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O PODER DOS SEIS / Pittacus Lore
O PODER DOS SEIS / Pittacus Lore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PODER DOS SEIS

 

MEU NOME É MARINA, A QUE VEM DO MAR, MAS LEVOU MUITO tempo até que eu fosse chamada assim. No início eu era conhecida apenas como Sete, uma dentre os nove Gardes sobreviventes do planeta Lorien, cujo destino foi depositado, e ainda é, em nossas mãos. Nas mãos daqueles de nós que não foram perdidos. Daqueles que ainda vivem.

Eu tinha seis anos quando aterrissamos. Quando a nave pousou com um solavanco na Terra, mesmo sendo tão jovem, eu pressentia quanta coisa havia em jogo para nós — nove Cêpans, nove Gardes — e que nossa única chance estava aqui, à nossa espera. Tínhamos entrado na atmosfera do planeta em meio a uma tempestade que nós mesmos criáramos, e eu me lembro, enquanto nossos pés tocavam o solo terrestre pela primeira vez, dos pequenos jatos de vapor que a nave liberava e do arrepio que eriçou os pelos de meus braços. Eu não sentia o vento havia um ano, e fazia muito frio do lado de fora. Alguém esperava por nós. Não sei quem era, sei apenas que entregou a cada Cêpan duas mudas de roupa e um envelope grande. Até hoje não sei o que havia ali dentro.

Permanecemos próximos uns dos outros, em grupo, cientes de que talvez nunca mais nos víssemos de novo. Palavras foram ditas, abraços foram trocados, e depois nos separamos, como sabíamos que era necessário, e caminhamos aos pares em nove direções. Fiquei olhando por cima do ombro, vendo os outros se afastarem, até que, pouco a pouco, um de cada vez, todos desaparecessem. E então ficamos apenas Adelina e eu, andando sozinhas por um mundo do qual não sabíamos quase nada. Hoje compreendo quão assustada Adelina devia estar.

Lembro-me de embarcar em um navio cujo destino eu desconhecia. Lembro-me de dois ou três trens diferentes depois disso. Adelina e eu ficávamos quietinhas, abrigadas em cantos escondidos, afastadas de quem quer que estivesse à nossa volta. Caminhávamos de cidade em cidade, atravessando montanhas e campos, batendo a portas que logo eram fechadas em nossa cara. Estávamos com fome, cansadas e com medo. Lembro-me de me sentar em uma calçada, implorando por algum dinheiro. Lembro-me de chorar em vez de dormir. Tenho certeza de que Adelina trocou algumas de nossas pedras preciosas de Lorien por nada mais que refeições quentes, tamanha era nossa necessidade. Talvez ela tenha dado todas as pedras. E então encontramos este lugar na Espanha.

Uma mulher de aparência austera que vim a conhecer como irmã Lúcia veio até a pesada porta de carvalho. Olhou atentamente para Adelina, observando seu desespero, a maneira como seus ombros estavam caídos.

—            Vocês acreditam na palavra de Deus? — a mulher perguntou em espanhol, comprimindo os lábios e analisando-nos com olhos estreitos.

—            A palavra de Deus é meu voto — Adelina respondeu com um aceno solene. Não sei como ela sabia essa resposta, talvez a tivesse aprendido quando ficamos no porão de uma igreja, semanas antes, mas era a resposta certa. Irmã Lúcia abriu a porta.

Estamos aqui desde então, onze anos neste convento de pedra com seus aposentos mofados, corredores cheios de correntes de ar e com piso duro que parece blocos de gelo. Sem contar os poucos visitantes, a Internet é minha única fonte de informação do mundo para além dos limites de nossa pequena cidade; e eu a vasculho constantemente em busca de alguma indicação de que os outros estão lá fora, de que estão procurando, talvez lutando. Algum sinal de que não estou sozinha, porque a essa altura não posso dizer que Adelina ainda acredite que ainda esteja comigo. Sua atitude mudou em algum ponto da travessia das montanhas. Talvez tenha sido quando bateram uma daquelas portas diante de nós e deixaram ao relento uma mulher faminta e sua filha por mais uma noite. O que quer que fosse, Adelina parece ter perdido de vista a necessidade de continuar em movimento, e sua fé no renascimento de Lorien parece ter sido substituída pela fé que as irmãs do convento compartilham. Eu me lembro de uma mudança nítida nos olhos de Adelina, e de seus súbitos discursos de que precisaríamos de orientação e estrutura se quiséssemos sobreviver.

Minha fé em Lorien permanece intacta. Há um ano e meio, quatro pessoas viram um menino mover objetos com a força da mente na Índia. Embora a importância dispensada ao acontecimento tivesse sido pequena a princípio, o repentino desaparecimento do menino logo depois causou muita comoção na região, e iniciou-se uma busca. Até onde sei, ele não foi encontrado.

Há alguns meses surgiram notícias de uma garota na Argentina que, após um terremoto, ergueu uma laje de concreto de cinco toneladas para salvar um homem que estava preso ali embaixo; e, quando a notícia desse ato heróico se espalhou, ela sumiu. Como o menino na Índia, ela ainda está desaparecida.

E também há a dupla de pai e filho de que se tem falado em todos os noticiários de Ohio, nos Estados Unidos, que está sendo caçada pela polícia depois de supostamente ter destruído uma escola inteira sem qualquer auxílio, matando cinco pessoas. Eles não deixaram nenhum rastro, exceto misteriosos montinhos de cinzas.

"Parece que aconteceu uma batalha aqui. Não sei como explicar de outra maneira", teria declarado o líder da investigação. "Mas podem ter certeza de que vamos solucionar esse caso, e encontraremos Henri Smith e seu filho, John."

Talvez John Smith, se é que esse é seu nome verdadeiro, seja só um garoto revoltado que ultrapassou os limites. Mas não acho que seja o caso. Meu coração dispara sempre que sua foto aparece na tela. Sou dominada por um desespero profundo que não consigo explicar. Posso sentir, em meu âmago, que ele é um de nós. E de algum jeito sei que preciso encontrá-lo.

 

APÓIO-ME COM OS BRAÇOS NO PARAPEITO FRIO DA JANELA E vejo a neve que cai do céu escuro sobre a montanha coberta de pinheiros, carvalhos e faias, entremeadas por trechos de rocha escarpada. A neve caiu sem cessar o dia todo, e dizem que vai continuar a noite inteira. Mal consigo ver além do limite da cidade ao norte — o mundo fica perdido em uma cerração branca. Durante o dia, quando o céu está claro, é possível ver o borrão azul da água na Baía de Biscay. Mas não com este clima, e não consigo deixar de imaginar o que pode estar escondido no meio de todo aquele branco além do meu campo de visão.

Olho para trás. Na sala de pé-direito alto e cheia de correntes de ar há dois computadores. Para usá-los é preciso pôr o nome em uma lista e esperar a vez. À noite, o limite de uso é de dez minutos, se houver alguém esperando, e de vinte, se não houver. As duas meninas sentadas à frente deles agora já estão ali há meia hora, e minha paciência está acabando. Não vejo as notícias desde a manhã, quando vim rapidamente aqui antes do café. Não havia novidades sobre John Smith, mas estou quase tremendo de ansiedade quanto ao que pode ter surgido desde então. Desde que a história começou, todo dia uma notícia nova é veiculada.

Santa Teresa é um convento que funciona também como orfanato para meninas. Atualmente, sou a mais velha de trinta e sete meninas, posição que ocupo há seis meses, quando a última que completou dezoito anos foi embora. Aos dezoito, todas nós temos de escolher entre deixar o orfanato e se virar por conta própria ou adotar a vida na Igreja. De todas as que chegaram aos dezoito, nenhuma ficou. Não posso culpá-las. Faltam menos de cinco meses para o aniversário que Adelina e eu inventamos para mim quando chegamos, e então eu também completarei dezoito anos. Como as outras, pretendo deixar esta prisão, com ou sem Adelina. E é difícil imaginar que ela queira me acompanhar.

O convento propriamente dito foi construído todo de pedra em 1510 e é grande demais para o pequeno número de pessoas que vive nele. A maioria dos quartos está vazia e, os que não estão, têm aspecto úmido e rústico e nossa voz ecoa até rebater no teto. A construção se situa no topo da colina mais alta sobre o vilarejo de mesmo nome, aninhado entre as Montanhas Picos da Europa, no norte da Espanha. Como o convento, o vilarejo também é feito de pedras, com muitas estruturas construídas diretamente na encosta da montanha. Caminhando pela rua mais importante da cidade, a Calle Principal, é impossível não perceber o péssimo estado de conservação. É como se aquele lugar tivesse sido esquecido pelo tempo, e os séculos tivessem transformado quase tudo em sombras de verde-musgo e marrom, com um cheiro de mofo que impregna o ar.

Há cinco anos comecei a implorar a Adelina que saíssemos dali, continuássemos em movimento, tal como fomos orientadas a fazer.

"Logo vou desenvolver meus Legados, e não quero que isso aconteça aqui, com todas essas meninas e freiras por perto", eu lhe disse à época.

Mas ela se recusou a deixar o convento, citando La Bíblia Reina Valera para dizer que devemos esperar quietos pela salvação. Desde então, repito minha súplica todos os anos e ela sempre olha para mim com o semblante vazio, rejeitando minha sugestão com uma citação religiosa diferente. Mas eu sei que minha salvação não está aqui.

Para além dos portões do convento e da encosta suave da colina, posso ver o brilho pálido das luzes da cidade. Em meio à nevasca, elas parecem halos flutuantes. Embora não consiga ouvir a música de nenhuma das duas tabernas, tenho certeza de que ambas estão lotadas. Mais adiante há um restaurante, um café, um mercado, uma mercearia e vários vendedores ambulantes que ocupam as calçadas da Calle Principal durante quase todos os dias, pela manhã e à tarde. Perto do pé da colina, no limite sul da cidade, fica a escola que frequentamos, um edifício de alvenaria.

Viro a cabeça de repente, ao ouvir o sino: faltam cinco minutos para as orações, e depois é hora de irmos para a cama. Sou tomada pelo pânico. Preciso saber se há alguma novidade. Talvez John tenha sido capturado. Talvez a polícia tenha encontrado mais alguma coisa na escola destruída, algo que tivesse passado despercebido antes. Mesmo que não haja nada de novo, preciso saber. Caso contrário, não vou conseguir dormir.

Com uma expressão zangada, encaro Gabriela Garcia — Gabby, para simplificar —, que está diante de um dos computadores. Gabby tem dezesseis anos e é muito bonita, com longos cabelos escuros e olhos castanhos; ela sempre se veste de forma vulgar quando está fora do convento, e usa blusas justas que deixam à mostra o piercing no umbigo. Todas as manhãs veste roupas largas e folgadas, mas, assim que saímos do campo de visão das irmãs, ela as tira, revelando um traje muito mais justo e curto por baixo. E então passa o restante do caminho até a escola aplicando maquiagem e ajeitando o cabelo de maneira diferente. As quatro amigas dela, três das quais também vivem no convento, fazem o mesmo. E, quando o dia termina, elas limpam o rosto na caminhada de volta e se cobrem com as roupas originais.

O que é? — Gabby me pergunta com uma voz arrogante, ao me encarar de volta. — Estou escrevendo um e-mail.

Estou esperando há mais de dez minutos — respondo. — E você não está escrevendo um e-mail. Está olhando fotos de caras sem camisa.

E dai? Vai me denunciar, dedo-duro? — ela pergunta, debochada, como se falasse com uma criança.

A garota a seu lado, que se chama Hilda, embora a maioria do pessoal da escola a chame de La Gorda, "a gorda" (pelas costas, nunca na cara), ri.

Gabby e La Gorda são inseparáveis. Mordo a língua e me viro novamente para a janela, cruzando os braços sobre o peito. Estou fervendo por dentro, em parte porque preciso usar o computador, mas também porque nunca sei como responder quando Gabby debocha de mim. Restam quatro minutos. Minha impaciência se transforma em completo desespero. Pode ser que neste momento haja alguma notícia — um furo! —, mas não tenho como descobrir, porque essas cretinas egoístas não saem de nenhum dos computadores.

Faltam três minutos. Estou quase tremendo, de tanta raiva que sinto. Mas então uma ideia surge, e um sorriso se esboça em meus lábios. É arriscado, mas valerá a pena, se der certo.

Eu me viro apenas o suficiente para ver a cadeira de Gabby pelo canto do olho. Respiro fundo e, concentrando toda minha energia naquela cadeira, uso meu poder de telecinesia para empurrá-la para a esquerda. Depois a empurro para a direita com tanta força que ela quase tomba. Gabby se levanta e grita. Olho para ela fingindo surpresa.

Que foi? — pergunta La Gorda.

Não sei... foi como se alguém tivesse acabado de chutar minha cadeira. Você não sentiu nada?

Não — responde La Gorda. E, assim que a palavra é pronunciada, movo sua cadeira alguns centímetros para trás, e depois para a direita, sem nunca sair de meu lugar próximo à janela. Dessa vez as duas garotas gritam. Empurro a cadeira de Gabby, depois a de La Gorda de novo, e, sem voltar a olhar para a tela do computador, as garotas fogem da sala aos berros.

Oba! — comemoro.

Corro para o computador que Gabby estava usando e digito rapidamente o endereço do site de notícias que considero mais confiável. Depois espero, impaciente, a página carregar. Os computadores velhos, combinados à lentidão da Internet aqui, são o tormento de minha existência.

A página fica toda branca e, linha a linha, se completa. Quando um quarto dela está carregado, ouço o último toque do sino. Um minuto para as orações. Estou disposta a ignorar o sino, mesmo correndo o risco de ser castigada. A essa altura, não me importo mais.

—            Mais cinco meses — sussurro para mim mesma.

Metade da página já está visível, revelando a parte de cima do rosto de John Smith, com seus olhos dirigidos para o alto, escuros e confiantes, embora haja neles uma espécie de desconforto que parece quase deslocado. Eu me inclino para a frente ansiosa, esperando, sentindo a agitação que cresce em mim e faz minhas mãos tremerem.

—            Vamos! — digo para a tela, tentando em vão acelerar o processo. — Vamos, vamos, vamos!

—            Marina! — alguém vocifera da porta aberta.

Eu me viro e vejo irmã Dora, uma mulher encorpada que é a chefe da cozinha, e que me fuzila com os olhos. Nenhuma novidade. Ela fuzila com os olhos todo mundo que entra na fila do almoço segurando uma bandeja, como se nossas necessidades alimentares fossem uma ofensa pessoal. Ela pressiona os lábios, que formam uma linha reta perfeita, e semicerra os olhos.

— Venha. Agora! E quero dizer agora mesmo!

Suspiro, pois sei que não tenho alternativa. Limpo o histórico do navegador e encerro o programa, e depois sigo irmã Dora pelo corredor escuro. Havia algo de novo naquela tela... tenho certeza. Por que outra razão o rosto de John ocuparia a página inteira? Uma semana e meia é tempo suficiente para que qualquer notícia se torne velha. Então, o fato de ele ocupar tanto espaço da tela significa que há alguma informação nova relevante.

Caminhamos pela nave da igreja de Santa Teresa, que é enorme, com teto alto, abobadado, sobre pilares gigantescos, e janelas de vitrais ao longo das paredes. Bancos de madeira ocupam toda a extensão do espaço amplo, e é possível acomodar quase trezentas pessoas sentadas. Irmã Dora e eu somos as últimas a entrar. Eu me sento sozinha em um dos bancos centrais. Irmã Lúcia, que abriu a porta para mim e Adelina quando chegamos e ainda está no comando do convento, sobe no púlpito, fecha os olhos, abaixa a cabeça e une as mãos na frente do corpo. Todas as outras fazem o mesmo.

—            Padre divino — a prece começa num uníssono sombrio. — Que nos bendiga y nos proteja en su amor...

Eu me desligo e olho para as cabeças diante de mim, todas abaixadas em concentração. Ou apenas abaixadas. Vejo Adelina sentada na primeira fileira, seis bancos à frente do meu e um pouco para a direita. Ela está ajoelhada, meditando profundamente, e o cabelo castanho está preso em uma trança firme que desce até o meio das costas. Adelina não levanta a cabeça nem uma vez, não tenta me encontrar no fundo da igreja, como fazia nos nossos primeiros anos aqui, compartilhando comigo um sorriso discreto sempre que nossos olhares se cruzavam, pensando em nosso segredo. Ainda temos esse segredo, mas, em algum momento nessa longa caminhada, Adelina deixou de pensar nele. Em algum momento o plano de esperarmos até que nos sentíssemos fortes e seguras o bastante para partir foi substituído pelo desejo — ou pelo medo — de Adelina de simplesmente ficar.

Antes da notícia sobre John Smith, que contei a Adelina assim que foi divulgada, fazia meses que não falávamos de nossa missão. Em setembro eu mostrei a ela minha terceira cicatriz, o terceiro aviso de que outro Garde tinha morrido, e de que ela e eu estávamos um passo mais próximas de ser caçadas e mortas pelos mogadorianos, e ela reagiu como se nada daquilo existisse. Como se aquilo não tivesse o significado que sabíamos ter. Depois de ouvir a notícia sobre John, ela simplesmente revirou os olhos e me aconselhou a parar de acreditar em contos de fada.

— En el nombre del Padre, y del Hijo, y del Espíritu Santo. Amén — elas disseram, e todas na igreja acompanharam a última frase com o sinal da cruz, inclusive eu, para preservar as aparências: testa, umbigo, ombro esquerdo, ombro direito.

Eu estava dormindo, sonhando que descia correndo a encosta da montanha com os braços abertos, como se estivesse a ponto de levantar voo, quando acordei com a dor e o brilho da terceira cicatriz surgindo em torno da minha canela. A luz acordou várias meninas no dormitório, mas, felizmente, não a irmã supervisora. As meninas acharam que eu tivesse uma lanterna e uma revista embaixo das cobertas e que estava desrespeitando as regras quanto ao horário de dormir. Na cama a meu lado, Elena, uma menina discreta de dezesseis anos com cabelos negros que ela sempre enfiava na boca quando falava, jogou um travesseiro em minha direção. Minha pele começou a borbulhar, e a dor era tão intensa que tive de morder a barra do cobertor para ficar quieta. Não pude deixar de chorar, porque, em algum lugar, o Número Três, ou a Número Três, perdera a vida. Agora, éramos apenas seis.

Hoje saio da igreja com as outras meninas e vou para nosso dormitório cheio de beliches que rangem, alinhados a espaços regulares, mas estou elaborando um plano. Para compensar as camas duras e o frio do piso de concreto de todos os cômodos, os lençóis são macios e os cobertores, pesados, único luxo a que temos direito. Minha cama fica no canto mais afastado da porta, que é o lugar mais disputado; é o mais silencioso, e eu levei muito tempo para chegar lá, mudando uma cama de cada vez sempre que uma garota ia embora.

As luzes são apagadas assim que todas se acomodam. Fico deitada de costas, olhando para os contornos escuros do alto teto entalhado. Um ou outro sussurro quebra o silêncio, e é seguido imediatamente pelo pedido da irmã supervisora da noite, que exige que todas se calem. Fico de olhos abertos, esperando impacientemente que todas adormeçam. Após meia hora, os sussurros emudecem, substituídos pelos sons suaves do sono, mas ainda não me atrevo a arriscar. É muito cedo. Mais quinze minutos sem nenhum ruído. Então não consigo mais esperar.

Prendo o fôlego e movo as pernas lentamente para a beirada da cama, ouvindo o ritmo da respiração de Elena na cama ao lado da minha. Meus pés tocam o chão gelado e ficam imediatamente frios. Levanto-me devagar para evitar o rangido da cama e caminho na ponta dos pés pelo dormitório em direção à porta, sem pressa, tomando cuidado para não esbarrar em nenhum dos beliches. Alcanço a porta aberta e saio rapidamente para o corredor e vou até a sala dos computadores. Puxo a cadeira e aperto o botão para ligar a máquina.

Espero aflita o sistema carregar, sempre olhando para a porta a fim de ver se alguém me seguiu. Finalmente consigo digitar o endereço do site e a tela fica branca, e depois duas fotos tomam forma no centro da tela, cercadas por um texto, tudo sob uma manchete em letras pretas em negrito que estão desfocadas demais para que eu possa ler. Agora são duas imagens — fico imaginando o que pode ter mudado desde que tentei acessar antes. E então, enfim, a manchete fica nítida.

 

TERRORISTAS INTERNACIONAIS?

 

John Smith, com seu queixo quadrado, cabelos claros desalinhados e olhos azuis, ocupava o lado esquerdo da página, enquanto Henri, seu pai — ou, provavelmente, seu Cêpan —, ocupava o direito. A dele não era uma fotografia, mas um retrato falado em preto e branco feito a lápis. Passo direto pelos detalhes que já conheço — a escola destruída, cinco mortes, desaparecimento repentino — e então encontro o furo que só agora foi divulgado:

 

Em uma reviravolta extraordinária, investigadores do FBI descobriram hoje o que acreditam ser ferramentas de um falsificador profissional. Várias máquinas utilizadas para criar documentos foram encontradas na casa alugada por Henri e John Smith, em Paradise, Ohio, em um alçapão sob as tábuas do piso do quarto principal, o que levou os investigadores a considerar possíveis ligações com o terrorismo. Provocando comoção na comunidade de Paradise, Henri e John Smith são agora fugitivos, considerados uma ameaça à segurança nacional, e os investigadores pedem toda e qualquer informação que possa levar ao paradeiro dos dois.

 

Subo a tela para olhar novamente a imagem de John, e, quando meus olhos encontram os dele, minhas mãos começam a tremer. Seus olhos... mesmo nesse desenho há algo familiar neles! Como eu poderia conhecê-los, se não da jornada de um ano que nos trouxe até aqui? Agora ninguém vai me convencer de que ele não é um dos seis Gardes remanescentes ainda vivos neste mundo que não é o nosso.

Eu me recosto na cadeira e sopro a franja para longe de meus olhos, desejando poder ir eu mesma procurar John. É claro que Henri e John Smith são capazes de fugir da polícia. Eles têm permanecido ocultos já faz onze anos, como Adelina e eu. Mas como posso ter esperança de encontrá-lo, se o mundo todo o procura agora? Como qualquer um de nós pode achar que vai encontrar o outro?

Os olhos dos mogadorianos estão em todos os lugares. Não sei como Um e Três foram encontrados, mas acredito que acharam Dois por causa de uma mensagem que ele ou ela havia escrito em um blog. Eu li a mensagem, e depois fiquei ali sentada uns quinze minutos pensando na melhor maneira de responder sem me delatar. Apesar de a mensagem propriamente dita ter sido obscura, era bastante óbvia para nós que estávamos procurando: Nove, agora oito. O restante de vocês está por aí? A mensagem fora enviada de uma conta chamada Dois. Eu havia colocado meus dedos sobre o teclado e digitado uma resposta rápida, e, um instante antes de clicar em Enviar, a página atualizara — alguém tinha respondido antes.

Estamos aqui, dizia a mensagem.

Meu queixo caiu, e eu fiquei encarando a tela, completamente em choque. Aquelas duas mensagens me haviam enchido de esperança, mas, enquanto eu ainda digitava uma resposta diferente, uma luz brilhante surgiu a meus pés, e o chiado de carne sendo queimada veio até meus ouvidos, e logo em seguida eu senti uma dor de queimadura tão grande que caí no chão, retorcendo-me em agonia, chamando por Adelina aos berros com toda a força dos pulmões, segurando o tornozelo com ambas as mãos, para que ninguém pudesse vê-lo. Quando Adelina chegou e percebeu o que estava acontecendo, eu apontei para a tela, mas ela estava vazia; as duas mensagens haviam sido deletadas.

Paro de fitar os olhos familiares de John Smith no monitor. Ao lado do computador há uma pequena flor esquecida sobre a mesa. Ela está murcha e cansada, encolhida à metade de seu tamanho normal, com um tom marrom ressecado na borda das folhas. Várias pétalas estão caídas na mesa em torno do vaso, secas e enrugadas. A flor ainda não está morta, mas não falta muito. Eu me inclino para a frente e junto as mãos em concha em torno dela, aproximo meu rosto o suficiente para tocar com os lábios a beirada das folhas, e sopro ar quente nela. Um arrepio gelado percorre minhas costas e, em resposta, a vida reaparece na pequena flor. Ela se empertiga, e um verde exuberante se espalha pelas folhas e o caule, e novas pétalas brotam, inicialmente sem cor, depois se tingindo de um roxo radiante. Um sorriso travesso se abre em meu rosto, e não consigo deixar de pensar em como as irmãs reagiriam se vissem o que fiz. Mas nunca vou permitir que isso aconteça. Seria mal-interpretada, e não quero ser jogada ao relento. Não estou preparada para isso. Logo estarei, mas agora ainda não.

Desligo o computador e volto às pressas para a cama, pensando em John Smith, que está em algum lugar lá fora.

Proteja-se e continue escondido, eu penso. Nós ainda vamos nos encontrar.

 

OUÇO UM SUSSURRO. O TOM DE VOZ É FRIO. NÃO CONSIGO me mover, mas escuto com atenção.

Não estou mais dormindo, mas também não estou acordado. Estou paralisado e, enquanto os sussurros aumentam, meus olhos varrem a impenetrável escuridão de meu quarto de hotel. A eletricidade que sinto quando a visão surge sobre minha cama me faz lembrar quando meu primeiro Legado, Lúmen, acendeu minhas mãos em Paradise, em Ohio. Quando Henri ainda estava aqui, vivo. Mas Henri se foi. E não vai voltar. Mesmo neste estado, não posso fugir da realidade.

Penetro completamente na visão acima de mim, iluminando a escuridão com minhas mãos acesas, mas o brilho é engolido pelas sombras. E de repente paro. Tudo fica em silêncio. Levanto as mãos diante de mim, mas não toco nada, e meus pés saem do chão, flutuando em um grande vácuo.

Mais sussurros em uma linguagem que não reconheço, mas que, de alguma forma, consigo entender. As palavras brotam ansiosamente. A escuridão diminui, e o mundo no qual me encontro adquire um tom cinzento, até se tornar um branco tão brilhante que tenho de estreitar os olhos para enxergar. Uma névoa paira diante de mim e se dissipa aos poucos, revelando um cômodo amplo com velas ao longo das paredes.

—            Eu... não sei o que deu errado — diz uma voz, claramente abalada.

O cômodo é comprido e largo, do tamanho de um campo de futebol. O cheiro pungente de enxofre queima minhas narinas e faz meus olhos lacrimejarem. O ar é quente e abafado. E então eu os vejo no fundo do cômodo: duas silhuetas envoltas em sombras, uma muito maior que a outra, ambas ameaçadoras, mesmo vistas de longe.

—            Eles escaparam. De alguma maneira, escaparam. Não sei como...

Ando para a frente. Sinto aquela calma que, às vezes, está presente em meus sonhos, quando você sabe que está dormindo e que nada pode machucá-lo de verdade. Passo a passo, vou me aproximando das sombras cada vez maiores.

Todos eles, todos foram mortos. E três pikens e dois krauls também — diz o menor, de pé ao lado do homem maior, com as mãos trêmulas.

Nós os tínhamos sob controle. Estávamos quase... — diz a voz, mas o outro o interrompe. Ele olha em volta para ver o que já sentiu. Eu paro, fico imóvel e prendo a respiração. E ele me encontra. Sinto um arrepio subir pelas costas.

—            John — alguém diz, e a voz soa como um eco distante.

A silhueta maior vem em minha direção. Ele é muito maior que eu, deve ter uns seis metros de altura, é musculoso e tem o maxilar reto. Seu cabelo não é longo como o dos outros, mas curto. A pele é bronzeada. Nós nos encaramos enquanto ele se aproxima lentamente. Oito metros de distância, seis. Ele para a uns três metros. Meu pingente fica pesado e a corrente fere meu pescoço. Na garganta dele, como um colar, percebo uma cicatriz arroxeada grotesca.

—            Estava esperando você — ele diz, a voz suave e calma.

Com o braço direito, saca uma espada da bainha que trazia às costas. A espada ganha vida imediatamente, mantendo a forma enquanto o metal adquire uma consistência quase líquida. O ferimento em meu ombro, da adaga do soldado na batalha em Ohio, parece rugir de dor, como se eu tivesse sido atingido outra vez. Caio de joelhos.

Há quanto tempo! — ele exclama.

Não sei do que você está falando — respondo em um idioma que nunca usei antes.

Quero sair imediatamente daquele lugar, seja qual for. Tento me levantar, mas é como se de repente eu estivesse grudado no chão.

Não sabe? — ele pergunta.

John — escuto novamente em algum lugar à minha volta. O mogadoriano não parece notar, e há alguma coisa no olhar dele que prende o meu. Não consigo desviar.

Eu não devia estar aqui — digo.

Minha voz soa inexpressiva. Tudo perde consistência até sermos apenas nós dois e mais nada.

—            Posso fazê-lo desaparecer, se é o que você quer — ele responde, desenhando um oito com a espada, deixando um rastro branco firme no ar. Em seguida ataca, a espada erguida e soltando fagulhas de poder. Ele brande a lâmina, que desce como um projétil em direção à minha garganta, e eu sei que não posso fazer nada para evitar que ela arranque minha cabeça.

—            John! — a voz grita novamente.

Meus olhos se abrem de repente. Duas mãos me agarram com força pelos ombros. Estou coberto de suor e ofegante. A primeira coisa que vejo é Sam debruçado sobre mim, e depois Seis, com seus olhos castanho-claros severos que, às vezes, parecem azuis, às vezes, verdes, ajoelhada a meu lado, parecendo cansada e abatida, como se eu tivesse acabado de acordá-la, o que provavelmente aconteceu.

—            O que foi isso? — Sam pergunta.

Balanço a cabeça e deixo a visão se dissipar, depois olho à minha volta. O quarto está escuro com as cortinas fechadas, e estou deitado na mesma cama em que passei a última semana e meia me recuperando dos ferimentos da batalha. Seis tem feito o mesmo a meu lado, e nós dois não deixamos este lugar desde que chegamos, contando com Sam para sair em busca de comida e suprimentos. Um quarto com duas camas de casal em um hotel barato perto da rua principal de Trucksville, na Carolina do Norte. Para alugar o quarto, Sam usou uma das carteiras de motorista que Henri havia criado para mim antes de ser morto, e felizmente o recepcionista estava ocupado demais assistindo à televisão para conferir a fotografia. Situado na fronteira noroeste do estado, o hotel fica a quinze minutos de carro tanto da Virgínia quanto do Tennessee, uma localização escolhida, sobretudo porque havíamos viajado o máximo que a gravidade de nossos ferimentos permitiu. Mas eles têm cicatrizado lentamente, e nossa força enfim está retornando.

Você estava falando em um idioma estranho que eu nunca ouvi — diz Sam. — Acho que inventou, cara.

Não, ele estava falando mogadoriano — Seis o corrige. — E um pouco de lórico também.

É mesmo? — pergunto. — Isso é muito esquisito.

Seis caminha até a janela e puxa o lado direito da cortina.

Com o que você estava sonhando?

Balanço a cabeça.

Não sei muito bem. Era um sonho, mas não era, sabe? Acho que eu tive visões, e eram sobre eles. Estávamos prestes a lutar... mas eu estava, não sei, fraco ou confuso ou alguma coisa assim. — Olho para Sam, que está virado para a tevê com o cenho franzido. — O que foi?

Más notícias.

Ele suspira balançando a cabeça.

—            O que foi?

Eu me sento na cama, esfregando os olhos para me livrar do sono.

Sam indica o canto do quarto com a cabeça, e eu me viro para a televisão ligada. Meu rosto ocupa toda a metade esquerda, enquanto um retrato falado de Henri preenche o lado direito. O desenho não tem nada a ver com ele: seu rosto está anguloso e magro, quase emaciado, fazendo-o parecer vinte anos mais velho do que realmente é. Ou era.

—            Como se não fosse ruim o bastante ser chamado de ameaça contra a segurança nacional ou de terrorista — Sam diz —, agora eles estão oferecendo uma recompensa.

Por mim? — pergunto.

Por você e por Henri. Cem mil dólares por qualquer informação que possa levar à captura de vocês dois, e duzentos e cinquenta mil se alguém entregar um de vocês — ele explica.

Passei minha vida como clandestino — eu digo, esfregando os olhos. — Que diferença faz?

Bem, eu nunca fui, e há uma recompensa por mim também — Sam diz. — Míseros vinte e cinco mil, dá para acreditar? E eu não sei se sou um fugitivo competente. Nunca fiz isso antes.

Levanto-me da cama com algum esforço, ainda um pouco dolorido. Sam se senta na outra cama e apóia a cabeça nas mãos.

Mas você está conosco, Sam. Nós o protegemos — garanto.

Não estou preocupado — ele fala sem levantar a cabeça.

Sam pode não estar preocupado, mas eu estou. Mordo a parte interna da bochecha, pensando em como vou garantir sua segurança e manter Seis e a mim vivos, sem Henri. Olho para Sam, que está estressado o bastante para abrir um furo em sua camiseta preta da NASA.

—            Sam, escute. Eu queria que Henri estivesse aqui. Não tenho nem como expressar quanto queria que ele estivesse conosco, por muitas razões. Ele não só me mantinha seguro quando íamos de um estado a outro, mas também sabia muita coisa sobre Lorien e minha família, e tinha um jeito incrivelmente calmo, que nos deixou longe de confusão por muito tempo. Não sei se algum dia vou conseguir fazer o que ele fazia para que ficássemos seguros. Aposto que, se ele estivesse vivo hoje, não teria deixado você vir conosco. De forma alguma ele o teria envolvido nesse perigo. Mas, veja bem, você está aqui, e prometo que não vou deixar nada acontecer a você.

-— Eu quero estar aqui — diz Sam, — Essa é a coisa mais legal que já me aconteceu. — Ele faz uma pausa, e depois me encara. — Além do mais, você é meu melhor amigo, e eu nunca tive um melhor amigo.

—            Nem eu — respondo.

—            Abracem-se logo — Seis diz. Sam e eu rimos.

Meu rosto ainda está na tela da televisão. A foto é aquela tirada por Sarah em meu primeiro dia de aula, o dia em que a conheci; minha expressão é estranha, pareço desconfortável. O lado direito da tela agora é preenchido por fotos menores das cinco pessoas que fomos acusados de matar: três professores, o treinador do time masculino de basquete e o zelador da escola. A imagem muda novamente e mostra a escola destruída — e ela está realmente destruída; o lado direito do prédio agora é uma pilha de escombros. A televisão passa a exibir várias entrevistas com moradores de Paradise, e a mãe de Sam é a última a falar. Ela aparece chorando e olha para a câmera ao suplicar desesperada aos "sequestradores" que, "por favor, por favor, por favor, devolvam meu bebê são e salvo". Percebo que a expressão de Sam se altera quando ele vê aquilo.

Em seguida vemos cenas dos funerais e das vigílias noturnas da semana passada. O rosto de Sarah aparece, coberto de lágrimas, e ela está segurando uma vela. Um nó se forma em minha garganta. Eu daria qualquer coisa para ligar para ela, ouvir sua voz. Sofro só de imaginar o que ela deve estar enfrentando. O vídeo que nos mostra escapando do incêndio na casa de Mark — que foi o que começou tudo isso — é um dos mais vistos na Internet, e, apesar de eu ter sido acusado de criar aquele incêndio também, Mark jurou de pés juntos que eu não tive nada a ver com aquilo, embora pudesse ter escapado de toda e qualquer consequência usando-me como bode expiatório.

Quando deixamos Ohio, os estragos na escola haviam sido atribuídos a princípio a um tornado fora de época; mas então as equipes de resgate vasculharam os destroços, e não demorou até que todos os cinco corpos fossem encontrados, dispostos a distâncias iguais um do outro — sem marca alguma em nenhum deles —, em uma sala que não havia sido atingida pela batalha. Autópsias revelaram que eles haviam morrido de causas naturais, sem qualquer traço de drogas ou trauma. Ninguém sabe o que aconteceu de verdade. Quando um dos repórteres escutou que eu havia saído pela janela da sala do diretor e fugido da escola, e quando depois Henri e eu desaparecemos, ele publicou uma matéria que nos culpava de tudo, e os demais logo o copiaram. Após a descoberta recente das ferramentas de falsificação de Henri e de alguns documentos forjados que ele havia deixado na casa, a opinião pública se voltou mais ainda contra nós.

—            Agora vamos ter de ser muito cuidadosos — diz Seis, sentada com as costas apoiadas na parede.

—            Mais que ficar trancados em um quarto de hotel de quinta com as cortinas fechadas? — pergunto.

Seis volta para perto da janela e afasta uma ponta da cortina, com o objetivo de olhar para fora. Uma fresta de luz surge no chão.

O sol vai se pôr daqui a três horas. Partiremos assim que escurecer.

Graças a Deus — Sam responde. — Hoje à noite vamos poder ver uma chuva de meteoros, se seguirmos para o sul. Além do mais, se eu tiver de passar mais tempo neste quarto vagabundo, vou ficar maluco.

Sam, você é maluco desde que o conheci — brinco.

Ele joga um travesseiro em minha direção, e eu o bloqueio sem levantar a mão. Faço com que ele dê várias voltas no ar, usando minha capacidade telecinética, e depois o arremesso como um foguete contra a televisão, desligando-a.

Sei que Seis tem razão sobre termos de seguir em frente, mas me sinto frustrado. Parece que não há um fim à vista, nenhum lugar onde possamos estar seguros. Ao pé da cama, mantendo meus pés aquecidos, está Bernie Kosar, que não saiu de perto de mim desde Ohio. O cachorro abre os olhos, se espreguiça e boceja. Ele olha para mim e me informa, por telepatia, que também se sente melhor. A maioria dos pequenos ferimentos que cobriam seu corpo desapareceu, e os mais graves estão cicatrizando bem. Ele ainda está com a tala improvisada na pata dianteira quebrada, e vai mancar por mais algumas semanas, mas quase parece normal. Balança a cauda uma vez e toca em minha perna com uma pata. Eu me inclino para pegá-lo, acomodando-o sobre minhas pernas e coçando sua barriga.

E você, amigão? Está preparado para sair deste buraco?

Bernie Kosar bate a cauda na cama.

Para onde vamos, gente? — pergunto.

Não sei — responde Seis. — De preferência, para algum lugar quente, para nos livrarmos do inverno. Não aguento mais essa neve. Porém, o que me incomoda ainda mais é não saber onde estão os outros.

Por enquanto somos só nós três. Quatro mais Seis mais Sam.

Adoro álgebra — Sam diz. — Sam é igual a x. Variável x.

Que nerd, cara — eu digo.

Seis entra no banheiro e sai um segundo depois com vários produtos de higiene.

Se há algum consolo em tudo o que aconteceu, é que agora, pelo menos, os outros Gardes sabem que John não apenas sobreviveu à sua primeira batalha, como também saiu vencedor. Talvez sintam um pouco de esperança agora. No momento, nossa prioridade é encontrar os outros. E treinarmos juntos enquanto isso.

Nós vamos encontrá-los — afirmo. Depois olho para Sam. — Ainda dá tempo de voltar e retomar sua vida, Sam. Você pode inventar qualquer história sobre nós. Diga que o sequestramos e o prendemos contra sua vontade, e que você fugiu na primeira oportunidade que teve. Será considerado um herói. As garotas vão cair em cima de você.

Sam morde o lábio inferior e balança a cabeça.

—            Não quero ser um herói. E as garotas já caem naturalmente em cima de mim.

Seis e eu reviramos os olhos, mas eu também vejo Seis corar. Ou talvez tenha sido minha imaginação.

Estou falando sério — ele insiste. — Não vou embora.

Eu dou de ombros.

Então, acho que está resolvido. Sam é igual a x nesta equação.

Sam observa Seis caminhar até sua mochila, que está ao lado da televisão, e a atração que ele sente por ela está evidente em seu rosto. Seis veste um short preto de algodão e blusa branca, e mantém o cabelo preso. Algumas mechas soltas emolduram seu rosto. Uma cicatriz roxa se destaca na frente de sua coxa esquerda, e as marcas de sutura ao redor estão rosadas, ainda não curadas. Sutura que ela não apenas fez, mas também removeu. Quando Seis levanta a cabeça, Sam desvia timidamente o olhar. É visível que há outra razão para ele querer ficar.

Seis se abaixa e enfia a mão na mochila, de onde retira um mapa dobrado. Ela o abre no pé da cama.

—            Aqui — diz ela, apontando para Trucksville — é onde estamos. E aqui — continua, movendo o dedo desde a Carolina do Norte até uma minúscula estrela vermelha feita com tinta perto do centro de West Virginia — fica a caverna dos mogadorianos, a que eu sei que existe, pelo menos.

Olho para o local que ela aponta. Mesmo no mapa fica óbvio que o local é muito isolado; não parece haver estradas importantes num raio de oito quilômetros, nem qualquer cidade num raio de quinze quilômetros.

Como é que você sabe onde fica a caverna?

É uma longa história — ela responde. — Acho melhor deixar para contá-la quando estivermos na estrada.

Seu dedo traça uma nova rota no mapa, seguindo para o sudoeste a partir de West Virginia, atravessando o Tennessee e parando em um ponto no Arkansas perto do Rio Mississippi.

—            O que tem aí? — pergunto.

Ela infla as bochechas e solta o ar demoradamente, sem dúvida lembrando algum acontecimento. Seu rosto assume uma expressão especial quando ela se concentra.

—            Aqui é onde estava minha arca — Seis responde. — E algumas coisas que Katarina trouxe de Lorien. Foi aqui que a escondemos.

Como assim, estava?

Ela balança a cabeça.

Não está mais lá?

Não. Nós estávamos sendo seguidas, e não podíamos correr o risco de deixá-los pegar a arca. Ela não estava mais segura conosco, então nós a guardamos em Arkansas com os artefatos de Katarina e fugimos o mais depressa possível, pensando em conseguir alguma distância deles... — Ela para de falar.

Eles alcançaram vocês, não foi? — pergunto, sabendo que Katarina, sua Cêpan, morreu há três anos.

Seis suspira.

—            Essa é outra história que acho melhor deixarmos para a estrada.

 

Levo alguns minutos para jogar minhas roupas dentro da mochila e nesse meio-tempo percebo que Sarah foi a última pessoa a arrumar aquela mochila. Só passou uma semana e meia, mas parece que já faz um ano e meio. Pergunto-me se ela foi interrogada pela polícia, ou se as outras pessoas na escola pararam de falar com ela. Aliás, em que escola ela está agora, já que a nossa foi destruída? Tenho certeza de que Sarah dá conta, mas, de qualquer forma, não deve estar sendo fácil, especialmente porque ela não tem ideia de onde estou, ou mesmo se estou bem. Gostaria de entrar em contato com ela sem colocar nenhum de nós em risco.

Sam volta a ligar a tevê usando o método tradicional — com o controle remoto — e assiste ao telejornal enquanto Seis fica invisível para ir verificar a caminhonete. Imaginamos que a mãe de Sam tenha notado que ela sumiu, o que certamente significa que a polícia está à sua procura. Alguns dias atrás Sam roubou a placa dianteira de outra caminhonete. Isso talvez nos ajude até chegarmos a nosso destino.

Termino de guardar meus pertences e deixo a mochila ao lado da porta. Sam sorri ao ver sua foto aparecer na tela, novamente no mesmo bloco do noticiário, e sei que ele está gostando desse momento de celebridade, mesmo correndo o risco de ser considerado um fugitivo. Em seguida meu retrato aparece mais uma vez, o que significa que eles também mostram o de Henri. Meu coração fica apertado quando o vejo, mesmo que o desenho nada tenha a ver com ele. Agora não é hora para culpa ou depressão, mas sinto muita falta de Henri. É minha culpa que ele está morto.

Quinze minutos depois, Seis entra no quarto carregando uma sacola branca de plástico.

Ela ergue a sacola e a balança, olhando para nós.

Comprei algo para vocês.

É mesmo? O que é? — pergunto.

Ela põe a mão dentro da sacola e tira uma máquina de raspar cabelo.

—            Acho que é hora de você e Sam mudarem o corte.

—            Ah, não, minha cabeça é muito pequena. Vou ficar parecendo uma tartaruga — Sam protesta. Eu rio, tentando imaginá-lo sem o cabelo bagunçado. Seu pescoço é longo e fino, e acho que ele talvez tenha razão.

Você vai ficar irreconhecível — Seis argumenta.

Não quero ficar irreconhecível. Sou Variável x.

Deixe de ser covarde — ela retruca.

Sam faz uma careta. Eu tento animá-lo.

—            Isso mesmo, Sam — digo, tirando a camisa.

Seis me segue até o banheiro e tira a máquina da embalagem enquanto eu me debruço sobre a banheira. Os dedos dela estão um pouco frios, e minha pele se arrepia nas costas. Queria que fosse Sarah me segurando pelo ombro e renovando meu visual. Sam nos observa da porta, suspirando alto, deixando bem claro seu desprazer.

Seis termina, e eu limpo com uma toalha o cabelo cortado e me olho no espelho. Minha cabeça está mais branca que o rosto, mas só porque nunca foi exposta ao sol. Acho que alguns dias na Flórida, onde Henri e eu morávamos antes de nos mudarmos para Ohio, rapidamente resolveriam o problema.

Está vendo: John parece fortão, agora. Eu vou parecer um idiota — Sam resmunga.

Eu sou fortão, Sam — observo.

Ele revira os olhos enquanto Seis limpa a máquina.

—            Abaixe-se — ela diz.

Sam obedece, ajoelhando-se e se inclinando sobre a banheira. Quando ela termina, Sam se levanta e olha para mim com ar de súplica.

Ficou muito ruim?

Você está ótimo, camarada — eu digo. — Parece um fugitivo.

Sam esfrega a mão na cabeça algumas vezes até enfim olhar para o espelho. Ele faz uma careta.

—            Pareço um alien! — exclama, fingindo desgosto, depois olha para mim por cima do ombro. — Sem ofensa — acrescenta, lamentoso.

Seis recolhe todo o cabelo da banheira e o joga no vaso sanitário, tomando o cuidado de descartar todas as mechas pela descarga. Em seguida, enrola o fio da máquina em voltas pequenas e apertadas e a recoloca na sacola.

—            É hora de pegar a estrada — diz.

Colocamos nossas mochilas nos ombros de Seis, que as agarra, torna-se invisível e faz as mochilas desaparecerem também. Depois sai pela porta rapidamente para levá-las até a caminhonete sem ser vista. Enquanto ela está fora, eu estendo o braço até o canto direito da prateleira de cima no armário, afasto algumas toalhas e pego a Arca Lórica.

—            Você não vai abrir essa coisa algum dia? — Sam pergunta. Ele está ansioso para ver o que há dentro da arca desde que falei a respeito.

—            Sim, eu vou — respondo. — Assim que sentir que é seguro.

A porta do quarto se abre, e depois se fecha. Seis reaparece e olha para a arca.

Não vou conseguir fazer desaparecer você, Sam e isso aí. Só o que está em minhas mãos. Vou levar isso para a caminhonete primeiro.

Não, tudo bem. Leve Sam com você, e eu irei logo atrás.

Isso é idiotice, John. Como você vai nos seguir?

Coloco o boné e visto a jaqueta, fecho o zíper e puxo o capuz sobre a cabeça, deixando apenas o rosto visível.

—            Vai dar tudo certo. Tenho audição privilegiada, como você — digo.

Ela me olha desconfiada e balança a cabeça. Pego a correia de Bernie Kosar e a prendo à guia em seu pescoço.

Só até chegarmos à caminhonete — explico, pois ele odeia andar com a guia. Pensando melhor, eu me abaixo para pegá-lo, já que ele ainda está com a pata machucada, mas Bernie me diz que prefere ir andando.

Quando vocês quiserem — aviso.

Muito bem, vamos lá — Seis responde.

Sam estende a mão para ela com um pouco de entusiasmo demais. Eu contenho uma risada.

O que é? — ele pergunta.

Balanço a cabeça.

Nada. Vou segui-los como puder, mas não se adiantem muito.

—            Dê uma tossida se não conseguir nos acompanhar, e nós paramos. O carro está a apenas alguns minutos daqui, atrás do celeiro abandonado — diz Seis. — Não tem erro.

Quando a porta se abre, Seis e Sam desaparecem.

—            Nossa vez, BK. Agora somos só nós dois.

Ele sai do quarto junto comigo, trotando feliz com a língua para fora da boca. Além das rápidas idas ao banheiro privado no pequeno gramado ao lado do hotel, Bernie Kosar tem permanecido confinado como todos nós.

O ar noturno é frio e limpo, com um suave perfume de pinho, e o vento no rosto me traz imediatamente de volta à vida. Enquanto caminho, fecho os olhos e tento sentir Seis apalpando o ar com a mente, tentando sentir os arredores com minha telecinesia, como consegui deter a bala em Athens agarrando tudo no ar. Sinto a presença dos dois alguns passos adiante e um pouco para a direita. Cutuco Seis e ela se assusta, prendendo a respiração. Três segundos depois ela esbarra em mim com o ombro, quase me derrubando. Eu acho graça. Ela também.

—            O que vocês estão fazendo? — Sam pergunta. Ele está aborrecido com nosso joguinho. — Devíamos ficar quietos, lembram?

Chegamos à caminhonete, que está estacionada atrás de um velho celeiro arruinado que parece prestes a desmoronar. Seis solta a mão de Sam e ele entra na caminhonete, acomodando-se no meio do banco. Seis ocupa o lugar do motorista, e eu me sento do outro lado, com BK a meus pés.

Caramba, o que aconteceu com seu cabelo, cara? — provoco Sam.

Cale a boca.

Seis liga o motor, e eu sorrio enquanto ela dirige até a estrada, ligando os faróis assim que as rodas tocam o asfalto.

—            O que é? — Sam pergunta.

—            Estava pensando que, de nós quatro, três são alienígenas, dois são fugitivos com vínculos terroristas e nenhum tem uma carteira de motorista válida. Alguma coisa me diz que as coisas talvez fiquem interessantes.

Nem Seis conseguiu conter um sorriso.

 

—            EU TINHA TREZE ANOS QUANDO ELES NOS ALCANÇARAM — Seis diz quando atravessamos a fronteira para o Tennessee, quinze minutos depois de deixarmos o Hotel Trucksville. Eu havia perguntado como ela e Katarina foram capturadas.

—            Estávamos no oeste do Texas, depois de fugir do México por causa de um erro estúpido. Nós duas ficamos completamente fissuradas por uma mensagem idiota que Dois escrevera na Internet, embora na época não soubéssemos que fosse Dois, e respondemos. Estávamos nos sentindo solitárias no México, morando em uma cidade poeirenta no meio do nada, e simplesmente tínhamos de saber se aquele era mesmo um membro da Garde.

Concordo com a cabeça, pois sei do que ela está falando. Henri também vira a mensagem no blog quando estávamos no Colorado. Eu estava num campeonato de soletração na escola, e a cicatriz surgira enquanto eu me apresentava. Fui levado às pressas para o hospital, e o médico viu a primeira cicatriz e a queimadura profunda da segunda indo até o osso. Quando Henri chegou, eles o acusaram de maus-tratos, e esse foi o motivo para fugirmos do estado e assumirmos novas identidades, mais um recomeço.

"Nove, agora oito. O restante de vocês está por aí?" — pergunto.

Isso mesmo.

Então foram vocês que responderam — digo, Henri gravara a imagem da tela com a mensagem para que eu pudesse ver. Ele havia tentado desesperadamente invadir o computador para apagá-la antes que o estrago fosse feito, mas não fora rápido o bastante. Dois foi morta. Outra pessoa deletou a mensagem logo em seguida. Deduzimos que tivessem sido os mogadorianos,

Foi Katarina, escrevendo apenas "Estamos aqui"; e, menos de um minuto depois, a cicatriz apareceu — conta Seis, balançando a cabeça. — Foi muita idiotice Dois ter escrito aquilo, sabendo que seria a próxima. Ainda não consigo entender por que ela arriscaria isso.

—            Vocês sabem onde ela estava? — Sam pergunta.

Eu olho para Seis.

Você sabe? Henri acreditava que fosse na Inglaterra, mas não tinha certeza.

Não tenho ideia. Tudo o que sabíamos era que, se a encontraram tão depressa, não levariam muito tempo para nos encontrar também.

Mas como vocês souberam que ela havia escrito a mensagem? — Sam indaga.

Seis olha para ele.

Como assim?

Não sei; vocês não têm certeza nem de onde ela estava, então como sabem que era ela?

Quem mais poderia ser?

—            Bem, assim, eu vejo como você e John são cautelosos. Não consigo imaginar nenhum dos dois fazendo algo tão idiota como isso se soubessem que seria o próximo. Especialmente com tudo o que sabem sobre os mogadorianos. Não acho que vocês teriam enviado mensagem alguma.

É verdade, Sam.

Então talvez eles já tivessem capturado Dois e estivessem tentando atrair alguns de vocês antes de matá-la, o que pode explicar por que ela foi morta segundos depois de vocês terem respondido. Podia ser um blefe. Ou talvez ela soubesse o que eles estavam fazendo, e se matou para prevenir vocês, ou algo do tipo. Sei lá. São só palpites, certo?

—            Certo — digo. Mas são bons palpites. Palpites que não me haviam ocorrido. E me pergunto se haviam ocorrido ao Henri.

Permanecemos em silêncio pensando a esse respeito. Seis dirige à velocidade máxima permitida, e alguns carros passam por nós. A estrada é margeada de postes de luz, o que faz as colinas a distância parecerem fantasmagóricas.

—            Ela podia estar com medo e desesperada — digo. — Isso pode tê-la levado a fazer alguma besteira, como escrever uma mensagem inconsequente na Internet.

Sam dá de ombros.

Só me parece um pouco improvável.

É verdade — concordo. — Mas talvez eles já tivessem matado seu Cêpan, e ela pode ter ficado apavorada. Devia ter doze anos, talvez treze. Imagine o que deve ser ter treze anos e ficar sozinha — digo, antes de perceber que estou descrevendo exatamente o caso de Seis.

Ela olha para mim por um instante, depois se volta para a estrada.

—            Em nenhum momento pensamos que fosse uma armadilha — ela diz. — Embora a ideia faça algum sentido. Na época, estávamos apenas com medo. E meu tornozelo queimava. É um pouco difícil pensar com clareza enquanto parece que o pé está sendo arrancado.

Assenti firmemente.

—            Mesmo depois do medo inicial, no entanto, ainda não consideramos essa possibilidade. Nós respondemos, e foi isso que os colocou em nosso encalço. Foi uma atitude ridícula. Talvez você tenha razão, Sam. Só posso esperar que aqueles de nós que ainda estão vivos tenham ficado mais sábios.

A última frase de Seis paira no ar. Restam apenas seis de nós. Seis contra um número desconhecido deles. E nenhuma forma de sabermos como podemos nos encontrar. Somos a única esperança. A força dos números. O poder dos seis. Pensar nisso faz meu coração bater duas vezes mais depressa que o normal.

O que é? — pergunta Seis.

Agora somos seis.

Eu sei. E daí?

Seis de nós, e talvez alguns ainda tenham seus Cêpans, talvez não. Mas seis para lutar contra sabe-se lá quantos mogadorianos? Mil? Cem mil? Um milhão?

—            Ei, não se esqueçam de mim — diz Sam. — E de Bernie Kosar.

Eu assinto.

Desculpe-me, Sam, você tem razão. Oito de nós. — E então, de repente, uma lembrança me vem à cabeça. — Seis, sabe alguma coisa sobre a segunda nave que saiu de Lorien?

Outra nave além da nossa?

É, ela partiu depois da nossa. Quer dizer, acho que sim. Estava cheia de Chimaera. Uns quinze, mais três Cêpans e talvez um bebê. Tive visões dessa nave quando Henri e eu estávamos treinando, mas ele encarou a história toda com certo ceticismo. Só que até agora todas as visões que tive se confirmaram.

Eu não tinha ideia.

—            Ela decolou num foguete antigo que parecia um pouco com um ônibus espacial da NASA. Sabe, movido por um combustível que deixa um rastro de fumaça.

Se fosse, a nave não teria chegado aqui — diz Seis.

Sim, foi o que Henri disse.

Chimaera? — Sam perguntou. — Animais como Bernie Kosar?

Eu confirmo acenando com a cabeça. Ele se anima.

Talvez tenha sido assim que Bernie chegou aqui. Já pensou se todos eles conseguiram chegar? Depois de ver o que Bernie fez durante a luta?

Seria incrível — concordo. — Mas tenho bastante certeza de que o velho Bernie estava em nossa nave.

Passo a mão nas costas de Bernie Kosar e sinto as crostas ásperas que ainda cobrem boa parte de seu corpo. Sam suspira, reclina-se no assento com uma expressão de alívio no rosto, provavelmente imaginando um exército de Chimaera aparecendo no último instante para nos ajudar a derrotar os mogadorianos. Seis olha pelo espelho retrovisor, e os faróis do carro atrás de nós projetam uma faixa de luz em seu rosto. Ela volta a olhar a estrada com o mesmo ar introspectivo que Henri apresentava quando estava dirigindo.

—            Os mogadorianos — Seis começa em voz baixa, engolindo em seco quando Sam e eu nos viramos para olhar para ela. — Eles nos alcançaram um dia depois de termos respondido à mensagem de Dois, em uma cidade erma no oeste do Texas. Katarina havia dirigido por quinze horas sem parar desde o México, estava ficando tarde, e nós estávamos exaustas, porque não havíamos dormido. Paramos em um hotel na beira da estrada não muito diferente desse que acabamos de deixar. Ficava em uma cidadezinha bem pequena que parecia cenário de um filme antigo de faroeste, cheia de caubóis e rancheiros. Havia até postes do lado de fora de alguns edifícios, para que as pessoas amarrassem seus cavalos. Era muito esquisita, mas havíamos acabado de sair de uma cidade poeirenta do México, então não pensamos duas vezes antes de parar ali.

Ela para de falar quando um carro passa por nós. Seis segue o veículo com os olhos e confere o velocímetro antes de voltar a olhar para a estrada.

—            Fomos comer algo em um restaurante. Estávamos no meio do jantar quando um homem entrou e se sentou a uma mesa. Ele usava camisa branca e gravata, mas era uma gravata típica do oeste, e suas roupas pareciam antiquadas. Nós o ignoramos, apesar de eu ter notado que as outras pessoas no restaurante o encaravam, como também faziam conosco. A certa altura, ele se virou e olhou em nossa direção, mas, como todo mundo tinha feito o mesmo gesto, eu não associei uma coisa à outra. Eu tinha apenas treze anos, e naquele momento era difícil pensar no que quer que fosse além de dormir e comer. Então terminamos de jantar e voltamos para o quarto. Katarina foi tomar uma ducha, quando ela saiu do banheiro, vestindo um roupão, ouvimos uma batida à porta. Nós nos encaramos. Ela perguntou quem era, e um homem respondeu que era o gerente do hotel, com toalhas limpas e gelo; sem pensar duas vezes, fui até a porta e a abri.

—            Ah, não — Sam murmura.

Seis assente.

Era o homem do restaurante com sua gravata do oeste. Ele logo entrou no quarto e fechou a porta. Eu usava meu pingente bem à vista. Ele soube imediatamente quem eu era, e Katarina e eu soubemos imediatamente quem ele era. Com um movimento rápido, o homem sacou uma faca da cintura da calça e tentou atingir minha cabeça. Ele foi ligeiro, e eu não tive tempo de reagir. Ainda não tinha Legados, não tinha defesas. Estava morta. Mas então a coisa mais estranha aconteceu. Quando a faca penetrou meu crânio, foi o dele que se abriu. Eu não senti nada. Depois descobri que eles não tinham ideia de como o feitiço funcionava, de que ele não poderia me matar até que os Números Um a Cinco estivessem mortos. Ele caiu no chão e se transformou em cinzas.

Sinistro — diz Sam.

Espere — interrompo. — Pelo que vi, é bastante fácil reconhecer os mogadorianos. Eles têm a pele tão branca que parece ter sido descolorida. E seus dentes e olhos... — Paro antes de continuar. — Como vocês não descobriram no restaurante? Por que o deixou entrar no quarto?

Tenho certeza de que só os soldados e mensageiros têm essa aparência. Eles são os militares mogadorianos. Foi o que Katarina disse, pelo menos. O restante parece tão humano quanto nós. O que estava no restaurante parecia um contador, com óculos de armação de metal, calça preta, camisa branca de mangas curtas e aquela gravata. O homem tinha até um bigode tosco. Eu me lembro de que era bronzeado. Não tínhamos ideia de que ele nos seguira.

Isso me tranquiliza — comento, com algum sarcasmo. Imagino a cena da faca entrando na cabeça de Seis e matando o mogadoriano, em vez dela. Se um deles fizesse o mesmo comigo agora, eu morreria. Afasto essa ideia da cabeça e pergunto: — Você acredita que eles ainda estão em Paradise?

Ela não diz nada por um minuto, e, quando finalmente fala, preferiria que tivesse ficado quieta.

Acho que podem estar lá.

Então Sarah está em perigo?

Todo mundo está em perigo, John. Todas as pessoas que conhecemos em Paradise, todos os que não conhecemos em Paradise.

Toda Paradise deve estar sendo vigiada, e eu sei que não é seguro chegar a um raio de oitenta quilômetros da cidade. Nem telefonar. Nem mesmo mandar uma carta, ou eles descobrirão a importância de Sarah para mim, nossa ligação.

—            Enfim — Sam diz, querendo retomar a história —, o mogadoriano cai no chão e morre. E aí?

—            Katarina jogou a arca para mim, pegou nossa mala, e nós fugimos em disparada do quarto, Katarina ainda de roupão. A caminhonete não estava trancada, e nós pulamos para dentro. Outro mog saiu correndo da parte de trás do hotel em nossa direção. Kat estava tão nervosa que não conseguia encontrar as chaves. Mas ela travou as portas, e as janelas estavam fechadas. Mas o cara não perdeu tempo e foi logo arrebentando o vidro do lado do passageiro, agarrando-me pela camisa. Katarina gritou, e alguns homens que estavam por perto entraram em ação.

"Outros saíram do restaurante para ver o que estava acontecendo. O mogadoriano não teve escolha a não ser me largar para enfrentar os homens. 'As chaves estão no quarto!', Katarina gritou. Olhou para mim com olhos arregalados, cheios de desespero. Ela estava em pânico. Nós duas estávamos. Pulei da caminhonete e corri de volta ao quarto, para pegar as chaves. Aqueles homens no Texas, foi graças a eles que conseguimos escapar; eles salvaram nossa vida. Quando saí do quarto com as chaves, um deles apontava uma arma para o mogadoriano.

"Não sabemos o que aconteceu depois disso, porque Katarina afundou o pé no acelerador e não olhamos para trás. Escondemos a arca algumas semanas mais tarde, pouco antes de eles nos alcançarem de vez."

Eles já não têm as arcas dos primeiros três? — Sam pergunta.

Provavelmente, mas para que vão servir? Assim que morremos, a arca se abre sozinha, e tudo o que há dentro se torna inútil — ela explica, e eu assinto, lembrando-me de minhas conversas com Henri.

—            Os objetos não são apenas inúteis: eles se desintegram completamente, assim como os mogadorianos que são mortos — acrescento.

—            Sinistro — diz Sam.

Nesse momento eu me lembro do post-it que encontrei quando salvei Henri em Athens, Ohio.

Aqueles caras que Henri visitou, os responsáveis pela revista Eles Estão entre Nós?

Sim?

Eles tinham uma fonte que aparentemente tinha capturado e torturado um mogadoriano para obter informações, e ele dizia saber que a Número Sete havia sido rastreada na Espanha e que Nove estava em algum lugar na América do Sul.

Seis pensa nisso por um momento. Morde o lábio e olha pelo retrovisor.

—            Tenho certeza de que a Número Sete é uma menina; eu me lembro dela durante a viagem na nave.

No mesmo instante em que ela conclui a frase, ouvimos uma sirene soar atrás de nós.

 

NO SÁBADO À NOITE PARA DE NEVAR. O SOM DAS PÁS limpando o asfalto ecoa no ar noturno. Pela janela, vejo as silhuetas indistintas de moradores que jogam a neve para locais menos inconvenientes, preparando-se para sair de casa de manhã e cumprir as obrigações dominicais. Há certa tranquilidade na cidade ativa em uma noite silenciosa, todo mundo movido pela mesma causa, e eu gostaria de estar lá com aquelas pessoas. E então o sino soa o toque de recolher. No quarto, em menos de um minuto, quatorze meninas vão para suas camas e as luzes são apagadas.

Assim que fecho os olhos o sonho começa. Estou em um campo florido num dia quente de verão. À minha direita, o distante contorno irregular de uma cadeia de montanhas se destaca contra o cenário do sol poente; à esquerda, está o mar. Uma menina vestida de preto, com cabelos negros luzidios e olhos cinzentos marcantes aparece do nada. Ela está sorrindo, uma expressão ao mesmo tempo determinada e confiante. Estamos só nós duas. Então percebo uma grande agitação atrás de mim, como se um terremoto isolado tivesse começado naquele instante, e o chão se abre. Não me viro para ver o que de fato está acontecendo. A menina levanta a mão, indicando que eu devo pegá-la, e seus olhos estão fixos nos meus. Eu estendo minha mão. Meus olhos se abrem.

Vejo raios de luz que entram pelas janelas. Embora pareça que se passaram apenas alguns minutos, a verdade é que passou a noite inteira. Balanço a cabeça para me livrar dos resquícios do sonho. Domingo é o dia do descanso, mas, ironicamente, para nós é o dia mais movimentado da semana, a começar por uma longa missa.

O público atendido é muito maior nesse dia, supostamente por ser aquela uma comunidade de grande devoção religiosa. Na verdade, porém, o fato se deve a El Festín, a grande refeição que é oferecida após a missa. Todas as moradoras do convento têm de trabalhar. Meu lugar é na fila do refeitório. Só depois da refeição é que ficamos, enfim, livres. Se eu tiver sorte, tudo termina até as quatro da tarde, e então só preciso voltar até o pôr do sol. Nesta época do ano, ele acontece pouco depois das seis.

Corremos para os chuveiros e nos aprontamos rapidamente: tomamos banho, escovamos os dentes e penteamos o cabelo, e então vestimos nossas melhores roupas de domingo, trajes idênticos em preto e branco, que deixam à mostra apenas as mãos e a cabeça. Depois que a maioria das meninas sai do quarto, Adelina entra. Ela para na minha frente e ajeita a gola de minha túnica. Aquilo me faz sentir muito mais nova do que realmente sou. Ouço o barulho das pessoas que entram na igreja. Adelina continua em silêncio. Eu também. Olho para as mechas grisalhas em seu cabelo castanho, um detalhe que eu não notei antes. Há rugas em torno de seus olhos e da boca. Ela tem quarenta e dois anos, mas parece dez anos mais velha.

—            Sonhei com uma menina de cabelos negros e olhos cinzentos que me estendeu a mão — digo, rompendo o silêncio. — Ela queria que eu a segurasse.

—            Tudo bem — Adelina responde, sem saber por que estou contando meu sonho.

Acha que ela pode ser uma de nós?

Ela dá uma última ajeitada em minha gola.

Acho que você não deveria procurar tantos significados em seus sonhos.

Quero discutir com ela, mas não sei bem o que falar. Então, digo:

Parecia real.

Alguns sonhos são assim.

—            Mas há muito tempo você me disse que em Lorien às vezes podíamos nos comunicar a distância.

Sim, e em seguida eu lia para você histórias sobre um lobo que soprava casas para derrubá-las e sobre galinhas que punham ovos de ouro.

Esses eram contos de fadas.

—            Tudo era um grande conto de fadas, Marina.

Eu trinco os dentes.

—            Como você pode falar assim? Nós duas sabemos que não era conto de fadas. Sabemos de onde viemos e por que estamos aqui. Não sei por que você age como se não tivesse vindo de Lorien e não estivesse incumbida de me ensinar.

Ela cruza as mãos às costas e olha para o teto.

—            Marina, desde que cheguei aqui, desde que nós chegamos, fomos agraciadas com o conhecimento da verdade sobre a criação, sobre nossa origem e nossa verdadeira missão na Terra. E isso tudo é encontrado na Bíblia.

—            E a Bíblia não é um conto de fadas?

Seus ombros ficam rígidos. Ela franze o cenho e tensiona a mandíbula.

—            Lorien não é um conto de fadas — eu continuo antes que ela possa responder e, usando telecinesia, levanto um travesseiro de uma cama próxima e o giro no ar.

Adelina faz algo que nunca fez: me dá uma bofetada. Forte. Deixo cair o travesseiro e levo a mão ao rosto dolorido, boquiaberta.

Não se atreva a deixar que elas a vejam fazendo isso — ela dispara, furiosa.

O que acabei de fazer não é um conto de fadas. Eu não sou parte de um conto de fadas. Você é minha Cêpan, e você não é parte de um conto de fadas.

Chame como quiser — ela diz.

Mas você não viu as notícias? Você sabe que o menino de Ohio é um de nós... tem de saber! Ele pode ser nossa única chance!

Nossa única chance de quê?

De vida.

E como chama o que temos aqui?

Passar os dias vivendo as mentiras de uma raça alienígena não é vida — retruco.

Ela balança a cabeça.

— Desista, Marina — ela diz e se afasta.

Não tenho escolha senão segui-la.

Marina. Agora o nome soa tão normal, tão eu, Não penso duas vezes quando Adelina o pronuncia, ou quando uma das meninas do orfanato o grita na saída da escola, mostrando o livro de matemática que esqueci, Mas nem sempre foi esse meu nome. Quando vagávamos sem rumo em busca de uma refeição quente ou um lugar para dormir, antes da Espanha e de Santa Teresa, antes de Adelina ser Adelina, eu fui Geneviève. Adelina, Odette. Esses foram nossos nomes franceses.

"Precisamos mudar de nome sempre que formos a um novo país", Adelina sussurrou quando ela era Signy e nós morávamos na Noruega, onde nosso navio aportou após meses no mar. Ela escolheu esse nome porque ele estava escrito na blusa de uma mulher atrás do balcão.

"Qual será meu nome?", eu perguntei.

"O que você quiser", ela disse. Estávamos em um café no meio de um vilarejo sem graça, desfrutando o calor da caneca de chocolate quente que dividíamos. Signy se levantou e recolheu um jornal do fim de semana que estava em uma mesa próxima. A primeira página tinha a foto da mulher mais linda que eu jamais vira. Cabelos louros, faces salientes, olhos azuis e profundos. O nome dela era Birgitta. Meu nome passou a ser Birgitta.

Mesmo quando estávamos em um trem, com os países passando depressa do lado de fora da janela como se fossem árvores, sempre mudávamos de nome, mesmo que fosse só por algumas horas. Sim, era para nos escondermos dos mogadorianos ou de qualquer um que pudesse estar nos seguindo, mas também era a única coisa que nos animava, em meio a tanta dificuldade. Eu achava tão divertido que gostaria que tivéssemos viajado pela Europa muitas vezes. Na Polônia fui Minka, e ela escolheu Zali. Ela foi Fatima na Dinamarca; eu fui Yasmin. Tive dois nomes na Áustria: Sophie e Astrid. Ela adorou Emmalina.

"Por que Emmalina?", perguntei na ocasião.

Ela riu.

"Não sei exatamente. Acho que adoro o fato de que são quase dois nomes em um. Os dois são lindos, mas quando se combinam formam algo extraordinário."

Para falar a verdade, agora me pergunto se aquela foi a última vez que a ouvi dar risada. Ou a última vez que nos abraçamos ou fizemos declarações sobre nosso destino. Acho que foi a última vez que senti que ela se importava com o fato de ser minha Cêpan ou com o que aconteceria a Lorien — o que aconteceria a mim.

Chegamos à missa pouco antes do início. Os únicos assentos disponíveis estão na última fileira, que é onde prefiro me sentar mesmo. Adelina se dirige para a frente da igreja, onde se sentam as irmãs. Padre Marco começa uma oração de abertura com sua voz sempre lúgubre, e boa parte de suas palavras chega a mim abafada a ponto de ser incompreensível. Prefiro assim: acompanhar a missa com distanciamento e apatia. Tento não pensar na agressão de Adelina, achando melhor ocupar os pensamentos com o que vou fazer quando El Festín finalmente terminar. A neve ainda não derreteu, mas estou decidida a ir à caverna, de qualquer forma. Tenho algo novo para pintar, e quero terminar o retrato de John Smith que comecei na semana passada.

A missa se arrasta, interminável, ou pelo menos é o que me parece, com ritos, liturgias, comunhão, leituras, orações, rituais. Quando chegamos à oração final, estou exausta e nem me dou o trabalho de fingir que rezo, como costumo fazer; então simplesmente fico ali, sentada com a cabeça erguida e os olhos abertos, estudando a cabeça das pessoas que estão na igreja. Quase todas são conhecidas. Um homem dorme sentado em seu banco, com os braços cruzados e o queixo apoiado no peito. Eu o observo até que algo em seu sonho o assusta, fazendo-o acordar com um gemido. Várias pessoas se viram para olhá-lo enquanto ele recupera a compostura. Não consigo evitar um sorriso e, quando desvio o olhar da cena, vejo irmã Dora, que me encara com uma expressão desaprovadora. Abaixo a cabeça, fecho os olhos e finjo rezar, movendo os lábios como se repetisse as palavras que padre Marco recita lá na frente, mas sei que fui flagrada. É o que irmã Dora mais gosta de fazer. Ela não mede esforços para nos surpreender fazendo o que não deveríamos.

As preces se encerram com o sinal da cruz, e finalmente a missa termina. Levanto-me antes de todo mundo e vou rapidamente da igreja para a cozinha. Irmã Dora pode ser a maior dentre as irmãs, mas demonstra agilidade surpreendente quando precisa, e não quero lhe dar a chance de me pegar. Assim talvez eu consiga evitar ser punida. E dá certo, porque, quando ela entra no refeitório cinco minutos depois e me vê descascando batatas ao lado de uma menina espichada de quatorze anos chamada Paola e de sua irmã de doze anos, Lúcia, limita-se a me olhar feio.

Qual é o problema com ela? — Paola pergunta.

Ela me pegou sorrindo durante a missa.

Sorte sua não ter recebido a palmatória — Lúcia murmura,

Eu assinto e volto a me concentrar na tarefa. São esses breves momentos que, mesmo fugazes, fazem as meninas se aproximarem, unidas contra um inimigo comum. Quando eu era mais nova, pensava que esse tipo de coisa, e a vida de órfãs sob o mesmo teto tirânico, faria de todas nós imediatamente amigas para sempre. Mas na verdade isso só nos afastou ainda mais e criou pequenas facções dentro de nosso grupo já pequeno — as garotas bonitas (exceto La Gorda, que, mesmo sem ser bonita, integra o grupo), as inteligentes, as atléticas, as mais novas — até que eu ficasse completamente sozinha.

Meia hora mais tarde, quando tudo está pronto, levamos a comida da cozinha para o bufê. A multidão que está esperando aplaude. No fim da fila, vejo minha pessoa favorita em Santa Teresa: Héctor Ricardo. Suas roupas estão sujas e amarrotadas, e o cabelo, despenteado. Seus olhos são injetados, e a pele do rosto tem uma tonalidade quase escarlate. Mesmo a essa distância, percebo que suas mãos tremem um pouco, como em todo domingo — único dia da semana em que ele não bebe. Hoje ele parece especialmente desalinhado, mas, quando enfim se aproxima de mim, estende a bandeja e estampa o sorriso mais otimista que consegue formar.

Como vai você, minha querida Rainha do Mar? — ele pergunta.

Respondo com uma mesura.

Muito bem, Héctor. E você?

Ele dá de ombros e diz:

A vida é como um vinho fino: é para ser apreciada lentamente.

Eu rio. Héctor tem sempre um velho ditado para citar.

Eu o conheci quando tinha treze anos. Ele estava sentado do lado de fora do único café da Calle Principal, bebendo sozinho uma garrafa de vinho. Era meio de tarde, e eu voltava da escola. Quando passei por ele, nossos olhares se cruzaram.

"Marina, a que vem do mar", ele disse, e achei estranho que ele soubesse meu nome, embora isso não fosse surpreendente, considerando que eu o via na igreja todas as semanas praticamente desde que chegáramos aqui. "Venha fazer companhia a um bêbado por alguns minutos."

Aceitei o convite. Não sei bem por quê. Talvez porque Héctor tivesse algo de muito simpático, Ele me faz sentir descontraída, e não finge ser alguém que não é, como muitos fazem. Sua atitude parece anunciar: Eu sou assim; é pegar ou largar.

Naquele primeiro dia ficamos sentados conversando durante tempo suficiente para que ele terminasse a garrafa de vinho e pedisse uma segunda.

"Seja amiga de Héctor Ricardo", ele falou quando precisei voltar ao convento. "Vou cuidar de você... está em meu nome. A raiz latina para 'Hector' significa defender e guardar'. E 'Ricardo' quer dizer 'força e coragem'." Ele bateu no peito duas vezes com o punho direito. "Héctor Ricardo vai cuidar de você!"

Percebi que ele falava a sério.

Héctor continuou:

"Marina. 'Do mar.' É o que seu nome significa... sabia disso?"

Eu respondi que não. E fiquei imaginando o que significava Birgitta. E Yasmin. E qual seria a raiz de Emmalina.

"Isso quer dizer que você é a Rainha do Mar de Santa Teresa", ele anunciou com um sorriso.

Eu ri.

"Acho que você bebeu demais, Héctor Ricardo."

"Sim", ele respondeu. "Sou o bêbado da cidade, querida Marina. Mas não se deixe enganar. Ainda assim, Héctor Ricardo é um protetor. Além do mais, mostre-me um homem sem vício, e eu lhe mostrarei alguém sem virtude!"

Anos depois, ele é uma das poucas pessoas que posso chamar de amigo.

Passam vinte e cinco minutos até que a multidão de centenas seja servida; e, depois que a última pessoa sai da fila, é nossa vez de comer, sentadas juntas, separadas dos demais. Comemos o mais depressa possível porque sabemos que, quanto antes limparmos e arrumarmos tudo, mais tempo livre teremos.

Quinze minutos depois, nós cinco, que trabalhamos na fila, estamos esfregando panelas e vasilhas e limpando balcões. Na melhor das hipóteses, a faxina consome uma hora, e só quando todos saem do refeitório assim que terminam de comer, o que raramente acontece. Enquanto limpamos tudo, e quando sei que ninguém está olhando, jogo em uma bolsa os itens não perecíveis que planejo levar hoje para a caverna: frutas secas, castanhas, uma lata de atum, outra de feijão. Essa se tornou mais uma de minhas tradições semanais. Por um bom tempo estive convencida de que fazia isso apenas para poder beliscar algo quando ia pintar nas cavernas, mas a verdade é que estou preparando um estoque de suprimentos para o caso de o pior acontecer e eu ter de me esconder. E, quando digo o pior, refiro-me a eles.

 

QUANDO FINALMENTE SAIO, DEPOIS DE VESTIR ROUPAS mais quentes e pegar o cobertor de minha cama, o sol está no oeste e não há nuvem alguma no céu. São quatro e meia, o que me dá no máximo uma hora e meia. Odeio a rotina apressada dos domingos, o jeito como o dia se arrasta até o instante em que ficamos livres, e como ele voa a partir de então. Viro o rosto para o leste, e a luz refletida pela neve me faz estreitar os olhos. A caverna fica após duas colinas rochosas. Com toda a neve agora acumulada no chão, não sei nem mesmo se vou conseguir ver a entrada hoje. Mas ajeito o chapéu, fecho o zíper da jaqueta, amarro o cobertor no pescoço como se fosse uma capa e sigo para o leste.

Duas faias grandes marcam o início da trilha, e meus pés ficam gelados no segundo em que piso a neve alta. O cobertor-capa varre a neve atrás de mim, apagando minhas pegadas. Ultrapasso alguns pontos de referência que indicam o caminho — uma rocha que se destaca das outras, uma árvore que se inclina num ângulo um pouquinho diferente. Depois de uns vinte minutos, passo pela formação rochosa idêntica às corcovas de um camelo, o que me diz que estou quase chegando.

Tenho a leve sensação de que estou sendo observada, possivelmente seguida. Viro-me e confiro a encosta da montanha. Silêncio. Neve, nada mais. O cobertor em meu pescoço desfez meu rasto muito bem.

Um arrepio sobe lentamente por minha nuca. Já vi como os coelhos se misturam à paisagem e ficam escondidos até que se esteja quase tropeçando neles, e sei que o fato de eu não poder ver alguém não significa que não posso ser vista.

Cinco minutos depois finalmente vejo o arbusto arredondado que cobre a caverna. A entrada parece uma gigantesca toca de marmota aberta na montanha, e era exatamente isso que achei que ela fosse anos atrás. Mas, quando olhei com mais atenção, compreendi que me enganara. A caverna era profunda e escura, e na época eu não consegui enxergar quase nada com a pouca luz que entrava pela abertura. Havia um desejo implícito de descobrir os segredos da caverna, e eu me pergunto se foi isso o que fez o Legado se desenvolver, minha capacidade de enxergar no escuro. Não é tão fácil enxergar na escuridão quanto de dia, mas até as trevas mais profundas brilham como se estivessem iluminadas por uma vela.

De joelhos, afasto um pouco de neve apenas a fim de poder rastejar para dentro da caverna. Jogo a bolsa à minha frente, desamarro o cobertor do pescoço e varro a neve com ele para apagar minhas pegadas, depois o penduro no lado de dentro da abertura para barrar o vento. A entrada é estreita nos primeiros três metros, seguida de uma passagem um pouco mais larga, que desce por um trecho íngreme alto o suficiente para que eu possa ficar de pé; depois disso, a caverna se abre.

O teto é elevado e produz eco, e as cinco paredes se sucedem numa transição suave e criam um polígono quase perfeito. Um córrego corta o ângulo da direita ao fundo. Não sei de onde vem a água — brota de uma das paredes e desaparece para as profundezas do chão — , mas o nível nunca se altera, garantindo um reservatório de água gelada a qualquer hora do dia ou estação do ano. Com a fonte constante de água doce, este é o lugar perfeito para eu me esconder. Dos mogadorianos, das irmãs, das meninas — até mesmo de Adelina. E também é o lugar perfeito para eu usar e aperfeiçoar meus Legados.

Deixo a bolsa ao lado do córrego, retiro os alimentos não perecíveis e os coloco sobre uma plataforma rochosa, onde já há várias barras de chocolate, pacotes pequenos de granola, aveia, cereal, leite em pó, um pote de pasta de amendoim e inúmeras latas de frutas, vegetais e sopa. O suficiente para durar semanas. Só depois de guardar tudo é que eu me levanto e olho para as paisagens e os rostos que pintei nas paredes.

Já na primeira vez em que pus as mãos em um pincel, quando estava na escola, eu me apaixonei pela pintura. Ela me permite ver as coisas como eu quero, e não necessariamente como são; é uma fuga, um modo de preservar pensamentos e lembranças, de criar esperanças e sonhos.

Lavo os pincéis, amolecendo as cerdas enrijecidas, e depois misturo tinta com água e sedimentos do leito do riacho, criando tons terrosos que combinam com o cinza das paredes da caverna. Caminho então até onde o rosto de John Smith, ainda por terminar, me recebe com seu sorriso incerto.

Demoro-me bastante nos olhos azul-escuros, tentando deixá-los perfeitos. Há neles um brilho peculiar difícil de reproduzir, e, quando me canso de tentar, começo uma nova pintura, a da menina de cabelos negros luzidios que vi no sonho. Diferentemente dos olhos de John, não há nenhum problema com esses olhos, e deixo a parede cinza fazer sua magia; acho que, se eu aproximasse uma vela acesa ao desenho, haveria uma ligeira mudança na cor, como tenho certeza de que acontece com os olhos da menina de acordo com seu humor e a luz a seu redor. É só uma sensação que tenho. Os outros rostos que pintei são de Héctor, Adelina e alguns vendedores da cidade que vejo durante a semana. Como a caverna é profunda e escura, creio que minhas pinturas estão resguardadas de outros olhos que não os meus. Mesmo assim é um risco, sei disso, mas não posso evitar.

Depois de algum tempo, subo até a entrada, afasto o cobertor e coloco a cabeça para fora da caverna. Não vejo nada além de neve e do sol que começa a tocar a linha do horizonte — o que me diz que é hora de ir. Não cheguei nem perto de pintar tanto quanto queria. Antes de limpar os pincéis, caminho até a parede em frente a John e olho para o grande quadrado vermelho que pintei ali. Antes de ser um quadrado vermelho, eu tinha feito uma bobagem, algo que sabia que revelaria que sou uma Garde: pintara uma lista.

Toco o quadrado, penso nos primeiros três números que estão sob a tinta e deslizo os dedos pela camada seca e rachada, profundamente entristecida com o significado daquelas linhas. Se há algum lenitivo naquelas mortes, é que agora eles podem descansar em paz e não vivem mais com medo.

Afasto-me do quadrado e da lista oculta e destruída, limpo os pincéis e guardo tudo.

— Até a semana que vem — digo para os rostos.

Antes de sair da caverna, olho para a paisagem pintada na parede ao lado da passagem que conduz à saída. Foi a primeira que tentei fazer aqui, quando tinha mais ou menos doze anos; embora a tenha retocado um pouco ao longo dos anos, ela ainda permanece essencialmente a mesma. É a vista de Lorien pela janela de meu quarto, da qual ainda me lembro perfeitamente. Colinas arredondadas e planícies verdejantes cobertas por árvores altas. Um rio azul largo que corta o terreno. Pequenas manchas de tinta aqui e ali representam os Chimaera bebendo de sua água fresca. E, ao longe, bem no topo, disposta acima das nove arcadas que representam os nove Anciões do planeta, está a estátua de Pittacus Lore, tão pequena que é quase indistinta. Mas não há como não vê-la pelo que realmente é, destacando-se dentre as outras, um sinal de esperança.

 

Corro de volta para o convento, atenta a tudo o que possa parecer estranho. O sol acaba de se pôr quando chego ao fim da trilha, o que significa que estou atrasada. Empurro as pesadas portas de carvalho e ouço o repique dos sinos de boas-vindas. Chegou alguém novo.

Junto-me às outras a caminho de nosso dormitório. Como tradição de boas-vindas, ficamos de pé ao lado de nossas camas, com as mãos para trás, olhando a recém-chegada, e nos apresentando, uma a uma. Odiei isso quando cheguei... odiei me sentir exposta, quando tudo o que queria era me esconder. Na porta, ao lado de irmã Lúcia, vejo uma menina pequena de cabelos castanhos, olhos curiosos, também castanhos, e traços delicados que lembram um ratinho. Ela encara o chão de pedra, pouco à vontade enquanto desloca o peso do corpo de uma perna para a outra. Seus dedos mexem na cintura de seu vestido cinza de lã com estampa de flores cor-de-rosa. Ela tem uma presilha cor-de-rosa no cabelo e usa sapatos pretos com fivelas prateadas. Sinto pena da menina. Irmã Lúcia espera todas nós sorrirmos, as trinta e sete garotas, e então fala.

— Esta é Ella, que tem sete anos e vai ficar conosco a partir de agora. Espero que façam com que ela se sinta em casa.

Mais tarde se espalha um boato de que seus pais morreram em um acidente de carro e a menina veio para cá por não ter outros parentes.

Ella ergue os olhos cada vez que se apresenta, mas, na maior parte do tempo, fita o chão. É evidente que está triste e assustada, mas posso notar que é o tipo de menina pelo qual as pessoas vão se apaixonar. Não vai ficar conosco por muito tempo.

Caminhamos para a igreja todas juntas, de modo que irmã Lúcia possa explicar a Ella sua importância para o orfanato. Na extremidade do grupo, Gabby Garcia boceja, e eu me viro para encará-la. Logo atrás dela, emoldurada por um trecho transparente da janela de vitral da parede, vejo, do lado de fora, uma silhueta escura, que olha para dentro. Com o anoitecer, mal consigo ver seus traços: cabelos negros, sobrancelhas densas e um bigode espesso. Os olhos estão fixos em mim, não tenho dúvidas quanto a isso. Meu coração dispara. Assustada, dou um passo para trás. Todos se voltam para me olhar.

Marina, está tudo bem? — pergunta irmã Lúcia.

Está — respondo, balançando a cabeça. — Quer dizer, sim. Estou bem. Desculpe-me.

Meu coração continua a bater depressa, e minhas mãos tremem. Eu as uno, tentando disfarçar. Irmã Lúcia diz mais alguma coisa sobre acolhermos Ella, mas estou distraída demais pata ouvir. Olho novamente para a janela. A silhueta desapareceu. O grupo é dispensado.

Atravesso rapidamente a igreja e olho para fora. Não vejo ninguém, mas percebo pegadas de botas na neve. Afasto-me da janela. Talvez seja um possível pai adotivo que estivesse avaliando as meninas de longe, ou um pai biológico que espiasse a filha que não tem condições de sustentar. Mas, por alguma razão, não me sinto segura. Não gosto de como aqueles olhos estavam fixos em mim.

—            Você está bem? — escuto alguém perguntar atrás de mim.

Eu levo um susto e me viro. É Adelina, com as mãos unidas na frente da cintura. Um rosário pende de seus dedos.

Sim, estou — digo.

Parece que viu um fantasma.

Pior que um fantasma, eu penso, mas não falo nada. Estou com medo, depois da bofetada que levei pela manhã, e ponho as mãos nos bolsos.

Havia alguém na janela olhando para mim — digo. — Agora há pouco.

Adelina estreita os olhos.

Veja. Veja as pegadas — insisto, virando-me e apontando para o chão.

Adelina mantém as costas eretas e rígidas e, por um momento, penso que ela está de fato preocupada, mas depois ela relaxa e dá um passo adiante. Observa as pegadas.

Tenho certeza de que não é nada — diz.

Como assim, não é nada? Como você pode dizer isso?

Eu não me preocuparia. Pode ter sido qualquer pessoa.

Ele olhava para mim.

Marina, acorde. Com a recém-chegada de hoje, há trinta e oito meninas aqui. Fazemos tudo o que está ao nosso alcance para manter todas vocês seguras, mas isso não significa que um ou outro garoto da cidade não venha até aqui para espiar pelas janelas. Já pegamos inclusive alguns deles. E não pense que não sabemos a maneira como algumas das garotas se vestem, mudando de roupa a caminho da escola, com o intuito de parecerem mais provocantes. Há seis de vocês prestes a completar dezoito anos, e todos na cidade sabem disso. Então, eu não me preocuparia com o homem que você viu. Deve ser só um dos garotos da escola.

Tenho certeza de que não era um garoto da escola, mas não digo nada.

Enfim, eu queria me desculpar por hoje cedo. Foi um erro bater era você,

Tudo bem — digo, e por um momento penso em falar sobre John Smith de novo, mas decido deixar para lá. Só geraria mais atrito, algo que quero evitar. Sinto falta de como éramos antes. E, mesmo sem que Adelina esteja zangada comigo, já é muito difícil viver no convento.

Antes que ela possa dizer mais alguma palavra, irmã Dora se aproxima às pressas e sussurra em seu ouvido. Ela olha para mim, assente e sorri.

— Conversaremos mais tarde — diz.

As duas se afastam, deixando-me sozinha. Olho outra vez para as pegadas e sinto um arrepio.

Durante a hora seguinte, vou de quarto em quarto olhando pela encosta da colina até a cidade coberta pelas sombras, mas não volto a ver a silhueta. Talvez Adelina tenha razão.

Porém, por mais que eu tente me convencer disso, não acho que ela tenha.

 

O SILÊNCIO TOMA O INTERIOR DA CAMINHONETE. SEIS OLHA pelo retrovisor. Lampejos azuis e vermelhos iluminam seu rosto.

Isso não é bom — diz Sam.

Droga — resmunga Seis.

As luzes fortes e a sirene estridente inquietam até Bernie Kosar, que espia pela janela de trás.

—            O que vamos fazer? — Sam pergunta, assustado e desesperado.

Seis tira o pé do acelerador e conduz a caminhonete para o acostamento à direita da estrada.

Talvez não seja nada — ela diz.

Balanço a cabeça.

Duvido.

Espere. Por que estamos parando? — Sam indaga. — Não pare! Afunde o pé no acelerador!

—            Primeiro vamos ver o que acontece. Se empreendermos uma fuga em alta velocidade, tudo estará perdido. O policial vai pedir reforços, e vai aparecer um helicóptero. Aí, nunca conseguiremos escapar.

Bernie Kosar começa a rosnar. Digo-lhe para ficar calmo e ele para, mas mantém a vigília pela janela. O cascalho do acostamento estala sob os pneus quando reduzimos a velocidade. Carros nos ultrapassam, velozes, pelas faixas à esquerda. A viatura para a três metros de nosso para-choque traseiro, e a luz dos faróis inunda o interior da caminhonete. O policial os desliga, e então direciona uma lanterna para nossa janela traseira. A sirene silencia, mas as luzes continuam a piscar.

—            O que acham? — pergunto, olhando pelo retrovisor lateral.

A luz da lanterna ofusca nossa visão, mas, quando um carro passa, vejo que o policial segura um rádio na mão direita, provavelmente porque está verificando nossa placa ou pedindo reforço.

Nossa melhor alternativa é fugir a pé — diz Seis. — Se realmente precisarmos disso.

Desligue o motor e tire a chave da ignição — o policial grita por um megafone.

Seis desliga o carro. Ela olha para mim e remove a chave.

—            Se ele falar de nós pelo rádio, você precisa presumir que eles vão ouvir — digo.

Ela assente sem falar nada. Atrás de nós a porta da viatura se abre com um rangido. Quando o policial se aproxima, suas botas fazem um barulho seco no asfalto.

Acha que ele vai nos reconhecer? — pergunta Sam.

Shhh — diz Seis.

Quando olho novamente pelo retrovisor lateral, percebo que o policial não está se dirigindo para o lado do motorista, mas desvia para a direita e vem em minha direção. Ele bate na janela com a lanterna cromada. Hesito por um instante e baixo o vidro. Ele ilumina meu rosto, obrigando-me a estreitar os olhos. Em seguida, direciona o foco de luz para Sam, e então para Seis. Franzindo o cenho, o policial analisa cada um de nós atentamente, tentando determinar por que parecemos tão conhecidos.

Algum problema, policial? — pergunto.

Vocês são desta região, garotos?

Não, senhor.

—            S'importam de me dizer por que tão cruzando o Tennessee em uma Chevrolet S-10 com placas da Carolina do Norte pertencentes a uma Ford Ranger?

Ele me encara, à espera de uma resposta. Sinto meu rosto esquentar enquanto me esforço para pensar em algo. Nada me ocorre. O policial se inclina e ilumina novamente o rosto de Seis. Depois o de Sam.

—            Alguém quer tentar me explicar? — ele insiste.

Nossa resposta é o silêncio, o que o faz dar uma risadinha.

—            É claro que não — ele diz. — Três garotos da Carolina do Norte atravessando o Tennessee em uma caminhonete roubada numa noite de sábado. Cês tão traficando, não é?

Viro-me para olhar para o rosto dele, que é corado e barbeado.

—            O que você quer fazer? — pergunto.

O que eu quero fazer? Rá! Cês vão pra cadeia!

Balanço a cabeça para ele.

Não estava falando com você.

Ele se inclina para a frente e apóia os cotovelos na janela.

—            Então onde tá a droga? — pergunta, passando a luz da lanterna pelo interior da caminhonete. Ele para ao iluminar a arca a meus pés e abre um sorriso presunçoso. — Ah, deixe pra lá, acho que já encontrei.

Ele tenta abrir a porta. Com um movimento muito rápido, empurro a porta com o ombro e jogo o policial para trás. Ele geme e leva a mão à arma antes mesmo de chegar ao chão. Usando telecinesia, eu a tiro dele, trazendo-a para mim enquanto desço da caminhonete. Abro o tambor e o esvazio em minha mão, e depois fecho a arma com um estalo.

—            Mas o quê...

O policial parece atordoado:

—            Não estamos traficando drogas — digo.

Sam e Seis agora estão fora da caminhonete, de pé a meu lado.

Ponha isto no bolso — eu digo a Sam, entregando-lhe as balas. Depois eu devolvo a arma ao policial.

O que quer que eu faça com isto? — ele me pergunta.

—            Não sei... guarde em sua mochila junto com a arma de seu pai.

A uns três quilômetros, soa uma segunda sirene. O policial me encara atentamente, arregalando os olhos ao me reconhecer.

—            Caramba, cês são os garotos dos noticiários, né? Cês são aqueles terroristas! — ele diz e cospe no chão.

—            Cale a boca — diz Sam. — Não somos terroristas.

Eu me viro e pego Bernie Kosar, que ainda está dentro do carro por causa da pata. Enquanto o coloco no chão, um grito lancinante corta a noite. Eu me viro na mesma hora e vejo Sam se debatendo, e levo um segundo para perceber o que aconteceu. O policial o atacara com uma arma de choque elétrico. A três metros de distância, arranco a pistola da mão do policial. Sam cai no chão e fica tremendo como se sofresse convulsões.

—            Qual é seu problema?! — grito para o policial. — Estamos tentando salvar sua vida, não percebe?!

Ele parece confuso. Pressiono o botão da arma enquanto ela ainda paira no ar. Correntes azuis a perpassam. O policial tenta sair correndo. Com telecinesia, eu o puxo de volta pelas pedras e o lixo do acostamento. Ele esperneia, tentando escapar, mas é inútil.

—            Por favor — suplica. — Desculpa, desculpa.

—            Não faça isso, John — diz Seis.

Recuso-me a ouvi-la. Estou cego a tudo que não seja dar o troco, e não sinto nenhum remorso quando pressiono a arma contra a barriga do policial e a mantenho ali por dois segundos.

—            Gostou, é? E aí, valentão com uma arma elétrica? Por que ninguém percebe que não somos os bandidos?!

Ele balança a cabeça depressa, o rosto contorcido numa careta horrível, e gotas de suor brilham na testa.

—            Temos de sair daqui já — Seis anuncia quando as luzes azuis e vermelhas da segunda viatura surgem no horizonte.

Levanto Sam e o coloco sobre meu ombro. Bernie Kosar consegue correr sozinho com apenas três patas. Levo a arca sob o braço esquerdo enquanto Seis carrega o restante das coisas.

—            Por aqui — ela diz, pulando sobre a barreira de segurança para correr por um campo vazio na direção de colinas escuras não muito distantes dali.

Corro o máximo que posso carregando Sam e a arca. Bernie Kosar cansa de mancar e se transforma em uma ave, adiantando-se a nós. Menos de um minuto depois a segunda viatura chega ao local, seguida por uma terceira.

Não consigo ver se os oficiais nos perseguem a pé, mas, se perseguem, Seis e eu somos capazes de escapar sem dificuldade, mesmo carregando tanto peso.

Ponha-me no chão — Sam diz finalmente.

Você está bem? — pergunto enquanto o abaixo.

Sim, estou.

Sam está um pouco desequilibrado. O suor cobre sua testa, e ele o enxuga com a manga da jaqueta e respira fundo.

—            Vamos — diz Seis. — Eles não vão desistir de nós com tanta facilidade. Temos dez minutos, no máximo quinze, até que apareça um helicóptero.

Corremos para as colinas, Seis na frente, eu logo atrás e Sam se esforçando para nos acompanhar. Ele é muito mais rápido que quando corremos o quilômetro e meio na aula de educação física, há alguns meses. Parece que foi há anos. Nenhum de nós olha para trás, porém, assim que chegamos à primeira subida, um uivo ecoa na noite. Eles estão com um cão farejador.

—            Alguma ideia? — pergunto a Seis.

—            Minha esperança era escondermos nossas coisas e ficarmos invisíveis. Assim não seríamos vistos de um helicóptero, mas o cachorro ainda vai sentir nosso cheiro.

—            Droga — digo.

Olho em volta. Há uma colina à nossa direita.

—            Vamos subir aquela colina e ver o que há do outro lado — sugiro.

Bernie Kosar se adianta e desaparece no céu escuro. Seis vai na frente, subindo aos tropeços. Eu vou atrás dela, e Sam, que respira com dificuldade, mas ainda se move com rapidez, fica na retaguarda.

Paramos no topo. Há o contorno sutil de mais colinas até onde a vista alcança, mais nada. Ouço o ruído muito suave de água corrente. Olho para trás. Oito pares de faróis iluminam a estrada, cercando a caminhonete do pai de Sam. Ao longe, vindo das duas direções, mais duas viaturas se aproximam do local. Bernie Kosar pousa a meu lado e volta à forma de beagle, a língua para fora da boca. O cão farejador late mais perto que antes. Não há dúvida de que ele segue nosso cheiro, o que significa que os homens da polícia não devem estar muito longe.

Temos de despistar o cachorro — diz Seis.

Está ouvindo isso? — pergunto a ela.

O quê?

Barulho de água. Deve haver algum tipo de córrego lá embaixo. Um rio, talvez.

Estou ouvindo — Sam confirma.

Uma ideia surge em minha cabeça. Tiro a jaqueta e a camiseta. Esfrego-a no rosto e no peito, enxugando até a última gota de suor o cheiro que eu possa ter. Depois eu a jogo para Sam.

Faça como acabei de fazer — digo.

De jeito nenhum, isso é nojento.

—            Sam, todo o estado do Tennessee está atrás de nós. Não temos muito tempo.

Ele suspira, mas obedece. Seis também, sem saber muito bem o que planejo, mas disposta a acompanhar. Visto uma camiseta limpa e recoloco a jaqueta. Seis me devolve a camiseta suja, e eu a esfrego no corpo e no focinho de Bernie Kosar.

—            Vamos precisar de sua ajuda, amigão. Está preparado?

Mal posso vê-lo na escuridão, mas o som de sua cauda batendo animadamente no chão é inconfundível. Sempre disposto a colaborar, feliz por estar vivo. Consigo sentir nele o curioso entusiasmo por estar sendo perseguido, e não posso deixar de sentir o mesmo.

Qual é seu plano? — Seis pergunta.

Temos de correr — respondo, dando os primeiros passos colina abaixo, rumo ao barulho de água.

Bernie Kosar transforma-se novamente em ave e nós descemos correndo, ouvindo de vez em quando os latidos e uivos do cão farejador. Está se aproximando. Se minha ideia não der certo, imagino se poderei me comunicar com ele e ordenar que pare de nos seguir.

Bernie Kosar espera por nós à margem de um rio largo, cuja superfície calma sugere uma profundidade muito maior que a que imaginei ao ouvir o barulho lá de cima da colina.

Vamos ter de atravessar a nado — digo. Não há alternativa.

O quê? John, sabe o que acontece com o corpo humano quando é imerso em água gelada? Parada cardíaca por choque térmico, por exemplo. E, se isso não causar a morte, a perda de sensibilidade nos braços e nas pernas impossibilita a natação. Vamos congelar e nos afogar — Sam protesta.

É o único meio de fazer o cachorro perder nosso rasto. Ao menos teremos uma chance, desse jeito.

Isso é suicídio. Por favor, lembre-se por um instante de que não sou um alien.

Eu me ajoelho diante de Bernie Kosar.

—            Você precisa levar esta camiseta — digo a ele. — Carregue-a o mais depressa que puder, por uns três ou quatro quilômetros. Vamos atravessar o rio, assim, o cão perde nosso rasto e segue este aqui. Depois vamos correr mais. Você não deve ter dificuldade de nos alcançar, voando.

Bernie Kosar transforma-se em uma grande águia-de-cabeça-branca, pega a camiseta nas garras e rapidamente se vai.

—            Não temos tempo a perder — digo, prendendo a arca sob o braço esquerdo, de modo a poder nadar com o direito. Quando estou prestes a mergulhar no rio, Seis me agarra pelo braço.

Sam tem razão... vamos congelar John — ela alerta.

Parece apavorada.

Eles estão muito perto. Não temos escolha — respondo.

Ela morde o lábio, olha para o rio e volta a me encarar, apertando novamente meu braço.

—            Sim, nós temos — diz.

Seis solta meu braço, e o branco de seus olhos brilha na escuridão. Ela me empurra para trás de si e dá um passo na direção do rio, inclinando a cabeça num gesto de concentração. O cão farejador late mais perto que antes.

Ela expira lentamente. Ao mesmo tempo, levanta as mãos diante de si, e, enquanto elas se erguem, a água do rio começa a se abrir bem à nossa frente. Com um barulho estrondoso, a água se agita e espumeja enquanto se desvia para o alto, revelando uma trilha lamacenta de um metro e meio de extensão até a outra margem. A água fica suspensa, parecendo uma onda prestes a se quebrar. Mas ela permanece elevada enquanto uma umidade gelada recobre nosso rosto.

—            Vão! — Seis ordena, e seu rosto está tenso e concentrado; os olhos, fixos na água.

Sam e eu pulamos da margem. Minhas pernas afundam quase até os joelhos no lodo, mas ainda é melhor que nadar em água gelada no meio da noite. Andamos a passos largos, fazendo grande esforço para mover os pés na lama pesada. Quando chegamos ao outro lado, Seis nos segue, virando as mãos enquanto passa entre as duas enormes ondas prontas para quebrar uma contra a outra, ondas que ela mesma criou. Seis alcança a margem e relaxa. As ondas caem, produzindo um baque profundo, como se alguém tivesse mergulhado com um pulo forte. A água sobe e desce, e depois fica exatamente como antes.

— Incrível — diz Sam. — Igual a Moisés.

—            Vamos lá, precisamos entrar no bosque para que o cão não nos veja — ela diz.

O plano funciona. Depois de apenas alguns minutos, o cachorro aparece na margem oposta e fareja tudo ao alcance. Dá várias voltas e dispara atrás de Bernie Kosar. Sam, Seis e eu saímos na direção contrária, por entre as árvores, mas perto o bastante da margem para ainda podermos ver o rio, correndo tão depressa quanto as pernas de Sam permitem. Durante alguns minutos, escutamos o som de vozes masculinas a gritar umas com as outras, até que as despistamos. Dez minutos depois ouvimos o ruído de um helicóptero. Paramos e esperamos que ele apareça. Em um minuto vemos um holofote brilhar no céu, apontando para onde Bernie Kosar voou. A luz percorre as colinas, indo de um lado para o outro.

—            Ele já devia ter voltado — digo.

—            Ele está bem, John — Sam afirma. — É BK, o animal mais resistente que conheço.

Ele está com uma pata quebrada.

Mas tem duas asas saudáveis — Seis lembra. — Ele está bem. Precisamos seguir em frente. Logo eles vão compreender o que fizemos, se é que já não perceberam. Temos de nos adiantar. Quanto mais esperarmos, mais eles irão se aproximar de nós.

Movo a cabeça em sentido afirmativo. Ela tem razão. Precisamos seguir em frente.

Depois de quase um quilômetro, o rio descreve uma curva acentuada à direita e volta para a estrada, afastando-se das colinas. Paramos e nos encolhemos sob os galhos mais baixos de uma árvore alta.

—            E agora? — pergunta Sam.

—            Não sei — respondo. Nós nos viramos para a direção de onde acabamos de fugir. O helicóptero está mais próximo, seu holofote ainda varre as colinas de um lado a outro. — Precisamos abandonar o rio.

—            Sim, precisamos — diz Seis. — Ele vai nos encontrar, John. Garanto.

Ouvimos o grito de uma águia no alto das árvores, não muito longe de nós. Está escuro demais para vermos onde Bernie Kosar está, e talvez muito escuro para que ele nos veja. Não penso duas vezes no que vou fazer, mesmo sabendo que isso pode revelar nossa localização: viro a palma das mãos para o céu e acendo minhas luzes, deixando-as brilhar tão intensamente quanto posso durante meio segundo. Esperamos atentos, prendendo a respiração. Então ouço um arfar de cachorro, e Bernie Kosar, de novo um beagle, vem correndo da margem do rio. Ele está ofegante, mas animado, com a língua para fora e a cauda fustigando o ar. Eu me abaixo para afagá-lo.

—            Bom trabalho, amigão! — digo e beijo o topo de sua cabeça.

E então acontece o final rápido para uma comemoração que apenas começava.

Ainda estou apoiado sobre um joelho quando um segundo helicóptero se ergue acima da colina atrás de nós, alcançando-nos imediatamente com seu holofote potente.

Levanto-me de um salto, enceguecido na mesma hora pela claridade intensa.

—            Corram! — diz Seis.

Disparamos na direção da colina mais próxima. O helicóptero desce e paira no ar, de modo que o vento da hélice atinge nossas costas e faz as árvores se curvarem. O solo da floresta é coberto de sujeira, e eu cubro a boca com um braço para respirar, mantendo os olhos semicerrados, buscando protegê-los da terra levantada. Quanto tempo até chamarem o FBI?

—            Fiquem onde estão! — uma voz masculina grita do helicóptero. — Vocês todos estão presos.

Ouvimos gritos. Os policiais a pé não podem estar a mais de duzentos metros dali. Seis para de correr, o que faz com que eu e Sam paremos também.

— Estamos fritos! — grita Sam.

—            Muito bem, seus idiotas. Vamos fazer a coisa do jeito mais difícil — Seis fala em voz baixa.

Ela solta as mochilas, e por um instante penso que ela pretende nos tornar invisíveis. Não tenho nenhum problema com a ideia de abandonar as mochilas, mas o que ela espera que eu faça com a arca? Seis não tem como nos deixar invisíveis junto com a arca.

Um raio brilhante corta o céu da noite, seguido pelo barulho retumbante de um trovão.

—            John! — ela grita sem olhar para mim.

Estou aqui.

Cuide dos policiais. Mantenha-os longe de mim.

Largo a arca nas mãos de Sam, que está a meu lado sem saber o que fazer.

—            Proteja isto com sua vida — digo a ele. — E fique abaixado!

Olho para Bernie Kosar e comunico que ele precisa ficar com Sam caso meu plano fracasse.

Desço a colina correndo quando outro relâmpago, acompanhado do estalo de um trovão sombrio e ameaçador, corta o céu. Boa sorte, pessoal, penso, sabendo muito bem a força das habilidades de Seis. Vocês vão precisar.

Chego ao pé da colina e me escondo atrás de um carvalho. As vozes se aproximam, movendo-se rapidamente na direção das duas colunas de luz. Começa a cair uma chuva fria e pesada. Olho através da cortina de água e vejo os helicópteros lutando contra a força brutal dos ventos, mas, de alguma forma, mantendo seus holofotes estáveis. Isso não vai durar muito tempo.

Os dois primeiros policiais passam correndo por mim, seguidos de perto por um terceiro. Projeto minha mente quando eles estão a uns cinco metros de distância, agarro os três no meio de um passo e os puxo para o grande carvalho. Eles voam para trás com tanta velocidade que, para não ser atingido, tenho de pular para o lado. Dois deles caem inertes, nocauteados pela árvore. O terceiro levanta a cabeça, confuso, e tenta pegar a arma. Arranco-a do coldre antes que ele chegue a tocá-la. Sinto o metal frio em minha mão e então me viro para os dois helicópteros e arremesso a arma como uma bala contra o mais próximo. E é quando vejo os olhos negros e macabros em meio à tempestade. Logo o rosto velho e enrugado toma forma. É o mesmo que vi em Ohio quando Seis matou a besta que destruíra a escola.

—            Não se mova! — escuto atrás de mim. — Mãos ao alto!

Viro-me para o policial. Sem sua arma, ele aponta para meu peito a pistola de choque.

—            Decida: ou não me movo, ou levanto as mãos. Não posso fazer as duas coisas.

Ele engatilha a pistola.

—            Não banque o espertinho, garoto — diz.

Um relâmpago brilha, seguido por um trovão alto que dá um susto no policial. Ele olha na direção do som, e seus olhos se arregalam, revelando espanto. O rosto nas nuvens está acordado.

Arranco a pistola de sua mão e o atinjo no peito com um soco forte. Ele cai uns dez metros atrás e se choca contra o tronco de uma árvore. Antes que eu me vire, um cassetete acerta meu crânio. Caio com o rosto na lama e minha visão é dominada por pontos brilhantes. Viro-me depressa, levanto uma das mãos para o policial que me acertou e o seguro com firmeza antes que ele possa me atacar novamente. O homem solta uma espécie de grunhido e eu uso toda a minha força para arremessá-lo para cima. Ele grita até se elevar tanto que seu grito se torna abafado pelo barulho dos helicópteros e dos trovões. Toco a parte de trás de minha cabeça e olho para a mão. Está coberta de sangue. Seguro o policial quando ele está a um metro meio da morte. Mantenho seu corpo suspenso por alguns segundos antes de atirá-lo contra uma árvore, deixando-o inconsciente.

Uma explosão estrondosa faz tremer a noite, interrompendo o barulho constante dos helicópteros. O vento para. A chuva também.

—            John! — Seis grita do alto da colina e, de alguma forma, ao ouvir o tom desesperado e suplicante de sua voz, entendo o que ela precisa que eu faça.

As luzes se acendem em minhas mãos, dois focos tão brilhantes quanto aqueles que acabaram de se apagar. Os dois helicópteros estão arrebentados e amassados, e soltam fumaça em queda livre. Não tenho ideia do que o rosto fez com eles, mas Seis e eu precisamos salvar as pessoas que estão a bordo.

À medida que as aeronaves despencam, a que está mais longe de mim se vira para cima com um solavanco. Seis tenta segurá-la. Não acho que ela vá conseguir, e eu sei que não sou capaz. O helicóptero é muito pesado. Fecho os olhos. Lembre-se do porão em Athens, de como você agarrou tudo o que havia dentro do cômodo para impedir a bala. E é o que faço, sentindo tudo o que há dentro da cabine da aeronave. Controles. Armas. Poltronas. Três homens sentados nelas. Eu seguro os homens e, assim que as árvores começam a se quebrar sob o peso do helicóptero em queda, arranco os três tripulantes da cabine. A aeronave se espatifa no chão.

A de Seis cai ao mesmo tempo. As explosões se elevam acima das copas das árvores, duas bolas vermelhas de fogo desprendendo-se do metal retorcido. Mantenho os três homens no ar a uma distância segura do desastre e os levo até o chão com cuidado. Depois subo a colina correndo até Seis e Sam.

Caramba! — Sam murmura, os olhos arregalados.

Tirou os tripulantes de lá? — pergunto a Seis. Ela assente.

Bem na hora.

Eu também — digo.

Pego a arca das mãos de Sam e a coloco nas de Seis. Sam pega nossas mochilas.

—            Por que me deu isto? — Seis pergunta.

—            Por que precisamos dar o fora daqui! — respondo.

Pego Sam e o jogo sobre meus ombros.

— Segure-se!— grito.

Saímos correndo, cruzando as colinas e nos afastando do rio, com Bernie Kosar à frente, na forma de um falcão. Vamos ver se os policiais nos alcançam agora, penso.

É difícil correr com Sam sobre os ombros, mas, mesmo assim, sou três vezes mais veloz do que ele seria com as próprias pernas. E ainda mais que qualquer um dos policiais. Os gritos deles vão se apagando e, com os dois helicópteros recém-destruídos, será que eles sequer estão nos perseguindo?

Após vinte minutos de corrida desenfreada, paramos em um pequeno vale. O suor escorre por meu rosto. Ponho Sam no chão, e ele solta as mochilas. Bernie Kosar pousa.

—            Bem, imagino que vamos voltar a estampar todos os jornais depois disso — comenta Sam.

Eu assinto.

—            Ficar escondido vai ser muito mais difícil do que eu pensava.

Dobro o corpo para a frente e apoio as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego. Sorrio, e o sorriso logo se transforma em uma espécie de risada incrédula diante de tudo o que acabou de acontecer.

Seis esboça um sorriso torto, ajeita a arca em seus braços e começa a subir a próxima colina.

—            Vamos, gente — ela diz. — Ainda estamos longe de sair do bosque.

 

PULAMOS PARA DENTRO DE UM TREM DE CARGA NO Tennessee, e, após nos acomodarmos, seis nos conta sobre como ela e Katarina foram capturadas no interior de Nova York apenas um mês depois de, no oeste do Texas, terem escapado por pouco dos mogadorianos. Nessa segunda ocasião, por terem desperdiçado a primeira oportunidade, os mogadorianos planejaram bem, e quando invadiram o quarto eram mais de trinta. Seis e Katarina conseguiram eliminar alguns, mas logo foram imobilizadas, amordaçadas e drogadas. Quando Seis acordou — sem ter a menor ideia de quanto tempo se passara —, estava sozinha em uma cela no interior de uma montanha. Ela não soube que estava em West Virgínia até mais tarde. Depois, descobriu que os mogadorianos as tinham seguido o tempo todo, observando, esperando que elas os conduzissem aos outros, porque, segundo as palavras de Seis, "por que matar uma só se os outros podem estar por perto?". Quando ela diz isso, eu me mexo um pouco, sentindo certo desconforto. Talvez eles ainda a estejam seguindo, esperando a hora certa de nos matar.

— Eles puseram rastreadores em nosso carro enquanto jantávamos no restaurante no Texas, e nenhuma de nós jamais pensou em verificar — ela explica, e depois fica em silêncio por algum tempo.

Com exceção da porta de ferro com uma janela de correr no centro por onde era servida a comida, sua pequena cela era toda feita de pedra e cada lado media dois metros e meio. Não havia cama nem vaso sanitário, e o lugar era de um breu completo. Os primeiros dois dias transcorreram em total escuridão e silêncio, sem comida nem água (embora ela nunca tenha sentido nem fome nem sede, o que, ela contou ter descoberto depois, era efeito do feitiço), e Seis começou a acreditar que tinha sido esquecida. Mas ela não teve tanta sorte, e no terceiro dia eles foram buscá-la.

—            Quando abriram a porta, eu estava encolhida num canto, lá no fundo da cela. Eles jogaram um balde de água fria em mim, me levantaram, vendaram meus olhos e me levaram dali.

Depois de ser arrastada por um túnel, eles a deixaram caminhar sozinha, cercada por uns dez mogadorianos. Seis não conseguia ver nada, mas ouvia muita coisa — gritos e lamentos de outros prisioneiros, que estavam ali sabe-se lá por quê (ao ouvir essa parte, Sam ergueu a cabeça e pareceu estar prestes a interromper e fazer perguntas, mas não disse nada), os urros de bestas trancafiadas nas próprias celas e barulhos metálicos. Empurraram-na então para dentro de um cômodo, acorrentaram seus pulsos à parede e a amordaçaram. Arrancaram a venda de seus olhos, e, quando eles enfim se adaptaram à escuridão, Seis viu Katarina presa à parede à sua frente, também acorrentada e amordaçada, parecendo bem pior do que ela mesma se sentia.

—            Foi quando ele finalmente entrou, um mogadoriano que não parecia diferente das pessoas com quem você cruza na rua. Era pequeno, tinha braços peludos e um bigode denso. Quase todos eles tinham bigodes, como se tivessem aprendido a se disfarçar assistindo a filmes do começo da década de 1980. Vestia uma camisa branca com o colarinho desabotoado, e, por alguma razão, meus olhos foram atraídos pelo tufo de pelos escuros em seu peito. Fitei seus olhos escuros e ele sorriu para mim de um jeito sugestivo, como se estivesse ansioso para fazer o que iria fazer, e eu comecei a chorar. Escorreguei pela parede até ficar pendurada pelas algemas, vendo por entre as lágrimas ele preparar, em uma mesa que havia no centro da sala, navalhas, facas, pinças e uma furadeira. Quando o mogadoriano terminou de ajeitar mais de vinte instrumentos, aproximou-se de Seis, parando a centímetros de seu rosto e fazendo-a sentir seu hálito ruim.

"Está vendo tudo isso?", ele perguntou. Seis não respondeu. "Pretendo usar cada uma delas em você e em sua Cêpan, a menos que respondam a todas as minhas perguntas com honestidade. Caso contrário, garanto que irão desejar estar mortas."

Ele pegou o primeiro instrumento, uma navalha com cabo de borracha, e acariciou o rosto de Seis com a lâmina.

"Tenho caçado vocês há muito tempo", disse. "Já matamos dois de seu grupo, e agora temos mais uma bem aqui, seja qual for seu número. Como pode imaginar, espero que seja a Número Três."

Seis não respondeu e apertou o corpo contra a parede, como se tentasse desaparecer dentro dela. O mogadoriano sorriu, ainda tocando seu rosto com a parte cega da navalha. Depois, virou a lâmina de forma a tocar sua bochecha e, encarando-a demoradamente, deslizou a navalha e abriu um corte longo e fino. Ou melhor, tentou, mas foi o rosto dele que se abriu. Na mesma hora o sangue escorreu por sua bochecha e o mogadoriano gritou de dor e raiva, chutando a mesa e derrubando, todas as ferramentas antes de sair da sala a passos furiosos. Seis e Katarina foram levadas de volta a suas celas, mantidas na escuridão por mais dois dias até serem novamente acorrentadas e amordaçadas na parede da sala. O mesmo mog estava sentado atrás da mesa com um curativo no rosto, parecendo menos confiante que antes.

Ele se levantou de um salto, arrancou a mordaça de Seis, pegou a mesma navalha com a qual tentara cortá-la e a segurou diante de seu rosto, girando-a de forma que a luz refletisse no metal.

"Não sei que número você é..." Por um segundo Seis pensou que ele tentaria cortá-la de novo, mas ele se virou e atravessou a sala, aproximando-se de Katarina. O mogadoriano ficou ao lado da Cêpan sem desviar os olhos de Seis, e depois encostou a lâmina no braço de Katarina. "Mas vai me dizer agora mesmo."

"Não!", Seis gritou.

Muito lentamente, o mogadoriano fez um corte ao longo do braço de Katarina, só para ter certeza de que era possível. Seu sorriso se alargou e ele fez outro corte ao lado do primeiro, dessa vez mais profundo. Katarina gemeu de dor enquanto o sangue escorria por seu braço.

"Posso passar o dia todo fazendo isto. Está entendendo? Você vai me dizer tudo o que quero saber, e vai começar por seu número."

Seis fechou os olhos, Quando voltou a abri-los, ele estava junto à mesa, manuseando uma adaga que mudava de cor com o movimento. Ele a levantou, mostrando a Seis como a lâmina se torcia e brilhava ao ganhar vida. Seis podia sentir seu apetite, seu desespero por sangue.

"E agora... seu número. Quatro? Sete? Ou tem a sorte de ser o Número Nove?"

Katarina balançou a cabeça, tentando manter Seis em silêncio, e Seis sabia que nenhuma tortura seria capaz de fazer sua Cêpan falar. Mas ela também sabia que preferia morrer a ver sua Cêpan ser torturada e mutilada.

O mogadoriano foi até Katarina e levantou a adaga, de modo que a ponta estivesse próxima do coração da Guardiã. A lâmina tremia em sua mão, como se o coração fosse um ímã que a puxasse. Ele fitou Seis.

"Tenho todo o tempo das galáxias para isto", disse sem nenhuma emoção. "Enquanto você está aqui comigo, nós estamos lá fora, procurando os outros. Não pense que paramos tudo só porque temos você. Sabemos mais do que você pensa. Mas queremos saber tudo. Se não quer vê-la cortada em pedacinhos, é melhor começar a falar, e depressa. E é bom que todas as suas palavras sejam verdade. Eu saberei se você estiver mentindo."

Seis contou a ele tudo que lembrava sobre sair de Lorien e a viagem até a Terra, as arcas e os lugares onde elas tinham se escondido. Falava tão depressa que a maior parte do relato saiu confusa. Seis disse ao mogadoriano que sim, que ela era a Número Oito, e alguma coisa no desespero que vibrava em sua voz o convenceu daquilo.

"Você é bem fraca, não? Seus parentes em Lorien caíram rapidamente, mas ao menos lutaram. Ao menos tinham alguma coragem e dignidade. Mas você...", ele disse, balançando a cabeça como se estivesse desapontado, "... você não tem nada, Número Oito."

E então ele empurrou a faca, enterrando-a no coração de Katarina. Seis nada pôde fazer além de gritar. Seus olhares se cruzaram por um segundo antes de Katarina partir, com a boca ainda amordaçada, o corpo escorregando lentamente pela parede até ficar pendurado pelas correntes presas a seus pulsos e a luz em seus olhos se apagar.

—            Eles iriam matá-la de qualquer jeito — Seis fala em voz baixa.— Ao falar tudo aquilo, no mínimo eu a poupei de uma tortura horrível, se é que isso serve de consolo.

Seis abraça os joelhos e olha para um ponto qualquer além da janela do trem.

—            É claro que serve — respondo, desejando ter coragem de me levantar e abraçá-la.

Para minha surpresa, Sam tem. Ele se levanta e caminha até Seis. Sem dizer nem uma palavra sequer, senta-se ao lado dela e abre os braços. Seis esconde o rosto em seu ombro e chora.

Depois de algum tempo, ela levanta a cabeça e limpa o rosto.

Depois que Katarina morreu, eles tentaram tudo, tudo mesmo, para me matar. Eletrocussão, afogamento, explosivos. Injeções de cianeto não me causaram reação... eu nem senti a agulha entrar em meu braço. Jogaram-me em uma câmara cheia de gás venenoso, e era como se fosse o ar mais fresco que eu já tinha respirado. O mogadoriano que pressionou o botão do outro lado da porta, porém, morreu em segundos. — Seis alisa o rosto mais uma vez com o dorso da mão. — É engraçado, sabe, pensar que matei mais mogadorianos quando estive capturada que na escola em Ohio. Finalmente eles me jogaram em outra cela, e acho que planejavam me manter ali até matarem os Números Três a Sete.

Adoro essa história de você ter dito ser a Número Oito — Sam comenta.

Agora me sinto mal por isso. É como se eu tivesse maculado a herança de Katarina, ou a do verdadeiro Número Oito.

Sam coloca as mãos nos ombros de Seis.

De jeito nenhum, Seis.

Quanto tempo você ficou lá? — pergunto.

Cento e oitenta e cinco dias, acho.

Meu queixo cai. Mais da metade de um ano trancada, completamente sozinha, esperando ser morta.

—            Sinto muito, Seis.

—            Eu apenas esperava e rezava para que meus Legados finalmente se desenvolvessem e eu pudesse sair dali. Então, certo dia, o primeiro enfim apareceu. Foi depois do café da manhã. Olhei para baixo e minha mão esquerda não estava ali. Fiquei apavorada, é claro, mas logo percebi que ainda podia senti-la. Tentei pegar minha colher e consegui, sem problemas. E foi assim que entendi o que estava acontecendo... e a invisibilidade era o tipo de ajuda de que eu precisava para fugir.

O modo como o Legado de Seis começou não foi muito diferente de como começou para mim, quando minha mão se acendeu bem no meio de minha primeira aula no colégio em Paradise.

Dois dias depois Seis conseguia ficar completamente invisível, e quando um guarda mogadoriano, ao levar-lhe a comida naquele dia, abriu a janelinha da porta para passar o prato, encontrou uma cela vazia. Ele olhou em volta, confuso, e acionou o alarme, o que fez soar na caverna uma sirene estridente. A porta de ferro foi escancarada e quatro mogs entraram. Enquanto estavam ali, perplexos, tentando entender como a prisioneira conseguira fugir, Seis se esquivou do grupo e saiu às pressas pela porta e pelo túnel, vendo a caverna pela primeira vez.

Era um enorme labirinto de longos túneis interconectados, escuros e cheios de correntes de ar. Havia câmeras em toda parte. Ela passou por grossas janelas de vidro que revelavam câmaras parecidas com laboratórios científicos, todas limpas e bastante iluminadas. Os mogadorianos que estavam ali dentro vestiam trajes de plástico branco e óculos de proteção, mas ela correu tão depressa que não conseguiu ver o que faziam. Em uma sala grande havia mais ou menos mil telas de computador com um mogadoriano sentado diante de cada uma, e Seis deduziu que eles procuravam sinais nossos. Como Henri, pensei. Ao longo de um dos túneis havia pesadas portas de aço que ela tinha certeza de que continham outros prisioneiros. Mas Seis continuou correndo, ciente de que seu Legado ainda não estava plenamente desenvolvido, cheia de medo de não permanecer invisível por muito tempo. A sirene continuava a soar. Ela então chegou ao coração da montanha, um espaço muito grande com quase um quilômetro de largura, tão escuro que ela mal conseguia enxergar do outro lado.

O ar era sufocante, e Seis já estava suando. Paredes e teto eram sustentados por grossas treliças de madeira que impediam que a caverna desabasse, e patamares estreitos esculpidos na rocha ligavam os túneis abertos nas paredes escuras. Acima dela, vários arcos amplos tinham sido entalhados na própria montanha com o objetivo de cobrir a distância entre um lado e outro.

Ela se escorou na rocha, e seus olhos procuraram de um lado a outro alguma saída. O número de corredores era interminável. Seis ficou ali impotente, vasculhando a escuridão vazia, sem ver nada que parecesse promissor. Mas então encontrou — do outro lado havia um raio pálido de luz natural, ao fim de um túnel mais largo. Logo antes de escalar a treliça de madeira para chegar à ponte de pedra que levaria ao túnel sua atenção foi atraída: o mogadoriano que matara Katarina. Não podia deixá-lo escapar. Seis o seguiu. Ele entrou na sala em que matara Katarina.

Fui direto até a mesa dele e peguei a navalha mais afiada que encontrei, e então o agarrei por trás e cortei sua garganta. Enquanto via o sangue jorrar e se derramar no chão, antes de o mogadoriano se desfazer em cinzas, desejei ter podido matá-lo mais devagar. Ou que eu pudesse matá-lo de novo.

O que fez quando finalmente saiu de lá? --- perguntei.

Subi a montanha seguinte e, quando cheguei ao topo, fiquei observando a caverna lá embaixo por uma hora, tentando lembrar cada detalhe. Quando me dei por satisfeita, registrei tudo o que vi durante a corrida de sete ou oito quilômetros até a estrada mais próxima, e lá pulei na carroceria de uma caminhonete lenta. Quando ela parou alguns quilômetros adiante para abastecer, roubei da cabine o mapa, um bloco de anotações e duas canetas. Ah, e um saco de batatas fritas.

Legaaal! Que tipo? — Sam pergunta.

Cara! — exclamo.

De qual sabor?

Eram de sabor churrasco, Sam. Marquei a localização da caverna no mapa que mostrei a vocês lá no hotel e desenhei no bloco um diagrama de tudo aquilo que lembrava, como um gráfico que poderia levar quem o consultasse imediatamente à entrada da caverna. Praticamente entrei em pânico e escondi o diagrama não muito longe da cidade, mas mantive o mapa comigo e depois roubei um carro e fui até Arkansas. A essa altura, porém, é claro que minha arca já tinha sumido.

Sinto muito, Seis.

Eu também — ela responde. — Mas, de qualquer forma, eles não podem abri-la sem mim. Talvez um dia eu a recupere.

Pelo menos ainda temos a minha — lembro.

Devia abri-la logo — ela diz, e sei que tem razão. Já devia tê-la aberto. O que quer que haja dentro dela, quaisquer que sejam seus segredos, Henri iria querer que eu os descobrisse. Os segredos. A arca. Ele disse pouca coisa em seus últimos suspiros. Sinto-me idiota por ter adiado durante tanto tempo. Mas o que quer que haja na arca, tenho a sensação de que irá nos lançar em uma jornada longa e penosa.

Vou abrir — respondo. — Vamos apenas sair deste trem e encontrar um local seguro, antes.

 

SOU A PRIMEIRA A SAIR DA CAMA QUANDO O SINO DA manhã soa. Sempre sou. Não exatamente por ser uma pessoal matinal, mas porque prefiro entrar e sair do banheiro antes de todo mundo.

Arrumo a cama depressa, o que, com o tempo, aprendi a fazer muito bem. O segredo é prender o lençol, o cobertor e o edredom bem firmes no pé da cama. Depois, basta puxar tudo para a cabeceira, prender as laterais e ajeitar os travesseiros, para obter aquela aparência limpa e lisa de cama bem-feita.

Quando termino, na cama mais próxima da porta do outro lado do dormitório, Ella, a garota que chegou no domingo, é a única que já está de pé além de mim. Como nas duas manhãs anteriores, ela tenta imitar o jeito como arrumo minha cama, mas tem dificuldades. O problema é que ela começa da cabeceira para o pé, e não o contrário. Irmã Katherine tem sido tolerante com Ella, mas seu turno termina hoje, e a semana de irmã Dora no dormitório começa nesta noite. Sei que a irmã não vai permitir que Ella apresente menos que a perfeição, independentemente da idade da menina ou de seus problemas.

— Quer ajuda? — ofereço, atravessando o quarto.

A menina me encara com tristeza. Percebo que não se importa com a cama. Imagino que não se importe com muita coisa agora, e não posso criticá-la, considerando que seus pais acabaram de morrer. Gostaria de lhe dizer para não se preocupar, que, ao contrário de nós, as "vitalícias", ela sairá daqui em um mês, no máximo dois. Mas como isso a consolaria neste momento?

Eu me inclino ao pé da cama e puxo o lençol e o cobertor até ter o suficiente para prender tudo embaixo do colchão, e depois estico o edredom por cima de tudo.

Quer segurar por ali? — pergunto, apontando o lado esquerdo da cama, enquanto eu me ocupo do direito. Juntas, deixamos a cama de Ella com a mesma aparência limpa e lisa da minha.

Perfeito — anuncio.

Obrigada — ela responde com sua voz baixa e tímida.

Fito seus grandes olhos castanhos e não posso deixar de sentir afeição por ela, e também certo impulso de proteção.

—            Sinto muito sobre seus pais — digo.

Ella desvia o olhar. Suponho que fui além dos limites, mas então ela sorri, acanhada.

Obrigada. Sinto muita saudade deles.

Tenho certeza de que eles também sentem saudade de você.

Saímos juntas do dormitório, e percebo que ela anda na ponta dos pés, para não fazer barulho.

Na pia do banheiro, Ella segura a escova de dentes e quase toca as cerdas com seus dedinhos, fazendo a escova parecer maior do que realmente é. Quando percebo que ela está me encarando pelo espelho, sorrio. Ela sorri de volta, exibindo duas fileiras de dentes pequenos. A pasta de dente transborda de sua boca e escorre pelo braço, pingando do cotovelo. Enquanto a observo, penso que aquele desenho em forma de S é familiar e deixo a mente correr solta.

Um dia quente de verão em junho. Nuvens passeiam no céu azul. Água fresca ondula sob o sol. O ar puro traz o aroma dos pinheiros. Respiro profundamente e deixo o estresse de Santa Teresa se dissipar.

Embora acredite que meu segundo Legado tenha se desenvolvido pouco depois do primeiro, só o descobri quase um ano mais tarde. E foi por um acaso que isso aconteceu, o que me leva a pensar na possibilidade de haver outros Legados à espera de ser revelados.

Todos os anos, quando a escola entra em recesso de verão, para recompensar as que, dentre nós, as irmãs consideraram "boas", é organizado um passeio de quatro dias para uma colônia de férias localizada em uma região montanhosa próxima. Sempre adorei esse passeio, pelo mesmo motivo que me faz adorar a caverna secreta, que fica na direção oposta: é uma fuga — uma rara oportunidade de passar quatro dias nadando no grande lago aninhado entre as montanhas, ou uma chance de fazer caminhadas em trilhas, dormir sob as estrelas, sentir o ar puro, longe dos corredores bolorentos de Santa Teresa. Resumindo: é uma chance de podermos fazer algumas coisas compatíveis com nossa idade. Cheguei até a ver algumas irmãs darem risadas e sorrirem quando achavam que ninguém as estava olhando.

Há um píer flutuante no lago. Eu nado muito mal e por diversos verões apenas fiquei sentada na margem, olhando as outras meninas, que riam e pulavam do píer para a água. Passei uns dois verões treinando sozinha na parte mais rasa, mas, no ano em que completei treze anos, finalmente aprendi a nadar com um estilo cachorrinho imperfeito e lento que mantinha minha cabeça fora da água. Assim, consegui chegar ao píer, e para mim isso era suficiente.

Lá a brincadeira é tentar empurrar umas às outras para a água. As meninas se organizam em times e, quando restam somente as integrantes de um deles, passa a ser cada uma por si. Por ser a maior e mais forte de Santa Teresa, eu pensava que La Gorda não teria nenhuma dificuldade em vencer, mas isso raramente acontece; é comum que ela seja superada pelas meninas menores e mais espertas, e eu acho que ninguém ganhou mais vezes que uma garota chamada Bonita.

Eu não queria brincar de La Reina del Muelle, Rainha do Píer. Estava satisfeita sentada na beirada, mergulhando meus pés na água, mas Bonita me empurrou de qualquer jeito, atirando-me de cabeça no lago.

"Ou entra no jogo, ou volta para a margem", ela disse, jogando o cabelo por cima do ombro.

Subi de novo e corri em sua direção. Empurrei Bonita com toda a minha força, e ela caiu de costas no lago.

Não ouvi La Gorda atrás de mim, e de repente duas mãos pesadas empurraram minhas costas. Meus pés escorregaram na madeira molhada, e eu bati com um ombro e a lateral da cabeça na beirada do píer, o que me fez ver estrelas. Perdi a consciência por um segundo e, quando abri os olhos, estava submersa. Tudo o que vi era escuridão, e, por instinto, bati as pernas, tentando subir, agitando os braços para chegar à superfície. Porém, minha cabeça se chocou contra a parte inferior do píer, e percebi que havia só alguns centímetros entre a água e as tábuas. Tentei inclinar a cabeça para trás e colocar o nariz e a boca acima da superfície, mas a água imediatamente invadiu minhas narinas. Entrei em pânico, com meus pulmões já ardendo. Tentei ir para a esquerda, mas não havia para onde ir, estava encurralada pelos barris de plástico do píer. A água começou a encher meus pulmões enquanto a ideia absurda da morte por afogamento invadiu minha cabeça. Pensei nos outros, em como seus tornozelos estavam prestes a ser marcados. Eles iriam pensar que mataram Três, ou saberiam, de alguma forma, que tinha sido eu? Será que a marca iria queimar de um jeito diferente do que se eu tivesse morrido pelas mãos dos mogadorianos, em vez de ser vítima de minha estupidez? Meus olhos se fecharam lentamente e eu comecei a afundar. Assim que senti as últimas bolhas saírem da boca, meus olhos se abriram de repente, e uma calma estranha me invadiu. Meus pulmões não ardiam mais.

Estava respirando.

A água fez cócegas em meus pulmões, mas, ao mesmo tempo, satisfez toda a necessidade desesperada que tive de respirar, e foi então que percebi que tinha descoberto meu segundo Legado: a capacidade de respirar embaixo d’água. E só o descobri porque cheguei muito perto da morte. Não quis ser encontrada logo pelas meninas que mergulharam à minha procura, então flutuei até o fundo, vendo o mundo escurecer pouco a pouco até meus pés enfim tocarem a lama fria. Quando meus olhos se adaptaram, consegui enxergar através da água turva. Passaram-se dez minutos. Vinte. Finalmente as garotas nadaram para longe do píer. Imaginei que tinham ouvido o sino que anunciava o almoço. Esperei até ter certeza absoluta de que todas haviam partido, então caminhei lentamente pelo leito do lago até a margem, e meus pés afundavam no lodo enquanto eu progredia. Passado algum tempo, a água gelada começou a ficar mais quente e clara, e a lama deu lugar a rochas, depois à areia, e finalmente minha cabeça emergiu. Ouvi as garotas, inclusive La Gorda e Bonita, gritarem e virem em minha direção aliviadas. Na margem, verifiquei se estava bem, e reparei que um corte no ombro estava sangrando, deixando em meu braço uma trilha de sangue com a forma suave de um S.

As irmãs me fizeram passar o resto da tarde sentada a uma mesa de piquenique sob uma árvore, mas eu não me incomodei com isso. Tinha outro Legado.

No banheiro, Ella me flagra olhando pelo espelho para a pasta de dente que escorre em seu braço. Ela parece constrangida, e, enquanto tenta imitar o jeito como escovo meus dentes, mais espuma ainda transborda de sua boca.

—            Você parece uma fábrica de bolhas — digo sorrindo e pego uma toalha para limpá-la,

Deixamos o banheiro quando as outras estão chegando, nos vestimos no dormitório e saímos enquanto as outras entram, o que nos mantém um passo à frente do grupo, como eu prefiro. Pegamos nossa comida no refeitório e saímos para a manhã fria. Eu como uma maçã a caminho da escola. Ella faz o mesmo. Hoje estou uns dez minutos adiantada, o que me dará algum tempo para acessar a Internet e ver se há alguma novidade sobre John Smith. Pensar nele me faz sorrir.

—            Por que você está sorrindo? Gosta da escola? — Ella me pergunta. Olho para a menina. A maçã mordida parece grande em sua mão muito pequena.

—            É uma manhã linda — respondo. — E hoje tenho boa companhia.

Caminhamos pela cidade enquanto as lojas vão abrindo. A neve ainda não derreteu e está acumulada nos dois lados da Calle Principal, mas a rua propriamente dita está limpa. Adiante e à direita, a porta da casa de Héctor Ricardo se abre, e sua mãe sai em uma cadeira de rodas empurrada pelo próprio Héctor. Ela tem doença de Parkinson há muito tempo. Está na cadeira de rodas há cinco anos, e há três não consegue falar. Ele a posiciona sub um raio de sol e trava a cadeira. Enquanto o sol parece dar algum conforto a ela, Héctor se afasta e se senta na sombra, de cabeça baixa,

—            Bom dia, Héctor — cumprimento.

Ele levanta a cabeça e abre ligeiramente um olho. Acena para nós com a mão trêmula.

—            Marina, a que vem do mar — ele fala em voz baixa. -— Os únicos limites do amanhã são as dúvidas que temos hoje.

Eu paro e sorrio. Ella também para.

—            Essa é uma de suas melhores.

—            Não duvide de Héctor; ele ainda tem algumas preciosidades — ele responde.

—            Está tudo bem?

—            Força, confiança, humildade, amor. Os quatro princípios de Héctor Ricardo para uma vida feliz — diz, o que não faz sentido algum, considerando minha questão, mas me faz sentir bem mesmo assim, Héctor olha para Ella. — E quem é esse anjinho?

Ella segura minha mão e se esconde atrás de mim.

—            Seu nome é Ella — eu a apresento, olhando para a menina. — Esse é Héctor. É meu amigo.

Héctor é do bem — ele diz, mas Ella continua atrás de mim. Ele acena para nós, e seguimos em frente a caminho da escola.

Sabe para onde você está indo? — pergunto a Ella.

Tenho aula com a Señora Lopez — a menina responde, sorrindo.

—            Ah, que sorte a sua. Também tive aulas com ela. A Señora Lopez é uma das boas pessoas desta cidade, como Héctor — digo.

 

Estou arrasada... os três computadores da escola estão ocupados. Três meninas mais novas da cidade, desesperadas, tentam terminar um trabalho de ciências, e seus dedos voam sobre os teclados. Passo o dia sem incidentes, cuidando da vida, mas uma ideia me persegue. John Smith, em fuga pelos Estados Unidos, de algum jeito mantendo-se um passo à frente da lei, e eu presa ali, em Santa Teresa, uma cidade velha e embolorada na qual nada acontece. Eu sempre imaginei que iria embora quando completasse dezoito anos. Mas agora que John Smith está por aí, sendo caçado, sei que tenho de partir logo para me unir a ele. A única dúvida agora é como encontrá-lo.                                                                                                          

Minha última aula é de história da Espanha. A professora papagueia sobre o General Francisco Franco e a Guerra Civil Espanhola, na década de 1930. Eu me desligo e escrevo no caderno sobre John, anotando o que sei, com base na última matéria que li.

 

John Smith:

Morou em Paradise, Ohio, durante quatro meses. Foi abordado por um policial no Tennessee quando viajava rumo ao oeste em uma caminhonete. Era madrugada, e havia outras duas pessoas que tinham mais ou menos a mesma idade de John.

Para onde iam?

Acredita-se que uma dessas duas pessoas seja Sam Goode, também de Paradise, inicialmente considerado refém, agora tratado como cúmplice. Quem é a terceira pessoa? Uma garota de cabelos negros. A menina em meu sonho tinha cabelos negros.

Onde está Henri?

Como eles escaparam de dois helicópteros e trinta e cinco policiais?

Como os dois helicópteros caíram?

Como posso entrar em contato com ele OU com os outros?

Postando na Internet?

Perigoso demais. Existe alguma maneira de postar sem que os mogadorianos percebam?

Se houver, os outros veriam essa postagem?

John está fugindo, Ele acessa a Internet?

Adelina sabe alguma coisa que eu não sei?

Posso tocar no assunto com ela sem ser óbvia demais?

 

A caneta paira sobre a página. A Internet e Adelina são minhas únicas ideias, e nenhuma parece promissora. No entanto... o que mais posso fazer? Todo o resto parece tão fútil quanto subir a montanha e mandar sinais de fumaça. Mas não consigo me livrar da sensação de que estou deixando de ver algum detalhe — algum elemento crucial tão óbvio que está debaixo de meu nariz.

A professora continua o monólogo. Fecho os olhos e penso em toda a situação. Nove Gardes. Nove Cêpans. Uma aeronave que nos trouxe para a Terra, a mesma que um dia nos levará de volta e que está escondida em algum lugar do planeta. Quanto a ela, tudo o que consigo lembrar é que aterrissamos em um lugar isolado, em meio a uma tempestade de relâmpagos. Um feitiço foi lançado para nos proteger dos mogadorianos, mas ele só foi ativado quando nos dispersamos, e só continuará a funcionar se permanecermos distantes uns dos outros. Mas por quê? Um feitiço que nos obriga a ficar separados parece um jeito estranho de nos ajudar a enfrentar os mogadorianos e a derrotá-los. Qual o propósito? Enquanto me pergunto isso, algo me ocorre. Fecho os olhos e deixo a lógica me conduzir.

Deveríamos nos esconder, mas por quanto tempo? Até nossos Legados se desenvolverem e dispormos dos instrumentos para lutar, para vencer. Qual é a primeira coisa que somos capazes de fazer quando o primeiro Legado enfim chega?

A resposta parece óbvia demais para ser correta. Ainda com a caneta na mão, escrevo a única resposta que me vem à cabeça:

A arca.

 

NÃO CONSIGO MAIS DORMIR SEM TER PESADELOS. TODAS as noites, vejo o rosto de Sarah, que paira no ar por um segundo antes de ser engolido pela escuridão, e então escuto seu pedido de socorro. Por mais que eu procure, não a encontro. Ela continua a chamar, com a voz assustada, sozinha e desolada, mas nunca consigo achá-la.

E também vejo Henri, com seu corpo deformado e fumegante, encarando-me, ciente de que nosso tempo juntos chegou ao fim. Não é medo que vejo em seu olhar, nem pesar ou tristeza, mas orgulho, alívio e amor. É como se ele me dissesse para continuar, lutar, vencer. Então, bem no final, seus olhos se arregalam numa súplica por mais tempo. "Não foi por acaso que viemos para cá, para Paradise", ele repete, e eu continuo sem saber o que ele quer dizer. Depois: "Eu não teria perdido nem um único minuto de tudo isso, garoto. Nem por Lorien. Nem pelo mundo todo." Esta é minha maldição: ver Henri morrer sempre que sonho com ele. Várias vezes.

Vejo Lorien, os dias que antecedem a guerra, as florestas e os oceanos com os quais sonhei centenas de vezes. Eu ainda criança, correndo feliz pelos campos gramados enquanto todos à minha volta dão risadas e sorriem, sem ter consciência dos horrores que estão por vir. E em seguida vejo a guerra, a destruição, a matança e o sangue. Às vezes, em noites como a de hoje, tenho visões bastante nítidas que acredito que sejam do futuro.

Depois que fecho os olhos, não demora muito e sou levado para longe. E logo no início sinto que estou entrando em uma paisagem que com certeza nunca vi, mas que ainda assim me parece familiar.

Corro por um caminho cercado de escombros e destroços. Vidro quebrado. Plástico queimado. Aço enferrujado, retorcido. Uma névoa acre invade minhas narinas e faz meus olhos lacrimejarem. Edifícios decadentes são contornados pelo céu cinzento. À minha direita vejo um rio escuro e estagnado. Há comoção mais à frente. O barulho de gritos e atritos metálicos se espalha pelo ar denso. Encontro uma multidão enfurecida que cerca uma área revestida de asfalto, na qual uma grande aeronave se prepara para decolar. Passo por um portão com arame farpado e entro na pista isolada da multidão.

O asfalto está marcado com pequenos riscos da cor do magma. Soldados mogadorianos mantêm a turba afastada enquanto inúmeros mensageiros preparam a nave, um orbe de ônix a pairar no ar.

A multidão investe contra a cerca e a tropa a empurra de volta. As pessoas são menores que os soldados, mas têm o mesmo tom cinzento de pele. Um rugido baixo ressoa de algum lugar para além da aeronave A multidão silencia, recuando assustada, enquanto os que estão na pista se perfilam em colunas organizadas.

Então, alguma coisa cai do céu nublado. Um vórtice escuro absorve as nuvens próximas, deixando um rastro negro e denso por onde passa. Cubro os ouvidos antes de o objeto atingir o chão, provocando vibrações no solo que quase me derrubam. Tudo fica em silêncio quando a poeira baixa, revelando uma nave perfeitamente esférica, branca como pérola. Uma porta redonda se abre e uma criatura monstruosa sai. A mesma criatura que tentou me decapitar no castelo de pedra.

Um tumulto se desenrola ao longo da cerca: todos se empurram, para se afastar do monstro. Ele é ainda mais imenso que a imagem em minha lembrança, tem traços musculosos e bem-delineados e cabelos curtos. Tatuagens cobrem seus braços e há cicatrizes em seus tornozelos — a maior de todas se destaca em seu pescoço, grotesca e roxa. Um soldado retira da nave uma bengala dourada. Sua extremidade é encurvada como um martelo e há um olho preto pintado na lateral. Quando a criatura a segura, o olho ganha vida, virando para a esquerda e para a direita, analisando os arredores, até que me encontra.

O mogadoriano passa o olhar pela multidão, sentindo minha presença próxima. Seus olhos se estreitam. Ele dá um passo gigantesco em minha direção, erguendo a bengala dourada. O olho pulsa.

Nesse momento alguém no meio do povo grita para o mogadoriano enquanto sacode furiosamente a cerca. O mogadoriano se vira para o manifestante e lhe aponta a bengala, cujo olho fica vermelho. O homem é imediatamente destroçado, puxado através da cerca de arame farpado. O pandemônio explode quando todos lutam para fugir.

O mogadoriano se volta novamente para mim, apontando a bengala para minha cabeça. Começo a sentir que estou caindo. A ausência de gravidade revira meu estômago até o momento em que acho que vou vomitar. O que vejo em torno de seu pescoço é tão perturbador, tão aterrorizante, que acordo com um sobressalto, como se fosse atingido por um relâmpago azul.

 

A alvorada penetra pelas janelas, inundando o quarto pequeno com a luz da manhã. A forma das coisas retorna. Estou coberto de suor e ofegante. Mas eu estou aqui, e a confusão e a dor em meu coração comprovam que estou vivo, e não mais em um lugar assustador onde alguém pode ser destroçado através dos buracos de uma cerca de arame farpado.

Encontramos uma casa abandonada na orla de uma área de reserva a alguns quilômetros do Lago George. É o tipo de casa que Henri teria adorado: isolada, pequena e quieta, com segurança e sem nenhuma personalidade. Tem um andar, o exterior está pintado de verde-limão e há várias tonalidades de bege no interior, combinando com o carpete marrom. E é uma grande sorte que o fornecimento de água não tenha sido cortado. Pela quantidade de poeira, imagino que ninguém mora aqui há muito tempo.

Viro sobre meu braço e olho para o telefone ao lado de meu travesseiro. Depois do que acabo de ver, a única coisa que poderia me livrar dessa horrível sensação é Sarah, que não vejo há duas semanas. Lembro-me daquela ocasião em meu quarto, quando ela havia acabado de voltar do Colorado... do jeito como ficamos abraçados. Se eu pudesse guardar somente um momento com ela, escolheria aquele. Fecho os olhos e imagino o que ela está fazendo no momento, o que está vestindo, com quem, está conversando. O noticiário anunciou que cada uma das seis escolas em torno de Paradise absorveu parte dos alunos deslocados até a construção de um novo prédio. Imagino em qual delas Sarah está estudando e se ela ainda tira fotos.

Estendo a mão para pegar o celular, um pré-pago registrado em nome de Julius Seazar. O senso de humor de Henri sempre me surpreendia. Ligo o aparelho pela primeira vez em dias. Só preciso ligar para o número dela a fim de ouvir sua voz. É simples assim. Digito o número conhecido, uma tecla de cada vez, até chegar à última. Fecho os olhos, respiro fundo, desligo e fecho o telefone. Sei que não posso digitar o último número. O medo pela segurança de Sarah, por sua vida — e pela nossa também —, me impede.

Na sala de estar, Sam assiste à CNN em um dos laptops de Henri, que está apoiado sobre suas pernas. Felizmente o cartão de Internet sem fio de Henri, registrado com um nome falso qualquer, ainda funciona. Sam faz várias anotações em um bloco de papel. A confusão no Tennessee aconteceu há três dias, e só chegamos à Flórida ontem à noite, depois de pegar carona em três caminhões — um dos quais nos levou mais de trezentos quilômetros na direção errada — e embarcar em um trem que nos trouxe até aqui. Sem usar nossos Legados — nossa velocidade, a invisibilidade de Seis —, jamais teríamos conseguido. Pretendemos passar algum tempo escondidos, esperando a história toda esfriar. Vamos nos recuperar, começar o treinamento e evitar a todo o custo incidentes como aquele com os helicópteros. No topo da lista de prioridades: encontrar um novo carro. O segundo item: resolver o que fazer em seguida. Nenhum de nós sabe muito bem. Mais uma vez, sinto muito a ausência de Henri.

Onde está Seis? — pergunto ao entrar na sala de estar.

Lá fora, nadando na piscina ou algo do tipo.

A única coisa legal na casa é a piscina nos fundos, que Seis encheu sem demora, provocando uma chuva pesada bem em cima dela.

Pensei que você gostaria de dar uma espiada em Seis de maiô — provoco.

Sam fica vermelho.

Cale a boca, cara. Eu queria ver os noticiários. Sabe como é, ser produtivo.

Encontrou alguma coisa?

Além do fato de que agora sou considerado cúmplice e que a recompensa oferecida por minha captura subiu para meio milhão de dólares? — Sam responde.

Ah, você sabe que está adorando isso.

Sim, é muito legal — ele confirma, sorrindo. — Enfim, não, nenhuma novidade. Não sei como Henri conseguia acompanhar tudo isso. São literalmente milhares de matérias todos os dias.

Henri nunca dormia.

—            Você não quer ir dar uma olhada em Seis de maiô? — Sam pergunta, virando-se para a tela. Eu me surpreendo com a ausência de sarcasmo em sua voz. Ele sabe o que sinto por Sarah. E eu sei o que ele sente por Seis.

Como assim?

Vi o jeito como você olha para ela — Sam responde. Ele clica em um link sobre um acidente aéreo no Quênia. Uma sobrevivente.

Como eu olho para ela?

Esqueça.

A sobrevivente é uma mulher idosa. Definitivamente não é uma de nós.

—            Os lorienos se apaixonam para sempre, cara. E eu amo Sarah. Você sabe disso.

Sam olha para mim por cima da tela do laptop.

Eu sei. Mas é que... sei lá. Você é o tipo de cara pelo qual ela se sentiria atraída, não um nerd bom de matemática e obcecado por aliens e pelo espaço sideral. Simplesmente não vejo como Seis poderia se apaixonar por alguém como eu.

Você arrebenta, Sam. E não se esqueça disso.

Saio pela porta de correr dos fundos. Do outro lado da piscina, um quintal com grama alta cercado por um muro de tijolos confere privacidade contra qualquer um que passe no lado de fora. O vizinho mais próximo está a meio quilômetro de distância. A cidade mais próxima fica a dez minutos de carro.

Na piscina, Seis cruza a toda velocidade a superfície da água, como um inseto aquático, e a seu lado, movendo-se duas vezes mais rápido, há um mamífero com a forma de um ornitorrinco, com longos cabelos brancos e barba — não tenho ideia de que tipo de animal Bernie Kosar está reproduzindo. Seis sente minha presença e para na borda, erguendo metade do corpo acima da superfície e apoiando os braços no deque. Bernie Kosar pula para fora e volta à forma de beagle, sacudindo-se e me cobrindo de água. É refrescante, e não posso deixar de pensar em como é bom voltar ao sul.

—            Espero que você não esteja matando meu cachorro aqui — digo.

Percebo que olho para seus ombros perfeitos, seu pescoço esguio.

Talvez Sam tenha razão. Talvez eu esteja olhando para Seis como ele. Mais do que nunca, quero voltar correndo para dentro da casa, ligar meu celular e ouvir a voz de Sarah.

—            Acho que ele é que está me matando. Essa criaturinha nada como se estivesse completamente curada. Falando nisso, como está sua cabeça?

Ainda dói — respondo, passando a mão no couro cabeludo. — Mas não se preocupe. Estou pronto para começar a treinar hoje, se foi esse o motivo da pergunta.

Ótimo — ela diz. — Estou ficando inquieta. Já faz um bom tempo que não treino com alguém.

—            Tem certeza de que quer treinar comigo? Sabe que provavelmente vai acabar se machucando, não é?

Seis ri, depois cospe um bocado de água em mim.

—            Ah, você vai ver — ameaço.

Sinto a piscina e lanço uma rajada de vento sobre a superfície. A água avança na direção do rosto de Seis. Ela mergulha para se esquivar, e depois sobe na crista de uma onda enorme que quase esvazia a piscina e a traz até mim. Antes que ou possa reagir, ela se afasta, mas a onda continua a vir em minha direção, então me derruba e me joga até a parede da casa. Ouço as gargalhadas de Seis. A água volta para a piscina, e eu me levanto e tento empurrá-la para lá. Ela bloqueia minha telecinesia, e de repente sou içado no ar e fico de cabeça para baixo, balançando os braços, impotente.

Que diabos vocês estão fazendo aqui fora? — Sam pergunta. Ele está parado no batente da porta de correr.

Hmmm... Seis estava falando bobagem, então decidi colocá-la em seu lugar. Não dá para perceber?

Ainda estou de cabeça para baixo, flutuando mais de um metro acima do centro da piscina. Sinto a força de Seis em torno de meu tornozelo direito, e é como se ela me segurasse com a própria mão.

Ah, com certeza. Ela está exatamente no lugar que você queria — Sam responde.

Eu estava prestes a dar o bote. Sabe, ganhando tempo.

Então, o que você acha, Sam? — Seis pergunta. — Devo mostrar a ele?

Um sorriso se abre no rosto de Sam.

Mande ver.

Ei! — exclamo pouco antes de ela me soltar e eu cair de cabeça na água. Quando volto à superfície, Seis e Sam estão rindo como dois histéricos.

Esse foi só o primeiro round — digo, saindo da piscina. Tiro a camiseta e a jogo no piso de concreto. — Você me pegou desprevenido. Pode esperar!

O que aconteceu com o cara fortão? — Sam pergunta. — Não foi isso o que você disse quando rapou a cabeça?

Estratégia — eu falo. — Estou deixando Seis adquirir uma falsa sensação de segurança, e depois, quando ela estiver à vontade, puxo o tapete.

Rá! Sei! — Sam responde. — Puxa, eu queria ter Legados.

Seis, usando um maiô preto, se coloca entre nós. Ela ainda ri, e a água escorre por seus braços e pernas quando ela se inclina um pouco para a frente, para torcer os cabelos. A cicatriz em sua perna ainda é bem visível, mas não está mais tão roxa quanto na semana passada. Ela joga os cabelos para trás, Sam e eu a observamos, hipnotizados.

—            Então, treinamos hoje à tarde? — Seis pergunta. — Ou você ainda acha que posso me machucar?

Inflo as bochechas e solto o ar lentamente.

Acho que vou pegar leve com você. Quer dizer, a cicatriz em sua perna ainda parece feia. Mas, sim, combinado.

Sam, o sim vale para você também?

Querem que eu treine? É sério?

—            É claro. Agora você é um de nós — diz Seis.

Ele assente e esfrega as mãos.

—            Contem comigo — diz, sorrindo como uma criança no Natal. — Mas, se vocês só querem que eu sirva de alvo, vou para casa.

 

Começamos a treinar às duas da tarde, mas, pelo jeito como o céu está fechado, não imagino que teremos muito tempo de treinamento. Sam está pulando na ponta dos pés, usando short e uma camiseta larga. Ele é muito desajeitado, porém, se contar sua coragem e determinação, creio que seria quase do tamanho do mogadoriano que vi embarcar naquela nave.

Para começar, Seis nos mostra o que aprendeu de técnicas de combate, o que é muito mais do que eu sei. Seus movimentos são fluidos, têm a precisão de uma máquina, quando ela chuta ou soca, ou quando dá um salto mortal de costas para escapar de um ataque. Ela nos ensina como contra-atacar e fala da importância de termos habilidade e coordenação. Além disso, ela nos orienta em algumas manobras até que as façamos instintivamente. Sam absorve tudo, até mesmo quando Seis o derruba de cara no chão, ou quando bate nele com tanta força que o deixa sem ar. Ela faz o mesmo comigo, e, apesar de eu tentar rir como se estivesse brincando, dou tudo de mim, e ainda assim ela me derruba. Não consigo imaginar como ela aprendeu tudo isso sozinha. Quando minha boca fica cheia de grama e terra pela segunda vez, percebo quanto ela pode me ensinar.

Meia hora mais tarde a chuva começa. No início é uma garoa, mas logo o céu desaba, obrigando-nos a buscar abrigo. Sam fica andando pela casa, distribuindo socos e chutes em inimigos invisíveis. Eu fico sentado na cadeira, segurando meu pingente azul, e olho pela janela da frente por um bom tempo, apenas observando a água que cai e lembrando que as duas últimas tempestades que vi aconteceram porque Seis mandou.

Quando me viro, eu a vejo dormindo profundamente no canto da sala de estar, encolhida em torno de Bernie Kosar, segurando-o como se fosse um travesseiro. Ela sempre dorme assim, deitada encolhida de lado, o que suaviza sua postura.

As solas brancas de seus pés estão voltadas para mim, e eu uso telecinesia para fazer cócegas em seu pé direito. Ela o sacode como se espantasse uma mosca. Faço cócegas outra vez. Ela sacode o pé com mais força. Espero alguns segundos e depois, o mais levemente possível, aliso o pé inteiro, do calcanhar até o dedão. Seis encolhe a perna e a estica num chute, e a força telecinética desse movimento me atira contra a parede mais próxima, abrindo um buraco e expondo a fiação interna e algumas vigas. Sam entra correndo na sala e adota uma posição perfeita de lutador.

—            O que aconteceu? Quem está aqui? — ele grita.

Eu me levanto massageando o cotovelo, que sofreu o maior impacto.

—            Idiota — Seis resmunga, sentando-se.

Sam olha para nós dois.

Vocês são ridículos — ele diz, voltando para a cozinha. — Esse flerte quase me matou de susto.

Eu também me assustei — digo, ignorando o comentário sobre o flerte, mas ele já se foi e não me escuta. Estou flertando? Sarah pensaria que estou flertando?

Seis boceja, levantando os braços.

Ainda está chovendo?

Muito, mas veja pelo lado positivo: o clima salvou você de mais alguns hematomas.

Ela balança a cabeça.

—            Essa atitude de cara durão já está cansando, Johnny. E não se esqueça do que posso fazer com o clima.

—            Eu jamais esqueceria — respondo. Tento mudar de assunto. Estou me odiando por flertar com outra garota. — Ei, eu queria perguntar: de quem é o rosto nas nuvens? Toda vez que você provoca uma tempestade, vejo um rosto maluco, sinistro.

Ela coça a sola do pé direito.

Não sei bem, mas, desde que aprendi a interferir no clima, é sempre o mesmo rosto que aparece. Presumo que seja de algum lorieno.

É, provavelmente. E eu aqui pensando que poderia ser um ex-namorado maluco de quem você ainda não conseguiu se esquecer.

Porque é claro que eu tenho uma queda por homens de noventa anos. Você me conhece tão bem, Johnny.

Dou de ombros. Nós dois sorrimos.

Naquela noite preparo o jantar usando uma grelha enferrujada, mas ainda aproveitável, que estava no quintal. Ou tento, eu acho. Como tive aulas de economia doméstica com Sarah em Paradise, sou o único capaz de cozinhar algo ligeiramente parecido com uma refeição. Hoje à noite temos peito de frango, batatas e uma pizza de pepperoni congelada.

Estamos sentados no carpete da sala, formando um triângulo. Sob o cobertor que Seis colocou sobre a cabeça e o corpo, ela veste uma blusa preta, e seu pingente está à mostra. Vê-lo me faz lembrar a visão que tive. Quem me dera ter um jantar normal à mesa e uma noite de sono que não seja torturada por meu passado lórico. Será que era assim em Lorien antes de partirmos?

Você pensa muito em seus pais? — pergunto a Seis. — Quer dizer, no tempo em que vivia com eles em Lorien?

Agora não muito. Nem consigo mais lembrar como eles eram, na verdade. Mas lembro como era ficar perto deles, se isso faz algum sentido. Acho que penso muito nessa sensação. E você?

Pego um pedaço de pizza queimada. Decido nunca mais assar uma pizza congelada na grelha

—            Eu os vejo muitas vezes em meus sonhos. O que é ótimo, mas também me arrasa por dentro. Só me faz lembrar que eles estão mortos.

O cobertor escorrega da cabeça de Seis e para sobre seus ombros.

—            E você, Sam? Sente saudades de seus pais agora?

Sam abre a boca e a fecha. Percebo que ele está pensando em contar a Seis que acredita que seu pai foi levado por aliens, abduzido quando saiu de casa para comprar leite e pão. Finalmente, ele diz:

—            Sinto muita falta dos dois, de minha mãe e meu pai, mas eu sei que estou melhor aqui com vocês. Considerando o que sei sobre tudo, acho que não poderia estar em casa.

Você sabe demais — falo. Sinto-me culpado por vê-lo comendo meu jantar horrível no chão de uma casa abandonada, em vez de se banquetear com a comida da mãe à mesa da sala em sua casa.

Sam, lamento que você tenha sido envolvido nisso tudo — Seis fala. — Mas é bom ter você aqui.

Ele fica vermelho.

—            Não sei o que é, mas começo a sentir uma estranha conexão com essa história toda. Posso fazer uma pergunta? Qual é a distância entre a Terra e Mogadore?

Penso na ocasião em que Henri soprou os sete globos de vidro, em como eles ganharam vida. Logo estávamos olhando para uma réplica flutuante de nosso sistema solar.

Mogadore fica bem mais perto da Terra que Lorien. Por quê?

Sam se levanta.

Qual seria o tempo de viagem até lá?

—            Alguns meses, talvez — diz Seis. — Depende do tipo de nave em que esteja viajando e do tipo de combustível utilizado.

Andando em círculos, Sam diz:

Acho que o governo americano deve ter uma nave capaz de percorrer essa distância. Tenho certeza de que é um protótipo ultrassecreto escondido em alguma montanha sob outra montanha, mas eu estava pensando no que aconteceria se não conseguíssemos encontrar a nave de vocês e tivéssemos de enfrentá-los no território deles, se precisássemos ir para Mogadore. É preciso ter um plano B, certo?

Claro. Qual era o plano A, mesmo? — pergunto, mordendo a língua. Não consigo imaginar como seria lutar contra o planeta Mogadore inteiro.

Recuperar minha arca — responde Seis.

Ela cobre a cabeça novamente.

E depois?

Treinamento?

E depois disso? — pergunto.

Acho que vamos procurar os outros.

—            Parece apenas que vamos passar muito tempo correndo e pouco tempo fazendo qualquer outra coisa. Tenho a impressão de que Henri ou Katarina nos mandariam fazer algo mais produtivo. Por exemplo, estudar como matar certos inimigos. Você sabe o que é um piken?

São aquelas bestas enormes que destruíram a escola — Seis responde.

E um kraul?

São aqueles animais menores que nos atacaram no ginásio — ela diz. — Por quê?

No sonho que tive na Carolina do Norte, quando você e Sam me ouviram falar em mogadoriano, esses dois nomes foram mencionados, mas eu nunca os havia escutado antes. Henri e eu os chamávamos simplesmente de "bestas". — Faço uma pausa. — Tive outro sonho mais cedo.

—            Talvez não sejam sonhos — Seis opina. — Talvez você esteja tendo visões.

Concordo com a cabeça.

—            É difícil distinguir uma coisa de outra, agora. Quer dizer, esses sonhos se parecem com as visões que eu tinha de Lorien, mas eu não estava em Lorien nesses dois — digo. — Uma vez Henri me contou que, quando tenho visões, é porque elas têm algum significado pessoal para mim. E isso sempre foi verdade... as últimas visões eram sempre de fatos que já tinham acontecido. Mas acho que o que vi no sonho de hoje de manhã... não sei. Foi como se eu visse algo ao mesmo tempo que acontecia.

—            Sinistro — diz Sam. — Você é como uma televisão.

Seis amassa seu papel-toalha e o joga para trás, por cima da cabeça. Sem pensar, ponho fogo nele, que se desintegra antes de chegar ao carpete. E então ela fala:

Não é impossível, John. Sabe-se que alguns lorienos conseguiam fazer isso. Foi o que Katarina me disse, ao menos.

Mas a questão é que eu acho que estava em Mogadore, que, aliás, é tão horrível quanto imaginei que seria. O ar era tão denso que fazia meus olhos lacrimejarem. Tudo era desolado e cinzento. Mas como cheguei lá? E como aquele cara enorme que havia lá pôde de alguma forma sentir minha presença?

Quão grande? — Sam pergunta.

Imenso, mais que o dobro do tamanho dos soldados que eu vi, uns seis metros de altura, talvez mais, e muito mais inteligente e poderoso. Posso dizer só de olhar para ele. Definitivamente, era algum tipo de líder. Eu já o vi duas vezes. Na primeira eu estava ouvindo um subalterno qualquer lhe repassar informações, tudo sobre nós e o que tinha acontecido na escola. Nessa segunda vez, ele se preparava para embarcar em uma nave, mas, antes que ele entrasse, alguém se aproximou correndo e lhe entregou alguma coisa. De início eu não sabia o que era, mas pouco antes de a porta da nave se fechar ele se virou em minha direção, para ter certeza de que eu veria exatamente o que era.

E o que era? — Sam indaga.

Eu balanço a cabeça, amasso meu papel-toalha e o queimo na palma da mão. Olho para o sol poente através da porta dos fundos, uma bola alaranjada e rosa-shocking como o pôr do sol da Flórida que Henri e eu víamos de nossa varanda. Queria que ele ainda estivesse aqui para me ajudar a entender tudo isso.

—            John? O que era? O que ele segurava? — Seis insiste.

Levanto a mão e seguro meu pingente.

—            Isto. Pingentes. Ele tinha três. Os mogadorianos devem ter tirado os pingentes depois de cada morte. E aquele líder gigantesco, ou seja lá quem for, os pendurou no pescoço como se fossem medalhas olímpicas, e depois ficou ali parado tempo suficiente para que eu pudesse vê-los. Cada um tinha um brilho azulado e, quando eu acordei, o meu também brilhava.

—            Então está dizendo que é uma premonição, como se tivesse acabado de ver seu destino? Ou será que você teve um sonho estranho porque está muito estressado? — Sam pergunta.

Eu balanço a cabeça.

—            Acho que Seis tem razão e foram visões. E acho que são coisas que estão acontecendo agora mesmo. Mas o que mais me assusta é que, quando aquele cara entrou na nave... é bem provável que ele esteja vindo para cá. E, se Seis estiver certa sobre a velocidade em que uma nave pode viajar, ele não vai demorar muito a chegar.

 

AS COISAS DE QUE ME RECORDO DE QUANDO VIEMOS PARA Santa Teresa são, mais que tudo, fragmentos de uma longa jornada que eu pensava que nunca iria acabar. Lembro-me de um estômago vazio e de pés doendo, e de me sentir terrivelmente exausta a maior parte do tempo. Lembro-me de Adelina pedindo esmola, comida. Lembro-me de enjoar no mar e de vomitar por causa disso. Lembro-me dos olhares de repulsa das pessoas que passavam por nós. Lembro-me de todas as vezes que mudamos de nome. E me lembro da arca, de como, por mais inconveniente que ela fosse, Adelina se recusava a se separar dela, por pior que fosse nossa situação. No dia em que finalmente irmã Lúcia abriu a porta para nós, lembro-me de ter visto a arca no chão, presa entre os pés de Adelina. Sei que ela a escondeu em algum canto escondido no orfanato. Meus dias de busca não deram frutos, mas continuo a procurar.

No domingo, uma semana depois da chegada de Ella, nós nos sentamos juntas para a missa, no último banco da igreja. Era a primeira a que ela assistia, e seu interesse era igual ao meu: nenhum. Exceto durante as aulas, ela tem ficado comigo desde a manhã em que a ajudei a arrumar a cama. Fazemos juntas o caminho de ida e o de volta da escola, tomamos café da manhã e jantamos juntas, fazemos juntas nossas preces noturnas. Eu me apeguei muito a ela, e, pelo jeito como me segue por todo canto, percebo que ela também se apegou a mim.

Padre Marco está há uns quarenta e cinco minutos falando sem parar e, finalmente, fecho os olhos pensando na caverna e tentando decidir se devo levar Ella comigo hoje. Há vários problemas envolvidos nessa ideia. Primeiro, não há luz no interior da caverna e, de jeito nenhum, Ella vai conseguir enxergar no escuro como eu. Segundo, a neve ainda não derreteu, e não sei se ela vai conseguir fazer a caminhada. Mas, acima de tudo, receio que levar Ella até lá possa colocá-la em risco. Os mogadorianos podem chegar a qualquer momento, e Ella estaria indefesa. Mas, mesmo com todos esses obstáculos e temores, tenho muita vontade de levá-la comigo. Quero lhe mostrar minhas pinturas.

Na terça-feira, minutos antes de sairmos para a escola, eu a encontrei debruçada na cama. Enquanto ainda mastigava um biscoito do café da manhã, eu espiei por cima de seu ombro e a vi esboçar furiosamente um desenho perfeito do dormitório. Os detalhes, a precisão técnica de cada rachadura na parede, sua capacidade de captar até as mais tênues nuances de luz do sol que entravam pelas janelas durante a manhã impressionavam. Era como olhar para uma fotografia em preto e branco.

"Ella!" exclamei.

Ela virou a folha de papel, apertando-a contra o livro da escola com suas mãozinhas sujas de grafite. Sabia que era eu, mas não se virou.

"Onde você aprendeu a fazer isso?", sussurrei. "Como aprendeu a desenhar tão bem?"

"Meu pai", ela cochichou de volta, mantendo o desenho virado. "Ele era artista. E minha mãe também."

Eu me sentei em sua cama.

"E eu aqui pensando que sou uma boa pintora."

"Meu pai era um pintor incrível", ela afirmou com simplicidade. Antes que eu pudesse fazer mais perguntas, fomos interrompidas por irmã Carmela, que nos mandou sair do dormitório. Naquela noite eu encontrei o desenho de Ella embaixo de meu travesseiro. Era o melhor presente que eu já ganhara.

Durante a missa, penso que talvez ela possa me ajudar com as pinturas na caverna. Com certeza consigo arrumar uma lanterna ou lamparina para levar conosco. E então meus pensamentos são interrompidos por uma risadinha ao lado.

Abro os olhos e viro o rosto. Ella vê uma lagarta peluda vermelha e preta rastejando por seu braço. Ponho meu dedo indicador na frente dos lábios, pedindo silêncio. Isso a faz parar por um momento, mas a lagarta sobe mais um pouco, e ela volta a rir. Seu rosto fica vermelho pelo esforço de se controlar, mas a tentativa de conter o riso só aumenta a vontade de rir. Finalmente, ela não consegue se conter e deixa escapar uma gargalhada. Todo mundo se vira para ver o que está acontecendo, e padre Marco interrompe o sermão no meio da frase. Tiro a lagarta do braço de Ella e me ajeito no banco, devolvendo o olhar de quem nos encara. Ella para de rir. Pouco a pouco, todos os olhares se voltam para a frente, e padre Marco, visivelmente desconcertado por ter deixado de ser o centro das atenções por um instante, retoma o sermão.

Fico segurando a lagarta. Ela se mexe, tentando escapar. Depois de um minuto, abro a mão, e o movimento súbito faz a criaturinha peluda se enrolar. Ella levanta as sobrancelhas e junta as mãos, e eu passo a lagarta para ela. A menina fica sorrindo, olhando para o animal.

Olho para a primeira fileira. Não me surpreendo nem um pouco ao ver irmã Dora dirigir para mim seu olhar carrancudo. Ela balança a cabeça antes de se virar para padre Marco.

Inclino-me para Ella, aproximando-me o suficiente para cochichar sem que ninguém ouça.

—            Quando a oração terminar — sussurro em seu ouvido —, temos de sair daqui o mais depressa possível. E precisamos ficar longe de irmã Dora.

Antes da missa eu trancei o cabelo de Ella, agora, quando ela olha para mim com aqueles grandes olhos castanhos, parece que o peso da trança puxa sua cabeça para trás.

Vou ter problemas?

Não, vai dar tudo certo — respondo. — Mas, só por precaução, vamos sair rápido, antes que irmã Dora consiga nos alcançar. Entendeu?

Entendi — ela confirma.

Mas não temos essa chance. Quando faltam apenas alguns minutos para o fim da missa, irmã Dora se levanta e caminha casualmente para o fundo da igreja, e fica esperando de pé na porta alguns passos atrás de nós. Quando volto a abrir os olhos e faço o sinal da cruz ao final da última prece, irmã Dora toca meu ombro esquerdo.

—            Venha comigo, por favor — diz a Ella, estendendo o braço por cima de mim para segurá-la pelo pulso.

O que você está fazendo? — pergunto.

Irmã Dora puxa a menina por mim.

Não é de sua conta, Marina.

—            Marina — Ella suplica.

Enquanto é arrastada, vira-se para mim com seus olhos assustados. Entro em pânico e corro para a frente da igreja, onde Adelina está de pé, conversando com uma senhora da cidade.

—            Irmã Dora acabou de pegar Ella e levá-la — falo apressadamente, interrompendo a conversa. — Você precisa impedi-la, Adelina!

Ela olha para mim, incrédula.

—            Não vou fazer nada disso. E é irmã Adelina. Agora, se me der licença, Marina, estou conversando — ela adverte.

Balanço a cabeça para ela. Lágrimas inundam meus olhos. Adelina não se lembra da sensação de pedir ajuda e não recebê-la.

Eu me viro e corro para a escada que sobe até a sacristia. À esquerda, no final do corredor, a única porta fechada é a do escritório de irmã Lúcia. Corro até lá, tentando decidir o que fazer. Devo bater? Devo abrir a porta e invadir a sala? Não tenho chance de fazer nenhuma das duas coisas. Quando já estou ao alcance da maçaneta, ouço o estalo da palmatória e um grito logo em seguida. Fico paralisada, em choque. Ella chora do outro lado da porta, e um segundo depois a mesma porta é aberta por irmã Dora.

O que você está fazendo aqui? — ela me pergunta, irritada.

Vim procurar irmã Lúcia — minto.

—            Ela não está aqui, e você deveria estar na cozinha. Vá — ela ordena, indicando o caminho por onde vim. — Estou indo para lá também.

Ella está bem?

Marina, isso não é de sua conta — ela diz, e agarra meu braço, me gira e me empurra. — Vá!

Eu me afasto do escritório, odiando o medo que me invade cada vez que me vejo diante de um confronto. Sempre foi assim: com as irmãs, com Gabriela Garcia, com Bonita no píer... É sempre a mesma sensação, o mesmo nervosismo que se transforma rapidamente em pavor e me faz fugir.

Ande mais depressa! — irmã Dora grita, seguindo-me escadaria abaixo, na direção da cozinha, onde o trabalho para El Festín me aguarda.

Preciso ir ao banheiro — digo antes de chegarmos à cozinha, o que é uma mentira, só quero me certificar de que Ella está bem.

Tudo bem. Mas é bom que seja rápida. Vou controlar o tempo.

Sim.

Viro no corredor seguinte e espero trinta segundos, para ter certeza de que ela foi embora. Depois volto correndo por onde viemos, escada acima e até o fim do corredor. A porta do escritório está entreaberta, e eu passo por ela. O interior está escuro, sombrio. Uma camada de poeira cobre as estantes nas paredes, cheias de livros antigos. A única luz penetra pela janela suja de vitral.

—            Ella? — chamo, por alguma razão pensando que ela pode estar escondida.

Não há resposta. Saio e vou espiando as outras salas do corredor, mas todas estão vazias. Repito o nome dela ao longo do caminho. Na outra extremidade do corredor ficam os dormitórios das irmãs. Ella também não está lá. Volto a descer a escada. O povo já foi para o refeitório. Vou até a igreja à procura de Ella. A menina não está lá, nem nos dois dormitórios, nem da sala dos computadores, tampouco em nenhum dos almoxarifados. Depois de conferir todos os lugares em que consigo pensar, meia hora se passou e sei que vou ter sérios problemas se for para o refeitório.

Em vez disso, troco de roupa às pressas, pego meu casaco do gancho e o cobertor de minha cama, e saio do convento correndo. Caminho pela neve na direção oposta à da cidade, incapaz de apagar da memória o estalo da palmatória e o grito de Ella. Também não consigo perdoar o desprezo de Adelina por mim. Meu corpo todo está tenso, e eu concentro minha energia em algumas pedras pelas quais passo, usando a telecinesia para levantá-las e jogá-las contra a montanha. É uma ótima maneira de extravasar a raiva. A neve está dura, criando uma fina camada de gelo que range sob meus pés, mas não impede que as pedras rolem encosta abaixo. Estou tão furiosa que poderia deixá-las descer até a cidade. Mas as detenho no meio do caminho. Minha revolta não é contra a cidade, mas contra seu homônimo e as pessoas que vivem lá.

Passo pelas corcovas do camelo — agora falta meio quilômetro. O sol em meu rosto está morno, alto no céu e inclinado para o leste, o que significa que tenho pelo menos cinco horas antes de precisar voltar. Nem sei quando foi a última vez que tive tanto tempo livre assim e, com o sol radiante e o vento gelado e fresco que afugentam meu mau humor, não dou a mínima para a encrenca que terei de enfrentar quando voltar. Viro para ver se meu cobertor-capa está apagando as pegadas na neve endurecida, e me preocupo ao constatar que dessa vez não funcionou.

Mesmo assim, sigo em frente até ver o arbusto arredondado acima da neve, e então corro até ele, sem notar de imediato justamente aquilo a que meus olhos deviam estar atentos; a neve na entrada da caverna está afastada para os lados. Mas, assim que chego à entrada, percebo na mesma hora que alguma coisa está muito errada.

Vindo do sul pela montanha, desenhando na neve uma linha reta que se estende da cidade até a caverna, vejo um par de pegadas com o dobro do tamanho de meus pés. Os passos formam um arco na frente da caverna, como se contornassem a abertura. Estou nervosa, certa de que há mais alguma coisa que não estou vendo. E então percebo. As pegadas levam ao interior da caverna, mas não voltam.

O dono daqueles pés ainda está lá dentro.

 

ELES ESTÃO AQUI!, PENSO. DEPOIS DE TODOS ESSES ANOS, os mogadorianos finalmente estão aqui!

Viro-me tão rapidamente que escorrego e caio na neve. Afasto-me da caverna, rastejando depressa para trás, e meus sapatos se enroscam no cobertor. Meus olhos se enchem de lágrimas. Meu coração dispara. Consigo me levantar e corro com toda a velocidade de que minhas pernas são capazes. Sem sequer olhar para trás para ver se alguém me segue, percorro o mesmo trecho nevado por onde acabei de vir, indo tão rápido que mal presto atenção ao lugar em que piso. As árvores lá embaixo viram um borrão, e as nuvens no céu também. Sinto o cobertor tremular atrás de mim, agitando-se como uma capa de super-herói. Tropeço uma vez e deslizo pelo chão, mas me recupero imediatamente e continuo a correr, pulo por cima das corcovas do camelo e caio do outro lado. Finalmente, passo pelas faias e chego ao convento; a subida levou quase vinte e cinco minutos; a descida não leva mais que cinco. Como a capacidade de respirar embaixo da água, o Legado da supervelocidade se apresenta quando preciso dele.

Desamarro o cobertor do pescoço, passo correndo pelas portas duplas e ouço o barulho de pratos e talheres no refeitório. Subo correndo as escadas e sigo pelo corredor estreito, sabendo que neste domingo é a vez de Adelina tirar folga. Entro no quarto aberto onde as irmãs dormem. Adelina está sentada altiva em uma das duas cadeiras de espaldar alto, com uma Bíblia apoiada no colo. Ela a fecha quando me vê entrar.

—            Por que você não está no refeitório? — ela me pergunta.

—            Acho que eles estão aqui — digo sem fôlego, e minhas mãos tremem violentamente. Eu me curvo e as apoio nos joelhos.

—            Quem?

—            Você sabe quem! — grito. Depois, falo por entre os dentes: — Os mogadorianos.

Adelina estreita os olhos, incrédula.

Onde?

Fui à caverna...

Que caverna? — ela me interrompe.

Não interessa que caverna! Havia pegadas do lado de fora, pegadas muito grandes...

Devagar, Marina. Pegadas do lado de fora de uma caverna?

Sim.

Ela dá um sorriso torto, e eu percebo imediatamente que ir até ela foi um erro. Eu deveria saber que Adelina não acreditaria em mim, e não consigo deixar de me sentir tola e vulnerável parada diante dela. Endireito meu corpo. Não sei o que fazer com as mãos.

—            Quero saber onde está minha arca — digo, com uma voz que não é exatamente confiante, mas também não é tímida.

Que arca?

Você sabe muito bem que arca!

O que a faz pensar que ainda tenho aquela velharia? — ela me pergunta em um tom calmo.

Você estaria se voltando contra seu povo se não a guardasse.

Ela abre de novo a Bíblia e finge ler. Penso em sair dali, mas penso outra vez nas pegadas na neve.

—            Onde ela está? — pergunto.

Adelina continua a me ignorar, então projeto minha mente e sinto os contornos do livro, as páginas finas e empoeiradas, a capa dura de acabamento grosseiro. Fecho o livro com força. Adelina pula.

Onde ela está?

Como se atreve?! Quem você pensa que é?

Sou membro da Garde, e o destino de toda uma raça de lorienos depende de minha sobrevivência, Adelina! Como você pôde dar as costas para eles? Como pôde dar as costas para os humanos, também? John Smith, que eu acredito que seja um membro da Garde, é um fugitivo nos Estados Unidos e, quando foi abordado na estrada recentemente, conseguiu mover o policial sem nem mesmo tocá-lo. Como eu posso fazer. Como acabei de fazer com seu livro. Não percebe o que está acontecendo, Adelina? Se não começarmos a ajudar, não apenas Lorien se perderá para sempre, como também a Terra e este orfanato estúpido e esta cidade estúpida!

Como você ousa chamar este lugar de estúpido?! — Adelina se aproxima de mim com os punhos cerrados. — Este foi o único lugar que nos acolheu, Marina. É a única razão pela qual ainda estamos vivas. O que os lorienos fizeram por nós? Prenderam-nos em uma espaçonave por um ano inteiro e depois nos jogaram em um planeta cruel, sem nenhum tipo de plano nem instrução; apenas disseram que deveríamos nos esconder e treinar. Treinar para quê?

—            Para derrotar os mogadorianos. Para recuperar Lorien. — Balanço a cabeça. — Os outros devem estar pelo mundo agora mesmo, lutando, tentando encontrar um meio de nos reunirmos e voltarmos para casa, enquanto nós duas estamos aqui nesta prisão sem fazer nada.

—            Eu estou vivendo com um propósito, ajudando a raça humana com minhas preces e meu serviço. E você deveria estar fazendo o mesmo.

Seu único propósito na Terra era me ajudar.

Você está viva, não está?

Só no sentido literal da palavra, Adelina.

Ela se senta novamente na cadeira e abre a Bíblia no colo.

—            Lorien está morto e enterrado, Marina. Que importância tem isso agora?

—            Lorien não morreu... apenas hiberna. Você mesma disse. A questão é que não estamos mortos.

Ela engole em seco.

—            Recebemos todos uma sentença de morte — diz, e sua voz treme um pouco. Depois, em um tom muito mais suave, ela continua: — Nossa vida está condenada desde o início. Devemos fazer o bem enquanto estamos aqui, para que possamos ter uma boa vida após a morte.

Como você pode dizer isso?

Digo porque é a realidade. Somos o que resta de uma raça em extinção, e logo também morreremos. E que Deus nos ajude quando essa hora chegar!

Olho para ela e balanço a cabeça. Não estou interessada em falar de Deus.

—            Onde está minha arca? Neste quarto?

Ando pelo aposento, olhando os cantos do teto, e depois me abaixo para ver embaixo de algumas camas.

—            Mesmo que você a pegasse, não poderia abri-la sem mim — ela diz. — Sabe bem disso.

Adelina tem razão. De acordo com o que ela me disse anos atrás, quando eu ainda podia confiar naquilo que ela falava, não consigo abrir a arca sem ela. Percebo então a futilidade de tudo. As pegadas na neve; John Smith em fuga; a total e absoluta claustrofobia em Santa Teresa, e Adelina, minha Cêpan, que deveria me ajudar e apoiar enquanto desenvolvo meus Legados, desistiu de nossa missão. Ela nem sabe quais Legados já desenvolvi. Sou capaz de enxergar no escuro, respirar embaixo da água, correr num ritmo superveloz, mover objetos com a mente e fazer plantas moribundas voltarem à vida. A ansiedade me domina, e no pior momento possível irmã Dora entra no quarto. Ela apóia as mãos fechadas na cintura.

—            Por que não está na cozinha?

Olho para ela com a mesma expressão de desgosto que vejo em seu rosto.

—            Ah, cale a boca — respondo, e saio do quarto antes que ela responda. Atravesso rapidamente o corredor, desço a escada, pego meu casaco de novo e saio pelas portas duplas.

Caminho pelas sombras no acostamento da estrada olhando para todos os lados. Embora ainda tenha a sensação de estar sendo observada, nada parece estranho aqui fora. Desço a colina às pressas sem baixar a guarda e, quando chego ao café, entro, porque é o único lugar aberto. Mais ou menos metade das vinte mesas está ocupada, e eu sou grata por isso... preciso muito me cercar de gente. Estou prestes a me sentar quando vejo Héctor, sozinho no canto, bebendo vinho.

—            Por que você não foi ao El Festín?

Ele levanta a cabeça. Está barbeado, e seu olhar parece sóbrio e firme. Ele parece estar descansado; está até bem-vestido. Há um bom tempo não o vejo assim. Eu me pergunto quanto tempo isso vai durar.

—            Pensei que você não bebesse aos domingos — digo, e me arrependo na mesma hora.

Héctor e Ella são meus únicos amigos atualmente, e uma já desapareceu hoje. Não quero aborrecer Héctor também.

—            Eu também pensei — ele responde, sem se ofender. — Se algum dia conhecer um homem que estiver tentando afogar as mágoas, faça a gentileza de informá-lo que as mágoas sabem nadar. Aqui, sente-se, sente-se — ele me convida, chutando a cadeira diante de si. Deixo-me cair nela. — Como vai?

Odeio este lugar, Héctor. Odeio com todas as minhas forças.

Dia ruim?

Todos os dias são ruins aqui.

Ei, aqui não é tão terrível assim.

Como você pode estar sempre tão alegre?

Álcool — ele diz com um sorriso torto. E serve em sua taça o que imagino que seja a primeira dose da garrafa. — Não recomendo para outros. Mas, para mim, parece funcionar bem.

Ah, Héctor! — digo. — Gostaria que você não bebesse tanto.

Ele ri. E toma um gole.

Sabe do que eu gostaria?

Do quê?

Gostaria que você não parecesse tão triste o tempo todo, Marina do mar.

Eu não sabia que parecia triste.

Ele dá de ombros.

É algo que eu percebi, mas Héctor é um homem muito perceptivo.

Olho para a direita e para a esquerda, parando para ver cada pessoa aqui. Depois, pego um guardanapo da mesa e o ajeito no colo. E o devolvo à mesa. E o ponho novamente nas pernas.

Conte-me o que a está aborrecendo — Héctor sugere, e então bebe um gole maior.

Absolutamente tudo.

Tudo? Até eu?

Balanço a cabeça.

O.k., nem tudo.

Ele levanta as sobrancelhas e franze o cenho.

—            Agora conte.

Sinto um forte impulso de revelar meu segredo, a razão de eu estar aqui e o lugar de onde realmente vim. Quero falar sobre Adelina e qual deveria ser seu papel, e em que ela se transformou. Quero que ele saiba sobre os outros, que estão fugindo ou lutando, ou talvez parados à toa, como eu, acumulando poeira. Se existe uma pessoa que certamente se tornaria meu aliado, que me ajudaria de todas as maneiras possíveis, essa pessoa é Héctor. Ele é, afinal, um defensor destinado a guardar, e que nasceu para ter força e coragem simplesmente pelo nome que lhe foi dado.

Você alguma vez já sentiu que aqui não é seu lugar, Héctor?

Claro. Alguns dias.

Por que continua aqui, então? Pode ir para qualquer lugar.

Ele dá de ombros.

Por várias razões. — Ele serve mais vinho na taça. — Uma delas é que não há mais ninguém para cuidar de minha mãe. Além do mais, este lugar é minha casa, e não estou convencido de que haja outro muito melhor. A experiência me mostrou que as coisas raramente melhoram com uma simples mudança de cenário.

Talvez, mas eu ainda quero ir embora. Só me faltam pouco mais de quatro meses no orfanato, sabia? E você não pode contar a ninguém, mas acho que vou embora antes disso.

Não acho que seja uma boa ideia, Marina. Você é jovem demais para ficar sozinha. Para onde vai?

Para os Estados Unidos — respondo sem hesitar.

Estados Unidos?

Tem alguém lá que preciso encontrar.

Se você está tão decidida, por que não foi ainda?

Medo — confesso. — Basicamente, medo.

Você não é a primeira — ele diz e faz uma pausa para esvaziar a taça de uma vez só. Seus olhos perderam a firmeza. — O segredo para mudar é superar o medo.

Eu sei.

A porta do café se abre, e por ela entra um homem alto vestindo um casaco longo e com um livro velho nas mãos. Ele passa por nós e vai se sentar a uma mesa do outro lado, no canto. Tem cabelo escuro e sobrancelha espessa. Um bigode grosso esconde seu lábio superior. Nunca o vi antes, mas, quando ele levanta a cabeça e me encara, imediatamente algo nele me desagrada, e logo desvio o olhar. Pela visão periférica, percebo que ele continua a me olhar. Tento ignorá-lo. Volto a conversar com Héctor, ou melhor, fico falando frases aleatórias, que não fazem muito sentido, vendo-o encher mais uma vez a taça com vinho tinto, e não escuto quase nada do que Héctor responde.

Cinco minutos depois o homem ainda me encara, e isso me incomoda tanto que o café parece girar. Debruço-me sobre a mesa e cochicho para Héctor:

—            Sabe quem é aquela pessoa na mesa lá do canto?

Ele balança a cabeça.

Não, mas também já notei que ele está olhando para nós. Ele esteve aqui na sexta-feira, sentou-se no mesmo lugar e ficou lendo o mesmo livro.

Tem alguma coisa nele que não me agrada, mas eu não sei o que é.

Não se preocupe, estou aqui.

Acho que eu deveria ir embora — digo.

Sinto um estranho desespero de partir. Tento não olhar para o homem, mas não consigo. Ele agora lê o livro, cuja capa está virada para mim, como se quisesse que eu a visse. Ela é gasta e desbotada, da cor de poeira.

 

PÍTACO DE MITILENE

E A GUERRA ATENIENSE

 

Pítaco? Pítaco? O homem está me encarando de novo, e, apesar de eu não conseguir ver a metade inferior de seu rosto, os olhos sugerem que ele sorri. De repente sinto que fui atropelada por um trem. Será que esse é meu primeiro mogadoriano?

Levanto-me de um salto, bato o joelho embaixo da mesa e quase derrubo a garrafa de vinho de Héctor. Minha cadeira tomba para trás e cai no chão. Todos no café se viram para mim.

— Preciso ir, Héctor — digo. — Preciso ir.

Saio às pressas porta afora e disparo loucamente para o convento, indo mais rápido que um carro de corrida, sem me importar se há alguém vendo. Segundos depois estou de volta ao convento. Passo pelas portas como um raio e as fecho depressa, batendo-as com força. Apoio as costas nelas e fecho os olhos. Tento desacelerar o ritmo de minha respiração, os repuxões em meus braços e pernas, o tremor em meu lábio inferior. O suor escorre por meu rosto.

Abro os olhos. Adelina está parada à minha frente, e eu me atiro em seus braços, sem me importar com a tensão que havia entre nós uma hora atrás. Ela me abraça hesitante, provavelmente confusa com a súbita demonstração de afeto, algo que não faço há anos. Adelina recua e eu abro a boca para contar o que acabei de ver, mas ela leva o dedo a meus lábios, exatamente como fiz com Ella na missa. Em seguida se vira e vai embora.

 

À noite, depois do jantar e antes das orações, estou de pé diante da janela do quarto, vendo a escuridão que cresce lá fora, estudando a paisagem em busca de alguma coisa suspeita.

—            Marina? O que está fazendo?

Eu me viro. Ella está atrás de mim, não ouvi seus passos enquanto se aproximava. Ela caminha pelo convento como uma sombra.

—            Aí está você — digo, aliviada. — Você está bem?

Ela assente, mas os grandes olhos castanhos a contradizem.

O que está fazendo? — ela insiste.

Só olhando pela janela.

Para quê? Você sempre fica olhando lá para fora antes de dormir.

Ella tem razão... todas as noites desde que ela chegou, desde que vi o homem me espiando pela janela da igreja, tenho olhado para fora antes de dormir, à procura de algum sinal dele. Agora tenho certeza de que é o mesmo homem que vi hoje no café.

Estou procurando homens maus, Ella. Às vezes eles aparecem.

É mesmo? E como eles são?

É difícil dizer — respondo. — Acho que são muito altos, e normalmente muito sombrios, com cara de malvados. E alguns podem até mesmo ser musculosos, assim — eu acrescento, tentando fazer uma pose de fisiculturista.

Ella ri e se aproxima da janela. Fica na ponta dos pés e tenta enxergar alguma coisa do lado de fora.

Já faz horas que voltei do café, e consegui me acalmar um pouco.

Deslizando o dedo indicador pela janela embaçada, faço um desenho com dois movimentos rápidos.

Este é o número três — Ella fala.

Exatamente, garota. Aposto que você pode fazer melhor, hem?

Ela sorri, coloca o dedo na base da janela, e logo começa a aparecer uma linda casa de fazenda e um celeiro. Vejo meu número três ser absorvido pelo silo que a menina desenha com perfeição.

Três é o único motivo que me permitiu sair do café hoje: é a distância entre mim e John Smith. Pelo jeito como ele tem sido caçado, agora estou completamente convencida de que ele é o Número Quatro e de que o homem no café era um mogadoriano. A cidade é tão pequena que raramente vejo alguém que não reconheço, e seu livro — Pítaco de Mitilene e a guerra ateniense — e o olhar insistente não são coincidência. O nome Pítaco se parece muito com Pittacus, que é um que escuto desde pequena, desde muito antes de chegarmos a Santa Teresa.

Meu número: Sete. Este é meu único refúgio agora, minha maior defesa. Por mais que possa parecer injusto, estou protegida da morte pelos três que devem morrer antes de mim — desde que o encantamento se mantenha, e acho que foi por isso que não me atacaram ali mesmo, dentro do café. Mas uma coisa é certa: se aquele homem é um mogadoriano, eles sabem onde estou e podem me pegar quando quiserem, me aprisionarem até que Quatro, Cinco e Seis sejam mortos. Eu gostaria de saber o que os está contendo, e por que poderei dormir outra vez em minha cama hoje. Sei apenas que o encantamento impede que sejamos mortos fora da ordem numérica. Mas talvez haja mais que isso.

—            Você e eu somos uma equipe agora — digo.

Ella dá os toques finais no desenho que fez na janela, passando as unhas sobre a cabeça de algumas vacas, para fazer chifres.

—            Quer formar uma equipe comigo? — ela pergunta, incrédula.

—            Com certeza — respondo, mostrando o dedo mínimo. — Vamos prometer.

Ela abre um sorriso largo e enrosca o dedinho no meu. Sacudimos as mãos uma vez.

—            Pronto, agora temos um pacto — digo.

Olhamos pela janela novamente, e Ella apaga o desenho com a palma da mão.

Não gosto daqui.

Eu também não, acredite. Mas não se preocupe, nós duas vamos sair daqui logo.

Você acha? Vamos embora juntas?

Viro-me para ela. Não era isso o que eu queria dizer, mas assinto com a cabeça sem pensar duas vezes. Espero que eu não me arrependa dessa promessa.

—            Se você ainda estiver aqui quando eu for embora, iremos juntas. Combinado?

—            Combinado! E não vou deixar que eles machuquem você.

Quem? — pergunto.

Os homens maus.

Sorrio.

Muito obrigada.

Ela se afasta da janela e se aproxima de outra, levantando-se de novo na ponta dos pés para espiar. Como sempre, move-se como um fantasma, sem fazer barulho. Ainda não sei onde ela se escondeu hoje, mas, onde quer que tenha sido, com certeza foi um lugar em que ninguém pensaria. E de repente uma ideia me ocorre.

Ei, Ella? Preciso de sua ajuda — digo. A menina se vira da janela e olha para mim com expectativa. — Estou tentando achar uma coisa, mas está escondida.

O que é? — ela pergunta, animada, inclinando o corpo em minha direção.

Uma arca. É de madeira e parece ser muito velha, como aquelas nos filmes de piratas.

E está aqui?

Movo a cabeça em sentido afirmativo.

—            Está em algum lugar por aqui, mas não tenho ideia de onde. Alguém a escondeu muito bem. Você é a garota mais esperta que conheço. Aposto que consegue encontrá-la bem depressa.

Ela sorri e assente rapidamente com a cabeça.

Vou encontrar a arca para você, Marina! Somos uma equipe!

Isso mesmo — concordo. — Nós somos uma equipe.

 

SEIS DIRIGE NOSSO SUV PRETO-QUE ENCONTRAMOS À VENDA NA estrada, a uns três quilômetros de distância de nossa casa, por mil e quinhentos dólares — para ir ao mercado na cidade. Enquanto ela está fora, Sam e eu lutamos no quintal. Nós três passamos uma semana treinando, e estou impressionado com quanto Sam melhorou em tão pouco tempo. Apesar do tamanho, ele tem jeito para a coisa, e o que lhe falta em força Sam compensa com técnica, que é muito melhor que a minha.

No final de cada dia, quando Seis e eu nos retiramos para os cantos da sala ou para nossos quartos vazios, Sam fica acordado, estudando técnicas de luta na Internet. O que Seis aprendeu com Katarina e eu aprendi com Henri é um método de combate que se assemelha vagamente aqui na Terra a uma mistura de jiu-jítsu, tae kwon do, caratê e bojuka, um sistema com base na memória muscular e que inclui imobilização, bloqueios, movimentos corporais fluidos, manipulação de articulações e golpes contra pontos vitais do sistema nervoso central de um oponente. Para nós, que temos o benefício da telecinesia, tudo é questão de sentir os movimentos mais sutis num raio à nossa volta e de reagir a eles. Sam, porém, precisa se manter de frente para o inimigo.

Enquanto Seis termina cada sessão de treinamento ilesa, Sam e eu acabamos com novos arranhões e hematomas. Mas, apesar disso, Sam nunca perde entusiasmo ou determinação. Hoje não é diferente. Ele me ataca com os olhos atentos e o queixo baixo. Desfere um cruzado de direita, que eu bloqueio, e depois dá um chute de esquerda que eu evito com uma rasteira em sua perna direita, derrubando-o no chão. Ele se levanta e ataca de novo. Apesar de me acertar com frequência, minha força torna seus golpes pouco eficientes. Mas, às vezes, finjo sentir dor, para deixá-lo mais confiante.

Seis chega em casa uma hora depois. Troca as roupas que vestia por short e camiseta e se junta a nós. Treinamos por algum tempo, repetindo lentamente a sequência, de bloqueio e chute até torná-la instintiva. Mas, enquanto eu pego mais ou menos leve com Sam, Seis me ataca sem piedade e me joga para trás com tanta força que me deixa sem ar. Em alguns momentos fico irritado, porém, mesmo assim, percebo que estou ficando melhor. Ela não consegue mais bloquear minha telecinesia com um simples movimento do pulso. Agora ela precisa usar o corpo todo para isso.

Sam descansa um pouco e assiste ao nosso treinamento junto de Bernie Kosar.

—            Você é melhor que isso, Johnny. Aumente logo o nível — ela diz depois de me derrubar após meu chute giratório desajeitado.

Eu invisto contra ela, diminuindo a distância entre nós em um décimo de segundo. Solto um gancho de esquerda, mas Seis o bloqueia, segurando meu braço e usando meu impulso para me arremessar por cima de sua cabeça. Preparo-me para uma queda dolorosa, mas ela não me solta, virando-me sobre seu ombro e fazendo meus pés tocarem o chão primeiro.

Prende então meus braços com os dela; minhas costas são pressionadas contra seu peito. Ela aproxima o rosto do meu e, brincalhona, beija minha bochecha. Antes que eu possa reagir, ela chuta meus joelhos por trás e eu caio sentado na grama. Meus braços são puxados para o alto e eu fico deitado de costas. Seis me imobiliza com facilidade, e está tão perto de mim que posso contar os pelos de sua sobrancelha. Sinto um calafrio no estômago

—            Tudo bem — Sam interrompe finalmente. — Acho que você o pegou de jeito. Já pode soltá-lo agora.

O sorriso de Seis se alarga, e o meu também. Ficamos naquela posição por mais um segundo, e então ela se levanta e me puxa pelos ombros.

—            Minha vez com Seis — diz Sam.

Respiro fundo e sacudo os braços, buscando me livrar dos arrepios.

Ela é toda sua — digo, seguindo direto para a casa.

John? — Seis me chama quando chego à porta.

Eu me viro, tentando sufocar uma sensação estranha de nervosismo quando a vejo.

—            Sim?

—            Estamos aqui há uma semana, já. Acho que é hora de abrir mão de qualquer sentimentalismo ou medo a que você ainda esteja apegado.

Por um segundo, depois do que aconteceu agora, acho que ela está falando de Sarah.

A arca — ela diz.

Eu sei — respondo, e entro na casa, fechando a porta atrás de mim.

 

Vou para meu quarto e fico andando de um lado para o outro, respirando fundo, tentando entender o que acabou de acontecer no quintal.

Vou ao banheiro e jogo água fria no rosto. Olho para o espelho. Sarah me mataria se me pegasse olhando para Seis daquele jeito. Repito para mim mesmo que não tenho com que me preocupar porque os lorienos amam apenas uma pessoa a vida inteira. Se Sarah é minha amada, Seis é só uma paixonite.

De volta ao quarto, deito-me de costas, cruzo as mãos sobre a barriga e fecho os olhos. Respiro fundo, segurando cada inspiração e contando até cinco antes de soltar o ar pelo nariz.

Trinta minutos depois abro a porta e saio silenciosamente para o corredor, e ouço Seis e Sam, que se movem na sala. O único lugar na casa que encontrei para esconder minha arca foi o armário da área de serviço, em cima do boiler. Tento tirá-la de lá sem fazer barulho. Depois volto ao quarto na ponta dos pés, fecho a porta suavemente e a tranco com a chave.

Seis tem razão. Chegou a hora. Não posso mais esperar. Seguro a fechadura. Ela se aquece rapidamente, depois se contorce contra a palma de minha mão, tomando uma forma quase líquida, e se abre com um estalo. O interior brilha. Isso nunca aconteceu antes. Tiro de dentro da arca a carta escrita por Henri, ainda no envelope selado, e a lata de café que contém suas cinzas. Abaixo a tampa e tranco a arca. Sei que é estúpido, mas sinto que, de alguma forma, não ler a carta que Henri deixou o mantém vivo. Uma vez aberta a arca, uma vez lida a carta, ele não vai ter nada mais a me dizer, nada a me ensinar — e então vai se tornar apenas uma lembrança, nada mais. Ainda não estou pronto para isso.

Abro o armário no qual minhas roupas estão empilhadas e escondo embaixo delas a lata de café e a carta. Depois pego a arca e saio do quarto, andando pelo corredor enquanto ouço Seis e Sam na sala assistindo na Internet a um programa chamado Antigos Aliens. Sam está perguntando a Seis a respeito de todas as teorias sobre extraterrestres que ele conhece, e Seis confirma ou nega rapidamente cada uma delas, tomando por base os ensinamentos de Katarina. Sam rabisca as respostas em seu bloco, o que leva a mais perguntas, às quais Seis, com paciência, responde ou dá de ombros. Sam presta muita atenção, traçando paralelos com o que já sabe.

As pirâmides de Gizé? Elas foram construídas por lorienos?

Em parte, sim, mas principalmente pelos mogadorianos.

E a Grande Muralha da China?

Humanos.

Roswell, Novo México?

—            Sabe, eu perguntei isso a Katarina uma vez, e ela não tinha ideia. Portanto, também não sei.

Espere, há quanto tempo os mogadorianos visitam a Terra?

Há quase tanto tempo quanto nós — ela conta.

Então... essa guerra entre vocês, ela é nova?

Não necessariamente. O que eu sei é que os dois lados têm viajado para a Terra há milhares de anos; algumas vezes estivemos aqui ao mesmo tempo, e, pelo que entendi, na maioria desses encontros as relações foram amigáveis. Mas então alguma coisa aconteceu e arruinou o trato, e os mogadorianos partiram e passaram muito tempo afastados. Não sei muito além disso, e não tenho ideia de quando eles retomaram a vida.

Atravesso o cômodo e deposito a arca no chão no meio da sala de jantar. Sam e Seis levantam a cabeça. Seis sorri, e mais uma vez sinto um arrepio estranho. Retribuo o sorriso, mas o meu parece forçado.

—            Acho que podíamos abrir esta coisa juntos.

Sam começa a esfregar as mãos com um brilho enlouquecido nos olhos.

Caramba, Sam! — comento. — Você parece prestes a assassinar alguém.

Ah, puxa — ele diz. — Vocês têm me provocado com essa arca há quase um mês, e eu tenho sido paciente e ficado de boca fechada por respeito a Henri e tudo o mais, mas com que frequência tenho a chance de ver os tesouros de outro planeta? Só imagino como os caras da NASA matariam para estar no meu lugar. Você não pode criticar minha animação.

Você ficaria zangado se, depois de todo esse tempo, não houvesse nada na arca além de roupa suja?

Roupa suja alienígena? — Sam pergunta, sarcástico.

Dou uma risada, e depois me abaixo e seguro a fechadura. Minha mão brilha assim que toca o metal e a fechadura esquenta mais uma vez, tremendo e se retorcendo em meus dedos, protestando contra os poderes ancestrais que a mantêm fechada. Quando ela se abre eu removo o cadeado, deixo-o de lado e coloco a mão na tampa da arca. Seis e Sam se inclinam para a frente, ansiosos. Levanto a tampa. A arca está novamente iluminada com um brilho que fere meus olhos. A primeira coisa que faço é remover a bolsa de veludo que contém as sete esferas que representam o sistema solar lórico. Penso em Henri e em como costumávamos observar a luz cintilar e pulsar no centro de Lorien, mostrando que o planeta ainda estava vivo, apenas hibernando. Ponho a bolsa na mão de Sam. Nós três olhamos para dentro da arca. Algo mais está iluminado.

O que é aquilo brilhando? — pergunta Seis.

Não faço ideia. Nunca aconteceu antes.

Ela pega uma pedra no fundo da arca. É um cristal perfeitamente redondo do tamanho de uma bola de pingue-pongue, e quando ela a toca a luz se torna ainda mais brilhante. E depois diminui e começa a pulsar lentamente. Olhamos para o cristal, hipnotizados pela luz. Então, de repente, Seis o deixa cair no chão. Ele para de pulsar e recupera o brilho constante de antes. Sam estende a mão para pegá-lo.

Não! — grita Seis.

Ele a encara, confuso.

Tem alguma coisa errada nisso — Seis diz.

Como assim? — pergunto.

—            Pareceu que minha mão estava sendo alfinetada. Quando eu a segurei, tive uma sensação muito ruim.

—            Isto é minha Herança — lembro. — Talvez só eu possa tocá-la?

Eu me abaixo e pego o cristal brilhante com cuidado. Segundos depois, tenho a sensação de estar segurando um cacto radioativo, meu estômago se comprime e o ácido sobe até minha garganta. Na mesma hora jogo o cristal sobre um cobertor. Engulo em seco.

—            Talvez eu esteja fazendo algo errado.

—            Talvez não saibamos usá-lo. Quer dizer, você falou que Henri não o deixava ver o interior da arca porque você ainda não estava pronto. Será que talvez você ainda não esteja?

Bem, isso seria muito chato — respondo.

Que droga! — Sam exclama.

Seis vai até a cozinha e volta com duas toalhas e um saco plástico. Cautelosa, pega o cristal brilhante com uma toalha, joga ambos dentro do saco e em seguida envolve com a segunda toalha.

—            Acredita mesmo que isso é necessário? — pergunto. Meu estômago continua a se revirar.

Ela dá de ombros.

—            Não sei quanto a você, mas a sensação que eu tive quando o toquei foi ruim. Melhor prevenir que remediar.

O que restou na arca é toda a minha Herança, e não sei muito bem por onde começar. Pego um objeto que já vi antes, o cristal oblongo que Henri usou para espalhar o Lúmen de minhas mãos para o restante do corpo. Ele ganha vida e banha a sala de jantar com sua luz radiante. No centro do cristal, algo parecido com fumaça começa a girar, contorcendo-se sobre si mesma, como eu vi acontecer antes.

Agora sim — diz Sam.

Aqui — eu digo, entregando-o a ele. O cristal se apaga quando troca de mãos. — Já vi isto.

Há alguns cristais menores dentro da arca, um diamante preto, um punhado de folhas finíssimas enlaçadas com barbante e um talismã em forma de estrela com o mesmo tom claro de azul do pingente em meu pescoço, sinal de que é loralite, uma pedra extremamente rara encontrada apenas no núcleo de Lorien. Também há um bracelete oval vermelho-vivo e uma rocha cor de âmbar no formato de uma gota.

O que você acha que é isso? — Sam pergunta, apontando para uma pedra circular e plana presa em um canto da arca, de cor branca e leitosa como uma pérola.

Não sei — respondo.

—            E aquilo? — ele indaga, apontando agora para uma pequena adaga cuja lâmina parece feita de diamante.

Eu a retiro da arca. O cabo se encaixa perfeitamente em minha mão, como se tivesse sido feito sob medida, e eu suponho que tenha sido mesmo. A lâmina não tem mais que dez centímetros de comprimento, e pelo jeito como a luz se reflete ao longo de sua extensão posso dizer que é muito mais afiada que qualquer navalha da Terra.

E aquela coisa? — Sam pergunta de novo, apontando para outro objeto, e não tenho dúvida de que ele vai repetir essa pergunta muitas e muitas vezes, até ter indagado sobre cada item que há ali dentro.

Aqui — eu digo, deixando a adaga de lado e pegando as sete esferas, para tentar mantê-lo ocupado. — Dê uma olhada nisto.

Sopro as esferas, e pequenas luzes cintilam em sua superfície. Depois as jogo para cima e na mesma hora elas ganham vida, orbitando o sol do tamanho de uma laranja no centro.

—            É o sistema solar de Lorien — digo. — Seis planetas, um sol. E este aqui — aponto para a quarta esfera, que continua com as mesmas tonalidades variadas de cinza de quando a vi ela última vez — é Lorien, tal como está hoje, neste exato momento. O brilho no centro é o que resta.

Uau! — Sam exclama. — Os caras da NASA estariam se borrando agora se vissem isto!

E olhe só — acrescento, iluminando minha mão direita. Passo a mão na esfera, e de repente a superfície muda dos tons cinzentos deprimentes para os vibrantes azuis e verdes dos oceanos e das florestas. — O planeta era assim um dia antes do ataque.

Uau! — Sam repete, fascinado e boquiaberto; e, enquanto os planetas o mantêm hipnotizado, volto a olhar para dentro da arca.

Você sabe o que é algum desses objetos? Ou o que fazem? — pergunto a Seis, que não responde. Eu me viro e vejo que ela está tão admirada quanto Sam com o sistema solar rodopiando sessenta centímetros acima do chão. Como Henri me contara que as esferas não faziam parte de meu Legado, o que significa que não estavam trancadas na arca, eu deduzi erroneamente que ela já as vira. Mas faz sentido que não as tenha visto; elas só podem ser ativadas depois do desenvolvimento do primeiro Legado.

Seis — repito. Ela volta à realidade, olha para mim, e eu viro o rosto assim que estabelecemos contato visual. — Sabe o que são essas coisas?

Não — ela murmura, passando as mãos pela superfície das pedras. — Esta é a pedra de cura que Henri e eu usamos na escola — diz, apontando para uma rocha preta e plana que eu já vi. De repente ela fica imóvel, e um arquejo fraco escapa de seus lábios. Sam e eu nos olhamos, confusos. Ela pega da arca uma pedra amarelo-clara de superfície lisa e cerosa, e a segura contra a luz. — Ah, meu Deus! — comenta, maravilhada, virando a pedra.

Diga — eu peço. Ela me encara.

Xitharis — ela responde. — Vem de nossa primeira lua.

Ela aproxima a pequena pedra da testa e fecha os olhos com força. O amarelo-claro fica um pouco mais escuro. Ela abre os olhos e me entrega a pedra. Intrigado, eu a pego, tocando de leve meus dedos em sua palma. Sam inspira de repente.

—            Mas o quê...

Ele parece aterrorizado e estende as mãos em minha direção como se estivesse cego.

—            O que está acontecendo? — pergunto, batendo as mãos de Sam para afastá-las de meu rosto.

—            Você está invisível — Seis informa com tranquilidade. Olho para minhas pernas, e é verdade: desapareci por completo. Deixo a Xitharis cair no chão como se fosse uma batata quente, e no mesmo instante volto a ser visível.

A Xitharis — explica Seis — permite que um Garde transfira para outro um Legado, mas só por um breve período. Uma hora, acho, talvez duas. Não posso afirmar com certeza. Tudo o que você precisa fazer é dar carga, concentrando sua energia na pedra. Aproxime-a da testa e é isso, ela está pronta.

Dar carga, como se faz com uma bateria? — Sam pergunta.

Exatamente, e ela não ativa o Legado até ser tocada novamente.

Olho para a pedra.

Legal. Parece que alguém além de você vai fazer uma visita à cidade.

—            E alguém além de você vai ser resistente ao fogo — ela responde, brincalhona.

—            Se você for legal comigo, posso pensar em seu caso — digo.

Sam pega a pedra e enrijece o corpo todo, em profunda concentração. Nada acontece.

Ah, puxa — ele fala para a pedra. — Prometo usar o poder para o bem. Não vou entrar no vestiário das meninas, juro.

Lamento, Sam — diz Seis. — Acho que isso só funciona conosco.

Ele põe a Xitharis no chão e nós examinamos o conteúdo restante da arca, para ver se mais alguma coisa é ativada pelo toque. Contudo, depois de uma hora analisando e segurando os dezessete artefatos, soprando-os, apertando-os, nada mais dá sinal de vida, além do cristal brilhante enrolado na toalha, o outro, maior e oblongo com o centro fumacento, e o sistema solar ainda rodando acima de nós. A pedra de cura, porém, regenera os cortes e os hematomas que Seis tem deixado em meu corpo nos últimos dias.

—            Caramba! Esperei quase a vida toda para abrir este troço, e, agora que abri, boa parte do que há aqui parece inútil — comento.

—            Tenho certeza de que a utilidade de cada objeto vai se revelar com o tempo — Seis assegura. — Coisas assim demandam paciência. Costuma ser assim: quando se deixa de pensar nelas é que a resposta finalmente surge.

Assinto com a cabeça, olhando para tudo o que está espalhado ao redor da arca. Seis tem razão, forçar uma resposta só garante que ela não irá aparecer.

—            É, talvez algumas sejam ativadas apenas por outros Legados. Quem sabe?

Dou de ombros. Guardo tudo de volta na arca, sentindo-me inclinado a manter o cristal brilhante coberto com a toalha. Deixo fora o sistema solar, que continua sua marcha circular. Fecho e tranco a arca e a carrego pelo corredor.

—            Não desanime, John — Seis fala atrás de mim. — Como dizia Henri, é provável que você ainda não esteja preparado para ver tudo.

 

NÃO CONSIGO DORMIR, EM PARTE POR CAUSA DA ARCA. PELO QUE sei, talvez uma das pedras que está ali possa me dar a capacidade de me transformar em diferentes criaturas, como faz Bernie Kosar, ou outra tenha o poder de criar à minha volta uma barreira de ferro invulnerável ao ataque inimigo. Mas como poderei saber sem Henri? Sinto-me triste. Derrotado.

Mas, sobretudo, não consigo parar de pensar em Seis, de imaginar seu rosto a centímetros do meu, ou o perfume doce de seu hálito, ou o brilho do pôr do sol em seus olhos. Naquele momento senti a tentação incontrolável de parar de treinar e simplesmente envolvê-la em meus braços e apertá-la contra o peito. A angústia provocada pelo desejo de fazer isso até mesmo agora, horas depois, instalou-se em meu coração, e na verdade é isso que me mantém acordado. Isso e a culpa devastadora por essa atração que sinto por ela. A pessoa que eu deveria estar desejando é Sarah.

Tenho coisas demais na cabeça, e por isso não consigo dormir, emoções demais: dor, desejo, confusão, culpa. Continuo deitado por mais uns vinte minutos antes de desistir do sono. Jogo o cobertor para o lado e visto calças e uma camiseta cinza. Bernie Kosar me segue quarto afora e pelo corredor. Dou uma olhada na sala de estar para ver se Sam está dormindo. Ele está enrolado em um cobertor no chão como uma larva num casulo, e eu me viro e me afasto. O quarto de Seis fica bem na frente do meu, e a porta está entreaberta. Fico parado olhando para ela e ouço Seis se mexer no chão.

—            John? — ela sussurra.

Eu me retraio, e meu coração dispara na mesma hora.

Sim? — respondo, ainda do lado de fora.

O que está fazendo?

Nada — sussurro. — Não consigo dormir.

Entre — ela diz. Empurro a porta. O quarto está completamente escuro, e não consigo ver nada. — Está tudo bem?

Sim, tudo bem — digo. Acendo meu Lúmen bem fraco, e o brilho pálido é como o de uma luz noturna. Evito olhar para ela e encaro o tapete. — É muita coisa na cabeça, sabe? Estava pensando em talvez sair, dar uma andada, uma corrida, sei lá.

Bem, isso é um pouco perigoso, não acha? Não se esqueça de que você está na lista dos dez mais procurados pelo FBI e de que há uma recompensa bastante alta por sua cabeça.

—            Eu sei, mas... ainda está escuro lá fora, e você poderia nos tornar invisíveis, não? Quer dizer, se quiser ir comigo.

Aumento a intensidade da luz em minhas mãos e vejo que Seis está de cabelo preso, algumas mechas soltas emoldurando o rosto, sentada no chão com dois cobertores sobre as pernas. Ela dá de ombros, joga os cobertores para o lado e se levanta. Está usando calça preta de malha e blusa branca de alça. Não consigo tirar os olhos de seus ombros desnudos. Desvio o olhar ao ser tomado pela suspeita absurda de que ela perceba que eu a estou encarando.

Pode ser — Seis fala, tirando o elástico do cabelo e refazendo o rabo de cavalo. — Sempre tive dificuldade para dormir. Especialmente no chão.

Pois é.

Mas será que não vamos acordar Sam?

Balanço a cabeça. Ela responde dando de ombros e levanta a mão. Eu a seguro imediatamente. Seis desaparece, mas minhas mãos ainda brilham, e posso ver as pegadas de Seis no tapete. Depois apago meu Lúmen e saímos do quarto, andando pelo corredor na ponta dos pés. Bernie Kosar nos segue e, quando chegamos à sala de estar, Sam levanta a cabeça do chão e olha diretamente em nossa direção. Seis e eu paramos, e eu prendo a respiração para ficar em silêncio. Penso na evidente atração de Sam por Seis e em como ele ficaria arrasado se nos visse de mãos dadas.

—            Ei, Bernie — ele diz, sonolento, e então abaixa a cabeça e vira de costas para nós.

Continuamos quietos por alguns segundos, e então Seis nos conduz pela sala escura até a cozinha, para sairmos pela porta dos fundos.

A noite está quente, preenchida pelo cricrilar dos grilos e pelo farfalhar das palmeiras. Respiro profundamente enquanto Seis e eu caminhamos de mãos dadas. Acho estranho que sua mão pareça tão pequena e delicada na minha, apesar da impressionante força física que ela tem. Adoro essa sensação. Bernie Kosar corre pelo mato alto que cerca a pista de cascalho que sai da casa enquanto Seis e eu andamos em silêncio pelo centro. A pista termina em uma estrada estreita, e nós viramos à esquerda.

—            Não consigo parar de pensar em tudo o que você enfrentou — digo finalmente, mas o que eu queria dizer mesmo é que não consigo parar de pensar nela. — Ser mantida prisioneira durante metade de um ano, ter que ver Katarina ser... Bem, você sabe a que me refiro.

Às vezes esqueço que isso aconteceu. E outras vezes passo dias pensando apenas nisso.

É — respondo, estendendo a palavra. — Não sei; acho que é óbvio que sinto muita falta de Henri, e que sofro muito por ele não estar mais aqui. Mas, depois de ouvir sua história, percebi que tive muita sorte. Quer dizer, pude me despedir dele. Além do mais, ele me ajudou quando desenvolvi meus primeiros Legados. Não consigo imaginar o que deve ter sido para você passar por tudo aquilo sozinha.

Foi muito, muito difícil, com certeza. Eu gostaria que ela tivesse estado comigo no dia em que meu Legado da invisibilidade se manifestou. E ainda mais quando eu estava crescendo... para conversarmos sobre assuntos de garotas. Na prática eles eram nossos pais na Terra, não é?

É. O que acho engraçado é que, agora que Henri se foi, as coisas de que mais me lembro dele são justamente aquelas que eu costumava detestar. Como às vezes em que precisávamos sair de algum lugar e passávamos horas e horas e horas na estrada a caminho de um local do qual eu nunca tinha ouvido falar, quando tudo o que eu queria era simplesmente sair do carro. Agora, as conversas que tínhamos naquelas viagens são as de que eu mais me lembro. Ou quando começamos a treinar em Ohio, e ele me fazia repetir a mesma coisa muitas e muitas vezes... Eu odiava tanto aquilo, sabe? Mas agora não consigo pensar nesses momentos sem sorrir.

Continuo:

—            Teve uma vez, depois que minha telecinesia finalmente chegou, que estávamos treinando na neve, e ele ficava jogando um monte de objetos para que eu aprendesse a bloqueá-los. Eu tinha de redirecioná-los ao ponto de origem, e ele arremessou um martelo de carne com muita força, e eu usei a própria velocidade para devolvê-lo; aí, no último segundo, Henri teve de se jogar de cabeça na neve, para não ser atingido. — Eu sorrio.— O monte de neve era na verdade uma roseira encoberta, cheia de espinhos. Você não imagina o barulho que ele fez. Nunca vou esquecer coisas assim.

Um carro vem pelo acostamento e nós nos abrigamos na vala à margem da estrada até ele se afastar. O automóvel para de repente na frente da garagem de uma casa próxima, e nós vemos um homem com uma jaqueta preta, de couro, sair. Ele esmurra a porta da casa, gritando para que a pessoa que está lá dentro venha abrir.

—            Jesus. Que horas são? — pergunto a Seis.

Seis começa a caminhar na direção do homem e da casa, ainda segurando minha mão.

—            Isso importa?

Quando chegamos a três metros de distância do homem, sinto cheiro de álcool. Ele para de esmurrar a porta e grita:

—            É melhor abrir essa maldita porta, Charlene, ou não vai querer saber o que vou fazer!

Seis e eu percebemos o revólver na cintura do homem ao mesmo tempo, e ela aperta minha mão.

—            Dane-se esse cara — ela cochicha.

Ele continua batendo até uma luz se acender na janela da frente. Depois, do outro lado da porta, uma mulher grita:

—            Saia daqui! Vá embora, Tim!

—            Abra a porta agora mesmo! — ele berra. — Ou vai se arrepender, Charlene. Vai se arrepender, está ouvindo?

Ele já está a nosso alcance. Vejo uma tatuagem desbotada abaixo de sua orelha esquerda, uma águia-de-cabeça-branca segurando uma serpente com as garras.

A mulher grita de novo, e sua voz soa mais insegura que antes.

— Deixe-me em paz, Tim! Por que está aqui? Por que não me deixa em paz?

Ele esmurra a porta e grita com mais força ainda. Estou prestes a prendê-lo numa gravata, apertar seu pescoço até fazer aquela águia voar com a cobra, quando vejo a arma subir lentamente em suas costas até se afastar dele, flutuando na mão invisível de Seis. Ela encosta o cano da arma na nuca do homem e o pressiona contra seus cabelos castanhos. E engatilha o revólver com um estalo alto.

O homem para de esmurrar a porta. E para de respirar também. Seis aperta a arma com mais força contra sua cabeça, depois a movimenta com firmeza para a direita, obrigando-o a se virar. A imagem da arma flutuando diante de seu rosto o faz empalidecer. Ele pisca e balança a cabeça com força, esperando acordar em sua cama, em um beco imundo atrás do bar de onde veio. Seis balança a arma de um lado para o outro, e eu aguardo até que ela diga alguma coisa, apavore o cara de verdade, mas em vez disso, ela aponta o revólver para seu carro. Seis atira, e um círculo de vidro estilhaçado aparece no pára-brisa. O homem dá um grito estridente e começa a chorar.

Seis volta a apontar a arma para o rosto do homem, que fica quieto, deixando escorrer um pouco de ranho até seu lábio superior.

—            Por favor, por favor, por favor — ele fala. — Perdoe-me, Deus. Eu, eu, eu vou embora agora mesmo. Juro. Estou indo embora. — Seis engatilha a arma outra vez. Vejo a cortina da janela se mover para a direita, expondo o rosto de uma mulher grande e loura. Aperto a mão de Seis, e ela retribui o gesto. — Estou indo embora agora mesmo. Estou indo, estou indo — o homem repete para a arma, apavorado.

Seis aponta para o carro de novo e atira, provocando um estrondo. A janela lateral atrás do banco do motorista explode em milhares de cacos.

—            Não! Tudo bem, tudo bem! — ele grita. De repente aparece uma mancha de umidade na parte interna das pernas de sua calça. Seis move a arma indicando a janela da casa, e ele olha para a mulher loura no interior. — E nunca mais vou voltar. Nunca, nunca mais vou voltar.

A arma balança para a esquerda duas vezes, informando que ele pode partir. O homem abre a porta do carro com força e pula para dentro. Os pneus levantam pedrinhas do chão quando ele sai da casa de ré e foge em disparada pela estrada. A mulher atrás da janela continua olhando a arma flutuante na frente da porta de sua casa, e então Seis a arremessa com tanta força por cima do telhado, que ela com certeza vai cair na cidade vizinha.

Corremos de volta para a estrada, e continuamos correndo até não haver nenhuma casa à vista. Queria poder ver o rosto de Seis.

—            Eu seria capaz de fazer esse tipo de coisa o dia inteiro — ela enfim comenta. — É como ser uma super-heroína.

Humanos adoram seus super-heróis. — Essa a única coisa que me vem à cabeça. E então continuo: — Acha que ela vai chamar a polícia?

Duvido. Ela provavelmente vai pensar que foi tudo um pesadelo.

Ou o melhor sonho que ela já teve — respondo.

Começamos a falar sobre todas as boas ações que poderíamos fazer pela Terra usando nossos Legados, se não estivéssemos tão ocupados por estarmos sendo caçados e odiados.

—            Como foi que você treinou a si mesma, aliás? — pergunto. — Duvido que eu tivesse aprendido as coisas que sei sem Henri me pressionando tanto.

—            Que escolha eu tinha? Ou nos adaptamos, ou morremos. Então eu me adaptei. Katarina e eu passamos anos treinando antes de sermos capturadas, mas, obviamente, isso foi antes de meus Legados se desenvolverem. Quando enfim saí daquela caverna, prometi a mim mesma que sua morte não seria em vão, e a única maneira de cumprir isso era buscar vingança. Então, retomei o caminho que vínhamos seguindo. No início foi difícil, principalmente porque eu estava sozinha, mas, aos poucos, aprendi a me fortalecer. Além do mais, tive mais tempo que você. Meus Legados chegaram mais cedo que os seus, e sou mais velha que você.

Sabe, meu aniversário de dezesseis anos, ou pelo menos o dia em que eu comemorava meu aniversário com Henri, foi anteontem.

John! Por que não nos contou? — Ela solta minha mão e, brincalhona, me empurra, tornando-me visível no mesmo instante. — Poderíamos ter comemorado.

Sorrio e tento encontrá-la tateando a escuridão às cegas. Ela pega minha mão e entrelaça os dedos nos meus, deixando meu polegar sobre o dela. Penso em Sarah, e percebo que na mesma hora afasto sua imagem.

—            E como ela era? — pergunto. — Katarina.

Faz-se um momento de silêncio.

—            Compassiva. Estava sempre ajudando os outros. E era engraçada. Costumávamos rir e contar muitas piadas, o que pode ser difícil de acreditar, levando em conta minha seriedade habitual.

Eu rio.

—            É você quem está dizendo, não eu.

Mas, ei, não mude de assunto. Por que você não falou nada sobre seu aniversário?

Não sei. Na verdade eu esqueci, até ontem, e então achei que não fazia sentido, com tudo o que está acontecendo.

É seu aniversário, John... é claro que faz sentido. Todo aniversário que qualquer um de nós tem a sorte de fazer é digno de comemoração, levando em conta o fato de estarem nos caçando. Além do mais, se eu soubesse, talvez tivesse pegado mais leve em seu treinamento.

—            É, você deve se sentir muito mal por espancar um cara no dia do aniversário dele — eu brinco, e a cutuco.

Ela me cutuca de volta. Bernie Kosar pula do meio dos arbustos e caminha a nosso lado. Há vários carrapichos grudados como velcro em seu pelo, e eu solto a mão de Seis para removê-los.

Chegamos ao fim da estrada. À nossa frente, vemos a relva alta e um rio sinuoso. Viramo-nos e caminhamos de volta para a casa,

—            Você se incomoda por não ter recuperado sua arca? — pergunto depois de alguns minutos de silêncio.

De certa forma, acho que isso me incentivou ainda mais. Ela desapareceu... eu não podia fazer nada a esse respeito. Então, fiz o que achava ser mais inteligente e decidi me concentrar em procurar vocês. Eu só queria ter encontrado Três antes deles.

Bem, você me encontrou. Não acho que eu teria sobrevivido tanto tempo se você não tivesse aparecido. Nem Bernie Kosar, a propósito. Nem mesmo Sarah.

Assim que pronuncio o nome de Sarah, a mão de Seis se afrouxa um pouco na minha. A culpa se acumula em meu peito enquanto voltamos para a casa. Eu amo Sarah, mas é difícil imaginar uma vida com ela quando estou tão longe, fugindo, sem ideia de aonde o futuro vai me levar. A única vida que consigo imaginar no momento é esta que estou vivendo. Com Seis.

Chegamos à casa e me dou conta de que não queria que a caminhada tivesse terminado. Tento enrolar, andando mais devagar, parando na pista de acesso da garagem.

Sabe, só conheço você como Seis — digo. — Você já teve um nome em algum momento?

É claro que sim, mas não o usei muito. Não fui à escola, como você.

Então, como era seu nome?

Maren Elizabeth.

Nossa, sério?

Por que essa surpresa toda?

—            Não sei... Maren Elizabeth parece um pouco elegante e feminino. Acho que esperava que você tivesse um nome mais forte e mítico, tipo Atena, ou talvez Xena, sabe, a princesa guerreira? Ou até mesmo Tempestade. Tempestade teria sido perfeito para você.

Seis ri, e o som me faz sentir vontade de puxá-la para mim. É claro que não faço nada, mas eu quero, e talvez isso seja o mais inquietante.

Pois saiba que já fui uma garotinha que usava fitinhas no cabelo.

Sei, de que cor?

Rosa.

Acho que eu pagaria para ter visto isso.

Esqueça, você não tem dinheiro suficiente.

Pois saiba você — respondo, imitando o tom de voz debochado que ela acabara de usar — que tenho uma arca cheia de pedras raras à minha disposição. Só preciso que você me indique uma casa de penhor.

Ela ri, e depois diz:

—            Eu aviso se encontrar alguma.

Continuamos parados no acesso da garagem da casa, e eu olho para as estrelas e a lua, que está quase cheia. Ouço o vento à nossa volta e os pés de Seis no cascalho quando ela alterna o peso do corpo de uma perna para a outra. Respiro fundo.

Fico muito feliz que tenhamos feito esse passeio — digo.

Eu também.

Olho para o lugar onde ela está, desejando que ela estivesse visível para que eu pudesse interpretar sua expressão.

—            Já imaginou se todas as noites fossem como esta, uma vida sem se preocupar com o que ou com quem pode estar à espreita, sem estar sempre espiando por cima de um ombro, para ter certeza de que ninguém está seguindo? Não seria incrível poder esquecer, mesmo que só por alguns instantes, o que o horizonte esconde?

É claro que seria legal — ela concorda. — E será legal quando finalmente tivermos esse luxo.

Odeio o que temos de fazer. Odeio a situação em que nos encontramos. Queria que fosse diferente.

Procuro Lorien no céu e solto a mão dela. Seis se torna visível, e eu a seguro pelos ombros e a viro de frente para mim.

Ela inspira profundamente.

Assim que começo a aproximar meu rosto do dela, uma explosão sacode a parte de trás da casa. Seis e eu gritamos e caímos no chão. Uma coluna de fogo se eleva sobre o teto, e as chamas se espalham na mesma hora pelo interior.

—            Sam! — eu grito.

A quinze metros de distância, arranco as janelas da frente. Elas se estilhaçam no caminho de concreto do lado de fora. Nuvens de fumaça começam a sair.

Antes de pensar, já estou correndo loucamente. Respiro fundo e salto na direção da casa, destruindo a porta nas dobradiças.

 

ULTIMAMENTE, PASSO HORAS ACORDADA TODAS AS NOITES, de olhos abertos e ouvindo os sons do silêncio que me cerca. De vez em quando ergo a cabeça ao escutar um ruído distante — uma gota de água que chega ao chão, alguém que se mexe na cama —, e às vezes me levanto silenciosamente e vou até a janela, para me certificar de que não há nada lá fora, uma tentativa óbvia de sentir alguma espécie de segurança, mesmo que tênue.

A cada noite durmo menos que na noite anterior. Fiquei fraca, exausta, a ponto de delirar. Tenho dificuldade para comer. Sei que a preocupação não está ajudando em nada, mas nenhum esforço consciente para descansar e me alimentar muda o que sinto. E quando finalmente consigo dormir, nada impede os sonhos terríveis que me acordam de novo.

Não houve mais sinal do homem de bigode desde que o vi no café da cidade há uma semana, mas não consigo parar de pensar que o fato de não vê-lo não significa que ele não esteja lá fora. Continuo a analisar as mesmas questões: quem esteve em minha caverna; quem ou o que era o homem de bigode no café; por que ele lia um livro com o nome Pítaco na capa, e, acima de tudo, por que ele me deixou ir embora se era um mogadoriano? Nada disso faz sentido, nem mesmo o título de seu livro. Só encontrei um breve resumo na Internet: um general grego afeito a declarações curtas e inflamadas derrota um exército ateniense que estava prestes a atacar a cidade de Mitilene. O que isso tem a ver com a história?

Tirando as dúvidas sobre a caverna e o livro, cheguei a duas conclusões. A primeira é que nada foi feito contra mim por conta de meu número. Por enquanto, ele tem me mantido segura, mas até quando? A segunda é que a clientela no café evitou qualquer ação do mogadoriano. Mas, ao que sei sobre eles, um mogadoriano não se deixaria deter por um punhado de testemunhas. Parei de me antecipar na ida e na volta da escola, passando a andar sempre com um grupo maior de meninas. Para garantir a segurança de Ella, parei de andar com ela em público. Sei que isso a magoa, mas é para seu bem. Ela não merece ser envolvida em meus problemas.

Mas houve algo que me deu uma fagulha de esperança em toda essa situação: Adelina mudou visivelmente. Sua testa está marcada com uma ruga de preocupação. Seus olhos tremem com um tique nervoso quando ela pensa que ninguém está vendo, e ela observa atentamente todos os cantos de cada cômodo, como se fosse um animal amedrontado e ameaçado, da mesma forma como fazia anos atrás, quando ainda acreditava. E, apesar de não termos conversado desde que me atirei em seus braços depois de fugir do café, essas mudanças todas me fazem pensar que talvez eu tenha recuperado minha Cêpan.

Escuridão. Silêncio. Quinze corpos adormecidos. Levanto a cabeça e olho pelo dormitório. Em vez de um pequeno montinho na cama de Ella, vejo os cobertores afastados e a cama vazia. É a terceira noite seguida que percebo sua ausência, mas nunca escuto quando ela sai. Porém, tenho preocupações maiores que descobrir aonde ela vai.

Apoio a cabeça no travesseiro e olho pela janela. Uma lua cheia, brilhante e amarela, ocupa o céu. Eu a encaro por um bom tempo, hipnotizada pela maneira como ela flutua. Respiro fundo e fecho os olhos.

Quando volto a abri-los, a lua passou do amarelo ao vermelho-sangue e parece tremular, mas então compreendo que não é para a lua que estou olhando, e sim para seu reflexo, brilhando na superfície escura de um grande lago. Vapor se desprende da água, e o ar tem um cheiro forte de ferro. Levanto a cabeça de novo, e só então vejo que estou no meio de um campo de batalha devastado e coberto de sangue.

Há corpos espalhados por todos os lados, mortos e moribundos, o epílogo de uma guerra sem sobreviventes. Toco meu corpo numa reação instintiva, à procura de ferimentos, mas estou ilesa. E nesse momento que eu a vejo, a menina de olhos cinzentos com a qual sonhei, aquela que pintei na parede da caverna ao lado de John Smith. Ela está caída na beira da água, imóvel. Corro em sua direção. Sangue flui do lado de seu corpo, encharcando a areia e sendo levado para o mar. Seus cabelos negros estão colados ao rosto pálido. Ela não respira, e sou tomada por uma angústia intensa, ciente de que não há nada que eu possa fazer. Então, atrás de mim soa uma gargalhada grave e debochada. Fecho os olhos por um instante antes de me virar lentamente para encarar o inimigo.

Abro os olhos, e o campo de batalha desaparece. Minha cama no dormitório escuro está de volta. A lua continua brilhando, amarela. Levanto-me e caminho até a janela. Observo o terreno sombrio, silencioso e imóvel. Nenhum sinal do homem de bigode, nem de mais nada. A neve se derreteu por completo, e o reflexo do luar é visível nas pedras molhadas do calçamento. Ele está me observando?

Volto para a cama. Fico deitada de costas, respirando profundamente, tratando de me acalmar. Meu corpo todo está tenso e rígido. Penso na caverna e em como não voltei lá desde que vi as pegadas. Viro de lado, de costas para a janela. Não quero ver o que está lá fora. Ella ainda não está em sua cama. Tento esperá-la acordada, mas adormeço. E não tenho mais sonhos.

Quando soa o sino matinal, levanto a cabeça do travesseiro e sinto o corpo todo dolorido e duro. Uma chuva fria fustiga a janela. Olho para o outro lado do dormitório e vejo Ella sentando-se na cama, levantando os braços e soltando um grande bocejo.

Saímos do quarto juntas sem falar nada. Cumprimos nossa rotina dominical e na missa ficamos sentadas lado a lado, de cabeça baixa. Em um momento cutuco Ella, para acordá-la; vinte minutos depois ela retribui o favor. Sobrevivo à fila do El Festín, servindo a comida nos pratos enquanto procuro alguém que pareça suspeito. Ao perceber que tudo parece normal, não sei se me sinto aliviada ou desapontada. O que mais me entristece é que não vejo Héctor.

Perto do final do trabalho de limpeza, La Gorda e Gabby começam a fazer bagunça, jogando água uma na outra com a mangueira da pia da cozinha, enquanto estou lavando e enxugando a louça. Eu as ignoro, mesmo quando um jato de água me atinge no rosto. Vinte minutos mais tarde, quando acabo de enxugar o último prato, colocando-o com cuidado sobre a pilha alta, uma menina chamada Delfina escorrega no chão molhado e esbarra em mim, fazendo-me cair em cima da pilha e jogar todos os trinta pratos de volta na água suja, onde alguns se quebram.

—            Por que você não presta atenção ao que está fazendo? — reclamo, e a empurro com um braço.

Delfina se vira e me empurra de volta.

Ei! — irmã Dora grita do outro lado da cozinha. — Vocês duas, parem com isso! Agora!

Você vai me pagar! — Delfina diz.

Mal posso esperar para me livrar oficialmente do orfanato.

—            Que se dane — respondo, encarando-a.

Ela assente, com uma expressão maldosa no rosto.

Tome cuidado.

Se eu tiver que ir aí, por Deus, vocês vão se arrepender — avisa irmã Dora.

Em vez de usar a telecinesia para fazer Delfina atravessar o telhado — ou irmã Dora, ou Gabby, ou La Gorda —, eu me volto para a louça.

Quando enfim me vejo livre, saio do convento. Ainda está chovendo, e fico embaixo do telhado, olhando na direção da caverna. Deve haver muito barro na montanha, o que significa que eu ficaria imunda. Uso isso como desculpa para não ir até lá, mas sei que não teria coragem mesmo se não estivesse chovendo, apesar da curiosidade de saber se a lama tem novas pegadas.

Volto para dentro. A obrigação dominical de Ella é limpar a igreja depois que todos vão embora, passando um pano nos bancos. Mas, quando entro lá, tudo já está limpo.

—            Viu Ella? — pergunto a uma menina de dez anos chamada Valentina, que me responde balançando a cabeça.

Volto a nosso dormitório, mas lá também não há sinal de Ella. Sento-me em sua cama. O movimento do colchão faz um objeto prateado aparecer embaixo do travesseiro. É uma lanterna pequena. Eu a acendo. A luz é brilhante. Apago a lanterna e a ponho de volta onde a encontrei para que as irmãs não a vejam.

Ando pelos corredores e vou espiando os quartos e as salas. Por causa da chuva, a maioria das meninas não saiu e passa o tempo em pequenos grupos, conversando, rindo, brincando.

No segundo andar, onde o corredor se bifurca e leva duas alas diferentes da igreja, sigo para a esquerda, por um trecho escuro e empoeirado. Salas vazias e estátuas antigas acompanham a parede de pedra e o teto em arco, e vou espiando pelas portas em busca de Ella. Nenhum sinal. O corredor se estreita e o cheiro de poeira dá lugar a um de umidade e terra. No final do corredor há uma pesada porta de carvalho fechada com um cadeado que forcei há uma semana e meia, quando procurava pela arca. Do outro lado da porta há uma escada de pedra que sobe em caracol pela torre estreita do campanário norte, onde fica um dos dois sinos do convento. A arca também não está lá.

 

Navego na Internet por um tempo, mas não encontro nenhuma novidade sobre John Smith, Depois volto para o dormitório, deito-me na cama e finjo dormir, La Gorda, Gabby e Delfina felizmente não vêm para cá, e eu também não vejo Ella. Levanto-me da cama e volto ao corredor.

Entro na igreja e encontro Ella no último banco. Sento-me a seu lado. Ela sorri para mim, aparentando cansaço. De manhã eu prendi seu cabelo em um rabo de cavalo, mas agora ele está frouxo. Removo o elástico, e ela vira a cabeça, para que eu possa rearrumar.

Onde você esteve o dia todo? — pergunto. — Procurei por você.

Estava explorando — ela responde, orgulhosa.

Na mesma hora sinto-me muito mal de novo por ignorá-la em nossas caminhadas até a escola.

Saímos da igreja e vamos para nosso dormitório, e nos cumprimentamos com um boa-noite. Enquanto me enfio embaixo das cobertas e espero que as luzes sejam apagadas, sinto-me impotente e triste, com vontade apenas de me encolher e chorar. E é isso o que faço.

Acordo no meio da noite e não sei dizer que horas são, embora presuma ter dormido pelo menos algumas horas. Eu me viro para o outro lado e fecho os olhos de novo, mas há algo estranho. O dormitório parece diferente de uma forma que não consigo explicar, e isso aumenta a ansiedade que tem me atormentado durante a semana.

Volto a abrir os olhos e, no segundo em que eles se adaptam à escuridão, vejo que um rosto me encara. Arquejo e me afasto rapidamente, batendo as costas na parede atrás de mim. Estou encurralada, penso, encurralada no canto mais afastado da porta. Que estupidez a minha querer esta cama! Cerro os punhos e, quando estou prestes a gritar e a chutar o rosto, reconheço os olhos castanhos.

Ella.

Relaxo imediatamente. Há quanto tempo ela está ali parada?

Muito devagar, ela leva o pequeno dedo indicador aos lábios. Depois, abre bem os olhos, sorri e se inclina para a frente. Coloca a mão em torno de minha orelha.

—            Encontrei a arca — sussurra.

Eu me afasto e olho séria para o rosto radiante e feliz, e sei que ela está dizendo a verdade. É minha vez de arregalar os olhos. Não consigo conter meu entusiasmo. Puxo Ella para perto de mim e a abraço com toda a força que seu corpo miúdo pode suportar.

—            Ah, Ella, você não tem ideia de quanto estou orgulhosa!

—            Eu disse que iria encontrar. Eu prometi, porque somos uma equipe e ajudamos uma à outra.

—            Isso mesmo — cochicho.

Solto-a. Seu rosto está cheio de orgulho.

—            Venha, vou mostrar onde ela está.

Ela segura minha mão, e eu saio da cama caminhando na ponta dos pés, sem fazer barulho.

A arca — um raio brilhante de esperança quando eu menos esperava e quando eu mais precisava.

 

ESCAPAMOS DO DORMITÓRIO E SINTO VONTADE DE CORRER para onde Ella está me levando. A menina caminha rapidamente pelo chão frio sem fazer nenhum ruído. O corredor está escuro; enquanto eu vejo tudo com clareza. Ella de vez em quando acende a lanterna para se orientar e logo depois a desliga.

Quando chegamos à igreja, imagino que devemos tomar a direção da torre norte, mas, em vez disso, ela me guia pela nave. Passamos rapidamente por entre as fileiras de bancos. Na frente da igreja, vitrais com imagens de santos revestem a parede curva, e o luar que os atravessa produz uma luminosidade celestial que dá a cada imagem a aparência mais bíblica que jamais tiveram. Ouço água que pinga num ritmo constante em algum lugar.

Ella vira à direita diante do primeiro banco e caminha para um dos muitos recuos abertos ao longo das paredes. Vou atrás dela. O ar aqui é mais frio que na nave, e uma estátua alta da Virgem Maria se ergue acima de nós, com os braços abertos a seu lado. Ella contorna a estátua e, quando chega ao canto esquerdo no fundo do recuo, olha para mim.

— Vou ter de descê-la para você — ela diz, colocando a lanterna na boca. Então põe a mão na coluna de pedra e a escala como um esquilo subindo numa árvore.

Eu a observo perplexa, muito impressionada com sua agilidade.

Quando ela está quase chegando ao teto, para e contorna a coluna, desaparecendo em um recesso tão apertado que é quase invisível de onde estou.

Nunca notei aquele recesso antes. Deus sabe como Ella o encontrou. Inclino a cabeça para ouvir o ruído de seus sapatos em contato com a pedra, o que significa que o espaço é suficiente apenas para a menina rastejar. Uma espécie de túnel. Não consigo conter um sorriso. Eu sabia que a arca estava em algum lugar por aqui, mas jamais a teria encontrado sem a ajuda de Ella. Dou uma risada quando penso em Adelina escalando a mesma coluna com a arca tantos anos atrás. Ella parou; não estou ouvindo mais nada. Passam-se vinte segundos.

—            Ella — sussurro. Ela põe a cabeça para fora e olha para baixo. — Quer que eu suba?

A menina balança a cabeça.

—            Está presa, mas falta pouco. Desço com ela já, já — cochicha, antes de desaparecer novamente.

Não suporto o suspense de não saber o que está acontecendo lá em cima. Olho para a base da coluna e ponho minha mão ali, mas, quando estou prestes a tentar subir, ouço um barulho atrás de mim, como se alguém tivesse chutado um banco. Dou meia-volta. A Virgem Maria bloqueia minha visão. Contorno a estátua e olho para a igreja, mas não vejo nada.

—            Consegui! — Ella exclama.

Volto correndo para trás da estátua e olho para cima, esperando que ela apareça. Escuto seus gemidos, em um esforço para arrastar a arca pela abertura, e não sei se é porque a arca é pesada ou o túnel é apertado. Pouco a pouco, o ruído continua. Sinto uma enorme euforia diante da ideia de ter, finalmente, a arca em meu poder, e nem penso no problema de abri-la. Vou me preocupar com isso quando chegar a hora. Quando Ella está quase na abertura do túnel, ouço mais algum barulho atrás de mim.

—            O que você está fazendo acordada?

Eu me viro rapidamente. Posicionadas sob a Virgem Maria estão Gabby e Delfina no braço esquerdo e La Gorda e Bonita, a campeã do jogo do píer, que quase me matou lá no lago, no direito.

De relance por cima do ombro vejo um par de olhos pequenos nos espiando da abertura do recesso.

—            O que vocês querem? — pergunto.

—            Eu queria saber o que a fofoqueira estava aprontando, só isso. Sabe, é engraçado, porque vi você saindo do dormitório e pensei em me levantar e enfim descobrir o que tanto você procura no computador, mas você não estava lá. — A expressão de Gabby é confusa e sarcástica. — Você estava aqui, o que é muito estranho.

—            Muito estranho. É muito estranho — repete La Gorda.

Felizmente, não escuto mais o barulho de Ella arrastando a arca.

Por que você se importa tanto comigo? — pergunto. — Sério. Tudo o que faço é ficar quieta, na minha.

Mas eu me importo muito com você, Marina — Gabby responde, dando um passo à frente. Ela joga para trás os cabelos compridos e escuros. — Na verdade, eu me importo tanto que fico preocupada com o fato de você passar muito tempo com aquele bêbado fracassado do Héctor. Você se embebeda com ele? — Ela faz uma pausa. — Você bebe da garrafa dele?

Não sei se foi porque ela chamou Héctor de fracassado, se foi por ter insinuado que tínhamos algo mais que amizade, ou se foi por ela estar bisbilhotando o que eu fazia no computador, mas simplesmente acontece. Fecho os olhos e projeto minha mente, agarrando as quatro ao mesmo tempo. La Gorda grita, enquanto as outras três choramingam apavoradas. Eu as levanto do chão — seus pés descalços chutam o ar, seus ombros se chocam — e as arremesso sobre o chão liso, até que as quatro quicam nos degraus que levam à plataforma no fundo da igreja.

La Gorda bate as mãos abertas no chão e se levanta como um touro furioso pronto para atacar o toureiro. Mas eu me antecipo e caminho até ela, percorrendo a distância em segundos. La Gorda desfere um soco e eu me abaixo, levantando-me em seguida e acertando meu punho direito em seu queixo. Ela cai para trás com um gemido e bate a cabeça no chão, ficando inconsciente.

Bonita pula sobre minhas costas e me agarra pelo cabelo. Alguém me dá um soco no lado esquerdo do rosto, e outra chuta minha canela. Bonita escorrega de minhas costas e prende meus braços, imobilizando-me. Delfina ataca, mas eu desvio. O soco acerta a boca de Bonita, e ela afrouxa o aperto em meus braços o bastante para que eu consiga me desvencilhar. Seguro o braço direito de Bonita e a jogo contra Gabby.

—            Você está morta, Marina! Vou matar você! — grita Bonita, e eu a puxo para o lado e dou uma joelhada em sua barriga, deixando-a sem ar. Em seguida a derrubo no chão, ao lado de La Gorda.

Delfina perde a confiança. Ela procura a porta.

Vai me deixar em paz? — pergunto.

Não tem problema. Eu pego você amanhã — responde. — Na hora que você estiver distraída.

Vai se arrepender de ter falado isso.

Finjo que vou para a direita e avanço pela esquerda, agarrando-a pela cintura. Gabby tenta segurar meu cabelo, mas eu giro Delfina para usá-la como escudo. Depois giro sobre os calcanhares e lanço Delfina pela nave da igreja. Ela cai com as costas no primeiro degrau do altar, e seu gemido ecoa no teto abobadado.

Gabby passa à minha volta.

—            Vou contar à irmã Dora. Você está muito ferrada.

Eu me viro para manter os olhos fixos nela. Ela para bem ao lado da coluna. Percebo que está prestes a atacar, e eu estou pronta.

De repente vejo um lampejo branco sobre a cabeça de Gabby. Levo um segundo para reconhecer Ella, que pulou do recesso para os ombros da menina. Gabby agita os braços até conseguir agarrar Ella e, quando consegue, joga-a no chão fazendo o pior estalo que já ouvi.

—            Não! — grito, e acerto o esterno de Gabby com o soco mais forte de que sou capaz.

Os pés da garota saem do chão e ela se choca contra a parede, soltando poeira da argamassa da pedra.

Ella está de costas, chorando, contorcendo-se de dor, e eu percebo que mantém a perna direita completamente imóvel. Agacho-me a seu lado e levanto a bainha de sua camisola para ver um osso branco afiado saindo pela pele logo abaixo do joelho. Não sei o que fazer. Seguro seu ombro, tentando consolá-la, mas ela sente tanta dor que nem percebe.

—            Estou bem aqui, Ella — digo. — Estou bem aqui a seu lado, e tudo vai ficar bem.

Ela abre os olhos e me encara com ar de súplica. Só então percebo o ferimento em sua mão direita. Seu pequeno pulso está desfigurado, torto. Sangue escorre por entre o dedo médio e o indicador. O talento de Ella.

—            Ah, meu Deus, Ella, eu sinto muito! — grito. — Sinto muito!

Ela apenas chora. Sinto que começo a suar. Nunca em minha vida me senti tão inútil.

—            Tente não se mexer — digo, sabendo que meu pedido é inútil. O hospital mais próximo fica a meia hora de carro. Até lá, ela já terá desmaiado de dor.

Ella começa a balançar de um lado para o outro num ritmo cadenciado. Aproximo minha mão trêmula do osso quebrado em sua perna, sem saber se devo apertar ou tentar empurrá-lo de volta para debaixo da pele. Decido apertar, e no instante em que meus dedos tocam sua pele Ella treme e ofega. Um calafrio percorre minha coluna, uma sensação muito parecida com a que tive nas vezes em que devolvi a vida à flor no vaso na sala dos computadores, e a sensação se espalha por todo o meu corpo. Será que minha habilidade de curar plantas também se aplica a pessoas? Ella para de chorar e começa a ofegar, seu peito sobe e desce, sobe e desce. Sinto o frio se concentrar na palma de minhas mãos e se irradiar para a ponta dos dedos.

— Eu acho, eu acho que posso salvar você.

Ela continua ofegando num ritmo anormal, mas seu rosto agora tem uma expressão serena de distanciamento. Tenho medo, mas coloco as mãos sobre o pedaço de osso que está exposto em sua perna. Sinto a extremidade quebrada áspera, e ela logo começa a voltar para debaixo da pele. O corte passa do vermelho e branco à tonalidade natural da pele, e eu vejo os contornos irregulares do osso se mexerem dentro da perna, ajeitando-se no lugar correto. Estou fascinada com o que acabei de fazer. Esse pode ser meu Legado mais importante até agora.

—            Não se mexa — digo. — Ainda falta uma coisa.

Fecho os olhos e seguro seu pulso direito. O frio flui mais uma vez da ponta de meus dedos. Abro os olhos e vejo a palma da mão de Ella se erguer e os dedos se afastarem uns dos outros. O corte entre o dedo indicador e o médio se fecha e duas articulações quebradas se ajeitam e se regeneram. Ella fecha a mão e a relaxa.

Fiz o que Lorien queria que eu fizesse: desfazer o dano causado àqueles que não o merecem.

Ella vira a cabeça para a direita e vê minha mão, que segura seu pulso.

—            Você está bem — digo. — Está ótima.

Ela levanta a cabeça do chão e se apóia sobre os cotovelos. Eu a abraço.

—            Somos uma equipe — sussurro em seu ouvido. — Cuidamos uma da outra. Obrigada por tentar me ajudar.

Ela assente com a cabeça. Eu aperto seu corpo e a solto. Olho em volta, para as garotas, todas inconscientes, mas respirando. E pela abertura do recesso vejo parte da arca.

Estou muito orgulhosa por você ter encontrado a arca. Não tem ideia de quanto — digo. — Amanhã cedo voltaremos para pegá-la, depois de descansarmos um pouco.

Tem certeza? — Ella pergunta. — Posso subir e pegá-la agora.

Não, não. Vá se lavar no banheiro, e eu vou logo, logo.

Quando ela finalmente some, olho para a arca acima de mim. Concentrada, trago-a flutuando suavemente até meus pés. Agora só preciso convencer Adelina a abri-la comigo.

 

ENQUANTO ATRAVESSO A PORTA FLAMEJANTE E CAIO no carpete marrom derretido da sala de estar, várias coisas passam por minha cabeça. Sam. A carta de Henri. A arca. As cinzas de Henri. Eu me atiro nas chamas de propósito para me mover mais facilmente de um cômodo a outro.

—            Sam? — grito. — Sam, onde você está?

Para além da sala de estar, vejo que toda a parede do fundo da casa está pegando fogo. A casa pode desmoronar a qualquer momento. Corro para os quartos chamando por Sam. A porta do banheiro explode com meu chute. Verifico a cozinha, a sala de jantar, e quando estou prestes a procurar na sala de estar de novo, olho pela janela e vejo a arca e um amontoado com nossos pertences, incluindo o laptop, a lata de café com as cinzas de Henri e a carta fechada, na beirada da piscina. Alguma coisa pequena se move no meio da água: é a cabeça de Sam. Ele me vê e balança os braços.

Atiro-me pela janela e derrubo a grelha. Mergulho na piscina, e as chamas que me envolvem se apagam com um chiado alto, produzindo uma fumaça cinza-chumbo.

Você está bem?

Acho, acho que sim — ele diz.

Saímos da água e paramos ao lado de tudo que Sam conseguiu salvar.

—            O que aconteceu?

—            Cara, eles estão aqui. Estão aqui com certeza. Os mogadorianos. — No momento em que ele diz essas palavras, sinto meu estômago embrulhar. Meu maxilar treme. Sam continua: — Eu os vi pela janela da frente, e então, bum, a casa explodiu em chamas. Peguei tudo o que pude...

Percebo um movimento no telhado. Por entre as labaredas, vejo um mensageiro mogadoriano enorme. Ele usa sobretudo preto, chapéu e óculos escuros e, ao descer de cima da casa, a cada passo seus pés afundam nas telhas frágeis. Em sua mão há uma espada longa e brilhante.

Ajoelho-me e seguro a fechadura da arca, que cede sob meus dedos iluminados. Afastando os cristais no fundo, pego a adaga de lâmina de diamante. As chamas que dançam na casa refletem no fio. Para minha surpresa, o cabo se estende e se enrola em minha mão direita.

—            Para trás — digo a Sam.

O mensageiro chega à calha de metal do telhado em ruínas e, ao pular para o chão, o impacto de seus pés quebra o concreto. Ele move a espada no ar diante de si, traçando um rastro cintilante. Controlo minha respiração e penso em nossa semana de treinamento.

No momento em que meus pés me impulsionam para a frente, o mogadoriano grita e corre em minha direção com seu sobretudo tremulando ao vento. Vejo-me nas lentes de seus óculos escuros um segundo antes de sua espada tentar acertar meu corpo. Inclino-me para trás o suficiente para me esquivar, mas, quando me endireito, atravesso o rastro brilhante deixado pela espada. A dor fustiga meu pescoço e desce até a cintura. Sou arremessado para trás e caio na piscina.

Quando minha cabeça volta à tona, vejo Sam enfrentando o mensageiro. Suas mãos vazias estão erguidas em posição de defesa; seus ombros balançam de um lado para o outro. O mogadoriano ri e larga a espada no chão de concreto, e depois imita a postura de lutador de Sam. Antes que eu consiga sair da piscina para ajudar, Sam apóia o peso do corpo na perna esquerda e gira a direita atrás de si. Seu sapato encharcado dá uma volta completa e encontra o rosto do mensageiro com força suficiente para fazê-lo cambalear alguns passos para trás.

O mogadoriano, atordoado, pega a espada brilhante no chão. Saio da piscina antes que ele consiga chegar perto de Sam e levanto minha adaga para bloquear o movimento da espada. As lâminas se encontram, e surge uma bola de luz tão intensa que me ofusca por um instante. Quando a luz apaga, a espada do mensageiro se quebra exatamente no ponto em que colidiu com minha adaga. Aproveitando o momento de surpresa, atravesso o peito do mogadoriano com a lâmina e o rasgo para cima. Ele se transforma em cinzas, que cobrem meus pés.

A casa enfim desmorona — vigas de madeira se partem em vários pontos, janelas racham e explodem nas paredes —, e o teto vem abaixo como um livro com a lombada quebrada. Uma nuvem de tempestade surge no céu e um raio corta a noite, atingindo o chão do outro lado da casa.

—            Temos de ir até Seis! — grita Sam.

Ele tem razão. A proximidade do relâmpago só pode significar que ela está em meio a uma batalha. Ou terminando-a. Com minha mão livre, pego a arca e a arremesso por cima do muro de tijolos do quintal depois de me certificar de que a área está limpa. Sam joga o restante das coisas para mim, e eu o puxo para cima do muro. Pulamos para o outro lado e rolamos pela grama úmida. Depois de escondermos tudo atrás de um arbusto espesso, corremos para a frente da casa.

No meio da pista de acesso da garagem, a poucos passos de nosso carro, Seis prende um mensageiro numa gravata, e os músculos de seus braços pulsam, fazendo pressão. Mais dois mensageiros se aproximam. O da esquerda aponta um grande tubo cilíndrico para mim e uma luz verde me joga para trás. Não consigo respirar. Não consigo enxergar. Rolo para o meio do mato e sinto o calor que vem da casa.

Quando sou capaz de abrir os olhos, vejo o mogadoriano armado em cima de mim. Aos poucos recupero a sensibilidade nos braços e nas pernas; minha respiração volta ao normal. O cabo da adaga ainda envolve minha mão direita. O mensageiro mexe em um botão no tubo, talvez para mudar o ajuste de atordoar para matar, e então pisa em meu pulso direito. Tento mover as pernas para cima, mas elas não reagem como eu quero, ainda abaladas depois do tiro paralisante que acabei de levar. O cano do tubo mira entre meus olhos e penso na arma que Seis apontou para o homem bêbado há apenas uma hora. É agora, penso. A missão dos mogadorianos é um sucesso. Número Quatro, eliminado. Agora o Número Cinco.

Vejo centenas de luzes se acenderem no tubo, girando até se fundirem em uma só; e bem quando ele põe o dedo no gatilho, Bernie Kosar morde sua coxa. O mensageiro balança em cima de mim por um segundo antes de sua cabeça ser arrancada do corpo por um raio. Ela rola na grama ao lado da minha; nossos narizes se tocam antes de a cabeça se desmanchar num monte de cinzas, e eu faço o possível para não aspirá-las. O corpo em cima de mim cai e cobre minha calça jeans de cinzas.

—            Levante-se logo — grita Seis, aparecendo de repente no lugar exato onde o mogadoriano estava.

Sam também aparece junto a mim, com o rosto sujo e sério.

—            Temos de sair daqui agora, John.

Sirenes soam no ar noturno. A dois quilômetros de distância, talvez menos. Bernie Kosar lambe o lado esquerdo de minha cabeça e gane.

—            E o terceiro? — murmuro.

Seis olha para Sam e assente.

—            Consegui pegar sua espada e a usei contra ele. O melhor momento da minha vida — ele conta.

Seis me segura sobre os ombros e me solta no banco do SUV. Bernie Kosar se acomoda sobre minhas canelas e lambe minha mão esquerda inerte. Sam pega as chaves e se senta ao volante enquanto Seis vai buscar nossos pertences. Assim que chegamos à estrada e não ouço mais as sirenes, consigo relaxar e me concentrar em minha mão direita. O cabo da adaga se transforma e retrai, liberando meu pulso e os dedos. Deixo-a cair no chão do carro.

Quinze minutos depois, Seis diz a Sam para estacionar, e entramos no estacionamento iluminado de um restaurante fechado. Ela salta antes de o carro parar completamente, deixando a porta aberta.

—            Ajude-me — Seis ordena.

—            Seis, não quero parecer um babaca, mas não consigo mexer braços e pernas.

—            Tente, cara! Temos de despistá-los — ela insiste. — Se não conseguirmos, você morre. Pense nisso.

Sento-me com esforço e sinto o sangue circulando por minhas pernas. Desço do carro e fico de pé, cambaleante em minhas roupas queimadas, sem ideia de que tipo de ajuda ela precisa.

Encontre o rastreador — Seis diz. — Sam, mantenha o carro ligado.

Entendido — ele diz.

Encontre o quê? — pergunto.

Eles usam rastreadores nos veículos. Confie em mim. Fizeram isso comigo e Katarina.

E como ele é?

Nem imagino. Mas não temos muito tempo, então procure depressa.

Eu quase sinto vontade de rir. Não há absolutamente nada no mundo que eu ache que conseguiria fazer depressa agora. Mesmo assim, Seis corre em torno do carro enquanto eu me ajoelho devagar e consigo rastejar para debaixo dele, iluminando o chassi com as mãos. Bernie Kosar se põe a farejar, começando pelo para-choque traseiro e seguindo para a frente. Encontro o rastreador quase imediatamente, um pequeno objeto circular do tamanho de uma moeda de vinte e cinco centavos preso ao plástico do tanque de gasolina.

—            Achei — grito, arrancando-o.

Arrasto-me para fora e entrego o dispositivo a Seis, ainda deitado. Ela o estuda rapidamente e depois o guarda no bolso.

Não vai destruí-lo?

Não — ela responde. — Olhe de novo. Temos de garantir que não há mais um, ou dois.

Volto para baixo do carro com as mãos acesas, conferindo de uma ponta à outra. Não vejo nada.

Tem certeza? — ela pergunta quando eu me levanto.

Sim.

Voltamos a entrar no carro e saímos dali em alta velocidade. São duas da madrugada, e Sam segue para o oeste. Seguindo instruções de Seis, ele mantém uma velocidade média de Cento e quarenta por hora, e não consigo deixar de me preocupar com a polícia. Depois de uns cinquenta quilômetros, ele entra em uma estrada interestadual e dirige para o sul.

—            Estamos quase chegando — Seis diz. Mais três quilômetros e ela orienta Sam a sair da estrada. — Pare! Aqui mesmo, pare!

Sam afunda o pé no freio e para ao lado de um caminhão vazio cujo proprietário está enchendo o tanque. Seis fica invisível e desce do carro, deixando a porta aberta.

O que ela está fazendo? — Sam pergunta.

Não sei.

Depois de alguns segundos a porta bate. Seis reaparece e diz a Sam para voltar para a estrada, dessa vez para o norte. Ela está um pouco mais relaxada e já não agarra o painel do carro com força.

—            Vai mesmo me obrigar a perguntar o que você fez? — indago.

Seis olha para trás.

—            Aquele caminhão estava a caminho de Miami. Prendi o dispositivo de rastreamento embaixo de seu reboque. Se tivermos sorte, eles vão perder algumas horas perseguindo-o para o sul enquanto nós vamos para o norte.

Balanço a cabeça.

—            Vai ser uma noite interessante para aquele caminhoneiro.

Depois que passamos pelos acessos de Ocala, Seis diz para Sam pegar uma saída e estacionar atrás de um centro comercial a alguns minutos de distância da estrada.

—            Vamos dormir aqui hoje — ela avisa. — Na verdade, vamos nos revezar.

Sam abre a porta e vira o corpo, deixando os pés pendurados para fora do carro.

—            Hmmm, amigos? Provavelmente eu deveria ter comentado antes, mas, bem, sofri um corte um pouco feio lá na luta, e agora está começando a doer de verdade, acho que vou desmaiar.

—            O quê? — Saio correndo do carro e paro diante dele.

Sam levanta a perna direita da calça jeans suja e mostra um ferimento acima do joelho que é um pouco menor que um cartão de crédito, mas provavelmente com uns dois centímetros de profundidade. O joelho e a canela estão cobertos de sangue seco e fresco.

— Meu Deus, Sam, quando isso aconteceu?

—            Pouco antes de eu tomar a espada daquele mog. Eu praticamente a arranquei de minha perna.

—            Certo, venha, saia do carro — digo. — Deite-se no chão.

Seis passa a cabeça por baixo do braço de Sam e o ajuda a descer. Abro a porta de trás e pego a pedra de cura da arca.

—            Melhor se segurar em alguma coisa, cara. Isso pode... arder.

Seis oferece a mão, e ele a segura. Assim que encosto a pedra no ferimento, ele se contorce de agonia enquanto todos os músculos se tensionam. Parece que ele vai desmaiar. A pele em torno do corte fica branca, depois preta, depois vermelho-viva de sangue, e no mesmo instante me arrependo de tentar usar a pedra em um humano. Henri alguma vez disse que não funcionaria com eles? Estou tentando lembrar quando Sam deixa escapar um gemido longo, até esvaziar o pulmão. A borda exterior da ferida se fecha para dentro e desaparece completamente. Sam relaxa seu aperto na mão de Seis e aos poucos recupera o fôlego. Depois de um minuto, ele consegue se sentar.

Cara, como eu queria ser um alien — diz, enfim. — Vocês podem fazer muitas coisas legais.

Fiquei preocupado com você por um segundo, amigão — confesso. — Eu não sabia se daria certo com você, uma vez que algumas outras coisas da arca não funcionaram.

Eu também não sabia — Seis acrescenta.

Ela se inclina e beija sua bochecha suja. Sam se deita de novo e suspira. Seis ri e passa a mão em sua cabeça rapada, e me surpreende a intensidade do ciúme que borbulha dentro de mim.

Quer ir para o hospital? — pergunto.

Quero ficar bem aqui — ele responde. — Para sempre.

—            Sabem? Foi muita sorte termos saído para aquela caminhada — Seis comenta depois de nos acomodarmos de novo no carro.

—            É verdade — concordo com ela.

Sam apóia o lado direito do rosto no encosto de cabeça para poder olhar para nós dois.

—            E por que foi que vocês saíram?

—            Eu não conseguia dormir. Seis também não — respondo, o que, tecnicamente, é verdade, mas não elimina a culpa. Sei que Sarah é a garota certa para mim, mas parece que não consigo impedir esses novos sentimentos.

Seis suspira.

—            Sabe o que isso significa, não é?

O quê?

Eles provavelmente abriram minha arca.

Você não pode ter certeza disso.

Não tenho. Mas, desde que peguei aquela rocha de sua arca e ela começou a pulsar e a machucar minha mão, não consegui me livrar daquela sensação. E só agora me ocorreu que isso provavelmente tem alguma relação com minha arca.

Eles estão com sua arca há três anos, já — digo. — Então você acha possível que eles abram a arca sem nós, sem que estejamos mortos?

Ela dá de ombros.

Não sei. Talvez. Mas tenho essa sensação de que abriram a minha e de que, quando toquei aquela pedra, de algum jeito ela levou os mogadorianos à nossa casa.

Por que mandaram tão poucos? — Sam pergunta entre um bocejo e outro. — Quer dizer, por que não esperaram reforços antes de atacar?

Talvez eles tenham se assustado e por isso se precipitaram — Seis sugere.

Talvez um deles tenha pretendido dar uma de herói — sugiro.

Seis abre a janela de seu lado e escuta. Quando se dá por satisfeita, diz:

Enfim. Na próxima vez vai haver mais deles. Pikens e krauls e tudo o que puderem mandar para cima de nós.

Acho que você tem razão — Sam sussurra. Ele está quase dormindo. — Vou lhe dizer uma coisa. Esse negócio de ser fugitivo é realmente desgastante.

Tente fazer isso por onze anos — digo.

—            Acho que estou com um pouco de saudade de casa — Sam murmura.

Inclino-me para a frente e vejo que ele está segurando no colo os velhos óculos do pai, aqueles com as lentes grossas, que ele costumava usar em Paradise.

—            Nunca é tarde demais para voltar, Sam. Você sabe disso, não é?

Ele franze o cenho.

—            Não vou voltar. — Agora há bem menos convicção em sua voz que quando falou isso pela primeira vez no hotel na Carolina do Norte. — Não até encontrar meu pai. Ou pelo menos até descobrir o que aconteceu a ele.

Pai?, Seis me pergunta mexendo a boca em silêncio e me olhando confusa. Depois, respondo também em silêncio.

—            Tudo bem, vamos acabar descobrindo — digo a Sam. E me viro para Seis. — Então, para onde iremos amanhã de manhã?

—            Agora que tudo indica que eles abriram minha arca, acho que vamos ver aonde o vento nos leva. Ele nunca me decepcionou — ela diz com um tom pensativo, e então olha para mim. — Sabia que, se não fosse pelo vento e por minha necessidade de cafeína certa noite na Pensilvânia, na noite anterior ao ataque em Paradise, eu jamais teria chegado lá a tempo?

Do que você está falando? — pergunto.

Eu perambulava pelo Meio-Oeste, sentindo que vocês estavam em Ohio, West Virgínia ou na Pensilvânia, depois de ter visto na Internet algumas notícias sobre o que eu pensava ser trabalho dos mogadorianos em Athens, perto daquela faculdade; mas, depois de algumas semanas sem encontrar nada, tive certeza de que havia perdido seu rastro. Pensei que àquela altura vocês tivessem ido para a Califórnia ou para o Canadá. Então lá estava eu, parada no estacionamento de um centro comercial, cansada e perdida, praticamente sem dinheiro, quando uma rajada de vento forte soprou à minha volta e abriu a porta de um café à minha esquerda. Pensei em me reabastecer, sair de novo e resolver o que fazer, mas num canto daquele café havia um computador à disposição dos clientes. Comprei um copo grande de café e comecei a pesquisar na Internet. E é claro que encontrei uma matéria sobre a casa em chamas da qual você pulara.

Fico constrangido por saber como foi fácil me encontrar. Não me admira que Henri quisesse me manter em casa ou na escola o tempo todo.

—            Não fosse pela rajada de vento que abriu aquela porta, eu provavelmente teria ido parar em um restaurante, onde ficaria bebendo café até amanhecer. Anotei todas as informações que encontrei sobre vocês e corri para a rua, à procura de uma loja de fotocópias que ficasse aberta vinte e quatro horas. Foi quando enviei o fax e a carta com meu número, para tentar preveni-los ou, no mínimo, dar algum sinal para que vocês se preparassem até que eu os alcançasse. E cheguei bem na hora.

 

O VENTO NOS LEVA PARA O NORTE ATÉ UM HOTEL NO ALABAMA, onde passamos duas noites, mais uma vez graças a Sam usando uma de minhas identidades. De lá seguimos para o oeste e passamos uma noite sob as estrelas em um campo em Oklahoma, e depois, mais duas noites em um hotel na periferia de Omaha, em Nebraska. E de lá, aparentemente sem nenhum motivo — ou pelo menos nenhum que ela fosse admitir —, Seis dirige mil e quinhentos quilômetros para o leste, e alugamos uma cabana aninhada entre as montanhas na parte oeste de Maryland, a apenas cinco minutos de carro da fronteira com West Virginia e menos de três horas da caverna mogadoriana. Estamos a exatos trezentos e dezessete quilômetros de Paradise, Ohio, onde começou nossa jornada. A meio tanque de gasolina de Sarah.

Antes mesmo de abrir os olhos já posso sentir que este será um dia difícil, um daqueles em que a realidade da morte de Henri vai me atingir como uma marreta e, não importa o que eu faça, a dor não vai passar. Tenho tido dias assim com mais frequência. Dias cheios de remorso. Cheios de culpa. Cheios de uma tristeza genuína por saber que nunca mais vou falar com ele. Esse pensamento me abate. Eu gostaria de poder mudar essa situação. Mas, como Henri disse certa vez: "Algumas coisas nunca podem ser desfeitas." E também há Sarah, junto com a culpa terrível que me persegue desde que saímos da Flórida, culpa por ter me aproximado tanto de Seis a ponto de quase beijá-la.

Respiro fundo e, finalmente, abro os olhos. A luz pálida da manhã entra no quarto. A carta de Henri, penso. Não tenho escolha senão lê-la agora. É muito perigoso continuar adiando. Não depois de quase tê-la perdido na Flórida.

Enfio a mão sob o travesseiro e puxo a adaga com lâmina de diamante e a carta. Tenho mantido as duas perto de mim. Olho para o envelope por um momento, tentando imaginar em que circunstâncias a carta foi escrita. E então suspiro, pois sei que isso não importa e que estou apenas perdendo tempo, e com a adaga corto o lacre do envelope e retiro as páginas. A caligrafia perfeita de Henri preenche cinco folhas amarelas de papel ofício com uma tinta preta e densa. Respiro fundo e deixo meus olhos pousarem na primeira página.

 

Dezenove de janeiro

J —

Escrevi esta carta muitas vezes ao longo dos anos, sem nunca saber quando seria a última, mas, se você a está lendo agora, então com certeza é esta. Lamento, John. Lamento de verdade. Nós, os Cêpans que viemos, tínhamos o dever de proteger vocês nove custasse o que custasse, incluindo nossa vida. Mas, ao escrever esta carta à mesa da cozinha poucas horas depois de você ter me salvado em Athens, sei que nunca foi o dever que nos manteve juntos, e sim o amor, que sempre será um elo mais forte que qualquer obrigação. A verdade é que minha morte iria acontecer de qualquer jeito. As únicas variáveis eram quando e como, e se você não tivesse aparecido eu certamente estaria morto agora. Quaisquer que tenham sido as circunstâncias de minha morte, por favor, não se culpe. Jamais pensei que eu sobreviveria e, quando saímos de Lorien, tantos anos atrás, sabia que nunca iria voltar.

Imagino quanto você terá descoberto no intervalo entre eu escrever estas palavras e você as ler. Tenho certeza de que agora sabe que escondi muitas coisas de você. Mais do que deveria, provavelmente. Durante quase toda sua vida, eu quis que você permanecesse concentrado, que treinasse muito. Quis que sua vida na Terra fosse tão normal quanto possível. Sei que vai rir da ideia, mas saber toda a verdade teria aumentado muito o estresse em um período já muito estressante.

Por onde começar? O nome de seu pai era Liren. Ele era valente e poderoso, e viveu com integridade e propósito. Como você testemunhou durante suas visões da guerra, ele manteve essas características até o fim, mesmo quando soube que a guerra estava perdida. E na verdade isso é tudo o que qualquer um de nós pode desejar: morrer com dignidade, morrer com honra e coragem. Morrer sabendo que fizemos tudo o que podíamos ter feito. Isso resume quem era seu pai. E resume também quem você é, mesmo que não necessariamente acredite nisso.

 

Sento-me na cama com as costas apoiadas na cabeceira e releio muitas vezes o nome de meu pai. O nó em minha garganta parece uma pedra. Eu gostaria que Sarah estivesse aqui, com a cabeça em meu ombro, incentivando-me a continuar lendo. Dirijo meus olhos para o parágrafo seguinte.

 

Quando você era pequeno, seu pai aparecia mesmo quando não devia. Ele o adorava e podia passar horas vendo-o brincar na grama com Hadley (será que você já descobriu a verdadeira identidade de Bernie Kosar?). E, embora eu tenha certeza de que você não lembra muita coisa daqueles tempos de infância, posso afirmar com segurança que você era um menino feliz. Por um curto período, você teve o tipo de infância que toda criança merece, mas nem todas têm.

Eu passava um tempo considerável com seu pai, mas só encontrei sua mãe uma vez. Ela se chamava Lara e, como seu pai, era reservada, talvez até um pouco tímida. Estou lhe dizendo isso agora porque quero que você saiba quem é e de onde veio. Você nasceu em uma família simples, modesta, e a verdade que sempre quis compartilhar com você é que não deixamos Lorien porque estávamos, por acaso, no lugar onde estávamos naquele dia. Nossa presença na pista de pouso não foi mera coincidência. Estávamos lá porque, quando o ataque começou, a Garde se reuniu para levá-los até lá. Muitos sacrificaram a vida por isso. Devia haver dez de vocês, mas, como sabe, apenas nove conseguiram sair.

 

Lágrimas cobrem minha visão. Passo os dedos sobre o nome de minha mãe, Lara. Lara e Liren. Qual terá sido meu nome lórico, também começava com L? Se não houvesse uma guerra, eu teria um irmão ou uma irmã mais novos? Perdi tantas coisas...

 

Quando vocês dez nasceram, Lorien reconheceu seu coração forte, sua determinação, sua compaixão, e portanto conferiu-lhes o papel que teriam de assumir: o papel dos Dez Anciões originais. Isso significa que, com o tempo, aqueles de vocês que sobreviverem se tornarão muito mais fortes que qualquer outra coisa que Lorien jamais tenha visto, muito mais fortes até que os dez Anciões originais de quem receberam suas Heranças. Os mogadorianos sabem disso, e essa é razão pela qual os caçam com tanto empenho agora. Eles estão desesperados e encheram este planeta com espiões. Nunca lhe contei a verdade porque temia que ela pudesse torná-lo arrogante e desencaminhá-lo, e os perigos que o ameaçam são muito grandes para que eu corresse esse risco. Eu insisto... mantenha-se forte, desenvolva-se para o papel que você está destinado a assumir e depois encontre os outros. Aqueles que sobreviverem ainda podem vencer esta guerra.

A última coisa que tenho para lhe dizer é que não nos mudamos para Paradise por acaso. Seus Legados estavam atrasados e isso tinha começado a me preocupar, e quando a preocupação se transformou em absoluto pânico com o aparecimento da terceira cicatriz — e que você seria o próximo — decidi procurar o único homem que poderia ter a chave para encontrar os outros.

Quando chegamos à Terra, havia nove humanos nos esperando, pessoas que entendiam nossa situação e nossa necessidade de nos dispersarmos. Eles eram aliados dos lorienos, e na última vez que estivemos aqui — há quinze anos — todos eles receberam um dispositivo transmissor que se ativaria apenas se entrasse em contato com uma de nossas naves. Eles estavam lá naquela noite para nos orientar na transição de Lorien para a Terra, para nos ajudar a começar. Nenhum de nós jamais estivera aqui. Quando saímos da nave, cada um de nós recebeu duas mudas de roupa, um pacote com instruções para aprendermos os costumes deste planeta e um pedaço de papel com um endereço. Os endereços eram um ponto de partida, não um lugar para ficar, e nenhum de nós sabia para onde iriam os outros. Nosso papel nos levou a um povoado no norte da Califórnia. Era um lugar agradável e tranquilo a quinze minutos do litoral. Lá eu o ensinei a andar de bicicleta e a empinar pipa, mas também atividades mais simples, como amarrar os sapatos, que tive de aprender primeiro. Ficamos lá seis meses, e depois seguimos em frente, como eu sabia que precisávamos fazer.

O homem que nos recebeu, nosso guia, era daqui, de Paradise, e eu o procurei porque estava desesperado para saber o destino inicial dos outros. Mas, quando chegamos aqui, as estrelas escuras devem ter vindo abaixo, porque o homem já tinha desaparecido.

Esse homem que nos recebeu naquele primeiro dia, que nos deu orientação cultural e nos instalou em nossa primeira casa, chamava-se Malcolm Goode. O pai de Sam.

O que estou lhe dizendo agora, John, é que acredito que Sam esteja certo; acredito que o pai dele tenha sido abduzido. Pelo bem de Sam, espero que ele ainda esteja vivo. E, se Sam ainda estiver com você, peço que lhe transmita essa informação, e espero que ela o console.

Transforme-se em quem você está destinado a ser, John. Mantenha-se forte e poderoso e nunca, jamais esqueça as lições que você aprendeu ao longo do caminho. Seja nobre, confiante e corajoso. Viva com o mesmo tipo de dignidade e bravura que herdou de seu pai e confie em seu coração e em sua determinação do mesmo modo que Lorien confia nelas até hoje. Nunca perca a fé em si mesmo, e nunca perca a esperança, e lembre-se de que, mesmo quando este mundo mostrar o que tem de pior e lhe der as costas, ainda assim sempre haverá esperança.

E tenho certeza de que, um dia, você vai voltar para casa.

Com amor,

Seu amigo e Cêpan

—            H

 

O sangue pulsa em meus ouvidos e, apesar do que Henri escreveu, sei que, se tivéssemos deixado Paradise quando ele quis, Henri ainda estaria vivo. Nós ainda estaríamos juntos. Ele foi à escola para me salvar, porque era seu dever e porque ele me amava. E agora ele se foi.

Respiro fundo, limpo o rosto com o dorso da mão e saio do quarto. Apesar da perna machucada, Sam insiste em ocupar o segundo andar, mesmo quando Seis e eu nos oferecemos para ficar lá. Subo a escada e bato à sua porta. Entro, acendo o abajur da mesa de cabeceira, na qual vejo os óculos do pai de meu amigo. Sam se mexe.

—            Sam? Ei, Sam. Desculpe-me por acordá-lo, mas descobri uma informação muito importante que você precisa saber.

Isso chama sua atenção, e ele afasta o cobertor.

O que é?

Primeiro, você precisa prometer que não vai ficar bravo. Quero que saiba que até agora há pouco eu não tinha ideia de nada do que estou prestes a lhe dizer. E, quaisquer que tenham sido as razões de Henri para não lhe ter contado pessoalmente, você vai ter de perdoá-lo.

Ele se senta na cama e apóia as costas na cabeceira.

Droga, John, fale de uma vez.

Prometa.

Tudo bem, prometo.

Entrego a carta a ele.

Eu devia ter lido antes, Sam. Sinto muito por ter demorado.

Saio do quarto e fecho a porta para dar a ele a privacidade que merece. Não sei ao certo como ele vai reagir. É impossível prever como alguém recebe a resposta para uma pergunta que o tem perseguido durante a maior parte da vida.

Desço a escada e saio pela porta dos fundos com Bernie Kosar, que corre para a floresta. Sento-me sobre uma mesa de piquenique. Consigo ver minha respiração no ar frio de fevereiro. A escuridão é empurrada para o oeste enquanto a luz começa a surgir no leste. Olho para a meia-lua e me pergunto se Sarah está olhando para ela, ou se algum dos outros a está vendo. Eu e os outros, os cinco ainda vivos, devemos assumir o papel dos Anciões. Ainda não entendo muito bem o que isso significa. Fecho os olhos e levanto o rosto para o céu. Fico nessa posição até a porta se abrir atrás de mim. Eu me viro, esperando ver Sam, mas é Seis. Ela sobe na mesa de piquenique e se senta a meu lado. Sorrio para ela sem muito entusiasmo, mas Seis não retribui.

—            Eu o ouvi sair. Está tudo bem? Você e Sam brigaram ou alguma coisa assim? — ela pergunta.

O quê? Não. Por quê?

Só sei que ele está chorando no sofá da sala e não quis conversar comigo.

Hesito antes de dizer:

—            Finalmente li a carta que Henri deixou. Tem algumas coisas sobre Sam que eu não lhe contei. Sobre o pai dele.

—            O que tem o pai dele? Está tudo bem?

Viro o corpo e meus joelhos tocam os dela.

—            Veja. Quando conheci Sam no colégio, ele estava bastante obcecado com o desaparecimento do pai, que um dia saíra para ir ao mercado e nunca mais voltara. Eles tinham encontrado sua caminhonete perto do mercado e seus óculos na calçada. Sabe aqueles óculos que Sam carrega para todo canto?

Seis se vira e olha para a porta da casa.

—            Espere. Os óculos são do pai dele?

—            Sim. E o negócio é que Sam tem certeza absoluta de que o pai foi abduzido por aliens, o que eu sempre achei uma loucura; mas, não sei, deixei Sam continuar acreditando nisso porque quem sou eu para destruir as esperanças do cara de encontrar o pai? Eu estava esperando que Sam contasse isso tudo a você, mas acabei de ler a carta de Henri, e você não vai acreditar no que havia lá.

—            O quê?

Eu conto tudo: sobre o pai de Sam ter sido um aliado de Lorien que nos recebeu quando a nave aterrissou e o motivo de eu e Henri termos ido para Paradise.

Seis desce da mesa e se senta desajeitadamente no banco.

—            É uma coincidência muito estranha que Sam esteja aqui.

—            Não acredito que seja. Quer dizer, pense só. De todas as pessoas em Paradise, meu melhor amigo por acaso acabou sendo Sam? Acho que estávamos destinados a nos encontrar.

Talvez você tenha razão.

Muito legal o pai dele ter nos ajudado naquela noite, não é?

Demais. Lembra quando ele disse que tinha uma sensação cada vez mais forte de que tinha de ficar conosco?

Lembro.

—            Mas aí é que está. Na carta, Henri diz que o pai de Sam foi mesmo abduzido, ou talvez até morto, pelos mogadorianos.

Ficamos sentados em silêncio vendo o sol se erguer lentamente no horizonte. Bernie Kosar sai da floresta e se deita de costas, à espera de que alguém coce sua barriga.

—            Olá, Hadley. — Ele se levanta imediatamente quando digo isso e inclina sua cabeça de beagle. — É — confirmo, pulando da mesa para coçar seu queixo com as duas mãos. — Eu sei.

Sam aparece no quintal. Seus olhos estão vermelhos. Ele se senta no banco ao lado de Seis.

Oi, Hadley — Sam diz para Bernie Kosar.

BK responde com um latido e lambe a mão dele.

Hadley? — pergunta Seis.

O cachorro late de novo, concordando.

—            Eu sempre soube — diz Sam. — Sempre. Desde o dia em que ele desapareceu.

Você sempre esteve certo — afirmo.

Posso ler a carta? — pede Seis.

Sam a entrega. Direciono, a palma da mão direita para o papel e acendo meu Lúmen. Ela lê a carta, depois dobra as folhas e as devolve.

— Sinto muito, Sam — Seis fala.

Eu acrescento:

—            Henri e eu não teríamos sobrevivido sem a ajuda de seu pai.

Seis olha para mim.

—            Sabe, é ridículo que seus pais tenham sido Liren e Lara. Ou é ridículo que eu não tenha percebido isso antes. Lembra-se de mim de Lorien, John? Seus pais e os meus, Arun e Lyn, eram os melhores amigos. Sei que não passávamos muito tempo com nossos pais, mas me lembro de ter ido à sua casa algumas vezes. Você era só um bebê na época, acho.

Levo alguns segundos para lembrar o que Henri me disse certa vez. Foi no dia em que Sarah voltou do Colorado, no dia em que declaramos nosso amor um ao outro. Depois que ela foi embora, Henri e eu estávamos jantando e ele disse: Embora não saiba seu número nem sua localização, uma das crianças que veio conosco para a Terra é filha dos melhores amigos de seus pais. Eles costumavam brincar que vocês dois estavam destinados a ficar juntos.

Quase falo isso para Seis, mas a lembrança de que a conversa começou devido a meus sentimentos por Sarah traz a mesma culpa que sinto desde que Seis e eu saímos para caminhar.

—            Pois é, isso é muito doido. Mas na verdade não me lembro de nada.

—            Enfim, é bem tensa essa história de que devemos assumir o papel dos Anciões. Não é de estranhar que os mogadorianos estejam tão implacáveis — ela comenta.

Com certeza, faz sentido.

Precisamos voltar a Paradise — Sam interrompe.

—            Ah, é claro. — Seis ri. — Precisamos é dar um jeito de encontrar os outros. Temos de voltar ao laptop. E treinar mais.

Sam se levanta.

—            Não, estou falando sério, gente. Precisamos voltar. Se meu pai deixou alguma coisa para trás, aquele dispositivo transmissor, acho que sei como encontrá-lo. Quando eu tinha sete anos, ele me disse que meu futuro estava mapeado no relógio de sol. Quando eu perguntava o que queria dizer com isso, ele respondia apenas que, se algum dia as estrelas escuras viessem abaixo, eu deveria procurar a Enéada e ler o mapa no relógio de sol com o dia em que nasci.

O que é Enéada?

É um grupo de nove divindades da mitologia egípcia.

Nove? — Seis pergunta. — Nove divindades?

E que relógio de sol é esse?— indago.

Está começando a fazer sentido para mim — Sam diz. Ele passa a andar em volta da mesa enquanto organiza os pensamentos, seguido de perto por Bernie Kosar, que tenta beliscar seus calcanhares. — Eu me sentia muito frustrado porque ele estava sempre dizendo aquelas coisas estranhas que só ele entendia. Alguns meses antes de desaparecer, meu pai cavou um poço em nosso quintal e disse que era para recolher a água de chuva das calhas, mas depois que o concreto foi aplicado ele pôs na tampa um elaborado relógio de sol. E então ficou olhando para o poço e me disse: "Seu futuro está mapeado no relógio de sol, Sam."

E você nunca o conferiu? — pergunto.

É claro que sim. Girei o relógio de sol, tentando combinações com a data e o horário de meu nascimento, e algumas outras coisas, mas nunca aconteceu nada. Depois de algum tempo, decidi que aquilo era só um poço idiota com um relógio de sol na tampa. Mas agora que li a carta de Henri, o trecho sobre as estrelas escuras, sei que deve haver alguma pista nisso tudo. É como se ele tivesse me contado sem me contar. — Sam sorri. — Ele era muito esperto.

—            Você também é — observo. — Isso de a gente voltar a Paradise pode muito bem ser suicídio, mas não creio que temos alternativa agora.

 

ACORDO TRINCANDO OS DENTES, COM UM GOSTO ÁCIDO NA boca. Passei a noite toda rolando na cama, não só porque finalmente tenho a arca e estou ansiosa para tentar convencer Adelina a abri-la comigo hoje de manhã, mas também porque revelei muita coisa a muita gente. Deixei meus Legados totalmente à mostra. De quanto elas vão se lembrar? Serei desmascarada antes do café da manhã? Sento-me e vejo Ella em sua cama. Todas ainda dormem no quarto, exceto Gabby, La Gorda, Delfina e Bonita. Suas camas estão vazias.

Meus pés estão quase tocando o chão quando irmã Lúcia aparece na porta, com as mãos na cintura e a boca contorcida numa expressão de desagrado. Olhamos uma para a outra e eu me esqueço de respirar. Mas então ela dá uns passos para trás e deixa que as quatro garotas da igreja entrem cambaleantes, atordoadas e cheias de hematomas, com as roupas rasgadas e sujas. Gabby cai na cama e afunda o rosto no travesseiro. La Gorda massageia o queixo duplo e se deita na cama com um gemido. E Bonita e Delfina se enfiam lentamente sob as cobertas. Assim que as quatro param de se mexer, irmã Lúcia grita que é hora de levantar.

— E isso vale para todas!

Quando tento passar por Gabby a caminho do banheiro, ela se encolhe. La Gorda está na frente do espelho, conferindo os hematomas na pele. Assim que vê meu reflexo atrás de si, abre a torneira e se dedica a lavar as mãos. Eu poderia me acostumar com isso. Não que eu goste de intimidar as pessoas, gosto mesmo é da ideia de me deixarem em paz.

Ella sai de um dos reservados do banheiro e espera sua vez de usar a pia. Temo que ela esteja com medo de mim depois do que fiz na igreja, mas, ao me ver, movimenta o pulso direito acima da cabeça de um jeito dramático. Eu me abaixo para falar em seu ouvido.

Então está tudo bem?

Graças a você — ela responde em voz alta.

Meu olhar cruza com o de La Gorda no espelho.

—            Ei — cochicho. — A noite passada é um segredo entre nós. Tudo o que aconteceu ontem é segredo, está bem? Não conte nada a ninguém.

Ela leva o dedo aos lábios cerrados e eu me sinto melhor, mas há alguma coisa no jeito como La Gorda olhou para mim que me incomoda. Talvez nossa rixa ainda não tenha acabado, afinal.

Estou tão preocupada com o que pode haver na arca que deixo de fazer minha pesquisa matinal na Internet em busca de notícias de John e Henri Smith. Não tenho paciência de esperar pela missa da manhã para ver Adelina, então vou de quarto em quarto à sua procura, mas não a encontro em lugar nenhum. Ouço o primeiro sino chamar para a missa.

Sento-me ao lado de Ella em um dos últimos bancos e pisco para a menina. Vejo Adelina na primeira fileira. No meio da missa, Adelina olha por cima de um ombro e me encontra. Quando estabelecemos contato visual, aponto o recesso da igreja onde ela escondeu minha arca há tantos anos. Ela levanta as sobrancelhas.

—            Não consegui entender o que você queria dizer — Adelina me fala no final da missa.

Estamos paradas embaixo de um vitral de São José no lado esquerdo da igreja, e somos banhadas por uma mistura de suaves tons de amarelo, marrom e vermelho. Os olhos de Adelina combinam com a seriedade de sua postura.

Encontrei a arca.

Onde?

Faço um movimento de cabeça que indica o lado direito.

—            Era eu quem deveria decidir quando você estaria pronta, e você não está. Não está nem perto disso — ela diz irritada.

Jogo os ombros para trás e empino o queixo.

—            Eu jamais estaria pronta a seus olhos, porque você deixou de acreditar, Emmalina.

A citação do nome a pega desprevenida. Ela abre a boca e para antes de despejar o sermão que está na ponta da língua.

—            Não tem ideia do que estou passando aqui com essas garotas. Enquanto você anda por aí abraçada à sua Bíblia, rezando e recitando seu rosário, não percebe que sou perseguida, que só tenho uma amiga, que todas as irmãs me odeiam e que existe um mundo inteiro lá fora que eu deveria defender! Dois mundos, na verdade! Lorien e a Terra precisam de mim e de você, e eu estou presa aqui como um animal no zoológico, e você nem se importa.

—            É claro que me importo.

Começo a chorar.

—            Não, não se importa! Não se importa! Talvez tenha se importado quando era Odetta, e talvez um pouco quando era Emmalina, mas, desde que nos tornamos Adelina e Marina, você não se importa mais comigo nem com os outros oito, ou com o que deveríamos estar fazendo aqui. Lamento, mas não suporto ouvi-la falar de salvação quando isso é tudo o que estou tentando alcançar. Estou tentando nos proteger. Estou tentando fazer o bem, e você age como se eu fosse do mal!

Adelina dá um passo à frente, age como se fosse me abraçar, mas alguma coisa a faz recuar e baixar os braços. Seus ombros se agitam quando ela começa a chorar. Meus braços a envolvem imediatamente, e nós nos abraçamos.

Qual é o problema? Por que Marina não está no refeitório?

Quando nos viramos, vemos irmã Dora com os braços cruzados. Um crucifixo de cobre pende de seus pulsos.

Vá — Adelina sussurra. — Conversaremos sobre isso mais tarde.

Enxugo meu rosto e passo apressadamente por irmã Dora. Enquanto saio da igreja, consigo ouvir fragmentos de uma discussão acirrada entre irmã Dora e Adelina, com as vozes ecoando no teto abobadado, e passo as mãos pela cabeça, esperançosa.

Antes de voltar ao dormitório ontem à noite, fiz a arca flutuar pelo estreito corredor escuro à esquerda da nave para além das antigas estátuas esculpidas na parede de pedra. Ela agora está escondida no alto da torre do campanário norte, protegida atrás da porta de carvalho e seu cadeado. Por enquanto ali é seguro, mas, se eu não conseguir convencer Adelina a abri-la comigo em breve, terei de encontrar outro lugar.

Ella não está no refeitório, e me preocupo com a possibilidade de meu Legado ter causado um problema e ela ter sido levada para um hospital.

— Ela estava na sala de irmã Lúcia — diz uma garota quando pergunto por Ella ao grupo sentado à mesa mais próxima da porta. — Havia um casal com ela. Acho que vão adotá-la. — A garota se serve de uma porção de ovos mexidos. — Que sorte!

Meus joelhos fraquejam e eu me seguro à beirada da mesa, para não cair no chão. Não tenho o direito de ficar tão chateada com a possibilidade de Ella deixar o orfanato, mas a menina é minha única amiga. É claro que eu sabia que ela entraria para a curta lista de meninas adotáveis das irmãs: Ella tem sete anos, é doce, adorável e uma companhia maravilhosa. Realmente espero que ela encontre um lar, sobretudo depois de ter perdido os pais, mas não estou preparada para deixá-la partir, por mais egoísta que isso possa ser.

Quando Adelina e eu chegamos, ficou decidido que eu nunca seria adotada, mas agora me pego pensando se não teria sido melhor se eu tivesse entrado na lista. Talvez alguém tivesse se apaixonado por mim.

Percebo que, ainda que Ella seja adotada hoje, levará algum tempo até que toda a papelada seja analisada e aprovada, o que significa que ela ainda ficará aqui uma ou duas semanas, talvez três. Mas, ainda assim, parte meu coração e reforça ainda mais minha vontade de deixar este lugar assim que eu abrir a arca.

Saio do refeitório deprimida e vou pegar meu casaco, e então escapo pelas portas duplas e desço a colina, sem me importar com o fato de que vou matar aula. Fico atenta ao homem com o livro sobre Pítaco e permaneço na calçada atrás das barracas dos ambulantes na Calle Principal, esgueirando-me de sombra em sombra.

Quando passo por El Pescador, o restaurante do vilarejo, olho para o beco calçado com paralelepípedos e vejo a tampa de uma lata de lixo balançar e cair no chão. A lata começa a tremer e a oscilar, e escuto algo que se move dentro dela. Vejo um par de patas pretas e brancas surgir na borda da lata. É um gato e, quando ele se pendura na beirada da lata de lixo e pula para o chão do beco, percebo um longo corte no lado direito de seu corpo. Um olho está inchado. Ele parece prestes a cair de exaustão ou fome e simplesmente se deita sobre um amontoado de lixo, como se tivesse desistido.

—            Pobrezinho! — digo.

Sei que vou curá-lo antes de dar o primeiro passo para dentro do beco. Ele ronrona quando me ajoelho a seu lado, e quando toco seu pelo, ele não resiste. O frio flui rapidamente de mim para o gato, mais depressa do que aconteceu com Ella ou com meu rosto, e não sei se o Legado está ficando mais forte ou se funciona mais depressa em animais. Suas pernas se fortalecem, as patas se estendem e a respiração se acelera, até que se torna um ronronar ruidoso. Com todo o cuidado, viro o gato para inspecionar seu lado direito e constatar que está completamente curado, coberto por uma densa pelagem preta. O olho antes inchado agora está aberto e me encara. Batizo o gato de Legado e digo:

—            Se quer uma carona para sair da cidade, Legado, devemos conversar. Porque acho que vou embora daqui a pouco, e seria bom ter companhia.

Levo um susto quando uma sombra aparece na entrada do beco, mas é apenas Héctor, que empurra a cadeira de rodas da mãe.

Ah, Marina do mar! — ele grita.

Oi, Héctor Ricardo.

Eu me aproximo deles. Sua mãe parece desanimada e tem o olhar vago, e temo que tenha piorado.

Quem é seu amigo? Oi, rapazinho.

Héctor se abaixa para coçar o queixo de Legado.

Só uma companhia que encontrei por aí.

Caminhamos em silêncio, conversando sobre o tempo e o gato, até chegarmos à casa de Héctor e sua mãe.

—            Héctor, você chegou a ver aquele homem de bigode com o livro recentemente?

Não — ele responde. — O que esse sujeito tem que a incomoda tanto?

Eu hesito.

É que ele se parece com alguém que conheço.

Só isso?

Sim.

Ele percebe que estou mentindo, mas sente que não deve insistir. Sei que ele vai ficar atento ao homem que acredito ser um mogadoriano; só espero que não se machuque.

—            Foi bom ver você, Marina. Não esqueça que hoje é dia de aula.

Ele pisca. Assinto envergonhada, e ele destranca a porta de casa e entra de costas, levando consigo a cadeira da mãe enferma.

Confiro por cima do ombro para ver que não estou sendo seguida e retomo minha caminhada, pensando na arca e no momento em que poderei conversar com Adelina outra vez. Penso também em John Smith como fugitivo, em Ella e sua possível adoção, na briga de ontem à noite dentro da igreja. No final da Calle Principal, olho para o prédio da escola, odiando a porta da frente e as janelas, furiosa por ter passado tanto tempo lá dentro, quando deveria ter estado em movimento, mudando de nome a cada novo país. Que nome eu adotaria nos Estados Unidos?

Legado mia perto de meus pés quando volto pelo vilarejo. Ainda caminho pelas sombras, estudando os quarteirões à minha frente. Espio por uma janela do café, desejando ao mesmo tempo ver e não ver o mogadoriano com o bigode denso. Ele não está lá, mas Héctor, sim, e ele ri de alguma coisa que a mulher da mesa vizinha acabou de falar. Vou sentir tanta falta de Héctor quanto de Ella. Tenho dois amigos, não uma.

Passo agachada pela janela e olho a vasta pelagem preta e branca de Legado. Há menos de uma hora ele estava caído em um beco, sangrando sobre um monte de lixo, e agora é uma bola de energia. Minha habilidade de curar e devolver a vida a plantas, animais e humanos é uma grande responsabilidade. Curar Ella me fez sentir mais especial do que eu jamais me sentira antes, e não foi porque me senti uma heroína, e sim por ter ajudado alguém que precisava. Dou mais alguns passos pela rua e, da janela do café, as gargalhadas de Héctor me alcançam; de repente, sei o que tenho de fazer.

A porta da frente está trancada, mas quando contorno a casa de Héctor a primeira janela que tento abrir cede com facilidade. Legado lambe as patas enquanto eu pulo para dentro. Estou muito nervosa; nunca invadi uma casa antes.

O interior é escuro e pequeno, e o ar é denso. Todas as superfícies visíveis estão cobertas com estatuetas católicas. Encontro sem demora o quarto da mãe de Héctor. Ela está deitada em uma cama junto à parede oposta à porta, e os cobertores sobem lentamente a cada respiração. Suas pernas estão dispostas em ângulos estranhos, e a mulher parece frágil. Frascos de comprimidos repousam sobre um pequeno criado-mudo, junto com rosários, um crucifixo, uma estatueta da Virgem Maria com as mãos unidas em prece e mais ou menos dez santos cujos nomes desconheço. Ajoelho-me ao lado do corpo adormecido de Carlotta. Seus olhos se abrem trêmulos e fitam o vazio. Fico imóvel e prendo a respiração. Nunca conversei com ela, mas, quando me encontra ajoelhada a seu lado, seus olhos reluzem, em reconhecimento. Ela abre a boca para falar.

— Shhhh — sussurro. — Sou amiga de Héctor, Señora Ricardo. Não sei se consegue me entender, mas estou aqui para ajudá-la.

Ela aceita o que eu disse com um tremular de pálpebras. Estendo o braço esquerdo e acaricio seu rosto com o dorso da mão, e depois toco sua testa. Os cabelos grisalhos estão secos e quebradiços. Ela fecha os olhos.

Meu coração está disparado, e percebo que minha mão está tremendo quando a afasto da testa de Carlotta para tocá-la no ventre, e é nesse momento que sinto quanto ela está fraca e doente. O calafrio percorre meu corpo e se espalha por meus braços, até alcançar a ponta de cada dedo. Sinto tontura. Minha respiração se acelera, e meu coração bate ainda mais acelerado. Começo a suar, apesar do formigamento gelado que esfria minha pele. Carlotta abre os olhos e um gemido baixo escapa de sua boca.

Eu fecho meus olhos.

— Shhhh, está tudo bem, está tudo bem — digo, em busca de conforto para nós duas. E então, com o frio irradiando-se de mim para ela, começo a remover a enfermidade. Ela resiste, apegando-se às entranhas de Carlotta, relutando em deixá-la, mas enfim até os fragmentos mais teimosos cedem.

Tremores leves agitam o corpo de Carlotta em espasmos e convulsões, e eu faço o possível para mantê-la quieta. Abro os olhos a tempo de ver a palidez de seu rosto se transformar em um rosado viçoso.

Sou dominada pela vertigem. Retiro as mãos do corpo de Carlotta: e caio para trás no chão. Meu coração bate com tanta força que me assusta, e é como se estivesse a ponto de escapar de meu corpo. Mas, com o tempo, ele desalecera, e quando por fim me levanto vejo Carlotta sentar-se com uma expressão de perplexidade no rosto, como se tentasse se lembrar de onde estava e como tinha chegado ali.

Corro até a cozinha e bebo três copos de água. Quando volto, Carlotta ainda está tentando se orientar. Tomo outra decisão rápida: eu me aproximo do criado-mudo e dou uma olhada nos dez frascos de comprimidos, até que encontro o que quero: ATENÇÃO: PODE CAUSAR SONOLÊNCIA. Tiro a tampa, pego quatro comprimidos e os coloco no bolso.

Sem falar com Carlotta, vou até a porta do quarto. Mas, antes de sair, viro-me para olhá-la mais uma vez. Ela me observa sentada na cama, com as pernas recuperadas pendendo da lateral, como se estivesse prestes a se levantar.

Saio rapidamente da casa e encontro Legado dormindo embaixo da janela dos fundos. Andando pelas vielas e ruas secundárias, volto ao orfanato com o gato nos braços, tentando imaginar como Héctor vai reagir quando encontrar a mãe curada. No entanto, o problema é que, em um vilarejo tão pequeno, os segredos não têm vida longa. Minha única esperança é que ninguém tenha me visto entrar ou sair, e que Carlotta não se lembre do que realmente aconteceu.

Diante das portas duplas, abro metade do zíper de meu casaco e escondo o gato ali dentro com cuidado. Sei onde posso mantê-lo seguro: no campanário norte, com a arca. A arca, penso. Preciso abri-la.

 

ESTAR APAIXONADO É MUITO ESTRANHO. OS PENSAMENTOS acabam sempre se voltando para essa outra pessoa, independentemente do que se está fazendo. Ao pegar um copo no armário, ao escovar os dentes ou ao ouvir alguém contar uma história, sua mente começa a vagar pela lembrança do rosto, do cabelo e do cheiro da pessoa amada, a imaginar a roupa que ela está vestindo e o que dirá na próxima vez que a vir. E, junto a esse constante estado de sonho, o estômago parece estar preso a uma corda elástica, descendo e subindo por horas até enfim se acomodar perto do coração.

Foi isso o que senti no dia em que conheci Sarah Hart. Posso estar treinando com Sam ou tentando encontrar meus sapatos dentro do carro, e de repente pensar no rosto, nos lábios e na pele clara de Sarah. Posso estar sentado no banco de trás, orientando o caminho a seguir e ainda me concentrar cem por cento na sensação do topo da cabeça de Sarah encostado embaixo de meu queixo. E, mesmo cercado de vinte mogs, com as mãos começando a acender, analisarei todos os detalhes da conversa no jantar de Ação de Graças na casa de Sarah.

Porém, o mais insano é que, enquanto percorremos a estrada a caminho de Paradise às nove da noite à velocidade máxima permitida, a caminho dos cabelos louros e dos olhos azuis de Sarah também penso em Seis. Penso em seu cheiro, em como se veste durante nosso treinamento, em como quase nos beijamos lá na Flórida. Meu estômago se contorce por causa de Seis. Não só por causa dela, mas porque meu melhor amigo também está a fim da garota. Preciso comprar antiácido na próxima parada.

Enquanto Sam dirige, conversamos sobre a carta de Henri e sobre como o pai de Sam é legal, não apenas por ajudar o povo de Lorien, mas também por ter entregado a Sam uma charada que permitiria encontrar o transmissor caso alguma coisa acontecesse a ele. E minha cabeça fica no vaivém entre Sarah e Seis.

Estamos a duas horas de Paradise quando Seis pergunta:

E se não for nada? Quer dizer, e se dentro do poço não houver nada além de um presente de aniversário esquisito ou qualquer outra coisa que não o transmissor? Estamos arriscando muito, muito mesmo, ao aparecermos em Paradise desse jeito.

Confie em mim — diz Sam. Ele batuca com os polegares no volante e liga o rádio. — Nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. E sempre tiro notas máximas, obrigado.

Acho que os mogadorianos estão lá esperando, em números muito maiores que os que enfrentamos na Flórida, observando tudo o que pode levá-los a nós. E, falando francamente, a única razão pela qual estou disposto a correr o risco é a possibilidade de voltar a ver Sarah.

Inclino-me para a frente no banco e dou uma batidinha no ombro de Sam.

Sam, aconteça o que acontecer com aquele poço e o relógio do sol, Seis e eu já temos uma enorme dívida com você pelo que seu pai fez por nós. Mas eu espero mesmo, mesmo, mesmo, que isso nos leve ao transmissor.

Não se preocupe — diz Sam.

As luzes na estrada vêm e vão. As orelhas de Bernie Kosar pendem do banco enquanto ele dorme. Estou nervoso com a ideia de rever Sarah. Nervoso por estar tão perto de Seis.

Ei, Sam? — pergunto. — Que tal um jogo?

Pode ser.

Qual você acha que é o nome de Seis na Terra.

Seis se vira para mim rapidamente, acertando o lado direito do rosto com seu cabelo preto e franzindo a testa, fingindo estar furiosa.

Ela tem um nome? — Sam ri.

Adivinhe — insisto.

É, Sam — Seis fala. — Adivinhe.

Hmmm, Stryker?

Minha gargalhada é tão alta que Bernie Kosar pula para olhar pela janela mais próxima.

Stryker? — grita Seis.

Não? O.k., o.k. Não sei, algo como Pérsia ou Eagle ou...

Eagle? — Seis grita de novo. — Por que eu teria esse nome?

Ah, porque você é toda fortona. — Sam ri. — Imaginei que seu nome seria algo tipo Starfire, on Thunder Clap, ou alguma outra coisa muito fortona.

— Pois é! — exclamei. — Foi exatamente isso o que pensei também!

—            Qual é o nome, afinal? — ele pergunta.

Seis cruza os braços e olha pela janela do passageiro.

Não vou dizer enquanto você não arriscar um palpite de verdade com um nome de menina de verdade. Eagle, Sam? Por favor!

O quê? Eu escolheria esse nome para mim, se pudesse — ele retruca. — Eagle Goode. Parece demais, não é?

Parece marca de queijo — Seis responde. Todos nós rimos disso.

Tudo bem. Ah, Rachel? — Sam tenta. — Britney?

Eca — ela diz.

Certo. Rebecca? Claire? Ah, já sei! Beverly.

Você é maluco. — Seis está rindo.

Ela bate na perna de Sam, que uiva e a esfrega de um jeito dramático. Depois ele retribui o golpe, dando um soco com dois dedos fechados no braço dela, e Seis finge sentir muita dor.

O nome dela é Maren Elizabeth — anuncio. — Maren Elizabeth.

Ah, você entregou o jogo — Sam reclama. — Eu ia falar Maren Elizabeth agora.

Ah, é claro — Seis resmunga.

Eu ia, ia sim! Maren Elizabeth é muito legal. Quer que passamos a chamá-la assim? Quatro virou John, não é, Quatro?

Coço a cabeça de Bernie Kosar. Não acho que eu conseguiria me acostumar a chamá-lo de Hadley, mas talvez consiga chamar Seis de Maren Elizabeth.

—            Acho que você deveria adotar um nome humano — digo. — Se não for Maren Elizabeth, então algum outro. Quer dizer, pelo menos para quando estivermos na frente de estranhos.

Todos ficam em silêncio, e eu pego dentro da arca a minha bolsa de veludo em que está o sistema solar. Posiciono os seis planetas e o sol na palma da mão e os vejo flutuar e brilhar. Quando os planetas começam a girar em torno do sol, descubro que sou capaz de reduzir seu brilho com a força da mente. Deixo-me perder neles conseguindo esquecer só por um momento que talvez veja Sarah em breve.

Seis se vira para olhar o sistema solar que flutua diante de mim e finalmente diz:

—            Não sei... ainda gosto do nome Seis. Maren Elizabeth é de quando eu era uma pessoa diferente, e neste momento Seis soa perfeito. Se alguém perguntar, posso dizer que é um diminutivo para um nome qualquer.

Sam olha para ela,

—            Que nome? Seiscentos?

 

Separo sete canecas e ponho uma chaleira no fogão. Enquanto espero a água ferver, pulverizo três dos comprimidos que roubei da mãe de Héctor usando uma colher de metal. Ella observa a meu lado, como sempre faz quando é minha vez de preparar o chá noturno das irmãs.

—            O que você está fazendo? — ela pergunta.

—            Algo de que provavelmente vou me arrepender — digo. — Mas que preciso fazer.

Ella alisa um pedaço de papel amassado sobre a mesa e coloca sobre ele a ponta de seu lápis. Logo ela faz um desenho perfeito das sete canecas que separei. Pelo que consegui ouvir da menina, na sala de irmã Lúcia ela conheceu um casal que disse ter "muito amor para dar". Não sei quanto tempo durou a reunião, mas Ella contou que eles vão voltar amanhã. Sei o que isso significa, e despejo a água fervente da chaleira bem devagar, tentando prolongar meu tempo com Ella.

Com que frequência você pensa nos seus pais? — pergunto. Ela arregala os olhos castanhos.

Hoje?

Pode ser. Hoje, ou em outro dia qualquer.

Não sei... — Ela para. Depois de uma pausa, diz: — Um milhão de vezes?

Eu me abaixo para abraçá-la e não sei se é porque sinto pena de Ella ou de mim. Meus pais também estão mortos. Foram vítimas de uma guerra que um dia terei de retomar.

Despejo o pó dos comprimidos na caneca de Adelina, lamentando que precise drogá-la. Não tenho alternativa. Ela pode ficar quieta e esperar pela morte se quiser, mas eu me recuso a desistir ou a ser derrotada sem resistir, sem fazer o possível para sobreviver.

Equilibrando a bandeja nas mãos, deixo Ella sentada à mesa e saio pelo orfanato. Uma a uma, vou distribuindo o chá e, quando entro no dormitório das irmãs para entregar a caneca de Adelina, tomo o cuidado de empurrar sua caneca para a beirada da bandeja. Ela a aceita com um movimento educado de cabeça.

—            Irmã Camila não está se sentindo bem, e me pediram para ficar no dormitório das crianças esta noite em seu lugar.

—            Tudo bem — respondo. Enquanto penso na possibilidade de Adelina e eu estarmos no mesmo quarto hoje à noite, eu a vejo beber um grande gole da caneca. Não sei se acabei de cometer um terrível engano ou se facilitei minha causa imensamente.

—            Logo estarei com você, então — ela diz. Depois pisca para mim.

Fico surpresa e quase derrubo no chão as duas canecas que restam na bandeja.

—            Tu... tudo bem — gaguejo.

Meia hora mais tarde, quando soa o toque de recolher, ninguém adormece imediatamente. Em vez disso, muitas meninas cochicham na escuridão. De vez em quando, levanto a cabeça para olhar para Adelina deitada na cama do outro lado do dormitório. Aquela piscada me deixou confusa.

Passam-se mais dez minutos. Posso dizer que a maioria ainda está acordada, inclusive Adelina. Ela costuma dormir bem depressa quando está a serviço, então o fato de ela ainda estar acordada quer dizer que também espera que todas durmam. Agora acho que a piscada com certeza significava que ela queria retomar nossa conversa. O dormitório fica silencioso, e espero mais dez minutos para levantar a cabeça. Adelina não se moveu na última meia hora, então ergo os dois pés esquerdos de sua cama, inclinando-a ligeiramente. De repente Adelina levanta o braço esquerdo como uma bandeira branca de rendição e aponta para a porta.

Jogo as cobertas para o lado, levanto-me da cama e caminho na ponta dos pés para a porta do quarto. Quando chego ao corredor, dou alguns passos nas sombras, prendendo a respiração e torcendo para não estar caindo em algum tipo de armadilha de Adelina e irmã Dora. Após trinta segundos, Adelina sai para o corredor. Ela anda com dificuldade e balança para os lados.

—            Venha comigo — sussurro, segurando a mão dela.

Não seguro sua mão há anos, e isso me faz lembrar quando estávamos juntas no barco para a Finlândia, quando fiquei enjoada e ela era forte. Ficávamos tão próximas que era impossível colocar uma folha de papel entre nós. Agora o mero toque de sua mão parece estranho.

—            Estou muito cansada — Adelina confessa enquanto subimos ao segundo andar; estamos na metade do caminho até a ala norte e o campanário protegido pelo cadeado. — Não sei o que há de errado comigo.

Eu sei.

Quer que eu a carreguei

Você não consegue me carregar.

Com os braços, não.

Ela está cansada demais para discutir. Concentro-me em seus pés e em suas pernas, e alguns segundos depois ela começa a flutuar pelos corredores empoeirados. Passamos pelas antigas estátuas esculpidas na parede de pedra e entramos em silêncio no corredor estreito. Chego a pensar que Adelina adormeceu, mas ela diz:

—            Não acredito que você está usando telecinesia para fazer voar uma senhora como eu pelo corredor. Aonde vamos?

—            Tive de escondê-la — sussurro. — Estamos quase chegando, prometo.

Abro o cadeado, fazendo-o cair da porta de carvalho, e logo estou seguindo uma Adelina flutuante pela escada de pedra que sobe em espiral pela torre até o campanário. Posso ouvir Legado miando baixinho no topo.

Abro a porta do campanário e a desço delicadamente ao lado da arca. Ela apóia o braço esquerdo sobre a tampa da arca e repousa a cabeça nela. Percebo que está prestes a perder a briga contra os comprimidos, e agora me sinto furiosa comigo mesma por tê-la enganado. Legado sobe no colo de Adelina e lambe sua mão direita.

Como pode haver um gato aqui? — ela murmura.

Não pergunte. Escute, Adelina, você está quase dormindo, e preciso que abra a arca comigo antes, está bem?

Acho que não tenho...

Não tem o quê?

—            Não tenho energia para isso agora, Marina.

Seus olhos estão fechados.

Sim, você tem.

Ponha sua mão na fechadura da arca. Ponha minha mão no outro lado.

Pressiono a palma contra um lado da fechadura e a sinto quente. Uso telecinesia para tirar a mão de Adelina da língua de Legado e colocá-la do outro lado. Ela entrelaça os dedos com os meus. Um segundo se passa. A fechadura se abre com um estalo.

 

Ah... gente? Tem alguma coisa, ah, tem alguma coisa acontecendo aqui atrás.

As sete esferas que pairam diante de mim no banco de trás do carro estão ganhando velocidade, e não consigo mais controlá-las. Está ficando tão brilhante que preciso cobrir os olhos.

Ei, ei! Cara, pare com isso! — Sam grita. — Estou tentando dirigir aqui.

Não sei o que está acontecendo!

Encoste o carro! — Seis grita.

Sam manobra o veículo para o acostamento e pisa no freio, esmagando cascalho e pedras. O brilho dos seis planetas e do sol diminui, e os planetas começam a girar em torno do sol com tamanha velocidade que é difícil acompanhar. A cada volta os planetas são absorvidos pelo sol até ele ter o tamanho de uma bola de basquete. O novo globo roda em torno do próprio eixo e depois produz um lampejo de luz tão brilhante que por um momento me ofusca. A luminosidade diminui lentamente, e seções de sua superfície sobem e descem até formar uma réplica perfeita da Terra, todos os sete continentes e os sete mares.

—            Isso é...? — Sam pergunta. — Parece a Terra.

O planeta gira perto de minha cabeça, e em sua terceira ou quarta rotação eu vejo um pequeno ponto de luz pulsante.

—            Estão vendo essa luzinha? — pergunto. — Olhem para a Europa.

— Ah, sim — diz Sam. Ele espera por mais uma rotação e estreita os olhos. — Eu diria que ela está sobre o quê? Espanha ou Portugal? Alguém consegue pegar o laptop? Depressa.

Com os olhos fixos no globo e na pequenina luz pulsante, vou tateando à volta e atrás de mim até encontrar o laptop. Eu o entrego a Seis, que, por sua vez, o entrega a Sam. Ele olha para o globo, que paira sobre o banco de trás, digita e olha de novo.

—            Bem, definitivamente é na Espanha, e parece estar perto de... Bem, a cidade mais próxima parece ser um lugar chamado León. Mas isso, isso é um pouco afastado. Estamos olhando para as Montanhas Picos de Europa, com certeza. Já ouviram falar delas?

Não mesmo — respondo.

— Nem eu — diz Seis.

Essa pode ser nossa nave? — questiono.

De jeito nenhum, não na Espanha. Bem, eu pelo menos duvido muito de que seja — responde Seis. — Quer dizer, se é nossa nave, por que começaria a brilhar agora, mostrando-nos onde está? Não faria sentido. Além do mais, quantas vezes você já olhou para essas coisas?

Uma dúzia — digo. — Talvez mais.

Sam abraça o apoio de cabeça e levanta as sobrancelhas.

Certo. Então é como se algo tivesse acabado de ativá-las.

Seis e eu nos entreolhamos.

Com certeza é um dos outros — Sam diz.

—            Pode ser — Seis responde. — Ou uma armadilha. — Ela olha para Sam. — Alguma notícia suspeita da Espanha?

Ele balança a cabeça.

—            Até cinco horas atrás, não. Mas vou verificar de novo agora mesmo. — Ele começa a digitar no teclado.

—            Primeiro acho melhor sairmos da estrada principal, antes que alguém perceba que há um planeta Terra brilhante flutuando dentro do carro — digo. — Estamos bem perto de Paradise, lembram?

 

Adelina ronca e eu me sinto culpada, mas pela primeira vez na vida vejo a Herança que deveria ter recebido há anos. Pedras de cores e tamanhos e formatos variados. Um par de luvas e de óculos escuros, ambos feitos com materiais que nunca vi. Há um pequeno galho de árvore descascado e, embaixo dele, encontro um estranho aparato circular com uma lente de vidro e uma agulha flutuante, não muito diferente de uma bússola. Mas é um cristal vermelho brilhante que me deixa mais intrigada. Não consigo desviar os olhos depois de vê-lo, e o retiro da arca lentamente; ele é quente e provoca formigamento em minha mão. Por um segundo a luz vermelha aumenta, e depois perde o brilho e começa uma pulsação suave no mesmo ritmo de minha respiração.

O cristal fica mais quente, mais brilhante e começa a emitir um ruído baixo. Entro em pânico, pois receio que algum Legado meu tenha ativado uma granada lorica.

—            Adelina! — grito. — Acorde! Acorde, por favor!

Ela franze o cenho e ronca mais alto.

Seguro seu ombro com a mão livre e a sacudo.

—            Adelina!

Sacudo com mais força, e com isso deixo cair o cristal. Ele quica no chão de pedra do campanário e rola para a porta. Quando cai do primeiro degrau para o segundo, a luz vermelha para de pulsar. Quando cai do segundo para o terceiro, ele para de brilhar completamente. E quando cai para o quarto saio correndo atrás dele.

 

Sam acelera por uma estrada escura de terra. O globo continua girando na frente de meu rosto. A pequenina luz pulsante ainda está tentando nos dizer alguma coisa. Paramos e Sam desliga o motor e as luzes.

—            Então, estou pensando que talvez seja um de vocês — ele diz, virando-se para trás. — Outro número. E esse está na Espanha.

—            Não temos como saber — Seis responde.

Sam aponta o globo.

—            Tudo bem, vejam. Vocês deviam ficar afastados uns dos outros quando chegaram, certo? Era assim que funcionava. Cada um se esconderia, até que seus Legados se desenvolvessem, vocês treinassem e tal. E depois disso? Aí vocês se reuniriam e lutariam juntos. Então essa luz aí talvez seja um sinal para a reunião, ou, mais provavelmente, um pedido de socorro de um dos outros números. Ou, gente, talvez o Número Cinco ou o Número Nove tenha aberto sua arca pela primeira vez, e, como estamos com essa coisa funcionando no mesmo instante, podemos nos comunicar.

Talvez eles vejam que estamos em Ohio, então? — pergunto.

Droga. Talvez. É possível. Mas, sério, pensem nisso. Se os Anciões lhes dariam todas essas coisas em suas arcas, dariam também alguma coisa para vocês se comunicarem. Certo? Talvez tenhamos acabado de destravar isso de alguma maneira e de conseguir a localização de alguém que precisa de nossa ajuda — ele diz.

—            Ou talvez um dos outros esteja sendo torturado, e o estejam forçando a fazer contato conosco, e isso seja uma armadilha — Seis sugere.

Quando estou quase concordando com ela, os contornos da Terra ficam menos nítidos, e o globo inteiro vibra com uma voz feminina que diz:

"Adelina! Despierta! Despierta, por favor, Adelina!"

Estou prestes a gritar de volta, mas o globo se encolhe de repente, divide-se outra vez nas sete esferas e volta ao normal.

Ei, ei, ei! O que aconteceu aqui? — pergunto.

Eu diria que o sinal foi cortado — Sam responde.

Quem era aquela garota? E quem é Adelina? — Seis indaga.

 

Pego a pedra depois que ela quica no nono degrau, porém, por mais que eu tente, ela não brilha como antes. Sacudo-a na mão. Sopro. Coloco-a sobre a mão aberta de Adelina. A pedra agora não muda de um tom claro de azul, e temo tê-la quebrado. Recoloco-a com cuidado dentro da arca e pego o galho pequeno.

Respirando fundo, coloco-o para fora de uma das duas janelas e me concentro na extremidade oposta. Sinto a manifestação de uma pequena força magnética. Contudo, antes que eu realmente possa testá-la ou entendê-la, ouço o rangido da porta de carvalho se abrindo ao pé da escada.

 

ENQUANTO SEGUIMOS VIAGEM, TENTO RECUPERAR O SINAL COM OS globos mais algumas vezes, porém, toda vez que faço o sistema solar funcionar, eles só ficam orbitando. É quase meia-noite, e estou prestes a dar uma olhada nas outras pedras e objetos da arca, mas então vejo as luzes esparsas de uma cidade no horizonte. À minha direita passa uma placa, como há alguns meses, quando Henri estava ao volante:

 

BEM-VINDOS A PARADISE, OHIO

POPULAÇÃO, 5.243

 

— Bem-vindos ao lar — Sam murmura.

Pressiono a testa contra a janela e reconheço um celeiro dilapidado, uma velha placa que anuncia maçãs, uma caminhonete verde ainda à venda. Uma sensação plácida se espalha por meu corpo. De todos os lugares em que morei, Paradise é meu favorito. Foi onde fiz meu primeiro melhor amigo. Onde desenvolvi meu primeiro Legado. Onde me apaixonei. Mas Paradise também foi onde encontrei os primeiros mogadorianos. Onde travei minha primeira batalha real e onde senti dor de verdade. E foi onde Henri morreu.

Bernie Kosar pula a meu lado no assento, balançando a cauda com velocidade espantosa. Ele enfia o focinho na fresta da janela e fareja furiosamente o ar familiar.

Enquanto pegamos a primeira saída à esquerda e viramos várias vezes, refazendo alguns trechos, tomando todas as precauções para que não sejamos seguidos, procurando o lugar mais seguro e menos suspeito para deixar o carro, revemos o plano mais uma vez.

— Depois que conseguirmos o transmissor, voltaremos direto para o carro e sairemos imediatamente de Paradise — diz Seis. — Certo?

Certo — concordo.

Não faremos contato com ninguém; apenas partiremos.

Sei que ela se refere a Sarah, e mordo o lábio. Finalmente, depois de tantas semanas em fuga, volto a Paradise e sou informado de que não posso ver Sarah.

Entendeu, John? Vamos embora? Imediatamente?

Deixe-me em paz. Sei do que você está falando.

Desculpe-me.

Sam estaciona o SUV em uma rua escura, embaixo de um bordo a uns três quilômetros de sua casa. Meus sapatos tocam o asfalto, meus pulmões pela primeira vez se enchem de verdade com o ar de Paradise, e no mesmo instante quero voltar ao que era antes, ao Halloween, a ir para casa com Henri, a ficar no sofá com Sarah.

Não vamos arriscar perder minha arca deixando-a em um carro sem vigilância, então Seis tira-a pela porta de trás e a coloca sobre um ombro. Ao ajeitá-la confortavelmente, Seis se torna invisível.

—            Espere — digo. — Quero algo daí antes. Seis?

Ela reaparece. Abro a arca, pego a adaga e a coloco no bolso de trás da calça jeans.

—            Tudo bem. Agora estou pronto. Bernie Kosar, amigão, está pronto?

Bernie se transforma em uma pequena coruja marrom e voa para um galho baixo do bordo.

—            Vamos resolver isso de uma vez.

Seis pega minha arca e desaparece novamente.

Então, corremos. Com Sam me seguindo num ritmo bom, pulo uma cerca e ganho velocidade na orla do campo mais próximo. Menos de um quilômetro depois, entro na floresta, adorando a maneira como os galhos se partem contra meu peito e meus braços e o mato acerta meu jeans. Olho por cima do ombro com frequência, e Sam se mantém quarenta metros atrás de mim, pulando troncos, desviando-se de galhos. Ouço um barulho a meu lado, mas, antes que eu possa pegar a adaga, Seis sussurra avisando que é ela. Vejo um monte de mato dividir-se ao meio e vou atrás.

Felizmente, Sam mora na periferia de Paradise, onde os vizinhos são separados por alguns hectares. Paro bem no limite da floresta, quando vejo a casa de meu amigo. Ela é pequena, modesta, com revestimento externo de alumínio branco e telhado preto, uma chaminé estreita no lado direito e uma cerca alta de madeira que delimita o quintal. Seis aparece e coloca a arca no chão.

É aqui? — pergunta.

Sim.

Trinta segundos depois, Bernie Kosar pousa sobre meu ombro. Quatro minutos se passam até Sam atravessar alguns arbustos e parar a nosso lado, ofegante, apoiando as mãos nas coxas. Ele olha para a casa.

Como se sente? — pergunto.

Como um fugitivo. Como um mau filho.

—            Pense em como seu pai ficaria orgulhoso se tivermos sucesso aqui — sugiro.

Seis se torna invisível para fazer o reconhecimento, verificando as sombras das casas vizinhas, os bancos traseiros de cada carro parado na rua. Ela volta e diz que tudo parece estar bem, mas há lâmpadas com sensor de movimento na casa à direita. Bernie Kosar sai voando e vai se empoleirar no ponto mais alto do telhado.

Seis segura a mão de Sam, e ambos ficam invisíveis. Acomodo a arca embaixo do braço e os sigo em silêncio até a cerca no fundo do terreno. Eles reaparecem, e Seis é a primeira a pular, seguida de Sam. Jogo a arca por cima da cerca e pulo em seguida. Ficamos escondidos atrás de um arbusto mais alto, e analiso o quintal, com suas árvores, a grama alta, um toco grande de árvore, um balanço enferrujado e um velho carrinho de mão caído de lado. Há uma porta na lateral esquerda da casa e duas janelas escuras na direita.

—            Ali está — Sam sussurra e aponta.

O que eu pensava ser um toco de árvore projetando-se no meio do quintal é, na verdade, olhando com mais atenção, um cilindro largo de pedra. Forçando a vista, percebo um objeto triangular saliente no topo.

—            Voltaremos já, já — Seis murmura para Sam.

Segurando a mão de Seis, fico invisível e falo:

—            Muito bem, Eagle Goode. Guarde essa arca como se minha vida dependesse disso. Porque depende.

Seis e eu caminhamos com cuidado pela grama alta na direção do poço e nos ajoelhamos diante dele. Há números no contorno do relógio de sol — de um a doze do lado esquerdo, e de um a doze do lado direito, com um zero no alto —, e estão cercados por uma série de linhas. Estou prestes a agarrar o triângulo no meio e virá-lo aleatoriamente quando escuto Seis arquejar.

—            O que é? — sussurro, erguendo os olhos para as janelas escuras dos fundos.

—            No meio. Veja. Os símbolos.

Estudo o relógio de sol mais uma vez e fico sem fôlego. No meio do círculo, sutis e fáceis de passar despercebidos, há nove símbolos lóricos escavados suavemente. Reconheço os números de um a três porque têm o mesmo desenho das cicatrizes em meu tornozelo, mas os outros são novos para mim.

Qual é mesmo a data de nascimento de Sam? — pergunto.

Quatro de janeiro de mil novecentos e noventa e cinco.

O triângulo estala como uma fechadura quando eu o movimento para a direita até o número um lórico. Viro-o para a esquerda, engolindo em seco quando o direciono para o que deve ser o número quatro. Meu número. Depois, giro para o um, o nove, dou uma volta até o nove outra vez, e finalmente o cinco. Nada acontece por alguns segundos, mas de repente o relógio de sol começa a chiar e a soltar fumaça. Seis e eu recuamos e vemos a tampa de pedra do poço se erguer e abrir com um estalo alto. Quando a fumaça se dissipa, vejo uma escada no interior.

Sam está pulando perto da cerca. Uma das mãos cobre a boca, a outra está levantada e fechada.

Uma das janelas escuras da casa fica amarela. Bernie Kosar solta dois longos piados em cima do telhado. Antes que eu pense, Seis me puxa para a frente, e logo estou visível e descendo a escada para dentro do poço. Seis me segue, puxando a tampa até quase fechá-la sobre sua cabeça. Acendo minhas mãos e vejo que estamos a uns seis metros de um piso de cimento.

E Sam? — cochicho.

Ele vai ficar bem. Bernie Kosar está lá.

Chegamos ao chão e nos vemos em um corredor curto que descreve uma curva para a esquerda. O ar cheira a mofo. Lanço a luz de minhas mãos para um lado e para o outro enquanto percorremos a curva, e quando o corredor volta a seguir em linha reta, vemos à nossa frente um cômodo com uma mesa entulhada de um monte de coisas e centenas de papéis pregados na parede. Estou prestes a correr para dentro daquela sala quando as luzes de minhas mãos se refletem em um objeto comprido e branco na entrada.

—            Aquilo é... — Seis não consegue concluir a frase.

Eu paro onde estou. É um osso enorme. Seis me empurra para frente e eu tiro a adaga do bolso da calça.

Primeiro as damas? — sugiro.

Não desta vez.

Saio correndo, salto por cima do osso e imediatamente ilumino todo o interior do cômodo usando minhas mãos. Não consigo conter um grito quando vejo o esqueleto sentado junto à parede. Seis pula para dentro e, quando vê os ossos, recua até esbarrar na mesa.

O esqueleto tem uns dois metros e meio de altura, com pés e mãos gigantescos. Bastos cabelos louros descem do topo do crânio até abaixo das escápulas largas. Em torno do pescoço vejo um pingente azul parecido com o meu.

Esse não é o pai de Sam — Seis diz.

Com certeza.

Então, quem é?

Dou um passo adiante e examino o pingente. A pedra azul de loralite é um pouco maior que a minha, mas, fora isso, é idêntica. Olho para o pingente e sinto uma forte ligação com quem quer que tenha sido aquele indivíduo.

—            Não tenho certeza, mas acho que era um amigo.

Estendo a mão para a cabeça do esqueleto e tiro o pingente de seu pescoço, entregando-o a Seis.

Vamos até a mesa. Não sei por onde começar. Uma espessa camada de poeira cobre resmas de papel e instrumentos de escrita. As anotações nas folhas presas à parede sobre a mesa foram feitas em um idioma que não conheço. Consigo reconhecer alguns numerais lóricos, e nada mais. Sobre uma velha cadeira de madeira há um tablet branco, e eu toco a tela escura. Nada acontece.

Seis abre a gaveta superior da mesa, encontra mais papéis e, quando pega o puxador da segunda gaveta, uma explosão na superfície acima nos derruba. Uma rachadura longa se abre no teto do cômodo e o concreto cede. Pedaços começam a cair em torno de nós.

—            Corra! — eu grito.

Com o pingente no pescoço, Seis arranca uma dúzia de folhas da parede, enquanto eu enfio o tablet na parte de trás da cintura de minha calça. Subimos correndo a escada e espiamos pela fresta entre o poço e o relógio de sol. Dezenas de mogs. Pequenos incêndios. Bernie Kosar transformou-se em um tigre com chifres curvos de carneiro. Está com o braço de um mog nos dentes. Sam não está mais perto da cerca, e também não vejo minha arca.

Estou prestes a sair do poço quando Seis passa voando por mim num tornado de nuvens. A tampa do poço é jogada para trás, e ela atravessa um grupo de cinco mogs, espalhando-os pelo quintal. Eu saio do poço e o fecho enquanto Seis pega a espada brilhante de um mog e fica invisível.

Uso minha telecinesia para arremessar contra a casa três mogadorianos armados que estão perto do poço. Eles explodem em cinzas, e quando me viro vejo um homem sem camisa, com uma espingarda nas mãos, paralisado na porta dos fundos. Atrás dele está a mãe de Sam, apavorada e de camisola.

Seis se materializa perto de dois mogadorianos que correm em minha direção com canhões reluzentes e corta o pescoço dos dois com um só golpe da espada. Depois usa sua telecinesia para jogar o carrinho de mão em outro, transformando-o em um monte de cinzas. Arremesso dois mogs contra um terceiro, e Seis os empala com um gesto rápido. Bernie Kosar salta para o meio do quintal e enterra os dentes em alguns mogs que estão tentando se levantar.

Onde está Sam? — grito.

Aqui!

Eu me viro e o vejo deitado de bruços sob um arbusto chamuscado. Há sangue em sua cabeça.

Sam! — a mãe dele grita da porta.

Ele se ajoelha com dificuldade.

Mãe!

A mulher grita novamente, mas um mog aparece e levanta Sam pela camisa. Concentro-me e arranco do chão o balanço enferrujado, porém, antes de uma das traves de metal varar o peito do mogadoriano, ele atira Sam por cima da cerca.

Com uma intensidade que eu nunca vi em Seis, ela dilacera os demais mogadorianos. Está coberta de cinzas quando pula a cerca para ir atrás de Sam. Eu salto sobre Bernie Kosar, e nós a seguimos.

Sam está caído de costas no quintal do vizinho. Lâmpadas com sensor de movimento se acendem acima dele. Eu salto das costas de Bernie Kosar e o levanto.

Sam? Você está bem? Cadê minha arca?

Ele abre os olhos com dificuldade.

Eles a pegaram. Sinto muito, John.

—            Ali! — Seis aponta para vários mogs correndo pelo campo em direção à floresta.

Coloco Sam nas costas de Bernie Kosar, mas ele mesmo desce.

—            Estou bem. Juro.

Do outro lado da cerca, ouvimos o grito da mãe dele.

Sam!

Eu vou voltar, mãe! Amo você!

E então é o primeiro a sair correndo atrás dos mogs. Seis e eu o alcançamos com facilidade, mas ela desvia para a direita para enfiar a espada em um mogadoriano que se aproximava. Há mais quatro mogadorianos a uns trinta metros à frente e, com o pingente grande pendurado em seu pescoço, ela os ataca, seguida de perto por Bernie Kosar.

Sam e eu entramos no campo lamacento, e dois mogadorianos aparecem em nosso caminho. Por cima do ombro, vejo mais dois se separando e marchando em nossa direção em um ângulo estratégico. Os outros entraram na floresta em dois trechos diferentes, e não consigo ver quem está com a arca. Tiro a adaga do bolso da calça. O cabo envolve minha mão.

Corro adiante, e os dois mogadorianos à frente também correm, e suas espadas balançam e cortam o campo vazio atrás de si. Quando estamos a menos de cinco metros de distância, salto com a adaga erguida acima de minha cabeça. Enquanto começo a cair, uma árvore enorme passa voando embaixo de mim, atropelando os mogadorianos e matando-os. Seis. Quando volto ao chão, viro-me e a vejo correndo para Sam e os dois mogadorianos que o cercam.

O que está à esquerda dele o agarra pela cintura. Seis arranca o mog e o arremessa para o meio do campo. Ele se levanta imediatamente e volta a correr.

Aproximo-me por trás do outro mogadoriano e enfio a adaga em sua nuca, puxando-a num ângulo que produz um talho até uma das escápulas. Ele vira um monte de cinzas, que cai em cima de meus sapatos.

Bernie Kosar se lança contra o outro mog, e logo sua língua está coberta de cinzas.

Temos de voltar para o carro e sair daqui — diz Seis. — Deve haver mais deles a caminho... Eles estavam esperando por nós.

Primeiro, temos de pegar minha arca — aviso.

—            Então precisamos nos dividir — ela fala. Com a espada coberta de fuligem, Seis aponta para os dois locais da floresta nos quais os mogadorianos desapareceram. — Bernie Kosar, você vem comigo. — Ele se transforma em um falcão, e ambos vão pela esquerda.

Sam e eu entramos na floresta pelo outro caminho. Logo ouvimos galhos se partindo, e corremos naquela direção. Eu me adianto e salto sobre uma série de árvores caídas, até enxergar quatro mogadorianos tentando fugir por uma pequena clareira. Mesmo com o luar, não consigo ver se algum deles carrega minha arca.

Desço a encosta de lado, amassando a vegetação rasteira, provocando um pequeno deslizamento de pedras soltas. Ouço Sam atrás de mim.

Eles já estão na metade da clareira. Ela está cheia de mato, mais de um metro e meio de altura, e eu corro o máximo que consigo. Sam grita e me pergunta em que direção estou indo, mas, em vez de responder, continuo correndo e aponto minha mão acesa para o céu, como se fosse um farol.

—            Certo! Já vi! — ele grita.

Finalmente, pouco antes de a clareira terminar e a floresta começar, quase consigo alcançar um deles. Mergulho para agarrar suas pernas e rasgo a parte de baixo de sua calça cáqui suja de lama cortando seu tendão de Aquiles e fazendo-o cair de costas com um urro. Enquanto ele se debate, subo em seu corpo e o esfaqueio no peito, matando-o.

Sam tropeça em minhas pernas e cai de cara no chão.

Pegou?

Não. Vamos!

Usando uma das mãos como lanterna e a outra como um facão corro pela floresta com facilidade, sem me importar em verificar se Sam está atrás de mim. Em menos de um minuto, vejo outro mog tentando passar por cima de um tronco caído. A vinte metros de distância, levanto o tronco do chão, viro-o e derrubo o mogadoriano de cabeça. Atravesso a vegetação rasteira e o encontro imóvel, debruço. Então percebo que ele não está com minha arca. Mato-o com dois golpes da adaga.

—            John? — Sam grita na escuridão. — Cara?

Acendo a mão novamente, e estou olhando pelas árvores quando Sam aparece.

Diga que conseguiu.

Ainda não — respondo.

Nada de arca — murmura Sam.

Espero que Seis tenha mais sorte. — Pego o tablet em minhas costas para mostrar a Sam. — Mas eu tenho isto.

Ele o pega de minhas mãos,

É do poço?

Não foi apenas isso que encontramos. Espere só até ouvir o que mais... — De repente reconheço o lugar onde estamos. Paro de andar. Paro até mesmo de respirar.

Sam agarra meu ombro e diz:

—            Ei, cara! O que foi? Sentiu alguma coisa? Será que alguém abriu sua arca?

Até onde posso perceber, minha arca não foi aberta. A sensação que ganha intensidade dentro de mim é outra bem diferente.

—            Estamos perto da casa de Sarah!

 

DEPOIS DO RANGIDO DA PORTA SE ABRINDO NA BASE DA torre, ouço passos. Escuto uma respiração reverberando. Seja quem for, não vou conseguir esconder uma Adelina drogada, um gato e uma arca cheia de armas e artefatos alienígenas. Lentamente volto a guardar o galho na arca e fecho a tampa. Legado caminha até a escada que desce do campanário, senta-se e olha a escuridão. Ficamos todos em silêncio, até Adelina soltar um ronco longo e sonoro.

Os passos na escada espiral se aceleram. Sacudo Adelina mais uma vez, tentando acordá-la. Ela se vira para o lado.

O que eu faço?, pergunto a Legado, movendo os lábios em silêncio. Ele pula em cima da tampa da arca e depois volta para o chão, vindo ronronar a meus pés. Não é uma resposta, mas me dá uma ideia. Eu me abaixo, coloco Legado em cima da arca e subo no parapeito de uma das janelas, onde o ar frio penetra o tecido de meu pijama e imediatamente me faz bater os dentes. Os passos estão se aproximando.

Com a mente, levanto a arca no ar e Legado se agarra com as unhas na tampa, para se segurar. Preciso me abaixar quando faço a arca passar por cima de minha cabeça e para fora da janela. Assim que a deixo sobre a grama congelada dez andares abaixo, Legado salta de cima da tampa e corre para dentro da escuridão. Então faço Adelina flutuar até passar por cima de mim, sinto sua camisola roçar o topo de minha cabeça, e a deposito cuidadosamente ao lado da arca.

Agora os passos soam muito altos. Penduro as pernas para o lado de fora da janela. Usando toda a concentração que ainda consigo reunir, sou capaz de levitar alguns centímetros acima da pedra fria. Empurro a mim mesma para o meio do vento. Antes de me fazer descer da torre, vejo o mogadoriano de bigode terminar de subir a escada e invadir o campanário.

Minha concentração enfraquece e se rompe em milhões de pedacinhos. Despenco em queda livre até que no último momento pressiono as mãos contra o peito e ordeno à minha mente que me faça flutuar como uma pena. Meu joelho direito toca o chão quase raspando no corpo trêmulo de Adelina.

Entro em pânico. Preciso tentar levar Adelina e a arca ao vilarejo, para nos escondermos — mas é o meio da noite, estamos usando roupas de dormir e só consigo ver uma ou outra janela iluminada na cidade —, ou tenho de encontrar logo um esconderijo seguro dentro do orfanato. O mogadoriano vai levar menos tempo para descer da torre do que levou para subir, mas ainda precisa percorrer um longo corredor e mais um lance de escadas para chegar ao térreo. Espio pelas portas duplas da frente e, quando me certifico de que o caminho está livre, coloco Adelina sobre a arca e faço as duas flutuarem para dentro da igreja. Minha força diminui muito, mas, de alguma forma, consigo reunir o poder necessário para me levar, e também a arca e Adelina, até o interior do recesso úmido, frio e escuro no qual a arca estava escondida antes.

Começo a pensar que foi o ato de abrir a arca que trouxe o mogadoriano até mim. Talvez a pulsação vermelha do cristal que derrubei seja um tipo de transmissor. Adelina deve saber o que é, o que devemos fazer. Para combater o medo de que uma cruel raça alienígena esteja vindo atrás de mim, para de algum jeito me desculpar com Adelina de tê-la drogado e para me aquecer um pouco, descanso a cabeça em seu peito e passo os braços em torno de sua cintura.

Horas mais tarde, ouço Adelina gemer e mexer suas pernas sob as minhas.

Adelina? — sussurro. — Está acordada?

Quem é? Marina?

Adelina — murmuro —, você precisa ficar muito, muito quieta.

Por quê? — ela pergunta no mesmo tom. — E onde estamos?

Na igreja, no lugar onde você escondeu a arca. Mas, por favor, me escute. Eles estão aqui. Os mogadorianos vieram atrás de mim ontem à noite depois que abri a arca, e eu tive de nos esconder.

Como você abriu a arca sozinha? Não é assim que funciona.

Você me disse como fazer. Estava falando enquanto dormia — minto. Eu poderia contar que a droguei, mas não estou preparada para essa briga.

A confusão na voz dela é evidente.

Não me lembro... Eu, eu lembro que me levantei da cama e depois... Acho que só isso. Você abriu a arca? O que havia lá dentro?

Muitas coisas, Adelina. Muitas. Um monte de pedras e jóias, e uma delas se acendeu em minha mão e começou a piscar, e acho que foi por isso que o mogadoriano apareceu.

Que mogadoriano? O que aconteceu?

Adelina tenta se sentar, mas eu a impeço antes que bata a cabeça no teto baixo.

Vi um homem no café há alguns dias. Ele estava com um livro sobre Pítaco e ficou me encarando. Usava um chapéu e tinha um bigode grande, e dava para ver que era de Mogadore. E então, ontem à noite, depois que abri a arca no campanário norte, ele apareceu.

Como escapamos?

Usei minha telecinesia para nos levar flutuando para fora da janela até o pátio, e depois para nos trazer até aqui.

Temos de sair daqui — ela murmura. — Precisamos deixar Santa Teresa imediatamente.

Meu entusiasmo é instantâneo. Eu a abraço no escuro e, para minha surpresa, ela me abraça de volta. Adelina rasteja até a saída do recesso e eu a sigo com a arca flutuando atrás de mim. Ao constatar que a igreja parece vazia, ela me pede para descê-la ao chão. Depois baixo a arca com muito cuidado e a coloco silenciosamente aos pés descalços de Adelina. Estou prestes a levitar até o chão quando irmã Dora aparece no fundo da igreja e marcha na direção de Adelina.

—            Onde você esteve? — ela pergunta em um tom ríspido. — Deixou seu posto durante toda a noite. Como pôde fazer isso? E o que esta bagagem está fazendo aqui?

—            Eu precisava de um pouco de ar, irmã Dora. — Adelina explica com calma. — Desculpe-me por ter abandonado meu posto.

Vejo os olhos de irmã Dora se estreitarem.

Com Marina?

O quê?

—            Fui acordada no meio da noite por quatro meninas que disseram que Marina tinha saído do quarto e que você estava com ela.

Adelina começa a falar, mas Ella aparece de repente atrás de irmã Dora e puxa a barra de seu vestido.

Irmã Dora? Acabei de ver Marina — ela mente.

Onde?

No quarto, dormindo.

Irmã Dora se abaixa e pega a menina pelo braço, e o olhar apavorado de Ella me deixa injuriada.

Você é uma menina mentirosa! Acabei de vir do dormitório, e não tem ninguém lá. Você está inventando desculpas para ela.

Irmã Dora, chega — diz Adelina.

Mas irmã Dora começa a arrastar Ella com tanta violência que os pés da menina praticamente nem tocam o chão.

—            Vamos até minha sala, e você vai aprender que aqui dentro não se mente.

Lágrimas correm pelo rosto de Ella. Pela abertura do recesso, olho para os dedos de irmã Dora e os removo do braço da menina. Irmã Dora grita de dor, e depois olha para a menina com uma expressão surpresa e confusa. E volta a agarrá-la.

Adelina corre para alcançá-las e, antes que eu possa jogar irmã Dora para o outro lado da igreja, ela a segura pelo pulso.

Irmã Dora se solta com um movimento brusco. Meu coração dá saltos de alegria com a nova aliança de Adelina comigo e com minha amiga.

—            Nunca mais toque em mim de novo — irmã Dora a adverte. — Você nem deveria estar aqui, Adelina. Nem aquele demônio imaturo que você trouxe.

Adelina sorri com calma.

Tem razão, irmã Dora. Talvez Marina e eu não devêssemos estar aqui, e talvez seja melhor irmos embora agora de manhã mesmo. Mas, antes, pode fazer a gentileza de soltar Ella? — Sua voz, embora cordial e paciente, carrega uma nota venenosa.

Como se atreve? — irmã Dora reage, furiosa. — Ora, você própria não passa de uma órfã! Nós as acolhemos quando ninguém mais as queria!

Somos todos iguais aos olhos do Senhor. Certamente você compreende isso, não?

Irmã Dora se prepara para dar mais um passo, mas Adelina volta a segurar seu braço. As duas mulheres se encaram.

Vou conversar com irmã Lúcia sobre isso. Você vai ser posta para fora daqui tão depressa que não terá tempo nem de rezar pedindo perdão.

Já disse que irei embora agora de manhã. E eu sempre terei a chance de rezar por perdão. — Adelina estende a mão para Ella, que a segura. Irmã Dora hesita antes de soltar o braço da menina com relutância. — Vou rezar pedindo não apenas o perdão de Marina por eu ter sido uma péssima guardiã, mas também para que Deus perdoe você por ter esquecido seu propósito aqui.

Elas continuam a se encarar por mais alguns segundos antes de irmã Dora se virar e sair da igreja, a passos firmes e pesados. Assim que ela desaparece, e enquanto Ella está de costas para mim, flutuo até o chão.

Oi, Ella — digo.

Marina! — A menina solta a mão de Adelina, corre para mim e me abraça. — Onde você esteve?

—            Adelina e eu precisávamos conversar a sós — digo, afastando-me um pouco. Depois olho para Adelina. — Tínhamos de conversar sobre nosso futuro.

Adelina estreita os olhos e então olha para a própria camisola suja e fica envergonhada.

—            Marina, vá pegar suas coisas e colocar essa arca em um lugar seguro. Vamos embora quanto antes.

Quando Adelina se afasta, Ella segura minha mão e a aperta.

—            Os homens maus estiveram aqui ontem à noite, Marina.

—            Eu sei, eu vi. É por isso que vamos embora.

Assim que acabo de falar, sei que vou perguntar a Adelina se podemos levar Ella conosco.

Eu vi os três — Ella sussurra.

Eu arquejo.

Havia três deles?

Estavam na janela ontem à noite, olhando para sua cama.

Sinto um arrepio percorrer minha espinha. Faço a arca flutuar de volta ao recesso e corro para o dormitório, desviando-me dos grupos de garotas no corredor que estão cochichando sobre algum acontecimento no vilarejo.

Eles estavam bem ali — ela diz, apontando para a janela.

E eram três, você tem certeza?

Ela move a cabeça em sentido afirmativo.

Sim, e me viram olhando para eles. Então fugiram.

E como eles eram? — pergunto.

Eram altos e tinham cabelos bastante compridos. E usavam casacos que iam quase até os pés.

Tinham bigode, não é? Eles tinham bigode?

Acho que não. Não me lembro de nenhum bigode.

Fico confusa, mas sei que não tenho muito tempo antes de Adelina aparecer com uma bolsa contendo todos os pertences que ela reuniu nos últimos onze anos. Estou prestes a correr para o chuveiro quando outra menina, Analee, me faz parar.

—            As aulas foram canceladas hoje. Aquela garota, Miranda Marquez, foi encontrada morta hoje cedo dentro da escola.

Sento-me na cama em estado de choque. Miranda Marquez é uma menina de cabelo escuro que mora no vilarejo e se senta a meu lado na aula de história da Espanha. Nossa professora, Maestra Munoz, sempre nos confunde porque Miranda é magra e alta como eu, e nosso cabelo é do mesmo comprimento. Levo um segundo para perceber que quem matou Miranda deve ter pensado que ela fosse eu. Alguém pode ter tentado me matar ontem à noite.

—            Isso é muito... muito ruim — murmuro.

— Além do mais — Analee diz —, ouvi uma das irmãs dizer que algumas pessoas no vilarejo viram gente voando ontem à noite, e agora tem um monte de vans de jornalistas lá fora, fazendo reportagem.

Tudo está acontecendo depressa demais. Os mogadorianos me encontraram. Acharam minha caverna. Eu estava sendo descuidada com meus Legados, e algumas testemunhas viram Adelina sair comigo pela janela do campanário. Uma garota de minha escola talvez tenha morrido por minha causa, e Adelina e eu estamos deixando o orfanato em pleno inverno, sem termos outro lugar em que ficar.

Tomo o banho quente mais rápido de minha vida e espero por Adelina.

 

— NÃO VAMOS À CASA DE SARAH — DIZ SAM, SEGUINDO-me pela margem da floresta.

— Temos esse tablet, que pode ser o transmissor que estamos procurando, e vamos voltar e ajudar Seis.

Dou um passo na direção dele.

—            Seis pode cuidar de si mesma. Estou aqui e Sarah está aqui. Eu a amo, Sam, e vou vê-la. Não quero saber o que você pensa a respeito.

Sam recua, e eu continuo caminhando na direção da casa de Sarah.

—            Tem certeza de que a ama, John? — Sam pergunta. — Ou está apaixonado por Seis? Qual das duas?

Eu me viro e aponto a luz de minha mão para o rosto dele.

Acha que não amo Sarah?

Ei, puxa!

Desculpe-me — murmuro, e abaixo a mão. Ele esfrega os olhos.

A pergunta faz sentido, cara. Vejo você e Seis flertando o tempo todo, o tempo todo, e bem na minha cara. Você sabe que gosto dela e nem se importa. E, como se não bastasse, você já tem a namorada mais gata de Ohio.

Eu me importo — sussurro.

Com o quê?

—            Com o fato de você gostar de Seis, Sam. Mas tem razão, eu gosto dela também. Não queria isso, mas é verdade. É estúpido, e uma crueldade com você, mas não consigo parar de pensar nela. Seis é bonita, é legal e é loriena, o que é, bem, superlegal. Mas eu amo Sarah. E é por isso que preciso vê-la.

Sam me segura pelo braço.

—            Não pode ir, cara. Temos de voltar e ajudar Seis. Pense nisso. Se eles estavam esperando por nós em minha casa, deve haver ainda mais deles esperando por nós na casa de Sarah.

Puxo o braço suavemente para me soltar.

Você pôde ver sua mãe, não é? Você a viu no quintal?

Sim — ele suspira.

Os olhos de Sam estão voltados para os próprios pés.

—            Você pôde ver sua mãe, então eu posso ver Sarah.

—            Isso não faz tanto sentido quanto você imagina. Temos o transmissor, lembra? Por isso estamos em Paradise. Só por isso.

Sam me entrega o tablet, e eu olho para a tela vazia, tocando-a em cada centímetro. Tento telecinesia. Aproximo o tablet de minha testa. Ele continua desligado.

—            Deixe-me tentar — diz Sam.

Enquanto ele mexe no aparelho, conto a ele sobre a escada, o esqueleto enorme com o pingente e a mesa e a parede cobertas de papéis.

—            Seis pegou algumas folhas, mas não conseguimos lê-las — digo.

—            Então meu pai tinha um refúgio subterrâneo secreto? — Sam sorri pela primeira vez em horas e me devolve o tablet. — Ele era muito legal. Queria muito dar uma olhada nos papéis que Seis pegou.

É claro — prometo. — Logo depois que eu vir Sarah.

Sam abre os braços, perplexo.

O que posso fazer para você mudar de ideia? Basta me dizer.

Nada. Você não pode fazer nada para me impedir.

 

A última vez que estive na casa de Sarah foi no dia de Ação de Graças. Lembro-me de entrar no jardim e ver Sarah acenando da janela da frente.

"Oi, bonitão!", ela disse ao abrir a porta, e eu me virei para olhar por cima do ombro e fingir que ela falava com outra pessoa.

A casa parece completamente diferente às duas da madrugada. Com todas as janelas escuras e a porta da garagem fechada, parece fria e vazia. Pouco amistosa. Sam e eu estamos deitados de bruços no chão, escondidos nas sombras de uma casa na esquina, e não sei como vou falar com ela.

Pego no bolso da calça o celular pré-pago que mantive desligado durante dias.

— Posso enviar mensagens de texto até ela acordar.

—            Isso até que é uma ideia bastante boa. Ande logo, para podermos sair daqui. Juro, Seis vai nos matar, ou, pior, talvez ela esteja prestes a ser morta por um bando de mogs, enquanto nós estamos deitados aqui na grama, nos preparando para viver uma cena de Romeu e Julieta.

Ligo o celular e digito: Prometi que voltaria. Vc tá acordada?

Contamos até trinta depois de eu enviar, e então digito: Amo você. Estou aqui.

—            Ela pode pensar que é trote — Sam sussurra depois de mais trinta segundos. — Diga alguma coisa que só você saberia.

Eu tento: Bernie Kosar está com saudades.

 

A luz se acende na janela do quarto de Sarah. Em seguida, meu telefone vibra com uma mensagem: É você mesmo? Está em Paradise? Fico tão animado que arranco um punhado de grama.

Calma — Sam sussurra.

Não consigo evitar.

Respondo: Estou aqui fora. Encontre-me no parquinho em 5?

Meu telefone vibra imediatamente: Estarei lá. :)

Sam e eu estamos escondidos atrás de uma caçamba de lixo no fim da rua quando Sarah dá os primeiros passos no parquinho de concreto. Assim que a vejo, perco o fôlego e sou inundado por muitas emoções. Ela está a menos de vinte metros de distância, vestindo jeans escuro e uma jaqueta preta de lã. Sua cabeça está coberta com um gorro branco, mas ainda posso ver seus longos cabelos balançarem sobre seus ombros com a brisa suave. Sua pele impecável brilha sob a luz da única lâmpada do parquinho, e na mesma hora sinto vergonha por estar coberto de sujeira e cinzas de mogadorianos. Dou um passo para o lado e começo a me afastar da caçamba, mas Sam segura meu pulso.

—            John, sei que vai ser muito difícil — ele sussurra —, mas precisamos estar de volta àquela floresta em dez minutos. Estou falando sério. Seis conta conosco.

—            Farei o melhor que puder — respondo, a esta altura já nem pensando mais nas consequências. Sarah está logo ali, e eu estou tão perto que praticamente consigo sentir o perfume de seu xampu.

Eu a vejo olhar de um lado para o outro, à minha procura. Finalmente, Sarah se senta em um balanço e se vira, esticando as cordas. Ela começa a girar devagar, e eu me movo em torno do parquinho, parando atrás das árvores, observando-a. Ela está linda. Perfeita.

Espero até que ela esteja virada para o outro lado e então saio das sombras, e, quando ela gira de novo, lá estou eu.

—            John?

A ponta dos tênis de Sarah raspa o concreto, fazendo-a parar de girar.

—            Oi, linda — digo.

Sinto meu sorriso se estender até os cantos dos olhos. Sarah cobre a boca e o nariz com as mãos. Eu me aproximo, e ela tenta se levantar do balanço, mas as cordas ainda estão tensas demais para ela sair. Pulo para a frente e seguro as cordas do balanço. Viro Sarah de frente para mim e levanto meus braços, erguendo-a no balanço até seu rosto estar na mesma altura do meu. Então me inclino e a beijo, e assim que nossos lábios se encontram é como se eu nunca tivesse saído de Paradise.

Sarah — murmuro no ouvido dela. — Senti tanta, tanta saudade de você.

Não acredito que você esteja aqui. Isto não pode ser real,

Eu a beijo mais uma vez, e não paro enquanto giramos juntos até as cordas acima dela se separarem. Sarah desliza para fora do assento e para em meus braços. Eu a beijo no rosto e no pescoço, e ela passa as mãos por minha cabeça, agarrando meu cabelo curto.

Quando a ponho no chão, ela diz:

Alguém cortou o cabelo.

É, esse é meu visual cara-durão-em-fuga. O que acha? Gostou?

Gostei. Mas, mesmo se você fosse careca, não faria a menor diferença.

Recuo um passo, querendo gravar na memória esta imagem de Sarah. Noto o brilho das estrelas atrás dela, a inclinação de seu gorro. Seu nariz e as bochechas estão vermelhos por causa do frio e, enquanto ela morde o lábio e olha para mim, uma pequena nuvem de vapor brota de sua boca.

Pensei em você todo santo dia, Sarah Hart.

Juro que pensei em você duas vezes mais.

Abaixo a cabeça até nossas testas se encostarem. Ficamos assim, sorrindo como bobos, até eu perguntar:

Como você está? Como estão as coisas por aqui?

Agora estão melhores.

É muito difícil ficar longe de você — digo, beijando seus dedos frios. — Fico o tempo todo pensando em como é tocá-la e ouvir sua voz. Eu quase liguei para você todas as noites.

Sarah segura meu queixo e passa o polegar sobre meus lábios.

Fiquei sentada no carro de meu pai muitas vezes, apenas imaginando onde você estaria. Só me bastaria saber qual direção tomar e eu teria começado a dirigir.

Estou bem aqui. Bem diante de você — murmuro.

Ela abaixa as mãos.

Quero ir com você, John. Não me importo. Não posso continuar assim.

É perigoso demais. Acabamos de lutar contra cinquenta mogs na casa de Sam. Viver comigo agora é assim. Não posso envolvê-la nisso tudo.

Os ombros de Sarah tremem, e lágrimas brotam dos cantos de seus olhos.

Não posso ficar aqui, John. Não enquanto você está por aí, e eu nem sei se vivo ou morto.

Olhe para mim, Sarah. — Ela levanta a cabeça. — De jeito nenhum eu vou morrer. Saber que você está aqui, esperando por mim, é como um campo de força. Vamos ficar juntos. Logo.

Seu lábio estremece.

É muito difícil. Tudo está horrível agora, John.

Tudo está horrível? Como assim?

—            As pessoas são babacas. Todo mundo fica dizendo coisas detestáveis sobre você, e dizem muitas coisas sobre mim também.

—            Que coisas?

—            Dizem que você é um terrorista, um assassino, e que odeia os Estados Unidos. Os garotos na escola inventam apelidos como "Bomba Smith". Meus pais dizem que você é perigoso e que nunca mais posso falar com você de jeito nenhum, e, para piorar a situação, sua cabeça está a prêmio, então as pessoas vivem falando sobre atirar em você.

Ela abaixa a cabeça.

Não acredito que você tenha de aguentar tudo isso, Sarah. Pelo menos você sabe a verdade.

Perdi quase todos os amigos que tinha. E ainda por cima estudo em outra escola agora, e lá todos pensam que sou uma esquisitona.

Estou arrasado. Sarah era a menina mais linda, mais popular, mais querida do colégio antigo. Agora ela é uma excluída.

—            As coisas não serão sempre assim — sussurro.

Ela não consegue mais conter as lágrimas.

Eu amo tanto você, John! Mas não consigo imaginar como vamos sair dessa confusão. Talvez você deva se entregar.

Não vou me entregar, Sarah. Não posso. Vamos sair dessa. E claro que vamos. Sarah, meu grande e único amor. Eu prometo que, se você esperar por mim, tudo vai melhorar.

Mas as lágrimas continuam correndo.

—            Mas por quanto tempo vou ter de esperar? E o que vai acontecer quando tudo enfim melhorar? Você vai voltar para Lorien?

—            Não sei. Paradise é o único lugar no qual quero estar agora, e você é a única pessoa com quem quero ficar no futuro. Mas, se de alguma forma conseguirmos derrotar os mogadorianos, então, sim, terei de voltar a Lorien. Mas não sei quando isso vai acontecer.

O celular de Sarah vibra em seu bolso, e ela o puxa um pouco, para checar a tela.

Quem está enviando mensagem para você a essa hora? — pergunto.

É só Emily. Talvez você deva simplesmente se entregar e explicar a eles que não é um terrorista. Não quero perder você para sempre, John.

Escute, Sarah, não posso me entregar. Não posso entrar em uma delegacia e tentar explicar como uma escola inteira foi destruída e cinco pessoas foram mortas. Como é que vou explicar Henri? Aqueles documentos que foram encontrados em nossa casa? Não posso ser preso. Quer dizer, Seis me mataria agora mesmo se soubesse que estou aqui falando com você.

Sarah funga e limpa as lágrimas com as costas das mãos.

Por que Seis o mataria se soubesse que você está aqui?

Porque ela precisa de mim neste momento, e é perigoso eu ficar aqui.

—            Ela precisa de você? Ela precisa? Eu preciso de você, John. Preciso de você aqui para me dizer que tudo vai ficar bem, que tudo isso vale a pena.

Sarah caminha lentamente até um banco marcado com iniciais. Sento-me a seu lado e apoio meu ombro no dela. Agora estamos no escuro, e eu não consigo ver seu rosto muito bem.

Não sei por que, mas Sarah se inclina para o outro lado e diz:

Seis é muito bonita.

Ela é — concordo. Não devia ter concordado, mas simplesmente escapou de minha boca. — Mas não é tão bonita quanto você. Você é a garota mais bonita que eu já vi.

Mas você não precisa ficar longe de Seis como tem de ficar longe de mim.

—            Quando saímos para caminhar, temos de ficar invisíveis, Sarah! Não podemos ficar passeando pela rua de mãos dadas. Temos de nos esconder do mundo inteiro. Preciso me esconder quando estou com ela, da mesma forma que tenho de fazer quando estou com você.

Sarah pula do banco e olha para mim.

—            Você sai para caminhar com ela? Segura a mão dela quando vocês dois passeiam pela rua?

Levanto-me e me aproximo dela com os braços estendidos, as mangas de meu casaco ainda sujas de lama.

—            É necessário. Só assim consigo ficar invisível.

Você a beijou?

O quê?

Responda. — Há algo novo em sua voz. Uma mistura de ciúme e solidão, e raiva suficiente para dar força às palavras.

Balanço a cabeça.

—            Sarah, eu amo você. Não sei mais o que dizer. Quer dizer, não aconteceu nada.

Um tsunami de desconforto   me atinge, e eu vasculho meu   vocabulário em busca das palavras certas. Ela está furiosa.

Foi uma pergunta simples, John. Você a beijou?

Não beijei Seis, Sarah. Nós não nos beijamos. Eu amo você — digo, e me retraio ante a acidez das palavras, a maneira como a frase soa muito pior do que eu imaginava.

Entendo. Por que foi tão difícil responder, John? Minha vida só melhora. Ela gosta de você?

Isso não importa, Sarah. Eu amo você, então Seis não tem importância. Nenhuma outra garota tem importância!

Estou me sentindo uma idiota — ela resmunga, cruzando os braços.

Pare, por favor. Sarah, você está entendendo tudo errado.

Estou, John? — Ela me encara com os olhos cheios de lágrimas. — Passei por tantas coisas por sua causa.

Tento segurar sua mão, mas Sarah se afasta assim que nossos dedos se tocam.

Não — ela diz, e sua voz tem um tom rígido.

O telefone vibra novamente no bolso de sua jaqueta, mas ela não confere.

Quero ficar com você, Sarah — repito. — Parece que nada do que estou dizendo agora sai direito. Tudo o que posso falar é que passei semanas sentindo muito a sua falta, e não houve um único dia no qual não tenha pensado em ligar para você ou escrever uma carta. — Estou inseguro. Sinto que a estou perdendo. — Amo você. Não duvide disso nem por um segundo sequer.

Também amo você — ela grita.

Fecho os olhos e inspiro o ar frio. Um sentimento ruim me invade. Uma espécie de formigamento que começa em minha garganta e desce até os pés. Quando abro os olhos, Sarah está vários passos longe de mim.

Ouço um barulho à minha esquerda, viro a cabeça e vejo Sam. Ele está de cabeça baixa, e a balança de um jeito que indica que ele preferiria não nos interromper, mas que não há outra saída.

Sam? — Sarah pergunta.

Oi, Sarah — ele sussurra.

Sarah o abraça.

É muito bom ver você — Sam diz com o rosto mergulhado no cabelo de Sarah. — Mas, sinto muito, Sarah. Sinto muito mesmo, eu sei que vocês não se veem há um bom tempo, mas John e eu temos de ir. Estamos correndo um grande perigo. Você nem imagina.

Eu acho que imagino, sim.

Ela se afasta e assim que começo a reforçar o quanto a amo, quando estou prestes a começar a me despedir, o caos explode.

Tudo acontece tão depressa que não consigo me dar conta de tudo, vendo as cenas se embaralhando de maneira aleatória como se um projetor de cinema tivesse ficado desgovernado. Sam é agarrado por trás por um homem que usa uma máscara de gás. Em sua jaqueta azul, vejo as letras FBI bordadas nas costas. Alguém segura Sarah e a leva para longe de mim. Uma cápsula metálica desliza pela grama e para bem perto de meus pés, e a fumaça branca que se desprende de ambas as extremidades faz meus olhos e minha garganta arderem. Não enxergo nada. Ouço Sam tossir. Afasto-me da cápsula aos tropeços e caio de joelhos perto de um escorrega de plástico. Quando levanto a cabeça, vejo uns dez policiais a meu redor, todos com armas nas mãos. O policial mascarado que pegou Sam está pressionando o joelho contra as costas de meu amigo. Uma voz grita por um megafone:

—            Não se mova! Ponha as mãos na cabeça e deite-se de bruços no chão! Você está preso!

Enquanto levo as mãos à cabeça, os carros que estavam estacionados na rua de repente ganham vida; faróis são acesos, luzes vermelhas começam a girar sobre os painéis. Viaturas chegam pela esquina cantando pneus, e um veículo blindado com a palavra SWAT escrita na lateral sobe na calçada e freia bem no meio da quadra de basquete. Homens gritam e saem dele com velocidade alarmante, e é nesse momento que alguém chuta minha barriga. Meus pulsos são algemados. Ouço o barulho de um helicóptero no céu.

Minha mente só concebe uma explicação.

Sarah. As mensagens de texto. Não eram de Emily. A polícia estava conversando com ela.

A pequena parte de meu coração que não se partiu quando Sarah se afastou de mim agora se estilhaça.

Balanço a cabeça com o rosto no concreto. Sinto alguém pegar minha adaga. Mãos tiram o tablet de minha cintura. Vejo Sam ser levantado do chão pelos braços, e nossos olhos se encontram por um breve instante. Não consigo saber o que ele está pensando.

Meus tornozelos são algemados também, e uma corrente os liga às algemas em meus pulsos. Sou levantado com violência. As algemas estão muito apertadas e machucam meus pulsos. Um capuz preto é posto sobre minha cabeça e preso em torno de meu pescoço. Não vejo nada. Dois policiais seguram meus cotovelos enquanto um terceiro me empurra para a frente.

— Você tem o direito de permanecer calado... — um deles começa a falar enquanto sou conduzido e atirado dentro da traseira de um veículo.

 

DEPOIS DE CINCO MINUTOS, EU ME LEVANTO DA CAMA E olho dentro do armário para ver se ainda há alguma roupa que eu queira levar conosco. Estou segurando um suéter preto quando decido que não posso partir sem me despedir de Héctor.

Pego do cabide na parede o casaco de outra garota, um com um capuz, e escrevo um breve bilhete para Adelina. Preciso me despedir de uma pessoa na cidade antes.

Saio pelas portas duplas para o ar gelado e, assim que vejo as viaturas de polícia e as vans da imprensa ocupando a Calle Principal, me sinto melhor. Os mogadorianos não tentariam nada com tantas testemunhas. Cruzo o portão com a cabeça coberta pelo capuz. A porta da casa de Héctor está entreaberta, e eu bato de leve no batente:

Héctor?

Sim? — uma mulher responde.

A porta se abre e eu vejo a mãe de Héctor, Carlotta. Seu cabelo grisalho está cuidadosamente preso com grampos, e o rosto sorridente está rosado. Ela usa um belo vestido vermelho e avental azul. Sinto cheiro de bolo dentro da casa.

Héctor está em casa, Señora Ricardo? — pergunto.

Meu anjo — ela diz. — Meu anjo voltou.

Ela lembra o que fiz, como curei sua doença. Sinto-me constrangida diante da maneira como olha para mim, mas ela se curva para me abraçar, e eu não consigo resistir.

Meu anjo voltou — Carlotta repete.

Fico tão feliz por você estar se sentindo melhor, Señora Ricardo.

As lágrimas que caem de seus olhos me emocionam, e meus olhos também ficam cheios de água.

— De nada — murmuro.

Ouço um miado atrás de Carlotta e me inclino para ver Legado vindo da cozinha com leite pingando do queixo. Ele se esfrega em minhas canelas e ronrona, e me abaixo para afagar seu pelo.

—            Desde quando vocês têm um gato? — pergunto.

—            Hoje de manhã ele apareceu em minha porta, e acho que ele é uma gracinha. Chamei-o de Feo.

É bom vê-lo, Feo,

Ele é um bom gato — Carlotta diz, com as mãos agora na cintura. — Um garoto muito faminto.

Fico muito feliz por vocês dois terem se encontrado. Carlotta, sinto muito, mas tenho de ir. Precisava falar com Héctor. Ele está em casa?

Está no café — ela responde. A decepção por Héctor estar bebendo tão cedo deve estar estampada em meu rosto, porque Carlotta acrescenta: — Ele foi tomar café. Agora é só café.

Eu a abraço para me despedir, e ela me beija dos dois lados do rosto.

O café está cheio. Estendo a mão para a porta, mas, pouco antes de abri-la, algo me faz parar: Héctor está sentado a uma mesa pequena, mas só o enxergo com minha visão periférica. Meus olhos estão grudados no homem sentado na cadeira na frente dele: é o mogadoriano de ontem à noite. Ele agora está barbeado, e seu cabelo preto foi clareado para um tom castanho, mas não há como confundi-lo. Ele é tão alto e forte quanto antes, tem os ombros igualmente largos e continua sombrio e carrancudo, com as mesmas sobrancelhas grossas. Não preciso da descrição do assassino para saber que ele se encaixa perfeitamente, com ou sem cabelo tingido e bigode rapado.

Solto a porta e dou um passo para trás. Ah, Héctor, eu penso. Como pôde?

Minhas pernas tremem; meu coração dispara. Enquanto estou ali parada olhando para eles, o mogadoriano se vira e me vê pela janela. Fico gelada. O mundo parece parar; estou travada, presa ao chão, incapaz de mover um músculo sequer. O mogadoriano me observa, o que faz Héctor olhar para mim também, e só depois de ver seu rosto eu entro em ação.

Recuo com passos inseguros, depois me viro e corro, mas, antes que tenha me afastado muito, ouço a porta do café se abrir. Não me viro. Se o mogadoriano estiver me seguindo, não quero saber.

— Marina! — Héctor grita. — Marina!

 

Quatro oficiais estão no carro comigo. Encosto a ponta dos dedos nas correntes pesadas. Tenho certeza de que poderia quebrá-las se quisesse, ou simplesmente abrir as algemas usando telecinesia, mas pensar em Sarah tira de mim a energia necessária para isso. Ela não poderia ter me delatado. Por favor, que não tenha sido ela.

A primeira parte do percurso leva vinte minutos, e eu nem imagino onde estamos. Sou tirado do carro e jogado dentro de outro que presumo ser mais seguro, destinado a uma viagem mais longa. Essa segunda parte leva uma eternidade — duas horas, talvez três — e, quando finalmente paramos e volto a ser arrancado do carro, o mal-estar sobre o que Sarah pode ter feito atingiu uma intensidade quase insuportável.

Sou levado para dentro de um prédio. Depois de cada curva, tenho de esperar até uma porta ser aberta. Conto quatro portas, e o ar muda a cada novo corredor, tornando-se cada vez mais abafado. Enfim, sou empurrado para uma cela.

— Sente-se — um deles ordena.

Sento-me em uma cama de concreto. O capuz é removido, mas as algemas e as correntes permanecem. Quatro policiais saem e fecham a porta com um estrondo. Os dois maiores sentam-se do lado de fora da cela, enquanto os outros dois vão embora.

A cela é pequena, três por três, e contém a cama em que estou sentado, coberta de manchas amarelas, e um vaso sanitário e uma pia de metal. Mais nada. Três das quatro paredes são de concreto maciço, e há uma pequena janela bem no alto da parede do fundo.

Apesar do colchão imundo, deito-me, fecho os olhos e espero minha mente se aquietar.

—            John! — A voz de Sam grita.

Abro os olhos. Corro para a frente da cela, agarrando as grades.

Aqui! — grito de volta.

Cale-se! — ordena o guarda maior, apontando o cassetete para mim. No final do corredor, alguém também grita com Sam. Ele não diz mais nada, mas pelo menos sei que está por perto.

Passo a mão por entre as grades da cela e pressiono a palma contra a superfície lisa metálica da fechadura. Fecho os olhos, concentro minha telecinesia no mecanismo interno, mas não sinto nada além de uma vibração que faz minha cabeça doer quando me concentro.

A cela... é controlada eletronicamente. Não posso abri-la com telecinesia.

 

Corro de volta ao orfanato o mais rápido possível. Sinto o capuz se encher de ar gelado atrás de mim e, à medida que minha velocidade aumenta, o céu e as nuvens se fundem num branco brilhante.

Passo correndo pelas portas duplas e me dirijo ao dormitório. Adelina está sentada em minha cama, com o bilhete dobrado sobre as pernas. Há uma maleta a seus pés. Quando me vê, ela se levanta com um salto e me abraça.

—            Você precisa ver isto — ela diz, entregando-me o papel. Eu o desdobro e percebo que não é o bilhete que deixei, afinal, mas a xerox de uma foto.

Levo um segundo para entender o que é a imagem e, quando a reconheço, meu coração se aperta. Alguém queimou um símbolo enorme e complexo na encosta de uma montanha perto dali. Com suas linhas cuidadosas e seus ângulos definidos, é uma réplica exata das cicatrizes em meu tornozelo.

A folha de papel cai de minha mão e plana lentamente até o chão.

—            Isso foi encontrado ontem, e a polícia está distribuindo essas cópias em busca de informação — Adelina me conta. — Temos de ir agora.

—            Sim, com certeza. Mas, antes, preciso falar com você sobre Ella — digo.

Adelina inclina a cabeça.

O que tem?

Quero que ela venha con...

Antes que eu possa terminar a palavra, um estrondo violento me derruba. Adelina também cai e bate o ombro no chão. Houve uma explosão em algum lugar dentro do orfanato. Várias meninas entram correndo no quarto, aos berros; outras passam pela porta procurando refúgio em algum lugar. Ouço irmã Dora gritar, dizendo-lhes para irem para a ala sul.

Adelina e eu nos levantamos e saímos para o corredor, mas então ocorre outra explosão, e de repente sinto um vento gelado. Com a gritaria, não consigo ouvir o que Adelina está dizendo, mas sigo seu olhar até o teto e vejo um buraco irregular do tamanho de um ônibus. Enquanto estou olhando aquilo, um homem alto de sobretudo longo e cabelo vermelho comprido aparece na beirada do buraco. Ele aponta para mim.

 

A SALA DE INTERROGATÓRIO É QUENTE E ESCURA. APOIO a cabeça na mesa diante de mim e tento não dormir, mas, depois de passar a noite toda acordado, não consigo evitar. Na mesma hora, sinto uma visão se formando e ouço os sussurros. Sinto que estou flutuando pela escuridão, e então, como se fosse lançado por um canhão, voo por um túnel sombrio. O preto se torna azul. O azul vira verde. Os sussurros me seguem e se tornam mais fracos à medida que avanço pelo túnel. De repente, paro com um solavanco e tudo fica em silêncio. Sinto uma rajada de vento acompanhada de uma luz brilhante e, quando olho para baixo, percebo que estou no pico nevado de uma montanha.

A vista é espetacular, com montanhas que se estendem por quilômetros. Abaixo de mim há um vale verde e um cristalino lago azul. Sinto-me atraído pelo lago e começo a descer a encosta, quando vejo pequenos lampejos de luz a seu redor. Como se estivesse usando binóculos, minha visão subitamente fica ampliada e vejo centenas de mogadorianos armados disparando contra quatro figuras que correm.

Minha raiva é imediata e as cores se fundem enquanto corro montanha abaixo. Quando estou a algumas centenas de metros do lago, o céu acima de mim ruge e eu vejo uma massa de nuvens negras. Relâmpagos explodem no vale e trovões ressoam. Vou ao chão quando à minha volta caem vários raios, e é nesse momento que vejo o olho brilhante se formar no meio das nuvens e se voltar para baixo.

— Seis! — eu grito, mas o trovão abafa minha voz. Sei que é ela, mas o que ela está fazendo aqui?

As nuvens se abrem, e alguém cai no vale. Minha visão é amplificada de novo, e vejo que eu estava certo: Seis se posiciona furiosamente entre o exército de mogadorianos e duas meninas pequenas e dois homens mais velhos. Ela está com os braços erguidos acima da cabeça, e começa a cair uma chuva pesada.

—            Seis! — grito outra vez, e um par de mãos agarra meus ombros por trás.

Meus olhos se abrem de repente e levanto a cabeça da mesa com um susto. As luzes da sala de interrogatório estão acesas, e um homem alto de rosto redondo está de pé a meu lado. Ele usa um terno preto e um distintivo preso ao cinto. O tablet branco está na mão dele.

—            Calma, garoto. Sou o detetive Will Murphy, do FBI. Como você está?

—            Muito bem — respondo, atordoado pela visão. Quem eram aquelas pessoas que Seis estava protegendo?

Ótimo. — O detetive se senta, e diante dele há um lápis e um bloco de papel. Com cuidado, ele mostra o tablet no lado esquerdo da mesa. — Então... — começa, falando lentamente. — Seis o quê? Você tem seis o quê?

O quê?

—            Você estava gritando o número seis enquanto dormia. Quer me dizer o que isso significa?

—            É minha categoria no golfe.

Minha mente tenta recuperar o rosto das duas meninas que estavam atrás de Seis no vale, mas a imagem está fora de foco. O detetive Murphy ri.

Ah, claro. O que acha de conversarmos um pouco? Vamos começar pela certidão de nascimento que você apresentou no colégio em Paradise. É falsa, John Smith. Na verdade, não encontramos nem uma migalha sobre você antes de seu aparecimento em Paradise, meses atrás — ele declara, olhando-me como se esperasse uma resposta. — Seu número do seguro social é de um sujeito morto da Flórida.

Isso é uma pergunta?

O sorriso largo do detetive se contorce.

Por que não começa me dizendo seu nome verdadeiro?

John Smith.

Certo. Onde está seu pai, John?

Morto.

Que conveniente!

Na verdade, é provável que essa seja a coisa mais inconveniente que já me aconteceu até agora.

O detetive anota algo no bloco de papel.

De onde você veio?

Do planeta Lorien, a quinhentos milhões de quilômetros da Terra.

A viagem deve ter sido bem longa, John Smith.

—            Levou quase um ano. Na próxima vez vou trazer um livro.

Ele deixa o lápis na mesa, cruza os dedos atrás da cabeça e se recosta na cadeira. Depois, volta para a frente e ergue o tablet.

Quer me dizer o que é isto?

Eu esperava que você pudesse me dizer. Encontrei na floresta.

O detetive segura o tablet pela beirada e assobia.

Encontrou isto aqui na floresta? Em que lugar da floresta?

Perto de uma árvore.

Vai bancar o engraçadinho com todas as perguntas?

Depende, detetive. Está trabalhando para eles?

Ele volta a deixar o tablet na mesa.

Se estou trabalhando para quem?

—            Os morlocks. — É a primeira lembrança que me ocorre das aulas de inglês.

O detetive Murphy sorri.

Pode sorrir, mas eles provavelmente vão chegar logo — digo.

Os morlocks?

Sim, senhor.

Como os de A máquina do tempo?

Isso mesmo. Para nós, esse livro é como a Bíblia.

E vamos ver se adivinho: você e seu amigo, Samuel Goode, são elois?

Somos lorienos, na verdade. Mas, por hoje, eloi serve.

O detetive põe a mão no bolso e bate minha adaga na mesa. Olho para a lâmina de diamante de dez centímetros como se jamais a tivesse visto. Poderia matar esse homem com grande facilidade, simplesmente movendo os olhos da lâmina para o pescoço dele, porém antes preciso libertar Sam.

Para que serve isto, John? Por que você precisa de uma faca como esta?

Não sei para que servem facas como essa, senhor. Entalhar?

                Ele pega o lápis e o bloco.

Por que não me conta o que aconteceu no Tennessee?

—            Nunca estive lá. Mas ouvi dizer que é um lugar agradável. Talvez vá visitá-lo quando sair daqui, fazer um passeio, ver as paisagens. Alguma sugestão?

Ele assente, joga o bloco na mesa e arremessa o lápis em minha direção. Eu o desvio sem levantar nem um dedo sequer, jogando-o contra a parede, mas o detetive não percebe e sai pela porta de aço levando o tablet e minha adaga.

Pouco depois estou de volta à cela. Preciso sair daqui.

—            Sam? — grito.

O guarda que está sentado do lado de fora se levanta da cadeira e tenta acertar meus dedos com o cassetete. Solto as grades pouco antes de ser atingido.

Cale a boca! — ele ordena, apontando o cassetete para mim.

Acha que tenho medo de você? — pergunto.

Fazê-lo entrar em minha cela parece uma opção bastante boa.

Pouco me importo, pirralho. Mas se continuar com isso vai se arrepender rapidinho.

—            Você não conseguiria me acertar nem mesmo se tentasse; sou muito rápido, e você é muito gordo.

O guarda ri.

—            Por que não vai sentar na cama e cala a boca, hem?

—            Sabe que posso matar você quando eu quiser, não é? Sem nem mesmo levantar um dedo.

Ah, é? — ele responde. O guarda dá um passo à frente. Seu hálito tem um cheiro rançoso, como de café velho. — E por que não matou ainda?

Apatia e coração partido. Mas esses dois sentimentos vão passar, e então vou me levantar e partir.

Mal posso esperar, Houdini.

Estou quase o provocando a entrar e, assim que ele destrancar a porta, Sam e eu estaremos livres.

Sabe com quem você se parece?

Diga.

Eu me viro de costas e dobro o corpo para a frente.

—            Agora chega, moleque!

O guarda estende a mão para um painel eletrônico na parede, e quando está se aproximando da porta da cela um estrondo ensurdecedor sacode todo o andar. O guarda cambaleia e bate a testa na grade, caindo de joelhos. Eu vou ao chão e, instintivamente, rolo para debaixo da cama. Começa um pandemônio: gritos e tiros, metais em choque e barulhos altos. Um alarme dispara, e uma luz azul brilha no corredor.

Giro no chão até ficar de costas e torço as mãos para segurar com firmeza as correntes que prendem meus pulsos e, usando as pernas como ponto de apoio, estico o corpo e parto em duas a corrente que prende minhas mãos e meus pés. Uso telecinesia para abrir as algemas e jogá-las no chão. Faço o mesmo com as que estão em meus tornozelos.

John! — Sam grita no corredor.

Rastejo até a frente da cela.

Bem aqui!

O que está acontecendo?

—            Eu ia fazer a mesma pergunta! — grito de volta.

Outros prisioneiros também gritam de suas grades. O guarda que caiu na frente de minha cela resmunga e tenta se levantar. Vejo o sangue escorrendo de um corte em sua cabeça.

O chão treme outra vez. Dessa vez o estrondo é mais violento e demorado que o primeiro, e uma nuvem de poeira surge do lado direito do corredor. Fico cego por um momento, mas enfio a mão pelas grades e grito para o guarda:

Deixe-me sair daqui!

Ei! Como você tirou as algemas?

Vejo que ele está desorientado, cambaleando alguns passos para a direita, alguns para a esquerda, ignorando os outros guardas armados que passam em disparada pelo corredor. Ele está coberto de poeira.

Ouço centenas de tiros que vêm do lado direito do corredor. Eles são respondidos por um rugido animal.

—            John! — Sam grita com um desespero que jamais ouvi em sua voz.

Olho fixamente para o guarda e grito:

—            Se não me deixar sair, todos nós morreremos aqui dentro!

O guarda olha na direção do rugido e o terror se estampa em seu rosto. Ele leva a mão à arma lentamente, mas, antes que possa alcançar a empunhadura, ela se afasta flutuando. Conheço esse truque, já o vi durante um passeio noturno na Flórida, e observo o guarda se virar confuso e correr.

Seis aparece diante da porta de minha cela, ainda com o pingente grande no pescoço, e assim que vejo seu rosto percebo que ela está furiosa comigo. Também percebo que ela tem muita pressa para me tirar dali.

—            O que está acontecendo lá, Seis? Sam está bem? Não consigo ver nada — digo.

Ela olha para o final do corredor e se concentra em alguma coisa, e um molho de chaves aparece flutuando e vem até suas mãos. Seis as insere em um painel metálico na parede, e minha porta se abre. Saio correndo e finalmente consigo ver o corredor. É muito longo, com pelo menos quarenta celas entre mim e a saída. Mas a saída desapareceu, assim como a parede onde ela deveria estar, e vejo a cabeça chifruda gigantesca de um piken. Há dois guardas em sua boca, e uma mistura de baba e sangue escorre de seus dentes afiados.

—            Sam! — grito, mas ele não responde. Olho para Seis. — Sam está para lá!

Ela desaparece diante de mim, e cinco segundos depois vejo outra cela ser aberta. Sam corre até mim.

—            Certo, Seis! — grito de novo. — Vamos acabar com essa coisa!

O rosto dela aparece a centímetros de meu nariz.

Não vamos lutar contra o piken. Não aqui.

Está brincando?

—            Temos coisas mais importantes a fazer, John — ela diz, irritada. — Precisamos ir para a Espanha imediatamente.

Agora?

Agora!

Seis agarra minha mão e me puxa para segui-la, e começamos a correr a toda. Sam está bem atrás de mim, e conseguimos passar por duas portas com as chaves de Seis. Quando a segunda porta se abre, deparamos com sete mogadorianos correndo com espadas e tubos que lembram canhões. Instintivamente, levo a mão ao bolso, onde carrego minha adaga, mas ela não está lá. Seis joga a arma do guarda para mim e nos afasta, a Sam e mim. Ela abaixa a cabeça, concentrada. O mogadoriano da frente gira, e sua espada corta os dois que estão atrás dele, transformando-os em cinzas. Seis então chuta as costas do mog, que cai sobre a própria espada. Ela fica invisível antes de o inimigo morrer.

Sam e eu nos abaixamos para nos esquivar do primeiro disparo de tubo, e o segundo passa raspando na gola de minha camiseta. Eu atiro, esvaziando o carregador da pistola enquanto deslizo sobre os montes de cinzas. Mato um mog e pego seu canhão. Centenas de luzes se acendem assim que meu dedo encontra o gatilho, e um raio verde atravessa outro mog. Aponto para os dois últimos, mas Seis já apareceu atrás deles, e os levanta até o teto com sua telecinesia. Ela os lança no chão diante de mim, e depois mais uma vez até o teto, e volta a jogá-los no chão. Meu jeans se cobre com as cinzas deles.

Seis abre outra porta e entramos em uma sala grande com dúzias de cubículos em chamas. No teto há buracos em brasa. Mogs atiram contra a polícia, que revida os tiros. Seis arranca uma espada do mogadoriano mais próximo e corta fora seu braço, em seguida, pula sobre uma divisória entre dois cubículos, que está em chamas. Atiro nas costas do mog desequilibrado e sem braço, e ele cai formando um amontoado escuro de cinzas.

Vejo o detetive Murphy no chão, inconsciente. Seis corre pelo labirinto de cubículos, movendo sua espada com tanta velocidade que a arma é só um borrão. Mogs viram cinzas por onde ela passa. A polícia recua por uma porta à esquerda da sala enquanto Seis ataca um círculo de mogs que tenta cercá-la. Eu atiro sem parar, destruindo os que estão mais afastados.

—            Ali! — Sam aponta para um enorme buraco que se abre para um estacionamento no lado de fora. Sem hesitar, nós três pulamos através de faíscas e fumaça, e, antes de eu sair correndo para a manhã fria, vejo minha adaga e o tablet em uma mesa na sala. Estendo a mão e os pego; segundos depois estou correndo atrás de Seis e Sam por uma vala profunda que protege nossa fuga.

 

— Não vamos falar sobre isso agora — diz Seis enquanto movimenta os braços rapidamente. Ela largou a espada mais de um quilômetro antes. Eu joguei o canhão mogadoriano atrás de um arbusto.

Mas você está com ela?

John, agora não.

Mas você...

Seis para de repente.

John! Quer saber onde está sua arca?

No porta-malas do carro? — pergunto, levantando as sobrancelhas em um sinal de pedido de desculpas.

Não. Tente de novo.

Escondida em uma caçamba de lixo?

Seis levanta os braços acima da cabeça, e uma rajada de vento me joga contra um enorme carvalho. Ela se aproxima de mim com os punhos cerrados.

Como está ela?

Quem? — pergunto.

Sua namorada, seu idiota! Valeu a pena? Valeu a pena ver sua preciosa Sarah enquanto eu era cercada por um bando de mogadorianos ao tentar recuperar a sua arca? Valeu a pena ser preso por isso? Ganhou beijos suficientes para compensar o fato de seu rosto estampar todos os jornais outra vez?

Não — murmuro. — Acho que Sarah nos entregou.

Eu também acho — Sam concorda comigo.

E você! — Seis se vira e aponta o dedo para Sam. — Você o acompanhou nisso! Pensei que fosse mais esperto, Sam. É supostamente uma espécie de gênio, mas achou que seria uma boa ideia ir ao único lugar do mundo em que a polícia certamente estaria vigiando?

Eu nunca disse que era um gênio — Sam protesta, pegando o tablet que derrubei e tirando a poeira que há nele. Seis continua andando. — E, Seis, não tive escolha. É sério. Fiz de tudo para convencer John a voltar, procurar por você e ajudar.

É verdade — murmuro, levantando-me. — Não culpe Sam.

Bem, John, enquanto os pombinhos trocavam abraços e beijos, eu levava uma surra para fazer um favor a você. E estaria morta se Bernie Kosar não tivesse se transformado em um animal meio elefante meio urso e me ajudado. Eles pegaram sua arca. E, a esta altura, tenho certeza de que ela está ao lado da minha na caverna em West Virgínia.

Então é para lá que eu vou — decido.

Não, nós vamos para a Espanha. Hoje.

—            Não, não vamos! — grito, limpando a sujeira das mangas de minha camiseta. — Não enquanto eu não recuperar minha arca.

Bem, eu vou para a Espanha — ela avisa.

Por que agora? — Sam pergunta. Já podemos ver nosso carro.

—            Acabei de acessar a Internet. A coisa está séria por lá. Alguém queimou um enorme símbolo em uma montanha perto de Santa Teresa há cerca de uma hora, e parece que a imagem é exatamente igual às marcas em nossos tornozelos. Alguém precisa de nossa ajuda, e eu estou indo para lá.

Entramos no carro, e Seis dirige lentamente pela estrada, enquanto Sam e eu nos escondemos no piso diante do assento traseiro. Bernie Kosar late no banco do passageiro, feliz por viajar na frente ao menos uma vez.

Sam e eu nos revezamos para usar o laptop e lemos o artigo sobre Santa Teresa duas, três vezes. Sem dúvida, o símbolo queimado na montanha é lórico.

E se for uma armadilha? — pergunto. — No momento, minha arca é mais importante. — Pode até ser egoísmo, mas quero recuperar minha Herança antes de sair do continente. A possibilidade de que os mogs abram minha arca me deixa tão nervoso quanto o que quer que possa estar acontecendo na Espanha. — Preciso saber como chegar à caverna — digo.

—            John! Caia na real. Não vai mesmo comigo para a Espanha? — Seis pergunta. — Depois de ler tudo isso, vai deixar Sam e eu irmos sozinhos?

Gente, ouçam só. Também em Santa Teresa tem uma mulher que dizem ter se recuperado, do nada, de uma doença degenerativa incurável. Santa Teresa é tipo o epicentro de atividade agora. Aposto que todos os membros da Garde estão indo para lá — diz Sam.

Nesse caso, não vou mesmo — decido. — Vou recuperar minha arca.

Isso é loucura — diz Seis.

Estico-me por cima do banco do passageiro e abro o porta-luvas. Meus dedos pegam a pedra que estou procurando, e eu a solto no colo de Seis antes de me esconder de novo atrás do banco.

Ela ergue a pedra amarelo-clara acima do volante, virando-a à luz do sol, e ri.

—            Você tirou a Xitharis?

Achei que poderia ser útil.

Lembre que isto não dura muito — ela diz.

Quanto tempo?

Uma hora, talvez um pouco mais.

A notícia é desanimadora, mas, ainda assim, essa pode ser a vantagem de que preciso.

—            Pode carregá-la, por favor?

Quando Seis encosta a Xitharis na têmpora, entendo que ela concordou com minha decisão de ir atrás da arca enquanto ela segue para a Espanha.

 

AJO SEM PENSAR. ASSIM QUE O HOMEM APONTA PARA MIM DO buraco no teto, faço duas camas de metal saírem voando em sua direção. A segunda o acerta em cheio. Ele cai para a frente, dentro do dormitório, e, ao atingir o chão, para meu espanto, se transforma em um monte de poeira ou cinzas.

—            Corra! — Adelina grita.

Saímos para o corredor, abrindo caminho por entre as outras meninas e as irmãs, que se dirigem à ala sul, em busca de segurança. Pego a mão de Adelina e a levo em direção à igreja.

Para onde estamos indo? — ela berra.

Não vamos embora sem a arca!

Outra explosão sacode o local, e eu bato com o quadril em um banco.

—            Já volto — sussurro, soltando sua mão e flutuando para o recesso.

 

Seis diz que estamos perto de Washington, DC, e isso faz sentido. Sou considerado um terrorista armado e perigoso. Não é de espantar que tenha sido levado à capital do país para ser interrogado.

—            Tem um voo saindo do Dulles International em menos de uma hora — ela diz, virando o volante. — Vou pegar esse avião. Sam, você vem comigo ou segue com John?

Sam apoia a testa no banco e fecha os olhos.

—            Sam? — Seis insiste.

—            Estou pensando. Estou pensando — ele diz. Depois de um minuto, levanta a cabeça e olha para mim. — Eu vou com John.

Movo os lábios formando um obrigado.

Vai ser mais fácil chegar lá sozinha mesmo — Seis responde, mas sua voz soa magoada.

Você vai lutar ao lado de membros mais experientes da Garde — tento confortá-la. — Além do mais, é provável que eu precise de ajuda para tirar nossas duas arcas de lá.

Bernie Kosar late no banco da frente.

—            Sim, amigão — eu digo. — Você também faz parte da equipe.

 

A arca desapareceu. Meu corpo todo está tomado de pânico. Eu quase vomito. Os mogadorianos sempre souberam que ela estava lá? Por que não me pegaram ali quando tiveram a chance? Flutuo de volta até o chão da nave da igreja.

Sumiu, Adelina — sussurro.

A arca?

Sumiu.

Eu a abraço e enterro o rosto em seu ombro. Ela tira alguma coisa de seu pescoço. É um amuleto azul-claro, quase transparente, preso a um cordão bege. Com cuidado, Adelina passa o cordão por minha cabeça até o amuleto tocar meu pescoço. O contato com a pele é ao mesmo tempo frio e quente, e ele começa a brilhar intensamente. Fico admirada.

O que é isto? — pergunto, cobrindo o brilho com as mãos.

Loralite, a pedra mais poderosa de Lorien, encontrada apenas no núcleo do planeta — ela sussurra. — Eu a mantive escondida durante todo esse tempo. Ela é sua, e não há mais razão para escondê-la. Eles sabem quem você é, com ou sem o amuleto. Jamais vou me perdoar por não tê-la treinado adequadamente. Nunca. Sinto muito, Marina.

Tudo bem — respondo, sentindo as lágrimas inundarem meus olhos.

Em todos esses anos, foi só isso o que eu quis de Adelina, Compreensão. Companheirismo. O reconhecimento de segredos compartilhados.

 

Estamos perto do aeroporto e o medo da separação pesa sobre nós. Sam tenta se distrair estudando os papéis que Seis pegou no escritório de seu pai.

Gostaria de poder estudar essas folhas na seção de referências de alguma biblioteca.

Depois de West Virgínia — digo. — Prometo.

Seis nos dá instruções detalhadas sobre como encontrar o mapa que nos levará à caverna. O restante da viagem transcorre em silêncio. Paramos no estacionamento de um McDonald's a menos de dois quilômetros de Dulles.

Há três coisas que vocês precisam saber.

Eu suspiro.

Por que tenho a sensação de que nenhuma delas é boa?

Ela me ignora e escreve no verso de uma nota fiscal.

Primeira, este é o endereço no qual vou estar às cinco da tarde daqui a exatamente duas semanas. Encontrem-me lá. Se eu não estiver lá, ou se por alguma razão vocês não forem, voltem uma semana depois, e eu também voltarei. Se um de nós não chegar na segunda tentativa, acho que poderemos concluir que não vai mais aparecer. — Ela entrega o papel a Sam, que o lê e o guarda no bolso do jeans.

Duas semanas, às cinco da tarde — digo. — Entendi. A segunda?

Bernie Kosar não pode entrar na caverna com vocês.

Por que não?

—            Porque isso o matará. Não entendo muito bem, mas sei que os mogadorianos controlam suas bestas espalhando pela caverna algum tipo de gás que só afeta os animais. Se um deles sai do lugar em que deve ficar, cai morto. Quando finalmente consegui sair de lá, havia um amontoado de animais mortos bem na entrada da caverna. Animais que tinham se aproximado demais.

Que nojo — Sam murmura.

E a última coisa?

A caverna está equipada com todos os apetrechos de detecção que vocês possam imaginar. Câmeras, detectores de movimento, sensores de temperatura corporal, infravermelho. Tudo. A Xitharis vai permitir que vocês passem por tudo isso, mas, quando ela se esgotar, cuidado, porque eles vão encontrá-los.

 

—            Aonde vamos? — pergunto a Adelina. Agora que a arca desapareceu, estou desorientada. Mesmo com o amuleto pendurado no pescoço.

—            Vamos ao campanário, e de lá você usa sua telecinesia para nos levar ao pátio. E então corremos.

Seguro sua mão e começo a correr quando uma bola de fogo explode de repente no fundo da igreja. Os bancos das últimas fileiras se incendeiam e as chamas se elevam até o teto. A igreja agora está mais iluminada que durante a missa de domingo. Um homem de sobretudo e com longos cabelos louros aparece, confiante, do corredor norte, nossa via de fuga, e todos os músculos em meu corpo parecem amolecer ao mesmo tempo... cada centímetro de pele se arrepia.

Ele olha para nós enquanto as chamas atingem mais bancos, e eu vejo um sorriso maligno se formar em seu rosto. Pelo canto do olho, percebo Adelina pegar alguma coisa dentro do vestido, mas não consigo ver o que é. Ela está de pé a meu lado, olhando para o fundo da igreja. E então, com muita delicadeza, ela estende a mão e me empurra para trás de si.

—            Não posso recuperar o tempo perdido nem desfazer todos os meus erros — ela diz. — Mas com certeza vou tentar. Não deixe que eles a peguem.

Nesse momento o mogadoriano começa a correr pela nave da igreja em nossa direção. Ele é muito maior do que parecia de longe, e ergue uma espada longa que brilha com uma cor verde fluorescente.

—            Vá para o mais longe possível daqui — Adelina diz sem se virar. — Seja corajosa, Marina.

 

Seis coloca a Xitharis no porta-copos do console e desce do carro.

—            Estou atrasada — ela diz ao fechar a porta.

Sam e eu saímos depois de estudarmos com muito cuidado o estacionamento, os outros carros e os transeuntes.

Contorno o carro pela frente e vejo Seis abraçar Sam.

Arrebente algumas cabeças por lá — ele diz.

Os dois se separam, e ela diz:

Sam, obrigada por ter nos ajudado mesmo sem precisar. Obrigada por ser tão incrível.

—            Você é incrível — ele sussurra. — Obrigado por ter me deixado acompanhá-los.

Para minha surpresa, e de Sam, Seis dá um passo à frente e o beija no rosto. Eles trocam um sorriso e, quando me vê por cima do ombro de Seis, Sam cora, abre a porta do motorista e entra no carro.

Não quero que ela vá. Por mais que me torture admitir, sei que talvez nunca mais volte a vê-la. Seis me olha com uma ternura que não tenho certeza se já vi nela antes.

—            Gosto de você, John. Nas últimas semanas, tenho tentado me convencer do contrário, especialmente por causa de Sarah e de quanto você é capaz de ser idiota... mas sim, eu gosto de você.

As palavras me derrubam. Hesito, mas respondo:

Também gosto de você.

Ainda ama Sarah?

Movo a cabeça em resposta afirmativa. Ela merece a verdade.

—            Sim, mas está tudo muito confuso. Ela pode ter me delatado, e talvez não queira me ver nunca mais, porque eu disse que achava você bonita. Mas Henri me disse que os lorienos só se apaixonam uma vez na vida. Então isso significa que sempre vou amar Sarah.

Seis balança a cabeça.

—            Não se ofenda com o que vou dizer, está bem? Mas Katarina nunca me falou nada disso. Na verdade, ela me contou histórias sobre vários amores que viveu em Lorien ao longo dos anos. Tenho certeza de que Henri foi um grande homem, e não há dúvida de que ele o amava com todas as forças, mas tenho a impressão de que era um romântico e queria que você seguisse os passos dele. Se ele teve um amor verdadeiro, então quis que você também tivesse.

Fico em silêncio, assimilando a teoria de Seis e deixando a de Henri de lado. Ela percebe que estou tentando apreender suas palavras.

—            O que estou dizendo é que, quando os lorienos se apaixonam, muitas vezes é para o restante da vida. É evidente que isso aconteceu com Henri. Mas nem sempre é assim.

E, com essa última frase, Seis dá um passo em minha direção, e eu dou um passo na direção de Seis. O beijo que nós não demos no final daquela caminhada na Flórida agora acontece com uma paixão que julguei que eu tivesse reservado apenas para Sarah. Não quero que o beijo termine nunca, mas Sam liga o motor e nós dois nos separamos.

—            Sam também gosta de você, sabe? — digo.

E eu gosto de Sam.

Inclino a cabeça.

Mas você acabou de dizer que gosta de mim.

Ela empurra meu ombro.

Você gosta de mim e de Sarah. Eu gosto de você e de Sam. Aceite isso.

Seis fica invisível, mas sinto que ela ainda está à minha frente.

—            Por favor, tome cuidado lá, Seis. Eu queria que pudéssemos ficar todos juntos.

Sua voz soa no ar.

—            Eu também, John, mas quem está na Espanha precisa de ajuda. Você não consegue sentir isso?

Sei que ela já não está mais aqui quando respondo:

—            Sim.

 

Tento me mover, mas estou paralisada. Um brilho na mão de Adelina atrai meu olhar, e percebo que o que ela tirou do vestido é uma faca de cozinha. Adelina corre em direção ao mogadoriano, e eu sigo rapidamente na direção contrária, por entre os bancos. Com uma precisão que jamais vi nela, Adelina se joga no chão quando o mogadoriano, com um salto, tenta atingir seu pescoço com a espada. Ele erra e, quando se levanta, Adelina corta sua coxa direita com a faca. Sangue escuro começa a jorrar, mas o mogadoriano não se detém, ele se vira e abaixa a espada de novo. Adelina rola para a frente, e é com admiração absoluta que vejo que ela passa a faca pela outra perna do mogadoriano enquanto se levanta, no mesmo movimento. Como posso partir e deixar que ela lute sozinha?

Paro de correr e cerro os punhos, mas, antes que eu possa fazer qualquer coisa, a mão esquerda do homem agarra o pescoço de Adelina, erguendo-a. E, com a mão direita, enterra a espada em seu coração.

— Não! — eu grito, pulando sobre um banco e correndo até eles por cima da madeira.

Adelina fecha os olhos e, com seu último suspiro, levanta o braço, e a lâmina da faca descreve um arco na frente dela. A faca cai de sua mão, fazendo barulho ao atingir o chão. Por um instante, penso que ela errou, mas não. O corte foi tão preciso que dois segundos se passam antes de o sangue escuro aparecer. Ele solta Adelina e cai de joelhos, com as duas mãos em volta do pescoço, para deter a hemorragia, mas o sangue simplesmente flui por entre os dedos. Caminho na direção do mogadoriano e respiro fundo. Ergo a mão e levanto a faca de Adelina do chão. Deixo a arma flutuar por um momento e, quando ele arregala os olhos ao vê-la, eu a enterro em seu peito. Ele se desintegra diante de mim, transformando-se em um monte de cinzas.

Ajoelho-me e tomo nos braços o corpo inerte de Adelina, segurando sua cabeça e apertando-a contra mim. Meu rosto toca o dela, e eu começo a chorar. Ela partiu e, apesar do Legado que descobri recentemente, sei que não há nada que eu possa fazer para trazê-la de volta. Preciso de ajuda.

 

OUÇO UM URRO À MINHA ESQUERDA E, AO ERGUER A CABEÇA, vejo outro homem de sobretudo e longos cabelos castanhos. Levanto-me depressa quando o mogadoriano eleva a mão, da qual brota um raio de luz que me atinge com força no ombro esquerdo e me joga para trás. A dor é instantânea e aguda, desce por meu braço, intensa, como se uma corrente elétrica se espalhasse pelo osso. Minha mão esquerda parece morta, e com a direita toco o novo ferimento em meu ombro. Levanto a cabeça e olho, impotente, para o mogadoriano.

O feitiço, penso. Quando viajávamos, Adelina me dizia que eu não poderia ser morta fora da ordem numérica estabelecida pelos Anciões. Esse ferimento pode ser grave o bastante para me matar. Olho meu tornozelo para ver se há seis cicatrizes, e não as três com que convivo há meses, mas nada mudou. Então como posso ser morta? Como posso estar tão machucada... a menos que o feitiço tenha se quebrado.

Meus olhos encontram os do mogadoriano, e ele explode num monte de cinzas. Por um momento de loucura imagino que foi a intensidade de meus pensamentos que o matou, mas em seguida vejo logo atrás dele o mogadoriano do café. O do livro, o de quem eu tenho fugido. Não entendo. O egoísmo dessa raça é tão grande que eles matam uns aos outros pela honra de me matar?

Marina — ele chama.

Eu, eu posso matar você — digo com a voz trêmula e sofrida. O sangue contínua escorrendo de meu ombro pelo braço. Olho para o corpo de Adelina e começo a chorar.

—            Não sou quem você pensa — ele diz, correndo para mim e estendendo a mão. — Temos muito pouco tempo. Sou um de vocês e estou aqui para ajudar.

Pego sua mão. Que escolha eu tenho? Ele me põe de pé e me tira dali antes que outros apareçam. Seguimos pelo corredor norte e para o segundo andar, a caminho da torre do campanário. Meu ombro lateja de dor a cada passo.

—            Quem é você?

Cem perguntas diferentes passam por minha cabeça. Se ele é um dos nossos então por que levou tanto tempo para me dizer? Por que me torturar com a crença de que era um deles? Será que posso confiar nele?

—            Shhh — ele sussurra. — Fique quieta.

O corredor bolorento está em silêncio e, à medida que fica mais estreito, ouço dezenas de passos pesados no andar de baixo. Chegamos afinal à porta de carvalho. Ela abre apenas uma fresta, e surge a cabeça de uma menina. Eu me espanto. Cabelo castanho, olhos castanhos curiosos, traços delicados. Ela está alguns anos mais velha, mas não há como confundi-la.

—            Ella? — pergunto.

A menina parece ter onze ou doze anos. Seu rosto, que se ilumina ao me ver, agora é mais fino. Ella abre a porta para que entremos.

—            Oi, Marina — ela diz com uma voz que não reconheço.

O homem me puxa para dentro e fecha a porta. Ele encaixa uma tábua grossa entre a porta e a base da escada, e nós três subimos correndo os degraus de pedra. Quando chegamos ao campanário, olho novamente para Ella. Não consigo deixar de encará-la, confusa e de olhos arregalados, já não sentindo mais o sangue descer por meu braço e pingar dos dedos.

Marina, meu nome é Crayton — diz o homem. — Lamento muito por sua Cêpan. Eu queria ter conseguido chegar mais cedo.

Adelina morreu? — indaga a versão mais velha de Ella.

Não entendo — digo, ainda olhando para a menina.

—            Vamos explicar tudo, prometo. Não temos muito tempo. Você está perdendo muito sangue — diz Crayton. — Pode curar as pessoas, não é? Pode curar a si mesma?

Com toda a confusão e a correria, nem pensei em me curar, mas coloco a palma de minha mão direita sobre a ferida aberta e tento fazer isso agora. O frio provoca um formigamento enquanto o corte se fecha e o entorpecimento desaparece no braço e na mão. Depois de trinta segundos, estou nova em folha.

—            Por favor, seja mais cuidadosa com isso — Crayton diz. — É muito mais importante do que você imagina.

Olho para onde ele aponta.

—            Minha arca!

Há uma explosão perto de nós. A torre balança, e poeira e pedras caem do teto e das paredes. Mais pedras caem quando outra explosão me derruba. Uso minha telecinesia para impedir que as pedras caiam e as desvio para a janela.

Eles estão procurando por nós, e não vai demorar muito até que percebam onde estamos — ele diz. O homem olha para Ella e depois para mim. — Ela é uma de vocês. É uma Garde de Lorien.

Mas ela não tem idade para isso — digo, balançando a cabeça, incapaz de substituir a imagem da menininha que conheci por essa mais velha. — Não entendo.

Sabe o que é um aeternus?

Balanço a cabeça.

Mostre, Ella.

Ella começa a mudar diante de mim. Seus braços encurtam, os ombros ficam estreitos; ela fica vinte centímetros mais baixa, e o peso é drasticamente reduzido. O que me espanta mais é a diminuição do rosto, e em pouco tempo ela volta a ser a menina pequena que eu aprendi a amar.

Ela é uma aeternus — diz Crayton. — Consegue se deslocar por diferentes idades.

Eu... eu não sabia que isso era possível — gaguejo.

Ella tem onze anos. Veio comigo em uma segunda nave que deixou Lorien logo depois da sua. Ela era só um bebê, tinha horas de vida. Loridas, o último Ancião que restava, sacrificou-se para que Ella pudesse assumir seu papel e desenvolver os poderes que ele tinha.

Enquanto olho para Crayton, Ella segura minha mão como fez tantas vezes antes; mas agora a sensação é diferente. Eu a olho, vendo-a de novo em sua versão mais velha e mais alta. Ao perceber meu desconforto, Ella volta à forma anterior, e os quatro anos de diferença desaparecem rapidamente até a menina voltar a ter sete anos.

Ela é a décima criança — diz o homem. — A décima Anciã. Críamos um boato sobre seu passado, a morte de seus pais em um acidente de carro, e a mandamos para cá, para que cuidasse de você e fosse os olhos de que eu precisava.

Lamento não ter podido contar a verdade, Marina — ela diz com a voz suave. — Mas, como você mesma disse, sou ótima para guardar segredos.

Eu sei que é — concordei.

Só estava esperando Adelina lhe dar a arca — ela declara, sorrindo.

—            Sabe quem era o décimo Ancião? — Crayton pergunta. — Loridas conseguiu viver tanto tempo, mesmo depois da morte dos outros Anciões, porque mudava sua idade. Cada vez que envelhecia, ele se fazia jovem outra vez e recuperava a vitalidade.

Você é o Cêpan de Ella?

Só no sentido de substituto dos pais. Como ela tinha acabado de nascer, seu Cêpan ainda não fora escolhido.

Pensei que você fosse um mogadoriano — confesso.

—            Eu sei, mas foi porque interpretou mal as dicas. Quando eu estava conversando com Héctor hoje, minha intenção era lhe mostrar que eu era um amigo.

Mas por que simplesmente não veio me buscar quando chegou? Por que mandou Ella?

Primeiro tentei abordar Adelina, mas ela me mandou embora assim que soube quem eu era, e nós precisávamos que você recuperasse sua arca antes. Eu não podia tirá-la do orfanato sem ela. Por isso mandei Ella, que começou a procurar pela arca antes mesmo de você pedir. Já faz algum tempo que os mogadorianos sabem mais ou menos onde você está, e eu tenho feito o possível para despistá-los. Matei alguns, bem, matei muitos, mas também espalhei boatos em vilarejos a centenas de quilômetros daqui, sobre crianças que realizavam coisas impossíveis, como um menino que levantou um carro acima da cabeça e uma menina que caminhava na superfície de um lago. Estava funcionando, até eles descobrirem que você estava em Santa Teresa, mas, mesmo assim, não sabiam qual das meninas era você. Depois Ella encontrou a arca e você a abriu, e foi quando eu vim para cá, para conversarmos em particular. Quando você abriu a arca, isso atraiu os mogadorianos diretamente para aqui.

Porque abri a arca?

Sim. Vá em frente, abra-a agora.

Solto a mão de Ella e seguro a fechadura. É horrível pensar que posso abri-la sozinha, agora que Adelina está morta. Abro a fechadura e levanto a tampa. O pequeno cristal ainda brilha no tom azul-claro.

—            Não toque nisso — diz Crayton. — O fato de a pedra brilhar significa que um Macrocosmo está em órbita em algum lugar. Se tocá-la agora, ela revelará seu paradeiro exato. Não sei quais Macrocosmos ainda funcionam, mas tenho certeza de que os mogadorianos roubaram o de alguém.

Não tenho nem ideia do que ele está falando.

—            Macrocosmo? — pergunto.

Ele balança a cabeça, frustrado.

—            Não há tempo para explicar tudo. Feche a arca. — Ele abre a boca para dizer mais alguma coisa, mas é interrompido por batidas à porta ao pé da escada. Ouvimos vozes estrangeiras abafadas. — Temos de ir. — Crayton corre até um canto do aposento para pegar uma grande mala preta. Ele a abre, revelando dez armas diferentes, um punhado de granadas e várias adagas. Tira o casaco e joga-o no chão, e eu vejo que está usando um colete de couro, no qual ele se apressa a guardar todo tipo de armamento antes de vestir novamente o casaco.

Os mogadorianos derrubam a porta lá embaixo com alguma coisa pesada, e nós ouvimos passos começando a subir a escada, Crayton saca uma das armas e carrega o pente.

—            O símbolo queimado na montanha — eu lembro. — Foi você?

Ele assente.

—            Receio ter esperado demais, e quando você abriu a arca, tornou-se impossível passarmos despercebidos dos mogadorianos. Então criei o maior sinal de que fui capaz, e agora precisamos torcer para que os outros o tenham visto e que estejam a caminho. Caso contrário... — Ele hesita. — Bem, caso contrário, ficaremos sem alternativa. Agora temos de ir para o lago. É nossa única chance.

Não sei de que lago ele está falando, ou por que ele quer ir para lá, mas meu corpo todo está tremendo. Quero apenas fugir.

Os passos se aproximam. Ella agarra minha mão, novamente uma menina de onze anos, Crayton engata a arma, e eu ouço uma bala se encaixar na câmara. Ele a aponta para a entrada do campanário.

—            Você tem um ótimo amigo na cidade — ele diz.

—            Héctor? — pergunto, e de repente compreendo por que os dois conversavam no café hoje cedo. Crayton não estava espalhando mentiras, e sim contando a verdade.

Sim, e vamos torcer para que ele cumpra a promessa.

Ele vai — afirmo, certa de que isso é verdade, independentemente do que Crayton lhe pediu. — Está no nome dele — acrescento.

Pegue a arca — Crayton diz.

Eu me abaixo e seguro a arca com o braço esquerdo, no mesmo instante em que ouvimos os passos chegarem às últimas curvas da escada.

Vocês duas fiquem perto de mim — Crayton ordena, olhando para mim e para Ella. — Ela nasceu com o poder de mudar de idade, mas é jovem e ainda não desenvolveu nenhum Legado. Fique perto dela. E não solte sua arca.

Não se preocupe, Marina, sou rápida — ela diz sorrindo.

Estão prontas?

Prontas — Ella responde, apertando minha mão.

Todos usam armaduras capazes de resistir a quase todas as balas usadas aqui na Terra — Crayton diz —, mas eu embebi as minhas em loriceto, e nenhum escudo aqui poderia detê-las. Vou acabar com cada um deles. Torçam para que Héctor esteja lá fora, esperando por nós.

— Ele vai estar — eu garanto.

Crayton puxa então o gatilho e não solta até disparar a última bala.

 

MANTEMOS A JANELA ABERTA E FALAMOS POUCO, NERVOSOS COM a próxima missão. Sam segura o volante com firmeza enquanto cruzamos a Virgínia.

Acha que Seis vai conseguir? — ele pergunta.

Tenho certeza de que vai, mas não há como saber o que ela encontrará.

Foi um beijo e tanto aquele de vocês.

Abro a boca para falar, mas a fecho em seguida. Depois de um minuto, digo:

Ela também gosta de você, sabe?

É, como amigo.

Na verdade, Sam, ela gosta de você.

Sam fica vermelho.

É claro. Eu vi pelo jeito como ela enfiou a língua em sua boca.

—            Ela também beijou você, cara. Eu vi. — Bato no peito dele com as costas da mão e percebo que ele está relembrando o beijo. — Depois que a beijei, perguntei se ela sabia que você gostava dela e...

O carro se desvia abruptamente para cima da linha dupla amarela que divide a estrada ao meio.

Você fez o quê?

Cara, relaxe. Não nos mate. — Sam volta para nossa faixa. — Ela disse que também gosta de você.

Um sorriso grande se abre no rosto de Sam.

Interessante. É um tanto difícil acreditar nisso.

Puxa, Sam. Por que eu mentiria?

Não, eu não acredito que essa história toda seja real. Que você seja real, ou que Seis seja real, ou que uma raça hostil de aliens tenha se espalhado pelo planeta e ninguém saiba de nada. Quer dizer, eles escavaram uma montanha no meio do estado... como ninguém percebeu? O que eles fizeram com toda a terra e as pedras que removeram? Por menor que seja a população em algumas partes de West Virgínia, com certeza alguém deve tê-los encontrado em algum momento. Gente que sai para acampar ou caçar. Pilotos de pequenos aviões. E as imagens de satélite? E quem sabe quantas são as outras bases, postos avançados ou seja lá qual for o nome disso que eles têm na Terra? Não entendo como conseguem circular com tamanha liberdade.

—            Tem razão. Também não imagino, mas algo me diz que provavelmente não sabemos da missa um terço. Lembra-se daquela primeira teoria da conspiração que você me contou?

Não.

Estávamos falando sobre a abdução de uma cidade inteira em Montana, e você disse que o governo permitia abduções em troca de tecnologia. Lembra agora?

Vagamente. Sim.

—            Bem, isso agora faz sentido. Talvez não tenha nenhuma relação com tecnologia, e talvez o governo não permita abduções, mas acredito mesmo que haja algum tipo de acordo. Porque você tem razão: de jeito nenhum eles poderiam permanecer ocultos. Há muitos, muitos, muitos deles aqui.

Sam não responde. Olho para ele e vejo que está sorrindo.

—            Sam?

—            Só estava pensando onde eu estaria nesse momento, se vocês não tivessem aparecido. Sozinho no porão de minha casa, provavelmente, colecionando mais teorias da conspiração e me perguntando se meu pai ainda estaria vivo. Passei anos assim. Porém, o mais legal é que agora realmente acredito que ele esteja vivo. Ele está em algum lugar, John. Eu sei disso. E devo isso a vocês.

—            Espero que sim. Foi muito legal o fato de Henri ter vindo a Ohio para tentar encontrá-lo e você e eu termos nos tornado amigos quase imediatamente. É como se fosse o destino.

Sam sorri.

Ou um alinhamento cósmico.

Nerd.

Depois de alguns instantes, Sam pergunta:

Ei, John? Tem certeza de que o esqueleto no poço não era meu pai, certo?

Absoluta, cara. Era lorieno e enorme. Maior que qualquer ser humano.

Quem você acha que pode ser, então? Tem algum palpite?

Não sei. Só espero que não tenha sido ninguém muito importante.

 

Quatro horas mais tarde, finalmente vemos uma placa que indica a saída para Ansted, dez quilômetros à frente. Ficamos em silêncio. Sam pega a saída e percorre uma estrada precária de mão dupla que sobe sinuosa pela montanha, até que alcançamos os limites da cidade. Seguimos em frente e viramos à esquerda no único semáforo do local.

Hawks Nest, certo?

É, uns dois quilômetros adiante — diz Sam, e é lá que encontraremos o mapa que Seis desenhou há três anos.

 

O mapa está exatamente onde Seis disse que estaria, escondido no Parque Estadual Hawks Nest, perto do rio New. Exatamente quarenta e sete passos a partir do início da Trilha do Cigano, Sam, Bernie Kosar e eu encontramos uma árvore com um E6 entalhado profundamente no tronco. Ali saímos da trilha e damos trinta passos para a direita, além da árvore. Em seguida, fazemos uma curva acentuada à esquerda e depois, a uns cento e cinquenta metros de distância, vemos uma árvore que é maior que todas as outras. No pequeno buraco na base de seu tronco retorcido, dentro de uma caixa de plástico preto muito escondida, está o mapa que leva até a caverna.

Voltamos ao carro, percorremos mais vinte e cinco quilômetros e paramos em uma estrada lamacenta e deserta. Aqui é o mais próximo que podemos chegar por qualquer estrada, oito quilômetros ao norte da caverna. Sam tira do bolso o endereço que Seis escreveu e guarda o papel no porta-luvas.

— Pensando bem... — Ele o pega de volta e o guarda novamente no bolso da calça. — É mais seguro.

Guardo a Xitharis e um rolo de fita adesiva na mochila que Seis deixou no carro e Sam a pendura nos ombros. Giro minha adaga na mão antes de guardá-la no bolso de trás da calça.

Saímos do carro e trancamos as portas. Bernie Kosar corre em torno de minhas pernas. Restam apenas algumas horas da luz do dia, o que não nos dá muito tempo. Mesmo com o benefício de minhas mãos, não imagino como poderemos encontrar a caverna sem a ajuda do sol.

Sam segura o mapa. No lado direito da folha, Seis riscou um x grande. Uma trilha sinuosa de oito quilômetros liga o x ao ponto em que estamos agora, marcado do lado esquerdo do mapa. Ao longo do caminho, à medida que vamos acompanhando um leito de rio, passamos por vários marcos identificados por suas características físicas, todos cuidadosamente indicados para nos orientar: Pedra da Tartaruga. Vara do Pescador. Platô Circular. Trono do Rei. Beijo do Amante. Ponto de Observação.

Sam e eu levantamos a cabeça ao mesmo tempo e vemos, a uns quatrocentos metros de distância, uma rocha incrivelmente parecida com um casco de tartaruga. Bernie Kosar late.

—            Acho que sabemos em que direção seguir primeiro — Sam comenta.

E começamos a andar, seguindo as orientações do mapa. Não há trilha, nada que sugira que as montanhas tenham sido pisoteadas por seres de outro mundo, ou mesmo deste mundo. Quando chegamos à Pedra da Tartaruga, Sam percebe uma árvore caída, que se projeta da rocha a um ângulo de quarenta e cinco graus, e a imagem lembra uma vara de pescador que estivesse pacientemente à espera de que algum peixe mordesse a isca. Continuamos em frente, seguindo as indicações, enquanto o sol desce no oeste.

Cada passo é uma chance de dar meia-volta e ir embora. Mas nenhum de nós desiste.

Você é um amigo incrível, Sam Goode — digo a ele.

Você também não é mau — Sam responde. E acrescenta: — Minhas mãos não param de tremer.

Passamos pelo Trono do Rei, uma pedra grande e estreita que lembra uma cadeira de espaldar alto, e logo depois vejo duas árvores compridas apoiadas uma à outra em um ângulo suave, com os galhos entrelaçados, como se estivessem abraçadas. E eu sorrio, esquecendo por um momento quanto estou apavorado.

—            Só falta um — Sam comenta, trazendo-me de volta à realidade.

Chegamos ao Ponto de Observação cinco minutos depois. A caminhada toda levou uma hora e dez minutos, e as sombras agora são longas e mais escuras enquanto os últimos raios de sol se esvaem. De repente, ouço um rosnado profundo a meu lado. Olho para baixo. Os dentes de Bernie Kosar estão à mostra, o pelo está eriçado ao longo da coluna, os olhos, voltados na direção da caverna. Ele começa a recuar.

—            Está tudo bem, Bernie Kosar — digo, afagando suas costas.

Sam e eu nos deitamos de bruços no chão, olhando para a entrada quase imperceptível da caverna no outro lado do pequeno vale. Ela é bem maior do que eu imaginava, com uns seis metros de largura e altura, mas também muito mais bem-escondida. Há uma espécie de cobertura, uma rede ou talvez uma lona, que a camufla em relação ao entorno, é preciso saber onde ela está para conseguir enxergá-la.

Localização perfeita — Sam cochicha.

Totalmente.

Meu nervosismo logo se transforma em absoluto terror. Por mais misteriosa que seja a caverna, uma coisa da qual tenho certeza é que não vai faltar o que seja capaz de nos matar: armas, bestas ou armadilhas. Posso morrer nos próximos vinte minutos. E Sam também.

De quem foi essa ideia, mesmo? — pergunto.

Sam bufa.

Sua.

Bom, às vezes tenho umas ideias idiotas.

É verdade, mas temos de pegar sua arca de algum jeito.

Tem tanta coisa dentro da arca que ainda nem sei como usar… mas eles sabem — digo. E então algo chama minha atenção. — Olhe para o terreno na frente da entrada — digo, apontando para alguns objetos escuros espalhados diante da caverna.

Para as pedras?

Não são pedras. São animais mortos.

Sam balança a cabeça.

Maravilha — ele diz.

Eu não deveria estar surpreso, porque Seis nos falou disso, mas a imagem dos corpos aumenta ainda mais meu medo, o que eu não pensava que fosse possível. Minha mente se acelera.

—            Tudo bem — digo, sentando-me no chão. — A hora é essa.

Beijo a cabeça de Bernie Kosar e passo a mão por suas costas, desejando que esta não seja a última vez em que o verei. Ele me pede para não ir, e eu comunico que é necessário, que não tenho escolha.

—            Você é o máximo, BK. Amo você, amigão.

Então me levanto. Puxo a barra da camiseta com a mão direita, para tirar a Xitharis da mochila sem tocá-la.

Sam aperta os botões de seu relógio digital e ajusta o cronômetro. Não vamos conseguir ler o mostrador enquanto estivermos invisíveis, mas, quando a hora se esgotar, o relógio irá emitir um bipe — embora eu imagine que saberemos quando o momento chegar.

—            Pronto? — pergunto.

Damos juntos o primeiro passo, depois o segundo, e logo estamos descendo a trilha, que talvez nos leve a nosso fim. Viro-me uma vez só, quando estamos quase na caverna, e vejo Bernie Kosar, que olha para nós.

 

CHEGAMOS PERTO DA CAVERNA O MÁXIMO POSSÍVEL sem que sejamos vistos e nos abaixamos atrás de uma árvore. Colo a Xitharis em um pedaço de fita adesiva. Sam me observa mantendo o dedo no botão do relógio.

— Pronto? — pergunto.

Ele assente. Pressiono a Xitharis e a fita sobre a base de meu esterno. Desapareço imediatamente, e Sam aperta o botão, o que provoca um bipe suave. Pego sua mão e, juntos, saímos de trás da árvore e corremos para a caverna. Esta missão é tudo o que importa agora e, enquanto penso nisso, já não me sinto mais tão nervoso quanto antes.

A caverna está coberta por uma grande lona camuflada. Caminhamos pelo cemitério de animais mortos, tomando cuidado para não pisarmos em nenhum, o que é difícil para quem não vê os próprios pés. Não há mogs do lado de fora, e, na pressa, afasto a lona de forma um pouco brusca demais. Sam e eu entramos rapidamente, e quatro guardas se levantam de um salto e erguem canhões cilíndricos como o que foi apontado contra minha cabeça naquela noite na Flórida. Ficamos imóveis como estátuas por um momento e depois passamos em silêncio por eles, torcendo para que o movimento súbito da lona seja atribuído ao vento do lado de fora.

Uma brisa fria penetra pelo sistema de ventilação e o ar parece estranhamente fresco, algo que eu não esperava em um ambiente carregado de gás venenoso. As paredes cinzentas são lisas e brilhantes como sílex. Conduítes de eletricidade conectam lâmpadas fracas a espaços regulares de seis metros uma da outra.

Passamos despercebidos por vários mensageiros. A ansiedade do tempo que corre nos deixa bastante tensos. Apertamos o passo, corremos, caminhamos na ponta dos pés, andamos. E, quando o túnel fica mais estreito e começa um declive, descemos de lado. O ar se torna mais quente e abafado, e vemos um brilho escarlate no final do túnel. Nós nos aproximamos dele e enfim chegamos ao coração pulsante da caverna.

A câmara interna é muito maior do que eu imaginei a partir da descrição de Seis. Uma plataforma longa e constante acompanha todo o contorno das paredes, descrevendo uma espiral que vai da base ao topo, lembrando uma colmeia, e o lugar é tão agitado quanto uma — podemos ver o que são, literalmente, centenas de mogs atravessando as precárias pontes de pedra, entrando e saindo de túneis. Quase um quilômetro separa o chão profundo do teto imenso, e Sam e eu estamos bem perto do meio. Duas colunas enormes brotam do piso e sobem até o teto, impedindo que tudo desmorone. O número de passagens à nossa volta é infinito.

—            Meu Deus — Sam sussurra perplexo, observando tudo. — Seriam necessários meses para explorar tudo isso.

Meus olhos são atraídos pelo lago de líquido verde e brilhante que há lá embaixo. Mesmo a essa distância, o calor que ele desprende dificulta a respiração. Mas, apesar da temperatura escaldante, há uns vinte ou trinta mogs trabalhando ao redor, removendo carrinhos cheios da substância borbulhante e levando-os rapidamente para longe. Do outro lado do lago, outra coisa chama minha atenção.

—            Acho que dá para imaginar o que vamos encontrar além daquele túnel com grades gigantescas — cochicho.

Ele tem o triplo da altura e da largura do corredor por onde viemos e é fechado por pesadas grades de ferro entrecruzadas, mantendo enjauladas quaisquer bestas que possam estar ali. Podemos ouvir os urros profundos, quase pesarosos. Uma coisa fica imediatamente clara: não são poucas as criaturas.

—            Meses, literalmente, para explorar isso tudo — Sam repete num sussurro incrédulo.

—            Bem, temos menos de uma hora. Portanto, acho melhor nos apressarmos.

—            Acho que podemos colocar um grande x sobre todos aqueles túneis escuros e estreitos que parecem estar obstruídos.

—            Concordo. Vamos começar pelo que está bem à nossa frente — sugiro, olhando para o que parece ser a principal artéria da câmara, mais larga e iluminada que as demais, e por onde passa o maior número de mogs. A ponte até lá é só um longo arco de pedra que tem no máximo sessenta centímetros de largura. — Acha que consegue atravessar aquela ponte?

—            Estamos prestes a descobrir — responde Sam.

—            Quer ir na frente?

—            Sim.

Os primeiros passos de Sam parecem hesitantes. Como temos de permanecer de mãos dadas, nós nos arrastamos de lado nos primeiros dez ou quinze metros. Levamos uma eternidade e, se a ideia é chegar ao outro lado e depois voltar, de jeito nenhum vamos conseguir nesse ritmo.

—            Não olhe para baixo — digo a Sam.

—            Não seja óbvio — ele responde, endireitando o corpo.

Continuamos a andar devagar, e eu gostaria de poder ver meus pés só durante este obstáculo. Estou tão concentrado em não cair que não percebo Sam parar diante de mim, o que me faz esbarrar nele e quase derrubar nós dois.

—            O que está fazendo? — pergunto, com o coração disparado.

Olho para cima e entendo por que ele parou. Um soldado mogadoriano corre em nossa direção. Ele se aproxima rapidamente, e já está tão perto que quase não há tempo para reagirmos.

—            Não temos para onde ir — Sam sussurra.

O soldado continua a vir, segurando um embrulho nos braços, e quando está bem perto, sinto que Sam se abaixa. No instante seguinte, os pés do mogadoriano saem do chão, pegando-o completamente desprevenido. Ele cai da ponte e se segura com uma das mãos pela beirada, derrubando o embrulho no vazio. O mog grita de dor quando meu pé invisível esmaga seus dedos, ele se solta e despenca, arrebentando-se no chão com um baque terrível.

Sam corre para a frente antes que outras calamidades se sigam. Todos os mogs na área ficaram paralisados, entreolhando-se, confusos. Fico me perguntando se eles acreditam que o que acabou de acontecer foi um acidente, ou se entraram em estado de alerta.

Sam, aliviado, aperta minha mão quando chegamos ao outro lado e continua a avançar, muito mais confiante depois de termos matado o soldado.

O corredor seguinte é largo e movimentado, e não leva muito tempo até percebermos que estamos andando na direção errada... as salas pelas quais passamos são todas particulares, e a ala inteira parece ser o local onde os mogs moram: câmaras com camas, um amplo refeitório com centenas de mesas, uma pista de tiro. Seguimos apressados por outro corredor, mas o resultado é o mesmo. Tentamos então um terceiro.

Continuamos pelo túnel sinuoso montanha adentro. Vários afluentes partem daquele corredor principal, e Sam e eu os escolhemos aleatoriamente, tomando por base apenas nosso instinto. Além da câmara principal na qual entramos, o restante da montanha é só uma rede interconectada de úmidos corredores de pedra, nos quais vários espaços abrigam centros de pesquisa com mesas de exame, computadores e instrumentos afiados e brilhantes. Passamos correndo por diversos laboratórios científicos que gostaríamos de ter mais tempo de investigar. Provavelmente já percorremos uns dois ou três quilômetros, e a cada corredor inútil meu estresse aumenta.

—            Não deve faltar mais que quinze minutos, John.

—            Eu sei — cochicho, desesperado, irritado e perdendo a esperança.

Quando fazemos a curva seguinte e começamos a subir um aclive constante, passamos pelo que eu mais temia: uma sala cheia de celas. Sam para e aperta minha mão, obrigando-me a parar também. Há uns vinte ou trinta mogadorianos guardando mais de quarenta celas, uma ao lado da outra, todas fechadas por pesadas portas de aço. Na frente de cada porta há um borbulhante campo de força azul que pulsa com eletricidade.

—            Olhe só todas aquelas celas — Sam sussurra.

Sei que ele está pensando no pai.

—            Espere um segundo — digo, e de repente a solução me ocorre do nada. É muito óbvio.

—            O quê? — Sam pergunta.

—            Sei onde está a arca.

—            Sério?

—            Como fui estúpido! Sam, se você pudesse escolher um só lugar neste inferno ao qual não iria de jeito nenhum, que lugar seria?

—            O covil das bestas uivantes — ele declara sem hesitar.

—            Exatamente. Vamos logo.

Eu o conduzo de volta pelo corredor que termina no centro da caverna. Antes de deixarmos as celas para trás, porém, uma porta se abre e Sam puxa minha mão, para me fazer parar.

—            Veja — ele murmura.

A cela mais próxima está totalmente aberta. Dois guardas entram nela. Eles falam, irritados, por dez segundos em seu idioma nativo e, quando saem, estão segurando pelos braços um homem pálido e magro de pouco menos de trinta anos de idade. Ele está tão fraco que mal consegue andar, e Sam aperta minha mão com mais força quando os guardas o empurram para a frente. Um deles destranca outra porta, e os três desaparecem por ela.

—            Quem você acha que eles mantêm preso ali? — ele pergunta enquanto eu o puxo pelo corredor.

—            Temos de ir, Sam. Não temos tempo.

—            Eles estão torturando humanos, John — Sam comenta quando enfim chegamos à colmeia central. — Seres humanos.

—            Eu sei.

Estudo a câmara colossal, à procura da rota descendente mais rápida. Há mogs por toda a parte, mas fiquei tão acostumado ao passar por eles que não me incomodo mais. Além disso, algo me diz que estou prestes a encontrar coisas muito mais aterrorizantes que soldados e mensageiros.

—            Pessoas cujas famílias provavelmente nem imaginam onde estejam — Sam continua.

—            Eu sei, eu sei. Vamos, conversaremos sobre isso quando estivermos fora daqui. Talvez Seis elabore algum plano.

Corremos pela plataforma espiral e começamos a descer por uma escada de mão alta, mas descobrimos que é quase impossível fazer isso quando se está de mãos dadas com outra pessoa. Olho para baixo. Ainda falta muito.

—            Precisamos pular — digo a Sam. — Caso contrário, vamos levar dez minutos para chegar lá embaixo.

—            Pular? — ele indaga, incrédulo. — Nós vamos morrer.

—            Não se preocupe, eu o pego.

—            Como vai me pegar se estaremos de mãos dadas?

Mas não temos tempo para discutir. Respiro fundo e salto da plataforma trinta metros acima da base da caverna. Sam grita, mas o barulho constante da atividade dos mogs abafa o som. Meus pés atingem a pedra dura e o impacto me derruba de costas, mas eu não solto a mão de Sam, que cai em cima de mim.

—            Nunca mais vamos fazer isso — ele diz enquanto se levanta.

Aquele nível é tão quente que é quase impossível respirar, mas corremos em torno do lago verde até o portão imenso que retém as bestas. Quando o alcançamos, um vento frio passa por entre as grades, e percebo que as rajadas de ar fresco impedem a entrada do gás nesse túnel.

—            John, acho que não temos mais tempo — Sam se desespera.

—            Eu sei — respondo, deixando um grupo de mais ou menos dez mogadorianos sair diante de nós.

Entramos em um túnel escuro. As paredes parecem cobertas de muco, e câmaras fechadas por grades acompanham os dois lados do corredor. Ao longo do meio do teto dez exaustores industriais enormes giram e sopram em direção à entrada pela qual acabamos de passar, mantendo o ar frio e úmido. Algumas câmaras fechadas são pequenas, mas outras são grandes, e de todas elas soam ruídos animalescos e ferozes. Na jaula à nossa esquerda há vinte ou trinta krauls pulando uns sobre os outros, soltando gritos estridentes. A nossa direita, vemos aprisionada uma matilha de cães grandes como lobos, de aparência demoníaca, com olhos amarelos e sem pelo. Ao lado deles há uma criatura que parece um troll, com o nariz coberto de verrugas. Em uma cela maior, vejo um piken gigantesco não muito diferente daquele que atravessou a parede da prisão hoje cedo, e ele anda de um lado para o outro enquanto fareja o ar.

—            Acho melhor não nos preocuparmos com essas câmaras menores — digo. — Se minha arca estiver aqui, só pode estar na câmara maior, no final do corredor. Não quero nem tentar adivinhar que tipo de besta precisa de uma porta daquele tamanho para passar.

—            Faltam alguns segundos, John.

—            Então é melhor corrermos — falo, puxando Sam enquanto vemos rapidamente os diferentes horrores aprisionados ali: criaturas aladas parecidas com gárgulas, monstros com seis braços e pele vermelha, vários outros pikens com seis metros de altura, um imenso réptil mutante com chifres em forma de tridente, um monstro de pele tão transparente que seus órgãos internos são visíveis.

—            Uau! — exclamo, parando diante de vários tanques e recipientes redondos, a maior parte prateada e dois da cor de cobre e equipados com indicadores de temperatura. Uma espécie de caldeira, deduzo.

—            Então, é isso que mantém este lugar em funcionamento — Sam cochicha.

—            Tem de ser — respondo.

O silo mais alto vai até o teto, e todos os tanques estão interligados por canos pesados, bicas e mangueiras de alumínio. Na parede ao lado do silo há um painel de controle com uma coleção de fios elétricos.

—            Vamos — Sam diz, puxando minha mão com impaciência.

Juntos, corremos até o final do túnel. Lá há uma porta enorme, de uns quinze metros de altura por quinze de largura, feita de puro aço. À direita há uma pequena porta de madeira. Ela está destrancada, e logo percebo por quê.

—            Meu Deus — Sam sussurra ao deparar com a enormidade da besta.

Eu também fico perplexo por um instante, incapaz de não olhar para o animal: uma forma gigantesca deitada no fundo da câmara. Os olhos estão fechados e ele respira em ritmo constante. A besta deve ter uns quinze metros de altura de pé e, pelo que posso perceber, seu corpo escuro tem o formato do de um homem, mas com braços muito mais compridos.

—            Não quero chegar nem um pouco mais perto deste lugar — Sam diz.

—            Tem certeza? — pergunto, cutucando-o para que seus olhos se desviem do monstro. — Veja.

Lá, no centro da câmara, sobre um pedestal largo de pedra na altura de nossos olhos, repousa minha arca. E bem ao lado dela há outra, idêntica. As duas estão ali à nossa disposição. Exceto pelas barras de ferro à sua volta que, por sua vez, estão envolvidas por um vibrante campo de força elétrico, que é cercado por um fosso de líquido verde e borbulhante. Além do gigante adormecido.

—            Aquela não é a arca de Seis — digo.

—            Do que você está falando? De quem mais seria?

—            Eles nos encontraram, Sam. Na Flórida, eles nos encontraram abrindo a arca de Seis.

—            Sim, eu sei.

—            Mas olhe para aquele cadeado. Por que eles voltariam a pôr o cadeado em uma arca que provavelmente tiveram muita dificuldade de abrir? Acho que aquela ali nunca foi aberta.

—            Talvez você tenha razão.

—            Pode ser de qualquer um de nós. Número Cinco, Número Nove ou qualquer outro que ainda não esteja morto.

—            Então eles roubaram a arca e não mataram o Garde?

—            Como fizeram comigo. Ou talvez os mogs tenham capturado um deles e o mantenham preso, como fizeram com Seis.

Sam não tem chance de responder, porque nesse instante o relógio começa a apitar. Três segundos depois, centenas de sirenes começam a soar pelas paredes da caverna.

—            Ah, droga! — digo, virando a cabeça. — Estou vendo você, Sam.

Ele assente com um olhar aterrorizado e solta minha mão.

—            Também vejo você.

Quando olho por cima do ombro de Sam, as pálpebras da besta se abrem, revelando olhos brancos e pretos voltados em nossa direção.

 

MEUS OUVIDOS FICAM ZUMBINDO DURANTE MUITO tempo depois do último disparo. O cano da arma está soltando fumaça, mas Crayton não perde tempo e troca o pente vazio por outro carregado. O acúmulo de cinzas produziu uma névoa densa no ar. Ficamos parados, esperando, Ella e eu atrás de Crayton, que mantém a arma erguida e o dedo no gatilho. Um mogadoriano surge na entrada do campanário trazendo o próprio canhão, mas Crayton atira primeiro, cortando-o ao meio e jogando-o para trás. O mogadoriano explode antes de acertar a parede. Outro aparece, brandindo a mesma arma brilhante que arrebentou meu ombro lá embaixo, mas Crayton o elimina antes que qualquer luz seja emitida.

—            Bem, agora eles sabem onde estamos. Venham — ele grita, correndo para os degraus antes que eu possa me oferecer para fazer-nos flutuar janela afora.

Ella e eu o seguimos, ainda de mãos dadas. Crayton para depois da segunda curva da escada e aperta os olhos com os dedos.

—            Tem muita cinza em meus olhos. Não consigo enxergar — ele diz. — Marina, vá na frente. Se vir alguma coisa, grite e saia do caminho.

Mantenho a arca firme sob meu braço esquerdo e Ella fica entre mim e Crayton, segurando nossas mãos. Eu os levo para baixo, e passamos pela porta de carvalho quebrada no mesmo instante em que a torre acima de nós explode.

Eu grito, me abaixo e puxo Ella para o chão. Crayton começa a atirar em seguida. A arma dispara uma rajada de balas — de oito a dez por segundo —, e eu vejo um grupo inteiro de mogadorianos cair. Crayton para de atirar.

—            Marina? — ele chama, indicando para a frente com a cabeça, sem olhar para mim.

Eu me viro e confiro o corredor cheio de cinzas.

—            Acho que está livre — digo, mas, no instante em que as palavras saem de minha boca, um mogadoriano pula por uma porta aberta e atira, e um meteoro branco voa em nossa direção com um brilho intenso. Abaixamo-nos bem a tempo e escapamos da morte por um triz. Crayton logo levanta a arma e dispara uma saraivada de balas, matando o mogadoriano imediatamente.

Continuamos em frente. Não tenho ideia de quantos mogadorianos Crayton acabou de matar, mas as cinzas no chão formam uma camada espessa, que cobre de nossos pés até a altura dos tornozelos. Paramos no topo da escada. Das janelas entra luz que clareia a nuvem de cinzas e Crayton limpa os olhos. Ele fica à nossa frente segurando a arma com firmeza na altura do peito enquanto permanece escondido atrás de uma parede. Quando fazemos a curva, tudo o que nos separa da porta para fora do convento é uma escada, um corredor curto, o fundo da igreja e o vestíbulo principal. Crayton respira fundo, assente com a cabeça e faz a curva, abaixando o cano da arma, pronto para atirar. Mas não há alvos.

—            Vamos — ele resmunga.

Nós o seguimos, e passamos pelo fundo da igreja, agora enegrecido pelo fogo. Vejo de relance o corpo de Adelina, que parece menor a essa distância. Meu coração fica apertado. Suas palavras ecoam: Seja corajosa, Marina.

Uma explosão arrebenta a parede exterior que está à nossa direita. Pedras são arremessadas para dentro do convento e levanto a mão numa reação instintiva, tentando impedir que elas me acertem e a Ella. Mas Crayton é atingido com força, bate contra a parede à esquerda e cai no chão com um grunhido. A arma escapa de sua mão, e um mogadoriano entra na catedral pela cratera recém-criada. Ele está segurando um canhão e com um movimento fluido, usando a força da mente, eu o jogo para trás, trago a arma de Crayton para minha mão e aperto, em seguida, o gatilho. O coice é bem mais forte do que eu esperava e eu quase deixo a arma cair, mas me recupero depressa e continuo atirando, até que o mogadoriano é reduzido a cinzas.

—            Aqui — digo, colocando a arma nas mãos de Ella, que, pela maneira como parece à vontade ao aceitá-la, deixa claro para mim que armas de fogo não são novidade para ela.

Corro até Crayton. Seu braço está quebrado e os cortes no rosto e na cabeça sangram muito. Mas está de olhos abertos e parece alerta. Coloco minhas mãos em seu pulso e fecho os olhos, sentindo o frio percorrer meu corpo e irradiar para o dele. Vejo os ossos em seu braço se mexerem sob a pele, e os cortes no rosto se fecharem e sumirem. Seu peito sobe e desce com tanta rapidez que acho que seus pulmões vão explodir, mas logo ele se acalma. Crayton se senta e movimenta o braço normalmente.

—            Bom trabalho — diz.

Ele pega a arma de Ella e nós três saímos pelo buraco na parede para o terreno que fica na frente do convento Santa Teresa. Não vejo ninguém enquanto Ella e eu corremos para o portão de ferro e Crayton nos segue, movendo a arma de um lado para o outro, à procura de um motivo para atirar. Atrás de seu ombro esquerdo vejo uma rápida explosão de vermelho no telhado da catedral. Com um estrondo violento, o foguete disparado voa na direção de Crayton. Olho para a ponta do projétil e levanto as mãos, concentrando-me mais que nunca, e, no último instante, consigo desviar ligeiramente sua trajetória. Ele passa direto por Crayton e segue para uma montanha, onde explode numa coluna de fogo e fumaça. Ele corre conosco pelo portão com o olhar atento e a arma apontada. Então, para e se vira. Crayton balança a cabeça e ouvimos a porta da igreja se abrir atrás de nós.

—            Ele não está aqui — diz e, um instante antes de ele se virar e começar a atirar, o som de pneus cantando corta o ar.

O plástico que camufla a caminhonete cai e a traseira do carro patina quando Héctor, de olhos muito abertos atrás do volante, afunda o pé no acelerador. Ele corre em nossa direção e freia quando nos alcança. O veículo para com um cantar estridente e Héctor se estica sobre o banco do passageiro para abrir a porta. Jogo a arca a seu lado e Ella e eu entramos. Crayton permanece do lado de fora tempo suficiente para descarregar a arma contra os mogadorianos que saem da igreja. Vários caem, mas eles estão em número grande demais, de modo que é impossível acertar todos. Crayton pula para dentro do carro e bate a porta, e os pneus giram no calçamento de paralelepípedos, tentando conseguir tração. Ouço o som de outro foguete que se aproxima, mas o carro começa a correr, e disparamos pela Calle Principal.

—            Eu amo você, Héctor — digo.

Não consigo me conter. Vê-lo ao volante me emociona de tal forma que transbordo de alegria.

—            Também amo você, Marina. Eu sempre disse, seja amiga de Héctor Ricardo, ele vai cuidar de você.

—            Nunca duvidei disso — respondo, mas estou mentindo... eu duvidei dele pela manhã.

Chegamos à base da colina e passamos a toda pelas placas que anunciam os limites da cidade.

Viro-me para olhar pelo vidro traseiro enquanto o convento desaparece rapidamente. Sei que nunca mais o verei e, embora tenha esperado anos para sair de lá, ele agora carrega a aura sagrada de ser o local de descanso de Adelina. Logo a cidade fica para trás.

—            Obrigado, Señorita Marina — diz Héctor.

—            Por quê?

—            Sei que foi você quem curou minha amada mãe. Ela me contou que foi você, que você foi seu anjo, e eu nunca poderei retribuir isso.

—            Você já retribuiu, Héctor. Fiquei muito feliz por ajudar.

Ele balançou a cabeça.

—            Ainda não retribuí, mas pode ter certeza de que vou tentar.

Enquanto Crayton recarrega dois pentes e verifica a munição, Héctor dirige pela estrada sinuosa e imprevisível. Seguimos aos trancos, derrapando nas curvas acentuadas e nas ladeiras íngremes. Mas, apesar da velocidade, não demora muito e nós vemos ao longe um comboio de veículos nos seguindo.

—            Não se preocupe com eles — diz Crayton. — Apenas nos leve para o lago.

Embora a caminhonete esteja voando pela estrada, o comboio se aproxima.

Após dez minutos, um raio de luz passa logo acima de nós e explode no campo à nossa frente. Héctor abaixa a cabeça, em uma reação instintiva.

—            Meu Deus! — ele exclama.

Crayton se vira, quebra a janela de trás com a coronha da arma e então atira. O veículo à frente do comboio tomba, e todos nós comemoramos.

—            Isso deve mantê-los mais longe — diz Crayton, já recarregando o pente da arma.

E realmente os veículos ficam afastados por alguns minutos, mas, à medida que a estrada se torna mais precária e desce a montanha íngreme em curvas apertadas, eles voltam a se aproximar. Héctor resmunga baixinho enquanto dobra cada curva, pisando fundo, e os pneus traseiros chegam assustadoramente perto da beirada do precipício.

—            Cuidado, Héctor — Crayton avisa. — Não nos mate antes de chegarmos lá. Pelo menos nos dê uma chance.

—            Héctor está no comando — ele responde, o que não traz nenhuma tranquilidade a Crayton, que segura com força o encosto de cabeça do banco à sua frente.

A única proteção são as curvas sucessivas da estrada, que impedem que os mogadorianos consigam dar um tiro direto, embora eles tentem mesmo assim.

Quando passamos por uma curva particularmente sinuosa, Héctor não consegue virar com a rapidez necessária, e nós saímos pela beira da estrada. A um ângulo de setenta e cinco graus, a caminhonete dispara montanha abaixo, arrebentando galhos, batendo nas pedras, evitando por pouco árvores maiores. Ella e eu gritamos. Crayton também grita quando é jogado para a frente e se choca contra o pára-brisa. Héctor não diz uma única palavra... trinca os dentes e manobra o carro pelos obstáculos, até que, milagrosamente, caímos em outra estrada. O capô está muito amassado e fumegante, mas o motor ainda funciona.

—            Isso é um, ah, atalho — Héctor diz.

Ele pisa no acelerador e nós seguimos velozmente pela nova estrada.

—            Acho que os despistamos — Crayton comenta, olhando para o alto do penhasco.

Bato no ombro de Héctor e rio. Crayton passa o cano da arma pela janela de trás e espera.

Depois de algum tempo vemos o lago. Pergunto-me por que Crayton acredita que ali esteja nossa salvação.

—            O que há de tão importante no lago? — quero saber.

—            Você não pensou que eu viria procurá-la trazendo apenas Ella, não é!

Por um momento cogito responder que, até algumas horas atrás, eu pensava era que ele tinha aparecido para me matar. Mas logo os mogadorianos aparecem atrás de nós de novo, e Crayton se vira enquanto Héctor olha pelo retrovisor.

—            Essa vai passar perto — diz Crayton.

—            Nós vamos conseguir, papai — Ella fala olhando para ele. Ouvi-la chamar assim enche meu coração de carinho. Ele sorri com afeição para a menina e assente. Ella aperta minha mão. — Você vai adorar Olivia — diz para mim.

—            Quem é Olivia? — pergunto, mas, antes que ela possa responder, a estrada descreve uma curva de noventa graus e tem início uma descida íngreme na direção do lago adiante.

Ella fica tensa em meus braços quando a estrada termina e Héctor quase não relaxa o pedal do acelerador quando a caminhonete atravessa o alambrado que cerca o lago. Acertamos uma pequena elevação e as rodas do carro saem completamente do chão antes de, com um tranco, aterrissarem e quicarem na margem. Héctor dispara em direção à água e, pouco antes de a atingirmos, freia, fazendo o carro derrapar até parar. Crayton abre a porta do passageiro com o ombro, corre rumo ao lago e entra na água até a altura dos joelhos. Ainda com a arma na mão esquerda, usa a direita para arremessar um objeto o mais longe possível e começa a resmungar em um idioma que não entendo.

—            Vamos! — ele grita, levantando os braços como se tentasse incentivar. — Vamos, Olivia!

Héctor, Ella e eu saímos correndo e nos aproximamos de Crayton. Eu levo a arca debaixo do braço e logo vejo a água começar a borbulhar e fazer ondas no meio do lago.

—            Marina, sabe o que é um Chimaera?

Mas não chego a responder, porque nesse instante um veículo mogadoriano, um Humvee, que parece um tanque com uma metralhadora montada, entra em cena e desce a encosta em alta velocidade. Crayton dispara uma saraivada de balas contra o pára-brisa. O veículo se descontrola no mesmo instante e bate com força na traseira da caminhonete de Héctor. O impacto provoca um estrondo enorme, seguido pelo ruído de metal se retorcendo e vidro quebrando. Quando dezenas de veículos do comboio aparecem descendo a encosta e atirando, o mundo explode em uma confusão de fogo e fumaça, enquanto explosões sucessivas sacodem a margem e derrubam todos nós. Sob uma chuva de água e areia, lutamos para nos levantar. Crayton me agarra pela gola da blusa.

—            Saiam daqui! — ele grita.

Seguro a mão de Ella e corremos o mais rápido possível pelo lado esquerdo do lago. Crayton começa a atirar, mas eu ouço os disparos de duas armas e não apenas de uma, e espero que o segundo gatilho esteja sob o dedo de Héctor.

Corremos para um pequeno bosque que desce pela montanha e se estende até a beirada da água. Nossos pés batem nas pedras molhadas, e o ritmo acelerado de Ella se equipara ao meu. O tiroteio continua rasgando o ar, e logo que cessa, o urro poderoso de um animal ruge acima de nossa cabeça, fazendo-me parar. Viro-me para olhar para a criatura capaz de emitir um som tão aterrorizante, certa de que ela não é deste mundo. Um pescoço longo e musculoso emerge da água até uns dez ou quinze andares de altura, e sua pele tem um tom cintilante de cinza. No topo, a imensa cabeça de um lagarto abre a boca escamosa para exibir um conjunto enorme de dentes.

—            Olivia! — Ella exclama, eufórica.

Olivia ergue a cabeça e solta mais um urro ensurdecedor, no meio do qual ouço guinchos estridentes que descem a montanha. Olho para cima e vejo uma matilha de pequenas bestas que correm para o lago.

—            O que é aquilo? — pergunto a Ella.

—            Krauls. Um monte deles.

O pescoço de Olivia agora está todo fora da água, com trinta andares de altura, e quando o restante do corpo emerge, o pescoço engrossa e o tronco se alarga. Imediatamente, os mogadorianos começam a atirar contra ela, e Olivia esmaga vários com a cabeça, criando grandes amontoados de cinzas. Vejo as silhuetas escuras de Crayton e Héctor, ambos atirando sem parar. Os mogadorianos recuam quando centenas de krauls entram no lago e nadam na direção de Olivia. As criaturas pulam da água e atacam. Muitas escalam o corpo de Olivia e rasgam com as garras a base de seu pescoço. Logo a água se tinge de sangue.

—            Não! — Ella grita.

A menina tenta voltar correndo, mas eu a seguro pelo braço.

—            Não podemos voltar — digo.

—            Olivia!

—            Isso é suicídio, Ella. São muitos!

Olivia urra de dor. Balança a cabeça para os lados e para trás, tentando esmagar ou morder os krauls negros que a cobrem. Crayton aponta a arma para as bestas, mas volta a baixá-la quando percebe que, provavelmente, acabaria acertando Olivia. Em vez disso, ele e Héctor disparam contra o exército de mogadorianos que se perfilam, preparando-se para um novo ataque.

Olivia balança para a direita e para a esquerda, uiva para as montanhas e recua para o meio do lago, onde afunda lentamente numa onda vermelha. Os krauls se soltam e nadam na direção dos mogadorianos.

—            Não! — ouço Crayton gritar em meio àquele caos.

Eu o vejo tentar entrar no lago, mas Héctor o segura na margem.

—            Para o chão! — Ella berra, enquanto puxa meu braço.

Um sopro de ar passa sobre nós. Um gigantesco casco preto atinge o chão a meu lado e eu levanto a cabeça para ver um monstro chifrudo. Sua cabeça é tão grande quanto a caminhonete de Héctor e, quando o gigante ruge, meu cabelo balança em meu rosto.

—            Vamos! — grito, e corremos para as árvores.

—            Vamos nos dividir — Ella diz.

Concordo com um movimento de cabeça e corro para a esquerda, na direção de uma faia antiga de galhos retorcidos. Ponho a arca no chão e, instintivamente, levanto as mãos e as afasto. Para minha surpresa, o tronco da faia se abre, criando um espaço vazio que parece grande o bastante para acomodar duas pessoas e uma arca de madeira.

Olho por cima do ombro e vejo a criatura perseguindo Ella por uma área com muitas árvores. Jogo a arca no tronco aberto, e uso telecinesia para arrancar duas árvores e arremessá-las como mísseis contra as costas da criatura. Com um barulho alto, elas se arrebentam em sua pele escura, e a criatura cai de joelhos. Corro e seguro a mão trêmula de Ella, puxando-a em outra direção. A faia com minha arca surge diante de nós.

—            A árvore, Ella! Entre! — grito.

Ela se senta sobre a arca e tenta se encolher o máximo possível, retrocedendo sua idade.

—            Aquilo é um piken, Marina! Entre! — a menina suplica, e, antes que ela possa dizer mais uma palavra, fecho o tronco à sua volta, deixando espaço suficiente apenas para que ela possa enxergar.

—            Sinto muito — digo através da fresta, torcendo para o gigante não ter visto onde escondi a arca e minha amiga.

Viro-me e corro, tentando levar o piken para longe dali, mas ele logo me alcança e me derruba por trás. A força da pancada é impressionante, e eu caio por um barranco íngreme, até que consigo me agarrar em uma pedra. Olho por cima do ombro e vejo que estou a menos de um metro de um precipício rochoso.

O piken aparece no alto do barranco. Lá, ele se move para um lado até estar bem acima de mim. Solta um rugido tão alto que eu não consigo nem mesmo pensar. Ouço Ella gritar meu nome ao longe, mas não sou capaz de respirar, muito menos gritar de volta.

A criatura desce o barranco. Levanto uma das mãos e arranco uma árvore pequena e fina perto de mim, arremessando-a contra o peito do gigante. O tronco atravessa seu peito e é o suficiente para derrubar o piken, ele cai de lado, gritando e rolando em minha direção. Fecho os olhos e me preparo para o impacto, mas, em vez de me esmagar com o peso e me jogar para o precipício, seu corpo acerta a pedra em que estou me segurando e passa por cima de mim. Viro a cabeça e vejo o piken despencar no penhasco.

Finalmente consigo me concentrar o suficiente para flutuar até o alto do barranco. Corro de volta à faia — até Ella e minha arca — e ouço o tiro de canhão uma fração de segundo antes de ser atingida. A dor é muito mais forte que qualquer outra que eu já senti, e não vejo nada além de vermelho com lampejos brancos. Rolo pelo chão descontrolada, contorcendo-me em agonia.

— Marina! — escuto Ella gritar.

Fico deitada de costas e olho para o céu. O sangue escorre de minha boca e meu nariz. Posso sentir seu sabor. O cheiro. Algumas aves voam em círculos acima das árvores. Enquanto espero pela morte, vejo o céu ser encoberto por um grupo colossal de nuvens pretas e densas. As nuvens se chocam e se embolam umas nas outras, pulsando, como se respirassem. Penso que estou alucinando, tendo visões antes do momento da morte, quando uma enorme gota de água me atinge no lado direito da face. Pisco quando outra gota me acerta acima dos olhos, e então um relâmpago parte o céu no meio.

Um imenso mogadoriano usando armadura preta e dourada está parado sobre mim e sorri. Ele encosta o canhão contra minha têmpora e cospe no chão, mas, antes de apertar o gatilho, olha para a tempestade que se forma acima. Eu me apresso em colocar as mãos sobre a ferida aberta em meu abdômen, e sinto o frio familiar se espalhar sob minha pele. E então a chuva desaba sobre mim quando as nuvens se tornam uma sólida parede de escuridão.

 

PELA EXPRESSÃO NO ROSTO DE SAM, DEDUZO QUE ELE perdeu praticamente qualquer esperança de sair vivo daqui. Meus ombros também cedem quando olho para a besta imensa que se levanta diante de nós. Ela não tem pressa, e alonga o pescoço musculoso com veias tão grossas quanto colunas romanas. A pele escura de seu rosto é seca e rachada como a pedra que se projeta acima de sua cabeça. Com aqueles braços compridos, parece um gorila alienígena.

Quando o gigante enfim fica de pé, com seus quinze metros de altura, o cabo de minha adaga já envolveu minha mão direita.

—            Cerque-o! — grito.

Sam corre para a esquerda e eu vou para a direita. Seu primeiro movimento é na direção de Sam, que se vira no mesmo instante e corre ao longo da borda circular do fosso. A besta o persegue, e eu avanço em sua direção, deslizando a adaga para a direita e para a esquerda, cortando pequenos pedaços de suas panturrilhas. Ela levanta a cabeça e arrebenta o nariz no teto, e então move uma das mãos em minha direção, acertando a parte de trás de minha perna com um dedo. Sou jogado contra a parede, na qual bato com o ombro esquerdo, deslocando-o.

—            John! — Sam grita.

O gigante me ataca de novo, mas eu consigo pular e me desviar de seu punho... ele pode ser forte, mas é lento. Ainda assim, a câmara em que estamos não é grande o bastante para irmos muito longe, então, lento ou não, ele ainda tem a vantagem.

Não vejo Sam em lugar nenhum enquanto vou cambaleando de um lado para o outro. A criatura tem dificuldade de me seguir, e, quando percebo que tenho tempo suficiente, levanto lentamente o braço esquerdo e giro a mão, de forma a apoiar a palma na parte de trás de minha cabeça. A dor dispara de meu pescoço até os calcanhares, e antes que eu sucumba, continuo a me esforçar e sinto meu ombro deslocado voltar ao lugar com um estalo. O alívio me invade, mas dura pouco, porque olho para o alto e vejo a mão do monstro bem em cima de minha cabeça.

Levanto a adaga e a lâmina fura a palma da mão da besta, mas isso não basta para impedi-lo de me envolver com seus dedos. A criatura me levanta, e a força com que me aperta me faz soltar a adaga. Ouço o barulho da lâmina atingir o chão e, enquanto sou virado de cabeça para baixo, tento encontrá-la, de modo que possa recuperá-la usando minha telecinesia.

—            Sam! Onde você está?

Fico desorientado quando a besta me vira novamente, segurando-me um pouco acima de seu nariz. E então Sam surge de uma fissura na parede. Ele corre, pega minha adaga e, um segundo depois, o gigante grita de espanto e dor. A besta me aperta com força, e eu empurro seus dedos com toda a minha energia. Quando ela cambaleia para trás, consigo libertar os ombros, os braços e as mãos. Acendo as palmas e lanço meu Lúmen diretamente em seus olhos. O monstro fica cego no mesmo instante e recua até bater em uma parede, e então consigo me libertar completamente e pular.

Sam joga a adaga para mim, e eu ataco a besta, enfiando a lâmina na pele entre os dedos de seus pés. O gigante urra. Ele se dobra para a frente, e então lanço mais uma vez meu Lúmen em seus olhos. Ele perde o equilíbrio, e eu faço uma pedra atrás dele se deslocar e acertá-lo na região lombar. A besta se inclina para a frente e estende os braços, na tentativa de impedir a queda. Suas mãos enormes aterrissam no fosso de líquido verde borbulhante e, um segundo depois, ouço o barulho de sua carne queimando. Vejo a cabeça sem vida da besta se chocar contra a base do campo de força e dos pedestais largos de pedra sobre os quais estão as arcas. O choque interrompe o campo de força e joga os pedestais para o outro lado da câmara, arrebentando-os contra a pedra. A besta jaz inerte.

—            Diga que planejou isso — Sam fala, seguindo-me na direção das arcas.

—            Queria poder dizer que sim.

Abro minha arca e encontro tudo ali dentro, inclusive a lata de café com as cinzas de Henri e o cristal volátil envolvido com a toalha.

—            Parece que está tudo bem — digo.

Sam pega a outra arca.

—            O que vai acontecer quando passarmos por ali? — ele pergunta, olhando para a pequena porta de madeira por onde entramos.

Matamos a besta e pegamos as arcas, mas não podemos ficar invisíveis e simplesmente caminhar entre uma centena de mogs. Abro minha arca e toco diferentes cristais e objetos, mas continuo sem saber para que servem muitos deles, e os que conheço não vão nos ajudar a cruzar uma montanha de aliens. Enquanto olho pela câmara, começo a perder a esperança. Mas, depois de estudar a pele derretida do gigante e seus ossos se desintegrando, tenho uma ideia.

Com a adaga novamente no bolso de trás de minha calça, aproximo-me lentamente do fosso de líquido verde borbulhante. Respiro fundo e, com cuidado, mergulho um dedo nele. Como eu esperava, o líquido é escaldante, mas faz apenas cócegas na minha pele, como fogo. É como lava verde.

—            Sam?

—            O que é?

—            Quando eu disser para abrir a porta, quero que você a abra e saia do caminho imediatamente.

—            O que você vai fazer?

Em minha mente surgem imagens de Henri passando o cristal lórico sobre mim enquanto estou deitado sobre a mesinha de centro e tenho as mãos em chamas. Mergulho a mão no fosso e pego uma porção gotejante de lava verde. Fecho os olhos e me concentro, e quando os abro o líquido está pairando sobre minha mão como uma perfeita bola flamejante.

—            Isto, eu acho.

—            Sinistro.

Sam corre até a porta de madeira e eu movo a cabeça para indicar que estou pronto.

Ele abre a porta e se joga para a direita. Um aglomerado de mogs armados até os dentes está correndo em nossa direção, porém, ao verem a bola de fogo verde que voa até eles, tentam desviar. Quando a bola está prestes a acertar o peito do primeiro mog, uso a força da mente para espalhá-la como um cobertor de fogo. Vários mogadorianos são atingidos e, depois de um momento de tortura ardente, eles se transformam em cinzas.

Arremesso cada vez mais bolas de lava verde contra os mogs, derrubando-os. Sam reúne um punhado de armas dos mogadorianos e, quando sua investida é interrompida por um instante, agarro mais duas bolas de líquido verde e corro porta afora. Sam me segue com uma arma negra comprida embaixo de cada braço.

O número de mogs que correm pelo túnel escuro é espantoso, e, com as luzes piscando e as sirenes uivando, há uma sobrecarga sensorial. Sam puxa os dois gatilhos e trucida fileiras e mais fileiras de mogs, mas eles continuam a aparecer. Quando fica sem balas, Sam pega mais duas armas.

—            Uma ajuda aqui cairia bem! — ele grita, eliminando mais uma fileira de mogs.

—            Estou pensando, estou pensando!

As paredes do túnel cobertas de muco não parecem servir para espalhar um incêndio decente, e não tenho lava verde suficiente nas mãos para causar muito dano. À minha esquerda estão os tanques e silos prateados com seus canos pesados, bicas e mangueiras de alumínio. Junto ao silo mais alto, vejo o painel de controle repleto de fios elétricos. Ouço os urros e uivos das bestas nas jaulas fechadas ao longo do corredor, e imagino o tamanho de sua fome.

Arremesso uma bola flamejante contra o painel, que se desintegra numa tempestade de faíscas. As grades das jaulas começam a subir, e nesse momento jogo a outra bola verde na base dos tanques e silos.

Seguro Sam e corro com ele de volta à cela do gigante. Quando ocorre a explosão, empurro Sam contra o trecho de pedra entre a porta de madeira e o portão de aço se abrindo, e deixo a onda de chamas passar por cima de mim. Meus ouvidos são inundados pelo crepitar e pelo zumbido do fogo.

Dezenas de krauls saem das câmaras abertas e atacam por trás os mogadorianos desprevenidos. Diversos pikens correm pelo túnel rugindo e balançando os braços. O réptil mutante chifrudo avança até o fundo do túnel pisoteando mogs e krauls sob as pernas dos pikens. As criaturas aladas com jeito de gárgula voam e zumbem no teto, mergulhando para morder tudo o que encontram. E o monstro de pele transparente crava os dentes na panturrilha de um piken. Tudo isso acontece em poucos segundos, e depois eles são cobertos por um mar de fogo.

Após alguns minutos, quando o fogo escapa pela caverna espiral no final do túnel para continuar seu caminho de destruição pela montanha, o longo corredor diante de mim está coberto das cinzas e dos ossos enegrecidos dos monstros. Extingo o fogo que me cerca e esfrego as mãos na calça.

Sam está chamuscado, mas parece bem.

—            Brilhante, cara — ele diz.

—            Vamos tentar dar o fora daqui e, depois, podemos comemorar.

Ponho minha arca embaixo do braço e Sam pega a outra. Corremos pela área devastada pelo fogo, o mau cheiro de morte sufoca. A escada carbonizada no fim do túnel parece estável e, com apenas uma das mãos livre, subimos com dificuldade. Nossos pés pisam a plataforma espiral enegrecida pelo fogo e nós a percorremos até o centro da caverna.

O inferno que provoquei causou muito mais estrago do que imaginei, e vemos montes e mais montes de cinzas, mas também vemos centenas de mogs se arrastando para fora de diferentes corredores e túneis, queimados ou ainda em chamas, gritando de dor, incapazes de pegar suas armas ou de fazer qualquer coisa enquanto pulamos por cima deles. Há mais soldados correndo pelas plataformas acima de nós, alguns carregando armas, outros, feridos.

Estou confuso... não sei para que lado fica a saída e, enquanto nos conduzo por uma série de túneis, com o pingente balançando em meu pescoço, Sam e eu pegamos cada um uma arma descartada. Corremos com elas na altura do peito, atirando em qualquer coisa que cruza nosso caminho. Mesmo sem saber para onde vamos, não paramos até chegarmos às celas dos prisioneiros humanos. É então que tenho certeza de que escolhemos o caminho errado. Puxo Sam na direção oposta, mas ele resiste e me faz parar. Vejo a preocupação e a esperança em seu rosto. As portas de aço das celas estão travadas uns trinta centímetros acima do chão e os campos de força azuis desapareceram.

—            Elas estão abertas, John! — ele grita, jogando a arca a meus pés. Solto a arma e pego a outra arca, e Sam finalmente diz o que sei que ele estava pensando: — E se meu pai estiver aqui?

Encaro-o e entendo que temos de verificar. Sam corre pelo lado esquerdo do corredor, chamando pelo pai na frente de cada cela. Eu examino as celas do lado direito quando um garoto de minha idade e longos cabelos negros enfia a cabeça por baixo de uma porta. Ao me ver, ele estende uma das mãos cuidadosamente para o corredor.

—            O campo de força desapareceu mesmo? — ele grita.

—            Acho que sim! — grito de volta.

Sam pendura a arma no ombro e enfia a cabeça por baixo da porta da cela do garoto.

—            Conhece um homem chamado Malcolm Goode? Quarenta anos, cabelos castanhos? Ele está aqui? Você o viu?

—            Cale a boca e se afaste, menino — escuto o rapaz dizer.

Há uma nota áspera em sua voz, algo que me deixa inquieto, e logo puxo Sam para o lado. O garoto segura a porta por baixo e a arranca da parede, jogando-a no corredor como se fosse um frisbee. O teto racha e pedras caem, e eu uso telecinesia para evitar que Sam e eu sejamos esmagados. Antes que eu possa dizer uma palavra, o garoto sai limpando a poeira das mãos. Ele é mais alto que eu, está sem camisa e é musculoso.

Sam dá um passo à frente e, para minha surpresa, aponta a arma para a cabeça do garoto.

—            Fale logo! Conhece meu pai? Malcolm Goode? Por favor!

O garoto ignora Sam e sua arma, interessado nas arcas em meus braços. Só então percebo as três cicatrizes em sua perna. Exatamente iguais às minhas. Ele é um de nós.

Deixo cair a outra arca, espantado.

—            Que número você é? Eu sou o Quatro.

Ele olha para mim desconfiado e, em seguida, estende a mão.

—            Sou o Nove. Você fez um bom trabalho mantendo-se vivo, Número Quatro.

Ele pega a arca que deixei cair. Sam abaixa a arma e recua pelo corredor, parando de vez em quando para olhar dentro de uma cela. Nove toca a fechadura da arca e imediatamente ela vibra e se abre. Um brilho amarelo ilumina seu rosto quando ele levanta a tampa.

—            Maravilha! — Nove ri e põe a mão dentro da arca. Ele tira uma pequena pedra vermelha e a mostra para mim. — Tem uma desta?

—            Não sei. Talvez.

Sinto vergonha por saber tão pouco sobre os objetos de minha arca.

Nove coloca a pedra entre os nós dos dedos e vira o punho para a parede mais próxima. Um cone de luz branca aparece, e no mesmo instante podemos enxergar através da parede para dentro de uma cela vazia.

Sam corre para nós.

—            Espere! Você tem visão de raios X?

—            Que número é o nerd? — Nove pergunta, vasculhando novamente sua arca.

—            Ele é Sam. Não é lorieno, mas é um aliado. Está à procura do pai.

Nove joga a pedra vermelha para Sam.

—            Isso vai dar um gás, Sammy. Basta mirar e apertar.

—            Ele é humano, cara — digo. — Não pode usar essas coisas.

Nove encosta o polegar na testa de Sam, que fica de cabelo arrepiado. Sinto cheiro de eletricidade no ar.

Sam cambaleia para trás.

—            Uau!

Nove volta a enfiar a mão na arca.

—            Você tem uns dez minutos. Vá andando.

Fico espantado por saber que Nove tem a capacidade de transferir poderes para seres humanos. Sam segue rapidamente pelo corredor, inspecionando as celas com um movimento do punho. Quando chega ao fim do corredor, ele aponta a pedra para a grande porta de metal que há ali e expõe mais de uma dúzia de mogs armados do outro lado. Um deles está torcendo fios desencapados em um painel aberto.

—            Sam! — eu grito, empunhando minha arma. — Volte!

Uuush! A porta sobe e os mogs correm para fora. Sam sai correndo, atirando por cima do ombro.

—            Já tem outros Legados? — pergunto a Nove sem parar de atirar.

Ele pisca e então desaparece, correndo pelo teto rachado em supervelocidade. Os mogs não o percebem até ele surgir atrás do grupo, e então é tarde demais. Nove é um tornado e dizima os inimigos com uma ferocidade que eu nem sabia que os lorienos possuíam... até Seis ficaria impressionada. Sam e eu paramos de atirar, deixando Nove desmembrar cada mog com as próprias mãos.

Quando termina, Nove corre de volta pela parede esquerda do corredor, contorna o teto e passa para o lado direito, trazendo consigo uma nuvem de cinzas.

—            Antigravidade — diz Sam. — Esse é um Legado bacana!

Nove para diante de sua arca e a fecha com o pé.

—            Também escuto muito bem. A quilômetros de distância.

—            Certo, vamos embora — digo, pegando minha arca.

Nove acomoda a dele sobre o ombro enorme e pega uma arma no chão.

—            E aquelas outras celas? — ele pergunta a Sam, apontando para o corredor.

Há mais umas cem portas de celas ao longo das paredes além da passagem por onde entraram os mogs.

—            Temos de ir — digo, certos de que já estamos abusando da sorte. É só uma questão de segundos até sermos cercados. Mas Sam se mostra irredutível.

Ele corre pela porta maior, ainda segurando a pedra vermelha. Mais uma dúzia de mogadorianos aparece de repente de um túnel oculto entre nós e Sam. Ele se apoia à parede e atira. Vejo alguns mogs explodirem em cinzas, mas então minha visão é bloqueada por um bando de krauls salivantes.

Concentro-me em um pedregulho e o arremesso contra os krauls e acerto quase todos. Nove agarra um kraul pelas pernas de trás e o joga contra a parede. Ele esmaga outros dois e, quando termina, olha para mim e ri. Estou prestes a perguntar o que é tão engraçado quando ele arremessa uma pedra em minha direção. Eu me desvio no último segundo e logo depois minhas costas são cobertas com cinzas negras.

—            Eles estão em todos os lugares! — Nove ri.

—            Temos de alcançar Sam!

Tento passar correndo por Nove, mas um piken gigantesco nos captura.

—            Sam! — eu grito. — Sam!

Sam não nos ouve devido aos disparos de sua arma. O piken nos puxa no sentido contrário e eu perco de vista meu melhor amigo numa cena que parece se passar em câmera lenta. Antes que eu possa gritar novamente, o piken nos joga em um túnel do outro lado. Bato em uma parede e caio sobre uma arca, e a outra cai em cima de mim. Perco o fôlego. Quando olho para cima, vejo Nove cuspindo sangue. E sorrindo.

—            Você ficou maluco? — pergunto. — Está se divertindo?

—            Passei um ano trancado. Este é o melhor dia de minha vida.

Dois pikens entram no túnel, impedindo a passagem de volta para onde Sam está. Nove limpa o sangue do queixo e abre sua arca. Ele tira um cano prateado curto, que se expande rapidamente em ambas as direções até ter quase dois metros de comprimento e um brilho vermelho. Ele corre para o piken com o cano acima da cabeça. Levanto-me para ajudá-lo, mas sinto uma fisgada de dor nas costelas. Procuro dentro da arca minha pedra de cura, mas, quando a encontro, Nove já matou os dois pikens. Correndo de volta pelo teto, ele gira o cano ao lado do corpo e, quando está a uns seis metros de distância, grita para eu me mover. O cano vermelho brilhante voa por cima de minha cabeça como uma lança e atravessa a barriga de um piken.

—            Não há de quê — Nove diz antes mesmo que eu fale qualquer coisa.

Mais pikens se enfiam no fim do túnel e, quando eu me viro para correr, um bando de aves transparentes com dentes afiados está voando em nossa direção. Nove pega um cordão de pedras verdes dentro de sua arca e o arremessa contra os pássaros. O cordão paira no ar e, como um buraco negro, suga as aves para dentro.

Ele fecha os olhos e as pedras voam para os pikens, girando e libertando as aves na cara deles. Nove aponta para mim e grita:

—            Pedras neles!

Sigo sua dica e começo a atirar pedras e mais pedras no meio da confusão. Pikens e aves caem ao chão, vítimas de nosso ataque. Vários outros pikens se metem no túnel, rugindo. Seguro o braço de Nove, para evitar que ele avance.

—            Eles vão continuar a aparecer — digo. — Precisamos encontrar Sam e sair daqui. Seis vai se encontrar conosco.

Ele assente e nós corremos. Viramos à esquerda na abertura seguinte, sem saber se progredimos ou se nos perdemos ainda mais. A cada curva, cada vez mais inimigos surgem atrás de nós. Nove destrói todos os túneis por onde passamos, derrubando tetos e paredes com telecinesia e pedregulhos certeiros.

Chegamos a uma longa ponte em arco de rocha sólida, parecida com aquela que Sam e eu atravessamos antes. Lá embaixo há um lago de lava verde. Correndo do outro lado da ponte estreita há uma fila densa de mogs, e atrás de nós vários pikens vêm pelo túnel em nossa direção.

—            Para onde vamos? — eu grito quando colocamos o pé na ponte.

—            Para baixo — responde Nove.

Ele agarra minha mão quando chegamos ao ponto mais alto da ponte, e meu mundo vira de cabeça para baixo, literalmente, até que começamos a correr pela parte inferior do arco. Sem avisar, Nove me solta, mas meus sapatos continuam de alguma forma presos à base da ponte. Estico os braços para cima, reúno um punhado de lava verde e, quando chegamos ao outro lado da câmara, tenho nas mãos uma bola perfeita de fogo verde. Arremesso-a contra os mogs e a visualizo se espalhando sobre eles. Escuto o barulho da carne dos mogs fritando quando entramos em outro túnel.

Estou sem fôlego quando chegamos a uma descida íngreme. Estou avaliando a queda quando sou atingido por um disparo nas costas. Caio para a frente e despenco a uma velocidade vertiginosa e, quando a descida finalmente acaba, bato direto com o ombro recém-deslocado no chão.

Rolo sentindo uma dor insuportável. O disparo me acertou bem no meio das costas, e meus músculos estão enrijecidos em um espasmo incontrolável. Mal consigo respirar, muito menos abrir a arca para pegar a pedra de cura. Só o que consigo fazer é olhar para os raios de luar que aparecem e somem no final do túnel. A lona. Ela está tremulando com o vento da floresta. Estou de volta ao ponto de partida.

Ouço o som de pedras desmoronando atrás de mim. Sinto mais dor do que jamais imaginei possível, e só consigo pensar em sair da montanha.

— Para a frente. É a saída. Lá podemos nos reorganizar — falo com dificuldade.

Se pudermos sair, vou conseguir me curar e esconder as arcas na floresta. E talvez BK possa voltar conosco para dentro agora, já que destruímos os tanques de gás. Os quatro mogs que protegiam a entrada desapareceram e Nove passa pela lona na direção da floresta. Vou atrás dele. O odor das carcaças nos alcança em um instante, e nós dois engasgamos enquanto Nove corre para as árvores. Eu caio junto a um tronco. Preciso de cinco minutos, penso. Depois, voltamos para pegar Sam. Cuspindo fogo pelas mãos e pelas armas.

Nove vasculha sua arca e eu fecho os olhos. Lágrimas rolam por meu rosto. Levo um susto quando alguma coisa áspera toca minha mão esquerda. Abro os olhos e vejo Bernie Kosar em sua forma de beagle, lambendo meus dedos.

—            Não mereço isso — digo. — Sou um covarde. Estou amaldiçoado.

Ele percebe meus ferimentos e minhas lágrimas, e então fareja o rosto de Nove antes de se transformar em um cavalo.

—            Uau! — Nove exclama, pulando para trás. — Que diabo é você?

—            Chimaera — sussurro. — Ele é do bem. É lórico.

Nove afaga depressa o focinho de BK e depois pressiona uma pedra de cura contra minhas costas. Enquanto o processo se desenrola, percebo uma tempestade ameaçadora se formar sobre a montanha.

O céu de repente se enfurece com relâmpagos e trovões estrondosos, e me sinto tão grato por Seis ter voltado que me levanto, ignorando a dor em minhas costas. Mas as nuvens se movem e se alongam de um jeito que nunca vi antes, e de repente o céu parece maligno. Essa não é Seis. Ela não voltou para nos ajudar.

Vejo se formar a nuvem em funil que só pude observar em minhas piores visões.

Bernie Kosar recua quando uma espaçonave perfeitamente esférica, branca como pérola, desce pelo olho do tornado. A nave aterrissa exatamente na entrada da montanha, fazendo o solo tremer. Como em minhas visões, uma porta aparece sem mais nem menos na lateral da nave, simplesmente desaparecendo. O mogadoriano líder de minhas visões... ele está aqui.

Nove arqueja.

—            Setrákus Ra. Ele está aqui. É agora.

Fico em silêncio, paralisado pelo medo.

—            Então é esse seu nome — sussurro finalmente.

—            Esse era o nome dele. Para cada dia que tentaram torturar a mim e meu Cêpan, vou furá-lo com isto. — O cano vermelho brilha na mão de Nove. Suas extremidades se expandem com lâminas giratórias. — Vou matá-lo. E você vai me ajudar.

Setrákus Ra caminha para a entrada da caverna, mas para antes de entrar, uma silhueta imponente, rígida e espectral. Sob o vento devastador e a chuva torrencial, ele se vira, voltando os olhos mais ou menos em nossa direção. Mesmo a essa distância, o brilho fraco dos três pingentes é inconfundível em seu pescoço grosso.

Nove e eu saímos correndo das árvores seguidos por Bernie Kosar, que galopa atrás de nós, mas já é tarde demais. Setrákus Ra desaparece no interior da caverna, e o mesmo campo de força azul que cobria as portas das celas surge diante da entrada.

—            Não! — Nove grita.

Ele desacelera até parar e crava o cano no chão.

Empunhando minha adaga, continuo a correr. Ouço Nove gritar para que eu pare, mas só consigo pensar em matar Setrákus Ra, salvar Sam e o pai dele, e acabar com essa guerra aqui e agora. Quando atinjo o campo de força azul, tudo fica preto.

 

TROVÕES RETUMBAM E RELÂMPAGOS BRILHANTES SE espalham pelo céu, e, com a luminosidade, vejo as nuvens que se expandem e desabam. A chuva cai pesada, e o mogadoriano de armadura olha para mim. Ele pressiona o canhão contra meu pingente azul e diz alguma coisa que não entendo. O ferimento em meu abdômen está quase curado, e ouço Ella gritar meu nome acima do estrondo do trovão.

Se vou morrer, preciso soltá-la antes. Uma de nós tem de viver, de modo a contar a história aos outros. Com cuidado, levanto as mãos e visualizo o tronco se abrindo, e nesse momento um raio estala ao longe. Ele atinge o mogadoriano acima de mim, transformando-o em cinzas que são levadas pelo vento.

Levanto-me e vejo que não terminei de abrir o tronco de árvore. Continuo separando a árvore enquanto corro em sua direção.

—            Ella? Você está bem?

Ela pula de dentro do tronco para meus braços.

—            Não conseguia vê-la — ela diz, abraçando-me com força. — Pensei que tivesse perdido você.

—            Ainda não — respondo, pegando minha arca. — Vamos.

Viramo-nos para correr e vemos Crayton e Héctor, que vêm até nós.

Héctor está ferido e mantém um braço sobre os ombros de Crayton, buscando se apoiar. O vento e a chuva são violentos. Atrás deles, a primeira onda de mogadorianos e krauls investe na direção dos dois desde a margem. Quando vejo isso, quebro um galho grande de uma árvore morta e o arremesso com força contra a matilha de krauls. Consigo derrubar vários, mas eles se recuperam depressa. Um soldado mogadoriano arremessa uma granada, que intercepto no ar com minha mente e lanço de volta, acertando-o na barriga. Ela explode, espalhando vários krauls e mogadorianos em amontoados de cinzas. Arremesso árvores e mais árvores, pedras e mais pedras, derrubando muitos, matando ainda mais.

—            Ajude-me! — Crayton grita.

Corro para segurar Héctor. Ele tem um ferimento de mordida na barriga e um de bala no braço, e ambos sangram muito.

—            Vamos, gente! — Crayton grita, tirando balas dos bolsos do casaco e as introduzindo rapidamente no pente vazio da arma. — Precisamos chegar à represa!

Abro a boca para responder, mas um raio impressionante explode acima de nós. Ele se espalha pelos céus como as veias dos deuses, deixando no ar um gosto marcante de metal. O estrondo ensurdecedor de um trovão reverbera pelas montanhas. O vento e a chuva cessam e as nuvens começam a rodopiar, criando um rodamoinho imenso, até que um olho escuro e brilhante se forma, olhando diretamente para nós desde muito acima das montanhas. Os mogadorianos estão tão perplexos quanto nós. O vento volta a soprar forte, trazendo consigo as nuvens negras, os relâmpagos e trovões, devagar no início, mas ganhando velocidade rapidamente, vindo em nossa direção. Uma tempestade perfeita, linda em seu centro cataclísmico, diferente de tudo o que já vi. Nenhum de nós pode deixar de observar as nuvens densas que rolam em nossa direção com um rugido profundo.

— O que está acontecendo? — grito em meio aos ventos enfurecidos.

— Não sei! — Crayton responde. — Temos que encontrar um abrigo!

Mas ele não se move, nem ninguém. Héctor parece ter esquecido a dor de seus ferimentos enquanto também observa.

— Vão! — Crayton grita finalmente, e depois gira e dispara contra os mogadorianos para nos dar cobertura enquanto corremos por uma ladeira suave e descemos para um vale.

Vejo a represa à minha direita entre duas montanhas mais baixas. E longe demais para eu ter alguma esperança realista de alcançá-la. O rosto de Héctor está muito pálido e ele se enfraquece rapidamente, então começo a procurar um abrigo para que eu possa curá-lo. A arma de Crayton se silencia. Olho para trás temendo o pior, mas foi apenas sua munição que acabou. Ele pendura a arma nos ombros e corre em nossa direção.

— Não vamos conseguir chegar à represa! — ele grita. — Corram para o lago!

Nós quatro mudamos de direção, e a chuva recomeça. Balas atingem nossas pegadas e ricocheteiam em rochas. As nuvens se agitam no céu com um rugido. Um segundo depois, é como se estivéssemos embaixo de uma ponte: a chuva simplesmente cessa. Olho por cima do ombro e vejo que, apenas alguns passos atrás, a tempestade ainda desaba violentamente. O vento ganha bastante velocidade, e de repente os mogadorianos que nos perseguem são surpreendidos pelo pior temporal que eu já vi. Eles desaparecem completamente em um borrão.

Corremos pela margem arenosa do lago, e Ella e Crayton mergulham de cabeça.

—            Não vou conseguir, Marina — Héctor diz, parando antes de seus pés tocarem a água.

Solto minha arca, agarro-o pelo braço e falo:

—            Eu posso curar você, Héctor. É claro que vai conseguir.

—            Não faria diferença alguma. Não sei nadar.

—            Héctor, sou Marina do mar. Lembra?

Deixo o frio emanar de meus dedos para o ferimento de bala em seu braço. Vejo a área mudar de preto, cinza e vermelho até um rosado pálido de pele enrugada. Concentro-me rapidamente na mordida em sua barriga, e Héctor de repente endireita o corpo, cheio de energia. Olho em seus olhos.

—            Como rainha do mar, eu vou nadar com você.

—            Mas você tem isso — ele diz, apontando para a arca.

—            Então você vai ter de segurá-la — respondo, colocando-a em seus braços.

Corremos para a água até nossos pés não alcançarem mais o fundo, e então passo meu braço direito em torno do peito de Héctor e nado com o esquerdo. Ele aperta a arca contra a barriga e flutua de costas, mantendo a cabeça fora da água. Ella e Crayton nadam no meio do lago, e eu puxo Héctor na direção dos dois.

No céu as nuvens se dissipam, desmanchando-se em centenas de fios cinzentos. Os mogadorianos não são mais um borrão na tempestade e, assim que nos localizam, correm para o lago com dezenas de krauls gritando à sua frente.

Um pontinho negro cai do céu quando a última nuvem se dissipa e, quanto mais o pontinho se aproxima, mais ele parece ter a forma humana.

Com um grande pingente azul no pescoço, ela pousa na margem, espalhando areia em todas as direções. É uma menina linda com cabelos muito negros e, no momento em que a vejo, sei que ela é a garota com quem tenho sonhado, a que pintei na parede da caverna.

—            Ela é uma de nós! — grito.

A garota olha em volta, me encara e desaparece em seguida. Fico chocada, arrasada, achando que devo tê-la imaginado.

—            Para onde ela foi? — pergunta Ella.

Assim que percebo que Ella também a viu, que não foi minha imaginação, observo os dois krauls mais próximos serem lançados para trás. Eles flutuam, gritam e rosnam para alguma coisa atrás deles, e depois batem um contra o outro, até que ficam imóveis. Um kraul voa contra as pernas de dois soldados, e outro é arremessado no ar, acertando outros krauls e soldados.

—            Invisibilidade. Ela tem o Legado da invisibilidade — Crayton murmura.

Ela está invisível? Estou ao mesmo tempo admirada e com inveja, mas, acima de tudo, estou grata. Cada kraul que toca a água é jogado para trás por uma força invisível e se choca contra a areia dura ou um soldado mogadoriano. Um canhão derrubado se levanta da grama e começa a atirar em todas as direções. Krauls e mais krauls são destruídos. Dezenas de mogadorianos são transformados em cinzas.

Tiros de canhão soam do outro lado do lago e, quando me viro, vejo mais de vinte mogadorianos com água até a cintura. Raios de luz atingem a água à nossa volta, criando tanto vapor que mal consigo ver Héctor diante de mim.

—            Ella? — grito.

—            Aqui! — ela responde, à minha esquerda.

—            Pegue Héctor!

Ela passa um braço em torno do peito dele.

—            Por quê?

—            Porque não vou ficar aqui enquanto aquela garota luta sozinha. Esta guerra também é minha.

Antes que alguém possa me impedir, mergulho, e na mesma hora a água começa a fazer cócegas em meus pulmões. Afundo cada vez mais, até o azul-esverdeado da água se tornar cinza. Vejo o corpo gigantesco de Olivia abaixo de mim... ela está caída inerte no leito do lago, e nuvens de sangue surgem das centenas de mordidas em suas costas.

Nado para a margem oposta e, depois de um minuto, já posso ver as pernas dos mogadorianos. Aproximo-me do que está mais à esquerda. Firmo meus pés no fundo lodoso e me lanço para fora da água. O mogadoriano não tem tempo de reagir quando, com a força da mente, eu o arremesso para o meio do lago. Faço sua arma flutuar até minha mão, disparo contra ele e não solto o gatilho. Os mogadorianos em torno do lago explodem em cinzas, e quando termino de matar todos, aponto a arma para as centenas que estão perto dos veículos.

Percebo um movimento na água atrás de mim, mas sou muito lenta... um kraul pula e crava os dentes em meu corpo. A dor é imediata e horrível, como se alguém segurasse um ferro incandescente sobre minhas costelas. A besta me joga na água e depois contra a areia da margem. Prendo a respiração e grito quando ele volta a me girar para a água. Tenho certeza de que vou morrer, mas, de repente, o kraul abre a boca e me solta. Caio de bruços na areia da margem e vejo a boca da criatura se abrir mais e mais, até que escuto um estalar de ossos se partindo. A menina de cabelos negros se materializa diante de meus olhos, segurando os lábios trêmulos da besta. Ela olha para mim antes de puxar os maxilares dele completamente na vertical, matando o kraul.

—            Você está bem? — a menina me pergunta.

Levanto a blusa e toco meu ferimento.

—            Estarei em um segundo.

Ela se desvia de um tiro de canhão.

—            Ótimo. Que número você é?

—            Sete.

—            Eu sou a Seis — ela diz antes de desaparecer.

O frio se espalha de minhas mãos para o corpo, mas sei que não vou conseguir me curar por completo antes de mais uma onda de soldados mogadorianos me alcançar. Rolo para dentro do lago e fico sob a água. Meu ferimento está quase curado quando volto à superfície.

Número Seis está em cima dos Humvees blindados com uma espada brilhante. Ela luta contra vários soldados ao mesmo tempo: arranca membros, bloqueia tiros de canhão com a espada, usa telecinesia para apontar uma arma flutuante sobre sua cabeça e disparar contra dezenas de mogadorianos à frente da formação. Ela então arremessa a espada contra um grupo, atingindo três soldados de uma só vez. Número Seis agarra a metralhadora montada sobre o veículo e dizima dezenas de mogadorianos em segundos.

Restam apenas vinte ou trinta soldados. Talvez quatro krauls. Número Seis levanta uma das mãos sobre a cabeça enquanto dispara a metralhadora com a outra e destrói os Humvees parados ao longo da margem. Nuvens negras se formam sobre as montanhas e relâmpagos estalam e atingem o chão perto dela. Os mogadorianos demonstram medo pela primeira vez e eu vejo alguns largarem suas armas e correrem para a floresta.

—            Fora da água! — eu grito, com medo dos raios.

Ella arrasta Héctor para fora do lago e Crayton os segue.

Chego perto de Seis e pego dois canhões. Tento não perder o equilíbrio enquanto aperto os dois gatilhos, transformando mais soldados em cinzas e destruindo dois krauls. Um soldado ferido escondido atrás de um Humvee arruinado arremessa uma granada nas costas de Seis, mas eu consigo acertá-la ainda no ar. A explosão faz Seis girar e também a arma sobre o veículo, e no instante seguinte o soldado ferido é apenas um monte de cinzas.

Não consigo deixar de olhar Número Seis. Sua força é fascinante. O pingente azul balança em seu pescoço enquanto a arma em sua mão destroça mais e mais soldados. Ela vira para a esquerda e explode um kraul em pedaços, depois vira para a direita e, como um raio, transforma em cinzas vários outros mogadorianos.

O vale está claro e cheio de fumaça. Úmido e chamuscado. Olho à minha volta e não consigo acreditar que a vitória será nossa em alguns segundos. Crayton se aproxima correndo, eu lhe jogo uma arma, e logo ele começa a matar soldados que tentam fugir para a floresta. Héctor corre com minha arca e logo se posiciona com Ella atrás de mim. Movo a cabeça na direção de Número Seis e sorrio para meus amigos, pensando que o pior já passou, mas então Ella olha acima de minha cabeça e empalidece.

—            Pikens! — grita.

Quatro monstros chifrudos descem a montanha a toda velocidade. Bem embaixo deles, Seis se ocupa dos poucos soldados e do kraul que restam. Arranco tantos abetos prateados quanto consigo e os lanço como mísseis. Quatro acertam o piken da frente, que cai de costas no caminho dos outros três e é pisoteado até a morte.

—            Número Seis! — grito.

Ela me ouve, e eu aponto para os pikens que correm para o vale. A arma gira e estoura os joelhos do monstro à esquerda, que rola pela encosta mais depressa que os outros conseguem correr, e Seis pula de cima do Humvee um segundo antes de ele ser destruído pelo piken morto com um estrondo.

Crayton e eu atiramos contra os outros dois, mas eles são muito rápidos, e separam-se ao chegar ao fundo do vale. As nuvens rugem quando Seis fica de pé, e um relâmpago gigantesco cai sobre um dos pikens, arrancando seu braço. Ele urra e cai de joelhos, mas logo recupera o equilíbrio e ataca, jorrando sangue pela lateral do corpo. O outro piken escapa dos tiros de Crayton e corre pelo lado oposto. Todos corremos para Número Seis, mas Héctor é lento demais com minha arca nas mãos. Os pikens se aproximam e, antes que eu possa ajudar, o monstro de um braço só estende a mão e agarra Héctor e minha arca.

—            Não! — grito. — Héctor!

Estou tão chocada que, quando o monstro arremessa um Héctor inerte e minha arca no lago, não uso minha telecinesia para impedir que eles afundem.

Número Seis matou o outro piken. Ela agora se vira para nós e levanta as duas mãos para o céu. Um raio arranca a cabeça do monstro.

Pela primeira vez no dia faz-se silêncio. Eu me apoio em Número Seis, olho para Ella e Crayton e para o fogo e a destruição atrás deles, e sei que esses momentos de tranquilidade estão prestes a se tornar raros em minha vida.

—            Sua arca, Marina — Crayton diz. — Você precisa ir buscá-la.

Viro-me para Número Seis e a abraço.

—            Obrigada. Muito obrigada, Número Seis.

—            Tenho certeza de que logo vamos poder fazer isso de novo. — Ela retribui o abraço. — E pode me chamar só de Seis.

—            Eu sou Marina. Estes são Crayton e Ella. A menina é Número Dez.

Ella dá um passo adiante e se encolhe para seu corpo de sete anos. Estende a mão pequenina para Seis, que está boquiaberta, sem ação.

Crayton começa a explicar para Seis a respeito de Ella e da segunda nave enquanto caminho para dentro do lago. Sinto o frio da água pela primeira vez. Nado até o meio e mergulho, afundando, até que não vejo mais luz e meus pés tocam o fundo lodoso. Percorro o leito até encontrar minha arca. Balanço-a para livrá-la da sucção do lodo. Começo a subir, nadando com um braço só. Quando a água fica azul, vejo o corpo de Héctor e passo o outro braço em torno de sua cintura.

Ella e Crayton estão ao lado de Seis na margem. Solto a arca na areia e ponho as mãos molhadas em Héctor, apertando seu tornozelo, seu braço, seu pescoço, suas costas, torcendo e rezando para sentir o frio em meus dedos.

—            Ele está morto — diz Crayton, puxando-me pelos ombros.

Não desisto. Odiando-me por não ter tentado a mesma coisa com Adelina, toco o rosto de Héctor. Deslizo a mão por seus cabelos grisalhos. Chego a fazer seu corpo levitar alguns centímetros acima da areia e tento tudo de novo, mas é verdade. Ele se foi.

 

ESTOU PAIRANDO SOBRE A GRAMA. FLUTUO ACIMA DE um rio. Sinto-me miserável e rígido, e cada vez que ouso abrir os olhos estou pulando sobre um toco de árvore ou deslizando por uma montanha rochosa. Há um ruído constante, e eu levo vários minutos para perceber que é o som dos cascos de Bernie Kosar. Estou jogado sobre suas costas e nos movemos rapidamente pelas montanhas.

—            Acordou? — Nove pergunta.

Levanto a cabeça e o vejo sentado atrás de mim, segurando minha arca e a dele nos braços.

—            Não sei — digo, fechando os olhos. — O que... o que aconteceu?

—            Você deu de cara contra o troço azul. É a última coisa que alguém quer fazer na Terra, em Lorien ou em qualquer lugar. — Ele soa irritado, como se eu o tivesse feito abandonar a própria festa de aniversário.

—            E Setrákus Ra? — pergunto.

—            Em algum lugar da montanha, o covarde. Não consegui encontrar nenhuma outra entrada. E olha que eu procurei!

Eu me levanto sobre o corpo de BK, tomado por um surto de pânico.

—            E Sam?

—            Sem chance, Quatro. Ou seu camarada já era, ou está pendurado de cabeça para baixo olhando para a ponta de uma faca.

Eu vomito. Bernie Kosar logo se abaixa para que eu possa sair de suas costas, e então vomito um pouco mais. Nove tenta me explicar que o enjoo vai passar logo, que ele sentiu isso várias vezes quando tentou fugir de sua cela, que a pedra de cura parece não funcionar contra os efeitos do campo de força, mas estou atordoado demais com imagens de Sam sendo torturado. Minha náusea se deve à minha traição, não a um campo de força mogadoriano. Não creio que algum dia eu consiga me perdoar. Foi minha culpa o fato de ele ter entrado naquela caverna, e foi minha culpa ele ter sido deixado para trás. Dei as costas a meu melhor amigo.

—            Temos de voltar — digo. — Sam voltaria por mim.

—            Sem chance. Ainda não. Você está muito acabado e, como disse antes, precisamos de números.

Eu me levanto, mas em seguida caio sobre as mãos e os joelhos.

—            Você nem sabe onde estamos.

—            Estamos a poucos quilômetros de seu carro — diz Nove. Ele deve ter notado minha expressão confusa, porque sorri e afaga as costas de Bernie Kosar. — Parece que consigo conversar com animais. Quem diria? Bernie Kosar aqui está indicando o caminho. Vamos voar.

Estou fraco demais para protestar. Bernie Kosar galopa o mais rápido possível, saltando sobre arbustos e árvores caídas. Meu corpo dói, e eu me agarro à sua pele enquanto descemos em ziguezague pelas montanhas e colinas, atravessando dois rios de correnteza rápida. Aos poucos as estrelas aparecem no céu, e sei que uma delas, muito, muito distante, é o brilho sutil do sol de Lorien, lançando sua luz radiante sobre um planeta em hibernação.

—            Então, qual será nosso próximo passo? — Nove pergunta enquanto trotamos por entre as sombras.

Fico em silêncio, pensando em qual seria o passo que Henri tomaria. Tento imaginar qual seria a expressão em seu rosto. Um sorriso orgulhoso, por eu ter recuperado as arcas, resgatado um membro da Garde e matado tantos mogadorianos, ou estaria desapontado por eu não ter destruído o líder quando tive chance e por ter deixado Sam para trás?

O tempo todo vêm à minha mente imagens de Sam trancafiado atrás de uma daquelas portas de aço, e minhas lágrimas escorrem pelo pescoço de BK. Odeio pensar nisso, mas prefiro que ele morra a que seja torturado para dar informações a meu respeito.

Tento culpar Sarah por nos ter delatado à polícia, mas só posso culpar a mim mesmo por ter entrado em contato com ela, quando todos me aconselharam a não fazer isso. Em silêncio, aperto os calcanhares nos flancos de Bernie Kosar, que acelera.

Seis está em algum lugar na Espanha, e tomara que com outro membro da Garde. Parte de mim quer embarcar em um avião e ir encontrá-la, mas, depois de fugir de uma instalação federal, e com meu rosto ainda na lista dos mais procurados pelo FBI, não vejo como isso será possível.

Chegamos ao SUV, e eu desmonto com o corpo dolorido. Destranco a porta de trás e Nove acomoda em silêncio as duas arcas no porta-malas. Deitando-me no banco de trás, sentindo asco de mim mesmo, pergunto se Nove poderia dirigir.

—            Eu estava torcendo para que você pedisse — Nove responde.

Entrego-lhe as chaves e sinto o motor começar a funcionar.

Há alguma coisa sob meu corpo e, quando me viro de lado, encontro os óculos do pai de Sam. Eu os seguro sobre minha cabeça e deixo o luar se refletir nas lentes. Respiro fundo e sussurro:

—            Vamos nos ver de novo em breve, Sam. Prometo. — E então, quando penso que a situação não pode piorar, algo me ocorre com tanta intensidade quanto o choque contra o campo de força azul. — Ah, droga! O endereço de onde íamos nos reunir com Seis estava no bolso de Sam. Sou muito idiota! E agora, como vamos nos encontrar?

—            Não se preocupe, Quatro — Nove responde por cima do ombro. — As coisas estão acontecendo por alguma razão. Se é para encontrarmos Seis, Cinco, ou seja lá quem for, vamos encontrar. E se é para Sam ainda desempenhar algum papel em tudo isto, isso irá acontecer.

Bernie Kosar pula no banco de trás em sua forma de beagle e lambe meu rosto. Afago sua cabeça e solto um longo suspiro, completamente incrédulo diante do fato de que, além de tudo o que aconteceu de errado nas últimas quarenta e oito horas, eu também consegui perder o endereço de Seis. Olho pela janela e observo o vento que sopra para o norte, e me pergunto se ele pode estar tentando me dizer alguma coisa, ou, no mínimo, apontando a direção certa, como Seis acredita que aconteceu com ela.

—            Vamos para o norte — digo. — Acho que o norte é uma boa.

—            Pode deixar, chefe.

Nove pisa no acelerador e eu olho para Bernie Kosar, que se enroscou e dormiu.

 

Enterramos o corpo de Héctor na base da represa, onde o concreto branco encontra a relva.

—            Uma vez ele me disse que o segredo para mudar é superar o medo — eu falo, fitando os olhos de Ella, Crayton e Seis. — Não sei se já superei o medo, mas a mudança está em curso. Definitivamente. E minha esperança é que vocês todos possam me ajudar com isso.

—            Somos uma equipe — Ella responde. — É claro que vamos ajudar.

Depois de nos despedirmos, subimos a escada da represa. Ficamos no alto da barragem, olhando para o vale e o lago. Do outro lado da represa há uma série de comportas que contém um lago muito maior, e não consigo deixar de pensar que isso parece uma metáfora do que estou sentindo. Diante de mim está meu passado, pequeno, distante e marcado pela carnificina, sob a ameaça constante de inundação a qualquer momento. Atrás de mim e de meus companheiros Gardes, o futuro é imenso e controlado por forças não naturais.

Olho para Seis e pergunto:

—            Conhece um John Smith em Ohio? Ele é um de nós?

Seu sorriso é largo.

—            Conheço John. Ele é o Número Quatro.

Seguro a mão de Ella, à minha direita, e a de Seis, à minha esquerda, e ficamos ali sentindo a brisa das montanhas agitar nossos cabelos. Ella olha para Seis e pergunta:

—            Podemos ir para os Estados Unidos?

—            O feitiço está quebrado. Não vejo por que não podemos ficar todos juntos agora.

Seis dá de ombros e olha para o lago abaixo. Crayton se junta a nós.

—            Odeio dizer isto, mas esta é a calmaria que precede a tempestade, moças. Estamos vencendo muitas batalhas, de modo que eles não irão se aquietar agora. Vocês estão ficando fortes demais para eles, e o inimigo vai usar tudo o que tiver ao alcance. Não serão mais pequenos exércitos, com algumas centenas de soldados e um punhado de bestas desajeitadas. Seu líder logo estará aqui. Setrákus Ra.

—            Quem? — pergunto.

—            Setrákus Ra — Crayton repete, balançando a cabeça. — E não acho que estejamos prontos para ele.

—            Então está resolvido — falo. — Vamos para Ohio encontrar John Smith.

—            West Virgínia, na verdade. Daqui a exatas duas semanas — diz Seis.

—            Não sei se isso é aconselhável por enquanto. — Crayton começa a se afastar. — Antes temos de reunir os outros.

Seis vai atrás dele.

—            Isso parece uma boa, mas nem imagino onde eles estejam.

—            Mas eu sei — Crayton responde sem se virar. — Também sei onde estão nossos Chimaera. Se Setrákus Ra acha que isto será fácil, ele está muito enganado.

Nós o seguimos, dando os primeiros de muitos passos para o outro lado da represa.

 

                                                                                 Pittacus Lore  

 

                      

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