Biblio VT
O PORTÃO DOURADO / Parte II
21
Assim eles viviam. Da manhã à noite, do primeiro ruído do rio até o último canto da cotovia, do cheiro da urtiga ao cheiro das pinhas, do pacífico sol da manhã à lua de um azul pálido na clareira, Alexander e Tatiana passavam seus dias lilases.
Alexander cortava lenha para ela e faziam pequenos feixes, amarrados por ramos finos. Ela lhe fazia torta, compota e panquecas de mirtilos. Os mirtilos estavam abundantes naquele verão.
Ele construía coisas para ela, e ela fazia pão para ele.
Eles jogavam dominó. Sentavam-se na varanda de Naira e jogavam dominó nos dias em que chovia, e Tatiana sempre vencia Alexander, e, por mais que ele tentasse, não conseguia ganhar. Sozinhos, jogavam strip pôquer. Tatiana sempre perdia. Brincavam de esconde-esconde, que era brincadeira favorita de Alexander.
Tatiana fez para ele mais cinco camisas e dois pares novos de ceroulas do exército.
– Para que você me sinta debaixo de seu uniforme – disse-lhe ela.
Iam juntos colher cogumelos.
Ele lhe ensinava inglês.
Ele ensinou a ela poemas em inglês de que ela ainda se lembrava, alguns de Robert Frost: Os bosques são adoráveis, escuros e profundos, mas eu prometi manter... E alguns de Emma Lazarus: Aqui, diante de nossos portais de crepúsculo tocados pelo mar, se erguerá uma mulher poderosa...
Depois de acender o fogo na cabana, Alexander lia Pushkin para ela, enquanto ela fazia o jantar, embora, algumas vezes, ele parasse de ler “O cavaleiro de bronze”. Era demais para os dois.
No livro, eles encontraram um retrato dele que ele havia dado a Dasha no ano anterior. Era sua foto recebendo a medalha de valor por Yuri Stepanov.
– Minha esposa está orgulhosa de seu esposo? – perguntou ele, mostrando a foto a Tatiana.
– Irremediavelmente – respondeu ela com um sorriso. – Pense nisto, Shura. Quando eu ainda era criança, remando no lago Ilmen, você já tinha perdido seu pai e sua mãe, entrado para o exército e se tornado um herói.
– Não uma criança remando no lago Ilmen – disse ele, agarrando-a. – Uma rainha remando no lago Ilmen. Esperando por mim.
– Você sabe que ainda não fomos buscar as fotos do nosso casamento – disse Tatiana.
– Quem tem tempo de ir a Molotov? – observou Alexander.
Eles não falavam da partida dele, mas os dias corriam depressa. No final, não só corriam, mas pareciam se precipitar à frente dos dois num tempo triplo, como se a corda tivesse se partido e disparado os ponteiros do relógio implacável.
Alexander e Tatiana não falavam do futuro.
Não, não falavam.
Não podiam falar.
Nem depois da guerra, nem durante a guerra, nem depois de 20 de julho. Alexander mal conseguia falar com Tatiana sobre o dia seguinte. Eles não tinham passado. Não tinham futuro. Eles apenas eram. Jovens em Lazarevo.
Enquanto comiam e jogavam, conversavam e contavam piadas, enquanto pescavam e lutavam, enquanto caminhavam nos bosques praticando o inglês de Tatiana, nadavam nus atravessando o rio e voltando, enquanto ele a ajudava a lavar a roupa deles e das quatro velhas, enquanto ele carregava água do poço para ela e seus baldes de leite, enquanto ele lhe escovava o cabelo toda manhã e fazia amor com ela várias vezes por dia, nunca se cansando, nunca se cansando de se excitar com ela, Alexander sabia que estava vivendo os dias mais felizes de sua vida.
Eles não se deixavam iludir. Lazarevo não tornaria a voltar, nem para ele nem para ela.
Tatiana tinha suas ilusões.
E ele achava que era melhor... tê-las.
Olhem para ele.
E olhem para ela.
Tatiana se ocupava dele tão incessante e alegremente, sorria, tocava-o e ria tão constantemente – mesmo quando seu ciclo lunar de vinte e nove dias rodopiava mais rápido em torno do laço da dor – que Alexander ficava imaginando se ela sequer pensava no futuro. Ele sabia que, às vezes, ela pensava no passado. Sabia que ela pensava em Leningrado. Ela tinha uma tristeza pétrea que nunca sentira antes. Mas, com relação ao futuro, Tatiana parecia acalentar uma esperança rósea ou, no mínimo, uma despreocupação intensa.
“O que você está fazendo?”, perguntava ela quando ele se sentava no banco para fumar. “Nada”, respondia Alexander. Nada além de minha crescente dor.
Ele fumava e sentia vontade dela.
Era como desejar a América quando era alguns anos mais jovem.
Desejar uma vida com ela, uma vida preenchida apenas por ela, uma vida de casados, simples, longa, uma vida capaz de ter o cheiro e o gosto dela, ouvindo a lira de sua voz e vendo o mel de seus cabelos. Sentir o incrível conforto que vinha dela. Tudo isso, todos os dias.
Ele conseguiria dar as costas a Tatiana e deixar que seu rosto fiel o liberasse? Ela o perdoaria? Por deixá-la, por morrer, por matá-la?
Ele sentia uma pontada nas entranhas quando a observava sair completamente nua da cabana pela manhã, dando gritinhos e se atirando no rio, para depois sair, cruzar a clareira até ele e se sentar junto a seu coração apertado. Observado seus mamilos endurecidos pelo frio, seu corpo impecável tremendo ao ser abraçado por ele, Alexander cerrava os dentes, sorria e agradecia a Deus por ela não conseguir ver seu rosto contorcido quando a apertava contra ele.
Alexander fumava e a observa do banco de toco de árvore que ele fizera.
“O que você está fazendo?”, ela perguntava.
“Nada”, respondia ele. Nada além de transformar minha dor em loucura.
Seu temperamento se desconcertava constantemente.
Ele ficava irritado ao extremo ao vê-la se ocupar de outras pessoas. Tatiana, vendo seu desagrado, apenas se sublimava ainda mais para ele, se ocupando dele até ele não conseguir mais respirar. “O que eu posso lhe trazer? O que mais eu posso lhe trazer? Do que você precisa?” saía de sua boca com uma regularidade impecável.
Ele dizia “não, não preciso de nada”. E ela voltava, trazendo um cigarro, pondo-o em sua boca, acendendo-o e lhe beijando o canto do lábio, com seus olhos adoráveis a apenas centímetros dos olhos atormentados dele. Alexander queria dizer “pare, pare com isso”. O que acontecerá com você quando eu for embora e você ficar sem mim? O que restará de você quando eu me for, de tudo o que você me deu?
Alexander sabia que Tatiana não sabia como se entregar a ele de outro jeito. Ela só tinha um jeito – o que ele recebia. Sua devoção a ele era indelével; sua incapacidade de ocultar seu verdadeiro ser era o motivo pelo qual ele se apaixonara por ela antes de qualquer coisa. Logo ela teria que aprender, pensou Alexander, enquanto erguia e baixava seu machado centenas de vezes por dia. Aprender como escondê-lo até de seu verdadeiro ser.
Alexander começou a se irritar com ela pelas coisas mais simples. Sua alegria constante o incomodava o tempo todo. Ela estava sempre cantando e saltando como se tivesse uma mola nos pés. Ele não entendia como ela podia ser tão despreocupada quando sabia que ele partiria em quinze, dez, cinco, três dias.
Foi sentindo cada vez mais ciúmes dela; até ele se surpreendia consigo mesmo. Não suportava que alguém olhasse para ela. Não suportava vê-la sorrindo para ninguém. Não suportava que ela conversasse com Vova e muito menos que o servisse. Perdia o controle com total regularidade, mas não conseguia ficar zangado com ela por mais de cinco minutos. O arsenal que Tatiana carregava para acalmar Alexander de seu poço sem fundo de preocupações era composto por muitas armas.
Alexander nunca conseguia se aproximar dela o suficiente. Nem mesmo quando caminhavam, nem quando comiam, nem quando dormiam, nem quando faziam amor. Como seus sentimentos oscilavam entre a intensa ternura e o desejo incontido, ele precisava dela muitas vezes por dia. Seu corpo começava a doer fisicamente quando ficava sem ela enquanto ela ia ao círculo de costura ou ajudar as velhas. O zelo recatado de Tatiana, sua doçura avassaladora e sua vulnerabilidade exposta partiam o coração de Alexander. Tudo o que ele desejava era sentir sua carne aveludada em torno dele, enquanto ela dizia num sussurro Oh, Shura.
Ele não conseguia mais ficar em cima dela, olhando para o rosto dela e a vendo olhar para o dele. Para chegar ao fim, ele passou, cada vez mais, a virá-la de bruços, pois, assim, ficava atrás dela, sem que ela pudesse vê-lo.
Tudo isso tinha a ver com a tentativa de fazê-lo se sentir melhor com relação à ideia de abandoná-la.
Deixá-la era algo impensável.
Da pergunta que Alexander se fizera tantas vezes, ele começava a esquecer a resposta.
A que preço, Tatiana?
No começo, a resposta era clara.
Tatia era a resposta.
Mas agora não se tratava mais do começo. Era o fim.
Ela tinha ido à fábrica de peixe, pois ouvira que lá podia haver arenques, enquanto Alexander ficara na clareira, caminhando em círculos, entorpecido, esperando que ela retornasse. Ele foi até a casa e começou a procurar alguma coisa no baú, quando descobriu algo no fundo dele, como se tivesse sido escondido. O baú pertencera ao avô de Tatiana, de modo que Alexander não lhe deu muita atenção no começo, mas quando removeu a camada superior de lençóis e roupas, bem como de alguns papéis e três livros, ele encontrou uma mochila de lona negra. Imediatamente curioso, abriu-a. Dentro, encontrou uma pistola P-38, garrafas de vodca, botas de inverno, latas de tushonka, biscoitos secos, uma garrafa e rublos. Havia também roupas quentes, todas de cor escura.
Alexander fumou dez cigarros tristes, esperando pela volta dela.
Ele ouviu Tatiana se aproximando, mesmo antes de vê-la. Ela cantarolava a valsa que ele cantara para ela.
– Shura! – chamou ela alegremente. – Você não vai acreditar. Arenque! Arenque de verdade. Esta noite vamos ter uma festa.
Ela foi até ele e levou os braços ao redor de seu pescoço. Divido em dois, Alexander beijou-a, achando que o rosto dela estava um pouco úmido e, então, mostrou-lhe a mochila.
– O que é isto?
– O quê? – disse ela, olhando para a mochila.
– Isto. O que é isto?
– Você andou mexendo nas minhas coisas? Venha me ajudar com os arenques.
– Não vou mexer nesses arenques até você me dizer o que é isto.
– Se eu disser ou não, ainda assim vamos ter que comer. Vou levar trinta...
– Tatiana.
– É uma mochila para mim – disse ela, suspirando alto.
– Para quê? Você está planejando ir acampar.
– Não... – disse ela, pousando os arenques e se sentando no banco.
Alexander puxou a roupa escura e um chapéu marrom que estavam na mochila.
– Por que estas coisas tão atraentes? – perguntou ele, percebendo como ela ficara tensa.
– Só para eu não chamar a atenção.
– Não chamar a atenção? Então, é melhor esconder esses seus lábios convidativos. Aonde você vai?
– O que deu em você? – perguntou ela.
Alexander ergueu a voz.
– Aonde você vai, Tania?
– Eu só queria estar pronta para qualquer situação.
– Para o quê?
– Não sei – disse ela, baixando o olhar. – Ir com você.
– Ir comigo aonde? – gaguejou ele.
– A qualquer lugar – disse ela, erguendo o olhar. – Aonde você for. Eu irei com você.
Alexander tentou falar, mas não conseguiu; ele se descobriu sem palavras.
– Mas, Tania... eu vou voltar para o front.
Ela estava olhando para o chão.
– Vai mesmo, Alexander? – perguntou ela calmamente, sem olhar para cima.
– É claro que sim. Aonde mais eu poderia ir?
Os olhos dela o encararam com profunda emoção.
– Você me diz aonde.
Piscando e se afastando dela, como se ficar muito próximo da mulher o fizesse se sentir desprotegido, Alexander disse, ainda segurando a mochila:
– Tania, eu vou voltar para o front. O coronel Stepanov me concedeu um tempo extra para vir aqui. Eu lhe dei minha palavra de que voltaria.
– Isso é uma coisa típica de vocês, americanos – disse ela. – Vocês sempre mantêm a palavra.
– Sim, isso é típico nosso – disse Alexander com amargura. – Não vale a pena falar disso. Você sabe que eu preciso voltar.
Tremendo, Tatiana ergueu os olhos cor de alga marinha para ele e, com voz tímida, disse:
– Então, eu vou com você. Vou voltar para Leningrado. – Ela entendeu que o fato de ele não dizer nada significava que estava aliviado e prosseguiu: – Achei que se você ficasse nas barracas...
– Tatiana! – gritou ele, chocado. – Você está brincando? Que merda de brincadeira é essa?
Alexander estava tão aborrecido que teve de caminhar pelo bosque por alguns minutos até retomar o bom senso. Quando voltou, ela estava limpando os arenques. Típico dela. Ele ficou mortificado por ela estar limpando os peixes. Foi até ela e tirou-lhe o peixe das mãos.
– Ai! – gritou ela. – Pare! O que há com você?
Alexander voltou para o bosque para se acalmar, depois de vê-la pegar o peixe, lavá-lo para tirar a sujeira e continuar a limpá-lo.
Ao voltar, pegou o maldito arenque, colocou-o no chão em cima de um papel, fez Tatiana ficar em pé diante dele e pegou-a pelos ombros.
– Olhe para mim, Tatiana. Estou tentando ficar calmo, certo? Você está vendo o esforço que isso me custa? – disse ele, fazendo uma pausa. – Que diabos você está pensando? Você não vai voltar comigo.
Ela balançou a cabeça, mas as palavras suaves que pronunciou foram:
– Eu vou, sim.
– Não! – disse Alexander. – De jeito nenhum. Não enquanto houver vida em meu corpo. Você vai ter que me matar para ir comigo. Esqueça. Eu virei vê-la na minha próxima licença.
– Não – disse ela. – Você nunca mais vai voltar. Você vai morrer lá sem mim. Eu sinto isso. Eu não vou ficar aqui.
– Tania, quem vai deixar você voltar? Eu não vou. Você esqueceu que Leningrado está sitiada? Você não pode voltar para lá. Nós ainda estamos tirando as pessoas da cidade? Você se esqueceu disso? Você esqueceu como estava Leningrado? Não consigo imaginar que você tenha esquecido, pois foi só há seis meses, e você ainda acorda no meio da noite por causa da lembrança. Leningrado ainda está sendo bombardeada todo santo dia. Não há vida em Leningrado. É perigoso demais, e você não vai voltar para lá – disse ele, arfando.
– Bem, se você tiver alguma outra ideia, me avise. Tenho que limpar este arenque.
Alexander pegou o arenque e estava prestes jogar o maldito peixe no Kama, quando Tatiana agarrou-lhe o braço e disse:
– Não! É o nosso jantar, e as velhas estão loucas para comê-lo.
– Você não vai comigo. E eu não falo mais nisso. – disse Alexander e, sem mais uma palavra, virou a mochila de boca para baixo e jogou todo seu conteúdo no chão.
Tatiana ficou observando-o calmamente e, então, disse:
– E quem vai pegar tudo isso de volta?
Sem uma palavra, Alexander pegou as roupas e reduziu-as a trapos com sua faca do exército.
Com olhos assustados, Tatiana o observava do banco.
– Oh, então isto é calma? – comentou ela. – Shura, eu posso costurar novas roupas.
Xingando, Alexander cerrou o punho e o baixou em direção a ela.
– Meu Deus, você está tentado me provocar deliberadamente.
Pegando a mochila, ele estava prestes a reduzi-la a trapos quando Tatiana agarrou-lhe o braço e a faca, com a mão direita na lâmina.
– Não, não. Por favor – disse ela, agarrada a ele, lutando para lhe tirar a faca e puxando a mochila. Mas ela não era páreo para ele, e Alexander estava prestes a empurrá-la para longe, mas o que o deteve foi o fato de ela continuar lutando, mesmo sabendo que seria vencida. Para detê-la, Alexander teria que machucá-la. Ele deixou que ela pegasse a faca e a mochila.
Sem fôlego, ela foi acabar de limpar o arenque. Com a faca dele.
Durante o jantar na casa de Naira, Alexander não falou muito; ele estava aborrecido demais. Quando Tatiana lhe perguntou se ele queria outro pedaço de torta de mirtilos, ele respondeu com rispidez “Eu disse que não!” e viu a reprovação no olhar dela. Ele desejou se desculpar, mas não conseguiu.
Eles não trocaram palavra enquanto caminhavam pelo bosque, mas em casa, quando se despiam para deitar-se, Tatiana disse:
– Você não está mais zangado, não é?
– Não! – disse Alexander. Ele não tirou a cueca para entrar debaixo das cobertas e se virou para o outro lado.
– Shura? – disse ela, tocando-lhe as costas e beijando-lhe a cabeça. – Shura.
– Eu estou cansado. Quero dormir.
Ele não queria que ela parasse de tocá-lo, e ela, é claro, não fez isso.
O que havia de errado com ela?
– Vamos lá – sussurrou Tatiana. – Vamos lá, grandão. Sinta, eu estou nua. Está sentindo?
Ele sentiu. Deitando-se de costas, sem olhar para ela, Alexander disse:
– Tatiana, quero que você me prometa que vai ficar aqui, aqui onde é seguro para você.
– Você sabe que eu não posso ficar aqui – disse ela tranquilamente. – Não posso ficar sem você.
– É claro que pode, e vai ficar. Como antes.
– Não existe mais antes.
– Pare. Você não está entendendo nada.
– Então me explique tudo.
Alexander não respondeu.
– Me diga – pediu ela, com sua mão pequena e quente nos braços e abdômen dele, e descendo.
– Só temos três dias pela frente – disse ele, afastando-lhe a mão. – E não vou passá-los deste jeito.
– Não, mas você estará disposto a arruiná-los com sua teimosia e o seu mau comportamento – disse ela, com sua mão conciliadora tornando a acariciá-lo.
– Ah, então é por isso – disse Alexander, tornando a afastar-lhe a mão, subitamente compreensivo – que você nem parecia estar ligando que eu fosse embora? Porque você achava que viria comigo?
Ela pressionou o corpo macio contra o flanco dele, beijando-lhe o braço.
– Shura – sussurrou ela –, como você acha que eu consegui passar esses últimos dias com você? Eu não poderia se pensasse que você ia me deixar. Marido – disse ela, como se sua voz saísse de um poço escuro –, tudo o que eu tinha ofereci a você. Se você partir, vai levar tudo com você.
Alexander teve de sair da cama, antes que perdesse a cabeça. Ele ficou em pé no chão.
– Bem, é melhor você conseguir mais em algum lugar, Tania! – exclamou ele. – Porque eu vou partir e vou partir sem você.
Ela balançou a cabeça em silêncio.
– Não balance a cabeça para mim! – gritou Alexander. – Está acontecendo uma guerra, pelo amor de Deus! Uma guerra! Milhões de pessoas já morreram. O que você quer? Ser mais um cadáver sem etiqueta de identificação numa vala comum?
Ela começou a tremer.
– Tenho que ir com você – disse ela, num leve sussurro. – Por favor.
– Olhe – disse ele –, eu sou soldado. Este país está em guerra. Eu tenho que voltar. Mas aqui você está segura. Eu vim para me afastar da luta, e você e eu tivemos um período maravilhoso juntos... – Seria realmente possível sufocar com as palavras? – Mas agora acabou, entendeu? Acabou – disse ele em voz alta. – Eu tenho que voltar, e você não pode vir junto – acrescentou ele, respirando fundo e fazendo uma pausa. – Não quero que você vá. Eu nem vou ficar na guarnição. Eu vou ser deslocado para outro lugar.
– Para onde?
– Não posso lhe dizer. Mas Leningrado não aguenta outro inverno como o do ano passado.
– Vocês vão furar o cerco? Onde?
– Não posso lhe contar.
– Você me conta tudo – disse ela, fazendo uma pausa. – Não é mesmo, Alexander? – perguntou ela de modo contundente. – Você não me conta tudo?
O que havia na voz dela? Meu Deus. Ele não ia perguntar.
– Isso não.
– Ah – disse Tatiana, sentando-se na cama e olhando para ele. – No terceiro dia depois de nos conhecermos, você me disse que era da América. Você despejou toda sua vida em meus ouvidos no terceiro dia. Mas agora não pode me contar onde será alocado?
Tatiana saltou da cama. Alexander se afastou. Ele não conseguia evitar os olhos dela durante muito tempo, tampouco seu corpo ou suas mãos abertas.
– Me diga, Shura – implorou ela –, você não se casou comigo para guardar segredos.
– Tania, eu não posso contar isso a você. Dá para entender?
– Não – berrou ela. – Por que você se casou comigo se tudo o que quer fazer é continuar contando mentiras!
– Eu me casei com você – gritou Alexander com a voz entrecortada – para que eu pudesse comer você sempre que desejasse! Não é assim que tem acontecido? A qualquer hora, Tania! O que mais você acha que um soldado de licença poderia desejar? E se eu não tivesse me casado com você, toda Lazarevo agora estaria chamando você de puta!
Alexander pôde ver no rosto abatido de Tatiana que ela não conseguia acreditar nas palavras que tinham acabado de sair de sua boca. Ela cambaleou contra a parede, sem saber o que cobrir, o rosto ou o corpo.
– Você se casou comigo para quê?
– Tatia...
– Não me chame de Tatia! – gritou ela. – Primeiro você me insulta, depois me chama de Tatia? Puta, Alexander? – grunhiu ela desalentada, pondo o rosto entre as mãos.
– Tania, por favor...
– Você pensa que eu não sei o que você está fazendo? Que eu não sei que você está tentando me fazer odiá-lo? E você quer saber? – prosseguiu ela entre dentes. – Depois de tentar durante dias, acho que finalmente você conseguiu!
– Tania, por favor...
– Durante dias você tentou me provocar para que pudesse me deixar com mais facilidade!
– Eu vou voltar – disse Alexander, com voz rouca.
– E quem vai querer você? – gritou ela. – E será que volta mesmo? Tem certeza de que não veio aqui só por causa disto? – perguntou ela, correndo até seu baú, revirou-o e encontrou o livro do Cavaleiro de bronze, tirando dele um punhado notas de dólar de cem e mil. – O que é isto? – berrou ela, jogando o dinheiro nele. – Você veio aqui por isto, pelo seu dinheiro americano? Pelos seus dez mil dólares americanos que encontrei no seu livro? Você veio por causa disto, para que pudesse fugir para a América sem me levar? Ou você ia me deixar um pouco, numa espécie de obrigado por ter aberto as pernas, Tatiana?
– Tania...
Agarrando o rifle dele pelo cano, ela foi até Alexander e, furiosamente, bateu-lhe no estômago com a coronha, apontando a boca do cano para ela.
– Eu quero de volta o que você tirou de mim – disse ela, mal conseguindo prosseguir. – Lamento por ter me poupado para você, mas agora me dê um tiro, seu mentiroso e ladrão... De qualquer maneira, é isso que você quer. Tire sua maldita mão de minha garganta e puxe o gatilho – disse ela, tornando a bater nele com a coronha, bem no plexo solar, e colocando o cano do rifle entre seus seios. – Vá em frente, Alexander – disse ela. – Trinta e cinco vezes, bem aqui no meu coração.
Ele tirou a arma dela sem dizer uma palavra.
Tatiana ergueu a mão e lhe deu um forte bofetão no rosto.
– Eu quero que você saia daqui agora – disse ela, com uma lágrima rolando pelo rosto. – Nós tivemos bons momentos. Com certeza, não vamos tornar a tê-los. Você me comeu – disse ela – sempre que teve vontade. Agora eu entendo. Foi a única coisa que você quis desde o primeiro dia. Bem, você teve o que quis, mas agora acabou e você pode ir embora – completou ela, arrancando a aliança do dedo e a atirando contra ele. – Aí está... você pode dá-la à sua próxima puta!
Ela encolheu os ombros e, tremendo, voltou para a cama, enrolando-se num lençol branco, como um corpo abatido pela fome.
Alexander saiu e foi nadar nas frias águas do Kama, desejando lavar toda sua dor, seu amor, toda sua vida, com tudo escorrendo para a tundra. A lua azul estava a três noites da cheia. Se eu ficar na água, talvez possa flutuar rio abaixo até o Volga e o mar Cáspio, sem que ninguém consiga me encontrar. Vou flutuar na minha dor e no meu coração; vou flutuar e não sentir mais nada. É tudo o que eu quero. Não sentir mais.
Mas ele acabou voltando para a cabana.
Subindo na cama, Alexander ficou em silêncio ao lado de sua Tania, ouvindo sua respiração. Em intervalos regulares de poucos minutos, sua respiração era interrompida pelo tremor de alguém que estivera chorando há muito tempo. Ela estava deitada numa posição fetal, virada para a parede.
Ele, por fim, afastou o lençol dela e se encostou nela. Afastando-lhe um pouco as pernas, ele a penetrou, pressionando a boca contra sua nuca e, em seguida, o topo de sua cabeça. Sua mão esquerda deslizou sob ela para trazê-la contra ele; com a direita, abraçou-lhe os quadris. Ele a aninhou contra ele, como sempre, da mesma forma como ela o aninhava contra ela, como sempre.
Tatiana mal se mexia. Ela não se afastou dele, mas tampouco produziu um único som. Ela está me punindo, pensou Alexander, fechando os olhos. Eu mereço muito mais que isso. Ainda assim, era insuportável ouvir o silêncio dela. Alexander beijou-lhe a cabeça, o cabelo, os ombros. Ele não conseguiu penetrar fundo em seu calor dominador para encontrar paz. Por fim, ela não conseguiu evitar, gemendo, tremendo e agarrando a mão dele; dessa vez, ele não a retirou. Depois, ele continuou dentro dela e, então, ouviu-a chorar.
– Tatiasha, sinto muito – sussurrou ele. – Sinto muito por ter dito aquelas coisas impiedosas. Eu não quis dizer o que disse – prosseguiu ele, apertando o ventre dela contra ele.
– Você quis dizê-las – disse Tatiana de maneira vazia. – Você é um soldado. Vocês quis dizer todas elas.
– Não, Tania – disse Alexander, se detestando. – Eu não quis. Em primeiro lugar, eu sou seu marido – prosseguiu ele, apertando-a com mais força. – Sinta-me, Tania, sinta o meu corpo, sinta minhas mãos, meus lábios em você, sinta o meu coração. Eu não quis dizê-las.
– Shura, espero que você pare de dizer coisas que não tem a intenção de dizer.
Ele sentiu os odores dela, esfregando o rosto contra seu cabelo.
– Eu sei. Sinto muito.
Ela não respondeu, mas sua mão continuou nele.
– Você não quer se virar para mim? – perguntou ele, afastando-se.
– Não.
– Por favor. Vire-se para mim e me diga que você me perdoa.
Tatiana voltou-se, erguendo os olhos inchados para Alexander.
– Oh, querida... – ele se interrompeu, fechando olhos. Não conseguia suportar a expressão dela. – Respire em cima de mim – sussurrou ele. – Quero sentir seu hálito de mirtilos no meu rosto.
Ela fez o que ele pediu. Alexander inalou o quente ar que vinha dos pulmões dela, segurando-o na boca e, em seguida, mandando-o para seus pulmões. Ele a abraçou.
– Por favor, diga que você me perdoa, Tania.
– Eu perdoo você – disse ela, com voz neutra.
– Me beije. Quero sentir que seus lábios me perdoam.
Ela o beijou. Ele a observou fechando os olhos.
– Você não me perdoou. Mais uma vez.
Tatiana tornou a beijá-lo com suavidade. Ela o beijou e, então, sua boca se abriu e ela produziu um pequeno gemido. Suas mãos desceram para tocar nele. Em silêncio, ela o acariciou repetidamente.
– Obrigado – disse Alexander, olhando para ela.
– Diga-me, Shura, eu sei que você não teve a intenção. Você só estava zangado – disse ela, suspirando. – Eu sei que você não teve a intenção. Me diga. Eu sei que você me ama até a loucura. Eu sei que você me ama.
– Não, Tania – disse ele, com total emoção na voz. – Eu amo você até a loucura – acrescentou, correndo os lábios para frente e para trás contra suas sobrancelhas de seda, incapaz de respirar, com medo de que o hálito dela escapasse dele.
– Sinto muito por ter batido em você com o rifle – sussurrou Tatiana.
– Estou surpreso que você não tenha me matado.
– Alexander – perguntou ela, sem conseguir não vacilar –, foi por isso que você veio aqui? Por causa do seu... dinheiro?
– Tania, pare com isso – respondeu ele, apertando-a forte e olhando para a parede. – Não, eu não vim por causa do meu dinheiro.
– Onde você conseguiu os dólares americanos?
– Com a minha mãe. Eu lhe contei que minha família tinha dinheiro na América. Meu pai decidiu vir à União Soviética sem nada, e minha mãe concordou, mas ela trouxe o dinheiro com ela assim mesmo e o escondeu dele. Essa foi a última coisa que minha mãe me deixou, algumas semanas antes de ser presa. Nós abrimos a parte interna das capas do livro de Pushkin. Escondemos o dinheiro juntos. Dez mil dólares de um lado, quatro mil rublos do outro. Ela achou que esse dinheiro talvez pudesse me tirar do país.
– Onde você o colocou quando foi preso em 1936?
– Eu o escondi na Biblioteca Pública de Leningrado. E lá ele permaneceu até eu lhe dar o livro.
– Ah, meu Alexander previdente – disse Tatiana –, você me deu o dinheiro bem na hora, não foi mesmo? A biblioteca despachou por navio a maior parte de seus volumes inestimáveis, inclusive a coleção inteira de Pushkin, e guardou o resto dos livros no porão. Seu dinheiro podia estar perdido há muito tempo.
Alexander não disse nada.
– Por que você o deu para mim? Você queria que ele ficasse num lugar seguro?
Alexander voltou o olhar para ela.
– Porque eu queria confiar minha própria vida a você.
Tatiana ficou quieta.
– Mas o livro não ficou na biblioteca o tempo todo, não é mesmo?
Ele nada disse.
– Em 1940, quando você foi lutar na Finlândia, você levou o dinheiro com você, não é mesmo?
Alexander não deu resposta.
– Oh, Alexander – disse Tatiana, enterrando o rosto no peito dele.
Alexander queria falar. Mas não conseguia.
Foi Tatiana que falou.
– Mas uma coisa para Dimitri não perdoar você, como se já não houvesse coisas suficientes. Quando você voltou para resgatar o filho de Stepanov, você levou Dimitri porque vocês dois iam escapar pela Finlândia, não iam?
Alexander não moveu nenhum músculo.
– Vocês iam fugir pelos pântanos, direto a Vyborg e, então, para Helsinque; em seguida, para a América! Você tinha trazido o seu dinheiro, você estava pronto. Era o momento com que você sonhara durante anos – disse ela, beijando-lhe o peito. – Não foi, meu marido, meu coração, meu Alexander, minha vida inteira bem aqui nesta cabana, não foi, me diga! – acrescentou ela chorando.
Alexander perdera o poder da fala. E estava muito perto de perder seus poderes sobre tudo. Ele nunca quis ter essa conversa com Tatiana.
– Era um grande plano – disse ela com a voz trêmula. – Você teria desaparecido, e ninguém iria procurá-lo... eles simplesmente presumiriam que você havia morrido. Você não contava com Yuri Stepanov ainda estar vivo. Você achou que ele estava morto. Foi só uma desculpa para voltar ao bosque. De repente, ele estava vivo! – prosseguiu ela, com uma risada alta. – Oh, Dimitri deve ter ficado extremamente surpreso quando você disse que iriam buscar Yuri. “O que você está pensando”, ele deve ter dito. “Você está louco? Você desejou voltar para a América durante anos. Ali estava sua chance, ali está a minha chance”. – ela fez uma pausa. – Até que ponto estou perto da verdade?
Afagando seus cabelos louros, Alexander finalmente disse, num sussurro surpreso:
– Como se você estivesse lá. Como é que você soube de tudo isso?
– Porque eu, melhor que qualquer outra pessoa, sabe quem você é – disse ela, segurando-lhe o rosto com as duas mãos. Tatiana fez uma pausa, sem tirar as mãos do rosto dele. – Assim, quando você voltou para a União Soviética com o filho de Stepanov, achando que teria outra chance de fugir, o que você teve que fazer, Shura? – perguntou ela. – Prometer a Dimitri que, se você não morresse, de um jeito ou de outro você o levaria para a América?
Ele afastou as mãos dela, virou-se de costas e fechou os olhos.
– Tania, pare. Eu não posso continuar com isso. Simplesmente não posso.
Ela só parou o tempo suficiente para controlar sua fala titubeante.
– Então, o que acontece agora?
– Agora, nada – disse Alexander sombriamente, olhando para as vigas do teto. – Agora você fica aqui, e eu volto para o front. Agora eu luto por Leningrado. Agora eu morro por Leningrado.
– Meu Deus! Não diga isso! – disse Tatiana, agarrou-lhe os braços, virou-o para ela e, chorando, aninhou-se em seu peito. Ele a abraçou tão forte quanto pôde, mas não foi o suficiente nem para ele, nem para ela. – Não diga isso, Shura! – Ela soluçava incontrolavelmente. – Shura, por favor – sussurrou ela, de maneira quase inaudível. – Por favor, não me deixe sozinha na União Soviética.
Alexander nunca tinha visto Tatiana tão descontrolada. Ele não sabia o que fazer.
– Ora, vamos – disse ele com voz vacilante, o coração partido. Vamos, Tatiana, me ame menos, me deixe ir, me liberte.
As horas se passaram. No meio da noite, Alexander fez amor com ela novamente.
– Vamos, Tatiasha – sussurrou ele –, abra suas pernas para mim do jeito que eu amo.
O gosto das lágrimas dela em sua garganta era de néctar.
– Prometa-me – disse ele, beijando-lhe o cabelo loiro e macio, lambendo o interior suave de suas coxas – que você não vai sair de Lazarevo.
Não houve resposta por parte dela, apenas alguns gemidos abafados.
– Você é a minha doce garotinha? – sussurrou ele, com os dedos mais ternos, mais persistentes. – Você é a minha garotinha adorável? – sussurrou ele, com a boca mais suave, mais persistente, com seu hálito quente e implorante dentro dela. – Jure que você vai ficar aqui e me esperar. Prometa-me que vai ser uma boa esposa e esperar por seu marido.
– Prometo, Shura. Eu vou esperar por você.
Então, mais tarde, Tatiana disse com a voz entrecortada, aliviada e inquieta nos braços dele:
– Vou ficar esperando por você um longo tempo, aqui sozinha em Lazarevo.
Apertando-a contra ele com tanta força que ela mal conseguia respirar, um Alexander totalmente inquieto sussurrou:
– Sozinha, porém segura.
Alexander não soube como eles conseguiram passar os três dias seguintes.
Inundados por uma onda de hostilidade e desesperados, eles lutaram, se atacaram e despedaçaram seus corpos um contra o outro, incapazes de achar um porto seguro, de beber um trago sensato de conforto.
22
Na manhã da partida de Alexander, eles não conseguiram se tocar.
Tatiana sentou-se no banco fora da casa enquanto ele arrumava suas coisas. Alexander vestiu o uniforme que ela havia lavado e passado para ele com um ferro aquecido no fogão, penteou o cabelo e pôs sua boina. Então, certificou-se de que havia amarrado seu capacete no corpo, e sua barraca nas costas. Também estava levando sua munição, seu passaporte, suas granadas e seu rifle.
Deixou para ela todo o seu dinheiro, com exceção de alguns rublos de que necessitaria para voltar.
Quando saiu da casa, Tatiana, que estivera sentada, levantou-se e desapareceu dentro da casa, reaparecendo alguns minutos depois com uma xícara de café com leite e açúcar, bem como um prato de comida. Um pouco de pão preto, três ovos, um tomate fatiado.
Alexander pegou o prato que ela lhe oferecia. Ele estava sem fala.
– Obrigado – foi tudo o que disse.
Com as mãos no ventre, ela se sentou.
– É claro – disse ela. – Coma. Você tem uma longa viagem pela frente.
Ele comeu com indiferença, enquanto eles permaneciam sentados quase lado a lado, só que cada um virado para uma direção diferente.
– Você quer que eu vá até a estação de trem com você?
– Não – disse ele. – Não consigo.
– Eu também não consigo – concordou Tatiana com um aceno de cabeça.
Quando terminou a comida, Alexander pôs o prato no chão.
– Acho que deixei bastante lenha para você, não é mesmo? – disse ele, voltando-se para ela e apontando para o depósito de lenha ao lado da cabana.
– Bastante – disse ela. – Vai durar um bom tempo.
Delicadamente, Alexander puxou as fitas de cetim branco de suas tranças. Tirando seu pente do bolso, penteou seu macio cabelo loiro, sentindo as madeixas de seda entre os dedos.
– Como vou fazer para que meu dinheiro chegue aqui até você? – perguntou Alexander. – Eu ganho dois mil rublos por mês. Para você, é bastante dinheiro. Eu posso lhe mandar mil e quinhentos. Fico com os quinhentos para o cigarro.
– Não faça isso – disse ela, balançando a cabeça. – Você só vai conseguir mais problemas. Leningrado não é Lazarevo, Shura. Proteja-se. Não conte a ninguém que estamos casados. Tire a aliança do dedo. Você não quer que Dimitri descubra. Não precisamos de mais problemas para você. Você já tem muitos. Eu não preciso do seu dinheiro.
– Precisa, sim.
– Então me mande quando me escrever.
– Não posso. Os censores o roubariam imediatamente.
– Censores? Então, devo evitar lhe escrever em inglês?
– Deve, se quiser que eu continue vivo.
– É a única coisa que eu quero – disse ela, sem se virar.
– Vou lhe mandar o dinheiro para o Soviete local de Molotov – disse Alexander. Vá lá uma vez por mês para verificar, certo? Vou dizer que estou mandando o dinheiro para a família de Dasha – prosseguiu ele, fechando os olhos e pressionando os lábios contra os brilhantes cabelos da moça. – É melhor eu ir. Só há um trem por dia.
– Vou com você até a estrada – disse Tatiana, com voz pesarosa. – Você pegou tudo?
– Peguei.
Tudo isso sem olhar um para o outro.
Eles saíram juntos e caminharam pela trilha através do bosque. Antes que a clareira sumisse de vista, Alexander voltou-se pela última vez para olhar o rio azul e os pinheiros de um verde profundo, para sua cabana de madeira e seu banco, para a tora na água, para o local onde sua barraca se erguia até ontem. Para sua fogueira.
– Me escreva – disse Alexander a Tatiana – e me diga como você vai – prosseguiu ele, fazendo uma pausa. – Para que eu não fique preocupado.
– Tudo bem – disse ela, com os braços em torno do ventre. – Escreva também.
Chegaram à estrada. As agulhas dos pinheiros exalavam um cheiro forte, o bosque estava quieto, o sol brilhava forte acima de suas cabeças. Ficaram um diante do outro. Tatiana usava seu vestido amarelo e ficou olhando para seus pés descalços; Alexander usava seu uniforme do exército, rifle no ombro, e olhava para a estrada.
A mão dela subiu e tocou-lhe suavemente o peito, pressionando-se contra o coração dele.
– Mantenha-se vivo para mim, soldado, está ouvindo? – disse ela, com as lágrimas correndo-lhe pelo rosto.
Alexander tomou-lhe a mão e a levou aos lábios. Ela estava usando a aliança. Ele não conseguiu falar, não conseguiu dizer o nome dela em voz alta.
Tatiana colocou a mão trêmula no rosto de Alexander.
– Vai dar tudo certo, meu amor – sussurrou ela. – Vai dar tudo certo.
Ela tirou a mão do rosto dele. Ele soltou a mão dela.
– Vire-se e vá para casa – disse ele. – Não fique me olhando. Não vou conseguir ir embora enquanto você estiver aqui.
Tatiana se virou.
– Vá em frente. Não vou ficar olhando.
Alexander não conseguiu se aproximar dela.
– Por favor – disse ele. – Não posso deixar você assim. Por favor, vá para casa.
– Shura – disse ela. – Não quero que você vá embora.
– Eu sei. Eu também não quero ir, mas, por favor, me deixe ir. Saber que você está em segurança é a única chance que eu tenho de permanecer vivo. Eu vou voltar para você, mas você precisa estar segura – disse ele, detendo-se. – Agora eu preciso ir. Vamos, olhe para mim. Olhe para mim e sorria.
Virando-se, Tatiana ergueu para ele o rosto banhado em lágrimas e sorriu.
Os dois ficaram se olhando por um longo tempo. Tatiana piscava. Alexander piscava.
– O que é isso nos seus olhos?
– Estou vendo todos os meus engradados de madeira descendo a rampa do Palácio de Inverno – sussurrou ela.
– Você precisa ter mais fé, minha esposa – disse Alexander, levando a mão trêmula até a fronte, aos lábios, ao coração.
Ondas desoladas
1
Tatiana voltou para casa, deitou-se na cama e não se levantou. Durante seu sono semiconsciente, Tatiana ficou ouvindo as quatro velhas no quarto. Elas estavam conversando baixinho enquanto arrumavam seus cobertores, ajeitavam-lhe os travesseiros, tocavam-lhe o cabelo.
– Ela precisa confiar em Deus – disse Dusia. – Ele vai tirá-la dessa situação.
– Eu disse a ela que não era uma boa ideia apaixonar-se por um soldado – disse Naira. – Eles só partem os corações das moças.
– Eu acho que o problema não é ele ser soldado – disse Raisa, toda trêmula. – O problema é que ela o ama demais.
– Moça de sorte – sussurrou Axinya, dando tapinhas nas costas de Tatiana.
– De sorte? – disse Naira, indignada. – Se pelo menos ela tivesse nos dado ouvidos e permanecido em nossa casa, nada disso estaria acontecendo.
– Se, pelo menos, ela fosse à igreja com mais frequência – disse Dusia –, o cajado do Senhor lhe traria conforto.
– O que você acha, Tanechka? – perguntou Axinya, ficando perto de Tatiana. – Você acha que o cajado do Senhor poderia lhe trazer conforto agora?
Naira: – Não adianta nada. Nós não a estamos ajudando.
Dusia: – Eu nunca gostei dele.
Naira: – Nem eu. Nunca entendi o que Tania viu nele.
Raisa: – Ela é boa demais para ele.
Naira: – Ela é boa demais para qualquer um.
Dusia: – Ela pode ficar melhor se se aproximar do Senhor.
Naira: – O meu Vova é um rapaz tão atencioso, tão gentil. Ele gosta dela.
Raisa: – Aposto que o Alexander não vai voltar para ela. Ele a deixou para sempre.
Naira: – Não tenho dúvida quando a isso. Ele se casou com ela...
Dusia: – Desgraçou-a.
Raisa: – E se livrou dela.
Dusia: – Eu sempre suspeitei que ele fosse ateu.
– A única coisa que o manterá afastado é a morte – sussurrou Axinya para Tatiana.
Muito obrigada, Axinya, pensou Tatiana, abrindo os olhos pesados e erguendo o corpo da cama. Mas é exatamente disso que eu tenho medo.
As velhotas convenceram Tatiana, sem muito esforço, a voltar a morar com elas. Vova a ajudou a levar o baú e a máquina de costura de volta à casa de Naira.
A princípio, Tatiana não conseguia passar o dia fisicamente confortável. Não havia calma dentro dela, e ela sabia disso. Dentro dela, não havia nenhum lugar em que ela pudesse se refugiar para sair da escuridão. Não conseguia invocar, com alegria, nenhuma lembrança, nenhuma brincadeira agradável, nenhum trecho de música. Para todo lugar que olhasse, via Alexander.
Dessa vez, ela não tinha a fome para disfarçar a tristeza. Não tinha os pulmões infectados. Nada restara a seu corpo saudável além de cerrar os dentes, erguer os baldes que recaíam sobre seus ombros toda manhã, ordenhar a cabra, servir o leite quente a Raisa, que não conseguia se servir sozinha, pendurar a roupa na corda e ouvir as mulheres dizerem, de noite, como era maravilhoso o cheiro das roupas penduradas ao sol por Tania.
Tatiana costurava para as velhas e para ela, lia para elas e para ela, banhava-as e a ela mesma, tomava conta da horta e das galinhas delas, apanhava as maçãs das árvores e, pouco a pouco, balde a balde, livro a livro, blusa a blusa, a necessidade delas tornou a envolvê-la, e Tatiana se sentiu confortada. Exatamente como antes.
2
Duas semanas depois, chegou a primeira carta de Alexander.
Tatiasha,
Pode haver coisa pior que isto? Sentir sua falta é uma dor física que toma conta de mim logo de manhã não me deixa até eu conseguir cair no sono.
Meu consolo, nestes últimos e vazios dias de verão, é saber que você está em segurança, viva, com saúde, e que o pior que você tem que suportar é a servidão para quatro velhas mesquinhas.
Nas pilhas de madeira que eu deixei, os pedaços mais leves estão na frente. Os mais pesados são para o inverno. Use-os por último e se precisar de ajuda para carregá-los, que Deus me perdoe, peça para o Vova. Não se machuque. E não encha os baldes de água até a boca. Eles são muito pesados.
Voltar foi duro e, assim que cheguei, fui mandado diretamente para o Neva, onde, durante seis dias, planejamos nosso ataque e, então, saímos em barcos pelo rio, mas fomos completamente destroçados em duas horas. Não tivemos a mínima chance. Os alemães bombardearam nossos barcos com os Vanyushas, sua versão do meu lançador de mísseis, e todos afundaram. Ficamos com mil homens a menos e longe de poder cruzar o rio. Agora estamos procurando outros locais para fazer a travessia. Eu estou bem, exceto pelo fato de que aqui está chovendo sem parar há dez dias, e fiquei atolado na lama até a cintura todo esse tempo. Não há lugar para dormir além da lama. Colocamos nossas capas de chuva e ficamos na esperança de que a estação chuvosa passe logo. Tudo é escuro e úmido; quase chego a sentir pena de mim, mas, então, penso em você durante o cerco.
De agora em diante, decidi que farei isso. Toda vez que me sentir mal, vou pensar em você enterrando sua irmã no lago Ladoga.
Gostaria que você tivesse recebido uma cruz mais leve que Leningrado para carregar em sua vida.
As coisas vão estar relativamente tranquilas por aqui nas próximas semanas, até nos reagruparmos. Ontem uma bomba caiu no bunker do comandante. O comandante não estava nela no momento. Mas a ansiedade não passa. Quando vai acontecer outra vez?
Jogo cartas e futebol. E fumo. E penso em você.
Eu lhe mandei dinheiro. Vá até Molotov no final de agosto.
Não se esqueça de comer bem, meu pãozinho quente, meu sol da meia-noite. E beije sua mão por mim, bem na palma e, então, pressione-a contra seu coração.
Alexander
Tatiana leu a carta de Alexander uma centena de vezes, memorizando cada palavra. Dormia com o rosto na carta, que lhe renovava as forças.
Meu amor, meu querido, querido Shura,
Não fale de minha cruz – primeiro suporte a sua cruz nos ombros.
Como eu passei o último inverno? Não sei, mas agora penso nele quase com saudade. Porque eu mudei. Houve uma mudança dentro de mim. Tive forças para mentir, para fingir para Dasha, para mantê-la viva. Caminhei, estive com Mamãe, estive ocupada demais para morrer. Ocupada demais escondendo meu amor por você.
Mas agora eu acordo e penso como vou conseguir passar o resto do dia até dormir?
Para me reconciliar com a vida, estou sempre em contato com os aldeões. Você achava que antes era ruim. Agora, de manhã à noite, ajudo Irina Persikova, que teve que cortar a perna em Molotov, uma infecção ou coisa assim. Acho que gosto dela porque ela tem o nome de minha mãe.
Penso em Dasha. Sinto falta de minha irmã.
Mas o rosto dela não é o último que vejo antes de dormir. É o seu.
Você é minha granada de mão, meu rifle de artilharia. Você substituiu o meu coração por você mesmo.
Você pensa em mim quando está com o rifle na mão?
O que vamos fazer? Como vamos impedir que você morra? Estes pensamentos consomem meus minutos quando estou acordada. O que eu posso fazer daqui para mantê-lo vivo?
Morto ou ferido, esses sovietes vão abandonar você no campo.
Quem vai cuidar de você se você for ferido?
Quem vai enterrá-lo se você morrer? Enterrá-lo como você merece – com os reis e os heróis.
Sua,
Tatiana
Tatia,
Você me pergunta o que faço para me manter vivo. Pouca coisa, eu diria. Porém, melhor que Ivan Petrenko.
Meu comandante me diz “escolha os melhores homens que tiver”, eu o saúdo e faço isso. Então, eles morrem. O que isso faz de mim?
Hoje estive sob o pior dos fogos. Nem acredito que estou vivo para lhe escrever estas palavras. Estávamos mandando suprimentos para os homens do outro lado do rio em Nevsky. Estávamos remando os barcos com alimento, armas, munição e novos homens para o outro lado. Mas os alemães se mostraram implacáveis das colinas de Sinyavino, e não conseguimos ir adiante. Eles pousam nas colinas como abutres e atiram sobre nós. Normalmente, eu não vou nessas missões: não existem muitos como eu para ir nessas missões suicidas, e o comandante sabe disso, mas hoje não tínhamos homens suficientes para todos os barcos.
Petrenko morreu. Nós estávamos no barco, voltando para o nosso lado, e um estilhaço de bomba o atingiu. Arrancou-lhe o barco. Eu o pus em minhas costas e, sabe, em minha insanidade, abaixei-me para pegar o braço dele. Eu o peguei e ele caiu das minhas costas; quando olhei para ele deitado no barco, eu pensei: o que estou fazendo? Quem vai costurar esse braço de volta? Eu não o queria com o braço novamente. Eu me dei conta disso. Eu só queria que os dois fossem enterrados juntos. Não há dignidade no homem que é estraçalhado. O corpo tem que estar íntegro para que a alma possa encontrá-lo. Eu o enterrei com o braço nos bosques, perto de uma pequena bétula. Uma vez ele disse que gostava de bétulas. Tive que ficar com o rifle dele – não temos armas suficientes –, mas deixei seu capacete.
Eu gostava dele. Que justiça é essa que deixa que um homem bom como Petrenko morra e, no entanto, Dimitri, irresoluto e coxo, continua vivo?
Você quer saber o que eu pensei naquele barco?
Eu pensei: tenho que continuar vivo. Tatiasha nunca vai me perdoar.
Mas esta guerra é injusta, como você já constatou. Um homem bom tem tantas boas chances de morrer quanto um homem mau. Talvez mais.
Quero que você saiba que se alguma coisa me acontecer, não se preocupe com o meu corpo. Minha alma não vai voltar para ele, nem para Deus. Ela vai voar direto para você, onde ela sabe que pode encontrá-la, em Lazarevo. Não quero estar nem entre reis nem entre heróis, mas com a rainha do lago Ilmen.
Alexander
3
Não chegaram mais cartas de Alexander.
Agosto evoluiu tranquilamente para setembro, e nada de cartas. Tatiana fazia o que podia, envolvendo-se com as quatro velhas, com a vila, com os livros, com seu inglês, com John Stuart Mill, que ela lia em voz alta para si mesma no bosque, entendendo quase tudo. Mas nenhuma notícia dele, e sua alma já não estava mais tranquila, nem conformada.
Numa sexta-feira, durante o círculo de costura, Tatiana, com a cabeça enterrada no suéter que estava fazendo para Alexander, ouviu Irina Persikova perguntar se ela havia recebido alguma carta dele.
– Nenhuma. Já faz um mês – disse Naira com tranquilidade. – Shh, nós não falamos disso. O Soviete de Molotov não tem notícias. Ela vai lá verificar toda semana. Shh.
– De qualquer modo, Deus está com ele – disse Dusia.
– Não se preocupe, Tanechka – disse Axinya alegremente. – O serviço de correio é terrível. Você sabe disso. As cartas demoram muito para chegar.
– Eu sei, Axinya – disse Tatiana, olhando para suas agulhas de tricô. – Não estou preocupada.
– Vou lhe contar uma história para você se sentir melhor. Uma mulher chamada Olga morou aqui na vila alguns meses antes de você chegar, e o marido dela também estava no front. Ela esperou e esperou pelas cartas dele. Nada. Como você, ela se atormentava e esperava. Então, recebeu dez cartas de uma só vez!
– Isso não seria ótimo? – disse Tatiana, sorrindo. – Receber dez cartas de Alexander de uma só vez.
– Sem dúvida, querida – disse Axinya, sorrindo. – Portanto, não se preocupe.
– É isso mesmo – disse Dusia. – Olga colocou as cartas em ordem cronológica e começou a lê-las. Ela leu nove delas, e a décima carta era do comandante, dizendo que seu marido tinha sido morto no front.
– Oh! – foi tudo o que Tatiana conseguiu dizer, empalidecendo.
– Dusia! – exclamou Axinya. – Pelo amor de Deus, você não tem juízo? Agora você vai contar a ela que Olga se afogou no Kama.
– Senhoras, terminem sem mim, certo? – disse Tatiana, pousando as agulhas de crochê. – Eu vou fazer o nosso jantar. Vou fazer torta de repolho.
Ela cambaleou até a casa e tirou imediatamente o livro de Pushkin do baú. Alexander lhe dissera que havia posto o dinheiro de volta. Tatiana olhou demoradamente para a capa, deu um suspiro profundo e, com cuidado, cortou o papel com uma lâmina de barbear. O dinheiro estava lá. Com um pequeno suspiro, tomou-o nas mãos.
Então, contou-o.
Cinco mil dólares.
Sem alarme, contou novamente as notas estalando de novas, separando-as uma a uma. Dez notas de cem dólares. Quatro notas de mil dólares.
Cinco mil dólares.
Tornou a contá-las.
Tatiana começou a duvidar de si mesma. Por um instante, achou que talvez sempre tivessem sido cinco mil dólares, que ela havia apenas errado a contagem.
Se, pelo menos, a voz de Alexander no lampião de querosene que clareava a noite não a transportasse do cérebro para o coração: Esta foi a última coisa que minha mãe me deixou, algumas semanas antes de ser presa... Nós escondemos o dinheiro juntos. Dez mil dólares americanos... quatrocentos rublos.
Tatiana subiu na cama e se deitou de costas, olhando as vigas do teto.
Ele lhe disse que ia lhe deixar todo o dinheiro.
Não, ele não disse isso. Ele disse: Vou lhe deixar o dinheiro. Ela o tinha visto colando a capa do livro.
Por que ele levaria apenas cinco mil dólares?
Para apaziguá-la? Para que ela não se preocupasse, para que não fizesse outra cena? Para que não voltasse a Leningrado com ele?
Ela segurou o dinheiro contra o peito e tentou penetrar no coração de Alexander.
Ele era o homem que, a alguns metros da liberdade, da América, preferira dar as costas ao sonho de uma vida toda. Sentir-se de uma maneira. E também comportar-se de uma maneira. Alexander pode ter sonhado com a América, mas acreditava em si mesmo. E amava Tatiana acima de tudo.
Alexander sabia quem ele era.
Era um homem que mantinha sua palavra.
E deu o dinheiro a Dimitri.
Vencida pelo terror e o pressentimento
1
Tatiana não ia ficar sozinha em Lazarevo uma segunda vez.
Ela escreveu dez cartas a Alexander, dez cartas descontraídas, otimistas, reconfortantes. Fez com que suas notícias parecessem cronológicas e sazonais. Pediu a ajuda de Naira Mikhailovna para enviá-las a Alexander uma a uma, em intervalos de uma semana.
Ela sabia que se saísse sem uma palavra, as quatro velhas escreveriam a Alexander ou, o que seria pior, encontrariam um jeito de telegrafar a ele uma mensagem frenética, contando-lhe sobre o desaparecimento dela, e se ele ainda estivesse vivo para ouvi-la, sua reação incontrolável poderia lhe custar a vida. Então, Tatiana disse às mulheres que, para evitar um emprego na fábrica de peixe em conserva de Lazarevo, onde a maioria dos aldeões trabalhava, ela ia trabalhar no hospital de Molotov. Tatiana não deu lugar a objeções e, depois de ouvir algumas perguntas murmuradas por Dusia, não ouviu mais nada.
Naira Mikhailovna queria saber por que Tatiana não podia enviar as cartas diretamente de Molotov. Tatiana respondeu que Alexander não queria que ela saísse de Lazarevo, e que ficaria aborrecida se descobrisse que ela estava trabalhando na cidade. Ela não queria aborrecê-lo enquanto ele estava na guerra.
– Você sabe como é a índole protetora dele, Naira Mikhailovna.
– Protetora e irracional – disse Naira, balançando a cabeça com força. Ela estava mais que disposta a participar como co-conspiradora no que via como um plano para burlar o caráter impossível de Alexander. E concordou em enviar as cartas.
Tendo feito roupas novas para ela e empacotado quantas garrafas de vodka e tushonka podia carregar, Tatiana partiu bem cedo certa manhã, depois de se despedir das quatro velhas. Dusia abençoou-a, pondo a mão na sua cabeça. Naira chorou. Raisa chorou e tremeu.
– Você está louca – disse Axinya, toda encolhida.
Louca por ele, pensou Tatiana. Ela partiu, usando calças marrom escuro, meias marrons, botas marrons e um casaco de inverno marrom. Seu cabelo loiro estava preso por um lenço marrom. Ela queria chamar o menos possível de atenção. Os dólares foram costurados numa bolsinha dentro de suas calças. Antes de partir, tirou a aliança e a inseriu num cordão que trançou. Enquanto a beijava, antes de colocá-la sob a blusa, ela sussurrou:
– Assim, você fica mais perto do meu coração, Shura.
Enquanto caminhava pelo bosque para sair de Lazarevo, Tatiana passou pela trilha que levava à clareira deles. Detendo-se brevemente, ela pensou em descer até o rio e olhar... uma última vez. Pensar nisso foi demais para ela. Balançando a cabeça, prosseguiu seu caminho.
Havia coisas que ela não conseguia fazer.
Certa vez, havia observado Alexander olhar o lugar de esguelha; ela não conseguia fazer isso. Desde que Vova havia levado seu baú embora dois meses antes, Tatiana não tinha voltado ao local onde vivera com Alexander. Vova pregara tábuas nas janelas, recolocou o cadeado e levou toda a madeira que Alexander cortara para a casa de Naira.
Em Molotov, Tatiana primeiro foi ao Soviete local para ver se havia chegado algum dinheiro de Alexander em setembro.
Para sua surpresa, o dinheiro estava lá!
Ela perguntou se chegara algum telegrama ou carta com o dinheiro.
Não chegara.
Se ele ainda estava recebendo o soldo de soldado, isso significava que não nem estava morto nem havia desertado. Pegando os 1500 rublos, Tatiana ficou imaginando por que Alexander mandou-lhe dinheiro vivo, mas não escreveu. Então, lembrou-se dos meses que as cartas de sua avó levaram para chegar a Leningrado. Bem, ela não se importaria se recebesse trinta cartas de Alexander de uma só vez, uma para cada dia de setembro.
Na estação ferroviária de Molotov, Tatiana disse ao inspetor de passaportes domésticos que Leningrado estava precisando urgentemente de enfermeiras, devido à guerra e à fome, e que ela estava voltando para ajudar. Ela mostrou-lhe o carimbo de emprego do Hospital Grechesky em seu passaporte. Ele não precisava saber que ela tinha lavado chão, banheiros e pratos, além de costurar sacos para os mortos. Tatiana ofereceu-lhe uma garrafa de vodca por sua ajuda.
Ele perguntou sobre a carta do hospital convidando-a a retornar a Leningrado. Tatiana respondeu que a carta havia se queimado, mas lhe mostrou as credenciais da fábrica de Kirov, do Hospital Grechesky e uma citação de valor no Quarto Exército de Voluntários do Povo, dando-lhe mais uma garrafa de vodca por sua ajuda.
Ele carimbou seu passaporte, e ela comprou o bilhete.
Antes de embarcar no trem, foi até Sofia, que lhe pareceu incrivelmente lenta em atendê-la. Tatiana se sentiu envelhecendo enquanto a esperava, achando que, com certeza, perderia o trem, mas Sofia, por fim, conseguiu encontrar as duas fotografias que tirara de Alexander e dela nos degraus da igreja de São Serafim no dia de seu casamento. Tatiana as colocou em sua mochila e correu para pegar o trem.
O trem em que ela estava partindo era muito melhor que aquele em que chegara. Era o que parecia um trem de passageiros e estava indo para sudoeste, em direção a Kazan. Essa era a direção errada para Tatiana, que precisava ir para o norte, mas Kazan era uma cidade grande, e ela conseguiria pegar outro trem. Seu plano era, de algum modo, voltar a Kobona e pegar uma balsa para atravessar o lago Ladoga para Kokkorevo.
Enquanto o trem avançava, Tatiana olhou em direção ao Kama lá longe, obscurecido pelos pinheiros e bétulas, pensando se um dia tornaria a ver Lazarevo.
Ela achava que não.
Em Kazan, Tatiana tomou um trem para Nizhny Novgorod, não a Novgorod de sua infância e de Pasha, mas outra Novgorod. Agora ela estava a 300 quilômetros de Moscou. Pegou outro trem, um trem de carga que ia em direção a noroeste para Yaroslavl, e de lá tomou um ônibus em direção norte para Vologda.
Em Vologda, Tatiana descobriu que podia tomar o trem para Tikhvin, mas que Tikhvin estava sob o fogo constante e destruidor dos alemães. E ir de Tikhvin para Kobona era aparentemente impossível.
Os trens estavam sendo atacados de três a quatro vezes por dia, com pesadas perdas de vidas e suprimentos. Ainda bem para o inspetor de trens que lhe vendeu o bilhete para Tikhvin e que, assim, tinha assunto para pôr em prática sua vontade de conversar.
Ela perguntou ao inspetor como o alimento estava conseguindo furar o cerco de Leningrado se a rota de Kobona estava bloqueada pelo fogo alemão.
Depois de descobrir o porquê, Tatiana decidiu seguir o alimento. De Vologda, ela tomou um trem em direção a Petrozavodsk, bem ao norte, na margem ocidental do lago Onega, e simplesmente saltou bem antes, em Podporozhye, caminhando cinquenta quilômetros até Lodeinoye Pole, que fica a dez quilômetros das margens do lago Ladoga.
Em Lodeinoye Pole, Tatiana sentiu a terra tremer debaixo de seus pés e sentiu que estava perto.
Enquanto estava numa cantina para tomar sopa com pão, Tatiana ouviu quatro caminhoneiros conversando numa mesa próxima. Aparentemente, os alemães tinham quase parado de bombardear Leningrado, desviando todo seu poder aéreo e de artilharia para o front de Volkhov, onde Tatiana estava. O Segundo Exército do general soviético Meretskov estava a apenas quatro quilômetros de Neva, e Manstein, o marechal de campo alemão não estava disposto a deixar que Meretskov o rechaçasse de suas posições ao longo do rio. Tatiana ouviu um dos homens dizer:
– Vocês ouviram falar da nossa 861a divisão? Ela não conseguiu afastar os alemães de jeito nenhum, passou o dia inteiro debaixo de fogo e perdeu 65 por cento de seus homens e cem por cento dos oficiais de comando!
– Isso não é nada! – exclamou outro. – Vocês ouviram quantos homens Meretskov perdeu em agosto e setembro em Volkhov? Quantos mortos, feridos ou desaparecidos em ação? Cento e trinta mil!
– Você chama isso de perda? – disse outro. – Em Moscou...
– Mais de cento e cinquenta mil homens!
Tatiana já tinha ouvido o suficiente da conversa. Mas precisava de só um pouquinho mais de informação. Continuando a ouvir os caminhoneiros, descobriu que as barcaças com alimento partiam do lago Ladoga, ao sul de uma pequena cidade chamada Syastroy, cerca de cem quilômetros ao norte do front de Volkhov. Syastroy fica cerca de cem quilômetros ao sul de onde Tatiana estava no momento.
Tatiana ia pedir uma carona aos homens, mas não gostou da maneira como eles falavam. Eles iam pernoitar em Lodeinoye Pole, e a maneira como um deles olhou para ela, apesar de seu lenço marrom dobrado...
Ela limpou a boca, agradeceu e saiu. Sentiu-se melhor lembrando que estava levando a P-38 de Alexander, carregada.
Tatiana levou três dias para andar os cem quilômetros até Syastroy. Era início de outubro e estava frio, mas as primeiras neves ainda não tinham caído, e a estrada não era pavimentada. Muitas outras pessoas seguiam o mesmo caminho: aldeões, evacuados, fazendeiros itinerantes, ocasionalmente soldados voltando do front. Ela caminhou durante metade de um dia ao lado de um soldado que voltava da licença. Ele parecia tão desconsolado quanto Alexander devia ter se sentido ao partir. Então, pegou uma carona num caminhão do exército, e Tatiana continuou caminhando.
O estrondo de pesadas bombas, explodindo por perto não parava de sacudir o chão sob seus pés enquanto ela caminhava, a mochila nas costas, os olhos no chão. Por pior que isso parecesse, era melhor que correr pelo campo de batatas em Luga. Era melhor que sentar na estação ferroviária de Luga, sabendo que os alemães não partiriam antes que Tatiana estivesse morta. Era melhor que tudo isso, mas não muito. Ela continuou a andar, os olhos no chão. Caminhava até à noite: era mais calmo à noite e, depois das onze, não havia bombardeios. Ela andava mais algumas horas e, então, encontrava um celeiro onde dormir. Uma noite, estava com uma família que lhe ofereceu jantar e seu filho mais velho. Ela aceitou o jantar, recusou o filho e ofereceu dinheiro pela recusa. Eles o aceitaram.
Dez quilômetros a oeste de Syastroy, na margem direita do rio Volkhov, Tatiana encontrou uma pequena balsa prestes a cruzar o lago, contornando o cabo de Novaya Ladoga. Os estivadores estavam soltando a corda. Ela esperou que a prancha estivesse prestes a subir e, então, correu até o homem e lhe disse que tinha alimentos para o esforço de guerra, para o cerco, tirando da mochila cinco latas de presunto e uma garrafa de vodca. O estivador ficou olhando para a vodca com olhos cobiçosos. Tatiana disse-lhe que ficasse com a vodca e a deixasse visitar a mãe moribunda em Leningrado. Tatiana sabia que aqueles eram tempos difíceis para os habitantes locais. A maioria de seus parentes que moravam em Leningrado haviam morrido ou estavam morrendo. O estivador agradeceu-lhe pela vodca e lhe abanou a mão, dizendo:
– Estou lhe avisando. É uma travessia difícil. Muito tempo na água, e os alemães bombardeiam as balsas o dia todo.
– Eu sei. Estou preparada – disse ela. E sua travessia ocorreu sem incidentes.
A balsa chegou a Osinovets, ao norte de Kokkorevo, onde Tatiana ofereceu o resto de sua tushonka – quatro latas – e outra garrafa de vodca ao chofer de caminhão que estava levando alimento para Leningrado. Ele a deixou sentar na frente com ele e até dividiu seu pão com ela enquanto viajavam.
Tatiana ficou olhando pela janela. Será que ela seria realmente capaz de voltar para seu apartamento na Quinta Soviet? Como se tivesse muita escolha. Mas voltar para Leningrado?
Ela estremeceu. Não queria pensar nisso. O motorista a deixou na Estação Finlândia, ao norte da cidade. Ela tomou um trem de volta para Nevsky Prospekt e andou até sua casa, na Praça da Insurreição. Leningrado estava triste e fazia. Era de noite, e as ruas estavam fracamente iluminadas, mas, pelo menos, havia eletricidade. Ela parecia ter chegado numa boa hora, pois a cidade estava quieta; não havia nenhum bombardeio. Mas enquanto caminhava, ela viu três incêndios e muitos buracos onde antes havia janelas e portas.
Ela esperava que seu prédio da Quinta Soviet ainda estivesse em pé.
E estava. Ainda verde, ainda pardo, ainda imundo.
Tatiana ficou parada alguns minutos diante das portas duplas da entrada. Ela estava em busca de uma coisa que Alexander chamava de coragem.
A coragem de tornar a subir as escadas que levavam aos dois cômodos vazios onde outros seis corações um dia palpitaram. Cômodos cheios de histórias engraçadas, vodca, jantares, pequenos sonhos, pequenos desejos e vida.
Ela olhou à direita e à esquerda da rua. Do outro lado da praça Grechesky, a igreja ainda estava em pé, intocada e sem ter sido bombardeada. Virando a cabeça para Suvorovksy, viu algumas pessoas entrando em seus prédios, voltando para casa do trabalho. Apenas algumas pessoas, talvez três. O calçamento estava limpo e seco. O ar frio feria suas narinas.
Era por causa dele.
O coração dele ainda batia e estava chamando por ela.
Ele ia ser sua coragem.
Ela balançou a cabeça para si mesma e girou a maçaneta. A entrada verde-escura cheirava a urina. Segurando o corrimão, Tatiana subiu lentamente os três lances de escada até seu apartamento comunal.
Sua chave girou na fechadura da porta marrom lustrosa.
O apartamento estava quieto. Não havia ninguém na cozinha da frente, e as portas dos outros quatros estavam fechadas. Todas fechadas, com exceção da de Slavin, que estava ligeiramente aberta. Tatiana bateu e olhou lá dentro.
Slavin estava no chão, ouvindo o rádio.
– Quem é você? – perguntou ele, numa voz esganiçada.
– Tania Matanova, lembra-se? Como vai você? – disse ela, sorrindo. Algumas coisas nunca mudam.
– Você estava aqui durante a guerra de 1908? Ah, nós mandamos aqueles japoneses para o inferno – disse ele, apontando o dedo para o rádio. – Ouça, ouça com cuidado.
Apenas o som do metrônomo, batida após batida.
Em silêncio, ela retrocedeu. Os russos tinham perdido aquela guerra.
– Você devia ter vindo o mês passado – disse Slavin, erguendo o olhar. – Só sete bombas caíram em Leningrado o mês passado, Tanechka. Você estaria mais segura.
– Não se preocupe – disse ela. – Se precisar de alguma coisa, estou lá embaixo na entrada.
Tampouco havia alguém na cozinha. Para sua surpresa, a porta do seu corredor e de seus dois cômodos não estava trancada. Na entrada, em seu sofá, havia dois estranhos, um homem e uma mulher bebendo chá.
Tatiana ficou um instante olhando para eles.
– Quem são vocês? – perguntou ela, por fim.
Eles disseram que eram Inga e Stanislav Krakov. Ambos tinham uns quarenta anos. Ele era barrigudo e totalmente careca. Ela era miúda e mirrada.
– Mas quem são vocês? – ela tornou a perguntar.
– Quem é você? – perguntou Stanislav, sem sequer olhar para ela.
– Estes cômodos são meus – disse Tatiana, pousando a mochila. – Vocês estão sentados no meu sofá.
Inga explicou rapidamente que eles tinham morado na Sétima Soviet e em Suvorovsky.
– Tínhamos um belo apartamento, nosso próprio apartamento – disse ela. – Nosso banheiro, nossa cozinha e um quarto – continuou ela. Aparentemente, o prédio deles tinha sido arrasado por bombas em agosto. Com a falta de moradias em Leningrado por causa de tantos prédios demolidos, o Conselho Soviético alocou Inga e Stanislav nos cômodos dos Metanov, que estavam desocupados. – Não se preocupe – disse Igan. – Logo vamos encontrar um apartamento nosso. Dizem que talvez seja um de dois quartos. Certo, Stan?
– Bem, agora eu estou de volta – disse Tatiana. – Os cômodos não estão mais desocupados. Ela correu os olhos pela entrada. Alexander havia limpado tão bem o lugar, pensou ela com tristeza.
– É mesmo? E para onde é que nós vamos? – perguntou Stan. – Estamos registrados no Conselho para ficar aqui.
– Que tal os outros quartos do apartamento comunal? – perguntou ela. Os outros quartos onde outras pessoas haviam morrido.
– Estão todos ocupados – disse Stan. – Ouça, por que ainda estamos discutindo isso? Aqui há espaço suficiente. Você pode ficar com todo um quarto só para você. Não dá para se queixar, não é mesmo?
– Mas os dois quartos são meus – disse ela.
– Na verdade, não – disse Stan, continuando a beber seu chá. – Os dois quartos pertencem ao estado. E o estado está em guerra – prosseguiu ele, rindo alegremente. – Você não está sendo uma boa proletária, camarada.
– Stan e eu somos membros do Partido, do Corpo de Engenheiros de Leningrado.
– Isso é ótimo – disse Tatiana, repentinamente se sentindo muito cansada. – Qual dos quartos fica sendo o meu?
Inga e Stan tinham ocupado seu antigo quarto, onde ela dormia com Dasha, Mamãe, Papai e Pasha. Também era o único quarto com aquecimento. Mesmo que o aquecedor não estivesse quebrado, Tatiana não tinha madeira para acendê-lo.
– Posso, pelo menos, ficar com o meu bourzhuika? – perguntou ela.
– E o que nós vamos usar? – perguntou Stan.
– Como é mesmo o seu nome? – perguntou Inga.
– Tania.
– Tania – disse Inga, constrangida –, por que não você não empurra a cama de lona para a parede perto de onde fica o fogão do nosso lado? A parede é quente. Você quer que Stan a ajude?
– Inga, pare, você sabe que tenho problema nas costas – disse Stan. – Ela pode empurrá-la sozinha.
– Posso, sim – disse Tatiana. Ela empurrou o sofá de Deda o suficiente para imprensar a cama de lona contra a parede.
A parede estava quente.
Tatiana dormiu durante dezessete horas, coberta com o casaco e três cobertores.
Depois de acordar, foi até o comitê do Conselho Soviético da Habitação para se registrar outra vez como residente de Leningrado.
– Por que você voltou? – perguntou a mulher atrás da escrivaninha, que preenchia os documentos para um novo cartão de racionamento. – Você não sabe que ainda estamos sitiados?
– Sei – disse Tatiana. – Mas há uma falta de enfermeiras. A guerra continua – e fez uma pausa. – Alguém precisa cuidar dos soldados, não é mesmo?
A mulher mais velha deu de ombros, sem erguer os olhos. Será que alguém desta cidade vai erguer os olhos e olhar para mim?, pensou Tatiana. Um única pessoa.
– O verão foi melhor – disse a mulher. – Mais comida. Agora nem se consegue arrumar batatas.
– Tudo bem – disse Tatiana, sentindo uma ponta de remorso, ao se lembrar do balcão de batatas que Alexander havia feito em Lazarevo.
Com o cartão de racionamento na mão, ela foi ao armazém Elisey na avenida Nevsky. Não podia nem pensar em voltar à loja na Fontanka e Nekrasova, onde costumava buscar as rações da família um ano atrás. Na Elisey, era tarde para conseguir pão, mas obteve um pouco de leite de verdade, feijões, uma cebola e quatro colheres de sopa de óleo. Por cem rublos, comprou uma lata de tushonka. Como ainda não estava trabalhando, sua ração de pão era de apenas 350 gramas, mas para os trabalhadores subia para 700 gramas. Tatiana planejava conseguir um emprego.
Tatiana procurou uma bourzhuika, mas não teve sorte. Chegou a ir ao centro de compras Gostiny Dvor, do outro lado da Elisey, na avenida Nevsky, mas também não achou nada. Ela ainda tinha 3000 rublos do dinheiro de Alexander, e teria prazer em gastar metade dele numa bourzhuika para se manter quente, mas não conseguiu encontrar nenhuma. Com a sacola de comida, Tatiana atravessou a avenida Nevsky, passando pelo Hotel Europeu, na Mikhailovskaya Ulitsa, atravessou a rua e entrou nos Jardins Italianos, sentando-se no banco em que Alexander lhe contara sobre a América.
Ela não se mexeu do lugar nem quando começou o bombardeio, nem quando viu as bombas sobre a Mikhailovskaya e do outro lado da avenida Nevsky. Ela viu uma bomba cair no pavimento e explodir em meio a chamas negras. Alexander vai ficar tão zangado quando descobrir que estou aqui, pensou Tatiana. Ela não se importava se ele a matasse. Ela conhecia o temperamento de Alexander: ele havia perdido o controle durante os últimos dias que passaram em Lazarevo. Como Alexander voltou a ser razoável depois que a deixou – se ele voltou a ser – era coisa que ela desconhecia.
Ela voltou a trabalhar no Hospital Grechesky. Ela tinha razão. O hospital estava precisando desesperadamente de ajuda. O funcionário da administração viu o carimbo de seu antigo emprego no Grechesky e perguntou-lhe se ela havia sido enfermeira. Tatiana respondeu-lhe que tinha sido auxiliar de enfermagem e que, em pouco tempo, seria capaz de pôr suas habilidades em dia. Ela pediu para ser colocada numa unidade de tratamento intensivo. Deram-lhe um uniforme branco, e ela acompanhou uma enfermeira chamada Elizaveta num turno de nove horas e, depois, uma enfermeira chamada Maria em outro turno de nove horas. As enfermeiras nem olhavam para Tatiana.
Mas os pacientes olhavam.
Depois de duas semanas de jornadas de trabalho de dezoito horas diárias, Tatiana finalmente teve seus próprios turnos e uma tarde de domingo livre. Ela reuniu toda sua coragem para ir às barracas Pavlov.
2
Tatiana apenas precisava saber que Alexander estava bem e onde ele estava alojado.
A sentinela do portão não era ninguém conhecido; seu nome era Viktor Burenich. O jovem soldado era amigável e se mostrou disposto a ajudar. Ela gostou disso. Ele conferiu a escalação de todos os soldados que então estavam nas barracas e lhe disse que Alexander Belov não se encontrava entre eles. Ela perguntou se ele sabia onde estava o capitão. O soldado respondeu com um sorriso que não sabia.
– Mas, pelo que você sabe, ele está bem? – perguntou ela.
O soldado deu de ombros.
– Acho que sim, mas eles não contam essas coisas.
Segurando a respiração, Tatiana perguntou se Dimitri Chernenko ainda estava vivo.
Estava. Tatiana respirou. Burenich disse que Chernenko não estava mais na guarnição, mas que constantemente ia e vinha com suprimentos.
Tatiana tentou se lembrar de mais alguém que conhecesse.
– Anatoly Marazov está aqui? – perguntou ela.
Por sorte, ele estava.
Em poucos minutos Tatiana viu Marazov pelo portão.
– Tatiana! – disse ele, parecendo alegre por vê-la. – Que surpresa vê-la por aqui. Alexander me contou que você tinha sido evacuada com sua irmã – e fez uma pausa. – Sinto muito sobre sua irmã.
– Obrigada, tenente – disse ela, com os olhos involuntariamente se enchendo de lágrimas.
Ela ficou extremamente aliviada. Se Marazov mencionou Alexander tão casualamente, significava que tudo estava bem.
– Eu não quis chateá-la, Tania – disse Marazov.
– Não, não, não está me chateando – disse ela. Os dois estavam em pé na entrada.
– Você não quer dar uma volta no quarteirão? – perguntou Marazov. – Eu tenho alguns minutos.
Eles caminharam com os casacos abotoados até a Praça do Palácio.
– Você veio ver o Dimitri? Ele não está mais na minha unidade.
– Ah, eu sei – disse ela, gaguejando. Será que ela conseguiria guardar todas as mentiras na cabeça? Como ela poderia saber sobre Dimitri? – Eu soube que ele foi ferido. Eu o vi em Kobona alguns meses atrás – disse ela. – E se não estava aqui para ver Dimitri, quem mais poderia ela querer ver?
– É verdade, agora ele está por estes lados. Correndo. E infeliz com isso também. Eu não sei o que ele deseja que a guerra lhe ofereça.
– Você ainda está... na companhia de torpedeiros de Alexander.
– Não, Alexander não tem mais uma companhia. Ele foi ferido... – Marazov interrompeu-se quando Tatiana vacilou. – Você está bem?
– Desculpe. Estou bem, sim. Eu tropecei – disse ela, cruzando os braços em torno do estômago. Ela sentia que a qualquer minuto ia desmaiar. Tentou se controlar a todo custo. Ela tinha que se controlar. – O que aconteceu com ele?
– Ele queimou a mãos num ataque em setembro.
– As mãos? – As mãos dele?
– Foi. Queimaduras de segundo grau. Não conseguia segurar um copo durante semanas. Mas agora está melhor.
– Onde ele está?
– De volta ao front.
Tatiana não conseguiu prosseguir.
– Tenente, talvez seja melhor voltarmos. Eu realmente preciso ir embora.
– Claro – disse Marazov, surpreso, enquanto davam meia-volta. – De qualquer modo, por que você voltou a Leningrado?
– Há falta de enfermeiras por aqui. Eu voltei para ser enfermeira – disse ela, apressando o passo. – Você está estacionado em Shlisselburg?
– Eventualmente, sim. Nós temos uma nova base de operações para o front de Leningrado, lá em Morozovo...
– Morozovo? Ouça... estou feliz que você esteja bem. O que você vai fazer em seguida?
– Nós perdemos tantos homens, tentando romper o cerco – disse ele, balançando a cabeça –, que estamos constantemente nos reagrupando. Mas, da próxima vez, acho que vou estar novamente com Alexander.
– É mesmo? – disse ela, sentindo uma fraqueza nas pernas. – Bem, espero que sim. Ouça, foi bom vê-lo.
– Tania, você está bem? – perguntou Marazov, olhando para ela com aquele olhar de familiaridade triste novamente tomando conta de dele. Tatiana se lembrou do seu rosto quando o viu pela primeira vez, no último setembro. Ele olhou para ela como se já a conhecesse.
Ela conseguiu sorrir um pouco.
– É claro. Estou bem – disse ela, aproximando-se dele de maneira firme e colocando-lhe a mão na manga. – Obrigada, tenente.
– Devo dizer a Dimitri que você esteve aqui?
– Não, por favor, não.
Ele inclinou a cabeça. Tatiana já estava quase no fim da rua quando ele gritou:
– Devo contar a Alexander?
– Não! Por favor, não conte – respondeu ela, virando-se e com voz fraca.
Na noite seguinte, quando Tatiana voltou para casa do hospital, encontrou Dimitri esperando por ela no corredor, com Stan e Inga.
– Dimitri? – disse Tatiana, com um choque. – O quê?... Como?... O que você está fazendo aqui? – perguntou ela, olhando para Stan e Inga.
– Nós o deixamos entrar, Tanechka – disse Inga. – Ele disse que vocês estavam se encontrando no ano passado.
Dimitri chegou-se a Tatiana e pôs os braços em torno dela. Ela não moveu os braços.
– Soube que você foi me procurar – disse ele. – Fiquei muito comovido. Você quer ir para o seu quarto?
– Quem lhe contou que eu estive nas barracas?
– Burenich, a sentinela. Ele me disse que uma pessoa apareceu perguntando por mim. Você não deixou o nome, mas ele a descreveu. Fiquei muito emocionado, Tania. Estes últimos meses têm sido difíceis para mim.
Ele tinha a postura torda e os olhos fundos.
– Dimitri, esta não é uma boa hora para mim – disse ela, lançando um olhar de raiva para Inga e Stan. Então, desviou os olhos dele. – Eu estou muito cansada.
– Você deve estar com fome. Quer jantar?
– Eu comi no hospital – mentiu Tatiana. – E aqui não tenho quase nada – acrescentou. Como fazê-lo ir embora? – Tenho que acordar cedo amanhã, às cinco horas. Tenho dois plantões de nove horas pela frente. Vou ficar em pé o dia todo. Talvez uma próxima vez?
– Não, Tania. Não sei se vai haver uma próxima vez – disse Dimitri. – Vamos. Talvez você possa me fazer chá. Alguma coisinha para comer? Em nome dos velhos tempos?
Tatiana nem conseguia imaginar a reação de Alexander quando ele descobrisse que Dimitri esteve no quarto com ela. Isso não estava nos planos dela... estar em contato com ele. Ela não sabia o que fazer com ele. Mas, então, pensou, Alexander ainda tem contas a acertar com ele. Então, eu tenho que estar em contato com ele. O problema não é só de Alexander. É nosso.
Tatiana fritou alguns grãos de soja num fogão Primus que pegara emprestado de Slavin em troca de ocasionalmente cozinhar para ele. Ela juntou algumas cenouras à soja e um pedaço de cebola velha. Deu-lhe um naco de pão preto com uma colherada de manteiga. Quando Dimitri pediu vodca, Tatiana disse-lhe que não tinha mais, pois não queria que ele ficasse bêbado enquanto estivesse sozinho com ela. O quarto era mal iluminado por um lampião de querosene. Havia eletricidade, mas Tatiana não conseguia encontrar lâmpadas nas lojas.
Ele comeu com o prato no colo. Ela se sentou na outra extremidade da cama e percebeu que ainda não havia tirado o casaco. Ela o tirou e, enquanto ele comia, fez uma xícara de chá para ela.
– Por que está tão frio neste quarto? – perguntou Dimitri.
– Não tenho aquecimento – respondeu Tatiana. Ela ainda estava usando o uniforme de enfermeira, e seu cabelo estava preso atrás da cabeça por um lenço branco de enfermeira.
– Então, Tania, conte-me... como você tem passado? Você parece bem – disse Dimitri. – Você não parece mais uma garota – acrescentou ele, sorrindo. – Você agora parece uma jovem mulher. Você parece mais velha.
– Muitas coisas acontecem com a gente – disse Tatiana –, e a gente não pode evitá-las.
– Você parece bem. Esta guerra vai bem com você – disse Dimitri, sorrindo. – Você engordou desde que a vi pela última vez...
– Dimitri – disse ela tranquilamente, com um olhar que o deteve –, a última vez que você me viu foi em Kobona, eu lhe pedindo ajuda para enterrar minha irmã. Talvez você tenha esquecido. Mas eu não.
– Oh, Tania, eu sei – disse ele, com o movimento casual da mão. – Nós perdemos contato completamente. Mas eu nunca parei de pensar em você. Estou feliz que você tenha saído de Kobona. Muita gente não conseguiu.
– Minha irmã, por exemplo – disse Tatiana, com vontade de perguntar como ele tinha conseguido encarar Alexander e mentir sobre Dasha, mas Tatiana não conseguiu dizer o nome do marido na frente de Dimitri.
– Sinto muito por sua irmã – disse Dimitri. – Meus pais também morreram. Então, eu sei como você se sente – continuou ele depois de fazer uma pausa. Tatiana esperou. Esperou que ele terminasse de comer e saísse.
– Como você voltou a Leningrado? – perguntou Dimitri.
Tatiana contou-lhe.
Mas não quis falar dela. Ela não queria falar a respeito de nada. Onde estava Dasha, onde estava Alexander, onde estavam Mamãe e Papai, para se sentarem em torno de Tatiana para que ela não tivesse de ficar sentada sozinha no quarto com Dimitri?
Respirando fundo, Tatiana perguntou-lhe o que ele iria fazer, agora que parecia estar permanentemente inválido.
– Sou um corredor. Você sabe o que é isso?
Tatiana sabia o que era um corredor. Mas balançou a cabeça. Se ele falasse de si mesmo, não ficaria lhe fazendo perguntas.
– Eu levo suprimentos para as linhas de frente e para as unidades da retaguarda, de caminhão, avião, navio. E os distribuo...
– Onde você os distribui? Aqui em Leningrado? – perguntou ela.
– Aqui, sim. E também em vários pontos deste lado do Neva. E para o lado Kareliano, perto da Finlândia – disse ele, olhando para ela de esguelha. – Você está vendo por que sou tão infeliz? – perguntou Dimitri.
– Claro que vejo – disse Tatiana. – A guerra é perigosa. Você não queria estar nela.
– Eu não queria estar neste país – murmurou Dimitri, quase sem ser ouvido.
Mas foi ouvido.
– Você diz que faz entregas na frente finlandesa? – perguntou ela, com a voz enfraquecida.
– Isso mesmo. Para as tropas da fronteira, no Istmo de Karelia. Também faço entregas em nossos quartéis das operações do Neva em Morozovo. O posto de comando foi construído lá, embora estejamos planejando nosso próximo movimento...
– Em que lugar do Istmo de Karelia?
– Não sei se você já ouviu falar de um lugar chamado Lisiy Noss...
– Ouvi falar, sim – disse Tatiana, apertando o braço do sofá.
– Lá – disse Dimitri, sorrindo. – Também levo suprimentos a pé de uma barraca para outra. Sabe, Tania, eu levo suprimentos até para os generais! – disse ele, erguendo as sobrancelhas.
– É mesmo? – disse ela, mal ouvindo o que ele dizia. – Alguém interessante?
– Estou ficando muito amigo – disse Dimitri, baixando a voz – do general Mekhlis – completou ele, rindo com satisfação. – Eu levo papel, canetas e, quando consigo, mais alguma coisa extra para ele... se você entende o que quero dizer. Nunca peço que ele me pague. Cigarros, vodca, tudo vai para ele. Ele aguarda minhas visitas com ansiedade.
– É mesmo? – disse Tatiana. Ela não tinha a menor ideia de quem fosse Mekhlis. – Mekhlis... que exército ele comanda?
– Tania, você está brincando?
– Não. Por que eu estaria? – disse Tatiana, sentindo-se exausta.
– Mekhlis comanda o exército NKVD! – disse Dimitri, num sussurro de satisfação. – Ele é o braço direito de Beria! – completou ele, baixando a voz. Lavrenti Beria era o Comissário do Povo de Stálin para o NKVD.
Tatiana já tinha sentido medo de bombas, da fome e da morte. Certa vez, sentiu medo de se perder no bosque. E também já sentira medo de que um ser humano desejasse lhe fazer mal sem nenhum motivo.
O mal era o meio e o fim.
Nessa noite, Tatiana não temia por ela. Mas, estudando o rosto depravado e insinuante de Dimitri, ela teve medo por Alexander.
Antes dessa noite, ela sentira pontadas de remorso por ter deixado Lazarevo e quebrado a promessa sincera que havia feito ao marido. Mas agora estava convencida de que Alexander não apenas precisa dela mais próxima dele, mas também de que ele precisava mais dela do que ela mesma poderia achar possível.
Alguém tinha de proteger Alexander, não apenas da morte ao acaso, mas também da destruição deliberada.
Sem se mover, sem piscar, sem hesitar, Tatiana estudou Dimitri.
Ela o observou pousar a xícara e se aproximar dela no sofá. Então, ela piscou e saiu de seus devaneios.
– O que você está fazendo?
– Eu posso lhe dizer, Tania – disse Dimitri. – Mas você não é mais criança.
Ela não moveu um músculo quando ele se aproximou ainda mais.
– Inga e Stan me disseram que você está trabalhando tanto que eles estão convencidos de que você está saindo com algum médico do hospital. Isso é verdade?
– Se Inga e Stan lhe disseram, deve ser – disse Tatiana. – Os comunistas nunca mentem, Dimitri.
Balançando a cabeça, Dimitri se aproximou ainda mais.
– O que você está fazendo? – disse Tatiana, levantando-se do sofá. Ouça, está ficando tarde.
– Ora, Tania. Você está sozinha. Eu estou sozinho. Detesto minha vida, detesto cada minuto dela de cada dia dela. Você também não se sente assim às vezes?
Só esta noite, pensou Tatiana.
– Não, Dima. Eu estou bem. Tenho uma boa vida, apesar de tudo. Estou trabalhando, o hospital precisa de mim, meus pacientes precisam de mim. Estou viva. Tenho comida.
– Tania, mas você deve se sentir muito sozinha.
– Como posso me sentir sozinha? – retrucou ela. – Estou constantemente cercada de gente. E você achou que eu estivesse saindo com um médico? Ouça, vamos parar com isso. Está tarde.
Ele se levantou e fez um movimento em direção a ela. Tatiana baixou as mãos.
– Dimitri, está tudo acabado. Eu não sou adequada para você – prosseguiu ela, olhando para ele fixamente. – E você sempre soube disso, embora tenha sempre se mostrado persistente. Por quê?
– Talvez – disse Dimitri, com um riso fácil – eu tenha esperado, cara Tania, que o amor de uma mulher jovem e boa como você pudesse redimir um velhaco como eu.
– Fico feliz em saber – disse Tatiana, olhando-o com frieza – que você não se considera um caso perdido.
– Ah, mas eu sou, Tania – disse ele, rindo outra vez. – Eu sou. Pois eu não tive o amor de uma moça boa como você – prosseguiu ele, parando de rir e erguendo os olhos para ela. – Mas quem teve? – perguntou ele com tranquilidade.
Tatiana não respondeu, em pé onde antes ficava a mesa da sala de jantar, antes de Alexander serrá-la para que ela e Dasha pudessem acender um fogo. Tantos fantasmas em um cômodo pequeno e escuro. Era quase como se o cômodo ainda estivesse repleto de sentimentos, desejos, fome.
Os olhos de Dimitri brilharam.
– Eu não entendo – disse ele em voz alta. – Por que você foi às barracas procurar por mim? Eu achei que fosse isto que você queria. Ou você está querendo brincar comigo? Querendo me atazanar? – disse ele, erguendo a voz a um nível muito mais alto do que aquelas paredes podiam conter. E se aproximou dela. – Pois no exército nós temos uma palavra para as mulheres que nos atazanam. Nós as chamamos de mãe – completou ele, rindo.
– Dima, é isso que você está pensando? Que eu estou brincando. Você acha que eu sou moça do tipo que deseja uma coisa e finge que quer outra. Você acha?
Ele grunhiu, sem responder.
– Foi o que eu pensei – disse Tatiana. – Eu fui bem clara com você desde o começo. Eu fui às barracas procurar por você, por Marazov. Eu só queria ver um rosto familiar – completou ela. Tatiana não ia desistir, embora, por dentro, estivesse fria e distante dele.
– Será que você também perguntou por Alexander? – perguntou Dimitri. – Pois se perguntou, saiba que não o encontraria na guarnição. Alexander estaria em Morozovo se estivesse de serviço, ou em qualquer canto de Leningrado se não estivesse.
– Eu perguntei por todos que conheço – disse Tatiana, sentindo-se empalidecer, interna e externamente, e esperando que Dimitri não percebesse a insegurança em sua voz.
– Todos menos Petrenko – disse Dimitri, como se soubesse de tudo. – Embora você tenha sido tão amiga dele, procurando-o tantas vezes como fazia no ano passado. Por que você não perguntou sobre seu amigo Ivan Petrenko? Antes de ele ter sido morto, ele me disse que, às vezes, ia com você ao armazém do racionamento. Por ordem do capitão Belov, é claro. Ele foi de grande ajuda para você e sua família. Por que você não perguntaria por ele?
Tatiana estava atordoada. Ela se sentia tão ridiculamente precisada de Alexander, tão ridiculamente precisada de proteção contra esse espectro de homem em seu quarto que não sabia o que dizer.
Tatiana não perguntara por Petrenko porque sabia que ele estava morto. Ela soube que Petrenko havia morrido pelas cartas de Alexander, e ele não podia estar escrevendo para ela.
O que fazer, o que fazer para dar um fim a essa mentira revoltante envolvendo sua vida? Tatiana estava tão aborrecida, tão frustrada, tão cansada, tão desesperada que quase abriu a boca para contar a Dimitri sobre Alexander. A verdade seria preferível a isso tudo. Contar a verdade e viver para enfrentar as consequências.
Eram as consequências que a impediam.
– Dimitri, que diabos você está tentando obter de mim? – perguntou Tatiana, empertigando-se e olhando com frieza para Dimitri. – Pare de tentar me manipular com suas perguntas. Ou me interrogue diretamente ou fique quieto. Estou cansada de seus joguinhos. O que você quer saber? Por que eu não perguntei por Petrenko? Por que eu perguntei primeiro por Marazov e, assim que soube que ele estava na guarnição, parei de perguntar. Agora, chega!
– Sinto muito, Tania – disse Dimitri, olhando-a com uma surpresa embaraçada.
Ouviu-se uma batida na porta. Era Inga.
– O que está acontecendo? – perguntou ela sonolenta, usando seu esfarrapado roupão de banho. – Ouvi um barulho alto. Está tudo bem?
– Esta sim, obrigada, Inga – disse Tatiana, batendo a porta. Tatiana se ocuparia de Inga mais tarde.
Dimitri achegou-se a ela e disse:
– Lamento, Tania. Não tive a intenção de aborrecê-la. Eu apenas entendi mal suas intenções.
– Tudo bem, Dimitri. Está tarde. Vamos nos despedir.
Dimitri tentou se aproximar mais, mas Tatiana recuou.
– Eu sempre desejei – disse Dimitri, afastando-se e dando de ombros – que desse certo entre nós, Tania.
– É mesmo, Dimitri? – disse Tatiana.
– É Claro.
– Dimitri! Como... – disse Tatiana, interrompendo-se.
Dimitri estava num local em que já passara muitas noites, comendo e bebendo. Ele se sentava com a família de Tatiana, que o convidava para jantar e faziam-no participar de sua vida. Agora, ele estava ali por apenas uma hora. Havia falado de si mesmo livremente, acusado Tatiana de algo que ela não sabia. Ele lhe contara muitas coisas que soavam como mentiras. Ela não sabia. O que ele não fez foi perguntar-lhe o que havia acontecido às seis pessoas que outrora estiveram com ele naquele local. Não perguntou sobre sua mãe, nem sobre seu pai, nem sobre Marina, nem sobre a mãe de sua mãe. Não perguntou dela em Kobona, em janeiro, nem agora. Ele se soubesse de seus destinos, não emitiria uma única palavra de comiseração, não faria um único gesto reconfortante com a mão. Como é que Dimitri podia pensar que fosse dar certo entre ele e outra pessoa, especialmente entre ele e Tatiana, quando ele não conseguia olhar por apenas um segundo para a vida ou o coração de outra pessoa? Tatiana não se incomodava que ele não perguntasse sobre família. O que ela queria é que ele não fingisse para ela, como se ela não soubesse a verdade.
Tatiana quis dizer isso a Dimitri. Mas não valia a pena.
Ela suspeitava que a verdade estivesse clara em seus olhos, pois ao inclinar a cabeça e parecer ainda mais corcunda, Dimitri gaguejou:
– Parece que eu não consigo dizer a coisa certa.
– Vamos dizer boa noite – disse Tatiana com frieza. – Essa vai ser a coisa certa
Ele foi até a porta, e ela o seguiu.
– Tania, acho que isto é um adeus. Acho que não vamos nos ver de novo.
– Se quisermos, vamos sim – disse Tatiana, engolindo em seco, entorpecida interiormente, as pernas fracas.
– Aonde estou indo – disse Dimitri, baixando a voz num sussurro –, você nunca mais vai me ver, Tatiana.
– É mesmo? – disse ela, sem forças.
Por fim ele partiu, deixando um obscuro tumulto para Tatiana, que ficou em sua cama de lona entre a parede e as costas do sofá, sem tirar a roupa e apertando a aliança contra o peito, sem se mover nem dormir até amanhecer.
3
Em Morozovo, Alexander estava sentado atrás de uma mesa na barraca de seu oficial quando Dimitri entrou com cigarros e vodca. Alexander estava usando seu casaco, e suas mãos feridas estavam adormecidas pelo frio. Ele estava pensando em ir ao refeitório para se aquecer um pouco e pegar comida, mas não conseguia deixar a barraca. Era sexta-feira e ele tinha uma reunião com o general Govorov em uma hora para discutir os preparativos para um assalto sobre os alemães do outro lado do rio.
Era novembro e, depois de quatro tentativas frustradas de atravessar o Neva, o 67º Exército agora esperava impacientemente que o rio congelasse. Finalmente, o comando de Leningrado concluíra que seria mais fácil atacar com as linhas de infantaria pelo gelo que usar pontões facilmente bombardeáveis.
Dimitri colocou as garrafas de vodca, o tabaco e o papel para enrolar cigarros sobre a mesa. Alexander o pagou. Ele queria que Dimitri saísse. Tinha acabado de ler uma carta de Tatiana que o deixara intrigado. Ele não tinha escrito a ela nas semanas em que estivera ferido, embora poderia ter pedido a uma enfermeira que escrevesse para ele. Alexander sabia que, se Tatiana visse uma carta escrita com a letra de outra pessoa, enlouqueceria tentando ler nas entrelinhas o quanto seu ferimento era realmente sério. Sem querer preocupá-la, ele lhe enviou o dinheiro de setembro e esperou até poder segurar uma caneta para lhe escrever pessoalmente por volta do fim do mês.
Ele escreveu que suas queimaduras foram a forma escolhida por Deus para protegê-lo. Incapaz de manejar suas armas, Alexander havia perdido dois ataques desastrosos no Neva em setembro, que dizimaram o primeiro e o segundo exércitos tão radicalmente que todos os reservistas tiveram de ser trazidos da guarnição de Leningrado. O front de Volkhov teria prazer em suprir o de Leningrado com homens... se contasse com eles. Mas depois das instruções de Hitler a Manstein para bloquear o Neva, havia pouquíssimos homens no 2º Exército de Volkhov.
Stalingrado estava sendo arrasada. A Ucrânia era de Hitler. Leningrado mal conseguia sobreviver. O Exército Vermelho estava totalmente debilitado. Govorov estava planejando outro ataque contra os alemães na outra margem do Neva. E Alexander estava sentado em sua mesa, tentado entender que diabos estava acontecendo com sua esposa.
Novembro havia chegado, e nenhuma de suas cartas, que vinham com total regularidade e descontração, embora com pouco de seu tradicional fervor cândido, mencionava seus ferimentos. Ele estava entretido, tentando ler nas entrelinhas das cartas dela, quando Dimitri entrou com sua encomenda. E agora Dimitri não parecia estar disposto a ir embora.
– Alexander, você me serve uma bebida? Em nome dos velhos tempos.
Com relutância, Alexander serviu uma bebida a Dimitri. E se serviu de uma pequena dose. Ele estava sentado atrás de sua mesa, com Dimitri numa cadeira diante dele. Os dois conversaram sobre a invasão iminente e as terríveis batalhas contra os alemães do outro lado do Neva, em Volkhov.
– Alexander – disse Dimitri em voz baixa –, como você consegue ficar sentado aqui tão calmamente, sabendo o que vem pela frente? Quatro tentativas de cruzar o Neva, a maioria de nossos homens mortos, e ouvi dizer que o quinto ataque, assim que o rio congelar, vai ser o último, que nem um único homem poderá voltar até o cerco ser rompido. Você também ouviu falar disso?
– Ouvi alguma coisa, sim.
– Eu não posso mais ficar aqui. Não posso. Ainda ontem eu estava entregando suprimentos ao Neva para as tropas de Nevsky, quando um foguete saiu voando de Sinyavino, cruzou o rio e explodiu em meio a outra droga de esquadrão pronto para a travessia. Acho que eu estava a cem metros da explosão. Mas olhe – disse ele, mostrando a Alexander os cortes em seu rosto –, a coisa não acabou.
– Não, Dimitri, não acabou.
– Alexander – disse Dimitri, baixando a voz –, você não vai acreditar como a área de Lisiy Nos está desprotegida agora! Eu faço entregas lá, para nossas tropas de fronteira, e consigo ver os finlandeses nos bosques. Talvez haja uma dúzia de homens no todo. É providencial. Você pode vir comigo no caminhão de entrega, e antes de chegarmos à fronteira, podemos esvaziar o caminhão e...
– Dima! – sussurrou Alexander. – Esvaziar o caminhão? Olhe só para você. Você mal consegue caminhar no chão plano. Nós já conversamos sobre isso em junho...
– Não apenas em junho. Falamos disso sem parar. Estou cansado de falar. Cansado de esperar. Não posso mais esperar. Vamos embora, vamos tentar e vamos conseguir. E se não conseguirmos, vão atirar em nós. Qual é a diferença. Pelo menos assim temos uma chance.
– Ouça-me... – disse Alexander, erguendo-se da cadeira.
– Não, você é que vai me ouvir. Esta guerra me transformou...
– É mesmo?
– Sim! – disse Dimitri. – Ela me mostrou que tenho que lutar por minha vida para sobreviver. Do jeito que for necessário. Tudo que eu fiz até agora não funcionou. Nem a mudança de pelotão para pelotão, nem meu pé ferido, nem os meses de hospital, nem o interlúdio de Kobona... nada! Tenho tentado salvar minha vida até podermos fazer uma nova investida. Mas os alemães estão determinados a me matar. E eu estou determinado a não deixá-los fazer isso – prosseguiu Dimitri, fazendo uma pausa e baixando a voz. – A sua pequena proeza com o falecido e esquecido Yuri Stepanov provoca ainda mais raiva quando lembrada – prosseguiu Dimitri, com voz quase inaudível. – Ele está morto, e nós estamos aqui. Tudo porque você teve de trazê-lo de volta. Nós agora poderíamos estar na América, não fosse por você.
Lutando para manter o autocontrole, Alexander aproximou-se do lado da mesa em que estava Dimitri, inclinou-se para ele e disse entre os dentes:
– E eu, na época, lhe disse o que vou dizer agora. O que eu fiquei repetindo desde então. E vou repetir agora. Vá embora! Parta. Vá em frente. Eu lhe darei a metade do dinheiro. Você conhece o caminho para Helsinque e Estocolmo como a palma de sua mão. Então, por que não vai embora?
– Você sabe muito bem que eu não posso ir sozinho. Eu não falo uma palavra de inglês – disse Dimitri, encolhendo-se em sua cadeira.
– Você não precisa falar inglês! Só tem que chegar a Estocolmo e requerer status de refugiado. Eles vão lhe dar, Dimitri, mesmo sem você falar inglês – disse Alexander com frieza, afastando-se um pouco.
– E agora com minha perna...
– Esqueça a sua perna. Arraste-a atrás de você se for preciso. Eu vou lhe dar metade do dinheiro...
– Vai me dar metade do dinheiro? De que droga você está falando. Nós combinamos de ir juntos, lembra? Esse era o nosso plano, certo? Juntos – disse ele, fazendo uma pausa. – Eu não vou sozinho!
– Se você não vai sozinho – disse Alexander entre os dentes –, então vai ter que esperar até eu dizer quando é a hora certa – prosseguiu ele, cerrando os punhos. – Ainda não é a hora certa. Vai ser na primavera...
– Eu não vou esperar até a droga da primavera!
– E que escolha você tem? Você quer conseguir escapar ou falhar devido à pressa? Você sabe que as tropas de fronteira do NKVD atiram sem piedade nos desertores.
– Na primavera, eu vou estar morto – disse Dimitri, levantando-se da cadeira e tentando encarar Alexander. – Você vai estar morto na primavera? O que é que está havendo com você? Que diabos há com você? Você não quer mais fugir? O que vai fazer em vez disso? Morrer?
Procurando tirar o tormento dos olhos, Alexander não respondeu.
– Cinco anos atrás – disse Dimitri, encarando-o com raiva –, quando você não era ninguém, não tinha ninguém e precisou de mim, eu lhe fiz um favor, capitão do Exército Vermelho.
Alexander deu um passo à frente e ficou tão próximo de Dimitri que este não apenas recuou, mas também caiu sentado na cadeira, olhando para Alexander com ansiedade.
– Sim, você fez, sim – disse Alexander. – E eu nunca me esqueci disso.
– Tudo bem, tudo bem – disse Dimitri. – Não fique...
– Eu fui bastante claro? Nós vamos esperar a hora certa.
– Mas a fronteira em Lisiy Nos está desprotegida agora! – exclamou Dimitri. Que diabos estamos esperando? Agora é a época ideal para irmos. Mais tarde, os sovietes vão mandar mais tropas para lá, os finlandeses vão trazer mais tropas e a guerra vai continuar por lá. Agora os dois lados estão empatados, e digo que é hora de irmos... antes que a batalha de Leningrado o mate.
– Quem o está impedindo? – disse Alexander. – Vá!
– Alexander – disse Dimitri –, pela última vez, eu não vou sem você.
– Dimitri – disse Alexander –, pela última vez, agora eu não vou.
– Então, quando?
– Eu vou lhe dizer quando. Primeiro, temos que furar o bloqueio. Sim, ele vai nos custar tudo o que temos, mas vamos rompê-lo e, então, na primavera...
– Talvez devêssemos mandar Tania fazê-lo – disse Dimitri, rindo à socapa.
Por um instante, Alexander achou que tinha ouvido mal.
Dimitri tinha acabado de mencionar Tatiana?
– O que foi que você disse? – perguntou ele, tranquila e lentamente.
– Eu disse que talvez devêssemos mandar Tania. Ela é especialista em vencer bloqueios.
– Do que você está falando?
– Aquela garota – disse Dimitri com admiração –, estou convencido de que ia conseguiria ir até a Austrália sozinha se quisesse! – bramiu ele. – Antes que a gente se dê conta, ela vai estar fazendo entregas regulares de comida entre Molotov e Leningrado.
– De que diabos você está falando?
– Estou lhe dizendo, Alexander – prosseguiu Dimitri –, que em vez de gastar duzentos mil de nossos homens, incluindo você e eu, devíamos mandar Tatiana Metanova furar o bloqueio.
– Não faço a mínima ideia do que você está falando – disse Alexander, sugando seu cigarro. Na esperança de que Dimitri não notasse, ele apertou o encosto da cadeira com as mãos.
– Eu disse a ela: “Tania, você devia se alistar. Logo, logo, você seria general”. E ela disse que realmente estava pensando em se juntar...
– O que você quer dizer... – interrompeu Alexander, achando difícil prosseguir. – O que você quer dizer com você disse a ela?
– Uma semana atrás. Ela me serviu o jantar na Quinta Soviet. Eles finalmente consertaram os canos. O apartamento, bem, umas pessoas totalmente estranhas estão morando lá, mas... – interrompeu-se Dimitri, sorrindo. – Ela está se revelando uma boa cozinheira.
Alexander precisou de todo o restante de suas forças para continuar impassível.
– Você está bem? – perguntou Dimitri, olhando-o de maneira divertida.
– Eu estou bem. Mas do que é que você está falando, Dima? Essa é mais uma de suas mentirinhas? Tatiana não está em Leningrado.
– Alexander, acredite em mim. Eu reconheceria Tatia em qualquer lugar – disse ele, sorrindo. – Ela parece bem. Ela me contou que está saindo com um médico – prosseguiu ele, rindo. – Dá para acreditar? Nossa pequena Tanechka. Quem haveria de pensar que ela seria a única sobrevivente.
Alexander gostaria de dizer pare com isso, mas não confiava em sua voz. Ele nada disse, com as mãos ainda no encosto da cadeira. Ele tinha acabado de receber uma carta dela ontem. Uma carta!
– Tania foi me procurar nas barracas. E me ofereceu um jantar. Ela disse que estava em Leningrado desde meados de outubro. E também como ela chegou lá! – prosseguiu Dimitri, rindo. – Literalmente caminhando do front de Vokhov, como se Manstein e suas bombas de mil quilos não existissem – disse ele, balançando a cabeça. – Quando eu entrar na luta final, quero que ela esteja comigo.
– E quando você pensa, Dimitri, que vai ser essa luta final? – disse Alexander, esforçando-se por manter o autocontrole.
– Muito esperto...
– Dimitri, eu não dou a mínima para isso. Mas acabo de me dar conta de que estou atrasado. Tenho um encontro com o general Govorov em alguns minutos. Você vai ter que me desculpar.
Depois que Dimitri saiu, Alexander sentiu-se tão aborrecido em sua barraca que, em sua fúria, quebrou a cadeira de madeira em que estivera sentado. Agora ele sabia o que havia de errado com as cartas dela. Alexander sentiu-se enfraquecido pela raiva e não teve tempo de se acalmar antes da reunião com Govorov, ou mesmo depois. A raiva continuou a nublar seu discernimento. Depois da reunião, ele foi até o coronel Stepanov.
– Ah, não – disse Stepanov, levantando-se da cadeira –, eu estou vendo aquele olhar em seus olhos, capitão Belov – completou ele, sorrindo.
– O senhor – começou Alexander, com o chapéu nas mãos –, tem sido muito bom comigo. Eu não tirei um único dia de folga desde que voltei em julho.
– Mas, Belov, você teve mais de cinco semanas de folga em julho!
– Tudo o que estou pedindo são alguns dias, senhor. Se o senhor quiser, posso levar um caminhão de suprimentos a Leningrado. Assim, em parte estarei a serviço do exército.
– O que está acontecendo, Alexander? – perguntou Stepanov, aproximando-se e baixando a voz.
– Está tudo bem – respondeu Alexander, com um pequeno movimento de cabeça.
– Será que isso não tem a ver com o dinheiro que você está mandando daqui para Molotov todos os meses – disse Stepanov, estudando-o.
– O senhor tem razão. Talvez devamos parar de mandar dinheiro para Molotov.
– Será que tem a ver com o carimbo de um cartório de registros em Molotov que eu vi em seu passaporte, quando eu estava registrando a sua volta? – perguntou Stepanov, baixando a voz ainda mais.
Alexander ficou em silêncio.
– Senhor, eu preciso ir urgentemente a Leningrado – disse ele, fazendo uma pausa, na tentativa de se recompor. – É só por alguns dias.
– Se você não estiver de volta para a chamada das dez horas no domingo... – disse Stepanov, com um suspiro.
– Senhor, eu estarei aqui. Isso é mais que tempo suficiente. Obrigado. Eu nunca o desapontei. E não vou esquecer isto.
Quando Alexander estava saindo, Stepanov disse:
– Ocupe-se de seus assuntos pessoais, meu filho. Esqueça os suprimentos. Você não vai ter outra chance de cuidar de assuntos pessoais antes de furarmos o bloqueio.
4
Tatiana estava arrastando os pés. Ela ainda estava se ocupando de seus doentes, apesar de seu horário de saída há muito ter vencido. Estava com um pouco de fome, mas cozinhar para ela mesma era um desprazer. E gostaria de alimentar seu corpo de forma intravenosa, como alguns dos feridos. Ficar se ocupando de homens e mulheres feridos com gravidade era preferível a ficar em seu quarto sozinha.
Por fim, ela saiu e, sem levantar a cabeça, caminhou lentamente para casa, descendo a Grechesky no escuro.
Ela entrou no apartamento comunal. Inga estava sentada no sofá na entrada e tomava chá distraidamente. Por que ela estava na casa de Tatiana? Era tão incongruente que ela e Stan ficassem ali.
– Olá, Inga – disse Tatiana, com a voz cansada, enquanto tirava o casaco.
– Humm. Alguém veio procurar você – disse ela, endireitando os ombros.
– Você fez o que eu lhe pedi e não deixou ninguém entrar?
– Fiz, fiz como você pediu – respondeu Inga. – Mas ele não ficou contente. Outro soldado.
– Que soldado?
– Eu não sei.
– Quem era? – perguntou Tatiana num sussurro, aproximando-se e baixando a voz. – Não era o mesmo soldado, era? – prosseguiu ela, num sussurro.
– Não. Diferente. Alto.
O coração de Tatiana deu um pulo. Alto!
– Para onde... – gaguejou ela. – Para onde ele foi?
– Sei lá. Eu disse a ele que não podia entrar. Ele não quis ouvir mais nada depois disso. Você tem um interessante contingente de soldados atrás de você, não é mesmo?
Sem sequer pegar o casaco, Tatiana deu meia-volta no pequeno vestíbulo, escancarou a porta e, diante dela, estava Alexander.
– Oh – disse ela, ofegante, os joelhos trêmulos. – Oh, meu Deus! – Ao ver a expressão de seus olhos escuros, ela percebeu o que ele estava sentindo. Mas não se importou. Com os olhos cheios de lágrimas, ela colocou a mão dentro do casaco dele.
Ele sequer colocou os braços em torno dela.
– Vamos – disse ele com frieza, pegando-a pelo braço. – Vamos lá para dentro.
– Tania me disse para não deixar ninguém entrar, capitão – disse Inga. – Tania, você não vai nos apresentar? – perguntou ela, pousando a xícara.
– Não – disse Alexander, empurrando Tatiana para dentro do quarto e chutando a porta para fechá-la. Ela se dirigiu a ele instantaneamente, com os braços trêmulos abertos, o rosto coberto de lágrimas. Ela mal conseguia pronunciar o nome dele de tanta emoção.
– Shura...
– Não chegue perto de mim – avisou ele, afastando as mãos.
– Shura, estou tão feliz em ver você. Como estão suas mãos? – insistiu Tatiana, sem ouvir o que ele dizia e se aproximando dele.
– Não, Tatiana! Fique longe de mim – devolveu ele em voz alta, empurrando-a para longe.
Ele foi até a janela. Ali estava frio. Tatiana seguiu-o. Sua necessidade de colocar as mãos sobre ele, fazer com que ele a tocasse, era tão desesperada que ela esqueceu a dor deixada pela visita de Dimitri, pela falta dos cinco mil dólares, por seus sentimentos conturbados.
– Shura – disse Tatiana, com a voz trêmula. – Por que você está me evitando?
– O que você fez? – indagou Alexander, com os olhos amargos e furiosos. – Por que você está aqui?
– Você sabe por que eu estou aqui – disse-lhe Tatiana. – Você precisava de mim. E eu vim.
– Eu não precisava de você aqui – gritou ele. Tatiana vacilou, mas não se afastou. – Eu não precisava de você aqui – repetiu ele. – Eu preciso de você a salvo!
– Eu sei – disse ela. – Por favor, deixe-me tocá-lo.
– Fique longe de mim.
– Shura, eu lhe disse que não consigo ficar longe de você. Eu achei que você não haveria de me querer o tempo todo em Lazarevo. Que você precisasse de mim perto de você.
– Perto de mim? Não perto de mim, Tatiana – disse ele com impertinência, junto ao batente da janela. Estava escuro no quarto, com a única luz vinda da rua. O rosto de Alexander estava escuro, seus olhos estavam escuros.
– Do que você está falando? – disse ela numa súplica trêmula. – Claro, perto de você. Perto de quem mais poderia ser.
– Em que diabos você estava pensando – berrou ele – ao ir até as barracas e perguntar por Dimitri?
– Eu não perguntei por Dimitri! – exclamou ela com voz fraca. – Eu fui para encontrar você. Eu não sabia o que havia lhe acontecido. Você parou de me escrever.
– E você não me escreveu por seis meses! – disse ele em voz alta. – Você podia ter esperado duas semanas, não é mesmo?
– Fazia mais de um mês, e eu não podia, não – respondeu ela. – Shura, eu estou aqui por você. – Ela deu um passo em direção a ele. – Por você. Você me disse para eu nunca ignorá-lo. Aqui estou eu. Olhe nos meus olhos e veja o que eu estou sentindo – suplicou ela, estendendo-lhe as mãos. – O que eu estou sentindo, Shura? – sussurrou ela.
– Olhe nos meus olhos e diga o que eu estou sentindo, Tatiana – disse Alexander, piscando e cerrando os dentes.
Ela juntou as mãos como numa prece.
– Você me prometeu! – disse Alexander. – Você me prometeu. Você me deu sua palavra!
Tatiana lembrou. Ela olhou para o rosto dele. Estava tão fraca e o queria tanto. E pôde ver que ele precisava dela, talvez mais ela dele. Mas ele não conseguia enxergar além de sua raiva. Como sempre.
– Alexander, meu marido, sou eu. É a sua Tania – ela quase gritou, estendendo-lhe as mãos. – Shura, por favor...
Como ele não respondeu, Tatiana tirou os sapatos e foi se pôr diante dele junto à janela. Ela se sentia mais vulnerável que nunca, em pé com seu uniforme branco diante dele, de cabelo negro, botas negras e o casaco militar negro assomando à frente dela, tão emocional, tão zangado. – Por favor, não vamos brigar. Estou feliz por ver você. Eu só quero... – prosseguiu ela, sem querer desviar o olhar dele. – Shura – disse ela, o corpo tremendo –, não... me rechace.
Ele desviou o rosto. Tatiana desabotoou a frente de seu uniforme e segurou a mão de Alexander.
– Beije a palma de sua mão e pressione-a contra o coração, você me escreveu – sussurrou ela, beijando-lhe a mão e colocando-a em seu peito nu, aquela mão grande, quente, escura, a mão que a havia carregado e acariciado. Então, fechou os olhos e deu um gemido.
– Oh, meu Deus, Tatiana... – disse Alexander, puxando-a para ele, as mãos atacando-lhe o corpo. Ele a empurrou contra a cama, sem desgrudar os lábios incensados da boca da esposa, as mãos em seus cabelos. – O que você quer de mim? – perguntou ele, tirando-lhe o uniforme, a blusa e a calcinha, deixando-a nua, apenas com as ligas. Agarrando-lhe as coxas nuas acima das meias, ele sussurrou: – Tania, meu Deus, o que você quer de mim?...
Tatiana não conseguiu responder. O corpo dele sobre o dela deixava-a sem fala.
– Estou furioso com você – disse ele, beijando-a como se fosse a última coisa que pudesse fazer na vida. – Você não se importa que eu esteja furioso com você?
– Não me importo... descarregue sua raiva em mim – gemeu Tatiana. – Vá em frente, descarregue-a em mim, Shura... agora.
Em segundos, ele já estava dentro dela.
– Cubra minha boca – sussurrou Tatiana, agarrando-lhe a cabeça e já prestes a gritar.
Alexander não havia tirado nem o casaco nem as botas.
Ouviu-se uma batida na porta.
– Tania, está tudo bem? – perguntou a voz de Inga.
– Suma já dessa porta – berrou Alexander, com a mão sobre a boca de Tatiana.
– Cubra minha boca, Shura – sussurrou Tatiana, chorando de felicidade. – Meu Deus, cubra-a.
– Não, não me deixe sozinha, não me deixe sozinha, por favor – murmurou ela, segurando-o pelo casaco, pela cabeça, por qualquer parte dele que conseguisse. – Como estão suas mãos? – perguntou ela. No escuro, não conseguia vê-las. Elas pareciam cobertas de crostas.
– Elas estão bem.
Tatiana estava beijando-lhe os lábios, o queixo, a barba curta, os olhos; ela não conseguiu afastar os lábios dos olhos dele, segurando-lhe a mão perto dela.
– Shura, querido, não me deixe sozinha, por favor, eu senti tanto a sua falta, fique aqui comigo. Fique onde você está... – repetia ela, e, durante alguns momentos sombrios, Tatiana pressionou o corpo contra o de Alexander. – Não vá embora. Você está sentindo como eu sou quente? Não saia para o frio... – pedia ela, colocando-se debaixo dele e tentando não chorar. Mas não conseguiu. – Foi por isso que você não me escreveu? Por causa de suas mãos?
– Foi – respondeu Alexander. – Eu não queria que você ficasse preocupada.
– Você não pensou que a ausência de suas cartas me deixaria maluca?
– Sabe – disse ele, desvencilhando-se dela –, eu esperava que você se limitasse a esperar.
– Meu querido, meu esposo adorado, você está com fome? – murmurou Tatiana. – Nem acredito que eu esteja tocando você de novo. Não posso ter tanta sorte! O que posso fazer para você? Tenho um pouco de carne de porco e batatas. Você quer comer?
– Não – respondeu Alexander, ajudando-a a se levantar. – Por que está tão frio aqui?
– A fornalha está quebrada. A bourzhuika fica no outro quarto, lembra? Slavin me deixa usar seu fogão Primus na cozinha – disse ela, sorrindo e correndo as mãos para cima e para baixo do casaco dele. – Querido, Shura, você quer que eu faça chá?
– Tania, você vai congelar. Você tem mais alguma coisa para vestir? Alguma coisa quente?
– Eu estou queimando – disse ela, com as mãos no casaco dele. – Não estou com frio – acrescentou, apoiando-se nele.
– Por que o sofá está no meio do quarto?
– Minha cama está atrás do sofá.
Alexander olhou pelas costas do sofá e viu o catre de Tatiana. Puxando um dos cobertores, ele a cobriu. – Por que você está dormindo entre o sofá e a parede?
Como ela não respondeu, Alexander foi até a parede e tocou-a com a mão. Os dois se entreolharam no escuro. – Por que você lhes deu o quarto quente, Tania?
– Eu não dei nada. Eles o pegaram. Eles são dois, e eu, só uma. Eles são pessoas tristes. Ele tem problema de coluna. Shura, que tal um banho quente? Eu vou lhe preparar um.
– Não, vista-se. Agora mesmo. – Alexander afivelou o cinto e saiu do quarto, ainda usando o casaco.
Desgrenhada e sem abotoar todos os botões, Tatiana o seguiu. Ele passou por Inga no vestíbulo e entrou no quarto, onde Stan estava sentado lendo o jornal, e pediu ao homem que trocasse de quarto com Tatiana. Stan disse que não ia fazer aquilo. Alexander replicou que Stan ia fazer aquilo, sim, e ele e Tatiana começaram a levar todas as coisas do casal de moradores para o quarto frio e todas as coisas de Tatiana para o quarto quente.
Durante quinze minutos, Tatiana ouviu Stan resmungando ao lado de Inga no vestíbulo, e, num determinado momento, quando passou por ele, ela murmurou:
– Stanislav Stepanich, quieto. Não o provoque.
Stan não deu ouvidos à esposa.
– Quem você pensa que é? Você não sabe com quem está lidando. Você não tem o direito de me tratar dessa maneira.
Deixando cair o baú, Alexander pegou o rifle e imprensou Stan contra a parede, com o cano pressionando a garganta do homem.
– E quem você pensa que é, Stan? – retrucou Alexander em voz alta. – Você não sabe com quem você está lidando! Então, você acha que eu vou ter medo de você, seu safado? Você está se metendo com o homem errado. Agora, vá para o outro quarto e não me encha o saco, pois eu não estou a fim de ser perturbado – disse, cerrando os dentes. – E nunca mais torne a incomodá-la, está me ouvindo? Vamos, leve o seu maldito baú – concluiu. Depois de um último golpe embaixo do queixo, Alexander afastou-se dele e chutou seu baú para longe.
Tatiana, que ficou observando Alexander, não foi em socorro de Stan, embora achasse que Alexander estava tão nervoso que poderia machucar o homem doente.
– Que tipo de gente louca vem visitar você, Tania? Vamos, Stan, vamos embora – murmurou Inga.
Esfregando a garganta, Stan começou a dizer alguma coisa, mas Inga gritou:
– Vamos, Stan. Cale a boca e vamos!
No quarto quente, Tatiana logo tirou os lençóis de Inga e Stan, jogando-os no vestíbulo, e colocou lençóis limpos em sua velha cama.
– Assim está melhor, não é mesmo? – comentou Alexander, sentando-se no sofá e puxando Tatiana para ele.
Tatiana concordou com um aceno de cabeça.
– Ah, só você, Alexander. Você quer comer alguma coisa?
– Mais tarde. Venha aqui.
– Você vai tirar o casaco desta vez?
– Venha aqui e você vai ver.
Ela caiu nos braços dele.
– Não tire o casaco, não tire nada.
Tatiana preparou um banho quente para Alexander, tomou-o pela mão e o levou até o pequeno banheiro, despiu-o, ensaboou-o, esfregou-o, enxaguou-o, chorou sobre ele e o beijou.
– Suas pobres mãos – repetia ela. Seus dedos vermelhos pareciam estar mal, mas Alexander assegurou-lhe que eles iam se curar e ficar quase sem cicatrizes. A aliança não estava em seu dedo, mas num cordão em torno do pescoço, exatamente como a dela.
– A água está bem quente para você?
– Está ótima, Tania.
– Vou ferver mais uma panela – disse ela, sorrindo. – Então, eu volto e despejo mais água quente para você. Você lembra?
– Lembro, sim – disse ele, sem sorrir.
– Oh, Shura... – sussurrou ela, beijando-lhe a testa molhada e virando o rosto dele para ela enquanto se ajeitava ao lado da banheira. – Eu sei – disse ela, com os olhos brilhando. – Nós podemos fazer uma brincadeira.
– Sem brincadeiras agora – disse ele.
– Você vai gostar desta – murmurou ela. – Vamos fingir que estamos em Lazarevo e eu sou você, segurando meus dedos na bacia de lavar roupa. Lembra? – prosseguiu ela, mergulhando os braços até os cotovelos na água quente cheia de espuma.
– Eu lembro – disse Alexander, fechando os olhos e sorrindo com relutância.
Enquanto ele estava se secando e se vestindo, Tatiana foi até a cozinha para preparar-lhe o jantar, cozinhando para ele quase toda a comida que ela tinha: batatas, cenouras e um pouco de carne de porco. Depois, levou a comida até o quarto e, sem respirar, sentou-se ao lado dele no sofá, observando-o comer.
– Eu não estou com fome – disse ela. – Eu comi no hospital. Coma, querido, coma.
Durante a noite insone e sem lógica, Tatiana contou a Alexander tudo o que Dimitri lhe havia dito: o general da NKVD, Lisiy Nos, e as outras alusões.
– Você está esperando que eu responda antes de você me perguntar?
– Não – disse Tatiana. – Não vou lhe perguntar nada – prosseguiu ela, deixando-se ficar em seus braços e brincando com a aliança dele.
– Não vou lhe contar sobre a vida de Dimitri aqui.
– Está bem.
– Porque as paredes têm ouvidos – disse Alexander, batendo forte com o punho contra a parede.
– Então, eles já ouviram tudo.
Ele beijou-lhe a testa.
– Tudo o que ele contou para você, sobre mim, não é verdade.
– Eu sei – disse ele, o que a fez sorrir um pouco.
– Mas, Shura, diga-me, quantas casas de prostitutas há em Leningrado, e por que você iria a todas elas?
– Tania, olhe para mim.
Ela o encarou.
– Não é verdade. Eu...
– Shura, querido. Eu sei – disse ela, beijando-lhe o queixo e cobrindo a ambos com dois cobertores de lã. – Hoje em dia, Alexander, só uma coisa é verdadeira.
– Só uma – sussurrou ele, olhando para ela intensamente no escuro. – Oh, Tatia.
– Psiu!
– Você tem uma foto sua aqui? Uma foto que eu possa levar comigo?
– Amanhã eu acho uma para você. Eu estou com medo de perguntar. Quando você volta?
– Domingo.
Ela sentiu um aperto no coração.
– Tão rápido.
– Meu comandante sempre põe a cabeça a prêmio quando me dá uma licença especial.
– Ele é um bom homem. Agradeça a ele por mim.
– Tatiana, um dia vou explicar a você o conceito de manter uma promessa. Sabe, quando você me dá sua palavra, você tem que cumprir sua palavra – disse ele, mexendo no cabelo dela.
– Eu sei o que significa cumprir uma promessa.
– Não, você só sabe o que significa fazer uma promessa – disse Alexander. – Você é muito boa para fazer promessas. O seu problema é cumprir a promessa. Você me prometeu que ficaria em Lazarevo.
– Eu prometi – disse Tatiana pensativa – porque era o que você queria que eu fizesse – e se acomodou ainda mais no braço dele. – Você não me deixou muita escolha – ela não poderia mentir tão perto dele. – Quando você me pediu para fazer uma promessa, eu teria lhe prometido qualquer coisa. – Debaixo do braço dele não estava bom. Ela subiu em cima dele. – E eu prometi – disse ela, beijando-o com suavidade. – Você queria que eu prometesse. Eu prometi. Eu sempre faço o que você quer que eu faça.
As mãos dele moveram-se ternamente para a parte baixa das costas dela.
– Não, você sempre faz o lhe dá vontade. Com certeza, você faz os ruídos certos.
– Mmm – disse ela, esfregando-se contra ele.
– Sim, isso é o que você faz – disse Alexander, com as mãos mais insistentes. – Você, com certeza, diz as coisas certas. Sim, Shura; é claro, Shura; eu prometo, Shura; talvez até eu amo você, Shura, mas depois você faz o que bem entende.
– Eu amo você, Shura – disse Tatiana, com as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.
Todas as palavras agoniantes que Tatiana tinha a intenção de dizer a Alexander foram guardadas para ela mesma, um pouco surpresa que ele também estivesse guardando suas próprias palavras agoniantes – a interminável noite de novembro em Leningrado era curta demais para as tristezas, curta demais para o que eles estavam sentindo, curta demais para eles. Alexander queria ouvi-la gemer, e ela gemeu para ele, ignorando que Inga e Stan estavam a apenas alguns centímetros, separados pelo estuque fino. Sob a luz bruxuleante da bourzhuika, Tatiana fez amor com seu Alexander, gritando para ele, apertando-o, agarrando-se a ele, incapaz de se impedir de gritar toda vez que atingia o orgasmo, que ele atingia o orgasmo, toda vez que eles atingiam o orgasmo juntos. Ela fez amor com ele com a liberdade do último voo para o sul da cotovia, quando a ave sabe que vai conseguir chegar lá ou morrer.
– Suas pobres mãos – sussurrava ela, enquanto lhe beijava as cicatrizes de seus dedos e pulsos. – Suas mãos, Shura. Elas vão ficar curadas, não é mesmo? Elas não vão ficar com cicatrizes?
– Suas mãos sararam – disse ele. – Você não ficou com cicatrizes.
– Hmm – disse ela, lembrando-se de como apagara o fogo no telhado no ano anterior. – Eu não sei como.
– Eu sei como – sussurrou Alexander. – Você as curou. Agora cure as minhas, Tania.
– Oh, soldado – disse Tatiana em cima dele, pressionando desesperadamente a cabeça de Alexander contra os seios nus. – Eu não consigo respirar.
Ela o estava abraçando como ele a abraçava em Lazarevo. E pelo mesmo motivo.
– Abra a boca – sussurrou ela, abaixando-se em direção ao rosto dele. – Eu vou respirar por você.
5
Na manhã seguinte, antes de saírem para o corredor, Tatiana abraçou Alexander.
– Seja bonzinho – disse ela, enquanto abria a porta do quarto deles.
– Eu sou sempre bonzinho – respondeu ele.
Stan e Inga estavam sentados no vestíbulo. Stan levantou-se, estendeu a mão para Alexander e se apresentou, pedindo desculpas pelo dia anterior. Então, pediu a Alexander que se sentasse para fumar um cigarro. Alexander não se sentou, mas aceitou o cigarro de Stan.
– Este tipo de vida é difícil para qualquer um. Eu sei. Mas não é para sempre. Você sabe o que o Partido diz, capitão – disse Stan, sorrindo agradavelmente.
– Não, o que diz o Partido, camarada? – perguntou Alexander, olhando para Tatiana, que estava ao lado dele, segurando-lhe a mão.
– O ser determina a consciência, não é mesmo? Já vivemos demais desta forma, e vamos todos nos acostumar com isso. Logo seremos todos seres humanos transformados.
– Mas, Stan – disse Inga com voz queixosa –, eu não quero viver assim! Nós tínhamos um belo apartamento. Eu o quero de volta.
– Nós vamos tê-lo de volta, Inga. O conselho nos prometeu um de dois quartos.
– Quanto tempo, Stan, você acha que vamos viver assim antes de nos transformarmos? – perguntou Alexander. – E nos transformarmos em quê? – completou ele, olhando para Tatiana desoladamente.
Olhando-o no rosto, ela perguntou:
– Shura, eu tenho um pouco de kasha. Quer que eu faça para você, querido?
Fumando como se aquilo fosse seu café da manhã, Alexander concordou com um aceno de cabeça. Ela não gostou do olhar dele.
Quando ela voltava com duas tigelas de kasha e uma xícara de café para ele, Tatiana ouviu Stan dizer a Alexander que ele e Inga, casados há vinte anos, eram ambos engenheiros e antigos membros do Partido Comunista da União Soviética. Alexander mal se desculpou quando foi comer sua kasha dentro do quarto, sem nem pedir que Tatiana o seguisse.
* * *
Tatiana comeu sua kasha com Inga e Stan, recusando-se a responder às perguntas curiosas da mulher sobre Alexander. Então, ela lavou os pratos da noite anterior, limpou a cozinha e, por fim e com relutância, juntou-se a ele no quarto. Tatiana sabia que ela estava procrastinando.
Ela não queria encarar Alexander sozinha.
Ele estava colocando as coisas dela em sua mochila preta. Olhando-a, ele disse:
– Foi para isto que você quis voltar? Você sentia falta disto? Estranhos, estranhos do Partido Comunista, ouvindo todas as suas palavras, até seus gemidos? Você sentia falta disto tudo, Tania?
– Não. Eu sentia falta de você.
– Aqui não há lugar para mim – disse ele. – Mal há lugar para você.
Depois de observá-lo por um instante, ela perguntou:
– O que você está fazendo?
– Arrumando as coisas.
– Arrumando? – repetiu ela, baixinho, fechando a porta atrás dela. Então vai começar, pensou Tatiana. Eu não queria isso. Gostaria que não tivéssemos que passar por isto. Mas aqui estamos. – Aonde vamos?
– Para o outro lado do lago. Posso atravessar você facilmente até Syastroy e, então, levo você num caminhão do exército até Vologda. De lá, você pega um trem. Agora temos que ir. Vou demorar um pouco para voltar, e preciso estar em Morozovo amanhã à noite.
Tatiana balançou a cabeça com vigor.
– O que foi? – perguntou Alexander. – Por que você está balançando a cabeça?
Ela continuou a balançar a cabeça.
– Tatiana, eu estou lhe avisando. Não me provoque.
– Tudo bem. Mas eu não vou a lugar nenhum.
– Ah, vai sim.
– Não, não vou – disse ela, quase sussurrando.
– Você vai! – disse Alexander, erguendo a voz.
– Não erga a voz para mim – disse Tatiana com o mesmo quase sussurro.
Jogando a mochila no chão de madeira com um ruído surdo, Alexander foi até ela e, inclinando-se, disse-lhe no rosto:
– Tatiana, em um segundo eu vou erguer a minha voz ainda mais para você.
Tatiana sentiu-se muito triste por dentro. Mas endireitou os ombros e não desviou o olhar.
– Vá em frente, Alexander – disse ela com tranquilidade. – Eu não tenho medo de você.
– Não? – disse ele, cerrando os dentes. – Bem, eu estou apavorado com você – prosseguiu ele, afastando-se e pegando a mochila. Tatiana lembrou-se do primeiro dia da guerra e se lembrou de Pasha dizendo a seu pai que não, eu não quero ir, não quero ser mandado para muito longe para morrer.
– Pare com isso, Alexander. Estou dizendo. Eu não vou a lugar nenhum.
– Ah, vai sim, Tania – retrucou ele, girando em torno dela, o rosto contorcido pela raiva. – Você vai, sim. Vou levar você a Vologda, nem que seja aos pontapés e aos gritos.
Tatiana afastou-se um pouco dele, mas só um pouco, meio passo, e disse:
– Ótimo. Mas eu não vou ser chutada. Eu não vou gritar. Assim que você sair, eu torno a voltar.
Alexander atirou a mochila contra a parede, perto da cabeça de Tatiana. Ele foi em sua direção com os punhos cerrados e esmurrou a parede perto dela com tanta força que o gesso rachou e sua mão entrou pelo buraco.
As pernas dela tremiam, seus olhos estavam fechados, e Tatiana afastou-se mais meio passo e parou de se mexer.
– Mas que porra! – berrou Alexander com raiva, socando a parede perto do rosto dela. – O que é preciso para que você me ouça, uma única vez, uma droga de uma única vez, o que é preciso para que você faça o que eu digo? – disse ele, agarrando-a pelo braço e a empurrando com raiva contra a parede.
– Shura, isto aqui não é o exército – Tatiana sussurrou trêmula, com medo de olhar para ele.
– Você não vai ficar aqui!
– Vou – disse ela, com voz débil.
Ouviu-se uma batida na porta. Alexander foi até lá, escancarou-a e gritou:
– O que foi?
Inga, com o rosto vermelho, murmurou:
– Eu só queria saber se a Tania estava bem. Tania? Eu ouvi você gritar... uma batida...
– Eu estou bem, Inga – disse Tatiana, afastando-se da parede com as pernas vacilantes.
– E você vai ouvir muito mais, antes de terminarmos – disse Alexander a Inga. – É só colocar a porra do copo contra a parede – e bateu a porta. Girando pelo quarto, ele foi até Tatiana, que se afastou dele, com as mãos erguidas e sussurrando: “Shura, por favor”... Mas, sem conseguir parar e enlouquecido, ele se aproximou dela e a jogou na cama. Ela caiu e cobriu o rosto. Inclinando-se sobre ela, Alexander afastou-lhe as mãos: – Não cubra o rosto! – gritou ele, agarrando-lhe o rosto entre os dedos e sacudindo-a. – Não me deixe mais louco!
Tatiana gritou e tentou empurrá-lo, mas foi inútil.
– Pare – gemeu ela. – Pare...
– Viva ou morta, Tania? – gritou ele. – Viva ou morta? Como vai ser?
Agarrando desesperadamente os braços dele, ela quis responder-lhe, mas não conseguiu falar. Morta, ela quis dizer. Morta, Shura.
– Você não percebe o que a sua presença aqui está me fazendo? – disse Alexander, apertando-lhe o rosto cada vez com mais força, enquanto ela lutava para se soltar. – Você percebe. Mas não está nem aí.
Ela parou de lutar com ele, colocando as mãos nas dele.
– Por favor – sussurrou Tatiana, tentando olhar para ele. – Por favor... pare. Você está me machucando.
Alexander parou de apertá-la, mas não a soltou, nem a afastou, embora ela mal pudesse respirar. Debaixo dele, ela ficou na cama, ofegando. Cobrindo-a com seu corpo, ele ficou em cima dela, arfando. Em meio ao barulho em sua cabeça, Tatiana ouviu ao longe o alarme de ataque aéreo e o som de explosivo fora das janelas. Ela afastou a boca das mãos dele um pouco. Ela estava sufocando. Suas mãos envolveram as costas dele para abraçá-lo.
– Oh, Shura – sussurrou ela.
Alexander soltou Tatiana e ficou em pé, desolado diante dela. Então, caiu de joelhos.
– Tatiana – disse ele, com voz entrecortada –, este infeliz implora a você que vá embora. Se você sente algum amor por mim, por favor, volte para Lazarevo. Fique em segurança. Você não sabe o perigo que está correndo.
Ainda com a respiração ofegante, o corpo tremendo, o rosto doendo, Tatiana sentou-se na beira da cama e puxou Alexander para ela. Ela não suportava vê-lo tão zangado.
– Sinto muito por ter deixado você zangado – disse ela, segurando-lhe o rosto. – Por favor, não fique zangado comigo.
Alexander afastou as mãos dela.
– Você está ouvindo as bombas? Está ouvindo ou está surda? Você não está vendo que não existe comida?
– Existe comida – disse ela tranquilamente, tornando a pôr as mãos nele. – Eu recebo setecentos gramas por dia. Mais o almoço e o jantar no hospital. Eu estou passado bem – acrescentou sorrindo. – É muito melhor que no ano passado. E eu não me importo com as bombas.
– Tatiana...
– Shura, pare de mentir para mim. Não são os alemães nem as bombas que o assustam. Do que você tem medo?
Lá fora, as bombas silvavam ao cair. Uma explodiu bem perto. Tatiana puxou Alexander contra ela.
– Ouça-me – sussurrou ela, apertando-lhe a cabeça contra os seios. – Você está ouvindo o meu coração?
Ele a abraçou. Ela se sentou um instante, apertando-o contra ela e fechando os olhos. Meu Deus, rezava ela. Por favor, faça com que eu seja forte para ele. Ele precisa tanto da minha força, não me deixe fraquejar agora. Afastando-o com gentileza, ela foi até a cômoda.
– Você deixou uma coisa em Lazarevo, Shura. Além de mim.
Alexander levantou-se e sentou pesadamente na cama.
Abrindo as costuras internas das barras da calça, Tatiana tirou os cinco mil dólares de Alexander.
– Olhe, eu quero lhe devolver isto – disse ela, olhando para ele. – Estou vendo que você pegou só metade. Por quê? – Houve uma pausa. Respiração.
Os olhos de bronze de Alexander eram dois poços de dor.
– Eu não vou falar sobre isso com Inga à nossa porta – disse ele, mal movendo os lábios.
– Por que não? Nós fazemos todo o resto com Inga à nossa porta.
Um afastou os olhos do outro. Tatiana se deu conta de que os dois estavam em frangalhos. Quem iria recolher os cacos? Ela. Ela ia recolher todos eles. Deixando o dinheiro na cômoda, Tatiana foi até ele, com andar indeciso, segurando-lhe a cabeça contra a dela.
– Isto aqui não é Lazarevo, não é mesmo, Shura? – sussurrou ela no cabelo dele.
– O que é, então, Tatia? – murmurou Alexander de volta, com a voz entrecortada e os braços em torno dela.
Ela fez amor com ele, ajoelhando-se por cima dele, pressionando seu ser frágil contra ele, forçando-o para baixo, querendo que ele a engolisse, que ele a empalasse, que a salvasse e a matasse, querendo tudo dele, mas nada para ela, só desejando devolver a ele tudo, só desejando devolver-lhe a vida. No final, ela estava chorando outra vez, exaurida de todas as suas forças, palpitando, derretendo-se, ardendo e chorando.
– Tatiasha – murmurou Alexander, sem se interromper –, pare de chorar. O que um homem deve pensar quando, toda vez que faz amor com a mulher, ela chora?
– Que ele é a única família de sua esposa – respondeu Tatiana, embalando-lhe a cabeça. – Que ele é toda a vida dela.
– Como ela é a dele – disse Alexander. – Mas você não o vê chorar – completou ele, com o rosto virado, que Tatiana não conseguia ver.
Depois que o ataque aéreo cessou e eles também, os dois se vestiram e saíram.
– Está frio demais aqui fora – disse Tatiana, apoiando-se nele.
– Por que você não está usando chapéu?
– Para você poder ver meu cabelo. Eu sei que você gosta dele – respondeu ela, sorrindo.
Tirando a luva, ele correu a mão pela cabeça dela.
– Ponha seu cachecol – disse ele, colocando-o em torno dela. – Você vai ficar gelada.
– Eu estou bem – disse ela, pegando-lhe o braço. – Gosto do seu casaco novo. Ele é grande como uma tenda – completou ela, com tristeza e baixando os olhos. Ela não devia ter usado a palavra tenda. Ela evocava muitas lembranças de Lazarevo. Algumas palavras são assim. Vidas inteiras associadas a elas. Fantasmas, vidas, êxtase e tristeza. As palavras mais simples, e ela, de repente, não conseguiu mais continuar falando. – Parece quente – acrescentou, em voz baixa.
Alexander sorriu.
– Na semana que vem, vou ter uma coisa melhor que uma tenda. Vou ter um quarto no quartel central, apenas cinco portas distante de Stepanov. O prédio tem aquecimento. Eu vou ficar realmente quente.
– Eu fico feliz – disse Tatiana. – Você tem um cobertor?
– Meu casaco é o meu cobertor, mas logo vou ter outro. Eu estou bem, Tania. É a guerra. Agora, aonde você quer ir?
– Para Lazarevo... com você – respondeu ela, incapaz de olhar para ele. – Já que não podemos fazer isso, vamos até o Jardim de Verão.
Ele deu um suspiro profundo.
– Então, para o Jardim de Verão.
Caminharam em silêncio durante muitos minutos. Com o braço no dele, Tatiana pressionava a cabeça contra a manga de Alexander. Por fim, ela respirou fundo.
– Diga-me, Alexander – começou Tatiana. – Diga-me o que está acontecendo. Agora temos um pouco de privacidade. Conte-me. Por que você pegou metade do dinheiro?
Alexander não disse nada. Tatiana continuou atenta. Nada. Ela pôs o rosto em seu casaco de lã. Nada ainda. Ela olhou para a neve suja a seus pés, para o trólebus que passou, para o policial a cavalo que passou trotando por eles, para o vidro quebrado em que pisaram, para o sinal vermelho de trânsito lá em cima. Nada. Nada. Nada.
Ela deu um suspiro. Por que era tão difícil para ele? Mais difícil que o de costume.
– Shura, por que você não pegou todo o dinheiro?
– Porque – disse ele lentamente – eu lhe deixei tudo o que era meu.
– O dinheiro é todo seu. O dinheiro todo. Do que você está falando?
– Nada.
– Alexander! Para que você pegou cinco mil dólares? Se você vai fugir, precisa dele todo. Se não vai, não precisa de nada. Por que você pegou a metade?
Nenhuma resposta. Era como em Lazarevo. Tatiana perguntava, ele respondia pensativo, com os lábios apertados, e ela passava uma hora tentando decifrar o que havia por trás das palavras dele. Lisiy Nos, Vyborg, Helsinque, Estocolmo, Yuri Stepanova, todas as milhares de sílabas com Alexander escondido no meio delas, sem nada dizer.
– Sabe de uma coisa? – disse Tatiana, exasperando-se e desprendendo-se dele. – Estou cansada desse jogo. Na verdade, estou cansada de você. Ou você me diz tudo sem vacilar, sem esses estúpidos jogos de adivinhação, em que eu tento entender as coisas e acabo entendendo errado, me diz tudo agora, ou faça meia-volta e volte para suas coisas, para longe de mim. Vá em frente. A escolha é sua – concluiu ela, parando de falar perto do Canal Fontanka, cruzando os braços e esperando.
Alexander também parou de andar, mas não respondeu nada.
– Você está pensando? – exclamou ela, puxando-lhe o braço, tentando enxergar mais a fundo, para além de seu rosto constrito. Largando-o, com a voz incapaz de esconder a angústia, ela disse: – Eu sei, Alexander, que quando você está usando essas roupas, suas roupas do exército, você as usa como uma armadura contra mim, para que não tenha que me contar nada. Porque eu também sei que, quando você está nu e fazendo amor comigo, eu posso perguntar qualquer coisa que você responde. O problema é que... – sua voz falhou. – Eu não sou mais forte. Eu me sinto sem defesa contra você. Assim, você, com medo de que eu saiba a verdade e a sua agonia, com medo de que eu perceba que está me dizendo adeus, você se fecha porque acha que eu não entendo, não sinto – e começou a chorar. Não estou me saindo bem, pensou ela. Onde estão minhas forças?
– Por favor, pare – sussurrou Alexander, sem olhar para ela.
– Bem, eu consigo sentir, Shura – disse Tatiana, enxugando o rosto e agarrando a mão dele. Ele a afastou. – Você veio aqui, zangado, sim, porque achava que tinha se despedido de mim para sempre em Lazarevo...
– Não é por isso que eu estava zangado e aborrecido.
– Pelo que estou vendo – prosseguiu Tatiana –, você vai ter que se despedir de mim em Leningrado. Mas vai ter que fazer isso olhando no meu rosto, certo?
Tatiana viu os olhos atormentados de Alexander.
Ela se aproximou. Ele se afastou. Que valsa eles dançaram naquela manhã gelada. Mas o coração de Tatiana era forte; ela conseguia aguentar.
– Alexander, eu sei... você acha que eu não sei? Não tenho nada com isso, mas pense nas coisas que você me conta. Você desejou fugir da União Soviética para a América sua vida toda. Era a única coisa que o manteve vivo, nesses anos do exército. A esperança de que, algum dia, você pudesse voltar para sua casa – disse ela, estendendo a mão em direção a ele. Ele a tomou entre as suas. – Eu tenho razão?
– Você tem razão – disse Alexander. – Mas, então, eu conheci você.
Então eu conheci você. Pare, pare. Ah, o verão do ano passado, as noites brancas junto ao Neva, o Jardim de Verão, o sol do norte, o rosto dele sorridente. Tatiana olhou para o rosto dele devastado. Ela quis falar. Onde estavam aquelas palavras que ela conhecia? Onde estavam agora que ela mais precisava delas?
Alexander balançou a cabeça.
– Tania, é tarde demais para mim. A partir do momento em que meu pai decidiu abandonar a vida que tínhamos na América, ele condenou a todos nós. Eu fui o primeiro a saber... já naquela época. Minha mãe foi a segunda. Meu pai foi o terceiro, o último, mas de maneira mais sentida. Minha mãe podia acalmar sua dor culpando meu pai. Eu achei que pudesse amenizar a minha entrando para o exército e por ser jovem, mas quem meu pai tinha para apontar o dedo?
Tatiana se aproximou dele e segurou-lhe o casaco. Alexander pôs os braços em torno dela.
– Tania, quando eu encontrei você, eu senti intensamente aquela uma ou duas horas que passamos juntos... antes de Dimitri, antes de Dasha... que eu estava encontrando a minha vida – disse Alexander, com um sorriso amargo. – Eu tive um pressentimento de esperança e de destino que não consigo nem explicar nem entender – agora ele já não estava mais sorrindo. – Então, nossa vida soviética interferiu. Você viu, eu tentei ficar longe. Eu pensei que devia ficar longe. Precisava ficar longe. Antes de Luga. Depois de Luga. Veja como eu tentei depois que fui ver você no hospital. Eu tentei estabelecer uma distância entre nós depois de Santo Isaac, depois que os alemães fecharam o cerco em torno de Leningrado – ele fez uma pausa. E balançou a cabeça. – Eu devia ter, de algum modo...
– Eu não queria que você fizesse nada... – disse Tatiana, com a voz fraca.
– Oh, Tania – disse Alexander. – Se eu não tivesse ido a Lazarevo!
– Do que você está falando? – gaguejou ela. – O que você está dizendo? Como é que você pode lamentar... – ela não completou a frase. Como é que ele podia estar lamentando o que aconteceu entre eles? Ela o encarou, perplexa e pálida.
Alexander não respondeu.
– Que destino! Não fiz mais nada desde o dia em que a conheci, além de magoar seu coração e, o que é pior, arrastando você comigo para a destruição – disse ele, balançando a cabeça com tanta força que seu quepe caiu.
Tatiana pegou o quepe, tirou a poeira com a mão e o devolveu a ele.
– Do que você está falando? Magoar meu coração? Esqueça tudo isso, já acabou. Alexander... eu vim porque quis – disse ela, fazendo uma pausa e franzindo o cenho. – Que destruição? Eu não estou condenada – prosseguiu ela lentamente, sem entender. – Eu tenho sorte.
– Você está cega.
– Então, abra os meus olhos. – Como já fez antes. Ela apertou o cachecol em torno do pescoço, querendo estar aquecida, perto de um fogo, desejando estar em Lazarevo.
Tatiana observou Alexander engolir o medo. Ele virou o rosto e começou a caminhar pela calçada do canal. Sem olhar para ela, Alexander disse:
– Eu peguei os cinco mil dólares porque ia dá-los ao Dimitri. Estou tentando convencê-lo a fugir sozinho...
Tatiana riu sem querer.
– Pare com isso – disse ela, abanando a cabeça. – Eu suspeitava de que era por isso que você pegara metade do dinheiro. O homem que não quis andar meio quilômetro comigo no gelo? É esse o homem que você acha que vai sozinho para a América? Francamente.
Os dois pararam no sinal vermelho pouco depois do Castelo do Engenheiro, usado no inverno passado como hospital e agora irreconhecível, depois de repetidos bombardeios.
– Dimitri nunca iria sozinho – prosseguiu Tatiana. – Eu já lhe disse. Ele é um covarde e um parasita. Você é a coragem e o hospedeiro dele. O que você está pensando? Assim que Dimitri perceber que você não vai fugir, ele também não irá, e se permanecer na União Soviética, vendo, de repente, que não tem mais esperança de fugir, ele irá direto a seu novo amigo Mekhlis, da NKVD, e você será instantaneamente...
Tatiana interrompeu-se, encarando Alexander. Alguma coisa se apagara nela. O rosto dele também estava devastado.
– Você sabe disso tudo. Você sabe que ele nunca irá sem você. Você já sabia.
Alexander não respondeu.
Os dois recomeçaram a caminhar, passando pela Ponte Fontanka, danificada pelas bombas, e pisando sobre as lajes de granito.
– Então, do que você está falando? – disse Tatiana cutucando-o ligeiramente e encarando-o, cheio de um medo incompreensível. Por quem ele temia? – Você não está pensando em mim... – Tatiana desejou prosseguir, mas as palavras entalaram em sua garganta.
Os olhos dela se abriram; seu coração se abriu.
A verdade veio à tona, mas não a verdade que ela havia conhecido com Alexander. Não. A verdade iluminando o terror. A verdade iluminando aqueles cantos abomináveis de um quarto feio, com a madeira podre, o reboco estourado e a mobília barata. Tendo-a visto, viu o que sobrara...
Ela deu a volta e se colocou diante de Alexander, detendo-o em seu caminhar. Coisas demasiadas estavam ficando claras naquele sábado desolado de Leningrado. Alexander estava pensando nela. Ele estava pensando só nela.
– Diga-me... – disse Tatiana debilmente – o que eles fazem com as esposas dos oficiais do Exército Vermelho detidos por suspeita de alta traição? Presos por serem estrangeiros infiltrados? O que eles estão fazendo para as mulheres dos americanos que saltaram dos trens a caminho da prisão?
Alexander nada disse, fechando os olhos.
E, de repente... o outro lado. Os olhos dele estavam fechados. Os dela estavam abertos.
– Oh, não, Shura... – disse ela. – O que eles fazem com as mulheres dos desertores?
Alexander não respondeu. Ele tentou sair da frente dela, mas Tatiana o deteve, colocando as duas mãos em seu peito.
– Não vire o rosto para mim – disse ela. – Diga-me, o que o Comissariado do Povo para Assuntos Internos faz com as mulheres dos soldados que desertam, soldados que fogem pelos bosques para os pântanos da Finlândia, o que eles fazem com as esposas soviéticas que ficam para trás?
Alexander não respondeu.
– Shura! – gritou ela. – O que a NKVD vai fazer comigo? A mesma coisa que fazem às mulheres dos MIAs? Ou dos POWs? Do que foi mesmo que Stálin chamou isso? Custódia protetora? Isso é um eufemismo para o quê?
Alexander permaneceu em silêncio.
– Shura! – Tatiana não o deixou avançar pela ponte bombardeada. – Isso é um eufemismo para fuzilamento? É? – Ela estava arfando.
Tatiana olhou para Alexander com descrença, inalando o ar frio e úmido, o nariz doendo devido à geada, e pensou no rio Kama, a água gelada toda manhã em seu corpo frio, junto ao dele, pensou em tudo o que Alexander tentara esconder dela nos cantos de sua alma aonde ele tinha esperança de que ela não olharia. Mas, em Lazarevo, só via o sol se erguer sobre o Kama. Foi só ali, naquela lúgubre Leningrado, que tudo viera à tona, a escuridão e a luz, o dia e a noite. – Você está querendo dizer que, quer você vá ou fique, eu estou condenada.
Afastando dela o rosto agoniado, Alexander nada disse. O cachecol de Tatiana caiu de seu pescoço. Entorpecida, ela o apanhou e o segurou nas mãos.
– Não é de estranhar que você não conseguisse me contar. Mas como é que eu não pude perceber? – murmurou ela.
– Como? Porque você nunca pensa em si mesma – disse Alexander, agarrando o rifle e caminhando sem olhar para ela. – E é por isso que eu quis que você ficasse em Lazarevo. Eu quis que você ficasse longe daqui, tão longe de mim quanto possível.
Tatiana tremia, com as mãos no bolso do casaco.
– O que é que você pensou? – disse ela. – Quando tempo você acha que o Soviete da vila, ao lado da casa de banhos, levaria para receber ordens pelo telégrafo para me buscar para um interrogatório?
– Foi por isso que eu gostei tanto de Lazarevo – disse ele, sem olhar para ela. – O Soviete da vila não tem linha telegráfica.
– Foi por isso que você gostou tanto de Lazarevo?
Alexander pendeu a cabeça contra o peito, com seus olhos quentes esfriando, seu hálito transformado em vapor. Com as costas no parapeito de pedra, ele disse:
– Agora você está entendendo? Está percebendo? Seus olhos estão abertos?
– Agora eu entendo. Tudo. Agora eu entendo. Tudo. Meus olhos estão abertos.
– Você está percebendo que só existe uma saída para nós?
Apertando os olhos para olhá-lo, Tatiana parou de falar, afastando-se de Alexander, pisando em seu cachecol e caindo sobre a ponte bombardeada e deserta sob o céu líquido. Alexander foi ajudá-la a levantar-se, mas logo a largou. Ele não podia continuar a tocá-la. Tatiana percebeu isso. E, por um momento, ela não conseguiu tocá-lo. Mas foi só por um instante. A princípio estava escuro, mas o clarão dentro de sua cabeça deixou-a sem fôlego. De repente, através da escuridão, fez-se luz! Ela enxergou o que estava por vir e voou para ele, sabendo o que era e, antes de abrir a boca para falar, sentiu um tamanho alívio, como se seu corpo – e o dele – tivessem sido erguidos.
Tatiana olhou para Alexander com seus olhos límpidos.
Perplexo, ele olhou para ela. Ela estendeu os braços para ele e disse com tranquilidade:
– Shura, olhe, olhe aqui.
Ele olhou para ela.
– Tudo é escuridão em torno de você – disse ela. – Mas diante de você estou eu.
Ele olhou para ela.
– Você está me vendo? – perguntou ela, com a voz fraca.
– Estou – respondeu ele, também com voz fraca.
Ela se aproximou dele, pisando no granito quebrado. Alexander sentou-se no chão.
Tatiana o observou por alguns momentos e, então, ficou de joelhos. Alexander pôs as mãos trêmulas sobre o rosto.
Tatiana disse:
– Querido, soldado, marido. Oh, meu Deus, Shura, não tenha medo. Você quer me ouvir, por favor? Olhe para mim.
Alexander não a obedeceu.
– Shura – disse Tatiana, cerrando os punhos para manter sua compostura. Parou. Respirou. Suplicou por forças. – Você acha que a sua morte é a nossa única saída? Lembra o que eu lhe disse em Lazarevo? Você não se lembra de mim em Lazarevo? Não suporto pensar em você morrendo. E eu vou fazer tudo na minha vida patética e impotente para impedir que isso aconteça. Você não tem nenhuma chance aqui na União Soviética. Nenhuma chance. Os alemães ou os comunistas vão matá-lo. Esse é o único objetivo deles. E se você morrer na guerra, sua morte vai significar que, pelo resto de minha vida, vou comer cogumelos venenosos na União Soviética, sozinha e sem você! E você sabe disso. Seu maior sacrifício será pela escuridão em minha vida – prosseguiu ela. Vamos, Tatiana, seja forte. – Você queria que eu deixasse você ir embora? Você queria que meu rosto fiel o libertasse? – perguntou ela, sem conseguir evitar que sua voz falhasse. – Bem, aqui estou eu! Aqui está o meu rosto – ela gostaria que ele olhasse para ela. – Vá, Alexander. Vá! – disse ela. – Corra para a América e nunca olhe para trás – concluiu ela. Pare. Respire. Respire outra vez. Ela nem conseguiu enxugar os olhos. Tudo bem, eu chorei, mas acho que me saí bem, pensou Tatiana. E, além disso, ele não estava olhando para mim.
Tirando as mãos do rosto, Alexander ficou olhando para ela durante vários minutos antes de falar.
– Tatiana, você perdeu o juízo. Eu quero – disse ele lentamente – que você pare agora mesmo de ser ridícula. Você pode fazer isso por mim?
– Shura – sussurrou Tatiana –, eu nunca imaginei que pudesse amar alguém como amo você. Faça isso por mim. Vá! Volte para casa e não pense mais em mim.
– Tania, pare com isso, você não quer dizer nada disso.
– O quê? – exclamou ela, ainda de joelhos. – Que parte você acha que eu não quis dizer? Ter você vivo na América ou morto na União Soviética? Você acha que eu não quis dizer isso? Shura, é a única saída, e você sabe disso – disse ela, fazendo uma pausa quando ele não respondeu. – Eu sei que eu faria isso se eu fosse você.
Alexander balançou a cabeça.
– O que você faria? Você me deixaria para morrer? Me deixaria no apartamento da Quinta Soviet, morando com Inga e Stan, órfã e sozinha?
Tatiana mordeu o lábio com sofreguidão. Era o amor ou a verdade.
O amor venceu.
Recompondo-se, ela disse:
– Sim – num fiapo de voz. – Eu trocaria você pela América.
Alexander perdeu o controle.
– Venha cá, esposa mentirosa – disse ele, trazendo-a para mais perto, abraçando-a.
O gelo do Canal Fontanka estava se formando no ponto em que eles se apoiaram nos parapeitos de granito.
– Shura, ouça-me – disse Tatiana no peito de Alexander –, se não importa a direção que tomemos neste mundo, sempre nos vemos diante de uma escolha impossível, se não importa o que façamos, eu não posso ser salva, então eu lhe imploro, eu lhe imploro...
– Tania! Meu Deus, eu não vou mais lhe dar ouvidos! – gritou ele, empurrando-a e se pondo de pé, com o rifle nas mãos.
Ela olhou para ele com os olhos suplicantes.
– Você pode ser salvo, Alexander Barrington. Você. Meu marido. O único filho de seu pai. O único filho de sua mãe – prosseguiu ela, com as mãos em súplica. – Eu sou Parasha – sussurrou ela. – E sou o preço do resto de sua vida. Por favor! Uma vez eu me salvei para você. Olhe para mim, estou de joelhos – disse ela chorando. – Por favor, Shura, por favor. Salve sua única vida por mim.
– Tatiana! – exclamou Alexander, puxando-a para ele com tanta força que a ergueu do chão. Ela se agarrou a ele, sem largá-lo. – Você não vai ser o preço do resto da minha vida! – Colocou-a no chão. – Agora eu quero que você pare com isso.
Ela balançou a cabeça contra o peito dele.
– Eu não vou parar.
– Ah, vai sim – disse ele, apertando-a mais.
– Você prefere que nós dois morramos? – exclamou ela. – É isso que você prefere. Você prefere todo o sofrimento, todo esse sacrifício e nenhuma Leningrado no final de tudo? – perguntou ela, chacoalhando-o. – Você perdeu o juízo? Você precisa ir! Você vai, e vai construir uma nova vida.
Alexander empurrou-a para longe e se afastou alguns passos dela.
– Se você não ficar quieta – disse ele –, juro por Deus que vou largar você aqui e vou embora – acrescentou, apontando para a rua – e nunca mais vou voltar!
Tatiana balançou a cabeça, apontando na mesma direção.
– É exatamente isso o que eu quero. Vá. Mas vá para longe, Shura – sussurrou ela. – Para longe.
– Oh, pelo amor de Deus! – gritou Alexander, batendo o rifle contra o gelo. – Em que tipo de mundo maluco você vive? Você acha que pode vir até aqui, voando com suas asinhas e dizer “Shura, você pode ir” e eu simplesmente vou? Como você consegue pensar que eu posso deixá-la? Como você acha que me é possível fazer isso? Eu não consigo deixar um estranho morrendo no bosque. Como você acha que eu posso deixar você?
– Eu não sei – disse Tatiana, cruzando os braços. – Mas é melhor você achar um jeito, grandão.
Os dois ficaram quietos. O que fazer? Ela ficou observando-o a distância.
– Você percebe como o que você está dizendo é impossível? – disse Alexander. – Você percebe ou perdeu completamente o bom senso?
Ela percebeu como era impossível o que ela estava dizendo.
– Eu perdi completamente o bom senso. Mas você precisa ir.
– Tania, eu não vou a lugar algum sem você – disse ele –, com exceção do paredão.
– Pare com isso. Você precisa ir.
– Se você não parar... – berrou ele.
– Alexander! – gritou Tatiana. – Se você não parar, eu vou voltar para a Quinta Soviet e me enforcar por cima da banheira, para que você possa fugir para a América livre de mim! Vou fazer isso no domingo, cinco minutos depois de você me deixar, entendeu?
Eles ficaram se olhando durante um momento de silêncio.
Tatiana olhou para Alexander.
Alexander olhou para Tatiana.
Então, ele abriu os braços, e ela correu para eles. Ele a ergueu do chão e os dois se abraçaram sem se soltar. Por muitos minutos de silêncio, ficaram na Ponte Fontanka, um envolto pelo outro.
– Vamos fazer um trato, Tatiasha, certo? – disse Alexander, por fim, junto ao pescoço dela. – Prometo a você que vou fazer o que posso para me manter vivo, se você me prometer que vai ficar longe das banheiras.
– Feito – disse Tatiana, olhando-o no rosto. – Soldado – prosseguiu ela, abraçando-o. – Odeio dizer o óbvio numa hora como esta, mas... preciso lembrar que eu estava completamente certa. É tudo.
– Não, você estava completamente errada. É tudo – disse Alexander. – Eu lhe disse que algumas coisas eram dignas de um grande sacrifício. E esta não é uma dessas coisas.
– Não, Alexander. O que você me disse, suas exatas palavras, foi que todas as grandes coisas que valem a pena ter exigem grandes sacrifícios que a valem a pena fazer.
– Tania, de que diabos você está falando? Quer dizer, apenas por um segundo saia desse mundo em que você vive e entre no meu, por um milésimo de segundo, tudo bem, e me diga que tipo de vida você acha que eu poderia ter na América sabendo que deixei você na União Soviética para morrer... ou apodrecer na cadeia? – disse ele, balançando a cabeça. – O Cavaleiro de Bronze iria me perseguir durante toda a noite da minha loucura.
– Sim. E esse seria o preço a pagar pela luz em vez das trevas.
– Eu não vou pagá-lo.
– De qualquer modo, Alexander, meu destino está selado – disse Tatiana sem acrimônia ou amargura –, mas você tem uma chance, agora que você é tão jovem, de beijar minha mão e ir com Deus, pois você foi feito para coisas grandes – ela se interrompeu para respirar. – Você é o melhor dos homens – prosseguiu ela, com os braços em torno do pescoço dele, os pés levantados do chão.
– Ah, sim – disse Alexander, apertando-a contra o peito. – Fugir para a América, abandonar minha esposa. Eu não valho nada.
– Você é impossível.
– Eu sou impossível? – sussurrou Alexander, pondo-a no chão. – Ora, vamos andar um pouco antes que congelemos.
Ela se agarrou a ele enquanto caminharam lentamente pela neve suja, descendo da Fontanka para o Campo de Marte. Em silêncio, cruzaram o Canal Moika e foram até o Jardim de Verão. Tatiana abriu a boca para falar, mas Alexander balançou a cabeça.
– Não diga uma palavra. Em que nós estávamos pensando quando decidimos vir para cá? Vamos lá. Rápido.
Com as cabeças unidas e os braços dele em torno dela, desceram rapidamente a alameda entre as árvores altas e desnudas, passaram pelos bancos vazios, pela estátua de Saturno devorando os próprios filhos. Tatiana lembrou que a última vez que tinham estado ali, quando fazia calor, ela desejou que ele a tocasse, e, agora que estava frio, ela o estava tocando e sentindo que não merecia o que tinha recebido... uma vida em que ela amava um homem como Alexander.
– O que foi que eu disse naquele dia? – perguntou ele. – Eu lhe disse que aqueles eram os melhores tempos. E eu estava certo.
– Você estava errado – retrucou Tatiana, incapaz de olhar para ele. O Jardim de Verão não foi o melhor momento.
Ela estava sentada nos ombros nus dele na água, esperando que ele a atirasse no Kama. E ele não se movia.
“Shura”, disse ela, “o que você está esperando?” Ele não se mexeu. “Shura!”
“Você não vai a lugar nenhum”, disse ele. “Que tipo de homem jogaria uma moça que está sentada nua em torno de seu pescoço?”
“Um homem sensível!”, gritou ela.
Saindo pelos portões dourados do dique do Neva, começaram a subir a margem do rio. Como estava ficando para trás, Tatiana pegou o braço de Alexander e o fez diminuir o passo.
– Não posso mais andar pelas ruas com você – disse ela com voz rouca.
Do dique, entraram no Parque Tauride. Passaram por seu banco na Ulitsa Saltykov-Schedrin e caminharam um pouco ao longo da cerca de ferro batido, pararam, olharam-se e se viraram. Sentaram-se em cima dos casacos. Por um instante, Tatiana sentou-se ao lado de Alexander, mas logo subiu para o colo dele. – Assim é melhor – disse ela, pressionando a cabeça contra a dele.
– Sim – disse ele. – Assim é melhor.
Em silêncio, ficaram sentados no banco no meio do rio. Todo o corpo de Tatiana lutava contra a angústia.
– Por que – sussurrou ela contra a boca de Alexander – não podemos ter nem o que a Inga e o Stan possuem? Sim, na União Soviética, mas juntos há vinte anos. Ainda juntos.
– Porque Inga e Stan são espiões do Partido – replicou Alexander. – Porque Inga e Stan venderam a alma em troca de um apartamento de dois quartos e agora não têm nem uma coisa nem outra – ele fez uma pausa. – Você e eu queremos muito mais desta vida soviética.
– Eu não quero nada desta vida – disse Tatiana. – Só você.
– Eu e água corrente, eletricidade, uma casinha no deserto e um Estado que não exija sua vida em troco dessas pequenas coisas.
– Não – disse Tatiana, balançando a cabeça. – Só você.
Movendo o cabelo dela para debaixo do cachecol, Alexander observou-lhe o rosto. – E um Estado que não peça a sua vida em troca de mim.
– O Estado – disse ela com um suspiro – tem que pedir alguma coisa. Afinal, ele nos protege de Hitler.
– Sim – disse Alexander. – Mas, Tania, quem vai proteger você e a mim do Estado?
Tatiana abraçou-o com mais força. De uma forma ou de outra, ela tinha de ajudar Alexander. Mas como? Como ajudá-lo? Como salvá-lo?
– Você não percebe? Vivemos num estado de guerra. O Comunismo está em guerra contra você e eu – disse Alexander. – É por isso que eu quis que você ficasse em Lazarevo. Eu só estava tentando esconder minha obra de arte até que a guerra acabasse.
– Você a está escondendo no lugar errado – disse Tatiana. – Você mesmo me disse que não existe lugar seguro na União Soviética. – Ela fez uma pausa. – Além disso, esta guerra vai ser longa. E vai levar algum tempo para reconstruirmos nossas almas.
Apertando-a contra ele, Alexander murmurou:
– Tenho que parar de conversar com você. Você não esquece nada do que eu lhe digo?
– Nem uma palavra – confirmou ela. – Cada dia que passa, acho que essa é a única coisa que vai sobrar de você.
Os dois se sentaram.
O rosto de Tatiana se iluminou.
– Alexander – disse ela –, quer ouvir uma piada?
– Estou morto de curiosidade.
– Quando nos casarmos, vou compartilhar com você todos os seus problemas e tristezas.
– Que problemas? Eu não tenho problemas – disse Alexander.
– Eu disse quando nos casarmos – replicou Tatiana, piscando com os olhos marejados. – Você tem que admitir que você morrer no front para que eu possa viver na União Soviética e eu me enforcar numa banheira para que você possa viver na América é uma história irônica muito bem contada, você não acha?
– Hmm. Mas como não vamos deixar nenhuma família para trás – disse Alexander –, não haverá ninguém para contá-la.
– É, existe esse problema – disse Tatiana. – Mesmo assim... como nós somos gregos, você não acha? – Ela sorriu, apertando o rosto dele.
Alexander balançou a cabeça.
– Como é que você consegue isso? – perguntou ele. – Encontrar consolo? Em qualquer situação? Como?
– Porque eu fui consolada por meu mestre – respondeu ela, beijando-lhe a testa.
– Belo mestre que eu sou – disse ele, fazendo um gesto de desaprovação. – Não consegue nem fazer uma esposa pequenina ficar em Lazarevo.
Tatiana ficou olhando para ele.
– O quê, marido? – indangou ela – Em que você está pensando?
– Tania... você e eu tivemos só um momento... – disse Alexander. – Um único momento no tempo, no seu tempo e no meu... um instante, quando uma outra vida ainda podia ser possível – prosseguiu ele, beijando-lhe os lábios. – Você sabe do que eu estou falando?
Quando Tatiana tirou os olhos do sorvete, viu um soldado, que a observava do outro lado da rua.
– Eu sei qual foi esse momento – sussurrou Tatiana.
– Você lamenta que eu tenha atravessado a rua para falar com você?
– Não, Shura – replicou ela. – Antes de eu conhecer você, não podia imaginar uma vida diferente da dos meus pais, dos meus avós, Dasha, eu, Pasha, nossos filhos. Não conseguia imaginar. – Ela sorriu. – Eu nem sonhava em ter alguém como você, mesmo quando eu era criança em Luga. Você me mostrou, num relance, no nosso gozo, uma vida bonita... O que foi que eu mostrei a você? – terminou ela, olhando-o nos olhos.
– Que existe um Deus – sussurrou Alexander.
– Aí está! – exclamou Tatiana. – E eu senti claramente a sua necessidade em me possuir. Eu estou aqui para você. E, de uma forma ou de outra, vamos dar um jeito nesta situação. Você vai ver. Você e eu vamos resolvê-la juntos.
– Como? O que vai acontecer agora? – Alexander falava com a boca junto ao rosto dela.
Inalando o ar frio, Tatiana tentou parecer o mais alegre possível.
– Como, eu não sei. O que vai acontecer agora? Agora vamos entrar cegamente na floresta densa para o outro lado do que nos reserva o restante de nossas vidas breves, mas, oh, tão felizes, neste mundo. Você vai lutar bravamente na guerra, capitão, e vai ficar vivo, como prometeu, e tirar Dimitri de suas costas...
– Tania, eu podia matá-lo. Você acha que já não pensei nisso?
– A sangue frio? Eu sei que você não conseguiria. E, se conseguisse, por quanto tempo você acha que Deus o pouparia na guerra? E a mim na União Soviética – disse ela, fazendo uma pausa, tentando não perder o controle de suas emoções. Não que ela também não tivesse pensado nisso... mas Tatiana pressentia que não era o Altíssimo que estava mantendo Dimitri vivo.
– E quanto a você? – perguntou Alexander. – O que você vai fazer agora? Acho que você nem pensa em voltar para Lazarevo.
Sorrindo, Tatiana balançou a cabeça.
– Não se preocupe comigo. Você devia saber que, tendo sobrevivido ao último inverno em Leningrado, estou pronta para o pior – disse ela, passando as luvas pelo rosto de Alexander e pensando e o melhor também. – E embora eu às vezes fique imaginando – prosseguiu ela – o que me aguarda pela frente se eu precisar de Leningrado para chegar até lá... não importa. Aqui estou eu para o que der e vier, e não vou sair daqui – concluiu ela, com o coração palpitando e o abraçando forte. – Você se arrepende de ter atravessado a rua por minha causa, soldado?
Pegando a mão dela com ambas as mãos, Alexander respondeu:
– Tatiana, eu fiquei enfeitiçado por você desde o primeiro momento que a vi. Lá estava eu, vivendo uma vida dissoluta e a guerra mal começara. Toda minha base estava em confusão, com pessoas de um lado para outro, fechando contas, sacando dinheiro, pegando comida nas lojas, comprando a Gostiny Dvor inteira, se apresentando como voluntários para a luta, mandando os filhos para o campo... – ele fez uma pausa. ... E no meio desse meu caos, surgiu você! – sussurrou Alexander com paixão. – Você estava sentada sozinha no banco, impossivelmente jovem, loura e adorável de tirar o fôlego, e estava tomando um sorvete com tamanha despreocupação, com tamanho prazer, com uma alegria mística que eu não consegui acreditar nos meus olhos. Era como se não houvesse mais nada no mundo naquele domingo de verão. Estou lhe contanto isto para o caso de, no futuro, você precisar de forças e eu não estiver por perto. Você, com suas sandálias vermelhas de salto alto, com seu vestido sublime, tomando sorvete antes da guerra, antes de saber onde encontrar sabe-se lá o quê, mas sem ter dúvidas de que ia encontrar. Foi por isso que eu atravessei a rua para conhecê-la, Tatiana. Porque eu achei que você ia encontrar. Eu acreditei em você.
Alexander enxugou as lágrimas do rosto de Tatiana e, tirando suas luvas, pressionou seus lábios quentes contra as mãos dela.
– Mas, se não fosse por você, aquele dia eu teria voltado de mãos vazias.
Alexander balançou a cabeça.
– Não, você não começou comigo. Eu fui até você porque você já se tinha. E sabe o que eu lhe trouxe?
– O quê?
– Sacrifícios – respondeu ele, tomado pela emoção.
Alexander e Tatiana ficaram um longo tempo com seus rostos molhados e frios pressionados um contra o outro, os braços dele em torno dela, as mãos dela aninhando a cabeça dele, enquanto o vento soprava as últimas folhas mortas das árvores, enquanto o céu era de um cinzento mal vedado de novembro
Um bonde passou. Três pessoas desceram a rua, no fim da qual se erguia o Mosteiro de Smolny, fechado por tapumes e camuflagem. Abaixo da carapaça de granito, o rio estava gelado e imóvel. E depois do Jardim de Verão vazio, o Campo de Marte jazia aplainado sob a neve escura.
Uma janela para o Ocidente
1
Depois que Alexander foi embora, Tatiana escreveu-lhe todos os dias até a tinta acabar. Quando isso aconteceu, ela atravessou a rua e foi até o apartamento de Vania Rechnikov. Ela tinha ouvido que ele, às vezes, emprestava tinta. Vania estava morto em sua escrivaninha. Ele caíra com a cabeça sobre a carta que estava escrevendo e morrera. Tatiana não conseguiu arrancar a caneta de seus dedos enrijecidos.
Tatiana ia ao correio todos os dias, na esperança de receber notícias de Alexander. Ela não conseguia suportar o silêncio entre as cartas. Ele escrevia-lhe um rio de cartas, mas esse rio devia transbordar, em vez de manter um curso regular. Maldito correio.
Ela ficava em seu quarto quando não estava trabalhando e estudava inglês. Durante os ataques aéreos, lia o livro de receitas da mãe. Tatiana começou a cozinhar para Inga, que estava doente e sozinha.
Uma tarde, o encarregado do correio deu-lhe as cartas e também um pacote de batatas, pedindo alguma coisa em troca. Ela escreveu a Alexander sobre o acidente, temendo que nenhuma de suas futuras cartas lhe fosse entregue.
Tania,
Por favor, vá às barracas e procure o tenente Oleg Kashnikov. Ele está de serviço, acredito, das oito às seis. Ele tem três balas enterradas na perna e não pode mais lutar. Foi ele quem me ajudou a tirar você de Luga. Peça-lhe alimento. Prometo que ele não vai pedir nada em troca. Oh, Tatia.
Além disso, entregue a ele suas cartas, e ele as trará para mim em um dia. E, por favor, não volte ao correio.
Por que você disse que Inga está sozinha? Onde está Stan?
E por que você está trabalhando tantas horas? O inverno está cada vez pior.
Você não sabe que consolo é pensar que você não está tão longe de mim. Não vou dizer que você teve razão em voltar para Leningrado, mas... Eu lhe contei que nos prometeram dez dias de licença depois de rompermos o cerco?
Dez dias, Tania!
Então eu gostaria que houvesse um lugar em que você pudesse se consolar. Mas aguente firme até lá.
Não se preocupe comigo, não estamos fazendo nada além de trazer tropas e munições para o assalto ao Neva logo no início do novo ano.
Espere só até ouvir isto! Nem mesmo sei o que fiz para merecer isso, mas não só recebi outra medalha como também uma promoção junto com ela. Talvez Dimitri tenha razão quanto a mim: de alguma forma, eu consigo transformar a derrota em vitória, não sei como.
Estávamos testando o gelo no Neva. Ele ainda não parecia suficientemente forte. Parecia suportar um homem, um rifle, talvez uma Katyusha, mas será que suportaria um tanque?
Nós achamos que sim. Depois mudamos de ideia. Mas tornamos a achar que sim. Então, um engenheiro geral que projetou o metrô de Leningrado teve a ideia de colocar o tanque numa espécie de balsa, ou seja, tábuas lisas de madeira sobre o gelo, como uma ferrovia de madeira, para distribuir a pressão igualmente. Os tanques e todos os veículos armados usariam essa invenção para atravessar o rio. “Tudo bem”, nós dissemos.
E colocamos a ideia em prática.
Quem poderia levar o tanque até o caminho de madeira para testá-lo?
Eu me adiantei e disse: “Senhor, terei satisfação em fazê-lo”.
No dia seguinte, meu comandante não ficou nada satisfeito quando todos os cinco generais se apresentaram para a nossa pequena demonstração. Inclusive o novo amigo de Dimitri. O comandante me fez um sinal: não falhe.
Então, lá fui eu. Entrei no KV-1, nosso melhor e mais pesado tanque. Você se lembra dele, Tatia? E eu levei este monstro até o gelo, com meu comandante caminhando ao lado do tanque e os cinco generais atrás de nós, dizendo: “Muito bem, muito bem, muito bem”.
Avancei uns 150 metros, e, então, o gelo começou a rachar. Ouvi o barulho e pensei: ai, ai, ai! Os generais atrás de mim gritaram para o meu comandante: “Corra, corra!”.
E ele correu, eles correram, o tanque abriu um canyon no gelo e afundou nele como... bem, como um tanque.
E eu com ele. A torre estava aberta, e eu saí nadando.
O comandante me puxou e me deu um trago de vodca para me aquecer.
Um dos generais disse: “Deem a este homem a ordem da Estrela Vermelha. E também fui promovido a major”.
Marazov diz que eu fiquei realmente insuportável. Ele diz que eu acho que todo mundo devia ouvir só a mim. Diga-me: será que eu sou assim?
Alexander
Prezado MAJOR Belov!
Sim, major, o senhor é assim.
Estou muito orgulhosa de você. Você ainda vai acabar general.
Obrigada por deixar que eu entregue minhas cartas a Oleg. Ele é muito atencioso, um homem educado e ontem me deu alguns ovos desidratados que eu achei divertidos, sem saber exatamente o que fazer com eles. Acrescentei-lhes água, eles são um tipo de... oh, não sei o quê. Eu os cozinhei sem óleo no Primus do Slavin. E os comi. Parecia borracha.
Mas Slavin gostou e disse que o czar Nicolau teria gostado deles em Sverdlovsk. Às vezes, eu desconheço o maluco do nosso Slavin.
Alexander, existe um lugar em que encontro conforto. Eu acordo lá e vou dormir lá; lá fico em paz e amo estar lá: seus braços aconchegantes.
Tatiana
2
Em dezembro, a Cruz Vermelha Internacional foi ao Hospital Grechesky.
Havia sobrado alguns médicos em Leningrado. Dos 3500 que havia antes da guerra, só sobraram 2000, e havia um quarto de milhão de pessoas nos vários hospitais da cidade.
Tatiana conheceu o Dr. Matthew Sayers quando estava lavando a garganta ferida de um jovem cabo. O médico se aproximou e, antes que ele abrisse a boca, Tatiana suspeitou de que era americano. Antes de tudo, vinha dele um cheiro de limpeza. Ele era magro, pequeno e de um tom loiro escuro. Sua cabeça era um pouco grande em proporção ao resto do corpo, mas ele irradiava uma confiança que Tatiana não tinha visto em nenhum outro homem além de Alexander. Ele pegou o registro médico, olhou para o paciente, para ela e novamente para o paciente, estalou a língua, balançou a cabeça, revirou os olhos e disse em inglês:
– Doesn’t look so good, does he?
Embora Tatiana o tivesse entendido, permaneceu calada, lembrando-se das advertências de Alexander.
Com seu forte sotaque, o médico repetiu a frase em russo.
Com um aceno de cabeça, Tatiana disse:
– Acho que ele vai ficar bem. Já vi piores.
Com uma boa gargalhada, em russo e sem sotaque, ele disse:
– Aposto que já. Aposto que sim. – E se aproximou dela com a mão estendida: – Eu sou da Cruz Vermelha. Dr. Matthew Sayers. Você consegue dizer Sayers?
– Sayers – disse Tatiana, com perfeição.
– Muito bem! Como se diz Matthew em russo?
– Matvei.
Soltando-lhe a mão, ele disse:
– Matvei. Você gosta do meu nome?
– Eu prefiro Matthew – disse ela, voltando-se para o paciente gorgolejante.
Tatiana estava certa quanto ao médico: ele era competente, amigável e melhorou instantaneamente as condições de seu lúgubre hospital, trazendo verdadeiros milagres com ele: penicilina, morfina e plasma. E também estava certa quanto ao paciente: ele sobreviveu.
3
Querida Tania,
Não tenho tido notícias suas. O que você está fazendo? Está tudo bem? Oleg me disse que não vê você há dias. Não posso me preocupar com você também. Já tenho muitas loucuras em minhas mãos para administrar.
A propósito, elas estão melhorando.
Escreva-me imediatamente. Não quero saber se suas mãos caíram. Eu a perdoei uma vez por não me escrever. Não sei se vou ser tão caridoso novamente.
Como você sabe, está quase na hora. Preciso de seu conselho: vamos mandar uma força de reconhecimento de seiscentos homens. Na verdade, é mais que uma força de reconhecimento, é um ataque secreto, com o restante de nós aguardando para ver que tipo de defesa os alemães estabeleceram. Se as coisas correrem bem, nós os seguiremos.
Tenho que decidir que batalhão enviar.
Você tem alguma ideia?
Alexander
P.S.: Você não me contou o que aconteceu com o Stan.
Querido Shura,
Não envie o seu amigo Marazov.
Você não pode enviar uma unidade de suprimentos? Ah, piada de mau gosto.
A propósito, devemos ter em mente que o nosso correto Alexander Pushking desafiou o barão George d’Anthes para um duelo e não viveu para escrever um poema sobre ele. Assim, em vez de buscar vingança, vamos apenas ficar longe dos que nos magoaram, certo?
Eu estou bem. Estou muito ocupada no hospital. Mal paro em casa. Lá não tenho utilidade. Shura, querido, não enlouqueça de preocupação comigo. Eu estou aqui e esperando – impacientemente – por revê-lo. É só o que eu faço, Alexander: esperar até revê-lo.
Hoje esteve escuro da manhã à noite, com exceção de uma hora durante a tarde. Pensar em você é a minha luz do sol. Então, meus dias são perpetuamente ensolarados. E quentes.
Tatiana
P.S.: A União Soviética aconteceu com Stan.
Querida Tania,
Pushkin nunca precisou escrever depois de “O cavaleiro de bronze” – e nunca mais escreveu, tendo morrido tão jovem. Mas você tem razão: os justos nem sempre forjam um caminho para a glória. Mas, com frequência, fazem isso.
Não quero saber se você está ocupada, você precisa me escrever mais de duas linhas por semana.
Alexander
P.S. E você queria ter o que Inga e Stan têm.
Queridíssima Tatiasha,
Como foi seu Ano-novo? Espero que você tenha comido alguma coisa deliciosa. Você tem ido até o Oleg?
Eu não estou feliz. Meu Ano-novo foi passado na bagunça de uma tenda, com muitas pessoas, e nenhuma delas era você. Senti sua falta. Às vezes, sonho com uma vida em que você e eu possamos brindar com nossos copos no Ano-novo. Nós tomamos um pouco de vodca e fumamos muitos cigarros. Todos desejaram que 1943 seja melhor que 1942. Eu também, mas fiquei pensando no verão de 1942.
Alexander
P.S.: Perdemos todos os seiscentos homens. Não mandei Tolya. Ele disse que vai me agradecer depois que a guerra acabar.
P.S.2: Onde, diabos, você está? Faz dez dias que você não escreve. Você não voltou para Lazarevo, justo agora que eu finalmente me acostumei com seu fortalecimento de espírito a apenas setenta quilômetros de distância? Por favor, me mande uma carta nos próximos dias. Sei que vamos avançar e não voltaremos até que o front de Leningrado e o de Volkhov estejam unidos. Preciso ter notícias suas. Eu preciso de uma palavra sua, Tatiana.
Querido Shura,
Eu estou aqui, estou aqui, você não consegue me sentir, soldado? Eu passei o Ano-novo no hospital, e só quero que você saiba que brindo com você todos os dias.
Nem sei lhe dizer quantas horas seguidas eu tenho trabalhado, quantas noites tenho dormido no hospital, sem nunca voltar para casa.
Shura! Assim que você voltar, venha me ver imediatamente. Além dos motivos óbvios, tenho a coisa mais maravilhosamente fantástica sobre a qual preciso desesperadamente conversar com você – e logo. Você precisa de uma palavra minha? Eu lhe deixo uma: a palavra é ESPERANÇA.
Sua Tania
Em batalhas lendárias
1
Alexander olhou para o relógio. Era o início da manhã de 12 de janeiro de 1943, e a Operação Tubarão – a Batalha de Leningrado – estava para começar. Não haveria nenhuma outra tentativa. Esta seria a única. Por ordem do Camarada Stálin, eles iam romper o cerco alemão e não voltariam antes disso.
Alexander havia passados os três últimos dias e noites escondido no bunker de madeira às margens do Neva com Marazov e seis cabos. O acampamento da artilharia ficava à direita, ocultando seus dois morteiros de 120 milímetros, dois morteiros portáteis de 81 milímetros e carregados pela boca, uma pesada metralhadora Zenith antiaérea, um lança-mísseis Katyusha e duas pistolas portáteis de 76 milímetros. Na manhã do ataque, Alexander estava pronto para lutar – ele teria lutado até contra Marazov se isso significasse sair do confinamento do bunker. Eles jogavam cartas, fumavam, conversavam sobre a guerra, contavam piadas, dormiam... Ele ficava farto disso tudo depois de seis horas, e eles estavam confinados ali há setenta e duas. Alexander pensava na última carta de Tatiana. Que diabos ela quis dizer com “ESPERANÇA”? Como é que isso ia ajudá-lo. Obviamente, ela não podia lhe contar na carta, mas ele desejou que ela não incendiasse sua imaginação quando ele nem sabia se seria capaz de voltar para ela.
Ele precisava voltar para ela.
Usando camuflagem branca, ele espiou fora do acampamento. O rio estava disfarçado como Alexander, com a margem sul pouco visível à luz cinzenta. Ele estava na margem norte do Neva, a oeste de Shlisselburg. A unidade de artilharia de Alexander estava cobrindo o flanco mais afastado do cruzamento do rio e o mais perigoso – os alemães estavam muito bem entrincheirados e defendidos em Shlisselburg. Alexander conseguia ver a fortaleza Oreshek a um quilômetro de distância, na entrada do lago Ladoga. Algumas centenas de metros antes, jaziam os corpos de seiscentos homens, que haviam feito um ataque surpresa seis dias atrás e fracassaram. Alexander queria saber se eles haviam tombado gloriosamente ou em vão. Bravamente e sem apoio, eles atravessaram o gelo e foram sento dizimados um a um. O major ficou imaginando se a história iria se lembrar deles enquanto voltava o olhar diretamente para frente.
Hoje ele estava com um pressentimento. Marazov ia lançar os mísseis de combustível sólido das Katyushas. Alexander sabia que era isso. Ele o sentia. Eles iam romper o cerco ou morrer na tentativa. O 67° Exército estava forçando o rio ao longo de uma faixa de oito quilômetros a qualquer custo. A estratégia para o ataque era fechar fileiras com o 2º Exército de Meretskov em Volkhov, que estava, simultaneamente, atacando o Grupo Norte do Exército de Manstein pela retaguarda. O plano era que as divisões de rifle e alguns tanques leves cruzassem o rio, quatro divisões no total. Duas horas depois, mais três divisões de rifles com tanques pesados e médios se seguiriam, incluindo seis dos homens sob o comando imediato de Alexander. Ele ficaria atrás do Zenith no Neva. E atravessaria na terceira onda, com outro pelotão pesadamente armado, comando um T-34, um tanque médio que tinha chance de atravessar o rio sem afundar.
Era um pouco antes das nove, quase ao nascer do sol, e o céu da manhã apresentava uma cor de alfazema.
– Major, seu telefone está funcionando? – perguntou Marazov, apagando o cigarro e se dirigindo a Alexander.
– O telefone está funcionando bem, tenente. Volte ao seu posto – respondeu ele, sorrindo. Marazov retribuiu-lhe o sorriso.
– Quantos quilômetros de fio de telefone de campanha Stálin pediu aos americanos? – perguntou Marazov.
– Cem mil – respondeu Alexander, puxando uma última e longa tragada de seu cigarro.
– E seu telefone ainda não está funcionando.
– Tenente!
Marazov saudou Alexander.
– Estou pronto, major – disse ele, pondo-se ao lado da Katyusha. – Tenho estado pronto. Cem mil quilômetros é um pouco demais, o senhor não acha?
Alexander atirou a ponta do cigarro na neve, imaginando se teria tempo de acender outro.
– Não é nem de perto suficiente. Os americanos vão nos suprir com cinco vezes mais que isso antes do fim desta guerra.
– Seria bom se eles lhe fornecessem um telefone que funcionasse – murmurou Marazov, afastando o olhar de Alexander.
– Paciência, soldado – disse Alexander. – O telefone está funcionando bem – acrescentou ele, tentando imaginar se o Neva era mais largo que o Kama. Ele decidiu que era, mas não muito. Ele havia nadado até a outra margem do Kama e voltado numa corrente pesada em cerca de vinte e cinco minutos. Quando tempo ele levaria para atravessar os seiscentos metros do gelo do Neva sob fogo alemão?
Alexander concluiu que levaria menos de vinte e cinco minutos.
O telefone tocou. Alexander sorriu. Marazov sorriu.
– Finalmente – disse ele.
– Todas as coisas boas chegam para os que esperam – acrescentou Alexander, com o coração palpitando por Tatiana. – Tudo bem, homens – disse ele. – É agora. Estejam prontos – prosseguiu, colocando-se um pouco atrás deles, os braços posicionando o cano do Zenith para cima. – E sejam corajosos.
Ele pegou o telefone e anunciou a ordem de avançar para os cabos com os morteiros. Os homens dispararam três bombas de fumaça de emissão lenta que voaram por sobre o rio e explodiram, temporariamente obscurecendo a visão da linha nazista. Instantaneamente, os soldados do Exército Vermelho lançaram-se sobre o gelo em longas formações em fila, uma bem diante de Alexander, e correram pelo rio.
Por duas horas, o fogo pesado de 4500 rifles não cessou. Os morteiros eram ensurdecedores. Alexander achou que os soldados soviéticos estavam se saindo melhor que o esperado – notoriamente melhor. Com seus binóculos, ele viu alguns soldados tombados na outra margem, mas também viu muitos correndo para cima da margem e se escondendo nas árvores.
Três aviões alemães voaram baixo sobre suas cabeças, atirando contra os soldados soviéticos e abrindo buracos no gelo – mais zonas de perigo para os caminhões e os homens evitarem. Um pouco mais baixo, um pouco mais baixo, pensou Alexander, abrindo fogo com a metralhadora contra os aviões. Um avião explodiu; os outros dois rapidamente ganharam altitude para não serem atingidos. Alexander carregou uma bomba altamente explosiva no Zenith e atirou. Outro avião explodiu em chamas. O último ganhou mais altitude e agora não conseguia atirar no gelo; ele voou de volta para o lado alemão do Neva. Alexander balançou a cabeça e acendeu um cigarro.
– Vocês estão se saindo bem – gritou ele para seus homens, que estavam tão ocupados carregando as bombas e atirando que não o ouviram. Ele mal conseguiu ouvir a si mesmo, pois seus ouvidos estavam tapados para impedir a perda da audição.
Às 11h30, uma luz verde deu sinal para que a divisão motorizada começasse a atravessar o Neva na segunda onda de ataque. O ataque era prematuro, mas Alexander esperava que o elemento surpresa trabalhasse em favor deles, o que efetivamente ocorreria se avançassem rapidamente pelo gelo. Alexander fez sinal para que Marazov pegasse seus homens e corresse.
– Vá – gritou. – Cubram-se! Cabo Smirnoff! – um dos homens virou-se para ele. – Pegue suas armas – ordenou Alexander.
Marazov saudou Alexander, agarrou a arma de 76 milímetros, gritou para seus homens e eles começaram a descer a pequena encosta em direção ao gelo. Dois outros cabos correram segurando os morteiros de 81 milímetros. As armas de 120 milímetros foram deixadas para trás. Eram pesadas demais para serem transportadas sem caminhão. Três soldados, na frente, corriam com seus Shpagins.
Alexander viu Marazov ser abatido por um tiro quando mal tinha avançado trinta metros no gelo.
– Meus Deus, Tolya! – gritou ele e olhou para cima. O avião alemão estava avançando por sobre o Neva, atirando nos homens no gelo. Os soldados de Marazov caíram. Antes que o avião tivesse chance de virar e voltar, Alexander redirecionou o cano do Zenith e disparou uma bomba de alto impacto. E não errou o tiro, o avião estava suficientemente baixo. Explodiu em chamas e projetou-se em espiral em direção ao rio.
Marazov continuava imóvel no gelo. Observando-o, impotentes, seus homens agruparam-se em torno do canhão de campo. O rio estava ficando coberto de estilhaços de bombas.
– Ora, diabos! – Alexander ordenou a Ivanov, o cabo restante, que manipulasse o Zenith, agarrou sua metralhadora, saltou a encosta e correu para Marazov, gritando para que o resto dos soldados continuasse a cruzar o rio. – Vão! Vão!
Eles pegaram o canhão de campo e os morteiros e correram.
Marazov estava deitado de bruços. Alexander percebeu por que seus homens o haviam observado de maneira impotente. Ajoelhando-se ao lado dele, Alexander quis virá-lo, mas o soldado respirava com tanta dificuldade que Alexander teve medo de tocá-lo.
– Tolya, Tolya, aguente firme – disse ele, ofegante. Marazov também havia sido atingido no pescoço. Seu capacete havia caído. Desesperado, Alexander olhou ao redor para ver se conseguia um médico para lhe dar morfina.
Alexander viu um homem surgir no gelo, carregando não uma arma, mas uma maleta de médico. O homem usava um pesado casaco de lã e um chapéu também de lã – nem mesmo um capacete! Ele estava correndo na direita de Alexander em direção de um grupo de homens abatidos perto de um buraco no gelo. Alexander só teve tempo de pensar: que maluco, um médico no gelo, ele é louco, quando ouviu os soldados atrás dele gritando para o médico: “Abaixe-se! Abaixe!-se”. Mas o barulho das armas era alto demais, a fumaça negra cercava a todos, e o médico, permanecendo ereto, virou-se e gritou em inglês:
– O quê? O que eles estão dizendo? O quê?
Alexander só levou um segundo. Ele viu o médico no gelo, no meio do fogo inimigo, mas, o que era mais grave, no final da trajetória das bombas alemãs. Alexander sabia que ele não tinha nem um quarto de segundo, um milésimo de tempo para pensar. Ele saltou e gritou, a todo pulmão, em inglês:
– ABAIXE-SE, PORRA!
O médico ouviu e se abaixou imediatamente. Bem na hora. A bomba cônica voou a um metro acima da cabeça do homem e explodiu bem atrás dele. O médico foi atirado como um projétil e aterrissou de cabeça no buraco do gelo.
Com os olhos atentos, Alexander olhou para Marazov, que, com as pupilas fixas, estava pondo sangue pela boca. Fazendo o sinal da cruz sobre ele, Alexander pegou sua metralhadora e correu vinte metros pelo gelo, caiu de barriga e se arrastou por outros dez metros até o buraco.
O médico estava inconsciente, flutuando na água. Alexander tentou alcançá-lo, mas o homem estava de cara para a água e muito distante. Alexander atirou suas armas e munição para longe, arrastou-se pelo gelo e pulou no buraco. A água era um dilúvio cortante e gelado, capaz de agir no corpo todo como anestésico instantâneo, adormecendo-o como morfina. Agarrando o médico, pelo pescoço, o major puxou-o para a borda do buraco e, com todas as suas forças, empurrou-o para fora com uma das mãos, agarrando-se ao gelo com a outra. Ao sair, ficou respirando pesadamente em cima do médico, que voltou a si e gemeu em inglês.
– Meu Deus, o que foi que aconteceu?
– Quieto – disse Alexander em inglês. – Fique deitado, temos que leva-lo até aquele caminhão blindado no limite do bosque, está vendo? São vinte metros. Se conseguirmos vencê-los, ficaremos mais seguros. Aqui estamos em campo aberto.
– Eu não consigo me mexer – disse o médico. – A água está me congelando de dentro para fora.
Também se sentindo congelar, Alexander sabia o que o médico queria dizer. Ele olhou para o gelo ao redor deles. A única cobertura era os três corpos perto do buraco. Arrastando-se de barriga, ele puxou um dos corpos para perto do médico e o colocou em cima dele.
– Agora, fique quieto, mantenha o corpo em cima de você e não se mexa.
Então, arrastou-se e puxou outro corpo, atirando-o sobre as costas e pegando suas armas.
– Você está pronto? – perguntou ele ao médico, em inglês.
– Sim, senhor.
– Agarre-se à barra do meu casaco com todas as forças. Não o solte. Você vai patinar no gelo.
Movendo-se o mais rápido que podia com um cadáver em cima dele, Alexander arrastou o médico e o outro corpo por vinte metros até o caminhão blindado.
Alexander achou que estivesse perdendo a audição, com o ruído em torno dele filtrando-se através de seu capacete e sua mente consciente. Ele tinha de conseguir. Tatiana havia conseguido furar o cerco, e sem um cadáver em cima dela. Eu consigo fazer isto, pensou ele, puxando o médico cada vez mais depressa em meio à confusão barulhenta. Pareceu-lhe ter ouvido o ronco de um avião voando baixo e ficou imaginando quando Ivanov iria abatê-lo.
A última coisa que Alexander se lembrava era de um barulho sibilante mais perto do que havia ouvido antes, uma explosão, seguida de um impacto indolor, mas severo, que o projetou com uma incrível força, a cabeça primeiro, contra o lado do caminhão blindado. Sorte eu ter um cadáver em cima de mim, pensou Alexander.
2
Abrir os olhos exigiu dele muita energia. Foi um esforço tal que logo que os abriu, tornou a fechá-los e adormeceu durante o que lhe pareceu ser uma semana ou um ano. Era impossível dizer. Ele ouvia vozes fracas, ruídos fracos. Odores fracos pairavam à volta: cânfora, álcool. Alexander sonhou com sua primeira montanha russa, o estupendo Ciclone, nas areias de Revere Beach, em Massachussetts. Sonhou com a areia de Nantucket Sound. Havia uma pequena passarela de madeira e nela vendiam algodão doce. Ele comprou três porções de algodão vermelho e comeu todas em seu sonho, e, de vez em quando, alguma coisa não cheirava a algodão doce nem a água salgada. E, em vez de desejar uma montanha russa, um mergulho na água, ou de brincar de mocinho e bandido embaixo da passarela de madeira, tentou identificar o cheiro.
Outras lembranças também surgiram: dos bosques, de um lago, de um barco. E outras imagens: apanhando pinhas, instalando uma rede de dormir. Caindo num armadilha de ursos. E não eram lembranças só dele.
Através dos olhos fechados e também do cérebro fechado, ele ouvia suaves vozes femininas e também vozes masculinas. Certa feita, ouviu alguma coisa caindo pesadamente no chão. Em outra vez, a batida de um coração: deve ser o metrônomo. Então, ele pensou estar dirigindo pelo deserto quando criança, espremido entre a mãe e o pai. Era o Mojave. Não era bonito, mas estava quente, e o carro, abafado, embora ele sentisse frio. Por que estava com frio?
Mas o deserto. Por algum motivo, novamente aquele cheiro do deserto. Não de algodão doce, nem de sal, apenas o cheiro de...
Um rio correndo pela manhã.
Ele tornou a abrir os olhos. Antes de fechá-los, tentou focalizar. Com a visão borrada, não conseguiu distinguir nenhum rosto. Por que não conseguia ver nenhum rosto? Tudo o que viu foram rápidos relances de branco. Mas lá estava o cheiro de novo. Uma forma se inclinando sobre ele. Ele fechou os olhos e podia jurar que tinha ouvido alguém sussurrar Alexander. Então, um ruído de metal. Sentiu a cabeça sendo agarrada. Agarrada.
Agarrada.
De repente, seu cérebro despertou. Ele quis abrir os olhos. Estava deitado de bruços. Por isso é que não conseguia ver nenhum rosto. Tudo borrado outra vez. A forma de algo pequeno e branco. Uma voz sussurrando. O quê? O quê?, ele quis dizer. Não conseguia falar. Aquele cheiro. Era um hálito, um hálito doce, junto a seu rosto. Um cheiro bem definido de conforto, o tipo de conforto que ele só conhecera uma vez na vida.
Isso lhe deixou os olhos em alerta. Não conseguiu focalizar, só viu um borrão de gaze branca.
– Shura, por favor, acorde – sussurrou a voz. – Alexander, abra os olhos. Abra os olhos, meu amor.
Ele sentiu lábios suaves pousando em seu rosto. Alexander abriu os olhos. O rosto de sua Tatiana estava perto dele.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Ele os fechou, murmurando “não”. Não.
Ele tinha de abrir os olhos. Ela o estava chamando.
– Shura, abra os olhos agora.
– Onde eu estou?
– No hospital de campanha de Morozovo – respondeu ela.
Tentou mover a cabeça. Não conseguia se mexer.
– Tatia? – murmurou ele. – Não pode ser você.
E adormeceu.
Alexander estava deitado de costas. Um médico estava diante dele, falando com ele em russo. Alexander concentrou-se em sua voz. Sim. Um médico. O que ele estava dizendo? Não era claro. Ele não conseguia entender russo.
Um pouco depois, mais clareza, maior compreensão. De repente, o russo não era mais estranho.
– Acho que ele está voltando. Como você está se sentindo?
Alexander tentou se concentrar.
– Como eu tenho passado? – perguntou lentamente.
– Não muito bem.
Alexander olhou ao redor. Estava numa estrutura retangular de madeira com algumas janelas pequenas. As camas, cheias de gente coberta de bandagem branca e vermelha, estavam dispostas em duas fileiras, com uma passagem entre elas.
Ele tentou olhar para as enfermeiras à distância. O médico chamava sua atenção de novo. Relutantemente, Alexander olhou para o médico, sem querer responder pergunta nenhuma.
– Há quanto tempo?
– Quatro semanas.
– Que diabos me aconteceu?
– Você não lembra?
– Não.
O médico sentou-se junto à cama e falou em voz baixa:
– Você salvou minha vida – disse ele, num inglês reconfortante e agradecido.
Alexander lembrava vagamente. O gelo. O buraco. O frio. Ele balançou a cabeça.
– Só em russo. Por favor – acrescentou. – Não queira trocar sua vida pela minha.
– Entendo – disse o médico, com um aceno de cabeça e apertando-lhe a mão. – Vou voltar em alguns dias, quando você melhorar um pouco. Então, você vai poder me contar mais. Não vou ficar muito tempo aqui. Mas pode ter certeza de que eu não ia abandonar você até que saísse do bosque.
– Que diabos... você estava fazendo no gelo? – perguntou Alexander. – Nós temos médicos para isso.
– Sim, eu sei – disse o médico. – Eu estava indo salvar o médico. Quem você acha que colocou nas minhas costas enquanto nos arrastava até o caminhão?
– Oh.
– Sim. Foi a minha primeira vez no front. Dá para acreditar? – disse o médico sorrindo. Um bom sorriso americano. Alexander quis sorrir de volta.
– O nosso paciente dorminhoco acordou? – disse uma alegre enfermeira de cabelos e olhos negros, vindo até sua cama, sorrindo, movendo-se depressa e tomando-lhe o pulso. – Como vai? Eu sou Ina e você tem muita sorte!
– Tenho mesmo? – disse Alexander. Ele não se sentia com sorte. – Por que minha boca está cheia de algodão?
– Não está. Você tomou morfina durante um mês. Começamos a diminui-la na semana passada. Achamos que você estava ficando viciado.
– Como é o seu nome? – perguntou Alexander ao médico.
– Matthew Sayers. Sou da Cruz Vermelha – respondeu ele, fazendo uma pausa. – Eu fui um idiota, e você quase pagou isso com sua vida.
Alexander balançou a cabeça. Ele olhou pela enfermaria. Estava quieta. Talvez ele tivesse sonhado tudo. Talvez ele tivesse sonhado com ela.
Sonhado completamente.
Não teria sido bom? Ela nunca estivera em sua vida. Ele nunca a conhecera. Ele podia voltar a ser o que era. Como ele tinha sido.
Mas como ele tinha sido? Aquele homem estava morto. Alexander não conhecia aquele homem.
– Uma bomba explodiu bem atrás de nós, e um fragmento atingiu você – disse o Dr. Sayers. – Você foi atirado contra o caminhão. Eu não conseguia me mexer – prosseguiu ele, apesar de seu russo ruim. – Comecei a abanar as mãos pedindo ajuda. Eu não queria deixar você sozinho, mas... – interrompeu-se ele, olhando para Alexander. – Vamos dizer que eu precisava de uma maca para você imediatamente. Uma de minhas enfermeiras veio pelo gelo para ajudar. – Sayers balançou a cabeça. – Ela tem fibra. Na verdade, ela se arrastou até nós. Eu disse a ela: “Bem, você é três vezes mais esperta que eu”. – Sayers se inclinou sobre Alexander. – E ela não só se arrastou, mas ficou empurrando a caixa de plasma diante dela!
– Plasma?
– Fluído sanguíneo sem sangue. Dura mais que o sangue, congela bem, especialmente no seu inverno de Leningrado. Um milagre para feridos como você, pois repõe o fluído que você perdeu até conseguir que lhe seja feita uma transfusão.
– Eu... precisei de reposição de fluído? – perguntou Alexander.
– Sim, major – disse a enfermeira, tocando-lhe alegremente o braço –, pode-se dizer que você precisou de reposição de fluído.
– Muito bem, enfermeira – disse o Dr. Sayers. – A regra que temos na América é não aborrecer o paciente. Você está familiarizada com essa regra?
Alexander deteve o médico.
– Qual foi a gravidade do meu estado?
– Você não estava na sua melhor forma – disse Sayers jovialmente. – Eu deixei a enfermeira com você, enquanto rastejei em busca da maca. Não sei como, mas ela me ajudou a carregar você, segurando o lado em que estava sua cabeça. Depois que o deixamos, parecia que quem precisava de plasma era ela.
– Rastejando ou não, se as bombas o atingem, você já era.
– Você é que quase já era – disse a enfermeira. – Uma bomba o atingiu.
– Você se arrastou pelo gelo? – perguntou Alexander, sentindo-se grato e desejando tocar a mão da enfermeira.
– Não – disse ela, balançando a cabeça –, eu fico longe da linha de frente. Eu não faço parte da Cruz Vermelha.
– Não – disse Sayers –, eu trouxe minha enfermeira comigo de Leningrado. Ela se ofereceu como voluntária – acrescentou ele, sorrindo.
– Oh – disse Alexander. – Em que hospital você estava trabalhando? – perguntou ele, sentindo que estava começando a perder os sentidos novamente.
– Grechesky.
Alexander não conseguiu reprimir um gemido de dor. E não conseguiu parar até que Ina lhe desse outra dose de morfina. O médico, observando-o cuidadosamente, perguntou se ele estava bem.
– Doutor, essa enfermeira que veio com você?
– Sim?
– Como é o nome dela?
– Tatiana Metanova.
Alexander deixou escapar um lamento.
– Onde está ela agora?
Dando de ombros, Sayers replicou:
– Onde ela não está? Construindo a estrada de ferro, eu acho. Nós acabamos com o cerco. Seis dias depois de você ter sido ferido. As duas frentes se juntaram. Imediatamente, 1100 mulheres começaram a construir aquela ferrovia. Tania está trabalhando deste lado...
– Bem, ela não começou de imediato – disse Ina. – Ela ficou com você, major, a maior parte do tempo.
– Sim, agora que ele está melhor, ela foi ajudar na construção – disse Sayers sorrindo. – Estão chamando a Ferrovia de Vitória. Cedo demais, se você me perguntar, a julgar pelo estado dos homens que são trazidos para cá.
– O senhor pode trazer a enfermeira aqui quando ela voltar da ferrovia? – perguntou Alexander. Ele quis se explicar, mas se sentiu arrasado. Ele estava arrasado. – Onde foi mesmo que o senhor disse que me atingiram?
– Nas costas. Seu lado direito foi explodido. Mas o fragmento da bomba abriu-lhe o corpo – disse Sayers, fazendo uma pausa. – Nós trabalhamos duro para salvar seu rim. Não queríamos que, no futuro, o senhor fosse atacar os alemães com apenas um rim, major – acrescentou ele, inclinando-se para frente.
– Obrigado, doutor. Como você fez isso? – Alexander tentou se lembrar de onde doía. – Minhas costas não me incomodam muito.
– Não, major, e com razão. O senhor teve uma queimadura de terceiro grau em torno da periferia do ferimento. Foi por isso que o mantivemos de bruços por tanto tempo. Só recentemente voltamos a colocá-lo de costas – disse Sayers, batendo-lhe de leve no ombro. – Está sentindo a cabeça? Você deu uma cabeçada forte contra aquele caminhão. Mas, ouça, você vai ficar como novo, eu acho, depois que o ferimento sarar e você conseguir se livrar da morfina. Talvez em um mês você possa sair daqui – prosseguiu o médico, hesitando e observando Alexander, que não queria ser observado. – Vamos conversar outra hora, certo?
– Certo – murmurou Alexander.
Mais animado, o médico disse:
– Mas, olhando pelo lado positivo, você vai receber outra medalha.
– Desde que não seja postumamente.
– Assim que você puder ficar de pé, eles vão promovê-lo, foi o que me disseram – completou Sayers. – Ah, e um dos rapazes dos suprimentos sempre vinha perguntar por você. Chernenko?
– Traga aquela enfermeira, por favor – disse Alexander, fechando os olhos.
3
Uma noite se passou antes que ele tornasse a vê-la. Alexander acordou e lá estava ela, sentada ao seu lado. Eles sentaram e se olharam. Tatiana disse:
– Shura, por favor, não fique zangado comigo.
– Oh, meu Deus – foi tudo o que Alexander conseguiu dizer. – Você é incansável.
Balançando a cabeça, Tatiana disse com tranquilidade:
– Incansavelmente casada.
– Não. Apenas incansável.
Inclinando-se para ele, ela sussurrou:
– Incansavelmente apaixonada – acrescentou ela. – Você precisava de mim, e eu vim.
– Eu não precisava de você aqui – disse Alexander. – Quantas vezes eu tenho que lhe dizer? Eu preciso de você a salvo.
– E quem vai manter você a salvo? – perguntou ela, tomando-lhe a mão e sorrindo. Olhando para os lados para se assegurar de que não havia nem enfermeiras nem médicos por ali, ela beijou-lhe a mão e, então, pressionou-a contra o rosto. – Você vai ficar bem, grandão. Aguente firme.
– Tania, depois que eu sair daqui, vou pedir o divórcio. – Ele não largou o rosto dela. Por tudo.
Balançando a cabeça, ela retrucou:
– Sinto muito. Não pode. Você não queria uma aliança com Deus? Você a teve.
– Tatiasha...
– Sim, querido, sim, Shura? Estou tão feliz de ouvir sua voz, de ouvir você conversar.
– Me diga a verdade. Qual foi a gravidade do meu ferimento?
– Não muito grande – respondeu ela, em voz baixa e sorrindo para ele, com o rosto pálido.
– Em que eu estava pensando quando corri para o Marazov daquele jeito? Eu devia ter deixado que seus homens cuidassem dele. Mas eles não tinham escolha. Não podiam avançar e não iam levá-lo de volta. Pobre Tolya – concluiu ele, depois de uma pausa.
Sem deixar de sorrir, Tatiana disse, ligeiramente abatida pela tristeza:
– Eu fiz uma oração pelo Tolya.
– Você fez uma por mim também?
– Não – respondeu ela. – Pois você não estava morrendo. Eu fiz uma oração por mim. Eu disse: “Meu Deus, por favor, ajude-me a fazê-lo sarar” – prosseguiu ela, segurando-lhe a mão. – Mas, Alexander, da mesma forma que você não pôde deixar de correr até o Marazov, também não pôde deixar de gritar em inglês para o médico, ou pular na água atrás dele, ou arrastá-lo atrás de você até estar seguro. Assim como não pôde deixar de voltar com Yuri Stepanov. Lembre, Shura, nós somos a soma de nossas partes. E o que as suas partes dizem de você?
– Que eu sou um lunático idiota. Minhas costas doem, como se estivessem em fogo – sorriu ele, lembrando-se de Luga. – São só cortes provocados pelo vidro, Tania?
Hesitando um instante, ela disse:
– Você se queimou. Mas vai ficar bom. – E pressionou o rosto com mais força contra a mão dele. – Diga-me a verdade, diga-me que você não está feliz de me ver.
– Eu poderia dizer isso, mas estaria mentindo – disse ele, passando a mão sobre as sardas dela e encarando-a, sem piscar.
Ela tirou um pequeno frasco de morfina do bolso e o despejou no soro que ele estava tomando.
– O que você está fazendo?
Ela murmurou:
– Dando-lhe um pouco de morfina intravenosa. Para que suas costas não doam.
Em segundos, ele se sentiu melhor, e ela tornou a encostar a cabeça na mão dele.
Alexander olhou-a de cima a baixo. Tatiana exalava um calor poroso, evanescente, mas duradouro. Sua presença, seu rosto de cetim na palma da mão dele faziam suas costas doerem menos. Seus olhos radiantes, suas faces coradas, seus lábios adorados entreabertos... Alexander olhou para ela, com os olhos bem abertos, sua alma bem aberta, seu coração em adoração doendo de maneira deliciosa.
– Você é um anjo que os céus me mandaram, não é mesmo?
Um sorriso elétrico iluminou o rosto dela.
– E você não conhece nem metade dele – murmurou ela. – Você não sabe o que a sua Tania andou preparando por aqui. – Em sua alegria, ela quase deixou escapar um grito.
– O que você tem aprontado? Não, não se levante. Eu quero sentir o seu rosto.
– Shura, eu não posso. Eu estou praticamente em cima de você. Precisamos ter cuidado – disse ela, com o sorriso diminuindo uma oitava. – Dimitri passa por aqui o tempo todo. Entra, sai, vem ver você, sai, volta. Com que será que ele está preocupado? Ele ficou bastante surpreso de me encontrar aqui.
– Ele não é o único. Como você chegou aqui?
– Tudo parte do meu plano, Alexander.
– Que plano é esse, Tatiana?
– Estar com você quando eu morrer de velhice – sussurrou ela.
– Ah, esse plano.
– Shura, eu preciso falar com você. Preciso falar com você quando você estiver lúcido. Preciso que você me ouça cuidadosamente.
– Pode falar.
– Agora não posso. Eu disse lúcido. Além disso, preciso ir. Fiquei aqui sentada uma hora, esperando que você acordasse. Eu volto amanhã – disse ela, olhando em torno da cama dele. – Você viu como eu coloquei você aqui no canto, para que pudesse ter uma parede por perto e um pouco de privacidade – ela apontou para a janela próxima à cama dele. – Eu sei que é alto, mas você pode ver um pouco de céu e duas árvores, pinheiros do norte, eu acho. Pinheiros, Shura.
– Pinheiros, Tania.
Ela se levantou.
– O homem ao seu lado não consegue nem ouvir nem ver. Se ele pode falar, é um mistério – disse ela, sorrindo. – Além disso, está vendo aquela tenda de isolamento ao redor dele para que ele possa respirar um ar mais puro? Eu pus a tenda em torno dele para ajudá-lo, mas isso isola você de metade da enfermaria. É quase mais privacidade que na Quinta Soviet.
– Como está Inga?
– Inga não está mais na Quinta Soviet – disse Tatiana, depois de uma pausa e de morder o lábio.
– Ah, por fim ela se mudou?
– Sim – disse Tatiana –, ela foi mudada.
Os dois ficaram se olhando e balançando a cabeça lentamente. Alexander fechou os olhos. Ele não conseguia deixá-la ir embora.
– Tania – sussurrou ele –, é verdade que você se arrastou no gelo? No meio de uma feroz batalha por Leningrado, você se arrastou no gelo?
Inclinando-se sobre ele, ela rapidamente o beijou e murmurou:
– Sim, soldado mais valente do meu coração. Por Leningrado.
– Tatia – disse Alexander, com todas as suas terminações nervosas doendo –, amanhã não espere uma hora para me acordar.
4
Alexander só pensava em quando a veria no dia seguinte. Ela chegou pela hora do almoço, trazendo-lhe sua comida.
– Eu o alimento, Ina – disse ela alegremente à enfermeira de plantão. Ina não pareceu muito contente, mas Tatiana não lhe deu atenção.
– A enfermeira Metanova acha que ela é dona do meu paciente – disse Ina, assinando o prontuário de Alexander.
– Ela é minha dona, sim, Ina – disse Alexander. – Não foi ela quem me trouxe o plasma?
– Você não sabe nem a metade da história – murmurou Ina, olhando para Tatiana e se afastando.
– O que ela quis dizer com isso? – perguntou Alexander.
– Sei lá – replicou Tatiana. – Abra a boca.
– Tania, eu posso comer sozinho.
– Você quer comer sozinho?
– Não.
– Deixe-me tomar conta de você – disse ela, com ternura. – Deixe-me fazer por você o que eu sonho em poder fazer. Deixe-me fazer por você.
– Tania, onde está a minha aliança? – perguntou ele. – Ela estava num cordão no meu pescoço. Eu a perdi?
Sorrindo, ela puxou o cordão de seu uniforme. Duas alianças pendiam, uma ao lado da outra.
– Vou ficar com ela, até podermos usá-las novamente.
– Me alimente – disse ele, com profunda emoção.
Antes que ela começasse, o coronel Stepanov veio ver Alexander.
– Soube que você acordou – disse ele, olhando para Tatiana. – Estou vindo num hora inconveniente?
Tatiana balançou a cabeça, recolocou a colher na bandeja e se levantou.
– O senhor é o coronel Stepanov? – perguntou ela, olhando de Alexander para o coronel.
– Sou – respondeu ele, intrigado. – E você é...
Tatiana pegou com as duas mãos a do coronel e apertou-a.
– Eu sou Tatiana Metanova – respondeu ela. – Eu queria lhe agradecer, coronel, por tudo que o senhor tem feito pelo major Belov – disse ela, sem soltar-lhe a mão, que ele não afastou. – Obrigada, senhor – repetiu ela.
Alexander desejou abraçar a esposa.
– Coronel – disse ele, rindo –, minha enfermeira sabe que meu comandante tem sido bom para mim.
– Nada que você não mereça, major – comentou Stepanov. Ele não tirou a mão das mãos de Tatiana até ela soltá-lo. – Você já viu sua medalha?
A medalha estava pendurada no encosto da cadeira que ficava junto à cama de Alexander.
– Por que eles não esperaram até eu estar consciente para entregá-la? – perguntou Alexander.
– Não sabíamos se...
– Não é apenas uma medalha, major – interrompeu Tatiana. – A mais alta medalha de ouro que existe. A medalha de Herói da União Soviética! – acrescentou ela, sem fôlego.
Stepanov olhou de Tatiana para Alexander e vice-versa.
– Sua enfermeira está muito... orgulhosa de você, major.
– Sim, senhor – disse Alexander, tentando não sorrir.
– Acho que vou voltar outra hora, quando você estiver menos ocupado – disse Stepanov.
– Espere, senhor – pediu Alexander, afastando o olhar de Tatiana por um instante.
– Como as nossas tropas estão se saindo?
– Muito bem. Os homens tiveram dez dias de licença e agora estão tentando empurrar os alemães para fora de Sinyavino. Há grandes problemas por lá. Mas você sabe... aos poucos – disse Stepanov, fazendo uma pausa. – A boa notícia é que von Paulus capitulou em Stalingrado no mês passado – disse Stepanov, rindo. – Hitler tinha feito Paulus marechal de campo dois dias antes da rendição.
Alexander sorriu.
– Von Paulus, obviamente, quis fazer história. Essa é uma boa notícia. Stalingrado resistiu. Leningrado acabou com o cerco. Ainda podemos ganhar essa guerra – disse ele e ficou quieto. – Vai ser uma vitória pírrica.
– Realmente – concordou Stepanov, apertando a mão de Alexander. – Pelas baixas que estamos sofrendo, não sei quem vai sobrar até mesmo para uma vitória pírrica – prosseguiu ele, com um suspiro. – Melhore logo, major. Outra promoção o aguarda. Se acontecer mais alguma coisa, vamos tirar você da linha de frente.
– Não quero me afastar da ação, senhor.
Tatiana tocou-lhe o ombro.
– Quero dizer, sim, obrigado, senhor.
Mais uma vez Stepanov olhou para Alexander e Tatiana.
– É bom ver você bem disposto, major. Não me lembro da última vez em que o vi assim tão... alegre. Os ferimentos quase fatais combinam com você.
Stepanov se foi.
– Bem, você confundiu completamente o coronel – disse Alexander, sorrindo para Tatiana. – O que ele quis dizer com ferimentos quase fatais?
– Uma hipérbole. Mas você tinha razão. Ele é um homem simpático – disse Tatiana, olhando para Alexander com certa ironia. – Mas você se esqueceu de agradecer a ele por mim.
– Tania, nós somos homens, e não ficamos batendo um no ombro do outro.
– Abra a boca.
– Que comida você me trouxe?
Ela havia trazido sopa de repolho com batatas e pão branco com manteiga.
– De onde você tirou toda essa manteiga? – perguntou ele, ao ver que ela havia trazido um quarto de quilo.
– Soldados feridos ganham manteiga extra – explicou ela. – E você ganha manteiga extra extra.
– Assim como morfina extra? – perguntou ele, sorrindo para ela.
– Mmm. Você precisa melhorar mais rápido.
A cada colherada que lhe colocava na boca, ela trazia os dedos mais para perto dele. Alexander respirou fundo, tentando sentir o cheiro das mãos dela por trás da sopa.
– Você já comeu?
Tatiana deu de ombros.
– Quem tem tempo para comer? – disse ela rapidamente. E puxou a cadeira mais para perto da cama.
– Você acha que os outros pacientes vão reclamar se minha enfermeira me beijar?
– Vão, sim – respondeu ela, afastando-se um pouco. – Eles vão achar que eu beijo todo mundo.
Alexander olhou ao redor. Havia um homem do outro lado do quarto, morrendo e sem pernas. Nada podia ser feito por ele. Na tenda de isolamento ao lado da cama de Alexander, ele ouviu um homem lutando para conseguir respirar. Como Marazov.
– O que há com ele?
– Oh, Nikolai Ouspensky? Ele perdeu um pulmão – disse Tatiana, limpando a garganta. – Ele vai ficar bem. É um bom homem. Sua esposa mora numa vila aqui perto, ela fica lhe mandando cebolas.
– Cebolas.
– São aldeões, o que você quer? – disse ela, dando de ombros.
– Tania – disse ele, com tranquilidade. – Ina me contou que eu precisei de fluído substitutivo. Qual a gravidade...
Tatiana apressou-se em dizer:
– Você vai ficar bem. Você perdeu um pouco de sangue, só isso. – Depois de uma pausa, ela disse, baixando a voz até sussurrar: – Ouça, ouça com atenção...
– Por que você não fica aqui comigo o tempo todo? Por que você não é a minha enfermeira?
– Espere. Dois dias atrás você me disse para ir embora, e agora quer que eu fique aqui o tempo todo?
– Quero.
– Querido – sussurrou ela com um sorriso –, ele está aqui o tempo todo. Você não me ouviu dizer? Estou tentando manter uma distância profissional. Ina é uma enfermeira boa e crítica. Logo você vai melhorar e talvez possamos removê-lo para um leito de convalescente, se você quiser.
– Você vai estar lá? Eu melhoro em uma semana.
– Não, Shura. Eu não vou estar lá.
– Onde você está?
– Ouça, eu preciso conversar com você, e você fica me interrompendo.
– Não vou interromper – disse Alexander –, se você segurar a minha mão debaixo do cobertor.
Tatiana enfiou a mão debaixo do cobertor e pegou a dele, entrelaçando seus dedos com os dele.
– Se eu fosse mais forte e maior, como você – disse ela, com suavidade –, eu o teria carregado para fora do gelo sozinha.
Apertando a mão dela com mais força, ele disse:
– Não me deixe chateado, certo. Estou feliz de ver seu rosto adorável. Por favor, me beije.
– Não, Shura, você quer escutar...
– Por que você é tão incrível? Por que você exala felicidade? Acho que você nunca esteve tão bonita.
Tatiana se inclinou para ele, separando os lábios e baixando a voz num sussurro rouco:
– Nem em Lazarevo?
– Pare com isso. Você está fazendo um homem adulto chorar. Seu brilho está vindo de dentro de você.
– Você está vivo. Eu estou em êxtase – disse ela, realmente parecendo estar em êxtase.
– Como você chegou ao front?
– Se quiser mesmo ouvir, eu conto – disse ela, sorrindo. – Quando deixei Lazarevo, eu sabia que queria me tornar uma enfermeira para feridos graves. Então, depois que você foi me ver em novembro, decidi me alistar. Eu ia para o front onde você estava. Se você fosse participar da batalha de Leningrado, eu também ia. Eu iria para o gelo com os paramédicos.
– Esse era o seu plano?
– Era.
Ele balançou a cabeça.
– Estou contente que você não tenha me falado dele naquela época, e agora, com certeza, estou sem forças para impedi-la.
– Você vai precisar de muito mais força quando souber o que eu tenho para lhe contar. – Ela mal conseguia conter sua excitação. Seu coração disparou. – Então, quando o Dr. Sayers chegou ao Grechesky – prosseguiu Tatiana –, eu imediatamente perguntei se ele não precisava de ajuda. Ele veio para Leningrado a pedido do Exército Vermelho para ajudar o fluxo antecipado de feridos neste ataque. – Ela baixou a voz. – Eu tenho que lhe contar: acho que os sovietes subestimaram o número de feridos. Simplesmente não há lugar para todos. De qualquer modo, depois que o Dr. Sayers me disse que ia para o front de Leningrado, eu lhe perguntei se havia alguma coisa em que eu pudesse ajudar... – disse ela, sorrindo. – Eu aprendi essa pergunta com você. Aconteceu que ele precisava de ajuda. A única enfermeira que ele trouxera caiu doente. Não é de surpreender, para quem conhece o inverno em Leningrado. A pobrezinha contraiu tuberculose. – Tatiana balançou a cabeça. – Imagine. Agora ela está melhor, mas permaneceu no Grechesky. Eles precisam dela lá. Como eu ainda não tinha me alistado, eu vim para cá com o Dr. Sayers como sua assistente temporária. Olhe. – Ela mostrou, com orgulho, a faixa em seu braço direito com o símbolo da Cruz Vermelha. – Em vez de enfermeira do Exército Vermelho, eu sou enfermeira da Cruz Vermelha! Não é maravilhoso? – E seu rosto se iluminou.
– Estou feliz por você achar bom estar no front, Tania – comentou Alexander.
– Shura! Não no front. Você sabe de onde vem o Dr. Sayers?
– Da América?
– Eu quero dizer de onde ele partiu com seu jipe da Cruz Vermelha para Leningrado?
– Não faço ideia.
– De Helsinque – disse ela, num sussurro de excitação.
– Helsinque.
– Sim.
– Tudo bem... – disse Alexander.
– E para onde você acha que ele logo vai voltar?
– Não sei. Para onde?
– Shura! Helsinque!
Alexander não disse nada. Lentamente, ele virou a cabeça e fechou os olhos. Ele a ouviu chamá-lo. Abriu os olhos e se voltou para ela. Os olhos dela dançavam, e seus dedos tamborilavam no braço dele, o rosto quente estava vermelho e sua respiração, acelerada.
Ele riu.
Uma enfermeira, no outro lado do quarto, virou-se para olhar.
– Não, não ria – disse Tatiana. – Fique quieto.
– Tatia, Tatia, pare. Eu lhe imploro.
– Você quer me ouvir? Assim que eu conheci o Dr. Sayers, eu comecei a pensar numa coisa.
– Ah, não.
– Ah, sim.
– Em que você começou a pensar?
– No Grechesky, eu fiquei matutando, tentado estabelecer um plano...
– Ah, não, outro plano, não.
– Sim, um plano. Eu me perguntava, será que posso confiar no Dr. Sayers? Eu achei que sim. Achei que podia confiar nele porque ele parecia um bom americano. Eu ia confiar nele e lhe contar sobre você e eu, e implorar-lhe que ajudasse você a voltar para casa, implorar-lhe que nos ajudasse a chegar a Helsinque de alguma forma. Só até Helsinque. Depois disso, você e eu poderíamos ir para Estocolmo sozinhos.
– Tania, não quero ouvir mais nada.
– Não, ouça-me! – sussurrou ela. – Se você soubesse como Deus está nos protegendo... Em dezembro, um piloto finlandês ferido foi para o Grechesky. Eles chegam o tempo todo... para morrer. Nós tentamos salvá-lo, mas ele tinha ferimentos graves na cabeça. Seu avião se espatifou no golfo da Finlândia. – Mal se conseguia ouvir a voz de Tatiana. – Eu guardei o uniforme e o cartão de identidade dele. Eu os escondi no jipe do Dr. Sayers, numa caixa de bandagens. E eles estão lá até agora... esperando por você.
Espantado, Alexander ficou olhando para Tatiana.
– A única coisa que eu temia era pedir ao Dr. Sayers que se arriscasse por um completo estranho. Eu não sabia como fazer isso – continuou ela, inclinando-se para ele e beijando-lhe o ombro. – Mas você, meu marido, você tinha que intervir. Você teve que salvar o médico. Agora, tenho certeza de que ele vai ajudar você a sair daqui mesmo que tenha que levá-lo nas costas.
Alexander estava sem fala.
– Vamos vestir um uniforme finlandês em você, você vai se transformar em Tove Hanssen por algumas horas, e vamos atravessar a fronteira finlandesa no caminhão da Cruz Vermelha do Dr. Sayers até Helsinque. Shura! Eu vou tirar você da União Soviética.
Alexander ainda estava sem fala.
Rindo sem produzir som, mas alegre, Tatiana disse:
– Nós demos uma sorte incrível, não é mesmo? – e apontou para a faixa da Cruz Vermelha no braço e apertou-lhe a mão sob as cobertas. – Dependendo de quando você estiver forte o suficiente. De Helsinque pegamos um cargueiro, se o gelo do Báltico estiver rompido, ou um caminhão num comboio protegido até Estocolmo. A Suécia é neutra, lembra? – acrescentou ela, sorrindo. – E não, eu não esqueço uma palavra de nada que você me conta. – Soltando-o, ela bateu as mãos. – Esse não é o melhor plano que você já teve? Muito melhor que sua ideia de se esconder nos pântanos do golfo durante meses.
Ele olhou para ela com excitação e total descrença.
– Quem é você, esta mulher sentada diante de mim?
Tatiana se levantou. Inclinando-se sobre ele, beijou-o profundamente nos lábios, e sussurou:
– Sou sua esposa adorada.
A esperança foi um remédio incrível. De repente, os dias que se esticavam não eram suficientemente longos para Alexander tentar se levantar, caminhar, se mover. Ele não conseguia sair da cama, mas tentava se apoiar nos braços e, finalmente, sentou-se e se alimentou sozinho. E vivia para os minutos em que Tatiana vinha vê-lo.
A inatividade o estava deixando louco. Pediu a Tatiana que lhe trouxesse pedaços de madeira e sua faca do exército. Enquanto esperava por ela, passava horas entalhando a madeira bruta, transformando-a em palmeiras, pinheiros, estacas e formas humanas.
Ela vinha, diariamente, muitas vezes por dia, e se sentava junto dele, dizendo num sussurro:
– Shura, em Helsinque, vamos dar uma volta de trenó, uma volta de drozhki. Não vai ser ótimo? E vamos até uma igreja de verdade! O Dr. Sayers me contou que a igreja do imperador Nicolau de Helsinque parece muito a de Santo Isaac. Shura, você está me ouvindo?
Sorrindo, ele balançava a cabeça e continuava a esculpir.
E ela ficava sentada ao lado dele e dizia:
– Shura, você sabia que Estocolmo foi toda construída em granito, como Leningrado? Você sabia que o nosso Pedro, O Grande, tomou a altamente contestada Península de Carélia da Suécia em 1725? Irônico, você não acha? Nessa época, estávamos lutando pela terra que hoje vai nos libertar. Quando chegarmos a Estocolmo, será primavera, e parece que no porto eles têm um mercado matinal que vende frutas, vegetais e peixes... Oh, Shura, e eles têm presunto defumado e uma coisa chamada bacon, o Dr. Sayers me disse. Você já comeu bacon? Shura, você está me ouvindo?
Sorrindo, ele balançava a cabeça e continuava a esculpir.
– E em Estocolmo nós vamos a esse lugar chamado... não consigo lembrar agora... Ah, sim, chamado Templo da Fama da Suécia, o lugar onde estão enterrados os reis. – disse ela, com total alegria no rosto. – Os reis e os heróis. Você vai gostar. Vamos visitá-lo?
– Sim, garota querida – respondeu Alexander, pousando a faca e a madeira, voltando-se para ela e trazendo-a contra ele. – Vamos visitá-lo.
5
– Alexander? – disse o Dr. Sayers, sentando-se na cama perto dele. – Se eu falar baixo, posso falar em inglês? Falar russo o tempo todo é muito difícil para mim.
– Claro – respondeu Alexander, também em inglês. – É bom tornar a ouvir inglês.
– Lamento não poder vir antes – disse o médico, balançando a cabeça. – Estou vendo que estou me atolando no inferno que é o front soviético. Meus suprimentos estão todos acabando, os carregamentos do lend-lease não chegam com rapidez suficiente, eu estou comendo sua comida russa, dormindo sem colchão.
– O senhor devia ter um colchão.
– Os feridos têm colchão. Eu tenho um papelão grosso.
Alexander ficou imaginando se Tatiana também tinha um papelão grosso.
– Eu achava que já estaria longe, mas vejam só. Ainda estou aqui. Meus dias duram vinte horas. Ouça, por fim tenho um pouco de tempo. Você quer conversar?
Alexander encolheu os ombros, estudando o médico.
– De onde você é, Dr. Sayers? Onde nasceu?
Sayers sorriu.
– Boston. Conhece Boston?
Alexander balançou a cabeça.
– Minha família era de Barrington.
– Ah, bom – exclamou Sayers. – Somos praticamente vizinhos – e fez uma pausa. – Então, me conte. Sua história é longa?
– Longa.
– Você pode me contar? Estou morrendo de curiosidade para saber como um americano acabou como major do Exército Vermelho.
Em resposta, Alexander examinou o médico, que disse com suavidade:
– Quanto tempo você viveu sem ser capaz de confiar em alguém. Confie em mim.
Respirando fundo, Alexander contou-lhe tudo. Se Tatiana confiava nesse homem, isso lhe bastava.
O Dr. Sayers ouviu com atenção e disse:
– É uma bela confusão.
– Não é brincadeira... – disse Alexander.
Então, foi a vez de Sayers estudar Alexander.
– Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
A princípio, Alexander não respondeu.
– Você não me deve nada.
Sayers fez uma pausa.
– Você... quer voltar para casa?
– Quero – disse Alexander. – Quero voltar para casa.
– O que eu posso fazer?
Alexander olhou para ele. – Converse com a minha enfermeira. Ela lhe dirá o que fazer – respondeu ele. Onde estava a minha enfermeira? Ele precisava pôr os olhos nela.
– Ina?
– Tatiana.
– Ah, Tatiana – o rosto do médico suavizou-se com afeição. – Ela sabe sobre você?
Alexander olhou com atenção para a expressão do médico e, então, riu baixo, balançando a cabeça.
– Dr. Sayers, eu vou lhe confiar tudo. Você terá duas vidas em suas mãos. Tatiana...
– Sim?
– ... é minha esposa – completou ele, com estas palavras brotando quentes de suas entranhas.
– Ela é o quê?
– Minha esposa.
O médico olhou para ele com incredulidade.
– É mesmo?
Divertido, Alexander ficou observando a reação do médico, enquanto ele pensava, descobria, tornava a pensar até entender tudo com uma faísca mista de tristeza e compreensão.
– Oh, como eu fui estúpido – disse ele. – Tatiana é sua esposa. Eu devia ter percebido. Tantas coisas ficaram repentinamente claras – disse o Dr. Sayers, respirando fundo. – Bem, bem. Sorte a sua.
– Tenho sorte, sim...
– Não, major. Eu quis dizer que você é um homem de sorte. Mas deixe para lá.
– Só você sabe, doutor. Converse com ela. Ela não está tomando morfina. Não está ferida. Ela vai lhe contar tudo o que quer que você faça.
– Disso eu não tenho dúvida – disse o Dr. Sayers. – Entendo, eu não vou partir logo. Mais alguém que você queira que eu ajude?
– Não, obrigado.
– Ao se levantar, o Dr. Sayers apertou a mão de Alexander.
– Ina – Alexander chamou a enfermeira que tomava conta dele entre as visitas de Tatiana –, quando é que eu vou ser transferido para a ala dos convalescentes?
– Por que essa pressa? Você acabou de recuperar a consciência. Vamos tomar conta de você aqui.
– Eu só perdi um pouco de sangue. Deixe-me sair. Vou para lá andando sozinho.
– Você está com um buraco nas costas, major Belov, do tamanho do meu pulso – disse Ina. – Você não vai a lugar algum.
– Você tem um punho pequeno – disse Alexander. – Qual é o problema?
– Eu vou lhe dizer qual é o problema – disse ela. – Você não vai a lugar algum, esse é o problema. Agora, deixe-me virá-lo para eu poder limpar esse tremendo machucado nas suas costas.
Alexander virou-se.
– Está muito mal?
– Mal, major. A bomba arrancou um naco da sua carne.
Ele sorriu.
– Ela arrancou uma libra da minha carne, Ina?
– Uma o quê?
– Deixe para lá. Diga-me a verdade: qual foi a extensão do meu ferimento?
Enquanto mudava os curativos, Ina disse:
– Grande. A enfermeira Metanova não lhe disse? Ela é impossível. O Dr. Sayers deu uma olhada em você depois que o trouxeram e disse que achava que você não ia sobreviver.
Isso não surpreendeu Alexander. Ele havia flutuado por muito tempo na periferia de sua consciência. Aquilo não se parecia muito com vida. Contudo, morrer parecia inconcebível. Ele ficou deitado de bruços enquanto Ina limpava-lhe o ferimento e tratou de ouvi-la.
– O doutor é um homem bom e quis salvá-lo, sentindo-se pessoalmente responsável por você. Mas ele disse que você tinha perdido muito sangue.
– Ah. É por isso que meu estado foi considerado crítico?
– Agora você está em estado crítico – disse Ina, balançando a cabeça. – Não estava no começo – e bateu-lhe de leve no ombro. – Seu estado era terminal.
– Oh – disse ele, com o sorriso se evaporando.
– É a enfermeira Tatiana – disse Ina. – Ela é... bem, francamente, acho que ela se concentra demais nos casos terminais. Ela devia estar ajudando os críticos, mas ela está sempre na enfermaria terminal, tentando salvar os desenganados.
Então, era lá que ela ficava.
– Como ela está se saindo? – murmurou Alexander.
– Não muito bem. Lá estão morrendo a torto e a direito. Mas ela fica com os pacientes até o fim. Não sei o que há com ela. Eles morrem mesmo assim, mas...
– Eles morrem felizes?
– Não felizes, mas... não sei explicar.
– Sem medo?
– Isso! – exclamou ela, inclinando-se sobre ele e olhando para Alexander.
– É isso. Sem medo. Eu digo a ela: “Tania, eles vão morrer de qualquer forma, deixe-os em paz”. E não sou só eu. O Dr. Sayers fica dizendo para ela vir trabalhar na ala crítica. Mas ela não dá ouvidos. – Ina baixou a voz. – Nem mesmo ao médico!
Isso trouxe um sorriso de volta ao rosto de Alexander.
– Quando trouxeram você para cá, como eu disse, o médico olhou para você e balançou a cabeça. “Ele perdeu sangue demais”, disse ele, com tristeza. Eu pude ver que ele ficou preocupado.
Perdeu sangue demais?, pensou Alexander, empalidecendo.
Ina prosseguiu:
– “Esqueça-o”, disse ele. “Não há que possamos fazer”. – E parou de lavar Alexander por um segundo. – E você sabe o que Tatiana disse para ele?
– Nem imagino – respondeu Alexander. – O quê?
A voz de Ina soava como fofoca, mas num tom de frustração.
– Não sei quem ela pensa que é. Ela chegou bem perto dele, baixou a voz, olhou para ele direto nos olhos e disse: “Ainda bem, doutor, que ele não tenha dito a mesma coisa sobre o senhor quando você estava flutuando inconsciente no rio! Ainda bem que ele não virou as costas quando o senhor caiu, Dr. Sayers” – disse Ina alegremente. – Eu nem acreditei na audácia dela. Falar assim com um médico.
– O que ela estava pensando? – murmurou Alexander, fechando os olhos e imaginando sua Tania.
– Ela estava determinada. Para ela, era como uma espécie de cruzada pessoal – disse Ina. – Ela deu ao médico um litro de sangue para você...
– Onde ela o conseguiu?
– Dela mesma, é claro – respondeu Ina, sorrindo. – Para sua sorte, major, nossa enfermeira Metanova é doadora universal.
Claro que é, pensou Alexander, mantendo os olhos bem fechados.
Ina prosseguiu.
– O médico disse que ela não podia doar mais, e ela disse que um litro não era suficiente. E ele disse: “Sim, mas você não tem mais para doar”. E ela disse: “Vou produzir mais”. Então, ele disse: “Não”, e ela respondeu: “Sim”, e, em quatro horas, ela doou mais meio litro de sangue.
Alexander estava de costas, ouvindo atentamente enquanto Ina colocava gaze limpa em seu ferimento. Ele mal conseguia respirar.
– O médico disse a ela: “Tania, você está perdendo tempo. Olhe para a queimadura dele. Ela vai infeccionar”. Não havia penicilina suficiente para lhe dar, especialmente porque a contagem de seus glóbulos vermelhos era muito baixa – disse ela, rindo à beça, por não acreditar. – Então eu estava cumprindo meu turno bem tarde aquela noite, quando quem encontro ao lado de sua cama? Tatiana. Ela estava sentada com uma seringa no braço, ligada a um cateter, e eu fiquei observando-a, e, juro por Deus que você não vai acreditar quando eu lhe contar, major, mas eu vi que o cateter estava conectado à sua veia – disse ela, com os olhos escancarados. – Eu a vi drenar sangue da própria artéria radial para passar para o senhor. Eu corri e disse: “Você está louca? Está fora de si? Você está colocando o seu sangue diretamente nele?”. Ela me disse, com toda calma: “Ina, não vou ouvir nada. Se eu não fizer isto, ele vai morrer”. Eu gritei com ela. Eu disse: “Há trinta soldados na ala de críticos que precisam de suturas e bandagens, bem como da limpeza de seus ferimentos. Por que você não cuida deles e deixa Deus cuidar dos mortos?”. E ela respondeu: “Ele não está morto. Ele ainda está vivo, e enquanto estiver vivo, ele é meu”. Dá para acreditar, major? Mas foi o que ela disse. “Pelo amor de Deus”, eu disse ela. “Muito bem. Então, morra. Eu não me importo!” Mas, na manhã seguinte, quando fui me queixar com o Dr. Sayers que ela não estava seguindo os procedimentos, contei-lhe o que ela tinha feito e ele correu para repreendê-la – disse Ina, baixando a voz para um tom sibilante e incrédulo. – Nós a encontramos inconsciente no chão ao lado de sua cama. Ela parecia morta, mas... mas você tinha melhorado. Todos os seus sinais vitais estavam respondendo. E Tatiana se levantou do chão, pálida como a morte, e disse ao médico friamente: “Talvez agora o senhor possa lhe dar a penicilina de que ele precisa, mais plasma e morfina extra”. Então ele o operou, para tirar de você os fragmentos da bomba, e salvou seu rim. E deu pontos em você. E o tempo todo ela permaneceu ao lado dele, ou do seu. Ele disse a ela que as bandagens precisavam ser trocadas a cada três horas, para ajudar, com a drenagem, a evitar uma infecção. Só tínhamos duas enfermeiras na ala terminal, ela e eu. Eu tive que cuidar de todos os outros pacientes, enquanto ela só se ocupava de você. Durante quinze dias e noites, ela removia suas bandagens, lavava-o e mudava sua roupa. A cada três horas. No final, ela parecia um fantasma. Mas você sobreviveu. Foi então que removemos você para o tratamento crítico. Eu disse a ela: “Tania, este homem devia casar com você por tudo o que você fez por ele”. E ela disse: “Você acha?”. – Ina tornou a fazer uma pausa. – Você está bem, major? Por que está chorando?
Naquela tarde, quando Tatiana foi alimentá-lo, Alexander tomou-lhe a mão e, durante um longo tempo, não conseguiu falar.
– O que está havendo, querido? – perguntou ela num sussurro. – O que está doendo?
– O meu coração – respondeu ele.
Ela se inclinou sobre ele da cadeira onde estava.
– Shura, querido, deixe-me alimentá-lo. Eu preciso alimentar outros doentes graves depois de você. Um deles perdeu a língua. Imagina a dificuldade. Eu volto à noite se puder. Ina me conhece. Ela acha que eu me apeguei você – disse ela sorrindo. – Por que você está me olhando desse jeito?
Alexander não conseguiu falar.
Mais tarde, à noite, Tatiana voltou. As luzes estavam apagadas, e todos dormiam. Ela se sentou ao lado de Alexander.
– Tatia...
– A Ina é uma linguaruda – disse ela baixinho. – Eu disse a ela para não aborrecer meu paciente. Eu não queria preocupar você. Ela não conseguiu ficar de boca fechada.
– Eu não mereço você – disse ele.
– Alexander, o que você acha? Você acha que eu ia deixá-lo morrer quando eu sabia que podíamos fugir daqui? Eu não podia ter chegado tão perto disso e, então, perder você.
– Eu não mereço você – repetiu ele.
– Marido – disse ela. – Você esqueceu Luga? Meu Deus, você esqueceu Leningrado? Ou Lazarevo? Eu não esqueci. Minha vida pertence a você.
6
Alexander acordou e encontrou Tatiana sentada na cadeira. Ela estava dormindo, inclinando-se sobre sua cama, a cabeça loura coberta por um lenço branco de enfermeira. Tudo estava quieto no cômodo escuro, grande e frio. Ele tirou-lhe o lenço da cabeça e tocou as leves madeixas que lhe caíam sobre os olhos, tocou-lhe as sobrancelhas, correu os dedos em torno de suas sardas, de seu pequeno nariz, de seus lábios macios. Ela despertou.
– Hmm – disse ela, erguendo a mão para acariciá-lo. – É melhor eu ir embora.
– Tania... – sussurrou ele –, quando é que eu vou estar inteiro novamente?
– Querido – disse ela, com suavidade –, você não se sente inteiro? Me abrace, Shura – disse ela se inclinando sobre ele e o envolvendo com os braços –, me abrace com força. – Fez uma pausa e sussurrou: – Como eu gosto...
Alexander pôs os braços em torno dela. Os braços de Tatiana envolveram seu pescoço enquanto ela lhe beijava o rosto ternamente, com o cabelo contra ele.
– Me conte uma lembrança – sussurrou ele.
– Mmm, que tipo de lembrança você quer?
– Você sabe o que eu quero.
Ela continuou a beijar-lhe o rosto de leve enquanto sussurrava:
– Eu me lembro de uma noite chuvosa, correndo para casa, vindo da casa de Naira, e colocando nossos cobertores em frente do fogo, com você fazendo amor comigo da maneira mais terna, me dizendo que só ia parar quando eu implorasse – disse Tatiana, sorrindo, os lábios no rosto dele. – Eu implorei?
– Não – respondeu ele, com a voz falha. – Você não para os fracos, Tatiasha.
– Nem você – sussurrou ela. – E, depois, você pegou no sono em cima de mim. Eu fiquei acordada um longo tempo, abraçando seu corpo dormente. Eu nem mexi seu corpo e também acabei pegando no sono. E, de manhã, você ainda estava em cima de mim. Você lembra?
– Lembro – disse ele, fechando os olhos. – Eu lembro. Eu me lembro de tudo. Cada palavra, cada respiração, cada sorriso seu, cada beijo que você deu no meu corpo, todas as brincadeiras que tivemos, toda torta de repolho Cavaleiro de Bronze que você fez para mim. Eu me lembro de tudo.
– Conte-me você uma lembrança – sussurrou ela. – Mas bem baixinho. Aquele cego do outro lado vai ter um ataque do coração.
Alexander afastou-lhe o cabelo do rosto e sorriu.
– Eu me lembro da Axinya junto à porta da banya, enquanto nós estávamos sozinhos lá dentro, na água quente e cheia de sabonete, e eu dizendo para você: “shh”.
– Shh – sussurrou Tatiana sem fôlego, olhando para o homem que dormia do outro lado da enfermaria.
Alexander sentiu que ela estava tentando se afastar.
– Espere – disse ele, apertando-a e olhando ao redor da enfermaria escura. – Eu preciso de uma coisa.
Ela sorriu para ele.
– É mesmo? Do quê? – Alexander sabia que ela reconheceu o olhar dele. – Você precisa sarar, soldado.
– Mais rápido do que você possa imaginar.
Colocando o rosto mais perto do rosto dele, ela sussurrou:
– Ah, eu posso imaginar.
Alexander começou a desabotoar o topo de seu uniforme de enfermeira.
Tatiana recuou.
– Não, não faça isso – disse ela, baixinho.
– O que você quer dizer com não faça? Tatia, abra seu uniforme. Eu preciso tocar os seus seios.
– Não, Shura – negou ela. – Alguém pode acordar e nos ver. Então, vamos ficar encrencados. Alguém pode ver mesmo. Talvez como enfermeira eu possa justificar que estou segurando sua mão, mas pense no escândalo que isto poderia provocar. Acho que nem o Dr. Sayers iria entender.
Sem lhe soltar a mão, Alexander disse:
– Eu preciso de minha boca em você. Quero sentir seus seios contra o meu rosto, só por um segundo. Vamos, Tatiasha, abra o topo do seu uniforme, incline-se como se estivesse ajeitando o meu travesseiro, e me deixe sentir seus seios no meu rosto.
Suspirando e obviamente desconfortável, ela abriu o uniforme. Alexander queria tanto senti-la que não se importou quanto à propriedade da situação. Todo mundo está dormindo, pensou ele, observando-a avidamente enquanto ela abria o uniforme até a cintura, punha-se bem próximo dele e erguia a camisa de baixo.
Alexander gemeu tão alto quando viu seu corpo que ela se afastou e rapidamente abaixou a blusa. Seus seios haviam ficado duas vezes maiores do que eram antes, estavam túrgidos e de um branco leitoso.
– Tatiana – gemeu ele e, antes que ela pudesse se afastar novamente, agarrou-lhe o braço e a puxou para mais perto.
– Shura, pare com isso, solte-me – disse ela.
– Tatiana – repetiu Alexander. – Oh, não, Tania...
Ela não estava mais lutando contra a mão dele. Inclinando-se sobre ele, beijou-o.
– Vamos, solte-me – murmurou ela.
Alexander não a soltou.
– Oh, meu Deus, você está...
– Sim, Alexander. Eu estou grávida.
Sem fala, ele ficou olhando para o rosto brilhante dela.
– E que diabos você vai fazer? – perguntou ele, por fim.
– Nós – disse ela, beijando-o – vamos ter um bebê! Na América. Então, apresse-se e fique bom, para podermos sair daqui.
Sem encontrar palavras melhores para dizer, Alexander conseguiu perguntar:
– Há quanto tempo você sabe?
– Desde dezembro.
– Você sabia antes de vir para o front?
– Sabia.
– Você foi para cima do gelo sabendo que estava grávida?
– Fui.
– Você me deu seu sangue sabendo que estava grávida?
– Dei – respondeu ela, rindo. – Dei.
Alexander virou o rosto para a tenda de isolamento, para longe da parede, da cadeira em que ela estava sentada e do rosto dela.
– Por que você não me contou?
– Shura – disse ela. – Foi por isso que eu não lhe contei. Eu o conheço, você ficaria extremamente preocupado comigo, em especial porque você ainda não está bem. Você acha que não pode me proteger. Mas eu estou bem – disse ela, sorrindo. – Estou mais que bem. E ainda é cedo. O bebê não vai nascer antes de agosto.
Alexander pôs o braço sobre os olhos. Ele não conseguia olhar para ela, mas ouviu-a sussurrar:
– Você quer ver meus seios outra vez?
– Agora eu vou dormir – disse ele, balançando a cabeça. – Venha me ver amanhã – completou ele. Ele sentiu o beijo dela em sua testa. Depois que ela saiu, Alexander ficou sem dormir até a manhã seguinte.
Como Tania não conseguia entender os horrores que o assombravam, o medo que apertava seu coração quando se imaginava tentando passar pelas tropas de fronteira da NKVD e a Finlândia hostil com uma esposa grávida? Onde estava o bom senso dela, seu discernimento?
O que eu devo pensar? Esta é a moça que caminhou displicentemente 150 quilômetros através do Grupo Norte do Exército de Manstein para me levar dinheiro para que eu pudesse fugir e abandoná-la. Ela não tem juízo nenhum.
Eu não vou tirar minha mulher e meu filho da Rússia a pé, dizia Alexander para si mesmo. Seus pensamentos voltaram-se para o apartamento comunal da Quinta Soviet, para a sujeira, o fedor, as sirenes antiaéreas de manhã e de noite, o frio. Lembrou-se de ter visto, no ano anterior, uma mulher sentada na neve, congelada, segurando no colo o filho congelado, e ele tremeu. O que era pior para ele, como homem: ficar na União Soviética ou arriscar a vida de Tatiana para lhe oferecer um lar?
Soldado, oficial condecorado do maior exército do mundo, Alexander sentiu-se impotente diante de suas escolhas impossíveis.
Na manhã seguinte, quando Tatiana veio lhe dar o café da manhã, Alexander disse baixinho:
– Espero que você saiba, espero que você entenda que eu não vou a lugar nenhum com você grávida.
– Do que você está falando? É claro que vai.
– Esqueça.
– Meu Deus, Shura, é por isso que eu não queria lhe contar. Eu sei como você fica.
– Como é que eu fico, Tatiana? – disse ele exaltado. – Diga-me como eu fico? Eu não posso sair da cama. Como é que eu devo ficar? Deitado aqui, impotente, enquanto minha esposa...
– Você não está impotente! – exclamou ela. – Tudo o que você é você continua sendo, mesmo ferido. Então, não me venha com essa. Isto tudo é temporário. Você é permanente. Portanto, coragem, soldado. Olhe o que eu achei para você: ovos. O Dr. Sayers me garantiu que estes são ovos de verdade, e não desidratados. Você vai me dizer.
Alexander franziu o cenho, como se estivesse pensado em ir de Helsinque até Estocolmo em caminhões pelo gelo durante quinhentos quilômetros sob fogo alemão. Ele nem queria olhar para os ovos que ela estava segurando diante dele.
Ele a ouviu suspirar.
– Por que o seu animal interior tem essa natureza? – perguntou ela. – Por que você sempre fica assim?
– Como é que eu fico?
– Assim – disse ela, oferecendo-lhe o garfo para comer os ovos. – Coma, por favor...
Alexander atirou o garfo na bandeja de metal.
– Tania, faça um aborto – disse ele resoluto. – Deixe o Dr. Sayers se ocupar disso. Nós vamos ter outros bebês. Vamos ter muitos, muitos bebês, prometo. Tudo o que faremos é ter bebês, vamos ser como os católicos, tudo bem, mas não podemos fazer o que estamos planejando com você grávida, simplesmente não podemos. Eu não posso – acrescentou ele, tomando-lhe a mão, mas ela a retirou bruscamente e se levantou.
– Você está brincando?
– É claro que não. As garotas fazem sempre isso. – E fez uma pausa. – Dasha fez três – continuou ele, mas viu que o rosto de Tatiana estava horrorizado.
– Com você? – perguntou ela, com voz fraca.
– Não, Tatia – disse ele cansado, esfregando os olhos. – Não comigo.
Com suspiro de alívio, mas ainda pálida, Tatiana murmurou:
– Mas eu achava que o aborto era ilegal desde 1938.
– Oh, meu Deus! – exclamou Alexander. – Por que você é tão ingênua?
As mãos dela tremiam enquanto procurava se controlar, e ela disse entre dentes:
– Tudo bem. Sim. Bem, talvez eu pudesse ter tido três abortos ilegais antes de conhecer você. Talvez isso me fizesse mais atraente e menos ingênua aos seus olhos.
Alexander sentiu um aperto no coração.
– Desculpe... eu não quis dizer isso. – Ele esperou. Ela estava longe demais e muito aborrecida para que ele lhe tomasse a mão. – Eu achei que a Dasha tivesse lhe contado.
– Não, ela não me contou – disse Tatiana, com voz baixa e agoniada. – Ela nunca conversava comigo sobre essas coisas. E, sim, minha família me protegia o mais que podia. Contudo, nós vivíamos num apartamento comunal. Eu soube que minha mãe fez uma dezena de abortos em meados da década de trinta. E sabia que Nina Iglenko fez oito, mas não é disso que eu estou falando...
– E daí? Qual é o problema? Do que você está falando?
– Sabendo de como eu me sinto com relação a você... você acha que isso é uma coisa que eu poderia fazer?
– Não, claro que não – respondeu Alexander, apertando os lábios. – Por que você faria? – acrescentou, erguendo a voz. – Por que você faria alguma coisa que me trouxesse paz de espírito!
Inclinando-se sobre ele, Tatiana sussurrou com raiva:
– Você tem razão. A sua paz de espírito ou o seu filho. A escolha é difícil – acrescentou ela, jogando o prato de ovos em cima da bandeja de metal e saindo sem dizer palavra.
Como ela não voltou o resto do dia, Alexander concluiu que ter Tatiana zangada com ele era mais do que ele poderia aguentar... Por um minuto que fosse, quanto mais pelas dezesseis horas que ela levou para voltar. Ele pediu a Ina e ao Dr. Sayers que fossem buscá-la para ele, mas, aparentemente, ela estava muito ocupada e não podia vir. Bem tarde da noite, ela finalmente voltou, trazendo-lhe um pedaço de pão branco com manteiga.
– Você está zangada comigo, disse Alexander, pegando o pão das mãos dela.
– Zangada, não. Desapontada.
– O que é ainda pior – disse ele, balançando a cabeça, resignado. – Tania, olhe para mim. – Tatiana ergueu o olhar para ele, e lá, em seus olhos, em torno das bordas de seu oceano de íris, ela viu seu amor por ele transbordar. – Nós vamos fazer exatamente como você quer – disse Alexander, suspirando pesadamente. – Como sempre.
Sorrindo, Tatiana sentou-se na beira da cama e tirou um cigarro do bolso.
– Veja o que eu trouxe para você. Quer dar umas tragadas rápidas?
– Não, Tania – disse Alexander, estendendo a mão para ela e trazendo-a para perto dele. – Eu quero sentir seus seios em meu rosto. – E beijou-a, abrindo-lhe o uniforme.
– Você não vai recuar horrorizado, vai?
– Venha aqui. Incline-se em cima de mim.
Estava escuro na enfermaria, e todos dormiam. Tatiana levantou a blusa. Alexander ficou sem respirar. Ela se curvou sobre ele e pressionou-se contra ele. Mantendo os olhos abertos, ele recebeu seus seios quentes, aninhando o rosto entre eles. Ele inalou profundamente e beijou a pele branca sobre seu coração.
– Oh, Tatiasha...
– Sim.
– Eu amo você.
– Eu também amo você, soldado – disse ela, enquanto roçava de leve seus peitos por sua boca, seu nariz, suas faces. – Vou ter que barbear você – murmurou ela. – Sua barba está grande.
– E você está muito macia – murmurou ele, com a boca se fechando em torno de seu mamilo aumentado. Alexander percebeu que Tatiana fez força para não gemer. Quando ela gemeu, ela se afastou e puxou a blusa para baixo.
– Shura, não, não me excite. Todos esses homens vão acordar, eu garanto. Eles sentem o cheiro do desejo.
– E eu também – disse Alexander, com a voz pastosa.
Tornando a se abotoar e mais composta, Tatiana o abraçou.
– Shura – murmurou ela –, você não percebe? Nosso bebê é um sinal de Deus.
– É mesmo?
– Com toda certeza – disse ela, o rosto resplandecendo.
De repente, Alexander entendeu.
– É esse esplendor – exclamou ele. – É por isso que você é como uma chama movendo-se por este hospital. É o bebê!
– Sim – disse ela. – É o que nos estava reservado. Pense em Lazarevo... quantas vezes nós fizemos amor naqueles vinte e nove dias?
– Sei lá – disse ele sorrindo. – Quantas vezes? Quantos zeros seguindo o vinte e nove?
Ela sorriu baixinho.
– Dois ou três. Fizemos amor sem parar, e eu não engravidei. Você vem me ver um fim de semana, e cá estou eu... Como você diz, up the stick?
Alexander riu alto.
– Obrigado por isso. Mas, Tania, eu vou lembrá-la de que também fizemos amor um bocado durante aquele fim de semana.
– Fizemos.
Eles ficaram se olhando em silêncio e sem sorrir por um momento. Alexander sabia. Os dois haviam se sentido próximos demais da morte naquele fim de semana cinzento em Leningrado. E, contudo, ali estava o resultado...
Como se fosse para confirmar o que ele estava pensando, Tatiana disse:
– Isso é Deus nos dizendo para irmos em frente. Você também não sente isso? Ele está dizendo, esse é o destino de vocês! Não vou deixar que nada aconteça a Tatiana, enquanto ela carregar o filho de Alexander dentro dela.
– É? – disse Alexander, com a mão tocando no ventre dela. – Deus está dizendo isso, está? Por que você não diz isso à mulher que estava no caminhão de Ladoga com você e Dasha, segurando o bebê morto durante todo o caminho entre as barracas e Kobona?
– Agora eu me sinto mais forte que nunca – disse Tatiana, abraçando-o. – Onde está a sua famosa fé, grandão?
– Tania, você conversou com o Dr. Sayers? – perguntou Alexander, enquanto acariciava as mãos dela debaixo do cobertor, percorrendo seus dedos, sentindo suas articulações, o pulso, as palmas das mãos.
– Claro que conversei. Tudo o que eu faço é conversar com ele, passando todos os detalhes. Estamos esperando que você comece a andar. Tudo está arranjado. Ele já preencheu meus novos documentos da Cruz Vermelha para viajar – ronronou ela, inclinando-se para mais perto dele.
– Isso parece ótimo, Shura. Acho que eu vou dormir.
– Não durma. Sob que nome?
– Jane Barrington.
– Isso é bom. Jane Barrington e Tobe Hanssen.
– Tove.
– Minha mãe e um finlandês. Que belo par formamos.
– Não é mesmo? – disse ela, fechando os olhos. – Isso é muito bom, Shura – murmurou ela. Não pare.
– Não vou parar – sussurrou ele, olhando para ela. Isso a fez abrir os olhos.
Um instante. Eles se olharam. Lembrando. Os olhos piscando.
Tatiana sorriu.
– Na América, eu posso usar o seu nome? – sussurrou ela.
– Na América, vou insistir nisso – disse Alexander, pensativo.
– Qual é o problema?
– Nós não temos passaportes – disse ele.
– E daí? Você vai ao consulado Americano em Estocolmo. Vai dar tudo certo.
– Eu sei. Nós ainda temos que ir de Helsinque até Estocolmo. Não podemos ficar em Helsinque nem um segundo. É perigoso demais. Cruzar o Báltico. Não vai ser fácil.
Tatiana sorriu.
– O que é que você ia fazer com seu demônio manquitola? Faça a mesma coisa comigo. – Ela fez uma pausa. – Eugene chama o barqueiro, e ele, com ousada despreocupação, mostra-se disposto a levá-lo por uma ninharia através do formidável mar. Sua mãe, você, seus dez mil dólares vão nos levar de volta para a América – disse ela, sorrindo de felicidade com as duas mãos enlaçadas nas dele.
Alexander estava sufocando sob o peso de seu amor.
– Shura – disse Tatiana, com a voz trêmula –, lembra-se do dia em que você me deu o livro de Pushkin? Quando você me deu comida no Jardim de Verão?
– Parece que foi ontem – respondeu Alexander, sorrindo. – Foi na noite em que você se apaixonou por mim.
Tatiana enrubesceu e limpou garganta.
– Você teria... se eu não fosse uma garota tão recatada... você teria... – quis saber ela, afastando o olhar por um instante.
– O quê? O quê? – perguntou ele, apertando-lhe a mão. – Se eu teria beijado você?
– Hmm.
– Tania, você estava com tanto medo de mim – disse Alexander, balançando a cabeça ao se lembrar, o corpo doendo. – Eu fiquei completamente caído por você. Se eu beijei você? Eu teria violentado você no banco junto ao Saturno devorando os filhos, se você tivesse me dado um sinal verde.
7
Alexander ficava mais forte a cada dia. Ele já conseguia se levantar e ficar em pé próximo à cama. Essa posição ainda lhe trazia desconforto, mas já se livrara da morfina completamente, e agora suas costas latejavam da manhã à noite, lembrando-o de sua mortalidade. Ele entalhava madeira constantemente. De outro pedaço de madeira, havia entalhado um berço. Logo, logo, ele ficava dizendo para si mesmo. Ele queria ser removido para a área dos convalescentes, mas Tatiana o fez desistir da ideia. Ela dizia que o tratamento que ele recebia nos feridos críticos era bom demais para que ele o substituísse.
– Lembre-se – disse-lhe Tatiana uma tarde, quando estavam os dois em pé junto à cama, ele com o braço em torno dela –, você tem que ficar melhor de uma forma que ninguém ache que está ficando melhor. Ou, antes que você perceba, eles o mandarão de volta para o front com o seu estúpido morteiro. – Ela sorriu para ele.
Alexander tirou o braço. Ele viu Dimitri vindo em direção a eles.
– Coragem, Tania – sussurrou ele.
– O que foi?
– Tatiana! Alexander! – exclamou Dimitri. – Não, isto não é incrível? Nós três juntos outra vez. Se Dasha pudesse estar aqui.
Alexander e Tatiana nada disseram. Nem olharam um para o outro.
– Tania, como vão esses casos terminais? Eu estou lhe trazendo mais lençóis brancos.
– Obrigada, Dimitri.
– Ah, claro. Alexander, aqui estão alguns cigarros para você. Não se preocupe em me pagar. Sei que você provavelmente não tem dinheiro com você. Eu posso pegar seu dinheiro e trazê-lo para você...
– Não se preocupe, Dimitri.
– Não é problema – disse ele, nos pés da cama do major, os olhos dardejando de Alexander para Tatiana. – Então, Tania, o que você está fazendo aqui na ala de casos críticos? Achei que você trabalhasse com os casos terminais.
– E trabalho mesmo. Mas também me ocupo de outros pacientes. O Leo do leito trinta era um caso terminal. Agora está sempre perguntando por mim.
Dimitri sorriu.
– Tania, não só o Leo. Todo mundo está perguntando por você. – Tatiana não disse nada. Nem Alexander, que estava sentado na cama. Dimitri continuou a observá-los. – Ouçam, foi bom ver vocês dois. Alexander, voltou para visitá-lo amanhã, certo? Tania, você quer que eu a acompanhe?
– Não, eu tenho que trocar Alexander.
– Oh, é que o Dr. Sayers estava procurando você. “Onde está a minha Tania?”, disse o Dr. Sayers – Dimitri sorriu com intensidade. – Essas foram exatamente as palavras dele. Você parece ter ficado muito amiga dele, não é mesmo? – comentou ele, erguendo as sobrancelhas para ela. – Você sabe o que dizem desses americanos.
Tatiana não fez nenhum gesto, nem piscou. Limitou-se a se voltar para Alexander, dizendo:
– Vamos, deite-se.
Alexander não se moveu.
– Tania, você me ouviu? – perguntou Dimitri.
– Eu ouvi! – disse Tania, sem olhar para Dimitri. – Se você vir o Dr. Sayers, diga-lhe que vou até ele assim que puder.
Depois que Dimitri saiu, Alexander e Tatiana se entreolharam.
– Em que você está pensando? – perguntou ele.
– Que eu preciso trocar a sua roupa. Deite-se.
– Você quer saber no que estou pensando?
– De jeito nenhum – replicou ela.
Deitado de bruços, Alexander disse:
– Tania, onde está a mochila com as minhas coisas?
– Não sei – disse ela. Por quê? Para que você precisa dela?
– Ela estava nas minhas costas quando eu fui ferido...
– Mas não estava nas suas costas quando nós o pegamos. É possível que tenha se perdido, querido.
– Sim... – disse ele, afastando-se. – Mas, normalmente, as unidades de retaguarda recolhem tudo depois que a batalha termina. E pegam coisas como essa. Você pode verificar?
– Claro – disse ela, desembrulhando as bandagens. – Vou perguntar ao coronel Stepanov. Sabe, Shura, a única coisa que eu desejo quando vejo suas costas é brincar de trenzinho de ferro – disse ela, beijando-lhe o ombro nu.
– E a única coisa que eu quero fazer quando vejo as suas costas – disse ele, fechando os olhos – é brincar de trenzinho de ferro.
Naquela noite, mais tarde, quando ela estava sentada ao lado dele, Alexander lhe disse, agarrando-se a ela:
– Tatiana, você tem que me prometer... ó Deus, me ajude... que se alguma coisa me acontecer, você vai embora assim mesmo.
– Não seja ridículo. O que pode acontecer com você? – disse ela, sem olhar para ele.
– Você está tentando ser corajosa?
– De jeito nenhum – disse ela. – Assim que você estiver bem, nós vamos embora. O Dr. Sayers está pronto para ir a qualquer hora. Na verdade, ele está doido por ir. Ele é um grande resmungão. Está sempre se queixando de tudo. Não gosta do frio, não gosta da ajuda que recebe, não gosta... – Tatiana se deteve. – Mas do que você estava falando? O que pode acontecer? Não vou deixar você voltar para o front. E não vou embora sem você.
– É disso que eu estou falando. É claro que você vai.
– É claro que eu não vou.
Alexander tomou-lhe a mão.
– Agora, ouça-me...
Tatiana quis se levantar, virando a cabeça.
– Eu não quero ouvir – disse ela, sem que ele soltasse sua mão. – Alexander, por favor, não me apavore. Eu estou tentando ser corajosa. Por favor – disse ela com calma e a respiração curta.
– Tania, muitas coisas podem dar errado – disse ele. Depois de uma pausa, continuou: – Você sabe que sempre há o perigo de eu ser preso.
Ela concordou com a cabeça.
– Eu sei. Mas se você for pego pelos carrascos do Mekhlis, eu vou esperar.
– Esperar o quê? – exclamou ele, frustrado. Alexander aprendeu da pior maneira que o máximo que ele podia esperar era que Tatiana concordasse com ele. Se ela tivesse sua opinião própria, ele não tinha a mínima esperança de convencê-la do contrário.
A emoção deve ter estampado seu rosto, porque ela lhe tomou as mãos escurecidas pela guerra em suas mãos brancas e impecáveis, levou-as aos lábios e disse:
– Esperar por você. – Então, tentou se desvencilhar dele. Ele não estava conseguindo nada. Tirando-a da cadeira, fez com que ela se sentasse ao lado dele na cama.
– Esperar por mim onde? – perguntou ele.
– Em Leningrado. No meu apartamento. Inga e Stan foram embora. Eu tenho dois quartos. Eu vou esperar. E quando você voltar, estarei lá com o nosso bebê.
– O conselho soviético ocupará o vestíbulo e o quarto com o aquecedor.
– Então, eu vou esperar no quarto que sobrar.
– Por quanto tempo?
Ela olhou para a janela escura e para os outros pacientes que dormiam. Menos para ele. O hospital estava quieto, sem nenhum som, exceto a respiração dele e a dela.
– Vou esperar o quanto for necessário – respondeu ela.
– Oh, pelo amor de Deus! Você prefere virar uma solitária num quarto frio sem encanamento a ter uma vida melhor?
– Prefiro – disse ela. – Não existe outra vida para mim. Portanto, pode esquecer.
Alexander sussurrou:
– Tania, por favor... – mas não conseguiu continuar. – O que vai acontecer quando Mekhlis vier atrás de você? O que você vai fazer?
– Eu vou para onde me mandarem. Vou para Kolyma – disse ela. – Vou para a Península de Taymir. O Comunismo vai acabar por cair...
– Você tem certeza disso?
– Tenho. Por fim, não vai haver mais pessoas para a reconstrução. Então, eles vão me libertar.
– Meu Jesus – sussurrou Alexander. – Não se trata mais de você. Você tem que pensar no nosso bebê!
– Do que você está falando? O Dr. Sayers não vai me levar sem você. Eu não tenho o direito de... nenhum direito... sobre a América – disse Tatiana. – Alexander, eu vou para qualquer lugar deste mundo com você. Você quer ir para América? Eu digo sim. Você quer ir para a Austrália? Sim, eu concordo. Para a Mongólia? O deserto de Góbi? O Daguestão? O lago Baikal? A Alemanha? O lado frio do inferno? Eu pergunto quando vamos partir. Aonde quer que seja, eu vou com você. Mas se você ficar, eu também fico. Não vou deixar o pai do meu bebê na União Soviética.
Inclinando-se sobre um Alexander estupefato, Tatiana comprimiu os seios contra o rosto dele, beijando-lhe a cabeça. Então, tornou a sentar-se e beijou seus dedos trêmulos.
– O que você me disse em Leningrado? “Que tipo de vida você acha que eu poderia ter na América”, você disse, “sabendo que deixei você na União Soviética para morrer... ou apodrecer na cadeia”. Agora estou citando o que você disse. Essas foram as suas palavras – disse ela, sorrindo. – E, nesse ponto, eu tenho que concordar com você – acrescentou, balançando a cabeça com suavidade –: se eu deixar você ir, não importa que estrada eu siga, o Cavaleiro de Bronze vai me perseguir, com seu forte tropel, durante toda aquela longa noite em minha poeira enlouquecedora.
– Tatiana... é a guerra – começou Alexander, emocionado. – Tudo à nossa volta é guerra – prosseguiu, sem poder olhar para ela. – Os homens morrem na guerra.
Uma lágrima escapou do olho de Tatiana, por mais que ela tentasse ser forte.
– Por favor, não morra – murmurou ela. – Eu não conseguiria enterrá-lo. Eu já enterrei todos os outros.
– Como é que eu posso morrer – disse Alexander, com voz embargada –, com você derramando seu sangue imortal em mim?
E, então, Dimitri surgiu numa fria manhã de inverno, com a mochila de Alexander nas mãos. Ele estava mancando forte da perna direita. O menino de recados dos generais, o lacaio inútil, constantemente distribuindo cigarros, vodca e livros entre acampamentos e barracas na retaguarda, o fugitivo que se recusou a empunhar armas, Dimitri inclinou-se para a frente e entregou a mochila a Alexander.
– Ah, então ela foi encontrada – disse Alexander, pegando a mochila. – O que aconteceu?
– Você não soube? Alguma imbecilidade lá na margem. Alguns caras... não sei se eles estavam bêbados. Olhe para o meu rosto.
Alexander viu os ferimentos.
– Eu estava cobrando demais pelo cigarro, disseram eles. “Fiquem com eles”, eu disse, “fiquem com todos eles”. Eles ficaram. E me bateram de qualquer maneira – explicou Dimitri, com um sorriso afetado. – Bem, eles não vão rir por muito tempo – continuou ele, indo se sentar na cadeira sob a janela. – Tatiana me fez muito bem. Deixou-me inteiro – alguma coisa na voz de Dimitri embrulhou o estômago de Alexander. – Ela é maravilhosa, não é mesmo?
– É – disse Alexander. – Ela é uma boa enfermeira.
– Boa enfermeira, boa mulher, boa... – Dimitri interrompeu-se.
– Isso foi muito bom – disse Alexander. – Obrigado por minha mochila.
– Ah, claro – disse Dimitri, levantando-se e, como se tivesse parado para pensar, tornou a sentar-se e disse: – Eu quis ter certeza de que você tinha tudo do que precisava em sua mochila: seus livros, sua caneta e papel. Então, verifiquei que você não tinha nem caneta nem papel, então foi bom eu ter verificado, pois coloquei alguns na sua mochila, caso você queira escrever uma carta – acrescentou ele, sorrindo com satisfação. – Também coloquei alguns cigarros e um isqueiro novo.
Segurando a mochila, Alexander, com os olhos escuros, disse:
– Você andou olhando as minhas coisas? – O enjoo no estômago se intensificou.
– Ah, eu só tentei ser útil – disse Dimitri, tornando a fazer menção de partir. – Mas você sabe... – continuou ele, voltando-se. – Eu achei uma coisa muito interessante nela.
Alexander virou o rosto. As cartas de Tatiana que ele relutara em queimar. Mas havia uma coisa que ele não pôde queimar. Um raio de luz de esperança que ele continuava a carregar com ele.
– Dimitri – disse Alexander, atirando a mochila para o lado da cama e cruzando os braços num silêncio desafiador –, o que é que você quer?
Pegando a mochila, Dimitri, de um modo polido e amigável, desabotoou um dos bolsos e puxou o vestido branco com rosas vermelhas de Tatiana.
– Veja o que eu encontrei bem no fundo.
– E daí? – perguntou Alexander com voz calma.
– Daí? Bem, você está completamente certo. Por que você não carregaria um vestido pertencente à irmã de sua falecida noiva?
– O que o surpreendeu, Dimitri? Encontrar o vestido. Isso não pode ter lhe causado tanta surpresa, não é mesmo? – disse Alexander acidamente. – Você mexeu nas minhas coisas, à procura dele.
– Bem, sim e não – disse Dimitri jovialmente. – Eu fiquei um pouco surpreso. Um pouco perplexo.
– Perplexo? Por quê?
– Bem, eu achei que era muito interessante. Um vestido inteiro, e eis Tatiana aqui no front, trabalhando lado a lado com um médico da Cruz Vermelha, e eis Alexander no mesmo hospital. Suspeitei de que não se tratava de mera coincidência. Eu sempre achei que vocês sentiam alguma coisa um pelo outro – disse ele, olhando para Alexander. – Sempre, sabe. Desde o início. Assim fui até o coronel Stepanov, que se lembrou de mim dos velhos tempos e foi muito caloroso comigo. Eu sempre gostei desse homem. Eu lhe disse que ficaria feliz em lhe trazer seu pagamento, para que você pudesse comprar tabaco, papéis, manteiga extra e um pouco de vodca. Então, ele me mandou ao auxiliar do CO, que me deu quinhentos rublos, e quando expressei surpresa por você ganhar apenas quinhentos rublos como major, você sabe o que o auxiliar me contou?
Rangendo os dentes, para diminuir o latejar de suas têmporas, Alexander disse lentamente:
– O que ele lhe contou?
– Que você mandava o resto do seu dinheiro para uma Tatiana Metanova, na Quinta Soviet!
– Sim, é verdade.
– Claro, por que não? Então eu voltei ao coronel Stepanov e disse: “Coronel, não é fantástico que nosso luxurioso Alexander tenha finalmente encontrado uma boa moça, como a nossa enfermeira Metanova”, e o coronel disse que ele mesmo estava surpreso por vocês terem se casado em Molotov na sua licença de verão, sem contar para ninguém.
Alexander não disse nada.
– Sim! – exclamou Dimitri, de maneira franca e alegre. – Eu disse que era uma surpresa porque eu era seu melhor amigo, e nem eu sabia de nada, e o coronel concordou que você era realmente um camarada muito discreto, e eu disse: “Oh, o senhor nem faz ideia”.
Alexander desviou os olhos de Dimitri, sentando-se na cadeira e olhando para os outros soldados em suas camas. Ele ficou imaginando se poderia se levantar? Poderia? Caminhar? O que ele poderia fazer?
Dimitri levantou-se.
– Ouça, é maravilhoso! Eu só queria lhe dar meus parabéns. Agora vou procurar Tania para cumprimentá-la.
Tatiana foi até Alexander no fim daquela tarde. Depois de lhe dar comida, ela foi buscar um balde de água quente e um pouco de sabonete.
– Tania, não carregue isso. É pesado demais para você.
– Pare com isso – disse ela, sorrindo. – Estou carregando o nosso bebê. Você acha que um balde é pesado demais para mim?
Eles não conversaram muito. Tatiana lavou Alexander, barbeou-o com uma lâmina e secou seu rosto. Ele manteve os olhos fechados para que ela não pudesse perceber seus sentimentos. De vez em quando, sentia o hálito quente dela sobre ele, e de vez em quando seus lábios tocavam-lhe as sobrancelhas ou os dedos. Ele a sentiu tocando em seu rosto e ouviu-a suspirar.
– Shura – disse ela com um peso na voz –, hoje eu vi o Dimitri.
– Sim – e ele não disse isto em tom de pergunta.
– Sim – disse ela, fazendo uma pausa. – Ele estava... ele me disse que você lhe contou que nós estamos casados. Ele disse que estava feliz por nós... – prosseguiu ela, com um suspiro. – Acho que era inevitável que ele descobrisse mais cedo ou mais tarde.
– Sim, Tatiana – disse Alexander. – Nós fizemos o que pudemos para nos esconder de Dimitri.
– Ouça, eu posso estar errada, mas ele não pareceu ter ficado tenso e nervoso como normalmente acontece. Como se ele realmente não se importasse com você e comigo. O que você acha? – perguntou ela esperançosa.
Você acha que talvez esta guerra o tenha transformado num ser humano? Alexander desejou perguntar-lhe. Você acha que esta guerra é uma escola para a humanidade, e que Dimitri agora está pronto para se graduar com honras? Mas Alexander abriu os olhos e viu a expressão assustada de Tatiana.
– Acho que você tem razão – disse ele, em voz baixa. – Acho que ele não se importa mais com você e comigo.
Tatiana limpou a garganta e tocou o rosto limpo e barbeado de Alexander. Inclinando-se sobre ele, ela sussurrou:
– Você acha que vai poder se levantar logo? Eu não quero apressá-lo. Vi você ontem tentando andar um pouco. Dói quando você fica em pé? Suas costas doem? Elas estão sarando, Shura. Você vai indo muito bem. Assim que você estiver pronto, nós iremos. E nunca mais vamos tornar a vê-lo.
Alexander ficou olhando para ela durante intermináveis minutos. Antes que ele abrisse a boca, Tatiana disse:
– Shura, não se preocupe. Meus olhos estão abertos. Eu vejo Dimitri como ele é.
– Vê mesmo?
– Vejo. Porque, como todos nós, ele também é a soma de suas partes.
– Ele não pode ser redimido, Tania. Nem mesmo por você.
– Você acha? – perguntou ela, tentando sorrir.
Alexander apertou-lhe a mão.
– Ele é exatamente o que deseja ser. Como ele pode ser redimido quando está construindo a vida sobre o que ele acredita ser a única maneira de viver? Não a sua maneira, não a minha maneira, a maneira dele. Ele se construiu em cima de mentiras e enganos, em cima da manipulação e da malícia, no desprezo por mim e no desrespeito por você.
– Eu sei.
– Ele descobriu um canto escuro do universo e quer que todos nós fiquemos lá com ele.
– Eu sei.
– Tenha cuidado com ele, certo? E não lhe diga nada.
– Tudo bem.
– O que vai lhe custar, Tatiana, rejeitá-lo, dar-lhe as costas? Dizer não quero dar-lhe a mão porque ele não quer ser salvo. O quê?
Os pensamentos dela saltaram-lhe pelos olhos.
– Oh, ele há de querer ser salvo, Shura. Mas apenas não tem esperança disso.
Andando com a ajuda de uma bengala, Dimitri foi ver Alexander no dia seguinte. Isto está se tornando a minha vida, pensou Alexander. Há luta do outro lado do rio, há cura no quarto ao lado, os generais estão fazendo planos, os trens estão levando comida para Leningrado, os alemães estão nos trucidando nos Montes Sinyavino, o Dr. Sayers está se preparando para deixar a União Soviética. Tatiana está cuidando dos feridos terminais, gerando uma vida dentro dela, e eu estou aqui, deitado, com minha cama sendo trocada e arrumada e olhando o mundo passar por mim. Observando meus minutos passarem por mim correndo. Alexander estava tão aborrecido que tirou as cobertas e saiu da cama. Levantou-se e começou a mexer em sua mochila, quando Ina correu e o fez deitar-se, murmurando que seria melhor ele não tentar aquilo de novo.
– Ou eu conto para a Tatiana – sussurrou ela, deixando Alexander sozinho com Dimitri, que afundou na cadeira.
– Alexander, eu preciso conversar com você. Você está forte o suficiente para ouvir?
– Estou, Dimitri. Estou suficientemente forte para ouvir – respondeu Alexander, com um esforço supremo e virando a cabeça na direção de Dimitri. Ele não conseguiu encará-lo.
– Ouça. Eu estou sinceramente feliz por você e Tatiana terem se casado. Já não tenho maus sentimentos. Honestamente. Mas, Alexander, como você sabe, há uma coisa inconclusa entre nós.
– Sim – replicou Alexander.
– Tania é muito boa, com muita compostura. Acho que eu a subestimei. Ela é menos lenta do que eu pensei.
Dimitri não fazia a menor ideia.
– Eu sei que vocês estão planejando alguma coisa. Eu sei. Sinto no coração. Eu tentei fazer com ela falasse. Ela ficou dizendo que não sabia do que eu estava falando. Mas eu sei! – disse Dimitri, com voz excitada. – Eu conheço você, Alexander Barrington, e estou perguntando se há espaço para este velho amigo em seus planos.
– Eu não sei do que você está falando – retrucou Alexander, com decisão, pensando que houve uma época em que ele não tinha ninguém mais em quem confiar além deste homem. Eu punha minha vida nas mãos dele. – Dimitri, eu não tenho plano algum.
– Hmm. Sim. Mas, agora eu entendo muitas coisas – disse Dimitri com uma voz untuosa. – Tatiana é o motivo de você ter postergado fugir. Você queria pensar num jeito de fugir com ela? Ou não queria desertar e deixá-la para trás? De qualquer modo, eu não o culpo. – Ele limpou a garganta. – Mas eu digo que agora vamos todos juntos.
– Nós não temos planos – disse Alexander. – Mas se alguma coisa mudar, nós lhe contaremos.
Uma hora depois, Dimitri voltou a atacar, desta vez com Tatiana. Ele a fez sentar numa cadeira enquanto se acocorava ao lado deles.
– Tania, eu preciso conversar com você para que você faça seu marido ferido ter juízo – disse Dimitri. – Explique a ele que eu quero é que vocês dois me tirem da União Soviética. Foi o que eu sempre quis. Sair da União Soviética. Estou ficando ansioso, muito nervoso, entende, pois não posso perder a chance de escapar com vocês e ficar aqui, no meio da guerra. Entende?
Alexander e Tatiana nada disseram.
Alexander ficou olhando para o lençol. Tatiana olhou diretamente para Dimitri. Foi então que, ao ver Tania olhando inflexivelmente para Dimitri, Alexander se sentiu mais forte e também encarou Dimitri.
– Tania, eu estou do lado de vocês – afirmou Dimitri. – Não desejo nenhum mal nem a você nem a Alexander. Muito pelo contrário. – Ele riu. – Eu lhes desejo toda a sorte do mundo. É tão difícil que duas pessoas encontrem a felicidade. Eu sei. Eu tentei. Vocês dois terem conseguido é um milagre. Agora, tudo o que eu quero é uma chance para mim. Só quero que vocês me ajudem.
– A autopreservação – disse Alexander – é um direito inalienável.
– O quê? – perguntou Dimitri.
– Nada – replicou Alexander.
Tatiana disse:
– Dimitri, eu realmente não sei o que isto tem a ver comigo.
– Ora, tudo, cara Tanechka, tem tudo deste mundo a ver com você. A menos que, é claro, seja com o médico americano saudável que você está planejando fugir, e não com seu marido ferido. Vocês fizeram planos para ir com o Sayers quando ele voltar para Helsinque, não é isso?
Ninguém deu resposta.
– Não tenho tempo para essas brincadeiras – disse Dimitri, com frieza, levantando-se e se inclinando sobre sua bengala. – Tania, eu estou lhe dizendo: ou vocês me levam com vocês ou acho que vou ter que manter Alexander aqui na União Soviética comigo.
Com a mão ainda segurando a de Alexander, Tatiana permaneceu estoicamente sentada em sua cadeira e, então, olhou para Alexander e ergueu os ombros num leve questionamento. Alexander apertou-lhe a mão com tanta força que ela deu um gritinho.
– Aí está – exclamou Dimitri. – Esse é o momento que eu esperava. Ela o convence, miraculosamente, a ver tudo. Tatiana, como é que você faz isso? Como é que você possui essa incrível capacidade de perceber tudo? Seu marido, que domina menos essa capacidade, luta contra você, mas no final ele cede porque sabe que é a única saída.
Alexander e Tatiana não disseram uma palavra. Ele relaxou o aperto na mão dela, que continuou na dele.
Dimitri cruzou os braços e esperou.
– Não vou sair daqui até obter uma resposta. Tania, o que você diz? Alexander é meu amigo há seis anos. Eu gosto de vocês dois. Não quero lhes trazer problemas – disse Dimitri, revirando os olhos. – Acreditem em mim... eu odeio confusão. Tudo o que eu quero é uma pequena porção do que vocês estão planejando para vocês. Não é pedir muito, é? Só quero um pedacinho. Não acha que também vai ser egoísta, Tania, se não me der a chance de uma nova vida? Vamos lá... você que deu sua aveia para uma Nina Iglenko faminta no ano passado, com certeza não vai me negar tão pouco quando... – e aqui ele fez uma pausa, olhando para ela e para Alexander – vocês têm tanto.
A dor e a raiva se atropelaram na corrida até seu coração já cansado de lutar, e Alexander disse:
– Tania, não lhe dê ouvidos. Dimitri, deixe-a em paz. Isto é entre nós. Isto não tem nada a ver com ela – acrescentou ele. Dimitri ficou quieto. Tatiana ficou quieta, com os dedos roçando a palma da mão de Alexander ritmicamente, pensativa e atenta. Ela abriu a boca para falar. – Não diga uma palavra, Tatiana – interrompeu-a Alexander.
– Diga, sim, Tatiana – disse Dimitri. – Você é quem decide. Mas, por favor, deixe-me ouvir a sua resposta. Pois eu não tenho muito tempo.
Alexander observou Tatiana se levantar.
– Dimitri – disse ela, sem piscar –, ai daquele que estiver sozinho quando cair, pois não terá ninguém para levantá-lo.
Dimitri franziu o cenho.
– Com isso devo entender que você... – ele se interrompeu. – O quê? O que você está dizendo? Isso é um sim ou um não?
Com a mão segurando firme a de Alexander, Tatiana disse numa voz quase inaudível:
– Meu marido lhe fez uma promessa. E ele sempre cumpre sua palavra.
– Sim! – exclamou Dimitri, levantando-se num salto em direção a ela. Alexander ficou observando Tatiana se afastar bruscamente.
Tatiana falou com voz suave:
– Toda gentileza é recompensada por pessoas boas. Dimitri, eu vou lhe contar sobre os nossos planos mais tarde. Mas você vai ter que estar pronto a qualquer momento. Entendido?
– Já estou pronto – respondeu Dimitri com excitação. – E estou falando sério. Quero partir o mais rápido possível – completou ele, estendendo a mão para Alexander, que virou o rosto, ainda segurando a mão de Tatiana. Ele não tinha a menor intenção de apertar a mão de Dimitri.
Foi uma pálida Tatiana que juntou as mãos deles.
– Está tudo certo – disse ela, com a voz tremendo ligeiramente. – Vai ficar tudo bem.
Dimitri foi embora.
– Shura, o que é que nós podíamos fazer? – disse Tatiana, enquanto o alimentava. – Vai ter que funcionar. Isso muda um pouquinho as coisas. Mas não muito. Nós vamos dar um jeito.
Alexander voltou os olhos para ela.
Ela balançou a cabeça.
– Ele quer sobreviver mais que qualquer outra coisa. Você mesmo me disse isso.
Mas o que você me disse, Tatiana?, pensou Alexander. O que você me contou no telhado de Santo Isaac, sob o céu negro de Leningrado?
– Nós vamos dar um jeito nele. Ele vai nos deixar em paz. Você vai ver. Só melhore rápido, por favor.
– Vamos, Tania – disse Alexander. – Diga ao Dr. Sayers que quando ele estiver pronto para partir, eu também estarei.
Tatiana saiu.
Passou-se um dia
Dimitri voltou.
Ele se sentou na cadeira ao lado de Alexander, que não o olhou. Ele manteve o olhar a média distância, a longa distância, a curta distância em seu cobertor de lã marrom, tentando relembrar o último nome do hotel residência de Moscou em que ele morara com o pai e a mãe. O hotel mudava frequentemente de nome. Isso havia sido fonte de confusão e hilaridade para Alexander, que agora estava deliberadamente focando sua mente longe de Tatiana e longe da pessoa sentada na cadeira a menos de um metro dele. Oh, não, pensou Alexander, com uma pontada de dor.
Ele lembrou o último nome do hotel.
Era Kirov.
Dimitri limpou a garganta. Alexander aguardou.
– Alexander, podemos conversar? Isto é muito importante.
– Tudo é importante – disse Alexander. – Tudo o que eu faço é falar. O que foi?
– É sobre Tatiana.
– O que exatamente? – quis saber Alexander, olhando para o seu cateter. Quando é que eles o tirariam? Vai sangrar? Olhou em torno da enfermaria. Era pouco depois do almoço, e os outros feridos estavam dormindo ou lendo. A enfermeira de plantão estava sentada junto à porta, lendo. Alexander ficou imaginando onde Tatiana estaria. Ele não precisava do cateter. Tatiana o mantinha para fazer com que ele permanecesse na enfermaria dos feridos críticos, para garantir seu leito. Não. Não pense em Tatiana. Recompondo-se, Alexander sentou-se, apoiando as costas na parede.
– Alexander, eu sei como você se sente em relação a ela...
– Sabe?
– Claro.
– De alguma forma, eu duvido. O que há com ela?
– Ela está doente.
Alexander não disse nada.
– Sim, doente. Você não sabe o que eu sei. Você não vê o que eu vejo. Ela é um fantasma perambulando por este hospital. Desmaia constantemente. Outro dia, ela desmaiou na neve por não sei quanto tempo. Um tenente teve que erguê-la. Nós a trouxemos para o Dr. Sayers. Ela fez uma cara de corajosa...
– Como você sabe que ela ficou na neve?
– Eu ouvi a história. Eu ouço tudo. Também a vi na ala dos terminais. Ela se agarra à parede quando anda. Ela disse ao Dr. Sayers que não estava se alimentado direito.
– E como é que você sabe disso?
– O Sayers me contou.
– Você e o Dr. Sayers estão ficando ótimos amigos, pelo que estou vendo.
– Não. Eu só lhe trago as bandagens, iodo, suprimentos médicos da outra margem do lago. Parece que nada chega para ele. Nós conversamos um pouco.
– Aonde você quer chegar?
– Você sabia que ela não estava se sentindo bem?
Alexander ficou sério e pensativo. Ele sabia por que Tatiana não estava se alimentado direito e por que ela desmaiava. Mas a última coisa que ele ia fazer era confiar qualquer coisa sobre Tatiana a Dimitri. Alexander ficou quieto um instante e depois disse:
– Dimitri, aonde você quer chegar?
– Sim, eu quero chegar a algum lugar – respondeu Dimitri, baixando a voz e puxando a cadeira para mais perto da cama. – O que estamos planejando... é perigoso. Requer força física, coragem, força moral.
Alexander voltou a cabeça para Dimitri.
– Sim? – Ele estava surpreso que palavras como “força moral” pudessem vir da boca de Dimitri. – E daí?
– Como você acha que Tatiana vai conseguir?
– Do que você está falando...
– Alexander! Ouça-me por um segundo. Espere, antes de dizer outra coisa. Ouça. Ela está fraca, e nós temos uma jornada difícil pela frente. Mesmo com a ajuda de Sayers. Você sabia que há seis postos de controle entre aqui e Lisiy Nos? Seis. Uma sílaba que ela fale em qualquer um deles, e estamos todos mortos. Alexander... – Dimitri fez uma pausa. – Ela não pode ir conosco.
Mantendo a voz baixa – era a única maneira de falar –, Alexander disse:
– Eu não vou continuar com esta conversa ridícula.
– Você não está ouvindo.
– Tem razão, não estou.
– Pare de ser tão obstinado. Você sabe que eu tenho razão...
– Não sei de nada! – exclamou Alexander, com os punhos cerrados. – Só sei que, sem ela... – ele se interrompeu. O que estava fazendo? Ia tentar convencer Dimitri? Não gritar exigiu um esforço de Alexander para o qual ele não estava preparado. – Estou ficando cansado – completou ele, em voz alta. – Vamos acabar de conversar outra hora.
– Não vai haver outra hora! – sibilou Dimitri. – Abaixe a voz. Nós devemos partir em quarenta e oito horas. E eu estou lhe dizendo que não quero ser enforcado porque você não consegue ver com clareza nem à luz do dia.
– Eu enxergo com toda a clareza, Dimitri – retrucou Alexander. – Ela vai ficar bem. E ela vai conosco.
– Aqui ela desmaia depois de seis horas de trabalho.
– Seis horas? Onde é que você fica? Ela está aqui vinte e quatro horas por dia. Ela não fica sentada num caminhão, não fica sentada fumando e bebendo vodca no trabalho dela. Ela dorme no papelão e come o resto dos soldados, além de lavar o rosto na neve. Não me fale como é o dia dela.
– E se houver um incidente na fronteira? E se, apesar dos esforços de Sayers, formos detidos e interrogados? Você e eu vamos usar nossas armas. Vamos reagir e lutar.
– Vamos fazer o que tiver que ser feito – disse Alexander, olhando para a bengala de Dimitri, para seu rosto ferido, seu corpo encurvado.
– Sim, mas o que ela vai fazer?
– Ela vai fazer o que tiver que ser feito.
– Ela vai desmaiar! Ela vai desmaiar na neve, e você vai ficar sem saber se mata os soldados da fronteira ou a socorre.
– Vou fazer as duas coisas.
– Ela não consegue correr, não consegue atirar, não consegue lutar. Ela vai ter um chilique ao primeiro sinal de confusão e, acredite, sempre aparece confusão.
– Você consegue correr, Dimitri? – perguntou Alexander, incapaz de conter o ódio em sua voz.
– Consigo! Ainda sou um soldado.
– E o médico? Ele também não pode lutar.
– Ele é homem! E, francamente, estou menos preocupado com ele que com...
– Você está preocupado com Tatiana? É bom ouvir isso.
– Estou preocupado com o que ela vai fazer.
– Ah, essa é uma bela diferença.
– Estou preocupado que você fique tão ocupado se ocupando dela que estrague tudo, que cometa erros estúpidos. Ela vai nos atrasar, fazer você pensar duas vezes antes de aproveitar as chances que tivermos para agir. O posto da floresta de Lisiy Nos é mal defendido, mas não é indefeso.
– Você tem razão. Talvez tenhamos que lutar pela nossa liberdade.
– Então, você concorda?
– Não.
– Alexander, ouça-me. Esta é a nossa última chance. Eu sei que é. Este é um plano perfeito, pode funcionar muito bem. Mas ela vai nos levar à ruína. Ela não está preparada para isso. Não seja estúpido, agora que estamos tão perto – disse Dimitri sorrindo. – É o que estamos esperando há tanto tempo! Não vai mais haver tentativas de fuga, não vai haver mais amanhãs, nem mais próximas vezes. É isso.
– Sim – disse Alexander. – É isso. – E fechou os olhos brevemente, lutando para mantê-los fechados.
– Então, me ouça.
– Não vou ouvir.
– Você vai ouvir! – exclamou Dimitri. – Você e eu planejamos isto há muito tempo. Aqui está a nossa chance! E eu não estou dizendo para deixar Tania na União Soviética para sempre. De jeito nenhum. Estou dizendo que nós, dois homens, devemos fazer o que é necessário. Sair com segurança e, o que é mais importante, vivos! Morto, você não é de nenhuma utilidade para ela, e eu não vou aproveitar a América se estiver morto. Vivos, Alexander. Além disso, esconder-nos nos pântanos...
– Nós vamos até Helsinque de caminhão. Que pântanos?
– Se for preciso, eu disse. Três homens e uma garota frágil, nós formamos um multidão. Não vamos conseguir nos esconder. Vamos pedir para sermos apanhados. Se alguma coisa acontecer a Sayers, se Sayers for morto...
– Por que Sayers seria morto? Ele é médico da Cruz Vermelha – disse Alexander, observando Dimitri atentamente.
– Eu não sei. Mas se tivéssemos que fugir sozinhos pelo Báltico... no gelo, a pé, nos escondendo nos comboios de caminhão... bem, dois homens podem fazer isso, mas três pessoas? Vamos ser facilmente notados. Parados com facilidade. E ela não vai conseguir.
– Ela conseguiu passar pelo bloqueio. Conseguiu cruzar o gelo do Volga. Conseguiu com Dasha. Ela vai conseguir – disse Alexander, mas seu coração estava ardendo de incerteza. Os perigos que Dimitri estava mencionando eram tão próximos das ansiedades de Alexander com relação à Tatiana que ele sentiu um frio no estômago. – Tudo o que você está dizendo pode ser verdade – continuou, com grande esforço – , mas você está esquecendo duas coisas muito importantes. O que você acha que vai acontecer com ela aqui, depois que descobrirem que eu fugi?
– Com ela? Nada. O nome dela ainda é Tatiana Metanova – disse Dimitri com indiferença. – Vocês têm tomado cuidado para não revelar que estão casados. Isso vai ajudá-lo.
– Não vai ajudar a ela – interrompeu Alexander.
– Ninguém vai saber.
– Você está enganado – disse Alexander. – Eu vou saber. – Ele cerrou os dentes, para impedir que um gemido de dor lhe escapasse da garganta.
– Sim, mas você vai estar na América. Você vai estar de volta em sua casa.
– Ela não pode ficar para trás – afirmou Alexander, com voz neutra.
– Pode, sim. Ela vai ficar bem. Alexander, ela não conheceu nada além desta vida...
– Nem você!
Dimitri prosseguiu.
– Ela vai continuar aqui como se nunca tivesse conhecido você...
– Como?
Dimitri riu.
– Sei que você se tem em alta estima, mas ela vai superar você. Outras superaram. Sei que, provavelmente, ela se importa muito com você... mas com o tempo ela vai conhecer outra pessoa e ficar bem
– Pare de bancar o idiota! – disse Alexander. – Ela vai ser presa em três dias. A mulher de um desertor. Três dias. E você sabe disso. Pare de dizer merda.
– Ninguém vai descobrir quem ela é.
– Você descobriu!
Ignorando Alexander, Dimitri continuou calmamente:
– Tatiana Metanova voltará para o Hospital Grechesky e para sua vida em Leningrado. E se você ainda a quiser quando estiver instalado na América, depois que a guerra acabar, pode mandar um convite formal, pedindo-lhe que vá a Boston para visitar uma tia distante que está doente. Ela virá pelos meios próprios, se puder, de trem e de navio. Pense nisso como uma separação temporária, até que chegue uma época melhor para ela. Para todos nós.
Alexander coçou o nariz com a mão esquerda. Alguém venha me tirar deste inferno, pensou ele. Os pelos curtos de seu pescoço se eriçaram. Ele respirou de maneira mais errática.
– Dimitri! – disse Alexander, olhando diretamente para ele. – Pela segunda vez na vida, você está tendo a chance de fazer uma coisa decente... aproveite. A primeira vez foi quando você me ajudou a ver meu pai. Que lhe importa se ela for conosco?
– Eu tenho que pensar em mim, Alexander. Não posso passar o tempo todo pensando em como proteger a sua esposa.
– Quanto tempo você passou pensando nisso? – exclamou Alexander – Você sempre só pensou em você mesmo...
– Ao contrário, digamos, de você? – ironizou Dimitri, rindo.
– Ao contrário de todo mundo. Venha conosco. Ela lhe estendeu a mão.
– Para proteger você.
– Sim. Mas isso não torna o gesto menos humano. Aceite a mão dela. Ela vai nos libertar. Todos seremos livres. Você vai ter a única coisa com que se importa: uma vida livre, longe da guerra. É o que mais lhe importa, não é mesmo? – perguntou ele. As palavras de Tania em Santo Isaac soaram em Alexander. Ele cobiça em você o que você mais deseja. Mas Alexander não seria derrotado. Ele nunca vai tirar tudo de você, Alexander, lhe dissera sua Tatiana. Ele jamais terá todo esse poder. – Você vai ter sua vida livre... por causa dela. Nós não vamos morrer... por causa dela.
– Vamos todos ser mortos... por causa dela.
– Você não vai ser morto... eu garanto. Aproveite sua chance, tenha a sua vida. Não estou negando o que é seu por direito. Eu disse que tiraria você daqui e vou tirar. Tania é muito forte e não vai nos decepcionar. Você vai ver. Ela não vai titubear, não vai falhar. Você só tem que dizer sim. Ela e eu faremos o resto. Você mesmo disse que esta é a nossa última chance. Eu concordo. Sinto isso agora mais que nunca.
– Aposto que sim – disse Dimitri.
Tentando disfarçar sua raiva desesperada, Alexander disse:
– Deixe que uma outra coisa guie você! Esta guerra levou você para dentro de você mesmo, você esqueceu outras pessoas. Lembre-se dela. Uma vez. Você sabe que, se ela ficar aqui, ela vai morrer. Salve-a, Dimitri. – Alexander quase disse por favor. – Se ela for conosco, todos morreremos – disse Dimitri friamente. – Estou convencido disso.
Alexander virou-se e tornou a fixar o olhar na meia distância. Seus olhos se nublaram, clarearam-se, nublaram-se..
A escuridão o cercou.
Dimitri disse:
– Alexander... pense nisso como morrer no front. Se você tivesse morrido no gelo, ela teria que achar uma maneira de continuar vivendo na União Soviética, não é mesmo? Bem, é a mesma coisa.
– É a coisa mais diferente do mundo – disse Alexander, olhando para as mãos enrijecidas. – Pois agora a luz está diante dela.
– Não há diferença nenhuma. De uma forma ou de outra ela já está sem você.
– Não.
– Ela é um pequeno preço a ser pago pela América! – exclamou Dimitri.
Tremendo, Alexander não deu resposta, seu coração parecia que ia saltar do peito. A Ponte Fontanka, os parapeitos de granito, Tatiana de joelhos.
– Ela vai pôr tudo a perder.
– Dimitri, eu já disse não – repetiu Alexander, com voz de aço.
Dimitri apertou os olhos.
– Você não quer me entender? Ela não pode ir.
Eu sou um meio para um fim, ela havia dito. Sou apenas munição.
Alexander riu.
– Finalmente! Eu estava imaginando quanto tempo você levaria para expressar suas ameaças inúteis. Você diz que ela não pode ir?
– Não, não pode.
– Muito bem – disse Alexander, com um pequeno aceno de cabeça. – Então, eu também não vou. Está resolvido. Acabou. O Dr. Sayers parte para Helsinque imediatamente. Em três dias, eu volto para o front. Tania volta para Leningrado – continuou ele, lançando um olhar de desprezo a Dimitri. – Ninguém vai. Você está dispensado, soldado. Nossa reunião acabou.
Dimitri olhou para Alexander com uma surpresa fria.
– Você está me dizendo que não vai sem ela?
– Você não me ouviu?
– Entendo – disse Dimitri, fazendo uma pausa e esfregando as mãos. Ele se inclinou para frente, sobre a cama de Alexander enquanto falava. – Você me subestima, Alexander. Você não consegue ouvir a razão. Isso é muito ruim. Então, talvez, eu deva conversar com Tania e explicar-lhe a situação. Ela é muito mais razoável. Depois que ela perceber que seu marido está em grave perigo, tenho certeza de que ela vai se oferecer para ficar para trás... – Dimitri não concluiu.
Alexander agarrou o braço de Dimitri. Este deu um pequeno grito e levantou a outra mão, mas já era tarde demais. Alexander havia agarrado os dois braços.
– Entenda isto – disse Alexander, com o polegar e o médio apertando o punho de Dimitri. – Não estou nem aí que você fale com Tania, com Stepanov, com Mekhlis ou com a União Soviética inteira. Conte-lhes tudo! Eu não vou sem ela. Se ela ficar, eu fico – e, com um apertão selvagem, Alexander quebrou o osso cubital do antebraço de Dimitri. Apesar da vermelhidão de sua fúria, Alexander ouviu o ruído da quebradura. Pareceu o do machado contra o pinheiro maleável em Lazarevo. Dimitri gritou. Alexander não o soltou. – Você está me subestimando, seu safado filho da puta! – disse ele, apertando o pulso com mais força, até que o osso quebrado furou a pele de Dimitri.
Dimitri continuou a gritar. Apertando mais, Alexander deu-lhe um soco no rosto, e o direto no queixo teria fraturado o osso do nariz de Dimitri, se o golpe não tivesse sido amortecido por um servente do hospital que agarrou o braço de Alexander, que literalmente se atirou sobre ele, e começou a gritar:
– Pare com isso! O que você está fazendo? Solte-o, solte-o!
Ofegante, Alexander empurrou Dimitri para longe, e este caiu no chão.
– Suma daqui – gritou Alexander para o servente que continuava a resmungar, surpreso. Assim que o homem o soltou, Alexander começou a esfregar as mãos. Ele havia soltado o cateter da veia, que agora estava jorrando sangue entre seus dedos. Então eu sangro, pensou ele.
– Que diabos está acontecendo aqui? – gritou a enfermeira, aproximando-se correndo. – Que situação maluca é esta? O soldado vem visitá-lo, e é isso o que você faz?
– Da próxima vez, não o deixe entrar – disse Alexander, atirando os cobertores para longe e se levantando.
– Volte já para a cama! Minhas ordens são para você não sair da cama em nenhuma circunstância. Espere até Ina voltar. Eu nunca trabalhei numa enfermaria de pacientes críticos. Por que essas coisas sempre acontecem no meu plantão?
Depois da comoção que durou uma boa meia hora, um Dimitri sangrando e inconsciente foi removido do chão, e o servente limpou a sujeira, queixando-se de que já tinha muito que fazer sem que os feridos começassem a transformar homens perfeitamente saudáveis em novos feridos.
– Você o chamou de perfeitamente saudável? – indagou Alexander. – Você não viu como ele coxeia? Não viu seu rosto pulverizado? Pergunte por aí. Não é a primeira vez que ele apanha. E garanto que não será a última.
Mas Alexander sabia: ele não teria se limitado a bater em Dimitri. Se não tivesse sido detido, Alexander teria matado Dimitri com as mãos limpas.
Alexander adormeceu, acordou e olhou ao redor da enfermaria. Era de manhã cedo. Ina estava em seu posto junto à porta, conversando com três civis. Alexander olhou para os civis. Não demorou muito, pensou ele.
Imóvel e sozinho, ele permaneceu com a mochila no peito, com as duas mãos dentro dela, no vestido branco com rosas vermelhas. Alexander finalmente havia respondido à sua pergunta.
Ele sabia qual era o preço por Tatiana.
Foi o coronel Stepanov que veio vê-lo mais tarde, com os olhos fundos num rosto cinzento. Alexander saudou seu comandante, que se sentou pesadamente na cadeira e disse tranquilamente:
– Alexander, eu quase não sei como lhe dizer isto. Eu não devia estar aqui. Não estou aqui como seu oficial comandante, entenda, mas como alguém que...
Alexander interrompeu-o com suavidade:
– Senhor – disse ele –, sua presença é um bálsamo para a minha alma. O senhor nem imagina o quanto. Eu sei por que o senhor está aqui.
– Sabe?
– Sei.
– Então, é verdade? O general Govorov veio me ver e disse que Mekhlis – Stepanov pareceu cuspir a palavra – foi até ele com a informação que você já escapou da prisão como provocador estrangeiro. Como americano – riu Stepanov. – Como pode ser? Eu disse que era ridículo...
Alexander disse:
– Senhor, eu servi orgulhosamente o Exército Vermelho por quase seis anos.
– Você tem sido um soldado exemplar, major – confirmou Stepanov. – Eu lhes disse isso. Eu lhes disse que aquilo não podia ser verdade. Mas você sabe... – interrompeu-se Stepanov. – A acusação é o que conta. Você se lembra de Meretskov? Agora ele está comandando o front de Volkhov, mas nove meses atrás estava nos porões da NKVD, esperando um dos paredões desocupar.
– Eu soube do Meretskov. Quando tempo o senhor acha que eu tenho?
Stepanov ficou queito.
– Eles virão buscar você à noite – disse ele, por fim. – Não sei se você está familiarizado com as operações...
– Infelizmente, muito familiarizado, senhor – replicou Alexander, sem olhar para Stepanov. – É tudo feito em segredo e encoberto. Eu não sabia que eles estavam por aqui em Morozovo.
– De maneira precária, mas estão. Eles estão em toda parte. Mas sua patente é muito alta. É muito provável que eles o mandem para a outra margem do lago, para Volkhov – informou ele, num sussurro.
Para a outra margem do lago.
– Obrigado, senhor – disse ele, conseguindo sorrir para seu oficial comandante. – O senhor acha que eles primeiro vão me promover a tenente-coronel?
Stepanov engoliu em seco.
– De todos os meus homens, era em você que eu depositava minhas maiores esperanças, major.
Alexander balançou a cabeça.
– Eu não tive chance, senhor. Por favor. Se o senhor for interrogado a meu respeito, entenda... – ele se deteve, lutando com as palavras – ... que, a despeito de nossa coragem, algumas batalhas já estão perdidas desde o início.
– Sim, major.
– Entendendo isso, o senhor não deve perder um segundo defendendo minha honra ou minha ficha no exército. Fique distante e bata em retirada, senhor – disse Alexander, olhando para o chão. – E leve todas as suas armas com o senhor.
Stepanov se levantou.
O não dito permaneceu entre eles.
Alexander não conseguia pensar nele mesmo, não conseguia pensar em Stepanov. Ele teve de perguntar sobre o não dito.
– O senhor sabe se já houve alguma menção à minha... – ele não conseguiu continuar.
Mas Stepanov entendeu.
– Não – respondeu ele, em voz baixa. – Mas é só uma questão de tempo.
Graças a Deus. Então, Dimitri não quis os dois. O que ele queria é que eles não ficassem um com o outro, mas quis preservar a própria pele. O Dimitri nunca vai tomar tudo de você. Havia alguma esperança.
Alexander ouviu Stepanov dizer:
– Posso fazer alguma coisa por ela? Talvez conseguir uma transferência de volta para um hospital de Leningrado... ou talvez para um hospital de Molotov? Bem longe daqui?
Depois de um espasmo, Alexander falou, olhando para outra direção.
– Sim, senhor, o senhor poderia realmente fazer alguma coisa para ajudá-la...
Alexander não teve tempo para pensar, não teve tempo para sentir. Ele sabia quando aquilo engoliria o que restara dele. Mas agora ele tinha de agir. Assim que Stepanov saiu, Alexander chamou Ina e pediu-lhe para chamar o Dr. Sayers.
– Major – disse Ina –, não sei se vão deixar alguém se aproximar do senhor esta tarde.
Alexander olhou para os homens à paisana.
– Foi um pequeno acidente, Ina, nada com que se preocupar. Mas me faça um favor, não conte nada à enfermeira Metanova, certo? Você sabe como ela é.
– Eu sei como ela é. É bom você se comportar daqui para frente, ou vou contar a ela.
– Vou me comportar, Ina.
Sayers chegou alguns minutos depois, sentou-se alegremente e disse:
– O que está acontecendo, major? Que história é essa do braço do soldado? O que aconteceu?
Dando de ombros, Alexander respondeu:
– Ele perdeu a queda de braço.
– Vou dizer que ele perdeu. E o nariz quebrado? Ele também perdeu a queda de nariz?
– Dr. Sayers, ouça-me. Esqueça-o por um instante. – Alexander juntou o que lhe restava de forças para falar. A força que ele possuía havia abandonado seu corpo e passado para uma garota pequena e sardenta.
– Doutor – disse ele, em voz baixa –, quando conversamos a primeira vez sobre...
– Não precisa dizer. Eu sei.
– O senhor me perguntou o que podia fazer para ajudar, lembra? – continuou Alexander. – E eu lhe disse que o senhor não me devia nada. – Ele fez uma pausa, procurando se recompor. – Mas eu estava errado. Agora eu preciso desesperadamente de sua ajuda.
Sayers sorriu.
– Major Belov, eu já estou fazendo tudo o que eu posso por você. Sua enfermeira tem um grande poder de persuasão.
Minha enfermeira.
Encolhendo-se, Alexander disse:
– Não, ouça com cuidado. Eu quero que o senhor me faça uma coisa, só uma.
– O que é? Se puder, eu vou fazer.
Com voz hesitante, Alexander disse:
– Tire minha esposa da União Soviética.
– Eu vou fazer isso, major.
– Não, doutor. Eu quero dizer agora. Tire minha mulher, tire... – ele não conseguiu completar a frase. – Pegue o Chernenko, o crápula de braço quebrado – sussurrou ele –, e leve-os embora.
– Do que você está falando?
– Doutor, nós temos muito pouco tempo. A qualquer momento alguém vai afastá-lo de mim, e eu não vou conseguir terminar.
– Você vai conosco.
– Não vou.
Agitado, Sayers exclamou em inglês:
– Major, de que diabos você está falando?
– Quieto – disse Alexander. – Vocês precisam partir, no máximo, amanhã.
– Mas, e você?
– Esqueça-me – disse Alexander com firmeza. – Dr. Sayers, Tania precisa de sua ajuda. Ela está grávida... o senhor sabia disso?
Sayers balançou a cabeça, mudo pela surpresa.
– Bem, ela está grávida. E vai ficar muito assustada, ela vai precisar que o senhor a proteja. Por favor, tire-a da União Soviética. E a proteja – disse Alexander, afastando o olhar do médico. Seus olhos se encheram de... o rio Kama, com o sabonete no corpo dela. Eles se encheram de ... suas mãos em torno do pescoço dele e seu hálito quente em seu ouvido, sussurrando, panqueca de batatas, Shura, ou ovos? Eles se encheram de... ela saindo do Hospital Grechesky, em novembro, pequena, sozinha, usando um casaco enorme, os olhos no chão. Ela sequer conseguiu erguer o olhar quando passou por ele em direção à sua vida na Quinta Soviet, sozinha para sua vida na Quinta Soviet. – Salve minha mulher – sussurrou Alexander.
– Eu não estou entendendo nada – disse o Dr. Sayers, emocionado.
Alexander balançou a cabeça.
– O senhor viu alguns homens em trajes civis quando veio para cá? São homens da NKVD. Lembra o que eu lhe contei sobre a NKVD, doutor? O que aconteceu com minha mãe, meu pai e comigo?
Sayers empalideceu.
– A NKVD impõe a lei neste grande país. E eles estão aqui por minha causa... de novo. Amanhã eu vou ser levado embora. Tania não pode ficar aqui um só minuto depois disso. Ela está correndo um grave perigo. O senhor precisa tirá-la daqui.
O médico continuava sem entender. Ele protestou, negando com a cabeça. E foi ficando cada vez mais nervoso.
– Alexander, vou apelar para o consulado dos Estados Unidos pessoalmente. Vou falar com eles em seu nome.
Alexander ficou preocupado com o médico. Será que ele podia fazer o que era necessário? Será que ele conseguiria manter seu autocontrole quando mais precisasse dele? Nesse momento, pelo menos, parecia que não.
– Doutor – disse Alexander –, sei que o senhor não entende, mas não tenho tempo para explicações. Onde fica o consulados dos Estados Unidos? Na Suécia? Na Inglaterra? Quando o senhor conseguir contatá-los, e eles o Departamento de Estado Americano, os meninos azuis de Mekhlis terão prendido a mim e também a ela. O que Tatiana tem a ver com a América?
– Ela é sua esposa.
– Eu só tenho o meu nome russo, o nome com que a desposei. Quando os Estados Unidos chegarem à NKVD para esclarecer a confusão, vai ser tarde demais para ela. Esqueça-me, eu disse. Ocupe-se dela.
– Não – disse Sayers, agitando-se, sem conseguir se sentar. Ele ficou andando ao redor da cama de Alexander, arrumando os cobertores.
– Doutor! – exclamou Alexander. – O senhor não tem tempo para pensar nesta situação, eu sei. Mas o que o senhor acha que vai acontecer a uma moça russa, depois de descobrirem que ela está casada com um homem suspeito de ser um americano infiltrado no alto comando do Exército Vermelho? Como é que o senhor acha que o Comissariado do Povo para Assuntos Internos vai tratar minha esposa russa grávida.
Sayers ficou mudo.
– Eu vou lhe dizer como... Eles a usarão como arma de persuasão contra mim quando nos interrogarem. Conte-nos tudo ou sua esposa será “julgada severamente”. O que o senhor acha que isso significa, doutor? Significa que eu serei forçado a lhes dizer tudo. Não vou ter uma chance. Ou eles me usarão como arma de persuasão contra ela. “Seu marido será salvo, mas só se você contar a verdade.” E ela vai contar. E depois...
Sayers negava com a cabeça.
– Não, nós vamos colocá-lo em minha ambulância agora e levar você de volta para Lenigrando, para o Grechesky. Agora mesmo. Levante-se. E de lá vamos para a Finlândia.
– Muito bem – disse Alexander. – Mas esses homens – e apontou para a direção deles – irão conosco. Eles estarão conosco o trajeto inteiro. O senhor não vai conseguir tirar nenhum dos dois daqui.
Alexander pôde ver que o Dr. Sayers estava procurando se apegar ao que podia. Olhando para a porta, para Ina, para os homens que fumavam e faziam barulho conversando com ela, Alexander balançou a cabeça. Sayers não estava entendendo.
– E quanto a ele? Chernenko? Eu não o conheço nem lhe devo nada.
– O senhor precisa levá-lo – sussurrou Alexander. – Depois desta tarde, ele finalmente entendeu. Ele pensou que eu a sacrificaria para me salvar, pois não conseguia imaginar a situação de outra forma. Agora ele sabe a verdade. Ele também sabe que não vou sacrificá-la para destruí-lo. Não vou impedir que ela fuja para impedir que ele fuja. E ele tem razão. Então, leve-o. Isso vai ajudá-la, e não ligue para mais nada.
Sayers estava sem palavras.
– Doutor – disse Alexander com suavidade –, pare de brigar por mim. Ela faz isso por mim. Não quero que o senhor se preocupe comigo. Meu destino está selado. Mas o dela está em aberto. Preocupe-se apenas com ela.
Coçando o rosto, o Dr. Sayers comentou, ainda balançando a cabeça:
– Alexander, eu vi essa moça... – e interrompeu-se – ... eu vi essa moça dando o sangue dela para você. Estou brigando por você por que sei o que isso representa para ela...
– Doutor! – Alexander estava quase no limite de suas forças. – O senhor não está me ajudando. O senhor pensa que eu não sei? – E fechou os olhos. Ela me deu tudo o que tinha.
– Major, você acha que ela irá sem você?
– Nunca – disse Alexander.
– Meu Deus! Então, o que eu posso fazer? – quis saber Sayers.
– Ela nunca deve saber que eu fui preso. Se ela descobrir, ela não irá.
Ela vai ficar... para descobrir o que aconteceu comigo, para me ajudar de alguma forma, para me ver uma última vez, e então será tarde demais para ela.
Alexander disse ao médico o que eles tinham que fazer.
– Major, eu não posso fazer isso! – exclamou Sayers.
– Pode, sim. São só palavras, doutor. Palavras e um rosto impassível.
Sayers balançou a cabeça.
– Muitas coisas podem dar errado. E vão dar – disse Alexander. – Não é um plano perfeito. Não é um plano seguro. Não é um plano à prova de tudo. Mas nós não temos escolha. Se for para ter sucesso, precisamos usar todas as armas à nossa disposição. – Alexander fez uma pausa. – Até as que não têm munição.
– Major, o senhor está fora de si! Ela nunca vai acreditar em mim – disse Sayers.
Alexander agarrou o pulso do médico.
– Bem, isso vai depender do senhor, doutor! A única chance que ela tem de viver é se o senhor tirá-la daqui. Se o senhor titubear, se não for convincente, se diante da dor o senhor fraquejar e ela perceber, por uma fração de segundo, que o senhor não está lhe contando a verdade, ela não irá. Se ela achar que ainda estou vivo, ela nunca irá, lembre-se disso, e se ela não for, saiba que ela só terá alguns dias antes de virem atrás dela – avisou Alexander, abatido. – Quando ela vir meu leito vazio, ela vai se descontrolar diante do senhor, sua fachada vai desmoronar, e ela erguerá o rosto banhado em lágrimas para o senhor e dirá: “O senhor está mentindo, sei que o senhor está mentindo! Eu sinto que ele ainda está vivo”, e então o senhor vai olhar para ela e confortá-la, pois o senhor a viu confortando tanta gente. A dor dela será demais para que o senhor a suporte. Ela vai lhe dizer: “Conte-me a verdade, e eu irei com o senhor a qualquer lugar”. O senhor vai ficar quieto por um instante, depois vai piscar, apertar os lábios e, nesse instante, doutor, saiba que o senhor estará condenando a ela e ao nosso bebê à prisão ou à morte. Ela é muito persuasiva, é muito difícil lhe dizer não, e ela vai continuar a insistir até que o senhor ceda. Saiba... que quando o senhor a confortar com a verdade, o senhor a estará matando – disse Alexander, soltando o pulso de Sayers. – Agora, vá. Olhe nos olhos dela e minta. Minta com todo o seu coração! – pediu ele, quase sem voz. – E se o senhor ajudar a ela, estará ajudando a mim.
Havia lágrimas nos olhos de Sayers quando ele se levantou.
– Este maldito país – disse ele – é demais para mim.
– Para mim também – disse Alexander, estendendo-lhe a mão. – Agora, o senhor pode ir buscá-la? Eu preciso vê-la uma última vez. Mas venha com ela. Venha com ela e fique ao meu lado. Ela é tímida com outras pessoas por perto. Ela vai ter que se manter distante.
– Talvez sozinhos por só um minuto?
– Doutor, lembre-se do que eu lhe disse sobre olhar nos olhos dela? Eu não posso encará-la sozinho. Talvez o senhor possa disfarçar, mas eu não posso.
Alexander manteve os olhos fechados. Em dez minutos, ouviu passos e a voz de coral de Tatiana.
– Doutor, eu lhe disse que ele estava dormindo. O que o fez achar que ele não estava dormindo?
– Major? – chamou o Dr. Sayers.
– Sim – disse Tatiana. – Major? Você consegue acordar? – E Alexander sentiu suas mãos quentes e familiares em sua cabeça. – Ele não está quente. Ele está se sentindo bem.
Erguendo-se, Alexander colocou as mãos nas delas.
Aqui está, Tatiana.
Aqui está o meu rosto corajoso e indiferente.
Alexander tomou fôlego e abriu os olhos. Tatiana estava olhando para ele com um olhar de afeição tão intensa que ele tornou a fechar os olhos. Quando falou, as palavras saíram, entrecortadas e permaneceram a apenas alguns centímetros de sua boca:
– Eu só estou cansado, Tania. Como está você? Como está se sentindo?
– Abra os olhos, soldado – disse Tatiana com carinho, acariciando-lhe o rosto. – Você está com fome?
– Eu estava com fome – disse Alexander. – Mas você me deu de comer – prosseguiu ele, com o corpo tremendo sob o lençol.
– Por que o seu cateter está desconectado? – disse ela, segurando-lhe a mão. – E por que sua mão está escura como se você tivesse arrancado o cateter da veia? O que você andou aprontado esta tarde enquanto eu estive fora?
– Eu não preciso mais do cateter. Estou quase recuperado.
Ela tornou a sentir sua testa.
– Ele parece um pouco frio, doutor – constatou ela. – Acho que podemos colocar-lhe outro cobertor.
Tatiana desapareceu. Alexander abriu os olhos e viu o rosto angustiado do médico.
– Pare com isso – disse Alexander, com voz quase inaudível.
Ao voltar, ela cobriu Alexander e ficou observando-o um instante.
– Eu estou realmente bem – disse ele. – Tenho uma piada para você. O que se obtém do cruzamento de um urso branco e um urso preto?
Ela respondeu:
– Dois ursos felizes.
Os dois trocaram um sorriso. Alexander não afastou o olhar.
– Você vai ficar bem? – perguntou ela. – Eu volto amanhã de manhã para lhe dar o café.
Alexander balançou a cabeça.
– Não, de manhã não. Você nem imagina para onde vão me levar amanhã cedo – disse ele rindo.
– Para onde?
– Volkhov. Não fique orgulhosa de seu marido, mas eles vão finalmente me nomear tenente-coronel. – Alexander olhou para o Dr. Sayers, que se colocou ao pé da cama com uma expressão pálida.
– Vão mesmo? – disse Tatiana, com os olhos brilhando.
– Sim. Para combinar com minha medalha de Herói da União Soviética por ter ajudado nosso médico. O que você acha disso?
Sorrindo, Tatiana se inclinou sobre ele e disse, toda feliz:
– Acho que você vai ficar realmente insuportável. Eu vou ter que obedecer a todas as suas ordens, não é mesmo?
– Tania, para eu fazer você obedecer a todas as minhas ordens, vou ter que me tornar general – replicou Alexander.
Ela riu.
– Quando você volta?
– Na manhã seguinte.
– Por quê? Por que não amanhã à tarde?
– Eles só fazem a travessia do lado de manhã bem cedo – disse Alexander. – É um pouco mais seguro. Há menos bombas.
– Tania, precisamos ir – disse o Dr. Sayers, com voz fraca.
Alexander fechou os olhos. E ouviu Tatiana dizer:
– Dr. Sayers, posso ter um minuto a sós com o major Belov?
Não!, pensou Alexander, abrindo os olhos e olhando para o médico fixamente, que respondeu:
– Tatiana, nós precisamos mesmo ir. Tenho que percorrer ainda três enfermarias.
– Só vai levar um segundo – disse ela. – E olhe, o Leo no leito trinta está chamando o senhor.
O médico se afastou. Ele não consegue dizer não para ela nem quando ela pede uma coisa simples, pensou Alexander, balançando a cabeça.
Aproximando-se, Tatiana colocou o rosto sardento junto dele. Ela olhou ao redor, viu que o Dr. Sayers não estava olhando para eles e disse:
– Meu Deus, não vou ter uma chance de beijar você, não é mesmo? Mal posso esperar para poder beijá-lo abertamente – e colocou as mãos no peito dele. – Logo vamos estar no meio de uma floresta densa – sussurrou ela.
– Então, me beije – disse Alexander.
– Mesmo?
– Mesmo.
Tatiana inclinou-se, com a mão serena ainda no peito dele, e seus lábios de mel beijaram suavemente os lábios de Alexander. Ela pressionou o rosto contra o dele.
– Shura, abra os olhos.
– Não.
– Abra.
Alexander os abriu.
Tatiana olhou para ele, os olhos brilhando, e então piscou três vezes rapidamente.
Endireitando-se, ela tornou a fazer uma cara séria e, erguendo a mão numa saudação, disse:
– Durma bem, major, eu volto para vê-lo.
– Vou ficar esperando, Tania – disse Alexander.
Ela andou até os pés da cama. Não!, ele teve vontade de gritar. Não, Tania, por favor, volte. O que eu posso deixar para ela, o que posso dizer, que palavra posso deixar com ela, para ela? Que palavra para minha esposa?
– Tatiasha – chamou Alexander. Meu Deus, como era o nome do curador?...
Ela olhou para ele.
– Lembre-se de Orbeli...
– Tania! – chamou o Dr. Sayers do outro lado da enfermaria. – Por favor, venha cá!
Ela fez uma cara de frustração e disse rapidamente:
– Shura, querido, sinto muito, mas tenho que ir. Conte-me quando você voltar, certo?
Ele concordou com um movimento de cabeça.
Tatiana se afastou de Alexander, passou pelos leitos, tocou a perna de um convalescente e deu um pequeno sorriso para o rosto do homem envolto em bandagens. Disse boa-noite a Ina e parou por um segundo para arrumar o cobertor de alguém. À porta, disse algumas palavras para o Dr. Sayers, riu e, então, voltou-se pela última vez para Alexander, e nos olhos de Tatiana ele viu amor. Então saiu pela porta.
Alexander sussurrou para ela: Tatiana! Não terás medo do terror da noite... nem da flecha que voa durante o dia... nem da peste que caminha na escuridão... nem da destruição que ataca ao meio-dia. Um dia, mil cairão ao teu lado, e dez mil à sua direita, mas nada se aproximará de ti.
Alexander persignou-se, cruzou os braços e deu início à espera. Ele relembrou as últimas palavras do pai para ele.
Pai, eu vi acabadas as coisas pelas quais dei minha vida, mas será que eu vou saber, algum dia, se as construí com minhas ferramentas desgastadas?
Descalça, Tatiana ficou prestando atenção em Alexander, com seu vestido amarelo e as tranças douradas saindo de sua touca. Seu rosto estava iluminado por um sorriso exuberante. Ela o saudou.
– À vontade, Tania – disse ele, devolvendo a saudação.
– Obrigada, capitão – disse ela, aproximando-se e ficando na ponta dos pés sobre os pés dele, calçados com botas. Alexander ergueu seu rosto, e Tatiana beijou-lhe o queixo... que estava tão alto que ela não conseguia alcançá-lo sem que ele baixasse a cabeça para ela. Com uma das mãos, ele a trouxe em sua direção.
Ela se afastou um metro e deu as costas para Alexander.
– Tudo bem, estou caindo. É melhor você me pegar. Pronto?
– Estou pronto há cinco minutos. Caia já.
Seus gritinhos agudos soaram enquanto ela caía, e Alexander a apanhou, beijando-a de cima a baixo.
– Tudo bem – disse Tatiana, aprumando-se, abrindo os braços e rindo com alegria. – Agora é a sua vez.
Adeus, minha canção da lua, ar que eu respiro, minhas noites brancas e dias dourados, minha água doce e meu fogo. Adeus, que você tenha uma vida melhor, torne a encontrar consolo e o seu sorriso incansável. E, quando sua face adorada se iluminar mais uma vez ao nascer do sol do Ocidente, tenha a certeza de que o que senti por você não foi em vão. Adeus e tenha fé, minha Tatiana.
Ao pálido encanto do luar
1
No final da manhã seguinte, Tatiana entrou na enfermaria de pacientes críticos do hospital de campanha, no edifício de madeira que já fora uma escola, e encontrou outra pessoa no leito de Alexander. Ela achava que o leito dele estivesse vazio. Não esperava ver um paciente novo na cama de Alexander, um homem sem pernas e braços.
Olhando para o homem sem compreender, ela achou que tinha se enganado. Acordara tarde e correu a se aprontar e, então, passou várias horas na enfermaria de pacientes terminais. Sete soldados haviam morrido naquela manhã.
Mas não, era a ala de pacientes críticos. Leo, do leito trinta, estava lendo. As duas camas perto de Alexander também tinham sido esvaziadas e ocupadas por novos pacientes. Nikolai Ouspensky, o tenente com um pulmão só, ao lado de Alexander, tinha partido, bem como o cabo perto dele.
Por que teriam ocupado o leito de Alexander? Tatiana foi conferir com Ina, que não sabia de nada – ela ainda nem estava de plantão. Ina contou a Tatiana que, tarde da noite, pediram a Alexander que vestisse o uniforme, que ela lhe trouxe, e então foi embora. Além disso, ela não sabia de mais nada. Ina disse que talvez Alexander tivesse sido transferido para a ala dos convalescentes.
Tatiana foi verificar. Ele não tinha sido transferido para lá.
Ela voltou para a ala dos pacientes críticos e olhou embaixo da cama. A mochila dele não estava lá. A medalha de bravura de Alexander não estava mais pendurada na cadeira de madeira ao lado do novo paciente, cujo rosto estava coberto de gaze ensanguentada perto do ouvido direito. Distraidamente, Tatiana disse que chamaria um médico para dar uma olhada nele e se afastou meio tonta. Ela estava se sentindo tão bem quanto poderia se sentir uma mulher grávida de quatro meses. Ela sabia que sua barriga estava começando a crescer. Era bom que eles estivessem indo embora, pois ela não saberia se explicar para as outras enfermeiras e seus pacientes. Ela estava indo ao refeitório para comer, mas começou a sentir um pressentimento estranho. Teve medo de que Alexander tivesse sido enviado de volta ao front, que ele tivesse cruzado o lago e tivesse sido retido lá. Ela não conseguiu comer nada. E foi procurar o Dr. Sayers.
Não conseguiu encontrá-lo em nenhum lugar, mas então encontrou Ina, que estava se preparando para começar seu plantão. Ina lhe disse que o Dr. Sayers estava procurando por ela.
– Ele não deve ter procurado muito. Eu estive na ala dos terminais a manhã toda – disse Tatiana.
Ela encontrou o Dr. Sayers na ala dos terminais, com um paciente que tinha perdido a maior parte do estômago.
– Dr. Sayers – sussurrou ela –, o que está acontecendo? Onde está o major Belov? – quis saber ela, percebendo que o paciente não tinha mais que cinco minutos de vida.
Sayers não ergueu os olhos dos ferimentos do homem ao dizer:
– Tatiana, eu quase terminei aqui. Ajude-me a segurar-lhe os flancos, enquanto eu dou os pontos.
– O que está acontecendo, doutor? – repetiu Tatiana enquanto o ajudava.
– Vamos acabar isto primeiro, certo?
Tatiana olhou para o médico, depois para o paciente, e pôs a mão enluvada na testa do soldado. Por alguns momentos, ela manteve a mão nele e, então, disse:
– Ele está morto, doutor, pode parar com a sutura.
O médico parou de suturar.
Tatiana tirou as luvas e saiu. O médico a seguiu. Era meados de março e ventava implacavelmente.
– Ouça, Tania – começou Sayers, segurando as mãos dela e encarando-a com o rosto pálido. – Eu lamento muito. Uma coisa terrível aconteceu. – Sua voz quase falhou no aconteceu. Suas olheiras estavam tão escuras que parecia que ele havia apanhado. Tatiana o encarou por um momento, por outro momento...
Ela puxou as mãos.
– Doutor – disse Tatiana, empalidecendo e procurando alguma coisa em que se segurar –, o que aconteceu?
– Tania, espere. Não grite.
– Eu não estou gritando.
– Lamento lhe contar, lamento muito, mas Alexander... – e ele se interrompeu. – Hoje de manhã, quando ele estava sendo levado com outros dois soldados para Volkhov... – Sayers não conseguiu prosseguir.
Tatiana ouvia imóvel, sentindo suas entranhas anestesiadas. Ela tentou dizer:
– O quê?
– Ouça, eles estavam atravessando o lago, quando o fogo inimigo...
– Que fogo inimigo? – sussurrou Tatiana, com veemência.
– Eles saíram para a travessia antes que o bombardeio começasse, mas isto é uma guerra. Você ouviu o bombardeio, as bombas alemãs voando de Sinyavino. Um foguete de longo alcance atingiu o gelo diante do caminhão e explodiu.
– Onde ele está?
– Sinto muito. Cinco pessoas naquele caminhão... ninguém sobreviveu.
Tatiana deu as costas para o médico e tremeu com tanta violência que achou que ia rachar no meio. Sem olhar para trás, ela perguntou:
– Doutor, como o senhor soube disso?
– Eu fui chamado ao local. Nós tentamos salvar os homens, o caminhão. Mas o caminhão era pesado demais. Ele afundou – respondeu o médico, com a voz quase sumindo.
Tatiana segurou o estômago e vomitou na neve. Sua pulsação rasgava seu corpo com mais de 200 batidas por minuto. Ela se abaixou, encheu a mão de neve e molhou a boca. Então, pegou mais neve e pressionou-a contra o rosto. Seu coração não queria se aquietar. A ânsia de vômito continuava a atormentá-la. Ela sentiu a mão do médico em suas costas, ouviu sua voz fraca a chamando:
– Tania, Tania.
Ela não se virou.
– O senhor mesmo o viu? – perguntou ela, ofegante.
– Vi. Sinto muito – sussurrou ele. – Eu pequei o quepe dele...
– Ele estava vivo quando o senhor o viu?
– Sinto muito, Tatiana. Não estava.
Ela não conseguiu mais ficar em pé.
– Não, por favor – ela ouviu a voz do Dr. Sayers e sentiu seus braços erguendo-a. – Por favor.
Recompondo-se, desejando ficar de pé, Tatiana voltou-se e olhou para o Dr. Sayers.
– Você precisa se sentar imediatamente – disse ele, muito preocupado e tocando seu rosto. – Você está num estado de...
– Eu sei do estado em que estou – disse Tatiana. – Dê-me o quepe dele.
– Sinto muito. Meu coração está...
– Vou guardar o quepe dele – disse Tatiana, mas sua mão tremia tanto que ela não conseguiu segurá-lo nem por um instante e quando conseguiu, deixou-o cair na neve.
Ela tampouco conseguiu segurar o atestado de óbito. O Dr. Sayers teve de segurá-lo pra ela. Ela só viu o nome dele e o lugar do óbito. O lago Ladoga.
O gelo do Ladoga.
– Onde ele está? – perguntou ela, com a voz fraca. – Onde ele está agora... – Mas não conseguiu concluir a frase.
– Oh, Tania... o que podemos fazer? Nós...
Afastando-se dele, ela dobrou o corpo.
– Não fale mais comigo. Por que o senhor não me acordou? Por que não me contou instantaneamente?
– Olhe para mim – pediu ele. Ela se sentiu sendo levantada. Sayers tinha lágrimas nos olhos. – Eu procurei você assim que voltei. Mas eu mal estou conseguindo ficar em pé diante de você agora que você me encontrou, quando não tenho nenhuma escolha. Se eu pudesse, teria lhe mandado um telegrama – disse ele, tremendo. – Tania, vamos embora daqui! Você e eu. Vamos embora deste lugar! Eu tenho que sair daqui. Não aguento mais. Preciso voltar a Helsinque. Vamos, vamos pegar nossas coisas. Eu telefono para Leningrado para avisá-los. – Ele fez uma pausa. – Eu vou partir esta noite. Nós vamos partir esta noite.
Tania não respondeu nada. Sua mente estava em ebulição. Por algum motivo, ela não conseguia acreditar no atestado de óbito. Não era um atestado do Exército Vermelho. Era da Cruz Vermelha.
– Tatiana – disse Sayers –, você está me ouvindo?
– Estou – disse ela, fraca.
– Você vem comigo.
– Agora não estou conseguindo pensar – ela conseguiu dizer. – Preciso pensar por alguns minutos.
– Vamos... – insistiu Sayers. – Vamos, por favor, voltar ao meu consultório? Você não está... Venha, sente-se em minha cadeira. Você vai...
Afastando-se de Sayers, Tatiana o observou com uma intensidade que ela sabia que o incomodava. Virando-se, caminhou o mais rápido que pôde até o edifício principal. Ela tinha de falar com o coronel Stepanov.
O coronel estava ocupado e, a princípio, se recusou a recebê-la.
Ela esperou diante da porta até ele sair.
Eu vou até o refeitório. Você vem comigo? – disse-lhe Stepanov, sem olhá-la nos olhos e andando na frente.
– Senhor – disse Tatiana às suas costas, sem dar um passo –, o que aconteceu a seu oficial... – E não conseguiu dizer o nome dele em voz alta.
Stepanov diminuiu o passo e a encarou.
– Sinto muito sobre o seu esposo – lamentou ele, com gentileza.
Tatiana não respondeu. Aproximando-se dele, ela tomou a mão do coronel Stepanov.
– Senhor, o senhor é um bom homem e era o comandante dele – começou ela, com o vento forte batendo-lhe no rosto. – Por favor, diga-me o que aconteceu com ele.
– Eu não sei. Eu não estava lá.
A pequena Tatiana se pôs diante do coronel uniformizado.
O coronel suspirou.
– Tudo o que eu sei é que um de nossos caminhões blindados carregando o seu esposo, o tenente Ouspensky, um cabo e dois motoristas explodiu esta manhã, aparentemente sob fogo inimigo, e acabou por afundar. Não tenho outras informações.
– Blindado? Ele me disse que ia a Volkhov para ser promovido esta manhã – disse ela, num fio de voz.
– Enfermeira Metanova – o coronel Stepanov fez uma pausa e piscou –, o caminhão afundou. O resto é falatório.
Tatiana não afastou o olhar dele nem por um momento.
– Sinto muito. Seu marido era...
– Eu sei o que ele era, senhor – interrompeu Tatiana, apertando o quepe e o atestado contra o peito.
Com um leve tremor na voz e olhando-a com os olhos de um azul cortante, o coronel Stepanov disse:
– Sim, nós dois sabemos.
Em silêncio, ficaram um em frente do outro.
– Tatiana! – disse o coronel Stepanov emocionado. – Volte com o Dr. Sayers. Assim que você puder. Vai ser mais fácil e mais seguro para você em Leningrado. Talvez Molotov? Vá com ele.
Tatiana o viu abotoar o topo do uniforme. Ela não tirou os olhos dele.
– Ele trouxe o seu filho de volta – murmurou ela.
Stepanov baixou os olhos.
– É verdade.
– Mas quem vai trazer a ele de volta?
O vento frio assobiou entre suas palavras.
Como se mover, como se mover agora, eu posso usar as mãos e os joelhos e engatinhar, não, vou andar, vou olhar para o chão e vou andar para longe, e não vou tropeçar.
Eu vou tropeçar.
Ela caiu na neve, e o coronel Stepanov veio levantá-la, batendo-lhe de leve a mão nas costas. Ela fechou o casaco em torno dela e, sem olhar outra vez para Stepanov, desceu a alameda até o hospital, segurando-se nas paredes dos prédios.
Escondê-lo sua vida inteira, escondê-lo a cada passo do caminho, escondê-lo de Dasha, de Dimitri, escondê-lo da morte e, agora, escondê-lo dela mesma. Sua fraqueza pareceu-lhe insuportável.
Tatiana encontrou o Dr. Sayers em seu pequeno consultório.
– Doutor, olhe para mim, olhe nos meus olhos e jure que ele está morto.
Caindo de joelhos, ela olhou para ele, as mãos juntas num apelo.
O Dr. Sayers agachou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos.
– Juro – disse ele, sem olhar para ela. – Ele está morto
– Eu não consigo. – Sua voz era gutural. – Eu não consigo aceitar. Não consigo aceitar a ideia de ele morrer naquele lago sem mim. O senhor entende? Não consigo aceitar – sussurrou ela, desesperada. – Diga-me que ele foi levado pela NKVD. Diga-me que ele foi preso e vai atacar pontes na semana que vem, diga-me que ele foi mandado para a Ucrânia, para Syniavino, para a Sibéria... me diga qualquer coisa. Mas, por favor, diga-me que ele não morreu no gelo sem mim. Eu suporto qualquer coisa, menos isso. Diga-me e eu vou com o senhor para qualquer lugar, prometo, vou fazer exatamente o que o senhor disser, mas eu lhe imploro que me conte a verdade.
– Sinto muito – disse o Dr. Sayers. – Eu não pude salvá-lo. De todo o meu coração, eu lamento não tê-lo salvado para você.
Tatiana arrastou-se até a parede e pôs o rosto entre as mãos.
– Eu não vou a lugar algum. Não vejo motivo para isso.
– Tania – disse Sayers, chegando-se a ela e pondo a mão em sua cabeça –, por favor, não diga isso. Querida... por favor... deixe-me salvá-la por ele.
– Não adianta.
– Não adianta? E quanto ao filho dele? – exclamou o médico.
Ela tirou as mãos do rosto e olhou de forma inexpressiva para Sayers.
– Ele lhe contou que vamos ter um bebê?
– Contou.
– Por quê?
Perturbado, o médico disse:
– Não sei – suas mãos ainda seguravam a cabeça de Tatiana. – Você não parece bem. Você está toda fria. Você está...
Ela não respondeu. Ela estava trêmula.
– Você vai ficar bem?
Ela cobriu o rosto.
– Você quer ficar aqui? Fique no meu consultório e espere. Não se levante, certo? Talvez você queira dormir.
Tatiana produziu um som áspero que parecia um animal pressionando um ferimento contra o chão, na esperança de morrer antes de sangrar até a morte.
– Seus pacientes estão perguntando por você – disse Sayers, com suavidade. Você acha que...
– Não – disse ela, ainda com as mãos no rosto. – Por favor, me deixe sozinha. Eu preciso ficar sozinha.
Até o cair da noite, ela ficou sentada no chão do consultório do Dr. Sayers. Ela pôs a cabeça entre os joelhos e ficou sentada contra a parede. Quando não conseguiu mais ficar acordada, ela se deitou, toda encolhida.
Ela percebeu o médico retornar. Ouviu sua respiração ofegante e tentou se levantar, mas não conseguiu. Ajudando-a a se levantar, Sayers segurou a respiração quando viu o rosto dela. – Meu Deus, Tania. Por favor. Eu preciso que você...
– Doutor! – exclamou Tatiana. – Tudo o que senhor precisar que eu seja, não consigo ser neste momento. Eu vou ser o que posso. Está na hora?
– Está na hora, Tania. Vamos – disse ele, baixando a voz. – Olhe, eu fui até sua cama e peguei sua mochila. É a sua, não é mesmo?
– É – disse ela, pegando-a.
– Você tem mais alguma coisa que precise levar?
– Não – sussurrou Tatiana. – A mochila é tudo o que tenho. Só vamos nós dois?
O Dr. Sayers fez uma pausa antes de responder.
– O Chernenko veio até mim hoje e me perguntou se nossos planos haviam mudado agora que...
– E o senhor disse... – suas pernas fracas não mais a seguraram. Ela desabou numa cadeira e olhou para ele. – Com ele eu não posso ir – avisou ela. – Simplesmente não posso.
– Eu também não quero levá-lo, mas o que posso fazer? Ele me contou, não com muitas palavras, que sem ele não seríamos capazes de passar com você pelo primeiro posto de controle. Eu quero que você vá embora, Tania. O que mais eu posso fazer?
– Nada – disse Tatiana.
Ela ajudou Sayers a recolher suas poucas coisas e carregou sua bolsa de médico e sua bolsa de enfermeira para fora. O veículo da Cruz Vermelha era um grande jipe sem a sólida carroceria de aço comum nas ambulâncias. Tinha vidros cobrindo a cabine dos passageiros, mas apenas lona cobrindo a parte de trás, nada segura para os feridos ou o pessoal médico. Mas, na época, era o único veículo disponível em Helsinque, e Sayers não pode esperar uma ambulância de verdade. Os emblemas quadrados da Cruz Vermelha haviam sido costurados na lona.
Dimitri estava esperando fora do jipe. Tatiana não olhou para ele nem esboçou nenhum sinal de reconhecê-lo quando abriu a lona e subiu para guardar o kit de primeiros socorros e a caixa de plasma.
– Tania? – disse Dimitri.
O Dr. Sayers se aproximou e disse a Dimitri:
– Tudo bem, vamos nos apressar. Você vai atrás. Depois que sairmos daqui, você pode pôr as roupas do piloto finlandês. Não sei se você vai conseguir passar o braço pelo... Tania, onde estão essas roupas? – Então, virando-se para Dimitri, ele disse: – Você precisa de morfina? Como está o seu rosto?
– Terrível. Eu mal consigo ver. E será que o meu braço vai infeccionar?
Tatiana olhou para Dimitri de dentro do veículo. Seu braço direito estava engessado e na tipoia. Seu rosto estava inchado e negro. Ela quis perguntar o que havia acontecido com ele, mas não se importou.
– Tania – chamou-a Dimitri. – Eu ouvi as notícias desta manhã. Sinto muito.
Tatiana tirou as roupas do piloto finlandês do esconderijo e jogou-as no chão do jipe, diante de Dimitri.
– Tania? – repetiu Dimitri.
Ela ergueu os olhos para ele tão cheios de uma condenação implacável que Dimitri só pôde desviar o olhar.
– Limite-se a vestir as roupas – disse-lhe Tatiana, entre os dentes. – Depois, deite-se no chão e fique quieto.
– Olhe, eu lamento. Eu sei como você...
Cerrando os punhos, Tatiana virou-se furiosamente para Dimitri, e ela o teria atingido no nariz quebrado se o Dr. Sayers não a tivesse impedido, dizendo:
– Tania, pelo amor de Deus. Por favor. Não. Não.
Recuando, Dimitri abriu a boca e gaguejou:
– Eu disse que s...
– Eu não quero ouvir suas malditas mentiras! – gritou ela, com os braços ainda seguros pelo Dr. Sayers. – Não quero que você volte a me dirigir a palavra. Entendeu?
Dimitri, murmurando nervosamente que não entendia por que ela estava tão zangada com ele, voltou para a traseira do jipe.
O Dr. Sayers se pôs ao volante e olhou para Tatiana com os olhos esbugalhados.
– Pronto, doutor. Vamos – disse Tatiana, abotoando seu casaco branco de enfermeira com o símbolo da Cruz Vermelha na manga e prendendo seu chapeuzinho branco no cabelo. Ela estava com todo o dinheiro de Alexander, o livro de Pushkin, as cartas deles e suas fotografias. Estava também com o quepe e a aliança dele.
Eles avançaram em meio à noite.
Tatiana segurava o mapa de Sayers aberto, mas não conseguia ajudá-lo a chegar a Lisiy Nos. O Dr. Sayers dirigia seu pequeno veículo pelos bosques no norte da Rússia, e eles avançavam por estradas de terra, lamacentas, cheias de neve, verdadeiras estradas líquidas. Tatiana não via nada, olhando pela janela lateral para a escuridão, contendo-se mentalmente, tentado se manter ereta. Sayers conversava com ela o tempo todo em inglês.
– Tania, querida, vai dar tudo certo...
– Vai mesmo, doutor? – perguntou ela, também em inglês. – E o que nós vamos fazer com ele?
– Quem se importa? Ele pode fazer o que quiser depois que chegarmos a Helsinque. Não estou pensando nele de jeito nenhum. Só estou pensando em você. Vamos chegar em Helsinque, deixar alguns suprimentos e, então, você e eu tomamos um avião da Cruz Vermelha para Estocolmo. Em seguida, de Estocolmo, vamos de trem até Göteborg, no mar do Norte, e tomamos um navio protegido até a Inglaterra. Tania, você está me ouvindo? Está me entendendo?
– Estou ouvindo – disse ela, com a voz fraca. – E estou entendendo.
– Na Inglaterra, vamos fazer duas paradas, mas, dali, podemos voar para os Estados Unidos ou pegar um navio de passageiros partindo de Liverpool. Uma vez em Nova York...
– Matthew, por favor – sussurrou Tatiana.
– Só estou tentando fazer você se sentir melhor, Tania. Sei que a coisa vai ser um inferno.
Da traseira, Dimitri disse:
– Tania, eu não sabia que você falava inglês.
A princípio, Tatiana não respondeu. Então, pegou um cano de metal que ficava embaixo dos pés do Dr. Sayers que ela sabia que ele levava em caso de problemas. Estendendo o braço, ela bateu o cano com força contra a divisória de metal que a separava de Dimitri, assustando o Dr. Sayers de tal modo que ele quase saiu da estrada.
– Dimitri – disse ela em voz alta –, você tem que ficar quieto e parar de falar. Você é finlandês. Não pronuncie nem mais uma sílaba em russo.
Deixando o cano cair no chão, ela cruzou os braços sobre o estômago.
– Tania...
– Não, doutor.
– Você não comeu nada, não é mesmo? – perguntou o médico com gentileza.
Tania abanou a cabeça.
– Não estou pensando nem um pouco em comida – respondeu ela.
No meio da noite, pararam no acostamento. Dimitri já tinha vestido uniforme finlandês.
– É muito grande – Tatiana ouviu-o dizer ao Dr. Sayers. – Espero que eu não tenha que ficar em pé com ele. Qualquer um pode ver que ele não me serve. O senhor ainda tem morfina? Eu estou...
O Dr. Sayers voltou depois de alguns minutos.
– Se eu der mais morfina a ele, ele morre. Aquele braço vai lhe causar problemas.
– O que aconteceu com ele? – perguntou Tatiana, em inglês.
O Dr. Sayers ficou queito.
– Ele quase foi morto – respondeu ele, por fim. – Ele está com uma fratura exposta muito grave. – E fez uma pausa. – Ele pode perder esse braço. Não sei como ele consegue estar consciente e em pé. Eu achei que ele ia entrar em coma depois de ontem, mas hoje está andando. – Ele abanou a cabeça.
Tatiana não disse nada. Como é que ele conseguia estar em pé?, pensou ela. Como é que o restante de nós – fortes, resolutos, animados, jovens – pôde cair de joelhos, ser destruído pela vida, enquanto ele permanece em pé.
– Algum dia, Tania – disse Sayers em inglês –, você vai ter que me explicar o... – ele se interrompeu, apontando para a traseira do veículo. – Pois, juro por Deus, eu não entendo nada.
– Não sei se eu conseguiria explicar – sussurrou Tatiana.
A caminho de Lisiy Nos, eles foram parados uma dezena de vezes nos postos de controle para a vistoria de documentos. Sayers apresentou seus documentos e os de sua enfermeira, Jane Barrington. Dimitri, que era um finlandês chamado Tove Hanssen, não tinha documentos, apenas uma identificação de metal com o nome do morto. Ele era um piloto ferido sendo levado de volta a Helsinque para uma troca de prisioneiros. Todas as seis vezes, os guardas abriram a lona, iluminaram o rosto machucado de Dimitri e, então, fizeram sinal para Sayers prosseguir.
– É bom estar protegido pela bandeira da Cruz Vermelha – disse Sayers.
Tatiana concordou com um movimento de cabeça.
O médico parou no acostamento, desligando o motor.
– Você está com frio? – perguntou ele.
– Não estou com frio. – Não com frio suficiente. – O senhor quer que eu dirija?
Em Luga, quando ela tinha dezesseis anos, no verão antes de conhecer Alexander, Tatiana fizera amizade com um cabo do exército estacionado no Soviete da vila local. O cabo deixou Tatiana e Pasha dirigirem seu caminhão o verão inteiro. Pasha brigava porque sempre queria estar ao volante, mas o cabo era gentil e deixava que ela também dirigisse. Ela dirigia o caminhão melhor que Pasha, pensava ela, e o cabo lhe disse que ela aprendia rápida.
– Eu sei dirigir.
– Não, está muito escuro e cheio de gelo. – Sayers ficou de olhos fechados por uma hora.
Tatiana ficou sentada quieta, as mãos no casaco. Ela estava tentando se lembrar da última vez em que ela e Alexander tinham feito amor. Foi num domingo de novembro, mas onde foi? Ela não conseguia lembrar. O que eles fizeram? Onde eles estavam? Ela olhou para ele? Inga estava do outro lado da porta? Foi no banho, no sofá, no chão. Ela não conseguia lembrar.
O que Alexander lhe dissera na noite anterior? Ele fez uma piada, beijou-a, sorriu, tocou-lhe a mão, disse-lhe que ia até Volkhov para ser promovido. Eles estavam mentindo para ele? Ele estava mentindo para ela?
Ele tinha tremido. Ela achou que estivesse com frio. O que mais ele disse? Vejo você logo. Tão casual. O que mais? Lembre-se de Orbeli.
O que era aquilo?
Alexander muitas vezes lhe contava pequenas e fascinantes histórias que ele aprendia no exército: nomes de generais, históras sobre Hitler ou Rommel, sobre a Inglaterra ou a Itália, sobre Stalingrado, sobre Richthoffen, von Paulus, El Alamein, Montgomery. Não era incomum ele citar uma palavra que ela não conhecia. Mas Orbeli era uma palavra que ela nunca tinha ouvido e, no entanto, lá estava Alexander... pedindo que ela se lembrasse dela.
Tatiana sacudiu o Dr. Sayers para acordá-lo.
– Dr. Sayers, o que é Orbeli? – perguntou ela. – Quem é Orbeli?
– Não sei – respondeu o Sayers, sonolento. – Nunca ouvi falar. Por quê?
Ela não disse nada.
Sayers retomou o volante.
Eles chegaram à fronteira silenciosa e sonolenta ente a União Soviética e a Finlândia às seis da manhã.
Alexander dissera a Tatiana que não se tratava exatamente de uma fronteira, mas de uma linha de defesa, o que significava que havia de trinta a sessenta metros entre as tropas soviéticas e finlandesas. Cada um dos lados marcava se território e, então, sentava-se e esperava a guerra.
Para Tatiana, os bosques finlandeses de coníferas e salgueiros se pareciam com os soviéticos pelos quais eles tinham dirigido durante as últimas longas horas da noite. Os faróis de seu jipe iluminaram uma fita estreita de estrada não pavimentada à frente. O nascer do sol demorava a acontecer nos idos de março.
O Dr. Sayers sugeriu que, se todos estivessem dormindo, talvez eles pudessem apenas atravessar e apresentar seus documentos aos finlandeses, em vez de aos soviéticos. Tatiana achou uma excelente ideia. De repente, alguém lhes gritou que parassem. Três sonolentos guardas de fronteira da NKVD aproximaram-se na janela do médico. Sayers mostrou-lhes os documentos. Depois de examinar cuidadosamente os documentos, o soldado da NKVD disse em inglês com forte sotaque a Tatiana:
– Vento gelado, não?
E ela lhe respondeu em inglês perfeito:
– Muito gelado. Dizem que vai nevar.
O soldado concordou com um gesto e, então, os três homens foram dar uma olhada em Dimitri, na parte de trás do veículo. Tatiana esperou.
Silêncio.
A lanterna brilhou.
Silêncio.
Então, Tatiana ouviu:
– Espere. Deixe-me ver o rosto dele outra vez.
A lanterna brilhou.
Tatiana ficou imóvel e ouviu atentamente.
Ela ouviu um dos soldados rir e dizer alguma coisa a Dimitri em finlandês. Tatiana não falava finlandês, e, assim, não podia garantir que era finlandês, mas o soldado soviético falou com Dimitri numa língua que ela não entendia e que, obviamente Dimitri tampouco entendera, pois não deu nenhuma resposta.
O guarda soviético repetiu a pergunta em voz mais alta.
Dimitri permaneceu em silêncio. Então, ele disse alguma coisa que soou como finlandês para Tatiana. Depois de um breve e intrigante silêncio dos guardas, um deles disse, em russo:
– Saiam do jipe.
– Oh, não – sussurrou o Dr. Sayers. – Fomos apanhados?
– Quieto – disse Tatiana.
Os soldados repetiram a ordem para Dimitri sair do jipe. Ele não se mexeu.
O Dr. Sayers virou-se e disse, em russo:
– Ele está ferido. Não consegue se levantar.
E o oficial soviético disse:
– Ele vai se levantar se quiser continuar vivo. Fale com o seu paciente na língua que ele falar e lhe diga para se levantar.
– Doutor – sussurrou Tatiana –, tenha muito cuidado. Se ele não conseguir se salvar, vai tentar nos matar.
Os três soldados da NKVD arrancaram Dimitri do jipe e, então, ordenaram a Sayers e Tatiana que saíssem. O médico se aproximou e ficou ao lado de Tatiana, perto da porta aberta. Seu corpo pequeno mal a encobria. Tatiana, sentindo-se fraquejar, tocou o casaco de Sayers, na esperança de adquirir um pouco de força. Ela se sentia prestes a desmaiar. Dimitri estava fora do veículo e em plena vista a alguns metros deles, diminuído pelo uniforme finlandês, um uniforme que devia ter sido de um oficial maior.
Rindo, com os rifles apontados para ele, um dos soldados da NKVD disse em russo:
– Ei, finlandês, nós perguntamos como foi que sua cara ficou desse jeito e por que você está indo para Helsinque. Você quer explicar?
Dimitri não disse nada, mas lançou um olhar suplicante para Tatiana.
O Dr. Sayers disse:
– Nós o pegamos em Leningrado, e ele estava seriamente ferido...
De maneira imperceptível, Tatiana sussurrou para o Dr. Sayers:
– Fique quieto. É problema.
– Ele pode estar seriamente ferido – disse o homem da NKVD –, mas não é seriamente finlandês. – O que fez os três soldados rirem.
Um dos homens da NKVD foi até Dimitri.
– Chernenko, você não está me reconhecendo? – perguntou ele, em russo. – Sou eu, Rasskovsky. – Dimitri baixou seu braço bom. – Ponha a mão na cabeça! E fique assim – gritou, rindo, o soldado da NKVD. Tatiana viu que eles não estavam levando Dimitri a sério, com o braço direito na tipoia. Onde estava a arma de Dimitri?, pensou ela. Será que ele tinha uma?
Os outros dois soldados mantiveram-se a uma curta distância de Dimitri.
– Você o conhece? – perguntou um deles, baixando o rifle.
Rasskovsky exclamou:
– Claro que eu o conheço! Chernenko, você esqueceu quanto você estava me cobrando pelos cigarros? E como eu tive que pagar porque não podia passar sem cigarro no meio da floresta? – E riu com gosto. – Eu vi você só há quatro semanas. Você já esqueceu?
Dimitri não disse uma palavra.
– Você achou que eu não o reconheceria devido à bela cor do seu rosto? – Rasskovsky parecia estar se divertindo mundo. – Então, querido Chernenko, você pode me explicar o que está fazendo num uniforme finlandês e deitado na traseira de um jipe da Cruz Vermelha? O braço e o rosto eu entendo. Alguém não gostou de seus preços exorbitantes?
Um dos outros dois soldados disse:
– Rasskovsky, você não acha que o nosso fornecedor está tentando fugir, acha? – Todos riram alto. Sob o brilho das lanternas, Dimitri olhou para Tatiana, que sustentou seu olhar só um instante. Então, ela se virou completamente e se aproximou mais do Dr. Sayers, envolvendo o próprio corpo com os braços.
– Estou com frio – ela disse.
– Tatiana! – gritou Dimitri, em russo. – Você quer contar a eles? Ou conto eu?
Rasskovsky virou-se para ela.
– Tatiana? Uma americana chamada Tatiana? – E foi até Sayers. – O que está acontecendo aqui? Por que ele está falando com ela em russo? Deixe-me ver esses documentos outra vez.
O Dr. Sayers mostrou os documentos de Tatiana. Estavam em ordem.
Olhando diretamente para Rasskovsky, Tatiana disse, em inglês:
– Tatiana? Do que ele está falando? Nós não sabemos de nada. Ele disse que era finlandês. Certo, doutor?
– Correto – replicou o Dr. Sayers, afastando-se de Tatiana e do veículo, e colocando a mão amigavelmente nas costas de Rasskovsky: – Ouça, espero que não esteja havendo problemas. Ele chegou ao nosso hospital...
Nesse momento, Dimitri sacou sua arma e atirou em Rasskovsky, que passava na frente de Tatiana. Ela não teve certeza de em quem ele mirou, pois ele estava atirando com o braço esquerdo, mas ela não ia ficar ali para descobrir. Ele podia ter mirado o soldado da NKVD. Podia. Mas errou e acertou o Dr. Sayers. Ou talvez Dimitri não tivesse errado. Ou talvez estivesse atirando nela, em pé entre os dois homens, e errou. Tatiana não quis pensar naquilo.
Rasskovsky correu em direção a Dimitri, que tornou a atirar, desta vez, atingindo o soldado. Mas Dimitri não foi suficientemente rápido ao se virar para atirar contra os dois outros soldados que, como imobilizados no lugar, demoraram a tirar os rifles dos ombros. Finalmente, eles abriram fogo contra Dimitri, que foi lançado a vários metros pela força do impacto.
De repente, ouviu-se um fogo de resposta vindo dos bosques. Esse fogo não era lento e metódico, o metrônomo da batalha: cinco cartuchos, abrir o tambor, colocar mais cinco, fechar o tambor. Não, este era o fogo de uma metralhadora barulhenta que rasgou em dois a frente do teto do jipe, destruindo todo o para-brisa. Os dois homens da NKVD desapareceram.
O vidro da porta da cabine acima de sua cabeça se estilhaçou, e Tatiana sentiu alguma coisa dura e aguda cair e se alojar em seu rosto. Ela sentiu gosto de metal líquido, sua língua se mexeu, sentindo algo pontudo dentro da boca. Quando a abriu, o sangue correu. Ela não teve tempo de pensar em nada, arrastando-se para a parte dianteira do jipe.
Tatiana viu Dimitri no chão. O Dr. Sayers no chão. Seguiu-se um interminável bombardeio, um ruído abafado, um constante pipocar contra a carroceria de aço do jipe da Cruz Vermelha. Tatiana se arrastou, agarrou o Dr. Sayers e arrastou o corpo imóvel. Puxando-o para mais perto e cobrindo-o com o próprio corpo, ela pensou ter visto Dimitri ainda se movimentando, ou eram a luzes estroboscópicas do tiroteio? Não, não era ele. Ele estava tentado se arrastar até o jipe. Do lado soviético, voou um morteiro pelos ares e explodiu no bosque. Fogo, fumaça negra, tiros. Daqui? De lá? Ela não conseguia dizer. Não aqui, nem aqui nem lá. Só havia Dimitri avançando em direção a Tatiana. Ela o viu à luz despropositada dos faróis, procurando-a, descobrindo, e nos poucos segundos sem tiros, ela o ouviu gritar por ela:
– Tatiana... Tatiana... por favor... – Ele tinha uma mão estendida.
Tatiana fechou os olhos. Ele não vai chegar perto de mim.
Ela ouviu um ruído sibilante, um clarão e, então, uma carga que explodiu tão perto que a onda empurrou sua cabeça para dentro do chassi do jipe, e ela perdeu a consciência.
Quando voltou a si, Tatiana decidiu não abrir os olhos. Ela não conseguia ouvir muito bem, tendo voltado de um desmaio de morte, mas se sentiu quente, como se estivesse numa banheira quente da casa de banhos de Lazarevo, onde ela jogava água quente nas pedras, e as pedras chiavam para liberar vapor. O Dr. Sayers estava quieto, parcialmente debaixo de seu corpo. Não havia nenhum lugar para ir. Sua língua tornou a sentir o objeto pontudo na boca. Ela sentiu gosto de sal metálico.
Sayers parecia pegajoso. Perda de sangue. Tatiana abriu os olhos, tateando-lhe o corpo. Uma pequena chama atrás do jipe iluminou o rosto pálido do médico. Onde ele fora atingido? Com os dedos, ela tateou debaixo do casaco dele e descobriu o buraco da bala em seu ombro. Não achou o buraco de saída do projétil, mas pressionou a mão enluvada em seu braço para tentar estancar o sangue. Então, tornou a fechar os olhos. Houve um clarão atrás dela, mas não era mais dos tiros.
Quanto durou aquilo? Dois minutos? Três?
Ela se sentiu começando a mergulhar num abismo escuro. Não só não conseguia abrir os olhos, como não queria abri-los.
Quanto tempo até sua vida se esgotar? Quanto tempo o Dr. Sayers vai dormir, quanto tempo Dimitri vai ficar sozinho em meio às luzes? Quanto tempo para Tatiana? Quanto tempo mais para ela?
Quanto tempo Alexander demorou para resgatar o Dr. Sayers e ser atingido? Tatiana tinha observado tudo do jipe da Cruz Vermelha, posicionado atrás das árvores na clareira que levava à encosta do rio, a encosta que Alexander percorreu em socorro de Anatoly Marazov. Tatiana tinha observado tudo.
Nos dois minutos em que ficou observando Alexander correr para Marazov, gritar para o Dr. Sayers, correr para o Dr. Sayers, puxá-lo para fora e, então, arrastar três homens até o caminhão tinham sido os dois minutos mais longos da vida de Tatiana.
Ele estivera tão próximo da salvação. Ela observou a bomba do avião alemão cair no gelo e explodir. Observou Alexander voar de cabeça para dentro do caminhão blindado. Quando Alexander desceu, Tatiana agarrou uma caixa cheia de recipientes cilíndricos de plasma e sua bolsa de enfermeira, saltou da traseira do jipe da Cruz Vermelha e correu em direção à margem do rio e foi agarrada perto do gelo por um cabo que a fez se abaixar e gritou:
– Quem é você, sua louca?
Sou enfermeira – disse ela. – Tenho que socorrer o doutor.
Sim, você é uma enfermeira morta. Fique abaixada.
Ela ficou abaixada por exatos dois segundos. Ela viu o Dr. Sayers se escondendo atrás do caminhão blindado que o protegia e a Alexander do fogo direto. Ela o viu pedindo socorro. Ela viu que Alexander não se levantava. Tatiana saltou e correu pelo gelo antes que o cabo pudesse emitir um único som. A princípio, ela correu e, então, ficou assustada devido ao barulho das bombas da artilharia e caiu de bruços, arrastando-se durante o restante do trajeto. Alexander estava imóvel. Sua camuflagem branca, em frangalhos, mostrava uma grande mancha vermelha do lado direito das costas, cercada por cinza negra. Tatiana se arrastou de joelhos até ele e empurrou o capacete para fora de sua cabeça ensanguentada.
Um único olhar para o rosto de Alexander revelou a Tatiana que ele estava prestes a morrer. Sua cor era cinzenta. O gelo debaixo dele estava escorregadio devido ao seu sangue. Ela estava ajoelhada nele. Tatiana disse:
– Choque hipovolêmico. Precisa de plasma.
O Dr. Sayers concordou instantaneamente. Enquanto ele procurava um instrumento cirúrgico para abrir a manga de Alexander, Tatiana tirou o chapéu e o pressionou fortemente contra o flanco de Alexander para deter a hemorragia. Procurado em sua bota direita, ela puxou sua faca do exército e a jogou para o Dr. Sayers, dizendo:
– Aqui, use isto.
Ele nem pensou em respirar uma única vez. Sayers cortou o casaco e o uniforme de Alexander para expor o braço esquerdo, encontrou uma veia e colocou uma seringa, um tubo e um gotejador de plasma nele. Quando saiu para conseguir uma maca e ajuda, Tatiana, desta vez sentando-se sobre o ferimento de Alexander, cortou a outra manga do uniforme, pegou outro frasco de plasma, outra seringa, outro cateter e o prendeu numa veia do braço direito. Ajustou a seringa de modo que ela gotejasse o fluído no corpo de Alexander a sessenta e nove gotas por minuto, o máximo possível. Ela se sentou nas costas dele, fazendo o máximo de pressão possível, seu chapéu e seu casaco saturados do sangue dele, à espera da maca. Ela murmurava:
– Vamos, soldado, vamos.
Quando o médico voltou, seu frasco de plasma estava vazio e Tatiana havia usado mais um. Tirando o casaco manchado, Tatiana o estendeu sobre a maca, e, quando nela puseram Alexander, ela o colocou bem apertado em torno de seu ferimento. Ele estava incrivelmente pesado para ser levantado, pois suas roupas estavam encharcadas. O Dr. Sayers perguntou como eles iam carregá-lo, e ela respondeu que eles simplesmente iam levantá-lo no três e carrega-lo. E ele perguntou, incrédulo, se ela ia carregá-lo. E ela respondeu, sem pestanejar:
– Sim, eu vou carregá-lo, AGORA.
E, em seguida, Tatiana brigou com os médicos soviéticos, com as enfermeiras soviéticas e até com o Dr. Sayers, que tinha dado uma olhada no sangue perdido por Alexander e no buraco e seu flanco, e dito:
– Esqueçam. Não podemos fazer nada por ele. Coloquem-no na enfermaria dos terminais. Deem-lhe um grama de morfina, mas não mais que isso.
Tatiana prendeu, ela mesma, um cateter na veia de Alexander e lhe aplicou morfina e plasma. E quando não havia mais, ela deu seu sangue a Alexander. E quando isso não foi suficiente, e parecia que nada seria suficiente, ela tirou sangue das artérias e aplicou-lhe nas veias.
Gota a gota.
E, quando se sentava ao lado dele, ela murmurava:
– Tudo o que eu quero é que meu espírito seja forte para suportar a sua dor. Estou sentada aqui com você, despejando meu amor em você, gota a gota, na esperança de que você me ouça, na esperança de que erga a cabeça para mim e torne a sorrir. Shura, você está me ouvindo? Pode me sentir sentada ao seu lado, dizendo-lhe que você ainda está vivo? Consegue sentir minha pão sobre seu coração palpitante, minha mão fazendo você saber que eu acredito em você, que acredito em sua vida eterna, acredito que você vai viver, passar por isto e criar asas para voar para longe da morte, e quando tornar a abrir os olhos, eu estarei aqui. Eu vou estar sempre aqui, acreditando em você, tendo esperança por você, amando você. Eu estou bem aqui. Sinta-me, Alexander. Sinta-me e viva.
E ele viveu.
Agora que Tatiana estava debaixo do jipe da Cruz Vermelha perto da aurora fria de março, ela pensou: Eu o salvei para que ele morresse no gelo sem meus braços para abraçá-lo, para abraçar seu corpo jovem, bonito, agredido pela guerra, o corpo que me amou com todas as suas forças? Alexander tombou sozinho?
Ela preferia tê-lo enterrado, como enterrara a irmã, a passar por tudo isto. Preferia ter sabido que lhe havia dado paz a viver para passar por outro momento como este.
Tatiana não conseguia suportar outro momento viva. Nem mais um momento. Em mais um instante, não sobraria nada dela.
Ela ouviu um gemido fraco do Dr. Sayers. Tatiana piscou, piscou para afastar Alexander da mente, abriu os olhos e se virou para Sayers.
– Doutor? – Mas ele estava semiconsciente.
A floresta estava quieta. A aurora era de um azul de aço. Tatiana se desvencilhou dele e se arrastou debaixo do jipe. Esfregando o rosto, ela viu que ele estava coberto de sangue. Seus dedos tocaram um pedaço de vidro preso em sua bochecha. Tentou puxá-lo, mas doía demais. Agarrando-o por uma das extremidades, Tatiana o arrancou, dando um grito.
Não doeu o suficiente.
Ela continuou a gritar, com seus gritos eviscerados ecoando de volta para ela através dos bosques vazios. Agarrou as pernas com as mãos, segurando também o estômago, o peito. Então, Tatiana ajoelhou-se na neve e gritou enquanto o sangue lhe escoria pelo rosto.
Ela ficou deitada no chão, pressionando a face que sangrava contra a neve. Não estava fria o suficiente. Não conseguiu amortecer sua dor.
Não havia mais uma coisa pontuda em sua boca, mas a língua estava dilacerada e inchada. Levantando-se, Tatiana sentou-se na neve, olhando ao redor. Estava tudo muito quieto. As bétulas desoladas e despojadas contrastavam sombriamente com o chão branco. Mais nenhum som, nenhum eco, nem mesmo dela, nenhum galho cinzento fora do lugar. Lá no pântano, perto do golfo da Finlândia.
Mas coisas estavam fora do lugar. O veículo da Cruz Vermelha estava destruído. Um dos homens da NKVD, em seu uniforme azul-marinho, estava à sua direita. Dimitri estava no chão, a um metro do jipe. Seus olhos ainda estavam abertos, a mão estendida na direção de Tatiana, como se, por um milagre providencial, ele esperasse ser liberado de sua própria eternidade. Tatiana olhou por um instante para o rosto congelado de Dimitri. Como Alexander gostaria da história de Dimitri sendo reconhecido pela NKVD. Ela desviou o olhar.
Alexander tinha razão: este era um bom local para atravessar a fronteira. Era pouco vigiado e mal defendido. As tropas da NKVD só tinham armas leves. Carregavam rifles, e, pelo que ela pôde ver, só tinham um morteiro, mas um não foi suficiente para mantê-los vivos: os finlandeses tinham bombas maiores. Do lado finlandês da fronteira, as coisas também estavam quietas. Apesar do tamanho de suas bombas, eles também estariam todos mortos? Olhando através das árvores, Tatiana não viu nenhum movimento. Ela ainda estava do lado russo. O que fazer? Os novos reforços da NKVD, sem dúvida, logo estariam aqui, e ela seria interrogada novamente. O que fazer?
Tatiana pôs a mão sobre o estômago por baixo do casaco. Suas mãos estavam congelando.
Ela se arrastou por baixo do jipe da Cruz Vermelha.
– Dr. Sayers – sussurrou ela, pondo as mãos no pescoço do médico. – Matthew, o senhor está me ouvindo? – Ele não deu resposta. Seu estado era crítico: o pulso estava por volta de quarenta, e a pressão sanguínea parecia fraca em sua carótida. Tatiana deitou-se ao lado do médico e do bolso de seu casaco tirou seu passaporte americano e os documentos da Cruz Vermelha. Eles afirmavam claramente, em inglês, que Matthew Sayers e Jane Barrington dirigiam-se a Helsinque.
O que ela devia fazer agora? Devia ir? Ir para onde? E ir como?
Entrando na cabine, ela deu partida no veículo. Nada. Era inútil. Tatiana pôde ver que o quanto o tiroteio havia danificado a frente do veículo. Ela olhou através do bosque para o lado finlandês. Alguém estava se movendo? Não. Ela viu formas humanas na neve e, atrás delas, um jipe do exército finlandês, um pouco maior que o da Cruz Vermelha. Esta era a única diferença entre eles: o jipe finlandês não parecia destruído.
Tatiana saltou da cabine e disse para o Dr. Sayers:
– Eu volto logo. – Ele não respondeu.
– Tudo bem, então – disse ela, enquanto atravessava a fronteira soviético-finlandesa. Era a mesma coisa, pensou ela, estar na Finlândia ou estar na União Soviética. Tatiana caminhou cuidadosamente entre meia dúzia de finlandeses mortos. No jipe estava sentado outro homem, morto atrás do volante, o corpo inclinado para frente. Para entrar, ela teve de empurrá-lo.
Para entrar, ela o puxou para fora, e ele caiu com um baque surdo na neve pisoteada. Subindo no jipe, Tatiana procurou a chave, ainda na ignição. O jipe havia enguiçado. Ela colocou o câmbio em ponto morto e tentou ligá-lo outra vez. Nada. Tentou mais uma vez. Nada. Ela verificou a entrada da gasolina. O tanque estava cheio. Saltando da cabine, ela foi para a traseira do veículo e entrou debaixo dele para ver se o tanque estava perfurado. Não, estava intacto. Tatiana foi até a frente do veículo e abriu o capô. Por um minuto ela olhou, sem conseguir distinguir, mas então alguma coisa lhe ocorreu. Era um motor a diesel. Como é que ela sabia disso? Kirov.
A palavra Kirov fez um arrepio percorrer seu corpo, ela lutou contra o impulso de tornar a se deitar na neve. Este era um motor a diesel, e ela fazia motores a diesel para tanques na fábrica de Kirov. Hoje eu fiz um tanque inteiro, Alexander! O que ela se lembrava deles?
Nada. Entre os motores a diesel e os bosques da Finlândia tanta coisa havia acontecido que ela mal se lembrava do número do bonde que a levava para casa.
Um.
Era o bonde de número 1. Eles o tomavam para percorrer parte do trajeto de volta, para que pudessem caminhar o restante pelo Canal Obvodnoy. Caminhar, conversar sobre a guerra e a América, os braços entrelaçados. Motor a diesel.
Ela estava com frio. Puxou o chapéu sobre as orelhas.
Frio. Motores a diesel tinham problema de partida no frio. Ela checou para ver quantos cilindros aquele tinha. Tinha seis. Seis pistons, seis câmaras de combustível. As câmaras de combustão estavam frias demais: o ar não conseguia ficar suficientemente quente para fazer o combustível entrar em ignição. Onde ficava aquela pequena vela que Tatiana parafusava no lado da câmara de combustão.
Tatiana encontrou todas as seis velas. Ela precisava aquecê-las um pouco para que o ar pudesse ficar suficientemente quente durante a compressão. Caso contrário, o motor continuaria a puxar ar abaixo de zero para os cilindros, e esperar que ele se aquecesse até 540° C no movimento dos pistons.
Tatiana olhou ao redor. Cinco soldados mortos estavam por ali. Ela enfiou a mão no pequeno bolso de suas mochilas e encontrou um isqueiro. Alexander também sempre carregava o isqueiro no bolsinho de sua mochila. Ela o usava para acender cigarros para ele. Acendendo o isqueiro, ela manteve a pequena chama junto à primeira vela por alguns segundos. Então, passou para a segunda. Para a terceira. Quando passou pelas seis, a primeira estava tão fria quanto quando ela começara. Tatiana já tentara demais. Cerrando os dentes e gemendo, ela quebrou um galho baixo de bétula e tentou acendê-lo. O galho estava muito úmido de neve. Não pegou fogo.
Ela olhou em volta em total desespero. Ela sabia exatamente o que estava procurando. Encontrou-o atrás do jipe, num pequeno estojo no corpo de um dos finlandeses. Ele estava usando um lança-chamas. Tatiana tirou o lança-chamas do finlandês morto, o queixo erguido e o rosto sujo, e o colocou nas costas como a mochila de Alexander. Segurando a mangueira propulsora firmemente na mão esquerda, ela puxou o plug da ignição do tanque, acendeu a chama e pressionou-a contra a ignição.
Meio segundo se passou e tudo continuou quieto. Então, uma chama branca de nitrato escapou da mangueira, com o impulso quase atirando Tatiana sobre a neve. Quase. Ela permaneceu de pé.
Ela foi até o capô aberto do jipe e apontou a chama para o motor por alguns momentos. Então, mais alguns momentos. Ela deve ter ficado ali uns trinta segundos, ela não saberia dizer. Por fim, com a mão direita ela puxou a alavanca da ignição para baixo e o fogo foi disparado. Tirando o lança-chamas das costas, Tatiana subiu no jipe, girou a chave, e o motor voltou à vida. Ela deu a partida no jipe em ponto morto, apertou o pedal, pôs o câmbio em primeira e pisou no acelerador. O jipe começou a avançar. Ela avançou lentamente através da linha de defesa para pegar o Dr. Sayers.
Colocar Sayers dentro do jipe finlandês exigiu mais do que ela podia. Mas não muito mais.
Depois que o instalou, os olhos de Tatiana pousaram sobre bandeira da Cruz Vermelha no jipe de Sayers.
Ela encontrou a faca do exército de Dimitri em sua bota. Passando por cima do jipe, Tatiana cortou cuidadosamente o emblema da Cruz Vermelha. Ela não tinha ideia de como o ia prendê-lo na lona do jipe finlandês. Ela ouviu o Dr. Sayers gemer na traseira e, então, lembrou-se do kit de primeiros socorros. Com total determinação, pegou o kit e um frasco de plasma. Cortando o casaco e a camisa do médico, ela colocou o frasco de plasma em sua veia e, enquanto o plasma escorria, ela examinou seu ferimento inflamado, que estava vermelho e sujo na entrada da bala. O médico estava quente e delirava. Ela limpou o ferimento com um pouco de iodo diluído e cobriu-o com gaze. Então, com satisfação, jogou iodo em seu rosto e se sentou, pressionando uma bandagem contra ele por alguns minutos. Parecia que o vidro ainda estava em sua pele. Ela gostaria de ter iodo não diluído e ficou imaginando se o corte precisava de pontos. Ela achou que sim.
Pontos.
Tatiana lembrou-se da agulha de sutura no kit de primeiros socorros. Seus olhos brilharam. Ela pegou agulha e fio, desceu e, ficando na ponta dos pé, costurou cuidadosamente o emblema da Cruz Vermelha na lona marrom do jipe finlandês. A linha fina quebrou várias vezes. Não importava. Só precisava aguentar até Helsinque.
Depois que terminou, Tatiana foi para o volante, virou-se para trás e virou-se pela pequena janela para o Dr. Sayers:
– Pronto?
E levou o jipe para fora da União Soviética, deixando Dimitri morto no chão.
Tatiana dirigiu pelo caminho pantanoso e ladeado de árvores com cuidado e incerteza, com as duas mãos segurando o grande volante e os pés mal alcançando os três pedais. Encontrar a estrada que serpenteava pelo golfo da Finlândia de Lisiy Nos para Vyborg foi fácil. Só havia uma estrada. Tudo o que ela tinha de fazer era seguir para o oeste. E o oeste pôde ser localizado pela lúgubre trajetória do sol de março.
Em Vyborg, ela mostrou suas credenciais da Cruz Vermelha para um sentinela, pedindo combustível e indicações para chegar a Helsinque. Ela achou que o soldado lhe perguntou sobre seu rosto, apontando para ele, mas como ela não falava finlandês, não respondeu e continuou, desta vez por uma ampla estrada pavimentada, parando em oito postos de controle para mostrar seus documentos e os do médico ferido. Ela dirigiu durante quatro horas até alcançar Helsinque, Finlândia, no fim da tarde.
A primeira coisa que ela viu foi a igreja de São Nicolau iluminada, sobre uma colina dominando o porto. Ela parou para pedir informações para chegar ao Helsingin Yliopistollinen Keskussairaala, o Hospital da Universidade de Helsinki. Ela sabia como dizer isso em finlandês, só não conseguiu entender as indicações naquela língua. Depois de parar cinco vezes para pedir informação, finalmente alguém respondeu em inglês suficiente para lhe dizer que o hospital ficava atrás da igreja iluminada. Ela conseguiu achá-lo.
O Dr. Sayers era muito conhecido e amado no hospital, onde trabalhava desde a guerra de 1940. As enfermeiras trouxeram-lhe uma maca e fizeram a Tatiana todos os tipos de pergunta que ela não entendeu. A maioria delas em inglês, algumas em finlandês, nenhuma em russo.
No hospital, ela conheceu outro médico americano da Cruz Vermelha, Sam Leavitt, que deu uma olhada no corte em seu rosto e disse que ela precisava de pontos. Ofereceu-lhe um anestésico local. Tatiana recusou.
– Pode suturar, doutor – disse ela.
– Você vai precisar de uns dez pontos – disse o médico.
– Só dez?
Ele suturou seu rosto e ela ficou sentada, muda e imóvel numa cama do hospital. Depois, ele lhe deu antibiótico, analgésico e comida. Ela aceitou o antibiótico. E não comeu a comida, mostrando a língua inchada e ensanguentada e Leavitt.
– Amanhã – ela sussurrou. – Amanhã vai estar melhor. Amanhã eu como.
As enfermeiras lhe trouxeram um uniforme novo, limpo e grande demais, que lhe escondia o ventre, bem como meias quentes e uma segunda pele de flanela, e até se ofereceram para lavar suas roupas velhas e sujas. Tatiana lhes entregou o uniforme e o casaco de lã, mas conservou a braçadeira da Cruz Vermelha.
Mais tarde, Tatiana deitou-se no chão ao lado da cama do Dr. Sayers. A enfermeira da noite chegou e lhe pediu que dormisse em outro quarto, levantando-a e ajudando-a a ir até lá. Tatiana se deixou levar, mas assim que a enfermeira desceu para o seu posto, Tatiana voltou para o Dr. Sayers.
De manhã, ele estava pior, e ela melhor. Ela recebeu de volta seu velho uniforme, remendado e branco, conseguindo comer um pouco. Ela ficou o dia inteiro com o Dr. Sayers, olhando pela janela para um trecho do golfo da Finlândia, coberto de gelo, que podia ser visto depois dos prédios de pedra e árvores desnudas. O Dr. Leavitt chegou no fim da tarde para olhar o rosto dela e perguntar-lhe se ela não gostaria de se deitar. Ela recusou.
– Por que você está sentada aqui? Por que não vai descansar um pouco?
Virando a cabeça para Matthew Sayers, Tatiana não respondeu, pensando: Porque é isso que eu faço – antes e agora. Fico sentada junto aos moribundos.
À noite, Sayers ficou pior. Tinha febre alta, de cerca de 42° C, e estava com a pele seca e suada. Os antibióticos não estavam funcionando. Tatiana não entendia o que estava acontecendo com ele. Tudo que ela queria é que ele recobrasse a consciência. Ela adormeceu na cadeira ao lado da cama dele, a cabeça perto dele.
Ela acordou no meio da noite, sentindo subitamente que o Dr. Sayers não ia conseguir sobreviver. Sua respiração – que agora era muito familiar para ela – eram os últimos ruídos roucos de um moribundo. Tatiana pegou-lhe a mão e a segurou. Ela colocou a mão na cabeça dele e, com sua língua ferida, sussurrou-lhe em russo e em inglês sobre a América e sobre todas as coisas que ele veria quando melhorasse. Ele abriu os olhos e disse, com voz fraca, que estava com frio. Ela lhe trouxe outro cobertor. Ele apertou a mão dela.
– Sinto muito, Tania – sussurrou ele, rapidamente e respirando pela boca.
– Não, eu é que sinto muito – disse ela, de modo quase inaudível. Então, em tom mais alto: – Dr. Sayers, Matthew... – Ela tentou evitar que a voz lhe falhasse. – Eu lhe imploro, por favor, diga-me o que aconteceu ao meu marido. Dimitri o traiu? Ele foi preso? Nós estamos em Helsique. Fora da União Soviética. Eu não vou voltar. Eu quero tão pouco para mim – disse ela, inclinando a cabeça sobre o braço dele. – Eu só quero um pouco de consolo – sussurrou ela.
– Vá para a... América, Tania – disse ele, num fio de voz. – Esse será o consolo dele.
– Console-me com a verdade. O senhor realmente o viu no lago?
O médico olhou para ela por um longo momento com uma expressão que pareceu a Tatiana compreensão e descrença, e então ele fechou os olhos. Tatiana sentiu a mão dele tremer na dela, ouviu sua respiração ofegante. Logo ela parou.
Tatiana não a soltou até amanhecer.
* * *
Uma enfermeira entrou e levou Tatiana delicadamente para fora e, no corredor, pôs os braços em torno dela e disse em inglês:
– Querida, você pode fazer o seu melhor pelas pessoas, mas mesmo assim elas morrem. Estamos em guerra. Você sabe que não pode salvar todo mundo.
Sam Leavitt se aproximou de Tatiana no corredor a caminho de suas visitas, perguntando-lhe o que ela pretendia fazer. Tatiana disse que precisava voltar para os Estados Unidos. Leavitt olhou para ela e disse:
– Voltar para os Estados Unidos? – E, inclinando-se para ela, continuou: – Ouça, não sei onde Matthew a descobriu, seu inglês é muito bom, mas não tão bom. Você é realmente americana?
Empalidecendo, Tatiana balançou a cabeça.
– Onde está o seu passaporte? Você não pode voltar sem passaporte.
Ela ficou olhando para ele, sem nada dizer.
– Além disso, agora é perigoso demais. Os alemães estão bombardeando o Báltico sem piedade.
– Sim.
– Os navios estão afundando a toda hora.
– Sim.
– Por que você não fica aqui trabalhando até abril, até o gelo começar a derreter? Seu rosto precisa sarar. Os pontos precisam cair. E nós podíamos usar outro par de braços. Fique em Helsinque.
Tatiana balançou a cabeça.
– Você vai ter que ficar aqui, de qualquer modo, até lhe conseguirmos um novo passaporte. Você quer que eu a leve à Praça do Senado mais tarde? Vou levá-la ao consulado americano. Vai demorar pelo menos um mês para lhe conseguir novos documentos. Por essa época, o gelo já terá derretido. Está difícil chegar aos Estados Unidos atualmente.
Tatiana sabia que o Departamento de Estado Americano, procurando uma Jane Barrington, acabaria por descobrir que ela não era Jane Barrington. Alexander lhe disse que eles não podiam ficar um segundo em Helsinque, pois a NKVD tinha um braço longo. Alexander disse que eles teriam de chegar a Estocolmo. Balançando a cabeça, Tatiana afastou-se do médico.
Ela saiu do hospital, carregando sua mochila, sua bolsa de enfermeira e seus documentos de Jane Barrington. Caminhou até o porto semicircular do sul de Helsinque e se sentou num banco, observando os vendedores da praça do Mercado carregarem suas carroças e suas mesas, varrendo o chão da praça.
A calma tornou a reinar.
As gaivotas guinchavam acima das cabeças das pessoas.
Tatiana, sentada no banco, esperou horas intermináveis até a noite cair e, então, levantou-se, caminhou por uma rua estreita que levava à iluminada igreja de São Nicolau. Ela mal olhou para a igreja.
No escuro, ficou caminhando para um lado e para outro do porto, até que viu caminhões com a bandeira azul e branca da Suécia, carregando pequenas quantidades de toras de madeira do chão. Havia muita atividade no porto. Tatiana pôde ver que a noite era a hora em que os suprimentos cruzavam o Báltico. Ela soube que os caminhões não viajavam de dia, quanto era mais fácil localizá-los. Embora os alemães normalmente não bombardeassem navios de carga neutros, às vezes o faziam. A Suécia tinha finalmente começado a enviar todos os seus carregamentos com comboios protetores. Alexander lhe contara isso.
Tatiana soube que os caminhões se destinavam a Estocolmo porque ouviu um dos homens dizer a palavra Stokgolm, que soou como “Estocolmo” em russo.
Ela ficou na beira do porto observando a madeira ser carregada na carroceria de um caminhão aberto. Ela estava com medo? Não. Não estava mais. Ela se aproximou do motorista do caminhão, mostrou-se sua braçadeira da Cruz Vermelha e disse, em inglês, que era enfermeira e estava tentando chegar a Estocolmo, e se ele poderia fazer-lhe a gentileza de levá-la ao outro lado do golfo de Bótnia com ele por cem dólares americanos. Ele não entendeu uma palavra do que ela disse. Ela lhe mostrou a nota de cem dólares e disse: “Stokgolm?”. Ele pegou o dinheiro da mão dela todo satisfeito e deixou que ela entrasse em seu caminhão.
Ele não falava nem inglês nem russo, assim, eles mal conversaram, o que era conveniente para Tatiana. Durante o caminho, em meio à escuridão iluminada apenas pelos faróis dos comboios e pelo brilho das luzes do norte acima de sua cabeça, ela lembrou que na primeira vez que beijou Alexander, quando eles estavam nos bosques de Luga, ela estava realmente com medo de que ele percebesse imediatamente que ela nunca tinha sido beijada, e ela pensou: Se ele me perguntar, eu vou mentir, pois não quero que ele pense que sou tão inexperiente. Ela pensou assim durante um ou dois segundos e, então, não pensou em mais nada, pois os lábios dele eram abundantemente apaixonados por ela, pois em sua fome de beijos, ela acabou por esquecer sua inexperiência.
Pensar na primeira vez em que eles se beijaram ocupou boa parte da viagem. Então, Tatiana adormeceu.
Ela não soube quanto tempo demorou a travessia. Nas últimas horas eles dirigiram sobre o gelo através das pequenas ilhas que precediam Estocolmo.
– Tack – disse ela ao motorista quando eles pararam no porto.
– Tack sa mycket – Alexander lhe ensinara isso, como dizer obrigado em sueco.
Tatiana andou pelo gelo, tomando cuidado para não cair, galgou alguns degraus de granito e saiu na avenida beira-mar calçada com pedregulhos. Estou em Estocolmo, pensou ela. Estou quase livre. Lentamente, ela vagou por ruas meio vazias. Era de manhã, cedo demais para que as lojas abrissem. Que dia era? Ela não sabia. Perto das docas industriais, Tatiana encontrou uma pequena padaria aberta, mas em suas prateleiras só havia pão branco. Ela mostrou seu dinheiro americano à mulher. A dona do local balançou a cabeça e disse alguma coisa em sueco.
– Bank – disse ela. – Pengar, dollars.
Tatiana virou-se para sair. A mulher a chamou, mas com uma voz estridente, e Tatiana, com medo de que a mulher suspeitasse que ela fosse clandestina na Suécia, não se voltou. Ela já estava na rua quando a mulher a deteve, dando-lhe uma fatia de pão branco e crocante, cujo aroma Tatiana nunca tinha sentido, e um copo de papel com café preto.
– Tack – disse Tatina. – Tack as mycket.
– Varsagod – disse a mulher, balançando a cabeça diante do dinheiro que Tatiana estava lhe oferecendo.
Tatiana sentou-se no banco das docas com vista para a abertura do mar Báltico e o golfo de Bótnia e comeu todo a fatia de pão e tomou o café. Ela olhou sem piscar para a aurora azul diante dela. Em algum lugar a leste do gelo ficava a sitiada Leningrado. E em algum lugar do leste dela ficava Lazarevo. E entre elas estavam a Segunda Guerra Mundial e o Camarada Stálin.
Depois de comer, ela caminhou pelas ruas até encontrar um banco aberto, onde trocou parte de seu dinheiro americano. Armada com algumas coroas, Tatiana comprou mais pão branco e, então, achou um lugar que vendia queijo – na verdade todos os tipos de queijo –, mas, o que foi ainda melhor, encontrou um café perto do porto que lhe serviu café da manhã, não apenas mingau de aveia, não apenas ovos e não apenas café, mas bacon! Ela pediu três porções de bacon e decidiu que, a partir dali, era só isso que ela ia comer no café da manhã.
O dia ainda era longo. Tatiana não sabia aonde ir para dormir. Alexander lhe dissera que em Estocolmo haveria hotéis que alugam quarto sem pedir passaporte. Como na Polônia. Na época, ela achou que isso era impossível. Mas Alexander, é claro, tinha razão.
Tatiana não só conseguiu um quarto de hotel, um quarto quente, com cama com vista para o porto, mas também com banheiro próprio, com um chuveiro com água abundante. Ela deve ter ficado uma hora embaixo da água quente.
E, então, dormiu por vinte e quatro horas.
Tatiana levou dois meses para sair de Estocolmo. Setenta e dois dias sentadas no banco do porto olhando para o leste, para além do golfo, para além da Finlândia, para a União Soviética, enquanto as gaivotas guinchavam acima de sua cabeça.
Setenta e seis dias de...
Ela e Alexander tinham planejado ficar em Estocolmo durante a primavera, enquanto aguardassem que os documentos deles chegassem ao Departamento de Estado Americano. Eles celebrariam o vigésimo-quarto aniversário dele em Estocolmo no dia 29 de maio.
A austera Estocolmo era suavizada pela primavera. Tatiana comprou tulipas amarelas e comeu fruta fresca diretamente dos vendedores do mercado, e também comeu carne: presunto defumado, carne de porco e linguiças. E tomou sorvete. Seu rosto sarou. Sua barriga cresceu. E pensou em ficar em Estocolmo, em achar um hospital para trabalhar, em ter seu bebê na Suécia. Ela gostava de tulipas e de chuveiro quente.
Mas as gaivotas choravam acima de sua cabeça.
Tatiana nunca foi à igreja de Riddarholm, o Templo da Fama da Suécia.
Por fim, ela pegou um trem para Göteborg, onde conseguiu lugar facilmente em um cargueiro sueco com destino a Harwich, Inglaterra, carregando papel. Como durante sua passagem da Finlândia para a Suécia, ela e seu navio foram cercados por alguns incidentes envolvendo bombardeios e afundamentos no mar do Norte. A Suécia neutra não tinha esses problemas, e tampouco os teve Tatiana.
Esteve tudo quieto durante sua travessia do mar do Norte e na chegada a Harwich. Para chegar a Liverpool, Tatiana pegou um trem que possuía assentos muito confortáveis. Por curiosidade, comprou um bilhete de primeira classe. Os travesseiros eram brancos. Este seria um bom trem para viajar para Lazarevo depois de enterrar Dasha, pensou Tatiana.
Ela passou duas semanas na Liverpool industrial e úmida, até encontrar uma companhia de navegação chamada White Star que viajava uma vez por mês para Nova York, mas ela precisava de um visto para embarcar. Ela comprou uma passagem de segunda classe e se apresentou na prancha de embarque. Quando um jovem aspirante pediu-lhe os documentos, Tatiana mostrou-lhe seu documento de viagem da Cruz Vermelha, emitido na União Soviética. Ele disse que aquilo não valia, que ela precisava de um visto. Tatiana respondeu que não tinha. Ele disse que ela precisava de um passaporte. Ela disse que não tinha.
– Então, querida, você não entra neste navio – disse ele rindo.
– Não tenho visto, não tenho passaporte, mas o que tenho são quinhentos dólares que eu lhe darei se você me deixar embarcar – retrucou Tatiana, tossindo. Ela sabia que quinhentos dólares era um ano de salário para o marinheiro.
O aspirante instantaneamente pegou o dinheiro e a levou a uma pequena cabine abaixo no nível do mar, onde Tatiana subiu para o beliche de cima. Alexander lhe contara que ele dormiu no beliche de cima na guarnição de Leningrado. Ela não estava se sentindo bem. Estava usando o maior de seus dois uniformes brancos, o que ela havia recebido em Helsinque. O original há muito deixara de servir, e mesmo este já não abotoava bem na altura da barriga.
Em Estocolmo, Tatiana havia encontrado um lugar para lavar seus uniformes chamado tvatteri, onde havia coisas chamadas tvatt maskins e tork tumlares em que ela punha dinheiro e, trinta minutos depois, as roupas saíam limpas, e, trinta minutos depois, secas, sem precisar ficar na água fria, sem tábuas de lavar, sem sabão. Ela não teve de fazer nada, além de sentar e observar a máquina. Enquanto fazia isso, ela se lembrou da última vez em que fizera amor com Alexander. Ele ia partir às seis da tarde, e eles acabaram de fazer amor às cinco e cinquenta e cinco. Ele só teve tempo de pôr as roupas, beijá-la e sair correndo. Quando eles fizeram amor, ele ficou em cima dela. Ela observou o rosto dele o tempo todo, segurando seu pescoço. Gritando e pedindo para não terminar, pois, quando isso acontecesse, ele teria de partir. Amor. Como eles diziam isso em sueco?
Kärlek.
Jag älskar dig, Alexander.
Enquanto suas meias e o uniforme da Cruz Vermelha giravam na tork tumlare, Tatiana sentiu-se tão gratificada por aquela última vez em que ela e Alexander tinham feito amor que ela viu o rosto dele.
A viagem até New York levou dez dias de náusea e barulho. Quando ela chegou ao seu destino, era fins de junho. Tatiana havia feito dezenove anos a bordo do White Star no meio do Oceano Atlântico. No navio, Tatiana tossia e pensava em Orbeli.
Tatiasha... lembre-se de Orbeli...
Cuspindo sangue ao tossir, Tatiana invocava suas forças que declinavam e a energia de seu coração afundado em dor para se perguntar: se Alexander sabia que ia ser preso e não podia lhe contar, pois sabia que ela nunca partiria sem ele, será que ele cerrou os dentes e mentiu?
Sim. Tudo o que ela sabia sobre Alexander lhe dizia que seria exatamente isso que ele faria. Se ele soubesse a verdade, ele lhe entregaria uma palavra.
Orbeli.
Seu peito doía tanto que parecia que ele ia se partir em dois.
Quando o White Star atracou no porto de Nova York, Tatiana não conseguiu se levantar. Não que ela não quisesse. Ela simplesmente não conseguia. Delirando depois de um violento acesso de tosse, ela sentiu que se alguma coisa estava vazando dela.
Logo ela ouviu vozes, e dois homens entraram na cabine, ambos vestidos de branco.
– Oh, não, o que temos aqui? – disse o mais baixo. – Não outra refugiada.
– Espere, ela está usando um uniforme da Cruz Vermelha – disse o mais alto.
– Com certeza, ela o roubou em algum lugar. Olhe, ele mal abotoa na barriga dela. É óbvio que não é dela. Edward, vamos. Vamos denunciá-la à imigração mais tarde. Temos que esvaziar este navio.
Tatiana gemeu. Os homens voltaram. O mais alto a examinou.
– Chris, eu acho que ela está para ter um bebê.
– O quê? Agora?
– Acho que sim – disse o médico. Ele colocou a mão debaixo dela. – Acho que a bolsa estourou.
Chris chegou-se a Tatiana e pôs a mão em sua testa.
– Sinta. Ela está ardendo em febre. Ouça sua respiração. Nem preciso de um estetoscópio. Ela está com tuberculose. Meus Deus, quantos casos destes a gente vê? Esqueça. Ainda precisamos passar por todas as cabines. Ela é a nossa primeira. Garanto que não será a última.
Edward manteve a mão no ventre de Tatiana.
– Ela está muito mal – disse ele. – Senhorita – chamou –, você fala inglês?
Como Tatiana não respondeu, Chris exclamou:
– Está vendo?
– Talvez ela tenha documento. Senhorita, onde estão seus documentos?
Tatiana continuou sem responder. Então, Chris disse:
– Já basta. Para mim, chega.
– Chris, ela está doente e para ter um bebê – disse Edward. – O que você quer a gente faça, que a abandonemos? Que tipo de médico é você? – perguntou ele, rindo.
– Sou um médico do tipo cansado e mal pago. Clínica geral não me paga o suficiente. Aonde vamos levá-la?
– Ao hospital de quarentena em Ellis Island Three. Tem lugar lá. Lá ela vai melhorar.
– Com tuberculose?
– É tuberculose, não é câncer. Vamos.
– Edward, ela é refugiada! De onde ela é? Olhe para ela. Se ela estivesse só doente, eu diria tudo bem, mas você sabe que ela vai ter o bebê em solo americano e tchan! Ela vai poder ficar aqui como todos nós. Esqueça. Faça o bebê nascer no navio, para que ela não possa reivindicar permanência nos Estados Unidos, e depois a mande para Ellis. Assim que ela melhorar, será deportada. Isso é justo. Toda essa gente pensa que pode vir para cá sem permissão... bem, já chega. Olhe quantos nós já temos. Depois que essa maldita guerra terminar, vai ficar ainda pior. O continente europeu inteiro vai querer...
– Vai querer o que, Chris Pandolfi?
– Ah, é fácil para você julgar, Edward Ludlow.
– Eu estou aqui desde as guerras entre os franceses e os índios. Não estou julgando.
Chris abanou a mão para Edward e saiu. Então, enfiando a cabeça na cabine, ele disse:
– Nós voltamos para atendê-la. Ela não está pronta para ter a criança agora. Olhe como ela está quieta. Vamos.
Edward estava para sair, quando Tatiana gemeu ligeiramente. Ele voltou e ficou junto ao rosto dela.
– Senhorita? Senhorita?
Erguendo o braço, Tatiana encontrou o rosto de Edward e colocou a mão nele.
– Ajude-me – disse ela, em inglês. – Eu vou ter um bebê. Ajude-me, por favor.
Edward Ludlow encontrou uma maca para Tatiana e foi buscar um Chris Pandolfi relutante e resmungão para a ajudá-lo a descê-la pela prancha até a balsa que a levaria para Ellis Island, no meio do porto de Nova York. Anos após o auge de Ellis Island, o hospital da ilha vinha servindo como centro de detenção e quarentena para imigrantes e refugiados chegados aos Estados Unidos.
Os olhos de Tatiana estavam tão enuviados que ela se sentiu meio cega, mas, mesmo através da neblina de seus olhos e as janelas sujas da balsa, ela conseguiu ver a valente mão oferecendo uma chama ao céu ensolarado, erguendo sua lâmpada ao lado da porta de ouro.
Tatiana fechou os olhos.
Em Ellis Island, ela foi levada para um quarto pequeno e espartano, onde Edward a deitou numa cama com lençóis brancos engomados e chamou uma enfermeira para despi-la. Depois de examiná-la, ele olhou para Tatiana com surpresa e disse
– O seu bebê já coroou. Você não sentiu?
Tatiana mal se movia, mal respirava. Depois que a cabeça do bebê saiu, ela se contorceu, cerrando os dentes em meio a palpitações que eram como uma dor distante.
Edward apresentou-lhe o bebê.
– Senhorita, está me ouvindo? Olhe, por favor. Olhe o que você teve. Um lindo menino! – disse o médico, sorrindo, aproximando o bebê dela.
– Olhe. Ele também é grande... estou surpreso que você tenha gerado um bebê tão grande. Brenda, veja isto. Você não concorda?
Brenda embrulhou o bebê num pequeno cobertor branco e o colocou perto de Tatiana.
– Ele é prematuro – murmurou Tatiana, olhando para o bebê e colocando a mão nele.
– Prematuro? – riu Edward. – Não, eu diria que ele está no tempo certo. Se demorasse mais, você teria tido problemas... de onde você é?
– Da União Soviética – disse Tatiana, distraída.
– Puxa! Da União Soviética. Como é que você conseguiu chegar aqui?
– Você não acreditaria se eu contasse – respondeu ela, deitando de lado e fechando os olhos.
– Bem, esqueça tudo agora – disse Edward, animado. – Seu menino é cidadão dos Estados Unidos – acrescentou ele, sentando-se na cadeira perto da cama. – É uma coisa boa, certo? É o que você queria.
Tatiana reprimiu um gemido.
– Sim – disse ela, pressionando o filho enfaixado contra seu rosto febril. – É o que eu queria – concluiu, sentindo dor a cada respiração.
– Você está com tuberculose. Agora está doendo, mas você vai ficar bem – disse ele, com gentileza. – Tudo o que você passou já ficou para trás.
– É disso que eu tenho medo – sussurrou Tatiana.
– Não, é bom! – exclamou o médico. – Você vai ficar aqui em Ellis Island até melhorar... Onde você conseguiu esse uniforme da Cruz Vermelha? Você era enfermeira?
– Era.
– Bem, isso é bom – disse ele alegremente. – Está vendo? Você é dona de uma habilidade valiosa. Você vai conseguir um emprego. Você fala um pouco de inglês, o que é raro entre a maioria das pessoas que chegam aqui. Isso vai fazer diferença. Confie em mim – acrescentou ele, sorrindo. – Você vai se dar bem. Agora, posso lhe trazer alguma coisa para comer? Temos sanduíche de peru...
– De quê?
– Ah, acho que você vai gostar de peru. E queijo. Vou trazer para você.
– Você é um bom médico – comentou Tatiana. – Edward Ludlow, certo?
– Certo.
– Edward...
– Para você, é Dr. Ludlow! – repreendeu Brenda, a enfermeira, em voz alta.
– Enfermeira! Deixe que ela me chame de Edward se ela quiser. O que você tem com isso?
Brenda saiu do quarto, bufando, e Edward pegou uma pequena toalha e enxugou as lágrimas de Tatiana.
– Eu sei que você deve estar triste. É assustador. Mas eu tenho um bom pressentimento com relação a você. Tudo vai dar certo. – Ele sorriu. – Eu prometo.
Através de seus tristes olhos verdes, Tatiana olhou para o médico e disse:
– Vocês, americanos, gostam de fazer promessas.
Balançando a cabeça, Edward respondeu:
– Sim, e sempre cumprimos nossa palavra. Agora, deixe-me chamar nossa enfermeira administrativa do Departamento de Saúde Pública para você. Se Vikki for um pouco rabugenta, não ligue. Ela está num mau dia, mas tem bom coração. Ela vai lhe trazer os papéis do atestado de nascimento. – Edward olhou para o bebê com carinho. – Ele é bonito. Olhe, já tem bastante cabelo. Um milagre, não é mesmo? Já pensou num nome para ele?
– Já – disse Tatiana, chorando sobre o cabelo negro do bebê. – Ele vai ter o nome do pai. Anthony Alexander Barrington.
Soldado! Deixe-me aninhar sua cabeça e acariciar seu rosto, deixe-me beijar seus caros e doces lábios, e chorar do outro lado dos mares, sussurrando através da gelada relva russa o que eu sinto por você... Luga, Ladoga, Leningrado, Lazarevo... Alexander, uma vez você me carregou, agora eu o carrego. Para a eternidade, agora eu o carrego.
Através da Finlândia, através da Suécia, até a América, as mãos estendidas, eu fiquei em pé, tropecei e avancei, com o galopante corcel negro me seguindo. Seu coração e seu rifle vão me consolar, eles serão meu berço e meu túmulo.
Lazarevo goteja você em minha alma, as gotas do rio Kama ao luar. Quando procurar por mim, procure lá, pois é onde eu estarei todos os dias de minha vida.
– Shura, não suporto pensar em você morrendo – disse-lhe Tatiana quando estavam deitados no cobertor, fazendo amor junto à fogueira na manhã cheia de orvalho. – Não consigo pensar em você ausente deste mundo.
– Esse pensamento tampouco me agrada – disse Alexander, rindo. – Eu não vou morrer. Você mesma disse isso. Você disse que eu estava destinado a grandes coisas.
– Você está destinado a grandes coisas – repetiu ela. – Mas é melhor que você se mantenha vivo para mim, soldado, pois não posso viver sem você.
É o que ela dizia, olhando para o rosto dele, as mãos sobre seu coração palpitante.
Ele se inclinou e beijou-lhe as sardas.
– Você não consegue viver? Minha rainha do lago Ilmen? – Ele sorria e balançava a cabeça. – Você vai encontrar um jeito de viver sem mim. Vai encontrar um jeito de viver por nós dois – dizia Alexander a Tatiana enquanto o rio Kama fluía dos Urais através de uma vila de pinheiros chamada Lazarevo, quando eles estavam apaixonados e eram jovens.
1 Programa pelo qual os Estados Unidos forneceram, por empréstimo, armas e outros suprimentos ao Reino Unido, à União Soviética, à China, à França Livre e a outras nações aliadas, entre 1941 e 1945 (N.T.).
2 NKVD (russo) = sigla de Comissariado do povo para assuntos internos, o Ministério do Interior da antiga URSS. Entre outras funções, patrulhava as fronteiras (N.T.).
3 No início de seu romance Anna Kariênina, Tolstói escreveu uma de suas famosas frases: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”. Este se tornou um dos inícios de romance mais conhecidos da literatura mundial (N.T.).
4 Um full house é uma mão de pôquer que consiste num par e um trio. Também é chamado de boat, full boat, full ou full barn. Se dois jogadores têm um full house, então o que tiver o trio maior vence. Se tiverem o mesmo trio, vence o que tiver o maior par (N.T.).
5 Ou straight flush: são cinco cartas seguidas do mesmo naipe que sejam do 10 ao Ás (N.T.).
Paullina Simons
O melhor da literatura para todos os gostos e idades