Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O POÇO MISTERIOSO
Anoitecera havia muito, já. Nos povoados, disseminados pelo horizonte, as luzes extinguiam-se pouco a pouco. Pelos campos alastravam manchas de treva e nos bosques surgiam recantos de mistério.
No castelo de Houx-Noirs, contudo, alguém velava ainda.
No rés-do-chão, algumas janelas destacavam, luminosas, na alta fachada de pedra escura e sombria. Abertas de par em par, deixavam penetrar no salão de bilhar a atmosfera calma daquela suave noite de Outono.
Sentada numa poltrona, distante da mesa com tampo de mosaico curiosamente trabalhado, a senhora de Croixmare bordava, emquanto a seu lado, o filho, Rogério, rapaz de trinta e três anos, fumava perfumado charuto, cujo fumo azulado subia em espirais até ao teto.
-Para que é isso, mamã?
-Isso, o quê?
-Esse trabalho?
E indicava o bordado da mãe.
Esta elucidou:
-É um velador de fogão... Vê... para quando te casares.
O rapaz admirou-se.
-É por minha causa que está com essa massada?
-Por tua causa, sim... mas não é massada, é prazer... Não me disseste tanta vez que, quando casasses, passarias em casa a maior parte das noites?
-Disse. Mas não vejo que relação possa haver...
-Esta, simplesmente. Procuro embelezar o teu lar que desejo tornar quanto possível agradável. Um ninho garrido e confortável é o melhor meio de atrair o marido.
O rapaz começou a rir:
-A pacata refeição conjugal, servida em travessas douradas - comentou com ligeira ironia.
-Não zombes - protestou a mãe - Se soubesses como desejo ver-te feliz!... A tua leviandade, causou-me, noutros tempos, tantas inquietações...
-Nos tempos pré-históricos! -murmurou, encolhendo levemente os ombros.
-Sim, já passou, felizmente.
E acrescentou com calma:
-Agora, estou completamente tranquila: és um rapaz sossegado, sensato, poupado ... Uma vida nova vai começar para ti...
-Ao lado da minha querida Elianazinha - terminou com um relâmpago de alegria nos grandes olhos escuros.
Mãe e filho calaram-se por momentos. O pensamento de ambos voou para a noiva querida, que parecia ter fechada nas pequeninas e brancas mãos, a felicidade dos dois, para a companheira adorada que o rapaz desejava tão ardentemente possuir, para a criança delicada que a idosa fidalga amava já como filha.
A senhora de Oroixmare foi a primeira a quebrar o silêncio, perguntando:
-Teu primo conhece tua noiva?
-Pouco-respondeu Rogério, arrancado subitamente aos seus pensamentos - Viu-a há dois anos em Ostende, durante a época dos banhos, mas como ela nessa ocasião não passava duma criança, não lhe ligou grande atenção, creio.
-E qual é a opinião dele sobre o teu casamento?
-Oh! quase não tivemos tempo de conversar. Chegou aqui à hora de jantar... um pouco bruscamente, mesmo! - acrescentou, a fisionomia de súbito ensombrada.
-É verdade. Nem sequer nos preveniu.
-E havia três meses que não nos escrevia - acentuou Rogério em tom duro.
A velha senhora sorriu com indulgência.
-É um grande estouvado! Toda a sua vida será uma criança grande. No entanto - terminou - Preferia que nos tivesse prevenido porque lhe teria mandado preparar um quarto no castelo.
-Ora! Não fica mal instalado no pavilhão!
O pavilhão, antigo ponto de reunião de caçadores, era agora uma das dependências do castelo. Rodeado de pinheiros, situado nos limites do parque, que era necessário atravessar de ponta a ponta para lá chegar, alojava no Outono alguns dos hóspedes, convidados para as grandes caçadas, e que, por serem numerosos, não cabiam todos no palácio.
Rogério levantou-se e, num passo nervoso, percorria o salão dum lado para outro.
A presença do primo lançava como que uma sombra na sua radiante felicidade de noivo apaixonado. Sem que ele próprio desse por isso, a chegada de João obsediava-o com tristes pressentimentos.
Após uns minutos de silêncio, a senhora de Croixmare inquiriu:
-Conheces o motivo da brusca chegada de João? Disse-te alguma coisa?
-Não disse, mas calculo!
-Novas dificuldades de dinheiro?
-Provavelmente.
Ela hesitou e depois perguntou:
-E se for isso, que contas fazer?
-Não sei ainda.
A mãe ergueu para ele os olhos em cujas pupilas claras se lia uma súplica.
-Não sejas muito severo... É filho de minha irmã... E depois até hoje tem sido tão pouco feliz...
Rogério teve um gesto vago.
-E por seu lado nada tem feito para conjurar essa má sorte... Conta muito com o auxílio dos outros.
-Tens razão, abusa um bocadinho...
-Abusa muito, mesmo!-afirmou Croixmare com convicção.
Depois acrescentou com voz mais branda:
-Em fim, não se preocupe, mãe. Farei o que puder.
Calaram-se de repente.
Um passo de homem ressoou no mármore do vestíbulo e João Valmont entrou.
Era novo, trinta anos o máximo; no entanto, as rugas precoces das pálpebras e alguns fios prateados nos cabelos, junto das fontes, davam-lhe à fisionomia o cunho particular que denunciava o homem amadurecido, o homem que já viveu, que saboreou e mesmo abusou de todos os prazeres da vida.
João de Valmont vivia em Paris e havia poucas horas que se encontrava no castelo, onde a sua chegada causara a maior surpresa.
Habitualmente, quando decidia vir a Houx-Noirs, prevenia por carta ou telegrama. Só desta vez aparecera de repente, sem que coisa alguma fizesse prever as suas intenções.
Quando entrou no vasto salão de bilhar, desculpou-se, dirigindo-se à tia e ao primo:
-Perdoem-me se os deixei logo que terminou o jantar, mas tinha forçosamente de enviar um telegrama, esta tarde.
-Qualquer coisa de desagradável para ti, João?
- Inquiriu a velha senhora com maternal interesse.
-Não, nada! - respondeu com vivacidade. E, para evitar novas perguntas, voltou-se para Rogério: -Vamos jogar uma partida de bilhar, queres?
- lembrou. Croixmare aceitou.
Escolheram os tacos e depois de os esfregarem com giz começaram a jogar sem trocar palavra.
A partida decorria sem entusiasmo. Frases breves alternando com a pancada seca dos tacos nas bolas de marfim, eram a única e monótona interrupção ao mutismo carregado de preocupações, dos jogadores.
-Mais outra!
-Vinte e três...
-Agora jogo eu! Olha! Repara nestas carambolas.
-Perfeitas!
-Marco trinta e dois, agora.
-Que felizardo!
-Não há dúvida de que estou com sorte, esta noite!... Que catástrofe me irá suceder, por contra partida?
João falava com ironia e com um sorriso forçado... Sob a sua aparente alegria transparecia a amargura... e talvez até teimosa obsessão.
Emquanto as bolas, impelidas pelos tacos, rolavam silenciosamente pelo pano verde encaixilhada em mogno, a senhora de Croixmare examinava atentamente o sobrinho.
De súbito, a sua voz clara lançou uma nota mais alegre no silêncio do salão.
-Acho-te mudado, João. Estás mais magro.
Sem abandonar o jogo, o rapaz respondeu:
-Julga isso, tia?
-Há muito tempo que não te via e acho-te muito mais magro do que o ano passado... Não é verdade, Rogério? Repara em teu primo.
Croixmare volveu-lhe rápida olhadela.
-Hum!... João nunca foi gordo.
-Pois não. Contudo, parece-me... Tens um aspecto abatido - acrescentou, sorrindo maternalmente.
-Dissabores e aborrecimentos, também.
De novo, uma sombra imperceptível de tristeza lhe perpassou pela fisionomia.
Rogério, que se conservava curvado sobre o bilhar, endireitou-se e replicou quase brutalmente:
-Diz antes que a vida que levas é a mais própria para te arrumar a saúde... A estroinice esgota, não sei se sabes.
-Oh! Exageras! Estroina! Não o sou tanto como pareço.
Os olhos azuis com reflexos metálicos, cruzaram com o olhar do primo que o fitava irónico.
Mas já a senhora de Croixmare intervinha, desvanecendo, com o seu tom carinhoso, a secreta irritação que as palavras do filho haviam despertado.
-Sabes do que precisavas, João? Ficar connosco um ou dois meses. O bom ar restabelecer-te-ia! Assim, demoraste apenas uns dias, que não te servem de nada.
-Agradeço a sua bondade, tia, e lamento não poder aceitar o seu amável convite.
-Ora essa! Porquê? És livre.
-Sou, é verdade, mas nem sempre se pode fazer o que se deseja... Infelizmente, um caso de importância exige a minha presença em Paris no fim desta semana.
Dissimulou fundo suspiro. Preocupava-se talvez com a gravidade desse caso que tão imperiosamente o chamava a Paris, em data fixa.
Sem o notar, a idosa senhora continuou:
-Mas voltarás para o casamento de Rogério!... Virás mesmo uns dias antes, não é verdade?
João curvou-se num ligeiro agradecimento.
-Oh! com certeza! Assistirei à cerimónia redarguiu-Nem Rogério me perdoava uma negação nesse dia.
-Serás o meu garçon d'honneur - acudiu Croixmare subitamente alegre com o pensamento do seu próximo enlace.
Intimamente, evocava a suave visão da noiva, loura e esbelta, e fugitivo rubor lhe coloriu as faces morenas.
-E para quando, o casamento? - inquiriu Valmont, cuja fisionomia entristeceu.
-Para o mês que vem - informou a tia - Realizar-se-á aqui no castelo.
João olhou-a, admirado. -Aqui ?! -exclamou.
-Sim, aqui-explicou - Eliana e a mãe vivem em casa duma tia, em Bléville, no Delfinado. A propriedade, apesar de ser mais vasta do que esta, não tem o conforto necessário nem as comodidades indispensáveis para a cerimónia. Então, de comum acordo, decidimos que o casamento se realizasse em Houx-Noirs.
-E é por isso que a minha adorada Eliana chega ao castelo amanhã - acrescentou alegremente Rogério.
-Amanhã?!-repetiu Valmont, cada vez mais sombrio - Nesse caso vê-la-ei?
-Certamente.
-Ficará connosco até ao dia da cerimónia concluiu a mãe.
Despreocupadamente, parecendo empregar toda a sua atenção no jogo, João perguntou:
-E a mãe acompanha-a?
-Pois com certeza!
Rogério soltara esta exclamação em tom de tão cómico desconsolo, que o outro começou a rir.
-com que então a mãe é um pouco incomodativa, não é verdade? -comentou, sublinhando as palavras com significativa olhadela.
Croixmare soltou um suspiro propositadamente exagerado.
-Tudo quanto há de mais incomodativo, meu caro! E a tia! Afirmo-te que não é para desprezar também.
-Ah! sim?
-Princípios austeros, preconceitos rigorosos... e umas opiniões sobre o casamento!...
Sorriu divertido por súbitas reminiscências.
-Por exemplo - continuou - a senhora de La
Bréche, é este o seu nome, conservou-se solteira porque só admitiria para marido um homem que nunca tivesse conhecido o amor antes de casar!
-Oh!
-Depois disto já podes calcular as disparatadas observações que por vezes faz a respeito dos noivos e dos homens casados.
E começou a rir.
A senhora de Croixmare meneou a cabeça, sorrindo também. Recordava os preliminares daquele casamento e resumiu-os por esta forma:
-Para eu conseguir que as duas senhoras concedessem a meu filho a mão da pequena foi necessária a intervenção do general Gaillard, único homem por quem têm alguma consideração.
-E ele garantiu que tu... não tinhas ainda amado? - inquiriu João, soltando uma gargalhada.
-Não, não foi precisamente isso - respondeu Rogério com ligeiro embaraço - O general bem sabia que a mocidade precisa divertir-se e que os estroinas são, em geral, os que dão os melhores maridos...
-Foi justamente isso o que o general explicou à senhora de Surtot, que se deixou convencer com facilidade - concluiu a velha fidalga.
-Nesse caso, haja alegria! E para ti, meu amigo, os meus melhores votos de felicidade - acrescentou, repelindo importunos pensamentos.
A partida de bilhar tinha acabado. Os dois rapazes arrumaram os tacos e acenderam charutos.
Pouco depois, o criado serviu os licores.
Deram dez horas.
A senhora de Croixmare enrolou o trabalho e levantou-se:
-Desculpem, meus filhos, mas vou deixá-los...
Estou muito cansada e costumo deitar-me cedo. Os serões prolongados não são para pessoas da minha idade.
-Por quem é, minha tia, não se preocupe comigo - pediu Valmont - Demoro-me ainda um pouco para conversar com Rogério.
-Exactamente. Conversem... entre rapazes há sempre muito que contar!
Afastou-se, mas de súbito recordou-se de que não indicara a João os aposentos que iria ocupar em Houx-Noirs e rapidamente explicou:
-Meu querido filho, ia deixar-te sem te prevenir... Esta noite alojamos-te no pavilhão. Está tudo em completa desordem no castelo, por causa do casamento e os quartos estão todos atravancados.
-Fico muito bem instalado no pavilhão - declarou João com indiferença.
-Mas tens de atravessar o parque.
-E então! Que tem isso? É um passeio! Como, não obstante estas palavras tranquilizadoras, a tia conservasse a sua fisionomia consternada, acrescentou:
-Então, tia, não se preocupe, porque o caso não tem importância nenhuma... Aqui ou lá é a mesma coisa... A menos que receie por mim a presença dos duendes e dos silfos que rondam em torno das ruínas do poço, junto do qual terei de passar.
Começaram os três a rir.
-Estás crescido de mais para te meterem sustos. Parece-me que serias tu quem os assustarias.
-Uma justa compensação! Quantas vezes, outrora, aterrorizaram eles a minha imaginação de criança turbulenta.
É verdade, lembro-me bem. Eu era tão medroso como tu - murmurou Rogério, divertido com aquele despertar de recordações.
-Porque não tinhas mais juízo do que ele concluiu, rindo, a boa senhora, que relembrava a infância irrequieta e indisciplinada dos dois primos.
Acrescentou ainda:
-A noiva de Rogério chega amanhã de manhã. Se quiseres acompanhar teu primo quando a for esperar, tens de te levantar cedo.
-Sou madrugador...
-O comboio chega às dez e meia.
-Serei pontual - afirmou com amabilidade.
-Fica combinado.
Despediu-se, por fim, dos dois.
Maternalmente beijou-os, um após outro. Depois, muito devagar, com passo incerto, passo que a idade tornava pesado, deixou o salão.
Discussão tempestuosa
Ficando sós, os dois homens enterraram-se preguiçosamente nas poltronas, fumando os charutos.
Trocaram algumas frases banais, ditas sem interesse nem convicção, mas de novo o constrangimento que reinara entre eles à entrada de João voltou pouco a pouco a dominá-los.
Era evidente que se Valmont, como fazia supor a sua brusca chegada, tinha qualquer confidência a fazer ao primo, este por seu lado evitava provocá-la. Quem sabe mesmo, se intimamente, Rogério não temeria as palavras que o outro pudesse pronunciar.
No entanto, passados alguns minutos de hesitação, Valmont decidiu-se de repente:
Levantou-se, deu alguns passos pelo salão e, depois, resolutamente, veio colocar-se diante do primo.
-Rogério - murmurou, um tanto embaraçado, não obstante a sua aparente firmeza - luto com grandes dificuldades... dificuldades de dinheiro... e preciso... de muito.
Calou-se, procurando no rosto do outro uma expressão de benevolência que o encorajasse. De seguida, com voz mais firme, continuou:
-Preciso de quarenta mil francos para a próxima semana.
Croixmare conservou-se impassível.
-com que então quarenta mil francos! Bonita soma! Vais por bom caminho, não haja dúvida comentou com placidez.
Como João, admirado com tanta calma, ficasse parado diante dele, perguntou por fim?
-E então?... Que contas fazer?
-Mas... pagar!
-Muito bem! E tens o dinheiro?
-Não... Contei que tu mo emprestasses.
Um sorriso de ironia vincou os lábios de Rogério.
-Sim? Contaste comigo?
-É impossível que mo recuses - balbuciou Valmont, assustado.
-Contudo, é justamente o que tenciono fazer.
Uma súplica perpassou nas pupilas do rapaz.
-Vamos, não sejas tão cruel. Que te peço eu? Quarenta mil francos! Uma bagatela para ti!
Rogério meneou a cabeça.
-A minha fortuna é na verdade considerável, mas não tanto, que me permita pagar, de seis em seis meses, todas as tuas loucuras.
Valmont encolheu os ombros.
-As minhas loucuras!... Despesas indispensáveis para manter a minha posição perante aqueles que conheceram meus pais e estão relacionados com minha família.
-E quem te obriga a mantê-la? - replicou Rogério com frieza - Se não tens meios que te permitam continuar nessa existência de ocioso, abandona-a... trabalha... Não era isso que nos tinhas prometido?
-É o que estou fazendo, meu caro! E tenho justamente necessidade dessa quantia para obter uma sólida situação.
-Ora! não está mau trabalho, esse... Uma posição que, antes de render um centimo que seja, custa quarenta mil francos... Julgas-me tão tolo, que acredite nessa história?
E reacendeu vagarosamente o charuto.
-Ouve - pediu Valmont aflito - Juro-te que esse dinheiro será empregado num negócio sério... Se mo deres, nunca mais terei de te importunar porque o meu futuro ficará para sempre resolvido.
-Não te acredito!... E depois para que escolheste tu um emprego onde precisas, antes de mais nada, de capital? Procura outro, meu amigo! Lugares não faltam.
Uma cólera impossível de conter dominou Valmont.
-É bom de dizer quando se ignoram preocupações - exclamou com violência - Tu podes falar assim porque tens rios de dinheiro! Teu pai deixou-te um bom património. Depois herdaste sucessivamente dum tio, de tua madrinha e duma velha tia... A tua fortuna foi sempre aumentando! E como se não fosses suficientemente rico, vais ainda casar com uma rapariga milionária não sei quantas vezes... e daqui a mês e meio terás duas vezes mais dinheiro do que tens hoje... Mas eu não tenho a tua sorte... Dívidas, credores e até às vezes privações e fome, foi o que me coube!
-Por tua culpa! Quantas vezes já te auxiliei...
-Efectivamente assim foi! Auxiliaste-me, quer dizer, pagaste as minhas dívidas maiores; mas, como os meus de minutos rendimentos são totalmente insuficientes para viver, tive que procurar modo de vida... Lutei quanto pude... É culpa minha se até agora não consegui encontrar emprego que me servisse?
-Lutaste tão bem que mais uma vez te encontras em apuros!
É verdade! -confessou João, pesarosamente.
A sua cólera caíra subitamente perante a necessidade imperiosa de não irritar o outro.
-Pois pior para ti declarou Rogério, sem piedade - Estou farto de te aturar.
Infinita angústia esmagou João. O olhar cravou-se suplicante no rosto do primo, e balbuciou, tentando sorrir:
-Não! É uma brincadeira... Não falas sério... É para te fazeres rogado.
-Perdão - retorquiu Croixmare secamente, levantando-se e começando a passear na sala -É tudo quanto há de mais sério. Se houve brincadeira de mau gosto não foi da minha parte.
- Não acreditas, então, que tenha urgência absoluta dessa soma?
-Oh! se acredito! Não duvido de que tenhas dívidas... Não admito, porém, o teu pedido de hoje...
Soltou algumas baforadas de fumo e continuou:
- Quando há seis meses vieste pedir-me uma certa quantia, ficou bem assente que seria pela última vez. De princípio não queria emprestar-ta... depois as tuas lágrimas, as tuas súplicas e promessas obrigaram-me mais uma vez a ceder e a pagar. Hoje, porém, garanto-te que não acontecerá o mesmo e que não conseguirás comover-me... Abusas porque noutros tempos me prestaste um serviço. Julgas-me a tua galinha de ovos de ouro. Se cedesse outra vez, mais convencido ficarias de que sou teu perpétuo devedor... E isso não me serve! Antes de casar quero libertar-me dessa pressão. Precisas de dinheiro, vai arranjá-lo onde quiseres. Eu não to tornarei a dar.
Excitado, sentou-se, deitou fora o resto do charuto e acendeu outro.
O tom decisivo e peremptório do primo desconcertava um pouco Valmont.
Contava já que o pedido fosse mal acolhido, mas não esperava tão formal recusa, porque as palavras de Rogério não lhe deixavam a mínima esperança .
Ficou calado durante alguns minutos, desenrolando uma série de reflexões e acumulando todos os rancores dum desventurado a quem um parente rico repele sem dó.
Croixmare observava-o em silêncio, decidido a conservar-se irredutível. Aparentemente calmo, no íntimo estava, no entanto, um pouco inquieto.
A que extremas resoluções iria a sua recusa impelir João?
Não tardou que o soubesse.
De testa vincada por funda ruga de decisão, de olhar duro e lábios apertados, Valmont voltou a sentar-se diante dele.
Perguntou bruscamente:
-Diz-me cá, a tua noiva é pessoa de muitos escrúpulos?
Rogério sobressaltou-se. A pergunta, por imprevista, preocupava-o.
-Deixa a minha noiva em paz - replicou, entretanto, com calma - A nossa conversa nada tem que ver com ela .
-Oh! Quem sabe! -ripostou o outro num tom cheio de reticências - Pode ser que a interessasse... a ela ou à mãe... sim, à mãe, que com certeza, não tem razão alguma para ser cega ou surda.
Rogério endireitou-se na cadeira. Procurou intimidar o primo com o olhar.
-Que queres dizer? - perguntou, ameaçador.
-Que se ela soubesse que tu não és...
-Não sou, o quê?
-Aquilo que pareces ser -concluiu João, sem se perturbar com a atitude hostil do jovem castelão.
E acrescentou, com irónico sorriso, entreabrindo os lábios altivos:
-Julgo que, meu amigo, se esse caso se desse, te fechariam a porta, não obstante as boas informações do general Gaillard.
Uma gargalhada zombeteira sublinhou a frase.
Croixmare levantou-se, muito pálido. Não quis, no entanto, deixar perceber quanto as reflexões do outro o haviam sobressaltado. Fez violento esforço para se dominar e conservar-se calmo.
-Será melhor falares doutro assunto -comentou simplesmente - as tuas brincadeiras são de muito mau gosto.
-Ou pelo menos não te agradam a ti.
João começou a rir e continuou:
-Mas, se assim o desejas, para te dar prazer, mudarei de conversa.
-Será o melhor, para a tua dignidade - comentou Croixmare em voz incisiva.
-E para a tua também - ripostou Valmont, pausadamente.
Percebia bem a vitória que alcançara sobre o primo e permanecia muito senhor de si e mais calmo, à medida que via a cólera dominar pouco a pouco Rogério:
-Falemos da minha situação financeira, queres? É muito mais interessante talvez! E de resto tem uma certa relação com o teu casamento..!. É mesmo por causa disso que estou aqui... Informado de teu próximo enlace e do puritanismo da tua futura família - não mordas os lábios! Antes que tu o dissesses já eu o sabia - pensei: «Rogério rico é bom rapaz, e entre saber-me lutando com aborrecimentos e tê-los ele próprio, preferirá emprestar-me mais uma vez o dinheiro que me é necessário».
Calou-se para avaliar o efeito que as suas palavras produziam e depois continuou:
-Além disso, trata-se apenas de me adiantares algum dinheiro sobre a importância que a Seguradora Moderna me entregará quando eu fizer quarenta anos... Até hoje, mesmo, nunca me deste coisa alguma... Tens sempre exigido a minha assinatura e no momento próprio saberás bem reclamar aquilo que te é devido!... Por conseguinte, mais -uma vez, para evitares qualquer incidente desagradável... para ti e para mim, vais emprestar-me os quarenta mil francos. com olhadela significativa, concluiu: -Percebeste?... Posso contar contigo? Croixmare fitou-o, emquanto um clarão de furor lhe brilhava no fundo das pupilas imóveis.
Por segundos perguntou a si próprio se não iria saltar-lhe ao pescoço e estrangulá-lo; mas, conseguindo mais uma vez dominar-se, respondeu com calma, ainda que a cólera a custo reprimida lhe fizesse tremer a voz:
-é inútil insistires. Não contes comigo.
-Pelo contrário, insisto! Estou certo de que acabarás por fazer o que te peço - teimou, rindo, Valmont, que pouco a pouco readquirira a confiança- Estou atrapalhado, terrivelmente atrapalhado. Preciso de quarenta mil francos antes de segunda-feira. Rogério, queres ter a generosidade de mos dar?
Mais uma vez tentava vencer delicadamente a resistência do primo. Mas a cólera cegava este último.
-Não! Arranja-te como puderes.
--Bem sabes que não tenho crédito... a menos que lance mão duma burla... não conseguirei obter esse dinheiro num espaço de três dias.
-Nada tenho com isso! As minhas próprias preocupações me bastam...
-Mas, no fim de contas, eu sei que ficarias desolado se sofresse qualquer dissabor. Vou explicar-te a razão porque tenho o maior empenho em pagar essa quantia no prazo marcado... Preciso evitar, neste momento, o mais pequeno escândalo... Lamy, o célebre financeiro, vai organizar uma empresa e conta interessar-me nela. Mas se lhe consta que nem sequer pago o que devo, tudo está perdido... Está em jogo, como vês, a minha posição... e talvez até a minha fortuna! Pior do que isso... salvas-me da deshonra... Comprometi a minha palavra e a minha assinatura... Mais uma vez portanto, insisto no meu pedido...
Apesar dos seus esforços, a voz tremia-lhe. Esgotara todos os argumentos e naquele momento a sua comoção era sincera; mas Croixmare persistia na resolução de não ceder.
-Nada disso me interessa! Não quero saber de coisa alguma!
João empalideceu terrivelmente.
A indiferença do primo feria-lhe o orgulho como uma bofetada e logo se arrependeu dos seus rogos e súplicas.
-Ah! Se é assim, veremos!-bradou - A tua insensibilidade tira-me os últimos escrúpulos, meu amigo! O caso agora é outro...
-Que mais temos? - indagou Rogério com desdém.
Valmont perdera todo o domínio de si próprio.
-Possuo autógrafos para vender. Queres comprá-los? -declarou.
Como o outro sorrisse com ironia sem lhe dar resposta, acrescentou:
-Podes zombar à vontade. Não julgues que são meus!
-De quem são então?
-Teus.
Croixmare soltou uma gargalhada, mas o riso era um pouco forçado.
-Ah! sim? Compraste algumas das minhas dívidas? - indagou com falsa serenidade.
-Melhor do que isso... cartas que indicam claramente os meios de que te serviste, noutros tempos, para as pagar sem que a tua família soubesse.
Rogério sobressaltou-se.
-Que queres dizer?... Temos agora chantagem?
- bradou, com o olhar brilhante de cólera.
-Podes dar-lhe o nome que quiseres - redarguiu João sem baixar a voz. - Tenho essas cartas em meu poder e vendo-as por cem mil francos. Queres comprá-las? Conheço um homem que me daria essa soma ou muito mais, só pelo simples prazer de te roubar a noiva... Mas se as queres dou-te a preferência.
Croixmare não pôde conter-se por mais tempo.
Lívido de cólera, avançou para Valmont, que recuou um pouco.
-Se na verdade tens cartas assinadas por mim, vais fazer o favor de mas entregar! -bradou com voz que o furor fazia tremer.
-São minhas e não as cedo - respondeu João que não perdera a calma. -Mentes!
-São minhas. Deu-mas a pessoa a quem as escreveste... E devemos concordar que não são muito honrosas para o seu signatário.
-Miserável ! - bradou Rogério num rugido, agarrando João pela gola do casaco Dá-me essas cartas!
-Em troca do dinheiro, sim! -teimou Valmont, tentando libertar-se.
-Nunca!
-Nesse caso não as terás.
Croixmare enlouquecido pelas ameaças de João, apertou-o mais, sacudindo-o sem dó.
-Larga-me! -gritou João, procurando empurrá-lo.
- Onde estão as cartas? - repetia Rogério, ofegante de cansaço e de raiva.
Apesar da perigosa situação em que se encontrava, Valmont resistia energicamente. Jogava a sua última cartada.
-As cartas?
-Não seria tão imbecil que as trouxesse comigo!
-Dás-mas ou não?
-Sem dinheiro, nunca.
-Onde estão?
-Não sei!
- Patife! Bandido!
-Ah!... Larga-me!
Breve luta se desenrolou entre os dois homens. Rogério, no auge da cólera, tentou derrubar João na evidente intenção de lhe esmagar o crânio contra o bilhar. Muito mais forte do que Valmont, teria sem dúvida conseguido o seu intento se, por felicidade, um criado, atraído pelo ruído da luta, não tivesse entreaberto a porta.
Rogério largou imediatamente o primo.
- Vês? Foi assim exactamente que ele fez! observou, dominando-se, para iludir o curioso.
João levantou-se, muito pálido pelo violento abalo que acabava de experimentar.
-Não era para admirar que o outro lhe fizesse pagar cara a agressão - replicou secamente, compondo o fato.
E por prudência, sem ostentação, passou para o outro lado, pondo o bilhar entre os dois.
Quando o criado se afastou, comentou com amargo sorriso:
-O Baptista chegou a tempo. Estavas, segundo me parece, decidido a estrangular-me... Era uma solução que tudo resolveria sem teres que abrir os cordões à bolsa.
O outro soltou como que um rugido. A sua cólera, durante o curto período de calma que a presença do criado lhe impusera, em vez de diminuir, aumentara.
-Dá-me as cartas!-repetiu com voz surda, procurando alcançar João.
Valmont correu para a porta e deu a volta ao fecho.
-São cem mil francos!... Não me toques senão exijo o dobro... Troca por troca... Se as quiseres, já sabes, terás que me dar o dinheiro... E agora, boa noite!... Tens bastante tempo para reflectir. Se amanhã de manhã eu não tiver essa soma em meu poder, partirei e depois será tarde para te arrependeres. Outro me dará o que me recusaste.
Sem se apressar, saiu, fechando a porta atrás de si.
Rogério, cuja cólera estava muito longe de acalmar, ao ficar só começou a passear nervosamente dum extremo ao outro do salão.
-Canalha! Bandido! Ladrão!-rugiu a meia-voz.
Os passos martelavam o chão encerado e repercutiam ruidosamente na enorme sala.
-Miserável! Ceder? Nunca!
Parou um instante -diante da janela aberta e olhou, tentando descobrir João que se afastava em direcção ao pavilhão.
-Oh!...
Então dominado pela exaltação da raiva que crescia nele como uma onda, Rogério abandonou a sala de bilhar e correu em perseguição do primo.
Desaparecido
Cuidadosa e apressada a senhora de Croixmare afadigava-se:
-Depressa, Baptista, estende esses tapetes. E tu, Aninhas, corre a buscar flores... rosas vermelhas... só vermelhas, vê lá, o jardineiro já sabe...
Aninhas partiu, correndo, emquanto Brigida, a velha criada, que havia quarenta anos servia aquela casa, com cuidado, enchia de água as jarras já dispostas.
Desde as seis da manhã que os moradores do castelo -começando pela dona da casa até aos criados - estavam em alvoroço. A chegada de Eliana de Surtot, a noiva de Rogério de Croixmare, revolucionava tudo.
Emquanto dispunha nas artísticas ânforas de colo delgado as grandes rosas de cores brilhantes, que Aninhas acabara de trazer, a idosa senhora, o rosto radiante de alegria, explicava:
-É preciso que Eliana encontre um acolhimento festivo... As flores são, nos aposentos, o sorriso de boas vindas! O comboio chega às dez horas... Querida pequena! Vais ver uma linda e elegante rapariga, Brígida! Cabelos louros, leves como seda! Olhos azuis... tão meigos! O meu Rogério vai ser muito feliz...
Alegre com a felicidade dos patrões, a boa mulher sorria comovida, aprovando com a cabeça.
-Está a chover - anunciou de repente Baptista, recolhendo precipitadamente para a sala as almofadas e tapeçarias transportadas pouco antes para fora, para serem batidas e escovadas com esmero.
-A chover!-exclamou Brígida, desolada.
-A chover! - repetiu a senhora de Croixmare, um pouco aborrecida - Que pouca sorte!
Mas, dominando rapidamente o leve desapontamento, apressou-se a dar as ordens necessárias em tal circunstância.
-É preciso prevenir Clemente para que atrele o coupé em vez da vitória... Diz ao Pedro que leve ao pavilhão um chapéu de chuva para o senhor João... ou não... previnam antes o senhor Valmont para não se incomodar a vir até aqui... a carruagem fará um desvio para o ir buscar.
A manhã passou depressa. Terminavam os últimos preparativos quando deram as nove horas e meia.
A senhora de Croixmare acabava de entrar para os seus aposentos e Rogério dava os últimos retoques na sua minuciosa toilette, quando o ruído das rodas e do trotar dos cavalos fez estalar o saibro das ruas do parque. A carruagem parara diante da escadaria principal, esperando o castelão.
Pedrito voltava justamente do pavilhão.
A sua chegada ouviram-se vozes e como que exclamações de surpresa.
A senhora de Croixmare julgou perceber uma troca de explicações e debruçou-se na janela do quarto.
Impecáveis na almofada, apesar do forte aguaceiro, o cocheiro e o trintanário falavam animadamente com o garoto.
-Que aconteceu, Clemente? - interrogou a velha senhora.
O cocheiro levantou a cabeça.
-É por causa do senhor Valmont, minha senhora... Pedrinho diz que não encontrou ninguém no pavilhão.
-Ninguém?!
-Não estava, não, senhora -confirmou o pequeno.
-Mas se João saiu... fica encharcado!
-exclamou a tia, já aflita.
Pedro abanou a cabeça.
-Também não saiu esta manhã -declarou.
-Que queres dizer?
-Ora... que o senhor João não dormiu no pavilhão, minha senhora.
Calou-se, embaraçado, sem saber como havia de terminar.
Mas a senhora de Croixmare, muito surpreendida, interrogou-o...
-Vamos, Pedro, explica-te. Porque afirmas que o senhor João não passou a noite no pavilhão?
-Porque o quarto... a cama não estava desmanchada. Chamei umas poucas de vezes e como ninguém me respondesse, fui ver. A chave, que ontem deixaram na porta para que ele pudesse entrar quando quisesse, ainda lá estava esta manhã... e então abri a porta e subi.
-E depois?
-O pavilhão estava vazio e estou mesmo certo
de que ninguém lá entrou desde que a senhora Brígida o preparou, ontem à tarde.
-Isso é impossível! Não viste bem com certeza.
-Vi, sim, senhora. Quem levou a lenha para o fogão e a água para a casa de banho fui eu, e reparei como ficaram as coisas... e hoje estava tudo como nós tínhamos deixado ontem à noite. Ninguém lhes tinha tocado.
-Que quererá isto dizer? É inverosímil!
Preocupada em extremo, a velha fidalga reflectia.
Porque razão não se encontraria João no pavilhão, naquela manhã?... E se, na verdade, ele não dormira lá, que aventura encobriria aquela ausência inexplicável? O rapaz era tão leviano que a tia podia pensar o pior... Contudo, até aquela data, João nunca praticara qualquer tolice em Houx-Noirs. Quando vinha passar alguns dias ao castelo, dispunha-se a descansar e a ter juízo.
Pensou de repente que talvez Rogério a pudesse informar.
E este pensamento apaziguou um pouco a sua inquietação.
«Que cuidados me dá, aquele rapaz! - pensou, zombando da rapidez com que se afligia por um nada - Não há maneira de ter juízo; mas desta vez, se fez alguma das suas, ralhar-lhe-ei a valer. Na sua idade, não há direito de ser tão maluco!.
Muito sérios e calados, os criados olhavam-na, esperando que desse qualquer ordem ou explicasse o que a sua compreensão um tanto difícil não conseguia atingir.
A patroa sorriu-lhes, tranquilizando-os:
-Não se aflijam, meus amigos... Rogério deve saber alguma coisa... Talvez até o primo passasse a noite com ele... com toda esta barafunda não consegui ainda ver meu filho esta manhã...
Quando ela desapareceu da janela, o cocheiro abanou a cabeça:
-O pavilhão está tão mal situado - comentou.
-Fica muito afastado do castelo-respondeu o criado.
E muito perto de...
Em vez de palavras, concluiu a frase com um olhar de terror supersticioso que significava muita coisa. O outro aprovou:
-Tem razão. Aqueles sítios por ali não são bons. Só podem trazer desgraça...
-Se fosse eu, há muito tempo que teria mandado entulhar tudo aquilo - continuou o cocheiro.
- Mas o senhor Rogério ri-se... diz que são histórias e lendas boas para assustar crianças. O criado encolheu os ombros. -No entanto, o meu avô, que não era medroso, acreditava nelas - observou sentenciosamente. -Pois está claro!
-Mas esta gente nova julga-se mais esperta do que os velhos.
Entretanto, emquanto se trocavam estes comentários, a senhora de Croixmare dirigiu-se aos aposentos do filho.
-Rogério, sabes onde está teu primo? - perguntou mal o viu.
Este voltou para sua mãe um rosto fatigado e abatido. Devia ter dormido mal. Sem dúvida a discussão que tivera na véspera à noite e talvez também a chegada da noiva, haviam-lhe perturbado o sono.
Ao ouvir a pergunta da mãe transpareceu-lhe na fisionomia leve hesitação.
-Porque me pergunta isso?
-Porque ele devia ir contigo à estação esperar Eliana e ainda não apareceu.
-Isso que tem? Resolveu não me acompanhar...
-Não te acompanhar?!
-Sim. Regressou a Paris.
-Porquê?
-Tivemos uma pequena questão ontem à noite.
-Zangaram-se.
Rapidamente, como se tivesse pressa de mudar de conversa, explicou:
-Queria mais dinheiro... uma soma importante... cem mil francos... recusei-lho... falei-lhe com severidade... zangou-se. Julgo que não o tornaremos a ver.
- Mas partiu esta noite? - insistiu a senhora de Croixmare, que não conseguia dominar o seu espanto.
-Esta noite... sim.
-Podia ao menos ter esperado para hoje... para se despedir de mim...
-Sim... era esse o seu dever, com certeza! Mas bem sabe como ele é! Emfim, não falemos mais nele, sim mãezinha? A sua presença não é indispensável.
-Não, certamente...
Pensativa, acrescentou, na sua voz meiga, onde vibrava infinita indulgência:
-Aquele pobre João nunca tem dinheiro que lhe chegue. Que vida difícil tem sido até hoje a sua!
E encarando Rogério, que voltara a cabeça, observou ainda antes de sair:
-Não foste muito duro para com ele, não é verdade?
O moço castelão teve o gesto nervoso duma pessoa impaciente:
-Não mais do que merecia - respondeu com voz surda.
A senhora de Croixmare não insistiu. Conteve um suspiro de compaixão e, tendo demonstrado assim toda a pena que sentia do sobrinho, saiu completamente tranquila, para acabar de se vestir.
Uma história doutros tempos
-Então o senhor Estêvão está há muitos anos em Houx-Noirs?
Extremamente graciosa com o seu vestido claro e o chapéu de tule enfeitado com grandes malmequeres, apertando um enorme braçado de flores acabadas de colher, Eliana de Surtot interrogava o jardineiro.
Este agitou a cabeça grisalha.
-Oh! Veja lá a menina. Ainda o senhor Rogério não tinha nascido quando para cá vim. E isto soma a bonita conta de trinta e quatro anos que estou aqui.
A rapariga teve um sorriso aprovador.
-Muito bem! Vê-se que não gosta de mudar de patrões... e também que deve ser um bom servidor.
Um relâmpago de sincero orgulho brilhou nos olhos do velho criado.
-Faço o possível para isso... porque quando o trabalho está bem feito todos ficam contentes... começando por mim! Mesmo antes de ser admitido no castelo, como jardineiro, eu já fazia, por assim dizer, parte do pessoal da casa. Meu pai e meu avô serviram a família do senhor Rogério toda a sua vida... sente-se uma certa alegria quando se pensa nestas coisas...
O homenzinho fitava vagamente o espaço como se os mortos evocados e todas as recordações despertadas surgissem a seus olhos.
-Meu pai era pastor como o meu avô o fora já também!... Os dois eram considerados quase como fazendo parte do mobiliário da casa. Estavam habituados à sua presença e a contarem com eles para tudo. Ninguém queria saber quantas ovelhas havia ou quantos cordeiros nasciam... Lá estava o pastor para olhar por tudo e para velar pelos interesses do patrão; e tinham razão porque nunca houve motivo para se arrependerem...
Contente por assim se evocar diante dela um pouco do passado da família Croixmare, que em breve seria a sua, a rapariga escutava com atenção as reflexões do jardineiro. Para ouvir melhor, sentara-se comodamente em cima da relva e, o molho das flores no chão diante dela, os cotovelos apoiados nos joelhos e o queixo mergulhado na concha das mãos, o olhar erguido para o criado, deixava-o falar sem o interromper.
-Pequenino ainda, bebi o leite das vacas do castelo; mais tarde sentava-me com meu pai à mesa dos criados e partilhava as suas refeições. Apenas, durante os primeiros anos do meu casamento - quando quis tentar cultivar uns bocadinhos de terra, que pertenciam aos meus sogros deixei de comer o pão do castelo... Tirando isso, toda a minha vida tem sido passada em Houx-Noirs.
Como se calasse, Eliana perguntou:
-Então, conheceu o pai do senhor Rogério?
-Muito bem!... e também o seu avô. Lembro-me até mesmo do pai deste último, um soberbo coronel da Guarda Imperial... Mas como era ainda muito pequeno recordo somente a sua alta estatura, a voz sonora e o brilhante uniforme... com o altivo penacho que lhe encimava a barretina, atingia com certeza mais de dois metros de altura... A menina pode ver o seu retrato, que está no salão nobre do castelo.
-Já o vi - declarou ela - Tinha um porte altivo. Devia ser um esplêndido militar.
-Oh! Se era! Quantas vezes o ouvia dizer a meu pai! O velho Jerónimo - meu padrinho e meu avô-acompanhou-o em diversas campanhas, combatendo debaixo das suas ordens. Só depois de ser gravemente ferido, se fez pastor.
O jardineiro baixou a voz e estendeu o braço, apontando a grande massa escura de pinheiros, que se avistava lá ao fundo, na extremidade do parque.
-E presenciou também a matança lá em baixo.
A voz baixara tanto e tomara tão solene tom, que Eliana estremeceu.
Pressentiu um drama sombrio, drama que a palavra matança empregada pelo jardineiro marcava com sangrenta mancha.
-Conte-me essa história, senhor Estêvão pediu com corajosa curiosidade, onde, ao mesmo tempo, se adivinhava o terror.
O homem não respondeu de seguida. Depois, voltou a menear a cabeça.
-Para que lhe hei-de contar? É uma história triste pouco própria para uma rapariga nova, alegre e feliz, como a menina... Iria entristecê-la e o senhor Rogério não havia de gostar, com certeza...
Mas ela insistiu:
-Conte, conte; eu quero saber... quero- conhecer a história da nossa casa ...e ouvi-la contar por uma testemunha ocular redobra-lhe o interesse.
O velho sorriu, intimamente lisonjeado pela atenção que despertava.
-Testemunha?-comentou-Não posso afirmar que o seja, visto que meu avô era já muito velhinho quando nos descrevia a aventura passada nos tempos da sua mocidade... estou certo é de que não há ninguém na região que a conheça tão bem como eu... salvo o senhor Rogério, evidentemente.
-E então! O caso passou-se no parque, lá ao fundo?
-Passou, naquele pinhal... na pequena clareira, junto do poço velho.
-E a matança?... Como foi isso?
-Foi assim. Estava-se em 18... Os exércitos estrangeiros tinham invadido a França e pisavam a nossa terra como país conquistado... O coronel Croixmare defendia esta região o melhor que podia e não lhe faltava nem a energia nem a dedicação dos seus soldados! Os inimigos, porém, eram numerosos e quantos mais se matavam mais apareciam!
«Durou isto três semanas e ninguém sabia como terminaria!
«Finalmente, um dia, travou-se grande batalha no planalto que fica lá em cima... sabe, do outro lado do rio, subindo pelo atalho que nasce junto da igreja...
-Sim, sim, bem sei! Continue...
-Foi justamente nessa noite que o caso se passou. O coronel fora obrigado a retirar... o inimigo, muito superior em número, dispersara-lhe os homens.
«Era o que se chamava uma derrota total.
«O coronel, aborrecido e furioso, como era de calcular, retirou com meu avô e alguns dos seus soldados e refugiou-se na floresta. Conhecia-lhe os mais pequenos recantos e era sua intenção deixar descansar ali os soldados, procurar os desaparecidos e reorganizar depois, mais uma vez, o seu pequeno destacamento.
«Acamparam, portanto, na clareira, contando desnortear o inimigo, que podia supô-los fosse onde fosse, menos tão próximo da sua casa.
«Ao mesmo tempo aproveitava a ocasião para se reabastecer.
«Do castelo mandaram, efectivamente, víveres em grande quantidade e depois de comerem, os homens, derreados e fatigados pelas lutas daquele dia terrível, estenderam-se na relva e adormeceram tão profundamente como se estivessem na melhor cama.
«Mas de súbito, aproveitando o seu sono, vinte inimigos caem sobre eles de improviso!
«Que despertar!
«Os nossos empunham as armas e ferem à-toa.
«Estavam tão furiosos que parecia até que as próprias espingardas disparavam sem ninguém lhes tocar; as espadas tingiam-se de vermelho, o sangue corria por todos os lados e só se ouviam os gemidos dos feridos e o estertor dos moribundos.
«Por fim, os nossos conseguiram vencer. Caídos na relva, viam-se doze cadáveres de inimigos; os outros haviam fugido espavoridos.
«Infelizmente, do nosso lado também houvera mortos, e dos vivos nenhum escapara sem beliscadura... estavam todos mais ou menos feridos... O coronel apanhara uma espadeirada num ombro e meu avô uma bala numa das pernas. Mesmo assim, a vitória enchia-os de alegria.
«Entretanto, o coronel reflectia. Admirava-se pelo imprevisto do ataque e não o achava plausível.
«-Fomos traídos! -exclamou de repente.
«Todos os seus homens concordaram sem hesitar.
«Ao mesmo tempo descobriram um soldado que rastejava na sombra, procurando afastar-se do acampamento sem ser pressentido.
«O coronel chamou-o.
«Sentiu-se agarrado por dez mãos que o puseram em presença do comandante.
«Este perguntou:
«-Porque fugias? Que receavas?
«Fez-lhe notar que nem sequer estava ferido e as suas roupas intactas, sem uma mancha de sangue ou de lama!
«-Vê os teus camaradas e compara! Não te bateste então a seu lado?
O soldado perturbou-se... balbuciou algumas palavras. A sua atitude hesitante acabou de confirmar a desconfiança do coronel, que o mandou apalpar...
-Ah! - exclamou Eliana, vivamente interessada.
Sem se precipitar, o velhote continuou a narrativa, por momentos interrompida.
-Os soldados obedeceram... revistaram-lhe as algibeiras... o fato... e encontraram... sabe o quê, menina? Não é capaz de adivinhar.
-Não sou, não. Diga o que foi?
-Uma bolsa cheia de moedas de ouro! Como era pobre e se tornava pouco natural que possuísse tão avultada soma, todos compreenderam imediatamente.
«-Traidor! Bandido! -bradaram..
«Quando se viu descoberto, o miserável ajoelhou-se aos pés do coronel, mas este estava furioso.
«O sangue dos soldados mortos pedia vingança.
«-Infame!-rugiu - Vendeste teus irmãos!
«-À morte! à morte! -bradaram os outros!
«Oh! o julgamento não demorou muito tempo.
«-Entrego-o nas vossas mãos, meus amigos declarou o coronel - Vinguem os nossos mortos!
«-Não deve morrer como um soldado! - alvitrou um sargento - A espada e o chumbo ficariam manchados se tocassem o corpo de semelhante miserável.
«-Enforca-se! - disse uma voz.
«-Deitemo-lo ao poço! -lembrou um rapaz, cujo irmão fora morto na refrega nocturna.
«E foi este alvitre que prevaleceu.
-Ao poço, o traidor!-aprovaram em coro.
«Num abrir e fechar de olhos, o homem foi agarrado, amarrado para que não alimentasse a esperança duma evasão e precipitado nas profundidades do poço.
Lendas e superstições
Os dois interlocutores conservaram-se calados durante alguns segundos.
O velho jardineiro, encostado ao cabo da enxada, balouçando a cabeça, ressuscitava em pensamento as narrativas do avô e Eliana, o olhar dilatado pela comoção, fixava ao longe os sombrios pinheiros de troncos majestosos, seculares testemunhas da trágica cena.
Foi ela quem primeiro quebrou o silêncio.
-E está lá ainda... no fundo do poço? murmurou com voz mal segura pelo terror que não se apagara de todo.
Ao mesmo tempo apontava os limites do parque.
O velho começou a rir:
-Oh! Foi há tanto tempo, que pouco deve restar.
-E... o esqueleto?
-O pai do senhor Rogério mandou deitar para o poço umas poucas de carradas de terra.
A rapariga deu fundo suspiro de alívio.
-Então está entulhado?
-Isso sim! É muito profundo. Ouvi dizer que tem trezentos pés.
-Tanto!
-Afirma-se que antigamente se prolongava até ao nível da ribeira que corre no vale. Como vê é uma profundidade menos má.
-Sim, com efeito.
Reflectiu e depois observou:
-Mas se o senhor de Croixmare não tinha tenção de entulhar o poço por completo, porque razão lhe mandava deitar terra?
-Para descanso de todos... segundo parece por causa da lenda.
-Há então uma lenda? Donde nasceu? Conte-ma!
-Como deve calcular toda a região aprovou a morte do traidor...O seu nome era pronunciado com ódio ou com terror... e logo começaram as historietas.
-Que diziam?
-Muita coisa... Dizia-se que para trair assim os seus irmãos de armas, o miserável estava com certeza vendido ao demónio! Só um herege e um pagão poderia ter cometido tal crime. E por conseguinte o lugar onde repousava o seu corpo passou a ser um lugar maldito.
-Ah! O poço velho?
-Esse mesmo. Não tem boa fama na região. Todos o evitam e ninguém gosta de lhe passar ao pé, principalmente de noite.
-Mas esses terrores não têm razão de existir.
-Sabe-se lá!
Ela insistiu:
-No fim de contas, ao certo, que se diz?
Pausadamente, e em voz baixa, o jardineiro explicou :
-Diz-se que se vê o espectro do miserável vaguear pelo pinhal e que de noite se ouvem os seus gemidos e soluços... Parece também, que as almas dos soldados mortos na trágica noite erram em torno do poço para impedir a saída do outro... Um lenhador, que, certo dia foi fazer uns cortes de madeira para aquele lado, viu passar por entre as árvores três grandes fantasmas, envoltos em alvos sudários... Foi tão grande o susto que esteve três dias de cama e quando melhorou declarou que preferia morrer de fome a ter de voltar a trabalhar para os lados do poço.
«Para as crianças este é a habitação do papão, e para os adultos o refúgio de todas as almas más. A crença popular afirma que ali se escondeu não só a alma do traidor, como também a de todos aqueles que traíram a amizade ou o amor.
Eliana sorriu.
-A lenda é interessante ainda que um pouco aterradora. Felizmente tudo isso não passa de historietas boas para assustar crianças... Não é verdade, senhor Estêvão?
O jardineiro denotou grande hesitação.
-Talvez! -disse por fim - As almas dos maus não devem trazer consigo a felicidade!... É mesmo provável que umas chamem as outras.
«É por isso que não gosto de me demorar muito tempo no pinhal... Ainda que tenha a consciência tranquila, não é bom brincar com essas coisas.
A rapariga, fixando o seu olhar franco nas pupilas cinzentas que pestanejavam, examinou curiosamente o velhote.
Tanta simplicidade, admirava-a.
-Como pode um homem desta idade acreditar em histórias de fantasmas? - pensava.
Depois, cheia de coragem, como uma rapariguinha muito sensata que não acredita em almas do outro mundo, declarou:
-Tenho de ir visitar esse poço.
-Para quê? - inquiriu admirado.
-Ora! Para ver o lugar onde se desenrolaram acontecimentos tão interessantes.
-Mas bastante tristes, quando se pensa neles a valer.
-Não é tanto assim! É todo um passado que se evoca. Estou ansiosa por visitar esse local histórico e reconstituir em pensamento o drama sombrio de que foi teatro.
O homem abanou a velha cabeça, de rosto enrugado. Não aprovava aquilo que considerava uma inútil temeridade.
-Não deve ir... vai talvez procurar dissabores por suas próprias mãos.
-Mas eu não receio coisa alguma! - declarou divertida.
-Não perturbe a sua alegria, minha menina... atravessa agora um dos melhores momentos da sua vida, como não tornará a ter muitos talvez!
Um relâmpago de felicidade brilhou nos belos olhos azuis da criança.
-O meu noivo acompanhar-me-á e os dois, unidos, desafiaremos todos os malefícios dos espíritos vagabundos!
O homem não respondeu, não se atrevendo a dizer em voz alta quanto a censurava por falar tão levianamente dum lugar que todos consideravam maldito. E, em silêncio, retomou o trabalho.
Eliana levantou-se, distendeu os membros entorpecidos pela prolongada imobilidade.
-Oh!... Tenho de me ir embora! Lá em casa estão à espera das flores.
Apanhou o ramo, compôs cuidadosamente algumas flores que pendiam da haste já meio murchas.
E ligeira, feliz por se sentir viver depois das histórias fúnebres que tanto a tinham impressionado, satisfeita também por poder dizer a Rogério que conhecia uma interessante página da história da sua família, afastou-se a correr, ligeira e travessa, depois dum afável «obrigada e até outro dia» ao velho jardineiro, que a seguia com indulgente olhar.
Ele e ela
-Como vem bonita e rosada, Elianazinha!
A rapariga parou diante de Rogério que se lhe dirigia, e com ar travesso fez-lhe profunda reverência.
-Como está sério e carrancudo, senhor meu noivo - respondeu, imitando os modos graves com que o rapaz a havia interpelado.
A fisionomia do noivo desanuviou-se. Junto dela, Rogério esforçava-se por aparentar alegria.
Bem bastava que os outros reparassem que, há tempos para cá, o castelão tinha momentos em que andava pensativo, preocupado; não queria, porém, que a adorável criança o notasse!
-Estava aborrecido com a sua ausência, Eliana!-volveu com voz infinitamente meiga - Há mais de um quarto de hora que a procuro por todo o parque.
Ao mesmo tempo, tomava-lhe o braço com apaixonada ternura.
-Fui apanhar flores ao jardim - explicou.
-E fez boa colheita?
-Uma hecatombe!... mas o jardineiro ajudou-me.
-Jerónimo? - indagou.
-Não, Estêvão.
E acrescentou para se desculpar da prolongada ausência:
-Estivemos os dois a conversar e foi isso que me demorou.
-E que lhe disse de importância esse velho maluco?
Ela sentiu leve calafrio, recordando a sombria narrativa do homenzinho.
-Evocou um pouco do passado da sua família... falou-me de seus pais e recordou seu avô...
-Pouco divertida a conversa...
-Pelo contrário, muitíssimo... falar dos seus é o mesmo que falar de si - declarou afectuosamente, apertando um pouco contra si o braço de Rogério.
-Louquinha!-replicou, zombeteiro, mas intimamente lisonjeado.
A rapariga continuou:
-Agora já conheço a história do poço e a lenda que a ele se liga.
Ergueu os olhos para o noivo, esperando da sua parte um olhar de terno agradecimento pelo interesse que lhe mereciam aquelas tradições de família, mas ficou em extremo desapontada. Nas feições, habitualmente calmas de Rogério, passou como que uma expressão de terror. De fisionomia transtornada, os lábios pálidos, o rapaz separou-se bruscamente de Eliana.
-Que necessidade tinha esse animal de lhe contar essas coisas! -exclamou quase brutalmente.
Interdita, a rapariga balbuciou:
-Havia algum mal nisso?
Leu nos grandes olhos cheios de assombro erguidos para ele, toda a surpresa que a sua violência despertava e teve medo da forma por que a noiva iria interpretar a sua atitude.
Fazendo violento esforço para se dominar, explicou, procurando iludi-la.
-Não, não há mal nenhum... mas essas histórias de crimes e de sangue só servem para a impressionar.
-Engana-se.
-Não, não me engano. As descrições de guerras e de combates são habitualmente cruéis e tudo que lhe diz respeito tem sempre qualquer coisa de fúnebre... Se, agora que conhece o sombrio drama que aqui se desenrolou, vai passar a gostar menos de Houx-Noírs?
-Oh! Não há perigo!-declarou com entusiasmo a rapariga - Sou digna descendente de Afonso de Surtot e afirmo-lhe que, quando ouço contar qualquer aventura de guerra, não desmaio de susto!... Chamavam a meu avô o Invencível Paladino e o nosso brasão tem dois leões, indício de força e de coragem.
Ao pronunciar estas palavras, a voz vibrava-lhe de legítimo orgulho.
Eliana era bem a digna descendente, forte e corajosa, desse Afonso de Surtot que ela evocava, e Rogério, que a contemplava, sentia certo temor ao constatar essa energia e essa resolução que casualmente evidenciava.
-Se ela coloca tão alto na sua admiração a coragem e a lealdade, com que desprezo, em compensação encarará a covardia e a tradição? -pensava com íntimo temor.
E cada vez mais pálido, baixava a cabeça, como se no seu passado existisse negra sombra que para sempre manchasse o património de honra herdada dos seus antepassados.
Enlevada nas suas próprias palavras, Eliana não reparara na atitude abatida do noivo e, aproximando-se dele, continuava, com meiguice:
-Bem vê, Rogério, que nada tem a temer da pueril fraqueza que me atribuía... Pelo coração pertenço já à vossa raça... Gosto de Rouxinóis, porque este domínio foi o berço da sua família, e agora amo esta casa duplamente e com orgulho, pelas doces recordações que lhe andam ligadas.
Muito perturbado para poder responder, Rogério contentou-se em agarrar a delicada mãozinha que, ao falar, Eliana poisara na sua, e levou-a aos lábios.
Deram alguns passos em silêncio; depois, a rapariga que prosseguira a sua ideia, observou, sorridente:
-Como o velho Estêvão lhe é dedicado! Se soubesse o carinho com que fala de si e dos seus...
-é bom homem-respondeu Rogério - Infelizmente vai envelhecendo e já diz muito disparate.
-Oh! não é tanto assim!... Contudo...
Soltou franca gargalhada e continuou:
-Se eu lhe disser que o velhote acredita piamente na lenda que corre sobre o poço velho!
-O homenzinho está maluco! - Exclamou Rogério, cuja agitação não acalmara, mas esforçando-se por manter o mesmo tom jovial da sua companheira.
Esta recomeçou a rir:
-Afirmei-lhe que iria passear ao pinhal e visitar os fantasmas que o povoam... e imagine que tentou por todas as formas fazer-me desistir deste projecto... Muito ri eu!
Rogério estremecera mais uma vez com as palavras de Eliana.
-Estêvão tem razão! - Declarou bruscamente.
-Porquê? - Inquiriu a rapariga, admirada.
-Porque... que prazer pode experimentar em semelhante passeio?
-Primeiro, quero conhecer todos os pontos de Houx-Noirs... depois...
-Depois...
-É uma espécie de peregrinação que desejo fazer. Quero cumprir esse dever para com os antigos soldados do seu avô.
-Mas não foram enterrados ali!
-Bem sei.
-Então... Não compreendo!
-Mas ali morreram gloriosamente! - Declarou Eliana com solenidade. Não acha que é o bastante?
-Ora! Dispenso-a desse encargo.
-Não é um encargo - replicou a corajosa criança.
-Não quere agora afirmar-me, com certeza, que seja também um prazer! - Observou Croixmare, um pouco enervado.
-É evidente que não! -respondeu a rapariga bastante admirada - Não é com ideia de me divertir que falo nessa visita ao poço velho. E, contudo, não é também com custo que a farei... Admitamos que seja por curiosidade, o que é natural.
-Curiosidade... um tanto macabra, nesse caso! -declarou Rogério, encolhendo os ombros.
Eliana corou com a evidente censura expressa na observação do rapaz.
- Julguei que acharia muito natural e legítimo o meu desejo de conhecer esse local - volveu com certa altivez - Mas visto que o censura e parece considerá-lo como indiscreto, não insisto.
-Longe de mim semelhante ideia, minha querida Eliana - acudiu Rogério, dócil como um cordeirinho. Se tentei fazê-la desistir desse projecto é porque o poço está situado num sítio doentio e úmido.
-Como não permanecerei ali muito tempo, não há razão para esses medos, senhor meu noivo redarguiu em voz mais meiga.
Arrependia-se já do movimento de orgulho que momentos antes tivera e redobrava de amabilidade para apagar em Rogério qualquer má impressão.
-Faça-se como deseja - consentiu por fim.
-E acompanha-me? -perguntou afectuosamente Eliana, inclinando-se para ele.
O rapaz sobressaltou-se:
-Acompanhá-la?
-Sim - insistiu - Ficaria tão contente... E explicar-me-ia...
Ele teve um gesto de recusa.
-Ah! Isso não!
-Recusa! Porquê?
-Eu... tenho muito que fazer, minha querida Eliana... espero esta tarde uns rendeiros com quem tenho de falar.
-Mas espera-se para amanhã, ou para depois, se for necessário, quando puder, em fim!
-Não, não quero pôr à prova a sua paciência... Pedirei a minha mãe que lhe sirva de cicerone.
-Não é bem a mesma coisa - volveu a rapariga em tom agarotado, lançando àquele que em breve seria seu marido um olhar travesso.
-A minha querida noiva é muito amável e lamento não poder satisfazer-lhe o desejo.
-Diga antes que não quere.
-Não posso... tenho de receber os rendeiros... dívidas importantes a cobrar... uns fornecedores a visitar... Se soubesse quanto estou ocupado nesta ocasião...
A rapariga começou a rir com ar de troça.
-Oh! Há seis dias que cheguei e já reparei nisso... Está tão ocupado, que não faz nada em todo o dia... Senão estar ao pé de mim!
-Porque me enfeitiçou, encantadora sereiazinha! -declarou Rogério, rindo também - Não consigo convencer-me de que por vezes é indispensável afastar-me de si.
Ela fitou-o com olhar brilhante, malicioso.
-E se tentasse mais uma vez esquecer todos esses aborrecimentos dos negócios e me acompanhasse esta tarde ao pinhal.
-Não, com franqueza, é impossível - respondeu, desviando o olhar, contrariado por ter de resistir a tão insistente pedido.
Eliana franziu bruscamente as sobrancelhas e examinou Rogério surpreendida. Depois soltou uma gargalhada.
-Oh! Não! - Bradou - Seria muito cómico!
-O quê? - inquiriu Rogério, mal disposto.
-Uma ideia que acaba de me acudir ao pensamento.
-Alguma conclusão disparatada.
-Justamente... Pareceu-me de repente... Oh! Não vá agora zangar-se, não? Seria na verdade engraçado!
-Vamos, diga.
-Dir-se-ia que também acredita na lenda e que tem medo!
Rogério tentou rir, mas, em contraste com o tom jovial da noiva, o seu riso pouco franco, soava falso.
-Que criancice! - exclamou, com sorriso indulgente- Então estou em idade de ter medo de fantasmas?
-Sim, de facto...
Continuava a rir, mas, ao reparar no ar constrangido do rapaz, pôs-se imediatamente séria.
-Perdoe-me, Rogério - pediu, contrita, estendendo-lhe a mão - Foi uma brincadeira provocada e até justificada pela sua insistência em me afastar do meu projecto e por se ter recusado a acompanhar-me... Assegura-me que não me quere mal pela minha maliciosa observação?
-Oh! Nem pense nisso!-respondeu o rapaz, apertando com força a pequena mão que se abandonava entre as suas.
Deram mais alguns passos em silêncio e depois Rogério, que procurava por todas as formas agradar à sua companheira, ainda que esse gesto representasse para ele grande sacrifício, continuou a conversa num tom de gracejo:
-Contudo, preciso punir esta noivazinha travessa !
-Mau! - exclamou Eliana prosseguindo a brincadeira que vai fazer-me Rogério?
-Vou dar-lhe terrível castigo - afirmou, sorrindo.
-Estou já a tremer!
-Faça provisão de toda a sua coragem.
-Meu Deus! Sinto-me desfalecer de terror!
E a garota, inclinando para ele a cabeça de cabelos anelados, como para o desafiar, perguntou:
-E então, noivo cruel e feroz, qual é a minha sentença?
-Aturar a minha incomodativa companhia esta tarde durante a sua excursão ao pinhal.
Endireitou-se radiante de prazer.
-Deveras! Oh! É encantador Rogério!... Como estou contente.
Sem reflectir, no impulso espontâneo da sua alegria, pôs-se nos bicos dos pés e com os lábios aflorou a face do rapaz.
Mas, compreendendo de súbito tudo quanto esse gesto tinha de inconveniente, apesar dos estreitos laços que os uniam, ruborizou-se intensamente e para esconder a sua confusão, fugiu, correndo, em direcção ao castelo.
-Que impaciência e que pressa! Não corra tanto, Elianazinha.
Rogério, que lhe dera o braço, tentava retê-la junto de si.
Uma gargalhada argentina ecoou debaixo das majestosas árvores e, por graça, a rapariguita afastou-se do noivo.
-Oh! o Rogério não passa do mesmo sítio! Como consegue, tendo umas pernas tão compridas, andar tão devagar?
O rapaz respondeu docemente trocista.
-E eu tento resolver exactamente o problema contrário: como tendo uns pezitos tão pequeninos pode dar passos tão grandes?
Ia responder no mesmo tom de brincadeira quando parou de súbito, maravilhada.
-Oh! -exclamou, unindo as mãos.
Tinham atingido o ponto de destino da sua excursão e diante dos seus olhos abria-se a clareira húmida, rodeada por escuro pinhal.
Ao fundo, meio desmoronado e quase oculto
por tufos de plantas bravas e de hera, via-se o velho poço de que o jardineiro havia falado.
-Chegámos? - indagou Eliana, muito comovida pelo passado e pelo aspecto misterioso do cenário.
-Chegámos! -confirmou simplesmente Rogério, que parecia não se sentir ali à vontade.
Sem se importar com o castelão, a rapariga encostou-se, pensativa, ao tronco duma árvore e examinou o lugar que havia tantas horas lhe tomava o pensamento.
Tinha qualquer coisa de sombrio e de melancólico; a luz do sol dificilmente penetrava através da ramaria dos pinheiros; pesado silêncio reinava debaixo das majestosas árvores e pairava na atmosfera um aroma acre, fortemente impregnado de resina.
-Como tudo isto é triste! - murmurou Compreendo agora o terror dos habitantes da região... As folhas que caem assemelham-se a almas vagabundas, as sombras tomam contornos de fantasmas e o mais pequeno sopro do vento degenera em gemidos e soluços.
-Tem um aspecto macabro!-afirmou Rogério com desdém.
A rapariga afastou-se dele e dirigiu-se ao poço.
Os pés mergulhavam e desapareciam entre as altas ervas e as urtigas e silvas agarravam-se-lhe ao vestido.
-Que luxuriante vegetação!
-E que unidade terrível também!... Quando nos outros pontos do parque a terra se apresenta ressequida pelo calor, aqui está sempre molhada e coberta de musgo.
Eliana continuava a avançar e o seu companheiro seguia-a devagar e sem entusiasmo.
-Não permaneça aí tanto tempo, é insalubre.
-Não faz mal.
Alcançaram o muro de pedras meio soltas e, firmando-se num ponto onde restavam vestígios de argamassa, debruçou-se para o tenebroso orifício.
-Cautela! Não se incline tanto porque pode cair lá dentro.
Ao mesmo tempo passou-lhe o braço robusto pela cintura e puxou-a para trás.
A rapariga sorriu com meiguice e agradeceu-lhe com terno volver de olhos.
-Não tem empenho em que eu faça uma visita aos ossos que repousam lá em baixo? - comentou, um pouco provocante.
Mas viu-o tão pálido que toda a sua alegria desapareceu derrepente e sentiu mesmo leve impressão de terror. O recinto era tão triste e tão patético, que forte perturbação se apoderou dela.
Sentiu-se tremer e, instintivamente, encostou-se ao noivo.
-Nunca me atreveria a ficar aqui, se não estivesse junto de mim, Rogério... Esta solidão impressiona. Se aqui permanecesse sozinha, suporia que, em todos os cantos da floresta se ocultavam seres horríveis que só esperavam ocasião propícia para se atirarem a mim.
-Louquinha! - exclamou com ternura - Não será melhor voltarmos para casa? Essa imaginação trabalha... e impressiona-se com facilidade... Vamos, sim?
Eliana abanou a cabeça com obstinação.
- Não... ainda não! - teimou.
-Contudo, vejo-a cheia de medo...
-O meu terror era ridículo, principalmente estando a seu lado... Já passou. Sentou-se comodamente no muro baixo e largo e, compondo o vestido, indicou a Rogério um lugar junto de si.
-Sente-se aqui, Rogério. Vamos conversar um bocadinho, quere?
O rapaz teve um movimento de recuo.
-Obrigado, prefiro estar de pé - redarguiu.
E, para se distrair, acendeu um charuto que maquinalmente começou a fumar.
Parecia preocupado e mal disposto; de vez em quando examinava o recinto com uma espécie de inquietação e, como se a umidade do poço se apossasse dele pouco a pouco, um grande arrepio o agitou nervosamente da cabeça aos pés.
Eliana, toda entregue aos seus pensamentos, não o notou.
Encostara os cotovelos aos joelhos e apoiara a face de expressão grave e recolhida, nas pequeninas mãos.
Em silêncio, contemplava a minúscula clareira palhetada de ouro e a massa dos pinheiros envoltos em sombras.
Na sua imaginação exaltada, a narrativa do jardineiro precisava-se e, sem custo, julgava ver diante dos olhos desenrolarem-se os trágicos acontecimentos que, outrora, haviam ensanguentado sinistramente aqueles lugares.
Era a princípio como que ténue nevoeiro que envolvia, esbatia todos os contornos, mas esse nevoeiro ia pouco a pouco tomando forma segundo lhe parecia: apareciam rostos ferozes que se destacavam e moviam. Via-os andar dum lado para outro numa confusão indiscritível... estavam ofegantes, cobertos de poeira e de sangue. Reconheceu, encostado a uma árvore, o comandante, o orgulhoso coronel das guardas, Hugo de Croixmare, bisavô de Rogério. Como o retrato do salão se parecia com ele! O mesmo ar altivo, duro e enérgico... Aparecia agora o traidor... e a rapariga ouviu distintamente os seus gritos e lamentos... parecia escutar também as pragas dos outros que o agarravam e precipitavam no tenebroso poço.
Que espectáculo temível! Sentiu o desejo violento de fugir, mas subjugada, ficou imóvel e a visão medonha do seu espírito alucinado, continuava a desenrolar-se como um film ampliado dum cinema de horror.
com as pupilas dilatadas pela crescente emoção, Eliana sentia decompor-se-lhe o rosto, o sangue a gelar-se-lhe nas veias e o coração cessar de bater, oprimido por infinita angústia.
Por momentos, a terrificante visão tornou-se tão nítida que a rapariga soltou grande grito e levantou-se dum salto.
-Oh!
Rogério, cuja perturbação aumentara com o silêncio, ao ouvir o grito da noiva, empalideceu.
Instintivamente, o seu olhar cravou-se no poço, como se o mal que temia não pudesse vir doutro lado.
-Que lhe aconteceu? - perguntou com vivacidade, agarrando-lhe o braço. Eliana olhou-o, com expressão vaga.
-Oh! pareceu-me ver... - balbuciou.
-O quê?
Continuava a apertar-lhe o braço com frenesi, puxando-a para si.
A dor restituiu-lhe o sangue-frio.
-Magoa-me, Rogério!-protestou com brandura.
Ele largou-a sem dizer palavra, mas continuava a fixar o poço com olhar receoso. Dir-se-ia que esperava ver sair dele a misteriosa causa de susto da noiva.
Coube então a esta a vez de perguntar:
-Que tem, Rogério?
Duas vezes repetiu a pergunta.
E, como o rapaz continuasse sempre calado, sentindo de novo o medo apossar-se dela, acrescentou com voz trémula:
-Oh! Pelo amor de Deus, Rogério, fale-me, diga alguma coisa... Não fite o poço, assim! ASSUSTA-ME!
Ele desviou o olhar do negro orifício e fixou-a.
Viu-a comovida... e admirada talvez! E, fazendo um esforço supremo, dominou-se e agarrou-lhe na mão:
-Não nos demoremos aqui mais tempo, querida Eliana? - perguntou com voz um pouco rouca Este lugar não é conveniente para si... A sua imaginação povoa-o de quimeras que por fim a ennervam e assustam.
Leve surpresa passou no olhar da gentil noivazinha.
-Mas o Rogério também teve medo! - Observou com simplicidade.
-Tive - confessou com calma, tentando firmar a voz - Assustei-me por sua causa. Quando a ouvi gritar julguei que se desequilibrara e ia cair lá abaixo e não sei como descrever-lhe o que senti nesse momento de terrível angústia.
-Foi só por isso, na verdade? - inquiriu com garridice, tendo esquecidas já por completo as suas macabras visões.
O rapaz, meigamente, inclinou-se para ela.
-Duvida?... Que há no mundo que possa interessar-me mais do que a minha adorada Eliana?
Ao mesmo tempo, com o braço robusto enlaçava o busto delicado da rapariguita e, suavemente, apertando-a bem contra si, ia-a afastando do poço.
Eliana não resistiu, abandonando-se, deliciosamente encantada, ao terno abraço.
Depois do seu recente terror, era-lhe extremamente agradável sentir-se amparada e envolta pela atmosfera doce daquela quente ternura masculina que se afirmava nos mais pequenos gestos. Quando, abandonando a pequenina vereda que serpenteava pelo pinhal, atingiram por fim as avenidas do parque, refeito já da perturbação que o agitara, Rogério não receou interrogar Eliana sobre a origem do terror que havia manifestado. -Calcule - elucidou, sentindo ainda ligeiro calafrio-que julguei ver debatendo-se no fundo do poço, o desgraçado soldado, cuja traição o velho Estêvão me contou.
-Chega a ser obsessão. Não deve pensar mais nessas coisas.
-Oh! Julguei vê-lo de facto! O pobre rapaz, veja lá, dava voltas, reviravoltas e agitava-se como leão enjaulado... a boca cheia de água, o olhar alucinado erguido para o pequenino retalho de céu que avistava lá no alto, tentava em vão agarrar-se às paredes escorregadias da sua prisão.
-Muito divertido - murmurou Rogério, com ligeira impaciência. A rapariga não ouviu e prosseguiu. -Que agonia! - continuou aconchegando-se a ele - Não passou de uma visão, mas é horrível pensar que de facto tal aventura sucedeu. Que coisa medonha, ser atirado vivo a um poço.
Croixmare encolheu os ombros. A funda ruga que se lhe cavara entre as sobrancelhas, dava-lhe à fisionomia dura expressão.
-Decididamente essas histórias macabras causam-lhe grande prazer? A sua imaginação parece apostada em criar cenas de pesadelo...
-Pense bem, Rogério!... Aquele desgraçado teria caído vivo no fundo do poço?
-Não fale mais nisso. É muito provável que tivesse morrido da queda.
-Deus queira!
-Creia, Eliana - e a voz tomava uma acentuação de autoridade e veemência que não lhe era habitual - Não deve preocupar-se mais com um miserável que apenas foi castigado como merecia... E mesmo, se quere ser-me agradável não volte ao pinhal. O parque é tão grande e tem pontos tão pitorescos para passear, que não necessita de ir a um local sinistro procurar comoções e visões impressionantes e prejudiciais.
Eliana ia protestar contra a interpretação dada pelo noivo ás suas observações de rapariga impressionável, mas, erguendo os olhos para o rosto do rapaz, viu-lhe a expressão carrancuda. Como coisa alguma, quer na sua conduta, quer nas suas palavras, justificasse o evidente descontentamento de Rogério, desapontada, calou-se, e regressaram ao castelo sem trocarem mais uma palavra.
Contudo, no espírito de Eliana nascera um ponto de interrogação.
«Porque razão Rogério toma tão singular atitude sempre que diante dele se fala no poço velho?»
Coração de mãe, coração de tia
Depois do jantar reuniram-se todos na pequena saleta contígua ao quarto de dormir da senhora de Croixmare.
Perto do fogão, a velha fidalga conversava com as senhoras de Surtot e de La Bréche, mãe e tia de Eliana, em quanto que, num ângulo mais afastado, os dois noivos trocavam a meia voz as suas ternas confidências e faziam maravilhosos projectos que começavam sempre pelas palavras «Quando casarmos...»
A senhora de Croixmare ouvia distraidamente as suas companheiras. De espaço a espaço parecia prestar grande atenção aos ruídos exteriores.
-Espera alguém? - perguntou a senhora de la Bréche, que reparou por fim, nestas distracções.
-Alguém? Não - respondeu a mãe de Rogério
- estranho a demora do meu correio, e, se me dão licença, vou informar-me...
Ao mesmo tempo premia o botão eléctrico.
Pouco tempo depois abriu-se a porta e Baptista apareceu.
Apertava justamente na mão a correspondência que fora buscar ao correio, pois o distribuidor não subia a Houx-Noirs para a última distribuição.
-Há alguma carta para mim?-perguntou com vivacidade a senhora de Croixmare.
-não, minha senhora, só jornais.
Respeitosamente, o criado ia entregar-lhos mas foram repelidos com indiferença.
-Ponha-os em cima da mesa.
Obedeceu e depois retirou-se.
Rogério, que notara a decepção da mãe, inquiriu com interesse:
-Espera alguma carta cujo atraso a preocupe?
-Espero. Uma carta de João.
-De João?!-repetiu com sobressaltada surpresa.
-Exactamente. Porque não escreverá?
-Ora! - observou recuperando a calma - Bem sabe quanto é descuidado.
-Descuidado, sim, mas não mal educado! E deixou-nos por forma tão pouco correcta, que uma palavra de desculpa estava evidentemente indicada.
-Sua excelência amuou!... já lhe expliquei que nos zangámos.
-Por isso não me admiro que não te escrevesse... O que me surpreende é que me englobe no seu ressentimento. Fui sempre tão carinhosa para ele.
-João ignora por completo o reconhecimento!
- observou Rogério com aspereza.
-Mas não tem outra pessoa de família senão eu que quase lhe servi de mãe.
-A família! Uma coisa muito bonita, mas que para João só serve para obter dinheiro.
Eliana, que até aí ouvia em silêncio esta troca de impressões entre mãe e filho, não pôde deixar de protestar, com a sua habitual franqueza, contra as palavras de Rogério.
-Oh! que noivo tão rabujento!-exclamou Faz-me o favor de não acusar mais esse pobre rapaz! Atribui-lhe todos os defeitos possíveis!
-E afirmo-lhe, minha querida, que fico ainda muito aquém da verdade. Meu primo é um cavalheiro pouco recomendável.
A senhora de Croixmare tomou, por sua vez, a defesa do ausente.
-Oh! não é tanto assim! João é apenas um estouvado que só pensa em divertir-se! órfão desde muito pequeno, e sem fortuna, não teve energia para lutar contra o destino. Rogério, desejaria que o primo fosse mais sensato e menos perdulário. Eu por mim, não tenho coragem para lhe querer mal; no fundo é tão bom rapaz!
-Aí tem! - exclamou a rapariga num trejeito trocista dirigido ao noivo, que sorriu sem replicar. -E seu sobrinho causa-lhe inquietação nesta ocasião?-indagou a senhora de Surtot, entrando por seu turno na conversa. A castelã elucidou com tristeza:
-Abandonou, há quinze dias, Houx-Noirs e nunca mais tornou a escrever. Receio que lhe tenha acontecido qualquer coisa.
-Já não é a primeira vez que está tanto tempo sem dar notícias - observou Rogério, sem indulgência.
-Não é bem a mesma coisa. Nessas ocasiões não tinha falta de dinheiro.
-Ora! quantas vezes lhe paguei as dívidas.
-E desta vez recusaste-te a fazê-lo. -com razão!
-Quem sabe se estaria verdadeiramente apoquentado.
-Pior para ele!
-E se, momentaneamente desorientado, vendo-se a braços com dívidas insolúveis, medisse bem as consequências das suas loucuras e tivesse tomado uma resolução desesperada?
Eliana, assustada, uniu as mãos.
-Oh! meu Deus! que remorsos para si, Rogério!
-Nem pensem nisso! -bradou o rapaz - Valmont é muito cobarde para se suicidar. Seria mais capaz de destruir a vida dum amigo para arranjar a sua.
Pusera-se de pé e, excitado, começara a passear dum lado para o outro da sala.
A conversa parecia desagradar-lhe. Talvez a forma cruel como procedera para com o primo lhe provocasse alguns remorsos. Contudo, o seu rancor ao ausente não se desvanecera, antes aumentara, porque prosseguiu, dirigindo-se à mãe:
-É uma grande honra para João preocupar-se assim por sua causa. Um patife daquela espécie não merecia tantas atenções!
A rapariga calou a custo novo protesto. O tom de animosidade que o noivo tomava para falar do primo, causava-lhe péssima impressão.
Porque razão Rogério usava tanta severidade para com aquele que durante muitos anos vivera a seu lado, partilhando todos os seus folguedos infantis? Não sabia então conservar-se fiel às velhas amizades e ignorava o respeito pelas recordações de infância que se guardam com amor?
Quanta admiração teria Eliana sentido pelo noivo, se este, em vez de se arvorar em acusador, tivesse, pelo contrário, defendido João e procurasse atenuar-lhe as culpas!
Como, infelizmente, esse caso não se dera, a rapariga soltou fundo suspiro e, dominada por funesto pressentimento, que nem bem podia definir, prestou a maior atenção à conversa.
A senhora de Croixmare ao ouvir os ásperos comentários do filho, meneara a cabeça.
-Pode ser que tenhas razão em julgar tão severamente teu primo - observou conciliadora mas, digas o que disseres, não consigo zangar-me com aquele pobre rapaz...
-A sua indulgência não tem limites... a mãe foi sempre assim!
Ela sorriu levemente.
-E já agora continuarei a sê-lo! Na minha idade é difícil mudar de hábitos! Portanto, devido à minha indulgência...
-Excessiva, deixe-me dizer-lhe.
-Seja excessiva. Pois a minha excessiva indulgência obrigou-me a escrever a João.
-A mãe!?
-Eu própria.
Olhava para o filho, sorrindo tranquilamente, contentíssima com a revelação.
Rogério parou, bruscamente, diante dela.
Não era por certo só a claridade branca das lâmpadas eléctricas que espalhava no rosto do rapaz aquele tom, de palidez.
-Pois a mãe fez semelhante coisa? - balbuciou.
-E então o que tem?
-Porquê?
-Porque estava cheia de cuidado, já to expliquei.
-E... pode saber-se...
-O quê?
-O que dizia a sua carta?
-Pouca coisa - declarou alegremente – Não gosto de longas missivas nem de explicações complicadas... rabisquei apenas duas linhas:
«Estou inquieta por tua causa, João. Escreve o mais depressa possível para tranquilizares a tua velha tia que tanto te quere.»
«E para melhor lhe provar a sinceridade da minha afeição, juntei à carta uma dezena daquelas grandes notas azuis, que conheces. Mais ainda do que as palavras elas lhe provariam as minhas boas intenções.
Eliana, dum salto, estava junto da velha fidalga e, passando-lhe o braço ao pescoço, beijava-a com efusão.
-Oh! como é boa! Como é boa! Uma santa, na verdade... Aquele pobre rapaz... obrigada por ele... Ah! Fez muito bem! Muito bem!... Pobre João!
Rindo e chorando ao mesmo tempo, manifestava a sua alegria presente e o seu desagrado anterior, com palavras sem nexo, que encantavam a senhora de Croixmare, mas que, ao mesmo tempo iam ferir o filho desta.
A aprovação tão claramente manifestada pela rapariga à generosa acção da velha senhora, implicava, de facto, uma censura enérgica ao procedimento de Rogério. Ele percebeu-o e ficou pesaroso porque, amando sinceramente a noiva, a ideia de lhe ter desagradado tornava-se-lhe em extremo odiosa, mas era suficientemente senhor das suas impressões para as deixar perceber.
Quando Eliana pôs ponto nas demonstrações afectuosas, limitou-se a comentar com suprema ironia:
-Muito feliz é aquele João em saber conquistar assim as simpatias femininas. As mulheres preferem sempre os estouvados e os estroinas!
Eliana fitou-o hesitante, receando ter-lhe desagradado; mas quando o viu sorridente, tranquilizou-se.
Avançou para ele e estendeu-lhe a mão:
-Em compensação reconhecem que os homens sossegados e sensatos são os melhores maridos. É esta a opinião de minha mãe e de minha tia e... a minha também!
Rogério não respondeu, mas levou aos lábios a delicada mãozinha que ela lhe estendia.
Depois, atraindo novamente para o ângulo da saleta a sua gentil e loura noivazinha, cujo rosto se ruborizava, recomeçou a conversa tão desagradavelmente interrompida pela senhora de Croixmare.
No pinhal
Eliana levantou-se cedo naquela manhã.
Envergando apenas ligeiro roupão de crepe cor-de-rosa, apertado na cintura por grosso cordão de seda, saiu do quarto e desceu ao jardim.
Acabavam de bater sete horas no relógio do pequeno torreão que rematava o castelo do lado da habitação dos criados.
Os senhores de Houx-Noirs e os seus hóspedes, dormiam ainda e só os criados e o pessoal de serviço se afadigava em redor do corpo principal do palácio, entregues às suas ocupações com o ardor matinal que por certo se atenuaria com o decorrer do dia.
O sol, que despontava no horizonte, tamisava de ouro o arvoredo, que agitado pela aragem do alvorecer, cintilava, como se as gotas de orvalho fossem milhares de diamantes atirados para ali ao acaso e em profusão.
com o despertar do dia, a vida recomeçava activamente; era o cantar agudo do galo, chamando as galinhas, o ladrar dos cães aos quais já tardava a ração habitual, a pancada seca das ferraduras no lajedo da estrebaria, o mugir das vacas pedindo que as libertassem e o praguejar dos moços que incitavam e empurravam os animais impacientes para a desejada liberdade dos campos.
Eliana encaminhara-se para a herdade que ligava ao parque -e cujos telhados vermelhos se avistavam, à direita, através da folhagem dos carvalhos seculares.
Caminhava alegremente, pelo pequeno atalho que a umidade da noite tornara um pouco lamacento, com passos ligeiros e cantarolando.
O ruído sonoro duns tamancos batendo no empedrado do caminho fê-la voltar.
-Oh! bom dia, Estêvão!-exclamou, avistando o velho jardineiro que avançava devagar, levando à rédea um cavalo pigarço. O homenzinho tirou respeitosamente o chapéu. E como a rapariga tivesse parado à sua espera, apressou um pouco o passo e alcançou-a.
-Vai hoje trabalhar para o campo? - indagou familiarmente, acariciando as fortes ancas do animal que o velhote conduzia.
-Não vou, não, menina!-elucidou o criado com um aborrecido trejeito. - E preferia isso a ter de cumprir a desagradável tarefa de que me incumbiram.
-Então que tarefa é essa?
Pusera-se ao lado dele, regulando o andar pelos passos trôpegos do seu companheiro e interrogava-o com interesse.
-O senhor Rogério mandou-me transportar terra lá para baixo. Vou agora atrelar a carroça.
-Lá para baixo, para onde?
-Para o poço velho.
Ela admirou-se.
Para o poço! E para que é que quere ele lá a terra?
- inquiriu após uns segundos de surpresa.
-Para o entulhar, naturalmente!
-Entulhá-lo!
-É verdade.
-Ah!
O criado que a supunha ao corrente da decisão do seu jovem amo, voltou-se para ela e interrogou:
-Então o senhor Rogério não lhe disse nada, menina Eliana?
-Não.
-É para admirar!
-Porquê?
-Porque é justamente por sua causa que vão em fim tapar aquele maldito poço.
Eliana caminhava de surpresa em surpresa.
-Por minha causa?! -repetiu.
O velhote sorriu com ar velhaco.
-Sem querer ofendê-la, menina, parece que no outro dia, apesar de toda a sua coragem, sempre teve um bocadinho de medo...
-Oh! Quase nada!... E é por causa disso...
-Julgo que sim.
-Mas Rogério teve tanto medo como eu!
O homenzinho pareceu achar graça à observação e um sorriso incrédulo lhe afluiu aos lábios.
-Está já crescidinho, o senhor Rogério, para ter medo de fantasmas - acrescentou com franqueza.
-Afirmo-lhe...
Calou-se, subitamente indisposta ao recordar a singular atitude do moço castelão durante a visita ao poço velho.
Toda a sua alegria desaparecera agora, e procurava precisar na memória os mais pequenos sucessos daquela famosa tarde.
Entretanto, o velhote, prosseguindo a sua ideia, continuou:
-Muito aborrecido, na verdade este trabalho de que o senhor Rogério me encarregou.
A rapariga, distraidamente, porque o seu pensamento estava longe, para dizer alguma coisa, perguntou:
-E não tem quem o ajude?
-Tenho. Clemente, o cocheiro, ajuda-me a carregar a terra e o Pedrito a baldeá-la para o poço... O patrão quere que fique bem calcada para se poder nivelar o terreno com facilidade. -Ah! sim...
De súbito, sobressaltou-se. Só então pareceu ouvir as palavras do jardineiro e compreender o seu sentido.
-Disse que iam nivelar o terreno?
-Parece que sim.
-O senhor de Croixmare quere então demolir o poço?
-Exactamente. As picaretas se encarregarão de fazer desaparecer o que resta dele!
-Oh!
Sentiu tão grande abalo como se lhe falassem numa profanação de que tivesse sido a causa inicial.
E, mais uma vez, inexplicável mal-estar se apoderou dela.
Porque razão tudo quanto dizia respeito ao poço velho a impressionava àquele ponto?
Ter-se-ia ali passado qualquer outra coisa, além da história que Estêvão lhe contara, para que, inconscientemente, se perturbasse assim?
E porque motivo também, o gesto do noivo, querendo destruir por uma vez aquele lugar sinistro, tão natural no fim de contas, instintivamente se lhe afigurava misterioso e sacrílego?
A rapariga tentou afastar os desagradáveis pensamentos e quebrar o encadeamento ameaçador de vagas suposições.
Inquiriu:
-E esse trabalho quando deve estar pronto?
-Hoje ainda!
-De manhã? -insistiu.
-Vou já para lá. É só o tempo de atrelar, encher a carroça e comer qualquer coisita.
Em voz alta, Eliana calculou:
-Daqui a duas horas, portanto, deve lá estar.
-com certeza. Lá para as nove deitarei no poço a primeira pazada de terra.
-Bem!
O homem voltou a cabeça e num gesto brusco cuspiu para o chão, como se tivesse necessidade de manifestar assim o desagrado e o desprezo que lhe inspirava a tarefa de que estava encarregado.
Eliana parou. Resolutamente, modificou o itinerário do seu passeio.
-Vou deixá-lo, Estêvão. Até outro dia e coragem!
-Muito obrigado, menina.
Tirou o chapéu, e tranquilamente, com passo pesado, continuou o seu caminho.
A rapariga, pensativa, retrogradou até ao cruzamento duma avenida e depois obliquou em direcção ao bosque, cuja massa escura se avistava no outro extremo do parque.
-Quero ver o poço pela última vez.
Cedera a esse desejo imperioso sem discutir.
Antes que a antiquíssima ruína desaparecesse para sempre aos golpes das picaretas dos criados de Rogério, queria fazer aquela peregrinação.
No seu passo elegante e ritmado de adolescente, encaminhou-se, sem se apressar, para o lúgubre pinhal que, ao longe, ultrapassando as altas copas das outras árvores, rodeava o local do poço velho.
Pouco depois atingia a orla do pequeno bosque.
Sem hesitação, avançou. Talvez por já ter ali estado com Rogério, percorrido aquela mesma vereda e contornado as largas poças de água esverdeada, familiarizara-se com aqueles sítios cuja solidão já não a impressionava tanto.
O sol subira lentamente no horizonte e os seus raios brilhantes coalhavam de ouro a folhagem das árvores, donde parecia cair uma chuva luminosa.
Rumores confusos multiplicavam-se em torno de Eliana, sem que esta se assustasse. O estalido seco das agulhas dos pinheiros que os seus pezitos esmagavam; o salto dum coelho que fugia assustado; o suave rumorejar da ramaria ou o zumbido alado dos insectos, confundindo-se com o esvoaçar dos passaritos que saltavam, de ramo em ramo; o repicar dum sino, que ao longe, chamava os fiéis para a missa da manhã, em quanto do lado oposto mais próximo, outro lhe respondia, tocando a finados.
Por entre os troncos aprumados, a rapariga avançava como embebida num sonho, acordando no espírito evocadoras visões.
A marcha um tanto rápida fatigou-a.
Procurou com os olhos a extremidade do atalho. Ao longe aparecia pequeno ponto luminoso e, à medida que se aproximava e a distância diminuía, esse ponto aumentava.
De súbito, com uma espécie de dolorosa alegria, Eliana avistou as ruínas escuras e sombrias do velho poço que se erguia mais misterioso e solitário do que nunca.
Uma carteira bem recheada
Eliana adiantou-se para o poço.
Caminhava lentamente, com passos vagarosos, não por hesitação, mas por uma espécie de veneração e de respeito que lhe inspirava o fúnebre recinto.
Tinha a impressão de avançar pela nave duma igreja ou entre duas filas de sepulcros e quase sentia o imperioso desejo de ajoelhar e concentrar-se em oração sentida.
Junto das pedras escuras, toucadas de hera, parou. Nenhuma impressão de receio a perturbava. Apenas, ao contemplar demoradamente o velho poço, sentiu crescer em si violenta curiosidade pelo sombrio túmulo em cujas profundezas se ocultavam tantas coisas misteriosas.
A comoção que sentira durante a sua primeira visita desaparecera por completo e a terrível visão que a alucinara, estando junto de Rogério, parecia ter-se desvanecido para sempre, agora que se encontrava desacompanhada.
Só então reparou no aspecto vetusto de tudo quanto a rodeava, a guarda do poço desmoronada aqui e ali, as pedras enegrecidas pelo tempo e cobertas de musgo, a roldana de ferro corroída pela ferrugem, as duas vigas com as ferragens arrancadas e as silvas e plantas bravas brotando por todos os cantos.
Quase maquinalmente, contornou o poço. O seu olhar fixava vagamente os restos da antiga argamassa e o pensamento acompanhava, com comoção, os esforços dos elementos contra a matéria inerte, mais forte do que eles, mas que, na sucessão dos anos, tinham, contudo, conseguido vencer.
De súbito curvou-se.
A seus pés, um objecto escuro, entalado entre duas pedras, chamou-lhe a atenção.
Agarrou-o com a ponta dos dedos.
Era uma carteira.
Admirada com semelhante achado, virou-a e revirou-a por todos os lados com repugnância e também com uma espécie de receio.
Duas iniciais em prata brilhavam numa das faces.
Viu um J. e um V. e o seu espanto aumentou pois aquelas letras nada lhe diziam.
«A carteira não é de Rogério-pensou-De quem será então?
Reflectiu sem achar solução e ao mesmo tempo ia continuando o seu exame.
«Esta carteira devia ter sido perdida há muito pouco tempo. O couro está manchado e húmido só dum lado...
Tateou-lhe a espessura e depois abriu-a.
Estava a abarrotar de papéis e, ao vê-los, um escrúpulo assaltou Eliana.
«São talvez papéis de importância!... É melhor não lhes tocar! Vou entregar tudo a Rogério e ele resolverá!
O achado que acabara de fazer desviara-lhe a atenção do poço velho e agora apenas desejava regressar ao castelo.
com verdadeira precipitação enveredou pelo atalho que se abria à sua direita, sem reparar que, tendo dado umas poucas de voltas na clareira, o caminho que tomava não era aquele que a trouxera.
E, assim, andados rapidamente poucos metros, parou surpreendida na orla do pinhal, quando calculava ter percorrido apenas metade do caminho. Num breve exame logo deu pelo seu erro.
«Enganei-me no atalho.
Mas reconheceu imediatamente o local onde se encontrava.
«Então não vim eu ter ao pavilhão?
De facto, na sua frente, a poucos passos do bosque, erguia-se uma encantadora casinha, estilo normando, com varandas de madeira polida. Eliana reconheceu o antigo retiro de caça que visitara no dia seguinte ao da sua chegada a Houx-Noirs.
Uma reflexão lhe acudiu rapidamente ao cérebro.
«Não calculava que o pavilhão ficasse tão perto do poço velho...»
E como uma conclusão traz outra, do pavilhão o pensamento saltou para o poço velho, do poço para a carteira que encontrara, e da carteira para João de Valmont que devia ter dormido no pavilhão.
Todo este encadeamento de ideias se desenrolou em menos tempo do que leva a explicar, porque ao seu primitivo comentário seguiu-se quase imediatamente esta exclamação:
«João de Valmont!... J. V. são as iniciais de João de Valmont!
Esta conclusão perturbou-a.
-João de Valmont! -repetiu - Nesse caso esteve ele junto do poço velho!
Estremeceu. Avassalava-a pouco a pouco um terror indefinido, ao pensar que poderia talvez haver qualquer correlação entre o misterioso poço e o desaparecimento de João.
-Oh! meu Deus!-balbuciou-Se tivesse acontecido algum desastre!
Sentiu repentino abatimento e quis descansar apenas o tempo preciso para coordenar as ideias e convencer-se de que a sua suposição era inverosímil.
Viu dois bancos, um de cada lado da minúscula escadaria que dava acesso ao pavilhão.
Sentou-se, ou antes, quase se deixou cair num deles, por tal forma sentia os pensamentos atropelarem-se-lhe no cérebro.
-Que queria aquilo dizer? Que terrível mistério se ocultaria no poço ameaçador e por que coincidência Rogério mandaria entulhar justamente naquela ocasião?
Pensativa, virava e revirava entre as mãos a carteira húmida e manchada de terra, que continha talvez a chave do enigma.
Por fim, decidiu-se a abri-la e a examinar os papéis que continha.
com certa hesitação, como se cometesse uma indiscrição, os seus dedos agarraram primeiro alguns papéis que desdobrou.
Eram facturas, contas não satisfeitas ainda.
-Pobre João! O dinheiro que pediu a Rogério era, sem dúvida, para pagar tudo isto...
Infinita melancolia a dominou.
Perante a prova evidente da pobreza do desaparecido, a recusa do noivo revestia um carácter de redobrada crueldade.
-Eu nunca teria tido a coragem de lhe recusar o dinheiro!
A recordação do Infeliz rapaz fez-lhe subir as lágrimas aos olhos.
-É atroz ser-se tão pobre, que nem sequer se tenha assegurado o pão de cada dia!... Como arranjaria o dinheiro?... Ou teriam os seus credores sido menos implacáveis do que Rogério?
Naquele momento quase detestava o insensível e cruel castelão.
-Rogério não conhece a miséria... Bem se vê que nunca lhe faltou coisa alguma!
Depois de alguns momentos de dolorosas reflexões, continuou a examinar o conteúdo da carteira. Algumas cartas apareceram.
A caligrafia era elegante e bem lançada, e os traços finos mal afloravam o papel assetinado donde se evolava ainda leve perfume a violetas.
Eram cartas de mulher conforme Eliana logo reconheceu.
Não ousou lê-las. Contudo um pequeno cartão caiu-lhe debaixo dos olhos e maquinalmente percorreu as três linhas nele traçadas.
«Rogério vai casar. Venha esta noite; tenho absoluta necessidade de lhe falar. É preciso impedir este casamento custe o que custar.
Nérelle»
-Que quer isto dizer?!
Leu e releu aquelas três linhas com verdadeiro assombro. Pois? Existia uma mulher que queria impedir o seu casamento com Rogério? E porque motivo?...
E João sabia-o!
Meneou a cabeça sem compreender. Instintivamente adivinhou um romance de amor no qual Rogério estava envolvido, mas a sua alma muito honesta e muito pura, não podia supor mais nada.
Contudo, sob a impressão dum súbito pensamento, estremeceu.
Teria Rogério amado qualquer rapariga que depois abandonara?
Esta ideia foi-lhe dolorosa. Por sua causa uma outra mulher sofria, talvez...
Então quis saber e, pondo de lado todos os escrúpulos abriu uma após outra as cartas que então hesitara em ler.
Eram cartas ardentes e apaixonadas, cujo estilo exaltado lhe despertou certa admiração, mas por elas apenas ficou sabendo que João se correspondia com uma mulher que o amava com ardor.
Desapontada, tornou a ler o bilhete com. crescente emoção.
-No entanto, é forçoso que me esclareça!
Lamentava que o pequeno cartão não indicasse morada e que nenhum apelido se seguisse ao simples nome de Nérelle.
-Assim poderia ainda saber qualquer coisa...
Mas como as enigmáticas palavras do misterioso bilhete nada deixavam adivinhar, decidiu-se a continuar as suas pesquisas. Agarrou de novo na carteira e, com redobrada atenção, recomeçou o inventário.
Encontrou então, dobrada e escondida no fundo de pequena bolsa, uma carta que da primeira vez lhe escapara.
Ansiosa, com ligeira angústia, desdobrou-a.
E mal leu as primeiras palavras, o papel tremeu-lhe nas mãos:
«João
Faz mal em não querer aceder ao meu pedido. Seu primo não é digno da encantadora Eliana de Surtot. Se recusa auxiliar a minha vingança, impedindo esse casamento, faça pelo menos uso, em seu proveito, dos papéis que lhe entreguei. Creia-me. Rogério é suficientemente rico para resgatar por todo o preço as provas que atestam a sua passada infâmia.
Sua amiga
Néreile»
com as pupilas dilatadas pelo espanto, Eliana repetiu:
«...Rogério é suficientemente rico para resgatar por todo o preço as provas que atestam, sua passada infâmia...»
Sentiu como que um nevoeiro erguer-se diante dos olhos e ficou para ali aniquilada, moralmente abatida, incapaz de fazer um gesto, tão profundo •era o golpe que feria.
-Rogério!... Rogério cometera uma vilania!
Só pensar em tal parecia-lhe que o coração cessava de bater e que todo o seu sangue, subitamente gelado nas veias, ia pouco a pouco esvaindo-se pela extremidade dos dedos.
Era atroz.
Seu noivo, um infame, indigno dela! O homem de quem, em breve, usaria o nome! Aquele em quem depositava toda a sua confiança!
Surdos zumbidos enchiam-lhe o cérebro, rumores que era como que um dobre a finados pela agonia da sua felicidade.
Fez um esforço para se levantar e quebrar o encadeamento doloroso do pensamento. O seu olhar, porém, reflectia ainda toda a pungente angústia e infinda tristeza que a dominava.
As lágrimas tremeram na extremidade das pestanas e depois correram em ondas pelas faces pálidas e essas lágrimas foram para ela verdadeiro refrigério.
Depois daquela crise de desespero, ficou mais calma e teve a coragem de reler a carta acusadora.
Eliana era, no íntimo, bastante animosa. A mãe, um tanto orgulhosa, educara-a severamente e desde muito nova lhe ensinara a dominar os nervos e a conservar a calma em todos os momentos difíceis da sua vida, e só agir depois de grande reflexão.
Portanto, agora que pagara à dor o seu tributo de lágrimas e de revolta, dominou-se e com sangue-frio não destituído de amargura, pôde avaliar a situação.
O golpe que atingia a sua calma tranquilidade de noiva, encontrou-a corajosa e sincera, disposta a todos os sacrifícios e a todos os perdões generosos... se, todavia, a infâmia cometida pelo noivo fosse daquelas que as tradições da sua raça lhe permitissem perdoar.
Por isso, antes de mais nada, tinha de se informar, para saber ao certo a que acção censurável da vida do senhor de Croixmare aludia a carta que o acaso trouxera ao seu conhecimento.
E ao mesmo tempo que reconhecia a necessidade de não proceder com precipitações e sem ter dados precisos, toda a efervescência impetuosa do seu espírito exaltado era ainda moderada pelas normas severas da sua vida passada.
Antes de vibrar na sua felicidade o golpe decisivo e demolidor, teria de salvar as aparências, continuar a viver oficialmente com a habitual serenidade e evitar os comentários pérfidos e malévolos.
E agora impunha-se regressar ao castelo.
Ao longe um relógio deu dez badaladas.
-Dez horas, já!-pensou verdadeiramente aborrecida, verificando como a manhã decorrera rápida.
De relance lembrou-se do caminho a percorrer.
-Lá em casa devem já estar com cuidado... Esperam-me... procuram-me até, talvez!
Rapidamente reuniu os papéis espalhados no colo. Apanhou com presteza os que haviam caído no chão, juntou-os e meteu-os na carteira.
-Não darei parte a ninguém de meu achado, pelo menos por hoje - decidiu.
Mãe e filho
-Rogério!... Rogério, vem cá.
Por três vezes a senhora de Croiixmare repetiu o apelo.
-Mas então, que aconteceu? - perguntou finalmente o rapaz, levantando o reposteiro que tapava a entrada dos aposentos maternais.
Ela olhou-o, vibrante de comoção.
-Ora, vê lá tu... é extraordinário... a carta do João...
Rogério teve -um sobressalto e repetiu:
-A carta do João?
-Sim, a que eu lhe escrevi...
-E então?
-Está aqui... devolveram-ma...
Mais calmo indagou:
-E quem a devolveu?
- O correio... a Administração dos Correios! Aqui tens, vê... por baixo da direcção puseram uma observação... Era justamente a carta registada!
Rogério agarrou fleumàticamente o rectângulo de papel e examinou-o.
Leu em voz alta:
«Devolvida ao remetente. - O destinatário ausentou-se em 15 do corrente, sem deixar direcção».
-Está aí!
O moço castelão sorriu.
-Nova doidice de João!-observou - Está aí para qualquer canto a divertir-se...
A senhora de Croixmare, porém, cortou-lhe a palavra com um gesto de protesto.
-Não fales assim... O caso é talvez mais sério do que pensas.
Rogério encolheu os ombros com cepticismo. -Ora!...
-Não, repara na data da partida. «Ausentou-se em 15 do corrente»... Como vês é fácil de compreender!
-Mas não compreendo eu!
-Ora essa! Reflecte: foi justamente em 15 que ele chegou aqui e na noite de 15 para 16 que nos deixou por forma tão estranha e misteriosa... e depois disso não tornou a voltar a casa. É uma verdadeira desaparição!
-Que exagero! Não vejo nada de extraordinário no caso, João, quando abandonou Houx-Noirs, dirigiu-se naturalmente para casa dalgum amigo que o reteve até agora e mais nada!
A velha fidalga meneou negativamente a cabeça. Não compartilhava a serenidade do filho e no seu espírito surgiam tristes pressentimentos. -Deus te ouça! - murmurou.
-Vamos, mãezinha! Não se apoquente, sem necessidade. Verá que tudo há-de acabar em bem.
Ela esboçou doloroso sorriso.
-Assim o espero... mas quanto mais tranquila estaria eu se não tivesses recusado ao teu infeliz primo o dinheiro que te solicitava.
O rapaz não conseguiu reprimir um gesto de enfado.
-Porque razão me censura sempre a mesma coisa! O que está feito, está feito! De resto, não estou arrependido e se o caso se repetisse não hesitaria em opor nova recusa às exigências e pedidos de meu primo... É aborrecido ter constantemente de pagar as dívidas alheias!
Passeava nervoso, batendo de espaço a espaço, com o pé no chão.
A senhora de Croixmare sempre pensativa, aproximou-se do filho e brandamente pousou-lhe a mão no braço.
-Não te zangues, Rogério - pediu com maternal ternura - Se me ouves muitas vezes lamentar a forma severa como procedeste com João, é porque me sinto constantemente dominada por tristes pressentimentos.
Nas pupilas metálicas do rapaz perpassou um relâmpago de terror, logo dominado.
-Que quer dizer! -inquiriu.
Ela agitou a cabeça e respondeu:
-Não sei. Parece-me às vezes que tudo isto nos trará desgraça... Se te disser, meu filho, que todas as vezes que diante de mim se pronuncia o nome de João, me sinto oprimida, sufocada... como se férrea mão me apertasse o coração... Que queres que te diga! Tenho a impressão de que uma catástrofe ameaça a nossa casa!
Não obstante a sua aparente indiferença, Rogério estremeceu. As palavras da mãe corresponderam talvez ao seus próprios pensamentos, porque empalideceu e um suor de angústia ou de terror, lhe perlou a fronte que se ensombrou.
-Não! não! - balbuciou - Tal não sucederá!... Ninguém sabe onde está João...
Uma voz pura e argentina interrompeu-o.
-Não, ninguém sabe onde está João de Valmont, mas ele voltará, tenho a certeza!
Rogério voltou-se para Eliana, que entrara naquele momento, um tanto desnorteado pela súbita aparição e pela entoação estranha da exclamação.
Cruzaram o olhar, agudo e penetrante do lado da rapariga, vacilante e fugidio por parte do noivo.
Ela começou a rir, mas, contrariamente ao habitual, este riso era mais irónico do que alegre.
-Vamos, meu pobre Rogério, sossegue! Vejo-o tão perturbado!
Estas simples palavras foram como que uma chicotada para Rogério que se dominou e conseguiu recuperar a calma.
-Diga antes admirado com a sua presença retorquiu completamente senhor de si - São quase onze horas da manhã e ainda hoje não tinha tido a felicidade de a ver... Não apareceu à hora do almoço e minha mãe já por três vezes bateu à porta do seu quarto sem obter resposta. Que foi feito de si?
Muito habituada aos usos mundanos para deixar adivinhar os seus verdadeiros sentimentos, Eliana respondeu sem hesitação:
-Quis visitar o parque... e à volta perdi-me. Desempenhei o papel de criança perdida nos bosques e asseguro-lhe que é divertidíssimo!
Ele sorriu, subjugado pelo subtil encanto da rapariguinha.
-Que pena não a ter encontrado!
-Que faria?
-Teria por minha vez representado o papel de lobo quee devora as meninas desobedientes e tê-la-ia comido.
-Que medo!
-Oh! Nada receie... devorá-la-ia sem lhe fazer mal... com beijos... assim...
Agarrara a pequenina mão e tentava levá-la aos lábios. Uma espécie de repulsão, porém, crispou o delicado rosto de Eliana, que fugiu com os dedos.
Contudo, corajosamente, tentou iludi-lo, gracejando.
-Assim nunca conseguirei estar pronta à hora do almoço, Rogério... perdoe-me, mas fica para logo... agora fujo!
Precipitadamente deixou o quarto, em quanto Rogério a seguia com o olhar, pensando.
-Que terá esta manhã a minha Elianazinha?
A espingarda do couteiro
A terra que enchia ainda metade da carroça, escoava-se por todas as fendas, em quanto, vagarosamente mas em movimentos constantes e regulares, o jardineiro e o rapazito tentavam despejá-la em grandes pazadas.
Imóveis e sossegados, os cavalos estendiam os pescoços luzidios, procurando alcançar a erva fresca que crescia em abundância, cobrindo o solo da clareira.
De pé, ao lado dos animais, o cocheiro afagava-os, dando-lhes grandes palmadas nas ancas de pelagem sedosa e falava-lhes amigavelmente, com voz forte e um tanto arrastada.
Pessoas e animais uniam os seus esforços para que o poço ficasse completamente entulhado, conforme a ordem de Rogério de Croixmare.
Uma voz jovial, que ecoou à entrada da clareira, fez levantar a cabeça aos trabalhadores.
-E então, meus amigos! O trabalho vai andando ?
Reconheceram Morvan, o couteiro, que de espingarda a tiracolo avançava para eles.
-Assim, assim!-respondeu o tio Estêvão-- quantas carroçadas serão precisas ainda para encher este enorme buraco!
-com certeza! É muito fundo!
-Tem pelo menos uns trinta metros.
-Quantas deitaram, já?
-Só duas... A carroça não pode aproximar-se mais por causa das pedras que rodeiam o poço... Tem de se carregar a terra duas vezes... e assim o trabalho não avança.
-Tens razão.
Morvan encaminhou-se para o poço. De mãos apoiadas no muro circundante, inclinou-se para a frente e, ansiosamente espreitou o escuro buraco.
-Apre! Que negrume!
Pedrito começou a rir.
-Talvez seja a casa do diabo...
-Não brinques com essas coisas, rapaz!-interrompeu o jardineiro supersticioso - A sepultura dum traidor deve ser por força a sucursal do inferno!
-Ah! a ideia não é má!-comentou o garoto, troçando, porque a cara do tio Estêvão o divertia.
O velhote carregou o sobrolho, encolhendo os ombros, mas o couteiro, que não dava crédito à maior parte das histórias que corriam, sobre o poço velho, sorriu para o petiz.
-Anda lá, meu maroto! Porque não vais tu lá baixo ver o que se passa para depois nos contares?
Ao mesmo tempo, voltou-se para lhe dar afectuoso sopapo, mas com este gesto, a espingarda soltou-se do ombro, escorregou ao longo do braço e antes que o guarda pudesse fazer um gesto para a agarrar, a arma saltou e desapareceu na boca do poço.
-Ah!
-A minha espingarda! -Oh!
Foi para os quatro interlocutores um momento de consternação.
O guarda, principalmente, estava desolado.
-A minha espingarda!... Uma arma novinha em folha e que custou ao patrão mil e duzentos francos!
-Que desastre!
-Excomungada vida a minha! Que irá ele agora dizer!
Os outros olhavam-no, condoídos. -O senhor Rogério vai ficar muito aborrecido. ..
-E recebê-lo-á muito mal quando lho participar.
-com certeza!
-O patrão não é para brincadeiras e não gosta que se estrague o material que nos confia. Por um dente que se quebre numa serra, ou por um ancinho mal limpo, faz um barulho de mil diabos!
-Só porque no outro dia perdi um chicote, deu-me uma descompostura de alto lá com ela!
O couteiro ouvia todos estes comentários cada vez mais apoquentado.
-O que dirá ele então pela perda da espingarda observou lamentoso.
-Pobre senhor Morvan! - exclamou com tristeza o garoto, que tinha grande predilecção pelo guarda.
Os homens entreolhavam-se aborrecidos, não sabendo como exprimir a apoquentação que experimentavam com o ocorrido.
Depois dalguns momentos de reflexão, Morvan arriscou timidamente uma proposta.
-E se eu descesse lá a baixo? - sugeriu, contemplando o escuro orifício-Não há-de ser tão alto, que se não encontre o fundo.
Mas o jardineiro protestou:
-Não! Isso não! Seria perigoso... e pouco seguro... Quem sabe o que lá iria encontrar!
O guarda não pôde deixar de sorrir.
-Oh! Cá por mim não tenho medo! Não me prendo com essas tolices.
-Pois faz mal!
-Talvez, mas afirmo-lhe que se tivesse uma boa corda...
-O menos que lhe poderia suceder era partir as costelas.
-Seria melhor uma escada.
-Não há escada tão comprida que chegue lá ao fundo.
-Uma corda bastaria...
-E se se parte?
-E como subiria?
-Vocês puxavam-me.
-É difícil mas não impossível... o muro pode aguentar... é forte e vai dar mais trabalho a demolir do que julgam.
-Podiam-se amarrar umas poucas de escadas umas às outras... das mais compridas, que servem para apanhar a fruta, por exemplo. Temos aí algumas com dez metros.
-Assim podia-se fazer, talvez. E por prudência desceria com uma boa corda amarrada à cintura... Contudo, acho melhor prevenir o patrão.
O guarda fez um gesto de desespero.
-Não quero perder o meu lugar por causa duma espingarda!
-E quem lhe diz que será despedido por tão pouco!
-O senhor Rogério tem tão mau génio que é bom contar com o pior.
-Em todo o caso acho melhor não descer sem que o patrão o saiba. Lembre-se dos seus filhos, Morvan. Não os deve esquecer...
O velho jardineiro reflectiu durante algum tempo.
De pé, meio curvado, os cabelos prateados quase tocando os ombros, o queixo pousado nas duas mãos reunidas sobre o cabo da enxada, fazia lembrar, sem que o suspeitasse, a clássica figura duma gravura do século passado.
Derrepente, levantou a cabeça e, numa voz que se esforçava por tornar persuasiva, aconselhou:
-Sabe o que eu faria no seu lugar, Morvan?
O guarda agitou negativamente a cabeça.
-Não, não sei. Diga lá.
-Iria ter com a menina Eliana e contar-lhe-ia a minha aflição.
O outro soltou uma exclamação de espanto.
-Mas que ideia!
Contudo, o velho insistiu.
-Vá, Morvan, vá. A menina de Surtot é muito boa e amável... Explique-lhe quanto receia a cólera do senhor Rogério... Estou certo de que ela se interessará por si e lhe dirá o que deve fazer... Se ela pedir ao patrão este não ousa ralhar-lhe com receio de desagradar à noiva... Se o caso fosse comigo era o que faria.
Os outros aprovaram calorosamente a ideia, e Morvan, que de princípio hesitara, temendo complicar a questão, acabou por se convencer de que, de facto, era esse o melhor partido a tomar.
-Vá já - aconselhou o cocheiro.
-Quanto mais depressa for mais cedo se livrará de apoquentações.
-E se for já, o diabo não terá tempo de levar a sua espingarda para o inferno - acrescentou o garoto, que recuperara a alegria, vendo que tudo iria talvez acabar em bem para o couteiro.
Morvan sorriu.
-Têm razão, meus amigos vou imediatamente.
Deixou-os depois de lhes haver recomendado que não continuassem o trabalho antes da sua volta.
-Não deitem mais terra no poço. Cuidado, não soterrem a minha espingarda!... O senhor Rogério vai por força encontrar o meio de a tirar de lá.
E, dando grandes passadas, afastou-se em direcção ao castelo.
Chegou lá poucos minutos depois.
A sineta não tocara ainda para o almoço e Eliana, que havia terminado rapidamente a sua toilette, veio para a varanda guarnecida de vidros multicolores.
Rogério sentou-se ao seu lado.
Certa frieza paralisava a conversa dos noivos, Eliana pensativa, contrariamente aos seus hábitos, respondia a Rogério por meias palavras e este, aborrecido com o mutismo da rapariga, não empregava grandes esforços para quebrar este constrangimento.
Quando Morvan transpôs o limiar do terraço, onde, segundo lhe dissera o criado, podia encontrar a menina Surtot, parou muito desapontado por verificar que esta se encontrava acompanhada e justamente por aquele a quem mais receava naquela ocasião.
Ao ruído dos passos, os dois jovens voltaram a cabeça.
-Que quere, Morvan? - perguntou Rogério no tom altivo que costumava usar quando falava com os seus inferiores.
Morvan torcia o boné entre os dedos sem responder. O pobre rapaz não sabia como encetar o assunto.
-Então? - exclamou Rogério.
A voz denunciava ligeira impaciência e o guarda por fim decidiu-se a falar. Mas que incoerência nas suas primeiras explicaçõeç!
-Oh, senhor de Croixmare, balbuciou
- Venho por causa do... poço .velho...
O jovem conde estremeceu e tornou-se pálido.
Como o outro se calasse, disse rapidamente, com voz rouca:
-Que mais temos?
Cada vez mais atemorizado pela expressão colérica do patrão, o outro continuou:
-É que... o poço velho... tem dentro... no fundo...
Rogério levantou-se de um salto. Fizera-se lívido.
-O quê?... no fundo! Que encontraram no fundo?
Tremia da cabeça aos pés , e fixava ansiosamente Morvan com olhar alucinado.
-Deixei lá cair a minha espingarda - balbuciou o guarda, curvando a cabeça.
-O quê?
-A espingarda que o senhor conde me comprou há pouco tempo.
-A espingarda?
-Sim.
-Que aconteceu à espingarda?
-Caiu ao poço.
Rogério passou repetidas vezes a mão pela testa úmida de suor.
O desvairamento que se lhe desenhara no semblante foi pouco a pouco desaparecendo.
A dois passos dele, Eliana, de testa franzida, observava-o com olhar estranho, penetrante e profundamente investigador... e dir-se-ia que o receio ou o horror lhe diminuíam o brilho!
Como Croixmare, absorto nos seus pensamentos, se conservasse calado, Morvan arriscou-se a lembrar:
-Se o senhor conde desse licença eu ia ao lago buscar a corda de reboque que está no barco.
-Para quê? - inquiriu o rapaz com aspereza.
-Para descer ao poço.
Antes que o guarda tivesse terminado a frase, já Rogério bradava:
-Proíbo-lho!
-Mas fico sem a espingarda!
-Pior para si!
Intimidado pelo tom ríspido do patrão, o rapaz balbuciou.
-Podia experimentar, senhor Rogério.
-Já lhe disse que não! Que teimosia! Fica proibido, ouviu!
Reparando na sua violência, o conde continuou com maior brandura:
-Faça o que lhe mando, Morvan, é para seu bem... Arriscar-se-ia a um desastre.
-Ora! eu tomaria cuidado!
-não! Não se fala mais nisso... Fica sem espingarda... não a deixasse cair.
Eliana, que até ali se conservava calada, interveio com calor:
-Porque recusa a autorização que este homem lhe pede? O poço não tem tão grande profundidade que não se possa chegar ao fundo.
Receio um desastre.
-com precauções...
-Não, não quero que ele se arrisque.
-Mas assim o pobre Morvan fica sem a espingarda... e comprar outra representa para ele uma despesa considerável.
-Pois bem, eu lha comprarei.
Respondia sempre com frases curtas, como que importunado pela insistência da noiva.
Esta sorriu com modos zombeteiros.
-Que generosidade, Rogério! com que facilidade se dispõe a gastar mil e duzentos francos... tão inutilmente!
O castelão fitou-a confuso.
-Que quere dizer com isso?
-Quero dizer que se me afigura muito mais razoável e normal tirar a espingarda velha donde está... vinte ou trinta metros... não são impraticáveis!...
E dirigindo-se a Morvan:
-Tem uma corda sólida, meu amigo?
-Tenho, menina - respondeu o guarda solícito. -A amarra do barco está nova e é forte.
O bom homem, perante o mirífico oferecimento do castelão, pensara de si para si:
-Desconfiemos!... Hoje paga-me uma espingarda nova, mas amanhã já estará arrependido... e como é muito agarrado, não faltarão censuras... Cautela, meu velho Morvan!... Tanta amabilidade vai-te sair muito cara.
Por isso, radiante com a intervenção da rapariga, insistiu:
-Eu já pensei outra coisa: se não houver confiança na solidez da corda, recorreremos às escadas.
-Bem sabe que não temos escadas com o comprimento suficiente para isso-contrariou o amo..
-Desculpe, senhor conde, mas temos as escadas da fruta, que servem para a colheita das nozes e para as cerejeiras grandes. São estreitas, mas compridas... dez ou doze metros talvez! Duas ou três, bem atadas umas às outras, devem bastar para chegar ao fundo do poço.
-É impossível! - Batalhou o rapaz -não consinto!
-Impossível, porquê? - ripostou Eliana com calma - Acho até muito praticável o que este homem propõe?
O nervosismo do castelão aumentava.
-É impossível!... Não compreende a minha responsabilidade? Não vê que respondo pela vida do meu pessoal? Não devo autorizar uma imprudência da qual pode resultar um grave desastre... E nesse caso, repito, a quem viriam pedir contas... compreende, não é verdade?
-Compreendo e não insisto volveu Eliana, cuja serenidade contrastava com tanta exaltação.
- Não insisto para que conceda a Morvan a autorização que lhe pede, mas...
Fez uma pausa e depois, fixando atentamente a fisionomia do noivo, continuou quase sorridente:
-Eu sou livre, Rogério... completamente livre! Já fiz vinte e um anos e ainda não sou sua mulher... não necessito de qualquer autorização nem ninguém é responsável pelos meus actos... De resto, minha tia, se o soubesse, aprovaria até a minha temeridade... Serei, portanto, eu quem descerá ao poço... e não se fala mais nisso!
-Eliana!
O nome ecoou num brado de angústia, um grito que exprimia o amor imenso que o rapaz sentia pela noiva, mas onde vibrava também o terror.
-Eliana!
Dominando a comoção, tentou sorrir.
-Eliana! Peço-lhe!... Minha adorada louquinha, não brinque com coisas tão graves!
-Não gracejo - replicou a rapariga seriamente.
-Estou de facto na intenção de tentar esse pequeno exercício de acrobacia, que nada tem de perigoso, afirmo-lhe.
-Mas é uma loucura!
-Esquece que sou uma alpinista consumada!
Minha tia, conquanto não seja precisamente uma mulher moderna, tem a paixão das altitudes e a essa paixão devo, felizmente, a minha educação desportiva. Tenho, nestes últimos dez anos, realizado escaladas muito mais perigosas do que essa pequena descida a trinta metros de profundidade.
-Bem sei, mas essas ascensões são naturais e
permitidas... Ao passo que a excursão ao fundo dum poço arruinado é perfeitamente ridícula.
-Oh! protesto! O perigo que se corre por curiosidade e interesse e com um fim proveitoso é muito mais racional do que aquele que se afronta apenas para se dizer que se afrontou.
-Está bem. Mas neste caso com sério risco. O
poço está arruinado e pode desabar.
-Ora! É um disparate admitir tal hipótese... •
Está a exagerar o perigo, por gosto... Nem calcula •
como isso me divertirá... Vai-me parecer que
desço ao Inferno... Que engraçado!
Sorria, parecendo regozijar-se com as mais pequenas manifestações de desagrado que lia na fisionomia do noivo.
Este, com efeito não conseguira ocultar a sua perturbação.
À medida que a noiva falava mais se lhe radicava no espírito a resolução de não consentir custasse o que custasse, que esta descesse ao maldito poço.
Aparentando, tanto iquanto podia, uns restos de serenidade, perguntou a Morvan.
-Já começaram a deitar a terra?
-Já, sim, senhor conde.
-Quantas carroçadas?
-Bastantes... Pelo menos três.
-Três! ... - calculou - Nesse caso o fundo deve já estar coberto... e toda a podridão que lá se encontrava, bem enterrada.
E depois, não era preciso, antes de mais nada, impedir a jovem temerária de executar o seu ridículo projecto?
Depois de curta hesitação, durante a qual procurou todas as soluções, decidiu por fim, dirigindo-se ao guarda:
-Já que assim o quere, vá, Morvan! Eu lavo daí as minhas mãos!... mas, cuidado!... tomem todas as precauções possíveis.
Então, já senhor de si, continuou a dar instruções para prepararem as escadas e a corda.
-Agora, vamos almoçar; mas daqui... a duas horas que tudo esteja pronto para a descida. Eu lá estarei para assistir.
-E eu também-acrescentou Eliana.
No «poço velho
Em volta das enegrecidas pedras, junto dum molho de cordas e das escadas já preparadas, os homens conservavam-se calados e sérios.
Tinham desembaraçado a boca do poço, arrancando as silvas e outras plantas que a obstruíam, pondo a descoberto o negro buraco que se escancarava para o céu como as fauces de um monstro voraz e temível.
Depois de haverem tirado cuidadosamente as pedras abaladas, que podiam desprender-se durante a descida do couteiro e cair-lhe em cima da cabeça, os homens fizeram escorregar as escadas ligadas umas às outras por sólidas cordas, transformando-as assim numa escada única e compridíssima.
-Então, Morvan, está pronto para o assalto?
-Ora! - respondeu o guarda despreocupado - tenho visto outros piores.
-Mesmo assim o passeio não deve ser de apetecer... é mais escuro do que uma masmorra...
-Isso que importa! Contanto que se possa respirar lá em baixo... mas visto que o papel ardeu até ao fundo...
-Que dúvida. Pois se o diabo mora lá onde queria que o fogo ardesse melhor!
Pedrito queria gracejar mas a sua alegria era falsa e não encontrava acolhimento no espírito dos dois jardineiros.
O único do grupo que aparentava serenidade e assobiava, era Morvan, conquanto o ar sombrio dos companheiros não fosse o mais próprio para o encorajar.
-Maldito trabalho este! - resmungava o tio Estêvão, quando a comprida escada ficou definitivamente colocada.
-Agora já o diabo tem uma escada cómoda para sair do seu palácio-observou Pedro, debruçando-se na boca do poço para ver a enfiada de prumos, mergulhando nas trevas.
Mas Clemente afastou-o com ligeiro empurrão.
-Demónio de garoto! Calas-te ou não?... Se são coisas que se digam quando um dos nossos se vê obrigado a descer até lá ao fundo!
-Deixe - o lá, não se zangue - sossegou o guarda, acendendo um cigarro - Ratos e bicharia não hão-de faltar lá em baixo, mas é tudo quanto encontrarei.
-E a sua espingarda, Morvan-volveu o petiz, sempre brincalhão - E agora que o fantasma já está armado, o melhor é vestir uma couraça.
Ainda desta vez o gracejo de Pedrito ficou sem resposta e o silêncio voltou a cair entre eles.
Esperavam agora apenas a chegada do castelão, que dissera querer assistir à descida do guarda.
-Ele aí vem! - anunciou este- Ai! Há pouco A menina, que é destemida a valer, persistiu em querer acompanhar o noivo. Chegou a dizer que desceria ela própria buscar a espingarda! Não tem papas na língua, a nova patroazinha!
-Sim, sim - comentou o tio Estêvão - é muito amável mas é nova, corajosa e não tem medo de coisa alguma. Não acredita no que se lhe diz. Os nossos pais não eram uns velhos tontos e eles que afirmavam que o poço velho não era bom sítio para passeio, lá sabiam o que diziam.
-com certeza! aquiesceu Clemente - Nunca, ninguém deve rir do que se ignora!... Todas as lendas têm o seu fundo de verdade!
-Deixem-se disso - interrompeu o guarda. Há muitos anos que percorro a mata e ainda não vi nada de extraordinário... nem mesmo aqui, no pinhal... Os nossos pais não eram tontos, mas eram crédulos... Presentemente, com a instrução, há muita coisa que tem a sua explicação... Mas o melhor é calarmo-nos. Vem aí o patrão e ele não gosta que se fale no poço velho.
Quase sem trocarem palavra, os noivos avançavam pelo atalho.
Rogério apresentava o rosto crispado pelo esforço violento empregado a aparentar uma serenidade que estava longe de sentir. Mais ainda do que as problemáticas consequências da descida de Morvan, inquietava-o a atitude tomada por Eliana na cena daquela manhã. Que significava tanta insistência? Não era por certo a espingarda do guarda que lhe despertava tanto interesse, nem por uma questão de economia que insistia por que a encontrassem...
Então?
Voltou-se para a rapariga que caminhava a seu lado. Um raio de sol filtrando pela rama espessa dos pinheiros, vinha aflorar de leve os cabelos anelados, ninbando-os de ouro.
Que pensamentos se desenrolariam naquela adorada cabecinha loura?
De súbito, uma solução lhe ocorreu ao cérebro fatigado. Que boa ideia! Porque não teria pensado nela mais cedo? Era tão simples!...
E assim, quando as escadas se encontravam solidamente fixadas, aproximou-se por sua vez do poço.
Morvan, impressionado apesar da sua intrepidez, preparava-se para descer.
A lâmpada eléctrica numa das mãos, a corda amarrada à cintura, ia a pôr o pé no primeiro degrau quando Rogério o deteve firme e autoritário.
-Espere, Morvan.
O homem parou...
- Decididamente, prefiro ir eu próprio.
E saltava já por cima do pequeno muro, afastando o guarda para tomar o seu lugar.
Eliana, porém, aproximara-se da negra abertura quase com tanta rapidez como o noivo. Frente a frente, os rostos tão próximos que quase se tocavam, os olhares cruzando como duas lâminas, a rapariga pronunciou em voz inexpressiva:
-Não compreendo essa sua resolução, Rogério... porque toma o lugar de Morvan? Porque motivo quere ir pessoalmente lá abaixo?... Não compreendo!
Que pensamentos leu o rapaz naquele olhar profundo, fixo no seu? Que inquietações? Que suspeitas? Ou talvez, apenas simples expressão de troça?
-Pois seja!-cedeu encolhendo os ombros quase com grosseria. Desça você, Morvan!
E o guarda obedeceu.
Lentamente foi descendo...
Debruçados na borda do poço, os assistentes acompanhavam o clarão, cada vez mais fraco, da lâmpada eléctrica...
Os mais diversos pensamentos tumultuavam dentro daquelas cabeças reunidas em volta dum buraco escuro e negro... mas ninguém ousava exprimi-los.
Decorreu um espaço de tempo... que se lhes afigurou enorme. Depois, a escada rangeu, a corda afrouxou, indicando que o homem começava a subir.
Finalmente apareceu.
Saiu da boca do poço, pálido e dominado por um terror que nem sequer tentava ocultar.
E o grupo de curiosos, perante o rosto alterado do guarda, afastou-se, contagiado por igual e irreflectido pânico.
Mal saiu, Morvan, cujas pernas vacilavam, sentou-se no murozito de pedra. com mão trémula enxugou o suor que lhe borbulhava na testa.
-Então, Morvan, que viu você?
-Nada.
-Nada! Que lhe aconteceu?
-Nada... Não vi coisa alguma.
-Explique-se.
-A minha espingarda desapareceu.
Esta declaração provocou certa agitação no pequeno grupo.
-Deus nos proteja! - balbuciou o tio Estêvão, persignando-se.
Rogério de Croixmare, porém, não era supersticioso. No rosto espalhara-se-lhe, é verdade, ligeira expressão de assombro, mas logo se dominou.
Suspeitava outra coisa e em voz decidida, ainda que um tanto nervosa, observou:
-Vamos, Morvan! Não esteja a dizer tolices! Confesse que não se atreveu a descer até ao fim.
O guarda colocou a lâmpada em cima do muro.
Ergueu para o patrão o rosto ainda alterado e mostrando as duas mãos vazias, afirmou de novo, com ar abatido:
-Não encontrei lá coisa alguma, senhor Rogério!
-Pergunto-lhe apenas se chegou a descer até ao fundo do poço.
-Desci, sim, senhor! Não sou medroso, graças a Deus!
Sossegou um pouco, levantou-se e explicou com voz abafada:
-Juro que desci até ao fim... abandonei a escada e saltei em terra. Temendo que a espingarda tivesse ficado presa em qualquer lado ou então meio enterrada, procurei por todos os cantos, com a lâmpada... Mas não estava lá! Não vi nada... a espingarda desapareceu! É bruxedo com certeza!
-Não procuraste bem, meu rapaz.
-Ou talvez a comoção lhe transtornasse a vista.
Mas o homem abanou a cabeça. Começava a recuperar a calma.
-Tão certo como eu estar vendo o sol neste momento-afirmou com convicção-juro que procurei por todos os lados e que não encontrei a espingarda.
-E tem a certeza de que a arma caiu no poço, esta manhã?
-Quanto a isso, tenho.
Todos os outros corroboraram a afirmação de Morvan.
-Sem a menor hesitação podemos afirmar que a espingarda enfiou pela boca do poço. Todos nós esta manhã fomos testemunhas.
-E depois disso não deitaram terra?
-Nenhuma, senhor... nenhuma!
Todos afirmaram o mesmo.
Rogério arriscou por fim a pergunta que o obsediava desde que o guarda aparecera:
-E de que qualidade é o terreno lá no fundo? Terra? Água, ou pedras?
-Só terra solta, senhor Rogério... a terra que lhe deitaram esta manhã. Não vi qualquer vegetação, ervas ou silvas, e o terreno não é húmido... não vi nada... nada.
Repetia este nada como um estribilho, numa espécie de desvairamento.
O facto já de si misterioso e o espectáculo deste homem habitualmente intrépido e corajoso dominado assim pelo terror, lançava o pânico no pequeno grupo.
-É um lugar maldito!-comentou um dos criados.
-E não admira que tenha má reputação... em vista do que contam-acrescentou outro.
-Puras verdades! -murmurou o velho Estêvão-Meu próprio avô viu o julgamento do traidor, depois do combate nocturno... horrível, tudo isso... E o que tantos outros viram depois... sombras... fantasmas... é mau não acreditar nestas coisas... nem tudo são mentiras...
O castelão deixava-os falar. No íntimo estava radiante pela forma por que o negócio terminava.
-É melhor renunciarmos a encontrar a espingarda, Morvan. Compra-se outra e acabemos com esta história... E agora, trabalhem todos com boa vontade para se tapar este poço infernal quanto antes... só assim ficaremos sossegados e as almas do outro mundo, se lá as houver, terão de ir habitar para outro lado!
«Vamos, meus amigos, ao trabalho! Entulhem esse buraco o mais depressa possível!
E não se atormentem mais com o desaparecimento da espingarda. Naturalmente alguém, que a viu cair, atreveu-se a ir buscá-la ou para ficar com ela ou até para se divertir à nossa custa... Vou comprar outra a Morvan. Foi no que deu toda esta brincadeira...
Começou a rir, mas nenhum dos presentes compartilhou a sua alegria.
De todos aqueles que o ouviam falar nem um só acreditava que tudo aquilo resultasse duma brincadeira. E também não se convenciam de que entulhar o poço fosse uma solução... pelo contrário!
Se se pudesse penetrar o seu pensamento ver-se-ia que todos estavam persuadidos de que a espingarda desaparecera por artes do diabo.
-Foi um aviso... os espíritos não querem que se entulhe o poço... Se persistem em continuar o funesto trabalho... podemos esperar as piores desgraças!
De súbito Croixmare soltou um grito abafado, de terror.
-Eliana!
A rapariga ouvira todo o colóquio sem intervir. Escutara, atenta, as explicações do guarda e vira as reacções que estas haviam provocado na fisionomia do noivo.
Verificara, com espanto, com que facilidade este se dispusera a abandonar as pesquisas.
Acreditaria ele também por acaso, em almas do outro mundo para não ordenar nova descida ao poço velho?
Eliana era arrojada, completamente livre de superstições. Perante a solução tomada, revoltou-se.
Aproveitando a confusão e a desorientação de todos, agarrou na lâmpada abandonada pelo guarda e, saltando por cima da borda do poço, desceu com agilidade e rapidez.
-Eliana!
O brado do castelão, quando se apercebeu do acto praticado pela rapariga, sobressaltou todos os presentes.
-Eliana!
Não respondeu, mas Rogério que se precipitara para a negra abertura, viu o clarão ténue da lâmpada desaparecer pouco a pouco nas trevas do poço.
A intrépida rapariga aventurara-se sem corda nem protecção. Como desportista consumada, descia depressa, com movimentos seguros e regulares.
De súbito soou um grito.
-Ah!
Um grito terrível!
Um grito que vibrou nas profundezas da terra, ampliado pelo eco.
Um grito que gelou de terror todos os que espreitavam cá em cima.
-desgraçada!
Que se passara no fundo do medonho poço?
Um desastre?
Ter-se-ia deslocado qualquer das escadas? Ou a rapariga, chegando aos últimos degraus escorregou e caiu, soltando o grito terrível?
-Eliana!
Não obteve resposta!
Nada mais se ouviu!
Só silêncio pesado e absoluto...
Enigmas
-Eliana!
-Menina de Surtot!
-Que desgraça!... Que grande desgraça!
Um brado de angústia e de terror, um apelo desesperado, respondera ao grito terrível que ecoara nas trevas.
Depois... só silêncio.
Um silêncio despedaçador... durante o qual o patrão e criados, irmanados por igual e imensa inquietação, esperavam ansiosamente uma resposta aos seus apelos.
Mas nada... nada, senão o mesmo lúgubre silêncio.
Tímidas reflexões se trocaram.
-Não responde.
-Se está ferida... talvez não tenha forças para o fazer.
-Nesse caso, está também desmaiada!
-Ou o diabo a raptou! - murmurou o petiz, que já não gracejava.
Após o seu dilacerante grito o castelão nada mais dissera.
Pálido, transtornado, era a própria imagem do terror.
No mesmo instante, porém, louco, sem hesitar, sem reflectir, saltou por sua vez a borda do poço e começou a perigosa descida.
Inconsciente do perigo que corria mergulhou nas húmidas trevas... e chegou ao último degrau.
Lá em cima os homens calaram-se, ansiosos, escutando o mais pequeno rumor, espreitando cada estremeção das escadas.
De súbito chegaram-lhe aos ouvidos exclamações estranhas e confusas, exclamações transtornadas pela ressonância do poço, incompreensíveis.
E, como ouviram falar, os criados respiraram melhor.
-Já se ouvem as vozes - notou o tio Estêvão em voz baixa.
-Encontrou a noiva - observou outro no mesmo tom.
-Parece que sim. Se fala...
-Só pode ser com a menina, está bem de ver!
-Em fim, felizmente não morreu.
-Mesmo assim, deve estar ferida... Há pouco ainda não respondia.
-Sempre apanhei um susto! - exclamou enxugando o suor da testa.
-E eu também - confessou Morvan com ar abatido - Começava já a acreditar um pouco em todas as histórias que correm sobre o poço velho... O que aconteceu com a minha espingarda é tão extraordinário!
Bruscamente, apuraram o ouvido e debruçaram-se todos no escuro orifício.
Das profundidades do poço parecia sair prolongado lamento.
Um calafrio percorreu o corpo dos três homens; e no mesmo instante todas as histórias de almas do outro mundo voltaram a obsidiá-los.
-Ouve-se falar... mas as vozes não parecem naturais... dir-se-ia...
Quem pronunciou estas palavras não ousou concluir o seu pensamento.
Entretanto, as escadas rangiam... alguém subia.
Era Rogério...
E Rogério só.
Rogério, lívido, desvairado... as feições transtornadas.
Rogério, que falava sozinho, ou antes balbuciava :
-Eliana!... Foi-se embora!... Eliana desapareceu!... A espingarda... também desapareceu... o poço está vazio...
O desgraçado parecia ter enlouquecido de repente.
E, então, todos recuaram espavoridos como se esperassem ver sair do poço uma legião de demónios.
As superstições renasciam...
O poço velho vingava-se por terem ousado profanar o silêncio das suas misteriosas paredes.
Ao tentarem entulhá-lo, teriam por acaso despertado a alma maldita do traidor que não queria que perturbassem o seu repouso, nem que o enterrassem?
A meiga Eliana pagara com a vida o seu arrojo juvenil!
Aquelas lúgubres pedras haviam-na tragado e nunca mais ninguém a veria... E não seria esta a última desgraça que desabaria sobre Houx-Noirs.
Porque era impossível contestar o facto que o castelão anunciara tão dramaticamente.
Eliana desaparecera por sua vez!
Ainda fora possível duvidar do desaparecimento da espingarda de Morvan. Era um caso tão inverosímil e inesperado!
Mas visto que uma espingarda se podia eclipsar tão misteriosamente, como que arrebatada por mão invisível, nada impedia que o mesmo espírito malfazejo se apoderasse da rapariga por igual forma.
O primeiro a recuperar o sangue frio foi Morvan.
-Vejamos! Vejamos! Tudo isto é impossível!... A espingarda ainda podia ter desaparecido, mas um corpo em carne e osso!... Nunca os jornais contaram caso semelhante! De longe em longe, lá falam em casas enfeitiçadas onde habitam almas penadas... mas são apenas objectos inertes que voam sem se ver a mão que os projecta ou destrói. Nunca se viu que alguém se volatilizasse desta maneira!
«vou descer outra vez! -decidiu com coragem
- Não posso admitir que alguém me faça o ninho atrás da orelha! Hei-de descobrir o segredo do poço velho ou não me chamo Morvan! A minha espingarda, ainda vá, mas a menina, é outra coisa!
Maquinalmente, o homem agarrou numa enxada e fê-la voltear com ar ameaçador. Era uma arma como qualquer outra.
-Se precisar defender-me isto pode servir! observou sem reparar que as suas palavras confirmavam a lenda.
Transpôs a borda do poço.
Antes de começar a descer, porém, relanceou o olhar pelo grupo dos camaradas aterrorizados.
Um pouco mais afastado, o castelão, encostado a uma árvore, a cabeça apertada nas mãos, parecia nada ver, nada ouvir.
O golpe aniquilara-o. O olhar fixo, toda a sua pessoa, em fim, respirava inaudito pavor.
Morvan encolheu os ombros. Perfeitamente calmo agora, achava que não se devia perder tempo em lamentações.
-Vocês, mexam-se! Seus maricas!-bradou, irritado com tanta pusilanimidade - Não fiquem para aí parados como espantalhos! Vão buscar reforços... maca, um cordial e as lanternas da estrebaria! Ajudem-me! Quem vai encontrar a patroazinha sou eu, verão!
E, confiado na sua coragem, nos largos ombros, nos pulsos sólidos que não temiam confronto, o guarda recomeçou a descida.
Em quanto Pedrito se precipitava para o castelo, os outros criados aproximaram-se do poço, a energia de Morvan impusera-se-lhes e, esperançados, viram-no sumir-se nas trevas.
A menina não podia estar senão no fundo do poço e ele ia encontrá-la, por certo!
Decorreram alguns minutos... e Morvan tornou a aparecer.
Mas sozinho!
Não encontrara o mais pequeno rasto de Eliana. Contudo, corajosamente tentou ainda justificar o facto.
-Não levava a minha lâmpada e lá dentro não se via um palmo diante do nariz. Logo que venham as lanternas que pedi se saberá o que tudo isto quer dizer. Actualmente não existe coisa alguma que não tenha a sua explicação!
Ninguém lhe respondeu. Todos eles viam bem que o guarda falava com menos segurança e só para demonstrar que não tinha medo.
Enfim, apareceram as lanternas.
Pedrito anunciara a triste notícia.
-A menina de Surtot caiu ao poço e desapareceu!
Benedito, o motorista, sólido rapagão, viera reforçar o grupo dos salvadores, o mesmo fazendo Clovis, ajudante do jardineiro, mutilado da guerra e que, conquanto não fosse forte, não tinha poeira nos olhos.
A senhora de Croixmare e as suas hóspedes, a mãe e a tia de Eliana, prevenidas imediatamente, chegaram também, aterradas, não sabendo bem o que se passava, mas chorando já aflitivamente. Contudo, passada a primeira impressão de assombro e de medo, toda a gente se afadigava, cheia de boa vontade.
Todos viam que cada minuto perdido era menos uma probabilidade de salvação para a infeliz criança. Porque, ninguém dos recém-chegados duvidava de que se tratasse dum desastre; a intrépida noiva de Rogério pagara a sua audaciosa temeridade com uma queda desastrosa e jazia inanimada no fundo do poço.
-Senhor Rogério, já que agora temos luz é outra coisa. Vamos tornar a descer, eu e Morvan...
Mais uma vez o guarda, seguido por Benedito saltou para a escada.
Rogério, num esforço de vontade, desceu também. A luz forte das lanternas iluminava nitidamente as paredes húmidas e esverdeadas, nas quais não existia a mais pequena fenda ou cavidade. Em cima ainda se via alguma vegetação, mas, mais para baixo, eram completamente lisas e nuas.
Ao nível da terceira escada um risco vertical destacava no tom esverdeado da pedra, indicando que qualquer corpo, ao cair, raspara a superfície musgosa.
Mas no fundo, nada! Nem a marca dos pequeninos pés de Eliana... nem os vestígios que por certo a queda dum corpo deixaria.
As lanternas iluminavam a terra recentemente lançada. Nenhum orifício, nenhuma fenda onde se pudesse ocultar uma espingarda... nem o mais pequeno recanto onde um corpo passasse despercebido!
Os três homens examinaram as paredes palmo a palmo, fazendo incidir a luz nas pedras esverdeadas, uma por uma.
Nada!
Nenhuma abertura nem sequer indício de porta ou alçapão...
Igual resultado negativo obtiveram com as pressões exercidas nos diversos pontos.
Não havia dúvida possível... não era alucinação... O sinistro poço tragara tragicamente a sua presa, flor viva de mocidade e frescura... e nunca mais a devolveria.
Mistério impenetrável
Havia que ceder à evidência.
Depois de terem prolongado as infrutíferas pesquisas por mais um tempo, que a todos pareceu interminável, os três homens decidiram-se a subir.
E o seu aparecimento, sem Eliana, acabou de consternar todos os que em cima os aguardavam com tanta ansiedade.
As senhoras de Croixmare e la Bréche que até então haviam conseguido corajosamente reprimir as lágrimas, não puderam mais contê-las e uniram os seus brados de dor aos da desesperada mãe.
Loucas de pavor e de desgosto, as três infelizes senhoras ficaram para ali, de pé, junto da boca do poço velho, sem forças para se afastarem do lugar onde, segundo lhes afirmavam, tinha desaparecido a adorada criança.
Rogério, dominado por um pensamento fixo que o devorava, parecia petrificado.
E mais ainda do que a dor, era o terror que esmagava todos os presentes.
Um terror imenso, irreflectido, inexplicável.
O medo perante o desconhecido... perante um mistério apavorante.
Cada qual explicava o facto segundo o seu temperamento.
-Foi o diabo!-pensava Pedrito.
-A alma do traidor - murmurou o tio Estêvão.
-O poço vingou-se - observava Clemente não deviam ter pensado em o entulhar.
Morvan, que não acreditava em todas essas tolices, estava contudo atordoado e consternado.
-Uma menina tão perfeita! Mas com todos os diabos, como pôde isto acontecer?!
-Deus quis punir Rogério pela forma cruel como tratou João de Valmont-pensava a idosa senhora, cheia de remorsos...
Mas uma única coisa aterrorizava todos e não sofria contestação:
O poço maldito não restituía a sua presa.
E esta convicção tornava-se de momento para momento tão opressiva, tão trágica, que alguém, para quebrar o sinistro silêncio, lembrou:
-É preciso prevenir a polícia.
-É verdade, vamos buscar os gendarmes-concordou vivamente um outro.
E foi quase um alívio, como que uma palpitação de esperança que galvanizou toda a gente. Nesta necessidade, um tanto pueril, de procurarem amparo numa força organizada, conhecida, pública e cujo poder lhes parecia ilimitado, encontraram verdadeira consolação.
Parecia que perante a realidade positiva o mistério recuaria e se desvaneceria.
A fisionomia descomposta de Rogério, porém, ao ouvir falar em polícia, contraira-se em breve crispação.
-Para quê a polícia? Investigações? Interrogatórios? Não, isso não quero!
Contudo, os criados insistiram.
Em torno de Rogério, hesitante, mas calado, todos aprovavam a ideia, e até as três senhoras pareciam, com a presença da polícia, ver renascer uma vaga esperança.
Decorreu um segundo durante o qual Rogério reviu em pensamento o fundo do poço.
Nada! Não existia ali coisa alguma! Nunca mais, talvez, se poderia encontrar Eliana... nem a espingarda... nem mais nada! Nunca poderiam encontrar mais nada!
E então consentiu.
E mesmo quando Clemente no seu passo um tanto vagaroso, se afastou em direcção às cavalariças na ideia de selar um cavalo, para mais rapidamente chegar à capital do distrito, Rogério chamou-o:
-Vou eu próprio, Clemente. Irei no auto que será mais rápido.
Durante o caminho, o rapaz conseguiu recuperar um pouco de tranquilidade.
A certeza de que o fundo do poço não apresentava nada de anormal pareceria dar-lhe novas energias.
Não obstante a sua educação e instrução, também o castelão daria crédito a todas as lendas que corriam sobre o sinistro local?
Porque motivo murmurava ele, com amarga satisfação:
«O poço velho nunca trairá o seu segredo... nenhum dos seus segredos!»
Mas logo, a imagem de Eliana, a noiva ardentemente amada, a imagem de Eliana perdida para sempre, surgia a seus olhos e aqueles rápidos Segundos de apaziguamento, terminavam em louco desespero.
E foi neste estado de espírito e de perturbação intensa e dolorosa, que alcançou o posto policial. O bom Benedito, atingido também, não tanto pelo desgosto como pelo terror, não demonstrava mais sangue frio do que o patrão.
Assim, as primeiras explicações dadas foram por tal forma confusas, que o agente resolveu ir chamar o sargento.
Este obrigou-os a repetir as explicações: a espingarda do couteiro desaparecida sem que fosse possível encontrá-la!... A rapariga que descera ao poço e não tornara a subir!
-Ora vamos, senhor de Croixmare - insistia o sargento - Tudo isso é impossível!... Tem corrido tanta coisa fantástica a respeito desse poço... que os homens tiveram medo e... não chegaram até ao fundo.
-Eu próprio desci duas vezes, sargento... duas vezes e com poderosas lanternas! Benedito, que aqui está presente, também desceu... E nenhum de nós viu coisa alguma... nada!
E Rogério, o olhar fixo, repetia:
-Nada... absolutamente nada!
O sargento, homem simples e bom, não insistiu. Sabia que quando uma pessoa está perturbada, quando por qualquer motivo perdeu a cabeça, não é bom contrariá-la.
E pensando também em livrar a sua responsabilidade, declarou:
-O caso parece-me de importância, senhor de Croixmare. Cumpre-me, portanto, prevenir o juiz de instrução. Vou telefonar para Guingamp.
-Pois sim - assentiu Rogério sem bem saber o que dizia.
-Vou telefonar mas com certeza os agentes só poderão chegar a sua casa amanhã. Portanto, dadas as circunstâncias... particulares e invulgares deste caso, penso que será conveniente mandar guardar o local do...
Por hábito profissional ia a dizer do crime, mas emendou a tempo:
-O local do desastre. Vou mandar-lhe dois dos meus homens... Ou antes acompanho-os eu próprio para averiguar...
Raposa velha, já um tanto céptico, acrescentou ainda com benevolência:
-Vamos, não se aflija, senhor de Croixmare, tudo se há-de arranjar, verá... Aí há qualquer confusão, não pode deixar de ser, há confusão!
O juiz de instrução chegou na manhã seguinte.
Vaidoso, compenetrado do seu valor e principalmente não querendo comprometer a sua situação numa história por tal forma inverosímil, vinha a Houx-Noirs contrariado e sem entusiasmo.
Logo às primeiras palavras, o caso afigurou-se-lhe impenetrável e os diversos interrogatórios a que submeteu os donos e criados do castelo mais lhe confirmaram a opinião de que nada conseguiria descobrir.
Que crédito se podia dar às declarações daquela gente, visivelmente extenuada por uma noite de insónia e não menos visivelmente dominada por um terror inexplicável e misterioso?
Os inquéritos materiais não trouxeram mais luz ao assunto. Novas pesquisas, novas descidas ao poço maldito que não davam qualquer esclarecimento útil.
Neste caso que, segundo lhe parecia, estava condenado a nunca obter uma solução, o melhor que havia a fazer, conforme opinião do senhor juiz de instrução, era livrar a sua responsabilidade.
E assim, a primeira coisa que fez, mal terminaram as investigações preliminares, foi telefonar para Paris. Em seguida, com a maior amabilidade, preveniu Rogério de que, não podendo de momento, levar mais longe a sua interferência no assunto, chamara Luiz Manzin, o célebre e astuto detective, o qual chegaria no dia seguinte.
Por seu lado despedia-se do castelão e limitava-se a esperar que lhe dessem qualquer indício mais concludente para poder continuar a instrução do processo.
Um polícia ás direitas
Luiz Manzin, novo e ambicioso, conhecido e reputado como agente hábil e cuidadoso, demonstrou desde logo o maior zelo pelo caso.
A reputação que gozava exigia que se mantivesse à altura das circunstâncias: o próprio mistério que envolvia a desaparição da menina de Surtot tornava o assunto mais interessante. As dificuldades a vencer, a falta duma pista definida, a sinistra fama do poço velho, tudo isso excitava ao mais alto grau o interesse do detective.
Pensava que, se mercê dos seus esforços toda aquela embrulhada se esclarecesse, seria um resultado excelente e um grande passo na sua carreira, que prometia ser brilhante.
Portanto, não descurou coisa alguma para promover toda a publicidade possível e, principalmente, para provocar as indiscrições da imprensa.
Logo que chegou, dirigiu-se ao local onde se «desenrolara o misterioso drama e que dois impassíveis e sonolentos agentes da polícia continuavam a vigiar.
Acompanhavam-no Rogério de Croixmare, Morvan, Benedito e o velho Estêvão, as principais testemunhas do desaparecimento de Eliana.
O castelão acabava de lhe explicar, com tanta clareza quanto lho permitia a sua comoção, a sucessão dos acontecimentos desde a queda da espingarda até àquele momento.
A primeira coisa que o detective( pôde observar, foi que o dono da casa, fazendo visíveis esforços para dominar a sua perturbação, narrava, contudo, os factos com certa incoerência. Daí a acreditar que iludia algumas perguntas não ia muita distância.
-com este cavalheiro-pensou - será difícil obter qualquer coisa de concreto. Torna-se evidente que me será preciso interrogar separadamente todos os habitantes do castelo e depois estabelecer as indispensáveis comparações.
-Desde quando está o poço guardado pelos agentes? - perguntou em voz alta.
-Desde o próprio dia do desastre - elucidou Rogério de Croixmare - Nessa mesma tarde fui eu próprio prevenir a polícia.
-Visto isso, durante a sua ausência, ficou o poço sem vigilância, não é verdade?
-Não sei bem... Lembras-te por acaso, Benedito?
-Eu não! O senhor bem sabe que o acompanhei ao posto policial. Era impossível saber o que se passava no castelo.
-E tu, Estêvão?
-Cá por mim, estive quase sempre aqui... Só me afastei o tempo preciso para ir a casa beber um copinho... Bem vê, sempre era preciso a gente restabelecer-se de tantas comoções...
-E antes disso? - insistiu Luís Manzin – Quero eu dizer, desde a queda da espingarda até ao desaparecimento da menina de Surtot?
-Nessa altura, sim - apressou-se a responder o couteiro - O local ficou abandonado em quanto fui falar com o patrão, que não queria deixar-me descer ao poço... Os outros tinham ido almoçar...
-E porquê, essa proibição? - interrompeu o detective.
-Simples medida de prudência - respondeu Rogério - O poço é muito profundo, escuro e eu ignorava o estado exacto em que se encontrava. Podia estar muito arruinado e oferecer sério perigo para Morvan... Sou responsável pela vida do meu pessoal e compreenderá de certo a minha hesitação.
-Sim, compreendo... Finalmente, quanto tempo decorreu entre a queda da arma e as primeiras tentativas para a encontrar?
-Duas horas, pouco mais ou menos... Lembro-me bem de que Morvan veio ter comigo justamente quando íamos para a mesa e que lhe ordenei que tivesse tudo preparado para começarmos as pesquisas depois do almoço.
Impassível, o detective anotou tudo no livro de apontamentos:
«Local ficou duas horas sem vigilância antes que começassem as buscas diante de testemunhas. Alguém teria interesse em fazer desaparecer a espingarda para impressionar os espíritos, dando vulto às temerosas lendas que correm sobre o poço velho?»
Entretanto, aproximara-se das ruínas. Debruçado na borda do poço, tentava, com o auxílio de poderosa lâmpada eléctrica, penetrar as trevas e examinar-lhe o fundo.
Mas o foco luminoso esbarrava nas silvas e nos ramos dum pequeno arbusto que crescera entre as pedras, e o olhar não podia ir mais além.
-É preciso arrancar tudo isto - observou O senhor de Croíxmare fará o obséquio de dar as suas ordens para que as paredes interiores fiquem livres de todas estas plantas que prejudicam as nossas investigações.
-Imediatamente - acedeu Rogério que partiu com o guarda e o motorista para dar as indicações necessárias à execução do trabalho.
Luiz Manzin viu-o afastar-se de cabeça baixa e aspecto profundamente preocupado.
-O pobre rapaz encontrava-se na mais completa desorientação... Segundo me parece não está longe de acreditar também em almas do outro mundo...
Querendo iniciar desde logo os interrogatórios em separado, o detective julgou a ocasião propícia para interrogar o velho Estêvão.
O bom homem não se fez rogado para narrar os acontecimentos com todos os pormenores. Manzin quis que o velhote precisasse exactamente o que se passara no próprio momento em que a rapariga tentara a descida ao poço.
-Como se explica que estando tanta gente presente, a deixassem praticar semelhante imprudência?
O velho jardineiro fez visível esforço para avivar a memória:
-Que quere o senhor!... Justamente no momento em que a menina Eliana saltou a borda do poço... ninguém deu por isso... pelo menos eu... rodeávamos Morvan... e todos nós estávamos impressionados por ele não ter encontrado a espingarda.
E o velho prosseguiu, contando ponto por ponto o grito de angústia soltado pela rapariga, a forma por que a tinham procurado, mas em vão, o desespero e o pânico que haviam dominado todas as testemunhas do desaparecimento,
E sempre, como num triste estribilho, sem poder afastar o pensamento da pobre criança soterrada, repetia:
-Uma rapariga tão perfeita, meu senhor! Tão alegre e delicada! Uma menina que tinha sempre uma palavra amável para todos nós!
-E o casamento era para breve?
-Para breve, sim - afirmou o velhote, comovido - A cerimónia devia realizar-se aqui, no castelo. Ah! Pobre senhor Rogério!
-O senhor de Croixmare?
-Sim, o patrão. Tratava-nos às vezes com certa aspereza, mas é um homem muito justo e agora feriu-o tão grande desgraça que todos o lamentam! E com razão! Perder uma noiva como aquela! É para endoidecer...
Doido! Era justamente essa a impressão que Rogério dera a Manzin. Das suas respostas incoerentes o detective nada podia deduzir... apenas a vaga impressão de que o caso era ainda mais complicado do que a princípio se lhe afigurara... e que a misteriosa desaparição da rapariga encobria um outro romance... misterioso também!
Mas qual?
A suspeita mais natural, estando tão próximo o casamento, era a da existência dum rival de Rogério, disputando-lhe a noiva.
Um rival?... Secretamente preferido pela rapariga?
Nesse caso estava-se em presença dum rapto... consentido, ou fuga voluntária.
Ou então esse rival infeliz... impelido pelo ciúme, teria tentado impedir o casamento... fosse por que meio fosse... até mesmo por um crime?
Para esclarecer este ponto, cumpria primeiro conhecer, tanto quanto possível quais os sentimentos que Eliana professava pelo noivo.
E como a ocasião era favorável e importava não descurar o mais pequeno indício, voltou a interrogar o jardineiro:
-Falava muitas vezes com a menina de Surtot? - inquiriu.
-Muitas vezes! -respondeu o velhote, orgulhoso - E tratava-me sempre com toda a amabilidade!
-E ela andava satisfeita? Tinha a aparência duma noiva feliz?
-Contente? Oh! se andava! Tão alegre que dava gosto vê-la... Agora se era por causa do casamento, não sei dizê-lo.
-E em sua opinião, ela amava o noivo ou não?
-Ah! Creio bem que sim.
O velho reflectiu um instante e acrescentou:
-Não só o noivo como toda a família. Interessava-se por todos, até pelos antepassados. Gostava de ouvir contar a sua história, principalmente a do coronel da Guarda, que meu pai conheceu... tudo ouvia com atenção... a lenda do poço velho... tudo.
E terminou:
-Que pena... tão bonita e tão delicada! Ah! que desgraça! Mas se quere saber a minha opinião, meu caro senhor, cá por mim não tenho hesitações.
-Ah! sim! Sabe como as coisas se passaram?
-Ora!
-Tudo quanto acaba de dizer é muito interessante, meu amigo, e de facto tenho grande empenho em saber o que pensa a tal respeito.
-Pois, então, meu caro senhor, não perca tempo em inquéritos inúteis. Fique certo de que nunca descobrirá coisa alguma...
-Julga isso? E porquê?
-Porque -foi o traidor que se vingou, senhor! E contra ele nada há a fazer!
-A que traidor se refere?
-Àquele que o coronel da Guarda mandou atirar vivo lá para dentro... Foi ele, meu senhor! Roubou a menina para castigar o senhor Rogério por ter querido entulhar o poço velho...
O detective observava o homenzinho com olhar investigador.
Perguntava a si próprio se o velhote estaria zombando dele, mas na fisionomia do tio Estêvão lia-se tanta franqueza e simplicidade que ninguém podia pôr em dúvida a sua sinceridade.
Manzin começou a rir.
-Talvez tenha razão, meu amigo. Simplesmente, vejo nisso mais um motivo para continuar o inquérito. É coisa sabida de toda a gente que as almas do outro mundo não gostam dos polícias e logo que aparecemos em qualquer parte apressam-se elas a afastar-se e a pôr ponto no seus sortilégios.
Coube a vez ao tio Estêvão de ficar embaraçado.
Tinha a consciência de que o detective não acreditava no sobrenatural.
No entanto, aquele parisiense era muito amável e ouvia-o com toda a atenção...
Interrogados pelo polícia, todos os outros criados responderam da mesma forma.
Foram unânimes em afirmar que não podiam precisar o momento em que Eliana se sumira no poço.
-Falavam todos ao mesmo tempo - explicou o guarda - todos de roda de mim... e o desaparecimento da espingarda fazia-nos tal impressão que não pensávamos noutra coisa. De repente, o senhor de Croixmare soltou um grito... Voltei-me... vi que a lâmpada de algibeira que pousara em cima do muro já lá não estava... e todos notámos que a menina Eliana tinha desaparecido... mas ninguém a viu começar a descer!
Foi as respostas que pôde obter e que não lhe diziam nada.
O campo estava aberto a todas as suposições. Uma fuga?
Era a opinião que de momento a momento mais se radicava no espírito de Manzin.
Mas com quem?... Ou para se reunir a quem?... Quem era o rival preferido ?
E, depois, havia ainda o ténue clarão da lâmpada que todos afirmavam ter visto afundar-se passo a passo nas trevas... E o grito que os terrificara a todos?... Finalmente, o- castelão assegurava que tinha visto nitidamente a noiva desaparecer na boca do poço velho.
O inquérito que, horas depois, o detective fez no castelo, ia lançá-lo, finalmente, numa pista mais definida.
As deduções do «detective»
Muito correcto, demonstrando discreta simpatia, Manzin desculpava-se por ter de incomodar aquelas senhoras, aniquiladas já pelo enorme desgosto produzido pela inacreditável desaparição de Eliana.
-Lamento infinitamente vir perturbar a dor da pobre mãe... Contudo, tinha o máximo empenho em que a senhora de Surtot me desse alguns esclarecimentos.
Esta, não obstante o seu desgosto, acedeu a receber o detective e na melhor vontade se pôs à sua disposição.
Não procurava ele a pista de Eliana? Ah! Podia perguntar-lhe o que achasse conveniente! Ela responderia o melhor que pudesse, na esperança de que tudo quanto dissesse seria talvez um elemento para se poder desvendar o terrível mistério.
-Muito lhe agradeceria se me autorizasse a fazer-lhe certas perguntas... um pouco íntimas, mas que são para mim de extrema importância, asseguro-lhe.
-Pergunte o que quiser! Nada me parecerá indiscreto visto que se trata de encontrar a minha adorada filha.
-nesse caso, minha senhora, em primeiro lugar desejo saber se a menina de Surtot aceitava com alegria os projectos matrimoniais estabelecidos entre ela e o senhor de Croixmare. -Oh! com toda a certeza.
-De quem partiu a ideia do casamento? -O projecto nasceu entre a senhora de Croixmare e minha irmã, a senhora de la Brèche... Por meu lado, ainda que considerasse Eliana muito nova para me deixar, também não me desagradou. E em vista da grande paixão de Rogério, fui eu própria que aconselhei minha filha a casar com ele.
-E... desculpe a insistência, minha senhora, está certa de que sua filha encarava com alegria o seu próximo casamento?
-Oh! meu Deus! Mas com certeza! Sempre me pareceu satisfeita. De resto, era a minha única filha e eu adorava-a. Nunca lhe contrariei as vontades e se a minha Elianazinha não gostasse de Rogério de Croixmare, bastaria que no-lo dissesse para que, tanto eu como minha irmã, tivéssemos imediatamente rejeitado esse casamento.
A fisionomia do detective exprimiu ligeira decepção. As declarações da senhora de Surtot afastavam definitivamente a ideia duma fuga. Restava a dum pretendente despeitado. -Sobre esse ponto estou elucidado - continuou pausadamente - Aparte o senhor de Croixmare, sua filha nunca demonstrou outra inclinação por qualquer rapaz ?
-Oh! Absolutamente nenhuma!
-A senhora de la Brèche não estará melhor informada?
-Interrogue-a, mas não obterá resposta diferente.
-Bem!... Queira, então dizer-me se entre os pretendentes à mão da menina de Surtot houve algum que se mostrasse mais afectado do que os outros com a notícia do seu casamento?
-Quanto a isso é fácil a resposta. Ultimamente nenhum rapaz solicitou a mão de Eliana.
-Nenhum ?
-Ninguém. Vivíamos as três um pouco isoladas e minha filha quase não frequentava a sociedade... com franqueza, nestes últimos tempos não vejo ninguém que a pudesse pretender. -É extraordinário... muito extraordinário! -Oh! Mas o senhor não me poderá dizer em que se baseia para suspeitar da existência dum rival de Rogério?!
com firmeza, o detective replicou.
-Não suspeito coisa alguma, minha senhora... senão que o casamento duma rapariga formosa e rica provoca sempre o despeito de qualquer apaixonado ignorado... não tenho qualquer indício e é justamente por isso que as suas afirmativas me surpreendem. Peço-lhe ainda que reflicta e se as minhas perguntas lhe trouxerem à memória qualquer recordação, ma transmita imediatamente.
-Pode ficar descansado que assim farei.
-E agora, minha senhora, quere ter ainda a bondade de me deixar examinar os aposentos da menina de Surtot? Reconheço quanto o meu pedido é indiscreto e peço-lhe que me perdoe... Contudo, ficaria desolado se me recusasse a licença que solicito.
-Mas não lha recuso, meu caro senhor, ainda que esteja certa de que não encontrará ali qualquer indício. Evidentemente a minha querida Eliana não premeditou a sua fatal descida ao poço maldito.
-E posso examinar o quarto... com toda a liberdade... quere dizer, sem testemunhas?
A senhora de Surtot conteve um movimento de
surpresa.
-Minha irmã vai acompanhá-lo até lá - declarou, contudo, com a mesma afabilidade - Recomendar-lhe-ei para que ninguém o incomode durante o seu exame.
A Manzin apenas restava agradecer à velha fidalga a benevolência com que o acolhera.
O primeiro cuidado do detective ao penetrar no quarto de Eliana, foi perguntar se os aposentos haviam sido limpos, depois do desaparecimento da rapariga.
-Não, senhor, não foram! -afirmou a senhora de La Brèche - Os quartos foram arranjados de manhã e minha sobrinha só os abandonou depois do almoço.
-Portanto, estão tal como a menina de Surtot
os deixou?
-Absolutamente.
Quando a idosa senhora se retirou com toda a discrição, Luiz Manzin começou o seu exame.
Não tentaremos descrever, passo a passo, todos os seus gestos; bastará dizer que pareceu imensamente interessado com os papéis, cartas e cadernos, encerrados numa pequena secretária de xarão com incrustações de marfim e prata, cuja fechadura abriu com a habilidade dum gatuno de profissão.
Levou a indiscrição até revistar o saco de mão da ausente, abandonado descuidadamente em cima da colcha de rendas.
E se não ligou a menor importância ao estojo de toilette e ao dinheiro que continha, em compensação causou-lhe verdadeiro assombro a carteira de João Valmont que a rapariga apanhara junto do poço e que preciosamente guardara na secretária chinesa.
Não teve também a menor relutância em a abrir e ler as cartas e facturas que encontrou. Manzin era, por certo, da opinião de que um hábil detective, todas as indiscrições são permitidas.
-Desta vez - comentava, guardando tudo na algibeira com a maior sem-cerimónia - sempre valeu a pena passar revista ao quarto duma rapariga solteira.
Antes de sair com a sua presa, lançou uma vista de olhos pelo aposento.
O saco de mão, que colocara outra vez onde o encontrara, sugeriu-lhe preciosas deduções.
Eliana de Surtot abandonara o saco e o dinheiro tão descuidadamente, que não alimentava por certo o projecto de deixar furtivamente HouxNoirs... Saíra, portanto, na ideia duma curta ausência.
Por outro lado, por acaso ou em resultado de uma vingança, soubera que Rogério de Croixmare era indigno dela.
A revelação devia ser recente, visto que tanto a mãe como a tia a ignoravam ainda, mas indiscutivelmente Eliana não podia ser uma noiva feliz.
Estas deduções levaram-no a admitir a ideia dum possível suicídio.
-Possível, mas não provável! Não era mais admissível a hipótese duma fuga imprevista... precipitada talvez pelas circunstâncias?
Mas, nesse caso que papel desempenhara em tudo aquilo a carteira de João Valmont? Quem Era? Quais os laços ou relações que mantinha com a rapariga?
Tudo isto eram enigmas que Luiz Manzin se propunha aclarar para o que, com grande alegria sua, tinha encontrado o fio condutor!
Mal saiu do quarto de Eliana encontrou a senhora de la Brèche que o esperava com toda a paciência, mas bastante triste, pois não alimentava a menor esperança no resultado daquela prolongada visita domiciliária.
-Pode informar-me minha senhora, qual a pessoa do seu conhecimento que se chama João de Valmont? - inquiriu imediatamente Luiz Manzin, que gostava de bater o ferro emquanto estava quente.
-É um sobrinho da senhora de Croixmare... mas como nem sequer o conheço, essa senhora poderá informá-lo melhor do que eu.
-É parente de Rogério?
-É o seu primo... e estava convidado para seu garçon d'honeur.
-E a menina de Suturt conhecia-o?
-Oh! Quase nada! Creio que o encontrou em Ostende, há dois anos, mas pouco se lembrava dele... No entanto, se o deseja, a minha amiga pode dar-lhe mais amplas informações acerca do sobrinho.
-E presentemente encontra-se aqui? - insistiu Luiz Manzin que desejava obter o maior número de esclarecimentos possível sobre João de Valmont, antes de falar com a castelã.
-Não, não está em Houx-Noirs - respondeu docilmente a boa senhora - De facto devia encontrar-se aqui ao mesmo tempo que nós, mas desapareceu no dia da nossa chegada.
-Desapareceu?! -bradou o detective com precipitação. Ora essa! E ninguém me falou nesse desaparecimento!
A senhora de la Brèche arrependeu-se de ter falado com tanta leviandade num facto completamente alheio, segundo lhe parecia, ao mistério do poço velho.
-A palavra -excedeu o meu pensamento - balbuciou perturbada - O sobrinho da senhora de Croixmare contentou-se em abandonar Houx-Noirs sem se despedir da tia... E este caso é tão insignificante que estou desolada por ter dado uma falsa informação sobre o parente da minha amiga... absolutamente desolada, pode crer.
Luiz Manzin não insistiu.
Compreendeu que a sua interlocutora se arrependera e que por ela não conseguiria saber mais nada.
Contudo, a hipótese da fuga de Eliana impunha-se-lhe cada vez mais.
-Foi encontrar-se com João de Valmont, não há dúvida!
O detective era positivo. Em quanto toda a gente se obstinava em procurar a chave do enigma no poço velho, estava ele quase persuadido de que a tinha encontrado onde ninguém sequer suspeitava que ela existisse.
E foi esfregando as mãos de contentamento que pediu para ser recebido pela castelã.
-Este terrível drama veio feri-la em plena felicidade, não é verdade, minha senhora? Disseram-me que o casamento de seu filho se devia realizar brevemente e que tudo estava pronto para a festiva cerimónia! - começou logo que se sentou em face dela na pequena saleta para onde o haviam mandado entrar.
A velha fidalga limitou-se a responder.
-Assim é. Meu filho e Eliana deviam casar daqui a quinze dias.
-Queira desculpar a minha brutalidade, mas a minha profissão obriga-me a perguntas directas:
«Os noivos amavam-se?
-Mas... Certamente!
-E o senhor João Valmont também via com prazer esse casamento?
A mãe de Rogério sobressaltou-se.
-Mas não se trata agora de meu sobrinho! balbuciou surpreendida - Nada tem com a desaparição de Eliana.
-Sim, segundo me disseram abandonou há dias Houx-Noirs... bastante precipitadamente... Por causa do casamento, não é verdade?
-Oh! senhor!-protestou indignada a infeliz senhora - Ignoro quem possa ter envolvido o nome de meu sobrinho nos acontecimentos que tanto nos preocupam actualmente. Contudo, posso jurar-lhe que não foi o casamento de Rogério que o obrigou a afastar-se daqui.
-Seria equívoco meu... João Valmont conhecia, por certo, a menina de Surtot... quere dizer-me onde o poderei encontrar agora?
O detective percebera certa hesitação nas respostas da senhora de Croixmare e procurava confundi-la com perguntas feitas um tanto ao acaso.
A castelã, porém procedia com sinceridade e nem sequer pensava em ocultar qualquer coisa a respeito do sobrinho.
Respondeu portanto ao polícia com toda a franqueza:
-Não, não lhe posso dizer qual a residência actual de João. Ainda não recebi notícias dele.
-E não lhe parece estranho o facto, minha senhora?
-Sim... um pouco...
Hesitou, sem reparar no olhar penetrante em que o seu interlocutor a envolvia.
-Caro senhor -disse por fim -estou muito inquieta e vou dizer-lhe porquê.
Aquele rapagão de feições enérgicas inspirava-lhe confiança. E era para ela um grande alívio confiar a alguém o motivo da partida de João, principalmente agora que a queriam relacionar com o desaparecimento de Eliana.
-Pode falar sem receio, minha senhora. Escuto-a - convidou delicadamente Manzin.
-Pois bem! O caso é este: há quinze dias, talvez, recebemos a visita de meu sobrinho, belo rapaz, não muito ajuizado, mas a quem eu muito quero... Devia ficar connosco até ao casamento para acompanhar o primo nesse dia. -E não ficou?
-Infelizmente não. Na própria noite da sua chegada, uma simples questão de dinheiro fez com que se zangassem ele e meu filho... Aquele pobre João é por vezes generoso até à prodigalidade... O meu Rogério é mais sensato... e receio que tivesse sido até um pouco áspero com o primo... Em conclusão, nessa mesma noite João foi-se embora...
-Sem se despedir de si?
-Nem de mim, nem de ninguém - respondeu tristemente - nem sequer chegou a entrar no quarto que lhe mandei preparar no pavilhão!
-No pavilhão! Que é isso?
-Uma casita rústica, construída na extremidade do parque...
Pela janela aberta, a senhora de Croixmare apontava na direcção do sombrio pinhal que rodeava o poço velho.
-É ali? - indagou Manzin.
-Justamente. Perto do poço velho. Se quiser visitar o pavilhão, pode tomar pela avenida que atravessa o pinhal.
-Muito lhe agradeço, minha senhora.
Depois acrescentou:
-Ainda uma pergunta. Desde que saiu daqui, seu sobrinho escreveu-lhe... explicando o motivo da sua súbita partida?
O rosto da senhora de Croixmare tomou dolorosa expressão.
-Ah! é isso que mais me apoquenta. João não escreveu nem ninguém mais o viu.
-Ah! sim?
-Querendo reparar a atitude talvez... demasiado severa de meu filho, eu própria escrevi ao pobre rapaz...
-E não lhe respondeu?
-Não. A carta, que era registada... tinha-lhe metido dentro algumas notas de Banco... foi-me devolvida... Olhe - acrescentou, abrindo uma secretária antiga - Aqui a tem.
Luiz Manzin agarrou a carta que a castelã lhe estendia e apressou-se a tomar nota da morada de João.
Depois, voltou o envelope e leu a observação do correio:
«Devolvida ao remetente. O destinatário ausentou-se de sua casa desde 15 do corrente.»
-Nesse caso-continou despreocupado, como se não ligasse a menor importância a todos aqueles factos - seu sobrinho provavelmente irritado com a recusa do primo, abandonou Houx-Noirs em plena noite?
-Parece que sim.
-E quem foi a última pessoa que o viu?
-Meu filho. Separaram-se à uma hora da noite.
-Ah! foi o senhor de Croixmare? Muito bem... E ele pôde precisar a hora da partida do primo?
-Pôde... quere dizer, João deixou Rogério para se dirigir ao pavilhão... mas preferiu partir e nem sequer lá entrou.
-Ah! sim, sim.
Para quem conhecesse o polícia aquele «Ah! sim, sim», pronunciado como que distraidamente, era indício de uma descoberta sensacional.
Nunca Manzin afectava tanta indiferença como quando obtinha uma informação preciosa. Além disso, nessas ocasiões evitava olhar de frente o benévolo informador; receava, talvez, que este visse brilhar-lhe nas pupilas a alegria do galgo que encontra o rasto da caça.
Depois de se ter despedido da castelã, o detective tomou imediatamente o caminho do pavilhão.
Não o acompanharemos nesta visita. Diremos apenas que não encontrou ali novos indícios: a cama continuava preparada e os jarros da casa de banho, contígua ao quarto, estavam ainda cheios de água.
Outro assunto de importância solicitava o polícia.
Ia fazer-se a reconstituição do drama e todas as testemunhas tinham de assistir.
Agora que as paredes internas do poço se encontravam livres de toda a vegetação que as obstruía, proceder-se-ia à experiência da queda, para tentar reconstituir as circunstâncias, primeiro com a espingarda e depois com um saco cheio de areia e com o peso aproximado dum corpo humano.
A espingarda foi atirada, ou antes, colocaram
Morvan na mesma posição em que se encontrava quando a arma lhe tinha caído do ombro.
A espingarda caiu... a direito sem esbarrar com os obstáculos que a poderiam ter feito desviar do canteiro. O detective não calculara bem o importante papel desempenhado pela vegetação e assim, foram encontrá-la enterrada um pouco obliquamente na terra solta.
O saco, lembrando vagamente o vulto de Eliana, foi por sua vez atirado e não encontrando, como a espingarda, qualquer obstáculo, foi achatar-se de encontro ao fundo do poço.
Manzin que, como era natural, assistia à dupla experiência, não tirou dela qualquer conclusão. Indiscutivelmente o resultado desta fora negativo.
Havia sido chamado um arquitecto para examinar as paredes do poço e dar a sua opinião.
Depois da inútil reconstituição, pediram-lhe para proceder às sondagens.
Estas apenas tiveram como resultado indicar a espessura da camada de terra recentemente lançada.
Tinha pouco mais da altura dum homem. Quanto às paredes, pareciam de alto a baixo completamente normais.
Luiz Manzin reflectiu demoradamente.
De repente, dirigindo-se a Rogério, decidiu:
-Senhor de Croixmare, é preciso mandar tirar toda esta terra.
Rogério involuntariamente sobressaltou-se.
-Qual terra?
- A que ultimamente deitaram para o poço.
-Mas é impossível... impossível...
Parecia aborrecido em extremo com as exigências do polícia.
Este não se desconcertou por tão pouco. Voltando-se para o arquitecto, inquiriu:
-Qual é a sua opinião?
Falara em tom tão arrogante, que o outro se apressou a concordar com ele.
-Vai ser um trabalho difícil e demorado, mas não impossível... E se o senhor de Croixmare puser à nossa disposição os homens suficientes, poderá estar pronto antes de anoitecer.
Rogério objectou ainda:
-Mas... que necessidade...
Então Luiz de Manzin, muito calmo, atalhou, explicando:
-É possível que no decorrer dos anos tivessem atirado para o poço bocados de ferro, troncos secos, que formando uma espécie de barragem, retivessem a terra recentemente lançada. Nesse caso, entre esta e o fundo deve existir um espaço oco.
-Uma hipótese muito admissível - aprovou o arquitecto que achava a explicação um tanto forçada, mas que ficara encantado por ter mais um pretexto, vigiando o trabalho de desaterro, para pedir exorbitantes honorários.
-Não sou dessa opinião - ripostou Croixmare, que antipatizava, de verdade, com o homenzinho a terra foi tão pisada, que se tivesse de abater já teria abatido.
-No entanto - suscitou Manzin - tenho por dever não desprezar coisa alguma. A espingarda muito pesada, ao cair verticalmente mergulhou talvez na terra solta, e o corpo da desaparecida, ao cair de menor altura... ou rolando de degrau em degrau, pode ser que provocasse o desabamento da terra friável.
-Quem sabe se o corpo dessa menina - lembrou o arquitecto. está sepultado debaixo de toda aquela avalanche. -Oh!
Rogério soltou abafada e horrorizada exclamação.
As palavras daquele homem correcto e indiferente evocavam-lhe pavorosa visão: Eliana, a noiva adorada, tão misteriosamente desaparecida... sepultada debaixo da pesada massa de terra!
O rosto lívido, o olhar alucinado, reconhecendo a sua impotência para dirigir os acontecimentos, o juvenil castelão, encostou-se a uma árvore, sem pronunciar palavra. E, em quanto durou o trabalho de desaterro que se prolongou por algumas horas, assim se conservou, imóvel e completamente indiferente a tudo...
Trabalho formidável... e inútil!
No fundo, debaixo da terra nada encontraram também... nada, a não ser um chapéu!
Um chapéu de homem, um pouco manchado de lama, mas em bom estado e indicando que caira ali havia pouco tempo.
Luiz Manzin esperava com certeza outra coisa, mas não deixou perceber a sua decepção. Agarrou o chapéu e examinou-o com atenção.
Na delgada tira de cabedal que o guarnecia interiormente viam-se duas iniciais:
«J. V.»
Imediatamente deduziu:
-J. V.... João Valmont! Sempre este nome a aparecer-nos a todo o momento!
Mas que significava aquele chapéu no fundo do poço?
-Não está lá mais nada? Têm a certeza?
Por sua vez, desceu e sondou minuciosamente a terra, agora úmida e barrenta.
-Só o chapéu - repetia - E porque não um fato, uma mala ou... ou... outra qualquer coisa sei lá! Um chapéu não tem importância alguma.
Contudo, este chapéu mais uma vez o levou a pensar em João Valmont.
Quando tornou a subir, tomara já uma decisão, tanto mais que a atitude do castelão lhe pareceu, suspeita.
Dir-se-ia que este esperava que tirassem do poço outra coisa que não fosse um chapéu. E agora parecia completamente aniquilado.
E por três vezes, mesmo, não chegara ele a divagar... aludindo à sinistra fama do poço?
-Maldição! Não encontraram nada... nada! O fundo do poço está enfeitiçado!... A desgraça paira sobre nós!
E, prostrados por esta nova decepção, porque naturalmente, acabara por acreditar que o corpo da noiva ficara soterrado, partiu em direcção ao castelo, correndo como louco.
Manzin pouco mais podia fazer em Houx-Noirs. O polícia estava convencido de que antes de prosseguir as investigações, precisava primeiro do que tudo encontrar João Valmont... o outro misterioso desaparecido.
Só romance e mais nada
O mistério que envolvia o desaparecimento de Eliana parecia adensar-se cada vez mais.
Havia quatro dias que o desastre se dera e nenhum indício, por pequeno que fosse, viera aclarar o perturbador mistério do velho poço.
Mais do que nunca, como era natural, se multiplicavam as tagarelices e, perante a impotência da justiça, mais firme se tornava a crença nos espíritos e em diabólicos sortilégios.
O próprio castelão parecia partilhar agora das sinistras superstições dos criados. Evitava passar junto do poço... esse poço trágico que tragava armas e seres para não mais os restituir!
Mas muitas vezes o viam contemplando de longe, e como uma espécie de terror, o escuro pinhal.
-A lenda era verdadeira: O poço estava amaldiçoado! Lá dentro existia um espírito malfazejo que, como vampiro, atraía as pessoas, fazendo-as desaparecer!
E tentar aprofundar o caso era para endoidecer.
Rogério Croixmare sentia vacilar-lhe a razão. Às vezes tinha a impressão de que seria ele a nova vítima do poço maldito: a alma do traidor atraía a de outros traidores e as vítimas reclamavam vingança.
Apenas o detective julgava ter encontrado a chave do enigma. Pelo menos assim o afirmava a um jornalista que lhe pedira elementos para um artigo de sensação.
-Tudo concorda - explicava ele - para me provar que coisa alguma se passou conforme o que aquela boa gente fantasia.
A espingarda? Roubada durante a hora do almoço, emquanto o poço ficara sem vigilância.
A desaparecida? Partira... e eclipsara-se, durante o curto momento em que, comovidos, assustados e profundamente perturbados, todos rodeavam o guarda aturdido.
A rapariguita soubera aproveitar, com admirável presença de espírito, a desorientação dos outros.
Partira, sim! E para se encontrar com quem?
com João de Valmont, não restavam dúvidas!
O interessante priminho... o rival de Rogério!... O simpático priminho misteriosamente desaparecido também!
Aquela gente de campo era na verdade muito romântica com as suas lendas e almas do outro mundo!
Valmont, contudo, falhara o golpe... pelo menos em parte.
No entanto, o mistéríozinho tinha sido bem delineado... porque o chapéu... o famoso chapéu encontrado no fundo do poço não teria sido colocado em cima do muro para chamar a atenção?... ou pelo menos, para fazer acreditar num desaparecimento?
Um pouco de vento, porém, inutilizara o cenário já preparado...
Ligeira aragem com que Valmont não contara e o chapéu caíra no negro buraco.
Ah! Deixar aquela pobre gente acreditar em espíritos! E até no diabo e em todas as suas diabruras! Mas ele, Manzin, não se deixava embalar com tais cantigas! O seu raciocínio claro e seguro dera-lhe a dedução lógica, a percepção nítida dos acontecimentos. Empregara, para isso, processos concretos, clássicos e metódicos.
Era assim mesmo!
Ainda nessa própria manhã interrogara Croixmare e entre outras coisas perguntara:
-No seu projectado casamento qual dos dois trazia a riqueza ao casal?
-Mas, ambos! - havia respondido o castelão A fortuna da minha noiva e a minha, são pouco mais ou menos equivalentes!
Portanto, era evidente que um rival pobre poderia ter duplo interesse em impedir o casamento!
Justamente, Valmont era pobre e lutava com dificuldades.
Assim a lógica mais elementar designava-o, aos olhos do policia, como o culpado! Junto dos noivos, ambos ricos, era ele o único que não tinha vintém e estava reduzido à última miséria.
-Conclui, então?
Todas estas explicações haviam sido dadas por Luiz Manzin, ao jornalista, que, entusiasmado, tomava apontamentos.
-Em todos os meus trabalhos - concluía o detective - procedo sempre com método e por assim dizer cientificamente. Portanto, telefonei para Paris ordenando que vigiassem a residência de João Valmont. Eu próprio me vou pôr no seu encalço.
Porque, fique o senhor sabendo, estou certo, absolutamente certo de que onde encontrar o priminho, encontrarei também a noiva...
-As suas deduções são simplesmente maravilhosas.
-Método. meu amigo! Mais nada... Até hoje tenho empregado sempre o método, e para o futuro farei o mesmo. Os resultados têm sido sempre assombrosos!
Antes de abandonar House-Noirs, o excelente rapaz teve para todos uma palavra de esperança.
-Havemos de descobrir o mistério do poço velho - assegurou a Croixmare - tudo se há-de esclarecer e afirmo-lhe que as malditas ruínas terão de nos devolver tudo quanto nos roubaram!
Esta promessa produziu em Rogério inesperado resultado. De punhos erguidos, ameaçou o velho poço, como se este fosse um homem e como se, esmagando-o, pudesse mais depressa arrancar-lhe o segredo!
com a senhora de Croixmare foi mais misterioso.
-Confiança, minha senhora, tenha confiança! Preparo-lhe assombrosa surpresa.
De facto, nunca a mãe de Rogério poderia supor que o sobrinho raptara Eliana! E se Luiz Manzin lho provasse, seria para ela, evidentemente, uma surpresa assombrosa.
com a senhora de la Brèche, que apesar de baixinha costumava olhar as pessoas por cima do ombro, Manzin foi sonso e melífluo.
-A senhora habita, segundo creio, uma linda propriedade, no Delfinado... É um sítio saudável e... bastante afastado do poço velho. Talvez lhe dê o conselho de se afastar o mais depressa possível de Houx-Noirs; estes sítios não são recomendáveis para quem, como a senhora, acaba de ter tão fortes emoções.
-Não me afastarei daqui em quanto minha sobrinha não aparecer.
-Nesse caso, melhor seria, desde já, consagrar-se à felicidade do senhor de Croixmare, que me parece bastante comprometida.
-Que quere o senhor dizer? - bradou a solteirona indignada porque atribuía às palavras do detective um segundo sentido um tanto injurioso para ela.
Este tornou-se ainda mais atencioso. Inclinando-se para ela, confidenciou-lhe:
-Adquiri a certeza de que os espíritos do poço velho se opõem ao casamento de sua sobrinha... e, portanto, se conta que regresse a Houx-Noirs, tem muito que esperar, compreende? ...
E, saudando cerimoniosamente a tia de Eliana, Manzin afastou-se para ir ter com a senhora de Surtot.
-Venho despedir-me, minha senhora. Vou deixar a região.
-pois quê! renuncia a encontrar minha filha?
-Pelo contrário, julgo seguir uma boa pista. Tudo estará esclarecido em breve.
-Oh! meu Deus! Posso, então, esperar ainda?
-Farei o impossível, fique certa. Contudo, preciso que me auxilie.
-Oh! disponha de mim... de toda a minha fortuna...
-Pelo amor de Deus, minha senhora! Não se trata agora de dinheiro! Apenas julgo conveniente que regresse à sua casa de Paris... Depois de tanto barulho feito à volta deste caso, se a menina de Sutort voltar, preferirá com certeza, não tornar a ver Rogério de Croixmare... e será decerto na sua casa em Paris que se refugiará de preferência.
A senhora de Surtot ia a abrir a boca para protestar, mas Manzin não lhe deu tempo a fazê-lo.
-De resto, se o meu raciocínio for errado e a menina de Surtot regressar a Houx-Noirs, quando já se tiver retirado, cá estará a senhora de Croixmare para a acolher.
Esta última observação de Manzin, mais do que todas as outras, acabou por decidir a infeliz mãe, verdadeiramente aturdida com as insinuações do polícia.
Não era já a senhora de Croixmare como que a segunda mãe de Eliana? E, de facto, sua filha tanto podia regressar a Houx-Noirs como a Paris.
Nessa mesma tarde, o polícia tomou o comboio para a capital, em quanto as duas senhoras, não obstante o seu desgosto, submissamente lhe seguiam os conselhos, fazendo as malas e dispondo-se a despedirem-se dos senhores de Croixmare, tão desolados por as verem partir como elas próprias por os terem de deixar em tão dolorosas circunstâncias.
No dia seguinte partiram de madrugada, tomando cada uma a direcção indicada pelo astuto sabujo parisiense.
O mais conveniente era obedecer, não é assim? Mesmo sem compreender! Não tinha aquele homem anunciado o regresso de Eliana? Para aquela, mãe e tia, tão experimentadas pela dor, era isso o principal!
Mas o que ainda mais as admirou foi a precisão com que os jornais, nos dias seguintes, falavam do seu regresso a Paris e ao Delfinado.
Não havia um único dos grandes cuotidianos que não desse a notícia! Como teriam descoberto a partida das duas senhoras?
E, como tanto a mãe como a tia de Eliana eram senhoras educadas, afligiram-se bastante com tanto barulho feito em volta dos seus nomes! E foi muito sinceramente que lamentaram aqueles excessos de publicidade.
Todavia, se tivessem podido ver Luiz Manzin esfregando as mãos de contente, ao ler os jornais que assim, indicavam a sua actual residência, teriam tido a explicação do enigma:
-Agora - pensava o detective, satisfeito - é só esperar que João Valmont reconduza Eliana de Surtot... para Paris ou para o Delfinado, mas não, com certeza, para Houx-Noirs!
Quanto ao casamento de Croixmare, o polícia tinha a convicção de que fora adiado para as calendas gregas!
E quem, poderia afirmar que não tinha razão?
Nas trevas
Eliana de Surtot ouvira com atenção Morvan, que, não tendo encontrado a espingarda no fundo do poço, dava explicações, bastante confuso e apavorado.
A rapariga, conquanto as lendas a entusiasmassem, não era supersticiosa.
O tio Estêvão, com todas as suas histórias, não conseguira fazê-la acreditar nos ataques dos espíritos nem em vinganças de almas do outro mundo; levava o desaparecimento da espingarda para o campo imaginativo. Toda aquela gente, ávida de sobrenatural, acabava por se sugestionar a si própria.
E agora o noivo parecia compartilhar as suas crenças! Dava ordem para prosseguir o aterro sem mais se importar com a arma!
Não se compreendia um disparate assim!
A escada ainda estava colocada e podia portanto tentar-se, sem complicações, novas e mais minuciosas buscas no fundo do poço. Porque motivo não as ordenava Rogério?
Instintivamente qualquer coisa nela se revoltava contra a atitude do castelão.
No seu subconsciente crescia a necessidade impulsiva de saber o que ocultava o misterioso poço, causa inicial de tantas lendas e do inconfessado terror de Croixmare, que o fazia nivelar como se desejasse enterrar para sempre um segredo.
Todas estas sensações, mais instintivas do que raciocinadas, provocaram nela um gesto irreflectido e impulsivo.
Agarrou na lâmpada eléctrica do guarda e, corajosamente, sem medir o perigo que podia correr aventurando-se assim entre as negras paredes do misterioso poço, franqueou o muro e começou a descer a escada.
Ouviu a angustiada exclamação de Rogério, mas não respondeu. Naquela altura experimentava certo desprezo pelo timorato noivo que tanto se deixava impressionar pela lenda do poço velho.
Desceu tranquilamente parte da escada... De passagem as mãos agarraram os primeiros ramos dum arbusto meio seco que brotava entre as pedras... De súbito bateu com as costas na parede.
E então foi uma sensação estranha... incompreensível... como que uma vertigem que a puxasse para trás, para um abismo escancarado, onde caiu e se perdeu.
E depois... mais nada!
Um choque na cabeça e pancadas dolorosas por todo o corpo...
E trevas...
E em parte pela dor, em parte pela comoção, Eliana desmaiou.
Quando recuperou os sentidos, sentiu-se perfeitamente lúcida e reparou que estava deitada no chão... um solo macio, quase húmido.
Doíam-lhe as costas.
Em volta dela tudo era escuridão.
Tentou levantar-se apesar de sentir uma dor surda na cabeça e nos rins. Os membros um pouco entorpecidos, magoados... obedeciam-lhe, contudo. Em fim, não tinha nada partido, era o essencial.
Calculou que não devia ter caído de muito alto, visto não estar ferida.
Mas onde se encontrava?
Ansiosamente, ergueu os olhos. Porque não avistava lá em cima o orifício luminoso do poço? Porque não via lá no alto o retalhozinho de céu?
-Rogério!
A voz soou abafada... como debaixo duma abóbada.
Chamou mais uma vez... depois outra e outra. Não obteve resposta.
Custava-lhe a respirar naquela atmosfera carregada e sentia o ar rarear.
Eliana, um pouco inquieta, estendeu os braços tentando encontrar a parede curva do poço, mas com grande espanto seu, só achou o vácuo.
-Onde estou eu? - perguntou de novo.
Junto dela não achou vestígios da escada. Contudo devia ter caído dos últimos degraus!...
Para melhor compreender o que lhe sucedia, procurou recuperar a calma e reflectir.
Empregou toda a sua energia para o conseguir.
Lembrava-se agora de que caíra contra a parede um pouco de lado.
Por conseguinte, devia naquela ocasião estar estendida, justamente no ponto onde a escada tocava o chão.
À força de tactear em roda, Eliana encontrou qualquer objecto debaixo das mãos... um objecto duro e comprido!
Seria um bocado da escada, que tivesse quebrado?
Não! Era de metal... Era... Oh! Eliana com os dedos finos logo reconheceu o que era. -A espingarda... a espingarda do guarda. E este achado quase lhe deu alegria... A descoberta justificava a sua lógica.
-Aí está! Eu bem sabia que não existia nada de sobrenatural nesta desaparição... Bastava procurar para encontrar a arma.
E Eliana propunha-se rir um pouco à custa de Morvan e dos outros... até mesmo de Rogério. -O grande medroso!
Mas para isso precisava primeiro sair dali. No meio de toda aquela escuridão não conseguira descobrir ainda onde tinha caído.
Caso para admirar numa natureza tão sensível como a daquela rapariga que pouco mais era do que uma garota, não experimentava o que se chama medo.
Nem sequer se lembrara ainda das ratazanas e aranhas que deviam abundar em volta dela.
Pensava de si para si que durante as inúmeras excursões às montanhas muitas vezes se vira a braços com piores dificuldades e sempre as resolvera.
Agora tinha apenas um objectivo: caíra num
buraco, precisava sair dele.
De repente lembrou-se de que antes de cair tinha na mão a lâmpada eléctrica.
Se na queda a conservara, devia estar próxima.
Às apalpadelas, começou a procurá-la. As mãos encontravam uma areia fina, que não chegava a ser úmida mas que conservava aquela frescura peculiar aos subterrâneos e caves onde nunca penetra o ar.
Eliana tacteava o solo em volta, com certa hesitação mas com método. À medida que avançava, mais se admirava de não encontrar as paredes do poço. Finalmente, um pouco afastada do ponto onde caíra, encontrou o pequeno objecto pesado e duro: a lâmpada eléctrica de algibeira... uma bela lâmpada complicada, que era o orgulho do guarda e que tinha luz para quarenta e oito horas!
Mas em que estado estaria aquela maravilha?
Somente apagada, ou quebrada também?
Febrilmente accionou a mola.
-Oh! felicidade! A lâmpada acendia ainda!
Acabara o pesadelo da terrível escuridão! Fosse qual fosse a desoladora realidade que a seus olhos se ia patentear, tudo era preferível às pesadas trevas... ao desconhecido!
A rapariga levantou-se. Curiosamente, passeava em redor o foco luminoso, fraco, mas nítido.
Mistério incompreensível! Não estava no fundo do poço!
O recinto tinha a forma circular, era amplo e abobadado. As paredes, completamente nuas, eram formadas por grandes pedras que durante séculos, talvez, haviam sido corroídas pelo salitre. A areia fresca do solo, a argamassa das paredes ressumando umidade e, principalmente, a atmosfera pesada, saturada e sufocante, indicavam que o local era subterrâneo e a grande profundidade da terra.
Mas como fora ela ter ali?
No ponto onde supunha ter caído, a parede era formada por grandes lajes unidas e contínuas.
Eliana não passara com certeza através das pesadas pedras... Calculou que uma delas devia levantar-se... Mas foi em vão que tentou movê-las!
E, contudo, não era possível outra explicação: com a queda, uma das pedras devia ter-se afastado ; depois, arrastada pelo próprio peso, voltara ao seu lugar e fechara automaticamente.
Para tornar a abri-la, seria por conseguinte, necessário carregar exactamente no ponto que poria em acção o mecanismo.
Precisava descobrir esse ponto, mas, pobre dela, o segredo recusava-se!
Em vão Eliana percorreu a parede palmo a palmo, carregando com toda a força com os deditos delicados, mas coisa alguma se movia.
A destemida criança continuava entaipada naquela prisão e começava a recear seriamente os resultados da sua temeridade.
Que deveria fazer?
Permanecer ali à espera? Esperar, seria talvez a salvação que chegaria, mas ao mesmo tempo, contar demasiado com o auxilio dos outros seria arriscar-se a morrer de fome ou asfixiada porque Eliana não esquecia o terror que o poço velho inspirava a toda a gente.
-Procederão eles com rapidez e eficácia?
Eliana era corajosa e enérgica.
Pensou que, antes de se submeter a uma passividade enervante e deixar aos outros o cuidado de a tirarem dali, deveria procurar sair sozinha daquela terrível situação.
-Oh! sim! Tudo era preferível, a esperar!
Tinha de procurar uma saída... Fosse como fosse, o subterrâneo deveria forçosamente desembocar em qualquer ponto que era preciso encontrar!
Para começar, Eliana decidiu examinar a parede, pedra por pedra, fenda por fenda... Estava ali. sem dúvida, a saída mais próxima.
O segundo exame não deu melhor resultado do que o primeiro... Nem mola nem mecanismo oculto!
Se alguma daquelas pedras era móvel, dando passagem para o poço velho, o segredo estava bem guardado: as paredes lisas não ofereciam o menor vislumbre de esperança.
Felizmente, a rapariga dispunha de calma suficiente para poder dominar os nervos.
-Nada de desesperar nem de perder o sangue frio - pensou com coragem - Tenho de sair daqui.
Deu então uma volta completa àquela espécie de rotunda subterrânea, encostada às paredes salitrosas, guiando os passos hesitantes pelo ténue clarão da lâmpada.
Cortadas pelo delgado feixe de luz, as trevas diluíam-se, mas só avistava as paredes duma nudez brutal.
Sem desfalecimentos, mas um pouco angustiada, avançava sempre.
-Ah!... atrás daquela espécie de coluna... naquele canto escuro?
Ansiosa, projectou para ali o foco luminoso. A claridade não esbarrou na parede e engolfou-se num orifício largo e escuro.
Rapidamente, passeou a luz à esquerda e à direita; era bem a entrada de uma galeria, a saída tão procurada, provavelmente!
Onde iria ter?... Encaminhá-la-ia para a liberdade ou para um novo perigo?
Que importava! Era o único caminho da salvação, visto que em volta dela se via a muralha fria.
E Eliana, corajosa, precipitou-se para o terrível desconhecido.
Contudo, como a coragem não exclui a prudência, a rapariga pensou de repente que não tinha consigo uma arma... Pouco antes reparara que a espingarda do guarda estava carregada. Se fosse preciso poderia servir-se dela.
Não podia desprezar tal auxiliar. Retrocedeu para o ponto onde caíra e onde a abandonara. Apanhou-a e, moderna e frágil Diana, a pesada arma numa das mãos, a luz vacilante na outra, penetrou na galeria.
Avançou a direito!... Sempre a direito.
A lâmpada iluminava para um lado e para outro as muralhas paralelas, pesadas, espessas, construídas de pedras denegridas, semelhantes às da sala redonda que acabara de abandonar.
As duas paredes reuniam-se por cima da sua cabeça numa abóbada baixa, na qual não se via a mais pequena abertura, porta ou escavação... Corajosamente, avançou, pisando uma areia macia e solta, e respirando uma atmosfera pesada e bafienta.
Avançou.
E na areia, pouco a pouco os passos tornavam-se pesados, arrastavam.
E, na parede nua, o clarão da lâmpada vacilava e extinguia-se... à frente escuridão, na retaguarda escuridão!
Contudo, continuava a andar... pobre pequenino ser, perdido nas profundidades da terra!
Continuou a andar maquinalmente, infatigavelmente, durante horas...
Dramática situação
Em França, não são raros estes subterrâneos, escavados nos tempos belicosos da Idade Média, ou mesmo nas eras mais remotas da ocupação romana. Destinavam-se, em caso de cerco, a iludir a vigilância do inimigo, para recepção de reforços para reabastecimento, e prolongavam-se às vezes por léguas e léguas de comprido.
Há notícia dalguns com o comprimento de quinze ou vinte quilómetros, os quais, partindo de qualquer majestoso castelo, terminavam num ponto completamente deserto, charneca ou floresta, mas sempre muito distanciado da habitação.
Na Touraine encontram-se ainda vestígios de vias subterrâneas, romanas, com muitos quilómetros de comprimento. São uma espécie de estradas orladas de pedras cravadas na terra, e que não deixam a mais pequena dúvida sobre a época da sua construção.
Eliana calculou encontrar-se numa dessas intermináveis galerias dos tempos passados.
E, assim, aquela marcha sem interrupção, sem descanso, aquela marcha para alcançar um alvo que de momento a momento parecia recuar e afastar-se cada vez mais, tornava-se desmoralizadora, extenuante.
A rapariga havia já perdido a noção do tempo. Há quantas horas caminhava assim? A julgar pelo seu cansaço devia ser há muito tempo.
Agora avançava com dificuldade. A respiração naquela atmosfera pesada, úmida, tornava-se cada vez mais difícil.
O braço entorpecido pelo peso da espingarda, deixava já às vezes, a coronha arrastar pelo chão. E, então, nessas ocasiões ouvia-se um ruído que o eco daquelas abóbadas multiplicava e a gelava de terror.
A fadiga física conseguiria por fim vencer a sua bela coragem?
Sentia a cabeça pesada, um martelar doloroso nas fontes. Prostração, fraqueza ou congestão pela falta de ar, a infeliz criança perguntava a si própria com inquietação se não iria cair antes de atingir o seu fito.
Contudo, continuava sempre a avançar; mas agora com maior lentidão, passo a passo, os pés arrastando no solo irregular, e tropeçando nas mais pequenas pedras.
Por certo que caminhava assim havia muitas horas, porque à fadiga vieram juntar-se a sede e a fome.
-Vamos, coragem! - repetia numa voz sem timbre... É preciso que saia deste medonho subterrâneo. É preciso...
A vontade, porém, nem sempre basta para manter a resistência física. Invadia-a fundo torpor e prolongados calafrios lhe percorriam o corpo exausto.
-Será sono? Febre? - inquietava-se Eliana. Se caio estou perdida!
E este temor dava-lhe novas energias e fazia-a percorrer mais uns metros, num passo de sonâmbula, automático, fatigado.
Mas eis que de súbito, diante dela, as paredes, no âmbito do delgado feixe de luz, tornaram-se avermelhadas. Pouco a pouco tudo escureceu. As trevas cresciam e negro manto a envolveu e sufocou. Era a lâmpada que agonizava e em breve se extinguiu.
Aterrada, a desgraçada parou. Sentia-se tão cansada, que lhe parecia que para ela também o fim se aproximava.
Por momentos afagou a ideia de se deixar cair no chão e esperar, inconsciente, a morte que não tardaria a chegar.
O que a manteve de pé, em tal momento de depressão moral, foi talvez o pensamento da bicharia que devia pulular naquele comprido túnel.
Agora a falta de luz aniquilara toda a sua esplêndida coragem desportiva.
Não era mais do que uma fraca mulher, presa de irreflectidos terrores. Tinha medo de toda aquela escuridão, dos obstáculos com que iria esbarrar, dos invisíveis inimigos que podiam ameaçá-la.
Quantos animais repugnantes se abrigariam naquelas paredes?
Quantas aranhas, nojentas, viscosas e peludas, estenderiam as teias por cima da sua cabeça? E sob a acção destes loucos terrores, pôs-se de novo a caminho, não obstante a tremura que a agitava, a sede que lhe escaldava a garganta e aquele peso enorme que parecia querer esmagar-lhe a cabeça.
Para andar encostava-se à espingarda cuja coronha arrastava, batendo nas pedras. Mas a arma era pesada demais para a delicada mão que a aferrava com frenesi.
Um ruído abafado, metálico, ecoou pela galeria.
Era Eliana que a deixava cair.
E daí em diante, sem apoio, exausta pela fadiga, pelo pavor e por tantas emoções, a noiva de Rogério de Croixmare não foi mais do que um pobre ser inconsciente que se arrasta... que percorre alguns metros... dá uns passos... e depois cai inanimada.
Desmaiada ou adormecida, quanto tempo se conservou assim a infeliz criança?
Ninguém pode medir a multiplicidade dos minutos que se sucedem num silêncio absoluto e em plena escuridão.
Quando recuperou a noção da vida sentiu-se primeiro enlouquecida com todo aquele negrume que a esmagava. Depois, pouco a pouco, a consciência da sua horrível situação voltou a erguer-se diante dela.
-Perdida debaixo da terra!
Todavia, a fraqueza que a prostrara obrigara-a ao mesmo tempo a um repouso que lhe era necessário e que insuflou no espírito um pouco de energia.
Aos vinte anos o sono é um grande reparador.
Eliana, apesar do seu terror e perturbação, sentia-se mais forte e renascera nela o desejo violento de sair do apertado túnel.
-É preciso avançar! Ensaiemos uma última tentativa ! - murmurava de dentes cerrados pelo esforço da vontade.
Decorreu mais um tempo que lhe pareceu interminável, naquela medonha escuridão. Avançava lentamente. Toda a sua energia, toda a sua vitalidade se concentrava no olhar ansioso que se esforçava por penetrar as trevas.
E eis que de súbito se lhe afigurou ver vago clarão que se acentuava à medida que avançava a custo.
Vinte metros adiante a claridade tornou-se mais nítida; depois daquela noite terrível essa luz aparecia-lhe como uma aurora de esperança.
Ao mesmo tempo, a atmosfera refrescava eliana respirava melhor com delícia, sentia entrar-lhe nos pulmões um ar mais puro.
Um grande impulso de coragem fê-la levantar e precipitar cheia de esperança e alegria.
Cambaleando, percorreu o espaço que a separava da abertura luminosa.
A certeza da libertação conservava-lhe as últimas forças. Estava salva! Voltava em fim a ver o céu!
A abertura, um buraco irregular entre pedregulhos, era apertada e quase totalmente obstruída por arbustos e plantas bravas.
Para alcançar a liberdade, Eliana teve de franquear a saída rastejando entre silvas e espinhos que lhe rasgavam as carnes.
Mas, finalmente, estava cá fora, via sobre a sua cabeça brilhar um céu cor de safira e sentia-se envolta no doce calor do sol luminoso. Libertara-se, em fim, das trevas horríveis, do comprido desfiladeiro que se prolongava pelas profundezas da terra!
Em volta dela, estendia-se a charneca. Até onde a vista podia alcançar, os juncos, alguns mais altos do que ela, cobriam o terreno formando uma espécie de floresta espinhosa.
apetecia-lhe pular, cantar, correr... De facto estava ébria, sim, mais de fadiga, de fraqueza e de inanição!
O ar puro que lhe vivificava os pulmões atordoava-a como uma bebida fortemente alcoolizada e pareceu-lhe que tudo girava em volta dela.
Sentindo-se vacilar, quis agarrar-se a um tufo de giestas que vergou com o seu peso. Inconsciente do perigo que corria no seio daquela natureza inculta, caiu num emaranhado de silvas onde o seu corpo desapareceu, ensanguentando-se nos espinhos.
Em plena charneca bretã, prisioneira daquela vegetação exuberante, selvagem e inacessível que a encobria e ocultava, Eliana, a noiva querida de Rogério de Croixmare, desfalecida, inanimada, não corria menor perigo do que no tenebroso subterrâneo.
Afastada de qualquer aldeia, de estrada ou atalho percorrido com frequência, prisioneira num deserto de plantas espinhosas, inacessíveis aos homens, que não usavam cortá-las senão de três em três anos para as transformar em lenhas, quem suspeitaria da sua existência naquele lugar impenetrável?
Só um milagre a poderia salvar!
Contudo era nova e era bela... Um homem existia que nunca esquecera a sua graça juvenil... O amor realizaria esse milagre e arrancaria à natureza hostil a sua presa...
Aquele que ninguém esperava
Sorridente, muito loura e rosada, a bata cor de neve, a gentil enfermeira entrou no quarto transportando a bandeja com uma chávena de chá, um frasco e um jornal.
O aposento tinha o clássico aspecto de um quarto de casa de saúde: mosaico branco. A cama já desocupada, estava cuidadosamente feita; ao lado, estendido em comprida cadeira de verga, um rapaz, de braço ao peito e o rosto um tanto pálido, olhava-a com completa indiferença.
-Obrigada, menina -- murmurou quando acabou de beber o chá ao qual ela misturara a poção fortificante.
Depois agarrou no jornal e desdobrou-o com modos distraídos.
De repente soltou uma exclamação abafada e a fisionomia exprimiu funda emoção. Tornou a chamar a enfermeira.
-Já vieram os jornais da noite? - indagou febrilmente.
-Ainda é cedo... Só posso dar-lhes os da tarde, -Por favor, menina, logo que eles cheguem mande-mos sem demora.
E como a rapariga se afastasse acrescentou:
-Quere ainda fazer-me o obséquio de proceder a todas as formalidades para que eu saia daqui!
-Para sair daqui!-repetiu a enfermeira sorridente Ainda não é tempo de pensar nisso... Primeiro é preciso que o seu braço e o ombro...
-Já estão ambos bons - interrompeu o ferido, soltando o braço do peito e tentando com ele alguns movimentos - Não se trata agora disso. Preciso sair daqui o mais de pressa possível. Quere fazer-me o favor, quando o médico chegar, para a visita da tarde, de lhe dizer que desejo falar-lhe!
Mas a rapariga saiu, o doente voltou a agarrar no jornal e, pensativo, fixou por muito tempo o título dum artigo que destacava em letras enormes:
O MISTÉRIO DO POÇO VELHO
TRÁGICO DESAPARECIMENTO DUMA JOVEM NOIVA
E depois em letras mais pequenas:
A terra tragou uma rapariga cheia de vida e
não devolveu a sua presa nem patenteia o
seu segredo.
Seguia-se um pequeno artigo.
«Toda a região de Plougras, perto de Guimgamps, está violentamente emocionada pelo mais extraordinário acontecimento que se possa conceber.
«Em circunstâncias que descreveremos mais tarde, depois de novas e minuciosas informações, uma rapariga caiu a um poço, estando presentes, noivo e numerosos criados deste.
«Os esforços imediatamente empregados para a socorrer não obtiveram o mínimo resultado. E, o que é inacreditável, é que tendo descido até ao fundo do poço que estava seco e fácil de explorar, não encontraram, com vida, ou sem ela, o corpo da vítima.
«O mistério conserva-se até agora inexplicável...»
E o repórter acrescentava ainda:
«Esperava-se a chegada do célebre detective Luiz Manzin, que por certo virá trazer alguma luz a este misterioso e tenebroso acontecimento».
Nada mais mencionava o artigo senão o poço velho e o nome da região. Mas o rapaz não teve um segundo de hesitação.
O mistério conhecia-o ele.
Quando, uma hora depois, o médico entrou no quarto 12, encontrou o seu doente vestido, pronto a partir e o chão juncado de todos os jornais que se referiam ao mesmo assunto.
Cada um deles dava o seu parecer: sabia-se já que o drama se desenrolara em Houx-Noirs e que a sua heroína ou vítima era Eliana de Surtot. Explicavam tudo, desde o papel desempenhado pelo guarda Morvan até à remota lenda de Hugo de Croixmare, o orgulhoso coronel das guardas imperiais.
Mas o desenlace esperado não se realizava: hoje, como ontem, a terra guardava o seu segredo.
O doutor Brault apresentou certas dificuldades para deixar sair o doente.
Fora ele quem o fizera ingressar naquela casa de saúde, algumas semanas atrás, quando ferido e exausto pela febre e pelo sofrimento o pobre rapaz viera bater-lhe à porta, reclamando dele os cuidados que o seu estado exigia.
Havia muito tempo já que forte amizade unia os dois homens, afectuosa e indulgente por parte do médico, confiante por parte do rapaz.
-Que nova fantasia temos agora!-protestou o médico quando o doente lhe pediu para se ir embora - Aposto que se trata duma mulher, não é verdade?
-De facto - confirmou o outro sorridente - é por causa de uma mulher, mas não pela que supões.
-Seja como for, essa menina que espere. Eu não te deixo sair.
-Ouve, Brault. Trata-se duma questão de vida ou de morte.
-Para ti? Ora deixa-te disso!
-Não, para ela. A vida duma mulher está ameaçada e só eu a posso salvar.
-Que estás tu para aí a dizer?
-Apenas a verdade... Perdoa-me, mas não posso explicar-te mais nada. Trata-se dum terrível segredo de família... mas se não parto imediatamente a cumprir o meu dever, uma criança inocente morrerá por falta de socorros, ao abandono.
-Mau! -exclamou o médico em face de tais afirmativas - Se assim é, não quero impedir que cumpras o que julgas ser um imperioso dever... Vou ligar-te solidamente o braço e o ombro... Evita movimentos escusados. E Deus te acompanhe, meu velho! Se resultar para a tua saúde qualquer grave complicação, a culpa é só tua.
-Obrigada, Brault! Não esperava menos da tua amizade.
Depois de ligar fortemente o braço do doente, os dois homens apertaram-se calorosamente as mãos.
-Mais uma vez obrigado, doutor. Fico-te infinitamente grato pelos teus cuidados e espero poder provar-to um dia, sem ser apenas por palavras.
Iam separar-se quando o cirurgião tirou a carteira da algibeira.
-Ouve, meu velho; julgo que, se tens de socorrer alguém, não podes com certeza recorrer ao Banco a esta hora... E se me dás licença...
Como visse o ferido corar subitamente sob a acção de evidente constrangimento, começou a rir.
-Entre camaradas que tem?...
«Mais tarde, me devolverás o dinheiro. É sempre assim. Nem calculas quantas insignificantes quantias tenho dispersas por todos os lados. E quando preciso delas encontro-as com tanta facilidade como se as tivesse confiado ao meu banqueiro.
O outro não respondeu. Estava muito comovido para o poder fazer. Mas o médico viu-lhe o olhar velado por repentina umidade e este mudo agradecimento teve para ele muito mais valor do que o representado pelas notas que à força introduziu na mão do amigo.
-E agora, visto que tens pressa, toca a andar!
- ordenou ao ferido - E se na verdade a vida de alguém está nas tuas mãos, comunica-me apenas se a salvaste, porque me darás com isso grande alegria!
-Deus queira que chegue a tempo! - murmurou o outro com voz surda.
E transparecia nela tanta ansiedade que o médico, despedindo-se, não pôde deixar de oferecer:
-Fico ao teu dispor... podes contar comigo, seja em que circunstância for.
-Obrigado, Brault, obrigado!... Pode ser que tenha de recorrer à tua ciência. Mas por agora só Deus me pode auxiliar... Adeus!
Separaram-se. O ferido desejava agir o mais depressa possível... Não tinha de organizar uma viagem à Bretanha no mais curto espaço de tempo? Duas horas antes, ao ler os jornais que narravam o drama de Haux-Noirs, pensara:
-Só eu a posso salvar!
De facto, só ele sabia.
Descobrira a chave do enigma mais facilmente do que todos os detectives, do que todos os reporters, visto que só ele conhecia a existência do subterrâneo e aproximadamente o ponto da charneca onde ele desembocava.
Um acaso dramático dera-lho a conhecer havia pouco tempo.
Desta recente descoberta tirava diversas conclusões, chegando aparecer-lhe que a Providência, fazendo-lhe conhecer a existência do túnel, quisera unir ao seu o destino da menina de Surtot, criando-lhe ao mesmo tempo a obrigação de a socorrer.
Mas para ir de Paris até ao subterrâneo onde esta se encontrava prisioneira tinha de percorrer mais de cento e cinquenta quilómetros e só a vontade não era suficiente para vencer tal raid.
No entanto, parece que ela foi para o nosso herói uma poderosa alavanca, que o ajudou a remover todas as dificuldades.
A maior era, sem dúvida, a falta de dinheiro.
Ora o acaso que parecia querer proteger o rapaz, no que respeitava àquele assunto, inspirara ao doutor Brault um gesto que eliminara esse principal obstáculo.
As outras complicações facilmente foram resolvidas pelo ferido.
Da mesma forma como convenceu o cirurgião a deixá-lo abandonar a casa de saúde, soube persuadir um amigo, proprietário duma garagem, a alugar-lhe, por preço relativamente moderado, um carro usado, mas resistente e capaz de o transportar à Bretanha.
Era um torpedo, modelo antigo; mas o dono da garagem garantia que ele podia fazer setenta e cinco quilómetros à hora sem fraquejar. Era quanto bastava para lá chegar de madrugada.
Depois disso meteu apressadamente no carro uma quantidade dos mais variados objectos: mantas de viagem, uma lanterna potente, um cesto com comida, uma pequena farmácia ambulante, duas termos, uma cheia de caldo e outra com chá forte. O leite estaria talvez mais indicado, mas lembrou-se de que os solavancos do carro poderiam azedá-lo.
Em pouco tempo estava completo o heterogéneo conjunto, que lhe parecia indispensável para a obra de salvação que ia empreender.
Era noite alta quando deixou Paris, guiando com a mão válida o automóvel que corria pela estrada tão depressa quanto lho permitia o seu velho mas sólido motor.
A charneca bretã
Mas, finalmente, quem seria aquele ferido extraordinário, que sem se preocupar com os cuidados que o seu estado poderia ainda reclamar, abandonava assim a acolhedora casa de saúde para voar em socorro de Eliana de Surtot?
Que laços o uniriam à vítima do poço velho? E porque razão, só por conhecer a existência do subterrâneo, o seu olhar traduzia tanta ansiedade?
Tudo fazia acreditar que um motivo muito íntimo, muito doloroso, o levava a proceder pessoalmente, sem recorrer ao auxilio da polícia, quando, afinal, bastaria revelar a esta a existência do misterioso túnel e o ponto da charneca onde desembocava para não ser obrigado àquela excursão extenuante.
No entanto, o rapaz caminhou toda a noite, infatigável e sem desfalecimentos.
Insensível ao sono e à dor surda que não deixara de sentir no ombro, impelia o auto, o espírito apenas aplicado a alcançar o desejado alvo.
Guiava com a prudência exigida pela respeitável idade do veículo e pela dor que qualquer gesto mais brusco lhe provocava, procurando, contudo, atingir o máximo da velocidade possível.
O pensamento impaciente previa já o final da viagem e receava não encontrar imediatamente o ponto exacto da saída subterrânea.
Poucas semanas antes fizera o mesmo trajecto, mas em sentido inverso, da saída do túnel a Guingamp; nessa ocasião, porém, estava por tal forma abatido física e moralmente que não conservara recordações nítidas do caminho.
Contudo, reparara num ponto de referência. A charneca um pouco em declive era limitada pela estrada de Plougras a Loquivy, a estrada n. 15! Aquele número ficara-lhe na memória como uma obsessão doentia... número que vira pintado em algarismos negros no marco quilométrico em que se sentara exausto!
Se o encontrasse, bastava-lhe, então, embrenhar-se pelos juncos e procurar um ponto afastado da estrada, no planalto, perto das enormes árvores que haviam invadido as alturas...
Em fim, os primeiros clarões do alvorecer iluminaram a charneca bretã, tão melancólica, vista assim, de madrugada.
Daí a duas horas estaria em Guingamp, pouco depois em Belle-Isle-en-Terre e a seguir em Loquivy...
Daí em diante começavam as dificuldades.
Muitas vezes, na sua infância, percorrera, em bicicleta, aquela região, e gostava, então, de entrar no pequeno cemitério que rodeava a igreja, como se a encerrasse num estojo protector e quisesse defender aquela jóia do século XVI contra a audácia dos veículos modernos.
O adolescente entusiasta que ele era nesse tempo, parava sempre para admirar o pórtico de pedra rendilhada e a nave de talha magnífica, melhor conservada que as de Tréguier e Clarté e que era verdadeira maravilha ignorada pela maior parte dos turistas.
Mas, naquela manhã, a igreja de Plougras nada interessava ao viajante e apenas lhe acordava vagas recordações.
Do solo evaporava-se ténue nevoeiro, indicador de bom tempo.
O condutor parara o carro junto do matagal de juncos, em frente do marco quilométrico cujo número lhe ficara na memória. Orientou-se.
Houx-Noirs devia ficar situada à esquerda, para além do bosque de Beffou... O subterrâneo que partia do poço velho, prolongava-se, portanto, passando debaixo do outeiro e terminando no extremo da charneca, no sopé das altas e verdejantes colinas que se erguiam no horizonte daquele lado.
O rapaz agarrou numa bolsa que continha uma das termos e outros diversos objectos, como um pacote de velas, etc. Numa das mãos levava também a lanterna e na outra um pau com que contava bater os matagais.
Um carreiro quase invisível cortava a direito pelo planalto. O viajante enveredou por ele, desejando atingir o mais depressa possível o outro extremo daquele campo de juncos. Tinha depois de subir a encosta oposta e isso demorava bastante.
Decorrido algum tempo foi detido por uma muralha de pedras soltas. Contornou-a e compreendeu que a charneca era mais larga do que comprida e que acabava de a atravessar de ponta a ponta.
Ter-se-ia enganado?
Os minutos eram preciosos; quanto tempo teria de perder ainda naquelas infrutuosas pesquisas?
A marcha já durara muito e sentia-se cansado, quase desanimado.
Como orientar-se no meio daqueles maciços espinhosos, cerrados, que o arranhavam com os seus milhares de espinhos e que eram todos iguais uns aos outros?
Um terrível receio crescia nele pouco a pouco.
Conseguiria encontrar-se em breve junto da pobre criança cuja crítica situação conhecia?
Teria vindo de tão longe, em vão, para ver malograrem-se as suas tentativas, tão próximo do seu alvo?
Dominado por verdadeira ansiedade, voltou a caminhar.
Para evitar andar para trás e para diante, seguiu a base da colina que formava uma espécie de barreira pedregosa na vasta planície de juncos.
Um instinto mais forte que a razão impelia-o para o ponto mais afastado da estrada.
A manhã ia adiantada. As árvores, ainda humedecidas pela chuva da noite, brilhavam sob a acção dos raios quentes do sol.
O rapaz contemplava maquinalmente o soberbo espectáculo quando parou de repente, soltando uma exclamação de alegria.
Na sua frente, um maciço de giestas, enormes, amarelas, destacava na verdura prateada dos juncos que o circundavam.
Aquelas giestas reparara ele que lhe ficavam à direita quando abandonara o barranco que procurava agora com tanta ansiedade.
Avançou alguns passos. com efeito, na retaguarda do escuso matagal, o terreno descia, num declive, rápido.
Precipitou-se. Momentos depois encontrava-se no fundo de estreita cavidade. Era bem aquilo, pedras desmoronadas, silvas... a entrada, em fim, do sinistro subterrâneo!
-Bendito seja Deus!-bradou - Aqui está o que procurava!
Por instantes, conservou-se pensativo.
Que visões evocava? Recordações terríveis duma angústia passada ou atrozes apreensões pelo que iria encontrar?
Por fim decidiu-se...
Não obstante toda a sua serena coragem, não pôde evitar um calafrio ao franquear, rastejando, a apertada abertura que dava acesso ao tenebroso túnel.
Acendera a lanterna e projectava a sua luz em volta de si, examinando com cuidado o chão e as paredes.
Nada por onde colhesse qualquer indicação.
Contudo, na areia avistou pegadas... ou antes, dois rastos que não permitiam reconhecer nem a forma, nem o tamanho do pé.
Quem sabe se, decorridas tantas semanas, viria encontrar ainda, naquela oculta caverna, outros vestígios que não fossem os de Eliana?!
Só ele o podia saber.
Avançava sempre.
Já não podia duvidar. Alguém, se arrastara pela areia, alguém que já não tinha força para se conservar de pé.
-Oh! meu Deus! Teria ela vindo até aqui? com mais atenção prosseguiu o seu exame e viu impressos os traços das mãos que, hesitantes, às paredes se tinham amparado.
À medida que avançava, projectava para diante a luz amarelada da lanterna. Procurava novas e mais seguras indicações. Nisto, o pé bateu em qualquer objecto metálico.
Baixou-se e apanhou uma lâmpada eléctrica... a lâmpada aperfeiçoada que por tanto tempo guiara Eliana nas trevas...
Vinte metros adiante foi uma espingarda que encontrou atravessada no estreito corredor.
E o rapaz pensou sem hesitação:
-A lâmpada e a espingarda do guarda, que os jornais mencionaram... A pobre criança conseguiu, então, chegar até aqui?
Decorrera mais de meia hora desde que começara a caminhar no subterrâneo e isso representava uma extensão, aproximadamente, de mil e quinhentos metros a contar da entrada.
-Quando aqui chegou, Eliana já não teve forças para conservar a espingarda - pensou - Teria conseguido alcançar a saída ou, sem luz, voltaria para trás, sem dar por isso?
O dilema era grave! Se punha de lado as suas pesquisas no subterrâneo, arriscava-se a abandonar ali Eliana; se as continuasse, porém, podia perder um tempo precioso a procurá-la onde já não se encontrava.
Todavia, um demorado exame em breve o convenceu de que a rapariga não voltara para trás. Não havia o mais pequeno vestígio de passos, na direcção do poço velho.
Então, rapidamente, o rapaz retrogradou. O prolongado rasto que notara ao penetrar no subterrâneo, tinha agora para ele eloquente significação.
Indicava-lhe que a pobre criança, completamente exausta, vencera a última parte do caminho, de rastos. Não podia estar longe, mas não era no subterrâneo que tinha de procurar a abandonada; era na charneca, nas proximidades da saída.
O pensamento de que Eliana passara, talvez, a noite ao ar livre, à mercê das intempéries e dos animais que vagueavam pelo planalto, redobrou o seu ardor.
com febril precipitação alcançou a boca do túnel.
Ei-lo de novo cá fora. Em volta dele as silvas e os juncos formavam uma rede invencível, inextricável.
com infinita precaução, não fosse destruir qualquer indício, o rapaz explorou as imediações. Fora por ali, à direita, que chegara.
Para a esquerda não havia caminho transitável e possível... Mas para a frente... um ramo quebrado, a erva pisada...
Seguindo estes ligeiros traços andou alguns passos.
Julgou ouvir um suspiro. Sim, ali adiante, muito perto, alguém respirava com dificuldade... era quase um estertor!
Mais um passo... afastou o ramo das giestas húmidas. E ali, oculta pelas compridas hastes, semeadas de flores amarelas e pelos altos juncos encharcados pela chuva nocturna, viu Eliana estendida, o rosto ensanguentado, o peito agitado pela respiração sibilante, os olhos fechados, cavados por fundas olheiras.
O viajante, contudo experimentou indescritível alegria:
-Encontrei-a! E vive!
Sentiu o peito dilatar-se, livre, em fim, da angústia que o oprimia.
Depois de a julgar perdida para sempre, não era felicidade inefável tê-la ali viva, nos seus braços?
E apesar de todas as dificuldades presentes, os lábios do viajante elevaram ao céu, que tinha permitido o milagroso salvamento, uma oração fervorosa e reconhecida.
Depois tirou da bolsa a termo cheia de chá bem quente e aromatizado com rum, que iria ajudá-lo a reanimar a vítima do poço velho.
Introduzindo-lhe nos lábios o pequeno copo niquelado, fê-la beber alguns goles que ela engoliu inconscientemente.
Ainda com chá lhe lavou o rosto manchado de sangue, e viu, depois de lavado, que não tinha qualquer ferimento grave, mas apenas uma infinidade de insignificantes arranhaduras.
Mas aquela respiração sibilante inquietava-o. Devia ter apanhado frio e talvez estivesse iminente uma congestão pulmonar!
E, como reparasse que envergava um vestido muito leve, que se encontrava colado ao corpo pela humidade, despiu o casaco e envolveu com ele os ombros de Eliana.
No entanto a sua tarefa não estava ainda terminada. Restava-lhe conduzi-la até ao carro, caminhando entre os juncos agressivos.
Se ao menos ela pudesse caminhar! Mas o chá quente apenas lhe colorira as faces com duas rosetas febris, sem, contudo, a fazer sair do seu torpor. Apesar de ferido e fatigado o desconhecido não hesitou.
Abandonou à entrada do subterrâneo a espingarda e a lanterna; desembaraçou-se de todos os objectos inúteis que podiam sobrecarregá-lo.
Mais um golo de chá entre os lábios da infeliz; depois levantou nos braços o corpo delicado e carregou-o sobre o ombro válido.
Antes de se pôr a caminho com o seu precioso fardo, procurou orientar-se; o carro estava pelo menos a trezentos metros; trazê-lo até ali por cima daquele terreno cheio de altos e baixos e pedregoso, era impossível. Tinha de carregar com a doente até lá.
Normalmente, sem ser um colosso, o rapaz poderia facilmente transportar Eliana àquela distância.
Mas ferido como estava, o braço esquerdo impossibilitado de fazer qualquer movimento, vacilava sob o peso da frágil carga.
Contudo, não desistiu. De dentes cerrados, o olhar fixo, as veias do pescoço entumecidas pelo esforço realizado, obstinava-se na sua tarefa heróica, contornando as moitas, o que aumentava a distância a percorrer, para evitar àquela que tanto se empenhara em salvar, os agudos espinhos dos matagais.
Foi assim que, esgotado pelo cansaço, mas triunfante, chegou junto do carro, conduzindo a sua carga viva.
Só então pôde prestar à rapariga mais minuciosos cuidados. Recorrendo à pequena farmácia ambulante que trouxera, teve a enorme alegria de ver Eliana erguer as pálpebras e cravar nele os seus grandes olhos brilhantes de febre.
Não pareceu admirar-se da presença daquele desconhecido; mas instintivamente tentou erguer-se.
Muito fraca ainda para fazer qualquer movimento voltou a cair nos braços masculinos que a amparavam; contudo, aquele esforço pareceu reanimá-la por completo.
-Tenho sede!-murmurou com voz fraca.
Estas duas palavras soaram aos ouvidos do seu salvador como música celestial.
E que suave prazer para o excelente rapaz poder, com a sua previdência, oferecer àquela que desfalecia de inanição, um copo bem cheio de caldo, um caldo leve e reconfortante, indicado justamente para uma pessoa que não comia havia quarenta e oito horas!
Um pouco reanimada, Eliana deixou-se envolver nas quentes mantas de viagem, trazidas de Paris. O seu companheiro tirou-lhe os sapatos para aliviar os pés magoados, que friccionou com uma toalha úmida; depois, desinfectou-lhe as arranhaduras e colocou-lhe uma compressa na testa que escaldava; instalou-a no carro que felizmente tinha boas molas. A carrosserie, ainda que de modelo antigo, permitia que a enferma se estendesse confortavelmente no banco do fundo, os pés em cima da tampa duma mala, disposta na sua frente para esse efeito.
Tremendo de febre, abatida e exausta, Eliana deixava-o proceder sem uma palavra, mas o seu olhar amortecido seguia, como num sonho, todos os gestos do seu anónimo salvador.
Perguntaria a si própria quem seria o desconhecido que assim se preocupava com ela? Ou a sua grande fraqueza impedi-la-ia de prestar atenção ao que se passava em volta de si?
Quando o auto partiu não fez um movimento. Pelo contrário, fechou os olhos como se os solavancos do carro a mergulhassem num suave torpor.
O condutor retomou a direcção de Plougras; mas porque motivo atravessou a aldeia de cabeça baixa, chapéu carregado para os olhos e gola levantada, como se tivesse receio de ser reconhecido? Evitou também a estrada à esquerda que, passando por Beffou, conduzia a Houx-Noírs, onde, racionalmente devia conduzir Eliana?
Quem era, então, o misterioso viajante que parecia conhecer perfeitamente a região e que naquele dédalo de estradas, que, na província, para quem não as percorre com frequência se parecem todas umas com as outras, guiava o carro sem uma hesitação e sem sequer consultar uma carta topográfica?
Por Huelgoat, Corhaix e Gourin, o desconhecido dirigia-se para Rosporden onde, a quinze quilómetros da povoação, um dos seus amigos, Paulo Morec, possuía um antigo solar, verdadeiro ninho de corujas, que habitava sozinho com uma velha criada.
Era a única casa hospitaleira que o salvador de Eliana conhecia ali, na Bretanha, mas estava certo de que, tanto ele como a sua frágil companheira, seriam ali recebidos de braços abertos.
O condutor parou umas poucas de vezes pelo caminho.
Escolhia de preferência as estradas desertas para vir assegurar-se se a doente continuava confortavelmente instalada e se não necessitava de coisa alguma. Aproveitava também estas ocasiões para lhe ir dando, pouco a pouco algum alimento, receando que depois de tão prolongado jejum, qualquer comida muito substancial lhe fosse mais nociva do que benéfica.
Eliana submetia-se a todos os seus cuidados, sem pronunciar palavra nem fazer qualquer movimento inútil. Era ele que lhe levava o copo aos lábios e lhe metia a comida na boca, sem que ela fizesse mais do que beber ou comer docilmente o que o rapaz lhe oferecia.
E esta submissão traduzia uma tal confiança que o benévolo enfermeiro se sentiu comovido.
Desejaria caminhar sempre assim, até ao fim do mundo, tendo a seu lado aquela dócil doente.
Mas teria Eliana recuperado toda a sua lucidez? Dir-se-ia que sim, porque no rosto emagrecido, os grandes olhos castanhos, dourados, observavam todos os gestos do seu companheiro, que sentia aquele olhar pesar sobre ele, curioso, admirado impenetrável, mas também sem receio, exprimindo tranquilidade e confiança.
Ás vezes, as suas pupilas encontravam-se, penetravam-se... E ainda que o rapaz estivesse convencido de que Eliana não notava a insistência do seu olhar doloroso, esses segundos eram para ele duma infinita doçura, contudo, era ele quem, perturbado, voltava a cabeça, com o secreto receio de que a rapariga acabasse por se irritar e o interrogasse.
Que lhe responderia se lhe exigisse que a levasse a Houx-Noirs, para junto dos seus parentes e do noivo?
Nunca ele consentiria em entrar naquela casa, mas como justificar a sua recusa e como conseguir conservá-la a seu lado, como tão ardentemente desejava?
Então voltava a curvar-se sobre o volante e dominado pelo temor de que ela o interrogasse sobre o itinerário, acelerava a velocidade como se quisesse abafar a voz dela que, no entanto, nem sequer pensava em lhe perguntar coisa alguma.
Uma história triste
Bossulan, a propriedade de Paulo Morec, que o desconhecido atingiu ao anoitecer, era um velho solar bretão meio arruinado, situado em Concarneau, em Finisterra.
Naquela enorme moradia de tetos em abóbada e paredes fendidas, apenas três aposentos se conservavam capazes de ser habitados...
No rés-do-chão, a sala grande, com as suas camas fechadas, os armários alinhados e uma comprida mesa de carvalho, destinada noutros tempos a abrigar numeroso pessoal, era hoje apenas o reino de Katou, a velha criada.
Ao lado desta, existia outra sala, igualmente vasta: a sala dos senhores, com o fogão monumental, a pesada mesa em acaju, duas camas com cortinados verdes... camas demasiadamente modernas, pois apenas datavam... do primeiro Império!
Foi numa delas que o viajante, auxiliado por Katou, instalou Eliana. Viu-se mesmo obrigado a despi-la, porque os dedos desajeitados da pobre bretã não sabiam lidar com os vestidos modernos... esses sacos sem fitas nem botões!
Em compensação, Katou guarneceu a cama com esplêndidos lençóis, alvos como a neve, um pouco ásperos talvez, mas exalando o agradável aroma das giestas, sobre as quais usavam estendê-los.
E agora, aconchegada em quentes cobertores, a doente repousava sossegada, mas sempre numa semi-inconsciência.
Tossia, devido talvez ao frio que apanhara na charneca durante a prolongada imobilidade e, como a febre persistisse, os seus enfermeiros davam-lhe como único alimento, leite e bebidas quentes.
Depois de Eliana estar deitada e tratada, o proprietário de Bossulan, afectuosamente, obrigou o amigo a sentar-se junto do fogão, onde ardia belo fogo e perto da mesa, sobre a qual Katou acabava de colocar o jantar.
-Um jantar um pouco rústico, meu velho desculpou-se o dono da casa - mas apareces de improviso e, tem paciência, tens de te contentar com a nossa tradicional e invariável refeição... bem sabes... sopa, batatas e toucinho, tudo regado com cidra fresca.
-Tudo isso é excelente, Paulo! Se soubesses como é consolador para mim encontrar-me junto dum amigo... depois dos dias terríveis por que acabo de passar, depois de ter sofrido, nestas últimas vinte e quatro horas, as maiores angústias. Que aventura, meu amigo!
Respirou fundo. A sopa fumegava nos pratos côncavos; o candeeiro de petróleo, com velador de cartão, projectava um limitado círculo luminoso que não passava para além da mesa, deixando na penumbra o canto onde Eliana descansava no vasto leito de cortinados floridos.
-Conta-me tudo isso - pediu Paulo - Estou ansioso por conhecer o conjunto de circunstâncias que te conduziram esta noite ao meu velho Bossulan, com um braço ferido... e amparando com o outro uma linda rapariga!
O rapaz olhou inquieto para Eliana que se agitara no leito.
Levantou-se e foi certificar-se se ela dormia.
De olhos fechados, parecia repousar tranquilamente.
-Dás licença, Paulo ? - perguntou apesar disso.
Foi buscar o biombo que encobria a porta e se destinava, no Inverno, a defender a enorme sala das fortes correntes de ar, arrastou-o para junto do leito e colocou-o com cuidado, de forma a cortar a luz e a isolar Eliana num ambiente de calma e tranquilidade.
Depois, voltou a sentar-se na hospitaleira mesa, junto do fogo que crepitava luminoso e alegre, na enorme e escura chaminé.
O candeeiro iluminava suavemente a toalha de linho, de imaculada alvura e o pão escuro... um grande pão cortado ao meio e colocado ao lado da terrina fumegante.
Apesar da ausência do luxo, tudo ali respirava paz, intimidade e sossego.
-Que ambiente calmo e tranquilo - murmurou brandamente o parisiense.
Pensativo, o olhar sonhador, encostou-se à mesa.
-Sabes em que penso, Paulo ? - continuou pouco depois - Ao começar a minha narrativa comparo as trágicas e complicadas aventuras em que me vi envolvido nestas últimas semanas, à atmosfera apaziguadora que se respira no teu velho solar... e evoco todos aqueles que antes de nós se sentaram junto do fogo diante desta monumental chaminé... todos os Morec que sentados a esta mesma mesa comeram a tradicional sopa de toucinho, toda essa gente simples, cuja vida sempre igual decorreu sem complicações e sem dramas...
-Sim - murmurou Paulo, pensativo - Mas, quem sabe? Muitas vezes o drama desenrola-se apenas num coração. Os nossos antepassados também tiveram os seus desgostos e paixões...
-Sim, talvez... Mas tu, tu foste sensato. Escolheste uma vida livre e tranquila... Porque não segui eu o teu exemplo quando meus pais morreram, legando-me o modesto domínio de Belief ontaine? Possuiria ainda o meu velho casebre e não teria no coração tanta desilusão e amargura!
-Não serias capaz, talvez, de viver só, como um selvagem, como eu vivo aqui... desterrado neste cantinho deserto, onde os dias tristonhos são mais frequentes que as distracções!
Mas aquele final dum dia, demasiado fatigante para um ferido não completamente restabelecido das suas fracturas, aumentava a melancolia do parisiense.
Apontando o ângulo obscuro onde Eliana descansava, o rapaz suspirou:
-Vês tu? -continuou em voz baixa - A pior desgraça que pode acontecer a um homem é não ser digno dum anjo como aquele... é ser tão pobre que nem sequer possa oferecer o seu nome àquela que ardentemente desejaria ter a seu lado.
-Então, nesse caso - exclamou o outro admirado e comovido pelo entôno de tristeza que o amigo dera às suas palavras - esta rapariga que tu trouxeste, como se fosse um objecto precioso...
-Não é o que tu pensas... Não me pertence... nem é sequer uma aventura de ocasião. E se não ignoro coisa alguma do que lhe diz respeito, em compensação, eu para ela sou um desconhecido, cujo nome talvez até nunca ouvisse pronunciar.
-É fantástico! Porque motivo então te acompanha?
-Ah! Isso é uma história mais complicada.
Calou-se, fixando Paulo com um sorriso divertido.
-Aposto - observou - que também tu há três dias te interessas por ela... de resto como toda a gente! Não se fala noutra coisa!
-O quê?... Que queres dizer com isso?
-Já te explico! Leste os jornais destes últimos dias?
-Li...
-E com certeza te interessaste pelo mistério de Houx-Noirs... tanto mais que conheces Croixmare e o seu castelo.
-Evidentemente! Mas que relação...
-Só esta; a rapariga a quem tu espontaneamente ofereceste hospitalidade é, nem mais nem menos, que a desaparecida do poço velho...
-Eliana de Surtot?
-A própria.
-Essa é boa!... Mas explica-me! Como conseguiste tu encontrá-la?
-Procurando-a... Vinte dias antes também eu quase fora vítima do poço velho.
-Tu?
-Eu, sim!... Depois te contarei!... Assim, quando ontem li os jornais que narravam o desaparecimento de Eliana, noiva de Rogério de Croixmare, compreendi que a pobre estava naturalmente sepultada viva num subterrâneo, cuja existência provavelmente só eu conhecia. Aluguei o automóvel dum amigo e de Paris a Plougras caminhei toda a noite... Tive a felicidade de poder salvar a pobre criança... Conseguira sair do subterrâneo, mas caíra inanimada na charneca, aniquilada pela fome e pela fadiga... Teria com certeza morrido porque ninguém se lembraria de a ir procurar tão longe da estrada e, sozinha, nunca conseguiria sair dali! Trouxe-a comigo, para tua casa. E aqui tens como o caso se passou.
-Muito simples, na verdade - observou Paulo Morec, de testa enrugada pela tensão do pensamento Tão simples que, se queres que compreenda alguma coisa, tens de me dar mais pormenores.
Tens direito a todas as explicações... Além disso será para mim consolador descrever-te o que passei nestas últimas semanas. As horas que vivi foram por tal forma atrozes e as situações tão trágicas, que pergunto a mim próprio, devido a que milagrosa protecção estou ainda vivo.
-Porque a tua hora não tinha provavelmente chegado - comentou gravemente o bretão - Conservo a crença de meus pais e estou convicto de que tudo quanto nos acontece nesta vida é pela vontade de Deus.
O parisiense curvou a cabeça, pensativamente.
-Sim, talvez - murmurou vagarosamente a minha hora não tinha ainda chegado!... Mas tenho sido até hoje tão infeliz que não vejo por que lamentável ironia o destino persiste em conservar-me a vida.
-Pode ser que te reserve compensações que ignoras.
-Pode ser que assim seja... mas não ouso esperá-lo!
-Não vejo porém ainda razão para seres tão pessimista, tu, que costumas ver tudo por um prisma cor de rosa. Tiveste grandes contrariedades nestes últimos tempos?
-É verdade. Tive de facto tantos dissabores que não sei por onde começar para tos contar pela sua ordem... Primeiro, vou falar-te do que está directamente ligado aos acontecimentos destas últimas semanas. Conheces Rogério de Croixmare?
-Teu primo? -Sim,, meu primo.
-É pessoa com quem nunca simpatizei. -Os hipócritas em geral nunca são simpáticos
- Concordou o outro com um sorriso desiludido Ora, Rogério é o ente mais dissimulado que tenho conhecido. Em casa parece um santinho... um bom filho, sossegado, sensato!... Dotado dos melhores sentimentos... exceptuando a generosidade, deixa-me dizer-to, porque mesmo em casa é duma economia que atinge as raias da avareza.
-Muito me admira isso, meu caro! Se a economia é uma virtude, nunca pensei em a atribuir a Rogério que em Paris levava vida de nababo...
-Isso mesmo. Era essa a outra face do carácter de meu primo. E não era das mais atraentes!... Rogério entregava-se à maior estroinice: jogo, mulheres. Dirás que tudo isso se pode fazer sem se deixar de ser boa pessoa. Mas Rogério era um estroina da pior espécie. Maltratava as pobres raparigas com quem vivia e que escolhia nos meios mais ordinários.
-Parece-me, contudo, ter conhecido uma das suas amantes que era uma rapariga bastante interessante.
-Nérelle?
-Sim, essa.
-Era com efeito inteligente... bastante vulgar sem ser tola... Essa ao menos tem-no bem seguro, podes crer...
-Porquê? Amava-a assim tanto?
-Não, o amor passou; mas Nérelle está ao corrente de certas coisas... pouco limpas... um tanto escuras... que datavam ainda do tempo em que vivia o tio. Lembras-te? Aquele tio velhote que era a providência de Rogério quando este não queria confessar à mãe uma perda mais considerável ao jogo ou na Bolsa.
-De facto, jogava muito!
-E nem sempre ganhava! Felizmente, lá estava o tio para remediar o mal. E por forma tão amável... sem lhe pregar grandes sermões de moral... Uma jóia de tio, finalmente!... Contudo, certa vez a quantia era tão importante, que apesar de todo o seu descaramento, Croixmare não se atreveu a pedir-lha...
-E depois?
-Depois, preferiu arranjá-la doutra maneira... pouco honesta. O bom do tio, que nem por sombras desconfiava do sobrinho, deixava à vontade o seu livro de cheques que Rogério muitas vezes tivera entre mãos... Adivinhas o resto, não é assim? Resolveu o caso imitando a assinatura do velhote.
-muito simples, na verdade!
-Pelo contrário, foi até muito difícil... Não é tão fácil como parece, imitar uma assinatura com perfeição. Rogério teve de ensaiar muitas vezes... Inutilizou alguns cheques e como o meu imprudente primo executava o interessante trabalhinho em casa de Nérelle, esta guardou-os.
-Não lhe serviram de muito, com certeza, visto o tio ser riquíssimo e Croixmare, o seu único herdeiro. Foi um pequeno adiantamento que teu primo se permitiu, mais nada! A acção não foi bonita, mas o velhote morreu, Rogério herdou-lhe a fortuna, quem teria, portanto, interesse em ressuscitar essa história tão antiga?
-O caso é mais complicado do que pensas... porque teve um desfecho trágico: o tio sofria do coração... ora o seu menino bonito tinha feito tão grande rombo no depósito do Banco que o velho deu por isso... Quando se convenceu de que o culpado era o seu querido Rogério, teve tal abalo que morreu de repente.
-Mau! Isso agora já é mais grave! Passou a haver uma responsabilidade moral.
-Tanto mais que assim herdou Rogério toda a fortuna do tio... Ora, este último meu primo não o ignorava, tencionava destinar parte dela à instituição dum sanatório para crianças fracas e ameaçadas pela tuberculose. Em virtude da sua morte súbita e sem deixar testamento, toda a fortuna reverteu a favor de Rogério.
-Que nunca mais pensou em executar as últimas vontades do tio?...
-É claro que não! E, assim, Rogério não só é responsável pela morte dum homem, como também privou uma quantidade de criancinhas do ar puro e tratamento que talvez lhes restituísse a saúde e a vida.
-com efeito é caso para remorsos.
-Oh! Rogério tem uma consciência muito elástica. Um crime ignorado, para um cavalheiro de sua espécie, é como se não existisse, e nem sequer se lembrou de que o castigo poderia vir um dia.
-Como?
-Por intermédio de Nérelle, o que era natural, visto Rogério ter procedido para com ela da forma mais indigna possível... e também por meu intermédio, o que era muito menos natural, confesso-o!
-O quê? Também quiseste aproveitar-te dessa acção pouco digna? Nunca esperei isso de ti!
-Ouve primeiro antes de me condenares... Bem sei que o que fiz não era muito honesto, mas verás que tinha razões para assim proceder... Primeiro do que tudo quero recordar-te qual a situação que ocupava em casa de Lanfred. Este era para mim não um patrão, mas um verdadeiro amigo...
«Lanfred, novo, casado e pai de duas encantadoras criancinhas, não tinha fortuna pessoal. A sua prosperidade dependia da sua actividade e do bom andamento dos negócios. Ora, apesar de toda a sua energia, Lanfred foi atingido pela crise... e nestes últimos meses o negócio fraquejou.
«Oh! Não era caso irremediável. Pagamentos de certa importância a fazer, todos na mesma altura. Tratava-se, portanto, de estar habilitado a satisfazê-los e para isso precisava arranjar quarenta mil francos. Mas essa quantia tinha ele de a reunir sem demora, imediatamente.
«Quarenta mil francos e estava salvo! Se não conseguisse obtê-los no prazo indicado, era a falência e eu tinha a certeza de que Lanfred não sobreviveria à sua ruína.
«Como já te disse, era para mim um amigo... Homem enérgico e honrado que não merecia ver-se em tais dificuldades... Por meu lado, teria feito impossíveis para o auxiliar.
«Poderás dizer que, tentando salvá-lo, também trabalhava para mim, visto que se a casa quebrasse eu ficaria sem emprego... No entanto, posso jurar-te que nem sequer pensei nisso. Foi, então, que me lembrei de certas propostas que dissimuladamente Nérelle me fizera...
João calou-se, apurando o ouvido. Parecia-lhe ter sentido qualquer agitação no vasto leito de cortinados verdes. Levantou-se e devagar, na ponta dos pés, aproximou-se do biombo.
Eliana, de olhos cerrados, continuava a dormir.
Tranquilizado voltou a sentar-se perto do fogão
e continuou:
-Nérelle, como é natural, estava desesperada com o casamento de Rogério e só pensava em vingar-se. Como, medindo bem o partido que podia tirar das assinaturas falsas, conservava cuidadosamente os cheques inutilizados, calculas, não é verdade, o que pensou fazer?
-calculo e acho natural que ela o fizesse, mas tu!...
-Vais ouvir! Perante a aflição do meu patrão, pensei imediatamente em me dirigir a meu primo, que sabia rico, mas de quem conhecia também o egoísmo e dureza de coração... Não podia esperar que se interessasse pelas desgraças dum desconhecido. O desespero de Lanfred, a miséria que ameaçava as criancinhas e toda a família dele, não o comoveria por certo.
-Era provável.
-Era certo mesmo! Uma única coisa o podia demover: a ameaça duma desonra pública e da qual resultaria a anulação do projecto de casamento com Eliana de Surtot.
-E ele amava-a?
-Julgo que sim... ou julgava, pelo menos. Agora já não sei dizê-lo... Sim, pensei que esse amor e o sentimento da honra seriam mais fortes nele do que a avareza; e foi por isso que aceitei servir-me dos documentos cedidos por Nérelle.
Paulo franziu a testa numa expressão de reprovação.
-A isso podia-se chamar chantagem, meu velho! - Declarou com franqueza.
-Bem sei - respondeu João, encolhendo os ombros - Seria chantagem, não há dúvida, mas, com boas intenções... Era de justiça, em fim! Podes dar-lhe o nome que quiseres. O pior é que não deu resultado!
-Rogério recusou?
-Recusou... e ainda por cima se encolerizou! Não fez mais nada senão atirar-se a mim e tentar estrangular-me...
-Só isso?
-Se um criado não aparece tão depressa não sei o que seria! Arquejava já sob a pressão dos seus dedos... Estávamos sozinhos no salão de bilhar e se eu tivesse os papéis comigo, ter-mos-ia arrancado... Como não os tinha... então... João olhou de novo para o leito e baixou a voz: -Então, era eu quem tinha de desaparecer declarou tragicamente - Compreendes?
-Atacou-te?
-Dentro de casa, não... Um crime nessas condições, um cadáver, era perigoso!
«As circunstâncias vieram favorecê-lo às mil maravilhas. Era uma hora da noite e o meu quarto ficava instalado no pavilhão, visto todos os aposentos do castelo estarem ocupados... Conheces Houx-Nolrs, não é verdade?
-Conheço.
-Sabes que o pavilhão fica na extremidade do parque, perto do poço velho, cuja lenda e sinistra reputação não esqueceste também, de certo?
-Sim, sim, bem sei!
-Nesse caso já calculas, não é assim? Para me ir deitar tinha de atravessar o pinhal. Rogério deixou-me sair e depois veio no meu encalço. • Acabava de penetrar no bosque, um pouco pressionado, talvez devido ao nervosismo provocado pela violenta discussão...
-Continua...
Quando, de repente, senti atrás de mim passos precipitados... Antes que pudesse defender-me, fui agarrado pelos ombros e dominado... Foi rápido e terrível..
-Meu pobre amigo!
-Tão rápido!... Toda a minha vida me recordarei. Tentei defender-me, mas que pode fazer um homem atacado pelas costas? Rogério é um colosso e a cólera redobrava-lhe as forças. -Depois? - inquiriu o outro, ofegante.
-Nos seus braços robustos eu era apenas um garoto, e então atirou-me, vivo, para o poço velho. E não hesitou um segundo, posso jurar-te!
-Mas isso é abominável! Esse homem é um assassino!
-Quis matar-me pelo menos e fez todo o possível para que não sobrevivesse à queda. Só o destino... ou se preferes, a Providência...
-Prefiro a Providência.
-Seja! A Providência salvou-me... Não cheguei a cair no fundo do poço... tive a impressão de qualquer coisa que me aspirava à passagem... Mas devo dizer-te que desde esse momento todas as minhas recordações se confundem. Mais tarde, pela leitura dos jornais, pude, então, chegar a uma conclusão...
Uma pancada discreta na porta interrompeu a narrativa daquele que nós agora sabemos ser João Valmont.
João Valmont...
Desta forma, o desconhecido que sem hesitação se pusera a caminho para socorrer Eliana de Surtot, era o sobrinho da senhora de Croixmare, o outro desaparecido de Houx-Nolrs, que um acaso feliz e inesperado salvara também da morte semanas antes...
Correra em socorro de Eliana, generosamente, por dever, por nobreza de alma, e porque a sua natureza impulsiva não lhe teria permitido outro procedimento... mas, sem calcular que assim concorria para a felicidade de Rogério, o parente cuja alma vil não recuara perante um crime para se desembaraçar dum primo que podia trair o seu passado...
Valmont, ao tentar salvar Eliana, pensara apenas na criança inocente perdida num subterrâneo e sofrendo os horrores duma agonia que ele próprio conhecera.
«Má cabeça, mas belo coração», dizia dele a tia.
A excelente senhora podia acrescentar, sem receio de faltar à verdade, que apesar de todos os seus defeitos e de todas as loucuras da mocidade, João Valmont era o que se chama «uma alma nobre».
E era talvez devido ao seu belo carácter que, não obstante a sua pobreza, o rapaz tinha tantos amigos sempre prontos a auxiliá-lo.
Como se explicam muitas coisas
O jantar terminara havia muito, mas a velha Katou trouxera, conforme o uso, um pichel de cidra fresca, para beberem ao serão.
-Não precisam de mais nada? – Perguntou ainda.
-Não, minha boa Katou, podes retirar-te - respondeu Paulo.
-Bem, nesse caso vou descansar, que bem preciso... Um dia como o de hoje vale por dois...
Discretamente a velhota desapareceu.
Paulo Morec ainda impressionado com a narrativa do amigo, encheu as duas canecas de cidra, sem pronunciar palavra.
Em seguida, agarrou na bolsa do tabaco e antes de encher o velho e bem queimado cachimbo, ofereceu-a ao seu companheiro.
-Não tenho cigarros para te dar - desculpou-se -mas este tabaco é bom e podes fumar à vontade porque comprei grande quantidade dele.
Dispunha-se já a encher o cachimbo... o outro, porém deteve-o.
-Talvez seja melhor não fumares! - pediu com suavidade - Está ali uma doente... e com tosse.
Paulo acedeu imediatamente. Ao mesmo tempo que guardava na algibeira o seu arsenal de fumador contemplava João Valmont e sorria...
-Ora esta! - pensava - Quem poderia supor o estouvado João Valmont capaz de tais atenções?... Parece um papá cuidadoso a velar pela filhinha! Como um homem pode mudar quando gosta duma mulher!
Depois de ter avivado o lume, cujas chamas vermelhas se reflectiam na sala, observou, referindo-se ainda ao drama que o amigo lhe descrevera.
-No que me contaste há um facto que me causa admiração... é a simplicidade com que falas de tudo isso... friamente, quase sem rancor... como se o caso não fosse passado contigo e a tua vida não tivesse estado por um fio. É admirável esse
teu sangue frio!
-Não, meu amigo, não há motivo para tantos elogios. A minha cólera ruge e odeio Rogério... mas estou desarmado.
Levantou o braço, e apontando a cama onde descansava Eliana:
-Ela ama-o, compreendes!... E não tem culpa do que se passou! Está inocente! O golpe que atingir Croixmare atingi-la-á a ela também.
-E tu vais consentir que essa criança pura e sincera despose um monstro como teu primo?
O parisiense fez um gesto de desolada impotência.
-Que posso eu fazer... eles amam-se!
-Porque não foste ter com a mãe ou com a tia de Eliana? A qualquer delas podias contar a verdade e elas se encarregariam do resto.
-Pensei nisso... O prazer de vingança!
-E porque não o fizeste?
-Primeiro foi a doença que não me consentiu, depois... tive escrúpulos... Devo dinheiro a Croixmare e não estou em condições de lho pagar.
-Mas ele já não tem o menor direito ao teu reconhecimento porque quis assassinar-te. O outro encolheu os ombros.
-É bom de dizer... Dessa forma o meu desejo de vingança e o meu interesse harmonizavam-se na perfeição... Teria optado por esse procedimento se não conseguisse salvar Eliana de Surtot... E vês tu, só ontem compreendi que o gesto homicida de Rogério era necessário para que eu descobrisse o segredo do poço velho... Se eu não fosse atirado vivo para lá, nunca poderia correr em socorro desta pobre criança... assim, chego a abençoar o meu sofrimento e as minhas angústias, visto que, graças a elas, pude salvar Eliana.
O anfitrião envolveu a fisionomia do hóspede num penetrante olhar.
Morec pouco mais velho era do que ele. Celibatário também, compreendia e sentia como que o reflexo dos sentimentos que o outro experimentava, sem que ousasse confessá-los.
-Verifico que tens esta rapariga em muita consideração.
-Sim, a consideração que um patife da minha espécie deve ter por um anjo de doçura e de bondade como ela.
-E respeita-la tanto que por ela poupas um miserável?
-Não quero que sofra por minha causa. O destino se encarregará de castigar Rogério.
-E levas a tua isenção ao ponto de consentires que a inocência se alie à perversidade?
-Ah! Tivesse eu a certeza de que ela não o amava! - murmurou João Valmont como resposta.
E mais uma vez recaiu em melancólico devaneio.
-E Lanfred como resolveu o assunto? - perguntou Paulo que queria arrancar o amigo aos seus tristes pensamentos.
Este fez um gesto de dor.
-Dando um tiro na cabeça, o desgraçado!
-Ah!
Morec teve um gesto de horrorizado assombro.
-É verdade - replicou João - Desesperado, não tendo recebido notícias minhas, em quem depositava as suas últimas esperanças, vendo inevitável a falência, preferiu desaparecer... Uma terrível desgraça!
-E a mulher, os filhos?
-O infeliz pensou que a morte adiaria automaticamente a data de vencimento da dívida... e que eu poderia então ter tempo de arranjar o dinheiro. Deixou uma carta escrita nesse sentido e pedindo-me que olhasse pelos três entes que tanto amava... Que tristeza!... Quando consegui preveni-los de que me encontrava em tratamento no hospital, a viúva veio visitar-me, lavada em lágrimas! E o que mais me custa é que o meu infeliz amigo se matou duvidando de mim, de mim que nessa ocasião vagueava, ferido, exausto, pelo subterrâneo libertador... Ah! E pensar que nunca me poderei justificar!
-É medonho!
-Terrível, meu amigo! A pobre viúva morre de desgosto e os pequeninos estão reduzidos à miséria... Oh! E lembrar-me que foi aquele malvado o causador desta morte! Quando falo nisto, sim, perco o sangue frio e odei-o!
E mais uma vez baixou a voz para dizer:
-E quando penso que aquele homem, aquele assassino, hipócrita, mentiroso e covarde vai casar... com Eliana, tão pura e linda!...
-É um crime, sim - concordou Paulo - Mas o casamento ainda não se realizou e esta terrível aventura pode ter transformado as ideias da menina de Surtot.
Querendo, mais uma vez desviar o pensamento do amigo para ideias menos sombrias, perguntou:
-Mas finalmente como conseguiste sair do poço velho? Interessa-me imenso sabê-lo.
-Só por milagre, meu velho! Não vejo outra explicação. A queda bastava para me matar dez vezes em vez duma.
-com certeza.
-Até há poucos dias não conseguira compreender ainda o que se passara. Na casa de saúde onde fui tratado pelo meu velho amigo o doutor Brault, que tu conheces também,...
-Bem sei! Um belo rapaz!
-E com fortuna, não sei se sabes? Pois dei-lhe bastante que fazer, porque segundo parece encontrava-me em muito mau estado... Mas ia eu dizendo que na casa de saúde durante os quinze dias de imobilidade e repouso forçado, tentei reconstituir a aventura, adivinhar porque motivo eu não fora esmigalhar-me lá em baixo.
-O poço, segundo diz a lenda, é bastante profundo!
-É. Compreendi, porém, que não chegara a bater no fundo... Tive a impressão nítida de que fora projectado contra uma parede e que esta tinha cedido... Fiquei com a sensação de ter rolado numa superfície inclinada, plana e escorregadia.
-Naturalmente uma laje móvel que o peso do teu corpo fez abrir.
-Justamente... uma pedra que pelo seu próprio peso voltou ao seu lugar em quanto eu caía no fundo de qualquer masmorra.
-Meu pobre amigo, devia ter sido uma coisa terrível! -exclamou Paulo afectuosamente-Terrível e pavorosa, essa sensação de estar sepultado em vida.
-Ah! Por certo!
Ficou um instante pensativo e depois continuou com voz grave.
-Cem anos que vivesse nunca poderia esquecer o horror daquele despertar nas trevas... Teria desmaiado? Creio que sim,... A primeira sensação nítida que tive foi uma dor violenta no ombro e no corpo, do lado esquerdo. Pelo diagnóstico de Brault soube depois que além de muitas contusões, tinha duas costelas e a omoplata partidas... Era o que mais me fazia sofrer.
-E ainda tiveste força para te mexer?
-Tinha de ser!... Só a ideia de que estava enterrado vivo me causava pavor! O instinto da conservação, mais nada! Arrastando-me de joelhos e amparando-me com o braço direito explorei o meu cárcere às apalpadelas... sem a mais pequena luz! Não tinha lâmpada nem lanterna!... Quanto tempo isto durou, não sei dizê-lo...
-Mesmo assim, foste corajoso a valer!
-Não podia fazer outra coisa, já te disse comentou João, naturalmente - Num dado momento senti faltar-me a parede... «era uma abertura... avancei... Cada passo... cada passo, não, visto que eu caminhava de joelhos, em fim, cada pequeno progresso causava-me um sofrimento quase intolerável. E isto durou horas! Horas que me pareceram séculos!... Devia ter desmaiado por diversas vezes porque noto muitas falhas nas minhas recordações... Finalmente vi a claridade do dia!... Ah! Paulo não sei explicar-te o que senti!
-Calculo!
-Não, não podes calcular! É preciso ter-se experimentado. Estar na sepultura e sair dela! Foi uma ressurreição ou um segundo nascimento de que tivesse tido consciência... E a minha alegria foi tão grande, tão vivificadora que recuperei imediatamente a coragem e pude andar! Ah! ver o sol! Respirar o ar puro! Amparado por este renascer de energias, consegui vencer a centena de metros que me separava do atalho. Este cortava uma charneca selvagem e deserta, mas depois de demorados esforços, atravessei-a finalmente e atingi a estrada... vejo ainda o marco junto do qual caí exausto... já sem forças.
-E depois?
-Ainda fui feliz! Daí a pouco passava um auto. O motorista era um excelente homem! Instalou-me no carro o melhor possível e levou-me para Guingamp onde ficava. Mas eu não queria demorar-me ali... Estava sem dinheiro para pagar uma casa de saúde e depois, queres acreditar? No estado de fraqueza em que me encontrava, Rogério infundia-me pavor. Tinha a impressão de que me perseguia, que não tardaria a descobrir-me e que me mataria sem dó para me impedir de falar!... Resultado da depressão física que me aniquilava! Naquela ocasião não era mais do que um farrapo humano! Tinha de regressar a Paris, quanto antes.
-Em Paris podias recorrer a Brault.
-Exactamente! Portanto resolvi continuar a viagem. O meu salvador conduziu-me a uma farmácia onde me ligaram o braço e o tronco e ele próprio me instalou no comboio... Um excelente homem, não há dúvida!... No dia seguinte, depois duma noite terrível, devido à febre e aos solavancos, sem mesmo passar por minha casa, encontrei-me, finalmente, na casa de saúde, onde o nosso amigo me acolheu e tratou admiravelmente.
-E foi lá que compreendeste as causas a que devias a tua inverosímil salvação?
-Sim, quinze dias depois... lendo os jornais que relatavam o misterioso drama de «Houx-Noirs.» Leste também, não é verdade? Primeiro a espingarda do couteiro que caiu e não foi possível encontrar... depois a noiva de Rogério que igualmente desaparecia sem deixar vestígios... À fôrça de avivar as minhas recordações, voltei a sentir a impressão da primeira pancada em cima de mim qualquer coisa flexível e elástica que me projectou contra a parede fronteira... que cedeu... calculei que só os ramos dum arbusto poderiam ter produzido esse efeito. •
-É possível! Em geral, nesses poços antigos existe sempre qualquer vegetação que cresce entre as pedras... e cujas raízes vivem no barro que as une.
-Evidentemente foi o que sucedeu, tanto em meu caso como no de Eliana. Os ramos prenderam-nos, amorteceram a queda e salvaram-nos a vida.
-É isso. E parando todos três, tu, Eliana e a espingarda, no mesmo ponto, desviaram-se seguindo a mesma trajectória, e foram projectados contra o mesmo ponto da parede fronteira.
-Devia ter sido assim. Tanto a arma como nós, batemos no ponto onde se encontrava a mola que fazia mover a laje... Não encontro outra explicação...
-Nem tem outra... É um caso geométrico, como no jogo do bilhar - concluiu Paulo-Fizeram carambola, mais nada! Contudo, admira-me bastante que quem examinou o poço depois do desastre, inclusive o detective, não tivesse pensado nisso.
-Ninguém conhecia a existência do subterrâneo e mesmo que o suspeitassem é evidente que não podiam saber a que altura exacta, em relação à profundidade do poço, ficava situada o alçapão. A vegetação devia encontrar-se mais próximo da boca e segundo li nos jornais, foi principalmente o fundo que examinaram minuciosamente, sem ligarem maior importância aos arbustos.
Paulo voltou a encher as canecas de cidra e instintivamente tornou a pegar no cachimbo.
João sorriu.
-Meu pobre amigo! Privas-te de fumar e isso, custa-te.
-Sim, tens razão, custa-me um pouco.
«É um hábito inveterado! Nunca julguei que pudesse passar uma noite sem o meu velho companheiro... a tua narrativa, porém, despertou-me tal interesse que quase não dei pela sua falta. Mas já passa da meia-noite, e como já ontem não dormiste, deves estar derreado!... Se queres partilhar o meu quarto, é o único do primeiro andar que se encontra em estado de ser habitado... Não posso instalar-te nesta sala onde dorme a tua protegida.
Antes de abandonar o quarto, Valmont contemplou a comprida mesa onde os restos de comida se misturavam aos canjirões vazios e aos pratos sujos. Toda aquela desordem lhe desagradou.
-Ouve cá - disse, voltando-se para Paulo - se não te incomoda muito vamos tirar tudo isto daqui. Eliana tem hábitos de elegância... não gostaria que ao acordar numa casa desconhecida visse esta mesa servida, que lhe dá o aspecto duma taberna...
Morec nem se lembrara de tal coisa, mas de boa vontade acedeu à sugestão do amigo.
Rapidamente, os dois homens transportaram para a cozinha todos os objectos que atravancavam a mesa.
Em seguida, tendo arrumado a sala e apagado o candeeiro, recolheram ao quarto.
Agora só o fogo, a divindade benfazeja do lar, velava com o seu clarão esbrazeado e vermelho o sono da ressuscitada.
Viver é sofrer
No leito de vastos cortinados verdes, Eliana há muito que acordara.
Sentia-se um pouco alquebrada, mas bem disposta e a cabeça um tanto estonteada, incapaz dum esforço prolongado. No entanto, a medida que se tornava consciente, procurava saber onde se encontrava.
Tudo quanto a rodeava lhe era desconhecido. Além disso, os batentes de madeira, cortados por pequenas janelas estavam fechados, mergulhando o aposento numa semi-obscuridade. Mas como eram velhos e a madeira se encontrava razoavelmente desconjuntada, os raios do sol infiltravam-se pelas frinchas e vinham reflectir-se nos móveis bem encerados.
Os olhos de Eliana habituaram-se pouco a pouco a esta penumbra e distinguiam agora bem, no outro extremo do aposento, os armários alinhados e que pareciam estar longe, muito longe, tão vasta era a sala.
Aquele quarto não era decerto o mais próprio para uma rapariga moderna.
Como o biombo tivesse sido já afastado por mão cuidadosa e matinal, Eliana voltou-se e tentou afastar um pouco as cortinas do leito; tendo-o conseguido, avistou então a monumental chaminé, onde, debaixo das cinzas, fumegava ainda a enorme acha que ardera ao serão.
E, mesmo na sua frente, em cima da mesa redonda e ampla que um raio luminoso batia em cheio viu uma jarra rústica, de barro envernizado, que ostentava um ramo de espinheiro negro coberto de flores... dessas flores cor de neve que nas madrugadas frescas de Abril despontam, trazendo consigo toda a suave poesia da primavera.
Quem colocaria ali aquele ramo para alegrar o seu despertar?
O nome de espinheiro negro dado a estas flores de resplandecente alvura, resulta delas desabrocharem num tronco escuro, sem folhas e coberto de espinhos; logo, a mão que fizera tal colheita devia ter sofrido não poucas arranhaduras...
-Estes pensamentos acordaram nela várias reminiscências.
Um vulto masculino que se curvava para ela... um carro que corria infatigável... um outro homem... e uma velha bretã cuja touca palpitava a cada movimento da cabeça.
Pouco a pouco, as recordações de Eliana precisavam-se.
Durante a noite parecera-lhe ouvir conversar.
-A menos que tivesse sido um sonho... um sonho desagradável, nesse caso!
Mas não, lembrava-se bem agora.
O seu nome fora pronunciado umas poucas de vezes... e o do noivo também!
-Do noivo?
Sim, era extraordinário! As vozes tinham falado muito dele.
Oh! Como é difícil recordar... difícil e tão
triste... Ouvi coisas tão dolorosas...
«E na verdade, seria possível que tudo aquilo acontecesse?
Eliana de novo cerrou as pálpebras... Naquele pobre cérebro que a fadiga finalmente vencera, tudo se confundia. E pouco a pouco tornou a adormecer.
Mas alguém entrou.
Ouviram-se uns passinhos leves, miúdos, hesitantes.
-bom dia, menina.
Era a velha Katou que pousava qualquer coisa em cima da mesa.
-Aqui tem o seu almoço. Mas não se vê nada; vou abrir as janelas.
As portas bateram nas paredes exteriores e o sol entrou radiante pelas duas largas aberturas. Sobre a mesa o ramo cor de neve tinha um ar festivo, acolhedor e a seu lado o perfumado café com leite fumegava numa grande cafeteira, vizinhando na bandeja com uma pirâmide de delgadas fatias de pão com manteiga.
Eliana sorriu e esta velha alegre, o rosto pergaminhado, franzido num riso franco, observou com pitoresco sotaque:
-Não é preciso perguntar-lhe como passou a noite. Vejo-a rosada e bem disposta. E com certeza também lhe apetece o almoço, não é verdade?
Eliana agitou negativamente a cabeça.
Não, não tinha vontade... Há pensamentos que roubam o apetite.
-Mas minha filha, é preciso comer. Está aqui o leite fresquinho da vaca preta e branca, a melhor da região... E manteiga fabricada cá em casa, não há perigo de falsificação.
Em quanto falava, a velhota compunha as almofadas e ajudava-a a sentar-se.
Eliana deixa-se amimar. As atenções da boa mulher lembravam-lhe as de sua mãe.
-Não há dúvida que o café com leite cheira bem!-murmurou com amabilidade.
Começou a comer devagar, em quanto Katou, as mãos cruzadas sobre o avental escuro, a contemplava encantada.
Era tão gentil com os seus belos cabelos louros, os olhos cor de ouro, tão meigos, que naquele momento pareciam procurar qualquer coisa. Mas logo cravando-os na velha criada, perguntou por fim: -O almoço está muito bom e agradeço-lhe mas queria saber quem é a senhora e onde estou?
-Eh! minha querida menina, a resposta não é difícil. Eu chamo-me Katou, e encontra-se em Bossulan, o solar do senhor Paulo Morec, meu patrão. Eliana ficou na mesma. Nenhum daqueles nomes lhe dizia qualquer coisa.
-Ah! sim!-murmurou - Bossulan? E estamos muito longe de Houx-Noirs?
-Muito longe não! Concarneau fica perto.
-Concarneau fica em Finisterra... muito afastado de... Ah! Houx-Noirs!
A recordação deste nome fê-la estremecer. E muito pálida, cerrou as pálpebras, dominada por indefinida angústia, emquanto a bretã, inquieta, lhe tirou das mãos a chávena quase cheia. -Então que é isso? Não está bem? Eliana abriu os olhos que um pensamento intenso tornara maiores, e numa voz ansiosa indagou:
-Já estou melhor obrigada!... Mas diga-me há
quanto tempo estou aqui?
-Ora! Desde ontem à noite, minha menina. Ao anoitecer chegou de automóvel com o senhor João. Vinha muito cansada, quase desfalecida e naturalmente não se lembra, não é assim?
De facto tudo isto era tão vago que Eliana continuava a não compreender.
-E... o senhor... o senhor João... ainda cá
está?
-com certeza! E foi ele quem me veio pedir para lhe preparar o pequeno almoço. Foi ele também quem apanhou as flores. Não deve estar longe.
-Nesse caso, minha boa Katou, quere fazer-me o favor de lhe dizer que preciso falar-lhe?
-Imediatamente menina. vou já procurá-lo.
-Obrigada, Katou; um momento ainda, se faz favor. Leva a bandeja, sim! E compõe-me a roupa... a almofada? Assim, está bem... Queria ainda... não tenho espelho, sabe Katou? Estou muito despenteada?
-Ah!-exclamou a velha bretã - A menina está linda como um anjo! com os cabelos encaracolados como tem, nunca pode estar despenteada. E a velhota retirou-se com um sorriso manhoso, murmurando baixinho:
-Vamos... isto não vai mal... ela que se preocupa com o penteado, não está muito doente, com certeza. Ah! mocidade, mocidade!
Em quanto a criada se afastava Eliana considerava, pensativa, o que seria necessário esconder ou contar da sua aventura para conseguir conhecer a verdade... toda a verdade!... pois queria saber tudo...
Pouco depois a porta da sala abriu-se, dando passagem a Paulo Morec, acompanhado por João Valmont.
-Espero - murmurou este último, aproximando-se do leito onde descansava a ressuscitada que tenha dormido bem e que toda a sua fadiga desaparecesse.
A rapariga estava ainda muito pálida, mas no lindo e tranquilo semblante, os olhos haviam já recuperado o brilho vivo e moço.
Cravaram-se demoradamente em João Valmont. Após curto silêncio respondeu, parecendo medir as palavras:
-Oh! dormi bem, sim! Sinto-me bem disposta! Mas porque pergunta se a minha fadiga já passou? Estava assim tão cansada como isso? Porquê? Não me lembro... não me lembro... queria saber.
-Por agora ainda não; precisa de descansar contrariou João com meiga autoridade.
-Não, já estou boa. Quero saber tudo. Ouça: tenho a impressão de que corri um grande perigo e que o senhor me salvou.
O olhar franco ia dum para o outro dos dois amigos. Em face do seu mutismo sorriu ligeiramente e continuou:
-Queria agradecer ao meu salvador... mas... a qual dos dois devo a vida?
Paulo, a quem o amigo ensinara o sermão, calou-se, enleado. João esboçou um gesto despreocupado como que a indicar que o pormenor não tinha a menor importância.
-Não, não - insistiu Eliana - qual dos dois é o meu salvador?
-Nem um nem outro - respondeu por fim Valmont, com alegre sorriso - Além disso, salvador é exagero... Aqui está o que se passou: tivemos a sorte de a encontrar durante um passeio prolongado que sem dúvida a arrastou para longe de sua casa, mais nada. Como provavelmente tinha andado muito e estava cansadíssima, era muito natural que lhe oferecêssemos um lugar no auto e a conduzíssemos até aqui para descansar.
-Muito natural - repetiu Eliana, sonhadora
- Muito natural... Em fim meus senhores, fosse qual fosse o acontecimento que me colocou debaixo da vossa protecção, só tenho uma palavra muito simples e muito sincera a dizer-lhes: Obrigada.
E estendeu aos dois rapazes a delicada mãozinha. Algumas escoriações que destacavam na pele branca, lembraram a João a espinhosa moita onde a encontrara desfalecida. Contemplou-os pensativo; depois o olhar foi procurar o rosto onde os arranhões quase não se distinguiam já. Cada um deles representava um sofrimento.
-Pobre criança! - pensou o rapaz, condoído. -- E isto não foi nada comparado com as torturas morais que sofreu no subterrâneo.
A compaixão e a ternura de que o seu coração estava possuído, haviam aumentado desde que a sabia unida a ele pelo mesmo dramático infortúnio, pelas mesmas angústias e pelos mesmos perigos.
-Pobre Eliana!
Mas pálido, grave, conservava-se silencioso junto do leito, emquanto Paulo conversava com a doente.
-Creio que posso levantar-me - disse Eliana
- e assim dar-lhes-ei menos maçada do que na cama.
-Contudo, eu preferia que, por hoje não se levantasse - atalhou João Apanhou muito frio e ontem à noite tossia um pouco.
-Calculo que não seja caso de gravidade volveu Eliana, sorrindo - mas, se isso os tranquiliza, ficarei de cama até que me permitam levantar. Ponho, porém, uma condição - acrescentou com garridice - É que, umas vezes por outras, venham fazer-me um pouco de companhia. Nesta sala enorme sinto a sensação de ser um passarito caído do ninho.
-Faremos o possível para que um de nós esteja sempre aqui-ofereceu Morec com a amabilidade dum dono de casa que só deseja agradar aos seus hóspedes.
Eliana agradeceu-lhes. Dirigindo-se sempre a ambos parecia não os querer separar no seu pensamento, no entanto, o olhar luminoso procurava frequentemente o de João.
-Vou deixá-la. Fica o meu amigo a fazer-lhe companhia. Começam hoje as sementeiras e como contratei homens para me semearem um bocadito de terra, tenho de os vigiar. Desculpem-me, sim? Não devo demorar-me muito e como passo pela povoação, trazer-lhe-ei o jornal.
Quando ficaram sós encararam-se em silêncio.
João começou por não saber onde se sentar. Aquela cadeira aos pés da cama estava perto de mais... Colocava Eliana sob a acção directa do seu olhar o que era por certo indiscrição... e incómoda para a rapariga. A outra, junto da mesa, ficava mais longe; tornava-se porém como completamente estranhos um ao outro.
Valmont contudo, optou por esta última.
Eliana compreendeu a sua hesitação, e como depois de se sentar o rapaz continuasse sem dar palavra, começou a rir.
-Que grande penitência lhe impus não é verdade? Estar aqui fechado quando naturalmente lhe apetecia mais passear e gozar este belo sol primaveril.
-Oh!-protestou com ímpeto, voltando-se completamente para ela - Prefiro mil vezes estar aqui, mas receei fatigá-la, conversando. Deve ter necessidade de repouso e de silêncio.
-Ah! não - exclamou - silêncio, não!
«No meu pobre cérebro enfraquecido, atropelam-se tantas e tão dolorosas recordações... que gostaria poder suspender o pensamento.
-Quere tomar um comprimido que lhe provocará o sono, permitindo assim que essa cabecinha descanse, sem pensamentos importunos nem pesadelos dolorosos?
-E que, além disso, lhe dará ocasião para ir ter com o seu amigo Paulo - atalhou com um pouco de amargura.
-Não, não creia isso - protestou de novo com calor, curvando-se para ela - Só desejo aliviar os seus sofrimentos... Eu, que nestas últimas semanas fui submetido a provas um tanto cruéis, sei bem quanto o pensamento se perturba e enerva quando nos vimos imobilizados no leito e quando se recordam-as dores sofridas.
-É exacto - concordou - Pensar é uma tortura, principalmente depois de ter vivido as horas medonhas que eu vivi.
Animara-se e as faces coloriram-se sob a acção da febre interior que a devorava ao recordar os tormentos horríveis sofridos no subterrâneo.
-Não sabe... não pode sequer calcular o horror que é, estar enterrada viva... completamente só... durante horas... na escuridão duma noite que nenhuma estrela ilumina.
Escondeu o rosto nas mãos como para o isolar da visão que a perseguia. E, contudo, continuava a evocá-la:
-É medonho! Horrível!... Ah! o que sofri, Chorei, gritei! Sentia-me enlouquecer... E nada! Ninguém! Estava só, completamente só!
As lágrimas corriam-lhe pelas faces e grandes soluços nervosos a sacudiam.
Não tinha, com certeza, premeditado estas confidências, as palavras, porém, brotaram-lhe espontâneas do peito oprimido, como se sentisse um alívio em lhas dizer e soubesse que ele as compreenderia.
Valmont, transtornado pela comoção, aproximou-se, compassivo, do leito. Via bem que, naquele momento, os nervos se tinham assenhoriado por completo da corajosa rapariga.
Aquelas lágrimas eram sem dúvida a reacção da prolongada tensão da vontade. Teria até sido um bem para a vítima do poço velho, se o estado febril não aumentasse a sua fraqueza.
-Não pense mais nisso, minha filha. Acalme-se, peço-lhe... já passou.
-Ver-me só!-repetiu soluçando-Era horrível!
-Sim, era medonho! Mas já passou! Essas horas terríveis não se repetirão... Agora não está só. Estou eu aqui e não a abandonarei! Vamos, minha pobre criança, acalme-se, visto que tudo acabou.
Encostou-a a si, apesar de ser justamente aquele o ombro ferido. E não obstante o sofrimento provocado pela posição forçada, cingia-a ao peito, em quanto, com a outra mão e com o seu próprio lenço lhe enxugava os olhos e lhe afagava os cabelos... meigamente... com devoção.
com o desejo irrealizável de transferir para si todo o seu desgosto e com a convicção de que nada mais podia fazer do que embalá-la como o faria a uma criancinha.
Pouco a pouco, contudo, a crise passou os soluços diminuíram e os estremecimentos nervosos tornaram-se menos frequentes.
No entanto, deixava-se estar aninhada no ombro tutelar que a amparava e parecia protegê-la, emquanto que, com o próprio lenço de Valmont, enxugava as lágrimas.
-Como eu fui infeliz - repetiu puerilmenteSão horas que nunca poderei esquecer.
-Eu sei...
-Não! -atalhou com infantil trejeito - Não é bem a mesma coisa. O senhor é homem... e um homem pode melhor reagir do que uma mulher!
Tem razão! - concordou convencido - Foi-lhe precisa cem vezes mais energia do que a um rapaz, para sair daquele poço infernal.
Os cabelos de Eliana estavam, tão próximos dos seus lábios que o seu perfume lhe fazia esquecer o próprio calvário, quando, sem luz, ferido, o corpo magoado, tivera de procurar uma saída, de joelhos, às apalpadelas, envolto nas pesadas trevas do corredor sem fim.
Quando se sentiu perfeitamente calma, foi a própria Eliana que se lhe desprendeu dos braços, encostando na almofada a cabeça enfraquecida; conservou, porém, a mão entre as do seu salvador que antes de se sentar acabara por arrastar a cadeira, dos pés para a cabeceira da cama.
-Leu os jornais destes últimos dias? -perguntou ela de repente.
-Não, para quê?
-Queria lê-los.
-Vai fatigar-se.
-Pelo contrário, seria uma distracção.
-Estou certo de que a sua leitura a irá impressionar; bem sabe que só encontrará neles dolorosas recordações.
-Não creio. As deduções dos repórteres vão provocar-me o riso. Faço ideia que terão dito cada disparate!
-E não se engana.
-E não as achou engraçadas?
-Isso sim!
-Pois eu riria com gosto.
-Eu não. Talvez por eu próprio conhecer o terrível subterrâneo, quando as li só pensei o perigo que corria a nova vitima do poço maldito.
-Ah! sim! E quando soube?
-Ha quarenta e oito horas.
-Nesse caso, ante-ontem?
-Sim... à tarde.
-E partiu logo?
-Assim que me foi possível.
-E estava...
-Em Paris.
-Ah!... tão longe!
Calaram-se.
Reflectiam os dois naquela sequência de Perguntas e respostas que os fazia comungar no mesmo segredo. Valmont havia inventado uma fábula para exemplificar a Eliana a razão por que a trouxera para Bossulan; por seu lado ela afirmara não conservar a mais pequena recordação do que lhe sucedera na véspera; contudo, ambos sabiam que o outro nada ignorava e, se qualquer deles tivesse feito uma pergunta directa, a verdade brotaria espontânea dos lábios.
-Encontrou-me ontem de manhã? - inquiriu
de novo Eliana.
-Sim, ontem de manhã... mas não falemos
mais nisso, vai fazer-lhe mal.
Mas ela insistiu.
-Se não falo, penso, o que é pior!... Não me
deixe pensar sozinha!
Prosseguindo as perguntas, continuou:
-É muito longe de Paris à Bretanha?
-Pouco mais de quinhentos quilómetros - esclareceu, rindo por ter de mencionar tal pormenor.
-Teve de viajar toda a noite?
-Oh! Não foi mais de que um passeio! A noite
estava tão linda!
-Uma noite inteira... para me salvar!
-Não foi bem assim. A sua magnífica coragem, fazendo-a prosseguir até encontrar a saída io subterrâneo, já a tinha salvo... Felizmente encontrei-a já ao ar livre.
A rapariga pareceu pesar estas palavras... avivar a memória.
-Ao ar livre, sim,-disse devagar - mas não podia considerar-me salva, por isso! Se não fosse o senhor, teria morrido,
-Que está agora a fantasiar? É A verdade... Sei muito bem que, já sem forças, nunca me poderia ter libertado da moita onde caíra... Veja as minhas mãos.
-Simples arranhaduras.
-Que são eloquentes na sua mudez... Salvou-me a vida... Nunca o esquecerei!
-Não torne, peço-lhe - suplicou comprometido - a empregar termos que são exagerados, tratando-se dum facto tão simples. Não mereço tantos elogios.
-Disse e repito - teimou com exaltação - minha mãe deu-me a existência... mas era minha mãe! O senhor, porém, que nem sequer me conhecia, salvou-me a vida! Tem direito a todo o meu reconhecimento... Pode pedir-me o que quiser que, se estiver na minha mão conceder-lho, juro que o farei... Ouve bem, senhor João, peça o que quiser!
No seu reconhecimento sem limites desejaria poder dar-se a si própria, se possível fosse. Fixava-o com os grandes olhos brilhantes como se esperasse que ele aproveitasse imediatamente o magnânimo oferecimento e manifestasse qualquer desejo que não hesitaria em satisfazer.
Mas o olhar masculino que mergulhava no seu conservava a sua expressão triste e sombria.
O rapaz compreendia bem que naquele minuto único podia exigir o que quisesse da sua companheira, até a vida!...
Mas, não pretendia conquistá-la pelo reconhecimento. Não era dessa forma que desejava reinar no coração de Eliana.
-Conceda-me a sua amizade - pediu finalmente - Conceda-ma a despeito de tudo, mesmo que lhe digam que sou indigno dela!... E depois, seja feliz... sabê-la completamente feliz será a minha mais bela recompensa, se é que mereço alguma.
Uma nuvem velou de súbito as pupilas claras de João. Consciente da sua emoção, voltou a cabeça num movimento orgulhoso, pretendendo ser mais forte do que os próprios sentimentos. Eliana, contudo, surpreendera aquela dor masculina e, criança pura e inexperiente, conservou-se calada, perguntando a si própria que tristes pensamentos podiam ensombrar a fronte do rapaz e fazê-lo bradar apaixonadamente, numa voz tão meiga, tão triste, o comovente voto que soara como um lamento :
-Que eu a veja completamente feliz.
-Feliz! ela?
E porque não ele, também?
Existiriam então homens que nada esperassem da vida? E aquele que a salvara seria um deles?
Súbita opressão avassalou Eliana... um pressentimento angustioso perante uma infelicidade ignorada mas próxima?... Ou a dor de se sentir impotente para evitar uma catástrofe?
E insensivelmente a noiva de Rogério caiu em profundo e prolongado devaneio...
Viver é amar também
Os derradeiros clarões do crepúsculo entravam pelas estreitas janelas. Os contornos dos móveis esbatiam-se na penumbra. Todo o calor, toda a luz se concentravam no esplendor do fogo, do fogo que crepitava alegre e brilhante!
Os reflexos avermelhados da chama arrancavam cintilações aos dourados cabelos de Eliana e rosavam o seu vestido de brancura.
Como era bela assim, a frágil convalescente!
Que feliz ideia tivera Paulo em ir buscar ao velho armário aquele xaile de cachemira branca, recordação de remota avó e que tão graciosamente envolvia os ombros delicados e o corpo esbelto da doente, que cuidadosamente haviam instalado numa poltrona, perto da lareira vasta e acolhedora!
O cão, enorme e de pêlo acastanhado, viera deitar-se-lhe aos pés e os dois amigos contemplavam, silenciosos, aquele quadro admirável e que era de todos os tempos: uma criança pálida e loura que sentada junto do fogo sonhava, tendo aos pés um animal de pêlo fulvo.
Mesmo naquele pacífico cantinho da Bretanha, Valmont não esquecia a viúva e os filhos de Lanfred. E para ir telefonar-lhe para Paris, arrancou-se ao suave ambiente da grande sala docemente iluminada, onde como uma linda e loura castelã doutras eras, imperava Eliana.
-Vou deixá-los, nobre donzela e gentil cavaleiro... Que os deuses do telefone me sejam favoráveis e consintam que regresse breve!
Levantou-se e a sua alta estatura pareceu mais alta ainda na penumbra da sala.
-Até já.
Em quanto se afastava, Eliana seguiu-o com o olhar.
-Parece ser muito agradável, o seu amigo observou para Paulo numa voz indiferente.
-É o rapaz mais perfeito que até hoje conheci.
-E conhecem-se há muito tempo?
-Desde sempre!
-Ah!... É um amigo de infância! Nesse caso é também filho da Bretanha?
-Não. Nasceu na Normândia... normando puro! Mas minha mãe e a dele foram educadas no mesmo colégio e todos os anos, uma das famílias ia passar as férias com a outra.
Após breve pausa acrescentou simplesmente mas com certa gravidade.
-Não creio que dois irmãos possam ter mais confiança um no outro do que eu e João. A mais profunda e sincera amizade nos une.
-Uma amizade assim, é bela! - comentou Eliana, sonhadora.
Katou trouxe o candeeiro. O olhar maternal da velha criada foi imediatamente procurar o da rapariga que lhe sorriu.
Paulo Morec levantou-se e foi buscar um cavalete onde se via uma tela já preparada.
-Gostaria de conservar uma recordação da sua passagem pela minha casa - explicou - Consente que a retrate num pequeno esboço?... Assim... tal como se encontra nesta ocasião. Se consente, darei agora os primeiros traços e amanhã com poucas horas de trabalho ficará pronto.
Eliana acedeu com leve sinal de cabeça.
-Se isso lhe dá prazer...
-Sim, um enorme prazer. Estes dias foram deliciosos para mim. Recebê-los em minha casa, a si tão encantadora e a Valmont, meu grande amigo, não é felicidade que se goze todos os dias.
-Vive aqui sozinho?
-com a minha velha Katou.
-E João vem cá poucas vezes?
-Infelizmente!
-Vive em Paris?
-Vive.
Em quanto falava, começava o desenho e os dedos ágeis moviam o lápis com rapidez.
-Estou bem assim? - indagou Eliana com uma pontinha de vaidade.
-Se aqui estivesse Katou afirmar-lhe-ia que está bela como uma madona.
-Gostaria de ser imortalizada sob um aspecto favorável.
-Seria impossível pintá-la doutra forma.
-Mesmo estando abatida pela doença?
-Se me atrevesse, dir-lhe-ia que a acho deliciosa assim... o seu rosto delicado harmoniza-se na perfeição com esse ar lânguido e indolente... mas tenho de me calar. Valmont nunca me perdoaria se continuasse.
Leve rubor coloriu as faces de Eliana.
-É assim tão severo?
-Ele? Isso sim! Pelo contrário, é um companheiro alegre e tolerante.
-Então não compreendo!
-É porque... já reparei que não gosta que brinquem consigo. -Fala sério?
-Tudo quanto há de mais sério! - confirmou, rindo.
E vendo-a confusa insistiu malicioso:
-Já devia ter reparado também! Fala-lhe com um respeito... quase religioso... como se deve falar aos anjos, não é assim?
-É verdade! - concordou Eliana, admirada Mas não costuma dirigir-se assim às outras mulheres?
-Ah! isso sim! João é usualmente um estouvado e estou certo de que a menina Eliana é a primeira rapariga sobre quem ele não descarrega uma chuva de cumprimentos e não assedia com galanteios.
Eliana tornou-se pensativa:
-No entanto, não sou tão carrancuda que lhe meta medo.
-Sim, com efeito, não deve ser por isso.
-Então porquê? Diga!
-Oh! Por mim não sei! Talvez seja melhor perguntar-lho.
Mas abandonando de súbito o tom de gracejo, acrescentou:
-O pobre rapaz, nestes últimos tempos, tem tido grandes dissabores.
-Preocupações materiais?
-Sim... Não tem fortuna... Os pais pouco ou nada lhe deixaram... pessoas que viviam com certa aparência... mantinham três casas: na cidade, no campo e na praia, sem que os seus rendimentos bastassem a tais ostentações... Por seu lado João foi educado à antiga, na convicção que certas ocupações não são permitidas a filhos-família. E de tudo isto resulta que na sua vida conta mais desgostos do que horas felizes.
-Já não é a primeira pessoa a que ouço dizer o mesmo - murmurou Eliana que recordava as apreensões da senhora de Croixmare sobre o sobrinho.
«Mas ultimamente não teve novas razões para se afligir, não é verdade? -continuou em voz alta.
-Pelo contrário, creio que teve! Graves dissabores até. Perdeu o emprego... o patrão suicidou-se.
-Ah ! - exclamou a rapariga muito impressionada.
Acudiam-lhe à memória palavras soltas.
«Perseguido, desanimado... uma viúva... as criancinhas !»
-É horrível!-balbuciou.
Passou a mão febril pela fronte onde de súbito sentiu uma impressão aguda, dolorosa.
-E agora está desempregado? - inquiriu maquinalmente.
-Está, infelizmente! E se o problema do futuro o preocupa, foi contudo o suicídio do amigo que o abateu... Estimava muito o patrão e lamenta não ter podido socorrê-lo.
-Compreendo agora a tristeza que por vezes manifesta.
-Sim é natural ...e depois é tão infeliz... O destino tem sido tão cruel para com ele! Ainda agora. por exemplo, foi ferido... saiu há pouco do hospital.
-Ferido? - repetiu Eliana, surpreendida.
-E perigosamente, mesmo! Não reparou ainda que tem dificuldade em mover o braço esquerdo?
-Partiu-o!
-Partiu e também a omoplata! Anda ligado mas está muito longe de estar curado! Saiu da casa de saúde para vir à Bretanha.
Eliana não respondeu.
Recordava que nessa manhã João lhe amparara o corpo com o braço esquerdo... Quando ela lhe encostara a cabeça ao ombro tinha notado que o rapaz havia feito um trejeito de dor... não ligara grande importância, porque não podia calcular... só agora relacionava e verificava que, apesar de magoado, não tinha tirado o braço emquanto a vira chorar...
Soltou fundo suspiro. A sua dívida de gratidão aumentava sempre.
Que extraordinário rapaz era aquele João, com tantas atenções!
-E é tudo isso que o faz andar triste!-comentou em voz alta.
-Evidentemente tem carradas de razão para não andar alegre.
Morec parou de trabalhar.
Afastando de si a tela, contemplou-a, e inclinando a cabeça alternadamente para a direita e para a esquerda, comparava o trabalho com o modelo.
-Não está mau - verificou.
-Oh! deixe ver.
Do seu lugar entregou-lhe amavelmente o quadro esboçado.
-Não está pronto nem coisa que se pareça, contudo, já tem parecença... O corte do rosto... a boca ...o queixo...
-Sim, talvez!-concedeu Eliana, pouco convencida, vendo apenas uma confusão de traços negros- Devo ser eu... quando estiver acabado! Morec sorriu.
-É evidente que para um profano este esboço parece um borrão. Verá, porém, quando tudo isto estiver colorido, como a imagem tem vida!
-Contanto que fique satisfeito com a sua obra é o principal - condescendeu desapontada, e verificando que se achava razoavelmente feia naquele conjunto de rabiscos negros.
-Verá! Verá! -exclamou alegremente o pintor amador - Até o próprio João Valmont há-de querer roubar-me o meu quadro! Mas tenha paciência! Não é em seu proveito que trabalho. Não tornarei a ter, talvez, outra ocasião para fazer o seu retrato e por conseguinte não me separarei deste nem por um império!
-E que interesse pode ter o seu amigo no meu retrato?
Paulo Morec que pegara no lápis e recomeçava a trabalhar, parou para contemplar Eliana; mas esta não chegou a perceber se fora a sua frase que fizera o rapaz suspender o trabalho ou se este parara apenas para examinar o modelo antes de prosseguir o desenho.
Contudo um relâmpago zombeteiro iluminou o olhar do dono da casa.
-Só uma mulher - elucidou misterioso - ocupa agora o pensamento de Valmont. Fora essa todas as outras lhe são indiferentes.
Eliana estremeceu.
-Uma mulher?
-É verdade...
Pareceu hesitar, mas depois, voltando-se para ela, explicou-lhe em confidência:
-Presentemente é esse o seu maior desgosto...
-Ah!
Nunca lhe diga!
Coitado... um amor infeliz... Nunca lhe diga que lhe contei estas coisas.
-Oh! fique descansado! Não me atreveria! Mas então, ama sem esperança?
-A mulher de quem gosta é muito rica para ele.
-É suficientemente simpático para que esqueçam a sua pobreza - volveu Eliana com voz indiferente.
O outro encolheu os ombros.
-Quem sabe... mas nunca se declarou.
-Porquê?
-Escrúpulos!... João preocupa-se com ninharias! Agora já é tarde! Ela vai casar com um parente dele... rico, muito rico, mesmo... um primo que não é lá muito boa pessoa... E que está longe de se poder comparar com o meu pobre amigo!... Nem por sombras! A rapariga se casasse com João seria muito mais feliz do que com ele, com certeza... Mas que quere... é destino de cada um! Para o outro todas as felicidades, para o meu camarada todas as tristezas... A vida é assim!
Em quanto falava, evitava olhar a sua interlocutora, mas tinha o cuidado de intercalar as suas confidências por pequenas pausas, como se elas lhe fossem arrancadas contra vontade.
Quando julgou ter dito tudo quanto queria que ela soubesse, Morec fixou-a então. O trabalho não era suficiente pretexto para a encarar?
Eliana conservava-se imóvel e o olhar vago dava a impressão de que tinha o pensamento muito longe dali. Contudo, na testa, uma ruga transversal transformava-lhe a fisionomia, habitualmente tão meiga, dando-lhe uma expressão de dureza.
-Não devia ter-lhe contado todas estas coisas
- balbuciou Morec subitamente impressionado pela atitude hostil da sua hóspede.
-Não sei porquê! Pessoalmente nada me interessam os amores do senhor Valmont! Mas se lamenta ter-me confiado os segredos do seu amigo, fique descansado, porque nunca costumo repetir o que me contam!
O tom era peremptório, seco, até mesmo um tanto agressivo...
Morec teve a sensação duma animosidade que nem sequer pensou esconder. Afligiu-se e não continuou a conversar.
O silêncio reinou até que o pintor arrumou os lápis. Katou apareceu para pôr a mesa para o jantar e Valmont entrou quase logo a seguir.
-Como está agradável aqui para quem apanhou o vento que sopra lá fora. Durante o dia a temperatura suave anuncia o regresso da primavera, mas logo que anoitece e o sol se esconde, sente-se que o Inverno ainda não encolheu as garras.
O rapaz calou-se, porém, intimidado pela expressão dura do rostozinho que evitava o seu olhar e que parecia nem sequer o ouvir.
Morec, para quebrar o silêncio, mostrou-lhe o esboço de Eliana.
-Os contornos não estão maus - observou João, depois de o ter examinado - Não esqueças, porém, de pôr um pedacinho de sonho nos grandes olhos dourados... idealizar a expressão... Olha... assim... vês bem?
De braço estendido apontava Eliana. Ia precisar a observação, mas a cabecita, sob a pesada massa dos vaporosos cabelos, levantou-se numa atitude tão orgulhosa, os lábios vincaram-se com tal expressão de evidente desdém, que Valmont debalde tentou encontrar no rosto o sonho e o ideal que exigia no esboço.
-Vai conversando, meu rapaz!-pensava efectivamente Eliana, com azedume - Podes tomar à vontade esses modos afectados e falar com a tua voz mais insinuante que já não me enganas. Não passas dum vulgar conquistador, pronto a todos os expedientes para seduzires uma rapariga rica e sem defesa. Quanto ao teu amigo, estava oportunamente ensinado e recitou bem a lição! Bem demais até, porque ultrapassou os seus fins !... Podem à vontade emboscar-se como ladrões de estrada que não conseguirão apanhar-me meus caros senhores... Tudo é falso aqui... até a história de ontem à noite, contada de propósito para que eu a ouvisse... E eu, tão tola que tudo acreditei!
Ah! é que a destemida Eliana não estava com meias medidas quando se tratava de desmascarar hipócritas!
Mas, como apesar de tudo um daqueles homens a acolhera em sua casa e o outro lhe prestara um serviço que não podia esquecer, ocultou os seus sentimentos e esforçou-se por manter a devida correcção.
É de calcular que, com uma conviva tão reservada, o jantar decorresse quase em silêncio.
A certa altura porém, Morec perguntou ao amigo se conseguira falar com a viúva de Lanfred.
-Consegui. Foi ela própria que me atendeu, visto não ter criada... como é de supor. A sua situação continua a ser aflitiva e pede-me que procure resolver-lhe as dificuldades... Disse-me que me tinha escrito. A carta deve chegar amanhã e por certo conterá esclarecimentos que não puderam ser dados pelo telefone. Conforme o que disser, partirei amanhã à noite ou sexta-feira de manhã.
Eliana ouvira a conversa sem pronunciar palavra.
O seu salvador falara com tanta sinceridade e parecia tão preocupado, tão comovido, que quase se convenceu de que não mentia.
Todavia, Morec, aludindo aos inconfessados e infelizes amores de João, despertara-lhe a desconfiança. E as palavras ditas agora, sem dúvida propositadamente, não eram suficientes para lhe restituir a tranquilidade e sossego.
A refeição pareceu-lhe interminável. Tinha pressa de se deitar para poder reflectir com toda a calma.
No silêncio nocturno, de olhos fechados, não iria fazer novas deduções? Fora tão ingenuamente confiante, durante aquelas vinte e quatro horas!
Para o futuro precisava ser mais ponderada e não conceder assim a sua simpatia ao primeiro que aparecesse, e que talvez não fosse digno dela.
Apesar de tudo, aquela dúvida tornava-se-lhe dolorosa; quanto mais agradável seria para ela saber o seu salvador possuidor de todas as virtudes!
Um pouco triste desculpou-se por não poder ficar mais tempo a fazer-lhes companhia, alegando estar muito fatigada.
Aparentaram dar crédito às suas desculpas e deixaram-na retirar, sem protestar. E pouco depois também eles deixaram a sala, com a obscura sensação dum inexplicável mal-entendido.
Explicações que acabam melhor do que seria de esperar
Não obstante o sol que dourava, radioso, os móveis da enorme sala e o ramo de espinheiro negro, semeado de florinhas cor de neve, que João renovava todas as manhãs, a mesma atmosfera de constrangimento envolvia o pequeno grupo reunido junto do fogão, onde Eliana posava enquanto Morec acabava o retrato.
A loura criança era já a alma daquela reunião e o seu sorriso o sol que os aquecia. E porque ele não floria nos seus lábios como habitualmente, os dois rapazes conservavam-se silenciosos.
De súbito a voz forte do distribuidor do correio ecoou lá fora
-Aqui estão os jornais do costume e uma carta ,para o senhor... senhor João Valmont! É cá em casa?
-Dê cá.
Pouco depois voltava, trazendo na mão uma carta com timbre comercial.
-É da senhora Lanfred. Vou ver se tenho de partir esta noite... ou se posso adiar a viagem para amanhã de manhã.
-Preferia isso. Não posso conceber nova viagem de noite. Toda a gente conta contigo e abusam da tua condescendência! É demais! Não és nenhum terra-nova !
Valmont admirado com aquela observação feita em presença da convalescente, fulminou o amigo com um olhar de reprovação. O excelente Paulo nem pestanejou. Nunca aparentara tanta naturalidade!
É que estava um pouco arreliado com a gentil hospedazinha pelo seu mutismo. O protesto tão peremptoriamente emitido, escondia uma censura indirecta que lhe era dirigida.
Percebera bem que as suas confidências não haviam atingido o desejado fim. A sua interlocutora atribuira, por certo, às palavras que proferira, sentido diferente daquele que ele lhes dera.
Uma rapariga como outra qualquer não teria tido semelhantes pensamentos; mas aquela era rica e imediatamente tomara a sua franqueza por cálculo interesseiro.
E Paulo, que falara espontaneamente, apenas no intuito de ser agradável ao amigo, não podia perdoar-se ter obtido um resultado tão oposto ao que contava.
O seu mau humor estendia-se também à causadora de tal desilusão e com a sua rudeza bretã, a custo o dissimulava.
Valmont, depois de o ter observado em silêncio, afastou-se para ler a carta.
-Aconteceu o que já calculava. A senhora Lanfred está perfeitamente desorientada e essa desorientação é a única coisa que me preocupa. O resto não é urgente. Vou mandar-lhe um telegrama, anunciando a minha chegada para amanhã à noite e assim não terei de partir hoje.
Despreocupado, ia meter a carta na algibeira quando Eliana se levantou, de rosto afogueado.
-Deixe-me ver essa carta - quase ordenou numa voz áspera e autoritária que não lhe era habitual - Eu quero saber.
O pedido foi tão inesperado que João deu uma volta rápida sobre os calcanhares para a encarar.
Olhou-a, por tal forma surpreendido com uma exigência tão fora das regras habituais, que julgava não ter ouvido bem.
Seria possível que, mal se conhecendo, ela cometesse, para com ele, tão evidente indiscrição?
Fixou-a.
Que viu ele naquele olhar que afrontava o seu? Que extraordinária hipótese, que suspeita imprevista irritara assim Eliana contra ele?
Ficou pregado no mesmo sítio, a carta apertada na mão, não porque hesitasse em lha mostrar, mas porque lhe custava admitir tão inverosímil pedido.
De resto já desde a véspera tentara em vão encontrar uma explicação para o mutismo da rapariga. Que motivo de queixa teria contra ele?
Quando o seu assombro se desvaneceu, entregou-lhe a carta sem pronunciar palavra.
Eliana não hesitou: agarrou-a, em quanto o olhar altivo parecia desafiar o do rapaz. Sem a mais pequena cerimónia abriu-a e leu-a até ao fim.
Entretanto, aquela atitude arrogante pareceu tranquilizar Valmont.
Leve sorriso lhe contraiu os lábios. Como Eliana terminasse a leitura, observou em tom meigamente trocista:
-Não são coisas que lhe digam respeito... e nunca julguei que essa carta lhe despertasse tanto interesse?
Eliana levantou a cabeça e encarou-o.
-Quem é esta mulher que lhe escreve? - perguntou desconfiada, por única resposta.
-A viúva dum amigo meu.
-É nova?
-É, e mãe de duas encantadoras crianças.
-O marido morreu há muito tempo?
-Perfazem hoje dezasseis dias.
-Ah!
-Suicidou-se... negócios desastrosos.
-Suicidou-se?
-Se quere ler os jornais que relatam o caso, devo ter aqui os artigos que cortei!
Manifestando a mesma curiosidade, a juvenil convalescente estendeu a mão.
Valmont continuava a sorrir. Dir-se-ia que o encantava aquele inquérito sobre assuntos que lhe diziam respeito.
Tirou a carteira e começou a procurar os jornais que dissera ter.
-Aqui estão!-disse tranquilamente.
O seu olhar divertido não abandonava a indiscreta, e em quanto ela lia os artigos do jornal... mordia os lábios... talvez para reprimir qualquer reflexão mais familiar e zombeteira!... ou então para dominar uma alegria íntima... inexplicável.
A poucos passos, Morec abandonara o trabalho e escutava atento o singular interrogatório. Não lhe passara despercebido o nervosismo da sua hóspede. Iria ela fazer qualquer comentário inesperado e deplorável?
Deplorável... sim, para eles e para si também!... Qualquer comentário que o poderia colocar numa situação falsa, perante Valmont, que não estava ao facto da sua desastrosa intervenção.
Que atitude tão singular a da menina de Surtot! Devia por certo ter obedecido a um impulso espontâneo e instintivo!
Por seu lado, João, que habitualmente era um pouco arrebatado, conservava naquela ocasião a impassível deferência dum homem bem educado que se submete aos caprichos duma criança amimada... e extremosamente amada também!
Paulo teve a impressão de que, sem o parecer, dos dois, era o amigo o mais forte. Eliana para opor à sua impecável correcção apenas tinha imaginários agravos.
Quando terminou a leitura dos jornais, a noiva de Rogério demonstrou grande perturbação. Então toda aquela história da viúva, do suicídio, das faltas de dinheiro, era verdadeira?... Nesse caso também o mesmo poderia acontecer com o resto?
Abatida, deixou-se cair de novo na poltrona.
Sentia a cabeça estonteada, e ficara completamente desorientada.
Os dois rapazes a quem, durante vinte e quatro horas, atribuíra tanta perversidade, apareciam-lhe agora isentos de toda a suspeita, em quanto que ela, cometera uma indelicadeza para com aquele que lhe prestara tão grande serviço... que lhe havia salvo a vida.
Estava consternada e ao mesmo tempo encantada com tal resultado. Apoiando os cotovelos nos joelhos, ocultou nas mãos o rosto transtornado.
Prolongado silêncio, vibrante de comoção, pairou na sala.
Foi Valmont o primeiro a quebrá-lo, com autoridade :
-Meu caro amigo, desculpa mas vou interromper o teu trabalho. Esta criança precisa sair... Está aqui fechada há bastantes dias e faz-lhe mal... enfraquece-a... um pouco de sol e de ar puro deve fazer-lhe bem... Vou roubar-ta!
Em quanto os outros dois pareciam comovidos e perturbados, só ele aparentava conservar todo o seu sangue frio.
Era tão novinha e estava tão fraca ainda, a pequenina Eliana a quem, nos seus sonhos de celibatário evocava constantemente, desde que, dois anos atrás, a encontrara em Ostende...
Uma onda de ternura crescia no coração do rapaz, ao verificar que finalmente a tinha ali, bem junto de si.
Inclinando, misericordioso, a alta estatura para a loura cabecita que permanecia curvada, João ajudou Eliana a pôr-se de pé e com modos autoritários passou-lhe a mão pelo braço válido.
-Venha comigo dar uma volta pelo jardim. As árvores ainda não deram fruto, mas o pomar do meu amigo é uma maravilha. Um verdadeiro oceano de flores rosadas e cor de neve.
A voz era grave mas tranquilizadora. Dir-se-ia que as perguntas um pouco ousadas da jovem curiosa lhe tinham dado sobre ela direitos até então ignorados.
Talvez que emanasse dela um fluído obscuro que, transmitindo-se a Valmont, fizesse comungar e vibrar ambos na mesma emoção.
O que era evidente é que Valmont levava Eliana como uma coisa muito sua, que lhe pertencesse por direito.
Caminhavam devagar, calados, pela vereda tapetada de relva que algumas margaridas esmaltavam de branco.
Todo o encanto de Abril, toda a frescura da primavera se encontravam encerradas no rústico pomar de Paulo Morec.
Desde a relva fresca dum verde brilhante às cerejeiras cor de neve e às rosadas macieiras, tudo transbordava seiva, frescura e mocidade!
Ainda um pouco pálida, envolta nas fartas pregas do seu xaile branco, Eliana avançou naquele cenário de maravilha pelo braço do seu salvador.
Só pararam tempo depois.
Então Valmont, obrigando-a a voltar-se para ele, pousou-lhe as mãos nos ombros e mergulhando nos grandes olhos palhetados de ouro, prestes a velarem-se de novo por húmido véu, o seu olhar franco, perguntou com firmeza:
-Vai agora dizer-me, Eliana, o que procurava há pouco? Que esperava encontrar naquela carta? De quê ou de quem suspeitava?
Eliana, porém, voltava a cabeça, forcejando por ocultar o olhar onde ele poderia ler muita coisa.
-Não me quere responder insistiu com ternura depois de esperar em vão que ela falasse.
-Não, não quero.
-Foi quase um suspiro que o rapaz desejaria poder colher mais de perto.
Contentou-se, no entanto, em apertar contra si o corpo delicado.
-Màzinha!
Palavra mágica!
Que mundo de ternura significam estas três sílabas nos lábios dum apaixonado! E a única censura que um coração cativo ousa dirigir ao objecto do seu culto... E esta palavra é quase tão doce como um beijo. -Màzinha!
Foi como se Valmont tivesse dito:
-Adoro-a!... Ah! Como desejaria poder guardar para sempre, naquele jardim sedutor, tão longe do mundo civilizado e isolado dele por espessos muros, debaixo da encantadora abóbada das árvores em flor, a querida criança a quem salvara a vida!
Porque motivo, naquele minuto inebriante, a recordação brutal doutro homem veio ensombrar a sua alegria e desvanecer o sonho delicioso?
Rogério de Croixmare, o noivo preferido, mesmo de longe os separou tão completamente como se estivesse presente e Valmont afrouxou o seu abraço.
A fisionomia que o amor transfigurara por momentos, readquiriu a sua expressão sombria.
A de Eliana, pelo contrário, iluminara-se.
Timidamente ergueu a mão e tocou, no ombro do rapaz... aquele que calculava estivesse ferido.
Através da espessura da fazenda sentiu as apertadas ligaduras do penso.
-Está ferido?... Porque razão não me disse que tinha o braço partido?... Porque mo ocultou?...
-Porque não tinha importância nenhuma, principalmente agora que já estou quase bom.
-Foi um tiro de pistola?
-Oh! não! Graças a Deus! Uma simples fractura e já chega.
-Como lhe sucedeu isso?
-Caí.
-De grande altura?
-Sim... era suficientemente alto!
-E há quanto tempo foi?
-Há três semanas.
-Ah!... três semanas...
Compreendeu de súbito e o seu belo sorriso extinguiu-se.
Tentava reconstituir a cena.
-E ficou quite com essa simples fractura, como lhe chama?
-Não, houve mais umas coisitas. Além da omoplata, fractura do braço e de várias costelas, lesões por todo o corpo... uma colecção completa, como vê! Já é suficiente e... se tivesse havido ainda uma bala a extrair, julgo que não teria chegado a sair da casa de saúde!
-É horrível! -exclamou, estremecendo - E eu que, no outro dia, me encostei tão estouvadamente ao ombro ferido! Porque não me disse que o estava a magoar?
-A alegria da sua ressurreição fazia-me esquecer as minhas próprias dores.
-Quando penso que, para vir de Paris à Bretanha , teve de guiar o auto só com uma das mãos!
-Assim era preciso e não é tão difícil como parece.
-E para as mudanças de velocidade?
-Oh! De noite! Não foi necessário afrouxar... e depois lá me arranjei conforme pude.
-E como fez para me transportar nos braços?
-Quere que exemplefique? -propôs rindo.
-Oh! Não - bradou, recuando instintivamente, e corando muito - Agora estou forte e já posso andar sozinha.
-Felizmente! Mas não esqueça que um homem consegue sempre erguer nos braços a mulher que deseja transportar.
-Ou, talvez... a mulher...
Ia acrescentar: «que deseja salvar» mas preferiu calar este complemento.
Tinha atingido a extremidade duma rua atapetada de relva, sombreada pela abóbada das cerejeiras que, um pouco atrasadas, se cobriam ainda de flores.
Um banco rústico parecia convidá-los a descansar. Os dois jovens sentaram-se. Penetrando pela ramagem, o sol dourava as duas cabeças bastante próximas uma da outra.
-Vou fazer-lhe um pedido, senhor João. Vai deixar-me ler todos os jornais que se referem ao assunto - implorou Eliana - Quero saber tudo quanto se passou.
-Tenho na minha mala os artigos, que cortei em Paris - acedeu simplesmente - Creio que poderemos encontrar aqui os que saíram depois.
-É preciso também escrever a minha mãe. Deve estar louca de dor. Não quero que se aflija por mais tempo.
-Já a preveni - respondeu com simplicidade.
-O quê? Minha mãe já sabe? E foi o senhor quem a preveniu!
-Esta última atenção do homem de quem tanto suspeitara, causou-lhe a maior surpresa.
-Querida mãezinha! Fez bem em a avisar!
-Não quis que a julgasse perdida quando eu sabia que estava salva - explicou.
-Oh!-exclamou radiante-como é bondoso!
E o seu olhar exprimia infinito reconhecimento.
-Quando lhe escreveu?
-Na própria noite da sua chegada aqui.
-E que lhe disse?
-Isso agora é mais complicado - retorquiu embaraçado - Tive de lhe ocultar o lugar onde se encontrava. Não quis sujeitar o meu amigo aos comentários dos jornalistas... Acolheu-nos espontaneamente, com toda a franqueza... Calculei que, como eu, não quereria causar-lhe o dissabor de ver a sua tranquilidade perturbada.
-Fez bem. Mas então como pôde...
-Comecei por explicar tudo isto a sua mãe... disse-lhe também que o automobilista que a encontrara era rapaz novo e que novo e celibatário era também o dono da casa que a acolhera e onde estava sendo tratada... que o cuidado que me merecia a sua reputação... o receio de ver os nossos nomes entregues à curiosidade pública... Quere dizer, fiz-lhe ver porque razão, não querendo deixar de a tranquilizar, não podia dar-lhe pormenores mais explícitos. Terminei assegurando-lhe que a própria Eliana lhe escreveria logo que o repouso lhe restituísse a calma e as forças que as terríveis emoções dos últimos dias lhe haviam roubado.
-Está tudo muito bem. Mas se deitou aqui a carta, no correio, no primeiro comboio que chegar verá aparecer minha mãe.
-Calculei, com efeito, que o carimbo do correio nos iria trair.
-E então?
-Então, enderecei a minha carta ao doutor Brault e pedi-lhe que a fizesse chegar quanto antes às mãos de sua mãe... rogando-lhe ao mesmo tempo que, se tanto fosse preciso, confirmasse com a sua autoridade moral as minhas informações.
-E o doutor Brault guardará o segredo que lhe pede e estará disposto a garantir o resto?
-Oh! Estou certo disso! É meu amigo e conhece-me há muito tempo. Sabe perfeitamente que nunca lhe pediria para confirmar uma mentira.
Sem dar por isso, Valmont acabava de fazer, de si próprio, o maior elogio que se pode atribuir a um homem.
«Conhece-me há muito tempo. Sabe perfeitamente que nunca lhe pediria para confirmar uma mentira».
Eliana repetia mentalmente esta frase duma lealdade tão flagrante. E pensava que ela não teria ousado dizê-la, tratando-se de Rogério de Croixmare.
-Sempre conta partir amanhã, de manhã? informou-se após alguns momentos de silêncio.
-Assim é preciso.
-Para socorrer a tal senhora?
-Sim, para organizar a sua vida.
-E essa viagem é muito necessária?
-Tanto quanto o pode ser um imperioso dever.
Involuntária amargura apagou o sorriso de Eliana.
Aquela senhora, nova e formosa, a quem Valmont se ia reunir, tinha talvez direito à sua dedicação. Recordava também as cartas apaixonadas, encontradas na carteira com iniciais de prata.
-Gosta muito dela, não é verdade, senhor João?
-Estimo-a muito e tenho muito dó dela. Debate-se numa situação financeira terrível e num abatimento moral mais doloroso ainda. O desgosto que sofre pela perda do marido - que era o meu melhor amigo - em tão trágicas circunstâncias, é profundo. Tudo isto não é motivo suficiente para justificar a minha partida?
-Tem razão -concordou Eliana mais serena e quase envergonhada do impulso femenilmente ciumento, que tivera há pouco - Compreendo e entendo que de facto deve partir. É então amanhã de manhã?
-É. Não posso adiar a viagem.
-Oh! Não torno a protestar - declarou em tom decidido - porque parto consigo.
-Mas isso é impossível... a sua saúde...
-Não se preocupe com a minha saúde. Asseguro-lhe que já estou boa... E, também eu, tenho graves razões para regressar a Paris.
João meneou a cabeça.
-Preferia que descansasse mais uns dias antes de se arriscar a uma viagem tão fatigante.
-Pois bem, faremos o caminho com uma paragem. Será engraçadíssimo. Passaremos uma noite num hotel... em Mans, por exemplo.
João ficou calado.
O projecto de Eliana tentava-o. Viajar com ela, transportá-la no seu carro, era retardar o momento da separação, era conservá-la mais uns momentos só para ele, visto que depois não saberia quando a tornaria a ver... ou mesmo se voltaria a vê-la algum dia.
Mas por outro lado tinha de verificar se as suas possibilidades financeiras lhe consentiriam arcar com as despesas desta dupla viagem... da noite que teria de passar no hotel, com ela?
O que ele não queria, depois de tudo quanto Morec fizera por eles, naqueles últimos dias, era ver-se obrigado a pedir-lhe emprestado o dinheiro para o regresso.
Valmont preocupava-se apenas com as despesas de viagem. Chegando a Paris logo arranjaria dinheiro! O solitário que trazia no dedo já por mais duma vez fora dar um passeio ao Montepio; era questão de ir para lá fazer novo estágio, e mais nada!
Tranquilizado por estes cálculos mentais não pensou senão em aproveitar a presença de Eliana o mais tempo possível.
-Está combinado! - exclamou - Vou raptá-la mais uma vez.
E esta perspectiva tinha para ele tal encanto que, quase inconscientemente, voltou a apertá-la nos braços.
A imprensa em acção
Em quanto durou a claridade do dia, Eliana não deixou de ler os jornais que se encontravam em cima da pequena mesa.
Quis lê-los todos: os mais antigos que João trouxera da capital, os que encontrara em casa e por fim, os últimos jornais de Paris ou da região, que Valmont lhe fora buscar.
Divertida, lera nuns:
«O mistério de Houx-Noirs continua por desvendar».
Noutros:
«O trágico poço não devolveu ainda a sua presa. Numa circunferência de vinte léguas reina a maior agitação.
«Todos os habitantes daquela região estão completamente convencidos de que se trata de sortilégios e de malefícios e que o diabo anda metido no assunto e tanto a polícia como os detectives terão grandes dificuldades em colher qualquer elemento concreto no meio dum tal tecido de fantásticas e miraculosas interpretações».
Artigos diversos contavam minuciosamente as diversas investigações, as experiências da espingarda e do saco «com o peso aproximado duma mulher», mencionando até que tinham arrancado todas as plantas que revestiam interiormente as paredes do poço.
Em fim, um dos jornais mais recentes publicava como notícia da última hora:
«Nem todas as esperanças parecem estar perdidas... julga-se ser possível ainda encontrar a noiva desaparecida.
O título do artigo destacava em letras enormes: «Seria uma fuga?» e sem indicar nomes, desenvolvia as deduções que o repórter devera à amável condescendência de Luiz Manzin.
De tudo quanto lera resultou para Eliana um nervosismo febril e, moralmente, um sentimento complexo, onde se confundiam, o pudor ofendido por ver o seu nome, o da sua família e até os seus próprios sentimentos, expostos assim aos comentários da opinião pública, e o prazer real e um pouco trocista por ver que tanto ruído se baseava no mais fantástico dos erros!
Esse erro, porém, tomava tais aparências de realidade que Eliana rindo perguntava, de si para si:
-Querem ver que daqui a pouco, também eu tentarei encontrar a solução do mistério?
Contudo, para ela, o mistério era outro, estava bem mais perto: consistia naquele incompreensível João que logo que a soubera em perigo voara em seu socorro.
Todos os jornais lhe haviam dado uma prova de que João conhecia bem o poço velho e o seu misterioso subterrâneo.
De resto nada podia já abalar a confiança que depositava no seu salvador: o facto dele ter escrito a sua mãe, demonstrava a que ponto fora correcto, compassivo e bondoso.
De repente , algumas linhas dum artigo que lhe tinham escapado, fizeram-na sobressaltar.
-Oh! -exclamou - É abominável! Estes jornalistas sempre inventam cada coisa...
-O que foi? - inquiriu Paulo Morec.
-Imagine que um repórter foi agora descobrir que um parente da senhora de Croixmare desapareceu de Houx-Nolrs há três semanas, por forma misteriosa.
-E depois? - indagou João, subitamente interessado.
-Depois, tira daí conclusões muito ofensivas para mim.
Valmont agarrou no jornal para ler o artigo mencionado.
-Veja... ali - apontou Eliana.
E, em quanto ele lia, virou-se para o pintor, que dava os últimos retoques no retrato e explicou:
-Fala-se numa fuga... amores ocultos... Não se perderam ainda as esperanças de me encontrar... Fui reunir-me ao tal senhor Valmont e se conseguirem descobrir o paradeiro deste, é provável que me encontrem a mim também.
-É. muito curioso!-observou João, que naquele momento não reparava senão na coincidência.
Mas Eliana atalhou, sempre com ar ofendido:
-São muito maldizentes, esses senhores jornalistas! Inventam cada uma... É abominável!
-Tem razão. Abominável! - aprovou João, impassível.
-Sim, porque no fim de contas eu nem sequer conheço esse tal sobrinho da senhora de Croixmare... Como querem eles que eu tenha fugido para ir ter com ele? E os senhores conhecem-no por acaso, esse tal senhor Valmont?
Paulo Morec calou-se, embaraçado. Tantas vezes tinha pronunciado diante dela o nome de Valmont que estava convicto de que a rapariga, ainda que o tratasse sempre por «senhor João» conhecia perfeitamente a identidade do seu salvador.
Mas desde que a sua juvenil hóspede demonstrava tal indignação, era evidente que ignorava o nome do seu camarada.
E o excelente Paulo curvava a cabeça, um pouco incomodado com a insistência de Eliana.
Valmont, pelo contrário, nunca fizera alusão, diante de Eliana, aos laços que o uniam, aos donos de Houx-Noirs. Eliana parecia ter compreendido bem a forma por que ele caira no poço e como descobrira o corredor subterrâneo, mas talvez não chegasse a aprofundar o mistério. Por consequência, também ele não duvidava dos escandalizados protestos da rapariga.
-É, na verdade, para lamentar que os jornalistas tirem semelhantes conclusões - volveu com a maior placidez - A menina, de tão boa família, ver o seu nome ligado ao desse rapaz, estouvado, estroina e que tem tão má reputação!
-Oh! meu Deus! Conhecem-no?-insistiu Eliana.
-É um cavalheiro pouco recomendável - informou Valmont - Um rapaz sem pais, sem fortuna, sem emprego e que não dá muita honra aos seus parentes ricos.
Só a afectuosa dedicação de Paulo podia descobrir toda a amargura que o tom descuidado e alegre de João encobria.
Valmont tinha-se posto de pé e, colando a testa à vidraça, contemplava o jardim solitário, já envolto nas sombras da noite.
-Pois eu considero João Valmont um belo rapaz-protestou calorosamente Morec-Um rapaz leal, generoso e que me é muito mais simpático do que o primo, o senhor de Houx-Noirs, com quem seria injustiça confundi-lo.
O outro encolheu os ombros.
-Ora, não digas tolices! Pode-se lá comparar! Valmont não passa dum miserável, em quanto que Croixmare é um homem poderoso. Os pais eram riquíssimos e ele já teve não sei quantas heranças; possui um castelo, carros, automóveis e numerosa criadagem, pode permitir-se todas as fantasias e gozar todos os privilégios; pode emfim, desposar uma encantadora rapariga e mantê-la com o maior luxo e riqueza... Como vês, Croixmare é alguém!
Eliana soltou uma gargalhada.
-Oh! meu caro senhor!-exclamou alegremente - Que animosidade oculta nessa ladainha de elogios a Rogério! Tem qualquer ressentimento contra o meu simpático noivo?
-Isso sim! Mesmo diante de si nunca me atreveria a manifestá-lo - respondeu nervosamente - Pelo contrário protesto apenas contra as palavras de Paulo.
-O senhor Paulo é um amigo sincero, que tem a coragem de dizer o que pensa - retorquiu com vivacidade - Por mim, detesto certos cavalheiros muito correctos e desagradáveis, que ocultam o pensamento sob aparências de impecável delicadeza... Ouviu, senhor João, detesto as pessoas assim.
Valmont voltou-se para ela e encarou-a.
-Aprova então tudo quanto Paulo disse sobre Croixmare?
-Mas não vejo nisso nada de mau! Declarou que preferia o outro ao meu noivo... à vontade, está no seu direito! Que importância tem isso para Rogério... para Rogério que me ama, que sofre e quase enlouqueceu de dor... Não viu o que diziam os jornais?
-Não, não vi!-redarguiu um pouco pálido
- Não reparei nessa passagem. Mas nunca poderia pôr em dúvida que um homem a amasse profundamente.
Os belos olhos da rapariga cravaram-se no rosto daquele que acabava de falar e por momentos tomaram enternecida expressão, devido talvez à impressão dolorosa provocada pelo tom de extraordinária gravidade com que ele pronunciara as últimas palavras.
Soltou fundo suspiro.
-Pobre Rogério! - exclamou com simplicidade - Como está longe!
Era a primeira vez, desde que João a salvara, que Eliana recordava o ausente.
Mas fizera-o rindo, em tom de brincadeira, despreocupada e sem manifestar a mais pequena emoção.
Para João, bastava que ela pronunciasse o nome de Rogério para sair fora de si e perder toda a calma; mas Morec reparava bem na indiferença de Eliana.
-Croixmare, está, de facto, muito longe - pensou.
- E longe da vista, longe do coração. A ausência não convém, em amor. E se João, em vez de se afastar, quisesse aproveitar as vantagens que a situação lhe proporciona...
E coube então a vez a Morec de suspirar profundamente.
Entretanto Eliana continuava a ler os jornais e pouco depois soltava nova exclamação.
-Ah! isto agora, sim!
-Que mais temos?
Fora João quem fizera a pergunta numa voz um pouco rancorosa. Desde alguns momentos que sentia crescer a ânsia de arrancar das mãos de Eliana todos aqueles malditos jornais que falavam dum passado, que ele, João, desejaria poder apagar.
-Fique sabendo, senhor João, que está quase rico.
-Eu!
-Sim, o senhor! O meu salvador! Já ouviu falar da senhora de la Brèche, minha tia?
-Esse nome, de facto, não me é desconhecido.
-Pois bem, essa querida tia... muito boa pessoa, digamos de passagem... e que adora a sobrinha, teve uma iniciativa espantosa! Oferece um prémio de cem mil francos a quem lhe trouxer a sua querida Eliana.
-Ah! Que excelente ideia! -exclamou Paulo Ora aí está uma tia que aprecia devidamente o valor da minha encantadora hóspede.
-Oh! minha tia não pensou bem, senão teria reparado que me avaliava em muito pouco - retorquiu a rapariga com o ar mais sério do mundo.
- Já tem dispendido comigo muito mais do que isso! Calculou mal, o que não admira, porque a minha excelente tia teve sempre horror aos algarismos. Mas, em fim, o que me alegra no meio de tudo isto é saber o senhor João habilitado a socorrer eficazmente a viúva do seu amigo.
-Não percebo como? - volveu o rapaz que cada vez se tornava mais carrancudo.
-Ora essa! Eliana está salva! E salva por quem? Por si, meu caro senhor! Logo os cem mil francos pertencem-lhe.
-Ah! não, isso não!-bradou espontaneamente.
-Porque não?... E porquê, essa indignação? •-perguntou sorrindo.
-Porque não fiz senão o meu dever e seria portanto muito desagradável para mim que me pagassem.
-Está certo disso?
-Certíssimo.
-Quere dizer que não valho tão grande quantia?
-Vale mil vezes mais, mas não se trata agora disso. Não quero nada, nada, que dê aos meus actos uma aparência de interesse... nada, senão um pensamento afectuoso da sua parte, quando recordar estas horas desagradáveis, se em todo o caso não conseguir esquecê-las.
-E então a senhora Lanfred?- insistiu tranquilamente Eliana com o seu arzinho impassível..
-Mas que tem a pobre senhora com este assunto?
-Quase nada. Mas julgo que, visto que o seu amigo, ao morrer, lhe confiou a mulher e os dois pequeninos, não lhe estão próprios esses gestos de cavalheiresco altruísmo. Minha tia depositou essa quantia na Prefeitura da polícia para ser entregue ao meu salvador. Se não se utiliza dela, essa pequena fortuna irá parar às mãos de qualquer insignificante detective, que, naturalmente, pouco ou nada trabalhou para me descobrir. Entretanto, devido ao seu orgulho, a senhora Lanfred e os seus dois bebés continuarão a comer o pão que o diabo amassou, o que se torna muito indigesto quando se come demasiado. Tudo isto porque o meu salvador é um cavalheiro orgulhoso e egoísta que quere ver-me sujeita a ele pelo reconhecimento, sem aceitar nada em troca... nem consentir que diminua um pouco a enorme divida que contraí para com ele... não me concede sequer que possa pensar nele afectuosamente... com todo o meu coração... mas por ele só... sem me ver sobrecarregada com o pesado fardo da gratidão de que minha excelente tia me quis libertar com a sua habitual sensatez! Ao menos ela é prática!
João e Paulo começaram a rir.
-Que grande sermão! - exclamou o primeiro, divertidíssimo.
-Esta menina tem razão - aprovou o segundo
- Na verdade, és muito egoísta e exigente.
-com efeito, começo a acreditar que não tenho senão defeitos. com esta é já a segunda lição que a nossa deliciosa amiga me dá hoje.
-Quem ama, castiga!-volveu Eliana con toda a placidez - E portanto, se pretendo corrigi-lo, é sinal de que o estimo bastante.
-Ah! se assim fosse!-exclamou o rapaz Vou pôr em evidência todos os meus defeitos! Verá como vai ter que fazer! Será delicioso!
-Entretanto, emquanto espera que me encarregue duma tarefa tão ingrata e absorvente, não procure desviar a discussão. Que resolve a respeito do prémio oferecido por minha tia?
A fisionomia de Valmont ensombrou-se.
-Ah! Pelo amor de Deus não me fale mais nisso! Deixe-me fruir em paz as últimas horas que passo junto de si, sem que tenha a impressão de que a mais pequena atenção que lhe dedique me será paga. É opressiva essa sensação!... Mais tarde, quando já não a tiver a meu lado, pode ser que, vendo a miséria da senhora Lanfred, me resolva a aceitar esse dinheiro... Até lá, leve o demónio preocupações! Sinto-me com tão pouca coragem para retomar a minha grilheta de miséria depois da abençoada doçura destes últimos dias!
E o olhar altivo do rapaz toldou-se de súbito, com profunda melancolia.
Eliana não insistiu.
Também ela agora via que as horas fugiam; rapidamente; essas horas de sonho que lhe enchiam o coração de tão suave calor, horas duma doçura infinita que força alguma ressuscitaria, romance que o destino terminaria ali, talvez, sem lhe acrescentar o novo capítulo que desejava com toda a sua alma.
Inconvenientes dum boletim mal preenchido
Haviam, pela última vez, partilhado o almoço de Paulo de Morec; depois despediram-se de Bossulan e dos seus simpáticos habitantes.
A separação fora um pouco brusca... para não prolongar a comoção que a todos dominava: Eliana tinha os olhos húmidos, o excelente Paulo estava enternecido, e a velha Katou nem sequer pensava em esconder as lágrimas. Quanto a João Valmont conservava-se silencioso. Só a fisionomia um pouco triste traía a cor dos seus pensamentos. É que via aproximar-se o momento de se separar de Eliana... para defrontar não se sabe que desmoralizados desconhecidos!...
Agora o auto rodava pela estrada: Eliana recusara ocupar o banco do fundo e fora instalar-se ao lado de João; e este empregava todos os esforços para se conservar atento à sua tarefa de condutor e evitar à sua companheira os solavancos provocados pelo mau estado da estrada.
Os campos verdes e floridos, nas suas galas primaveris, apresentavam um espectáculo maravilhoso. Os pomares com as árvores em plena floração davam uma nota de alegria aos povoados e a charneca imensa parecia flamejar toda ela com o harmonioso dourado das giestas.
Desde as duas horas da tarde que rodavam pela estrada de asfalto, incrustada de caprichosos desenhos, feitos com granito claro, essa estrada que, como quase todas as da Bretanha, não contornava mas escalava ousadamente a montanha. Rodavam sempre apertados um contra o outro, com uma espécie de suave voluptuosidade.
Eliana tagarelava alegremente; nunca demonstrara tanta satisfação e João, embriagado pela sua adorada presença e pela íntima sensação dum contacto demasiado, fazia o possível por não pensar no terrível amanhã.
Depois de Guingamp, Saint-Briene, Lamballe, Rennes... e finalmente Lê Mans.
Foi nesta última cidade que decidiram parar.
Escolheram um hotel moderno, situado na praça principal.
Até ali tudo caminhara bem. Sentiam ambos uma fome de lobo que a viagem mais avivara. E a hora do jantar estava próxima.
Mas, antes de permitir que se sentassem à mesa, o dono do hotel, que era escrupuloso, exigiu ao juvenil casal, que pedira dois quartos, uma formalidade indispensável: tinham de preencher cada um deles o boletim indicador da sua identidade, conforme a habitual exigência da indiscreta polícia francesa, a quem todo o viajante se torna suspeito pelo simples facto de dormir fora de casa.
-Eliana começou a ler o seu. Todas aquelas complicações a divertiam. Mas para responder ao questionário como devia ser, tinha primeiro de combinar com o seu companheiro, porque não julgava imprescindível dar o seu verdadeiro nome.
Inclinou-se para Valmont que tirando uma caneta da algibeira, começara a escrever o nome.
Havia já escrito «João» quando de súbito parou, hesitante.
A presença de Eliana que por cima do ombro ia lendo o que ele escrevia, paralisou-o.
Que nome iria dar, visto que até então ela ignorava o seu verdadeiro apelido?
Bem calculava que cedo ou tarde ela teria de o saber, mas sempre esperara que fosse muito mais tarde, quando já não estivesse junto dele! Dessa maneira não veria a sua surprêsa... até talvez o seu desprezo, quando soubesse que aquele a quem tão pomposamente chamava o «seu salvador» não passava afinal dum pobre diabo.
Curvada para ele, Eliana adivinhava-lhe a preocupação e comoveu-se.
-Então? - exclamou - Porque não continua? Um de nós, pelo menos, tem de declarar a sua verdadeira identidade.
O rapaz levantou a cabeça e muito perturbado,
observou:
-É muito preciso, tem a certeza?
-Pois claro... Olhe, dê cá. Verá como preencho isso num instante.
E tirando-lhe a caneta da mão, fê-la correr, rápida sobre o indiscreto boletim.
Assombrado, Valmont leu:
«João Valmont.» Seguiam-se todas as indicações que lhe diziam respeito.
Ficou imóvel, não ousando sequer encará-la.
Eliana conhecia a sua identidade? Se pudesse ter sabido que a noiva de Rogério colhera todas aquelas informações na carteira encontrada perto do poço velho, o seu espanto seria menor, mas o seu constrangimento não diminuiria...
-Está bem assim? - perguntou ela, encarando-o com toda a franqueza.
-Sabia o meu nome!... Quem lho disse? Paulo? -Nem por sombras! Eu já o conhecia... Podia afirmar-lhe que tinha visto o seu retrato nos aposentos da senhora de Croixmare, mas seria mentir-lhe. Esses retratos vieram apenas avivar recordações. Nunca o esqueci. O senhor era o meu par assíduo, nos bailes, em Ostende... Foi um capitão de fragata, amigo de minha mãe, que nos apresentou um ao outro, lembra-se?
-Também nunca consegui esquecê-la - murmurou ele, baixinho, perturbado por ela se recordar de tão insignificantes pormenores - E apesar de todo o mal que devia ter ouvido dizer de mim, sabendo quem eu era, tratou-me com tanta amabilidade?
-Não tinha razão nenhuma para proceder doutra forma... Apenas me calei porque queria fazer um juízo imparcial.
-Que quere dizer?
-Durante o tempo que estive em Houx-Noirs, nos quinze dias que precederam a sua desaparição e antecederam a minha, ouvi falar muito de si. Ora as opiniões divergiam.
-Oh!
-É verdade. Tínhamos primeiro a opinião da sua tia, a senhora de Croixmare, bondosa, muito sua amiga, que tomava sempre a sua defesa com tanto entusiasmo e benevolência, que suspeitei dum pouco de parcialidade a seu favor.
-É muito provável. Minha tia é uma santa e a indulgência em pessoa.
-Tínhamos depois a opinião de Rogério... escuso de lha repetir, compreende... seria muito desagradável.
-Bem sei.
-Rogério quase nunca se lhe referia, mas quando o fazia, era sempre com animosidade... e com certa má disposição que dissimulava com palavras duras e ásperas. Como é de supor pressentia nele um facciosismo muito maior ainda do que da parte da sua tia.
-Como lhe agradeço essas boas palavras!
-Que são sinceras, posso afirmar-lhe! Quis então fazer o meu juízo pessoal; quis viver a seu lado sem que suspeitasse que eu o conhecia. Percebe agora?
-Numa palavra, fez-me uma pequenina traição.
-Oh! traição! Que palavra tão feia... não, quis
simplesmente conhecê-lo.
-E... então?
A pergunta fora feita com ligeira hesitação.
-Então? - repetiu Eliana, fixando-o com olhar franco e expressão grave - Agora que o conheço bem, peço-lhe que seja meu amigo.
E estendeu-lhe a mão num gesto espontâneo.
-Seu amigo em tudo e para sempre, menina Eliana - respondeu o rapaz com ardor.
E tomando a pequenina mão que ela lhe estendia, pousou nela os lábios pela primeira vez.
-E agora resta-me preencher também a minha ficha - atalhou Eliana, para cortar a comoção que os dominava a ambos - O meu amigo João quere dar-me o seu nome?
-Dar-lhe o meu nome?-repetiu completamente transtornado-Oh! minha querida.
Contemplava-a apaixonadamente, o olhar irradiava suprema felicidade, mas ela, muito calma, parecendo nada ver, continuou:
-Isso, exactamente «minha querida», é assim mesmo que é preciso dizer! Portanto vou escrever: Eliana Valmont, irmã de João Valmont, etc. Está bem assim. Nem Luiz Manzin, nem os senhores repórteres serão capazes de me descobrir sob este disfarce. Que diz o meu querido irmão?
-Digo que está muito bem.
Agora já podia encará-lo: o rapaz sorria-lhe afável, não obstante a grande decepção que acabava de ter.
Passaram ao salão de jantar, brilhante de metais e sentaram-se à mesa, em frente um do outro.
Tinham a aparência de um casal de noivos e não puderam reprimir o riso quando a criada, com toda a seriedade, tratou Eliana por «minha senhora.»
-Estou convencida de que não parecemos nada irmão e irmã - observou esta - Os irmãos costumam tratar-se por tu. Será preciso que sejamos menos cerimoniosos um com o outro... Não é da minha opinião irmãozinho?
Valmont encostou-se à mesa e não deixando de contemplar a sua amável companheira, respondeu:
-Tens razão, Elianazinha querida... és uma adorável irmãzinha.
A rapariga sobressaltou-se e corou intensamente.
-Oh! - exclamou - Assim à primeira vez, faz-me impressão... atrapalha. Parece-me que será melhor renunciarmos, não acha?
-Mas não, querida, experimenta ao menos uma vez - teimou ainda no mesmo tom respeitoso, mas de implacável meiguice.
-Sim, não há dúvida meu bom João, que tu... calou-se confusa.
Não, realmente, nunca conseguirei.
-Schiu! Aí vem a criada.
E muito à vontade:
-Queres mais um bocadinho de omolette, Elianazinha?
-Ah!... quero... não, já não tenho vontade.
-É pena! Está tão boa...
-A senhora faz bem em guardar um bocadinho de apetite para o frango - atalhou a criada, piscando os olhos com ar de cumplicidade - E depois ainda temos o doce... uma verdadeira surpresa !
-Mas é esplêndido o menu! - observou João com entusiasmo.
-Um verdadeiro jantar de recém-casados. O senhor verá como vai ficar contente!
Quando ela se retirou olharam um para o outro e soltaram uma gargalhada.
-O caso vai-se complicando! Estou a ver que deveria ter escrito no boletim «senhora Valmont»
- observou .Eliana, divertidíssima.
-Hum!-volveu João com ar lastimoso Quem acreditaria? com quartos separados e nem sequer consegue tratar-me por tu!
-Engana-se! Em quanto a criada falava encontrei meio de facilitar tudo.
-Então diz lá.
-Basta que me convença de que é de facto meu irmão. Sempre desejei ardentemente ter um. É muitíssimo triste ser filha única, como eu. Quando se é criança brincamos sozinhas e mais tarde, quando chegamos á idade das confidências, não temos com quem desabafar. Portanto gostava imenso de ter um irmão, um irmão mais velho, como o senhor, que se parecesse consigo e me fizesse todas as vontades. Em troca teria toda a minha confiança, dar-lhe-ia toda a minha ternura... Deste modo pensei que se de facto fosse esse irmão e estivéssemos os dois, assim, sentados a uma pequena mesa de hotel, lhe falaria sem constrangimento.
Por sua vez Eliana encostou-se à mesa e inclinou-se para o seu companheiro:
Se assim fosse, diria: «Meu bom irmão... meu querido companheiro de infância, que nunca me abandonaste, sinto-me feliz por estar aqui junto de ti... protegida pela tua ternura e pela tua dedicação... Meu João... Meu irmão adorado, gostaria de viver sempre assim... a teu lado... ser a única mulher que te ocupasse o coração... a única cuja afeição te seria sempre fiel... Amo-te, meu querido João... e nunca senti tanto a imperiosa necessidade de to dizer, como hoje.
-Minha adorada!-respondeu involuntariamente João, a quem semelhante declaração enlouquecia.
Eliana calou-se mas as suas pupilas não abandonavam as de Valmont e a verdade manda que se diga que tanto um como outro esqueciam naquele momento a abençoada ficha que os transformara em irmão e irmã durante o tempo que permanecessem naquele severo hotel.
Eliana foi a primeira a recuperar a calma:
-Era isto, senhor Valmont, o que eu diria se tivesse a felicidade de ter um irmão com a sua idade e com o seu carácter.
-Minha Eliana! - balbuciou o pobre apaixonado que ainda não saíra completamente do seu encantamento - Minha Eliana adorada!
E estendendo a mão por cima da mesa foi agarrar a da rapariga.
Mas de súbito esta reparou que a caixa os observava.
-Oh! João-disse em voz baixa e cheia de confusão - tenha juízo! Se aquela mulher leu os boletins, que suposições fará a nosso respeito, vendo uns irmãos como nós!
E a custo reprimia imensa vontade de rir.
Valmont lançou um olhar hostil à desastrada caixa cuja curiosidade indiscreta o obrigava a abandonar a pequenina mão que tão ternamente apertava.
Mas, visto que esse gesto era ostensivo demais, procurou outro mais discreto: com os pés prendeu os da sua companheira que corou mas não os retirou.
E de novo os nossos heróis esqueceram o mundo inteiro.
-Vendo bem - observou Eliana decorridos alguns momentos - se os nossos boletins estiverem ainda no escritório será preciso emendá-los.
-Oh! meu Deus! Que vai escrever agora?
-Simplesmente o meu verdadeiro nome! Claramente e sem qualquer mistério. Assim! Eliana de Surtot, noiva de João Valmont, com quem vai casar o mais depressa possível. E desta vez acrescentou com autoridade - ficará o boletim como deve ser e nunca mais se rasgará! Que diz a isto, meu querido amigo?
Mas João não estava em estado de responder. Contentava-se em a olhar apaixonadamente, tremendo com a inesperada felicidade que raiava para ele e quase o esmagava.
Um detective triunfante
Chegando a Paris às dez da manhã, Eliana e João separaram-se numa praça de táxis.
De Mans, tinham anunciado pelo telefone a sua chegada, e a senhora de Surtot, cuja angústia desaparecera por completo esperava a filha e seu salvador com a maior impaciência.
Eliana, porém, preferira que João não a acompanhasse, afinada pôr sua mãe ao corrente das terríveis aventuras que por pouco não tinham tido, para ela, trágico epílogo.
Queria também, antes de apresentar Valmont, confessar a sua mãe o doce sentimento que a unia ao seu salvador. Não era mais próprio conseguir primeiro que a indulgente mamã tomasse a iniciativa da ruptura com o proprietário de Houx-Noirs?
Existiam ainda outras razões que regulavam o procedimento de Eliana.
Em primeiro lugar, desejava que João recebesse o prémio oferecido por sua tia. Para isso era necessário que o indicassem à Prefeitura, declarando que sozinho e sem auxílio, ele conseguira salvá-la. Perante o facto realizado o seu noivo não podia recuar.
Depois, gostaria, se fosse possível, evitar os comentários da imprensa. O regresso da desaparecida, acompanhada por Valmont, faria correr ondas de tinta, nos jornais. Pelo contrário se pusessem Luiz Manzin ao corrente dos acontecimentos, talvez este arranjasse as coisas como desejavam.
Por todas estas razões, Eliana julgava preferível que Valmont não a acompanhasse ao domicílio maternal.
Quando à noite se encontrasse com ela, conforme lhe prometera, já tudo estaria arranjado e a querida mamãzinha não seria obrigada a aceitar por surpresa o novo e inesperado noivo da filha.
Tudo correu, nesse e nos dias seguintes, segundo os desejos de Eliana.
Quando Valmont, uma noite, bastante comovido, bateu à porta das duas senhoras, foi recebido por uma mamã indulgente e reconhecida, que o apertou nos braços com ternura, como se o considerasse já seu filho.
Quanto ao resto, os jornais do dia seguinte anunciaram em grandes caracteres duas novidades sensacionais: em primeiro lugar o regresso de Eliana, que todos já supunham morta, e depois, que o prémio fora entregue ao salvador anónimo que tão inteligentemente voara em socorro da infeliz vítima do poço velho.
Contudo, a curiosidade pública estava por tal forma aguçada com a apavorante história que foi impossível, aos dois heróis, eximirem-se por completo ao assédio dos repórteres.
E se não conseguiam avistar Valmont que, muito atarefado com os negócios da senhora Lanfred, só à noite visitava a noiva, em compensação esta foi assaltada por repetidas entrevistas.
Eliana, que na sua afeição por Valmont procurava evitar-lhe aborrecimentos, aceitou ser intermediária entre os repórteres e o seu salvador.
com admirável espírito prático e não menos maravilhoso expediente, conseguiu para este um contrato em forma, pelo qual o rapaz se obrigava a conceder a um jornal da manhã a publicação exclusiva da sua dupla aventura, mediante a bagatela de quinhentos mil francos. O contrato estabelecia apenas uma condição: que os artigos seriam firmados por um pseudónimo, visto o seu autor exigir o anonimato.
E como Eliana colaborou na narrativa desta verídica história, podemos afirmar que os dois noivos souberam, no decorrer da publicação, eliminar certas passagens que cobririam de opróbrio o nome, até então honrado, de Croixmare.
De resto, Rogério de Croixmare nunca chegou a saber do regresso de Eliana, nem da felicidade de João de Valmont. O desgraçado endoidecera.
Em seguida a Luiz Manzin ter abandonado Houx-Noirs, afirmando que o poço velho restituiria tudo quanto roubara, o juízo do jovem castelão sossobrara por completo.
Armado com uma espingarda, o demente vigiava noite e dia o misterioso poço, para matar todos os fantasmas que pretendessem sair dele. Mas como a sua loucura, decorridos alguns dias, se tornasse furiosa, ameaçando com a arma todos os que se aproximavam do sinistro pinhal, foi necessário interná-lo.
A senhora de Croixmare, ao participar às suas amigas, as senhoras de Surtot e de La Brèche, este triste acontecimento, lamentava a nova desgraça que a esmagava e declarava que, se algum dia Eliana fosse encontrada, a desligava de todos os seus compromissos.
É provável que a infeliz mãe tivesse depreendido muita coisa das incoerentes palavras pronunciadas pelo filho... Deveria ter reconstituído o drama. E se a sua atitude não o demonstrou, quando o sobrinho desposou Eliana, semanas depois de todo o barulho feito ao redor do poço velho se ter extinguido, presenteou-o maternal e principescamente.
E Luiz Manzin? - dirão os leitores. Que foi feito dêsse astuto caçador policial?
Gozava o seu triunfo, mais nada!
Não afirmara ele que onde estivesse João Valmont estaria também Eliana?
Não adivinhara muito antes até de que ele que o amor uniria os dois jovens?
Por fim, não havia predito que Eliana de Surtot nunca casaria com Rogério de Croixmare?
Não havia sucedido, finalmente, tudo quanto afirmara?
Estava orgulhoso e triunfante, o excelente Luiz Manzin!
Quantos triunfos policiais são baseados em idênticas condições?
O acaso, o deus protector dos detectives, neste caso, como em muitos outros, completara, independentemente da sua vontade, as circunstâncias que justificavam as suas deduções.
Max Du Veuzit
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