Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O PORTAL DO CORVO
O ARMAZÉM
Matt Freeman sabia que estava cometendo um erro.
Estava sentado num muro baixo do lado de fora da Estação Ipswich, usando um agasalho cinza com capuz, jeans velhos e desbotados e tênis com cadarços puídos. Eram seis da tarde e o trem de Londres tinha acabado de chegar. Atrás dele passageiros lutavam para sair da estação. A rua era um emaranhado de carros, táxis e pedestres, todos tentando encontrar o caminho de casa. Um sinal de trânsito passou de vermelho para verde, mas nada se mexeu. Alguém se apoiou na buzina, e o ruído explodiu, atravessando o ar úmido da tarde. Matt ouviu e levantou a cabeça brevemente. Mas a multidão não significava nada. Ele não fazia parte. Nunca fizera — e algumas vezes achava que nunca faria.
Dois homens de guarda-chuva passaram e o olharam com reprovação. Provavelmente acharam que não estava envolvido com coisa boa. O modo como se sentava — curvado para a frente com os joelhos separados — o fazia parecer meio perigoso e mais velho do que 14 anos. Tinha ombros largos, corpo bem desenvolvido e musculoso, olhos azuis luminosos e inteligentes. O cabelo era preto, bem curto. Dali a cinco anos poderia ser jogador de futebol, modelo ou, como muitos outros, as duas coisas.
Seu nome era Matthew, mas ele sempre se chamava de Matt. Quando os problemas passaram a se multiplicar na vida, tinha começado a usar o sobrenome cada vez menos, até que, um dia, não fazia mais parte dele. Freeman era o sobrenome na ficha da escola e na lista dos que matavam aula. E era um nome bem conhecido pelo serviço social da região. Mas Matthew nunca o escrevia e raramente o pronunciava. "Matt" era suficiente. O nome lhe servia. Afinal de contas, desde que podia se lembrar, as pessoas vinham passando por cima dele.
Olhou os dois homens com guarda-chuva atravessarem a ponte e desaparecerem na direção do centro da cidade. Matt não havia nascido em Ipswich. Fora levado para lá e odiava tudo no local. Para começar, não era uma cidade. Era pequena demais. Porém não tinha o charme de um vilarejo ou de uma cidade-mercado. Na verdade não passava de um grande shopping center, com as mesmas lojas e supermercados que se viam em todos os outros lugares. Não tinha nem um time de futebol decente. Dava para nadar na Piscina Crown ou assistir aos filmes no multiplex. Se você pudesse pagar, havia ainda uma pista de esqui artificial e uma de kart. Mas só isso.
Matt estava com apenas três libras no bolso, economizadas de suas entregas de jornais. Havia mais vinte libras em casa, escondidas numa caixa embaixo da cama. Precisava de dinheiro pelo mesmo motivo de todos os outros adolescentes de Ipswich. Não só porque seus tênis estavam caindo aos pedaços e porque os jogos de seu Xbox estavam seis meses desatualizados. Dinheiro era poder. Dinheiro era independência. Ele não tinha ganhado nenhum e estava aqui esta noite porque queria um pouco.
Mas já desejava não ter vindo. Era errado. Era idiota. Por que tinha concordado?
Olhou o relógio. Seis e dez. Tinham combinado se encontrar às quinze para as seis. Bem, era uma desculpa suficiente. Desceu do muro e começou a andar, atravessando a frente da estação. Tinha dado apenas alguns passos quando outro garoto, mais velho, apareceu do nada, bloqueando seu caminho.
— Está indo embora, Matt? — perguntou o garoto.
— Achei que você não vinha.
— Ah, é? E por que achou isso?
Porque você está 25 minutos atrasado. Porque estou com frio. Porque você é quase tão confiável quanto o ônibus do bairro. Era isso que Matt queria dizer. Mas as palavras não saíram. Ele apenas deu de ombros.
O outro garoto sorriu. Seu nome era Kelvin e ele tinha 17 anos. Era alto, magro, com cabelos claros, pele pálida e espinhas. Vestia roupas caras, um jeans de marca e jaqueta de couro macio. Mesmo quando estava na escola, Kelvin sempre usava as melhores roupas.
— Fiquei preso — disse ele. Matt não disse nada.
— Você não amarelou, não é?
— Não.
— Não precisa se preocupar, Matt, meu chapa. Vai ser fácil. O Charlie disse...
Charlie era o irmão mais velho de Kelvin. Matt não o conhecia, o que não era de surpreender. Charlie estava na prisão, numa instituição para jovens infratores perto de Manchester. Kelvin não falava muito sobre ele. Mas Charlie é que tinha ouvido falar primeiro sobre o armazém.
Ficava a 15 minutos da Estação Ipswich, numa área industrial. Um armazém atulhado de CDS, videogames e DVDs. Espantosamente não tinha sistemas de alarme e havia apenas um segurança, um policial aposentado que ficava cochilando a maior parte do tempo, com os pés para cima e a cabeça enfiada num jornal. Charlie sabia tudo isso porque um amigo dele tinha ido !á fazer um serviço de eletricidade. Segundo Charlie, dava para invadir o lugar usando um clipe de papel amassado e provavelmente sair com umas duzentas pratas em equipamentos. Era moleza, um serviço que só estava esperando por alguém.
Por isso os dois tinham combinado se encontrar aqui. Matt concordou com a idéia quando conversaram a respeito, mas metade dele achou que Kelvin não estava falando sério. Os dois haviam feito muitas coisas juntos. Sob orientação de Kelvin, tinham roubado coisas em supermercados. Uma vez tinham fugido no carro de alguém. Mas Matt sabia que isso era muito pior. Era sério. Era invasão de propriedade. Roubo. Crime verdadeiro.
— Tem certeza? — perguntou finalmente.
— Claro que tenho. Qual é o problema?
— Se apanharem a gente...
— Não vai acontecer. Charlie disse que eles nem têm câmeras de circuito interno. — Kelvin apoiou um dos pés no muro. Matt notou que ele estava usando tênis Nike novos em folha. Freqüentemente perguntava-se como Kelvin podia comprar aquelas roupas. Agora achava ter descoberto. — Qual é, Matt! — continuou Kelvin. — Se vai bancar o otário não sei se quero andar com você. Qual é a encrenca?
Um ar de exasperação tomara o rosto de Kelvin. Neste momento, Matt percebeu que teria de ir. Se não fosse, perderia o único amigo. Quando entrara para a escola St Edmund's Comprehensive, em Ipswich, Kelvin lhe dera proteção. Alguns garotos achavam Matt esquisito. Outros tinham tentado pegar no pé dele. Kelvin tinha ajudado a mantê-los a distância. E como a casa de Kelvin era pertinho de onde Matt morava com a tia e o companheiro dela, em Eastfield Terrace, isso ajudava muito. Quando as coisas ficavam ruins de verdade, sempre havia aonde ir. E ele precisava admitir que era lisonjeiro andar com um cara três anos mais velho.
— Não tem encrenca — respondeu Matt. — Eu vou.
E foi isso. A decisão estava tomada. Matt tentou sufocar a sensação de medo crescente. Kelvin lhe deu um tapa nas costas. Os dois partiram juntos.
A escuridão chegou muito depressa. Era fim de março, mas praticamente não havia sinal da primavera. Tinha chovido forte o mês inteiro e a noite ainda parecia começar antes da hora. Quando chegaram à área industrial as lâmpadas das ruas se acenderam, lançando focos de uma desagradável luz laranja no chão. A área era cercada e tinha placas alertando que se tratava de propriedade particular, mas a cerca estava enferrujada e cheia de buracos, e a única outra barreira era o capim e os espinheiros que brotavam ao redor, onde o asfalto acabava. Trilhos de trem se estendiam acima, sobre uma série de pilastras de tijolos, e enquanto os dois garotos se aproximavam em silêncio, esgueirando-se entre as sombras, uma composição passou chacoalhando ruidosamente a caminho de Londres.
Ao todo, havia cerca de uma dúzia de construções. Algumas tinham anúncios pintados na lateral. C de Couro Móveis de Escritório. J. B. Strkyer Engenharia Automotiva. Spit & Polish Limpeza Industrial. O armazém de Kelvin não tinha qualquer marca. Era um comprido bloco retangular com paredes de aço corrugado e teto inclinado de telhas. Fora construído ligeiramente separado dos vizinhos e estava isolado por uma fileira de pilhas de garrafas e montes de caixas de papelão e pneus velhos. Não havia ninguém à vista. Toda a área parecia deserta e esquecida.
A entrada principal do armazém — uma grande porta deslizante — ficava na frente. Não havia janelas, mas Kelvin guiou Matt até uma segunda porta na lateral. Agora os dois estavam agachados, movendo-se pela escuridão nas pontas dos pés. Matt tentou relaxar, curtir o que estavam fazendo. Era uma aventura, não era? Dali a uma hora estariam rindo, com os bolsos cheios de grana. Mas estava inquieto. Quando Kelvin enfiou a mão no bolso e pegou um canivete, seu estômago se apertou e ele se sentiu ainda pior.
— Para que é isso? — sussurrou.
— Não se preocupe. É só para a gente entrar.
Kelvin enfiou a ponta da lâmina na fenda entre a porta e o portal e começou a forçar a lingüeta da fechadura. Matt ficou olhando sem dizer nada, torcendo secretamente para que a porta não se abrisse. A tranca parecia bem firme, e de algum modo era improvável que um garoto de 17 anos pudesse abri-la com uma coisa tão impiedosa quanto um canivete. Mas então houve um estalo. A luz espalhou-se para fora quando a porta se abriu. Kelvin recuou e Matt viu que ele estava igualmente surpreso, mesmo tentando não demonstrar.
— Estamos dentro — disse.
Matt concordou com a cabeça. Por um momento imaginou se Charlie não estaria certo, afinal de contas. Talvez isso fosse tão fácil quanto Kelvin tinha dito.
Passaram pela porta.
Dentro, o armazém era gigantesco — muito maior do que Matt esperava. Quando Kelvin tinha falado do lugar, ele imaginou algumas estantes com DVDs e o resto do espaço vazio. Mas aquilo parecia não ter fim, com centenas e centenas de prateleiras numeradas e divididas em corredores que formavam um complexo sistema de grades, tudo iluminado por um sem-número de lâmpadas industriais penduradas por correntes. E, além dos jogos e DVDs, havia caixas de equipamento de informática, Gameboys, aparelhos de MP3 e até celulares, tudo embrulhado em plástico, pronto para as lojas.
Matt levantou os olhos. Não havia câmeras de segurança — exatamente como Kelvin dissera.
— Vá por ali — apontou Kelvin. — Pegue as coisas pequenas e caras. Encontro você aqui.
— Porque não ficamos juntos?
— Não se preocupe, Mattzinho. Não vou embora sem você! Os dois se separaram. Matt se viu num corredor estreito com DVDs dos dois lados. Tom Cruise, Johnny Depp, Brad Pitt... todos os rostos familiares nos filmes mais recentes estavam ali. Estendeu a mão e pegou um punhado, sem mesmo olhar o que era. Tinha certeza de que havia coisas mais caras no armazém, mas não se importou. Só queria ir embora.
Tudo deu errado ao mesmo tempo.
Começou com um cheiro que subitamente invadiu sua narina, tomando conta do ambiente, vindo de lugar nenhum.
Cheiro de torrada queimada.
E uma voz. Venha, Matthew. Vamos nos atrasar.
Um clarão colorido. Uma parede amarela e luminosa. Armário de pinho. Um bule de chá na forma de um urso de brinquedo.
O cheiro lhe indicava que havia algo errado do mesmo modo que um cão costuma latir antes que o perigo apareça de verdade. Matt sabia que aquilo era estranho, mas nunca havia realmente questionado. Era uma habilidade, uma espécie de instinto. Um alerta. Só que desta vez tinha vindo tarde demais. Antes que ele soubesse o que estava acontecendo, uma mão pesada apertou seu ombro, girando-o, e uma voz exclamou:
— Que diabo você acha que está fazendo?
Matt sentiu os braços enfraquecerem e os DVDs esparramarem-se no chão, fazendo barulho ao redor de seus pés. De repente, estava diante do rosto de um segurança, nada parecido com o velho idiota que Kevin tinha descrito. Era um homem alto, sério, usando uniforme preto e prata com um transmissor de rádio preso a uma espécie de coldre no peito. Tinha uns cinqüenta anos, mas parecia em forma, como um jogador de rúgbi.
— A polícia já está vindo — disse ele. — Você disparou o alarme quando abriu a porta. Não tente nenhuma gracinha...
Matt não conseguia se mexer. Estava chocado demais com o aparecimento do guarda. Seu coração martelava no peito, tornando difícil respirar. De repente estava se sentindo apenas um garotinho de novo.
— Qual é o seu nome? — perguntou o guarda. Matt ficou quieto.
— Você está sozinho? — Desta vez a voz foi um pouco mais gentil. Ele devia ter visto que Matt não representava ameaça. — Quantos de vocês estão aí?
Matt respirou fundo.
— Eu...
E então, como se um interruptor tivesse sido acionado e o mundo inteiro fosse posto para girar, o verdadeiro horror teve início.
O corpo do guarda se esticou bruscamente, os olhos se arregalando, a boca se abrindo. Ele soltou Matt e começou a cair de lado. Matt olhou para além do homem e viu Kelvin imóvel, com um sorriso no rosto. A princípio não entendeu o que tinha acontecido. Então viu o cabo do canivete se projetando das costas do guarda, logo acima da cintura. O segurança não parecia ferido. Apenas surpreso. Dobrou-se lentamente para baixo e apoiou-se nos joelhos. Em seguida tombou para a frente, caindo no chão, e ficou imóvel.
Toda uma eternidade pareceu se passar. Matt estava congelado. Sentiu que algo o sugava para uma espécie de buraco negro. Então Kelvin o agarrou.
— Temos de andar... — disse ele.
— Kelvin...? — Matt lutou para recuperar o controle. — O que você fez? — perguntou em voz baixa. — Por que teve de fazer isso?
— O que mais eu podia fazer? Ele tinha visto você.
— Sei que ele tinha me visto. Mas não precisava dar uma facada no cara! Sabe o que você fez? Sabe o que...?
Matt estava mudo, horrorizado, e antes de cair em si, já tinha se jogado sobre Kelvin, lançando-o contra uma estante. Kelvin se recuperou depressa. Era maior e mais forte do que Matt. Dobrou-se para a frente e disparou um soco na lateral da cabeça de Matt, que caiu para trás, atordoado.
— O que está acontecendo com você, Matt? — rosnou Kelvin. — Qual é o problema?
— É você! Não precisava ter feito isso! Deve ter pirado de vez!
A cabeça de Matt girava. Ele não sabia o que dizer.
— Eu só estava pensando em você, cara. — Kelvin apontou um dedo. — Só fiz isso por você.
O guarda gemeu. Matt se obrigou a olhar para baixo. O sujeito continuava vivo. Mas estava deitado numa poça de sangue que parecia aumentar a cada segundo.
— Vamos! —gritou Kelvin.
— Não. Não podemos deixar esse cara assim.
— O quê?
— Cadê o seu celular? Temos de pedir ajuda...
— Está louco! — Kelvin passou a língua nos lábios. — Fique, se quiser. Eu estou indo.
— Você não pode fazer isso!
— Não? Então olha só!
E então ele se foi, desaparecendo pelo corredor. Matt o ignorou. O segurança gemeu pela segunda vez e tentou dizer alguma coisa. Sentindo um enjôo, Matt se agachou ao lado dele e pôs a mão em seu braço.
— Não se mexa — disse. — Vou pedir ajuda.
Mas a ajuda já havia chegado. Matt escutou as sirenes segundos antes que o som de pneus anunciasse a chegada da polícia. A corrida até o armazém devia ter começado no instante em que Kelvin arrombara a porta. Deixando o guarda, Matt se levantou e foi para a saída. Toda uma seção da parede deslizou de lado subitamente. Podia ver o armazém inteiro e olhar para a escuridão lá fora, onde as luzes azuis piscavam sem parar. Havia três carros parados na entrada. Um jogo de luzes de teto se acendeu e um facho ofuscante disparou pela escuridão e se cravou em seus olhos. Ao mesmo tempo, meia dúzia de policiais — não mais do que silhuetas — foi em sua direção. Dava para ver que todos usavam equipamentos de proteção. Alguns seguravam armas.
Já haviam apanhado Kelvin. Matt o viu sendo levado pela entrada, entre dois homens muito maiores do que ele. Estava reclamando e gritando. Ao ver Matt, virou-se de repente e apontou.
— Não fui eu! — gritou numa voz aguda e gemida. — Foi ele! Ele me obrigou a vir! E matou o guarda!
— Não se mexa! — gritou alguém, quando dois outros homens foram na direção de Matt.
Matt ficou onde estava. Lentamente ergueu os braços. As mãos foram torcidas às costas e algemadas. Ouviu o estalo de metal e soube que não havia o que fazer. Então foi arrancado do chão e arrastado para a noite, quieto e sem resistir.
VIDRO QUEBRADO
Levaram Matt a um prédio que não era uma prisão nem um hospital, mas algo intermediário. O carro entrou numa área retangular, asfaltada, com paredes altas ao redor. Quando pararam, uma porta de aço se fechou, bloqueando a saída com um zumbido alto, elétrico. Matt ouviu as fechaduras se trancando. Pareciam ecoar dentro da cabeça. Imaginou se veria o mundo do outro lado daquela porta outra vez.
— Para fora!
A voz não parecia pertencer a ninguém. Disse o que fazer e Matt obedeceu. Estava chuviscando. Por alguns instantes, ele sentiu a água fria no rosto e quase ficou grato. Queria tomar banho. Ainda sentia o sangue nas mãos, às costas. Tinha secado e ficado grudento.
Passou por uma porta dupla e entrou num corredor com luz intensa, ladrilhos, cheiro de urina e desinfetante. Pessoas uniformizadas cruzaram com ele. Dois policiais, depois uma enfermeira. Matt continuava algemado. Tinha visto pessoas sendo presas, pela televisão, mas nunca havia percebido como era realmente perder a liberdade, assim. Podia sentir os braços presos às costas. Estava absolutamente indefeso.
Os dois policiais pararam diante de uma mesa onde um terceiro homem com uniforme azul fazia anotações num caderno. Ele fez algumas perguntas, mas Matt não entendia o que era dito. Podia ver a boca do sujeito se mexendo. Escutava as palavras. Mas elas pareciam distantes e não faziam sentido.
De repente, estava em movimento de novo, acompanhado até um elevador que precisava de chave para funcionar. Foi levado ao segundo andar e seguiu por um corredor. Mantinha a cabeça baixa, os olhos fixos nos pés. Não queria espiar ao redor. Não queria saber onde estava.
Pararam de novo numa área aberta, um ponto de encontro de vários corredores, com pintura verde e cartazes de informações da polícia nas paredes. Havia uma sala com janela gradeada e, diante dela, uma mesa com um computador e duas cadeiras. Eles entraram. As algemas foram abertas e Matt trouxe os braços para a frente, com uma sensação de alívio. Os ombros estavam doendo.
— Sente-se — disse um dos policiais. Matt obedeceu.
Cerca de cinco minutos se passaram. Então uma porta se abriu e um homem de terno e camisa colorida, sem gravata, apareceu. Era negro, magro e com olhos gentis e inteligentes. Parecia um pouco mais amigável do que os outros. E também mais jovem. Matt achou que tinha menos de trinta anos.
— Sou o detetive superintendente Mallory — disse ele. Tinha uma voz agradável e articulada. Como um locutor de TV. — Você está bem?
— Estou.
Matt ficou surpreso com a pergunta. Mallory tinha se sentado à mesa, diante dele. Apertou algumas teclas no computador.
— Qual é o seu nome?
— Matt.
Os dedos de Mallory pairaram sobre o teclado.
— Acho que terá de dizer seu nome inteiro. Preciso para o relatório.
Matt hesitou. Mas sabia que precisava cooperar.
— Matthew Freeman.
O detetive digitou os dados, apertou ENTER e depois ficou olhando enquanto uma dúzia de linhas de informações rolou na tela.
— Parece que você já fez nome — disse Mallory. — Mora em Eastfield Terrace, 27?
— É — confirmou Matt.
— Com uma tutora. A senhora Davis?
— Ela é minha tia.
— Você tem 14 anos.
— É.
Mallory ergueu os olhos da tela do computador.
— Você está numa tremenda encrenca — disse. Matt respirou fundo.
— Eu sei. — Quase teve medo de perguntar, mas precisava saber. — Ele morreu?
— O guarda que você esfaqueou tem nome. Mark Adams. É casado e tem dois filhos. — Mallory não conseguia esconder a raiva. — Neste momento está no hospital. Vai ficar lá Por um tempo. Mas não vai morrer.
— Eu não o esfaqueei. Não sabia que alguém ia se machucar. Não era essa a idéia.
— Não foi o que seu amigo Kelvin contou. Disse que o canivete era seu, que o plano era seu e que você entrou em pânico quando foram apanhados.
— Ele está mentindo.
Mallory suspirou.
— Eu sei. Já falei com o guarda e ele contou o que aconteceu. Ouviu vocês dois discutindo e sabe que você queria ficar. Mesmo assim você é responsável, Matthew. Devo informá-lo de que vai ser acusado como cúmplice. Sabe o que isso significa?
— Vão me botar na cadeia?
— Você tem 14 anos. É novo demais para a prisão. Mas é bem possível que receba uma sentença de custódia. — Mallory parou. Tinha ficado diante de dezenas de garotos nesta sala. Muitos eram bandidos, variando dos abertamente desafiadores aos chorões e patéticos. Mas estava perplexo com o garoto de boa aparência e quieto diante dele. Matt era diferente, de algum modo, e Mallory se pegou imaginando o que o havia levado àquela situação. — Olhe, é tarde demais para falar nisso agora. Você está com fome?
Matt balançou a cabeça.
— Precisa de alguma coisa?
— Não.
— Tente não ficar com muito medo. Vamos cuidar de você esta noite e amanhã de manhã vamos tentar entender isso. Agora é melhor você trocar essas roupas. Infelizmente alguém terá de ficar junto enquanto você se despe: suas roupas são provas. Você pode tomar um banho e depois um médico vai examiná-lo.
— Não estou doente. Não preciso de médico.
— É só rotina. Ele vai fazer um exame rápido e talvez lhe dê algo para ajudar a dormir. — Mallory olhou para um dos policiais. —Certo...
Matt ficou de pé.
— Por favor, diga que eu sinto muito — disse ele. — Ao segurança. Mark Adams. Sei que não faz diferença e que provavelmente vocês não acreditam em mim. Mas sinto muito.
Mallory assentiu. O policial segurou o braço de Matt e o guiou pelo corredor.
Ele foi levado a um vestiário com bancos de madeira e ladrilhos brancos. Suas roupas foram para um saco plástico que, depois de grampeado, recebeu uma etiqueta. Depois Matt tomou um banho de chuveiro. Não teve privacidade, como fora avisado. Havia um policial no cômodo com ele o tempo todo, mas mesmo assim conseguiu aproveitar o banho, a água correndo, escaldante, batendo com força na cabeça e nos ombros, lavando o sangue e o horror das últimas horas. O banho acabou depressa demais. Enxugou-se e vestiu uma camiseta cinza e uma cueca que tinham sido lavadas e comprimidas até ficarem lisas como papel. Por fim foi levado a uma sala que poderia ser uma enfermaria, com quatro camas de metal, quatro mesas idênticas e mais nada. O cômodo parecia ter sido limpo cinqüenta vezes. Até o ar parecia limpo. Aparentemente ele era o único ocupante.
Subiu na cama e, antes que qualquer médico chegasse, apagou. O sono veio depressa como um trem num túnel. Ele simplesmente se deitou e foi caindo sem parar.
Enquanto isso, numa sala embaixo, Stephen Mallory estava sentado diante de uma mulher amarfanhada, de aparência carrancuda, que conseguia fazer um muxoxo e bocejar ao mesmo tempo. Era Gwenda Davis, tia e tutora legal de Matt. Uma figura baixa e desleixada, com cabelo que parecia de rato e um rosto fino, fácil de esquecer. Não usava maquiagem e apresentava olheiras profundas sob os olhos. Vestia um casaco velho e disforme. Podia ter sido caro algum dia, mas agora estava esgarçado nas bordas. Como a mulher que o está usando, pensou Mallory. Supôs que ela tivesse uns 45 anos. Parecia nervosa, como se ela, e não o sobrinho, houvesse sido acusada de alguma coisa.
— E onde ele está? — perguntou Gwenda.
Tinha uma voz fina e gemida que fazia cada pergunta parecer uma reclamação.
— Lá em cima. Dormiu antes que o médico pudesse vê-lo, mas nós lhe demos um tranqüilizante mesmo assim. É possível que esteja em choque.
— Ele está em choque? — Gwenda deu um riso breve. — Eu é que estou em choque, isso sim. Receber um telefonema desses no meio da noite! Ter de vir aqui. Sou uma pessoa respeitável. Toda essa coisa de canivetes e roubo. Nunca ouvi nada assim.
— Pelo que sei, a senhora divide sua casa com um companheiro.
— Brian. — Gwenda notou que Mallory tinha pegado uma caneta. — Brian Conran — continuou, olhando enquanto o detetive anotava. — Ele está dormindo. Não tem qualquer parentesco com o garoto. Por que deveria vir aqui no meio da noite? Precisa acordar de manhã cedinho.
— Qual é o trabalho dele?
— Por que isso interessa ao senhor? — Ela deu de ombros. — Ele é leiteiro.
Mallory pegou uma folha numa pasta de papel.
— A ficha do garoto diz que os pais de Matthew morreram.
— Acidente de carro. — Gwenda engoliu em seco. — Ele tinha oito anos. A família morava em Londres na época. A mãe e o pai morreram. Mas ele não estava com eles.
— Ele é filho único?
— Isso. Não tem irmãos nem qualquer tipo de parente. Ninguém sabia o que fazer com ele.
— Você era parente da mãe.
— Era meia-irmã dela. Só me encontrei com eles algumas vezes. — Gwenda se empertigou, cruzando as mãos diante do corpo. — Se quer saber a verdade, nunca foram muito amigáveis. A vida era boa para eles, certo? Bela casa num belo bairro. Belo carro. Belo tudo. Não tinham tempo para mim. E quando morreram naquele acidente idiota... bem, não sei o que teria acontecido com o Matthew se não fôssemos eu e o Brian. Nós ficamos com ele. Tivemos de criar o garoto sozinhos. E o que recebemos em troca? Só encrenca!
Mallory olhou de novo para o relatório.
— Ele nunca havia se encrencado antes. Começou a faltar à escola um anos depois de vir para Ipswich. A partir daí foi só morro abaixo.
— Está me culpando? — Duas manchas vermelhas tinham aparecido nas bochechas de Gwenda. — Isso não teve nada a ver comigo! Foi aquele garoto, o Kevin Johnson... mora perto de nós. A culpa é dele!
Eram onze da noite. Tinha sido um dia longo e Mallory já estava farto. Fechou a pasta e se levantou.
— Obrigado por ter vindo, senhora Davis. Gostaria de ver o Matthew?
— Não adianta ver, se ele está dormindo, não é?
— Talvez então a senhora queira voltar de manhã. A assistente social estará aqui. Além disso ele vai precisar de um advogado. Mas se a senhora chegar às nove horas...
— Não posso vir às nove horas. Tenho de fazer o café da manhã do Brian quando ele chegar das entregas. Venho depois.
— Certo.
Gwenda Davis se levantou e saiu da sala. Mallory ficou olhando. Não sentia nada por ela, mas não conseguiu evitar um sentimento de grande tristeza pelo garoto que dormia lá em cima.
Matt acordou.
O quarto, com suas quatro camas de metal, estava deserto. Nenhum som vinha de lugar algum no prédio. Ele podia sentir um travesseiro aninhando a nuca. Imaginou há quanto tempo estaria ali. Não havia sinal de relógio, mas estava escuro lá fora — dava para enxergar o céu noturno através de uma janela gradeada. O quarto estava fracamente iluminado. Provavelmente nunca apagavam a luz por completo.
Tentou voltar a dormir, mas agora estava totalmente desperto. De repente via tudo de novo, os acontecimentos da noite. As imagens piscavam diante dele como cartas de baralho carregadas pelo vento. Ali estava Kelvin, diante da estação de trem. Depois o armazém, os DVDs, o guarda, o canivete, Kelvin de novo com aquele sorriso idiota, os carros da polícia e as próprias mãos, manchadas de sangue. Matt fechou os olhos com força, tentando fazer as lembranças sumir.
Fazia muito calor no quarto. A janela estava fechada e o aquecedor ligado. Dava para sentir o calor tremulando ao redor. De repente, sentiu sede e olhou em volta, imaginando se poderia chamar alguém. Mas não existia uma campainha para apertar e ninguém à vista.
Notou que havia uma jarra d'água e um copo numa mesa do outro lado do quarto. Só precisava sair da cama e se servir. Levantou a mão para afastar as cobertas, mas estavam pesadas demais. Não. Não era possível. Flexionou os músculos e tentou se levantar. Mal podia se mexer. Então percebeu que um médico devia tê-lo examinado enquanto ele dormia. Tinha recebido algum tipo de injeção, um tranqüilizante. Ele não conseguia se mexer.
Quase gritou. Sentiu o pânico sufocando-o. O que iam fazer com ele? Por que tinha ido ao armazém? Como tinha permitido que tudo isso acontecesse? Afundou de novo no travesseiro, lutando contra a onda de pânico que havia se erguido acima dele. Não podia acreditar que um homem quase havia morrido por causa de um punhado de DVDs. Como podia ter sido idiota a ponto de pensar que Kelvin era seu amigo? "Foi ele que fez! Foi ele que fez!" Kelvin era patético. Sempre tinha sido.
A água.
O quarto parecia estar ficando mais e mais quente, como se a polícia tivesse aumentado a temperatura dos aquecedores só para atormentá-lo. Matt descobriu que toda a sua concentração estava na jarra. Podia ver o círculo perfeito da água tocando a borda do vidro. Obrigou-se a se levantar. Quando isso falhou, começou a forçar o pensamento para trazer a jarra até ele. Passou a língua nos lábios. A boca estava ressecada. Por um momento pensou ter sentido cheiro de algo se queimando. A jarra estava tão perto, só a cinco metros! Estendeu a mão, puxando-a com a mente.
A jarra se despedaçou.
Pareceu explodir, quase em câmera lenta. Por uma fração de segundo a água pairou no ar, seus tentáculos se espalhando para fora. Depois esparramou-se na mesa, sobre os pedaços de vidro.
Matt ficou pasmo. Não fazia idéia do que acontecera. Não tinha quebrado a jarra. Ela havia se quebrado sozinha. Era como se tivesse sido acertada por uma bala. Mas ele não tinha ouvido um tiro. Não tinha ouvido nada. Olhou para os cacos de vidro espalhados na mesa e a água empoçada ao redor, pingando no chão. Será que o calor no quarto havia causado aquilo? Ou teria sido ele? Será que sua sede, por algum motivo, de algum modo inexplicável, tinha despedaçado a jarra?
A exaustão finalmente o dominou pela segunda vez e ele caiu num sono profundo e sufocante. Quando acordou na manhã seguinte os cacos de vidro não estavam mais lá. Nem a água derramada. Sobre a mesa havia uma jarra e um copo, exatamente onde estavam na noite anterior, e Matt decidiu que toda a experiência não devia ter passado de um sonho meio esquisito.
O PROJETO LELAS
Vestindo suas próprias roupas, Matt estava sentado numa cadeira diante das quatro pessoas que o examinavam do outro lado de uma comprida mesa de madeira. Era o tipo de sala onde pessoas se casavam... ou talvez se divorciavam. Não era desconfortável, mas séria e formal, com paredes forradas de madeira e retratos de autoridades — provavelmente todas já mortas — em molduras douradas. Ele estava em Londres. Só não sabia exatamente onde. Tinha chovido forte demais para se ver alguma coisa pelas janelas do carro. Ele fora levado diretamente à porta e obrigado a subir uma escadaria para entrar nesse prédio moderno e sem graça. Não houvera tempo para turismo.
Uma semana tinha se passado desde a prisão. Nesse tempo Matt fora entrevistado, examinado, avaliado e, por muitas horas, deixado sozinho. Tinha preenchido papéis. Pareciam provas de escola, só que não faziam muito sentido. 2, 8, 14, 20... qual é o próximo número na seqüência? E: Quantos erro de grafia há neça fraze? Diversos homens e mulheres — médicos, psicólogos — tinham pedido que ele falasse de si. Tinham lhe mostrado manchas em pedaços de papel. "0 que você vê, Matthew? Em que essa forma faz você pensar?" E houvera jogos — associações de palavras, coisas assim.
Por fim disseram que ele ia sair. Surgiu uma mala cheia de roupas que Gwenda devia ter mandado de casa. Depois de uma viagem de três horas num carro comum — nem mesmo era um carro da polícia — ele veio parar aqui. A chuva continuava batendo forte nas janelas, obscurecendo a vista. Dava para ouvi-la martelando no vidro, como se quisesse entrar. Parecia que todo o mundo lá fora tinha se dissolvido e a única coisa que restava eram as cinco pessoas, ali, naquela sala.
Na extrema esquerda estava sua tia, Gwenda Davis. Ela enxugava os olhos com um lenço de papel, o que fazia seu rímel escorrer, havia uma risca suja, marrom, descendo por um lado do rosto até embaixo. O detetive-superintendente Stephen Mallory estava sentado junto dela, olhando para o outro lado. A terceira pessoa era uma juíza. Matt a vira hoje pela primeira vez. Tinha uns sessenta anos, vestia-se bem e parecia um pouco severa. Tinha óculos de aro de ouro e um ar de desaprovação que, nos correr dos anos, havia se tornado permanente. A quarta pessoa era a assistente social de Matt, uma mulher desarrumada e grisalha, uns dez anos mais nova do que a juíza. Seu nome era Jill Hughes e fora designada para Matt quando ele estava com onze anos. Tinha trabalhado com ele desde então e, pessoalmente, considerava-o seu maior fracasso.
Era a juíza que estava falando.
— Matthew, você precisa entender que este foi um crime muito covarde, que envolveu violência. — A juíza tinha um modo de falar muito preciso, entrecortado, como se cada palavra fosse da máxima importância. — Seu colega, Kevin Johnson, será mandado ao Tribunal da Coroa e quase com certeza será condenado à prisão na Instituição para Jovens Infratores. Ele tem 17 anos. Você, claro, é mais novo. Mas mesmo assim está acima da idade de responsabilidade criminal. Se fosse mandado ao tribunal, suspeito que receberia uma Seção 91. Isso significa que seria trancado talvez por três anos num centro seguro de instrução ou num lar infantil seguro da autoridade local.
Ela parou e abriu uma pasta de papel que estava sobre a mesa. O som das folhas virando pareceu muito alto no silêncio súbito.
— Você é um garoto inteligente — continuou ela. — Estes são os resultados dos testes que fez durante a semana. Ainda que os seus resultados na escola nunca tenham sido de destaque, você parece ter um bom conhecimento das habilidades básicas... matemática e linguagem. Seu relatório psicológico sugere que tem uma mente positiva e criativa. Parece muito estranho ter optado por matar aulas e cometer pequenos crimes.
"Mas, claro, temos de levarem conta seu passado infeliz. Você perdeu os pais de repente e quando era muito novo, e isso deve ter causado uma perturbação terrível. Acho que é bastante claro para todos nós que os problemas em sua juventude podem ter resultado desse acontecimento trágico. Mesmo assim, Matthew, você precisa encontrar a força para superar esses problemas. Se continuar pelo caminho que vem trilhando, há uma chance muito real de terminar na prisão."
Matt não ouvia. Estava tentando, mas as palavras eram distantes e sem importância... como os anúncios em uma estação onde ele não quisesse pegar trem algum. Ele não conseguia acreditar que a mulher estava falando com ele. Em vez disso escutava a chuva bater nas janelas. A chuva parecia lhe dizer mais.
— Há um novo programa federal que foi criado especificamente para pessoas como você — prosseguiu a juíza. — A verdade, Matthew, é que ninguém quer ver pessoas jovens serem mandadas para reformatórios. É caro e, de qualquer modo, não temos lugares suficientes. Por isso o governo criou recentemente o projeto LELAS. Liberdade e Educação em Lares de Adoção Substitutos. Você pode pensar nisso, se quiser, como se fosse virar uma nova folha do livro.
— Já fui posto num lar adotivo uma vez — disse Matt, olhando para Gwenda, que se revirou na cadeira. — E não foi exatamente um sucesso.
— Isso é inegável — respondeu a juíza. — E acho que a senhora Davis não se sente mais capacitada para cuidar de você. Ela já fez tudo o que pôde.
— Verdade? — disse Matt, cheio de deboche.
— Eu fiz o que pude! — gritou Gwenda, pressionando o lenço de papel contra o olho. — Você nunca foi agradecido. Nunca foi bom. Nunca tentou.
A juíza tossiu. Gwenda ergueu os olhos rapidamente e ficou quieta.
— E acho que sua assistente social, a senhorita Hughes, acha a mesma coisa — continuou a juíza. — Devo dizer, Matthew, que você nos deixou sem alternativa. O LELAS é sua última chance de se redimir.
— O que é o LELAS? — perguntou Matt.
De repente, só queria sair daquela sala. Não importava para onde o mandassem.
— O LELAS é um programa de lares adotivos—Jill Hughes tinha assumido a fala. Era uma mulher pequena, meio escondida pela mesa diante da qual estava sentada. Na verdade tinha o tamanho errado para o serviço. Havia passado a vida inteira lidando com criminosos agressivos, em sua maioria muito maiores do que ela. —Temos vários voluntários vivendo em partes remotas do país...
— Há menos tentações no campo — interveio a juíza.
— ...todas elas bem longe de áreas urbanas. — continuou Jill Hughes. As pessoas pegam jovens como você e oferecem um ambiente à moda antiga. Dão comida, roupas, companhia e... mais importante, disciplina. O L de LELAS significa Liberdade. Mas ela tem de ser merecida.
— Sua nova mãe adotiva pode pedir para você ajudá-la com trabalho manual leve — disse a juíza.
— Quer dizer... que eu terei de trabalhar? — perguntou Matt, com a voz cheia de desprezo.
— Não há nada de errado nisso! — reagiu a juíza, irritada. —Trabalhar no campo é bom para a saúde, e muitas crianças adorariam estar com os animais e as plantas numa fazenda. Mas ninguém pode obrigá-lo a entrar para o projeto LELAS, Matthew. Você tem de ser voluntário. Só posso dizer que esta é uma verdadeira oportunidade. E tenho certeza de que vai considerá-la preferível à alternativa.
Ficar em cana por três anos. Era o que ela tinha dito.
— Quanto tempo vou ter de ficar lá?
— No mínimo um ano. Depois disso vamos reavaliar a situação.
— Talvez você goste — disse Stephen Mallory. Ele estava tentando parecer animado. — É um recomeço, Matt. Uma chance de fazer novos amigos.
Matt tinha dúvidas.
— O que acontece se eu não gostar?
— Estaremos em contato permanente com a mãe adotiva — explicou a juíza. — O responsável tem de fazer um relatório semanal à polícia, e sua tia vai visitá-lo assim que você se sentir pronto. Haverá um período de três meses de adaptação. Depois disso ela vai vê-lo todo mês.
— Ela vai servir como contato entre a mãe adotiva e a assistente social — disse Jill Hughes.
— Não sei como vou poder — murmurou Gwenda. — Quero dizer, haverá despesas de viagens... E quem vai cuidar de Brian quando eu estiver fora? Tenho responsabilidades, vocês sabem...
Sua voz perdeu-se no ar. De repente a sala estava em silêncio, a não ser pelo som do tráfego e da chuva batendo nas janelas.
— Certo. — Matt deu de ombros. — Podem me mandar para onde quiserem. Na verdade não me importo. Qualquer coisa é melhor do que ficar com ela e Brian.
Gwenda ficou vermelha. Mallory interveio antes que ela começasse a falar:
— Não vamos abandoná-lo — prometeu ele. — Vamos garantir que seja bem atendido.
Mas a juíza estava irritada.
— Você não tem absolutamente nada do que reclamar
— disse ela rispidamente. Em seguida olhou para Matt por cima dos óculos, — Francamente, você deveria estar agradecido por essa oportunidade. E eu preciso alertá-lo: se sua mãe adotiva ficar insatisfeita com seu progresso, se você abusar de qualquer modo da gentileza que está recebendo, será devolvido a nós. E então vai parar numa instituição. Não terá uma segunda chance. Entendeu?
— Sim. Entendi. — Matt olhou para as janelas. A luz estava quase perdida por trás da cortina de água cinza e eternamente móvel. — Então quando vou conhecer minha mãe adotiva?
— O nome dela é Jayne Deverill — disse a assistente social.
— E deve chegar a qualquer minuto.
Estavam consertando as escadas rolantes da estação de metrô Holborn. Quando a mulher chegou ao nível da rua, fagulhas dos maçaricos de acetileno relampejavam e piscavam atrás dela. Mas Jayne Deverill não notou. Estava completamente imóvel, segurando uma bolsa de couro sob o braço, olhando para um ponto alguns metros à frente, como se sentisse nojo do ambiente ao redor.
Logo depois de passar pela catraca, alguém esbarrou nela e por um segundo algo sombrio relampejou em seus olhos. Mas ela se obrigou a manter o controle. Usava sapatos de couro feios e fora de moda e caminhava desajeitadamente como se, talvez, houvesse algum problema com suas pernas.
A Sra. Deverill era pequena, tinha pelo menos cinqüenta anos, cabelos brancos e curtos. A pele ainda não estava enrugada, mas era estranhamente sem vida. Tinha olhos muito duros, gélidos, e malares que formavam duas reentrâncias atravessando o rosto. Era difícil imaginar seus olhos cinzentos sorrindo. Estava bem-vestida, com saia cinza, casaco da mesma cor e uma blusa abotoada até o pescoço. Usava um colar de prata e, na lapela, um broche de prata, em forma de lagarto.
Sua caminhada desde a estação de Holborn fora observada.
A Sra. Deverill não percebeu que estava sendo seguida enquanto ia pela Kingsway em direção aos escritórios atrás do Hotel Lincoln, mas o homem de agasalho com capuz jamais estivera a menos de dez metros atrás. Tinha vinte anos, cabelos louros oleosos e um rosto fino, de aparência pouco saudável. Reconhecera a mulher como alguém de fora da cidade no momento em que a vira passando pelas catracas. Não sabia de quem se tratava e não se importava. Apenas duas coisas o interessavam: a bolsa e as jóias.
Não sabia aonde ela estava indo. Só esperava que saísse da rua principal — com seus muitos pedestres e um ou outro policial— e fosse para uma das ruas mais calmas que serpenteavam mais atrás. De qualquer modo, valia observar por alguns minutos. Ainda estava em seu encalço quando ela parou numa esquina e virou à esquerda perto de um bar. Sorriu. Não poderia ter sido melhor. Agora eram apenas os dois, seguindo por um beco que desembocava numa região ocupada por firmas de advocacia e prédios oficiais — um mundo particular e segregado. Olhou rapidamente ao redor, verificando se não havia ninguém à vista, depois enfiou a mão no bolso do casaco sujo. Pegou uma faca cega e virou-a na mão, apreciando a sensação de poder que ela lhe dava. Depois correu para a frente.
— Você! — gritou.
A mulher parou de costas para ele.
— Me dá a bolsa, vaca. Agora! E quero o colar... Houve uma pausa.
Jayne Deverill se virou.
Dez minutos depois, Jayne Deverill estava sentada, um pouco Ofegante, segurando uma xícara de chá que tinham lhe oferecido. Encontrava-se no escritório do Tribunal de Família e Juventude, onde Matt era mantido sob custódia.
— Desculpem o atraso — dizia ela. Tinha uma voz profunda, gutural, como de alguém que fumava cigarros demais. — É muita grosseria da minha parte. E deploro a grosseria. A pontualidade é o primeiro sinal de boa educação. É o que sempre digo.
— A senhora teve problemas para chegar aqui? — perguntou Mallory.
— O ônibus atrasou. Eu teria ligado da estação, mas infelizmente não uso celular. Não somos muito atualizados no campo, em Yorkshire. Não como vocês aqui em Londres. Na verdade, onde eu moro não há sinal, de modo que um celular seria desperdício. — Ela se virou para Matt. — É um grande prazer conhecê-lo, querido. Claro que ouvi falar muito sobre você.
Matt olhou para a mulher que tinha se oferecido para ser sua mãe adotiva no programa LELAS. Não gostou do que viu.
Jayne Deverill parecia ter saído de outro século: uma época em que professores podiam bater nos alunos e havia leituras da Bíblia antes do café-da-manhã e do jantar. Ele jamais conhecera alguém de aparência mais severa. Jill Hughes tinha recebido a mulher como uma velha amiga, mas na verdade as duas sequer se conheciam pessoalmente. Só tinham se falado por telefone. Stephen Mallory pareceu mais incomodado. Também estava sendo apresentado à Sra. Deverill e, mesmo depois de apertar a mão dela, ficou em silêncio. Parecia perdido em pensamentos. A juíza estava mais interessada nos papéis do que em qualquer outra coisa, com pressa para acabar com aquilo. Matt examinou a Sra. Deverill de novo. Ela tomava chá, e sua atenção jamais se afastava dele. Devorava-o com os olhos.
— Você conhece Yorkshire? — perguntou ela.
Matt demorou um instante para perceber que a mulher estava falando com ele.
— Não. Nunca estive lá.
— O nome do povoado é Pequeno Mailing. Fica meio fora do caminho. A cidade mais próxima é Grande Mailing, outro lugar de que jamais ouviu falar. E por que deveria ter ouvido? Lá não há nada. Em Yorkshire somos muito pé-no-chão. Cuidamos da terra, e a terra cuida de nós. Tenho certeza de que você vai achar bem calmo, em comparação com a cidade. Mas com o tempo vai se acostumar. — Ela olhou para a juíza. — Posso realmente levá-lo hoje?
A juíza confirmou com a cabeça. A Sra. Deverill deu um sorriso.
— E quando a senhora fará a primeira visita?
— Daqui a seis semanas. Queremos dar tempo ao Matthew para se acomodar.
— Bem, depois de seis semanas comigo, posso garantir que a senhora não vai reconhecê-lo. — Ela se virou para Gwenda Davis. — Não precisa se preocupar com ele, senhora Davis. Pode telefonar quando quiser e, claro, ambos estaremos ansiosos por suas visitas.
— Bem, não sei. — Gwenda ainda estava preocupada.
— É muito longe. E não sei se meu companheiro... Ela ficou quieta.
— Há alguns últimos formulários que precisa preencher, senhora Deverill — disse a juíza. — Em seguida vocês dois podem partir. A senhora Davis trouxe uma mala com algumas roupas e coisas do Matthew. — Ela se virou para Matt
— Imagino que você queira alguns minutos a sós para se despedir de sua tia.
— Não. Não tenho nada para dizer a ela.
— Não foi minha culpa — disse Gwenda tomada de uma raiva repentina. — Nunca signifiquei nada para sua família. Nunca tive nada a ver com vocês. Nem queria pegar você depois do que aconteceu com seus pais. Mas peguei, e você nunca representou nada além de encrenca. Você não tem a quem culpar, só a si mesmo.
— Isto não é necessário — interveio Mallory — Boa sorte, Matt. Realmente espero que dê certo. — Ele estendeu a mão. Matt hesitou, depois apertou-a. Aquela situação não era culpa de Mallory. Disso ele sabia.
— Hora de ir! — disse a Sra. Deverill. — Não queremos perder o ônibus!
Matt se levantou. Mallory ficou espiando com olhos pensativos, ansiosos, enquanto ele saía da sala.
Duas horas depois Matt atravessava a estação de ônibus Victoria, levando a mala que Gwenda tinha arrumado para ele. Olhou os ônibus ao redor, entrando e saindo com som de trovão, os grupos de viajantes, as bancas de salgadinhos e jornais, atrás dos vidros enormes. Era um lugar desagradável: frio, úmido e com um ar que cheirava a óleo diesel. Mal podia acreditar que estava aqui. Estava livre... finalmente fora da custódia policial. Não. Livre, não, lembrou-se. Fora repassado a essa mulher que se dizia sua mãe absoluta.
— Aquele é o nosso ônibus — disse ela, apontando para um veículo com a inscrição YORK na frente. Matt entregou sua mala a um homem, que a jogou no bagageiro, e então entrou no ônibus. Tinham lugares reservados na parte detrás. A Sra. Deverill deixou Matt se sentar perto da janela e ocupou o lugar ao lado. Logo o ônibus estava cheio. Exatamente à uma hora o motor foi ligado e eles começaram a se mexer. Matt ficou sentado, com a testa grudada no vidro, olhando enquanto saíam da estação e percorriam as ruas do bairro de Victoria. Ainda chovia. As gotas se sucediam diante de seus olhos. Perto dele, a Sra. Deverill estava sentada com os olhos semicerrados, respirando pesadamente.
Tentou se concentrar, tentou deduzir o que estava sentindo. Mas então se deu conta. Não sentia nada. Fora sugado para o sistema. Avaliado. Aprovado para o projeto LELAS. E mandado embora. Pelo menos não voltaria a Ipswich. Isso era algo pelo que devia agradecer. Era o fim de seis anos com Gwenda e Brian. O que viesse em seguida não poderia ser pior.
Enquanto isso, a uns oito quilômetros de distância, um beco em Hollborn era isolado por dois carros da polícia e uma ambulância. Um cadáver fora encontrado — um rapaz de agasalho com capuz.
A equipe de peritos acabara de chegar, mas os fotógrafos e os cientistas da polícia já sabiam que estavam diante de algo completamente bizarro. O sujeito era conhecido deles. Chamava-se Will Scott, um viciado em drogas que tinha se envolvido em muitos assaltos no centro de Londres. Havia uma faca de cozinha em sua mão — a causa de sua morte. Mas ninguém o atacara. Não havia digitais. Nenhum sinal de que alguém tivesse chegado perto.
A boca do morto estava aberta num sorriso medonho e havia um ar de puro terror em seus olhos. Ele segurava a faca com muita força. Tinha cravado-a, centímetro a centímetro, no próprio coração. Não estava claro como nem por que fizera isso, mas a equipe de perícia não guardava qualquer dúvida.
Por algum motivo Will Scott havia se matado.
PEQUENO MALING
Eram 320 quilômetros de estrada pavorosa entre Londres e York. A viagem levou mais de quatro horas. O ônibus parou duas vezes em postos de serviço, mas nem Matt nem a Sra. Deverill deixaram seus lugares. Ela havia trazido sanduíches. Estavam em sua bolsa, embrulhados em papel pardo. A Sra. Deverill pegou-os e ofereceu uma Matt.
— Está com fome, Matthew?
— Não, obrigado.
— Em Yorkshire espero que você coma o que houver. Na minha casa não se desperdiça comida.
Ela abriu um dos embrulhos e Matt viu duas fatias de pão branco preenchidas com fígado frio. Ficou feliz por não ter aceitado a oferta.
— Imagino que esteja pensando a meu respeito — disse a Sra. Deverill enquanto começava a lanchar. Ela dava dentadas pequenas e mastigava a comida cuidadosamente. Quando engolia, a garganta se retorcia dolorosamente, como se tivesse dificuldade para botar a comida para dentro. — Agora sou sua guardiã legal. Você é ladrão e delinqüente, e foi dado pelo governo a mim. Mas estou disposta a esquecer seu passado, Matthew. Posso garantir que é o seu futuro que me preocupa muito mais. Se fizer o que for mandado, vamos nos dar bem. Se me desobedecer, se tentar me desafiar, garanto que sofrerá mais do que pode imaginar. Entendeu?
— Sim.
O olhar dela percorreu Matt e ele estremeceu.
— Deve se lembrar de que ninguém se incomoda com você. Você não tem pais. Nem família. Tem pouca educação e nenhuma perspectiva. Não quero ser cruel, meu querido, mas sou tudo que lhe resta.
Ela se virou para o outro lado e continuou comendo o sanduíche. Depois pegou uma revista sobre agricultura e começou a ler. Era como se tivesse se esquecido dele completamente.
A estrada não tinha fim. Não havia nada para se ver pela janela, e Matt se pegou hipnotizado pelas linhas brancas e pela proteção na lateral do asfalto, que passava eternamente. Quase sem notar, foi se desligando, nem acordado nem dormindo, mas em algum lugar intermediário.
Estava de volta à casa geminada em Dulwich, um subúrbio amigável e cheio de árvores em Londres. Era onde havia morado com a mãe e o pai. Fazia seis anos desde que os vira pela última vez, mas, olhando pela janela, podia vê-los novamente.
Ali estava sua mãe, andando pela cozinha que vivia bagunçada, mesmo quando tinha acabado de ser limpa. Ela usava as roupas daquele último dia: vestido cor-de-rosa com casaco de linho branco. Sempre que se lembrava dela, era assim que a via. Era um vestido novo em folha, que ela havia comprado especialmente para o casamento. E ali estava seu pai, parecendo desconfortável de terno e gravata. Mark Freeman era médico e normalmente ia trabalhar com qualquer roupa que pegasse pela frente. Jeans, um suéter. Não gostava de se arrumar. Mas um dos médicos da clínica ia se casar e seria uma ocasião elegante. Primeiro o serviço religioso, depois uma festa num hotel caro. Seu pai estava sentado à mesa, tomando o café-da-manhã. Virou-se, jogando o cabelo escuro de lado, como sempre fazia, e perguntou:
— Onde está o Matthew?
E então Matthew chegou. Claro, na época ele ainda era Matthew. Seis anos depois, sentado num ônibus indo para um lugar do qual nunca tinha ouvido, Matt se viu como era na época, um menino baixo, ligeiramente gorducho, de cabelos escuros, entrando na cozinha pintada de amarelo luminoso. O pai estava à mesa. A mãe segurava um bule de chá em forma de ursinho. E ele ouviu tudo de novo.
— Anda, Matthew. Vamos chegar atrasados.
— Não quero ir.
— O quê? O que você está dizendo?
— Matthew...?
— Não estou me sentindo bem. Não quero ir.
Agora, no ônibus, Matt pôs a mão sobre os olhos. Não queria lembrar mais. Lembrar só doía... todas as vezes.
— O que quer dizer com "não quero ir"?
— Por favor, papai. Não me obrigue...
Haviam discutido, mas não muito. Os pais tinham apenas um filho — e o mimavam. Pensaram que ele gostaria do casamento porque haveria crianças e uma tenda especial com um mágico e balões. E agora isso! O pai deu um telefonema rápido. Não era realmente um grande problema. Rosemary Green — a vizinha amigável e sempre solícita — concordou em ficar com o menino pelo resto do dia. Os pais foram embora sem ele.
E por isso Matt não estava no carro quando houve o acidente. Por isso eles morreram, e ele sobreviveu.
Matt baixou a mão e olhou de novo para fora. O ônibus tinha diminuído a velocidade. Percebeu que não se sentia muito bem. Estava com calor e com frio, e havia um latejar oco em sua cabeça.
— Chegamos — anunciou a Sra. Deverill.
Tinham chegado a outra estação de ônibus, esta mais moderna e menor do que a Victoria. O ônibus parou e eles saíram embolados com os outros passageiros. Estava mais frio do lado de fora do que em Londres, mas pelo menos tinha parado de chover. Matt pegou sua mala e acompanhou a Sra. Deverill pelo saguão.
Um homem esperava por eles, parado perto de um Land Rover velho e acabado, que parecia só estar de pé graças à lama que o cobria. O homem era baixo e muito gordo, com cabelos amarelos e grudentos, olhos aquosos e um rosto que parecia estar ligeiramente escorrendo da cabeça. Usava jeans sujos e uma camisa pequena demais para ele. Matt podia ver os botões se retesando. O sujeito tinha uns quarenta anos. Seus lábios frouxos se abriram num sorriso úmido e desagradável.
— Boa tarde, senhora Deverill — disse.
A Sra. Deverill o ignorou. Virou-se para Matt.
— Este é Noah — disse ela.
Matt ficou quieto. Noah examinava-o de um modo que o deixou desconfortável.
— Bem-vindo a Yorkshire — disse Noah. — É um grande prazer conhecê-lo.
Ele estendeu a mão. Os dedos eram gordos e curtos, as unhas, incrustadas de lama. Matt não a apertou.
— Noah trabalha para mim na fazenda — explicou a Sra. Deverill. — Ele não sabe conversar direito, por isso eu não me incomodaria em falar com ele.
O empregado ainda encarava Matt. A boca estava aberta e havia saliva no queixo. Matt se virou para o outro lado.
— Entre no carro — disse a Sra. Deverill. — Está na hora de ver sua nova casa.
Seguiram de carro durante uma hora; primeiro numa rodovia de pista dupla, depois numa via secundária e finalmente numa sinuosa estradinha de terra. Quanto mais longe iam, mais sem graça ficava a paisagem. Pequeno Mailing parecia escondido em algum lugar nos limites dos confins de Yorkshire. Matt não viu nenhuma placa. Sentia-se ainda mais enjoado do que antes. Imaginou se seria o modo de Noah dirigir ou algum tipo de vírus que teria contraído.
Chegaram a uma encruzilhada, um encontro de cinco estradas— todas idênticas. Estavam rodeados por árvores. Matt não havia notado quando entraram na floresta, mas agora ela os rodeava, envolvia-os completamente. Sem dúvida a floresta fora plantada havia pouco tempo. Todas as árvores eram iguais — algum tipo de pinheiro. Eram da mesma altura, da mesma cor e tinham sido postas em linhas retas com espaço idêntico entre cada uma. Não importando em que direção Matt olhasse, a vista era exatamente a mesma. Lembrava-se do que sua assistente social em Londres tinha dito. O projeto LELAS queria mantê-lo longe das áreas urbanas, longe da tentação. Certamente não poderiam ter escolhido um lugar mais remoto.
Havia um poste de sinalização no cruzamento, mas a parte de cima fora quebrada. Restava apenas o mastro partido.
— Pequeno Mailing fica um quilômetro e meio adiante — disse a Sra. Deverill, sinalizando à esquerda. — Vou lhe mostrar tudo quando você estiver acomodado. Mas nós moramos do outro lado.
Noah virou o volante e eles foram para a esquerda, seguindo uma das estradinhas por uns cinqüenta metros, até chegarem a uma porteira. Matt só teve tempo de ver um nome, escrito em tinta marrom opaca. Solar da Colméia. Depois seguiram por um caminho de cascalho entre duas cercas de arame farpado que ia até um pátio e um complexo de celeiros e construções. O carro parou. Tinham chegado.
Matt saiu.
Era um lugar horrível. O tempo ruim não tinha ajudado, mas mesmo ao sol haveria pouca coisa para recomendar o Solar da Colméia. A casa principal era feita de grandes lajes de pedra, com um teto de ardósia que se encurvava sob o peso de uma única chaminé, enorme. Os celeiros tinham sido construídos com tábuas tão velhas e úmidas que estavam apodrecendo ali mesmo, com musgo verde-escuro se espalhando sobre elas como uma doença. O pátio em si era um quadrado irregular formado por tanta água quanto terra e cascalho. Galinhas ciscavam de um lado para o outro. Elas mal haviam se movido para evitar as rodas do Land Rover. Seis porcos estavam parados na lama, tremendo.
— É isso — anunciou a Sra. Deverill enquanto saía do carro e esticava as pernas. — Pode não parecer grande coisa, mas é minha casa e me serve muito bem. Claro, aqui não há jogos de computador. Não há televisão. Mas assim que você começar a trabalhar vai descobrir que está cansado demais para essas coisas. No campo vamos cedo para a cama. Com o tempo você vai se acostumar ao nosso estilo de vida.
Entraram na casa. A porta da frente se abriu para uma cozinha comprida, com piso de pedras. Havia um velho fogão num dos cantos, com potes e panelas pendendo do teto e dezenas de jarras e frascos em prateleiras de madeira. Dali a Sra. Deverill o guiou para uma sala com móveis antigos e gastos, estantes cheias de livros e, acima de uma lareira enorme, o que parecia ser um retrato dela, apesar de aparentar ter sido pintado quinhentos anos atrás. Tinha os mesmos olhos cruéis, as mesmas bochechas fundas. Só o cabelo era diferente, solto como se apanhado ao vento.
— Uma antepassada — explicou a Sra. Deverill.
Matt olhou para a figura na tela. A mulher estava parada diante de um povoado. Dava para ver algumas construções desoladas, atrás. Olhou de novo para o rosto e estremeceu. Nada tinha se movido, mas ele poderia jurar que ela estivera olhando para a moldura, à esquerda. Agora os olhos se fixavam nele. Engoliu em seco. Sua imaginação começara a lhe pregar truques. Virou-se e viu que a Sra. Deverill também o observava. Ele estava preso entre as duas. A Sra. Deverill deu um sorriso fino.
— Ela se parece comigo, não é? Também era uma Deverill. Existem Deverills nesta parte de Yorkshire há trezentos anos. O nome dela era Jayne, como o meu. Morreu queimada. Dizem que, quando o vento sopra na direção certa, ainda é possível escutar os gritos. Deixe-me levá-lo para cima.
Matt acompanhou a Sra. Deverill subindo uma escada sinuosa até o primeiro andar e chegaram a um quarto no fim do corredor. Aquele seria o seu quarto... era o cômodo que ele mais queria ver. A dor de cabeça havia piorado. Imaginou se ficaria doente.
O quarto tinha teto baixo, colunas à mostra e piso de madeira com um pequeno tapete no centro. Dava para os fundos da fazenda, virado para a floresta que ficava mais além de um campo. As janelas eram pequenas, instaladas em paredes que tinham pelo menos um metro de grossura. Havia uma cama bamba, arrumada não com um edredom, mas com lençóis e cobertores. Diante da cama havia uma pia e uma cômoda com um vaso de flores secas. Os quadros nas paredes mostravam vistas de Pequeno Mailing, pintadas em aquarela.
— Fizeram com que eu decorasse o quarto para você — observou a Sra. Deverill azedamente. Claro, o programa LELAS devia ter visitado a fazenda. Deviam ter insistido em que o quarto fosse limpo e confortável. — Eu mesma sequei as flores. Beladona, espirradeira e visgo. Três das minhas prediletas. Todas são venenosas... mas que cores lindas!
Matt pôs a mala na cama. Ao mesmo tempo notou algo sentado entre os travesseiros.
— E este é Asmodeu — disse a Sra. Deverill. — Meu gato.
Era um enorme gato preto de olhos amarelos. Sua barriga estava inchada como se tivesse comido recentemente. Matt notou um trecho cinza onde parte dos pêlos tinha se desgastado. Ele estava ronronando preguiçoso. Matt estendeu a mão para acariciá-lo. O gato ronronou mais alto. Lentamente virou a cabeça e encarou Matt. Depois cravou os dentes em sua carne.
Com um grito Matt puxou a mão. O sangue de um vermelho vivo brotou de uma mordida serrilhada, no polegar. Uma gota caiu no chão. A Sra. Deverill deu um passo para trás. Matt viu que os olhos dela tinham se arregalado e que agora, pela primeira vez, ela estava sorrindo. Toda a sua atenção estava fixa no sangue no chão.
Era demais para ele.
O quarto rodou. Matt cambaleou. Tentou dizer alguma coisa mas as palavras se recusaram a sair. As paredes giravam. Ouviu uma porta se abrir com um estrondo. Olhou por ela e viu — ou pensou ter visto — um círculo de enormes pedras de granito. Alguém estava segurando uma faca. Ele podia vê-la pairando sobre sua cabeça, a lâmina curva apontando para seu olho. O chão pareceu tremer e então, uma depois da outra, as tábuas se abriram, lascas explodindo por toda volta. Luzes brilhantes atravessaram as fendas e na luz ele pensou ter visto algo como uma gigantesca mão não-humana.
Uma voz ecoou em seus ouvidos.
— Um dos cinco! — sussurrou ela.
A luz o engolfou. Sentiu-a atravessando-o, queimando o interior de sua cabeça. Apertou as palmas das mãos contra os olhos, tentando bloqueá-la. Depois foi caindo para trás. Já estava inconsciente muito antes de bater no chão.
UM AVISO
— O que há de errado com ele?
— Está com pneumonia.
— O quê?
— Ele pode morrer.
— Não pode ser!
— Cure-o, senhora Deverill, Ele é sua responsabilidade. Certifique-se de que ele viva!
Matt escutava as vozes, mas não tinha certeza sobre seus dons. Estava deitado numa cama. Podia sentir um travesseiro na parte de trás da cabeça. Quanto ao resto, não sabia se estava dormindo ou acordado. Ergueu-se e entreabriu os olhos. Suor escorreu pela lateral do rosto. Aquele movimento tinha exigido toda sua força.
A porta havia acabado de se fechar. Alguém — a última pessoa a falar — tinha saído. Era um homem, mas Matt não pudera ver seu rosto. A Sra. Deverill estava no quarto com ele, parada perto de outra mulher, também de cabelos brancos mas com uma espécie de marca, de um vermelho vivo, no lado do rosto. Noah permanecia ao fundo, esfregando as mãos.
O quarto tremulou e de repente as cortinas foram fechadas. Havia chamas saltando perto da cama. Será que a casa estava pegando fogo? Não. Eles tinham colocado uma espécie de tripé com um braseiro cheio de carvões. As duas mulheres falavam numa língua que ele não entendia, sussurrando uma para a outra enquanto alimentavam as chamas com cristais pretos e verdes. Matt viu os cristais derreterem e borbulharem, e subitamente o quarto se encheu de fumaça amarela. O cheiro de enxofre penetrou em suas narinas. Matt engasgou e seus olhos se encheram d'água. Tentou lamber os lábios, mas a boca estava seca.
Noah se aproximou segurando um prato. A segunda mulher — a que Matt não conhecia — segurava uma cobra. De onde teria vindo? Era marrom e feia, com meio metro de comprimento, e retorcia-se na frente dela. Uma víbora? A mulher tinha pegado um bisturi, do tipo usado por um cirurgião. Matt a viu segurar a cobra pela cabeça e cortá-la. Um líquido vermelho-escuro escorreu, pingando numa taça de metal. A cobra ficou rígida e imóvel.
A Sra. Deverill puxou as cobertas da cama. Matt só estava usando cueca e se encolheu quando ela se inclinou sobre ele. Ela molhou um dedo no sangue da cobra e, em seguida, desenhou uma linha descendo pelo peito de Matt até a barriga. O líquido era quente e pegajoso na pele. Ele tentou se mexer, porém o corpo não obedecia mais. Só podia ficar olhando enquanto a Sra. Deverill fazia uma marca em sua testa.
— Abra a boca — ordenou ela.
— Não... — Matt sussurrou. Tentou se impedir. Mas de repente sua boca estava aberta e a Sra. Deverill o fazia beber da taça. Ele sabia que estava bebendo sangue. O gosto era amargo, mais terrível do que qualquer coisa no mundo. Ia ficar enjoado. Queria botar aquilo para fora, mas em vez disso a coisa deslizou para seu estômago como o fantasma da cobra de onde tinha vindo. E ao mesmo tempo ele foi sugado para trás, para dentro do colchão, para o chão, enterrado vivo até...
Abriu os olhos.
A Sra. Deverill estava no quarto, lendo um livro. Não havia ninguém com ela. A janela aberta deixava a brisa entrar. Matt engoliu em seco. Estava com a cabeça leve. Fora isso sentia-se bem.
— Finalmente acordou — murmurou a Sra. Deverill, fechando o livro.
— O que aconteceu?
— Você esteve doente. Nada muito sério. Pneumonia. Um pouco de pleurisia. Mas agora tudo já passou.
— A senhora me deu alguma coisa para beber... — Matt tentou lembrar, mesmo não querendo. O simples pensamento do que havia acontecido causava repulsa. — Havia uma cobra.
— Uma cobra? Do que está falando? Você andou tendo pesadelos, Matthew. Imagino que seja por assistir demais à televisão.
— Estou com fome.
— Imagino que sim. Você não come há três dias.
— Três dias!
— É o tempo que ficou inconsciente. — Ela se levantou e foi arrastando os pés até a porta. — Vou trazer um pouco de chá. Você pode descansar até amanhã. Depois disso, quero-o de pé. O ar puro vai lhe fazer bem. E, de qualquer modo, está na hora de começar a trabalhar.
Ela o olhou pela última vez, assentiu para si mesma e fechou a porta.
Dois dias depois, Matt estava no chiqueiro dos porcos, com lama fedorenta e imundície quase até os joelhos. A Sra. Deverill tinha falado em ar puro, mas o fedor ali era tão ruim que ele mal conseguia respirar. Fora as botas e luvas que Noah havia lhe dado, ele não tinha nenhuma outra roupa protetora. Os jeans e a camisa logo estavam pingando lama preta. O desinfetante que tinha tomado fazia a garganta queimar e os olhos lacrimejarem.
Abaixou-se com a pá e pegou mais um balde cheio de gosma. Logo seria hora do almoço e ele estava ansioso. Apesar de tudo, a Sra. Deverill era uma boa cozinheira. Quando Matt morava com Gwenda Davis, todas as suas refeições saíam do freezer para o microondas. Ele preferia a comida daqui: pão feito em casa, cozidos suculentos e tortas de frutas com crosta grossa.
Ele havia mudado. Sabia que algo acontecera durante a doença, mesmo não fazendo idéia do que fosse. Era como se um interruptor tivesse sido virado dentro dele. Não sabia explicar, mas sentia-se mais forte e confiante do que nunca.
E isso era bom, porque tinha decidido. Ia fugir. Ainda achava incrível que o projeto LELAS o tivesse mandado a esse lugar esquecido por Deus e o tornado escravo de uma mulher séria que não sorria nunca. Matt não gostava da Sra. Deverill, mas era Noah, o empregado, que realmente lhe provocava arrepios. Em geral Noah ficava no campo, indo de um lado para o outro num velho trator que arrotava fumaça preta. Mas, quando estava perto, não conseguia afastar o olhar de Matt. Vivia espiando-o, como se soubesse de algo que Matt não sabia. Matt se perguntava se ele seria retardado. O sujeito não parecia totalmente humano.
Matt não se importava com o que estava acontecendo, mas sabia que não conseguiria ficar no Solar da Colméia. Não por um ano. Nem mesmo por mais uma semana. Não tinha dinheiro, porém estava certo de que poderia arranjar algum, se procurasse bem. Depois pegaria uma carona ou um trem para Londres. Planejava se libertar na capital e, mesmo tendo ouvido um monte de histórias de horror, tinha certeza de que, de algum modo, conseguiria sobreviver. Em apenas dois anos faria 16 e se tornaria independente. Nunca mais algum adulto lhe daria ordens.
A Sra. Deverill apareceu na porta da casa principal e o chamou. Matt não estava com seu relógio, mas achou que devia ser uma hora, pois ela era sempre pontual. Ele largou a pá e saiu do chiqueiro. A distância, Noah apareceu, trazendo dois baldes de ração para animais. Ele jamais comia na casa. Tinha um quarto no andar de cima do celeiro e era ali que cozinhava, dormia e presumivelmente se lavava — aparentemente não com muita freqüência, já que o sujeito fedia mais do que os porcos.
Matt tirou as botas do lado de fora da porta, entrou na cozinha e lavou as mãos na pia. A Sra. Deverill já estava servindo a sopa de legumes. Havia pão, manteiga e queijo sobre a mesa. Asmodeu estava sentado no aparador. Matt estremeceu. Sentia ainda mais aversão pelo gato do que por Noah — e não só por causa da cicatriz serrilhada na mão. Como Noah, o gato estava sempre vigiando-o. Tinha hábito de aparecer do nada. Matt virava a cabeça e ali estava ele... no galho de uma árvore, num parapeito de janela ou numa cadeira, sempre com seus olhos feios e amarelos fixos nele. Normalmente Matt o ignorava, mas se chegasse perto o gato arqueava as costas e sibilava.
— Fora da cozinha, por favor, Asmodeu — disse a Sra. Deverill.
O gato a entendia perfeitamente. Saltou por uma janela e foi embora.
Matt sentou-se e começou a comer.
— Quero que você faça uma coisa para mim esta tarde, Matthew — disse a Sra. Deverill.
— Estou limpando os porcos.
— Sei o que está fazendo. Um dia você vai aprender que ser grosseiro com as pessoas mais velhas e mais sábias não lhe fará bem nenhum. Na verdade, tenho uma tarefa que talvez lhe agrade. Gostaria que pegasse uma coisa para mim na farmácia em Pequeno Mailing.
— O que a senhora quer que eu pegue?
— É um pacote. Está endereçado a mim. Você pode ir depois do almoço. — Ela levou uma colher de sopa aos lábios. O vapor subiu diante do rosto que jamais sorria. — Há uma velha bicicleta no celeiro que você pode usar. Era do meu marido.
— A senhora já foi casada?
Era novidade para Matt. Não podia imaginar ninguém compartilhando a vida com aquela mulher.
— Por pouco tempo.
— O que aconteceu com seu marido?
— Os jovens não deveriam fazer perguntas. Não é bom para eles. Enfim... — Ela suspirou e baixou a colher. — Henry desapareceu. Esse era o nome dele. Henry Lutterworth. Nós só estávamos casados havia alguns meses quando ele foi passear na floresta e nunca mais voltou. É possível que tenha simplesmente se perdido e morrido de fome. Que isto lhe sirva de lição, Matthew. A floresta aqui é muito densa, e você pode ser engolido facilmente. É bem possível que ele tenha ido parar num pântano. É o que acho. Seria um modo muito desagradável de morrer. Ele teria tentado nadar, mas claro que, quanto mais lutasse, mais depressa afundaria, e a água e a lama subiriam até as narinas, e seria o fim.
Matt não sabia se ela estava falando a verdade ou se queria apenas assustá-lo.
— Se o sobrenome dele era Lutterworth, por que a senhora se chama Deverill?
— Prefiro o meu sobrenome de solteira. O nome dos meus ancestrais. Sempre houve Deverills em Pequeno Mailing. Casados ou solteiros, mantemos nosso nome. — Ela fungou. — Henry deixou o Solar da Colméia para mim, no testamento. Nós tínhamos abelhas, mas todas foram embora. Elas costumam fazer isso quando o dono morre. Eu herdei todo o dinheiro dele. Mas a moral de toda essa história, querido, é que se eu fosse você ficaria longe da floresta. '
— Vou fazer isso.
— Não se esqueça. A farmácia. Basta dizer a eles que é para mim.
Depois do almoço Matt atravessou o pátio da fazenda e entrou no celeiro. Achou a bicicleta atrás de um velho arado. Obviamente não era usada havia anos. Mas ele retirou-a do lugar, engraxou a correia, encheu os pneus e em alguns minutos pôde pedalar para longe da fazenda. Foi boa a sensação de passar pelo portão enferrujado. Embora ainda fosse uma tarefa para a Sra. Deverill, qualquer coisa era melhor do que os porcos.
Enquanto pedalava, um carro veio pelo outro lado e por um momento pareceu que iriam colidir. Era um Jaguar preto com janelas de vidro fumê. Tudo aconteceu tão depressa que Matt nem viu quem estava dirigindo. Virou o guidão, e a bicicleta subiu num monte de urtigas antes de voltar à estradinha. Ele parou e voltou-se para trás. O Jaguar tinha entrado na fazenda. Viu o brilho vermelho das luzes de freio, mas em seguida o carro desapareceu atrás da casa da fazenda. Sentiu-se tentado a retornar. Era o primeiro carro moderno que tinha encontrado desde a chegada ao Solar da Colméia e imaginou se teria vindo por causa dele. Poderia ser alguém de Londres, do serviço social? Hesitou, depois foi em frente. Era a primeira vez que saía da fazenda — seu primeiro gostinho de liberdade. Não voltaria, por enquanto.
Era um quilômetro e meio até o povoado. Matt chegou rapidamente à placa quebrada, onde as cinco estradas se encontravam. A floresta se erguia a toda volta e ele ficou satisfeito por a Sra. Deverill ter mostrado qual deveria pegar, já que todas eram iguais. Nenhum carro passou. Nada se mexia. Matt jamais havia se sentido mais sozinho do que enquanto pedalava. A última parte do caminho era uma subida, e ele teve de se esforçar para levar a bicicleta até o alto. Logo adiante dava para ver as primeiras construções de Pequeno Mailing e alguns instantes depois chegou à praça do povoado.
A Sra. Deverill já o havia alertado de que não havia grande coisa em Pequeno Mailing — e estava certa. O povoado era pequeno e concentrado, com uma igreja sem graça e meio dilapidada um bar chamado O Bode e duas fileiras de lojas e casas viradas uma para a outra, numa área vazia, calçada de pedras. Havia um memorial de guerra no meio, uma laje de pedra cinza gravada com vinte ou trinta nomes. Todas as lojas pareciam cinqüenta anos atrasadas no tempo. Uma delas vendia doces, a outra era uma mercearia, outra oferecia antigüidades. Em uma das extremidades havia um açougue. Matt pôde ver galinhas penduradas pelos pés, com o pescoço partido. Peças de carne, cinzentas e suando, estavam espalhadas no balcão. Um homem grande, barbudo e com avental manchado de sangue brandia um machado. Matt ouviu o metal despedaçando ossos.
Havia poucas pessoas à vista. Quando ele encostou a bicicleta no memorial de guerra, apareceram outras, vindas de todos os lados da praça. Matt sentiu que tinham sido atraídas por ele. Os rostos eram mais curiosos do que receptivos. Viu-os parar, a alguma distância, e sussurrar uns com os outros. Era irritante ser o centro das atenções naquela comunidade esquecida. Não tinha dúvida de que sabiam exatamente quem ele era e por que estava ali.
Uma mulher veio na sua direção e ele pensou tê-la reconhecido. Tinha cabelos compridos e brancos, cabeça minúscula e olhos pretos que podiam pertencer a uma boneca.
Quando a mulher se aproximou viu que ela fora desfigurada por uma marca de nascença. Um dos lados de seu rosto tinha um horrorosa mancha arroxeada. Matt pensou em quando estivera doente. Será que aquela mulher tinha estado no seu quarto no Solar da Colméia? Ela foi até ele.
— Que bom vê-lo de pé, Matthew—disse ela. Tinha uma voz estridente e áspera. Parecia estrangular as palavras no fundo da garganta. — Meu nome é Claire Deverill. Você está hospedado com minha irmã.
Então ele estava certo. Tinha visto a mulher antes.
— Sou a diretora da escola primária aqui de Pequeno Mailing — continuou ela. — Em breve você deverá se juntar a nós.
— Sou velho demais para a escola primária.
— Mas infelizmente é estúpido demais para a secundária. Vi os seus boletins. Você não fazia os deveres. Sabe muito pouco. Não é um bom exemplo para as outras crianças.
Outra mulher — alta e magra — havia aparecido, empurrando um velho carrinho de bebê. As rodas rangiam.
— É este o garoto? — perguntou ela.
— É sim, senhorita Creevy. Claire Deverill deu um sorriso.
Matt olhou para o carrinho. Não havia nenhum bebê. A Srta. Creevy estava cuidando de uma enorme boneca de porcelana. A boneca olhava para Matt com um sorriso congelado e grandes olhos vazios.
— Estou procurando a farmácia — disse Matt.
De repente, só queria sair dali. Estava começando a desejar não ter vindo.
— É ali — Claire Deverill apontou. — Perto da loja de doces.
Mais duas mulheres tinham aparecido do lado mais distante do povoado, diante da igreja. Pareciam espantalhos maltrapilhos, com casacos pretos balançando ao vento. Eram gêmeas idênticas. Ao mesmo tempo um homem baixo e gordo, com tatuagens azuis e verdes nos braços, no rosto e na cabeça, saiu do bar. Estava fumando um cachimbo de barro. Viu Matt e começou a rir. Matt se afastou antes que o sujeito pudesse chegar perto demais.
Na verdade não era surpresa que todo mundo em Pequeno Mailing parecesse meio maluco. Era preciso ser para morar num local tão abandonado, Matt pensou. Havia um laguinho perto da igreja. Matt notou um grupo de crianças alimentando os patos. Foi até elas, mas assim que chegou perto percebeu que não encontraria amigos. Havia um garoto de dez anos com cabelo estranho, esverdeado, e pernas gordas saindo da bermuda. Duas garotas, irmãs, estavam paradas usando vestidos idênticos, antiquados, e marias-chiquinhas. O último garoto tinha uns sete anos e era aleijado, com uma das pernas presa a um suporte de metal. Matt sentiria pena dele, mas quando se aproximou o garoto pegou uma arma de chumbinho e, sorrindo, mirou nos patos. Matt deu um chute rápido, jogando cascalho na água. Os patos fugiram para longe. O garoto atirou e errou.
— Por que você fez isso? — perguntou uma das garotas, contrariada.
— O que vocês estão fazendo?
— Nós damos comida aos patos e Freddy mata eles — disse a outra garota. — É um jogo!
— Um jogo?
— Tiro ao pato! — disseram as garotas em coro. Freddy recarregou a arma. Matt balançou a cabeça, enojado. Deixou as crianças e voltou na direção da farmácia.
A loja não se parecia com nada que ele tivesse visto na vida... um lugar escuro, de cheiro maligno, com filas de estantes de madeira. Havia algumas caixas de comprimido para dor de cabeça e alguns pacotes de sabonete, mas em sua maior parte, as prateleiras estavam cheias de frascos velhos. Alguns continham pós. Outros, ervas secas. Outros guardavam estranhos objetos volumosos flutuando em água turva. Matt leu alguns dos rótulos escritos a mão. Nux Vomica. Acônito. Losna. Não significavam nada para ele. Encontrou um frasco cheio de líquido amarelo e resolveu revirá-lo. Quase gritou quando um olho arrancado flutuou até a superfície, beijando a borda do vidro. O olho fora tirado de uma ovelha ou uma vaca. Fiapos de tecido orgânico flutuavam atrás. Matt sentiu-se enjoado.
— Em que posso ajudá-lo?
Era o farmacêutico; um homem baixo, grisalho, vestindo um velho jaleco branco. O cabelo crescia até embaixo do pescoço e havia mais nas costas das mãos. O sujeito usava óculos pesados e pretos, afundados no nariz de um modo que fez Matt imaginar se ele alguma vez os tirava.
— O que é isso? — perguntou Matt.
— Um olho.
— Por que está aí?
O farmacêutico virou o vidro e examinou o espécime, com seus próprios olhos ampliados pelas lentes.
— O veterinário pediu. — O sujeito pareceu irritado. — Estava fazendo testes.
— Vim pegar uma coisa para a senhora Deverill.
— Ah, sim. Então você deve ser o Matthew. Estávamos ansiosos por conhecê-lo. Todos estávamos muito ansiosos.
O farmacêutico pegou um pequeno embrulho de papel pardo amarrado com barbante.
— Meu nome é Barker. — Espero vê-lo de novo. Num povoado assim é sempre bom ter sangue novo. — O homem entregou o embrulho. —Apareça qualquer hora dessas.
Matt saiu da loja, notando que mais moradores do povoado tinham chegado à praça. Havia pelo menos uma dúzia deles, conversando. Foi rapidamente até a bicicleta. Havia uma bolsa atrás do selim e ele jogou o embrulho dentro. Só queria voltar à estrada, ir para longe do povoado. Mas não seria tão fácil. Enquanto girava a bicicleta uma mão surgiu de repente, segurando o guidão. Matt acompanhou o braço ao qual ela pertencia e se pegou olhando um homem de trinta e poucos anos, com cabelo cor de palha e rosto redondo, avermelhado. Ele vestia um pulôver largo e jeans. Era forte. Dava para ver pela facilidade com que segurava a bicicleta.
— Me solta!
Matt tentou afastar a bicicleta, mas o sujeito continuou segurando.
— Isso não é muito amigável—disse ele. — Qual é o seu nome?
— Por que quer saber?
— Você é Matthew Freeman, certo?
Matt ficou quieto. Os dois ainda seguravam a bicicleta, que havia se tornado uma barreira entre eles.
— Você foi mandado para cá pelo tal programa?
— Isso mesmo. Se já sabe disso, por que pergunta?
— Escute, Matthew Freeman — disse ele de repente. — Você não vai querer ficar neste povoado. Não vai querer ficar em nenhum lugar perto daqui. Está entendendo? Eu não deveria falar com você assim. Mas, se sabe o que é bom, vá embora. Vá o mais longe que puder e não volte nunca. Está ouvindo? Você precisa...
Ele parou. O farmacêutico havia saído da loja e estava olhando os dois, parado junto à porta. O homem soltou a bicicleta de Matt e se afastou depressa. Não olhou para trás.
Matt subiu na bicicleta e pedalou para fora do povoado. À sua frente os pinheiros esperavam, negros e agourentos. Já estava ficando escuro.
SUSSURROS
Matt estava de pé numa torre de pedra brilhante. A escuridão era absoluta, mas de algum modo ele conseguia enxergar. Lá embaixo, longe, as ondas rolavam como se em câmera lenta, densas e oleosas. Havia pedras se projetando para fora, cada uma afiada como navalha. As ondas pairavam e depois se lançavam à frente, despedaçando-se. O vento uivava. Havia uma tempestade furiosa. Lanças de raios serrilhados caíam com estrondo — mas os raios eram pretos e não brancos — e de repente ele percebeu que todo o mundo tinha sido virado ao contrário, como um negativo fotográfico.
A distância dava para ver quatro pessoas paradas numa praia cinza e deserta. Três garotos e uma garota, todos mais ou menos da sua idade. Estavam muito longe para que ele visse os rostos, mas de alguma forma os reconheceu e soube que o estavam esperando. Tinha de chegar até eles; só não havia como. Estava preso em sua torre de rocha. A tempestade aumentava, e agora havia algo escuro e terrível estendendo-se sobre o mar. Uma asa gigante que se dobrava ao redor dele. A garota o chamava.
— Matthew! Matthew!
O vento pegou as duas palavras e jogou-as de lado. A garota implorou, mas o tempo estava se esgotando para ela também. A praia rachou e começou a se partir. Fendas escuras surgiram, com a areia se derramando. As ondas jorravam para dentro delas. Os quatro estavam presos, impossibilitados de se mexer.
— Estou indo! — gritou Matt.
Deu um passo na direção deles e tropeçou, depois girou para a frente e caiu. Gritou. Mas não havia nada para segurá-lo. Tudo girou enquanto ele mergulhava pelo céu noturno, caindo em direção ao mar.
Acordou com um susto.
Estava deitado em sua cama no Solar da Colméia. Podia ver as traves de madeira no teto, as flores secas no vaso sobre a cômoda. Havia uma lua cheia, cuja luz pálida penetrava no quarto. Por um momento, ficou imóvel, pensando no sonho. Tinha sonhado aquilo muitas vezes, não somente no Solar da Colméia, mas antes também. Era sempre igual, a não ser por duas coisas. A cada vez a presença que ele sentia se formando... a asa se dobrando... o que quer que fosse... chegava um pouquinho mais perto de assumir forma. E a cada vez ele acordava alguns segundos mais tarde, alguns centímetros mais perto do fim da queda. Imaginou o que aconteceria caso não acordasse a tempo.
Olhou o relógio, virando-o na direção da janela para verificar a hora. Era quase meia-noite. Tinha ido para a cama às dez. O que o havia acordado? Estivera exausto pelo trabalho do dia e deveria ter dormido a noite toda.
E então escutou.
Era fraco e distante, no entanto bastante claro, trazido pelo silêncio da noite. Vinha da floresta, deslizando sobre as pontas prateadas das árvores, sob o luar.
Um sussurro.
A princípio Matt achou que não passava do vento roçando nos galhos. Mas não estava ventando. E, quando afastou as cobertas e sentou-se na cama, ouviu outro som. Estava por baixo dos sussurros, constante e imutável. Um fraco zumbido eletrônico. Os sussurros pararam, depois recomeçaram. O zumbido continuou.
Mesmo contra a vontade, Matt sentiu os pêlos da nuca começando a se arrepiar. Os sons eram distantes, mas a coisa horrível é que podiam vir de algum lugar dentro da casa. Estavam a toda volta. Ele saiu da cama e foi até a janela.
A lua deslizou para trás de uma nuvem e por um momento tudo ficou escuro. Mas havia uma luz. Na escuridão ao redor, em algum lugar não muito longe da borda da floresta, podia-se ver um brilho fraco. A luz estava sendo engolida pelas árvores, pressionada por todos os lados, mas alguns feixes haviam escapado pelas aberturas entre os galhos e se espalhado, raios frios e brancos evaporando no ar. Era elétrica... não era luz de fogo. E parecia vir do mesmo lugar que o som.
Quem estaria lá? O que poderia estar acontecendo no meio de uma floresta em Yorkshire — e teria algo a ver com o alerta que havia recebido naquela tarde?
Você não vai querer ficar em nenhum lugar perto daqui. Está entendendo?
De repente Matt quis saber — e quase antes de perceber o que fazia, tinha vestido as roupas, aberto a porta e saído. Parou um momento, prestando atenção a qualquer som dentro da casa. O quarto da Sra. Deverill ficava no fim do corredor. A porta estava fechada. Matt nunca tinha visto o interior do quarto dela. Supôs que a mulher estaria dormindo. Ela sempre ia para cama exatamente às nove e meia. A última coisa que ele queria era acordá-la. Movendo-se com mais cuidado, desceu a escada na ponta dos pés e chegou à sala. Mais uma vez, o retrato da ancestral da Sra. Deverill o observou enquanto ele ia à porta da frente. Os olhos quase pareciam acompanhá-lo. O rosto era sombrio e cheio de segredos.
Fazia frio no quintal. Nada se mexia. Agora Matt podia ouvir os sussurros com mais clareza. Podia até identificar algumas palavras... não que elas fizessem qualquer sentido.
OSSOVO ... AJESO ... DACIFIT... NASU ... EÇON ... SATSE
Os sons estranhos dançavam ao seu redor enquanto ele estava ali parado, sozinho na noite. Eram sussurros humanos, percebeu. Humanos e ao mesmo tempo fantasmagóricos. Imaginou o que fazer. Parte dele queria pegar a bicicleta e tentar chegar mais perto; parte queria voltar para a cama e esquecer tudo aquilo. E então viu algo que deveria ter notado imediatamente.
O carro da Sra. Deverill não estava ali.
O Land Rover ficava sempre estacionado no mesmo lugar, perto do celeiro. Estivera ali na hora do jantar. Teria ela saído do Solar da Colméia? Estaria na floresta, fazendo parte do que acontecia lá? Estaria Matt sozinho na fazenda?
Voltou à sala. O retrato foi a primeira coisa que ele notou — e desta vez soube que não era sua imaginação: sem dúvida, tinha mudado pela segunda vez. A figura havia levantado uma das mãos e um dedo esquelético apontava para cima, como se ordenando que ele fosse para a cama. Matt tinha certeza de que o retrato não era pintado assim.
Matt subiu — mas não para seu quarto. Precisava saber se estava certo, mesmo morrendo de medo do que precisava fazer. Esgueirou-se até o fim do corredor e bateu de leve na porta da Sra. Deverill. Não houve resposta. Bateu pela segunda vez, mais forte. Depois abriu a porta.
Pegou-se diante de um quarto frio, vazio, com tábuas cruas no piso e uma cama de ferro. A cama estava vazia. Ele estava certo. A Sra. Deverill havia saído. Pelo menos Matt ganhara a oportunidade de que precisava.
Já havia decidido que voltaria a Londres. Agora sabia que a fuga seria esta noite. Ao amanhecer teria chegado à estrada e pegaria carona para o sul. Não tinha dúvida de que a Sra. Deverill ligaria para a polícia. Quanto mais longe ele conseguisse chegar, mais difícil seria encontrá-lo. Assim que chegasse a Londres, estaria em segurança. Mas precisava de dinheiro. O dinheiro era a diferença entre a sobrevivência e o perigo constante. Precisaria comprar comida. Precisaria arranjar um quarto. Devia haver dinheiro na casa. Teria de encontrá-lo agora e furtá-lo.
Começou pela cozinha. Não se importando mais com o barulho, revirou as gavetas e os armários, abriu vidros e caixas, tentando adivinhar onde a Sra. Deverill guardava o dinheiro da casa. Ainda podia ouvir os sussurros, embora fossem mais pausados agora. Estaria terminando? Olhou o relógio. Uma e quinze. Moveu-se mais depressa, com medo de que a mulher voltasse a qualquer momento. Não havia dinheiro ali. Procurou a bolsa dela. Uma bolsa significaria dinheiro e talvez cartões de crédito. Mas ela devia tê-la levado.
Tentou na sala. Agora, o retrato parecia observar com raiva enquanto ele procurava, olhando atrás dos livros e embaixo das poltronas, na esperança de que a Sra. Deverill pudesse ter enfiado a bolsa em algum lugar. Matt não tinha acendido as luzes. Noah ainda podia estar no celeiro e ele sentia medo de se revelar. Ia olhar em volta da lareira quando uma coisa gritou para ele, fazendo-o recuar com o coração martelando. Era Asmodeu, o gato da Sra. Deverill. O bicho, que estivera dormindo numa poltrona, achava-se de pé, como se eletrocutado, o pêlo arrepiado, olhos chamejantes. Abriu a boca e sibilou, revelando presas brancas. Matt ficou parado. O gato ia atacá-lo, tinha certeza. Já estava se preparando, as garras das duas patas traseiras rasgando o pano, antecipando o que faria com o rosto dele.
Matt olhou em volta. Havia um atiçador perto da lareira; um negócio pesado e antigo. Pensou em pegá-lo, mas não tinha certeza se conseguiria se obrigar a usá-lo. O rabo do gato balançou brevemente. Seus olhos jamais se afastavam do garoto. Ele tinha ousado abusar da hospitalidade da Sra. Deverill e agora ia pagar. O gato sibilou pela segunda vez e saltou.
Matt, porém, estava preparado. Havia um cesto grande ao lado do atiçador. Normalmente conteria lenha, mas pela primeira vez estava vazio. Matt o agarrou e jogou no instante em que o gato saltava da poltrona. Ouviu gritos e guinchos terríveis, sentiu as garras batendo desesperadamente na jaula de palha. Matt bateu o cesto contra a poltrona, prendendo o gato dentro. A Sra. Deverill tinha uma máquina de costura antiquada, que estava no chão, ao lado da poltrona. Usando toda a força, com uma única mão, Matt pegou-a e pôs em cima do cesto. A palha estalou. O gato se lançou com força contra a lateral. Mas o cesto agüentou. Asmodeu não iria a lugar algum.
Matt se empertigou. Estava tremendo de susto pelo que acabara de acontecer. E de repente percebeu outra coisa. Nenhum som vinha da floresta. Os sussurros haviam parado. Até agora não tinha encontrado nada e estava ficando sem tempo.
Só restava um cômodo.
Voltou para cima e entrou no quarto da Sra. Deverill. Sem dúvida encontraria dinheiro lá. Abriu o guarda-roupa. As roupas da Sra. Deverill espreitavam no escuro, penduradas em cabides de arame com os sapatos embaixo. Matt já ia fechar a porta quando notou uma caixa de papelão na parte de trás. Inclinou-se e abriu-a. Havia algo dentro. Não era dinheiro. Eram fotografias.
Pegou uma delas e se viu olhando para um cemitério. A fotografia era em preto-e-branco, tirada com uma teleobjetiva. Havia um grupo de pessoas vestidas com as roupas sérias de sempre e, no meio delas, um garoto de oito anos. Matt o reconheceu imediatamente, com uma sensação de horror e enjôo. Ele estava olhando uma foto dele próprio.
Era o enterro de seus pais.
Seis anos antes.
Mas era impossível. Ninguém havia tirado fotos. E, mesmo que um jornalista ou fotógrafo tivesse passado lá, o que a foto estaria fazendo aqui? Como a Sra. Deverill a havia conseguido?
Havia duas folhas de papel presas à foto com um clipe. Matt soltou-as, depois virou-as para poder lê-las. Era um relatório oficial da polícia. Em todas as páginas estava escrito CONFIDENCIAL, em letras vermelhas. Matt tentou se concentrar nas palavras à meia-luz.
E O TESTEMUNHO DA SRA. ROSEMARY GREEN COM RELAÇÃO A ESTE CASO NÃO DEVE SER DIVULGADO.
RECOMENDAMOS TOTAL ISOLAMENTO DA MÍDIA.
A CRIANÇA, MATTHEW FREEMAN, TEM APENAS OITO ANOS E DEMONSTROU CAPACIDADES PRECOGNITIVAS QUE PARECEM ESTAR ALÉM.
Capacidades precognitivas. Matt não queria colocar as palavras em linguagem simples. Nem queria continuar lendo o relatório. Naquele segundo tomou a decisão. Jogou a caixa de volta no canto, fechou as portas do armário e saiu. Na sala, o retrato observava em silêncio. Asmodeu se lançava repetidamente contra o cesto, tentando escapar. Matt não notou nenhum dos dois. Abriu a porta e saiu correndo pelo jardim.
Não tinha encontrado nenhum dinheiro, mas precisaria se virar assim mesmo.
Era definitivamente hora de partir.
Ele teve de pedalar apenas alguns minutos até a encruzilhada. A noite havia esfriado e a respiração de Matt virava fumaça quando ele parou perto da placa quebrada para se orientar. Tinha cinco estradas à sua escolha, cada uma atravessando a floresta numa direção diferente. Uma, ele sabia, levava a Pequeno Mailing. Como viera da fazenda por outra, restavam apenas três. Escolheu a do meio e partiu, agradecendo à luz por mostrar o caminho. Não havia qualquer som vindo da floresta. As luzes elétricas tinham sido desligadas. Seu maior medo era dar de cara com a Sra. Deverill voltando de onde quer que estivesse. Tentou ouvir o som do Land Rover, mas não havia nada. Estava absolutamente sozinho.
Tentou se concentrar no que estava fazendo. Não queria olhar para a floresta, mas não conseguia se impedir de perceber que ela o rodeava por todos os lados. Os troncos das árvores, arrumados em suas linhas absolutamente retas, ficavam em silhueta contra a lua. Eram como as barras sólidas de uma gigantesca prisão ao ar livre. Os galhos, balançando ligeiramente, lançavam mil sombras no chão. As agulhas de pinheiro farfalhavam e pareciam quase sussurrar umas com as outras enquanto ele pedalava.
Matt manteve os olhos fixos na estrada à frente. Pretendia pedalar a noite toda. A descoberta da fotografia o deixava determinado. Simplesmente teria de se arriscar em Londres. Sem dinheiro. Sem abrigo. A polícia provavelmente acabaria o encontrando, mas isso não importava. Eles poderiam colocá-lo num Centro Seguro de Instrução pelo tempo que quisessem... qualquer coisa que não envolvesse a Sra. Deverill ou Pequeno Mailing.
Por que ela possuía uma foto sua no armário? Como tinha posto as mãos num relatório secreto da polícia? E o que a morte de seus pais significava para ela? Era um pensamento horrível. E ele imaginou se a Sra. Deverill saberia a seu respeito antes mesmo de ser apresentada ao programa LELAS. Nesse caso, será que, de algum modo, ela poderia tê-lo escolhido? Mas isso sugeriria que a mulher estivera planejando o que quer que acontecia em Pequeno Mailing havia anos e anos e que, de algum modo, ele sempre fizera parte disso.
Bem, para o diabo todos eles. Sua tia, sua assistente social, Mallory, a Sra. Deverill... Ele tinha sido controlado por tempo demais. Era hora de começar a cuidar de si mesmo. Talvez conseguisse emprego na cozinha de alguma pensão. Parecia velho para a sua idade. Com a expressão fechada, pedalou com força, obrigando a velha bicicleta a avançar. Ele olhou o relógio: Duas horas da madrugada! Ele ficou surpreso de quanto tempo já tinha se passado desde que saíra da fazenda.
Havia uma encruzilhada se aproximando adiante. Matt diminuiu a velocidade, deixando as rodas livres nos últimos metros. Olhou ao redor. Havia cinco direções para escolher e uma placa quebrada, sem nome algum. Demorou meio minuto para perceber onde estava. De algum modo, a estrada que tinha escolhido o levara de volta, num grande círculo. Retornara exatamente ao ponto de partida.
Sentiu raiva de si mesmo. Tinha perdido tempo e uma energia preciosa. A Sra. Deverill já devia estar de volta ao Solar da Colméia. Devia ter encontrado o gato sob o cesto e podia ter verificado o quarto de Matt. A polícia podia estar a caminho.
Trincando os dentes, Matt escolheu uma das outras estradas e pedalou de novo. Estava começando a desejar que tivesse esperado até de manhã. Não. Seria posto para trabalhar na fazenda, e Noah e a Sra. Deverill estavam sempre vigiando-o. Concentrou-se no ritmo, pé esquerdo e pé direito, ouvindo a bicicleta gemer e estalar embaixo dele. As árvores sucediam-se interminavelmente. Cerca de vinte minutos se passaram. Matt era forte e estava novamente em forma, depois da doença. Havia uma dor oca nas pernas, mas afora isso sentia-se bem. A estrada fez uma curva.
Ele parou.
Estava de volta na encruzilhada. Era impossível. A estrada que estivera seguindo era reta e ele devia ter percorrido pelo menos três quilômetros. Olhou incrédulo para a placa quebrada. Era a mesma. Não havia dúvida.
Agora sentia raiva. Isso acontecer uma vez era azar. Mas duas! Era estúpido. Virou a bicicleta e seguiu pela quinta estrada, a mais distante. Desta vez pedalou mais depressa, forçando os pedais, usando a raiva para aumentar a força. A brisa noturna passava sobre seus ombros, esfriando o suor na lateral da cabeça. Uma nuvem cobriu a lua e de repente tudo ficou muito escuro. Matt não diminuiu a velocidade. A nuvem se abriu. Matt parou, incapaz de acreditar no que estava acontecendo.
De algum modo a quinta estrada tinha se transformado na primeira. Elas o haviam trazido de volta ao início. A placa quebrada estava ali, zombando dele.
Muito bem. Partiu na direção de onde tinha vindo, passando pelo Solar da Colméia. Esta estrada tinha de dar em algum lugar diferente. Passou pelo portão o mais rápido possível. Não havia luzes visíveis no fim do caminho que acabava na fazenda. Talvez a Sra. Deverill ainda não tivesse voltado. A estrada subia íngreme — mas isso era bom. Um morro, pelo menos, era algo diferente. Nenhuma das outras estradas tinha subido ou descido. Matt não se importava mais para onde ia. Só queria encontrar uma estrada principal. Estava cheio daquela floresta, cheio das estradinhas de terra.
Chegou ao topo do morro e parou. Pela primeira vez sentiu medo de verdade. Estivera pedalando havia quase uma hora, mas ainda não tinha chegado a lugar algum.
Estava de volta à encruzilhada onde havia começado.
Matt ofegava. Suas mãos seguravam o guidão com tanta força que o sangue não conseguia chegar aos dedos. Ficou parado um momento, pensando nas opções. Não tinha nenhuma. Ou a noite vinha lhe pregando peças ou algo que ele não entendia estava acontecendo. Mas agora sabia que, mesmo que pedalasse a noite inteira, não iria a lugar algum.
Teria de se arriscar com a Sra. Deverill. Virou a bicicleta e pedalou devagar de volta à fazenda.
ÔMEGA UM
— Ele esteve no meu quarto ontem à noite — disse a Sra. Deverill. Estava falando ao telefone. O aparelho era antiquado e pesado, feito de plástico preto. Um fio grosso afastava-se de sua mão, enrolado. — Acho que encontrou as fotos.
— Foi um erro mantê-las aí.
— Talvez. Mas há outra coisa que me preocupa. Matthew parece mais forte do que quando chegou aqui. Acho que pode estar começando a deduzir as coisas. Não gosto de ficar com ele aqui. Se você quer saber, nós estamos segurando um tigre pelo rabo. Deveríamos cuidar dele antes que seja tarde demais.
Era uma voz de homem no outro lado da linha. Falava de um modo muito frio e deliberado. Uma voz educada. Talvez de um diretor de uma cara escola particular.
— Como assim? — perguntou ele.
— Trancá-lo. Há uma cripta na igreja. Poderíamos colocá-lo lá, no subterrâneo, em algum lugar onde ninguém iria encontrá-lo. São só mais algumas semanas. Então estaríamos livres dele.
— Não. — A resposta era definitiva. — Neste momento o garoto acha que é uma pessoa comum. Não faz idéia de quem, ou o quê, ele seja. Se você enterrá-lo vivo pode ajudá-lo a se descobrir. E o que acontecerá se a polícia e os assistentes sociais vierem fazer uma visita? Como você vai explicar onde ele está?
— E se ele fugir...
— Você sabe que ele não pode fugir. O garoto está contido por nós. Não pode fazer nada. E logo estaremos preparados. Você só precisa vigiá-lo. Onde ele está agora?
— Não sei. Em algum lugar do jardim...
— Vigie-o, senhora Deverill. Não o deixe longe das vistas. Houve um estalo e a linha caiu. A Sra. Deverill balançou o
telefone numa das mãos e o desligou.
— Asmodeu! —gritou.
O gato, sentado no braço de uma poltrona do outro lado do quarto, abriu um olho e espiou-a.
— Você ouviu — disse ela rispidamente. — O garoto...
O gato pulou da poltrona. Sem esforço saltou num parapeito de janela e foi para fora. Lá, Noah empurrava um carrinho de mão cheio de esterco. O gato passou correndo por ele e continuou pela estradinha. Um instante depois desapareceu das vistas.
Matt parou à beira da floresta, olhando por um túnel de árvores. A bicicleta estava caída de lado, num trecho coberto de capim à beira da estrada. Cinco minutos tinham se passado desde que havia se esgueirado por Noah e saído do Solar da Colméia. Mas ainda não conseguia se decidir.
Sentia-se tentado de novo a achar o caminho para Londres. Devia ter se confundido durante a noite. Não pudera ver para onde ia e de algum modo tinha perdido a direção. Mas uma voz interior o alertou para não experimentar as estradas pela segunda vez. Não queria passar mais tempo andando em círculos — e de qualquer modo havia outro modo de sair. A participação no projeto LELAS tinha de ser voluntária. Bastaria um simples telefonema ao detetive-superintendente Mallory.
Mas antes de fazer isso queria saber mais. O que seriam os sons que tinha escutado na noite anterior? O que estaria acontecendo na floresta? Havia apenas um modo de descobrir.
Tinha identificado o ponto onde pensou ter visto a luz. Devia ser algum lugar que ficava à frente dele agora. Mas não queria sair da estrada. Não era a história que a Sra. Deverill tinha contado... duvidava que houvesse alguma chance de ir parar num pântano. Era a floresta em si que o amedrontava; seu jeito não-natural, a retidão das linhas. A natureza não crescia assim. Como ele poderia encontrar o caminho quando cada pinheiro era exatamente igual ao outro, quando não havia morros, plantas diferentes ou riachos para servir de orientação? E outra coisa: os corredores entre as árvores pareciam continuar para sempre, estendendo-se até um universo escuro pertencente a eles próprios. A escuridão o esperava. Matt era como uma mosca na borda de uma teia enorme.
Tomou uma decisão. Saiu da estrada e deu vinte passos para a frente, seguindo um único caminho. As agulhas de pinheiros faziam barulho sob os pés. Desde que não virasse à esquerda ou à direita, ficaria bem. Deixaria que as árvores o guiassem. E se pensasse que estava se perdendo, simplesmente seguiria o mesmo caminho de volta à estrada.
No entanto... Parou para recuperar o fôlego. Era realmente extraordinário. Sentia-se como se tivesse entrado num espelho entre duas dimensões. Na estrada tinha sido uma manhã fresca e luminosa de primavera; a atmosfera na floresta era estranhamente calorenta e pegajosa. Raios de luz do sol, de um verde profundo e intenso, inclinavam-se em direções diferentes. Na estrada tinha ouvido o canto de pássaros e uma vaca mugindo. Na floresta tudo estava silencioso... como se o som fosse proibido de entrar.
Percebeu que deveria ter trazido uma bússola. No mínimo poderia ter trazido algo para ajudá-lo a encontrar o caminho de volta: uma faca ou uma lata de tinta. Lembrou-se de uma história que tinha ouvido na escola. Um cara grego — Teseu ou sei lá quem — tinha entrado num labirinto para achar uma criatura que era meio homem e meio touro. O Minotauro. Ele recebeu uma bola de lã, que foi desenrolando, e assim encontrou o caminho de volta. Matt deveria ter feito o mesmo.
Deu meia-volta e, contando em voz alta, refez os vinte passos que tinha dado.
A estrada não estava ali.
Era impossível. Olhou para a floresta. As árvores se estendiam interminavelmente. Olhou à esquerda e à direita. A mesma coisa. Deu mais cinco passos. Mais árvores, todas idênticas, indo até onde a vista alcançava... e mais ainda. A estrada havia desaparecido como se nunca tivesse estado ali. Ou isso ou, de algum modo, as árvores tinham crescido. Era o que parecia. A floresta artificial estava a toda volta. Tinha-o capturado e jamais iria soltá-lo.
Respirou fundo, contou vinte passos para a frente, virou à esquerda e andou mais dez. Ainda não havia estrada. Não importava em que direção olhasse via sempre a mesma coisa: troncos altos e estreitos e agulhas verde-escuras. Corredores sombrios no meio. Cem direções diferentes, mas sem escolha verdadeira. Matt ficou parado, esperando ouvir um carro indo para Pequeno Mailing. Isso ia ajudá-lo a encontrar a estrada. Mas nenhum carro passou. Um corvo crocitou em algum lugar lá no alto. De resto, o silêncio era denso como névoa.
— Ótimo!
Gritou a palavra porque queria ouvir o som da própria voz. Mas nem parecia que era ele falando. A voz soou pequena e débil, abafada pelas árvores imóveis ao redor.
Foi andando. O que mais poderia fazer? Suas pisadas eram macias no leito de agulhas, medindo o progresso para lugar nenhum. Olhando para cima, mal podia ver o céu através das copas verdes. Estava ficando com raiva e cansado daquilo tudo. As estradas tinham feito exatamente o mesmo truque na noite anterior. Mas pelo menos eram estradas. Isto era muito, muito pior.
Um brilho prateado atraiu seu olhar, algo inesperado no meio de tanto verde. O sol estava se refletindo em alguma coisa por trás de uma parede de árvores a pouca distância. Com um jorro de alívio, Matt se virou para lá, deixando um caminho e seguindo outro. Porém, se achava que tinha descoberto a saída, estava errado. Não havia caminho para a frente. Viu-se junto a uma alta cerca, enferrujada em algumas partes, mas intacta. O prateado que notara era o arame. A cerca tinha pelo menos seis metros de altura. O topo era cheio de pontas de aço. Ia para a esquerda e a direita, curvando-se no que deveria ser um círculo gigantesco.
Havia uma clareira atrás da cerca e, no centro desta, uma grande construção ao mesmo tempo ultrapassada e futurística. Era dividida em duas partes. A parte principal era retangular, feita de tijolos cinza, com dois andares e janelas — metade delas quebrada — ocupando toda a extensão. Parte dos tijolos estava rachada, com mato e hera crescendo nas frestas. Obviamente aquilo estava ali havia muito tempo. Matt achou que o prédio teria uns trinta ou quarenta metros de comprimento. Caberia bem num campo de futebol.
Mas foi a segunda parte do prédio que atraiu sua atenção. Pintada de branco e com pelo menos trinta metros de altura, parecia uma gigantesca bola de golfe, pousada no chão como se tivesse rolado para ali. Seria um observatório? Não. Não havia fenda para um telescópio na cúpula. De fato não existia nenhuma janela. A bola também fora manchada pelo tempo e pelas condições climáticas. A tinta branca estava descolorida e em alguns lugares parecia ter contraído algum tipo de doença. Mas mesmo assim era impressionante. Era a última coisa que ele esperaria encontrar no meio de uma floresta.
Uma passagem de tijolos, com uma porta central e sem janelas, ligava as duas partes. Seria a entrada principal? Imaginou se poderia chegar mais perto. Não tinha idéia do que seria aquilo. Seria bom descobrir.
Virou à esquerda e seguiu a cerca por uns cinqüenta metros. Depois de um tempo a floresta recuou e ele chegou a um portão duplo, trancado com um cadeado grande preso a uma corrente grossa e enferrujada. Num dos lados do portão havia uma placa, com as palavras em tinta vermelha desbotada sobre um quadrado de madeira se descascando.
ÔMEGA UM
PROPRIEDADE DO GOVERNO DE SUA MAJESTADE
OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS.
Ômega um. Agora, Matt imaginava se poderia ter uso militar. A placa dizia que era propriedade do governo. Do Ministério da Defesa? Examinou brevemente o portão. Era velho, mas o cadeado era novo, significando que alguém tinha estado ali recentemente. De jeito nenhum Matt conseguiria abri-lo. Olhou para cima e viu arame farpado enrolado no topo. Não dava.
Com curiosidade crescente, continuou rodeando a cerca, torcendo para encontrar uma árvore em que pudesse subir. Em vez disso achou algo melhor. Havia um buraco na cerca, onde vários arames tinham se enferrujado e caído. O buraco tinha apenas o tamanho suficiente para ele passar espremido. Olhou o relógio. A manhã estava quase acabando, mas ele tinha muito tempo.
Tinha se inclinado e já ia passar quando alguém o agarrou e o fez girar.
— O que está fazendo aqui? — perguntou uma voz.
O coração de Matt disparou. Depois do tempo sozinho na floresta não tinha imaginado, sequer por um minuto, que haveria mais alguém ali. Seu punho já estava fechado num movimento de defesa, mas então reconheceu o cabelo claro e o rosto infeliz do homem que o havia abordado em Pequeno Mailing. — o que o alertara para ir embora.
— Eu me perdi — disse Matt, relaxando levemente. — Que lugar é este?
Ele sinalizou para o prédio do outro lado da cerca.
— Uma usina de eletricidade.
Matt examinou o sujeito mais atentamente, notando que agora ele estava carregando uma espingarda, com os dois canos dobrados sobre o braço.
— Você não devia estar aqui — disse o sujeito.
— Eu já disse. Fiquei perdido. Estava procurando...
— O que você estava procurando?
— Vi luzes na floresta. Ontem à noite. Fiquei imaginando o que seria.
— Luzes?
— E ouvi alguma coisa. Barulhos estranhos, uma espécie de zumbido. Por que não diz o que está acontecendo por aqui? O senhor me avisou para ir embora.
— Por que não foi?
— Eu tentei. — Matt parou por aí. Não estava disposto a explicar o que havia acontecido nas estradinhas iluminadas pelo luar. —O senhor estava me alertando contra o quê? Por que todo mundo em Pequeno Mailing é tão esquisito?
O homem pareceu relaxar um pouco, mas seus olhos permaneceram alerta. Pousou uma das mãos no cano da arma.
— Meu nome é Burgess. Tom Burgess. Sou fazendeiro. Dono da Fazenda Glendale, perto da estrada de Grande Mailing.
— E o que está fazendo aqui? O senhor vigia este lugar?
— Não. Estou caçando. Esta floresta é cheia de raposas. À noite elas vão roubar minhas galinhas. Vim pegar algumas.
Ele deu um tapinha na arma.
— Não ouvi nenhum tiro.
— Não vi nenhuma raposa. Matt olhou de novo para o prédio.
— O senhor disse que este lugar é uma usina de eletricidade. — De repente a forma começou a lhe parecer mais familiar. Tinha visto fotos na escola. — É uma usina nuclear?
Burgess confirmou com a cabeça.
— Que diabo isso faz aqui?
— Nada. — O fazendeiro deu de ombros. — Era experimental. O governo pôs isso aqui há muito tempo. Antes de começarem a construir as de verdade. Estavam procurando fontes alternativas de energia, por isso construíram a ÔMEGA Um. Quando terminaram todas as experiências, fecharam o lugar de novo. Agora está vazia. Não há nada dentro. Ninguém chega perto há anos.
— Havia gente ali ontem à noite. Eu vi luzes. E ouvi.
— Talvez estivesse imaginando coisas.
— Não tenho tanta imaginação assim. — Matt estava com raiva. — Por que não diz a verdade? O senhor falou que eu estava correndo algum tipo de perigo. Disse para eu fugir. Mas não posso fugir se não souber do que estou fugindo. Por que não diz o que sabe? Estamos em segurança aqui. Ninguém pode escutar.
O fazendeiro claramente lutava consigo mesmo. Matt podia ver que ele queria falar. No entanto, por mais forte que fosse, e mesmo armado, o sujeito continuava com medo.
— Como você poderia começar a entender? — disse finalmente. — Quantos anos você tem?
— Quatorze.
— Você não devia estar aqui. Escute. Só cheguei a este lugar há um ano. Tinha um dinheirinho. Sempre quis possuir um lugar meu. Se soubesse... Se fizesse a mínima idéia.
— Se soubesse o quê?
— A senhora Deverill e o resto deles...
— O que é que tem? O que eles estão fazendo?
Houve um farfalhar no mato baixo, seguido por um rosnado. Matt se virou e viu um animal aparecer, saindo de umas Samambaias a alguns metros de distância. Era um gato com os olhos chamejantes, a boca arreganhada revelando as presas. Mas não era qualquer gato. Ele reconheceu os olhos amarelos, o pêlo sujo.
Relaxou.
— Tudo bem. É só o gato. Deve ter me seguido até aqui. Mas o rosto do fazendeiro tinha ficado branco. Em um
instante, havia engatilhado a arma e levado-a ao ombro. Antes que Matt pudesse impedi-lo, ele puxou o gatilho. Houve uma explosão. O gato não teve chance. Tom Burgess tinha esvaziado os dois canos, e as bolinhas de chumbo arrancaram o pêlo do bicho, fazendo-o dar um horrível salto-mortal no capim, como uma bola preta que cuspia vermelho.
— Por que fez isso? — exclamou Matt. — Não era uma raposa. Era só um gato de fazenda.
— Só um gato? — 0 fazendeiro balançou a cabeça. — Era Asmodeu. O gato da senhora Deverill.
— Mas...
— Não podemos conversar. Aqui, não. Agora, não.
— Porquê?
— Há coisas acontecendo... coisas em que você não acreditaria. — A cor ainda não tinha voltado ao rosto do fazendeiro. Suas mãos estavam trêmulas. — Escute-me! — sussurrou. — Venha à minha fazenda. Amanhã de manhã, às dez horas. Fazenda Glenwood. Fica na estrada de Grande Mailing. Vire à esquerda quando sair do Solar da Colméia. Você consegue encontrar?
— Sim. — Então Matt lembrou. — Não. Tentei achar o caminho por aquelas estradas, mas elas não parecem levar a lugar algum. Só fui parar de novo onde tinha começado.
— Isso mesmo. Você só pode ir aonde eles quiserem que você vá.
— Como assim?
— É difícil demais explicar. — Burgess pensou por um momento. De repente levantou a mão e segurou uma tira de couro amarrada ao pescoço. Matt ficou olhando enquanto ele a passava pela cabeça. O homem estendeu a tira e Matt viu uma pequena pedra redonda — um talismã — pendurada, e na pedra, um símbolo gravado em ouro. O contorno de uma chave.
— Use isso — disse Burgess. — Não peça para eu explicar, mas você não vai se perder se estiver usando. Venha à minha casa amanhã. Eu lhe digo tudo que você quiser saber.
— Por que não agora?
— Porque não é seguro. Para nenhum de nós. Eu tenho um carro. Venha à minha casa e nós vamos embora juntos.
Tom Burgess se afastou, encaminhando-se à fileira de árvores.
— Espere um minuto! — gritou Matt. — Não sei como sair da floresta!
Burgess parou, virou-se e apontou.
— Olhe embaixo dos seus pés — gritou. — Você está na estrada.
E foi embora.
Matt examinou o chão ao redor. Havia uma linha de asfalto preto, praticamente invisível no meio do mato baixo e das agulhas de pinheiro. Teria de segui-la cuidadosamente, mas pelo menos aquilo o levaria para fora. O talismã de pedra ainda estava em sua mão. Passou um dedo pela chave, imaginando se seria ouro de verdade. Depois pendurou-o no pescoço, certificando-se de que estivesse escondido sob a camisa.
Dez minutos depois viu-se de novo na estrada principal. Examinou cuidadosamente a entrada para Ômega Um. Era uma mera abertura entre duas árvores numa fileira de quinhentas. Tinha passado de bicicleta sem sequer saber que ela estava ali, e seria quase impossível encontrá-la de novo. Tirou o casaco, rasgou um pedaço da camiseta e amarrou o pano num galho. Recuou e examinou o trabalho. A minúscula bandeira azul-clara que acabara de criar, mostraria o caminho de volta, caso ele precisasse encontrá-lo. Satisfeito, vestiu o casaco de novo e partiu para pegar a bicicleta.
Chegou ao Solar da Colméia cerca de quarenta minutos depois. Era quase meio-dia. Noah trabalhava na lateral do celeiro, pintando-o com creosoto. Matt podia sentir o cheiro de substância química no ar. A Sra. Deverill devia estar na casa, preparando o almoço.
Espanando algumas agulhas de pinheiro do casaco, Matt foi até a porta da frente. Estava estendendo a mão para a maçaneta quando parou e recuou com um tremor de incredulidade.
Asmodeu estava ali, sentado no parapeito da janela, lambendo uma das patas. Ao ver Matt, ele ronronou de modo ameaçador e, de repente, pulou, desaparecendo dentro da casa. O gato não estava morto. Nem mesmo machucado.
TINTA FRESCA
Matt não dormiu bem naquela noite. Tinha muitas perguntas sem resposta na cabeça, e o fato de Tom Burgess ter prometido respondê-las o deixava tenso e inquieto. Mal podia esperar para descobrir a verdade, mas era exatamente o que precisava fazer naquele momento. Em vez disso, continuou se revirando na cama estreita enquanto o céu ficava cinza, depois prateado e finalmente azul. As manhãs na fazenda começavam normalmente com o café, às sete horas. A Sra. Deverill já estava na cozinha quando ele desceu.
— Então, o que aconteceu com você ontem? — perguntou ela.
Estava de casaco azul-claro, vestido cinza sem graça e botas de cano alto. Todas as roupas que ela usava no Solar da Colméia pareciam ter vindo de um bazar de caridade.
— Fui dar um passeio.
— Um passeio? Onde?
— Por aí.
A Sra. Deverill tirou uma panela do fogão e derramou uma sopa grossa em duas tigelas.
— Não lembro de você ter pedido permissão.
— Não lembro de a senhora ter dito que eu precisava pedir. Os olhos da Sra. Deverill se estreitaram.
— Não estou acostumada a falarem comigo desse modo — murmurou. Depois deu de ombros, como se isso não importasse. — Só estava pensando em você, Matthew. Se olhasse o material do projeto LELAS, veria claramente que eu devo saber onde você está o tempo todo. Odiaria ter de informar que você violou as regras.
— Pode informar o que quiser.
Ela pôs as duas tigelas na mesa e sentou-se diante dele.
— Há muito trabalho para fazer hoje. O trator precisa ser lavado. E precisamos de um pouco de lenha cortada.
— Como quiser, senhora Deverill.
— Exatamente. — Os lábios cinzentos se comprimiram em algo parecido com um sorriso. — Como eu quiser.
Eram nove horas, uma hora antes do combinado para se encontrar com Tom Burgess. Matt estava trabalhando no trator, lavando-o como fora mandado. Pela qüinquagésima vez olhou em volta e assegurou-se de que estava sozinho. Noah se encontrava do outro lado do celeiro consertando alguns canos. A Sra. Deverill fora alimentar os porcos. Nenhum deles o vigiava e não havia sinal de Asmodeu. Matt largou a mangueira, fechou a torneira e esperou até o último pingo de água cair no chão. Ninguém apareceu. Tinha deixado a velha bicicleta no pátio, bem acessível. Esgueirou-se até ela e, segurando o guidão, empurrou-a para fora da fazenda. Sair pedalando faria barulho demais.
Um minuto depois passou pelo portão e pegou a estradinha. Olhou para trás com uma sensação de alívio. Tinha sido muito mais fácil do que havia pensado.
Fácil demais? Lembrou-se do modo como a Sra. Deverill havia sorrido para ele na cozinha. Na hora imaginara se ela saberia mais do que dava a entender. O tempo todo tinha a sensação de que ela estava brincando com ele, e a fotografia e o relatório da polícia encontrados no quarto dela só haviam confirmado a suspeita. A mulher sabia quem ele era. Matt estava mais certo disso do que nunca. Ele fora escolhido de propósito.
Montou na bicicleta e começou a pedalar, virando à esquerda como Tom Burgess tinha dito. Na última vez em que havia tentado isso a estrada simplesmente o trouxera de volta ao começo. Mas desta vez era diferente. Estava usando o talismã que o fazendeiro lhe dera. Levantou a mão e sentiu-o de encontro ao peito. Não entendia como uma pedra com uma gravura de chave podia fazer alguma diferença. Era apenas uma das muitas perguntas que pretendia ver respondidas.
A estrada ia subindo, mas não havia cruzamento no topo. Em vez disso ela continuava por uma série de campos. Um muro baixo de pedras também subia e descia adiante. Matt chegou a uma placa em perfeitas condições que dizia: GRANDE MALLING, 6 KM. Olhou para ela. Era a primeira lembrança de que havia um mundo de verdade fora do solar da colméia, e ele não tinha idéia de como não a havia notado, ao fazer aquele caminho há duas noites.
Encontrou a Fazenda Glendale com facilidade. Havia uma curva cerca de quatrocentos metros adiante, e o nome estava pintado em letras de um azul vivo num portão branco. Enquanto Matt pedalava pelo caminho ladeado de flores que se desviava da estrada principal, pensou em como o lugar parecia mais acolhedor do que o Solar da Colméia. Os celeiros e estábulos eram limpos e organizados, junto de um belo lago. Um cisne deslizava na água, com o reflexo tremulando ao sol da manhã, enquanto uma família de patos passeava pelo gramado. Uma vaca ruminava capim, mugindo contente num cercado ali perto.
A casa, em si, era de tijolos vermelhos, com belas venezianas brancas e teto de ardósia cinza. Parte do teto estava coberta de plástico, pois o fazendeiro estivera realizando consertos. Num canto, havia um velho cata-vento — um galo de ferro fundido olhando para os quatro pontos cardeais. Hoje estava virado para o sul.
Matt desceu da bicicleta, atravessou o pátio até a porta da frente e puxou uma corrente de metal para tocar um sino na varanda. Era cedo. Nove e meia. Esperou, depois tocou de novo. Não houve resposta. Talvez Tom Burgess estivesse trabalhando no celeiro. Matt foi até lá e olhou para dentro. Havia um trator e várias ferramentas, uma pilha de sacos e alguns fardos de feno... mas nenhum sinal do fazendeiro.
— Senhor Burgess? — gritou.
Silêncio. Nada se mexeu.
Mas o fazendeiro tinha de estar ali. Seu carro, um Peugeot, estava parado na entrada. Matt voltou à porta da frente e virou a maçaneta. A porta se abriu.
— Senhor Burgess? — chamou de novo. Não houve resposta. Matt entrou.
A porta da frente dava direto na sala principal. Havia uma grande lareira de um lado, com um par de atiçadores de bronze e uma pequena pá encostados à grade. O fogo evidentemente estivera aceso durante a noite—as cinzas continuavam espalhadas na lareira. A sala estava uma bagunça. Mesas viradas, livros e papéis espalhados no chão. Todas as venezianas estavam abertas, algumas partidas ao meio. O pé de Matt encostou num pote de tinta; pegou-o e pôs de lado.
A cozinha parecia pior. Todas as gavetas estavam abertas e o conteúdo espalhado por toda parte. Havia pratos e copos quebrados e, no meio da mesa da cozinha, uma garrafa de uísque pela metade, tombada de lado. Matt levantou a cabeça. Uma enorme faca de carne tinha sido cravada num armário da cozinha, lâmina penetrando na madeira. O cabo estava inclinado na direção dele. Parecia estranho e ameaçador.
Agora cada fibra de seu ser lhe dizia para dar o fora dali, mas Matt não conseguia. Sentiu-se compelido a seguir pela escada estreita e retorcida que subia a partir da cozinha. Antes que soubesse o que estava fazendo, chegou à metade, com medo do que poderia encontrar no topo, porém ainda incapaz de se controlar. Só era esperado dali a meia hora. Talvez Tom Burgess ainda estivesse dormindo. Era o que dizia a si mesmo. Mas, de algum modo, não acreditava.
A escada levava a um patamar com três portas. Cuidadosamente abriu a mais próxima.
Dava num quarto — e esse quarto estava em pior estado do que tudo que ele vira lá embaixo. Parecia revirado por um redemoinho. As roupas de cama encontravam-se emboladas e torcidas sobre o tapete. As cortinas tinham sido arrancadas da janela e um vidro fora despedaçado. Uma mesinha-de-cabeceira havia sido tombada, jogando no chão um abajur, um despertador e uma pilha de livros de bolso. O armário fora aberto, todas as roupas arrancadas dos cabides e jogadas num monte no canto. Uma lata de tinta verde tinha virado e derramado o conteúdo no meio da bagunça.
Então Matt viu Tom Burgess.
O fazendeiro estava caído no chão, do outro lado da cama, parcialmente coberto por um lençol. Obviamente morto. Alguma coisa — algum tipo de animal — havia rasgado seu rosto e seu pescoço. Havia medonhos talhos vermelhos na pele, e o cabelo claro achava-se sujo de sangue. Os olhos estavam arregalados, fora de foco, e a boca escancarada numa última tentativa de gritar. As mãos estavam rígidas e retorcidas numa tentativa frenética de afastar alguma coisa. Uma delas tinha os dedos grudados por tinta verde. As pernas estavam dobradas embaixo do corpo de um modo que permitiu a Matt perceber que os ossos haviam se quebrado.
Matt recuou, ofegando. Pensou que fosse vomitar. De algum modo conseguiu forçar os olhos a se afastarem e então viu a mensagem pintada na parede atrás da porta. Nos últimos instantes de sua vida o fazendeiro tinha conseguido rabiscar três palavras usando a mão manchada de tinta:
PORTAL DO CORVO
Enquanto lia, Matt recuava para fora do quarto. Fechou a porta e desceu a escada correndo. Lembrou-se de ter visto um telefone na cozinha. Pegou o fone e discou o número da polícia com um dedo que não parava de tremer. Não havia sinal. A linha tinha sido desligada.
Jogou o fone longe e saiu da casa. No instante em que chegou ao jardim, vomitou. Nunca tinha visto um cadáver, muito menos um corpo retorcido, torturado, como o de Tom Burgess... Esperava nunca mais ver um de novo. Notou que estava tremendo. Assim que se sentiu forte o suficiente, começou a correr. Tinha se esquecido da bicicleta. Só queria sair dali.
Correu pela entrada da fazenda até chegar À estrada principal, indo na direção de Grande Mailing. Devia ter corrido pelo menos oitocentos metros quando caiu, num trecho de grama, e ficou deitado. A respiração fazia a garganta arder. Não restavam forças para continuar. E de que adiantava? Não tinha pais nem amigos. Ninguém se importava com ele. Ia morrer em Pequeno Mailing e ninguém se importaria.
Não sabia quanto tempo ficara deitado, mas finalmente o som de um carro se aproximando chegou aos seus ouvidos. Sentou-se e olhou pela estrada. O carro era branco, com tração nas quatro rodas e uma placa no teto. Matt deu um suspiro de alívio. Era um carro da polícia. Pela primeira vez na vida era algo que ele realmente queria ver.
Levantou-se e foi para o meio da estrada com os braços erguidos. O carro da polícia reduziu a velocidade e parou. Dois policiais saíram e andaram até ele.
— Qual é o problema? — perguntou o primeiro. Era gorducho, de meia-idade, com testa alta e cabelos ralos e pretos.
— Você não deveria estar na escola? — perguntou o outro. Era o mais novo dos dois, magro e parecendo um garoto, com cabelos castanhos curtos.
— Houve um assassinato — disse Matt.
— O quê? O que você falou?
— Um homem chamado Tom Burgess. É fazendeiro. Mora na Fazenda Glendale. Acabo de vir de lá.
As frases saíam curtas e entrecortadas. Matt achava difícil costurar as palavras.
Os dois policiais permaneceram incrédulos.
— Você o viu? — perguntou o mais velho. Matt confirmou com a cabeça.
— Ele estava no quarto.
— O que você foi fazer lá?
— Nós tínhamos marcado de nos encontrar.
— Qual é o seu nome?
Matt sentiu a impaciência crescendo. O que havia de errado com aqueles homens? Tinha acabado de achar um cadáver. O que importava seu nome? Obrigou-se a se acalmar.
— Meu nome é Matt. Estou morando com Jayne Deverill no Solar da Colméia. Conheci Tom Burgess. Ele me pediu para visitá-lo. Estive lá agora mesmo. E ele está morto.
O policial mais velho parecia mais cheio de suspeitas do que nunca, mas seu parceiro deu de ombros.
— Nós acabamos de passar pela Fazenda Glendale. Talvez devêssemos dar uma olhada.
O outro pensou por um momento e depois assentiu.
— Certo. — E se virou para Matt. — É melhor vir conosco.
— Não quero voltar lá! — exclamou Matt.
— Você pode esperar no carro. Vai ficar tudo bem. Com relutância Matt subiu no banco de trás do carro da polícia e deixou que os dois policiais o levassem de volta ao lugar de onde tinha vindo. Trincou os dentes quando entraram na fazenda. O carro diminuiu a velocidade, com as rodas fazendo barulho no cascalho.
— Isso aqui parece bastante calmo — disse o mais velho. Ele se virou para encarar Matt. — Onde você o viu?
— Em cima. No quarto.
— Tem alguém aqui — disse o policial mais novo.
Matt olhou pela janela. O policial estava certo. Uma mulher tinha aparecido no jardim ao lado da casa. Era alta e magra, com cabelos grisalhos desarrumados, caindo até os ombros. Reconheceu-a. Era uma das mulheres que ele conhecera em Pequeno Mailing. Ela estava, empurrando um carrinho de bebê. Como era mesmo o nome? Creasey. Ou Creevy. Tinha saído da casa com um cesto de roupas lavadas e estava pendurando-as num varal. Matt não conseguiu entender o que acontecia. Ela estivera dentro da casa, e certamente tinha visto o estado dos cômodos. Será que não havia subido?
Os dois policiais saíram do carro. Cada vez mais inquieto, Matt os acompanhou. A mulher os viu chegando e parou o que estava fazendo.
— Boa tarde — disse ela. — Em que posso ajudar?
— Sou o sargento Rivers — disse o policial mais velho. — Este é o policial Reed. Quem é a senhora?
— Sou Joanna Creevy. Ajudo Tom Burgess no trabalho doméstico. Há algo de errado? — Pela primeira vez, ela pareceu notar Matt. — Matthew? O que está fazendo aqui? — E fez um muxoxo. —Você não se meteu em encrenca, foi?
Matt a ignorou.
— Isto é um tanto difícil de explicar — começou o sargento. — O fato é que encontramos este garoto na estrada.
— Você deixou sua bicicleta aqui, Matthew — disse a mulher. — Achei que devia ter vindo fazer uma visita.
— Matthew afirma que Tom Burgess pode ter se envolvido em algum tipo de acidente — continuou o sargento.
— Não foi acidente — interrompeu Matt. — Ele foi morto. Retalhado. Eu vi...
A mulher olhou para Matt, depois soltou uma gargalhada.
— Isso é impossível. Eu vi Tom há dez minutos. Vocês se desencontraram dele por pouco. Foi ver as ovelhas no curral mais distante.
Os policiais se viraram para Matt.
— Ela está mentindo — disse Matt. — Ele não foi a lugar nenhum há dez minutos. Eu vim aqui há pouco tempo, e ele estava morto.
— Isso é uma coisa terrível de se dizer — murmurou a Srta. Creevy. — Tom está ótimo. E aqui estou eu, pendurando as meias dele!
— Vão olhar no quarto — disse Matt.
— É. Façam isso — assentiu a mulher.
Foi então que Matt começou a se preocupar. Ela parecia confiante, um passo à frente dele. Rivers concordou com hesitação.
— É melhor resolvermos isso.
Todos entraram na casa e Matt deu uma olhada. Embora o lugar ainda estivesse uma bagunça, a Srta. Creevy—ou alguém — tinha feito uma arrumação, eliminando a maioria das provas. Os livros e papéis tinham sido retirados. As venezianas estavam fechadas de novo. E a faca fora tirada do armário da cozinha... embora o buraco deixado por ela continuasse ali. Subiram.
— Vocês me desculpem a bagunça — disse a Srta. Creevy. — Tom está fazendo uma reforma e eu ainda não tive tempo de começar o trabalho.
Chegaram ao corredor. A porta do quarto estava fechada, como Matt deixara. Ele não queria entrar. Achava que não suportaria olhar o corpo pela segunda vez. Mas agora não podia recuar.
O sargento Rivers abriu a porta.
Havia um homem no quarto, usando um macacão branco sujo de tinta verde, Tudo estava diferente. Os lençóis e cobertores tinham sido tirados do chão e a cama estava encostada na parede. As cortinas tinham sido penduradas e, apesar de uma das janelas continuar quebrada, não havia sinal de cacos de vidro. As roupas espalhadas tinham desaparecido. Assim como o corpo de Tom Burgess. O homem viu os dois policiais e parou o trabalho.
— Bom-dia — disse ele.
— Bom-dia, senhor. — O sargento deu uma rápida olhada em volta. — Quem é você?
— Sou Ken. Ken Rampton. — Tinha vinte e poucos anos, era magro, com rosto dissimulado e cabelos claros encaracolados. Quando sorriu, Matt viu que um dos dentes da frente fora cortado na metade, diagonalmente. — Posso ajudá-los?
— Há quanto tempo você está aqui?
— A manhã inteira. Cheguei mais ou menos às oito.
— Você trabalha para Tom Burgess?
— Estou ajudando na reforma.
— Você o viu hoje?
— Mais ou menos há uns 15 minutos. Ele veio ver como estava o trabalho. Depois foi... fazer alguma coisa com as ovelhas.
— Foi o que eu acabei de dizer — reiterou a Srta. Creevy. Matt sentiu o sangue subir às bochechas.
— Ele está mentindo — insistiu. — Os dois estão. Eu sei o que vi. — De repente lembrou-se. — Tom Burgess deixou uma mensagem.
Ele se virou e fechou a porta para revelar o que estava atrás. Mas a parede, que antes era branca, fora pintada de verde. E as palavras que o fazendeiro tinha escrito haviam sumido.
— Cuidado — disse Ken Rampton. — Tinta fresca... O sargento Rivers chegou a uma decisão.
— Não vamos mais ocupar seu tempo. — Em seguida, pôs a mão no ombro de Matt. — Quanto a você, acho que devemos trocar uma palavrinha lá fora.
A Srta. Creevy os acompanhou escada abaixo e seguiram até a entrada. Matt se perguntou se os policiais iam prendê-lo. Na verdade, percebeu que era exatamente o que queria. Se o prendessem, talvez fosse levado de volta a Londres. Talvez esse tipo de comportamento significasse que ele poderia dar adeus ao programa LELAS. Mas antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, a Srta. Creevy se adiantou:
— Será que posso falar uma coisa em particular com o senhor, sargento?
Os dois conversaram por cerca de dois minutos. O sargento olhou umas duas vezes na direção dele e assentiu. A mulher deu de ombros e abriu as mãos. O sargento voltou até eles.
— Você devia saber que desperdiçar tempo da polícia é uma coisa muito séria — disse ele.
— Estou dizendo a verdade.
— Não quero mais saber disso, por favor. — O policial tinha decidido. Matt podia ver. Mordeu a língua. — Soube que você já esteve encrencado antes. Você participa do projeto LELAS, certo? Devia se considerar sortudo. Não acredito pessoalmente nessa coisa de boas ações, se quer saber a verdade. Você é um ladrão, e seria melhor ficar trancafiado, onde não possa fazer mais mal. Mas a decisão não é minha. O tribunal o mandou para cá, e se você tivesse tino, ficaria agradecido e pararia de atrair atenção. Agora vamos parar com esse absurdo. Não quero ver nem ouvir falar de você outra vez.
Matt viu os policiais irem embora. Virou-se. A mulher sorria para ele. Seu cabelo comprido e grisalho balançava à brisa. Houve um movimento junto à porta, e Ken Rampton apareceu, com o pincel ainda na mão. Não disse nada. Mas também estava sorrindo. O carro da polícia tinha ido embora.
— Volte para o Solar da Colméia — disse a mulher. — A senhora Deverill está esperando.
— Que ela vá para o inferno! Matt pegou a bicicleta.
— Você não pode fugir de nós, Matthew. Não há nenhum lugar aonde ir. Certamente você já deve ter notado.
Matt a ignorou. Ajeitou a bicicleta, para partir.
— Não há nenhum lugar aonde ir— repetiu a mulher numa voz aguda.
Ken Rampton começou a rir.
Matt montou na bicicleta e pedalou o mais rápido que pôde.
QUESTÕES LOCAIS
Grande Mailing tinha se transformado de um povoado pequeno e bonito numa cidade grande e feia. Ainda restavam algumas lembranças do que o lugar já fora: um laguinho, uma fileira de asilos, um bar do século dezesseis. Mas as estradas tinham chegado, cortando de todos os lados e se juntando em esquinas barulhentas. Novas casas haviam substituído as antigas. Escritórios e estacionamentos haviam brotado, seguidos por cinemas, supermercados e uma barulhenta estação de ônibus. Tornara-se um lugar ordinário. Um lugar pelo qual as pessoas passavam a caminho de outro.
Matt havia demorado uma hora pedalando da Fazenda Glendale até ali. Metade do tempo sentira medo de que a estrada fizesse mais um truque e o depositasse em algum lugar onde ele não gostaria de estar. Mas continuava usando o talismã de pedra que Tom Burgess havia lhe dado. De algum modo a pequena chave de ouro tinha destrancado o labirinto de estradinhas e permitido que ele chegasse ali.
Matt parou diante de uma lavanderia automática. Ocorreu-lhe que alguém poderia roubar a bicicleta, mas não se importou. Não precisaria dela outra vez.
Procurava uma estação ferroviária e um trem para Londres. Ele tinha decidido ir para o mais longe possível da Yorkshire e nunca mais voltar. Mas não havia estação. A linha até Grande Mailing fora fechada havia anos e, se ele quisesse ir de trem, teria que ir até York. Encontrou um guarda de trânsito e perguntou sobre ônibus para lá. Eram dois por dia. O próximo só sairia às três da tarde. Restavam quatro horas para matar o tempo.
Andou sem rumo pela rua principal e se pegou diante de uma biblioteca — um prédio moderno que já parecia velho, com paredes sujas, feitas de argamassa misturada com pedrinhas e janelas de molduras enferrujadas. Matt pensou por um momento. Entrou por uma porta giratória e subiu uma escada que tinha uma placa onde estava escrito Referência. Viu-se num salão amplo e muito iluminado, com cerca de uma dúzia de estantes arrumadas ao longo das paredes, uma fileira de computadores e um balcão de informações, onde havia um rapaz sentado lendo um livro de bolso.
Alguma coisa maligna, alguma coisa muito perigosa estava acontecendo no povoado de Pequeno Mailing. De algum modo isso envolvia muitos moradores, a Sra. Deverill, uma usina nuclear abandonada e algo chamado Portal do Corvo. Também envolvia Matt. Era isso que mais o irritava. Ele fora escolhido. Tinha certeza. E antes de deixar Yorkshire estava decidido a descobrir por quê.
Portal do Corvo. Era a única pista que possuía. Era por onde tinha decidido começar.
Começou com os livros da seção de história local. A biblioteca tinha cerca de uma dúzia de livros sobre Yorkshire, e metade trazia breves referências a Grande e Pequeno Mailing. Nenhum, porém, mencionava nada chamado Portal do Corvo. Um dos livros pareceu mais promissor. Matt levou-o para uma mesa. Chamava-se Passeios nos arredores de Pequeno Mailing e fora escrito — havia muito tempo, a julgar pela capa antiquada e as páginas amareladas — por uma mulher chamada Elizabeth Ashwood. Ele abriu o livro e passou os olhos pelo índice. Tinha encontrado. O capítulo seis era intitulado Portal do Corvo.
Matt foi virando as páginas e chegou ao capítulo sete. Voltou e encontrou o capítulo cinco. Mas o capítulo seis não estava ali. Uma borda serrilhada e um buraco indicavam a razão: alguém tinha arrancado todo o capítulo. Seria apenas um ato aleatório de vandalismo ou fora feito deliberadamente? Matt achou que sabia.
Lembrou-se de que a biblioteca oferecia mais do que livros e foi até o sujeito no balcão de informações.
— Preciso usar a Internet — disse ele.
— Para quê?
— É um trabalho de escola. Temos de descobrir alguma coisa sobre o Portal do Corvo.
— Nunca ouvi falar.
— Nem eu. Por isso quero acessar a Internet.
O homem apontou e Matt foi até o computador mais próximo. Havia uma garota clicando com o mouse na mesa ao lado, mas ela o ignorou. Matt entrou num site de buscas e digitou:
PORTAL DO CORVO
Lembrou-se das palavras rabiscadas em tinta verde na parede do fazendeiro. De novo viu o morto, o corpo despedaçado, os olhos arregalados e vazios.
Apertou ENTER.
Houve uma pausa breve e surgiu uma lista de resultados na tela. Matt viu que a busca havia listado mais de 12 mil sites possivelmente relacionados a corvos e a portais, mas nenhum era sequer minimamente relevante. Havia um time de futebol americano, os Corvos de Baltimore, cujos jogadores tinham saído por um portal. Havia um parque chamado Portal Dourado, também na América, onde observadores de pássaros tinham avistado uma variedade de corvos. Aparentemente os corvos também andavam fazendo ninhos no Portal de Kaleyard, em Chester. Mas não havia nenhum Portal do Corvo... nem na primeira página, nem na segunda, nem mesmo na terceira. Matt percebeu que teria de examinar todos os 12 mil resultados. Levaria horas. Tinha de haver outro modo.
Já ia desistir quando subitamente uma janela se abriu na tela do computador diante dele.
> Quem é você?
Matt olhou as três palavras flutuando no quadrado branco. Não havia como saber de onde tinham vindo.
Não sabia o que responder, então digitou de volta:
> Quem é vc?
Apertou ENTER. Houve uma pausa e...
> Sanjay Dravid.
Matt esperou um momento, imaginando o que aconteceria em seguida.
> Você fez uma busca sobre o Portal do Corvo. Qual é seu campo de pesquisa?
Campo de pesquisa? Matt não sabia como responder. Inclinou-se para a frente e digitou.
> Quero saber o que ele é.
> Quem é você?
> Meu nome é Matt.
> Matt de quê?
> Você pode me ajudar?
Houve uma longa pausa e Matt se perguntou se a pessoa do outro lado — Sanjay Dravid — teria ido embora. Estava perplexo. Como Dravid sabia que ele estava fazendo a busca? Sua investigação teria disparado algum tipo de alarme na rede? Então a tela piscou de novo.
> Adeus.
E isso foi tudo. Mais nada apareceu na janela e depois de um tempo Matt desistiu. Voltou ao balcão de informações.
O sujeito ergueu o olhar do livro de bolso.
— Sim?
— Há alguma redação de jornal em Grande Mailing? —. Uma redação...? — Ele pensou. — Há a Gazeta. Eu não chamaria de jornal. Eles não publicam nenhuma notícia. Há também o Yorkshire Post.
— Onde fica o Yorkshire Post?
— Em York. Se você quer uma redação local, terá de tentar a Gazeta mesmo. Fica na rua Farrow. Mas duvido que possam ajudá-lo com um trabalho de escola.
Matt demorou um instante para entender o que o sujeito estava dizendo. Depois se lembrou da mentira que tinha contado para usar o computador.
— Posso tentar — disse ele.
A rua Farrow era um resquício da Idade Média. Estreita e sinuosa, atulhada de latas de lixo cheias de garrafas e latas. Quando saiu da rua principal, Matt se perguntou se o sujeito da biblioteca teria cometido algum erro. Parecia o último lugar para se montar uma redação de jornal, afastado do resto da cidade, num canto sujo e esquecido. Mas quase na metade do caminho chegou a uma fileira de lojas. Primeiro havia uma funerária. Depois uma agência de viagens. E finalmente um prédio decaído, de tijolos vermelhos e com três andares. Uma placa de plástico perto da porta informava: Gazeta de Grande Mailing.
A porta dava numa área aberta, no térreo, onde uma garota nova e de cabelos crespos sentada atrás de uma mesa comia um sanduíche, digitava num computador e falava num microfone com fone de ouvido conectado ao telefone. Parecia ser a recepcionista e secretária dos três jornalistas que estavam atrás dela. Eram duas mulheres e um homem. Matt ficou pasmado ao ver como todos pareciam entediados. Uma das mulheres bocejava continuamente, coçando a cabeça e olhando para o espaço. A outra estava meio adormecida. O homem brincava com um lápis e olhava para a tela do computador como se esperasse que a matéria em que estava trabalhando se escrevesse sozinha.
— Em que posso ajudá-lo?
Era a recepcionista que tinha falado. Matt achou que ela estivesse falando ao telefone, mas percebeu que a garota olhava para ele.
— Quero falar com alguém que esteja por dentro das questões locais.
— Você mora aqui?
— Estou hospedado em Pequeno Mailing. A garota se inclinou para trás.
— Richard! —gritou ela. Tinha uma voz nasalada, meio gemida. — Tem alguém aqui para falar com você.
O homem que estivera brincando com o lápis ergueu a cabeça.
— O que é?
— Esse garoto aqui. Quer falar com você.
— Ah. Certo.
O sujeito se levantou e veio preguiçosamente até Matt. Tinha vinte e poucos anos, vestia camisa listrada e jeans largos e desbotados. Seu rosto era sério e inteligente... o tipo de rosto que Sherlock Holmes devia ter na juventude. O cabelo era curto, louro e desalinhado. Não fazia barba havia pelo menos dois dias. E aparentemente não trocava a camisa também. Tudo nele era descuidado: as roupas, o cabelo, o modo como ficava de pé.
— O que você quer? — perguntou o sujeito.
— Preciso de ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Estou tentando descobrir uma coisa.
— Porquê?
— É um trabalho de escola.
— Que escola você freqüenta? Isso pegou Matt de surpresa.
— Estudo em Pequeno Mailing — mentiu. Nem sabia o nome da escola.
— E está fazendo um trabalho?
— É.
— Experimente a biblioteca.
— Já tentei. Eles me mandaram aqui.
— Bem, não posso ajudar. — O jornalista deu de ombros. — Estou ocupado.
— Não parece.
— Bem, eu estava ocupado quando você chegou.
— Ocupado fazendo o quê?
— Ocupado me ocupando. Certo? Matt se obrigou a ficar calmo.
— Bem, talvez eu possa ajudá-lo. Você é jornalista. Talvez eu tenha uma história.
— Uma história?
— Talvez tenha.
— Certo. Vamos lá para cima.
O jornalista levou Matt por uma porta e subiram uma escada até o primeiro andar, até uma sala de reuniões que dava para a rua Farrow. A sala não era grande coisa, mas para Matt já estava óbvio que aquele jornal também não era grande coisa. Havia oito cadeiras arrumadas em volta de uma mesa, um quadro para apresentações e um bebedouro.
— Está com sede? — perguntou o jornalista. Matt confirmou com a cabeça.
O rapaz pegou um copo de plástico e encheu. Matt viu uma única bolha de ar subir por dentro da água. Pegou o copo. A água estava morna.
— Meu nome é Richard Cole — disse o jornalista, sentando-se à mesa.
Em seguida pegou um bloco e o abriu numa página em branco.
— Eu sou Matt.
— Só Matt?
— Isso.
— Você disse que estava hospedado em Pequeno Mailing:
— É. Você conhece?
Richard deu um sorriso desanimado.
— Já estive lá. Eu deveria cobrir o local. Eu, Kate e Julia, as garotas que você viu lá embaixo, cada um de nós tem seu território. Fiquei com Pequeno Mailing. Que sorte!
— Por que sorte sua?
— Porque nada acontece nunca. Tenho 25 anos. Estou trabalhando neste fim de mundo há 18 meses. E sabe qual a maior notícia que já cobri? MIOPIA MATA VELHINHA.
— Como alguém pode morrer de miopia?
— Ela caiu no rio. Tivemos uma exposição de cães em Grande Mailing na semana passada. As pulgas eram mais interessantes do que os cachorros. Uma vez recebi uma multa de estacionamento. Quase coloquei na primeira página. — Ele largou o bloco e bocejou. — Veja bem, Matt, este é um dos lugares mais chatos da Inglaterra... talvez de todo o mundo. Não passa de uma cidadezinha comercial que nem tem um comércio decente. Nada acontece nunca.
— Então por que está aqui?
— Boa pergunta. — Richard suspirou. — Estudei três anos na Universidade de York. Só queria ser jornalista. Fiz um curso em Londres. Pensei em entrar no Mail ou no Express, ou talvez só trabalhar como freelancer. Mas não há empregos. Não consegui sobreviver em Londres, por isso pensei em voltar para o norte. Talvez conseguir um emprego no Yorkshire Post. Eu moro em York. Gosto de York. Mas o Yorkshire Post não me quis. Acho que causei má impressão na entrevista.
— O que aconteceu?
— Bati no carro do editor. Não foi minha culpa. Estava atrasado. Dei marcha a ré e ouvi um baque. Só soube que era ele quando o conheci, dez minutos depois. — Richard deu de ombros. — Depois ouvi dizer que havia uma vaga aqui e, apesar de Grande Mailing ser obviamente uma lata de lixo, resolvi aproveitar a oportunidade. Quero dizer, era um emprego. Mas ninguém lê a Gazeta. Por isso, afora os anúncios, só há porcaria nela. VIGÁRIO ABRE AS PORTAS DA NOVA IGREJA. Isto é numa semana. Na semana seguinte... CIRURGIÃO LOCAL ABRE VIGÁRIO. É patético. E estou preso aqui até que aconteça alguma coisa, mas nada acontece, portanto estou... Preso! — Richard se ajeitou na cadeira. — Você disse que tinha uma história! — Ele estendeu a mão para o bloco e o abriu. — É a única coisa que pode me tirar daqui. Um bom e velho furo jornalístico. Me dê algo que eu possa colocar na primeira página e eu lhe dou qualquer ajuda que você queira. Você está hospedado em Pequeno Mailing?
— Eu já disse...
— Onde exatamente?
— Numa fazenda. Um lugar chamado Solar da Colméia. Richard rabiscou o nome.
— Então: qual é a história?
— Não sei se você vai acreditar.
— Vamos ver.
Richard se empertigou. Estava parecendo mais interessado e atento.
— Certo.
Matt não tinha muita certeza daquilo. Só fora à Gazeta para perguntar sobre o Portal do Corvo. Mas havia algo no jornalista que parecia inspirar confiança. Decidiu ir em frente. Contou a Richard tudo que havia acontecido desde sua chegada a Pequeno Mailing. Descreveu a primeira visita à cidade e à farmácia, o encontro com Tom Burgess, as luzes e os sussurros na floresta, o tempo passado com a Sra. Deverill, o segundo encontro com o fazendeiro e a descoberta do cadáver no quarto.
— ...e é por isso — concluiu — que estou tentando descobrir o que é o Portal do Corvo. Só pode ser algo importante. Tom Burgess morreu tentando me avisar.
— Ele morreu. Mas o corpo sumiu.
— É.
Houve um breve silêncio e nesse momento Matt viu que tinha perdido tempo. O jornalista estivera tomando notas no começo, mas depois de alguns minutos parou. Matt olhou o bloco: a página, escrita pela metade, tinha o desenho de um cachorro e uma pulga embaixo. Era óbvio que Richard não tinha acreditado em nenhuma palavra que ele dissera.
— Quantos anos você tem? — perguntou Richard.
— Quatorze.
— Você assiste muito à televisão?
— Não tem televisão no Solar da Colméia. Richard pensou um momento.
— Você não disse como chegou aqui. Só disse que uma mulher, Jayne Deverill, está a sua procura.
Esta era a única parte da história que Matt havia deixado de fora. O ferimento do segurança e sua participação no projeto LELAS. Sabia que, se contasse ao jornalista quem era, acabaria na primeira página da Gazeta... mas pelos motivos errados. Era a última coisa que desejava.
— Onde estão seus pais? — perguntou Richard.
— Não tenho pais. Eles morreram há seis anos.
— Sinto muito. Matt deu de ombros.
— Eu me acostumei — disse, mesmo não sendo verdade.
— Bem, olha...
Agora Richard tinha menos certeza. Sentia pena de Matt e não queria dizer o que ia dizer. Ou simplesmente estava tentando achar um modo mais gentil de dizer. — Sinto muito, Matt. Mas tudo que você contou é uma completa...
— O quê?
— Besteira. Estradas que fazem círculos. Olhares estranhos dos moradores do povoado! Fazendeiros que estão mortos num minuto e desaparecem no outro! Puxa, o que você espera? Sei que eu disse que queria uma história. Mas não falava de um conto da carochinha!
— E quanto às luzes na usina elétrica?
— Certo. Sim. Já ouvi falar da Ômega Um. Foi construída há uns cinqüenta anos. Era uma espécie de protótipo... antes de construírem usinas nucleares em outras partes do país. Mas foi fechada antes de eu nascer. Não há nada lá agora. É só uma casca vazia.
— Uma casca vazia que Tom Burgess estava vigiando.
— É o que você diz. Mas não tem certeza de nada.
— Ele sabia de alguma coisa. E foi morto. Houve um longo silêncio.
Richard largou a caneta. Ela rolou pela mesa e parou perto do bloco.
— Você parece um garoto legal, Matt. Mas a polícia foi lá e não havia nada. Talvez, só talvez, você tenha imaginado a coisa toda.
— Imaginei um cadáver? Imaginei as palavras escritas na parede?
— Portal do Corvo? Nunca ouvi falar de Portal do Corvo.
— Bem, se você não ouviu falar, obviamente isso não deve existir! — disse Matt, com sarcasmo. Mais uma vez estava com raiva. — Certo, senhor Cole. Dá para ver que perdi meu tempo vindo aqui. É como você diz. Nada jamais acontece em Pequeno Mailing. Mas tenho a sensação de que, se acontecesse, você não notaria. Não sei em que me envolvi, mas tudo que contei é verdade e, se quer saber, estou ficando apavorado. Então talvez um dia, quando eu aparecer flutuando de cara para baixo num rio da região, talvez você decida que vale a pena investigar. E vou logo dizendo: não terei morrido de miopia.
Matt se levantou e saiu da sala batendo a porta. A garota de cabelos crespos, que estava subindo, ficou surpresa. Ele a ignorou. Vir ao jornal tinha sido uma completa perda de tempo. Ainda tinha duas horas até o ônibus partir. Era hora de descobrir como arranjar dinheiro para pagar a passagem.
Ele parou na rua Farrow.
Havia um carro diante dele, bloqueando a entrada. Um Land Rover. Reconheceu-o antes mesmo dever Noah parado no banco da frente, as mãos pousadas no volante. A porta de trás se abriu e a Sra. Deverill desceu. Parecia com raiva. Seus olhos estavam chamejando e a pele parecia ter se retesado. Mesmo sendo apenas cinco ou seis centímetros mais alta do que Matt, pareceu se agigantar enquanto se adiantava.
— O que você está fazendo, Matthew? — perguntou ela.
— Como sabia que eu estava aqui?
— Acho melhor voltar conosco, meu querido. Você já causou bastantes problemas por um dia.
— Não quero ir com a senhora.
— Você acha que tem escolha?
Matt pensou em se recusar. Ela não poderia obrigá-lo a entrar no carro, principalmente diante de uma redação de jornal, numa cidade movimentada. Mas de repente sentiu-se exausto. A Sra. Deverill estava certa. Ele sequer tinha dinheiro para pagar a passagem do ônibus. Não tinha aonde ir. O que mais poderia fazer?
Entrou no carro.
A Sra. Deverill subiu atrás dele, fechando a porta.
Noah engrenou o veículo e os três partiram.
NEXO
Do lado de fora o sol tinha acabado de baixar no horizonte e a noite havia chegado de novo. A Sra. Deverill tinha acendido a lareira. Estava sentada diante das toras queimando, com um Xales de tricô sobre os ombros e Asmodeu enrolado no colo. À primeira vista, podia ser confundida com a avó de alguém. Até o retrato da ancestral parecia mais amigável do que normalmente. O cabelo mais arrumado. Os olhos talvez um pouquinho menos cruéis. Matt estava parado junto à porta.
— Acho que nós dois precisamos conversar, Matthew — disse ela. — Por que não se senta?
Ela indicou a poltrona à sua frente. Matt hesitou, depois sentou-se. Seis horas tinham se passado desde que ela o encontrara em Grande Mailing. Não houve trabalho naquela tarde. Os dois tinham jantado juntos em silêncio. E, agora, isso.
— Parece que você e eu não nos entendemos — começou a Sra. Deverill. Sua voz era suave e razoável. —Tenho a sensação de que você está contra mim. Não sei por quê. Não lhe fiz mal. Você está morando na minha casa. Está comendo minha comida. O que, exatamente, está errado?
— Não gosto daqui — respondeu Matt simplesmente.
— Não é para gostar. Você foi mandado aqui como punição, não porque merecia férias. Ou talvez tenha esquecido isso.
— Quero voltar a Londres.
— Foi o que disse às pessoas em Grande Mailing? Às pessoas do jornal? O que você contou, exatamente?
— A verdade.
Um pedaço de lenha caiu dentro da lareira e houve um jorro de fagulhas. Asmodeu ronronou. A Sra. Deverill baixou a mão e passou um único dedo pelas costas do animal.
— Você não devia ter ido lá. Não gosto de jornalistas nem de jornais. Vivem se metendo na vida dos outros. O que estava pensando, Matthew? Contar histórias sobre mim, sobre o povoado... não vai fazer nenhum bem. Eles acreditaram? — Matt não respondeu. A Sra. Deverill respirou fundo e tentou sorrir, mas a dureza jamais abandonava seus olhos. —Você contou a eles sobre Tom Burgess?
— Contei.
Não havia sentido em negar.
— Bem, é exatamente isso que estou querendo dizer. Primeiro você envolveu a polícia. É... a senhorita Creevy me contou o que aconteceu. E, quando isso não funcionou, foi correndo à imprensa. E o tempo todo você está completamente enganado. Na verdade, não faz idéia do que está acontecendo.
— Eu sei o que vi!
— Acho que não. De certo modo, a culpa é minha. Mandei você limpar o chiqueiro e não percebi... Alguns produtos químicos que usamos são muito fortes. Eles entram pelo nariz e chegam ao cérebro. Um adulto como Noah pode agüentar isso. Claro, para começar, ele não tem muito cérebro. Mas um garoto jovem como você...
— O que está dizendo? Está dizendo que eu imaginei o que vi?
— É exatamente isso. Acho que você andou imaginando todo tipo de coisas desde que chegou aqui. Mas não se preocupe. Você nunca mais vai ter de limpar o chiqueiro. Pelo menos não com desinfetante. De agora em diante só vai usar sabão e água.
— A senhora está mentindo!
— Não vou admitir essa linguagem na minha casa, rapazinho. Talvez sua tia em Ipswich aceite, mas eu, não!
— Eu sei o que vi! Ele estava morto no quarto e a casa toda tinha sido revirada. Não imaginei. Eu estive lá!
— O que é preciso para persuadi-lo do contrário? O que é necessário para você acreditar?
O telefone tocou.
— Bem a tempo — disse a Sra. Deverill. Ela não se moveu da poltrona. Apenas sinalizou com a mão. —Acho que é para você.
— Para mim?
— Por que não atende?
Com uma sensação de desânimo, Matt se levantou e foi até o telefone. Pegou o aparelho.
— Alô?
— Matthew... é você?
Matt sentiu um arrepio pela espinha. Sabia que era impossível. Tinha de ser algum tipo de truque.
Era Tom Burgess.
— Queria pedir desculpa — disse o fazendeiro. Não. Não era o fazendeiro. Era a voz do fazendeiro. De algum modo ela fora duplicada. — Acho que me desencontrei de você hoje cedo. Tive de ir a uma feira em Cirencester. Vou ficar fora umas duas semanas, mas irei visitá-lo quando voltar...
Seria a imaginação de Matt ou a sala tinha ficado subitamente muito fria? O fogo continuava aceso, mas não havia calor nas chamas. Ele não dissera sequer uma palavra à pessoa — ou à coisa — que estava do outro lado da linha. Bateu o telefone.
— Isso não foi muito amigável — disse a Sra. Deverill.
— Não era Tom Burgess.
— Eu pedi que ele ligasse para você. — A luz da lareira dançava nos olhos dela. Matt olhou para o retrato e estremeceu. A imagem sorria para ele, assim como a mulher na poltrona, logo embaixo. — Achei que seria melhor ele próprio falar com você.
— Como a senhora...? — começou Matt.
Mas não havia sentido em fazer perguntas. Lembrou-se das estradas que giravam em círculos impossíveis, do gato que tinha levado um tiro e voltado à vida. E agora havia um fazendeiro que estava morto num minuto e de algum modo telefonava de Cirencester no outro. Matt estava preso a um poder muito maior do que ele. Sentia-se desamparado.
— Espero que isso encerre o assunto, Matthew — disse a Sra. Deverill. — E acho que você deveria ter cuidado antes de contar outras histórias. Qualquer pessoa que saiba alguma coisa sobre você provavelmente não acreditará. E eu diria que a última coisa de que você precisa é entrar em mais encrencas com a polícia.
Matt não ouvia. Tinha parado de escutar. Em silêncio subiu até o quarto. Estava derrotado — e sabia muito bem. Tirou a roupa, enfiou-se embaixo das cobertas e caiu num sono agitado.
O prédio ficava em Farringdon, perto do centro de Londres. Tinha dois andares de arquitetura vitoriana, um sobrevivente numa rua que sofrera bombardeios na Segunda Guerra Mundial e desde então fora remodelada. Parecia uma casa particular ou talvez um escritório de advocacia. Havia uma única porta preta com caixa de correspondência, mas as únicas cartas entregues eram propagandas. Uma vez por mês o capacho era limpado, as cartas levadas e queimadas. Luzes se acendiam e apagavam dentro do prédio, todas acionadas por temporizadores. Ninguém morava ali. Apesar do alto custo das propriedades em Londres, durante a maior parte do tempo o prédio ficava vazio.
Às oito da noite um táxi parou do lado de fora e um homem saiu. Era indiano, com cerca de cinqüenta anos, vestindo terno e capa de chuva leve, meio folgada. Pagou ao motorista e esperou o táxi se afastar. Depois foi até a porta, pegou uma chave no bolso, e abriu a fechadura. Olhou rapidamente para um lado e outro da calçada. Não havia ninguém à vista. Entrou.
Havia um corredor estreito, absolutamente limpo e vazio. Adiante, uma escada levava ao andar de cima. O homem não ia ali há vários meses e parou um momento lembrando-se dos detalhes do lugar: os degraus de madeira, as paredes pintadas de creme, o interruptor antiquado perto do portal. Nada tinha mudado. O homem desejou não ter ido. Toda vez, esperava nunca ter de retornar.
Subiu. O corredor de cima era mais moderno, com tapete caro, iluminação alógena e, em cada canto, uma câmera de segurança girando. Havia outra porta na extremidade oposta, esta feita de vidro fumê. Ela se abriu automaticamente quando o homem se aproximou, depois se fechou em silêncio atrás dele.
O Nexo havia se juntado outra vez.
Eram 12: oito homens e quatro mulheres. Tinham vindo de todas as partes do mundo. Só se viam muito ocasionalmente, mas sempre estavam conectados, comunicando-se por telefone ou e-mail. Todos eram influentes. Estavam ligados ao governo, ao serviço secreto, aos negócios, à Igreja. Não tinham contado a ninguém que estariam ali esta noite. Pouquíssimas pessoas do lado de fora da sala sequer sabiam que a organização existia.
Fora a mesa e 12 cadeiras forradas de couro, havia pouca coisa na sala. Três telefones e um computador, lado a lado, ocupavam um comprido console de madeira. Relógios mostravam a hora em Londres, Paris, Nova York, Moscou, Pequim e — curiosamente — Lima, no Peru. Vários mapas do mundo estavam pendurados nas paredes. Mesmo sendo impossível perceber, as paredes eram à prova de som e cheias de sofisticados equipamentos de vigilância para impedir a colocação de grampos.
0 indiano assentiu e sentou-se na última cadeira vazia.
— Obrigada por ter vindo, professor Dravid. — A pessoa que falou estava sentada à cabeceira da mesa. Era uma mulher de quase quarenta anos, usando um vestido preto e um casaco fechado até o pescoço. Seus olhos eram estranhamente desfocados. Não olhava para o professor enquanto falava. Não podia olhar para ninguém. Era cega.
— Estou muito feliz em vê-la, senhorita Ashwood — respondeu Dravid. Ele falava devagar. Tinha voz profunda e pronúncia perfeita. — Eu estava mesmo na Inglaterra. Estou trabalhando no Museu de História Natural. Mas agradeço a todos por virem. Esta reunião foi convocada de última hora e sei que alguns de vocês vieram de longe. — Ele assentiu para o homem sentado ao lado, que tinha vindo de Sydney, Austrália. Dravid se dirigiu ao resto do grupo. — Como sabem, a senhorita Ashwood me ligou há três noites requisitando uma sessão de emergência do Nexo. Tendo falado com ela, concordei que era de máxima importância nos encontrarmos imediatamente. De novo, obrigado por terem vindo.
Dravid se virou para a Srta. Ashwood.
— Conte a eles o que me contou — disse ele.
— Claro. —A Srta. Ashwood tomou um gole d'água de um copo que estava à sua frente. A mão teve de deslizar sobre a mesa para encontrá-lo. — Sete meses se passaram desde que nos reunimos pela última vez. Na época eu disse que percebia um perigo crescente, sentia que algo estava muito errado. Concordamos que continuaríamos a monitorar a situação, como sempre fizemos. Somos os olhos do mundo. Se bem que eu, claro, tenho outros modos de ver.
Ela fez uma pausa.
— O perigo ficou mais agudo. Há semanas venho pensando em chamá-los e falei várias vezes com o professor Dravid. Bem, não posso esperar mais. Tenho certeza, no fundo do coração, que nossos piores temores estão para se confirmar. O Portal do Corvo está para se abrir.
Houve uma agitação à mesa. Várias pessoas, entretanto, pareciam em dúvida.
— Que provas tem, senhorita Ashwood? — perguntou um deles. Era alto e de pele escura. Tinha viajado da América do Sul até ali.
— O senhor conhece muito bem minhas provas, senhor Fabian. Sabe por que fui convidada a entrar para o Nexo.
— Mesmo assim... O que lhe foi dito?
— Não me foi dito nada. Gostaria que fosse tão simples assim. Só posso dizer o que sinto. E neste momento é como se houvesse veneno no ar. Percebo isso o tempo todo e está piorando. A escuridão está chegando. Está tomando forma. Os senhores precisam confiar em mim.
— Espero que não seja por isso que nos convocou esta noite — disse um homem idoso. Era um bispo, com colarinho clerical e uma cruz de ouro pendurada no pescoço. Estivera usando óculos, mas tirou-os e limpou enquanto continuava: — Sei muito bem de suas habilidades, senhorita Ashwood, e tenho grande respeito por elas. Mas a senhorita quer realmente que acreditemos que algo acontece só porque a senhorita crê?
— Eu achava que isso se tratasse de fé — retrucou Srta. Ashwood.
— A fé cristã é escrita. Ninguém jamais escreveu uma história dos Antigos.
— Não é verdade — murmurou Dravid. E ergueu um dedo. — Está esquecendo o monge espanhol.
— São José de Córdoba? O livro dele se perdeu e ele próprio foi desacreditado há séculos. — O bispo suspirou. — Isto é muito difícil para mim. Vocês devem lembrar que, oficialmente, a Igreja não acredita nos Antigos, assim como não acreditamos em demônios, diabos e no resto. Se soubesse que faço parte do Nexo, eu teria de renunciar. Só estou aqui porque vocês e eu temos os mesmos objetivos. Todos temos medo da mesma coisa, não importando como optemos por chamá-la. Mas não posso aceitar, e não aceitarei, suposições e superstições. Sinto muito, senhorita Ashwood. A senhorita precisa nos dar mais.
— Talvez eu possa ajudar — disse outro homem. Era policial um Comissário Assistente da Scotland Yard. — Testemunhei recentemente uma coisa que pode ser de interesse. Foi algo pequeno, por isso não informei a vocês. Mas à luz do que estão dizendo agora...
— Continue — disse o professor Dravid.
— Bem, refere-se a um criminoso sem importância, um viciado em drogas chamado Will Scott. Foi visto pela última vez seguindo uma mulher para dentro de um beco, não muito longe daqui, em Holborn. Presumivelmente ela seria sua próxima vítima. Ele estava com uma faca. E tinha passagem por violência com uso de arma.
— O que aconteceu?
— Não foi a mulher que terminou sendo a vítima. Ela desapareceu. Scott é que foi descoberto morto. Matou-se. Enfiou a faca no próprio coração.
— O que há de tão estranho nisso? — perguntou uma das mulheres.
— Ele se matou à luz do dia, no meio de Londres. Mas não foi só isso. Eu vi o rosto dele... — O policial fez uma pausa. — Soube de imediato que havia algo completamente anormal. Uma expressão de terror. Era como se ele estivesse tentando lutar contra algo. Como se não quisesse morrer. Foi horrível.
— O poder dos Antigos — sussurrou a Srta. Ashwood.
— Por que uma morte em Holborn teria algo a ver com o Nexo? — insistiu o bispo.
— Concordo — disse Dravid. — É um incidente isolado. Um possível suicídio. Mas há outra coisa, e aconteceu esta manhã mesmo. Isso, em si, é bem estranho, porque, claro, eu sabia que viria aqui esta noite. Estava no meu escritório, no museu, conectado à Internet. Foi por volta da hora do almoço. Meu computador captou uma pesquisa sobre o Portal do Corvo. — Ele hesitou. — Eu tenho um programa. Sempre que alguém, em qualquer lugar, coloca essas palavras num site de busca, fico sabendo. Isso só aconteceu duas vezes no ano passado. Em ambos os casos eram acadêmicos. Mas hoje foi diferente. Consegui identificar o computador do outro lado. E tenho a sensação de que era um adolescente, ou mesmo uma criança.
— Ele disse isso? — perguntou alguém.
— Não. Mas usou as letras v e c em vez de escrever "você". Isso é prática de gente jovem. Disse que se chamava Matt.
— Apenas Matt?
— Não deu sobrenome. Mas eis outra coisa que pode ser interessante: a busca foi feita num computador da biblioteca de Grande Mailing.
A informação provocou outra agitação à mesa. Desta vez até o bispo pareceu preocupado.
— O senhor não devia ter nos contatado imediatamente, professor? — perguntou o sul-americano.
— Não tive tempo, senhor Fabian. Como disse, isto só aconteceu hoje e eu sabia que íamos nos encontrar esta noite. Sozinho, talvez não fosse um fato significativo. Um adolescente pode ter tropeçado com o nome Portal do Corvo e feito uma busca sem motivo especial. Mas, dados os pressentimentos da senhorita Ashwood e o que acabamos de ouvir... — Ele deixou a frase no ar. — Talvez devamos tentar encontrar esse tal de Matt e descobrir o que ele sabe.
— E como vamos fazer isso? — perguntou um homem grisalho, com sotaque francês. Seu nome era Danton e estava ligado de algum modo à inteligência militar. — Dê-me um nome inteiro e eu posso encontrá-lo em segundos. Mas Matt? Diminutivo de Matthew? Ou poderia ser do meu país... Matthieu. Ou até poderia ser uma garota. Matilda.
— Ele vai nos encontrar — disse a Srta. Ashwood.
— Acha que ele vai simplesmente entrar aqui? — perguntou o bispo e, em seguida, balançou a cabeça. — Parece óbvio para mim. Se vocês realmente acham que algo está acontecendo em Yorkshire, devemos ir lá e tentar impedir. Devíamos estar lá agora mesmo.
— Não podemos — disse Dravid. — Seria perigoso demais. Não sabemos o que estamos procurando. E, de qualquer modo, concordamos desde o início que não podemos nos envolver pessoalmente. Não é o nosso papel. Existimos para observar, para compartilhar informações e, quando chegar a hora, lutar. Só então seremos necessários. Não podemos fazer nada que nos coloque em risco.
— Então vamos ficar sentados de braços cruzados?
— Ele vai dar um jeito de nos encontrar — disse a Srta. Ashwood. — Não se esqueçam. A coisa deve acontecer. Tudo na história do mundo foi uma preparação para este momento, para a volta dos cinco e a luta final. Não existe coincidência. Tudo está planejado. Se não virmos isso, perderemos uma das nossas maiores armas.
— Matt — disse o francês, sem parecer muito impressionado.
A Srta. Ashwood assentiu devagar.
— Só rezemos para ele nos encontrar logo.
UMA VISITA
Matt estava rachando lenha de novo. Havia bolhas em suas mãos e o suor escorria pelas costas, mas a pilha não parecia diminuir. Noah estava sentado a alguns passos de distância. Matt rachou outra tora e largou o machado. Enxugou a testa com as costas da mão.
— Há quanto tempo você está aqui, Noah? — perguntou ele.
Noah deu de ombros.
— Onde a senhora Deverill encontrou você? Você nasceu aqui ou escapou do asilo de lunáticos da região?
Noah o encarou mal-humorado. Matt sabia que ele tinha dificuldade para entender frases com mais de quatro ou cinco palavras.
— Você não devia zombar de mim — disse Noah finalmente, mal-humorado.
— Por que não? É a única diversão que eu tenho. — Matt pegou um punhado de lenha e largou no carrinho de mão. — Por que não vai para outro lugar? Você está sempre por perto. Não tem namorada nem amigos?
Noah fez um som estranho.
— Não gosto de garotas.
— Prefere porcos? Acho que um ou dois deles gostam de você.
Matt se inclinou para pegar o machado e neste momento a mão de Noah saltou, agarrando-o.
— Você não sabe — disse ele com voz rouca. Estava tão perto que Matt podia sentir o cheiro de comida podre no hálito do sujeito. Seus lábios frouxos se retorceram num sorriso desagradável. — Algumas vezes a senhora Deverill me deixa matar um. Um porco. Eu enfio a faca e fico escutando ele guinchar. A gente vai fazer a mesma coisa com você...
— Me solta!
Matt tentou se afastar, mas Noah era incrivelmente forte e seus dedos estavam cravados no braço de Matt com um torno.
— Você ri do Noah. Mas, quando chegar o fim, Noah é que vai rir de você.
— Me larga!
E então um carro parou no pátio. Noah abriu a mão e Matt caiu para trás, segurando o braço. Havia quatro pontos inchados nos lugares onde os dedos o haviam apertado. O carro era um Honda Estate. A porta se abriu e um homem desceu, vestido de terno, com camisa branca mas sem gravata. Matt o reconheceu imediatamente. Era Stephen Mallory, o detetive que o havia interrogado depois da invasão em Ipswich.
Noah também o viu. Enquanto Mallory olhava ao redor, o empregado se afastou rapidamente, desaparecendo atrás do celeiro. Matt foi até ele. Podia sentir uma empolgação crescendo por dentro, mas tentou não demonstrar. Apesar de Mallory ser parcialmente responsável por estar ali, ele era exatamente a pessoa que Matt mais queria ver.
— Matthew! — O detetive fez um gesto com a cabeça. — Como vai?
— Bem.
— Não parece. Você perdeu um bocado de peso.
— O que o senhor está fazendo aqui?
Matt não se sentia com disposição para conversar.
— Estive numa convenção em Harrogate. Não é muito longe, por isso pensei em vir olhar como você estava indo. — Mallory se espreguiçou. — Devo dizer que não é fácil chegar a este lugar.
— Se acha que é difícil chegar, deveria tentar sair.
— O quê?
— Nada. — Matt olhou por cima do ombro de Mallory. A Sra. Deverill estava em algum lugar dentro da casa. Sabia que ela chegaria ao jardim a qualquer momento e queria falar antes disso. — Eu ia telefonar para o senhor.
— Porquê?
— Não quero ficar aqui. O senhor disse que o LELAS era voluntário. Bem, quero sair dele. Não importa para onde me mandarem. Podem me trancar em Alcatraz, se quiserem. Mas este lugar é horrível e eu quero dar o fora.
O detetive olhou-o com curiosidade.
— O que você estava fazendo quando eu cheguei?
— O que parece? — Matt abriu as mãos mostrando as marcas vermelhas e as bolhas. — Rachando lenha.
— Já começou a freqüentar a escola?
— Não.
Mallory balançou a cabeça.
— Isso é totalmente errado. Não devia estar acontecendo.
— Então faça alguma coisa. Me tire daqui.
Houve um movimento junto à porta atrás deles. A Sra. Deverill tinha aparecido, saindo da casa e Noah estava com ela. A mulher havia posto um avental colorido e segurava um cesto de maçãs. Matt se perguntou se seria apenas para Mallory ver, como a roupa que havia usado em Londres.
— Não diga nada — murmurou Mallory em voz baixa. — Deixe isso comigo.
A Sra. Deverill foi até eles. Parecia surpresa por ver alguém ali.
— Em que posso ajudá-lo? — perguntou.
— A senhora não se lembra de mim? Sou o detetive-superintendente Mallory. Conhecemo-nos em Londres. Sou do programa LELAS.
A Sra. Deverill confirmou com a cabeça.
— Claro que lembro, senhor Mallory. E é um grande prazer vê-lo. Mas seria de bom tom o senhor ter informado que viria. Se recordo corretamente, o senhor deveria me informar com 24 horas de antecedência qualquer visita oficial.
— Tem alguma coisa a esconder, senhora Deverill?
— Claro que não. — Os olhos duros piscaram. — O senhor é bem-vindo a qualquer hora.
— O fato é que peguei um relatório da polícia local — disse Mallory. — Algo sobre um falso alarme num lugar chamado Fazenda Glendale. Matthew esteve envolvido.
— Ah, sim. — A Sra. Deverill arrumou as feições numa expressão preocupada. — Matthew e eu já conversamos sobre isso. Lamento muito ele ter desperdiçado o tempo da polícia. Mas no fim não houve nada de grave. Acho que nós dois já deixamos isso para trás.
Matt quis falar, porém Mallory o alertou com os olhos.
— Por que Matthew não está na escola?
— Acho que é cedo demais — respondeu a Sra. Deverill. — Discuti o assunto com minha irmã. Por acaso ela é a diretora. Concordamos que ele seria uma influência negativa. Vamos mandá-lo à escola assim que estiver preparado. — A Sra. Deverill deu um sorriso. Estava se esforçando ao máximo para parecer agradável. — Por que não entra, detetive-superintendente? Não sei se devemos discutir isso diante do garoto. Que tal se eu lhe oferecesse uma xícara de chá?
— Não, obrigado, senhora Deverill. — Mallory olhou ao redor novamente. — Não vi muito, mas parece que as condições de vida nesta fazenda são totalmente inadequadas às necessidades de Matthew...
— Fomos examinados antes de ele vir — interrompeu a Sra. Deverill.
— ...e francamente estou pasmo com as condições físicas de Matthew. Parece que ele trabalhou até gastar os ossos. Na verdade, a senhora violou a lei mantendo-o fora da escola.
— O garoto está perfeitamente feliz aqui. Não está, Matthew?
— Não. — Matt ficou satisfeito por terem lhe dado a chance de falar. — Odeio isto aqui. Odeio esta fazenda. E odeio a senhora acima de tudo.
— Ora, isso é que é gratidão!
— Vou retornar a Londres — disse Mallory. — E quero que saiba que vou contatar o comitê do LELAS no instante em que chegar. Recomendarei que Matthew seja removido imediatamente de sua custódia.
O rosto da Sra. Deverill ficou sombrio. Seus olhos pareciam navalhas.
— Eu não faria isso, se fosse o senhor.
— Está me ameaçando, senhora Deverill? Houve uma longa pausa.
— Não. Por que eu faria isso? Sou uma pessoa que obedece à lei. E, se o senhor realmente acha que Matthew ficaria melhor trancado em algum tipo de instituição para jovens, é problema seu. Mas o senhor não devia estar aqui, senhor Mallory. Não foi convidado, e esta visita é uma violação de nosso acordo. Faça o seu relatório, se quiser. O senhor é que vai quebrar a cara.
Ela girou nos calcanhares e voltou para a casa. Matt ficou olhando com um sentimento de empolgação. Pela primeira vez conseguia enxergar um fim para o sofrimento.
Mallory se inclinou para ele. , — Escute, Matt. Eu colocaria você no carro e o levaria agora, se pudesse...
— Eu gostaria que o senhor pudesse.
— ...mas não posso. Não tenho nenhum direito e, tecnicamente, estaria violando a lei. A senhora Deverill poderia até dizer que eu o seqüestrei e no fim eu estaria fazendo mais mal do que bem. Mas volto em 24 horas. E então tiro você deste lixo. Certo?
— Claro. — Matt confirmou com a cabeça. — Obrigado. Mallory suspirou.
— Se quiser saber da verdade, sempre fui contra o projeto LELAS. Não passa de um golpe publicitário... outra invenção do governo. Eles não querem realmente ajudar garotos como você. Estão mais interessados em maquiar as estatísticas, reduzindo o número de crianças atrás das grades. — Ele foi até o carro e abriu a porta. — Bem, assim que eu tiver entregado o relatório, eles terão de ouvir o que eu disser. E, independentemente do que aconteça, prometo que a senhora Deverill nunca mais receberá a custódia de ninguém.
Matt acompanhou sua partida. Então se virou e olhou para a casa. A Sra. Deverill estava parada junto à porta. Havia tirado o avental e agora estava toda vestida de preto. Também tinha visto o detetive ir embora. Não disse nada. Recuou, desaparecendo na casa. A porta se fechou atrás dela.
Estava escuro quando Stephen Mallory chegou à estrada e à via expressa de volta a Ipswich. Encontrava-se imerso em pensamentos enquanto levava seu Honda para a pista externa.
Não tinha contado toda a verdade a Matt. Não houvera uma convenção em Harrogate.
Stephen Mallory era especializado em criminalidade juvenil. Tinha conhecido muitos jovens delinqüentes, alguns com apenas dez ou onze anos, e, como muitos deles, parecia que Matt não era tanto um criminoso quanto uma vítima. Já havia falado com Kelvin — que estava num centro de triagem, esperando julgamento. Tinha se encontrado com Gwenda Davis e seu companheiro, Brian. Tinha lido todos os relatórios. Mas mesmo assim sentia que faltava alguma coisa. O menino que ele encontrara não tinha nada a ver com o que ele lia sobre Matt.
Por isso, imediatamente depois de ter entregado Matt à Sra. Deverill, decidira ver se era capaz de preencher as lacunas. Já estava mesmo em Londres. Ninguém saberia nem se importaria em saber como havia passado a tarde.
Tinha pegado um táxi até um escritório de registros da polícia no sul de Londres. Tudo de que precisava estava lá, numa caixa de papelão, uma dentre cerca de cem, arquivada com um número de referência e um nome: FREEMAN, M.J. Havia artigos recortados do jornal local, relatórios das polícias local e metropolitana, um relatório de necropsia e uma avaliação psiquiátrica feita por um médico da Harley Street. A história era exatamente como haviam lhe contado. Um acidente de trânsito. Os pais mortos. Um menino de oito anos deixado para trás. A adoção por parte de uma tia em Ipswich. Mallory havia lido tudo isso antes. Mas então, no fundo da caixa, encontrou um depoimento de uma testemunha que não tinha visto. E que mudava tudo.
Era uma declaração assinada pela vizinha de Matthew na época do acidente, que na verdade estivera cuidando dele quando o fato aconteceu. Seu nome era Rosemary Green. Mallory leu duas vezes, depois pegou um táxi até Dulwich. Eram quatro da tarde. Duvidava que ela estivesse em casa.
Teve sorte. Rosemary Green era professora e tinha chegado em casa no momento em que ele saíra do táxi. Conversou com ela diante da pequena residência vitoriana com fileiras de madressilvas cor-de-rosa e brancas indo até a parede da frente. Era estranho pensar que Matthew Freeman já havia brincado no jardim ao lado. Não poderia ser um mundo mais diferente daquele onde mais tarde viveria, em Ipswich.
A Sra. Green não tinha muito mais a acrescentar ao que já dissera. Sim, Concordava que sua história não parecia plausível, mas garantiu que era verdadeira. Tinha falado aquilo à polícia, na época, e confirmava, seis anos depois.
Mallory havia bebido duas garrafinhas miniatura de uísque no trem de volta a Ipswich. Cópias do dossiê de Matthew estavam na mesa à sua frente, assim como a última edição do London Evening Standard. Pertencia a um dos passageiros, sentado diante dele. Mallory quase o arrancou da mão do sujeito, quando viu a matéria na primeira página.
Um suicídio bizarro em Holborn. Um criminoso de vinte anos, chamado Will Scott, fora encontrado morto numa rua perto do Lincoln's Inn Fields. A causa da morte era um ferimento de faca no coração, que a polícia acreditava ter sido infligido pelo próprio defunto. Scott possuía ficha por assaltos com violência e agressão e era conhecido como traficante de drogas. As testemunhas o tinham visto seguindo uma mulher idosa, vestida de cinza com um broche de prata na forma de um lagarto. A polícia insistia para que ela se apresentasse.
Coincidência?
Mallory se lembrou do broche que a Sra. Deverill estivera usando. Ela havia se atrasado naquela tarde, e podia muito bem ter vindo pelo Lincoln's Inn Fields. Tinha certeza que ela devia ser a mulher citada na matéria, mesmo não tendo idéia de como podia estar envolvida na morte de Will Scott. Mas desde aquele momento sentira-se preocupado. Pegou-se pensando cada vez mais em Matthew, e tinha certeza que o garoto não devia ter sido deixado com ela.
E então, apenas alguns dias depois, interceptou uma transmissão de rotina de uma delegacia de polícia em York. Algo a ver com outra morte, informada por um garoto de 14 anos do projeto LELAS. Isso havia bastado. Mallory arranjou uma folga na agenda e partiu para Pequeno Mailing.
Agora, voltando de Pequeno Mailing, estava muito satisfeito por ter ido. O que tinha visto era uma desgraça. O garoto parecia doente. Mais do que isso, parecia traumatizado. E Mallory notou rapidamente as marcas no braço. Bem, logo acabaria com isso. Entregaria seu relatório no dia seguinte.
Olhou o velocímetro. Estava a exatamente cento e dez quilômetros por hora. Tinha passado para a pista interna e carros o ultrapassavam pelos dois lados, todos desrespeitando o limite de velocidade. Olhava as luzes vermelhas das traseiras, turvando-se a distância. Chovia de novo, gotas minúsculas batendo no pára-brisa. Seria sua imaginação ou tinha ficado muito frio dentro do carro? Ligou o aquecedor. O ar saía das grades de ventilação no painel mas não parecia fazer diferença. Apertou outro botão e ligou os limpadores de pára-brisa. A estrada adiante tremulava e se dobrava, partida pela chuva.
Olhou o relógio. Nove e meia. Faltavam pelo menos duas horas para chegar a Ipswich. Só chegaria em casa depois da meia-noite. Ligou o rádio para ouvir o noticiário. As vozes iam ajudá-lo a ficar acordado.
O rádio estava sintonizado na BBC4, mas não havia notícias. A princípio Mallory pensou que não havia absolutamente nada no rádio e imaginou se o aparelho estaria com defeito... como o aquecimento. Fazia realmente muito frio. Talvez um dos fusíveis tivesse se queimado. Teria de levar o carro à oficina. Mas então o rádio funcionou. Houve um jorro de estática, e por trás, outra coisa.
Um leve sussurro.
Perplexo, inclinou-se e apertou o botão pré-programado para a FM Clássica. Mallory gostava de música clássica. Talvez houvesse um concerto. Mas não havia música. Mais uma vez, tudo que ouvia era a estranha voz sussurrando. Eram definitivamente as mesmas vozes. Até podia identificar algumas palavras que elas diziam.
OSSOVO ... AJESO... DACIFIT... NASU ... EÇON ... SATSE
Que diabo estava acontecendo? Freneticamente, Mallory apertou vários botões, sem jamais desviar o olhar da estrada. Era impossível. As mesmas vozes eram transmitidas em todas as estações, agora mais altas, mais insistentes. Desligou o rádio. Mas os sussurros continuaram. Pareciam estar em toda parte, ao redor dele, no carro.
O frio tornara-se mais intenso. Era como estar numa geladeira — ou num freezer. Mallory decidiu parar no acostamento. A chuva caía mais forte. Mal podia enxergar pelo pára-brisa. Luzes vermelhas o ultrapassavam a toda. Luzes brancas gritavam em sua direção.
Pisou no freio e sinalizou para a esquerda. Mas o pisca-pisca falhou e o carro não quis reduzir a velocidade. Mallory estava começando a entrar em pânico. Nunca tivera medo na vida. O medo não fazia parte de sua natureza. Agora era diferente, sabendo que o carro estava fora de controle. Pisou no freio com mais urgência. Nada aconteceu. O carro estava acelerando.
E então foi como se tivesse chegado a uma rampa invisível. Sentiu os pneus saindo da estrada e o carro saltando no ar. Sua visão girou trezentos e sessenta graus. De algum modo os sussurros tinham se transformado num grande clamor que preencheu sua consciência.
Mallory gritou.
A 140 por hora seu carro voou e deu um salto-mortal por cima do anteparo da estrada. A última coisa que Mallory viu, de cabeça para baixo, foi um caminhão-tanque, cheio de gasolina, vindo em sua direção, o rosto do motorista congelado em horror. O Honda bateu no caminhão e se desintegrou. Houve um guincho de pneus. Uma explosão. Um único berro da buzina mais alta do mundo. E silêncio.
Matt estava dormindo a sono solto quando suas cobertas foram arrancadas e ele acordou no frio da manhã. Deparou-se com a Sra. Deverill usando um roupão preto, parada junto à cama. Olhou o relógio. Eram seis e dez. Lá fora o céu continuava cinza. A chuva batia nas janelas. As árvores se curvavam ao vento.
— O que é...?
— Acabo de ouvir pelo rádio — disse a Sra. Deverill. — Achei que você gostaria de saber. Infelizmente é má notícia, Matthew. Parece que houve um engavetamento na estrada ontem à noite. Seis pessoas morreram. O detetive-superintendente Mallory era uma delas. É uma pena terrível. Realmente terrível. Mas parece que, afinal de contas, você não vai embora.
SAÍDOS DO FOGO
Os dias seguintes foram os piores que Matt experimentou desde a chegada a Yorkshire.
A Sra. Deverill o fazia trabalhar mais do que nunca, e Noah jamais se afastava dele. As horas passavam numa procissão tediosa feita de limpar, pintar, cortar, emendar e carregar. Matt estava quase sem esperanças. Tinha tentado fugir para Londres e havia fracassado. Tinha procurado pistas na floresta mas não encontrara quase nada. Duas pessoas tinham tentado ajudá-lo e ambas haviam morrido. Ninguém mais se importava. Uma espécie de névoa tinha baixado sobre sua mente. Ele havia desistido. Ficaria no Solar da Colméia até que a Sra. Deverill acabasse com ele. Talvez ela planejasse mantê-lo ali durante toda a vida, e ele acabaria oco e vazio, como Noah, um escravo babão.
E então, uma noite — Matt achou que era um sábado, se bem que todos os dias tinham ficado praticamente iguais — a irmã da Sra. Deverill veio jantar. Ele não via a professora desde o encontro em Pequeno Mailing. Sentado perto dela à mesa da cozinha, Matt achou difícil afastar os olhos da marca de nascença da mulher, a descoloração que cobria a maior parte do rosto. Sentia atração e repulsa ao mesmo tempo.
— Jayne disse que você sente falta da escola — observou ela, em sua voz estranha e aguda.
— Não vou à escola porque ela não deixa — respondeu Matt. — Tenho de trabalhar aqui.
— E quando você ia à escola vivia matando aula. Preferia roubar em lojas e fumar nas passarelas da estrada. Foi o que ouvi dizer.
— Eu nunca fumei — resmungou Matt.
— As crianças de hoje não têm educação de verdade — observou Jayne Deverill. Estava servindo uma espécie de cozido, tirado de uma panela. A carne era grossa e gordurosa e vinha num molho suculento, cor de sangue. Como um bicho morto num pântano primitivo. — A gente vê essas crianças na rua, com suas roupas estranhas, ouvindo o que chamam de música mas que você ou eu chamaríamos de barulho horrível. Não têm respeito, nem inteligência, nem bom gosto. E acham que o mundo pertence a elas!
— Elas logo vão descobrir... — murmurou a irmã. Houve uma batida na porta e Noah apareceu vestido com
algo semelhante a um terno, porém guardado por cinqüenta anos, desbotado e disforme. Também usava uma camisa abotoada até o pescoço, mas sem gravata. Matt pensou num coveiro desempregado.
— O carro está pronto — anunciou ele.
— Ainda estamos comendo, Noah. — Jayne Deverill deu um muxoxo. — Espere lá fora.
— Está chovendo.
Noah farejou a comida, cheio de esperança.
— Então aguarde no carro. Já vamos sair. Matt esperou até Noah obedecer.
— As senhoras vão sair?
— Talvez.
— Para onde?
— Quando eu era pequena as crianças nunca faziam perguntas aos mais velhos — disse Claire Deverill.
— Isso foi antes da Primeira Guerra Mundial? — murmurou Matt.
— O quê?
— Esquece...
Matt ficou quieto e terminou a refeição. Jayne Deverill também tinha acabado de comer. Ela se levantou e foi até a chaleira.
— Vou preparar uma xícara de chá de ervas — explicou. — Quero que você beba tudo, Matthew. Ele tem qualidades revigorantes, e parece que você anda muito tenso desde a morte daquele pobre detetive.
— A senhora vai arranjar para ele me telefonar amanhã?
— Ah, não. O senhor Mallory não vai voltar. — Ela derramou água fervente num bule preto e baixo, mexeu e em seguida serviu uma xícara a Matthew. — Agora, beba. Vai ajudá-lo a relaxar.
Vai ajudá-lo a relaxar.
Talvez fosse o modo como ela disse as palavras. Ou talvez fosse o fato de que a Sra. Deverill nunca tinha feito chá assim. Mas de repente Matt ficou decidido a não tocar o líquido que estava sendo oferecido. Pôs as mãos em concha e cheirou. Era verde e tinha um cheiro amargo.
— O que tem dentro? — perguntou ele.
— Folhas.
— Que tipo de folhas?
— Dente-de-leão. Cheias de vitamina A.
— Para mim, não, obrigado. — Matt tentou parecer casual. — Nunca fui muito fanático por dente-de-leão.
— Mesmo assim vai experimentar esse. Você não vai se levantar da mesa enquanto não tomar.
Claire Deverill também o observava com atenção. Agora Matt tinha certeza. Se tomasse o chá, a próxima coisa que perceberia é que já era a manhã do dia seguinte.
— Certo. — Ele ergueu a xícara. — Se a senhora insiste.
— Insisto.
A questão era: como se livrar daquilo?
No fim das contas foi Asmodeu que ajudou. O gato devia ter se esgueirado na cozinha enquanto eles comiam. O bicho pulou no aparador e seu rabo acertou uma jarra de leite, que tombou e quebrou, derramando o leite. As duas irmãs giraram ao mesmo tempo, com a atenção desviada momentaneamente. No mesmo instante Matt derramou o conteúdo da xícara embaixo da mesa. Quando as duas mulheres se viraram de novo ele aninhava a xícara na mão, como se nada tivesse acontecido. Só esperava que elas não notassem o vapor subindo do tapete molhado.
Fingiu beber até a xícara estar vazia, depois pousou-a na mesa. Viu algo se agitar nos olhos de Jayne Deverill e percebeu sua satisfação. Agora era ver se sua teoria estava certa.
Bocejou e se espreguiçou.
— Cansado, Matthew?
Ela disse as palavras depressa demais.
— Estou.
— Então não precisa ajudar com os pratos esta noite. Por que não vai para a cama?
— É. Vou fazer isso.
Ele se levantou e foi até a escada, movendo-se devagar e pesadamente, de propósito. Não acendeu a luz no quarto. Em vez disso deitou-se na cama e fechou os olhos, imaginando o que aconteceria em seguida.
Não precisou esperar muito. A porta se abriu e a luz se derramou no quarto.
— Ele está dormindo? Era a voz de Claire Deverill.
— Claro. Vai dormir doze horas e acordar com uma dor de cabeça de rachar. Está pronta?
— Estou.
— Então vamos.
Matt ouviu as duas saírem. Escutou os passos na escada. A porta da frente se abriu e se fechou. O motor do Land Rover foi ligado e os faróis giraram enquanto o carro fazia a volta no quintal e partia pela estradinha. Só quando teve certeza de que elas não voltariam Matt sentou-se na cama. Tudo tinha acontecido exatamente como previra. Estava sozinho no Solar da Colméia.
Meia hora depois as luzes se acenderam de novo na Ômega Um. Matt também estivera esperando por isso.
Vestido com jeans preto e camisa escura, pegou a bicicleta e saiu da fazenda pedalando. Era hora de voltar à floresta.
Não demorou a encontrar a entrada. A bandeirinha feita com sua camiseta ainda estava lá, amarrada num galho. Agradecendo pelas agulhas de pinheiro no chão, seguiu pelo corredor entre as árvores, certificando-se de não se afastar da tira de asfalto que Tom Burgess havia mostrado na última vez em que passara ali. A lua estava atrás das nuvens, mas ele usou a claridade da usina para guiá-lo. Quando olhou para trás, a floresta parecia envolta numa escuridão absoluta. Uma coruja piou. Houve um movimento de folhas quando alguma criatura noturna voou para o céu.
Matt ouviu os moradores do povoado antes de vê-los. Havia som de estalos e murmúrio de vozes. Estavam muito perto. Afastou um par de galhos baixos e percebeu que estava de volta junto à cerca que rodeava a usina elétrica. Ajoelhou-se e olhou por entre os arames. Uma visão incrível chegou aos seus olhos.
O quadrado de terra plana que rodeava a usina estava cheio de atividade. Havia uma fogueira enorme acesa do lado de fora da esfera, lançando vividas línguas de chamas, como serpentes. Uma fumaça preta e densa se enrolava para o alto. Quatro ou cinco pessoas jogavam braçadas de galhos e arbustos no fogo, e a madeira úmida sibilava e estalava ao ser consumida. No alto, uma fileira de luzes fortes lançava uma claridade brilhante sobre o campo. Era uma mistura estranha. O prédio com suas luzes elétricas era moderno, industrial. A fogueira com as figuras sombrias agrupadas ao redor o lembrava uma cena dos tempos primitivos.
Havia um carro parado entre a fogueira e a cerca — Matt achou que poderia ser um Saab ou um Jaguar. Um homem saiu, mas estava em silhueta contra a luz, e Matt não pôde ver quem era. O homem ergueu a mão e um anel de sinete, de ouro, relampejou momentaneamente em vermelho no dedo, refletindo a luz da fogueira.
Ele tinha dado um sinal. Havia um caminhão-baú parado do outro lado da clareira e este começou imediatamente a dar marcha a ré até o corredor que unia a esfera gigante da Ômega Um ao resto do prédio. Enquanto Matt olhava, as portas do caminhão foram abertas e vários homens vestidos com roupas estranhas desceram. Eles se juntaram e tiraram alguma coisa de dentro: uma grande caixa prateada com cerca de cinco metros de comprimento. Era obviamente pesada. Eles demoraram muito tempo para colocá-la no chão.
Matt não conseguia ver direito o que estava acontecendo. Precisava chegar mais perto. Seguiu a cerca até a abertura que ele descobrira da última vez, e esperou, certificando-se de que ninguém estava olhando. Mas todos os moradores do povoado se concentravam no caminhão. Matt escolheu a hora certa e mergulhou para a frente, de cabeça. Sentiu a borda irregular da cerca de arame rasgar sua camisa e arranhar as costas, mas teve sorte. Não sangrou. Caiu de cara no capim e ficou imóvel.
Um enorme homem barbudo atravessou a clareira indo para o caminhão. Era o açougueiro de Pequeno Mailing. O farmacêutico de cabelo cor de gengibre também estava ali. Ele também reconheceu Johanna Creevy, a mulher que estivera na Fazenda Glendale quando Matt voltara com a polícia. Ela estava falando com Jayne Deverill. Olhou de novo a fogueira. As crianças do povoado estavam ao redor, jogando gravetos nas chamas, o que fazia as fagulhas saltarem. Havia quarenta ou cinqüenta pessoas na Ômega Um, e de repente Matt percebeu que estava espionando todo o povoado. Jovens ou velhos, cada um dos moradores tinha ido até a floresta. Estavam todos ali.
Todos os seus instintos gritavam para ir embora antes de ser visto. Mas ao mesmo tempo sabia que o que estava vendo era importante. Só precisava deduzir o que eles faziam, por que estavam ali. E o que havia dentro da caixa prateada? Os dois homens tinham desaparecido dentro do prédio. Os moradores faziam fila, esperando para segui-los. O homem com anel de sinete conversava com a Sra. Deverill. Matt sentiu-se desesperado para ouvir o que eles diziam.
Arrastou-se pelo chão, mantendo-se abaixado, não ousando levantar a cabeça. Quanto mais perto chegasse, maior seria o risco de ser visto. Esperava que o capim alto desse alguma cobertura, mas podia sentir a luz das chamas alcançando-o, ansiosa para mostrar que ele estava ali. Até podia sentir o calor do fogo nos ombros e na cabeça. Ouviu risos. O homem com o anel tinha contado uma piada. Matt se arrastou mais para a frente. Sua mão bateu em alguma coisa e ele puxou-a. Tarde demais, viu o fino fio de plástico que corria junto ao chão. Só então percebeu que não devia tê-lo tocado.
O silêncio da noite foi despedaçado por uma sirene. Os moradores giraram, começando a se espalhar pelo campo. Três homens correram para a frente, com espingardas nas mãos. As crianças largaram os gravetos no fogo e correram até o caminhão. O homem com anel de sinete adiantou-se lentamente, passando pela turba, os olhos examinando o solo. Matt agarrou a terra, enterrando o rosto no capim. Era inútil tentar se esconder.
A Sra. Deverill estava parada junto à fogueira. Ela gritou uma frase breve numa língua estranha e pegou alguma coisa no bolso. Então ela balançou a mão acima das chamas, formando uma nuvem de pó branco que pairou um momento no ar antes de cair.
As chamas explodiram, saltando quase tão altas quanto a própria usina, e uma luz vermelha e forte inundou o campo. Uma coisa preta começou a tomar forma no meio do fogo, moldando-se a partir das sombras. Em segundos a escuridão tinha se solidificado e agora saltava do fogo — aparentemente em câmera lenta —, caindo no chão do outro lado. Era algum tipo de animal, e, instantes depois, surgiu um segundo, saltando para se juntar ao primeiro. Atrás deles a fogueira se encolheu de volta ao tamanho normal. O uivo do alarme parou abruptamente.
Eram cães. Mas não como qualquer cão que Matt já tivesse visto.
Eram gigantescos, duas ou três vezes maiores do que rottweilers... e mais selvagens. As chamas da fogueira que os havia criado ainda tremulavam em seus olhos pretos como de tubarão. As bocas estavam abertas, dentes como duas fileiras de facas de cozinha saltando para a frente, atrás dos lábios. As cabeças eram altas e irregulares, com os crânios enormes encimados por duas orelhas minúsculas, como chifres. Lentamente um deles virou o focinho feio para o céu e soltou um uivo medonho. Então, como se fossem um só, adiantaram-se, a cabeça pendendo para o lado de modo não-natural, como se ouvissem o chão.
Matt não tinha escolha. Precisava ir embora. Se os cães o encontrassem iam despedaçá-lo. Não se importando mais se fosse visto ou não, levantou-se e começou a correr. Suas pernas estavam pesadas como chumbo, mas ele as obrigou desesperadamente a levá-lo para a frente. A cerca ainda estava a vinte metros de distância. Com os braços estendidos, correu para ela, não querendo olhar para trás. Mas não conseguiu resistir. Precisava saber. Onde estavam os cães? Perto? Com uma careta, olhou por cima do ombro. E se arrependeu.
A primeira criatura já havia percorrido metade da distância até a presa. Não parecia estar se movendo depressa. Pairava no ar entre cada salto, mal tocando o capim antes de saltar de novo. Havia algo hediondo no modo como corria. Uma pantera ou um leopardo se aproximando da presa têm uma certa majestade, mas o cão era deformado, torto, horroroso. A carne e um dos flancos tinham apodrecido e uma costela brilhante se projetava para fora. Como se para evitar o fedor do ferimento, o animal tinha se virado para o outro lado, a cabeça pendendo perto das patas dianteiras. Fios de saliva escorriam da boca. E a cada vez que as patas tocavam o chão todo o corpo tremia, ameaçando desmoronar.
Matt chegou à cerca e a agarrou, apertando o arame com os dedos. Pensou que tinha corrido em linha reta, seguindo o caminho por onde viera, mas parecia ter errado. Não conseguia achar a abertura. Olhou para trás. Mais dois saltos e os cães o alcançariam. Não tinha dúvida de que iam despedaçá-lo, arrancando a carne dos seus ossos. Nunca vira nada tão feroz... nem num zoológico, nem num filme nem em lugar nenhum do mundo real.
Onde estava a abertura? Num pânico cego jogou todo o peso contra a cerca, quase chorando de alívio quando a borda cedeu, revelando o buraco irregular. Sem hesitação, mergulhou para a frente. A cabeça e os ombros passaram, mas desta vez o arame se prendeu à calça. Sacudindo os braços, esperando sentir as mandíbulas do cão na perna a qualquer momento, lutou como um peixe numa rede. Com o canto do olho viu uma gigantesca forma preta mergulhando para ele. Deu um último repelão frenético. O jeans se rasgou e ele passou pelo buraco, rolando como uma bola do outro lado.
Escorria sangue de um rasgo na perna, mas ele estava em segurança... pelo menos por um momento. Lutou para ficar de pé, depois cambaleou para trás enquanto um dos cães saltava contra a cerca, a boca espumando, os dentes mordendo o arame. As duas criaturas estavam presas. O buraco mal tinha tamanho para Matt passar, e eles eram maiores e mais desajeitados do que ele. Enquanto o garoto olhava, os cães começaram a bater no chão, raspando o solo com as garras. Não deixariam que a cerca os impedisse. Iam abrir um caminho na terra.
Matt correu para o mato. Agulhas de pinheiro entravam no seu cabelo e chicoteavam seu rosto. Ele piscou, tentando mantê-las afastadas do olho. Galhos baixos lanhavam seu corpo. Não tinha onde se esconder, nem como saber se havia tomado o caminho certo. Estava preso num enorme gradeado onde cada direção parecia exatamente a mesma. Mas os cães possuíam vantagem. Não precisavam vê-lo. Podiam farejá-lo.
Não se importou para onde estava indo. O único pensamento era se afastar, colocar o máximo de distância possível entre ele e os dois cães. Quanto tempo tinha? Trinta segundos? Um minuto ou dois, no máximo. E então eles emergiriam do chão no outro lado da cerca, como se saíssem de uma sepultura. Iam caçá-lo pela floresta, alcançá-lo e despedaçá-lo.
Bateu num tronco de árvore e ricocheteou, girando. As luzes da usina já estavam muito atrás, praticamente invisíveis através dos galhos. Matt ficou exausto, porém não podia descansar. Precisava achar um rio ou um córrego. Talvez pudesse fazer os cães perderem seu cheiro. Mas não havia nada assim naquela floresta artificial. Ela se estendia interminavelmente, sem água à vista.
Parou para recuperar o fôlego, com o peito e a garganta arfando, a cabeça latejando. Nesse momento um som terrível rompeu o ar. Era um uivo de triunfo. Os cães tinham atravessado a cerca. Matt quase desistiu. Sentiu um tremor de desespero atravessar o corpo. Era insuportável. Ia simplesmente ficar ali parado e esperar que eles chegassem. Só podia deixar que o fim fosse rápido.
Não. Obrigou-se a sair daquele estado. Ainda não estava morto. Juntando as últimas forças, obrigou-se a continuar, correndo desesperadamente por entre as árvores.
Apenas o som súbito de seus pés sobre o concreto duro, depois do silêncio suave das agulhas de pinheiro, revelou que ele estava fora da floresta. Incrivelmente tinha chegado a uma estrada — mas não era a estrada para Pequeno Mailing. Era mais larga e havia marcas brancas no centro. Por um momento Matt sentiu alívio. Estava de volta ao mundo moderno. Um carro poderia aparecer. Olhou à esquerda e à direita. Nada. De repente soube que esse era o pior lugar para estar. Em espaço aberto, sem cobertura, sem ter onde se esconder dos cães.
Aonde poderia ir? A faixa de concreto dividia dois mundos. Atrás dele estava a floresta. Adiante algum tipo de charneca... selvagem e aberta. Lembrou-se do que estivera pensando. Um rio ou córrego. Atravessou a estrada e mergulhou no capim selvagem. Deu para ver imediatamente que o chão era úmido. Podia senti-lo, macio e pegajoso sob os pés. Correu e, enquanto corria, percebeu que o chão estava ficando mais molhado. Água fria entrava nos tênis, molhando seus pés.
Só percebeu o perigo quando era tarde demais. Parou cambaleando e ao mesmo tempo o chão cedeu totalmente. Ele foi sugado para baixo, incapaz de se mexer.
Areia movediça. Tinha ido direto para lá.
Matt gritou. Estava sendo puxado incrivelmente depressa. Sentia a lama e a gosma subindo acima dos joelhos e das coxas, depois na cintura e no peito, indo até os braços. Balançou os braços, mas o esforço só acelerou as coisas. A areia movediça o agarrou em volta da cintura e ele já podia imaginar o que aconteceria nos últimos instantes pavorosos de sua vida. A lama subiria até o rosto. Um último grito. Mas não haveria som. Ele seria silenciado para sempre com a gosma fedorenta entrando na boca e descendo pela garganta.
Matt se obrigou a ficar calmo. Sabia que lutar só faria o fim chegar mais depressa. Quase sorriu. Pelo menos havia enganado os cães. Tinha encontrado o único lugar onde eles jamais o pegariam. E, se tivesse de morrer, talvez fosse melhor assim.
Relaxou e nesse instante pensou ter sentido um cheiro... muito perto e, ao mesmo tempo, distante. Era cheiro de algo queimando. A fogueira? Não, ela estava longe demais. Poderia haver mais alguém ali na charneca? Suas esperanças cresceram e desmoronaram de novo. Não havia ninguém ali. O cheiro desapareceu. Tinha sido apenas sua imaginação.
A lama borbulhou ao redor e subiu até as axilas. O toque era frio, definitivo. Um fedor de terra e folhas podres chegou às suas narinas. Matt fechou os olhos e esperou o fim. Mas agora o atoleiro estava brincando com ele, esgueirando-se para cima centímetro a centímetro, puxando-o amorosamente num abraço.
O facho de luz o acertou antes mesmo que ele escutasse o ruído do motor. Um carro apareceu do nada. Tinha saído da estrada e agora estava parado à beira do pântano. Um homem saiu, praticamente invisível atrás da claridade dos faróis.
— Não se mexa! — ordenou uma voz. — Eu tenho uma corda.
Como se temesse perder a vítima, a areia movediça o apertou com mais força. Agarrava-se a ele gananciosamente, com as mãos se espalhando sobre os ombros do garoto, puxando-o para baixo.
— Depressa! — gritou Matt.
A lama estava tocando seu queixo. Matt forçou a cabeça para cima, desesperado, olhando a lua pálida que finalmente havia saído de trás das nuvens. Restavam apenas segundos.
O atoleiro puxava. A lama começou a cobrir a cabeça, até o nariz, e entrou nos olhos. Só sua mão estava acima da superfície e, então, ela foi alcançada pela ponta de uma corda que chegou voando. Sufocado, cego, Matt tentou agarrá-la. E conseguiu. Ele prendeu o fôlego e segurou com força.
E então foi puxado à tona. Os pulmões estavam estourando. Com um grito, abriu a boca e sugou. E respirou o ar. O homem continuou puxando a corda e ele se sentiu sendo arrastado para a frente. O peito saiu da borda do atoleiro com um som alto, de sucção. Matt agitou as pernas, ainda agarrado à corda. Uma mão forte o segurou e puxou para fora. Exausto, Matt desmoronou no chão firme.
Por um instante ficou ali, vomitando, tirando a água imunda de dentro do corpo. Olhou para cima e reconheceu Richard Cole, o jornalista da Gazeta de Grande Mailing.
— Você! — ofegou ele.
— Que diabo...
Richard estava igualmente surpreso.
— Como...
— O que você está fazendo?
As perguntas interrompidas pairavam no ar. Então Matt assumiu o controle da situação.
— Agora, não—disse ele. Estava pensando nos cães. Eles podiam ter perdido seu cheiro, mas logo iam achá-lo de novo. — Precisamos sair daqui.
— Certo. Você consegue entrar no carro?
Richard se inclinou e ajudou Matt a se levantar. Matt podia sentir a lama pingando. Imaginou qual seria sua aparência.
O carro estava parado no acostamento, com o motor ligado. Richard encostou Matt no capô, depois foi abrir a porta do carona. Havia pilhas de jornais velhos e revistas no banco da frente, e ele começou a jogá-los para trás, abrindo espaço. Matt contornava o carro para entrar quando os viu.
Os cães tinham saído da floresta. Estavam no meio da estrada. Observando. Esperando.
— Ali... —sussurrou Matt.
— O quê?
Richard girou e os viu. Os cães estavam a apenas dez metros de distância. As línguas penduradas, o hálito subindo em nuvens brancas. Seus olhos tremulavam. Richard levantou a mão.
— Cachorrinhos bonzinhos! Parados! — murmurou. Estendeu a mão para dentro do carro e alcançou uma lata. — Entre — disse.
— O que você vai...?
— Vou acabar com eles.
Com dificuldade, Matt sentou-se no banco da frente, os olhos fixos nos cães que esperavam. Água escorreu por baixo dele e pingou no carpete. Richard enfiou a mão no bolso e pegou um lenço. Lentamente, obrigando-se a não entrar em pânico, desatarraxou a tampa da lata e enfiou o lenço na abertura. Matt sentiu cheiro de gasolina. Richard achou um isqueiro. Os cães se aproximaram, subitamente cheios de desconfiança, e Matt percebeu que eles estavam se preparando para o salto final. Richard acendeu o isqueiro, encostou no lenço e jogou a lata na direção dos animais.
O primeiro cão tinha acabado de sair do chão quando a lata o acertou e explodiu em chamas. A gasolina acesa se esparramou sobre o segundo cão, incendiando-o. O fogo rugiu ao redor dos dois. Com um uivo fantasmagórico os cães caíram para trás, um deles se enrolando numa bola e o outro mordendo o próprio pêlo numa tentativa inútil de devorar a causa da agonia. O fogo fora seu criador. Agora o fogo os destruía.
Richard deslizou por cima do capo e chegou ao lado do motorista. Entrou no carro, bateu a porta, engatou a marcha a ré e pisou no acelerador. De início, as rodas traseiras patinaram, mas depois encontraram apoio, lançando o carro para trás. Matt sentiu uma sacudida quando passaram sobre o corpo de uma das criaturas agonizantes. Onde estava a outra? Olhou em volta e depois gritou quando, ainda em chamas, o bicho se chocou contra o pára-brisa, vindo de lugar nenhum. Por alguns segundos o cão permaneceu na frente dele, com os dentes pavorosos a centímetros de seu rosto. Então Richard mudou a marcha e girou o volante. O cão rodou para longe. Matt olhou pelo vidro traseiro. Os restos ainda em chamas de uma das carcaças estavam no meio da estrada. O segundo anima! tinha ficado preso nas rodas. Quando o carro acelerou o bicho foi lançado para o lado.
Percorreram oitocentos metros pela noite, sem falar. O carro estava tomado pelo cheiro do pântano. A água que pingava das roupas de Matt caía no banco e no chão. Richard fez uma careta e abriu a janela.
— Então, será que pode me contar o que era aquilo? Matt não sabia por onde começar.
— Acho que tem algo acontecendo em Pequeno Mailing. Richard assentiu.
— Acho que talvez você esteja certo.
A HISTÓRIA DE MATT
Richard Cole morava bem no centro de York. Tinha alugado um apartamento em cima de uma loja de souvenir numa das ruas medievais mais famosas da cidade; um beco bonito, calçado com pedras, chamado Mixórdia. O apartamento ocupava três andares, uma série de cômodos com formas estranhas empilhados um em cima do outro como um brinquedo de armar. No primeiro andar havia uma cozinha e uma sala. Depois um quarto com banheiro. E finalmente uma escada retorcida levava a um quarto de hóspedes, no sótão.
O lugar em si era uma mixórdia. Todos os móveis pareciam resgatados de um brechó — e boa parte realmente era. Havia roupas velhas em toda parte, pratos sujos empilhados na pia, CDs, livros, revistas e artigos escritos pela metade misturados de um modo que certamente tornaria impossível achar qualquer coisa. As paredes eram cobertas com cartazes, principalmente de filmes americanos. O laptop de Richard estava na mesa da cozinha, perto de uma caixa de cereais, uma lata pela metade de feijões cozidos, com o garfo ainda enfiado dentro, e dois pedaços de torrada muito fria.
Matt se sentira mal quando subira ao primeiro andar, e agora que estava no apartamento a sensação era ainda pior. Tinha consciência de que fedia. Richard deixou-o sozinho na cozinha e voltou com uma toalha grande.
— Podemos conversar mais tarde — disse ele. — Neste momento você precisa de um banho. E temos de nos livrar dessas roupas.
— Você tem uma máquina de lavar?
— Está brincando? Não existe máquina de lavar capaz de encarar essa gosma toda. Elas podem ir para o lixo e amanhã a gente compra outra. Enquanto isso vou arranjar umas roupas minhas para você usar. — Richard apontou para cima. — Você vai encontrar o banheiro facilmente. Está com fome?
— Morrendo.
— Bem, não tenho comida em casa. Vou sair e comprar alguma coisa enquanto você se troca.
Meia hora depois estavam sentados na sala, rodeados por comida chinesa do restaurante para viagem no fim da rua. Matt havia passado vinte minutos no chuveiro, só saindo depois de lavar todos os traços do pântano. Usava agora uma velha camiseta da Universidade de York com uma toalha enrolada na cintura e nada nos pés. Não tinha percebido o tamanho da própria fome até começar a comer. Agora sentia-se satisfeito.
— Belo lugar — disse, olhando em volta.
— Tive sorte de conseguir. É muito barato. Não que eu fique muito aqui. Normalmente gosto de comer no bar...
— Você mora sozinho?
— Tinha uma namorada até uma semana atrás. Infelizmente ela passou a gostar de música clássica.
— O que há de tão ruim nisso?
— Agora está namorando um cantor de ópera. — Richard foi à geladeira e pegou uma lata de cerveja. — Quer beber alguma coisa?
— Estou legal. — Houve um breve silêncio enquanto Richard se sentava outra vez. Matt percebeu que os dois tinham muito a explicar. — Como você me encontrou hoje?
Richard deu de ombros.
— Foi simples. Depois que você saiu do jornal pensei em algumas coisas que você disse. Tudo parecia bem estúpido, se quer saber da verdade. Mas havia partes da história... bem, que eu não conseguia tirar da cabeça. E não tinha mais nada para fazer.
— Então foi dar uma olhada na Ômega Um?
— Bem, digamos que eu estava passando por perto, por acaso.
— Você sabia onde era o lugar? Richard assentiu.
— O homem que construiu a usina ainda mora em York. Foi consultor científico do governo nos anos sessenta, mas agora está aposentado. Chama-se Michael Marsh.
— Você o conheceu?
— Há uns seis meses. Ele recebeu da rainha o título de cavaleiro e tive de fazer uma matéria. Mora num casarão perto do rio. Coleciona caixas de fósforos. Se a coisa piorar, talvez eu ligue para ele e possamos visitá-lo. Talvez ele consiga ajudar.
— Então você decidiu visitar a Ômega Um no meio da noite...
— Eu estava voltando do bar para casa. Qual é o problema? Estava perto, por isso resolvi dar uma passada. Ouvi alguém gritando por socorro e foi assim que encontrei você.
— Não é possível. — Matt balançou a cabeça. — Eu não gritei pedindo socorro.
— Eu ouvi.
— Posso ter gritado uma vez. Mas nem ouvi o seu carro. De repente você estava ali.
— Talvez você tenha gritado sem perceber, Matt. Quero dizer, você estava em pânico. Provavelmente estava fora de si. Sei que eu estaria.
— A que velocidade você dirigia?
— Uns oitenta. Não sei.
— As janelas estavam abertas?
— Não.
— Então, mesmo que eu gritasse, como você poderia ter _ ouvido minha voz? Não é possível.
— Tem razão — admitiu Richard. — Mas como explica que eu tenha saído da estrada exatamente no lugar certo e ido direto até você?
— Não sei — disse Matt em voz baixa.
— Olha... eu ouvi alguém, certo? Parei e você estava ali, enfiado até o pescoço em... — Ele parou. — Você tem sorte porque eu não decidi ficar no bar tomando mais uma. Mas, agora que está aqui, talvez possa me contar mais um pouquinho a seu respeito.
— Tipo o quê?
— Nem sei seu nome inteiro. Você disse que seus pais estão mortos, mas não contou como foi morar com essa mulher... a senhora Deverill. — Matt olhou para o lado. — Seria bom contar agora — Richard continuou. — Isso pode me ajudar a decidir o que fazer.
— Você vai me colocar no jornal?
— É a idéia, em termos gerais. Matt balançou a cabeça.
— Pode esquecer. Não quero ninguém escrevendo sobre mim. Não quero que ninguém saiba sobre minha vida.
— Acho que está esquecendo uma coisa, Matt. Foi você que me procurou. Você disse que tinha uma história.
— Eu precisava da sua ajuda.
— Bem, talvez nós precisemos um do outro.
— Não quero sair nos jornais.
— Então talvez não devesse estar no meu apartamento. — Richard pousou a lata de cerveja. — Está bem. Isso não é justo. Não vou expulsar você. Pelo menos esta noite. Mas, para ser honesto, não preciso de um garoto de quatorze anos na minha vida. Então vamos fazer o seguinte: conte sua história e eu prometo que não publico até você autorizar. Certo?
— Isso nunca vai acontecer — respondeu Matt. Mas acrescentou. — Certo.
Richard pegou um caderno e uma caneta, como tinha feito quando se conheceram no jornal. Sentou-se e esperou.
— Não sei direito por onde começar — disse Matt. — Mas, já que você perguntou, meu nome é Matthew Freeman. Fui mandado para ficar com a senhora Deverill por causa de um negócio chamado projeto LELAS.
— Projeto LELAS? — Richard já ouvira o nome. — Não é uma daquelas grandes idéias do governo? Uma espécie de esquema maluco para lidar com criminosos juvenis?
— Isso mesmo. É o que eu sou. Fui preso por invadir um armazém. Um homem foi esfaqueado.
— Você o esfaqueou?
— Não. Mas estava lá quando aconteceu. Me culparam. — Matt fez uma pausa. — Talvez agora você não fique tão ansioso para me ajudar.
— Por que não? Não dou a mínima para o que você fez. Só quero saber por que fez. — Richard suspirou. — Por que não experimenta começar do princípio? Talvez seja mais fácil.
— Certo. — Matt não queria fazer aquilo. Sua assistente social, Jill Hughes, sempre havia tentado fazer com que ele falasse sobre si mesmo". É preciso assumir a responsabilidade por quem você é." Era uma das coisas que ela sempre falava. Porém, quanto mais a mulher pressionava, mais relutante ele ia ficando, até que o relacionamento entre os dois se dissolveu num silêncio hostil. E agora esse jornalista estava pedindo o mesmo. Será que finalmente Matt havia encontrado um adulto digno de confiança? Esperava que sim, mas não tinha certeza.
— Não lembro muito dos meus pais — disse Matt. — Eu achava que lembraria. Eles só morreram há seis anos, mas pouco a pouco foram... sumindo. Não resta muita coisa deles. Acho que nós éramos felizes. A gente morava numa rua bem comum em Dulwich. Conhece? Fica no sul de Londres. Meu pai era médico. Acho que mamãe não trabalhava. Tínhamos uma casa boa, por isso acho que havia algum dinheiro. Mas não éramos muito ricos. A última vez que meus pais me levaram para viajar foi para acamparmos na França. Eu devia ter uns sete anos.
— Você tem algum irmão?
— Não. Éramos só nós três. E não havia muitos parentes. Meu pai nasceu na Nova Zelândia e a maior parte da família dele continua lá. Mamãe tinha uma meia-irmã chamada Gwenda, que morava em Ipswich. Ela visitou a gente algumas vezes, mas as duas não se davam bem. Gwenda não era parecida com ela. Quando eu era pequeno, achava ela bem chata. Nem sonhava...
Matt respirou fundo.
— De qualquer modo, minha mãe e meu pai morreram. Estavam indo de carro para um casamento em Oxford, a umas duas horas de distância. Eu também devia ir, mas no último minuto não me senti bem e fiquei com uma vizinha.
Matt parou. Richard notou que ele não estava contando toda a verdade sobre o casamento. Dava para ver. Mas preferiu não interrompê-lo.
— Houve um acidente — Matt. — Um pneu continuou estourou quando estavam atravessando uma ponte. Meu pai perdeu o controle do carro e eles caíram no rio. Morreram afogados. — Matt fez uma pausa. — Eu soube quando a polícia veio à casa. Só tinha oito anos, mas soube na hora.
"Depois disso, tudo é meio confuso. Passei um bom tempo, devem ter sido três ou quatro semanas, morando numa espécie de albergue. Todo mundo tentava ajudar, mas não havia nada que ninguém pudesse fazer. O verdadeiro problema é que não existia ninguém para cuidar de mim. Tentaram fazer contato com a família do meu pai na Nova Zelândia, mas ninguém quis saber.
"Então a única parente da minha mãe apareceu. Gwenda Davis, de Ipswich. Ela era meio que minha tia. Nós nos encontramos e ela me levou para almoçar. Fomos ao McDonald's. Lembro porque meu pai nunca me deixava comer esse tipo de comida. Dizia que era a pior coisa que alguém podia comer. De qualquer forma, ela me levou para lá, comprou um hambúrguer com fritas, e nós ficamos ali, sentados no meio do barulho e das mesas de plástico, com um palhaço enorme olhando para a gente enquanto minha tia perguntava se eu queria ir morar com ela. Respondi que não, mas no fim das contas a minha vontade não tinha importância, porque tudo já estava decidido. Fui morar com ela. — Ele fez uma pausa. — E com Brian.
Matt olhou Richard direto nos olhos.
— Prometa que não vai escrever sobre isso — disse ele.
— Já falei. Não vou escrever sobre nada, a não ser que você permita.
— Não vou permitir. Não quero que as pessoas saibam.
— Continue, Matt...
— A casa de Gwenda era realmente uma porcaria. Uma casa geminada, caindo pelas tabelas, com um quintal minúsculo cheio de garrafas. Brian era leiteiro. O lugar inteiro fedia. Todos os canos vazavam, as paredes eram úmidas e metade das luzes não funcionava. Gwenda e Brian não tinham dinheiro. Pelo menos até eu chegar. Foi por isso, saca? Minha mãe e meu pai tinham deixado tudo que possuíam para mim, e Gwenda passou a controlar o dinheiro. E, claro, gastou tudo.
Matt parou. Richard podia vê-lo olhando para o próprio passado. A dor estava bem ali, nos olhos.
— O dinheiro acabou bem depressa — continuou Matt. — Os dois torraram tudo com carros, viagens, esse tipo de coisa. E quando acabou eles ficaram cruéis. Especialmente Brian. Disse que teria sido melhor se eu nunca fosse para lá. Começou a encontrar defeito em tudo que eu fazia. Gritava comigo e eu gritava de volta. E então começou a me bater um bocado. Sempre tinha cuidado para não deixar marcas. Nenhuma que aparecesse.
"E então eu conheci o Kelvin, que morava na mesma rua e virou meu amigo. Kelvin estava sempre encrencado na escola. Tinha um irmão na cadeia e as pessoas sentiam medo dele. Mas pelo menos estava do meu lado... pelo menos era o que eu pensava. Era bom ter ele por perto.
"Mas no fim ele só piorou tudo. Comecei a faltar muito à escola e até os professores que tentavam ajudar desistiram de mim. A gente roubava lojas e claro que pegaram a gente. Foi aí que eu comecei a encontrar uma assistente social. A gente costumava pegar coisas nos supermercados. A gente nem precisava. Era só curtição. Kelvin gostava de arranhar carros novos... só para zoar. A gente fazia todo tipo de coisas juntos. E um dia nós dois invadimos um armazém para afanar uns DVDs e fomos apanhados por um segurança. Eu não devia ter entrado lá. Não devia estar lá. Gostaria de ter convencido o Kelvin a não ir.
Matt esfregou os olhos.
— De qualquer modo, você sabe o resto. Fui preso e achei que ia ser mandado para a cadeia. Mas no fim nem tive de ir ao tribunal. Eles me mandaram para Pequeno Mailing como parte dessa coisa chamada Projeto LELAS. Liberdade e Educado... é o que devia significar. Mas desde que cheguei tem sido tipo Lunáticos e Esquizofrênicos. Já contei sobre a senhora Deverill e o resto, e você não acreditou. Eu entendo. Eu também não acreditaria. Só que tive de viver isso. E o que eu contei, na sede do jornal... é tudo verdade.
— Por que acha que ela quer você?
— Não sei. Não faço a menor idéia. Mas acho que sei o que ela é. Acho que sei o que todos eles são.
— O quê?
— Você vai rir de mim.
— Não. Não vou.
— Acho que são bruxos. Richard riu.
— Você viu os cachorros! — protestou Matt. — Tá pensando que eles vieram do abrigo de animais? Eu vi como ela criou os dois. Jogou uma espécie de pó nas chamas e eles simplesmente apareceram. Foi que nem... magia!
— Foi uma ilusão.
— Richard... não foi tipo uma coisa da TV. Não havia uma garota vestida de lantejoulas. Eu vi os cachorros. Eles saíram do fogo. E isso?
Ele ainda estava usando o talismã. Arrancou-o e jogou na mesa. A chave dourada ficou virada para a luz. Richard olhou.
— É. Certo. Bruxos! Antigamente Yorkshire era cheia de bruxos... é verdade. Mas isso foi há quinhentos anos.
— Eu sei. Ela tem um quadro em casa. Uma espécie de ancestral. A senhora Deverill disse que ela foi queimada. Talvez tenha sido queimada como bruxa! — Matt pensou um momento. — Se havia bruxas há quinhentos anos, por que não pode haver agora?
— Porque nós crescemos. Não acreditamos mais em bruxas.
— Eu não acredito em bruxas. Mas o gato foi morto e voltou. Tom Burgess morreu e eu ouvi a voz dele no telefone depois. E houve um detetive de Ipswich...
— O que é que tem?
— O nome dele era Mallory. Disse que ia me ajudar. Discutiu com a senhora Deverill. E a próxima coisa que eu soube é que ele também estava morto. Morreu na estrada.
Houve um breve silêncio. Então Richard falou de novo:
— Eles não são bruxos, Matt. Podem pensar que são bruxos. Podem agir como bruxos. Podem ter feito você acreditar que são bruxos. Mas o que quer que esteja acontecendo em Pequeno Mailing é real. Tem algo a ver com a usina nuclear. E isso é ciência, não magia.
— E os cachorros?
— Geneticamente modificados. Mutantes. Não sei. Talvez tenham sido expostos a algum tipo de radiação.
— Então você não acredita em magia.
— Gosto de Harry Potter como todo mundo. Mas acreditar? Não.
Matt se levantou.
— Estou cansado. Quero ir para a cama. Richard assentiu.
— Pode ficar no quarto de hóspedes, lá em cima.
O quarto de hóspedes ficava no sótão da casa e estava cheio de entulho. Richard o usava para guardar tudo que não tivesse mais utilidade. Matt estava deitado num sofá-cama, enfiado sob um edredom, sentindo-se aquecido e sonolento. Ele estava olhando o teto inclinado acima da cabeça quando Richard entrar depois de bater na porta.
— Só queria ver se você estava legal — disse ele.
— Estou ótimo. — Matt girou. — O que você vai fazer? Quanto tempo posso ficar aqui?
— Não sei. Uns dois dias, talvez. — O rosto de Matt revelou frustração. — Eu disse, Matt. Você não pode ficar comigo. Não está certo. Nem conheço você. Mas quero ajudar. — Richard suspirou. — Devo estar maluco, porque as últimas duas pessoas que tentaram ajudar parecem ter morrido, e pessoalmente eu tinha outros planos. Mas pelo menos podemos dar uma olhada na Ômega Um. Quero dizer, esqueça as bruxas e aquela coisa toda. A velha usina parece estar no centro de tudo que vem acontecendo.
— Você disse que conhecia o homem que a construiu.
— Vou ligar para ele amanhã. Certo? Matt confirmou com a cabeça.
— Boa noite, então. Richard se virou para sair.
— Espere! — disse Matt. — Tem uma coisa que eu não contei a você.
Richard deteve-se de novo junto à porta.
— Você disse que queria saber quem eu sou, então é melhor saber. Minha mãe sempre falava que eu era estranho. Durante toda a vida me envolvi com todo tipo de coisas esquisitas. A Sra. Deverill e o resto todo... algumas vezes acho que isso era para acontecer. Que era para eu estar lá. Não sei por quê.
"Na véspera do dia em que minha mãe e meu pai morreram, eu tive um pesadelo. Costumava ter sonhos, mas aquele foi diferente. Eu vi a ponte. Vi o pneu estourar. Vi até a água entrando pelas janelas, enchendo o carro. Era como se eu estivesse no carro com eles. Foi horrível. Não conseguia respirar. — Ele parou. Nunca tinha contado isso a ninguém. — E quando acordei no dia seguinte soube que eles nunca chegariam ao casamento. Sabia que o acidente ia acontecer exatamente como aconteceu...
Matt hesitou. Esta ia ser a parte difícil.
— Meu pai era como você. Não acreditava em coisas como bruxas ou magia, em coisas que ele não podia entender. Acho que porque ele era médico. E eu sabia que, se contasse sobre o sonho, ele só ia ficar com raiva. Isso tinha acontecido antes... uma ou duas vezes, quando eu era bem pequeno. Papai só dizia que eu estava sendo bobo, deixando-me dominar pela imaginação. E talvez estivesse certo. Foi o que disse a mim mesmo. É só um sonho. Só um sonho. Tudo vai ficar bem. Não crie confusão com o papai...
"Por isso não falei nada.
"Mas fiquei apavorado demais para entrar no carro. Fingi que estava doente. Dei um chilique e fiz com que eles me deixassem com a senhora Green, a vizinha. Eu era muito novo. Não sabia o que estava acontecendo. Ainda não sei. Mas sei que sou diferente. Algumas vezes parece que sou capaz de fazer coisas impossíveis. Você não vai acreditar, Richard. Consigo quebrar uma jarra só olhando. Consigo! Já fiz isso. Sei quando uma coisa ruim vai acontecer, antes de acontecer. No armazém, sabia que o guarda estava lá. E esta noite! Talvez eu tenha conseguido chamar você, quando caí no pântano, sem abrir a boca. Não sei. É como se eu tivesse algum tipo de poder mas não pudesse controlar. Ele se liga e se desliga. Sozinho.
Matt bocejou. De repente sentia-se exausto. Não agüentava mais.
— Eu contei à Sra. Green. Contei que mamãe e papai não iriam voltar do casamento. Contei sobre o pneu. Sabia sobre a ponte e o rio debaixo dela. Ela estava sendo consertada. Até nisso acertei. Ela ficou com muita raiva de mim. Não queria ouvir aquilo. E o que ela ia fazer? Não podia ligar para os meus pais e dizer para não irem ao casamento. No fim, me mandou ir brincar no quintal. Não queria ouvir mais.
"Eu ainda estava no quintal quando a polícia chegou. E nunca vou esquecer a cara dela. Ficou horrorizada. Mais do que isso. Passou mal. E não só por causa do que tinha acontecido com meus pais. Ficou horrorizada e passou mal por minha causa.
"E o negócio, Richard, é que eu também não. Não acreditava em magia. Não acreditava em mim mesmo. E todo dia desde então, quase toda hora do dia, eu me pergunto por que não tentei alertar minha mãe e meu pai. Podia ter salvado a vida deles. Mas não disse nada. Deixei eles irem sozinhos. Todo dia acordo sabendo que a culpa é minha. É minha culpa eles não estarem mais aqui.
Matt se virou no colchão e ficou imóvel.
Richard olhou o garoto adormecido por um longo tempo. Depois apagou a luz e desceu em silêncio.
CIÊNCIA E MAGIA
Matt acordou lentamente e com uma sensação de relutância. Tinha sido seu melhor sono em semanas — pela primeira vez não houvera pesadelos.
Demorou alguns instantes para se acostumar ao ambiente desconhecido e se lembrar de onde estava. Os olhos viram um teto inclinado, uma janela estreita com o sol já brilhando forte do outro lado, uma caixa de livros de bolso velhos e um despertador indicando dez horas. Depois se lembrou dos acontecimentos da noite anterior. A usina nuclear, os cães, a perseguição na floresta. Tinha contado tudo a Richard Cole, até a verdade sobre o modo como seus pais haviam morrido. Durante seis anos conseguira viver com o conhecimento do que tinha feito.
Eu poderia ter avisado a eles. Não avisei.
E finalmente havia se aberto para um jornalista que provavelmente não acreditava nele. Agora desejou não ter feito isso. Estava sem graça. Lembrou-se de como Richard tinha descartado suas teorias sobre feitiçaria e magia. Não era surpresa. Se alguém tivesse lhe contado aquelas coisas, também não acreditaria.
No entanto...
Sabia o que havia acontecido. Tinha vivido tudo. Os cães tinham saído das chamas. Tom Burgess tinha morrido tentando alertá-lo.
E havia a questão de seus poderes.
Tinha visto o acidente de carro que matara seus pais antes de acontecer. Era o motivo para ainda estar vivo. E houvera outras coisas. O jarro d'água despedaçado no centro de detenção. E, na noite anterior, o modo como tinha conseguido fazer Richard parar o carro.
E se...
(Matt se recostou nos travesseiros. Suas mãos estavam chapadas no lençol.)
...e se ele tivesse algum tipo de capacidade especial? O relatório da polícia que havia encontrado no quarto da Sra. Deverill mencionava suas habilidades precognitivas. Com isso queriam dizer sua capacidade de ver o futuro. De algum modo a Sra. Deverill tinha conseguido uma cópia e por isso queria ficar com ele. Não por causa de quem ele era; por causa do que ele era.
Mas era ridículo. Matt tinha assistido aos filmes dos X-men e do Homem-Aranha no cinema. Super-heróis. Até gostava das histórias em quadrinhos. Estaria realmente fingindo que tinha algum tipo de superpoder? Nunca fora picado por uma aranha radiativa nem manipulado por um cientista louco em algum tipo de máquina espacial. Era apenas um adolescente comum que havia se encrencado.
Mas tinha quebrado a jarra d'água no centro de detenção. Tinha olhado para ela do outro lado do quarto e feito ela se quebrar.
Havia um vaso de vidro no parapeito da janela. Tinha uns 15 centímetros de altura, cheio de canetas e lápis. Matt se pegou olhando para ele. Certo. Porque não? Começou a se concentrar. Respirou devagar e num ritmo constante. Suas costas estavam apoiadas nos travesseiros. Sem se mexer, concentrou toda a atenção no vaso. Podia fazer aquilo. Se ordenasse ao vaso que se despedaçasse, ele explodiria ali mesmo. Tinha feito isso antes. Faria de novo. E faria outra vez para Richard, e depois disso o jornalista teria de acreditar.
Podia sentir os padrões de pensamento emanando da cabeça. O vaso preencheu sua visão. Quebra, porcaria! Quebra! Tentou imaginar o vidro explodindo, como se imaginar pudesse fazer com que a coisa acontecesse. Mas ele não se mexeu. Agora Matt estava trincando os dentes, prendendo o fôlego, tentando desesperadamente fazer o vaso se quebrar.
Parou. O peito afundou e ele virou a cabeça de lado. Quem ele achava que estava enganando? Não era nenhum Super-homem. Estava mais sub-garoto.
Havia roupas novas empilhadas junto ao pé da cama: jeans e uma camiseta de manga comprida. Richard devia ter entrado em algum momento da manhã. E, mesmo tendo ameaçado jogá-los fora, também tinha lavado os tênis de Matt. Continuavam úmidos, mas pelo menos estavam limpos. Matt se vestiu e desceu. Encontrou Richard na cozinha, preparando ovos cozidos.
— Eu estava imaginando quando você ia se levantar — disse Richard. — Dormiu bem?
— Dormi. Obrigado. Onde conseguiu as roupas?
— Tem uma loja aqui perto. Precisei adivinhar seu tamanho. — Ele apontou para a panela borbulhante. — Estou fazendo o café-da-manhã. Gosta de ovos moles ou duros?
— Tanto faz.
— Estão aí há uns vinte minutos. Acho que devem estar duros.
Sentaram-se à mesa e comeram juntos.
— Então o que acontece agora? — perguntou Matt.
— Neste momento precisamos ter cuidado. A senhora Deverill e seus amigos devem estar procurando você. Podem até ter chamado a polícia e informado seu desaparecimento. Se encontrarem você comigo, estaremos os dois encrencados. Não se pode simplesmente pegar um garoto de 14 anos hoje em dia e ficar com ele. Não que eu pretenda ficar com você. Assim que descobrirmos o que está acontecendo, adeus. Sem ofensa, mas aqui só tem espaço para um.
— Por mim, tudo bem.
— Andei ocupado esta manhã. Enquanto você dormia dei alguns telefonemas. O primeiro foi para Sir Michael Marsh.
— O cientista?
— Ele concordou em nos receber às onze e meia. Depois disso vamos a Manchester.
— Porquê?
— Quando você foi à redação do jornal, falou de um livro que tinha encontrado na biblioteca. Escrito por uma mulher chamada Elizabeth Ashwood. Ela é bem conhecida. Você provavelmente vai se interessar por isso, Matt. Ela escreve sobre magia e feitiçaria... esse tipo de coisa. Temos um dossiê sobre ela na Gazeta, e eu consegui falar com uma de nossas pesquisadoras. Ela me deu um endereço. Não tem número de telefone, infelizmente. Podemos ir até lá e ver o que ela tem a dizer.
— Fantástico. Obrigado.
— Não me agradeça. Se isso levar a uma história, eu é que vou agradecer.
— E se não levar?
Richard pensou um momento.
— Jogo você de volta no pântano.
Sir Michael Marsh tinha a aparência do cientista do governo que ele fora um dia. Agora estava velho, com mais de setenta anos, mas os olhos não tinham perdido nada da inteligência e pareciam exigir respeito. Mesmo sendo uma manhã de domingo, vestia-se formalmente com terno escuro, camisa branca e gravata azul-escura. Os sapatos estavam bem engraxados, e as unhas, bem-feitas. O cabelo tinha ficado prateado havia muito tempo, mas era cheio e bem cuidado. Estava com as pernas cruzadas, uma das mãos pousada no joelho, ouvindo o que os visitantes tinham a dizer.
Era Richard que estava falando. Vestia-se de modo mais elegante do que o usual. Tinha se barbeado e posto uma camisa limpa e um paletó. Matt estava ao lado dele. Os três ocupavam uma sala do primeiro andar, com grandes janelas dando para uma vista panorâmica do rio Ouse. A casa era de arquitetura georgiana, construída para impressionar. Havia algo quase cenográfico na sala, com sua escrivaninha de madeira envernizada, estantes com livros encadernados, lareira de mármore e poltronas antigas. E Richard estivera certo quanto à coleção de caixas de fósforos. Havia centenas delas nas paredes, exibidas em vitrines estreitas na parede. Tinham vindo de todos os países do mundo.
Richard havia apresentado uma versão bem resumida da história de Matt. Não contou a Sir Michael quem era o garoto ou como ele havia chegado a Pequeno Mailing. Em vez disso se concentrou nas coisas que Matt vira na Ômega Um. Por fim, ele parou. Matt queria ouvir o que Sir Michael diria.
— Você falou que havia luzes elétricas na usina — começou o cientista. — E que o garoto ouviu um zumbido.
— Sim, senhor.
— Ele viu um caminhão. Descarregando algum tipo de caixa.
— Sim.
— E que conclusões tirou de tudo isso, senhor Cole?
— Matt não podia ver muito bem na escuridão, Sir Michael. Mas disse que as pessoas que carregavam a caixa estavam usando roupas estranhas e largas. Imaginei se poderiam ser roupas anti-radiação.
— Você acha que alguém pode estar tentando ativar a Ômega Um?
— É uma possibilidade.
— Uma impossibilidade, devo dizer. — Ele se virou para Matt. — O que você sabe sobre energia nuclear, meu jovem?
— Não muito — respondeu Matt.
— Bem, deixe-me falar um pouquinho sobre isso. Tenho certeza que você não quer uma aula de física, mas é preciso entender. — Sir Michael pensou um momento. — Vamos começar com a bomba nuclear. Você sabe o que é, claro.
— Sei.
— Uma bomba nuclear contém um poder devastador. Pode destruir uma cidade inteira, como aconteceu na última guerra mundial, em Hiroshima. Em testes no deserto de Nevada, uma pequena bomba nuclear abriu uma cratera tão funda que dentro dela caberia o edifício Empire State. A força da bomba é a energia liberada na explosão. E essa energia resulta da divisão do átomo. Está acompanhando até agora?
Matt assentiu. Se estivesse na escola sua atenção já teria se desligado, mas desta vez estava decidido a ficar firme.
— Uma usina nuclear funciona mais ou menos do mesmo modo. Ela divide o átomo de um metal chamado urânio, mas em vez de produzir uma explosão, que é descontrolada, a energia é liberada gradualmente, na forma de calor. O calor é fantástico. Transforma água em vapor. O vapor move as turbinas de um gerador que produz eletricidade. É só isso que uma usina nuclear faz. Transforma calor em eletricidade.
— O que há de errado com o carvão? — perguntou Matt.
— Carvão, gás, óleo... é tudo muito caro. E um dia vão acabar. Mas o urânio é uma coisa incrível. Um pedacinho minúsculo, um pedacinho que caberia na sua mão, tem energia suficiente para manter um milhão de aquecedores elétricos funcionando sem parar durante 24 horas.
— Só que mataria você... se o segurasse na mão — disse Richard.
— Sim, senhor Cole. A radiação o mataria. Motivo pelo qual, quando o urânio é transportado, isso é feito em pesadas caixas forradas de chumbo.
— Como a caixa que eu vi! — disse Matt.
Sir Michael o ignorou.
— No coração de qualquer usina nuclear há um reator nuclear — continuou ele. — O reator é basicamente uma enorme caixa de concreto, e é nela que nossa explosão controlada acontece. O urânio é rodeado por varetas compridas chamadas hastes de controle. Quando você levanta as hastes de controle, a explosão começa. E, quanto mais alto você levantar, mais poderosa se torna a explosão.
"O reator é a parte mais perigosa da usina. É preciso lembrar o que aconteceu em Chernobyl, na Rússia. Basta um erro e você se arrisca ao que é conhecido como excursão, uma explosão capaz de matar centenas ou até milhares de pessoas e inutilizar uma enorme área por anos.
Matt pensou se era aquilo que eles estavam planejando. Será que a Sra. Deverill e os outros moradores do povoado queriam cometer algum ato de terrorismo? Não. Não fazia sentido. Se fosse isso, o que queriam com ele?
Sir Michael Marsh continuou:
— Quando o governo começou a pensar em construir usinas nucleares, há cinqüenta anos, fez uma série de estações experimentais onde poderia estudar os reatores em ação e garantir que fossem seguros. A Ômega Um foi a primeira dessas experiências e eu ajudei a projetá-la e construí-la. Funcionou por menos de dezoito meses. Depois que terminamos, fechamos tudo e deixamos para apodrecer na floresta de pinheiros ao redor.
— Talvez alguém queira fazê-la funcionar de novo—disse Richard.
— Não seria possível, por uma série de razões. — Sir Michael suspirou. — Comecemos com o urânio. Como tenho certeza que vocês sabem, não se pode simplesmente comprar urânio. Até ditadores em países como o Iraque acharam impossível conseguir suprimentos. Suponhamos que essas pessoas do povoado tivessem uma mina de urânio. Mesmo assim não adiantaria. Como processariam o material? Onde conseguiriam o conhecimento técnico e os recursos?
— Mas Matt viu alguma coisa...
— Ele viu uma caixa. Pelo que sabemos até agora, poderia conter material para um piquenique. — Sir Michael olhou o relógio. —Visitei a Ômega Um pela última vez há uns vinte anos. E não resta nada dentro. Tiramos tudo que pudesse ser perigoso quando desmontamos a usina. Foi um trabalho tremendo, garanto, transportar tudo para fora da floresta.
— Por que vocês a construíram lá? — perguntou Richard. O cientista pareceu momentaneamente perplexo.
— Como?
— Por que a construíram no meio da floresta?
— Bem, tinha de ser em algum lugar isolado. E há um rio subterrâneo que passa pela floresta. Essa foi a principal razão. Uma usina nuclear precisa de suprimento constante de água.
Não havia mais nada a ser discutido.
— Desculpe, Sir Michael — disse Richard enquanto se levantava. — Parece que estivemos desperdiçando seu tempo.
— De jeito nenhum. Achei tremendamente perturbador o que você e seu jovem amigo disseram. No mínimo parece que alguém está invadindo o que ainda é uma propriedade do governo. Vou contatar as autoridades competentes. — Ele se levantou. — Pessoalmente eu quis derrubar o prédio quando terminamos de usá-lo. Mas era caro demais. Como disse o ministro, a natureza é a melhor especialista em demolição. Mas, posso assegurar que não é possível sequer fazer uma fogueira decente naquele lugar úmido, quanto mais uma reação nuclear.
Sir Michael os levou à porta. Antes de abri-la, virou-se de novo para Matt.
— Você se interessa por filumenia?
— O quê?
Matt não sabia do que ele estava falando.
— Colecionar caixas de fósforos. Tenho quase mil. — Ele apontou para as paredes. — A marca Tekka, feita na índia. E aquelas ali são russas. Acho maravilhoso que uma coisa tão comum possa ser tão linda.
O cientista abriu a porta.
— Dêem notícias—disse ele. — Eu ligo para vocês quando tiver falado com a polícia e aviso se houver novidades.
Elizabeth Ashwood, autora de Passeios nos arredores de Pequeno Mailing, morava em Didsbury, subúrbio de Manchester. O endereço dado a Richard o levou a uma casa isolada, numa rua larga e cheia de árvores. Um portão e um caminho conduziam os visitantes através de um jardim perfeitamente cuidado, com várias flores de primavera. Havia uma aldrava na porta da frente, na forma de punho. Richard levantou-a e deixou-a cair. Um estrondo oco soou na casa e, um minuto depois, a porta se abriu.
Uma mulher magra, de cabelos escuros, estava ali, não olhando para ele, e sim através dele. Os olhos estavam cobertos por dois círculos de vidro preto. Matt achou que ela tinha uns trinta e cinco anos. Jamais havia conhecido uma pessoa cega. Imaginou como seria viver numa noite perpétua.
— Sim? — disse ela, impaciente.
— Oi. — Richard sorriu sem necessidade. Ela não podia vê-lo, obviamente. — A senhora é Elizabeth Ashwood? — perguntou.
— Sou Susan Ashwood. Elizabeth era minha mãe.
— Era?
Richard não conseguiu disfarçar o desapontamento na voz.
— Ela morreu há um ano.
Então era isso. Tinham ido até ali por nada. Matt estava pronto para dar a volta e retornar ao carro, mas de repente a mulher continuou.
— Quem são vocês?
— Meu nome é Richard Cole — disse Richard. — Sou jornalista da Gazeta de Grande Mailing.
— Vocês são dois.
— Sim.
Como ela sabia? Matt não tinha feito nenhum barulho.
— Um garoto... — A mão dela se estendeu e, de algum modo, encontrou o braço de Matt. — De onde você veio? Por que está aqui?
Matt se retorceu, incomodado pela mão que o segurava.
— Vim de Pequeno Mailing. Queríamos saber sobre um livro que sua mãe escreveu.
— Entrem — disse a mulher. — Posso ajudá-los. Mas vocês devem entrar.
Matt olhou para Richard e deu de ombros. Os dois entraram.
A Srta. Ashwood os levou por um corredor largo e arejado. A casa era vitoriana, mas fora cuidadosamente modernizada com piso de carvalho, iluminação indireta e janelas que iam do chão ao teto. Havia quadros nas paredes — principalmente valiosas pinturas abstratas. Matt não conseguiu deixar de pensar para quem seriam, já que a dona não podia ver. Claro, sempre era possível que a mulher tivesse marido e filhos. No entanto, quando estava na porta da frente, ele teve a impressão de que aquela era uma pessoa que vivia sempre sozinha.
Ela os levou a uma sala com sofás baixos, de couro, e sinalizou para se sentarem. Um piano de cauda, polido num preto brilhante, ocupava um canto.
— Qual dos livros de minha mãe os trouxe aqui? — perguntou.
— Era um livro sobre Pequeno Mailing — disse Richard. Matt decidiu ir direto ao ponto:
— Precisamos saber sobre o Portal do Corvo.
A Srta. Ashwood ficou totalmente imóvel. Era difícil decifrar suas emoções por trás dos óculos escuros, mas Matt podia sentir a empolgação dela.
— Então você me encontrou... — sussurrou a mulher.
— A senhorita sabe o que é?
Susan Ashwood não respondeu. Os dois círculos pretos estavam fixos em Matt. Ele se sentiu desconfortável, querendo se mexer. Sabia que ela não podia enxergar nada. Desejou que não o encarasse daquele jeito.
— Você é médium — disse Richard.
— O quê? — perguntou Matt.
— A senhorita Ashwood fala com fantasmas — explicou Richard. — Ou pelo menos acredita nisso.
— Falo com os mortos do mesmo modo como estou conversando com vocês agora. E se vocês pudessem ouvi-los saberiam que há um grande levante no mundo dos mortos. Coisas terríveis estão para acontecer. Já estão acontecendo, na verdade. Foi isso que os trouxe à minha casa.
— O que me trouxe à sua casa — corrigiu Richard — foi a estrada M62 vindo de Leeds. E parece que perdi meu tempo. — Ele se levantou. — Vamos! — disse a Matt.
— Se saírem desta sala sem ouvir o que tenho a dizer estarão cometendo o maior erro de sua vida.
— Isso é o que você diz!
— Vocês estão envolvidos em algo maior e mais incrível do que qualquer coisa que possam imaginar. Gostando ou não, começaram uma jornada sem saber, e não existe volta.
— Estou voltando agora mesmo — disse Richard.
— O senhor pode fazer pouco disso, mas não tem idéia do que está acontecendo. Sinto pena do senhor, senhor Cole. Porque, veja bem, há dois mundos. O mundo que o senhor entende e o mundo que o senhor não entende. Esses mundos existem lado a lado, algumas vezes separados apenas por centímetros, e a grande maioria das pessoas passa toda a vida em um deles sem perceber o outro. É como viver de um dos lados de um espelho. A gente pensa que não há nada do outro lado, até que um dia um interruptor é apertado e de repente o espelho fica transparente. A gente vê o outro lado. Foi o que aconteceu no dia em que vocês ouviram falar do Portal do Corvo. Nada mais será igual. Vocês começaram uma jornada. Devem continuar até o fim.
— O que é exatamente Portal do Corvo? — perguntou Matt.
— Não posso dizer. Sei o quanto isso soa injusto, mas vocês precisam entender. — Srta. Ashwood respirou profundamente. — Eu faço parte de uma organização — continuou ela. — Creio que você poderia dizer que é uma sociedade que cuida de segredos.
— Como a M16... certo? — resmungou Richard.
— Nós nos denominamos Nexo, Sr. Cole. E se você soubesse mais sobre nós, quem somos, o que representamos, talvez o senhor fosse um pouco menos sarcástico. Bom, por mais que eu queira, não posso falar por decisão minha. Você têm que ir a Londres comigo. Há um homem que vocês precisam conhecer. Seu nome é professor Sanjay Dravid.
— Dravid! — Matt reconheceu o nome. Ele tinha ouvido em algum lugar antes.
— Isso é ridículo — insistiu Richard. — Por que você quer nos arrastar até Londres? Por que não pode nos contar o que queremos saber aqui e agora?
— Porque eu fiz um juramento de que nunca falaria sobre isso com ninguém. Todos juramos. Mas se vocês forem comigo a Londres, se conhecerem o Nexo, poderemos ajudá-los. Vocês querem saber sobre o Portal do Corvo? Contaremos tudo que quiserem saber... e muito mais.
— E quanto custa para nos filiarmos ao Nexo? — disparou Richard.
A Srta. Ashwood se empertigou na cadeira e Matt percebeu o quanto ela estava irritada. Seus punhos estavam cerrados. Sua voz estava gelada quando voltou a falar.
— Sei o que você pensa de mim — começou.— Acha que eu sou uma trambiqueira. Eu fico sentada nesta casa tentando assustar as pessoas, enganá-las para arrancar dinheiro. Eu digo que sou paranormal, portanto devo ser uma fraude. Conto histórias sobre fantasmas e espíritos e as pessoas crédulas acreditam. — Ela fez uma pausa. — Você acredita em mim, não é, Matt? Você sabe sobre magia. Senti seu poder no instante em que você chegou. Jamais sentia tanta força.
— Onde encontramos o professor Dravid? — perguntou Matt.
— Em Londres. Eu disse se vocês não querem vir comigo, ao menos me digam seu telefone. Ele vai falar com vocês.
— Não vou dar meu número para ninguém — disse Richard. — Não me importa o que diga, senhorita Ashwood. Viemos aqui com uma pergunta simples. Se não vai respondê-la, é melhor irmos embora.
— O professor Dravid está no Museu de História Natural em South Kensington. É onde vocês vão encontrá-lo.
— Claro. Mandaremos um cartão-postal para a senhorita. Richard se levantou e praticamente arrastou Matt para fora da sala. O carro estava parado diante da casa. Entraram e Richard procurou as chaves no bolso. Matt podia ver que ele estava irritado.
— Um homem chamado Dravid me contatou — disse Matt.
— O quê?
— Quando estava na biblioteca em Grande Mailing. Entrei na Internet e ele apareceu. Você sabe... numa janela pop-up.
— O que ele disse?
— Eu estava fazendo uma busca sobre o Portal do Corvo e ele quis saber por quê.
— O que você contou?
— Não contei nada.
— Bem, pode se esquecer dele. — Richard havia encontrado a chave. Ligou o carro e começaram a andar. — Não vamos a Londres, Matt. Não acredito que trouxe você de York até aqui para falar com uma mulher que obviamente é doida de pedra. Não vai me dizer que acredita nela, vai?
Matt olhou para trás e viu a casa desaparecendo.
— Fico imaginando se...
HISTÓRIA DESNATURAL
O táxi deixou-os diante do Museu de História Natural, no oeste de Londres. Richard pagou a corrida.
— Não sei como deixei você me convencer — disse ele.
— Não disse nada — protestou Matt.
— Você é que queria ver o tal de Dravid.
— Foi você que ligou para ele.
Era verdade. Quando voltaram a York, Richard fizera uma pesquisa sobre Dravid na Internet. Por acaso o professor tinha reputação internacional. Nascido na cidade indiana de Madras, tinha se tornado especialista mundial em antropologia, etnologia, pré-história e uma dúzia de outras áreas relacionadas. Havia escrito livros e apresentado programas de televisão. Seu nome levara a mais de uma centena de sites, o mais recente falando de uma exposição sobre dinossauros que seria inaugurada no museu em menos de uma semana. Dravid a havia organizado e tinha preparado o catálogo.
No fim das contas, Richard decidira ligar para ele. Achou que receberia uma recusa. Talvez até esperasse isso. Mas Dravid se mostrara ansioso por encontrá-lo. Marcaram para o dia seguinte, às seis horas, depois do fechamento do museu.
Matt examinou o enorme prédio vitoriano. Parecia algo saído de um conto de fadas, com seus tijolos laranjas e azuis, as torres góticas e a coleção de estranhos animais de pedra se projetando de cada reentrância e cada canto. Havia um jorro de pessoas saindo pela porta principal, descendo pelos caminhos em curva, passando pela fileira de postes de ferro fundido e chegando aos gramados de cada lado.
— Vamos entrar — disse Richard.
Foram até o portão onde havia um segurança bloqueando o caminho.
— Sinto muito— disse ele. — Vocês chegaram tarde para hoje...
— Temos hora marcada com o professor Dravid — explicou Richard.
— Professor Dravid? Sim, senhor. Claro. Pode perguntar no balcão de informações.
Subiram a escadaria e entraram. Certamente havia muitos dinossauros. Quando Matt entrou no museu, foi recebido pelo crânio preto de uma criatura enorme. O crânio ficava no fim de um pescoço alongado, suspenso num arco acima da entrada. Matt olhou ao redor. O esqueleto do dinossauro era a peça central num vasto salão que, com muitos arcos, teto de vidro e aço, escadaria ampla e piso de mosaico, parecia um cruzamento entre uma catedral e uma estação ferroviária.
Foram ao balcão de informações, que, como o resto do museu, já estava fechando.
— Meu nome é Richard Cole. Vim encontrar o professor Dravid.
— Sim. 0 professor está esperando. Ele tem uma sala no primeiro andar.
Um segundo guarda apontou uma escada de pedra que levava a um balcão acima do saguão de entrada. Foram até lá, passando por muitos outros esqueletos de dinossauros, alguns em vitrines, outros livres. Algumas pessoas passavam, de saída. O museu parecia maior e mais misterioso, agora que estava vazio. Subiram a escadaria de pedra e continuaram por um corredor que levava até uma imponente porta de madeira. Richard bateu e os dois entraram.
O professor Sanjay Dravid estava sentado no meio de uma sala com pilhas altas de livros, revistas, pastas e maços de papéis soltos. As paredes eram cobertas de gráficos, tabelas e mapas. Ele digitava algo num laptop, trabalhando numa mesa também atulhada de papéis, dezenas de espécimes em caixas de vidro, pedaços de ossos, cristal e pedras. Era um homem de quarenta e muitos anos, na avaliação de Matt. O cabelo era preto e bem aparado e ele tinha olhos muito escuros e com olheiras. O paletó estava pendurado no encosto da cadeira.
— Professor Dravid? — perguntou Richard. O homem ergueu a cabeça.
— Você é Richard Cole? — Ele terminou de digitar a frase, apertou ENTER e fechou o laptop. — Susan Ashwood telefonou depois de ter se encontrado com vocês. — A voz dele era calorosa e muito culta. — Fico feliz por terem feito contato.
— Como o senhor conhece a senhorita Ashwood?
— Nós nos conhecemos há muitos anos. — Dravid se virou para Matt, examinando-o minuciosamente. — E você deve ser Matt. Ninguém me disse seu nome todo.
— Sou só Matt.
— Bem, por favor, sentem-se. Desculpem se não posso oferecer nada. Há uma lanchonete aqui, mas obviamente está fechada agora. Espero que tenham comido no trem...
Richard e Matt se sentaram diante da mesa.
— Qual é o tema da exposição? — perguntou Richard.
— Sem dúvida é a exposição de fósseis de dinossauros mais notável já reunida em Londres — respondeu Dravid. — Viram o diplódoco quando entraram? — Ele falava muito depressa e o tempo todo seus olhos permaneciam fixos no garoto. Matt sentia-se avaliado, examinado. — É muito difícil não ver. Tem cerca de 150 milhões de anos e provavelmente é o animal mais comprido que já existiu. Foi mandado dos Estados Unidos, osso por osso, só para a exposição. E há um ceratossauro de primeira linha, uma descoberta recente. Seria capaz de despedaçar você em segundos, se estivesse vivo. E há os espécimes do museu. Um esqueleto de paraciclotossauro praticamente intacto. Parece um crocodilo, mas não tem qualquer parentesco.
Ele parou de repente.
— Mas, claro, não é por isso que vocês estão aqui.
— Queremos saber sobre o Portal do Corvo — disse Richard.
— Foi o que a senhorita Ashwood me disse.
— Ela não quis contar nada. Mencionou algo chamado Nexo. E disse que precisávamos encontrar o senhor.
— O senhor sabe o que é? — perguntou Matt,
— O Nexo? Sim, sei.
— Pode contar?
— Depende. Não tenho plena certeza... Matt perdeu as estribeiras.
— Por que ninguém quer me ajudar? O senhor fica aí sentado, batucando no laptop e falando de dinossauros. Não sabe o que eu passei. Fui largado em Yorkshire. Fui jogado de um lado para o outro e aterrorizado. E as únicas pessoas que tentaram me ajudar terminaram mortas. Richard não me quer por perto e agora viemos até aqui e o senhor também não está dizendo nada. O senhor é que quis se encontrar conosco. Por que não diz o que queremos saber?
— Ele está certo — concordou Richard. — Três horas e meia num trem até King's Cross, para não mencionar o preço das passagens. O senhor tem de fazer com que valha a pena.
Dravid tinha ficado em silêncio durante todo esse tempo. Agora olhava Matt com mais atenção.
— Matt... Imagino que você seja o garoto da Internet...
— Na biblioteca de Grande Mailing. É. Como o senhor soube que eu estava fazendo uma busca sobre o Portal do Corvo?
— É um programa de computador bem simples. Sempre que alguém, em qualquer lugar do mundo, digita essas duas palavras, sou informado imediatamente.
— Por quê?
— Não posso dizer. Por enquanto. E peço desculpas por desconfiar de você, Matt. Nós vivemos num mundo com tantos perigos que precisamos ter cuidado com as pessoas em quem confiamos. Por favor, tenha paciência comigo por um momento. Há coisas que preciso perguntar. — Ele fez uma pausa. —Você estava em Grande Mailing. É lá que você mora?
— Não. Estou morando em Pequeno Mailing. É um povoado...
— Conheço Pequeno Mailing — interrompeu Dravid. — Há quanto tempo você está lá?
— Não sei. Umas três semanas.
Dravid juntou as mãos embaixo do queixo.
— Você precisa me contar tudo. Quero saber tudo que aconteceu. Preciso saber exatamente o que o trouxe aqui, hoje. — Ele se recostou na cadeira. — Comece do princípio e não deixe nada de fora.
Havia apenas um guarda no turno da noite do museu. Deviam ser quatro, mas, como muitas instituições de Londres, o corte de verbas tinha levado a reduções. Dois haviam sido demitidos e um estava doente. O guarda que restava tinha vinte e poucos anos. Chegara recentemente à Inglaterra, vindo da Bulgária. Não falava inglês muito bem, mas estava aprendendo. Gostava de Londres. Só não gostava muito do emprego. Achava assustador patrulhar o museu. Havia todos aqueles ossos de dinossauros... o que já era bem ruim. Mas as criaturas nas caixas de vidro eram ainda piores: ratos, leopardos, águias e corujas empalhados. Aranhas, escorpiões e gigantescos besouros alados. Dava para sentir os olhos deles acompanhando-o durante as rondas. Deveria ter arranjado emprego no McDonald's ou no KFC. O salário só seria um pouquinho pior.
Tinha acabado de passar pelo portão principal quando ouviu um som fraco, como um graveto se quebrando. E agora? Estava ficando escuro e não havia luar naquela noite.
— Quem é? — gritou.
Levantou a cabeça e sorriu sozinho, apagando a lanterna de novo. A lâmpada de um dos lampiões ornamentados, acesa para a noite, tinha estourado. Fora o que ouvira.
— Estou com medo — murmurou consigo mesmo. Era uma frase que tinha aprendido um dia antes na escola para estrangeiros. — Ele está com medo. Não estamos com medo.
Uma segunda lâmpada se apagou. Depois uma terceira, em seguida uma quarta. Rapidamente a escuridão abriu caminho por toda a fila de postes, arrancando a vida das lâmpadas até não restar nenhuma acesa. O guarda estremeceu. Repentinamente estava muito frio. Soltou o ar e viu a respiração virar fumaça. Era loucura. Era quase fim de abril, mas parecia que o inverno tinha acabado de retornar.
Apertou o interruptor da lanterna. A lâmpada explodiu em sua mão, com fumaça cinza se espalhando atrás do vidro. Foi então que o guarda decidiu considerar o trabalho encerrado. O museu tinha um sofisticado sistema de alarme — podia se virar sozinho. E se ele fosse demitido? E daí? Sempre poderia conseguir o emprego no KFC.
O guarda destrancou o portão e passou depressa, depois atravessou a rua, desviando-se do tráfego até a estação de South Kensington. Não viu as sombras se estendendo ao redor do museu nem a névoa suave e branca que escorria sobre o gramado. Só sabia que queria ir embora. Não olhou par; trás nenhuma vez.
Matt terminou a história. Estremeceu no frio súbito, mas nem Richard nem o professor pareceram notar.
— Bem, o que acha? — perguntou Richard.
O professor Dravid acendeu a luminária da mesa.
— É quase impossível de acreditar — disse ele. — De um armazém em Ipswich a Pequeno Mailing e até aqui. Ninguém acreditaria. Mesmo para você deve ser incompreensível. Vai direto ao ponto, Matt, você está aqui por um motivo. Não existem coincidências. Tudo está acontecendo como o previsto.
— Mas o que está acontecendo? — perguntou Matt. — O que a senhora Deverill e o resto estão fazendo em Pequeno Mailing? O que é o Portal do Corvo?
— Não vamos sair enquanto o senhor não contar — acrescentou Richard.
— Claro que vou contar. — Dravid olhou para Matt. Havia algo de estranho em seus olhos; um sentimento de perplexidade e espanto reverente. Era como se Dravid estivesse esperando para conhecê-lo durante toda a vida.
— Se eu contasse a qualquer outra pessoa o que vou dizer agora — começou ele —, minha reputação, tudo por que trabalhei, desapareceria do dia para a noite. Não faz sentido. Não no mundo real. Susan Ashwood pode parecer excêntrica para vocês. Vocês podem ter achado que ela era uma fraude. Mas ela estava certa. Há outro mundo. Estamos rodeados por ele. Há uma história alternativa tão viva nas ruas da Londres do século XXI quanto estava quando tudo começou, há muitos milhares de anos. Mas só os malucos e excêntricos supostamente acreditam nisso porque, convenhamos, assim todo mundo se sente mais seguro...
"O Portal do Corvo está no coração dessa história alternativa. Poucas pessoas ouviram falar dele. Procurem na Internet, como você fez, e não vão encontrar nada. Mas isso não o torna menos real. É o motivo para vocês estarem aqui agora. Pode até ser o motivo pelo qual você nasceu.
Dravid parou. A sala parecia cada vez mais escura. A luminária da mesa só havia empurrado as sombras um pouquinho. Elas continuavam ali, esperando.
— Portal do Corvo foi o nome dado a um estranho círculo de pedras que ficava, até o fim da Idade Média, perto de Pequeno Mailing. Foi mencionado no livro de Elizabeth Ashwood... a única ocasião, que eu saiba, em que surgiu em qualquer publicação. Pedras em pé não são exclusividade de Pequeno Mailing, de modo algum. Há pelo menos seiscentos exemplos na Grã-Bretanha. O mais famoso é Stonehenge em Wiltshire.
"Vocês precisam lembrar como todos esses círculos de pedras são misteriosos. Pensem em Stonehenge. Ninguém tem certeza de por que ele foi construído. Deve ter havido um propósito. Afinal de contas, foi necessário um milhão e meio de homens-hora para construí-lo. As pedras, algumas pesando até cinqüenta toneladas, foram carregadas por toda a Inglaterra, e a construção exigiu um fantástico conhecimento de engenharia. Obviamente não foi posto ali somente como decoração.
"Alguns dizem que Stonehenge é um templo. Outros dizem que é uma espécie de computador de pedra ou mesmo um gravador mágico. Outros mais acreditam que é um observatório e que pode calcular o tempo exato de um eclipse solar. Há dezenas de teorias diferentes. Mas o negócio é que, mesmo no século XXI, com todo o nosso conhecimento e nossa ciência, ninguém tem certeza.
— Mas o senhor sabe — disse Richard. Dravid assentiu, sério.
— Sei. — Ele se inclinou para a frente. — Stonehenge tem quatro ou cinco mil anos de idade. Mas não foi o primeiro círculo de pedras construído. Na verdade não passava de uma cópia de outro que existia havia muito mais tempo. O Portal do Corvo foi o primeiro círculo de pedras, e todos os posteriores não passavam de imitações.
— Onde ele está? — perguntou Matt. — O que aconteceu?
— Muitos círculos de pedras da Grã-Bretanha foram destruídos com o passar dos anos. Alguns foram derrubados por fazendeiros que precisavam da terra para agricultura. A disseminação das cidades acabou com outros. Alguns simplesmente desmoronaram ou se desfizeram no correr dos anos.
"Mas uma coisa muito estranha aconteceu com o Portal do Corvo. Em algum ponto da Idade Média ele foi deliberadamente derrubado e despedaçado. Mais do que isso. Cada uma de suas pedras foi moída até virar pó. O pó foi posto em carroças e levado aos quatro cantos da Grã-Bretanha: norte, sul, leste e oeste. Então foi jogado no mar. Algo no círculo parecia tão apavorante, tão maligno, que o povo que realizou esse trabalho fantástico estava decidido a separar cada grão. Ninguém jamais falou sobre ele de novo. Era como se o Portal do Corvo jamais tivesse existido.
— Então como o senhor ficou sabendo? — perguntou Richard.
Matt achou que ele estava desconfiado.
— Você é jornalista, Richard. Obviamente acha que, se algo não foi escrito, não pode ser verdadeiro. Bem, houve alguns registros escritos. O diário de um monge espanhol. Um relevo num templo. Algumas cartas e outros documentos. E, claro, sempre houve uma forte tradição oral. Como fiquei sabendo? — Dravid deu um meio sorriso, mas seus olhos pareciam sombrios e sérios. — Eu pertenço a uma organização, pode chamar de sociedade secreta se quiser, e nós mantivemos a história viva durante séculos. Passamos de geração em geração. Esta sociedade chama-se Nexo.
Havia uma jarra d'água na mesa. Dravid estendeu a mão e encheu um copo. Bebeu metade e continuou:
— Há 12 membros no Nexo, como sempre houve. Por sinal, nexo significa conexão. E acho que somos conectados pelo que sabemos. Susan Ashwood é membro, e há outros dez, além de mim, espalhados por todo o mundo. Na hora certa, você vai conhecê-los, Matt. Eles certamente querem conhecê-lo. Todo o objetivo do Nexo, o motivo de sua existência, é ajudá-lo com o que você tem de fazer.
— O que eu tenho de fazer? — perguntou Matt. — Você está falando sobre coisas que aconteceram milhares de anos atrás. Por que está me contando isso agora?
— Eu estava prestes a explicar. Mas não é fácil. Sei o quanto é difícil para você estar no meio disso tudo.
O professor Dravid terminou de beber a água enquanto juntava os pensamentos.
— Há alguns que acreditam que existiu uma grande civilização neste planeta antes do império grego de 600 antes de Cristo. Antes mesmo dos egípcios, que tinham florescido dois mil anos antes. Estou falando do tempo de Atlântida, talvez remontando a dez mil anos atrás. De certo modo, acho, estou falando do início do mundo que conhecemos hoje.
"Essa primeira civilização foi destruída... lenta e deliberadamente. Criaturas de poder e maldade inimagináveis chegaram ao mundo. Eram chamados de Antigos, e seu único desejo era ver dor e sofrimento em toda parte. A Igreja cristã fala de Satã, Lúcifer e todos os outros demônios. Mas isto são apenas lembranças do mal maior, do mal original: os Antigos. Eles prosperavam no caos. Assim que chegaram ao planeta, começaram uma guerra. Torturando, matando, causando destruição em massa por onde andavam. Esse era seu único prazer. Se tivessem conseguido o que desejavam, teriam reduzido o mundo inteiro a um pântano vazio.
"Mas, segundo as histórias, houve um milagre, que chegou na forma de cinco jovens: quatro garotos e uma garota.
"Ninguém sabe de onde eles vieram. Não têm nomes. Nunca foram descritos. Mas juntos organizaram a resistência aos Antigos. O que restou da humanidade se juntou atrás dos cinco e houve uma única batalha final em que o futuro do mundo seria decidido.
"As cinco crianças venceram a batalha. Os Antigos foram expulsos, mandados a outra dimensão, e uma barreira, um portão mágico, foi construída para garantir que jamais voltassem. Esse portão assumiu a forma de um círculo de pedras, que mais tarde passou a ser conhecido como Portal do Corvo.
— Espere um minuto — interrompeu Sr. Cole. — O senhor disse que o Portal do Corvo foi destruído porque era maligno.
— Eu disse que ele foi destruído porque as pessoas o achavam maligno — corrigiu o professor Dravid. — Estavam enganadas. Elas lhe deram este nome, Portal do Corvo, porque os corvos sempre foram associados à morte. As pessoas tinham uma lembrança que ligava as pedras a algo horrível... mas, depois de tantos anos passados, esqueceram o que aquilo era. E no fim passaram a achar que as próprias pedras eram malignas. Por isso as arrancaram.
— Então o portal foi destruído! — exclamou Matt. O professor Dravid balançou a cabeça.
— As pedras foram destruídas, não o portal. Como posso explicar? É como uma idéia. Se você escrever alguma coisa num papel e depois queimar o papel, você queima a idéia? Claro que não! As pedras se foram, mas o portal continua no lugar.
Richard balançou a cabeça.
— Deixe-me entender direito, professor"". Há muito tempo o mundo era governado por criaturas malignas chamadas de Antigos. Cinco garotos apareceram e as expulsaram. Então essas crianças montaram uma barreira que passou a ser conhecida como Portal do Corvo. Infelizmente as pedras que marcavam o portal foram derrubadas por camponeses medievais que não sabiam o que estavam fazendo. Mas isso não importa muito, porque o portal continua lá, de qualquer maneira. É isso?
— Seu sarcasmo não lhe dá crédito, Sr. Cole — respondeu Dravid. — Mas você resumiu o que eu disse com uma certa precisão.
— A senhorita Ashwood sabia disso — disse Matt.
— Sim. Como expliquei, nós compartilhamos nosso conhecimento. Juramos não revelá-lo. Por isso ela não pôde contar nada quando vocês se conheceram.
— Mas o senhor contou—continuou Matt. — Disse que o principal motivo do Nexo é me ajudar com algo que tenho de fazer. Mas não tenho idéia do quê — ou do que isso tudo tem a ver comigo?
— Acho que você sabe.
— Não! — Matt o encarou. — O senhor está errado.
— Então você deve se encontrar com o Nexo. Os outros membros estão vindo para Londres. Estarão aqui amanhã à noite. Vou cuidar de vocês até lá.
— Esquece — disse Richard. — Nós temos as passagens de volta. Vamos retornar a York.
— É a última coisa que vocês devem fazer. Não devem chegar perto de Pequeno Mailing. — Ele se virou de novo para Matt. — Não quero amedrontá-lo mais ainda. Mas acho que você corre um perigo terrível.
— Porquê?
— Eu expliquei por que o Portal do Corvo foi construído. Era uma barreira entre dois mundos. E foi trancado. Mas há muitos séculos pessoas tentam abri-lo de novo. Claro que não é fácil. Tiveram de desenvolver um conhecimento especial... poderes especiais.
— Quer dizer, magia — disse Matt.
— Estamos a apenas dois dias do início do Roodmas, o dia do crucifixo — disse Dravid. — Começa ao pôr-do-sol do dia trinta de abril. É um dos dias mais importantes no calendário das bruxas. É um dia em que os poderes das trevas estão mais fortes. Quando um Sabá Negro é celebrado e o mal toma conta.
— A senhora Deverill... — começou Matt.
— Não tenho dúvida de que ela e todos os outros moradores de Pequeno Mailing estão envolvidos em algum tipo de magia negra. Claro, você vai zombar, Richard. Mas a magia negra ainda é praticada hoje em dia, em todo o mundo. Yorkshire tem uma longa história de feitiçaria, e ainda que os feiticeiros dos tempos medievais tenham sumido, seus descendentes, os filhos de seus filhos, estão vivos.
"Um Sabá Negro no período de Roodmas exigirá três ingredientes que vocês encontrarão em qualquer cerimônia do tipo. O primeiro é o ritual. Matt já descreveu os sussurros que ouviu. O segundo é o fogo. Você viu os cães saírem das chamas. O terceiro, claro, é sangue. Eles devem fazer um sacrifício, e o melhor sacrifício de todos seria o de uma criança...
Matt se levantou. A cor sumiu de seu rosto.
— Eles me levaram para lá para me matar.
— Acho que sim.
— Temos que ir à polícia — exclamou Richard! — Você está falando sobre um bando de lunáticos, e todos eles tem que ir pra cadeia...
— Matt já falou com a polícia — lembrou Dravid. — Dois o ignoraram. O que se importou, morreu.
— Por que eu? — perguntou Matt. — Por que eles me escolheram? Por que não outra pessoa?
— Acho que sabe a resposta — disse Dravid lentamente. Ele pousou a mão gentilmente no ombro do garoto. — Sinto muito. Sei como deve ser difícil aceitar tudo isso. Mas você terá tempo. Vou colocá-los num hotel esta noite. O Nexo pagará os custos. E de agora em diante vamos cuidar de você.
— Por quê? O que vocês querem de mim?
— Queremos que fique em segurança.
— Gostaria que não estivesse tão frio — disse Matt.
Os três saíram da sala. Seguiram pelo corredor passando por uma fileira de vitrines. Estatuetas de cera, de povos primitivos, encaravam-nos. O som de seus passos ecoava no teto, balançando no ar como pássaros invisíveis. Na metade da escadaria principal Dravid parou.
— As chaves! — disse ele. — Elas estão no meu paletó. Preciso delas para sairmos.
Ele subiu rapidamente a escada e seguiu pelo corredor. Matt ficou olhando. Só agora percebia como o museu era enorme. O professor Dravid era uma figura minúscula, atravessando um balcão lá no alto. Viram a porta da sala se abrir e a luz se acender.
— Escute, Matt — disse Richard. — Isso tudo não passa de um pesadelo. Nada vai acontecer com você.
Matt se afastou dele.
— Você ainda não acredita! — exclamou.
— É claro que acredito. Antigos, portões, feiticeiras e sacrifício de sangue! Olhe ao redor, pelo amor de Deus! Há foguetes indo a Marte. Temos satélites transmitindo conversas telefônicas por todo o mundo. O código genético foi decifrado. E ainda existe gente atrasada como Dravid, falando de demônios. Bem, acredite em mim, Matt. Aquelas cinco crianças salvando o mundo com poderes mágicos não existem.
— Claro que existem — disse Matt. E de repente ele percebeu. Era muito simples. — Eu sou uma delas.
Houve um som. Algo invisível tinha sido jogado — ou tinha voado — pelo ar. Matt e Richard ouviram alguém gritar e olharam para a escada. Sanjay Dravid havia aparecido de novo. Andava lentamente, os passos irregulares, como se estivesse bêbado ou drogado. As mãos apertavam o pescoço. Ele parou e deixou as mãos caírem. Com um engasgo de horror, Matt viu um ferimento terrível — um talho, uma linha horizontal, talvez feita com uma espada — atravessando o pescoço do professor. O sangue desceu como uma cortina, encharcando o paletó e a camisa. Dravid levantou as mãos debilmente. Tentou falar. Então caiu de cara no chão e ficou imóvel.
Richard disse um palavrão. Matt afastou os olhos da figura imóvel e olhou a porta principal do outro lado da galeria. Sentiu mais frio do que nunca. Mesmo sem ver, soube que o perigo estava a toda volta.
E as portas, claro, estavam trancadas.
OSSOS
Durante o que pareceu uma eternidade, Richard e Matt ficaram onde estavam, olhando a figura imóvel caída no topo da escada. O sangue se espalhava ao redor da cabeça de Dravid. Mas não havia sinal de qualquer agressor. O museu estava tão vazio e silencioso quanto estivera quando eles chegaram. E havia mais alguma coisa. Fazia mais frio do que nunca e o ar parecia ter ficado mais denso. Tinha uma aparência esbranquiçada, nevoenta, como uma fotografia ruim. Richard foi o primeiro a se recuperar.
— Espere aqui! — disse ele, para depois subir correndo.
— Aonde você vai? — gritou Matt.
— As chaves!
Ele subiu de dois em dois degraus, sem querer se aproximar muito de Dravid, mas sabendo que não havia outro modo. O sangue havia chegado à beira do primeiro degrau e já ia escorrendo. Richard se ajoelhou ao lado do corpo, tentando não olhar o ferimento horrível. E então, de repente, Dravid abriu os olhos. Milagrosamente ainda estava vivo.
— Cinco...
A palavra foi tudo que ele conseguiu pronunciar.
— Não fale. Vou conseguir ajuda.
Richard não sabia o que mais podia dizer. Estava mentindo. O professor se encontrava além de qualquer possibilidade de ajuda.
Dravid estendeu a mão trêmula que segurava um chaveiro. Richard pegou-o gentilmente. Por alguns instantes os dois se encararam. Dravid tentou falar de novo, mas era demais para ele. Tossiu dolorosamente. Depois sua cabeça tombou e os olhos se fecharam.
Segurando as chaves, Richard se levantou. Podia ver Matt lá embaixo, a alguma distância, e soube o que o garoto estava pensando. Neste momento havia um assassino dentro do museu. Alguém — ou alguma coisa — tinha atacado o professor Dravid e certamente eles seriam os próximos. Mas o que seria? Por que não viam nada? Movendo-se lentamente agora, Richard desceu a escada outra vez, com todos os sentidos em alerta. Os dois eram pequenos demais. O museu era muito vasto. Sentia-se horrivelmente vulnerável.
— Pegou? — perguntou Matt
— Peguei. — Richard levantou as chaves. — Vamos sair daqui.
— E o professor Dravid?
— Está morto. Sinto muito. Não podemos fazer nada.
— Mas o que o matou?
— Não sei. — Richard olhou para cima, examinando o teto em abóbada. — Não vamos ficar aqui para descobrir.
Virou-se e nesse momento houve um redemoinho súbito no ar. Matt levantou o braço, protegendo o rosto, e cambaleou até Richard.
— O que foi? — perguntou Richard.
— Alguma coisa... — Matt olhou em volta mas não havia nada ali. — Alguma coisa voou perto da minha cabeça — insistiu ele.
— Voou?
— É.
— Você viu o que era?
— Não. Mas senti. Chegou perto demais... senti passando.
— Não estou vendo nada.
Então a coisa voou de novo na direção deles, descendo da névoa, e desta vez não podia haver engano, mesmo que Matt tivesse demorado preciosos segundos para deduzir o que via. Triangular e branca, a criatura que não estava viva nem morta, vindo para eles como algo saído de um sonho hediondo. Tinha órbitas, mas não olhos, asas, mas não penas, costelas abertas, sem nada dentro. Movendo-se mais rápido do que nunca, quase como um borrão, aquilo mergulhou. Suas garras se estendiam e os dentes, expostos numa careta maligna, eram afiados como agulhas. Matt caiu para trás. Sentiu uma das asas passando perto do rosto e soube que, se esperasse um segundo a mais, teria sido decapitado. Agora entendia o que acontecera com o professor Dravid.
Richard ajudou-o a ficar de pé.
— Você viu? — murmurou ele.
— Claro que vi.
— Viu o que era?
— Vi!
— O que era?
— Não sei.
Matt sabia o que era, mas não conseguia colocar em palavras.
— É um truque — disse Richard. — Tem de ser um truque. Não era de verdade.
Tinham sido atacados por algo que não podia voar, que nem podia existir. Uma criatura que não fora vista no planeta por muitos milhões de anos. Um pterodáctilo. Só que não era exatamente um pterodáctilo. Era o esqueleto fossilizado de um pterodáctilo, presa com arames e colocada em exposição no Museu de História Natural. Algo o trouxera à vida e agora estava em algum lugar lá em cima.
— Cuidado!
Matt fez o alerta enquanto o pterodáctilo mergulhava uma segunda vez, saltando da escuridão no alto do salão, indo na direção deles. Não tinha dúvida de que as garras rasgariam sua carne se ele as deixasse fazer contato. A criatura era tão maligna quanto na época em que tinha voado sobre o mundo pré-histórico. Mas agora alguém ou algo a estava guiando, usando-a como uma arma impossível. A cabeça e a garra deixaram de acertar Matt por centímetros e ele pensou ter escapado. Porém, no momento em que a criatura passou, uma das asas roçou em seu rosto e ele sentiu uma dor lancinante quando um osso o cortou. Ofegante, pôs a mão na bochecha. Havia sangue. O pterodáctilo deu um salto-mortal no ar e voltou para o lugar de onde tinha vindo. Não houvera ruído, nem aviso. Nada. O museu estava num silêncio absoluto.
— Matt... — começou Richard. Havia pânico nos olhos dele.
— Estou bem—disse Matt, apertando a bochecha com a mão.
— Você foi cortado.
— Acho que não é fundo.
Richard virou o pescoço, olhando para o teto.
— Precisamos ir. Matt fez uma careta.
— Eu não estava pensando em ficar.
Mal havia acabado de falar, quando o pterodáctilo voltou. Desta vez o alvo era Richard. A asa estendida cortou o ar. Afiada como uma navalha. Richard soltou outro palavrão.
— Richard...
Por um instante pavoroso Matt pensou que ele tivesse sido atingido.
— Tudo bem. Ele errou. Foi embora.
— É. Mas e os outros?
— O que...?
O professor Dravid tinha dito que era a exposição mais notável de fósseis de dinossauros já vista em Londres. O pterodáctilo era apenas um. Havia dezenas ao redor deles. Os dois estavam no meio de uma versão em raio X do Parque dos Dinossauros.
No instante em que Richard percebia a verdadeira natureza do perigo houve uma explosão. Uma das vitrines, a apenas alguns metros deles, se despedaçou. Havia um esqueleto dentro, sustentado por uma estrutura de aço, que se soltara e agora vinha cambaleando. Era difícil ver com clareza alguma coisa na névoa e na escuridão, mas Matt pôde vislumbrar algo que parecia um crocodilo, comprido e estreito, com pernas curtas e atarracadas mantendo-o logo acima do chão. A criatura tinha se lançado para a frente, atravessando o vidro num frenesi súbito e silencioso. A única coisa que não fez foi rugir. Não tinha pulmões. Mas os pés — ossos sem carne — faziam um som estranho batendo no piso de mosaico. Estava atacando-os, a boca escancarada, os dentes pretos mordendo o ar. A cauda chicoteava atrás dele, espalhando os fragmentos do que já fora seu lar.
O pterodáctilo mergulhou pela terceira vez, o bico pontudo mirando a cabeça de Matt. Com um grito o garoto se jogou no chão e rolou para longe, evitando a criatura-crocodilo, que havia disparado em sua direção, com as mandíbulas batendo. Como aquilo podia enxergar com as órbitas oculares completamente vazias? Contudo, o bicho não hesitou. Girou e voltou para ele. Matt estava de costas. Em segundos a criatura chegaria em cima dele.
Então Richard agiu. Tinha apanhado uma cadeira e, segurando-a como um bastão de beisebol, brandiu-a contra o crocodilo, usando toda a força. A madeira pesada e o estofo se chocaram contra a criatura, jogando-a de lado, e um dos lados das costelas desmoronou. Aquela coisa ficou caída no chão, retorcendo-se e chacoalhando-se, ainda tentando se levantar. A boca se abriu e fechou. A cabeça se sacudiu de um lado para o outro.
— Anda! —gritou Richard.
Uma segunda vitrine se despedaçou. O vidro caiu no chão. Um a um, os esqueletos de dinossauros estavam ficando vivos. Ossos batiam no mármore. Matt se levantou, imaginando quantas peças haveria no museu. E aquele fóssil que eles tinham visto ao entrar?
O diplódoco.
No instante em que Matt se voltou para a criatura gigantesca, viu os ossos tremerem e soube que ela também estava retornando à vida. O diplódoco tinha vinte metros de altura. Sua cauda pavorosa estava se enrolando e desenrolando, animada pela energia que a atravessava. Uma das pernas se mexeu, cada uma das juntas pretas estremecendo. A cabeça girou, procurando a presa.
— A porta...! — gritou Richard, berrando em seguida quando alguma coisa se chocou contra ele. Era um gigantesco esqueleto de lagarto, caminhando nas duas patas traseiras, os braços estendidos. Era feito de pelo menos cem ossos suspensos numa comprida coluna vertebral curva, com dentes malignos se projetando, tentando acertar a garganta dele. Richard caiu para trás com os braços balançando. Matt viu as chaves saírem das mãos dele e descreverem um arco na escuridão. O lagarto saltou no ar. Richard se lançou de lado. O lagarto caiu no chão. Se Richard tivesse esperado mais um segundo, o bicho teria caído em cima dele. — A porta! — gritou de novo. — Veja se consegue sair.
A névoa estava ficando mais densa e Matt não conseguia mais enxergar as duas extremidades do museu. Houve mais explosões, uma depois da outra, assim que mais vitrines estavam sendo destruídas de dentro para fora e mais formas apareciam, meio visíveis, voando, andando ou se arrastando para eles. Mas talvez as portas se abrissem de outro modo. Certamente existia uma saída de incêndio, algum modo de escapar se houvesse uma emergência.
Matt correu por todo o salão e chegou à porta principal. Parando, agarrou a maçaneta e puxou. A porta estava trancada. Freneticamente experimentou outra. Também estava trancada. Olhando pelo vidro, dava para ver prédios de escritórios e apartamentos do outro lado da rua. O tráfego seguia como sempre. Vida comum... mas era como se estivesse a milhares de quilômetros de distância. As duas portas tinham sido trancadas para a noite. Não havia alavanca de emergência. Eles estavam presos.
— Richard! —gritou Matt. Não havia sinal do jornalista.
— Fique quieto! — A voz de Richard veio da névoa. — Eles não podem ver você. Fique onde está e não faça nenhum som.
Seria verdade? Outra coisa em forma de lagarto — talvez um iguanodonte — vinha na direção dele. Era muito alto. Matt conseguia ver as órbitas dos olhos do bicho; via até dentro do crânio. A boca estava aberta, revelando pavorosos dentes triangulares brancos, cada um terminando numa ponta sinistra. Não estava respirando — não podia respirar —, mas mesmo assim Matt sentia o hálito da criatura. Fedia a esgoto e podridão. A distância, ouviu ruído de patas e de chacoalhar de ossos. Richard estava em silêncio. O dinossauro se inclinou para a frente. Parecia estar farejando, ou talvez sentindo a pulsação na lateral de seu pescoço. Agora estava apenas a centímetros de distância. Matt queria correr. Queria gritar. Tinha certeza de que a criatura atacaria. Ia simplesmente ficar ali, parado, enquanto sua garganta era rasgada?
— Matt? Onde você está? Está bem?— A voz de Richard ecoou do outro lado do museu. A criatura em forma de lagarto se virou e foi cambaleando naquela direção. Então Richard estava certo. Os dinossauros eram cegos. Precisavam de som e movimento para encontrar as vítimas.
— Estou bem! — gritou Matt de volta. Não ousou acrescentar mais nada.
— Dá para sair?
— Não! Preciso das chaves.
As chaves estavam caídas no chão ao lado da escada. Richard viu-as e saltou para elas. Ao mesmo tempo uma criatura atarracada, de aparência bem sólida, partiu para cima dele, com um único chifre se projetando do crânio deformado. Em algum lugar no fundo da mente Richard se lembrou do nome da criatura. Era um tricerátops. Felizmente era mais lenta do que a outra, e movia-se desajeitadamente, escorregando no piso de mármore. Richard pegou as chaves antes que a criatura pudesse alcançá-lo. No alto, um segundo pterodáctilo tinha se juntado ao primeiro. Os dois faziam uma dança fantasmagórica, girando um sobre o outro, lá em cima.
Matt continuava perto da porta. Richard surgiu por trás da parede de névoa, mas desapareceu por um momento quando mais formas fantasmagóricas se interpuseram entre eles. Era impossível saber quantas criaturas tinham voltado à vida, mas isso não importava, pois o diplódoco era a pior. Era gigantesco e mais perigoso que os outros. De jeito nenhum Richard poderia passar por ele. Mas também não podia ficar. As criaturas estavam se aproximando de todos os lados. Ele não podia olhar em todas as direções ao mesmo tempo. Se ficasse onde estava, morreria.
E então o diplódoco girou a cauda. Ela se moveu de modo quase preguiçoso. A grande massa de ossos chicoteou pelo ar e Richard ofegou quando ela bateu numa das colunas. Mármore quebrado e argamassa espalharam-se numa nuvem de pó. Só agora ele percebia todo o horror de sua situação. Mesmo sendo apenas ossos, os dinossauros eram tão fortes como quando estavam vivos. Se quisessem poderiam derrubar todo o museu.
— Richard! —gritou Matt.
O diplódoco girou, procurando-o, e os pterodáctilos mergulharam, juntando-se à caçada.
— Pegue as chaves! — gritou Richard. — Saia daqui! Em seguida levantou os braços e jogou o chaveiro para
Matt, com toda a força. As chaves voaram sobre o diplódoco e caíram do outro lado. Bateram no chão e deslizaram pelo resto do caminho. Matt se abaixou e pegou-as.
— Venha! —gritou Matt.
— Saia daqui!
— Não vou sair sem você!
— Só abra a porta.
Matt sabia que Richard estava certo. Talvez, abrindo a porta do museu, de algum modo provocasse um curto-circuito na magia que trouxera os dinossauros de volta da extinção. Talvez pudesse pedir ajuda. Havia seis chaves no chaveiro. Pegou-as e tentou enfiar a primeira na fechadura. Não deu certo. Tirou-a e tentou a segunda, depois a terceira. Nenhuma funcionou. Era quase impossível se concentrar no que estava fazendo. Suas mãos tremiam. Cada nervo do corpo gritava para ele vigiar atrás. Conseguiu enfiar a quarta chave. Mas antes que tivesse tempo de girá-la, a cauda do diplódoco roçou em seu ombro, o bastante para jogá-lo pelos ares. Era como se tivesse sido acertado por um caminhão. Machucado e atordoado, levantou-se com dificuldade, voltou correndo à porta e girou a chave. Uma companhia começou a soar e uma luz vermelha ficou piscando em algum lugar por detrás da névoa. Ele acionara o alarme. Mas, no mesmo instante, a porta se abriu. Ele estava livre.
Mas onde estava Richard?
O jornalista não tinha saído do lugar. Ele ouvira o alarme e imaginou que a porta deveria estar aberta, no entanto ainda tentava deduzir como passar pelo diplódoco gigantesco. O caminho adiante estava bloqueado. Conseguiria encontrar um caminho para cima? Um segundo depois seu tornozelo sofreu uma dor lancinante. Uma coisa minúscula, parecendo um caranguejo, com apenas quinze centímetros de altura, tinha-o agarrado com dentes semelhantes a tachinhas. Xingando, sacudiu-o para longe e depois chutou a cabeça do bicho, sorrindo quando os ossos se desintegraram. O sorriso foi apagado quando a mãe da criatura, dez vezes maior, veio na direção dele.
Tomou uma decisão e começou a correr. Sem dúvida o diplódoco ouviu o som e seu grande pescoço girou. Outros esqueletos saíram das sombras, aproximando-se de todos os lados. Mas a porta estava aberta. O caminho adiante estava livre.
— Você consegue! — gritou Matt.
O diplódoco continuava atrás dos dois, mas com um tremor de empolgação Matt percebeu o que Richard estava planejando. Enquanto olhava, Richard mergulhou por baixo do diplódoco, passou sob a cauda, entre as pernas e por baixo da barriga. O dinossauro era grande demais, desajeitado demais para impedi-lo, e as outras criaturas —vindas de todos os lados — não podiam chegar perto dele. Ia conseguir! Bastaria uma saída rápida por entre as pernas dianteiras do monstro e estaria junto à porta. Estaria livre!
Furioso, o diplódoco ergueu o pescoço. Sua cabeça poderosa bateu no balcão superior.
Um sopro de vento frio tocou a nuca de Matt. Tarde demais, ouviu passos se aproximando.
Richard havia parado embaixo do diplódoco. Olhava Matt, o rosto retorcido em choque e incredulidade.
O balcão fora despedaçado pelo impacto. O grande arco se partiu e, com um estrondo ensurdecedor, toda a enorme pilha de pedras e argamassa, vidro e aço despencou. Incapaz de suportar o peso, o diplódoco também desmoronou, com as pernas se dobrando embaixo do corpo.
Matt começou a correr de volta para o museu. Mas então um par de mãos se estendeu e o segurou pelo pescoço. O garoto gritou e voltou-se para trás.
Richard estava quase invisível por trás do pó e das pedras que caíam. As costelas curvas do dinossauro tinham se transformado numa espécie de jaula para ele. Era como se tivesse sido engolido vivo. Estava preso dentro do bicho.
Matt não conseguia se mexer. A Sra. Deverill encarava-o, furiosa, com os olhos chamejando. Noah o segurava, as mãos apertando sua garganta. Matt se sacudiu, tentando se soltar. Sentiu o joelho se chocando contra a barriga de Noah, mas ao mesmo tempo a Sra. Deverill havia apanhado um pano úmido e apertado contra seu rosto. O pano tinha um cheiro doce e viciado. Ele engasgou, incapaz de respirar.
Richard viu Matt ser levado. Matt viu o jornalista com o rosto encharcado de sangue, de joelhos dentro daquela prisão medonha. Richard levantou o braço, tentando afastar a cortina de pó e entulho que o sufocava. A cortina ficou mais densa e ele desapareceu. Uma viga de aço bateu sobre a pilha. Matt ouviu Richard gritar uma última vez.
E então, incapaz de continuar lutando, permitiu que a escuridão o dominasse. O tráfego passava depressa. Ouvia os motores. Viu um sinal de trânsito passar de vermelho a verde. De repente tudo estava muito distante.
O mundo se retorceu, virou de cabeça para baixo e ele não se lembrou de mais nada.
ROODMAS
As nuvens tinham rolado sobre Yorkshire e todo o campo parecia chapado e sem cor. Até os pássaros nas árvores estavam estranhamente silenciosos. Tinha chovido a noite toda e ainda chovia, a água jorrando das calhas enferrujadas, escorrendo pelas janelas, caindo em poças que refletiam um céu cinza e hostil.
Matt acordou e estremeceu.
Estava de volta ao Solar da Colméia, deitado numa cama enferrujada e bamba. Tinha sido levado para um quarto ao lado do de Noah, no andar de cima do celeiro. Não havia aquecimento e ele dispunha apenas de um cobertor fino. Olhou o relógio. Eram sete da manhã. Sentou-se muito devagar. O pescoço doía, e o machucado no ombro estava tão inchado que mal dava para mexer o braço, e ele podia sentir uma cicatriz no rosto, onde a asa do pterodáctilo o havia acertado. Suas roupas estavam amarrotadas, sujas e úmidas. Esticou os braços e girou os ombros, tentando dar algum calor aos músculos. Era sábado, trinta de abril. O professor Dravid tinha dado um nome àquele dia. Roodmas, o dia do crucifixo. Uma espécie de festival das bruxas. Era para aí que tudo estivera levando. Dentro de vinte e quatro horas tudo acabaria.
Matt se levantou e foi até a janela. Dava para o pátio da fazenda e ele pôde ver alguns porcos andando no chiqueiro. Afora isso não havia ninguém à vista. Era seu segundo dia de cativeiro. Só tivera permissão de sair do quarto para usar o banheiro, com Noah montando guarda do lado de fora. Também era Noah que trazia as refeições, em pratos de papel, com garfos e facas de plástico. Não houvera sinal da Sra. Deverill, mas ele tinha visto luzes acendendo e apagando na casa da fazenda durante a noite e sabia que ela estava por perto.
Richard fora morto. Isso lhe doía mais do que tudo. Parecia que todo mundo que demonstrara qualquer gentileza tinha morrido, e ele estava finalmente sozinho. Mas continuava decidido a lutar. Se a Sra. Deverill achava que podia simplesmente arrastá-lo até a floresta e cravar uma faca nele, teria uma surpresa.
Já havia começado. O plano de fuga estava em andamento.
Matt prestava atenção a qualquer som no celeiro. Não havia nada, afora os grunhidos dos porcos. Passaria pelo menos meia hora até que Noah trouxesse o café da manhã. Puxou o colchão e tirou um pedaço de ferro com cerca de dez centímetros de comprimento achatado numa das extremidades. Fora a cama, não havia móveis no quarto, nada que ele pudesse usar para fugir. Mas a cama em si tinha lhe proporcionado uma ferramenta improvisada. A barra de metal servia para sustentar uma das pernas. Matt havia demorado a maior parte do primeiro dia para soltá-la e mais duas horas para achatar uma das extremidades — usando seu próprio peso e as pernas da cama — de modo que agora aquilo parecia um cinzel grosseiro. A primeira intenção fora usar as barras para quebrar a janela, mas logo percebeu que ela era forte demais. Em vez disso voltou a atenção para o chão.
O piso do quarto era feito de várias tábuas paralelas à porta, cada uma presa com uma dúzia de pregos. Trabalhando durante a noite, Matt havia conseguido soltar nove pregos de uma das tábuas. Com mais três ele conseguiria levantá-la. Se pudesse fazer um buraco de tamanho suficiente, seria o bastante para passar espremido e saltar no andar de baixo. Este era o plano.
Puxou o velho tapete desbotado que cobria o chão e começou a trabalhar. O cinzel improvisado era uma ferramenta limitada — era quase impossível enfiá-lo embaixo da cabeça dos pregos. O instrumento tinha escorregado várias vezes, fazendo os nós dos dedos de Matt baterem no piso, tanto que a pele estava rasgada e sangrando. Precisava ter cuidado para não fazer barulho. Isso era o pior. Trabalhar em silêncio significava trabalhar devagar, e ele sabia que o tempo estava se esgotando. Trincou os dentes e tentou se concentrar no que fazia. Primeiro um prego, depois outro. Quase uma hora tinha se passado desde que acordara, quando finalmente a tábua se soltou. Levantou-a e olhou pela fenda estreita que tinha aberto.
Viu imediatamente que o plano era impossível. Estava muito alto. Se tentasse pular no térreo, torceria um tornozelo ou até quebraria uma perna. Sentiu uma onda de desespero.
Por que nada jamais parecia dar certo? Lutou contra aquilo. Não desistiria agora. Talvez existisse outro caminho.
Seu poder.
A médium cega, Susan Ashwood, tinha lhe dito o que ele já sabia. "Senti o seu poder... nunca senti tanta força antes." A mulher tinha dito logo antes de ele sair da casa dela. E Matt se lembrava de como o professor Dravid olhara para ele no museu. Por um momento havia se perguntado se o professor até estaria, de algum modo, com medo dele.
Matt era diferente. Sabia disso desde pequeno. Tinha visto a morte dos pais na noite anterior ao acontecimento. Sonhara com todos os detalhes, até a ponte e o pneu estourado. Sentiu que havia um segurança no armazém segundos antes de o sujeito aparecer. Tinha despedaçado uma jarra no centro de detenção. Tinha chamado Richard sem sequer abrir a boca. E havia os sonhos, que de algum modo eram mais do que sonhos. Quatro crianças... Três garotos e uma garota o chamando.
Com ele, eram cinco.
Sentou-se na cama e se concentrou na porta. Se podia quebrar uma jarra, por que não conseguiria abrir uma fechadura? Era apenas questão de encontrar o poder dentro dele e ativá-lo. Lembrou-se da última vez em que havia tentado, na manhã em que acordara no apartamento de Richard. Daquela vez não tinha funcionado — mas talvez ele não estivesse tentando de verdade. Agora era questão de vida e morte. Sem dúvida isso ajudaria.
Diminuiu de propósito o ritmo da respiração, olhando bem em frente, buscando esquecer tudo. Concentrou-se no buraco da fechadura, tentando visualizar a lingüeta de metal em seu interior. Podia movê-la. Podia abrir a porta com uma chave que existia apenas em sua imaginação. Era fácil. Tinha o poder.
Estendeu as mãos, tentando fazer a energia fluir através delas.
— Vira! — sussurrou. — Vira!
A maçaneta girou.
A porta se abriu.
O ânimo de Matt cresceu — mas apenas por um segundo. Tinha sido cruelmente enganado. Noah estava parado bem ali. Havia destrancado a porta para trazer o café da manhã. Segurava uma bandeja com uma caneca e uma única fatia de pão torrado. Uma coisa parecida com uma foice pendia em seu cinto. O objeto tinha cabo de madeira e uma lâmina curva que fora afiada recentemente. O gume era prateado e ameaçador.
— Café da manhã — resmungou Noah.
— Gorduroso e nojento.
— Não quer comer?
— Não estava falando do café da manhã. Estava falando de você.
Havia um buraco aparente no piso. Matt percebera desde o momento em que Noah havia entrado. A questão era se ele notaria. Precisava manter Noah falando. De alguma forma, tinha que afastar a atenção dele.
Noah pôs a bandeja na cama.
— Eu gostaria de tomar um banho.
— Nada de banho.
— Claro. Talvez você não saiba o que é isso. Pelo cheiro, acho que provavelmente nunca tomou um.
A provocação deu certo. Noah estava olhando para ele, a atenção desviada do resto do quarto. Por um momento ficou ali parado, respirando Ofegante. Tirou a foice do cinto e levou-a aos lábios. Depois passou a língua pela lâmina.
— Vou gostar de ver você sendo morto — sussurrou ele. — Você vai gritar que nem um porco. Vai gritar, vai gritar, e eu vou estar lá. — Ele enfiou a foice de novo na cintura e foi para a porta. — Chega de comida por hoje — anunciou. — Pode morrer de fome.
Em seguida bateu a porta e trancou-a de novo.
Matt esperou até ter certeza de que Noah tinha realmente ido embora, depois engoliu o café da manhã. O café estava frio, o pão torrado encharcado de gordura. Mas não se importou. Quente ou fria, a comida lhe daria forças, e esta era a única coisa de que precisava. Estava secretamente feliz por Noah não vir trazer o almoço. Isso lhe dava mais tempo. Era óbvio que não abriria a porta com magia — ou por qualquer outro meio. Havia apenas uma saída: pelo buraco que tinha feito. Só precisava ser maior, e agora ele podia trabalhar ininterruptamente o dia inteiro.
Quando olhou o relógio de novo, passavam das três da tarde. Seus joelhos estavam machucados, as costas rígidas, os dedos cobertos de bolhas. E um dos polegares tinha um corte. Mas duas outras tábuas do piso estavam soltas e restavam apenas sete pregos antes que o buraco tivesse tamanho suficiente para seu objetivo. Não poderia pular ou mesmo se balançar na ponta dos braços. Mas o plano era outro — e só teria uma chance de fazê-lo funcionar.
Eram seis horas e a quarta tábua se recusava a se soltar. Restavam sete pregos entre ele e o sucesso. Agora trabalhava mais febrilmente, importando-se menos com o barulho. O que faria se a coisa não acontecesse como ele esperava? Sorriu sério. O cinzel nem de longe era a arma mais eficaz, mas teria de servir. Se pudesse ao menos dar a Noah algo para recordar, partiria mais animado. Visualizando esse momento, bateu com a barra de ferro achatada. Outro prego se soltou.
Já estava escuro quando Noah voltou. Houve o barulho familiar da chave e o rangido da porta se abrindo. Noah estava parado na soleira com a foice enfiada no cinto. Não havia eletricidade no quarto. Noah acendeu uma lanterna.
— Está na hora de ir. — Noah cantarolava as palavras. — Todos estão esperando por você.
A resposta foi o silêncio completo.
— Qual é o problema? — perguntou. — Está de brincadeira?
Do lado mais distante do quarto, onde ficava a cama, veio um gemido doloroso.
— O que é? Está doente?
Matt gemeu de novo e tossiu; uma tosse áspera, rouca. Ansiosamente, Noah segurou a lanterna com o braço esticado.
— Se isso for algum tipo de truque — ameaçou ele —, vou fazer com que você deseje nunca ter nascido. Vou...
Deu dois passos dentro do quarto e pisou no tapete.
O tapete cobria o buraco que Matt havia passado o dia inteiro fazendo. Noah largou a lanterna e desapareceu sem emitir qualquer som. O tapete foi com ele, sugado para baixo como uma armadilha para animal. No mesmo instante Matt saltou da cama. A lanterna estava caída no chão. Ele pegou-a, depois saiu correndo, seguiu pelo corredor e desceu a escada. A visão que o recebeu embaixo não era bonita. Tinha esperado que Noah tivesse desmaiado ao bater no chão. Mas de algum modo ele havia caído sobre a foice. A lâmina havia atravessado a barriga e saído pelo outro lado. O rosto estava retorcido numa expressão de dor e surpresa. Bem morto.
Matt correu para a escuridão. Estava chovendo e ele sentia agulhas de água cortando seu rosto. A estrada parecia ter se transformado em poças que ameaçavam arrastá-lo para baixo. Por duas vezes tropeçou e caiu, lançando fogo no ferimento do ombro. Mas nem hesitou. Seguiu correndo pela noite, sem perceber nada além do som dos pés batendo na estrada, o latejar do sangue nos ouvidos e a respiração arfante saindo da boca em ferozes nuvens brancas.
Correu até que cada passo o fazia se encolher de dor e as pernas gritavam para que ele descansasse. Sua mente estava morta. Não passava de uma máquina. A água da chuva escorria pelo rosto e pela nuca. Finalmente chegou ao fim das forças. Precisava parar. Viu um trecho de capim e se deixou cair ali. Não tinha idéia da distância percorrida. Um quilômetro? Podiam ser dez.
Os faróis de um carro apareceram a distância. Matt levantou a cabeça e, movendo-se como um velho, começou a se erguer. Sabia que era perigoso, mas não tinha escolha. Precisava parar o carro e pedir carona. Talvez o motorista o entregasse à polícia. Mas não importava. Era Roodmas. Amanhã estaria em segurança.
Cambaleando, ergueu os braços. O carro diminuiu a velocidade e parou. Os faróis iluminavam a chuva, fazendo-a parecer tinta derramada. Era um carro esportivo. Um jaguar preto.
A porta da frente se abriu e o motorista desceu. Matt tentou ir na direção dele, mas perdeu o equilíbrio e tombou, com os dois braços estendidos.
— Pelos céus! — disse Sir Michael Marsh.
Era o cientista do governo que ele havia visitado com Richard. Tentou falar, mas as palavras não saíam.
— O que está fazendo aqui no meio da noite? — perguntou Sir Michael. — Não. Não tente falar agora. Deixe-me colocá-lo no carro, longe desta chuva.
Matt se deixou ser levado até o carro e tombou agradecido no banco da frente. Sir Michael sacudiu a água da chuva e sentou-se ao lado dele. O motor do carro ainda estava ligado, com os limpadores de pára-brisa em movimento. Mas o carro não andou. Sir Michael parecia completamente perplexo.
— Matthew Freeman, certo? — perguntou ele. — O que, afinal, você está fazendo nesse estado pavoroso? Sofreu um acidente?
— Não... eu...
— Parece que você acaba de escapar de um bando de ursos.
— Estou com muito frio.
— Então vamos colocá-lo num lugar quente agora mesmo. Não se preocupe. Foi muita sorte eu encontrá-lo. Tudo vai ficar bem.
Sir Michael engrenou o carro e partiram. O cientista ligou o aquecimento e Matt sentiu uma nuvem de ar quente rodeando as pernas. Estava em segurança! Sir Michael Marsh ouviria sua história. Ele tinha poder para garantir que nenhum mal lhe acontecesse. O carro acelerou pela noite. Matt relaxou no macio banco de couro. Só queria dormir. Nunca estivera tão exausto.
Mas não conseguia. Algo estava errado. Algo estava tremendamente errado. O que era? Repassou as palavras que Sir Michael tinha dito havia apenas alguns minutos.
"Matthew Freeman, certo?"
Ele sabia seu sobrenome.
Quando Richard o levara à casa de Sir Michael, em York, ele havia se apresentado apenas como Matt. Só a Sra. Deverill sabia seu sobrenome. Sir Michael não podia ter conhecimento.
A não ser...
Matt levou a mão à maçaneta da porta e tentou abri-la, mas estava trancada. Virou-se para Sir Michael no mesmo instante em que um punho com anel de sinete, de ouro, se chocou com a lateral de sua cabeça, jogando-o contra a janela e atordoando-o. O velho era incrivelmente forte. Agora Matt se lembrava de ter visto o carro antes: no Solar da Colméia.
— Por favor, não tente se mexer — disse Sir Michael. — As portas estão trancadas e você não tem para onde ir. Não gosto de bater em crianças e não quero fazer isso de novo, mas farei, se tentar alguma coisa.
Não havia nada que Matt pudesse tentar. Cada grama de suas forças tinha-o abandonado.
— Vamos chegar logo. Não vai demorar. E não precisa se preocupar. Tudo vai acabar depressa e não vai doer tanto quanto você pensa.
O carro saiu da estrada. As rodas entraram numa trilha lamacenta e pedregosa. Mergulharam na floresta de pinheiros. Adiante, as luzes da Ômega Um tremulavam sob a chuva. Matthew tentou se jogar contra Sir Michael Marsh, mas o velho o empurrou de volta facilmente.
Chegaram ao portão da usina e pararam. De repente a noite foi cortada pela imensa guilhotina de um raio. Os moradores do povoado estavam ali, com a Sra. Deverill parada diante deles, Asmodeu enrolado em volta de sua perna. Todos o esperavam.
— Não! — gritou Matt, a simples palavra ecoando por todo o lado.
Sir Michael saiu do carro.
— Peguem-no! —ordenou ele.
A porta foi aberta. Mãos cinzentas e pingando entraram e o agarraram. Matt lutou, mas era tarde demais. Foi arrastado para fora do carro e erguido no ar. A luz de um gigantesco refletor atravessou a chuva, ofuscando-o. Havia uma multidão... todo o povoado. Era o momento pelo qual vinham esperando, e agora chegara a hora.
Retorcendo-se e gritando, Matt foi carregado acima dos ombros deles, para o coração da Ômega Um.
PODERES DAS TREVAS
Era como estar num circo de pesadelo tecnológico.
A câmara do reator era um grande círculo com paredes prateadas e o teto em abóbada a pelo menos trinta metros de altura. Em vez de serragem, o piso era coberto com quadrados pretos e brancos. O teto era feito de aço, e não de lona, com pontes rolantes azuis e vermelhas cruzando-se lá no alto. Havia uma janela de observação na frente do que devia ser uma sala de controle e um balcão branco que rodeava toda a parede circular. Seriam lugares para a platéia?
Cruzando o centro da câmara, dois trilhos de trem corriam paralelos e havia uma torre enorme — toda feita de plataformas, corrimões, escadas e mostradores, montada em rodas para poder ser movida para trás e para a frente. A torre dominava a câmara. Por um instante ela ficou imóvel. Um único corredor amplo levava para fora do círculo. Se fosse um circo, este seria o caminho por onde os animais e os carros dos palhaços entrariam.
A arena era iluminada por fortes refletores presos a suportes. Tudo estava absolutamente limpo e mesmo o ar tinha um gosto metálico, estéril, enquanto ventiladores escondidos o sugavam para dentro e o filtravam com um zumbido constante.
Este era o coração da Ômega Um. Matt sabia que sob o piso, protegido por dez metros de concreto reforçado e aço, havia um dragão dormindo. Cada respiração da fera tremia com raiva contida. Quando acordasse, seu rugido teria a força de um sol explodindo. Este era o poder contido na frágil gaiola do reator nuclear.
Observado pelos silenciosos moradores do povoado, Matt examinou o ambiente. Apesar de toda a tecnologia, a usina não era muito diferente de qualquer fábrica moderna. O que a tornava tão fantástica era que, em contraste nítido com as máquinas, fora ocupada com adereços de uma era quase esquecida. O século XXI obrigado a um casamento profano com a Idade das Trevas. Dentro da usina nuclear fora preparado o terreno para um sabá das bruxas — a celebração de uma Missa Negra.
Apesar das luzes elétricas, a câmara estava decorada com milhares de velas acesas, todas pretas, com os pavios estalando. A fumaça subia sinuosa e era retirada pelo sistema de ventilação. As velas rodeavam um círculo que fora pintado no piso xadrez com uma série de palavras escritas em letras maiúsculas, rodeando todo o espaço. HEL + HELOYM + SOTHER... eram palavras estrangeiras que não significavam nada para Matt, por isso desistiu de tentar lê-las. Dentro do círculo havia vários símbolos — setas, olhos, estrelas de cinco pontas e espirais que poderiam ser os rabiscos de alguma criança demente, só que tinham sido desenhados em tinta dourada, aparentemente com grande cuidado.
Os olhos dele foram atraídos para uma laje de mármore preto bem no centro do círculo. A pedra era do tamanho de um caixão, tendo ao pé um desenho gravado em ouro:
Havia uma cruz de madeira pendurada em cima. Mas estava de cabeça para baixo. Diretamente abaixo dela, sobre a pedra, havia uma faca cuja lâmina parecia uma língua retorcida, de prata opaca, o cabo feito a partir de um chifre de bode.
Matt estremeceu. Sabia para que eram todos aqueles preparativos. Era ali que sua vida devia terminar. Afaça era para ele.
Os moradores do povoado se aproximaram ao redor. Alguns olhavam da janela da caixa de observação. A Sra. Deverill e sua irmã estavam lado a lado. Matt reconheceu o açougueiro, o farmacêutico, a mulher do carrinho de bebê... Até as crianças tinham se juntado ao círculo, rostos pálidos, olhos famintos. Ninguém falava. Ninguém tentou forçá-lo a subir na laje. Sabiam que ele não tinha escolha além de se render. Havia apostado tudo. Mas perdera e estava na hora de pagar.
— Matt...
Alguém o havia chamado. Matt olhou para além dos moradores e viu um homem parado fora do círculo, com as mãos amarradas a um corrimão de metal, viradas para trás. Matt correu até lá, esquecendo-se de tudo por um momento. Era a última coisa que esperava. Richard Cole continuava vivo. Suas roupas estavam em frangalhos, o rosto sujo de sangue. Estava desamparado, era um prisioneiro. Mas de algum modo tinha sobrevivido à destruição do museu e também fora trazido para cá.
— Diga que estou sonhando — ofegou Richard quando Matt o alcançou.
— Infelizmente não. — Matt estava tão surpreso que não sabia o que dizer. — Achei que você estivesse morto.
— Não exatamente. — Richard conseguiu dar um sorriso débil. — Parece que Sir Michael faz parte de tudo isso.
— Eu sei. Ele me trouxe aqui.
—Nunca confie em ninguém que trabalhe para o governo. — Richard se inclinou para a frente e sussurrou: — Minha mão esquerda está quase livre. Agüente firme!
Matt sentiu um jorro de esperança.
— Então cá estamos, todos juntos! — A voz vinha da única porta aberta. Os moradores do povoado se viraram para Sir Michael Marsh, que entrava na arena. — Vamos tomar nossos lugares? O fim do mundo está para começar.
Dois moradores tinham se esgueirado atrás de Matt e, antes que ele pudesse reagir, puxaram-no para longe. Ele lutou, mas não adiantava. Os dois homens eram enormes e o jogavam de um lado para outro como se fosse um saco de batatas. Arrastaram-no até a laje do sacrifício, puseram-no de costas e amarraram seus pulsos e tornozelos com grossas tiras de couro. Quando recuaram, Matt não conseguia mais se mexer. Então era aí que tudo acabava. Era para isso que tudo tinha acontecido.
Richard também gritava:
— Deixem-no em paz! Por que machucá-lo? Ele é só um garoto. Deixem que ele vá...
Sir Michael ergueu a mão, ordenando silêncio.
— Matthew não é só um garoto — respondeu. — É um garoto muito especial. Um garoto que estivemos vigiando durante quase a metade de sua vida.
A Sra. Deverill deu um passo à frente. Vestia as mesmas roupas que usara em Londres, com o broche do lagarto, os olhos cheios de ódio.
— Quero ser eu a cortar a garganta dele — pediu com voz rouca.
— Você fará o que for mandado — respondeu Sir Michael.
— Devo dizer, Jayne, que você me desapontou. Quase deixou que ele fugisse. Pela segunda vez!
— Nós devíamos tê-lo trancado desde o início!
— Vocês é que deviam ser trancados — gritou Richard.
— São todos loucos...
— Não somos loucos. — Sir Michael se virou para ele. — Você não sabe nada. Vive em seu mundinho confortável e medíocre. É completamente cego às coisas maiores que estão acontecendo ao redor, como tantos de sua espécie. Mas logo tudo isso mudará.
"Dediquei toda minha vida a este momento. Só os preparativos demoraram mais de vinte anos, trabalhando noite e dia. O professor Dravid contou sobre nós? Contou sobre os Antigos?
Sir Michael parou, mas Richard ficou quieto.
— Presumo que tenha contado, e você provavelmente achou que ele também estava louco.
"Os Antigos existem, pode ter certeza. Foram a primeira grande força do mal. Houve um tempo em que governaram o mundo até serem derrotados, graças a um truque, e banidos. E desde então esperam retornar. É isso que vocês testemunharão agora. Seu amigo, Matthew, está amarrado na boca do Portal do Corvo." Sir Michael abriu os braços. "É onde estamos agora. E o portal vai se abrir.
Os moradores estremeceram de prazer. Até a Sra. Deverill forçou um sorriso sutil no rosto.
— As forças que criaram o Portal do Corvo sabiam o que estavam fazendo — continuou Sir Michael. — O portal não pode ser derrubado. É impossível abri-lo. É impossível movê-lo. Ou pelo menos é o que pareceu durante séculos. Nossos ancestrais tentaram há muito, na Idade Média. Durante centenas de anos repassaram os conhecimentos acumulados, os feitiços e rituais, de geração em geração. Mas nada deu certo, até agora. Somos a geração escolhida.
"Porque vivemos no século XXI. Temos nova tecnologia. E há um poder que podemos usar. O mesmo poder que existia na época em que o mundo foi criado, mas só se tornou disponível para nós há pouco tempo. O poder nuclear. O poder do átomo.
Ele foi até Matt, que fazia força para cima tentando romper as tiras de couro. Forçava os ombros para fora da laje do sacrifício. Mas não havia nada que pudesse fazer. Quando Sir Michael se aproximou, ele se deixou cair de volta.
— Você realmente acha tanta loucura estabelecer um paralelo entre o poder da bomba nuclear e o poder da magia negra? — perguntou Sir Michael. — Realmente acredita que uma arma capaz de destruir cidades e matar milhões de pessoas em alguns segundos está tão distanciada assim da obra do demônio? Para mim era óbvio. Vi que os dois poderes diferentes poderiam ser reunidos e que, juntos, poderiam fazer o que nada fora capaz de realizar antes.
"Quando a Ômega Um foi projetada usei minha influência para garantir que fosse construída aqui, no local onde ficava o círculo de pedras, o Portal do Corvo. O antigo círculo de pedras estaria aqui mesmo, nesta sala do reator, se não tivesse sido destruído. Embaixo de nós o reator quase chegou ao ponto crítico. É como se uma bomba gigante fosse enterrada no coração do portal, esperando para explodi-lo e permitir a passagem dos Antigos.
"Eu construí a Ômega Um. Também fui encarregado de fechá-la, assim que o governo terminou os trabalhos. Consegui dissuadi-los de demoli-la e, depois que todo mundo foi embora, comecei a trabalhar, reconstruindo-a silenciosamente. Demorei mais de vinte anos, trabalhando com os moradores do povoado, os filhos dos filhos dos feiticeiros e bruxas que habitaram Pequeno Mailing durante séculos.
— Mas como conseguiram o urânio? — gritou Richard. — Isso é impossível! O senhor mesmo disse. Nunca seriam capazes de conseguir o urânio.
— Houve um tempo em que seria impossível — concordou Sir Michael. — E mesmo assim foi extremamente difícil. Mas o mundo mudou. O colapso da União Soviética. Acontecimentos na Sérvia e na Iugoslávia. Guerras no Oriente Médio. Há mercenários e terroristas percorrendo todo o planeta, e encontrar alguns com quem pudéssemos fazer negócio foi apenas questão de tempo. Eles também servem aos Antigos ao seu modo. Estamos todos do mesmo lado.
"Há seis meses mantemos a usina em funcionamento, alimentando o reator, preparando-o para esta noite. Acredite quando digo: o reator funciona. Logo darei ordem para que as últimas hastes de controle sejam levantadas. Isso levará o calor a níveis críticos. E o portal vai se derreter e se abrir.
— Todos vocês serão mortos — disse Richard.
— Só você será morto. Porque só você está fora do círculo.
— É o que vocês acham.
— É o que eu sei. — Sir Michael apontou para os símbolos pintados no chão. — Durante séculos os magos pintaram círculos assim para proteção. E eles vão nos proteger agora. Se a radiação vazar, não seremos tocados por ela. O calor, não importa o quanto seja fantástico, não vai nos queimar. Só você morrerá.
— E o Matt?
— O professor Dravid não contou? — Sir Michael sorriu. — Os três ingredientes do Sabá Negro: ritual, fogo e sangue. Nós herdamos os rituais. Criamos o fogo. Agora Matthew vai dar o sangue.
Ele pegou a faca e passou um dedo pela lâmina.
— O sangue — continuou — é a forma de energia mais poderosa do planeta. É a própria força vital. O sacrifício sempre fez parte dos rituais mágicos porque representa uma liberação dessa força. Aí, de novo, está a conexão. Os bruxos da Idade Média cortavam gargantas. Os bruxos do século XXI partem o átomo. Esta noite faremos as duas coisas.
— Mas não tem que ser ele! — insistiu Richard. — Por que o Matt?
— Por causa de quem ele é.
— Mas ele não é ninguém... não passa de uma criança.
— É o que ele acha. Mas tem de ser o sangue dele. Este é o momento para o qual Matthew nasceu.
— Já chega — disse a Sra. Deverill. —Vamos continuar.
Sir Michael olhou o relógio.
— Certo. Está na hora.
Matt não conseguia se mexer. A laje era fria às suas costas. As tiras de couro prendiam-no com força.
Dentro da sala de observação, um interruptor foi acionado. Muito abaixo do piso, eletroímãs pegaram as hastes de controle e começaram a puxá-las para cima, centímetro a centímetro. Os moradores do povoado se deram as mãos, de olhos fechados. Lentamente as hastes foram sugadas para fora da pilha nuclear. Sir Michael foi até o meio do círculo e parou junto de Matt, segurando a faca.
Era meia-noite da véspera de Roodmas. Hora de abrir o portal.
O PORTAL DO CORVO
Então seria assim.
Matt estava amarrado, cercado, impotente. Dentro de alguns instantes seria morto. O calor feroz do reator nuclear enfraqueceria o portão, levando-o ao ponto em que poderia ser finalmente esmagado. E então a faca seria cravada em seu coração. De algum modo, bastaria que seu sangue batesse no piso. Nesse momento o Portal do Corvo se abriria.
Richard Cole não podia ajudá-lo. Mesmo que conseguisse se libertar, nunca chegaria a tempo.
Mas ainda existia o poder.
Por duas vezes Matt havia tentado encontrá-lo dentro de si. Por duas vezes fracassara. Tinha mais uma chance. Mas como...?
Os moradores tinham começado a sussurrar. Era um som que Matt já ouvira. Começaram com as mesmas palavras que o haviam assombrado quando estivera sozinho no Solar da Colméia.
OSSOVO ... AJESO ... DACIFIT... NASU ... EÇON ... SATSE
No entanto, agora que estava perto, Matt conseguia entender as palavras recitadas. E de repente entendeu. Havia presumindo que estivessem falando em latim ou grego, mas era muito mais simples do que isso. Tratava-se de um antigo ritual de feiticeiros. Estavam recitando o Pai-Nosso de trás para a frente.
Matt tentou ignorá-los. Percebia a energia crescendo por baixo enquanto o reator nuclear chegava à massa crítica. Sabia que precisava fechar a mente àquilo tudo. Por que não pudera quebrar o vaso na casa de Richard? Por que não tinha conseguido abrir a porta quando era prisioneiro da Sra. Deverill? O que estava fazendo de errado?
Os sussurros encheram o ambiente, crescendo acima do zumbido baixo do sistema de ventilação. Sir Michael segurava a faca com as duas mãos, esperando o momento de baixá-la. Apesar de todos os esforços, Matt se pegou fascinado pela lâmina prateada. Todo aquele negócio havia começado com uma lâmina... a que Kelvin usara para ferir o segurança. Aparentemente também terminaria com uma.
Pense na faca. Concentre-se nela. Faça-a parar. Deitado de costas, Matt tentou libertar o poder que havia dentro dele. Mas não adiantava. Sir Michael tinha o controle. Sorria sozinho enquanto sussurrava as palavras de invocação. Matt podia ver o suor no lábio superior dele. O sujeito gostava daquilo. Toda a sua vida tinha levado até ali.
Embaixo do piso, as hastes de controle subiam lentamente. Quando deixaram o núcleo do reator, os nêutrons correram dentro do tanque de contenção, viajando a centenas de quilômetros por segundo, chocando-se uns contra os outros e liberando um calor fantástico.
E, junto com as hastes de controle, o Portal do Corvo também subia.
Richard conseguira livrar uma das mãos, mas a outra continuava amarrada, e ele lutava desesperadamente com a corda. Porém, ao ver o que estava acontecendo, parou, totalmente chocado.
As grandes pedras, destruídas há séculos, estavam subindo do chão como plantas monstruosas. Havia 18 hastes de controle. E eram 18 pedras, cada uma deslizando e assumindo a posição exata que haviam ocupado um dia. Eram fantasmas, passando pelo chão sem tocá-lo. Enquanto Richard olhava, elas tremulavam, tornando-se mais sólidas à medida que ficavam mais altas. Já se erguiam acima dos moradores do povoado, formando um novo círculo atrás deles. Dentro de alguns segundos seriam exatamente como antes. E Richard soube, com uma certeza terrível, que então a faca desceria. Os Antigos seriam libertados.
Matt viu tudo isso e fechou os olhos. Quanto mais fosse atraído para os acontecimentos ao redor, menos controle teria. Não havia nada a fazer? Tinha despedaçado a jarra d'água. Não fora um sonho. Tinha feito aquilo. Mas como? Desesperadamente tentou se lembrar de como havia se sentido quando estava no centro de detenção. O que o tornara diferente? O que havia funcionado?
Os sussurros ficaram mais altos. Agora algo ainda mais incrível estava acontecendo. A cor do piso dentro do círculo havia mudado. O xadrez preto-e-branco fora afastado por um brilho vermelho que parecia estar cintilando através dele, por baixo. O brilho ficou mais forte, a cor mais intensa, até parecer um vasto lago de sangue. De repente uma rachadura, profunda e negra, traçou um caminho serrilhado pela cúpula do reator. O portal estava se abrindo.
Matt abriu os olhos pela última vez. Ali estava Richard, parado do lado de fora do círculo, ainda lutando contra a corda. Ali estava Jayne Deverill com sua irmã, observando o que acontecia num estado que beirava o êxtase. O teto: ásperas luzes industriais e tubos prateados. A sala de observação com as crianças do povoado encostadas no vidro, olhando. As chamas das velas pretas, estalando e oscilando. E o piso...
Um trecho de negrume tinha aparecido no vermelho. Matt se obrigou a levantar a cabeça, de modo a enxergar a extensão do próprio corpo e além. O piso tinha ficado transparente. Ele estava olhando através dele, para outro mundo. O negrume se moveu. Estava subindo, voando, nadando para cima, movendo-se a uma velocidade incrível. Por um segundo Matt pôde identificar uma forma, algum tipo de criatura. Mas era rápida demais. A escuridão aumentou, bloqueando o vermelho, empurrando-o de lado num caos de bolhas em redemoinho. Uma tira branca e brilhante cortou a superfície do lago. A coisa preta a afastou e, com um tremor, Matt viu o que era. Uma gigantesca mão. O monstro que a possuía devia ser grande como o próprio reator. Dava para ver as unhas dos dedos, afiadas e escamosas e a pele enrugada dos dedos membranosos. A coisa havia colocado o punho contra a barreira, e as bolhas vermelhas estavam explodindo ao redor, como se ela procurasse a força para abrir o caminho com um soco.
Matt fechou os olhos. E de repente, vinda do nada, a resposta chegou.
O cheiro de queimado.
Foi o que havia disparado seu poder. Ele havia sentido cheiro de queimado quando estava afundando no pântano. O mesmo cheiro estivera no centro de detenção, quando ele quebrou a jarra. E mesmo antes disso... muito antes disso. Agora lembrava-se. Sua mãe tinha queimado a torrada na manhã do acidente que a havia matado. De algum modo esse pequeno incidente tinha sido o gatilho. Ele sentira o cheiro da torrada se queimando um instante antes de o segurança aparecer no armazém e sabia o que estava para acontecer.
Parou de tentar influenciar a faca. Parou de tentar mover algo dentro de si mesmo. Em vez disso pensou em seis anos atrás. Tinha oito anos de novo e estava numa cozinha num subúrbio do sul de Londres. Por apenas um segundo, um único quadro de um filme, viu as paredes pintadas de amarelo. Ali estava o armário da cozinha. O bule na forma de ursinho.
E sua mãe.
— Ande, Matthew. Vamos nos atrasar.
Escutou a voz dela e nesse instante sentiu de novo. O cheiro de torrada queimando...
Dentro do reator nuclear os sussurros tinham parado. As grandes pedras do Portal do Corvo haviam retornado. Estavam de pé, quase tocando a cúpula da usina nuclear. Sua superfície desgastada e dura — com milhares de anos de idade —, as placas de metal, os tubos e as máquinas que as rodeavam. Sir Michael Marsh levantou a faca. Seus punhos, segurando o cabo, se apertaram.
— Não!— gritou Richard. A faca desceu.
Tinha uma distância menor do que o tamanho de um braço para percorrer. Penetraria facilmente no coração do garoto. A ponta chegou à camisa de Matt. Furou a pele. Mas foi só até aí. De repente parou, como se apanhada por um fio invisível. Sir Michael emitiu um gemido estranho, estrangulado, enquanto pressionava para baixo com toda a força. Olhou para Matt, percebendo que o poder do garoto havia finalmente acordado, e com esse conhecimento vieram os primeiros sussurros de medo e derrota.
— Não... — murmurou numa voz entrecortada: — Você não pode! Agora, não! Não pode me impedir agora!
Matt olhou para a faca e soube que estava no controle total.
Sir Michael gritou. A lâmina luzia num vermelho fundido. A faca queimava a palma de sua mão. A pele rachou e deixou sair uma fumaça, mas ele não podia largá-la. Com um último esforço conseguiu baixar os braços e a faca caiu no chão, inútil. Gemendo, o cientista cuspiu nas mãos feridas. Ao mesmo tempo as tiras que haviam segurado Matt chamuscaram e se partiram. Matt rolou para fora do altar e ficou de pé.
Deu um passo adiante e parou na superfície do lago, desafiando os moradores a se aproximar. Ninguém se mexeu. Até a criatura embaixo, mesmo sendo mil vezes maior do que ele, encolheu-se e recuou. Um fiapo de vapor venenoso e verde ondulou para fora, numa mancha brilhante. Matt se virou para os moradores do povoado. Ninguém tentou impedi-lo. Ele atravessou o círculo e correu para Richard. O corrimão atrás do jornalista se partiu. Instantaneamente ele estava livre.
— Venha comigo! — ordenou Matt, numa voz que praticamente não era dele.
Atordoado demais para fazer algo além de obedecer, Richard seguiu-o. Quando os moradores absorveram o que estava acontecendo os dois já tinham sumido pela única porta da câmara que ainda estava aberta.
A Sra. Deverill se recuperou e, com um uivo de fúria, lançou-se atrás deles. O Sr. Barker, o farmacêutico tentou segui-la. Mas tinha saído tarde demais. Dera apenas três passos pela câmara quando o chão à sua frente se partiu, com fragmentos de metal e concreto voando para cima. Chamas laranja rugiram ao redor e uma densa nuvem de fumaça branca brotou de baixo, sufocando-o. Aos gritos, ele caiu no chão e ficou imóvel.
Uma sirene disparou e luzes em toda a cúpula começaram a piscar. Um alerta de radiação. Os níveis estavam subindo a cada segundo e já eram mortais.
— Fiquem no círculo! — gritou Sir Michael. Estava soluçando, ainda segurando a mão arruinada. — A radiação escapou. Mas no círculo estamos protegidos!
As chamas laranja subiram, mais altas ainda do que as pedras, lambendo o teto. A fumaça arrotou, formando um tapete vivo. Um sistema contra incêndio tinha sido acionado automaticamente, e milhares de litros de água caíam, encharcando e cegando os moradores. Mas isso não bastava para acabar com aquele fogo... não com aquele fogo. As chamas saltaram através da água, sibilando e estalando. Todo o prédio começou a tremer.
Claire Deverill foi a primeira a se descontrolar. Com um grito de pânico levantou os braços e correu por entre duas das pedras, indo para a mesma porta por onde sua irmã tinha saído. Mas no momento em que deixou o círculo mágico não estava mais protegida. O calor das chamas a golpeou. Suas roupas se incendiaram. A fumaça agarrou suas pernas, arrastando-a para baixo. Ela gritou e tentou gritar de novo. Mas não havia ar no ambiente, apenas fumaça e fogo. Seu rosto se contorceu e os olhos ficaram brancos. Ela caiu e permaneceu ali, sacudindo-se em convulsões.
— Fiquem no círculo — repetiu Sir Michael. — As portas estão trancadas. Eles não podem escapar.
Embaixo do piso, a criatura gigantesca dava socos e mais socos contra a barreira invisível. Mas não podia rompê-la. Havia ritual. Havia fogo. Mas o sangue da criança lhe fora negado e ela não tinha força.
E foi então que Sir Michael notou a faca. A ponta havia penetrado na camisa e furado a pele de Matt. O poder de Matt a havia feito parar, mas não antes de tirar um pouco de seu sangue. Havia uma única gota vermelha bem na ponta da lâmina. Seus olhos se arregalaram. Com um grito de prazer saltou para a frente e pegou a faca. O sangue ainda estava úmido. Brilhava sob as luzes fortes.
Sir Michael riu e baixou a faca, com força, contra o portão.
O poder estava jorrando através de Matt e nada podia ficar em seu caminho. Portas trancadas eram arrancadas das dobradiças como se golpeadas por um tornado. Placas de aço se dobravam e amassavam quando ele se aproximava. A Ômega Um era um labirinto mas ele parecia saber exatamente para onde ia. Desceu uma escada de metal, seguiu por um corredor, passou por um arco e foi até uma porta automática que sibilou, abrindo-se quando ele chegou perto. Era como se tivesse trabalhado ali durante toda a vida.
Richard vinha logo atrás. O jornalista não sabia mais aonde iam, mas dava para ver que era para baixo. Já deviam estar bem abaixo do nível do solo. As sirenes de alerta ainda soavam ao redor deles e luzes vermelhas e brancas piscavam em cada canto. O vapor apitava ao sair dos canos. A água cascateava proveniente do sistema anti-incêndio. Toda a usina parecia tremer, em vias de se arrebentar, e ele estava preocupado com a hipótese de ficarem presos. Não devia haver uma saída por baixo do chão. Mas sabia que não era hora de discutir. Manteve a boca fechada, seguindo Matt num silêncio sério.
Passaram por uma sala com máquinas empilhadas do chão ao teto, depois seguiram por outro corredor. Uma porta no final se abriu com estrondo, atraindo-os.
A porta dava numa passarela de metal acima de um tanque d'água. Mas não era como qualquer água que Richard já tivesse visto. Era azul — um azul fluorescente, não-natural. Era completamente límpida, sem um único grão de poeira na superfície. O tanque era quadrado, com cerca de três metros de profundidade. No fundo havia uma fileira de caixas de metal, cada uma com uma série de números estampados. Metade estava vazia. Metade continha barras de metal retorcido, muito bem apertadas.
Richard sabia para o que estava olhando. Era ali que o lixo radiativo do reator era armazenado, para esfriar. O que estava na piscina não era água, e sim ácido. As caixas sob a superfície continham a substância mais mortal do mundo. Com um tremor, recuou. Matt o esperava, o rosto fixo numa estranha determinação. Era difícil dizer se estava dormindo ou acordado.
— Certo, estou indo — disse Richard.
O golpe o pegou completamente desprevenido, acertando-o na nuca. Se não estivesse se movendo para a frente, talvez tivesse quebrado o pescoço. Caiu de joelhos. Uma mulher passou por ele e pisou na passarela de metal, olhando para Matt. Era a Sra. Deverill. Richard tentou ficar de pé, mas estava praticamente inconsciente. Toda a força o havia abandonado. Só podia ficar de joelhos, impotente, enquanto a Sra. Deverill ia na direção de Matt, segurando uma barra de ferro.
— Ele não me ouviu — gritou ela. Seu rosto estava distorcido pela fúria, os olhos lívidos, a boca numa careta desumana. — Nós devíamos ter trancado você, feito você passar fome, mantido você fraco. Mas agora acabou, não é? O poder se foi. Você não sabe como controlá-lo. Agora posso matá-lo e levá-lo de volta.
Ela ergueu a barra de ferro. Matt olhou ao redor. Não tinha para onde correr. Num dos lados havia uma parede. No outro, um corrimão baixo, impedindo-o de cair no tanque de ácido. A passarela tinha apenas dois metros de largura. A Sra. Deverill estava parada entre ele e Richard. Mesmo que pudesse correr, teria de deixar o amigo à mercê da mulher, e não podia fazer isso. Não tinha escolha. Precisaria lutar.
Ela rigou a barra no ar. Rápido como uma pantera, Matt saltou de lado, depois recuou agilmente quando a Sra. Deverill lançou a extremidade pontuda na direção da sua barriga. Ela se movia incrivelmente rápido para uma mulher de sua idade, porém a fúria lhe dava força. Caiu de encontro ao corrimão enquanto a mulher se jogava contra ele. Não havia nada que pudesse fazer. Era mais alta do que ele — e estava armada. E era bem louca. Grunhindo de raiva e esforço, ela pressionou a barra no peito de Matt, prendendo-o contra a lateral com tanta força que o garoto achou que suas costelas se partiriam.
Desejou ser capaz de usar seus poderes contra ela, mas a mulher também estava certa com relação a isso. O poder não se encontrava mais ali. Matt havia se exaurido chegando tão longe. Havia um interruptor defeituoso dentro dele, que agora tinha se desligado outra vez. Era um garoto comum de novo. E estava sendo espancado por ela.
A Sra. Deverill levantou a barra, deslizando-a sobre seu peito e pressionando-a contra a garganta. Agora usava-a para esmagar sua traquéia. 0 rosto fino, com malares irregulares, estava muito perto do dele. Os olhos da mulher queimavam com fúria e indignação. Matt sentiu o piso escorregando sob os pés. Estava sendo forçado para trás. O corrimão se apertava contra a coluna vertebral e seu pescoço se virou para trás até que ele podia ver a piscina de cabeça para baixo. Com um som Ofegante, levantou o joelho, lançando-o contra a barriga da mulher. A Sra. Deverill soltou um guincho e recuou. Matt se dobrou para o lado.
A barra desceu de novo. Matt se desviou. Sentiu o vento passar perto da bochecha enquanto o ferro se chocava no corrimão. Fagulhas saltaram. Então pulou para trás da mulher, tentando pegá-la de surpresa. Mas ela esperava o movimento. Estendeu rapidamente o pé, fazendo-o tropeçar. E então Matt pegou-se de costas, vendo a Sra. Deverill levantar a barra com as duas mãos. Ela pretendia usá-la como uma lança, cravando-a no seu peito.
— Você ainda é meu! — ofegou ela. — Terei o seu sangue. Vou arrancar seu coração e levá-lo comigo.
Os dedos dela se apertaram. Ela respirou fundo.
E então tombou para a frente, gritando. A barra de ferro errou o alvo. Matt olhou para além da mulher e viu que Richard tinha se recuperado o suficiente para fazer um último esforço. Com toda a força havia empurrado-a por trás. Jayne Deverill perdeu o equilíbrio. Por um momento cambaleou e, com um grito, tombou por cima do corrimão e caiu no tanque.
Afundou como uma pedra, mergulhando num dos caixotes. Com bolhas saindo da boca, tentou chegar à superfície. Mas já era tarde demais. O ácido começara a corroê-la. Richard se inclinou e viu que boa parte do rosto havia sumido.
— Não olhe, Matt — alertou ele.
A Sra. Deverill não estava mais reconhecível. Sua cara estava sendo queimada e o cabelo se soltou. Richard fechou os olhos. Bruxas tinham sido queimadas na Idade Média, ele sabia, mas não podia ter sido algo tão medonho.
Matt se levantou debilmente.
— Por aqui... — disse em voz baixa.
Havia outra porta na extremidade da passarela, outra escada descendo mais ainda. De súbito as paredes pareceram diferentes. Em vez da tinta e a argamassa lisa dos corredores de cima, essas paredes eram cortadas em rocha sólida, cobertas com trechos de musgo úmido. Os degraus de ferro estavam enferrujados, levando para uma escuridão total. Richard podia ouvir um som de água passando. O rio subterrâneo!
Os degraus acabaram em uma pequena plataforma triangular. Alguns metros abaixo o rio negro passava por quilômetros de cavernas, sob a floresta. O sistema de cavernas era como uma tubulação subterrânea, cheia quase até o teto com água gélida. Não havia margens nem caminhos. Não havia saída.
— Segure-se em mim — disse Richard. — Matt passou os braços ao redor do jornalista. — É só se segurar.
Pularam.
A câmara do reator Ômega Um estava se rompendo. As chamas haviam tomado conta de quase tudo. O calor era tão intenso que os tubos e as plataformas pesadas se derretiam. O chão se ondulava e se partia. Uma rachadura tinha aparecido em uma das paredes e o ar noturno alimentava as chamas, fazendo a fumaça se convulsionar.
Sir Michael Marsh estava sozinho junto ao altar, com o vento e a fumaça fazendo redemoinhos ao seu redor. Os moradores do povoado, loucos de pavor, tinham tentado fugir. Mas fora da proteção do círculo mágico foram incinerados instantaneamente, engolidos pelo inferno. Agora a caixa de observação explodia, fazendo fragmentos de vidro e lascas de metal cair em cascatas na câmara.
A torre de metal na extremidade mais distante do círculo balançou quando o chão foi sacudido por um novo espasmo.
Com um rangido tenebroso e uma erupção de fagulhas, ela tombou, atravessando uma parede. Outra janela se despedaçou, atravessada por uma bola de fogo similar a uma bala saindo de uma arma.
O cientista se encostou na laje do sacrifício. Embaixo, sob a fumaça e o fogo, a mão negra da criatura que ele invocara bateu uma última vez contra o portão. As pedras antigas tinham quase sumido. Estavam se desmoronando, com poeira saindo das fendas que haviam se formado nelas. A Ômega Um estava em vias de provocar um terremoto, as paredes vibrando, as escadas e plataformas de metal soltando-se e despencando.
Mas então, com um último grito, um grito que o mundo não ouvia há um milhão de anos, a criatura — o rei dos Antigos — se libertou. O portal se despedaçou. Uma única gota do sangue de Matt fora o bastante para enfraquecê-lo. A mão se estendeu para fora.
— Conseguimos! — gritou Sir Michael, os olhos se arregalando. — O senhor está aqui! O senhor está livre!
A mão gigantesca se abriu. Toda a luz da câmara foi bloqueada pelos dedos enormes que se abriam.
A mão estava ao redor do cientista. Ele deu um gritinho de deleite que se transformou em terror quando percebeu o que aconteceria. A mão se fechou, esmagando-o. Sir Michael Marsh morreu horrivelmente, nas garras da criatura a quem tinha servido durante toda a vida.
E então o reator, levado além dos limites, se desintegrou. Uma luz ofuscante, dolorosa, fantástica, irrompeu. Era brilhante como o sol: a luz de uma explosão atômica.
Uma gigantesca nuvem em forma de cogumelo brotou do chão. A criação mais pavorosa do homem enlouqueceu. Espiralando para o alto, foi em direção ao céu noturno, levando radiação suficiente para destruir metade da Inglaterra.
Mas o portal estava aberto.
O vácuo precisava ser preenchido.
A energia atômica recuou, sugada para dentro do portal, que ela tinha ajudado a abrir. O cogumelo tinha subido quatrocentos metros acima do solo, mas agora era puxado para baixo outra vez. A fumaça e os gases mortais foram arrastados para dentro do buraco aberto entre os dois mundos.
A criatura foi engolfada e arrastada de volta. Uma torrente de luz pura girou ao redor, formando um redemoinho de onde não podia haver escapatória. O vermelho derretido fluiu como uma cortina, depois escureceu e morreu. Os quadrados pretos e brancos do piso do reator tremularam e reapareceram. A criatura havia sumido. O portal fora lacrado de novo.
E a cinco quilômetros dali, Richard e Matt, tossindo e tremendo, foram cuspidos de uma caverna subterrânea e, chegando à margem, alcançaram terra seca. No horizonte uma faixa rosa se espalhava pela noite enquanto o sol começava a subir pela extremidade do mundo.
Finalmente estava acabado.
O HOMEM DO PERU
— No Times?
— Nada.
— No Telegraph?
— Nada.
— No Daily Mail?
— Nada.
— No Independent?
— Nada.
— No Le Monde?
— Não sei. É em francês.
— Tem de haver alguma coisa em algum lugar.
Matt e Richard estavam sentados à mesa da cozinha no apartamento do jornalista em York. Cada um deles estava com uma tesoura e uma xícara de chá. Mais de uma semana havia se passado desde a fuga da Ômega Um e ambos haviam mudado. Matt tinha uma cicatriz na lateral do rosto, uma lembrança do Museu de História Natural. Mas parecia menos magro e cansado. Ficar com Richard, dormindo tarde, assistindo à TV e fazendo pouca coisa, obviamente fora boa para ele. Quanto a Richard, estava mais otimista, mais organizado. Ainda achava difícil acreditar que tinha sobrevivido. E estava certo de que venderia a maior matéria jamais escrita. Não era apenas uma questão de "segurar a primeira página". Sua matéria sairia em todas as páginas.
Estavam rodeados por jornais e revistas que tinham verificado, da primeira à última página. Vinham fazendo aquilo por uma semana. E era sempre a mesma coisa.
— Quantos mais temos de ler? — perguntou Matt.
— Não acredito que isso esteja acontecendo. Puxa, deve haver uma menção em algum lugar. Não é possível acontecer uma explosão nuclear no meio de Yorkshire sem que alguém note.
— Você tem aquele recorte do Yorkshire Post.
— Ah, claro! — Richard pegou um pedaço de papel que estava preso à porta da geladeira por um ímã. — Cinco centímetros de coluna sobre uma luz forte vista acima das florestas perto de Pequeno Mailing. Uma luz forte — foi como chamaram! E colocaram na página três, perto da previsão do tempo.
Nos últimos sete dias Richard estivera monitorando as notícias nos jornais, no rádio e na televisão. Estava completamente perplexo. Era como se nada fora do comum tivesse acontecido. Engenheiros estruturais continuavam investigando os danos no Museu de História Natural. Milhões de libras em fósseis de dinossauros tinham sido perdidos, mas ninguém havia mencionado o professor Sanjay Dravid, que certamente fora encontrado morto no meio daquilo. O mesmo acontecera em relação ao desaparecimento de Sir Michael Marsh, ele já fora um influente cientista do governo e recebera o título de cavaleiro. Não havia obituário, nota, nada. E era como se jamais tivesse existido.
E quanto à matéria de Richard?
Tinha escrito tudo em 24 horas. Para começar, mantivera a coisa simples, com apenas dez páginas, delineando de modo bem amplo o que havia acontecido. Matt insistiu em que seu nome fosse deixado de fora. Sabia o que tinha feito, mas ainda não tinha certeza de como fizera... e a verdade era que não queria saber. Finalmente conseguira encontrar o poder para impedir a faca e fugir. Mas lembrava-se de muito pouco. Num momento estava deitado na laje. No outro lutava com a Sra. Deverill acima da piscina de ácido. O que havia acontecido nesse intervalo era como um sonho horrível. Era como se tivesse sido possuído.
Matt queria jamais ter de mencionar Jayne Deverill ou o Portal do Corvo outra vez. E certamente não queria parar na primeira página de todos os jornais do mundo. Como uma espécie de super-herói. Uma espécie de aberração.
No fim, Richard concordou em lhe dar um nome falso. Era o modo mais fácil. Também não mencionou o projeto LELAS. Isso tornaria muito fácil identificar Matt. E de qualquer modo, esta era outra informação que Matt não queria ver publicada.
A matéria de dez páginas fora mandada a cada jornal de Londres. Isso acontecera havia três dias. Desde então, metade deles havia escrito de volta.
Caro Sr. Cole,
O editor agradece seu texto recebido em 4 de maio. Lamentamos não achá-lo adequado para publicação.
Atenciosamente...
Todas as cartas eram mais ou menos iguais. Curtas e objetivas. Não davam qualquer motivo para a recusa. Simplesmente não queriam saber.
Matt percebia que Richard estava frustrado e com raiva. Não esperava que as pessoas acreditassem em tudo que tinha escrito. Afinal de contas, boa parte era inacreditável. Mas ao mesmo tempo alguém devia estar pensando no que acontecera no museu e na usina nuclear. Havia uma cratera gigante na floresta onde estivera a Ômega Um. Pequeno Mailing estava vazio. Como um povoado inteiro podia simplesmente desaparecer da noite para o dia? Havia uma centena de perguntas pairando no ar — e o artigo de Richard dava pelo menos algumas respostas. Por que ninguém queria publicá-lo?
Também havia uma preocupação não verbalizada entre os dois.
Matt sabia que estava vivendo um tempo emprestado. A Sra. Deverill estava morta e a qualquer minuto as autoridades em Londres notariam o fato de que ela havia desaparecido e se perguntariam o que teria acontecido com ele. O projeto LELAS ia reivindicá-lo e ele seria mandado a outro local. Era óbvio que não podia ficar muito mais tempo com Richard. No apartamento havia espaço para os dois, mas de qualquer modo um garoto de 14 anos não poderia ir morar com um homem de 25 anos que ele conhecera algumas semanas antes. Pior, Richard estava sem dinheiro. Como não aparecia para trabalhar havia uma semana, perdera o emprego na Gazeta. O editor nem mesmo lhe mandou uma carta. Sua demissão foi simplesmente anunciada na primeira página: JORNALISTA DEMITIDO. Richard não conseguia evitar o mau humor. Não teria um furo jornalístico digno de prêmio e precisaria arranjar trabalho. Tinha mencionado, brevemente, que talvez voltasse a Londres.
— Você sabe o que eu acho? — disse Richard, de repente.
— O quê?
— Acho que alguém está fazendo tudo isso de propósito. Acho que alguém pôs um cobertor sobre a história.
— Cobertor?
— Uma coisa do governo. Censura. Quando não querem que uma história saia nos jornais por questões de segurança nacional.
— Você acha que eles sabem o que aconteceu?
— Talvez. Não sei. — Richard fez uma bola de jornal. — Só sei que alguém deveria ter dito alguma coisa. E não acredito que ninguém disse.
A campainha tocou. Richard foi até a janela e olhou para baixo.
— Carteiro? — perguntou Matt.
— Não. Parece turista. Provavelmente está perdido. — Muitos turistas passavam pelo apartamento, mas era incomum que um deles tocasse a campainha. Richard se levantou. — Vou descer e me livrar dele.
Matt terminou o chá e lavou a caneca na pia. Não tinha dormido bem na noite anterior... na verdade, em todas as noites desde a Ômega Um. Sentia medo de ver as quatro crianças na praia se dormisse. Três garotos e uma garota. Com ele, eram cinco.
Um dos Cinco.
Era isso: quatro garotos e uma garota que tinham salvado o mundo uma vez e salvariam de novo. No museu, Matt havia contado a Richard no que acreditava. Que era um deles.
Mas como era possível, se eles tinham vivido havia milhares de anos? Matt possuía algum tipo de poder. Isso era óbvio. Mas não era algo que pudesse controlar, e nunca mais queria vê-lo ou usá-lo de novo. Afundou a cabeça nas mãos. Nunca tivera controle da própria vida... pelo menos desde que podia lembrar. E neste momento se sentia mais fora de controle do que nunca.
Richard voltou, acompanhado por um homem vestido de terno claro. Certamente era estrangeiro, com cabelo muito preto, pele cor de azeitona e olhos escuros. Mas não parecia turista. Trazia uma pasta cara, de couro, e parecia mais um empresário... algum tipo de advogado internacional, talvez.
— Este é o senhor Fabian — disse Richard. — Pelo menos foi o que ele disse.
— Bom dia, Matt. Estou muito feliz em conhecê-lo.
A voz de Fabian era suave. Pronunciava cada palavra cuidadosamente, com forte sotaque espanhol.
— O senhor Fabian leu meu artigo — continuou Richard. — Ele é do Nexo.
O Nexo. A organização secreta que o professor Dravid, havia mencionado antes de ser morto.
— O que o senhor quer? — perguntou Matt.
Já estava cheio. Só queria deixar tudo aquilo para trás. Fabian suspirou.
— Posso me sentar?
Richard indicou uma cadeira. Fabian sentou-se.
— Obrigada Sr. Cole. Em primeiro lugar, deixe-me dizer, Matthew, que estou muito feliz, muito honrado, em conhecê-lo. Sei o que você passou. Espero que tenha se recuperado totalmente.
— O senhor não sabe nem a metade — resmungou Richard.
Fabian se virou para ele.
— Você estava no Museu de História Natural quando o professor Dravid foi morto, claro. Gostaria de saber como sobreviveu.
Richard deu de ombros.
— Eu estava dentro das costelas. Fiquei preso embaixo do dinossauro. As costelas me protegeram dos tijolos que caíam, e a Sra. Deverill me puxou para fora. — Ele parou. — O senhor disse que leu meu artigo. Então talvez possa me explicar uma coisa: por que ninguém quer publicá-lo?
Fabian deu um suspiro de desculpas.
— Na verdade é por isso que estou aqui, senhor Cole. Minha organização impediu que sua história fosse publicada. É nosso trabalho garantir que ela jamais veja a luz do dia.
— O quê? — Richard encarou o visitante com raiva e incredulidade. — Está me dizendo que o Nexo...?
— Sinto muito. Sei que deve ser extremamente frustrante...
— Frustrante! Está maluco?
Richard lançou um olhar por cima da mesa e Matt ficou satisfeito por não haver uma faca à mão.
— Não podemos deixar que seja publicada, senhor Cole.
— Por quê? E como vocês impediram?
— Quanto à segunda pergunta, tenho certeza de que Sanjay Dravid já explicou. Temos muita influência. Conhecemos pessoas... no governo, na polícia, na igreja. Nós as aconselhamos. E, neste caso, aconselhamos a não publicar seu material.
— Por quê? —trovejou Richard.
— Por favor, senhor Cole. — Fabian podia ver a fúria nos olhos do jornalista. — Deixe que eu tente explicar. — Ele esperou um momento enquanto Richard se acalmava. — Comecemos admitindo que sua história é completamente inacreditável. Feiticeiros e cães fantasmas? Criaturas sobrenaturais chamadas de Antigos? Um garoto... — ele apontou para Matt — ...com algum tipo de poder mágico?
— Aconteceu exatamente como Richard descreveu — disse Matt, defendendo o amigo.
— Aconteceu? A polícia andou investigando nos últimos sete dias e encontrou pouquíssima coisa que apoiasse sua versão dos fatos. É verdade que os moradores do povoado parecem ter feito as malas e ido embora. E agora a Ômega Um está em ruínas. Mas, para lhe dar apenas um exemplo, se realmente houve uma explosão, por que não se encontrou qualquer sinal de radiatividade na área?
— Eu disse na matéria — explicou Richard, sem paciência. — Nós achamos que todas as partículas radiativas foram sugadas de volta para o portal.
— Ah, sim. O Portal do Corvo. É a parte mais ridícula de todas. Você escreveu que havia algum tipo de círculo de pedras do qual ninguém no mundo ouviu falar...
— O professor Dravid ouviu — disse Matt.
— Sanjay Dravid morreu.
— Espere um minuto. — Richard bateu com força na mesa. — O senhor faz parte do Nexo. Sabe que estou dizendo a verdade. Então por que está fingindo o contrário?
Fabian assentiu.
— Você está certo. Achei que tivesse deixado isso claro desde o início. Claro que acredito em você.
A cabeça de Richard estava girando.
— Então por que querem abafar a história?
— Porque este é o século XXI, e a única coisa com a qual as pessoas não conseguem viver é a incerteza. Onde há terrorismo as pessoas precisam saber que a polícia está no controle. Quando surgem novas doenças, elas esperam que a ciência encontre a cura. Vivemos numa época em que não há mais espaço para o impossível.
— Mas o senhor acredita no impossível.
— Sim. Mas por que acha que precisamos manter a organização em segredo? Porque as pessoas achariam que somos loucos, senhor Cole. Por isso. Um dos nossos membros é senador pelo Partido Democrata dos Estados Unidos. Ele seria imediatamente exonerado se começasse a falar sobre os Antigos. Outra é uma multibilionária que trabalha no campo da informática. Ela nos apóia e acredita em nós. Mas as ações de suas empresas despencariam se isso fosse divulgado. Eu tenho mulher e filhos. Nem eles sabem que estou aqui. Ele se virou para Matt.
— Ainda que você não tenha sido informado — disse o peruano —, o projeto LELAS sabe que você não está mais sob os cuidados da Sra. Deverill. Poderíamos dizer a eles onde você está. Bastaria uma palavra nossa e você estaria de volta à custódia deles.
O coração de Matt afundou. Então tinha acontecido. Exatamente como temia.
Mas então Richard o surpreendeu:
— Ninguém vai levar o Matt a lugar algum — rosnou ele. — Matt vai ficar comigo.
— É exatamente o que arranjamos. — Fabian sorriu pela primeira vez. — Está vendo? Já falamos com as pessoas certas e tudo foi resolvido. Podemos ajudá-los. E vocês podem nos ajudar. Podemos trabalhar juntos.
— Como posso ajudá-los? — perguntou Matt.
— Acho que seu papel em tudo isso ainda não terminou. Sanjay Dravid falou comigo a seu respeito. Disse que seu aparecimento foi o fato mais notável da vida dele.
— Porquê?
— Porque ele acreditava que você fosse um dos Cinco.
E ali estava de novo. Um dos Cinco.
Matt suspirou.
— Isso é o que ficam repetindo. O que significa afinal?
— Cinco crianças salvaram o mundo. Cinco crianças vão salvá-lo de novo. É parte de uma profecia, Matt. O que aconteceu aqui em Yorkshire foi apenas o início. O Nexo será convocado outra vez e você terá de se encontrar com todos nós. Até então só pedimos que permaneçam aqui. E que não contem a ninguém. Temos de manter isso em segredo. Houve um longo silêncio.
— Está tudo muito bem — disse Richard. — Mas como vou cuidar dele? Já que o Nexo sabe de tudo, vocês devem ter notado que estou desempregado. E Matt não deveria estar na escola? Ele não pode simplesmente ficar o dia inteiro aqui comigo.
— Podemos facilmente arranjar uma escola para Matt. Podemos conseguir qualquer coisa que vocês precisem ou queiram. — Ele pôs um cartão de visita sobre a mesa. — Quanto às suas despesas, podemos cuidar disso também. — Ele abriu a pasta e pegou um grosso envelope, que entregou a Richard. O jornalista olhou dentro e assobiou. — São cinco mil libras, senhor Cole. Pense nisso como um primeiro pagamento. Quando precisar de mais, é só telefonar.
Fabian se levantou. Estendeu a mão para Matt, que apertou-a de má vontade.
— Nem posso falar como é grande o prazer em conhecê-lo — disse Fabian. — Vamos nos encontrar de novo em Londres, em breve. — Ele parecia a ponto de sair, mas se virou de novo e seus olhos estavam perturbados. — Talvez eu não devesse dizer isso. Mas você terá de saber em algum momento, e acho que meu amigo, o professor Dravid, gostaria que eu contasse. — Ele respirou fundo. — Acreditamos que talvez haja um segundo portal.
— O quê?
Matt ficou pasmo.
— Eu moro em Lima, no Peru. É o motivo de eu ter sido escolhido para visitá-los hoje. Há evidências de que existe outro portal no meu país. Talvez eu tenha de convidá-lo a ir até lá.
— Você deve estar brincando — respondeu Matt. — Já fiz minha parte. Não quero saber mais.
— Entendo, Matt. Só se lembre de que o Nexo está do seu lado. Só existimos para ser seus amigos. — Ele assentiu para Richard. — Por favor, não se levante, senhor Cole. Posso achar a saída.
Durante dez minutos nenhum dos dois falou.
— Bem — disse Richard, finalmente. O dinheiro estava espalhado na mesa à sua frente. — Pelo menos isso resolve o problema do dinheiro.
— Um segundo portal.
Matt havia empalidecido. De repente parecia cansado.
— Isso não tem nada a ver com você — disse Richard.
— Tem tudo a ver comigo, Richard. Agora eu sei. Achava que o negócio tinha acabado quando a usina nuclear foi destruída. Mas estava errado. É como o sujeito disse. Era só o começo.
— Esquece! — disse Richard. — Puxa, pense só um minuto. Você realmente acredita que haja outro círculo de pedras? E que talvez algum outro pirado tenha construído uma usina nuclear no meio dele? Isso não tem nada a ver com você, Matt. Ele está falando da América do Sul. A milhares de quilômetros daqui!
— Eles vão me obrigar a ir lá.
— Eles não podem obrigar você a fazer nada que não queira. E, se tentarem, terão de passar por cima de mim.
Matt não pôde evitar um sorriso.
— Obrigado por ter me ajudado.
— Aquilo não foi nada. Na verdade, eu nem queria. Só aconteceu.
— Bem, agora parece que você está grudado em mim.
Richard assentiu.
— Acho que é verdade. É um pé no saco. Por outro lado, não tenho emprego. Talvez eu banque a babá para você.
— Não preciso de babá.
— Precisa sim. E eu ainda preciso de uma história. Portanto o fato é que nós estamos presos um ao outro.
— Um segundo portal.
— Esqueça isso, Matt. Tire da cabeça. Não faço mais a mínima idéia do que está acontecendo, mas de uma coisa tenho certeza: não vamos ao Peru.
Anthony Horowitz
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