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O POETA / Karen Blixen
O POETA / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

À volta do nome da cidadezinha de Hirschholm, na Dinamarca, teceram-se muitas lendas.

Nos primeiros anos do século xvm a rainha Sofia Madalena - mulher do pio rei Cristiano V, esse que ia à capela três vezes por dia com a sua corte e mandou fechar todos os teatros de Copena-gue - uma noite, após longa montaria, matou um veado na margem de um lago tranquilo em plena floresta. Tanto lhe agradou o lugar que resolveu ali construir um palácio a que deu o nome do veado: Hirschholm. Acabou por ser o edifício, como quase toda a arquitectura teutónica desse período, pomposo e afectado, erigido como o foi no meio do lago, com longos e rectos cais cruzando as águas, e que os coches reais percorriam, em todo o seu esplendor, reflectidos ao invés na superfície clara como antes se reflectira o veado que os mastins da rainha acossavam. Em volta do lago a cidadezinha, com as suas casas de empregados, as tavernas, e um pequeno e modesto comércio, cresceu, as rubras telhas cercando as colossais cavalariças e os reais manèges. Pacata na maior parte do ano, era grande o alvoroço quando a corte magnífica chegava para ali passar a temporada de caça.

Cinquenta anos mais tarde, quando o neto de Sofia Madalena, Cristiano VI, reinava na Dinamarca, foi Hirschholm o teatro, ou os bastidores, da tragédia da sua jovem consorte inglesa Carolina Matilde. Esta princesa patética, de faces rosadas e redondo seio, atravessara o mar do Norte com a idade de 15 anos para casar-se com um reizinho devasso e cruel, pouco mais velho do que ela, mas já perdido nessa real loucura que o havia de tragar anos mais tarde, espécie de Calígula em miniatura, cujo retrato nos dá a estranha impressão de uma alma completamente só, desiludida. Foi aqui, passados alguns anos de infelicidade, e provavelmente de monotonia e confusão para a donzela inglesa, que se consumou, num tempo em que o rei se dedicava a brincar aos cavalinhos com o pajem negro, o destino de Carolina Matilde. Ganhou a jovem um amor imenso, desesperado, ao médico alemão que viera, com os seus novos tratamentos de águas frias curar o novo e enfermiço herdeiro. Este médico era um homem de génio, muito avançado para o seu tempo. A grande paixão da rainha começou por elevar o amante aos mais altos cargos do país, em que brilhou, para surpresa de todos, como estrela de primeira grandeza, tirano, temerário, inovador, e acabou por os perder a ambos. Foi para eles um tempo feliz e breve, esse em Hirschholm, onde Carolina Matilde impressionou os seus súbditos dinamarqueses trajando e montando como um homem nas caçadas - fato que podemos imaginar, olhando o seu retrato, não lhe ter assentado bem. O rancor da indignada rainha velha perseguiu então os dois amantes, e abateu-se sobre eles. Ao médico foi cortada a cabeça por ter posto a mão no que era privilégio da Coroa Dinamarquesa, e a jovem rainha foi exilada para uma pequena cidade de Hanôver, onde veio a morrer. Triunfou a virtude, mas aquela mais sombria, e o palácio onde se albergara tal blasfémia foi abandonado e por fim demolido - em parte porque, dizia-se, ele se estava afundando no lago. Todo o esplendor assim desapareceu, e uma igreja ao estilo clássico dos alvores do século XIX foi construída no local onde o palácio se erguera, como a cruz que se levanta sobre um túmulo. Muitos anos mais tarde, estátuas e móveis de talha dourada, com grinaldas de rosas e cupidos, foram vistos nas casas dos lavradores abastados nos arredores de Hirschholm.

Passada a tormenta, a cidadezinha deu por muitos anos a impressão de alguém emudecido e humilhado no torpor de um grande choque. Não pudera crer a cidade que tal coisa acontecesse, pelo menos de suas portas adentro. Guardara talvez no coração os restos de uma simpatia leal pela jovem e alegre rainha que um dia lhe sorrira. Mas acabar às mãos do carrasco é assunto sério, e à cidadezinha bastava olhar o sítio onde se erguera o palácio para claramente ver qual o preço do pecado. Duros tempos então assolaram o país: guerras, a perda da esquadra, a bancarrota, a cruzada pela virtude, severas economias. As frivolidades do século XVIII pertenciam já ao passado.

Foi então que, volvidos cinquenta ou sessenta anos sobre a tragédia da jovem rainha e do seu ministro, a cidade conheceu um breve e doce renascimento.

Não podia continuar indefinidamente a sua penitência por pecados em que, afinal, não tomara parte, nem viver para sempre, como de resto o país inteiro, convicta das excelências da ponderação.

Quando nos encontramos presos a uma triste vida de cuidados, é bom pensar em tempos e homens descuidados. Além do mais, quem não admite que se ponham em dúvida as virtudes da mãe pode sorrir ao encanto das loucuras das avós. Num tempo em que os homens principiavam a deixar crescer suíças, e as senhoras a emoldurar de longos caracóis o rosto, os erros dos homens e mulheres empoados começavam a parecer românticos, como as paixões e os crimes no teatro. Chegara o tempo em que os poetas vinham em breques de Copenague e se alojavam em Hirschholm para cantar a infeliz rainha Carolina Matilde, e ver a sua sombra, vaga neblina montando um corcel fantasma, perpassar a galope na floresta. As alamedas de tílias, plantadas sobre os cais à generosa maneira do século XVIII - que deve ter-se passeado por entre estacas de seis pés de altura para oferecer às gerações vindouras a folhagem e a sombra - tinham crescido e envelhecido, e pelos seus verdes recantos os velhos, que viram em criança passar a rainha em tropel nas pontes de pedra com os seus cães, ou o reizinho, qual boneco empoado, espartilhado, de rosto inexpressivo, rolar na carruagem, falavam, expansivos, dos alvoroços da vida na Corte às bonitas donzelas, às matronas e aos rapazes da cidade, que, à cautela, não se queriam perder com entusiasmos perigosos.

Nesse tempo viviam em Hirschholm dois homens que se distinguiram, por caminhos diversos, do burguês médio.

O primeiro deles era, por direito próprio, a figura proeminente do burgo, um cidadão de grande influência, homem não só de rendas e prestígio, mas também de seguro encanto e vasto conhecimento do mundo. O seu nome era Mathiesen, e fora feito Kammer-raad, conselheiro municipal. Mais tarde havia de ser descerrado um busto em sua homenagem à entrada de uma dessas longas avenidas bordadas de tílias onde ele gostava de passear.

Rondava ele por essa altura - estava-se no começo dos anos 30 - os cinquenta e cinco ou sessenta anos, e vivia tranquilo e feliz em Hirschholm. Mas já tinha sido novo, já tinha vivido noutros lugares. Viajara muito, até, e estivera na Alemanha e em França nos tempos conturbados e fatais que precederam o idílio: os dias da Revolução Francesa e das Guerras Napoleónicas. Ali fora espectador, e, quem sabe, actor de muitas coisas que a cidadezinha não sonhava sequer, e quem o tinha conhecido em jovem dizia que ele havia regressado com outros olhos - dantes foram azuis, e agora eram cinzentos-claros, ou verdes. Se tinha perdido as ilusões não considerava que a perda fosse de monta, e ganhara em compensação esse talento que é dar prazer à vida e sossego a si mesmo. Não há talvez melhor lugar para um epicurista sensato que uma cidadezinha de província. O conselheiro, que era viúvo há quinze anos, tinha uma excelente governanta e uma adega que seria o orgulho de um cardeal. Dizia-se em Hirschholm que nos serões solitários ele bordava a ponto-de-cruz; mas também não havia motivo para um homem da sua posição abandonar um passatempo que lhe era agradável só por amor às convenções.

De entre os tesouros que o conselheiro juntara pelo vasto mundo e trouxera para Hirschholm, nenhum ele apreciava mais que as suas lembranças de Weimar, onde estivera dois anos, e a recordação de um dia ter respirado o mesmo ar que respirara o Geheimrat Goethe. É excelente coisa ver cara a cara os nossos maiores, e é uma lei da vida que, de todas as nossas experiências, uma só se grave mais profundamente em nossa alma; e a imagem dessa cidade sereníssima e do grande poeta ficaram indelevelmente impressas no seu ser. Ele era o homem ideal - o super-homem, teria dito o conselheiro se a palavra já estivesse inventada - que reunia em si as qualidades que os outros homens invejam e querem a todo o custo alcançar: poeta, filósofo, estadista, ele era o amigo e o conselheiro dos príncipes, e o conquistador das mulheres. O conselheiro tinha muitas vezes encontrado Goethe nos seus passeios matinais, e tinha-o ouvido conversar com os amigos que o acompanhavam. Numa dessas ocasiões havia sido até apresentado ao grande homem, tinha visto o brilho desse olhar olímpico, e todavia humano, e trocara breves palavras com o Titã. O poeta discutia com Herr Eckermann um problema de arqueologia nórdica, e Herr Eckermann chamara o jovem estrangeiro para testemunhar no debate, Goethe interrogara-o então sobre o assunto e cortesmente perguntara se o rapaz não poderia obter-lhe determinadas informações. Mathiesen curvara-se num profundo cumprimento e respondera:

Ich bin Eurer Excellenz eherbietigster Diener.

O conselheiro não era um homem comum, e não tinha as ambições próprias dos homens comuns. Prezava muito a sua posição em Hirschholm - e não lhe faltavam motivos para tal - e a sua vida .diária não comportava exigências que ele não pudesse satisfazer a seu contento. Se por toda a vida albergou no coração, junto ao retrato do Geheimrat, um desejo de sentir-se, no seu mais limitado meio, um super-homem em miniatura, a ninguém o fez saber, e na vida real desempenhava essa ambição o papel de um ideal - uma força motriz e invisível que leva ao equilíbrio. Mas ele era um homem de vistas largas, um liberal, que tudo contemplava com demora. Mantivera uma noção de Paraíso, pois a sua geração fora imbuída do princípio de que há uma vida eterna, e a ideia da imortalidade era para ele uma coisa natural. O seu Paraíso era uma espécie de Weimar - um elísio de graça, inteligência e dignidade. Pensar no Além, todavia, não considerava ele que fosse de importância vital; podia esquecê-lo sem muita dificuldade. Mas tinha uma fé obstinada na História, e na imortalidade que ela oferece ao Homem. Ele vira a História acontecer, sentira os ventos da História na face, e não duvidava que o grande Imperador e os heróis da Revolução estivessem mais vivos que os funcionários e comerciantes de Hirschholm, que lhe tiravam o chapéu nas ruas mal pavimentadas e com quem trocava, dia a dia, palavras fugazes de ocasião. Era no palco da História, junto a essa alta-roda, que ele ambicionava ficar após a morte.

Fosse pela profunda impressão que a poesia lhe causara, ao manifestar-se em todo o seu esplendor, ou porque sentisse na alma uma tendência inata para ela, talvez inesperada num tal homem - mas quem poderia dizê-lo?, sabemos tão pouco da alma humana! - esta arte ocupava um lugar de relevo na sua ordenação das coisas. Para além da poesia não cuidava o conselheiro que existisse um outro ideal verdadeiro na vida, nem sequer uma promessa convincente de imortalidade. Nada mais natural, portanto, que ele próprio experimentasse fazer poesia. Recém-chegado de Weimar, escrevera uma tragédia que fora buscar o seu tema à história antiga da Dinamarca, e mais tarde fizera alguns poemas inspirados na lenda de Hirschholm. Mas era um homem de espírito crítico e logo percebeu, como aliás outro qualquer leitor, que poeta não era. Tinha compreendido já que a poesia, a entrar na sua vida, teria de surgir por outra forma, e reconhecera que o seu papel nessa arte seria o de um Mecenas, papel para que se julgava talhado e presumia digno de si nessa imortalidade futura que todo se esforçava por ganhar.

O que andava o conselheiro procurando veio afinal ao seu encontro na pessoa de um rapaz que se instalara em Hirschholm e que era nessa altura amanuense da comarca e - coisa que só ele e o conselheiro sabiam - um grande poeta.

Chamava-se Anders Kube e tinha 24 anos. Quem o conhecesse não diria que fosse um rapaz bonito, mas um pintor de temas sacros que estivesse procurando o rosto para um anjo talvez fosse encontrar nele o seu modelo. Tinha Anders Kube um rosto largo e olhos de um azul profundo, muito afastados. Para trabalhar usava óculos e, se os tirava, para fitar nuamente o mundo, os seus olhos tinham a expressão clara e profunda que os olhos de Adão teriam tido no dia primeiro em que percorreu o Jardim e olhou os animais. Nessa graça lenta, estranha e inesperada, angulosa de movimentos, com os seus cabelos ruivos e de mãos enormes, ele era um exemplar quase perfeito do camponês da Dinamarca, um tipo raro hoje em dia, quando os camponeses se sentam nos bancos do Parlamento, mas que era vulgar encontrar-se dantes entre os amanuenses das paróquias e os rabequistas.

Dos dois mundos em que vivia, um deles, o que lhe dava o pão do seu sustento, era muito limitado, confinando-se às paredes caiadas da sua sala no Tribunal da Comarca, aos seus aposentos - muito asseados sempre, que a patroa tinha-lhe afeição - no cimo de uma escada e ocultos por uma grande tília, e aos bosques e campos em redor de Hirschholm, por onde vagueava nas horas de ócio. Era recebido em casa de alguns burgueses de Hirschholm, respeitáveis e bons, para jogar às cartas e ouvir as discussões políticas, e tinha amigos entre os carroceiros da estrada real, que vinham desatrelar as bestas e cear na estalagem, e entre os membros também dessa curiosa tribo dos carvoeiros, que levavam o carvão desde as grandes florestas junto a Elsinore até Copenague. A casa do conselheiro, essa, ocupava uma posição ímpar na sua existência. Três anos antes, quando se mudara para Hirschholm, trouxera cartas de um seu amigo, o velho boticário Lerche, recomendando-o como rapaz talentoso e diligente, e por força delas tinha recebido um convite para cear com o conselheiro, regularmente, aos sábados. Estes serões agradavam a Anders Kube, e ofereciam-lhe muitas impressões. Nunca antes tivera oportunidade de ouvir tais provas de sabedoria mundana, tais e tão ricas provisões de experiência como aquelas com que ali se regalava. Provavelmente o conselheiro falava com ele usando de uma franqueza que a outros não dispensava, mas o rapaz não fazia ideia do muito que ele próprio representava na vida do seu protector.

Não tinha também quaisquer vislumbres da teoria que o Conselheiro concebera em seu benefício, e que era a seguinte: o rapaz tinha de ser mantido em uma espécie de redoma ou de estufa, para que pudesse vingar como poeta. Talvez a teoria estivesse baseada nas experiências de vida do próprio conselheiro; talvez este sentisse que, por força dos acontecimentos do seu passado, fora perdendo as faculdades e os ideais próprios de um poeta. Talvez fosse puramente uma questão de instinto. De qualquer modo, era a convicção íntima e arreigada do conselheiro que tinha de vigiar o seu protegido. Enquanto pudesse mantê-lo no sossego de Hirschholm, palmilhando as compridas alamedas ou a rua que o levava de casa à sala do Tribunal, as grandes forças que nele existiam tinham de expressar-se em poesia. Mas se o mundo, com as suas influências desenfreadas e imprevistas, se apossasse dele, o rapaz havia de perder-se para a literatura e para o seu Mecenas; e ser desencaminhado para tumultos e rebeliões contra a lei e a ordem, de que o próprio conselheiro era um acérrimo defensor, e acabar os seus dias numa qualquer barricada. Como ninguém mais iria imaginar o jovem Kube lutando numa barricada, a teoria revelava, a provar-se verdadeira, uma profunda compreensão da natureza por parte do conselheiro - se esquecermos o facto de que as pessoas que se vêm nas barricadas são geralmente aquelas que menos se esperava ali encontrar. Fosse como fosse, e em resultado dessa teoria, o velho mantinha sempre uma apertada vigilância sobre o rapaz, como o amante que desconhece o egoísmo e, qual digno e poderoso Kislar Aga, vigia uma beldade em botão do seu serralho a quem destina um futuro de grandeza.

Por seu lado o conselheiro não podia saber que ele próprio estava, aos olhos do seu protegido, aureolado de poesia. Tudo nascera nos primeiros dias da estada do rapaz em Hirschholm, com uma história contada pela senhoria, cuja veracidade é duvidosa, e se resume no seguinte:

O conselheiro era, como já se disse, um viúvo, mas antes de o ser passara por muita coisa. A falecida Madame Mathiesen fora a herdeira de uma fortuna modesta. Viera de Christiansfeld, que é a região por excelência na Dinamarca dos Hernutos, uma severa seita puritana semelhante à dos Jansenistas em França, e era senhora de uma consciência altamente desenvolvida. Mas numa noite de Verão, dois anos antes de morrer, tinha subitamente perdido a razão num acesso de terror do Demónio, e quisera matar o marido, ou matar-se a ela própria, com uma tesoura. Chamado, o velho médico empregara todas as artes da medicina com ela sem lhe fazer qualquer bem, e assim, por não haver ali perto um hospital para esse género de doenças, puseram-na em casa do velho jardineiro de Fredensborg - outro palácio real próximo de Hirschholm - e da mulher, que eram gente boa e deviam a colocação à influência do conselheiro. Ali viveu, sem recobrar o juízo, mas num estado de espírito mais feliz, pois acreditava que morrera e subira aos Céus, onde esperava pelo marido. Às vezes, porém, ela expressava o receio de que ele nunca lá chegasse, pois dizia que ele era um grande pecador; mas confiava na misericórdia divina.

A narradora da história, que nesse tempo era criada em casa de Madame Mathiesen, fora a única pessoa, para além do pequeno círculo de familiares, a saber como tinha surgido esta crise. Num quente fim de tarde, em Julho, depois de uma trovoada, e enquanto um duplo arco-íris brilhava sobre a paisagem, o conselheiro e a esposa, com uma rapariguinha que era filha de um seu amigo e funcionário da corte, e que fora mandada para Hirschholm a curar-se de uma decepção amorosa, preparavam-se para sair a passeio. Madame Mathiesen, no seu quarto, punha o chapéu quando, pela janela aberta, viu a rapariga apanhar um amor-perfeito amarelo e prendê-lo ao casaco do conselheiro. Há talvez para os Hernutos uma qualquer magia num amor-perfeito amarelo ou no céu que um duplo arco-íris cruza. Fosse como fosse, ver aquilo teve sobre Madame Mathiesen um efeito que ninguém poderia ter previsto.

Dois anos mais tarde, pela mesma altura do ano, o conselheiro recebeu de Fredensborg a notícia de que a saúde da esposa melhorara, que ela já não julgava estar no Céu, e que o jardineiro e a mulher achavam que lhe faria bem vê-lo. Assim, uma bela tarde, o conselheiro mandou sair o seu bonito cabriole, subiu, e ele próprio tomou as rédeas. Depois, pensando melhor, desceu e foi ao jardim, onde colheu um amor-perfeito amarelo que meteu na botoeira. O encontro dos esposos não correu como as duas boas almas esperavam, embora ela sempre tivesse estado à janela, à espera do marido. Mal o viu, teve um acesso do seu antigo delírio. Ficou tão violenta que foi preciso pedir ajuda. Com efeito, ela tinha recaído na loucura tão completamente que nunca mais recuperou a lucidez, pois veio a morrer um ano mais tarde.

O jovem Kube não tinha capacidade crítica, e nunca, por si só, teria considerado qualquer fenómeno da vida de um ponto de vista moral. Não admirava nem censurava o conselheiro pelo seu papel no drama. Mas tinha a capacidade de aumentar as proporções de tudo o que se lhe deparava. Tocadas pela sua arte, as coisas tornavam-se imensas, como as sombras na neblina que os viandantes encontram nas montanhas e de que têm pavor, enormes e quase grotescas, quais formas sólidas pairando um pouco além da razão humana. Assim a figura do conselheiro principiou a agigantar-se, evaporando-se, movendo-se em contorsões serpentinas e místicas, como o espírito que saiu da garrafa de Salomão e se mostrou ao pescador pobre de Bagdade; e todas as noites de sábado o jovem poeta se sentava a cear com o deus Loki em pessoa.

As outras noites passava-as quase sempre só, e como o seu trabalho de amanuense era mal pago, e ele era todo cauteloso com o seu dinheiro, inclinação que a senhoria apoiava, comia umas papas de aveia e deixava depois que o grande gato lambesse o leite que sobrara. Sentava-se o rapaz então, muito quieto, a olhar o lume, ou, em noites de Estio a olhar pela janela o lugar onde uma ténue neblina indicava os contornos do lago, e deixava que o mundo inteiro lhe abrisse o coração, se desnudasse e revelasse nas formas singulares que ao rapaz pareciam naturais. O jovem filho da terra, preso a um arquivo, tinha a alma dos antigos Eddas, que criavam o mundo à sua volta em termos de deuses e demónios, e o enchiam de cumeadas e de abismos que no país eram desconhecidos; e a facécia dos místicos antigos que povoavam o seu de centauros, de faunos e ninfas das águas, que nem sempre se portavam muito bem. Esses camponeses da Dinamarca, que eram por natureza os seus descendentes, escondiam, sob uma gravidade profunda, quase infantil, um espírito mais travesso e impudente que o de um palhaço. Não têm sido, em geral, muito bem compreendidos ou apreciados excepto se revelam esta faceta, e numa ânsia de serem entendidos muitos se têm entregado à bebida. Anders Kube, porque achava que devia fazê-lo, escrevia poemas sobre a aranha num ramo de rosas, mas depois, quando ficou mais senhor de si próprio, as suas obras adquiriram dimensões completamente diferentes.

Por vezes saía de noite para só voltar ao romper da aurora, e a senhoria não tinha artes de lhe arrancar o segredo de onde estivera.

A uma légua de distância de Hirschholm fica uma pequena propriedade, com um lindo solar branco rodeado por árvores e belos jardins, chamada La Liberte. Durante anos ninguém ali viveu. O dono fora um velho boticário, aquele mesmo que dera a Anders Kube as suas cartas de recomendação, estabelecido em Copenague, e que sempre vivera desafogadamente. Aos setenta anos, depois de ler umas novelas românticas que levara do clube, resolveu-se a correr mundo. Começou a viagem por Itália. Uma aura de aventura tinha rodeado a sua empresa desde a primeira hora. Mais brilhante ficou ela quando se soube que o boticário tinha experimentado um tremor de terra em Nápoles, e ali travara relações com um compatriota, uma figura misteriosa, que era por vezes dado como capitão de um navio mercante e outras como director teatral, e que morreu nos braços do boticário, deixando os muitos filhos na penúria. De Nápoles o homem informara os amigos que tinha tomado a seu cargo a filha mais velha do amigo, e andava pensando em adoptá-la; mas de Génova, duas semanas mais tarde, escreveu que se tinha casado com ela. «Mas porque foi ele fazer uma coisa dessas?», perguntavam, na cidade natal, as senhoras suas conhecidas. Ele nunca lhes disse porquê. Morreu em Hamburgo, durante a viagem de regresso, deixando toda a fortuna aos parentes, e La Liberte e uma pequena pensão à sua jovem viúva. Nos finais do Inverno de 1836 ela veio instalar-se na propriedade.

O conselheiro visitou-a, para lhe oferecer os seus préstimos e ver com os seus olhos a aventureira de Nápoles que tinha seduzido - e, suspeitava ele, assassinado - o velho amigo. Achou-a recatada, pronta a fazer tudo o que se lhe dissesse. Era uma rapariga baixa, franzina, que parecia uma boneca; não uma dessas bonecas de hoje, que são imitações dos rostos e das formas dos bebés humanos, mas daquelas de outros tempos que procuravam atingir, por caminhos paralelos aos da raça humana, um ideal abstracto da beleza feminina. Os seus olhos grandes eram límpidos como o cristal e as suas longas pestanas e sobrancelhas delicadas eram tão negras como se fossem pintadas sobre o rosto. O que nela havia de mais admirável seria a leveza rara de todos os seus movimentos, que eram como os de um pássaro. Tinha o que o conselheiro apelidava, na linguagem técnica do bailado, o ballon, uma agilidade que não é só a negação do peso mas que parece elevar na realidade o corpo e preparar o voo, e que é raro encontrar em bailarinas magras - como se a própria matéria se tornara mais leve do que o ar, e quanta mais acumula melhor voa a bailarina. Os seus vestidos de luto e os chapéus eram um pouco mais elegantes dos que os vistos habitualmente em Hirschholm; ou talvez por terem sido comprados em Hamburgo houvesse neles um quê de exótico se usados na aldeia. Mas era tão económica a rapariga como simples era o seu gosto. Nada alterou na velha casa, nem sequer mudou de lugar os velhos móveis bolorentos que há tantos anos só conheciam o abandono entre as paredes pintadas. Na sala térrea havia uma grande e sumptuosa caixa de música que fora trazida da Rússia. Ao que parece, ela gostava de passear pelo jardim, onde passava longas horas, mas deixou-o como estava, crescendo sem disciplina. Por temperamento, talvez, comportava-se com a máxima correcção, pois ia de carruagem visitar as senhoras das redondezas, que lhe davam bons conselhos e receitas de enchidos e pão de gengibre, mas falava pouco e era retraída, talvez por razão de um ligeiro sotaque ao falar dinamarquês. Outra característica notou ainda o conselheiro: uma profunda timidez, ou uma aversão, impedia-a de tocar em alguém. Nunca beijava ou acariciava qualquer das outras senhoras, como era o costume em Hirschholm, e dava mostras de não gostar que a acarinhassem. A boneca tinha o seu quê de psique. As senhoras de Hirschholm julgavam-na inofensiva. Ela não seria um rival, nem nos segredos do pão de gengibre nem do limitado círculo das comadres de Hirschholm. Talvez ela fosse, diziam, um tanto imbecil. O conselheiro concordava, e não concordava. Ali andava coisa, pensava ele.

No Domingo de Páscoa o conselheiro dirigia-se com Anders à igreja de Hirschholm. O sol brilhava, e o lago em volta da igreja tinha uma viva cor azul, mas o tempo estava frio, com um vento de leste, cortante, e caíam aguaceiros. Os narcisos, as coroas-imperiais e essas flores a que os dinamarqueses chamam «coração-de-tenente» - porque, ao entrebrir a corola, se acha no meio uma garrafa de champanhe e uma dançarina - que já abriam nos pequenos jardins, eram fustigadas e sujeitas pelo vento e pela chuva. As camponesas, que vinham tomar a sagrada comunhão com as suas toucas bordadas a ouro, debatiam-se com as pesadas saias e as longas fitas de seda à entrada da igreja.

Quando o conselheiro e o seu protegido se encaminhavam para o portal, a jovem senhora de La Liberte chegou num pequeno landau tirado por dois possantes cavalos baios, que tudo copiosamente se permitiram em frente da porta da igreja. Tinha ela deixado pela primeira vez os crepes de viúva, pois fazia um ano que o velho marido morrera, e pusera uma capa cinzenta-clara e um chapéu azul. Sentia-se feliz como o passarinho em verde ramo, e irradiava uma alegria de viver que era como uma valsa tocada num violino com surdina.

Como o conselheiro estivesse de momento ocupado numa troca de ideias com o pastor, foi o jovem Kube quem se apressou a ajudá-la a descer da carruagem. Por respeito à viúva do seu antigo patrono, Kube manteve o chapéu na mão enquanto por instantes se falavam. O conselheiro observava a cena do portal, e achou-se curiosamente atraído pelo que via. Não tirava os olhos deles. Os jovens eram ambos extremamente acanhados. A graça pesada e lenta do semblante do rapaz e a extraordinária leveza de movimentos dela, essa dupla timidez parecia dar ao breve encontro uma expressividade toda peculiar, uma importância, como se nele houvesse algum segredo, e qualquer coisa dele por força resultasse. Nem o conselheiro sabia ao certo o porquê desta impressão, que o comovia. Era, pensava, como os primeiros compassos de uma peça musical, ou o primeiro capítulo de um romance intitulado Anders e Fransine.

O Geheimrat Goethe, reflectiu ele, poderia - teria, sem dúvida - feito alguma coisa com isso. Entrou na igreja pensativo.

Por toda a cerimónia os pensamentos do conselheiro resolveram essa impressão recente. Tivera-a em boa altura, pois naqueles dias andava inquieto com o seu poeta. O seu jovem escravo vivia singularmente abstracto, ausente, de corpo até, em duas noites de sábado. Tudo nele mostrava uma agitação inconsciente, e com ela os sinais de uma grande melancolia que preocupava o conselheiro, pois este bem sabia que não estava em sua mão dar-lhe remédio. De uma conversa com a patroa lhe viera a ideia de que o jovem amanuense talvez estivesse bebendo demais. Grandes poetas houve que foram bêbados, evidentemente, mas não era esse o tipo de poeta de quem ele quisesse figurar como o Mecenas. Sob a influência da bebida, que ele sabia ter desempenhado um certo papel na história da família do rapaz, o poeta ainda lhe saía do propósito e lhe fugia, para andar a tocar rabeca pelas bodas dos camponeses. Na repartição da comarca o conselheiro opusera-se a um aumento de salário ao amanuense, pois não seria daí que lhe vinha qualquer bem, mas mesmo assim preferia ter um modo mais seguro de o encaminhar. Ocorria-lhe agora que o casamento poderia ser a âncora que o prendesse. A viuvinha, com o seu pequeno rendimento e a casa branca de La Liberte era talvez a enviada da Providência, a esposa ideal daquele génio. Podia, até, tornar-se uma segunda Christiane Vulpius, a única mulher, segundo lhe disseram, que passou noites inteiras nos braços do Geheimrat sem lhe fazer perguntas sobre o sentido da vida. Estas vagas imagens satisfizeram o conselheiro.

Da ala direita, que era a dos homens, o conselheiro lançou por uma ou duas vezes o olhar aos bancos das mulheres. A jovem continuava absolutamente imóvel, absorta nas palavras do pastor, mas, por toda a prédica, o seu rosto expressava uma profunda e secreta alegria. Quase no fim da cerimónia, quando se ajoelhou, profundamente comovida, levou o lencinho à cara. O velho não saberia dizer se ela o fez para ocultar as lágrimas ou dissimular o riso.

Depois da cerimónia o rapaz e o velho seguiram a pé para a casa do conselheiro. Ao passarem a ponte uma chuvada caiu, como um açoite de gelo varrendo a paisagem. Tiveram de abrir os guarda-chuvas e pararam na pontezinha de pedra vendo o granizo ferir as águas e os dois cisnes do lago serem levados, contra a vontade, sob o arco da ponte, pelas ondas gris. Ficaram ali por tempo esquecido, ambos imersos nos seus pensamentos.

Anders, depois de ouvir o sermão da Páscoa, tinha a imaginação povoada por uma série de sombras que lentamente ganhavam forma, como nuvens acastelando-se.

Maria Madalena, pensava ele então, correu a casa de Caifás mal rompeu o dia de Sexta-Feira. Tinha tido a visão de que, no dia seguinte, pela tarde, o véu do Templo se havia de rasgar. Ela vira os túmulos abrirem-se, e erguerem-se os justos. Ela contemplara o anjo do Senhor, que rolava a pedra do túmulo e se sentava sobre ela; e Maria Madalena gritava censuras ao sumo-sacerdote pela monstruosidade que iriam cometer se crucificassem Deus. Essas palavras convenceram os velhos de que era Cristo em realidade o filho unigénito de Deus e o redentor do mundo, e que iriam cometer o único, o verdadeiro crime em toda a história da humanidade.

Imediatamente reuniram o Sinédrio na sala escura do palácio, onde uma luz incidia sobre os cafetans multicolores e os rostos barbudos, pensativos, que sofriam. Alguns sacerdotes foram tomados de terror e exigiram que o prisioneiro fosse libertado sem demora; outros caíram em êxtase e profetizaram em agudas vozes. Mas Caifás e alguns dos mais velhos entre todos discutiam a questão com rigor, e concordaram em executar o que estava escrito. Se o mundo tinha na verdade esta única esperança de salvação, eles teriam de cumprir os desejos do Altíssimo, por mais horrendo que fosse o seu acto.

Maria, em desespero, falou aos sacerdotes dos pecados e misérias da Terra, que ela tão bem conhecia, e da santidade de Cristo. Quanto mais a ouviam, mais os sacerdotes abanavam a cabeça.

Caifás invocou Satã para com ele discutir o assunto. Como sua primeira personificação veio Judas, o ruivo, à sala do conselho, e quis devolver as trinta moedas de prata. Tendo os sacerdotes recusado, Judas, rindo, pôs-se a descrever as desgraças futuras que por longo tempo haviam de fustigar o povo eleito, de então em diante perseguido e desprezado pelo mundo, com as moedas de prata para sempre nas mãos. Descreveu até aos grandes sacerdotes o ghetto de Amsterdão, que o próprio conselheiro, num serão de sábado, havia pintado ao seu protegido. A cabeça do velho sacerdote caiu sobre o pesado livro da Escritura.

O conselheiro, esse, encontrava-se algures no Sinédrio, embora não desse rosto a qualquer figura em particular. Maria Madalena, ajoelhada, ocultava o rosto.

O jovem amanuense sentia a cabeça um pouco tonta. Estivera na noite anterior até altas horas na estalagem, jogando às cartas com os viandantes.

A chuva parara. Os dois homens fecharam os guarda-chuvas e retomaram a marcha.

Também ao conselheiro, e apesar dos seus planos matrimoniais, aproveitara o sermão. Reflectia ele em como era estranho que, sendo a única pessoa a saber do facto, e estando em posição de abafá-lo, São Pedro tivesse deixado que se espalhasse aquela história do galo.

Nas três semanas que se seguiram o tempo esteve muito.ameno, mas choveu. A terra germinava e o ar tinha a fragância que só espera um dia de azul e sol para expandir-se. As ameixoeiras floridas flutuavam como nuvens de giz à volta das casas, nas herdades. Depois o chão das florestas, na sombra das faias, cobriu-se de anémonas, rosadas como conchas, de folhas digitadas, e aroma doce e acre. Chegavam os rouxinóis, que transformavam o mundo inteiro num violino, ainda no pingue-pongue da chuva e na cerração das névoas.

Num dos últimos dias de Maio, uma quinta-feira, o conselheiro ceou e jogou às cartas em Elsinore com um seu amigo, que era oficial das alfândegas no Sund. Tais jantares eram festas anuais onde os velhos amigos se reuniam. Davam sempre para tarde, e são quatro léguas de Elsinore a Hirschholm; mas o conselheiro não se importava, pois as noites da Dinamarca são claras na Primavera. Regressou, pois, no belo cabriole que o velho cocheiro, Kresten, guiava, apreciando, embotado de sono, ao aconchego preguiçoso do farto capote gris, a beleza daquela noite de Maio e o aroma que deitavam os campos e os bosques em botão que vinham atravessando. Nas proximidades de Hirschholm alguma coisa nos arreios cedeu. Foram forçados a parar, e Kresten concluiu que teriam de pedir nalguma herdade um pedaço de corda para reparar o estrago. Olhando em volta o conselheiro descobriu que se encontravam nos limites de La Liberte. Temendo que Kresten fizesse muito barulho e perturbasse o descanso da dona da casa, decidiu-se a ir sozinho. Conhecia o caseiro da propriedade - afinal, fora ele quem lhe arranjara o emprego - e podia bater-lhe à janela sem acordar mais ninguém. Tiritando, desceu da carruagem e tomou pela alameda. Era madrugada.

A escuridão rescendia com o cheiro doce e acre da folhagem fresca e húmida. Na alameda de cascalho havia ainda pequenas poças de água; mas a noite estava clara. Seguia lentamente o conselheiro, pois aqui, por entre as árvores e os arbustos, tudo era negrume. Renques de populus balsamifera divergiam da alameda para o pátio, contribuindo com a fragância acre e nectária dos seus tufos de flores para a harmonia do ambiente.

De súbito, enquanto caminhava, chegaram-lhe aos ouvidos uns sons de música. Deteve-se, mal acreditando no que ouvia - sim, não havia quaisquer dúvidas: era música. Alguém tocava uma dançante melodia, e o som vinha da casa. Andou um pouco mais; voltou a parar, surpreso. Quem estava ali tocando e dançando antes do nascer do Sol? Desviou-se da alameda e atravessou o relvado em direcção à frontaria da casa. Ao aproximar-se do terraço, a fachada branca da casa brilhou numa alvura espectral, e ele viu uma luz clara por entre as ripas das gelosias fechadas. Talvez a jovem viúva estivesse dando um baile na sala térrea essa noite.

Os molhados arbustos de lilases no terraço estavam carregados de flores por abrir. Os cachos negros e espinhosos guardavam dentro de si uma surpresa; seriam tão mais claros quando abrissem. Num canteiro as tulipas mantinham, prudentes, as corolas brancas e cor-de-rosa fechadas ao ar da noite. Tudo era calma. O conselheiro recordou os versos de um velho poema:

Mansamente cessam de embalar os zéfiros O berço da Natureza, que adormece.

Nessa hora que precede a alvorada o mundo surge completa-mente descolorido, quase dando, até, a sensação de negar a cor. Os cambiantes ricos da noite já desaparecem, esvaídos, como se afastam as ondas da praia, e todas as cores do dia jazem adormecidas na paisagem como nas tintas do oleiro, que todas são pardas igualmente antes de saírem da fornalha. E neste mundo em silêncio habita uma invulgar promessa.

O velho gris no seu capote gris seria completamente invisível até para alguém que o procurasse. Sentia, com efeito, o conselheiro uma extrema solidão, como se soubesse que não podia ser visto. Não se atreveu a levar a mão à gelosia, com receio de fazer barulho. Colocando as mãos atrás das costas inclinou-se para a frente e espreitou.

A sua surpresa não podia ter sido maior. A longa sala térrea, de três portas envidraçadas que abriam para o terraço, estava pintada num cor azul-celeste já desbotada pelo tempo. As poucas peças que a mobilavam tinham sido afastadas para as paredes. Mas do tecto, a meio da sala, pendia um belo e antigo lustre, e todo ele brilhava, pois nem uma vela tinha ficado por acender. A grande caixa de música estava aberta, em cima da espineta muda, e emitia as notas claras e agudas de uma mazurca.

A dona da casa estava no centro da sala, em bicos de pés. Vestia o fato curtíssimo e diáfano de uma bailarina, e os sapatinhos rasos ajustavam-se com fitas negras à volta dos tornozelos delicados e das pernas. Sustinha os braços acima da cabeça graciosamente arqueados, e estava imóvel, atenta à música, com a expressão feliz e plácida de uma boneca.

Soou o compasso de entrada, e a jovem subitamente ganhou vida. Ergueu muito, muito devagar a perna direita, o bico do pé apontado ao conselheiro, cada vez mais alto, como se na verdade se fosse erguer do chão num voo. Depois baixou-a muito, muito devagar, até a ponta do pé bater o soalho com um som tão leve e manso como o de uns dedos pousando sobre a mesa.

O espectador, no jardim, susteve a respiração. Tal como antes, ao ver o ballet em Viena, sentia que isto era excessivo, impossível de ser executado. E logo se cumpria, com ligeireza, como se fosse uma coisa de nada. E um homem começa a duvidar que tenha havido o pecado original e a não se preocupar com isso, quando uma jovem bailarina consegue alcançar o Céu.

Apoiada agora na ponta do pé direito, ela ergueu a perna esquerda muito, muito devagar, a grande altura, abriu os braços num movimento vivo, audacioso, rodopiou sobre si mesma e principiou a dançar. A dança era algo mais do que uma verdadeira mazurca, de tão fogosa e ligeira que era, e durou talvez dois minutos: um pião musical, uma flor, uma chama dançando, um desafio brincando às leis da gravidade, uma celestial facécia. Era também uma representação: o amor, a doce inocência, as lágrimas, um sursum cordae expresso em música e movimento. A meio houve uma breve pausa para assustar o público, mas depois prosseguiu como antes, mais admirável ainda, talvez, como se transposta para um tom mais agudo. Só quando na caixa de música deu sinais de esgotar-se a melodia ela volveu os olhos na direção do conselheiro e afundou-se no chão em uma trouxinha adorável, como a flor caída sobre a corola, exactamente como se as pernas lhe fossem cortadas com uma tesoura.

O conselheiro conhecia o suficiente da arte balética para avaliar que a actuação fora de excelente nível. Conhecia o bastante das belas coisas da vida para estimar a aparição matinal como digna do Czar Alexandre, se tal se proporcionara.

O olhar franco e directo da bailarina assustou-o e fê-lo recuar uns passos. Quando voltou a espreitar ela tinha-se erguido e ficara como irresoluta, não se voltando mais para a caixa de música. Havia um longo espelho na sala. Pressionando meigamente a palma da mão no espelho, ela curvou-se a beijar a imagem prateada que nele surgia. Depois tomou de uma longa mão-de-judas e, uma a uma, apagou todas as velas do lustre. Abriu a porta e desapareceu.

Mau-grado a sua relutância em ser visto por alguém, o conselheiro permaneceu imóvel no terraço por um ou dois minutos. Estava tão assombrado como se um acaso o tivesse levado a surpreender, nesta alvorada de Maio, Eco praticando sozinha no coração da floresta.

Ao voltar costas à casa impressionou-o a grandeza do panorama que se disfrutava de La Liberte. Não tinha dado por ele ainda. Do terraço viu toda a região circundante, verde e ondulada, até por sobre as copas da floresta. Ao longe o Sund brilhava qual fita de prata, e sobre o Sund o Sol nascia.

Voltou à carruagem mergulhando em pensamentos. Estupidamente ocorreu-lhe um trecho de uma canção infantil, de bonita melodia:

A galinha não tem culpa Se o galarote morreu. A culpa foi do rouxinol Escondido no jardim.

Esquecera por completo a corda. Quando Kresten o informou de que tinha podido consertar o arreio sem ela, o conselheiro não achou o que dizer.

Durante o resto da viagem sentiu-se bem disposto. Parecia-lhe que tinha muito que fazer, que devia corrigir a posição dos peões no tabuleiro de xadrez. Tal ocupação arrastava consigo muitas ideias, agradavelmente refrescantes para um homem que todos os dias lidava só com livros e com leis, e que tinha estado a jogar a arrenegada com três velhos solteirões na noite anterior.

A viúva do boticário não era nenhuma Christiane Vulpius, isso era evidente. Não era mulher para servir de âncora a ninguém. Era capaz, muito pelo contrário, de erguer consigo o poeta que o conselheiro lhe havia destinado e com ele voar para ignotas paragens além da sua supremacia. Que ela assim o tivesse enganado ele não se importava. Por isso mesmo lhe agradou a rapariga, que na vida eram raras as coisas que o surpreendiam. Felizmente ele tinha descoberto a verdade, pois assim não perderia o seu poeta. Aliás, pensou ele, gostaria de os ter aos dois. Tirou o chapéu por momentos, e uma brisa matinal e moça brincou nas suas têmporas. Não era um velho; ainda era novo, comparado com aquilo a que ela estava habituada. Era rico, era um homem que sabia apreciar e merecer as coisas mais raras da vida. Seria capaz de convencê-la a dançar para ele ao serão? Teria uma vida de casado bem diferente da que antes experimentara. O poeta continuaria a ser o seu protegido, o amigo da casa.

Os seus pensamentos foram mais além, enquanto o Sol subia no horizonte. Um amor infeliz é um sentimento inspirador. Tem criado as maiores obras da História. Uma paixão sem remédio pela mulher do seu benfeitor podia fazer imortal qualquer jovem poeta; era um dramazinho que lhe entrava em casa. Os dois jovens continuariam a ser-lhes fiéis, por muito que sofressem, por mais poderosos que fossem o amor e a juventude. E se não lhe continuassem fiéis?

O conselheiro serviu-se de uma pitada de rapé, e nesse prazer o delicado nariz pareceu torcer-se levemente. A viagem estava agora quase a terminar. Na manhã tão límpida, a cidadezinha parecia erguida no fundo do mar. Os telhados das casas desabrochavam quais ramos de coral, audacioso ou pálido; o fumo azul subia quais finas algas emergindo à superfície. Os padeiros tiravam do forno os pães cozidos. O ar da manhã fazia o conselheiro sentir-se um pouco sonolento, mas muito bem disposto. Lembrou-se então do velho ditado a que os camponeses chamavam a reza dos solteirões:

«Faz, meu Senhor, eu te peço, com que eu nunca me case. Mas se tiver de casar, faz com que eu não seja corno. Mas se tiver de o ser, faz com que eu não o saiba. Mas se tiver de o saber, faz com que eu não me importe.»

São estes os pensamentos que só um homem como ele pode consentir-se, que tem na estrutura da sua mente um quarto perfeitamente limpo de que tem a certeza de possuir a única chave.

Na noite do dia seguinte, que era um sábado, Anders veio cear a casa do conselheiro. Depois da ceia leu ao protector um poema sobre um jovem camponês que uma noite vê três cisnes bravos transformarem-se em três donzelas, que se banham no lago. Ele então rouba as asas a uma das raparigas, que as pusera na margem para tomar banho, e faz dela sua mulher. Ela dá-lhe filhos. Mas um dia ela recupera as suas asas de onde o marido as escondera. E voa por sobre a casa desenhando círculos cada vez mais largos até que, por fim, desaparece no ar.

Como é que ele escreveu isto, como é que ele pôde escrever isto? - perguntava-se o conselheiro. - É curioso. Ele não a viu dançar.

Agora as florestas de faias da província desabrolhavam. A chuva caiu por alguns dias à volta do mundo, como um véu gris ocultando a noiva, e surgiu a manhã em que toda a floresta reverdesceu.

Isto acontece sempre na Dinamarca em Maio, mas sempre nos maravilha, e maravilhava também estas pessoas de há cem anos como se fora uma total surpresa, inexplicável. Por todos os longos meses de Inverno se está exposto, até no coração da floresta, aos ventos e à luz de um céu triste. Então, de súbito, o mês de Maio levanta uma cúpula acima de nós e cria um refúgio, um misterioso abrigo para todos os corações humanos. A folhagem nova e ligeira, macia como seda, pubescente, brota aqui e acolá como em pequenos tufos, pequenas asas que a floresta remoçada alarga e bate. Mas no dia seguinte, ou no outro, caminhamos sob um dossel de arvoredo. Todas as linhas perpendiculares podem dar a impressão de uma queda ou de uma ascensão. As colunas de estanho das faias não só ascendem e alcançam, longe do solo, o infinito, o éter, o Sol, que a Terra em movimento persegue, mas levantam e transportam consigo o tecto imenso e altaneiro do edifício do ar. Em baixo a luz, menos brilhante agora, parece toda poderosa, prenhe de sentidos, de segredos que são luz também, embora incompreensíveis aos mortais. Aqui e ali os antigos carvalhos rugosos, lentos no desabrochar, fazem no tecto uma vigia. As fragrâncias e a frescura envolvem-nos como num abraço. Os ramos balouçando vêm lá do alto para nos afagar, ou trazer, enquanto caminhamos, uma perpétua bênção.

Então toda a gente vai à floresta!, à floresta!, para tirar proveito maior de uma glória breve, pois não tarda que as folhas escureçam, duras, e uma sombra se instale no bosque. De carruagem ou a pé a cidade emigra para a floresta, canta e brinca por entre o arvoredo alto, e traz pão e manteiga e faz café sobre um tapete de ervas.

Também o conselheiro passeava na floresta, e Domine non sum dignus, pensava ele. Também o jovem Anders confundia os arquivos da comarca, e deixava a cama por abrir à noite, e de La Liberte saiu Fransine, o chapéu de palha novo atado ao braço.

Quando a paisagem estava mais bonita, o conselheiro recebeu a visita de seu amigo o conde Augustus von Schimmelmann. Apesar de a diferença de idades ser de cerca de quinze anos, os dois eram verdadeiros amigos, que muitas simpatias e gostos em comum aproximavam. Quando o jovem conde tinha 15 anos, o conselheiro ocupara durante um ano o lugar de um amigo, que morrera, como tutor do rapaz, e mais tarde encontraram-se no estrangeiro, em Itália, e juntos conversaram de livros e religiões, de gentes e lugares distantes. Pelo espaço de alguns anos não se tinham visto; tal não se devera, porém, a qualquer desavença entre os dois, mas sim a uma evolução por que passara o conde, durante a qual se ocupara em criar uma sorte de modus vivendi, empresa, para a qual o velho amigo não lhe seria útil.

O conde Augustus era por natureza um homem triste e melancólico. Queria ser muito feliz, mas não tinha talento para achar a felicidade. Sofrera durante a juventude. Algures, algures no largo mundo, pensava ele, devia haver uma felicidade imensa, maravilhosa, fons et origo do poder que se manifesta nos prazeres da música, das flores e da amizade. Coleccionou flores, estudou música, cercou-se de amigos, tentou o prazer da carne e foi feliz em muitas ocasiões. Mas a estrada que dessa vida partia para o coração das coisas, essa ele não encontrava. Com o passar do tempo uma coisa horrível acontecera: tudo se tornara igual para ele. Agora, já maduro, aceitava a felicidade da vida de uma maneira diferente, não como ele acreditava que fosse a felicidade, mas tal o reflexo num espelho, como os outros a viam.

Esta evolução interior começara quando inesperadamente se viu herdeiro de uma grande fortuna. Ele, por si, pouca importância lhe teria dado, pois não sabia o que fazer do dinheiro. Mas nessa ocasião ficou surpreso com a atitude do mundo à sua volta: o caso tinha-o aborrecido inteiramente; o mundo achara que fora óptimo, esplêndido o que lhe acontecera. O conde Augustus era por natureza um homem muito invejoso, e tinha albergado esta peculiar agonia muitas vezes, principalmente em relação às personagens dos livros, de modo que se encontrava em posição de avaliar o significado de uma tal impressão. Se não se pode pintar um quadro de que se gosta, o mais agradável será talvez pintar um quadro de que todo o mundo goste. Assim aconteceu com a felicidade do conde Augustus. Lentamente, ele foi começando a viver, digamos, da inveja do mundo, e a aceitar a sua felicidade em acordo com a cotação do dia. Nunca se deixara envolver na ilusão de acreditar que o mundo estava certo; trabalhava com um sistema de escrituração por partidas dobradas. Dos lançamentos do mundo tinha muito de que se orgulhar e agradecer; raras vezes havia outra coisa além de créditos na sua conta. Tinha um nome antigo, uma das maiores propriedades e uma das mais belas casas da Dinamarca, uma linda esposa, quatro bonitos e diligentes rapazinhos, o mais velho dos quais contava 12 anos, uma grande fortuna e um imenso prestígio. Se fora sempre um homem singularmente bem apessoado, mais vistoso ainda se tornara na idade madura, que favorecia o seu tipo, e nesta altura da vida era uma figura majestosa. Na Câmara Consultiva chamaram-lhe o Alci-bíades do Norte. Parecia mais forte do que era, um homem que pode apreciar os prazeres da mesa e dorme as noites de um sono. Ele de facto não apreciava muito esses prazeres e pensava que dormia mal, mas saber-se a inveja dos vizinhos por disfrutar as coisas boas da vida tornou-se para ele um razoável substituto delas.

Sob este ponto de vista até os ciúmes da esposa lhe eram úteis. A condessa não tinha razões para ter ciúmes do marido. Com efeito parecia não haver dúvidas a tal respeito: entre todas as mulheres que ele conhecia, era da esposa que ele gostava mais. Mas 15 anos de vida em comum e quatro filhos crescidos não a curaram das cautelas e da desconfiança, das lágrimas e das longas cenas, que por vezes culminavam num desmaio, o que o jovem conde Augustus achara ser então uma pesada cruz. Agora o ciúme da mulher ocupava um lugar no sistema arquitectado pelo marido, pois sugeria ou provava a possibilidade, não de as senhoras em veraneio ou na Corte se apaixonarem por ele - porque se apaixonavam, sem dar lugar a dúvidas - mas de ele se apaixonar por elas, ou por uma delas em particular. Assim ele acabou por ficar dependente da atitude da mulher, e se ela se tivera emendado ou esquecido os ciúmes ele haveria de sentir-lhes a falta. Tal como o imperador vestido com o seu fato novo, ele na vida seguia, digno como em contínuo desfile, bem-sucedido sempre sob todos os aspectos excepto aos seus próprios olhos talvez. Não tinha em grande conta o seu sistema, mas não trabalhava mal, e nesses últimos cinco anos fora mais feliz do que nunca.

Enquanto ele assim construía, qual pólipo coralino, o seu mundo moral, o conselheiro não poderia trazer-lhe qualquer bem.

Esse não tinha o dom de invejar os outros, e poderia ter abalado o edifício. Mas agora, que os alicerces eram firmes, e ele próprio se encontrava enquistado nele em segurança, sem expor quaisquer partes vulneráveis, a ponto de levar a vida num tom de brincadeira, o reencontro com o velho amigo deu-lhe muito prazer. Ao conselheiro, porém, sempre seria agradável encontrá-lo. Como a Dióge-nes sempre agradasse talvez encontrar Alexandre. A este agradou o momento em que disse que, se não fora Alexandre, teria gostado de ser Diógenes. Mas quem sabe se ao grande macedónio, que provavelmente dependia em certa medida da opinião alheia, agradaria nessa altura ouvir o filósofo do tonel dizer que, se não fora Diógenes, gostaria de ser Alexandre! Em mais adiantada fase da sua carreira talvez se tivesse permitido o luxo de um segundo encontro e de uma verdadeira discussão com o Cínico sobre a natureza das coisas. O mesmo fez o conde Augustus.

Os dois amigos podiam ter passado por um Alexandre e um Diógenes de 1836 enquanto caminhavam no bosque, por estradas cobertas dos tegumentos de seda que caíam das folhas novas. De fatos negros, eram como dois pássaros sossegados, gralhas ou pegas, saindo a gozar a tarde na companhia dos seus mais alegres semelhantes.

Sentaram-se num banco rústico da floresta e conversaram.

- À medida que vamos vivendo - disse o conde Augustus - damo-nos conta da humilhante situação que é dependermos dos nossos subordinados, e sem o meu barbeiro eu seria, no espaço de uma semana, um fracasso na política, na sociedade e até na intimidade; assim na esfera das ideias somos dependentes de pessoas mais estúpidas do que nós. Há muito já que abandonei, como sabe, quaisquer ambições artísticas, e tenho-me ocupado, dentro do campo das artes, em ser um connaisseur. (Era, com efeito, um crítico perspicaz de todos os objectos de arte.)

- Aprendi então que é impossível pintar um objecto de arte definido, uma rosa, por exemplo, sobre o qual eu, ou outro crítico inteligente, não seja capaz de definir, com uma margem de erro de vinte anos, em que período foi pintada, ou aproximadamente em que lugar da Terra o foi. O pintor quis criar seja um quadro de uma rosa em abstracto, seja o retrato de uma rosa particular; nunca foi sua intenção dar-nos uma rosa chinesa, persa ou holandesa, ou, conforme o seu período, uma rosa do Rococó ou de um puro Império. Se eu dissesse ao pintor que foi isto o que ele fez, ele não me compreenderia. Talvez ficasse furioso comigo. Talvez me dissesse: «Eu pintei uma rosa». Mas não lhe pode fugir. Assim, eu sou superior ao artista na medida em que posso avaliá-lo com uma medida de que ele próprio tudo desconhece. Por outro lado eu próprio não saberia pintar, nem sequer ver, ou conceber, uma rosa. Poderia imitar qualquer das criações de um artista. Poderia dizer: «Vou pintar uma rosa ao estilo chinês, ou holandês, ou Rococó». Mas nunca teria coragem de pintar uma rosa tal qual é. E o que é uma rosa?

Ficou por algum tempo reflectindo, a bengala pousada nos joelhos.

- E o mesmo se passa - disse ele - com a ideia geral da virtude, da justiça ou, se quiser, de Deus. Se alguém me perguntasse qual é a verdade sobre estas coisas, eu diria: «Meu amigo, a sua pergunta não faz sentido. Os Hebreus concebiam o seu Deus de uma maneira; os Aztecas da América, sobre quem se fez um livro que estive a ler, de outra maneira; os Jansenistas de outra maneira ainda. Se quer algum pormenor dessas diferentes opiniões, terei todo o prazer em informá-lo, pois dediquei parte do meu tempo a esse estudo. Mas permita que lhe dê um conselho: não repita a sua pergunta em presença de homens inteligentes.» Mas ao mesmo tempo, em virtude desta minha opinião superior, eu estaria em dívida para com os ingénuos que acreditaram na possibilidade de obter-se uma ideia de Deus, directa, e absolutamente verdadeira, e que estão errados. Pois se eles tivessem por objectivo criar apenas uma ideia particular de Deus, fosse hebraica, azteca ou cristã, onde poderia o estudioso encontrar os seus postulados? Ficaria na posição desses israelitas que foram obrigados a fazer tijolos sem palha. Na realidade, meu amigo, se os néscios podem passar sem nós, nós dependemos dos néscios no que diz respeito ao nosso conhecimento superior.

- Quando - prosseguiu ele, após uma breve pausa - o meu amigo e eu, no nosso passeio matinal, passamos por uma loja de penhores, e, apontando uma tabuleta pintada que está na montra, onde se lê «Calandreiro», você me diz: «Olhe, há aqui um calandreiro, vou trazer a minha roupa branca», eu sorrio e informo-o de que ali não achará calandra ou calandreiro, e que é a tabuleta que está à venda.»

A maior parte das religiões são como essa tabuleta, e nós sorrimos delas.

Mas eu não teria oportunidade de sorrir, ou de sentir - ou de mostrar - a minha superioridade, nem, de resto, a tabuleta ali se encontraria, se alguma vez alguém não tivesse acreditado firmemente na possibilidade - na sabedoria - de calandrar a roupa, se não houvesse alguém firmemente convencido da existência de uma calandra sua, com que de facto os tecidos se calandrassem.

O conselheiro escutava. Estando juntos ali no verde bosque, ele pensou que estimaria falar ao amigo dos seus planos matrimoniais, de que a ninguém tinha dado parte, nem mesmo a Madame Fransine.

- Meu amigo - disse-lhe - em todas essas tolices de que me fala eu me encaixo à maravilha. Aber schutzt vor Thorheit nicht. Sob este meu respeitável chapéu de castor, eu próprio, enquanto o ouvia, estive albergando uns pensamentos que se escaparam esvoaçando como essas duas borboletas amarelas (e ele apontou-as com a bengala) pequenos credos, se mo permite, na virtude absoluta, na beleza talvez até em Deus. Estou pensando muito seriamente em me unir a uma senhora pelos laços de Himeneu, e, se o meu amigo houvera chegado a Hirschholm daqui a três meses talvez eu já tivesse uma Madame Mathiesen para lhe fazer as honras da casa.

O conde Augustus ficou muito surpreendido, mas era tal a sua fé no bom senso do amigo que aos seus olhos imediatamente se formou o retrato de uma beleza madura e afável, espirituosa e frugal, senhora de um agradável dote. Sorrindo, apressou-se a dar os parabéns ao conselheiro.

Pois é, mas eu não sei ainda se ela me quer para marido - replicou o velho - e isso é que é o pior. Porque ela não tem mais do que um terço da minha idade, e, tanto quanto julgo saber, é um diabinho romântico. Não sabe fazer uma panqueca nem passajar umas meias, e não há-de querer discutir a filosofia de Hegel. Se me casar, terei de comprar os jornais das modas francesas, segurar o xaile de minha mulher nos bailes de Hirschholm, estudar a linguagem das flores e aprender a contar histórias de fantasmas nos serões de Inverno.

O conde Augustus, ao ouvir estas palavras, sentiu um certo choque, de tal modo eles recordavam os velhos tempos. Era, de facto, como se visse o jovem Augustus Schimmelmann jogando xadrez com o tutor junto à janela aberta da biblioteca de Linden-borg. Porque fora sempre esta a mania peculiar do conselheiro, todas as vezes que se lhe pedia opinião sobre alguma coisa. Quanto mais confiante se estava nos nossos ases e reis, ele vinha colocar na mesa um pequeno trunfo que os vencia, e isto num momento em que ninguém se tinha dado conta de haver ainda trunfos a jogar. Já assim fora em menino. Se as outras crianças, no Outono, brincavam junto às árvores, fingindo que as castanhas eram cavalinhos, ele aproximava-se com uma gaiolinha de ratos brancos, realmente vivos, e por isso muito mais parecidos com cavalos; ou se comparavam os seus vários tesouros de canivetes, soldadinhos de madeira e anzóis, ele tirava do bolso um pouco de pólvora, que podia lançar tudo pelos ares com um belíssimo clarão. Não depreciava as aquisições dos amigos; nada havia de negativo na sua demonstração. Mas possuía um pequeno demónio que o servia e no momento certo espetava a cabeça e conjurava o peso daqueles tesouros, e o peso desaparecia, de modo que os outros se sentiam um pouco defraudados. Os que não gostavam de demónios detestavam esta faceta do homem. O tipo oposto, o jogador de xadrez, por exemplo, sentia-se atraído por ele. Eis que o conde Augustus, sereno, pavoneava perante ele a sua superioridade em relação à vida, a relação segura e inexpugnável que mantinha com ela, e pim!, o conselheiro tirava do bolso um pedacinho brilhante de riso que fazia brilhar entre os dedos como uma jóia. O mais novo tinha pronunciado palavras sábias, e o mais velho fez surgir uma flauta e nela tocou três notas, só para lembrar-lhe que existia a música, e a folia também, por menos que o quisesse o coração do seu antigo pupilo.

Os olhos do conselheiro seguiram a dança das borboletas até que estas desapareceram por entre as árvores.

- Mas luminosa - disse ele. - Terrível como um exército em ordem de batalha.

O conde Augustus tirou o chapéu e colocou-o sobre os joelhos. A brisa calma e doce de Maio corria como dedos cariciosos pelos anéis do seu cabelo. Tudo era tão semelhante aos velhos tempos, este pequeno, leve choque de inveja, como se as asas das borboletas amarelas tivessem tocado o seu coração. O jovem Augustus de novo caminhava reflectindo no heroísmo e na alegria de viver, ao ar frio e cheiroso, sob uma folhagem que desponta leve, macia como a seda. O conde Augustus deixou que a bengala de castão de prata descrevesse círculos no chão. Que significava a sua fama de apreciar o vinho e dormir bem à noite, o que era o prazer genuíno destas coisas?, perguntava-se agora, que lembrava as palavras ouvidas há muito: «Quem nunca o seu pão comeu com lágrimas e na triste noite se sentou chorando sobre o leito, não vos conhece, ó poderes celestiais.» Esses poderes celestiais - há quanto tempo não pensava neles. O coração quase pulou dentro do seu peito, à lembrança do que sentem verdadeiramente os corações dos outros.

Um vulto vinha ao encontro dos dois homens por um dos atalhos da floresta, aproximou-se, e o conselheiro reconheceu a figura do seu protegido. Apresentou-o ao seu influente amigo e, após uma troca de palavras, pediu-lhe que recitasse um poema.

Foi para Anders difícil pensar em qualquer coisa. O seu coração, nesta Primavera, movia-se em círculos tão largos como os dos planetas à volta do Sol. Contudo, queria obsequiar o cavalheiro de meia-idade, frio e majestoso. Porque a ele não iludia o fato novo do imperador, e logo o viu como a figura central de um cortejo, arrepiado, em camisa. Acabou por achar uma pequena balada que lhes recitasse, uma gota alegre que transbordava da muita felicidade e tanta dor que ultimamente sentia. Era sobre um jovem que adormece na floresta e é levado para o reino das fadas. Elas, que o amam, cercam-no de atenções, dando tratos às cabecinhas para inventar maneiras de o fazer feliz. Era inspirada a pintura dos prazeres da vida na floresta, e um verso longo marcava o fim de cada estrofe, emprestando-lhe os murmúrios da nascente em pleno bosque. Mas as fadas nunca dormem, nem sabem o que é o sono. Sempre que o jovem amigo, fatigado pelas delícias requintadas, adormece, elas dizem, num lamento: «Ele morre, ele morre!», e empregam toda a sua energia a mantê-lo acordado. E é assim que o rapaz, para grande pesar das fadas, acaba por morrer de falta de sono.

O conde Augustus elogiou a beleza do poema e achou encantador o retrato da pequena e bela rainha das fadas. Este rapaz, pensou ele, tem dentro de si um poderoso rio de sensualidade primitiva que é preciso vigiar, não fosse o bom-gosto da sua produção poética vir a sofrer-lhe os efeitos.

- Cautela - disse ele, sorrindo, ao conselheiro - com os prazeres do reino das fadas. Para os pobres mortais o prazer reside, aliás, na sua raridade. Não nos dizem os antigos sábios que o verdadeiro louco é aquele que não sabe que mais vale a metade que o todo? Quando o prazer é eterno, corremos o risco de nos tornarmos blasés ou, segundo o seu jovem amigo, de morrer.

Uma ideia ocorreu ao conselheiro. Este bosque verdejante, pensou ele, seria um belo cenário para um apontamento dramático.

- O conde - disse ele, sorrindo, ao rapaz - sorri de um pequeno segredo que lhe confiei. Vou fazer de si, Anders, meu confidente também; mas não há-de sorrir do seu velho amigo. Tenho esperanças de vir a dar-lhe em breve uma jovem protectora a quem possa recitar os seus poemas, e que há-de ver na beleza das suas fadas, ondinas e dríades a própria beleza reflectida como num espelho.

Como num espelho baço e prateado, antes do nascer do Sol - pensou ele.

O rapaz, que se conservava de pé frente às duas figuras negras sentadas no banco, assim permaneceu por instantes em silêncio, como se absorto em pensamentos. Depois cumprimentou o conselheiro, levando a mão ao chapéu.

- Desejo-lhe as maiores felicidades, naturalmente - disse ele, grave, encarando o conselheiro - e grato por mo ter dito. E para quando é?

- Ah, isso não sei. No tempo das rosas, Anders - disse o conselheiro, um tanto perplexo com a franqueza do rapaz.

- Anders, passado um momento, despediu-se do conde e do seu protector e partiu. O conde Schimmelmann, que era um observador dos homens, seguiu-o com o olhar. O quê! - pensou ele - então o velho mágico de Hirschholm tem à sua disposição não só o velho demónio que o serve, e evidentemente uma dríade a quem amar, mas ainda este jovem escravo da tribo dos Asra, que morrem quando amam?

Sentiu-se frio, quase abandonado, não só pela vida em abstracto como por uma plenitude, neste entardecer de Maio. Ergueu-se do banco rústico e empreendeu o caminho de regresso. Quando, ao conversar com o amigo, o olhou no rosto, notou nele uma expressão profunda, meigamente inspirada e resoluta. «Das - pensou o conde, que era de uma família de militares - ist nur die Freude eines Heldes den schónen Tod eines Helden zu sehen.» Mais tarde, porém, havia de pensar nestes momentos.

Ora o conde Augustus tinha um só talento verdadeiro, e experimentava uma felicidade que os outros bem lhe poderiam invejar se alguma vez ele a confessasse. Fumava haxixe, e pouco de cada vez, sem nunca esgotar o prazer. Algures no mundo talvez encontrasse irmãos em haxixe capazes de lhe oferecer anos de vida em troca desta capacidade, se fora coisa que pudesse vender-lhes.

Caminhando ombro a ombro com o conselheiro, pensou: O que hei-de sonhar esta noite? O ópio, reflectiu, é como um homem brutal, que nos prende pelos colarinhos. O haxixe é uma serva do Oriente, insinuante, que nos cobre de um véu o mundo e, pela experiência, chegamos a alcançar o poder de escolhermos as figuras que preenchem a teia do véu. Assim ele fora um marajá, caçando os tigres sobre o dorso de um elefante, vendo as bailarinas; fora o director da grande Ópera de Paris; e fora Shamil, irrompendo com os seus libertos em rebelião pelos desfiladeiros de neve, nas alturas do Cáucaso. Mas esta noite o que escolheria sonhar? Poderia reviver as noites orvalhadas de Maio nos festões de ramos de Ingolstadt? Se o quisesse, poderia revivê-las? E se o pudesse, quereria fazê-lo?

Depois de cear com o conselheiro mandou trazer o magnífico landau e a sua tão cobiçada parelha de cavalos ingleses, e partiu.

Quando, no dia seguinte, o conselheiro Mathiesen se preparava para ir a La Liberte cortejar a viuvinha, soube de coisas que se revelaram um osso duro de roer. Contou-lhas a governanta, enquanto lhe entregava o chapéu que ele pedira que retirasse da sua caixa.

Esta mulher, que se chamava Abelone, estava na casa havia mais de quinze anos, mas era nova ainda, alta, ruiva, e de uma força física extraordinária. Sempre vivera em Hirschholm, e não havia migalha de vida da cidadezinha que ela não conhecesse. Era estranho que a sua própria vida fosse um mistério, mas dizia-se que, aos quinze anos, fora suspeita de ocultar um nascimento e de cometer um infanticídio, escapando à justiça por pouco. O conselheiro tinha-a em grande conta. Não encontrava quem se lhe pudesse comparar em economia, não somente no governo da sua casa como ainda na vida em geral. Para ela o desperdício era, talvez, o único pecado mortal, o único sacrilégio. Tudo o que entrasse no círculo da sua consciência tinha de ser útil de uma forma ou de outra, e nada, tanto quanto sabia o conselheiro, nada essa mulher jamais desperdiçava. Se outra coisa não tivesse para o jantar que um rato, e fosse preciso apresentar um ragu, ela havia de fazer um bom ragu de rato. Nas suas conversas com ela o conselheiro sentia que a sua mínima palavra, cada seu estado de espírito eram de certa maneira registados, conservados, para mais cedo ou mais tarde virem a ter um uso.

Neste belo dia de Maio ela começou por fazer o relatório do comportamento, na noite anterior, do jovem amanuense, pessoa que até então pertencera ao inventário da casa e a quem ela tratava com afabilidade.

Tinha o rapaz estado com outros mais na estalagem. Como a cerveja se acabasse, prometera aos convivas que lhes daria coisa melhor a provar, e, possuindo, como o senhor conselheiro sabia, as chaves da igreja, onde estivera consultando os registos paroquiais, fora buscar à sacristia quatro garrafas do vinho da comunhão, com que havia regalado os amigos. Não ficara bêbado, longe disso, estivera sempre sossegado como era seu costume. E fizera, acrescentou Abelone, uma saúde ao senhor conselheiro com o vinho da igreja.

Enquanto ela ia contando o conselheiro mirava-se no espelho, pois decidira, com o leve nervosismo de todo o pretendente, pôr uma outra gravata, e estava agora a dar-lhe o nó, com alguma solicitude. Não será exagero dizer-se que a história de Abelone o assustava. Era, nas devidas proporções de Hirschholm, como se Lucifer houvesse tomado de assalto os Céus. Com que palavras se bebera então à sua saúde?

Olhou por acaso Abelone atrás de si, no espelho. Alguma coisa na sua atitude, mais do que no rosto largo e inexpressivo, que era sempre como a porta cerrada sobre o vasto suprimento de material a usar, deu ao conselheiro a impressão de que ela também estava assustada, ou profundamente comovida. Havia então naquela história qualquer coisa por dizer. Abelone não era, de modo algum, uma das comadres de Hirschholm. O que fosse que soubesse dos outros ela não revelava - provavelmente sabia de melhores maneiras de utilizar a informação - e quatro garrafas de vinho santo não seriam para ela mais do que quatro garrafas de vinho. Se ela não queria que o Demónio se apoderasse do rapaz, era talvez porque o ambicionava para si. Seria ele o rato com que ela ia fazer o seu ragu?

Volveu os olhos para o próprio rosto e encontrou o olhar de um homem de bom conselho. Ser espectador enquanto Lucifer tomava de assalto os Céus poderia ser uma experiência altamente interessante; mais interessante ainda se ele conseguisse meter por ele um pauzinho na engrenagem.

- Minha boa Abelone - disse ele, sorrindo - Hirschholm parece ter uma certa tendência para o escândalo. Fui eu que dei instruções ao senhor Anders para levar o vinho da sacristia. Tenho razões para crer que a esse vinho foi, por engano, misturado rum, e, não sendo feito de uva, não pode, evidentemente, servir para a transubstanciação. O senhor Anders velará para que o vinho seja substituído.

E, dito isto, entrou na carruagem e rolou até La Liberte embrenhado em pensamentos, a maior parte deles, coisa curiosa, sobre a sua governanta. Só quando, na volta do caminho, meteu pelo choupal, os pensamentos se voltaram para o futuro.

Ao chegar, a jovem não se encontrava em casa, e ele teve de esperar um pouco na sala térrea. Sobre uma pequena console Fransine havia colocado um vaso com um grande ramo de jasmins. O aroma doce e acre era forte, quase sufocante, na sala fresca. O conselheiro estava um tanto nervoso por surgir assim no papel de namorado, mas não receava pela resposta da mulher. Porque ela havia de aceitá-lo. Evidentemente que sim, pois tudo fazia na vida como lhe mandavam. Sentiu uma certa curiosidade em saber se, ao vê-lo partir de La Liberte, já sua noiva, ela se ocuparia em pensar no futuro que a esperava como sua esposa. Que, mais tarde, fosse ele quem andaria às ordens da mulher, era uma outra questão, completa-mente diferente.

Parecia-lhe, enquanto esperava, que enfim compreendia melhor os objectos que enfeitavam a sala azul-celeste. A espineta, a caixa de música, as cadeiras tinham recuado um pouco, de costas para a parede, como se intimidadas pela sua presença, quais miniaturas de uma casa de bonecas, assustadas pela intrusão de um adulto. Era passado então o tempo dos jogos? Ele procurou pô-los à vontade. «Não vim aqui - disse ele a todos os objectos - para destruir mas para dar. Os jogos melhores ainda estão para vir.»

Nesse momento, como se fora chamada à vida por essa tranquilidade nova, a jovem Madame Lerche entrou na sala, com um vestido cor-de-rosa, de folhos, seguida pela criada que trazia o samovar e a toalha de chá para a visita. Após uma breve e agradável conversa, o conselheiro pôde entrar no assunto que ali o levava.

Fransine sempre dera ao conselheiro a impressão de estar ansiosa por acabar o que ela própria havia começado, aliviada se lhe via um fim. Porquê não o sabia ele, pois Fransine não gostava realmente de iniciar fosse o que fosse. Ela não corria o risco de, como Fausto, pensou ele, implorar ao momento que se prolongasse por ser tão belo.

Ela despachava cada momento com a pressa de uma freirinha italiana que, ao passar o rosário, empurra as contas. Ao ouvi-lo agora falar do seu amor por ela, e das suas ousadas esperanças, o rosto de Fransine quase empalideceu, e o corpo esbelto agitou-se na poltrona. Uns olhos negros fitaram os do conselheiro e desviaram-se. Foi um alívio, quando ele chegou ao fim. Ela aceitou o pedido, tal como ele esperava, não sem alguma emoção, como se aquele fosse um refúgio na sua vida. O conselheiro beijou-lhe a mão e Fransine sentiu-se aliviada por o assunto estar assim encerrado.

Mais tarde, quando os noivos tomavam o chá, e Fransine presidia no divã, por trás do alto samovar, para se dar alguma importância o conselheiro contou a história de Anders e do vinho da sacristia. Nessa altura quase lhe saía o tiro pela culatra, pois a história impressionou tremendamente Fransine. Parecia querer sumir-se pelo chão abaixo para fugir a um tal sacrilégio. Quando pôde falar perguntou, mortalmente pálida, se o pastor sabia do sucedido. O conselheiro não esperava nela um tão profundo temor das coisas sagradas. Era uma qualidade amável, mas havia ali qualquer coisa mais: um pavor de fantasmas, ou a presença de um fantasma. Tranquilizou-a, portanto, e contou-lhe que decidira libertar o jovem amanuense das consequências da sua loucura. Ao ouvir isto, ela presenteou-o com um olhar tão luminoso, tão enlanguescido e vivo na sua doçura negra, que encheu toda a sala como o perfume dos jasmins, que o fez sentir-se poderoso e benevolente.

Devia - disse o conselheiro - pregar um susto ao rapaz, para seu bem. Olhe que, se eu não lhe tivesse arranjado o emprego, ele hoje estava a morrer de fome.

Às últimas palavras Fransine de novo empalideceu.

- E mesmo assim, sabe, minha querida - prosseguiu o conselheiro - ele tem uma bela carreira à sua frente. É uma pena ver um rapaz insensato, um vagabundo, arruinar o futuro de um grande homem. E, para mim, está de certo modo em jogo também o meu futuro, que ele é como se fosse meu filho. Mas tenho medo de acordar nele uma obstinação que depois eu não poderia vencer.

O fino trato de uma senhora talvez conseguisse apelar para os seus melhores sentimentos. Ele é de facto o tipo de homem que devia ter um anjo da guarda, e seria um acto nobre da sua parte, minha querida, se me ajudasse a salvá-lo fazendo-lhe um pequeno sermão.

E assim se combinou que Fransine iria acompanhar o conselheiro a Hirschholm e pregar uma lição de moral a Anders Kube. Imediatamente Fransine pôs um chapéu cor-de-rosa, através do qual o sol, avivando a cor das suas faces, dava ao seu rosto um brilho de flor. Era um tanto invulgar para uma jovem senhora sair da carruagem sozinha com um homem. Embora Kresten fosse no assento de trás, o conselheiro pensou que os transeuntes haviam de concluir que eles estavam noivos, e a viagem tornou-se assim um prazer para ele. A seu lado, Fransine levava os olhos postos no cavalo, que seguia a trote, e parecia feliz porque tudo iria em breve acabar-se.

O conselheiro e a jovem noiva, que iria desempenhar o papel de anjo da guarda, subiram de braço dado a escada estreita que levava aos humildes aposentos de Anders, por trás da grande tília coberta de folhas novas, e ali o encontraram com a irmã, que estava casada com um capitão de navio mercante de Elsinore, e o filho dela, menino ainda. Isto veio complicar a missão da jovem, mas tranquilizou-lhe o coração. Sentiu que podia passar uns momentos calmos e agradáveis em tal companhia. Os dois irmãos eram muito parecidos, e quando o bebé a olhou o coração de Fransine quis parar de bater, pois via ali um bambino como ela só conhecera nas igrejas de Nápoles - um querubim com os olhos de Anders, reflectindo a personalidade do poeta como se fosse um espelhinho pousado no Céu.

Fransine viera, de elegante xaile, como a protectora que visita os pobres e os transviados. Agora, tão imóvel, de olhos tão negros, tinha na face a expressão de Raquel ao dizer a Jacob: «Dá-me um filho, senão morro». Queria ajoelhar-se para abraçar o bebé, mas temia que não fosse correcto um tal comportamento. Ocorreu-lhe então que podia obter o mesmo resultado se o erguesse até si. Colocou-o sobre uma cadeira, primeiro para lhe mostrar o que se via da janela, depois para que brincasse com os seus dedos descobertos pelas mitènes pretas. O menino fitava-o. Nunca vira tais caracóis, e estendeu a mão a querer tocá-los. Para o divertir, ela tirou o chapéu, inclinou a cabeça e, num movimento, sacudiu a farta cabeleira negra. Era como nuvens caindo à volta do seu rosto, e o menino riu-se e puxou os cabelos com ambas as mãos. Ela apertou-o ao peito, levemente, rindo, olhando o seu rostinho, e por momentos sentiu-lhe o coração, qual pequeno relógio, batendo contra o seu. Quando os outros a olharam ela corou. Ondas de rubra cor inundaram a sua face, mas mesmo assim não deixou de sorrir.

O conselheiro encetou uma conversa com a jovem mãe, que se sentou no sofá, de bela touca branca, plissada, com o seu menino ao colo, e os dois jovens ficaram em tête-à-tête junto à janela. Fransine sentia que era chegado o momento de cumprir a sua missão.

- Senhor Anders - disse ela - o conselheiro... o meu noivo - emendou - disse-me, muito pesaroso, que tem motivos para estar desiludido e zangado consigo. O senhor não sabe, talvez, aqui em Hirschholm, quanta maldade e quanta miséria há no mundo. Mas peço-lhe, senhor Anders, não faça nada que o possa levar à perdição.

Falando embora a Anders com toda a solenidade, o seu rosto conservava o reflexo de um sorriso. Mesmo quando prosseguiu, toda comovida, o sorriso ainda se mantinha.

Anders não ouviu uma só palavra do que ela dizia. Com o seu grande talento para a ausência, que o conselheiro raramente apreciava no seu protegido, Anders há muito que tinha esquecido o assunto a que ela se referia. Sorria-lhe, com o exacto sorriso dela. Se a expressão no rosto dela mudava, a sua mudava também. Captavam a luz e a sombra um do outro, como dois espelhos frente a frente numa sala.

- O conselheiro - dizia ela - gosta de si como de um filho, e se ele não o tivesse ajudado, o senhor estaria hoje a morrer de fome. Ele é um grande homem. Ele sabe melhor do que nós como nos havemos de conduzir no mundo. Olhe - disse ela, acariciando um pequeno objecto preso à corrente de ouro do relógio que lhe pendia do pescoço.

Era um pedacinho de coral na forma de um corno, desses que as pessoas simples na Itália usam como talismã.

- Isto deu-me a minha avó. Diz-se que protege do mau-olhado. Mas ela acreditava que nos protege também da varicela e dos pensamentos perigosos. Foi por isso que mo deu. Aceite-o, e deixe-me lembrar-lhe que deve ter cautela, e seguir as recomendações do conselheiro.

Anders aceitou da sua mão o pequeno talismã. Quando as suas mãos se tocaram ambos empalideceram.

Do sofá onde se quedara, o conselheiro viu, de soslaio, o desencadear de grandes forças. E reparou que a sua noiva entregava ao jovem amanuense, à laia de símbolo, o que lhe parecia ser um par de cornos. Teve de contentar-se com isto, que talvez não fosse o que ele pretendia, e acompanhado de Fransine desceu as escadas, dando-lhe o braço, até onde Kresten esperava com a carruagem.

Como não era considerado muito próprio, pela melhor sociedade de Hirschholm, que um casal de noivos, mesmo quando o homem era já de certa idade e a mulher uma viúva, passassem muito tempo sozinhos, tomou Anders o costume, nos meses de Verão, de acompanhar o conselheiro nas suas visitas a La Liberte na qualidade de «pau-de-cabeleira». Em tardes amenas tomavam chá os três cá fora no terraço, e Fransine cozinhava para eles petiscos italianos que lembravam ao conselheiro outras tardes e outros tempos. Olhando, à mesa, nessa luz radiosa e serena de um fim de tarde, os dois jovens que lhe eram tão caros - embora a ordem de precedência no coração do conselheiro os pudesse ter surpreendido se a conhecessem - ele sentia-se feliz e em harmonia com o Universo como só raramente lhe acontecia. Ser-lhe-ia difícil, pensava ele, imaginar um mais perfeito idílio. «Também eu - dizia para consigo o conselheiro - estive na Arcádia.»

As atitudes dos seus jovens pastores surpreendiam-no às vezes, e preocupavam-no, pois lembravam-lhe uma história que lera num livro de viagens. Nele se contava como um grupo de exploradores ingleses descobriu, numa aldeia africana, um número de prisioneiros encerrados, para engorda, numa paliçada, e destinados à mesa dos seus captores. Os indignados europeus ofereceram-se para lhes comprar a liberdade, mas as vítimas recusaram, pois julgavam estar a viver melhor do que nunca. Seria possível - pensava o conselheiro - que estes jovens tivessem concebido um plano de fuga, que habilmente lhe escondiam, ou não seriam eles mais previdentes que os cativos dos canibais? Ambas as hipóteses lhe pareciam improváveis.

Todavia a sua parábola não andava muito longe da verdade; ou a verdade, se ele a conhecera, não lhe havia de parecer menos improvável.

Para Anders a situação simplificara-se com a sua decisão de se matar no dia do casamento de Fransine, uma decisão que tomara quando soubera do seu noivado, e que lhe parecera tão inevitável como a morte. Para um campónio dinamarquês do seu tipo a ideia de acabar com a vida não custa a conceber. A vida nunca lhes parece - nem é, de resto - uma grande maravilha, e o suicídio, seja por que forma for, é, digamos, a sua maneira natural de morrer.

A vida fora madrasta para Anders. Se algum bem lhe concedera, fora agenciado por outros poderes. Ele sentira o destino comum dos seus iguais, que é ser, como se feitos de matéria essencialmente diferente do resto da humanidade, invisível para os outros. Ao conhecer Fransine ela tinha-o visto. Sem qualquer esforço, o seu olhar perspicaz compreendera-o inteiro. Esta sorte de não-existência humana, de que às vezes se cansava, tinha terminado, e ele prometera muito a si próprio ao começar a viver esta nova realidade. Se ela ia casar com o conselheiro, e afastar dele o seu olhar, nada mais razoável que ele se afastasse da vida.

Anders, sempre muito reservado quanto aos seus planos, sentia neste caso que a sua decisão a mais ninguém dizia respeito que a si próprio. Assim, por nenhuma forma a revelou. O conselheiro, se a adivinhasse, não só havia de a impedir como ainda de reprovar. Poucos são os homens que consentem tomar o seu chá com um futuro fantasma. A Fransine talvez lhe doesse. Anders não tinha um temperamento cavalheiresco, mas tinha o dom da amizade, e não gostaria de afligir qualquer dos dois. Para evitar que sofressem, planeava tomar de empréstimo o barco de um amigo, um pescador de Rungsted, e fazê-lo virar num acidente. Hábil marinheiro, saberia como proceder. Por vezes via com estranheza esse Anders Kube, como se ele próprio fosse uma figura central num dos seus poemas. Chegava a sentir algum remorso, e depois voltava a julgar-se um benemérito, pois estaria ajudando Anders Kube a fugir a uma série de coisas desagradáveis. Ao fim e ao cabo ele tinha, preso na sua paliçada, os olhos calmos dos prisioneiros negros da história.

Para além desta sua ideia central, obcecava-o um grande poema, um canto do cisne, que havia de acabar ainda antes de acabar com a vida. Tendo escrito já sobre as florestas e os campos, e confiante como estava no último abraço que lhe daria o mar, deixava que os pensamentos se voltassem todos para as águas. Náiades e tritões dançavam nas ondas desta grande epopeia, que seria a última; as baleias vogavam nas alturas como nuvens; cisnes e golfinhos e peixes brincavam por entre as pérolas da poderosa espuma, e os ventos sopravam flautas e fagotes, juntando-se em grandes orquestras. Essa liberdade em que vivem aqueles que podem morrer tinha alcançado o poema; e, conquanto não fosse, como drama muito extenso, não tinha fim sob muitos aspectos. Leu-o a Fransine, nas tardes em La Liberte, à medida que o ia escrevendo.

Quanto a Fransine, era coisa natural para ela viver assim unicamente o dia que passa. Ela não tinha uma noção real do tempo; aliás, nem sabia distinguir o tempo da eternidade. Era esse um dos traços do seu carácter que levava as senhoras de Hirschholm a julgarem-na um tanto imbecil. Nunca se sentira tão feliz como agora, e talvez esta incerteza do futuro e do tempo que teria de venturas fizesse parte da mesma felicidade. Quanto ao resto, os seus pensamentos seguiam os humores de Anders. Lera o seu último grande poema, e, como ele era todo sobre o mar, logo mandou fazer o enxoval em tons de azul-celeste e azul-marinho - era absolutamente divina, segundo a opinião dos dois homens.

Como, durante esses meses, o conselheiro viesse a conhecer de perto a noiva, muitas vezes o surpreendeu a extrema indiferença dela pela verdade. Ele próprio efabulava a existência, e sob muitos aspectos se parecia com Fransine; considerava, de resto, que os métodos seguidos por ela vinham ao encontro dos seus próprios planos. Em mais de uma ocasião, porém, o especial talento de Fransine o surpreendeu. Era, reflectiu o conselheiro, um dom particularmente feminino, um code de femme da economia prática, que inúmeras gerações de mulheres tinham comprovado. Elas, quando querem ser felizes, têm de enfrentar uma force majeure. Bem se lhes pode perdoar então que, para a alcançarem, trilhem caminhos ínvios e afirmem que uma coisa é, de facto, o que elas pretendem que seja. Tornaram, pelo uso que lhe dão, indispensável este remédio caseiro ao bom governo da vida. Assim, e porque seria o seu futuro marido, foi o conselheiro proclamado ipso facto bom, inteligente e generoso. Não o tomou o conselheiro como elogio à sua pessoa; provavelmente ela tinha aplicado a mesma receita ao velho boticário Lerche. Por isso os presentes que lhe dava eram sempre lindos, os sermões do velho pastor Abel, de Hirschholm, sempre comoventes, e os dias eram amenos quando ele a levava a passear de carruagem. Uma excepção à regra seriam os vestidos de Fransine e os chapéus, com os quais francamente se preocupava, e muito, mas, também, ela tinha um tal gosto na toilette que nesse capítulo podia atingir com pleno êxito um ideal. Se tinha vindo buscar refugio nesta religião feminina por uma necessidade interior, ou fora iniciada por sábios Nestores de saias, isso o conselheiro não sabia. Raras são aquelas, pensava ele, que descobrem o que é o sonho, a felicidade conjugal ou o êxito na vida sem recorrer a um tal procedimento. Guiava-se este pelo mesmo princípio do fato novo do conde Schimmelmann, mas, arquitectado como o foi por simples mulheres, não incluia a ambição masculina da demonstração; era um dogma - sagrado e irrefutável.

Assim noutros tempos faziam as bruxas, que moldavam figuras de cera em forma de crianças, as traziam nove meses sob a saia, e as baptizavam depois à meia-noite com o nome de alguém seu conhecido, e então a criança de cera ocupava, para todos os efeitos da bruxaria, o lugar do seu homónimo. Às mãos de uma bruxa amável, esta magiazinha branca podia operar só o bem. E se uma jovem bruxa concebe e traz no ventre por nove meses uma criança que é carne da sua carne e sangue do seu sangue? Ah, então é que seria o diabo!

O conselheiro, notando o entusiasmo do seu protegido por esse novo poema, pediu-lhe que o lesse. Anders não viu por que não dar a conhecer a sua obra ao velho amigo e recitou-lhe excertos dela uma ou outra vez. O conselheiro ficou muitíssimo impressionado, cheio de uma admiração que tocava as raias da idolatria. Parecia-lhe, de resto, que ele alcançara um novo ritmo, um novo passo em pleno éter, vogando no azul de céus e águas em uma espécie nova de harmonia e felicidade. Julgou ser este o começo de grandes voos. Discutiu muito a obra com o poeta, chegou a dar-lhe conselhos, e não foram poucas as ideias e opiniões do Mecenas que tiveram, de uma forma ou de outra, um eco na epopeia, e durante estes meses de Verão ele esteve, de um certo modo, namorando e escrevendo versos à noiva por interposta pessoa - uma picante situação, que se havia de prolongar até ao dia do casamento. Dias e dias, semanas e semanas os três, até quando bebiam chá no terraço, viveram nas águas dos grandes mares celestes.

Na antevéspera do casamento o conselheiro recebeu, de um amigo na Alemanha, um exemplar de um romance novo, Wally: Die Zweiflerin, da autoria do jovem Gutzkow, que estava desencadeando na Alemanha, por essa altura, ondas de indignação e polémica.

Como se hão-de lembrar, Wally e Caesar amam-se, mas não se podem casar porque Wally está prometida ao embaixador da Sardenha. Caesar exige-lhe então que ela, para simbolizar o casamento espiritual entre os dois, na manhã da cerimónia se lhe mostre nua, em toda a sua beleza. Existe um velho poema alemão onde Sigune assim se revela a Tchionatulander.

Tanto se entusiasmou o conselheiro pelo romance que o levou nessa tarde para La Liberte e ali continuou a leitura, sentado à sombra de uma árvore do terraço, enquanto os jovens iam ver um raposinho domesticado que Fransine criava no canil. Ponderou ele que na semana seguinte não teria muito tempo para leituras e que faria melhor em acabar o livro nesse mesmo dia.

Eis o que leu:

À sua esquerda surge um quadro de extraordinária beleza: é Sigune que se revela, mais tímida que a Vénus dos Mediei quando oculta a sua nudez. Está de pé, sem um amparo, cega pela divina loucura do amor. O amor lhe pedia esta graça, e ela já não tem vontade própria: toda ela é rubor, inocência, lealdade. E, como sinal de que uma piedosa iniciação santifica a cena, não há rosas vermelhas florindo perto dela; só um alto e branco lírio, desabrochando, esconde o seu corpo qual símbolo de castidade. Um instante, um silêncio, um sopro - e nada mais. Um sacrilégio, mas inspirado pela inocência e pela renúncia que para sempre será fiel.

O conselheiro fechou o livro e, recostando-se no banco, de rosto como virado para os altos Céus, cerrou os olhos. O ar, sob a copa da tília, enchia-se de uma luz dourada e verde, um doce aroma de flores, um zumbido de inumeráveis abelhas.

Isto, pensou ele, é muito bonito. Muito bonito, queira ou não queira esse velho rezinza do professor Menzel. O sonho de uma Idade de Ouro, de uma inocência e de uma doçura eternas de novo o possuía. Deixá-lo, se os críticos diziam que tais coisas não existem; pouco importa, pois uma nova espécie de flor vingara já na sua fantasia. Ouviu o conselheiro as vozes de Fransine e Anders, que a uma certa distância conversavam, mas não distinguia qual o assunto da conversa.

Do canil os dois jovens tinham descido à horta, a sul da casa, para apanhar alfaces, ervilhas e cenouras novas para a ceia. A parte baixa do jardim recebia a sombra de um renque de velhos vidoeiros de troncos retorcidos, que formavam a sebe que limitava o jardim. Por uma abertura se podiam ver os campos onde, no oiro suave do entardecer, duas meninas, que saíam a mungir as vacas, levando à cabeça os altos cântaros do leite, projectavam sombras longuíssimas e azuis no campo de trevo semeado.

Fransine perguntava a Anders a sua opinião sobre o raposinho.

- No Outono - dizia ela - se eu o libertar, ele será capaz de se alimentar sozinho?

- Eu libertava-o - disse Anders - só que ele podia, de acostumado ao seu galinheiro, voltar depois, à noite.

E ele viu a imagem do raposo, a dentuça afiada, solitário, o fantasma do fofo companheiro de folguedos das suas tardes de Verão, numa noite invernosa de prata e de gelo, trotando em direcção a La Liberte.

- Então terá de cá vir apanhá-lo um dia - disse Fransine.

- Mas nessa altura eu já cá não estou - disse Anders sem pensar.

- Ah, não? - retorquiu ela - E que nova situação, que altos cargos o afastam da nossa companhia, senhor Anders?

Anders calou-se.

Que altos cargos, que nova situação?

- Tenho de me ausentar - disse ele por fim.

Fransine não replicou. Talvez conhecesse bem a dura miséria, senhora dos homens e dos deuses. Mas, passado um momento, olhou para ele, e tão fixamente como se lhe atirasse todo o seu ser nesse olhar.

- Mas se não estiver aqui - disse ela - será... Ela reflectiu por instantes.

- Será tudo tão frio aqui! - disse ela.

Anders compreendeu-a muito bem. Uma onda imensa de piedade o ergueu e o lançou de rojo a seus pés. Seria tudo frio para ela, de facto. E a sua alma dividia-se entre o desespero de a saber tão cheia de frio e o desespero de estar ele próprio, nessa altura, frio de mais para poder confortá-la.

- Que hei-de eu fazer depois? - perguntou ela.

Estava de pé à sua frente. à excepção dos vestidos, e das mãos, que repousavam ao de leve nos folhos da saia, ela tinha a exacta postura dessa Vénus dos Mediei sobre a qual no momento lia o conselheiro. Olhando-a, Anders lembrou-se de que antes vira nela a criança que não queria perder nele o seu boneco favorito. Agora via-a de maneira diferente, via a boneca que não queria perder a sua criança, essa criança que havia de brincar com ela, vesti-la e despi-la, e extasiar-se com ela - uma boneca sem dono, uma boneca perdida se não estivesse nas suas mãos.

- Senhor Anders - disse ela - naquelas semanas a seguir à Páscoa, quando nós dois passámos tanto tempos junto em casa do conselheiro, e naquele piquenique em Rungsted, lembra-se?, o senhor disse-me que para ser feliz bastava-lhe ficar aqui e ser meu amigo para sempre.

Ele guardou silêncio. Aquelas semanas a seguir à Páscoa doíam-lhe se as lembrava, podiam matá-lo se delas falasse.

- É esta a sua amizade? - perguntou ela.

- Ouça, Madame Fransine - disse ele - sonhei consigo anteontem.

Ao ouvir estas palavras Fransine sorriu, mas estava muito interessada.

- Sonhei - disse ele - que a senhora e eu estávamos andando numa grande praia, onde soprava um vento forte. E a senhora disse-me: «Havemos de ficar assim para sempre». Mas eu disse-lhe que era apenas um sonho nosso. «Ah, não, não diga isso», replicou a senhora. «Agora, se eu tirar o meu chapéu novo e o atirar para o oceano, vai acreditar que não é um sonho?» E a senhora desatou as fitas do seu chapéu e as ondas levaram-no para longe. Mesmo assim eu pensava que era um sonho. «Oh, como é ignorante - disse a senhora - mas se eu tirar o meu xaile de seda e o atirar para longe, irá ver que isto é a realidade.» E a senhora deixou cair dos ombros o seu xaile de seda e o vento levantou-o da areia e levou-o. Mas eu continuava a pensar que era tudo um sonho. «Se eu cortar a minha mão esquerda ficará convencido?» A senhora levava uma tesoura no bolso do seu vestido. Ergueu a mão esquerda, como se fosse uma rosa, e decepou-a. Foi então que...

Ele interrompeu-se, muito pálido.

- Foi então que eu acordei - rematou ele.

Ela ficara imóvel. Tinha muita fé nos sonhos, e sentira-se passeando com ele pela praia enquanto o ouvira. Mas agora procurava reunir todas as suas armas para o conservar junto de si, pois pensava realmente que, se o perdesse, morria. Cortaria, sim, por ele a sua mão esquerda, se ele o quisesse, mas seria melhor que essa mão ficasse enleando a nuca de Anders. No poente claro e doce ela sentiu o corpo leve e robusto, como o tronco de um vidoeiro novo, a cintura delicada e flexível como um ramo, os seios moços repousando, gráceis, como dois ovos macios e redondos, no viço de um cálido ninho de cambraias. Os olhos, fulgurando, estavam tão presos nos dele, e os dele também tão presos nos seus, que só um poderoso engenho conseguiria erguê-los e afastá-los.

Ela ergueu ligeiramente aquela mão que a Vénus conservava perto dele e estendeu-a devagar, como se lhe pesara muito. Ele esticou o braço e tocou-lhe a ponta dos dedos. Era exactamente o gesto do Criador de Michelangelo transmitindo o sopro divino ao jovem Adão. Que variadas reproduções da grande arte clássica perpassavam, nesse fim de tarde, na horta de La Liberte!

Ouviram o conselheiro mexer-se no banco, pôr o livro de parte e olhar a copa da tília. Vagarosa, sem pronunciar uma só palavra, Fransine voltou-se e subiu o terraço ao seu encontro, e Anders seguiu-lhe os passos, com o cesto das alfaces e das ervilhas.

O conselheiro tinha ainda um dedo no livro a marcar a página que estivera lendo.

- Ah, Fransine - disse ele - tenho estado aqui a perturbar o requinte da academia de La Liberte com a intromissãozinha de um sans-culotte da literatura. O seu autor foi preso por causa deste livro na Alemanha. Está certo. Castigue-se embora a carne, mas que se deixe voar o espírito. Desde que os lentes das universidades baniram o jovem poeta, podemos disfrutar a sua poesia. Estou a dizer frivolidades, minha querida - prosseguiu ele - mas, num fim de tarde como este, os moralistas sempre fazem uma triste figura. E o que realmente me cativou foi um curioso incidente, uma coisa de somenos importância. Porque me parece que Gutzkow consegue, ao descrever o local onde se encontram amiúde os dois jovens e estouvados amantes, dar a imagem do vosso templozinho à amizade em La Liberte, além, no bosque de vidoeiros.

E, dizendo estas palavras, levantou-se e foi tomar o chá com a noiva, deixando o livro no banco sob a tília.

Na véspera do casamento o conselheiro não fez a sua costumada visita a La Liberte. É esse o procedimento correcto de um noivo na Dinamarca. À noiva dá-se-lhe esse último dia para meditar em paz sobre o passado e o futuro; e os noivos só voltam a encontrar-se na igreja. O conselheiro tinha, além disso, muito que fazer, e passou o dia a examinar alguns papéis e a dar ordens aos seus subordinados para que assuntos prosaicos não perturbassem depois os primeiros dias da lua-de-mel. Mas mandou o jovem Anders levar um grande bouquet de rosas. Era um belo dia de Verão.

Ao fim da tarde, já o Sol se tinha posto, Anders pegou na arma e saiu a caçar patos. O conselheiro também não encontrava repouso no seu quarto, e iniciou um longo passeio a pé, como é próprio de um noivo, repleto de sentimentos. Tomou pela estrada que atravessa os campos de La Liberte para estar, sem que o mundo ou a noiva o suspeitassem, ainda perto dela.

O céu da noite estival era de um claro azul e cândido, como as pétalas de uma pervinca. Grandes nuvens de prata se acastelavam por todo o horizonte; o arvoredo erguia as copas negras e severas para o céu. As ervas, húmidas e altas, eram de um verde luminoso. Todas as cores do dia se continham na paisagem, tão vivas como à luz do Sol, mas transformadas, como revelando uma faceta nova do seu ser, como se todo o mundo em cor se houvesse transformado de um tom maior num tom menor. Na quietude e no silêncio da noite vibrava intensa a vida, como se no instante seguinte o Universo fosse revelar o seu segredo. Quando o velho conselheiro ergueu os olhos, surpreendeu-o ver uma lua cheia de Verão imóvel no meio do céu. O disco brilhante lançava uma estreita ponte de oiro sobre a planície cor de ferro do mar, como se um cardume de muitas centenas de pequenos peixes brincassem à superfície; e no entanto parecia não espalhar muita luz, como se mais luz não fosse ali precisa.

Sabendo agora que ali estavam, já distinguia as manchas transparentes de sombra em redor das árvores que a Lua projectava, e as poças pequenas e estreitas no caminho, mesmo à beira das ervas fragrantes e húmidas e longas.

O conselheiro viu que ali estivera parado há algum tempo, olhando a Lua. Ela estava muito longe, bem o sabia, mas entre os dois nada se interpunha a não ser o ar diáfano, mas rarefeito, segundo lhe disseram, à medida que se ganha altura. Porque não fora ele capaz de escrever um poema à Lua? Tinha tanto para lhe dizer. Ela era tão branca, tão redonda, e ele sempre amara tudo o que é redondo e branco.

Subitamente pareceu-lhe que a Lua tinha outro tanto para lhe dizer. Mais, até, ou pelo menos expressava-o de uma forma mais poderosa. Um velho, sim, seria um velho; e ela também, mais velha ainda do que ele. Não é má coisa ser-se velho, pensou ele; vê-se e aprecia-se melhor as coisas do que nos tempos da juventude. Não é só no vinho velho que há bouquet; para apreciá-lo é preciso ter-se também o palato de um velho.

Mas seria esta poderosa mensagem da Lua um aviso? Lembrou-se do conto infantil do ladrão que roubou um gordo carneiro e o está comendo ao luar. O homem, por troça, levanta um pedaço do carneiro à luz da Lua e exclama:

Sê bem-vinda

Cara linda!

Vens provar do meu carneiro?

E a Lua responde-lhe:

Ó ladrão,

Tem tu mão!

Chave, queima o zombeteiro!

E, ao dizer isto a Lua, uma chave em brasa desce voando pelos ares e queima o rosto do ladrão. Aquela história devia ter-lha contado a velha ama há uns cinquenta anos. Tudo a noite contém. A vida, sim, e a morte, um memento mori sempre. «Cuidado, a morte está aqui!», dizia a Lua. Seria para ele semelhante aviso?

Ou promessa? O seu velho corpo iria ser erguido, pois, qual Endimião, e receber o prémio dos cuidados desta vida num sono eterno, tão belo como esta noite? E o mundo iria esculpir uma estátua sua, aqui nos campos semeados de feno de La Liberte, em memória da sua apoteose?

Que estranhas fantasias eram estas? O trevo, gotejante de orvalho, pesado, melífluo, roçava-lhe os tornozelos. Experimentava a curiosa sensação de andar um pouco acima do chão. Havia vacas, algures, deitadas ou caminhando; não as distinguia à luz do luar, mas sentia a fragrância doce e forte dos seus corpos.

Subitamente lembrou-se de algo que sucedera havia mais de quarenta anos. O jovem Peter Mathiesen de então, um rapaz, reservado e especulativo, hospedava-se em casa de seu tio, o pároco de Mols, e na mesma casa uma menina, filha de um lavrador, preparava-se para a confirmação. O tio era um homem letrado, que sabia falar de tudo - Deus, o amor, a vida eterna - e um entusiasta da nova literatura romântica. Costumavam ler poesia ao serão, na residência, e uma noite, porque a menina se chamava Nanna, divertiu-se o pastor a fazer os pequenos dar um recital da tragédia A morte de Baldur, e a dizer um ao outro os versos apaixonados de Nanna e Baldur. De óculos arrepiados para a testa, o velho pastor ouvira, num êxtase, com essa mesma impudência que leva as solteironas a plantar jacintos em altos jarros para lhes verem as raízes, sem reparar que os dois jovens camponeses se ruborizavam e empalideciam ao som das próprias vozes. Chegada a hora de dormir, o rapaz não pudera ir para a cama. Confuso e febril, vagueara pelos celeiros da quinta procurando o que pudesse lavá-lo desse contacto, e fora dar ao curral. Era uma noite de luar e de neblina, no início da Primavera. Encostado à parede, ele sentira-se extremamente só, e não apenas só, mas traído, como se alguma coisa esperasse na treva para o atacar. Depois dera em pensar nas vacas, e na sua imperturbabilidade no meio da escuridão. Uma delas, branca e enorme, chamada Rosa, era a favorita dos pequenos. Sentira que ela podia confortá-lo. No estábulo, o peito contra o flanco do animal gentil que, repousando, ainda ruminava, uma doce calma e um equilíbrio o invadiram, e resolveu-se a dormir ali mesmo toda a noite. Mal se tinha deitado, porém, nas palhas, a porta da vacaria abriu-se mansamente, e uns passos leves se aproximaram. Espreitando por cima do lombo da Rosa, ele viu a menina entrar, a sua figura indistinta iluminada pelas névoas de luar. Estava tão infeliz quanto ele, e sentira que só um animal ruminante poderia devolver-lhe a paz de espírito. O luar entrava pela janelinha da vacaria - o mesmo luar - dando às paredes caiadas uma cor branca de leite. Os cabelos louros da pequena brilhavam sob a carícia do luar, mas ele estava na sombra e quedou-se imóvel como um fugitivo que teme ser descoberto. Observou-a que ajoelhava na palha, tão perto dele, respirando ofegante. Estaria chorando, talvez soluçasse. Ali estiveram deitados os dois por algumas horas na curta noite primaveril, ora dormindo, ora acordados, com a tranquila Rosa de oloroso bafo posta entre eles qual espada de dois gumes de um poema cavalheiresco. Muitos pensamentos, muitas imagens bonitas e poderosas cruzaram o espírito do rapaz. Adormecido, sonhou com Nanna, e ao acordar soerguera-se para a ver, e ela ainda lá estava, sem dar pela sua presença. De manhãzinha cedo a pequena levantou-se, sacudiu a palha das saias e desapareceu, e ele nunca chegou a dizer-lhe que tinha estado no curral com ela. O conselheiro prosseguiu na caminhada, satisfeito. Pensava no aforismo do conde Schimmelmann: «Verdadeiro louco é quem não sabe que mais vale a metade que o todo». Este incidente, há muito esquecido, era uma pequena flor na sua vida, na grinalda da sua vida, uma flor campestre, um não-me-esqueças campestre. Não eram poucas as flores, violetas, amores-perfeitos da sua vida. Iria esta noite pôr uma rosa nessa grinalda?

A uma certa distância de La Liberte, nos campos semeados de feno, havia um bosque de vidoeiros. A um extremo dele, ao cimo de um pequeno monte, a dama do solar que, cem anos antes, se afeiçoara à doce e calma solenidade dessa paisagem, tinha ali construído um pequeno pavilhão, um templo à amizade. Belos pilares de madeira suportavam um tecto em cúpula. Subia-se a ele por dois degraus, e um assento corria o lado interior das colunas, desenhando um semi-círculo. Dali podia ver-se o mar. Anos depois, e porque o clima da Dinamarca nem sempre se harmoniza com a arquitectura grega, um dos lados do edifício fora coberto de colmo, para abrigar a pensadora. A construção estava agora em ruínas, e à luz do dia era tristonha; à luz da lua cheia, porém, parecia romântica.

O conselheiro dirigiu os seus passos para o pequeno templo, sítio que lhe pareceu de harmonia com os pensamentos de um noivo, mas caminhou devagar e com prudência, não fosse a jovem noiva ter tido o mesmo devaneio e, sendo assim, não quereria assustá-la ou perturbar-lhe o sossego. Mas, ao aproximar-se, vozes vindas do edifício fizeram-no parar, como petrificado, e depois prosseguir com cautela na direcção do som. Pela segunda vez espreitando furtivo em La Liberte, cuidou de aproximar-se em silêncio, escudado pela parede de colmo.

Anders e Fransine estavam juntos no templo, e falavam em voz baixa. O rapaz sentava-se no banco, imóvel. A jovem, de pé, em frente dele, encostava-se a uma coluna. O luar iluminava-os; o mundo em seu redor era todo feito de luz, como uma paisagem de neve. Mas o conselheiro mantinha-se na treva do seu esconderijo. Era, de facto, como a estátua dele próprio com que ainda há pouco sonhava. Também as estátuas, algumas vezes, vêem muita coisa.

Ela vestia um exótico vestido, uma espécie de dominó preto, ou de capa de sair, que o velho nunca vira em seu poder e em que ela se embrulhava. Os cabelos negros, soltos, eram um manto vivo e cheiroso, e a sua face a rosa branca, húmida de orvalho ao ar da noite. Nunca a tinha visto assim tão linda o conselheiro. Aliás, nunca vira tanta beleza reunida num ser humano. Era como se a noite de Verão tivesse gerado apenas essa flor, epítome da sua própria beleza. Ela parecia vacilante, como um ramo flexível de roseira a que as flores brancas pesassem.

Houve um longo silêncio. Depois Fransine soltou uma gargalhada rouca de felicidade, tão mansa, tão doce como o arrulhar de uma pomba.

- Está toda a gente deitada - disse ela - como os mortos no cemitério. Só tu e eu estamos a pé. Não é uma estupidez estar-se deitado?

O corpo dela agitou-se levemente nas pregas da capa.

- Estou farta deles - exclamou com veemência - sempre a falar, a falar. Oxalá eles ficassem deitados para nunca mais se levantarem, e nós pudéssemos estar sozinhos enfim no mundo por algum tempo.

A doçura dessa ideia parecia subjugar Fransine. Respirou fundo. Permaneceu imóvel, esperando que ele fizesse um gesto, lhe desse uma resposta. Pouco depois era ela quem perguntava, a voz ainda cheia de riso e de ternura:

- Anders, o que tens?

Anders levou muito tempo a responder-lhe, e, quando o fez, disse lentamente:

- Sim - disse ele - bem o podes perguntar, Fransine. Do espírito não é preciso falar não é perigoso. Mas o que temos? Estranha coisa é a matéria. É o flogisto dos nossos corpos, por ser, digamos, de peso negativo. Isto é fácil de compreender, evidentemente, mas é tão doloroso quando é demonstrado em nós próprios. Primeiro somos tratados pelo fogo - ardemos, somos queimados vivos, vai dar no mesmo - e ainda assim o nosso corpo não pode voar.

Então a causa da imobilidade do amante tornou-se clara para o velho, posto à escuta na sombra. O rapaz estava perdido de bêbado. Ainda se aguentava, sentado, em equilíbrio, mas nem um movimento mais podia fazer. Estava pálido como um espectro; o suor corria-lhe pelas faces; e fixava os olhos no rosto da jovem como se lhe causasse uma dor infinita desviá-los dela. O conselheiro, que estivera repetindo mentalmente o seu aforismo particular, «mais vale a metade que o todo», via agora provar-se a teoria diante dos seus olhos.

Fransine sorria ao rapaz. Como tantas mulheres, não reconhecia os sintomas de uma bebedeira num homem.

- Oh, Anders - dizia ela - pois não sabes? Eu to direi: eu sou capaz de voar. Ou quase. O velho maitre-de-ballet Basso disse-me um dia: «Às outras raparigas eu tenho de as obrigar a saltar, mas a ti vou ter de amarrar duas pedras às pernas, senão levantas voo e foges de mim.» Estes velhos são doidos, e querem de nós estranhas coisas. Agora não me importo. Em breve te mostrarei que posso voar, como os peixes-voadores de que os meninos do mar fazem patos e gansos.

- Olha, rapariga - disse Anders - tu és como a cozinheira que mata um pato, vivo, bom, só para fazer uma sopa de miúdos. Podes usar-me para a sopa de miúdos, se quiseres, mas tens de cá vir e cortar por tuas mãos as miudezas que é preciso. As aves não sabem onde ficam o próprio coração ou o fígado. É trabalho de mulheres, Fransine.

Fransine reflectiu por momentos. Tinha a certeza de que as suas palavras todas eram sábias e meigas para ela.

- Minha mãe - disse ela - nasceu no ghetto de Roma. Não sabias isto. Ninguém sabe. Lá eu vi-a matar as aves como deve ser, para que nem uma gota de sangue fique nelas. Esse ghetto, Anders, esse é o lugar, podes crê-lo, onde há pessoas que sofrem, onde é preciso ter cautela para não se acabar roubado e ferido. Enforcado, até. Já vi gente ser enforcada. O meu avô foi enforcado lá. O mundo tem sido mau para mim, Anders, e para ti também. Mas depois até a felicidade é mais doce.

Ela fez uma pausa.

- A felicidade - disse ela. - Não achas assim?

- Agora é tarde - respondeu Anders. - As coisas acontecem mesmo quando estamos ausentes. É esse o problema. É isso que tu não sabes. Os galos cantam, embora aqui não os possamos ouvir.

Citando um velho adágio dos carvoeiros, ele disse, lenta e meigamente:

Quando o galo canta na manhã do São João,

Já vinte e nove caixotes passaram pela minha mão.

- Não cantam, não - disse ela. - Ainda não amanheceu, Anders. Nem sequer é meia-noite.

Ela permanecia imóvel à sua frente.

- Um e outro - disse Anders - me querem como eu sou, inteiro. Abelone quer-me inteiro. Pretende abrir uma taverna em Elsinore e quer que eu case com ela e seja o patrão de uma taverna de marítimos. E o mar também me quer, inteiro. Se uma ou o outro te apanhassem, irias ver como elas te mordem.

O conselheiro, ainda que absorto na conversa dos dois, sofreu nesta altura um ligeiro choque. Então a sua governanta nutria semelhantes esperanças sem nada lhe dizer a ele? E teria até visto em Fransine uma rival, talvez, das suas glórias, mostrando assim mais perspicácia do que ele próprio?

Fransine fitava Anders, confusa.

- Anders - disse ela - não fales assim. Ouve. Nas feiras, quando eu dançava para eles, eles gritavam: «Outra vez! Outra vez!» E diziam «É como ver as estrelas dançar, os corações arder.» Não acreditas que eu te possa fazer feliz?

Oh, minha linda - replicou ele - sejamos bons. Vamos portar-nos como gente de juízo. Deixa-me pagar-te o que os marítimos pagam às raparigas de Elsinore. Não tenho muito para te dar, e é pena, muita pena. Há dias gastei grande parte das minhas economias a pagar cerveja numa noitada na estalagem, e foi muito mal feito. Mas cinquenta táleres de contado ainda eu tenho de parte. Aceita-os, por amor de Deus. Não to peço por mim, juro-te, pois eu vou morrer mais cedo ou mais tarde, seja como for, peço-te por ti, minha pobre, minha linda rapariga. É sempre bom que uma rapariga tenha cinquenta táleres de contado. Compra com eles uma fatiota, e não andes para aí despida nas noites frias.

Fransine não era uma mulher fraca. Ao ouvir isto, fez um movimento na direcção de Anders. A sua capa, que mantinha apertada ao corpo, e os cabelos longos esvoaçaram. No seu rosto, onde parecia haver uma luz própria, os dois grandes olhos negros estavam fixos no rosto dele. Parecia uma jovem bruxa ao luar.

- Anders, Anders! - disse ela - Tu não me amas?

- Ó meu Deus - disse ele. - Eu já estava à espera disto. Posso responder-te, por experiência, e muito bem. Amo-te, minha linda megera. O teu cabelo, agora, é como uma labaredazinha vermelha nas trevas, uma língua fendida, de fogo, um pequeno fogo-fátuo que mostra aos homens o caminho errado, o caminho do Inferno.

Ela tremia da cabeça aos pés.

- Não querias - disse ela, torcendo as mãos - que eu viesse ter contigo, aqui, esta noite?

Ele, ainda sentado, ficou em silêncio por momentos.

- Bom - disse ele - se quer saber a minha opinião sincera, Madame Fransine, não. Preferia estar só.

Fransine voltou-lhe as costas e desatou a correr. A sua longa capa napolitana, arrastando-se atrás de si, impedia-lhe os movimentos. Conservou-se, porém, embrulhada nela. Assim fugiu Aretusa quando, há muitos anos, foi transformada em rio, e em altos prantos se lançou a um bosque de murtas.

Anders ficou por longo tempo sentado como um homem morto. Depois, com os movimentos vagarosos e incertos de um bêbado, pegou na arma e pôs-se de pé. Voltou-se, e ao voltar-se deu de caras com o conselheiro.

Não pareceu nada surpreendido por vê-lo. Talvez tivesse pensado nele, ou pressentido a sua presença na atmosfera daquele rendez-vous. Limitou-se a franzir um esgar quando pôs os olhos nele, como se lhe fosse mostrada a solução de uma engenhosa adivinha. O conselheiro sentiu-se bem mais embaraçado com esse encontro. Por alguns segundos se fitaram os dois. Então, com o sorriso que teria um rapazinho ao pregar uma partida maldosa a alguém, Anders soergueu a arma e, sem fazer pontaria, disparou para o corpo do velho. A resposta soou no eco distante, perturbando a noite de Verão.

O estampido e a dor súbita e opressiva atingiram o velho como se fossem uma só coisa, como se fossem o fim ou o princípio do mundo. Caiu, e ao cair viu o assassino, com uma agilidade surpreendente para um homem perdido de bêbado, apoiar a mão no muro baixo do pequeno templo, saltar para o outro lado e desaparecer.

O conselheiro achou-se, depois de uma longa estada num estranho mundo, deitado de costas no trevo, numa poça de um líquido pegajoso e quente - o seu próprio sangue, que se misturava ao rocio dos campos.

Sentia que estivera terrivelmente furioso. Não sabia ao certo se o estrondo e a escuridão não seriam consequência da sua ira, um anátema que o protegido ingrato lhe atirara à cara. Lentamente recobrando a consciência, sofria ainda com a dor e a exaustão que uma grande cólera deixa no peito, mas já não odiava nem condenava. Tudo acontecera há muito tempo.

Tinha perdido muito sangue. Julgou que todas as balas do tambor lhe haviam sido enterradas no lado direito. Também não era capaz de mover a perna direita. Estranho, como se podia transformar as coisas tão completamente apenas por jazer onde antes se estivera de pé. Jamais soubera que o cheiro do trevo em flor podia ser tão forte, mas isso era porque ele jamais estivera deitado, sepultado, banhado em trevos como agora.

Ia morrer. O rapaz, que ele tanto amava, quisera vê-lo morto. O mundo tinha-o expulsado. O seu testamento, lembrou-se então, estava em ordem. Deixava o seu dinheiro à noiva. Os seus velhos servidores ficariam amparados, e a adega iria para o conde Schimmelmann, que tanto apreciava um bom vinho. Ao fazer o testamento havia perguntado a si próprio se um testamento bem feito traria conforto a um moribundo. Agora sabia que sim.

Momentos depois tentou compreender para onde e para que mundo fora lançado. Reconhecendo o lugar, ocorreu-lhe que talvez ainda se salvasse. Talvez ainda pudesse controlar o seu mundo.

Devia estar a cerca de uma milha de La Liberte. Se conseguisse voltar-se e passar o peso do corpo para o braço ileso, talvez pudesse mover-se. Se alcançasse a longa alameda que conduzia à casa, talvez se arrastasse até ao muro de pedra e pudesse aí descansar.

Sentiu muitas dores mal tentou mexer-se; talvez nem valesse a pena.

- Agora, meu querido amigo - disse ele a si próprio, sentindo que era chegado o tempo de ouvir uma palavra amável - faz o possível. Hás-de salvar-te.

Conseguiu assim progredir, qual velha cobra que uma roda atropelou mas se arrasta ainda, serpenteando.

O braço do conselheiro cedeu; ele caiu com a cara no chão, e a boca, aberta para poder ainda respirar, encheu-se de pó.

Ao erguer-se de novo ele viu que se tinha enganado: não estava na Dinamarca, não, mas em Weimar.

A doçura de tal descoberta quase o subjugou. Weimar, então, era tão fácil de alcançar-se. Uma estrada a ela conduzia desde os campos semeados de feno de La Liberte. Este lugar - via-o agora claramente - era o mirante; a vista sobre a cidade era mais bela do que nunca; era o horto sagrado, e as tílias severas guardavam o santuário; sentia-lhes o cheiro intenso e balsâmico. A Lua brilhava serena sobre tudo aquilo, e de uma janela fulgente o grande poeta estaria talvez agora vendo-a a ela, compondo versos divinos à sua divinal beleza.

Lembrava-se agora: ele próprio andava escrevendo uma tragédia. Tinha outrora considerado esta a grande obra da sua vida, e estranhava que há tanto tempo não pensasse mais nela. Tinha até congeminado o plano de a colocar nas mãos do Geheimrat, para que ele depois lhe desse o seu parecer. Talvez esta noite fosse o momento oportuno. Chamara-lhe O Judeu Errante. Talvez não valesse grande coisa. Havia nela reminiscências do Fausto do próprio Geheimrat; mesmo assim, tinha uma certa inventiva. A cruz imaginária que o seu Assuero carregava pelo mundo, na sua longa e eterna caminhada, não deixava de ter uma certa força.

Pensou: Consentiria o poeta que as suas personagens - Wilhelm Meister, Werther, Dorothea - se associassem às criações do espírito do conselheiro? Sem dúvida haveria uma ordem no mundo da ficção como em qualquer outro, até o de Hirschholm. Com efeito, seria talvez próprio da obra de arte proporcionar ao autor a visão das suas personagens acompanhando as pessoas, e frequentando os lugares das obras dos grandes mestres. Não desembarcariam Elmiro e Tartufo em Chipre, não seriam ali recebidos pelo jovem Cássio em representação do seu general, tendo passado no mar por um navio de velas castanhas rumando a Shéria?

Caiu de novo, e, rolando, ficou deitado de costas. Era esta uma posição de que só poderia erguer-se com mais dificuldade, e, enquanto assim jazia, em ânsias de respirar, um cão ladrou na distância.

«Até os cãezinhos, vê - Tray, Blanche e Sweetheart – me ladram aqui.»

Sim, talvez tivessem razão para o fazer. Olhou a sua roupa, ao luar de Verão, empastada de sangue e de pó. Nem um mendigo estaria pior.

Também o rei Lear, a uma dada altura, estivera em maus lençóis. Assassinos também a ele perseguiram. Tinha estado só numa charneca, tinha-se debatido e caíra. A sua noite no descampado fora muito pior do que esta. Mas ainda assim o velho rei estivera protegido, alcançara uma inabalável segurança. Deitado ainda no chão, ofegante, o conselheiro procurou lembrar-se do que assim protegera tão excepcionalmente Lear, que até a tempestade na charneca, e toda a malvadez do mundo, não lograram sequer feri-lo. Tinha estado à mercê de duas filhas ingratas; elas haviam-no tratado com horrenda crueldade; a sua situação ali era tudo menos segura. Seria outra coisa, então. O velho rei estivera nas mãos, fosse o que fosse que lhe acontecesse, do grande poeta inglês William Shakes-peare. Ora aí estava!

O conselheiro tinha alcançado o muro de pedra do jardim. Com um esforço imenso conseguiu sentar-se, apoiando nele as costas. Descansou. E subitamente, com o rosto da Lua mirando a sua cara suja e tinta de sangue, o velho conselheiro compreendeu o mundo inteiro.

Não era só em Weimar que ele estava. Não, era mais do que isso. Ele tinha penetrado o círculo mágico da poesia. Ele estava no mundo das criações do grande Geheimrat. Toda esta paisagem quieta em seu redor, e esta grande dor também, que de vez em quando o invadia, eram obra do poeta de Weimar. Ele tinha entrado em pessoa nesses livros de harmonia, de profunda reflexão e de ordem indestrutível. Era livre, se o quisesse, de ser Mefistófeles, ou o tolo estudante que vem pedir conselhos sobre a vida. Com efeito ele podia ser tudo, sem correr qualquer risco, pois, fizesse ele o que fizesse, o autor velaria por que tudo terminasse em bem, e essa lei e essa ordem, excelsas e divinas, seriam mantidas. Como pudera ter medo alguma vez na vida? Teria acreditado que Goethe seria capaz de abandoná-lo?

De um faz dez E deixa dois. Faz par de três. E nove é um E dez nenhum...

As palavras deram-lhe um extraordinário conforto. Que louco, que louco tinha sido! Nada tinha importância! Ele estava nas mãos de Goethe.

O velho ergueu, como se fosse aquela a primeira vez em toda a sua vida, os olhos para o firmamento. Os seus lábios moveram-se. Dizia:

Ich bin Eurer Excellenz eherbietigster Diener.

Neste momento da sua apoteose tomou consciência de um choro mais ao longe. O som aproximou-se, e depois subitamente se desviou e desapareceu. Seria a voz, pensou ele, de Margarida chorando no seu abandono?

Minha mãe, a puta, a morte me deu. Meu pai, o canalha, foi quem me comeu...

Não, pensou ele, devia ser a jovem senhora de La Liberte, a sua noiva de um tempo, a pobre Fransine. Pelo som percebeu que ela andaria de um lado para o outro, perto dele. Teria vindo até ao extremo do terraço para que de casa a não ouvissem. Se ele conseguisse avançar um pouco mais, ela poderia ouvi-lo, e ele estaria salvo.

Com esta certeza também uma grande piedade invadiu o conselheiro. Fransine devia ter ouvido o tiro, pensava ela, e estaria louca de medo. Soluçava perdidamente, desesperadamente, parecia-lhe, e estava sozinha nas trevas da noite. Era uma crueldade da parte do Geheimrat. Todavia, já tinha feito pior, como quando levara Margarida a matar o próprio filho; e no entanto esse acto fora acertado, fizera de algum modo parte da ordem.

Encostou-se ao muro, as pernas paralizadas arrastando no pó, e tentou reunir e controlar todas estas ideias. Por ser mais rico em sabedoria, quem senão ele para consolar a infeliz e sossegá-la? Ela era jovem e simples; não valeria a pena procurar convencê-la de que tudo estava na boa ordem. Mas isso não tinha importância; era talvez melhor assim. As crianças, que não conseguem digerir os frutos da Terra, ficam felizes se lhes dão um pedacinho de açúcar. Ele faria com que Fransine tivesse aquilo a que se chama felicidade. Esta, sentia-o, era a vontade do autor, do Geheimrat.

No céu a Lua mudara de posição e de cor. A manhã aproximava-se. O céu de Verão lentamente avermelhava; nele as estrelas, penduradas como gotas claras, estavam prestes a cair. Ventos balsâmicos sopravam rente ao chão.

O conselheiro pensou que devia ter a aparência de um fantasma e, com muita dificuldade, tirou o lenço e limpou a cara. O esforço quase o matava, e apenas conseguiu manchar todo o rosto de sangue e de pó. Sentia que não lhe valia de nada chamá-la; a sua voz estava demasiado fraca. Tinha de chegar mais perto dela. Dois degraus de pedra subiam da estrada ao fim do terraço, através do muro, e se conseguisse transpô-los ela iria vê-lo. Com as forças que lhe restavam ele avançou, apoiado nos cotovelos e nos joelhos, mais dez jardas e agora, sabia-o bem, era o fim; não podia fazer mais. Alcançou a laje inferior e encostou-se ao degrau de cima. Queria chamar, mas não podia articular um som. Foi então que ela se virou e o viu.

Se ele parecia um fantasma, e parecia-o - a ponto de ela o tomar por um espectro - ela própria parecia, ou era já, o fantasma da jovem beldade de La Liberte, a linda Fransine Lerche. Vestia apenas uma simples camisa de noite, que enfiara de qualquer maneira, pois já não tinha corpo. Quando atirara ao chão o dominó de Nápoles tinha despido o seu corpo dessa fragante e delicada coroa de rosas e lírios de nudez que em tempos fora tudo para ela. O generoso seio e as ancas redondas haviam mirrado; dentro da veste branca nada mais existia que um pedaço de pau. Até a longa cabeleira pendia, sem vida, como os seus braços. A fresca e gentil face de boneca dissolvera-se numa ruína de lágrimas; a boneca estava desfeita; os olhos que foram duas estrelas, o botão de rosa dos seus lábios nada mais eram que buracos negros numa superfície branca. Mortalmente cansada, não podia sentar-se nem deitar-se. O desespero mantinha-a de pé, como o chumbo das figurinhas de madeira com que brincam as crianças, como o peso aos pés dos marinheiros que os sepulta, verticais, no fundo do mar.

Os dois se fitaram. Por fim o velho reuniu forças suficientes para murmurar:

- Ajude-me. Já não me posso mexer.

Ela ficou petrificada. A ele ocorreu que devia tranquilizar a rapariga, pois ela estava louca de terror. Disse:

- Deram-me um tiro, como vê. Mas não tem importância. Não sabia se ela o tinha ouvido. Mal sabia sequer se tinha chegado a falar.

Por fim a rapariga compreendeu. O amante havia dado um tiro neste velho. Numa fracção de segundo, como num lampejo imenso e branco, uma visão lhe foi mostrada: Anders, com o baraço em volta do pescoço. E instantaneamente uma sombra da sua antiga força a percorreu, tal um escombro de navio lançado à praia gelada pelo movimento das ondas. Fizesse Anders o que fizesse, os dois pertenciam um ao outro, eram um só. Que ele a tivesse ferido mortalmente, que ela por sua vez lhe tivesse fugido e só temesse no mundo voltar a vê-lo, nada tinha importância.

Ficou olhando o sangue, que escorria do corpo do velho e coloria os degraus de sua casa. Como por magia, ao vê-lo, o coração ergueu-se no seu peito e sossegou. Viu, à luz vermelha deste sangue, que da infelicidade surgida entre ela e Anders a culpa fora sempre sua. Tal convicção liberou toda a sua natureza; que ele fosse culpado terria sido para ela insuportável. O sangue vermelho, o grande alívio do seu coração, e a luz matinal que se anunciava já, tornavam-se para ela numa só e mesma coisa. A treva iria dissipar-se. Depois de ela o ter deixado, Anders provara que a amava. E isto só ela e o velho sabiam.

Qual bacante, a cabeleira escorrendo solta, ela começou a puxar, a esgaravatar à volta de uma das grandes pedras do muro, tentando soltá-la. Quando o conseguiu ficou por momentos a segurá-la, com todas as suas forças, em ambos os braços, contra o peito, como se ela fosse o filho único a que um velho feiticeiro houvesse transformado.

O conselheiro sentiu o sangue escorrer mais rápido; se tinha uma mensagem a dar-lhe, teria de o fazer agora. Com medo que os seus lábios não tivessem pronunciado um som quando quisera falar, ele arrastou a mão direita pelo chão até lhe tocar o pé nu. A rapariga, que tão sensível fora a um contacto, não se moveu; já não tinha corpo.

- Minha pobre filha, minha pomba - disse ele - ouça. Tudo é bom. Tudo, todos!

«Sagrados, Fransine - disse ele - fantoches sagrados.» Teve de esperar uns momentos, mas tinha mais qualquer coisa a dizer-lhe.

E disse, muito lentamente:

- A Lua passa, altaneira e forte. A nós dois jamais poderá vencer a morte.

Não pôde prosseguir; a cabeça tombou-lhe sobre a laje.

Se Fransine não o ouviu, compreendeu-o através do contacto da sua mão. Ele quisera dizer-lhe que o mundo era bom e belo, mas ela sabia que não. Só porque a ele convinha que o mundo fosse bonito, queria conjurá-lo para assim o transformar. Talvez se alongasse depois sobre as belezas da paisagem. Já não seria a primeira vez. Talvez lhe dissesse que era o dia do seu casamento, e que Céus e Terra lhe sorriam. Mas esse era o mundo onde queriam enforcar o seu Anders.

- Poeta! - gritou ela - Maldita poeta!

Ergueu a pedra, com ambas as mãos, acima da cabeça e arremessou-a contra ele.

O sangue jorrou em todas as direcções. O corpo, que até então possuíra um equilíbrio, e uma finalidade, e uma concepção do mundo, tombou, levando-as consigo, ao bel-prazer das leis da gravidade, jazendo no chão como caíra, feito uma trouxa de roupas velhas.

O conselheiro sentiu-se como arremessado, num tremendo movimento, de cabeça para um abismo sem fim. Caía; caía. Era atirado, em três ou quatro ressaltos, de uma catarata para outra. E entretanto, de todas as direcções, como num eco trazido pelas trevas que o engoliam, soprando e rolando por longas cavernas, a derradeira palavra da mulher soou, continuamente se repetindo.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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