurou-lhe:

— Eu faço-te uma tradução rudimentar enquanto passamos à parte seguinte, um discurso importante. Levanta-te, o Rei pede-nos que honremos os que caíram na guerra do ano passado.

Levantaram-se todos. O silêncio era tão absoluto que Eile pensou que conseguia ouvir o bater do seu próprio coração.

— Obrigado — disse o Rei, sobriamente. — Quero falar-vos de uma última coisa. O meu parente, Carnach de Thorn Bend, que serviu com grande coragem como meu chefe-de-guerra no nosso empreendimento, não pôde estar conosco esta noite. É evidente que se defrontou com atrasos ao regressar para assumir as suas responsabilidades em Caer Pridne, onde a nossa força de combate continua, pronta para avançar novamente caso surja uma nova ameaça. Tenho consciência de que, no seguimento de um grande triunfo, devemos manter-nos vigilantes. Fortriu tem muitos inimigos, temos de manter os olhos abertos e as nossas armas afiadas. Por tal razão e porque não sei quando Carnach pode estar livre para regressar para o nosso seio, vou nomear esta noite um outro chefe-de-guerra para o seu lugar.

Um suspiro percorreu o salão. Wid murmurou ao ouvido de Eile:

— Estavam à espera disto há muito tempo, desde que começaram os boatos sobre a deserção de Carnach e uma possível rebelião. Bridei não o queria fazer porque significa reconhecer publicamente que acredita que os rumores têm alguma substância. Porém, como não há notícias sobre o que Carnach anda a fazer exatamente, o Rei tem de fazer a nomeação esta noite. Protelar mais fá-lo-á parecer indeciso.

— Chhh! — sibilou um homem sentado um pouco mais longe e Ferada lançou-lhe um olhar altivo.

— Talorgen de Fonte do Corvo concordou em assumir o cargo a meu convite — disse Bridei, confiante. Eile gostou de descobrir que estava a perceber mais do que esperava do seu discurso, só precisava da tradução de Wid nas partes mais complicadas. — Tenho fé na capacidade de Talorgen — continuou o Rei — é um guerreiro de longa experiência. Foi pela sua mão que aprendi a combater, foi sob o seu comando que tomei parte na minha primeira batalha. Peço-vos que apoieis a minha escolha. Talorgen irá treinar os guerreiros que estão em Caer Pridne durante o Verão, prevendo já quaisquer eventualidades. Agradeço a sua prontidão na aceitação do cargo. Depois do morticínio do último Outono, todos nós temos esperança num período de paz e de reconstrução. Foi com base nessa esperança que tomei a difícil decisão de não contestar o reino de Circinn. Sei que a minha escolha não agradou a todos os meus chefes-de-guerra. Podeis ter a certeza que sei quais são os perigos que enfrentamos nas nossas fronteiras, sei que precisamos de manter uma força altamente treinada, guerreiros prontos para o combate. Talorgen é o homem para chefiar tal força. Se a guerra regressar, estaremos prontos para ela.

Eile ficou espantada quando, em vez de aplausos e palavras de aprovação, irrompeu no salão um coro de gritos, contestações, objeções, protestos.

— Porque não foi isto feito em assembléia? Porque não votamos? Escolhe um homem mais novo! E Morleo?

O conselheiro do Rei, Aniel, que não era um homem alto, levantou-se e ergueu uma mão. O salão caiu em silêncio. A sua autoridade era altamente respeitada. Talorgen já estava de pé à cabeceira de uma das grandes mesas com o filho mais novo a seu lado. Ferada começara a roer as unhas. Na sua frente, Garvan murmurou:

— Ele sabe o que tem a dizer. Vai correr tudo bem.

— Quero tornar claro — disse o chefe-de-guerra de Fonte do Corvo — que concordei em assumir este cargo sob certas condições. Espero que, quando vo-las explicar, as vossas preocupações deixem de existir. Podeis ter a certeza de que quando e se o meu cargo ficar em aberto a longo prazo, será disputado em sessão aberta e que qualquer homem que se ache digno de o assumir terá oportunidade de avançar o seu nome.

— Explica-te! — gritou alguém. Ouviu-se imediatamente outra voz:

— Cala a boca! Seja como for, Talorgen é a melhor escolha!

O primeiro homem sibilou e Eile viu Ferada empalidecer. A jovem pousou a sua mão na dela. A filha de Talorgen era, por vezes, intimidantemente capaz, mas naquele momento era o seu pai que estava a ser publicamente atacado.

— Concordei em assumir o cargo apenas até ao regresso de Carnach ou até o Rei Bridei decidir que é hora de nomear definitivamente um substituto — disse Talorgen. — Como tal, cumprirei o meu dever com todas as minhas forças e com toda a minha dedicação. — O chefe-de-guerra estava pálido. O pai de Ferada ainda era um homem bonito apesar dos cabelos grisalhos, mas naquela noite estava manifestamente pouco à vontade.

— Ele está preocupado por causa dos rapazes — murmurou Ferada. — Bedo em particular. Isto é de mais para a minha madrasta. O meu pai não tem vontade nenhuma de assumir o cargo.

— Isso é tudo muito bonito — disse alguém no meio de um contínuo ruído surdo de agitação. — Mas onde está Carnach? Isso é o que nós queremos saber. Os homens precisam de certezas, não de medidas a curto prazo. Todos nós queremos, depois desta guerra.

— Se queres a minha opinião — disse outro homem — esta é a melhor ocasião para nomear um substituto permanente.

— Cala-te! — gritou alguém ao fundo do salão. — Estás a tentar desafiar o Rei?

Seguiu-se um silêncio desconfortável.

Keother das Ilhas Pequenas levantou-se. Todos os olhares se viraram para a mesa principal.

— De fato — disse ele, passando uma mão pelos cabelos dourados — não me parece que um banquete comemorativo seja a ocasião ideal para um debate tão... robusto. O Rei Bridei tomou a sua decisão. Não é o momento ideal para a contestar. Se ele nomeou Talorgen aqui presente, é porque ele é capaz. Tenho a certeza de que ele fará um excelente trabalho.

Ferada disse qualquer coisa em voz baixa.

— Sem dúvida que com o tempo, talvez a curto prazo — continuou suavemente Keother — seja seguido o procedimento adequado e seja feita uma nova nomeação. Todos nós sabemos o que se diz acerca de Carnach de Thorn Bend. Em tempos conturbados, o que se exige é um chefe decidido, um homem que não hesite.

— E o baile começa quando? — gritou alguém, provocando uma série de gargalhadas. A voz pertencia a Umbrig dos Caitt.

— Obrigado, Umbrig — disse Bridei em tom monótono — por nos lembrares por que razão estamos aqui: para comemorarmos a vitória e a coragem. Prometo-vos que debateremos esta questão em devido tempo, mas asseguro-vos que não o faremos antes. Escolher um caminho com base em boatos e conjecturas é para os loucos e os impulsivos.

— Nesse caso, por que não lançar um augúrio? — perguntou Keother o qual, era evidente, ainda não tinha acabado. — Os deuses que te aconselhem.

— Aquilo foi um golpe baixo — murmurou Wid.

— Tu és um homem de fé, meu senhor Rei — continuou Keother. — O Guardião da Chama não deve ter a última palavra nesta questão?

Então, um homem excepcionalmente corajoso, ou louco, sentado à terceira mesa, gritou:

— E onde está o druida? Onde está Broichan? Pergunta-lhe o que pensa!

— Chega! — A voz seca de Bridei cortou o discurso do homem com a mesma facilidade com que um machado corta madeira de pinho seca. — Estamos conversados. Os músicos que comecem o seu trabalho porque chegou o momento de pôr de lado algumas horas sobre os assuntos sérios. Asseguro-vos que ouvirei as preocupações de todos em devido tempo. Mas não esta noite. Esperamos muito tempo por esta festa.

As pessoas levantaram-se. Os criados começaram a afastar os bancos e as mesas. Ferada dirigiu-se para junto do pai para o tranqüilizar, enquanto Garvan ficava a alguma distância. Wid pôs-se de pé mais lentamente e Eile ofereceu-lhe o braço. Um instante mais tarde, Dovran fazia o mesmo no outro lado.

— Ainda não estou caquético, jovens — cacarejou o sábio. — Mas é verdade, preferia estar confortavelmente sentado. Os meus dias de dançarino já lá vão há muito. Ponde-me além ao lado de Fola e das mulheres sábias dela. Elas entretêm-me. E agora ide e diverti-vos, que é o que o Rei quer. Quero ver-vos a dançar. Aposto que tens pés leves, Eile.

E um desafio, disse Eile a si própria com uma careta. Dovran que te pegue na mão, que te agarre pela cintura, convence toda a gente que te estás a divertir e tenta convencer-te a ti própria. A música era boa, apesar de não ter quaisquer termos de comparação. A jovem achava que se lembrava de um casamento ou algo parecido no estabelecimento de Brennan, em Montanha Nublosa, muito tempo antes. Tanto, talvez, que o seu pai estava com ela e a sua mãe sorria. Lembrava-se de um instrumento de arco que fazia um som lancinante, de um tambor de pele de cabra — gostara muito — e de uma flauta de cana estridente. Lembrava-se de ter dançado com alguém e de alguém — Deord? — dizer com um sorriso aprovador «É a minha filha». Aqueles músicos era tão superiores aos de então como o Sol era superior a uma pequena margarida num prado. A flauta pulsava e o tambor fazia bater os pés no chão. Também havia uma harpa e foi dela que Eile mais gostou. A sua música era mágica, fazia-a pensar num mundo encantado, fazia-a pensar em Derelei e nas suas visões.

— Queres? — perguntou-lhe Dovran, estendendo a sua mão.

— Eu... não sei... passos. Nunca fazer... antes.

— Nem eu — disse ele com uma careta. Eile sentiu-se desarmada.

— Suponho que nos vamos pisar um ao outro, então — disse ela em gaélico, fazendo uma demonstração e fazendo-o rir. Eile ofereceu-lhe a mão e momentos depois estavam no meio de uma multidão de pares.

Consigo, disse ela a si própria, suportar o toque dele. Se me concentrar noutras coisas, consigo. Faolan saberá dançar?


CAPÍTULO CATORZE

 

Na seqüência da festa da vitória do Rei Bridei, a fortaleza de Monte Branco começou a esvaziar-se. Os chefes-de-guerra e as suas famílias regressaram a suas casas e os homens-de-armas dirigiram-se para Caer Pridne, antecipando uma época de treino sob a chefia de Talorgen.

Bridei tomara uma decisão e tencionava mantê-la, mas não se sentia à vontade. O monarca pedira a Fola que lançasse um augúrio na ausência de Broichan para obter a sabedoria dos deuses quanto ao futuro imediato e à questão de Carnach. Seria melhor enviar uma força para sudeste para agüentar a fronteira contra uma eventual revolta armada daquele quadrante, ou seria melhor aguardar na esperança de conseguir mais informações? Não conseguiria montar uma estratégia contra uma sublevação, a menos que soubesse quais eram os aliados de Carnach!

Os deuses não lhe tinham dado respostas. Não que Fola não tivesse a capacidade de interpretar um padrão de gravetos de vidoeiro lançados sobre o tampo de uma mesa de pedra. A mulher sábia era uma sacerdotisa de prestígio, conhecedora e profunda. O próprio Bridei, educado no conhecimento de tais ferramentas, vira que a mensagem dos gravetos era obscura, insinuando ora uma ora outra interpretação. O Rei consultara Tuala a qual, no passado, fora mais astuta do que ninguém na compreensão das mensagens dos deuses e nem ela conseguira chegar a uma conclusão.

— Enfrentamos a confusão — dissera ela. — Desafios: sebes e pontes. Mas isso já nós sabíamos.

Um fim de tarde, Bridei convocou o seu círculo mais íntimo para uma reunião. A pequena sala do conselho tinha uma mesa de carvalho, dois bancos, uma janela estreita que dava para a floresta abaixo das muralhas, uma lâmpada num nicho porque a sala era naturalmente escura e mais nada. O chão de pedra estava limpo e as paredes nuas. Com a janela colocada demasiado alta e a porta ao mesmo tempo discreta e defendida de maneira eficaz por um homem — na ocasião Garth — era um local onde uma conversa sobre assuntos delicados podia decorrer na maior confidência.

Talorgen fora o primeiro a comparecer. Era evidente que queria falar com Bridei antes da chegada dos outros. O Rei estava sozinho com o seu cão, Ban, cuja silhueta branca e pequena era apenas uma mancha debaixo da mesa.

—Já fiz as malas. Estou pronto para partir, meu senhor — disse o chefe-de-guerra, andando impacientemente de um lado para o outro na pequena sala. As suas sobrancelhas estavam ainda mais cerradas, se possível, do que na noite do banquete. — Brethana e eu decidimos que é melhor ela levar os rapazes para Fonte do Corvo, pelo menos por agora. Devido ao braço de Bedo, vão pelo lago, o que quer dizer que vão ter de ficar aqui mais algum tempo, até a passagem estar disponível.

— Claro — disse Bridei, um pouco surpreendido por Talorgen ter mencionado, sequer, o fato. — A tua família pode ficar na corte o tempo que quiser.

— Uric quer ir comigo, mas ainda é novo. Disse-lhe que se as coisas correrem bem pode ir ter comigo a Caer Pridne no fim do Verão. Bedo é que me preocupa.

— O braço dele não está a sarar?

— O braço está bem. O endireita está satisfeito com ele. Ele é que continua a agir de maneira estranha, não consegue pôr de lado as suspeitas acerca daquele dia. Ele e Uric falam em segredo do assunto, não me dizem exatamente o que acham que aconteceu. Eu sei que eles se sentem ofendidos por nós não os termos levado a sério e agora estão com medo que achemos que é um disparate.

— Eu mandei investigar os acontecimentos daquela tarde, Talorgen. Não foi descoberto nada de suspeito, para além do fato de uma égua bem treinada ter tomado o freio nos dentes sem qualquer razão aparente. Algumas pessoas pensam que Breda gritou antes de o animal se assustar e outras que ela gritou depois, como seria de esperar. Se os teus rapazes não expuserem abertamente a sua teoria, não vejo razão para continuar e Keother também não, tenho a certeza. Em relação a este assunto, ele partilha da minha opinião. De fato, até foi muito cooperante.

— Uma surpresa face à sua atuação na festa — observou Talorgen, enrugando o lábio. — Nunca tinha visto uma tentativa mais vergonhosa para diminuir e enfraquecer um chefe como a exibição que ele montou naquela noite. Não sei o que ele anda a preparar, mas só descanso quando ele e a fedelha mimada da prima dele se forem embora daqui. A visita deles foi sempre problemática e perturbadora.

— Breda foi muito brusca quando lhe pediram que falasse do comportamento do seu cavalo naquele dia. Para ela, a insuficiência do animal foi evidente. Ela acha que não teve culpa absolutamente nenhuma. Eu próprio falei com ela. A rapariga é demasiado ingênua e infantil para ter instigado uma coisa tão tortuosa.

— Pode ter sofrido pressão do tio. Keother é poderoso e ela é nova. Espero que não tenciones retê-la aqui em substituição de Ana.

— A maneira como ele falou no banquete sugere que façamos qualquer coisa para o manter em cheque. Se manter uma refém for a solução, fá-lo-emos.

— Dizes que ela é demasiado infantil para ser perigosa. Devo dizer-te que a obsessão de Bedo está centrada nela. Chegou a mandar o irmão ao local para fazer uma busca.

— Uma busca? Para quê? Já passou muito tempo e entretanto choveu. As pistas que podia haver já desapareceram.

— Ele não foi muito claro, mas suponho que a busca está relacionada com um objeto qualquer que terá sido usado para assustar o cavalo de Breda. Depois de eu partir para Monte Branco, a minha mulher não sabe se será capaz de lidar com o assunto Os meus filhos sabem que devem regressar a casa dentro de pouco tempo, mas Brethana acha que, quando chegar a ocasião, se eles não tiverem encontrado o que procuram, podem insistir em ficar em Monte Branco. Eles tratam-na com respeito, mas não é a mãe deles.

— Estou a ver. Muito bem, se for preciso eu ajudo a tua mulher na questão. É estranho com Keother e Breda ainda aqui. Achas que Bedo fala comigo?

— Duvido, Bridei. Eu acho que é melhor se...

Alguém bateu à porta. Ban ladrou, um som mais impressionante do que o seu tamanho sugeria.

— Meu senhor? — Era a voz de Garth. Bridei fez sinal a Talorgen para abrir a porta.

— Meu senhor, peço desculpa por interromper — disse o guarda-costas no lado de fora. — Faolan está de volta.

Um pouco mais tarde, enquanto o chefe-de-guerra de Fonte do Corvo esperava tacitamente no exterior, Bridei olhava para o seu braço direito no outro lado da mesa e tentava esconder a sua preocupação. Faolan entrara a coxear e os seus esforços para disfarçar o fato de que estava com dores não enganaram o Rei. O seu rosto, por baixo de umas nódoas negras que começavam a desaparecer, estava pálido. Os seus olhos escuros tinham olheiras, como se o assassino tivesse passado muito tempo sem dormir. O pequeno cão olhou para ele, mas manteve-se silencioso porque conhecia-o. Evidentemente, Faolan era um homem que dava sempre o máximo de si próprio, mas Bridei nunca o vira naquele estado e sentiu um baque no coração. As notícias deviam ser más, muito más.

— Bem-vindo, Faolan. Senta-te, por favor. Lamento, mas quero o teu relatório imediatamente. Tenho um conselho agendado. Os participantes chegam daqui a pouco. Primeiro, porém, quero ouvir-te. Só depois decidiremos o que lhes poderemos dizer.

Faolan não se sentou.

— A história é estranha, meu senhor — disse ele. — Uma longa viagem com nada de novo, apenas os boatos de sempre, atividades na estrada de Circinn e no interior do país, homens armados e grupos de cavaleiros. Então tropecei em Carnach em pessoa.

Bridei debruçou-se e cruzou as mãos na sua frente, em cima da mesa.

— Nesse caso és o primeiro homem em todo o Fortriu a pôr a vista em cima do meu parente desde que ele foi para casa no Inverno. Onde? Na companhia de quem?

— A primeira vista parece mau, Bridei. — Faolan abandonou o tratamento formal e passou a tratar o Rei como um amigo. — Ele estava em Circinn e o homem que estava com ele era Bargoit.

Bridei assobiou.

— Tens a certeza? — Se aquilo era verdade, era pior do que imaginara, fazia de Carnach um traidor da pior espécie.

— Tenho. Eles capturaram-me e interrogaram-me. Não foi nada demais — disse ele ao ver o gesto de preocupação do Rei. — Consegui convencer aquele furão do Bargoit de que era um homem insignificante. O problema é que me retardou o regresso.

Bridei não lhe fez qualquer pergunta sobre a perna. A posição desnivelada do assassino era evidente e a dor estava escrita nas feições controladas do seu amigo.

— Pelo que disseste, Bargoit não te reconheceu — disse ele, pensando a toda a velocidade. — Portanto...?

— Penso que a notícia não é tão má como parece — disse Faolan. — Garth disse-me que nomeaste Talorgen para o lugar de Carnach. Estou furioso por ter demorado tanto tempo a voltar. Em relação ao teu chefe-de-guerra, podias ter esperado.

— Que estás a dizer? Que Carnach vai voltar? Que espera recuperar a sua antiga posição depois de se dar com gente como Bargoit? Ele pode ser muita coisa, mas estúpido não é.

— Bridei — disse Faolan, sentando-se finalmente no banco e estendendo a perna com uma careta —, há algo que precisas de saber

— Sim?

— Primeiro, o fato de Carnach ter feito de conta que não me conhecia. O teu primo fez de conta que acreditou que eu era um estúpido trabalhador rural que andava longe de casa.

Se o assunto não fosse tão sério, Bridei teria sorrido.

— Tu, um trabalhador rural? — perguntou ele. — Deve ter sido difícil.

— Eles acreditaram. Bargoit, pelo menos. Tive uma conversa esquisita com Carnach. Vou contar-te...

Bridei escutou e ponderou: fugir, virar as costas a uma boa casa e a um bom emprego; regressar a casa por uma questão de lealdade. Oportunidades em Circinn. Uma menção ao solstício de Verão. Confiança. Apesar de tudo, o que Faolan sugeria exigia uma grande dose de fé.

— Se tiveres razão — disse ele — Carnach deu provas de uma esperteza espantosa.

— Pergunta a ti próprio se, antes de ele protestar contra a tua decisão respeitante à coroa de Circinn e de ter ido para casa, tinhas algumas dúvidas quanto à sua lealdade.

— Sabes perfeitamente que não tinha nenhumas, Faolan. Porém ele estava zangado, amargamente desapontado comigo. Achas que essa conversa que tiveste com ele, para a qual ele não podia estar preparado, foi a passagem de uma mensagem cifrada, assegurando-me que me é leal? E se tu estiveres enganado? Podemos ser atacados de surpresa. Além do mais, nada altera o fato de que Carnach estava em Circinn na companhia de Bargoit. Bargoit nunca foi amigo de Fortriu e é um homem poderoso, mais poderoso do que devia como conselheiro.

— Tudo o que posso fazer é oferecer-te a minha convicção de que Carnach queria dizer-te que a sua lealdade permanece intacta e que reassumirá a sua posição de chefe-de-guerra. Eu acredito que quando ele me mandou estar em casa por ocasião do solstício de Verão, estava a dizer que podes contar então com ele.

— Tens alguma teoria relacionada com Bargoit?

— Várias, mas ainda não decidi qual é a mais plausível. Penso que é possível que Carnach esteja a atrair Bargoit a uma armadilha qualquer. Seria ótimo para Fortriu se Bargoit perdesse a influência que tem junto do novo Rei de Circinn. Estou certo que o meu súbito aparecimento junto deles foi muito inconveniente para Carnach. No entanto, ele transformou a minha presença numa vantagem. Ele deve ter percebido que tu me mandaste para tentar descobrir o que estava a acontecer e serviu-se de mim para responder às tuas preocupações, dar-te a saber que é capaz de resolver a situação, seja ela qual for, que não perdeste o seu apoio e que vai voltar.

— Que o Guardião da Chama nos ajude — disse Bridei. — Talvez as notícias sejam mesmo boas. Sabes que confio em ti, Faolan. Eu não estava lá, mas tu estavas. A questão é: partilhamos isto? Se sim, quanto?

— Quem vai estar presente no conselho?

— Talorgen, para teu descanso ficas a saber que ele aceitou o cargo de má vontade e só temporariamente, Fola, que vai em breve para Banmerren mas que concordou em ficar por causa da reunião, Aniel e Tharan. Talvez Tuala, se puder.

Faolan anuiu.

— A decisão é tua, claro, mas eu acho que podes informar o grupo. Suponho que Broichan ainda não regressou?

— Não sabemos nada. A tua missão seguinte tem a ver com notícias dos tais cristãos. Espero que a sua chegada não esteja iminente. Keother e a prima ainda cá estão. Eu preferia evitar a complicação de lidar com ambos ao mesmo tempo. Ele é perigoso e ela é volátil. E é sabido que ele tolera a presença cristã nas Ilhas Pequenas, que é bastante forte.

— Sim, meu senhor. — O tom de Faolan mudara, tal como a expressão. Algo no discurso de Bridei fizera-o procurar a proteção da etiqueta.

— Não tenciono enviar-te imediatamente, amigo — disse Bridei, adivinhando, como sempre que lidava com Faolan. — Neste momento quero que vás tomar um banho, quero que mudes de roupa e que comas qualquer coisa. Depois, gostaria muito que regressasses aqui para contares a tua história ao meu conselho.

— Sim, meu senhor.

O assassino estava perto da porta quando Bridei disse subitamente:

— A propósito, aquela rapariga tua conhecida adaptou-se muito bem.

Faolan parou como se tivesse sido atingido por uma seta e ficou completamente imóvel, meio de costas para o Rei.

— Eile — acrescentou Bridei, quando se tornou evidente que Faolan não lhe ia perguntar. — Está a aprender a língua priteni, pedimos a Wid para a ajudar, e a fazer amigos novos. Tornou-se a preferida de quase todos. Tuala diz que ela tem imenso jeito para as crianças.

Faolan recomeçou a respirar.

— Ela ainda cá está? — O seu tom de voz era estranho, tenso. — Isso quer dizer que Ana e Drustan ainda cá estão? Pensei...

— Ana e Drustan já se casaram, Faolan — disse Bridei num tom perfeitamente neutral. O Rei era talvez a única pessoa a quem Faolan teria confiado a verdade sobre a sua paixão impossível por Ana e a natureza complicada dos laços entre os três, Ana, ele próprio e Drustan. — Há muito que partiram para o norte, mas Eile e a filha ficaram.

— Estou a ver — disse Faolan após uma pausa durante a qual Bridei quase sentiu o turbilhão na mente do seu amigo, tal era a tensão na pequena sala. — Onde é que elas estão alojadas? Imenso jeito, disseste tu... Eile está a trabalhar como ama de crianças? Isso não é...

— Por que não lhe perguntas? — sugeriu Bridei. — Ela deve estar no nosso jardim privado a esta hora, a arrancar ervas daninhas e a tomar conta de Derelei.

— O teu conselho...

— Vai, Faolan. Podemos esperar um pouco. Lembra-te que és humano.

Faolan coxeou até à porta e encostou uma mão à soleira para se apoiar.

— É esquisito — disse ele, calmamente — já não preciso que mo recordem.

O Sol estava baixo, os seus raios entravam inclinados no pequeno e tranqüilo jardim, aquecendo as filas de ervas e as trepadeiras das paredes de pedra, fazendo cintilar a água do tanque. O local parecia deserto. Ainda bem já que o seu coração batia como um tambor de guerra e a sua língua estava incapaz de falar coerentemente. Eile estava ali. Eile continuava em Monte Branco e ele tinha de encontrar as palavras certas, tranqüilizadoras, já que o seu corpo pulara de desejo ao ouvir o som do seu nome e a sua cabeça era um caos de pensamentos e emoções. O assassino e espião do Rei, frio e profissional, sentia-se subitamente completamente desarmado.

Faolan ainda pensou em voltar para trás. Era melhor lavar-se e apresentar-se no conselho. Pelo menos era capaz de fazer tal coisa com eficiência. Um som, porém, imobilizou-o.

— Um, dois, três, abelha obreira zumbidora Saraid, sem dúvida. — A sua voz vinha de trás dos arbustos de alfazema onde, lembrava-se, havia um pequeno espaço relvado com canteiros de flores.

— Quatro, cinco, seis, abelha em cima de um pau...

Eile. Oh, deuses. Faolan sentiu o sangue a ferver. Então ouviu-se uma outra voz, a voz de um jovem.

— Sete, oito, nove, bagos numa videira

— Agora Derry. — Outra vez Saraid. Uma voz fininha disse qualquer coisa indistinta, imitando os outros participantes do jogo, fosse ele qual fosse.

— Muito bem, Derelei — disse Eile. — Daqui a pouco estás a falar gaélico. E tu também, Dovran.

Dovran. Apetecia-lhe matá-lo. Não, era melhor ir-se embora. Iria ter com Bridei e oferecer-se-ia para ir à procura dos cristãos pelo Vale abaixo. Eile não precisava de o ver; parecia feliz, enraizada. E Dovran, maldito, parecia no seu elemento. Faolan voltou a descer os degraus. No terceiro o seu pé escorregou e ele teve de se agarrar aos arbustos que os ladeavam para não perder o equilíbrio. Um momento mais tarde Dovran estava no alto de lança em riste. Os guarda-costas do Rei eram todos profissionais.

— Diz o teu nome e... Faolan! — O guerreiro mudou de expressão e baixou a arma. — Voltaste! Bem-vindo.

Faolan, porém, não estava a olhar para ele. O seu olhar estava fixo no espaço atrás do jovem guarda, onde acabavam de aparecer uma, duas, três figuras: Saraid, com um pequeno vestido cor-de-rosa de lã e com Lamento debaixo do braço; Derelei, com uns grandes olhos e muito solene e Eile. Eile tinha uma saia e uma túnica verde-escuras e os seus cabelos ruivos, entrançados, caíam-lhe pelas costas abaixo. As suas mãos sabiam como eram macios e a sua mente cobriu a distância entre os dois, imaginando o que seria tomá-la nos braços. Faolan viu passarem-lhe pelo rosto pálido e pelas feições finas uma seqüência de expressões: surpresa, choque, confusão e mais qualquer coisa que ele não conseguiu interpretar, algo que lhe pareceu bom... Apeteceu-lhe estender os braços, convidá-la ao abraço, mas as suas defesas, automáticas, impediram-no. Então, Saraid gritou:

— Feeler! Feeler! — E lançou-se pelos degraus abaixo. As defesas de Faolan desmoronaram-se. O assassino ajoelhou-se e abraçou as duas, Saraid e Lamento, tentando impedir que as lágrimas jorrassem. Faolan murmurou qualquer coisa que era ao mesmo tempo um cumprimento e um pedido de desculpas, sentindo as faces pele de pêssego da criança encostadas às suas, levantou-se com Saraid nos braços e olhou de soslaio para Dovran.

— Vou-me embora — disse este em priteni, sem antes devolver o olhar. — Vemo-nos ao jantar, Eile.

— Obrigada por teres jogado — disse Eile. — O seu sotaque estava muito melhor.

— Quando quiseres. — O jovem guarda passou por Faolan e saiu do jardim.

— Que estava ele a fazer aqui? — perguntou Faolan em gaélico.

— De serviço. A manter as pessoas longe do jardim da Rainha. Não olhes para mim assim. Chega aqui para eu te ver.

As palavras da jovem eram práticas. Por que razão a sua voz tremia? Faolan subiu os degraus e aproximou-se dela sem dizer uma única palavra. Eile escrutinou-o, semicerrando os olhos por causa do sol.

— Estás com um aspecto horrível — disse ela. E tu estás linda.

— E tu continuas aqui — disse Faolan. — Pensei que te tinhas ido embora. Pensei que Drustan e Ana...

— Como vês, não te livras de mim com essa facilidade. Tenho trabalho e Saraid sente-se feliz. A decisão foi minha. Senta-te aqui no banco, Faolan. A tua perna está pior, não está? Que aconteceu?

O assassino coxeou até ao banco, incapaz de fingir perante o olhar perscrutante dela e sentou-se com Saraid a seu lado. Eile acocorou-se em frente dele e Derelei pôs-se a olhar para ele, silencioso. Toda a gente a olhar para ele. Faolan sentiu-se como se estivesse a ser pesado numa balança. Só Saraid, encostando-se a ele, estava nitidamente satisfeita. Clareando a garganta, o assassino disse:

— Bridei disse que te adaptaste bem. Estou a ver que é verdade.

— Dito dessa maneira até parece que é mau.

— Não, claro que não. Estou surpreendido, mais nada. Espantado.

— Espantado por a segurança e a bondade me terem feito quase feliz? Surpreendido por ter deixado de ameaçar intrusos com uma forquilha?

— Dovran. Fiquei surpreendido, sim. Um homem que não conhecias quando eu me fui embora, sentado no chão como se fizesse parte da família, a brincar contigo e com a tua filha, a olhar para ti com olhos de posse. Não me fui embora assim há tanto tempo. Pergunto a mim próprio se terei percebido bem.

Pelos olhos de Eile passou uma sombra de fúria. A jovem levantou-se.

— Não podemos falar disso agora — disse ela, olhando para as duas crianças. — Aliás, não sei se quero falar do assunto. É como se estivesses a dizer que só te interesso se estiver defeituosa, magoada. As coisas mudam, por vezes mudam mesmo que não queiramos.

— Sabes perfeitamente que não era isso que eu queria dizer — disse ele, sentindo-se como se ela o tivesse esbofeteado. Como era possível ela pensar aquilo dele? — Eu pensava... — A imagem na sua mente era tão clara como o dia, ele próprio de braços abertos, o coração exposto e ela a correr com os cabelos ruivos ao vento para o abraçar, como se ele fosse o único homem no mundo. Era ridículo. — Esquece — disse ele. — Tenho uma reunião com o Rei, mas primeiro vou-me lavar, cheiro mal. — Faolan levantou-se, sentindo o joelho em fogo e antes que tivesse tempo de dar um passo Eile agarrou-o pelos braços.

— Cuidado — disse ela num tom de voz diferente. — Estou a ver que te dói. Continua a fingir que está tudo bem e em breve deixas

de andar de todo. Aqui há curandeiras. Trata disso. Se quiseres, posso ajudar-te...

A jovem calou-se, continuando a ampará-lo pelos antebraços. Ele sentiu-lhe o calor em todo o corpo. A sensação afastou todas as precauções, Faolan baixou a cabeça e tocou-lhe nas têmporas com os lábios apenas por um momento, um momento maravilhosamente perigoso.

— Desculpa — disse ele. — Estou a fazer tudo mal. É melhor ir-me embora. É mais fácil para ambos. Sei que é mais fácil para ti.

Eile não se tinha mexido, não estremecera nem emitira um som. As suas mãos continuavam nos braços dele, fortes e resolutas.

— Feeler vai-se embora? — perguntou uma voz fininha mesmo ao lado dele, cheia de angústia. — Feeler vai-se embora?

Quando Faolan olhou, viu lágrimas silenciosas a correrem pelas faces de Saraid abaixo.

— Não, Saraid — disse Eile com voz trêmula. — Faolan não se vai outra vez embora. Não precisas de chorar, querida. Chhh, chhh, estás a assustar Derry outra vez. Realmente cheiras um bocado mal — acrescentou ela, virando-se para Faolan. — Não cheiras pior do que quando subimos o Vale, mas se tens uma reunião, é melhor lavares-te e mudares-te. Vieste diretamente para aqui depois de falares com o Rei?

— Vim. Eu... — Não conseguia falar coerentemente, nem tomar uma simples decisão. — Onde estás alojada? — perguntou ele. — Posso ver-te mais tarde?

— Estamos num pequeno quarto ao lado dos antigos aposentos de Ana.

— Estamos?

— Saraid e eu. Quem havia de ser? Imaginas que aconteceu um milagre e que já tenho o tal rapaz perfeito na minha cama? — Um momento depois a jovem acrescentou: — Faolan, estás a corar? — O seu tom era doce. O coração do assassino começou a bater descompassadamente.

— Suponho — conseguiu ele dizer — que se fosse verdade, tu e Dovran tão cedo, seria bom, apesar de significar que terias quebrado uma promessa. Mas... se fosse verdade... magoar-me-ia, Eile.

— Tu quebraste uma promessa — lembrou-lhe ela.

— Eu sei e peço desculpa, muita desculpa. O Rei pediu-me para ir e não te pude explicar.

Eile largara-o e pegara na mão de Saraid e de Derelei, como se se preparasse para se ir embora.

— Não te vás já embora. Por favor.

— Eu não quero, Faolan, mas tenho responsabilidades, tal como tu.

— Isso não é desculpa, pois não? O Rei pediu-me para ir. Eu queria deixar-te uma mensagem, mas não consegui encontrar as palavras certas.

Algo apareceu subitamente na balança. Os olhos de Eile tinham uma pergunta cuja resposta era importantíssima.

— E agora, consegues encontrá-las? — perguntou ela em voz baixa.

O coração dele parecia um tambor e o sangue corria-lhe loucamente nas veias, como se estivesse perante o mais difícil desafio do mundo. Não, talvez não o mais difícil. Faolan pensou que o mais difícil estava para vir.

— Eu não me quero ir embora — murmurou ele — mas Bridei precisa de mim. — Eu abraço-te, abraço Saraid e peço-te que me perdoes. Sonharei contigo todas as noites até te poder ver outra vez. Faolan sentiu um suor frio na testa. Se estivesse no calor de uma batalha sozinho, nu e desarmado, não se sentiria mais vulnerável.

Seguiu-se um longo silêncio. Saraid bocejou. Derelei continuava a olhar para ele, imóvel.

Finalmente, Eile acenou com a cabeça. Faolan não sabia se ela estava contente, chocada ou assustada e não sabia o que ia no seu próprio coração: Amo-te. Preciso de ti.

— Muito bem. — O tom de Eile era embaraçado. — Tenho de ir, está na hora do jantar de Derelei e a Rainha vai a uma reunião, provavelmente a mesma que tu. Parece que isto se complicou. Vamos ter de falar. Mais tarde. Mas não podes entrar assim no meu quarto. Aqui na corte, não. Não é como na floresta, onde não faz mal se dormirmos ao lado um do outro.

— Eu sou especialista em entrar e sair sem ser visto — disse Faolan.

— Faolan... — disse ela, hesitante. — Eu não quis dizer...

— Eu sei. Adeus por agora, Eile. Até amanhã, Saraid.

— ‘deus. — A voz de Saraid era queixosa.

— Eu sei que não estavas a fazer-me esse gênero de convite, Eile. — Mas eu quero tanto; o corpo até me dói de tanto te querer. — Falamos e eu saio. Prometo que ninguém me verá.

— Até logo, então.

— Até logo. E agora, se conseguir que esta perna funcione...

— Odeio-te — gritou Breda. — És um velho enfadonho sabe-tudo e não compreendes! — A jovem desfez-se em lágrimas furiosas.

Keother estava de braços cruzados e com uma expressão severa no outro extremo na pequena sala de estar dos aposentos que partilhava com a prima em Monte Branco.

— Estás a portar-te como uma criança — disse ele. — Cada vez é mais difícil acreditar que tens quase dezessete anos, prima, idade em que muitas jovens já deram filhos aos seus maridos. Não percebeste uma palavra do que te disse, Breda?

Breda fungou, afastando os cabelos louros do rosto com um movimento da cabeça.

— Uma grande lição sobre boas maneiras — disse ela. — Eu ouvi. É uma estupidez. É tudo uma estupidez. O que é que eu fiz? Vá, diz-me. Aposto que quem andou a mexericar foi aquela Dorica, não foi? Aquele velho pau seco não suporta a maneira como os homens olham para mim, até o marido dela, que tem para aí cinqüenta anos...

— Breda!

Por vezes, Keother servia-se do que Breda chamava a sua «voz de Rei» Aquela era uma delas. A jovem calou-se.

— Se não és capaz de compreender que o teu comportamento é perfeitamente impróprio, então talvez seja melhor ires-te embora — disse Keother com alguma dificuldade. — Nem sei por onde começar.

— Não estás a falar daquela estupidez do cavalo, pois não? — perguntou Breda, olhando para ele. — A culpa não foi minha. Eu estava ferida e indisposta e em vez de serem simpáticos comigo, passaram a vida a fazer-me perguntas.

— É melhor esquecermos esse episódio — disse Keother. — Estou farto de inventar desculpas por ti. A tua total falta de respeito pela família de Cella, a tua total ausência de remorsos criaram uma impressão extremamente desagradável. Eu ainda tenho trabalho a fazer em Monte Branco antes de regressarmos a casa, prima. Esta visita é mais do que uma oportunidade para tu te pavoneares em frente dos homens.

Em cima da mesa estava uma jarra com campainhas. Os dedos de Breda estenderam-se, arrancaram uma flor e tiraram-lhe as pétalas.

— Foste vista várias vezes na companhia de moços de estrebaria, cozinheiros e outros homens da casa de Bridei. Se insistes em comportar-te como uma gata com cio, então faz-me o favor de te limitares aos do nosso nível, que já sabem o que tens para oferecer. E por tudo o que tens de mais sagrado, mostra alguma discrição.

— A culpa é tua. — As pétalas caíram ao chão e ela arrancou outra flor. — Não me deixaste trazer Evard.

— Esperava que conseguisses refrear-te. Que procurasses imitar um pouco a tua irmã.

— Pois, Ana. A aborrecida, a virtuosa Ana.

— Disseram-me que ela se comportou, como refém, com dignidade e discrição; fez um casamento que beneficiou Bridei e a mim. As alianças com os Caitt são difíceis de manter. Arranjar um casamento para ti vai ser mais difícil, de certeza, se as histórias das tuas escapadelas passarem para lá das muralhas de Monte Branco.

— Eu não me quero casar. Uma criança na barriga todos os anos e um imbecil na minha cama que pensa que uma cambalhota rápida me satisfaz... Morreria de frustração. Tu não fazes idéia...

— Não tens outra solução. É mais do que provável que Bridei exija que fiques em Fortriu. Se isso acontecer, ele é que decidirá quando e a quem concederá a tua mão.

Breda olhou para ele e depois desatou a rir.

— Conceder a minha mão? És tão enfadonho, Keother, pareces um velho. Não sei como Orina te atura, a sério que não. Mas a tua mulher não é propriamente muito espirituosa, muito esperta, pois não? Uma amostra, de fato, de como as mulheres perdem rapidamente a linha e o encanto logo nos primeiros anos de casamento...

— Cuidado com a língua! — gritou Keother, aproximando-se dela e erguendo uma mão. Breda deu um passo atrás e emitiu uma risadinha, algo entre um grito de alarme e outro de excitação. O Rei baixou a mão. — Metes-me nojo — disse ele. — Que eu não ouça daqui para a frente um único comentário sobre o teu comportamento até ao fim da nossa estadia em Monte Branco. Estás a restringir a minha capacidade de ganhar terreno nas minhas discussões com Bridei e os seus conselheiros; estás a dar cabo das minhas oportunidades. Que se passa contigo? Pensava que querias um convite permanente para a corte de Fortriu. Lembro-me perfeitamente de me dizeres que seria excitante depois do tédio da minha própria corte.

— Estava enganada — disse Breda, esmagando as últimas pétalas da flor na mão. — Isto aqui ainda é pior. Há muitas coisas aqui que não estão bem, mas eu posso bem com elas.

Keother Semicerrou os seus penetrantes olhos azuis.

— Que queres dizer com isso, podes bem com elas? Breda mostrou um sorriso astucioso ao primo.

— Nada — disse ela. — Nada.

De regresso ao seu quarto, a jovem deitou-se em cima da cama a olhar para o teto abobadado e fez alguns ajustamentos à lista que tinha na cabeça. Não valia a pena colocar Keother nela. Por mais mandão e irritante que fosse, era forçada a reconhecer que lhe dava coisas que lhe tornavam a existência mais suportável. Era generoso no que dizia respeito às roupas e aos sapatos, às acompanhantes e dera-lhe um bom cavalo, não um maluco como o que quase a tinha atirado ao chão.

Dovran: tinha dois pensamentos em relação a Dovran. O rapaz desapontara-a; não só fora incrivelmente lento a pegar-lhe nas deixas como começara a interessar-se por aquela celta macilenta e por mais ninguém. Era verdadeiramente bizarro. Seria fácil fazer com que ele perdesse a posição que tinha na casa de Bridei. Por outro lado, com

Eile fora do caminho, talvez ainda houvesse uma possibilidade. Seria engraçado tirar-lhe aquela expressão tensa do rosto e fazê-lo suar um pouco. Não castigaria o guarda-costas do Rei, portanto, apesar de ele a ter ofendido. Com o tempo, mudaria. Todos eles mudavam. Tinha um dom especial.

Mas com Eile o caso mudava de figura. Pensar que quase a tornara sua amiga! Pensar que confiara nela, que fizera os possíveis por ajudá-la e o tempo todo a miserável magricela a intrigar para lhe tirar Dovran. Pata-brava.

Breda pôs-se de barriga para baixo, descansando a cabeça loura em cima dos braços cruzados. Que lhe dera para recusar a oferta que lhe fizera de uma posição privilegiada como criada? O argumento da criança era estúpido. Qualquer pessoa podia tratar de uma criança. Bastava alimentá-las e limpá-las. Eile era estúpida se pensava que era indispensável. Bem, no fim de contas era celta. Os Celtas tinham perdido a guerra, não tinham? Eile ambicionava demais. A rapariga já tinha um guarda-costas, o misteriosamente ausente Faolan, outro celta, outro nascido para perder, o que não a impedira de se aventurar no seu território enquanto o tipo estava longe. Bem os vira, a ela e a Dovran a trocar olhares à mesa e a jogarem aqueles jogos ridículos com as crianças no jardim. Também os vira dançar na noite da festa. Podia tê-lo evitado facilmente. Bastava ter-se levantado e ido dançar. Tinha muitas técnicas para fazer com que os homens fossem ter com ela, mas Keother não a deixara. Ainda sentia a mão dele a agarrar-lhe no braço — até lhe fizera uma nódoa negra — e ainda o ouvia a sibilar Não, não vais! Maldito Keother. Talvez o metesse na lista, afinal de contas. Mas no fundo; tinha de tratar de outros, primeiro.

Eile no topo; seria fácil desacreditá-la. Depois de perder os favores da Rainha e de ser expulsa de Monte Branco, ela que tentasse dar de comer à filha. O amante nunca mais olharia para ela. Tinha a certeza que ela era de origem humilde. Eile estava a mover-se muito acima do seu lugar na sociedade. Tudo o que tencionava fazer era colocar outra vez a pequena celta no seu devido lugar, na base da pirâmide. Era bom poder endireitar as coisas.

A criança: seria apanhada na enxurrada, o que era uma pena porque era bonitinha, mas se sobrevivesse, acabaria sem dúvida como a mãe, que a devia ter concebido quando era ainda uma criança. Mãe-prostituta, filha-prostituta. Monte Branco ficava melhor sem as duas.

Breda sentou-se e encostou-se às almofadas, rugosas e desconfortáveis. Cella era a única que sabia como colocá-las. Cella estúpida. Se ao menos não tivesse gostado do filho mais velho de Talorgen. Bedo era novo, claro, mas era de sangue real, tinha possibilidades que não percebera quando lhe aparecera na frente a zumbir como um abelhão, cheio de apresentações desajeitadas. Se ao menos não tivesse mostrado interesse por Cella, com o seu sorriso inocente e as histórias sem fim sobre o terrier sifilítico. Cella cometera um erro muito grave e Bedo levara por tabela. Paciência. Nunca mais se meteriam no seu caminho.

Subitamente teve um pensamento brilhante, fazendo-a rir em voz alta. Já sabia como havia de fazer, não só em relação a Eile, como em relação ao seguinte da lista, o miúdo esquisito. Um golpe único, arrojado. Eles andavam sempre juntos, os três: a celta, a filha e o rebento visionário da Rainha com os seus olhos assustados e os seus silêncios estranhos. O bebê desfigurado estava fora do seu alcance. Era evidente que Bridei e Tuala não confiavam nela; tinham tomado medidas extraordinárias para a manter afastada dos aposentos reais e do jardim, como se ela tivesse uma doença qualquer. Mas deixavam entrar Eile. Tinham-na encarregue do filho. Estava errado. Era um insulto e cabia-lhe remediá-lo.

Quando o Rei e a Rainha de Fortriu regressaram do conselho, Derelei estava sentado no chão junto da lareira, embalando-se a si próprio para a frente e para trás. A ama dissera que ele já estava assim havia um bom bocado. Anfreda tinha acordado, tinha chorado, tinha-lhe mudado as fraldas, tinha-a acalmado e o irmão não parara, sempre com os olhos fixos na parede e quando ela se ajoelhara junto dele, ele nem sequer dera por ela.

Tuala disse à jovem para não se preocupar e mandou-a deitar-se. Em seguida, sentou-se para amamentar Anfreda e Bridei sentou-se no chão de pernas cruzadas a alguma distância do filho. Aquilo não parecia o transe de um vidente; os olhos estavam demasiado vazios e o pequeno corpo demasiado rígido. Também não era um sezão, algo que pudesse ser resolvido com um chá qualquer. Que a aparente deserção de Broichan tinha ferido e confundido o seu filho, Tuala já sabia. Era evidente que o tempo não estava a curar aquela ferida. Parecia-lhe que o dano fora mais grave do que pensara, ela e toda a gente. Derelei parecia desligado, intocável. A Rainha sentiu o coração gelado.

— Perguntei a Eile como ele esteve — murmurou ela a Bridei. — Ela disse que ele esteve mais calado do que habitualmente. E parece que Saraid está sempre a dizer que ele está triste. Mas isto é novo, este... afastamento.

— Derelei — disse Bridei, calmamente, — Derelei, o pai está aqui, e a mãe, e Anfreda. Está tudo bem.

O movimento continuou. Bridei estendeu uma mão para tocar no ombro do filho. Derelei encolheu-se, como que aterrorizado e recomeçou mais uma vez, para a frente e para trás.

Tuala viu o olhar febril no rosto de Bridei.

— Ele não te vê — disse ela. — Eu penso que ele não está só triste, também está assustado. A água não me mostra Broichan há muito tempo. A confiança que eu tinha em como ele regressaria a Monte Branco quando lhe apetecesse está a desaparecer, Bridei. Já passou muito tempo. Aconteceu-lhe qualquer coisa. Acho que Derelei sabe o que foi, mas não nos pode dizer.

— Achas que Broichan desapareceu para sempre? Vítima do Inverno ou da sua atitude errada perante a verdade?

— Eu não consigo acreditar que a revelação de que eu posso ser filha dele o tenha levado ao desespero. Ele é demasiado forte para isso. Mas talvez, se ela o compeliu a procurar a solidão e se ele perdeu a noção de que já não é novo, que não está bem de saúde e que é um humano frágil para além de druida, pode muito bem ter caído vítima dos rigores da estação. Mesmo assim, não consigo aceitar que ele nunca mais vai voltar. Já tive toda a espécie de sentimentos por ele ao longo dos anos: desconfiança, raiva, terror, preocupação. Se ele é mesmo meu pai, seria muito triste se não tivesse oportunidade de lhe mostrar o meu amor.

O pequeno cão branco, Ban, que estivera a olhar atentamente para a criança de baixo de uma cadeira, levantou-se e foi ter com Bridei. Na tranqüilidade dos aposentos familiares, o animal esqueceu a dignidade, trepou para os joelhos do dono, enroscou-se e adormeceu profundamente. Anfreda acabou de mamar. Tuala começou a andar de um lado para o outro com o bebê encostado ao ombro. Finalmente, o movimento para a frente e para trás de Derelei abrandou e parou e o pequeno estendeu-se no tapete em frente da lareira com o dedo na boca. Quando Bridei, afastando Ban, estendeu os braços para pegar no filho, Derelei não protestou. Bridei aconchegou-o no colo como se ele fosse um bebê.

— Está a tremer — disse o Rei.

Tuala viu um medo terrível nos olhos do marido. O dedo do Deus Sem Nome estava por toda a parte; o deus a cujas ordens Bridei desobedecera muitos anos antes no Poço das Sombras.

A Rainha deitou Anfreda no berço e regressou com um pequeno cobertor que Derelei gostava de abraçar à noite. Marido e mulher cobriram-no. O pequeno virara o rosto para o peito do pai e agarrou-se à túnica.

— Lembras-te — disse Tuala, pegando num jarro de hidromel e em duas taças e sentando-se ao lado do marido — quando Broichan se foi embora e eu disse achar que ele era capaz de o encontrar?

— Lembro. — O tom de Bridei era de constrangimento.

— Talvez devesse tentar. Estou a ficar assustada. Não posso estar com ele o tempo todo e tenho alguma relutância em entregá-lo a outra pessoa que não Eile. Elda está quase a dar à luz e com os gêmeos já tem trabalho que chegue. Se não fizermos qualquer coisa, há de chegar o momento em que nem a bondade de Eile nem a amizade que Derelei tem por Saraid serão suficientes para evitar uma tragédia. Há bocado ele parecia... quase louco.

— Sabes que sempre respeitei as tuas decisões. Sabes que estou tão preocupado com ele como tu. Também me sinto culpado por os assuntos de estado me ocuparem tanto tempo que não te posso dar o apoio de que tanto precisas.

— Não precisas de pedir desculpa, querido. Sempre soubemos que seria assim. O governo é uma estrada solitária. Continua, acaba o que ias dizer, pressinto o que vem aí.

— Acabas de dizer que achas que Broichan pode ter morrido. Já investigamos e fizemos buscas rigorosas. A única coisa que não tentamos foi mandar Drustan esquadrinhar a floresta do ar. De que serve falar dessa outra possibilidade?

— Não estás a dizer o que realmente queres dizer, Bridei.

Nos braços do pai, Derelei dormia de olhos fechados e polegar enfiado na boca. Bridei acariciou-lhe os caracóis suaves. A sua voz era muito baixa, não era a voz potente, segura, tão familiar aos seus chefes-de-guerra e conselheiros.

— Só de pensar que queres tentar isso, fico aterrorizado — disse ele. — Transformares-te, passares a ser um animal e depois ires para a floresta sem saberes se ele está morto ou vivo, ou sequer se está lá... Para não falar de Anfreda! Não te vou perguntar o que acontecerá ao nosso filho se ele, para além de perder Broichan, também perder a mãe e nem sequer te vou lembrar que nunca tentaste antes essa metamorfose, que não sabes os riscos que corres. Se pensas que és capaz, provavelmente és. Mas, Tuala... tudo em mim se retrai só de pensar na idéia. Certamente que podemos esperar mais um pouco; procurar a sabedoria dos deuses, dar a hipótese a Derelei de recuperar sozinho. Talvez esteja a ser egoísta, mas não quero perder-te. Penso que não conseguiria continuar sem ti.

Tuala olhou para ele.

— Proíbes-me de tentar? — perguntou-lhe ela.

— Sabes bem que não, apesar do medo que sinto. Tu é que decides. Espanta-me como consegues perdoar. Broichan não mostrou por ti a mesma preocupação. Não só nunca arriscou a vida por ti, antes pelo contrário, como estava preparado para te sacrificar por aquilo que ele achava ser um bem maior.

Tuala pensou no que o marido dissera e reviu as imagens que a arte de vidente lhe permitira ver ao longo do tempo de ausência do druida.

— Se ele regressar — disse ela — acredito que terá reconhecido esse erro. Eu já lho perdoei. — Só depois de o dizer é que Tuala se apercebeu de que estava a dizer a verdade. Os laços de sangue estavam a tomar conta dela, apesar de não estarem provados. Quando pensava em Broichan já não dizia o pai adotivo de Bridei ou o druida do Rei. Dizia o meu pai. — Sim — continuou ela — e fiquei surpreendida. Talvez ele tenha procedido mal na ocasião, terrivelmente mal, mas acreditava que estava a servir a deusa. Se a minha visão foi verdadeira, descobrir que a tinha ofendido deve ter sido muito difícil para ele. Ele deu sempre tanto valor à obediência. Seguiu-se um longo silêncio.

— Se o fizeres, que forma vais escolher? — perguntou finalmente Bridei. — Quando eras pequena, disseste-me uma vez que tinhas sonhado que eras uma coruja. É isso que vais fazer, transformares-te numa ave, como Drustan? Suponho que te permite procurar melhor.

Tuala inclinou-se e beijou-o na face.

— Eu sei que tu odeias isto, ouço-o na tua voz, vejo-o nos teus olhos. Obrigada por seres capaz de falar no assunto, pelo menos. Não, uma ave não, até eu acho que é demasiado perigoso. Prefiro uma coisa mais familiar, mais próxima de mim. Provavelmente é melhor não te dizer. A tua imaginação é capaz de invocar mais perigos do que os que existem no mundo real.

— Quando...?

Tuala estremeceu.

— Não sei. Vou ser honesta contigo. A perspectiva assusta-me. Não me esqueço que Anfreda depende de mim. Isto não é uma coisa que eu possa fazer entre o almoço e o jantar. Precisamos de uma ama mais permanente e não a podemos arranjar sem atrair as atenções para a minha ausência. Eu sei que é perigoso e não complicaria as coisas fazendo com que metade de Monte Branco soubesse que a tua Rainha do Outro Mundo tem planos para fazer uso pessoal da magia. É preciso pensar muito. E ter calma. É tão difícil ter calma quando Derelei... — A Rainha calou-se e respirou fundo. — Talvez seja melhor esperar um pouco mais. Talvez tenhas razão. Talvez Derelei consiga sair disto sozinho.

— Eu gostaria que protelasses um pouco. Os nossos convidados partem todos os dias, o que reduz o risco de mexericos infelizes. Se pudéssemos esperar até à partida de Keother, seria bom, mas ele não parece com vontade.

— Muito bem, esperamos mais alguns dias. Com Eile aqui, Derelei tem um bom apoio. Aquela rapariga foi uma dádiva. Saraid é uma criança amorosa, vê-se que foi criada com amor. Pergunto muitas vezes a mim própria qual terá sido o passado de Eile. Ela é muito reticente em falar de tudo o que aconteceu antes de chegar a Colina Branca.

— Estou mais interessado em Faolan — disse Bridei. — Acho que não o posso mandar noutra missão para já. Por baixo daquela aparência fria, ele está um feixe de nervos.

Tuala sorriu.

— Esperemos que o jeito de Eile se estenda ao teu braço direito. Gostaria de ver Faolan feliz, finalmente. Gostaria de saber o que aconteceu em casa dele.

— Creio que nunca saberemos — disse Bridei.

Alguém bateu discretamente à porta. Tuala e Bridei olharam um para o outro e Ban ficou instantaneamente alerta, de orelhas esticadas e corpo tenso. Como quem estava de guarda era Dovran, o visitante devia ser de confiança. No entanto, Tuala pegou em Derelei e retirou-se para o quarto.

— Quem é? — perguntou Bridei.

— Ferada. Trago notícias que penso que te vão interessar. Quando Tuala regressou, já sem Derelei, a filha de Talorgen, com uma taça de hidromel na mão, começou a falar. As notícias eram espantosas. Chegara pouco antes a Monte Branco um homem que subira o Lago da Serpente com uma carga de madeira originária das bandas de Pitnochie e que vira um barco com um grupo de monges cristãos, nove ou dez ao todo. Falava-se deles no Vale todo. Bridei já estava à espera, mas não tão cedo. Mas havia mais. O grupo aportara a uma aldeia nas margens do Lago da Donzela, onde estava um rapaz às portas da morte. As histórias variavam quanto à causa do mal: fluxo, paludismo, um ferimento de foice infectado. Fosse como fosse, a visita do curandeiro local não tinha dado em nada, assim como a dos druidas da floresta e a família da vítima já se tinha resignado a acender velas e esperar pela chegada da Mãe Ossuda. Em total desespero, tinham decidido que não fazia mal, ao estado a que as coisas tinham chegado, deixar entrar os cristãos, comentou Ferada

— Então — disse ela — o chefe dos monges, nem mais nem menos do que o tal Colm de que ouvimos falar, pousou a mão na fronte do moribundo, fez uma prece ao seu deus e o rapaz abriu os olhos, sentou-se e falou à família. Estava completamente curado; com as pernas um pouco trêmulas, mas de boa saúde. O pai, a mãe, a irmã e o irmão caíram de joelhos, mas Colm pediu-lhes que se levantassem e que virassem os corações para a nova fé, o poder que tinham acabado de testemunhar com os seus próprios olhos. Parece uma fantasia, eu sei, mas o homem que trouxe a história disse que ouviu várias versões dela e mais algumas de feitos miraculosos realizados pelo tal clérigo em várias aldeias ao longo dos lagos. As histórias são muitas, quase todas centradas no poder e na influência do tal Colm. Parece-me que interessa pouco se a substância é verdadeira ou não. O que é importante é que o povo acredita. Pensei que gostarias de saber.

— Se ele já está para cá do Lago da Donzela — disse Bridei — pode estar aqui numa questão de dias. Eles vêm à vela ou a remos?

— Isso não sei, mas ouvi dizer que o teu velho amigo, o irmão Suibne, vem com eles. Foi ele que traduziu as palavras de Colm às populações locais. Para que a desconfiança inicial se derreteu como neve no Verão quando ouvem estas histórias maravilhosas.

— Percebo. Vou falar com esse barqueiro depois do jantar. Falaste disto a Fola?

— Não a vejo desde esta manhã. Tenho estado a fazer as malas para regressar amanhã a Banmerren; já é tempo de prestar alguma atenção às minhas alunas. Fola estava a pensar ir comigo.

— Somos capazes de precisar dela aqui mais algum tempo — disse Bridei. O Rei estava pálido; Tuala viu os sinais da aproximação de uma enxaqueca de grandes proporções. O seu marido estava sujeito a elas em ocasiões de grande pressão.

Ferada anuiu.

— Parece evidente que a corte de Fortriu não vai poder contar com o seu poderoso druida nesta hora crítica — disse ela. — Pergunto a mim própria como vão Colm e os seus irmãos reagir a uma mulher como principal conselheira espiritual do Rei.

— Fola consegue ser formidável — disse Tuala — apesar do seu tamanho diminuto; enfrentará melhor este visitante do que, por exemplo, Anmost de Abertornie. Ter-nos-íamos sentido obrigados a pedir-lhe que substituísse Broichan se ele não se tivesse ido já embora. Um homem muito tímido, sentiu-se muito pouco confortável em Monte Branco.

— Fola também não gosta — disse Ferada —, prefere estar no exterior, com os carvalhos como parede e o céu como teto. Bridei, há outra razão para a minha presença aqui. Tenho um pedido a fazer-te da parte do meu irmão.

— Bedo?

— Não, Uric. Como os rapazes já não podem entrar nos aposentos reais e como isto é, aparentemente, profundamente particular, ele serviu-se da irmã como correio.

— Profundamente particular? — perguntou Tuala. — Queres que eu saia?

Ferada sorriu.

— Não é necessário. Uric quer pedir o Ban emprestado para amanhã.

Bridei olhou para ela.

— Emprestar o meu cão? Não estava à espera. Posso saber para quê?

Ferada ficou abruptamente muito séria. Tuala, que conhecia muito bem a amiga, reparou-lhe nos olhos raiados de vermelho e na palidez do rosto. Garvan tinha trabalho em Monte Branco. Se Ferada se ia embora, as despedidas seriam muito difíceis.

— Penso que o meu pai te falou que Uric e Bedo andam numa espécie de demanda. Uric tem andado ultimamente muito a cavalo e quer levar Ban com ele na próxima vez. Suponho que ele acha que este cão em particular é capaz de farejar o que ele procura, seja lá o que for. Eles têm sido muito misteriosos sobre o assunto. — Ferada olhou cepticamente para Ban. — Não percebo porque pediram Ban em vez de um dos cães de caça, treinados para seguir qualquer pista pelo cheiro.

— Ban tem qualidades especiais — disse Tuala, olhando para o pequeno animal sentado aos pés de Bridei. — Tem uma história muito complicada e muito longa.

— Apesar — disse o Rei — de Talorgen me ter dito que o faro especial dele desapareceu há muito.

— Não faz mal nenhum experimentar — disse Tuala. — Desde que ele queira ir.

Ban era um cão de um só dono. Depois de ter aparecido na lagoa de Pitnochie, saído de uma visão, subitamente transformado num animal de carne e osso, agarrara-se ao dono com uma lealdade total e absoluta. Quando Bridei partira para a guerra com os Celtas, Ban transformara-se no ser mais triste de Colina Branca e quando Bridei regressara, no mais alegre.

— Diz a Uric que vou ter com ele aos estábulos de manhã — disse Bridei. — Uma corrida não lhe faz mal nenhum. Talvez autorize desde que seja a última vez que os teus irmãos se metem nessa coisa antes de irem para casa com a madrasta. Eu acho que o episódio com que eles estão preocupados deve ser esquecido. Quanto a Ban, se eu lhe pedir, vai. Espero que Uric não fique muito desapontado. Ele tem talento para os coelhos, mas duvido que seja capaz de encontrar o que os teus irmãos procuram.

Eile não sabia exatamente o que sentia. Depois de entregar Derelei à ama, foi para o seu quarto com Saraid, endireitou os cobertores pela terceira vez, tirou os vestidos todos da arca e voltou a guardá-los. Tanto ela como a filha andavam mais bem vestidas porque a bondosa Rainha Rhian lhes mandara roupa simples e boa que estava guardada e Tuala dera-lhe vários dos seus vestidos mais antigos. Enquanto as suas mãos trabalhavam automaticamente, dobrando e alisando as roupas, os sentimentos atropelavam-se uns nos outros numa confusão monstruosa que não fazia sentido.

— Mãe triste? — perguntou Saraid, sentada no tapete verde, apertando o vestido de Lamento. Em Montanha Nublosa a pequena aprendera a chamar Eile à mãe para não chamar a atenção para a irregularidade do parentesco entre ambas. Ali, onde os gêmeos e Derelei usavam os termos mãe e pai, Saraid adquirira o mesmo hábito. Eile sorriu.

— Não, não estou triste. Estou feliz por Faolan ter voltado. — Era verdade, mas também era demasiado simples. A jovem sentia-se mais do que feliz, sentia-se radiante, mas também confusa e receosa. Quando pedira ao assassino que pusesse em palavras a mensagem que era suposto ter-lhe deixado, estava à espera de um simples pedido de desculpas, não de uma declaração de amor e tentou tirar algum sentido do que ouvira. Que quisera ele dizer exatamente? As palavras tinham sido quase... ternas. Porém, um pai podia dizer aquelas coisas a uma filha, ou um irmão a uma irmã. Teria ele sonhado realmente com ela e com Saraid todas as noites? E que espécie de sonhos?

Não era uma coisa que lhe pudesse perguntar. Ao falar como tinha falado, ao olhar para ela como tinha olhado, ao mostrar tão abertamente que estava com ciúmes de Dovran, alterara as coisas entre os dois; tornara tudo mais complicado, tornara-a tão confusa que nem sequer sabia se seria capaz de ir jantar ao salão com tantos olhares em cima de si se Faolan também estivesse presente. Depois, quando ele fosse falar com ela ali mesmo, ao seu quarto, temia o momento e ansiava por ele. Uma simples olhadela bastara para a fazer recordar a viagem em conjunto, as noites no abrigo rudimentar, a facilidade com que conversavam à medida que se iam acostumando um ao outro, a recordação de ter finalmente um amigo e de saber que, finalmente, se sentia protegida. O fato de ter encontrado um paraíso em Monte Branco e de ter amigos novos não significava que os laços não eram os mesmos.

Eile tirou outra vez o vestido azul que Líobhan lhe dera.

— Talvez seja melhor eu jantar contigo, Saraid — disse ela. As crianças de Monte Branco costumavam tomar as refeições numa pequena área ao lado da cozinha, sob a supervisão de uma criada mais velha. — Acho que sou demasiado cobarde para isto. — No entanto foi buscar água, despiu-se, lavou Saraid e depois a si própria, tentando não pensar em Dalach. Lava-te. Não quero ficar a cheirar como tu.

Saraid sentou-se tranqüilamente com uma pequena saia e uma blusa cinzento-pomba, ao passo que Eile punha o vestido azul e escovava os cabelos com tanto vigor que as madeixas estralejavam. A jovem calçou as meias e os sapatos de interior que lhe tinham dado em Blackthorn Rise. Parecia tão longe no tempo e no espaço. Tinham percorrido uma grande distância, uma distância que não podia simplesmente ser medida em quilômetros.

Eile começou a andar nervosamente de um lado para o outro, enquanto Saraid a observava. Após o que pareceu uma infinidade, o som de uma colher de madeira a bater num prato de metal ouviu-se no pátio, indicando que o jantar estava iminente.

— Vamos — disse ela.

Quando Saraid se sentou com Gilder, Galen e um pequeno grupo de crianças com idade suficiente para comerem à mesa mas não à mesa de gente adulta, Eile hesitou por um momento. Podia comer apenas uma malga da sopa que a criada estava a dar às crianças e regressar tranqüilamente ao quarto. Depois, se ele decidisse aparecer, logo se veria.

— ‘deus, mãe — disse Saraid, soprando-lhe um beijo.

— ‘deus — respondeu Eile, decidindo que tinha de ser corajosa. — Bom apetite. — Se calhar nem sequer o veria no salão. Apesar de muita gente já se ter ido embora, havia pelo menos cinqüenta pessoas à mesa naquela noite, muita gente, e as únicas com as quais poderia falar seriam as sentadas a seu lado.

O fato de ter ficado a pairar junto das crianças fizera-a chegar mais atrasada do que habitualmente. A jovem olhou em redor do salão, mas não encontrou Faolan. Dovran estava de guarda ao Rei, atrás da sua cadeira, severo e vigilante. Bridei parecia cansado. Tuala, sentada a seu lado, estava pálida e com as feições vincadas. Eile sabia que ela andava preocupada com Derelei. Nos últimos dias, apesar de ser uma criança normalmente invulgar, o pequeno comportava-se de uma maneira cada vez mais estranha e era cada vez mais difícil arrancá-lo aos seus ataques de melancolia. Eile decidiu que iria oferecer os seus serviços na manhã seguinte; levaria Saraid e Derelei a descobrir, num longo passeio, as partes novas de Monte Branco. Cansá-los-ia de tal maneira que dormiriam a tarde toda, permitindo que Tuala descansasse um pouco. No fim de contas a Rainha estava a amamentar um bebê.

Garth ergueu uma mão e acenou-lhe. Perto dele estavam sentadas as pessoas habituais: Elda, Wid, Garvan e Ferada, estes dois quase lado-a-lado naquela noite. Entre eles havia um lugar vazio. Eile encaminhou-se para a mesa e sentou-se no lugar que lhe tinham guardado, entre Garth e Wid. Um olhar sub-reptício para cima e para baixo. Não o via em lado nenhum. Talvez tivesse sido mais corajosa do que ele.

— Ouviste falar dos cristãos? — perguntou Ferada ao velho sábio.

— Hum — murmurou Wid, concentrado no caldo de cevada. — Era de esperar, claro, que viessem à corte com um pedido, uma petição ou uma coisa do gênero. Eles querem que o Rei os autorize a espalhar a sua doutrina por Fortriu, do mesmo modo que outros como eles fazem o mesmo em Circinn. Suponho que Bridei se deve sentir satisfeito por eles se darem ao trabalho de pedir. O que ninguém esperava era uma chegada acompanhada de milagres. O povo gosta de truques de magia. Tais coisas chamam-lhe a atenção. Este Colm é astuto.

— Achas que é verdade, então? — perguntou Garth. — Que o tal monge ressuscitou um morto?

— Quem sabe? Talvez o homem não estivesse tão doente como as pessoas pensavam.

— Nem Broichan seria capaz de tal façanha — disse Elda. — Ressuscitar os mortos.

— Os quase mortos. — Wid partiu um grande pedaço de pão de aveia e mergulhou-o na sopa. — Devemos perguntar a nós próprios se foi magia, se foi milagre e qual é a diferença entre as duas coisas!

— Precisas de Fola para debater essa questão — disse Ferada, virando em seguida a cabeça. — Ah, alguém que chegou ainda mais atrasado do que tu, Eile.

Lá vinha ele na sua direção por entre as mesas, barbeado de fresco e vestido de lavado, azul e cinzento, cores anônimas de que gostava, tentando não coxear. Assim que pôs os olhos nele, Eile sentiu que não havia mais ninguém no salão. A jovem não sorriu nem o cumprimentou com um aceno de cabeça, limitou-se a fixar-lhe as feições disciplinadas, os olhos escuros e prudentes que naquela noite tinham a mesma expressão que ela vira quando ele lhe dissera aquelas palavras: Sonharei contigo todas as noites.

— Senta-te aqui, Faolan — disse Ferada, indicando o lugar entre ela e Garvan. — Quase perdeste a sopa.

Faolan parou em frente do banco e olhou para Eile no outro lado da mesa. Por um momento, a jovem perguntou a si própria se o joelho lhe doeria tanto que o impedisse de efetuar a manobra necessária para se sentar. Então, o assassino virou-se para Garth e fez um ligeiro movimento de cabeça. O guerreiro suspirou, empurrou a sua malga, a faca e a colher para o outro lado da mesa e colocou o talher que estava no lugar vazio na sua frente. Em seguida levantou-se, deu a volta à mesa, passando por trás de um grande número de pessoas e atraindo as atenções. Elda, Wid, Ferada e Garvan observavam tudo com um interesse indisfarçável. Faolan deu a volta pelo outro lado. Se a perna lhe doía, disfarçava muito bem. Eile sentiu-o a seu lado. Quando ele se sentou, a sua mão roçou pela dela e a jovem sentiu-se corar. Eile estendeu a mão para a concha e serviu-o de sopa; tinha de fazer qualquer coisa.

Apesar de a conversa continuar em tom vivo, por vezes combativo, sobre os cristãos, a ameaça que representavam e o que o Rei devia fazer, Eile não ouvia. A consciência dele a seu lado, tão perto, o sentimento novo, doce e bom e ao mesmo tempo profundamente perturbador, tirou-lhe a capacidade de ouvir fosse o que fosse.

— Não come? — perguntou Garth com um sorriso.

Faolan mal metera à boca uma colher de sopa. Naquele momento tinha na frente uma fatia de empada, mas ainda não tinha pegado na faca. Eile não conseguiu responder, não conseguiu, sequer, dizer qualquer coisa que tornasse aquele jantar igual a qualquer outro. Para se distrair, a jovem olhou para a mesa do Rei e ficou surpreendida por ver dois pares de olhos fixos na sua direção: os de Dovran, sombrios e interrogadores e, mais alarmante, os de Breda, semicerrados numa fúria aparente. Eile sabia que tinha desagradado à princesa ao recusar o lugar de criada que ela lhe tinha oferecido, mas aquilo era totalmente fora de propósito. Talvez tivesse feito mal outra coisa qualquer, algo de que não se lembrava sequer. Bem, pelo menos arranjara um tópico de conversa. Faolan vira o olhar de Dovran e devolvera-lho.

— Não te esqueças que tens de trabalhar com ele — disse Garth. Eile falou a Faolan em gaélico, em voz baixa.

— Enquanto estiveste fora, tive a oportunidade de ir a um casamento, o de Ana e Drustan. A irmã dela não estava bem de saúde e eu fui convidada para ocupar o lugar dela. Foi muito bonito, Faolan. Veio um druida do norte para conduzir a cerimônia. Foi ao anoitecer, fora de portas. Tenho a certeza de que eles vão ser muito felizes. Se quiseres, posso contar-te como foi.

Faolan anuiu de modo ausente. A sua mão estava mesmo ao lado da dela, em cima do banco.

— Eu sei que é um pouco difícil para ti — continuou ela — mas penso que seria bom ouvires. Pelo que vi e pelo que sei de Drustan, estou convencida que ela vai ser amada toda a vida. — Eile esperava que o burburinho à sua volta evitasse que os seus vizinhos que compreendiam gaélico ouvissem a sua declaração extremamente pessoal.

— Conta, se quiseres — disse Faolan após uns momentos.

— Não... não é que eu queira contar... Acho é que tu deves ouvir. Ele estava a olhar para o prato. A resposta foi pouco mais do que um sussurro.

— Não foi em Ana que pensei enquanto estive longe. Eile respirou profundamente.

— Talvez seja melhor falarmos de outra coisa qualquer — disse ela.

— Não te posso dizer onde estive ou o que andei a fazer. Lamento, mas é a natureza do trabalho que faço para o Rei. — A sua mão aproximara-se e tocou na dela por um momento. Era extraordinário como uma coisa tão pequena podia fazê-la corar, fazer-lhe bater o coração daquela maneira.

— Eu posso contar-te o que andei a fazer, mas não é muito interessante.

— Não me importo.

— Come a empada, que eu conto-te. Estás cansado e sei que estás com dores. Uma boa comida ajuda a sarar mais depressa.

— O que tens andado a fazer inclui dar ordens a crianças? — Faolan cortou a empada e serviu-se da faca para levar um pedaço à boca.

— Eu não lhes dou ordens. Geralmente elas fazem o que eu lhes digo. Na verdade, Saraid é que dá ordens...

— Usa a tua nova língua, Eile — disse Wid com um olhar feroz nas feições escarpadas. Eile e Faolan viraram as cabeças para ele ao mesmo tempo. Algo nos seus rostos fez com que o ancião dissesse:

— Está bem, esta noite não. Suponho que o regresso dos amigos merece algum afrouxamento nas regras. Aí a tua jovem dama provou ser muito boa aluna, Faolan. Muito boa mesmo.

— Creio que Eile não quer que lhe chamem minha jovem dama — disse Faolan. — Ela é dama dela própria. Se passaste algum tempo na sua companhia, devias sabê-lo.

— Fortriu está cheio de mulheres que sabem o que querem — troçou Wid, olhando para Ferada. — Deve ser da água.

— Eu não sou de Fortriu — disse Eile na língua priteni. — Ele não disse por mal — acrescentou ela em gaélico, descobrindo que, sem querer, tinha aproximado a mão da de Faolan e que a tinha tapado sem ninguém ver. A jovem viu o sangue a subir ao rosto dele; os seus dedos agarraram nos dela e ela sentiu um calor a percorrer-lhe o corpo.

— Eu ouvi — disse Wid, sorrindo. — É melhor vigiá-la, Faolan, ela agora sabe duas línguas, está a ficar perigosa.

— Devias vê-la com uma forquilha — disse o assassino. A sua voz estava perfeitamente calma. A tensão na sua mão contou a Eile uma história completamente diferente.

Enquanto ele comia a empada e o pudim que se lhe seguiu, ela falou-lhe da sua rotina diária em Monte Branco, da confiança crescente de Saraid, dos laços entre ela e Derelei e da confiança que Tuala depositara nela. Eile até lhe descreveu as roupas que lhe tinham emprestado e o vestido de casamento que fizera para Lamento.

— Mas — disse ela, finalmente — parece não te interessar muito. A parte teres ficado a saber que me dei bem sem ti.

— Eu não — disse ele. — É difícil falar aqui. Não estou com fome nenhuma nem com disposição para conversas em público.

Falavam os dois em voz baixa; os seus companheiros de mesa estavam envolvidos num debate acerca da natureza dos milagres e se estavam a ouvir o suave fluxo de gaélico, não parecia.

— Eu vou-me embora daqui a pouco — disse Eile. — Tenho de ir buscar Saraid para a meter na cama. Lembra-te... por favor...

— Eu sei, Eile, sei que as pessoas vêem coisas e tiram conclusões. Eu espero aqui um pouco. — A mão dele apertou a dela mais uma vez.

Dovran continuava a olhar para eles e Eile não gostou do que lhe viu nos olhos. Talvez, no fim de contas, devesse ter sido completamente honesta com ele desde o primeiro momento. Se lhe tivesse dito que o achava simpático mas que tinha de fazer um grande esforço para não estremecer quando ele lhe tocava, talvez ele se tivesse virado noutra direção. Fora injusta, sabendo que nunca poderia corresponder ao que ele esperava dela. Quanto ao que havia entre ela e Faolan, tinha de superar uma barreira antes que a sua verdadeira natureza se tornasse evidente. Talvez a conversa sobre milagres fosse apropriada. Não, era melhor não pensar daquela maneira, estava a pôr a fasquia muito alta, estava a querer o impossível, o que era um convite ao desapontamento. Tinha aprendido a lição e não a queria perder de vista. Despedaçar o próprio coração era uma grande estupidez.

— Vou andando — disse ela com uma vivacidade artificial, levantando-se, mas ainda com a mão na dele. — Tenho de ir buscar Saraid. Boa noite a todos. Boa viagem, Ferada.

— Obrigada — disse Ferada muito séria. — Devias fazer-nos uma visita em Banmerren, Eile. O meu trabalho é capaz de te interessar.

— É tudo cantoria e bordados — disse Eile, sorrindo. — Não é o meu gênero.

Ferada emitiu uma gargalhada incaracterística.

— Enquanto há vida há esperança. Talvez Saraid queira ir para lá daqui a alguns anos. Talvez a influência que ela exerce sobre os rapazes pequenos se estenda também às raparigas.

— Obrigada. Não sei quanto tempo vamos ficar aqui, mas agradeço-te a amabilidade.

A mão de Faolan continuou presa na sua mais um momento. A jovem sentiu-o a acariciar-lhe os dedos antes de a largar. Em seguida, Eile virou-se e abandonou o salão sem olhar para trás.


CAPÍTULO QUINZE

 

Eile estava à espera. Quando ele lhe bateu à porta, a jovem abriu-a imediatamente. Faolan entrou e ela fechou-a sem um som.

Saraid ainda estava acordada, sentada na cama com os olhos fixos nele.

— Feeler canta uma canção — ordenou ela.

— Desculpa — disse Eile. — Disse-lhe que vinhas e ela ficou demasiado excitada para dormir. Geralmente canto-lhe uma canção, ou conto-lhe uma história. — Em seguida, virando-se para Saraid: — Eu canto, Esquilo...

Faolan sentiu que tinha pela frente uma série de testes e que tinha de ultrapassar cada um deles.

— Que tipo de canção é que gostarias? — perguntou ele à criança, sentando-se na beira da cama.

— Uma sobre a Lamento. — A um olhar da mãe, Saraid acrescentou: — Por favor.

Para um homem que fora bardo, se bem que muito tempo antes, o desafio não era grande. O assassino contou a história das proezas de Lamento sob a forma e o estilo de uma aventura mítica enquanto a criança olhava, enfeitiçada e Eile, sentada na arca, não dizia palavra. Faolan inventou um acidente terrível para Lamento e fê-la passar por uma cirurgia no meio de um silêncio estóico; fê-la viajar de barco por mares monstruosos e inventou trajes que a faziam parecer a criatura mais bela que as pessoas já tinham visto. Finalmente, juntou-lhe o coro final. A voz fininha de Saraid juntou-se à dele nos últimos lá-lá-lás e trá-lá-lás.

— Hora de dormir — disse-lhe ele.

— Mais? — pediu ela, cheia de esperança.

— Hoje não. Sabias que esta história tem muitos versos? Que dá para muitas noites?

— Quantas?

— Muitas, muitas. Os versos são tantos como as aventuras de Lamento. Mas vamos guardá-los para depois.

— Começaste, vais ter de acabar — observou Eile com um sorriso.

Faolan retribuiu-lho, ouvindo-lhe um ligeiro tremor na voz, acordando-lhe uma sensação desconfortável na boca do estômago que adormecera devido à necessidade de se concentrar na música.

— Mãe conta agora uma história — disse Saraid, tentando tirar partido da situação.

— Só uma, mas tens de te deitar e fechar os olhos.

Saraid aconchegou-se debaixo dos cobertores com a Lamento a seu lado e fechou os olhos com força.

— A casa do monte — disse ela. — Por favor.

Eile hesitou um pouco. Faolan viu-lhe passar qualquer coisa pelo rosto, uma sombra rápida, e o verde dos seus olhos mudou.

— Está bem — disse ela, finalmente. — Era uma vez uma rapariga que vivia com a sua mãe e o seu pai...

— ...numa casa no alto de um monte. — Era evidente que a pequenina conhecia a história de trás para a frente e vice-versa.

— Exatamente. A casa era pequena, tinha telhado de colmo e era de pedra. Tal como a rapariga, a sua mãe e o seu pai, viviam nela três galinhas...

— Uma preta como o carvão, uma castanha como a terra e uma branca como a neve.

— Vivia mais alguém na casa do monte...

— Um gato! — Os olhos de Saraid abriram-se.

— Fecha os olhos — ordenou Eile. — Um gato às riscas que seguia a rapariga por toda a parte e que se enroscava na cama dela todas as noites para dormir.

— O gato tinha nome? — perguntou Faolan em voz baixa, sem saber ao certo se podia participar no que era, obviamente um ritual familiar de longa data.

— Fofinho. — A voz de Saraid transformara-se num murmúrio.

— A rapariga dava todos os dias farelo e grão às galinhas, dava de jantar ao Fofinho e ajudava a mãe a tratar da horta.

— Couves, alhos e feijões.

— E plantava todas as plantas de que gostava, as que cheiravam muito bem: alfazema, rosmaninho, camomila, tomilho, salva, calaminta e roseira-brava.

Saraid suspirou, mudando a posição da boneca nos braços.

— Quando o pai dela regressava a casa, ela fazia-lhe ovos com ervas frescas. Ele abraçava-a e dizia menina linda. Quando ele dizia aquilo, ela sabia que a mãe e o pai gostavam dela e que era a rapariga com mais sorte do mundo.

Um longo silêncio.

— Boa noite, Esquilo — disse Eile finalmente, debruçando-se para beijar a filha na face. — Está quase a dormir — acrescentou ela, sentando-se ao lado de Faolan na beira da cama. — Ela estava mesmo cansada, mas insistiu em esperar por ti. Considera-o uma honra.

— Considero, pois — disse Faolan, levantando-se e sentando-se na arca porque o desejo que tinha de lhe tocar era irresistível e sabia que tinha de ir com cuidado. Tinha muito a perder se fizesse as coisas mal e se a assustasse, ou ofendesse. Tinha tudo a perder.

— Bem — disse ela, olhando para ele. O vestido azul ficava-lhe bem, realçava-lhe a palidez cor de creme da pele. — Não sei por onde começar, não sei o que dizer. Surpreendeste-me. Não sei se percebi bem.

— Estava convencido de que te tinhas ido embora. Fiquei chocado quando te vi. Pensava... pensava que... — Faolan olhou para o tapete, incapaz de prosseguir.

— Por que querias que eu me fosse embora? — perguntou ela, saindo-se melhor do que ele. — Que fosse com Drustan e Ana?

— Parecia-me que era o melhor para ti. E para Saraid. Que era mais seguro. Mais... estável.

— E melhor para ti. — O tom dela era monótono.

— Pensava que sim. De certo modo ainda penso. Não sei se consigo... Penso que não consigo ser...

— Se continuas a pensar assim — disse Eile — por que estás aqui? — A jovem tinha-se levantado, cruzado os braços e aproximado da pequena janela que dava para o jardim; a noite de Verão entrava por ela, azul-esbranquiçada. — Quero dizer, neste quarto, quebrando as convenções.

Um suspiro profundo.

— Porque enquanto estive fora não consegui deixar de pensar em ti. Uma parte de mim dizia que sim, que era a melhor coisa a fazer, outra reconhecia a espécie de homem que sou, o trabalho que faço, a impossibilidade. Uma outra parte, porém... sentia a tua ausência como um ferimento. A de Saraid também. Sabia que tinha cometido o maior erro da minha vida, que deitara fora algo insubstituível, algo que nunca mais recuperaria.

Eile continuava à janela, de costas voltadas para ele. Faolan ouviu o ritmo de respiração dela alterar-se, sentiu as palmas das mãos úmidas e o coração a acelerar.

— E Ana? — A voz da jovem era tensa. — A viagem que fizeste com ela foi há menos de um ano. Tu contaste-me ainda não há muito tempo. Tu ama-a. Eu sei que ela é importante para ti. Vi como olhaste para ela, Faolan — Eile virou-se com as mãos apertadas uma na outra. — Um amor assim não desaparece sem mais nem menos no espaço de uma estação. Um amor assim é eterno, como dizem as histórias. Tu estás... confuso, sentes-te só. Ou pior ainda, estás a dizer isso por piedade porque eu decidi ficar em Monte Branco e Saraid e eu não temos protetor.

Os sentimentos dele saíram por fora, quebrando a barreira precária com que os tinha cercado.

— Dovran está pronto a desempenhar esse papel, pelo que vi. Se não ele, outro qualquer. Devia estar louco para pensar que precisavas de mim para isso.

— Pára, Faolan! — O assassino ouviu a dor na voz dela, viu-lhe a boca retorcida, lutou contra o desejo imenso de dar dois passos em frente e tomá-la nos braços. — Não digas isso! Não posso evitar se Dovran gosta de mim. Além disso... — A voz desvaneceu-se. Faolan levantou-se e voltou a sentar-se.

— Continua — disse ele.

— Suponho que mais tarde ou mais cedo tínhamos de falar disto — disse Eile, sentando-se novamente na beira da cama com uma mão em cima da figura enroscada de Saraid. — Mas agora é-me mais difícil por uma razão. Lembras-te do que te pedi que me fizesses, aquilo que te recusaste a fazer? Sabes por que te pedi, não sabes? — perguntou ela em voz baixa, desviando o olhar.

— Sei.

— De certo modo, mudou tudo. Aprendi algumas coisas aqui, em Monte Branco.

Coisas que Dovran te ensinou. Faolan engoliu o comentário.

— Que coisas?

— Eu costumava pensar que as mulheres gostavam de se deitar com os homens, que gostavam que eles lhes fizessem... aquilo. Depois de Dalach deixei de acreditar que fosse possível. Mas aqui vi pessoas a olhar umas para as outras com tanto amor, vi-as tocarem-se com tanta ternura que tenho de acreditar que pode ser verdade. Bridei e Tuala; Ferada e Garvan e especialmente, desculpa se isto te magoa, Ana e Drustan. Não é só amizade e proximidade, é... paixão, algo profundo e maravilhoso. Eu vi.

Ele acenou com a cabeça, prendendo a respiração.

— Não dizes nada? — perguntou ela, fixando-o.

— Talvez te devesse perguntar... — Faolan tossiu para clarear a voz. — Talvez te devesse perguntar se isso significa que já não precisas de partilhar essa... experiência com um homem?

— Estás a dizer — perguntou ela, escolhendo as palavras com cuidado — que eras capaz de o fazer agora, se eu te pedisse?

— Responde primeiro.

— Isso não é justo, Faolan. Isto é muito difícil para mim. Diz-me tu primeiro.

Faolan olhou intensamente para ela.

— Se tu quisesses que eu passasse por essa experiência — disse ele — faria o melhor que sei, sim.

— Experiência? — perguntou ela, franzindo a testa. — Eu não acho que seja uma experiência. Não é uma coisa que os homens fazem com toda a facilidade?

— Para mim seria um dos desafios mais difíceis que alguma vez enfrentei, Eile.

Ela olhou para ele.

— Depois do que acabas de dizer, mais ou menos, não acredito que seja porque tens medo de ir para a cama comigo, apesar de ter sido o que pensei quando recusaste a primeira vez. Para mim é um desafio. Por que razão também é para ti?

— Se queres uma resposta honesta, não sei.

— Não sou mulher que goste de mentiras piedosas. Diz-me. Diz-me!

— Muito bem. — Faolan reparou que tinha cruzado os braços numa atitude defensiva e levantou-se, deixando-os cair ao longo do corpo. — Primeiro quero tornar claro que... depende tudo de ti, que se eu o fizer será quando, onde e como quiseres. Depois, devo dizer-te que vivi essa hipótese em sonhos e que... foi um fracasso amargo. O desejo era uma companhia constante, mas por ti, Eile, não por Ana. Eu amava-a, sim, não te vou mentir e suponho que ainda amo. Mas o que aconteceu comigo naquela estação foi uma coisa irreal, foi a paixão de um homem solitário por um ideal impossível, uma mulher perfeita que estava fora do seu alcance. Tu és... real. És amiga, uma companheira de confiança e... e provavelmente uma boa amante. Sempre que olho para ti apetece-me tocar-te, abraçar-te, proteger-te, abrir-me contigo, passar os dias contigo. E deitar-me a teu lado à noite, possuir-te. Eu tinha medo de te confessar isto. Por favor, não fiques assustada. Se quiseres, vou-me já embora.

— Estou a ver — disse ela, sentada na beira da cama, sem olhar para ele. — Portanto, um homem só e desiludido precisa de uma companheira só e desiludida? É por isso que estás sempre a pensar em mim?

— Não quis dizer... — Faolan parou. — Talvez... talvez tenha sido o que nos atraiu, o que fez de nós dois amigos. Pelo menos penso que continuamos a ser amigos.

— Quero dizer-te uma coisa — disse Eile. — Mas primeiro quero fazer-te uma pergunta.

Faolan esperou.

— Se não te importas, senta-te aqui ao pé de mim e agarra-me na mão — disse ela. A mistura de calor e desconfiança que ele viu no rosto dela provocou-lhe um baque no coração. — Pode ser?

O assassino obedeceu. A mão dela estava fria.

— Sim — disse ela — é diferente. Foi diferente ao jantar e ainda é. Penso que talvez seja um bom sinal.

— O que é que é diferente? — perguntou ele, tentando não pensar nas coxas dela encostadas às suas.

— Dancei com Dovran — disse-lhe ela. — Dei-lhe a mão, deixei que ele me tocasse. Não foi como agora.

— Foi como? — perguntou ele, prendendo a respiração.

— Não gostei. Meteu-me medo. Com outros homens é a mesma coisa. Com Garth, por exemplo, ou com Gavran, se um deles me passar o sal e me tocar acidentalmente na mão. Com Wid, mas esse é velho. Os outros, apesar de simpatizar com eles, fazem-me recordar Dalach. Tentei controlar-me e até me servi de Dovran. Deixei que ele me ajudasse a descer os degraus do jardim e outras coisas assim. Desculpa se te estou a magoar. — A sua voz era quase um sussurro.

— E comigo é diferente? Isso coloca-me ao mesmo nível de Wid? Uma figura paternal?

— Não, Faolan — disse ela após uma pausa, pousando-lhe a cabeça no ombro. — Sabe bem. Não tenho medo de te tocar. E não me pareces nada paternal; nunca pareceste, desde o primeiro momento. Porém, continuo com medo de me deitar com um homem qualquer e isso incluí-te, se bem que pergunte a mim própria se... se não seria bom nós os dois. Eu tenho medo de o fazer porque, se não resultar, se não gostar de estar contigo, sei que nunca mais gostarei. E eu quero gostar, quero a minha casinha e o meu jardim, o gato, as galinhas, a cozinha quentinha. Quero que Saraid tenha uma família a sério, talvez mais um irmão ou uma irmã. Ela adoraria. Sem isto entre nós não acontecerá nunca. Nunca.

— Chhh, chhh — murmurou Faolan, tocando-lhe nos cabelos com os lábios, acariciando-lhe a face com os dedos. — Está bem assim? — perguntou ele, sentindo-a tremer. — Quero que me digas se tiveres medo...

— Não. Sabe bem. Faz-me sentir protegida. Mas vou ter medo da outra coisa. Sabes que vou ter.

— Também eu. Medo que o ardor não me permita ir devagar, que o desejo me torne egoísta.

— Não acho que sejas egoísta, Faolan, acho que és um homem muito forte.

Faolan pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.

— Também tu. És a pessoa mais forte que eu conheço. Talvez até mais forte do que o teu pai. Eile, não precisamos de ter pressa. — Era evidente que ela estava a ver que o seu corpo contrariava as suas palavras tranqüilizadoras. Faolan sentia o corpo duro de desejo e a respiração a ficar acelerada e irregular.

— Aqui não — disse Eile. — E agora não. Para mim isto é uma ponte que tenho de atravessar, uma ponte assustadora. Quanto mais depressa passar para o outro lado, melhor. Amanhã à noite, quero que seja amanhã à noite — acrescentou a jovem, olhando para a criança adormecida. — E não neste quarto. No outro ao lado, que está vazio. Era o de Ana e Drustan. Tem lareira. Quero que seja... bonito. Não quero que seja num canto qualquer, às escondidas. Achas que é um disparate?

— Tu é que decides — disse Faolan. — Se sim, se não, se queres parar ou se queres continuar. Faço o que tu quiseres. Eile, quero perguntar-te uma coisa sobre o futuro. Já o devia ter feito...

— Não! — disse ela, rapidamente. — Agora não. Depois. Depois de descobrirmos se é bom.

— Se é o que queres. — Casas com um homem que parece ter trinta e cinco anos, que tem uma perna defeituosa e uma tendência para desaparecer durante muito tempo? Sem qualquer explicação? Era melhor, talvez, não lhe perguntar. — É melhor ir-me embora, então.

— Importas-te de ficar? Misericórdia.

— Tenho de ser honesto contigo, Eile. Se fico nesta cama contigo sem te tocar, sequer, não consigo dormir. E tenho de descansar se quero fazer frente ao desafio que me impuseste.

— Oh. Não tinha pensado nisso.

— Posso dormir no chão. Tens mais algum cobertor?

— Ficas cheio de frio. E a tua perna?

— Não te preocupes. Posso dar-te um beijo?

— Se quiseres. — Faolan ouviu-lhe a ansiedade na voz.

— Quero — disse ele, tocando-lhe ao de leve nos lábios, abrindo-lhos ligeiramente, gentilmente. A mão dela tocou-lhe na face e por um breve momento os seus lábios retribuíram, mas depois recuaram.

— Boa noite, Faolan. Tens a certeza que ficas bem no chão?

— Já dormi em camas mais duras, como sabes muito bem. Boa noite, Eile — disse ele, encontrando o cobertor e estendendo-se no tapete verde. Pelo menos não precisava de se deitar diretamente no chão de pedra.

Eile pousou a vela numa pequena prateleira ao lado da cama, despiu-se — obrigando-o a fechar os olhos — e meteu-se na cama ao lado de Saraid.

— Vou apagar a vela — disse ela, soprando-a.

A luz pálida do luar começou a entrar lentamente no quarto, tornando o ambiente sonhador e estranho. Faolan perguntou a si próprio se não acordaria no dia seguinte na sua cama, nos alojamentos dos homens, descobrindo que aquilo tinha sido mais um sonho cruel.

— Faolan?

— Hum?

— Amanhã o dia é capaz de ser difícil, não achas? Até o jantar de hoje foi estranho.

— Pois foi. Sim, concordo. Vai parecer-nos um dia muito longo.

— Penso que seria mais fácil se nos mantivéssemos ocupados e se nos víssemos o menos possível — disse ela. — Eu quero ver-te e Saraid também, mas... bem, sabes o que quero dizer.

— Só te peço que não passes o dia com Dovran — disse ele, pensando que a piada não tinha piada nenhuma.

— Se ele estiver de serviço não o posso evitar, Faolan.

— Vais tomar outra vez conta de Derelei?

— Provavelmente. Estes últimos dias ele não tem andado nada bem e a mãe dele precisa de tempo para o bebê. Tenciono mantê-lo o mais ocupado possível. E tu?

— Penso que oficialmente estou de folga até a perna ficar boa. Arranjo qualquer coisa que me mantenha longe de ti até ao jantar. Mas...

— Hum — disse ela. — Vou ter saudades tuas.

— Dizes-me uma coisa?

— O quê?

— Aquela história, a casa no monte. Era assim quando tinhas a idade de Saraid?

— Que me lembre, era.

— Pobre Deord — murmurou ele.

— Por que dizes isso?

— Se era o que ele tinha e se depois de sair de Pedra-que-Quebra não conseguiu fazer parte dela... Que decisão terrível, ir-se embora para não a destruir. — O coração de Deord devia ter ficado despedaçado. Não admirava que nunca tivesse falado da mulher e da filha mais tarde, durante os anos todos que estivera em Briar Wood.

— No fundo foi ele que a destruiu. — A voz de Eile era fria. — Sem ele nunca poderia ser como antes. Quem achas que seria suficientemente forte para a manter de pé? A minha mãe não. Ela amava-o como se ele fosse o Sol, a Lua e as estrelas e ele virou-lhe as costas. E eu também não. Só tinha oito anos quando ele se foi embora. Aposto que Dalach já então tinha os olhos postos em mim.

— Peço desculpa, não devia ter falado no assunto.

— Não faz mal — disse ela após uma curta pausa. — Faz parte do partilhamos a partir de agora, tu e eu. Coisas boas e coisas más. Gostei do que disseste, Faolan, quando disseste que eu era real. Talvez queira dizer que tenho bons e maus bocados. Fraquezas e forças. Se calhar é por isso que nos damos bem. Tu és muito real, percebi quando me disseste que o meu pai tinha morrido, apesar de não mo quereres dizer. Percebi quando decidiste que não me entregadas às autoridades, quando me queimaste as roupas e mentiste por mim. Percebi esta noite porque tiveste ciúmes, porque cantaste uma canção e porque... — A voz de Eile desvaneceu-se.

Folan pensara que não conseguiria adormecer. Doía-lhe a perna, passava uma pequena corrente de ar por baixo da porta e estava excitado, física e mentalmente devido à presença dela apenas com uma camisa-de-noite, tão perto que podia tocar-lhe. No entanto o sono chamou por ele rápida e completamente e quando acordou viu que a luz do dia entrava pela janela e que Saraid estava sentada na cama a olhar para ele e percebeu que, tanto quanto se lembrava, dormira a noite toda sem um único sonho.

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Sentindo-se algo cansado das curas milagrosas que Deus na Sua graça decidiu efetuar através dele, o nosso chefe acedeu com alguma relutância em ficar uma noite numa pequena aldeia na margem deste longo e solitário curso de água a que os Priteni chamam Lago da Serpente. 0 local tinha um único molhe e uma ou duas cabanas. Um pouco mais acima, no alto do monte, havia umas casas mais substanciais (neste relato ê tudo relativo), onde nos concederam espaço para dormir. Colm ficou na casa e nós partilhamos a palha com uma porca e uma ninhada de leitões. A floresta, informou-nos o nosso anfitrião, possibilitava a criação suína com os seus frutos generosos. Nós acreditamos.

Colm admite a fraqueza com dificuldade. A chama de Deus brilha tão intensamente nele que o faz esquecer as limitações humanas. Em tempos como este, penso que o fogo que o transporta quase o consome. Talvez seja a vontade de Deus. Longe de mim contradizer as intenções do Senhor em relação ao Seu servo. Depois daquela noite, Colm ficou exausto e pálido. Nós persuadimo-lo, depois de muita discussão, a ficar mais uma noite e a só embarcar depois para a margem superior do lago, em direção à fortaleza real de Monte Branco.

No segundo dia, após as nossas devoções matinais, gozamos a tranqüilidade do lugar. O homem tinha levado os porcos para a floresta. O dia estava limpo, soprava uma brisa de oeste e havia três ou quatro barcos pequenos no lago a pescar com redes. Sentei-me no molhe com dois dos meus irmãos, em paz grato pela beleza da criação de Deus e pensei no Rei Bridei, com quem nos encontraríamos em breve. Falara com ele por breves momentos quando da sua vitória sobre o nosso povo em Dalriada. Conheci-o quando ele se tornou Rei de Fortriu e admirava-o muito. Perguntei a mim próprio se o governo o teria mudado muito. Bridei sempre foi forte na sua fé, apesar de a doutrina estar errada. Talvez nos feche a porta e nos mande embora.

Um grito. Eu e os meus irmãos vimos, horrorizados, erguer-se uma onda estranha e levantar violentamente um dos pequenos barcos, ao passo que os outros, um pouco afastados, continuavam imóveis. O homem a bordo da pequena embarcação agarrou-se à rede; os seus gritos eram de terror. Senti um nó no estômago. Vimos algo a nadar em redor do barco, algo tão grande que abrimos as bocas, pestanejamos e murmuramos uma prece, fazendo ao mesmo tempo o sinal da cruz «Deus do céu», disse o irmão Eibhear. «Poderá ser...?», murmurou o irmão Lomán, que ficara branco como a cal. «Vai chamar Colm», disse eu, sem saber que mais poderia fazer porque aquilo — uma cobra monstruosa, um dragão, uma serpente — enrolara-se em redor do barco e parecia prestes a desfazê-lo em bocados. O pescador estava agarrado ao mastro com a boca aberta de terror, mas sem emitir um som, tal era o seu medo. O lago estava calmo, excetuando aquele sítio, onde a água borbulhava em redor do monstro escamoso. Era uma visão sinistra.

Então o irmão Colm apareceu ao meu lado, alto, grave e calmo. Com o olhar fixo na cena terrível que tínhamos na frente, ele abriu os braços para que o seu corpo parecesse uma cruz e pronunciou estas palavras: «Que a paz de Deus esteja com estas águas e com todos os que nelas trabalham. Em Seu nome expulso todos os demônios, todas as criaturas perniciosas, todos os remoinhos, vagas e correntes diabólicos deste lugar. Senhor, poupa os Teus servos à ira deste monstro. Somos Teus leais servidores.»

Ao mesmo tempo que sustínhamos a respiração, as águas acalmaram-se e a criatura submergiu. Uma última chicotada com a cauda de um iridescente azul-esverdeado à luz da manhã e desapareceu. Com aquela saudação final e desafiadora, a serpente virou o barco e o seu ocupante foi atirado à água.

0 pescador gritou por socorro. Vimo-lo a debater-se na água. A capacidade de nadar é rara, mesmo entre os pescadores e aquele estava demasiado assustado para tal. Os outros pescadores começaram a manobrar para se aproximar, mas era evidente que não chegariam a tempo.

O irmão Eibhear despiu o hábito e mergulhou. Devo registrar aqui que aquelas águas são particularmente frias, mesmo no Verão. O lago é gelado, escuro e profundo o ano todo. Perguntara a mim próprio o significado dos amuletos de ferro que vira nos pescoços dos pescadores na noite anterior. Já compreendia o seu propósito. Tais superstições abundam também entre o nosso próprio povo. O ferro protege contra o que eles vêem como forças do Outro Mundo, mas não afastara a serpente daquele infeliz.

Regamos. O pescador esbracejava, gritava e o irmão Éibhear nadava.

«Deus não vai deixar ir esta pobre alma», declarou Colm. «A rede vai trazê-lo são e salvo para terra.»

E assim foi. A rede, sob a forma do nosso robusto Eibhear, chegou junto do homem mesmo a tempo e, não sem alguma dificuldade, porque o homem estava aterrorizado, rebocou-o para terra. O seu barco desaparecera, reduzido a alguns destroços de madeira flutuando nas águas calmas, mas a sua vida fora salva pela graça de Deus e pela intervenção do Seu servo Colmcille.

«Que coragem», disse eu a Eibhear, que tremia, encharcado da tonsura às sandálias. «E se aquilo tivesse voltado? Salvaste a vida do homem.»

«Não fui eu», disse Eibhear, olhando para Colm. «Se eu não soubesse que as orações dele me salvariam, nunca teria mergulhado. Nenhuma serpente é capaz de o enfrentar. Ele ê um verdadeiro instrumento de Deus.»

Enquanto o ajudava a secar-se e a vestir-se e os outros assistiam o pescador meio afogado, pensei no que ele dissera. Se uma serpente não era capaz de vencer o nosso chefe, sê-lo-ia um rei pagão? Amanhã partimos para Monte Branco. Descobri-lo-ei lá.

Suibne, monge de Derry

 

Garth andava à sua procura apesar de ainda ser cedo. Faolan escapou por pouco de ser visto a sair do alojamento de Eile. Servindo-se de uma habilidade, o assassino conseguiu encontrar-se com o camarada guarda-costas num ponto neutro, perto do pátio superior.

— Faolan! Onde tens estado? O Rei quer ver-te.

— Agora?

— Sim, agora. Ele está nos estábulos. Não te vou perguntar onde passaste a noite. É melhor despachares-te. Parece que ele tem um trabalho para ti.

— Obrigado. E obrigado por não perguntares. — Trabalhavam os dois juntos havia muito tempo e compreendiam-se mutuamente.

— De nada.

Faolan encontrou o Rei nos estábulos com os dois filhos de Talorgen e dois cavalos selados. Ban andava por ali a farejar, ansioso. Bridei aproximou-se para falar com Faolan, longe dos ouvidos dos jovens. A missão era surpreendente: ir com Uric, levar o cão e tentar encontrar um objeto qualquer não especificado que os rapazes achavam vitalmente importante. Bedo não podia ir, tinha um braço ao peito. Era evidente, pelas suas expressões, que os dois rapazes não tinham gostado da idéia de o Rei mandar o seu guarda-costas com Uric.

— Importas-te? — perguntou-lhe Bridei, depois de lhe explicar resumidamente a missão.

— Se conseguir subir para o cavalo com a perna assim, não. — Era uma distração, afastava-o de Monte Branco e do caminho de Eile até à noite.

Bridei franziu o sobrolho.

— Não me esqueci da tua perna. Não te teria pedido se não precisasse das tuas capacidades especiais para isto. Talorgen quer este assunto resolvido. Suponho que já sabes da rapariga que morreu durante uma caçada?

— Garth contou-me, sim.

— As duas coisas estão relacionadas. Foi no mesmo acidente que o jovem Bedo partiu o braço. Os dois irmãos têm andado a investigar. Esta é a última hipótese deles, tornei-o claro. Uric! — gritou ele. — Faolan concordou em ir contigo. Ele não vai como cão de guarda, mando-o para te ajudar. Acontece que Ban conhece-o bem e obedece-lhe. Tens de regressar antes do pôr do Sol.

— Sim, meu senhor. — A voz de Uric era truculenta, mas o rapaz subiu para a sela com estilo.

— Quanto a ti, Bedo — disse o Rei — suponho que a tua madrasta está preocupada contigo.

— Eu não sou nenhuma criança, meu senhor Rei. — A jovem boca estava tensa e a pele pálida à luz da manhã.

Bridei suspirou.

— Sei muito bem e sei que estás ansioso por resolver este quebra-cabeças, acredita. Sei que os teus sentimentos são os de um homem. Porém, o teu pai é meu amigo e está preocupado convosco. Por vezes é melhor desistir, seguir em frente.

Bedo acenou levemente com a cabeça, virou costas e desapareceu. Fosse qual fosse o significado do seu gesto, não era de concordância, certamente.

Faolan conseguiu subir para o outro cavalo sem ajuda, mas com alguma dificuldade. A sua perna protestava por ter de fazer uma coisa que, não muito tempo antes, era praticamente quotidiana. Quando voltasse procuraria conselho e ajuda.

— Bem — disse ele alegremente para o carrancudo rapaz — é melhor pormo-nos a caminho. Onde vamos exatamente?

Breda encontrara o local ideal. A fortaleza de Bridei estava bem tratada, tinha pessoal suficiente. Era normal encontrar sempre alguém a consertar o telhado de colmo, a olear os gonzos ou a consertar as bombas. Pouca coisa era esquecida ou negligenciada e havia pouco espaço perdido. A jovem, porém, encontrara o que precisava a um canto, numa passagem por baixo dos alojamentos ocupados pelo grupo de Keother. Um dia em que se sentia extremamente aborrecida, começara a explorar a vizinhança e vira a porta, esperando encontrar uma câmara de tortura ou outra coisa qualquer excitante. O local estava fechado com uma pesada corrente metida num buraco na porta, em redor de um poste e o fecho tinha sido rodado para o interior, a salvo de dedos curiosos.

Breda tinha umas mãos pequenas, era muitas vezes cumprimentada pela sua elegância. Fora simples abrir a porta, deslizar para o interior e deixar a corrente pendurada atrás de si. Breda vira-se numa câmara estreita, difusamente iluminada por uma abertura na base da parede exterior, um buraco onde mal cabia um gato. Talvez fosse por isso que não estava tapado. Ninguém conseguiria entrar ali, a não ser de rastos. Na câmara havia um poço. Um poço seco; Breda experimentara-o com uma conta de âmbar que tinha na bolsa, de um colar que se partira e que ela tencionava pedir a uma das criadas que lho enfiasse. A jovem ouvira-a cair, um momento depois, não com um salpico, antes com um minúsculo baque surdo e percebeu por que razão o espaço estreito tinha sido fechado com uma corrente. A borda do poço era baixa, a dois palmos apenas do solo, e o local era tão escuro que qualquer pessoa podia cair dentro dele. Especialmente uma criança. As crianças eram fáceis de atrair, especialmente as peculiares, como aquele não-sei-quantos.

A idéia tomou forma na sua mente. Qualquer história serviria: um gato perdido, um tesouro deixado cair acidentalmente... Seria suficientemente profundo? Breda baixou-se para espreitar, mas era demasiado escuro para se ver fosse o que fosse. Devia ser mais ou menos três ou quatro vezes a altura de um homem. Uma queda devia magoar bastante. Faria barulho? Talvez não tivesse importância. Aquele canto de Monte Branco era isolado. Breda achava que com a pesada porta fechada e acorrentada, os gritos de uma criança não se deviam ouvir longe dali. Bem, a queda... Não, não pensaria na queda, ou perderia a coragem. Aquilo não tinha nada a ver com o rapaz, tinha a ver com Eile. Se Eile deixasse que aquilo acontecesse, não merecia a confiança que tinham depositado nela. Era simples.

A oportunidade surgiu mais cedo do que ela esperava. Um dia depois de Faolan ter regressado a Monte Branco — vira-os a bichanar um com o outro ao jantar, na noite anterior — Eile estava a tomar conta das duas crianças, Saraid e o rapaz, mas não no sítio habitual, o jardim da Rainha, com Dovran de guarda. Andava de um lado para o outro com elas, a brincar a uma coisa qualquer. As crianças procuravam coisas, colecionavam-nas — uma pena, um seixo branco, uma borboleta morta. Nojento. Breda observava-as sub-repticiamente enquanto elas andavam em redor do jardim, subiam ao pátio superior e desciam os degraus que iam dar aos aposentos de Eile. Os aposentos de Eile: só a expressão era irritante. Por que razão tinham, a pequena celta e a filha, ficado alojadas nos aposentos que tinham pertencido à sua própria irmã, uma mulher de sangue real das Ilhas Pequenas? Eile devia estar na cozinha a esfregar potes e panelas; devia estar nos estábulos a tirar o estrume dos cavalos. Não, não devia, sequer, estar ali. A celta não devia estar ali de modo nenhum.

— Eile! — Breda saiu de trás de um pilar e cumprimentou os três com uma alegre exclamação de surpresa. — Que prazer ver-te! Espero que me tenhas perdoado por ter sido tão grosseira no outro dia. Fiquei desapontada, confesso, mas não tanto que não compreenda as tuas razões para dizer não. Estás diferente, hoje. Pareces... feliz. — E oxalá tenha sido o chato do teu Faolan a dar-te esse olhar, porque se foi Dovran, podes acreditar, miserável, será de curta duração.

— Está um dia bonito — disse Eile. — É o suficiente para me fazer feliz. Ainda bem que me perdoaste.

— Por que não levas as crianças até aos meus aposentos para uma visita? Ajudaria a passar o tempo. Tenho lá umas guloseimas — disse ela, reparando no olhar de Saraid. Os doces funcionavam sempre.

— Bem, nós estamos numa espécie de expedição — disse Eile. A outra criança ficara mais atrás, tentando esconder-se na sombra. Paciência, pensou Breda, se ele não gostava dela. O sentimento era mútuo.

— Parece coisa séria. Os exploradores precisam de comer bem. Por que não metemos as guloseimas num pano e as levamos para as comermos depois num sítio qualquer? Anda! — Breda estendeu uma mão a Saraid. A pequenina aceitou-a. Era um pouco mais confiante do que o outro, e seguiram todos para os aposentos da jovem.

Não foi fácil reunir aquilo de que necessitava e sair sem que aparecesse um bando de raparigas. Todas as criadas gostavam de Saraid, que parecia ainda mais amorosa com aquele vestido cor-de-rosa; deram-lhe uma fita para ela pôr nos cabelos da horrível boneca e outra para ela própria. Foi Eile que conseguiu tirá-los dali, dizendo que Derelei estava a ficar cansado e que era melhor irem.

A parte seguinte teria de ser planeada com mais cuidado. Tinha de arranjar maneira de afastar o miúdo, mas era difícil porque ele andava sempre agarrado às saias de Eile. Talvez o pudesse fazer na presença da rapariga, fazendo parecer que fora um acidente! Mesmo que ela visse, quem iria acreditar nela? Quando ouvissem a história, o Rei e a Rainha reconheceriam imediatamente que tinham feito mal em confiar o filho a uma estranha, ainda por cima celta.

— Oh, vais-te já embora? — perguntou ela o mais suavemente que conseguiu. — Ainda não fizemos o nosso piquenique. Traz a tua trouxa, Saraid. Tenho uma coisa muito interessante para te mostrar. Um lugar secreto. Acabo de o descobrir. Vem ver, é ali em baixo.

— Acho que é melhor... — começou Eile a dizer, mas Saraid já seguia ao lado de Breda e como não conseguiu agarrar na filha a tempo, a jovem não teve outro remédio senão segui-las.

Breda tirou a corrente, abriu a pesada porta e entrou com Saraid a seu lado.

— Cuidado — avisou ela. Se a pequenina fosse a primeira a cair, a coisa não resultaria. — Vem, senta-te aqui, Saraid. Podes desembrulhar as guloseimas, se quiseres.

— Breda. — A voz de Eile era cortante. A jovem estava na soleira da porta com os olhos a ajustarem-se ainda à escuridão do pequeno espaço. — Este sítio não me parece seguro... Vamos, Saraid, Derelei...

O rapaz esquisito, que estava ao lado dela, avançaria na direção de Saraid, ela dar-lhe-ia um empurrão rápido e...

Derelei mexeu-se com tal rapidez que ninguém teve tempo de o impedir. O petiz atravessou o espaço e saiu pelo pequeno espaço na base da parede antes que Breda, espantada, se recompusesse.

— Derelei! — gritou Eile, aproximando-se rapidamente do buraco e espreitando. — Derry, vem cá! Oh, deuses... Saraid, vem cá, depressa! Não consigo vê-lo. És capaz de ver para onde ele foi? Breda, temos de ir buscar ajuda!

Saraid baixou-se ao lado da mãe e espreitou para a encosta escura cheia de pinheiros que rodeava as muralhas de Monte Branco.

— Derry foi-se embora — disse ela.

— Não te preocupes — disse Breda com o coração a bater com toda a força, excitada. O plano mudara. O que tinha agora na cabeça era ainda mais emocionante. — Ele é pequeno, não pode estar longe. Podes ir chamar Dovran, não podes? Manda-o procurá-lo e a Rainha nem sequer precisa de saber...

— Não sejas estúpida! — Eile pôs-se em pé de um salto. — É claro que me preocupo...

Breda levantou a corrente e atingiu a jovem, que se tinha colocado na posição ideal, na têmpora, com força. Eile abriu os olhos verdes, espantada, e caiu para dentro do poço.

Saraid ficou imóvel, agarrada à boneca, de olhos esbugalhados.

— Estás a olhar para onde? A criança recuou um passo.

— Está tudo bem — disse Breda, apercebendo-se de que havia um elemento no seu novo plano de que não se tinha apercebido totalmente. — Vem cá, Saraid. Aproxima-te. Olha que guloseimas tão boas.

A criança recuou ainda mais, até ficar encostada à parede exterior.

— Não tenhas medo, eu não te magôo — disse Breda, tentando suavizar a voz, mas não conseguindo e vendo o terror nos grandes olhos castanhos. — Anda lá, boneca, chega-te aqui.

Saraid baixou-se, recuou, meteu-se no buraco e tentou sair por completo como Derelei, mas não conseguiu. No entanto ficou perto da saída. Breda ouviu-a fungar.

— Está bem, então! — gritou Breda através da minúscula abertura. — Vai, se queres. Vai e procura o teu amigo. Tenho a certeza que ele está por aí, algures. És capaz de o encontrar lá em baixo.

Saraid começou a chorar. Deuses, que barulho! Como é que as crianças eram capazes de chorar daquela maneira?

— Cala essa boca! — sibilou Breda. — Estou a falar a sério! Se continuas, se dizes uma única palavra do que aconteceu aqui, nunca mais, nunca mais vês a tua mãe! Percebes, Saraid? Não digas a ninguém. Se queres ver a tua mãe outra vez, pára imediatamente!

O choro transformou-se numa série de fungadelas angustiadas. A criança continuava visível através da abertura, uma trouxa cor-de-rosa com um par de pequenos sapatos de pele de carneiro.

— Vai! Vai à procura do teu amigo! E não te esqueças, não digas a ninguém, senão...

Os sapatos desataram a correr. Ficou tudo em silêncio, salvo o bater do seu próprio coração, a emoção do sangue a correr-lhe pelas veias, o arfar da sua respiração. Conseguira. Custava-lhe a acreditar que fosse tão inteligente.

Não olhou para o poço. O que estava lá não se via. Breda deslizou pela porta, colocou novamente a corrente, rodando-a para que o fecho ficasse pelo lado de dentro, olhou em volta para ter a certeza que não estava ninguém à vista e dirigiu-se para o jardim. Ali encontrou um banco à sombra de uma roseira-brava cheia de rebentos e sentou-se onde ninguém a podia ver. Mais acima, Dovran andava de um lado para o outro entre o jardim maior e o menor; via-o através dos ramos de um rosmaninho. A princesa desembrulhou as guloseimas, escolheu uma e em seguida deixou correr a imaginação.


CAPÍTULO DEZESSEIS

 

Ia ser um dia estranho. Faolan decidiu que se pensasse demasiado em Eile e no que estava para acontecer, o tempo passaria insuportavelmente devagar. O melhor era estabelecer comunicação com aquele rapaz e fazer o que sabia melhor: desempenhar a missão de que Bridei o encarregara.

Talvez fosse o conhecimento de que aquele dia era a última hipótese; talvez fosse por causa do modo como Faolan fez cuidadosamente as perguntas. Fosse como fosse, quando chegaram a terreno aberto, perto do local onde a infortunada caçada tivera lugar, o rapaz revelou que o objeto que procurava era pequeno e afiado, um alfinete ou uma faca.

— Qualquer coisa que foi usada para assustar a égua — resmungou Uric. — Na ocasião pareceu-me ver um reflexo metálico qualquer. Quando regressamos a casa, fui aos estábulos para me certificar, mas o animal estava cheio de arranhões. A área que ela percorreu estava cheia de arbustos e pedras. Não consegui descobrir nenhum ferimento. — Uric ainda não dissera de quem suspeitava e Faolan ainda não lhe perguntara.

— Hum, hum — disse Faolan, pensando que a teoria, apesar de tênue, não era de deitar fora.

Prenderam os animais à sombra de uma árvore frondosa. Ban estava ao lado de Faolan, à espera de ordens. Uric trouxera um pano vermelho, talvez um lenço de mulher para o cão farejar e aproximou-o do nariz do animal.

— Tu é que mandas — disse-lhe Faolan. — Suponho que já vasculhaste a área, mas sem cães. Por onde começamos?

— Por aqui, onde estávamos com as aves. Depois para além, na direção da água. Foi para lá que o Rei e Dovran foram em perseguição da égua.

Uric não mencionou o nome de Breda, o que alertou Faolan para a possibilidade de os rapazes não terem falado daquilo a ninguém porque não se acusava uma dama de sangue real sem provas.

— Tem estado a chover — disse ele. — E isto aconteceu há muito tempo.

— Soube que Ban tem... capacidades estranhas — disse Uric. — Espero que seja verdade. Se não, tinha pedido um dos cães de caça do Rei.

— Basta-nos pô-lo à prova. — Faolan olhou para a encosta arborizada que descia até aos pântanos, perto da margem e depois para a extensão ondulada de terreno cheia de maciços de vegetação e grandes pedras. Era uma área muito grande para um só dia.

Os dois companheiros percorreram a maior parte antes de o Sol chegar ao seu ponto máximo. Ban fartou-se de procurar, mas não desenterrou nada para além de um pano e uma fivela partida sem quaisquer arestas. Uric não dizia nada. Faolan reparou na sua palidez, na tensão dos seus ombros, no olhar lúgubre.

— Deve ter sido muito difícil para ti — disse ele calmamente.

— Tenho de provar isto antes que a minha madrasta nos leve com ela para casa — disse o jovem. — Se Bedo e eu tivermos razão, há uma pessoa na corte que, não só é perigosa, como é completamente louca. Alguém que não sabe o que é o bem e o mal; alguém que não se importa de matar. Não podemos ir-nos embora e deixar as coisas como estão.

— Se isso for verdade — disse Faolan após uma pequena pausa — talvez seja melhor informares o Rei das tuas suspeitas.

— Bedo disse qualquer coisa ao meu pai e eu penso que o meu pai falou com o Rei Bridei, mas nós só temos uma teoria. Suponho que lhe deve ter parecido uma tolice. Ninguém nos leva a sério. Não há quaisquer provas. E há gente poderosa envolvida, gente que o Rei não quer ofender.

— Estás a começar a preocupar-me, Uric. Acho que é melhor descermos a encosta. Temos de ter a certeza de que cobrimos a maior área possível antes do anoitecer. Muito antes, se possível. Tenho as minhas razões para regressar cedo.

— Temos de o encontrar — resmungou Uric, continuando ao lado de Faolan e com Ban à frente, alerta e resoluto.

— Uric — disse Faolan — mesmo que não encontremos nada, deves informar o Rei das tuas suspeitas. Ele deve saber que, como filhos de Talorgen, tu e o teu irmão não são dados a suspeitas falsas e teorias infundadas.

— Esqueces-te — disse o jovem — que também somos filhos da minha mãe. Toda a gente no-lo tentou esconder, mas Bedo e eu não somos estúpidos. Sabemos que ela foi banida por ter conspirado para assassinar Bridei.

— Como protetor do Rei, sei isso muito bem. — E mais; sei que o assassino foi Gartnait, o teu irmão mais velho, e que ele morreu, não devido a uma heróica tentativa para salvar a vida de Bridei, mas devido a uma intervenção sobrenatural dos Boa Gente. Bridei conseguira esconder aquele elemento cruel do complô de Dreseida da família de Talorgen. Ferada fora a única que se aproximara da verdade. Era melhor aqueles dois jovens nunca virem a saber. Bastava-lhes o que tinham pela frente. — E tenho a certeza que isso não tem nada a ver com a opinião que ele tem de vós, nunca lhe afetará a resposta, caso decidas informá-lo das tuas suspeitas. Bridei nunca julga um homem pelo que os seus pais eram, ou pelo que aconteceu no seu passado. O Rei julga um homem pelo seu valor e pelo que ele poderá fazer no futuro.

— Foi assim contigo? — perguntou o jovem, hesitante. Toda a gente na corte sabia que não se faziam perguntas pessoais a Faolan.

— Se não tivesse sido não estaria agora a trabalhar para ele e não teria a sua proteção — disse o assassino. — Se decidires confiar nele, ele ouve-te sem quaisquer preconceitos. Pensa no assunto, pelo menos.

Continuaram a caminhar. Ban parecia incansável, andava de um lado para o outro, metia-se por trás das pedras, dos arbustos, entrava em buracos e subia pequenas encostas. O Sol continuava o seu caminho no céu. Um bando de gansos passou no alto, grasnando entre si. Nos pântanos, os patos nadavam e mergulhavam e algumas aves pernaltas alimentavam-se nas águas pouco profundas. O barulho dos grilos contrapunha-se à vigilância e aos chilreios das aves menores que voavam em redor dos dois homens e do cão.

Ban trabalhava esforçadamente. Uma ou duas vezes disparou a correr, despertando a esperança dos dois companheiros, mas regressou sem nada. O tempo passava e cada vez era mais difícil para Faolan manter os pensamentos afastados de Eile e do que o esperava naquela noite. Se fosse homem para acreditar em deuses e espíritos, teria rezado: Que eu faça tudo bem. Que seja a ocasião ideal para ela. Que eu não perca as duas por causa disto. Porém, sabia que não tinha nada a ver com deuses ou espíritos, que tinha a ver com ele e com Eile, se teriam os dois força suficiente para ultrapassar as sombras do passado. Se não conseguisse fazer as coisas como devia ser, Eile dar-lhe-ia uma segunda oportunidade? A amizade que os unia permitir-lho-ia ou os danos provocados pelo fracasso inicial seriam demasiado devastadores, impossibilitando qualquer remédio? Amanhã, por esta hora, pensou ele, saberei se tenho futuro. Porque tornara-se claro que, sem ela a seu lado, o futuro não tinha qualquer significado, não conseguia, sequer, imaginá-lo.

— Faolan? — A voz de Uric era calma, mas a intensidade do tom alertou instantaneamente o assassino. O cão corria, farejando, com as orelhas esticadas, decidido. Os dois homens seguiram-no em passo rápido e depois começaram a correr atrás da pequena forma branca. Algum tempo depois Ban parou, apontou com a pata para qualquer coisa e levantou a cabeça para olhar para os dois homens, como que a dizer: Então, nunca mais?

Faolan deixou que Uric chegasse primeiro. O rapaz baixou-se e pegou no que Ban encontrara. O seu olhar era intenso, emocionado: Finalmente?

— Olha — disse ele, pegando no pequeno objeto e colocando-o na palma da mão.

Um longo alfinete de prata decorado com um animal com os membros e a cauda entrelaçados, um focinho estranho e uma pedra vermelha no olho. Um monstro marinho, um dos antigos símbolos das Ilhas Pequenas, um ornamento que uma dama usaria para prender os cabelos no alto da cabeça, ou para os manter afastados do rosto ao andar a cavalo.

— Reconheces isso? — perguntou Faolan. Uric abanou a cabeça.

— Juraria que vi uma pessoa especial a usá-lo. Não tenho a certeza, mas posso perguntar. — A sua voz era perigosamente cortante.

Faolan baixou-se para cumprimentar Ban, fazendo-lhe uma festa atrás das orelhas.

— Devias levar isso agora a Bridei — disse ele. — A natureza dessa jóia limita consideravelmente a sua possível posse. Suponho que a senhora Ana não participou na caçada?

— Não e o noivo também não.

Começaram a regressar para junto dos cavalos. Faolan estava preocupado com o que via no rosto de Uric, apesar de compreender o que o jovem sentia.

— Eu sei que te sentes tentado — disse ele. — Tens a pista, conseguiste encontrá-la, sofreste e agora estás ansioso por atirar a matar, por assim dizer, mas aconselho-te a teres cautela. Se não me engano, enfrentas gente poderosa. Um homem inteligente, tortuoso, é capaz de se apresentar perante o Rei e troçar de ti. A presença desse objeto no campo onde a caçada teve lugar não representa, em si, uma prova. As pessoas passam a vida a deixar cair coisas.

— Eu sei o que ouvi — disse Uric. — E houve mais quem tivesse ouvido, mas preferiram não ligar. E vi. Vi qualquer coisa.

— Diz-me o que viste.

— Um brilho metálico na mão de uma determinada pessoa, ao mesmo tempo do grito. Depois o cavalo levantou-se nos quartos traseiros e...

— Estou a ver. Tens de falar disto a Bridei, Uric, assim que regressarmos a Monte Branco.

— Mas antes quero falar com Bedo. Concordamos que faríamos isto juntos. Ele precisa de ver o que encontrei. Esta demanda é mais dele do que minha. O meu irmão gostava de Cella, a rapariga; gostava muito dela.

— Compreendo essa lealdade fraternal. Vai falar com ele imediatamente. Se quiseres, vou contigo quando fores falar com Bridei. O meu instinto diz-me que isto não é uma reação fantasista face à perda súbita de uma amiga.

— Obrigado — disse Uric após uma curta pausa. — Não esperava que me ajudasses tanto. Ou que acreditasses em mim.

— Foi só mais um dia de trabalho — disse Faolan, apercebendo-se de que o Sol começava a pôr-se e que aquele dia extraordinariamente difícil estava quase a acabar. Como teria Eile preenchido aquelas longas horas? Faolan supunha que correr atrás de duas crianças devia consumir muitas energias e que devia deixar pouco tempo para sonhar. Imaginou a jovem no jardim, sentada no chão de pernas cruzadas com o seu vestido azul, pensou nela agarrando nas duas crianças pelas mãos, talvez olhando por cima das muralhas naquela mesma direção, com os cabelos flutuando ao vento; imaginou-a no quarto a escovar os longos cabelos castanhos de Saraid, dizendo-lhe que ele regressaria naquela noite e que lhe cantaria a continuação das aventuras de Lamento. Faolan tentou não pensar mais.

Regressavam os dois lentamente à fortaleza. Uric guardara o alfinete na bolsa que tinha à cintura, embrulhado no pano vermelho. Ban acompanhava-os com passo firme, qual guerreiro de pernas curtas. Os pinheiros estendiam as suas sombras escuras no seu caminho, como avisos de mudança. Faolan estremeceu. Tinha medo da noite que se aproximava, possuído por uma desconfortável mescla de esperança e temor; pensava no quarto como um santuário com o seu tapete verde; imaginava os braços dela como uma espécie de lar. Ia correr tudo bem; tinha de correr.

Quando se estavam a aproximar de Monte Branco, ao longo de um carreiro densamente arborizado onde a vegetação ladeava o caminho e a encosta cheia de árvores na sua frente se recortava contra o céu, escura, o dia começava a terminar. As sombras rodeavam os arbustos e a copa das árvores enchia-se com as vozes dos pássaros, ásperas e inquietantes.

Faolan não sabia o que o fizera parar; um pequeno som, um vislumbre. Havia algo que não estava bem.

— Uric! — disse ele, calmamente. — Espera! — Faolan desmontou e recuou alguns passos com Ban nos seus calcanhares.

— O que é? — perguntou o jovem.

— Espera aí. Não é preciso desmontares.

Algo; uma sugestão colorida que não podia existir ali. Lá estava, um azul-vivo por baixo de um arbusto junto do carreiro, um azul que já tinha visto. Baixou-se e espreitou. De baixo dos ramos espinhosos de um arbusto, um par de olhos negros, imóveis, fixava-o. A cor azul era de um pequeno vestido, com uma fita delicadamente bordada a fazer de cinto. Lamento.

O coração de Faolan deu um salto. Urrado, estava tudo errado. Não podia estar ali, tão longe da segurança das muralhas da fortaleza do Rei e ainda por cima era quase noite. Que tinha acontecido? Ele estendeu a mão e pegou na boneca por um braço e pôs-se à escuta. Só os gritos das aves e o restolhar da vegetação.

— Uric! — chamou ele. — Desmonta e chega aqui! — Em seguida, com voz suave: — Saraid? Eile? Estás aí? — Silêncio. — Aparece, Saraid! Sou o Faolan. Onde estás? — Era evidente que a boneca não fora deixada cair por acidente nem fora deitada fora, fora colocada ali por mãos amorosas. A sua pose era de vigilância. Lamento estava à espera. A espera de quê? O seu coração parecia um tambor de guerra. Na sua cabeça, as possibilidades atropelavam-se umas às outras.

— O que é? — perguntou Uric a seu lado.

— A boneca de Saraid. Ali, num arbusto. Elas não podem ter estado cá fora. A criança não podia ter deixado isto para trás, é como se fosse uma segunda pele.

— Talvez tenham ido dar um passeio. Talvez ela a tenha deixado cair. — Uric estava a tentar ajudar.

— Eile estava a tomar conta do filho do Rei. Nunca sairia da fortaleza. Saraid! Saraid, faz um som qualquer para te encontrarmos! — Deuses, que fazer? Ficar ali e procurar à medida que a noite se aproximava ou ir à fortaleza, arriscando-se a deixar a criança sozinha? Eile nunca, nunca deixaria a filha ali sozinha.

— Ouvi qualquer coisa — murmurou Uric. — Escuta.

Lá estava. Não era um soluço, exatamente, antes uma criança aterrorizada a respirar, sufocada.

— Saraid — chamou Faolan, pondo-se de pé e avançando por entre a vegetação cuidadosamente apesar do medo porque a criança tinha apenas três anos de idade. Um salvamento barulhento, dramático, só a assustaria ainda mais. — Onde estás, Esquilo?

Foi Ban que, correndo mais à frente, a encontrou, anunciando o seu sucesso com um único latido. Quando Faolan chegou ao local, um pequeno buraco na base de um carvalho, Saraid tinha os braços em redor do cão e o rosto encostado ao seu pêlo.

Faolan agachou-se junto dela com Uric um passo atrás.

— Saraid! Está tudo bem, Esquilo, vamos levar-te para casa — disse ele, estendendo uma mão para tocar na figura enroscada e sentindo-a recuar. Todo o seu corpo tremia. — Saraid, olha para mim. Sou o Faolan. Tenho a Lamento aqui, ela encontrou-me. Olha, querida. Isso mesmo. Vês? Sou eu e o meu amigo Uric. — A pequenina parecia um fantasma: olhos encovados, faces molhadas das lágrimas, sem emitir um único som. — E tenho aqui a Lamento. Ela estava preocupada contigo. — A pequenina estendeu a mão para a boneca. Ban virou a cabeça para lhe lamber o rosto. Um momento mais tarde Saraid estava nos braços de Faolan, agarrada com todas as suas forças, enquanto os soluços lhe percorriam o corpo.

Ele levantou-se com ela nos braços.

— Saraid! — disse ele, calmamente. — Onde está Eile? Onde está a mãe? Ela está aqui fora, no bosque?

Não obteve resposta. O pequeno rosto estava encostado ao seu ombro e as mãos agarradas à sua camisa. Lamento estava entre o corpo dele e o dela.

— Faolan — murmurou Uric —, não tarda é noite. Ela está demasiado assustada para falar.

Era verdade, claro. Faolan levou a criança até ao seu cavalo e pediu a Uric que o ajudasse a montar. Saraid continuava agarrada a ele, com o rosto enterrado no seu ombro. Uric, para surpresa de Faolan, falou-lhe calmamente em voz baixa, explicando-lhe que ela tinha de se sentar como uma amazona a sério para Faolan poder agarrá-la e não a deixar cair e que ela, por sua vez, devia agarrar a Lamento, para que nenhuma delas caísse.

— Queres que vá à frente e que tente descobrir o que aconteceu? — perguntou acanhadamente o jovem.

— Não, fica comigo. Vamos os dois o mais depressa possível e se acreditas em deuses, reza para que isto não seja tão mau como parece.

Entraram pelos portões depois da intimação habitual da sentinela. Assim que chegaram ao pátio inferior viram logo que algo se passava: homens com archotes, afastando-se em todas as direções, sob as ordens de Garth que, ao ver Faolan com Saraid muda e imóvel na sua frente, na sela, se apressou a descê-la depois de um momento de espanto.

— Onde é que ela estava? Onde a encontraste?

— Na floresta, na base do monte. Que aconteceu? Onde está Eile? — perguntou o assassino, sentindo-se gelado.

— Não conseguimos encontrá-la. Derelei também não. Pensávamos que Saraid estava com eles. Ninguém os vê desde manhã.

— Desde manhã? E só agora é que andais à procura?

— Eile estava com os dois. Pensávamos que estavam algures aqui dentro, no jardim ou noutro sítio qualquer. Faolan, preciso de...

— Como é que ninguém os viu? Isto é ridículo... — disse ele, sentindo o pânico na própria voz, tentando respirar normalmente.

— O Rei está neste momento a interrogar as pessoas. Está tudo a ser feito como deve ser, Faolan, podes crer. Mas se encontraste a pequenina fora das muralhas, vamos ter de mudar de táctica. Deuses, que sarilho!

— Saraid não diz nada — disse Faolan. — Não é capaz de nos dizer o que aconteceu. — Sentia a pequena mão agarrada à túnica e a pequena forma a seu lado, encostada à sua perna.

— Ela tem de nos dizer qualquer coisa — disse Garth, olhando para a criança, a qual desviara o olhar, enterrando o rosto na coxa de Faolan. — Será capaz de dizer qualquer coisa a Elda? De qualquer maneira, é melhor levá-la para o nosso alojamento. Temos de lhe arrancar qualquer coisa, ela tem de nos dar uma pista qualquer. Talvez, assim que estiver mais quente, alimentada e com amigos, diga qualquer coisa. Diz a Elda que é urgente.

Faolan anuiu e pegou em Saraid, perguntando a si próprio se seria capaz de a entregar a outra pessoa, mesmo a Elda, em quem confiava por completo. Teria de pedir à mulher de Garth que despisse a criança e procurasse quaisquer nódoas negras, sinais de abuso sexual. A idéia encheu-o de uma raiva surda.

— Volto assim que puder — disse ele, arvorando uma aparência calma que não sentia. Eile, Eile... — Sugiro que mandes os homens fazer uma busca na base do monte antes que a noite desça. Se Eile e Derelei estiverem no interior da casa ou no jardim, já foram avistados a esta hora. Uric, o nosso assunto tem de esperar. Eu não me esqueço.

Faolan nunca vira Bridei tão pálido, ou tão velho. O que estava a acontecer parecia ter sugado qualquer coisa ao Rei; era evidente que desenvolvia uma grande luta interior para manter a calma e a compostura. Enquanto interrogava cada membro do pessoal, no sentido de tentar saber se algum deles tinha visto Saraid, Derelei ou Eile, tinha Aniel a seu lado. Faolan prestou-lhe contas, esforçando-se por manter a voz e a expressão do rosto controladas.

— Não creio que Saraid tenha sido molestada — disse ele no fim. — Não sei o que lhe aconteceu, mas está demasiado assustada para dizer seja o que for, mesmo a mim. Elda está a ver se ela tem alguns ferimentos e depois vai tentar arrancar-lhe qualquer coisa.

— Precisamos de saber se Eile e o meu filho saíram da fortaleza; se foram dar um passeio ou se foram levados por alguém. Raptados. Não podes interrogar tu próprio a criança?

— Já tentei, Bridei. Saraid está tão fechada como uma concha, parece decidida a não dizer nada.

— Tenta outra vez. — O tom de Bridei era incaracteristicamente áspero. — Não consigo perceber como isto aconteceu. Uma falha destas na segurança, no coração de Monte Branco, é impensável. Tu acreditas que eles saíram da fortaleza, não acreditas? Sinto-o na tua voz.

— Eile nunca deixaria a filha sozinha na floresta, nunca permitiria que Saraid saísse daqui sem ela. Se Saraid saiu, Eile e Derelei saíram com ela.

— Tinham de passar pelos portões. Nenhum dos homens de serviço os viu.

— É verdade. E Eile sabe, como toda a gente, que Derelei não sai de Monte Branco sem uma escolta. Passa-se aqui algo de estranho, Bridei. Temos de fazer uma busca na floresta. As pessoas não desaparecem assim, sem mais nem menos, no interior das muralhas de um lugar como este, especialmente uma criança como Derelei. — Faolan não deu voz a uma exceção óbvia na sua teoria, e não daria: uma vez morta, uma criança não chorava para comer, para beber ou quando estava cansada. Bridei já estava suficientemente preocupado. — Se não te importas, vou pôr uns homens à procura deles lá fora.

— É quase noite. Não vale a pena ir para lá da base do monte antes de amanhecer, podemos não dar com eles. Garth já mandou alguns à aldeia, vão vasculhar as casas todas. Mas sim, organiza uma busca em redor do monte e leva alguns cães. Faolan... — disse Bridei, hesitando.

— Sim? — Faolan mal ouvia o monarca, a sua mente já estava concentrada na busca, como distribuir homens e cães, quais os lugares onde uma criança se esconderia, quais os caminhos que um homem, ou vários homens, tomariam se quisessem raptar uma mulher.

— Vais ouvir algum falatório — disse Aniel com as feições mais solenes ainda do que de costume. — Teorias sobre o que aconteceu e porquê. Conversa fiada, mas as pessoas tendem a fazer acusações em ocasiões como esta para encontrar um culpado.

— Que queres dizer?

— Eile é gael, tinha a confiança do Rei. É inevitável que as pessoas tirem conclusões precipitadas, que isto foi um rapto planeado por descontentes de Dalriada ou por parentes poderosos de Gabhran no teu próprio país. Há quem diga que ela foi posta aqui para fazer precisamente isto: ganhar a confiança do Rei e da Rainha e levar-lhes depois o filho como refém. Os nossos inimigos teriam muito a ganhar com uma conspiração do gênero. Para alguns é perfeitamente plausível.

Faolan cerrou os punhos, furioso.

— Não me estás a dizer que acreditas nessa imundície?

— Não, Faolan — respondeu Aniel com ar cansado. — Conheço a rapariga e conheço-te a ti. Se Eile tem a confiança do Rei é porque a merece, mas há pessoas que olham para ela e só vêem o inimigo. Ainda há pouco andávamos às turras com Dalriada. Há muitas pessoas que perderam os pais e os irmãos contra os Gaels.

— Tens de estar ao corrente — disse Bridei — se vais assumir o controlo das buscas, em parte ou na totalidade. Dovran já foi à cara de um tipo por fazer uma observação acerca de Eile. Temos de manter a calma se queremos encontrá-los. — A voz do Rei tremeu ao pronunciar as últimas palavras.

— Peço desculpa, meu senhor — disse Faolan. — Garth e eu vamos tratar de tudo. Saraid estava mesmo na base do monte. Com sorte encontramos Eile e Derelei num instante.

— Eu quero ir contigo — disse Bridei. — Quero encontrar o meu filho. Ele só tem dois anos e lá fora está frio. Aniel e Tharan dizem que não devo ir, é possível que tudo isto tenha sido planeado para me afastar da proteção de Monte Branco durante a noite, separando-me da minha guarda pessoal. Uma tentativa de assassinato. Dovran fica aqui conosco de serviço. Faz o que puderes, tu e Garth e quero que saibas que confio na tua coragem e experiência. Lamento que isto te esteja a afetar pessoalmente por causa de Eile.

Faolan anuiu, girou nos calcanhares e afastou-se. Quanto mais depressa se juntasse a Garth, mais depressa poriam os homens e os cães fora das muralhas, mais depressa encontrariam Derelei antes de ele morrer de frio e mais depressa encontrariam Eile antes... antes que acontecesse algo que lhe roubasse a felicidade e a confiança reencontradas, antes que alguma coisa a mergulhasse de novo no pesadelo de Dalach.

Pouco antes do amanhecer, Faolan e Garth pararam as buscas e mandaram os homens descansar. Quase todo o pessoal masculino da Monte Branco estivera envolvido nas buscas. Faolan vira os filhos de Talorgen, Uric totalmente concentrado e Bedo fazendo os possíveis apesar do braço ao peito. A sua demanda teria de esperar. Até o Rei Keother se lhes juntara, assistido pelos seus próprios guardas, perfeitamente visível no meio das silhuetas mais escuras e mais baixas dos homens de Fortriu devido aos seus cabelos louros e à sua estatura impressionante. Os cães tinham apanhado um rasto uma ou duas vezes e a busca tomara uma nova dimensão, mas tinham-no perdido.

A cada momento que passava, Faolan sentia o coração mais apertado, um nó cada vez maior no estômago. Tentava não a imaginar em perigo, ferida, cheia de frio e de medo. Para fazer o seu trabalho como devia ser, tinha de banir por completo os seus próprios sentimentos. Os homens teriam que dormir um pouco, ou não poderiam continuar a busca durante o dia. Faolan pôs-se de acordo com Garth e deu a ordem, apesar da sua vontade de continuar.

Regressaram todos à fortaleza e os homens dispersaram. Só ficaram alguns de guarda no alto das muralhas e no pátio.

— Vou fazer o meu relatório ao Rei — disse Faolan. — Não vou perturbar Elda a esta hora, mas se não te importas, antes de te deitares, vê se Saraid está bem e a dormir. Se ela estiver acordada e chamar por mim, chama-me, por favor.

— Claro. — Garth começava a mostrar sinais de exaustão, apesar de ser um homem forte e robusto. — Recomeçamos assim que houver luz!

— Os homens têm de comer. Quando acabarem, falamos com eles no pátio. A busca tem de ser alargada assim que for dia. Tenho um plano.

— Ótimo, estás melhor do que eu; a minha cabeça está incapaz de raciocinar. Vê se dormes um pouco, Faolan. Ninguém consegue sem dormir.

Faolan percebeu, ao entrar nos aposentos reais, que ninguém estava à espera que ele anunciasse que a busca tivera sucesso. Bridei estava sentado com a cabeça entre as mãos ao lado de Tuala, mais calma do que o marido, mas com um olhar no qual não havia tristeza, medo ou raiva, antes as três coisas, uma expressão de determinação implacável que o fez parar. Aniel, com os cabelos grisalhos desgrenhados e o seu traje de conselheiro, estava junto da lareira, calmo e tranqüilizador.

Em cima da pequena mesa estava um frasco, umas taças e um prato com comida, tudo intacto.

Faolan passara por Dovran no corredor. Os dois homens tinham olhado um para o outro com expressões de angústia, compreensão e um pedido de desculpas mútuo.

— Quero participar nas buscas — dissera o guerreiro. — De madrugada, quando saírem outra vez, também quero ir.

— Alguém tem de guardar o Rei.

— Garth pode ficar. Preciso de ir. Tenho de a encontrar.

— A decisão não me pertence — dissera-lhe Faolan, engolindo a primeira reação. — Se tens energias para gastar, põe-nas ao serviço do planejamento. Neste momento podem já estar longe. Como é que cobrimos o território com os recursos que temos? Trata disso. Não interessa quem os encontra, o que é preciso é encontrá-los antes que seja demasiado tarde.

A atmosfera nos aposentos reais era tensa. Faolan apresentou o seu relatório ao Rei e pediu desculpa por não ter feito melhor. Sentia-se estranho. Não era apenas a dor sempre presente na perna, era também uma certa falta de clareza, um desligamento, como se a mente não pertencesse ao corpo. Indistintamente, Faolan sabia que Garth tinha razão. Precisava de descansar. Mas quem podia descansar numa ocasião como aquela?

— Obrigado — disse Bridei. — Vai descansar um pouco. Falta pouco para o nascer do Sol.

— Antes de ires, Faolan — disse Tuala, ajoelhada no chão ao lado do marido, com Ban a seu lado — queremos dizer-te uma coisa. Fola! Entra.

A mulher sábia saiu do quarto interior. De todos era a que parecia menos cansada. Os seus cabelos prateados estavam impecavelmente apanhados atrás e as suas feições estavam serenas, apesar de os olhos escuros parecerem um pouco perturbados.

— Anfreda está agitada — disse ela.

— Ainda bem — disse Tuala. — É melhor ela comer antes de... Faolan, queremos discutir contigo um assunto que só deve ser conhecido de muito pouca gente. Os que estão aqui presentes, juntamente com Tharan e Dorica, já sabem. Vamos também dizer a Garth, a Elda e a Dovran. Faolan, eu... eu tenho um meio de conseguir chegar ao meu filho. Acho que é possível. Não estou a falar de procurar na água, de tentar vê-lo num recipiente, ou num espelho. Precisamos de mais do que isso. Derelei percebe muito de magia. Tanto, talvez, como Broichan, mas apenas em bruto, se assim se pode dizer. Falta-lhe algum controlo para poder canalizar o que sabe. Derelei é apenas uma criança. Praticamente ainda não sabe falar e tem o físico de um rapaz de dois anos. É um mago em formação, mas ao mesmo tempo é uma criança vulnerável, com poucos conhecimentos do mundo e dos seus perigos. Tenho de o trazer de volta rapidamente e só há uma maneira de o fazer, o que implica... ir embora.

— Para onde? — perguntou Faolan, começando a aperceber-se da verdade apesar do cansaço.

— Mudar — disse Tuala. — Assumir outra forma. Não acredito que o nosso filho possa ser encontrado através de uma busca normal, por mais persistentes e corajosos que os teus homens sejam. As suas capacidades mágicas tornam-no difícil de seguir. Eu sei que o que pretendo fazer é perigoso, mas é impensável eu arriscar a vida de Derelei só porque me falta a coragem para fazer isto.

Bridei não dizia nada. Faolan viu a relutância do Rei na posição dos seus ombros e nas mãos enclavinhadas uma na outra. O seu coração chorou por ele. Era uma decisão terrível. O custo do resgate — do possível resgate — do seu filho podia ser a morte da sua mulher, ou pior ainda. A transformação que Tuala estava a sugerir era extremamente perigosa.

— Não será preciso dizer — acrescentou Aniel — que isto deve permanecer secreto. Todos nós temos consciência de que atrair atenções para as capacidades especiais da Rainha pode ter graves conseqüências. Dorica conhece uma mulher na aldeia que pode assumir os deveres de ama-de-leite para a senhora Anfreda e vai buscá-la logo de manhã. Se lhe oferecerem incentivos suficientes, a mulher pode ser convencida a aderir à história oficial, que vai dizer que a Rainha Tuala está tão angustiada com o desaparecimento do seu filho que não consegue amamentar a sua filha.

— Tenciono ficar nos aposentos reais para a orientar — disse Fola. — Também vamos dizer a verdade à ama de mais confiança de Anfreda. A doença de Tuala servirá de desculpa para manter as outras afastadas. Um dos três, tu, Garth ou Dovran, estará sempre de guarda e todos nós manteremos a boca fechada até a Rainha regressar — acrescentou a mulher sábia, confiante.

— Percebo. — Faolan olhou para Tuala, algo admirado. — A tua coragem impressiona-me, minha senhora — disse ele. — Desejo-te sucesso na tua missão e um bom regresso. Entretanto, continuarei com as buscas. Quando partes?

Tuala fixou os seus grandes e misteriosos olhos nele.

— Depois de amamentar Anfreda uma última vez. Parto ao nascer do Sol. Espero encontrar o meu filho e espero encontrar Eile por ti, Faolan. Ela é uma rapariga muito corajosa e profundamente leal. Ela e Derelei devem estar juntos, certamente. — Ao pronunciar o nome do filho, a voz de Tuala faltou-lhe.

— Vai descansar, amigo — disse Bridei, levantando o olhar. A dor no seu rosto deixou Faolan sem palavras. — Sabemos que partilhas os nossos medos. Não estou à espera que procures consolo junto dos deuses. Mas fica a saber que estás nas minhas orações, tal como Eile. Que Aquela que Brilha a livre de agravos.

Faolan não foi para os alojamentos dos homens, foi para o quarto do cobertor verde. Fechou a porta e encostou-se a ela até os seus olhos se acostumarem à obscuridade. Pela janela entrava uma réstia de luz. Archotes no jardim? Ou seria a luz da alvorada? Que assim fosse porque tinha de sair, tinha de a procurar. Como podia ficar ali a perder tempo quando ela tinha desaparecido? E Derelei. A segurança da criança sempre estivera a seu cargo, desde a sua chegada ao mundo. Era seu dever escalar o serviço dos guardas do Rei, velar pela segurança da pessoa do monarca e da sua família. O fato de estar ausente da coroa, de ter ido em missão do Rei, não alterava nada. Se havia perigo, devia tê-lo visto. Se havia uma ameaça, devia ter montado guarda. Falhara com Bridei e Tuala e falhara com Eile.

Faolan deitou-se na cama a olhar para as sombras no colmo. Se forte, desejou-lhe ele. Aguenta-te. Em breve será novamente dia e eu vou encontrar-te. Silenciosamente, no seu coração, Faolan falou-lhe com toda a ternura, com todo o afeto, com palavras que uma estação ou duas antes não teriam feito parte do seu vocabulário. Faolan não derramou qualquer lágrima porque seria sinal de derrota e se queria ser forte tinha de o mostrar a si próprio. Não importava que doesse tanto como uma facada, não importava que sentisse o coração destroçado e a desfazer-se de medo por ela e pela criança. Tinha de ficar imóvel, tinha de descansar, ordens do Rei. Ao primeiro sinal de luz levantar-se-ia e organizaria os homens uma vez mais. Ao pôr do Sol Derelei estaria nos braços do pai e Eile estaria salva. Para lhe dar esperança tinha de ter esperança.

Assim que o céu começou a empalidecer, Tuala sentou-se com o bebê ao colo, respirando lentamente, acalmando-se, cantando uma canção em surdina, guardando na memória a pele cor de marfim da filha, as suas longas pestanas escuras, os seus espantosos olhos azul-claros e a sua doce boca em botão. Anfreda tinha fome, mamou, mamou com uma mão minúscula apoiada na curva do seio da mãe.

Aniel fora descansar e Fola estava a dormir no quarto interior. No lado de fora dos aposentos, Dovran continuava de guarda.

Tuala olhou para o marido, invulgarmente calado. A Rainha via-lhe a angústia nos belos olhos azuis. Bridei não queria que ela fosse, era evidente, não queria que ela assumisse o perigo da mudança, mas não lho diria naquele momento. A decisão era sua, não dele. No entanto, via o medo no seu rosto, por ela, pelas crianças. Bridei estava sempre à espera da vingança do deus negro; transportaria sempre consigo o fardo por baixo da máscara tranqüilizadora da dignidade real.

— Anfreda fica bem — disse Tuala enquanto cada movimento do pequeno corpo, cada pequena fungadela, cada movimento dos olhos visionários da filha lhe dizia Adeus, talvez para sempre. — Vai ter muita gente a cuidar dela. Desde que esteja alimentada, quente e seca, e as pessoas não se esqueçam de pegar nela e de lhe falar, sente-se perfeitamente feliz. Não precisam de mais nada nesta idade. — Em seguida, após uma ligeira pausa: — Bridei?

— Hum?

— Confia em mim.

O Rei baixou a cabeça.

— Sempre. Sabes que confio sempre.

— Não te esqueças, então. Aconteça o que acontecer.

— Podes dizer-me onde vais? Em que direção, pelo menos? Tuala abanou a cabeça.

— Só saberei quando me transformar. Penso que encontrarei o caminho pelo faro. Pelo instinto é difícil porque entre nós, humanos, é fraco. Mas não acredito nessa história do rapto e de pedirem resgate por ele. O meu coração diz-me que o nosso filho saiu daqui de livre vontade, que partiu em missão.

— Aos dois anos de idade?

— Não estamos a falar de uma simples criança de dois anos, lembra-te. Estamos a falar de Derelei. Tenho a certeza que ele foi à procura de Broichan.

Eile acordou cheia de dores. Dores no corpo todo, nas pernas, nos braços, no pescoço; tinha a cabeça em fogo, as têmporas latejavam-lhe; tinha a garganta seca. A jovem passou a língua pelos lábios e tentou engolir. Frio. Estava muito frio, como se fosse Inverno. Onde estava a capa? E o xale? Por que estava tão escuro? Onde estava... onde estava... Eile perdeu novamente a consciência.

Tuala obrigou o marido a ficar com Dovran no fundo da escada. Fola, que gostaria de ter a seu lado naquele momento, ficara dentro de casa com Anfreda. Fora-lhe difícil deitar a filha no berço; fora-lhe difícil afastar o pensamento das coisas que podiam correr mal e fixá-lo em Aquela que Brilha com uma prece: Aconteça o que acontecer, protege Anfreda. Um dedo na face pálida e aveludada; os lábios no botão de rosa da boca e uma promessa: Eu volto já, pequerrucha.

No pequeno pátio superior onde Broichan costumava lançar os seus augúrios para o bem ou para o mal, Tuala, sozinha sob um céu violeta, cinzento e rosa, fechou os olhos, abriu os braços e pensou intensamente na imagem que queria personificar. O feitiço não tinha palavras, saía-lhe da alma, uma dádiva dos Boa Gente, o povo da sua mãe, do qual descendia. Não precisara de aprender aquilo, fazia parte dela. Tuala girou sobre si mesma uma, duas, três vezes, uma figura pálida, esbelta, com o seu vestido cinzento, os cabelos negros entrançados caindo-lhe pelas costas abaixo, mexendo silenciosamente os pés metidos nos chinelos de pele de carneiro.

A luz mudou; um pássaro voou por cima, saudando hesitantemente a madrugada. A superfície de pedra do pátio superior estava nua e a mesa de pedra estava vazia. Nenhuma mulher estava presente para receber o novo dia, apenas uma pequena sombra na base da muralha, um par de olhos vivos, uma longa cauda. Um movimento rápido, um salto e estava no alto do baluarte. Num abrir e fechar de olhos, a criatura desapareceu por cima da muralha em direção à escuridão da floresta.

Tremia tanto que não conseguia dormir, se se podia chamar dormir àquela inconsciência profunda e escura à qual se conseguira arrancar mais uma vez. Onde estava? Eile espreguiçou-se cuidadosamente, primeiro um braço e depois o outro — havia ali qualquer coisa, pedras, tinha magoado a mão... A jovem tentou mexer-se e a dor percorreu-lhe o ombro. Deuses, que dor tão grande! O joelho não dobrava. Estava escuro, demasiado escuro. Por que estava ainda tão escuro, como se a noite nunca mais acabasse?

Eile pôs-se de pé e as pernas quase não lhe agüentaram o peso do corpo; estendeu um braço numa direção e depois noutra, virou-se, tateou e sentiu um grande choque. Onde estava? Que paredes eram aquelas, tão perto, fechando-a num espaço tão pequeno?

— Saraid? — murmurou Eile com uma voz áspera e seca, exigindo-lhe um esforço enorme. — Saraid! Onde estás? — Se pudesse, gritava, mas havia algo de errado com a sua voz. O seu grito saiu como um murmúrio, o seu grito desesperado como um sussurro. — Socorro! — gritou ela, sentindo a palavra encolher antes sequer de lhe sair da boca. — Saraid! — choramingou, acocorando-se encostada à parede, abraçando o corpo trêmulo. — Coragem, Saraid! Vai correr tudo bem. Sê forte, Esquilo. A mãe já vai ter contigo.

Tuala tinha-se ido embora. Dissera-lhe que aceitaria a sua decisão e era sempre fiel à sua palavra. Com a filha nos braços enquanto Dorica mostrava à ama-de-leite a alcova onde ela e a criada iriam dormir, as instalações sanitárias e os sítios onde a roupa lavada, a água fresca e os cobertores podiam ser encontrados, Bridei dizia para si próprio que seria maravilhoso não ter de se mexer antes de Tuala voltar novamente para casa. Se pudesse ficar ali àquela janela a olhar para o céu, embalando aquele embrulho quente chamado Anfreda, talvez fosse possível suportar o tempo de espera sem perder o ânimo.

A ama-de-leite chamava-se Tresna e era casada com um ferreiro. Aparentemente tinha leite suficiente para amamentar o seu próprio bebê, uma rapariga robusta de faces cor-de-rosa e Anfreda. Quanto ao silêncio a propósito da ausência da Rainha, Dorica resolvera o assunto da maneira habitual, com discrição e eficiência. Seriam feitos certos melhoramentos na forja; haveria um lugar na corte para uma filha mais velha que tinha naquele momento treze anos, um bom lugar, não como criada de cozinha mas na sala de costura ou, se tivesse aptidões, como ama. Tresna era calma e sossegada; tirou Anfreda dos braços de Bridei e levou-a, fazendo pequenos sons tranqüilizadores.

Ficou sem nada para fazer, ninguém para embalar. Bridei baixou-se para fazer uma festa a Ban. Em seguida chamou Aniel e Tharan e enquanto os homens que participavam na busca se reuniam no pátio depois de terem comido qualquer coisa, o Rei e os seus conselheiros instalavam-se para mais alguns interrogatórios.

Tinham seguido até ali determinadas prioridades. Os primeiros entrevistados, pouco depois de a ausência de Derelei ter sido descoberta, tinham sido o que mais provavelmente o tinham visto, ou a Eile: os guarda-costas, Elda, as amas reais, Fola, Wid, Garvan e o seu aprendiz. Depois tinham interrogado os guardas que estavam de serviço no pátio exterior e no caminho-de-ronda, que viam quem chegava e partia. Então já estava escuro, Faolan tinha regressado e as buscas tinham passado para o exterior das muralhas. No entanto, Aniel tinha continuado a falar com os homens e as mulheres da cozinha e com as pessoas que tinham filhos que poderiam ter brincado com Saraid ou com Derelei. Entretanto, Faolan interrogara os guardas de serviço aos portões principais. Ninguém tinha visto nada.

Naquela manhã era preciso começar a interrogar os hóspedes de Monte Branco, os que, por razões próprias, tinham ficado mais tempo do que o inicialmente previsto, o que era desagradável porque eram hóspedes com um determinado estatuto, pessoas que se achavam acima de qualquer suspeita.

No entanto, Aniel e Tharan eram peritos em diplomacia e tinham pedido a ajuda de Wid. O velho sábio freqüentara muito os salões dos poderosos e passara muita da sua experiência a Bridei e depois a Tuala.

Finalmente chegaram a Breda das Ilhas Pequenas e às suas restantes acompanhantes. Dorica informara-os que Breda, a princípio, fora amigável com Eile, mas que mais tarde as coisas tinham arrefecido entre as duas. Na verdade, ouvira uma ou duas vezes Breda a tecer comentários cortantes sobre a intrusa que se insinuara rapidamente junto da Rainha. Dorica interpretara-os como conversa tola; era sabido que Breda não tinha a maturidade da irmã.

Não foi possível ter Keother presente durante o interrogatório da sua prima. O Rei das Ilhas Pequenas surpreendera toda a gente ao oferecer mais uma vez os seus serviços para os trabalhos de busca, complicando as coisas visto que o convidado real de Fortriu não podia aventurar-se fora das muralhas sem guardas pessoais. Seria impensável o rei vassalo de Bridei ter um acidente, ou ser atacado enquanto hóspede da Monte Branco. As implicações políticas seriam enormes. No entanto, a prontidão de Keother fora tal que não houvera nada a fazer. O monarca seguira as ordens de Faolan com os seus dois guardas e vários dos seus cortesãos, como qualquer outro.

Mandaram entrar Breda. A princesa das Ilhas Pequenas estava muito bem-comportada naquela manhã; fez uma vênia ao Rei e inclinou a cabeça na direção dos outros dois homens. Fixando o Rei de Fortriu, disse:

— Lamento tanto, meu senhor. O teu filho... Deves estar muito preocupado. Se eu puder fazer qualquer coisa...

— Obrigado — disse Bridei. — Gostaríamos de te fazer algumas perguntas e depois falar com as tuas acompanhantes. Uma formalidade, como compreenderás; precisamos de falar com toda a gente que esteve ontem em Monte Branco. Como já deves saber, sem dúvida, não sabemos exatamente a que horas Derelei e Eile desapareceram, ou como, o que torna as buscas muito mais difíceis.

— Oh. — Breda esperou com as mãos graciosamente cruzadas no colo. Como reconhecimento pelo seu estatuto, tinha-lhe sido dado um banco acolchoado para se sentar.

— Como passaste o dia de ontem, senhora Breda? — perguntou-lhe polidamente Tharan.

— O dia de ontem? Não queres dizer... Que estás a dizer? — Os seus olhos azuis esbugalharam-se de espanto.

— Precisamos de saber quem viu Derelei ou Eile e a filha e quando — disse Aniel. — E onde estavam para que possamos excluir determinadas possibilidades.

— Determinadas possi... Não estás a querer dizer... Oh, bem, seja como for é fácil. De manhã estive nos meus aposentos. As minhas acompanhantes levaram-me o pequeno-almoço. Mais tarde saí e sentei-me no jardim. Estive lá muito tempo. Depois, fui jantar. Então já toda a gente andava a correr de um lado para o outro com archotes.

— Que parte do jardim? — perguntou Aniel, semicerrando os olhos.

— A parte principal, claro. Não posso entrar no jardim especial da Rainha Tuala — disse ela, olhando para Bridei. — Sentei-me num banco, perto de um arbusto de rosmaninho. Estive lá a tarde toda.

— Sempre sentada? — perguntou Wid, fixando-a com uma expressão de incredulidade.

Breda corou.

— Tinha o meu bordado comigo. Para dizer a verdade, farto-me das minhas acompanhantes. Estão sempre a rir e a falar.

— Tens quem possa confirmar a tua presença lá?

— Se estás a acusar-me de qualquer coisa, por que não vais direito ao assunto? — A voz de Breda subiu um pouco. A jovem virou-se para Bridei. — Meu senhor, isto é...

— Responde à pergunta, por favor — disse calmamente Bridei. A rapariga parecia invulgarmente defensiva; era uma criatura estranha, ingênua e inteligente ao mesmo tempo. Não sabia o que pensar dela.

— É evidente que as pessoas podem confirmar que estive lá. As minhas damas-de-companhia podem confirmar a minha história. E Dovran estava lá, no jardim. Não sei se ele me viu; ele é muito concentrado quando está de serviço, mas eu vi-o.

— Senhora Breda — disse Aniel — qual é a tua teoria sobre este desaparecimento? Que achas que aconteceu?

Breda encolheu os ombros.

— Não faço idéia. É tudo muito triste. Aquela rapariga amorosa; odeio pensar que lhe aconteceu qualquer coisa. Não acredito que Eile possa ser tão má. Eu até gostava dela.

— Acreditas nessa história que as pessoas andam a contar, não acreditas? — A voz de Wid era calma. — Um rapto levado a cabo por gente de Dalriada?

— Ela é gael, não é? E só chegou aqui recentemente. Ninguém sabia nada dela.

— Senhora Breda — disse Tharan — não sei se percebi bem. Será que ainda não sabes que a pequena Saraid foi encontrada sã e salva ontem à noite na floresta e que já está em Monte Branco?

Pelo rosto de Breda passou uma expressão estranhíssima, demasiado complicada para poder ser interpretada.

— Oh — disse ela, olhando para o chão, em seguida para cima e depois para a porta, como se quisesse fugir. — A sério? Bem, não é maravilhoso? Aquela coisinha tão amorosa. Fico muito contente. E ela não disse o que aconteceu? Onde estão os outros?

— Até agora, não — disse Bridei. — Ela está demasiado perturbada para falar.

— Oh. Que pena. Onde é que ela está? Quem é que está a tomar conta dela?

Uma pausa.

— Ela está a ser bem tratada — disse Wid, finalmente. — Não precisamos mais de ti, minha senhora.

— Por agora — disse Tharan.

— Por agora? Queres dizer que vou ter de passar por tudo isto outra vez?

— Desapareceu uma criança — disse-lhe Aniel em tom monótono. — E uma jovem. Uma pequena inconveniência é um preço pequeno a pagar se os pudermos descobrir mais rapidamente.

Breda levantou-se com as mãos unidas na sua frente.

— Só uma coisa — disse ela em voz baixa, uma voz de criança. Os quatro homens olharam para ela. Subitamente, o silêncio na sala do conselho tornou-se tenso.

— Sim? — perguntou Tharan.

— Eu não queria dizer... Quero dizer, essa conversa do rapto, da traição, é tão desagradável. E posso ter percebido mal, confundido o que vi...

— Seja o que for, conta-nos — disse Bridei, pondo-se de pé, muito pálido

— Eu... eu vi-a. Vi-os. Foi quando estava lá fora, quando ia a caminho do jardim. Eile estava vestida com a roupa de sair e levava as duas crianças, Saraid e o pequeno... e o teu filho, meu senhor. Iam a sair pelo portão, o pequeno portão ao lado do portão principal.

Os quatro homens olharam para ela.

— E esperaste até agora para nos dizer? — exclamou Aniel, mestre em compostura, incapaz de esconder a fúria.

— Pareceu-me... pareceu-me tão pouco usual, tão improvável, que perguntei a mim própria se não me teria enganado. — As feições de Breda eram a imagem perfeita da confusão adolescente. — Pensei que fosse outra pessoa qualquer. Além disso, se fosse Eile, os guardas não a teriam autorizado a sair se não tivesse autorização, pois não? Supus que ela ia dar um passeio com as crianças. Toda a gente sabe que a Rainha Tuala confia plenamente naquela pequena celta. Confiança absoluta.

Bridei respirou fundo e sentou-se.

— Senta-te, Breda — disse ele. — Lamento muito que não tenhas dito nada a Dovran, a Garth ou a qualquer membro da minha casa, permitindo-nos trazer de volta o meu filho, Eile e a filha dela. Toda a gente sabe que Derelei não sai da fortaleza sem uma escolta armada. Toda a gente. Não compreendo por que razão não disseste a ninguém.

— Ninguém me perguntou — disse Breda com um fio de voz, encolhendo os ombros.

— Conta lá tudo outra vez, por favor. Precisamos de saber a hora e a direção em que foram.

— Eu quero ajudar o mais possível. Foi por volta do meio-dia, penso. A direção? É difícil dizer, mas tenho quase a certeza que foram na direção da estrada que vai para oeste, a que vai dar ao Lago da Serpente. Peço desculpa, meu senhor, não queria meter Eile em sarilhos... — Uma lágrima começou a correr pela face sem mácula da jovem.

— O que é que as tuas acompanhantes sabem do assunto? — perguntou Wid.

— Nada, já disse, pensei que me tinha enganado e não lhes disse nada. Sabes como as raparigas passam a vida a falar e a inventar situações.

— Muito bem. Vamos falar com essas raparigas agora, uma de cada vez. Podes ir, senhora Breda. Pensa nas conseqüências de não teres dito nada a ninguém. Pode morrer alguém por causa da tua decisão.

— Mas eu disse — disse Breda com os olhos muito abertos. — Disse-vos tudo o que sei.

As acompanhantes de Breda disseram todas as mesma coisa. Breda passara a manhã nos seus aposentos e a tarde no jardim. Elas tinham ficado, na sua maior parte, dentro de casa a coser, a jogar ou a tocar harpa. Nenhuma delas vira Eile, Saraid ou Derelei. Aniel mandou-as embora.

— Não acredito nisto — disse Bridei, trêmulo. — Breda deve ser débil mental. Como é possível ela não perceber a importância? Posso compreender a sua relutância em falar imediatamente, não compreender por que razão era vital. Mas assim que Derelei foi dado como desaparecido, qualquer pessoa teria falado imediatamente, não?

— A última rapariga estava quase a chorar — comentou Aniel. — Todas elas estavam muito nervosas, nervosas de mais, dada a situação.

Wid esboçou um sorriso frio.

— Quatro raparigas de catorze anos a serem interrogadas por quatro homens, um deles Rei, é o suficiente para as levar às lágrimas ou à provocação. Estão todas longe de casa e esta questão é perturbadora.

— Infelizmente — disse Aniel — isto chegou demasiado tarde para nos servir de ajuda, apesar de dar credibilidade à história pouco provável que corre pela casa, que Eile foi deliberadamente colocada aqui para levar a cabo um rapto. Na verdade, parece que fez um excelente trabalho.

— Não acredito — disse Bridei. — E Tuala também não, se estivesse aqui.

— Odeio dizer isto — disse Tharan sobriamente —, mas a tua reação pode meramente refletir o fato de que, quem quer que esteja por trás disto, escolheu o agente com muita inteligência. E agora? Que fazemos?

— Se houver algum homem livre, mandem-no dar esta informação nova a Faolan. Ele não vai recebê-la bem, mas tem de saber. Quanto a nós, penso que não podemos fazer mais nada até o grupo de busca regressar.

— A nossa única opção é pedir aos deuses um fim feliz para isto e esperar o regresso de Faolan e dos homens — disse Aniel. — E o da nossa emissária que partiu esta manhã. Bridei, se precisares de companhia, estamos aqui. Penso que vai ser um longo dia.

A escuridão no sítio pequeno e profundo onde Eile estava encurralada tornou-se ligeiramente menor. Não era a luz do dia, a não ser que o Sol estivesse muito, muito alto. A jovem tinha desmaiado e acordado mais vezes do que se lembrava. Cada vez que acordava a sua prisão parecia-lhe menor e o ar mais frio. Cada vez que abria os olhos, cada vez que o pesadelo do agora e aqui regressava, o corpo doía-lhe mais e a força de vontade era cada vez menor.

Eile tentou lembrar-se do que acontecera, onde estava e como tinha ido ali parar; lembrava-se de se ter levantado, de se ter vestido, de ter posto o vestido cor-de-rosa em Saraid e o azul em Lamento. Faolan... Faolan dormira no seu quarto e saíra quando ela acordara. Iam... Tinham de... Há quanto tempo estaria ali? Por que razão não ia procurá-la ali? Por que razão não ia ninguém procurá-la ali?

Calma; tinha de se manter calma. Respirar fundo. Pensar. Eile esfregou os braços e as pernas e dobrou-os, tentando aquecer-se. Derelei.

Estava com as duas crianças, Saraid e Derelei, a explorar, a procurar pequenos tesouros. Primeiro no jardim de cima; cumprimentara Dovran, sentindo-se embaraçada depois do que se passara na noite anterior e das palavras de ternura e de promessa de Faolan. Saraid estava feliz, corria mais à frente. Derelei ficara para trás, muito calado. Depois... depois o quê? Depois a escuridão e acordara naquele buraco escuro.

Passara-se muito tempo, pensou ela. Tinha a bexiga cheia e teve de se agachar junto da parede para se aliviar. Estava cheia de sede. Quantas horas se teriam passado? Onde estariam as crianças? Saraid devia estar preocupadíssima... E Derelei? Onde estaria Derelei? Supostamente devia estar a tomar conta dele; a Rainha confiara nela...

Eile tentou examinar o que a rodeava. Em cima um círculo de luz difusa dizia-lhe que estava no fundo de uma chaminé, provavelmente um poço. Misericordiosamente não tinha água, apesar de as paredes terem uma umidade que não era nada tranqüilizadora. Parecia alto, talvez tivesse a altura de três homens, ou talvez mais. Seria dia e a obscuridade causada por uma tampa qualquer? Seria manhã e estaria ali desde o meio-dia do dia anterior? Como era possível deixarem-na ali tanto tempo? Como era possível não a terem encontrado? Se não a tinham procurado ali até então, significava... Não, não ia pensar que estava num sítio desconhecido, um sítio que ninguém podia encontrar. Era evidente que devia estar alguém à sua procura. Faolan, pelo menos, devia andar à procura... e só desistiria quando a encontrasse. Confiança. Esperança. Sem elas nunca teria chegado a Monte Branco, nunca teria começado a libertar-se das sombras que a atormentavam: o pai, a mãe, Dalach... Naquele espaço pequeno e escuro estavam mais perto. Talvez a atormentassem sempre, como um fardo que nunca conseguisse tirar dos ombros. Talvez tivesse sido tola em pensar que poderia ser diferente, que Faolan poderia ajudá-la a escapar do passado.

Eile encostou-se à parede, tentando reter as lágrimas. Chorar era uma perda de energia, tinha de poupar a que lhe restava, tinha de sobreviver. Acontecesse o que acontecesse, ainda tinha Saraid. Mas estava frio, tão frio que lhe doíam os ossos. Não achava que tivesse partido qualquer coisa ao cair, apesar de ter sangue seco no rosto, na têmpora, e algo no ombro que não estava bem. Não lhe devia doer tanto quando se mexia. A jovem perguntou vagamente a si própria quanto tempo agüentaria uma pessoa sem água.

Luta. Era a voz do seu pai; conseguia vê-lo difusamente, encostado à parede oposta, sentado no chão. Não era o jovem Deord com os seus cabelos ruivos e o sorriso calmo, era o Deord mais velho, depois de saído daquele lugar, o homem que quase, quase, se rendera. Tens de lutar. Controla-te. Salva-te.

— Não posso — murmurou ela. — Como? — O poço era demasiado largo para o poder trepar com as pernas encostadas a um lado e as costas ao outro, mesmo que tivesse força para tal. A superfície de pedra era escorregadia e traiçoeira. — Dói-me o ombro e sinto as pernas fracas. Tenho sede e estou cansada. Nem sequer consigo pedir ajuda.

Tu és forte, Filha. Levanta-te. Trepa.

Eile lutou contra a necessidade de se deitar, de chorar, de desistir e pensou nas palavras do pai. Talvez a sua voz fantasmagórica estivesse a dizer a verdade. Sempre fora forte no passado, de fato. Suportara Dalach, protegera Saraid, agira e, no fim, fugira com ela. Só quando Faolan aparecera é que aprendera o que era não ter de transportar o fardo sozinha. E até conseguira salvar Faolan com a sua força. Sem ela ele teria morrido às suas próprias mãos.

A imagem do pai desvanecera-se, mas Eile não tinha dúvidas de que ele a ouvia, que a observava, que lhe desejava sucesso, amava-a, queria que ela vivesse.

— Tenho de tentar — murmurou ela. — Se não o fizer agora, daqui a pouco não serei capaz. Tenho de tentar. Por Saraid. E por mim. Pela minha mãe e pelo meu pai, para lhes mostrar que a história não tem de acabar assim. — Eile pôs-se de pé, ignorando a dor, levantou a saia, cerrou os dentes e começou a trepar.


CAPÍTULO DEZESSETE

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Chegamos de tarde à nova fortaleza do Rei Bridei. Estávamos cansados; é uma longa caminhada desde a margem do lago até ao monte coberto de árvores que abriga a corte de Fortriu. Os acontecimentos dramáticos protagonizados por Colm durante a subida do Grande Vale renovaram a nossa fé na graça de Deus e a esperança na nossa missão, mas os nossos corpos estavam cansados. Ali, pensei, teríamos, pelo menos, a hipótese de dormir numa cama, não numa pocilga.

Quando chegamos aos portões, ouvimos um grito: «Dizei os vossos nomes e ao que vindes!»

Traduzi. Colm anunciou-nos como homens de Deus; pronunciou calmamente o seu nome, mas o poder da voz do nosso chefe é tal que a palavra saiu como o re-pique de um grande sino: Colmcille.

«Deixai cair as armas! Virai-vos, ajoelhai-vos, ponde as mãos no ar e deixai-vos estar quietos até eu dizer!»

Aqueles guerreiros não estavam habituados a lidar com clérigos, era evidente. Talvez devêssemos estar vestidos como druidas. Não conseguia imaginar Broichan, o tal mago poderoso, a submeter-se de boa cara a um tratamento tão abrupto.

Expliquei as ordens aos meus irmãos e ajoelhamos, todos menos Colm.

«Não ouviste o que eu disse, homem? Defoe Ih os, ou levas com uma seta no peito!»

«Esta gente é belicosa», murmurou Lomán quando eu fiz a tradução.

Colm aproximou-se calmamente dos portões. De cima foi-lhe apontada uma seta e eu fui obrigado a desobedecer à ordem para me virar por poder ver. Não havia problema, não estava ninguém a olhar para mim.

«Abre em nome de Deus!», gritou Colm na nossa língua. «Vimos em paz com a luz da fé a guiar-nos! Abre, já te disse!»

Não foram os grandes portões da fortaleza que se abriram. Tal pormenor ficou ligado, mais tarde, às histórias que se contaram sobre a visita de um poderoso chefe cristão a um poderoso Rei pagão. Foi o pequeno portão lateral que se abriu, um portão desenhado para deixar sair e entrar as pessoas sem a necessidade de expor a fortaleza, abrindo os portões principais. Por ele saiu um homem conduzindo um burro. Colm recuou e perante um coro de gritos do guarda, levantamo-nos e entramos. Eu não olhei para cima. Deus foi misericordioso, não permitiu que eu levasse naquele dia com uma seta no coração.

Após uma certa confusão inicial, fomos recebidos cordialmente por um dos principais conselheiros de Bridei, um homem alto chamado Tharan, que eu recordava da minha visita à corte de Drust, o Touro. Também me lembrava de o homem ser hostil a Bridei nos primeiros dias, preferia ver Carnach de Thorn Bond no trono de Fortriu depois da morte do velho Rei. Talvez tivesse feito uma mudança estratégica. No fim de contas estava ali.

Tharan arranjou-nos alojamentos com camas, cobertores e almofadas e pediu desculpa em nome do Rei. Monte Branco estava uma confusão. O filho de Bridei, uma simples criança, desaparecera no dia anterior juntamente com a sua ama celta. Os homens andavam quase todos à sua procura. A Rainha estava indisposta, desolada. Colm disse ao conselheiro de Bridei que refaríamos pelo rapaz. Tharan não pareceu ficar nada impressionado com a oferta. Apesar de a hospitalidade ter melhorado desde a minha última visita, suspeitei que a atitude do pessoal do Rei não seria melhor do que antes.

Agradeci a Tharan em nome de Colm. Sou o único do nosso grupo capaz de falar fluentemente a língua priteni e cabe-me a mim traduzir e agir como intermediário. Recordei-lhe que conhecia pessoalmente o Rei Bridei. Pedi-lhe que arranjasse uma audiência a Colm e disse-lhe que gostaríamos que Broichan estivesse presente. O pedido fora de Colm, que nunca foi adepto de caminhos fáceis, preferindo confrontar-se com as dificuldades como se estivesse perante uma vaga gigantesca. A sua fuga da nossa terra foi a única exceção a esta regra, se bem que não tenha sido fácil.

Tharan disse que apresentaria os nossos pedidos ao Rei e informou-nos das partes da corte que poderíamos visitar. O local estende-se pelo topo do monte, uma construção imponente rodeada de grandes muralhas, impressionantemente fortificada. A vista, sobre as encostas cobertas de pinheiros até ao mar e do outro lado até aos montes do Grande Vale, é maravilhosa. No interior da formidável barreira de pedra há muitos aposentos e muitos locais aprazíveis, entre os quais vários jardins grandes e pequenos. Deram-nos não só sítio para dormir, como uma sala contígua para orações se bem que, evidentemente, ninguém o tenha dito. Lembro-me bem do horror gelado de Broichan ao ver-me celebrar um ritual cristão em Caer Pridne por ocasião da última eleição. Tharan mostrou-nos um pequeno jardim ao lado dos nossos alojamentos onde nos poderemos sentar e gozar o sol. Ele disse que alguém nos traria uns refrescos e água para nos lavarmos. Verto havia uma instalação sanitária, se quiséssemos usá-la. O jantar seria anunciado na devida altura e seria servido no grande salão.

«Nós levamos uma existência frugal», disse Colm depois de eu ter traduzido. «Os nossos dias são passados a rezar», concluiu ele olhando para mim, indicando-me que devia traduzir o comentário a Tharan.

«Obrigado», disse eu ao conselheiro do Rei. «E muita generosidade da vossa parte. A parte as reuniões oficiais com o Rei Bridei e o seu conselheiro espiritual, é provável que nos mantenhamos recolhidos.»

As feições altivas de Tharan suavizaram-se por momentos com um sorriso. «Esqueces-te, irmão Suibne», disse ele, «que tu, pelo menos, já és nosso conhecido e eu não penso que sejas capaz de visitar qualquer corte sem meter um dedo em todas as empadas que vês.»

«Que está ele a dizer?», perguntou Colm.

«Que espera que compareçamos ao jantar, pelo menos», disse-lhe eu. «Desse modo, o Rei Bridei tomará conhecimento da nossa presença e da necessidade de nos conceder uma audiência. Ele sugere que a ementa desta noite é capaz de incluir uma empada.» Ocasionalmente, a minha língua foge-me para a verdade, uma conseqüência inevitável do meu trabalho como tradutor. Se misturo as línguas, acabo por me embriagar com as palavras.

Suibne, monge de Deny

 

Depois da noite passada na floresta à procura infrutiferamente de Derelei, Bedo foi incapaz de esconder da madrasta que o braço lhe estava a doer. Brethana que ficasse em casa de manhã quando os outros voltassem a sair, incluindo o seu irmão. Excepcionalmente, Bedo obedeceu cegamente, apesar de irritado com a restrição. O endireita fora muito claro em relação ao que aconteceria se ele sobrecarregasse o braço partido, mas o pensamento do pequeno Derelei gelando até à morte, ou provavelmente ferido, levava-o a querer ajudar, a fazer qualquer coisa. O bom senso dizia-lhe que já havia muitos homens a procurar, homens capazes; dizia-lhe que a sua contribuição não justificava que arriscasse o seu futuro como provável chefe-de-guerra. O jovem ficou para trás, ganhando um sorriso e palavras de louvor da madrasta.

Seguiu-se outro dia de tédio, um dia que, como todos desde a caçada, lhe parecia infindável e vazio. Bedo nunca fora do gênero intelectual, apesar de ter feito um grande esforço enquanto Ferada o criava, a ele e a Uric. Tivera de ser: a sua irmã não era uma professora fácil. Depois da partida da sua mãe, Ferada entregara-se à tarefa de educadora e professora com toda a sua formidável força. Como resultado, ele e Uric eram competentes nas disciplinas exigidas a um jovem de sangue nobre. No entanto fora um alívio quando o seu pai se casara com Brethana e Ferada fora para Banmerren para iniciar a sua escola experimental de raparigas. Bedo nunca gostara muito de encher a cabeça de história, geografia, astrologia ou línguas; sentia-se melhor em cima de um cavalo ou a lutar com o irmão. Até que o braço lhe sarasse, os dias parecer-lhe-iam sempre infindáveis.

Aquele, porém, era um pouco diferente; tinha uma tarefa para desempenhar. O alfinete que Uric encontrara estava na sua bolsa, bem escondido. Com o irmão nas buscas, cabia-lhe descobrir se a teoria de ambos estava correta sem levantar as suspeitas da presa.

As raparigas gostavam de viajar em grupo, era muito difícil separar uma sem que as outras não reparassem e não fossem atrás dela. Evidentemente, naquele dia a maior parte dos homens estava ausente da corte porque a área de buscas fora alargada, levando-os para longe das encostas arborizadas de Monte Branco, da planície, obrigando-os a subir a encosta, a descer na direção do lago escuro e profundo e subir para sudoeste, para o Grande Vale. A corte estava calma. A chegada dos cristãos criara um pequeno drama, mas Tharan resolvera-o com a sua competência habitual, levando-os para um local retirado. Mais uma coisa para o Rei resolver.

A ausência de tanta gente tornava a demanda de Bedo mais difícil, tornava-o mais visível. A manhã revelara-se inútil; as raparigas passavam a vida a sair e a entrar e estavam sempre juntas. Durante a tarde o jovem andou um pouco pelo jardim, trocando algumas frases com Dovran. Mais tarde encontrou uma ocupação temporária com Garvan e o seu assistente. O pedreiro real estava a retocar algumas das pequenas esculturas decorativas ao longo da parede do pátio, principalmente animenores, gatos, texugos, esquilos, corujas. Com um braço ao peito, Bedo não podia fazer grande coisa, mas havia ocasiões em que dava jeito uma mão adicional para ajudar a consolidar as tábuas do andaime ou alcançar um determinado cinzel. Além do mais, Garvan parecia gostar da companhia.

Breda e as suas acompanhantes passaram duas vezes por eles e Bedo observou-as sem dar demasiado nas vistas. As raparigas mantinham-se juntas como um bando de gansos, com Breda um pouco mais à frente. Não havia hipótese de separar uma. Nenhuma delas era como Cella, que sobressaía pelo bom humor e pela independência, apesar de ser sossegada. Ainda lhe era difícil aceitar a sua morte, pensava constantemente nos seus suaves cabelos castanhos e no seu sorriso tímido. Não era justo ela ter morrido daquela maneira e aquela princesa sem coração continuar a passear como se o mundo lhe devesse vassalagem. Aquelas raparigas pareciam sempre prontas a prestar-lha, agarravam-se a ela como pulgas a um cão.

O dia passou e a luz começou a desaparecer. Garvan arrumou as ferramentas, agradeceu a Bedo e ao seu ajudante e foi-se embora. Maldição, Uric devia estar de volta a qualquer momento e teria de lhe dizer que não conseguira nada. Tinha de haver uma maneira qualquer de fazer aquilo. O jovem dirigiu-se às instalações sanitárias e sentou-se a pensar, sentindo a jóia a pesar-lhe na bolsa como chumbo. Bedo pensou em raparigas e na necessidade que elas tinham de andar sempre umas com as outras. Provavelmente até iam à privada em grupo.

Ou não? E as lavagens? Breda devia ser a espécie de rapariga, como a sua irmã Ferada, que não ia jantar sem lavar as mãos e a cara, sem se pentear e sem se meter num vestido lavado, mesmo que o anterior estivesse perfeitamente limpo. Com aquele bando de raparigas sempre atrás, não devia precisar de mexer um dedo. Elas até lhe deviam levar a água quente; apostava que o pessoal de Monte Branco nunca punha os pés nos aposentos privados de Breda.

Aproximava-se a hora do jantar, se bem que, provavelmente, o Rei o protelasse até as buscas terminarem. O fato de ainda não haver sinais deles pressagiava más notícias; se tivessem encontrado Derelei ou Eile, já teriam recebido uma mensagem. Bedo imaginou um plano. Tinha de encontrar um sítio de onde pudesse ver a entrada dos aposentos de Breda, mas de modo a não ser visto. Deuses, pensar que ainda pouco tempo antes quase chorava por uma oportunidade de poder falar com ela. Sentia vergonha só de pensar.

A maior parte dos guardas não estava, o que lhe permitiu esconder-se sem chamar a atenção. Não era o melhor dos lugares, por trás de um pilar na base de uma escada, mas permitia-lhe ter uma visão clara. Tratava-se de um teste, pensou. Um teste guerreiro: manter-se silencioso, alerta, pronto para atacar a qualquer momento. O termo atacar era figurativo, claro. Estou a fazer isto por ti, disse ele à sombra de Cella. Espero que saibas o quanto gostava de ti. Bedo encostou-se à parede, Semicerrou os olhos e esperou.

Elda decidiu que jantaria com as crianças. Saraid não podia ficar sozinha, mesmo com Gilder, Galen e a criada. A criança mal se mexera o dia todo. Os gêmeos, tempestuosos mesmo nos seus momentos mais calmos, tinham passado o tempo a passar por ela em bicos dos pés, enervados com o seu silêncio.

Saraid não perdera a capacidade de falar, aceitara o pequeno-almoço com um Obrigada em voz baixa, testemunho da boa educação que Eile lhe dera, falara com Lamento durante o dia, cantara-lhe pequenas canções. Durante a tarde, Elda levou as três crianças até ao jardim, pensando que não faria mal a pequena esticar as pernas e respirar um pouco de ar fresco. Os gêmeos estavam sempre prontos para fazer exercício e correr ao longo dos carreiros com a sua bola. Elda sentou-se num banco, aliviando as costas. O bebê estava quase a chegar. Deuses, quem lhe dera que fosse uma rapariga.

Saraid sentou-se a seu lado e encostou-se a ela, apertando a boneca contra o peito. Elda sentia-a tremer, como se estivesse cheia de frio e passou-lhe um braço pelos ombros. Ao fundo do jardim, Gilder e Galen tentavam lançar pedras através do tanque, fazendo-as saltar na superfície da água como tinham visto Dovran fazer. Como não queria roupas molhadas, a mulher de Garth não tirava os olhos deles.

— Sentes-te bem, Saraid?

— Hum.

— Tens a certeza?

— Hum.

— Lembras-te de ontem à noite? Quando Faolan te encontrou na floresta?

— Feeler encontrar Lamento.

Era mais do que dissera em todo o dia.

— E verdade, querida. Faolan encontrou a Lamento atrás de um arbusto. Ela tinha aquele lindo vestido azul, o que Eile lhe fez.

Elda sentia o corpo da criança tenso; olhando para ela, viu-lhe os lábios cerrados; conhecia os sinais, aquela criança tinha um segredo, algo que não se atrevia a contar.

— Saraid, sabes onde foi Eile? E Derelei? Dizes-me?

Os lábios continuaram cerrados e a cabeça abanou ligeiramente.

— Ajudaria a tua mãe, Saraid, se nos dissesses o que sabes. Se a tua mãe está perdida, ou... — Não suportava a idéia, a possibilidade de Eile, Eile, ser uma traidora, uma espia. — Ou se Derelei está num sítio qualquer cheio de frio, cansado e quer vir para casa... Devias dizer-me, Saraid. Podias ajudar Derelei a voltar para casa. — À medida que o tempo passava, Elda tinha cada vez menos esperança. Comparado com os seus dois robustos rapazes, Derelei era uma violeta ao lado de duas rosas silvestres. Uma rajada de vento era capaz de a arrancar. Uma criança daquelas não sobreviveria a uma única noite sozinha na floresta. — Saraid?

Os lábios da pequenina, porém, continuaram firmemente fechados. Dovran aproximou-se para as cumprimentar e afastou-se de novo na sua missão de patrulha. O jovem guerreiro parecia exausto. Então, os gêmeos começaram a discutir por causa da bola, causa freqüente de desacordo e Elda decidiu que eram horas de regressar.

A caminho dos seus aposentos, a mãe dos gêmeos passou pelo quarto que Eile partilhava com Saraid porque a pequenina ia precisar de uma camisa-de-noite, roupa de baixo limpa, um pente, um espelho e talvez quisesse outra coisa qualquer que achasse reconfortante.

— Não toquem nas coisas de Eile. Sentem-se na cama e esperem até Saraid e eu termos aquilo de que necessitamos — disse Elda aos gêmeos, abrindo a arca e olhando para o seu magro conteúdo, esperando que Eile não se importasse.

— Outro vestido — disse Saraid, abrindo uma pequena caixa que tinha só para si, que estava em cima da pequena mesa, junto da cama e tirando um minúsculo vestido cor-de-rosa e uma pequena fita de seda. Os gêmeos aproximaram-se e esticaram os pescoços para tentar ver.

— Claro, traz também as coisas da Lamento — disse-lhe Elda. — Vais dormir outra vez no nosso quarto. Queres o teu vestido cinzento...? — A sua voz extinguiu-se, ao mesmo tempo que em segundo plano os gêmeos comentavam os prós e os contras do guarda-roupa da Lamento. Elda pôs-se de pé e olhou em volta. As raparigas ligadas à prima do Rei Keother tinham espalhado rapidamente a história. Eile fora vista a sair da fortaleza com o filho do Rei na direção do Lago da Serpente. Era difícil de acreditar; teria de ser muito rápida para escapar às buscas. Provavelmente teria de apanhar um barco. No entanto, as roupas de sair de Eile estavam ali na sua frente, penduradas num prego e a um canto do quarto estavam as suas botas.

Elda sentiu-se gelar.

— Saraid? — perguntou ela. — Onde está a tua capa?

Saraid desceu da cama e apontou para o canto da arca. Lá estava ela perfeitamente dobrada, uma capa castanha de lã que Elda vira muitas vezes.

— Claro. E as tuas botas?

Saraid olhou para as macias botas de pele carneiro que tinha calçadas e que estavam manchadas devido ao tempo que tinham passado na floresta.

— Não são essas, querida, as grandes, as de andar lá fora. Saraid aproximou-se da cama, espreitou por baixo dela, estendeu um braço e tirou um par de pequenas mas robustas botas de pele.

— Vamos sair? — perguntou a pequenina com voz trêmula.

— Não, Saraid, agora não. Está quase na hora do jantar. Só queria saber onde estavam. Pronto, já tenho a tua camisa de noite, o pente e um vestido para amanhã. Pega nas coisas da Lamento e vamos pôr tudo no nosso quarto. O vosso pai deve estar a chegar, rapazes. E Faolan também — disse ela, olhando para Saraid.

— Feeler chegar — disse a pequenina com um suspiro.

Graças aos deuses, pensou Elda, Garth estaria de volta à hora do jantar, com boas ou más notícias. Custava-lhe a acreditar que Eile, afinal, podia não ser quem pensavam. Talvez não os tivesse enganado a todos. Talvez, afinal, não fosse verdade. Talvez devesse ir ter imediatamente com o Rei para lhe contar o que descobrira. Elda olhou para as três crianças, Saraid pálida e retraída e Glider e Galen todos sujos por causa das suas aventuras no jardim. Os dois rapazes estavam a começar a ficar intratáveis devido à fome, não estavam em condições de ir a lado nenhum senão para dentro de uma tina. Só depois iriam jantar. No corredor, Elda procurou alguém que pudesse levar uma mensagem ao Rei, mas não viu ninguém. Com um suspiro, a mãe dos gêmeos dirigiu-se para os seus alojamentos. Bridei teria de esperar.

Finalmente, o jovem viu sair uma rapariga com um grande jarro de água nas mãos; baixa, morena, com ar tímido. Bedo tentou lembrar-se do nome dela e conseguiu mesmo a tempo.

— Cria — disse ele, pregando-lhe um susto. — Preciso de te perguntar uma coisa.

— Oh... não... não posso... tenho de ir buscar água...

— Não demora muito. Estás a ver isto? — perguntou ele, mostrando-lhe o alfinete na palma da mão e vendo-a abrir muito os olhos. — Sabes de quem é?

Cria olhou receosamente para ele.

— É importante — disse Bedo.

— Onde o encontraste?

— Não interessa. Devolvo-a à dona assim que souber quem ela é. Cria baixou os olhos e apertou o jarro contra o peito.

— É da senhora Breda — murmurou ela. — Eu dou-lho...

— Não, deixa estar, eu dou-lho. Tens a certeza? A jovem olhou subitamente irritada para ele.

— É claro que tenho a certeza. Estás a ver o monstro marinho? É o emblema real das ilhas. Breda é a única mulher, aqui em Monte Branco, que o pode usar, agora que a irmã se foi embora.

— Tenho outra pergunta para te fazer.

— Tenho de ir. Ela zanga-se se me atraso.

— Breda tinha-o no dia da caçada? No dia em que Cella morreu? As feições da rapariga retesaram-se e os seus olhos semicerraram-se.

— Porque perguntas?

— Porque é que a pergunta te mete medo? Estás com medo, não estás? Vê-se na tua cara. Descansa que não quero o teu mal, mas preciso da tua ajuda.

Um pequeno silêncio.

— Tem a ver com a maneira como ela morreu, não tem? — A voz de Cria mudara, era furtiva, quase conspiratória.

— Morreu uma rapariga inocente e eu parti um braço. Só quero descobrir como aconteceu.

— Foi um acidente. Um acidente trágico. E já passou.

— Nesse caso não faz mal responderes às minhas perguntas.

— Tenho mesmo de ir — disse ela, olhando nervosamente na direção da porta de Breda. — Sim, tinha. Mas não digas que fui eu que te disse.

— Porquê? — perguntou ele, fingindo-se espantado. — Não foi um acidente?

— Escuta — disse Cria, começando a subir os degraus e puxando-o pela manga da túnica. — Continua a andar. Tenho de ir ao poço ao pé da cozinha. Não é só agora, é o tempo todo. Se não dizemos o que ela nos manda e não nos calamos quando ela nos exige, somos castigadas. Se ela me vê a falar contigo, levo uma tareia. O que aconteceu naquele dia... não vale a pena pensar. Cella morreu, pronto. Nem todas as perguntas do mundo a trazem de volta e nenhuma de nós quer ser a próxima.

Caminhavam os dois lado-a-lado na direção do poço. O coração de Bedo começara a acelerar.

— Por que é que ela te castiga se te vir a falar comigo? E que queres dizer com isso de ser a próxima? Queres dizer a próxima a morrer?

— Chhh! Não devia ter dito nada. Deixa-me em paz; já tens o que queres e são quase horas de jantar. Vou ter de correr.

— Diz-me! Que mal tem falares comigo?

— Ela fica com ciúmes. Foi essa a ofensa de Cella, falou contigo.

— O quê? Mas Breda nunca olhou para mim, sequer. Não pode ser verdade.

Cria fez uma pequena careta.

— Ela é muito confusa. Não há lógica no que ela faz, no que diz, de quem gosta ou de quem não gosta. Por vezes acha que tens interesse, o que quer dizer que ninguém te pode tocar, olhar para ti ou dirigir-te a palavra. Mas muda num instante. Aquela rapariga, por exemplo, Eile. Breda gostou dela a princípio, mas quando a viu a atrair a atenção de Dovran, o caso mudou de figura.

Bedo respirou fundo.

— Cria — disse ele, tentando manter a voz calma, controlada, como o seu pai faria numa situação semelhante. — Eile desapareceu, como sabes, com o filho do Rei. Poderá estar relacionado com isto de que estamos a falar?

A rapariga estava com um ar extremamente infeliz, parecia uma borboleta apanhada numa armadilha.

— Não sei — disse ela. — O que sei é que se ofendemos a senhora Breda, pagamos. Todas nós fomos interrogadas sobre Eile e a criança. Dissemos o que nos disseram para dizer.

— Queres dizer que mentiste? Mentiste apesar de uma criança de dois anos ter desaparecido na floresta de noite?

— Nunca mentiste por teres medo do que te podia acontecer se dissesses a verdade? — murmurou Cria.

— Teria mais medo do que me poderia acontecer se continuasse a mentir — disse o jovem, ouvindo a sentença na sua própria voz. — Tu e as outras raparigas podem ficar com a morte de uma criança na consciência, Talvez também a de Eile, dependendo do que lhe aconteceu.

— Eile é uma espia — disse Cria, pousando o jarro na borda do poço e estendendo a mão para a manivela que fazia girar o mecanismo. — Toda a gente o diz. Foi um rapto. Por que razão me hei de preocupar se ela se insinuou junto do Rei Bridei e lhe roubou o filho?

— Falas como se tivesses a certeza.. — Subitamente, Bedo sentiu-se muito mais velho do que ao principiar o dia.

— Ela foi vista. E é celta. Aliás, nunca tentou escondê-lo.

— Ah, claro — disse Bedo. — Foi vista. Saiu pelos portões à vista de toda a gente, mas os guardas não a viram.

Cria corou, ao mesmo tempo que fazia girar a manivela para içar o balde.

— Breda é que a viu, não fomos nós. — O seu tom era defensivo.

— Cria, eu sei que tens de voltar rapidamente com essa água. Se eu voltar a falar disto — disse o jovem, tocando no alfinete —, sobre ontem e sobre o que Breda viu ou não viu e vos mandou ou não dizer, apóia-me? Dizes a verdade?

— Não posso — murmurou ela.

— Portanto, deixas morrer uma criança só porque tens medo de levar uma tareia?

— Tenho muita pena do rapaz, mas acho que não consigo. — Cria afastou a gola da túnica e mostrou o início de um vergão que lhe atravessava os ombros. — Ela usa uma correia com nós — disse ela monotonamente, resignada. — Dói muito.

Bedo achava que naquele assunto nada mais o chocaria, mas enganara-se.

— Devias falar disso ao Rei Keother — disse ele. — Ela tem de ser denunciada.

— Ela gosta do poder e aqui tem-no. Não podemos ir para casa. Quanto mais controlo tem, mais velhacos são os jogos dela. Eu não quero acabar como Cella. — O balde chegou ao alto do poço. Cria puxou-o para a borda, pronta para encher o jarro.

— Eu ajudo-te.

— Só com um braço?

— Posso segurar no jarro, pelo menos, enquanto o enches.

— Bedo? — A voz da jovem transformara-se num sussurro conspiratório.

— O que é?

— Se contares tudo ao Rei Keother e ao Rei Bridei, achas que eles acreditam em ti? És tão novo.

Talvez a tivesse julgado mal. O seu medo não era um mero receio de rapariga, era real.

— Farei os possíveis para que me ouçam — disse ele solenemente. — E pedirei a Keother que te proteja, a ti e às outras raparigas. Fá-lo-ei, quer me ajudes, quer não. Espero sinceramente que mudes de idéias. Cella merece que façamos o melhor que podemos e sabemos. Cella merece a verdade.

O jarro estava cheio. Cria pegou nele e com um olhar por cima do ombro desatou a correr em direção aos aposentos de Breda. Bedo ficou onde estava com o coração a bater com toda a força, com o sangue a correr-lhe pelas veias, sem saber para onde ir primeiro. Seria melhor ir ter imediatamente com Bridei, ou seria melhor esperar que o irmão regressasse? Faolan dissera que os apoiaria. Faolan também devia estar a chegar com Uric e os outros. Bedo não podia exigir que a princesa das Ilhas Pequenas fosse obrigada a responder às suas perguntas; podia ser filho do chefe-de-guerra de Bridei, mas só tinha quinze anos e ainda não tinha experiência na arena do combate ou da diplomacia. O seu caso dependia da palavra de outras pessoas, de suspeitas e de conjecturas. Se o seu pai ainda estivesse na corte! O bom senso dizia-lhe que esperasse pelo regresso de Uric e que usasse o tempo que lhe restava para planear exatamente o que dizer e como. E rezar para que, com aquele pequeno atraso, não estivesse a acrescentar a sua pessoa à lista dos que prolongavam o tempo de Derelei na floresta, aumentando a possibilidade de ele morrer antes de ser encontrado.

Deuses, era impensável. Bedo recordou o sorriso deliciado de Derelei quando ele e o irmão lhe tinham proporcionado o primeiro passeio no pequeno carrinho que tinham trazido de Fonte do Corvo; o modo como as suas feições pálidas se tinham iluminado quando eles lhe tinham mostrado, e aos gêmeos, como deslizar por uma determinada encosta sentado num tabuleiro de madeira. O jovem recordou o pequeno de cavalinho, fazendo de conta que ia em cima de um cavalo enquanto Galen fazia o mesmo em cima dos ombros de Uric e corriam pelo pátio aos gritos com Gilder a persegui-los. Derelei era tão pequeno. Fosse qual fosse aquele jogo novo, era a coisa mais cruel do mundo fazer refém uma criança tão pequena.

O dia fora infrutífero, dilacerante. Os cães não tinham farejado nada. Os diversos grupos tinham vasculhado uma grande extensão de terra em todas as direções a partir de Monte Branco, mas não tinha sido encontrado qualquer rasto da criança ou da rapariga e ninguém das aldeias ou herdades próximas as tinha visto. Ao meio-dia, Faolan recebera uma mensagem a dizer que Eile e Derelei tinham sido vistos no dia anterior a sair de Monte Branco pelos portões. O mensageiro cometera o erro de dizer que o Rei e os seus conselheiros acreditavam na teoria do rapto e Faolan quase lhe batera. Estavam todos com os nervos em franja, estavam exaustos e sabiam que quanto mais tempo passava sem que encontrassem fosse o que fosse, qualquer coisa, mais perto estavam de ter de reconhecer que o filho do Rei estava provavelmente morto.

E Eile. As pessoas tendiam a pensar nela como uma coisa sem importância, como se ela só tivesse interesse por Derelei ter desaparecido quando estava à sua guarda. Mais uma razão para se sentir furioso. Faolan acalmou-se, mas estava por um fio.

Alguns dos homens não regressaram a Monte Branco, ficariam a dormir algumas horas num acampamento improvisado e recomeçariam as buscas às primeiras horas de luz. A maior parte regressou à fortaleza ao anoitecer, entre eles os guarda-costas do Rei. Até Garth admitiu que precisava de dormir para poder continuar no dia seguinte.

Faolan elaborou um plano para permitir que outros homens capazes, o guarda de Aniel, Eldrist e o de Tharan, Imbeg, assumissem o papel de guarda-costas de Bridei para que os outros pudessem dormir o suficiente. Dovran estava de serviço havia dois dias e uma noite. Seria uma loucura deixá-lo continuar.

Enquanto Garth ia ter com o Rei para lhe dar notícias de mais um dia de buscas infrutíferas, Faolan dirigia-se aos aposentos de Elda, onde os gêmeos tomavam banho numa grande tina em frente da lareira enquanto Saraid observava tudo sentada na cama que iria partilhar com eles. O quarto estava abençoadamente quente. Elda, de mangas arregaçadas e rosto corado, estava desajeitadamente acocorada a esfregar as costas de um dos filhos.

— Faolan! — exclamou ela, olhando para ele com as sobrancelhas franzidas. — Onde está Garth? Não veio?

— Foi falar com o Rei. Lamento, mas não há notícias nenhumas.

— Os seus olhos não estavam postos nela, ou nos rapazes. — Passei por aqui para saber como vai a minha miúda.

— Ela...

Elda não precisou de acabar. Deixando cair Lamento na colcha sem qualquer cerimônia, Saraid voou através do quarto, passou pela tina e pela mulher ajoelhada e atirou-se para os seus braços, agarrando-se com tanta força como uma marta bebê à sua mãe.

— Ela tem estado muito calada — disse Elda. — Muito calada. Preferia que chorasse, que deixasse sair qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. Eu bem tentei, mas ela não abriu a boca.

Faolan falou-lhe em voz baixa, afagou-lhe os cabelos, sentindo a força com que ela se lhe agarrava, como o seu pequeno corpo estava tenso.

— Pronto, Esquilo. Pronto, minha querida. Estou aqui, mo cridhe.

— Faolan ouviu o bater do seu próprio coração, ouviu mentalmente as palavras que não lhe conseguia dizer ali, naquele momento: minha filha. — Se quiseres — disse ele, virando-se para Elda — fico com ela enquanto vais jantar. É muita coisa, os três o dia todo.

— É uma questão de prática — disse ela, ajudando um dos gêmeos a sair do banho e começando a esfregar o outro. — Dentro de pouco tempo vou ter três. Faolan...

A porta abriu-se para deixar entrar um Garth de olhar cansado. O seu aparecimento foi recebido com gritos deliciados dos gêmeos.

— Vem cá, Gilder, estás a encharcar o chão todo — disse o grande guarda, pegando no gêmeo mais próximo e começando a esfregá-lo vigorosamente. No meio do burburinho geral, Faolan não conseguiu perceber o que Elda estava a tentar dizer-lhe; qualquer coisa relacionada com capas e botas. Alguns minutos depois, Gilder e Galen acalmaram-se um pouco. Faolan sentou-se na beira da cama com Saraid nos joelhos e pediu-lhe que repetisse.

— Toda a gente fala que Eile e Derelei foram vistos a sair pelos portões, toda a gente diz que ela foi colocada aqui para o raptar, Faolan. Não estou a falar dos mexericos habituais, de boatos que desaparecem mal se pronunciam. Até Aniel e Tharan estão apreensivos, dizem que se calhar enganaram-se.

—Já entendi a mensagem. — Continuava furioso. — Fomos até ao lago, mas sem sucesso. Ontem ao fim do dia partiu um barco, mas ninguém viu uma mulher e uma criança nele. Esses boatos são perniciosos. Espero que não lhes dês créditos...

Saraid emitiu um pequeno som e ele apercebeu-se de que estava a apertá-la com demasiada força.

— Pronto, Esquilo. Sim, estou zangado, mas não é contigo. Diz lá o que é que a Lamento fez hoje?

— Passeou. — A voz da pequenina era triste. — Foi buscar roupa. Esperou.

— Faolan — disse Elda — quando fui ao quarto de Eile buscar as coisas de Saraid, reparei que as roupas de sair de Eile ainda lá estavam, a capa e as botas. Ela só tem aquelas. Se quisesse levar Derelei de Monte Branco, não deixaria de as levar. Além disso, pelo que sei da história, Breda disse que ela levava a roupa de sair quando a viu sair pelo portão. Não percebo.

— Breda — murmurou Faolan, tentando montar um quebra-cabeças de várias maneiras diferentes e não gostando de nenhuma delas. — Estás a dizer-me que Breda inventou essa história de ter visto Eile sair deliberadamente de Monte Branco? Quem mais a viu?

— Não sei, Faolan. Talvez ninguém, mas na boca das criadas de Breda é um fato e toda a gente acreditou.

O corpo de Faolan estava tenso; as suas mãos queriam cerrar-se, mas tinha Saraid nos braços e tentou acalmar-se.

— Breda tem de ser interrogada outra vez — disse ele. — Agora. Provavelmente estamos enganados, andamos atrás de uma pista que não existe. Talvez Eile nunca tenha saído de Monte Branco. Deuses...

— Faolan — disse Garth, vestindo uma pequena camisa a um dos gêmeos que ria à gargalhada enquanto a sua mulher enxugava o outro. — Bridei tinha uma reunião com Keother e os conselheiros e a seguir vão todos jantar. Sabes como o Rei se sente neste momento, sem Tuala e sem o filho. Até agora tem sido muito complicado. Os cristãos chegaram e exigem uma audiência com Broichan. Fola está com Anfreda e não pode abandonar a criança para substituir o druida.

— A vida de Eile pode depender disto. Tem de ser agora.

— Ele pediu ao tal irmão Colm, o tal de que temos ouvido falar, que se apresentasse na reunião. Suponho que é para lhe pedir desculpa pessoalmente e para lhe pedir que aceite um adiamento. Provavelmente vai-lhe dizer que Broichan não está cá. Pelo menos tens de esperar até eles terem falado um com o outro. Não podes entrar assim, sem mais nem menos, na sala do conselho, especialmente se tencionas acusar a prima de Keother. Bridei já tem problemas que cheguem.

— Feeler? — murmurou Saraid. — Canta canção?

— Mais tarde, Esquilo. Primeiro tens de jantar — disse ele, beijando-a na face, sentindo um nó no estômago. Enganados, tinha a certeza que estavam enganados.

— Eu não vou ao salão, vou jantar com estes três e depois volto para aqui — disse Elda. — Se não te demorares, Faolan, talvez Saraid ainda esteja acordada e lhe possas cantar uma canção. Não sabia que tinhas talento para a música — acrescentou ela com um sorriso. — Garth, esta noite tens de dormir. Se o Rei te disser para entrares de serviço, diz-lhe que eu disse que só por cima do meu cadáver.

Garth bocejou de boca aberta.

— No estado em que estou, vou ser o primeiro a deitar-me. Faolan, precisamos de comer qualquer coisa depois de um dia destes. Vou contigo; aconselho-te a esperar pelo momento certo. Lembra-te que o Rei tem muita coisa em que pensar. Lembra-te que ele não vai querer ofender Keother.

— Se aquela rapariga mentiu e pôs a vida de Eile em perigo, eu... — eu mato-a. Faolan lembrou-se a tempo de que havia crianças no quarto. — Esquilo — disse ele — tenho de me ir lavar, cheiro a cavalo. — Saraid cheirou-lhe a manga da túnica e torceu o nariz. — Saraid... — Faolan hesitou, sem saber ao certo se lhe poderia fazer novamente a pergunta. A pequenina parecia pronta para falar e parecia mais calma do que na noite anterior, mas a sua expressão perturbava-o. — Saraid, lembras-te onde foi Eile? Podes dizer-me o que aconteceu ontem, quando te encontrei com a Lamento na floresta?

Ela olhou solenemente para ele, como uma coruja, e abanou a cabeça.

— Ajudava muito a tua mãe se me dissesses. Podia ajudar-nos a encontrá-la e a encontrar Derelei. Como é que foste parar lá fora? Pelo portão grande ou por outro sítio qualquer?

O olhar dela não se alterou. Os seus lábios estavam cerrados. Naquele momento, Saraid estava tão parecida com Eile que o seu coração deu um salto. Faolan suspirou.

— Está bem, Esquilo — disse ele. — Vai jantar com os gêmeos. Eu volto assim que puder. Se te sentires cansada, não esperes por mim. Venho ver-te amanhã de manhã antes de sair.

— Canção da Lamento? Casa no monte?

Só falaria de outras coisas. Por que razão escondia o que ele mais precisava de saber? Uma ameaça qualquer? A criança só tinha três anos.

— Eu canto-te a canção da Lamento — disse-lhe Faolan. — A casa do monte é a tua mãe que a canta. — Ele sentiu um nó na garganta. — Quando ela voltar para casa, peço-lhe que ta cante.

— Prometes?

Não conseguiu olhar para ela.

— Prometo — murmurou, pousando-a em cima da cama e fugindo como um cobarde.

— Estou no fio da navalha — disse Bridei a Fola. — Com os cristãos hospedados na Monte Branco, a cada dia que passa, sempre que ouço os seus argumentos, a cada concessão que lhes faço, ofendo cada vez mais os antigos deuses de Fortriu, os deuses em cujas mãos está o destino do meu filho. A cada passo que dou nessa direção, arrisco cada vez mais a vida de Tuala. Sabes perfeitamente o que fiz quando acabei com o ritual do Poço das Sombras, pus a minha família em perigo, em perigo permanente.

— Mas? — Fola estava de pé à lareira, serena na sua túnica cinzenta, olhando para Bridei, o qual andava de um lado para o outro com Anfreda nos braços.

— Mas sei, em termos práticos, que a mudança está a chegar. Uma das razões por que Keother está aqui é porque quer defender os elementos cristãos do seu próprio reino. E quer reparar as pontes que nos separam depois de não nos ter apoiado contra os Celtas. Apesar de ser fanfarrão, não se pode dar ao luxo de fazer outra coisa. O território dele está isolado, seria louco se se afastasse ainda mais. No que à fé diz respeito, a sua posição sai reforçada com a presença destes clérigos na corte. Como Rei de Fortriu, tenho, pelo menos, que o ouvir. Se Faolan estiver enganado a respeito de Carnach, posso ficar com um poderoso inimigo à porta. Preciso de Keother a meu lado.

— Portanto, não aplacas os deuses se mandares estes cristãos embora, mas também não os queres ouvir agora.

— Como posso virar a minha atenção para outra coisa qualquer quando o meu filho está desaparecido? E Tuala: tenho medo por ela, Fola. É a primeira vez que ela tenta isto. Os deuses podem-me levar os dois com toda a facilidade. Onde é que eu errei?

A mulher sábia olhou para ele.

— Continua assim — disse ela — e essa criança ainda acaba a noite rabugenta e inquieta. Se insistes em andar com ela ao colo, usa o que Broichan te ensinou para te acalmares. Não podes ir para esta reunião meio tresloucado e cheio de nervos. Senta-te. Imaginemos que regressamos ao passado: estamos outra vez na noite do sacrifício de Portão, o único que testemunhaste. Pensa no momento em que decidiste que, se te tomasses Rei, porias fim àquele ritual particular e que arcarias com o fardo da ira do O Que Não Tem Nome. Sabias que acabarias por casar e por ter filhos. Sabias o risco que corrias. Se pudesses viver outra vez aquele momento, a tua decisão teria sido diferente?

Nem sequer era preciso pensar. Bridei abanou a cabeça. As imagens sombrias daquela noite, os ecos gelados do Poço das Sombras e da rapariga a afogar-se, uma rapariga vestida de branco cujos longos cabelos louros tinham flutuado à superfície da água negra, nunca estavam muito longe dos seus pensamentos. Bridei ouvia os cânticos de Broichan, a sua voz poderosa, terrível, do Outro Mundo; via os rostos empalidecidos dos homens, sentia as suas próprias mãos a ajudar a inocente a morrer.

— Só queria — disse ele — que na sua retribuição os deuses me escolhessem a mim, a mim e a mais ninguém. Tuala e Derelei não têm culpa nenhuma.

— Aquela Que Brilha ama Tuala — disse Fola. — E Derelei, tão pequeno e tão prodigiosamente dotado, está destinado a um caminho especial na vida. Não acredito que os deuses queiram perdê-lo. Não percas a esperança, Bridei. A tua mulher é forte. Ela estava com fé, achava que era capaz de levar esta missão até ao fim. Tu também tens de ter fé.

— E tenho — disse ele, sem saber bem se acreditava. — No entanto, tenho medo da vingança do deus das trevas. Tenho medo das decisões que tenho de tomar. Como Rei quero seguir um determinado caminho, um caminho de compromisso, de conciliação. O meu amor pelos deuses é certo e inabalável, nunca se alterará enquanto eu andar por este mundo. Tenciono salvaguardar os velhos costumes em Fortriu. Temos forças em movimento à nossa volta: um novo Rei em Circinn, uma paz precária em Dalriada, a influência misteriosa e instável dos Caitt e não esqueço os chefes-de-guerra Uí Néill, ambiciosos e apenas a um dia de distância de barco das nossas costas ocidentais. Não posso traçar um caminho sábio e forte para Fortriu se estou constantemente agrilhoado pelo medo que sinto pelos que amo; pelo terror das trevas que existe em mim e em cada homem que caminha pelas terras dos Priteni. O Que Não Tem Nome faz parte de todos nós. Não lhe podemos escapar. Esta noite só quero ficar neste quarto com a minha filha ao colo à espera que Tuala e Derelei entrem por aquela porta sãos e salvos. Não quero falar com Keother ou com os missionários cristãos. Não quero ver Tharan e Aniel, apesar de serem quem são, os melhores conselheiros e apoiadores que eu podia desejar. Esta noite não sou grande Rei.

— E eu? — perguntou a mulher sábia, retorcidamente. Bridei sorriu-lhe.

— Nunca te agradecerei o suficiente por ficares aqui a olhar pela minha filha — disse ele. — Espero que saibas que serás sempre bem-vinda. Ia a dizer que és uma verdadeira mãe para nós, mas sei que não gostarias. De qualquer maneira não seria verdade. Tu és respeitada como professora e grande amiga. A tua sabedoria e a tua honestidade mantêm-nos no caminho certo.

— Não sei se mereço tal elogio — disse Fola — mas aquece-me e dir-te-ei que é em ocasiões como esta, em que nos sentimos tristes e desamparados, que descobrimos o que significa ser Rei. Tu és Rei até ao tutano, Bridei, forte de coração, sábio e corajoso. E humano. É por isso que és tão bom no que fazes. E agora chegou a hora de ires. Se te faz sentir melhor, vou buscar a tigela de Tuala assim que Anfreda estiver deitada, para ver o que os deuses me dizem. Sabes, claro, que podemos ter visões más, ou nenhumas.

— Sei — disse o Rei, passando Anfreda para os braços da mulher sábia. — Obrigado. Agradeço-te.

— Faço-o daqui a pouco. Esta princesa vai já comer e depois Tresna vai jantar. Talvez te diga qualquer coisa antes de te ires deitar. — O seu tom de voz era de compaixão. Fola conhecia Bridei desde que ele era um rapaz de doze anos.

— Esta noite não vou dormir. Com aqueles dois em perigo, não consigo. E Eile, também. Tenciono ficar de vigília. Tenciono rezar.

— Sozinho?

— Os meus homens estão exaustos. Tu tens de ficar aqui e Broichan foi-se embora. Sim, sozinho.

— Bridei, acreditas na história de Eile? Parece cada vez mais plausível! Acha-a capaz de fazer uma coisa tão terrível por uma causa, ou por desespero?

Bridei abanou a cabeça.

— Eu sei que as circunstâncias levam as pessoas a atitudes extremas, mas a história tem um aspecto no qual não acredito: Eile não se iria embora de livre vontade sem levar a filha. Os laços entre ambas são de ferro. A verdade não está na teoria do rapto, está noutra coisa qualquer. Além do mais tenho uma fé inabalável em Faolan e sei que Tuala concorda comigo.

— Também eu. Encontrei uma ou duas almas do gênero na minha vida. Tais pessoas brilham como lamparinas num pântano de dúvidas e incertezas. Eile é uma delas. Com o tempo, desconfio que a filha será outra. O teu Faolan é um homem de sorte.

— Isso é se ele a encontrar — disse Bridei, amargamente.

A reunião foi estranha. Keother, cansado depois de um dia de buscas, estava mais calado do que habitualmente. O Rei cumprimentou Colm com deferência e respondeu às respostas do clérigo relacionadas com o estado da aldeia monástica das Ilhas Pequenas, um tópico que Bridei esperava não ver abordado antes da audiência formal. Colm era um homem impressionante, talvez na casa dos quarenta, alto, asceta na aparência, com a estampa inconfundível dos Uí Néill: olhos salientes, nariz protuberante, queixo firme. A tonsura frontal acentuava a testa celta, forte, abaulada. A autoridade inata era evidente em cada um dos seus gestos. A sua voz era ao mesmo tempo austera e sedutora, uma ferramenta poderosa de influência.

Bridei arranhava a língua celta e falava-a com uma fluência razoável graças a Wid, muitos anos antes. O Rei raramente dava a conhecer tal capacidade e nunca em situações como aquela. Se Faolan não estivesse naquele momento a escalar as sentinelas noturnas, teria usado o seu braço direito como protetor e tradutor. Como não podia ser, os dois homens de armas de Keother eram os únicos guardas presentes e foi o irmão Suibne que traduziu a conversa para gaélico e vice-versa. Bridei já o conhecia. Um homem astuto, inteligente, subtil e possuído de um sentido de humor seco. Apesar das diferenças que os separavam, Bridei gostava dele. Mas não era possível confiar totalmente num cristão. Bridei ouviu cuidadosamente o original e a tradução, consciente de que a menor cambiante podia causar uma má interpretação. Também aprendera tal coisa com Wid.

Aniel, bem preparado, propôs um dia e uma hora para a audiência formal e sugeriu que as partes lhe dessem uma idéia, antecipadamente, dos assuntos que queriam discutir. O conselheiro sublinhou que, sendo o adiamento um inconveniente para os irmãos, todas as facilidades de Monte Branco ficariam entretanto ao seu dispor.

— Na condição, claro — acrescentou Bridei — de não haver orações públicas ou ensinamentos religiosos no interior destas muralhas. Toleramos o vosso progresso através de Fortriu, soubemos dele por vários mensageiros. Uma jornada acompanhada de encontros dramáticos e feitos maravilhosos, segundo nos disseram. Um longo caminho, uma experiência exigente. Parece-me que seria bom recuperardes antes de a repetirdes. Comei, bebei, descansai. Desfrutai de algum tempo para vós próprios.

O irmão Suibne alterou sutilmente a tradução que fez ao irmão Colm. De certo modo, a oferta de recuperação não dizia respeito a boa cama e melhor comida, dizia respeito a tempo para rezar e refletir naquela época de mudança. A tradução fora malfeita, mas fora sábia. Colme concordou, visivelmente relutante, com o adiamento.

— E — disse Aniel — se surgir inesperadamente qualquer coisa relacionada com o filho do Rei, Bridei pode necessitar de adiar novamente a audiência, ou de a cancelar.

Colm levantou as sobrancelhas quando Suibne lhe fez a tradução.

— Acontece — disse Tharan — que não sabemos se estamos a lidar com um acidente ou com um rapto. Se os vossos conterrâneos estiverem envolvidos e precisarmos de exercer pressão para conseguir o regresso da criança, é provável que venhais a desfrutar da hospitalidade de Monte Branco durante mais tempo do que pensais. O Rei Bridei autorizou-me a dizer-vos isto.

Suibne traduziu a resposta de Colm.

— Nós condenamos o rapto de crianças. Apreciamos a tua franqueza e rezaremos pelo regresso da criança, sã e salva. Se o Rei Bridei desejar, o irmão Colm diz que ficará de vigília com ele e que dirá as suas orações por ele. Como é que ele se chama?

— Derelei — disse Bridei a custo. — Agradece ao irmão Colm por mim. Sei que as suas intenções são boas, mas não é preciso ele perder o sono por causa disto.

Falaram de outras questões. Era evidente que o irmão Colm queria que na audiência formal se falasse de garantias de segurança para os eremitas cristãos das Ilhas Pequenas, não só da parte de Keother, mas também da parte de Bridei como suserano de Keother. Em seguida falou-se da questão dos celtas que Colm vira entre o pessoal de Monte Branco. O clérigo queria saber qual seria o destino dos cativos do Outono anterior, os que tinham ido parar a Monte Branco sob custódia. Quantos deles eram escravos? Qual ia ser o seu futuro? E o destino, a longo prazo, de Gabhran, rei deposto dos celtas de Dalriada, fechado na sua própria fortaleza de Dunadd?

A lista era grande. Bridei lembrou-se que aquele homem, como Uí Néill, era parente de Gabhran. Era evidente, mesmo através do nevoeiro causado pela exaustão e a ansiedade, que quando a audiência formal tivesse lugar, os assuntos a discutir não se limitariam às questões religiosas. Por que razão, pensou o Rei, aquele Colmcille teria feito aquela longa viagem ao coração de Fortriu?

— Finalmente — disse o irmão Suibne — o que já sabes, a questão central da nossa missão. A questão da ilha de Ioua, nos teus territórios ocidentais. Nós já visitamos o local e é belo, remoto, selvagem e tem poucos habitantes. Temos esperança que reconsideres as palavras que disseste no momento da vitória sobre as forças de Gabhran no Outono passado. Temos esperança que queiras, afinal, conceder-nos um santuário naquela ilha. — Um discurso de encerramento poético e humilde.

— És um tradutor inteligente, irmão Suibne — disse Bridei.

— E tu um ouvinte astuto, meu senhor Rei — replicou Suibne, sorrindo. — Lamento muito pelo teu filho. Como reagiu a tua mulher? Lembro-me dela de Caer Pridne. Uma coisa pequenina, visionária, mas de coração forte. Suponho que é a mesma.

— Tuala. Sim. Não quero falar dela agora, mas agradeço a tua consideração.

Estavam sentados numa sala não muito longe do grande salão para poderem continuar a conversar enquanto a refeição não era servida. Bridei apercebeu-se de gritos, tumultos, vozes exaltadas e associou uma delas a Faolan.

— Tharan — disse ele calmamente —, vai lá fora e vê o que se passa. Leva um dos guardas. — Em seguida, virando-se para os seus convidados: — Vamos jantar daqui a pouco. Lamento, mas o druida da corte, Broichan, não pode estar conosco esta noite. Neste momento está longe de Monte Branco. Espero já o ter de regresso por ocasião das discussões oficiais. Mais uma razão para o adiamento.

— Esperas? — perguntou Colm, erguendo as sobrancelhas. — Não podes ordenar o seu regresso? Disseram-me que Broichan tem muito poder em Fortriu e uma grande influência aqui, na tua corte. A minha convicção é que devia estar presente.

— Sou dono de mim próprio — disse calmamente Bridei, utilizando uma das técnicas de Broichan para pôr de lado a ira. — Broichan é um dos que me aconselha. Quando se trata do bem-estar do meu povo, as decisões finais pertencem-me. O grande Rei da tua terra natal comanda os teus movimentos, irmão Colm?

A tradução provocou um sorriso frio.

— Que queres que te diga? — foi a resposta de Suibne. — Ele está em Tara e eu estou aqui em Fortriu, uma terra pagã.

Foi naquele momento que Bridei decidiu que, ou Suibne era um espertalhão, ou Colmcille não era diferente dos demais: apesar dos seus milagres era um ser humano como outro qualquer.

— Nesse caso, bem-vindo a Fortriu — disse ele. — A agora vamos jantar...

A porta abriu-se e entrou Tharan com uma expressão perfeitamente calma.

— Meu Senhor Rei — disse ele — está a acontecer uma... discussão muito animada entre algumas pessoas que estão no salão à espera do jantar e envolve a senhora Breda e certas acusações. E também...

Keother já estava de pé.

— Eu trato do assunto — disse ele. — Peço desculpa.

— ...a questão de Eile e as buscas — continuou Tharan. — Creio que o assunto exige a tua intervenção, meu Senhor Rei.

Bridei ouvia Faolan aos gritos.

— Muito bem, vamos lá — disse ele, desejando conseguir o auto-controlo de Tharan. — Irmão Colm, irmão Suibne, é melhor ficardes aqui até este assunto estar resolvido. Lamento a inconveniência. — O Rei fez sinal ao guarda de serviço para ficar com os cristãos. Os gritos eram cada vez mais altos. Bridei ouvia Breda a falar muito depressa e muito alto e também um dos filhos de Talorgen. Abandonando o protocolo, o Rei de Fortriu percorreu o corredor em direção ao grande salão.

Não havia maneira de saber exatamente o que estava a acontecer. O local estava cheio de gente, à espera do jantar. A maioria estava sentada, mas Faolan estava de pé, apontando um dedo acusatório a Breda e estava furioso; o seu rosto estava corado e o seu olhar era furibundo. Fosse o que fosse, devia ser sério para que o autodisciplinado espião do Rei perdesse as estribeiras em público. A mesa do Rei, Breda, também de pé, tinha as mãos nas ancas e a cabeça bem levantada, em contraste perfeito com a estridência da sua voz.

— Que estás a dizer? — gritava ela, olhando para Faolan. — Estás a chamar-me mentirosa? A mim?

Em volta, as vozes comentavam e os olhos viravam-se para aquela batalha com grande interesse. Como entretenimento, ultrapassava de longe o que qualquer bardo conseguiria com uma harpa.

— Sentai-vos — disse Bridei, dirigindo a sua ordem ao seu braço direito e à princesa. — Vós também — acrescentou ele quando viu que Bedo e Uric também estavam de pé ao lado da plataforma onde estava instalada a mesa principal. — Uma discussão deve ser resolvida em particular, não aqui, no salão, como se fósseis um bando de bêbados barulhentos.

— Meu senhor... — começou Faolan. Bridei ouviu uma nota diferente na voz do seu amigo e sentiu um arrepio na espinha. A questão era séria.

— Eu não deixo passar isto em claro! — disse Breda, secamente.

— Não esperas, evidentemente, que o faça depois das coisas vis que acabas de dizer! — Os olhos azuis viraram-se para Keother, um passo atrás de Bridei. — Primo, este homem... este celta, está a tentar acusar-me de um delito qualquer. Quero-o fora deste salão. Não tolero isto

— rematou ela, sacudindo a cabeça. Os caracóis falsos vacilaram-lhe nas têmporas.

— Prima, ocupa o teu lugar — disse Keother, juntando-se a ela. Algo no tom da sua voz fez Breda obedecer. O seu olhar era rancoroso e não era possível saber se era dirigido apenas a Faolan ou se também a Keother.

— Meu senhor... — tentou outra vez Faolan, com a voz quebrada.

— Levemos isto para a sala do conselho — disse Bridei. — Quem participa na discussão? Senhora Breda? Uric? Bedo?

— Não, meu senhor. — O rubor incaracterístico nas faces de Faolan tinha desaparecido. — O assunto diz respeito a Eile e à história que foi posta a circular. Preciso de resolver isto imediatamente. É possível que tenhamos estado a procurar no sítio errado, baseados em informações enganadoras. Isto tem de ser resolvido agora, rápida e publicamente. Não permito que Eile seja vítima de uma mentira.

— Percebo. — Bridei dirigiu-se para o seu lugar na mesa real e sentou-se. O burburinho morreu. Keother sentou-se entre o Rei e Breda e Aniel e Tharan a seguir ao Rei. Faolan não se mexeu, tal como Uric e Bedo.

Pelo canto do olho, Bridei viu os dois cristãos a entrarem no salão com o guarda logo atrás, irritado. Não era possível mandá-los sair.

— Sentai-os no extremo desta mesa, um de cada lado da Rainha Rhian — murmurou ele a Aniel. — Não quero que Suibne traduza tudo o que ouve. — Em seguida, virou-se para Faolan. — Muito bem — disse ele — vou ouvir o tema em discussão. Sede breves e ide direitos ao assunto. Se está relacionado com o meu filho e Eile, tereis de ser rápidos para que possamos agir em conformidade. Quem fala primeiro?

— Os filhos de Talorgen. — Faolan estava mais calmo, a sua voz era suave e o seu olhar severo. — Há aqui duas histórias, meu senhor e uma alimenta-se da outra.

— Avançai, Bedo e Uric. Começai.

— Está relacionado com a caçada, meu senhor Rei... — Os dois rapazes contaram bem a sua história, com lógica e com simplicidade, mas Bridei sentiu que eles estavam tensos. Apesar de toda a antecipação nervosa, o Rei ficou espantado com a sua maturidade e autocontrole. Talorgen ficaria contente se os visse naquele momento. Bedo contou que antes de Cella ter sido atingida ouvira um grito, que o cavalo se levantara nos quartos traseiros e que caíra depois, ferindo mortalmente a rapariga. Uric disse a mesma coisa: o grito e o movimento da égua, mas depois acrescentou um outro pormenor. Qualquer coisa refletira a luz do Sol, algo que a senhora Breda tinha na mão. Então, a égua tomara o freio nos dentes e tinha levado a senhora Breda e o objeto.

— Isto é estúpido... — disse Breda.

— Por favor, calai-vos, senhora Breda — disse Bridei. — Terás oportunidade de falar.

— Mas...

— Silêncio. — O tom de Keother era de raiva. Olhando para ele de soslaio, Bridei ficou espantado com a expressão do homem. O Rei leu nele horror, vergonha e algo que sugeria que talvez aquilo não fosse uma surpresa.

— Não vejo o que isto tem a ver com o outro assunto, as buscas, Eile, o meu filho — disse o Rei a Faolan.

— Já vais perceber, meu senhor — disse Bedo. — O meu irmão e eu tínhamos certas suspeitas relacionadas com o que fez assustar o cavalo da senhora Breda. Um grito e um objeto afiado teriam, certamente, assustado o mais plácido dos animais. Uric pensou ter visto cair algo brilhante antes do... acidente e vasculhou o local da caçada à procura de um objeto. Há cerca de dois dias encontrou-o. — O silêncio no salão era total.

Uric ergueu o alfinete ornamentado com pedras preciosas.

— A égua não sofreu ferimentos de maior naquele dia, mas regressou com muitos arranhões e esfoladelas devido à fuga — disse ele. — Se um deles foi um ferimento deliberado, infligido por este ornamento de cabelo, os moços de estrebaria não disseram. Eu encontrei o alfinete, ou o teu cão é que o encontrou, numa área do terreno onde apenas Breda e os dois homens que a socorreram estiveram naquele dia. Este ornamento tem a insígnia real das Ilhas Pequenas e pertence à senhora Breda.

— Disparate! — disse a princesa novamente de pé, de mãos unidas. — Sim, pode ser meu, mas o que dizes é uma estupidez! Por que faria eu uma coisa dessas? Seja como for, não estava a usá-lo naquele dia. Pergunta às minhas damas-de-companhia. Tinha outro alfinete, o dourado com pequenas correntes. Estás a inventar!

Keother olhou para a mesa onde as acompanhantes de Breda estavam sentadas, encostadas umas às outras.

— Quem apóia a versão dos acontecimentos da minha prima? — perguntou ele. — Lembrais-vos do que ela usava naquele dia? A história destes jovens tem pouca consistência, não há dúvida, mas devemos-lhe uma resposta. No fim de contas morreu uma rapariga.

As jovens olharam para as respectivas canecas de cerveja, para as mãos, para o chão.

— Exigimos uma resposta — disse Bridei. — Faolan acaba de dizer que há vidas em perigo. Esse silêncio quer dizer sim ou não?

Uma jovem de cabelos louros levantou-se um pouco.

— A senhora Breda tinha o que acaba de dizer. Dourado, com correntes.

— Exatamente — disse uma segunda.

A terceira, pequena, levantou-se lentamente. O seu rosto estava da cor do linho.

— Não, não é verdade — disse ela com voz trêmula. — Breda tinha o alfinete de prata. Sei porque fui eu que a penteei naquela manhã. Juro. Anna ajudou-me.

Um momento depois a quarta rapariga levantou-se e pôs-se ao lado da terceira.

— Cria tem razão. — A sua voz também tremia. — Ela tinha o de prata. O monstro marinho, o de que ela mais gosta.

— Eu não fiz absolutamente nada! — explodiu Breda, batendo com os punhos na mesa e fazendo chocalhar as Colheres. — Foi aquele maldito cavalo! Não tenho culpa se me deram um animal que se assusta por tudo e por nada! Se Cella tivesse dominado o esmerilhão ordinário...

— Cuidado com a língua! — gritou Keother. A jovem calou-se, mas Bridei sentiu que não seria por muito tempo.

— A teoria que propões é que, por uma razão qualquer, a senhora Breda fez propositadamente com que a égua se assustasse — disse ele, consciente de que aquilo não podia continuar muito mais tempo em público, se por acaso fosse verdade. Aquele era um assunto para ele e Keother resolverem à porta fechada. — Não consigo imaginar um motivo para uma tal irresponsabilidade, pôs a própria vida em perigo, matou uma rapariga e feriu-te, Bedo. É uma acusação muito séria. O que tu sugeres é um ato de pura demência.

— Disseram-nos — disse Uric — que a senhora Breda é atreita a extremos ataques de ciúmes. Neste caso por causa da amizade entre o meu irmão e Cella. Peço desculpa, meu senhor — disse ele, inclinando a cabeça na direção de Keother — mas nós temos uma, talvez duas jovens que podem testemunhar tal fato, mas elas preferem não falar aqui, diante da corte.

— O quê? — gritou Breda, olhando para as suas acompanhantes com o encantador rosto corado de raiva. — Qual de vós é que andou a contar histórias? Como vos atreveis? Por todos os deuses, ides arrepender-vos de terdes aberto as vossas bocas porcas... — A jovem parou, subitamente consciente de que toda a corte de Fortriu estava a olhar, horrorizada, na sua direção. — Meu senhor, isto é... indecente, desagradável. Estes rapazes inventaram tudo. Ainda há pouco tentavam impressionar-me; estas acusações são resultado de puro despeito. Aliás, Cella morreu. Para que serve remexer o passado?

Keother resmungou qualquer coisa. Talvez fosse uma oração de agradecimento por o pai da rapariga já ter deixado Monte Branco e não ter de ouvir aquilo.

— Faolan — disse Bridei — o que é que isto tem a ver com a crise atual? Sê breve, peço-te.

— Disseram-me, meu senhor, que foi a senhora Breda que disse ter visto Eile e o teu filho a saírem de Monte Branco ontem, vestida como se fosse fazer uma viagem.

— Correto — disse Aniel.

— A história da caçada deve, pelo menos, levantar questões sobre a fidelidade da sua declaração — disse Faolan. — Eu sou um simples guarda-costas, não sou fidalgo e digo estas coisas abertamente apenas porque estão vidas em jogo e o tempo urge. Senhora Breda, se Eile tencionava fazer de Derelei um refém, por que saiu de Monte Branco sem roupas quentes e sem botas?

Breda olhou para ele, ao mesmo tempo que as pessoas faziam novamente silêncio.

— Mas ela não... quer dizer, ela saiu e levava roupas quentes, claro que levava e o rapaz também. Eu vi-os. Foi o que eu disse.

Garth levantou-se e aproximou-se de Faolan, colocando-se a seu lado.

— Não é verdade, meu senhor Rei. A minha mulher pode testemunhar. As roupas de sair de Eile continuam no quarto dela.

— Eile nunca deixaria Saraid para trás — disse Faolan. — Quem inventou esta história não levou tal fato em linha de conta. Eu não acredito na história da senhora Breda. Eile nunca faria uma coisa assim. Ora, se isto é mentira, então Eile e Derelei continuam algures dentro de Monte Branco.

Bridei sentiu o sangue a fugir-lhe das faces.

— Breda — disse ele — poderá dar-se a hipótese de estares enganada?

— Não, claro que não! Se eu digo que vi, é porque vi. A não ser que fosse outra pessoa qualquer. Quero dizer, há outras mulheres aqui, no fim de contas. E crianças também. Com um capuz e de costas... talvez não fosse ela. Posso ter-me enganado...

— Preciso de uma resposta. — Bridei não conseguia tirar a ansiedade da voz. Derelei, oh deuses, Derelei ali o tempo todo, algures, em silêncio... — O que disseste sobre o modo como passaste o dia foi ou não verdade? Viste o meu filho ou não viste?

— É claro que foi verdade. Pergunta às minhas acompanhantes — disse ela, fixando-as com um olhar furioso. — Elas não iam mentir, pois não?

A rapariga menor, Cria, levantou-se de novo, muito direita.

— Meu senhor Rei, posso falar?

— Por favor.

— Talvez seja melhor ouvi-la em privado — murmurou Keother ao ouvido de Bridei, mas demasiado tarde.

— Eu não me orgulho do que vou dizer — disse Cria. — A senhora Breda disse-nos para mentir e nós obedecemos. Havia razões para tal, razões para não mencionar aqui. Todas nós vimos Eile e as crianças ontem.

O salão foi percorrido por um burburinho e Bridei cerrou os punhos até os nós dos dedos lhe ficarem brancos.

— Continua — disse ele.

— Eile foi aos nossos alojamentos com Breda por causa de umas guloseimas. Na ocasião Anna deu à pequenina uma fita cor de alfazema para ela pôr nos cabelos da boneca, igual às que ela tem neste momento. Depois saíram as duas juntas, com as crianças. A senhora Breda disse-nos que não podíamos ir com elas.

— Ela falou num lugar secreto — disse Anna suavemente. — Queria mostrá-lo a Saraid.

— Quando é que a senhora Breda regressou? — O tom de Faolan lembrou a muitas pessoas por que razão era tão temido.

— Só bastante mais tarde — disse Cria. — E quando o fez, ordenou-nos que mantivéssemos as bocas fechadas. Então, hoje, disse-nos que Eile tinha levado Derelei e que era o que deveríamos dizer se nos perguntassem. Lamento muito, meu senhor — concluiu a rapariga, chorando.

Keother levantara-se.

— Então? Que dizeis? — perguntou ele, virando-se para as outras. — Esta história está certa? Vistes o filho do Rei Bridei com a sua ama e não dissestes uma palavra apesar de a vida da criança estar em perigo?

— Meu senhor — disse Bedo — há razões para estas raparigas não terem dito nada mais cedo, razões que é melhor serem-vos ditas em privado.

Keother ignorou-o.

— Falai! — ordenou ele. — Quem é que está a dizer a verdade? Cria ou a minha prima?

— Isto é escandaloso! — A voz de Breda subira novamente de tom, transformando-se quase num guincho. A mulher de Tharan, Dorica, levantou-se lentamente, colocou-se atrás da cadeira da jovem e pousou-lhe uma mão no ombro. Se foi para a tranqüilizar ou refrear, ninguém percebeu ao certo. O que toda a gente viu foi que a princesa das Ilhas Pequenas a sacudiu com alguma violência.

— Cria disse a verdade — disse a criada de cabelos louros. — Todas nós dissemos o que Breda nos ordenou que disséssemos. Lamento, lamento muito.

— Ela tem razão — disse a quarta rapariga — A senhora Breda não gostava de Cella depois... — A jovem olhou para Bedo. — E também não gostava de Eile. Ela disse que era errado confiar numa celta, que não devia tomar conta dos filhos do Rei.

— Isso é mentira! Eu gostava dela!

— Breda — disse Keother — Não quero ouvir nem mais uma palavra. Nem uma, ouviste? Meu senhor Rei...

Subitamente, Faolan subiu ao estrado e confrontou-se com Breda, quebrando todas as regras do protocolo.

— Onde está ela? — exigiu ele, fazendo Breda recuar. — E onde está Derelei? Que lhes fizeste?

Antes que Bridei pudesse dizer qualquer coisa, Garth agarrou em Faolan por um braço e afastou-o, falando-lhe calmamente.

— Anda, vamos procurá-los. Eu ajudo-te.

— Por tudo o que é sagrado — sibilou Faolan, virado para Breda enquanto o seu camarada quase o arrastava do estrado para baixo — ficas a saber que se lhes aconteceu algum mal, obrigo-te a pagar.

Breda emitiu um pequeno grito de terror.

— Recordo-te — disse Bridei severamente ao seu braço direito — que estás na presença do Rei e dos seus convidados. Controla a tua ira. — Era a primeira vez que o monarca repreendia um dos seus guardas pessoais em público. O olhar de Faolan provocou-lhe tristeza porque sentia o mesmo, uma necessidade compulsiva de se levantar e ir à procura de Derelei e uma ira feroz por aquela rapariga excêntrica ter, por pura parvoíce, evitado que ambos encontrassem rapidamente os seus entes queridos, mas lembrou-se que era Rei e virou-se para os presentes.

— Muitos de vós trabalhastes muito hoje e dormistes pouco. Estais cansados e é tarde. Tharan e Dorica presidirão à refeição. Por favor, comei e ide descansar. O Rei Keother e eu vamos prosseguir esta questão delicada em privado. Peço-vos que vos lembreis que o meu filho continua desaparecido, tal como Eile. Peço-vos que não espalheis histórias que podem não ser verdadeiras. Não aumenteis a nossa angústia espalhando rumores e mexericos. Nós, os de Fortriu, somos pessoas fortes. Dai-me razão. Garth ofereceu-se para ajudar Faolan. Qualquer homem que queira ajudá-los será bem-vindo. Qualquer homem que prefira comer e dormir depois, que o faça de consciência tranqüila. A menos que encontremos hoje os nossos entes queridos, ou que consigamos informações que nos possam ajudar, as buscas continuam amanhã fora das muralhas, como planeado.

Keother estava ao lado de Breda, que soluçava, segurando-a pelo braço. Ao fundo da mesa, o irmão Colm seguia tudo de testa franzida.

— Meu senhor, eu devia estar presente na vossa reunião — disse Faolan. — Preciso de saber...

— Vai, inicia a tua busca — disse-lhe calmamente Bridei. Sai por aquela porta, procura até que aconteça um milagre e encontres os dois sãos e salvos num canto qualquer escondido. Vai. — Se descobrirmos uma informação qualquer que te possa ajudar, mandamos-te dizer imediatamente. Vai, Faolan.

Em redor de Garth e de Faolan formou-se um pequeno grupo de homens: os dois filhos de Talorgen, Dovran, aparentemente exausto, Gavran, o pedreiro real e o seu ajudante e Wid, encostado ao seu cajado. Talvez os restantes estivessem simplesmente cansados. Garth disse-lhes que comessem rapidamente qualquer coisa, que pegassem em archotes e que fossem ter com ele ao pátio inferior.

Bridei regressou à sala do conselho com Keother a seu lado, conduzindo a soluçante Breda. Aniel seguia atrás, seguido por um guarda.

— Deuses, Bridei — resmungou Keother — se isto é o que parece, não sei que te diga. Eu devia ir com eles, participar nas buscas.

— Só te peço uma coisa esta noite — disse o Rei. — Vigia a tua prima. Se aconteceu alguma coisa ao meu filho por causa das mentiras da senhora Breda, Faolan não será o único a querer vingar-se. Se Derelei estiver ferido, se estiver morto, a tua prima pagará com sangue. Não duvides. Ficarás a saber o que significa ofender o Rei de Fortriu.

O instinto foi-lhe fundamental. O animal cuja forma ela pedira emprestada percorria rápida, cuidadosa e suavemente a floresta numa dança de luz e sombra, de disfarce e exposição rápida e calculada. O faro abria-lhe o caminho e a visão ajudava-a a evitar sarilhos. Na orla da grande floresta que cobria as encostas do Lago da Serpente, um cão selvagem perseguia a sua presa. Tuala trepou para a segurança. As garras e os músculos levaram-na pelo tronco de um carvalho novo acima sem precisar, sequer, de pensar. Escondida entre os ramos, com os pêlos em pé, tentou, com alguma dificuldade, chamar a si a compreensão humana, maravilhada com o modo como o instinto a ajudara na sua forma emprestada. Tinha de ter mais cuidado; tinha de se lembrar que era pequena, vulnerável, que andavam à solta predadores esfomeados. Quando o Sol já estava baixo no horizonte, Tuala sentiu outro odor, um odor doce, familiar, se bem que os seus sentidos animais o achassem confuso. Havia marcas no solo, aqui e ali e ela achou que eram de pés pequenos revestidos de couro suave.

A parte que continuava a ser Tuala, que se servia de todas as suas forças para se conseguir dominar, desejava desesperadamente mudar, voltar a ser humana, chamar o filho, correr atrás dele. O dia estava a terminar rapidamente e na floresta estava escuro. Tuala ansiava por encontrá-lo, abraçá-lo, chorar de alívio por ele estar salvo. A outra parte, a instintiva, a parte animal, hesitava, farejava o odor estranho, cautelosa. Tuala continuava escondida, hesitante, com a mente dividida, quando ouviu um restolhar atrás de si, levantou-se e virou-se num único movimento com a cauda eriçada quando a raposa presunçosa se atirou a ela através da pequena clareira.

Tuala rosnou e atacou com as garras de fora. Com um ganido, a raposa retirou, sangrando do nariz. Tuala fugiu a coberto das árvores, escondeu-se por baixo de um maciço de fetos e recordou a si própria que tinha mudado de forma por uma questão de rapidez e segurança. Se quisesse chegar a Derelei incólume, tinha de seguir sempre o instinto. Sem confusões, sem erros.

O crepúsculo chegou e a floresta ficou ainda mais escura. A sua visão mudou com a falta de luz e Tuala descobriu que podia continuar a seguir o rasto que pensava ser do seu filho. Talvez estivesse naquele momento a dormir, enroscado num maciço de fetos, algures; talvez não o visse ao passar. Não, o faro guiá-la-ia.

Era preciso atravessar um curso de água, uma coisa de que não gostava, pelo menos sob aquela forma. A parte humana da sua consciência tentou não pensar demasiado em Derelei e no fato de ele ainda não compreender o significado de muito e pouco profundo. Já no outro lado, a necessidade de parar e lamber o corpo para o secar era premente. Tuala fê-lo com as orelhas esticadas, à procura de sons perigosos, mas tudo o que ouviu foi gritos de pássaros e uma corrida precipitada. O instinto da caça apoderou-se dela, mas conseguiu dominá-lo. Se aquilo levasse muito tempo, teria de caçar para comer, mas não por enquanto, só quando fosse mesmo preciso.

O odor tornou-se mais forte. Antes de escurecer por completo, emergiu de entre uns sabugueiros para a margem de um curso de água mais largo e lá estava Derelei, sentado numa pedra. Tuala ficou imóvel por um momento, olhando para ele com o amor e o alívio a percorrerem-lhe a alma. Havia insetos por toda a parte e as suas pequenas mãos tentavam matar infrutiferamente aqueles companheiros indesejados; conseguia quase ouvi-lo a pensar, via-lhe o conflito no rosto. Cansado até aos ossos, o corpo dizia-lhe que eram horas de dormir, horas de mimos, histórias e um último beijo antes de ir para a cama. Esfomeado e sequioso, perguntava a si próprio onde estaria o seu jantar. Tuala viu-o bocejar e depois levantar-se, pronto para seguir ao longo da margem. A boca tremia-lhe e os olhos mantinham-se estoicamente abertos. E não estava só. Assim que se levantou, apareceram duas silhuetas a seu lado: uma rapariga minúscula, sobrenatural, de pele tão branca como a neve e com um traje que parecia feito de fumo e um rapaz robusto de pele castanha-escura e hera a servir de cabelo. Derelei olhou para eles e começou a andar. Era evidente que os aceitara como companheiros da sua jornada solitária.

Tuala respirou fundo e quando saiu de trás das árvores na sua forma animal, o rapaz e a rapariga viraram-se em uníssono, olharam para ela e os seus rostos não eram de crianças, antes de criaturas bastante mais velhas, demasiado familiares. Teia, pensou Tuala. Madressilva. Tinham sido eles que o tinham levado até ali...

Ouviu-se uma risada que mais parecia o repique de um sino. A rapariga de pele pálida agitou as madeixas de cabelos prateados, mas não disse uma palavra. O rapaz levantou uma mão com dedos que pareciam gravetos e fez uma espécie de saudação a Tuala, que pensou ouvir os seus pensamentos: Somos apenas companheiros de jornada. O teu filho é que ê o chefe. Um momento mais tarde, o rapaz e a rapariga desfaziam-se em nada.

Tuala avançou, arrastando os pés e o filho virou-se ao ouvir o som. A sua boca abriu-se num grande sorriso.

— Mãe! — exclamou ele.

Tuala mudou para a forma humana e tomou-o nos braços.

— Rapaz inteligente — murmurou ela com as lágrimas a aparecerem-lhe nos olhos. Conseguira, Derelei estava salvo. — Eu sabia. Vim ajudar-te, querido. Ajudar a encontrar Broichan? É o que estás a fazer, não é?

— Bawta — disse Derelei, abraçando-a e bocejando novamente.

— Dormir, primeiro. Vamos ver se encontramos um lugar quente para nos enroscarmos.

Havia um buraco por baixo de um carvalho. Alguns fetos fizeram de colchão e a capa de Tuala cobriu-os. Derelei tinha fome e sede e também estava molhado e sujo. Tuala mudou-lhe a roupa de baixo, servindo-se de peças que metera no cinto. Em seguida, a Rainha de Fortriu desapertou o corpete, deu ao filho o leite que seria de Anfreda e ele bebeu-o como o bebê cansado que era. Quase a adormecer sob um céu povoado de estrelas, Tuala agradeceu à Aquela que Brilha por lho ter entregue são e salvo, tentou adivinhar qual o papel desempenhado pelos seus dois companheiros de infância e se eles iriam começar a aparecer com mais freqüência, procurando desempenhar outro papel no crescimento de Derelei. Talvez tivesse sido ele a chamá-los. Tuala ponderou no fato de uma criança possuidora de poderes tão espantosos ser, ao mesmo tempo, tão frágil e tão vulnerável como outra qualquer da mesma idade. Como seria se conseguisse chegar a homem são e salvo?


CAPÍTULO DEZOITO

 

Faolan e Garth estavam à espera do resto do grupo. A tranqüilidade cobriu, por instantes, o pátio. Não havia lua, as estrelas mal se viam no longo e fantasmagórico crepúsculo de Verão e até as aves noturnas estavam silenciosas. Estava frio. Estivesse onde estivesse, Eile estava sem a capa. Faolan sabia que devia estar a fazer planos, a servir-se da lógica, mas esta tinha-o abandonado por completo. Subitamente, o assassino compreendeu o que era a fé; o desejo compulsivo de confiar numa força desconhecida, numa divindade boa e protetora. Ou talvez precisasse antes do instinto de um animal selvagem, a capacidade de procurar e encontrar pelo faro, por sons subtis, por mudanças no ar que faziam com que os pêlos se eriçassem e a respiração ficasse presa na garganta.

— Achas... — começou Garth.

— Chhh. Só um momento — disse Faolan, imobilizando-se e fechando os olhos. No seu coração ele chamou por ela, um grito de fé, de esperança, instintivo: Amo-te! Onde estás? Em seguida, silêncio. Silêncio total, salvo o bater do seu coração.

Faolan sentiu uma mudança na luz e abriu os olhos. Os homens estavam a chegar com os archotes: Garvan, Wid, Uric e mais um ou dois, entre eles a figura sem pretensões de Suibne com dois dos seus irmãos.

— O irmão Colm autorizou-nos a ajudar-te — disse o tradutor em gaélico. — Entretanto ele e os outros vão rezar para que encontremos a tua mulher e o filho do Rei sãos e salvos.

— Mulher? — Garth levantou as sobrancelhas.

— É uma longa história — disse Faolan, agradecendo ao monge.

— Bedo foi chamado pelo Rei — disse Uric. — A tal rapariga, Cria, também. Aniel prometeu mandar-nos um mensageiro assim que souberem alguma coisa de útil. Posso fazer uma sugestão?

— Sê breve — disse Garth.

— Devíamos começar pelos aposentos de Breda. Foi o último sítio onde foram vistos pela última vez.

Garth olhou para Faolan.

— Era por onde estávamos a começar ontem à noite, quando chegaste com Saraid — disse ele. — Estávamos mesmo só a começar. Está bem. Grupos de dois. Um archote para cada grupo. Faolan com o irmão Suibne. Dovran com Wid. Garvan com Uric. — Um homem experiente com um inexperiente, um mais forte com um mais fraco, um mais velho e mais sábio com um mais novo e mais atlético. — Vasculhai todos os quartos, de cima a baixo. Não importa se o ocupante é convidado da corte. Abri as arcas, espreitai para as privadas, não deixeis nada por examinar. Ao menor sinal de qualquer coisa esquisita, informai-me imediatamente, ou a Faolan. Compreendido? — perguntou ele, escondendo um bocejo. — E todos alerta — acrescentou.

— Não sei o que queres que eu diga — protestou Breda, enxugando os olhos com um lenço delicadamente bordado. — Toda a gente diz uma coisa diferente, até as minhas criadas dizem coisas cruéis. Sinto-me terrivelmente confusa. E assustada. Aquele homem, o teu guarda-costas, meu senhor, tinha obrigação de saber que não me pode ameaçar daquela maneira. Também, é celta. Eile não veio com ele? Já te ocorreu que ele pode fazer parte da conspiração?

— Breda — disse Bridei, quase a perder a paciência — nós só queremos que nos digas a verdade. Isto só aconteceu ontem. Não te podes ter esquecido. Parece que não percebes a gravidade da situação. O teu estatuto, o teu sangue real, não te tornam imune perante acusações destas.

A jovem olhou para ele.

— Acusações? Que queres dizer?

Estavam na sala do conselho havia algum tempo. Cria, com a sua narrativa hesitante cada vez mais firme à medida que se apercebia de que aqueles homens acreditavam nela, contara uma história sinistra de ciúmes, ressentimento e retribuição, pequenas omissões e erros punidos com vergastadas e crueldades subtis. A jovem avançara uma teoria partilhada em segredo com as colegas, que Breda provocara o acidente na caçada em parte numa tentativa deliberada de magoar Cella e em parte por simples velhacaria. Todas elas sabiam que a princesa das Ilhas Pequenas não tolerava um dia sem um drama. Se as coisas se tornavam demasiado aborrecidas, Breda fazia qualquer coisa para as animar.

Bedo relatara o que ela lhe tinha dito sobre os ciúmes e como ela podia ter feito de Eile um alvo. Entretanto, Breda observava-o de olhos semicerrados.

— Estás em vias de te tornar responsável pela morte de Cella — disse-lhe Bridei. Se não queres ser acusada de mais mortes, diz-nos onde foste ontem de manhã com Eile e as crianças e onde os deixaste. E deixa-me que acrescente, em defesa de Faolan, que é um velho amigo meu, que estive a esta distância de agarrar em ti e arrancar-te a verdade. E agora fala. A pergunta é simples.

— Não estou a gostar disto. — A voz de Breda era aguda e tensa. — Penso que não vou dizer mais nada. Parece que estou a ser acusada de... assassínio — disse ela, virando-se para Keother. — Tu és meu primo — disse ela com voz queixosa. — Supostamente deves proteger-me.

— Sou rei, tal como Bridei. E sim, sou teu primo, o que me permite fazer o que ele não pode. — Keother aproximou-se dela. A luz das velas iluminava as faces pálidas e molhadas da jovem, os seus olhos azuis rasos de água, os seus cabelos dourados em cascata pelas costas abaixo. O Rei das Ilhas Pequenas agarrou-a pelos ombros e abanou-a com força. — Diz a verdade! — rugiu ele. — Diz ao Rei Bridei o que viste! Não quero as mãos da família manchadas com sangue inocente!

Breda empalideceu.

— Levamos as guloseimas para um... um... armazém — murmurou ela. — Para um quarto fechado a cadeado, um espaço escuro, bolorento. A miúda disse que queria explorar. Fazia parte de um jogo que Eile estava a jogar com eles; ter uma aventura, descobrir coisas. Eu disse que talvez não fosse o sítio ideal para se ir, especialmente com crianças, regressei ao meu quarto e depois fui para o jardim.

Talvez tivesse, finalmente, dito a verdade. Keother suspirou.

— Por que não o disseste antes? Para quê tanta mentira?

— Aniel — disse Bridei calmamente — manda imediatamente uma mensagem a Garth ou a Faolan, por favor.

— Eu estava assustada — disse Breda, aparentemente angustiada. — Quando soube que tinham desaparecido, pensei... pensei que me atirariam com as culpas. A culpa não foi minha, nem sequer lá estava. Depois daquilo não. Quando os deixei estavam bem. A sério.

— Meus senhores — disse Bedo — dais-me licença? Disse-vos tudo o que sabia. Quero juntar-me às buscas. Posso levar a mensagem.

— Vai — disse Bridei — e que os deuses te acompanhem. Lembra a Garth onde é o poço abandonado. — O seu estômago estava todo retorcido. O poço. O poço por trás da porta fechada a cadeado, tão seguro que ninguém pensara nele como um perigo. Talvez nem sequer o tivessem examinado por estar ao fundo do longo corredor por baixo dos aposentos de Breda, um sítio onde os homens não tinham ido porque tinham sido desviados para a floresta, levados por um falso alarme. Com que então, é assim que te vingas de mim. Dás-me o meu próprio Poço das Sombras. Bridei pensou ouvir o riso amargo de O Que Não Tem Nome, Na sua mente, Derelei jazia na escuridão qual boneca com os membros abertos e o crânio esmagado.

— Keother — disse Bridei — não posso continuar com isto esta noite. Penso que é melhor a senhora Breda ficar aqui até que a área em redor dos seus aposentos seja vasculhada. Sugiro que as acompanhantes dela durmam nos alojamentos das nossas mulheres a partir de agora. Dorica arranja-lhes camas e uma criada para a tua prima. Desculpa-me?

— Claro, meu senhor.

— Bridei — disse Aniel, dispensando as formalidades — acho que não deves juntar-te às buscas. Temos de nos preocupar com a segurança. Vou dar ordens para que te sirvam o jantar nos teus aposentos privados. Eu próprio irei ter contigo assim que houver notícias.

Bridei conseguiu acenar polidamente com a cabeça e saiu da sala antes de começar a tremer. O Rei conseguiu chegar aos seus aposentos antes que as lágrimas lhe caíssem pelas faces. Então, visto que não era apenas marido e pai, também era Rei, não foi ter com Fola nem foi ver Anfreda; ajoelhou-se no canto que pusera de lado para as suas orações, fez um esforço para se acalmar e começou a rezar. Naquela noite, porém, pela primeira vez na sua vida, por mais que tentasse, por mais que procurasse na sua alma, não conseguiu obedecer à vontade dos deuses.

Encontraram a porta antes de receberem qualquer mensagem. O irmão Suibne levantou o archote; à sua luz oscilante, Faolan examinou a corrente que a mantinha fechada. Não era fácil de abrir. Os buracos através dos quais ela passava eram demasiado estreitos para se poder meter uma mão. Parecia pouco provável que Eile tivesse entrado num sítio daqueles. No entanto Faolan sentiu subitamente frio, como se uns dedos gelados lhe tivessem agarrado o coração.

— Aproxima mais o archote — disse ele. — Esta corrente tem qualquer coisa, está pegajosa. Vês?

— Óleo? — sugeriu Suibne.

Faolan, porém, já sabia o que era e abanou a porta com alguma violência, tentando abri-la.

— Segura no archote — disse Suibne. — Talvez eu consiga meter a mão.

— Ela está aqui dentro — murmurou Faolan. — Sei que está. Sinto-o. Eile! — Não ouviu qualquer som, salvo um matraquear surdo quando Suibne tentou meter a mão no buraco e abrir o fecho.

— Está quase... Calma, Faolan. Deus vai ajudar-nos. Ah, cá está... Agora preciso de a tirar... Deus nos ajude, isto é sangue?

A corrente estava aberta. Faolan meteu o archote na mão do monge e empurrou a porta. E lá estava ela, uma forma inerte no chão, o vestido rasgado e todo sujo, branca como um cadáver, os olhos fechados, os braços e as pernas abertos. Faolan caiu de joelhos junto dela, fazendo um esforço para não a tomar nos braços e chegando-lhe o ouvido aos lábios e encostando-lhe gentilmente os dedos ao pescoço. Na sua mente um apelo desesperado, sem saber a quem: Que ela viva. Que eu não a perca.

— Deus misericordioso — murmurou o irmão Suibne, metendo a cabeça pela porta para gritar: — Aqui! — Na língua priteni. O monge voltou a entrar, erguendo o archote para iluminar as pedras acima do solo que circundavam o sombrio poço e revelar o espaço estreito na base da parede exterior.

Durante alguns momentos intermináveis, o coração de Faolan esqueceu-se de bater. Então, ouviu o sussurro fraco da respiração da jovem, o lento pulsar do seu sangue, tirou a túnica e cobriu-a, tocando-lhe na testa com os lábios, ao mesmo tempo que os olhos se lhe enchiam de lágrimas.

— Está viva — disse ele, parecendo-lhe as palavras mais doces do mundo.

— Faolan. — Algo na voz de Suibne o alertou. — Há aqui um poço.

Ele fez um esforço, levantou-se e deu um passo para espreitar. A luz do archote mostrou aos dois homens a prova de uma escalada cruel. Eile deixara sangue na parede do poço, as suas mãos, num esforço final, tinham marcado o rebordo coberto de musgo com um rasto vermelho desesperado. Era evidente que, assim que se vira salva, deixara-se cair na inconsciência antes de poder, sequer, gritar por socorro. Suibne ergueu o archote para iluminar o fundo do poço. Com o coração nas mãos, Faolan olhou para baixo. O poço estava vazio.

— Deus seja louvado — disse Suibne em voz baixa. — Pensava que a criança estava lá em baixo e que isto tinha sido uma tentativa heróica de salvação. Que aconteceu aqui?

— Vem e olha para isto. — Faolan, mais uma vez acocorado junto de Eile, examinava-lhe as mãos. A luz do archote incidiu sobre as unhas partidas, as palmas das mãos raspadas, os dedos em carne viva. As suas delicadas botas de andar por casa estavam todas rasgadas e os pés eram uma massa de cortes e bolhas. Os seus joelhos estavam profundamente esfolados, cheios de porcaria.

— Ela tem um ferimento na têmpora — disse Suibne. — Ali. É melhor mexer-lhe com cuidado, pode ter ferimentos que não podemos ver. A queda é muito grande e a escalada foi terrivelmente perigosa. Toma a minha capa, ela está gelada.

— Garth! — gritou Faolan. — Anda cá abaixo! — Ignorando o conselho do monge, pegou em Eile.

— Faolan? — A voz de Suibne era suave. — Será possível, pergunto eu, uma criança caber naquele buraco? Se tal acontecesse, uma mulher não conseguiria tirá-la antes que ela saísse por completo, precisaria de lançar o alarme. Seria preciso sair pelos portões e dar a volta à muralha para a encontrar. As árvores são grossas naquela encosta.

— Hum — disse Faolan, apertando Eile contra si, perguntando a si próprio se o seu coração estaria de certeza a bater.

— Talvez tivesse escorregado e caído na pressa de pedir ajuda?

— Não. Com outra pessoa qualquer, talvez, com Eile não. Além disso... — disse ele, tocando gentilmente na crosta de sangue que a jovem tinha na cabeça. — Suibne?

— Sim?

— Pega na corrente, enrola-a, mete-a na algibeira e esconde-a num sítio qualquer. Não quero que ninguém lhe ponha as mãos. Se aquilo pegajoso é o sangue dela, quero a verdade. Exijo justiça.

— Qualquer pessoa pode dizer, claro, que nós é que estamos a sonegá-la. De fato, já tenho o objeto em questão guardado. Admiro muito esta jovem, Faolan, seja ela tua mulher ou outra coisa qualquer. Assisti à sua coragem e à sua gentileza na nossa viagem para Dalriada. Vi a sua devoção pela criança e a sua confiança em ti. Vou rezar para que recupere.

Archotes, vozes e som de passos. Garth apareceu e logo a seguir a ele a silhueta volumosa de Garvan com Uric logo atrás. Depois, mais homens: Wid, notavelmente rápido e Dovran, com o rosto cinzento de pavor.

— Ela está aqui e está viva. Não há sinais de Derelei. Garth, preciso de a levar imediatamente daqui. Eile está ferida e gelada.

Exclamações de preocupação, de choque; uma capa quente — a de Wid; Garvan a oferecer-se para levar Eile. Era-lhe difícil entregá-la e Faolan só o fez porque sabia que o musculoso pedreiro a transportaria mais depressa do que ele. Já tinha exigido de mais do seu joelho, temia que ele cedesse a qualquer momento.

— Garth — disse ele calmamente — sela este sítio. Não deixes ninguém entrar aqui. Pode ser importante.

— Claro. E melhor levar Eile para os alojamentos das mulheres, não? E chamar Fola.

— Não quero perdê-la de vista — disse Faolan. — Leva-a para o quarto dela. Eu tomo conta dela, pelo menos até amanhã. Se for considerado impróprio, paciência. Precisamos de Fola. Importas-te de dizer a Bridei o que aconteceu e perguntar-lhe se ela pode vir? — Tinham começado a subir, Garvan à frente com Eile ao colo e Dovran a seu lado com um archote. — Garth? — murmurou Faolan.

— O que é, meu amigo?

— Leva Saraid contigo, mesmo que esteja a dormir.

— Além de curandeiro também és ama?

— Por favor.

— Está bem. Penso que tu próprio também precisas de um curandeiro. Nunca te vi chorar assim.

— Isto merece mais do que lágrimas — disse Faolan. — Derelei continua perdido e não sabemos os danos sofridos por Eile. Eu já tenho algumas respostas, mas não farei nada enquanto os ferimentos dela não forem tratados e ela não estiver em segurança e quente. E tu tens de dormir. Prometi-te descanso e afinal, isto. Não é vida para um homem com mulher e filhos.

Queria ficar junto dela, fazer o que era preciso, vigiá-la constantemente, estar a seu lado quando recuperasse a consciência. Queria estar presente para a tranqüilizar e mitigar-lhe as dores. Queria dizer-lhe o que não se atrevera a pôr em palavras antes.

Fola, porém, tinha outras idéias e perante a sua vontade formidável e competência indubitável, Faolan retirou-se para o quarto menor, o que tinha o cobertor verde, roendo as unhas. No quarto que fora de Ana, a lareira fora acesa e havia velas acesas. O assassino espreitou pela porta meio fechada. Uma criada entrou com mais cobertores. Alguns homens, seguindo as instruções calmas da mulher sábia, foram buscar água quente para a lavar, comida e bebida. Elda chegou com um cesto de ervas e loções e uma camisa-de-noite lavada. Então, as duas mulheres fecharam a porta e Faolan foi deixado sozinho a andar de um lado para o outro.

O tempo passava e ele pensava que enlouquecia. Estavam a demorar tanto tempo. Estaria a correr alguma coisa mal? Faolan imaginou-a a fugir-lhe entre uma inspiração e a seguinte, pensou nela a acordar, confusa e aterrorizada, pensou nela a não acordar de todo, imaginou a corrente e a mão que a tinha manuseado, uma mão má, despótica. Estava em vias de entrar pelo outro quarto dentro para dizer não sabia o quê quando ouviu alguém a bater-lhe à porta e depois a voz de Garth.

— Estamos aqui.

Saraid não estava totalmente a dormir, tinha a pequena camisa-de-noite vestida, estava embrulhada num cobertor e tinha a Lamento nos braços.

— Mãe? — disse ela em voz muito baixa, duvidosa.

— Disse-lhe que a mãe tinha voltado mas que estava a dormir — disse Garth.

Faolan anuiu e pegou na criança.

— Obrigado. Falaste com Bridei?

— Contei-lhe o que sabemos. Parece que Fola também viu qualquer coisa. Parece que Derelei está fora das muralhas e que é capaz de estar vivo. Sabes o que significa, Faolan.

— Mais um dia de buscas.

— Vais?

Faolan olhou para o rosto solene de Saraid e escutou as vozes suaves e competentes das mulheres no quarto adjacente. Era o chefe dos guarda-costas de Bridei, era responsável pela família do Rei.

— Penso nisso amanhã — disse ele. — Suponho que decidiste interromper as buscas no interior das muralhas?

— Ordens do Rei. Ele acredita na visão de Fola.

— Nesse caso é melhor ires deitar-te. Obrigado por tudo. És um verdadeiro amigo.

— Farias o mesmo por mim — disse o guerreiro.

Depois de Garth sair, Faolan e Saraid sentaram-se lado-a-lado na cama e ele cantou-lhe a canção de Lamento. No último verso, lamento estava de guarda na floresta, vigilante e silenciosa e à passagem de Faolan e do corajoso Ban, alertava-os para o perigo. Assim, Saraid era salva. O assassino prolongou-a, na esperança de que a pequena pudesse ver a mãe antes de adormecer, mas quando a canção chegou ao fim, a porta continuava fechada.

— Mãe? — perguntou a pequenina. — Casa do monte?

— Esta noite a tua mãe está demasiado cansada para te contar uma história. Eu conto. Esperamos até que ela esteja pronta. Contamo-la juntos.

— Faolan? — A porta abriu-se uma frincha e a cabeça de Fola entrou por ela. — Oh — disse ela, olhando para Saraid. — Posso falar em frente da criança?

Faolan sentiu-se outra vez gelado.

— As notícias são más?

— Não muito, mas Eile ainda não recuperou totalmente a consciência.

— Diga-me agora, então. Podemos vê-la?

— Senta-te, Faolan. Vamos devagar. Eu não posso ficar com ela de noite e Elda também não. Como recusaste outra ajuda qualquer, tenho de te explicar o que deves fazer. Sei que não ouves se estiveres no outro quarto. Anda lá, senta-te. Muito bem — disse Fola, sentando-se na arca. As mangas da sua túnica estavam arregaçadas até aos cotovelos. — Aquecemos Eile e tratamos-lhe dos ferimentos. Ela respondeu ao banho e ao calor da lareira, conseguiu engolir algumas gotas de água. É importante que lhe dês de beber sempre que ela vier suficientemente a si para poder engolir. Mas não muito de cada vez. Há pão e um pouco de sopa, podes aquecer a panela na lareira. Não tem importância se ela não comer nada. Temos tempo, amanhã. Mas tem de beber.

— Ela...

— Deixa-me acabar. Examinamos cuidadosamente para ficarmos a saber o estado dela. A parte o golpe na cabeça, penso que o ombro esquerdo não está bem. Ela retraiu-se quando lhe tocamos, mas penso que não tem nada partido, ou não teria conseguido trepar até acima. Vai perder algumas unhas. — Fola olhou para Saraid, a qual tinha os olhos muito abertos. — Não há sinais de abuso. Não te posso dizer como sofreu o ferimento que tem na têmpora. Talvez tenha sido na queda. Por outro lado, pode ter sido o golpe a causa da queda. Ela tem umas marcas...

— Sim — disse Faolan. — Quais são os danos para além do ferimento?

— Não te posso dizer. Pode não os haver a longo prazo. É espantoso como ela não tem ossos partidos, Faolan — disse a mulher sábia, olhando solenemente para ele. — Viste as marcas na cabeça dela. Eu acho que ela perdeu a consciência antes de cair. A largura do poço reduziu os danos provocados pela queda. Não vou tornar públicos os pormenores particulares do ferimento antes de fazer mais algumas perguntas.

— Se estás a dizer o que eu penso — comentou Fola, semicerrando os olhos — é melhor não perderes muito tempo nas tuas investigações. Esta noite vais precisar de todas as tuas energias para Eile. Ela vai sentir-se confusa e angustiada quando acordar por completo. Mantém-na calma. Elda deixou-te uma pomada para lhe pores nas mãos e nos pés. Põe-lha com freqüência. E chama uma de nós se precisares, Faolan. Volto de manhã.

— Gostávamos de a ver agora. Fola sorriu.

— Tens sido paciente. Não esperes dormir muito esta noite.

— Garth disse que viste qualquer coisa acerca de Derelei. Podes dizer-me o quê?

— Geralmente não partilho as minhas visões com o mundo — disse a mulher sábia, levantando-se. — Mas percebo que tens de tomar uma decisão difícil de madrugada; o amor em conflito com o dever. Sim, vi Derelei.

— Onde? Ele estava bem?

— Vi-o a caminhar pela floresta, sozinho. Seguia com grande confiança. Parece-me que a teoria da mãe dele está correta. Derelei não foi raptado; não fugiu nem se perdeu. Apesar de ter apenas dois anos, partiu em missão.

— Derry foi embora — disse Saraid, acenando solenemente com a cabeça.

— Onde é que ele foi, Esquilo? — Faolan sentia o coração na garganta, mas manteve o tom de voz calmo.

— Derry foi embora. Para a floresta. Tudo escuro.

Faolan olhou para Fola e ela devolveu-lhe calmamente o olhar. A decisão estava tomada, não haveria mais perguntas naquela noite.

— Saraid — disse a mulher sábia — a tua mãe está muito cansada, está a dormir. Podes ir vê-la, mas não a acordes. Boa sorte, Faolan. Não hesites em pedir ajuda, se precisares. Sinto que não vai ser nada fácil para ti.

Faolan, porém, já tinha ido para o outro quarto, onde Eile estava deitada na grande cama, uma forma franzina por baixo de vários cobertores de lã. As chamas da lareira, brincando com as tapeçarias suspensas das paredes, representando árvores, flores e animais, davam ao quarto um ambiente quente, seguro, confortável. Saraid subiu para a cama e meteu-se debaixo dos cobertores, o mais perto da mãe que conseguiu.

— Mãe está em casa — disse ela. Um momento mais tarde a pequenina começou a chorar, um som baixo, reprimido, que pouco depois se transformou numa sucessão de soluços quando ela se agarrou a Eile e lhe enterrou a cabeça no peito.

Faolan não deu a si próprio tempo para pensar; deitou-se ao lado de Eile, por cima dos cobertores e passou o braço por cima dela e da filha.

— Pronto, Saraid — murmurou ele. — Já passou. — Um cansaço terrível apoderou-se dele, não apenas por causa da dor na perna. Sentia os olhos arenosos, reflexo de muitas noites sem dormir. Faolan apercebeu-se de como o homem era pequeno e impotente perante os atos violentos e arbitrários do destino e recordou Encruzilhada do Rabequista e a noite em que toda a sua vida tinha mudado.

O choro de Saraid esmoreceu. Faolan afagou-lhe os cabelos, os de Eile e sentiu as lágrimas a caírem-lhe novamente pelas faces.

— História agora. Por favor — disse uma vozinha alguns momentos depois.

Faolan suspirou.

— Está bem, vou tentar, mas tens de me ajudar. Não a conheço tão bem como a tua mãe. Era uma vez uma menina que vivia com a mãe e o pai...

— Numa casa num monte.

— A casa era pequena, chegava apenas para os três.

— Galinhas — disse Saraid. — Gato.

— Chegava para todos. Três galinhas, uma preta como o carvão, uma castanha como... como a lama...

— Uma castanha como a terra.

— E uma branca como a neve. E um gato. Fofinho, não é?

— Hum. Jardim.

— Ela... ela arrancava as ervas daninhas, punha estacas para os feijões e sonhava, olhando para o tanque.

Eile agitou-se, emitindo um pequeno som.

— Parece que a mãe está a acordar — disse ele, tirando lentamente o braço para não a assustar e levantando-se.

— Mais história. Pai não está. Ovos.

Faolan olhou para Eile enquanto levantava uma mão para lhe tocar na têmpora, vendo-a agitar as pálpebras e tentando engolir.

— Quando o pai chegou a casa ele fez-lhe ovos para o jantar — murmurou ele — e juntou-lhes as ervas que ela tinha plantado no jardim. Não me lembro dos nomes.

— Tomilho, salva, calaminta — disse Saraid, sonolenta.

— E quando lhos serviu, ele disse Menina linda. Então, ela percebeu que o pai e a mãe a amavam muito e que ela era a rapariga mais sortuda do mundo. Eile, estás acordada?

— Faolan? — A voz dela era áspera, seca e dolorosa. — Que aconteceu? Dói-me a cabeça. E tenho sede.

Faolan foi buscar água, amparou-a pelos ombros para ajudá-la a sentar-se e segurou na caneca enquanto ela bebia.

— Só um bocadinho.

Eile olhou para ele por cima da borda da caneca com um olhar indistinto e um rosto fantasmagórico, pálido e magro.

— Tiveste um acidente muito feio e nós não te encontramos imediatamente — disse ele, cuidadosamente. — Estavas cheia de frio. Temos de levar as coisas lentamente. — Faolan pousou a caneca e sentou-se na beira da cama.

— Que aconteceu? Não me lembro de nada. Que dia é hoje? Quanto tempo...? — Eile começou a tremer.

— Mãe cair. Fundo, muito fundo.

— Oh deuses, Faolan. Saraid magoou-se? — perguntou ela, apertando a pequenina contra si.

— Não. Desapareceu durante algum tempo, mas não lhe aconteceu nada. Ela não nos diz o que aconteceu. Eile, tu andaste a passear com ela e com Derelei e depois desapareceste... — Faolan contou-lhe o que sabia, mas não mencionou Breda. — E encontramos-te junto do poço. Olha para as tuas mãos, Eile. Não te lembras?

A jovem olhou para as próprias mãos, besuntadas de pomada e envoltas em ligaduras. O seu olhar era de confusão.

— Mãe tem dói-dói — disse Saraid.

Os tremores de Eile tornaram-se convulsivos.

— Deita-te. Deixa-me...

— Tenho tanto frio, Faolan. Creio que nunca mais volto a aquecer.

Faolan levantou-se e pôs mais lenha na lareira. O quarto estava mais quente do que devia, começava a ficar desconfortável. Quando se virou, Eile estava outra vez sentada.

— Tu estiveste aqui deitado com um braço por cima de nós, não estiveste? — perguntou ela. — Nessa altura não tive tanto frio. E senti-me segura. Quem mais é que está aqui, Faolan? Pareceu-me ouvir vozes de mulher.

— Fola esteve aqui com Elda, mas agora só estamos aqui os três. É noite.

— Deite-te junto de nós. Aquece-nos.

Ele obedeceu, deitou-se por cima dos cobertores e pouco depois Saraid dormia, corada, com um braço em redor da mãe e com a Lamento encostada ao peito. Eile e Faolan, porém, ficaram acordados. É como no sonho, pensou ele. O sonho bom, no qual acordo com ela nos braços. Mas cruelmente mudada. Que dirá ela quando souber que Breda tentou matá-la? Porque sabia intimamente que fora o que acontecera. O instinto e a evidência diziam-lhe que não podia haver outra explicação.

— Faolan?

— Hum?

— Obrigada.

— Porquê?

— Por estares aqui. Por cuidares de mim. Por teres ido à minha procura. Faolan, eu... Tu falaste no poço. Creio que me lembro de trepar por ele acima. Terei imaginado?

— Não, mo cridhe. Trepaste até em cima. Foi um ato fantástico de coragem, mas quando chegaste ao topo, creio que ficaste sem forças. Não me agradeças por te ter encontrado. A culpa foi minha por termos chegado lá tão tarde.

— Porquê? Quanto tempo estive lá?

— Quase dois dias e uma noite, Eile. Não admira que tenhas tanta sede.

Faolan sentiu subitamente uma grande tensão a percorrer-lhe o corpo.

— Derelei. E Derelei? Está salvo? Tinha de lhe dizer a verdade.

— Não sabemos. Pensamos que está lá fora, mas ainda não o encontramos. Tuala teve uma visão e nela ele estava vivo e bem, algures na floresta. Esperamos que ela não esteja enganada.

Eile não disse nada durante alguns momentos.

— Eu é que estava a tomar conta dele — disse ela com voz trêmula e fraca. — A culpa é minha. Porque não me lembro? Um poço. Como é que fui para junto de um poço com eles?

Os lábios de Faolan estavam encostados aos cabelos dela e o seu braço passava-lhe por cima do peito, levemente, para não lhe magoar o ombro. Calmamente, ele falou-lhe da busca levada a cabo por Tuala e do que fora necessário fazer para manter a manter secreta.

— Não me lembro de nada — murmurou ela. — Exceto... penso que o meu pai estava lá, no fundo do poço. Eu só queria deitar-me. Doía-me tudo e ele disse: Luta. O meu pai não me deixou desistir.

— E tu trepaste.

— Suponho que sim. As minhas mãos estão uma desgraça, não estão? Por que é que a cabeça me dói tanto, Faolan?

— Tens uma data de cortes e nódoas negras. Tiveste sorte, não partiste nada. — Faolan levantou-se e dirigiu-se à lareira. — Queres um pouco de sopa?

Ela abanou a cabeça, gemendo de dor.

— Não quero nada. Sinto-me mal. Devia tê-lo protegido. Eles confiaram em mim e agora ele desapareceu. Ele é tão pequeno...

— Chhh. Falamos disso amanhã. Deita-te.

— Faolan?

— Hum? — Ele estava a atiçar o fogo, não podia permitir que ela tivesse frio.

— Pareces exausto.

— Estou bem. Não preciso de dormir muito.

— Disparate. Deixa isso e vem deitar-te.

— Posso dormir no chão.

— Preciso de ti aqui ao meu lado. Por favor.

Não havia qualquer possibilidade, no estado de exaustão em que se encontrava, de o desejo lhe causar qualquer problema até de manhã. Mesmo assim só tirou as botas. Quando se deitou ao lado dela, Eile pousou-lhe a cabeça no ombro e enroscou-se nele. As chamas davam um tom rosado à tapeçaria aos pés da cama, um trabalho de Ana, uma imagem de uma ameixieira em flor com uma família de patos por trás.

Faolan apertou Eile contra si; os seus dedos enroscaram-se nos cabelos.

— Acho que não consigo dormir — disse ela. — Não consigo deixar de pensar em Derelei lá fora, sozinho. À noite faz tanto frio.

— Pode ser que Tuala já o tenha encontrado.

— Mas...

— Tenho de te contar uma história para adormeceres? — perguntou-lhe ele.

— Se quiseres — disse ela com um sorriso na voz.

— Tenho medo de adormecer a meio — disse ele passado um momento. — E há outra coisa que tenho de te dizer. Eu...

— Chhh. Agora não.

— Está bem. Uma história, então. Era uma vez um homem que perdeu o norte. Quando era novo aconteceu-lhe uma desgraça e durante muito tempo, muitos anos, seguiu por caminhos errados. Entretanto o tempo foi passando e ele nunca se deu ao trabalho de parar e fazer pequenas coisas. Abraçar uma criança, por exemplo, sentar-se calmamente a conversar com um amigo, cantar. Este tal homem tinha descido tanto que já nem sabia quem era e apesar de ainda não ter trinta anos, alguém lhe disse que parecia velho.

— Eu nunca disse isso.

— Não por palavras, talvez, mas foi o que quiseste dizer. Seja como for, para abreviar as coisas, ele conheceu uma pessoa... duas pessoas que, subitamente, lhe complicaram a vida. As tais duas pessoas estavam sempre a fazer coisas que o surpreendiam. Por vezes metiam-lhe medo e por vezes faziam-lhe chegar as lágrimas aos olhos, lágrimas que ele não conseguia derramar porque já não se lembrava como se fazia. Assim, tornou-se impossível continuar a fazer a vida que fazia. As duas pessoas eram uma maçada, um obstáculo e ele teve de deitar fora as regras que inventara para si próprio, regras que o mantinham seguro, que o impediam de sentir. O homem tentou abandonar as duas pessoas, achando que estava melhor sem elas, achando que seria mais fácil. Então sentiu uma coisa estranha, como se uma parte de si próprio há muito fechada se tivesse aberto finalmente, em carne viva e extremamente dolorosa, e pensou que talvez fosse o seu coração a partir-se.

Ela não dizia nada e ele perguntou a si próprio se a história teria funcionado; talvez tivesse adormecido.

— Excepcionalmente, o homem teve outra oportunidade e foi ela que lha proporcionou. Ela era mais esperta do que ele. Dessa vez, ele decidiu dizer-lhe o que sentia. Como ela o fizera despertar e lhe iluminara a vida. Mas ela estava sempre a dizer chhh, ainda não, ainda não e ele calava-se. Até que um dia quase a perdeu outra vez. Então disse-lhe, apesar de ela o tentar impedir, porque sabia que se acontecesse qualquer coisa e não tivesse oportunidade de lho dizer, não perdoaria nunca a si próprio. Silêncio.

— Suponho que é melhor dizeres, então — murmurou ela finalmente.

— Amo-te — murmurou ele. — Aceito o amor que me quiseres dar e dar-te-ei, a ti e a Saraid, tudo o que tenho.

A lenha estralejou; os patos na tapeçaria moveram-se com a corrente de ar; o silêncio prolongou-se. Finalmente ouviu-se a voz dela, hesitante e doce:

— Foi a melhor história que eu já ouvi, Faolan. Cantas-me a canção, agora?

Ele não lhe disse onde e quando cantara pela última vez aquela canção de embalar; não lhe falou de Deord deitado em Briar Wood com a cabeça no seu ombro enquanto os seus olhos ficavam lentamente mais tranqüilos, o seu rosto mais pálido e o sangue se lhe escoava para o chão da floresta, mas cantou-a para os três, pai, filha e neta, três almas cuja coragem era um farol que iluminava o caminho. A melodia flutuou em redor da forma adormecida de Saraid e entrelaçou-se no corpo de Eile encostado ao seu, como se lhe pertencesse; circulou pelo quarto iluminado pelas chamas da lareira onde talvez, talvez Deord também estivesse a ouvi-la. Quando chegou aos últimos versos, as pálpebras começaram a fechar-se e sobre o seu corpo dorido espalhou-se um calor suave.

— Descansai, membros cansados e olhos fatigados— murmurou ele —, e levantai-vos depois para um novo dia resplandecente — Apertando Eile contra o peito, Faolan adormeceu.

Broichan estava sentado no chão, de pernas cruzadas, à sombra da grande copa de um velho carvalho, na parte côncava de uma encosta a alguns quilômetros de Monte Branco. O druida sentia bater o coração da Mãe Ossuda na terra que o suportava; aspirava a miríade de aromas no ar, as diferenças mínimas, subtis, que aprendera a reconhecer ao longo dos seus longos anos de treino. Os sons da floresta eram uma música selvagem, suave, um bálsamo para os seus ouvidos, que lhe falava de uma sabedoria que estava muito para além do conhecimento humano, antiga e imutável. Sou forte. Agüento.

Broichan tinha os olhos fechados, as costas direitas e as mãos ao longo do traje esfarrapado que lhe cobria a nudez. Em breve começaria a respirar mais lentamente, a limpar a mente, a entrar em profunda meditação. A deusa pedira-lhe, enquanto se aproximava do seu destino, que abrandasse o passo e que refletisse porque o aguardava uma tarefa que lhe poria à prova as forças reencontradas. Assim, sentava-se naquela posição todos os dias, fixando a mente nos deuses e na obediência.

Muitas vezes, nas visões que o transe lhe proporcionava, via uma figura a subir o monte, pisando suavemente o chão da floresta, com o rosto sarapintado pela luz do Guardião da Chama ao penetrar por entre as folhas das árvores. Por vezes era Bridei, um homem forte, de ombros largos, na força da vida, com olhos azuis firmes e cabelos encaracolados da cor das castanhas maduras. Por vezes era Tuala, a sua filha, uma rapariga esbelta, graciosa, cujas formas pareciam ao mesmo tempo etéreas e fortes, sobrenaturais e familiares, com a sua pele branca como a neve, a nuvem de cabelos negros e os olhos profundos, conhecedores e por vezes era uma criança: Derelei, o seu pequeno aluno, o seu frágil e precioso mago. A visão de Broichan mostrava-lhe a minúscula figura vestida apenas com uma camisa e umas calças, com os pés metidos numas botas de andar por casa, cocadas e manchadas de lama. O rosto da criança também lhe aparecia sujo. Por trás da sujidade da jornada a sua boca suave estava cerrada, mostrando uma vontade de ferro e os grandes olhos fixavam o horizonte, determinados.

Dez passos à frente Derelei parou e olhou para o alto do monte e naquele momento o druida apercebeu-se de que não estava perante uma visão, estava perante a realidade. Era mesmo o seu querido aluno entre as árvores, examinando com os seus olhos claros, estranhos, resolutos, a figura sentada do druida. Broichan susteve a respiração.

— Bawta! — exclamou a criança, abrindo os braços e desatando a correr com o rosto iluminado de alegria. O coração de Broichan teve um sobressalto. As lágrimas encheram-lhe os olhos. O druida pôs-se de pé, abriu os braços e recebeu o neto num grande abraço.

— Derelei — murmurou ele com os lábios encostados à cabeça do petiz. — Fizeste este caminho todo só para me encontrar? — Enquanto falava, Broichan sabia que era verdade. Não havia necessidade de pensar na jornada em si; na fragilidade da criança, na longa distância e no terreno agreste, na natureza inconstante do clima e nas ameaças que pairavam sobre os caminhos. Com aquela criança especial, tais considerações não eram relevantes. Broichan apertou o pequeno contra o peito, sentindo-lhe os braços em redor do pescoço, consciente de que, finalmente, tudo mudara, já não estava só, podia regressar.

Uns momentos depois o druida abriu os olhos e reparou que, afinal de contas, o pequeno não fizera a jornada sozinho. Sentado muito direito a uma pequena distância, servindo-se de uma pata para se lavar por trás da orelha direita, estava um pequeno gato cinzento com uma cauda que parecia uma escova. O animal parecia-lhe familiar.

Um druida não tirava conclusões precipitadas e não fazia perguntas, a não ser que fossem absolutamente necessárias. A vida era uma série de quebra-cabeças. A sabedoria de um druida residia na capacidade de escolher entre uma variedade de soluções, cada uma das quais podia ser correta de uma maneira ou de outra. Broichan estudou o animal. Quando o gato acabou, satisfeito, de se lavar, fixou os grandes olhos nele e examinou-o. O druida sorriu.

— Bem-vinda, filha — disse ele, e o gato desapareceu. No seu lugar ficou a Rainha de Fortriu, olhando para ele com a mesma serenidade.

— Pai — disse Tuala. — Tivemos saudades tuas. Precisamos de ti em casa.

Nem uma palavra sobre a sua partida abrupta. Nem um sinal de que estava chocada ou alarmada com a mudança na sua aparência física. A fria autodisciplina de Tuala era irmã gêmea da sua, em tempos, aprendida com dificuldade, posta em prática vezes sem conta, um escudo de defesa.

— Nesse caso, vamos — disse ele, ouvindo a sua própria voz tremer como uma folha no Outono e descobrindo, com o neto nos braços, que estava a chorar.

— Tu és o druida do Rei — disse Tuala — e eu sou uma Rainha, mas penso que podemos esquecer as nossas condições por algum tempo. Ninguém nos está a ver.

Tuala aproximou-se dele e Broichan viu que, apesar de o seu porte ser tão elegante e suave como o do animal cuja forma assumira para aquela jornada, a mão que ela estendeu não estava absolutamente firme e havia uma sombra de incerteza nos seus olhos.

— Desculpa — disse o druida, apoiando Derelei na anca e rodeando os ombros da filha com um braço. — Lamento tanto, Tuala.

— Chhh. — Tuala abraçou-o e ele viu-lhe lágrimas nos olhos. — Já passou. Que tens andado a comer? Erva? Sinto-te as costelas todas.

— Tuala... o teu filho... está tudo bem...?

— Uma rapariga linda. Demos-lhe o nome de Anfreda.

Broichan sentiu um sorriso enorme, incontrolável a espalhar-se pelo rosto. Era uma sensação estranha. Antes não sorria.

— Anfreda. Gosto. Precisas de regressar rapidamente a casa por causa dela. Depressa. Talvez seja melhor...?

— Derelei é muito pequeno para se transformar. Ele é capaz, mas não o devemos permitir. Ainda lhe falta o controle. Eu levo-o.

— Não, eu levo-o, Tuala.

A Rainha não pôs em questão a sua forma física.

— Muito bem. E enquanto caminhamos, dou-te notícias de Monte Branco. Aconteceu muita coisa na tua ausência. Fizeste-nos muita falta. Ainda nos fazes. Espero que fiques muito tempo.

— Se sou preciso, fico — disse ele. — Sinto que correste grandes riscos por minha causa. — Broichan sabia que ela não gostava que os seus poderes do Outro Mundo fossem do conhecimento público.

— Pelo meu pai, sim. E pelo meu filho. Quando estivermos perto de casa, mudo de forma outra vez.

— Lembro-me do gato que Fola te deu quando eras pequena. Mist, não era?

— Gostava muito dele. Um verdadeiro amigo quando me sentia só. A transformação foi mais fácil por me lembrar bem dele.

— É um dom raro — disse o druida. — Espero que, com tempo, me mostres mais coisas. Penso que podemos aprender um com o outro.

— É melhor ires — disse Eile. — Sei que é o que farias se não fôssemos nós. Saraid e eu ficamos bem. Podemos passar o dia com Elda no jardim com Dovran a guardar-nos, se estás mesmo preocupado. Derelei está em perigo. O Rei precisa de ti. — A jovem tinha o olhar fixo em Faolan, acocorado à lareira a atiçar o fogo para que ela e Saraid se pudessem vestir sem terem frio. Já lhes tinha ido buscar o pequeno-almoço, enquanto Garth ficava no corredor e, para lhe agradar, Eile comera qualquer coisa. Ainda se sentia esquisita; tinha dores por todo o corpo e sentia-se tonta quando tentava levantar-se. Porém, não o admitia a Faolan. Os homens estavam a reunir-se no pátio, prontos para mais um dia de buscas. A jovem sabia que, se continuasse a retê-lo, o sentimento de culpa atormentá-lo-ia o dia todo.

— Evidentemente — acrescentou ela — se achas que a tua perna não agüenta... — Não lhe diria que desejava loucamente que ficasse. Fora tão doce acordar nos braços dele e sentir que não tinha medo. O conhecimento de uma mudança tão maravilhosa enchera-a de alegria.

— Não te deixo sozinha. Tens de ficar onde possas ser guardada como deve ser. Ainda não sabemos o que te aconteceu. É possível que a tua queda não tenha sido acidental.

— Eu sei o que estás a pensar. Parece... loucura.

— Eile, estou a falar muito a sério. Se eu não puder ficar ao pé de ti, acho que deves ir para os aposentos reais. Fola está lá e pelo menos mais duas mulheres. E Dovran vai estar de guarda durante o dia. Eu levo-te para lá antes de ir. Não tentes andar. Tens de descansar. Quero que fiques com Fola até eu regressar.

Vendo o seu rosto tenso e a sua palidez, Eile reprimiu um comentário sobre a mania das ordens.

— Está bem — disse ela. — Suponho que percebes dessas coisas. Talvez eu possa ajudar Fola com o bebê.

— Tens de descansar, Eile. Não tentes fazer seja o que for. Não penses que já estás boa. Precisas de tempo para recuperar.

— Se achas que sim. O descanso é uma coisa de que eu não gosto muito. Faolan, espero que encontres Derelei. É uma coisa terrível não sabermos se o nosso filho está perdido, morto ou vivo.

Faolan anuiu e depois inclinou-se para pegar nela.

— Faolan?

— Sim?

— Antes de irmos, quero dizer-te... O que disseste ontem à noite... aquelas coisas... Gostei muito de as ouvir. Foi muito bom.

Ele não disse nada. Os seus olhos disseram-no por ele, fazendo-a suster a respiração.

— E... também foi bom acordar esta manhã nos teus braços. Surpreendente, mas bom. Queria que soubesses antes de te ires embora.

Faolan sorriu. Era como ver um raio de sol a entrar num sítio escuro.

— Obrigado — disse ele.

Fola ficou imperturbável por ter de olhar por Eile e por Saraid, para além da filha da Rainha e da ama-de-leite. A mulher sábia obrigou-a a deitar-se num colchão. A ama de Anfreda tentou levar Saraid para o jardim, mas a criança recusou-se a deixar a mãe.

— Talvez seja melhor assim — disse Fola. — Até Faolan saber exatamente o que te aconteceu, é melhor ficarem as duas dentro de quatro paredes.

— Parece que ele acha que alguém fez aquilo de propósito — disse Eile, olhando para Saraid, sentada no tapete a brincar com os animais de madeira de Derelei. Não diria as palavras dor, fazer mal, matar na presença da filha. — Penso que ele está à espera que eu me lembre para que possa provar a teoria que tem. Ou que Saraid diga qualquer coisa. Mas por que quereria alguém fazer-me uma coisa daquelas? Eu não sou ninguém.

— Não te lembras de nada? — perguntou Fola.

— Nada, até acordar naquele sítio. Faolan disse que há lá uma abertura estreita que dá para a muralha exterior, que as crianças podem ter saído por lá. Mas por que razão as levei eu para um poço? É uma estupidez, já que eles são tão pequenos e curiosos. Que vão as pessoas pensar?

— Sugiro que esqueças o que as pessoas pensam, Eile. As que te conhecem não te acham capaz de negligência no que respeita a crianças.

— Portanto, as pessoas pensam que a culpa é minha. Oh, deuses...

— Não passa de conversa oca, pelo menos é o que me dizem. Em tempos de crise, as pessoas tendem a mexericar. Bridei confia em ti e isso é que interessa.

— Mexericar? Mexericar sobre o quê? Que dizem exatamente as pessoas? — Eile sentou-se no colchão, tentando esquecer a tontura.

Fola estava sentada à mesa, moendo qualquer coisa num pequeno almofariz com um pilão. Um odor pungente enchia o quarto. A mulher sábia virou os olhos escuros e sagazes para ela, mas não disse nada.

— Faolan pediu-te para não me dizeres nada? — perguntou Eile, subitamente desconfiada.

Fola sorriu.

— Conheceis-vos bem os dois, não conheceis?

— Diz-me, por favor, preciso de saber a verdade. Que dizem as pessoas de mim?

— Ouvi uma teoria — disse Fola com alguma relutância. — Que foste colocada aqui com o propósito de raptar Derelei. Que és uma espia, uma espia muito esperta, que conseguiste conquistar a confiança da Rainha com uma rapidez extraordinária. Aos olhos de algumas pessoas, Faolan também é culpado... por associação. Bridei levantou-se ontem à noite, ao jantar, e ordenou que tais histórias parassem. Ele tem razão. A história não tem por onde se lhe pegue.

Eile sentiu um nó no estômago, provocado por um sentimento de apreensão e fúria ao mesmo tempo. Como se atreviam as pessoas a virar-se contra Faolan, um homem que estava com o Rei desde o momento em que ele subira ao trono?

— Mas essas pessoas conhecem Faolan — disse ela. — Devem saber que ele é leal. É uma estupidez sugerir que ele pode ser um traidor.

Fola acabara de transformar as bagas em pó e começara a transferir o resultado para um pequeno jarro de pedra.

— Faolan é um homem muito especial — disse ela. — Está há anos na corte, mas poucas pessoas o conhecem. Ele nunca foi muito aberto a amizades e sempre escondeu o passado. As pessoas não gostam muito dele, Eile. Além disso é um celta ao serviço de um rei priteni. Só isso basta para levantar suspeitas. Os poucos que o conhecem sabem que ele é totalmente leal a Bridei, mesmo quando parece o contrário, coisa que o seu trabalho o obriga a fazer muitas vezes. Porém, as pessoas normais olham para ele, olham para ti e para o que te aconteceu e chegam a conclusões desagradáveis.

Apesar de sentir que a voz a trairia, aquilo doía-lhe mais do que o golpe que tinha na cabeça, Eile disse:

— Mas ninguém sabe o que me aconteceu, se caí ou se fui empurrada, se fui estúpida ao levar as crianças para aquele sítio perigoso, se as mandei sair por aquele buraco, se alguém levou Derelei com ou sem a minha aprovação. Não houve quaisquer testemunhas, salvo Saraid, e ela não diz nada, nem sequer a mim. Se eu própria não me lembro, como posso defender-me? Como posso defender Faolan? Ele tem sido o amigo que nunca tive e só lhe causo problemas.

— Deita-te, Eile. Tu passaste por uma grande provação. É essencial que descanses. Esse ferimento na cabeça é grave, para não falar do frio que apanhaste. Segue o meu conselho e põe esses boatos de lado. Não deixes que te incomodem. Com o tempo a verdade acabará por vir ao de cima. — A mulher sábia tapou o pequeno frasco e colocou-o numa prateleira. — Estou a ouvir o bebê a chorar. Vou pedir a Tresna que o traga e lhe dê de mamar; sempre nos distraímos.

Obedientemente, Eile deitou-se e fechou os olhos, ouvindo os sons das duas mulheres a mudarem as fraldas a Anfreda; ouvindo Tresna a amamentá-la enquanto o seu próprio filho esperneava muito satisfeito no tapete, arrulhando; ouvindo Saraid a cantar-lhe e examinando-lhe os dedos das mãos e dos pés. Ao mesmo tempo, a incerteza crescia cada vez mais e as imagens que tinha na cabeça tornavam-se cada vez mais sombrias. Como podia pôr aquele fardo aos ombros de Faolan, quando ele tinha sido tão bom para ela? Não era só o presente. Se ficasse com ele, se o deixasse tornar-se responsável por ela, seria uma coisa a seguir a outra. O nome Eile era sinônimo de sarilhos; ele dissera-o mais ou menos, mesmo quando lhe estava a dizer aquelas doces palavras de amor; arranjar-lhe-ia problemas atrás de problemas, mesmo sem tentar. Além do mais, de mãos atadas por causa dela e de Saraid, como poderia ele continuar a trabalhar para o Rei, a desempenhar os deveres em que era tão excelente, os deveres secretos que mais ninguém podia desempenhar? Nunca estaria em casa; estaria permanentemente preocupada com ele. Faolan estaria sempre em perigo. Seriam os dois infelizes. O bom senso dizia-lhe que se afastasse, que se fosse embora de Monte Branco e que o deixasse. Eile imaginou-o a regressar e a descobrir que ela e Saraid se tinham ido embora e ouviu a sua voz no coração, dizendo: Dar-te-ei, a ti e a Saraid, tudo o que tenho.

— Não fujo — murmurou ela. — Nunca mais.

O dia foi passando. Ao princípio da tarde, quando se tornou evidente que Eile e Saraid estavam fartas de estar dentro de casa, Fola deixou-as ir até ao jardim da Rainha. Com Dovran de guarda, achou que não teria importância.

— Mas só até ao jardim — avisou-a a mulher sábia. — Tenho ordens para não vos perder de vista. Se precisardes de qualquer coisa, mandamos alguém buscar o que for preciso. E não quero conversas com ninguém senão com Dovran.

Junto do grande tanque, Eile observou Saraid a correr ao longo do carreiro e parar para mostrar a Lamento algo que acabara de encontrar. Os cabelos da sua filha estavam lustrosos e a sua pele estava rosada; Saraid estava bonita com aquele vestido cinzento e com a respectiva capa por cima, um presente de Elda.

Dovran aproximou-se; parecia ansioso por dizer qualquer coisa.

— Como te sentes? Parecias tão mal ontem à noite, tão pálida. E a tua cabeça... Que ferida feia.

— Mas sinto-me bem. Não percas o teu tempo a preocupares-te comigo.

— Não é nenhuma perda de tempo. Eu gosto de ti. Se pudesse... — Dovran — disse ela — O que é que as pessoas andam a dizer do que me aconteceu?

— Não ligues — disse ele, encostado à lança, com os olhos castanhos inquietos no rosto belo e sincero. — As pessoas só dizem disparates.

— Mas quero saber e quero que os meus amigos sejam sinceros comigo.

— Não te lembras mesmo do que te aconteceu?

— Nada. O que é que ouviste dizer?

— A conversa devia ter parado assim que foste encontrada. Já toda a gente sabe que ficaste fechada naquele sítio e que estavas demasiado fraca para pedir ajuda. Mas esta manhã ouvi uns tipos a falar. Compus a cara a um deles — disse ele, olhando para o punho direito. — O tipo estava a dizer que tu não caíste no poço, que ficaste lá para que o teu cúmplice tivesse tempo para fugir com a criança. Que foi um rapto bem planeado. O tipo não te viu as mãos, ou a cabeça. Devias estar a descansar, Eile.

A jovem cruzou os braços, escondendo as ligaduras.

— E Faolan? Alguém disse alguma coisa acerca de Faolan? Dovran fez uma careta.

— Faolan sabe tomar conta de si próprio. É preciso cuidado com ele. — Depois, ao ver o olhar de Eile, acrescentou: — Fala-se. Um celta na corte de Fortriu, sempre ausente; é inevitável. Onde é que o conheceste?

Ele salvou-me do pior sítio do mundo. Foi à minha procura: um amigo maravilhoso disfarçado de estranho antipático.

— Na estrada — disse Eile.

— Pareces triste. Eile, tu sabes o que sinto por ti. Quero que te sintas bem, quero ajudar...

— Tens sido muito amável comigo — disse a jovem. — Eu dou valor à amizade, Dovran — concluiu ela, vendo que ele percebera a mensagem. Mas nunca seremos mais do que amigos. Não conseguia encontrar palavras que o fizessem sentir-se bem. Dovran era bom homem, em breve encontraria alguém.

Saraid estava ao pé do tanque, apertando os cabelos da Lamento com uma fita de uma cor invulgar, cor de alfazema. Era nova, devia-lhe ter sido dada por alguém. Eile teve uma sensação estranha, um arrepio na espinha, uma coisa entre uma recordação e uma premonição.

— Saraid? — chamou ela. — Foi Elda que deu a fita a Lamento? Saraid abanou a cabeça, muito solene.

— Quem foi, Esquilo?

— Senhora.

— Que senhora, Saraid? Ferada? A senhora de cabelos encarnados?

A pequenina, porém, apertou a boneca nos braços e fechou-se sobre si própria. Eile percebeu, pela atitude, que não conseguiria mais nada naquele dia e lembrou-se, desconfortavelmente, de Montanha Nublosa; Saraid sentada no degrau da porta da frente da cabana, encolhida, enquanto aconteciam coisas no interior que não eram para os olhos de uma criança.

— É melhor ires-te embora — disse ela a Dovran.

— Eu posso vigiar o jardim e conversar contigo ao mesmo tempo.

— Nós vamos voltar para dentro.

— Ah. Está bem, então. Suponho que não te vejo ao jantar, logo à noite.

— Não, suponho que não vou jantar. Adeus, Dovran.

— Adeus, Eile. Adeus, Saraid.

— ‘deus. — Era uma pena, ninguém se tinha oferecido para brincar com ela naquele dia.


CAPÍTULO DEZENOVE

 

O grupo regressou a Monte Branco muito antes do anoitecer. Os homens estavam cansados e desanimados. Não tinham encontrado Derelei. Faolan e Garth tinham dito que a criança não podia ter ultrapassado a área já coberta pelos diversos grupos, a não ser que tivesse sido levada por alguém. Ou o filho do Rei tinha sido levado para lá do alcance de uma busca normal ou já estava morto.

Faolan fez o seu relatório ao Rei. Bridei recebeu-o calmamente, mas o olhar no seu rosto era desesperado.

— Vai — disse ele. — Deves querer ver Eile. Eu ainda não perdi a esperança, Faolan. Tuala ainda não regressou.

Faolan absteve-se de mencionar que nenhum dos grupos vira sinais da Rainha. O assassino supunha que era possível eles terem-na visto, mas sob a forma de um escaravelho, de um pássaro ou de um rato.

— Devia ficar contigo — disse ele a Bridei —, mas estou preocupado com ela, é verdade. Soubeste mais alguma coisa sobre o que aconteceu?

Bridei abanou a cabeça.

— Keother diz que Breda está confusa. Ele acredita que ela não tem mais nada para dizer. Talvez nunca venhamos a saber a verdade.

— Ela há de acabar por vir ao de cima — disse Faolan, ameaçadoramente. — Podes ter a certeza.

— Dúvidas e teorias não tornam um caso convincente. Parece que Breda desempenhou um papel sinistro na questão da caçada e da morte da acompanhante dela, mas em relação à questão do meu filho e de Eile, não há quaisquer provas contra ela. Eu sei o que estás a pensar, mas quero que te acalmes. Não se pode acusar uma pessoa com o estatuto de Breda sem se ter a certeza dos fatos. Eu sei que é difícil. E agora vai. Vai lá ter com a tua mais-que-tudo. Eu fico bem. Faolan duvidava. Bridei estava branco como a cera e parecia estar com uma das suas monumentais dores de cabeça. Quando entrara para lhe apresentar o seu relatório, encontrara o Rei sozinho sem uma única vela acesa. Os seus amparos habituais tinham desaparecido: Tuala tinha ido para a sua perigosa jornada na floresta e ninguém sabia para onde tinha ido Broichan. E agora ele, o maior amigo do Rei, ia tratar da sua própria vida.

— Precisas de alguém ao pé de ti... — começou ele.

— E Eile também. Vai. Eu mando chamar Aniel ou Tharan se precisar de companhia.

Faolan dirigiu-se para os alojamentos que já começara a considerar como seus: dos três, dele, de Eile e de Saraid. Bateu levemente à porta do quarto menor e entrou.

Saraid estava na cama a tirar coisas de uma caixa, com a Lamento a seu lado e Eile estava sentada no chão de costas para ele. Também ela estava a separar coisas. A seu lado estava uma pilha de roupa. Faolan viu o vestido azul que a sua irmã lhe tinha dado e um pente gravado que fora seu em tempos. Levo isto. Em cima da arca estava uma velha túnica e uma saia, a roupa que ela usara em Blackthorn Rise como criada e ao lado as botas com que ela viajara com ele, desde o outro lado do mar até ao Grande Vale. Visto isto. Numa outra pilha, junto da parede, estavam as suas roupas melhores, as que lhe tinham dado ali, em Colina Branca. O vestido verde, os chinelos macios e a pequena capa que Elda fizera para Saraid. E isto não levo. Eile virou a cabeça e Faolan não conseguiu perceber o que lhe ia no rosto.

— Que estás a fazer? — perguntou ele, tentando manter-se calmo.

— Nada de especial — disse ela, continuando a dobrar desajeitadamente as peças de roupa com as mãos ligadas. — Estamos só... a ver umas coisas. Não olhes assim para mim. Nós não nos vamos embora assim, sem mais nem menos, mas tens de pensar na possibilidade, Faolan. Tens de ter a certeza de que isto é o que queres, eu e Saraid, quero dizer, aqui em Colina Branca contigo, dependentes de ti, um fardo que talvez não queiras, ou de que não necessites.

Faolan ajoelhou-se ao pé dela e pegou-lhe numa mão. A sua voz saiu áspera, apesar dos seus esforços.

— O que foi que causou isto? Pensei que confiavas em mim, Eile. Pensei que sabias...

— E sei. — A voz dela era tensa, com uma emoção que ele não conseguia identificar. — Mas tens de saber o que as pessoas andam a dizer. Que eu traí a confiança do Rei e da Rainha. Que sou uma espia. E também andam a dizer mentiras horríveis e depravadas de ti. Que estiveste conluiado comigo o tempo todo, que planeamos juntos o rapto. Eu não suporto que digam tais coisas. As pessoas são más. Como se tu fosses capaz de trair o Rei Bridei...

— Estou a ver — disse ele, levantando-se. Ao ver-lhe a expressão do rosto, ela tirara a mão. — E tu achas que, indo-te embora, as coisas melhoram?

Uma lágrima caiu-lhe pela face. Eile limpou-a com a mão ligada.

— Eu sou uma fonte de sarilhos para ti, Faolan. Sabes muito bem que as coisas serão difíceis para ti se eu ficar. Tenho de ter a certeza de que tu estás preparado para as enfrentar, que achas que vale a pena. Não quero que fiques conosco só porque achas que é o teu dever. Ou pior ainda, por piedade.

Saraid deitara-se na cama e enterrara a cabeça na almofada. Por baixo dela a Lamento mal se via.

— Eile — disse Faolan com o coração a bater com toda a força. — Por favor, acredita no que te digo. Se te fores embora, sigo-te até ao fim do mundo. Prefiro deixar Colina Branca e Bridei a perder-te. Não posso viver sem ti e sem Saraid, é tão simples como isso. Quanto aos boatos e aos mexericos, havemos de arranjar uma maneira de lidar com eles.

Eile ficou a olhar para ele com os seus olhos verdes muito brilhantes, tentando entrar-lhe na mente.

— Está bem, então — murmurou ela e ele viu-lhe os ombros a começarem a subir e a descer e as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo. Faolan ajoelhou-se novamente junto dela e abraçou-a.

— É verdade, mo cridhe — murmurou ele. — A verdade nua e crua. Nunca te mentiria. Para onde fores, eu vou. Se te fores embora daqui, eu vou contigo sem hesitar um segundo. Saraid, vem cá e dá um beijo à tua mãe. — E depois de a pequenina se ter juntado a eles num grande abraço: — Penso que encontrei uma coisa, finalmente. Um lar. Tu, eu e Saraid. Estou em casa. Não te vás embora.

— ...Feeler vai embora? — Faolan sentia a pequena mão de Saraid agarrada à sua camisa, junto do ombro, e as lágrimas ensopando-lhe o tecido logo acima do coração.

Eile fungou.

— Não, Esquilo — murmurou ela. — Ninguém se vai embora. Deuses, isto é ridículo, não consigo parar de chorar. Estás mesmo a falar a sério, não estás? Estás mesmo a dizer que ficas conosco, aconteça o que acontecer?

Faolan afagou-lhe os cabelos. Os seus dedos passaram perto do ferimento que lhe desfigurava a têmpora: a impressão nítida de uns elos de corrente.

— Para sempre — disse ele. — Enquanto viver.

Ela suspirou e ele sentiu-lhe os braços em redor do corpo.

— Quero dizer-te uma coisa — disse ela. Faolan esperou.

— Tu disseste que encontraste um lar. Eu também soube uma coisa. Soube por que razão o meu pai fez o que fez. Por que razão nos deixou, por que razão se foi embora e nunca mais voltou. E soube que não vou fazer o que ele fez. Não posso fazer tal coisa à pessoa que mais amo neste mundo. Pode não ser bom para ti se eu ficar, mas magoar-te-ia muito mais se me fosse embora e também magoaria Saraid. E não te posso obrigar a deixar Monte Branco, o trabalho de que tanto gostas, as pessoas que dependem de ti. Faolan, penso que lhe perdoei. Ao meu pai. A decisão dele foi muito mais difícil do que a minha.

O coração dele batia rápida e firmemente. Faolan não lhe pediu que clarificasse o que dissera sobre o amor. Bastava-lhe, para já, reter as palavras, senti-las, dando-lhe força.

— Vem — disse ele. — Continuas a ser uma inválida e os meus joelhos estão a sentir os efeitos de um dia inteiro a cavalo. É melhor levantarmo-nos, acender o lume e secar as lágrimas. Esquilo, importas-te de ir ao quarto ao lado ver se há mecha e pederneira no cesto?

— Faolan — disse Eile enquanto ele a ajudava a levantar-se. — Ainda falta a questão dos mexericos e da desconfiança, as línguas que não param. Não te quero sujeito a elas. Se ficares comigo, haverá sempre falatório.

— Chega-te aqui, Eile e senta-te. Quero que bebas qualquer coisa... Assim está melhor. Eu tenho uma solução para o problema. Tu não vais gostar. Trata-se de um desafio tão difícil como trepar as paredes de um poço.

Eile bebericou a água enquanto ele se ajoelhava com a pederneira e a mecha para acender novamente a lareira. Saraid, secas as lágrimas, escolhia a lenha.

— Diz lá.

— Os boatos baseiam-se na maneira como nos conhecemos, há quanto tempo nos conhecemos e quem nos poderá ter recrutado — disse ele, perguntando a si próprio se não estaria a ser louco por estar a sugerir aquilo, mas sentindo uma probidade curiosa, como se a história de ambos fosse um círculo que se estava a fechar. — Muito bem, dizemos-lhes a verdade. Contamos-lhes a nossa história. Toda.

— Toda? Estás a falar de Montanha Nublosa e de... de Dalach... e do que aconteceu depois?

— E de Blackthorn Rise. E de Encruzilhada do Rabequista.

— Não posso... não posso... Faolan, que estás a dizer? Que devemos levantar-nos em frente de toda a gente e contar-lhes tudo? Ficaria tão envergonhada que não conseguiria dizer uma única palavra. — A caneca tremia-lhe na mão, entornando-lhe algumas gotas de água na saia.

— Envergonhada? — perguntou ele, olhando para ela enquanto o fogo começava a pegar. — Porquê? Tu não tens nada de que te envergonhar, Eile. Tu tens sido heróica, altruísta. Tu és uma digna filha do teu pai. Que achas que Deord nos aconselharia neste momento?

Eile sorriu levemente.

— Luta — disse ela. — Mas eu tenho medo, Faolan. Estás a pedir-me muito.

— Eu vou estar ao pé de ti, ao teu lado. Ajudo-te a contá-la.

— Ainda não conheço suficientemente a língua. E se tu fizeres a tradução as pessoas vão pensar que mudaste a história.

— Nesse caso, arranjamos um tradutor. Eu conheço um muito bom.

— Quando? Quando é que vai ser?

Eile, com a ferida fresca e lívida na têmpora, parecia frágil, infeliz, as mãos tremiam-lhe. Faolan daria tudo para poder dizer que não se importava se ela nunca dissesse nada, que tudo o que queria era pegar nela e levá-la dali. Porém, quando a viu ali à lareira, confusa, não estava a ver uma mulher ferida, estava a ver a filha de Deord. Deord, que só fugira uma vez na vida e que pagara um preço terrível por tê-lo feito. Deord que, sentia-o, continuava a olhar por eles.

— Hoje à noite — disse ele. — Vai ser hoje à noite.

Eile já sabia que o autodomínio era formidável e achava que nunca se sentira tão impressionada com ele como naquela noite. Saraid fora jantar com Gilder e Galen. As pessoas espantaram-se ao ver Faolan e Eile aparecer no grande salão e ocupar os seus lugares, mas ele agiu como se não houvesse nada de extraordinário no fato de eles aparecerem em público tão pouco tempo depois do que tinha acontecido.

Garth estava de serviço, de guarda ao Rei. Faolan e Eile ficaram ao lado de Wid e de Garvan. Dovran estava em frente deles, ao lado de Elda. Para lá daquele pequeno círculo seguro estava o desconhecido. Eile reparou nos olhares, viu as pessoas murmurarem umas para as outras e perguntou a si própria se estariam a discutir a sua culpa provável, apesar de achar que o ferimento que tinha na cabeça talvez fosse um indicativo de inocência, dificilmente o podia ter infligido a si própria. O estômago doía-lhe e não conseguiu tocar na comida. Faolan comeu a carne assada e o pudim e conversou com Wid sobre navegação e com Dovran, prudentemente, sobre esgrima.

Na mesa elevada sentava-se Bridei com o rosto cor de cinza, contribuindo com algumas palavras para a conversa entre os seus conselheiros e o Rei Keother. Mais um dia, mais uma busca infrutífera. Eile tivera ocasião de ver como o Rei de Fortriu amava os seus filhos, como amava a sua mulher e sentiu pena dele. Ela tinha Saraid, tinha Faolan. Em comparação com o que o Rei devia estar a sentir, a trepidação que se apoderara dela, tornando-a zonza e agoniada, não era nada.

— Não comes? — perguntou-lhe Wid. — Ainda devias estar na cama, rapariga. Faolan, que te deu para a deixares levantar-se?

— Prefiro estar aqui — disse Eile. — Além do mais, vamos fazer uma coisa.

— Ah sim?

A jovem não deu qualquer explicação. A maior parte das pessoas já tinha acabado de comer. Faolan estava a olhar para a segunda mesa, onde o irmão Colm estava sentado com os outros cristãos, um pequeno mar de hábitos castanhos encimados por brilhantes cabeças tonsuradas.

— Estás pronta? — perguntou-lhe ele em voz baixa. Nunca estarei pronta para isto, cem anos que viva.

— Se tu estás — respondeu ela.

Era costume, antes ou depois das refeições, Bridei dizer umas palavras. Quando as coisas corriam bem podia ser um agradecimento por um trabalho bem-feito ou uma notícia que afectava a todos. Após o discurso do Rei havia música, geralmente tocada pelo bardo da corte ou, se alguém tinha um assunto de interesse geral, Bridei podia convidá-lo para o expor. Quando as coisas corriam mal, havia pouca coisa para dizer. Faolan dissera a Eile que naquela noite o Rei ia dizer que as buscas pelo seu filho iam terminar, deixando a tarefa de procurar Derelei a alguns especialistas, em vez de a tantos homens da sua casa.

— Não vou esperar que ele fale — murmurou Faolan à jovem. — Vejo no seu rosto que ele não consegue suportar a idéia de declarar findas as buscas. — Levantou-se, pegou na mão de Eile e levou-a para o espaço aberto em frente da plataforma.

As pessoas levaram algum tempo a perceber. A conversa continuou até que o Rei se levantou e ergueu uma mão.

— Queres falar, Faolan? — A voz de Bridei era calma.

— Se me permitires, meu senhor.

— Claro.

— Meu senhor Rei, quero começar por pedir desculpa pela minha quebra do protocolo ontem à noite. Não voltará a acontecer.

Bridei inclinou a cabeça numa indicação de perdão.

— Com a tua aprovação, vou falar sobre as buscas de hoje. Depois, Eile e eu temos um assunto para expor perante todos os presentes. Temos uma história para contar.

Eile começou outra vez a sentir-se tonta. As paredes oscilavam e os archotes duplicavam. O mar de rostos na sua frente era turbulento e o som das vozes estranhamente distante.

— Eile? — Uma voz preocupada: a de Dovran, a seu lado com um banco. A jovem sentou-se. Faolan agradeceu ao guerreiro com uma expressão sombria e depois pousou uma mão tranqüilizadora no ombro de Eile.

— Diz-me se te sentires fraca — murmurou ele. Em seguida, erguendo novamente a voz, Faolan disse as palavras que Bridei não conseguira. — Já deveis saber que as buscas de hoje foram infrutíferas e que não foi por falta de esforços ou de ânimo dos que trabalharam incansavelmente estes últimos dias e noites, tanto os que estiveram lá fora à procura como os que desempenharam deveres adicionais na corte para que tal fosse possível. Garth e eu concluímos, com grande relutância, que não há hipótese de, a continuarem, estas buscas terem sucesso. É provável que o filho do Rei Bridei tenha sido levado para longe dos territórios que estão a alguns dias de distância. Não vamos exigir dos homens desta casa que continuem a esforçar-se. — O salão encheu-se de murmúrios e Faolan ergueu uma mão. — O que não quer dizer que tenhamos desistido. Vamos adoptar outra estratégia e talvez venhamos a precisar dos serviços de alguns de vós.

— Quem? — gritou alguém.

— Garth e eu vamos tratar de tudo. As decisões serão tomadas depois de consultas com o Rei e os seus conselheiros. — O seu tom de voz era controlado e a sua mão continuava firmemente pousada no ombro de Eile.

Ao fundo do salão ouviu-se outra voz.

— Dizes que o rapaz foi levado. Isso não é surpresa nenhuma; toda a gente sabe que as crianças não saem sozinhas de sítios tão bem fortificados como Monte Branco. O que é surpresa é encontrar um celta encarregado das buscas, a dar ordens, a dizer-nos o que devemos fazer. Não admira que tenhamos andado à procura até ao esgotamento e não tenhamos encontrado sinais do rapaz, mesmo com cães. Tu estavas no sítio ideal para permitir que os raptores tivesse tempo de fugir. — O burburinho levantou-se quando o homem, invisível para Eile, continuou: — Admira-me como tens a ousadia de estar aí com a tua mulher a teu lado. Meu senhor Rei, é evidente que é simples de ver...

— Levanta-te — disse Bridei, deitando chispas pelos olhos. — Identifica-te perante a corte.

— Mordec, meu senhor Rei. Tenho uma herdade a sul do Lago Mágico. Não pretendo ofender, quero simplesmente manifestar aqui em público o que as pessoas dizem em privado: que celtas no coração de uma corte priteni é sinônimo de sarilhos, a não ser que sejam reféns ou escravos.

— Muito bem. — A expressão severa do Rei não mudou. — As tuas insinuações ofendem-me, mas pelo menos tiveste a coragem de falar abertamente. Não permitirei que a corte de Fortriu fique poluída com mexericos.

Eile não conseguiu ficar calada.

— Meu senhor Rei, não é justo as pessoas acusarem Faolan de traição; ele é totalmente leal. Se não fosse eu, ninguém diria tais mentiras tão terríveis.

— Faolan — disse o Rei calmamente — estarei enganado ao dizer que estás aqui perante nós, esta noite, não só para ajudar o Rei numa questão difícil, mas também para defenderes Eile e a tua pessoa contra tais acusações?

Eile levantou uma mão para cobrir a de Faolan.

— Não, meu senhor — disse Faolan. — Nós temos conhecimento dos boatos. São ofensivamente falsos. Não permito que Eile se sujeite a este tipo de insinuações chocantes. Queremos contar a nossa história, queremos mostrar a todos os homens e mulheres aqui presentes que a nossa viagem desde a nossa terra até Colina Branca não teve nada a ver com a luta dos Priteni contra os Celtas. Não esteve relacionada com maquinações políticas ou conspirações estratégicas. Fizemos uma viagem de ida e volta ao passado, seguimos um longo caminho através da dor e da resistência, do sangue e da dor.

— Das trevas para a luz — disse Eile na língua priteni. — Meu senhor Rei, eu quero contar a minha parte, mas faltam-me as palavras...

— Faolan pode traduzi-las — disse Bridei, inclinado para a frente com os braços em cima da mesa, nitidamente surpreendido e intrigado.

— Ah sim? — disse uma voz na multidão.

— Deve ser uma tradução muito bem-feita — disse outra.

— Meu senhor — disse Faolan — com a tua permissão, vou pedir a um homem que a faça; um homem que pode ser visto como imparcial. Assim, ninguém me pode acusar de deturpar as palavras de Eile.

— E quem é esse homem?

— Ahhh... — disse o irmão Suibne, pondo-se de pé. — Ofereço os meus serviços, meu senhor Rei.

— Ele também é celta — comentou um dos chefes-de-guerra menores. — Estamos cheios deles.

— O irmão Suibne é, de fato, celta — disse Aniel calmamente, sentado ao lado do Rei. — Mas tens má memória se te esqueceste do papel que ele desempenhou na eleição de Bridei. Foi o seu sentido impecável de justiça que o absteve de votar, como tinha direito como conselheiro espiritual do Rei de Circinn. O seu voto teria dado o reino de Fortriu a Drust, o Javali. A sua abstenção e a chegada tardia de Umbrig — acrescentou ele, apontando para o enorme chefe-de-guerra Caitt, sentado na mesa dos cristãos — asseguraram a coroa ao Rei Bridei. Suibne pode muito bem ser o tradutor. Há poucos homens aqui fluentes em gaélico e na nossa língua e creio que os restantes podem ser considerados imparciais. Eile tem muitos amigos em Colina Branca.

— Obrigado, irmão Suibne — disse Bridei quando o monge avançou. — Mais uma vez, demonstras que és indispensável.

Eile rezou para que o cristão não mencionasse que já a conhecia: que ela e Faolan tinham passado uma parte do Inverno alojados perto da casa de oração do irmão Colm, em Kerrykeel e que tinham partilhado com os mesmos monges a perigosa viagem por mar até Dalriada. A jovem clareou a voz e olhou para Faolan.

— Começo? — perguntou ela com a voz a sair-lhe como um murmúrio estrangulado. A jovem não conseguia acreditar que tinha concordado com aquilo; devia estar louca.

— Começa, meu amor — murmurou ele. — Estou aqui contigo.

Era um inconveniente o fato de a pequena celta ter saído do poço sem ferimentos graves. Felizmente, Eile não se lembrava de nada do que acontecera. Pelo menos era o que as pessoas diziam. Quanto à criança, a questão era diferente. Como a mãe estava sã e salva, nada a impedia de revelar a história que incluía Breda, a corrente de ferro e uma certa ameaça. Saraid tinha de ser silenciada.

Breda elaborou o seu plano cuidadosamente. As crianças comiam a refeição da noite numa área separada, vigiadas apenas por duas criadas. Se fosse rápida, poderia tirar Saraid de lá antes que as estúpidas reparassem que faltava uma criança na mesa. A maior parte das pessoas estaria a jantar no salão e seria quase noite. Podia resolver o assunto e regressar ao quarto isolado que a bruxa da Dorica lhe designara antes que fosse dado o alarme.

Só tinha uma guarda, uma velha escolhida por Dorica. A mulher era carrancuda, gorda, tinha a barriga inchada e os seios descaídos. Por que razão tinham os velhos de ser tão feios? A sua presença constante era-lhe intolerável. Podiam, pelo menos, ter-lhe dado uma das suas próprias acompanhantes. Apesar de maçadoras e por vezes desobedientes, não ofendiam a vista e só precisavam de umas chibatadas para entrar na ordem. Porém, não via nenhuma delas desde que Cria — aquela miserável — as comandara naquela embaraçosa revolta pública. Não conseguia perceber o que elas esperavam conseguir com aquilo; deviam-lhe a sua posição na corte de Keother, sem ela não estariam ali, em Fortriu. Na verdade, sem ela não estariam em lado nenhum.

A parte mais difícil do plano não estava relacionada com Saraid que, no fim de contas, era apenas uma criança. O verdadeiro desafio seria sair do quarto miserável em que estava metida, o qual parecia uma prisão. Era injusto, não tinha feito nada de mal. Na verdade fizera os possíveis por endireitar as coisas. Merecia uma recompensa, não um castigo. Com o tempo, as pessoas acabariam por reconhecer a sua boa vontade.

Andava a tratar da velha desde que a tinham obrigado a ficar ali, depois daquele jantar horrível, com aquela gente toda a fazer acusações cruéis. Até ali não fora doce como o mel porque o exagero só faria com que a mulher desconfiasse de qualquer coisa; limitara-se a parecer calma, amigável e cooperante, ao mesmo tempo que refreava a fúria por estar a ser tratada daquela maneira e a repugnância que sentia pelo queixo duplo e as rugas da velha. Breda prometeu a si própria que nunca envelheceria. Nunca.

Fingira tão bem que a mulher começava a mostrar-se mais confiante. Até Dorica, que a visitara de manhã, fizera um comentário sobre a maneira como ela estava a mostrar-se prestável. Assim que ela saíra, testara a velha, perguntando-lhe polidamente se podia ir sozinha à privada, desde que regressasse logo a seguir. A mulher autorizara-a, mas saíra do quarto e ficara a pairar em frente da porta. À distância de um grito estava um guarda. Não era o suficiente e aquilo tinha de ser feito naquela noite, antes que Saraid decidisse falar.

Felizmente, um dos seus talentos era a sua capacidade para agarrar as oportunidades quando elas apareciam e os deuses apresentaram-lhe uma à saída da privada sob a forma do tal guarda de serviço. Depois das buscas do dia anterior, o Rei devia estar desesperado; as probabilidades de os guardas adormecerem em serviço eram grandes. Conhecia o homem, na verdade conhecia-o muito bem. O homem não era nenhuma beleza, mas tinha outras qualidades. Os seus olhos brilharam quando a viram. Breda sorriu-lhe e murmurou-lhe algumas instruções em voz baixa, certificando-se de que a velha não a ouvia. Ainda estava para nascer o homem que recusasse o que ela tinha para oferecer.

Funcionou. O guarda teria a sua recompensa. Ela própria sentia algum desejo que não se importava nada de satisfazer antes de chegada a noite. O homem bateu-lhe à porta pouco antes da hora do jantar e quando a velha abriu, ele gaguejou-lhe as instruções, algo incoerente que incluía Dorica, os estábulos e a vigilância.

— Oh, obrigada! — disse a jovem com uma voz adequadamente adolescente. — A minha irmã pediu-me que fosse visitar todos os dias o cavalo dela. Ela não pôde levá-lo. Tenho-me sentido tão triste e culpada, quero mesmo passar algum tempo com Jóia e tratar dele. Dorica é tão amável. E tu podes descansar um pouco — disse ela, virando-se para a sua guarda com um sorriso encantador, esperando que a mulher não decidisse primeiro ir ter com Dorica para se certificar. — Não faz mal, pois não? Desde que este homem me escolte para lá e para cá? — Antes que a mulher tivesse tempo para pensar, Breda saiu do quarto e desandou para os estábulos com o guarda atrás de si.

Num pequeno recanto cheio de arreios, couro polido e metal brilhante, Breda deu ao homem a sua recompensa. O homem possuiu-a como ela gostava, com brutalidade e pouca conversa. A jovem mexeu-se ligeiramente, deitando a língua de fora para lamber o suor que lhe escorria pelo peito. Se ao menos ele não grunhisse tanto, fazia com que parecesse que estava a praticar o coito com um javali. Breda pensou por uns instantes na possibilidade e depois regressou abruptamente quando uma onda de prazer lhe percorreu o corpo, fazendo-a enterrar as unhas nos ombros do homem. A jovem arqueou as costas, cerrou os dentes e atingiu o clímax em silêncio, ao mesmo tempo que o seu companheiro a trespassava uma, duas, três vezes, esvaziando-se dentro dela. Que porcaria. Teria de se lavar outra vez e beber a poção de ervas. Mais valia prevenir que remediar. Se havia uma coisa que não queria, que nunca quereria, era um filho.

— Podes ir — disse ela ao guarda, que entretanto tirara o membro flácido e apertava as calças. O seu desempenho fora um pouco rápido demais. De fato, Evard não se comparava com os outros homens.

Mal podia esperar para regressar a casa. — E mantém a boca fechada, ou não haverá repetição. Se a velha perguntar onde estou, diz-lhe que ainda estou nos estábulos e que está outro guarda a vigiar-me. — O homem olhou para ela e ela devolveu-lhe o olhar. — Vai! — repetiu ela, asperamente. — Estou a falar a sério. Faz o que te digo, ou digo ao Rei que saíste do teu posto. Toca a andar!

Depois de ele desaparecer, Breda procurou um pano limpo para se limpar, mas não encontrou senão trapos velhos impregnados de óleo. Não admirava que os arreios brilhassem. Suspirando, a jovem serviu-se da fralda da combinação. A velha bruxa faria bem se lhe arranjasse água quente suficiente naquela noite. Juraria que lhe vira um sorriso manhoso na noite anterior, quando lhe tinham aparecido com três baldes de água tépida. Como queria Keother que ela se arranjasse sem as criadas? Que fizesse tudo sozinha?

Breda saiu dos estábulos quase ao anoitecer, esperando que a velha não se tivesse apercebido da sua escorregadela. Sentiria uma certa satisfação ao regressar ao quarto uma vez terminada a sua façanha, sorrindo docemente e dizendo que se esquecera das horas, que ficara a pensar em casa e na irmã, tais eram as saudades.

O local estava deserto, não havia um único guarda à vista, excetuando os que estavam no caminho de ronda, ocupados a olhar para a floresta. Não havia sinal da velha. As luzes brilhavam no salão, indicando que o jantar estava a ser servido, mas estava tudo misteriosamente silencioso. Provavelmente o Rei estava a fazer um dos seus discursos chatos, mas não era razão para tanto silêncio. As únicas vozes que ouvia vinham da pequena sala ao lado da cozinha, onde as crianças estavam a jantar. As crianças nunca estavam caladas.

Eram horas. Tinha de agir imediatamente, ou seria demasiado tarde. Para além de a pequena poder abrir a boca, o Rei Bridei andava na pista de qualquer coisa e Keother, que era do seu sangue, tratava-a como se ela fosse uma espécie de depravada. Quanto ao celta, Faolan, parecia que lhe queria apertar o pescoço. Com outro homem ter-se-ia sentido excitada, mas com ele ficara aterrorizada.

Atravessou silenciosamente o pátio. Os seus chinelos de pele de carneiro não faziam barulho no pavimento de pedra. Tinha de ser rápida; sabia que Eile vigiava a filha como uma galinha só com um pinto. Se as pessoas começassem a sair do salão antes de ela terminar e se a vissem, seria um desastre. Breda estremeceu. O seu coração parecia um tambor; o sangue corria-lhe nas veias com toda a velocidade. Aquilo era excitante, fazia-a sentir-se uma deusa, com a vida e a morte nas mãos; compensava os anos todos de crueldade, de solidão.

Podia pôr tudo de lado. Era ela que controlava tudo, era a mais forte. Fosse onde fosse, toda a gente cumpriria as suas ordens. O filho do Rei estava morto, quase de certeza. Um aborto como ele não merecia viver e não merecia, certamente, os privilégios que gozara até então. A filha de Eile seria a seguinte por causa do que tinha visto, trataria do seu silêncio.

— E assim — dizia Faolan — viemos para Monte Branco. Eu primeiro, Eile e Saraid pouco depois. Foi praticamente o último passo de uma viagem muito longa.

A assistência assistira silenciosa à longa história. Já toda a gente sabia o que acontecera. Toda a gente sabia quem era Dalach e que Eile esfaqueara um homem que era seu parente pelo casamento. Toda a gente sabia que ela fugira. Toda a gente sabia da éraic, que ela era escrava de Faolan. Era estranho; dera tanta importância àquilo, aquele sentimento indesejado de obrigação, a humilhação de pertencer a alguém, a dívida abismai. Agora parecia-lhe de pouca conseqüência, de tal modo as coisas tinham mudado entre ambos. Conseguira contar tudo, sentia-se como se estivesse seca, mas ao mesmo tempo leve, como se lhe tivessem tirado um peso dos ombros. Sabia que seria difícil, como se se despisse por completo e expusesse o corpo aos elementos. Só não compreendia por que razão Faolan assumira o fardo por completo. A jovem não esperava que ele se identificasse como um dos Uí Néill, parente não só do grande Rei de Tara, mas também do monarca deposto de Dalriada, o adversário de Bridei na guerra do Outono anterior; parecera-lhe uma verdade demasiado perigosa para ser anunciada. Porém, a sua história mostrara por que razão, apesar de ser da mesma família dos poderosos chefes-de-guerra de Ulaid e Tirconnelle, seria o último homem a ajudá-los contra Fortriu ou outro adversário qualquer. Faolan contara a história de Encruzilhada do Rabequista. A assistência sabia que ele matara o próprio irmão quanto tinha apenas dezessete anos e que pagava pelo crime desde então, sabia que fora um chefe-de-guerra Uí Néill a engendrar tudo, sabia que a sua própria irmã o fizera prisioneiro e também sabia que Eile lhe salvara a vida. Faolan contara tudo com grande satisfação. No fim, virado orgulhosamente para o Rei, a sua voz tremia. Eile estava a seu lado, dando-lhe a mão. O salão estava tão silencioso que ela ouvia as vozes das crianças na sala de jantar, à espera que os pais ou as amas os levassem para a cama.

Bridei concedeu alguns momentos de silêncio aos narradores. Eile percebeu que era um gesto de profundo respeito pela sua honestidade e coragem. Finalmente, o Rei pôs-se de pé.

— Estou espantado — disse ele calmamente — como, suponho, todos os que ouviram esta história. Estávamos todos à espera de intrigas e aventuras, privações e luta. Alguns, provavelmente, até anteciparam revelações de natureza política. E houve algumas neste relato extraordinário. Porém, acima de tudo, penso que o que ouvimos foi uma comovente e reveladora história de amor. Faolan, disseste que ao chegares aqui, a Colina Branca, tinhas dado quase o último passo da tua viagem. Posso perguntar qual é o último?

Faolan encontrou os olhos do Rei. O seu rosto estava pálido e a sua mão agarrava com força a de Eile.

— Não sei — disse ele. — Eile e eu ainda não o determinamos. E penso que tu também não, meu senhor Rei. Espero... espero sinceramente que esta história tenha contribuído para que as pessoas deixem de desconfiar de nós. A minha lealdade vai toda para ti e para Fortriu. Eile quer apenas paz, dar um lar à filha e trabalhar e viver como as outras pessoas, sem estar sempre com medo. É um pedido muito simples.

Antes que Bridei pudesse responder, abriu-se uma porta lateral do grande salão. Uma serva entrou a correr, muito excitada, e foi ter com Elda. As duas mulheres trocaram algumas palavras. Elda empalideceu. Dovran levantou-se e disparou em direção à porta sem se preocupar com quem atropelava no caminho.

— O que se passa? — perguntou o Rei.

Elda, que caminhava lentamente por entre as mesas devido à sua gravidez, olhou para trás para responder.

— Meu senhor, desapareceu uma criança, a filha de Eile. Por favor, desculpa-me. Faolan, é melhor vires comigo.

O coração de Eile parou. Não devia ter deixado Saraid jantar sozinha, apenas com as criadas. Não a devia ter perdido de vista por um único instante. A jovem pôs-se em pé de um salto e o salão começou a andar à roda.

— Corre! — disse ela, mas Faolan já tinha desaparecido.


CAPÍTULO VINTE

 

Foi Wid que a ajudou a chegar ao pátio. O velho sábio, apesar da idade avançada, tinha os pés firmes desde que tivesse a ajuda do seu cajado. Quando chegaram à rua já havia pessoas com archotes por todo o lado. Eile não conseguia pensar, estava completamente aterrorizada. O seu coração saltava, o suor escorria-lhe pelas costas abaixo. Saraid, Saraid... Saraid, que sabia qualquer coisa e não dizia. Saraid, que Faolan dissera ser preciso vigiar até a verdade vir ao de cima. Saraid, que ambos pensavam a salvo com os gêmeos, apenas naquela noite, sob a supervisão da mulher que as crianças conheciam tão bem, que lhes dera de jantar com tanto carinho, a mesma que, pálida como um cadáver, entrara de rompante no salão com a notícia terrível.

— Ela não pode estar longe, Eile — disse Wid, calmamente. — Respira fundo.

A luz não era boa para procurar. O céu ainda tinha a palidez azul de um fim de tarde de Verão; no lado de fora das muralhas, as encostas cobertas de árvores estavam escuras, salvo a área em frente dos portões, onde havia archotes a arder. Saraid, porém, não estava no lado de fora das muralhas, a não ser que alguém a tivesse levado. Porquê? Porquê?

Havia pessoas nos jardins e em diversas partes da fortaleza com lanternas na mão, chamando. O grande salão esvaziara-se. Bridei estava no pátio, assim como Keother e o irmão Colm com os seus irmãos vestidos de castanho. Maldita fraqueza! Saraid estava algures em perigo e ela mal podia dar dois passos sem perder o equilíbrio.

— Saraid! — gritou ela, apercebendo-se de quão débeis eram os seus esforços face às vozes dos homens, os passos precipitados e os gritos das sentinelas. — Saraid, onde estás?

Tinha visto Faolan a desaparecer na direção do pátio inferior, que ficava logo à entrada principal de Colina Branca. Eile seguiu-o, apoiada no braço de Wid. Sempre fazia qualquer coisa. Havia muita gente a dirigir-se para os portões. Elda, com um gêmeo em cada mão, apareceu a seu lado.

— Oh, Eile, lamento tanto, a mulher diz que só virou a cabeça por um momento, o suficiente para cortar umas fatias de queijo e que quando se virou Saraid já tinha desaparecido. Ela deve ter escolhido a ocasião exata entre a ida e a vinda do guarda...

Eile mal a ouviu. Chegaram ao pátio inferior, onde os grandes portões estavam fechados e aferrolhados. No alto do caminho-de-ronda os archotes flamejavam a intervalos e os homens-de-armas patrulhavam entre eles. Eile registrou debilmente as vozes dos guardas por cima dos portões:

— Alto! Diz o teu nome e ao que vens!

Faolan corria com Dovran um passo ou dois atrás. Ele corria por uns degraus íngremes acima, a alguma distância dos portões, que iam dar à muralha que circundava a fortaleza, dois braços acima do passadiço patrulhado pelos guardas. Um homem de pé podia olhar para fora e ver o carreiro serpenteante que ia dar aos portões. Faolan subia-os a toda a velocidade, indiferente à perna ferida. Um outro homem vira o mesmo que Faolan e corria também com um archote na mão.

Iluminada pela luz que se aproximava, Saraid, no alto do baluarte, tão alto que os seus pés estavam à altura dos ombros de um homem, oscilava um pouco, mexendo os pés na estreita borda de pedra. A pequenina não podia estender os braços para se tentar equilibrar porque tinha a “Lamento apertada contra o peito. A luz trêmula, Eile viu outra silhueta de pé, mesmo ao lado da criança. A jovem sentiu-se aliviada; já lá estava alguém, bastava estender um braço para a impedir de cair. A luz do archote incidiu nuns cabelos dourados e num vestido de seda. Breda. Breda. Subitamente, Eile lembrou-se de tudo: Breda atingindo-a com uma coisa qualquer que tinha na mão e depois a queda na escuridão... Breda tentara matá-la e agora ia matar a sua filha.

Eile abriu a boca para gritar, mas Wid disse-lhe suavemente:

— Não. Assim assustas Saraid. Repara, Faolan está quase lá.

Ele já estava no topo; já não corria, avançava devagar com Dovran atrás de si.

— Ele está a ver se não a assusta — disse Wid. — Faolan sabe o que está a fazer, Eile.

O grito que ela não lançara crescia-lhe no peito, ameaçando rasgá-la. Faolan estava quase, apenas a alguns passos. No outro lado, o guarda com o archote parara. Faolan parecia estar a dizer qualquer coisa, talvez a dizer a Breda para recuar e deixá-lo chegar a Saraid. Estava quase no fim.

Breda estendeu um braço, como se quisesse puxar Saraid, para a impedir de cair. Faolan abandonou a sua aproximação cautelosa e lançou-se na direção da mulher loura. Naquele preciso momento Saraid afastou-se, perdeu o equilíbrio e caiu. Num momento estava lá, no outro já não estava.

Eile caiu de joelhos. Estava escuro, mais escuro do que nunca, estava noite perpétua. Ninguém podia cair de tão alto e sobreviver. O grito saiu, ecoando pelo pátio como um chamamento da própria Corvo Negro.

Alguém disse:

— Meu Deus, tem piedade; Cristo, tem piedade.

Garth acotovelava a multidão, tentando chegar aos degraus. Para quê? Era demasiado tarde. Demasiado tarde. A noite caíra. No alto da muralha, Breda guinchava:

— Dizei-lhe que me largue! Eu não fiz nada! Estava a tentar salvar a estúpida da criança! Dizei-lhe que me largue, está a magoar-me!

O barulho continuou, um áspero e primitivo lamento de dor. Breda não parou, mesmo quando as pessoas a rodearam: Elda, Garvan, o irmão Suibne, todos eles emitindo sons sem qualquer significado, tentando confortá-la. O seu corpo explodia de agonia, não havia maneira de a segurar.

— Repito, diz o teu nome e ao que vens! — disse a sentinela de serviço aos portões, mas num tom de voz diferente, já que tinha visto o que acontecera. Toda a gente devia ter visto, à luz dos archotes, a minúscula figura a cair.

No exterior ouviu-se uma voz, uma voz que não era possível ignorar.

— O meu nome é Broichan e sou druida e pai adotivo do Rei. Se não me conheces, Kennard, tens a memória curta. Não estive ausente assim tanto tempo. Comigo está a Rainha de Fortriu e o seu filho. Espero que não lhes peças que se virem, que ajoelhem e que deitem fora as armas antes de os deixares entrar. Vimos de muito longe.

— Abri o portão! — gritou Bridei e quando Eile levantou o olhar, tentando respirar, viu-o a atravessar o pátio com os olhos em brasa. — Depressa!

No momento seguinte Faolan estava a seu lado, baixando-se para a tomar nos braços, lavado em lágrimas, furioso. A jovem não via Dovran nem Breda, apesar de o Rei Keother estar a atravessar o pátio com uma expressão furibunda.

— Foi quase — disse Faolan. — Quase...

O pequeno portão lateral abriu-se. Através das lágrimas, Eile viu entrar três viajantes. Um era um homem alto e austero com uns cabelos grisalhos cortados de maneira estranha e apenas uma camisa rasgada a cobrir-lhe a silhueta magra. Derelei estava nos seus braços. O petiz tinha a cabeça no ombro do homem e o dedo na boca como qualquer rapaz de dois anos que tivesse perdido a sesta. Ao lado de ambos caminhava abertamente Tuala, sem tentar esconder-se, com qualquer coisa preciosa e frágil nas mãos. Eile viu-se a si própria a suster a respiração sem saber exatamente porquê.

Bridei chorava. O Rei abraçou o homem grande com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces, abarcando também o filho. Tuala, porém, aproximou-se de Eile e de Faolan e colocou-se diante deles, solene e silenciosa. Eile tentou levantar-se e Faolan levantou-se com ela, rodeando-me os ombros com um braço.

Tuala abriu as mãos. Aninhado na palma da mão estava um minúsculo pássaro castanho, talvez uma carriça, com as penas todas mas invulgarmente pequena. Eile sentiu um arrepio na espinha e o braço de Faolan apertou-lhe ainda mais os ombros. Wid murmurou qualquer coisa e, a seu lado, Eile viu o irmão Suibne fazer o sinal da cruz.

— Está tudo bem — disse Tuala. — Apanhei-a a tempo. — Então, com um pequeno e estranho piparote, a Rainha libertou o pequeno pássaro, que voou na direção de Eile. No espaço de um simples suspiro, enquanto Eile estendia uma mão, o animal desapareceu e no seu lugar apareceu Saraid de olhos muito abertos, cabelos desgrenhados e um sorriso trêmulo nos lábios.

— Mãe! — disse ela. — Voei.

— Deus seja louvado — disse suavemente o irmão Suibne. Eile, porém, não o ouviu. Os seus braços já se tinham fechado em redor da filha e os de Faolan em redor das duas e por um momento mais nada no mundo teve importância.

Foi um súbito inteiriçar do corpo de Saraid que fez com que Eile abrandasse o abraço convulsivo. A jovem levantou a cabeça. Saraid estava a olhar para o outro lado do pátio, naquele momento muito movimentado, cheio de luz e de pessoas a falar umas com as outras. Bridei estava ao lado de Broichan com Derelei nos braços. Tuala desaparecera e Eile supôs que ela tinha ido ver a filha. A jovem apercebeu-se de que nem sequer lhe tinha agradecido a dádiva inesperada e maravilhosa da vida da sua filha. Saraid estava a olhar, por entre as pessoas, para o canto do pátio onde estava Breda com um olhar estranhamente impassível nas suas feições encantadoras. A seu lado estavam Garth e Dovran. O Rei Keother estava na sua frente, fixando-a sombriamente.

Saraid apontou.

— Senhora empurrou-me — disse ela com a penetrante voz dos seus três anos. — Senhora empurrou mãe. Para baixo.

— Santo Deus — murmurou o irmão Suibne. Atrás dele, o imponente irmão Colm parecia estar também a rezar.

— Saraid — disse Faolan ajoelhando-se e abraçando a criança por trás, como se estivesse a protegê-la e a refreá-la. — Diz lá outra vez, só para termos a certeza. A senhora empurrou-te?

Saraid acenou com a cabeça.

— Senhora bateu na mãe. Mãe caiu.

— Qual senhora? Mostra-me outra vez.

O dedo acusador apontou uma vez mais. Saraid estava a começar a ficar cansada, o estado de choque começava a substituir a excitação.

— Dama de cabelo amarelo — murmurou ela.

Todos tinham ouvido: o monge celta, o sábio priteni, o guarda celta e a ervanária priteni. Eile viu a expressão no rosto de Faolan, sentiu a tensão que lhe percorria o corpo. Parecia um gato selvagem pronto a saltar. A jovem viu-lhe a intenção em cada canto do seu ser: Vou matá-la.

— Não, Faolan — disse ela. — Tu agora és pai, tens responsabilidades. Deixa isso para os outros. — Quando ela olhou para ele com uma expressão selvagem nos olhos, ela acrescentou: — Temos a nossa filha, temos o nosso próprio milagre. Tu tens as provas. O Rei fará justiça. Esquece a vingança.

Faolan respirou fundo e levou as mãos ao rosto.

— Deuses, estive quase — murmurou ele. — Sinto o coração em farrapos.

— Faolan! Eile! — disse o Rei, aproximando-se deles com o filho ao colo. Atrás dele vinha Broichan que, apesar da sua aparência desgrenhada, emanava uma aura de poder quase visível. Os seus olhos eram duas obsidianas, profundas, cheias de segredos. Se não o tivesse visto com Derelei nos braços, Eile teria tido medo dele. — Saraid está bem? — perguntou Bridei

— Parece que sim, está apenas um pouco abalada. Não sei exata-mente o que aconteceu — disse Eile. — Meu senhor, estou tão contente por Derelei estar são e salvo; parece exausto.

— Fez uma longa jornada. — A voz de Broichan era profunda e autoritária, engolia o ouvinte. — Precisa de descanso.

— Restam as respostas a muitas perguntas — disse o Rei, olhando para os monges cristãos e para os rostos curiosos dos seus cortesãos. — Mas ficam para amanhã. Hoje celebramos e, como disse o meu pai adotivo, descansamos.

Do outro lado do pátio veio uma voz tão quebradiça como o vidro.

— Ninguém viu? A rapariga caiu. Eu estava a tentar detê-la, mas ela desequilibrou-se e a meio da queda transformou-se num pássaro.

E como se isso não bastasse, a Rainha... Ela subiu o monte ao lado do druida do Rei sob a forma de um animal e um momento depois lá estava ela com aqueles olhos grandes, estranhos, com o seu vestido azul, como se não tivesse feito nada mágico para transformar a criança e a ela própria... A vossa Rainha é um bocado estranha. Algo está mal, em Colina Branca está tudo mal.

Keother tentava deter a prima, mas sem resultado. Eile sentiu que Faolan estava a ponto de intervir. Os seus olhos encontraram os de Bridei e o Rei abanou levemente a cabeça. Não, deixa-a deitar tudo cá para fora.

— Celtas em posições de confiança, uma Rainha que não é totalmente humana, como toda a gente pode ver, príncipes que parecem... que parecem outra coisa qualquer, uma coisa má, um Rei que nem sequer quer saber do que as pessoas pensam... Não está certo. Mas ninguém tenta emendar as coisas. Toda a gente tem medo de falar. Pois eu não tenho. Se vejo alguma coisa errada, faço qualquer coisa. Não se põe uma pessoa numa determinada posição se ela não merece. A Rainha Tuala pertence aos Boa Gente. Toda a gente sabe e toda a gente vira a cara...

— Silêncio! — Se Broichan disse apenas as palavras ou se as acompanhou com um feitiço, ninguém percebeu, mas a bonita boca de Breda fechou-se tão depressa como se o druida lhe tivesse dado um soco no queixo. — Escutai o que vos digo, todos vós. A Rainha de Fortriu é minha filha, nasceu de uma unção sancionada pela própria Aquela Que Brilha.

O pátio foi percorrido por uma exclamação de espanto, dando a entender a Eile que ninguém, salvo o druida e o Rei, sabiam. Enquanto Broichan avançava, Tuala apareceu, vinda dos aposentos reais, com Anfreda nos braços e com Fola a seu lado, com a sua túnica cinzenta. Ao ver o druida, o rosto da mulher sábia abriu-se num grande sorriso.

— Quase todos vós me conheceis — continuou o druida — sabeis que possuo poderes que me foram dados pelos próprios deuses. Conheceis a minha autoridade, a qual devo ao Rei. As transformações que testemunhastes esta noite salvaram a vida de uma criança e já ouço línguas venenosas a tentar transformá-las numa coisa diabólica. Aqueles de vós que são mais sábios devem vê-las pelo que são: uma coisa maravilhosa. Perguntai às sentinelas que estão na muralha o que viram; perguntai às que estão nos portões. Qual deles dirá que a Rainha de Fortriu não devia ter usado os poderes que possui, e que lhe foram dados pelos deuses, para que esta criança inocente voasse para as mãos que esperavam por ela?

»Pergunto-vos, desafiais o meu próprio direito de fazer tal coisa? Penso que não. Então, não critiqueis a Rainha por um ato de misericórdia porque digo-vos, de uma vez por todas, que qualquer homem ou mulher que tente, por palavras ou atos, prejudicar a minha filha, responderá perante mim. Que nenhuma mão maldosa, que nenhuma língua venenosa atinja o Rei ou a sua família a qual, através de Tuala, também é a minha enquanto eu viver neste mundo, porque aquele que tentar fazer-lhes mal será punido pelos deuses de Fortriu.

Silêncio absoluto. Ninguém se mexia. Então, Suibne começou a traduzir em voz baixa para gaélico, mas Colm deteve-o.

— Não preciso de palavras para compreender o que acaba de ser dito — disse ele. — Vamos, o nosso lugar não é aqui — concluiu ele, empurrando o seu irmão. O pátio estava silencioso, como se as pessoas precisassem de tempo para assimilar a imensidade do que acabava de ocorrer. Então ouviu-se uma voz infantil.

— Feeler? Deixei cair Lamento.

— Eu vou buscá-la — disse Faolan, levantando-se com uma certa dificuldade. — Ela fez de propósito, sabes, Esquilo? Para nós acrescentarmos mais um verso à canção. Eile, é melhor levares Saraid para dentro. Não esperes por mim — concluiu ele, dirigindo-se para os portões.

Bridei ergueu a voz.

— Amanhã de manhã encontramo-nos para pensar em tudo isto. Uma noite de prodígios e de horrores não é coisa que se aceite de ânimo leve. Os deuses foram bons. Agradeço-lhes do fundo do meu coração. — Tuala colocara-se a seu lado com os seus grandes olhos claros e firmes à luz incerta dos archotes. A Lua apareceu por cima das muralhas, enquadrada por pequenas nuvens, uma unha nova e frágil, um prenúncio de esperança.

— Retiremo-nos — disse Bridei. — Aceitai o conselho de Broichan e pensai no assunto antes de o transformardes em conversa fútil. Perguntai a vós próprios se preferíeis ver uma criança morrer a aceitar a diferença que existe nesta comunidade. Esta noite os deuses pouparam a vida a duas crianças preciosas. Devemos dar graças à Aquela que Brilha, ao Guardião da Chama e também à Mãe Ossuda, guardiã da porta final, por Derelei e Saraid terem regressado para nós. Boa noite, meus amigos.

Breda já tinha desaparecido, conduzida pelo primo e por Dorica. Enquanto se dirigia para o jardim no meio de Tuala e do inquietante Broichan, Eile disse:

— Obrigada, minha senhora. Não sei como fizeste aquilo, mas salvaste a vida de Saraid. Nunca te conseguirei pagar. Deixei Derelei sair da fortaleza; traí a tua confiança...

— Chhh — disse Tuala. — Contas-nos a história toda amanhã. Tenho a certeza que a culpa não foi tua. Derelei tinha uma missão para cumprir, estava apenas à espera do momento certo. Acabaria sempre por fugir, independentemente de quem estivesse a tomar conta dele. E tudo acabou em bem. O meu filho encontrou o avô e trouxe-o para casa.

— Eu pensava que não regressarias abertamente, que regressadas sob a outra forma. — Eile estava hesitante, sem saber se podia continuar a falar, mas as perguntas eram tantas! A seu lado, Saraid apertava-lhe a mão com força. A excitação da criança desaparecera.

— Não era minha intenção fazê-lo. Tornou-se necessário no momento em que vi Saraid cair da muralha abaixo. Para a transformar tinha de assumir a minha própria forma. Entretanto já tinha sido vista, era demasiado tarde. Além do mais, teria sido perigoso.

— Porquê? — perguntou Bridei, que seguia ao lado do druida.

— Gatos e pássaros não ligam — disse Tuala.

Eile e Faolan não queriam perder Saraid de vista, deitaram-na ao meio da grande cama e deitaram-se a seu lado. Faolan cantou-lhe a canção de Lamento, Eile contou-lhe a história da casa do monte e lembraram-lhe ambos como tinha sido corajosa e como tinha tido a sorte de poder voar como um pássaro e que no dia seguinte poderia brincar com Derelei. Em seguida beijaram-na e ela adormeceu.

— Faolan? — disse Eile.

— Hum?

— Podes dormir por baixo dos cobertores, esta noite. Não quero que apanhes frio.

— Não quero que te sintas obrigada...

— Não sinto. Estou a dizer-te porque quero.

— Obrigado — disse ele.

— Por partilhar os cobertores comigo?

— Por isso e por me deixares ser um homem com responsabilidades familiares. Por tudo, Eile.

— Eu também te agradeço. Foste tão corajoso esta noite. Contar a tua história e depois correr para salvar Saraid, apesar da perna... Quem me dera que Breda já não estivesse em Colina Branca. Parece impossível como ela é capaz de coisas tão malvadas! Fazer mal a uma criança!

— Chhh. Não penses mais nisso. Lembra-te do que me disseste: Bridei fará com que seja feita justiça. Não estou a ver Breda a ser acusada em Fortriu. Seria demasiado prejudicial para as relações dos dois reinos. Penso que Bridei vai-lhe dizer algumas palavras azedas e depois Keother leva-a rápida e silenciosamente para as Ilhas Pequenas. É um fim vergonhoso para a sua tentativa de fortalecer a aliança que tem com Fortriu.

— Sabes — disse a jovem após um pequeno silêncio — agora percebo por que razão as pessoas de Colina Branca, Garth e Elda, por exemplo, vivem no interior destas muralhas. Desistiram do privilégio de ter as suas próprias casas, as suas próprias terras. Suponho que é para que os seus filhos possam ter mais segurança.

— Mas — arriscou Faolan — tu não queres fazer o mesmo, imagino? Reduzir a casa do monte a uma coisa que existe apenas em histórias e em sonhos? O gato, as galinhas, o cão?

— Cão? Qual cão? — perguntou ela, apoiando-se num cotovelo para olhar para ele por cima da pequenina adormecida.

— Pensei que talvez pudesses ter um cão, desde que o gato o tolerasse. Quando eu era rapaz, em Encruzilhada do Rabequista, havia lá sempre cães.

Eile voltara a deitar a cabeça na almofada.

— É muito difícil, não é? — ouviu-a Faolan dizer com lágrimas na voz. — Não podes fazer o teu trabalho se não viveres na corte, pois não? Como é que havemos de viver sempre contigo longe de nós?

— Chhh — disse Faolan. — Estamos ambos demasiado cansados para falar nisso agora. Mas havemos de falar. Se vou ser pai, quero sê-lo como deve ser. Se vou ser marido, quero ser o melhor do mundo. Ainda tenho de esperar muito tempo por um determinado acontecimento?

— Não, Faolan — respondeu ela em voz baixa. — Não tens de me pedir nada. Não imagino outro fim para a história. O Rei não lhe chamou uma comovente história de amor? Sabes que a minha resposta é sim, por mim e por Saraid. Esquece a casa do monte. Nós também a esquecemos desde que te tenhamos a ti.

— Que poder — murmurou ele. — Basta-te estalar os dedos para pores um homem a chorar. E és tão pequenina, mo cridhe.

— Dorme — disse ela. — Vê se dás descanso a esse joelho. Quanto ao acontecimento que mencionaste, espero que aconteça em breve. Mas não esta noite. Sinto-me como se me tivessem dado uma tareia, como um vestido lavado num regato da montanha. Estou completamente exausta. Dás-me a mão antes de adormeceres?

Faolan acordou cedo, antes do amanhecer, mas não abriu os olhos porque não queria perder o sonho, um sonho encantador no qual sentia o murmúrio dos seus longos cabelos na sua pele, o calor do seu corpo encostado ao seu e o as suas mãos gentis explorando-lhe o corpo, atormentando-o, tocando-o aqui, acariciando-o ali, fazendo-o quase explodir de desejo. O quarto estava quente; ela estava sentada a seu lado na cama, vestida apenas com uma fina camisa-de-noite. Com os olhos fechados, ele estendeu a mão e acariciou-lhe o seio pequeno, ereto, perfeitamente redondo, sentindo nos dedos o mamilo duro.

— Pode abrir os olhos — murmurou ela.

Faolan abriu-os e viu que estava acordado. Eile reacendera a lareira e em cima de uma mesa estava um jarro e duas canecas. Através da porta aberta, Faolan viu Saraid a dormir no outro quarto por baixo do cobertor verde, com uma vela acesa em cima da pequena mesa, rodeando-a de sombras vacilantes.

— Estava tão cansada que nem sequer sentiu — murmurou ela, deitando-se ao lado dele, apoiando-lhe a cabeça no ombro, roçando-lhe os cabelos suaves pelos lábios, mexendo-lhe, fazendo-o respirar ansiosamente, excitando-o.

Devagar, disse ele a si próprio. Devagar, cuidado. Não dê cabo de tudo.

— Diga não — murmurou ele — se alguma coisa... seja o que for... — Ele começou a tocar-lhe com os dedos, com os lábios e a língua, suavemente, sentindo o desejo a crescer, mas reprimindo-se pelo amor que lhe tinha. Eile ajudou-o. Faolan não esperava que ela fosse ativa, que lhe acariciasse o corpo como se estivesse a explorar um mundo novo; não esperava que ela lhe desapertasse a camisa e as calças, que o ajudasse a despir-se para que os dois corpos pudessem tocar-se melhor. Ele agarrou-lhe nas nádegas com as duas mãos, puxando-a para si. Ela não se retesou nem se afastou; deixou-se ir, respirando cada vez mais depressa. Faolan beijou-a, usou a língua, saboreou-a e com as mãos puxou-a para si. Talvez não fosse boa idéia; desejava-a tanto que até lhe doía.

Eile ainda tinha a camisa-de-noite. O tecido delicado estava entre os dois, a última barreira.

— Importa-se de tirá-la? — perguntou ele, beijando-lhe um ombro.

Eile sentiu-se corar.

— Eu sei que é uma estupidez, mas tenho... vergonha — disse ela. — Como se estivesse a fazer isto pela primeira vez. Como se isto fosse a minha primeira noite.

— É a primeira noite, mo cridhe — disse ele. — A nossa primeira noite; a tua e a minha. Só espero estar à altura das tuas expectativas. Há muito tempo que não...

Ela beijou-o, dizendo-lhe sem palavras que não tinha qualquer dúvida de que ele cumpriria a sua missão na perfeição. A jovem sentou-se por um momento, agarrou na camisa-de-noite pela bainha e tirou-a pela cabeça, descartando-se dela. Ele olhou-lhe amorosamente para a pequenez do corpo, para a pele pálida, para as curvas suaves, para o triângulo perfeito entre as pernas, para os sedutores cabelos ruivos que lhe caíam pelos ombros e lhe desciam até aos seios de mamilos cor-de-rosa.

— És a coisa mais encantadora que já vi na minha vida — murmurou ele. — Quem te diz isto é um homem que já viajou muito. Eu espero. Diga-me quando. Ou, se quiseres, podemos só... — Só o quê? Ficar ali deitado enquanto o desejo o enlouquecia? Deuses, não podia esperar mais, desejava-a com todas as suas forças.

— Agora — disse ela, colocando-se em cima dele com as pernas afastadas, pousando-lhe as mãos nos ombros. — Agora.

— Tem certeza? — Faolan mal conseguia respirar; sentia-a aberta, úmida, pronta. Tem de ser verdade. Não pode ser um sonho.

— Claro que tenho — disse ela, tocando-lhe nas faces num gesto de ternura e confiança. Então começaram a mexer-se e se foi ele que a penetrou ou se foi ela que o recebeu, nenhum deles percebeu. De repente começaram os dois a respirar com dificuldade, embrenhados numa dança de paixão e Faolan sentiu que ia tudo correr bem. O sonho tornava-se realidade. Ele tentou não exercer muita força, reprimiu-se, serviu-se das mãos para ajudá-la, murmurou-lhe palavras tranqüilizadoras, escutou-lhe a respiração esperando que ela lhe dissesse se, subitamente, sentisse medo; sentia-se à beira do clímax, sabia que se esperasse muito mais perderia a batalha porque desejava-a loucamente e até um homem com uma autodisciplina de ferro tinha o seu ponto de ruptura. Subitamente Eile retesou-se, emitiu um pequeno som, um espantoso som de prazer e depois um suspiro. Um instante depois ele perdia o controle e derramava profundamente a sua semente nela num momento de realização total, quase inconsciente.

Faolan ficou completamente esgotado. Eile enroscou-se nele e pousou-lhe a cabeça no ombro, espalhando-lhe os cabelos pelo peito. Ele sentiu-lhe a respiração a abrandar lentamente. Uns momentos depois a jovem puxou os cobertores para cima e perguntou num murmúrio hesitante:


— Fiz bem?

— Ainda pergunta? Foi maravilhoso, Eile. Não tenho palavras para descrever o que aconteceu. Não sei se me atrevo a fazer-te a mesma pergunta.

Ela ficou calada durante algum tempo e ele perguntou a si próprio se teria interpretado mal os sinais e os sons.

— Foi... — disse ela finalmente — foi completamente diferente. Não foi nada... Não sabia que podia ser assim. Não acredito...

— Dá-me uma resposta simples, minha querida. A minha cabeça não é capaz de muito mais neste momento.

— Faolan, foi... um encanto. Foste maravilhoso. Não percebo por que razão tinha tanto medo. Acho... que foi aquele tempo todo tu e eu, a viagem, as coisas boas e más que partilhamos. Sem elas isto não teria sido assim. Não tive medo nenhum. Creio que a culpa é do amor.

Ele apertou-a contra o peito.

— É a primeira vez que dizes essa palavra. Amor.

— Não é preciso, pois não? Deves saber que te amo, Faolan. Mais do que a Lua e as estrelas, mais do que as flores, as árvores e todas as coisas bonitas que o mundo tem. Deves ter sentido.

— É agradável ouvir, mesmo assim.

— Então vou continuar a dizer. Até seres um velho cheio de rugas e Saraid ter filhos. Faolan?

— Hum?

— Não sei em relação a ti, mas eu estou esfomeada.

— Não jantaste! Queres que vá ver se ainda está alguém acordado? Queres que vá arranjar qualquer coisa?

— Ainda não — disse ela. — Não quero que saias ainda de ao pé de mim. Importas-te de me ir buscar um pouco de água? E depois volta para a cama. Quero ver chegar a madrugada agarrada a ti. Quando Saraid acordar podemos ir à procura do pequeno-almoço.

Bridei convocou a reunião que tinha com Colmcille para três dias depois do regresso de Broichan. Como o druida da corte regressara e a sua mulher e o seu filho estavam em casa sãos e salvos, não havia razão para mais adiamentos. Além do mais, era preciso pensar em Keother. Quando o Rei das Ilhas Pequenas, chamado a uma reunião privada para discutir o chocante comportamento da prima, confessou que já sabia que a rapariga era instável, Bridei ficou extremamente furioso. Era impensável ter colocado crianças e uma adulta em risco, trazendo para Fortriu uma força tão amoral; era uma irresponsabilidade da parte de um condutor de homens. Como Rei que era, Bridei controlou-se, mas não deixou de expressar a sua opinião a Keother. O Rei das Ilhas Pequenas pouco podia dizer em sua defesa, e nada em defesa de Breda. Keother pediu perdão a Bridei, não se desculpou e disse que pensara, ao sair de casa com o seu séquito e a sua prima, que o Rei de Fortriu exigiria uma refém para substituir Ana.

— Talvez exija — disse-lhe Bridei — mas seja quem for, não será Breda de certeza. Conto as horas que faltam para a tua prima se ir embora de Monte Branco e é bom que trates do assunto porque não garanto a sua segurança depois do que aconteceu. — Garth falara com ele em particular e dissera-lhe que Eile conseguira refrear o temperamento de Faolan porque era sua opinião que, se ele se visse novamente face-a-face com Breda, talvez não conseguisse evitar a violência. Tanto ele como Dovran tinham-no visto com as mãos quase no pescoço da princesa das Ilhas Pequenas, no alto da muralha, ao ver que ela lhe tinha atirado a pequenina para o vazio. O seu olhar teria revirado as tripas do mais forte dos homens.

— Compreendo — disse Keother — vou dar os passos necessários para tirar quase imediatamente a minha prima de Monte Branco. Tinha esperança de poder assistir à tua reunião com Colmcille. Sei que as questões estratégicas relacionadas com o meu reino serão incluídas na discussão. Ter vindo de tão longe e perder a oportunidade...

Bridei absteve-se de lhe dar uma resposta simples: Devias ter pensado nisso antes de largam a tua prima na minha corte, à solta no meio da minha família e dos meus amigos. De fato, seria útil ter Keother na reunião. Por outro lado, ter Breda mais três dias em Monte Branco, mesmo vigiada de perto por guardas capazes de lidar com o mais difícil dos prisioneiros, eram três dias a mais.

— Pensei — disse Keother — em mandar amanhã dois barcos com a minha prima e um número adequado de guardas e acompanhantes. Pedi aos meus conselheiros que tratassem do assunto. O resto do nosso grupo, comigo incluído, pode segui-los depois da tua audiência com os cristãos. Isto se concordares. Bridei, isto é um fim triste para o que eu pensava ser uma missão no sentido de reconstruir as pontes que nos separam.

— De fato — disse o Rei, calmamente. — Serás bem-vindo à audiência com Colm. Sei que os atos de Breda são dela, não teus. No entanto, trouxeste-a contigo e em parte és responsável. Não tenho grande desejo de falar com ela outra vez, depois do que aconteceu com o meu filho, mas acredito que é necessário. Devo explicar-lhe o significado do que ela provocou.

— Em conselho aberto? — A voz de Keother era tensa.

— Não é meu desejo tornar isto mais público do que o necessário, Keother. Arranjamos alguém para registrar o que for dito. Vou precisar de ti, de Dorica e de um par de guardas, nenhum dos quais pode ser Faolan. Talvez um dos teus conselheiros e um dos meus. Podemos fazê-lo logo à noite, antes do jantar. Se Breda é capaz de compreender o que eu tenho a dizer, não sei, mas tenho de lho dizer. Quanto ao que acontecer quando chegares a tua casa, não me cabe a mim determinar. A tua prima nunca mais será bem-vinda a Fortriu. Vou mandar um mensageiro à irmã dela e a Drustan para os informar do que aconteceu. Imagino que Breda não será aceite como hóspede em casa deles.

— Sim, meu senhor Rei. — Keother estava pálido e tenso; parecia ter envelhecido dez anos no espaço de apenas alguns dias. — Se não te importas, vou tratar dos preparativos para a partida dela. Estou muito envergonhado, Bridei, pensei que a minha prima era apenas um pouco selvagem, um pouco instável. Pensei que uma temporada na corte de Fortriu a acalmaria. Este lapso terrível vai atormentar-me durante muito tempo.

Bridei acenou com a cabeça.

— Como rei e parente, és responsável por Breda, um fardo que podes muito bem vir a carregar a tua vida toda. Precisarás de paciência. Terás de tomar decisões extremamente difíceis. Desejo-te sorte.

Foram colocadas candeias na pequena sala do conselho e um jarro de hidromel em cima da mesa, acompanhado de algumas belas taças de vidro. A sala estava quente e convidativa, nada que se parecesse com a sala de um julgamento. A própria Breda, quando entrou com Dorica, parecia vestida para um grande jantar, não para uma reunião onde tinha de prestar contas. Os seus cabelos estavam entrançados e enrolados perfeitamente no alto da cabeça, com algumas madeixas a caírem-lhe para a testa e usava um vestido creme com os punhos e a barra da saia bordados. A cor das faces era intensa e os olhos azuis desafiavam quem se atrevesse a pô-la em causa.

Keother e Bridei já estavam sentados à mesa com Tharan e um dos conselheiros do Rei das Ilhas Pequenas, Dernat. O guarda pessoal de Tharan, Imbeg, estava atrás dos dois Reis. Garth entrou com as mulheres e postou-se junto da porta. No extremo oposto da mesa sentava-se Wid, o velho sábio, com pergaminho e tinta na sua frente e uma estudada expressão de neutralidade no rosto. A reunião tinha de ser registrada devido à natureza delicada do assunto em questão.

Depois de estarem todos sentados, Breda de frente para os homens com Dorica a seu lado, Bridei fez o discurso que tinha preparado, nomeando por ordem os delitos da jovem, uma declaração de fato, pura e simples. O Rei aconselhara-se com Broichan, com Tharan e com Aniel para a sua feitura, desejoso de que o amor pela sua família e o temor pela mesma não o influenciassem porque, como Rei e árbitro, tinha de ser absolutamente justo e imparcial, sem que a emoção desempenhasse qualquer papel na sua capacidade de julgamento. A lista falava por si própria: a alfinetada na égua, que provocara a morte de Cella e um braço partido a Bedo; a chantagem exercida sobre as suas acompanhantes; as crueldades que lhes infligira, aterrorizando-as e forçando-as a uma obediência cega. O ferimento infligido a Eile e o fato de a ter abandonado no poço. As mentiras que tinham levado a que duas crianças fossem deixadas sozinhas e abandonadas no exterior das muralhas. A tentativa de assassinato de Saraid, uma criança de apenas três anos de idade.

Breda ouviu-o, impassível. Ou talvez nem sequer o ouvisse. Quando acabou, Bridei perguntou-se se compreendia a gravidade dos seus atos, mas a rapariga limitou-se a olhar através dele. A jovem brincava com uma taça vazia, fazendo-a rodar em cima da mesa.

— Breda — disse asperamente Keother — esta reunião não foi convocada para passar o tempo. Já te expliquei. Não te arrependes de nada? E importante que reconheças os teus erros e que agradeças ao Rei Bridei. Como te disse, só a sua generosidade te permite regressar a casa, em vez de enfrentar uma acusação formal em Fortriu. Ele não tem obrigação nenhuma para contigo.

O olhar da jovem, espantosamente sem qualquer expressão, virou-se para o primo. Bridei sentiu um arrepio na espinha.

— Se houve algum erro, não foi da minha parte — disse ela secamente. — Este sítio é ridículo. Vim para cá à espera de uma corte a sério, com tudo como deve ser, mas Monte Branco está cheio de gente esquisita e de celtas. Tudo o que fiz foi tentar endireitar tudo, colocar as coisas nos seus devidos lugares, como já disse. Não tenho nada que pedir desculpa e se tivesses algum senso, Keother, verias que é verdade o que estou a dizer. Gratidão? Bem, suponho que posso dizer que estou grata ao Rei Bridei por me mandar para casa. De fato, mal posso esperar por sair daqui. Mas — concluiu ela, virando-se para Bridei com uma nova expressão, abrindo os olhos e sorrindo docemente — vou precisar das minhas criadas. Pelo menos algumas. Cria não; ela ofendeu-me. Mas uma ou duas das outras. Keother diz que elas não podem ir comigo. Importas-te de falar com ele, meu senhor? Estou certa que compreendes que uma rapariga não pode passar sem as suas acompanhantes, pelo menos numa viagem tão longa e ter um ar apresentável.

Bridei não encontrou palavras para lhe responder.

— Terás uma mulher para te ajudar, senhora Breda — disse Dorica com a desaprovação escrita nas suas feições severas. — Já te explicaram.

Breda atirou a cabeça para trás.

— Uma velha toda mirrada, sim, já ouvi dizer. Mas não chega. Quero Anna e Nerela.

— As tuas acompanhantes não querem continuar a servir-te — disse Keother. — As raparigas têm medo de ti. Certamente que sabes porquê. Elas regressam comigo, mais tarde. Esta reunião não se destina a discutir a tua viagem, Breda. Quero ouvir algumas palavras de arrependimento da tua parte ou, pelo menos, o reconhecimento da gravidade do que fizeste. Se não compreendes a importância do que estou a dizer, receio bem pelo teu futuro.

O olhar de Breda dardejou na direção de Wid.

— O que é que aquele velho está a fazer? — perguntou ela. — O que é que ele está para ali a escrever? — Os seus dedos apertaram a taça. A sua voz adquirira um tom de mal-estar.

— Wid está a registrar o que está a ser discutido aqui — disse Bridei. O Rei começava a ansiar pelo fim daquela reunião e pela partida daquela rapariga do seu reino para sempre. — É importante. Sei que Keother te disse que, se não fosses de sangue real e de um país que não Fortriu, enfrentarias uma acusação grave pelo que fizeste. O registro é uma garantia para o futuro.

— Pode ser tudo um monte de mentiras. Sei lá o que ele está a escrever?

— Se quiseres, o escriba de Keother pode ler-te tudo assim que a reunião terminar.

— Deixa lá. Amanhã já não estou cá. Quando chegar a casa arranjo criadas novas. A viagem vai ser uma chatice, sem dúvida, mas eu consigo suportá-la. Quando chegar às Ilhas Pequenas tenciono esquecer isto por completo. Agradece aos deuses por eu não ter acabado como a minha irmã, condenada a ficar em Fortriu mais ou menos para sempre. Seria insuportável, pior do que uma sentença de morte. Mal posso esperar para ver o meu cavalo preferido, o meu músico da corte e... — A jovem detectara qualquer coisa no olhar do primo. — O que é? — perguntou ela.

— Bridei — disse calmamente Keother — não me parece que cheguemos aqui a qualquer conclusão. Breda, já te expliquei. Quando chegarmos a casa, as coisas não vão ser as mesmas para ti. Depois do que aconteceu aqui, não podes, simplesmente, regressar à tua antiga vida. Tens de pagar pelo que fizeste.

A voz de Breda transformou-se num murmúrio.

— Pensei que estavas a brincar — disse ela. — Pensei que estavas a dizer isso para me assustar, por estares zangado.

— Estava a falar muito a sério, prima e vou repeti-lo para que o Rei Bridei e os seus conselheiros ouçam. O teu comportamento tornam-te um perigo para as outras pessoas. Não posso permitir que continue. Não podes viver no meio das outras pessoas, pelo menos até termos a certeza de que compreendes o fato de que cometeste várias ofensas abomináveis, crimes contra a decência humana.

— Oh, mas eu compreendo — disse Breda, rapidamente. — Eu compreendo. É claro que compreendo. Prometo que não volto a fazer o que fiz. — A sua cabeça virou-se rapidamente para cada um dos homens, com os olhos muito abertos, inocentes.

Bridei sentiu pena de Keother, pena e respeito porque o Rei das Ilhas Pequenas levantou-se e virou-se para a sua jovem prima num tom ao mesmo tempo cansado e autoritário.

— Uma lição destas não se aprende rapidamente — disse ele. — Tu vais para casa guardada e, quando lá chegares, vais para um sítio isolado, onde não possas fazer mal a ninguém. Não é uma prisão, visto que não temos esse tipo de coisas nas ilhas. Tenciono perguntar à tua tia se aceita a responsabilidade de tomar conta de ti outra vez porque ela substituiu a tua mãe até tu ires para a minha corte. Serás vigiada. Não haverá cavalos, músicos, roupas bonitas ou adornos. Criadas também não. Foste tu própria que escolheste este futuro, Breda. Devias estar grata, tens a possibilidade de te redimires. Há aqui pessoas que te queriam ver morta.

Por alguns momentos, a rapariga ficou a olhar para ele com os olhos muito abertos e com a boca ligeiramente aberta. Era evidente que, até então, não acreditara na hipótese.

— A minha tia — disse ela finalmente, suspirando. — Não me falaste dela. Não, primo, a minha tia não, por favor! — Pela primeira vez havia uma nota de sentimento genuíno na sua voz, um sentimento de pânico puro.

— A mim parece-me perfeito — disse Dorica.

— Não tens escolha — disse Keother. — Está decidido. Bridei, queres continuar, ou concluímos?

— Eu... — Bridei não teve tempo de formular uma resposta. Ouviu-se um som de vidros partidos e no instante seguinte Breda estava de pé por trás de Dorica com um caco da caneca partida encostada à garganta da mulher.

— Não podes fazer isso — disse a rapariga, com os olhos fixos no primo, cujo rosto tinha empalidecido. — Promete-me que não vou ficar fechada e não lhe corto a garganta. Promete, promete!

Dorica estava imóvel; a mulher de Tharan arquejava. O vidro já lhe arranhara a pele do pescoço, fazendo escorrer um fio de sangue para a lã clara da sua túnica. Tharan estava de pé, olhando horrorizado para a sua mulher e Imbeg estava a dar a volta à mesa.

— Não te mexas! — disse Breda em tom seco, e o guarda imobilizou-se. — Se alguém me tenta tirar isto, corto-a. Pensais que me importo com ela? Ela não é ninguém. Promete, Keother! Despacha-te. Promete! Eu não vou para o pé da minha tia e não vou ficar fechada, enlouqueço! Promete! — O vidro enterrou-se mais e Dorica emitiu um pequeno soluço.

— Em nome dos deuses, Bridei — murmurou Tharan. — Faz qualquer coisa.

Bridei chamou a si uma das técnicas de Broichan. O Rei evitou cuidadosamente olhar para Garth, que avançava lentamente, aproximando-se de Breda.

— Pousa o vidro, Breda — disse o Rei em voz baixa. — Não te ajuda nada magoares Dorica. Vem, senta-te à mesa...

Garth atirou-se para a frente e atirou com as duas mulheres ao chão, fazendo voar o jarro e as taças. Os objetos esmagaram-se no pavimento de pedra e por um momento pareceu que estava toda a gente a mexer-se. Imbeg deu a volta à mesa, em direção a Garth. Os outros puseram-se de pé, sacudindo cacos de vidro das roupas. Dorica levantou-se e recuou para um canto, onde o marido a recebeu nos braços.

— Não! — guinchou Breda. — Não me toques! Olha que eu corto-te! Estou a falar a sério! — Garth abrira as mãos, com as palmas para a frente; na sua frente, Breda continuava agarrada ao caco de vidro, atiçando-o ao rosto do guarda-costas. Para a poder agarrar, o guerreiro tinha de se arriscar a levar um golpe nos olhos ou no pescoço. A única pessoa em posição por trás dela era Wid.

Keother abriu a boca e voltou a fechá-la. Breda estava louca.

— Garth, para trás — disse Bridei calmamente. Deuses, que aquilo não acabasse com outra morte sem sentido, uma viúva e filhos sem pai. Talvez, afinal de contas, devesse ter contado com a presença de Faolan. — Tharan, vai buscar ajuda. — Imbeg estava na posição errada, não podia ajudar Garth, não podia fazer outra coisa senão esperar por uma oportunidade.

— Não! — gritou Breda. — Que ninguém se mexa! Nada de ajudas. Não disseste que isto era privado? — O caco continuava a agitar-se para a frente e para cima. Garth afastou-se. — Promete, Keother? Por que não prometes? Que se passa convosco?

Um rio de tinta escorreu-lhe pela testa e entrou-lhe nos olhos, cegando-a. Wid era um homem alto e aproximara-se dela em silêncio. Breda gritou, levantou as duas mãos e deixou cair o vidro. Garth avançou e agarrou-a pelos ombros, ao mesmo tempo que o velho sábio lhe saía do caminho.

— Não! Não! Não! — gritou Breda com uma voz selvagem. — Não vou, não posso... — A jovem torcia-se e virava-se, tentando libertar-se de Garth.

— Acabou, Breda — disse Keother com voz trêmula.

Os guarda-costas de Bridei eram bons, raramente cometiam erros, mesmo nas situações mais difíceis. O erro de Garth foi pensar que a sua cativa era uma rapariga, que tinha pouca força. Breda libertou-se com um safanão e, ao fazê-lo, perdeu o equilíbrio no pavimento traiçoeiro, cheio de vidros, hidromel e tinta. A queda foi feia. Seguiu-se um momento de silêncio e depois Bridei viu primeiro Garth e depois Wid a ajoelharem-se no outro extremo da mesa.

— Oh deuses — disse Imbeg. E ouviu-se um som saído da garganta de Breda, um som terrível. Depois, nada.

Bridei soube, mesmo antes de ter dado a volta à mesa, que a rapariga estava morta, sentiu-o no estômago, inevitável. Wid tirou o xale que tinha em redor dos ombros e pressionou-o contra o pescoço de Breda. A lã cinzenta começou a ficar carmesim e a gotejar. A poça de sangue no chão era cada vez maior.

— A taça — disse Imbeg com voz trêmula. — Ela caiu em cima do vidro. É impossível parar o sangue num ferimento assim.

Bridei ajoelhou-se junto da rapariga; era evidente que não era possível ajudá-la. Os olhos azuis começavam a ficar velados num rosto manchado de tinta. Imbeg tinha razão. Se aquela artéria no coração estava perfurada, até um homem grande sangraria até à morte antes de ser possível dizer uma oração.

— Que a Mãe Ossuda te leve suavemente — murmurou ele. — Que ela te guie na tua jornada. Que encontres perdão no próximo mundo. — O Rei levantou-se e agarrou Keother por um ombro. — Lamento — disse Bridei, sem conseguir dizer mais nada.

Keother baixou-se e pegou na mão da prima, na qual brilhavam quatro anéis de prata. Um momento mais tarde pousou-a e fechou os olhos de Breda.

— Podia ter mentido — disse ele sem expressão. — Podia tê-la detido. Bastava-me dizer-lhe que podia ser como ela queria.

—Já chega de mentiras — disse Bridei. Tharan, que saíra, estava de regresso com várias pessoas. Já não havia maneira de manter a questão privada. Breda encarregara-se de a tornar pública. O Rei perguntou a si próprio como seria ela recebida pela deusa, como seria a jornada do seu espírito, como conseguiria o seu lugar no reino terreno. Teria, certamente, um tempo de penitência muito mais exigente do que Keother teria reclamado. Bem, havia certas coisas para fazer e tinha de as fazer. No fim de contas o Rei era ele.

— Garth — disse ele — vai procurar Faolan. Diz-lhe o que aconteceu. Não preciso dele aqui, mas quero que ouça a tua história e que te aconselhe. Estás de folga até eu precisar de ti. Isto foi um simples acidente. Cumpriste o teu dever com o bom discernimento do costume.

— Sim, meu senhor — disse Garth com o rosto da cor da cinza. Bridei sabia que o seu guarda-costas veria o que se passara como um desaire pessoal. Com sorte, Faolan convencê-lo-ia do contrário. Se não, talvez Elda conseguisse. Por agora tinha de resolver o problema de Keother e tinha de tratar de mais um funeral. Deuses, estava cansado. Devia haver uma lição a tirar de tudo aquilo, mas vendo a rapariga no chão esvaindo-se em sangue e o Rei das Ilhas Pequenas a tremer a seu lado, Bridei não sabia qual era.

— Eu trato do assunto — disse uma voz vinda da porta, profunda e autoritária. Era Broichan, com Aniel um passo atrás. — Se me permites.

— Obrigado — disse Bridei, sentindo um grande alívio. — Wid explica-te a seqüência dos acontecimentos. Dorica precisa de uma curandeira. Estamos todos em estado de choque. Eu acompanho o Rei Keother aos seus alojamentos com a ajuda de Dernat e volto depois de dar a notícia ao grupo das Ilhas Pequenas. Fala com Tharan e...

— Bridei — disse Broichan — eu trato do assunto. Depois de acompanhares Keother, sugiro que vás descansar um pouco.

Aniel já estava a dar ordens aos servos que o tinham acompanhado. Breda foi tapada com um cobertor, foi colocado em posição uma tábua para a transportar e os vidros foram varridos. Bridei agarrou no braço esquerdo de Keother e no direito de Dernat.

— Vamos — disse ele. — não somos precisos aqui. Vejamos quanta sabedoria dois reis tiraram de um acontecimento tão arbitrariamente cruel porque, como me disse muitas vezes o meu pai adotivo, estamos sempre a aprender.

— Os deuses intervém — disse Keother — quando os homens são ou estão demasiado fracos para agir.

A audiência com Colm foi adiada para permitir o ritual funerário. Após consultas com Broichan e Fola, foi decidido que os restos mortais de Breda seriam levados para Banmerren para serem enterrados. Foi considerado que a deusa poderia ver tal gesto favoravelmente e, além do mais, Bridei descobriu que não tinha estômago para os ter em Monte Branco. Como já não havia necessidade de o grupo de Keother viajar em dois grupos, ficariam todos em Monte Branco até estarem preparados para ir para casa. Havia muita coisa por dizer, coisas que não podiam ser ditas por palavras, mas que não saíam da cabeça das pessoas.

Bridei e Keother foram a Banmerren para o funeral de Breda. Depois, Fola não regressou à corte. A mulher sábia precisa de paz e sossego para poder ouvir a voz d’Aquela que Brilha com a devida clareza, para além de ter saudades de Ferada. A Bridei, em privado, Fola disse que estava preocupada com Broichan, que o druida parecia um esqueleto ambulante depois de se ter testado a si próprio até ao limite das suas forças e que não admitia qualquer sinal de fraqueza. O tempo que passara fora não lhe parecia ter tirado a teimosia.

Bridei regressou a Monte Branco assim que pôde. A fortaleza estava a regressar ao normal sob a direção capaz dos seus conselheiros e da sua mulher. Depois do que acontecera, Bridei e Tuala não tinham tido tempo de falar da ida da Rainha à floresta, da sua transformação, do modo como encontrara o filho e como os dois tinham encontrado Broichan, questões profundamente misteriosas das quais não podiam ser encaradas com leveza, nem sequer entre um marido e uma mulher que partilhavam grandes laços de confiança. O Rei tinha orgulho na sua mulher e temia por ela. O futuro era desconhecido, o que aumentava a incerteza.

Um dia depois do seu regresso, o Rei saiu de uma reunião com os seus conselheiros e foi ter com ela ao jardim. O dia estava cheio de sol; o berço de Anfreda estava à sombra de uma ameixieira e a Rainha de Fortriu estava sentada ao lado dele, vendo Broichan e Derelei a porem a flutuar no tanque barcos feitos de folhas de árvore. Não havia sinais de magia no que estavam a fazer, pareciam um avô e um neto normais a brincar numa bonita tarde de Verão.

Bridei sentou-se ao lado da mulher e olhou para o seu pai adotivo com olhos desapaixonados, olhos de Rei, não de homem.

— Fola tem razão — disse ele. — Ele parece demasiado fraco para brincar com Derelei, quanto mais para enfrentar um homem como o irmão Colm. Aquele tipo pode ser um monge cristão, mas é um verdadeiro Uí Néill, combativo, vigoroso, impiedoso. Broichan parece que atingiu o ponto de ruptura.

— Acredito que sim. — O tom de Tuala era tão tranqüilo como os seus olhos, os olhos estranhos e claros que Bridei tanto amava desde o momento em que ela os abrira para olhar para ele quando era um bebê do tamanho de Anfreda e ele um solitário rapaz de seis anos. Na época, Broichan era um força com a qual era preciso contar, nenhum cristão se teria atrevido a enfrentar a sua aura de autoridade.

— Ele disse-te alguma coisa?

— Pouco. Sugeri-lhe que fosse para Pitnochie para recuperar as forças, mas ele não me quis ouvir. Na tua ausência ele tratou dos teus assuntos com a mesma capacidade dos velhos tempos. Ele diz que se sente novo, vivo, cheio de energia para cumprir a vontade dos deuses. O reflexo que vê de si próprio deixa-o chocado, vejo-lho nos olhos, mas também vejo uma vontade de ferro. Aquela que Brilha pô-lo severamente à prova, forçou-o a confrontar-se com as suas fraquezas e a pô-las de lado; limpou-lhe a mente, retirou-lhe tudo o que o impedia de continuar. Tenho a certeza que ela tem um objetivo para ele, talvez o de enfrentar Colmcille, talvez o de continuar a olhar por Derelei e a ensiná-lo. Talvez as duas coisas. Não te disse... — Tuala estremeceu subitamente.

— O quê? — perguntou Bridei, alarmado. Os olhos dela tinham-se tornado distantes, a sua serenidade estava a desaparecer.

— Na floresta, quando encontrei Derelei, estavam... estavam pessoas com ele, acompanharam-no o tempo todo; os mesmos que costumavam aparecer-me em criança, mas com outra aparência. Creio que a escolheram para não o assustar. Derelei parecia aceitar a sua presença como uma coisa normal. Aquela que Brilha continua a proteger-nos, Bridei, continua a moldar o nosso destino. Mesmo o de Derelei, apesar de ele ainda ser pequeno. Ela serve-se dos Boa Gente como mensageiros, como auxiliares. Por vezes, porém, creio que eles decidem fazer as coisas à sua maneira, gostam de se divertir. Broichan é capaz de o proteger contra eles.

O druida estava ajoelhado junto do tanque com uma manga arregaçada e uma mão dentro de água. Derelei, de barriga para baixo, imitava-o. Em redor dos dedos submersos de ambos nadava um cardume de pequenos peixes.

— Não o poderá fazer se continuar a forçar o corpo cansado até ao limite — disse Bridei.

— Ele agora está em casa — disse Tuala. — O amor cura-o.

— Meu senhor! — A voz de Aniel soou através do jardim privado. — Tens um visitante inesperado que te quer ver.

O Rei de Fortriu murmurou uma praga em voz baixa.

— É muito urgente? — perguntou ele ao conselheiro, levantando-se, consciente de que Aniel não o incomodaria se assim não fosse.

— É Carnach — disse Aniel, calmamente. — Acaba de entrar com uma escolta de quatro homens. Levei-o para a sala do conselho.

— Que o Guardião da Chama nos proteja — disse Bridei. — Tudo ao mesmo tempo. Os deuses então a pôr-nos à prova. Desculpa, minha querida, tenho de ir. Aniel, vai ver onde está Faolan. Quero que ele esteja presente.

— Devo-te uma desculpa, meu senhor. — Carnach estava vestido com a sua roupa de montar e tinha atirado com a capa para cima de um banco. Havia cerveja e bolos em cima da mesa, mas o chefe-de-guerra de Thorn Bend queria despejar as notícias antes de comer e beber. — Sabia o que devias estar a pensar. À medida que a Primavera e o Verão passavam, as suspeitas de que eu me tinha virado contra ti aumentavam certamente cada vez mais. Naquele dia fiquei zangado, não fiz segredo da minha fúria quando decidiste não te candidatares ao trono de Circinn. Estive com Talorgen, deixei o resto dos meus homens em Caer Pridne e vim aqui apresentar-te o meu relatório. Talorgen disse-me que quase fui substituído como chefe-de-guerra, mas que tu decidiste nomeá-lo apenas temporariamente.

— Foi Talorgen que assim o quis — disse Bridei. — E tu podes vir a descobrir que, se quiseres o teu velho posto de volta, terás de enfrentar vários adversários. Só os meus conselheiros mais chegados é que sabem do teu encontro com Faolan. Os rumores correm os territórios todos, desde aqui até Circinn. — O Rei olhou para Faolan, o qual parecia particularmente descontraído, apesar de os seus olhos mostrarem que estava interessado no que o visitante estava a dizer. — Conta-me a tua história, primo. Espero que o teu regresso voluntário confirme a fé que tenho em ti.

— Confirma, meu senhor. Levei algum tempo para me acalmar, para compreender que a tua decisão era boa, que se baseava numa visão melhor do que a minha. Passei o Inverno com a minha família, reparando os estragos nas minhas terras provocados pela minha negligência. Depois decidi ir a Circinn ver o novo Rei e tirar-lhe as medidas, o que me permitiu obter algumas informações surpreendentes. Bargoit aproveitou a oportunidade para me fazer uma oferta que, provavelmente, te vai chocar.

— Continua.

— Bargoit encontrou no Rei Garnet o boneco ideal. O tipo é mais fraco do que o irmão. Bargoit serve-o como servia Drust, o Javali, murmurando-lhe constantemente ao ouvido e convencendo-o de que as decisões são suas. Bargoit tem um plano, um plano a que nunca se teria atrevido durante o reinado de Drust que, apesar de ser maleável, não era estúpido.

— Bargoit quer atacar por conta própria? — Apesar de estar oficialmente presente como guarda-costas de Bridei, Faolan não conseguiu deixar de entrar na discussão.

— Evidentemente, nunca poderá ser rei — disse Carnach — mas a sua influência é grande e através do seu fantoche pode vir a ter uma grande poder em toda esta região. Quando ele me viu a meter o nariz na corte de Garnet, aproveitou o que lhe pareceu uma oportunidade única para me convencer a aderir à sua causa. Ele sabe que eu tenho muita influência entre os chefes-de-guerra de Fortriu e sabe que eu sou teu primo, meu senhor Rei.

— Espanta-me que um homem como Bargoit não tenha percebido a futilidade da tentativa — disse Bridei.

— Decidi agir progressivamente. — Carnach não estava a olhar para o Rei, antes para as próprias mãos. — Foi por isso que estive ausente tanto tempo da corte. Não pude mandar nenhuma mensagem cifrada, salvo a que Faolan te trouxe. Bargoit pensa que me seduziu, viu em mim uma oportunidade de desestabilizar o teu reinado, meu senhor, virando os teus mais leais aliados contra ti, um por um. Se eu alterasse a minha fidelidade, e eu fiz de conta que estava a pensar no assunto, em breve conseguiria a lealdade de Wredech, de Fokel e até de Talorgen. O homem acreditou e eu comecei a pensar que ele deve estar a ficar incapaz de pensar com clareza devido à grandiosidade do plano.

Bridei sentia a cabeça a andar à roda. A notícia da conspiração de Bargoit era, já em si, perturbadora, mas havia ali mais qualquer coisa, ou faltava qualquer coisa.

— Por que ficaste lá tanto tempo? — perguntou ele a Carnach. — Por que protelaste o teu regresso até o país inteiro começar a ver em ti um traidor?

— Informações — disse simplesmente Carnach. — Encorajei-o a dar-me pormenores da conspiração, fingindo acreditar no que ele estava a sugerir. Levou-me algum tempo; tinha de parecer convincente. Ele acreditou em mim e aqui estou com informações vitais para o futuro. Tenho pormenores sobre os exércitos de Circinn, as fortalezas, o estado de espírito do povo e aspectos do caráter do Rei Garnet que te serão muito úteis à mesa do conselho; nomes de alguns aliados sobre os quais não sabemos nada; planos para certas reuniões, nas quais gostarás de ter ouvidos.

Era em momentos como aquele que Bridei se lembrava da razão por que dera a Carnach a posição de chefe-de-guerra principal.

— Um caminho perigoso — disse ele. — Como é que conseguiste? Bargoit ainda acredita que traíste o teu próprio Rei?

— Ele pensa que estou a pensar na oferta, a qual inclui certos privilégios para mim e para a minha família. Com o tempo, dar-lhe-ei a saber que mudei de idéias.

— Arranjaste um poderoso inimigo — observou Faolan. Carnach sorriu.

— Não tenho medo do fuinha — disse ele.

— Portanto, Faolan tinha razão — disse Bridei. — Serviste-te dele para me assegurares a tua lealdade. Perguntei a mim mesmo várias vezes se não seria tudo uma invenção dele.

— Ele foi muito pouco convincente como trabalhador rural — disse Carnach, fazendo uma careta. — Vais querer pensar no assunto até falarmos novamente mais tarde, suponho. Dou-te informações pormenorizadas quando estiveres pronto.

— A questão é grave — disse o Rei. — As ambições de Bargoit parecem-me irrealistas, mas temos de discutir o que nos trouxeste e as possíveis conseqüências dos seus planos. Nenhum de nós quer a guerra com Circinn, mas se Bargoit e o novo Rei tentarem minar a minha autoridade e virar os meus chefes-de-guerra contra mim, serei obrigado a agir. Podemos esperar um pouco até decidirmos como enfrentar este novo desafio. Passamos por tempos difíceis em Monte Branco, Carnach. Verás que esta casa está cheia de notícias estranhas e perturbadoras. Mas isso fica para mais tarde. Vai comer e depois vai descansar um pouco. Estamos muito contentes por te ver de volta, primo. Tivemos muitas saudades tuas. Faolan, podes sair, se quiseres. Agradeço-te novamente o papel que desempenhaste, corajosa e inteligentemente. Tens a tua família à espera.

Depois de Faolan sair, Carnach serviu cerveja ao Rei e a si próprio. Os dois homens eram primos e quando estavam sós punham as cerimônias de lado.

— Família? — perguntou ele.

— É uma história complicada — disse Bridei. — Faolan passou por mais mudanças nos tempos recentes do que julgaríamos possível, mas nunca perderá aquela rapidez implacável, aquele sangue-frio inquietante, aquela determinação perspicaz, ou a máscara que é capaz de pôr para esconder o que está a sentir, seja o que for.

— Faolan é um tipo extraordinário — disse Carnach. — Passou por um mau bocado quando o encontrei em Circinn, mas recompôs-se com muita categoria. Eu acho que ele é pouco utilizado. Se fosse eu, não o utilizaria como guarda, ou até espião, utilizá-lo-ia como conselheiro estratégico. O fato de ele ser capaz de matar com um simples estalar dos dedos não seria uma desvantagem, apesar de ser autodidata. O homem é demasiado inteligente para andar com uma lança na mão ou para passear a cavalo.

— É estranho — disse Broichan à sua filha — como, à luz dos dramáticos acontecimentos recentes em Monte Branco, a coisa que mais temias, a exibição pública das tuas extraordinárias capacidades mágicas, passou quase despercebida. As pessoas falam da queda da criança e do modo como ela foi salva por causa de uma transformação, dizem que alguns guardas viram um gato e depois uma mulher, mas nada sobre a Rainha de Fortriu e os seus poderes feiticeiros. A morte súbita de Breda tirou-lhes tal coisa das cabeças.

— Também têm medo de ti — disse Tuala. — Tu defendeste-me bem. Surpreendeste-me.

Broichan mudou de assunto.

— Ouvi algumas pessoas a perguntar umas às outras se Bridei vai fazer algumas concessões ao irmão Colm e aos seus monges — disse ele. — Algumas delas são de opinião que o Rei e o seu druida vão andar ao soco por causa deles.

Tuala sorriu. Ainda estavam no jardim. Saraid, no seu modesto vestido cor-de-rosa, juntara-se a Derelei. As duas crianças estavam sentadas à sombra de um arbusto a meter gravetos numa pequena tigela e conversar em voz baixa. Eile estava sentada na relva a tomar conta deles, pensativa. Tuala e Broichan tinham-se afastado e haviam-se sentado num banco de pedra a conversar.

— E vais? — perguntou Tuala ao druida. — Andar ao soco com Bridei? Ele já te disse quais são as suas intenções?

— Ainda não falei com ele. Não haverá disputas entre nós. É evidente que os nossos pontos de vista são diferentes nesta questão e vou dar-lhe a conhecer a minha posição, mas no conselho apoiarei as decisões dele. Não enfraquecerei o Rei de Fortriu em frente dos seus inimigos.

Tuala anuiu.

— Ele teve medo de te falar da sua decisão em relação ao reino de Circinn — disse ela — e vai acontecer o mesmo na questão de Ioua e do irmão Colm.

— Medo? Bridei? A única vez que ele teve medo de mim foi quando pôs os olhos em mim pela primeira vez aos quatro anos de idade e mesmo então fez os possíveis por disfarçar.

— Ele não te quer afligir, não quer que penses que ele desistiu do vosso objetivo comum, ver todas as terras priteni unidas à sombra dos antigos deuses. Sente-se desleal, mesmo quando sabe que decidiu bem.

— Ele quer a paz — disse Broichan, suavemente. — Percebi-o depois do Inverno. Bridei quer conciliação e vai dar a ilha aos cristãos. Bridei tem outra vez a família toda consigo, sente-se feliz, o que o torna generoso.

— Talvez, mas não ao ponto de perder o sentido estratégico. Ele nunca se esquece que é Rei, nunca. Devias confiar nele.

Broichan estava a olhar para as duas crianças, imersas no seu mundo secreto. A colheita de gravetos era colocada no colo de Lamento; Saraid fazia a boneca pegar num de cada vez, examiná-lo e depois dizia qualquer coisa. Derelei ria-se.

— Já te deves ter apercebido — disse o druida calmamente — que mais tarde ou mais cedo vou ter de tirar daqui o rapaz. Quando for mais velho. Os seus talentos só podem ser desenvolvidos até certo ponto, aqui em Monte Branco. Há demasiadas distrações.

— Ele é uma criança, apesar da sua jornada intrépida na floresta — disse Tuala, sem replicar com uma negativa áspera, como teria feito anteriormente, consciente de que era verdade. As capacidades de Derelei eram assustadoras. Os druidas da floresta educá-las-iam, ao mesmo tempo que o protegeriam. Porém... — Creio que Eile não gostaria que a sua filha seja considerada uma distração — murmurou ela. — Saraid é uma boa companhia para Derelei, deixa-o ser uma criança e ele precisa disso, precisa de amigos.

— Até certo ponto. Quanto mais fortes forem as amizades, mais dificuldade terá em se afastar. Lembra-te disso.

Tuala olhou para as duas pequenas cabeças encostadas uma à outra, concentradas. A cascata de caracóis escuros de Saraid e os seus límpidos olhos castanhos; a palidez de Derelei, o seu pescoço delicado, como o talo de uma planta frágil e o seu olhar estranho, profundo. A Rainha sentiu um arrepio na espinha, premonição de uma tristeza futura.

— Não precisamos de pensar nisso para já — disse ela. — Ainda agora a nossa família se juntou de novo. Gozemo-la um pouco, pai. Ainda não me habituei à palavra — concluiu ela, sorrindo.

— É estranho ouvi-la, filha, mas sabe bem.

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Tem sido um tempo de prodígios. Vi as proezas milagrosas operadas por Colmcilk através da sua fé em Deus. Na corte de Fortriu testemunhamos um fenômeno ainda mais espantoso: a transformação de um pássaro numa criança às mãos da Rainha de Bridei. Fim privado, Colm chamou-lhe ato de feitiçaria e condenou-o. Senti-me na obrigação de dizer que, fosse qual fosse a arte que usara, a Rainha Tuala salvara a vida de uma inocente e que eu vira o milagre com os meus próprios olhos, vira como a jovem mulher de Faolan, pálida e ferida, estava quando a encontramos e a expressão no seu rosto ao pensar que a filha estava morta. Sabia que, se o mal pairava no interior das muralhas de Monte Branco, não era sob a forma sobrenatural da Rainha, nem do poderoso druida, seu pai

— aparentemente tanto uma surpresa para os cortesãos de Bridei como para mim

— antes sob a forma da mulher que provocou a devastação entre esta gente, baseada apenas no ciúme e no capricho. Naquela noite, Faolan quase matou a princesa das Ilhas Pequenas; vi-o a apertar-lhe o pescoço, até que os seus camaradas o afastaram. Não mencionei tal fato aos meus irmãos. Agora, ela está morta, mas não às mãos de um assassino, antes às mãos do acaso. Que Deus dê descanso à sua alma porque, apesar de ser má, ainda era jovem. Se tivesse vivido, talvez com o tempo tivesse aprendido a trilhar um caminho melhor.

Nesta história há outro mistério. Como é que a Rainha Tuala apareceu no lado de fora das muralhas na companhia de Broichan, há muito tempo ausente, e do seu próprio filho, que tinha desaparecido? Dizia-se que ela não estava bem, que ficara nos seus aposentos a cuidar da sua filha recém-nascida durante a ausência de Derelei. No entanto, ali estava ela fora dos portões, a tempo de evitar a queda terrível da criança, transformando-a num pássaro. Milagre ou feitiçaria? Discutimos o assunto durante muito tempo no interior dos nossos aposentos de Monte Branco. A mim parecia-me que a questão de qual sacerdote disse a oração que preservou a vida de Saraid ou de qual divindade decidiu ser compassiva naquela noite, era quase imaterial. Vara mim, bastou-me olhar para os rostos de Eile e de Faolan quando a sua filha lhes foi devolvida para perceber que acabava de acontecer um ato de grande bondade. Talvez disse eu ao irmão Colm, desejando afastar-me do tema da feitiçaria de Tuala, tivesse sido um gesto de graça. Todos nós tínhamos recado para que o filho do Rei lhe fosse devolvido e Deus ouvira as nossas preces. Ao mesmo tempo, na Sua sabedoria, File vira a queda do minúsculo pardal e na Sua grande compaixão, poupara-o.

Suibne, monge de Derry

 

— Estou aqui como emissário — disse o irmão Colm com uma expressão decidida. A sua aparência era de asceta, mas tal coisa era ilusória, pensou Bridei. O homem era duro como o ferro e um chefe dos pés à cabeça. Estavam sentados na grande sala do conselho de Monte Branco, iluminada por várias candeias e com tapeçarias penduradas nas paredes, bordadas com motivos representando os antigos símbolos das diversas gerações priteni: os escudos gêmeos, o bordão partido, o quarto-crescente e a águia, símbolo do reinado atual. As imagens davam-lhe força, recordavam-lhe quem era e o que estava ali a fazer. Bridei e Carnach usavam túnicas azuis, significando que descendiam da mesma linhagem real dos Priteni. Os preliminares da audiência tinham terminado. O Rei cumprimentara os cristãos e pedira-lhes desculpa pelo atraso. Colm expressara tristeza por ter havido mais uma morte no Monte Branco e agradecera friamente ao Rei a sua hospitalidade. Em seguida, Bridei convidara-o a declarar o propósito da sua visita a Fortriu.

— Vós tendes um chefe secular, irmão Colm? — perguntou-lhe Broichan, sentado à direita de Bridei. — Não será, por acaso, um rei insignificante dos Uí Néill? Um parente próximo, talvez? — O druida usava a sua habitual túnica preta e os olhos igualavam-na em escuridão, encovados num rosto que parecia só ter ossos. Broichan penteara os cabelos cortados para trás e prendera-os na nuca com um cordão. A sua voz era ressoante, forte.

— Deus Nosso Senhor é o nosso único chefe — replicou Colm, enfrentando o olhar do druida — e eu sou o Seu mensageiro. As questões acerca das quais me quero dirigir ao Rei Bridei dizem respeito à segurança dos nossos irmãos no seio dos territórios primei e à promessa de um refúgio para mim e para os homens que me acompanharam até estas costas. O meu propósito é o propósito de Deus, limito-me a trilhar o caminho que Ele traçou para mim.

Faolan e o irmão Suibne partilhavam os deveres de tradutores visto que a discussão seria complexa. Wid e os escribas de Keother estavam sentados lado-a-lado de pena na mão, registrando os procedimentos à vez. Colmcille decidira comparecer à reunião acompanhado apenas por Suibne e, por sua vez, Bridei limitara o seu grupo a Keother, Carnach e Broichan, juntamente com os necessários tradutor, escribas e guardas.

— Compreendemos — disse Broichan. — No entanto, ouvimos dizer que as razões para terdes abandonado as vossas costas tiveram mais a ver com uma luta territorial do que com a vossa fé. Não é assim? Não foste expulso da Irlanda por interferires numa batalha? Se é verdade, o Rei está espantado com a tua ousadia: vires ter com ele ao coração de Fortriu menos de um ano depois de a sua gente ter derrotado a tua na grande guerra que se travou a oeste.

O olhar que Colm lhe lançou teria feito estremecer um homem menor.

— Eu podia analisar o teu passado aqui mesmo e agora, perante os presentes — disse o cristão — mas prefiro não o fazer, não tem importância para os assuntos em discussão. Se quiseres ter a bondade de fazer o mesmo, pensarei o melhor de ti. — O olhar penetrante virou-se para Bridei. — Meu senhor Rei, deixa-me explicar-te com sinceridade. Eu sei que era prática manter reféns na tua corte como caução da vassalagem do Rei teu vassalo. O Rei Keother está aqui conosco; a sua prima passou anos como cativa na corte de Fortriu. No seu reino, onde são tolerados, onde possuem as suas próprias terras e liberdade de culto, vivem muitos eremitas cristãos. Quero que me dês a tua palavra de que os nossos irmãos das Ilhas Pequenas continuarão a ter a mesma liberdade, que não lhes queres mal agora ou no futuro. Eu sei que baniste a prática da nossa fé em Dalriada. Não gostaria de ver as mesmas restrições nas ilhas do norte.

— Diz-me uma coisa — disse Carnach — se o Rei Bridei enviasse Broichan à tua própria terra e se o nosso druida e os seus companheiros pregassem a antiga fé dos Priteni a quem os quisesse ouvir na Irlanda, pensas que tal prática passaria sem protesto, livre?

— Os seus ensinamentos cairiam em ouvidos moucos — disse simplesmente Colm. — A Irlanda está a transformar-se numa terra cristã, tal como o vosso próprio reino de Circinn, a sul. Nem o druida do Rei se pode opor a uma tal maré.

Bridei apanhou um olhar particular no rosto de Faolan, rapidamente disfarçado. Faolan estava presente como tradutor, não como participante na reunião. Mesmo assim, o Rei disse:

— Faolan, és capaz de nos dar a tua opinião sobre o assunto, visto que regressaste de lá há pouco tempo? As palavras do irmão Colm dão uma imagem exata do estado atual das terras da Irlanda?

— Eu não sou um homem de fé, meu senhor. Pelas minhas observações, diria que as duas fés existem lado-a-lado na minha terra, a velha e a nova. Em algumas regiões a primeira é mais proeminente, noutras é a segunda. As pessoas agarram-se às tradições dos seus antepassados, mesmo perante a maré a que o irmão Colm se refere. Por outro lado, os missionários da fé cristã são astutos nos seus ensinamentos, são especialistas em misturar o velho e o novo de modo a atrair as pessoas.

Enquanto Faolan falava, Colmcille fixava nele o seu olhar sombrio.

— Nós recebemos-te bem em Kerrykeel e na viagem para Dalriada — disse ele. — Foste enviado para o nosso seio como espião ou como mensageiro?

— Como emissário apenas, tal como tu — disse o Faolan. — Mas os velhos hábitos demoram a desaparecer.

— Tens uma resposta para mim sobre a questão das Ilhas Pequenas, meu senhor Rei? — perguntou Colm, ignorando todos os presentes salvo o próprio Bridei.

Broichan levantou-se. O druida era um homem alto, os seus olhos estavam ao nível dos do cristão.

— Se a tua intenção é nomear uma lista de exigências e obter a aprovação para cada uma delas — disse ele friamente — enganaste-te quanto à natureza desta audiência. Aqui, tu és um suplicante, representas uma fé que está fora da lei em Fortriu. Quando as nossas mulheres sábias e os nossos druidas ergueram a voz contra os que espalham os ensinamentos cristãos em Circinn, foram calados ou banidos e as suas casas de oração destruídas. Dá-te por feliz por o Rei Bridei tratar o teu grupo com respeito e modera o teu tom.

O olhar de Colm continuava fixo em Bridei.

— Que dizes, meu senhor Rei? — perguntou ele. Bridei respirou fundo.

— Broichan falou por mim — disse ele, calmamente. — Pensamos ambos da mesma maneira. Dar-te-ei a minha decisão depois de todas as questões desta audiência serem apresentadas. Tu mencionaste apenas de passagem o assunto que, eu sei, é a razão principal da tua presença aqui. Chegou a hora de nos falares de Ilha do Teixo e de uma promessa feita por um homem que já não tem autoridade para a honrar.

Bridei perguntou a si próprio se Colm preferiria repreendê-lo por banir a prática da fé cristã em Dalriada ou se faria um discurso sobre a necessidade de as pessoas se adaptarem a tempos novos ou comentar que, se a corte de Monte Branco era uma miniatura do reino de Bridei, então Fortriu era um país onde o assassínio, a conspiração e a feitiçaria andavam à solta. Porém, o sacerdote preferiu declarar o seu desejo por um refúgio seguro, um lugar onde pudesse fundar uma casa de oração e contemplação no meio das maravilhas da criação de Deus. Tal lugar era Ioua. Colm sentira o bafo de Deus no vento e ouvira o Seu murmúrio de santidade nas ondas. Porque, se Bridei cumprisse a promessa feita por Gabhran de Dalriada, Colm e os seus doze irmãos limitar-se-iam apenas a construir a sua casa monástica.

— Um homem como tu é incapaz de se ficar por aí — disse Broichan em tom monótono. — Vejo-o nos teus olhos, ouço-o em cada palavra que dizes. Se te derem Ioua, não te contentarás com ela. Os teus ensinamentos espalhar-se-ão como uma praga por todo o Fortriu, até às costas a leste e as fronteiras a sul. Dá-nos a tua palavra de que não sairás de Ilha do Teixo e talvez o Rei pense na tua proposta.

— Tens medo — perguntou Colm e o seu tom era um grito de batalha, um grito de desafio — de te ver cercado, tu e os teus, com tais restrições? Como pode a fé de um homem ser verdadeira se não foi posta à prova? Fechares os ouvidos à nossa doutrina, proibir os cristãos de rezar no teu solo é admitir que os teus deuses não se comparam com o nosso. Se a tua fé neles é forte e segura, onde está o mal de escutar a mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo? Analisa as duas, como numa escala, e se as tuas velhas convicções permanecerem inabaláveis, talvez tenhas razão em te agarrares a elas com algum grau de certeza. Porém, sei que não o farás, druida. Já percebi que os teus ouvidos estão fechados à palavra de Deus, que os teus olhos estão cegos. Não te atreves a testar a tua fé, como eu sugeri. Mas desafio-te a fazê-lo, Rei Bridei. Experimenta abrir o teu coração e a tua alma à luz do único Deus verdadeiro. O Seu caminho não é de medo, é de amor e eu vejo em ti um homem nascido para o trilhar.

— Já fui posto à prova — disse Broichan. A sua voz era como o Inverno, seca e fria. Os olhos escuros faiscavam de fúria. Ocorreu a Bridei que os dois homens formavam um par, mas não duas partes iguais do mesmo homem, antes o mesmo homem fundido em dois moldes diferentes. — E o Rei Bridei foi posto à prova de uma maneira que tu e os teus nunca compreenderão — continuou o druida. — A fé cristã não se espalhará por Fortriu. — Por um momento, o ar à sua volta pareceu estalar de energia, como se a fúria dos deuses estivesse nele, emprestando-lhe o poder do Outro Mundo. — O Rei é o representante dos deuses na terra e obedece à sua vontade.

— Recusas honrar a promessa do Rei Gabhran? — Não havia disfarce no tom de voz de Colm, a ira era indisfarçável. Suibne traduziu, olhando para o chão.

— As questões da tua petição chegaram ao fim? — perguntou Carnach. — Como o Rei te disse, só te daremos as respostas depois de as ouvirmos todas.

Colm acenou rigidamente com a cabeça.

— Por agora é tudo — disse ele. — Rei Bridei, o teu druida exige que fiquemos em Ioua, mas temos de pensar nas coisas práticas; a questão de provisões e o fato de podermos oferecer certos serviços às pessoas que vivem nas ilhas vizinhas. Não estou a falar de preces. Temos um curandeiro e homens com outras profissões, que podem ser úteis.

Carnach olhou para Bridei. Tinham discutido o assunto antes de a reunião começar e as suas respostas tinham sido decididas antes de as perguntas serem formalmente apresentadas.

— Tais atividades serão tomadas em consideração — disse o ruivo chefe-de-guerra. — Desde que não sejam acompanhadas de contos cristãos e respectivos rituais. Essas práticas foram proibidas em Dalriada e estendem-se às ilhas ocidentais. Se o Rei decidir acolher-te em Ioua, o que fizerdes dentro das vossas paredes é convosco. No fim de contas sois monges, mas se os vossos rituais ultrapassarem as costas da ilha, sereis recambiados para a Irlanda.

Colm esperou.

Bridei levantou-se. O Rei sabia, tal como Broichan, Keother e Carnach, qual seria a decisão. No entanto, o seu coração batia com toda a força e a cabeça começava a doer-lhe de um modo familiar. Não era a primeira vez que tomava decisões difíceis, trilhara caminhos que tinham surpreendido o seu povo e tinham posto à prova a boa vontade dos deuses, ao ponto de quase a quebrar. Bridei acreditava e sabia que, assim que falasse, poria mais uma vez as vidas dos seus em perigo. A sombra d’O Que Não Tem Nome pairava sobre todos eles. Não podia dizer por que razão o fazia, apenas que, depois daqueles tempos de medo, dor e mortes, sentia que tudo se encaixava.

— Em relação aos teus irmãos nas Ilhas Pequenas, o Rei Keother assegura-te que eles continuarão sob a sua proteção — disse ele. — Ele e eu estamos de acordo nesta questão. Tanto quanto sei, esses eremitas são gente pacata e são bem aceites pelos habitantes locais. — Bridei não acrescentou outro fato de que tomara conhecimento: o número de conversões à fé cristã era extremamente pequena. Os ilhéus tendiam a resistir à mudança. — Mas não queremos ver o seu número aumentar.

— São poucos — disse Colm — e assim continuarão provavelmente. Eles foram para lá por causa do mar e do silêncio.

Bridei olhou para Keother, sentado calado e pálido à sua esquerda.

— Falaste em reféns — disse o Rei das Ilhas Pequenas ao monge. — Essa situação diz respeito ao Rei Bridei e a mim próprio. Como primos que somos, compreendemo-nos.

Seguiu-se um pequeno silêncio, durante o qual Bridei encontrou o olhar do irmão Suibne. O tradutor sorriu-lhe e o monarca ficou com a impressão que o celta sabia exatamente a mistura de convicção e perturbação que ele sentia no coração.

— Em relação à ilha — disse Bridei — a alugamos por dois anos. Construí a vossa casa de oração; abri os vossos ouvidos ao silêncio, mas limitai-vos às ilhas mais próximas e só se as profissões dos vossos homens servirem a comunidade. Não queremos orações para lá de Ioua, nenhuns rituais, nenhuns ensinamentos. Nós temos um poderoso chefe-de-guerra a controlar toda a faixa ocidental. O seu nome é Umbrig. Ele receberá instruções para lidar com qualquer quebra nestas regras, pronta e decisivamente.

— E depois dos dois anos? — perguntou Suibne.

Bridei sentiu que Colmcille não ouvira nada depois das primeiras palavras porque a concretização do seu sonho deixara-o temporariamente sem palavras.

— Após os dois anos — disse Bridei — voltaremos a falar. Nada de promessas. Eu não sou tolo, não acredito, nem por um momento, que o irmão Colm seja capaz de restringir as suas atividades a uma única ilha. Se decidir recambiar-vos a todos para a vossa ilha, acredita-me, fá-lo-ei. Sereis vigiados, não esqueçais.

Suibne anuiu. As palavras tinham sido ditas, o Rei não podia voltar atrás, pelo menos até terminarem os dois anos. Colm recuperara a serenidade.

— Obrigado, meu senhor Rei — disse ele, solenemente. — Sinto que o teu druida não concorda totalmente contigo nesta questão e felicito-te por te teres mantido firme.

Bridei sentiu Broichan retesar-se a seu lado e depois ouviu-o controlar a respiração, reprimindo palavras de fúria.

— Sentes mal — disse Bridei. — Broichan e eu pensamos em uníssono nestas questões. Aqui, em Fortriu, a vontade dos nossos deuses está ligada à longa história do nosso povo. Os nossos deuses são mais velhos do que o tempo, são tão velhos como as rochas e as águas do Vale; alimentam-se do amor que lhes oferecemos; somos abençoados pela grande teia da vida em que eles nos envolveram. É provável que as vozes que ouves no vento e nas ondas da tua ilha não sejam diferentes das que nos guiam. No entanto, não é por causa do desejo de conhecer mais a tua doutrina, ou por vê-la avançar como uma sombra através da minha amada terra de Fortriu, que te concedo este favor. Sinto que és bom homem, um homem íntegro. Estou numa posição que me permite oferecer-te um refúgio contra certos inimigos poderosos que temos em comum. Como homem de honra, acredito que é meu dever fazê-lo.

— Tens dois anos para o provares, irmão Colm. — A voz de Broichan parecia uma lâmina de ferro. — Quebra as regras e o Rei banir-te-á para sempre das nossas costas. Não duvides da sua palavra.

— No espaço de dois anos — disse Colm — construirei a minha casa e lançarei as sementes da minha comunidade. Depois, se Deus quiser, regressarei a Monte Branco para falarmos outra vez.

 

(Do Relato do irmão Suibne)


Na véspera da nossa partida, ao jantar, ao ver que Broichan estava pálido e cansado, o irmão Colm chamou-o à parte e pediu-me que traduzisse o que ia dizer. Depois de lhe oferecer uma taça de água, o nosso chefe disse ao druida: «Não quero que me julgues de má-fé. Vejo que a tua saúde não ê a melhor. Se é doença do corpo ou da alma, não sei. Porém, tenho certos dons de cura. Bebe desta taça, sobre a qual foram ditas poderosas orações, e a doença deixar-te-á.»

Fiquei algo surpreendido por Broichan não ter atirado a taça ao chão. «Não preciso de orações cristãs», disse ele friamente. «O que é isto? Vejo uma pequena pedra no fundo. Fizeste um feitiço para me sugares a vida?»

«A pedra vem de Ioua, da mais bela e mais remota parte da sua costa, onde as ondas vêm diretamente de Ulaid», disse Colm. «A pedra branca tem grandes propriedades curativas. Mete-a numa taça qualquer e aquele que beber dela fica bom outra vez Deus é bom. Ofereço-te isto como...» Colm hesitou, as palavras a maior amizade recusavam-se a sair da sua boca.

«Com o maior dos respeitos», disse eu na língua priteni. «Pelo menos leva-a contigo. Pensa no assunto. Uma boa saúde ê uma ferramenta essencial para um homem com missões por cumprir. Vai em paz§ irmão.»

Colm virou-se para mim, levantou as sobrancelhas, incapaz de compreender, mas Broichan pegou na taça e afastou-se com ela. A sua expressão não me disse se faria uso dela.

Mais tarde ouvi dizer que ele quase despejou a taça no jardim, mas a filha, a Rainha, persuadiu-o a bebê-la. 0 argumento que ela usou estava ligado com o filho, o estranho Derelei, e com o fato de Broichan precisar de continuar saudável e forte durante mais quinze anos, pelo menos, para ver o rapaz transformar-se num homem. Assim, ele bebeu. Na manhã seguinte partimos de Colina Branca para a nossa longa viagem para oeste, para a nossa nova casa na Ilha do Teixo. Não sei dizer se os poderes curativos milagrosos da pequena pedra branca fizeram efeito no druida. Espero que, no futuro, tenha a hipótese de saber.

Tem sido uma aventura, um tempo de milagres, magia, tristeza, alegria, mortes terríveis e descobertas maravilhosas. Agradeço a Deus por me ter dado a oportunidade de fazer parte dele. Sinto que isto ainda não terminou. Colm manteve-se calado durante toda a manhã, mas eu conheço o seu fervor. Colm é um farol, uma poderosa força de mudança. Assim que estivermos instalados na nossa pacífica ilha, esta terra será varrida por uma nova maré e as práticas obscuras do passado tentarão defrontá-la. Acredito que será assim.

Bridei não é tolo. Talvez ele veja o que eu vejo e esteja a trilhar um caminho mais longo e mais subtil, um caminho que nenhum de nós sabe qual é. Ou talvez as alegrias e os terrores dos últimos dias o tenham cegado quanto à verdadeira força da missão de Colmcille. Uma coisa sei. Voltará a haver trabalho para mim na corte de Bridei, Rei de Fortriu.

Suibne, monge de Derry

 

— Queremos pedir-te uma coisa, meu senhor Rei.

O tom de voz de Faolan era diferente. Ele e Eile tinham aparecido no caminho-de-ronda onde o Rei estava sozinho com Ban e com Dovran de guarda a alguma distância. A maneira formal avisou Bridei de que o assunto era sério.

— Fala abertamente, Faolan. Dovran está demasiado longe para ouvir e Ban não pode repetir o que disseres. Qual é o teu problema?

Era noite e a lua cheia estava tapada pelas nuvens. Um vento frio vindo do mar do norte chicoteava os archotes, transformando-os em estandartes fantasmagóricos e fazia esvoaçar as capas dos homens.

— Pergunto a mim próprio se te lembras de uma conversa que tivemos na noite em que foste eleito Rei. Foi há tanto tempo que, provavelmente, já te esqueceste. Ofereceste-me uma nova situação na tua corte e eu recusei.

— Conselheiro e companheiro.

— Afinal, lembras-te.

— É verdade. E tu, penso, disseste que a amizade não fazia parte da tua maneira de ser. Já então sabia que estavas enganado

Faolan anuiu. Era difícil ler-lhe a expressão do rosto àquela luz incerta.

— Eile e eu estivemos a falar do futuro — disse ele — e eu pensei se a oferta ainda se manteria.

Bridei sentiu um sorriso a rasgar-lhe o rosto.

— Talvez — disse ele. — Estás cansado de viajar? Já não queres exercer o que sabes fazer tão bem?

— Essa vida não está de acordo com os deveres de marido e de pai, Bridei. Além do mais, o meu joelho já não é o que era. Que fique claro que Eile não me pediu que fizesse isto. A decisão de mudar é minha. Não posso impor-lhe, a ela e a Saraid, a minha antiga vida. Preciso de ficar aqui com elas. Se continuo, passo a vida preocupado com elas.

— Se eu disser não, que fazes?

— Vou-me embora — disse Faolan sem qualquer cerimônia — procurar emprego noutro lado qualquer para poder sustentar a minha família. Sou capaz de exercer algumas profissões.

— Não duvido.

— Mas partir-me-ia o coração, Bridei. Eu quero ficar aqui, trabalhar sob as tuas ordens. Isto se tu acreditas que eu posso preencher o papel que tinhas em mente.

— Não tenho dúvida nenhuma — disse Bridei, abraçando Faolan. Após um momento, este retribuiu o gesto.

— Obrigada, meu senhor — murmurou Eile. — A verdade é que eu sei que Faolan vai ter saudades da aventura e do desafio. Talvez seja possível dar-lhe uma missão de vez em quando, mas desde que ele não fique fora muitas vezes ou durante muitos dias. Seria injusto ter de mudar tanto só por nossa causa.

Faolan sorriu.

— Eu já mudei — disse ele. — O homem que eu era no Verão passado nunca teria feito este pedido.

— Ainda bem que viestes os dois ter comigo — disse Bridei, pensando no que dizer a seguir. Pelo que sabia de Eile, a oferta tinha de ser expressa corretamente, ou o seu orgulho obrigá-la-ia a recusar. — Realmente vai ser uma grande mudança para os três. Eile, Tuala e eu devemos-te uma compensação pelo ataque quase fatal que sofreste quando estavas ao nosso serviço. Estavas a fazer um trabalho excelente quando Breda meteu na cabeça atentar contra a tua vida.

— Mas Derelei fugiu... eu não tomei conta dele como deve ser... Faolan passou-lhe um braço pelos ombros.

— Ninguém podia prever o que aconteceu — disse Bridei. — Além disso, como diz a minha mulher, Derelei estava decidido a fugir e ele é uma criança com talentos invulgares. Espero que aceites o que tenho para te oferecer, Eile. É costume fazê-lo em tais circunstâncias.

— Eu não preciso de nenhuma recompensa, meu senhor, tenho tudo o que preciso. — A jovem olhou para Faolan com os olhos brilhantes de amor.

Bridei sorriu.

— Estava a pensar num modesto pedaço de terra com uma cabana, uma herdade que está vaga, logo a seguir à aldeia por baixo dos muros de Monte Branco, uma propriedade pequena situada numa elevação de terreno. Se quisésseis ficar com ela, Faolan desempenharia na mesma os seus deveres de conselheiro, mas ficava com alguma independência e também alguma privacidade. Sinto que a vida comunal da corte não é do vosso agrado e prevejo exigências indevidas de algumas pessoas se ele continuar a viver aqui assim que o seu dever se alterar. Estamos todos tão habituados a tê-lo à disposição a qualquer hora do dia ou da noite! Para um homem casado não é nada razoável. Estou certo que já ouviste Elda dizer a mesma coisa muitas vezes e ela tem razão.

Eile ficou sem palavras.

— Disseram-me que a casa precisa de umas obras — disse Bridei. — Está um pouco abandonada e o jardim está cheio de ervas daninhas, mas Tuala disse-me que isso para ti não é nenhum problema.

— Eu... — gaguejou Eile. — Eu...

— Suponho que posso acrescentar o remendo de telhados de colmo e a abertura de regos aos meus talentos — disse Faolan. — E suponho que Eile já tem o jardim plantado na cabeça. No entanto, também suponho que não se importa de visitar a corte de vez em quando. Saraid e Derelei tornaram-se grandes amigos.

— Tuala espera que tanto Eile, como Saraid, sejam visitantes freqüentes.

— Obrigada, meu senhor — conseguiu dizer a jovem, quase a chorar. — Espero que isto não seja apenas... caridade... quero dizer... não poderíamos aceitar que... peço desculpa, é tão indelicado da minha parte... não sabes o que isto significa para mim, um jardim, o meu próprio jardim... E uma casinha... Como é que sabias? Como é que sabias que era a coisa que eu mais queria? — Eile encostou a cabeça ao ombro de Faolan. Em seguida voltou a levantá-la, fixando-o. — Não foste tu pois não?

— Eu? Nem uma palavra. Posso ter dito ao Rei que preferia viver fora das muralhas, mas mais nada, juro.

— Acredita, Eile — disse Bridei, recordando uma história que Faolan lhe contara sobre uma casa num monte. — Um presente do Rei nestas circunstâncias é uma prática perfeitamente normal. Pensa nele como uma compensação e como um presente de casamento. Suponho que tencionais permitir que Broichan regularize a vossa aliança?

— Se ele não se importar de casar um par de celtas ateus, sim. — Havia um tom novo na voz de Faolan.

— Pela masculinidade do Guardião da Chama, Faolan — disse Bridei. — Faz-me bem ver-te finalmente tão contente. Dou-te de boa vontade as boas-vindas ao número dos meus conselheiros. Para te dizer a verdade, Aniel e Tharan já começam a sentir o peso dos anos e eu acho que chegou a hora de terem a companhia de um homem mais novo.

— Obrigado — disse Faolan após alguns momentos de silêncio e o Rei perguntou a si próprio se não teria visto lágrimas nos olhos do seu amigo.

— Meu senhor — disse suavemente Eile — estamos tão contentes por ter corrido tudo bem para ti e para a Rainha; é tão bom ter Derelei são e salvo em casa, finalmente, com o avô. Quando cheguei aqui, pensava que os reis e as rainhas eram pessoas cujas vidas eram diferentes da minha; pessoas que viviam num mundo diferente, mas no fundo somos todos iguais, não somos? Todos nós amamos e sofremos. Os deuses atingem-nos a todos da mesma maneira e ajudam-nos a levantar quando estamos desesperados. Pelo menos é o que parece.

Bridei sorriu.

— Encontraste uma mulher rara, Faolan — disse ele. — Ou talvez tenha sido ela a encontrar-te. Talvez compreendas agora por que razão fui ao longo da costa, à luz do luar, até Banmerren, atrás da rapariga que me tinham tirado. Na altura, achaste o meu comportamento incompreensível.

— É preciso muito para compreender certas coisas. Boa noite, Bridei. A nossa gratidão é grande de mais, não temos palavras.

— Não são precisas palavras. Além disso, eu é que devia agradecer-vos. Boa noite, Faolan. Boa noite, Eile. Que Aquela que Brilha ilumine os vossos sonhos.

Faolan e Eile regressaram aos seus alojamentos de braço dado, pés ligeiros de esperança, prontos para começar uma nova vida. Bridei, porém, ficou mais algum tempo no alto das muralhas com o seu fiel cão nos calcanhares e com Dovran de guarda, silencioso. As nuvens abriram-se e Aquela que Brilha revelou-se na sua fria e pálida perfeição. Que mais queres de mim, perguntou-lhe o Rei de Fortriu. Não fiz bem? Não levei o meu povo pelo caminho da verdade?

A deusa olhou para ele, dando-lhe um banho de prata e Bridei pareceu-lhe ouvi-la murmurar: Continua, meu filho leal. Continua com fé e coragem. O teu povo precisa de ti; ele olha para ti. Não o deixes ficar mal.

 

 

                                                   Juliet Marillier         

 

 

 

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